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ALAN HOLLINGHURST
ASA
Digitalização e Arranjo
Agostinho Costa
The Observer
Evening Standard
"Uma leitura que é puro prazer"
New Statesman
A Linha da Beleza
Um admirável romance sobre a perda da inocência, galardoado
com o Man Booker Prize de 2004.
A LINHA DA BELEZA
TRADUZIDO DO INGLÊS
ASA
GRAFIASA,
PORTUGAL
PORTO - PORTUGAL
Tel. 22 6166C30
Fax 22 6155346
E-mail: edicoes@asa.pt
Internet: www.asa.pt
Paginação - Rodapé
A.H.
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ser franzina, mas era fisicamente impetuosa; muitas vezes,
aquilo que levava os homens a sentirem-se atraídos por ela era
também o que os afugentava. Nick, na sua secreta inocência,
sentia um certo respeito pela experiência dela com os homens:
para acumular tantos fracassos, era preciso ter uma alta taxa de
êxitos preliminares. Sentia-se incapaz de avaliar se ela era muito
ou pouco ou nada atraente. No caso de Catherine, a mistura
genética de dois progenitores bem-parecidos produzira algo que
nada tinha a ver com a beleza indolente de Toby: a boca grande
de Gerald, uma daquelas bocas que parece destinada a
conquistar a confiança dos outros, fora desajeitadamente
esborrachada na esguia elipse do rosto de Rachel. As emoções
de Catherine precipitavam-se sempre para a sua boca.
Adorava tudo o que fosse satírico e era uma boa imitadora de
vozes. Quando ela e Nick se embebedavam, Catherine fazia
divertidas imitações dos outros membros da família, de tal forma
que se tinha a estranha sensação de que eles estavam lá. Havia
Gerald, com o seu vozeirão jocoso, a sua queda para tudo o que
fosse esplêndido, as suas citações favoritas dos livros de Alice.
«Francamente, Catherine», protestava Catherine, «darias cabo
da paciência até a uma ostra». Ou: «Lembras-te dos ramos da
Aritmética, Nick? Ambição, Distracção, Enfiiação e
Derrisão...?»(6) E Nick participava na festa, abandonando-se a
uma insidiosa deselegância. Aquilo que mais o atraía era o estilo
de Rachel, um estilo assente num código ao mesmo tempo
aristocrático e vagamente estrangeiro. Na sua boca, a palavra
group quase soava alemã é o género de coisa a que ela nunca
pertenceria; quando pronunciava philistine como se de uma
palavra francesa se tratasse, parecia deixar implícito que
qualquer pessoa que a pronunciasse de um modo diverso só
podia ser isso mesmo - um filisteu. Nick experimentou imitar
essas singularidades de Rachel; Catherine riu-se, mas talvez não
tivesse ficado impressionada por aí além. Ninguém conseguia
convencê-la a imitar Toby; e não havia dúvida de que o irmão era
difícil de «apanhar». Um dos seus melhores números era a
imitação da madrinha, a Duquesa de Flintshire, que, enquanto
Sharon Fungold, fora a
*6. Duas citações de Alice no País das Maravilhas; ao longo do
livro, a personagem do deputado Gerald Fedden citará por
diversas vezes o texto de Lewis Carroll. (N. do T.)
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mas que, agora, sem mangas, sem costas, sem pernas, fazia
lembrar tudo menos roupa. Nick sentou-se ao lado dela, abraçou-
a e afagou-a como que para a aquecer, embora ela estivesse tão
quente como uma criança febril. Ela deixou-se abraçar e afagar,
mas, depois, afas-tou-se um pouco. - O que é que eu posso fazer?
- perguntou Nick e apercebeu-se de que também ele queria ser
confortado. No profundo e luminoso espaço do espelho,
encontrou dois jovens mergulhados numa crise ainda obscura.
- Podes tirar as coisas do meu quarto - pediu ela. - Sim, leva tudo
lá para baixo.
- Está bem.
Nick avançou pelo corredor e entrou no quarto dela, onde, como
de costume, as cortinas estavam fechadas e o ar empestado de
tabaco. A densa gaze vermelha que envolvia o abajur desprendia
um cheiro perigoso e coava a luz por sobre um caos de roupa de
cama, roupa interior, LPs. Gavetas e armários estavam todos
revolvidos - o assalto imaginário podia ter atingido ali o seu
clímax frustrado. Nick perscrutou o espaço à sua volta e, apesar
de estar só, mimou, com algum exagero, uma presteza jovial para
controlar a situação. Embora a sua cabeça estivesse a funcionar
de um modo rápido e responsável, Nick apegava-se aos seus
últimos e escassos momentos de ignorância. Emitiu um som
baixo e grave de concentração enquanto percorria com os olhos
a mesa, a cama, o lixo que se acumulava sobre a velha e
encantadora arca de nogueira. Deu com uma bacia de rosto no
armário do canto e com uma meia dúzia de objectos que
Catherine espalhara pela tijoleira à volta do armário como se
fossem instrumentos antes de uma operação: uma pesada faca
de trinchar, um cutelo recurvado com cabo duplo, um par de
facas bem amoladas para cortar filetes e os dois pequenos e
sólidos espetos que Nick vira Gerald usar para prender e
arrancar um pedaço de uma carne qualquer, quase como se esta
pudesse, ainda assim, escapar-lhe. Juntou desajeitadamente os
objectos e, armado de cuidados, levou-os para baixo, com um
novo e deprimido respeito por eles.
Quanto a ligar para quem quer que fosse, Catherine mostrou-se
categórica: sugeriu que aconteceriam coisas muito piores se ele
o fizesse. A incerteza de Nick quanto a esta ameaça deixou-o
sem rumo certo. Limitava-se a deambular. A sua ignorância
quanto ao
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que havia de fazer era sinal de uma ignorância muito mais vasta
acerca do mundo a que recentemente chegara. Imaginou o
choque e a aflição dos pais quando descobrissem e viu a mancha
no cadastro da sua vida, ainda incipiente, com os Fedden. No fim
de contas, Nick não era digno de confiança: coisa que ele
sempre suspeitara, mas eles não. Temia estar a proceder mal,
mas, ao mesmo tempo, receava agir. E se tentasse encontrar
Toby? Mas Toby, para Catherine, era uma nulidade, alguém que,
quando muito, ela tratava com uma polidez desatenta. Nick
estava a moldar a história na sua cabeça. Persuadiu-se de que o
desastre fora uma possibilidade, ou mesmo quase uma certeza,
mas que acabara por ser rejeitado. Houvera um ritual de
confrontação que durara uma hora, um minuto, toda a tarde - e
talvez tivesse sido apenas isso, um ritual. Agora que Catherine
caíra num silêncio e numa passividade quase totais (limitava-se
a bocejar, e o que ela bocejava), Nick perguntava-se se o
episódio não teria já sido levado para longe e escondido e
isolado por um qualquer mecanismo particularmente eficaz. Era
possível que o seu próprio regresso a casa tivesse, desde o
primeiro instante, desempenhado um papel de relevo na trama
que ela urdira. Do que não havia dúvida era que, agora que
estava de volta, ser-lhe-ia muito difícil rejeitar os pedidos dela. -
Por amor de Deus, não me deixes só. - Ao que retorquiu - Claro
que não - e sentiu a ocasião a fechar-se sobre ele, como quatro
paredes que, vindas de muito longe, se contraíam cada vez mais,
ameaçando sufocá-lo. E isso por causa de uma outra coisa de
que Toby lhe falara, naquele dia junto ao lago: há alturas em que
ela não pode estar só, em que ela tem de ter alguém a seu lado.
Nessa altura, Nick não desejara outra coisa senão partilhar os
deveres fraternais de Toby, mergulhar a fundo no difícil romance
da família. E, agora, ali estava ele, com o seu romance pessoal
prestes a desenrolar-se no bar das traseiras do Chepstow Castle,
e não é que ela o escolhera precisamente a ele para lhe fazer
companhia? Catherine não era capaz de explicar porquê, mas a
verdade é que só ele é que servia.
Nick levou-a para a sala de estar e ela escolheu uma música. Ou
melhor, foi até ao armário do gira-discos, tirou um disco sem ver
o que era e pôs o disco no prato. Parecia querer dizer que era
capaz de agir, mas que ainda não estava em condições de
reflectir e decidir. A música surgiu com um desagradável
rangido. O braço descera no
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- Não. No fim-de-semana, não vai dar.
Nick queria perguntar-lhe «Porque não?», mas sabia qual era a
resposta, Leo tinha encontros marcados com outros candidatos;
aquilo devia ser género audições para o teatro. - Na próxima
semana? - perguntou, com um encolher de ombros. Queria
encontrar-se com ele antes que Gerald e Rachel regressassem,
queria usar a casa.
- E... Vais brincar ao Carnaval? - disse Leo.
- Talvez no sábado, nós vamos estar fora no feriado. É melhor
encontrarmo-nos antes disso. - Nick ansiava pelo Carnaval, mas
sentia, não sem alguma humildade, que esse era o elemento de
Leo. Viu-se a si mesmo perdendo Leo logo no primeiro encontro,
uma rua inteira que se movia numa sólida corrente e uma pessoa
nem sequer conseguia virar-se para trás.
- O melhor será tu ligares para a semana - disse Leo.
- Mas é claro que ligo - disse Nick, fingindo que achava que tudo
aquilo era positivo, mas sentindo-se inopinadamente infeliz e
com uma sintomática rigidez facial. - Ouve, peço-te imensa
desculpa por esta noite, mas prometo que depois te compenso.-
Houve uma nova pausa e Nick teve a clara noção de que a sua
sentença estava a ser decidida, todo o seu futuro, talvez. Até que
Leo retorquiu, num sussurro gutural:
- Ah, mas não tenhas dúvidas! - e no momento em que Nick
rompeu num risinho espremido, Leo desligou. Portanto: aquela
fora uma pausa conspiratória, uma conspiração de
desconhecidos. Não era mau de todo. Não, até era uma
maravilha. Nick desligou também e foi ver-se no amplo arco
dourado do espelho da entrada. Com o súbito júbilo resultante da
descompressão, disse para si mesmo que estava bem, muito
bem, tão atraente, um homem pequeno, é certo, mas sólido, a
pele límpida, luminosa, o cabelo encaracolado. Sim, podia ver
Leo a apaixonar-se por ele. Até que reparou que a cor se escoara
das suas faces. Então, deu meia-volta e subiu as escadas.
Quando começou a ficar mais fresco, Nick e Catherine desceram
até ao jardim da casa, passaram o portão e dirigiram-se para os
jardins comunais. No romance de Londres que Nick ia
escrevendo,
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*2. Para variar, Gerald cita Kipling, The Cat Who Walks by
Himself. (N. do T.)
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por um determinado tema, capital ou insignificante, podia
rapidamente deixar dois desconhecidos num estado muito
particular de moderado arrebatamento e emulação, algo que só
remotamente se assemelhava a amor; mas era preciso que o
acaso ajudasse e que os dois desconhecidos se tivessem
apaixonado pelo mesmo tema. No que tocava às ambições,
sentia que era difícil anunciá-las sem parecer que estava a
enganar-se a si mesmo ou a mostrar-se timorato e, de facto,
muito pouco ambicioso. Gerald poderia dizer «Eu quero ser
Ministro da Administração Interna»; quem o ouvisse sorriria, mas
admitiria uma tal possibilidade. Ao passo que a ambição de Nick
era ser amado por um atraente homem negro com vinte e tais e
uma bicicleta desportiva e um emprego numa autarquia local.
Essa era a única coisa que ele não conseguiria admitir perante
Leo.
Pela centésima vez, centrou os seus pensamentos no bar das
traseiras do Chepstow Castle, que escolhera por causa da sua
atmosfera obscura e razoavelmente privada - um espaço para o
qual os clientes do bar mais popular espreitavam sem grande
curiosidade, mas que era muito pouco frequentado nas noites de
Verão, quando toda a gente ia para a rua. Havia uma luz âmbar
naqueles recantos, no meio dos velhos espelhos com anúncios
de whisky e das fotografias de carroças puxadas por cavalos.
Viu-se a si mesmo sentado ao lado de Leo, ombro contra ombro,
as mãos furtivamente enleadas na alcatifa poeirenta.
Já perto do pub, deu por um homem negro que se encontrava
logo a seguir a um grupo de bebedores; um momento depois,
teve a certeza de que era Leo; um momento depois desse, fez de
conta que não o vira. Afinal era bastante pequeno; e deixara
crescer uma espécie de barba. Mas por que raio é que ficara na
rua? Nick estava já perto de Leo; nervoso, muito nervoso, voltou
a olhar para ele e viu o seu sorriso inquiridor.
- Se não me queres conhecer... - disse Leo.
Nick hesitou e riu-se e, num repente, estendeu a mão. - Pensei
que estivesses lá dentro.
Leo acenou com a cabeça e olhou pela rua abaixo. - É que,
assim, podia ver-te chegar.
- Ah... - Nick riu-se de novo.
- Além disso, não me sentia muito tranquilo por causa da
bicicleta, aqui sozinha, nesta zona. - E lá estava a bicicleta,
requintada.
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para isso que ali estava, e Nick sorriu e corou, o que fez com que
Leo sorrisse também, por um momento.
- Vejo que estás a deixar crescer a barba - disse Nick.
- E... peles sensíveis... é um banho de sangue sempre que me
barbeio. Literalmente - disse Leo, com um rápido relance que
mostrava a Nick que ele gostava de deixar as coisas bem claras.
- Depois, quando não me barbeio, fico com pêlos encravados, e
então é que é uma porra que só visto, tenho de puxar as pontas
dos malditos pêlos com um alfinete. - Com a sua mão pequena e
fina, afagou o restolho que lhe cobria o queixo e Nick viu que ele
tinha aquelas minúsculas espinhas provocadas pelo
escanhoamento diário e que já havia entrevisto noutros homens
negros. - Normalmente, não faço a barba durante uns dias,
durante quatro dias, por exemplo, ou, digamos, cinco, e só depois
é que me barbeio como deve ser: sempre é uma maneira de uma
pessoa evitar problemas.
- Pois... - disse Nick, e sorriu, em parte porque estava a aprender
algo de interessante.
- Mesmo assim, a maior parte dos homens ainda me reconhece -
disse Leo, e piscou-lhe o olho.
- Não, não era disso que eu estava a falar - disse Nick, que era
demasiado tímido para explicar a sua própria timidez. O seu olhar
deslizava num vaivém entre a braguilha folgada de Leo e a
impecável almofada rasa do cabelo e tendia a evitar o seu
atraente rosto. Dava toda a razão a Leo quando dizia que era
atraente, mas a palavra não cobria, não, de modo nenhum, o
contínuo choque provocado por aquilo que nele havia de belo, de
estranho, e até de feio. No espírito de Nick, a expressão «a maior
parte dos homens» foi ganhando lentamente sentido. - De
qualquer modo... - disse, e bebeu um gole rápido que lhe deixou
na boca uma tranquilizante sensação de ardor. - De qualquer
modo, imagino que tenhas recebido montes de respostas. - Por
vezes, quando estava nervoso, fazia perguntas cujas respostas
preferiria não conhecer.
Leo deu um pequeno e cómico assopro de exaustão. - E... pois,
mas sucede que eu não respondo a algumas delas. Para certas
pessoas, isto não passa de uma brincadeira. Não mandam foto
ou, se mandam, têm um ar horrível. Ou então têm noventa e nove
anos. Recebi mesmo uma carta de uma mulher, lésbica, sem
dúvida, pro-pondo-me que fosse o pai do filho dela. - Leo franziu o
sobrolho,
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A sua coragem não dava para tanto, para aquela noite, chegaria;
para falar do deputado, é que nunca. Um deputado Tory
ensombraria o encontro como um pau-de-cabeleira indesejado e
Leo pegaria na sua bicicleta e deixá-los-ia, a ele e ao pau-de-
cabeleira, pespegados no passeio. Talvez pudesse dizer qualquer
coisa sobre a família de Rachel, caso fosse necessário dar
alguma explicação. Na realidade, porém, Leo esvaziou o seu
copo e disse: - Posso oferecer-te outra?
Nick acabou apressadamente a sua bebida e disse: - Obrigado.
Outra Coca-Cola, talvez não. Se calhar, vou pedir para
misturarem um pouco de rum.
Meia hora depois, Nick caíra numa espécie de transe
desinquieto, provocado não só pela presença do seu novo amigo,
mas também pelo sentimento, enquanto o céu escurecia e os
candeeiros da rua passavam do rosa ao ouro, de que a noite ia
ser um êxito. Sentia-se nervoso, um tanto esbaforido, mas, ao
mesmo tempo, eufórico, como se lhe tivessem tirado de cima dos
ombros uma responsabilidade solitária. Uns quantos lugares
ficaram livres na ponta de uma mesa de piquenique com bancos
fixos e eles sentaram-se, inclinados um para o outro como se
estivessem a jogar a um qualquer jogo invisível de que se tinham
em parte esquecido. Para Nick, o à-vontade e o conforto que o
rum lhe proporcionava eram elementos indissociáveis da
intimidade que, sentia, estava a tornar-se tão profunda como a
penumbra.
Deu por si a perguntar-se como é que eles pareceriam e soariam
aos olhos e ouvidos das pessoas à sua volta, do casal ao lado
deles, por exemplo. Com a chegada da noite, tudo estava a ficar
mais barulhento, com uma vaga sensação de ameaça
heterossexual. Nick imaginava que os outros encontros de Leo
teriam decorrido em bares gays, mas ele rejeitara
categoricamente uma tal hipótese - seria uma batalha, uma
provação mais. Agora, lamentava não dispor da liberdade que
teria tido num sítio desses. Queria acariciar o rosto de Leo e
beijá-lo, com um suspiro de rendição.
Não disseram nada de muito pessoal. Nick sentiu que as suas
actividades não interessariam a Leo, o qual também não pegou
nas diversas e discretas pistas que ele foi lançando acerca da
sua família e antecedentes.
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- Está a fazer-se tarde - disse ele. - Não posso voltar muito tarde.
Nick baixou os olhos e murmurou: - E tens de voltar? - Tentou
sorrir, mas sabia que uma súbita ansiedade se cravara no seu
rosto. Pôs-se a mexer no copo húmido, a movê-lo em círculos
sobre o tampo grosseiramente aplainado da mesa. Quando
ergueu de novo os olhos, verificou que Leo o fitava com um ar
céptico, uma sobrancelha arqueada.
- Queria dizer, voltar para a tua casa, claro - disse.
Nick sorriu e enrubesceu com a perfeição da emenda, como uma
criança que, depois de muito implicarem com ela, se vê de súbito
livre de tormentos e premiada. Mas, depois, teve de dizer:
- Não creio que possamos...
Leo olhou-o bem nos olhos. - Não tens espaço que chegue lá em
casa?
Nick estremeceu e aguardou, a verdade é que não se atrevia,
não, não podia fazer isso a Rachel e Gerald, além de inseguro era
ordinário, as consequências desfilavam já à sua frente, toda
aquela feliz rotina, assente numa consonância risonha, efusiva,
definharia para sempre. - Não creio que seja possível. Não me
importo de ir para a tua casa.
Leo encolheu os ombros. - Não é prático - disse.
- Eu posso apanhar o autocarro - disse Nick, que estudara o A-X
de Londres em absortas conjecturas sobre a rua de Leo, o bairro,
as igrejas históricas, os acessos aos transportes públicos.
- Não... - Leo desviou o olhar com um sorriso relutante e Nick viu
que ele estava embaraçado. - A minha velha está em casa. - Este
primeiro toque de timidez e vergonha, e a ironia que tentava
encobri-lo, claramente londrina, mas também antilhana, fizeram
com que Nick desejasse atirar-se a ele e enchê-lo de beijos.
- Ela é profundamente religiosa - disse Leo, com um breve risinho
desolado.
- Estou a ver... - disse Nick. De maneira que para ali estavam
eles, dois homens numa noite de Verão sem sítio nenhum a que
pudessem chamar seu. Havia nisso uma espécie de romance. -
Tive uma ideia - disse ele, hesitante. - Se não te importares...
hum... de passar um bocado ao ar livre...
- Não estou interessado - disse Leo, olhando, num jeito indolente,
por cima do ombro.
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Kessler tinha uns sessenta anos, era mais baixo e robusto que
Rachel, calvo, com um rosto vivo e não propriamente simétrico.
Vestia um fato cinzento-escuro que não fazia a menor concessão
à moda, nem tão-pouco à estação; com aquele fato vestido, tinha
todo o ar de sofrer com o calor, mas, ao mesmo tempo, parecia
dizer que não havia outra maneira de uma pessoa se vestir.
Comeu o seu salmão e bebeu o seu vinho branco do Reno,
particularmente doce, com um indefinível ar de prazerosa rotina,
que apontava para toda uma vida de almoços em salas de
conselhos de administração e casas de campo e festivos
restaurantes por toda a Europa. - Então quando é que Tobias e
Catherine vêm? - perguntou ele a certa altura.
- Preferiria não indicar uma hora demasiado precisa - disse
Gerald. - Toby vem com uma namorada, Sophie Tipper, que por
acaso é filha de Maurice Tipper e uma jovem actriz muito
prometedora. - Olhou para Rachel, que logo retorquiu:
- Não, ela é de facto uma grande, uma imensa promessa... - um
comentário que hesitava em incluir algo que ela parecia ver num
futuro não muito distante, mas que, como tantas vezes sucedia,
tinha a amabilidade de calar. Por vezes, Nick sentia que o facto
de serem «filhos de» era o único trunfo de que alguns dos seus
amigos dispunham para atraírem as atenções da distraída
geração dos seus pais. Observou a reacção de Lord Kessler ao
ouvir o nome de Maurice Tipper, uma fungadela e um murmúrio,
não mais que a expressão de uma ironia, uma entre as inúmeras
ironias com que as diferentes categorias de pessoas ricas se
brindavam. Aquele caso com Sophie Tipper vinha-se arrastando
sem o menor sentido desde o segundo ano em Oxford, como se
Toby, ao sair com a filha de um magnata, estivesse, muito
docilmente, a satisfazer as expectativas alheias.
- Quanto a Catherine - prosseguiu Gerald -, vem com um suposto
namorado de cujo nome não me lembro e que, disso estou certo,
nunca vi nem mais gordo nem mais magro. - Sorriu
generosamente do seu próprio comentário. - Mas estou à espera
de que cheguem bastante tarde e a toda a velocidade. Na
realidade, Nick deve conhecer esse capítulo melhor do que nós.
Nick não sabia quase nada. - Está a falar de Russell? - disse. -
Sim, é muito simpático. E um fotógrafo muito promissor - numa
imitação bem-sucedida dos modos e pontos de vista do meio em
que se encontrava.
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- Para ser franco, há imensas coisas dele que ainda não li.
- Mas deve conhecer esse - disse Lord Kessler.
- Não, este é muito bom - disse Nick, fitando a lombada com um
ar de discreta condescendência. Por vezes, devido a um qualquer
fértil processo de auto-sugestão, a sua memória dos livros que
alegava ter lido tornava-se quase tão nítida como a memória dos
livros que lera e de que, em parte, já se tinha esquecido. Voltou a
pôr o livro no lugar e fechou o armário dourado. Tinha a
sensação, ou talvez fosse apenas uma consequência do seu
próprio constrangimento, de que, sob o afável disfarce da
sociabilidade, estava a ser levada a cabo uma qualquer
diligência formal, e isso era algo de novo para ele, embora
profundamente familiar para o seu anfitrião.
- Em criança, frequentou a mesma escola que Tobias?
- Oh... não, sir. - Nick deu-se conta de que decidira não mencionar
a escola primária de Barwick. - Estivemos juntos em Oxford, no
Worcester College... Embora eu tivesse estudado Inglês e Toby
PPE(1).
- Exacto... - disse Lord Kessler, que talvez não tivesse grandes
certezas quanto ao assunto. - Foram contemporâneos.
- Sim, precisamente - disse Nick, e pareceu-lhe que a palavra
«contemporâneos» lançava uma luz histórica sobre os singelos
três anos que haviam passado desde que vira Toby pela primeira
vez; Toby estava na portaria e, mal o viu, foi como se tudo o mais
se tivesse evaporado.
- E teve um First?(2)
Nick adorava a confiança agressiva - expressa num murmúrio -
da pergunta, porque podia responder «Sim». Sentia que, se
tivesse sido «Não», se tivesse obtido um Second como Toby,
tudo teria sido diferente - e, dado o contexto, uma mentira seria,
por certo, muitíssimo imprudente.
- E como é que avalia as possibilidades do meu sobrinho? -
perguntou Lord Kessler com um sorriso, embora Nick não
soubesse ao certo
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mas o criado já não estava lá e, em vez do jovem de olhos
escuros, quem Nick viu foi Paul Tompkins, que se encaminhava
na sua direcção.
- Meu caro!
Em Oxford, Tompkins era amplamente conhecido como Polly,
mas Nick disse-lhe «Olá, Paul», visto que a alcunha lhe pareceu,
de súbito, demasiado íntima ou demasiado crítica. - Como estás?
- Deu-se conta de que, no romântico retrospecto da sua vida em
Oxford, a figura de Paul havia sido obliterada.
- Estou extremamente bem - disse Paul, num tom muito
significativo. Era um indivíduo largo e redondo a meio e, enfiado
naquele fato de cerimónia bastante justo, o seu corpo parecia
afilar-se na direcção de uns pés estreitos e de uma cabeça alta
onde avultavam umas fartas bochechas. Durante o tempo que
Nick passara em Oxford, Paul fora uma fonte constante de
conflitos, um recorrente manancial de intrigas, veneno e
ambição, enfim, uma espécie de monstro da associação de
estudantes e do MCR(1). Disputara um lugar no funcionalismo
público, obtendo uma qualificação muito próxima das melhores
e, recentemente, ocupara um qualquer posto, pelos vistos
promissor, em Whitehall. Andava já de olhos esbugalhados, por
via da disputa entre uma discrição pomposa e um apetite natural
pelo escândalo. Ergueu o copo. - Os meus cumprimentos ao
malandrão do velho Lionel Kessler... Estes criados são de cair
para o lado! Um deslumbramento...!
- Eu sei...
- Aquele com o champanhe é da Madeira, ora aí está uma
divertida coincidência. Champanhe e Madeira...
- Ah sim...
- Bom, antes assim do que ao contrário. Agora, porém, vive em
Fulham: por pouco, não era meu vizinho...!
- Estás a falar daquele ali...
- Tristão. - Paul lançou-lhe um olhar de pura malícia. - Meu caro,
pergunta-me mais coisas depois do nosso encontro... É já para a
semana que vem.
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das suas capacidades físicas e mentais, nos braços de Wani.
Três raparigas faziam coreografias disco, rodopiando e tocando
nos cotovelos. Nick não era capaz de fazer isso. As raparigas
dançavam melhor do que os rapazes, como se a dança fosse
realmente o seu elemento, ao passo que os seus parceiros,
brigões, agressivos, faziam uma triste figura. Nick não gostava
da zona ao pé da porta, para onde se tinham deslocado alguns
dos casais mais velhos, os quais, agora, iam trotando para a
frente e para trás como se estivessem muito habituados a
dançar ao som dos Spandau Ballet. A luz ultra-violeta fazia
brilhar a camisa de peitilho de Nat Hanmer e o branco dos seus
olhos ficava assustadoramente estranho. Deram as mãos por um
momento e Nat esbugalhou os olhos para ele por causa do efeito
grotesco que provocava e depois gritou-lhe - Seu grande
panasca! - e deu-lhe uma palmada nas costas e espetou-lhe um
beijo na orelha antes de desandar. - Ai os teus olhos! - Mary
Sutton parou a olhar pasmada para Nick e ele esbugalhou os
olhos o mais que pôde. Era fácil tropeçar na borda razoavelmente
alta da pedra da lareira, bastava ir dançar para ao pé da mesma,
e Nick tropeçou e caiu em cima de Graham Strong e disse - É
bestial voltar a ver-te! - porque, por vezes, também lhe
acontecera desejar ardentemente Graham, Nick mal o conhecia,
e disse-lhe - Temos de dançar os dois sozinhos mais tarde - mas
Graham já lhe tinha virado as costas, e Nick acabou no meio de
Catherine, Russell e Pat Grayson, onde foi muito bem acolhido, o
que também não admirava, visto que formavam um trio
francamente confrangedor.
Abriu uma porta que ligava o salão de entrada a uma pequena
sala de estar, onde um homem em mangas de camisa se levantou
e disse - O que se passa? - e avançou na direcção dele com cara
de poucos amigos.
- Peço imensa desculpa - disse Nick -, fui dar ao sítio errado - e
retirou-se e fechou com estrondo a porta.
Podia ouvir a música ao longe, e o burburinho e as gargalhadas
que vinham da biblioteca, e um sonoro zunido nos seus próprios
ouvidos. Lá no alto, os cem lírios do lustre cintilavam e
piscavam, havia uma hesitante animação nas coisas, todas elas
palpitavam ao ritmo do seu próprio pulso. Foi avançando,
furtivamente por vezes, outras como se desfilasse, por uma série
de salas iluminadas, abandonado, divertido, pensando que, ao
olhar para um almofadão
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- nada - disse Nick num tom jovial, já que a bebida o deixara meio
anestesiado e quase cego perante o novo fracasso que se
avizinhava.
- Tenho de ir. - Tristão tirou o lacinho do bolso e, por um
momento, entreteve-se a mexer no elástico e no clipe. Nick
aguardou que ele despisse o avental. - Olha, OK, eu vejo-te, junto
escadas principais, três horas.
- Oh... OK, óptimo! - disse Nick, e encontrou um feliz alívio tanto
na combinação como no ligeiro deferimento. - Três horas...
- Em ponto - disse Tristão, com uma carranca severa.
Acercou-se da porta do quarto de Toby e espreitou lá para
dentro. Alguns dos seus amigos tinham-se instalado no quarto
depois de a música ter acabado às duas, e, agora, pareciam
avaliá-lo num jeito indolente. - Chiça, Nick, entra e fecha a porta -
disse Toby, acenando-lhe da ampla cama onde ele se sentara no
meio de vários amigos que tinham preferido estirar-se ao
comprido. Lord Kessler dera-lhe o Quarto do Rei, onde Eduardo
VII dormira; os drapeados de seda azul por sobre a cabeceira
convergiam numa coroa dourada que era vagamente cómica. Na
parede oposta, dominava um confortável nu de Renoir. Nick abriu
caminho por entre grupos sentados no chão, diante de um
enorme sofá onde o gordo Lord Shepton se deitara com a gravata
desfeita e a cabeça nas coxas de uma atraente rapariga bêbeda.
Tinham afastado os cortinados e aberto uma janela para que o
fedor da marijuana não chegasse, nem de longe, ao nariz do
Ministro da Administração Interna. De algum modo, haviam
recriado o ambiente de um quarto de universidade a altas horas
da noite, os pés das raparigas, ainda com as meias, estirados em
cima dos joelhos dos namorados, o fumo no ar, duas ou três
vozes dominantes. Nick sentiu o encanto, bem como a ameaça
do grupo. Gareth Lane arengava acerca de Hitler e Goebbels e o
tom arrastado e monótono da sua prelecção e as ruidosas
gargalhadas com que os outros saudavam os seus trocadilhos
traziam de volta qualquer coisa de deprimente dos tempos de
Oxford. Gareth Lane fora considerado «o mais competente
historiador do seu ano», mas não conseguira obter um First, e,
agora,
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- Por amor de Deus, Claire... - disse Roddy.
Claire ficou parada a olhar para Toby com um ar cada vez mais
convicto. - Há bocado, não houve alguém que disse que o
Ministro da Ministração Interna também era judeu...? - disse ela,
por
fim.
- Acalma-te, Claire! - rugiu Roddy Shepton. Estava firmemente
convencido de que a sua opulenta e plácida namorada, que
nunca erguera a voz para criatura nenhuma neste mundo, era
uma pessoa perigosamente lúbrica. Talvez fosse a maneira que
ele tinha de dizer que domara um vulcão sexual; o que, por sua
vez, talvez o ajudasse a explicar porque é que andava com uma
rapariga que era classe média da cabeça aos pés, mais
exactamente a filha do tipo que administrava os bens da família
Shepton.
Claire olhou à sua volta, determinada a aprofundar a sua nova
ideia. - Tu és judeu, não és, Nat?
- Sou, querida - disse Nat -, ou, enfim, meio judeu.
- E a porra da outra metade é galesa - atirou Roddy. Virou a
cabeça sobre os joelhos de Claire e semicerrou os olhos para ver
melhor em que estado se encontrava ela. - Santo Deus - disse -,
estás perdida de bêbeda.
Este era o tipo de insulto que, no ambiente do Martyrs' Club,
passava por espirituoso; para dizer a verdade, era até uma das
frases que mais se ouvia naquele espaço. Certa vez, Toby levara
Nick à acanhada e desconfortável sala de jantar do clube, com
as suas paredes apaineladas, onde meninos podres de ricos do
Christ Church(1) e dirigentes da associação de estudantes
alinhavam todos pelo mesmo diapasão ensurdecedor e bebiam
até caírem e conspiravam e trocavam aos urros comentários
inaceitáveis, não se esquecendo de brindar a maltratada equipa
de funcionários com o mesmo género de ofensas. Era um outro
mundo, agressivamente impenetrável, e, para Nick, fora um
choque descobrir que Toby fazia parte dele.
- Estás completamente fodido de bêbedo, Shepton - disse Toby.
Tirara as meias e enrolara-as numa bola. De repente, atirou a
bola com toda a força e precisão à cabeça do gordo lorde.
- Mas que porra é esta, Fedden - murmurou Roddy, mas ficou-se
por aí.
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*1. Termo afectuoso que, a par de Cat (gata), Gerald utiliza com a
filha; traduzível por «Bichana». (N. do E.)
2. A personagem usa a expressão God-dammery por colagem ao
Gótterdámmerung (O Crepúsculo dos Deuses, de Richard
Wagner). É um engenhoso trocadilho (facilitado pela proximidade
entre o alemão e o inglês) que, obviamente, não passa na
tradução. A personagem distorce o título de Wagner e, em vez de
«crepúsculo dos Deuses» temos algo que, caricaturalmente, se
aproxima de «danação do Deus». No entanto, God-dammery
também aponta para «Goddam» ou «Goddamn», um termo que
exprime normalmente raiva ou frustração (isolada, é traduzível
por «Raios (me) partam!», «Porra!», etc, etc). (N. do T.)
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romântica pesadamente orquestrada. Desandou na direcção da
sala de entrada e Gerald e Nick ouviram a porta da rua bater com
algum estrondo.
O problema era aquela colossal redundância, o desperdício de
uma técnica brilhante com material de segunda ou terceira
categoria, a sensação de que os nervos morais haviam sido
extirpados, deixando o grande e inchado corpo entregue a uma
vida de inúteis excessos. E, depois, havia o rematado mau gosto
de aplicar a elevada linguagem metafórica de Wagner às
banalidades da vida burguesa, um absurdo de que Strauss só
uma vez por outra parecia ter consciência! Mas Nick não poderia
dizer uma coisa dessas, claro que soaria pedante, daria a
impressão de que atribuía demasiada importância ao caso.
Gerald retorquiria que aquilo era apenas música. Durante uns
minutos, Nick tentou ler o jornal, mas, por alguma estranha
razão, estava tão excitado que não conseguia concentrar-se.
- É então que o corne-inglês abandona finalmente o seu papel de
adversário carpidor e se metamorfoseia numa bucólica flauta, a
fim de introduzir a pungente melodia que anuncia a partida
iminente do Herói rumo ao além. Para um exemplo de como não
interpretar esta passagem, voltemos àquele disco de preço
muito acessível, gravado pela Orquestra da Rádio Caracas, cujo
solista, pelos vistos, não foi avisado da profunda transformação
que referimos...
- Gerald, sempre conseguiste falar com Norman? - perguntou
Rachel num tom insistente, como se até ela não estivesse muito
certa de conseguir vencer a barreira straussiana. Porém, uma
pergunta ou uma ordem de Rachel tinham automaticamente
prioridade sobre tudo o mais, de modo que Gerald respondeu:
- Consegui, sim, minha querida - logo avançando para ela a fim de
pegar num cesto de rosas amarelas com longos caules que
Rachel trazia do jardim. Ela não precisava de ajuda e a breve e
galante pantomima quase passou despercebida, como se fosse, e
era, o idioma comum do casal. - Penny vai passar por cá para
termos uma conversa. Norman diz que ela é demasiado
orgulhosa para trabalhar para os Tories.
- Ficará muito contente com a perspectiva de um emprego -
comentou Rachel. Norman Kent, cujos temperamentais retratos
de
Toby e Catherine estavam pendurados na sala de estar e no
patamar do segundo piso, era um dos amigos de «esquerda» de
Rachel dos seus tempos de estudante, um amigo a quem ela
permanecera obstinadamente leal; Penny era a rosada e loura
filha de Kent, também acabada de sair de Oxford. Era possível
que fosse trabalhar para Gerald. - Catherine ainda está lá em
cima? Ou já desceu? - perguntou Rachel.
- Mm...? Não, não está lá em cima nem cá em baixo; de facto,
está fora. Foi ver o homem da Face(1).
- Ah. - Rachel cortava com expressiva eficácia os caules das
rosas. - Bom, espero que ela volte a tempo para o almoço com a
tua mãe.
- Não estou lá muito certo disso... - disse Gerald, que considerava
sem dúvida que o almoço correria muito melhor sem a filha,
tanto mais que Toby e Sophie iam estar presentes. Escutou o
programa até à recomendação final sobre Ein Heldenleben e,
com um ar pensativo, desligou o rádio. - Aquele tipo, Nick... -
disse - ... é um tipo decente, não é?
- Quem... Russell? Sim, acho que sim. - Tendo prestado um
testemunho abonatório, fervoroso, até, duas semanas antes,
quando nem sequer conhecia Russell, via-se forçado a manter
uma posição vagamente positiva, agora que o conhecia e sabia
que o indivíduo era pura e simplesmente insuportável.
- Ah, ainda bem - disse Gerald, contente por ter arrumado esse
ponto.
- A mim, pareceu-me uma criatura francamente sinistra - disse
Rachel.
- Percebo o que quer dizer - disse Nick.
- Se há uma coisa que nós já aprendemos, Nick - disse Gerald -, é
que os namorados de Catherine são todos maravilhosos.
Qualquer crítica nossa é a mais refinada das traições. Quanto
menos encantador for o indivíduo, tanto maior será o empenho
com que o admiramos.
- Nós adoramos o Russell - disse Rachel.
*1. No original, the man witb the Face é «o homem» que trabalha
na revista Face, mas também pode ser entendido como uma
referência à «desfaçatez» ou ao «descaramento» do fotógrafo.
(N. do T.)
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se desse conta de que aquela poderia ser uma meia hora muito
constrangedora para todos eles. Para começar, Nick seria muito
sensível a toda e qualquer coisa que pudesse ser dita. Como
tantas vezes sentira já, ele possuía o tipo de ironia errado, os
conhecimentos errados, para a vida gay. A ideia de um casal de
homens, entre outras emoções que envolviam interesse e
excitação, ainda provocava nele algum choque. Ele e Leo faziam
um par, à sua maneira, é certo, uma maneira peculiar e
transitória, mas a verdade é que ainda não formavam um casal.
- Então o que é que temos por cá? - perguntou Pete, voltando
para a loja atrás de Leo.
- Pete, Nick - disse Leo com um sorriso largo e uma mímica que
traduzia o profundo desejo de os juntar. O esforço que fazia para
cativar e tranquilizar era uma faceta dele que Nick ainda não
conhecia; parecia tornar possível, a longo prazo, toda a sorte de
outras coisas. - Pete é o melhor dos meus velhos amigos - disse
ele, com a sua voz cockney, a voz das concessões. - Não és,
querido? - Nick e Pete cumprimentaram-se e Pete retraiu-se,
como que confrontado com qualquer coisa que não seria muito
do seu agrado, e, um segundo depois, virou-se para Leo e disse-
lhe:
- Pelos vistos, andaste outra vez a rondar os portões das
escolas... Seu velho safado...
Leo ergueu uma sobrancelha e disse: - Bom, não te vou lembrar
que idade é que eu tinha quando me rapinaste do meu carrinho
de bebé.
Nick riu-se animadamente, ainda que aquele fosse um género de
burlesco camp a que não achava naturalmente graça; além do
que era surpreendentemente doloroso ter algum acesso, ainda
que muito superficial, ao passado daqueles dois. Deu por si a
imaginar, e meio a acreditar, a história de Leo no seu carrinho de
bebé. O facto de se ser muito jovem e de se ter uma cara fresca
e viçosa era, por norma, uma vantagem, mas se havia coisa que
ele não queria era que o vissem como uma criança. - A verdade é
que tenho vinte e um anos - disse ele num tom fingidamente
ríspido.
- Mas que modos de falar...! - comentou Pete.
- Nick vive aqui perto - disse Leo. - Kensington Park Gardens.
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- Eles não pronunciam Barrick?
- Só certas pessoas terrivelmente pretensiosas.
Pete acendeu um cigarro, puxou uma longa fumaça e logo
desatou a tossir, ficando com um ar quase doentio. - Ah, já estou
melhor - disse. - Sim, Bar-wick. Eu conheço Barwick. É aquilo a
que se pode chamar uma terra antiga e muito pitoresca, não é?
- Tem um belo mercado do século XVIII - disse Nick, para o
ajudar a lembrar-se.
- Uma vez comprei lá uma pequena escrivaninha Directório, estilo
bombé, você sabe o que quer dizer.
- Não devia ser nossa. Quase de certeza que era de Gaston. O
meu pai vende sobretudo coisas inglesas.
- Ah sim? E como é que vai o negócio actualmente, lá para
aquelas bandas?
- Muito fraco, para dizer a verdade - retorquiu Nick.
- Pois nós aqui estamos numa porra de uma estagnação total.
Cada vez pior. Mais quatro anos de Madam e vamos todos viver
para debaixo da ponte. - Pete tossiu de novo e, ao agitar os
braços, fez gorar a tentativa de Leo para lhe tirar o cigarro. -
Então há quanto tempo é que está em Londres, Nick?
- À volta de... seis semanas, talvez...
- Seis semanas... Estou a ver. Nesse caso, ainda tem muito
ambiente para ver. Ou só faz compras na sua zona? Já foi ao
Volunteer, aposto.
Leo reparou na hesitação de Nick e decidiu intervir: - Nem
pensar, não quero que ele vá àquela piolheira velha. Pelo menos
enquanto não tiver sessenta anos, como toda a gente que lá vai.
- Estou a explorar um pouco... - disse Nick.
- Não sei, para onde é que vão os rapazinhos novos nos dias que
correm?
- Bom, há o Shaftesbury - disse Nick, referindo um pub que Polly
Tompkins descrevera como palco de frequentes conquistas.
- Mas tu não és muito de ir a pubs, pois não, Nick? - perguntou
Leo.
- Do que ele precisa é de ir até ao Lift - disse Pete. - Para quem
gosta de chocolate, como parece ser o caso, não há melhor.
Nick corou e pôs-se a abanar a cabeça num jeito pateta. - Não
faço ideia - disse. Sentia-se muito embaraçado, ali, diante de
Leo,
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e verificar que, desta feita, não havia nenhum elástico azul, não,
havia apenas o macio Leo, o rapado e cheio, tão cheio, Leo. Um
segundo ou dois e Nick ergueu-se e pôs as suas mãos,
delicadamente, à volta do pescoço de Leo, que se encostou às
pernas dele para se apoiar e roçou o ombro umas quantas vezes
no sexo erecto de Nick.
- Mm, tu gostas mesmo disto - disse Leo.
- Adoro - disse Nick.
Quando Pete voltou, deambulavam os dois pela loja com as mãos
nas algibeiras. - Não vão acreditar - disse ele. - Acho que vendi a
cama.
- Ah sim? - disse Leo. - Ainda agora Nick estava a dizer que era
uma bela peça. Mas ele acha que ainda precisa de ser muito
trabalhada, não é, Nick?
Os últimos minutos na loja caracterizaram-se por uma atmosfera
de ridícula estranheza. Era difícil captar o que os outros dois
estavam a dizer - Nick sentia-se radiantemente egoísta e
desatento e deixou a Leo a tarefa de despachar as coisas. O
mobiliário e os objectos ganharam um brilho mais intenso, mas,
ao mesmo tempo, pareciam furiosamente irrelevantes. Pete
devia ter-se apercebido de que se estava a passar qualquer
coisa, de que o ar cintilava e estremecia; e não seria de espantar
que fizesse algum comentário mais ácido. Mas não fez. Nick teve
a impressão de que Pete, realista e resignado, desistira já de
Leo, e deu-se conta de que lamentava - um pouco, pelo menos -
que as coisas fossem assim, pois queria que Pete sentisse
ciúmes.
- Bom, temos de ir almoçar - disse Leo. - Já tenho alguma fome. E
tu, Nick?
- Estou a morrer de fome - disse Nick, numa espécie de grito
feliz.
Todos se riram e se cumprimentaram e, depois de Pete ter
abraçado Leo, Nick apressou-o com uma palmadinha rápida.
E ali estavam eles, na rua, suportando as cotoveladas da
multidão, rodeados de gente por todos os lados, dois empecilhos
distraídos, imersos no seu lento passeio, o qual se ia espraiando
colina abaixo ao ritmo do suave e esbatido tiquetique das rodas
da bicicleta.
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Tudo aquilo era novo para Nick, o facto de estar com outro
homem, de se deixar levar pela mansa e ondulante corrente de
um sentimento mútuo - com os seus remoinhos, por vezes, nas
entradas das lojas ou sob os toldos das tendas de bricabraque.
Já não falavam do almoço, o que era um bom sinal. Para dizer a
verdade, já nem diziam grande coisa, mas, de vez em quando,
trocavam olhares que floresciam em maravilhosos sorrisos
derretidos. O desejo formigava nas coxas de Nick e comprimia-
lhe o estômago e a garganta e quase o fazia gemer entre
sorrisos, como se, pura e simplesmente, não fosse justo que
alguém lhe prometesse tanto. Deixou-se ficar para trás um ou
dois passos e, enquanto caminhava, abanava a cabeça. Queria
ser os jeans de Leo, que lhe acariciavam as pernas naquele jeito
rítmico, descontraído, queria ser aqueles jeans que ora cingiam,
ora largavam. As suas mãos estremeciam contra o corpo de Leo
vezes sem conta, para lhe chamar a atenção para isto e mais
aquilo, uma cadeira, um prato, a cabeça, cheia de cristas azuis,
de um punk que passava. Ele devia ter ficado em primeiro lugar
nas audições de Leo. Tocava a toda a hora no rabo de Leo,
rendido ao simples prazer da permissão. Não se podia dizer que
Leo retribuísse as suas carícias; estava de olho na rua, um olho
hábil, matreiro, chegou mesmo a erguer uma sobrancelha
maliciosa perante a iminente, e certamente sensual, colisão com
outros rapazes que passaram por eles, mas isso não importava
porque os outros rapazes eram qualquer coisa de supérfluo, a
fugaz gota derramada do seu transbordante desejo por Nick.
Enquanto deambulavam por entre a multidão, Nick viu-se a si
mesmo correndo disparado pelos negligenciados anos da sua
educação moral. Tantas vezes se perguntara como seria aquilo;
pois ali tinha a resposta - aquilo era assim!
Sob o toldo franjado de uma tenda, viu o perfil curvado de Sophie
Tipper, examinando uma série de velhos anéis e braceletes numa
placa forrada a veludo preto. A sua primeira ideia foi ignorada ou
evitá-la. A inveja que sentia daquela mulher reemergiu de
repente. Porém, um momento depois, Toby apareceu atrás de
Sophie, debruçando-se para ela com um pequeno, murcho e
distraído sorriso de interesse, tal e qual um marido. Pousou o
queixo no ombro dela por um momento e ela murmurou-lhe
qualquer coisa, de modo que Nick teve a desconfortável
sensação de estar
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Leo sorria, os olhos fixos, como se as cenas estivessem a passar
de novo pela sua cabeça e a mulher que estava à frente dele
condissesse miraculosamente com a imagem que vira no ecrã. -
É e quando ele o envenena, e... Viste este filme, Nick, White
Devil...}
- Perdi-o, estupidamente - disse Nick; embora se lembrasse muito
bem dos estudantes a fazerem de conta que eram uma equipa
cinematográfica, todos com um ar muito importante dando as
suas voltas em jipes, usando óculos escuros à noite, e, claro,
também se lembrava muito bem do Flamineo(1), Jamie Stallard,
um presunçoso idiota do Martyrs' Club, um dos seus ódios de
estimação...
- Há uma coisa que tenho de lhe dizer, aquele tipo, Jamie, não é?,
oh-ooh...
- Eu sei - disse Sophie. - Achei que gostaria dele.
- E não se engana, menina, não se engana - riu-se Leo, tão cheio
de uma excitação atrevida que Nick pensou por um momento que
talvez estivesse a gozar com Sophie. - Mas ele não é, embora...
seja melhor você dizer-me... elenco é... ou é...?
- Oh...! Quer-me parecer que não. Não, mas há muita gente que
faz a mesma pergunta - admitiu Sophie.
Leo reagiu filosoficamente. - Bom, quando passarem de novo o
filme, podem crer que levo aqui este rapaz - disse ele, num tom
superior, como se ambos pensassem que Nick, o culto e
excelente Nick, ainda com a cabeça cheia das matérias de
exame, enfiado até ao pescoço em tragédias de vingança, era
um bocado paspalhão.
- Está bem, eu vou - disse Nick, vendo a sessão de cinema, pelo
menos, como umas duas horas passadas na quente escuridão da
sala e não atrás dos arbustos. - E eu depois conto-te tudo acerca
de Jamie Stallard - acrescentou.
Porém, o interesse de Leo centrava-se todo em Sophie. - E o que
é que vai fazer a seguir? - perguntou. Nick ergueu as
sobrancelhas para Toby, em jeito de desculpa; Toby, por sua vez,
abanou amavelmente a cabeça, como que a dizer que quem saía
com uma actriz promissora estava condenado a desempenhar o
papel de acompanhante. Quanto a Sophie, parecia ligeiramente
sobreexcitada, em parte por causa da admiração com que era
brindada,
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- Oh, ele vai dar uma festa dos anos 70... - disse Toby num tom de
irremediável desalento.
- Não, não vou, não fui convidado - disse Nick com um sorriso
superior, pensando na amorosa intimidade que sentira com Nat
em Hawkeswood, quando estavam os dois pedrados e sentados
no chão. - É em Londres?
- O problema é esse. É lá para cima, naquele maldito castelo -
disse Toby.
- Sim... Mas é ridículo, não é? É demasiado cedo para dar uma
festa dos anos 70, não é? - disse Nick. - Quer dizer, os anos 70
foram uma época medonha... Não vejo razão nenhuma para se
querer voltar a esses tempos... - Há muito que ansiava por uma
oportunidade para ver o castelo, uma fortaleza fronteiriça(1),
com interiores concebidos por Wyatt(2).
- Bom, os rapazes das public schools adoram reviver a
puberdade, não é, Soph? - disse Catherine, voltando com um
copo bem cheio.
- Eu sei - disse Sophie, num tom mal-humorado.
- Há até quem passe a vida inteira a fazer isso - prosseguiu
Catherine. Parou em frente da lareira, com uma mão na anca, e
parecia estar já a mexer-se ao sabor da música de um futuro que
ficava a anos-luz de todos aqueles disparates.
Toby deu de ombros, num pedido de desculpas pela irmã, e disse:
- Só espero que aquelas calças disco ainda existam!
Nick por pouco não dizia: «Ah... as calças púrpura...?» - sabendo,
como sabia, o sítio exacto onde se encontravam, visto que
vasculhara de alto a baixo o quarto de Toby e lera o seu diário de
rapaz e cheirara o fino forro dos seus calções de banho, já
demasiado pequenos para aquelas pernas, e chegara mesmo a
experimentar as calças à boca de sino (a figura ridícula que
fizera, enfiado naquelas pernas tão compridas). Mas não, não
disse nada, limitou-se a dar à cabeça e a beber de um gole o
resto do seu gin tónico.
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não sei se estás a ver, uma daquelas raparigas que estão à porta
dos bares de strip a aliciar clientes.
- Parece uma strippergram(1) - disse Sophie.
Lady Partridge entrou com aquele ar de enfado que Nick já lhe
conhecia: queria dar a impressão de que se sentia totalmente à
vontade naquele ambiente e também queria que a sua chegada
fosse um acontecimento; a surdez de que padecia acrescentava
uma quérula incerteza quanto ao efeito que poderia estar a
provocar. Badger foi buscar-lhe uma bebida e dispôs-se a flertar
com ela, no que não foi contrariado. Lady Partridge gostava de
Badger, pois conhecia-o desde criança e, certa vez, numas férias,
chegara mesmo a cuidar dele quando tivera papeira - um
episódio que continuava a ser referido como uma pedra de toque
da sua amizade, e de um modo vagamente picante, já que, pelos
vistos, os tomates de Badger tinham ficado tão grandes como
toranjas. Uns dias antes, Nick ouvira-os gracejar a esse respeito,
e aquilo soara-lhe como as brincadeiras que tinha com os seus
pais, pequenos pontos de referência irreverentes num passado
distante, antes de tudo ter mudado e de se ter tornado
indescritível.
Nick pensava em Leo a toda a hora, de tal forma que Leo parecia
ser o elemento, o contexto invisível, em que aquelas intimidantes
criaturas, tão diversas entre si, se encontravam e saudavam e
discutiam e se congratulavam umas às outras. Misturou os
ingredientes para um novo gin tónico, ao estilo de Gerald, o
quinino perdido no meio do zimbro, e deambulou pela sala sem se
importar com o facto de não lhe dirigirem a palavra. Apreciou os
quadros com uma nova acuidade, como se estivesse a explicá-
los a Leo, o seu aluno reconhecido. O outro deputado e a sua
mulher, John e Greta Timms, estavam plantados diante do
Guardi, com o ar de quem tinha ido parar à festa errada, de quem
desejava algo de mais estimulante, ele num fato cinzento, ela no
desamparado arrojo de um vestido de mamã azul com um
laçarote branco rondando-lhe o pescoço: era como se a primeira-
ministra, ela mesma, estivesse grávida. John Timms assumira
um cargo menor no Ministério da Administração Interna; devia
ser vários anos mais novo do que Gerald,
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Jenny broom começou a perguntar qualquer coisa sobre
Catherine, se ela era realmente tão louca como se dizia, e as
hesitações de Nick enquanto respondia permitiram-lhe, apenas
em parte, ouvir a verdade que Lipscomb conseguira arrancar a
Sophie, ou seja, que ela não ia fazer a Lady Windermere
propriamente dita, mas «Oh, apenas um pequeno papel... Não!
Não tenho demasiado texto para decorar... Oh, não, ela não, é um
papel maravilhoso... De qualquer modo, o mais provável é que o
encenador acabe por dar cabo daquilo tudo...» e que, na
realidade, lhe fora atribuída a parte de Lady Agatha, um papel
que, se alguma notoriedade tinha, era pelo facto de não conter
mais do que duas palavras: «Sim, mamã». Nick considerou tudo
aquilo muito divertido e, um segundo depois, quase sentiu pena
dela.
Rachel disse: «Que bom, minha querida, iremos todos à sua
estreia» e estava a ser manifestamente sincera, de tal forma que
se poderia dizer que estava a ser firmada uma nova aliança, de
uma solidariedade eficiente, quase impessoal, entre a mãe e a
eventual
nora.
Lady Partridge, ciosa da atenção de Lipscomb, impôs uma
brusca e nebulosa mudança de assunto, lançando-se num
imparável relatório da reposição da anca a que se submetera:
«Oh, foi na Dorset... Bom, sim, é sempre para lá que eu vou, eles
são maravilhosos... jovens encantadoras... Sim, as enfermeiras...
Há um ou dois médicos de cor, mas é claro que não há a menor
necessidade de qualquer contacto com eles... Não que eu seja
uma pessoa de hospitais!» exclamou a anciã, procurando
tranquilizar o seu interlocutor. «O meu falecido marido é que
passou lá muito tempo.»
«Ah...» disse Lipscomb, aferindo a distância necessária à
expressão dos mais sentidos pêsames.
Lady Partridge ergueu o seu copo com um suspiro mundano.
«Bom, eu sobrevivi a dois maridos e, provavelmente, já chega»
disse ela, como que abrindo ainda uma minúscula fresta a
futuras propostas. Olhou para Lipscomb, perguntando-se talvez
se ele dissera alguma coisa, mas logo prosseguiu: «Caso curioso,
chamavam-se ambos Jack! Na realidade, não poderiam ser mais
diferentes... como o dia e a noite... Creio que nunca se teriam
dado bem, se alguma vez se tivessem encontrado!» Nick pensou
que era quase como se ela estivesse ao telefone, ouvindo
respostas e perguntas
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Nick olhou para Toby num pedido de ajuda, mas Toby estava a
tratar da caixa de charutos e do corta-charutos; Gerald, por seu
lado, dava a ordem de partida para o circuito das garrafas ao
longo de meia mesa. Nick reviu Leo no instante em que o
deixara, poucas horas antes; viu-o afastando-se, conduzindo a
bicicleta com uma mão, e o tema amoroso voltou a soar,
prudentemente agora, não, não queria que os outros o ouvissem.
Como poderia ele descrever aquilo, inclusive para si mesmo,
aquele jeito que Leo tinha de andar, aquele requebro, aquela
mobilização, meio consciente, meio inconsciente, dos seus
próprios efeitos? - Vou dar-lhe um conselho - disse Barry Groom,
escolhendo, num movimento imperioso, entre as garrafas de
cristal, obviamente não assinaladas, de Porto e de Bordeaux.
- Ah, sim, claro - disse Nick, e sentiu a sua erecção começar a
esbater-se.
- Nunca especule com mais de doze por cento do seu capital -
proferiu Groom.
- Ah... - disse Nick, num tom de jocosa surpresa; porém, ao ver a
expressão quase raivosamente séria do outro, tratou de
acrescentar: - Doze por cento. Certo... Vou tentar não me
esquecer. Não, sinceramente, parece-me um bom conselho.
- Doze por cento - repetiu Barry Groom. - É o melhor conselho que
lhe posso dar. - E fez deslizar as garrafas na direcção de Nick;
por serem os convidados mais distantes de Gerald, formavam
uma espécie de ponte no circuito das bebidas. Nick serviu-se do
Porto e passou a garrafa a Morden Lipscomb, numa inofensiva
exibição de eficiência e charme. Lipscomb estava a cortar um
charuto, e a sua boca fina, repuxada para baixo graças a uma
total concentração, parecia remoer um qualquer desdém, não
pelo charuto, mas pela companhia em que se encontrava. Na
solene, mas desinibidora, ausência das mulheres, aquele seria
talvez o momento certo para que ele brilhasse entre os demais;
contudo, Lipscomb mostrava-se cauteloso, ou então estava
francamente mal-humorado. Nick sentiu pena de Gerald, mas não
via de que modo é que poderia ajudá-lo. Só conhecia uma
maneira de se envolver com as pessoas: através da súbita
intimidade de uma conversa sobre arte e música, de uma
manifestação de sensibilidade; sentia, porém, que Lipscomb o
rejeitaria, como se repelisse uma intimidade de um outro tipo.
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Perguntou-se uma vez mais o que Leo teria dito e feito: ah, ele
tinha opiniões tão claras e tão sarcásticas acerca das coisas...!
- Então, Derek - disse Barry Gordon, no seu tom gelidamente
informal -, quanto tempo é que vais ficar em casa de Gerald?
Badger puxou esforçadamente uma fumaça, após o que soprou
uma turbulenta nuvem. - Enquanto o velho Banger me deixar ficar
- disse ele, empinando a cabeça na direcção de Gerald.
- Ah, então é por esse nome que tu o tratas? - disse Barry, num
acesso de rivalidade.
Badger resmungou, deu um rápido chupão no charuto e disse:
- Vem dos tempos de Oxford... - sabendo que era muito fácil
provocar Barry. - Não, eu estou à espera de que acabem as obras
na minha futura casa, por isso é que estou aqui.
- Ah, sim? E onde é que fica essa casa? - perguntou Barry num
tom dubitativo.
Badger mostrou-se surdo a esta pergunta, de modo que Barry
repetiu-a e Badger retorquiu lentamente, como que dando uma
pista a alguém que tivesse uma extrema dificuldade em decifrar
mesmo a mais simples das adivinhas: - Bom, para dizer a
verdade, até fica muito perto do sítio onde tu trabalhas. - Com
esta meia resposta, era muito provável que pretendesse apenas
provocar ainda mais Groom, embora uma tal reserva combinasse
na perfeição com qualquer coisa de sordidamente secreto que
havia em Badger.
- É só um pequeno apartamento, um pequeno apartamento
temporário.
- Por outras palavras: um apartamento para foder - retorquiu
Barry com óbvia rispidez, pois queria ter a certeza de que a
brutal expressão que escolhera, e o modo ofensivo como a usara,
atingiam em cheio o alvo. Até mesmo Badger pareceu um pouco
desconcertado. Gerald limitou-se a um «Ah...» depreciativo, e
mergulhou, de um modo quase confidencial, numa nova conversa
com John Timms e o seu velho mentor acerca do génio da
primeira-ministra. Nick olhou num relance para Toby, que
semicerrou os olhos para ele como que a garantir-lhe uma
solidariedade que, sendo geral, não tinha nenhuma consequência
prática.
- Cheguei a pensar que a primeira-ministra talvez pudesse estar
connosco esta noite - disse Lipscomb. - Mas é evidente que este
não é o género de festa adequado.
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- Sim, cale-se já, sua punheta mal batida! - berrou Catherine, por
entre lágrimas.
- Eh pá, calminha aí! - disse Barry, e, nesse instante, qualquer
coisa de horrendo, um sorriso malicioso, insinuou-se no seu
rosto.
- Santo Deus... Sinto muito, sinceramente... - disse Nick
para Brentford.
- Por que raio é que estamos todos aqui parados? - disse Gerald.
- Vem para cima, querida - disse Rachel.
- Vamos mas é acabar o nosso Porto e os nossos charutos - disse
Gerald, virando costas a Brentford. Tinha de mostrar, a festa
exigia-o, que encarava cenas daquelas com o seu habitual bom
humor. - Leva-la para cima, querida? - perguntou, como se
houvesse realmente alguma hipótese de ser ele a fazê-lo.
Catherine afastou-se e começou a subir as escadas e Rachel
tentou pôr-lhe um braço por cima dos ombros, mas ela repeliu-a.
Nick acompanhou Brentford à porta. - Tem a certeza de que não
quer que lhe paguemos? - disse ele, embora duvidando que o seu
dinheiro chegasse para pagar uma viagem de Stoke Newington a
Kensington Park Gardens. Queria que Brentford soubesse que ele
não era culpado da coisa de que toda a casa era acusada.
- Aquele homem não presta - disse Brentford, nos degraus da
porta.
- Oh... - disse Nick - sim... - Não sabia ao certo a que homem se
referia o taxista e o modo como este abanava a cabeça e agitava
o braço parecia indicar que a acusação abarcava todos aqueles
homens.
Nick deixou-se ficar no passeio por um bocado, depois de o
Sierra ter partido, e, através de uma janela aberta, chegaram-lhe
os risos das mulheres. Era bom estar fora de casa, saboreando o
ar da noite. Se tremia um pouco, era porque insultara aos berros
uma pessoa que odiava. Pensou em Leo e sorriu e aconchegou as
mãos sob as axilas. Perguntou-se o que é que Leo estaria a fazer
naquele preciso instante, e a tarde acendeu-se de novo e
aqueceu-o de espanto; depois, lembrou-se de Pete e Pete abateu-
se sobre a tarde quente como a friagem de uma nuvem. Voltou
para dentro e, já perto da porta meio aberta da sala de estar,
abrandou o passo:
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talvez pensasse que ele era uma pessoa falsa, um fingido... Bom,
do que não havia dúvida é que ele assumira um ar superior
perante a senhora, sim, até certo ponto era verdade... Estas
ansiedades iam ardendo surdamente no seu coração. A certa
altura, chegou mesmo a sentir-se ofendido por Mrs. Charles
pensar que ele se achava superior.
Leo avançava num passo rápido, como se já tivessem combinado
para onde iam, mas não dizia nem uma palavra. Nick não
conseguia decifrar o que se passava com ele, não sabia se ele
estava aborrecido ou furioso ou envergonhado ou se,
simplesmente, optara pela provocação... mas sabia que todas
essas emoções podiam subir e engrossar como um rio e invadir
as margens para logo se evaporarem e se metaformosearem
noutras emoções, e também que era mais sensato deixá-lo
acalmar-se do que pôr-se a adivinhar o seu estado de espírito e
arriscar-se a tocar no botão errado. Essa consciência da
necessidade de sensatez era um pequeno refúgio sempre que
Leo se mostrava difícil ou distante. Concentrou a sua atenção no
arrefecimento que acompanhava o pôr-do-sol, nos farrapos de
uma nuvem negra que rondava os telhados da cidade e que os
ventos varriam na direcção dos céus, no álgido azul-cobalto para
lá da nuvem. Ao longo daquelas quatro semanas juntos, estes
passeios ao entardecer, com a bicicleta tiquetaqueando ao lado
deles ou entre eles, tinham ganho uma cor de romance cada vez
mais intensa. Inquietava-o que o próprio silêncio fosse uma
espécie de comentário, e, ao chegarem ao fim da estrada, puxou
Leo para si num rápido e impaciente abraço e disse-lhe: - Mmm,
obrigado por tudo, querido.
Leo resmungou brandamente. - Por tudo o quê?
- Oh, por me teres levado à tua casa. Por me teres apresentado à
tua família. Isso tem um grande significado para mim. - E deu-se
conta de que a sua pequena confissão libertara um sentimento
que, antes de a ter feito, era completamente ignorado. Sentiu-se
muito comovido.
- Portanto agora já sabes como elas são - disse Leo, parando e
fitando (e semicerrava os olhos tal e qual a mãe) a estrada
principal que se estendia diante deles. O trânsito do fim do dia
teve luz verde para avançar e acelerou colina abaixo, na
direcção deles e para lá deles, e depois começou a rarear até
que, uma vez mais, veio aquele vazio que marcava uma nova
espera.
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- Queres um whisky?
por uma vez, Leo disse: - Não digo que não! É, seria agradável.
Muito obrigado, Nick. - Deu uma volta rápida pela cozinha, como
se, afinal, tudo aquilo lhe passasse despercebido, até que parou
para examinar a parede das fotografias. A família comprara uma
das fotos da Tatler relativa ao vigésimo-primeiro aniversário de
Toby e mandara-a ampliar e emoldurar: um grupo de familiares
sorrindo freneticamente; o Ministro da Administração Interna
também lá estava, mas parecia ter alguma consciência da sua
condição de intruso. Mesmo por cima deles, o estudante Gerald,
de fraque, cumprimentava Harold Macmillan(1) na sede da
associação de estudantes de Oxford. Uma vez mais, Leo não fez
nenhum comentário, mas, quando lhe passou o copo frio, Nick viu
nos seus olhos
e no seu sorriso muito esbatido que ele estava a tomar nota dos
dados e a arquivá-los. Talvez estivesse a calcular o grau de
afronta representado por todo aquele dinheiro e
conservadorismo Tory. Nick sentia que o seu renomado estatuto
de amigo da família, de detentor da chave da casa, possuía um
peso muito incerto. - Vamos para cima - disse.
Subiu os degraus dois a dois, demasiado apressado, e, quando
parou no patamar e olhou para trás, viu que Leo se arrastava
pela mesma razão que o levava a ele a correr; entrou na sala de
estar e carregou em interruptores que acendiam luzes nas
mesinhas e por sobre os quadros - de tal forma que, quando
entrou com toda a calma na sala, Leo viu-a exactamente como
Nick a vira dois anos antes, com todos os seus reflexos e
sombras e o brilho dos dourados. Nick parou diante da lareira,
desejando ansiosamente que tudo aquilo redundasse num triunfo
para ele, mas pautando as suas reacções pela curiosidade
reprimida que encontrava no rosto de Leo.
- Não estou acostumado a isto - disse Leo. -Oh...
- Não bebo whisky.
- Ah, não, bom...
- Sabe-se lá o efeito que este copo de whisky pode ter em mim...
Posso tornar-me perigoso.
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para mostrar até que ponto era fácil, e sentiu o choque da água
fria um nadinha abaixo da fina película quente da superfície.
Deixou-se ficar na água, boiando apenas e acenando para Wani,
que parara todo curvado como um esquiador, mas com uma mão
apertando as narinas; e que, um momento depois, se atirou - de
cabeça - para as águas do lago. Emergiu ofegante, numa
agitação de braços e, por um segundo, Nick pôde ler no seu rosto
um medo impossível de disfarçar. A água desfizera os caracóis
negros, que lhe caíam agora sobre os olhos e as orelhas. Nick,
sempre a boiar, abeirou-se de Wani, e sentiu a mão dele
cravando-se no seu braço; deixou que as suas pernas errassem e
deslizassem consoladoramente entre as pernas dele, e, com a
mão que tinha livre, afastou-lhe o cabelo para trás, e isso, pelos
vistos, acalmou Wani, que, um instante depois, desatou a nadar
num bruços apressado, o corpo muito direito, como se nada
tivesse acontecido.
Por uns breves minutos, nadaram num círculo imperfeito,
seguindo os cabos brancos entre as bóias que marcavam os
limites da área reservada à natação. Para lá dessa fronteira,
supunha Nick, a água devia ser demasiado rasa por sobre a lama
funda e macia. Para dizer a verdade, Wani até nadava bastante
bem, com a cabeça sempre erguida e a expressão cómica de
alguém que é forçado a ser um tipo simpático, apesar das
partidas que lhe pregam; parou numa das bóias e agarrou-se a
ela para descansar, com um sorriso ofegante, e um aceno da
cabeça que parecia dizer «Eu sou capaz!», bem como «Hás-de
pagar-me por isto». Nick pegou nos óculos de protecção que
balouçavam lassos à volta do pescoço, ajustou-os bem ajustados
e mergulhou. Sob a cintilação amarelada da superfície, a água
ganhava um tom verde lodoso que logo escurecia num castanho
sujo, um mundo de cores de vidro de garrafa. Rodopiou,
matutando na partida que ia pregar a Wani. Bolhas, a
reverberação que vinha das dóceis ondinhas à superfície, restos
de folhas negras revolvidos pelos seus movimentos, giravam e
escapavam-se em torno das pernas de Wani, que permaneciam
suspensas, condenadas a um indolente cbassé, na régia
presunção de que não haveria nenhum ataque subaquático. E
talvez fosse demasiado infantil, com Wani completamente à sua
mercê; em vez de se agarrar a ele ou de desatar a fazer-lhe
cócegas, Nick disparou rumo à superfície, numa ânsia de ar e de
riso. Tê-lo-ia beijado se, nesse momento, um velho
e vigilante cavalheiro não andasse a rondar, engatador, tão perto
deles.
Largaram de novo a bóia e Nick depressa tomou a dianteira e foi
o primeiro a voltar à bóia, triunfando sobre Wani, decorando com
arabescos o seu firme curso, e, ao mesmo tempo, espreitando
para ver quem é que andava por ali. Era difícil distinguir todas
aquelas cabeças, amaciadas e polidas pela água; porém, através
dos óculos molhados, cada figura à espera no molhe ou subindo
para a jangada ganhava o fulgor de uma nova possibilidade. Nick
nadou até perto da velha plataforma uma vez; deu a volta,
sempre de costas, enquanto ele e um casal que estava lá em
cima se perguntavam de onde é que se conheceriam.
Depois de uma volta quase completa ao lago, Wani já tinha a sua
conta; por um minuto, boiaram apenas, entretidos a conversar,
enquanto Nick olhava para a direita e para a esquerda com olhos
de ver. Adorava o lago, mas sentia-se desapontado, talvez ainda
fosse demasiado cedo, o pico do calor ainda estava para vir,
comparava a calma daquele dia e a água fria do lago com os
domingos cheios de gente do ano transacto, durante a onda de
calor, a jangada numa loucura de mãos que se agarravam à
madeira e de corpos que saltavam para cima dela, os balneários
a abarrotar de gente determinada, as bichas na relva lá fora,
apinhadas como uma cidade com uma dúzia de bairros rivais.
Havia gritos e grandes convulsões na água para os lados da
jangada, onde um novo grupo se juntara. Nick sentiu o irresistível
apelo da curiosidade e viu que tinha ali uma possibilidade de
exibir Wani e de se exibir perante Wani, o que dava duas
vaidades numa só, e ambas deliciosas. Wani tremia e Nick não
resistiu a dizer-lhe: - Não podes parar, tens de te mexer - e logo
se afastou para o meio do lago. Dois homens morenos com
calções pretos estavam de pé em cima da jangada, repelindo
desajeitadamente uma corpulenta e musculada bicha loura que
tentava subir; a balsa, embora muito guinasse e bamboleasse,
não corria o risco de se virar. Dois outros homens que estavam
agachados numa ponta caíram à água, caíram porque queriam
cair, no fundo atiraram-se mais do que caíram, brincando como
miúdos, e logo desataram a nadar de volta à jangada, a fim de
participarem na batalha. Seguiram-se trinta segundos de
combates, que alguns levaram mais a sério do que outros,
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- Chama-se Andy.
- Andy, é? - disse o homem. - Anda cá, Andy! - gritou, levantando-
se. - Mostra-nos lá esse teu cu!
- E mostra! - disse o seu velho protector. - E mostra!
A jangada abanou e, na outra ponta, um homem lustrosamente
musculado ergueu-se das águas num rodopio e aterrou nas
tábuas com um prometedor estrondo. Nick viu Wani olhando de
relance para o homem sob as suas longas pestanas, como que
avaliando um novo tipo de problema ou possibilidade; Nick
lembrava-se de o ter visto por ali no ano anterior. Tinha olhos
escuros e estava a ficar calvo; o rosto era redondo, com um belo
nariz comprido e a expressão indolente, mas concentrada, de um
homem que não pensa senão em sexo. Nick lembrava-se do seu
olhar descansado, ocioso, das enormes pupilas negras que
pareciam encher-lhe os olhos, da cheia e curvilínea massa
cingida pelos calções pretos. Quando se sentava, o estômago
fazia uma suave curva para fora; parecia condenado à obesidade,
mas, para já, conseguia manter um equilíbrio razoável entre
gordura e músculo.
Wani estava sentado com os joelhos erguidos, o cabelo puxado
para trás em ondas brilhantes, que se encaracolavam de novo à
medida que ia secando. Recuperara parte da sua pose social, e,
com ela, um ar vagamente superior, como se estivesse com
medo de ser reconhecido ou de agradar a alguém. O homem mais
velho dirigiu-se a Nick com ele de permeio. - O rapaz, agora, anda
com mil cuidados...
- Aha... - disse Nick.
- Pelos vistos, o KY já não serve. Temos de ter uma outra
substância, uma coisa chamada Melisma. Só que, pelos vistos, o
Melisma também já não serve. De maneira que, agora, vamos
passar para o Crest. Mas todo o cuidado é pouco com aquelas
horríveis camisinhas. Nunca pensei que, um dia, chegássemos a
isto... O que é que você usa?
- Seja como for, tenha cuidado com a saúde do menino - disse o
homem de voz ríspida, que, não havia dúvida, começava a sentir
por Andy um interesse bem visível. - Já agora, amigo, Crestj é
uma marca de pasta para os dentes - acrescentou, e, um
segundo depois, mergulhou e disparou, com braçadas vigorosas,
na direcção do rapaz.
- A propósito, o meu nome é Leslie - disse o homem mais velho.
Wani virou a cabeça e acenou-lhe. - Olá. Antoine.
- Estava cá a pensar, de onde é que você é?
- Sou libanês - disse Wani com um rápido e irónico sorriso, no seu
mais irónico acento inglês. Nick atentou no seu perfil aquilino e
não resistiu a um sorriso malicioso. Gostava que os outros
homens reconhecessem o glamour de Wani, era como se, num
rápido acesso de ciúmes, se reacendesse a velha paixão que
sentia por ele desde Oxford, e que se confundia com um desejo
ampliado e disseminado pelo mistério. Agora, Wani baixara as
suas extraordinárias pestanas e os olhos fixavam-se de novo no
chão. Nick lembrava-se dele em certas ocasiões, depois de uma
aula, por exemplo, ou depois de uma daquelas raras noites em
que não era solicitado pelos seus outros mundos e voltava para a
residência universitária, ou, mais exactamente, para o quarto de
um qualquer estudante pobre, com a sua estante de livros de
bolso e um póster de Dylan, para conversar um pouco mais
acerca de Culture and Anarchy ou North and South, comparando
e trocando notas à volta de uma caneca de Nescafé, fazendo um
esforço docemente respeitoso para mostrar que partilhava as
preocupações dessoutros rapazes, e, como um membro da
família real de visita à residência, sem se aperceber
minimamente da atitude desajeitada e deferente dos outros.
Alguns dos estudantes mais arrogantemente snobs, como Polly
Tompkins, troçavam do seu refinamento e diziam que ele não
passava de um filho de um merceeiro, um daqueles imigrantes
que vendiam limões e laranjas, «uma rameira cockney do
Levante», para usar a expressão de Polly; segundo essas
versões, Wani era um rapazinho libanês, tão lindo, tão giro, que
fora mandado para Harrow(1), onde se transformara num
fleumático e ocioso gentleman inglês. Consideravam alguns que
Wani também se transformara num panasca só porque usava
calças justas e porque era desconcertantemente belo.
- Mas diga-me, o que é que faz na vida? - perguntou Leslie.
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- Mas Antoine diz que também está a trabalhar com ele, na Ogee?
- Oh, o meu trabalho na Ogee não é, de facto, grande coisa...
- Mas não está a escrever um filme? Foi o que ele disse.
- Bom, gostaria de escrever um filme. Num certo sentido, sim, é
verdade... Temos algumas ideias. - Sorriu polidamente para além
da noiva, a fim de integrar a mãe de Wani na conversa. Como era
tudo o que tinha, disse: - De facto, sempre desejei muito fazer
uma adaptação ao cinema de The Spoils ofPoynton... - Ao ouvir
isto, Monique recostou-se com um aceno apreciativo e Nick
sentiu-se encorajado a prosseguir: - Creio que poderia ser
verdadeiramente maravilhoso, não lhes parece? Não sei se
sabem, mas Ezra Pound disse que The Spoils of Poynton não
passava de um romance sobre mobiliário, com o que,
obviamente, pretendia depreciar a obra de James, mas foi
precisamente isso que me atraiu no romance!
Monique sorveu o seu gin tónico e fitou-o com um ar vagamente
interessado, e, depois, como que em busca de um sentido para o
que acabara de ouvir, os seus olhos percorreram num relance as
mesas e as cadeiras. Claro que não fazia a menor ideia do que é
que ele estava a falar.
Martine disse: - Portanto, quer fazer um filme sobre mobiliário?
E Monique, levantando a voz enquanto o Ferrari passava a rasar
pelos seus tornozelos: - Fomos ver um filme que estreou há dias,
um filme tão interessante, tão bonito, O Quarto com a Vista.
- Ah sim - disse Nick.
- Passa-se quase todo em Itália, que é um país que nós
adoramos, foi uma maravilha.
Martine surpreendeu ligeiramente Nick, ao dizer-lhe: - Acho tão
maçadora, esta tendência que há agora, passa-se tudo no
passado.
- Ah... Estou a ver. Quer dizer, todos estes filmes de época...
- Sim, todas estas coisas de época. Os actores ingleses não
ficarão fartos? Passam o tempo todo vestidos a rigor... Não há
uma única cena em que não apareçam em traje de cerimónia...
- É verdade - disse Nick. - No entanto, se virmos bem as coisas...
Actualmente, toda a gente anda vestida a rigor o tempo todo, não
é? - Na realidade, era em Wani que estava a pensar: Wani que,
além de ter três casacos de smoking, aparecera no baile de
caridade
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No caminho para baixo, encontraram o pequeno Antoine, que
andara num frenesim à procura deles e, agora, percorria as
salas, numa silenciosa cena de feliz exasperação. A camisa de
vénus só desaparecera depois de duas ou três descargas do
autoclismo, mas tinham-se despachado a tempo; aliás, ainda
dispunham de trinta segundos. Logo que os viu, o miúdo não
mais os largou; queria saber de que é que eles estavam a rir-se.
- Eu estive a mostrar ao tio Nick as minhas velhas fotografias -
disse Wani.
- Eram tão divertidas... - disse Nick, comovido com o generoso
retoque que dera à mentira, e também, de uma maneira absurda,
com a oportunidade falhada de ver as fotos.
- Oh - disse o pequeno Antoine, talvez com idêntico pesar.
- Anda cá, vem dar uma espreitadela rápida - disse Wani, e abriu
a porta da divisão por cima da sala de estar, o quarto dos pais.
Passou a mão por uma série de interruptores e todas as luzes se
acenderam, os cortinados começaram a fechar-se
automaticamente e, dir-se-ia que muito ao longe, ouviram-se os
primeiros compassos da «Primavera» de As Quatro Estações. O
pequeno Antoine exultava com esta parte e pediu a Wani que o
deixasse fazer tudo de novo, enquanto Nick apreciava o quarto
num relance jocoso. Tudo o que ali havia era de um luxo extremo
e Nick não resistiu a pôr um ar aflito só porque os seus sapatos
poderiam estar a deixar marcas na lã alta e macia da alcatifa. A
opulência do quarto resultava da mistura da pompa reluzente, do
brilho lustroso dos cortinados festonados, dos espelhos
enormes, do ónix e dos ofuscantes dourados, com coisas mais
velhas, menos vistosas e de melhor qualidade, coisas que teriam
talvez trazido de Beirute, tapetes persas e fragmentos de
estatuária romana. Em cima de uma pequena cómoda, via-se uma
cabeça de mármore branco, de Wani, possivelmente, quando ele
tinha a mesma idade que o pequeno Antoine, o rosto mais largo e
mais cheio de um Wani menino. Era deliciosa; Nick pensou que,
se pudesse levar qualquer coisa daquela casa, um objecto
qualquer, teria sido sem dúvida aquela cabeça. Bertrand e
Monique tinham quartos separados para se vestirem, cada um
deles, na sua ordem e abundância, iguais à secção de uma loja. -
Repara nisto também - disse Wani, mostrando-lhe uma pintura
enorme, representando o palácio de Buckingham, toda em tons
de amarelo, que estava no patamar.
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- Ah sim...!
- Não sei se sabe, mas, de facto, ele é um pintor impressionista.
- Mm, e quase, de algum modo, um expressionista, também -
disse Nick.
- É extremamente contemporâneo - disse Monique.
- É um colorista ousado - disse Nick. - Muito ousado...
- Mas diga-me, Nick - disse Bertrand, colocando o seu
guardanapo aberto sobre a mesa, e arrumando o seu vasto
sortido de facas sobre o lustro vítreo do tampo da mesa -, então
como está o nosso amigo Gerald Fedden? - O «nosso» podia
abarcá-los apenas aos dois, ou apontar para uma amizade com a
família, ou, num sentido mais vago, que Gerald estava do lado
deles.
- Oh, não poderia estar melhor - disse Nick. - Está em grande
forma. Tremendamente ocupado, como sempre...! - Havia na
expressão de Bertrand uma boa-disposição tingida de
persistência, como que se quisesse mostrar-lhe que podiam ser
francos um com o outro; depois de ter ignorado Nick durante a
primeira meia hora, virava agora para ele o foco da sua
confiança, com o instinto de um homem que, não obstante todos
os obstáculos, consegue sempre o que quer.
- Você vive na casa dele, não é?
- Sim, vivo. Era para ficar só umas semanas e já lá estou há
quase três anos!
Bertrand deu à cabeça e aos ombros, como se aquela fosse uma
situação perfeitamente normal. Quem sabe se o tio Emile não
viria a ser uma visita de três ou mais anos... - Eu sei onde fica a
casa dos Fedden. Convidaram-nos para o concerto, já não me
lembro do que é, mas é na semana que vem, e está claro que
iremos, com todo o prazer.
- Ah, óptimo - disse Nick. - Creio que vai ser muito interessante. É
um concerto de piano, com uma jovem estrela da
Checoslováquia.
Bertrand franziu o sobrolho. - Sei que dizem que ele é muito boa
pessoa, um raio dum bom tipo!
- Não, para dizer a verdade, trata-se de... ah, está a falar de
Gerald, claro, absolutamente!
- Ele vai chegar ao topo da pirâmide. Ou quase ao topo. Qual é a
sua opinião acerca disso ?
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- Oh, oh, não sei - disse Nick. - Eu, de política, não percebo nada.
Havia alguma crispação no rosto de Bertrand. - Bem sei, você é o
raio do esteta...
Nick era amiúde pressionado para revelar uma visão mais íntima
da personalidade e das perspectivas de Gerald, e, por norma,
vacilava na sua lealdade. Agora, disse: - Uma coisa é certa,
Gerald está loucamente apaixonado pela primeira-ministra. Mas
não há nenhuma certeza quanto à possibilidade de uma tal
paixão ser retribuída. É possível que ela esteja a fazer-se difícil. -
O pequeno Antoine deu uma dupla espreitadela furtiva a Nick,
como qualquer criança que ouve coisas que, em princípio, não
deveria ouvir, e o rosto de Bertrand crispou-se ainda mais sobre
o melão. Nick lembrou-se de que aquela família tinha uma visão
muito austera no que tocava à propriedade sexual. Mas foi
Monique quem disse:
- Oh, eles estão todos apaixonados por ela. Ela tem olhos azuis e
hipnotiza-os. - Os seus olhos escuros procuraram
estremecidamente o marido e, logo a seguir, o filho.
- É só uma espécie de amor cortês, não é verdade - disse Nick.
- Pois... - disse Wani, com um aceno da cabeça e um breve riso.
- Imagino que já tenha estado com a grande dama - disse
Bertrand.
- Nunca estive - disse Nick, num tom humilde, se bem que jovial.
Bertrand pôs uma estranha cara, os lábios dilatados e, ao mesmo
tempo, franzidos, e, por um momento, olhou fixamente para um
qualquer ponto imaginário e, sem dúvida, muito distante, até que
retomou o diálogo: - Sabe com certeza que ela é muito minha
amiga.
- Ah, sim, Wani disse-me que a conhecia.
- Claro que ela é uma grande figura da nossa era. Mas também é
uma mulher muito atenciosa. - Bertrand estava com o ar piegas
de um brutamontes que louva a gentileza de outro brutamontes. -
Ela sempre foi muito atenciosa comigo, não é verdade, meu
amor? E é claro que tenciono retribuir essa amabilidade.
- Ah a...
- Quer dizer, em termos práticos, em termos financeiros. Vi-a um
dia destes e... - Bertrand deteve-se, agitando impacientemente
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a mão esquerda para mostrar que não ia revelar o que fora dito;
mas logo prosseguiu, com bizarra candura: - Vou fazer um
importante donativo para os fundos do Partido, e... quem sabe o
que virá depois, - Trespassou e engoliu um gomo de laranja. - Os
meus princípios são estes, meu amigo, quando alguém nos ajuda,
nós temos a obrigação de retribuir essa ajuda, de compensar
essa pessoa - e trespassou o ar com o garfo vazio.
- Ah, com certeza - disse Nick. - Não, não tenho a menor dúvida
quanto a isso. - Sentia que, inadvertidamente, se tornara o foco
de uma intensa animosidade por parte de Bertrand.
- Nesta casa, não ouvirá uma única queixa acerca dessa grande
senhora!
- Bom, e na minha também não, posso garantir-lhe!
Nick lançou um olhar rápido aos rostos submissos dos outros, e
pensou que, na realidade, em Kensington Park Gardens, a
veneração de que a «senhora» era objecto, aquele estado de
mesmerizada cogitação em que Gerald mergulhava por obra e
graça da «grande dama», encontrava pelo menos um contrapeso
nos monólogos de Catherine acerca dos sem-tecto e nas irónicas
alusões de Rachel à «outra mulher» na vida do marido.
- Pelos vistos, está a subir cada vez mais alto, o nosso amigo
Gerald - disse Bertrand, num tom mais sereno. - Diga-me, Nick,
quais são exactamente as funções dele agora?
- Faz parte da equipa do Ministério da Administração Interna -
disse Nick.
- Isso é bom. Foi rápido como um raio, o nosso amigo.
- Bom, Gerald é ambicioso. E conta com... o apreço dela.
- Vou ter uma conversa com ele quando for lá a casa. Claro que já
o vi noutras ocasiões, mas você pode apresentar-nos de novo.
- Seria uma honra - disse Nick -; absolutamente. - O homem de
casaco preto começou a remover os pratos e, nesse preciso
momento, Nick sentiu que o poder constante da coca começava
a esbater-se, era uma outra coisa que também estava a ser
removida, a exultação de meia hora antes estava a tornar-se
cada vez mais irregular e dúbia. Dentro de quatro ou cinco
minutos, daria lugar a uma insipidez ainda mais desolada do que
aquela que substituíra. Contudo, pouco depois, os criados
começaram a servir o vinho, o que provocou nele uma divertida
sensação de alívio e dependência.
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- Hum...
- O segredo foi aquilo que eu vi, foi aquilo que vocês tinham em
Londres, naqueles tempos, já lá vão vinte anos. Vocês tinham os
supermercados e tinham as velhas lojas locais, as lojas de
esquina que é uma coisa que existe há centenas de anos. De
maneira que, o que é que eu faço? Junto o raio das duas coisas,
o supermercado e a loja de esquina, e faço o mini-mart, com todo
o tipo de coisas que você pode comprar no Tesco ou num raio de
um supermercado qualquer, mas mantendo aquele ambiente
local, aquele ambiente de loja de esquina. - Ergueu o seu copo e
bebeu como que fazendo um brinde ao seu próprio engenho. - E
sabe qual é a outra coisa, claro?
- Oh!,hum...
- As horas.
- As horas, claro...
- Abrir cedo e fechar tarde, apanhar as pessoas antes do trabalho
e apanhar as pessoas depois do trabalho, não apenas o raio das
simpáticas donas de casa que saem para comprar um maço de
cigarros e dar dois dedos de conversa.
Nick não estava certo se aquele seria o tom especial de Bertrand
para falar com um idiota ou se a simplicidade do tom reflectiria a
sua visão, muito própria, das coisas. Disse, com uma nota crítica:
- Mas algumas das lojas não são nada assim, pois não? Aquela
que existe em Notting Hill, por exemplo, onde nós vamos sempre.
É verdadeiramente magnífica - e deu aos ombros, em sinal de
respeito, ainda que um respeito algo entorpecido.
- Bom, agora você está a falar dos Food Halls! O que dá o raio de
duas coisas diferentes: os Mira Marts e os Mira Food Halls...
Sendo que estes últimos, os Food Halls, são para o raio das
zonas ricas, dos bairros finos. Temos uma loja dessas aqui perto.
Você sabe de onde é que isso vem.
- Do Harrods - disse Wani.
Bertrand lançou-lhe um rápido olhar furibundo. - Claro que vem
do Harrods. A mãe do raio de todos os Food Halls em todo o
mundo!
- Adoro ir ao Harrods Food Hall - disse Monique -, e ver as
grandes... homards...
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é que nunca entrava para autocarro nenhum. Ronnie estava a
ficar desleixado, era óbvio que a polícia tinha o telefone dele sob
escuta, seria um golpe em cheio, rápido e vigoroso, e num
segundo, toda a gente da rua, o cego, o rapaz das pizzas, a
senhora com o cão, tiraria a máscara - não passavam de polícias
à paisana. O carro encostou, Nick avançou como quem não quer
a coisa, entrou, e logo arrancaram para a volta ao quarteirão.
- Como é que isso vai, Rick? - disse Ronnie, e a sua melancólica
cabeça não se mexia um milímetro, ao contrário do seu olhar,
que se mexia tanto quanto podia mexer-se, para a direita e para
a esquerda e também para o espelho retrovisor. Nick riu-se e
pigarreou. - Muito bem, obrigado. - Uma pessoa ficava muito
baixa naqueles assentos do Célica, Ronnie ainda por cima tinha
umas pernas muito compridas, de maneira que os seus braços
assentavam nos joelhos, como um rapazito num daqueles
carrinhos do karting, os dedos também eram muito compridos e,
para manobrar o volante, Ronnie usava a barra transversal, em
vez do aro. - Sim? - disse Ronnie. - Bom, isso é fixe. E então como
é que vai o Ronnie?
Nick riu-se nervosamente uma vez mais. - Oh, ele está óptimo,
anda muito ocupado. - Era um mundo maravilhosamente
impreciso, aquele em que Ronnie vivia, e talvez ele gostasse que
as coisas fossem assim, todos os seus clientes reduzidos a
diminutivos ou alcunhas ou nomes trocados, além de seguro era
sensato. Voltou a olhar para o espelho e, ao mesmo tempo, levou
a mão ao bolso do colete e passou a Nick o embrulhinho tão bem
feito, invisível na sua mão fechada. Nick estava pronto para isso,
mas, quanto ao rolo de notas, foi uma carga de trabalhos para o
tirar do bolso. Ronnie acelerou num sinal amarelo e, nesse
momento, Nick deu-se conta de que estava a infringir a lei
porque não tinha posto o cinto de segurança. Ronnie também
não tinha posto o cinto, esse era o tipo de mundo em que ele se
movia, e Nick pensou que se pusesse o seu cinto agora, quer
dizer, já estava há alguns minutos no carro e só agora é que ia
pôr o cinto, talvez Ronnie ficasse magoado, não era? O passeio
também já devia estar a acabar, de maneira que as hipóteses de
um acidente eram muito escassas. Mas seria horrível, se a
polícia os mandasse encostar por não terem posto o cinto de
segurança, e, depois, é claro que os agentes iam fazer-lhe
perguntas e, depois das perguntas, seria revistado... Deu uma
cotovelada no braço de Ronnie,
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por via de alguma sugestão ainda mais terrível. Agora é que Nick
entendia as razões de Catherine.
Bertrand fez-lhe algumas perguntas acerca do recital e prestou
toda a atenção às respostas, como se estivesse num briefing
para profissionais que lhe poderia ser muito útil. «Técnica
espantosa» repetia. «Ainda muito jovem», dizia, e abanava a
cabeça enquanto retalhava o seu salmão. Não obstante toda a
sua erudição e capacidade, Nick hesitava em desempenhar
plenamente o papel de esteta, hesitava em ser ele mesmo, não
fosse o seu tom tornar-se demasiado íntimo e revelador. A
influência de Bertrand era, à sua maneira, tão forte como a da
coca; de tal forma que Nick deu por si a falar com o pai de Wani
num tom francamente ríspido. Na realidade, perguntava-se se a
pequena Nina, apesar da intensidade dos seus sentimentos, seria
de facto grande coisa como pianista. O facto de ela ser tão
jovem tendia a enviesar as reacções. Fez de conta que era Dolly
Kimbolton e disse: - O Beethoven foi verdadeiramente comovedor
- mas Bertrand não via grande uso nessa frase. Olhou para ele
fixamente e disse: - O raio da última coisa que ela tocou era
mesmo boa.
Nick deu uma olhadela para a sala à procura de Wani, que estava
sentado a uma mesa com a mãe e uma mulher de meia-idade, a
qual emitia todos os sinais de uma extrema susceptibilidade e
confusão ao ver-se percorrida por aquele olhar velado por tão
longas pestanas. Da parte de Wani, era quase um engodo
irresistível, deixar que o seu olhar pousasse, vazio mas sedutor,
numa mulher. Não trocara ainda uma palavra com Nick desde
que chegara; virara-se para ele, acenara-lhe e suspirara, como
que a dizer: «Ah, estas multidões, estes deveres», no momento
em que ocupavam os seus lugares na sala. Se se sentia
constrangido por ver o pai e o amante num tête-à-tête, era
demasiado inteligente para o mostrar. Bertrand disse: - Este meu
filho... A quem é que ele está a fazer-se agora?
Nick riu-se facilmente e respondeu: - Oh, não sei. À mulher de
algum deputado, imagino eu.
- O raio do rapaz, a única coisa que sabe fazer é fazer-se às
mulheres! Todo ele é flerte! - disse Bertrand, dando muito às
pestanas, num jeito obviamente sarcástico. Cultivava uma
aparência tão esmerada, tão primorosa, tão embonecada, que
quase corria o risco de parecer camp. Nick imaginou as
canseiras
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seria o mais feliz dos homens. Tu sabes que ele odeia Barwick,
não sabes.» Nick rira-se disto, mas perguntava-se se os seus
«queridos mãe e pai» escapariam, de facto, a esse ódio. «Este é
um dia inglês clássico», estava Gerald a dizer, «e este é um
cenário inglês clássico». E Nick achou que devia recorrer da
sentença de Catherine. De certeza que, sob esta bem-disposta
impostura, há outra coisa qualquer que está a acontecer: isto
não pode deixar de ter alguma importância para ele - enquanto
diz estas banalidades todas, vai-se convencendo de que, afinal,
até está a fazer um belo discurso, deixa-se levar numa onda de
retórica e auto-estima. Saiu-se com uma graça sobre um francês
que resolveu fazer um daqueles programas de férias de bicicleta
- não correu nada mal; e, ao aproximar-se do desfecho - mesmo,
mesmo, no momento exacto - cometeu a proeza de sugerir que,
longe de ser um abastado homem de negócios que viera de
Londres para exercitar o seu ódio em relação àquela gente, ele
era, de facto, o espírito de Barwick, o Pick-wick(1) de Barwick,
abrindo a festa para o povo como se fosse a sua própria casa.
Numa investida decisiva, cortou a fita, que não delimitava nada:
o microfone espalhou pelo parque o deslizante estalido da
tesoura.
Depois disto, Gerald foi conduzido numa volta quase régia pelo
recinto da festa, tolhido, no que tocava ao seu estilo, pela
presidente da Câmara, que se encaixava com toda a naturalidade
no papel de consorte. Nick queria ficar de olho nos
frequentadores dos urinóis, mas sentia também a atracção do
grupo de Londres e acabou por se juntar a Penny. - Correu bem, o
discurso - disse.
- Gerald foi excelente, claro - disse Penny. - Não estamos nada
satisfeitos com a presidente da Câmara. - Observaram a
presidente, que parara na tenda das geleias e examinava os
preços como se estivessem a tentar ludibriá-la, pelo que talvez
fosse necessário regateá-los; perante o que, movido por um
súbito impulso, o deputado por Barwick, que não sabia o preço
de coisa nenhuma, tirando os do barbeiro e das várias marcas de
champanhe, pegou em cinco libras e comprou dois frascos de
geleia,
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- Com que então ganhou um porco! - disse a mãe de Nick
conduzindo Gerald à sala de estar da vivenda Linnells. - Santo
Deus...
- Eu sei... - disse Gerald. Estava ainda com um ar um tanto
afogueado por causa do esforço despendido, ainda um pouco
efervescente de adrenalina, talvez a precisar de um duche, o
cabelo todo suado, penteado para trás. - Foram cinco séries,
mas, no fim levei a melhor! Foi uma vitória concludente! - Dot
Guest percorreu com os olhos a sala densamente mobilada,
apontou para uma cadeira após outra, parecia sentir que a casa,
toda aquela casa, era demasiado pequena para Gerald. Ele
chocava contra as coisas, estava com uma disposição
verdadeiramente indomável, era quase como se o porco tivesse
vindo atrás dele. Abeirou-se da janela que dava para as traseiras
e disse: - Que bela vista! Vocês, aqui, é como se vivessem no
campo, não é.
Num jeito cortês e muito tímido, enquanto retirava objectos
vários da mesinha que ia receber as bebidas, Dot murmurou: -
Sim... vivemos... praticamente... - e, um segundo depois, olhou
com um ar grato para Don, que trazia os gins tónicos numa
bandeja de prata. Gerald já se tinha esquecido por completo do
problema do campo.
- Bom, que dia este, hã, se me tivessem contado, não acreditava -
disse, e logo acrescentou: - Arremesso da galocha: mais um item
para o meu currículo! - E afundou-se na poltrona de Don como se
estivesse na sua própria casa, só para os pôr à vontade. -
Muitíssimo obrigado, Don - pegando no seu copo. - Acho que é
bem merecida, esta bebida.
- Onde é que está o porco? - disse o pai de Nick.
- Oh, dei-o ao hospital. Claro que, nestas ocasiões, uma pessoa
não deve ficar com o prémio, parece mal, não é. À vossa!
Nick observou-os refugiando-se no primeiro sorvo. Sentia
vergonha da mesquinhez das bebidas, do facto de o pai as ter
preparado na cozinha e de as ter levado para a sala como quem
oferecia uma preciosidade. Os pais olhavam para Gerald num
jeito orgulhoso, mas não isento de ansiedade. Eram tão
pequenos e tão arrumadinhos, tão certinhos, quase como
crianças, e Gerald era tão intenso e grande e aberto e maior do
que a vida local... Don pusera um lacinho de um vermelho muito
vivo. Na sua infância,
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- Vai ser uma experiência maravilhosa para ti, meu rapaz - disse
Don. E Nick pensou: Coitados dos velhos, realmente fazem o
melhor que podem; mas, por um minuto, quase os censurava por
não saberem que ele ia dar uma volta pela Europa com Wani, e
por o obrigarem a contar-lhes um projecto tão prenhe de
significados ocultos. Claro que eles não tinham culpa de não
saberem, Nick não podia contar-lhe aquelas e outras coisas, e,
por isso, tudo o que dizia e fazia transformava-se numa surpresa,
grande ou pequena mas, de algum modo, nunca inteiramente
benigna, visto que eram réplicas do terramoto, da surpresa,
original, a saber, o facto de que ele era, como dizia a mãe, um
não-sei-quê.
- Porque, normalmente, é Nick quem fica a cuidar da casa, não é
- disse ela. - Quando vão de férias. - Dot agarrava-se a este facto
como uma prova de que havia pessoas importantes que
consideravam o filho um indivíduo digno de confiança, pessoas
que, pelos vistos, se estavam borrifando para o facto de ele ser,
para todos os efeitos, um não-sei-quê.
- É verdade, coitado do Nick, foi tão sacrificado com isso no
passado... Mas este ano, a nossa governanta e a filha vão ficar lá
em casa, de maneira que até podem fazer uma limpeza de alto a
baixo sem ninguém a atrapalhá-las... No fundo, para elas, acaba
por ser uma espécie de férias. - E Gerald gesticulou
generosamente com o seu copo vazio.
- Parece mesmo o género de férias a que eu estou habituada! -
disse Dott, que ansiava pelos regalos e mimos de um bom hotel,
mas que era obrigada a passar o mês de Setembro na casa da
cunhada, em Holkham(1).
Don voltou à cozinha, de onde trouxe um segundo gin tónico para
Gerald, e não mais que um dedal para ele; os pais de Nick não
estavam habituados a um ritmo tão desenfreado. - É um bom tipo,
esse Ouradi, não é? - disse.
- Não o conhecem... não... Oh, é um encanto de pessoa,
absolutamente. O meu filho Tobias e ele eram muito amigos em
Oxford, bom, vocês eram todos muito amigos, não é verdade,
Nick?
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- Temos tantas casas dessas por aqui... Nick está farto de ouvir
isto, mas é a pura verdade: entre os meus clientes, tenho dois
condes, um visconde, um barão e dois baronetes!
- Uma lista notável - disse Gerald. - Temos de ver se conseguimos
arranjar-lhe um duque.
- Claro, o que é realmente fabuloso - disse Nick, num acesso de
vergonha -, é a qualidade do mobiliário em todas essas casas.
Coisas que estão lá há séculos.
- Sem dúvida... - aquiesceu Gerald, como se ele próprio levasse
muito a sério a questão. Ergueu e baixou as sobrancelhas, num
sinal de perplexidade perante o seu copo vazio.
Don disse: - Nick contou-me que tem algumas belas peças na sua
casa de Londres. -Oh...
- Uma boa parte são coisas francesas, não é?
- Bastantes coisas francesas, sim - disse Gerald, que não fazia a
menor ideia quanto à proveniência da esmagadora maioria do
seu mobiliário.
- E também algumas belas pinturas.
Gerald brindou os pais de Nick com um amável olhar de caridade,
colorido com um nada de impaciência, e mesmo com uma
espécie de desdém, pelo menos foi o que pareceu a Nick, que
tomava o partido de ambas as partes, como se estivesse a
assistir a uma discussão consigo mesmo. - Sabem, um dia destes
deviam fazer-nos uma visita, não lhe parece, Nick?, ou então
podiam aparecer quando nós estivéssemos fora. Olhem,
apareçam em Kensington Park Gardens enquanto nós estivermos
em França e façam de conta que estão na vossa casa. Podem
servir-se da casa à vontade. E, enquanto lá estiverem, podem
apreciar todo o conteúdo, e depois dizem-nos de onde é que veio
tal peça, quais as influências de determinado móvel, enfim,
essas coisas todas...
- Bom, é extremamente amável da sua parte - disse Don, sorrindo
de uma ideia tão sedutora.
- Oh, não creio que possamos... - disse Dot, cujo medo das
liberdades em geral incluía até aquelas que poderiam ser-lhe
permitidas. - Quer dizer, é muitíssimo amável da sua parte,
claro... - Parecia esmagada pela oferta, e mascava em seco
enquanto espiava a reacção de Don. Nick, por vezes, considerava
a mãe obtusa e tacanha,
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deplorava a sua tontice, e, ao mesmo tempo, estava tão
sintonizado com os seus estados de espírito, com as correntes
de sugestão que existem entre uma mãe e um filho único, que
era capaz de traçar as linhas da sua ansiedade sem o menor
esforço. Ir para Kensington Park Gardens, ficar naquela casa,
bisbilhotar, sempre de um modo hesitante, aquelas salas,
aquelas preciosidades, bom, isso seria satisfazer uma
curiosidade; contudo, daria também uma forma e um detalhe,
impossíveis de esquecer, ao mundo em que Nick vivia, esse
mundo tolerante e gastador, com as suas adegas e as suas
governantas que mal falavam inglês, e o Ministro da
Administração Interna a telefonar para lá sem mais nem menos,
coisa que, a crer no filho, era relativamente frequente. Seria uma
torrente de conhecimento e, de um modo geral, Dot, segundo as
suas próprias palavras, preferia não conhecer mais nada.
- De qualquer modo, pensem no assunto - disse Gerald; e,
enquanto os pais murmuravam, de olhos brilhantes e faces
afogueadas, Nick sabia que o assunto nunca mais seria
mencionado.
Meteu pela Market Square e abrandou mal se aproximaram da
tabuleta relógios D. N. Guest ANTIGUIDADES: - Ali está a nossa
loja! - e ergueu o braço como se estivesse a mostrar ao deputado
o Palácio do Doge ou qualquer outra coisa grandiosa que ele
pretendesse visitar.
- Claro! - disse Gerald. Nick só pôde vê-la de relance, mas nem
precisaria de vê-la; a loja era, para ele, uma presença demasiado
forte, era como uma surpresa que tivesse preparado para outra
pessoa que nunca conseguiria senti-la tão intensamente como
ele. Aquele lado da praça estava agora à sombra, embora o sol
banhasse ainda o outro lado, a fachada de estuque branco do
Crown Hotel. Um céu sem nuvens por sobre os telhados, as lojas
todas fechadas, o esvaziamento de uma vila de província num
entardecer de meados do Verão; não inteiramente vazia, já que
havia turistas de fim-de-semana dando os seus passeios antes do
jantar, espreitando pelas montras das lojas fechadas, com um ar
de quem esperava tirar o melhor partido do sítio, e alguns
rapazes, ou, mais exactamente, rufias, errando sob as arcadas
do mercado. O mercado era a jóia da vila, uma gaiola de vidro e
pedra com uma cobertura particularmente alta
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11.
(I)
Toby disse: - À vossa esquerda, podem dar uma espreitadela ao
château - e abrandou mal surgiu algum espaço entre as árvores.
Viram íngremes telhados de lousa, tijolo de um escuro tom
púrpura, vidro laminado, a dureza, tão particular, do século XIX.
- Certo... - disse Wani. - Mas já não é vosso, pois não?
- O meu avô vendeu-o depois da guerra - disse Toby.
- Então quem é que lá vive agora? - perguntou Nick, que se perdia
sempre de amores por uma pequena casa de campo numa
estrada secundária ou por um pináculo no meio das árvores, e
pelo Revivalismo Gótico mais do que pelo Gótico propriamente
dito.
- Pode-se visitá-lo?
- Aquilo agora é um lar para velhos gendarmes - disse Toby.
- Eu já lá estive, é muito deprimente -; e retomou a velocidade
normal para uma estrada esburacada.
- Ah - disse Nick, num tom dubitativo.
- E os gendarmes não vos causam problemas? - queria saber
Wani.
- Oh, quando lhes dá para isso, são bem capazes de armar a
maior das confusões - disse Toby. - Já tivemos de chamar a
polícia umas quantas vezes - e olhou para o espelho, a ver se
Nick sorrira da sua graça. Ah, as graças de Toby! que faziam com
que Nick sentisse uma vontade louca de o esmagar num abraço
de protesto.
- Nesse caso, a casa para onde nós vamos... - disse Wani.
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com o gelo derretido de uma longa bebida num copo ao seu lado,
os óculos escuros postos, a cabeça curvada sobre um livro no
colo, mas sem dúvida a dormir, visto que as páginas do livro se
erguiam numa crista trémula. Para lá deles, Jasper estava
estirado na água, de barriga para baixo, agarrado aos ladrilhos
azuis da borda da piscina, o olhar perdido na paisagem, e dando
uma impressão de tédio adolescente. Vestia uns calções
folgados, enormes, multicoloridos, e, enquanto pontapeava
indolente a água, os calções cintilavam e entufavam-se,
desinchavam e colavam-se às nádegas, uma rosa, a outra verde-
lima. Nick surpreendeu Wani a olhar para ele. Nesse instante,
Toby saiu do vestiário no seu passo decidido e Catherine, como
que competindo por imaginários louros, gritou - Aqui estão eles! -
e acordou-os a todos. - Parecem mesmo uns destroços que
vieram dar à piscina - disse e rompeu num riso cacarejado,
aquele estilo «amalucado» que ela agora se permitia. Gerald
desatou de imediato a falar, Rachel toda se contorceu enquanto
se espreguiçava e sentava e os dois rapazes se curvavam, como
dois rivais, para a beijarem. Jasper atravessou a piscina num
estilo tumultuoso. Havia já algum tempo que Nick não estava
com eles e, ao encontrá-los ali, no torpor quase nu do seu mundo
privado, deu-se conta de tudo o que eles tinham de maravilhoso,
e de algo mais, como numa das fulgurantes intuições de
Catherine - a prontidão com que, sem a menor suspeita, se
ofereciam ao sofrimento.
Ao jantar, sob o toldo, Nick e Wani foram obsequiados com o
segundo e último capítulo da recepção, o qual tinha por objectivo
fazê-los sentir até que ponto a vida sem eles fora monótona e
desinteressante e até que ponto ia ser agradável agora que eles
tinham chegado. Todos revelaram as suas frustrações e
incitaram os recém-chegados a fazer as coisas que haviam
desejado fazer mas não tinham feito. Ao fim de uma semana de
impasse familiar, ou de tédios que se entrosavam tão bem como
os fios de um tecido, anunciava-se uma explosão de actividade,
um pico sustentado de realizações. Wani concordava
polidamente com tudo o que lhes era proposto, embora
parecesse um pouco confrangido ao ouvir os planos de Toby para
descobrir um lago subterrâneo. Gerald disse a certa altura: -
Temos mesmo de voltar a fazer a caminhada até Hautefort,
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*1. Abreviando muito, Michael Foot (n. 1913) foi líder do Partido
Trabalhista britânico entre 1980 e 1983, depois de, nos anos 70,
ter passado pelo governo Wilson. Dentro do seu partido, assumiu
sempre posições claramente de esquerda. (N. do T.)
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*1. No original, opera queen, uma expressão que pode ser lida
como «bicha da ópera» (e é conhecida a ligação entre gays e
ópera). (N. do T.)
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Não obstante os dois pares de óculos, Nick tentou perceber se
aquilo seria uma graça - mas parecia que Toby usara a expressão
com igual inocência tanto quanto às «rainhas» como quanto à
ópera.
- Ele é um filisteu consumado - disse.
- Oh, ele é um tratante da pior espécie - disse Toby, o qual ao
contrário do pai, raramente recorria à obscenidade.
Nick fê-lo por ele. - É um filho da puta.
- Não, de facto é isso que ele é.
- Mas afinal por que raio é que eles vieram para aqui?
- Oh, negócios, claro... - Toby parecia constrangido ao ouvir-se
criticar o pai: - Sabes, creio que o pai achava que nós íamos ser
uma grande família, uma família muito feliz... Mas depois houve...
enfim... o caso Sophie, mas seja como for, ele continua a
comportar-se como se nada tivesse corrido mal.
- Os negócios, como de costume - disse Nick, relutante em
abordar, pela enésima vez, o caso Sophie. - Imagino que Tipper
seja um tipo muito poderoso, é isso, não é?
- Mas é claro... Ele é um dos maiores!
- O que é que ele tem, exactamente?
- Nick, francamente...! Por amor de Deus, com certeza que
ouviste falar da TipperCo, é um gigantesco grupo de empresas.
- Não, claro...
- Foi uma história que deu imenso que falar nos anos 70, a
empresa de Tipper comprou uma outra empresa que estava
falida por um preço muito reduzido e depois tratou de
desmembrá-la e de vender todos os seus bens com um lucro
altíssimo. Tipper tornou-se muito impopular, mas a verdade é que
arrecadou milhões.
- Certo...
- É, na semana em que isso aconteceu devias andar muito
entretido com o teu Chaucer.
Como de costume, Nick não resistiu a uma muito branda
excitação amorosa pelo facto de Toby estar a meter-se com ele;
enrubesceu e riu-se num jeito complacente. Claro que Toby era
um especialista naquelas matérias, mas uma pessoa esquecia-se
disso. Era maravilhoso - enfim, à sua maneira, à sua escala, não
deixava de ser - que ele tivesse escrito artigos em jornais;
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- Bom, claro que não são liras, minha cara jovem, isso posso
garantir-lhe. Nem bolivianos da Bolívia.
Houve uma pausa enquanto Catherine lhes permitia que
desfrutassem da sua confusão. Toby aproveitou para dizer
qualquer coisa de tolerável acerca dos mercados; Sir Maurice
limitou-se a encolher os ombros, para mostrar que uma pessoa
como ele não falaria de tais coisas com pessoas de tão baixo
nível.
Catherine pôs-se a remexer num pedaço de pepino que boiava na
sua bebida e, a certa altura, disse: - Reparei que o senhor deu
algum dinheiro para o peditório na igreja de Podier.
- Oh, nós contribuímos para um sem-número de igrejas e
peditórios.
- Quanto é que deu?
- Não me recordo do montante exacto.
- Conhecendo Maurice como eu conheço - disse a mulher -, só
pode ter dado muito! - Sir Maurice pusera o ar enfatuado de
alguém que estava a ser alvo de críticas.
- Deu cinco francos - disse Catherine. - O que anda à volta de
cinquenta pence novos. Mas podia ter dado - e ergueu o seu copo
e fê-lo girar, como uma espécie de telescópio, de modo a abarcar
toda a vista, incluindo os montes e a distante linha do rio -, podia
ter dado um milhão de francos e nem sequer daria pela falta do
dinheiro... E esse gesto bastaria para salvar o nártex românico!
Aí estavam duas palavras com que Maurice Tipper nunca tivera
de lidar isoladamente, quanto mais juntas. - Quanto a não dar
pela falta do dinheiro, tenho as minhas dúvidas - disse ele, num
tom francamente tolerante.
- O problema é que uma pessoa não pode contribuir para tudo -
disse Sally. - Como sabem, nós temos o Covent Garden...
- Não, com certeza - disse Catherine, tacticamente, como se, até
então, não tivesse feito outra coisa senão dizer patetices.
- O que é que se passa...? - disse Gerald, aparecendo finalmente,
de calções e sapatos de lona e com uma toalha ao ombro.
- A jovem Catherine tem estado a brindar-me com as suas
críticas. Pelos vistos, sou uma pessoa muito mesquinha.
- Não o disse de uma forma tão explícita... - corrigiu Catherine.
- Sejamos realistas - propôs Sally. - O que se passa é que
algumas pessoas são, pura e simplesmente, muito ricas.
Gerald, claramente farto dos seus convidados, olhou num tenso
relance para os degraus da piscina e disse: - A minha filha tende
a pensar que nós deveríamos repartir tudo aquilo que ganhámos
graças ao nosso trabalho.
- Nem tudo, é óbvio. Mas seria sem dúvida simpático se
ajudassem sempre que possível. - E ofereceu-lhes um sorriso de
orelha a orelha.
- Mas diga-me uma coisa, minha cara jovem: pôs alguma coisa na
caixa? - disse Sir Maurice.
- Não tinha nenhum dinheiro comigo - disse Catherine. Gerald
prosseguiu: - A minha filha vive na estranha ilusão de
que é uma indigente, em vez de... enfim, daquilo que realmente é.
Infelizmente, é impossível discutir com ela. Por muitas voltas que
a discussão dê, acaba sempre a dizer o mesmo.
- Não é isso - disse Catherine num tom vago e irritado. - O que se
passa é que eu não percebo por que raio é que uma pessoa,
quando já arrecadou, digamos, quarenta milhões, tem
forçosamente de os transformar em oitenta milhões.
- Oh...! - disse Sir Maurice, como se tivesse acabado de ouvir um
disparate absurdamente juvenil.
- Na verdade, o dinheiro, de certo modo, acaba por crescer
sozinho - disse Toby.
- O que eu quero dizer é isto: há alguém que precise de ter tanto
dinheiro? É tal e qual como o poder, não é? Porque é que as
pessoas querem o poder? Quer dizer, qual é o interesse de se ter
poder?
- O interesse de se ter poder - disse Gerald -, é que o poder
permite melhorar o mundo.
- Precisamente - disse Sir Maurice.
- Portanto, uma pessoa começa a acumular dinheiro porque quer
fazer coisas específicas, concretas, ou é só para ter a sensação
do poder, para saber que, se quiser, poderá fazer coisas?
- É a questão do ovo e da galinha, não é - disse Sally com
manifesta convicção.
- É uma óptima questão - disse Toby, apercebendo-se de que
Maurice estava a ficar pelos cabelos.
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- Mm, muito bem! - disse Gerald, eclipsado e subtilmente
constrangido.
Isto chegou para acicatar Maurice Tipper, que, naquele jeito
ligeiro e imune a todo o tipo de surpresas que é típico das
pessoas desconfiadas, perguntou: - E de que é que ele morreu?
Gerald fez uma espécie de ruído ofegante e Rachel, num tom
sereno, tratou de explicar: - Foi uma pneumonia. Mas, coitado do
Pat, ele já não andava bem há algum tempo.
- Oh - disse Maurice Tipper.
Rachel perscrutou um longínquo ponto algures sob a saladeira de
barro vidrado. - O ano passado, quando esteve no Extremo
Oriente, apanhou um vírus ou um micróbio, não sei bem, enfim,
algo de absolutamente invulgar. Ninguém sabia o que era. Julga-
se que seja uma daquelas coisas incrivelmente raras. Enfim, um
tremendo azar.
Nick sentiu uma espécie de alívio pelo facto de a família
continuar a defender aquela sinistra ficção e espreitou para o
ignorante e encolhido Jasper, que acenava que sim com a
cabeça a tudo o que ouvia e evitava o mais possível o olhar da
namorada. De súbito, viu-o encolher-se ainda mais, como se
soubesse o que aí vinha.
- Mãe, por amor de Deus! - exclamou Catherine. - Ele tinha sida! -
com a voz embargada pela expectoração, um embargo que a sua
fúria tentava anular. - Ele era gay... ele gostava de sexo fortuito...
anónimo... ele gostava...
- Querida, o que é que tu sabes dessas coisas... - disse Rachel.
Não era muito claro sobre que parte ou partes da história Rachel
procurava lançar a sombra da dúvida.
- Claro que gostava - disse Catherine, cuja visão do sexo gay
remetia simultaneamente para a tragédia e para os desenhos
animados. Ofereceu a toda a mesa um sorriso de incredulidade.
Nick sentiu que o desprezo de Catherine também o visava a ele.
- Seja como for...! - disse Gerald, e sorriu e respirou fundo como
se o momento de crise já tivesse passado, erguendo e inclinando
a garrafa, num jeito inquiridor, na direcção da mãe.
- Oh, tudo isto é patético! - berrou Catherine, com o furor e a
fixidez de olhar de alguém que era presa fácil nas garras de uma
nova e violenta mistura de emoções. - Quer dizer, o mínimo que
podemos fazer é dizer a verdade acerca dele, não acham?
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- Não faz sentido usar-se umas vezes e outras não. Não sabes por
onde é que ele anda.
- Oh, Nick, ele é a inocência em pessoa. Jasper nunca esteve
com mais ninguém.
- Não, enfim...
Catherine ficou por um segundo embasbacada. - Portanto, se não
fomos nós...
- Podia ter ficado na sanita desde a noite anterior... É uma
hipótese... - disse Nick com uma despreocupação condenada,
observando a amiga enquanto ela, ao jeito de uma Agatha
Christie, passava em revista todos os suspeitos, tanto os
possíveis como os francamente impossíveis. Pensou que talvez
Catherine, como Poi-rot, conhecesse já a solução antes de ter
entrado no seu quarto; porém, quando ela se levantou e se
encaminhou para a janela e, por fim, se virou, Nick encontrou no
rosto dela o choque, ou mesmo a repulsa, da descoberta.
- Santo Deus, que estúpida que eu sou - disse ela.
Nick olhou para ela e ela olhou para ele. Sentiu, também ele, a
dolorosa estupidez da descoberta, e também uma espécie de
orgulho, rondando ainda apenas, aguardando por um aceno de
permissão para se consubstanciar num sorriso. Catherine não
conseguia encobrir a natureza e a escala do logro em que caíra.
Julgou ver nela uma rápida recuperação, o reemergir da sua
simpatia por todo o tipo de libertinagem. - Sim - disse Nick -,
talvez ele seja, de facto, verdadeiramente brilhante.
Catherine deixou a janela e voltou para a sua poltrona,
envergando um ar tão digno quanto lhe era possível. - Já não o
acho nada brilhante - disse.
Nick retorquiu cuidadosamente: - Quer dizer, ele era brilhante
quando pensavas que me enganava... Mas deixa de ser brilhante
quando descobres que é a ti que ele engana. - Sentiu, sem tempo
para aprofundar a questão, que podia haver uma ocultação
brilhante de uma coisa simples ou mesmo sórdida; e que podia
haver uma ocultação simples e pateta de algo fulgurantemente
inesperado. Enredado naquela ocultação específica, acostumado
a ela, não sabia em que categoria integrá-la. - Claro que isto é
tudo ideia dele - disse.
- Quer dizer, como é que ele consegue aguentar?
- O secretismo? Ou a minha pessoa?
- Deixa-me rir.
- Bom, o secretismo... - Ao longo da sua vida, Nick sentira-se
amiúde um advogado incapaz de desenvolver eficazmente as
suas alegações; dificilmente conseguiria defender a sua própria
causa, quanto mais a de outra pessoa; porém, neste caso
específico, mostrava-se categórico, nem que fosse pela
necessidade regular de se convencer a si mesmo. Conferiu,
erguendo os dedos de uma mão, os cinco pontos da sua defesa: -
Wani é um milionário, é libanês, é filho único, vai casar-se, o pai
é um psicopata.
- Mas como é que tudo isso começou? - disse Catherine,
considerando os cinco pontos ou demasiado óbvios ou
demasiado complicados para que merecessem a sua atenção. -
Há quanto tempo é que isso dura? Quer dizer, meu Deus,
francamente, Nick!
- Ooh, há cerca de seis meses.
- Seis meses?! - e, uma vez mais, Nick ficou sem saber se seria
demasiado tempo ou se, pelo contrário, não seria tempo
bastante. Catherine olhava-o fixamente. - Vou escrever uma carta
àquela rapariga francesa! Coitada, o sofrimento em que ela
vive... e há um ror de tempo!
- Não vais fazer isso nem nada que se pareça. Daqui a um ano,
essa pobre rapariga francesa será uma ditosa mulher casada.
- Com uma bicha libanesa que tem um pai psicopata...
- Não, querida, com um jovem muito belo e muito rico que a fará
muito feliz e lhe dará montes de belas e ricas crianças. - Era uma
perspectiva penosamente ampla.
- Então e tu?
- Oh, eu vou ficar bem.
- Não vais continuar a comê-lo depois de ele se casar com a
pobre rapariga francesa, espero...
- Claro que não - disse Nick, considerando com um sorriso
cristalino a única coisa em que não queria pensar. - Não, nessa
altura, arranjo outro!
Catherine fitava-o e não parava de abanar a cabeça; já podia tirar
a conclusão moral que mais lhe agradava: - Santo Deus, os
homens...! - disse. Nick riu-se com algum constrangimento;
sentia-se objecto tanto de compaixão como de ataque.
- Mas agora a sério, tens de me jurar que não dizes nem uma
palavra a ninguém.
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12.
Por ocasião das bodas de prata dos Fedden, Lionel Kessler deu
duas prendas a Gerald e Rachel. A primeira apareceu de manhã,
no banco de trás do seu Bentley, e foi o próprio chauffeur quem
levou para a cozinha a robusta caixa de madeira.
- O tio Lionel é mesmo um querido - disse Toby, ainda antes de
saberem o que vinha lá dentro.
- Espero que seja prata - disse Gerald, com uma chave de
parafusos na mão e um ar que associava a cupidez a algum
enfado.
Lá dentro, encaixado num suporte metálico e protegido por
vários anéis de espuma de borracha, estava um jarro de prata
roco-có. O corpo da coisa tinha a forma de uma concha e o bico
era suportado por um tritão barbado. «Santo Deus, Nick...», disse
Gerald e com tal ênfase que Nick assumiu de imediato o seu
papel de intérprete - disse que, em sua opinião, o jarro devia ser
obra de um dos prateiros huguenotes que tinham trabalhado na
capital britânica em meados do século XVIII, provavelmente Paul
de Lamerie, já que o artista mais importante nessa área era
também o único que lhe ocorria, e, com Lionel, tudo parecia
possível. «É maravilhoso», disse Gerald: «uma obra de raro
engenho.» Espreitou para dentro da caixa, a ver se trazia alguma
nota, como as instruções de rega que acompanham uma planta
mais frágil, mas não havia nota nenhuma. Nick explicou que a
pequena cena em relevo, com Eros brincando com a espada da
Justiça, significava Omnia Vincit Amor. «Ah, absolutamente
adequado», disse Gerald, timidamente pomposo,
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- Oh - disse Toby.
- Até podias fazer um discurso mais virado para a tua mãe.
- Certo... Oh pá, quem me dera que fosses tu a escrevê-lo. - Toby
errava ansioso pelo quarto, as costas curvadas, os ombros
caídos. Ouviram a campainha a tocar, sinal da chegada dos
primeiros convidados. - Quer dizer, o que é que eu posso dizer da
minha velha?
- Podes falar de tudo aquilo, e não é pouco, que ela teve de
suportar com Gerald - disse Nick, sombriamente consciente de
que Rachel não sabia da missa a metade. - Não, é melhor não
dizeres isso - acrescentou, com notória prudência -; não, o que
tens a fazer é muito simples: abrevia o discurso. - Imaginou Toby
de pé a falar para os convidados, a sua ansiedade
completamente exposta perante uma multidão que a bebida teria
já estimulado no sentido da brutalidade, mas também do
enternecimento. - Não te esqueças de uma coisa: toda a gente te
ama - disse, na esperança de que isso o ajudasse a não dar tanta
importância ao sortido de monstros que o esperava.
Toby baixou-se, snifou a sua linha e recuou; Nick aguardou e
observou-o, procurando os sinais da dissolução amorosa, sem
fazer ideia da cor que essa dissolução ganharia nele. - Há que
tempos que não experimentava... - disse Toby, meio a protestar,
meio a justificar-se. E, passado um instante: - Mm, isto é muito
bom... - E, um minuto depois, numa rendição radiante: - Isto é
mesmo material do bom, Nick, lá isso é. Onde raio é que foste
arranjá-lo?
Nick snifou vorazmente a sua linha e limpou a mesa com a ponta
do dedo. - Oh, para dizer a verdade, foi Ouradi quem mo arranjou.
- Certo - disse Toby. - É, Ouradi tem sempre material do bom.
- Tu costumavas snifar com ele, em tempos que já lá vão.
- Pois foi, isso aconteceu uma ou duas vezes. Mas pensava que tu
não consumias nada... - Toby avançou para ele num jeito
desenvolto e Nick teve de fazer um esforço sobre-humano para
não o beijar e não lhe apalpar a picha, como teria feito com Wani.
Em vez disso, disse:
- Olha, toma, leva o resto. - O resto era cerca de um terço de um
grama.
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- Oh pá, não, não posso - disse Toby, ainda que, no seu rosto, se
notasse, nesse mesmo instante, a fulguração da posse.
- Não, toma lá - disse Nick. - Eu já tenho a minha dose, mas tu,
bom, é natural que precises de mais. - E estendeu-lhe a
minúscula embalagem, quase uma cartinha, de facto, um bilhete
amoroso, bilhete esse, como sempre acontecia com Ronnie, que
fora feito com uma página de uma revista de mulheres nuas: um
mamilo enorme cobria a embalagem como se fosse um selo.
Toby pegou nela e, após um momento de reflexão, enfiou-a no
bolso interior do casaco. - Eh pá, é mesmo fantástico! - disse. - É,
acho que as coisas vão correr bem esta noite, sabes, vou fazer o
que tu disseste, abreviar o discurso - e desatou a tagarelar,
movido pela mera animação de uma primeira linha de coca. No
caminho para baixo, disse a Nick: - Claro, querido, se quiseres
mais, diz-me; eu não vou usar isto tudo.
- Não, eu não vou precisar de mais.
Avançaram num jeito descontraído, quase deslizante, pela sala
de estar, onde Lady Partridge estava a falar de ladrões com um
homem do Ministério das Finanças e Badger Brogan flertava de
uma forma controlada com Greta Timms, grávida do sétimo filho.
Nick circulou pela sala, sorridente e quase imune à ansiedade
que encontrava nos outros, àquela jovialidade exagerada, à
desatenção feita de relances, à sensação de uma lacuna que só
poderia ser preenchida pela chegada da celebridade. Mirou à sua
volta em busca de uma bebida. Aquele pingo de coca na garganta
deixava-o duplamente sequioso. Dois criados entraram com
bandejas carregadas de bebidas, uma aparição que o fez rir: eles
eram a resposta exacta a uma sede dupla. Por razões de beleza,
escolheu o criado moreno, de lábios carnudos: - Obrigado. Oh, olá
- disse Nick, por sobre o seu corpo erguido, reconhecendo o
criado antes de saber ainda quem ele era; só por um segundo,
enquanto tudo permanecia cintilante e suspenso, ele e o criado
de olhos nos olhos, as bolhas fluindo para logo se dissolverem
numa dúzia de copos altos. - Eu lembro-me de si - disse ele
então, num tom bastante seco, como se aquele criado tivesse
deixado cair qualquer coisa em cima de alguém, uma cena sem
dúvida inesquecível.
- Oh... boa-noite - retorquiu o homem com um ar de manifesto
agrado, de tal forma que Nick sentiu-se perdoado; e, logo a eguir:
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estava ele a dizer, com um sugestivo semicerrar dos olhos. - Ah,
o Hotel Diocletian, um encanto, um imenso encanto!
- Ah - disse Catherine.
- Sabe, dão-nos sempre a suíte nupcial... que tem uma cama
verdadeiramente imensa... Tão imensa, de facto, que dava para
uma orgia.
- Mas não na sua noite de núpcias, imagino.
- Olá, Sir Jonty.
- Ah, aqui está o seu belo e jovem namorado, agora é que vão ser
elas, agora é que eu estou feito! - disse Sir Jonty e, num repente,
já ia atrás de um outro traseiro feminino que calhou a passar,
traseiro esse que, na circunstância, era precisamente o da
primeira-ministra. Sir Jonty olhou para trás por um instante,
abanando a cabeça de encantamento: - Maravilhosa, não é... a
primeira-ministra...
- Creio que acabas de ser alvo de propostas particularmente
indecorosas por parte de um velho muito bêbedo - disse Nick.
- Bom, é sempre agradável haver alguém que repara em nós -
disse Catherine, deixando-se cair num sofá. - Senta-te aqui.
Sabes por onde anda Jaz?
- Não o tenho visto - disse Nick.
O fotógrafo circulava livremente e o seu flash cintilava nos
espelhos. Deslizava e demorava-se no meio dos convidados,
abeirava-se com um sorriso, como uma maçada de que se tinha
uma vaga recordação, com o seu lacinho e o seu smoking, e,
então, quando menos se esperava, zás! - apanhava-os. Mais
tarde, voltou, retomou as suas deambulações, já que a maior
parte das fotos captam uma piscadela remelosa ou um ombro
que se vira no exacto momento do flash, e apanhou-os de novo.
Agora, os convidados agrupavam-se e enfrentavam-no, ou faziam
de conta que não o tinham visto e representavam-se a si mesmos
com descuidada magnificência. Nick deixou-se cair no sofá ao
lado de Catherine, recostou-se com uma perna enroscada
debaixo da outra e, no rosto, um sorriso enlevado perante a sua
própria elegância. Sentia-se capaz de se representar a si mesmo
a noite inteira. Sentia-se fabuloso, adorava aquelas noites, e,
embora tivesse sido agradável pôr a cereja do sexo em cima
daquele bolo, a verdade é que o facto de não ter sexo
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*1. O jazz das grandes bandas dos anos 30 e 40; Glenn Miller é o
exemplo mais conhecido. (N. do T.)
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O FIM DA RUA
(1987)
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*1. Three Times A Lady, de Lionel Richie, tinha sido, poucos anos
antes, número um no top de vendas britânico. (N. do T.)
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- Ai houve?
- De qualquer modo, Morgan casou-se com um homem chamado
Polly, de maneira que não há problema, parece-me.
Agora, os resultados estavam a chegar a uma tal velocidade que
o espectador teria a maior dificuldade em atentar num resultado
específico. A visão de uma vitória esmagadora ganhava forma
em vertiginosos diagramas. - Pensava que, da última vez, é que
tinha havido um deslizamento de terras - disse Catherine. - Nós
tínhamos aquele livro que falava disso.
- Sim, da última vez houve um deslizamento de terras, enfim, por
assim dizer - disse Nick.
Catherine não despegava os olhos do ecrã, onde o famoso
swingometer(1) estava virtualmente inactivo. - Mas não mudou
nada... - disse ela. - Quer dizer, há mais dois deputados
trabalhistas. Isto não é um deslizamento de terras.
- Oh, estou a ver - disse Nick.
- Quer dizer, um deslizamento de terras é um desastre, muda
tudo à sua volta.
- Então tu pensavas... - Parecia a Nick que Catherine, no seu jeito
desatento, mas literal, se convencera de que poderia vir aí uma
vitória esmagadora dos Trabalhistas. - É uma metáfora morta,
querida. Significa apenas uma vitória esmagadora.(1)
- Oh, Santo Deus - disse Catherine, quase chorosa.
- Quer dizer, de facto a terra desabou, e de que maneira, nas
primeiras eleições vencidas por Mrs. Thatcher, como todos nós
sabemos. E, pelos vistos, essas terras vão continuar com a
mesma configuração com que ficaram depois do desabamento.
Barwick apareceu meia hora depois. Havia um alvoroço no
estúdio, como se soubessem que qualquer coisa estava prestes a
acontecer. Nick e Catherine esticaram-se todos na direcção do
televisor. «Bem-vindos a Barwick», disse o jovem repórter
barbudo: «onde estamos no esplêndido edifício do mercado,
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Houve uma breve pausa. Treat passou com o dedo pela franja,
Brad suspirou e disse: - É... Eu queria perguntar... - Os dois
americanos, no seu jeito assaz simpático, pareciam aliviados
pelo facto de o assunto ter sido aflorado.
Wani baixou a cabeça, o queixo quase roçando o peito. - Oh, um
desastre - disse, franzindo o sobrolho, primeiro para um, depois
para outro. - Absolutamente inacreditável. Uma das minhas
malditas companhias perdeu dois terços do seu valor entre o
almoço e o chá.
- Oh... oh, certo - disse Brad, e soltou um riso constrangido. - É, a
nós também nos correu mesmo mal.
- Cinquenta biliões voaram da Bolsa de Londres num único dia.
Treat fitou-o sem contemplações, para lhe mostrar que
percebera, mas que admitia perfeitamente a fuga ao problema. E
até ofereceu: - É verdade, o Dow desceu quinhentos pontos.
- Santo Deus, se desceu - disse Wani. - Bom, a culpa foi toda
vossa.
Brad não contestou, mas disse que as perdas de empregos na
Wall Street tinham sido terríveis.
- Oh, que se lixe - disse Wani. - De qualquer modo, a Bolsa dá
sempre a volta por cima. Já começou a dar sinais disso.
Recupera sempre. Recupera sempre.
- É uma época preocupante para todos nós - disse Nick num tom
responsável.
Wani olhou-o com óbvia ironia e disse: - Estamos todos
perfeitamente bem. - Depois disso, tornou-se impossível abordá-
lo a propósito da sua doença fatal. Nick apercebeu-se de que
isso era desconcertante para os americanos, que o haviam
conhecido como um homem a um passo do matrimónio. Agora,
uma preocupação que era natural misturava-se com furtivos
apelos à memória.
Durante o almoço, Brad, tal como Wani, bebeu apenas água, e
Nick e Treat partilharam uma garrafa de Chablis. Treat mexia
imenso no braço de Nick e envolvia-o em conversas meio
bichanadas em torno de um eventual programa para mais tarde.
Nick esforçou-se por dar alguma vivacidade à conversação geral.
A frieza de Wani - o traço predominante da reunião - fazia com
que todos hesitassem. Wani parecia brincar com a ansiedade que
provocava neles.
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- Bom, creio que o melhor será esperar para ver, não achas -
disse Rachel, dobrando o guardanapo e afastando a cadeira para
se levantar.
Nick e Catherine subiram à sala de estar. - Querido, não te
importas de pôr um disco - disse Catherine.
- Francamente, duvido que a tua mãe...
- Oh, só uma coisa assim agradável, estás a ver. Claro que não
estou a pensar em coisas género God-dammery. Pronto, está
bem, eu escolho. - Foi até ao armário dos discos, ajoelhou-se
com a cabeça espetada de lado, cantarolando num jeito
provocador enquanto escolhia um lp e se preparava para o pôr no
gira-discos. Nick ouviu a agulha a roçar o disco, os estalidos,
aquela espécie de crepitação.
- Baixa um pouco, está bem, querida...?
Ela baixou o som e exclamou, num jeito reprovador: - Tio Nick! -
As colunas debitavam já os pequenos e sinistros saltos com que
começam as Danças Sinfónicas, de Rachmaninov. - Aí tens. Tu
gostas disto - disse ela.
- Até certo ponto - disse Nick, apesar de saber até que ponto não
queria ouvir aquilo.
- Oh, é uma música maravilhosa - disse ela, olhando do palco
para um invisível balcão nobre enquanto erguia os braços. Nick
adorara aquela peça na sua adolescência; no seu primeiro ano
em Oxford, pusera o disco vezes sem conta, já que as Danças
Sinfónicas confirmavam e intensificavam o desejo nostálgico
que, agora, lhe parecia ter sido o meio em que vivera, um meio
que passava diante dos seus olhos como aquela infindável
melodia do saxofone alto. Agora, a melancolia da peça parecia-
lhe penosa, senão mesmo mórbida. Seguia com uma atenção
moderada os movimentos rápidos de Catherine, que revelava
uma desinibição assustadora. Também ele dançara ao som
daquela música, mas sozinho, no seu quarto, bêbedo, no final de
dias iluminados ou não pelo contacto com Toby.
- É um bocadinho God-dammery - disse ele, enquanto um cântico
ortodoxo russo se fazia ouvir. Catherine agitava febrilmente os
braços. - É um bocado como ter uma discoteca na Catedral de
São Basílio em Moscovo. - Usava estes gracejos óbvios para
tentar desembaraçar-se do seu constrangimento. Catherine
sorriu,
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Esperaram pelo elevador um tempo razoável, embora finito, um
tempo que não chegaria para voltarem para trás: Catherine
sorria, vibrante, as mãos enfiadas nos bolsos como pesos que lhe
escancaravam o casaco. - Tens a certeza de que queres fazer
isto? - disse Nick. Sabia que tinha a obrigação de cerceá-la, e, ao
mesmo tempo, estava a tentar acompanhá-la, a tentar
corresponder às suas expectativas. A convicção dela era um
desafio para uma pessoa razoavelmente cobarde. Sentia um vago
respeito intelectual pelas intuições dela, por muito loucas que
pudessem ser. Parecia-lhe que o estado em que ela se
encontrava poderia assemelhar-se à eficiente euforia da coca, se
bem que a um nível mais psíquico. Houve um tilintar de aviso, as
portas do elevador abriram-se e, de lá de dentro, num passo
rápido, saiu Penny.
- Penny! - disse Nick. Demorou-se um instante, dando aos
ombros, oferecendo-lhe um prestimoso meio sorriso. Catherine já
estava no elevador, os olhos semicerrados de concentração, a
respiração bem audível. Nick, sentindo-se um pateta completo e,
depois, sentindo também a vaga presunção de ter descoberto
qualquer coisa sem saber o que era, alargou o sorriso tanto
quanto pôde, e disse, num jeito atencioso: - Como está?
Penny parara e virara-se com um ar simultaneamente furioso e
assustado. Ficou muito branca; e, um momento depois, um
intenso e quente rosa surgiu nas suas faces redondas e logo se
espalhou (tudo isto em três ou quatro segundos, enquanto
Catherine batia com o pé e dizia: «Nick, vamos embora!») pelo
seu colo e pescoço e orelhas. - Hum, Nick - disse ela, num altivo
confronto com o seu enrubescimento -, para dizer a verdade, eu
não deveria... hum...
Nick, confuso, relutante em mostrar-se descortês, mas
desfrutando do enrubescimento de Penny enquanto tal e também
pelo facto de, desta feita, não ser ele a corar, tinha um pé no
elevador e bloqueava com o braço o avanço da porta, a qual,
obstinada, não desistia de reivindicar os seus direitos. - Como
está Gerald? - disse ele.
- Nick, vamos embora! - repetiu Catherine.
Nick recuou e Penny, abanando a cabeça e dando um passo em
frente, disse: - Ele não está aqui, Nick, ele não está aqui -
enquanto as portas se fechavam.
- E esta...?! - disse Nick. Olhou de relance para Catherine
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17.
(I)
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Quem sabe o que estará a passar-se com ela agora, sem tomar o
Librium nem nada.
- Mm... olítio...
- Sabe, trata-se apenas de uma questão de responsabilidade.
Quer dizer, nós sempre partimos do princípio de que você tinha
noção das suas responsabilidades para com ela, e para
connosco,
claro.
- Oh, bom, sim...! - Nick disparou um sorriso em jeito de
comentário à ferroada.
- Tínhamos imaginado que nos contaria se, por exemplo, se
passasse algo de verdadeiramente grave. - O tom firme de
Rachel e os trejeitos com que enfatizava as suas afirmações
eram uma novidade para Nick; pareciam marcar uma mudança
no seu relacionamento, uma mudança que não seria fácil
reverter. Nick estava habituado aos seus afáveis assentimentos,
às suas objecções singularmente joviais... - Por exemplo, só
ontem à noite é que nós soubemos daquele episódio tão grave
que se passou há quatro anos.
- De que está a falar? - disse Nick abanando a cabeça. O «nós»
era perfeitamente irritante, a manifesta solidariedade com
Gerald.
- Creio que sabe muito bem do que estou a falar. - O olhar de
Rachel fixou-se nele; havia nesse olhar uma repugnância
complexa; que ela prolongava numa resistência a exprimi-la por
palavras. - Nós não fazíamos ideia de que ela tinha tentado...
fazer mal a si mesma... Estávamos nós de férias em França.
- Não sei o que lhe disseram. De qualquer modo, ela não fez mal
nenhum a si mesma. Pediu-me que não a deixasse só, e eu não a
deixei só, e depois ficou bem, está a ver, o que ela teve foi
apenas uma das suas crises.
- E você nem uma palavra nos disse - disse Rachel, pálida de
raiva.
- Por favor, Rachel! Ela não queria que vocês ficassem
preocupados, ela não queria estragar as vossas férias. - Nick
reencontrava os álibis que, entretanto, quase esquecera, bem
como a aflitiva sensação de que perdera o pé e não sabia nadar. -
Eu estive sempre com ela, conversei com ela enquanto a crise
durou. - Não faltava jactância à tirada, dita num tom trémulo,
embargado.
- Sim, Catherine disse que você se comportou com ela de uma
forma maravilhosa
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- Quer dizer, repara bem: dois dos meus melhores amigos?! Sinto-
me um idiota completo, um idiota chapado.
- Meu querido, eu sempre quis contar-te. Muito. - Uma vez mais, o
rosto de Toby pareceu ganhar a consistência de uma pedra face
ao uso da terna expressão. - Mas Wani nem queria ouvir falar de
uma tal hipótese. - Olhou num jeito tímido para o seu velho
amigo. - Eu sei que as pessoas levam muito a peito estas coisas,
quer dizer, quando descobrem que houve um segredo que lhes foi
ocultado. Mas, para dizer a verdade, os segredos são qualquer
coisa de impessoal. São simplesmente coisas que não podem ser
contadas, independentemente das pessoas a quem não podem
ser contadas.
- Hm. E agora isto. - Toby arrancou o Sun da pilha de jornais em
cima da mesa. - «Forrobodó gay: sexo a rodos em casa de férias
de ministro». - E atirou-o para longe com um ar de desprezo e
uma sugestão de desafio.
- É realmente muito suave, a ideia que eles têm do que possa ser
um forrobodó - disse Nick, procurando dar a devida proporção às
coisas.
- Suave...} - disse Toby, incrédulo, mas também com um
sobressalto de mágoa, pelo facto de estar a falar assim com
alguém em quem sempre confiara a cem por cento. Levantou-se
e avançou num jeito constrangido até ao extremo da mesa.
Reinava ainda na sala aquela atmosfera de uma ressaca
prolongada, com o brilho do sol penetrando através das fasquias
mais altas das persianas e os candeeiros de parede dourados
derramando uma luz carmesim. Toby parou, de costas viradas
para o retrato que Lenbach pintara de - quem era aquele? - ah,
sim, o seu bisavô: uma robusta figura burguesa com uma jaqueta
preta firmemente abotoada. Nick, com o olho que tinha para
questões de linhagem, via já Toby convertendo-se num segundo
bisavô. Quanto à indumentária, Toby ficava-se pelo fato escuro,
camisa azul, gravata vermelha. Ia a uma reunião e aquela breve
conversa também era um pouco como uma reunião. Toby parecia
partilhar com o seu antepassado um respeito pela indiscutível
importância dos negócios, bem como uma total inépcia, não
isenta de dignidade, para prever os escândalos daquela
semana.
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que lhe poderia ser dita, mas, um segundo depois, o seu rosto
assanhou-se de novo. E disse:
- Cale já essa boca, seu panascazeco estúpido! - Era uma frase
singular e, de algum modo, ainda mais expressiva por causa
disso.
- Oh...! - Nick disparou um olhar para o grande espelho da sala de
entrada, como que à procura de testemunhas. - Francamente,
isso não são...
- Cale já essa boca, seu filho da puta de merda! - disse Barry com
um cortante cerrar de dentes, após o que zarpou num ápice,
deixando Nick para trás, rumo ao gabinete de Gerald.
- Oh, vai-te foder - disse Nick; ou melhor, murmurou, visto que
pensava que Barry era muito capaz de voltar para trás e de lhe
espetar um murro na cara; Gerald abriu a porta e espreitou para
o corredor como um mestre-escola.
- Ah, Barry, ainda bem que vieste - disse, e, por um instante, fitou
Nick com uma expressão acusatória.
- Seu filho da puta ignorante, chato, ganancioso efeio... -
prosseguiu Nick para si mesmo, na chocada hilaridade de quem
fora insultado. Errou pela sala de entrada, pestanejando de
espanto para os quadrados de mármore brancos e pretos do
chão. Quando entrou na cozinha, não fazia ideia se Elena teria
dado por aquele alvoroço. Ela protestava sempre, de um modo
muito discreto, mas sentido, contra os descuidados foda-se de
Gerald, e não era por falso pudor, a sua aversão à linguagem
obscena era sincera.
- Olá, Elena! - disse Nick.
- Então, Mr. Barry Groom vem - disse Elena. Era uma mulher
pequena mas ocupava a cozinha de parede a parede. Patrulhava-
a. - Ele quer café?
- Vendo bem, ele não disse nada. Mas quer-me parecer que não.
- Ele não quer?
- Não... - Olhou para Elena com uma ternura cautelosa, incerto
quanto ao crédito que lhe restaria dos seus anos de diligente
simpatia para com ela. - A propósito, eu não janto cá esta noite. -
Elena ergueu as sobrancelhas e franziu muito os lábios. Aos seus
olhos, as novas revelações sobre Nick e Wani deviam ser
verdadeiramente assombrosas. Não era claro se ela teria sequer
percebido
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que Nick era gay. Nick disse: - É tudo uma grande confusão, não
é? Unpasticcio... un imbróglio.
- Pasticcio, si - disse ela, com um riso áspero. Ao longo dos anos,
tinham passado alguns momentos bem divertidos com o italiano
um do outro. Elena meteu-se na despensa e continuou a falar
com ele sem se virar, de modo que Nick teve de segui-la.
- Como disse?
- Quanto tempo está aqui agora? - Erguia os olhos para a
prateleira dos enlatados.
- Em Kensington Park Gardens? Oh, fez quatro anos no Verão
passado, quatro anos e... um quarto.
- Quatro anos. Um bom tempo.
- Sim, tem sido um bom tempo - intimamente, resmungou contra
aquela pequena confusão de sentidos. Elena estava a esticar-se
para chegar às latas, mas Nick, que nem sequer era muito mais
alto que ela, antecipou-se-lhe. - Quer os borlotti} - Pôs a lata nas
mãos de Elena, de modo que ela teve pelo menos de lhe acenar
em jeito de agradecimento; depois, seguiu-a de novo até à
cozinha, como que à espera de outra tarefa. Elena apertou a lata
sob o abre-latas e fez girar o manípulo; Nick vira-a fazer isso,
parecia-lhe, dezenas, centenas de vezes, com a sua polpa de
tomate e os seus fagioli e todas as coisas enlatadas que ela
preferia às frescas. E, de súbito, tudo se tornou óbvio para ele.
Disse: - Elena, decidi que chegou a hora de apresentar a minha
demissão.
Ela lançou-lhe um olhar penetrante, para se certificar de que
compreendera o que ouvira; depois, acenou de novo para lhe
dizer que tinha entendido. Quase poderia ter sorrido da hábil
embalagem da frase. Voltou para a mesa; a sua azáfama
exprimia sem dúvida uma determinação prática, mas talvez
escondesse também algum tipo de pesar perante a novidade.
Quanto a Nick, sentia-se muito abalado com a decisão que
acabava de tomar. Olhou de relance para ela com um ar
confiante. Atrás dela, na parede, estavam todas as fotos da
família, e Elena parecia situar-se, curvada e eficiente, numa
relação enviesada, mas íntima, com elas - de facto, até aparecia
numa das fotos, mostrando um soberbo Toby no seu carrinho de
bebé: ela estava lá desde o princípio, desde os lendários tempos
de Highgate... Começou a cortar algumas cebolas, mas ergueu
de novo os olhos e disse: - Lembra quando primeiro veio aqui?
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Gerald pareceu ficar muito vexado com isto, ele não queria de
Nick um pedido de desculpas capaz de amortecer o impacto da
confrontação, e, em particular, um pedido de desculpas que não
o era; que, no fundo, não passava de um gesto de comiseração
em relação à sua filha. Disse, como que num parênteses: - Quer-
me parecer que você nunca compreendeu a minha filha.
Nick tratou de agradar a Gerald, encarando esta questão como
algo eminentemente intrincado. - Suponho que uma pessoa que
nunca passou por aquilo que ela tem passado terá muita
dificuldade em entender o tipo de doença que a afecta, não só
momento a momento, mas também no que respeita aos seus
padrões a longo prazo... Eu sei que o facto de ela ter provocado
todos estes... enfim, todos estes sobressaltos... sei que isso não
significa que ela o ame menos a si ou à mãe. Quando está na
fase maníaca, Catherine vive num mundo em que tudo,
rigorosamente tudo, é possível. Embora, de facto, se possa
conceder que tudo o que ela tem feito é dizer a verdade. - Pensou
que talvez tivesse conseguido chegar ao coração de Gerald, que
continuava de sobrolho franzido e nada dizia; mas que, um
instante depois, tal como fazia nas entrevistas da TV, prosseguiu
com a sua própria fala, como se, entretanto, não tivesse havido
nenhuma resposta ou objecção.
- Quer dizer, não lhe pareceu que era bastante estranho, que era
um tanto ou quanto bizarro, você ligar-se a uma família como a
nossa?
Nick achava que era invulgar, mas era isso, esse lado invulgar,
que tornava, ou tornara, a sua ligação tão bela, tão maravilhosa;
no entanto, disse: - Eu sou apenas um inquilino. Foi Toby quem
sugeriu que viesse viver convosco. - E arriscou: - Se é certo que
eu me liguei à família, também se poderia dizer que a família se
ligou a mim.
Gerald disse: - Tenho reflectido sobre tudo isto. É aquele tipo de
coisas que lemos aqui e acolá, que encontramos em artigos, em
estudos, é uma velha artimanha, típica dos invertidos. Vocês não
podem ter uma verdadeira família, de modo que acabam por se
ligar à família de outra pessoa. E suponho que, ao fim de algum
tempo, a coisa se torna insuportável para vocês, você deve ter
sentido uma inveja tremenda, creio, de tudo aquilo que nós
temos, e vindo você de onde vem, é natural que isso também
conte,
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mas, entre os seus amigos, havia uma meia dúzia de
consumidores regulares, tipos que, com a maior facilidade e
notória negligência, poderiam oferecer uma linha a Wani. E o seu
coração estava muito fraco. Seria uma espécie de suicídio. Nick
parou por um bocado junto à janela da cozinha, mal vendo as
traseiras dos outros prédios enquanto imaginava o telefonema,
talvez de Sharon, ou do próprio Gerald, um tom conciso, formal,
respeitoso: uma crise cardíaca fulminante. Não tinham podido
fazer nada.
Quando foi para a sala de estar, lá estava a revista na mesa. Era
um bizarro lançamento - nunca haveria um segundo número.
Seria bom que as pessoas soubessem disso e valorizassem a
revista enquanto tal, não como um número zero, piloto,
experimental, não como uma promessa de qualquer coisa que
havia de vir. Aquela era a única Ogee. Ali exposta, numa sala da
sua casa, ao meio-dia de um ameno dia de Outubro, a revista
quase fazia lembrar uma placa em memória de Wani, com a asa
do anjo protegendo o espaço em braço onde seriam inscritos o
seu nome e obras.
Na manhã seguinte, Nick meteu-se no carro e foi buscar as suas
coisas a Kensington Park Gardens. Caía um chuvisco
intermitente e deu-lhe para pensar no estado em que ficariam os
chapéus das senhoras se, no Yorkshire, também estivesse a
chover. A ampla rua estava vazia, com aquela acidental ausência
de movimento de uma rua londrina, uma calmaria momentânea
em que os passeios, as fachadas das casas, as janelas listradas
de chuva têm a aura do déjà vu. Abriu a porta do número 48 com
a destreza que era fruto de uma arte recentemente aprendida, a
arte de passar despercebido; se bem que, logo a seguir, num
lapso desnecessário, tenha batido com a porta.
Lá dentro, na sala de entrada: o som... o impassível rumor de
Londres reduzia-se a um vago zumbido que mal se notava, como
se a própria luz cinzenta fosse subtilmente acústica. Sentia que
o acaso o levara a reencontrar a atmosfera imperturbada da
casa, mais vasta que os problemas daquele ano, a atmosfera que
existira sem ele e que continuaria a existir após a sua partida. A
lanterna dourada brilhava pálida no caixa das escadas, mas, na
sala de jantar, as sombras usuais adensavam-se nos cantos e
pairavam como fumo no tecto volteado.
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Nick sabia que nunca mais voltaria a ver aquela foto; custar-lhe-
ia muito pô-la outra vez na mesa. A fotografia brilhava àquela luz
chuvosa como um símbolo das razões que o tinham levado a
viver naquela casa. Não era claro com Toby - tal como não o era
com Leo nem com Wani - se a fantasia seria capaz de deter a
usura do tempo, se aquele alto e elegante aluno do segundo ano
com as suas pernas de desportista e o seu maravilhoso rabo
continuaria a excitá-lo, agora que conhecia a criatura gorda em
que Toby, cinco anos depois, se transformara. Bom, não na
mente, talvez, mas numa imagem, numa foto: era preciso ter uma
certa coragem estética para - perante a crueza dos factos - se
deixar levar pelas asas da fantasia. Então, fez algo que era ao
mesmo tempo pateta e solene; no vidro, ficou a leve e enevoada
marca dos seus lábios e da ponta do nariz.
No seu quarto, tirou mancheias de livros das prateleiras e atirou-
os como tijolos para dentro das caixas. Armou-se contra o seu
gosto pela nostalgia - a longa e fluida despreocupação dos
velhos tempos tinha acabado, as questões, agora, eram mais
urgentes e incertas. A semana que aí vinha estava já
ensombrada pela espera dos resultados do teste. O passo em
frente, o prematuro alívio que sentira por estar a enfrentar o
caso, por ter aceitado saber a verdade, ainda que fosse a pior
das verdades, esfumara-se por completo nos dias seguintes;
agora, quando pensava nisso, sentia-se já inacessivelmente só.
Era o terceiro teste que fazia, e esse facto - e o misterioso
número três - parecia, conforme os momentos, reduzir e
aumentar as hipóteses de um resultado positivo.
As caixas ficaram cheias imediatamente, provando, uma vez
mais, a insondável fórmula que equipara a extensão das
prateleiras à capacidade das caixas. Levou uma delas para baixo
e, no preciso momento em que a punha no chão da sala de
entrada, ouviu o som da chave na fechadura da porta das
traseiras, de sapatos que alguém limpava no tapete, de um
guarda-chuva que alguém abanava. Elena? Ou Eillen, outra vez?
Fosse quem fosse, seria uma presença francamente indesejável.
Era uma coisa que o irritava, a furtividade daquelas mulheres,
bem como a confiança. Entrou na cozinha com um ar enfastiado.
- Oh meu Deus! - disse Penny, disparando as palavras num tom
sumido, ofegante. Brandia a sombrinha cor-de-rosa, ainda por
fechar,
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- Compreendo.
- Estou-me nas tintas para o que diz o meu pai, ou Madam, ou o
chefe de redacção do Sun.
Nick fitou-a respeitosamente, mas disse: - Pensava que ele era
para si um caso praticamente perdido.
- O quê...? Oh, estou a ver... bom, publicamente, sim. É isso que
nós queremos que as pessoas pensem.
- Disse «nós».
- Nós estamos muito apaixonados.
Nick pôs-se a olhar para o chão, talvez impaciente. Parecia que o
enredo ia continuar obstinadamente na mesma: primeiro, era
Rachel que se recusava a deixar Gerald, e, agora, era Penny que
tomava idêntica atitude. Gerald tinha de ter qualquer coisa de
extraordinário, qualquer coisa que Nick fora incapaz de
compreender. Via a história projectando-se ao longo de um
obscuro futuro; um sem-número de artigos escritos pelo Analista
Cáustico. Disse: - Mas como é que você consegue suportar o
segredo, essa espécie de clandestinidade? - com uma
curiosidade genuína quanto à resposta que uma outra pessoa
poderia dar a uma tal pergunta.
- Talvez deixe de ser um segredo.
- Hmm... - A sobrancelha erguida e o risinho irónico de Nick
fizeram-na enrubescer, mas, pelos vistos, não a levaram a alterar
minimamente a sua posição.
- De qualquer modo, estou-me nas tintas - disse ela.
- Bom...
- Catherine sempre troçou e zombou de Gerald - disse Penny,
como que incapaz de suportar o rumo que dera à conversa.
Nick disse, num jeito hesitante: - Creio que Gerald faz
praticamente o mesmo com ela. - Parecia que o mundo de Penny
só fazia sentido para ela como um campo de força de ódios.
- Eu sei que Catherine sempre me odiou - disse ela com um riso
soturno que, na prática, também não poupava Nick; Penny não o
disse, mas parecia saber aquilo que ele pensara e dissera dela
ao longo dos anos.
- Sabe que isso não é verdade - disse Nick num murmúrio apenas,
já que era inútil estar a dizer-lhe aquilo. - Creio que, neste
momento, é a si mesma que Catherine mais odeia.
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Penny baixou a cabeça e ofereceu-lhe uma expressão
particularmente antiquada. - Pois a mim parece-me que toda esta
história lhe deu um gozo tremendo.
- Não é gozo nenhum, Penny. De início, tudo o que ela faz na fase
maníaca parece até excitante, mas, depois, acaba por ser uma
espécie de tormento para ela. - Deu-se conta de que, para chegar
a uma tal visão de Catherine, a principal fonte de Penny teria
forçosamente de ser Gerald; tal como a sua própria fonte, para
além da intuição natural num amigo, era a extenuante prosa do
Dr. E. J. Edelman.
- Bom, o tormento dela não é nada, quando comparado com os
tormentos que causou - disse Penny, impenitente.
Nick abanou a cabeça de espanto e pensou que o melhor era não
insistir mais. Ela que pensasse o que quisesse. Estava tão
excitada que nem olhou para ele enquanto lhe dizia: - Presumo
que foi você que lhe contou tudo, não foi?
- De maneira nenhuma! - disse Nick.
- Bom, mas é isso que Gerald pensa, sem sombra de dúvida. Nick
disse: - Sabe, é mesmo típico de Gerald, pensar que a
filha não conseguiria descobrir as coisas sozinha. Na realidade,
Catherine é mais esperta que todos nós.
- Quando você esteve connosco em França, tive a clara sensação
de que suspeitava de qualquer coisa - disse Penny.
- Estava muito preocupado com Rachel - disse Nick. - É uma
velha amiga.
- Bom, resta saber se ela sentirá o mesmo em relação a si. -
Penny ofereceu-lhe um sorriso breve, mas penetrante, e depois
curvou-se um pouco para a frente, com os cotovelos em cima da
secretária. - E agora, se me dá licença - disse -, tenho algumas
coisas para fazer. - Ao fim e ao cabo, lá acabara por encontrar
uma aberta para, com a mais estúpida das fórmulas, se ver livre,
também ela, de Nick.
Nick fechou a porta azul da frente, deu as duas voltas nas
fechaduras Yale e na fechadura Chubb e, num jeito lento,
distraído, tirou as chaves do seu porta-chaves. Abriu a caixa do
correio, atirou as chaves e ouviu-as tilintando no chão de
mármore. Depois,
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« Um livro poderoso!»
Sunday Mirror
«Rani Manicka é uma genuína contadora de histórias...» In Style
«Conseguem vislumbrar-se nesta exótica saga familiar
os ecos de Memórias de Uma Gueixa.
Mirror
Evening Standard
Sunday Times
The Times
BookerPrize, 1997
Lire
Data da Digitalização
Amadora, Maio de 2006