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agosto 2014 / Ensaios e Resenhas / Hora de pecado e ironia

Texto publicado na edição #172 Compartilhar:

Hora de pecado e ironia


O que seria a Hora de alimentar serpentes? O título do livro de Marina Colasanti
não é apenas o título […]

> Por ROBERTA ÁVILA

O que seria a Hora de alimentar serpentes? O título do livro de Marina Edições


Colasanti não é apenas o título de um dos contos que o compõem, mas a
revelação da metáfora que pode ter gerado o livro: a hora de alimentar as 224
serpentes, esse animal que é o símbolo do pecado, da traição, que se alimenta
apenas do que é vivo e, portanto, a hora em que ele se alimenta é também a hora 223
da morte. Esse é o espírito que guiou, aparentemente, a produção dos
microcontos e contos que integram essa coletânea que é, como diz a orelha do 222
livro, um grande diálogo de Colasanti com seu universo cultural, mas vai muito
além disso. 221
O livro é uma coleção de pequenas e grandes ironias da vida, expandidas,
incrementadas e alteradas com o objetivo de gerar sempre o inusitado. Os 220
próprios títulos, na maioria das vezes, se aplicam aos textos como um comentário
sarcástico invertido, já que vem antes o sarcasmo do que o motivo para que ele Publicidade

exista. Colasanti trabalha com a desautomatização do pensamento adicionando


elementos inesperados às histórias que todos já ouvimos. É o caso, por exemplo,
da série de contos, espalhados ao longo do livro, chamados Histórias da insônia, e
numerados de acordo com sua ordem de aparição. À tradicional imagem do
homem que conta carneirinhos pulando a cerca porque não consegue dormir, a
autora primeiro adicionou a figura do lobo, depois explorou as possibilidades que
o trio de personagens poderia produzir, todas elas, desde o ataque do lobo aos
carneiros até a revolta dos carneiros que decidem ordenar ao homem que pule a
carneiros até a revolta dos carneiros que decidem ordenar ao homem que pule a
cerca, passando pela decisão de fazer churrasco com o carneiro, são todas histórias
de poucas linhas que são muito mais amigas da insônia e do sonho do que do
sono.
Visuais
Verdade que a intertextualidade é marca forte na obra, vai desde a mitologia
grega, passando por Hércules, o Minotauro e a Medusa, a Descartes, Matisse e
Caravaggio, isso se tratando apenas das referências explícitas. Mas outras Arte da capa
referências se evidenciam ao longo da leitura. uando um rapaz se apaixona por
uma raposa, como não pensar em O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry? Da Por MELLO
mesma forma, as referências a um homem de máscara ou de capuz pode tanto ser
uma alusão à questão do autoconhecimento como uma referência ao quadro Os
amantes, de Magritte, e também (por que não?) uma referência aos dois. uando
Colasanti insere o lobo nas Histórias da insônia traz também à memória
Chapeuzinho vermelho e estabelece um paralelo com Insônia, de Graciliano
Ramos, deixando de lado a angústia, abrindo caminho para o jogo e criando
batalhas sangrentas em busca do sono perdido. Além disso, e de um dos títulos
citar La Fontaine, a quantidade de histórias com animais antropomorfizados,
formigas, cigarras, lobos, e etc., traz à lembrança as fábulas, que nesse caso são
amorais: a formiga, por exemplo, sente saudade do canto da cigarra. Também
histórias sobre homens que não saem jamais de seu barco e que são pescadores Publicidade

trazem à mente A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa. Um diálogo com o


abismo, que responde ao olhar, remete a O que vemos, o que nos olha, de Didi-
Hüberman. E por aí vai.

A velhice é um dos temas mais interessantes do livro. Existe uma ironia muito
brutal em reconhecer, diante de uma mulher idosa que caminha com um cão,
também idoso, e uma bengala, que, dos três, apenas a bengala não está próxima do
fim.

Isso de ser humano também é algo que Colasanti explora muito bem. Um ser
humano que não se incomoda em ser o que é, provavelmente não reflete muito
sobre o assunto, já que motivos não faltam. No entanto, dificilmente usamos os
mesmos pesos e medidas para pensar sobre os animais. “Não há nada de errado
em ser homem”, pensa um personagem em um dos contos. Não há mesmo? Ou é
claro que há? Há algo de errado agora ou houve sempre? Em tempos de avião
comercial abatido na Ucrânia e novas investidas israelenses na Faixa de Gaza, é
complicado tanto perguntar quanto responder qualquer das anteriores.

Não se engane o leitor com a orelha do livro, que estabelece que em Zooilógico
Colasanti tratava da animalidade, em A morada do ser do corpo e da casa e em
Contos de amor rasgados do amor. Não é possível, e nem justo, dividir as
temáticas dessa forma. Do mesmo jeito, Hora de alimentar serpentes tem vários
temas centrais como a velhice, o desejo, a condição do ser humano, a tatuagem
como forma de desenhar o corpo, o amor, a morte, a solidão, a loucura e a
violência. Em geral nos calamos sobre muitas dessas questões para evitar maiores
constrangimentos e pelo bem e progresso da nação e da família brasileira, mas
Colasanti tem prazer em enfiar o dedo na ferida e reconhecer as verdades que
calamos é um sentimento doce-amargo que sempre vem mais do fundo e faz virar
a página e procurar pela próxima ferida onde meteremos o dedo juntos, porque,
pelo menos durante esse momento de leitura, não há solidão, mas reflexão,
companhia e cumplicidade, as melhores coisas que a literatura pode nos oferecer.

Marina Colasanti

Pintora e gravadora por formação, já foi jornalista, publicitária e


apresentadora de televisão. Com mais de 50 títulos publicados, já
venceu seis prêmios Jabuti, entre outros. Escreve poesia, crônica e
conto e costuma ilustrar seus textos. Nascida em Asmara, na
Eritréia, ela morou na Itália, veio para o Brasil em 1948.
Concentrou o pensamento em pequenas criaturas vivas, rã,
passarinho. Um gosto de sangue chegou-lhe à boca, e o
mover-se do noelo sibilante, que apenas intuía, aquietou-
se. Sua segurança estava garantida por mais algum tempo.
Dia chegaria, entretanto, em que suas inquilinas haveriam
de por ovos.

Marina Colasanti
Global
447 págs.

ROBERTA ÁVILA

É jornalista. Escreve no blog http://ficcoesdaminhavida.blogspot.com. Vive em


Cotia (SP).

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