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CONCEITO POLíTICO E JURlDICO

DE LEGITIMIDADE*

PRESIDÊNCIA: DJACIR MENEZES


PARTICIPANTES: COTRIM NETTO; MAURICE ASSUF;
PROFESSOR GERARDO DANTAS BARRETO

Djacir Menezes - Quem deveria presidir esta reunião era o Min. The-
mistocles Cavalcanti, que ainda não pode exercer, plenamente, suas fun-
ções, aqui no INDIPO. De modo que a mesa-redonda será coordenada
com minha insuficiência habitual.
( Não apoiado).

Djacir Menezes - O roteiro enyiado para a quarta mesa-redonda com-


preende apenas sugestões subsidiárias. No caso de os participantes se
sentirem um pouco vazios, ou desmotivados, então este roteiro servirá
de provocação. Mas se tiverem inspirações espontâneas sobre estes pro-
blemas, tanto melhor será a oportunidade para a exposição e o debate.
Depois, enviaremos a cada um cópia das notas taquigráficas, com a liber-
dade completa de alterar, acrescentar, de remodelar, porque nosso obje-
tivo é a publicação na RCP. Por isso, não temos nem assistência nem
auditório para participar da reunião.
Perguntaria quem primeiro deseja tomar a palavra, para as preliminares
desse confronto de idéias.
Cotrim Netto - Se quiser, estou à disposição.
Djacir Menezes - Com a palavra o Prof. Cotrim Netto.
Cotrim Netto - Em primeiro lugar, quero cumprimentar a direção
do Instituto pela boa elaboração deste roteiro para debates, que, realmente,
com mínima restrição, está muito bem apresentado.
O tema da legitimidade do poder, o problema político, o problema
jurídico do princípio da legitimidade, é sempre perfeitamente atual. Desde
que se implantou o Estado passou-se a discutir este tema. Ao mesmo
tempo que se discute, histórica e sistematicamente, a matéria da legitimi-
dade, discute-se também o princípio da legitimidade da resistência. De
forma que, numa hora quando, em nosso país, são acaloradamente ques-
tionadas certas reformas políticas, visando, ao que se proclama, o res-

• Mesa-redonda do Instituto de Direito Público e Ciência Política, da Fundação


Getulio Vargas.

R. Ci. poL, Rio de Janeiro, 22(2) :47-76, abr.ljun. 1979


tabele cimento do estado de direito, esse debate me parece perfeitamente
atual. Mas, impõe-se que ordenemos o desenvolvimento de nossas cogi-
tações sobre a matéria em tela.
Em primeiro lugar, que é poder? Para discutirmos a questão da legi-
timidade, temos que estabelecer um conceito do que seja poder, porque
a controvérsia sobre legitimidade surge na ilharga do conceito de poder.
O poder, como acentuou Guglielmo Ferrero, em obra que já se tornou
clássica, é uma entidade abstrata, tanto que, no subtítulo do seu livro
sobre O Poder, ele fala nos "gênios invisíveis da cidade". Qual o con-
ceito de poder? Antes de ser jurídico, ele é ético e sociológico. Não se
concebe nenhuma sociedade organizada em forma de Estado sem um
poder que constitua o cimento de sua organização, essencial para a exis-
tência desse Estado. A idéia do poder tem, certamente, padecido trans-
formações. Sabemos que a sociedade organizada em Estado tem atraves-
sado vários estágios. De minha parte, identifico o surgimento do Estado
com a organização de uma sociedade que se tornou sedentária e lançou
raízes num território - aliás, isto é um conceito clássico - e situo a
origem do Estado na organização da primitiva civitas. Estamos nos es-
tágios iniciais desta entidade.
Entretanto, quem organizou o Estado? O Estado é uma realidade in-
teligida, uma criação racional do homem, ou é um fato empírico? Evi-
dentemente, os autores igualmente questionam isso. Prefiro, sem ser
todavia contratualista, colocar-me na posição de Georges Burdeau, para
quem o Estado é uma criação racional do homem. Mas, empírica ou
racional que seja a origem do Estado, o fato é que ele se desenvolveu e
evoluiu racionalmente. Não obstante, o poder que exerce a direção ex-
celsa do organismo social também tem padecido modificações na sua
estrutura, através do tempo. O primeiro regime a que obedeceu o poder
foi o da individualização. Evidentemente, nas sociedades primitivas ha-
veria um líder. Quando o poder ainda não se institucionalizara, quando
a sociedade estava ainda naqueles estágios a que Bergson referiu-se como
"a sociedade brutal", em que a autoridade se sobrepunha e assentava,
pousava sobre os homens, o poder era individualizado. Mas acontece
que é imanente, na sociedade, o crescimento de direito e de justiça. Agora
mesmo, escrevi um trabalho - a ser publicado pela Universidade de
Brasília, para comemorar o sesquicentenário do Supremo Tribunal Fe-
deral - onde faço a gênese da idéia do direito e da' justiça. Todos nós
sabemos que a idéia primitiva de direito e de justiça dimanava de Deus,
ou por outra, era posta numa outorga da divindade suprema. Todos os
Estados, desde os mais antigos, o Estado egípcio, o Estado babilônico e
mesmo as sociedades pré-estatais, como o povo de Israel, durante o êxodo,
colocavam a fonte do direito e da justiça numa determinada divindade.
Ocorre, todavia, que a idéia do poder individualizado sempre se cho-
cou com o sentimento de direito, com as aspirações jurídicas da coleti-
vidade e as aspirações de organização de justiça. Por isso, Burdeau de-
.
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duziu que o regime do poder individualizado comprometia a solidariedade
entre o poder e a idéia do direito. O poder, acrescentou ainda Burdeau,
"não reside inteiramente no chefe, pois ele existe objetivamente, fora da
personalidade dos governantes". Apenas na medida em que essa existência
objetiva seja reconhecida no poder, admitir-se-á que as prerrogativas a
ele pertinentes não serão desviadas do seu objeto, o qual assenta na
realização da idéia do direito.
Acrescente-se que, para discutirmos a questão de legitimidade e do
poder, temos que estabelecer uma preliminar: qual é a finalidade do poder,
ou por outra, a finalidade do Estado e do próprio poder?
Todos nós sabemos, e todos sentimos - os pensadores, o mesmo
Burdeau e a própria filosofia cristã - que será finalidade do poder a
realização do bem comum. Contudo, a perseguição dessa finalidade do
Estado e do seu poder, a realização do bem comum, há de se efetivar
mediante uma estrutura de dominação. Por isso, a idéia da legitimidade
tem que se conciliar com a consecução desse objetivo final; por isso as
revoluções. E quando o poder se desvia de sua finalidade magna, ele
autoriza o "direito de resistência", o "direito de revolução", cujos prin-
cípios filosóficos têm sido bem desenvolvidos desde Santo Tomás de
Aquino.
Mas, quando é que a revolução é justa? Quando é que a revolução tem
um suporte ético que a explique e que permita a sua legitimação sem
resistência?
Djacir Menezes - Quer dizer, qual é a camada da sociedade, o grupo
constituído que julgaria essas idéias?
Cotrim Netto - Essa a questão. O que legitima a revolução, e o que
explica a legitimidade do poder? Sabemos que há várias explicações,
vários fundamentos lançados para explicar a legitimidade do poder.
Carl Schmitt, notável teorético do constitucionalismo alemão, pré-na-
zismo e mesmo durante o nazismo, dizia na sua obra clássica sobre a
teoria da Constituição que, historicamente, existem duas explicações de
legitimidade: a legitimação dinástica e a legitimação democrática. Na le-
gitimidade dinástica, prepondera a autoridade e se reconhece o poder
constituinte no rei; na legitimidade democrática, do ponto de vista da
majestas populi, a legitimidade resulta da vontade do povo. De qualquer
modo, a legitimidade é a consagração jurídica do título que possibilita
ao chefe usar dos atributos do poder estatal.
Guglielmo Ferrero, na obra a que antes me referi, e que foi publicada
em 1942, em sua primeira edição, nos EUA porquanto na Suíça - em
pleno coração da Europa conflagrada - não se lhe permitiu tal. A título
de comentário intercorrente, dizemos não podermos compreender como
essa obra haja sido considerada de publicação inconveniente, a ponto de
na Suíça, em 1942, não se permitir que Ferrero a publicasse, lá.

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Do mesmo modo nos espanta quando lemos O Espírito das leis, de
Montesquieu, e vemos que a sua primeira edição, em 1748, tenha sido
igualmente semiclandestina ...

Djacir Menezes - Foi na Holanda.

Cotrim Netto - Eu sei que foi clandestina a edição, por força da


concepção de subversidade da época.
Mas Guglielmo Ferrero coloca, estabelece outros pressupostos para
embasamento do princípio da legitimidade. Ele identificava quatro expli-
cações legitimatórias: a eletiva, a democrática, a aristocrática e a here-
ditária.
O princípio aristomonárquico, aristocrático, e o princípio hereditário,
como falava Ferrero, geralmente convivem bem; e convivem mal com o
princípio eletivo. Mas nós sabemos, pela história, que houve estruturas
de poder aristomonárquicas que não foram hereditárias. Era o caso do
antigo reino da Polônia. Aliás, o fato de se estabelecer um poder sobre
bases aristomonárquicas, mas dependente de eletividade, foi, segundo se
considera, a grande fraqueza da Polônia e que provocou a sua tragédia
histórica.
O princípio eletivo, que é fundamental para as democracias, às vezes
também foi utilizado pelas monarquias, e isto aconteceu muito na Eu-
ropa, até 1914. O princípio eletivo coabita mais com o princípio de-
mocrático.
Postas estas considerações, eu quero concluir para dizer o seguinte,
respondendo ao segundo tema das sugestões do roteiro: "Quais as con-
dições jurídicas para a transição de uma ordem constituída para uma
ordem constituenda?"
Eu acredito que, dificilmente, se poderia identificar condições jurídicas
para essa transição. Normalmente, as condições que se apresentam são
sobretud) fáticas, antes que jurídicas.
Djacir Menezes - São extrajurídicas.
Cotrim Netto - Exatamente, de maneira que toda transição se opera
por meio de uma revolução; revolução não quer dizer que somente sejam
movimentos sangrentos; há revoluções lentas. Nem todas as revoluções
decorrem de um movimento violento. A própria Revolução Francesa não
se operou, inicialmente, em seu primeiro estágio, com sangue. Quando o rei
Luiz XVI convocou os Estados Gerais, em 1789, e eles se reuniram e se
proclamaram poder constituinte, não tinha havido nenhuma deflagração
de violência. Os Estados Gerais se constituíram em Assembléia Nacional
Constituinte, precisamente em 17 de junho de 1789. Portanto, quase um
mês antes do levante da patuléia de Paris, que se comemora como a
Tomada da Bastilha. A Revolução Francesa começou no episódio da
Constituinte, sem mandato formal que a legitimasse. Os membros dos ..
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Estados Gerais se proclamaram Assembléia Nacional. Foi uma revolução
não-sangrenta. Nem toda revolução - isto todos nós sabemos e reitera-
mos, é questão elementar - é sangrenta. Agora, como se legitima a
revolução? Evidentemente, ela se legitima, em primeiro lugar, pelo su-
cesso: se a subversão prevalece e se consolida, ela se legitima. Isto o
próprio Ferrero observa, é uma realidade factual. Temos, agora, no Irã
- os jornais todos comentam uma agitação. Esse Xá Pahlevi, esse im-
perador é o segundo elemento de uma dinastia que foi instituída pelo seu
pai, pela usurpação. Mas prevaleceu, consolidou-se. Napoleão consolidou
o seu regime pela legitimação da usurpação do poder que se operou por
seu intermédio.
Djacir Menezes - Pela permanência.
Cotrim Netto - Pela permanência. Afinal de contas, o sucesso é que
autoriza a legitimação. É o elemento primeiro. Porque, a menos que a
revolução se faça, por hipótese, por meio de uma Assembléia Constituinte,
como modernamente é moda, ela se faz, geralmente, por uma usurpação
qualquer, mesmo não-violenta.
Hoje em dia, as constituições, assim mesmo com muitas restrições,
admitem a instauração de um poder constituinte - aqui, sim, teríamos
as condições jurídicas - dentro da ordem constituída. Pode haver uma
revolução dentro da ordem constituída. Quando a nossa Constituição
admite a emenda constitucional, ela está possibilitando a revolução dentro
da ordem jurídica. Mas, nós sabemos que a Constituição restringe os
poderes constituintes. Não se pode, por exemplo, entre nós, instituir o
regime monárquico. Um movimento que viesse a tal seria uma revolução
fora da ordem jurídica, porque a nossa ordem constituída vigente não
permite isso.
Djacir Menezes - Quer dizer, o advento de um novo poder, que im-
plica, portanto, a queda do anterior, permanece e a primeira condição
dessa permanência é que o poder é jurígeno. Ele imediatamente começa
a traçar normatividades gerando, portanto, manifestação como de direito
que pode estar contrário ao anterior. Mas é por meio desse direito que
ele se vai legitimar.
Cotrim Netto - Aliás, a sua manifestação me faz meditar sobre um
problema: a questão da legitimidade é uma questão jurídica ou socioló-
gica? Há um trecho de Burdeau - todos nós conhecemos a sua obra
magnífica - do qual eu copiei um pensamento muito interessante. Diz
ele, logo no segundo volume de seu Traité de science politique: "O Estado
não é um bem particular dos juristas, o que a estes é próprio é somente
a teoria do Estado. Esta teoria utiliza conceitos como elementos de ex-
plicação lógica e de constituição jurídica, mas, sob pena de não ser mais

Mesa-redonda 51
do que um produto da imaginação, tais conceitos devem proceder da ob-
servação da totalidade dos fatos."
Por isso eu digo que o problema do estudo da legitimidade não me
parece que seja essencialmente jurídico. Ele é essencialmente factual,
melhor falando, sociológico.

Djacir Menezes - Mas a legitimidade se realiza por meio da legali-


dade, quer dizer, a legalidade não é um instrumento pelo qual se procura
organizar ou justificar o poder, portanto, legitimá-lo?

Cotrim Netto - Meu caro Prof. Djacir Menezes, você é um filósofo.


Eu lhe pergunto: o problema da legitimidade é um problema de juridici-
dade ou de legalidade? Para mim o jurídico é essencialmente ético, axio-
lógico, ao passo que o problema da legalidade é mais material ou formal.
Para mim, por isso, a discussão sobre a legitimidade, ainda que possa
ser jurídica, não deve ser posta em termos de legalidade.

Maurice Assuf - Por ocasião da morte do Generalíssimo Franco -


tendo em vista a nova situação política da Espanha - Maurice Duverger
publicou no Le Monde artigo sob o título Les trois légitimités en Espagne,
em 25 de agosto de 1976. Essas legitimidades consideradas pelo politi-
cólogo francês estão assim alinhadas: 1. A legitimidade franquista, en-
carnada pelas Cortes e outras instituições da ditadura. 2. A legitimidade
monárquica encarnada pelo Rei Juan Carlos. 3. A legitimidade democrá-
tica encarnada de maneira embrionária pelos partidos políticos e a im-
prensa, esperando as futuras eleições livres. Diz ainda: "A democrati-
zação da Espanha não foi falada somente pelas dificuldades materiais e
pela hesitação dos homens, mas também pelas contradições ideológicas
que conseguiram que o seu sistema político atual fosse alcançado. Este é
écartélé" . .. o Prof. Gerardo como traduziria?
Gerardo Dantas Barreto - Écartélé é esquartejado, divido.

Maurice Assuf - ... "entre três legitimidades opostas". Isto faz com
que se tenha a idéia do pensamento de Duverger que, como disse o Prof.
Djacir Menezes, relaciona o iure constituendo.
Cotrim Netto - Ele estuda isso nas instituições. Duverger é professor
de instituições políticas. Ao que me consta, na França não se estuda
direito constitucional. A matéria que estudamos sob este nome os fran-
ceses abordam como instituições políticas, uma disciplina cujo magistério
está a cargo de Duverger, na Universidade de Paris.
Cotrim Netto - Enfim, para concluir - já antecipei mesmo minha
conclusão - quero fazer uma observação que reputo sobretudo muito
interessante - não é minha, evidentemente, mas de KoeIlreutter, consti-
tucionalista alemão.

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Djacir Menezes (interrompendo) - Tenho um livro dele sobre partidos
políticos esccito na atmosfera totalitária da década de 30.

Cotrim Netto - Ele tem várias obras sobre partidos políticos. Foi um
constitucionalista da década de 20, da época da Constituição de Weimar.
Como dizia esse autor, observação de Koellreutter que me impressionou
muito: "O mundo, em geral, ou sobretudo o pensamento europeu, quando
discute os temas pertinentes ao Estado, tem sempre defronte de si, como
modelo para a elaboração do pensamento, o Estado europeu. Acontece
- acrescenta Koellreutter - que nem todos os povos sentem o Estado
da mesma maneira que o povo europeu." Isso, de certo modo, coincide
com uma observação do prisco Montesquieu, no seu Espírito das leis,
quando ele fala nas transformações do Estado, no tempo e no espaço. "O
Estado não é sempre o mesmo"; e continua: "Não é sempre o mesmo,
no tempo e no espaço e a concepção do Estado não é sempre a mesma,
no tempo e no espaço." E continua a não ser o mesmo, no espaço social,
digamos assim, político, do mundo moderno. De maneira que a questão
da teoria da legitimidade do poder também tem que ser posta neste en-
foque. A concepção da legitimidade está na dependência dos princípios
axiológicos, do sistema de valores que cada povo admite. Ninguém vai
pretender que, na Bolívia, por exemplo, país de instituições políticas bas-
tante fluidas e um tanto primitivas, a discussão sobre legitimidade tenha
o mesmo caráter que a discussão sobre legitimidade na França. Assim,
este é outro dado do qual não nos podemos abstrair, na consideração do
princípio da legitimidade.
Djacir Menezes - Com a palavra o Prof. Gerardo Dantas Barreto.
Gerardo Dantas Barreto - Quero, inicialmente, agradecer ao Prof.
Djacir Menezes o amável convite, que tanto me honrou, para tomar parte
nesta mesa-redonda por ele coordenada, sobre tema da maior atualidade.
Com eficiência e erudição, o Prof. Cotrim Netto procurou situar histori-
camente o assunto. O roteiro que a Fundação Getulio Vargas me enviou,
muito bem elaborado, aliás, recebi-o com bastante atraso e, por isso, dele
prescindirei por enquanto, para nesta primeira intervenção cingir-me ao
tema geral proposto, alinhavando alguns comentários acerca da própria
conceituação jurídica-política da legitimidade. Trata-se, evidentemente, de
um dos conceitos mais profundamente discutidos na história das idéias
políticas e sociais. A primeira observação do filósofo é que o problema
da legitimidade só se põe na esfera do espírito; não se posiciona no
domínio da natureza, cujos eventos, regulares e necessários, são presididos
pelo determinismo físico. Assim é que dizemos paternidade legítima, filho
legítimo, tribunal legítimo, poder legítimo, etc., mas não podemos falar
de legitimidade a respeito do frio e do calor, a propósito do vento e da
chuva. A legitimidade diz respeito ao jurídico e ao ético-religioso. Acres-
centei religioso à alusão feita há pouco aos dois primeiros aspectos.

Mesa-redonda S3
Cotrim Netto - f:, o conceito aí, de religioso, está no ético.
Gerardo Dantas Barreto - Isto significa que a legitimidade só pode
referir-se a atos e situações humanas, os quais, por sua vez, pressupõem
naturalmente o exercício de uma vontade livre.
Numa primeira e primária aproximação, poder-se-ia conceber a legiti-
midade como aquilo que é ou pode ser conforme à lei, ou como o que
é ou pode ser segundo a lei. Citando Koellreutter, dizia o Pro f. Cotrim
Netto ser preciso que levássemos em conta que aquilo que é legítimo para
um determinado país ou povo pode não o ser para outros. Suponho que
a proposição tenha suas nuances no pensamento do professor. Quanto a
mim, metendo-me na pele do filósofo - minha intervenção é mais filo-
sófica do que jurídica neste debate - sou de opinião - e talvez o Prof.
Djacir Menezes pense comigo - que, por se tratar de uma discussão
teórica, o que estamos aqui buscando ou pretendemos buscar são razões
de legitimidade universalmente válidas para todos os povos, e não as que
possam ser válidas somente para uma nação ou para um povo.
Aliás, desde sua etimologia, o termo legitimidade já nos oferece algumas
indicações neste sentido. Se, em geral, conota a conformidade à natureza
da coisa, ao direito, à lei, o termo propriamente tem um significado muito
vasto: o que é segundo a lei, constituído pela lei, sim, mas também o
que é justo, verdadeiro, équo, razoável, conveniente. Algo, portanto, de
mais preciso e de mais determinado, sobre tudo de mais amplo do que
a simples legalidade. Enquanto esta pode permanecer externa, aparente,
a legitimidade é uma qualidade íntima que reveste o que é conforme à
lei, à justiça, à razão, às normas estabelecidas.
Não ignoro que normalmente só se conceba a legitimidade, repito, como
aquilo que é ou pode ser conforme à lei, o que é ou pode ser segundo a
lei. Trata-se, já se vê, do ponto de vista democrático que, por influência
do "contrato social" de Rousseau, dissolveu a legitimidade em legalidade.
Com razão assegura Smend 1 que o legalismo democrático desconhece todo
princípio de legitimidade. Lembro, entre parênteses, que o estudo mais
completo jamais feito sobre este ponto é a famosa monografia de Carl
Schmitt, Legalitiit und Legitimitiit, publicada em 1932.
Por se acharem orientados para campos de realidale distintos, há que
atribuir diferente significação aos conceitos de legalidade e legitimidade.
Com efeito, enquanto um expressa o poder em sua conformação jurí-
dica decidindo acerca da validade de seus atos de criação normativa,
o outro é um juízo de valor sobre esse mesmo poder como momento
episódico no existir de uma comunidade de vida histórica. Destarte, sobre
não ser mero conceito jurídico-positivo - pelo contrário, em certo sen-
tido aponta para algo in temporal, uma vez que nenhuma conjuntura é
capaz de esgotá-lo por completo - o princípio de conservação de uma
comunidade de vida é a razão última da validade de uma ordenação

1 Cf. Verfassung und Verfassungsrecht. 1928.

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positiva; dir-se-á sobretudo que a razão derradeira da legitimidade de um
poder está no grau em que este, em sua própria constituição, incorpora
a entidade dessa comunidade como tipo de ser em comum, torna-se um
povo político. E a constituição legítima de um povo polític02 pode de-
finir-se como a protoforma (Urbild, conceito cunhado pela morfologia
romântico-naturalista: Herder, Goethe, N ovalis) de seu próprio ser em
constante criação histórica. N a realidade - e estudiosos do assunto já
o observaram - trata-se de síntese em constante dinamismo de compli-
cada variedade de fatores religiosos, culturais, históricos e inclusive na-
turais, síntese que também determina uma confissão de legitimidade. A
legitimidade é, assim, diz-se, menos um consentimento do que um senti-
mento em comum acerca do princípio de unidade. Para Fueyo Alvarez,
um sentimento desta índole é sensivelmente plástico, quando é capaz de
personificar-se ou simbolizar-se d~ alguma maneira, e isto só - acrescenta
- basta para explicar sua potente significação no legitimismo teocrático,
dinástico, ou nos tipos de dominação para os quais Weber propôs a ex-
plicação carismática, a que espero aludir no decorrer do debate.
No Ocidente, as investigações sobre o tema da legitimidade, como
acaba de referir o Prof. Cotrim Netto, giraram especialmente em torno
da origem e do exercício do poder público ou da soberania dentro do
Estado. Com efeito, considerado como função e direito, o poder requer
dupla justificação: a do direito em si, e a da sua existência neste ou
naquele sujeito, a quem cumpre apresentar títulos justificativos. Com
exceção dos anarquistas, todos admitem a legitimidade da autoridade ou
do poder em si. Conseqüentemente, toda a questão cifra-se em saber
quais as condições para alguém, para um governo se tornar legítimo de-
tentor do poder. De onde procederia a determinação dos legítimos go-
vernantes? Homem nenhum teria, por natureza, o poder de obrigar mo-
ralmente a outros. Por natureza, todos os homens são fundamentalmente
iguais na esfera política. Portanto, a determinação do detentor ...

Cotrim Netto - Se me permite, esta é uma concepção puramente ideal


mas não corresponde à realidade.

Gerardo Dantas Barreto - Qual concepção?

Cotrim Netto - De que todos os homens são iguais em matéria política.


Isso apenas no plano ideal será válido.

Gerardo Dantas Barreto - Em ordem ao problema de ter, por sua


natureza, poder sobre todos os outros homens. Nós somos todos iguais
neste sentido e não é a natureza humana que me dá direito de ter eu
poder sobre outros homens.

2 O conceito de povo político surgiu na literatura alemã dos anos imediatos à guerra:
Koellreutter, Huber, Frayer.

Mesa-redonda 55
Cotrim Netto - Não, não é condição humana. Eu respeitosamente
discordo. Pode ser até circunstância que dependa do posicionamento
sociológico do homem. Não fora assim, como explicar o regime aristo-
crático de Veneza, onde só tinham acesso ao poder e contribuíam para a
eleição das instituições os que integrassem determinado grupo, grupo
aristocrático que dominava embora constituísse minoria?
Na instituição aristocrática, há o predomínio necessário de uma minoria
sobre a maioria. Então a maioria que não preencha, não atenda aos
pré-requisitos eleitorais, falemos nesses termos, não tem condições, pelo
fato de ser homem, de exercer o poder.

Djacir Menezes - Parece que sua argumentação se insere dentro de


uma estrutura social e a dele é mais filosófica, num enfoque ontológico.

Gerardo Dantas Barreto - Minha perspectiva é metafísica, o senhor


tem toda a razão. Coloco-me no ponto de vista da filosofia social. A
determinação dos legítimos governantes não é nada pela natureza, segundo
a qual todos os homens são fundamentalmente iguais no campo político;
nenhum tem, por natureza, o poder de obrigar moralmente outros. Reitero,
pois - porque o tópico é importante - que todos os homens são por
natureza livres e iguais: Homines enim singuli sunt ex natura liberi et
aequales, como nos ensina a sabedoria tomista. Esta profunda razão,
oriunda da ética e da metafísica social, é que nos leva à conclusão de que,
hoje, o consenso popular é a condição de legitimidade do poder civil.
:a evidente, porém, que tal consenso, só por si, não basta. De fato,
o próprio consenso e a autoridade (o governo) devem atender às exi-
gências do direito natural, no qual se acham fundados. Tanto isso é ver-
dade que a autoridade, o governo que não se compadecer com as normas
superiores da lei natural, não saberá nem poderá agir a favor do bem
comum - missão a que se destina - e, conseqüentemente, poderá mesmo
perder sua legitimidade se, por exemplo, de modo geral, grave, obstinado,
contumaz violar o direito natural. De resto, uma vez verificada causa
proporcionalmente grave e, por outro lado, constando certamente que o
governo carece de autoridade ou já a perdeu inteiramente; se não subsistir
outro meio e havendo, outrossim, esperança de vitória, pode-se resistir a
esse governo, pode a rebelião tornar-se lícita. Em determinadas condições,
pois, o direito de resistência faz-se legítimo, pode e deve ser usado.
Portanto - e retomo, agora, meu pensamento interrompido - a de-
terminação do detentor do poder, quer se trate de pura designação, quer
se trate de delegação, só pode verificar-se de duas maneiras: ou só pelas
circunstâncias, quando só houver um sujeito apto para governar - caso
raro que, segundo Jacques Leclerq, teria ocorrido em 1799 com Napoleão
Bonaparte, e em 1945 com Charles De GauIle; ou pela escolha da so-
ciedade. Esta escolha supõe, naturalmente, o consenso dos governados,
que se torna mesmo imprescindível, a fim de que o governo e/ou o

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regime seja de fato representativo. O consenso, por seu turno, implica a
necessidade de eleições periódicas que, pelo menos formalmente, supõem
a aceitação da legitimidade civil ou consensual. O próprio Carl Schmitt
- quando tomou parte na polêmica em tomo da legitimidade do poder
na república de Weimar - ' questionava a representatividade parlamentar,
e não o princípio da legitimidade popular que ele via melhor concretizada
na fórmula plebiscitária. A exigência do consenso é hoje fundamental e
pacífica na ciência política. Anoto, aqui, que de todos os cientistas sociais,
C. W. Mills foi, talvez, o que mais enfatizou a necessidade de consenso.
Aliás, segundo Mills, um governo que perante seus governados não é
responsável pelos atos que lhe concemem, que lhe dizem respeito, constitui
a mais alta imoralidade. Quer, pois, me parecer que, nesta segunda metade
do século XX, só se discute a teoria da origem consensual do poder
unida à forma democrática de governo, como ingredientes da legitimidade.
Cotrim Netto - Eu peço licença para discordar a respeito da extração
que o senhor fez do pensamento de Carl Schmitt. Tenho aqui uma ano-
tação sobre o poder constituinte, evidentemente aquele poder que legitima
a nova ordem assim instaurada.
Gerardo Dantas Barreto - Há os que defendem que só é legítimo o
governo que é constitucional, isto é, quando a sucessão do poder se acha
predeterminada nos termos de uma lei fundamental, que o novo governo
não faz, nem anula ou invalida. Legitimidade, neste caso, passa a ser
sinônimo de conformidade aos modelos aceitos de legalidade. 3 Acrescente-se
ainda que, por extensão, este conceito de legitimidade pode também re-
ferir-se a toda a ordem social. Seriam, assim, legítimos o poder e a ordem
social que estivessem de acordo com a Constituição do país.

Cotrim Netto - De acordo com a Constituição não. Acho a definição


de Carl Schmitt não muito consentânea com o seu registro do pensamento
de Schmitt. "Poder constituinte é a vontade política, cuja força ou auto-
ridade é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre modo e
forma da própria existência política, determinando assim a existência da
unidade política como um todo. Das decisões desta vontade deriva a vali-
dade de toda ulterior regulação legal constitucional." Veja que ele está no
plano factual. Desde que haja uma força ou autoridade capaz de adotar a
concreta decisão, ela legitima a ordem constituenda, justifica o poder
constituinte. "Força - define ele - poder efetivo com soberania e ma-
jestade. Autoridade, prestígio indefinido, baseado na continuidade e tra-
dição." Este é o pensamento de Schmitt, donde se conclui que o princípio
da legitimidade continua a ser para ele a efetividade no exercício do poder,
qualquer que seja a sua origem.

3 Veja MacIver, Robert. The web of government. 1947.

Mesa-redonda 57
Gerardo Dantas Barreto - Se bem o entendi, seu esclarecimento ou
não vem a pêlo ou não milita contra o que afirmei sobre Carl Schmitt.
Dissera eu antes e apenas que, na discussão sobre a república de Weimar,
Schmitt questionava, não o princípio da legitimidade popular que se lhe
afigurava mais bem concretizada na fórmula plebiscitária, e sim a re-
presentatividade parlamentar. Não retiro uma palavra do que afirmei. A
dúvida do professor não me parece procedente. Em todo o caso, cabe-lhe
por inteiro o ônus da prova em contrário.

Cotrim Netto - A legitimidade democrática é excepcional na história.


Excepcionalíssima. Todas as organizações políticas, ou por outra, sempre
em toda a história da humanidade, as instituições políticas nunca foram
democraticamente eleitas, digamos, pelo povo. A tentativa de legitimar
democraticamente, neste sentido moderno de democracia identificada com
sufrágio universal, só veio a acontecer nos últimos cem anos. Historica-
mente, nunca houve isso. O Estado helênico, o Estado romano, enfim,
todas as estruturas políticas do passado nunca foram democráticas, nem
mesmo a Grécia. Fala-se muito da democracia helênica. Era puramente
aristocrática.

Gerardo Dantas Barreto - O que o senhor afirma vem a propósito


de anterior observação que fiz; mas a minha observação apenas constatava ...

Cotrim Netto - Da sua valorização, não digo valoração, valorização


da legitimidade democrática.

Gerardo Dantas Barreto - Mas a minha observação apenas constatava


uma situação de facto e não de jure. Não afirmei, por exemplo, que es-
tivesse de pleno acordo com ela. .. Como quer que seja, o certo é que,
há já várias décadas, em ciência política só se discute a legitimidade
dentro dos parâmetros da teoria da origem consensual do poder unida à
forma democrática de governo. Aqui nos separamos inteiramente de Hegel.
Para o grande filósofo - levado por suas premissas dialéticas que divi-
nizam o Estado plenamente identificado com a sittliche Totalitiit - a legi-
timidade é um conteúdo intrínseco do dar-se do poder como factum.
Pois, a seu ver, não é em virtude de um direito prévio ou de uma fórmula
consensual que surge o Estado; este já é uma totalidade metajurídica
dotada de uma força irresistível para impor-se.
Apresentávamos, pois, repito, uma situação de fato verificada por
todos os estudiosos da matéria. O que hoje se discute é isso, ainda quando
se possa estar errado. Estou, aliás, de acordo em que grande parte da
humanidade possa achar-se equivocada a respeito deste e de outros temas.

Djacir Menezes - A diferença entre vocês dois é de dois enfoques,


de duas perspectivas partindo de pontos diferentes.

58 R.C.P. 2179
Gerardo Dantas Barreto - Talvez ainda valesse a pena mencionar,
como prometi, que Max Weber tentou uma explicação da legitimidade,
adotando como método sua conhecida tipologia descritiva. Apresenta-nos
formas de legitimidade relacionada com o sistema de autoridade. Segundo
ele, a própria experiência nos ensina que nenhuma dominação voluntaria-
mente se contenta em ter como probabilidade àe sua persistência motivos
puramente materiais, afetivos ou racionais de acordo com os valores.
Antes, todas elas procuram despertar e fomentar a crença em sua legiti-
midade. Conforme seja a classe de legitimidade pretendida, é fundamen-
talmente diferente tanto o tipo de obediência e o do quadro administrativo
destinado a garanti-la, como o caráter que toma o exercício da domina-
ção. Três são as formas de legitimidade, sugeridas por Weber: a legal,
a tradicional e a carismática. A legal ou de caráter racional tem por
fundamento a crença na validade da legalidade dos regulamentos esta-
belecidos e na legitimidade dos chefes designados de acordo com a lei. A
tradicional se baseia na crença na santidade das tradições em vigor e na
legitimidade daqueles que são chamados ao pode: em virtude do costume.
Já a legitimidade carismática é aquela baseada na submissão dos membros
ao valor pessoal de um homem que se distingue por sua santidade, e
Weber entende aqui por santidade as qualidades morais no sentido ...
Cotrim Netto - No sentido clássico latino.
Gerardo Dantas Barreto - ... de integridade... Isso mesmo, no
sentido clássico latino. Caracterizava eu a legitimidade carismática como
submissão dos membros ao valor pessoal de uma figura que se distingue
por sua santidade, por seu heroísmo ou por sua exemplaridade.4
Cotrim Netto - Resumir-se-ia por sua excelsitude.
Gerardo Dantas Barreto - Exatamente. O Prof. Djacir Menezes, lú-
cido e crítico, objetar-me-ia que esses tipos weberianos são meramente
ideais. De pleno acordo. São tipos puros, praticamente improduzíveis,
que não configuram historicamente a realidade política dos povos. Mesmo
prescindindo do mérito ou demérito que possa ter, a fenomenologia we-
beriana não pode escapar dessa crítica de só nos ter proporcionado uma
idéia abstrata de legitimidade, como singular princípio do reconhecimento
da autoridade. Acresce, como já foi assinalado, que se trata de um atri-
buto predicável não só do poder legítimo, senão de todo poder juridi-
camente organizado. Aliás, o próprio Weber reconhecia a inconsistência
do método tipo lógico em geral e particularmente neste ponto, como, igual-
mente, não ignorava que nenhum dos três tipos ideais costuma verificar-se
em estado puro na realidade histórica. Em todo o caso, valem como
apresentação de normas e qualificações num diapasão muito elevado, de

4 Cf. Weber, Max. Grundriss der Sozialiikonomie. 3. ed. 1925; e, sobretudo, ---o
Wirtschaft und Gesselschaft. 4. ed. 1922. passim.

Mesa-redonda 59
modo, que, mirando-se ne1es, o detentor do poder há de sentir-se levado
a se aproximar do ideal que se propõe. Há que sonhar muito, desatar a
imaginação criadora, pôr sempre muito alto o ideal, para que a realização
dele não seja demasiado medíocre.
Cotrim Netto - O homem persegue o ideal e raramente o alcança.
Todavia esse é o caminho do aperfeiçoamento das instituições e do pró-
prio pensamento humano.
Gerardo Dantas Barreto - Pretendia também dizer uma palavra sobre
governantes ilegítimos. Acredito que os tratadistas sejam todos unânimes
em reconhecer como tais aqueles que se impõem contra a vontade do
povo, sem que as circunstâncias o exijam (como, por exemplo, parece
que exigiram nos casos de Bonaparte e de De Gaulle já por nós men-
cionados); os incapazes, de incapacidade verificada, permanente, irreme-
diável; os que abusam do poder de forma grave, permanente e generali-
zada, como os tiranos. Não disse os ditadores. mas os tirados. As dita-
duras podem ser legítimas como, melhor que ninguém, o demonstrou Carl
Schmitt. 5
Cotrim Netto - Permita-me. O senhor falou sobre tirano. O que é
tirano? Quem é tirano? Isso me traz ao pensamento o que ocorreu com
Julio Cesar. Sabemos que no direito heleno-romano ou heleno-latino, o
tiranicídio era um procedimento lícito. Quando Brutus e seus comparsas
apunhalaram Cesar eles sustentavam que Cesar era um tirano. Cesar,
morto, foi colocado diante da Cúria Romana, sede do Senado, e, durante
muitas horas ou mais de um dia, se discutiu como considerar Cesar, na-
quelas circunstâncias. Fala-se no famoso discurso de Marco Antonio,
diante do cadáver e perante o poviléu romano, em que fazia a apologia
de Cesar ...
Djacir Menezes - ~ uma página de Shakespeare.
Cotrim Netto - .,. e increpava seus assassinos. Guglielmo Ferrero,
a quem eu referi há pouco, numa outra obra, Grandeza e decadência de
Roma, não me lembro aqui se o título é bem esse, embora eu tenha esse
livro, nega a autenticidade desse propalado discurso de Marco Antonio
que Shakespeare exaltou. Mas o fato é que alguns queriam negar funerais
a Cesar, vamos dizer, os seus assassinos, o Partido Republicano que o
exterminou, a pretexto de ser ele um tirano. E o povo não aceitou essa
concepção, tanto que houve um quebra-quebra imenso em Roma, nos
funerais de Cesar, durante a cremação de seu cadáver. Os romanos in-
cineravam seus cadáveres. Conta Guglielmo Ferrero, nesse livro a que
me referi, que um imenso incêndio correspondeu à incineração de Cesar,
enquanto o povo trazia material combustível para a cerimônia prestando,

5 Cf. Die Diktatur. 1964.

60 R.C.P. 2/79
desta forma, sua homenagem àquele homem que um grupo queria classi-
ficar como tirano. O conceito de tirano, como estamos vendo, está muito
ligado ao problema da legitimidade.
Gerardo Dantas Barreto - Mais uma vez a sua colocação não milita
contra meu posicionamento, no qual ficou bem claro o que entendo por
tirano, a saber: aquele que abusa do poder de modo grave, permanente
e generalizado. O tirano ofende a condição humana. Não trata o homem
racionalmente, como uma pessoa, como um fim em si, mas como uma
coisa. Desrespeita os direitos humanos, que devem ser universalmente
aceitos e protegidos. Contra o regime tirânico, que portanto perdeu de
todo em todo sua legitimidade, é legítimo rebelar-se. Neste sentido poder-
se-iam citar numerosos textos de Santo Tomás de Aquino e de Suarez.
Lembro que mais de um jurista-filósofo do século XVI chegou mesmo a
defender a licitude da morte do tirano. O famoso Juan de Mariana, por
exemplo, admitia o tiranicídio, quando se tratasse de tirano regiminis
que tivesse sido declarado hostis reipublicae. 6 O grave desrespeito dos
direitos humanos - que devem ser, repito, universalmente aceitos e pro-
tegidos - é um a priori que, uma vez recusado, nem sequer podemos
continuar a discutir. E, na verdade, se se recusa a universalidade de
certos princípios éticos, de determinados valores, é que também não se
admite seja universal a concepção segundo a qual tirano é aquele que
abusa do poder.
Cotrim Netto - Admito a concepção. Não admito é o juízo do valor.
Gerardo Dantas Barreto - O senhor não admite que alguns governantes
abusaram do poder?
Cotrim Netto - Não, não é isso. Admito a classificação de tirano
dentro dessa sua conceituação. Agora, não admito quem vai julgar, quem
vai definir.
Gerardo Dantas Barreto - Eu estava apresentando talvez conceituação
diferente.
Cotrim Netto - Aqui tenho, por exemplo, Louis Recasens Siches, que,
comentando a estrutura política vigente na Alemanha sob o nazismo, na
Itália sob o fascismo, na URSS sob o chamado regime comunista, classi-
fica esses regimes de fatores de um direito injusto e regimes de certo
modo tirânicos. Mas o povo alemão - depois da 11 Guerra Mundial, a
coisa é diferente - no tempo de Hitler, o aclamava. Não admitiria uma
classificação de tirania para seu führer.
Gerardo Dantas Barreto - Max Scheler pode aqui nos ajudar. Ele
nos diz que, em certos períodos da história, pode ocorrer uma espécie de

6 Cf. Mariana, Juan de. De rege.

Mesa-redonda 61
cegueira para determinados valores. 7 Em certo momento, um povo inteiro
pode estar cego para este ou aquele valor, que nem por isso deixa de
existir na sua íntegra objetividade. Apenas não se dão as condições epis-
têmicas necessárias para serem vistos por quem devia vê-lo. Posterior-
mente, eles vêm à tona, fazem-se de novo presentes, sensíveis, visualizáveis.
Porque os valores não são meros entes de razão. Têm fundamento na
realidade. Cegado durante algum tempo, o povo alemão reconheceu,
afinal, que Hitler era um tirano, um louco e, por isso mesmo, é que Karl
J aspers pôde escrever seu doloroso ensaio sobre a culpabilidade alemã.
Cotrim Netto - Mas, por essa idéia, Napoleão era um tirano e Ale-
xandre também o era, e todas as grandes figuras históricas. Os homens
que fizeram história, dentro dessa sua concepção, teriam sido tiranos.
Então foi Cesar tirano, como o teriam sido Alexandre, Aníbal.

Gerardo Dantas Barreto - Diria que sim, que foram tiranos, na me-
dida em que desrespeitaram a condição humana, os valores humanos; na
medida em que foram injustos, em que gravemente ofenderam princípios
éticos que são válidos universalmente. Enquanto trataram o ser humano,
a vida humana como objeto, como coisa.

Cotrim Netto - Como o senhor definiria, por exemplo, Gengis Khan?


Seria um tirano?

Djacir Menezes - Como um louco.

Cotrim Netto - Dentro da cultura mongol, foi uma figura extraordinária.

Gerardo Dantas Barreto - Admitamos que tenham sido bons os fins


perseguidos por Gengis Khan, mas os meios de que se serviu para con-
segui-los! . .. Por melhores que sejam os fins nunca justificarão o uso
de meios ilícitos e maus. Se não aceitamos este princípios do patrimônio
ético, não apenas ocidental e cristão, mas da própria humanidade, temos
de aceitar o maquivelismo mongol e de aprovar todas as formas de tor-
tura impostas ao homem. Os meios empregados por Gengis Khan, para
chegar aonde chegou, ferem duramente a consciência humana.

Cotrim Netto - Estou dizendo isso porque eu sustento que não há


valores universais, como o senhor pretende, muito menos eternos, porque
o conceito de valor ético, de bem jurídico, de bem comum, etc., oscila,
é cambiante.

Gerardo Dantas Barreto - O senhor afirma que não há valores universais.

Cotrim Netto - Universais e eternos.

7 Cf. Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik. 1927.

62 R.C.P. 2/79
Gerardo Dantas Barreto - Há valores reais. objetivos, universalmente
válidos.
Cotrim Netto - Não aceito, com sua permissão.

Gerardo Dantas Barreto - A própria humanidade chegou mesmo a


estabelecer a tábua dos valores, dos principais valores humanos. Assim
é que, sumariamente, distinguimos: valores físicos, como a saúde, a força,
a beleza; valores econômicos: os bens, as riquezas; valores sociais e po-
líticos: a civilização, o direito, a ordem, a justiça, o progresso; valores
estéticos, cujo pólo é a beleza; valores intelectuais, cujo centro é a ver-
dade; valores morais, cujo pólo é o bem; valores religiosos ou místicos,
cujo princípio é o amor espiritual, que para São João e Bergson é Deus.
Se o valor tem ou pode ter uma densa carga de subjetividade - que por
vezes o relativiza - possui inegavelmente fundamento ontológico. Ele é
um dos transcendentais, pois o ser é que é valioso. Mais, o valor é o
próprio ser, enquanto, por seu conteúdo, significa uma perfeição que tem
preço, que merece ser estimada, que nos atrai. que se faz digna de ser
procurada ou querida. Os valores não poderiam ser, portanto, puramente
subjetivos. São objetivos. Não vêm de nós, transcendem-nos; não oS
criamos, como pensa Sartre ou Raymond Polin, descobrimo-los. Não
dependem das preferências individuais, mantêm sua forma de realidade
para além de toda apreciação e valorização subjetiva.
Não se quer com isso sugerir que eles constituam, como diria Nicolai
Hartmann, uma região metafísica existente e subsistente à parte - pois
são essências e não existências, isto é, eles não existem por si mesmos,
estão nas coisas e nos atos humanos; antes, o que se pretende significar é
a autonomia de que gozam relativamente a toda estimação subjetiva e
arbitrária. Sobretudo os valores éticos têm um privilégio: não podem nem
devem ser ignorados - bem, justiça, sabedoria, dignidade ( da pessoa
humana), liberdade (moral), verdade (oposta à mentira), pobreza (de
caráter), amor ao próximo, paz. Profundamente humanos, eles parecem
definir, melhor que os outros valores, nossa qualidade espiritual especi-
ficamente humana. São, portanto, universais. O ético é, assim, um ingre-
diente de nossa condição, e por isso faz parte, como diria Bergson, dos
dados imediatos da consciência. A inteligência moral, as categorias e os
primeiros princípios morais acompanham o homem por toda a parte. São
funções racionais que atuam instintivamente na experiência moral, assim
como instintivamente atuam na experiência científica as categorias e os
primeiros princípios científicos. "Faze o bem", "evita o mal", "não faças
a outrem o que não queres que te façam a ti", etc., são princípios éticos
universais, válidos para o homem em todos os tempos.
Djacir Menezes - É um valor que se anuncia por meio de uma forma
e a violação da norma não atinge a existência do valor.

Mesa-redonda 63
Gerardo Dantas Barreto - "Faze o bem, evita o mal" é um princIpIO,
repito, que se encontra vigente em todos os povos, em todas as civilizações,
em todas as culturas.
Djacir Menezes - Com a palavra o Prof. Maurice Assuf.
Maurice Assuf - Gustav Radbruch assinala, a propósito do que falava
o Prof. Gerardo Dantas, em termos filosóficos, éticos, universais, em seu
trabalho sobre "leis que não são direito e direito acima das leis", um
protesto exatamente relativo a esta valoração do legalismo e da legitimi-
dade. Diz ele: "Há leis particularmente monstruosas, as quais, pelo fato
de contradizer demasiado macroscopicamente a justiça, não são sequer
válida. Portanto, se a segurança segue sendo o valor sobre o qual se
funda a validade do direito, sob o ponto de vista geral, a justiça é, em
certos casos extremos e particulares, fundamento da mesma validade. O
positivismo, com seu ponto de vista de que, antes de tudo, há que se
cumprir as leis, deixou inerme o jurista alemão, em face das leis de con-
teúdo injusto e arbitrário, com o qual ficaram sem possibilidade de fun-
damentar a validade jurídica das leis. O positivismo pensa ter provado a
validade de uma lei pelo fato de ter força suficiente para impô-la. Mas,
na força se pode fundar, talvez, uma necessidade, nunca um dever. E
uma validade, esta se pode juntar somente t!m um valor inerente à lei.
Claro está que, ainda que sem consideração do seu conteúdo, toda lei
positiva leva consigo um certo valor, porque sempre será melhor que a
total ausência de leis, ao dar lugar ao menos à segurança jurídica. Mas
a segurança jurídica não é o único, nem sequer o valor decisivo que
tem que realizar o direito. Ao lado da segurança jurídica, há outros
valores que são da utilidade e da justiça. A hierarquia desses valores
assinala o último posto para a utilidade. Com respeito ao bem comum,
de nenhum modo se admite que o direito é tudo que é útil ao povo
senão que ao povo é útil, que é direito, traz segurança e tende à justiça.
A segurança jurídica que corresponde a qualquer lei pelo fato de sua
positividade ocupa o lugar intermédio entre a utilidade e a justiça, exigidas
pelo bem comum e pela própria justiça. Que o direito seja seguro, em
sua interpretação e aplicação, é exigência da justiça. Quanto a um con-
flito entre segurança jurídica e a justiça, entre uma lei que falha em seu
conteúdo, mas que é positiva, e. um direito justo, mas que não adquiriu
a coisa extensa de uma lei, estamos, na realidade, dentro de um conflito
da justiça consigo mesma. Justiça aparente e justiça verdadeira." E ter-
mina citando palavras da Sagrada Escritura: "Estais submisso às auto-
ridades que têm poder sobre vós." Em seguida: "Obedecer a Deus antes
de que os homens."
É o brado que dá Gustav Radbruch contra as possibilidades da lega-
lização ou da legitimação da autoridade, onde se verificam as diferencia-
ções do pensamento, colocado pelo Prof. Gerardo, que não estão com-
pendiadas no direito positivo, mas supera esse direito positivo, supera até

64 R.C.P. 2/79
o próprio direito, com considerações de ordem universal e filosófica que
vão-se adaptando à realidade. Daí, eu ter procurado trazer, menos que
uma contribuição pessoal do que uma pesquisa, nas considerações de le-
gitimidade e de legalidade, no pensamento dos juristas, dos filósofos e
dos políticos no tempo e no espaço especialmente quando várias autori-
dades na matéria se reuniram para discutir o conceito de legitimidade,
propondo não só a verificação deste pensamento nos autores antigos,
como em todos os demais autores que trataram dessa matéria como legi-
timidade propriamente dita, legitimidade constitucional e legitimidade re-
volucionária, onde mais ou menos atua a idéia, a concepção de legitimidade.
Os autores antigos citados são principalmente Burke e Bodin, o próprio
Ferrero e, posteriormente, vários outros, como Mário A. Cattaneo, que
escreveu sobre o conceito jurídico de legitimidade revolucionária, procu-
rando dar explicações para todas interrogações e questionamentos que se
fizeram em torno dessa legitimidade, diferenciando-a do direito natural
e do direito positivo.
Mas passando por Ferrero, excelentemente exposto pelo Prof. Cotrim
Netto, temos uma outra consideração feita pelos filósofos, a respeito da
legitimidade segundo Ferrero, dizendo em tom literário muito interessante
e em pensamento filosófico o seguinte: para Ferrero, "todo princípio de
legitimidade é o exorcismo do medo, misterioso e recíproco medo que
nasce entre o poder e os subordinados a esse poder".

Cotrim Netto - Ferrero diz que o homem é o animal mais medroso.


Ele desenvolve essa idéia de maneira muito interessante, para extrair daí
elementos na formulação da teoria da legitimidade.

Maurice Assuf - Diz que a legitimidade oferece justificação do direito


de comandar e do dever de obedecer. O poder reconhecido e aceito, li-
berado de seus freios, não tem razão de se fazer temer. Cada época co-
nhece um princípio dominante, diz ele. E então assinala a situação que
o Prof. Cotrim Netto colocou, mas afirma que a legitimidade não é pro-
blema da axiologia, não é eficácia, contrariando as teses que equiparam
legitimidade com eficácia, com validade, com sucesso.
Cotrim Netto - Essa é a tese de Kelsen. Ele liga a legitimidade à
eficácia.
Maurice Assuf - O próprio Cattaneo substitui toda terminologia con-
sagrada de legitimidade e ilegitimidade, de legalidade e ilegalidade, por
eficácia, validade e sucesso, como disse bem o Prof. Gerardo, que além
de ter trazido a noção de legitimidade dentro dos conhecimentos universais
e originários básicos, trouxe também várias demonstrações de sua expli-
cação e de sua interpretação no direito positivo.
Mas Ferrero é contra o utilitarismo político, no sentido como coloca-
ram os demais.

Mesa-redonda 65
Outro autor que comentou a legitimidade foi Benjamin Constant, com
um trabalho sobre o assunto, especialmente centrado neste tema. Ele diz:
"fica situado entre a legitimidade popular e a legitimidade monárquica.
O liberal se preocupa em limitar a soberania, não importando quem seja
o detentor. Tenta superar o antagonismo entre os partidários do reinado
absoluto e da soberania popular. Quer reconciliar a monarquia e a li-
berdade, cuja antinomia para ser justa datava do traumatismo revolu-
cionário."
Até a revolução, as considerações de ordem clássica facilitavam o jul-
gamento e as considerações a respeito de legitimidade. Posteriormente à
revolução é que ela foi sempre colocada numa maneira adaptada à rea-
lidade política.

Cotrim Netto - Se me permite, eu colocaria essa controvérsia um


pouco anterior à Revolução Francesa. Eu colocaria esse debate no pen-
samento libertário dos politólogos, para usar uma expressão moderna, do
século XVIII: J ohn Locke, Rousseau, Montesquieu, os enciclopedistas
todos, etc. Essa controvérsia é um pouco anterior à própria Revolução
Francesa, que já foi um produto dessa pregação.

Maurice Assuf - Benjamin Constant examina a desacralização do


monarca e ainda vai além; vai à desmilitarizaçãc dos poderes do monarca,
e termina dizendo que faz do monarca um árbitro hereditário, de uma
tradição histórica.
Quanto a Burke, em suas Reflexions, a crítica a respeito do seu pen-
samento foi feita no sentido de ser brilhante e paradoxal, apesar de apa-
reme superficialidade. Há um acentuado rigor no seu pensamento e de-
finições. Disse Burke que a prescrição é o fundamental da legitimidade
e que esta se opera com o tempo. Não há legitimidade transcendente.
Ele limita essa colocação de legitimidade. O primeiro limite seriam os
direitos do homem, the real rights of mano Então a legitimidade se apóia
sobre a presunção mais que sobre a prescrição.
O segundo limite de Burke seria: qual o povo e qual o consentimento
desse povo, a respeito dessa legitimidade? Porque ele alega que o povo é
depositário da legitimidade, mas não a massa revolucionária. E qual o
consentimento? Responde que a vontade popular, expressa através da re-
presentação.
Djacir Menezes - O problema aí fica dependendo de uma conceituação
entre massa revolucionária e povo.
Maurice Assuf - Burke usa legitimate de preferênci~ a lawful, para
designar a nossa legitimidade e não vê descontinuidade entre a legitimi-
dade considerada na natureza e seus aspectos morais, dizendo que "todo
governo que dura tem uma presunção de legitimidade". Alega aí um ponto,
muito vulnerável e crítico de seu trabalho: que a duração do poder prova

66 R.C.P. 2/19
que ele preenche corretamente sua missão e que as exceções são efêmeras.
E diz: a história é a razão acumulada e não se deve impedir "the slow
process of nature".
O conceito de Burke a respeito do passado é no sentido de que a legi-
timidade é também a confiança no futuro, dizendo que é legítimo o que
for conforme ao que virá. Jean Bodin, estudando a legitimidade na sua
obra A República, diz que o primeiro dos critérios está na origem mesmo
do Estado. É de ordem familiar. A autoridade soberana recorre ao pai
de família, à obediência e respeito quase sagrados ao pai, e ele mesmo
representa Deus. A soberania então seria ampla e perpétua.
Há direitos naturais, essencialmente o de propriedade. E indaga como
conciliar, para evitar o arbítrio, o respeito da propriedade com o poder
absoluto que pode desfazer também a propriedade. O famoso droit go-
vernment. A legitimidade se afirma na medida em que ela é imagem do
poder divino. Ela se realiza totalmente quando visa a Justiça harmônica.
Com relação aos autores antigos, tenho a impressão de que esses seriam
os trabalhos principais, afora os demais consagrados do direito natural e
considerações a respeito de autoridade e legitimidade.
Entre os atuais escritores, Carl Friedrich, no trabalho Tradição e auto-
ridade em ciência política, passa em revista várias teorias a respeito das
considerações de legitimidade e de legitimação. Perguntando: quem pos-
sui autoridade para dizer o que é verdadeiro, isto é, tradição? O que é
lei? E esta lei, baseada em ideologia, qual o significado da ideologia?
Seriam as três perguntas fundamentais do trabalho de Carl Friedrich em
que examina, perfeitamente, toda a pesquisa de Weber, como falou muito
bem o Prof. Gerardo, na sua colocação de legitimidade.
Mas, respondendo a alguns tópicos do roteiro, eu aduziria, com relação
à nossa revolcção, a revolução democrática brasileira de 1964, conforme
está sugerido no roteiro ...
Cotrim Netto - Eu gostaria de focalizar que o assunto está na pauta.
É o interesse político do momento.
Maurice Assuf - Termino referindo-me às notas que trago e que foi o
resumo das diversas interpretações da idéia de legitimidade, em que Eisen-
mann, Polin, Alexandre P. d'Entreves, Castberg, Sergio Cotta, Deutsch
Bobbio e vários outros autores se pronunciaram a respeito. Eles fazem uma
referência - e isso é muito do agrado do Prof. Gerardo Dantas Barreto
- ao trabalho de Jules Monnerot, a respeito do deslocamento da legi-
timidade. Que não houve senão uma tentativa de sacralizar. Este livro
de Jules Monnerot trata da legitimidade desconsiderada, esta autoridade
negada, e isso, como uma das estratégias do comunismo. Então, sob o
título Déplacements du sacré, ele diz que "nos era ensinado que política
e sagrado eram coisas distintas e funções sociais também separadas, tam-
bém discerníveis, como no organismo humano, a respiração e a assimila-

Mesa-redonda 67
ção. E vai enfocando vários assuntos relativos aos deslocamentos do sa-
grado. 8

Djacir Menezes - Senhores, eu não costumo fazer aqui um resumo do


que foi debatido porque o nosso objetivo é deixar um pouco em aberto
as perguntas feitas e as dúvidas suscitadas. Cada um, depois, acrescenta
o que julgar conveniente nas notas taquigráficas. Apenas uma pequena
consideração a respeito deste assunto central, que já foi abordado por
todos três em ângulos diferentes.

Cotrim Netto - V. Ex? me permite? Está aqui no temário a questão


da revolução. Eu gostaria de tecer algumas considerações sem querer
prejudicar o seu raciocínio.

Djacir Menezes - Tem a palavra.

Cotrim Netto - No roteiro que nos é apresentado há o seguinte tema:


"Examinar as fontes de legitimação da revolução de março, à luz do
preâmbulo do Ato Institucional nQ 1, de 1964."
Com efeito, tenho aqui o Ato Institucional nQ 1, com o seu preâmbulo
que é uma espécie de manifesto que os detentores do poder revolucio-
nário na época, a junta governativa, lançou à nação. Há um tópico em
que eles falam sobre os poderes que a revolução se atribuía. Diz deter-
minado trecho desse manifesto: "A revolução vitoriosa se investe do poder
constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução.
Esta é a forma mais expressiva e mais radical do poder constituinte.
Assim, a revolução vitoriosa, como poder constituinte, se legitima por si
mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir
o novo governo. Nela se contém a força normativa inerente ao poder
constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela
normatividade anterior à sua vitória."
Djacir Menezes - Nitidamente o problema da legitimidade.

Cotrim Netto - "Os chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das


Forças Armadas e ao apoio inequívoco da nação, representam o povo e
em seu nome exercem o poder constituinte de que o povo é o único
titular."
E lá mais para o final diz: "Fica assim bem claro que a revolução não
procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe, deste Ato
Institucional, resultante do exercício do poder constituinte, inerentes a
todas as revoluções, a sua legitimação."

Maurice Assuf - Perfeito.

8 Monnerot, JuIes. Sociologie du communisme. Gallimard, 1963. p. 437-69.

68 R.C.P. 2/79
Djacir Menezes - Também acho.

Cotrim Netto - Quero dizer que aceito esta colocação do problema.


Evidentemente, não sei até que ponto o Prof. Gerardo, com a sua con-
cepção de legitimidade, poderia aceitar esta colocação do problema.
Gerardo Dantas Barreto - Muito facilmente, professor. Aceito a co-
locação estabelecida no preâmbulo do Ato Institucional nQ 1, que o se-
nhor acaba de ler, justamente porque nele se acha a resposta à questão
de onde vem a legitimação da Revolução Brasileira de 31 de março de
1964. Não se trata, por certo, da legitimação de governantes inicialmente
ilegítimos, possibilidade, aliás, que ocorreu inúmeras vezes na história,
como sabemos. Nas origens de nossa revolução está o apoio inequívoco
que lhe deu a própria nação, está o consenso, dir-se-ia unânime do povo
brasileiro, notadamente nas últimas semanas do governo Goulart, impo-
tente contra a desordem estabelecida em todo o país. Para esse apoio
havia sobejas razões evidentes, públicas, notórias, que nem sequer o mais
simples homem da rua, acossado de dificuldades sem conta, podia ignorar.
Recordo que já era voz corrente na imprensa mundial que o Brasil cami-
nhava aceleradamente para a subversão social. Nos meses anteriores, havia
sido suspensa a ajuda dos EUA ao Brasil, sob o pretexto de que este se
achava ameaçado de pronta cubanização. No início de 1964, sob o es-
pectro das guerrilhas, desciam a zero as inversões de capital estrangeiro:
as grandes empresas e os homens de negócios percebiam no ar a possi-
bilidade de próxima sovietização do Brasil e se dirigiam para zonas de
menores riscos. Mais de uma vez, os jornais estamparam declarações de
Prestes afirmando que os comunistas já estavam no governo, só lhes fal-
tando empalmar o poder. Os sindicatos na sua totalidade, várias autar-
quias, as universidades, as associações estudantis, etc., já se achavam sob
o controle das esquerdas mais radicais. O Deputado Leonel Brizola,
cunhado do presidente da República, organizara os chamados "Grupos
dos onze", que deveriam constituir a força diretora e de choque para a
implantação do regime marxista-Ieninista no País. Palco de cotidianos
desmandos. o Brasil se ia tornando ingovernável. O então Cardeal-Arce-
bispo do Rio de Janeiro, por várias vezes e nos termos mais graves e
enérgicos, advertira a nação sobre o iminente perigo que ela corria. Aliás,
a Declaração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, publicada
logo após 31 de março, documento de grande alcance social e político,
não deixa dúvida a esse respeito. "As Forças Armadas - declaram os
bispos - atendendo à geral e angustiosa expectativa do povo brasileiro,
que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do poder,
acudiram a tempo e evitaram que se consumasse a implantação do regime
bolchevista em nossa terra" ...
São fatos como esses que explicam suficientemente porque a revolução
de março não foi pedir legitimação ao Congresso Nacional. Na realidade,

Mesa-redonda 69
ela já tinha sido legitimada pelo consenso da nação. Agora, se até hoje
este consenso permanece, se a revolução se tornou infiel às suas origens,
se se perdeu em si mesma, se se fez propriedade de grupos impatrióticos
e, hoje, parece um corpo estranho e espúrio sobre a nação - este é, de
fato, outro problema, sobre o qual não fui convocado para pronunciar-me.
Mas no começo, nas origens, foi-lhe dado consenso plenamente, estou
de acordo com o Prof. Djacir. As Forças Armadas sublevaram-se aten-
dendo aos apelos, ao chamamento do povo que já estava de pé, que já
tomara posição, fiel a sua vocação, a seu destino. De maneira que fico
muito à vontade para oferecer esta resposta ao Prof. Cotrim Netto.
Cotrim Netto - Prof. Gerardo Dantas, quero dizer, preliminarmente,
que eu apoio, com todas as veras do meu sentimento político, a Revolução
de 1964, que, no meu entendimento, salvou o País do caos e continua a
preservá-lo disso. Continuo o apoiar a revolução. Naturalmente, nós todos
- e isso é perfeitamente compreensível - não aceitamos tudo o que a
revolução tem feito. Mas, em termos gerais, aceito a revolução, de seu
início até o momento atual. Não obstante, por que dizer-se que o povo a
apoiou? Houve um plebiscito? Não houve um plebiscito democrático.
Gerardo Dantas Barreto - A cada uma das suas inteligentes colocações,
desde o começo bem que gostaria de ter solicitado algum esclarecimento
ou, quem sabe, acrescentado alguma nuance. Pergunta-me o senhor como
se afere que o povo brasileiro apoiou a revolução. Lembro-me que os
jornais da época, de Norte a Sul do país, espelhavam as perplexidades, a
insatisfação e as preocupações do povo. Dir-se-ia que o que então havia
de mais responsável e representativo na nação, no Rio de Janeiro, em São
Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Recife - e a enumeração
não pretende diminuir outros estados da federação - multidões ditas as
mais politizadas do País vieram às ruas apoiar o movimento revolucionário.
Negavam, portanto, apoio à anterior situação política deteriorada. O
que havia de mais representativo no País. repito, solidarizou-se com o
gesto das Forças Armadas que agiam como que movidas numa espécie
de feedback cívico, ao encontro desse obscuro porém ainda firme voto
de fidelidade do próprio povo às suas origens cristãs.
Por meio desses e de outros indicadores sociológicos, podemos sem
dúvida aferir que, como se fora um plebiscito de intenções convergentes,
houve autêntico consenso popular em torno da legitimidade da Revolução
de março de 1964.
Cotrim Netto - Contudo, não houve manifestação de sufrágio univer-
sal, que é a mais representativa - apesar de seus defeitos, de suas dis-
torções - das manifestações resultantes, por força da influência que sobre
ele têm os meios de comunicação de massa, que estão sempre à disposição
sobretudo do poder econômico, porque só quem tem poder econômico
pode mobilizá-los - pelo menos no nosso sistema, como estão organi-

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zados, no Brasil, os meios de comunicação de massa. Não são, por exem-
plo como na Alemanha. Fazendo um parênteses aqui: na Alemanha, a
televisão, que é o veículo mais importante de formação de opinião pública,
não está à disposição nem do poder econômico nem do poder estatal. f:
propriedade, é comandada, seus programas são organizados por institui-
ções - embora de criação do Estado - das quais participam os partidos
políticos, como todos os elementos que podem dizer-se representativos do
sentimento popular. A televisão alemã é apolítica, não é do Estado. No
Brasil, ela é privada, sofre a influência do poder econômico, que pode
comprar programas, e sofre o exercício do poder de polícia rigoroso do
Governo. Então, como é que o povo se manifesta? O povo, como dizia,
fora dos casos de sufrágio popular, que com todas as suas deficiências
ainda é a maneira mais idônea de manifestação popular, não tem como
de outra forma exprimir a opinião pública. Se tivemos multidões, aqui
no Rio, que aplaudiram a revolução, podemos estar certos de que tais
multidões, que não correspondiam à maioria do povo, correspondiam, real-
mente, à opinião pública predominante? Afinal de contas, que é opinião
pública? Agora, socorro-me novamente, de Carl Schmitt. Vejamos a in-
consistência do que se entender dessa entidade que se chama opinião pú-
blica. Dizia Schmitt: "A opinião pública é a forma moderna da aclama-
ção. f:, quiçá, uma forma difusa, e seu problema não está resolvido nem
para a sociologia nem para o direito político. Porém, sua essência e sua
significação política estribam em que pode ser interpretada como acla-
mação."
E acrescentava ainda: "Não há nenhuma democracia nem nenhum Es-
tado sem opinião pública, como não há nenhum Estado sem aclamação.
A opinião pública aparece e subsiste inorgânica."
Disso, quero concluir o seguinte: a questão de legitimidade do poder,
a questão da legitimidade do exercício desse direito de resistência, desse
direito de revolução, isso tudo é muito impreciso. Está colocado em
termos, e esse debate, do qual estamos participando, não me convence
de que possa nos levar a uma conclusão - não diria definitiva, seria
muita pretensão nossa - mas a uma conclusão mais ou menos válida
do que possa constituir a legitimidade do poder revolucionário. Esse
manifesto, esse Ato Institucional nQ 1, nós sabemos quem o redigiu. Foi
um eminente companheiro nosso de outras mesas-redondas.

Djacir Menezes - Carlos Medeiros.

Cotrim Netto - Bem, isso hoje não é mais segredo. Foi Carlos Me-
deiros Silva, eminente jurista que participou da sua elaboração, com os
elementos militares que tomaram o poder, naquela ocasião. Ele fez uma
colocação teórica, muito bem posta, do problema da legitimidade do novo
poder recém-instituído, mas eu estou longe de aceitar a validade disso.
• Não tenho elementos para aferir até que ponto a opinião pública, a maioria

Mesa-redonda 71
do povo brasileiro apoiou a revolução. Afinal de contas, nós sabemos,
também, que o grupo deposto tinha o seu apoio popular.

Djacir Menezes - Que não se manifestou senão de uma maneira de


defesa. De modo que somos levados a presumir que, realmente, o movi-
mento correspondeu à expectativa da imensa maioria do país.

Cotrim Netto - Eu diria que correspondeu à maioria - e isso tenho


quase como evidente, axiomaticamente evidente - da elite pensante, di-
gamos assim. Mas aventurar-me a dizer que correspondeu, naquele mo-
mento, a sentimento da maioria do povo, não posso fazê-lo.

Djacir Menezes - Mas é a elite pensante que vai respondendo por


tudo.

Cotrim Netto - Bem, então, aí, temos outra colocação do problema


da legitimidade. Caímos no campo da legitimidade aristocrática.

Gerardo Dantas Barreto - Vem a pêlo distinguirmos aqui entre povo


e massa. Esta é falida, alienada, não pensa. O povo raciocina, pensa,
representa, faz-se autenticamente representado. Quanto mais educado, mais
possibilidade tem o povo de fazer a leitura dos eventos, de extrair lições
de indicadores sociais, de configurar as situações e as crises. Neste sentido
é que afirmei em geral, em tese - pois há as exceções - que os brasi-
leiros mais esclarecidos são aqueles que vivem em determinados estados,
por certo em maior número no Sul do País. Não se nega a existência de
figuras de prol em todas as unidades da federação.

Cotrim Netto - Então, estamos nos atribuindo um poder de comando.

Gerardo Dantas Barreto - Até certo ponto, sim.

Djacir Menezes - Se legitima em função dos valores que ela defende.


Lanço mão de um exemplo, no intuito de esclarecer o problema da legi-
timidade: a colocação do neopositivismo jurídico põe [ex igual a jus. Quer
dizer, a lei é o direito. Nessa hipótese: lei normatividade, normatividade
editada pelo poder competente, qualquer que seja seu ritualismo no mo-
mento histórico. Tomemos, por exemplo, a Lei do divórcio. É legítima
ou não é? Para o sujeito que parte dos valores tradicionais, fundamentais,
católicos, de que o casamento é um sacramento, conferindo essencialmente
àqueles valores, essa lei não é legítima. E vice-versa: o que parte da
transitoriedade contratual da legislação civil, trata-se de legitimidade.
Então a obediência nasce da liberdade, porque a legalidade é imperativa.
Assim, a perspectiva da legitimidade origina-se da constelação de valores
em que se fundamenta a lei.
O ponto de partida para a legitimidade de uma determinada lei será,
portanto, o conjunto de valores que ela revela vigentes na consciência

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pública. :e uma coisa variável, portanto. E se transpomos esse argumento
para um plano político e indagamos dos valores fundamentais de que de-
terminado poder se reveste e exprime, e do qual é instrumento, cumpre
declarar que esse poder é legítimo ou não conforme a minha aceitação ou
recusa dos valores fundamentais. Então, à luz desse critério, o movimento
de 1964 veio revelar ou veio pôr a tônica em seleção de valores que
parecem vir dentro da nossa história, da nossa tradição e da nossa evolu-
ção. Ele restaurou um caminho em consonância com o sentir do povo
brasileiro e as elites pensantes reconheceram essa sintonia. No fundo, tra-
ta-se de um processo de legitimação. Nesses termos, o Ato nQ 1 abriu
caminho e evitou derrapar para a república sindicalista mais ignorante do
mundo. ~ apenas um ponto de vista.
Cotrim Netto - Eu quero rememorar aqui aquela colocação que eu
me situei, aquela posição que adotei, a de Koellreutter, segundo a qual
cada povo em cada momento histórico tem a sua concepção de poder e
de Estado. Eu me recordo, a propósito das observações do Prof. Djacir
Menezes, de um pensamento expressado por Oliveira Vianna num dos seus
magníficos estudos de sociologia e da história do Brasil, se não me en-
gano na Evolução do povo brasileiro. Dizia Oliveira Vianna que o povo
brasileiro sempre foi muito reverente para com o poder estatal, sempre
lhe foi muito submisso. Não sei se isso é uma virtude ou se é um defeito,
mas é um registro de Oliveira Vianna, com o qual estou de acordo. De
maneira que, invocando ainda Koellreutter, pode ser que na França, na
Europa em geral, eles pensem de maneira diferente.
Colocando o problema da revolução no plano nacional, eu diria que o
povo brasileiro aceitou aquela revolução, como aceitaria a aclamaria
eventualmente qualquer revolução vitoriosa que se consolidasse, pela sua
reverência sistemática para com o poder do Estado. Eu não vou buscar
a legitimidade do poder revolucionário nem na manifestação democrática,
que não houve, nem em nenhuma outra das explicações do direito de
resistência. Preferiria ficar, aqui, com Oliveira Vianna: o povo brasileiro
é reverente para com o poder estatal e, como tal, quem vier a assumir
esse poder será recebido - desde que sem grande ruptura com o senti-
mento médio ético ...
Gerardo Dantas Barreto - A categoria da "reverência" não me parece
assim tão evidente e pertinente. A falta de suficientes confrontos históri-
cos, entre o povo e o poder estatal, são de molde a levar alguns a pen-
sarem com Oliveira Vianna que os brasileiros somos naturalmente reve-
rentes e submissos ao poder estatal. A ausência das variáveis necessárias
no caso, faz alguns conceberem invariante puramente teórica, mais literária
ou estética do que sociológica.
Em todo o caso, não acredito que se a tal república sindicalista tivesse
.t
sido instalada com aquele primarismo semibárbaro, com aquela violência

Mesa-redonda 73
"à la Brizola", viesse ela a merecer, como poder instituído, o acatamento
pacífico, a pura reverência do povo brasileiro.

Cotrim Netto - Não sei, tenho minhas dúvidas. Porque o caso do


Brasil eu aproximo muito do caso da Rússia. Eu li naquele livro famoso,
A Técnica do golpe de estado, de Curzio Malaparte, e vi como ele des-
creve o golpe bolchevista de outubro de 1917 em São Petersburgo. Disse
ele que, numa conferência com Lenine, Trotski queria tomar os centros
do poder russo estabelecidos em Leningrado, os centros nevrálgicos do
poder que comandavam. Então Lenine dizia: "vamos mobilizar o povo";
e Trotski dizia: "não; o povo é demais. Eu não quero o povo. Quero um
pequeno grupo de ativistas, capazes de tomar esse centro nevrálgico."
No caso brasileiro, eu acho que isto poderá repetir-se e não foi o que
aconteceu em 1964? De maneira que, para mim, criar a legitimidade no
caso do Brasil em particular, partindo do povo, acho que é demais. E
aqui eu repito a observação de Trotski.

Djacir Menezes - Acho que o mito que mais tem atrapalhado não só
os Estados, como também o pensamento político, é o da democracia, fora
da realidade histórica concreta das coisas.

Gerardo Dantas Barreto - Sem dúvida, a idéia de democracia que


entre nós se costuma fazer é a da liberal-democracia. No Brasil, todas as
discussões em torno da democracia partem desse a piori intocável. Nessa
ótica simplista, a democracia se afigura coisa acabada, perfeita, estática e,
por conseguinte, é apresentada como único modelo válido. Ora,. minha
idéia de democracia é outra. Concebo-a como um ideal, difícil ideal,
que tem tido e continuará a ter várias encarnações hit;tóricas. Trata-se de
algo que marcha, que caminha, que progride como realidade dinâmica
que é. Por isso o conceito de democracia não pode ser - nunca foi
historicamente - unívoco nem análogo. Não podemos, destarte, falar
somente, em termos de liberal-democracia, de um projeto sociopolítico
de governo que se vem encarnando ao longo da história, suscetível de
tantas explicações e aperfeiçoamento.
Sem dúvida, a democracia supõe sempre o sufrágio universal. Porém,
com os mais ilustres teóricos, concebo para ela não um sufrágio universal
puramente inorgânico, como o que se conhece e em geral se pratica; mas
sim um tipo de sufrágio que, sem deixar de ser universal, possibilite au-
têntica representatividade das classes em que a sociedade se divide natu-
ralmente, a saber: a família, o sindicato ou a corporação (palavra que
ninguém mais nomeia), o município. .. Defendo o sufrágio universal que
detecte amplamente essa forma de representatividade, sem a qual a de-
mocracia é o domínio da incompetência e da irresponsabilidade, e sempre
o mais curto caminho para os regimes ditatoriais e totalitários.

74 R.C.P. 2/19
Cotrim Netto - :E: o que os alemães usam muito, os estamentos.
Gerardo Dantas Barreto - Antes de concluirmos esta mesa-redonda,
gostaria de dizer uma palavrinha, motivada, aliás, pelos próprios posicio-
namentos feitos ao longo dos nossos debates.
Cada vez mais me tenho dado conta de que o conceito de legitimidade
política, pelo menos entre nós, parece hoje desvincular-se de suas implica-
ções éticas. Na tipologia de Weber, já brevemente mencionada, a caracteri-
zação da legitimidade legal, tradicional e carismática é profundamente
axiológica: supõe a presença da competência e da responsabilidade. O de-
tentor do poder há de ser sempre pessoa altamente qualificada. Ora,
sobretudo ultimamente, o que estamos vendo no domínio da coisa pública
é a progressiva instalação do reino da incompetência e da irresponsabilidade
a que me referia há pouco. Defrontamo-nos com uma classe política
frívola, leviana, subdesenvolvida, extremamente despreparada e incompe-
tente. A meu ver, nada poderia explicá-la melhor que o princípio da
incompetência, da autoria da Lawrence J. Peter. Podemos reduzir este
princípio aparentemente paradoxal aos três pontos seguintes: 1. Em todos
os campos da atividade humana cada indivíduo tende a ascender ao posto
onde sua incompetência se manifesta de forma mais segura. 2. Em con-
seqüência, todos os postos da hierarquia social tendem a ser ocupados
por indivíduos incapazes de cumprir convenientemente suas funções. 3. O
trabalho útil é sempre efetuado por indivíduos que ainda não alcançaram
seu verdadeiro "nível de incompetência" ...
Ora, quantos dos nossos políticos que demonstraram discreto nível de
eficácia, em postos secundários públicos ou privados, conseguiram - por
meio de manipulações, de passes de mágica ou da pura e simples vontade
de poder - guindar-se a cargos superiores nos quais, de forma clamorosa,
manifestaram sua irremediável incompetência? Estou-me lembrando agora
de uma porção deles, não vou mencioná-los por compaixão. Quantos
postos fundamentais da política nacional, tanto na administração como nos
partidos, nos sindicatos e associações, nos ministérios, no Congresso Na-
cional, nas autarquias, nos conselhos, nas universidades - onde qualquer
incompetente pode ser reitor ou diretor de faculdade, instituto, escola -
quantos postos não foram ocupados ou não estão sendo ocupados por
indivíduos incompetentes para a função que desempenham? Até seria o
caso de perguntar-se em que medida o trabalho útil que continua sendo
feito no País não é realizado por pessoas que não aparecem, que não se
dão em espetáculo, por honrados cidadãos, funcionários, empresários,
professores, advogados, profissionais, trabalhadores? Deixo estas interro-
gações com os senhores, sobretudo com a socrática ironia do Prof. Djacir
Menezes.
Djacir Menezes - Muito obrigado. Chegamos ao final do tempo reser-
, vado aos nossos debates. Quero agradecer a presença dos três eminentes

Mesa-redonda 7S
professores que tanto brilho deram à reunião, e, sobretudo, tantas idéias
trouxeram para a nossa revista. Agradeço, também, o trabalho das coope-
radoras, taquígrafas, lembrando apenas a ausência involuntária do Min.
Themistocles Cavalcanti, que tem grande apreço por estas mesas-redondas
e em breve estará presente, para maior brilho dos trabalhos em curso DO
INDIPO.

76 R.C.P. 2/79

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