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DE LEGITIMIDADE*
Djacir Menezes - Quem deveria presidir esta reunião era o Min. The-
mistocles Cavalcanti, que ainda não pode exercer, plenamente, suas fun-
ções, aqui no INDIPO. De modo que a mesa-redonda será coordenada
com minha insuficiência habitual.
( Não apoiado).
Mesa-redonda 49
Do mesmo modo nos espanta quando lemos O Espírito das leis, de
Montesquieu, e vemos que a sua primeira edição, em 1748, tenha sido
igualmente semiclandestina ...
Mesa-redonda 51
do que um produto da imaginação, tais conceitos devem proceder da ob-
servação da totalidade dos fatos."
Por isso eu digo que o problema do estudo da legitimidade não me
parece que seja essencialmente jurídico. Ele é essencialmente factual,
melhor falando, sociológico.
Maurice Assuf - ... "entre três legitimidades opostas". Isto faz com
que se tenha a idéia do pensamento de Duverger que, como disse o Prof.
Djacir Menezes, relaciona o iure constituendo.
Cotrim Netto - Ele estuda isso nas instituições. Duverger é professor
de instituições políticas. Ao que me consta, na França não se estuda
direito constitucional. A matéria que estudamos sob este nome os fran-
ceses abordam como instituições políticas, uma disciplina cujo magistério
está a cargo de Duverger, na Universidade de Paris.
Cotrim Netto - Enfim, para concluir - já antecipei mesmo minha
conclusão - quero fazer uma observação que reputo sobretudo muito
interessante - não é minha, evidentemente, mas de KoeIlreutter, consti-
tucionalista alemão.
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Djacir Menezes (interrompendo) - Tenho um livro dele sobre partidos
políticos esccito na atmosfera totalitária da década de 30.
Cotrim Netto - Ele tem várias obras sobre partidos políticos. Foi um
constitucionalista da década de 20, da época da Constituição de Weimar.
Como dizia esse autor, observação de Koellreutter que me impressionou
muito: "O mundo, em geral, ou sobretudo o pensamento europeu, quando
discute os temas pertinentes ao Estado, tem sempre defronte de si, como
modelo para a elaboração do pensamento, o Estado europeu. Acontece
- acrescenta Koellreutter - que nem todos os povos sentem o Estado
da mesma maneira que o povo europeu." Isso, de certo modo, coincide
com uma observação do prisco Montesquieu, no seu Espírito das leis,
quando ele fala nas transformações do Estado, no tempo e no espaço. "O
Estado não é sempre o mesmo"; e continua: "Não é sempre o mesmo,
no tempo e no espaço e a concepção do Estado não é sempre a mesma,
no tempo e no espaço." E continua a não ser o mesmo, no espaço social,
digamos assim, político, do mundo moderno. De maneira que a questão
da teoria da legitimidade do poder também tem que ser posta neste en-
foque. A concepção da legitimidade está na dependência dos princípios
axiológicos, do sistema de valores que cada povo admite. Ninguém vai
pretender que, na Bolívia, por exemplo, país de instituições políticas bas-
tante fluidas e um tanto primitivas, a discussão sobre legitimidade tenha
o mesmo caráter que a discussão sobre legitimidade na França. Assim,
este é outro dado do qual não nos podemos abstrair, na consideração do
princípio da legitimidade.
Djacir Menezes - Com a palavra o Prof. Gerardo Dantas Barreto.
Gerardo Dantas Barreto - Quero, inicialmente, agradecer ao Prof.
Djacir Menezes o amável convite, que tanto me honrou, para tomar parte
nesta mesa-redonda por ele coordenada, sobre tema da maior atualidade.
Com eficiência e erudição, o Prof. Cotrim Netto procurou situar histori-
camente o assunto. O roteiro que a Fundação Getulio Vargas me enviou,
muito bem elaborado, aliás, recebi-o com bastante atraso e, por isso, dele
prescindirei por enquanto, para nesta primeira intervenção cingir-me ao
tema geral proposto, alinhavando alguns comentários acerca da própria
conceituação jurídica-política da legitimidade. Trata-se, evidentemente, de
um dos conceitos mais profundamente discutidos na história das idéias
políticas e sociais. A primeira observação do filósofo é que o problema
da legitimidade só se põe na esfera do espírito; não se posiciona no
domínio da natureza, cujos eventos, regulares e necessários, são presididos
pelo determinismo físico. Assim é que dizemos paternidade legítima, filho
legítimo, tribunal legítimo, poder legítimo, etc., mas não podemos falar
de legitimidade a respeito do frio e do calor, a propósito do vento e da
chuva. A legitimidade diz respeito ao jurídico e ao ético-religioso. Acres-
centei religioso à alusão feita há pouco aos dois primeiros aspectos.
Mesa-redonda S3
Cotrim Netto - f:, o conceito aí, de religioso, está no ético.
Gerardo Dantas Barreto - Isto significa que a legitimidade só pode
referir-se a atos e situações humanas, os quais, por sua vez, pressupõem
naturalmente o exercício de uma vontade livre.
Numa primeira e primária aproximação, poder-se-ia conceber a legiti-
midade como aquilo que é ou pode ser conforme à lei, ou como o que
é ou pode ser segundo a lei. Citando Koellreutter, dizia o Pro f. Cotrim
Netto ser preciso que levássemos em conta que aquilo que é legítimo para
um determinado país ou povo pode não o ser para outros. Suponho que
a proposição tenha suas nuances no pensamento do professor. Quanto a
mim, metendo-me na pele do filósofo - minha intervenção é mais filo-
sófica do que jurídica neste debate - sou de opinião - e talvez o Prof.
Djacir Menezes pense comigo - que, por se tratar de uma discussão
teórica, o que estamos aqui buscando ou pretendemos buscar são razões
de legitimidade universalmente válidas para todos os povos, e não as que
possam ser válidas somente para uma nação ou para um povo.
Aliás, desde sua etimologia, o termo legitimidade já nos oferece algumas
indicações neste sentido. Se, em geral, conota a conformidade à natureza
da coisa, ao direito, à lei, o termo propriamente tem um significado muito
vasto: o que é segundo a lei, constituído pela lei, sim, mas também o
que é justo, verdadeiro, équo, razoável, conveniente. Algo, portanto, de
mais preciso e de mais determinado, sobre tudo de mais amplo do que
a simples legalidade. Enquanto esta pode permanecer externa, aparente,
a legitimidade é uma qualidade íntima que reveste o que é conforme à
lei, à justiça, à razão, às normas estabelecidas.
Não ignoro que normalmente só se conceba a legitimidade, repito, como
aquilo que é ou pode ser conforme à lei, o que é ou pode ser segundo a
lei. Trata-se, já se vê, do ponto de vista democrático que, por influência
do "contrato social" de Rousseau, dissolveu a legitimidade em legalidade.
Com razão assegura Smend 1 que o legalismo democrático desconhece todo
princípio de legitimidade. Lembro, entre parênteses, que o estudo mais
completo jamais feito sobre este ponto é a famosa monografia de Carl
Schmitt, Legalitiit und Legitimitiit, publicada em 1932.
Por se acharem orientados para campos de realidale distintos, há que
atribuir diferente significação aos conceitos de legalidade e legitimidade.
Com efeito, enquanto um expressa o poder em sua conformação jurí-
dica decidindo acerca da validade de seus atos de criação normativa,
o outro é um juízo de valor sobre esse mesmo poder como momento
episódico no existir de uma comunidade de vida histórica. Destarte, sobre
não ser mero conceito jurídico-positivo - pelo contrário, em certo sen-
tido aponta para algo in temporal, uma vez que nenhuma conjuntura é
capaz de esgotá-lo por completo - o princípio de conservação de uma
comunidade de vida é a razão última da validade de uma ordenação
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positiva; dir-se-á sobretudo que a razão derradeira da legitimidade de um
poder está no grau em que este, em sua própria constituição, incorpora
a entidade dessa comunidade como tipo de ser em comum, torna-se um
povo político. E a constituição legítima de um povo polític02 pode de-
finir-se como a protoforma (Urbild, conceito cunhado pela morfologia
romântico-naturalista: Herder, Goethe, N ovalis) de seu próprio ser em
constante criação histórica. N a realidade - e estudiosos do assunto já
o observaram - trata-se de síntese em constante dinamismo de compli-
cada variedade de fatores religiosos, culturais, históricos e inclusive na-
turais, síntese que também determina uma confissão de legitimidade. A
legitimidade é, assim, diz-se, menos um consentimento do que um senti-
mento em comum acerca do princípio de unidade. Para Fueyo Alvarez,
um sentimento desta índole é sensivelmente plástico, quando é capaz de
personificar-se ou simbolizar-se d~ alguma maneira, e isto só - acrescenta
- basta para explicar sua potente significação no legitimismo teocrático,
dinástico, ou nos tipos de dominação para os quais Weber propôs a ex-
plicação carismática, a que espero aludir no decorrer do debate.
No Ocidente, as investigações sobre o tema da legitimidade, como
acaba de referir o Prof. Cotrim Netto, giraram especialmente em torno
da origem e do exercício do poder público ou da soberania dentro do
Estado. Com efeito, considerado como função e direito, o poder requer
dupla justificação: a do direito em si, e a da sua existência neste ou
naquele sujeito, a quem cumpre apresentar títulos justificativos. Com
exceção dos anarquistas, todos admitem a legitimidade da autoridade ou
do poder em si. Conseqüentemente, toda a questão cifra-se em saber
quais as condições para alguém, para um governo se tornar legítimo de-
tentor do poder. De onde procederia a determinação dos legítimos go-
vernantes? Homem nenhum teria, por natureza, o poder de obrigar mo-
ralmente a outros. Por natureza, todos os homens são fundamentalmente
iguais na esfera política. Portanto, a determinação do detentor ...
2 O conceito de povo político surgiu na literatura alemã dos anos imediatos à guerra:
Koellreutter, Huber, Frayer.
Mesa-redonda 55
Cotrim Netto - Não, não é condição humana. Eu respeitosamente
discordo. Pode ser até circunstância que dependa do posicionamento
sociológico do homem. Não fora assim, como explicar o regime aristo-
crático de Veneza, onde só tinham acesso ao poder e contribuíam para a
eleição das instituições os que integrassem determinado grupo, grupo
aristocrático que dominava embora constituísse minoria?
Na instituição aristocrática, há o predomínio necessário de uma minoria
sobre a maioria. Então a maioria que não preencha, não atenda aos
pré-requisitos eleitorais, falemos nesses termos, não tem condições, pelo
fato de ser homem, de exercer o poder.
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regime seja de fato representativo. O consenso, por seu turno, implica a
necessidade de eleições periódicas que, pelo menos formalmente, supõem
a aceitação da legitimidade civil ou consensual. O próprio Carl Schmitt
- quando tomou parte na polêmica em tomo da legitimidade do poder
na república de Weimar - ' questionava a representatividade parlamentar,
e não o princípio da legitimidade popular que ele via melhor concretizada
na fórmula plebiscitária. A exigência do consenso é hoje fundamental e
pacífica na ciência política. Anoto, aqui, que de todos os cientistas sociais,
C. W. Mills foi, talvez, o que mais enfatizou a necessidade de consenso.
Aliás, segundo Mills, um governo que perante seus governados não é
responsável pelos atos que lhe concemem, que lhe dizem respeito, constitui
a mais alta imoralidade. Quer, pois, me parecer que, nesta segunda metade
do século XX, só se discute a teoria da origem consensual do poder
unida à forma democrática de governo, como ingredientes da legitimidade.
Cotrim Netto - Eu peço licença para discordar a respeito da extração
que o senhor fez do pensamento de Carl Schmitt. Tenho aqui uma ano-
tação sobre o poder constituinte, evidentemente aquele poder que legitima
a nova ordem assim instaurada.
Gerardo Dantas Barreto - Há os que defendem que só é legítimo o
governo que é constitucional, isto é, quando a sucessão do poder se acha
predeterminada nos termos de uma lei fundamental, que o novo governo
não faz, nem anula ou invalida. Legitimidade, neste caso, passa a ser
sinônimo de conformidade aos modelos aceitos de legalidade. 3 Acrescente-se
ainda que, por extensão, este conceito de legitimidade pode também re-
ferir-se a toda a ordem social. Seriam, assim, legítimos o poder e a ordem
social que estivessem de acordo com a Constituição do país.
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Gerardo Dantas Barreto - Se bem o entendi, seu esclarecimento ou
não vem a pêlo ou não milita contra o que afirmei sobre Carl Schmitt.
Dissera eu antes e apenas que, na discussão sobre a república de Weimar,
Schmitt questionava, não o princípio da legitimidade popular que se lhe
afigurava mais bem concretizada na fórmula plebiscitária, e sim a re-
presentatividade parlamentar. Não retiro uma palavra do que afirmei. A
dúvida do professor não me parece procedente. Em todo o caso, cabe-lhe
por inteiro o ônus da prova em contrário.
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Gerardo Dantas Barreto - Talvez ainda valesse a pena mencionar,
como prometi, que Max Weber tentou uma explicação da legitimidade,
adotando como método sua conhecida tipologia descritiva. Apresenta-nos
formas de legitimidade relacionada com o sistema de autoridade. Segundo
ele, a própria experiência nos ensina que nenhuma dominação voluntaria-
mente se contenta em ter como probabilidade àe sua persistência motivos
puramente materiais, afetivos ou racionais de acordo com os valores.
Antes, todas elas procuram despertar e fomentar a crença em sua legiti-
midade. Conforme seja a classe de legitimidade pretendida, é fundamen-
talmente diferente tanto o tipo de obediência e o do quadro administrativo
destinado a garanti-la, como o caráter que toma o exercício da domina-
ção. Três são as formas de legitimidade, sugeridas por Weber: a legal,
a tradicional e a carismática. A legal ou de caráter racional tem por
fundamento a crença na validade da legalidade dos regulamentos esta-
belecidos e na legitimidade dos chefes designados de acordo com a lei. A
tradicional se baseia na crença na santidade das tradições em vigor e na
legitimidade daqueles que são chamados ao pode: em virtude do costume.
Já a legitimidade carismática é aquela baseada na submissão dos membros
ao valor pessoal de um homem que se distingue por sua santidade, e
Weber entende aqui por santidade as qualidades morais no sentido ...
Cotrim Netto - No sentido clássico latino.
Gerardo Dantas Barreto - ... de integridade... Isso mesmo, no
sentido clássico latino. Caracterizava eu a legitimidade carismática como
submissão dos membros ao valor pessoal de uma figura que se distingue
por sua santidade, por seu heroísmo ou por sua exemplaridade.4
Cotrim Netto - Resumir-se-ia por sua excelsitude.
Gerardo Dantas Barreto - Exatamente. O Prof. Djacir Menezes, lú-
cido e crítico, objetar-me-ia que esses tipos weberianos são meramente
ideais. De pleno acordo. São tipos puros, praticamente improduzíveis,
que não configuram historicamente a realidade política dos povos. Mesmo
prescindindo do mérito ou demérito que possa ter, a fenomenologia we-
beriana não pode escapar dessa crítica de só nos ter proporcionado uma
idéia abstrata de legitimidade, como singular princípio do reconhecimento
da autoridade. Acresce, como já foi assinalado, que se trata de um atri-
buto predicável não só do poder legítimo, senão de todo poder juridi-
camente organizado. Aliás, o próprio Weber reconhecia a inconsistência
do método tipo lógico em geral e particularmente neste ponto, como, igual-
mente, não ignorava que nenhum dos três tipos ideais costuma verificar-se
em estado puro na realidade histórica. Em todo o caso, valem como
apresentação de normas e qualificações num diapasão muito elevado, de
4 Cf. Weber, Max. Grundriss der Sozialiikonomie. 3. ed. 1925; e, sobretudo, ---o
Wirtschaft und Gesselschaft. 4. ed. 1922. passim.
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modo, que, mirando-se ne1es, o detentor do poder há de sentir-se levado
a se aproximar do ideal que se propõe. Há que sonhar muito, desatar a
imaginação criadora, pôr sempre muito alto o ideal, para que a realização
dele não seja demasiado medíocre.
Cotrim Netto - O homem persegue o ideal e raramente o alcança.
Todavia esse é o caminho do aperfeiçoamento das instituições e do pró-
prio pensamento humano.
Gerardo Dantas Barreto - Pretendia também dizer uma palavra sobre
governantes ilegítimos. Acredito que os tratadistas sejam todos unânimes
em reconhecer como tais aqueles que se impõem contra a vontade do
povo, sem que as circunstâncias o exijam (como, por exemplo, parece
que exigiram nos casos de Bonaparte e de De Gaulle já por nós men-
cionados); os incapazes, de incapacidade verificada, permanente, irreme-
diável; os que abusam do poder de forma grave, permanente e generali-
zada, como os tiranos. Não disse os ditadores. mas os tirados. As dita-
duras podem ser legítimas como, melhor que ninguém, o demonstrou Carl
Schmitt. 5
Cotrim Netto - Permita-me. O senhor falou sobre tirano. O que é
tirano? Quem é tirano? Isso me traz ao pensamento o que ocorreu com
Julio Cesar. Sabemos que no direito heleno-romano ou heleno-latino, o
tiranicídio era um procedimento lícito. Quando Brutus e seus comparsas
apunhalaram Cesar eles sustentavam que Cesar era um tirano. Cesar,
morto, foi colocado diante da Cúria Romana, sede do Senado, e, durante
muitas horas ou mais de um dia, se discutiu como considerar Cesar, na-
quelas circunstâncias. Fala-se no famoso discurso de Marco Antonio,
diante do cadáver e perante o poviléu romano, em que fazia a apologia
de Cesar ...
Djacir Menezes - ~ uma página de Shakespeare.
Cotrim Netto - .,. e increpava seus assassinos. Guglielmo Ferrero,
a quem eu referi há pouco, numa outra obra, Grandeza e decadência de
Roma, não me lembro aqui se o título é bem esse, embora eu tenha esse
livro, nega a autenticidade desse propalado discurso de Marco Antonio
que Shakespeare exaltou. Mas o fato é que alguns queriam negar funerais
a Cesar, vamos dizer, os seus assassinos, o Partido Republicano que o
exterminou, a pretexto de ser ele um tirano. E o povo não aceitou essa
concepção, tanto que houve um quebra-quebra imenso em Roma, nos
funerais de Cesar, durante a cremação de seu cadáver. Os romanos in-
cineravam seus cadáveres. Conta Guglielmo Ferrero, nesse livro a que
me referi, que um imenso incêndio correspondeu à incineração de Cesar,
enquanto o povo trazia material combustível para a cerimônia prestando,
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desta forma, sua homenagem àquele homem que um grupo queria classi-
ficar como tirano. O conceito de tirano, como estamos vendo, está muito
ligado ao problema da legitimidade.
Gerardo Dantas Barreto - Mais uma vez a sua colocação não milita
contra meu posicionamento, no qual ficou bem claro o que entendo por
tirano, a saber: aquele que abusa do poder de modo grave, permanente
e generalizado. O tirano ofende a condição humana. Não trata o homem
racionalmente, como uma pessoa, como um fim em si, mas como uma
coisa. Desrespeita os direitos humanos, que devem ser universalmente
aceitos e protegidos. Contra o regime tirânico, que portanto perdeu de
todo em todo sua legitimidade, é legítimo rebelar-se. Neste sentido poder-
se-iam citar numerosos textos de Santo Tomás de Aquino e de Suarez.
Lembro que mais de um jurista-filósofo do século XVI chegou mesmo a
defender a licitude da morte do tirano. O famoso Juan de Mariana, por
exemplo, admitia o tiranicídio, quando se tratasse de tirano regiminis
que tivesse sido declarado hostis reipublicae. 6 O grave desrespeito dos
direitos humanos - que devem ser, repito, universalmente aceitos e pro-
tegidos - é um a priori que, uma vez recusado, nem sequer podemos
continuar a discutir. E, na verdade, se se recusa a universalidade de
certos princípios éticos, de determinados valores, é que também não se
admite seja universal a concepção segundo a qual tirano é aquele que
abusa do poder.
Cotrim Netto - Admito a concepção. Não admito é o juízo do valor.
Gerardo Dantas Barreto - O senhor não admite que alguns governantes
abusaram do poder?
Cotrim Netto - Não, não é isso. Admito a classificação de tirano
dentro dessa sua conceituação. Agora, não admito quem vai julgar, quem
vai definir.
Gerardo Dantas Barreto - Eu estava apresentando talvez conceituação
diferente.
Cotrim Netto - Aqui tenho, por exemplo, Louis Recasens Siches, que,
comentando a estrutura política vigente na Alemanha sob o nazismo, na
Itália sob o fascismo, na URSS sob o chamado regime comunista, classi-
fica esses regimes de fatores de um direito injusto e regimes de certo
modo tirânicos. Mas o povo alemão - depois da 11 Guerra Mundial, a
coisa é diferente - no tempo de Hitler, o aclamava. Não admitiria uma
classificação de tirania para seu führer.
Gerardo Dantas Barreto - Max Scheler pode aqui nos ajudar. Ele
nos diz que, em certos períodos da história, pode ocorrer uma espécie de
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cegueira para determinados valores. 7 Em certo momento, um povo inteiro
pode estar cego para este ou aquele valor, que nem por isso deixa de
existir na sua íntegra objetividade. Apenas não se dão as condições epis-
têmicas necessárias para serem vistos por quem devia vê-lo. Posterior-
mente, eles vêm à tona, fazem-se de novo presentes, sensíveis, visualizáveis.
Porque os valores não são meros entes de razão. Têm fundamento na
realidade. Cegado durante algum tempo, o povo alemão reconheceu,
afinal, que Hitler era um tirano, um louco e, por isso mesmo, é que Karl
J aspers pôde escrever seu doloroso ensaio sobre a culpabilidade alemã.
Cotrim Netto - Mas, por essa idéia, Napoleão era um tirano e Ale-
xandre também o era, e todas as grandes figuras históricas. Os homens
que fizeram história, dentro dessa sua concepção, teriam sido tiranos.
Então foi Cesar tirano, como o teriam sido Alexandre, Aníbal.
Gerardo Dantas Barreto - Diria que sim, que foram tiranos, na me-
dida em que desrespeitaram a condição humana, os valores humanos; na
medida em que foram injustos, em que gravemente ofenderam princípios
éticos que são válidos universalmente. Enquanto trataram o ser humano,
a vida humana como objeto, como coisa.
7 Cf. Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik. 1927.
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Gerardo Dantas Barreto - Há valores reais. objetivos, universalmente
válidos.
Cotrim Netto - Não aceito, com sua permissão.
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Gerardo Dantas Barreto - "Faze o bem, evita o mal" é um princIpIO,
repito, que se encontra vigente em todos os povos, em todas as civilizações,
em todas as culturas.
Djacir Menezes - Com a palavra o Prof. Maurice Assuf.
Maurice Assuf - Gustav Radbruch assinala, a propósito do que falava
o Prof. Gerardo Dantas, em termos filosóficos, éticos, universais, em seu
trabalho sobre "leis que não são direito e direito acima das leis", um
protesto exatamente relativo a esta valoração do legalismo e da legitimi-
dade. Diz ele: "Há leis particularmente monstruosas, as quais, pelo fato
de contradizer demasiado macroscopicamente a justiça, não são sequer
válida. Portanto, se a segurança segue sendo o valor sobre o qual se
funda a validade do direito, sob o ponto de vista geral, a justiça é, em
certos casos extremos e particulares, fundamento da mesma validade. O
positivismo, com seu ponto de vista de que, antes de tudo, há que se
cumprir as leis, deixou inerme o jurista alemão, em face das leis de con-
teúdo injusto e arbitrário, com o qual ficaram sem possibilidade de fun-
damentar a validade jurídica das leis. O positivismo pensa ter provado a
validade de uma lei pelo fato de ter força suficiente para impô-la. Mas,
na força se pode fundar, talvez, uma necessidade, nunca um dever. E
uma validade, esta se pode juntar somente t!m um valor inerente à lei.
Claro está que, ainda que sem consideração do seu conteúdo, toda lei
positiva leva consigo um certo valor, porque sempre será melhor que a
total ausência de leis, ao dar lugar ao menos à segurança jurídica. Mas
a segurança jurídica não é o único, nem sequer o valor decisivo que
tem que realizar o direito. Ao lado da segurança jurídica, há outros
valores que são da utilidade e da justiça. A hierarquia desses valores
assinala o último posto para a utilidade. Com respeito ao bem comum,
de nenhum modo se admite que o direito é tudo que é útil ao povo
senão que ao povo é útil, que é direito, traz segurança e tende à justiça.
A segurança jurídica que corresponde a qualquer lei pelo fato de sua
positividade ocupa o lugar intermédio entre a utilidade e a justiça, exigidas
pelo bem comum e pela própria justiça. Que o direito seja seguro, em
sua interpretação e aplicação, é exigência da justiça. Quanto a um con-
flito entre segurança jurídica e a justiça, entre uma lei que falha em seu
conteúdo, mas que é positiva, e. um direito justo, mas que não adquiriu
a coisa extensa de uma lei, estamos, na realidade, dentro de um conflito
da justiça consigo mesma. Justiça aparente e justiça verdadeira." E ter-
mina citando palavras da Sagrada Escritura: "Estais submisso às auto-
ridades que têm poder sobre vós." Em seguida: "Obedecer a Deus antes
de que os homens."
É o brado que dá Gustav Radbruch contra as possibilidades da lega-
lização ou da legitimação da autoridade, onde se verificam as diferencia-
ções do pensamento, colocado pelo Prof. Gerardo, que não estão com-
pendiadas no direito positivo, mas supera esse direito positivo, supera até
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o próprio direito, com considerações de ordem universal e filosófica que
vão-se adaptando à realidade. Daí, eu ter procurado trazer, menos que
uma contribuição pessoal do que uma pesquisa, nas considerações de le-
gitimidade e de legalidade, no pensamento dos juristas, dos filósofos e
dos políticos no tempo e no espaço especialmente quando várias autori-
dades na matéria se reuniram para discutir o conceito de legitimidade,
propondo não só a verificação deste pensamento nos autores antigos,
como em todos os demais autores que trataram dessa matéria como legi-
timidade propriamente dita, legitimidade constitucional e legitimidade re-
volucionária, onde mais ou menos atua a idéia, a concepção de legitimidade.
Os autores antigos citados são principalmente Burke e Bodin, o próprio
Ferrero e, posteriormente, vários outros, como Mário A. Cattaneo, que
escreveu sobre o conceito jurídico de legitimidade revolucionária, procu-
rando dar explicações para todas interrogações e questionamentos que se
fizeram em torno dessa legitimidade, diferenciando-a do direito natural
e do direito positivo.
Mas passando por Ferrero, excelentemente exposto pelo Prof. Cotrim
Netto, temos uma outra consideração feita pelos filósofos, a respeito da
legitimidade segundo Ferrero, dizendo em tom literário muito interessante
e em pensamento filosófico o seguinte: para Ferrero, "todo princípio de
legitimidade é o exorcismo do medo, misterioso e recíproco medo que
nasce entre o poder e os subordinados a esse poder".
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Outro autor que comentou a legitimidade foi Benjamin Constant, com
um trabalho sobre o assunto, especialmente centrado neste tema. Ele diz:
"fica situado entre a legitimidade popular e a legitimidade monárquica.
O liberal se preocupa em limitar a soberania, não importando quem seja
o detentor. Tenta superar o antagonismo entre os partidários do reinado
absoluto e da soberania popular. Quer reconciliar a monarquia e a li-
berdade, cuja antinomia para ser justa datava do traumatismo revolu-
cionário."
Até a revolução, as considerações de ordem clássica facilitavam o jul-
gamento e as considerações a respeito de legitimidade. Posteriormente à
revolução é que ela foi sempre colocada numa maneira adaptada à rea-
lidade política.
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que ele preenche corretamente sua missão e que as exceções são efêmeras.
E diz: a história é a razão acumulada e não se deve impedir "the slow
process of nature".
O conceito de Burke a respeito do passado é no sentido de que a legi-
timidade é também a confiança no futuro, dizendo que é legítimo o que
for conforme ao que virá. Jean Bodin, estudando a legitimidade na sua
obra A República, diz que o primeiro dos critérios está na origem mesmo
do Estado. É de ordem familiar. A autoridade soberana recorre ao pai
de família, à obediência e respeito quase sagrados ao pai, e ele mesmo
representa Deus. A soberania então seria ampla e perpétua.
Há direitos naturais, essencialmente o de propriedade. E indaga como
conciliar, para evitar o arbítrio, o respeito da propriedade com o poder
absoluto que pode desfazer também a propriedade. O famoso droit go-
vernment. A legitimidade se afirma na medida em que ela é imagem do
poder divino. Ela se realiza totalmente quando visa a Justiça harmônica.
Com relação aos autores antigos, tenho a impressão de que esses seriam
os trabalhos principais, afora os demais consagrados do direito natural e
considerações a respeito de autoridade e legitimidade.
Entre os atuais escritores, Carl Friedrich, no trabalho Tradição e auto-
ridade em ciência política, passa em revista várias teorias a respeito das
considerações de legitimidade e de legitimação. Perguntando: quem pos-
sui autoridade para dizer o que é verdadeiro, isto é, tradição? O que é
lei? E esta lei, baseada em ideologia, qual o significado da ideologia?
Seriam as três perguntas fundamentais do trabalho de Carl Friedrich em
que examina, perfeitamente, toda a pesquisa de Weber, como falou muito
bem o Prof. Gerardo, na sua colocação de legitimidade.
Mas, respondendo a alguns tópicos do roteiro, eu aduziria, com relação
à nossa revolcção, a revolução democrática brasileira de 1964, conforme
está sugerido no roteiro ...
Cotrim Netto - Eu gostaria de focalizar que o assunto está na pauta.
É o interesse político do momento.
Maurice Assuf - Termino referindo-me às notas que trago e que foi o
resumo das diversas interpretações da idéia de legitimidade, em que Eisen-
mann, Polin, Alexandre P. d'Entreves, Castberg, Sergio Cotta, Deutsch
Bobbio e vários outros autores se pronunciaram a respeito. Eles fazem uma
referência - e isso é muito do agrado do Prof. Gerardo Dantas Barreto
- ao trabalho de Jules Monnerot, a respeito do deslocamento da legi-
timidade. Que não houve senão uma tentativa de sacralizar. Este livro
de Jules Monnerot trata da legitimidade desconsiderada, esta autoridade
negada, e isso, como uma das estratégias do comunismo. Então, sob o
título Déplacements du sacré, ele diz que "nos era ensinado que política
e sagrado eram coisas distintas e funções sociais também separadas, tam-
bém discerníveis, como no organismo humano, a respiração e a assimila-
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ção. E vai enfocando vários assuntos relativos aos deslocamentos do sa-
grado. 8
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Djacir Menezes - Também acho.
Mesa-redonda 69
ela já tinha sido legitimada pelo consenso da nação. Agora, se até hoje
este consenso permanece, se a revolução se tornou infiel às suas origens,
se se perdeu em si mesma, se se fez propriedade de grupos impatrióticos
e, hoje, parece um corpo estranho e espúrio sobre a nação - este é, de
fato, outro problema, sobre o qual não fui convocado para pronunciar-me.
Mas no começo, nas origens, foi-lhe dado consenso plenamente, estou
de acordo com o Prof. Djacir. As Forças Armadas sublevaram-se aten-
dendo aos apelos, ao chamamento do povo que já estava de pé, que já
tomara posição, fiel a sua vocação, a seu destino. De maneira que fico
muito à vontade para oferecer esta resposta ao Prof. Cotrim Netto.
Cotrim Netto - Prof. Gerardo Dantas, quero dizer, preliminarmente,
que eu apoio, com todas as veras do meu sentimento político, a Revolução
de 1964, que, no meu entendimento, salvou o País do caos e continua a
preservá-lo disso. Continuo o apoiar a revolução. Naturalmente, nós todos
- e isso é perfeitamente compreensível - não aceitamos tudo o que a
revolução tem feito. Mas, em termos gerais, aceito a revolução, de seu
início até o momento atual. Não obstante, por que dizer-se que o povo a
apoiou? Houve um plebiscito? Não houve um plebiscito democrático.
Gerardo Dantas Barreto - A cada uma das suas inteligentes colocações,
desde o começo bem que gostaria de ter solicitado algum esclarecimento
ou, quem sabe, acrescentado alguma nuance. Pergunta-me o senhor como
se afere que o povo brasileiro apoiou a revolução. Lembro-me que os
jornais da época, de Norte a Sul do país, espelhavam as perplexidades, a
insatisfação e as preocupações do povo. Dir-se-ia que o que então havia
de mais responsável e representativo na nação, no Rio de Janeiro, em São
Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Recife - e a enumeração
não pretende diminuir outros estados da federação - multidões ditas as
mais politizadas do País vieram às ruas apoiar o movimento revolucionário.
Negavam, portanto, apoio à anterior situação política deteriorada. O
que havia de mais representativo no País. repito, solidarizou-se com o
gesto das Forças Armadas que agiam como que movidas numa espécie
de feedback cívico, ao encontro desse obscuro porém ainda firme voto
de fidelidade do próprio povo às suas origens cristãs.
Por meio desses e de outros indicadores sociológicos, podemos sem
dúvida aferir que, como se fora um plebiscito de intenções convergentes,
houve autêntico consenso popular em torno da legitimidade da Revolução
de março de 1964.
Cotrim Netto - Contudo, não houve manifestação de sufrágio univer-
sal, que é a mais representativa - apesar de seus defeitos, de suas dis-
torções - das manifestações resultantes, por força da influência que sobre
ele têm os meios de comunicação de massa, que estão sempre à disposição
sobretudo do poder econômico, porque só quem tem poder econômico
pode mobilizá-los - pelo menos no nosso sistema, como estão organi-
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zados, no Brasil, os meios de comunicação de massa. Não são, por exem-
plo como na Alemanha. Fazendo um parênteses aqui: na Alemanha, a
televisão, que é o veículo mais importante de formação de opinião pública,
não está à disposição nem do poder econômico nem do poder estatal. f:
propriedade, é comandada, seus programas são organizados por institui-
ções - embora de criação do Estado - das quais participam os partidos
políticos, como todos os elementos que podem dizer-se representativos do
sentimento popular. A televisão alemã é apolítica, não é do Estado. No
Brasil, ela é privada, sofre a influência do poder econômico, que pode
comprar programas, e sofre o exercício do poder de polícia rigoroso do
Governo. Então, como é que o povo se manifesta? O povo, como dizia,
fora dos casos de sufrágio popular, que com todas as suas deficiências
ainda é a maneira mais idônea de manifestação popular, não tem como
de outra forma exprimir a opinião pública. Se tivemos multidões, aqui
no Rio, que aplaudiram a revolução, podemos estar certos de que tais
multidões, que não correspondiam à maioria do povo, correspondiam, real-
mente, à opinião pública predominante? Afinal de contas, que é opinião
pública? Agora, socorro-me novamente, de Carl Schmitt. Vejamos a in-
consistência do que se entender dessa entidade que se chama opinião pú-
blica. Dizia Schmitt: "A opinião pública é a forma moderna da aclama-
ção. f:, quiçá, uma forma difusa, e seu problema não está resolvido nem
para a sociologia nem para o direito político. Porém, sua essência e sua
significação política estribam em que pode ser interpretada como acla-
mação."
E acrescentava ainda: "Não há nenhuma democracia nem nenhum Es-
tado sem opinião pública, como não há nenhum Estado sem aclamação.
A opinião pública aparece e subsiste inorgânica."
Disso, quero concluir o seguinte: a questão de legitimidade do poder,
a questão da legitimidade do exercício desse direito de resistência, desse
direito de revolução, isso tudo é muito impreciso. Está colocado em
termos, e esse debate, do qual estamos participando, não me convence
de que possa nos levar a uma conclusão - não diria definitiva, seria
muita pretensão nossa - mas a uma conclusão mais ou menos válida
do que possa constituir a legitimidade do poder revolucionário. Esse
manifesto, esse Ato Institucional nQ 1, nós sabemos quem o redigiu. Foi
um eminente companheiro nosso de outras mesas-redondas.
Cotrim Netto - Bem, isso hoje não é mais segredo. Foi Carlos Me-
deiros Silva, eminente jurista que participou da sua elaboração, com os
elementos militares que tomaram o poder, naquela ocasião. Ele fez uma
colocação teórica, muito bem posta, do problema da legitimidade do novo
poder recém-instituído, mas eu estou longe de aceitar a validade disso.
• Não tenho elementos para aferir até que ponto a opinião pública, a maioria
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do povo brasileiro apoiou a revolução. Afinal de contas, nós sabemos,
também, que o grupo deposto tinha o seu apoio popular.
72 R.C.P. 2/79
pública. :e uma coisa variável, portanto. E se transpomos esse argumento
para um plano político e indagamos dos valores fundamentais de que de-
terminado poder se reveste e exprime, e do qual é instrumento, cumpre
declarar que esse poder é legítimo ou não conforme a minha aceitação ou
recusa dos valores fundamentais. Então, à luz desse critério, o movimento
de 1964 veio revelar ou veio pôr a tônica em seleção de valores que
parecem vir dentro da nossa história, da nossa tradição e da nossa evolu-
ção. Ele restaurou um caminho em consonância com o sentir do povo
brasileiro e as elites pensantes reconheceram essa sintonia. No fundo, tra-
ta-se de um processo de legitimação. Nesses termos, o Ato nQ 1 abriu
caminho e evitou derrapar para a república sindicalista mais ignorante do
mundo. ~ apenas um ponto de vista.
Cotrim Netto - Eu quero rememorar aqui aquela colocação que eu
me situei, aquela posição que adotei, a de Koellreutter, segundo a qual
cada povo em cada momento histórico tem a sua concepção de poder e
de Estado. Eu me recordo, a propósito das observações do Prof. Djacir
Menezes, de um pensamento expressado por Oliveira Vianna num dos seus
magníficos estudos de sociologia e da história do Brasil, se não me en-
gano na Evolução do povo brasileiro. Dizia Oliveira Vianna que o povo
brasileiro sempre foi muito reverente para com o poder estatal, sempre
lhe foi muito submisso. Não sei se isso é uma virtude ou se é um defeito,
mas é um registro de Oliveira Vianna, com o qual estou de acordo. De
maneira que, invocando ainda Koellreutter, pode ser que na França, na
Europa em geral, eles pensem de maneira diferente.
Colocando o problema da revolução no plano nacional, eu diria que o
povo brasileiro aceitou aquela revolução, como aceitaria a aclamaria
eventualmente qualquer revolução vitoriosa que se consolidasse, pela sua
reverência sistemática para com o poder do Estado. Eu não vou buscar
a legitimidade do poder revolucionário nem na manifestação democrática,
que não houve, nem em nenhuma outra das explicações do direito de
resistência. Preferiria ficar, aqui, com Oliveira Vianna: o povo brasileiro
é reverente para com o poder estatal e, como tal, quem vier a assumir
esse poder será recebido - desde que sem grande ruptura com o senti-
mento médio ético ...
Gerardo Dantas Barreto - A categoria da "reverência" não me parece
assim tão evidente e pertinente. A falta de suficientes confrontos históri-
cos, entre o povo e o poder estatal, são de molde a levar alguns a pen-
sarem com Oliveira Vianna que os brasileiros somos naturalmente reve-
rentes e submissos ao poder estatal. A ausência das variáveis necessárias
no caso, faz alguns conceberem invariante puramente teórica, mais literária
ou estética do que sociológica.
Em todo o caso, não acredito que se a tal república sindicalista tivesse
.t
sido instalada com aquele primarismo semibárbaro, com aquela violência
Mesa-redonda 73
"à la Brizola", viesse ela a merecer, como poder instituído, o acatamento
pacífico, a pura reverência do povo brasileiro.
Djacir Menezes - Acho que o mito que mais tem atrapalhado não só
os Estados, como também o pensamento político, é o da democracia, fora
da realidade histórica concreta das coisas.
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Cotrim Netto - :E: o que os alemães usam muito, os estamentos.
Gerardo Dantas Barreto - Antes de concluirmos esta mesa-redonda,
gostaria de dizer uma palavrinha, motivada, aliás, pelos próprios posicio-
namentos feitos ao longo dos nossos debates.
Cada vez mais me tenho dado conta de que o conceito de legitimidade
política, pelo menos entre nós, parece hoje desvincular-se de suas implica-
ções éticas. Na tipologia de Weber, já brevemente mencionada, a caracteri-
zação da legitimidade legal, tradicional e carismática é profundamente
axiológica: supõe a presença da competência e da responsabilidade. O de-
tentor do poder há de ser sempre pessoa altamente qualificada. Ora,
sobretudo ultimamente, o que estamos vendo no domínio da coisa pública
é a progressiva instalação do reino da incompetência e da irresponsabilidade
a que me referia há pouco. Defrontamo-nos com uma classe política
frívola, leviana, subdesenvolvida, extremamente despreparada e incompe-
tente. A meu ver, nada poderia explicá-la melhor que o princípio da
incompetência, da autoria da Lawrence J. Peter. Podemos reduzir este
princípio aparentemente paradoxal aos três pontos seguintes: 1. Em todos
os campos da atividade humana cada indivíduo tende a ascender ao posto
onde sua incompetência se manifesta de forma mais segura. 2. Em con-
seqüência, todos os postos da hierarquia social tendem a ser ocupados
por indivíduos incapazes de cumprir convenientemente suas funções. 3. O
trabalho útil é sempre efetuado por indivíduos que ainda não alcançaram
seu verdadeiro "nível de incompetência" ...
Ora, quantos dos nossos políticos que demonstraram discreto nível de
eficácia, em postos secundários públicos ou privados, conseguiram - por
meio de manipulações, de passes de mágica ou da pura e simples vontade
de poder - guindar-se a cargos superiores nos quais, de forma clamorosa,
manifestaram sua irremediável incompetência? Estou-me lembrando agora
de uma porção deles, não vou mencioná-los por compaixão. Quantos
postos fundamentais da política nacional, tanto na administração como nos
partidos, nos sindicatos e associações, nos ministérios, no Congresso Na-
cional, nas autarquias, nos conselhos, nas universidades - onde qualquer
incompetente pode ser reitor ou diretor de faculdade, instituto, escola -
quantos postos não foram ocupados ou não estão sendo ocupados por
indivíduos incompetentes para a função que desempenham? Até seria o
caso de perguntar-se em que medida o trabalho útil que continua sendo
feito no País não é realizado por pessoas que não aparecem, que não se
dão em espetáculo, por honrados cidadãos, funcionários, empresários,
professores, advogados, profissionais, trabalhadores? Deixo estas interro-
gações com os senhores, sobretudo com a socrática ironia do Prof. Djacir
Menezes.
Djacir Menezes - Muito obrigado. Chegamos ao final do tempo reser-
, vado aos nossos debates. Quero agradecer a presença dos três eminentes
Mesa-redonda 7S
professores que tanto brilho deram à reunião, e, sobretudo, tantas idéias
trouxeram para a nossa revista. Agradeço, também, o trabalho das coope-
radoras, taquígrafas, lembrando apenas a ausência involuntária do Min.
Themistocles Cavalcanti, que tem grande apreço por estas mesas-redondas
e em breve estará presente, para maior brilho dos trabalhos em curso DO
INDIPO.
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