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falam em ficção. Então o que vou fazer é, através da leitura de Maquiavel via
Merleau-Ponty, introduzir a idéia de ficção.
Primeira observação de Merleau-Ponty: Segundo O Príncipe, o homem se
distingue do animal porque no homem a luta não se esgota em um embate de
forças. A luta de um tigre contra um leão implica simplesmente um embate de
forças. No homem, a luta assume uma característica distinta, porque nele,
homem, a luta implica algo que vai além do que se oferece ao animal, ou seja, o
poder. Não se pode explicar o poder simplesmente a partir de um embate de
forças físicas. Ora, diz Merleau-Ponty, parafraseando Maquiavel, o poder não se
funda numa justificação natural, por isso o poder é sempre contestável. Usando
termos do próprio Maquiavel, um dos deveres do príncipe está em resolver as
questões antes que elas se tornem insolúveis. Como então o príncipe consegue
fazê-lo? Como o governante trata dos problemas quando eles aparecem? Há de
tentar resolvê-los antes que se tornem insolúveis. Tomemos como exemplo o
problema das desigualdades sociais brasileiras. O problema que se põe para todo
governante brasileiro e que continua se pondo é que ele, governante, encaminhe
sua solução antes de nos encontrarmos em uma situação sem retorno.
Como o príncipe consegue resolver esse dilema? Estimulando a cristalização
de opiniões ou, nas palavras de Merleau-Ponty: os homens se deixam viver no
horizonte do Estado e da lei enquanto a injustiça não lhes dá consciência do que
Estado e lei têm de injustificável. Nem fato puro nem direito puro, o poder nem
constrange nem persuade, mas sim seduz e seduz melhor apelando antes para a
liberdade que apelando para o terror.
Até aqui eu equilibrei passagens de Maquiavel com Merleau-Ponty. E
agora penetramos no que nos interessa, o problema da ficção. A gente pode se
perguntar, que vantagem o homem extrai ao admitir que Estado e lei não têm
uma justificativa natural? Poderíamos responder: a vantagem que a humanidade
tira da existência do Estado e da lei é que o Estado e a lei nos introduzem no
campo da política. Venho ainda a Merleau-Ponty para justificar essa passagem:
A política mostra um começo de humanidade emergindo da vida coletiva como
um quociente de poder e procura seduzir as consciências. A armadilha da vida
coletiva funciona nos dois sentidos, pois os regimes liberais sempre são um pouco
menos liberais do que se crê e os não liberais sempre são um pouco mais do que
podemos imaginar. Aqui termina a descrição de Maquiavel, feita com a ajuda de
Merleau-Ponty.
Vocês terão notado que nem Maquiavel nem Merleau-Ponty se referem a
ficção. Mas agora sou eu que pergunto: do que tratam, Maquiavel e Merleau-
Ponty, ao tratarem do poder, de que tratam senão de uma função das ficções na
sociedade? Vejam o raciocínio inteiro. Partíamos da situação animal: cada animal
tem seu território, tem as suas armas; uma raposa sabe que não poderá combater
um leão, sabe que haverá de usar a astúcia para fugir dele e se possível fazê-lo
cair numa armadilha. Esse é o campo animal. O campo humano apresenta a
variante do poder, elemento diferenciado, posto que não se apresenta apenas
como uma questão de quem possui força maior ou menor, mas apresenta um
elemento novo: o poder não se justifica naturalmente. Digamos, se eu lhes estou
falando aqui não é necessariamente por um poder meu, mas por um poder da
instituição que nos traz até aqui. Tomemos exatamente a nossa situação aqui
para entender a questão da ficção. Havia dito: o poder não se justifica por si
mesmo. Se não se justifica por si mesmo, então por que a humanidade sempre,
entretanto, recorre a ele? Resposta de Merleau-Ponty: porque através do poder
a humanidade é introduzida na política. Então devemos perguntar: e qual a
vantagem da política? Eu diria simplesmente que a política é o que nos faz
combinar vida material com ficções necessárias para um viver coletivo. A política
nos faz combinar um elemento material – uma carência, ou uma necessidade –
com um elemento que é dado pelas instituições, que são possibilitadas pela
existência de um poder social. A política nos faz combinar essas duas coisas. E
agora reflitamos, onde é que entra a ficção? A ficção entra justamente naquela
afirmação: ‘o poder é alguma coisa que não se justifica naturalmente e, se não se
justifica naturalmente, ele, poder, convence melhor aludindo, indicando,
remetendo, sugerindo, antes a liberdade que o terror; terror e liberdade são duas
armas do poder, mas a primeira é mais eficaz do que a segunda.’
suposto de que aquilo que vai ser dito interessa. Mas isso é uma ficção conjetural
porque não há uma maneira de comprová-lo.
Ao lado das ficções conjeturais, temos então que colocar uma ficção oposta,
as ficções necessárias. Exemplo de ficção necessária, de que outro pioneiro na
teorização do ficcional já falava, um pouco depois de Bentham: Vaihinger: todo o
direito penal se baseia na ficção da liberdade. Por exemplo, se lá pras tantas eu
dissesse: estou cansado de ter passado a vida inteira falando sobre ficção por
conta de alguns trocados que recebo; passei a vida inteira fazendo ficção e agora
estou cheio disso e então pegasse o microfone e, dando uma de star, jogasse o
violão no público; seguramente isso não ficaria assim, isso provavelmente daria
lugar a alguma condenação, ainda que leve. E em que o juiz que me julgasse
teria de se basear para me condenar?: Teria que se basear em que eu teria toda
a liberdade de não fazer isso.
Todo o direito penal, toda idéia de pena, parte do princípio de que há uma
dita liberdade. Quantas vezes essa dita liberdade é verdadeira?
Aprioristicamente o direito penal não pode pôr em dúvida de que há uma
liberdade e se o direito penal não pode pôr em dúvida que há uma liberdade essa
é uma ficção necessária, porque sem essa ficção o direito penal não funciona.
O que Maquiavel nos apresenta, e quem quer que tenha lido ou quem quer
que tenha ouvido falar em O Príncipe saberá disso, é que o conceito principal em
Maquiavel é o conceito de virtù, que imediatamente nos lembra a virtude cristã.
Nos contextos privados, virtù para Maquiavel, é sinônimo de honestidade, mas a
virtude do príncipe não é honestidade, a virtù do príncipe é exatamente o ser
capaz de resolver as coisas antes que elas se tornem insolúveis. Para tanto o
príncipe, aconselhado por Maquiavel, lançará mão de todas as armas. É preciso
que resolva as questões antes que elas se tornem insolúveis. Maquiavel então
lhe dirá: se você, príncipe, lutou por uma cidade, ganhou a luta e destruiu apenas
metade da cidade, o que deve fazer? O que deve fazer é acabar com a outra
metade, acabar com todos os adversários, construir uma nova cidade, que lhe
dará a fama de excelente príncipe, isso é virtù. À medida que virtù não é
entendida mais de forma cristã, na medida em que se articula a esse campo