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Ponto de vista: Lya Luft

Três destinos femininos


"Neste país, a fronteira entre justo e injusto,
verdadeiro e falso, correto e maldoso precisa
ser urgentemente restabelecida"

Ayaan Hirsi Ali, uma jovem política e escritora somaliana, naturalizada holandesa e
residente nos Estados Unidos, disse numa palestra que "as verdadeiras fronteiras
são as do pensamento". Referia-se a toda sorte de discriminação e preconceito que
tanta violência e desgraça geram.Vitimada desde criança por um fanatismo brutal,
destinada a casar com um homem que não conhecia, conseguiu fugir e acabou uma
figura admirada no mundo inteiro. Jurada de morte por certos grupos muçulmanos
em seu país de origem, ela só pode circular com forte segurança.

Olhei aquela quase-menina tranqüila, mas de olhar profundo e muito atento. Pensei
no quanto, por qualquer bobagem, nos fazemos de vítimas, enquanto aquela jovem
não apenas sobrevive, mas age e se afirma: sem desejo de vingança e sem o
detestável espírito de mártir, que produz o ressentimento mais maligno.

• • •

Acabo de emprestar minha voz para o documentário sobre outro fato espantoso, o
das Noivas do Cordeiro. Um vilarejo com esse nome, perto de Belo Horizonte, é
habitado por algumas famílias – mais mulheres, pois os homens têm de buscar fora
o sustento de seus filhos e só vão para casa nos fins de semana. Elas vivem ainda
hoje isoladas e discriminadas de uma forma cruel. Por serem bandidas? Não. Uma
antepassada delas foi excomungada pela Igreja há mais de 100 anos, por haver
tentado ser um pouco feliz com seu novo companheiro. Como era casada, foi
execrada pelos fariseus de plantão. A maldição atingiria quatro gerações de seus
descendentes.

Ilustração Atômica Studio


Tiveram muitas filhas, que geraram muitos filhos, com
os rapazes que ousaram delas se aproximar.
Fundaram uma comunidade singular em tudo: pela
duração desse isolamento e pela dimensão de sua luta
para provar que são dignas de respeito e afeto. São
mulheres de idade ou bem jovens, saudáveis, cara
limpa, sorriso aberto, numa fraternidade e
cumplicidade comoventes. Ali tudo é de todos, todas
se ajudam, todas suportam juntas o isolamento e as
calúnias. "Cuidado, lá vêm elas!", comenta-se quando
chegam a outro povoado ou à capital para alguma
compra necessária. Tudo lhes é dificultado: escola,
atendimento médico e qualquer direito de cidadania.
Os rapazes que com elas se relacionam, quando vão à cidade, são atormentados
com insultos do tipo: "Como se atreve a deixar sua mulher? Todo mundo sabe que
elas não prestam. Meu amigo outro dia esteve lá, e foi uma farra".

Nos depoimentos, algumas choraram relatando a dureza dessa situação. Que talvez
esteja acabando, pois, com muito trabalho e desejo de progredir, elas conseguiram
instalar televisão e começam a conhecer o mundo. Botaram também a internet,
outra janela para fora de sua condenação. Finalmente, elegeram uma vereadora,
fundaram uma associação e, após quatro gerações, talvez possam ser olhadas com
o respeito que merecem mais do que tantas pessoas daqui de fora. O que vão
ganhar na realidade, para além dos limites de seu delicioso e feliz povoado? Tenho
minhas dúvidas sobre as vantagens todas: vão conhecer corrupção e omissão,
logro e malogro, frivolidade, violência e competição desleal. Imagino que seja
inevitável libertarem-se da difamação e serem integradas ao mundo. Mas quem
sabe seria melhor botar o país inteiro dentro daquele vilarejo, vivendo de maneira
simples, limpa, fraterna e feliz?

• • •

Não posso encerrar sem mencionar Ruth Cardoso. Uma das pessoas mais discretas
e dignas entre nós. Intelectual respeitada e generosa cuidadora dos desvalidos, que
fundou o Comunidade Solidária, verdadeiro berço de iniciativas como o Bolsa
Família, apenas com outros contornos – amparar, mas preparando para que os
favorecidos logo possam ganhar seu sustento. Pois essa verdadeira dama, em seus
últimos meses, com a saúde frágil, foi achacada por quem pretendia (talvez ainda
pretenda) expor suas contas e de seu marido, procurando ali algumas das tão
comuns falcatruas atuais. Neste país, a fronteira entre justo e injusto, verdadeiro e
falso, correto e maldoso precisa ser urgentemente restabelecida.

Lya Luft é escritora

Ponto de vista: Lya Luft

Diagnóstico: Alzheimer
"Como sempre nas doenças graves, devemos
lembrar que a vítima não somos nós: é o outro.
Nesse processo não há nada de bom, de belo,
a não ser o exercício da ternura, sem esperar
muito retorno"

Almocei com um amigo semanas atrás e, quando VEJA TAMBÉM


perguntei a razão de seu abatimento, ele me disse
sem rodeios: "Esta manhã recebi o diagnóstico de Fórum
minha mãe: é Alzheimer". Imaginei essa senhora, • Você já viveu a experiência de lidar
com um paciente de Alzheimer?
alegre e vital, enveredando pelas sombrias trilhas
Como foi?
de uma enfermidade diabólica, e entendi a tristeza Ensaio - Roberto Pompeu de Toledo
de meu amigo como se fosse minha. Minha própria • A vida após a vida
mãe morreu aos 90 anos, depois de bem mais de
uma década sendo paulatinamente envolvida na mortalha mental e emocional do
Alzheimer. Uma bela mulher ativa tornou-se inexoravelmente uma estranha,
raramente ostentando uma vaga semelhança com a
que fora minha mãe.
Ilustração Atômica Studio
A doença se manifesta em geral muito sutil: um
esquecimento aqui, uma confusão ali. Uma atitude
estranha aqui, outra ali, intercaladas por fases de
aparente normalidade. A sociabilidade muda, os
bons modos parecem esquecidos, o controle do
dinheiro se torna caótico, e é dificílimo interferir. Há
enorme resistência dos familiares em aceitar essa
enfermidade. Para mim, minha mãe sofria episódios
naturais de esquecimento. Só o choque de um dia a
encontrar com uma pintura bizarra no rosto, ela tão
recatada, me fez cair na duríssima realidade. Ela já
não sabia – ou em longos períodos não sabia – o que estava fazendo. Algumas
pessoas mais chegadas tinham me avisado: eu havia me recusado a ver.

O que eu disse a meu amigo, disse a mim mesma nos muitos longuíssimos anos
daquela jornada: o doente em geral não sofre. A família, sim. O que se pode fazer?
Muito pouco, além de cuidar para que ele esteja bem alimentado, bem abrigado,
medicado e tratado com carinho. Nada de criticar quando não sabe mais quem
somos, porque no fim não sabe mais quem ele próprio é. Quando já não se porta à
mesa como antes, quando faz "artes" às vezes perigosas, ele precisa ser protegido,
não mais ensinado. Não vai mesmo aprender. Como sempre nas doenças graves,
devemos lembrar que a vítima não somos nós: é o outro. Nesse processo, que em
geral dura muitos anos, não há nada de bom, de belo, de encantador, a não ser o
exercício da ternura, da paciência e dos cuidados, sem esperar muito retorno, pois
em breve seremos chamados de senhor, senhora, moça, não mais de filha, filho,
meu querido. O ser amado se distancia, sem volta, sem saber, sem querer e sem
que nada possa evitar: agora havia ali uma velhinha da qual eu cuidava como
podia. Por fim, para a proteger de si própria, por insistência dos médicos ela foi
posta na melhor clínica que pude assumir. Jamais esquecerei a dor e a culpa que
me assaltaram, contrariando qualquer raciocínio. Milhares de vezes tentei me
convencer de que minha mãe nem existia mais, era apenas uma velhinha de quem
eu tinha de cuidar. Como ficção, funcionava; como realidade, a cada uma das
centenas de visitas meu coração se partia outra vez.

Cuide de sua doente, eu disse a meu amigo, da melhor forma. Não alimente
nenhuma esperança vã, pois tudo é triste, infinitamente desalentador. Uma coisa
que ajuda, um pouco, é tentar entrar no universo do doente, em lugar de querer
que ele retorne ao nosso. Mas cuide também de si mesmo. Tente pegar-se no colo,
proteja-se da culpa insensata que nos espreita, siga sua vida. Na natureza morrem
árvores jovens, e velhas árvores tortas vivem muito além da última floração.
Estamos mergulhados no mistério: isso torna a vida possível mesmo quando não a
entendemos.

Lya Luft é escritora

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Ponto de vista: Lya Luft

Dedo no gatilho
"Entre nós, cidadãos que usamos a canga,
puxamos a carroça e pagamos as contas,
o valor da vida pode ser uma bala, o mínimo
movimento de um dedo no gatilho"

Da primeira vez em que estive nos Estados Unidos, a trabalho, no começo da


década de 80, hospedada com minha tradutora e amiga, comentei com ela e suas
filhas adolescentes que estranhava que lá, bairro residencial bastante isolado em
Athens, na Geórgia, praticamente no meio de um bosque, nem ao menos
trancavam a porta a chave. Minha casa no Brasil tinha grades nas janelas. Uma das
meninas me olhou, espantada: "Nossa! Eu teria medo de ficar numa casa gradeada.
Ia pensar: de que tenho de me proteger dessa
maneira?".
Atômica Studio

Não sei como andam as coisas por lá. Aqui, estão


inimagináveis. Não existe segurança nas ruas, não
há bairros tranqüilos nem condomínios ou edifícios à
prova de assalto. Quem pode investe em proteção
particular, cara, melancólica e também duvidosa.
Antigamente, narcotráfico e bandidagem eram coisa
remota, aconteciam em outros estados, em grandes
cidades. Meus filhos, há trinta e poucos anos, no
bairro onde ainda moro aqui no Sul, jogavam bola
com a meninada da vila próxima até o escurecer, e
ninguém se preocupava. Eram amigos: pobres e
remediados, brancos, pretos e pardos, os filhos do
verdureiro ou do professor, como os meus. Eram apenas "a turma". Entre outras
razões, os movimentos contra a discriminação racial ainda não tinham começado a
promover o ódio racial, e a politicagem ainda não fomentava o rancor de classes
como se faz agora – pelos piores motivos. Bandos de jovens desempregados,
drogados e bandidos não vagavam por nossas ruas, crianças pedintes não rolavam
em nossas esquinas, nossa meninada brincava na calçada e as casas não tinham
cerca. Os primeiros que botaram cerca ou muro em torno de sua casa, no meu
bairro, foram considerados antipáticos. Compramos a nossa já com janelas
gradeadas. Plantamos uma sebe florida anos depois, por razões de privacidade.
Hoje, eu possivelmente teria cerca, e eletrificada. Com mais grana, até um guarda
no portão. Que tristeza.

Vivemos numa Idade Média higienizada e cibernética: os feudos são os edifícios e


condomínios fechados, guardas nas cabines, bandidagem rondando. Cada dia mais
gente com carros blindados, crianças com motorista que tem curso de direção
defensiva, gente armada sempre por perto. Nós que não temos dinheiro para esses
recursos andamos mais do que inquietos. Outro dia, o neto de uma amiga foi
assaltado. Seu carrinho foi fechado por um carrão (roubado, claro): três homens
armados saltaram, revólver na cabeça dele e de seus dois amigos. As vítimas eram
estudantes tranqüilos, saudáveis, tipo "família". Os bandidos levaram carro,
celulares, carteiras. (A vida, ah, essa lhes deixaram. A gente ainda tem de
agradecer?) No almoço do dia seguinte, na casa deles, tensos e tristes comentaram
o assunto, e alguém disse: "Bastava um deles ter dobrado um pouco o dedo,
apertado o gatilho, e em lugar de almoço em família estaríamos num velório". É
verdade. Teria bastado um pequeno movimento de um dedo indicador na noite
para que tudo fosse destroçado.

Alguma coisa mudou nessa família, e mais uma vez se acendeu em mim o doloroso
alerta: não podemos colocar filhos e netos debaixo de nossa asa protetora. Não há
como erguer uma cerca, nem metafórica, de amor e cuidados. Não podemos – nem
devemos – tentar impedir que vivam, cresçam, saiam pelo mundo, batalhem suas
batalhas, construam sua família. É bom que façam isso. Mas, ao mesmo tempo,
ficamos mais vulneráveis diante deste mundo nosso.

Mundo besta: por um lado produz esses jovens que fazem a vida valer mais a pena,
por outro lado cria uma sociedade na qual não valemos nada. Quer dizer: às vezes
temos um preço. No cenário (e no Senado) brasileiro, neste momento em que
escrevo, um homem pode valer 40 bilhões, pode valer a CPMF (que só para os
muito bobos é imposto de rico). Entre nós, cidadãos que usamos a canga, puxamos
a carroça e pagamos as contas, o valor da vida pode ser uma bala, o mínimo
movimento de um dedo no gatilho. É a total banalização da morte, que se tornou
um mero incidente cotidiano.

E ninguém faz nada?

Lya Luft é escritora

Paisagem com problemas


"Por ser complexa, a vida é interessante: por
isso enchem-se os consultórios dos psicanalistas,
escrevem os escritores, combatem os soldados"

Problemas são privilégio dos humanos. Quem mandou andar ereto, quem mandou
pensar? Quem mandou inventar sociedade, trabalho, salário, teorias das mais
abstrusas e, ainda por cima, política? Altos e baixos, magros e gordos, belos e
feios, pobres e ricos, inteligentes e menos iluminados, problemas sempre teremos:
com filho, com cônjuge, com patrão, com funcionários, com o Fisco ou o governo,
com amigos ou com a burrice alheia. Nosso envolvimento vai armando uma trama
que nos atrapalha e não nos deixa enxergar a claridade ou curtir os não-problemas.
Outro dia, depois de uma palestra, um casal me abordou, simpático. Ele pediu: "Eu
queria que a senhora escrevesse sobre a necessidade de reavaliar nossos
problemas e aliviar a vida. Pois minha mulher", ele a olhou com carinho, não com
censura, "vive tão enrolada que pouco tempo resta
para a alegria e para nós dois".
Ilustração Atômica Studio

"Bom", respondi, "isso depende dos problemas". E


resolvi escrever este artigo, lembrando o que me disse
uma amiga: "Quando a gente está muito atrapalhado, é
bom parar e analisar o que sombreia nossa paisagem:
são tragédias ou chateações? Na imensa maioria das
vezes são apenas chateações". Nunca esqueci essa
fabulinha. Quando começo a querer me queixar da
vida, penso nela.

"Com as perdas só há uma coisa a fazer: perdê-las",


escrevi certa vez. Algo parecido ocorre com os
problemas. Com eles, só há duas saídas: uma é
resolvê-los. Com os insolúveis, o jeito é perceber e aceitar. Duro aprendizado.
Depois, relegá-los a um segundo plano, abrindo-se mais para a vida – que é breve,
é difícil, e não deixa o bonde passar muitas vezes, ah, não. Um dia, talvez não
distante, abriremos os olhos e lá estará o belo e terrível Anjo da Morte, curvando o
dedo no gesto irrecusável: "Vim te buscar, pobre humano".

Não acho que problemas devam ser ignorados. Frivolidade também mata. Mas há
sempre o momento de parar para pensar, ou pensar menos e viver mais. Rever
nossas estruturas, internas e externas: O que posso resolver? O que devo esquecer
ou superar para que não me sufoque ou me roube a luz de que preciso para
enxergar outras coisas, coisas melhores?

A vida é dura lida. Por vezes altamente dramática. Aqui e ali, tragédia. Nem sempre
podemos desviar os olhos e a alma, nem sempre podemos ignorar e superar, nem
sempre podemos resolver. Vitórias são raras. "Do caos nasce a luz" e da derrota
pode nascer uma nova pessoa, melhor que a de antes. Mas do caos também pode
surgir mais confusão, e da derrota pode resultar um pobre ser esmagado. Assim,
dos problemas pode-se fazer uma seleção, em que alguns serão jogados fora.
Deletou, acabou-se. Outros ficarão à margem do caminho, dando passagem ao
otimismo e à vontade de vida, mas estarão ali, à espreita de um momento de
fraqueza para nos assaltar feito bandoleiros. Outros, ainda, necessitam de um
longo tempo para que se desmanchem suas raízes no coração que se atormenta.
Só que esse tempo não pode ser tão longo quanto a vida nem ocupar demasiado
espaço dentro dela, ou desperdiçaremos o que há de melhor na paisagem.

Eu mesma, do alto dos meus tantos anos e duras lidas, não consigo resolver ou
superar alguns de meus problemas nem ajudar pessoas que amo a se livrar de
todos os seus. Às vezes o jeito é dar-se as mãos numa ciranda solidária, esperando
que o bom senso vença a perplexidade e reduza nosso sofrimento inútil. Seja como
for, por ser complexa, a vida é interessante: por isso enchem-se os consultórios
dos psicanalistas, escrevem os escritores, lutam os soldados, roubam os ladrões,
enganam os crápulas e brincam, antes de se convencer da dureza dos combates,
quase todas as crianças na paisagem em torno.

Não brincam as que morrem nos hospitais, fenecem nas ruas, sofrem nos lares
violentos ou tristes: são responsabilidade nossa, grandes trapalhões que
inventamos esta cultura, esta sociedade, esta injustiça, esta omissão, estas
relações e esta vida. Porque a morte, essa não inventamos nós. Diante dela, quase
todos os problemas se resolvem, e empalidecem quase todos os dramas.

Lya Luft é escritora

A matança dos bebês


"Tantas famílias feridas, pais e mães arrasados, vidas desperdiçadas nesse
vergonhoso lamaçal de omissão"

Herodes faria uma festa. Eu, que às vezes penso que nada mais vai me chocar, mal
acredito no que se anuncia: morreram trinta e tantos bebês em certo hospital do
norte do país. Já é horrível. Logo depois, haviam morrido quase 100 e, finalmente,
as autoridades admitiram bem mais de 200 mortos em alguns meses. Bebês
morriam como moscas no hospital que lhes devia propiciar a vida. Era caso de
fechamento em todos os hospitais do mundo, mas uma autoridade local apenas
disse, piscando os olhos como quem está um pouquinho insegura: "Esse número de
bebês mortos em hospital nessas condições é aceitável". Como tais condições
perduraram mais de um dia? Eu estava ouvindo e lendo bem? Estava em meu juízo
normal? Estava. Pois então, viva Herodes. Porém, os caixõezinhos amontoados em
uma pequena carreta e um pai muito jovem carregando mais um corpo, como se
fosse o seu filhinho morto, não permitiam gracejo.

Ilustração Atômica Studio


Na cidade onde nasci havia duas igrejas: a católica e
a luterana. Esta ficava perto de nossa casa: nela eu
tinha sido batizada, como minha mãe e minha avó
antes de mim. Nela havia dois toques de sino para os
mortos: o mais solene anunciava a morte de um
adulto na comunidade. Quando era criança ou bebê,
o sino tangia tristíssimo e delicado. O costume talvez
não exista mais, porém eu não esqueci. Minha avó
murmurava: "Morreu uma criancinha. Será a de
fulana, que andava tão doente? Será o bebê de
sicrana, que nasceu fraco demais?".

Para os bebês agora mortos naquela UTI pediátrica


de uma grande capital do norte do país não haveria nem sinos nem igrejas
suficientes. Não sei a que número já chegou a mortandade, se o hospital continua
funcionando, se alguém ainda diz que o número é "aceitável". Como desculpa neste
reino das desculpas, mencionaram-se vários fatores: ignorância das famílias,
parcos recursos do hospital, falta de médicos, o de sempre. Seja como for, em
algumas semanas morreram mais de 200 bebês. Iam-se anunciando as mortes, e
parece que nada mudava, só morriam mais. Tantas famílias feridas, pais e mães
arrasados, vidas desperdiçadas nesse vergonhoso lamaçal de omissão. O mesmo
que em tantos lugares deixa milhares de doentes serem atendidos em macas no
corredor, sofrendo ou morrendo em salas de espera, ou no pátio do hospital – mais
recente notícia.

Apesar disso o país funciona. Os carros rodam, os governos governam, os


funcionários trabalham, pais e mães levantam cedo, dão café ou mamadeira aos
filhos, entram em seus ônibus, vão para o trabalho, vão ao armazém – vão ao
cemitério. Os irmãos dos mortinhos chegam da escola, fazem seu dever de casa,
vão dormir depois de jogar bola no pátio, que pode ser um quadradinho de barro
com fezes e urina do esgoto a céu aberto. E nós que lemos livros e jornais, que
temos comida e saúde, fingimos que está tudo direito, que é assim mesmo, que
somos quase um país de Primeiro Mundo, que a economia está ótima, o petróleo
abunda, a Amazônia resiste, e nós estamos vivos. Às vezes nos sentimos
entediados, duvidamos de nossa eficiência, ficamos deprimidos: televisão, rádio e
jornal não deviam mostrar certas coisas, tão triste tudo aquilo. Ou nos afligimos um
pouco, tanta gente bandida vivendo feito rei, e tanta gente boa crucificada quando
quer fazer o bem e consertar o mal.

"Ninguém controla a vida", me dizem, quando reclamo. Digo que, apesar das
maravilhas da medicina, quando o hospital é limpo, o médico não está totalmente
exausto, a enfermeira é bem treinada e os doentes em casa não vivem no esgoto
ou no lixão, ninguém controla a morte. A vida, ah, essa a gente devia controlar ao
menos um pouco melhor. Para que os sinos das cidades onde morrem centenas de
bebês por inoperância e desinteresse não derretam de tanto bater o toque dos
mortos inocentes, nossas vozes não se afoguem de dor no escuro dos quartos, e
nunca mais um adolescente derrotado tenha de levar no colo, à frente de uma
carreta cheia de minúsculos caixões empilhados, o corpo de seu filhinho, que nós,
todos nós, como sociedade, matamos.

Lya Luft é escritora

Ponto de vista: Lya Luft

Por que se calam


"Quando a linguagem é simples ou até supérflua,
porque o sentimento é real, podemos escutar
a alma do outro na sua respiração"

A dificuldade de comunicação nos relacionamentos me fascina. A palavra não dita


quando deveríamos ter falado, a palavra negada quando falar teria sido importante.
O drama está em que, nos dois casos, a gente não sabia. Se adivinhava, não
conseguiu agir. Os amantes a que me refiro – também num livro sobre o tema, que
acaba de sair – não são apenas o casal amoroso, mas quaisquer pessoas ligadas
(ou supostamente ligadas) por afeto. Isso inclui a família, meu tema recorrente: lá
nem sempre reinam o afeto e o respeito.

Alguém pode cobrar: "Aquela vez, naquele lugar, você me disse isso, e até hoje me
dói". A gente pensa, repensa, mas não se lembra: "O que foi, quando foi? Eu
jamais teria dito isso, sobretudo se ia te ferir". Mas o outro insiste na sua dor. A
incomunicabilidade é quase um estado habitual de muitas pessoas: como nascer
com algum defeito físico do qual não se tem culpa, mas que chateia ou atormenta.
Saber se comunicar, no trabalho, no cotidiano e na vida pessoal, é uma dádiva.
Abre portas e janelas, promove generosidade e acolhimento. Mas é raro. Em geral
somos enrolados, somos tímidos, guardamos velhas mágoas ou somos arrogantes,
outra face da insegurança e do medo.

Ilustração Atômica Studio


Trágicos desencontros podem nascer de situações
aparentemente simples: pessoas comuns em sua vida
sem graça, durante anos e anos de convívio sem
grande conflito, pensam estar tudo bem. Então, sem
nenhum sinal, uma palavra sequer, irrompe a violência,
que pode ser física, ou moral, como uma traição. Uma
insatisfação que já não se deixa controlar. O
ressentimento explode como um vulcão de lama. Ou
alguém comete a mais traiçoeira e punitiva das ações:
mata-se um marido, uma mãe, um filho adolescente.
Para o sempre do sempre, o peso da culpa permanece sobre os demais. Em que
momento ele quis pedir ajuda e não percebi? Quando ela pensou em se abrir
comigo, mas eu estava com pressa? Ontem, ainda, ele jogava bola comigo, e hoje
vem a notícia de que se enforcou: o que eu poderia ter feito? A resposta pode ser
um silêncio maligno que não vai se calar nunca mais.

Mas existe também o silêncio bom, que, em lugar de erguer muros, abre espaços. É
a não-necessidade de falar, entre pessoas seguras do seu carinho mútuo. Elas
ficam perfeitamente felizes sentadas juntas, cada uma lendo seu livro, seu jornal,
fazendo seu trabalho. De vez em quando uma palavra, um gesto de afeto, e ao
redor delas abre-se um círculo de harmonia. Na vida nem tudo é sofrimento,
esterilidade e solidão. A dor faz parte, mas há momentos de magia para todos. Da
pessoa mais simples ao mais refinado intelectual, qualquer um pode descobri-los,
ou persegui-los, quando a correria, os compromissos, as pressões lhe derem um
pouco de paz. Ou ela terá de ser conquistada usando-se garras, dentes, cotovelos.

Quando a linguagem é simples ou até supérflua, porque o sentimento é real e


assim entendido, podemos escutar a alma do outro na sua respiração. Todo ruído,
toda agitação, e até mesmo a fala, serão secundários. Os amantes não vão se calar
por mágoa ou impotência, mas por que algo os expressa melhor do que as mais
contundentes palavras.

Lya Luft é escritora

Cotas: o justo e o injusto


"A idéia das cotas reforça conceitos nefastos:
o de que negros são menos capazes e precisam
de um empurrão e o de que a escola pública é
péssima e não tem salvação"

O medo do diferente causa conflitos por toda parte, em circunstâncias as mais


variadas. Alguns são embates espantosos, outros são mal-entendidos sutis, mas
em tudo existe sofrimento, maldade explícita ou silenciosa perfídia, mágoa,
frustração e injustiça.

Ilustração Atômica Studio


Cresci numa cidadezinha onde as pessoas (as
famílias, sobretudo) se dividiam entre católicos e
protestantes. Muita dor nasceu disso. Casamentos
foram proibidos, convívios prejudicados, vidas
podadas. Hoje, essa diferença nem entra em
cogitação quando se formam pares amorosos ou
círculos de amigos. Mas, como o mundo anda em
círculos ou elipses, neste momento, neste nosso
país, muito se fala em uma questão que estimula
tristemente a diferença racial e social: as cotas de
ingresso em universidades para estudantes negros e/ou saídos de escolas públicas.
O tema libera muita verborragia populista e burra, produz frustração e hostilidade.
Instiga o preconceito racial e social. Todas as "bondades" dirigidas aos integrantes
de alguma minoria, seja de gênero, raça ou condição social, realçam o fato de que
eles estão em desvantagem, precisam desse destaque especial porque, devido a
algum fator que pode ser de raça, gênero, escolaridade ou outros, não estão no
desejado patamar de autonomia e valorização. Que pena.

Nas universidades inicia-se a batalha pelas cotas. Alunos que se saíram bem no
vestibular – só quem já teve filhos e netos nessa situação conhece o sacrifício, a
disciplina, o estudo e os gastos implicados nisso – são rejeitados em troca de quem
se saiu menos bem mas é de origem africana ou vem de escola pública. E os
outros? Os pobres brancos, os remediados de origem portuguesa, italiana,
polonesa, alemã, ou o que for, cujos pais lutaram duramente para lhes dar casa,
saúde, educação?

A idéia das cotas reforça dois conceitos nefastos: o de que negros são menos
capazes, e por isso precisam desse empurrão, e o de que a escola pública é
péssima e não tem salvação. É uma idéia esquisita, mal pensada e mal executada.
Teremos agora famílias brancas e pobres para as quais perderá o sentido lutar para
que seus filhos tenham boa escolaridade e consigam entrar numa universidade,
porque o lugar deles será concedido a outro. Mais uma vez, relega-se o estudo a
qualquer coisa de menor importância.

Lembro-me da fase, há talvez vinte anos ou mais, em que filhos de agricultores que
quisessem entrar nas faculdades de agronomia (e veterinária?) ali chegavam
através de cotas, pela chamada "lei do boi". Constatou-se, porém, que verdadeiros
filhos de agricultores eram em número reduzido. Os beneficiados eram em geral
filhos de pais ricos, donos de algum sítio próximo, que com esse recurso acabaram
ocupando o lugar de alunos que mereciam, pelo esforço, aplicação, estudo e nota,
aquela oportunidade. Muita injustiça assim se cometeu, até que os pais, entrando
na Justiça, conseguiram por liminares que seus filhos recebessem o lugar que lhes
era devido por direito. Finalmente a lei do boi foi para o brejo.

Nem todos os envolvidos nessa nova lei discriminatória e injusta são responsáveis
por esse desmando. Os alunos beneficiados têm todo o direito de reivindicar uma
possibilidade que se lhes oferece. Mas o triste é serem massa de manobra para um
populismo interesseiro, vítimas de desinformação e de uma visão estreita, que os
deixa em má posição. Não entram na universidade por mérito pessoal e pelo apoio
da família, mas pelo que o governo, melancolicamente, considera deficiência: a
raça ou a escola de onde vieram – esta, aliás, oferecida pelo próprio governo.

Lamento essa trapalhada que prejudica a todos: os que são oficialmente


considerados menos capacitados, e por isso recebem o pirulito do favorecimento, e
os que ficam chupando o dedo da frustração, não importando os anos de estudo, a
batalha dos pais e seu mérito pessoal. Meus pêsames, mais uma vez, à educação
brasileira.

Lya Luft é escritora

Ponto de vista: Lya Luft

Por que nos mutilamos?


"Uma maturidade tranqüila e uma velhice elegante
são mil vezes preferíveis à caricatura em que nos
tornamos na busca da juventude eterna"

Numa página de revista, deparo com um espetáculo deprimente: uma mi-lionária


americana de 62 anos entra num restaurante expondo a fotógrafos e
freqüentadores um rosto tão desfigurado por plásticas, preenchimentos e outros
processos que não era só feio e disforme, mas assustador. Nada mais ali
combinava, as sobrancelhas em alturas diferentes, os olhos artificialmente
enviesados estavam desemparelhados e o nariz sumia num rosto de lua cheia, fruto
de inadequados esticamentos e exageradas invasões.

Há poucos dias vi por acaso uma conhecida que não encontrava fazia anos.
Reconheci-a de longe, de costas para mim, e quando ela se virou na cadeira senti
um choque. O corpo elegante de uma mulher madura era o mesmo. O rosto era
uma coisa redonda e intumescida, lisa, com pouco das verdadeiras e simpáticas
feições de que eu me lembrava tão bem. Os lábios estavam enormes, com algo de
genital, os olhos pareciam pequenos demais, e seu nariz adunco, em lugar de ter
sido corrigido para um pouco menos adunco – embora nunca tivesse sido feio –,
era uma pobre batatinha perdida numa paisagem
hirta e inexpressiva.
Ilustração Atômica Studio

Sei que no folclore a meu respeito consta entre


outras coisas que sou "contra cirurgia plástica".
Nada mais incorreto e tolo. Eu mesma, viúva pela
primeira vez aos 49 anos, de maneira súbita e
brutal, aos 51 tinha o rosto tão devastado pelo abalo
que um amigo, excelente cirurgião, fez um lifting
discretíssimo e pequeno, que não me rejuvenesceu
– nem eu quereria –, mas talvez tenha tirado um
pouco do ar cansado e triste demais.

Portanto, sou a favor de recursos, não para enganar


o tempo, o que em geral acaba em resultados desfavoráveis e patéticos, pedindo
sempre mais e mais intervenções, mas para abrandar, eventualmente corrigir. A
fim de que a pessoa, homem ou mulher, se sinta bem na própria pele. Não para
que aos 60 a gente pareça ter 30 anos, e aos 80 viva a melancólica ilusão de ter
50.

Não é a juventude que interessa, mas a felicidade e a alegria. Olhar-se no espelho


e poder dizer: bem, esta sou eu, aqui está a minha história, o que for excessivo
vou corrigir, mas não quero ser uma adolescente eterna, a não ser que minha alma
permaneça infantilóide.

Observo uma atriz importante dando entrevista e na contraluz estão evidentes as


marcas impiedosas de cirurgias, fios de ouro, ou seja lá o que for, e outras
intrusões que aos poucos vão se manifestando. Logo virão novas intervenções para
corrigir aquilo, e assim será, talvez, até o fim da vida. A não ser que um amigo, um
familiar ou um médico piedoso lhe diga para parar, em lugar de se torturar numa
busca irracional fadada ao fracasso. A angústia por manter-se jovem muito além
dessa fase pode levar aos maiores desatinos. Como os modelos que se nos
apresentam em nossa cultura superficial indicam que o bom é ter sempre 15 anos,
se não tivermos alguma bagagem interior (o que inclui a cultural) para remar
contra a correnteza, em breve faremos parte da legião de mutiladas, as quais têm
pouco delas mesmas, peles fanadas expostas em decotes ousados de precários
vestidinhos.

Nem todo mundo vai gostar do que escrevo aqui e digo em muitas palestras: dirão
que madureza e velhice implicam doença e deterioração. Uma maturidade tranqüila
e uma velhice elegante são mil vezes preferíveis à caricatura em que nos tornamos
na busca do paraíso perdido, que é também uma ilusão. Pois a juventude nunca foi
a melhor época da vida nem a única época interessante, embora possa cintilar e
ferver mais. A cada fase da vida seu próprio encanto e, claro, suas próprias dores.
Então, quem sabe a gente – homens e mulheres – procure gostar de si um pouco
mais, trocando a fatal tentativa de negar o tempo por saúde, equilíbrio, beleza real
e alegria, que fazem um bocado de falta neste mundo nosso.

Lya Luft é escritora

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