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Nelson Rodrigues

O PAULISTA
Certa vez, estou em casa, quando bate o telefone.
Atendo: – era o paulista. Fiz-lhe uma festa imensa: – “Como
vai? Há quanto tempo!”. E, de fato, não nos víamos há uns três anos.
Ou mais. Quatro ou cinco anos. Sou um desses brasileiros que vão
pouco a São Paulo. Em 55 anos de vida passei por lá três ou quatro
vezes. Só. E não sei se por culpa minha ou de São Paulo ou de ambos.
Creio que de ambos.
Um dia, fui a São Paulo, de automóvel, ver um jogo. Se não me
engano, Brasil x Tchecoslováquia. Exatamente, Brasil x
Tchecoslováquia. E ele foi comigo ao Pacaembu. Torcíamos juntos, ou
por outra: – só me lembro da minha torcida. A dele apagou-se
completamente na minha memória. Do Pacaembu saímos para jantar.
Jantamos. E já me pergunto: – será que jantamos mesmo? Sei lá.
Passamos a noite juntos. Ele não arredava o pé de mim. Fazia um frio
tão feroz – era junho – que, em dado momento, tive vontade de
chorar, sentado no meio-fio.
O homem foi para mim uma espécie, digamos, de irmão súbito.
Não consegui pagar uma caixa de fósforo. Ele subvencionou tudo. E fez
questão de me levar no trem.
Desembarquei no Rio e me saturei, até os sapatos, de vida
carioca. Passa-se o tempo e, de vez em quando, me lembrava do
paulista. Via com a maior nitidez a sua cara, o terno, a camisa, e nada
mais. Lembrava-me, sim, do seu pigarro. Mas não me ficara de nossa
convivência uma palavra, uma frase, um “boa-noite”, um “adeus”.
Cheguei a pensar que, em minha passagem por São Paulo, ou eu era
surdo ou ele mudo. Mas claro que se tratava de uma ilusão auditiva: –
até uma múmia acompanhada há de falar coisas, dizer frases, soltar
palavrões etc. etc. E eu só me lembrava de um único e escasso pigarro.

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Mas, enfim, estava ele no Rio. Ótimo, ótimo. Eu ia vê-lo e, mais
do que isso, ia ouvi-lo. No telefone, combinamos um jantar. Exagerei,
patético: – “Você não imagina a minha alegria”. Quis saber: –
“Quanto tempo vai passar aqui?”.
Resposta: – “Dois dias”. Ao sair do telefone, juntei ao pigarro
mais umas quinze palavras. Vejam bem: – quinze palavras e um
pigarro tinham, para mim, quase que a abundância de uma ópera.
Vou encurtar, porque não quero tomar o tempo do leitor.
Jantamos, nesse dia, almoçamos e jantamos no dia seguinte,
fomos ao teatro e ainda ceamos na sua última madrugada de Rio. De
manhã, compareci ao aeroporto.
Perguntei-lhe: – “Até quando?”. Teve um sorriso inescrutável
e não disse uma palavra. Por fim, tomou o avião e partiu. Vim embora e
aqui começa a minha trágica perplexidade: – eu voltava à mesma
situação. O outro era um paulista fino, inteligente, um homem de
sensibilidade, de imaginação. Há momentos em que o mais
incomunicável dos homens tem que fazer uma confidencia. Ou faz uma
confidência ou morre. E ele, nos seus dois dias de Rio, não fizera
nenhuma confidência. A princípio, ainda tentei forçar aquela barreira de
silêncio. Mas senti que era inútil e calei-me também. E, então,
aconteceu esta coisa vagamente alucinatória: – éramos dois silêncios
que andavam um atrás do outro; dois silêncios que comiam, bebiam,
fumavam e se entreolhavam.
Deu-me, por vezes, a vontade de ouvir-lhe o som do pigarro.
Se não tinha o que dizer, podia dar-me a esmola auditiva de um
pigarro. Por imitação inconsciente, eu ia-me tornando paulista também.
Saí do aeroporto numa melancolia hedionda. E a primeira buzina
que ouvi deu-me uma desesperada euforia.

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Pensei: – “Ao menos as buzinas falam!”. Entrei na redação e
fui adiantar serviço. Passei dez minutos diante da máquina.
Mas não me ocorria absolutamente nada. O papel estava na
máquina, branco, virginal.
Acabei decidindo: – “Vou escrever sobre o kaiser”. Mas quando
comecei a bater as teclas, saiu-me esta frase: – “A pior forma de solidão
é a companhia de um paulista”. Reli, honestamente espantado. A coisa
nascera sem nenhuma elaboração prévia. Continuei a escrever.
Expliquei a verdade, isto é, que a frase me escapara sem querer. E fiz
toda uma crônica sobre o kaiser.
Dias depois, encontrei-me, na casa do Pitanguy, com a sra. Clô
Prado. Falou da minha frase com uma ternura agradecida: – “Como é
verdadeiro o que você disse! Como é exato! Como é perfeito!”. Nessa
mesma noite, e ainda na casa do Pitanguy, um dos convidados achou
que eu escrevera, numa simples frase, uma verdade estadual inapelável
e eterna. Já no fim da madrugada, uma terceira pessoa me levou para os
fundos da casa. Pitanguy tem uma piscina. E foi, perto da piscina, que
conversamos.
Era ainda a frase. O convidado começou por dizer que o paulista
é a única solidão do Brasil. E aí está sua formidável superioridade sobre
todos os outros brasileiros. E o que explica a epopéia industrial de São
Paulo é a solidão.
Realmente, o paulista é capaz de viver, amar, envelhecer sem
fazer jamais uma confidência, nem ao médium depois de morto. Os
demais brasileiros são extrovertidos ululantes, está certo. Mas não
fazem o Brasil. O único que faz o Brasil é o paulista. O autor do Brasil é
São Paulo. Fiz-lhe a pergunta: – “O senhor é paulista?”. Era.
Todos os autores têm suas três ou quatro frases bem-sucedidas.

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Não sei se me entendem. São frases que adquirem vida própria e que
duram mais do que o autor, mais do que o estilo do autor, mais do que
as obras completas do autor.
Imaginem que a da solidão paulista ainda me rende bons
dividendos. Ontem, por exemplo. O telefone me chama. Vou lá. Era
uma voz fininha de criança que baixa em centro espírita. Veio a
pergunta: “Seu Nelson?”. E eu: – “Pois não”.
Começou dizendo que era paulista. Começo a ficar inquieto.
Continua: – “Vim-lhe falar sobre aquilo que o senhor
escreveu”. Eu não digo nada ou, melhor, digo: – “Ah, sim, sim”.
Evidentemente, era a frase. Pergunto: – “A senhora concorda ou
não?”. E a voz de anjo defunto: – “Foi a maior verdade que o senhor já
disse na sua vida. O senhor é paulista?”. Quase pedi desculpas de ser
pernambucano.
Conversamos uma hora ou mais. Disse a idade: – oitenta. Era
paulista há oitenta anos. Casada desde os quinze, vivera com o marido,
outro paulista, por 65 anos. Ele era fazendeiro, não sei onde. E
passavam dias, semanas, meses de silêncio total. Muitas vezes, ela já
não se lembrava de como era a voz do marido e chegava a esquecer a
própria. E a velhinha me perguntou: – “O senhor acredita se eu lhe
disser que enterrei meu marido na semana passada?”. Acreditei. Em
mais de meio século de coabitação, nem lhe conhecera o gemido, o
simples gemido. Um ficava escutando o silêncio do outro. Ele agonizara
sem gemer. E, depois, lá foi ela para a capelinha.
Floriu, velou e chorou um desconhecido.

[O GLOBO, 7/8/1968]

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