Rogerio Dultra dos Santos (Or5.

:
Marcelo Ai1cs, Pauio Emílio Vauthier Borges Je Macedo. Danida Mesquita
Leutchuk de C ademartori, Rogerio Dultra dus Santc-,, Sérgio Urquhart
Disciplina de Ciência Política Cademaflori, Cecília Caballero Lois, Chris1ian Edward Cyril Lynch, José
Prof. Tiago Lacerda
FAC/FAPAR Manuel Avelino Je Pina Delgado, Thamy Pogrebins,:hi, Luiz HcnoqLe
Urquhart Cadem:utori, Guilherme Soares, Luiz Magne: Pinto Bastos Júr.ior,
Daniele Comin Martins, Cristina Buarque d..: Hollanda

Direito e
Política

0SIN1ESE
RSll\)rtoAJeg,e-Av Pernambuco. 2810-90240-002 -Fone: (51 t 3323.6600 /Fax-(51)
3323.6655 SPJSão Paulo -Rua Antonio Nagib lbrahlm. 350 -05036-0óO -FoneJrax ( 111
2131-5300 RI/Fio de l:ineiro-Av Marechal Câmara, 160/Jºand,-20020-080-f'one/Fax (21)
2212.91l!O MC'8t1nllo•11,,•·t•· i;, r,;,.; yi,:: 101';01]: Fone0113128243Jffax·f31)32255748
f' ,,. ,/, 1.r i. ·,,.; ,1 l\l!ll fonl'/F;u18lll4óJ2271,:,,l46J2269
 C<>: ,- , .;,, "-/ '(H)4 by Rogerio Dultra dos'·'"''",,) g Af>RESENTAÇÃO
Editora Síntese

/" edição: Janeiro de 2004

O livro Direito e Política tem como objetivo primorcfü.l apresentar as
Editoração Eletrônica:
possibilidades efetivas de se realizar pesl{uisa teórica de qualidade, que aponte
Editora Síntese para a construção de uma sociedade substancialmente democrática, ,1 partir
de uma matriz interdisciplinar gue se define pelo reconhecimento das
Capa:
Tusset Monteiro Cnm1111icaçãn
vinculações estruturais entre os fenômenos sociais - e, portanto, políticos
- e o fenômeno jurídico. As perspectivas e os limites dos projetos modernos
Revisão final feita pelo o,-ganizndor de sociabilidade são aqui colocados em debate através de sua inter-relação
com autores centrais e com movimentos políticos e institucionais nucleares
para a inteligibilidade do mundo contemporâneo. Dessa relação entre
projetos da modernidade e compreensões da contemporaneidade é qUe
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
tratam os artigos dos co-autores deste livro. Notar-se-á, especialmente, que
D598 Direito e política/ Rogerio Dultra dos Santos (org.). - Porto Alegre: Sí111ese, a reílexão que reconhece a imbricação entre direito e política se torna
2004. fundamental para a construção de uma realidade democrática.
264 p.; 21 cm.
Os textos sumariados abaixo compartilham claramente desta
ISBN 85-88680-80-7
percepção, e a sua leitura denuncia uma alteração profunda nos estudos
jurídicos atuais. Passando ao largo da escrita formalista, pretensamente neutra
1. Direito. 2. Política. I. Santos, Rogerio Duhra dos. li. Titulo.
e descompromissadamente superficial, os autore6 são acadêmicos em
essência, pois se preocupam com a fidelidade histórico-conceituai quando
lidam com pensadores de relevo, e todos eles consideram que a reflexão
CDU 34:32 teórica está ligada à responsabilidade da tomada de posição. Compreender
CDD 340.1
as relações entre o direito e a política no processo de democratização de
ideais, instituições e práticas é superar o cientificismo dominante e as
(Bibliotecária responsável: Nádia Tanaka - CRB 10/855) hierarquias normatizadoras, bem como entender que os saberes não
revolucionam a não ser quando se consubstanciam como uma constante
prática de inclusão. Nesse sentido, a formação interdisciplinar, de todos os
autores, manifesta-se no reconhecimento da complexidade dos problemas
Todos os direitos reservados. É expressamente proibíd:1 a reprodução total ou parcial desta obn, por qual_ quer meio contemporâneos e na necessidade conseqüente de uma reflexão não­
ou processo, sem pr�via autorização do autor. (1 ci 9.61 O, de 19.02.98 - DOU 20.02. 98)

', .. !
rrducionista, não-disciplinar e, portanto, aberta ao rnmpn múlripln t1ue
Pusd
.,.;/ rt11i o pmsamento jurídico, social e polítil,, ! ,. 1
ó RoGJ:l(lú Du1.TRA Dos S, : ,·.
,. :,>rn (, objetivo de realizar unia :u11r la introdução à temática rk .1 1 ,,
AfamL _. i/1 e.r elaborou uma reflexão em f, mna de ensaio, em que pt< ,, , ,,:a
1
demcmlrar exatamente como se constittÚL a história da relação conturh 1�h1
entre d,reito e polític�. Neste diálogo com•) leitor, enfatiza especialment·� as
conseqüências catastróficas da cisão entre a prática e a teoria, entt e a
operacionalização do direito e a legitimidade da política. Concebe o dir..:ito
come razão dialógica compartilhada pelos membros da comunidade -
enquanto manifestação consciente e regrada do agir político- e que é capaz
de determinar e impor limites às próprias ações políticas. O exerdcio da
cidadania acaba sendo, desta forma, a prát:ica que permite a eliminação da
corrida por interesses egoístas - estímulo para o caos social (representado, no
texto, pela imagem da peste) - e a realização do bem comum.
Após se fazer uma genealogia da política e de sua relação com o
direito, é possível questionar se a democracia moderna pode ser interpre­
tada como fruto de sua vinculação substancial com o liberalismo. Com
esta tese fundamental - extraída do jurista e filósofo italiano Norberto
Bobbio -, Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo analisa os autores nucleares
na conformação tanto do liberalismo político moderno quanto dos autores
que delinearam o pensamento democrático, apresentando-os como base
para a defesa dos ideais colocados em xeque pela organização tecnocrática
do Estado contemporâneo. Immanuel Kant e Alexis de Tocqueville são
utilizados para descrever a origem, os encargos e a responsabilidade dos
que se comprometem com a democracia nos dias de hoje.
Uma interpretação da modernidade é desejável, iguah11ente, a partir
da obra de John Stuart Mil!, um dos fundadores do pensamento político
liberal. Daniela Mesquita Let(tchuk de Cademartori examina, igualmente, as
relações entre liberalismo e democracia, tendo como ângulo de reflexão os
elementos pontuais que constituem a marca deste vínculo no pensamento
do autor estudado, como o individualismo, a liberdade, a limitação da
autoridade e a legitimidade da política. Para realizar tal empreitada, são
mobilizadas as análises de Isaiah Berlin, Norberto Bobbio e AJain Touraine.
Em wna apreciação da recente tradução, para o Brasil, elo livro seminal
d 1 1 1, ,riador alemão Rcinhart Koselleck, Roien"o !),,;,,,,, do ,, , 111( ,t m;i,
Üll<l·.l'l'fl i i'OI.ÍTICA
em seguida, esclarecer quais sfo as crítict5 tra(licionais efetuadas pele
movin1ento anti-iluminista à ascensão da cultura burguesa como etho..­
primorclial da modernidade. Em Kosclleck, o projeto político do lluminism0
é examinado como conformador de uma filosofia da História qu� s{
funciona quando elimina discursivamente a necessidade de decidir s0brt
questões políticas concretas, vinculadas a momentos históricos específicos.
caracterizando-se como discurso ideal e moralista. O autor procura mostrar.
igualmente, a vinculação do pensamento de Koselleck com a historiografia
dos conceitos que o mesmo extrai do deósionismo de Carl Schmitt.
As relações entre direito e política continuam a ser escrutinadas por
Sérgt"o Urquhart Cademartori, agora através das ações administrativas de governo
agrupadas sobre o conceito de "Segredo de Estado". Para o autor, a
constituição do Estado contemporâneo liga-se, indiscutivelmente, às práticas
e razões de governo legais e secretas que objetivam a dominação política e
sua legitimação está vinculada à eventual compatibilidade com a democracia.
Esta possível afinidade entre as práticas secretas do Estado e o exercício
democrático do poder político é estudada a partir de pensadores centrais
para o direito e a política na contemporaneidade, como Platão, Nicolau
Maquiavel,Jeremy Bentham, Hannah Arendt e Carl Schmitt.
Continuando a discussão sobre as ações políticas do Estado,
procura-se realçar o estabelecimento de uma concepção política de justiça
que vincule as decisões públicas a um processo democrático de
legitimidade consensual. Este é o objeto de investigação de Cecília Caballero
Loú, que utiliza a obra de John Rawls como instrumento para a possível
construção de uma democracia constitucional em países emergentes. Tal
perspectiva é fundada através do conceito do político que Rawls estabelece
em contraposição às críticas tradicionais à política liberal (Carl Schmitt) e
a partir da idéia de razão pública.
Um debate com Rawls torna-se desejável quando se percebe que
as interpretações sobre o liberalismo ainda não se esgotaram. Nesse
sentido, algumas leituras correntes do pensamento liberal, geralmente,
insistem em destituir do cerne de sua inteligibilidade a dimensão ética,
que é atribuída cxclll ,i .· ., ,w, 11 :'i 1,"cli(i() democrática. Contra este lugar
8 Rorn,R1r l li<, ,>os SANlDS
comum, Chn·stian Eduwd C ,) o! r::.v11ch propõe que é possív :1 c:,pccialrnente
através do conceito Je lib�r,disrno ético, presente na c,')rn ne RonaJd
Dworkin, estabelecer uma passagem da ética para a po)í,ica. Contra a
separação rawlsiana entre ctica e justiça, Dworkin prcp-�,e a tolerância
liberal como filosofia que permite o acesso a uma justiça c1ue sobrepõe
igualdade de recursos ao bem-estar individual.
Seguindo o debate, pode-se afirmar que wn pensador que reconheça
as limitações do liberalismo, mas que percebe igu almente que não é possível
desenvolver uma estrutura de direitos de minorias sem ele, acaba dialogando
de forma inusitada e criativa com o comunitarismo. José Manuel Avelino de
Pina Delgado procura descrever os avanços proporcionados por Will Kymlicka
na revisão do pensamento liberal quando da constituição da proposta de
cidadania multicultural e do reconhecimento da pluralidade de direitos que
dela deriva. Quando coletividades não-majoritárias pretendem inclusão social
e política em Estados nacionais que tradicionalmente velam pelos direitos
individuais de natureza geral, como o Brasil, a concepção clássica de
liberalismo político acaba tornando-se wn impedimento para a realização
dos próprios pressupostos liberais de tolerância e inclusão.
O próximo passo é compreender como as relações estruturais entre
direito e sociedade são colocadas em questão a partir da crítica ao
positivismo subjacente à teoria dos sistemas de Niklas Luhrnann e Gunter
Teubner, especialmente ao conceito de autonomia. Thamy Pogrebinschi
sustenta que não é possível, no direito, pensar em autonomia sem interação,
o que transformaria a teoria de Luhmann em um instrumento inócuo na
interpretação da realidade institucional e normativa do direito, na medida
em que a teoria prescinde do ambiente circundante que conforma o direito.
O que caracteriza a crítica da autora à autopoiesis é a clara eliminação da
política e a conseqüente exclusão da subjetividade, desdobramentos
custosos à coerência "sociológica" da teoria dos sistemas.
Uma interpretação sensivelmente diversa é sustentada por Luiz
Henrique Urquhart Cademartori, para quem a crítica procedimental
habermasiana à limitação cb cl:rn<; 1 1ra dos subsistemas jurídicos de
Luhmann não rcn,nh ' , ;.ti que é - o grau de abertura que
IJ1REI íO E PoLfTlCA 9
permite exatamente a i1�teraçào entre política e di,-citn. :\ partir do
estabelecimento do fator constitucional como chave hcrrncnêutica, é
possível compreender, entretanto, que a complexjd,,dc fo subsistema
jurídico não pode prescindir ..:las condições de existência irnpüstas pelo
subsistema político. Segundo Luhmann, o equilibrio histórico Jos sistemas
sociais e do próprio Estado está vinc ulado às con figurações
constitucionais, que definem exatamente a relação entre direito e política,
num processo concreto de superação do paradoxo da autoref erencialidade.
Desenvolvendo a questão do procedimentalismo constitucional nwn
viés crítico, Guilherme Soares sustenta que a estabilidade da Constituição, de
certa forma, presente nos países centrais e, certamente, necessária nos países
economicamente dependentes é o que permite garantir as regras
democráticas. Uma teoria constitucional que reconheça esta questão é a
única capaz de estimular a realização efetiva do conteúdo material do Estado
de Direito. A partir das formulações teóricas de Peter Haberle,J uan Ramón
Capella e Marcelo Neves, o autor adota, então, urna postura crítica ao
procedimentalismo constitucional e propõe uma aproximação material das
diretrizes normativas do direito constitucional às demandas políticas (direitos
e liberdades sonegadas) dos povos dos países periféricos.
Seguindo o juízo que postula a necessidade de abertura cultural da
Constituição, Luiz Magno Pinto Bastos Jtínior anali�a a teoria constitucional
de Peter Haberle através do exame de seus pressupostos característicos.
A Constituição, enquanto fenômeno cultural (constituição como
processo), demanda esclarecimentos especialmente no que respeita às
inovações normativas demandadas por comunidades multiculturais. A
ampliação da comunidade dos intérpretes constitucionais é o caminho
que o próprio Haberle adota para recepcionar a historicidade capaz de
eliminar o formalismo, meramente simbólico e autoritário de modelos
anteriores de constitucionalismo e para assinalar a ligação intrínseca entre
democracia e constituição.
O reordenamento dos princípios tradicionais da democracia
moderna, através da participação popular nas decisões governamentais,
rr '""'. ·1 necessidade Je se recepcionar o e ,1H, 11 , 1 , l ·i, cr 1 1;1
 10 Ro(,EIUO Duu RA DOS s .\1' TOS
particip,.:_iva. Para t]Ue se efetivem mecaiúsmos de participação popular,
a Constitniçi\O deve eliminar o formalismo tjue a caracteriza e reali.�ar,
segundo argumenta, no seu texto, Daniele Comin Martins, uma abertura
material, buscando adequação à realidade social. Na esteira de Friedrich
Müller e Paulo Bonavides, a autora esclarece os caminhos
constitucionais da justiça social e da atuação do povo na concretização
de seus direitos.
Através da antropologia política é possível identificar a distância
entre a programação normativa do Estado de Direito e a atuação
concreta dos órgãos institucionais encarregados de sua efetivação?
Esta é a questão proposta por Cnstina Buarque de Ho//anda quando
examina a ambigüidade presente na prática policial, caracterizada pela
relação de uma cultura discriminatória realçada por ações ilegais
legitimadas por wn discurso de proteção à pessoa. A autora fundamenta
sua análise na crítica de Richard Rorty à constit:wção cultural de urna
hierarquia categorial da humarúdade, que cm basa a discriminação existente
nas instituições e na própria sociedade. Preocupa-se, igualmente, com a
incorporação do critério de desigualdade étnica, que subjaz à cultura
policial do Rio de Janeiro, desenvolvendo tal perspectiva a partir de
estudos de Roberto Kant de Lima.
Este panorama multifacetado permitirá ao leitor identificar as
encruzilhadas em que o direito e a política definem as novas conformações
da sociedade. O conjunto dos trabalhos acaba por desenvolver direções
possíveis para a reflexão de juristas e cientistas sociais que estejam preocu­
pados em superar o modo tradicional de formação universitária através
do contato direto e dialogal com textos, contextos e autores relevantes
para a consolidação de urna sociedade plural e democrática. Esperamos,
sinceramente, que este objetivo tenha sido alcançado.
Vale ressaltar, finalmente, o estimulo e a colaboração de algumas pessoas
que foram fundamentais no longo processo de orgarúzação e publicação
deste livro. Agradeço, nesse sentido, diretamente aos co-autores, que se
sensibilizaram quanto à importância da iniciativa e também aos professores
Alceu de Oliveira Pinto Júnior, André Llpp Pinto Basto Lupi, Celso Leal
da \l, ; '..!: , lún, , G!i�:1bete Wayne Nogueira e Luiz Bráulio F:iri;i ncnítc:,
I
( SUMÁRIO
Ü LUGAR DO ÜIHEITO NA POLÍTICA
Marcelo Alves .......................................... .................. ..... 13
A GENEALOGIA DA DEMOCRAClA CONTEMPORÂNEA
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo ..................................... ....................................... ........... 19
PENSAMENTO LIBERA L E PENSAMENTO DEMOCRÁTICO: JOHN STIJART MIL!.
Daniela MesqJ11ta Le11tchuk de Cademart.1ri ......................... ........................................... ........... 'i5
REINHART KoSEI.LECK E A GÊNESE CoNCEITUAL DO ILUMINJSMO:
UM REPARO CRITICO A PoLITICA BuRGUESA
Rogerio Dultra dos Santos ................................................................................................................. 63
Ü PODER DO SEGREDO E OS SEGREDOS DO PODER: BREVE VISÃO HISTÓRICA
Sergio Urquhart Cademarlon· ............................................................................................................ 85
o o VERLAPPING CoNSENSUS E o CONCEITO DO PoLITICO: A
FORMAÇÃO DA DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL DE JOHN RAWLS
Ceei/ia Caballero Lois .. ................... ... ... ........................................................... ................ .... . ......... 115
o LIBERALISMO ÉTICO DE RONALD DwoRKIN
Chnslian Edward C.yril Lynch ....................................................................................................... 129
A TEORIA DOS DIREITOS CULTURAIS DE MINORIAS DE KYMLICK.A: UMA
PROPOSTA ALTERNATIVA DE JUSTIÇA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
José Manuel Avelino de Pina Delgado ............................................................................................ 141
DIREITO, SISTEMA E A UTOPOIESIS: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A
NovA TEORlA DOS S1sTEMAS DE Nna.As LuHMANN
Thavry Pogrebinschi ........................................................................:............................................... 155
As RELAÇÕES ENTRE DIREITO, MORAL E PoLITICA SOB AS PERSPECTIVAS
PROCEDJMENTAL-COMUNICATrYA E SISTÊMlCA: AS VISÕES DE HABERMAS E
LUHMANN
Lliz Hennq11e Urquhart Cademarton· .......................................................................................... 169
Ü PnOCEDJMENTALlSMO CONSTITUCIONAL E A MODERNIDADE PERIFÉRICA
Guilherme Soares .............................................................. ............................................................ 191
TEORlA CONSTITUCIONAL COMO CIÊNCIA CULTURAL: CoNTRlBUIÇÃO
DE PETER HÃBERLE PARA A COMPREENSÃO DO VINCULO ENTRE
CONSTITUIÇÃO E DEMOCRACIA
Luiz Magno Pinto Bastos Júnior ................................... ................................................................ 211
DEMOCRAClA PARTICIPATIVA E PA RTICIPAÇÃO POPULAR
Daniele Comin Martzi1s ......................................... ....................................................................... 231
SonRE os DmE1Tos H1 , f•,1111 \ fl1)J JrlAl.
, ... ,1 !
MAN<l Cnsti1111 ll11,m7ue d,· r 24'i
lol/4111,1,1
 O LUGAR DO DIREITO NA POLÍTICA
Marcelo Alves 1

INTRODUÇÃO
O rápido processo de redemocratização vivenciado pelo Brasil,
nas duas últimas décadas, produz, por vezes, a ilusão de que a Ditadura
Militar pertence a um passado muito remoto e, de que tudo aquilo, já há
muito, não nos diz mais respeito. Trata-se, por certo, de um com­
portamento bem natural querer afastar de si memórias tão dolorosas, e a
psicologia pode explicar muito bem tal mecanismo. Mas aos estudiosos,
de qualquer área que sejam, não é permitido negligenciar aqueles
fcnô­menos decisivos para ampliar e aprofundar a compreensão de seu
objeto de estudo.
Para os profissionais da área do Direito, ·e regime de exceção que
tutelou, de modo arbitrário e violento, o Estado brasileiro durante duas
décadas deveria, ainda hoje - até pela complexidade dos seus desdo­
bramentos, capaz de açambarcar toda a extensão que vai do Direito Privado
ao Direito Público, passando inclusive pelo Direito Internacional -
representar temática central a partir da qual o próprio Direito ganharia,
articulado com a realidade experimentada, vigor e significado. Bem, o

O autor é Graduado em Filosofia e Mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). Professor da Disciplina "Filosofia" no Curso de Direito do Campus Vll da
Univer­sidade do Vale do ltajaí (UNIVALI) e das disciplinas ''Teoria Potitica" e "Filosofia e Ética" no
curso dt Relações lniemacionais do mesmo Campus. Autor dos livros uviatã:odmn11,goda!paixiks.
l intro­ n,ll· hnhhe<;i.1110 (rlorianópolis: Letras Contt'rrnpnrâne:1,; (ui:"lh�· I ('-Jlf-Pl'J l1,,1 li
Uma 1 1
1

-
.', ,·ritt(.' l) �11n e o não a Nietzsche (Horianúpoli�: r .eIr.1<: f :, .
 14 MARL'l·LO ALVES
número insign:, < :1itC de publicações relevan'.:t:s· s,Jbre o assunto e a
incipiente pr('S,'ilS,a da temática nos cursos de Direito, no Brasil afora,
ilustram muito bem a indiferença que boa parte dos profissionais e
estudiosos da área jurídica parecem nutrir em relação à política, pelo menos
se entendida no sentido pleno da palavra e não, confundida com
"politicagem''. Aliás, esse aparente atual desinteresse pela temática não
faz jus, por exemplo, ao importante papel desempenhado pela OAB
durante a Ditadura Militar, quando esta instituição representou, ao lado
da CNBB, um forte centro de resistência e de defesa dos Direitos
Humanos. E isso não somente do ponto de vista e�tritamente intelectual
ou ideológico, mas sobretudo de efetivo engajamento político,práttco.
A partir disso, o leitor pode se ver tentado a concluir, em linhas
gerais, que a prática jurídica - sempre política, em maior ou menor medida -
nem sempre encontra na reflexão sobre o Direito, na Teoria do Direito, a
pressuposição da mesma cumplicidade que ela realiza em relação à Política.
Pois bem, será justamente este o primeiro esforço deste ensaio: explicitar a
ruptura que houve entre Direito e Política no interior da reflexão jurídica.
O segundo movimento será o de resgate da unidade entre Direito e Política
reivindicada pelos inventores da política, os gregos. Por fim, o último esforço
será a apreciação de uma metáfora bastante presente no imaginário da cultura
ocidental e que sintetiza as conseqüências práticas que a separação entre
Direito e Política acaba produzindo. Ao fim, espero que o percurso realizado
aponte ao leitor o lugar do Direito na política.
1 A SEPARAÇÃO ENTRE DIREITO E POLÍTICA
A dessubstancialização do Direito promovida pelo formalismo
kantiano e consolidada pela teoria pura kelseniana produziu, como se
sabe, um fosso metodológico entre o Direito e a Moral. No caso específico
de Kelsen, tratava-se de uma separação necessária para que o Direito
2 f; l..1.:.r t;,rr "i'�ni•-r •i,·11 <1ue a linjca obra de peso que vem à mente de todos. no Br.1c:il qurndP ,;.,
, ., ·"l·uri 1urídicn, 'ieja justamente um relato sobre os cnnH r 't ·• 1 r w11
11:1, • 1_u11:l 1 >hra analítica e crítica: /Jm.1i/, 111mü1 mar
DIREITO E PoLfTICA 15
pudesse finalmente erigir-se como "Ciência". E foi essa a concepção de
Direito que ocupou lugar central nos debates do universo jurídico ao
longo do século vinte. Após quase um século de formalismo, os
estudiosos do Direito já tiveram oportunidade de reconhecer tanto as
contribuições que este recorte metodológico ofereceu, em termos de
delimitação e rigor na análise dos fenômenos jurídicos, quanto as
limitações teórico-críticas e contradições que lhe são inerentes. Num
exercício de extremos, pode­se dizer que a experiência formalista no
Direitc.> foi. com Kelsen e o Nazismo, da purificação do Direito à
legitimação da purificação racial.
A separação formalista entre Direito e Moral significou no àmbito
da Política a consagração da eficácia- sempre definida de acordo com os
interesses daquele ou daqueles que concentram em suas mãos o poder
estatal - como princípio norteador das práticas jurídicas. Dito de outro
modo, o Direito, entendido como pura forma, transforma-se em técnica
apurada de solução de conflitos, máquina que executa eficazmente, e
com convincente aparência de imparcialidade, as tarefas para as quais
foi programada, mas quem a programa, ou seja, decide quando, como
e o quê, é aquele que detém poder para tanto. Desse modo, a
"neutralidade" crítico-científica de que se revestiu o Direito acabou,
mesmo que a contragosto de alguns de seus defensores,3 prestando um
'
precioso serviço
ao status quo, por mais violento e opressor que �le fosse.
3 A começar pelo próprio Kelsen, que nos dois prefácios de sua Teoria 1'11ra do Direito rechaça as
críticas que o vinculam a esta ou aquela ideologia e reitera que sua tese só tem um tipo de
interesse: o estritamente metodológico 0/er KELSEN, Hans. Ieoria pura do dire,Jo. Trad. João
Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. XJ-XV!ll). Mas não é
lugar­comum que ao longo da história não faltam aqueles que se apropriam das idéias e as
manipulam en genhosamente a seu proveito, ainda mais quando elas de per ,e se prestam a
isso? Pode ser eximido de qualquer responsabilidade aquele que se diz movido
tão-somente por motivos superiores de método? O método é, para o pensador ou cientista, o
que foi a água para as mãos de Pilatos? Quanto à responsabilidade daquele que teoriza e
escreve, há uma frase de Albert Camus em uma das suas Cartas a'"" anúgo demão- cartas
unaginárias escritas durante Segunda Guerra, quando da ocupação alemã em França, e
destinadas à publicação clandestina pelo Comba/, um dos braços da Resistência Francesa
- bastante inquietante: "As palavras sempre
ganham a cor das ações ou dos sacrifícios gue elas suscitam" (CAMUS, Albert. uttrcs à un ami
allemand. ln: Euais. Paris: NRF/Gallimard, 1996, foi. Bibl,othêquc de la Pléiade, Troisieme
Lcttre, p. 233, tr.aduçàD do orig111,il 1.-:(, , ,r ,._ 111t ir " r !.1 ndcur dcs actions ou des
sacrifices qu'i!i- su�ritC'nt'')
i l M,1i,11 \1·.i1�
\joda que do ponto de vista ,·�.tritanirnte metodológico as i·i,-, '1�
:e:; 1er1]1·J 1,1 sido as melhores, o fato é qut t-11 formalismo transformou<:
fliri·í,,·, po� H'í'C� em chancela à vontade do mais forte, oferecendo no
plano rc.)rtrn ,�sp,11,0 para a materialização da concepçào de justiça
defendiJa por Tr�isímaco diante de Sócrates, no Livro I de A
República: "justiça é a conveniência do mais forte". Entenda-se como mais
forte justamente aquele que detém o poder estatal,4 o poder que aciona
a máquina judiciária e seleciona o material que ela deve processar, com
imparcialidade e rigor formal, até que o produto final seja entregue à
sociedade: a justiça pura, científica, formalmente ideal, por isso
incontestável!
Óbvio que a concepção de justiça de Trasímaco não é a mesma
proposta por Kelsen, mas há um ponto nada desprezível em que
ambos, por caminhos distintos, desembocam: enquanto para
Trasímaco, a força que alcança o monopólio do poder estatal cria o
Direito; com Kelsen, o Direito não questiona por que meios se chegou a
esse monopólio. Enfim, para o segundo, a força não cria o Direito, mas o
Direito não tem por que se perguntar pela legitimidade do poder
estatal instituído. Assim, no percurso de Trasímaco a Kelsen, as
paixões egoístas e a violência que as assiste encontram na Norma
Fundamental, e em suas rigorosas derivações, a deixa metodológica para
se consagrarem no exercício do poder estatal.
Como se vê, a separação entre valor e procedimento interessa
muito àqueles que, com o uso da força e práticas não-éticas, se
apropriam do poder estatal e fazem desse poder a própria fonte que o
legitima, servindo­se do Direito como procedimento que garante e
normaliza as relações entre Estado e sociedade. Desse modo, a
neutralidade requerida pelo
4 Cabe recordar que o exemplo escolhido por Trasímaco para provar a Sócra1es a veracidade de sua
definição de justiça é extraído do exercício do poder estatal: "Certamente que cada governo estabelece as
leis de acordo com a sua conveniência: a democracia, leis democrálicas� a monarquia, rnonárquicas;
e os outros Ja mesma maneira. Uma vez promulgadas essas leis, fazem saber '-lue é justo para os
governos aquilo que lhes convém, e castigam os transgressores, a úrulo de que violaram a lei e
cometeram uma injustiça. Aqui tens, 1neu excelente amigo, ac1uiJo que cu quero dizer, ao afirmar que
há um só modelo de justiça em todos os Estados - o que convém aos poderes consti tuídos. Ora
estes é que detêm a força. De onde resulta, para quem pensar corretamente, que a justiça é a
mesma r,n toda parte: a conveniência do 11u· 1-1 ri • 1 \ 1 '' ' 1 1 , r, td f\t 1n:1 1 lelcna da
Rocha
·
Pereira. 7.ed. Usboa· Calouste (,v,l" t ' 1
D1KE1 rn F Prn !TICA
Direito Formal se configura em omiss:io n:1 apreciação crírica da
legiti111-dade ériCú-jurídica do poder esmtal atuante e, ao mesmo
tempo, em ferramenta para a consoLidação do domírno por parte daquele
ou daqudes que exercem o poder estatal. Sabemos muito ber.1 o quamo o
Nazismo e as Ditaduras ·Militares, por exemplo, souberam tirar bom
proveito dessa concepção de Direito.
Ora, é através do Direito que a política regula os valores e as
práticas que devem nortear tanto as reiações enrre os indivíduos de uma
sociedade como as relações emre os indivíduos, coletivamente ou não, e
o Estado. Simultaneamente, a própria prática política pressupõe
procedimentos e garantias jurídicas, se-m os quais o espaço público se vê
ameaçado pelos interesses exclusivamente egoísticos de indivíduos e
grupos. De modo mais preciso, pode-se afirmar que é através do Direito
que a Ética ganha a eficácia necessária para preservar o espaço público da
apropriaçã,) por parte de indivíduos ou grupos movidos por interesses
egoísticos e, por conseqüência, assegurar as condições sem as quais a
prática politica, no sentido próprio da palavra, torna-se inviável: liberdade
de expressão, igual tratamento perante as leis, direito de ir e vir, liberdade de
associação, direito a não ter a privacidade violada, e outras garantias tidas
como fundamentais.
Mas se enganaria quem pensasse que o lugar do Direito é o de
estar a serviço da Ética e, por extensão, da Po1/tica. É de interesse do
Direito a consolidação do espaço público e da prática política que este
pressupõe. Sem isso, o próprio Direito -que só se constrói e se desenvolve
às custas do livre debate e do confronto, em igualdade de condições, das
liberdades e interesses atuantes no espaço público - transforma-se em
mero instrumento das forças que a cada momento detêm o poder estatal
e, assim, torna-se um exercício meramente procedimental, um jogo -
com regras, é verdade - mas de cartas marcadas.
Desse modo, a cidadania se apresenta como um conceito, e uma
prática antes de tudo, sem o qual não se pode pensar nem o Direito nem
a Política. É na figura do cidadão que o Direito e a Política ganham
objetividade, tornam-se realidade inquestionável, encontram o seu suporte
,j,· - ,11v , , ' · ,1·11t1h() e a sua meta. L� o plen<J cxercÍCÍíl d,1 t id .. d t 11,
11' \ L\1<1 ·,.,
que efetiva, a um o Direito e a Políti,:,1 l: ,lc[ .,i, como
., )U,
relação a tantos ou r em :·as. ainda vale a pena ouvir ,1uc ,is
têm a dizer. gregos nos
2 DIREITO E POLÍTICA NO MUNDO GREGO
Em tempos de necessidade de auto-afirmação intelectual a partir
da constatação das "lacunas" ou "desLizes" teóricos que o outro comete
em seu discurso - ainda que não sejam propriamente lacunas ou deslizes,
mas simplesmente omissões voluntárias de obviedades pressupostas e
que não comprometem substancialmente a tese central defendida - cabem
aqui então, mesmo que um tanto a contragosto, algumas considerações
prévias.
A muitos pode soar estranho, e até mesmo como uma
ingenuidade, a insinuação de que tenha existido um Direito grego.
Afinal, umas das primeiras lições que um acadêmico de Direito
o argumento
aprende básico
(ou pelo utilizado
menos é o deé aque
aprendia) de os
queromanos
o Direitosistematizaram o
é uma invenção
Direito,
romana porcriando uma série
excelência. E de institutos jurídicos ainda hoje por nós
reconhecidos, configurando o Direito Civil tal como o conhecemos. Para
se fazer justiça, é preciso antes de mais nada se dizer que o argumento é,
sim, verdadeiro em grande medida. Mas talvez o argumento que tenha
efetivamente cristalizado esse modo de conceber as origens e.lo Direito
esteja em outro lugar que não na própria prática romana.
O positivismo jurídico parece que sempre se sentiu mais à vontade
no âmbito do Direito Privado. Os exemplos preferidos por seus teóricos
o atestam, inclusive o clássico "bando de salteadores" de Kelsen. Talvez
isso ocorra justamente porque no âmbito do Direito Privado o fator
político seja menos saliente, mais facilmente dissimulado e mais apto a se
sujeitar ao formalismo jurídico. Por outro lado, a crítica mais freqüente
em relação ao Direito Grego é a sua estreita vinculação com a moral, a tal
ponto que o Direito seria pelos gregos percebido e praticado, antes de
tudo, como um dos instrumentos políticos por meio dos quais a polis assegura
a r,·:,linri,, ,l ,1 11 idnl de justiça.
n At vES DmEno E PoLíT1c,\ !9
À luz dessas cnnsidcraçôes. cabe a seguinte indagação: '·Será que
a conclusão de que os romanos são os inventon:'.S do Direito nio está,
na verdade, bastante contaminada pela consolidação iustórica de um
modo específico de se conceber o Direito?" Aliás, não sena essa a
primeira vez que se elegeria um período histórico ou uma cultura
como origem ele uma prática ou de um conceito a partir da visão
que predomina, no momento da análise, acerca daquela prática ou
conceito. Em síntese, trata­se da sutil operação ele fazer com que o hoje -
o modo como uma prática ou conceito é definido - ,decione o ontem
- aquele passado que, por melhor se ajustar à definição que
predomina hoje, é apontacio como a origem daquela prática ou
conceito.
Parece conseqüente a conclusão de que o Direito, no afã de ser
reconhecido como uma "ciência", encontrou no proto-formalismo do
Direito Romano a estrutura jurídica mais afeita ao modelo positivista
almejado desde fins do século dezenove e materiaLizado no alto formalismo
oatingido
Direitopela TeoriaePura
Romano, não kelseniana. É bastante
o Grego, seja o ponto compreensível, pois,pela
de partida adotado que
imensa maioria dos juristas e professores de Direito no Brasil, e fora
dele.5 Apenas não se deve tomar como histórica e epistemologicamente
"neutro" o predomínio dessa concepção em relação às origens do Direito.
Nada impede que a consolidação de uma nova concepção de Direito leve
também a uma redefinição acerca de suas origens. Não parece, por
exemplo, que os defensores das formas alternativas de Direito (Direito
Alternativo, Garantismo, Direito Achado na Rua, e outros) tenham tanta
resistência assim para reconhecer o Direito Grego como tal.
O segundo esclarecimento a ser feito diz respeito à expressão
"mundo grego", presente no título deste tópico. Entenda-se aqui
simplesmente aquela óbvia delimitação já consagrada, porém sempre
exigida pelos mecliocres que vivem de seu do rigorismo estéril: a expressão
5 A bem da verdade, ultimamente sequer o Direito Roma no vem <l'ndo rcronhccido como ponto
de partida para o estudo e a reflexão sobre o Direita. É cada 1·0 menor u número de pessoas que
se ocupa do Direito Romano, mcsmn nas 1111Í\t·r i<h( 1t ' 1 1> Dirriti>, de rodas as
�n.:,1s cbssicas do conhecimento, é a I i 11, 1 ,11 · l 11 ,, ,l
 20
se refere sobretudo ao "berço da civiliz 1•·\o oc-idental", Atenas, no seu
período histórico decisivo, entre os sé:_:ulos VI e IV a.C. A alusão a
I-Iesíodo, poeta da Beócia do século VIII a.e, é feita para contrastar com
a concepção poütico-jurídica de Sólon.
Em seu poema Os trabalhos e os t!ias, Hesíodo convida o leitor a
refletir sobre o papel da justiça e do trabalho na vida cios homens. A
partir da injustiça sofrida na própria pele quando da partilha de uma
herança, Hesíodo apresenta todos os males a que estão sujeitos aqueles
que não reconhecem o império de Dike, a deusa grega <la Justiça, e as
bênçãos que se derramam sobre quem se mantém obediente aos limites
impostos à ação humana pela implacável deusa. No melhor espírito grego
clássico, Hesíodo não pensa as conseqüências da ação dos homens apenas
no plano individual, mas sempre vinculado diretamente ao destino da
polis. Uma injustiça cometida no interior da cidade, e por ela tolerada,
incorpora-se ao seu espírito, maculando-o e atraindo sobre si a fúria da
deusa implacável. O erro individual é como uma doença, uma peste que,
se não for prevenida e combatida, contamina toda a polir. A cidade que se
mantém justa goza de boas colheitas, de crianças que nascem valorosas e
perfeitas, de vitórias sobre os inimigos, de bem-aventurança. Em
contrapartida, a cidade que admite a injustiça no seu seio, viverá sob os
desfavores de Dike, sofrendo com a miséria, as adversidades climáticas,
as pestes e as derrotas nas batalhas, enfim, com a desventura. A ordem
divina recompensa ou castiga a ordem humana com a medida da justiça.6
Em fins do século VII e início do século VI a.C, /\cenas encontra­
se em profunda crise social, causada sobretudo pela rígida divisão de
classes: de um lado, a aristocracia - com plenos direitos e privilégios; de
outro, o povo -oprimido sob o domínio da aristocracia. O ápice da crise
envolve os camponeses, que vivem em situação de dependência em relação
à aristocracia-pois esta é que detinha a terra - encontram-se endividados
e, sem condições de pagar as suas dividas, em processo de escravização.
f\ Ver. �obretudo,JAEGL•.R, \Vcr11er. "l ksíudi L 1 1 ::, 1
rcd1t1c:1 de Aten,1s". ln: />aidéia.· a for111:H;.l1, t 1 '
P.wl l >: Manú1s Pontes, 1994. rC"specr1vam,·:111 :, , ,,
MARCELO A..v,,s DIREITO E PoLíTICA 21
Em 594 a.e, Sólon é eleito arcante, ou �eja, supremo magistrado da
cidade. Atento à crise por que passa Atenas, ele toma uma série de medidas
jurídicas, políticas e econômicas: suspende a cobrança cios encargos aos
quais estavam sujeitos os camponeses, declara o perdão das dividas por
eles até então contraídas e revoga o direito do credor mandar prender o
devedor; cria uma série de leis tornadas públicas, ou seja, que valem
igualmente para todos - e que trazem em gérmen o princípio da isonomia,
que será tão caro à democracia ateniense do século seguinte; redefine a
divisão social em quatro classes - e a cada uma delas confere um papel
no interior dapolú- tendo como critério não mais o sangue, mas a fortuna,
o que garantia, a um só tempo, o sentimento de cidadania a um número
bem maior de indivíduos e a possibilidade ele ascensão social; teria ainda
promovido uma reforma dos pesos e medidas, com o objetivo de ajustar
o comércio ateniense com o de outras regiões, facilitando as import1ções
e exportações.7
O que está na base das mudanças implementadas por Sólon é um
princípio que, já proclamado por Hesíodo, se tornará indissolúvel da
prática e da teoria poütica grega: a justiça como o grande fim que a política
visa. Vale recordar que é como resposta à questão "o que é a justiça?" que
Platão, no século IV a.C, constrói o seu modelo de cidade na República.
Aristóteles, na Política, também no século IV a,.C, concebe a polis não
apenas como uma simples associação cooperativa, mas sobretudo como
o lugar que cria as condições necessárias para o pleno desenvolvimento
da humanidade, ou seja, para uma vida melhor, entendida como uma
vida de acordo com os valores que devem ser cultivados por uma criatura
dotada de razão e gue só se realiza nas relações sociopolíticas; por isso, a
promoção da justiça é a primeira tarefa de todo governo, de toda
constituição que se queira correta, que se queira legitimamente política­
no sentido de um governo que vise o bem comum, o bem público, um
governo que exerça um poder justo, e não um poder despótico. Também
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I\.,11sr Ida ( .osta. 2. ed. llrasilra hl1tora d 1 { l 11 1vn 1,,1
J, l , .. , ..

ritragédia rearfima a juscça con 10 o fim da política: , ', :1 c:-., grande
Lragediógrafo do século V a.C., fa;� com que a própria ci( L.\ 1L . empestada,
cobre de seu rei, Édipo, a justiça devida pela misteriosa mJrtc de Laio; na
peça Antigona, Creonte vive ao p.1roxismo o dilema da justiça devida a
Polinices e a Antígona, e gue a cidade, cm silêncio fatal, lhe cobra.
Mas é Sólon quem primeiro formula o argumento objetivo que
sustenta esse modo de conceber a política. Assim como Hesíodo, Sólon
entende que, se a justiça não for rigorosamente observada no interior da
polis, seus habitantes sofrerão conseqüências terríveis, mas se dela não
descuidarem, conhecerão os benefícios que só a justiça é capaz. de trazer
para os homens: a promoção da vida em sociedade e, por extensão, de
todos aqueles bens, materiais e espirituais, que apenas a cooperação e a
cumplicidade entre os homens torna possível - conforto, prosperidade,
segurança, amizade, solidariedade etc. Porém, diferentemente de Hesíodo,
o legislador ateniense afasta-se do argumento religioso para explicar o
papel da justiça no destino da polis. Para ele, a ljybns (desmedida) cometida
pelos homens, e por eles não prevenida ou controlada, arrasta
paulatinamente a cidade para a ruína, para a sua dissolução. O grande mal
que se abate sobre a cidade não se dá em forma de pestes ou más colheitas,
como queria Hesíodo, mas em forma de desagregação social. O raciocínio
implícito em Sólon pode assim ser exemplificado: ao admitir, por exemplo,
que um cidadão viole o direito de outro, ou seja, que ocorra um
desequiltbrio na relação entre as duas partes, sem que qualquer atitude
seja feita no sentido de restabelecer o equilibrio original que foi rompido,
a injustiça tolerada pela cidade facilmente irá se alastrar, incitando a
discórdia entre os cidadãos, a um ponto tal que, se não for devidamente
combatida, poderá implodir a própria cidade através de uma grande
convulsão social. 8
Tanto quanto Hesíodo, Sólon acredirn na necessidade de que a
justiça seja observada, de que o nómos Oei, norma, medida), quando
8 \e1•)!'rt''J,.l !\J.i, TT \ , ,,1 111it·1;1, dt1 formaç.·ão política de Atcrnl', ln: Pal(ft:,n. a fornuç.ln
dti l11 !l : ' 1 ! 1 ; nl t..;�o P.11110: t\la11ins f;lmcs, J l ){)�f, p
_() ALVES ÜJREITO E POLÍTICA 23
desrespeitado, invariavelmente cobra o seu preço. Perceba-se, no entanto,
como o raciocínio de Sólon não se constrói no plano da transcendência,
mas sim da imanência: não se trata de uma punição infligida pelos deuses,
mas de uma punição natural, conseqüência lógico-empírica, (ou seja,
racional) da violação do clireito. Se há uma "peste" que serve para punir
a cidade injusta, esta só pode ser a mais devastadora de todas: a peste
social, aquela que se alimenta da cliscórdia entre os homens, aquela que
encontra no egoísmo dos indivíduos e na sua incapacidade de observarem
a justiça os grandes aliados para a sua proliferação, aquela que só completa
o seu ciclo virai quando o corpo sociopolítico finalmente perece. "Isto
não é saber profético, é saber politico", observa Werner Jaeger, que indica
com precisão a grande originalidade da contribuição de Sólon: "Pela
primeira vez o nexo causal entre a violação do direito e a perturbação da
vida social é enunciado de modo objetivo". 9
Equivale a dizer que, com Sólon, a responsabilidade sobre o destino
da polis recai diretamente sobre os ombros dos cidadãos e não mais <los
deuses. Não há mais como o cidadão se eximir da responsabilidade politica
que tem diante da promoção e do zelo pela justiça, condição requerida para
assegurar a vida plena em sociedade e os benefícios que disso podem advir.
Sólon, em um de seus poemas, admoesta seus concidadãos sobre a grande
responsabilidade que eles têm quando uma tirania - ou seja, um poder
despótico e não um poder justo, político - se instala: "se foi por debilidade
vossa que haveis sofrido o mal, não lanceis sobre os deuses o peso da
culpa. Fostes vós próprios que permitistes a esta gente que se engrandecesse,
dando-lhes a força e caindo por isso em vergonhosa servidão".'º
A usurpação ou violação do direito enfraquece e até mesmo suprime
o âmbito político, abrindo perigoso espaço para a entronização da força,
que se apresenta então como único recurso eficaz para assegurar a ordem
necessária à vida em sociedade, mas não sem cobrar o terrível preço da
sujeição absoluta das vontades individuais dos cic!adãus à vontade
()
Idem. ibidem, p. 179.
171 l�N.
1(1 ldc,11. d,idrm. p. 181.
24 MIIRCELO ALVES
onipotente do tirano. Em meio à desordem :-.ncial, a liberdade do cidadão
é trocada, muitas vezes voluntariamente, pela segurança estatal prometida
pelo poder despótico e o espaço público se vê, a partir de então, privatizado.
A um só tempo, o Direito e a Política são suprimidos e em seu lugar temos
o império da força e dos simulacros que ela é capaz de criar: em vez do
direito que procura realizar a justiça, ergue-se irresistível o direito do mais
forte; em vez da prática política - embate, em igualdade de condições, das
liberdades individuais na construção e delimitação do espaço público e
reivindicação ostensiva de criação e cumprimento de direitos e deveres -
exige-se a adesão cega ao status q110 em nome da manutenção da ordem
social. Numa palavra, a cidadania dá lugar à sujeição e as liberdades jurídico­
políticas dão lugar à escravidão moral.
3 A PESTE: O MAL DA CIDADE INJUSTA
Na IJteratura Ocidental, a imagem da peste é recorrentemente
utilizada para caracterizar as conseqüências que os atos injustos e/ ou
imprudentes produzem junto à comunidade político-social que deles não
se previne ou que não os combate. Assim, na Bíblia são freqüentes as
pestes e pragas devastadoras que assolam as cidades que desprezam os
mandamentos divinos; no mundo grego, os atos desmedidos cometidos
pelos cidadãos ou governantes, e negligenciados pela cidade, transformam­
se em ameaçadora peste, que só cessa com o restabelecimento do cquilibrio
rompido, com o restabelecimento da Dike violada; na literatura da
Renascença e da Modernidade, a peste encontra na desorganização social
das cidades inchadas e imundas as condições ideais para florescer e exercer
o seu terrível donúnio sobre homens supersticiosos e apavorados, como
ocorre em Um diário do ano dapeste, de Daniel Defoe; nos séculos dczenove
e vinte, é a recusa interesseira da administração pública em reconhecer a
existência da peste que a fortalece, que a torna senhora absoluta da cidade
(assim ocorre na novela A morte em Veneza, de Thomas Man11 e na peça
Um inim(�o do povo, de Ibsen, em que a recusa em admitir o início de uma
"•d(.'mb l' motivada pelo interesse de nã() 11.1,•.1r ela'- •, 1 li, 11iristas)
.,., �tP1ple�111ente a negação rcconfortad1Jt.t .1, 1-lL
., t5tar
DIREITO E POLÍTICA 25
junto de nós, de que a peste possa estar entre nós e nos ame1çar, o que
também favorece o alastramento da epidemia e a instauração de sua tirania
sobre os cidadãos, como aparece no romance A Peste e na pe�·a Estad1J de
sítio, ambos de Albert Camus.
No mundo grego, a arte trágica e a história transformaram a peste
em personagem dos conflitos humanos em torno da justiça, transformarnm­
na numa entidade que espreita as ações humanas desmedidas, sobretudo
aquehs que dizem respeito ao âmbito político. As duas mais famosas
tragédias gregas colocam como um dos seus principais tema·; a relação
entre justiça e poder político, tendo a peste como personagem que
impulsiona as peças e as conduz para o seu desfecho, enquanto uma das
passagens mais importantes da História da Guerra do Pelop oneso, de Tucídides,
funde decisão política, peste e caos social.
Em Édipo Rei, a peste é o fato que dá irúcio a toda a trama: a cena c1ue
abre a peça apresenta o povo tebano às portas do palácio real suplicando a
Édipo que livre a cidade da peste que a assola. Édipo se tornara rei justamente
como reconhecimento da cidade por sua capacidade de livrá-la de um outro
grande mal: os enigmas indecifráveis da esfinge devoradora. A população
espera de seu governante nova salvação: "Mostra-te agora igual ao Édipo
de outrora". 11 Creonte, enviado por Édipo ao templo de Delfos, anuncia
perante a população reunida a causa da peste: o assassinato impune de
Laio, o rei antecessor a Édipo. Resta então ao rei prometer à população gue
a justiça será finalmente feita, seja quem for o assassino de Laio.
O desfecho da tragédia de Édipo todos já conhecem. Mas o que
nem sempre é enfatizado é que a legitimidade de seu poder político é
contestada ao longo da peça . "Ora, ele chegara ao poder pelas mãos dos
11 SÓFOCLES. Édipo Rei. ln: A trilogia lehana. Trad. Má tio da Gama I<ury. 8. ed. Rio de janeiro:jorge
Zahar, 1998, p. 23. O quadro que a pesrc produz na cidade é pavoroso e aparece descrito pela voz
dos cidadãos: "Ah, quanros males nos afligem hoje! O povo todo foi contagiado e já não pode a
mente imaginar recurso algum capaz de nos valer! Não crescem mais os frutos bons da terra; mulheres
grávidas não dão à luz. alivi;mdo-se de suas dores; sem pausa, como pássaros velozes, mais rápidas
yui.:: l1 (ogu 1mp•. tl l -. tt1:1 1 .i. n uilcrcs rumo à mansão do deus crepu1.,cular (deus
dn'-i rnoru,,1 !� · 1111111 • i· 'i('l11 cuidad{)s, sem serem chorado�, fic:1m no
chão, ano:; m w:t·. 1 , �, ..._,Htdo 111>V,1:- mo11es'1 (()p. ci1., p. 29).
2h
próprios cidadãos, então como seu r·oJer não seria legítimo?", i:cnsa lá
consigo o leitor atento. ''Ademais, É:dipo era originalmente o legítimo
sucessor do trono de Laio, por ser seu filho", conclui. Verdade. mas a
legitimidade de seu poder é contestada, primeiro pelos deuses e depois
pela própria cidade, porque um crime está na origem do poder político
que estava exercendo. Sim, ele não s,1bia que estava matando o próprio
pai e o soberano de Tebas, que iria vir a suceder, mas isso não o exime do
crime em si, que o destino apenas se encarregou de encarecer. Desgraçada­
mente, ele é duas vezes criminoso: como homem, na condição ele parricida,
mas também como político, na condição de regicida (e não se pode
esquecer que foi a morte de Laio que tornou possível a ascensão de Édipo
ao trono). Ora, a peste é o meio através do qual toda essa verdade pôde
vir à tona, verdade que restabelece a ordem moral-religiosa e a ordem
política que o crime rompera. A justiça, que a verdade produziu, livra a
cidade do flagelo da peste fisiológica e política.
EmAntígona, o embate entre o direito divino de um homem de ser
enterrado por seus familiares e o decreto real proibindo o enterro constitui
o centro da tensão trágica. Em vocabulário jurídico contemporâneo, trata­
se do conflito entre o direito natural e o direito positivo. Antígona, irmã
do morto, desafia o decreto real e sofre as conseqüências de seu ato.
Creonte, tio de Antígona e rei de Tebas, sofre como conseqüência da
morte de Antigana -portanto, como conseqüência de seu rigoroso decreto
- a perda sucessiva do filho e da esposa, e termina a peça arrependido
por seus atos.
Estamos, novamente, diante de um rei aparentemente legítimo, pois
chegara ao trono pela devida ordem sucessória, que terá seu poder
contestado: de maneira ostensiva por Antigana, silenciosa pela cidade, e
implacável pelos deuses. Mas o que torna o seu poder ilegítimo? O modo
como ele o exerce. Ao fazer uma lei que infringia a lei divina, Creonte
rivaliza com os deuses, coloca-se arrogantemente ao nível deles. E aqui, em
Antígona, o divino apresenta-se não como pura fé, mas revestido de
racionalidade I JC:11 •1 • Gil, l r-, "ntc, rmcura chamar a atenção do pai
1
para sua intr.11 , 1 , ,,1!1d": "Os d<.:uscs, pai, imrlantam no
T
DIREI O E POLÍTICA 27
homem a razão - o bem maior de todo<;" . 12 Se a razão é o bem maior dos
seres humanos, e é dada pelos deuses, então a justiça que as leis divinas
expressam é wna justiça natmal, racionalmente válida e compartilhada.
Mas Creonte se crê único detentor da verdade, e não dá ouvidos
àquilo que a cidade murmura apenas nas sombras, com temor de seu
rigoroso governante: no fundo, todos admiram o gesto cor:.1joso e piedoso
de Antigana. 13 Creonte sufoca a razão dos cidadãos e exerce de modo
arbitrário o poder que legitimamente lhe foi conferido. O processo de
isolamento que ele próprio inicia, exercendo despoticamente o poder
estatal, irá culminar com o sentimento de solidão e desamparo que ele
experimentará ao final da peça com a morte do ftlho e da esposa. Aliás, o
próprio Hêmon antecipa o destino do pai, ao lhe dizer que "Só, mandarias
bem apenas num deserto". 14 Solitário em seu trono, Creonte tardiamente
se arrependerá de seus atos desmedidos, imprudentes.
É da boca do adivinho Tirésias que sai o veredicto dos deuses contra
Creonte: "E é por tua causa, por tuas decisões, que está enferma Tebas". 15
Doente a cidade, empestada, Creonte afinal reconsidera sua decisão de con­
denar Antígona, mas já é tarde: ela se matara; seu noivo, Hêmon, t'lffibém; e
a mãe dele, ao saber do ocorrido, comete suicídio. A tragédia se conswna.
É o sangue da família de Creonte que redime a cidade, que ensina
ao rei arruinado, e principalmente à platéia do espietáculo, uma lição fun­
damental: as ações humanas, mesmo as daqueles que detêm o poder esta­
tal, têm um Limite e é através da razão compartilhada, do diálogo, que os
homens podem aprender o duro exercício da prudência e da justiça.
12 SÓfOCLES. Antigana. ln: A tnlogia /ebana. Trad. Mário da Gama Kury. 8. ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, l 998, p. 225.
13 t', Hêmon que relata a fala dos cidadãos: "Nenhuma mulher, comentam, mert:ccu jamais menos
c1ue ela essa condenação - nenhuma, cm tempo al1,'Llm, terá por fmos tão glor iosos quanto os
dela sofrido morte mais ignóbil; ela que, quando em sangrento emhate seu irmão morreu, não o
deixuu sem sepultura, para pasto de carnkciros cães e aves de rnpina, não merece, ao contrário,
um áureo galardão?" (SÓFOCLES. Antígona. ln: A trilogia ltba11a. Trad. Mário da Gama Kury. 8.
rd. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 225).
l"!I , f1· 227.
. ,, 'J'· i {X.

28 MARCELO ALVES
Em Tucídides, a imagem da peste ganha novos contornos. O nexo
causal entre as ações humanas cometidas no âmbito, la polis e a felicidade
ou tragédia experimentada pela cidade é, em síntese, a herança legada por
Sólon que servirá de ponto de partida para a concepção de história política
criada pelo autor da História da Guerra do Peloponeso. Ú somente porque tal
causalidade existe, de maneira objetiva, que os fatos passados podem
ensinar aos homens, e principalmente aos políticos, a melhor forma de se
conduzirem no presente. O realismo que se abstrai dos fatos consumados
não pode ser ignorado por aquele que deseja exercer qualquer papel
político, sob pena de tornar-se prisioneiro de um idealismo que vive em
permanente descompasso com a lógica que impera nas relações políticas,
uma lógica que se pauta pelo modo como os acontecimentos efetivamente
se dão. E a primeira lição a ser aprendida pelo político - e que a peste
experimentada por Atenas logo no início da guerra contra Esparta e seus
aliados ensina - é a de que a legitimidade de seu poder depende de uma
dupla condição: o máximo de eficácia com o máximo de justiça possível.
É no limite da eficácia (a satisfação das necessidades que o ser, a realidade
impõe) e da justiça (a busca do que deve ser, do ideal) que a política cumpre
o seu fim: promover o bem da polis.
Confiante no grande poderio naval de Atenas, Péricles defendera
a tática de evitar o combate terrestre para obter rapidamente a vitória
naquele dorrúnio em que os atenienses até então se mostraram imbatíveis:
no mar. 16 Ele determina que todos os que viviam nos arredores da cidade
se protegessem no seu interior, abandonando suas casas e suas terras à
fúria dos espartanos e seus aliados, que não conseguiriam, de um lado,
invadir a cidade, por sua fortificação e posição geográfica, e, de outro,
fazer frente à armada ateniense. Mas o artifício planejado por Péricles
16 Eis o raciocínio que Péricles apresenta para convencer seus comparnotas: "se fôssemos ilhéus,
h:weria povo menos sujeito a ser conquistado? Agora devemos ima81nar-nos tão próxünos quanto
possível dessa condiçào e desinteressar-nos de nossa terra e de nossas casas, para ficarmos atentos
à segurança do mar e de nossa cidade, sem que a perda <lo resto nos inspire tanta revolta a ponto
· · 1. ·· M-111 ,._ a t rn v.lr urna batalha decisiva cm ti.:rrn cnntrn os pel, ,r.,, ,, ·e , l.: , 1H·,�
,·qer-," ('J'I ICÍ!)Jl)ES. lltsió,ia da .�11em1 do l'rlopr,11,r,, ·1, ,,1
' i -!11, r, lJrm rrsidad,· de llrnsilia, J '!99, '-"'"' !, ( ·'I'· 1 1 \, ;
01RE110 E PoLfTICA 29
alteraria substancialmente a roúna e a organização Ja c1d,1de. Ele não
previra as conseqüências que o inch 1ço repentino da cidade pwduziria
no que hoje se chama "saúde pública". Amontoados precariamente no
centro da cidade -pois poucos tinham pareGtes domiciliados em Atenas
-, sem as devidas condições de higiene e moradü, os campónios tornaram­
se alvo fácil de doenças infecto-contagiosas. A oportunidade cria o fato.
Uma peste se abate sobre a cidade e em pouco tempo se propaga e dizima
boa parte de sua população, inclusive, por fim, o próprio Péricles.
Mas Tucíclides apresenta uma outra morte produzida pela peste e
que parece preocupá-lo tanto quanto, ou até mais que, a morte física dos
habitantes de At,:nas: a morte moral e politie.1 do cidadão, ameaça maior
à vida da polis. A peste fisiológica torna-se una com a peste social:
"De um modo geral a peste introduziu na cidade pela primeira vez a anarquia
total. Ousava-se com a maior naturaLidade e abertamente aquilo que antes só se
fazia ocultamente, vendo-se quão rapidamente mudava a sorte, tanto a dos
homens ricos subitamente mortos quanto a daqueles que nada tinham e num
momento se tornavam donos dos bens alheios.(...) o prazer do momento, como
tudo que levasse a ele, tornou-se digno e conveniente; o temor dos deuses e as
leis dos homens já não detinham ninguém, pois vendo que todos estavam
morrendo da mesma forma, as pessoas passaram a pensar que a impiedade e a
piedade eram a mesma coisa; além disso, ninguém esperava estar vivo para ser
chamado a prestar contas e responder por seL\S atos; ao contrário, todos
acreditavam que o castigo já decretado contra cad� um deles e pendente sobre
suas cabeças, era pesado demais, e que seria justo, portanto, gozar os prazeres
da vida antes de sua consumação."17
A peste, através de seus horrores, coloca a razão a serviço das
paixões. São elas que determinam agora os cálculos, as ações, os juízos e
a própria noção do que é justo ou injusto. A peste produz o sintoma que
ameaça a política na sua base: o sentimento de que mais nada importa, a
não ser a vida vivida de maneira vertiginosa, desregrada ou, como diriam
os gregos, desmedida. A peste transforma o zoonpolittkon em apenas zoon,
o homem em animal, e a polis em selva.
,1
17 Op. cit., l.l\'ro 11, C1r• ', ,' I·
 30
Óbvio que os efeitos da epidemia e as reiteradas devastações que
os espartanos quase que anualmente faziam no território ateniense
desgastaram a imagem da, até então muito bem sucedida, administração
de Péricles. Sua eficácia e honestidade começaram a ser colocadas em
xeque. E foi apenas graças à sua eloqüência e influência junto às massas
que ele conseguiu se manter no poder, não sem ter sido obrigado a pagar
uma pesada multa à cidade. 18
Apesar de tudo, Tucídides não culpa Péricles pela epidemia e suas
conseqüências. Aliás, sua admiração pelo homem que levou Atenas ao
seu apogeu e seu firme propósito de oferecer uma narrativa objetiva dos
fatos ocorridos não o permitiriam. 19 A lição, a valoração cabe ao leitor. O
historiador, assim como o médico, diagnostica a enfermidade, deseja
conhecer as leis que a determinam, mas sabe que a natureza não é nem
boa nem má, ela apenas é.
Na verdade, vários serão os autores que ao longo dos séculos
posteriores irão explorar a imagem da peste, e com bastante freqüência
relacionando-a às conseqüências oriundas ele decisões políticas e/ ou
referentes ao exercício da justiça. Mas talvez o autor que tenha explorado
de maneira mais consciente e intencional esta temática, na perspectiva
acima apontada, tenha sido o escritor argelino, de expressão francesa,
Albert Camus. A obra que o projeta no mundo literário é o romance O
Estrangeiro, de 1942, e a que consolida sua reputação de grande escritor é
a crônica, como gostava de chamá-la,A Peste, de 1947. Sempre preocupado
com as questões existenciais, as questões referentes às possibilidades e
limites da condição humana, Camus, por outro lado, jamais deixou de
manifestar preocupações políticas muito bem demarcadas. Homem de
pensamento e ação, Camus atuara na resistência contra a ocupação alemã
em Paris e vivenciara bem de perto todo o drama da expansão do
totalitarismo na Europa. Através de A Peste, seu autor conseguiu sintetizar
18 Segundo Platão, por ter desviado fundos púbLiros (PLATAO. Górgias. Trad. Manuel de Oliveira
Pulquério. 4. cd. Lisboa: F.diçõc1 7(1_ 2()()11 <. l ',a. r t CJS).
19 A adm,rnç:io por Pér,, I• , 11 .,, d, 1 h(1 do L1,·ro J f
ele 1,re1cndc ofcrcn r 1, ·.· 1 .l1 (,11t11d do
MARCELO ALVES DIREITO E POLÍTICA 31
todo o sentimento, bastante recente ainda então, que a devastação das
cidades e os horrores causados pela Segunda Grande Guerra produziu
sobretudo no povo europeu, e isso sem precisar fazer um romance ou
uma reportagem sobre a !--,ruerra. O seu livro descreve simplesmente o
surgimento de uma epidemia em uma cidade litorânea e o modo como
esta cidade reage a ela, apresentando as diferentes condutas diante da
peste. Mas seus leitores, que haviam acabado ele experimentar a morte
física e moral que uma guerra é capaz de produzir, sabiam que entre uma
peste e uma guerra há muita coisa em comum, ainda mais quando uma
ideologia totalitária é o seu motor. O próprio Camus, aliás, não deixa
margem a qualquer dúvida: "A Peste, cuja minha intenção era que fosse
lida sob vários aspectos, tem, todavia, como conteúdo evidente a luta da
resistência européia contra o nazismo". 2º
A primeira reação dos homens diante da "peste" é a de negar a sua
existência. Os primeiros indícios de uma epidemia são desprezados,
tratados como exageros, produtos da imaginação de alguns. A
administração pública hesita em reconhecer que se trata de fato de uma
epidemia, para evitar alarmar a população. O prefeito acredita que "isto
não passa de rebate falso".21 Mesmo diante dos sintomas, há quem ainda
resista a aceitar a sua existência: "Mas certamente não é contagioso". 22
Após o reconhecimento oficial da epidemia e do isolamento da cidade, a
resistência em aceitar a presença da peste no int�rior da cidade persistia:
"Apesar do espetáculo anormal, os habitantes tinham dificuldade em perceber
o que sucedia. (...) Ninguém se convencia da realidade. (...) Com efeito, o aviso de
que na terceira semana ela peste houvera trezentas e duas mortes não lhes falava
20 CAMUS, Albert. Lcnre à Roland Banhes. ln: Thiátr,, réáts, 1101111tlles. Paris: NRF/Gallimard, 1995,
13ibliothéque de la Plêiade, p. 1973. Tradução Livre. Se o leitor tiver interesse em conhecer al1,'1.lns
dos demais aspectos abordados por Camus cm /1 Peste, poderá consultar ALVES, Marcelo. Ca111111·
entre o sim e o não a Nietzsche. (Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2001, especialmente u
tópico "Rieux: o pessimismo contra mal", p. 97-110). 13oa parte das considerações a9ui feitas
sobre A !'este, de Camus, é devedora das análises realizadas na obra e tópico citados.
21 CAMUS, Albert. A l'esle. Trad. Graciliano Ramos. 2. eJ. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio,
J(',...,. \11
t.: o 1ipo de história que
Pe/0J1n11f.ro.
32
à imaginação. Nem todas as mortes havialll :,iclo ocasionadas pela peste,
ignorávamos quantas pessoas morriam por sc.:mana em épocas normais (...). Só
com o tempo, o número de óbitos a crescer, veio ao público a noção da realidade."23
O sentido político, ou se preferirem histórico, dessa recusa insistente
em reconhecer a proliferação da peste representa, com bastante proprie­
dade, a omissão dos europeus frente então ao avanço nazista, o que lhes
custou bem caro, como se sabe. As omissões no âmbito politico não
passam impunes, pois há sempre alguém à espreita para delas tirar proveito.
A meteórica ascensão de Hitler internamente na Alemanha e o rápido
avanço sobre a Europa contou bastante com a omissão daqueles que não
acreditaram no grande mal que o Nazismo podia representar. Há nos
cadernos de notas de Camus uma interessante anotação preparatória de
um romance - da mesma época em que A Peste estava sendo escrita, mas
que não passou de um projeto - capaz de ilustrar muito bem a omissão
ante o nazismo, ou melhor, ante a ameaçadora injustiça que ele represen­
tava para a humanidade:
"Se quer saber, jamais havia acreditado na Gestapo. Nunca a víamos. É claro
que eu tomava as m.inhas precauções, mas abstratamente, por assim dizer. De
tempos em tempos, um companheiro desaparecia. Um outro dia, em frente à
Saint-Germa.in-des-Prés, vi dois cipos grandes que faziam um homem entrar a
socos num táxi. E ninguém dizia nada. Um garçom de café me disse: 'Cale-se.
São eles.' Isto me fez suspeitar que de fato eles existiam e que um dia ... Mas
suspeitas apenas. A verdade é que só poderia aered.itar na Gestapo quando
recebesse dela o primeiro pontapé na barriga."24
A "peste", enquanto não se apresenta evidente ao corpo, é encarada
como uma abstração, o que lhe oferece justamente as melhores condições
para a sua propagação. Dito de outro modo, a falta ele imaginação para
concebê-la e a conseqüente falta de solidariedade para combatê-la fazem
com que a "peste" prolifere. Aliás, uma vez reconhecida a presença da
peste na cidade, a primeira medida tomada é o isolamento, a separação. A
cidade é isolada das demais e os indivíduos isolam-se uns dos outros:
,, , ,11•1,t, j:1m·1cr 1'14�- 1rnrs 19'il. l'a11s t'-JHl·/(.:dl"', 1
l\ 1 \l(C�I e> ALVES ÜIREl'IU E PoLfTICA 33
"[os bondes] São o único meio ele transporte. ív[ovem-:;e com esforço,
apinhados até o estribo. Coisa curiosa, todos os passageiros procuram
dar as costas uns aos outros, para evitar contágio. Nas p;iradas, o bonde
despeja homens e mulheres, doidos por afastar-se, isolar-se". 25
Como o egoísmo de cada um passa a ver no outro um pedaço da
fatalidade que pode lhe destruir, o homem 1.ende a se isolar, a negar o
outro, a fechar-se num mundo próprio. O espaço público transforma-se
numa ameaça e cada gual procura refúgio em sua casa, em seu quarto,
afastado dos demais. O diálogo é evitado, não há espaço para o exercício
da política, a sociedade desagrega-se. Novamente, a grande beneficiada é
a própria "peste". A separação que ela produz entre os habitantes só
serve para fortalecê-la, para torná-la ainda mais poderosa e despótica. Na
verdade, o isolamento que os indivíduos se auto-impõem transforma-os
em agentes, collaborateurs26 (colaboradores) da "peste".
Em outra anotação chamada "Exortação aos Médicos da Peste", Camus
revela, a um só tempo, a origem e a maneira de se combater a "peste":
"De uma maneira geral, observem a medida, que é a primeira inimiga da
peste e a regra natural do homem. Nêmesis não era, como se diz nas escolas, a
deusa da vingança, mas a da med.ida. E seus terríveis golpes somente atingiam os
homens quando eles se lançavam na desordem e no desequiJJbrio. A peste vem
do excesso. Ela própria é excesso e não sabe se deter. Saibam disso, se quiserem
combatê-la com lucidez.(...) Vocês devem se tornar mestres de si mesmos. E, por
exemplo, saber fazer respeitar a lei por vocês escolh.ida, como o bloqueio e a
quarentena. (...) Muito menos se esqueçam do interesse geral. Vocês não farão
exceção a essas regras durante todo o tempo em que elas forem úteis, mesmo que
seus corações digam outra coisa. O que se lhes pede é que vocês se esqueçam um
pouco o que são, mas sem jamais esquecer o seu dever."27
As lições que a tragédia grega apresenta reaparecem aqui em forma
de tese. A prudência, o respeito aos limites que o homem precisa observar
25 CAMUS,Albert. A Pule. Trad. Gracibno Ramos. 2. ed H.Jo dcJmciro: José Olympio, 1973, p. 71.
26 Assim eram designados os franceses 9uc apoiaram a ornpadio al,mii em Paris na Segunda Guerra.
27 CAJvlUS, AJbcrt F.xlio,1,1111,n u1, 1· i, 1 ;,,. lf,t/.r, 11um•dle1. Paris: NRF/
Gallimard, 199S, l\1l,liothn1u,· ' 1 i ,, n
 1\ 1 \"l 1 > ALVES
em suas ações, a justiça, cnti111. a medida é o ciue preserva os homens da
ameaça, sempre presente, da "p".:'.ste". E mesmo que ela já esteja exercendo
o seu domínio, são essas as armas para combatê-la, para fazer CJUC retro­
ceda, que cesse sua devastação. Mas tudo isso só é possível se a comunidade
estiver unida, engajada no mesmo propósito: repelir a "peste". No
romance, ela somente começa a ser controlada guando, em vez de se
isolarem, os habitantes se unem e a combatem, de maneira organizada,
num esforço continuo e obstinado. A desordem, o isolamento e o
desespero iniciais dão lugar à organização, à solidariedade e à obstinação
de salvar tudo o que puder ser salvo. As meclidas profiláticas e as
organizações sanitárias criadas para combater a "peste" sintetizam, no
romance, a restauração do nómos na ordem abalada pela epidemia. Enfim,
a vitória sobre a "peste" só acontece quando o homem reconhece que se
trata de uma tragéclia coletiva e, no lugar do isolamento individual, faz de
sua cumplicidade trágica com os outros homens um só grito de revolta e
lucidamente dá inicio à tarefa de combater, com as armas de que clispõe
- o cliálogo, a razão, a justiça, a política-, a "epidemia", cuja principal
força está fora dela, está na desorganização e na imprudência dos homens.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A dimensão simbólica que a imagem da "peste" guarda em nossa
cultura parece bastante eloqüente e merecedora de nossa atenção, homens
de inicio de um novo mi1ênio, mas também às voltas com graves epidemias
físicas e sociais, e pouco clispostos a reconhecerem-se responsáveis por
elas e sequer, muitas vezes, dispostos a combatê-las.
Já é um lugar-comum que a desinformação e a irresponsabilidade
político-social são, via de regra, as grandes molas propulsaras das
"epidemias" (pense-se, por exemplo, na AlDS, ou na atual insegurança
pública que grassa no Brasil). Na verdade, as armas mais importantes
para a prevenção e o combate às epidemias acabam sendo, grosso modo,
aquelas mesmas desde sempre reivindicadas pelos gregos para a
consolidação da vida p -!Í'Í,· , , , 1 , · 1· ntn L' .t cooperação (ou
cumpücidadc) enu·e m 11 , : , 1,, ,1, 1. , ,11 a cumplicidade,
D1RE1 ro E PoLfTICA 35
pressupõe confiança recíproca, e para que a confiança entre os homens
cresça é preciso que a justiça impere. Platão, em sua &pública, fará desse
raciocínio um dos principais argumentos para refutar a afirmação de
Trasímaco de que "a injustiça é mais proveitosa <lo que a justiça". Afirma
o filósofo que até os ladrões ou piratas, quando agem conjuntamente,
precisam observar entre eles algum tipo de justiça, caso contrário não
poderiam executar o plano tramado, isso "porque a injustiça produz nuns
e noutros as revoltas, os ódios, as contendas, ao passo que a justiça gera
a concórclia e a amizade".28 Enfim, a justiça inspira a confiança entre os
homens e viabiliza a cooperação necessária para a realização dos projetos
em comum, inclusive a prevenção e o combate à "peste".
Em última instância, sequer a vida em sociedade é viável onde inexiste
qualquer concepção de justo e injusto. A justiça é como o cimento que
consolida as relações sociais e políticas, ao mesmo tempo que deve ser por
estas relações defendida e promovida. Nesse sentido, a justiça é
simultaneamente a meta e o meio através dos quais a cidadania - e as
dimensões juríclica e política que comporta- se realiza. Assim, pode-se
entender a afirmação ele Aristóteles, na Política, de que "a justiça é a base da
sociedade; sua aplicação assegura a ordem na commúdade social, por ser o
meio de determinar o que é justo", mas que é tarefa dos cidadãos zelar por
ela, zelar pelo poder legítimo que a empunha: "a guarda pessoal do rei é
composta de cidadãos, a do tirano de estrangeiros")lustra o filósofo grego.29
A injustiça que está na base da usurpação do poder político pelo tirano, ou
de qualquer ideologia totalitária, faz dele alguém desconfiado em relação
aos seus concidadãos, torna o uso da força, e não a justiça, a cinta através
da qual ele procura manter a unidade social, mas sempre às custas de um
esforço e uma vigília permanentes, às custas de um poder tão arbitrário
quanto aquele exercido pela "peste", às custas da desmedida, da supressão
do Direito e da Política, entendiJos na sua pleniL11de.
28 PLATAO. A Tvp,íbliw. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 7. ed. Lsboa: Calouste Gulbenkian,
1991. Livro l. r- 46
�1 1 •1 f 1' 1 1 1 '- ,, , f", ,d l'vLírio da (;ama 1':ury. 3. c.:d. Brns1lm: l�d 1 t<P I ll,11 ·1 r ,1 , 1
, '"''·'"" 1,í.:q, l,l'J(,eJ.ivroY, < .:1p.VIll,pl' 1"
 MARCl:d) AI.VES
E a "peste", ensinam o romance de Camus e a própria história ,
nunca está definitivamente controlada, extinta . A tarefa de preveni r-se dela
e ele combatê-la é um a tarefa de Sísifo, infindável.30 0 excesso de confiança,
a liás, também é uma de suas poderosa s aliadas. O ci dadão lúcido é aq uele
que não ignora a fragilidade de sua condição e que faz de sua cumplicidade
- constr u ída atra vés do di fícil exercíc io da justi ça e da política - com os
outros homens a arma cotr1 a c1ual faz frente ao império da "peste":
"Sei de ciência certa (sim, Rieux, aprendi com a vida, você me cntcnJe), q ue
cada um traz a peste consigo, porque ninguém, ninguém mesmo, ninguém no mu ndo
está livre dela. E qu e é preciso se vigiar incessantemente para, em lJUalquer minuto
de distração, não respirar na cara do outro e levar-lhe a infecção. O q ue é nan,ral é
o micróbio. O resto, saúde, integridade, purez a, se você preferir, é um c:feito da
1
)
vontade e de uma vontade permanente. O homem honesto, o que quase não infecta
ninguém, é aq uele que tem menos distração possível. (...) Sim, Rie ux, é muito
cansativo se r um empestado. Mas é ainda mais cansativo não querer sê-lo." 31
1 É fácil ceder à tentação de ex e rcer um poder despótico, de impor
arbitrariamente ao outro a minha vontade, de fazer do outro um objeto,
e nfim, é fác i l, muito fácil cai r na tentação de ser injusto e de legitimar a
inj ustiça. Tod a vez que os homens coloca m uma idéia, uma i deologia ,
a cima dos interesses e da dor dos homens d e c a rne e osso c1ue com eles
divi dem a ex i stência, prestam um serviço à "peste" e não à humanidade:
"Quando a morte torna-se coisa de estatística e ele administração, é porq ue as
coisas elo mundo, de fato, vão mal. Mas se a morte torna-se abstrata, é porq ue a
vida também tornou-se. E a vida ele cada um não pode ser mais qu e abstrata a
partir elo momento em que se o u sa sujeitá-la a uma ideologia. f\ desg raç a é que
10 () último parágrafo do romance aproveita o clima de eufori:1 gerndo peb vi_rón:i sobre :1 "peste"
p a ra \rnçar uma a<lvcrtência à postcrida<lc: "Ouvindo o rumor alegre e.la udark, Riem pensava
que C'-"ª alegria estava sempre ameaçada. A. multidão festiva ignorava o que se pode ler_ no� livros:
<, bacilo da peste nfio n-1orre nem desap<Hece, Ílc::1 dezenas de anos a dormir nos moveis e nas
n ,upas, espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas, nos papéi!,, nus lenços - e
chegt1 t:1\vez n dia cm 9L1t\ parn desgraça e ensinamento dos homens, a peste acorda os rntos e �s
,. , 1,\,.\e kit·" (11\�IIIS, t\l\,ert. A l'esle. Trad Gr1,ik11 , J1 "' ' · 1 f',.
( '\,1111 l '/7.1 . \'· 18'>).
, t'-lc. ln J,.u;11e., 1t,1/J. 11um•elles. Pa11s: NRF/G:1!11111,ud, !
;, i, , 1-f2< j Ti.1duç:l.o liv1c.
DIREITO E POLÍTICA 37
estamos no tempo das ideologias totali1arias, isto é, bastante: �eguras Je s1 mesmas,
de sua razão imbecil ou de s u a curta l'erdadc, para ver a salvação d,, mundo fora
de sua própria dominação. E querer dominar algu ém ou alguma coisa é desejar a
esterilidade, o silêncio ou a morte deste alguém."
Entre a carne Jos homens e a p ureza das idéias, a distânc ia ex.istente
pode se tornar fatal à carne, quando as id éias ganham a falsa legitimidade
q ue a forma pode lhes empresta r. Os homens matam por urna i déia, e
q uando esta i déi a lhes parece de alg uma maneir a justificável, eles aceitam
de bom grado matar ern nome d o "Puturo", da "Verdade", da "Justiça".
A abstração se sobrepõe à carne e toda a lógica da força ini cia entã o a sua
" e pidemi a". A c.1uestão c1ue se apresenta a cada cidadã o é: colaborar ou
não com a "peste"? E aqui não há meio termo, pois a omissão é uma
fo rma de favorecer o seu avanço. A questão também p ode ser colocada
em outros termos: servi r à justiça, aquela que reconhece a dor dos homens
e o seu desejo de felicidade, ou à "peste"?
O luga r do Direito na Política está em alg um lug:u entre a
legitimidade das forças q ue atuam na organização d a polis e a construção
d os espaços que garantem aos cidadãos a reivindicaçã o e a implementação
dos valores e procedi mentos que realizam efetivamente a liberd ade e a
justiça nece ssárias à vida política e ao própri o direito. Nesse sentido, é
mais corr eto afirmar que não há um lugar do'Direito na Politica. A
subordi nação não contempl a a interdependênci a que necessariamente
há. Mais correto talvez seja dizer q ue Direito e Políti ca compõem o amplo
espaço que viabi liza e se materi al iza pelo exercício d a cidadania , e que
somente atra vés dela deix a de ser uma abstr ação, deixa de ser vir à "peste"
para se rvir ao fim da polis: o be m c omum.
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MANN, Thomas. /1 morte em Veneza. Tra<l. Maria DeLing. São Paulo: i\bril Cultural, 1971. Gasta agora, tão-somente, ajustar o mundo a essa concepção triunfante e
(Col. Os Imortais da Literatura Universal). triunfal. No entanto, de modo paradoxal, ao mesmo tempo em que o
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t
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difusão do regime denominado de democracia. Os países do leste europeu
TUCÍDIDES. F-Iistó,ia dag11erm do JJelopom.ro. Trad. Mário ela Gama Kury. 3. ecl. 13rasília:
eram "democracias populares", embora os países ocidentais se arvorassem
Editora Universidade de Brasília, 1999
como os detentores do monopólio do Estado democrático. Será 9ue não
existia nenhuma diferença entre ambos? Mesmo no bloco ocidental, será
que não há diferenças entre, v.g., a democracia norte-americana e a

O autor é llaclurel e J\·lcstre cm Dirci10 pela Univcrsi,fade federal de Santa Catarina (Uf'SC);
Coo,dcnador do Curso de Relaçúcs Internacionais da Uni,·ersidadc do Vale do ltajaí (UNI V,\LI).
\ 1, ,.·· ,.,,1111011i 1/(Cun1ih:i· Juru�, 200))
· ,d.1.111rr, 1 IX
 40 PAUi.O E�1í1.10 VAUTIIIER Brnu;Es Ili· M/\CJ:Do
brasileira? Terá a democracia tornado-se um conceito tão amplo que possa
abarcar qualquer regime ) Relacionado a essa indagação, resta ainda uma
derradeira: será a democracia um conceito unívoco?
A respeito d esse tema, não se pode ter uma pretensão positivista
de se chegar a um acordo sem:'intico. Democracia não pode ser objeto de
uma definição operacional, mas ela implica urna definição conceitual , 3
pois, ainda que exista urn consenso em torno de si, certamente há um
profundo dissenso sobre a sua interpretação. Antes de se tornar um
estandarte de políticas c..:xtcrnas nada democráticas, a democracia foi e é
uma construção do gênero humano; e, corno tal, encontra-se sujeita a
urna apropriação polissêmica.
l DEMOCRACIA DOS ANTIGOS E DEMOCRACIA DOS MODERNOS
A democracia nasce na Grécia. Para o filósofo Karl Popper, isso
representou um princípio de evolução para uma sociedade aberta. "Nossa
civilização ocidental começa com os gregos. Foram eles, parece, os
primeiros a dar o passo do tribalismo para o humanitarismo."4 Todavia,
entre os gregos, a democracia não foi reconhecida como urna panacéia.
Platão a considerava a terceira forma mais degenerada dos governos reais. 5
Ele tinha clara preferência pelo governo do melhor, ou dos melhores.
Mesmo Aristóteles, ao analisar as formas puras e corruptas, classi fim a
democracia como a pior das formas puras e a melhor das formas corruptas
de governo. 6
"Democracia" significa governo de todos ou de muitos. Essa
definiçã o foi cunhada para distingui-la da monarc1uia - ou governo de
um só - e da aristocracia - ou governo de poucos. Mesmo assim, na
Grécia, os direitos políticos da democracia só eram reser vados aos homens
Lvrcs e nacionais. As mulheres, os escravos e os estrangeiros eram excluídos
3 Cf C,\Rl1,\l ll·.R, Dnv1d. \"rmn ,dlim, p. 144.
11( l I l ·, • ,., ,,. í, v 1 p 187 Tr�d11ç:1o livn·
1 •
() 1 r ., ': ,,, 11111.,, tft')!.Ol'tJII(•, 1'· 58
DIREITO E PüLITICA 41
ela cidadania. Como as polis gregas eram relat ivamentc pouco populosas,
se comparadas como as nossas cidades atuais, era possível a todo,, cidadão
- aqui entendido na acepção grega - participar da vida politiG, de suas
sociedades. Contudo, as decisões não poderiam ser tomadas por
unanimidade; surgiu, desta feita, o critério essencial a uma demc,cracia: a
regra da maioria.
A democracia moderna e a antiga têm em comum o critério ela
maioria. São as decisões e.la maioria que prevalecem. Se ,�sses cc,mandos
traduzem o certo ou o errado, ou se l1á respeito pelas opiniões minoritárias,
isso não se discute. São os Lmites da democracia. Foi preciso inserir outro
valor para coibir os abusos de uma maioria totalitária.
No entanto, o (1ue mais salta aos olhos não é o referencial comum
daquelas concepções de democracia, mas as suas diferenças. A
democracia moderna é um sistema indireto. Os antigos não conheciam
o instituto do mandato. Para eles, o poder só poderia ser exercido pelo
seu titular, sem delegação nenhuma. O poder não pode ser transfericlo;
se isso ocorrer, foi alter:i.do, na verdade, o soberano. Rousseau,
considerado pai da democraci a moderna, compartilhava dessa
preocupação; tanto que chega a advogar o tamanho ideal que uma cidade
deve possuir. A distinção entre poder e exercício de poder não faz
sentido. A vontade geral só tem um único titvLar, e ele deve exercer o
poder diretamente.
2 UM PARÊNTESE CONTRAHJAllSTA
Quando se fala em Rousseau, faz-se mister abrir um parêntese
para tratar de uma cortente que permeia a moderna concepção de Estado
e sociedade: o contratualismo. Desde o século XVII (Hobbes) até os dias
atuais (Rawls), essa escola tem fornecido um padrão de legitimidade -
real ou construído, explicativo ou justificativo - ao poder estatal. A idéia
básica é relativamente simples: antes do ad vento do Estado, os homens
viviam num estado de natureza, em que não há autrlticl8df', mas os direitos
n tur.11s tamb(m não são garantido,. I', ,1 'J 1' , 1" llllC!lS
,lr·ridem submctu-se a um sobnan" e. a:-.,11,. . :.!llllCZa
42 PAULO EM1u,1 \'\11T111ER B0RG1:s DE MACEDO
e entram para o estado civil. Trata-se de um formidável cnteno de
legitimidade do poder, pois funda este no direito, num instituto de direito
civil: o contrato.
Contudo, há diversos contratualismos. Para Thomas Hobbes, o
estado de natureza é perverso: os homens vivem num estado de anarquia,
no pior sentido da palavra. Trata-se de um locus de medo e de guerra
perpétua, em que o homem é o próprio predador de seus semelhantes. O
pacto de Hobbes é um pacto de sujeição: os homens renunciam a todos
os seus direitos - exceto o direito à vicia - em favor de um soberano.
Trata-se da compra da segurança em troca da liberdade.
"Thomas Hobbes colocara todo o peso de seu engenho sobre um só prato
da balança. Optara pelo Estado e, conseqüentemente, pela servidão. Ele partira
da convicção de que, entre o medo recíproco no qual os homens são obrigados a
viver no estado de natureza e o medo do soberano, era preferível o segundo e
que, no fundo, os homens submetem-se com prazer à obediência a um soberano
para sair da anarquia. Reconhecia que anarquia e Estado eram dois males; mas o
mal menor era o segundo."7
O estado de natureza ele John Locke é menos sombrio. Na ausência
ele um poder superior aos simples indivíduos, cada homem é o juiz de
sua própria consciência.
Em toda a sociedade, existe uma disciplina ou uma lei ditada antes, sem pensar
em mim, ou na vontade de uma pessoa concreta. Locke assinala que a liberdade
não é licença, mas antes consiste em obedecer a lei natural. Esta que é a lei da
razão, tem dois princípios fundamentais: o primeiro, que não est:í permitido ao
homem destruir-se a si mesmo ou a suas posses - o que limita o princípio romano
de que a propriedade inclui o uso, abuso e destruição da coisa. O segundo, não se
pode causar dano a outro ou a suas posses. No estado de natureza, o encarregado
ele velar pelo cumprimento desta lei - sobretudo cio segundo princípio, já que o
primeiro é interno - é cada indivíduo. Todo homem tem doi\ direitos: um, o de
sua liberdade, e o outro, o de castigar aqueles que querem causar-lhe dano em
violação da lei natural.8
:1 1
1'UJ{), Nnil1e1t11. Punlor l·stado 1U1f'r11!<1111wto ;
1, r(l 1Nl)( >NA, t\Iariano. OJ Pe,mu/01e1 d.1 hhtrdadc. li 1 · 1
-- ..::. � .:.
D1REtTO E Pou l'ICA 43
Quando Locke diz que o estado de natureza é o da "perfeita
Liberdade", inclui vários <lirellos básicos: a vicia, as liberdades, a propriedade
e a segurança. Ocorre que os homens nem sempre são racionais: tendem
a usar, de forma desmesurada, a força para fazer prevalecer os seus direitos.
E o estado de natureza, que deveria ser um estado de paz, acaba se
tornando um estado ele guerra. Desta feita, para sair do reino da força, é
que os homens decidem constituir o estado civil.
Assim, os homens abandonam um estado despótico para conservar
os seus direitos. Eles não renunciam a estes na pas,agem para o estado
civil; antes, os homens entram para o estado civil para salvaguardar os
seus direitos. Portanto, a autoridade do Estado - porque pressupõe os
direitos fundamentais - é essencialmente limitada.
O contratualismo de Rousseau é um tanto singular. A exemplo do
que ocorre em I lobbcs, o pacto social é também um ato coletivo de
sujeição e de renúncia,
"mas - e aqui está a diferença fundamental que deixa Rousseau como o
teórico mais conseqüente do Estado clcmocránco - a renúncia não é feita cm
favor de um terceiro, mas por cada um cm favor de todos, ou seja, c�da
indivíduo (considerado singularmente) para si mesmo (como membro de um
totalidade)". 9
Trata-se também de um contrato em cjue se alienam todos os
direitos, mas estes são alienados em favor de um corpo político do qual o
indivíduo toma parte, e que, para Rousseau, acaba por não haver qualquer
diferença entre ambos. Assim, a liberdade natural é abandonada, mas
retomada como liberdade civil. Consoante o próprio Rousseau define o
contrato: "Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de
toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual,
cada um, unindo-se a todos, não ohecleça portanto senão a si mesmo, e
permaneça tão livre como anteriormente." 1 º
----- - -----
9 !l<)llJII! >t!,,I " "·,· • ,.111 ·Ir F.111r11111,I Kant, p. 46.
to 1(, 11 , ,
-
� .
1
l',\llLn EMILIU VAlJ'I IIIER BuRGl·.S Ili· t,/l \CEllO
3 LlllERDADE POSITIVA E LIBERDADE NEGATIVA
Esse prolongaJo parêntese mostra-se necessário à medida l1ue
evidencia a diferença de concepção de liberdade que existe entre a
democracia e o liberalismo. Locke entende a liberdade numa acepção
negativa; ou seja, de não-impedimente-, a facu]dade de agir sem encontrar
obstáculos. Quanto maior for o fünbitD no qual o indivíduo pode mover­
se sem ser impedido pelos "outros" - subentenda-se aqui o "Fstadn" -
n,aior será a sua liberdade. 11
Já o conceito democrático de liberdade é fundamentalmente
distinto. Liberdade é sinônimo de autonomia; isto é, cu sou Livre à medida
que obedeço às regras ljUC cu mesmo cLito. Trata-se de um conceito positivo
'li'
de liberdade. Assim, em Rousseau, o homem, no estado civil, é livre,
porque obedece às normas que ele mesmo prescreveu.
[� certo que é possível imaginar uma relação de complementaridade
:,
entre ambos os conceitos. Se, ao inc!ivíduo, é facultada uma esfera de
atuação isenta de impedimentos estatais (liberdade negativa), ele poderá,
dentro desse campo, ditar suas próprias normas 0iberdaclc positiva). Desse
modo, tJuanto maior for o alcance da Liberdade negativa, um maior número
de condutas poderá ser regulada pela liberdade positiva. De outro lado,
parece lógico supor gue, quanto maior for a autonomia (liberdade positiva)
conferida a um indivíduo, mais livre de obstáculos (liberdade negativa)
será a sua ação. Aliás, esse é o sentido da seguinte afirmação de Locke, ao
caracterizar o estado de natureza:
"é um estado c.le perrwa hbmlade para l'Cf!,11/ar as própnc/S ações e dispor das
próprias posses e elas próprias pessoas, como acreditar melhor, dentro dos limites
ela lei natural, sem /Jer/irper111úsâo 011 depender dr, vontade de 11in;,11é111 mail''2 (grifo
nosso).
Não deve caus:u espanto o fato de o conceito de liberdade positi­
va aparecer de forma implícita em _lohn Locke, o pai do liberalismo. Em
li (1.Jl<llli'l<l . 1
1� B<lBB!t >. �J,.,1. , .. 1 1
DIREITO E P< )Li 11( 'A
momento ,ilgurn, o autor c:,,tava defendendo a liberdade como autono­
mia. Arguto, Locke apercebera-se que esta poderia surgir somente no
estado de 11at11rezp, no qual inexiste autoridade acima dos indivíduos gue
venha a or;,;anizar a vida em sociedade. No estado civil, o homem não é
mais encarregado de zelar pelo cumprimento da lei natural; o ente res­
ponsável passa a ser o Estado. Com o advento deste, a autonomia cede
espaço à hderonomia.
Apesar dessa discordância entre Lbcrais e democratas, a democracia
moderna é fruto do casamento do liber.tlismo com a democracia; as duas
concepçõc:; de liberdade permanecem �m sempiterna tensão no interior
do Estado contemporâneo. D o ponto de vista da teoria geral do Direito,
a Liberdade negativa apresenta-se come, uma permissão legal oriunda da
inexistência de uma proibição específica. De fato, costuma afirmar,-se
que as pessoas são livres para fazer tudo o que não for defeso em lei. E o
caso do vizinho que, após consultar as respectivas leis municipais, sabe
que pode construir um muro divisório, pois não há nenhuma norma que
o impeça.
O mesmo não ocorre com a libercladc positiva. Esta é proveniente
de um comando permissivo específico; não se trata da ausência de uma
proibição, mas da presença de um outro imperativo que obrigue a conduta.
É o caso de um restaurante que proíbe o ato de.fumar em quase todo o
seu estabelecimento, e destina uma sala para os fumantes - sala essa que
deverá ter um cartaz expressamente permitindo o fumo, pois se presume
gue seja proibido. É, o exemplo também da vontade da administração
pública, a qual depende de lei permissiva para poder atuar.
No primeiro tipo, a regra é a liberdade, e a exceção é a proibição.
No segundo, ocorre exatamente o inverso. A liberdade negativa é, portanto,
uma não-obrigação; ao passo que a positiva revela-se uma obrigação. 13
De fato, elas são antitéticas.
- - ---------
1 p11,: "t·j,1 0111� :wlo obrrgn.çflo - e é essfl. rn.r:,cterísric:l <IUt' pnim11·. r tod:-- :1 l iftrt�n,·:1
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4 (, PAULO EMÍLIO VALlrllll,I( Br>l((i['.; llE MACEDO
4 A SEPARAÇÃO ENTRE AS DUAS LIBERDADES
Por essa razão, a democracia moderna é uma mvenção recente,
data da segunda metade do século XlX. 14 Até então, liberais e democratas
olhavam-se mutuamente desconfiados. Os primeiros acreditavam que o
critério da maioria seria insuficirnte para salvaguardar as liberdades civis.
Benjamim Constant não escondia o seu temor da chamada "democracia
totalitária": 15
"A liberdade individual, repito, eis a verdadeira liberdade moderna. A liberdade
política é a sua garantia; é, ponanto, indispensável. Mas pedir aos povos dos
nossos dias 9ue sacrifiyuem como agueles ele outras épocas a totalidade da sua
liberdade individual à liberdade política é o meio mais seguro de afastá-los ela
primeira, e, 9uando isso for conseguido, não tardará que deles seja arrancada a
outra.." 16
Até mesmo no termo que designava o governo proposto por cada
corrente, liberais e democratas diferiam. ]� certo que as palavras
"democracia" e "república" designavam, originariamente, o mesmo
sistema político, e a sua diferença procede apenas do idioma - grego e
latim - do qual vieram. No entanto, em 1787, sem qualquer fundamento
histórico, James Madison escreveu um panfleto com o fito de angariar
apoio para a recém proposta constituição norte-americana. Nele, o autor
distingue "democracia" - uma sociedade composta por um pequeno
número de cidadãos, que se reúnem e administram o governo diretamente
- de "república" - governo no qual subsiste a representação política. 17
A proposta de Madison, contudo, não se apresentou de forma
isolada; antes, era o que se podia chamar de "estado da arte". Liberais e
1 ·1 c.r llOBlllü, Norberto. Lhm,/111110, de11101mcin, p. 52.
1S Infelizmente, o século X.X acabou contirrnando esse temor. l3nsrn .ucmar par:1 o faw de que n..;
turnlirnrismos subiram ao poder, na Alemanha e na ltálb, com o apoio popular. A China, durante
a llcvolllç:lo Cuhurnl, é outro exemplo de cumo as decisões da maioria nem sempre são an:rrnd:ls.
1 f) nr-o;-;a form:1, não era de todo C!Stranho que os Estados libernis adornssem :1lguin tipo de votn
,, f 'l'i\T,\NT. lfrn1a1111rn. Discurso soh1c a li\1c1 !.lei, lc . 1,1,,, , 1·,1 • 1 I, ,Ir
• f1i1,! J',í 11\JH(), N(>rhcrto. Teo1w.�cmldt1pol!l1t·,1. I' 11,1
1 , 1 1
1 ·<, - h1·1 r t )11 / )emot1n(J. 11· 16. T1 ,1<l U(,.àU liv1<.:.
D1REITO E Pot.íTICA 47
democratas queriam acentuar suas diferenças e, rara tanto, importava
defender sistemas políticos distintos. Essa rusga pode ser evidenciada
por dois eventos. O primeiro, e o que mais obteve repercussã() no
imaginário político, foi o fato de Robespierre ter chamado o seu governo
de "democracia", em homenagem ao ideal clássico que inspirava a
Revolução Francesa. Como resultado do terror, a expressão iria perma­
necer desgastada por boa parte do século XIX.
A segunda ocorrência que vai distanciar, ainda mais, os liberais
dos democratas é a distinção que também o filósofo de Koenigsberg
realizou entre "república" e "democracia". Para Kant, as formas de
governo podem ser classificaJas por meio ele dois critérios de diferen­
ciação: segundo as pessoas que detém o poder soberano, ou segunJo o
modo de governar.
"(...) ou bem um manda no Estado sobre todos, ou alguns, que entre si são
iguais, unidos mandam sobre todos os demais, ou bem todos juntos mandam
sobre cada um, portanto, também sobre si mesmos; isto é, a forma do listado ou
é autocrática, ou aristocrática, ou clemocrática."18
E, em relação ao segundo critério:
"A segunda é a forma de governo (forma regú1111111) e refere-se ao modo, baseado
na constituição (no acto da vontade geral pela qu�I a massa se torna um povo),
como o Estado faz uso ela plenitude de seu poder: neste sentido, a constituição é
ou rcp11hlica11a, ou despótica." 19
Assim, para Kant, o Estado pode dividir-se segundo a tipologia
clássica - monarquia, aristocracia ou democracia -, definida por
Aristóteles,2° ou segundo o critério do uso legítimo desse poder; e aí a
distinção será entre república e despotismo. Kant entende república no
sentido original de res publica, ou governo no qual o múnus público, a
coisa pública, é destinado ao benefício de toe.los. Desse modo, poderia
18 KANT, lmmanuel. Ln ,\/rtaf,Jiw ,/; /.1I ros/11111bn·s, p. 17(,. Tradução livre.
11) Idem,.· i Pc1z.pop,á":, 1
21) < .u111p1 e s:1lierna1 qu•·
 4X l'AUI e, E�1111ci V AUTllll'R 13u1<c .J:S DE M l'll:1iu
existir ,ité !Tlesmo uma monarquia repu!)licana. Mas, afinal, c1ual vai ser a
1
diferença entre o governo republicano � o despótico ;.i
"() republicanismo é o princípio pol,tico da �cparaçào do poder executivo
{gllverno) do legislativo; o despotismo é o princir-io da execução/arbitrária pelo
Estad,) de leis que ele a si mesmo deu, por cor seguinte, a vontade pública é
manejada pelo governante como sua vontade pri, ada."21
A nota distintiva, nesse caso, é a consagrada fórmula liberal da
separação dos poderes. Cumpre salientar que é esse o mecanismo que vai
impedir o Estado de tomar a vontade p,.'.iblica como vontade privad:l. U
filósofo argumenta que a pessoa que se encontra no dever de obedecer às
11,:1
leis não pode ser ao mesmo tempo o legislador dessas mesmas leis. Por
1
isso, o instituto ela representação política impõe-se como uma necessidade
para as repúblicas. 22 É nesse sentido 9ue cabe a separação entre o executivo
1' (o governo) e o legislativo (encarregado ele representar o povo).
'
Kant, além de demonstrar sua clara preferência pelo governo
republicano - conforme o termo "despotismo" que usou para contrapor
-, não esconde suas críticas à democracia. Afir ma c1ue se trata ela forma
ele governo que mais se aproxima cio despotismo:
"Das três formas de Estado, a democracia é, no sentido próprio da palavra,
necessariamente um despotislllo, porque funda um poder executivo em que todos
decidem sobre e, cm todo caso, também contra um (que, por conseguinte, não dá
o seu consentimento), portanto, todos, sem no entanto serem todos, decidem - o
que é uma contradição ela vontade geral consigo mesma e com a liberdade." 23
Vale a repetição: Kant afirma que a democracia é a forma ele
governo que mais se aproxima do despotismo. Portanto, é também a
mais distante ela res puhlica liberal e da separação ele poderes.
21 Idem, ibidem, p. 130.
22 É certo que Kant também define a l1Gcnl,ulc: r, ,mo ,1ull>1HJ1nia; por�m. diferentemente de Rousseau,
o filósofo alemão acredita no instituto da rcp1cst·nl:1\·àn. O instituto da represcnrnção não se revela
m�is um triste fado 9ue decorre dn :1:1mcn1 1 1 , ... ,,,... ,,1,rlf11t:d Trata-se de uma opç�o. ,\ liberdade de o
mdidduo obl'dccn :1s n, ir 'l 1 , p ·tql ·nm :1 1<.·p1c�ent:1�·ào f; po1 essa
,az�o lJlll' c:lc pode :1fi11•,,11 1 •
2.1 Idem, 1b1Jem, /Í /"'Zi''-l"'' ·, 1
DIRl'ITU I' POLÍTICA
5 Ü CASAMENTO DAS DUAS LIBERDAlJES
Então, diante de tamanhos mitos, como iria realizar-se a união da
democracia com o liberalismo? b: certo que, apesar do panfleto de
Maclison, os norte-americanos passaram o século XVIII inteiro e parte
cio XTX a empregar os termos "democracia" e "república", de modo
indistinto, para denominar o seu própric, sistema ele governo. 24 Ainda
assim, isso seria insuficiente para consagrar esse matrimônio. Era preciso
que um importante escritor político captasse essa indistinção cio imaginário
coletivo.
Para 9ue se compreenda o que veio a ocorrer, é necessário tecer
algumas breves considerações de ordem histórica. "O século XVI1I é o
da vitoriosa irrupção da idéia de liberdade. No século XIX, avançam as
idéias sociais; a idéia ele liberdade começa a estar na defensiva contra
movimentos de raiz democrática e depois socialista."25 Os autores liberais
no século XlX encontram-se acuaclos ante o avanço da idéia de igualdade,
o qual parece ser irresistível. A única saída que resta é a ele salvar a lfüerdade
individual em vista dessa inevitabilidade.
No dia 11 de maio de 1831, um jovem francês de origem nobre
desembarcou do navio President, em Manhattan, com o objetivo ele estudar
o sistema penitenciário dos Estados Unidos. Entre 1835 e 1840, Alexis
de Tocqueville publicou as suas impressões sob�� essa viagem. O autor
chama de "democracia" aquele processo de avanço da equalização das
condições, ou melhor, da idéia de igualdade, que nos EUA se produziu
sem sacrificar, de todo, a liberdade: 26
"Dessa forma, à medida ljUC estudava a sociedade americana, via cada vez
mais, na igualdade de condições, o fato essencial, do qual parecia descender cada
24 (f. DAI IL. Robert. 011 democmry, p. 16.
25 GRONDONt\, Mariano. Os p,usatlores tia liberdade: de John Lockc a Robert Nozick, p 85
26 "Umíl grande revolução democrá1icn arhn-se em curso entre nós; todos as vêcm; nem todos, no
enrn1110. a JUl!,!am J:i 1ncsma r:iane1rn. Consideram-na uns como coisa nova e, tornando--1 prn um
1· ,,, •• , ;1111,Li cktê-h, ;10 passo que outros a julg:im 11rc"hl1\·1·! I' 1!1,
,t1t11 111, rn;d\ ;111 t 1 1�1 e mais /H'lrn:1ni.:ntl' 1.i (O .11 1,' ,
\! \!S d' ·1 tltll/O/r/11,I "" .·/111n1ca, P· 11)
 ,..,..
PAL'I o EMÍLIO VAUTHll,R 80JH,1 � l)f MACEDO
fato parl!cular, e o encuntrava C(Jnstantemcnte diante de mim, como um ponto
de convergência para todas as minhas observações."27
Cumpre salientar gue, quando Tocqueville utiliza a expressão
"democracia", ele não se refere a uma forma de governo. Trata-se de um
processo social, sem precedentes, gue havia libertado os homens, de uma
forma geral, e atingido todos os homens, não apenas uma parcela. Na
[dadc Média, um servo estava tão sujeito à natureza como o senhor feudal,
mas a sua condição social diferia. "Hoje, Rockfeller tem uma situação
económica rnuiússimo melhor do que um cidadão que se encontra em
uma rua de Nova York, mas os dois têm a mesma 'condição': são cidadãos.
Nenhum goza de um privilégio especial, os dois aceitam a Coca-Cola." 28
Tocqueville, como os demais liberais, também alerta para o perigo
gue ele denominou de "onipotência ela maioria".29 Todavia, seu mérito
1
! foi o de reunir a expressão "democracia" com "república": república
democrática.}º Se o autor resgatou o termo da antigüiclade clássica, ou
apoderou-se de um uso comum, não importa. Importa apenas que a
palavra "democracia" voltou à cena política e se inseriu na filosofia liberal.
A democracia moderna constitui, portanto, o resultado do entrecru­
zamento da liberdade negativa e ela liberdade positiva. Por que esses dois
conceitos foram necessariamente agrupados? A resposta é bastante
simples: um corresponde ao meio para se atingir o outro, que é o fim.
,1
Kant, apesar de ser tido como um autor liberal, enuncia, ele forma
explícita, a liberdade cm sentido positivo: "(...) a liberdade legal de não
obedecer a nenhuma outra lei, senão àquela que tenha dado seu consenti­
mento".}' O filósofo alemão chega, por vezes, a parecer um defensor ela
democracia: "(...) só a vontade concordante e unida de todos, à medida
que decidem o mesmo cada um sobre todos e todos sobre cada um,
27 TOC(JUEVJLl.li, J\lcxis de.A de111omuia11aA111ilico, p. 11.
28 <; Hf)NI)( >NA, ,\!ariano. Os pewadom da liberdade: de John Locke a Robert Nozick, p 87
• ! / �: 111t>1,ifi1ut1 de lm roftumh,rs, p. 143. Tra<luç:io li,·rc.
DIREITO 1: POLÍTICA 51
somente a vontade popular universalmente unida pode ser legisladora."n
Sabe-se que Kant está falando da resp11/Jlica, mas essa formulação pressupõe
a Lberclade positiva. O autor da Cdtica da Razão Pura acreditava no instituto
ela representação; por isso, diferentemente do que ocorre com Rousseau,
a concepção ele liberdade corno autonomia não conduz, de modo neces­
sário, à democracia.
Mas por c1ue Kant tem a necessidade ele defirúr Lberdade política
como autonomia? A respostt a essa indagação encontra-se relacionada ao
fim do Estado e, para os efeitos dessa investigação, do Estado liberal. A
jjberclacle positiva é o meio para atingir-se a liberdade negativa. Trata-se de
uma sutil relação entre os fins individuais e o fim da sociedade poütica.
"Qual é o fim do Estado segundo a concepção Liberal? É a liberdade individual.
Segundo essa conccpção, o Estado é tanto mais perfeito 4uanto mais permite e
garante a todos o desenvolvimento da liberdade individual. Dizer que o Estado
tem como fim o desenvolvimento da liberdade individual significa também Jizer
4ue o Estado não tem um fim próprio, mas que o seu fim coincide com os fins
múltiplos dos indivíduos. Portanto, sua tarefa não é prescrever fins para cada
indivíduo, mas atuar de maneira que cada indivíduo possa alcançar livremente, ou
sqa, numa snuação de liberdade externa garantida, os próprios fins."J.l
J�: somente por meio da capacidade ele ditar suas próprias leis (civis)
- liberdade positiva - que os indivíduos podem buscar a felicidade. O
Estado não deve definir a felicidade: essa é uma 'tarefa individual. Cabe
ao Estado oferecer as condições dessa busca. Desse modo, ao permitir que
cada qual busque a sua própria felicidade, o Estado Liberal consegue realizar
a sua finalidade: a expansão ela Liberdade negativa.
Assim, o casamento do liberalismo com a democracia foi bem­
sucecliclo: não se pode mais conceber um sem o outro; o método demo­
crático é necessário para garantir os direitos fundamentais, e a existência
desses direitos é a maior salvaguarda contra desmandos autoritários. É
verdade gue as Liberdades negativa e positiva não podem realizar-se de
.\2 ldc-111, ,l,,dm1, p 1 ·11 Tradu1 ,,. 11· ,
J} lJ( Jllll!U, Norbcno. / lm,111,, ,1,,.1, , ,(
52 PAlll () EMiLIO VAlJTIIIER BORGES OE MACEDO
forma plena. Por exemplo, o respeito à existência das minorias, bem como
à possibilidade de virem a se tornar maioria, impede a irrestrita aplicação
do princípio da maioria. Entretanto, o saldo final é bastante positivo: a
moderna democracia é o governo que permite a coexistência - ainda que
parcial - dos valores liberdade e igualdade.
Esse sistema compõe-se de alguns preceitos mínimos, as chamadas
"regras do jogo":
"a) todos os cidadãos que tenham atingido a maioridade, sem distinção de
raça, religião, condições económicas, sexo, etc, devem gozar dos direitos políticos,
isto é, do direito de exprimir com o voto a própria opinião e/ ou eleger quem a
exprima pro ele; b) o voto de todos os cidadãos dc.:vc ter peso idêntico, isto é,
deve valer por um; e) todos os cidadãos que gozam cios direitos políticos elevem
ser livres para votar segundo a própria opinião, formando o mais livremente
possível, isto é, em uma livre concorrência entre grupos políticos organizados,
que competem entre si para reunir reivindicações e transformá-las em deliberações
coletivas; d) devem ser livres ainda no sentido em tiue devem ser colocados em
condição de terem reais alternativas, isto é, de escolher entre soluções diversas; e)
para as deliberações coletivas como para as eleições dos representantes deve valer
o princípio da maioria numérica, ainda que se possa estabelecer diversas formas
de maioria (relativa, absoluta, qualificada), em determinadas circunstâncias
previamente estabelecidas; Q nenhuma decisão tomada pela maioria eleve Limitar
os direitos ela minoria, em modo particular o clireit,l de tornar-se, em condições
ele igualdade, maioria."l4
As regras do jogo traduzem, de forma resumida, o cmeno da
maioria a crescido dos direitos políticos e suas correspondentes
salvaguardas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: EVOLUÇÃO
Se a democracia moderna apresenta-se como o fruto da união do
liberalismo com a democracia, ela não é apenas isso. Outros fatores foram
introduzidos, e a equação sofisticou-se. As sociedades tornaram-se mais
complexas e populosas, e alguma adaptação foi necessária. Alguns
ÜIREIHl E PüLITIC'A
problemas referentes à administração do Estado, c1ue eram antes ele
natureza política, transformaram-se em c1uestões técnicas. Trata-se d()
advento de um fenômeno que os cientistas políticos denominam de
"tecnocracia": 3, a gestão do Estado ficou complexa demais para os políti­
cos tradicionais e passou a demandar a figura do administrador.
A tecnocracia põe em xeque tanto a liberdade democrática, como
a liberal. Há determinados temas para os quais não se pode consultar a
população, pois esta não tem conhecimento técnico para tanto. Tampouco
os burocratas que tomam essas decisões podem sofrer alguma espécie de
constrição, pois essas questões precisam ser resolvidas rapidamente. Não
se trata de devaneio; a condução, v.g., da política econômica do Estado se
tornou ininteligível para o comum dos mortais, e apenas pessoas
qualificadas podem assumi-las. Ademais, os problemas econômicos exigem
respostas velozes, agilidade com a qual o Legislativo não está acostumado.
Desta feita, a política econômica de um país não precisa, nem pode, passar
pelo escruúnio do debate e da aprovação pelo Congresso; o Executivo,
mesmo sem legitimidade para tanto, é quem tem velocidade para essa
dé111arche. Esse fenômeno, cm maior ou menor grau, ocorre em todos os
Estados ocidentais.
Cumpre salientar que a democracia não é um projeto acahado.
Trata-se de uma eterna construção e não poderia ser diferente, pois as
sociedades humanas não se encontram paralisadas no tempo. A democracia
propõe ao homem a maturidade, não a felicidade. Numa sociedade fechada
e não-democrática, o homem é uma criança, vive em estado de
menoridade. O indivíduo que assume sua vida em liberdade é adulto,
mas não significa que tenha alcançado a felicidade. A liberdade constitui
um risco, uma carga desagradável e perigosa. A ignorância é uma bênção.
REFERÊNCIAS B1!3LIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norbcno. A teo,ia dasformas degoverno. Trad. Sérgio I3arth. 9. ed. Brasília: Ed
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 54 P\l ui EMíuo VAUTIIIER 801(G1,s DI MAcr.11(1

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DAHL, Robert. On delllocracy. London: Yale Univcrsity Press, 1998.
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Ubiratan de Macedo. São Paulo: Mandarim, 2000. derado por Isaiah Berlin como o fundador do liberalismo moderno2-,
HOBSBAWM, Eric. The Age of extrellles: a history of the world, 1914-1991. Nova York: percebeu o quanto democracia e igualdade estavam criando uma sociedade
Pantheon Books, 1995. em que os objetivos humanos iam ficando mais estreitos, em que a
KANT, Immanuel. La metafúica de /m cosl11lllbres. Tracl. Adela Orts. 1 ecl. Madrid: Tecnos, originalidade e a capacidade individual iam sendo substituídas pela
1999. "mediocridade coletiva". 3 A ênfase que dá à liberdade e ao individualismo
____. Apazperpétz,a e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, como fundamentos do bem-estar, é, antes de tudo, urna tentativa de
1995.
aperfeiçoar a democracia com homens e mulheres melhores, o que no
PLATÃO A república. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Globo, 1976.
dizer de Bobbio acaba por representar um fecundo encontro entre as
POPPER, Karl. The open Jociety a11d itJ enemies. 5. ed. New Jersey: Princeton University vertentes dos pensamentos liberal e democrático. 4 Já para Merquior, On
Press, 2 v.
liberry é um manifesto do individualismo, uma exaltação à liberdade, de
ROUSSEAU,Jean-Jacques. O co11trato social e outros escritos. Trad. Rolando Roque da Silva.
modo a considerá-la como essencial para o autodesenvolvimento,
14. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
revelando assim um ponto em comum com o liberalismo autotélico
TOCQUEVJLLE, Alexis de. A democmcia naA111élica. Trad. Eduardo Brandão. Siío Paulo:
Martins fontes, 2001. alemão. Como liberal utilitarista que era, isto é, como alguém que

A aurora é Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria ( UFSM); Mestre cm
Instituições Jurídico-Políticas e Doutora em Direito do Estado pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Professora das disciplinas "His,ória do Direito" e "Sociologia Jurídica"
no Curso de Direito do Campus IV e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da
Universidade do Vale do hajaí (UNIVALI).
2 BERLIN, lsaiah. John Stuart Mill y los fines de la vida. Trad. N. R. Salmoncs. ln: MILL, John
Stuart. Sobrt la /iberiad. Madrid: Alianza. 1986, p. 1 O.
ílERI.IN, lsaiah. John Stuart Milly lo, ji11u de la nda, r 21
4 ( f fl()lll.l!O, N. l.1beralúmoedemocra11aTrnd. 1\f \ ' 1 , d1" 1 J!/RK, p. 72
•
;
 56 ÜANlcLA MESC)l'ITA LELI :CIIUf-- DE CADI MAlffORI DIHEITO E POLÍTICA 57

abandonava as argumentaçôt:s feitas a partir de algu ma posição de "direito Ele acreditou, fundamentalmente, que os homens "só podem
natural"- pretendia colocar a liberdade no centro das discussões, como desenvolver-se e chegar a ser completamente: humanos" quando uma
elemento fundamental da felicidade e formação do caráter, instrumento área mínima de suas vicias é garantida contra as interferências dos outros
no fomento do progresso. A cultura da personalidade necessita de uma homens, isto é, transformada em área inviolável. Só assim há "liberdade",
"individualidade desimpedida e uma esfera abrangente de privacidade". 5 ou a limitação do direito de coação.9
Stuart Mil! partiu da constatação de que em seu mundo havia uma A obra de Mil!, "Sobre a liberdade" (1859), aborda o que chama
tendência ao surgimento de sociedades governadas pdo sentir da maioria, de liberdade social ou civil. Não se refere ao livre arbítrio, mas "à
seguidas ou não por instituições políticas populares. 6 Ele receava, no natureza e os limites cio poder que pode exercer legitimamente a
entanto, assim como TocquevilJe, sua potencialidade opressiva. Seus sociedade sobre o indivíduo",'º com base �m fundamentos que se
! escritos sobre liberdade e individualismo apontam, como único remédio opõem ao liberalismo econômico (livre-cambismo): a liberdade dos
para a opressão, mais democracia. produtores e vendedores no comércio é capaz de assegurar preços baixos
e qualidade, 11 por terem, justamente fundamentos políticos e não

;1
: J
"Só ela pode educar um número suficiente ele indivíduos para a independência,
a resistência e a força. A disposição dos homens de impor suas próprias idéias aos
demais é tão forte, na opinião de Mil!, que somente os restringe o desejo do
poder; este poder vai crescendo; daqui, a menos que se erijam novas barreiras, o
poder aumentará, conduzindo a uma proliferação de "conformistas, aduladores e
hipócritas, criados por uma opinião silenciadora" e, finalmente, a uma sociedade
onde a timidez haverá destruído o pensamento individual e cm que os homens se
limitarão a ocupar-se de questões que não unpliquem em riscos."'
Nas palavras de Berlin, com suas preocupações Stuart Mill parece,
dolorosamente, prenunciar os efeitos desumanizadores da cultura de massa
que implicam a destruição de projetos individuais e comuns, tratando os
homens como "criaturas irracionais" susceúveis de serem manipuladas
pela publicidade e pelos meios de comunicação de massa. 8
econômicos ou na liberdade de atividades 12. No tocante à liberdade de
comércio - embora pensasse que ela não envolvia questões relativas à
"verdadeira liberdade", por ser incompatível com a justa distribuição
dos frutos do trabalho 13 - <leveria ser absoluta, não admitindo
inter venções de tipo algum, mesmo em situações em que o comércio
fosse uma atividade nociva aos indivíduos, como é o caso do comércio
de substâncias venenosas. Nestes casos, só seria aceitável que os
indivíduos fossem advertidos do perigo ou que se exigisse o "testemunho
prévio" (preappointed evidence de Bentham), intervenções que não
implicavam o uso da força por parte do estadÔ'. Stuart Mill acreditava
que quando é a sociedade que tiraniza o indivíduo - "a sociedade
coletivamente, com respeito aos indivíduos isolados que a compõem" 14 -

---- ---- ----

5 MERQUIOR,J. G. O libera/is1110: antigo e moderno. Trad. H. de A. Mcsguirn. Rio de Janeiru: 9 Idem,ibidem, p. 30.
Nova Fronteira, 1991,p. 98-99.
10 MILL,John Stuart. Sobre /11 libertad,p. 55.
6 MIU.,John Stuart. Sobre la libertad,p. 169.
11 Idem,ibidem,p.180-181.
7 Stilo e/la /)J(ede educar a 1111 111í111ero 111.ficienle de 111div1duo1 para la indepuule11ár1, la resútenria _y la fi,e,za. L11
12 Para Alain Touraine,John St11or1 Mill é o caso típico de um autor gue participa de duas correntes
dupo1wóu de los ho111bre1 a impouer m1 propia1 idem a /01 de111,í1 u lanf11ede, en op1!1ió11 tle kl/11, que 10/,11//enle
de pensamento a liberal e a utilitarista, " c1uc íaz a ri4ueza, mas também a fragilidade de seu
lm rt1lringe e/ de1eo dei poder; ute poder va creciendo; de aqui que a menos 1e rjjún 1111tJ'f1J hrureras e/ poder
pensamento ( OURAINE, A. O q11e é a demormn,,? Tradução de G. J. de S. Teixeira. Petrópolis:
f
aumentará, ronduciendo a una prol!feración de ''co11Jor11lirla1, aduladores e h1póaila11 rreado1 por 1111a opi11ió11
Vozes,1996. p. 123).
Jile11ciadom"y,jinal111e11lt1 n111101ociedad donde la li111idtzhahrá dtslntido e/ pe111a111iento 1i1di1•idual] en la qne
:�.. , J..,J'//m•r se li111ilt11't111 a orupar-se de cuestionu que no i111pliq11rt1 n·s�or (ílFP l fN I· ,,., 1 , ;,,,;,,, ft11t1rt 1\,fi/l 13 Cf. GJANOTII.José Arthur. Vicia e oura.ln: MILL,John Stuan.Sis1,111adelógic,1ded111i1t1,li1d111im

r
, ·, .1, I, ,.,,/,,, p. Y,-37) e 011/ros lex/01 T,a,I 1 /, 1 1 • 1 'l ·111 \/ ,\. ( ulturnl, 1985. p 77

,, 1, I' 1 .II{ l,,11al1. /uhn .\/n,J1t lvlill)' losji11rr dr• Ir, ,.,,;.,, I' 1. 14 Mil.1., /,,J111 "''' ,.,
 sx DAN\f:LA MES(.)UIIA LEUTCIIUK Dh CADEMARTORI
os meios através dos quais ela execuu tal tarefa vão muito além dos
atos praticados pelos seus funcionários políticos. É quando a sociedade,
ao agir, penetra muito mais nos detalhes da vida cotidiana do indivíduo
chegando a ''encadear-lhe a alma".
"Por isso não basta a proteção contra a tirania do magistrado. Necessita-se
também proteção contra a tirania da opinião e sentimento prevalecentes; contra a
tendência da sociedade a impor, por meios diferentes das penas civis, suas próprias
icléias a práticas como regras de conduta parn aqueles que discordam delas; a afogar
o desenvolvimento e, se posssível for, a impedir a formação ele individualidades
originais e a obrigar a todos caracteres a moldar-se sobre o seu próprio.""
Para propor seu princípio limitador da a utoridade da sociedade
sobre o indivíduo, Stuart Mill partiu das premissas da defesa incondicional
da liberdade de pensamento e discussão e cio respeito à individualidade,
um dos elementos do bem-estar.
Sobre a liberdade de pensamento e discussão, ele afirmava que,
antes de tudo é preciso considerar que, em assuntos envolvendo questões
complexas, tais como icléias morais, religiosas e políticas, mais de a metade
da argumentação que privilegia determinada opinião se constrói destruindo
as opiniões que lhe são contrárias. 16 Para que se consiga que uma
argumentação contrária seja admitida, é preciso apresentá-la "mediante
uma estudada moderação de linguagem e evitando o mais cuidadosamente
'j' possível toda ofensa inútil". 17
Só a tolerância é capaz Je contrapor-se à prática da negação da
liberdade de expressão e das individualidades. De acordo com Berlin, a
l5 Por uto no basta la prolección co11tn1 la tirania dei magistrado. Se necesila lamhién protecáón contra la liranía de
la opinión_y rentimienlo prevaleritnles; ro11ln1 la tendendo de la ronedad a imponer, por flledior distin/01 de las
pe11a1 civiler, JHJ prop1a1 irlea1y Jm-ícti'cas como r�'l/a1 de ronducta a aquellos que disienlan de e/las; a ahogar el
r/e,envo/vú11imtoy, 1i po11ble jflera, f/ 11,,p,rlir lfl Jórmarión rle mrlivirlualirladu onginaluy a obligar f/ todo, /01
caracleru f/ 1110/dear-1e1ob,. e/ Jll)'O p,vpw (�li LL, John Stuart. Sobre la libertad, p. 59-60).
16 Idem, ibidem, p. 100
17 En ge11en1/, lar opinionn conlranfls a lar co1111i11mmle admilldm 1ólo p11ede11 lograr a Itr umchadaI 111tdianlt' una
estudiada 111oderarió11 de 1c�nJ?,11a;e e et,i/,mrl" J,. •, j, atirlr1dos11111enle posible Ioda ofe11Ja imíli� Iiu que puerlan
den11t11u e,, lo ""'' ,,,11.!, •;,1, lt1n:110, , 11 tanto que e/ i11s11/to de1mu111;1do
flll{>lt'tHÍO ;,or f' 111{ i/( II / .. 1 , dr pr11/1·sar las o/i1111onn ronlmnar v de u11· "
aquel/o.r {j1fl' lar prr:lefiJI' i -\ l 1, 1 , • ,,1 ,,1.,d. I'· 121 ,.
• j
DIREITO E POLÍTICA 5')
contribuição de Mil! a este conceito é a maneira como entende a t0lerância:
ela não pode resumir-se ao respeito à opinião dos outros. 18 Mil! sabia que
"quando algo realmente nos toca, todos os que mantêm pontc,s de vista
diferentes devem nos desagradar profundamente" 19 e por isso o máximo
que pede da tolerância é que se tente compreender (tolerar) as idéias
diferentes. Em suma, a pregação da tolerância, cm Stuart MiU, é o corolário
de sua crença na necessidade de uma maior variedade possível de
indivíduos, frente ú homogeneização promovida pela sociedade.
A defesa que Mil] faz, no segundo capítulo da obra "Sobre a liberda­
"
de , da liberdade de pensamento e de discussão, salienta os princípios básicos
da doutrina liberal. De acordo com Bobbio, ela fixa em regras fundamentais
a linha de demarcação entre o estado e o não estado (a esfera da sociedade
religiosa, da vida intelectual e moral dos indivíduos e dos grupos, a sociedade
civil, isto é, as relações econômicas no sentido marxiano da palavra). 20
Já ele acordo com Touraine, o segundo princípio de Mill (a interferência
do estado só é admitida para proteger a liberdade) iria, no final do século
XIX, justificar o intervencionismo do estado.21 Apesar deste aparente desvio
prático de sua teoria, o tratamento dado pelo autor a este tema limita-se a
exemplificar situações em que ocorrem intervenções ilegítimas na liberdade
do indivíduo - tais como a proibição de bebidas fermentadas, a instituição da
sabatariana, a proibição da circulação ferroviária aos �omingos e a perseguição
ao fenômeno do "mormonismo" nos Estados Unidos - demonstrando que
a regra é a da não-intervenção. A possibilidade de intervir do estado existe
como urna exceção: "Rrn primeiro lugar, não se deve, de modo algum, acreditar
que o dano ou o risco de dano aos interesses dos demais, única coisa que
justifica a intervenção da sociedade, justificam-na sempre". 22
18 llERI.IN, 1. John .>lflflrl MillJ• /01 ji11e1 de la ,,iria, p. 22-23.
19 } �n u11r1 ocasión dedaró qne mando algo rtalmenle JIOJ co11cm1Jt1 todo ti que 111,111/iene pu11/01 de 1•ula dtfermln
nos r/e/,e dnagmrlflrproj,mrlamenle (ldcrn, ibidem, p. 21).
20 Cf. lJO!llllO, N. Liberalismo velho e novo. ln: O futuro da rle111orrrma: umn defesa das regras do
jogc,. Tr,1d. M. A. Nogueira. Siio Paulo: Paz e Terra, 1986, p. 115.
•1 ·p 1·11i \INI' A Oq"erar/e11Jam1Cia?. p. 127.
;· ,,. ( · I t11 modo 11(;1f,1r,, r,:rne qHe ai da/lo urine{�º ,,/t tlmio · 11 · 1
,:, , , ,,.,on dr!,, 10Uetlt1d, /epHlijim ,u'IJ/prc: (�111.1 jo!111 S·u 11
 (l() DIREITO E POLÍTICA 61
U•\NIELA MESQUITA LEUTCHUK UI· C'!' !JEMAIOOl<I

A proibição do matrimo1110, pelo estado, a menos que as partes concentrando urna numerosa burocracia é livre apenas nominalmente.
. Neste regime, como no público, não há qualificações - por falta de
consigam demonstrar possuírem meios para sustentar uma famíLia, não
excede, segundo MilJ, seus legítimos poderes. Ter muitos filhos em países experiência - para moderar a atuação da burocracia e, no caso de não
superpovoaclos, desencadeando uma competição que rebaixará os salários existirem governantes com inclinações p,1ra a reforma, nunca se conseguirá
"constitui um grave crime contra todos os que vivem dele". 23 efetivar nada contrário aos interesses da burocracia. 26
O autor também desenvolveu três grandes classes de objeçôes às Bobbio salienta que Stuart Mil!, além de enfatizar que a primeira
. conduta cio governo deve ser a de "não prejudicar os outros", propõe um
tnte�vençõcs do estado (sempre sem envolvimento da violação ao princípio
da liberdade). As do primeiro tipo eram representadas pelas situações critério ele justiça distributiva, quando espera do estado que imponha a
com probabilidade de serem melhor executadas pelos indivíduos do que cada um a exigência de "sustentar a própria parte (a ser determinada à
pelo governo. base de pnncípios igualitários) de esforços e sacrifícios necessários para
defender a sociedade e os seus membros de danos e moléstias". 27 Aqui
A segunda considerava que mesmo guc os indivíduos não
passa a linha divisória entre os fautores do estado Liberal e do estado
conseguissem fazer melhor que o governo, delegar-lhes uma determinada
: 1 1 social, já que não está claro e nem universalmente compartilhado o que
atividade contribuiria como um "meio para sua educação mental". 24 A
1 ' se deve distribuir e nem com que critério. 28
I'
delegação era recomendável no juízo por jurados, desde que as decisões
não fossem poüticas, nas instituições locais e municipais Livres e populares
e na direção de empresas industriais e filantrópicas por associaçôes REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
voluntárias. Tais atividades constituíam-se na "parte prática ela educação BERLIN, lsaiah. John Stuart Mil! y los fines de la vida. ln: MILL,John Stuart: Sobre la
liberlad. Tradução de N. R. Salmoncs. Madrid: Alianza, 1986.
peculiar de um povo livre", sendo que,
BOBBIO, Norbcrto. Liberalismo velho e novo. ln: Ofuturo da democracia: uma defesa das
"O que o estado pode fazer utilmente é constituir-se no depositário central e regras do jogo. Tradução de tvl. A. Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 1986.
.
atJvo propagandista e divulgador da experiência resultante de numerosos ensaios.
GIANOTTI, José Arthur. Vida e obra. ln: MJLL,John StU�rt: Sistema de lógica dedutiva e
Sua função consiste em tornar possível que cada experimentador se beneficie com
os ensaios dos outros, em lugar de não tolerar senão suas próprias experiências."21 indutiva e 011/ros textos. Tradução de J. M. Coelho. São Paulo: Abril S/ A. Cultural, 1985.

Uma última objeção limitando a intervenção do governo era o

"grande mal" decorrente do aumento desnecessário do poder do estado. 26 Cf. Ml LL, John Stuart. Sobre la libertad, p. 201.
Um país que absorve, no serviço do governo, todos os talentos superiores, 27 BOBillO, N. Liberalismo velho e novo. ln: O F111uro da de111ocmcin: uma defesa das ,egras do 1ugo,
p. 111-112. No texro a que !lobbio refere-se, Stuart /vlill diz: A1111q1ie la ,oaedad 110 utéj,mdadú ,obre
1111 co11/ralo,y mmque nado butno se COIIS1!fl inventando 1111 co11lralo 11fi11 de dedurir obligaciones socit1!es de éli
todo e/ que recibe ln protección dr la 1orierlrul rlebe mia co111pm111cló11 por este l enefiriO/y e/ hecho de 1•1n"r e11
1

23 Y en 1m J�a/f S/(fff?ohlado o r1111e1�azado de eJ!ado, ti hecho de lener 111ucbos h!Jo.1, dando /ugflr a que por /1'1 1ociedad hnce i11di.rpe11st1ble ql(e cada 11110 se obltgm a obserrar mM cinta l111et1 de cond11clr1 para con los rle111ás
roiJJpeten cta se reht1jt la re1111meraaó11 dei lrabqjo, co11shl1!)'t 1111 grave m·men contra todos /01 que viven de f/ Esta condutlt1 co11súle1 pn·1J1ero1 t11 no pe,jurlicar los mteresn de oiro,· o 111ár bien rierloJ 1/1/ereses, 101 mnle11 por
(l\llLI,, John Stuart. Sobre la liberlnd, p. 197). e:,.,prna tlednración legal o por láálo enlmtÍli11icnlo1 rleben ser cowirlerador como deruhoI/J', ugundo, m /0111ar
24 MILL,John S1uart. Sobre/a libertad, p. 199. cada 11110 111 parle (/iJáda ugún 1111 pri11C1pio de equidad) de lo, trabrJio,_r Iaoificiof 11ecuano1 pam defender n ln
1oa°edad o sus 1111'e111b1vs de todo da,io o v�jación. Jwt�lir,1dn111mle la J<iard(I({ 1mpone" toda coita ulas co11dicio11e1
25 l ' ,uo d ra,i.-/,_. 1·ti,-,I, hmtt ,:tilmente eJ ro11stilmr1e en d drpo.rilmio ce11traly ar/1110 propa,�a11diftr1 v diui/1 ·1· '- ,
n tU/UPllor que /mim d,, ,l11d11· ru ,w,tf:l11.•111 •J, 1
u roae /,1tl /)Jfi•,k lwt'J'
t ·
•,. 1

• -·11,wrrcJU.' ,11111yus. \u /imción comult' en hatf'rpor,h/,, t/"' (1\111.L., J. S .\'ohre /,i 1,/,c,tml, I ' I '., 1 I' •I
,,.,.,,. til h11;,I! d.: ,,,, t,df'n1r Jino .rur propus r·.-...prn11N11/,11 ;\1 [
28 Idem, ih1dem, p. 1 11
62 DANIELA M1-sr.1111 li Lt·tl'JCIIUK 1,1, CADEMARTORI

MER()UIOR,José C�uilhrnnc O liberalúmo: antigo e nmJc .. nn. Tradução Je 11. de A.

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Vozes, l 996.

REINHART KOSEllECK E A GENESE

CONCEITUAL DO ILUMINISMO: UM REPARO
CRÍTICO À POLÍTICA BURGUESA
Rogerio Dultra dos Santos'

INTRODUÇÃO
Com seu primeiro livro traduzido para o Brasil (Crítica e cn'se: uma
contn'buição à patogénese do mundo burguês), o historiador alemão Reinhart
Koselleck (1923) irá desenvolver uma anáLise da formação do ethos político
burguês durante o século XVIII a partir da identificação dos elementos
político-morais que subjazem a uma aproximação e xclusivamente
lingüística da história. O objeto central do livro é a interpretação do
processo de formação discursiva de uma filosofia da histón'a que objetiva a
autocompreensão e a justificação da burguesia ettl relação a seu processo
de consolidação política. Assim, o Iluminismo se caracterizaria, basicamente,
pelo caráter prospectivo e idealista que reduz. a política a construções
utópicas do futuro as quais, em última instância, evitam assumir a
necessidade e a existência de uma decisão sobre o político,2 considerando

O autor é Bacharel cm Direito pcb Universidade Católica de Salvador (UCSal); Mestre cm filosofia,
S ociologia e Teoria do Direito pela Universidade federal de Santa Catarina (UFSC); Doutorando
em Ciência Política no Instituto Universitário de Pequisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Articulador
de Pesquisa na Arca de Teoria do Direito e Professor de "Ciência Política" e "Metodologia da
Pesquisa Jurüidirn" 11" rurs<i ,!,_. Direit'> do \.ampus VII da Universidade do Vale do lt1jaí
(UNIVAJ 1 !1 ,1 h 1 ,. , , dt !)1rc1to" no curso de Relações ln1ernac10arns 111

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llll'\11Hl ( :•

2 Cf. KOSEi.l h ,, , ,_. .. ,,.", , " ( "7fl'. 1'· 16 .

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 Rc,l,l RIO Ül/l lfü\ DlJ' :.;/\N ll .,
possível um princípio neutro de unidade social (Estado) fundado na
racionalidade deliberativa. 3
Para compreender o caráter utópico e moralizante ela tentativa de
se negar a facticidade da história e de se recalcar o espaço da politic1
através da filosofia 'la história, Koselleck propõe uma análise cultural
genealógica (Nietzsche) guc institui uma Lensão entre o momento final
de certa formação política do Estado absolutista como condicionante
para a gênese do Iluminismo (o gue conceitua crise) e o processo d<.:
conformação da Revolução Francesa pelos agentes políticos e teóricos
iluministas durante o século XVIII (através do que classifica crítica). Í-.:
destes dois movimentos que irá surgir o tema escolhido por Koselleck,
ou seja, o nascimento da utopia como um elemento político funcional
"obscurecedor da decisão política concreta" e como uniftcadora dos
,1
eventos sociais, intelectuais e políticos caracterizados posteriormente como
caros à formação também do Uberalismo.
Koselleck é professor de Teoria da História na Universidade de
Bielefelde desde 1974 e é conhecido como um dos mais relevantes
historiadores posteriores à segunda guerra mundial. É responsável pela
instituição de discussões referentes à reestruturação do trabalho intelectual
do historiador contemporâneo, que vem desenvolvendo há mais de
quarenta anos, desde a sua tese de doutorado, Critica e crise (1954) e sua
:1 /,
'11 habilitação Universitária, Prússia, entre reforma e revolução (1965). Tais
!
discussões, de caráter teórico-metodológico, podem ser dimensionadas
em alguns dos textos centrais deste autor, que desvendam sua análise
!
conceitua! do fenômeno histórico, como Ft1tt1ro do passado: sobre a semântica
3 Para autores con1emporâneos como Chantsl Mouffe, que véem como um desdobramento natural
do Iluminismo burgués o liberalismu político, n êxito deste (como o daquele) "depende da
possibilidade de estabelecer as c ond,ções de um tipo de argumentação que reconcilie a moralidade
com a neutralidade.( ...) sua in1e11ção de encon1rar um princípio neutro de unidade social fundado
na racionalidade não pode ter êxitn. (... ) Qua ndo examinamos seu argumenw mais de perto,
advertimos que consiste em ,elegar u pluralismo e o dissenso à esfera privada para a ssegurar 0
consenso na esfera pública. Todas as questões controvertidas são eliminadas da agenda para criar
as condições de um con<ens0 "rnc,.,nal"." MOUFFE, Chantal. La Politirn e los limites dei
!16t'i,d1sr1 !t.
l!o:- !'iol..nt' cl l.:.\t11<lo )' l,1 soc1ed:1d Nº 1. l.1hcr:il1s111 i.
C OllllllllLI! 1 .,.i.,s, 19%, p 171-1')11
[)11<Er1c, 1-. Puurn A
dus te!JJpos hlstó,irus (197())" e /1 Ii:,..prrie11C/.1 de, histun,1 , 1997).' /\!uno da
maior geração de intelectuais da Alemanha, pode-se destacar entre seus
professores nomes tais como Otto Raunner, Wern<'r Conze, Johanncs
Kühn, Karl Lówith, Marlln Heidegger, Carl Schm1tt, Alfred Weber e
f-lans-Georg Gadamer/' alguns dos 9uais tornaram-se colaboradores no
seu projeto de elaboração do Dicioná,io de conceitos, seu exLcnso lexicon de
conceitos históricos, que· há mais de trinta anos vem sendo realizado. 1
Rm um sentido bastante particular, Koselleck levanta vinculações
teóricas importantíssimas na determinação do próprio discurso político
contemporáneo e, na sua aproximação notadamente sociológica, explicita
que a sua formação junto a pensadores conservadores como Schmitt
4 Neste livro, que coleta ensaios do autor entre 1965 e 1977, são agrupadas as suas contribuições
acerca do planejamento e da organização do monumental D,aonáno de Co11ceito1 (Geschichtlichc
Grundbcgriffe), fumlado na sua "história conceituai" ou "história dos conceitos". Nesta perspectiva,
a história é conccbiJa em concraposição à "história das idéias" e à "história intelectual", e tem o
objetivo de aproximação da expenênc1a de conjunturas partirnlmes pelo estabelecimento da relação
entre conceitos de conteúdo historicamente delimitável - como Cidadão, Estado, Revolução,
Ordem, Sociedade, Classe e Direito -, através de seus usos políticos e soci1is específico�. Cf.
TRIBF, Kcith. Tramlator's introduction. ln: KOSEI.LECI<, Rcinhart. Fut11mp01t:on the semantics
of historical timcs. Cambridge/1.ondon: Thc MIT Prcss, 1985, noto 1, p xvi.; KOSF.LLECK,
Re1nhart. F11t111r.r pmt, p. 73 e ss. Ver, abaixo, nota 5.
S Obra que procura compreender a génese da "ciência da história" no final do século XVIII,
fundamento da antropologia e da hermenêutica da história contet)'lporâneas. Neste livro objcuvou
estudar as práticas da memória coletiva e a reconstrução pauialina dos diversos conceitos da
prática eh pesquisa histórica. Cf. KOSELLECK, Reinhart. J .'Experience tle l'hiftoire. Traduit de
l'allemand par Alexandre Escudier, avec la collaboration de Diane Meur, Marie-Claire Hoock et
Jochen I loock. Paris: Gallimard/Scud, 1997. 250 p. (Hautcs Études).
6 Fo i com G adamer, nn final da década de setenta do século passado, e por conta de uma homenagem
ao octogenário filósofo, que Koselleck explicitou a sua compreensão sobre o fazer histórico através
da indagação sobre quais são as condições de possibilidade ele uma história. Ao lado da pcrspec1iva
de se constituir a história através do texto, I<oselleck aponrn condições extrnhngüísucns e pré�
lingllístic as que colocam a história como um campo do co11hcc1mcnto 'JUC não pode ser a ba1cado
sem mais pela hermenêutica, sendo autônomo em relação rt csia. N;i.o se rcaliF,ando através da
língua, estes elementos ou estas "condiçôes trnnscendenrnis d a s possíveis histórias" s�o estruturas
f orm ais que definem :1s possibilidades lingüísticas de cocnprecnder e interpretar a história. <.1uc sempre
será previamente definida por elas (Cf KOSELLECI<, Rc111h:irt. Uma História dos conceitos:
p1oblemas teóricos e práticos. ln: Retúla r/, Estudos J--JiJtó11i-os. Rio dt Janei, o, 1992, n º 1O, v. 5, p. 134-
146.; e Cf. AG U IRRE, Joaquim Maria. Re.,e,ia de HiJto,iay HmJJmi11hi-a. Ma<l11<l: UCM, 1997. Disponível
em: http://www.ucm.es/OTROS/especulo/numero6/gad_kose.h1m. Acesso cm: 17 jun. 2002).
1 TH !Ili'., l<e11h T,anslator's 1111rocluct1<111 ln· KClSl·,I 1 " ' ,,. " 1 " 1
, ., 1,11r.., if l11s1011t.,l t1tnl:'S. Camhnd gc/l.onclo11:Thc [\'I
 6ú ROGl:IUU lJULrRA DOS SANTOS
teve o mérito de preservar os elementos efetivamente váLidos para a análise
do problemático desenrolar da modernidade ocidental. Assim, o autor
nunca se descola da perspectiva atual da crise política, procurando desvelar
as origens históricas de nossa própria condição - utilizando-se para tal da
história conceitua!, geneticamente vinculada à metodologia schmittiana
de inteligibilidade do fenômeno político. 8 Não é por mero jogo retórico
que afirma, na primeira linha do livro que, "De um ponto de vista histórico,
a atual crise mundial resulta da história européia". 9 Em se reconhecendo
a expansão da história européia em história mundial, a realidade trágica
da contemporaneidade pode identificar a responsabilidade por seus
percalços nos fatos passados, bem como a possibilidade de uma superação,
na medida em que admita contcxtualmente os sentidos dos textos e da
peculiar experiência histórica contida em sua representação do mundo. A
reconstrução de uma certa - e datada - interpretação da história é o que
objetiva Koselleck, a fim de que o tempo presente não se perca nas arma­
dilhas do auto-entendimento descolado dos fatos, caro à tradição
historiográfica que pretende suplantar.
Para que seja possível compreender como o processo no qual a
decisão sobre o político se apequena enquanto fenômeno, transformando­
se em uma filosofia da história que nega a discussão sobre a própria
política na História, tese seminal de Koselleck, faz-se necessário acom­
/· panhar o argumento tríplice do autor. Desta forma, e em primeiro lu,gar,
Kosclleck analisa em sua obra os fatos que levam o Estado absolutista
soberano, suas instituições e sua base cultural (ou sua tradição) a se
transformarem em agentes necessários na formação de un1 ideário
especificamente burguês, notadamente idealista. Em segundo, define de
que forma a autocompreensão burguesa se desenvolve "à margem" da
política e enquanto poder secreto (franco-maçonaria), capaz da crítica
utópica e disposto a provocar a submissão do Estado, apontando a reação
deste último à ameaça iminente de dissolução. Em terceiro e último lugar,
1 e 111•,1dn .,�·()cs fin,us
, "L· 1.1 I·. < 1--.., lktnhart. C11!1t,1, us,, 11 1
DIREITO 1: POLÍTICA 67
o autor apresenta o resultado das pretens<íes Je soberania e de moralização
política da elite iluminista, isto é, o processo de críti ca intelectual que leva
à Revolução Prancesa. O objetivo deste artigo é identificar elementos
válidos da crítica à conformação histórica elo llurninismo, a fim de �1He se
possa ampliar o instrumental teórico para o exame de seus dcsdr)bramentos
no presente.
1 Do ABSOLUTISMO AO ILUMINISMO
Analisando a relação entre a interpretação do Estado moderno
pelo Iluminismo e a estrutura política do Absolutismo, Koselleck identifica
a esfera racionalizante de atuação deste modelo de organização social
como o sistema de administração que in citui uma forma e um espaço de
política independentes de prescrições morais (doutrina da razão de
Estado). A ausência da moral (e da moral religiosa) enquanto elemento
constitutivo da autoridade soberana de um governo realizava-se, para o
Absolutismo, através da eliminação ou apaziguamento das contendas
religiosas, geralmente anárquicas e violentas, responsabilizadas que foram
pela Revolução Inglesa. A nova estatura política do monarca, absoluta,
era válida na medida em que negasse totalmente a consciência privada
dos súditos, já que objetivava evitar a permanência da "moral religiosa
com pretensão política". 10
Nesse sentido, a formação do Estado moderno, para Kosellcck,
encontra respaldo no sistema hobbesiano, segundo o qual os objetivos
primordiais de qualquer organização social e política deveriam ser a
paz e a segurança coletivas, alcançadas às custas da eliminação elos
partidos, fomentadores elas guerras civis. Da introdução à tradução ela
História da Guerra do Peloponeso ele Tucídides (1629), bem como de alguns
escritos anteriores, até sua última obra (Behemoth, de 1668), 11 incluindo
IO Idem, ibidem, p. 21-25
11 Behemoth ou o pmliw,mlfl /,111·111: 1111, l•.il,1 111 qu,· objetiva reconstruir a
históri ri da Revolução inglesa
jt..Jt'lltlfit:lndi I IS 1 1 111 Í:t ti�· r].udd1dc:,;) ll;t ClllUlaÇàO Jos UI oul urt. ,,
pre�h1tt·1 i.,n " , 1 •
68 Roc,ERIO Du1.TRI\ DOS SANTOS
seu estudo m1x1mo (Lc11iatc1, de 1651), Hobbes insiste fixamente na
idéia básica de, através de seus argumentos, defender que todos os
homens de qualquer República 12 devem permanecer em respeito mútuo
e longe da sedução "iJeológica" das falsas doutrinas políticas e religiosas
elos oradores. Tal postura política constrita, derivada de uma percepção
clássica da experiência histórica como mestra da vida (Histon·a magistra
vitae) 13 e posteriormente alicerçada na razão universalizada que deriva
elas paixões humanas consiste, assim, no melhor remédio para a paz e
para se evitar a scdição. O objetivo de Hobbes aqui, segundo Koselleck,
é eliminar a repercussão política das convicções privadas, já que "É a
autoridade, e não a verdade, que faz as leis", ou seja, as decisões políticas
têm um fundamento exclusivamente formal que é o poder soberano. À
miríade de morais individuais, tendentes à disputa, Hobbes apresenta a
aceitação da soberania absoluta como uma necessidade mor::il universal
fundada na razão política da paz. 14 O resultado perverso, segundo as
pretensões de estabilidade caras a esta teoria, é que o indivíduo deixa
de ser responsável pela ordem política e passa a se preocupar com a
monarquia, a fig ura do I.3ehemotb surge co1no o símbolo elo monstro rcvolucionát io que deve ser
sufocado pelo L.evialà (:i outra figura bíblica presente no livro de Jó) que, para Hobbes, representa
o Estado. Cf. Hül3l3ES, Thomas. Beh,1110/h orlhe l011gparlia111e11t. Editecl b}' f'erdtnand Tiinnies,
W1th a lntroduction by Stephen Holmes. Chicago and London: The Univcrsity of Chicago
Press, 1990 (1889). Sobre o simbolismo político e religioso do Levinlà, como elemento referencial
da cultura chinesa, judaica e posteriormente cristã, ver SCHMJTf, Carl. The Ltvialha11 in lhe
Sta/e tbeory oJ Thomas Hobbes - meaning and failure of a política! symbol. Contributions in
political science, nº 374. Global perspectives in history anel politics. Translated b}' George Schwab
and Erna l ldfstcin. Wcstpon, Connecticut / London: Greenwood Press, 1996 (1938), p. 5-30.
12 Cornmonwealth, ou Esrndo, insrituído pela ro111'e11çdo de um grande número de homens ciue
concordam em firmá-la, dando o direito de I epre sentar a Pessoa de todos juntos {Representação)
a um homem ou assembléia de homens, autorizados por cada um n.1s suas ações e juízos. Cf.
HOBBES, Thomas. Ltvialhan. Edited b )' C. ll. �l,\CPH[!RSON. l.ondon: Penguin l3ooks, 1985
(1968), Capítulo XVIII, p. 228-229.
13 Esta visão, vinet1lada ao jovem Thumas l lol,l,es, deriva tanto d:i icJtura de Tuc ídides, quanto da
apreensão renascentisrn de modelos hclcnbt1cos agrupados no princípio retórico de Cícero, segundo
o qual "somente o orador era capacitadu para emprestar imortalidade para uma história que fosse
instrutiva para a vida", o relato histórico sn1do reprcscnrndo, assim, como testemunha do tempo
e "luz da verdade". Cf. KOSELLE(K, Reinhm. F11111rrspa,·1, p. 23
14 CI K()SFI.1.FCI<. l\.-i11l,.,11 ,-·. i
DtRt·rro i: PoLíTICA
manutenção exclusiva ele sua consciência privada, mesmo contra o
Estado. 15 Para Koselleck,
"O Estado cnou uma nova ordem; histoncamente, se tornaria uma vitima
dela. Já desde o início, o foro interior da moral, delimitado pelo Estado e rc�ervado
ao homem como 'homem', significava Ltm foco <le agitação que era,
originariamente, peculiar ao Estado absolutista. A instância da consciência era o
re squício não superado do estado de natureza, que per manecia mesmo quando o
Estado houvesse alcançado sua forma perfcita." 16
Aponta o autor, desta forma, para o processo de secularização de
uma moral que irú se organizar secretamente, e terá como objetivo primor­
dial colonizar o espaço público, propalando a necessidade de o homem
se realizar na política, exercendo juízos privados sobre a polis. Assim, o
Iluminismo aparece para questionar as fronteiras estabelecidas pelo sistema
político absolutista, sendo fator decisivo para sua extinção.
Koselleck ainda assinala, no final desta primeira parte do livro, a
importância da ordem jurídica internacional européia na formação cultural
(auto-entendimento) da burguesia. Nesse sentido, estabelece-se uma ordem
internacional nos moldes hobbesianos, isto é, conformada enquanto
"estado de natureza" entre pessoas morais (Estados) as quais, para evitar
o confronto necessário, se reconhecem mutuamente, subordinando-se a
uma autoridade jurídica superior. A ordem t)Olítica internacional
15 Interessante notar como a interpretação da formação do Estado na teoria hobbcsia na cm Koselleck
sofre influência da leitura feita por Carl Schmitt no seu A Ditad11ra (1926/1963), em gue dctinc
como núcleo da 1cléia de poder político organizado cm Hobbes a noção de pressão cio Estado
sobre os homens como furmn de C\'Jlilr a guerra de todos corHrn todos, ou scjn, a idéia de Estado
constituído enquanto d11a<lurn: "A í .ei, que é por essência uma ordem, tem por hase uma deets�o
sobre o rntcrcssc estatal, mas o interesse estatal só passa a existir através da ordem qtie outorga i\
decisão que serve de base parn a lei, normmivnmente considerada, nasceu do nada. Por necessidade
concc1tu:1I é "d1wd:1". l\las, ,1 última conscqüência desse pensamento nii.o se tirou até ser sacudido
o racionaUsmo, por De i\btstre. Em Hobbes, o poder do soberano se funda em um ncordo mais
ou n1t:nus t.itito, m.ls sociologicamcnte não menos efetivo, no convcncimcnlo dos súJitos, ainJa
quando este convencimento seja justamente promovido pelo Estado.,\ soberania nasce do ato da
consutuiçiio do poder absoluto pelo povo. Isto recorda o sistema do Caesarismus e de uma
d1tadu1:1 ,ohcrnna, rujo fundamento é uma delegação absoluta." Cf. SCl-l �11n; Carl l.n d1d,1dm<1
- f!1 ... 1, 1 , r·,,1ni•·1pr1c:. lel pcnsnmiento moderno de
« la sohcrani:1 hast:i la IL1 d1:1 de ·11:-ro:: 1 11 , l c-r.n
1,·, n i)• 1 [11se Dia;, ( ;;Ht:Í:l. !\b.drid R<'\'I\Ll d1· ( >1, ·,I 1 · 1
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1
 RoGl,RIO l)u1 TI(!\ 1)( ,, ', \N 11,,
caractcrizaJa pela existência Jc E� ,dn: inJependentes tinha uma l11:1it:i.cão
fundamental, estabelecida por V;t tcl, sc:gundo a (1ual, cm caso de guerra
civil interna, os Estados poderi:i•n ir.1ervir para neutralizar o cu11f11tu.
Aos conflitos religiosos que passJrnm a existir em âmbito internacional,
a resposta de Vattel foi apontar qu,� o direito internacional não deveria se
imiscuir em questões morais. A re�posta dos Estados foi a realização de
tratados de paz. A eliminação da moral privada pelo Estado e a supressão
das guerras civis permitiram o desenvolvimento da elite burguesa durantc
o século XVIII, tudo promoviJo pela paz e pela segurança que se seguiram
ao apogeu - teórico- do Estado absolutista. 17
O que imediatamente transparece na leitura desta parte inicial do
livro é a profunda vinculação do autor com urna análise historicista que
I'
fará do discurso que se formou no século XVIII. O objetivo explícito é a
superação de interpretações idealistas e românticas sobre o lluminismo
11
que se produziram alguns anos antes Ja tese de Koselleck ser publicada
na Alemanha. Notadamente, existe uma contraposição à 1déia de que o
discurso iluminista seria "monáclico" (Leibniz), ou seja, compreendido e
identificado enquanto discurso uni forme, no exterior de sua multiplicidade
constitutiva. A tese segundo a qual o Iluminismo, enquanto discurso ético
unívoco, naturalmente realizaria a ordem da liberdade - manifestação
moral da autoconsciência n a sociedade e no Estado juridicamente
organizado - é central. Surge, ainda, no século XVIII (com Fichte e Kant)
e é absorvida pelo liberalismo de Weimar, especialmente por Cassirer,
em A Filosofia do Iluminismo (1932), que percebe a filosofia da história
como uma ferramenta indispensável à elevação espiritual ela vida política
contemporânea. Esta interpretação da história é um dos objetos
privilegiados do ataque de KoselJeck. 18
Pensadores como Cassirer, no auge das pretensões de realizarem
socialmente as instituições liberais da república de Weimar (e ainda
17 ldcn1. ihir\t·1J1 t• ,t l ,l(,
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DIREITO E PoL!TIC/\ 71
ignorando a ascensão metc ,-irica da ciircita mzista após l 9B), percebem
o processo ele formação J:,s idéias do llu;ninismo cumo algo c:i.paz de
ser compreendido a partir ck um princípio l nificador que - em c1uc pesem
as contradições doutrinári;1s reconhecida�. - significa a instauração Je
uma ordem perfeitamente racional, coerente, universal, necessána e
portanto, cogente. Esta ordem moral elo mundo, ao mesmo tempo em
que acabou por possibilitar a Revolução Francesa, foi fragorosamente
derrotada pelos extremismos e pela realpoliti.� que redundaram na Segunda
Guerra Munclial. 19 Ambos os fenômenos podem representar, para
Koselleck, por exemplo, a mesma incapacidade que a filosofia da história,
com pretensões universalistas, necessariamente tem para realizar-se
enquanto ação política concreta. Para Koselleck, o intelectual burguês,
que é o autor do sistema político a-histórico e legitimador da soberania a­
política, acreditará sempre e inocentemente que é também criador da
autoridade concreta,10 esquecendo-se da contingência intrínseca do proces­
so histórico que a forma. Em resumo, pode-se dizer, Koselleck argumenta
que a violência em c1ue descamba a moral burguesa no p rocesso
revolucionário não é contraditória à filosofia iluminista, mas à conscqüên­
cia natural de seus postulados. É preciso compreender, portanto, como a
auto-imagem inocentemente "hipócrita" se constituiu para que se possa
1
processar sua análise.
2 A AUTOCOMPREENSÃO DO PROJETO ILUMINISTA
O programa polítko iluminista, que se baseava na conformação de
uma ordem "universal" fundada na separação entre política e moral permitiu,
paradoxalmente, a crítica burguesa desta separação e desta ordem, o gue
configurou a decadência do sistema político absolutista, ainda vigente em
meados do século XVIII. A atividade polílica extra-estatal soLidificou-se
contrariamente aos interesses do Estado e, neste processo de politização e
l 9 Ver, nesse sentido, M,\ZOWER, �la,k <.01111,,,,_.,. ,, ,,. /, ,, - :i I' 11 'I , "', ,.,·, 11111 XX. Trn d d,·
2U c1· I\.OSl·.1,1 f·,CK, l\c1nhar1, (i,11,,u ,,· . i 1
Hddcgard í'cist. Siio Paulo ( 01111,anl11.1 1 1 , · 1
1

72 R )(. '''." l)IJS SANTOS
conseqüente ampli· (ic, do espaço privado, se fo i ·,:· '-'i\uindo o que
Koselleck denornin:, de inteligência burguesa. Assim. l uk justúicar-se o
mote segundo o qual ·'Cada passo para fora [do Est'.,, 1 c·i �, um passo em
direção à luz, um atu Je esclarecimcnto". 21 E é desta fo1111a que a utopia
burguesa triunfará, pois, mesmo em paralelo ao Estado. continua com força
suficiente para irracLar sua moral. Segundo Kosellcck, é o filósofo inglês
John Locke, "pai espiritual do Ilumjnismo burguês" que determina um
novo pcrftl para a moralidade privada: a sua obrigatoriedade soci::il. Locke
defende que a lei moral, de caráter obrigatório, submete o cidadão tanto
quanto a lei civil do Estado. É a sociedade, enquanto um conjunto de
associações privadas e voluntárias, que desenvolve e realiza, através de suas
ações, as leis morais, assim como "os negociantes determinam um valor de
mercaclo". 22 Essas leis adquirem um caráter universal e, embora privadas,
fundamentam juízos de valor que devem constantemente ser postos à
discussão e à censura - censura crítica da opinião pública-, que sigrufica o
próprio processo de autonomização do homem/cidadão e a fonte
inesgotável de seu poder político recuperado, realizados definitivamente na
crítica das políticas de Estado. Assim, segundo Koselleck, Locke irá romper
com a relação poder/obecLência cara à ordem absolutista e, quando seu
conceito de Philosophic La1v for utilizado como arma intelectual no continente,
ascende ao status de juízo moral público cogente, ou seja, ele poder público
que cLrigirá e constrangerá as ações dos homens a estas leis derivadas da
opinião pública.23
Koselleck argumenta, então, que a posse de um espaço de
moralidade publicamente constituída - e existindo paralelamente ao
Estado - trouxe à burguesia, na seqüência, a pretensão de subverter a
l
submissão desses juízos morais ao poder instituído, com a transformação
definitiva de sua moral em poder soberano. Esta "pretensão de soberania"
buscava originalmente se realizar sem que o confronto djreto com o Estado
l 21 KOSELLECK, Reinhart. Crítica uriJe, p. 49.
' . 22 Idem, ibidem, p. 51.
• i
2, Cf KOSFI .LF.CK, lkinhart e titir,, r rm, 1
. \
i)11<111,, 1: Prn.1 rn ,\
ocorresse. Um p.:tsso nccc��ári,) para a concreLiza-:ão desta "pretensãu dt:
:;oberania" - da consciência cntica da burguesia - foi a constituição de
instituições associativas orgar izadas em torno da c•írjca ao regime político:
as lojas da franco-maçonaria e a república e.las letras.
À beira da Revoluc:io Francesa, uma comunidade gigan 1 esca e:
economicamente poderosa ele comerciantes, banqueirc,s, coletores de
impostos exercia urna influência não mais que ecc,nômica: eram
politicamente inexpressivos dentro das instituições burocráticas que
organizavam a vida social. Es�a disparidade entre poder econômico (moral)
e Estado absolutista gerou a crítica ao credor maior (o próprio Estado),
por ser este imoral, e trouxe à baila vin�ulações polícicas novas entre a
nobreza absolutista emancipada, a burguesia endinheirada e os imigrantes
protestantes expulsos da França. Isto gerou, na Inglaterra, os primeiros
clubes maçônicos com o espírito crítico em relação ao antigo regime.
Mas o que a maçonaria almeja, mesmo que em segredo e "apoliticamente",
é recuperar o espaço de decisão política, embora isto seja realizado através
do discurso utópico da filosofia da história. É possível, então, perceber:
a) a relação entre o crescimento da imprensa e a demanda por jornais
com o crescimento econômico e com o incremento das técnicas ele
impressão e comunicação; b) a sua influência paulatina no
desenvolvimento da política local e na capacidade. em afetar indiretamente
as políticas de Estado, em geral, e as decisões da Casa dos Comuns, por
exemplo, em Londres. 24 A reação do Estado é imediata e, repressivamente,
relega as lojas maçônicas à atuação clandestina, e o segredo aparece, assim,
como elemento constitutivo essencial da sociedade maçônica.
No processo de "moldar o homem para que compreenda a luz" a
maçonaria define funções essenciais a serem cumpridas pelo segredo e
aponta conseqüências essenciais elo mesmo: a rejeição da política vigente
24 l<.OSELLECK, Rcinha, t. C dtún e cri,e, p. 60 e ss. Esta abordagem in !luenciou decisivamente uma
tese popular no.., anc..)'- !-e\senta do século XX que explica o desenvolvimento da cultura
espccific:uncntt· b11rg11,·1.":·1 f'nmt1 um:t dcriv:1çào ncccss�ria do estabelecimento económico e
., l i:•,, 1 ,. 1 1 ,é,uli, XVIII e XIX. Cí. I-1,\!ll:RM1\S,Jü1grn \J,,... ,. ,
e I ·1 ,
 , <lld:i'll1 IJ1J1 IHA IH>\ S 1·.,
e Ja 1dc1:t u ,tutnridade política txl.c11i:1 ,_ · ,11i,·11or; o resultante propal.11
da liberdade en contraposição ,1c, EsL, k, ;, woptac;ão da nobreza -­
privada de privilégios - através do disc::b1, de igualdade universal de
direitos; J. união genuína (moral) do munclo l:urguês dentro da sociedade
maçônjca; a realização da felicidade pessoal n; liberdade e na fraternidade,
possibilitadas pela comunidade universal do segredo; a autocompreensão
da comunidade maçônica enquanto elite diferenciada pela gênese; a criação
e o reforço do vínculo da irmandade pelo temor da traição; a necessidade
de hierarquização interna e da obediência irrestrita ao controle moral,
geradas pelo próprio segredo e, inversamente, a constituição do segredo
enquanto instrumento de dominação interna e de educação moral devido
a sua gradação hierárquica; a formação do segredo como direito natural,
em oposição ao direito posiúvo; a construção de urna consciência política
de mundo específica e, por fim , o encobrimento das conseqüências
políticas derivadas da atividade moral realizada dentro da sociedade
(proteção e refúgio aos rebeldes).25
1 1
Em resumo, o segredo tem corno objetivo "proteger a sociedade,
integrá-la e conduzi-la ao poder".26 O segredo perrnüe e autoriza, assim,
ljue se trabalhe cliretamente contra os males da política do Estado, fazendo
com que, em longo prazo, este se come supérfluo, abrindo espaço para a
sociedade civil moralmente perfeita coordenada, por óbvio, pelos ilumnados.
O maior de todos os segredos é o objetivo político básico que justifica, no
irúcio, a própria formação da ordem maçônica: a necessidade de impor um
governo moral para todos os homens através da ocupação política do Estado.
Este objetivo político oculto só irá transparecer enquanto consciência moral
crítica, como busca da verdade suprema e corno rupocrisia que mobiliza a
crítica da política em causa própria, com o desenvolvimento livre da repúblka
das letras,27 como espaço vital do espraiamento de sua cultura. Mas isto
não aconteceria sem mais se a maçonaria não estabelecesse a dicotomia
25 KOSELLECK, Reinhart. Clir,á, e ais,, p. 64 e ss.
26 Idem. ibidem, I' 11 r.
2.l ( f 1<( ,·� 1, 1 , 1 · p 88
Ul!UJ IU ,. l'<JI 11 lt \ 75
essencial t·ntre moral e política, o que foi deli.uivo na caracterização ela
mobilizaçfo burgues,1 enquanto ;1çãn indirc ·a e ,1-poUtica em relação ao
Estado absolutista. f\ssirn, "A decisfo polítita entre Estado e soe1edade é
inevitável, mas ;,inda não foi tomada. /\ temãr, se agrava e se trar,sforma
cm crise''. 28
A neutralidade exterior - e a paradox: 1 dtnâmica política interna -
da crítica e sua necessária hipocrisia 3ào definitivamente aprofund,1das e
transformadas pela cultura burguesa, quando esta se eleva ao status ele
antípoda da 0tdem política. A crítica pcilítica realizada através da
moralização do teatro (Schiller) enquanto p1lco de juízos sobre algo ao
mesmo tempo distinto da moral (a politica), transforma a natureza mesma
da crítica. Esta última passa a acreditar em si mesma enquanto caminho
para a verdade e, depois de Voltaire, perde a noção de crítica partidária,
de contestação de classe, e transforma-se, sem mais, em crítica "neutra"
e direta às instituições, autorizada que está pelo seu objetivo maior que é
a sua vinculação com a construção de um futuro independente da política
e do Estado (Bayle) e passa a ser, deste momento em diante, definitiva­
mente mistificada e hipócrita. Segundo Koselleck,
"A crítica transformou o futuro em uma ressaca, que arrasta·o presente sob
os pés do crítico. Nestas circunstâncias, só restava ao crítico descobrir no progresso
a estrutura temporal ao seu modo de ser. O progresso tornou-se o modus vivendi
da crítica, mesmo quando não era entendido -·à exemplo de Bayle - como
movimento ascendente, mas sim como destruição e decadência. / / Em todo
caso, a vinculação com o futuro, criada pelo próprio juiz racional, emancipoll-O
para criticar o presente."29
Este espaço de liberdade total e de ataque indireto ao poder polí­
tico c1ue foi concedido ao crítico - presente também nesse movimento
l.iterário, artístico e politico denominado república das letras - permitiu
que este se compreendesse, ao mesmo tempo, enquanto acusador da
politica do Estado, julgador da acusação e parte envolvida no processo
28 Idem. ibidem. p. 87.
7'> Idem, ibidem. p 97.
 1 >11( 11·, 1- Pu1111c ._ 77
Rc >l;t-:i<tu f \1 1 11

Nesse íntcrim, surgem u� c1.Jc propugnavam, r,o seio da burguesia,

1,- ,·rí:ie,1: '.ieu alvo deixa de : , . ,_·r �-entido, pois aparccl'. cnqu:; ,1),, )i'�tn
, km>tado apnán·. Neste mo11,c rt•J, KoseUeck pode, cntãl', ªI •< iH,lt f :ua a
pnJa de justificação da crítica burgues:t, LjUe se transforma e 1, um pro­
ccs,o de produção de justis·a em causa própria. A crítica deixa, 11este
por:to, de ser secreta e, na medida em c;uc submete o Estad,J const 1nte­
mente ao seu juízo, passa a ser a crítica política consciente d::: seu poten­
i! cial poder politico, mas ainda assim, evita assumir uma decisão política
nec:ssária gue ponha fim ao conf1ito, gerando o agravamento ela crise. 31,
PaLt realizar os seus objetivos, antes de ser hipócrita, a crítica burt!uesa
,,i
·,
tem (Jue ser cautelosa: fazer pol1tica só é possível para quem tem força e
resistência. Antes de revolver, é preciso aglutinar.
'I
i legitimidade substancial (que é de natureza moral e não política). A decisão
! '
3 DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA À CRÍTICA DA REVOLUÇÃO
Koselleck objetiva, ao final de seu trabalho, demonstrar como a
crise desernhoca em Revolução. Na Alemanha, o que é definitivamente
secreto é o plano maçônico da revolução e da tomada do Estado. O
conteúdo do segredo da franco-maçonaria é encoberto pela filosofia da
história que moraliza a pretensão política a esconder através de juízos
racionais sobre as improbidades do poder soberano constituído. A dupla
ação secreta de minar internamente e igualmente eliminar o Estado era
projetada para o futuro e traduzida em uma forma não-política e quase
natural, o que leva Koselleck a vincular o projeto politico maçônico aos
discursos religiosos tradicionais: a crença na filosofia da história e(1uivale
à fé na salvação.11 O plano político de derrubada do poder e a filosofia da
história são elementos que, quando identificados entre si, encobrem a
possibilidade de a Revolução se realizar concretamente e, ao mesmo tempo,
permitem que a mesma aconteça . O gue transparece é a tensão crescente
entre sociedade e Estado, entre sociedade secreta e puder político
organizado, o que Koselleck irá denominar de crúe. 12
111:1� fora das socied:.idcs maçôn e t ;, a ·;imples absorção do Estaclri r, não
� sL,a destruição, pois anteviran. t interpretaram, conforme Koselleck, a
crtsc que desembocou na Revoiu\·�o. Perceberam, corno T .1rgot, que o
e:;1�do de crise demandava urna cli:<:isào sobre a situação du p0der
pol:tico. 11 Ao definir a fonte da justiça não no direito soberano, mas na
consciência, Turgot é, assim, não s<Í o responshel por elim:nar os
resquícios da fundamentação jurídica do Estado absolutista mas, também,
pela subtração do sistema político desse Estado, já que a decisão soberana
passa a dever explicações às exigências da moral . Assim, o que se decide
juridicamente contra a moral náo passa de ato de v10lência e cat·ece de
transforma-se, por si só, em um ato de violência, e soberana passa a ser a
própria sociedade, que reina indiretamente, "pela moralização da
política". 14 É o espírito da sociedade que se coloca na posição de poder
legítimo para organizar-se a si mesmo. Inicialmente de forma involuntária,
Turgot permitiu e legitimou o processo histórico revolucionário que estava
sendo gestado secretamente e eliminou do sistema absolutista o último
elemento jurídico que atravancava a eclosão da guerra civil. 35
A crise existente a partir do confronto entre moral e política, e que se
agrava por conta do próprio dualismo c1ue a cons�tui, legitimou a revolução
mas sobreviveu a ela. O poder da política havia sido' devidamente aniguilado,
mas restava ainda esclarecer as limitações do poder da própria moral. Koselleck
termina seu raciocínio demonstrando de que maneira a idéia de progresso
infinito estava limitada pela necessidade de se colocar a moral sob prova
política e como se transformou e se politizou aquele dualismo moral. Assim,
"Para os representantes intelectuais da nova sociedade ÚJÓs-revolucionáriaJ,
a realidade da crise é a transferência, para a política de uma luta de forças
supostamente polarrs. A jur1sd1ção moral determinava a consciência política

33 Idem, ibidem, p 12<1

,r, íf KOSF.LLECI<. Reinhart Critir", oúr, p 108-1119 14 Jcl,.111 il q,! '1 1 1

!{1,·rn_ 1l,idc111, p. !OH e ss

15 ld· 'lt, ,1 !, !

i :�,
1< )�,l f.U·:CK, Hc1nhart. C.ri/Ji"at o:,,, 1 \,2i).
1
il•
 78 I·,· , ,., •f·A DOS SANTOS
n.tscentc. A cmc a.�r:wou-se desde que a dialética -10, ., ,. 111,, u11n suas divisões.
passou a detelll•Ínar a vid,, política. A decisão pol,· . <. •.u! 11,1-,,c o resultado de,
julgamento de urr. processo moral."16
Isto não evitou, entre tanto, que houvesse 1m1 agravamento moral
da pr óp r i a cris e , já que o seu caráter eminentemente político ainda
p ermanecia encoberto. Para Koselleck, aqui se enccntra o segredo essencial
do discurso iluminista, que se realiza em sua filosofi a da história: velar a
dissimulação do político é a função primordial c!a filosdia b u rg uesa da
história. A Revolução, por tanto, só poderá ser invocad 1 qua ndo o seu
resultado já estiver definido a priori. A cautela <los fr::icos dá lugar à
hipocrisia dos vitoriosos, que neutralizam a politica a tra vés da guerra .
Nesse sentido, é o conflito que sustenta o argumento utópico, e é a vi olên­
'i
[,
cia que o r ep roduz no poder : a História é, assim, finalmente eliminada
pelo discurso burguês enquanto filosofia da história. A política se inscre ve
como uma possibilidade constante de barbárie. A Revolução - como o
Iluminismo -, se mantém até o último momento não como conceito
po lítico, mas sim, co mo "conceito extra e supra-político,(...) indfretamente
politico", que estrate gicamente encobre a e xpressão "guer ra civil", e o
primeiro a perceber isto foi Rousseau .
Nesse sentido, o Iluminismo só é capa z de rein ar na me dida em
que encobre a sua própria autoridade. 37 Rousseau é um autor central para
Koselleck porque identifica a falência possibilitada pel a ausência da decisão
- q ue der iva da ocultação da crise , solapada pelo conceito civilizatório de
re volução-, a mudança não significando assim progresso, m as a derro cada
social e política per m an ente , generalizada pela falta de diagnóstico pr óprio.
A proposta de Rousseau, que para Koselleck é a vitoriosa , é adotada
pelos que realiz ar am a re vol ução. A amplifica ção da utopia promove, p or
conta de sua rec epção, a mutação definitiva no conceito de crise corno
este er a compre endido p e l a burg ue si a . A cris e d e ix a , nest a nova
p erspectiva, de impulsionar uma postura mo r al e pass a a demandar um a
1 :
,6 KO�l·'.LIJ!( k P i, ! ,,
37 l<lcm, ibidem, I' 1 \,
;I
' '
! ?.
il.
lJtKEll'O E PüLIIICA
79
a nális e da a n arquia pl)lít1c a que deve ser de cidida pelo f,-,t�do, que se
rea liza de sta forma corno ditadum. 38
Rousseau é, finalmente, vincul ado à tradiçà1) ilwnirú�.ta porque julga
hipocritamente o Estado a p artir de uma visão mópica elo norne m moral
isolado, num estadc Je natureza ond e reinaria 1 inocência e a virtude.
Este j ulg amento moral da crise politica do Estad,) faz com c:1ue Rousseau
tenha seu discurso finalmente incorporado p ela burguesia como
instrumento de ataque direto ao poder estabelec ido. 39 É preciso, então,
executar a sentença e a situ ação poütica solicita a decisão sobre o seu
futuro: viver sob a escravidão o u sob a liberdade (Diderot). Assim, a
natureza da crise só é afinal determinada a partir do seu próprio fim, quando
a crítica moral transforma-se em crise politica e decide confrontar o Estado.
40
É a filosofia da história que autoriza e se realiza como dialética entre
julgamento moral e decisão política. É a filosofia do IJurrúnismo que justifica,
para o futuro, a execução constante de seus veredictos morais burgueses,
transformando o cotidiano da política em uma constante gue rra civil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como interpretação d a filosofi a do Iluminismo, Crítica e m'se se
destaca, das abord agens contemporâneas na Alemanh a dos anos 50, por
identificar a pluralidade de projetos, discussõ es e inter-r el ações pre sentes
na formação da cultura política do século XVIII. N esse sentido, e numa
tradição de crítica à pretensão d e univ ers alid ade e n e cessida de do
38 Koselleck define sua leitura do Co11/r(l/o social de Rousseau da seguinte forma: "O paradoxo cJc
Rousseau ' porém, s egundo o qual a nação tem uma vontade geral que faz dela uma nação, não
. _
pode realizar-se pohucamente de maneira direta: libera uma vontade que, a princípio, não tem um
executor. Como não pode ser delegada uu representada, a vontade snberana desaparece no invisível.
(...) O rcsultac.lo é o Estado total, que repousa na identidade ficúcia da moral civil e da decisão
soberana. Toda manifestação da vontade do todo é uma lei geral, pois só pode ambicionar 0
propuo tudo. A vontade geral, que é absoluta e não t0lera exceção, reina sobre a nação. Sobernn.,
pelo simples fato de existir, é sempre - e totalmente - o que deve ser. A vontade gue não tolera
exceçiin é a exceção pura e simples." Cf. KOSELLECK, Reinhart. Crítica, mu, p. 141-142.
' 1 1 l'('K. Rcinhon Critica ,núe, p. 147-148.
' 1 111,
r,-1
pensamento racional (como fizeram i,iicialmente na alemanha H,:111an1 e
Hcrder), busca superar definitivamc·nte a idéia de unidade tcor1c1 ,fa
ftlosufta do Iluminismo, pretendida por Leibniz, Kant e pelos analistas
cl uc os seguiriam, identificando, em contrapartida, uma unidade de nature,:a
essencialmente política, a da utoria. Assim, a análise crít1ca do credo
iluminista do livro de Koselleck se estabelece como um instrumento
poderoso de revelação da gestão do político por ª queles que seriam
.
agrupados posteriormente como ideólogos do capitalismo. A� na l de
.
contas, a ausência da assunção de que os interesses econom1cos
estabeleceram uma forma específica e problemática de fazer e justificar a
política desde o século XV1II é que faz da filosofia da história u�1 discurso
utópico, e da análise de Koselleck uma abordagem conv1ct��ente
antiliberal. Suplantar a interpretação da política real pela propostçao de
uma Nova Atlântida parece não ser mais possível quando se desvelam os
objetivos concretos da iniciativa burguesa.
A centralidade da "decisão sobre o político" enquanto conceito que
permite avaliar a postura de uma perspectiva p�lítica deter� i�ada, aponta
_ _
para a influência decisiva e explícita da obra do Jurista e politologo � lemao
Carl Schmitt (1888-1985) no pensamento de KoseUeck. Com efeito, no
processo de interpretação genealógica da política, a p�r�r de um m�to�o
_
igu almente conceitual, Schrnitt desnuda o paradoxo ilurru_ru�t� por excele�c 1a:
_
a coexistência entre um relativismo moral implícito (subJetlvismo que reJetta
a decisão) e o universalismo radical (discurso que ignora o conflito).41 Realiz�,
assim, uma análise que deriva diretamente - embora não possa se confundir
_ com O pensamento católico contra-revolucionário do inicio do século
XJX e que se opõe, por outro lado, a tradição liberal e idealis�a �inculada a
Cassirer, seu contemporâneo, que insiste em unificar o Ilumtrusmo como
pulsão uniforme em direção à justificação moral da história (teodicéia). A
superação desse imobilismo que Koselleck irá denominar - na mesma
direção - de hipócrita, será constituída a partir da formulação de conce1tos
_
políticos e filosóficos não-liberais (como o político, a relação anugo-m1tnJgo,
-\1.11q,·, ,111 p ;1lcstrn p rofemla no IUl'I RI"''
ÜIREITO ,. f'ill II IC1\ 81
a exceçiio. :i decisão, a legitimidade a crise e a crítica) conceitos estes que se
caracterizam pelo enfrentamento das contingências e desafios radicais
característicos da vid1 política quand0 percebida histórica e concretamente,
embora tendam a tensionar exatamente a pri:tcn:;ão de racionalidade das
instituições, como o direito.
A instância do político, para Koselleck, é a mesma que a de Schmitt,
já que é definida por este último como a situação limite em que forças
sociais, por estarem em conflito, se definem a partir da relaçãci amigo­
inimigo.42 Esta lógica realista e mesmo reacionária - que de cert:1 forma,
e sob outra perspcctJva, foi incorporada tanto pelas análises sociológicas
conflitivas, de origem marxista, quanto por posições políticas de natureza
totalitária, na Alemanha - determina que a existência das instituições
políticas e de sua própria manutenção depende da resolução dos conflitos
sociais pelos interessados, mesmo através da exclusão. 43 lsto, a partir da
assunção de que o político caracteriza-se por um estado de guerra
constante, necessitando de um poder soberano que seja capaz de decidir
sobre os rumos da política em casos de exceção e que se coloca, portanto,
como poder fundante do próprio espaço político unitário, ou seja, de
uma esfera política onde as diferenças sejam eliminadas,44 mesmo que
através da opressão.
No texto de Koselleck, a política Ilul1'\inista é efetivamente
identificada através da tensão entre guerra civil e Estado, entre este,
42 Cf. SCHMITT, Carl. Der f3egri_ff de1 l'olilischw. (Text von 1932 mit cincm Vortwort und drei
Corollarien). Berlin: Duncker & 1 -lumblor, 1996 (1932), p. 28 e ss.
43 Daí o caráter problemático do conceito de política do próprio Schmitt, pois mesmo que seja
possível identificar no decisionismo o caráter de instrumental critico ao idealismo (o que é positivo,
e é o que propõe Koselleck), não se pode deixar de perceber e, seu viés tulalitário na justificação
teórica da democracia que se realiza pela eliminação dos diferentes, o c1ue caracteriza o dccisionismo
enquanto ideologia política (o q ue é condenável). É o decisionismo de Schrnitt que dá legitimação
jurídica à ascensão do projeto de Estado de natureza totalirári:l, ror �grupar dentro de si conceitos
politicamente duvidosos como este de homogeneidade democrática. Ver, nesse sentido, acurada
análise de SCHEUERMAN, William E. CadSd1111itt. the end of law. Oxford: Rowman & Littlefield
Publishers, Inc., 1999.
44 Cf SCI IMITT, Carl l'ali1/J(h, -n,,,,fi,,,11 . ,, , 1. 1 ., r 1tl'!:H lkrliw Dunkt-r
& llumblor, 1996 (Jn2).
 ;-Q Rnct:100 ])u IRA DO\ SANTO,
enquanto força política, e a butguesia ascendente, <.Jue p;,i", :�·sera algoz
de sua "colonização" por plllkres indiretos (proveniente_, d.1 sociedade
civil). Este processo de conflito social origina, para Kosellcck, uma unidade
política, só que camuílada pelo caráter de universalidade (inclusão) que
permeia o discurso burguês, mas que acaba não se realizan..io na prática.
O que significa dizer que a filosofia da história, ac, climin 1r a decisão de
seu horizonte discursivo, não a elimina enquanto instrumento real de sua
prática política.
Nesse sentido, Koselleck utiliza a análise dtcisioni�ta especifica­
mente para desmontar a pretensão de liberdade, igualdade,..: fraternidade
universais do Iluminismo, através da desestruturação de sua gênese
enquanto fundamento necessariamente hipócrita. As condições de
possibilidade da cultura burguesa se perfazem com o recalque da instância
política e, portanto, com a eliminação do debate público: a moral universal
a se alcançar com a prática que nega a decisão política está previamente
definida. Esta prática demagógica é, assim, profundamente excludente,
exatamente por ser secretamente monocrática. Mais que excludente, a
crítica utópica se torna alienada em relação a si mesma, já que o conteúdo
da sua ação carece de justificação por manifestar-se como verdade. Ao
furtar-se em decidir sobre o conflito, a filosofia política iluminista, lembra
o próprio Schmitt, evita o seu próprio julgamento, pois tudo que realiza
é justo de saída. A responsabilidade que antes derivava de um sujeito
específico (o poder soberano identificado no Estado) se torna
organicamente vinculada a um todo (a totalidade do Estado) e, com isso,
i i se torna aparentemente difusa (dissolvida na "soberania popular" ou na
! '
,,
igualmente mítica "vontade geral"). O poder irá continuar existindo, mas
:�
jt se tornará definitivamente irresponsável, porque aparentemente anônimo
e incapaz de decidir.
Com esta tese, delineada aqui em seus pontos gerais, o livro de
Koselleck fez eco a toda uma tradição intelectual durante o século XX
que possibilitou a crítica atual e concreta aos modelos políticos de
fundamentação econômico-ftnanceira. A rejeição da proposição política
hurguesa no que a mesma rn ,.,, \ , 11 "11 i , ,. 1·1 , L n'11tralizador, e
J)mu11, r' 1'01 í11r11
o questionamento de s1.:as entranhas originariamente problernát1cas, fazem
de Kosclleck não apen 1s um competente e genial historiador, mas igual­
mente um cientista social funcl:tmental para a formação de urna cultura
política capaz de critica, uma determinada crítica burguesa historicamente
influente e de certa fonm vitoriosa. A excepcional ;tnálise de Cdtica e crÚ;
é muito bem vinda e irá se incorporar definitivamente à tradição de estudo:;
em ciências sociais e jarídicas no Brasil, já que este livro é, em última
instância, uma obra fundament1l para o próprio reconstruir quotidianci
da política.
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('! 1 J 1 )li! r -{A Ili 1\
1 s \h 11

SANTO::S. !Zq;çr1(, Dultr,1 d,>,. '/'ho111as Hobbes eosji11:,/a 11 : , ,1,, ;,a/íllá, modrm.i -- rar,1 · 1111:1
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the scmantics of historical cimes. Cambridge/Lonclon: The MIT Press, 1985, p. VII­ moderno e contemporâneo. Corporificada, hoje, na noção de "Segredos
XXVI.
de Estado", a ação do governo que se oculta escondendo suas práticas,
encontra-se presente nas reflexões de quase todos aqueles que erigem a
política como um dos campos privilegiados de estudo. De fato, desde o
1
nascedouro daquela instituição conhecida como "forma-Estado", com o
.·,1., processo de laicização do poder que se dá na baiis a Idade Média ocidental
1
,1 e a subseqüente consolidação de governos absolutistas, encontramos as
práticas secretas dos governantes no centro dos processos de tomadas de
decisão a respeito do destino de seus povos.
Assim, ante a multiplicidade ele reflexões sobre o tema, evidenciadas
pelos mais diversos autores, impõe-se estabelecer os recortes do campo de
estudo em que se realiza a reflexão no presente trabalho. Portanto, neste

Ü autor é l3acharel em Direito pela Universidade f'edernl de Sa111:1 �!arta (UFS�I); �lestre em
Filosofia do Direito e Doutor em Direito pela Universidade Federo! de Sanro Cororina (lJFSq.
Professor Adjunto da Área de Filosofia e Teo,ia do Direito, lecionando "hlosofta do Direiro" no
'i Curso de Graduação cm Direito e "Teoriri Geral do Dirello" no Cur,o;.ci dr Pós-Gr:1du:1ç:i.o em
Direito d:, Universidade Fcdernldr Santa Ca1a11n: ti 11�-, 1 . :' , J,, J .111111r 1
/,�1/11111d,uk· m11,1 1hm-dt1)!,l'lll ,f!,t1ra11hf/<1 (PPno ,\l,·f 1 ; .. , •

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1, .·: 1 ,., 1, .Na-se analisar o percurs< 1 l li<' o terna tev<: através Jo pcn·,,11 iH. t11t), lc
al,,_;,:11,,. ;,utures do campo político ,:/ou Jurídico, julgados relev:nt:..·· l'ªra o
·-L"Ll t 1.11:,rncnto, referindo-se ao "Est:,du", num pritneiro momento; a,· '1 :.�tado
de d;r ·i1u", nwn segundo momento, e, por derradeiro, ao "Estado cb 11ov:1ttco
de< !ir 'ito", tentando verificar de CJU< · F >rma o segredo imbrica-se e u ,:nconlra
guanc!a dentro dessas instituições, ele suas prátirns e de seus valo--e-,.
Para tal, é necessário preLm,narmente estabelecer os cotKeitos ope­
r:1cio11ais que nortearão o enfoque aqui adotado. Assim, entender-se-á
por poder, acompanhando Weber. "a probabilidade de impor a própria
vontade dentro de uma relação S()cial, mesmo contra toda resistência e
qualquer que seja o fundamento desta probabilidade."2 Por dowinarão, "a
. i; probabilidade de encontrar obediência a um mandato de determinado
i 11 conteúdo entre dadas pessoas", 3 t por estado,
"um institutopolítico de atividade continuada, quando e na medid.1 cm que seu
c1uadro administrativo mantenha com êxito a pretensão ao !Jlonopólio legítimo da
coação física para a manutenção da ordem vigentc".4 (grifos no original)
O critério para a adoção do conceito weberiano de Estado, cm
detrimento dos ele outros autores, radica no fato de que neste conceito se
encontram os elementos indispensáveis para a apreensão cio fcnômeno
do segredo nas burocracias, c1uais sejam o de monopólio da coaçãofisica. Com
efeito, interessa ac1ui caracterizar os detentores do segredo (o quadro
administrativo) e a finalidade de seu emprego (manutenção do monopólio
ela coação física). Entender-se-á aqui ainda como Estado moderno a
instituição político-administrativa que resulta do
1 anseios das suas Sociedades ( ...)
11
"processo inexorável de concentração do poder de comando sobre um
determinado território bastante vasto, que acontece através ela monopolização de
alguns serviços essenciais para a manutenção da ordem interna e l'.xtcma, tais como
a produção do direito através ela lei, que à diferença do direito consuetudinário, é
uma emanação da vontade do soberano, e do aparato coativo ncccss:irio :'1 aplicação
2 WEBER, !\fax. Eco110111iay 1ocitdad. Trad. de José l\·1. Echavanía ct ai. l\lé,ico· r,mJu de Cultura
Econúmica, 1984, p. 43.
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D11u 1 1• , 1 1 '< ,1 111< 1 '.
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li•,cd, necessário para o efetivo cxc-rcc1<> d1Js pockres aumen1ados".1
Cumpre, ainda, caracterizar ,l 11c,ção de Estado de direittJ, aqui
entcn·.licJo como "o Estado que submete todos os poderes à lei constÍt!.1-
cional''/' a respeito, a análise de Wel,c; é ckftnitiva:
"A 'autoridade' de um poder de rn:tndo pode cxpress.ir-sc cm um �ist:ma de
11or111as raaonaúestaruídas (pacniadas ou L'utorgadas), as quai-; encontram obccLencia
como normas geralmente obrigatorias, yu1ndo as invoca "quem pode fa�ê-lo" cm
virtude dessas normas. Assim, tal sistcm.1 ele normas racionais legitima ,i qu< d1spôe
cio mando, e seu poder é legítimo na medida cm yue é exercido de acordo com as
mesmas. Se se obedece às normas e nfo às pessms."7 (grifo no original)
Por contraste, o Estado absolutista deve ser entendido como um
"sistema político em que a autoridade soberana não tem limites constitu­
cionais".8
De seu lado, será compreendido aqui, acompanhando Pasold,9 o
Estado contemporâneo como instituição jurídico política que: 1) nasce em
1917 com a Constituição mexicana e em 1919 com a Constituição de
Weimar; 2) possui as seguintes características:
"a) encontrar-se conformado juridicamente, isto é, há consagrações formais
dos conteúdos que o caracterizam nos diversos países, correspondentes cm maior
ou menor medida às realidades ali existentes;
b) nos discursos legais, com variações redacionais, está colocada a sua
submissão à Sociedade( ... )
c) da mesma maneira encontramos compromissos dos Estados para com os
d) de modo geral tem o Esrndo Contemporâneo assumindo uma estrutura
í tentacular(...)
-1
.,,_
1 5 BOílíllO, Norbeno f!stndo, c;rmnw, .\'o,m/,ide: para uma teoria geral da política. Trad. �I. r\.
Nogueira. Rio: Paz e Terra, 1987. p. (,R-(,'),
6 BOBBI( ), Norbeno cr ai. Umr 11,i110 de poli//m. Trad. J. Fere ira et ai. Brasília: UnB, cl 986, p. 482
7 Op ri, , p. 71!6
8 lh,,·1,'
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e) cm dcc, 11-renc a , l.1 111t<:rnac1on,i\izaçào da t:com ll''.; 1H' 1 ,a ·listorçào
pmgrcssiva dela aW·I'< s da dc:·nacinnalização do ílux•J '"' r·1 1C1°Hial de bens,
crescentes dirigido I el , que se convencionou dcnom:nar , ,iino 111nlt111ado11ais,
pnispera em muitos l ·.s1 .idos contemporâneos a mentalidade (la pnmazi;1 ,ihsoluta
do econôm1cn".10 (g11 fns no onginal)
Finalmente, entender-se-á por democraciafatma/, como Bobbiu, um regi­
me onde se verifiquem pelo menos os seguintes "procedimentos universais":
"1) o órgão político máximo, a quem é assinalada a fund,1çào legislativa, deve
ser composto de membros direta ou indiretamente eleitos pcl,i !)OVO, cm eleições
de pnmeiro ou segundo graus; 2) junto do supremo órgà•J legislativo deverá haver
outras instituiçôes com dirigentes eleitos, como ns órgãos da administração local
ou chefe ele Estado (tal como acontece nas repúblicas); .3) todos os cidadãos que
tenham atingido a maioridade, sem distinção de raça, de religião, de censo e
Feitos os acordos ,rn, 1 nt K1 )� neccs,ú1 ios, passa-se agDr Ia acompa
n har o percurso CJUC a nu�·a1, de s;cgrcdo na pol.ítica dcscnvo! vet, atravé;
- la H istóna do pensamento poJ;wo no Ocidente, seja nas rei 1 ri.1s de algun:
.llltores aqui privilegiados, SL ja cr imo prática comentacla [)l ,1· per,saclore�
da atualidade.
Advirta-se que, neste texto, não serão feitos comentários de or<lem
axiológica, considerando positiva ou negativamente a defesa do uso dl
segredo pelos detentores cio poder em cada momento histórico. Trata-sl
tão-somente Je salientar a importância dessa idéia, a qual foi enfatizad�
através dos tempos como um instrumenrn que deve ser lev1do e1r
consideração na prática política de denom inação.

! possivelmente de sexo, devem ser eleitores; 4) todos os eleitores devem ter voto 1 Ü SEGREDO NO PENSAMENTO DE ALGUNS AUTORES DA POLÍTICA E DO DIREITO
'-1·1
igual; 5) todos os eleitores devem ser livres.em votar segundo a sua própria opinião
' '
1 Na primeira proposta de um governo ideal imaginada dentro da
'·, formada o mais Livremente possível, isto é, numa disputa livre de partidos políticos
que lutam pela formação ele uma representação nacional; 6) devem ser livres cultura ocidental, Platão 12 postula uma razão própria do governante, que
também no sentido cm que devem ser postos cm condição de ter reais alternativas é quem <l eve manter suas motivações ocultas do povo, já que somente de
(o que exclui como democrática qualquer eleição de lista única ou bloqueada); 7)
sabe, da altura de sua posição ele rei-filósofo esclarecido pela verdade,
tamo para a eleição cios representantes como para as decisões <lo órgão político
supremo vale o princípio da maioridade numérica (...) ;8) nenhuma decisão tomada qual o interesse da polis. Observe-se a seguinte passagem:
por maioria deve limitar os da minoria, de um modo especial o direito ele tornar-se
"SÓCRATES - (...) a verdade deve sobrepor-se a tudo, porque se não nos
maioria, em paridade de condições; 9) o órgão do governo <leve gozar da confiança
enganamos, ao dizermos que a mentira é mútil aos deuses mas útil aos homens
cio Parlamento ou do Chefe do Poder Executivo, por sua vez, eleito pelo povo."11
sob a forma de remédio, claro é que esse uso eleve set"conftado apenas aos médicos
Note-se que, embora essa definição procedimental seja mais e não a todas as pessoas.

adequada ao regime parlamentarista, nada impede que, com as devidas AD!l'v!J\NTO-Isso é verdade.
adaptações, possa ser usada para descrever o regime presidencialista
SÓCRATES - Aos magistrados também, de preferência a todos os demais,
democrático de governo. cumpre mentir, enganando aos inimigos ou aos concidadãos, no interesse da
Pinalmente, por segredos de Rstado entender-se-á aqui todo sociedade.
conhecimento, informação ou ação ljUe, por ter em vista a manutenção ADI MANTO- Perfeitamente.
Ja dominação, é destinada pelos detentores do poder do Estado a manter­
SÓCRATES- Por esta razão, se o magistrado surpreender em flagrante dd,to
se oculta do público.
ele mentira qualquer cidadão, quer de vida pri\'ada, quer adivinho, 111édicn 11u

10 Op., 11 , p -11 l-1

1 ' 1 ,;/,!· '· 11 1d !· ;\kne:tl':;_ S.P:1ulo I kn111-,. ! , ·li
11 l11 />wc111,í,ú1,t1r 1
'lll S!-.H;ru l11,v1111,\KI C,\JlE�li\lrl<lRI
,Hljuircw, puni-lo-á com severidade por intruci1,1.ir no Fstado, como num navio,
um mal capaz ck levá-lo à destruição e:..ruín.1".11
O rei-filósofo de Platão é um protetur da polir. É o t'.1111co que,
graças aos conhecimentos da filosofia, consegue ver a verdade (em seu
sentido grego, como "aletéia", isto é, como clesvclamento, desocultamento
daquilo que está escondido na natureza) da finalidade da polis. O povo,
mantido na menoridade, só pode ver de forma parcial.
O modelo platônico de constituição ela polis pressüpõe a existência
de um soberano autocrático que, munido do conhecimento que lhe
proporciona a filosofia, cria estruturas de dominação com uma realidade
inacessível à sociedade mantida em situação de menoridade, isto é,
impedida de fazer uso público da própria razão. E isto porque, dentro do
modelo da República ideal, as diversas classes (artesãos, guerreiros e lavra­
dores) somente podem ter em vista seus interesses particularistas, man­
tendo-se carentes de uma reflexão universal sobre a polis. F, nesse contexto
que eleve ser vista a alusão à mentira na citação precedente.
E a mentira implica em manter secretos os desígnios do governante,
no "interesse da sociedade". É o governo que, ao enganar (mostrando o que
não é), oculta-se (não mostra o que é). Segundo Arendt 14 isto se dá porque
"Às flexíveis opiniões do cidadão acerca dos assuntos humanos, os quais por
si próprios estão em fluxo constante, contrapunha o filósofo a verdade acerca
daquelas coisas que eràm por sua mesma natureza sempitcrnas e elas quais,
portanto, se podiam derivar princípios que estabiLizassem os assuntos humanos.
Por conseguinte, o contrário da verdade era a mera opinião, cc1uacionada com a
ilusão; e foi esse degradamento da opinião o que conferiu ao conflito sua pungência
política; pois é a op111iào, e não a verdade, quepertence à classe dospré-requisitos indispemáwis
a todo poder (J!,ri fo acrescentado)."
O rei-filósofo, detentor da verdade, é único, já gue
"a própria noção de uma 'nação de filósofos' teria sido urna contradição em
termos para Platão, cuja inteira Filosofia Política, inclusive seus Lraços
j'.::
,t··, /'"'\c1/o t l'j!flmn. Trad. de 1\1. B. Alr11e1il1 ...,11 !
DIREI IO L !'<li Íl IC1 1)]
expressamente l!r,i11icos, c1ssc11ta-se sobre a corw1cçáo ti<- que a ve•·dadc não pode
ser abrida nem e- ,rnun:cada entre a massa".11
E issn c!ernrre ela própria noção rlatônica de a,:cssib1 tidade à ver­
dade, explicitad,\ na ,tlegoria da caverna. Eis :19ui um conflito importante
entre a ética e a pcAítica, proposto por um filósofo q8r:, paradoxalmente,
é o grande amante ela verdade. Se, em Platão, tnu-se de um modelo ideal
de governo, o qual nunca foi implementado - e, ,1uando tentado em
Siracusa, redundou em retumbante fracasso - a história de Roma, por sua
vez, oferece riquíssimo material para reflexêics sobre os segredos Je
Estado, formuladas por escritores políticos posteriores.
Clapmar, ic, referindo-se "à expressão arcan,1 imperii que Tácito
emprega nos Anais (1.2.) para caracterizar a poütica astuta de Tibério"
estabelecerá toda uma tipologia dos segredos de Estado. 17
De seu lado, é na história de Roma que Maquiavel18 vai buscar o
modelo explicativo e comparativo com sua época para estabelecer padrões
de dominação que repute válidos a-historicamente. 19 Assim, pois, a história
de Roma, rica em conjuras e conspirações, vai servir de fonte para toda
urna tradição teórica a respeito da dominação secreta, onde não se descuida
das conspirações contra o poder, já que "poder invisível e contrapoder
invisível são, em verdade, duas faces da mesma moeda". 2º Em contra­
partida, não temos entre os pensadores políticos romanos grandes teóricos
a respeito do tema.
A baixa Idade Média foi um momento muito profícuo para o
lançamento das bases teórico-doutrinárias a respeito do assunto dos
Segredos de Estado. Segundo Kantorowicz 21
15 Idem, p. 292.
16 Apud SCHll[]Tf, Carl. L-, D1rtad11m. Trad. J. D Garcia. �!adrid: Revista de Occidentc, 1968, p. 45.
17 cf. adiante.
18 MAQUIAVELO, Nicolás.Diw111011obrrlnp11i11emdiradade "/ito Lil'lo. Trad. A. /\-1. t\rancc',n. Madrid:
Alianza, 1987, Livro Ili, n" 6. 473 p.
19 e f. adiante.
20 I.t\FER, Celso. /-I reromtmrtlo dor dirl'llor l111w1111M - 11m di:!1
1•1111r<'m o pcnsnmcnto de Hannah
Arendt. Silo Paulo: C1a das I L'l1T. ( :-1: 1 1
21 KANTOHO\\'!C/., FtnL'\t ',1· 1 , 1 11 • ., �ti'; 1;1rdí c ,, !ldgcnc"
ll1C'dic\'alts. J n: ?/11' 1 li1n·,,nl ·n,1 t,: ., ,. '11

SEHUIO LJR(.)Ull •\I 1 ( ·· "I li\!( 1 · )l{I
"A expressão StJ!.ndo, dr! .J/,1MJ nll dlJ ClJncc,w e.lo Ab�oluti,11 ". · ", u111 r1.11do
mcc.lieval. Ú um ramo tard,, d;iL1uc:k hibridismo secul ar-esp1n,u i! '!l"�, ,·o,uo
resultado das infinitas rclaçc,es entre lgreja e Estado, pode falai ,. e 1n c:ttl:i !1!11
Jm séculos da Idade Mé-d,a •·:2
O recorte dado pelo autor ao tema propõe a correlacão cnm a
doutrina eclesiástica medieval e o absolutismo precípuamente considerado;
contudo essa doutrina encontra-se até hoje fortemente arraigacla entre mu.itos
teóricos <lo Estado concemporàneo. 21 As razões pelas quais entende
l<antorowicz que esta concepção de Segredo de Estado acabou permeando
as relações seculares de dominação, foram, dentre outras, que
"Com o Papa como P,inceps e vems i111peraioro aparato hierárquico da fgrcja
romana ( .. .) mostr ou tendência a c onverter-se no protótipo perfeito de uma
mona rquia absoluta e raci onal sobre uma base místic a, enquanto que
simultaneamente o Est ado mostrou uma crescente tendência a converter-se em
uma scmi-Igreja, e, em outros aspectos, em una monarquia mística sobr e uma
base rncional."24 (grifos no original).
A la.icização do poder se estruturou a partir da usurpação das funções
pontificiais do papa e do bispo. Mas, ao fazê-lo o aspecto simbólico do
poder real como algo d.ivino, passou a permear o discurso legitimatório da
!
nova dominação. Convém não esquecer que os apelos de legitimação -
entendida esta como criação de motivos de justificação interior da
dominação, de acordo com Weber - do poder real faziam-se por remissão
;
à esfera religiosa, naquele especial mecan.ismo de poder que se convencionou
chamar de "monarquia ele direito divino". Esclarece Kantorowicz:
"O ponlljicialismo real, pois, parece descansar na crença legalmente estabelecida
de c1ue o g overno é um 111yslen11m administrado s omente pelo alto sacerdote real e
se us indiscutíveis funcionários, e que todas as açiies r ealizadas em nome deste s
Segndos de Estado são válidas ipso facto ou ex opere operato, prescindind o inc lusive
do valo r pessoal do rei e de seus scguidorcs."2; �riíos no original)
22 Idem, p. 65.
·l
21 rf. ínf1.1, WEllf'.11. e llOBll/0 d ,.,,.
.! 1 ( lp. CJI ., p. (,(,
i
,_, lde111, p. 7.l
1 .l; 111 1 I' "IIIC'A 1I
h lo que se vê, ocorre, m:,i�, ,,, menos, uin longo proces,t, ,k s 11,­
biu'-, -:nt re igreja e Estado (talve:: e, k rml > mais�, propnado fo,sc -- m>··,i J,:
pap,'Íi;"J, que vai desembocar nos l •'.stados ab� olutistas. De f:1t< ,, e ,rnn
enw1cia Slhic-ra,
··r,_Absoluusmo aprescnta-sc-111Js em sua forma plena como a conclu,fo de
uma longa evolução, a qu·il, através•. la inclispens.ivel mediac;ão co crist1a1,i,mo
como doutrina e da Igreja romana comu instituição política universal, co,1cluz,
rlfsde m 01igens mágicas do podn; a1& a su,1 íun,iação em termos de racinnahilicladc e
cficiência."26 (grifo acrescentadn)
Nesta "racionalidade" e nesta "eficiênci:-i'' muito colaboraram os
burocratas iniciados no Direito romano, como conta Anderson:
"A afirmação de uma ple11it11do poteslatis do papa dentro da Igreja estabeleceu
o precedente para as pretensões posteri ores d os príncipes seculares, realizadas
com freqüência, precisamente, contra as desorbitadas aspirações religiosas. Por
outra parte, e do mesmo modo que os advogados cmonistas do papado foram os
que construíram e fizeram funcionar seu s amplos controles administr ativos sobre
a Igreja, foram os bu rocratas semiproíissionais adestrados no Direito romano
que proporcionaram os servidores executivos fundamentais dos novos Estados
mo nárquicos."l' (grifo no o ri ginal)
Assim, o segredo de Estado passa a fazer parte da prática política
do nascente Estado moderno. Nesta fase da hi�tória, faz-se presente a
figura de um arguto pensador florentino, cujo pensamento acompanha a
formação do Estado nascente:28 trala-se de Nicolau Maquiavel. Este dedica
o sexto capítulo cio Livro III de seus Discors-?9 ao tema da conjura, já que
por meio desta "perderam a vida e o estado mais príncipes que na guerra
a b erta " . 10 o cap1ru
, 1 o e1 ed"1ca-se a analisar contra quem as conjuras são
feitas (contra a pátria ou contra um príncipe), bem como suas causas. A
conjura constitui-se num contra-poder invisível c1ue eleve ser combatido
26 Dirn,nário, rn., p. U2.
27 ANOERSON, Pcrrr. E/ Estado abso/11tislt1. Trad. S. Juliá. México: Siglo X.XI, 1982, p. 2.1.
28 Cí1 ernaída de 130/ll110, Nnrl,e110. (iisi.r dr k, de111oaun;,_ Trad. J. �larfá. Borcduna: ,l,iel, 1985, p. 22.
')f) f ),
 l/ ) S1-1,,;1u IJ1i,.11111A1<1 l ,111 � 1\l,l(Ji'I
também de fo, 111;, astuciosa e, sobretudo, sccrct.t. \'l·ja-se a se½uinte
passagem:
"N;i(J qucr•i, emretanco, deixar de 1dvcrt1r ao pr111 ipe cJtt � rerúhlio contra
os que cori,;pirararn que, quando descubra uma conju<ltura (...) se cncon1 ra uma
que seja gr:inck e p:iderosa, n;io as d-::smascarcrn .tt( que estejam dispostos a
achatá-la com torças suficientes, pois se obram de o:1tr.1 rnanc1ra, vcrãu a sua
ruína. Por úto, devei', utilizar toda sua habilidade pam a dmi11mlaçdo, já que os
conjurados, ao verem-se descobertos, acuados pela rwcessidade, perdem todo
respeito."11 (grifo acrescentado)
Pelo gue se vê, parece inescapável ao governante, sob algumas
circunstâncias, apelar aos arcana para manter-se no poder. Mas adotar
tal prática como princípio, mesmo para subjugar movimentos sedicioscs,
pode acarretar efeitos perversos, se se adotam princípios mais próximos
de uma democracia. Pelo menos na leitura de um outro filósofo-político
um pouco posterior a Maguiavel, guem coloca em termos lógica e
eticamente irrefutáveis com o negativa a adoção da pr ática da ação
secreta . Trata-se de Espinosa, gue em sua obra póstuma,32 ao propor
um Estado ideal sem os vícios que percebia nos princi pados Je então,
diz a respeito:
"Reconheço, aliás, lJUe não é muito possível manter secretos os desígnios
de semelhante Estado. Mas todos devem reconhecer comigo que, mais vale
que o inimigo conheça os desígnios honestos de um Estado, que permaneçam
ocultos aos cidadãos os maus desígnios de um déspota. Os que podem tratar
secretamente dos negócios do Estado, têm-no inteiramente em seu poder e cm
tempo ele paz, estendem armadilhas aos cidadãos, como as estendem ao inimigo
em tempo de guerra. Que o silêncio seja freqüentemente útil ao Estado, ninguém
1
o pode negar; mas ninguém provará também que o Estado não pode subsistir
sem o segredo. Entregar a alguém sem reserva a coisa pública e preservar a
1-
liberdade é completamente impossível, e é loucura querer evitar um mal ligeiro
parn admttir um grande mal. O mote daqueles que ambicionam o poder absoluto
íoi sempre c1ue é do interesse da cidade que os seus negócios sejam tra1ados
31 p 124
• 1
D11rn11,J 1, l'rn 1111· \ 95
sccrct,im,ntc, e, ,w, a:, ,cntL n�a� d1, 111,,rno gêm:.o l)uam J mais cs, as se cohrcm
cum o prctc·w, ''" u•il1d.1dc, mais pcrigosanentc tc1 tkm a estabelecer a
cscravicho." 11
Outro não é o 1 1ensan1ento de Bentharr? quando, em 1776, ao
discorrer sobre a\ cliCt'rcnças entre um gove.no iivr,' .: um despótico,
salienta, dentre outras condicionantes, a de ljU<.: no guv:::no livre temos o
"direito concedido ao� súdnos para examinar e analisn publiramente os
fundamentos que assistem a todo ato de poder cxercid(J sobre cles". 15 E
mais adiante: "a proposição ele que a legislatura tem n dever ele fazer
acessível o conhecimento de sua vontade ao povo é algo gue estou disposto
a subscrever sem reser vas''. 16
A preocupação benthamiana com a transparênci;i das ações estatais
e ele seus fundamentos é coetânea ao surgimento de um fenômeno
chamado de "Opinião Pública". Termo ele difícil conr:e1tuação, dele diz
Bonavicles 37 gue não tem uma definição precisa: dependendo do autor,
ela seria a opinião de todo o povo, ou apenas da classe dominante, ou
ainda elas classes instruídas. Parece ele concordar com JelLinek, quando
este diz gue a opinião pública seria "o ponto de vista da sociedade sobre
assuntos de natureza política e social".38
Historicamente, porém, o conceito teve uma trajetória errática. Se
para Hobbes a opinião pública tem uma conotação �egativa, por introduzir
no Estado absolutista o germe da corrupção e da anarquia, para Locke a
"lei da opinião é uma verdadeira lei filosófica, servindo para julgar a
virtude ou o vício das ações". De acordo com Rousseau, opinião pública é
a "verdadeira constituição do Estado". Kant, respondendo à pergunta
"O gue é o Iluminismo?", diz que consiste em fazer uso púbLico ela própria
razão em todos os campos; é o uso que dela se faz ... como membro ela
33 Idem, p. 338.
35 Idem, p. 114, § 24.
34 13ENTHAM, Jeremy. Frag111en/os ,obre e/ G'obiemo. Trad. J. L. Kamus. �laJ11J. Aguilar, 1973. 133 p.
36 Idem, p. 130, § 9.
37 ln 130NAVI DES, Paulo tii11cio pofilira R1,, dr l:1•1, i," 1· ''""" ''1'' 1 ,, '' I' 1 arin,lo ,obre
' ( l p 1ni:io Pé,blica" - p. St,I S/,7
\B Idem, p. SM
 ,1, < ,I{) l ·1«21'11.\111 1
, t11;1u111dadc e dirigindo-se 1 .�,e us<> pL1blico tem duis dc�11:1.1t.tr1os.
.1 l!.1
h ,rum lado, se dirige ao povo, ;,:1r:1 que se torne cada vez mai, up:u de
iil,cc"(!Jc!e de agir; por crntro, se dirige ao soberano, o Estado :1!Jso!uto,
para mostrar-lhe que é vantajoso tratar o homem não conH; :i urna
"11,:Íl]Uina", mas segundo a digntdacle.
Já em Hegel, a opimâo púb,ica fica situada no mesmo patam,1r que a
sociedade civil, sem o vezo da universalidade, em face ela desorganização
e.lesta última. Assim a opinião pública, para Hegel, é a manifestação dos juízos,
opiniões e pareceres dos indivíduos acerca de seus interesses comuns.
Para Marx, a opimáo pública é falsa consciência, ideologia, pois numa
1' sociedade dividida em classes, emascara os interesses ela classe burguesa:
1
1
1 o público não é o povo, a sociedade burguesa não é a sociedade geral, o
i burgeois não é o citqyen, o público dos particulares não é a razão.'?
Para entender quais eram originalmente as funções da opinião pública,
devemos examinar em breves palavras como se dá o nascimento do Estado
moderno. Com o desmantelamento da sociedade feudal, a qual era
imediatamente política (cada Estado se auto-regulamentava, o senhor feudal
era detentor do poder econômico e político simultaneamente, não havia
um órgão que detivesse o monopólio da violência legítima etc.) surge o
j
Estado moderno, surgimento este que se dá sob o signo da separação da
esfera política (o aparelho estatal) da esfera privac.la dos cidadãos (o
conjunto das relações sociais entre proprietários privados).
Mas esta esfera privada acaba desenvolvendo uma dimensão
"pública"40 à medida em que começam a surgir algumas instituições - jornais,
salões de conferência, assembléias de cidadãos, cafés etc - que irão erigir-se
em lugares de discussão e polarização elas correntes ele opinião presentes
na sociedade burguesa. Com isso, "a esfera pública política (... ) intermedia,
através da opinião pública, o Estado e as necessidades da sociedacle". 41
�-
:,'.
39 Citações extraídas do verbete "Opiniào Pública" in UOUIII() et o\, Vmonáno, c1t.
40 HI\BERMAS,Jurgen. Muda11çue,tmluralnaufi'mpúbfiw. Trad. de J' Koche. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984. 398 p. - p. 93.
41 ldem,p.46.
111 'I . 1 I' 'i!< ' 97
\ u/11m.io piiblica advém assim '�tirncJ in�túncia pc)Ütica centul nas
reLiçuc� entre as esferas politica e: 1)r:v;1d,1 sulJ o Estado mo,km,). É
atravé� Jcl 1 que a burguesia tenta impl,r limites à atuação da :wtoridade,
ao tempo em que combate o segredo corno caract<�rística da atu;1ção e•.tatal,
pois quer submeter essa última à lut d:, razão :lustrada.
Ora, a própria funçãc) da opi11:ào pública neste período corresponde
à reaUzação, no campo social, do ideal ela Ilustração. Esta, por sua vez,
corporifica a pretensão iluminista que apresenta, no campo político, a
intenção ptecípua de desvendar os segredos do soberano, assim como
no campo da ciência, guer descortinar os segredos da nat111va. 42 De fato,
o Iluminismo é uma tendência duradoura, caracterizada por uma atitude
racional e crítica, 43 que ter11 como função o con1bate ao mito e ao poder,
e que
"Aplicada ao homem e às instituições humanas,( ...) significa que não há mais
zonas de sombras no mundo social e político. (...) Não há mais interditos, espaços
extraterritoriais protegidos pelo privilégio da invisibilidade ( ...) Não há mais
investigações proibidas".H
A função desse movimento filosófico tem uma intenção política
evidente:
"Se a lustração quer liberar um espaço de visibilidade e restrita, é principalmente
para desmascarar os opressores.( ...) Descrevendo as mgrenagens incompreensíveis
do a11cie11 régime, Michelet escreve: "O que havia de mais tirânico na velha tirania era
sua obscuridade..."(...). O poder é essa zoologia imunda que pulula no pântano e
rasteja na noite. Sua força está em sua invisibilidade. É a partir dela que o poder
estende seus tentáculos, vendo tudo e não sendo visto por ninguém."45
42 Sobre "Iluminismo", cf. r\DORNO, J'hcodor e f!ORKH6J1\IER, l\lax. Dialético do Esda1?a111mto.
Trad. de G. Almeida. Rio de Janeiro: Jorge /.ahar, 1985. 253 p. - principalmente o capíwlo "O
Conceito de Esclarecimento", p. 19 - 52. Este trecho refere111e à "Opinião Pública" 1á foi
desenvolvido pelo autor. Cf Ci\l)EMARTORI, Sérgio. "J\ Opinião Pública como lnstrumc,110
de Reflexão para Política Jurídica". ln: CPGD/UFSC, l{e,,islo Seq11ência, nº 18. Florianópolis,
dezembro de 1987. 88 p - p. 45 SI.
43 ROUANET, Sérgio Paulo. "Olhar Iluminista". ln: NOVJ\ES, Adauto et ai. O olhar. Sào Paulo:
Cia. das Letras, 1988, 495 1' - p. 125.
44 Idem, p. 129
45 1.1 , . •
 'J K
Sl:R(d(' 1 "' •l'I 1 '\RI C.\lll'M.\R I OH!
1
í
: ' Se, por um l.1d J, a: relações entre o império cl.1 O/'iniào púbhr:a e a
1
: uta p el a dtmocracia nà,, sào /mmafacie evidentes ne:-c;r. p, ·rínclo hist,Srico,
é certo que algumas das m,iis importantes liberdades dernocraticas surgem
a partir das reivindicações da ]lustração, como afi rn ,a Schmitt:
"1\p c sar de sua il'arm.:ns1bilidade e inorganizablidade, a opiniãopública foi
1cconhecicla e tratada desde 0 séc u lo XV][] na literatu1a pol 1 t1ca <: da teoria Jo
Estad o como fator especial da vida estatal. Os filósofos da Ilustnção do séc u lo
XVIII eram partidários de um despotismo ilustrado, rnas viam em uma opmiào
pública ilustrada o controle Je toda a atividade estatal e u ma segura garantia
contra q ualquer abu;o do poder d o Estado. Liberdade de manifestação do
p en samento e da liberdade de Imprensa se converteram assim cm instituições
p o líticas. Daí recebem o caráter de direitos políticor e deixam de ser derivaçôes
- como no processo americano-, da l iberdade de conscit'.:ncia e de religiao, ü
exercício da liberdade de Imprensa, da liberdade de manifestação de opiniões
políticas, não é somente um exercício dentro da esfera privada da liberdade,
sem atividade públi ca, desempenho de uma certa função pública, ou controle
público."46 (grifo no original)
Assim, as máximas de F:spinosa e Bentham a resp eito da
transparência na relação senhor-sücfüo serão el evadas a máximas de direito
p úblico sob a pena de Kant, em seu ''Apêndice" à "Paz Perpétua". 47 De
fato, o filósofo alemão, ao discorrer sobre o desacordo entre a moral e a
p oütica procura estabelecer máximas de ação que conciliem as duas áreas,
encontrando em uma proposição básica essa conciliação.
Nominada por ele de "fórmula transcendental do direito público",
tem essa proposição o seguinte enunciado: "Todas as ações relativas ao
direito de outros homens cuja máxima não se conciliar com a publicidade
são injustas". 48 E explica a seguir:
"Este princípio não tem de ser considerado simplesmente como ético
(pertencente à doutrina ela virtude), mas também como;úddico (rnnccrnentc ao
direito dos homens). Pois uma máxima que eu não posso deixar tomanep1Íblica
sem ao mesmo tempo frusrrar minha própria intenção que tem de rer ocultada se
1
46 SCHMITT Carl ·1,e,ia d, l,1 ,-; •wm,r11 Trad F ,\yala �ladrid: Alianzn, 1982. 'l8íl p. - 1, ;, 10
47 U. 1 \ .1
IH 1,k, , 1
99
[)1IV·ll'll 1( POLÍTICA
ela deve ter cxlto e pai., ,1 c1,1;d n,10 p isso me derl.1rnl'p11bliá1mer1t1 s�m tjt,c 1>ur isso
seja levantada indeft:ctJvclr.iu1te a rc,iol ência de todos contra ,w:u p ru1 ,ó;ito, não
p,)de vir esse contra-tr:tbalhn neccs,,áno e universal por cons�gumte imt.ligivel a
p1io1i, de todos contra num de nenhum outro lugar a não da in1usüç• (lJngc1 cchtigkeit)
com que ela ameaça a t,ido,.' ·•9 (grifos no original)
Adiante, é ainda na p1,b!icidadt que o escritor alemào vai encontrar
0 ponto de conjunção entre o direito público e a políttca. Observe-se
este trecho:
"eu proponho um outro p rincipio transcendental e afirmativo · ln direito
público, cuja forma seria esta:
'Todas as máximas que necerritam da publicidade (parn não malogt ar em seu
fim) concordam com o direito e a política u nido'.
Pois, se elas podem alcançar seu fim somente pela publicidade de seu fim,
então têm elas de ser conformes ao fim geral do público (a felicidade), concordar
com o qual (fazê-lo satisfeito com seu estado) é a tarefa própria da política. Se,
porém, este fim deve ser alcançável romentepela publicidade, isto é, pelo afastamento
de toda desconfiança contra as máximas da política, então estas têm de estar cm
cuncórdia também com o direito do público, pois unicamente nele é po s�ível a
união dos fins de todos".50 (grifos no original)
Vê-se assim como é imp ortante no pensamento Kantiano o
problema <la publicida<le: torna-se ela o ponto dc:_imbricação entre moral
direito público e política. Pois, se é possível estabelecer-se fundamentação
moral para as ações relativas ao direito público ("direito de outros
homens") como quer Kant, tal é somente possível na esfera da publicidade,
dado que o que é "público" (não privado) somente pode ser exercido em
"público" (não secreto) .
Já em nosso século, encontramos em Carl Schmitt51 urna aguda
aná l ise cio segredo de Estado a partir de seus fundamentos tc,'.inco­
políticos.52 Diz ele o seguinte:
49 Idem, ibidem.
' !11 !
-
lji\11'�] ( :11] l.s1d1dru/uf"(l,CII.
1
 10IJ )l·IHilO lJR()lJI l '\K I C'AIH'M/\lrl< JIU
1) 1\ partir do esgoumento da visão 1.-ol,\)-'.' o v pa1narc:1lisra do nasc1me111,,
du remo dos homens, no século X\� a poliuca p 1s,ou a desenvolver-se como ciência;
2) <> conceitu básico dessa nova ciência é.\ Razão de Estado;
3) num grau ainda mais elevado que o conceito cl-: Razão ele Estado, encontra­
se na literatura surgida nesse período, o conceito ele arca1111111 político;
4) "o conceito ele arca1111111político e cliplom.íttco, inclusive ali onde significa
segredos ele Estado, não tem nem mais nem menos de mísnco que o conceito
n1udcrno de segredo industrial e segredo comercial";
5) conseqüentemente, isso "demonstra o simples sentido técnico do amm11m:
é um segredo ele fabricação".
Transcrevendo a análise de Clapmar, assevera ainda que: 1) Cada
ciência tem seu arcana e todas utilizam certos ardis para atingir seus fins;
2) mas no Estado sempre são necessárias certas manifestações de liberdade
para tranqüilizar o povo (simulacra, instituições decorativas); 3) os arcana
reipublicae são as verdadeiras forças propulsaras internas do Estado (o que
move a história universal não são quaisquer forças econômicas ou sociais,
mas "o cálculo do Príncipe e seu Conselho secreto de Estado, o plano
bem meditado dos governantes, que tratam de manter-se a si mesmos e
ao Estado"); 4) dentro dos arcana, é de se distinguir os arcana dominationis;
5) os amma imperii referem-se às diversas técnicas para manter o povo
tranqi.iilo (uma certa participação nas instituições políticas, liberdade de
imprensa, de manifestações etc); 6) de seu lado, os arcana domi11ationis
referem-se à proteção e defesa das pessoas que exercem a dominação
durante acontecimentos extraordinários, rebeliões e revoluções, e os meios
empregados para sair-se bem nessas circunstâncias; 7) e, finalmente, os
arcana são "planos e práticas secretos, com cuja ajuda são mantidos os
j11ra imperiz", sendo estes por sua vez diferentes direitos de soberania
especialmente o direito de promulgar leis.
O segredo de Estado é tratado por Schmitt corno um conhecimento
científico inacessível aos não iniciados, tendo em vista a manutenção e.lo
st,i/m 1110. De outra parte, pela transcrição que ele faz das teunas de
, 1 se ljllC o que está subjacente a cst.l d, ,, 1· 1 1 1 1 1 1
l
, ,11 l l1�t<-iria (;: llistcíria é feita!'"' 11'''
1 1
i 1,
DIREITO 1: PüLÍTIL. \ 1 01
Príncipe e seus cc ,nselli,�irns é que fazem a l-lisL(;11;1, ,1ã() as for(,:aS sociais)
E mais :iinda, a 11ráxis .!e governar é vista aí como riénci11, arualizando «
risca tradição surgida C)m l'vl aquiavel.
De seu ladu, Weber,"3 ao analisar a ''scxiologia eh dominação", abre
um parágr:tfo específico para referir-se à dominação através da "organiza­
ção", esta tida por ele como a estrutura social permanente para fins ele
governo. 54 Este tipo de dominação está embasado na ·'vantagem do peque-
no numero "
,
"(ou se1a, na possibilidade que têm os membros da minoria dominante ele
colocar-se rapidamente de acordo e de criar e dirigir si�tematicamente uma ação
societária racionalmente ordenada à conservação de sua posição dirigente)" ;s
E qual o valor dessa vantagem? É o próprio autor que responde:
"A 'vantagem cio pequeno' adquire seu próprio valor pela ocultaçâo das próprias
intenções, pelas firmes revoluções e pelo saber dos dominantes. Tudo isto se fa,,
mais difícil e improvável à medida que aumenta seu número. Todo aumento cio
"segredo do cargo" constitui um sintoma da intenção que têm os dominadores
ele afirmar-se no poder ou de sua crença na ameaça crescente que recai sobre o
mesmo. Toda a dominação que pretenda a continuidade é, até certo ponto, uma
do111i11açâo secre/a."56 (grifos cio autor)
No centro deste moderno tipo de clominaÇ,ão encontra-se o meca­
nismo do segredo, da ocultação. O segredo conforme Weber constitui-se
em importante mecanismo de poder no cerne de gualquer estrutura buro­
crática. Observe-se, a respeito, a seguinte passagem:
"Toda burocracia procura incrementar esta superioridade cio saber profissional
por meio cio segredo de seus conhecimentos e intenções. O governo burocrático é,
por sua própria tendência, um governo que exclui a publicidade. A burocracia oculta,
na medida do possível, seu saber e sua attvidacle frente à cririca."17 (grifo do autor)
53 WEBER, Max. Op. cit.
54 Idem, p. 704.
55 Idem, ibidem
56 Idem, ih,dcm.
57 Idem, p. 744.
 102 SÉRGIO lilHJllll•\RT Cl\llEMAIUURI
E adiante, ao trat.lr (h publicidade administratin, po.1dern:
"a maior força do funcionalismo consiste na conversão, atravé; do co11ceito
cio 'sci;redo profissional', do saber rdativo ao serviço num saber stcreto, ou se1a,
num 11eio, em últim a i11stân,ja, para assegurar a administração contra os
contmles".\8 (grifo do autor)
Norberto Bobbio, jurista e cientista político italiano, com várias obras
publicadas tratan<lo sobre a democracia e a luta cotidiana para sua
unplementação e conquista, também aborda em sua obra o tema do segre<lo.
Com efeito, o segredo de Estado constitui-se, para ele, num dos
principais obstáculos à implementação de uma democracia plena. 59 Parte
ele da idéia de que o Estado contemporâneo apresenta aspectos de
representatividade ampliada que supera a concepção original do Estado
representativo clássico, moldado na idéia britânica da existência ele um
Parlamento que corporificaria os interesses da sociedade.
Tome-se, para exemplificar, o seguinte trecho:
"convém recordar que o sistema representativo em um Estado puro nunca
existiu. Excluindo a Inglaterra, o regime parlamentar nos outros países foi instituído
a partir do exterior, em Estados com aparelhos administrativos centralizados e
centralizadores fortemente desenvolvidos. Aquilo que nós, para resumir,
chamamos Estado representativo teve sempre que se confrontar com o Estado
administrativo, que é um Estado que obedece a uma lógica de poder
completamente diferente, descendente e não ascendente, secreta e não p1Íblica,
hierarquizada e não autónoma, pendente ao imobilismo e não dinâmica,
conservadora e não inovadora etc."''º (grifo acrescentado)
Assim, o segredo é característica importante daquilo que Bobbio
considera como "Estado administrativo", que é o conjunto de aparelhos
administrativos centralizados e centralizadores. O autor concorda com a
afirmação que a democracia é o governo cio poder visível. 61 E ainda, que
58 Idem, p. 1100.
59 Cf. adiante.
60 BOBBIO, Norberto.Qua/1odalismo?Deba1c ,obre uma altun11va. Trad. 1. Frcazza. Rio de Janeiro:
P,z e Terra, 1983. 111 p. - p. 72
(1 J (:f_ dt l autor, Ü/11/11,-0 ,/,1 dtlll/JO(l(i1I - 1 r 1,1 1\I ,\. N11gue1r,t Rio dc
J:111c11 i: Paz e Tcrr;1, 1)8ú t·.11·1t ,1. 1· I' n Ili/, l.sr.i
:di 1111.1çao CilCOIH 1 :l ·St' lia p 8 �
Dm1:1Tll E PoLíTICA 103
a democracia é o g0verno du PoJer Pi'.1liLico em públicn, já (] 1e a palavra
"púlilico" pode assumir dois s1gniftcaclos: não privado e visível. 62 A
visibilidade como inerente au regime democrático, LUZ Bobbio, nos vem da
reunião cios cidadãos atenienses congregados na ágora ou na tclcsia, onde
todos os problemas inerentes à C!dade eram debatidos à luz cio dia. 63
Corno prova da sobrevivência da idéia da publicidade co:no inerente
ao regime democrático, traz o autor à colação uma passagem escrita por
Michele Natale, bispo de Vico, ao tempo da Revolução Fran·2esa:
"Não existe nada de secreto no regime democrático? Todas as operações dos
governantes elevem ser reconhecidas pelo povo soberano exceto algumas medidas
de segurança pública, que ele deve conhecer apenas c.iuando cessar o perigo."6'
E continua:
"Este pequeno trecho é exemplar porque enuncia em poucas linhas um dos
princípios fundamentais do Estado constitucional: o caráter público é regra, o
segredo a exceção, e mesmo assim é uma exceção 9ue não eleve fazer a regra valer
menos, já que o segredo é justificável apenas se limitado no tcmpo."''1
Mas não é apenas o Estado constitucional ou o Estado ele direito
que e.levem ter a publicidade como regra, mas também o Estado demo­
crático ele direito, pois este é c.lefiniclo por ele col1lo "o governo direto do
povo ou controlado pelo povo (e como poderia ser controlado se se
mantivesse escondido?)". 66 Desta forma, o autor admite, para além de
sua definição procedimental de democracia, uma outra definição que
contempla a resposta à pergunta: c.1uem controla o poder? A publicidade
entra aí como elemento fundamental para possibilitar este controle pelo
povo e seus representantes. A publicidade, relata Bobbio, já era funda­
mental para estabelecer distinção entre o regime absolutista e o constitu­
cional:
62 Idem, p. 84.
(1 \ !,L... , ,1 ,, 1, ·1
 11 L\ ')• [ C, (' URQUII.\RI CAl)I ;.1 \1 ,,
' , 1 l ,\ • ;Ítcr público do poder, cntenr!1,:, · e, •n ,o ni,o secreto, corno alint,, , ,
'\Hd,l:c"', pcrma,wceu como um dos, •11, ·, ,, t"undamentats para d1st1ngu1, ,
1 .-,t;>)o constituci(,n:d do Estado absol111,J ,·, :i�sim, r-ar,1 assinular o nascimcn·,,
ou n:na,umcnto do Poder Público cm·· '1!il.u>'' 1,,
F'. :1 publicidade torna-se imperiusa no Estado contemporâneo, ncJ
qtldl o controle dos súditos se faz mats tot.d a cada dia:
"À mcdida que: aumenta a capacidade d,> Estado para controlar os cidadãos
deveria a umentar a capacidade dos cidarlãos para controlar o Estado. Mas es e
crescimento paralelo está muito longe de verificar-se. Entre as diversas formas ce
abuso do poder está a tualmente a p ossibilidade, por parte do Estado, de abus,1r
do poder de informação."68
Fé por isso que o autor destaca o poder invisível, junto à privati­
zação do público e à ingovernabilidade, como os três aspectos notórios
da crise da democracia. 69 Em outra obra,70 ainda, redefinindo a sua noção
de democracia como sendo idealmente "o governo do poder visível, ou
do governo cujos atos se desenvolvem em público, sob o controle da
opinião pública",71 revela os mecanismos que o poder autocrático (e,
como referido acima, também o Estado administrativo) se utiliza para
escapar ao olhar da opinião pública:
"O poder autocrático foge do controle público de duas maneiras: ocultando­
se, ou seja, toman<lo suas próprias decisões no "conselho secreto" e ocultando,
ou seja, através cio exercício da simulação e da mentira, considerada como
instrumento lícito de governo."72
No mesmo ensaio, ao estabelecer uma tipologia elas formas de
poder invisível, Bobbio resume-as em três: um poder invisível dirigido
contra o Estado (máfias, grupos terroristas, etc); um segundo tipo ele poder
invisível que age à sombra do Estado (associações secretas como a Loja
Maçônica P-2, por exemplo); e
67 Idem, 1b1de111.
68 l.lOI\Ll!O, Norbeno e, ai. C,imdelnrle111ocmcia Trad.J. /,larfá. Barcelona: Ariel, 1985. 96 p. -p. 24.
69 Idem, ensaio 1111iwladu "! .a Crisis de la Democracia y ln Lección de los Clássicos", p. 5 - 25.
70 ·1< /,l,,,1,..;,,.. · r /,,. ,. .. ,m,· T,.,d I f'erreirn. Brasília: UnR/Polis, 1988. 240 p.
11,
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ÜIIU·II< 1 I' ,1111 l(l)
"tin,1im, ntc, o p•ldcr invisível Cl)/llO 111,ti! �,;,;�,, do \ (,,ado: os serviç,Js sccrctns,
cup1 dcgcm·r,H,:;10 pude dar vida a uma vcrd:,d,:ir.t tórn,a de �ovcrnn oculio. Q JC
tu,los m Estados tcnharn seus serv iços screros é um mal, diz-se, neccssár o.
'\1111gué11. uusa por cm dúvidJ a cumpaubil cl,tc.k do E.,radc, dc111ocr.t1rn com o
uso dos �erviçns secreto�. Mas estes são compatíveis com ,i dernocr.,cia apems
num con'exto: que sejam contrnlados pelo !sc,vcrno, pelo poder v1sí,,cl, que p )f
�ua vez d ;vc ser controlado pelos cidadãos de modo que sua ação seja d1ngi, la
sempre e apenas para a defesa da democrac a". '3
f\
esta última forma de poder secretr é ({UC se clá relevo no presenre
trabalho, pois() c.1ue interessa at7ui é justam:nte tentar rastrear a� relações
entre o poder oculto exercido pelo Estado e a democracia. 1\ssim, se
entendermos ,l democracia como ·'poder visível", no sentido ampliado
que ora lhe dá o autor, veremos l[Ue a vitória desse poder sobre o poder
invisível "jamais se completa plenamente: o poder invisível resiste aos
avanços do poder visível, inventa modos sempre novos de se esconder e
de esconder, ele ver sem ser visto". 1·1 Por isso, a dicotomia público/privado,
no sentido de manifesto/secreto, é para ele
"uma elas categorias fundamentais e tradicionais, mesmo com a mudança do;
significados, para a represcn tação conceituai, para a compreensão histórica e para
a enunciação de juízos de valor no vasto campo percorrido pelas teorias da
sociedade e do Estado".75
Hannah Arendt, filósofa preocupada com·tudo que diga respeito à
dignidade humana, brilhante analista do fcnômeno totaLitário, também
tratou do segredo e suas relações com sociedades e regimes democráticos
ou não. De fato, encontram-se esparsas em várias obras suas, referências
ao fenômeno cio segredo como prática política. Para ela, a visibilidade é
parte inescindível do espaço político, como o demonstra a seguinte
passagem:
"Se a função do âmbito pt'ililico é iluminar os assuntos dos homens,
proporcionando um espaço de aparições onde podem rnnsu·ar, por atos e palavras
7.1 Idem. p. 210-211.
4 IHJI\BIU, Norbcno /;,!mio, (,or,'1110, \,, ... ,.
', ldrn1 11 11
 1 ('(, S1::RGJO URQLJIIAI'! CADE�1AlflüRI
pelo melhor e pelo p101, c1ue111 são e o que podem fazer, as ,CH!1bras J,egam
quando essa luz se extingue po:· "fossos de credibilidade" e "govcr:._>'.; m,·1síveis",
pelo discurso que não revela e que é, nus o varre para sob o tapete,,:, ·m •:xurtações
morais ou não, que, sob o prd(:),tO de sustentar antigas verdade<;, dq�rnd:cm toda
uma triviaLidade sem sentido''.'''
A preocupação da autora com a transparência e a verdade no espaço
público torna-se quase obsessiva, acompanhada de uma indignação genui­
namente moral com uma prática que, ela reconhece, faz parte de nossa
história política:
;,
,;
"O sigilo - que diplomaticamente se denomina "discrição", assim c<Jmo os
arcana impeni, os mistérios do Governo - e o engano, a deliberada falsictade e a
pura mentira, utilizados como meios legítimos para o logro de fins políticos, nos
1i têm acompanhado desde o começo da História conhecida. A sinceridade nunca
i,
figurou entre as virtudes políticas, e as mentiras sempre foram consideradas nos
tratos políticos como meios justificáveis,"77
Ao tentar uma explicação psicológica para isso, a autora suspeita
que "Pode ser que seja natural que os que ocupam cargos eletivos (...)
pensem que a manipulação é quem rege as mentes do povo e, por
conseguinte, quem rege verdadeiramente o mundo".78 Assim, ela crê que
os governantes possam ter uma visão conspiratória da política, o que
tenta demonstrar, nessa obra, com um exame sociológico do caso dos
i( Pentagon Papers durante a administração Nixon nos EUA.
I' Mas o verdadeiro triunfo do segredo e da manipulação sobre a
: !
livre circulação de idéias no espaço púbUco dá-se quando este é abolido:
sob um sistema totalitário. É aqui que o segredo faz metástase, abrangendo
em sua totalidad e as esferas do poder. Em sua análise sobre o
totalitarismo,79 diz-nos Arendt:
76 ARENDT, Hannah. Ho111e11s em tempos sombrio,. Trad. D. Boltmann São Paulo: Cia das Letras,
1987. 249 p. - p. 8. No mesmo sentido, o comentário ela aurora in: F.111,-, o pauado e ofúturo.
cit., p. 293,
77 Idem, "La Mentira en Política" ln: ARENDT, Hannah. C"n"ri.1 d, la fvp,ihliw, Trad. G. Solanda,
Madrid: Taurus, 1973. 234 p. - p. 12.
78 Idem, p. 26,
...,{) ldc111, O sutem,, ltJ/alitáno. TraJ H IC1p· ,.._, 1 .!
(J11n-11, 1 l'ui,Í"IICA \U7
"Os movimentos total11:írios que, durante a subida ao poder, 11111t.rn, ccrus
ec1ractcrísticas orga111zac1ona1:; das M)<:iedacles secretas e, no cntantu s,- inst,1
Iam à luz do dia, criam un,a verdadeira s1Jciedade secreta :.pena, d·:1,ois de
chegarem ao governo. A so'.:it.:dadc secreta dos regimes totalitários e ; políth:a
secreta."80
E sobre o papel proeminente desta política secreta:
"Os serviços secretos já foram rotulado� corretamente de t.m Estado -lcot:o
do Estado, e isto não se aplic:, apenas aos despotismos, mas também aos gc·,ern<'S
constitucionais e semiconstituc1onais. A simples posse de informações s-:cret.1s
sempre lhes deu nítida supcriondaJc sobre todas as outras ag.:nc1a, do serii�o
público, e constituiu franca ameaça aos membros do governo."81
Para Arendt, o segredo é o mecanismo central, a pedra ele toque da
ação política nos regimes totaUtários. Nas palavras de Lafer:
"Hannah Arendt tem uma percepção muito clara da relevância do direito à
informação como meio para se evitar a ruptura totalitária, Com efeito, uma das
notas caractt:rísticas do totalitarismo é a negação, expa11e pn"11cipis, da transparência
na esfera pública e cio princípio da publicidade... ".82
Em contrapartida, o acesso às informações governamentais numa
democracia é parte inescindível ela prática política, como meio de controle
do poder por parte cios governados:
1
"numa democracia a visibilidade e a publicidade do poder são ingredientes
básicos, posto que permitem um importante mecanismo de controle, ex parte
L populi, da conduta dos governantes. f: por essa razão que, no mundo moderno, a
representação política democrática, que substitui a ágora da polis, só pode ter
lugar na esfera do público, e um Parlamento só pode ser representativo, como
aponta Carl Schmill, se existe a crença de que sua atividade específica reside na
publicidade. Neste sentido, numa democracia a publicidade é a regra básica do
poder e o segredo a exceção, o que significa que é extremamente limitado o
espaço cios arcan" 1111pmi, ou seja dos segredos ele Estado".83
<. r ·. 80 Idem, p. 542.
81 lde111 ,. ,"\fl
82 1 \
8.\

l 08
A publi. 1- Jade é, para Arendt, a pré-cond1,,'.ão para que se possa até
mesmo falar i.:111 polírica, já 9ue esta é definida rwla al tora como "o campo
de comunicaçiil e de inLeração 9ue assegura o pode· do :1gir conjunto". 84
O que impLca em concluir-se 9uc, sob regimes ro aLitários, desaparece
toda e qualquer possibilidade de ação política, tom tela nesse sentido. U
que temos a9ui então é um conjunto de práticas de pura dominação.
i- Temos air,cla em t\rendt uma reflexão sobre a :mporLância prática da
'1 .
manutenção do princípio da publicidade na esfera pública. Como relata Lafcr:
"Com deito, na t.:sfern do público, entendida como o comum, os enganados
pela mentira reagem aos enganadores minando a comur.idaclc política. t'� por isso
que a prevalência exparte plinapis dos arcana impeni provoca, dialeticamcnte, os
arcana seditionis ex parte populi. Estes também são destrutivas elo espaço público
ela democracia, pois podem levar à ditadura anônima dos grupos terroristas
clandestinos, que também se valem da mentira e ela dissimulação, cientes da clássica
lição de Maquiavel: Se poucos podem travar uma guerra aberta contra o poder
autocrático, a todos é dado con�pirar em sigilo contra o P ríncipe. Poder invisível
e contrapoder invisível são, em verdade, duas faces da mesma moeda.""'
Enfim, o gue ressalta das obras arendtianas citadas, é uma preo­
cupação com a ética no espaço púbLico, reivindicando para a prática poUtica
uma dimensão moral que muitos autores de ciência política insistem em
subtrair. Sob outro enfo9ue, pode-se entender o segredo de Estado e sua
hipertrofia atual, mesmo em países com regime democrático, como efeito
de uma privatização do espaço público, como se faz Gleizal. 86 Para ele, o
mecanismo do segredo no Estado envia-nos à distinção entre o público
e o privado, 9ue está no centro ela problemática liberal, pois
"O público é condição ele organização do capitalismo e de seu Estado. Ele
permite fixar as leis do mercado e separar o Estado da sociedade civil.(.. .) A esfera
pública dá origem a uma burocracia, ciuc consiste cm uma Estatização da sociedade.
( ...)A burocracia é forte la, e c:surnula um tipo específico ele relação entre o púlil1co
84 Idem, p. 245.
85 Idem, p. 256
86 t, 1 1 1. \ 1 ,, 11·1:i," ln: ((llJl·.l"OLJXetal li�111,·s /1, ,,
,,, 1 e, 7 I' p r,1 H-1
DIREITO E POI-ÍTIC'/1 109
e o ptivaclo. () pnmc110 é hipearofudo. Tendo ab�orvido n su1,J, é con::1 a sooe' Jadc
.
civil, fechada em ,1 mesma. A burocracia ccntraliz:·,da i1 francc,a �ont1:1d11. a tendenc1a
à aberrura da está� pública, deixa ao direito co11st itucional a :xissibilidadc Jn debate,
preferindo ti ancar ,1 administração no segredo. l [s10 porc1u:I paralela,nente a urna
publicização cio pnvado se efetiva uma privauza,;ão do pubi;co."87
Assim, o st:gredo no Estado não tem un iasignifü ação ern si mesmo,
ele é um efeito elas relações sociais. 88
O segredo distribuiu-se em duas esfera:., na suci,,dade e no Estado.
"Em cada uma, existe um discurso dominante: enquanto a autonomia da
sociedade civil é ameaçada, o Estado tende a se abrir e a se desburocratizar" .89
Na esfera do Estado, o segredo apresenta funções contraditórias: se,
por um lado, "a obrigação de discrição (instituída pelas leis administrativas
de proteção do sigilo) dá lugar à instauração de um sistema repressivo,
montado para que o segredo administrativo se inscreva em uma concepção
hierár9uica e centralizada de administração", donde conclui ele que "A
retenção de informação é um obstáculo ao controle dem?crático", por
outro lado "o segredo administrativo toma outra direção. E um meio de
proteger a administração das prcssôes exercidas pelos interesses privados".'Xl
Desta forma, para ele o segredo de Estado guardaria uma ambigüi­
clade básica: de uma parte, mecanismo anti-democrático, eis que implica
em perda ele controle da administração pelos 'administrados; de outra
parte, "O segredo administrativo pode constituir um conjunto de garantias
na medida em 9ue permite evitar a transparência burocrática aos interesses
privados dominantes" . 91
No Brasil, encontramos preocupação com o tema cm t\lmino. 92
Para ele, existem segredos fabricados a partir do poder cio EsLado contra
87 Idem, p. 61-63.
88 Idem, p. 64.
89 Idem, p. 65.
90 Idem, p. 73.
,li j{), )11:1c, f)J1_J!,ll,lot 11111/ortllt1(,iú ctH.. ;\ t· p 1d11
11; i'
 i 1
111,
S!:RUIU L'R<)l/llARI l'Al>l·.�I 11<1111<1 I )m1-1 r, 1 1 l ', ,, 111c·A 111

a 1 °u! Jltuzação do espaço privad ', cm1trJ os (1uais o único antíd () ·u ,· :i

1.
U 11P,>r ressalva expressamente <pL' <.:rn alguns casos a pr-=servaçãl)

1
au�Cncia d..: censura.93 Diz o au1·<1r c1uc o segredo, além de domna11t,;
com,> prática política nos regime-; nfo-democráti cos, é também rcç:1
importante dentro das democ racias, corno estratégia g overname11tal. 94
Adotando urna perspectiva kantiana, :ntende que a publicidade ckvc
prevalecer sempre, como imperat.ivn c1ttgórico da política não importa, ido
cio segrd,, possa ser entendida como l,:�,ítinia 100 Mas essa legitimicbd::
deve s·�r IH'l'.' lCiada socialmente, como pré- -condição de :;ua acci cação pcl.1
sociedacle. 1'11 E esta parecia ser a pedra de toqué em rehção a o tema dos
segredos d(' Estado: a auto-limitação pela socicd:ide de seu direito ·.i
informação de,,e partir e.la discussão pré m sobre os casos - circunscrito:;
1

os motivos ou objetivos para sua excl usào. 9' Mas isto só valeria para uma
democracia "sem adjetivos" "pois uma democracia adjetivada teri,, ljLie
po r algum fim acima dos meios - e o segredo e a mentira seriam apenas
meius". 96
)i!' É enfático ao asseverar que "rnc:nhuma causa nobre definidq de
e bem delimitados - nos quais deve prevalecer o segredo. A partir c.lessa
discussão deve-se estabelecer critérios rígidos para a preservação de sigilc,
0 qual, nunca é demais lembrar, acompanhando Bobbio, deve ser sempre
execração LjUe não faça a regra valer menos.

r
maneira técnica pelo Estado, pode legitimar o uso do segredo". 97 A
1 ! CONSIDERAÇÕES FINAIS
constituição ele uma esfera pública política legitimamente democr:ítica
N o presente artigo, apresentou-se o conceito de "Segredo de
torna-se, para ele, tarefa a ser constru ída pela sociedade:
Estado" no pensamento de vári os autores da política e do direito.
"Só a p rá tica política poderá fazer o segredo de Estado desvendar-se ante o Precedido de conceitos operacionais indispensáveis à compreensão do
). direito à informação. O sujeito do direito à informação é o cidadão.( ...) O direito enfoque adotado, o estudo evidenciou que:
à informação, seja exercido pelo jornalista ou po r qualquer cidadão, não deve
sofrer for malmente restrições de qualquer natureza, embora na prática possa a) Em Platão, como em Maquiavel, o emprego do segredo na
curvar-se ante o segredo empiricamente aceito como legítimo."98 política apresenta uma conotação positiva: no pensamento do primeiro,
o segredo, apresentado como mentira (que aqui assume a forma de um
Segundo AJmino, a preservação dos s e gredos visa subtrair o dos mecanismos da prática secreta, já qu e esconc\e a verdade), carrega em
Go verno ao controle dos cidadãos como forma de se evitar o julgamento si o desiderato de proteger paternalmente o interesse da comunidade. Já
de suas ações pela sociedade, ao passo de criar um saber circunscrito a em Maqu iavel, a arcana praxis do Príncipe visa, exclusivamente, a
pou cos visando o exercício de um poder exclu sivo. 99 Para ele as razões manutenção do poder, pretendendo, assim, proteger o governo e já não a
1 invocadas pelos Estados "p rotetores" para manter o povo na igno rância comunidade. É o contraponto defensivo à arcana seditionis.
,, de suas ações, são as de gu e essa prática impediria a corrupção do povo
b) Em Espinosa, Bentham, Bobbio, Arendt e Almino, escritores
bem co rno protegê-lo-ia do inimigo. Alcunha essas práticas de paternalis1110
gue comungam com uma preocupação de aperfeiçoamento do registro
elitzsla autontá1io.
democrático representativo, o Segredo ele Estado é colocado em uma
dimensão axiologicamente negativa. Desde o radicalismo de Espinosa,
'!3 Idem, 1>. 11-14.
94 Idem, p. 14.
95 ldm,, p 15.
100 Embora o autor não apresente seu conceJt0 operacJ1Jnal de "legitimidade", infere-se do texto que
ldm1, p.
ela pude ser entendida como "aJcc1uação" da ação estatal aos valores da sociedade". Veja-se, por
96 16.
97 ldrn,, 1'· 17.
exemplo, u scguinll' trc{ h, 1 , 1 1 11·n '1 ,, i\ 1 11111 l.idi· nct·nar� º"limites� seu d1n.·1tn :1
1 ._, �
'I' 1 \

a
101 p. 100
1'
 112
.!
Bentham e f\rendt, LlllC inaclmitem qualquer prática n,:ti transparente do
bom governo, até a moderação de Bobbio e Almino, , 1ue emendem que
a transparência política po:,sa eventualmente sofrer alguma restrição, esses
autores têm em mente a controlabilidade cio pocl :r por parte elos
dominados, sejam eles súclitos ou cidadãos.
'r.!i :
1' c) Em Kant, a publicidade (antítese do segred, na política) é o
ponto de encontro entre o direito público, a moral e a pJlítica. Enunciada
li 1 por ele, a "fórmula transcendental de dire ito público" apresenta-se como
1
1:ti máxima imperativa para o agir, buscando-se, como fim geral do público,
a feLicidade. Por isso, deduz-se que para ele o segredo na política tem
urna dimensão de negatividade absoluta.
d) Em meio a esses autores, apresenta-se o diálogo entre o
pensamento absolutista - apontado por Kantorowicz ,:orno tendo sido
criado a partir das raízes teológicas da Igreja Romana, e tendo por isso a
noção de mysterium no centro de seu mecanismo de dominação - e a
Ilustração, que corporifica modernamente a macrotendência iluminista
de nossa cultura, fruto de uma "esfera pública politicamente ativa", c1ue
se constitui nesse período e que pretende desvendar os segredos do poder,
como visto pelas citações de Habermas e Rouanet.
e) Por outro lado, comentou-se aqui o pensamento de autores
(Weber, Schmitt e Gleizal), que, escrevendo à época de estruturação e
,. vigência do Estado contemporâneo, apresentam uma abordagem
meramente descritiva do fenômeno dos segredos de Estado. O primeiro,
analisando brevemente e de maneira geral esse mecanismo, insere-o dentro
das práticas "para a manutenção da dominação do pequeno número",
resultado da dominação burocrática; o segundo, assumindo uma
taxionomia do Segredo de Estado extraída ele Clapmar, e, para que, tal
prática assumiria a feição ele um "segredo de fabricação"; e Gleizal, por
sua vez, inscrevendo o segredo dentro do duplo atravessamento cio público
pelo privado e vice-versa, circunscrevendo sua análise ao caso francês.
De qualquer sorte, a transparência apresenta-se hoje corno
imposição elo Fsud" ,1 , i;,, :, ,·:,igir legislação cada vez mais
.1
tTStriti\'a do sigtl,, ,I l11i"cli;.,111cntc, não é u que se
1j
:l.l
113
[)11<1-:1-ro E PoLiT1c,,
tCPl verificado nos últimos tempo�, dada a edição de normas protttivas
da classificação clocument.il co1:1 prazos cada vez mais lon.� os de
desclassificação. Enfim, esse é um obstáculo que deverá s,·r cltrrnhado
como condição para que o pov) conheça a sua história e, ccinhcccndo-a,
possa sair do estado dt hurda em que se encontra: povo ljUe não conhece
a sua história não pode constituir-se como sociedade.
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' ' 1988. Este texto objetiva compreender o lugar da política através da idéia
104p. de overlapping consensus e como se constitui, a partir destes elementos, a
PLATÃO A Rep,íblica. Trad. de E. Menezes. São Paulo: Hemus, s/ d. democracia constitucional para o filósofo americano John Rawls (1921).
ROUANLr1: Sérgi o Paulo. Olhar Iluminista. ln: N0VAES, Adauto et ai. O olhar. São Para tanto, centrará esforços na apresentação do argumento presente no
Paulo: C1a. das Letras, 1988. 495 p.
livro que sintetiza os últimos desenvolvimentos da_ teoria da justiça do autor,
SCHMIT , Carl. Ln Dictad11ra. Trad. J.D. Garcia. Madrid: Revista de 0ccidente ' 1968 .
T

' o Liberalismo Político (1996). Não se objetiva, contuclo uma exposição e uma

t
I', 338 p.
análise exaustivas, mas somente a determinação dos pontos essenciais que
__ . Teo,ia de la Conslilución. Trad. F Ayala. Madrid: Alianza, 1982. 380 p.
l'i1,,I.
podem ser extraídos da obra a fim de se iniciar uma rediscussão sobre a
WEBER, Max. Eco nomiay sociedad. Tracl. José M. Echavarría et al. Méxi co : fondo de
estruturação do aporte conceituai da Teoria Constitucional contemporânea.
,,
I _;
Cultura Económica, 1984. 1245 p.
Nesse sentido, chama a atenção a nova perspectiva epistemológica
que é possível alcançar ao se estabelecer como base de reconstrução a
filosofia política. Para se estabelecer a discussão, inicialmente, far-se-á
uma brevíssima exposição do esquema conceituai do pensamento de

em
Autora é Bacharel em Direito pela Urnversidad · !'dera! ele Santa Maria (UFSl\,1); Mestre
Filosofia do Direito e 1).,11,,1., ,., , 1 fnlcr,d d, �-""ª Catarina (UPSC).
Professora Adjunt,1 da Á 1<: 1 de 1 • J , 1q11:1ndo "Tt:ona Constituciomil''
no Curso de Graduaç.iv llll lJ!!t · ·, •' , , .. , ( urso de Poc,-( ;radu;iç;rn em
Direito da UnivcrsidaJc r,·dcr. .l ,1
 ,[ Ci:uuA CAB,11 u, <l Lrns
!{ 1wls. Em seguida, apresc:nur-sc-ão as i<léias c1uc propiciarão csrnbclecer
a sua noção de justiça, o conceito de overlapping consensus e a dcri,,ação
dm10crática possível a partir do consenso constitucional. Finalmente,
serão colocadas em discussã0 a relação do conceito do político com a
clt terminação do alcance e da profundidade das normas :;ociais através
ela idéia de razão pública.
1 DE UMA TEORIA DA JUSTIÇA AO LIBERALISMO POLÍTICO
Movido pela crença apaixonada de que a justiça pode ser um ideal
�ea�zável e, como tal, pode servir à organização e avaliação das principais
tnst.1tu1ções políticas e sociais, Rawls aparece, atualmente, como um autor
apto a trazer relevantes contribuições à discussão político-jurídica
1· contemporânea. Neste sentido, propõe, como tarefa central de sua primeira
grande obra - Uma Teoria daJustiça (1971) -, determinar em que condições
se constitui uma sociedade justa e o que seria (e como deveria ser efetuada)
uma justa distribuição dos bens primários entre os cidadãos. Seguindo a
tracLição Aristotélica, Rawls (1997) sustenta que para uma justa distribuição
desses bens, seria necessária uma concepção de justiça amplamente aceita,
que escolhida em circunstâncias de imparcialidade, obteria a livre adesão
d� todo_s yor ser a concepção que melhor resolveria os problemas de
d1stnbu1çao de bens e direitos na sociedade. Esta concepção de justiça
rep�es�nta, acima de tudo, para Rawls, um padrão para avaliar as principais
1nst1tu1ções poüticas, sociais e econômicas.
Na obra que nos interessa analisar - Liberalismo Político- o autor se
propõe a superar alguns elos problemas constatados na discussão pública
que se seguiu à publicação de Uma Te01ia da Justiça, a partir de um
deslocamento do eixo teórico da Filosofia moral para a Filosofia política.
Num processo que busca eliminar o conteúdo profundamente idealista
da pri mei
_ ra obra, �awls procura, desta forma, encontrar os _"termos" que
permitam a estabilidade em uma sociedade profundamente dividida por
doutrinas incompatíveis. O autor parte, então, para a tentativa da
construção de um sistema teórico capaz de nfrrecer formas institucionais
a partir das tJuais seja P"'''' LI 1 , , • , ',, ·'•"'" prnp()stos. J\ nesse
) )li 1 ·, I· l'<ll l'I IC1\ 117
m(\nwnto que o 1utor propõe o ru:unhecimento de uma conccpç:io
po!ít ;, 't de justiça. Esse ponto de crnwcrgcncta seria u over!appin.,� comeusus
(con·;cnso sobreposto), ou seja, um acordo mínimo de valores
demucráticos que as doutrinas abran�entes - cosrnovisões de mun 1 - 1J
esLariam dispostas a aceitar.
preciso verificar, portanto, a partir <lo objetivo declaradn Jo
J\
autor, o que são a obtenção e a garantia da estabilidade de uma socie.J;,Jc
de cultura democrática e de qut forma ele se propõe a atingi-las.
Considerando-se o fato do plurafümo razoável, ou seja, o reconhecimento
de ljUe, parn yut se possa determinJr o conteúdo de uma concepção
política de justiça (princípios de justiça), seja necessário elaborar as suas
bases a partir de uma cultura política pública ou dos conceitos
fundamentais compartilhados por uma sociedade. Basta entender, para
tanto, de que forma a filosofia política é capaz de assegurar a estabilidade
e a unidade social, enquanto garante o pluralismo, que é marca registrada
de todas as sociedades democráticas contemporâneas. Antes, contudo,
há que se mencionar o que é estabilidade para o professor americano. Ela
envolve duas questões:
A primeira é saber se as pessoas que crescem sob determinadas
instituições (definidas por uma concepção política de justiça) adquirem
um senso dejusttra que seja suficientemente forte e1 que, portanto, as leve a
agir de acordo com ele. A segunda questão é saber se, considerando-se os
fatos gerais que caracterizam a cultura pública democrática, em particular,
o pluralismo razoável, a concepção política pode ser o foco de um
overlapping consensus (Rawls, 1996: 141),
À primeira, Rawls responde afirmativamente, referendando sua
psicologia moral. Sustenta, mais precisamente, o fato de que os cidadãos
que crescem n urna sociedade justa desenvolvem um senso de jus!L/a c1ue
assegura o respeito pelas instituições e, desta forma, contribui para a
estabilidade.Já à segunda, centrada no fato do pluralismo razoável, coloca
em tela o ovedripping consensus.
('nm ,·f,,it,,. lendo em vista que, para o autnr. 11!
1 1, ;, , 11ã, i é urna característ1e1 pa,,,,l't , •
 11 \ Cu II IA l' \BAI.I ERO Lrns D1RE1Tu E P0Lfr1CA
119

fato marcante de toda sociedade moderna, a estabtFdar!, e a ,midade social 0 não é a justiça, mas a ordttn, o que acaba por facultar L) uso da força física
serão ameaçadas se se perpetuarem os desacordospor resolver ri st: se intensificarem as contra aqueles que subscrevem posturas distintas.
prefundas divisões latentes 11a sociedade, aumentando assim a insegurança e e, hostihdade
da vida pública (Kukathas e Pettit, 1995: 161 ). Faz-se nece-ssário, portanto, 2 Do MODUS VI VENDI AO OVERLAPPING CONSENSUS: EM BCSCA DA ESTABIL!llADE
construir alguma possibilidade para a solução de conflitos que ofereça, POLÍTICA
ao mesmo tempo, um padrão de justiça e assegure o respeito pelas diversas
A vida em sociedade proporcionada pelo contrnto hobbesiano, ao
concepções ele bem. Esta é, portanto, a primeira limitação que o filósofo
possibilitar o gozo seguro dos bens e instituir a liberdade enquanto
impõe a qualquer espécie de consenso que, segundo Carraceno (1990:
liberdade negativa (ausência de oposição), estabelece também o sentido
224), em Rawls seria construído a partir da precedência do justo sobre o
cultural na interpretação individual do mundo, possibilitando a justificação
bem, pois ojusto é único, enquanto q11e as concepções de bem são muitas. A pluralzdade
de práticas de dominação e arbítrio simbólico (Santos, 2000: 100). Assim,
de bens não ameaça a unidade que se sustenta nojusto. Diz Rawls (1996: 173):
um dos elementos centrais para a manutenção e sobrevivência de Estado,
"A idéia de prioridade do justo é um elemento essencial daquilo que se chama nesta perspectiva, é a necessidade de subordinação de um sujeito que seja
de Liberalismo Político e desempenha um papel central najustiça como eqiiidade como dispensado de pensar a política privadamente, a não ser individualmente
uma das formas desse ponto de vista. Esta prioridade, que pode suscitar
:\
através da regulação das paixões e das ações realizadas pelas instituições
interpretações distorcidas, pode ser tomada, por exemplo, como aquele fato que
oficiais (Santos, 2000: 101). O sujeito só é considerado a medida em que
determina que uma concepção política liberal de justiça não pode utilizar nenhuma
idéia de bem, com exceção daquelas que são instrumentais ou daquelas que são se submete às pretensões de racionalização da vida política, realizadas
preferenciais ou se referem a uma escolha individual".2 exclusivamente pelo poder soberano. E esta perspectiva que percebe a
política como um processo de evangelização social e cultural coordenado
Ao conjugar estes dois pontos - e atribuir-lhes a prioridade de pelo Estado que Rawls tenta se afastar. Segundo Rawls (1996: 147):
:I definir o Llberalismo Político -, Rawls3 quer afastar a idéia de que um
consenso sobre a justiça é algo muito próximo do modus vivendihobbesiano,4 "que um overlapping consensus é algo muito diferçnte de um modus vivendi é algo
que parece óbvio.(... ) Primeiro, o objeto do consetiso, a concepção política de
'i l
em que a unidade social é apenas aparente, sua estabilidade contingente é
baseada em interesses pessoais. O alicerce da sociabilidade, neste modelo,
.!
1
justiça, ê endossada por razões morais, segundo, ela inclui concepções de sociedade
1 \ e cidadãos enquanto pessoas, assim como, princípios da justiça e uma visão das
.i
1·
virtudes políticas por meio das quais esses princípios se encarnam no caráter
1
·1 humano e são expressos na vida pública. Por conseguinte, um overlapping comensus
li 2 No original percebe-se que Rawls usa o termo nghl que poderia ser entendido como a precedência
,.
!i
do direito sobre o justo ou, ainda, do reto/ correto sobre o justo. Optou-se, contudo, por acompanhar
não é apenas um acordo sustentado por autoridades ou esquemas institucionais,
as traduções da obra para o espanhol, bem como para o português que utilizam o termoj11slo. fundados em interesses pessoais ou de grupos".
3 O autor questiona-se sobre se é justo pensar que para viver sob condições justas é necessário
abdicar de algumas possibilidades de realização individual do bem em detrimento da justiça. Para Catherine Audard (1989: 415-416), em que pesem essas consi­
4 Pablo da Silveira (1998: 349) comenta que esse tipo de modelo é basiante característico das derações, Rawls está muito mais próximo ele subscrever um modelo de
sociedades internacionais. Adverte ele, contudo, que si bien este tipo de transac1ón es útil en el
nivel de las relaciones internacionales, enfrenta una séria dificultad cuando se trata de justificar
modus vivendi, pois
institucioncs dentro de una socicdad: un modus 14·ve11disólo puede durar mientras dure la correlación
de fuerzas que existia en el momento de pactarlo. Como cada parte atiende exclusivamente a su "Um modus vivendi sendo um consenso alcançado defacto, tem a vantagem de
própm interé'i, rnd�1 v�riarión en esa corrclación de fucrzas !levará a la parte beneficiad:t 1. prnpnri,
!"
não fazer interferir idc:tis 11, E 1 1 · l 1c,1, I'' nto de visla ele é
tcrminos dei pacto. Estu hacc c1uc cl modu1 t•it't:'nd; n , rn ··, h •
1

tolerante em relaç·io ;i l'I; 1r ,1, i , ', · 1 'l" e <>s udaJãos, não

' �1·c.c·Hl t!t· LJ JUStiCi::i,
 1..:11 C'ECILI/\ C \ll,\LLERO J ,c >1, l)JRI 11< l I I ', 1,
12 l

f.izend(' nC'nhum julgamento de valur e11, rliaçào a eles. Rawls mostra lJUe, 1wr (a inda qm ,,_ p<hsa criticá-lo por não ter muno sucess<•) e preocup,i-�C
1
exemplo, cm Hobbes, o fundamento do consenso político apoiado no interes>C em demonsl rar l\UC um consenso b em mais profondo6 é ;Jossível e neces­
'1
1nd1v1<lual e na necessidade de sobrevi�ência é puramente pragmático e não faz sário de modo l\UC a estabilidade nã1 > acabe per nanent�rnentc abalada.
111 terv1r nenhuma doutrina metafüica. E a única coisa a fazer, dados 0 sectarism<l
Trata-se de
eos conflitos de interesse que reinam na sociedade da época. Assim, pois, 0 mod,,r
1111·endi sena um bom candidato para servir de fundamento ao consenso político de
"pr >cc1rar u111a via interrrn:diária adaptada ,1 uma sociedade que a:nda ,ü0
uma sociedade pluralista e conilitante, istu é, constittúda de 111divíduos centrado,
esteja tittJ dilacerada pelos conflitos que Uma ·1 cmia dapstiça :.ão pucksse ajudar,
:xclusivamente neles mesmos, corno impérios num império só; consentindo a
mas qu:: t.1mbérr, não é h,Jmogênea, em que as ditercnças entre os indivíduos,
coexistência pacífica na medida em que ela serve seus interesses do momento. Por
pois, ;ã,J rcius, e em que as escolhas p:Jlíticas ck base ainda n5o estejam feitas(...)
que então não se contentar com esse tipo de.: visão da sociedade?(...) A razão essencial
Não se trata de impor uma doutrina particubr, uma ideologi.i, mas de encontrar
disso é que o consenso buscado por Rawls deve possuir uma estabilidade psicológica
uma similitude entre as doutrinas diferentes te11do o mesmo> fundo histórico e
que nenhum mod1;s vivendi saberia ter. Os indivíduos na sociedade ralwsiana são
cultural e que poderiam assim constituir uma pl.1taforma comum. O problema e,
movidos por seus interesses individuais, e também por interesses de uma ordem
pois, de afinar as noções de pluralismo, neutralidade e consenso, para moscrar
mais elevada, a saber, o bem que representa a cooperação social. Se essas duas séries
que uma via intermediária é possível, mesmo se o prtço for o de ficar
de interesse não existissem, não haveria a questão da justiça".
"filosoficamente superficial" (Audard, 1989: 412-413).
Audard ressalva, entretanto, que o professor se afasta do modus
Absolutamente consciente dos riscos que corre, Rawls propõe então
vivendi através de uma outra questão, embora isto não fique claro em seu
o overlapping consensus of reasonahle comprehensive doutrine (Rawls, 1996: 134).
trabalho. Trata-se da preocupação de Rawls referente à democracia
Esse seria algo similar a uma agenda política mínima (pn'ncipios da jt1sltça)
constitucional. Nesse sentido a questão da justiça estaria afastada das
(Oliveira, 2000: l 62) que teria as seguintes características: seu objeto é
sociedades a�1toritár!as, enquanto objeto de debate, já que nelas são nega­
uma concepção política da justiça, não é realizado por indivíduos, mas
dos os conflitos de rnteresses, e estaria igualmente impossibiLitada pelas
_ por doutrinas compreensivas razoáveis (aquelas que não comprometem
soctedades ultraliberais, pois, naquelas, a convergência de interesses é
o poder moral dos indivíduos), sendo consenso que, além <le poder ser
instável e contingente. Nas sociedades democráticas, existe o auto­
subscrito por várias e diversas concepções razoáv�is, cada uma delas pode
reconhecimento pelo fato dos cidadãos gozarem da estabilidade dessa
aderir através de suas próprias razões (Rawls, 1996: 144-149).
convergência, já que eles sabem que seus interesses individuais dependem dela. Em
. 1, O que importa, neste momento, é saber se, dadas as características cio
�utras palavras, mesmo para seres centrados em si mesmos, o bem comum é objeto de
1'1 interesse (Audard, 1989: 416). De fato, não parece desnecessário lembrar overlapping consensus, ele poderia resolver o problema da estabilidade. Silveira
que a preocupação com a democracia é uma das marcas do "Rawls (1998: 351-352) afirma, com muita propriedade, que o próprio Rawls
politico". Fica claro, assim, por que o autor procura afastar o modus m·vendi
5

Aparece aqui, ainda que indiretamente, uma tentativa de resposta de Rawls aos comunitaristas.
Tal como demonstra Audard (1989: 412): Tout J'abord, il rappelle avec de plus en plus de nctteté
.
que sa theoriene cherche pas à s'appüquer à n'importe que! contexlc pnlirique et social, comme
_
son vocabulaire urnvcrsahsre aurait pu le laisser croire, mais cst circonscrite aux sociétés
démocratiques libérales contemporaines, c'est-à-dire agnos1iques, séculiéres, individualistes liées
à l'expansion de l'économie de marché et au mndc de g0uv(1 n·'Pl!'!lt 1 .... 1111.111 1 <-t·s sri�iétés
111t <léj.l ba�écs sur un certain conscnsu� pnht1 1 111 , 1 , 1.1lc qui leur
ont été souvent adressés, ct la plurillttê dei; points de vue )' est, malgré tout, limitée pnr l'h1storie et
la culture. l .a tâchc de l.1 théoric ,k l·,1 1usuce est 'd'un,licr en une doctnnc cohércnte lcs bases
d' riccnrd pl u!) prul u nc!t:s qui !)olll cnr:1onées drins la culture pol1tic1ue publique J' u n regime
dé mocra uquc'. C'<.:st p,ucc <.ju'il n'csr poim nécessaire de crécr des bases nouvelles pour cc
consensus, mais sculc rncnt d'app1ofond1r ct de mit: u x comprende ceue culture politi9ue publiq ue ,
yue R::i.wls récusc l':iccusation dr noi1�respect du pluralisme.
1 1 11· C'\lstê r1t·1,1 d e um comhtutlnn,il amremm com, 1 ;drn n:111\· ·
R,,wl,, ) 1 ,._. 1 1p:
1:-tll'íPl I • ;/_í!'fll!_ 1()},'íf!llfl(J

;·< ·c, ,n hece quão difícil é a possibilid:1Jc de se estabelecei un 1 overlappir{;J ro!lsemw.
Para que isso possa ocorrer, seria preciso uma sociedade que reunisse
determinadas características, além do fato do plura.Lismo ( que é o pressuposto),
tais como a noção clara de que a unidade somente poée ser atingida pelo uso
do poder, ter a sua disposição condições materiais (ecrnômicas, tecnológicas
e administrativas) favoráveis e, finalmente, uma sociedade na qual a ampla
i 1
maioria dos indivíduos aderisse às instituições de forma livre e voluntária.
Para o autor, essas condições estão reunidas numa sociedade democrática
como a americana. Esse tipo de postura gerou novas criticas e depoimentos
:1 rancorosos sobre a impossibilidade de considerar a obra de Rawls no terceiro
mundo, onde a cultura democrática é ainda bastante incerta e incipiente. Nesse
1,
,1 sentido, Rawls analisa a existência do consenso constitucional enquanto ponto
!! intermediário entre o modus vivendi e o overlapping consensus.
I, !
3 CONSENSO CONSTITUCIONAL, ESTABILIDADE E DEMOCRACIA: PARA DEFINIR O
CONCEITO DO POLÍTICO
Assim, o consenso constitucional aparece como possibilidade
concreta em sociedades cuja democracia está ainda a se constituir e se
estabelece como conceito que não tem a pretensão de ser nem profundo
nem amplo. Trata-se, na verdade, aponta Rawls, de um acordo estreito, pois
não envolve a estrutura básica da sociedade, mas unicamente os
procedimentos do governo democrático. Com efeito, embora consista num
avanço em relação ao modus vivendi, pois não está sujeito ao cálculo dos
interesses dos participantes e, dessa forma, consegue impor limites às
possíveis instabilidades decorrentes das alterações de f orças sociais.
Problemas estão presentes, entretanto.
Por não ser profundo, Limita-se a estabelecer certas Liberdades e
direitos políticos básicos, bem como certos critérios para a tomada de
decisões coletivas. Igualmente, por ter como objeto apenas as liberdades
e os procedimentos de decisão, deixa outras questões em aberto. Isto
significa que: a) não especifica o alcance a ser dado aos direitos políticos
básicos e o que fazer cm ca,0 dr confLito entre eles e, 6) principalmente,
deixa a, I", 111 a igualdade fora de seu alcance
J.
U11-:1-11u1· l'rn.í1KA \23
fi 1 ,�i:ncnte, o consenso const1tuc1unal seria um consenso insutic1cntc,
p:11 \ Rawls, por não poder ser ju�uficaclo nem por alguma concept,::1u de
ju:;ti,;a que todos os destinat:UIO\ da Constituição pudessem refrrendar
ou, muito menos, por qualquer concepção compreensiva pres,:r·tc na
sociedaJc. Decorre disso que u consenso constitucional n:fo pode
assegurar a sua própria estabilidade. Resta, assim, como única altcrn1tiva
concreta de superação destas deficiências o próprio overlapping consr:11Sus.
Não se pode deixar de reconhecer que a idéia de atingir-�c um
consenso em torno da Constituição é atrativa, uma vez. que, como o
próprio autor sustenta, trata-se de um co:1senS:) em torno do que interesse:
a proteção cios direitos fundamentais. E des:,a possibilidade que podem
surgir outras, como repensar a legitimidade e a ef:cácia social de uma
constituição. Nesse sentido, Rawls (1996: 160 e ss.) observa ljUe a
possibilidade de se obter um consenso constitucional é também garantida
pelas instituições políticas básicas regidas pelos princípios da justiça, que
devem conter três características: a) fixar o conteúdo definitivo dos direitos
e liberdades básicos e determinar quais deles são prioritários; b) assegurar
que a razão pública se sustente em argumentos constitucionais, levando a
Constituição ao centro do debate público; e c) a Constituição deve
promover as virtudes de uma cooperação social estabelecida em termos
de razoabilidade e disposição para o diálogo.
Além de tentar oferecer a base para a obtenção da estabiLidade nas
sociedades de cultura democrática, o overl.apping consensus - e a possibilidade
de através dele constituir em democracias emergentes a idéia de consenso
) )
constitucional-, tem outra função relevante na obra do filósofo ele l--Iarvard.
Trata-se de um conceito que deveria também dar conta das críticas que o
autor recebeu devido à supressão do lugar da política de sua obra. Essa é a
primeira ressalva a ser levantada, então, aos motivos que levaram vúrios
críticos de seu trabalho a dizer que ele teria suprimido comrlctarncnte a
política. Um esboço de resposta pode ser obtido na introdução feita por
Audar<l (2000: Xlll) em Justzça e DeJ1Jocracia de Rawls, em que afirma:
"11 :í um mal entenda.lo no uso dou ,nn·i>", 1 : , ,,
'I'" d, vc sn levantada é se<> autor L11 1, ,
 1 �..j , lcl li.IA C.\BALI
ttnta aclapt,i-lo ao (JUe chama fato do plu1 i!• .11,,, . riue também pode ser
denominado multiculturalismo. [isto não supr!nic n político mas quer dizer que]
Rawls torna-se Gd,1 vez menos europeu e pa,,.1 1 responder de acordo com o
papel que o filósofo político tem nos EUA".
De fato, parece gue o problema apontado acima por Audard (2000),
em primeiro momento é, efetivamente, uma inadel1uação entre o gue se
entende por conceito de político nos EUA e, o que se entende como tal
em outros lugares, como na França, na Alemanha e até no Brasil. Ainda
conforme a autora francesa:
"Se vista da França ou da Alemanha, a ftlosofia política angb-norte-americana
é frec1üentemente incompreendida, talvez seja porque a julguem em nome de um
conceito político que não é nem nunca foi o seu, em razão de seu contexto histórico
e institucional. De fato, quando se viveu mais de dois séculos de constitucionalismo,
não se pode compartilhar o mesmo conceito do político da França ou da Alemanha.
Isso seria absurdo. Eis por que se pode chegar a se perguntar se a democracia
Liberal não seria um tipo de organização política em que a própria filosofia política
mudaria de sentido, perderia em parte a carga emocional e trágica, suas raízes
teológicas, tornar-se-ia prosaicamente uma análise dos valores vigentes na vida
pública, empregando os termos da moral ordinária, de um "sentido" intuitivo da
justiça, por exemplo". (Audarc.l, 2000: XVIII)
Com efeito, embora não se possa desconsiderar a estreiteza com
que Rawls trata o conceito de político, também não se pode aceitar a
acusação que Schmitt7 faz ao liberalismo em geral de ter suprimido o
,,
,,:
,t;
político - reduzindo-o a uma mera filosofia idealista da história que elimina
a necessidade da tomada de decisão política por quem detém o poder em
determinado momento histórico- para, assim, ocultar a dominação.
Ocorre, entretanto, o que passa despercebido para muitos (e outros tantos,
como os comunitaristas, insistem em não notar) que
"Rawls dá então ao termo "poütico" um sentido diferente, correspondente a
uma concepção da filosofia política que é, ela própria, modificada. O lugar da
7 Deve-se notar as importantes considerações que Audard (2000) efetua numa 1cnra!lva paradoxal
de aproximar e distanciar Rawls e Schmitt - tomando este como o ní1icn mais mordaz do
lihu:ilisrnn t' c1ue denunciou a violência e a oprcs•do 'll·•. . i!tl, u 11 \U;l
:--. ,,
't1•111i:i11 rt·ntnndo comprov.1r 9uc o püblico/políticr, t rr 1o1 1 1
1-:1{() Lo1s D1Rl·l'l0 1 Pu1, li 125
filosofo já 11.10 i' i. r ,m1stir cm fornecer urna lcgitimaç u, <la :wt,>rill.tdc poliuca
por um disc,1r,, :, ,rm,111vo que justificaria o 1ecurso ,1 11->iéncia ou o ataque as
Liberdades in<l1l'1,· ,:·m yuando a comunidade parecv am ·a,;ada, a· sim como não
consiste na rrocu1 .1 de uma solução de substin11çàu dcs,c hcurso, le lcg1ti111ação"
(Audard, 201iO: X\I !).
Nesse sentido, um dos grandes problemas tem sido t incompre­
ensão gerada pelo conceito de político de Rawls, do qt e é especificamente
a instância do político Segundo as críticas mais freqüentes, furdamentadas
no anti-liberalisrno de Schmitt, parece que o concito de político foi
abolido do liberalismo em geral e da obra de RawL em particular. Tal
crítica acusa o liberalismo de eclipsar o Estado - e a polkica -- e reduzir o
poder à concorrência de mercado (Schmitt, 1992). Entretanto, é preciso
olhar com certo cuidado para perceber que na obra de Rawls não é bem
assim que esta relação está definida. Ao invés de definir o político como
discurso de legitimação da repressão e da moralização públicas, pode-se
sustentar, então, que o político para o autor tem um sentido outro,
sensivelmente diverso: o da legitimidade.
Parece realmente ser este o conteúdo que Rawls (1996: 136-137)
atribui ao político e, em especial, ao exercício do poder político: o espaço
(ou o poder, como se desejar) de caracterização desse poder que possuem
os indivíduos livres e iguais. De acordo com os cânones liberais, para gue
seja legítimo, precisa ser justificado perante os out'ros cidadãos através de
uma Constituição, porque, em um regime constitucional, a principal
característica da relação política consiste em que o poder político é, em
última instância, o poder do público, isto é, o poder dos cidadãos livres e
iguais, enc1uanto corpo coletivo, em decidir os rumos de sua cidade.
Ninguém melhor que o próprio Rawls (1996: 140) para pôr um ponto
final ao assunto:
"Em conjunto, esses valores !constitucionalismo e legitimidade] expressam o
ideal político liberal segundo o qual, como o poder político é o poder coercitivo
de cidadãos livres<.: iguais e119uan1n corpo coletivo, esse poder somente pode ser
exercido quandu os elemrntos cons1irucionais e as questões básicas de justiça
estão cni jnl'r1. ri· ( ,, 111. ·' , ' , r ,ubscrito por todos os cidadãos, a luz dt'
sua 1.v�,, 1 , 1, , •
. , . I'"' 1,1111,), p1ocura apresentar Lnna vi,�o
t
k_

0:<'ILI/\ C'AR \1 1 1-1m
<lesses valores como aqueles dr. domínio especial - o político -e, em co11SlLjÜt·nci.1
disso, como uma visão que se sustenta p,ir si mesma. Cabe aos cidadãos
individualmente (sendo esta uma parte importante da liberdade de consciência)
estabekccr a forma pela qual os valores do político se relacionam com as outras
teorias abrangentes. (...) Esperamos que, ao fazer isso, pcssamos, na prácica polítJca
de fato, fundamentar os elementos constitucionais essenciais e as instituições
básicas da justiça unicamente em valores políticos, compreendendo esses valores
como a base da razão e da justificação pública.
Nesse sentido, o político deixa de se estabelecer ' discursivamente '
enquanto mera justificação estáuca e passiva da ordem política, fundada
na autorização prévia de um contrato fundante e demanda a presença
constante de uma justificação pública propriamente elita, alicerçada na
participação ativa dos sujeitos envolvidos na construção de razões
mutuamente reconhecidas e aprovadas em um processo democrático de
overlapping consensus. Razão pública é, para Rawls (1996: 205),
"A razão dos cidadãos em pé de igualdade que, como corpo coletivo, exercem
um poder político final e coercitivo uns sobre os outros, ao colocar em vigor e
fazer emendas à Constituição. O primeiro ponto importante é que os limites que
impõe a razão pública não se aplicam a todas as questões políticas, senão àquelas
que implicam o que podemos denominar de elementos constitucionais essenciais
e questões de justiça básica. Isto significa que somente os valores políticos devem
resolver as questões fundamentais como quem tem clireito a votar, ou que religiões
devem ser toleradas ou a quem deve ser assegurada a igualdade de oportunidades.
Estas e outras questões semelhantes constituem o objeto especial da razão pública".
·I Como se vê, a idéia de razão pública está ligada a duas questões:
·'-
',i.
por um lado, está a legitimidade do uso do poder coercitivo que envolve
1 :
qualquer prática do Estado, inclusive, as decisões judiciais (que também
são práticas coercitivas), pois exigem obediência de quem deve a elas
sujeitar-se e, por outro lado (porém interligada), a necessidade de
fundamentar as decisões em princípios, uma vez que falar em justiça,
principalmente no Liberalismo Político, é uma forma de tentar substituir
o poder coativo por mecanismos de justiça. O que Rawls quer dizer, em
termos gerais, é que nenhuma decisão (judicial, inclusive) pode est:ir
sustentad:i ,:11> ,,, ,· 11, ,, · , ,,fundamente contradit<írios crn
sociedade. l a1 , h ; • ,
1
, , 1·-ào deve ser tomada levando em
li
ir,
·1· 1
:
1
1.17
Lrn, ÜJRl·l11) 1· 1·,111 IC'/\
considn H;:,c, os pontos fixos que ct>nsrituern e ,s julgamentos de ju:,uç·a,
formulad•J'.· na base do consenso nl)rmativo L,ue qualquer comunidhie
política democrática deve possuir. As decis<'i...:s devem ser tomadas e
justific:idas. então, ;1 partir de uma concepção política de justiça que nJos
possam retercndat e aceitar como jusra, quando usada como supcrte
para o uso J'J poder coercitivo.
(ONSIDERA(,ÕES FINAIS
Pode-se dizer que, nurn governo constitucional, a derradeira palavra
não cabe efetivamente ao Legislativo, ao Executivo ou, muito menos, ao
Judiciário, mas ao povo. Quando este se manifesta através de sua razão
pública, não há limites aplicáveis à Constituição - decorrentes de uma
percepção tradicional de controle constitucional por tribunais majoritários
-, especialmente pelo fato da Constituição ser a guardiã dos direitos
fundamentais. A Corte constitucional estaria limitada, assim, ao controle
das decisões legislativas em relação à Constituição, pois se emendas à
Constituição violarem procedimentos essenciais (princípios e disposi­
ções essenciais), mesmo promulgadas em confor midade com os
p rocedimentos constitucionais, resulta deste fato uma r uptura
constitucional c1ue pode ser indeferida pelo órgão máximo do Poder
Judiciário (Vieira, 1999: 211).
Não resta dúvida, portanto, de que o conceito do político de Rawls
acaba sendo deveras restrito, mas desde que sustentado na força de um
núcleo firme constitutivo da Constituição, oferece bases excelentes para
uma democracia constitucional, especialmente se se considerar esgotados
os modelos tradicionais que sustentam a composição da Teoria
Constitucional propriamente dita e que carecem de imediata atenção
crítica. Nesse sentido, a nova aproximação que parece ser possível :itravés
da filosofia política elo professor americano é um caminho diferenciado
da tradição dos estudos constitucionais. Perceber até que ponto é profícua
esta aproximação - e a obra de Rawls é um convite a esta nova clin:1111ica
·. 1 ,., - e'.· a t,11efa ljUC O!, juristas, cm l';L'I \!. , e
il 11, dcvcrn, a partir de agora, te11t:1r '. ..1
L,. ·?
 128 e, ('I 1 \ ( \lll\l.LERO Lrns

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Mestrado (Centro de Pós-Graduação e Direito), Florianópolis: UFSC, 2000. 167 p.
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eqiiidade- fundamentação e interlocuções polêmicas (Kant, Rawls, Habermas). Anais do ter permanentemente procurado se curar do dilema de que desde o início
Simpósio Internacional sobre Justiça. Florianópolis: Insular, 1998. p. 345-364. padece, que é a dificuldade de conciliar individualismo, de um lado, e, de
VIEIRA, Oscar Vilhena.A Constit11ição e sua reserva de;ústiça- um ensaio sobre os limites outro, exigências morais e éticas rnirúmamente hon:i ogêneas, que viabilizem
materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros Editores, 1999. a vida em sociedade. E isto porque, segundo o libe'ralismo, o Estado deve
ij
ser neutro no que se refere às concepções de boa vida a que os cidadãos
devotem lealdade e que se empenhem em realizar (Vita, 1993). A apologia
da individualidade e a concepção atomizante do mundo, aliada à expansão
'1 do capitalismo predatório, redundaram, para muitos, no esvaziamento
1 das noções de comunidade como algo além de um mero agregado de
� indivíduos, privando o liberalismo político de um conteúdo ético
consistente. A solução imaginada por Locke (Fisher, 1998), de que as

O autor é Bacharel em Ciências Jurídicas Pela I l11i•·e";.t,,I,· Fe<lrrnl dn Estadn do Rio <le Janeiro
(UNI-RIO); Mestre em Tcn111 11, 1 11· t· 1cd !Wl;1 Po1111fíci:1 Universidade
C�tólica do Rio de Jrinc1ro l'I 1 ! t 111' .1,1 111srnutn U111vcrs1tár1u
1 11

de Pesquisas do Estado do R1 '· '··

.1:
1

' 1
 1]0 Cl!RIS rlAN E1 l\vARD CYRII.
aspirações dos indivíduos �e confundiriam nas asrirações coletivas, já
nos parece hoje de tal maneira superada, que os próprios liberais, diante
da crítica jacobino-democrática ela Revolução Francesa, foram os primeiros
a procurar suprir essa lacuna.
Para Richard Bellamy (Lopes, 1994), a defesa de uma ética liberal
em autores ingleses do século XJX, como Stuart Mill, T. H. Green e
Hobhouse, parece ter pecado por constituir, de um modo ou ele outro,
num ideal a ser perquirido através da autonomia da vontade. Ou seja,
acabavam por evidenciar que a ética, i.e., o interesse do indivíduo pelo
público através de uma moralidade coletiva, estava fora do âmbito <las
relações liberais originárias. Ao fomentarem a idéia de que o Estado deveria
incentivar essa participação do indivíduo, ou incentivá-lo de forma a lutar
j• por sua própria melhoria de vida - tanto econôrnica quanto moral -,
,.
teriam incorrido numa contradição em relação a postulado liberal básico,
que é o de que o Estado não deve intervir na autonomia do indivíduo.
Tal fato reforça a impressão de que não haveria como o liberalismo
incorporar em si o elemento ético, sem deixar de ser liberalismo.
/\ importância da noção de liberalismo ético, r esgatada
modernamente por Ronald Dworkin, se dá exatamente por constituir
um dos nós górdios da história do liberalismo. De fato, sua noção de
ética liberal fará dele quase um social-democrata, e seu apego à necessidade
de uma base ética à formulação de uma teoria poütica o levará mesmo a
i'
'!
;
atacar, como veremos, outro expoente do liberalismo contemporâneo,
que é Rawls (que, não por acaso, é neocontratualista). O ponto comum,
porém, entre ambos os autores, como sugere Álvaro de Vita, é a idéia de
que "é possível, nas democracias contemporâneas consolidadas, chegar a
um acordo acerca dos princípios e normas que devem regular as
instituições poüticas e sociais básicas da sociedade e que isso dispensa
um acordo substantivo no que diz respeito a ljual é a melhor forma ele
:1 vida para o homem. O liberalismo reconhece a existência, nas sociedades
modernas, de uma pluralidade de formas de vida vaLiosas, que realizam
bens distintos e nem sempre ,n,11r1ti ·ei� f'!lf T 1 <Ili<',,, indivíduos poden,
1 oper�ci11n.ili··11 t'I", ,.í,11c,1· íeliz entre os interesses politicos priv,1dr,, <.
' ·· 1 ''
racl()[lalrncntc escolher par 1 ,u 1 ,,. ,t 11t1dq, vejamos
L, NC li DIREITO E Po1.íTll'A
131
o que entende Dworkin !'Ur liberalismo ético e de que forrm .;cri:i. possívL l
transplantar o ideal é tice, p,1ra o plano político.
A passagem da ética à política, no pensamento Je Dworkin, implic t
a existência de uma classe de cidadãos a qual se chama h'berais üicos. Liberai;
éticos são aqueles que, possuindo convicções globais muito distinta�,
também possuem uma determinada posição ética num projeto de mundo
proposto pelo chamado modelo do desafio, que será explicado mais adiante
Esses cidadãos seriam liberais e seriam éticos porque, ao mesmo tempo
que querem o progresso de seus interesses pessoais, entenderiam que
esses interesses são socialmente críticos e tendem a gerar uma vida digna
e a responder de forma adequada às circunstâncias corretas. Embora o
autor pareça se referir aos liberais éticos como um grupo específico na
sociedade, mais adiante ficará clara sua crença na possibilidade de que
todos os demais membros da coletividade, desde que razoáveis em seus
propósitos, teriam capacidade e possibilidade de se tornarem também
liberais éticos, sem abrirem mão de suas concepções pessoais de como
ter uma vida satisfeita.
Dworkin estrutura suas convicções aceri:a de nossos interesses
éticos a partir de dois modelos distintos:
1) A vida seria boa por si só;
2) A vida seria boa de acordo com a destreza com que é vivida, ou
seja, deve ser encarada como um exercício que permanentemente nos
desafia. Esta é a tese do autor, isto é, a de que, em qualquer ética mais
abrangente, o que chama modelo do desafio deve ter forçosamente um lugar
destacado. O desafio seria evidentemente moral: superar a facilidade da
vida egoísta, ausente de ética e de solidariedade, e por isso mesmo
medíocre; incorpur:1r a noção ética que a idéia de alteridade em sociedade
compreende. Esta ética daria origem a um liberalismo em que seria possível
I' 1
 1,
i; ) Cirn1s l"IAN FDll'i\l<I \. ,TI, 1 YNl li
Sua idéia de igualdade l1linal, conLrariamcnte a Rawk , r 11Ccbcria
t 1u�tiça no terreno dos recursos e possibilidades, e não dri brni-estar,
1crditando Dworkin que ,)� liberais éticos seriam assim c 1pazes de
discernir seus interesses particulares do interesse públicu, valorizand,)
,•stc no momento de fazer escolha� de natureza política. Ü;,Í o aspecto
des:ifiador do modelo proposto. J\ versão neocontratualista de John Rawh
compreenderia uma situação em que cada parte negociaria em f.tvor dos
mteresses das pessoas que representam, e cujos interesses cunc,etos lhe
�eriam quase inteiramente alienados. A argumentação que Dworkin
pretende desenvolver começaria, ao revés, com urna posição nc,rmativa
,i; desenvolvida (a do desafio), que se suporia como pacificamente aceita
'Ili
,1 pelos que se reconhecessem como liberais.
A posição pouco pragmática de Dworkin, em oposição a de Rawls,
e por isso mesmo desafiadora, leva-o a afirmar categoricamente que os
liberais éticos são pessoas reais e não idealizadas. A ética é urna necessidade,
ao passo que na tradição contratualista neokantiana adotada por Rawls,
em realidade, não haveria ética: a justiça nasceria da acomodação eqi.iânime
dos interesses estritamente pessoais. Cada qual negociaria com o único
objetivo incondicional de fazer com que sua porção fosse a maior possível.
Do contrário, a justiça não poderia surgir de uma situação contratual
,1
onde os parúcipes não se preocupassem em nada com ela. O interesse
1
pessoal e a preocupação com a justiça só poderiam casar quando esta
;1 estivesse englobada na primeira.
A igualdade liberal dworkiniana, portanto, repousa na concepção
de justiça baseada nos recursos de que os indivíduos dispusessem para
atingir seus objetivos em sociedade, e não pelo bem-estar proporcionaJo
por tais recursos, ao contrário do que vemos na Teoria da Justiça de Rawls
(1971 ). As teorias de jusLiça fundadas na tese do bem-estar seriam em
especial adequadas a uma concepção de vida digna que os liberais éticos
rechaçariam, ou seja, a de llue os interesses pessoais volitivos seriam os
únicos relevantes para as individualidades e para a política.
.,,. , , i , 11, 111,1,_lcl<> de desafio proposto h:1v,·11, •1111 ·
_: _111 l'L �llc1 e 1ustiça. Para os libcr:m t t 11" .
Dll<l·l !( 1 E h)IJT!CA Ir\
rcc 1rsos .:ntrariam no âmbito ela étic., cr ,111,i parâmetros normativ"J�: e 1 cs
n 'i(, podniam aceitar nenhuma tco1 ta llllé desse a entender qu,� iv:m­
est:tr e a justiça fossem duas rnisas di'.,t1ntas e separadas. Nesse serw ..'<.,, u
Püder l\',blico deveria colaborar para que houve;se circunsLânc a:, t.JUC
prupicias.;em a correção das circunstâncias e dos recursos. Por out,·o hdo,
ressalta Dworkin que o Estado não deve se intrometer em denu�t;i na
csfrra individual, devendo ab'.;ter-se de toda ingerência excessiva Nisso
não difere dos liberais clássicos retrornencionados e cai na mesma cr;tica
a eles formulada por Bellamy.
II
Se a justiça é uma questão de recursos, prossegue o autor, a porção
justa de recursos seria uma porção igual, para todos, daqueles mesmos
recursos, disso dependendo diretamente a dignidade de nossas vidas.
Considera o autor, neste momento, a teoria de Rawls e, em especial,
seu princípio segundo o qual uma sociedade justa haveria de organizar
sua estrutura econômica fundamental de molde a que a posição cio
grupo menos favorecido, em termos de bens primários, fosse a melhor
possível (1971: 143). Segundo esta tese, quanto mais bens primários
tivessem os menos favorecidos, mais facilmente. conseguiriam realizar
sua concepção particular de boa vida. Para Dworkin, essa posição
contrariaria o princípio de equilíbrio dos recursos, além de não ser
defensável nem criticamente; isto é, não daria resultados, nem éticos,
nem críticos. Se a justiça, pensa Dworkin, é um parâmetro, e não apenas
um componente da "boa vicia", então não seria verdade que ter mais
bens primários contribuiria para uma existência criticamente melhor.
Nosso modo de pensar a justiça ainda estaria muito amarrado à tradição
contratualista: "o modelo de vida mediante desafio faz a ética depender
da justiça. E a justiça, na vida de um liberal ético, determina os recursos
que pode usar de forma apropriada e contribui assim a fixar o objetivo
a tJue enfrenta ao viver sua vida"(. 1 n� lil,,, ,; ; · , .. ,1, ,.•1·rn Lrntar a
tjlle,tào ela justiça corno partr d,1 l'lt, 1 , i , 1de111 ljlll'
porção de recursos deveria cahn a la,l 1 , •• , ,.,: '!' l' J•,1r:1111ctros
 []4 l'I 11w,,, ·, 1 , Wi\1<1 C'Ylrn. LYNCI!
definidores do carátt'.r cie própria vida boa deve ri;· . ; csult .H aceitáveis
para todos" (1986: 1-:-6). E, embora caiba a cada ind vi duo decidir o que
deseja para si como parâmetro de bondade para sua própria vida, essa
decisão não pode justificar privilégios para A ou 13 no momento de
distribuir os recursos. O ato de viver seria mais abstrato do que o fito
de viver desempenhando um determinado papel.
A única teoria de justiça adequada aos liberais éticos, portanto, é a
da igualdade de recursos. A ética, aí, delimita a justiça. A concepção do
desafio desaguaria inevitavelmente na igualdade de recursos, pois a justiça
' ,i é um parâmetro da ética, No modelo de desafio, o interesse pessoal crítico
e a igualdade política caminhariam lado a lado.
III
Dworkin acredita que só haveria incongruência entre a igualdade
política e a parcialidade pessoal - isto é, entre os interesses pessoais e os
interesses públicos -, se por igualdade entendermos o conceito de
igualdade apresentada pela perspectiva do bem-estar. Essa incongruência
aqui inexistiria, porque trabalhar-se-ia com o conceito de igualdade de
li recursos. Através da ética, a igualdade de recursos daria licença à existência
I!
da parcialidade. Por isso é que a igualdade liberal exigiria, como conditio
.;:11 sine qua non, a igualdade de circunstâncias pessoais.
i•
i Posta, portanto, a necessidade, para a igualdade liberal, de igu aldade
de circunstâncias, existiriam todavia duas espécies de recursos: os
impessoais e os pessoais. Os primeiros consistiriam no controle
1
independente que alguém exerce sobre bens transferíveis de que poderia
' 1
valer-se no momento de levar a vida que lhe aprouver. A igualdade liberal,
! como vimos, supõe que esses recursos devem ser iguais (mediante leilão
realizado de forma igualitária).
Os recursos pessoais de alguém, por sua vez, seriam as quaLidades
de saúde e destreza físicas e mentais, e outros talentos e capacidades que
p• 1,sarn também pôr à disposiç:-in , k "11 · i l 1 1 1111. ljUC não se
lt .
!) ,dcriam leiloar os recursos r'"' '1 · ! . '1 1 1l·:111ll tipo de
..
; ��··
f)ll(l'I IU E POLÍl'ICi\ 135
compensação em recu,, )'- 1111pe\Süais para 1JS menJ� fovnrcc:d,,s em
recursos pessoais.
No ato de comprnsar os recursos na iguald�de liberal, po,ém,
gostos e ambições não contariam, e isto porciue as diferenças entre as
pessoas, para fins de corr pensação, não poderiam ser voluntáfrts, isto é,
baseadas em concepções pessoais ou caprichos, por exçmplo. A igualdade
liberal supõe que as pessoas reflitam sobre suas convicções éticas, e esta
reflexão sobre a necessidade de compensação de recursos se desenvolveria
dentro dessa estrutura.
A igualdade liberal pretende oferecer uma teoria da justiça em que
os Liberais possam valer-se de uma mesma ética, tanto em suas perspectivas
privadas como em suas perspectivas políticas. Nesse sentido, as pessoas
devem encarar a possibilidade de considerar o alcance de suas próprias
convicções e preferências como limitações necessárias à viabilização de
uma vida em sociedade digna para todos.
IV
Uma ética voluntarista, por sua vez, não refletiria com fidelidade
as experiências éticas reais da maioria. Devemos distinguir duas formas
em que uma teoria política poderia ser neutra·,ou tolerante frente às
diferentes crenças éticas individuais: pelo que tem de atraente (isto é,
ecumênico) e pela forma de operar (tolerante). O primeiro envolveria
princípios de moralidade política aceita por todos; o segundo, implicaria
o fato de que a maioria não poderia sobrepor seus gostos à minoria. Daí
seria possível passar, dos fundamentos éticos, aos fundamentos politicos.
A tradição contratualista, aduz o autor, teria a pretensão de prover o
liberalismo com um caráter de universalidade e, por isso mesmo,
neutrabdade, cujo modus openmdi recomendaria a tolerância e a neutralidade.
O projeto de continuidade do autor, ao contrário, chegaria a estes dois
tipos de neutralidade no decorrer de um diálogo lógico em forma de
teoremas, c0111eç1wln 1 ,,,rrntégia pela ética, e só podendo chegar à
neutr:d1d 1,I, 1 1., ' Har pruvar (jue os fundamentos éticos a(,,
�:.-' . ;
 I_\( C111<1s I IAN Í:DWARI) Crn11 l,, ,;, 11
éJu:rn !( ,·, ,rn: são aceitos pela maiori.1 Desses fundamentos éticos cxtr;;Ji';1
os pnr1,. í:1ins políticos, somente comcguindo a neutralidade no modo dt·
operar ,e e-;ses fundamentos éticos a implicassem.
_,\ ,�t:ca gue Dworkin se refere é uma ética formal, não-material,
por ser a única maneira que vislumbra para não discriminar entre
convicc/"íes éticas substantivas. Viver bem, aduz, é viver nos limites da
justiça, e o modelo de desafio capturaria intuições éticas gue quase todos
têm. Poder se-ia adotar essa teoria, sem abdicar de nenhuma de nossas
! •
eventuais convicções pessoais. A maioria esmagadora dos seres humanos
poderia converter-se ao liberalismo ético sem que precisasse abandonar
o cerne de suas convicções éticas emjJrimeirapessoa, quer dizer, as convicções
acerca d<.: como deveria viver para viver bem. E isto porque o liberalismo
e a igualdade ética operariam dentro da terceira pessoa, por isso se
entendendo, não o mundo das convicções particulares, mas o das posições
referentes à coletividade.
Quanto aos que preferem relevar apenas seus gostos pessoais, estes
i1 estarão excluídos, claro, da comunidade política liberal ética. O liberalismo
cumporLa individualidade, mas não in<lividualismos egoísticos e nocivos
à vida social - ou seja, destituídos de ética.
i
!,
V
A igualdade liberal dworkiana seria operacionalmente neutra por
distinguir dois tipos de razão gue uma comunidade política poderia opor
para negar a liberdade absoluta:
1) Razão de justiça. Uma sociedade poderia, de acordo com essa
razão, pôr na ilegalidade determinado agir, porque a teoria de justiça de
excelência assim o regueriria. Neste caso se enguadrariam crimes típicos
como roubo e o homicídio. Essa razão opera no âmbito da terceira pessoa,
ou seja, se vale de um critério objetivo.
2) Razão ética. De acordo com essa razão, uma sociedade tenderia
a crer quer, ;1i,i,· q 1 1r· ,l,,,-11··7 ilrlnl. :1pesar de não contrariar a juqic:1.
pudcr1.1 , , 1 1 <11tra forma, ou p(ldcria ,1c,In, t ,,
1 \'
DtREl"IO E I\ 1 Ili('\ 1:17
desfechos i•1felii'.es de outra categuria p:.rn .1 vida de seu autor. O exe:nplo
que Dwork 111 usa, no rnso, seria e, repúdi ) a,> homossexualismo. A ig11i1/dade
liberal negaria a legitimidade da razão ética para pôr determinada cor,duta
fora da lei.
É uma razão que operaria no ârr,bito da primeira pessoa, isto.�, do
sujeito, e portanto nas liberdades indiviJLuis negativas. Daí a rejeiç�o de
Dworkin, visto gue a maioria nao poderia impor seus gostos à miroria,
devendo ser com ela tolerante Pode- ,e fazer política tendo opiniões
individuais clife rentes; resta saber é coJrLo, o que significa que a maioria
deve abster-se de proibir alguém de levar a vida que quer, somente pugue
acha que convicções éticas dagucla pes:,oa seriam equivocadas.
A razão, para Dworkin conclusiva, por que os liberais éticos aceitariam
essa restrição, seria a idéia de que uma noção de justiça exige igualdade ele
circunstâncias e de recursos. O direito seria manifestamente parte das
circunstâncias elas pessoas, e as circunstâncias seriam manifestamente
desiguais guando o direito proíbe alguém de obrar com determinada
conduta, apenas pelo fato de outras pessoas pensarem de outra maneira.
Por esse motivo é que, aceitando a igualdade de circunstâncias como urna
condição à implementação da justiça, os liberais éticos deveriam também
incorporar a noção de tolerância liberal, vez que liberdade e igu aldade seriam
dois aspectos constitutivos do mesmo ideal polítiço.
Mas ciuan<lo as circunstâncias seriam desiguais? As circunstâncias
'
seriam desiguais quando o direito proibisse alguém de fazer o gue quer,
no âmbito de seus gostos razoáveis. Daí, da necessidade de igualdade de
circunstâncias para propiciar a igualdade de recursos, a necessidade da
tolerância e da igualdade liberal. A justiça seria um parâmetro de vida
bom para todos. O ]jberalismo ético tem como ponto pacífico a noção
de que a vida é melhor vivida c1uando se tem convicções próprias. A
igualdade liberal só não poderia ser neutra no caso de estar diante de
ideais éticos que desafiassem sua teoria de justiça, o LJLIC nos leva a
conclusão ele que só não pode haver tolerância diante de ações gue se
I" ,nli·1m :ios princípios fundarncnt:11� dt ;,
,1il,1,1n--tas ta111hé111 não podem enc<1ntr. r
1 ., ,1. 1 "i
,j
1 lt-: CHRISll1\N h,., : ' ( ·,l!II] YNCH ! )iFI 110 1 Prn ITICA
!Yl
1:
A igualdade liberal, se é n�utra cm relação às lllÍ1,w,r.1s pc�soas, ,ti u;\ no il mbito da tcrccir,\ pe� ,;\, ú'í'. lJ' 1c "é muito menos ut,'lpi,·u c·;per:,r
não é frente às terceiras p,:ssoas. :;e as pessoas, enunci 1 n\\'\ll ', in, vissem que as pessoas mudem -uas ·:onccpções em primeira pe:sso1,
�ob uma determinada luz seus próprios compromissos , t ,cc ,s pessoais, particularmente se dispom·J·; .JL'. argumentos 9ue sirvam par,1 111•1strar
no sentido inspirado pele, modelD do desafio, então pockriam chegar a que essas duas concepções �;l(I separávet·i'' (1986:192). RaZl5es ele j·1sciç.1
ver também até que ponto essas concepções dependeriam da justiça, e e de ética seriam o bastante rura pôr determinadas conclutas fora ela !ti,
por c1ue a única concepçãu ele justiça fundada nos recursos l1ue resultaria rejeitando ainda o autor :1s chamadas "razões éticas", por interferirem
adequada para os liberais éticos é a concepção igualitária; pc,r que essa paternalisticamente no domínio privado das pessoas e provocarem
concepção da justiça condenaria a intolerância ética; e, finalmente, por desigualdade de circunstâncias. O resultado Je sua posição filosófica é
que a objeção paternalista a esta última conclusão, segunde, a qual as nada mais nada menos do que a tolerância liberal, que operaria no âmbito
vidas das pessoas poderiam ser melhoradas contra suas próprias da primeira da pessoa, e não das terceiras.
convicções, seria errada. A igualdade liberal, aduz o autor, seria neutra a
respeito da ética em primeira pessoa, não em terceira pessoa, e somente REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
na medida em que a ética em primeira pessoa não implicasse em princípios BELLAMY, Richard. uberalismo e sociedade moderna. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora
antiliberais. UNESP, 1994.
DWORKIN, Ronald. Ética /m'vada e igua/iJatismo politico. Introdução de Fernando Vallespín.
CONCLUSÃO Barcelona: Edições Paidós, 1986.
___. L.os derechos en mio. Trad. de Marta Guastamino. Barcelona: Editorial Aricl S/ A.,
Como vimos, Ronald Dwork.in tem por objetivo sugerir que os 1989.
liberais éticos teriam uma boa razão para converterem-se em liberais LOCKE,Jo hn. Dois tratados sobre ogoverno. Trad. JúLio Fisher. São Paulo: Martins Fontes,
políticos e, em particular, para abraçar uma certa concepção de liberalismo, 1998.
'
·\,,
1
que denomina igualdade liberal. Neste sentido, ele define o que entende RAWLS,John. A theory oJjustice. Cambridge - Mass.: Har�ard University Press, 1971.
·;:
por liberalismo ético e explicita o seu denominado modelo do desqfio, que ___ . j11Stiça como eqüidade: urna concepção política, nã6 metafísica. Lua Nova. São
[ ..'
li! seria uma concepção ética a distinguir, para fins de justiça, os desígnios Paulo, 1992, nº 25.
I,
'1
particulares do anseio público. Contrariamente ao pensamento de John VITA, Álvaro de. Jmtiça /ibeml argumentos liberais contra o neoliberaLismo. Rio ele Janeiro:
1 Rawls, entende o autor que o ideal de justiça eleve estar embutido na Paz e Terra, 1993.
ética, vez que a base daquela encontra-se na igualdade de recursos e não
! no bem-estar de cada um, caminhando juntos, portanto, a ética e o interesse
pessoal crítico. A igualdade de circunstâncias em que os homens deveriam
se encontrar justificaria a igualdade de recursos em ciue cada humano
deveria se achar. Como estes recursos se dividem em ressoais e impessoais,
a desigualdade de recursos pessoais leva Dworkin a considerar a
necessidade de compensá-la no momento de distribuir aqueles mesmos
·1
1
!i
"í , l/\Ilt.\lldo, para esses fins, os gost,1�, , 1 ,_ ·'i ,,,
1 1, 1

.,, , 11,, :unbito formal, e não m,nen 1,

 A TEORIA DOS DIREITOS CULTURAIS DE
MINORIAS DE KYMLICKA: UMAI'ROPOSTA
ALTERNATIVA DE JUSTIÇA NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1
1
José Manuel Avelino de Pina Delgado 1

1
1 ,i

INTRODUÇÃO
Kymlicka faz parte da nova safra de pensadores que se desenvolve­
i1 ram intelectualmente a partir da renovação da teoria política acontecida
;:;
nos países anglo-saxões com a publicação de "Uma Teoria da Justiça" (A
., Theory oJ Justice), em 1971, por John Rawls.
!l
A partir dessa data formaram-se duas correntes majoritárias. A
primeira, com todas as suas nuances internas, '3egue a linha rawlsiana.
Entre esses pensadores, pontificam nomes como Ronald Dworkin, Charles
Larmore e Joseph Raz; uma segunda corrente, radicalmente oposta, a
comunitarista, questiona várias das premissas do chamado liberalismo
'·; �
político, propondo uma fundamentação diferente para a teoria política.
As suas grandes figuras são: Alasdair Mclntyre, Michael Sande!, Charles
'I
:l Taylor e Michael Walzer; outros, como Bruce Ackerman, são demasiada­
mente ambivalentcs para serem classificados. 2 Não obstante, caratenzaçiíes

li" O autor é llachard cm Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM); Mestre em Pildsofia do

ji
;;·.:.
li
Direito pela Urnvcrsidadc Federal de Santa Catarina (UFSC). llkmbro do Comitê Nacinn:d, kis Drrci-
1 ! ,r ,1 i l 1, it 11· tl.1 _J l1,tiça e J\dmirusuaçào lntcrna, da RcpúblK:1 lic ( 1!•1) ,.
ur·, ! 1s,;ific11 como um liberal (Svàal_fu1/Ja 111 /1 1 4 '
.. ,L .�ir1· l'rt:.s, 1981 ., .1utorcs comu, Gisck: Cittad1rn , •,:-.,,
 f, ,sr: 1\1/d,UEL ÂVU.!Nt) Ili f'l/11\ 1 )• 1 ,· 1.•n ,)IH�I !<) 1 -: Pc LI t JL A 14

t·111·tcni-es são na maicJri,t d is ,·,·1,:s feitas por aproxim·ição. () ,L'torcs Tr,1u-:,c. Jessl'. modo, de L \Ll'lto mer 1m�nte informativo, s,:m
" n,<'!--clam tanto que é impossível c:clenniná-los fidedignamentc, 1 :unda pri:tensõ<.:s maiores elo que pa,sar :iit, umas in torrn:tções sobre un I auror
•11

;n 11� depois que as posições emrc as e u:i, "facções'' começaram a cu11wrg1r 11ovu e, amda, pouco escudado, rn:1\ qut· despnnta rnmo um <los maio,·e�
n,1n a adoção de algumas teses co111unitaristas µor autores liberais e pela e- mais onginais da nova geraçfo.
as�ertiva de um número representativo de comunitaristas d � q ue o
liberalismo é, por excelência, a tradição política ocidental.
1·
i' l KYMLICKA: ENTRE LIBERALISMO E COMUNITARISM0
De qualquer modo, um profícuo debate entre as duas correntes
Em recente entrevista, o autor elucida os motivos que levaram um
,1

11. marca a evolução da teoria política desde então. Kymlicka entr.1 nessas
liberal a percorrer um caminho tàrl singular. Segundo ele, o tema do
discussões muito mais tarde. Já no final da década de oitenta com o impasse
;j'1 multiculturalismo sempre fez parte Ja sua vida, uma ve:z yue "crescendo
e a dificuldade em resolver algumas questões, muitas das quais novas,
no Canadá, era difícil de evitar a questão dos direitos de minorias"4 po­
tanto pelo comunitarismo, como pelo liberalismo político, Kymlicka busca
i·,,.'
rém, somente nos anos 80, teve a oportunidade de lidar com a questão
uma nova concepção de liberalismo, por um lado, afastando-o, definitiva­
sob o ponto de vista filosófico. O autor "parcicipava das palestras de
mente, de suas formulações clássicas, para ele anteriores a Kant e Mill, e,
alguns dos mais importantes teóricos políticos do mundo anglófono -
por outro, aproximando-o de temas geralmente não trahalhados por
Ronald Dworkin, Steven Lukes, G.A. Cohen,Joseph Raz"5 e "estava muito
liberais, tais quais, a influência da cultura, tradição ou comunidade na
impressionado e atraíclo pelo seu trabalho sobre o igualitarismo liberal, e
formação da identidade do indivíduo moderno; os direitos de grupos, ou
concordava inteiramente com as suas refutações do comunitarismo"6
a necessidade da participação cívica.
todavia, segue Kymlicka, "um dia Charles Taylor veio a Oxford para dar
Neste modesto trabalho, enfatizarei, precisamente, dois aspectos das um Workshop, apresentando a sua forma peculiar de comunitarismo. Eu
contribuições de Kymlicka para tentar revitaLizar o liberalismo, através da conhecia de antemão o seu trabalho e discordava dele, da mesma forma
tentativa de responder a novos problemas, que a ênfase liberal em um estado que o fazia em relação a outros comunitaristas."7 No entanto, "nesta con­
neutro e constitucional, garantidor de direitos, não daria, segundo o próprio, versa, Taylor começou discutindo política cana'clense e asseverou que
conta. O primeiro desses pontos será a avaliação das objeções comunitaristas somente o comunitarismo poderia proteger grupos como os quebequenses
ao liberalismo e a, conseqüente, busca de respostas liberais que possam se ou os índios. Eu esperei que Dworkin e outros teóricos liberais presentes
opor às críticas comunitaristas. Depois, farei uma breve reflexão sobre a no Workshop o questionassem, mas em vez disso, concordaram que o
proposta de KymLicka de criação de uma teoria liberal de direitos de minorias.
/.

Advirto, no entanto, que a proposta deste texto é, até onde possível,

descritiva. Evitarei fazer avaliações da proposta de Kymlicka.
)11sl1ra 01Shih11lfra. Elementos para uma filosofia Constitucional. Rio <le Janeiro: Lumen Juns,
2000, p. 8), apresentam bons argumentos para considerar Ackerman um comu111taris1a. Apesar
disso, na ausência de uma avaliação autônoma, prefiro não me posicionar no 1nomento.
1·11.1 f1)d11'- ,,._ goq,,s. 1\lgu11s autores são p.nticul.1m1c1 't ',
4 "Growing up in Canada, i1 was cl1fficulr to avoiJ 1he issue of 1ninun11• r1ghts"(KYML1Clv\, W.
Liberalism and �[inority Rights. r\n interl'!cw. 11.t,t,o )um, n. 2, 1999 p. 133, v. 12).
S "l was attending lec1ures by some uf 1he mo,1 pre-cmine111 1heunsts 1n 1he english-speakrng
worlcl-Ronald Dworkin, Srcvcn Lukcs, G.A. Cohen.Joseph lbz'' (IIHdem, p. 134).
6 "Was very imprcssed and excired br 1heir work on hbernl cgaLirarianis,11, an<l agreed cn1ircly wi1h
rheir refutalion of cummuniiarianism" (Ibidem, p I J.I)
''( )nt dn.y Ch�1 les Tfl.ylo1 c1mt. r., 1 L) l 111, f<nm ol
1 tJl\l(llll'

1 1 r, 11111 ·,� li l\.vmlick,1 tem prcst:nre um:, cbssliic.11.;:, 1 1 l 0111nn111itarnrnhm. 1 knew Pt h1 \\·1 ri 1 1. ,1 ! d1d w11h 01hc1
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. ...r; !'vii/i,;J J h/J'iJsoph�. 1\111 rnroJucriun, <)xfo,d, li 1( · ( h n·n:
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14.J Jos,� MANl II LA ,,
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liberalismo negava t:1!; direitos espcciais."8 ü cfei <' sribre Kymlicka foi
devastador, pois ficou e111 uma encruzilhada. De t n l2dc,, ·'estava forte­
mente atraído pelas teoria da justiça do liberalismo igualirarista''9 e, do
outro, "cresci com a t onvicção de que a justiça r,�queria algum tipo de
1
i
1 status eJpecial para os povos quebequenses e indíg �,;:is".'º J\ssim sendo,
i•
"senti-me compelido a resolver esta aparente inconsistência."11
2 RESPOSTAS (NEM TÃO) LIBERAIS AO COMUNITARISMO' 2
O autor questiona o lugar-comum, de que o liberalismo seria um
doutrina individualista, para sociedades compostas por seres atomizados
:\ e egoístas. A conseqüência disso seria, para os críticos - comunitaristas,
t�
,�,, 1 1 >l: P1NA DEL<jAUO l
1 )1 "L, I i /: !'OUTIC � 1-+5
A noção e lc vida b, ,a, a�sirn, é e,cenc1al no pens:.crne1 t.i ,. ,,.. Kvmlic�,1.
Dois aspectos sãu fu11<la111ent1lmeme impcrtantes: '.. p: ra l•S liberais,:,
vida boa, apesar de ter um i1,/Ju/ social, é algo individual, :.e,,, indivíduo,
durante a sua e:>-istência, fc,rma determinados padrõls ax,ulu)!)cos sobtt
o conteúdo des,a vida boa; 2. em conseqüência, ele pod:: ir rcavaLiancic
os seus projetos de vida continuamente e, não estando satisteito, pode.
alterá-los, como bem e111c11dcr.
Essa seria uma primeirn resposta de Kymlicka às objtçôes comunita­
ristas que acus:.im os liberais de criarem uma abstraçfo inverosímil,
consistente em um indivíduo pré-social, racional e moralmente auto­
suficiente que, do nada, cria as suas próprias concepções de bem.13 Para

marxistas, feministas, etc -, uma teoria a-histórica e desprendida da
realidade. Para o pensador, isso pode ter sido defendido pelos autores
liberais clássicos, como Locke ou Adam Smith, porém, desde Kant e
Mill, o liberalismo não parte dessas pressuposições, a não ser se as estiver
usando como artifício explicativo, e.g., o modelo rawlsiano da originalposition.
Os liberais contemporâneos, no entender de Kymlicka, não inter­
'1
1
pretaram a sociedade como sendo composta por indivíduos egoístas,
unicamente preocupados com o bem-próprio, mas, sim, por homens cujo
grande objetivo é encontrar a vida boa; cada ser humano, em última
instância, procura a felicidade. Esta formulação seria compartilhada por
Rawls e Dworkin.
8 "ln this rnlk, Taylor started d,scussing canadian politics, and argued that ortl)' communitarianism
could dcfend special rights for groups like 1hc Quihicoú o, nativc indians. 1 was hoping that
Dworkin mel the other liberal theonsts in the workshop would challenge him on this, but instcad
the)' agreed with him that liberalism ruled out such spccial rights"(lbidcm, p. 134).
9 "I was powcriull )' attrncte<l to libcrnl egalitarian thcorics of 1urncc" (Ibidem, p. 134).
!O "I grew up with the assumption that justice n·eJuired some ,ort of ,pmal 1/a/l(J for Quebec anel
Aboriginal peoples" (Ibidem, p. 134).
11 "l felt compelled to sort out this apparcnt inconsistency" (Ibidem, p. 134).
., 12 Os argumentos de Kymlicka a respeito vêm sendo desenhados há j:i al gu m tempo. A obra mais
s1�temáticà na quíll ele trnta disso é 1 ,,u L ,11 ,. 'l.li" 1:1rdt... publicacb (L.1ht'r(l/1Jm,
(r11mmm!Ja11d(últure. Oxford: C.l.1ri r ;. •1 1
rtc11rrc1e1, prmcip:dmentc,
1 : ,.
o canadense, se é verdade que se sofre forte influência da sociedade no
momento em que se esta formando as bases valorativas,também é verdade
que, tanto a comunidade, quanto o indivíduo, podem se enganar quanto
às suas crenças. Por isso, é preciso questionar essas concepções e, se
necessário, alterá-las, segundo concepções de bem surgidas ao longo da
vida, resultado da observação do comportamento e valores de outras
pessoas ou de outras sociedades.
Assim sendo, o grande ponto de afastamento entre liberais e
comunitaristas não é saber se existe algo que nos é dado, is to é, se o
nosso self é formado a partir de determinados\alores incrustados (o
embedded se!fj na comunidade em que fomos criados. 14 Isso, para I<ymlicka,
e segundo o próprio, para os "novos liberais", é límpido. O que não se
mostra muito cristalino é a alegação comunitarista de que esse dado dever
ser imposto pela comunidade ao indivíduo, durante toda a sua existência,
impossibilitando-o de fazer qualquer julgamento sobre os seus projetos
de vida.
13 Esta crítica é esr,crntlmente desenvolvida por Charles Tarlor (Sourm of the S,lf. The �laking nf
�(,.1 '"11,,,. ,1, •',rnh11d1,,llniversitrPress,l989)eMichaclSandl'i(J'l,c-l', ,. .. ,.,,.
I',; 1' 1 ',·lf 1, 11\'INL:RJ,S. & Dl\-Sl-lALJl'. A (cds.) C.011,11·0 ,... ,.
p.

rubJic:1Jo
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1 18 e S!)).
Jo11mal o/ l'hilo,ophy, n. 2, v. 18, 1 %�. I' 1' 1 14 1 .' _ " , • 1 1 l .11't11fundndtJ e �is1cmmirndo por Chnrlc� Tnylor (Op l·:1 ., ! , 1 "
 .l 1,i' r-.1,,,/ll! f\VEIINOIJI P1NAD11r;,11> ÜIRl·I ru I I' >I I r1, ·,,

( l Ljlll' nàu pode acontecer, e ll('SSc munwnto Kymlicka parte parJ , , Os ngu:ncnro ele Kymlicka são dcSL''1\, ,'.,,id,ls na oha "Ctdadani 1
contra-ar:v1ue, é as concepções de bem, O', modelos de vida boa, serem mi Multicultu·al: uma Teori.1 Liberal dos D1n·it• de Minori 1s", publicach 1

postos pnvctuamence de fora, pela pn:s�ão dL outras pessoas ou da comulll
dacle. O exemplo que ele usa é o da pessoa que é obrigada a rezar. Em casm
semelhantes, da pode até fazer isso, materialmente falando, todavia, não terá
nenhum valor para o indivíduo e não t,�rá contribuído em nada para fazê-lo
atingir a viela boa, pois, para aquele que é coagido, isso não constitui algo bom
ou que valha a pena realizar. Além disso, os comunitaristas tentam impedir
I! c.1ue os indivíduos reavaliem e, eventualmente, troc1uem os seus modelos ele
1
I· vida boa. 15 O próprio fundamento da liberdade, em Kymlicka, decorre daí: "a
Liberdade na sociedade é importante não porque nós sabemos o nosso bem
antes da interação social, ou porque nunca poderemos conhecer o nosso
em 1995. 1' Nessa obra, estão conden:,ados u · principais eil:mentos d-1
proposta cl, > pensador canadense. Em seguida, farei um pcqucnu te'.,umu
ele sua análi:;e.
Para o autor, tradicionalmente, os teorietJS liberais se omitiram em
relação aos problemas causados pela co11stank e crescente plurali:'.ação
cultural da!; sociedades liberais democráLic.ts ucidentais. A teoria liberal
partia do pressuposto de que .i garantia de direitos individuais, inclLúdos
nas constituições de todos esses países, como direitos fundamentais, ou em
documentos internacionais, como direitos humanos, seriam suficientes para
assegurar que todas as pessoas poderiam ter amparo legal para realizar

li
jl
bem, mas porque ele ajuda-nos a conhecer o nosso bem." 16 Pinalizanclo, plenamente os seus projetos de vida. Na realização dessas opções individuais,
KymJicka arremata que a liberdade não é um fim em si mesmo, e sim uma o poder público deve se manter neutro, não podendo se imiscuir positiva­
li condição essencial que permite ao homem realizar os seus projetos de vicla. 17 mente' contra ou a favor' nessas práticas culturais racionais e razoáveis
Ohwls). 20 A única exceção a esse princípio admitida pelos liberais, e somente
3 UMA TEORJA LIBERAL DOS DIREITOS DE MINORIAS pelos de esquerda, seria a ação afirmativa, ainda assim justificada como
Apesar da guinada liberal no reconhecimento da importância da uma medida temporária, destinada a compensar uma injustiça histórica e a
cultura, talvez, a vertente mais controversa da obra kymlickiana seja a motivar a criação de uma sociedade igual, urna colour-blind socie!J.
i tentativa de formular uma teoria Liberal cios direitos das minorias. Como Além disso, os liberais sempre foram refratários a direitos que
,/
' 1
se verá sucintamente, essa tentativa é um passo radicalmente novo dentro considerariam coletivos, cuja implementação poderia resultar na negação
')
li
i'
ela teoria liberal. Assim sendo, uma corrente que se afirmou, buscando a ele direitos individuais, resultado de tantas lutas. Kymlicka incorpora essas
i determinação de direitos individuais, inclusive, contra o arbítrio e os abusos preocupações, ainda, assim, está convicto gue podem ser estabelecidos
:)
1·, e.lo coletivo tenta adotar, através de Kymlicka e outros, 18 direitos cujos direitos de grupos que não infrinjam os clireitos individuais de seus membros.
destinatários não seriam indivíduos, mas grupos. O que os teóricos políticos contemporâneos chamam de fact of
.J 1 pl11ralism exige uma adaptação na teoria liberal, sem a qual essa não
I'
r� -- --- ------ - pode responder a exigências ele grupos sociais determinados, que
15 Globalmente, a análise de Kymlick� do debme entre liber:us e comunitnrisrns é muno prôx1rna d:1
fc,rn po1 1\iny Gutmann (Commurnwrian Critics of Libcrnlism. ln: AVINERI, S. & DE-SI IAUT, desejam garantir a defesa de seu modo ele vida dentro de sociedades
t\. (cds.). Op. C:11, p 137- 150). liberais democráticas. Essas demandas se prendem a direitos de usar a
16 "Freedom in sociery is 1mporrnnt nor becau�e we know our good prior to social inrcrnction, or
bccausc we can ncvcr really know our good, but because it helps us come to know our goml"
(KYMLICl-.:A, W 1.ihciahsm anel Communitarianism, p. 185).
17 11,i,I r , !,. ·i ' 1\ 11.1 Ll,r\, \V/. 1\/11/lio,/Ju1,d ( .lft:..,111 ,/,1/ t I l < L11t.-•1d, )n
11 1 du.p.1sãn fui ,1 de Yad Tamir (l ,;'ba,,I f\'t1t1 m,11, <1·
l't•·<.; 199),
..:o Vl 1. l\i\\\'l ,S, j. Puhtu,,! I 1he1t1!u111 N<.·\\ 'l
 150 JOSI: MANL,!·L \'vf:I INO llt: P1r--,A DELtiAl)U 15 1
J'

coletivo, uma fórmula Jenusiado ampla para .di,:crçar urna teoria s,1brc mas rejeitar rcs1 nçC,es internas que limitam o, clirc:tos de membros do
direitos em sociedades multiculturais. grupo de questi•rnar e rever autoridades e pr.ítirn- w,dicionais·'.21
Assim, se utilizarmos conceito Lltos, obviamente, direitos ( olc­ Deve-se, tc,J.ivia, deixar claro que Kymlicka não está defendendo
tivos e individuais seriam antagônicos. Agora, se estabelecermos uma urna sociedade "coletivamente atomizada", cr.m grupos lutando por
diferença essencial, veremos que certos direito:; de grupos não seriam co11cessões mútuas. O fato de haver um pluralis'.no cultural reconhecido
antiindividuais. Devemos considerar, para Kymlicka, dois tipo:; de é que permite a existência de uma igualdade e co·�são política fortes, pois,
direitos para esses grupos. Primeiro, as restrições internas (i11!t'rnal cada um desses grupos, majoritários ou minoritários, torna-se um patriota,
restrictzons), que são demandas de direitos gr upais, cujo objetivo é à medida que vive numa sociedade que lhe permite manter a sua cultura
dissuadir a sublevação intestina de indivíduos contra práticas de sua preservada e na qual existe a consciência de que criar uma cidadania
comunidade. Tais restrições seriam incompatíveis com uma teoria e diferenciada é uma condição s;ne qua non para existir uma cidadania igual.
com um Estado liberal, pois seriam opressoras, desconsiderando os Apesar disso, K ymlicka reconheceu recentemente que minorias nacionais
direitos individuais dos membros do grupo. Elas seriam totalmente poderiam não querer partilhar instituições com a grande sociedade,
inadmissíveis e intoleráveis dentro de um Estado Liberal. Por exemplo, processo que, em último caso, poderia levar à secessão. 24 Essa recente
um país europeu não teria que aceitar que uma família africana ou asiática assertiva é mais uma das decorrências polêmicas de sua teoria que merece
praticasse rituais de iniciação à maioridade por meio da mutilação genital uma posterior avaliação.
feminina e nem países como o Brasil, os Estados Unidos ou a Austrália,
teriam que consentir que uma nação indígena impedisse um dos seus CONSIDERAÇÕES FINAIS
membros de se mudar para uma cidade, desrespeitando o seu direi to à
O autor, portanto, mostra, através dessas teorias, uma concepçào
livre circulação pelo território nacional. 22
suigenen·s de liberalismo, um liberalismo que reconhece o valor da cultura
Contudo, pode-se considerar um outro tipo de exigência, gue poderia
1 e da pertença a uma comunidade específica, contudo, que assegura o
fundamentar a existência de clireitos diferenciados. São as proteções externas
i constante julgamento individual das práticas comunitárias. Essa aproxi­
1
(externalprotections), i.e., a proteção do grupo contra a possibilidade de pressões
1
mação é reiterada quando ele trata da teoria liberal de direitos de minorias,
injustas e.la sociedade majoritária, garantindo à comunidade a manutenção
estabelecendo um tipo de direitos cujos destinatários são grupos e não
, !1 de sua individualidade em relação a grupos hegemônicos. A teoria liberal
: 1 indivíduos, algo, parece-me, extremamente radical, até para liberais de
,,, dos direitos de minorias somente incorpora essa última pretensão. Aliás,
esquerda, como parece ser.
ela seria essencial para a manutenção <lo "pluralismo razoável" dentro ele
1 Para o Brasil, a questão é de uma relevância bastante acentuada,
' t
.;
qualquer sociedade liberal democrática. "fjberais devem apoiar determinadas
haja vista a constituição da população brasileira. Muita embora, autores
'J proteções externas, quando elas promovem a eqüida<le entre os grupos,
1: 1
1
:i '

rn'/!
I'!l j ,,,
;i
23 "Liberais should cndorsc cer1a1n externa) protcctions, whcre they promote fairness berween groups,
·1,, 22 Isto como idéia geral. Porém, e é algo que não anaLisarci neste momento, K)'lnlicka parece acreditar
bur should rc·1cc1 imern:d re-.rnc1ions which limn the rig ht of group members to question and
que cm certos momentos o Estado Liberal não p oderia us:u da r:ocrç:'.111 rnac. o;;;r,mcnrr a perst1a�:i.o
n·\is.; 11; l 1 ·1 il t ,: 1r1 . ,1-···i'�1fl lf'l�t\ \X' J\lu/11m/t11ra/C,úizrmh,;, A li! eql
11 l.. 1:-,,:- de ,dguma� viola1,õc� aus Ji1t:it11� imln1tlli.11, 1· 1.a, ,1,11;11
·1 nn·d ,1 ! ,ibera/ ·1 hrory of l\l111nnt\' R 1d 1 ,;., I,:
dn·c 1 \ 1 1 ' 1
11 1 1 11 q
",f,//{lll/lllf, 11 1, }t.)97, p 84, V. 4). 24 k Y � 11 1 < 1· 1 i,, li 11111\t. 1\11 1111<;1\ll'W, p. 1,tK-149.
 J 1'-1: Í"L\Nl_lí([. AVELINO 1)1' P11,,\ 1 1' 1' J ,, / '.: iil \

,111«' l"l1rcy Ribeiro ou (;ilhut J .- ,·,:yrc cvicknciaram a capn,,i.,d.:
in.:<111,:111, para a integra<;ão entre ,1,., d,ver:.as matizes que compõe ) ," -,·,;
lJI,1,ilclru, ainda a sociedade brasil, i.'J, a par de outras multicultur. 1,, t�m
·1;íri1)S grupos que não tiveram a c1dadani.1 plena reconhecida. Esrá cltru
'' L.]llC a, demandas são extremamente diferentes. Elas poder ir tlc'.dc
demandas de autonomia e auto-governo l1m1taclo, como em re!ac,:ão a
grupo, indígenas ou quilombolas, a demandas de reconhecimentc, e
igualdade para mulheres ou homossexuais, passando pela repara<;ão de
injustiças históricas no caso dos negros. Por isso, é importante adentrar nas
discussões que têm acontecido cm outros países com problemas parecidos.
Importante para nós, juristas, é verificar o reflexo dessas questc'ies
nos variados ramos do direito positivo, por exemplo, no direito
constitucional, penal ou civil. Este trabalho ficará para outra ocasião,
pois, por ora, a única preocupação seria fzer urna explanação sucinta e
a
·i1//;· '(/ llli.d (l/J-:;_,l'll hip - ;1 !ib ·r.ti
Cla,e, d· · 1c\,, 1995.
, wc 1h:cd a lihcral theory o f 1. 111H ., nghts' Rc;ily to Carens, Y )Uilg. P 11 :! !.
1
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repito, sem pretensões de avaliação, das reflexões do filósofo canadense

Will Kyrnlicka, que, apesar da sua heterodoxeidade, tem urna teoria muito
interessante que merece estudos infinitamente mais aprofundados e lúcidos
do que os realizados nesta ocasião. A aceitação ou não do enfoque de
Kymlicka encontra-se, assim, subjudice,

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\:1
 I'

DIREITO,SISTEMAEAUTOPO/ESIS: BREVES
1
CONSIDERAÇÕES SOBRE A NOVA TEORLi\DOS
! ! SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN
1
. I' 1

,,i
i Thamy Pogrnbinschi 1
l
1
:,
! .
A guinada teórica em torno da mitigação do conceito de regulação
e a correspondente exaltação da idéia de evolução, nos idos da década de
oitenta, é com freqüência aventada como uma das possíveis causas
determinadoras da mudança paradigmática ocorrida, naquele momento,
no âmbito da Teoria dos Sistemas. 2 Concomitantemente à substituição
i' da teoria dos sistemas abertos pela teoria dos sistemas autopoiéticos,
introduz-se na agenda dos estudiosos do assunto a reflexão em torno da
.1.· aplicação do pensamento sistêmico ao campo do direito. Longe de tentar
sugerir uma possível relação entre estes dois ev�ntos, o objetivo deste
artigo é, ao contrário, tentar demonstrar que o direito não comporta os
conceitos de fechamento operacional e de autonomia que a nova teoria
dos sistemas luhmanniana intentou lhe atribuir. Para além disso, através
da análise de alguns dos conceitos básicos desenvolvidos por Luhmann e
:,
Teubner em sua empreitada comum de conceituar o direito como um
1 sistema autopoiético, este pequeno ensaio objetiva sugerir que, além da

A autora é Bacharel cm D1re1to e Mestre cm Teona du Estado e Direito Constitucional pela

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ); Mestre e Doutoranda em Ciência
Política no Instituto Universitário de Pes9uisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Autora do livro Onde
está a Demo,racia? com José Eisenberg (Hdo Ho, iz, >1He. UFMG/2002) e Oproblen,n da obediência em
Thomas l-loblm (Sii" P.wh I l>I ".. , ·, , ·
2 Neste scnudo, Gunthn 11. , 1 '· 1 t .v ln. /lutopo1d1r lau: a 11e111 11pprot1ch
lo law a,u/ society, p. 21 7 e s

iI
1

r
 l'i(,
T!IAMY PüGRl:IIINS(
impropried:,dc da aplicação teórica - a < 1ual, v irnu tentaremos mr)s tr�, r,
além de lld<) dar conta de explicar as própcih mudanças que su5te11ta
1 1i
'' ocasionar nu direito, coloca em risco alguma:: ce suas instituições funda­
�;
mentais, como é o caso dojudicial review- do ponto <le vista da evolução
'l
teórica do direito, a teoria dos sistemas pcJuco avança cm relaçiio ao
positivismo jurídico.
No que concerne à abordagem que intentaremos imprimir aqui,
por tanto, constitui-se um fato bastante curioso o modo pelo qual Teubncr
_ anacronicamente, se encaixa perfeitamente no seio do paradigma
mma sua obra monográfica sobre o tema da autopoiese do sistema jurídico.
�eferindo-se à polarização que acomete a teoria do direito contemporânea,
situa em um extremo "as teorias normativas e analiticas que se esforçam
em conservar a positividade do direito e se arriscam, por isso, a fazer
com que o direito perca a sua relação constitutiva com a sociedade" e em
outro, "as abordagens sociológicas mais realistas que analisam as múlr/plas
imbricações do direito e da sociedade, sem, no entanto, desenvolver os
instrumentos conceituais necessários para satisfazer às reais necessidades
do direito em termos de autonomia". 3 E é justamente com a intenção de
"renovar o debate" e resolver este suposto dilema que Teubner, estribando­
se inevitável e sistematicamente em Luhmann, introduz a teoria da
autopoiese jurídica. O que há de curioso neste diagnóstico não são os
termos nos quais é apresentada a polarização (com a qual até concordamos,
ressalvada a necessidade de uma abordagem que satisfaça a pretensão de
autonomia do direito - a qual, como ficará claro ao longo deste trabalho,
não tomamos como um problema e tampouco como uma solução), mas
_ ser por ele próprio constituídas. No caso do subsistema jurídico, os atos
sim a resposta que, em face <lestes mesmos termos, é oferecida. O que
queremos sustentar aqui, portanto, é que a teoria da autopoiese do sistema
jurídico, além de não oferecer solução para o suposto dilema teórico
colocado por Teubner, se encaixa perfeitamente no âmbito daquelas teorias
.'1 que, em suas próprias palavras, "se esforçam em conservar a positividade
do direito". E, mais do que isso, o faz agravado pela possibilidade de
manter-se cega não apenas às necessárias relações entre o direito e a
J / -"' droll, 1111 ry•stf111e aulopoi'd1,1·r:
Dmi:rro L: Pc ,u 11, ·., 157
111
sociedade, in.1� 1 ,•1 x1n 'is csscncIJrs rciaçôc .1 :e o ,uhsistema jur1d1co
- para nãu deix.11 .t lli-,cussào escapar da língua-� ·m �istêrnic1- incxnr.wd­
mentl: mantém L,>111 uut ros subsistemas de '.iq_;umh ordem, como é o
caso da política, da 110ml e <la economia, apuHs a ú·:ulo Je exemplu.
Passemos :'t discussão. Nossa crítica acerca da') relações da teoria
dos sistemas com o positivismo jurídico desdobra-se crn dois aspectos.
Luhmann - e, em seu esr.eio Teubner - não apenas reduz todo o direito
ao direito positivo, mas t:1mbém constrói uma teorização do direito que,
positivista da teoria j:.uídica. Quanto ao primeiro d�stes aspectos, sua
demonstração é simples. Valendo-se da estrutura geral da teoria da
sociedade enquanto um sistema social funcionalmente diferenciado,
Luhmann concebe o sistema jurídico como um de seus subsistemas
funcionais. A idéia de função não aparece aqui como mero adjetivo: os
subsistemas, como é o caso do direito, constituem a si mesmos justamente
em virtude de sua função. Como cada subsistema se constitui a partir de
uma função específica, a autonomia dos mesmos se apresenta como
pressuposto da teoria, uma vez que nenhum subsistema pode substituir a
outro, no que diz respeito às suas funções. Assim, dada a diferenciação
funcional da sociedade, a autonomia de cada um de seus subsistemas é
inevitável. Para dar conta de sua função, os subsistemas reproduzem
internamente suas operações, independentemente do ambiente natural e
social que os cercam. No seio destas operações constitutivas, ou melhor,
autoconstitutivas, todas as unidades elementares do· subsistema devem
jurídicos - que constituem as suas unidades elementares mínimas - são
obtidos pela redução de complexidade. E como isso só pode ser realizado
pelo próprio subsistema, não podendo ser fornecido por qualquer outra
condição ambiental, ocorre que "todo o direito se torna direito positivo".4
O fato de que a auto-organização e a auto-regulação impostas pela teoria
':! ! 1',lllh of n f1111Cllom1.li)' d1fftft:fllÍilled SDClt'I}', a/1 law 11('1 )·J1 , l ,
1 ,1 11nt'>"-:t1ilr s 1 atutc L1w hut can also bc creHcd h) crHirt ., · 1
,1 , , , ,l law an<l 11s l1mits'' ln· /lutopmelit: l,m,. a llt11•nppro,1rh /u !.1u .a.:

'fl IA�!\ !'t1t,RI ll!NSCIII
d,Js ,istemas devem se realizar não apenas n1 estrutura cio �-i�tema, mas
t:!inb2m no nível de seu� eleIT,entos constitutivos, é apenas um dos fotos
que nos kvam a atestar o primeiro dos aspectos mencionados acerca da
i rc:lação desta teoria com o positivismo jurídico. Quanto ao segundo
\!
aspecto, gual seja, a afir mação de que a aplicação jurídica da teoria dos
sistemas não supera o paradigma positivista, são muitas as características
comuns entre as duas abordagens que nos permitem fazer tal vindicação.
Vejamos-nas.
Uma das principais características que nos permitem fazer a
associação acima pretendida se traduz no conceito defechamento normativo
do sistema j�rídico. De acordo com Luhmann, apenas o direito pode
mudar o d1re1to. Em outras palavras, a mudança de normas jurídicas só
pode ser percebida como uma mudança do direito no âmbito interno
do sistema jurídico. Disto decorre o fato, que já mencionamos, de gue
. ambiente. Ou seja, jamais o ambiente ou quais9uer elementos externos
o sistema jurídico, enquanto um subsistema social ou sistema de segunda
ordem, se reproduz a si mesmo apenas através de eventos jurídicos_ e
nada mais. Neste sentido, Luhmann afirma que eventos tipicamente
políticos, como é o caso das eleições, são também eventos jurídicos,
desde que sejam comunicados ao subsistema corno tal. O que ocorre é
gue as próprias normas jurídicas devem definir o stattts jurídico destes
eventos, ben:1 corno estabelecer o código binário legal/ilegal e, além
disso, dec1d1r quais os fatos possuem ou não relevância jurídica.
Nenhuma condição, nada que advenha ele ambientes circundantes ou
de outros subsistemas tem o potencial de produzir direito. Apenas as
normas jurídicas podem criar o direito, isto é, elas criam-se a si mesmas,
se auto-reproduzem, consolidando o fechamento normativo do sistema
jurídico. O problema é gue Luhrnann não explica como exatamente os
' 1
eventos políticos tornam-se eventos jurídicos e, ao mesmo tempo, afirma
que são as próprias normas jurídicas que decidirão (e o verbo utilizado
é exatamente este) guais destes eventos serão comunicados ao sistema
j
- em outrns palavras, as normas jurídicas decidem se vão, elas mesmas.
transform·1 1 '''T'lln, rxternos ao sistema em informaçà ( , 11111 1 11
t,
1 1 '' 1 rta11t1), ljllc as eleições sãc, apt'11,
1,1
I'"' ' . '_ ! 11a L'spécie de expurgo de sua qualid,1d, !',,
111 1 "Thc ::clf rcpr0Uuctio11 ui' law and HS !111111�· i
..... ---· ----- -
[)1;111 (• I' r"1 IIICA l59
ali,1s, 1ncrcntcmcnte política. Lulrniann s.:ibc disso e 11ã,1 -� a toa llUe
correlato ao conceito de fechamento normativo está o 1:onccito de
abert 1m cog:1itiva. Tal abertura se t eílet•'. exatamcn te ne�tc mecanismo
de se,eção e processamento de 1rct'ormações 9ue as normas jurídi,:as
operam. Se é possível, no âmbito da teor,a dos sistemas, falar em algum
tipo de relação ou troca entre sistema e ambiente, ela se dá apenas
como uma troca de informações. Mas corno são as normas jurídicas
que selecionam e definem o que entra ou não no sistema cornu
informação - ou seja, como o próprio conceito de informaçãc é
constituído pelo sistema - o ambiente não possui nenhum poder de
barganha sobre o sistema, em outras palavras, o sistema detém o controle
total sobre as trocas de informações que pode estabelecer, bem como
sobre as infor mações em si. Tais informações se constituem
internamente no sistema quando ele é irritado ou perturbado pelo
ao subsistema em questão irá adentrá-lo por outra forma que não a da
informação. O que nos parece, todavia, é que a incapacidade de
Luhrnann de prover exemplos concretos para explicar como o
fechamento normativo e a abertura cognitiva são rnndições recíprocas
denota urna certa falibilidade ou insuficiência destes conceitos. O
conceito de fechamento normativo já basta para'•demonstrar a estreita
relação gue a teoria dos sistemas estabelece com o positivismo jurídico.
Quanto ao conceito de abertura cognitiva, ele nos parece mais um recurso
retórico para camuflar a recusa luhrnanniana de estabelecer relações intra­
sistêmicas e manter íntegra a sua icléia de autonomia. O mesmo vale para
outro conceito, o ele acoplamento estrutural, que nada mais é do 9ue
outra expressão para designar o atributo de processador de informações
que Luhmann confere ao sistema jurídico, 5 Será que as normas jurídicas
podem por si só "decidir" alguma coisa? Será que a própria idéia de
decisão não pressupõe em si um elemento volitivo e, portanto, humano?
Luhrnann exclui os sujeitos de sua rec,ria, cornn ,e i,s0 fmse efetivamente
5 "Thcleg,dsys{crn,lxt,111g ibd(or11t�11•nt1 11· 1 1111,111 pn1c<·ss1ngsys11.:m'
.. 111,·ua.-/110 /u11,,md sonf!Y, p. 1 Jil

160 i·11,\�I\' PüGRFUINSUII
tornar o sistem 1 ju1 íd1co um ",is tema imune"'.' •-;,:1,í LjllC' 0 conceito de
autopoiese necess1tav1, para ser desenvcil"id-:\ de um fechamento
absoluto dos si:;tcnus? Será que a idéia de autu-reCercncia não poderia
ter sido desenv,)lviJa sem os custos desse fechamcnto?
,,
Outra formulação problemática, e que também remete a teoria
i. dos sistemas ao positivismo jurídico, se Já em torno do conceito de validar/e.
Luhmann repousa o conceito de validade jurídica sobre a idéia de circulari­
dade. Esta suposta circularidade do direito faz com que "decisões sejam
legalmente válidas apenas na base de regras normativas, porque regras
normativas são válidas apenas LJuando implementadas pela5 Jecisões".7
Em sua tentativa de evitar que a validade do direito repouse sobre a idéia
de autoridade ou de vontade, Luhmann - e Teubner, que dedica especial
- -
atençao a este ponto 8 - nao consegue afastar a sua concepção daquelas
desenvolvidas por Austin ou Kelsen. Não no que tange á fundamentação
do direito no próprio direito. Luhmann parece achar possível dissociar
os conceitos de vontade e autoridade de sujeitos, e associá-los, por outro
lado, a uma suposta estrutura autônoma, o direito, ou a alguns de seus
elementos sistêmicos, as normas jurídicas. O fato é que Luhmann
improcedentemente acusa Kelsen e Austin de terem evitado o problema
da circularidade e conferido a validade do direito a outra coisa ( ''something
e/se'). Ora, o que é a grundnorm se não uma norma? É evidente que a
norma fundamental hipotética de Kelsen desempenha o mesmo papel
que o conceito de circularidade de Luhmann e Teubner: o ele fundamentar
o direito no próprio direito. Assim, para ambos os autores "as decisões
são legalmente válidas apenas na base de regras normativas", ou seja, à
t:1 ·
estreita semelhança do positivismo jurídico. Observe-se que Luhmann
llf!
6 Curiosamente - ou nem tanto - o único momento do livro 5oaal.�)·1le111I (�uc marcou a mud ança
,,
l
paradigmática dos sistemas abertos aos fechados) nu qual l.uhmann refere-se ao direHo, ou melhor,
,!,,
li!•
ao siste ma jurídico, se dá numa tentativa de cxpücar os mecarnsmos de 111rnni zaç ào socia l. Lu hn1an11
argumenra, nas cerca de três pagjnas gu e dedica ao assunto, gue o sistema jurídico func iona como
sistema imunizador (11111J11111, J_ple1J1) da sociedade. Cf. Soar,/ S_pte,,11, p. 373-376.
'l'I'" .,e!,"' 1 "'' .llld
"The Sclf Rcproduction of Law and '" 1 ·,,,,, " h , ! · 1 · r ;1-1 1 H ,r k, j,; ic, rec.;ponsável de ncordo com rcgrns dcfinid:is
7
SDCJC()', p. 11 'i
8 Neste �enudo, veja-se o pz 1111..:iru c,1pí1 d, 1 .1 , 11
1(,1
ÜIIU·llU 1: f'<ll 11 ll \
não atentou par:1 a \<.12,und I parte da formulaç20 cit,1d 1 ,,.:1111a: afirmar
que as regras ni)rmativas sc't<, \ úlidas apenas quando i rn p e1 ne n ta elas pdas
decisões pode causar t:xat,rn1Lntc um entendimento co11 r;uio àquele que
ele pretende. Afinal, afirma- yuc são as decisões que cc nCw.:m validade
às regras equivale a afirr:1ar que as regras n�io pojsuem validade
anteriormente à sua aplicado. Em outras palavras, nã0 seria o ato de
criação do direito (a legislação) que o tornaria ,·álido, rnas o ate, de sua
aplicação. Esse não pode ser, definitivamente, o scnúdo que a teoria dos
sistemas deseja atribuir ao conceito de ctrcularidade.9
Amplamente relaciollado com este problema da validade jurí<lica
está o conceito de legiúmidacle cunhado por Luhmann, mas que não
iremos desenvolver aqui por fugir do objetivo deste artigo.10 Mas o gue
por ora queremos destacar é que o proceclimentalismo que é inerente a
ambas as suas formulações remete, na verclacle, a um legalismo ou a um
positivismo tão ortodoxo que beira o decisionismo schmittiano. Some-se
a isto a questão já mencionada ele que são as normas jurídicas - e não os
sujeitos - que "decidem" acerca das informações que serão ou não
formadas e comunicadas ao sistema jurídico.
Outro aspecto ela teoria luhmanniana que a aproxima do positivismo
jurídico é a formulação elo conceito de unidade. Não obstante a afirmação
! de que a unidade do sistema é sempre presumid� tacitamente, Luhmann
preocupa-se em argumentar que até mesmo os eltmentos que compõem
o sistema apresentam uma unidade indissolúvel. Esta unidade dos
elementos sistêmicos é constituída apenas pelo próprio sistema, em sua
unidade estrutural, ou através de seus próprios elementos. Assim é c1ue
os elementos do sistema se autoproduzem, bem como se auto-repro­
duzem. A comunicação enquanto elemento básico do sistema jurídico, o
- ---- -
---- - -
9 O antagonismo crnit a explka��ll thida por Luhmann para de finir o conceito Je circulanJa
dc e 0
a uma abordrig�m teóri ca C. ll1C se
conjunto de sua teorrn dos sistema s é tal que remete justamente
dirccion:1 cn1 utr1 sentido complcrnmentc oposto: o prngm,1Usmo jurídico.
10 "A lei de uma sociedade ,e tom,\ positiva, quando se reconhece a legitimidade da pum lcgalidaJe,
t<.rq ! 1 t 1
'-:, / 1 1 \ 1� I·. H 1\f \:,, jurgen: /I cnse dr lry,1/llJJfl(1io 11 1 rahll li.
1
'u.t/
 162 T11AMY Po,n<1·!!1�,s,·l!1
comtitui ac reproduzir rccursivarncnte comunicação. No entanto, a
autopoiese jmídica depende de outro elemento sistêmico, qual sep, o ato
jurídico. hs,e, porém, é definido pc)r Luhmann como sendo aqueks
eventos comunicativos que mudam as estrutura s jurídicas: a<-J11i a
circularidade surge novamente, desta vez no seio da relaçã ú entre atos
j urídicos e normas jurídicas.11 A isto se agrega o tema ela condicionaLic.lade
e dos códigos binários, porém, para simplificar, basta mencionar que o
sistema jurídico, de acordo com Luhmann, deve ter ainda a sua unidade
compreendida como a unidade entre legalidade e ilegalidade. Em outras
palavras, a unidade jurídica se traduz pelo controle que esta antítese exerce
1; i em sua autopoiese, condicionando cada uma de suas operações ao próprio
''
l 1
t!'
sistema. A unidade de um sistema auto-referencial como o direito
)
portanto, só pode ser entendida como uma unidade que determina e é
determinada por si própria. 12 Ora, qual é a característica primeira do
i ordenamento jurídico positivista, senão a sua unidade? O apelo de Kelsen
J'
a uma norma fundamental hipotética que servirá de fundamento de
validade pra todas as demais normas do ordenamento jurídico expressa
nada mais do que o desejo de fechar o sistema e assegurar a sua unidade
formal. 13 O positivismo jurídico se centra na idéia de um sistema auto­
referenciado e que se reproduz a partir de um processo de criação e
aplicação de normas, fiel apenas a critérios formais ou , em termos
luhmannianos, critérios concebidos e colocados em prática pelo próprio
sistema jurídico.
Por fim, oformalismo é mais um elemento que nos permite afirmar
que a teoria dos sistemas, do ponto de vista da evolução do pensamento
jurídico, em nada avança em relação ao paradigma positivista. De acordo
t 1 Neste scnudoi Gu11the1 Teubner, "lntroduction to autopoittic law". ln: .-4.utopoidit" /m11: ; new 1
approach to law anel societ)', p. 3-4.
12 Nikhs l.uhinsnn, "The unity of thc legal systcm". ln: A11topoieticlnw: a ncw approach to law ,rnJ
socicty, p. 12 e ss.
l) O con,-ri,, · 1•· f1; ,, n.1 funcbmental- ou GnmdnormJ no original-é central no ptnsmnento
1 1 fHl\ll!\'jq;i
Leis.: '
1 1ni I rwrm,1 ! 1po1t·r1ca, presJJrpo.rlfl, Ja tjUíll emanam ri ,da,;\ dl·n 1
d, 1 1 · , m con�.tn1ç�o. I<dsen pretende fundamu1L1r ;1 \ d!d 1
1 ! 1 1- ... r.1
as lL:-! · ::. unu rncsma funtc. Ver, a respeito, Teonü Purr, do D,rrlto, 11. ""=· !
.
ÜIREll'll 1 }'c,1 Ili(\
com Luh rn :11111, "o sistema jurtdtco n:'io determina o contel!do da'.
decisõe� juríc\ic1s". F não o faz nem cm u1r sentido lógi·:o, nem atral'b
de mecanismos de interpretaç ão do direitcJ.1' Esta última, a interprdaçk
jurídica - Llue onstitui tema dominante Jcs ,Jebates ac:idêmicos �obn
a teoria elo direto contemporaneamente a(, deS('.nvolvimento da teori::
dos sistemas - é efetivamente despidz de qualquer sentido nc
pensamento lunmanniano, Ora, se o conreúdo das normas jurídicas
não se apresenta como objeto de preocupaçf,o no âmbito do pensamente
sistêmico, tarr,pouco a interpretação destas mesmas normas se
constituirá em tema relevante. ü mesmo acontece na teoria positivista
do direito: o conteúdo que as decisões jurídicas vão adquirir não é
importante, desde que elas sejam válidas, ou seja, estejam de acordo
com as regras que disciplinam a sua criação. A teoria escalonada do
ordenamento jurídico, construída por Kelsen, explica isso: basta que as
normas inferiores, específicas (as decisões judi ciais, por exemplo) sejam
criadas e validadas pelas norma superiores, gerais. 15 O conteúdo de cada
uma destas normas não é importante, o que a torna uma norma jurídica
é meramente o procedimento de sua criação, a sua forma - que deve
ser necessariamente a derivação de outras normas jurídicas. De acordo
com Peter Kennealy, o formalismo é a característica mais importante
do discurso autopoiético. E também a mais p roblemática. Conforme
nos chama a atenção este crítico de Luhmann, o; teóricos da autop oiese
estão apenas aptos a mostrar que são as comunicações e os atos jurídicos
que acarretam mudanças no direito; na medida em que eles não se
preocupam com o conteúdo deste direito, passa a ser irrelevante, por
exemplo, se o roubo é legal ou ilegal - afinal, qualquer um destes
condicionamentos representa um funcionamento bem-sucedido do
código binário em operação. Além disso, aponta Kennealy, o formalismo
sistêmico é tão exacerbado que até mesmo a função que I ,uhmann atribui
14 "Th c seli repr0duction oi Lc\\' and its limcts" ln· //11/oôoirt,r /011•: rr new �pproach to law and
SOCJt't)", p i \ 7
15 Kl·.l.�l·N, ! Ians. '!'com l'u,a du IJJ1C<, e
 1(1--l l 11 \�I\ f J JCil<l:lllNSC'JII
,10 sistema jurídiw, is 1 l\ 1 manutenção da estabtlidad_· cbs expectativas,
•1
é indiferente no que tange ao tipo de expectativas que �ào cst.i! i ilizadas. 16
,1
:l
>I
Vimos até agora l!Ue, assim como na teoria dos sistemas luhmanniana,
no positivismo jurídico, o direito reg u la a sua própria criação e aplicação. 17
·,-1 Vimos também como alguns dos dementas do positivismo que a teoria
dos sistemas toma como "paracoxos" do direito que requerem ser
ultrapassados - como é o caso da validade e da unidade - não logram
1.
i1
efetivamente su peração, Nos resta examinar um último elemento que
Teubner, por exemplo, toma como paradoxal e acredita ter superado com
a teoria da autopoiese jurídica: a hiermquia do direito. 18 Em primeiro lugar,
precisamos dizer que não há como negar que a teoria dos sistemas provê
uma descrição coerente de um direito sem hierarquias, No entanto, se isso
de fato constitui um mérito que não pode ser negado, por o u tro lado, a
descrição de um sistema j urídico sem hierarquias provida pela teoria dos
sistemas apresenta outros problemas quando confrontada com algumas
instituições sólidas do direito. É o caso, por exemplo, dojudicial review. Mas
vamos por partes. A quebra da hierarq uia do direito promovida pela teoria
dos sistemas podia já ser deduzida há algumas páginas, quando tratamos do
tema da circularidade: existe, com efeito, uma simetria estrita entre as normas
' e as decisões judiciais, por exemplo, na medida em que uma retira a su a
,j validade da ou tra. Na medida em que os processos autopoiéticos de criação
,1 e aplicação de normas são recursivos, eles são simetricamente estr uturados.
Como explica Luhmann, "a qualidade de norma de cada elemento é devida
à qu alidade de norma de ou tros elementos, aos quais a mesma regra se
aplica".19 Com efeito, a teoria sistêmica logra explicar a ausência de
hierarq uias normativas em seu seio. O problema está em torná-la compatível
com institutos consolidados como ojudicial review, que pressupõem para a
16 "Talkin g About Autopoicsis - Ordcr from Noise?" ln: Au1opoiehc /aw: a 11e,,, approach /o /a,v and ,ociely.
17 Veja-se, a respeito, Hans Kelsen, Teona 1'11ra do Dirrilo,pa111111 e, es pecialmente, p. 257 e ss.
18 Com efeito, Tcubner toma guatro elementos do positivismo como paradoxos g ue a teoria auwpoiética
supera : a unid ade, a validade, a hierarquia e a inderenrin1c;�n 111rírl t r:1c; H 1 ••:,1l it· se: l/UC apcn,ls este
l'ilrimo elemento não dcsenv0Jvt1r.:111p<.; ncq , 1 1 1
.. /1 '1,·i'étiq11e, pmrl!11.
·1
19 "Thc U1111y of rlic l.cgal Svstcm" 111' ·/ UI,, , i ,1 ,c1uy, p. 21
i
'I
� l
11:,<1111, 1- Prn 111c,1
;u t 1.-:-.istência e efetivação unu h1er.:r(1u1,1 entre as nornias do �i:-k 1:a. Or�,
se rHu existe no sistema jurídi, () ,mu norma s u perior, como,· · ,a:;o d 1
( :onstituição, como justificar tal i11s1itutc,� O que servirá de par5ml'.lru par,t
se ckterminar, se não a constitt,cionalidade, '.l. leg,1lidade ou ileg tlíchcL: da·;
normas? Luhmann não responde a esta questão. Sua teoria no� dc1x:1 se�\
saber até mesmo como o código binário é aplicado. O fato de que a teon 1
dos sistemas abre mão de preocupar-se com o conteúdo das norma�, não
pode ser _ e não é - uma rc�rosta satisfat�ri�, A qL'.eb d,t �iie:arqu '.�
_ rn
normativa acaba por despir de signiftcaclo a 1de1a de ConstltulÇ<HJ ": mai,
do que isto, implica em jogar fora toda a teoria constitucional produzida no
último século. Como, por exemplo, a teoria dos sistemas uda com o problema
dos hanl cases? Como ela trata o problema da justificação do direito ;, Como
ela pode se compatibilizar com uma idéia de razão pública, por exemplo?
Como ela explica o fenôméno da judicialização da politica? E como ela o
faz, sobretudo, sem o auxílio de recursos retóricos, como provamos ser os
conceitos de abert ura cognitiva e acoplamento estrutural;,
O que nos parece, todavia, é gue todos os problemas identificados
neste pequeno ensaio resultam da rigorosa icléia ele attlonomia pressuposta
pela teoria cios sistemas autopoiéticos. No caso do d1re1to, tomar um
conceito forte de autonomia como é o de Luhmann e Teubner como
condição para o desenvolvimento teórico pr�tendiclo já indica um
simulacro: a teoria não se sustenta enquanto tal internamente, quanto
menos empiricamente. Ela não atinge nem mesmo seu objetivo primário:
explicar a relação entre o direito e a sociedade. Como explicar isso, se a
relação que pressupõe é, na verdade, uma não-relação;, Não existe interação
possível na teoria dos sistemas autopoiéticos. Não há interação com ou tros
.
sistemas, não há interação com o ambiente. Como dizer que o
processamento de informações levado a cabo pelo sistema jurídico indica
uma interação entre ele e o seu ambiente? No campo do direito, é
impossível pensar a idéia de autonomia sem interação. 20 Basta pensar em
'·'
·',J
21) )[ ,1,t !, '!· 1�1K1.1· t! Ut d,1 11 ,111et1 p ,111 ;i tcoua dl' 11il1111:u1n \, l
, qm 1:1!{.·1!1111ul!� nà,, puduno� .1g1t:ga1 ,1 1: ... lt t 1 ,dl
;\l,I ,i) •I q 1 1 . •. , .1 P\, tr l'd" I 11: _, /11lo/101'etú· ,�111:· :l IIC\\' approach to la,; ,111.l
 16(, Tt1AM Y P0<..iRrn1Nsc111 D1R1.:nu E Puu 111 167

____ . f ,,1 n:�t1tu1 , , -lu douzieme ch,1111c.:L1. du su ,, '·"1c a,1aiyse socioln.;il1ue du

droit ln: Ji.el'lle Drr ', Ir.," Ir, 11 47, 20() 1.
fatos concretos, em exemplos empírico�. 1·r1 :nstituições e fatos jurídicos ,i'

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coticlianos. Para que serve a teoria elos si, temas ,rntopoiéticos se ela é

Sta/e. New York: \Y./: lt, r d.: ( ;ruyrer 1986.

incapaz c.le explicar a realidade jurídica contemporânea? Seu valor �

unicamente teórico. Ela seria mais enriquecida, talvez, se a idéia ele auto­
referência coexistisse, de fato, com a abertura. Ou se o seu conceito de
.1
autonomia fosse menos rígido. O que somos levadtJs a pensar, todavia, é
1; que a teoria dos sistemas autopoiéticos está na contramão dos debates
sociológicos contemporâneos. Principalmente daqueles debates que tomam
o direito como objeto de sua reflexão. No caso brasileiro, isso é ainda mais
problemático. Quais são as contribuições que tal teoria pode oferecer para
'.i
compreender o nosso direito e as nossas instituições jurídicas e judiciais?
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í_r

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 AS RELAÇÕES ENTRE DIREITO, :MORAL E
\.. POLÍTICA SOB AS PERSPECTIV
"
AS
PROCEDIMENTAL-COMUNICATIVA E SISTEMICA:
ASVISÕESDEHABERMASELUHMANN
Luiz Henrique Urquhart Cademartori 1

A necessidade de estabelecer novas demarcações institucionais entre

os territórios da Política, da Moral e do Direito vem gerando algumas
incertezas, dentro do contexto brasileiro, nas formas de orientar os campos
de atuação dos poderes estatais. Isto se verifica considerando situações­
limite onde as fronteiras entre uma ou outra das esferas constitucionais de
àtividade - legislativa, executiva e judiciária - não estão claramente
explicitadas no que se refere às possibilidades de entrecruzamento e graus
de influência da esfera de competências de um poder estatal sobre o outro.
Algumas distorções ocorrem, por exemplo, quando se procura estabele­
'
i,
1 cer critérios para orientar o tratamento de questões políticas, ou econômicas, a

ii
serem abordadas em decisões judiciais e seus respectivos limites de interferên­
.:,· cia em assuntos cuja competência precípua é dada ao Executivo ou Legislativo.
i1
O mesmo ocorre, também, quando se remetem, essas decisões, a dimensões
·! consideradas externas ao Direitn, tais como a dimensão dos valores morais.

O autor é tlacharel em Oireito P,'il,lico pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Mestre
em Filosofia do Direito e Douwr crn Direilü Público pela Universidade Federal de Santa Catarina
(I IFS< P 1r .i-, r l L: , , Mr·c;iudoc Doutorado cm Direito na Unive1�id.1<'t'
,, ti,,\,_,:,

{)11,·!,
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i · ',, 'J/1: ·lrf1111111J/ra/Jm (Porto Alegre: �íntcse. ,... 11111n
·., ,,u/ dt /)ir<1lo (Cunt1ba: Juruá, 2000).
 • · ..�RFl"'
� , .,...-
17() Lu1z I IENR11J111 UH)U11,11n CAUEMARTORI
,1
í.j
A esse respeiro existe toda uma tradição posi1 v1'. i.1, uriunda do
pensamento jurídico, que proclama a sujeição do !):;cito aplicado aos
estritos termos da lei, sob uma concepção formalista ·..-,)1-ada a conceiLos
jurídicos abstratos e deduçôes lógicas refratárias à realid 1dc social, sempre
que as remissões legais se projetem, direta ou indiretatT,ente, aos campos
da moralidade, da economia ou da política, por exemplo
:i Essas questões definiriam, entre outras coisas, ,)s parâmetros de
discricionariedade na atuação dos poderes Legislativo e Executivo,
constituindo, assim, um campo de problemas insindicáveis pelo Judiciário
posto que estariam protegidos por juízos subjetivos atinentes a questões
"extrajurídicas" por serem políticas, econômicas, morais ou culturais,
conforme o já afirmado.2 Trata-se, portanto, de uma concepção doutrinária
e jurisprudencial reclucionista a qual idealiza três poderes constitucionais,
mais do que harmônicos, organizados de forma estanque e rigorosamente
fechados nas suas atribuições.
Para tentar elucidar toda esta problemática à luz de novas tendên­
cias que constatam que o aumento de complexidade social não mais com­
porta uma forma de tratar seus problemas decorrentes a partir de critéri­
os simplistas, isolando cada conflito social a ser equacionado e decidido
pelo Direito, em mônadas despidas de fatores políticos, éticos, culturais
ou econômicos, se utilizarão duas matrizes teóricas as quais se debruçam
sobre o fenômeno do Direito e seus entrecruzamentos com os campos
da Moral e da Política. Visando tal fim, se tratará ' inicialmente' da con-
cepção procedimental-comunicativa de Jurgen Habermas.
A seguir e considerando as observações críticas do citado autor, se
analisará a relação entre as dimensões da Política e do Direito sob a ótica
do paradigma sistêmico de Niklas Luhmann, a partir de uma análise sobre
a evolução e as implicações do fcnôrneno constitucional, dentro de cais
campos, empreendida por este sociólogo. Tal metodologia será adotada
por considerar-se que a Constituição se apresenta, hoje, como uma unidade
. i
2 Cf Cr\Ub\11\H 1·, li 1 , •. , .. 111,1111fmJ/11,c, 110 t'f/ado ron.rlllur1011rtl de d11i•1/o.
l(
'j, Curitiba: Juru;i, 19"'-. I' 1 • 1 '•
171
DIREITO E PüLITlCA
simultânea de organizaçfo política e regulação jurídica nas esferas social
e estatal sendo que; ,1mbas as esferas também estão pt:cme,1clas por
múltiplos fatores tais ccJmo os de ordem cconômica, axiológica e cultural
dentro de uma arquitetura institucional que ainda não teve todas as suas
possibilidades de interpretaç:ío e consecução esgotadas.
É precisamente a partir da análise constitucional que a teoria de
Luhmann responderá, em parte, à crítica à sua concepção sistémica do
Direito formulada por f-Iabermas, teorias estas que serão objeto de
resumida análise e contraposição, neste estudo, Considerando-se, então,
as reflexões de Jürgen Habermas,' ao tratar das relações traçadas entre as
dimensões da Moral e do Direito, o filósofo alemão afirma a insuficiência
do postulado weberiano segundo o qual, uma suposta racionalidade
autônoma ·e isenta de conteúdo moral inserida no Direito constitui-se,
por si só, em fundamento legitimador da legalidade. Em verdade, a sua
força legitimadora decorre de mecanismos processuais os quais garantem
a institucionalização das argumentações discursivas do Direito.
Para tanto, é preciso desenvolver um núcleo racional, no sentido
prático-moral ou da razão prática kantiana, no interior do discurso jurídico
e isto será dado ao observar-se como a idéia de imparcialidade da funda­
mentação das normas e da aplicação das regulamentações desenvolve
uma relação construtiva entre o Direito vigente, os. processos de legislação
e os processos de aplicação do Direito. Visando tal objetivo, o autor
> propõe uma teoria procedimental da justiça, onde os processos
comunicativos revelam-se vitais, sendo que estes ocorrerão, na medida
em que se observe um Direito procedimentalista dependente de uma
fundamentação moral de princípios e vice-versa.
Disso decorrerá a constatação de que a legalidade somente estará
apta a produzir legitimidade na medida em que a ordem jurídica possa
reagir à necessidade de fundamentação resultante da positivação do Direito,
· ou seja, na medida em que forem institucionalizados processos de decisão
1
-�{.i;,\� lurgen. /)irnlo r democracu1: entre fact1c1dade e validade I nd •·i ,, ,, 1 .. ,
1
•
'' •· 'iuchlcr. Rju de Janeiro: Tempo Universitário. 1997, v. 11, p. 214 e ss.
 I,
1� - Lu1z 111 r-,Rl<JLIE UR1Ju111\l{i (' \llFM·\lffORI
jurí, l1ca permeáveis a discursos morais, t,,,�,1 f,;rllla de e11trel;1çamcntu,
entrcLtnto, não tsgota todo o fenômenu d(I Direito atual, posto que, este
rarnbém se relaciona com o campo da Pul1tica e, neste caso, algumas
clifercnci:1çc)es tr,rnam-se necessárias.
Segundo CJ entendimento de Haberma:.,4 u Direito por depenclcr da
política possui um aspecto instrumental diversc, das normas morais, as quais
são sempre um fim em si mesmas, De modo diverso, as normas jurídicas
também se prestam como meios para atingir fins políticos eis c1ue além de
existirem para solucionar-em caráter imparcial- conflitos de ação, como no
caso da moral, também se prestam para a efetivação de programas políticos.
Isso significa que o caráter de obrigatoriedade dos objetivos coleti­
vos e das medidas de implementação políticas passa a ser configurado a
partir de uma forma jurídica. Por ser assim, o autor conclui que o Direito
situa-se entre a Politica e a Moral e, para tal afirmação, ancora-se em
Dworkin,5 ao afirmar que o discurso jurídico se constrói não apenas com
argumentos políticos visando o estabelecimento ele objetivos, mas também
com argumentos de fundamentação moral.
Essas conclusões, aliás, não deixam de guardar certas relações de
aproximação com as reílexões de Luhmann ao abordar as conexões entre
Direito e Politica, Entretanto, Habermas formula urna crítica a este autor 6
)
aparentemente, desconhecendo a maneira como Luhmann desenvolve
estas formas de interação, o qual considera primordialmente o fator
Constituição, subestimado o seu papel em Habermas 7 para efeito de tais
/4 Idem, p. 218.
5 DWORKIN, Ronald. Lm de1.chos e11 m;o, Trnd. Mana Guastavino. Baracclona: Anel. 1989, p. 154 e ss.
6 Em realidade, as críticas de Habermas dizem respeito a outra obra de Luhrnan11, (cuja versão
nacional é: l.UHMANN, Niklas. Sodologin do dirtito- tl()/J. I e li. Rio de Janeiro: Coleção 1,studos
i' t\lcmàes, cd. Te111pu Universitário, 1985) aqui não abordada, e que não trata das relações entre
Direito e Política no prismn constitucional e sob o enfoc1uc teórico que veio a ser desenvol\'idu
cm ;irtigo posterior sob o 4ual se baseia este estudo.
7 Segundo Habermas, a Constituição, hoje cm dia, se apresenta como uma torn.lidf"tde dinfün1c:1 crn
�
"'
c1uc.: t>S crmílnos entre bens particulares e coletivos devem ser soJucionndos ad hor via princípios
1 •·11,1 1 ri111 1tTfl"�'1 hnlí"-l,1 do fcnômcnt> cnn�ti1uc1on:1!
p �i
l, 1 , ,
• l.1 ,.ttquwas t'!lllt' ,1.._ 11ormas cot1sutucio11:us e'- 1:1
jl .iltjllt'l dc111c11tP p;tnicular cb ordem 1uríd1t.:,\ p1.J , 1
DIREI 10 1: l 101.111\ ,\ rn
análises, come, flll'tll 1 tk estabelecer d; COl1l'\<- .:$ t 1t··i:: Prilítica e Direi tu
e conseqücnlL'll1t·11tc_ como instru:ncnto l'.e s,JI 1ç;io recíprcca da
autoreferenciabilidaclc p.1r.1Lloxal destr'.s sistern 1s.
A fim de a,·aliar tai3 questões, torna-se nece,.sú:-io começ,r pela
descrição da anúli�e empreendida pot Habcrrnas, da teori,1 sistêrn ica dr
Niklas Luhmann.
Segundo Habermas,8 a teoria de Luhmann vislumbra o Direito
como sistema "autopoiético" portanto, como modelo fechado em si
mesmo e cujas condições de existência são nele autoproduzidas, ou seja,
sem a interferência de úutros subsistemas oriunclos do sistema social. Tal
análise é esquematizada em três características conceituais básicas: a) o
dever ser normativo é redefinido a fim de tornar-se passível a uma análise
funcionalista; b) como decorrência, o paradigma positivista passa a ser
concebido como um sistema jurídico diferenciado, funcional e autônomo;
c) a sua legitimidade é explicada pela via da legalidade, concebida esta
como uma espécie de "auto-engano" estabilizador do sistema, necessaria­
mente derivado de um código jurídico apoiado nos elementos binários
válido-inválido ou lícito-ilícito e recoberto pelo próprio sistema jurídico.
Não obstante essa constatação, Habermas reconhece que a teoria
sistêmica não nega, necessariamente, o fenômeno comunicativo que é gerado
no interior dos aparatos parlamentares e tampouco sua influência sofrida
pelas esferas pública e política, mas, segundo ele, as'descrições de Luhmann
quanto a estes fenômenos são apenas constatações da impotência do poder
comunicativo. Isto ocorreria porque o sistema politico pode prescindir de
fontes autônomas do Direito legítimo, após a sua completa positivação.
Ou seja, a politica, através de um rumo diverso e sob a configuração
de outros sistemas funcionais, tornou-se independente, estruturando-se
em um círculo de comunicação fechado em si mesmo. Dessa forma,
de forma diversa a partir dn ordem de valores d, Lri Funda111en,al. Isto traz uma antecipação do
sencido do todo, via principios fundamentais, o que geraria grande insegurança jurídica ao dissolver­
se o poder apoiado na legalidade da lei e da medida pelo roder anoiado na legitimidnde sancionado
pori11,erméd1odcjuízes.ll1\l\l·.l\,\IY, 'I', 1 1 'I
8 ld<'m, I'· 222 r ss
 1 -1 LUI/. I IENRl<)UI, Ui«JL,; 1,,' >h\l·\1(I01{I
,_, ni iora ligado ao sistci ,u do Dir·�1to. sendo este o respomá'. e' ._ l 1 ;�:,rn 1111a
d:· legalidade, o sisten,a políttco apóia-se apenas na sua a, 1t , ;·cktência,
<'' traindo de si próprio tudu u Cjue lhe é necessário a fim d ·: _-gi•irnar-sr. 9
Pelo que se observa a r,:speito dessa descrição da te-i: 11 �istcrnica,
ri 1borada por Haberrnas, cabe destacar que este autor, ao rurn111lar a sua
cr,tica, afirma que, no modelo teórico de Luhmann, o si:,tcina jurídic0
funciona como sistema parcial, que por produzir-se a si próprio, somente
elabora informações exteriores na medida do seu própno código. Tal
fato acarreta, então, um paradoxo, sendo este desencadeaJn a partir do
conceito de regra de reconhecimento oriunda da teoria jurídica de Herbert
Hart, 10 segundo o qual, aquilo que é observado externamente (ao sistema
jurídico) e que se apresenta, então, como fato social, característica emer­
gente ou prática costumeira contingente, torna-se critério de validade
quando visto a partir de dentro do mesmo sistema·.
O paradoxo se explicita, então, na seguinte situação, considerando
os fundamentos de validade do direito positivo: se a função do Direito é
a de estabilizar expectativas de comportamento generalizadas, como quer
Luhmann, como poderá essa mesma função ser preenchida por um direito
vigente passível de modificação, a qualquer momento, por urna simples
decisão do legislador político? Pelo que se observa, a solução deste para­
doxo pressuporia alguma forma de conexão estabilizadora ou interação
momentânea entre as instâncias política e jurídica, algo que, na crítica de
Habermas, não seria admissível segundo a concepção sistêrnica e auto­
referencial de Luhrnann. Ocorre que, ao contrário do que sustenta o
filósofo alemão, a teoria de Luhmann admite tais interações sem, no
entanto, comprometer o seu modelo sistêmico e autopoiético.
Para tanto, o elemento-chave que soluciona o paradoxo da auto­
referenciabilidade de sistemas fechados tais como o Direito e a Polírjca,
segundo Luhmann, se remeterá à Constituição, concebida como urna espécie
·,
9 l lA llFll�IAS, Jürgen. Op ci, , I' 71
li) (_f ll1\RT,llerbC"11 l .1\.<)rn,11i1!t1.;, ii'
l,(111,enk,an, 1961.
\ lp,[ ;1111 P,1[ lrlC,\
,.k I J' t,' rf 1e<.: entre os sistemas. /\ p: rur, lc,s,t constatação, o s,KH lo!�' :1le1.1,10
pa,,� 1 a a11,1lisar a Comtituição C· 111;0 knômeno histónc,) ': e\ oli1rv,),
p·-·rs..:ruundo as razões du seu a,h·er,lo e, mais tarde, o cntrecruiamc,1tll
,L 1 :; suas dirnens<:>es Política e de D.rtitri, bem corno ,uas cspccifüiLLv! :s.
Para descrever, então, css,1 :nve�ttgaçiio, torna-se nec:ssáric, t,ma
incursão pelos estudos de Niklas Luhm-.1nn; 1 a respeito do fenômeno co11st:t1.1-
cional na sua evolução histórica e sem de�clobramentos no âmbito atual. É
de se destacar como um dos importante� aspectos das reflexões desrc au:or,
a esse respeito, as conexôes traçadas entre Politica e Direit<J, a partir de ,tm
paradigma constitucional que dispensa, tanto uma explicação jusnaturali�ta,
quanto totalitária ou ainda voluntarista a respeito de tais relações.
A tese do autor sustenta um percurso evolutivo da Constituiçà<) a
partir de um complexo mecanismo baseado em processos de variação,
seleção e estabilização adequados às mutações pelas quais passa o Estado
no seu devir histórico corno forma de garantir o equilíbrio de todn o
sistema social, ou seja, adaptando-se evolutivamente ao aumento e variação
de complexidade deste. Partindo de uma análise histórica sobre a origem
do constitucionalismo, o autor questiona a concepção vigente de que a
Constituição, no seu sentido moderno, teria nascido apenas no século
XVIII, tendo como fato desencadeador a necessidade de tutela dos direitos
individuais mediante a limitação do poder estat�L
1
Com efeito, na Inglaterra, onde não se verifica o surgimento de
urna Constituição nesse sentido, o elemento citado sempre fora destacado.
A rigor, estudando-se esse fenômeno à luz da sua linguagem, na história
desse conceito surgem várias tradições. Esquematicamente podem ser
distinguidos dois usos do termo constitutio um uso lingüístico jurídico e
um uso ético-politico ou jusnaturalista.
Na jurisprudência, o termo constitutio referia-se a decretos de direito
positivo com força de lei, no equivalente inglês de statr.ile ou ordinance. Na
\ 1 1 1 1i\ 1 1 1· UI 11,1, 11H.' uunt.: 1n1uis1zionc cn>lut1v,1 l 11 ::/...\t, l '.I !�: 1 1 '
! Wl l 11 i 1 ,, 1.1 r!IFI{ _Jo1g (()1g.) J/ I Jd11m det/,: 11JJ1·.'t.u ,, ... , 1 1
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 17{1 l ,lll/ l li:NJ,'l(,HI!" Ul,\_llll!,\I{ 1 (1\1 >l·�IAJ! 1: )l{I
r•
linguagem ilítica, este tnmu ljllL tamb..:111 pude ser mencionado como
comtitutio11, dizia respeito à estrutur.1 ou constttuição corpórea, seja do
corpo humano ou <lo corpo po!ítirn.
Ainda nessa segunda acepção, a constituição do corpo segundo
uso ainda atual, pode ser medida pelos critérios de saudável/ doente, o
que teria, segundo Luhrnann, estimulado movimentos sectários a atacarem
a Igreja e o Estado, atingindo-lhes as respectivas constituições. Com os
conflitos políticos e religiosos <la Inglaterra no século XVII, o uso do
termo constitution tornou-se corrente sem, entretanto, traduzir-se em uma
forma juridicamente aplicável.
Aponta-se como marcos históricos de inovação lingüística do ter­
mo constituição, as Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) as
quais, no entanto, terminaram por confundir tradição jurídica com tradição
política. Em outros termos, ambas as terminologias se interpenetraram na
medida em é1ue tornou-se necessário lidar com uma nova fixação jurídica
da ordem política já que consideravam a esta como ordenamento jurídico.
No que se refere ao contexto da América, até o final do século
XVII], não existia, no âmbito local, nenhuma outra forma de administra­
ção além cios tribunais o que justificava a distinção entrejudge ejury, mas
não a distinção entre Política e Direito ou ainda entre jurisdição e
administração, vale dizer, Política e Direito se constituíam em um único
sistema sendo o Direito a forma de reação aos inconvenientes políticos
tais como o perigo de recair no estado de natureza.
Mesmo considerando-se o contexto ela sua revolução, a América a
parúr ele tal evento, passou a basear-se na idéia - de origem medieval -
segundo a qual não era lícito ao soberano violar o Direito. Em realidade,
verificou-se todo um processo ele mudanças e adaptações institucionais
que veio a culminar, com o advento do século XIX, no chamado Estado
Legislativo 12 cm que toda a potência soberana do príncipe absoluústa
12 Conferir o desenvolvimento do conceito de Estado Legislativo, seus antecedentes, cvoluçiio e
' i supcraçiio rumo no chamado Estado Constitucional em 7.AGREílELSl(Y, (, , , ·, f '
. '!l;I
d·í,ti/- 1· y l,.,
li
L111<E1lO i; Pou r1cA l77
transfcnu-se para o Parlamento soh um ordenamenco que reduziu o Dirctr• i
à Lei e conse4üentemente submeteu a ela, todas as outras fontes dc1 Direi ti).
Nesse contexto, o princípio da legalidade exprimia a icléia da lei
como ato normativo supremo e irresistível e, por isto mesmo, não sendu
possível a oposição a ela de nenhum alegado direito, independente du
seu fundamento ou forma. Assim é que em todas as manifestações desse
novo Estado de Direito, a lei se apresentava como expressão da
centralização cio poder político, sem considerar as suas determinaçijes
históricas, posto que a força da lei vinculava-se a um Poder Legislativo
com capacidade de decisão soberana em nome de uma função ordenadora
geral e abstrata.
Diante desse quadro, o dado original que um segundo salto evolu­
tivo da Constituição no seu sentido moderno, iria inaugurar - com o
advento do chamado Estado Constitucional como superação do Estado
Legislativo -viria a ser o seu poder de limitar juridicamente, as possibili­
dades de ação de qualquer outro órgão cio Estado, inclusive o próprio
Parlamento. Se m�smo em épocas passadas já se verificava a existência de
leis importantes e até fundamentais, de outra parte, não se constatava a
existência de um2 Lei tida como medida de conformidade ao Direito de
todas as outras leis /! atos normativos. Observar-se-á, então, em esquemática
retrospectiva, as ciferentes fases evolutivas da Co nstituição, até chegar a
_
esse ponto.
Considerando-se a situação histórica anterior, até metade do século
XIV, no interior cios órgãos de poder consultivos, eram debatidas questões
organizacionais qL e não se revestiam ele um nível constitucional. As regras
fundamentais quanto à sucessão dinástica, por exemplo, sim o eram, e
não pairavam dúvidas sobre o fato de o monarca obrigar-se a respeitar o
Direito no seu exercício de poder.
Ocorre que, ao mesmo tempo, lhe era lícito modificar ou derrogar
esse mesmo Direit'J, posto que, a própria retórica da soberania lhe oferecia
formas de legitirriclade para tanto, situação esta que conduziu a um
paradoxo da soberania com 1 1 ,,.1 i\ 1' 11t ,d·, , k r1utol11rntação, questão
1
esta a ser abordada mai� ad1.,1't · ,_,, ,t. dc;sl L1u,1dro, a novidade
 ,,
J 7;--, L1111. HENRl!JUI: l.JR()llll/1KJ C:i\1)1 Mi\llJilJ<I
evolutiva da Constitui\;;'i, >, cons1suu na crescente importância que esta,
em wn prucesso histónco paulatino, passou a conferir à legislação, a l{Ual,
na lnglaterra, levou ao reconhecimento da soberania do Parlamento (com
a consolidaçiío do Estado Legislativo, já observado) e no continente, a
desautorização da idéia de uma concentração nas mãos do monarca, dos
poderes ele jurisdição e legislação. Isso conduziu, também o continente, a
essa nova forma de Estado, no gual se tornou evidente a subordinação
da jurisdição à legislação, bem como à redução do sistema jurídico a uma
diferença assimétrica entre Poder Legislativo e Poder Judiciário (com a
predominância do primeiro sobre o segundo, conforme já se viu)
culminando este processo na positivação de todo o Direito. 13
Todo esse processo, cm verdade, terminou por gerar uma confusão
maior, tanto para a dimensão da Poütica como para a dimensão do Direito.
Ocorre que, a partir desse momento, a jurisdição passou a submeter-se à
pretensão política ela soberania, sendo que esta deslocou-se do Monarca
para o Parlamento mi como já apontado no Estado Legislativo.
A fim de cyuadonar esse problema e a sua forma ele solução através
ela Constituição como a(JUisição evolutiva gue reestabeleceu os canais de
comunicação entre duas dimensões sob uma organização difusa, a saber:
Política e Direito, Luhmann vislumbra a consolidação de dois sistemas
distintos.
Nessa medida, constata que no interior do sistema jurídico,
internamente fechado, desenvolveu-se uma complexidade própria gue
não pôde renuncirrr à distinção entre jurisdição e legislação a qual não é
controlável nem mesmo pela vontade política que, por sua vez, também
encerrou-se em outro sistema. É precisamente em função disso que
13 A esse respeito, 13obbio afirma que o posiuvismo jurídico surge <1u:111c.lo o "direito posi,ivo"c o
"direito naturnl"nào mais se identificam como dirciro, dentro de um contexto sociopolítico 9ue
antes ad111itia ambos, mas, a partir da sua consolidaç.io, u direito positivo passa a ser o único
direito considerado em sentido próprio. Ou seja, ror obra do positivismo jurídico se opern o
reduçào de todo o direito ·a direito pos1t1vo sendn o din::iro n:ttural excluídu da categoria do
dirl"ito: 0 diu..:ito posiÜV() f: ditt·I! • j t l·i. t\ p;lltir \fCSSt: PlfllCXIO, ()
1c1cst:111lo do adjetivo "ptl'\III\' ,' · 1·.111 1.1111 1-k,111:1 111n JH)BBf(),
Nrn h1·t lt>. O po1111vú111n;m1d1(n: !1, ,, · , • "· ! .-iln· 1 cnnc, 1 ()0 5. p. 26.
-
l)m1·1To 1, PuLIT!t ·,1
persistiu o prol,lema da :;oberania (como detcnçàü e exercício de poder),
posto que ela se alojou no interior do sistema l'olítico. () problem:1
consistiu na verificação de entraves de auto-referencialidadc que também
afetaram o sistema jurídico.
Explicando melhor: nenhum sistema, segundo Luhmann, pode
nascer e se reproduzir em bases exclusivamente autorefcrcnciais. Isto
significa que, todo sistema fechado se caracteriza por apresentar uma
fundamentação paradoxal. Em outros termos, l ,uhmann afirma que todos
os sistemas autológicos são caracterizados por uma circularidade
fundamental e pela impossibilidade de se reintroduzir operativamente a
unidade do sistema no seu interior.
Com base nisto, conclui que os sistemas Político e do Direito, por
apresentarem tais características, deles também decorrem tais efeitos. No
âmbito elo sístema político, a fórmula da soberania se expressa cm uma
tautologia que afirma: "eu decido como decido". Caso se queira acrescentar
uma negação a isto, surge então um paradoxo, qual seja, "eu decido sem
vínculos com efeitos vinculantes, inclusive para mim a partir elo momento
em gue faço parte elo sistema".
No modelo incipiente de Estado, a soberania ilimitada do sistema
político, tornou se independente do sistema jurídico. Nesse contexto, o
sistema politico agia tanto conforme o Direito 'quanto em desacordo a
ele. Esta situação poderia agravar-se ainda mais, caso houvesse a
transferência ela soberania do monarca para o povo.
Por essa razão é que, somente após a perda do rei absolutista, se
passou a buscar a proteção na Constituição. Diante disso, o paradoxo d:1
soberania não foi acolhido em detrimento do direito positivo mas, ao
contrário, resolvido por seu intermédio. Tal situação passou a demandar
toda urna rc-cng,�11haria institucional do Estado na medida cm ciue se
criaram unidades de ação dotadas ele competências próprias; organizando­
se a separação ele poderes e estabelecendo-se formas de conexão entre os
rn1vn, rcr�1,1� ,is •1uais passaram a subordinar-se a urna ,,!
! \ ! , ! u·1�,-1cs e isto, por seu turrn,, l'l''I "'
;1· i ,lirimir cun/litus, no âmbito clu s1<;tcrn I J' '·
 �-
j;-,,1)
O sistema do Direito, pc,r sua vez, modelou-se e, ainda hoje, apre­
senta-se soli um código binário (direito/não-direito ou licito/ilícito) dentro
do qual não se questiona o fundamento de validade do próprio código.
Em realidade, o sistema jurícfü o não faz nada além do quc desenvolver
sua função de distinguir, atrav�s de várias operaçôes, o Direito elo não­
Direito, sendo que esta última categorização (aquilo que não é Direito),
ao mesmo tempo em que deveria ser colocada fora do sistema, posto que
o nega, é estabelecida dentro dele e é neste ponto que reside o seu para­
doxo. Ou seja, as operações desse sistema jogam dentro de uma lógica de
exclusão e inclusão sem permitir que se postule se o próprio código é ou
não Direito e essa forma de reagir é que lhe confere sua positividade.
Esta categoria é que afirma a autodeterminação operacional do
Direito, ao contrário de teorizações que pretendem fundamentar sua
validade através de Úm ato de arbítrio político (Carl Schmitt) 14 ou mesmo
sob uma fundamentação extra-sistêmica tal como o apelo a uma norma
hipotética fundamental (Kelsen) 15 apontada por Luhmann corno urna
construção teórica supérflua. Portanto, caso se quci ra conhecer o direi to
vigente, não há que se apelar à Política e sim ao próprio Direito. Isto será
possível independente do reconhecimento de que, tal como no passado,
o sistema jurídico continua a exigir instâncias reguladoras superiores tais
1·
como a esfera poücica, o Estado, o Povo, a Natureza ou a Razão, mas
'I
',11
estas passaram a assumir uma relevância absolutamente secundária.
Entretanto, corno já se observou, tais sistemas fechados apresentam
como limites às suas fundamentações,situações paradoxais. O salto evolu­
tivo ela Constituição neste novo contexto reside, precisamente, em tornar
possível uma solução jurídica para o problema da auto-referenciabiliclade
do sistema político e uma solução política para o problema autológico do
sistema do Direito. F,m outros termos, percebe-se, agora, a necessidade
de desativar os paradoxos e assim, reconquistar a possibilidade de uma
observação externa elos sistemas.
1 ! · ,· 1 "irll/11(1611 ,\kxi..n: Nauon:ll, 1981
, 1 1 . ,.,J dnnw. ( oimhr:i 1\r11H.-.nio Amado, 1979.
1� 1
Dessa fwma, o paradoxo ela limitação da soberaniá ilimitada ou o
paradoxo jurídico elo código direito/não-direito,generaLizaelo sob a fonm
coostitucional/ nconstitucional elevem ter sua aut-::i-apLicação bloqueada
o que levará a pressupor, no caso do Direito, uma instância extrajurídica
- fora da equação autológica - a qual,no novo contexto estatal se apresenta
como um povo politicamente unido. Já, no campo político, caso ele queira
alcançar sucesso, não poderá desconsiderar o aparlto jurídico, posto que
1
este, através de 1ma legislatura politicamente influenciável, deverá ajustar­
se às contínuas pressôes oriundas da política e reenviar a ela diversos
dados para sua modificação.
O processo acima descrito somente poderia funcionar \'.!través de
uma nova mudança evolutiva constitucional a qual veio a superar o seu
estágio anterior onde se verificava uma rigoroa hierarquia na arquitetura
do sistema sob o contexto do positivismo clássico, característico do Estado
Legislativo. No contextojus-político atual, com o aumento da complexidade
do Estado Constitucional, torna-se obrigatória uma nova conformação
sistêmica visando reduzir a complexidade, cm c1ue se observa a passagem
de uma ordem liierárciuica para uma ordem heterárc1uica, abandonando,
. . '
assim, os mo de los "supra)) e ""111 fra,, ; (( so bre "e (( so b" , pois que agora, e
preciso lidar cem sulisistcmas sociais parciais e acoplados de forma
limitada, cujos acoplamentos não obedecem tal.�rdem hierárquica.
Para entender esse processo, é preciso observar a dinàmica do
acoplamento de sistemas, no caso dos subsistemas sociais Político e elo
Direito. Os acc,plamentos estr uturais fundamentam-se na inevitável
simultaneidade ele funcionamento dos sistemas sendo que os subsistemas
social, político, econôrnico e jurídico, por exemplo, manifestam-se
simultaneamente, cada qual no seu ambientt: interno.
Os sistemas do Direito e da Política, us Lluais, quando situados no
ambiente social maior são chamados ele subsistemas cio sistema social, já
se encontram adaptados considerando a t:xi�tencia de uma Constituição
e a partir dessa base comum, prnce, 1,·n,, 1 ,- , 1 , i 1, ··; 1 n :wr,plamcnto
fu11c1una corno urn:1 co11é1.1c , !
autoreferenLes si1 uadu� rio ,111 i!Ji1., .' ,1:, .1r- 'I ,l.1rncntos entre
 182 LtH'/ l!r·:NIUQUI· lJRQUI IART CADl·.MARTORI
os subsistemas no ambiente são absolutamente compaúveis com o seu
fechamento operacional o que pressup6e, a cada acoplamento, uma troca
de dados decorrentes dessas "perturbações'' no interior de cada um não
comprometendo sua integridade estrutural, ou seja, sistêmica, fechada e
auto-referencial.
Observa-se que o sistema jurídico, em função desses acoplamentos,
tolera um sistema político tendente a uma configuração de Estado
regulador o qual não deixa passar tudo aquilo que possa se submeter às
suas próprias operações. O sistema político, por seu turno, e em função
do mesmo acoplamento, tolera um sistema jurídico que continuamente
lida com processos autônomos protegidos da interferência política, tão
logo a questão clireito/não-direito ou lícito/ilícito se apresente.
Estas descrições resumem uma teoria dos sistemas operacional­
mente fechados, porém, incidentalmente suscetíveis a perturbações de
sistemas outros através da lógica dos acoplamentos, mais do que uma
teoria que afirme determinações recíprocas entre sistemas, posto que cada
um possui uma lógica operacional que lhe é própria.
Por ser assim, Luhmann compara as relações entre sistemas, tais
como a Política e o Direito, a bolas ele bilhar. Apesar da contínua freqüência
com que se chocam, cada uma continua a percorrer o seu caminho em
separado. Isto, segundo o autor, revela-se mais exato se compararmos a
gêmeos siameses somente capazes de se mover conjuntamente.
Depreende-se disso que a Constituição na sua conformação
evolutiva atual apresenta-se como uma interface a comunicar dois mundos
(político e jurídico), sempre que problemas limites de fundamentação -
o que poderia corresponder, dependendo das circunstâncias, a problemas
de legitimação como, por exemplo, em Habermas - em cada um deles
não possam ser encaminhados internamente, ou seja, sob sua exclusiva
lógica operativa.
Estas implicações entre Direito, Política e seus parâmetros de
1 .
.! fundamentação, são abordados por J bhcrm1, :1 p irtir. 1 n ,·1·;:1mente, do
I.=, .
111isma da legitimidade e não colll/J f,,11n1 ,1 ,,, , ,,�doxu Jc
''.:; � t�tcn1as fechados. Entretanto, tais intL·r;H;' r,· 1' hr:c,1 e Direito,
[);1/Ellt I' P11L1 íl(A 18.',
segundo este filósofo, não se resolvem, cm termos de. ga1antias de
legitimidade ou soluções de paradoxos reciprocamente Ji�tribuídas, �et1,
considerar para tanto, urna base de fundamentação mornl.
Esta constatação, inclusive, serve corno base para urmi formulação
crítica, a esse respeito, direcionada ao modelo luhmanniano, na medida
em que, segundo Habermas, a idéia de uma autolegitimação da instância
política a partir do aparato estatal passa a sofrer "rachaduras" a partir
do momento em que a teoria sistêmica confronta-se com a tarefa de
i; pensar uma teoria do Estado sob a perspectiva de uma sociedade
' '
·' eticamente responsável e responsável pela ética. 16 Explicitando melhor
esta questão, ainda na esteira da concepção habermasiana, com o advento
da modernidade, o Direito correria o risco de reduzir-se à política caso
suas normas estivessem apenas condicionadas às ordens do legislador
político.
Caso isto ocorresse, o próprio conceito do político se diluiria. Assim
sendo, o poder político não mais poderia ser conceoido como poder
legitimado pelo Direito na medida cm que um Direito inteiramente posto
à disposição da Política, perderia sua força legitimadora.
A partir do momento em que se remete a noção ele legitimação a
um produto oriundo e consubstancial à Poütica,jorçamo-nos a abandonar
·'· nossos conceitos de Direito e de Política. 17
í·,
Situação análoga se percebe ao observar-se esta questão sob o
prisma do Direito, no qual se tenta verificar se o positivismo poderia
manter a sua normativiclacle em caráter auto-suficiente, isto é, pela vi:1 ele
um dogmatismo totalmente independente da Política e ela Moral.
A resposta dess::i questão é a de que: caso se pretendesse desvincular
a noção ele validade du Direito das noções de Justiça que se colocam
além das disposições legislativas - ou seja, questões oriundas do campo
da moral - a tewativa de configurar o Direito sob tal conformação, tornar­
se-ia por clemai!. difusa. Isso ocorreria em razão de que, sob tal contexto,
16 \\ 11 , ! ' , 1•" �1. l'•<J,!,p. 12. ,1/'llfifl,\BER�l1\S,Jti,gcn 01, ut, (' -,
 1� 1 l ,u11. Ht·Nl<il)IJE U1<Qu1 IAR r ( t\l )l-�1,11<, uR1
pndn-se-iam os pontos de vista lcgitúna<lores que equacionam o sistema
jurídico visando manter urna estrutura de irradiação do Direito.
Entretanto, a forma como se entrecruzarão as instâncias da Moral
e e'.º Direito não mais obedecerá os parâmetros úpicos dCJ paradigma
.
Jurtdtco anterior, qual seja, o do jusnaturalismo racional, em que o Direito
é concebido como uma série de normas metafísicas, suprapositivas e,
portanto, axiológicamente imutáveis.
No âmbito do Direito contemporâneo - sob o paradigma do
..
pos'.tJV'.smo atual, o qual, para alguns juristas, pode ser chamado de pós­
posttJVJsmo - a Moral emigra para este Direito sem perder sua identidade.
Não obstante isto, a moraLidade que, ao contrário de se contrapor, se
estabelece no âmago do Direito, assume uma natureza procedimental.
Sob essa nova roupagem, a moraLidade abandona todos os seus
conteúdos normativos pré-determinados e sublima-se em processos de
fundamentação e de aplicação de possíveis conteúdos normativos. É
precisamente nessa relação dinamicamente concebida que o Direito e a
Moral, agora procedimentaLizada, podem controlar-se mutuamente.
Analisando esse fenômeno, Habermas constata que, nos discursos
jurídicos, o encaminhamento argumentativo de questões práticas e morais
é domesticado, em certo sentid o, pelo encaminhamento d a
institucionalização d o Direito sob o qual as questões morais passam a
( l1
h,'. f
\·t;·',
sofrer limites.
i :M.·
. '·
Tal sistemática de limitaçôes, a partir de parâmetros processuais, é
esquematicamente formulada nos seguintes tópicos: a) metodicamente,
através das conexões morais com o Direito vigente; b) objetivamente, no
que diz respeito aos temas e encargos de prova; c) socialmente, na medida
em que são traçados pressupostos de participação, imunidades e
distribuição de papéis; d) temporalmente, no que se refere à fixação de
prazos de decisão.
Em resumo, p ode-se dizer que, para Habermas, um dado
ordenamento jurídico não rode aqfrrir u:11a forma ele autonomia sistêmica
c.iue u isole de 1111, '"'" ·"' h,1scada, institucionalmente,
em argumcnl:i�,j, , 1 ... , 1 "urn:sse, somente deixaria para
DIREITO Is POLÍTIC\
o Direito 11m tipo de autonomia sistêmica nos moldes da teona de
Luhmann. Segundo a sua concepção, o sistema jurídico n;lo po\sui urna
autonomia somente para si mesmo, ou seja, fechada. Em realidade, o
sistema somente se concebe como autônomo, na medida em que os
diversos proce1;sos institucionalizados tais como os da legislação e
jurisdição, possam garantir uma formação imparcial da opinião e ela
vontade, o que daria vazão à entrada de uma racionalidade moral e
procedimental tios àmbitos do Direito e da Política em que não será
possível o advento de um Direito autônomo sem a consolidação da
democracia como modelo de organização social e político.
Não obstrnte essa crítica ao modelo sistêmico, é preciso ressaltar
que ela procede quanto à negativa do papel da moralidade, subtraída aos
mecanismos de estabilização de expectativas generalizadas, segundo as
concepções de Luhmann a respeito do sistema do Direito, bem como
cios mecanismos de aprendizagem e aceitação de decisões judiciais. 18
Contudo, estabelecendo-se uma linha ele comparação entre o
modelo sistêmico de Luhmann e a teoria procedimental-comunicativa de
Habermas, pode-se encontrar alguns pontos de convergência, no que se
refere ao aspectc: processual, utilizado por ambos os autores para admitir
as inter-relações entre Direito, Moral e Política, conforme o já observado
cm 1-labermas, e como se verá no modelo teóricç ele Luhmann: Direito,
Economia e Política.
Para tanto, torna-se necessário retomar as digressões do sociólogo
alemão a respeito das trocas de informações decorrentes dos acoplamentos
sistêmicos, conforme já vinha sendo observado. Para Luhmann, o
mecanismo que viabiliza a troca de dados, quando do acoplamento
sistêmico, sem desestabilizar toda dinâmica elo sistema social maior,
cons,�tc nos dive,sos procedimentos comunicativos previstos nu próprio
ordenamento est:ttal e configurados como processos judiciais, administra­
tivos e políticos, por exemplo. Também com os demais sistemas p<1rciai\
1' r, ,·,-111, nc> se verifica como res osta a um ,1,
p , "
1 i i ii°'il\NN, t-- 1kbs. Legitimt1(rio pelo procedm,eufo. Brasilu: l lr11 u1:-,,J,d
 l 8(1 i ,l '1/ l [i:i�R\t_il II Ut<c.>UIIAlff C'AllHvli\RI• lRI
complcx1cladt social o qual requer mccanism,)s de rLdução de comple­
xidade visando à manutenção do ec1uilíbno 11() ambiente.
Como exemplo do que foi dito, pode-se observar que além das
dimensões política e jurídica nas quais as interações são possíveis, constata­
se que o Estado contemporâneo renuncia à possibilidade de subtrair
diretamente da economia recursos politicamente condicionados e, através
do acoplamento estrutural entre os sistemas politico e econômico, cria o
instrumento jurídico da tributação, o qual por estar instituído pela
Constituição, torna-se juridicamente controlável ao mesmo tempo em
que preserva a autopoiészs do sistema econômico, isto é, as condições de
integridade e autoreprodução desse sistema.
Isso ocorre porque delega-se ao sistema jurídico a competência de
controlar sobretributações, superfaturamentos, ou o volume de divisas
que entram ou saem, ou ainda, as taxas de juros as quais tornam-se passíveis
de gerar problemas políticos de base econômica tais como inflação ou
fuga de empresas e capitais, por exemplo.
Diante do constatado em toda essa dinâmica , deve pressupor-se
uma diferenciação funcional através da separação e recíproca
impermeabilização dos acoplamentos estruturais entre os sistemas jurídico,
político e econômico. Ao mesmo tempo, esta dinâmica implica urna alta
probabilidade de aprendizado nessas trocas de dados nos momentos de
perturbações estruturais.
Explicitando melhor, pode-se dizer que os sistemas afetados ativam
sua memória a fim de observar o ambiente do sistema a eles acoplados,
sendo que as perturbações atribuíveis a ele podem ser, então, facilmente
interpretados e resolvidos com a ajuda da memória. Essas mesmas
perturbações são reguladas ou normalizadas direcionando-se rumo às
alternativas disponíveis.
Exemplificando este fenômeno nos sistemas Político e do Direito,
Luhmann afirma yue a permanente exposição aos impulsos politicos na
criação de novas leis pode ser equacionada pelo sistema jurídico ,ep:uincl()
· · 1, , l.1 •r< 11)ria legislação a qual não tolera tw 1,, , , , 1 · , 1 , ,, 1
1
J
, ,1, ,l111,,,1\políticapodctolerarmaisfatilnw11 1 v "t·1·! ,t,_,,,.,
·.�-�· ·-
l)mEI I u " Pou I ll ,\
produ,iclas na forma de decisões jurídicas; a declaração de inconstituLiuna­
lidade de uma d;1da lei (politicamente importante), por exemplo, e pmk
somar-se a isto, é\ título de exemplificação para o contexto brasileiro o:,
casos de kis em que ocorram crimes de responsabilidade fiscal ou
responsabilidade política, ou ainda, de improbidade administrativa cujo
caráter de interferência e regulação elos âmbitos político e econômico t·
consideravelmente alta.
Portanto, dentro ela dinâmica dos acoplamentos estruturais, tais
distúrbios ocorrem como sendo algo "familiar" posto que se configuram
como problemas para os quais já existem soluções previstas, aplicáveis
ele forma plausível e mantendo regulado o equilíbrio sistêmico. É
importante ressaltar que to<la essa marcha evolutiva constitucional também
terminou por configurar-se em um modelo democrático estruturado em
um conjunto variado de regras e procedimentos. Eles permitem o
entrecruzamento de esferas tais como as jurídica e política sem
desestabilizar o sistema no seu todo e, ao mesmo tempo, garantindo a
participação em grau razoavelmente paritário cios interessados em cada
conflito da esfera social. Saliente-se que, por óbvio, tal modelo ele
democracia ainda apresenta muitas distorções o q ue nada mais é do gue
um efeito sintomático ele um processo evolutivo que, corno tal, não é um
dado pronto e acabado.
De qualquer modo, tal paradigma procedi�1ental e de mobilidade
sistêmica representa um melhor mecanismo de equilíbrio institucional
em relação a modelos caracterizados por exigências obtidas de forma
excessivamente direta. Isto ocorreria em um sistema puramente ou
predominantemente plebiscitário em que as garantias de cidadania básicas
pudessem ser ílexibilizadas ou negociadas ao sabor de vontade de maiorias
contingentes manipuláveispor líderes políticos carismáticos, tradicionais
ou. mesmo totalitários, fenômenos ainda muito presentes em alguns
âmbitos nacionais.
Todas essa, reflexões, 1 ·11ftm rnckrn ,ervir como suporte racional
para urna definitiu '-Ili' 1 1. 1, \,i i11,ti1ucinn,tl jurídiC(l-político
como o brasilcirc, cm qt:c .,1; ', , , ,;, , 1111 h.1rre1ras intran�ponívcis às
 Lt/1/ ( ! l'NRIQLII. 1JRJUI111< 1 CADEMAI' IOHI D11u-.1 ro E l'oi_í-r1c.A 189

decisc:ie, J ud1c1ai� que aclent r<'m em :1s pectos polit icos e >U econôrrucos,
ou :linda, •-1ue considerem valoi:ações morais, no controle de atos advindos
de outros poderes, mesmo quando normas processuais - constitucionais
e infraconstitucionais - garantem a integridade da troca de dados entre
sistemas diferentes. Em realidade, verifica-se nestas situações distorções
em direções opostas. Ou se tem uma indevida interferência entre medidas
judiciais sob mascarada influência política ou econômica por não estarem
caracterizadas constitucionalmente tais trocas sistêmicas de clados jurídicos,
econômicos ou políticos, ou por motivos variados, opera-se a total cisão
entre tais esferas, mesmo quando configura-se uma situação de
acoplamento estrutural.
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ZAGREBELSKY, Gustavo. E/derechodúcli/. Trad. Marina Gascón. Madrid: Trotta, 1995.
1 '

Ante tais situações pode-se operar, agora, com uma observância

racional sobre as medidas de influência efetivadas nos diversos campos
'1 ' de atividade social e as decisões judiciais a partir de um novo paradigma
constitucional, bem como pela observância de uma consciência moral a
qual, no dizer de Habermas, submete o Direito vigente a princípios
transpostos para um nível de racionalidade procedimental. Cabe ressaltar
que é, precisamente no ordenamento constitucional onde residem, de
forma suprema e auto-aplicável, tais princípios baseados em valores jus­
Jundamentaú e cuja operatividade - a partir de toda uma nova corrente
principiológica - já vem sendo desenvolvida, tanto na jurisprudência,

r como também em diversos trabalhos doutrinários, por parte de juristas

brasileiros.

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0

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 O PROCEDIMENTALISMO CONSTITUCIONAL E A
MODERNIDADE PERIFÉRICA
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Guilherme Soares 1
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'1

1'
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INTRODUÇÃO

;1
Este trabalho visa apresentar alguns subsídios para se pensar a
teoria processual da Constituição, na modernidade periférica, tornando
como base as formulações de alguns teóricos fundamentais desse modelo
e comparando com as demandas que se apresentam perante o Direito, o
Estado e a Constituição no começo do século XXJ. Constata-se, de início,
o descrédito em que, ao menos do ponto de vista cloutrinário, vem recaindo
tanto um modelo formalista de Constituição prevalecente no constitucio­
nalismo liberal, quanto o modelo material elaborapo com a consolidação
do Estado Social, sobretudo na Europa ocidental e na América do Norte,
em virtude das transformações do ambiente político, social e cultural ao
que a Constituição não pode ficar imune.
Essas modificações, aliás, não se põem apenas em face da Consti­
tuição, mas do próprio Estado enquanto estrutura de organização politico­

l
i"
institucional; o qual passa, neste momento, por um ineg ável processo cle
redimensionamento, que, se por um lado, d.i ,rargem ao surgimento de práticas
pluralistas, por out:o, tem colocado cm riscu diversas conquistas históricas da
.
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civilização ocidental, principalmente no (]Ue toca aos chamados direitos SOCÍaÍS,
... ;:,
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() autor é H.1cha1el Lili U1rl · 1'1·111:i (IIJ'i'R), Duu ,, ,ndo cm

Direito na U111vcrs1dridc F•.>c.l:.:t l 1 ,, !<;1s1a díl l .ap<.:s
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Cit111 11F�M1 So,\ 1,

1 ·.ssas conüngênc1as <-1 ue vern ,1fetan,lo o l�stadu ·�, conscqüentc­

1 [)1111 IIU I l'OIH!l

l Ü ESTADO DE D1REITO
1\ 1 ) .'

mcnte, ,t sua faceta jurídico-p 1lítica crie é a Constituis·ão, si10, basicamente,

Elias Diar. intcia um elucidativo texto sobre a que•,tic) cio Estado
de duas espécies. A primein., que se manifesta internamente, cliz respeito
"º aumento da complexidade ela organização sociai, d'.111do margem ,10 de Direito com uma afirmação aparentemente óbvia, m.ts irnantada de
significação, diz �lc: "nem todo Estado é um Estado de Direito" (1979:
surgimento de novos centros de decisão 9ue agem paralelamente ao
13). Sem embargo, prossegue o autor, "dificilmente caberia pensar hoje
Estado, gerando, assim, uma verdadeira crise de regulação e de justiciali­
em 11m Estado sem Direito, um Estado sem um sistema de legalidade"
zação. A segunda, refere-se a um fenômeno internacional, de natureza
(1979: 13). Fato é 9ue a simples existência de uma ordem jurídica
primacialmente econômica, decorrente da evolução da tecnologia e dos
1 '1
vinculante para um certo grupo de pessoas localizadas cm um
meios de comunicação, mas que tende a se cspraiar pelas esferas sociais
determinado território, garantida por um órgão 9ue detém o monopólio
1 políticas e culturais das comunidades humanas organizadas às portas cl�
ela força física nesse mesmo espaço, não garante a existência ele um
1 século XXI.
Estado de Direito.
Trata-se ela globaLização, 9ue st: manifesta de forma inexorável- o
Para esclarecer a noção de Estado de Direito, em primeiro lugar,
que não significa 9ue os modelos neofeuclais (ROTH, 1996: 24) e
_ deve-se levar em conta gue tal categoria consiste numa tecnologia
neocoloniais (BONAVIDES, 2001 a: 19) 9ue ela vem apresentando sejam
jurídico-política razoável para estruturar uma ordem de segurança e
os únicos possíveis ele sua realização - com a integração dos mercados e
paz jurídicas (Ci\NOTILHO, 1999: 34). Num segundo momento, é
�ecanismos de produção cm escala planetária. Diante desse 9uadro, o preciso reconhecer que este não é um conceito estático e invariável,
bstado e a sua esfera político-pública acabam submetidos a um papel
pelo contrário, é antes derivado do processo de afirmação histórica ela
subalterno em relação ao fenômeno econômico, cuja racionalidade
limitação do poder político pela valorização da liberdade, igualdade e
instrumentalista e norteada pela busca do lucro passa a prevalecer. O
dignidade humanas no contexto da Europa ocidental e da América do
t�esmo se diga dos ordenamentos jurídicos estatais e ele seus pilares
Norte (CANOTJLHO, 1999: 19).
tunclamentais que são as constituições.
Assim, historicamente, vislumbram-se mais ele um padrão de
1'
Esse contexto fez emergir, no seio cios teóricos sediados nos países
Estado ele Direiw. Como primeira manifestação aparece o Estado
centrais, um novo paradigma ele Constituição, c1ue deixa ele enxergá-la como
Liberal, produto imediato das revoluções do séc. XVIII, hegemônico
algo previamente dado por um poder constituinte originário, que estabelece
no séc. XIX e início do séc. XX, 9ue limitou o poder político do
a estrutura orgânica do Estado e declara as liberdades fundamentais cios
Estado diante da autonomia do indivíduo, com a submissão cio Esta­
cidadãos. A Constituição agora não é vista como um produto, mas como
do ao Direito e a garantia da liberdade, segurança e propriedade dos
um processo, que envolve o texto constitucional e o contexto cultural em
cidadãos compencliadas cm uma Constituição escrita. Como segunda
que a9ueles preceitos, que se Limitam a garantir a legitimidade desse mesmo
experiência histórica vislumbra-se o Estado Social, cujo símbolo inau­
processo, atuam. Questiona-se a capacidade do paradigma processual para
gural é a Constituição Alemã de 1919 2 - marco inicial da República
lidar com os problemas fundamentais das Constituições cios países
de Weimar - que busca conciliar a liberdade assegurada pelo modelo
subcle�envolviclos, quais sejam: a busca de um novo instrumental para dar
efetividade aos direitos fundamentai� e 1 arnrliação ela participação
clcmucrática, que conformem as e.,' 1 '· ·; l, t 1rn J, stacl,) de Direito. 2 t t, ,, 1., ( 1Htsutu1\·iio f'vlrx1c:1na !e 1917, t:s1a !:11111 JHe<..111-;1 1
 111.:
Gllil I\U{�II ,'-;1> ..\1-'\ J,
l1lie1 ,d ccrn rrcccitus de iguald,íde, garanti los pela ação pt omoci1 mal
do Esuclo, 1
Se o Estado de Direito é uma tecnologia jurídico-política decorrente
de um sistema cultural, é necessário dernon�trar quais são os caracteres
que o identificam como modelo típico-ideal 110 momento presente. UtiLi­
zando a exposição de Elias Diaz, podem-se referir quatro elementos
essenciais que caracterizam esta forma de organização: império da lei;
tripartição de poderes; legalidade da administração, que deve ser judicial­
mente controlada; garantia jurídico-formal e efetiva realização material
dos direitos fundamentais (1979: 29),
Para os fins deste trabalho importa enfatizar a primeira e a última
características. O "império da lei" ou "império do direito" (ru/e oj /aiv)
sobre o Estado, envolve hoje três dimensões, como revela Canotilho,
sujeição ao direito, atuação através do direitu e positivação de normas
jurídicas informadas pela idéia de direito (CANOTILHO, 1999: 49). Estar
sujeito ao direito significa que o poder político não é desvinculado,
devendo ser exercido nos estreitos limites postos pela Constituição e
pela legislação infraconstitucional.
Atuar através do direito, por sua vez, significa que o exercício dos
Poderes Públicos só pode efetivar-se por meio de instrumentos
estabelecidos pela ordem jurídica. Mas não basta apenas a observância
<lesses requisitos formais. É preciso, ainda, que a ação do Poder Püblico
seja informada e conformada por princípios "radicados na consciência
jurídica geral e notados de valor ou bondade intrínsecos", que materializam
a idéia de direito (CANOTlLHO, 1999: 51).
No,e-se, contudo, que o Es<ado de D1rcito é basicamente uma realidade normativa, cledarnda
co�10 ideal de org:rnizaç�o polí1icn-1urídic1 por bo:1 parte das <locumen,os k g isLuivos nacto
n::11s e 111tcrnac1onais, mas incxisrt.:ntc ent1uanto experiência ,1bsolutarncntc concrcuzncla cm
9ualquer dos modelos históncos referidos. Ele é essencialmente um projeto inacabado, em face
do qual alg uns países (euro-atlânticos) estão mais avançados e outros (países periféricos) mais
_
distantes. E nesse senodo que rerrajoli fala da aporia da irredutível ilegitimidade jurídica dos
poderes púhliws 110 Estado de Direito, pois 9uanto mais se ampliam no ordenamenco os ,1,,, ,,, ,
<,: y..1rnnt1:1'- 1·1n1< n·11 '1 !, e • 1 lit",:-rrnça e1ir1c nnrmati\'idack t· cfctividnde, tanto e11
t: ,Li · ·'' 1 l in11·,n,;,_jl,i!idadc <le suem intcgrnlmcnH
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U!Rl-110 E 1'01.1 íl(
t-,Jessa pc• spectiva deve ser entendida a última caractet ístict1 cio
Estado de Direit ,, consubstanciada no dever de garantlil f(lrmal e material
dos direitos fun1 iamentais. Os direitos fundamentais, conforme o magis­
tério de Elias Di:11,, são "exigências éticas que enquanto conquista histórica
constituem hoje demento essencial' do sistema de legitimidade em que se
apóia o Estado de Direito" (1979: 38). Esses direitos funcionam corno
elemento legitim 1dor da organização político-jurídica, pois é através deles
que o ordenamento incorpora a icléia de Direito. Não é suficiente, entre­
tanto, apenas deduá-los em disposições jurídico-formais dotadas de certa
rigidez que as excluam do arbítrio do legislador ordinário, faz-se premente
a sua efetiva implementação, seja pela abstenção do Estado seja pela prática
ele prestações positivas pelos Poderes Públicos.
Na atualidade impende reconhecer que esta quarta característica su­
perou em importância a todas as demais. Concorda-se assim com CanotiU10,
para quem o Estado de Direito contunporâneo é um Estado ele direitos
fundamentais (1999: 56). No mesmo sentido, com Ferrajoli, deve-se ponti­
ficar que os clireims fundamentais são pedra de toc1ue cio sistema ele legali­
dade estatal, poi:; a legitimidade substancial, que é aquela na c1ual deve se
assentar o EstaJu ele Direito contemporâneo, só é conseguida rela
funcionalização de todos os poderes do Estado a serviço da garnntia dos
direitos funclarnent.1is dos cidadãos (1995: 856). Qe tal forma que até mes-
mo a democracia é vista comu uma condição ele efetividade elos direitos
fundamentais. Isto orque, como assevera o autor italiano, não só cronolo­
gicamente, mas também axiologicamente, a limitação legal do poder sobe­
rano precede a sua fundamentação democrático-representativa (1995: 859).
A primeirn regra ele todo o pacto constitucional, com efeito, não é a
que define que s-� deve decidir sobretudo por maioria, senão Lllle não se
pode decidir sobre tudo, nem sequer por maioria. Um 1·1rrmle principal­
mente dessa últirr.a característica, o paradigma do Estado de Direito aparece
na civilização ocidental de matriz européia como refercnci:11 de lt1,�timidade
de uma organiza\·ão poütica. Deriva d,1i q11 i11" ·1 ·, 1 :" 1111,-crs:1li-
, 1111t· (CANOTlLI I· ), 1999: 20). U 1 1 1 i 1
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 1%
2 Ü ALVORflEI\ DO SFCULO XXI: ESTADO, DIREITO, GLOBALIZAÇÃu 1:
NEOLil3ERALISMO M MODERNJDADE PERIFÉRICA
Delineados os contornos pelos quais se define a expressão Estado
de D ireito, segundu a herança cultural euro-atlântica, cumpre analisar
agora o contexto histórico em que o Estado e a sua face jurídico­
normativa - a Comtituição - inserem-se no alvorecer do século que
principia. Esclareça-se previamente, contudo, que, se no tópico anterior
tratou-se de um modelo de organização política até certo ponto
consolidada nos pabes centrais cio capitalismo, neste momento a ênfase
recai sobre a periferia, marcada por laços históricos ele dependência
econômica, política e cultural em relação às grandes potências
hegemônicas.
Falar sobre o Estado e o Direito no alvorecer do séc. XXI não
pode prescindir da análise de dois fenômenos marcantes deste contexto
r
histórico: são eles a globalização e o neoliberalismo. O primeiro manifesta­
se na integração dos diferentes mercados, que transcendem as esferas
nacionais rumo a formação de um único mercado mundial, com o
rompimento das fronteiras internacionais da produção, distribuição e
1 XX, dentre as quais, para os fins deste trabalho, cumpre assinalar duas: os
consumo de bens, possível graças à evolução tecnológica, sobretudo nos
setores de comunicação e transportes, alcançada nos fins do século pas­
sado. O segundo é acima de tudo uma opção política, cuja implementação
se iniciou a partir da década de setenta do século anterior nos países
centrais, e que ganhou o mundo com a crise do Estado social nos países
desenvolvidos e à queda dos regimes socialistas do leste europeu. Seu
reflexo, no âmbito dos países subdesenvolvidos, foi a disseminação de
um programa de redução da ação redistributiva do Estado identificado
como consenso de Wasrungton, e patrocinado pelas instiruiçôes financeiras
internacionais e entidades de fomento econômico geridas pelos países
centrais como o FMI e o BID. 4
Boaventura de Sousa Santos observa que "o chamndo con.:;,c11v1 de \1(/:lcd,;nn•i :p_ :� , ·(1nlig11rn um
rontrnfO social, ele ocorre a nível intcrnaci•J11:d t'lltr'. , .., i
,it1t1.1� 'iOC1cdades nacionais, ele aprescnta·'-t' n 111 •t 1,
:1cn1 .H, ;1.1, açríuc,1 sob pena dt in1plac�vd cxclu�:ir ,,· (...,/' !'� ! · ' ' -S 2 \ 1
< ,L111.11E1 11,11- So.,1n ., 1)11;1 r-o 1: Pn1.11 J( ,,
Como ensina José l�duarclo Fana "a globaliLaçãt> levou ,l política a
set substituída relo mercado rnmo instância máx.irna de regulação social''
( 1997: 07), csv;izianclo o poder decisório e impositivo do Estado qu� tem
sua autonomia reduzida p or esferas externas e internas de dcctsao. O
mesmo autor desenha um quadro de rupturas decorrentes da globalização
econômica, composto dos seguintes elementos: mundialização da
economia, mediante a internacionalização dos mercados de insumo,
,,
consumo e financeiro; desconcentração do aparelho estatal, mediante a
descentralização, privatização e desregulamentação; internacionalização
do Estado através de processos de integração consubstanciados em blocos
regionais� tratados de Livre comércio; desterritorializa�ão e reorganização
_
do espaço da produção, pela adoção de planejamenws 1nclustna1s l�x 1ve1s;
f _
fragmentação das atividades produtivas nos diferentes temtonos e
continentes; e a expansão ele um Direi to ("!ex mercatória") 5 paralelo ao
'f
dos Estados, elaborado pela prática negocial <los grandes grupos
empresariais (1996: 1 O).
Diante desse quadro, aponta J. Ramón Capella urna série de conse­
qüências que caracterizam as transformações elo Estado no final do séc
fenômenos paralelos da pere1a da soberania estatal nacional para a
organização transnacional do capital e ela sobreposição ao Estado Nacional
de um poder político de tipo imperial, com tendência à limitação _da
soberania. Já a proposta neolibt.:ral assenta-se em três pilares: a dcsnac10-
nalização, a clese�tatização e a desregulamentação. Eles nada mais são, no
contexto dos países periféricos, senão a transferência do poder político e
econômico para esferas internacionais; a redução do poder de ação do
Estado' através do seu redimensionamento, levado a cabo pelo processo
de privatização; e a substituição do direito positivo estatal como instru-
mento básico de regulação social, principalmente no que toca ao mercado.
Todos esses fatores põem em xeque o aparato conceituai
proveniente dr1 ,·t111�titw i r·1-�\i,.rno clássico. Passa-se a questionar os
!".li-' ,. � P 111 t1Jd,ls ílS
l , 1 i ,r 1vt·1•. de
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No tc....i,, .1111 .._ nu ddi11t íl kx 111nc1J/on11 con10 corto c111/0uo1110 dr prtít,i:a,,
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regra! e /ir:, r,t,11,, .,, . , ,.,_ ·n ,am,/ paro ml/od,J{lp/iuar .r11oi a/11•,rladn ( 1997: IJ•J)
 (J ILI ILRMI: S,11\l{I:\
dogmas da �ubcunia do Est;ido, da soberania popular, da supremacia da
Constituição e, essencialmente, do monismo derivado eh identificação
do Direito com a normatividade oriunda cio Estado. De um lado, afirmam
1
1
os teóricos desse modelo, o Direito deixa de ser visto como instrumento
formal de legitimação e conquista da paz social imposto por uma instância
suprema e diferenciada da sociedade, gue é o Estado, típico cio modelo
liberal. De outro, ele não se presta mais a programar a ação do Estado e
i·
ela sociedade rumo a construção de um projeto político-social igualitário,
como pretendia o Estado social." Isto é um reflexo cio abandono, na
esfera superestrutural, elo projeto ilustrado da burguesia (RAMÓN
CAPELLA, 1998: 97), centrado no monismo jurídico-estatal e no
constitucionalismo, o que leva ao apregoamento, por parte de alguns
teóricos desencantados com a modernidade, de um novo paradigma de
normatização denominado como Direito reflexivo. Este é conceituado
por Roth, como um Direito procedente de negociações, de mesas
redondas, que outorga ao Estado e ao Direito o papel de guia da sociedade,
mas não com uma orientação autoritária e centralizada, e sim corno uma
direção flexível e de procedimento elas condutas humanas (1996: 22).
Nesse contexto resta para a Constituição um caráter eminentemente
procedimental, reduzindo-se, na definição de Canotilho (1995: 14), ao
papel de "um estatuto reflexivo que, através de certos procedimentos, cio
apelo a auto-regulações, de sugestões no sentido da evolução político
social, permite a existência de uma pluralidade de opções políticas, a
compatibilização dos disscnsos, a possibilidade de vários jogos poüticos,
a garantia da mudança através da construção de rupturas" Este projeto,
no entanto, não é ausente de riscos e danos, como demonstra Correas,
pois seus lemas principais "menos Estado mais sociedade civil" e
"desregulação" consubstanciam-se unicamente na redução dos controles
6 O Direito deixa de ser instrumento de açiio cio Estado, seja de matriz formal ou material, para ser
eminentemencc reflexivo e cuncenado. Ele n�o íixa mais padrões de conduta, ou pautas nxiológicas,
mas apenas :is regras mínim:1s p;1r:1 'J'1e seja possível o jogo de contraste entre as forças socinis,
sem que leve a sim :lll""h·,t111•r �, 11 f H.\!\1í''S flI 110, \v'ilson Direito pó mode11111· c,1,,·
Ul..tll\'P l 11er,hl 1 t' 1 l 1 • 1. •· 1 l .t\w1st111ho H:1malho DU'nt, e 11eol.-lmi1l11·•;,
Curmln. l;.dil 't
do c:1pital (menos Estado), estímulo as empresas privadas (mais sociccL1de
civil) e na libcração elo mercado (desregulat;ão), su�tentaJ,1,
paradoxalmente, com uma regulação cada vez mai� intensa de outros
setores da vida social (fenômeno da inflação legislativa, verificado no
Brasil principalmente com a constante edição e reedição de medidas
provisórias) (CORREAS, 1996: 06). A sua implantação tem como
conseqüência o c1uebrantamento da cidadania, com a emergência cio poder
polí1 ico privado, em substituição das esferas públicas de participação.
Emergem daí cid2.Jãos servos, no exemplo de J. Ramón Cape!Li
(1998: 147), pois não apenas o Estado deixa de ser o principal agente ele
decisão e orientação da comunidade, como aquele reduzido plexo de
atribuições que resta para ele passa a ser influenciado pelo poder político
privado tanto supra-estatal - potências hegemônicas e empresas
�ultinacionais - quanto extra-estatal - elites empresariais locais. Para os
Estados periféricos, a assunção desta lógica proce<limental e mcrcadológica
leva à recolonização - oposto do Estado de Direito-, pois estes Estados,
gue não possuem poder suficiente para se contrapor na esfera internacional
ao poder poütico privado, tendem a ser apenas zonas de influência dos
países e empresas centrais.
3 TEORIA PROCESSUAL DA CONSTITUIÇÃO
A evolução ela teoria da Constituição no séc. XX apresenta três
fases marcantes. A primeira, imperante até o fim da Segunda Crande
Guerra, marcada pelo predomínio de uma teoria formal de Constituição,
cujo principal elaborador foi Hans Kelsen. A segunda, seguindo orientação
oposta, dá ênfase ao conteúdo material <la Constituição, consolidando-se
a partir dos fins da Segunda Guerra com o advento do Estado social,
tendo seus principais formuladores situados na República de Weimar,
com destaque para Carl Schmitt, Rudolf Smencl e Hermann f-lellc:r, com
desenvolvimento posterior por Konrad Hesse.
N0, fins do século' contudo ganha
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nntnri 1 ·r1 a· l,.. "'", r 'l -•·1,(i, i
,. t "' d de Constituição cujos princql 1i. 1 , 11t,

2tlll
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\ ;1 11., li l<MI· SO.\Rl:S
na Alemanha, e John H. l· ly, nos Estados Unidos, nus yue niw se resume
à especulação de juristas, recebendo importantes contrtbuições de
pensadores como John Rawls e, sobretudo,Jürgen Habermas. f\lém desses
podem ser enunciados outros autores, que adotam postções mais radicais
no sentido da desubstancialização da Constituição, utilizando-se de
referenciais do funcionalismo-si:;têrnico de matriz luhmanniana, em que
a figura de destaque é Karl-Heinz Ladeur.
Este tópico pretende fixar os principais conceitos oferecidos pelos
diferentes autores gue enfrentaram a problemática constitucional, a partir
de uma vertente procedimental. Como um dos arautos da teoria processual
da Constituição, Haberle7 assevera que a realidade jurídica do Estado
Constitucional representa só urna parte da realidade de uma constituição
viva, que, em profundidade, é de natureza cultural (1998: 47). Em face
disso, é ne_cessária a elaboração de um conceito de Constituição que
considere o seu caráter cultural, enquanto instância de superação da
dicotomia entre texto normativo e contexto fático.
No entanto, não é a qualquer cultura que se refere Haberle. Ele
está tratanclo de uma específica forma de organização polfrica e de
desenvolvimento cultural a qual denomina Estado Constitucional.8 Nesses
Estados, as Constituições tomam a dignidade humana como premissa
antropológico-cultural e a democracia como "conseqüência orgânica".
Representam eles urna respública, na qual a Constituição é o ordenamento
fundamental, "gue vive de gue todos os cidadãos e grupos intentem cada
7 Na formulaçiio de urna teoria constitucional, Peter Hiiberlc parte de um postulado fundamental.
que situa a tcon.1 da Constitui ção como ciência culcural. Como diz Lopez Pina "a pcrspectiva
científico cu/tum/ combina as clássicas concepçõcs formal e material da Constituição e interpreta
a Constituição não npenas como um emaranhado jurídico de rcgrns mas, tambêm, como cond1�·:lo
cultural de u111 povo" (HÂ!JERLE, 1998: 24).
8 Segundo J faberle a Constituição não tem como objeto apenas textos normativos, m:is também,
conrextos nilrurais. Por isso é necessário limitar o âmbito de análise do autor, o que ele faz c.:cntrnndo
su;1 pn�pecuv:i sobre a sociedade europérn e norte-americana (euroatlântic,1) oci<lcntal. Esta , cm
seu entender, t a úruca que atingiu um determinado grau de organizaçiio política, 1urídirn e cultural
9ue se n11111ifcsta nos chamado Estado constitucional - tipo ideal elaborado 1 1'" 1·r 1·
dr C"CP111l11� '"c1I 1ípico,; historicamente vcrificívc1s e conlt=mporanca11:,_
! 1 lll11 de� fundo d:1 ( CllSlllUIÇ�O <-jlll' C Oh J CfO de mda!�il •
·1�r
llJRFITO 1, Pül Í[l(A 201
vez e sempre comportar-'>e de modo adequado e suportar-se mutuamente
e deste modo se desenvolvendo" (HABERLE, 1998: 45). A Constituição
deixa ele ser vista como o elemento estável de uma realidade dinâmica
que é o processo de integração do Estado, para confundir-se com o próprio
processo, algo vivo, obra de todos os intérpretes da C,)nstituição em urna
sociedade aberta. Conforme pontifica Haberk (1998: 47) "os textos
constitucionais elevem ser literalmente cultivados pae1 qu<.: resultem urna
Constituição". 9 Em decorrência do que é indispensável, no contexto de
uma sociedade democrática, a ampliação dos participantes do processo
interpretativo/criativo através de uma sociedade aberta de intérpretes
. .. :� não limitada tão-somente aos órgãos institucionais.
Em resumo, no viés desenvolvido por Haberle a Constituição não
é um conjunto de decisões prévias e acabadas, mas um processo plural
gue se orienta segun<lo algumas premissas de caráter antropológico-cultural
(dignidade da pessoa humana) e atua em conformidade com urna visão
procedimental de democracia (participação na tomada ele decisão),
deixando o restante do conteúdo constitucional em aberto, para ser
preenchido pela vivência cotidiana, conformada por aquelas duas
premissas essenciais (Constituição viva).
Diante ela complexidade da sociedade e da pulverização dos centros
de emanação de padrões de conduta, esse modelo nrocedimcntal proposto
por Haberle vem angariando diversos seguidores, gue não prescindem
de oferecer contribuições originais a teoria da Constituição, dentre estes
coloca-se Jürgen Habermas e sua visão procedimental do Direito e da
Constituição. Segundo Habermas o fenômeno que marca o Direito e não
foi corretamente e<.1uacionado até hoje é o da tensão entre facticidade e
validade. Facticidade entendida como positividade do direito, força
conformadora, e validade comn exigência ele legitimidade do direito
positivo.
.�
l t!-',. 9 t l nnrrn.\ llC\.lu) r rcalicbdc íl�t>
' Neste trecho fic:1 clar11 qut· !'·n ,
l'xi s tcmb;1treil'asinr11'1· H 1 , .• ! •.rndq ,e.ti,. 11b Nesse SLnUdu,
SCOtCXlOSÓSt.:IO\\ll\ 1,L1i: ! ! 1 •, · , ... ,,J o (albpudo ao 1c111po l' ao
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espnço presente), a 11uc1 preLH, l, · 1
 (ju11 IILIU,11. �w l{J S
Para ele o�, rnock:I, is teóricos ,ltl agora apresent.1dos não consegucrn
conjugar ambas as reahdaJes, seja por um reduc1onisrno normativista,
seja por uma simplificação objetivista incapaz de verific1r a essência
normativa do Direito. Como forma de superar as correntes tradicionais,
Habermas propõe a aplicação do modelo discursivo ao fenômeno jurídico.
Nessa perspectiva, o autor vai tratar o Direito como m�canisrno de redução
de expectativas no ambiente social, que se elabora e se implementa num
processo ininterrupto de comunicação entre cidadãos livres e iguais. Com
esse objetivo o eminente filósofo propõe a reconstrução do sistema de
direitos que permita conciliar as duas exigências de legitimidade da ordem
jurídico-política e de positividade dos preceitos normativos.
De acordo com Habermas, no contexto cio Estado de Direito é
um pressuposto da própria validade das regras jurídicas a sua legitimidade.
Legitimidade que se assenta no procedimento de elaboração e apLicação
das normas, que eleve se dar com a participação, em condição de igualdade,
de todos os cidadãos, à proporção que a legitimi<lacle democrática só se
obtém caso os sujeitos que possam vir a ser destinatários da norma tenham
assentido com a sua elaboração. Habermas tem corno premissa fundamental
que, numa sociedade complexa como a contemporânea, em que se torna
impossível a adoção de padrões axiológicos consensuais, somente a
comunicação intersubjetiva entre os membros <lo corpo social, direcionada
à tomada de decisões compartilhadas por todos os cidadãos igualmente
considerados, permite a produção de decisões legítimas e democráticas.
Nessa perspectiva, a gênese das normas jurídicas tem gue estar
condicionada por determinados pressupostos garantidores da autonomia
privada e pública dos cidadãos que moldam a sua liberdade comunicativa.
Esses pressupostos são formulados por Habermas como um sistema de
Direitos, que é condição mesma da existência ele um Estado ele Direito
democrático, e por isso se impõe ao próprio poder constituinte. Tais
direitos fundamentais são: i) direito à maior medida possível de iguais
liberdades subjetivas de ação (direitos subjetivos); ii) direitos que resultam
cio status de um membro de uma associação voluntária de parceiros do
direito; iii) direitos decorrente', ti 1 .1, 1·, 1 · de postulação judicial
l >11 t 1 1" t I ', 1.11 ic 1 JJ\
dos dtn.'.Jtos; iv) direitos à pc1rucipaçfo, em 1gu.1ldadc de oportun1dack:;,
cm processos tk forn1açJu da opinião e da vontade; v) direito à condiçao
ele vida garantid 1 social, técnica e ecologicamente, na medida cm c1ue isso
for necessário para o aproveitamento, em igualdade de oportunidades,
dos direitos antes arrolados (HABERMAS, 1997: 158).
O objetivo do paradigma procedimentalista é, antes de tudo,
proteger as condições do procedimento democrático. Nesse paradigma a
esfera pública é tida como ante-sala do processo parlamcnta r
(HABERMAS, l 997: 187). Ele não antecipa um determinado ideal de
sociedade, nem uma determinada visão da vida ou uma opção política. O
Direito apenas formula as condições necessárias segundo as quais os
sujeitos do Direito podem, enguanto cidadãos, entender-se entre si para
descobrir os seus problemas e o modo de solucioná-los. Nesse contexto
teórico a Constituição é vista como um projeto, segundo o qual a sociedade
fará a sua autonormatização (HABERMAS, 1997: 190).
Com base no arcabouço teórico antes expendido e partindo da
análise crítica do conceito de Constituição como ordem de valores a serem
concretizados (teoria material da Constituição), i<léia oriunda da
jurisprudência ela Corte Constitucional Alemã, Habermas lança utn
conceito proceswal de Constituição. O vício da teoria material objeto
das críticas do autor, diz respeito a ausência de legitimidade de uma
jurisprudência constitucional de valores, pois ela implica uma
concretização de normas que coloca a jurisprudência constitucional no
estado de uma legislação concorrente (HABERMAS, 1997: 320). Esta
formulação não pode prevalecer perante um Estado democrático de
Direito que prima pela auto-organização da comunidade jurídica. Como
diz Habermas (1 Y.J7: 326).
A Constituição não pode ser entendida como uma ordem jurídica
global e concreta dcstrnada a impor a priori uma determinada forma de
vida sobre a sc.,ciedade. Ao contrário, a Constituição determina
procedimentos políticos, segundo os quais os cidadãos, assumindo seu
direito ele autodct�rminação, podem perseguir cooperativamente n prnirlfl
de I''' , ·11" h....JI"; im1.ts de vida. A exigência de lcg1ti111,d 1, 1, 1
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mcin a gcncse clemucrát ica das leis.
4 Q MODELO PROCESSUAL DE CONSTITUIÇÃO NO CONTEXTO DA MODERNIDADE
PERIFÉRICA
emons'.rado o lugar teóricu da teoria processual da Constituição
.. �
neste trncio �e seculo aunge-sc o ponto culminante desse trabalho, quando
: de constitucionalização simbólica - ausência de normatividade do texto
º foco dª: rndagaçoes encerra a pertinência do modelo processual de
, _
Constitutç
_ �o no �ontexto da modernidade periférica, em especial no caso
bra�i�e'.ro. � preciso aclarar primeiro o que se entende por modernidade
pcrtfenca. fal conceito é colhido nos escritos de Marcelo Neves, que
adotando um referencia! sistêmico-funcionaLista, recorre a dicotomia
"centro-periferia", referindo-se a determinadas regiões estatalmente
delimitadas (países periféricos) em que não houve de maneira nenhuma a
efeti vação adeq�ada da autonomia sistêrnica de acordo com o princípio
da drfe�enc1açao funciona!, nem mesmo a criação de uma esfera
1ntersub1ct1va autônoma func.lac.la numa generalização institucional da
c1da�lan1a. Características presentes (ao menos aparentemente) em outras
reg1oes estatalmente organizadas (países centrais) (NEVES, 1993: 322).
Inserido nesse contexto mais ::implo d::i modernidade periférica, 0
.
Bras11 apresenta algumas peculiaridades que acompanham O processo
_ _ _ _
h1ston,co de inst1tu�1onal1zação jurídico-política desde de sua primeira
_
expcnenc1a consutuc10nal em 1824 até o momento presente. Marcelo Neves
argumenta que a característica marcante dessa realidade constitucional é a
falta de suficiente concretização normativa dos textos constitucionais e
legais. O que, para c!e, é decorrência do bloqueio permanente e gencraLizado
_
onundo da sobreposição heterônoma dos sistemas econô rni co e político
so �re O Dtrei�o, que impede a constituição de uma esfera de positividade
1und1ca, ou scia, da legabdac.le e constitucionaLidade.
. , A_ ausência eles tas, por sua vez, reflete-se na falta de filtragem das
influencias do poder nu Direito. O que há, de acordo com O mesmo
professor, são relações ele sobreintegração e subintegração. Em que 0
sobn:·1ntcgr.1dr, <' .1 "cr.hrccidacliío" (elites econômicas nari <>!l 1
1 p()li\1rn organizatório vigente nc,, I' ,, .
__, ______
lJlld:llll l· l'li! li[( i\
1 ',, >,' 1/1 , 20'
wrnpõe a p,trcela extra-estatal do poder polítiw pnvac!o .munciado pot
J. Ramón Capela) dispõe e.lo sistema mas não se subordina a ele. o
subintegrado ou "subcidadão" (c.1ue vivência o status de cidadão servo na
definição de J. Ramón Capela) depende cio sistema, mas não tem acesso
às suas prest.tções. (NEVES, 1996)
Diante disso, o autor denuncia a experiência brasileira, podendo­
se generalizar para toda a América Latina, como um continuo processo
constitucional acompanhada de um excesso de prerrogativas formais
institucionalizadas - cujo ápice é a Constituição de 1988. Processo este
que se manifesta em dois sentidos. Num sentido negativo, como oposição
entre o texto constitucional e a re::ilidacle constitucional. Em sentido
positivo, desempenha, através da atividade constituinte e da Linguagem
constitucional, um relevante papel político-ideológico, encarregando-se
de esconder o fato de que a situação social correspondente ao modelo
constitucional simbóLico só poderia tornar-se reaLidade mediante uma
profunda transformação ela sociedade, tornando imune, assim, o sistema
político contra outras alternativas (NEVES, 1994: 86).
Desses fatores transparece que a modernidade periférica ainda
engatinha no sentido da construção de um Estado de Direito nos rnokks
elencados no primeiro tópico deste trabalho. ·Por aqui nenhuma elas
características típicas desse modelo de Estado parece ter vingado. Nem
sequer a suprerrn1.cia da lei efetivou-se, haja vista que hoje boa rarte do
::irsenal jurídico-positivo brasileiro é proveniente de medidas provisórias,
que são editadas e reeditadas sem a observância dos requisitos
constitucionais. Até mesmo as cláusulas de identidade da Constituição
de 1988, presumivelmente dotadas de rigidez absoluta, não sobreviveram
ao furor reformista dos detentores do poder. Que J1zer então cios direitos
fundamentais, posto estejam previstos na Consmuiçàu, não gozam de
padrões mínimos ele eficácia.
Note-se, em contraposição, que tanto Habcrle quanto Habermas
tomam como pano de fundo de sua� ttc Jrind>f''' ,·1 •n -1i1· , ,, ,·1 ,i e) n1oclelo­
· 1, 1,, IL Direi111

2U6
encontra-se, .:m larga medida, cfetivad<J, tenclo assegurado à imensa
maioria ele V:'11S cidadfos as liberdades básicas e o ben s materiais
1mprescindívLi, a condições mínimas de vida.
Conseqüentemente, nesses países, diversamente da periferia, a
. .
pnncipal meta do Direito e da Constituição, ao menos na visão dos autores
citado�, parece ser a garantia das regras do jogo democrático, de
proced_imentos justo_s de tomadas de decisão. Sem gue eles se preocupem
_
com ª JU�tlça ela deClSão mesma, até por9ue, em face da complexidade e
.
multiplictdade cultural pós-modernas, não haveria como estabelecer
previamente qualguer conteúdo para essas decisões (GUERRA FILHO,
1989: 24), bastando pressupor gue a melhor decisão é aquela da qual
_ _
todos partmpam em igualdade de condições. Na dicção de f-Iabermas
(1997: 183), "o paradigma procedimentalista do Direito procura proteger,
antes de tudo, as condições do procedimento democrático".
i 1 Ora, n um contexto periférico as demandas sociais caminham em
outro sentido, qual seja, o da efetivação mesma do Estado de Direito.
Decor�e disso que, nesse ambiente, a democracia (procedimento) deve
ter caratcr l�Strumental em relação aos direitos fundamentais. Ü ponto
primordial e, desta forma, a concretização daqueles valores e fins
positivados como princípios no catálogo de direitos fundamentais da
Constituição 03�NAVIDES, 20016: 66) e gue não podem ser esquecidos
ou desubstancializados como pretendem as teorias procedimentalistas.
Estas, com efeito, vendo na Constituição principalmente normas
de natureza processual acompanhadas de um leve corpo de princípios
_ globalização e o neoliberalismo, típicos dos fins do
materiais que assegurem a igualdade das partes, excluem dela normas de
conteúdo finalistico, sobretudo as que dizem respeito aos direitos sociais.10
!O c- u e u": autor que vê com bons olhos a teoria processual da Constituição como
�°i: �, contudo, g
1 IS antrngo Guerra F,lh�, considera que a dimcns:io processual da Lei Magna deve ser vista
e ng uan to forma de reahzaçao dos valores incorporados por ela sob a roupagem de princi ios.
. _
-ntend,dos, pdo eminente consutucionalista, "como indicadores de uma opção pelo favorecim�ntn
�
e.um �cterm1�ad� valor, íl ser levado cm cnnu1 n:l ·iprc-,·i.l<, -: ,·1111_!1 .1 :I r 1.11.1 n:find:id <..· <lc fo to':!
t' "'"·'�"PCS poss,ve,s' cc;uERI\J\ FI LHl >, 1 ')H'I < • 1 :,
·,1_ h f'111 LHll proc,· se,, mas niio ljltl' a ( .; ·
riorvq,\:lu p,uect: si· ·1f:1srardas de H.ibc1k t, i 1,
! l
1
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::O/
1)11u riu E t--'uu 11L "-
G!JII IILl•MESOAl(I'.',
A teoria processual cuida, subretudu, de neutralizar os fills, programa� e
metas, considerando-os conteúdos acidentais às constituições escritas,
juntamente com todos aqueles elementos que, ele quak1uer modo, almejem
direcionar o conteúdo das decisões políticas. [sto ocorre potque, tantn
Haberle - com a idéia de dignidade da pessoa humana na base do processu
de interpretação/ concretização da Constituição -, como Habermas -
com a inclusão cio direito à condição de vida garantida social, técnica e
ecologicamente -, tomam a igualdade material como pressuposto das
suas teorias, e não como objetivo delas.
O ideal parece ser mesmo o de reduzir as garantias dessa igualdade
ao mínimo necessário à que as pessoas não sejam excluídas do processo
decisório. O modelo processual ele Constituição é, portanto, um modelo
de manutenção e aprimoramento e não um modelo de renovação, de luta
e resistência, como exige a sociedade periférica (BONAVIDES, 20016).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
do de direitos
O Estado de Direito é hoje, antes de tudo, um Esta
es normativamente
fundamentais, conformado por princípios e valor
to expectativas para a
vinculantes, gue asseguram tanto liberdades quan
este é o modelo gue
população. Como herança cultural da modernidàde
is, sobretudo aquelas
deve nortear todas as organizações político-estata
titucional tal exigência
que como a brasileira, fazem constar do texto cons
fenôrncnos como a
(basta ver o preâmbulo da Carta ele 1988). Contudo,
séc. XX e início do
modelo nos países
séc. XXJ, parecem querer barrar a implementação desse
periféricos.
jurídico-político,
Nesse conwxto, a Constituição - como estatuto
rania popular, para
racionalmente estabelecido, sob o postulado da sobe
- deve ser teorizada a
regular a convivência política de uma comunidade
direitos e liberdades
partir do modelo que mais se adeque a construção dos
scmprt ,1 -11 : ,. 1, ., 1 , '\" 1, , la pen teria. E para isso, se as rc�1qc11l 1.1 ·
,.1 1Ll.1l1v1z.1r ,\ sua força, esvaziar seu conlc
u,1 1 ,_
t: .1• :i· i l.1 < _, >11stitu1�·àn aumc:11;111,. 1...
lutinar valore<;.
dcsacretl i l t· 1,,,1 .,,., 1, ,�:i,> 11,1 sua capacidade de ag
' ' 1 1 ", ... ,,_, l '01 l��o. �llH
 Cil'II IIJ l,11 � ; I ') i)Jl(EI ru J: r'i 11.ITl(A 209

L.:11d<, u11 vista ta1:; C'( >111pr1 ,rn1ssos, a <ll e1t,H,:,1u da teu ria pt oces:-,ual
da Constituiçàu na modernidade rcriférica cxig..: redobrados cuidad(Js,
pois ela deixa muitos vazios que não poderao ser preenchidos, pura e
simplesmente, pelo Livre jogo das forças sociais balizado por princípios
de justiça. Sua proposta de negar a previsão antecipada de fins vai contra
o imperativo essencial a conformar o Estado de Direito na peri fcna, que
é a concretização de direitos, sobretudo dos direitos sociais. Mesmo
porque, isso sequer negam os autores do modelo processual, um mínimo
de igualdade é p ressup osto da democracia legítima. A razão disso é muito
simples, a desconformidade de contexto entre os países euro-atlânticos e
as sociedades do capitaLismo perifédco, como é o caso do Brasil e dos
demais países latino-americanos. Lá a dignidade da pessoa humana pode
ser tomada como pressuposto, como o faz Haberle, aqui nem ao menos
os direitos de primeira geração se realizaram.
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 DtRJ-:llt•I l'utÍIIC\ \l '

ra pC1blica (estimulo proporcionado pt:los textos) que se processa nos a compreende co 110 matco (ordem-quadro) do prucl'si;ci públic() pur ela
ciu:idrantes fixados pela cunstituiç:'ío (segundo seus limites tcxtua1s). orquestmrlo.
A constituição exsurge igualmente como um bem cultural, já que
também possui suporte material (texto) resultante de inúmeras cristaliza­ 3 CONSTITUIÇÃO COMO PROCESSO CULTURAL
ções culturais e uma dimensão normativa que, ao lhe conferir o cará1er
A conversão <la constituiç ão em instrumento mediador se coaduna
de garantia objetiva da realização ela dignidade humana, impregna-se de
com: a) 0 reconhecimento da existência de um contexto cultural mais �mplo
especial função estimativa que faz transcender o universo jurídico para
no qual a constit iição se insere e q ue consiste em uma elas d1rnensoes da
apresentar-se como padrão de conduta para todo cidadão. Ú neste
normatividade; \J) J transcendência da constituição vis-à-vis dos textos
momento que a constituição, como processo cultural, identifica-se com
constitucionais, abarcando outros textos jurídicos e não-jurídicos e o
os princípios de justiça postulados a partir ele seus enunciados normativos
conjunto de valores fundamentais; c) a figuração da constituiçã� corno
como reflexo e autocompreensão cultural. Enquanto produto histórico­
ponto de convergência de lliferentes atuações normatJVas, func1ona�clo
cultural, a constituição espelha a forma como a própria comunidade se
como fator e critério de legitimidade e adequação ao coniunto normauvo;
percebe e/ ou como gostaria de ser vista, enquanto elemento de auto­
d) a abertura da constituição às atividades atualizadoras sem, com isso,
determinação. A consttlutção é expressão de um certograu de desenvolvimento mltura�
olvidar os valores que compõem o background cultural.
um meio de auto-representaçãoprópria de lodo umpová'-0 espelho de seu le._�ado cultural
efimdamento de suas esperanras e des11/os (11top1a concretcl-1). 22 A constituição, p ortanto, é mediação ela cultura, obra ele todos
os intérpretes e reconstruída continuamenle através da interna_lização
A identidade ela Constituição pluralista constrói-se a partir da
ele diferentes elementos materiais. Nestes termos, o próprio tcxtt) cons­
conjugação, como legado comum e experiências históricas, de esperanças,
titucional remete-se à realidade, não no sentido de constituí-la ou rccriá­
de possibilidades atuais e ele elementos para sua configuração futura
la 24 mas como redidade unicamente sugerida por indícios supeificiaú, seloriais e
concernentes a todo um povo. A constituição Je letra viva, assim, é um
jr�gJJJentcírios do próprio texto legal, que ela mesma crio:?-5 Indícios supe�ficiais,
instrumento mediador da cultura, marco reprodutivo ele recepções cultu­
,;.,, . pois O texto constitucional não pode abarcar sec1Ller a com!)lcx1dade do
rais e depósito ele futuras configurações culturais, experiências, vivências
seu domínio normativo, 26 setoriais porque apreende uma untca dimen­
e saberes. Ela somente pode ser percebida como espelho do pano deJundo23
são (jurídica) da r,�alidadc cultural que o circunscreveJragmentário, pois
(background) da cultura política subjacente a partir do momento em que se
prescinde ele urna sistematização no interior do pró?r10 con1unto nor­
mativo e porque a ele (texto) são reconduzidos dderentes elementos
20 É de se notar que o fato de o autor considerar a constituição como expressiio de toda 11111 povo niio
contextuais.
implica a neg:-1são Jo aspccto p lurnlisra inerente it própria conccpç�0 de cultur!l 1 posto yue ao
mesmo {t:mpo em que ele espelh;1 n autocomprccnsào Jos rndivíduos e gruros, a cultura ;.
(rc)produzida pelas difcrcnies (e concorrentes) atuações individuais e sociais.
24 N c st;p�:�� l� r.�{ ; t�il t�r-:-a;uc 1cv1s:i.o do d1ngi�m(1 t1111,utuc1011nl rcnlizad,1 por C,\NClTlltH>,
21 E,pressiio de EllNEST 131.0u1, usada pelo autor no sentido de identificação de um projeto aberto valend o-se da alegorn do nso da mulher tr:h.:in ante ,l ljULJ,i d,i �51tólogu em um 0�1r�co en�u�_ nw
:
pata o futuro, ljUt serve como fator de integração culturnl e base para o fortalecimento e observava as estrelas. Cf. Rever ou romper com n consu1lllçào d1 r1genrc. Caden101ded1re1/o ro111l1l11,wua/
reconfiguração das conexões de sentido da comunidade. Cf. HABERLE, Pcter. L1bertad, ig11aldad, p j
eciincia oliti,a, Siio Paulo, RT, a. 4, n. 15, p. 7-17, abr.- un., 19%.
r-
/Í'a/emirlad. 1789, 88.
25 Ri:alirlnrl ,inicnmtnle J1,gr1irla por 111rlicio1 J/lf>"fiaále,_ Jfrlonál,,_ J•Ji,,wm11/ario.r rldprop,io texto legal, fjllt e/la
f ! 1 1:1{! 1 !, ,,; 1 de /4, r01ulll11ao11, p )4 ., '
11111111aha oendn ll,\H!•H.11;,, 1 1'
11 ., , ,· 1 ., •.. 2(, ('f I IÍ\IIF.lll lo, l'c1,·1 /,, /, ,,,,
 -....... ..,- -

�.: 1
Ltiu MA(;No l'JNTO BAsros J1,l'.1o1{ 1)11<1'11·,, E Po1 ÍTI( A

sociedade abet ta, reunindo tanto os elementos textuai� pos1ti11m/0J 11u

i\ ccJinpreens�o da comutuiç;lo c(,1110 instru mento mediador da
documento constitucional his t órico, corno os elementos textuais e nãu ·
cultura, nos termos antes assin;ilados, faz com c1ue o intérprete submir,a­
textuais que o circundam.'º /\demais, enquanto elemento cultural, sua
se na cultura constttuc1onal, comp reendida esta como
estrutura po!iédnà1 permite a interconexão com diferentes e múltiplos
"a soma de a mudes e idéias, de exrerit:ncias subjetivas, escalas ele ,,alorc:; e elementos, rnzão por que não se petrificam, ao contrário, constituem-se
_
e xpectatJ�as sub1euvas e das correspondente� ações objetivas tanto no nível pessoal nos principais fato res catalisadores da dinâmica cul1ural, os elementos que
· •
l ucbdao como no de suas assoc1açoes,
lo 1 mesma forma que no nível dos
la
, _ . impulsionam o ulterior desenvolvimento constitucional. Quab seriam,
orgaos e�tatais e nos de quaisquer outros relacionados com a Constituiçào
. então, estes elemrntos gue constituiriam o pano de fundo culturnl e fatPr
entendida esta como processo ptiblico".27
de atualização da constituição ;> Haberle relaciona, exempLificacbrnentc:
Os p ro ce ssos institucionalizados de interpretação constitucional
"as manifestações críticas por parte das igrejas, associações e grupos sociais,
rtant�, deve se desenvolver (metódica e funcionalmente) visando ã assim como de quaisquer outros grupos tle cidadãos, para a defesa de seus clireitos
�; �_ · ·
p liaçao dos lcg1t1mados e da variedade de elementos materiais, re fletm · do fundamentais, pertencem a um marco pluralista de caráter geral, tanto quanto ao
. _ .
(a) a adm1ssao da Lberdacle individual corno orientação à realização da papel vanguardista[?} do legislador, já que esses elementos pré-julgam, de múltiplos
· modos, a própria interpretação constitucional, ao preparar todo um material de
sociedade aberta·, (b) a 1ncorpo1.açao • e1 o demento temporal em suas
. • pré-julgamentos, na forma de lei que, por sua vez, não só irradiará ao vértice mais
COnSl�ernçoes, resultado da constatação de CjUe todos aqueles fatores
. elevado da própria constituição, como poderá, inclusive, converter-se em impulso
matena1s , que colaboram c orn a deterrrnnaçao • da exegese normativo- micial de qualquer modificaçào ulterior".31
_ . _ _ .
conStJtuc n J, nao :ªº p rev1am:ntc e imutavL !mente fixados,· (c) o repúdio
:� � _ () back:g,round cultural, por sua vez, vincula, ma terialmcnte, cada
a uma h1era1qu1zaçao metodolog1ca·, 18 e , p o t· fin
. 1 , (e!) a rnult1p
· 1·1c1c· 1 acl e cle
-, res co-detcrminantes. um cios diferentes critérios hermenêuticos, de forma que o mesmo texto
L1to (elementos e cristalizações) c1ue constituem o
back:g,round cultural da constituição, gue serão a seguir pontuados.29 encerra diferentes conlelÍdos em cada uma das culturar nas quais aparece, se
particularizando, temporal e cspacialrnente, exigind� a formulação ele uma
exey,ese constitucional emfunção de cada espeafiadade cult111·al. A fim de reforçar
4 CRISTALJZAÇÓES CULTURAIS esta perspectiva, o autor reporta-se a Smend que já deixou assentado c1ue
.
As cristalizações consistem , segundo f --la"be1_1e, nas o6.Jet1vaçoes
• quando duas leisfundamentaú dizem o mesmo, isso não significa que elas sqàm a
. _
(externalizaçoes) resul:antes das diferentes atuações humanas gue galgaram mesma coisa. 32
a um status d: permanenc1a e durabilidade em face cio seu grau ele aceitação
e acomoclaçao no mundo da cultura· A constJ· , tu1ç,10,
. :- pot- sua vez, enquanto
. _ 30 Que v:io cJesde os próprios te,tos clássicos aos discursos presidenciais no mais alto nível, e inclusive
obj eto cultural se forma a partir do substrato plúrimo e multifacetado da à ;ugumcnL1ç�o d,, Tribu11íd Constiwcional, passando pela mticulaçJu <las ohta'.'i Linuifira<i l'
,1ttis11cas. Vd. l !Al\l·.F LE, Pctcr. T,oda de la con1lit11ció11, p. 36.
31 E/ alenlo rfro11on111ie1110 de k, relemnciu que adquierm la /1/(l/l!festaciones mfl(m porparte tle las igle.sm, modariones y
27 L '""'ª de aclilude,. y du'd,as, d,e e:,...penfnc,ar
· · · . . .
suqfell vas e1cala1 t!e vahore,.J expecta/nw 111f!Jellw1y de ln, ,grupos soaales, r/JÍ como ,Ir mnleup,iera úlro1 ro/ecti1-'0s de rú,dndano1 pam lt1 deft111a de s111 dert1chosjimrla111enltJ!e1; u
,o,,.,,ponditn/tJ accionu objetiva, lanlo ai flivelpe,1onc1I ae ;I (tlfat1ur1110
_, _,
. .
como ai de JIII a1oanao11u, aI ,gua
. I que 11ue pertence ,1 un marco pl1tm!i.rla de raníctergenernl, tanto ro1110 e/ rol JJtJttgHmrliJta dei legúlado,;_ya que d,rho ,rromxi­
. •,1m//o /'1'111'1/{I d, ··11í.'111,1t modos lnp,vpin Ji1/e1prelnrió11 de la Comnl11ció11 nlp,iparnr todo ,m matmál/nr;wzyab!e
a ni11tl de órga1101 estataluy ai de r.11alu.q11iera - I .
. ot, ·os ' e.aao11r1dos cou /,, Co111/Ú11ción, mlendida tJla con,o proce,o
. _ . · ad1t11r1 ai 1,c'1t11e !J/fÍJ rlemdo de ln profu, Cvmhlla1ri11
/Níblico. HABERLE , Pe ter. -'tonar de h ror1rhl11ttnn , p 57
1k ("t,l!(jlllt',- 111t•1h/1caadn (ONJlll11ao1,a/ u/tenor ldcn i. ti 1 1 ·
1

28 C, HÀ13ERLE, Pctcr t .,11ú, "'

11. 1�{, 1r11/r w11/1widu t!II t't1da Jtl/(J de laI mllmw en /aJ t/llf t1j•,I! �u
2'J l louve .ll/l!l <1 picocup.,ç,l.J d·. 1 , ,, , • � .. llUl.lJ.'I 11,1 idem, de rron:ssuaUcbdc
·pf/110, e/lo 110 11f,11ifim r111e rm lo 1111m1n. Idem, ibidl.'m, p :f:
c.fo const1n11ç:io, ,Hiluúe <.JU<.: !)e 1d c1it ;t'f_ 1 1 1h ipai�; do preseme trabalho.

I") ·,.,
Llll/ MA\,N(J l'INI 1 !l,,\l•l, I• ,'Ji"I{
C) crn1dic1onamc11:u rniituu emre o entorno e a ativ1dack atualiza­
dc1ra da constituição é realçado por I f- aberle, para c1ucm:
aque 1 es que tomam parte no entorno constitucional, corno um [Hoccsso
"
complexo e plural, dependem de que aqueles materiais SCJ,llll cntcncl1dos como
elt:mentos estruturais ela Constituição, e vice-versa, já que tais elementos at11a111,
sobretudo, nos próprios atores e nos promotores cio entorno constitucional
mediante os procedimentos públicos específicos"_ li
5 TEORJA DA CONSTITUIÇÃO COMO CIÊNCIA EXPERIMENTAL
Como se pode inferir, do até ac1ui exposto, a pretensão de isola­
mento do objeto da ciência do direito aos textos jurídicos cede ante a
necessidade de compreensão do fenômeno jurídico enquanto efetividade
humana,34 ou seja, como atuação (e produto) social que se expressa na
13 1--ü aqui como se prod11ce 1111 co11dicion,11111e11/o mutuo.· qnimes /01J1n11 pmte en e/ entorno ronstit11c,o,10/ ramo ""
..
proaso t:0111pltgoY plural depeuden de !ti e"\ÚlenCJi.1 rle aq11ello.r 111ale1iales t11lmdido1 como elc111entos est,1,rtumlts
de la C.imstitHáó�1,y vice1,-e,1a,, Yª que tr,/es ele111ento1 actú:m ante lodo eJJ los prop,os aclore1_y eu los J>ro111r,/orts
_ _
rlel e11lomo wm//!11c1011,,I 111erl1anlr lo, procerl11111enlOI púh/,co, respecttL�I. Idem, ibidem, p. 51.
J4 A �iência do direiro, en9w11uo c1êncrn práfíca, se realiza mcc.l1antc timj!{�O de linguagem ern cujo
111c10 se cons1a1a uma dupla violência (no sentido <lc exercício de po<ler, que lhe empresta ML•I.I rn),
ora no momento da pos111vaç�o d,1 norma, em guc o cnunciadn normativo ê texrualiz:1do, ora ,u1
_ complexidade Jos fenômenos culturais? Como poderia se estruturar A
sua intcrprct�c;;lo/aplicaç:�o, c1u:indo o intérpretc/aplicador vai adscrever uma prescrição normativ a
ª um dctcnrnnado enunciado norrnstivo (texto) a partir da seleção (reconstrução) dos elementos
.
lat1cos que lhe são apresenrndos. En9uanto normatividade institucionalizada CJUC dispõe de
tnstrun1entos de garnntrn ob1ctiv.1 co11trn a violação das rcgrns de c ondurn social, o direito e antes
(no sentido ternpornl) experiência 1urid1co-social do que ciência do direito. Por dispor sobre regras
de co:1dura, o d1rc1to goza de uma 1elauva autonomia face its relações de causaLidade próprias das
r�laçoes nntura1s, um3 vez <.1ue, por se 1rntarem de objetos ideais, preponderam nexos de finalidade
visando a integração de sentido, próp,ios de juízos de compreensão. Essa relativ a autononiia
contudo, n:io pode sigrnficar uni total alijamento da realidade social (do plano de sua efetividad�
social). Nc1�1 mesmo KE!. �EN, no pretender libertar a ciência jmidicn de todo1 01 elementos que lhe siio
.
ntranho.r, deixou Je cond1cmnar a v�,lidade do sistema a um mínimo de eficácia social, posm yue se
mostr:v,1 abso�ut�mentc insuficiente a delimita\àO do :imbito do jurídico a pnrur d,1 regra dl'
pcrt111e11c1:\ c;1stcr111ca e a claboraç�o rJa dinâmica jurídica (autc1·produç:io normativa), calcada num:1
concepç:io ele sistema p1rnmidal, no topo do 9ual figuraria a norma fun<lamental. Esta norma
il
mcramcnl� prcssuposrn, v;-izia de contcl1do, é concebida como condiçã o de possibilidade para a
CStruturaçao doSJStema 1uridico, C]Ue, independente de qualquer rcferiiJi!idade i, realidade parn a
qual se constltlll�, apre .... cnta·se como funcfomcnto llltimo de validade ao o rde:nfl.inento juiidin)
De•,11 rn111 1 1'' · 1 l'· 11 .,vln cln cnuncindo norm:uivo incl1<.a ;1 op'-t·;ir> v.ili,1 ,,
\il r 1·1 j'íl'>'i.Ívcl de prrncção. I\ sua cLJtacia 11r1r1 !.li l 1
l'l. /1 .( ,,... 1u'u,.t111/efor oJJtJlortule/adu- uI11;I vez qut· ..;I1'.J'. h '! · ri
,.
realidade através da culttmz e corno atuali z(lf/lO ria mltura. Nu primcir< 1
momento deste trabalho, referia-se ao fato Lk que a teoria da com.ritu1ç:io
de Haberle se consolida sobre o pressuposto de que deve se converter
Cnl ciência c\a realidade e cumrnr uma clurla função que COllS!Sliria em
fornecer subsídics para a dogmática constitucional e como instância,
igualmente crítica, da inter-relação e funções efetivamente desempenhadas
pelo Estado e pela Constituição.
Tendo em vista o processo global da cultura política qul'. circuns­
creve a dimensão estritamente normativa da constituição, e face ao reco­
nhecimento de sua força motriz como importante fator de atualização da
cultura constitucional, f-labcrle, antes de apresentar os fins para os quais ele
concebe a teoria da constituição, constata que a teoria constitucional consti­
tui-se não só em ci1'1rtcia, com suas usuais projeções no âmbito dos intérpre­
tes autorizados do texto legal, mas cm literatura, pois enraíza suas matizações,
inclusive, no seio da cultura política, refletindo-se, ora corno garantia obje­
tiva da própria normatividade constitucional, ora corno elemento que é
textualizado em razão do caráter constitutivo da esfera pública. '5
O que seria, então, uma ciência constitucional científico-cultural tal
qual postula o jurista de Bayreuth? Como estaria ela apta a apreender a
1
caracterização da cultura enquanto ciência da realidade consiste numa das 1
principais preocup,.ções de Haberlc quando ele se reporta aos fundamentos
e conseqüências ela �Jerspcctiva científico-cultural adotada. No ata de rrecisar
estas ljUestões, Haberle, assumidamente, parte da hipótese que
"Valores, si:.temas axiológicos, objetivos educacionais, valores orientadores, todos
eles fazem referência e reenviam a uma certa estratificação, a cerrns esc:-tlas e a
f
do reconh{·c1mcnto (por
ob 1 ctivas prescind em de um mínimo de interrn1'17aç:lo suü1et1v�. ou �eia,
1
melhor estruturadas
parte dos cidadãos) da legitimidade da vinculação 1uríd1ca estatuida - e 9uanto
do direito. NeS1es 1crmos,
forem as in1til11içõe1 g ar tntidoras da ordem jurídica - elemento coercitivo
, num processo de
a compreensão d;i s prescrições normativas deve ser busc:1da, precipuamrntc
1 '! 1 1 ·, ! ·,,111prcc:ns.it1
-;is rc-matizaç:10.�travé s <loqualêpnvilegi�da;1conrd 1dc ·1•1 I. ·11
1 1urídicil que tem, ... ,·,n:,,.,,,,
,1 L·n,ub d o fimbito d r validei'
(. ,Pltlrl <:.1;1)
1, \ 1 HÁ!3ERLE, Pc1c1 7,o,i" rle /" ro11,11111rió11, p 60
 Lu11 MA,;Nu P1N1u BAsrch luN10R
dcter1111nadus conceitrJs du1tru de uma realidade, oferecendo u111a gama de
possibilidades que são somente c:m parte abarcáveis mediante o emprego de;
111etodologiasjutirliá1.r, vez quç são somente uma parecia da cultura comunitá ria global."16
Estabelecido seu ponto de partida, o autor precisa os contornos de
sua teoria da constituição, a partir das seguintes assertivas: a) a teoria ela
constituição se for mula a partir de juíz os de compreensão, 37 mas não se
esgota co m sua diferenciação dos juízos de real.idacle; 38 b) a teoria da consti­
tu.ição é um a ciência ela cultura, razão pela qual não pode se coadunar com
O encl ausuramento em um r'imbito cientificopeifeitamente limitáve/' apnon·, uma
9
vez gue a perspectiva culturalista desafia o indivíduo a apreender o fenômeno
sob o necessário enfoque da interdisciplinanedade; c) a teoria da constituição
não pode desprezar o s aspectos político, econômico e axiológico no mo­
mento da identificação dos elementos extranormativos gue se apresentam
como intertextual.idade a serem apreciados pela dogmática constitucional,
poi s, desta for ma, se estaria mascarando, sob nova alcunha (ciência cultural),
uma tradicional conccpção de ciência social.
O posicionamento da constitu.ição enquanto ciência cultural conecta
a teoria da constituição às demais ciências, razão pela qual, ern diversas
oportunidades, Haberle faz q u estão de frisar o fato de gue o jurista atua,
em regim e de divisão de tarefas, com os dem ais ci entistas. 40 Por esta razão,
36 Valores, s/.Ile111a1 axiológicos, objehvo1 educano11ales, valore1 ontnla/il)()1,· /odo1 e/101 hace11 reftrenriay reenvícm ti
cierla t1/rutijicnció11, a at,tas escala1y a tÍe/er11m1ado1 contexloJ· dentro de ""ª realitlatl ojereâf11do una gn111a de
posibilidaes qm rí 11ica111enle son abarcables e,r parle 111edia11/e e/ e111pleo de 111elodologím;midmu, smo Jm, só/o
111111 parcela de la m//11ra co11111nilaria glohal Idem, ibidem, p. 76.
17 Os JÍIÍ'l!JS de co111preensào, próprios da ciência do espímo ou Ja cultura, visam urna 111tegrnçào de
:.1
sentjdo de forma a estabelecer nexos de tinaLidacle a partir ele uma opçiio axiológica, enquanto que
os;11ízos de r,a/idade, associados às ciências narurnis, comportam um sentido de c,plicaçiio tendo em
vista a pretensão de generalização do conhecimento que se processa mediante a identiíkaçiio de
nexos de c.1usalid.1de e gozam de um âmbito de pré-compreensão mai s re,;tnto cm rcL1ç:1o ityuclcs à
medida g uc a opção valorativa consiste na seleção dos meios para c1ue o pos1u"1do alcance validez.
.18 Distinção g u c remonta a D1LTHEY. Cf. REALE, Miguel. Filosofia do tlim/o. 19. ed. São Paulo:
Saraiva, 2000, p. l 95-208.
39 HAUERI.E, Peter. Teoria de la ronsti//rción , p. 71.
40 O autor não nega, com jsto, o recurso aos mérocfr·,_ i ur idi < o 1 ... r � ,. 1 44
1 1 l HLilitouun:d
e recorre :l.s positiva\·Ões das decisàcs 1unspnid cr1 ,_ .1 � v!t- d<.:tendc
l· -1 ni-<T�5idadc de <.Juc o 1ur1su1 se rcconh c \,I c11, •<.·" de 0\tlr:-\�
tL.. 11111� a fim Je ub1cr bo111 rcsulr;1dos com o 1:,i,1u 111:i :1m /; ,
1)11(1'11< i I PcJL, r,u.
0 autor entende que O conceito de cie'ncia da mi/um ganha sentido 1usram( niL'
cnquan to fator ªJ.:ltttinante de distinlm disaphws rientijict1s em tomo a 11111 rll,jJ/n
objeto comum,4 1 já gue para ele
"a Teoria da Constituição corno ciência da cultura (... ] é Ullla ciência
integracionista, na medida em gue integra os distintos ele rnc�tos fil ;ófirn:s�.:1 1s
_ � �
com os cienúfico-norrnativos, todos eles, no que tange a propna const1tu1çao, ,,e
encontram por demais dicotomizados".' 2
Pode-se inferir que O processo de compreensão de sentid� da
constituição, enquanto visa a subsidiar o aperfeiçoament� da dogmatJca
_
constitucional e constituir-se como elemento de auto-crltlca, compow1
_
quatro exigências (daí a interconexão entre constitu.ição e democracia): 1)
que se penetre no universo axiológico em gue os bens culturais foram
gerados, cm face <la complexa cLimcnsão de suas co-impl.icações;41 2), que
explicite os grupos concretos de pessoas e os fatore� que formam a esfera publtca
(Ôjfentlichkei�, o tzpo de realidade de que se ct11da, ajorma co,�o ela atua no te ljJ o
� . � ��
possibiltdades e necessidades existentes,-4'1 e, no caso de UltJCa de atualizaçocs
_
constitucionais; 3) que se indague, realisticamente, que mterpretaçaofaz adotada, a
forma ou maneim como ela se desenvo/111111 e que contribuição da ciência itiflttencto11
decisivamente o;uiz comtitucional no se11 afazer hermenêt1tico;45 e, por fim, 4) que
enfeixe de uma forma m ais sistemática, os objetivos e os métodos, bem m1110 ogra11
de parll�}ação dos intérpretes consJitucionais, conszderando·us conseqiiências e as novas
_ _
indagaçõespara a inkrpretação constiluáonalju!idica e para a teona constzltmonaL'6
41 [... J;w/al})e1J;e a�JÍ es donde cohm wilulo lt,jr,1Jcio11 dei concepctn oeruias de ln ctdi11m comofac/01 agl11iffftfflir dr
_
diitinlas disciplinaJ cientíjirt1s en ton1t1 a 1111 t1111plto ol!feto co1111í11, ai � v tJptrar 111c/u10 e,� la lrJrt'tt de 111r111.lenet
.
a!Ne,to e/ t1banico de ranO una 1/e lar 111/Jmmaf pmiimlares m q ue 1e d1vule,por prele11d�, todas ellm lns 1m111101
ob;eclit•os. Idem, ibidem, p. 74.
42 l,1, leod,, de /a Comtitr1i,011 como cieua11 ,k l, r11ll111a rn mt111/o tal eI 11imdtá11eammte.1111t� denáf1 i11feJ!._rrmomilo
lamh,ini (li Ir, medida fl' que f11te,grr1 los rhsti11101 de111euto1filo1ójiros-1ocMles con los aentificos-11or111alwo1, !odor
e/los, por /o que nl menor respecM 11 /r, propw Comlitució11, dt111f/stádo dico/011/ÍZfldos. Idem, 1b1clcm, P· 75.
_
43 já 9 UC podemos co111pree.-1de, a m/imu sóporque nÓI 11/WNOS 1O11/OS Jf/11pedllfO de mliffl"O. JÓj>Or 111110 '.f"OIISj>O_SffllO
baseada 11,1 plmllude dm própnas vi1Jé11das. (DJL.TIIE.l) p odep metrar a no110 mente tl(IJ exte11onznrot1 v1/a1I do1
outro,. )-1 l',LLF.íl, 1lc-111rnn11 T,-n, ·, ,/,, F ,,rtdo São Patilo: Mestre .Jou, l 968, p. 136.
l li\lll·l:11 1, ,,,,,., ,\lq,rc Stll'I', 1997, p 20
45 ldtrn, J!,1 '' ''
., ,,,,/, p 20.
46 HABF.RI F 1 ,., :·
 226 l.UI/. t\1ACNO l'INIO flA,TOS JtiNl(>I< Üii<l'I I O 1· P< l[Í l"ll ,,

A imcrsãc, na complexa 1essitura de conexões vitais, possibiutada tida com o dest nvolvimento e aprimornmcnt< 1 ,l;i pn ,cessu,ili !::, 1v e d l
pela aJoção dcst 1 perspectiva, c,rnfere à apreciação ela reaudadc urna im­ integraliz,iç·ão d·· fcisa constitutiva da respuh!im n:, tcssit'lra const1turn1n,il.
p rcscinclivel :·unçiio de informação ou de mediação (Zubnngerau_igabe), 47 que reme­
te o cientista a conside ração da dimemãopluralista da sociedade aberta conecranclo 1 (ONSIDERAc;óES FINAIS
os diferentes elementos em intertcxtuaudade48 a partir da construção Je o de uma
O gue se pôde perceber é que a tentativa de construçã
modelos estruturais que possibilitem a apreensão desses renômenos. al reforça a idéia
teoria constituci0nal numa perspectiva cienúfico-cultur
A mclhor forma de identificar a complexa plêiade ele elementos que assinalar a intrínseca
. . _ de processualidade, (a) quer quando Haberle busca
tnte ragem, dtacroruca (evolução no tempo) e/ou sincronicamenre (relação e a necessidade de
ligação entre democracia e constituição, de um lado,
no espaço), na estrutura social efetiva,49 consiste na realização cio que Heller a no processo de
ampliação de m,�canismos de participação democrátic
entende por corte transversalpraticado na corrente da históna, que: l de sua concepção
atualização constitucional, de outro (momento inicia
fim de desviar-se
"(.. .) não nos revela um caos, mas uma conexão ordenada de efetividade, com processual de ccnstituição), (b) quer quando o autor, a
o e sua suscetibili­
algum grau de estabilidade, em cuja conexão ele as formas particulares, com uma das críticas sobri.: a baixa normatividade da constituiçã
víncu los e garantias
maior ou menor permanência também por sua parte, realizam funções que se
. dade aos particularismos históricos, busca reforçar os
cond1c1onam reCiprocamente".50 e cultura constitu­
objetivas através de uma identificação entre constituição
ele concretização
A referência a este corte transversal não é capaz de, por si só, cional, assinalando a importância do combate aos cléficits
r quando o jurista
for�eccr o modelo apto à apreender a constituição nas suas inter-relaçôes constitucional pelo mltivo cttllttral ela constituição, (c) que
ele soberania
de 10dole cultural, mas informa os requisitos que devem ser observados de Bayreuth, deparando-se com o desmantelamento ela icléia
tucionais
po r qualque r tentativa metódica ele cunho culturalista: a) aber tura à dinâ­ nacional, assinala a abertura constitucional às experiências consti
para âmbitos
mica das transformações; b) diálogo com outras concepções metódicas e exteriores (recepção) e a projeção das experiências nacionais
) confnindo-
soluçôes de compromisso; c) preocupação em prever a possibilidade de supranacionais e realidades constitucionais particu)ares (envio
. lhe acentuada dimensão integradora.
um enfeixamento de inúmeros elementos materiais.
Para Hiiberle, face ao seu compromisso com a pluralidade metódica A principal mudança verificada com a adoção de uma pcrspcctiva
culturalista consiste na releitura da abertura constitllcional à esfera pública
sob
não se pode invocar uma hicrarguização metodológica, pois, desta manei ra : is,
o ponto de vista do entrechoque de diferentes cristali.zações cult11m uma
poder-se-ia diminuir a abertura da teoria da constituição ao processo vivi fí­ iais
cador da realidade. J\ teoria constitucional, por tanto, deve estar compromc- vez c.1ue a constituição conecta-se ao seu entorno nos Limites putcnc
de grupo s
cio mundo da cultura e é impulsionada através da atuação
.
sociais díspares mediante processos de interação social
47 Idem, ibidem.
A proposn culturausta de Hiiberle é assente numa tríade - tradição,

;t
48 Cf. CALVO GONZALEZ, José. Cm1111111darljllfidicaJ• ,xpenencia ,nte,pre/alii'1: un modelo de juegu
111tcncxtual para e! c.lered,u. Uarcclona: Ariel, 1992. inovação, multiculturalismo - que permite a instauração de um conflito
49 É com base na idéia de herança, •nterdependência histórico-cultural e formas • estr u turas q u e o autor constante entre mudança e permanência no ciual se processa a dinâmica
.�,: '-·
--Í <-·t Y·
• ,,

, ,111s111u,·ional. Esta ênfase na cultura cu11�1i1u, 1 · ·, 1 i" 1 ", ,,,, 11,1,1,

vai <lec;.em•ril"C! rr !t' "' ., .. /._.,, -1 /.,,11·1 t(• lt \/J1t11J
�,11 � - .'que permita, de um lado, a con�truç�o do anpH� ll! 11

tde:d de , 1. '1' ' 1 J .... fcs:1 do dil'etlo ro111j>m"r1do lOlllO méu,do rn:ccs�.11

, .11111 ,lc um;1 pcrsp,_·t:uva cicndlico-cultural :u cultura poUtica, pode significar urna
an1ph. , 1 : , , 1 11c:1
50 l)p. rn. I' ., ,i:J constituição, uma vez que confere elev,td• 1,,, .-, a11.·I··· 1 ,,. 1,111.,·,
 .'2i-,
culturat; concretas, abri111 \o.a aos resultado:; das inve·;ugaçõcs surn)lógicas,
antropológicas e políticas que pôern em evidência suas virtudes e
fragilidades atuais. A mei;rna ênfase na cultura constitucional fo rn ece os
parâmetros para aferição dos limites e das possibilidades de sua ahtalização
e cvtta seia rcvest.Jda de meraflmçr7o simbólica (guc, a pretexto de maximizar
sua força nor�1adva, destroça-lhe, convertendo-a em mera }olha de papel,
em proJet� utoptco, em muito distanciado da idéia do mínimo utópico da
const1tu1çao e da função pedagógica apregoadas por Haberle).
Por fim, quando entende gue a constituição deve propiciar uma.
1, _
atttude de tolerância (suportar-se mutuamente) e de fraternidade (promo­
ção dessa tolerância), reforça seu posicionamento segundo o ciual os
valores constitucionais podem ser cultivaclos, 51 sendo seu enraizamento
,1 culrural a única forma de garantia objetiva contra o vilipêndio da dignidade
j Pons, 1996. p. 151-185.
,1 humana e da democracia (instrumentalmente orientada à realização
1 daquela); esta perspectiva de maximização dos meios ele garantia, pode
ainda ser reforçada através do reconhecimento da dignidade humana como
máxima em diplomas e por instituiçôes intcrnacionais.52
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l\lrnedina, 1999. p. 1246
51 ()s te�tos constilucionais devem ser Liternlmence mltiwufos para qut: os vínculo°' o!>JCUvos do Esiaclo
.
consutuc1onal possam ser estabelecidos no sentido de conferir maior estabilidade :i Constiiuiçiio.
SL Possibilita a constru�iio do 9uc H,\UERLE denomina de cultura in1ernacional dc•s Jircitos humanos.
Nesie sentido,vd. HABERLE, Pc1er. EI fundamentalismo como d,·safír, rld Fsr:.dn ,·,,n,utucional:
cn11sidernc1ones desde la ciencia dei Dcrecho )' ele l:i, ui, 1r, 1 .,, ,,,,_.,,/
' ·1111 1 Vi\ 1', 1995. p 113-162; Idem. FI c«nccpi•J 1, ,! 1 , , 1 ,\1
11 ! J f ), o/.·le111t1s ,1d111de1 de /01 ilere,hosju,1da111111"1/i f. M H I t· !· t ! i�
DltH'I 10 E l'CI.ITI( .•\
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Danielc Comin Martins 1

1 INTRODUÇÃO
':
h·f·'
'I
A democracia representativa passa por um período de crise, que
talvez aponte para um esgotamento de seu modelo face às novas demandas
do mundo pós-moderno. Sendo que hoje, faz-se necessário construir
uma nova teoria e uma nova prática democrática, que visem a complemen­
tação ou aprofundamento da democracia, através do clescnvolvimento
de outras formas mais complexas, que conduzam à ampliação cios espaços
públicos de diálogo e à ampliação da cida<lania. 2
Estas novas teorias e práticas da democracia começam se esboçar
com o surgimento de uma articulação entre a forma representativa de
democracia, já ccncretizada, e a sua forma direta, surgindo um sistema
misto denominado democracia participativa. A emergência da democracia
participativa, através da ampliação da participação popular no processo

A autora é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio ele Mesquita
Pilho (UNES!'); Bacharel em Direito pela Fundação Eurípcdes Soares Ja Rocha (FESR); J\lestrc
cm Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSCJ. Professora de "Sonolui.;ra d"
Direito)" e de "Direito Penal" na Faculdade Assiz Gurgacz (Cascavel/PR). Autorn do livro 1 :.ria/Ide
ria oia11ça e rio arlolescenle e políh"ca r/e alendimenlo (Curitiba: Juruá, 2003).
2 Nesse senmio, Boaventura de Sousa Santos defende a necessidade de uma nova teoria do
democracia, que deverá "proceder à repolitização global da prática social e n c;unpo politrco
imc11i;;<• quf· 1bí rcsclt:1d · permitirá desocultar formas nov�s de opressão e d� d• ,111in 1c�· 1, 1• ·
pw 1 11.1r:l nn,·:1!\ oportuni(fades p. rn o exercício de nov�c; f ,�n 1
1 l 1 ! \ ·\ � A N f( )\ Bna\·cntura d /1,,t,, 111ào de ..�Iliff o s111 1 t
·, ""ui" Corrcz, 1 '199, p. 271.
 DANil.1.1 l.uMIN r-- 1,\t< 1 IN�
de tomaJa de decisões, representa um caminho para SL' efetivar o 1 �stado
democrático de Direito e os direitos t"undamentais.
A preocupação central deste trabalho é com uma compreensão
mínima do que seja esta democracia participativa, seus elementos e formas
de efetivação, sem a pretensão de esgotar o tema, com ênfase 110 seu
caráter libertário e de defesa da sociedade e da justiça social.
l UM CONCEITO DE DEMOCRACIA
f !
Inicialmente, é necessário estabelecer-se o que se entende por de­
mocracia. Sabe-se que existem as mais variadas definições deste tema,
sendo que nenhuma delas pode deixar ele incluir corno elementos funda­
mentais a questão da_ transparência do poder e a necessidade de uma
estratégia de compromisso entre as partes através do debate permanente,
respeitando-se as diferenças, para, assim, se atingir o ideal de convivência
e de prevalecimento da maioria sem que com isso haja opressão da mino­
ria. Mas cm que pesem estas variadas definições dadas a este termo ao
longo da história, na busca de um conceito preciso de democracia, res­
tringir-se-á a abordagem às observações de Norberto Bobbio.
Segundo este autor, a democracia é aquela forma de governo
contraposta às formas autocráticas, que tem regras estabelecidas que
autorizam a tomada de decisões coletivas a partir de alguns procedimentos,
sendo que sua regra fundamental é a regra da maioria, ou seja, "a regra à
base da qual são consideradas decisões coletivas - e portanto, vinculatórias
para todo o grupo - as decisôes aprovadas ao menos pela maioria daqueles
a quem compete tomar a c!ecisão". 3
Bobbio considera que o conceito de democracia pode ser extraído
1
1
a pr1rtir de três enfoques distintos: o descritivo ou sistemá6co, o prescritivo
ou axiológico e o histórico.4 Contudo, utilizar-se-á neste trabalho apenas
sua definição mínima de democracia:
,,', /,,111101111,I ,,
ed S�o Paulo: Paz e Terrn, 20fHl, 11 ;
l'
id1,..1Hks. < .1mlnh111,Jt1 au estudo da 1lemoLTac1r1 pm11up.;t:. (. ! i :
, ,!. I· ,t , l'NS. p. 7U
DtRlll()l·PlllÍll 'f
"para urna dcfin\(;�o rrnn1111a de: de111ocr;,c1a, C\>1110 é a <.JllC ace:tu, 11,i.i b:1st:1rn
nem a atrilmção a um ek:vadu número de cichtdàns do direito de pan1upa1 diret,1 PU
mdirctamen• e da to111.1da de dec1scics wletivas, nem a existê11ci,1 de I cgras de
procedime1110 como a da maiona (ou, no limite, da unanimidade).(\ 111d1spcns:ivel
uma terceira condição: é preciso que aqueles que são chamados a decidir ou eleger os
que deverão decidir sqam col0cados cliante de alternativas reais e postos em condição
de poder escoU1er entn: uma e outra. Para que se realize est.a condição é necessário que
aos chamadcs a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdad.:,
de opinião, de expressão(...). Seja qual for o funrlamento 5losófico cbtts d1rc1tos, eles
são o pressuposto nccessá110 para o correto funcionamento dos próprios mecanismos
predomrnantcmente procedin 1e11ta1s que caracterizam um regime democnítico". 1
Face ao CXi)OSto, pode-se dizer que a democracia é caracterizada por
Lll11 conjunto de regras procedimentais que estabelecem l1uem está autorizado
a tomar decisões coletivas, em nome <la maioria e com quais procedimentos,
através de um processo de diálogo e debate estabelecido permanentemente,
impondo-se a vontade da maioria com respeito às diferenças das minorias,
assegurada a trnn,parência em LOdo o procedimento. Apresentar-se-á, no
próximo item as possíveis "formas" da democracia.
2 DEMOCRACIA Dl:\ETA E DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
São duas a:, "formas puras" de democracia. De maneira muito obje­
tiva, pode-se dize,· que democracia direta é aquela llm que o povo governa
diretamente, sem "intermediários", enquanto na democracia representati­
va ou indireta o povo o faz através ele representantes por ele escolhidos.
A democracia direta foi vivenciada na antigüiclacle clássica, pelos gregos,
quando os cidadãos se reuniam em assembléias para deliberarem sobre os
rumos do seu govcrno.6 Nesta época, era possível que o cidadão participasse
de todas as decisões a ele pertinentes, vez que os Estados ainda não tinham a
complexidade e dimensão que os L�stados contemporâneos possuem.
Já a democracia representativa é o sistema comum nos governos
modernos. Ela ":,ignifica genericamente que as deliberações coletivas,
1
'' i
llOUl\10, Norhcnc Op. rn, I' 1'
6 Cf. GOMES, Isabel J>arcrnc �lendc, < 1 1>. ,..
 -· ---------.-..---
23-l
isto é, as dclibemçües yue dizem respeito à coletividade inteira, são Lomaclas
não diretamente por a9ueles que dela fazem parte mas por pessoas eleitas
para esta finalidacle". 7 O papel do povo nesta forma de democracia é
meramente adjetivo em relação à soberania, sendo soberano apenas na
forma e na aparência.
Mas esta última forma de democracia já não se apresenta como
suficiente para reger as relações políticas dos estados modernos, verifi­
cando-se uma crescente insatisfação popular com os representantes, princi­
palmente porque estes, uma vez eleitos, deixam de ser responsáveis perante
os seus eleitores8 e porque tais representantes não são responsáveis direta­
mente em relação aos seus eleitores, já que sua função é tutelar interesses
gerais, e não particulares ou de categorias.9 Assim, a democracia repre­
sentativa está sendo submetida a inúmeras críticas, que têm sua origem
cm clássicos que defenderam a democracia direta, como Rosseau, até
chegar aos constitucionalistas contemporâneos, como Paulo Bonavides:
"Com creito, as instituições representativas padecem em todo o país de uma
erosão de legitimidade como jamais aconteceu em época alguma de nossa história,
ficando assim a cláusula constitucional da soberania popular reduzida a um mero
simulacro de mandamento (...). Observa-se uma ruptura entre o Estado e a
Socieda<le, entre governantes e governados, entre o representante e o cidadão,
tudo em proporções nunca vistas, acentuadas, ao mesmo passo, por um estado
geral ele desconfiança e descrença e até mesmo menosprezo da cidadania em
relação aos titulares do poder(...). E toda a ordem representativa cai também
debaixo de suspeição tocante a sua natureza democrática, cada vez mais rarefeita
em virtude ela <listância que vai da vontade popular à vontade representativa."tu
Mas ainda que tal crise se acentue progressivamente, não há
nenhuma proposta em transformar o sistema representativo clássico em
uma democracia direta, mesmo porque nas sociedades complexas
modernas seria materialmente impossível falar-se cm panicipação do povo
7 BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 56.
8 Srnd,, seu mandato irrevog:ivel.
'! Lf. Idem, np c1t., p. 59-60.
1 IJ t\pll(I GOl\lES, Isabel Parente Mendes, op., i,
- .: -=, � �
ti
M" :o.·--..,,_._,.______________ _
DIRl:l ll) 1 1'1JLÍTll 1,
em todas as decisões. O que se Jiscute, e esta é a propost::i aqui lcvant:1da,
é a ele existência, los dois sistemas para que se integrem reciprorntncntc,
e não a abolição ela democracia representativa para a emergência eh
democracia direta, como se e las se excluíssem: "democracia representativa
e democracia direta não são dois sistemas alternativos (no sentido de que
onde existe uma não pode existir a outra), mas são dois sistemas que se
podem integrar ré ciprocamente. Com uma fórmula sintética, pode-se dizer
que numa democracia integral as duas formas ele clemocraà1 são
necessárias, mas não são, consideradas em si mesmas, suficicntes." 11
Esta forma "mista" de democracia representativa e democracia
direta é classificada por alguns autores como democracia "semi-direta"
ou, ainda, como democracia participativa.
3 Ü POVO, QUEM É?
Um elemento fundamental para a democracia, principalmente se
considerada em sua forma direta, é o povo, titular da soberania da vontade
popular. Mas não basta que se evoque o "povo" como simples massa
controlada pelo poder político dominante , sem que se dê efetiva
legitimidade democrática ao mesmo, ele modo 9ue ele não possa ser o
sujeito e destinatario da democracia, capaz de p�rticipar ativamente das
decisões do Estado de direito e do exercício democrático do poder. Por
isso deve-se compreender a amplitude deste termo plurívoco que é "povo",
a fim de se compreender a legitimação do sistema poUtico.
Para entender-se quem é o povo, vamos recorrer aos ensinamentos
de Friedrich Müller, insigne filósofo do Direito, que em excelente obra
trata elo tema. 12 Sua abordagem disseca quatro possibilidacles ele
.·,:,:; conccituação do termo "povo": como o sujeito titular ela soberania
democrática (pov() ativo); como instància de atribuição de legitimidade;
como massa abandonada a si mesma, embora mitificada como "povo"
11 �li ,1 1
12 Mlll rTI'.. '" · i n ,J( .,.,, qneJtâofwulammlal da tl,w1offacia. Sito Paulo: !\•fax l .11non.1d, J •J< 1 \1
; 1
'1
1 1
1
DANlf-.1 ,, C, lMI'{ \1 \lfi p,, D1<t:110 f: Pou nc,\ .:37

(pm o 1c, 111c) uu, enfon, como ck·stinatáriu das forças civil 1 z,1tPr1as do () úlLimo tipo de "povu" dencadv pelo autor é aL1uelc Jetirndc >
b:stado. Vt'jamos mais cletalhadamrnte cada um destes aspectos. como destinatário de prestações ovilizatórias do E� tac.lo. füte P� ivo pucle
·
() povo ativo, segundo Mi.illtr, i· :1c1uele dotado ele capacidade de existir so)l dua�- coi·idt'ço-es·· se pclu meno·;· a minorta dos ctdaclaos ativos
.
voto, ou seja, o responsável pela legitimação pós-monárquica do l�stadu forem dotados de competência de decisão e sancionamento clefini�as e
ele direito, atr;ivés de procedimentos representativos ou pleb1 sc1tários. se todos (o povo inteiro) forem atingidos e tra�ados por tais clec1soe: e
1,
, _
l Já o povo como instância global de atribuição ele legitimidade é, seu modo de implementação. Em conseqi.iencia disso, tanto a dec1sao
i; _
segundo o autor, quanto a implementação devem ser questionados democraticamente, de
_
modo que haja O direito de resistência ao Estado para toda a populaçao,
"o destinatário das prescrições, cm conexão com deveres, direitos e funções bem como direito de prestações por parte daquele.
de proteção. E ele justifica esse ordenamento jurídico num sentido mais amplo
como ordenamento democrático, à medida que o aceita globalmente, não se Por fim, surge para O autor o povo como figura de c�mbate cap��
,'
revoltando contra o mcs mo".11 de legitimar democraticamente e de neutraliz�r o uso do povo 1cone ·
.
Em outras palavras, pode-se clizer que o povo, a Este povo é a síntese das outras três formas citadas, que deve prevalecei
partir da eleição de num Estado democrático de Direito.
representantes e de sua implementação nas funçô
es do aparelho do Estado,
acaba por ser atingido por todos estes atos, o que form Este Estado Constitucional no Brasil foi concretizado com o com­
a uma espécie ele "ciclo
de legitimação". Assim, o poder que "emana" elo povo bate, sendo legitimado pelo próprio povo que o conquistou, restanclo,
a ele retorna, de modo ,
que somente quando há a figura do povo ativo, clesen pois, 0 povo sendo invocado pela Carta Comtiwinte e°: seu preambulo
volvido sob a égide cios
direitos fundamentais, existirá a instância de atribuição
ele legitimidade.
e em seu art . 1 °, posi·tt·vando-se
, · , um d1re1to const1tuoonal obriga-
, assim
U povo ícone, que comumente encontramos na debil tório que deve ter sua legitimidade vinculaela ao povo ativo, ao povo
itada democra­ enquanto instância de atribuição e ao povo destinatário. 15
cia representa tiva em tempos ele globalizaç ão, não
pode ser considerado
verdadeiramente o povo. Para Mi.iller, este "pov Um processo de legitimação da democraci� passa necessariamente
o" não é o povo que
exerce a dominação real, pois não está exercendo por esta esfera de combate e com a necessidade' de se anular �ualquer
qualquer ato de legítima
dominação do Estado, pois este ultrapassou forma de exclusão social, capaz de reduzir o povo real ao povo 1cone. A
o exercício legítimo da
violência, embora, discu rsivamente, seja divu democracia moderna avançada é, além de normas, a atuação efetiva do
lgado que o povo está .
exercendo um ato ele dominação real. Executivo e cio Judiciário na defesa dos elireitos fundamenta1s e a po�st�i
_ �
Em outros termos, a liclade de atuação efetiva do povo na perseguição destes direitos, ou se1a, e
0 dispositivo organizacional para que impulsos de norrnatização democra-
.
"icon.ização consiste cm abandonar o povo a si mesmo, em desrcalizar a popu­ ttcamente mecliados configurem anuilo
-1 para que eles foram texuficados e
,, 11,
lação, cm mitificá-la (naturalmente já não se trata há muito tempo dessa pop ulaç;io), postos em vigor com tanto esforço: a realidade
.
soctal
.
coucl1a11a
. .

cm hipostasi;í-la de íurn1a pscudo-sacral e em instituí-la assim como padroeira tute­

Sendo, pois, a democracia, um processo de participação dos
lar abstrata, tornada 111ufensiva para o poder-violência - notre bompe11ple "."
governados na formação da vontade geral que governa, pode-se dizer

1 \ ld," 1, ..
14 Jdt 1 1· '' '
1s , .f. Idem, ibidem, p. 89-90.
l 1> Idem, ibidem, p. 115.
 ) "
[ JANll'I I· CU,\!IN M !\I{ I IN'i Orni:1 li>,. Pu1 11, ,\ 2\l)
;1
1 q u e, nda ve% rnais, ela apo
nta para a necessidade ele . . o con11�pcimento do dire1tn pelas vias
parricip ativa e e rnancip:1tor uma progre ssàu e inaugura um novo camtnbo p,ua
ia do povo, vez ciue a atual .
neoül>l:ra] tem reduzido a po lític a -econômica GSte pens,1men to busca
argumentativa,. ,�
participação popular ao m
ícone Assim, faz-s e miste e ro statm d e po
r retira r-se "o povo d a a bst vo
lançá-lo "na dimensão de raç ão e do mi to" e "estn turar c1· ent1· fiicamente ·1 re -1 l.d
1 ad e l·uri'(\J·ca• com abrangência tanto dos
sua eficácia p articipativa: o
esfera da rea lid ad povo cond uzido à conte údo:; d as normas, e·orno elas , propnec
, . 1 ades formais do Direito, por via d e
e e ela concret ude, red uzid uma interconex1·c1ade surpeendente que Ieva cm conta todos os aspcctos relevantes
o a o denomin ado
mínimo da veracid ade de r comum
sua participação " . 17 e ventualm ente omitidos com a .,· , . - da forma e da substância".21
u1ssoc1açao
A democracia participativa -
i vincula-se ao povo real, ;io Sao tam1 e, m outros elementos fundamentais para a compreensão
.l de vontade soberana, capaz
de atuar nas decisôes do Es
povo dotado
. . . . a necessidade de u ma constituiç ão abe rta, a
d a democracia )part1c1pat1va.
1
) )!,. fim de concretizar o princ tad o de Direito a
ípio da dignidade da pesso .
· , io da proporciona
efetiva participação popular e o pnnc1p 1·d
I a de .
'ii , a humana
il .
4 ALGUNS ELEMENTOS PAR
A A COMPREENSÃO DA DEMOC
RACIA PARTICIPATIVA 4.1 A CONSTITUIÇÃO ABERTA
Conforme adverte Paulo Bo , . 22
navides, o ambiente mais fec pablo, Lucas Verdu em sua o b ra L Constittticion abierta e sus enemzgos,
o desenvolvimento da democr und o p ara . .
acia participativa é o Estado p ropõe a ideia de ConstJt . u, 1ç
. ao
- Aberta , te ntando elaborar um conc eito . d_e
Esta forma de Estado é a Soc ial de direitos.
gue melhor consagra os v abertura como resu1tado da busca por um conceito substantivo de Consti-
"valores que se prendem na alores democrátic
sua expressão participativa os, . .
a mecanism o s tais tuição, em visive .,
. , l co nseguencia da cnse. elo formalismo ·urídico. Tal abcr-
co mo a iniciativa, o plebiscit )
o, o referendo e o veto po pu tura, num sentld\) , . - . Urídico , trata-se de uma conexao
. tecruco - da Constituição
lar". 18 )
Pa ra a efetividade desta for com ordenamen'.os externos ou recepçao - de outros conj untos normativos
ma de democracia, concreti
direito de quarta ge ração, z ad a como
a mesma deve estar incorp 9 ue se inc rpon:m ao sistema jurídic .
o r a da positiv ame
o o
na Constituição do Estad nte . . . , .
o, gue nã o po de m a ntê-l Além da abertura dos textos cons tituc1ona1s a o utras te,didades
progr amática. 19 Além dis a apenas n a esf er
so, a
normativ�s e e�,tran or . . .
_ ;:as�: ªu':b,e;:: � de-s� e
dizer q ue ta 1 ab,ertut.a
co nst1tuc1onal, muito :: a ã
s d raç o normativa, é a indi-
"a preparação t e órica de um
a democracia passa, de nec _91' .
de uma nova hermenêutica
constitucional, fund ada em
essirlatle, pela criação - ele uma realidade soc10 og1ca e filosófica
caçao 1 anterior à formalid a -
mesmo passo, numa reelab valores e princípios e, ao
de" 23
oração doutrinúia e científic
a da norma."20 .
Tal dimensão filosófica é Assim pode-se dizer qu e uma Constituição aberta apresentará u 1a
re presentada pe la Teona - , ,
do Direito, de Friedrich ML Estruturante mterconex ao d111am1c . a entre F, stado e sociedade , pressupondo a poss1� 1-
iller, qu e se baseia na tópica _ . p aça-
ou "nova retórica", f tidade de manifestação e part1c1 p pu1ar sobre os valores sociais
t \ �
que se a Iteram permanentemente . A a et tura é ' pois, às transformaçôcs
17 130NAVIDES, Paulo. Téorio ro111
h/11ci soc iais, aos valores cu 1 turais e a. rea !idade ' social , sem que, com .isso, se,
,�súténcú,, por'"'"' 110w bem,e11il(/im, o11al da dem<Xmcia pnrh'ripah1r1. (por""' rbmto ro11rht11ao11al de /11/a
por 111110 1?po/itizaçào ti" l iti,11it!ade). ,
18 Cf. idem, ibidem, p. l 59. ,g Siiu l'aulo: Malheiros, 2001, p. 56.
19 Ver ans. 1 º e 14 de
nossa Constituição f'cdcr: 21 Cf. ideni, ibidcr,, 1' 2fl�
,'li
rl
( ( idem, il>1drn1, p. 206. 22 ( t ( ,, 1 \' 1 ' 1 • 1 1 I' i;,

_. "!""..,..._..hif-UIWWi
 24() l 1-11111:u,:C,,M1N !\IAR11;,•;
ign(Jrt: o núcleo, a forma pcilítica clcsta Constituiçà(l, para c1ue eia não se
altere ou se des,rua. Nesse sentido:
"A consid,:ração do direito constitucional cumn conjunto sis temático e
funci onal dc normas é insuficiente. Nem todo extranormaúvo é metajurídico ou
_ _ _
extraJ und1co; a normatividade não se esgota no direito. As normas constitucionais
d
·1
se abrem a valores superiores, a dignidade da pessoa e seus direitos invio láveis·
estão impregnadas imecüata ou mecüatamente, por ideologias, descansam em um�
estrutura socioeconô mica. O ser e o dever ser não são campos contrapostos,
_ _ _
1rredut1ve1s; a normat1v1dacle e a normalidade se inter-rel acionam.(...) A meu ver,
_
a abertura const1tuc1onal autêntica exige uma adequação aos postulados da cultura
político-constitucional, quer dizer, aos valores de liberdade, justiça, igualdade,
plur alismo e a respeito da dignidade humana e de seus direitos invioláveis".24
·I
Entende-se, pois, que a Constituição, com sua estrutura dinâmica,
deve sempre adequar-se à realidade social, daí a necessidade de abertura.
Esta abertura, por sua vez, é o c aminho para a construção ele um Estado
:1 democrático ele direito, para a manifestação da vontade popular e, portanto,
para a participação efetiva cio povo no processo de legitimação demo­
crátic a, servindo como instrumentu da democraci a.
4.2 ÜS MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR
Mais uma vez é importante ratificar que a defesa da p articipação
popular direta não significa buscar-se a extinção da democracia represen­
tativa, mas apenas a procura por uma forma de se complementar a
representatividade, ampLi ando a democraci a, a partir da introdução de
aJg�ns mecanismos L1ue viabilizem a p articip ação direta cio povo
coniuntamente com a su a representação política. O desenvolvimento da
democracia participativa só se justifica com os resultados decor rentes da
parti �ipação popular, ou seja, em que é possível atingir-se a vontade geral
_
atraves ela tomada de decisão dentro de um processo participativo.
Importante dizer-se que participar significa tomar parte pesso al­
mente, ou seja, um movimento próprio 25 de cada sujeito. Assim, na
24 \/1'1 1 'i ' ' •1 1 P1rc1it, /\kndc· 1b1d1 •n, p. 62.
2S t 1. , .., !' 1 1 ,. 1 1 .1r, 111C· 1\lrnd ,, ib,.lem, p. 104
!)11H:ITIJ I· i'OI 11 IC/\
democracia participativa "1 participação refere-se à participaç,io (igual)
na tomada de decisões, ou seja, a capacidade institucionalizada ele colocar
em prática o princípio democrático básico: o da igualdade política" il,
Pode-se dizer, assim, que particip ação popular é a possibilidade,
estabelecida juridicamente, do povo intervir efetivamente nas decisôes,
impondo, de form a soberana, a vontade popular.
Para a efetiva participação popul ar, que pode se dar em qualquer
uma das esferas (executiva, legislativa ou até mesmo judiciária), são neces­
sários alguns mecanismos, alguns previstos constitucionalmente e outros
previstos em legislação infraconstitucional, como é o caso do Estatuto
da Crianç a e do Adolescente, que prevê o funcionamento dos Conselhos
Tutelares com a participação da sociedade civil.
Os mecanismos institucionais de par ticipação popular, previstos
pela Constituição Federal, são aqueles elencaclos no seu art. 14: o plebiscito,
o referendum e a iniciativ a popular. 27
Mas Dalmo de Abre Dall ari, sustenta seis medidas: !) o poder de
in iciativa legislativa da comunidade com conseqüente vinculação para os
represent antes; 2) 1 prática cio plebiscito; 3) o exercício do referefl(/um; 4) o
pronunciamento da comunidade através do veto popular sobre detcrm1nado
projeto de lei; 5) a convocação Je audiências públicas'com a inscrição prévia
da população para deliberar sobre futuros projetos; e 6) o ato ele revogação
do mandato e recon fümação tanto do representante polit:ico como de servidor
público comun.itári,). 28 Antônio Carlos Wolkrner acrescenta, também, como
formas de part:icipa<;ão no l .egislativo o voto distrital e os conselhos populares.
Na Administr ação Públic a a participação popular pode se dar: 1)
no planejamento; 2) em consultas à comunidade sobre propostas ou
pmjetos orçament;irios (como o "orçamento participativo"); '3) rcprcsen-
2C, GOMES, Isabel Parente Mendes, ibidem, p. 104.
27 Não regul:1mentados inflaconstitucionalmente, motivo pelo qual Pílulo nn11:w1des ,ugeJc :1
.,lrrrnativa de 1egulamcntaçã0 via Câmaras Municipais e Asscmblé1ns 1-:scaJuai, r· r Jl: lN,\V 1 DES,
, 1' u1., p 1 \(, 140.
\ 111\1\11,.ll, /\n1c·1nr 1 :11los Plurnl1<.;111f, 11t11( t
,, .. •,;i,, l'.,ulu: ,\lf.,-OmL c ,I, 19')7, p. �29.
1 1 [)11<1 11 t , Po1. 1 11, .·\
\
crosr J 1n�1.ru1rn.:11w du p, >V 1 >
taçiio da rnmuniJadc cm lÍ1,,..,1ão consultivos · - ej e cnt1c· 1 fü j es e1 i...' ] i.sta t,"gra J,1 pr()purc1onalidade é pod r
, , ,p 11a J 1·r,u;ao 1udiciárin, telll mecanismos l',tra faze
. .
administração descentralizada; e 4) a participação da população no cxercí. contra o legislador quc, através de, l.
I! alidade, prevalccencll) o interesse gera
CJO de um poder de controle para facilitar u Jirei tu à informação.29
valer a legalidade e a constitucion
o do aperfeiçoamento dos mecani�;­
"De conseguinte, o legislador, em razã a
Por fim, no Judic i ário, a participação popular no âmbi to aclminis­ seus atos, deixou de mover-se com
. mos jurisdicionais de controle13dos
tra�vo pode sc dar atrav�s de comissões de apelação e arbitragem, comi tês
_ inteira liberdade do passa<lo".
de conciltaçao e medtaçao, criação de tribunais dis tritais de habilitação e da Constituição sobre a lei,
d �onsumidores e�c. 10 Há, ainda, outras formas impor tantes de partici ­ /\ssim, hoje deve ex istir a supremacia
damentais. Daí ser este princíp io o
� _ no ciuc diz respeito ao s direitos fun
p açao pertinentes a a t 1v1dade judiciária propriamente dita, das quais 0 envolvimento da democracia partici-
_ _
p ovo pode lança� mao para participar da administração pública, como 0 terceiro elemento basilar para o des
controle da legalidade dos atos administrativos a través de ação popular, pativa.
mandado de segurança ou ação civil pública-, mandado de 1· nJLrnçao
· e tc.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
4,3 Ü PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE osto, é de se concluir pela
Sem dúvida que a partir do que foi exp
ocracia participativa e de
um espaço
. _o princípio da proporcionalidade era utilizado somente na esfera necessidade de implemen tação da dem
participativo. O povo é o elemento
público comunitário descentralizado e
admirnstra tJVa, mas hoje, tendo sido elevado à catego ria de princípio r que os chamados "novos movi­
, central deste processo e se pode dize
constitucional ou ate mesmo princípio geral de Direito, represen ta a mais ão da sua emergência como novos
distmtJva n o ta cio Es tado de direito, vez que ele o fortalece e possibilita a mento s sociais" são a melhor express
ele se organizar em comunidades
defesa elos direitos fundamentais. sujei to s coletivos de juridicidade capazes
rem mudanças:
conscientes de seu papel e de fomenta
Ele possui t�ês elementos parciais ou subpri ncípios: 1) a pertinência,
. _ at1v� 'comunitária como espaço
ap t1 d ao, adcquaçao o� validade do fim d o in t eresse público; 2) a "Daí a obngatoriedade de se pensar a altern
, s força s sociais (movimentos sociais)
necessidade, ou sep, º ltm1:e 1nd1spensáveI à conservação do fim a que se público pulverizado pela legitimação de nova
. dack , impl ementam suas necessidades
que, em permanente exercício ele alteri
almeia; e 3) a proporcionalidade stricto sensu. 31 ins1â ncia s prod utoras de um Direito
fundamentais e habilitam se como
unid ade atrav és cios movimentos
Este princípio serve para compelir os órgãos do Estado a adaptar Comunitúrio ,.utônomo. Nesses termos,
a com
. iário s está cham ada a co-ge rir seu destino.
em todasas suas atividades os meios de que dispõem aos fins que buscam sociais e dos múltiplos corpos intermed egar processos
das form as ele viela, empr
e aos ete1tos de seus a tos, de modo que a proporção adequada se torna No bojo ela pluralidade ele interações
_ ação transformadora com a participação
comunitários significa adotar estratégias ele
conJiçao de legalidade, ocorrendo a incons t itucionalidade "quando a clc."l4
consciente e ativa de sujeitos de juridicida
medida é excessiva ou injustificável".32
cia participativa é meio
Assim, a implementação efetiva da democra
a possib i lidade de efetivação
de se buscar o pleno exercício ela cidadania e
29 Idem, il,idem, p. 229.
1() Idem, ibidem, p. 229-230.
3'l Idem, ibidem, p 1<,'l
34 WOf.l<Mrm, i\ntú111" "' ",
· flJI:� P1uln ( lfHfl d, I;, ,·1/0 to111lt/J1âonal São f>:wl, ,: {\[.11/ i ., 1
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1 11 \(11
 / )Mm 1.1· ( ', >�-li , \ 1 '.lfflNS

1
;u, uça social através da 1 );1 ri ic1paç,1, J popular C! lmuni1ária. A ele 111c ,cracia
r· .rticipativa é um modelo capa'l de ce;mbinar representação e pai ticipação
,

1 1 r· >lítica, de modo a poss1bilit.1r ao povo a extcrnalização de sua \ ontade

suherana, garantindo a democracia.
Elementos como a Constituição aberta, a efetiva participação
popular através de mecanismos constitucionais ou legalmente garantidos SOBRE OS DIREITOS HUMANOS E USO
e a possibilidade de controle dos órgãos do Estado por meio da regra da DA FORÇA POLICIAL
pi-oporcionalidade garantem a efetividade da democracia participativa ao
111esrno tempo que conferem legitimidade democrática à ordeni política. Cristina Buarque de Hollanda
1

Desse modo, a legitimidade política passa a emanar do próprio

ciJac.lão erguido às últimas instâncias do poder, capaz de controlar e
coadjuvar na gestão dos governos, num processo que podemos dcnominar
ele "repolitização ela legitimidade". 35
REFERÊNCIAS Il!BLIOGRÁFJCAS
fll lBBlO, Norberto. Ofl1turo da democracia. 7. ed. Siio Paulo: Paz e Terra, 2000.
1\( )NAVIDES, Paulo. Teo,ia ro11.rtitucio/lrtl ria rlemocmcia j)(J1ticipativa - por 1in' direito
constitucional ele luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repoliu%ação ela
legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001.
___. Ctmo de direito co11slit11cio11al. São Paulo: Malheiros, 2001.
GOMES, Isabel Parente Mendes. C.,àntn'b11ições ao es/11do ria democracia participativa.
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WOLK1vIER, Antônio Carlos. P/11ralismo;J11idico- fundamentos ele uma nova cultura no
direito. São Paulo: Alfa-Ômcga, 1997.
Há cerca de três séculos, a noção de direitos estava inteiramente
excltúda do repertório de formulações políticas. Ao povo ca�ia a obediên­
cia· não lhe eram dados direitos. Sua inserção no mundo social estava fun­
da:nentalmente atrelada ao cumprimento de deveres, sendo a primordia­
lidade do Estado, e não do individuo, o elemento delineador da vida social.
No panorama ocidental contemporâneo, por co�traste, a config�­
ração da esfera pública assume feição completamente diversa. A ascensao
de uma concepção individualista de sociedade p assa a reconhecer no
inclivícluo O status de pessoa moral, identificando�o como autônomo em
relação a todos os outros, Configura-se, a parti� d�, a d�cadên:ia cio
tradicional ponto de vista do dever paralelamente a abrmaçao de codigos
de direitos. Respaldados por garantias constitucionais, os homens passam
a ser abstratamente concebidos como igu ais.
A afirmação dos direitos do homem constituiu inicialmente uma
preocupação circunscrita aos planos de especulação filosófica. A tradição
jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII enunciava, nu�a esfera
estritamente doutrinal, a noção de clireitos naturais e mahenave1s aos
homens. O ponto de partida era o indivíduo, o que corrohora a meneio-

L
--,. ,. �-�:;-;:;n Ciências S<,ciais pela Universidade Fedem! do Rio ck Janeiro (lH'RI); Mrslie
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(por um dirtilo con1lil11ao11a, ./, :1 :., � .� ........ /J,H 1111M rcpohh:...açào ti. ley,1ti111irlarle)
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1)11 1:11,J I l'<1t.Í'lll'\
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nada cn"lcrgência do referencial p,ilític,i moderno centrad,J na figura de

censurar a mutil:t�""'íc, g,·nital h:111111111;1 na Etiópia, p<,r cxcmpiu, C<HI ,pon
cada homem isoladamente.
ele a uma decisão eminentemente cultural, não devendo luv, r aí a
J\ noção de direitos elo hometn assume dimensão empírica somen
te pretensão de naturalidade. Tal postura reflete a assimilaç:io de ,tirJrc�
a partir das Declarações do fim do século XVIII. Ao serem
acolhidos associados à cultura dos direitos humanos.
por constituições modernas, os direitos naturais deixam
de ser apenas A contrapartida dos antropólogos a este discurso cuncsp, >nde à
uma aspiração ideal para tornarem-se formulações juridi
came nte defesa da tolerância como estratégia de mediação da diversidade. As noções
reconhecidas e protegidas contra quaisquer v iolações por
parte dos de alteridade e etnocentrismo são ferramentas teóricas da antro[ ologia
cidadãos e do Poder Público. Os direitos abstratos decantam
no mundo que contribuem para a consolidação da idéia de que não há a pussil didade
da vida sob a forma de direitos positivos, estando estriramente
localizados de eleger, a partir ele uma postura de total isenção valorativa, um padrão
no âmbito do Estado.
cultural válido p:1ra adoção universal. A tradição antropológica pn clama,
A configuração contemporânea dos direitos do homem - que
data portanto, a impossibilidade de existência de um juiz universal, ou seja, ele
da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948
- desconhece, um sujeito dotado de capacidade extraordinária c1ue o permita
entretanto, tal circunscrição estatal. Cada habitante do plane
ta passa a ser desvcncilhar-se de sua realidade particular e emitir julgamentos cotn status
reconhecido pela comunidade internacional como cidadão
do mundo e, de neutralidade. A suposição contrária incorreria em perspcctivas
portanto, eventuais violações dos direitos reconhecidos como
naturais autoritárias, culturalmente impositivas, Na obra de Rousseau, por exemplo,
pela tradição ocidental são passíveis de ser punidas em prol da
integridade a brecha deixada, que dá margem a leituras que o associam ao totaliurismo,
física e moral dos homens universais. A defesa dos direito
s humanos está justamente na figura do legislador, um ser que não tem origem divina,
pode então ser efetuada tantopelo Estado quanto contra o Estad
o, contando, mas que ocupa L m lugar privilegiado diante dos outros homens, diLando
para isso, com mecanismos internacionais pautados em
p ressupostos o justo e o injusro.
culturais que se auto denominam universalizáveis. Conf
igura-se aí a Como lidar, então, com o tema da diversid�de estando incorporado
desabsolutização das fronteiras estatais.
à ótica moral da cultura que analisa? Um tribunal das culturas estará sempre
A peculiaridade desta transição da era dos deveres para
a era dos fadado às limita<;ões culturais de quem o dirige. E, além disso, mesmo
direitos2 reside, portanto, nesta referida pretensão universaliz

il
' 1 ante, foco dentro do espaço onde se inscreve culturalmente, o discurso dos direitos
em que se concentra toda a polêmica em torno da questão
dos direitos humanos poderá encontrar limitações decorrentes do descompasso entre
humanos. A final, o que é passível de ser estendido indisc
riminadamente instituições e valores. As prescrições constitucionais de um moderno
ii a toda comunidade humana? Quais são os limites moralmen
te aceitos Estado de direito, por si só, não garantem a adesão moral da população
das diversidades culturais? Até que ponto determinadas
práticas sociais aos pressupostos culturais dos direitos humanos. Em muitas in,tâncias,
constituem direitos culturais ou violação aos direitos do
homem? tais proposições humanistas permanecem numa esfera ideal, não adquirindo
As respostas para tais questões implicam, invariavelm aplicabilidade na vida cotidiana. Ou seja, não decantam no mune!(', pairam
ente, em
confuto. Não há consenso possível em torno delas pois cada num plano abstrato, permanecem 110 universo estritamente formal uma
uma enuncia
verdades culturais próprias, e estas são inconciliáveis. Assim vez que não são incorporaclas às ações dos sujeitos.
, a decisão de
Meu interesse pelo tem, 11 r,Jí,·i,, '11 �flciedacle b1asileira
: ., rLcrtu llubbH• contcmporânea surgejust.t111,·1 Jl · , 1 'i !ht,11Jci.1 que n · parece
!1
CR1sT1·,A Bt,i\l(<JtJI. u1 1 [rn 1 \N ,,,
evidt 1k t la110 institucional e o plano da "vida como ela é" Salvo
algun,a� d ,1 ,, •.:s do sistema judiciário, podemos dizer que vivemos
num 1 ·:sLat, , , , Uar cio ponto de vista normativc mas ineficaz do ponto
1,
de \'hta dl L :1 1-,1lizaçâo prática. A aplicação da lei em muit:os casos clá­
se ck man·:1r, particularizada, obedecendo a arbítrios individuais
local1zad11, nt, plano extra-oficial, o gue esvazia seu conteúdo
pretrnsam ·ntt 1,niversal.
Nu , 1111 >'<, so da política, além da mencionada distância entre
insti1 uiçõt , .. 1 ,res, outro nítido descompasso, desta vez entre o plano
do d1c;cur�1> e 1> das ações, assume papel relevante na definição da esfera
pública. C.1,nt1:mamente a práticas sociais gue cada dia mais cristalizam
tratament(), d1 fcrenciados aos homens, o discurso dos direitos humanos
parece vir .tssuniindo crescente legitimidade diante da opinião pública,
sendo bast.rnte evidente, por exemplo, sua adoção por políticos das mais
divc rsas filiaçocs partidárias. A incorporação desta temática às agendas
polit1cas d.!-Sl, entretanto, de forma mimética, sem apoio em critérios de
reflL xivid.1Lk. Trata-se de um simples "recortar" e "colar" que
hom, >genc1za •J dtscurso político e tende a criar um cunscnso meramente
fornnl, circun�crito ao âmbito da fala. Sendo assim, o cliscurso dos direitos
hun .mos l'C''f'ª'"ª partidos de direita e esguerda, podendo assumir tons
vari.1t los, nLlS mantendo o princípio da universalidade abstrata dos homens.
O af.1stamento deste preceito pode significar perda de credibilidade politica,
unu vez Lluc Lstá em grande medida incorporado às expectativas do
eleitl)rado com relação à figura pública de seus candidatos.
Dest.1 maneira, dificilmente algum ator político se pronuncia
publicamente a Lwor, por exemplo, da adoção de ações deliberadamente
difercnciachs ,,ara pobres e ricos. Caso o faça, será severamente punido
peL1 'comc1ê11cu moral" da coletividade. Ainda gue suas ações sejam no
sen11Jo de r,mmover tal disparidade, deverá aboli-las do plano discursivo,
a fim de não despertar rejeição do eleitorado.
A superposição de discursos alinhados com a idéia de direitos
ru 1 \111(" ,r .1m lado, e pr.11•, "1111.!l<'irias, p('r rn11ro,
ªP' l,' L! ig-1,dade essc11t 1 ' ,. ,k,J11,..,r a n1s1c'... ci:1
D11(11 1 1 !' 111•,.,
1
de uma cultura de discrirninaçâo contraditonan 1ente suhjacc:nte at l discuD i
dos direitos humanos. Scn<lo assim, esta formulação cultural ensaia um
retorno simbólico à esfera puramente doutrinal dos clireitos naturais e, na
medida em gue não se fundamenta empiricamente, reproduz-se num vácuo.
Traçado este panorama, estarei então dedicada;\ analise da questão
da violência policial a par tir da ótica dos direitos humanos. O
distanciamento da polícia com relação a padrões ideais de conduta deverá
ser abordado canto a partir da mencionada cultura discriminatória, guanto
a partir das distorções estruturais que propiciam a incursão do aparato
policial em práticas ilegais.
Ao discutir o tema dos direitos humanos, Richard Rorty aponta
três distinções que caracterizariam os limites entre humanidade e nâo­
humanidade. Uma delas refere-se à distância entre homens e animais; a
outra, entre adultos e crianças; e a terceira, entre membros do universo
feminino e masculino. A compreensão metafórica de tais categorias sugere­
nos que: homens distanciados de nosso universo moral podem ser
considerados animais (e assim julgamos, por exemplo, os torturadores
sérvios que, por sua vez, julgam da mesma maneira suas vítimas); povos
gue julgamos ignorantes e supersticiosos podem ser comparados a crianças
(um bom exemplo disto é o status jurídico gue os índios ocupam na
legislação brasileira); e, finalmente, quaisquer indiví,cluos que se cl1stan�1em
elo universo estritamente masculino (seja porgue nasceram sem pems,
seja porque tiver:atn-no mutilado ou porgue foram penetrados por ele)
não merecem o estatuto de hurnaniclaJe.
Uma vez aceitas tais fronteiras, legitima-se dentro ele cada
comunidade cultural a subjugação elo homem pelo homem. Quaisquer
ú
' elementos não circunscritos ao padrão definido de universo humano são,
�1
segundo esta lógica, legitimamente incorporados de maneira assimétrica
.1
1
à sociedade ou dela extintos. Ou seja, a eles cabe um status de tnfcnondade,
�l assim como aos animais, crianças e membros feminilizados. Encontra-se
e legitima-se aí a intolerância com relação à diferença.
Quando Primo Lévi narra sua experiência em Awschwitz, esta lógica
'.
1 '
1;1t, J.
1, I·, :·1:•,11<: 1Htll1:ll1PS de humanos, aparece em cxprr-,s·"í"
 () C'i< !IN, [ !\R )UF Of 1-!0UANIJ/\
.. 1ite. A idéia de incorporação do <lifcrent.: é in 1 ·iramentc abolida,
t '1bendo ao indivíduo que não se insere nos rn, Ides definidos de
l ,umanidade a subordinação completa ou o extcrmí, 10. A racionalidade
d1i Estado nazista fundamentava a prática de l xclusão daqueles
c(Jnsicierados não-homens, Havia, portanto , UJ'1 distanciamento
institucionalizado com relação à noção de direitos ht 1manos,
No caso brasileiro, contrariamente, a racionalidade estatal mostra­
�c justamente voltada para a garantia dos direitos humanos de seus
cidadãos, Entretanto, a combinação de um Esrado eh direito modelar do
ponto de vista normativo com um sistema hierarquindo de julgamento
cunfigura um paradoxo constitutivo da realidade n.icionaL Diferentes
tratamentos legais podem ser conferidos ao mesmo tipo de infração, sendo
esta variação atrelada ao tipo de inserção do indivíduo na ordem social.
Embora a Constituição esteja fundamentada em princípios universalistas,
atribuindo igualdade de todos perante a lei sem discriminação de sexo,
raça, profissão, religião e convicções poUticas, penas difrrenciadas poderão
ser atribuídas, com base no Código Penal, a crimes da mesma natureza.
F ntão, no caso <lo infrator ser ministro <le Estado, go,,ernador de Estado
ou território, prefeito do DF, secretário de govern<' do DF, deputado
federal ou senador, deputado estadual ou vereador municipal, membro
do Conselho Nacional de Economia, oficial elas Forcas Armadas ou do
Corpo de Bombeiros, juiz ou delegado, ou �implesmente portador de
dip loma de nível superior, ele merecerá um tipo especial de
encarceramento, ao passo que não o sendo, nenhuma forma de privilégio
lhe será concedida - ao menos em termos legais. Esta assimetria de
t ratarnento corrobora, no l3rasil, a máxima dos porcus na Revolução dos
Bichos, de George Orwell:
"Todos são iguais perante a lei, mas alg uns são mais guais que os outros."
Em 1983, quando a polícia do Estado do Rio de Janeiro recebeu
ordens de tratar toda a população indiscriminadamente de "cidadão", os
I' iliciais rcaQir:1111 rn111 ,·, 1' l'·"T1lniclade. A final, c01110 enxergar, numa
· ciedade p, 1' 1.1 1us ck ci, l.1Jani e humanidade, u11,
1)11<! !Til l l\11 ! 1 a,\
sujeito u111ve,.sal abstrato habitando cada um dos homens que compÕclll
a ordem social? Em outras palavras, como seria possível dis1)emar u
mesmo tratamento à madame da Zona Sul e ao negro favclado? Diamc
da disparidade de distribuição dos indivíduos 11a escala social, os próprios
policiais ora julgam-se inferiores, ora superiores ao "cidadão" ou
"elemento" - segundo os jargões do meio - com o qual estão lidand,).
As funções da polícia são fundamentalmente concentradas crn
torno de dois tipos de atuação, Uma delas deve zelar pela prevenção da
criminalidade, devendo para isso observar com atenção a sociedade e
atentar para as 'potencialiclaJes" criminosas de alguns indivíduos, Aqui
existe alguma margem para o exercício elo poder discricionário de polícia.
A ouüa atuação refere-se às suas funções auxiliares do sistema judicial,
dispondo, neste caso, de limitadíssima Liberdade de ação. A inserção da
polícia no universo judiciário dá-se em clara posição de inferioridade.
Sendo assim, os inquéritos policiais só são reconhecidos corno válidos
quando lavrados pelo juiz, podendo, segundo o arbítrio deste, serem ou
não incluídos no processo judicial. Caso as declarações cio réu elo inquérito
policial não sejam confirmadas diante da autor idade judicial, são
desprovidas de validade, o t]Ue demonstra a fragilidade oficia! de que
gozam as investigações policiais. Ta! posição ele subalternidaclc originará
reações por parte ela policia que caracterizam boà•parte de suas incursões
judiciais extra-oficiais.
A instauração de inquéritos constitui função da polícia a todo mo­
mento em que alguma infração à lei for constatada. A prática policial,
entretanto, normalmente esvazia o tratamento universal que deve ser
despendido a toda e qualquer ocorrência criminal, particulari?.,llldo cada
caso e, desta forma, julgando a necessidade ou não ele reg1stro. O argu­
mento comumente fornecido para tal arbítrio não previsto na legislação
é o de que a polícia não dispõe de tempo para tratar indiscrim1nada111ente
ele todos os casos, devendo, portanto, selecioná-los.
A seleção efetuada obedece a critérios pautados em u111 certo ethos
p, iliciaL que não guarda nenhum tipo de víncul, ir,,, 11 1 i, 1,-, ,,, ,1,i, i1�ualit�ria
l,111,,,[unol•stadode direitu,1\par11r !/,,·,, 1
 252 CR1s·r1N•\ Bl!l\1:r.,111- 1H· llrn 1./\ND,,
Dm 11 ,1 l'u1.11w,1 2-;_,

é transformada crn anurmalidacl ·. E, p,irtanto, cm algo a ser extinto. J\

tra\-.,tlhadures e, >S marginais. Tais categoriJs prdcnclcm esgotai< 1 u 11ivcr-( >
aplicação da lei perde seu carátt · de universalidade e assume dimensão
social, abarcando, portanto, todo e qu,1lquer indivíduo que venha :1 trav,1r
ora punitiva, ora premiadora, scllllu esta variação funçãu do interlocutor
coiltato com autoridades policiais. Difcrtntes códigos cultur;iis s�o
com o qual se está interagindo.
classificados segundo padrões hierárquicos, sendo a noção de diversi<lack
A prática categorizadora ela polícia - que distribui indivíduos cultural ajustada a um esquema unilinear de evolução cultural. Ou seja, a
segundo critérios de hiecirquização social - se constitui diversidade, segundo esta lógica, pressupõe estabelecimento de níveis
fundamentalmente num proctsso de enquadramento dos homens culturais superiores e inferiores que serão cruciais na definição dos
segundo status social e econômiro. A inteira inversão de procedimentos tratamentos despendidos aos diferentes casos. Uma briga ele família que
que se configura aí é justament o fatc, de que a averiguação factual da envolve agressão física pode, no caso de uma família pobre, simplesmente
ocorrência torna-se elemento secundário diante ela primordialidade não merecer registro, ao passo que, no caso de membros mais :ibastados,
concedida à caracterização da pessoa ou p essoas s upostamente as chances do procedimento adotado estar em sintonia com as práticas
envolvidas no evento. Ou seja, a "identificação" prévia das pessoas prescritas legalmente, são muito maiores.
envolvidas segundo categorias próprias deverá nortear o procedimento
Esta definição de diferentes rúveis de humanidade assume dimensão
da polícia. Então, as técnicas de investigação legitimadas pela ideologia
crucial no tratamento despendido pela policia à população brasileira, mas,
policial , ao invés de desvendar os fatos e então apontar suspeitos,
contrariamente ao caso limite do holocausto, tal prática está localizada na
primeiro identificam os suspeitus e depois "extraem" os fatos. A prática
esfera do extra-oficial, do não-dito. E, portanto, não assume um formato
do reconhecimento, e não a da reconstituição, é que normalmente
padronizado, estando cm grande medida atrelada aos arbítrios individuais
moklam as ações policiais. Como ressalta Kant de Lima, os casos de
das autoridades policiais. A conduta de cada autoridade é simultaneamente
solução mais fácil são aqueles em que a polícia confirma se us
definida tanto a partir das imposições do meio policial no qual está inserida
estereótipos, configurando-se aí uma espécie ele círculo vicioso: as
quanto, assim como a dos júris, a partir de �ua própria consciência,
estatísticas reforçam os estereotipas dos criminosos já estereotipados.
podendo esta e:;tar ou não fundamentada em critérios universais.
Tal ideologia discriminatória, que define padr ões humanos
A pulverização informal do poder - dando-se a partir deste
estereotipados, está historicamente associada à criminologia científica dos
afastamento entre a prática policial e as orientações que formalmente
finais do século XIX e início do XX. Os estudos "lombrosianos" legitimam
estruturam o aparato policial - gera alto grau de imprevisibilidade ela
a existência de raças inferiores e superiores e corroboram, a partir ele
ação policial. A existência de regras tácitas que em grande parte regulam
assertivas supostamente dotadas de critérios de cientificidadc, o
as relações entre policia e sociedade civil- permitindo certo conhecimento
preconceito de cor que existe nn Brasil e que se estende desde o período
prévio das ações policiais e gerando a possibilidade de estabelecimento
ela escravidão, instituição fuod:rnte desta socieda,le.
ele normas elementares de conduta - neutralizam, embora não
Conforme os resultados da pesquisa de campo de Kant de Lima inteiramente, o terror do exercício ele tais arbítrios difusos. A crueldade
sugerem, o público que entra em contato com a polícia normalmente é de tais regras e a possibilidade de serem quebradas a qualquer momento
dividido segundo dois duplos pólos opostos: de um lado, os doutores e contribuem para reproduzir a sensação de impotência diante ele um aparato
1
, li dus (termo usado para denominar poli·,·, ,1 li"� t' 1, ,1,,, estatal que se distanC'Í'1 dn F�11rln, 111:1� que continua legitimando-se e
· 1 · ,.1 > reincidentes I o mlll do carcerári,, ,i
li
1
rcprnduzind, ,-se :• l' ",,
 254 C.RISIINA !l11AIH)lll' DI 1-lüi l.ANl•A
( 1 tcJ11a da angústia da 1mprevis1btlidadc, tratado por Primo Levi, é
então retomado aqui. Porém, sob nova <",tica. No caso da polícia, os
recursos ele retaliação estão dispersos entre os indivlduos imLuídos ele
autoridade policial, estando extra-oficialmente legados ao arbítrio de suas
vontades pessoais ou de grupo, ao passo que, em Awchwitz, estão
concentradós e obedecem a uma orientação única definida pelo Poder
Público. Neste último caso, a imprevisibilidade de atuação por parte
daqueles que detém o monopólio da força está voltada para um certo
. grupo dt'. homens, ou melhor, de não-homens, e encontra legitimação
em diretrizes governamentais. Contrariamente, a imprevisibilidade de
atuação por parte dos policiais brasileiros não está legiúmada por qualquer
prescrição estatal. Sendo assim, não se dá de maneira padronizada, sendo
seus alvos de retaliação identificados de maneira pouco precisa por
diretrizes tácitas definidas pela ideologia policial, qüe não é homogênea,
mas perpassada por éticas distintas.
A idéia de "fazer justiça com as próprias mãos" dá margem a
interpretações particularizadas tanto por parte da po-lícia, quanto por parte
1 de indiví luos que se sintam de alguma maneira lesados, estendendo assim
o escopo de atores que se julgam aptos à aplicação de punições. Segundo
esta lógica, a noção de justiça não é compreendida estritamente com
1
referência à esfera do sistema judicial. A ela são vinculadas atribuições
pessoais que podem ou não estar associadas a ethos mais amplos de
,,
1
comportamento social. De qualquer maneira, o cumprimento da lei ou
:I
aplicação de "castigos", no caso da polícia, e a vingança pessoal, no caso
de membros da sociedade civil, constituem ações pautadas numa lógica
punitiva que leva em conta impressões pessoais e morais, e portanto
imprecisas e variáveis.
Os fundamentos clássicos do Estado postulam a necessidade de
retirada dos homens do poder ele decisão sobre o justo e o injusto. Uma
instância superior a eles deverá regulamentar, através ele leis positivas, a
aplicabilidade dos recursos de retaliação, agora concentrados nas mãos
cio aparato estatal. Inventou-,/' !'''' 1171 1: ,1,., J1r Estado qtic tem o
1 1
n10nopc', io legítimo ela vi,,!. ·1,, J1tiividuos l/UC �ão
D11i11 ,, I' l'u1111C,\
Jesprnvidos do arbítrio individual na aplicaçfo da força, a nfo 'iL r L\LI.rndc,
se trata da defesa da própria vida. O Estado de direito busca, p,;1 tanto.
despersonalizar a noção de justiça, estabelecendo padrões genéricos (
universalizáveis.
O panorama que foi traçado até agora está, portanto, cm claro
desacordo com tal formulação teórica. Ao constatar a reabilitação do
arbítrio individual (utilizo reabilitação aqui como recurso retórico para
contrastar com a idéia ele que tais arbítrios teriam sido destituídos no
momento de formação Jo Estado) dando-se em paralelo à vigência do
direito positivo regulamentador, tem-se uma superposição ele estruturas
que denota a coexistência de duas construções ideais: a <lo Estado
hobbesiano, por um lado, e a do Estado moderno ele direito, por outro. A
eficácia ora de um, ora de outro aponta uma estrutura amálgama cuja
maior angústia refere-se à, já mencionada, imprevisibilidade de ações
permeando o ambiente social.
Se o poder está em grande parte pulverizado, distribuíclo entre
policiais e sociedade civil (cada um julgando-se no direito de agir da
maneira que lhe convier já que o sistema judicial não lhes parece cumprir
devidamente suas funções punitivas), as correlações de sentido entre causa
e efeito cada vez mais perderão seu caráter de previsibilidade, uma vez
gue estarão progressivamente atreladas a lógicas'4ndividuais ou de grupo.
Numa sociedade assim atomizada, o rompimento dos nexos causais e,
portanto, a suspensão da possibilidade de diálogo entre as partes que a
compõe, constitui um sério entrave ao andamento da vida pública. Corno
articular, neste contexto, o bom funcionamento - no sentido de eficácia
- do Estado ;i
Restringindo novamente o foco de atenção ao aparato policial, as
decisões arbitrárias sobre instauração ou não de inquéritos, as prisôes
irregulares de caráter punitivo, as práticas de tortura para extração de
confissão e as demais práticas ilegais realizadas por representantes da
ordem legal chegam a assumir dimensão estrutural no sistema judicial
hra•:ilcir,, T "··r , f, irrn:ida com o papel de inferioridade que lhe é ( lf',tinadr_1,
n
1, , li,·, 1 s•)S mecanismos para driblar su' · · '
 < ·1-1s 11N,, B u,,RQt11, J11 11"1 1 ,
contc1s · ao Judiei.trio. Como consuta Karn (h: J ,1ma em seu tc1liaiho de
campo, é muito comum, por exemplo, cm vez de um inquérito poLcial, a
1 abertura de uma investigação preliminar, que é um proccdimentc1 oficioso
i
1 1 que não consta nem na lei nem no Código de Processo Penal. Tal
! investigação é m?..ntida unicamente sob responsabilidade do delegado,
pois nenhuma outra autoridade judicial é notificada de sua existência.
Este tipo de medida tem certamente como objetivo ampliar o raio de
11
atuação da polícia, cujas práticas investigattvas normalmente não gozam
de boa reputação aos olhos elo sistema judiciário.
Sendo o uso da tortura amplamente conhecido como método
policial para obtenção de confissões, os juíz es e promotores
normalmente descredibilizam os relatórios encaminhados e, em muitos
casos, não dispondo de provas suficientes para incriminação do réu,
dispensam-no. Ao contrário <las autoridades do Judiciário, que operam
sempre a partir de narrativas, a polícia alega estar próxima da realidade
e, portanto, conhecer a verdade real dos fatos. Entretanto, a
impossibilidade de prová-la judicialmente pode gerar tanto a absolvição
equivocada de criminosos quanto a incorporação indevida, por parte
da polícia, de funções judiciárias e atribuição de penas, segundo critérios
próprios, aos supostos infratores.
Ao acumular as funções de vigilância e o auxílio ao Judiciário, a
polícia unifica seu método de atuação funcionando, na prática, como
instância que emite julgamentos e realiza punições extra-oficiais. Neste
sentido, marginaliza-se Ja própria estrutura estatal que é sua razão de
ser, vivendo a tensão entre ética impessoal, na qual deveria fundamentar­
se, versus a ética policial, na qual fundamenta-se. A prática contemporânea
de atribuições judiciárias, que antigamente estavam sob sua alçada,
aponta a reprodução indevida de condutas policiais que acabam por
tornar-se elementos constitutivos da estrutura legal do atual sistema
judicial. Sendo assim, a observância estrita da lei é muitas vezes
considernda contra producente e ineficaz, representando um entrave aos
1
mEiri, 1 t,·r11·,tiv11, q11e tornam os inquéritos policiais mais províwclnwnrE
1 .i·
11 ,,\ 1 )IRI-IT(, 1 P(JLi li(,\
O cumprimento à risca de certas prescrições legais rn1>stra-se
inteiramente inviável em virtude da precariedade da 1nfra-e�trntura
disponível. Diante deste quadro, a necessidade de criaçfo ele soluç()e�
alternativas faz-se eminente, tornando inevitável o descolamento com
relação à esfera legal. As prescriçôes legais assumem configuração
eminentemente utópica, estando as práticas policiais localizadas no
âmbito das ações possíveis, o que dá margem a apropriações e
interpretações pessoais que assumem dimensão estrutural. A atividade
tradicional e extra-oficial da polícia revela-se um complemento ao
sistema judiciário, que não poderia suportar o volume de processos
criminais que lhe seriam encaminhados caso a polícia não efetuasse
uma "triagem" prévia de casos que podem tanto receber tratamento
particularizando quanto ser simplesmente descartados. A alegada
economia de "papel e tempo" faz com que, para grande parte da
população brasileira, a figura do delegado seja diretamente associada à
lei. Afinal, esta será aplicada ou não em função do julgamento que ele
fizer da sua aplicabilidade no caso.
A polícia ocupa um papel paradoxal na estrutura judicial: em suas
funções administrativas, a polícia precisa exercer seu arbítrio a fim de
evitar ocorrências criminosas, ao passo que, em S\1as atribuições judiciais,
precisa estar estritamente vinculada aos dispositivos legais. Então, a polícia
é e não é definida a partir da necessidade de adequar-se à estrutura oficial,
legal e judicial não-discricionária. A confusão e superposiçào entre as
duas frentes de atuação ocasionará a homogeneização dos métodos, sendo
a isenção valorativa na investigação comprometida pela arbitragem inerente
à prática de vigilância.
As características gerais deste quadro delineado de violação aos
direitos humanos, que se reproduzem a partir de ações difusas pautadas
em racionalidades fragmentadas, podem ser identificadas cm sua feição
mais extremada na já mencionada experiência limite elo holocausto, no
qual a lógica de destruição assentava-se numa racionalidade estatal
voltada para ó extermínio. Ao refletir snhrr a sing-ularidade desta
experiência, é preciso pog;111•·,111 l 1' 1 u tro 1111 >mcn to
 ; 1
1
25� CRIS l'INA B UAl<C)UE DE
histó1,co a malignidade humana estruturou-se a partir de uma pc1 1tica
pública de extermínio étnico que indiferencia filiação polític:., A
singul 1ridade desta formulação certamente inviabiliza a equipai 1ção
direta a outras experiências humanas, mas, dado seu caráter li111ite,
explicita situações passíveis de serem reproduzidas, em outros tempos
e espaços, em escalas menores e difusas.
A dinâmica do campo de concentração tem como um de seus
I·
fundamentos a supressão do princípio de causalidade. Alj não ha'- iam
' porquês. A ruptura com a noção de causa-efeito inviabil1 1 a o
'i estabelecimento de padrões mírumos de regularidade e hábito. Naquele
universo, não havia produção possível de conhecimento. E aqui não me
:·
refiro a alguma forma sofisticada de conhecimento, mas tão-somente
àquela inerente à elaboração de estratégias elementares de sobrevivência.
Os mesmos comportamentos poderiam produzir resultados diferenci 1dos,
sendo a pretensão do bom comportamento passível de ser punida e >m a
morte. As relações de poder se davam sem qualquer tipo ele previsibili !ade,
não havendo ali a possibilidade de construção de um míninFi de
conhecimento tácito.
A reflexão em torno do que seria o "melhor dos mundos possíveis"
gera uma grande variedade de explicações para o mundo social. No c; mpo
da filosofia política, a invenção de diversos campos cognitivos, q 1e se
auto 111titulam pautados em critérios de veracidade, configura o un1,erso
da diaphonia, em que não há possibilidade de conciliação de enunci idos.
A dimensão conflitiva lhe é inerente e isto inviabiliza a construçao de
uma teoria da justiça com base no que há de melhor. A narrati,·J do
Primo Lévi sugere, entretanto, no plano oposto, uma possível teoria da
injustiça com base no que há de pior: Awschwitz. 3
O olhar sobre esta experiência limite me parece bastante útil para
pensar a questão da violência policial a partir de dois elementos cn ,·iais:
a definição de diferentes níveis de humanidade e a angústia da imprevi-
l� , idéias for�rn apresenrnd.1, por Rc 1111 ,,.,,_,,,.b c·m .ibnl tk
1, JI bRJ, Rio de Janeiro.
1
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H )LI li )1\ r >, Rt· 1,,, ,. I', )( .í1 ll · ._
s1bilidade c<1Usa!. Estes itens são levados a seu exttemo em Awchwitz,
mas podem ser reproduzidos a partir de variações difusas no plano
cotiwano. E justamente tais variações, desprovidas do caráter absolutizante
que adquirem sob a experiência nazista, é que interessam na anáLise elas
distorções da estrutura brasileira supostamente iguaLitária.
Ao cabo desta exposição, a que conclusão espera-se chegar? A
de que a polícia é a grande vilã do sistema brasileiro? Certamente não.
As práticas policiais estão pautadas em conteúdos ideológicos difusos
que concebem a estrutura social de maneira hierárquica. Além disso, as
ações arbitrárias aplicadas à função judiciária da polícia estão, mesmo
quando não respaldadas na lei, em larga escala apoiadas e legitimadas
pela própria sociedade, que inclusive cria um conjunto de expectativas
neste sentido.
Com relação especificamente à situação de presidiários, por
exemplo, é c0rrente a visão de que a carceragem deve se converter em
mecanismo punitivo, responsável pela quitação dos débitos criados
por essas pesso�,s quando em liberdade. Diante da sensação de impu­
nidade vigente, a insalubridade e as condições desumanas <la cadeia
tornam-se uma compensação à incapacidade do Estado de agir como
convém, acabando por funcionar como a "justiça possível" nessas
circunstâncias.
Opera-se aí, portanto, simplesmente um mecarusmo compensatório
para expiar as frutrações da sociedade diante da ineficácia do Judiciário.
Ao invés de remodelar positivamente os desviantes, o sistema carcerário
baseia-se no pri :1cípio ela dor, proporcionando, além da negação da
liberdade individ·.ial, uma dosagem diária de sofrimento aos reclusos. Tal
descompasso alarmante entre justiça ideal e justiça real são absorvidos
pela sociedade a rartir de uma lógica de vingança que naturaliza a violação
dos direitos humanos mais básicos. Conforme afirma Durkhcim, "a pena
consiste numa rcaçfo passional", não tendo nisto a sociedade moderna
se distanciado dos povos gue ele nomeia primitivos. Assim o sendo,
castiga-se pelo �11 1ples prazer de castigar, não havendo nenhum sentido
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26() CR1s >M u.11,vuE 01, f lou AM>,\
Segundo definição ainda ele Durkhcim, < att ·riminoSll se define
como tal por sua ofensa aos Estados fortes e , lefin dos da consciência
coletiva. Sendo uma série de elementos de con-;ciêr eia compartilhados
sorntlmente, define-se um certo padrão de refen'.ncia moral que restringe
o raio dos já mencionados arbítrios individuais. Na ,ociedade moderna
cm que vivemos, caracterizada pela multiplicidade de valores e desejos,
1 1
:,lí certamente uma diversidade de códigos morais poderfo ser identificados,
o que, entretanto, não esvazia a idéia de circunscri�ão d 1s ações individuais.
Sendo assim, o ferimento de tais padrões de conduta compartilhados
constitui um elemento a mais na atribuição ie diferentes graus de
humanidade aos homens.
Como n:ura Drauzio Varelia em seu livro I',stação Carczndiru' os
. .
cnmmosos são hierarquizados num continuumque obedece à lógica interna
do mundo do crime. Colocados numa escala de valores, criminosos
ficariam assim mais ou menos ordenados, indo do mais aceito ao mais
odiado pelo grupo: punguistas, estelionatários, golpistas, ladrões baratos,
as s �!ta n tes, traficantes, latrocidas, homicidas, "]aranj as", alcagüetes,
JUStlce1ros, e, a escória da cadeia, estupradores. Não se sabe ao certo
porque um criminoso, condenado por matar um p,ti de família num assalto
valeria �ais do que um estuprador. O fato é que a vida de um estuprador:
na cadeia, vale muito pouco. Em outros termos, a c.lrga de dor e sofrimento
que o sistema carcerário lhe proverá será mais intl'.nsa do que a�s demais
condenados.
A hierarquia na imputação da dor está assentada na lógica
classificatória que atribui diversos graus de humanicL1de aos homens e
que permeia, de um modo geral, as diversas esferas sociais, embora não
de forma explicita nas práticas discursivas. A incorporação da idéia dos
direitos humanos à Constituição e, em grande parte, ,lü plano da fala _
gerando repúdio a manifestações explícitas de discriminação racial ou
social - certamente delineiam um terreno mais fértil para sua efetiva
j
assimilação prática. Na sociedade escravocrata, onde o racismo constituía
elemento estruturaclor da ordem social, sendo lavrado por lei e valorr,
socia1�. 'Li • l, ·' ! ' 1 1 11 ,,siJ,d1dade de trat me• to igualit;Írio cl,
1 )11:1·1 l'll I· l', >I 111< ,, 2<,[
homens; esta Lluestão simplesmente não e!;rava posta. A traçfo ht1nu11a
representava o elemento dinamizador deste meio social. Negros serviam
de animais; transportavam homens, cargas e fezes.
Sendo assim, a identificação de continuidades históricas não deve
negligenciar a enorme descontinuidade legal e cultural que nos afasta de
épocas nem tão remotas assim. Entretanto, a idéia de ruptura ideológica
total com a instituição da escravidão parece-me equivocada. Certamente
distanciarno-nos rla diferenciação social absoluta da sociedade escravocrata,
cm que um homem possuía o outro e retirava a porção de humanidade que
lhe cabia. As diferenças raciais são desabsolutizadas. Entretanto, a
desigualdade étnica profunda que perpassava a sociedade nacional na época
da abolição foi acoplada à desigualdade social intrínseca à ordem moderna
que se buscava implementar. E não houve grande estranhamento na
assimilação destas desigualdades, que grosso modo mantiveram seu aspecto
racial e não incorporaram o elemento meritocrático do capitalismo.
A opressão personalizada centrada na figura do senhor de engenho
dá lugar à opress�to impessoal das instituições modernas do Estado e do
mercado. Não há mais o chicote; mas a ralé continua a não ser gente. Os
fracassos são identificados como eminentemente individuais, pois o ator
repressor é opac-::, e invisível. Não se identifica mais um culpado, a
discriminação aparece difusa; emana de todos -ç,s lugares e de lugar
nenhum. Ela então se naturaliza. Todos agora são homens, mas uns ainda
parecem ser mais homens que os outros. E esta é contradição fundamental
que busquei abordar nesta exposição. Ela parece reproduzir-se de maneira
difusa pela sociedade, alcançando dimensão estrutural na distinção
judiciária entre réus "comuns" e "especiais" e, no plano extra-oficial, nas
práticas policiais expostas aqui.
A incorporação institucional da opção cultural dos direitos humanos
parece, então, não ter se refletido em assimilações prática�. A maneira
superficial pela qual é incorporada e reproduzida pelos discursos políticos
não gera externalidades condizentes com seus pressupostos. Seu
e�vaziamento se dá perversamente num contexto ele arirrnmcnto elas
,1 11.•11alti ides sociais.
li 2tí2

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