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4/7/2007
Marcia Angell, 68 anos, comprou uma briga feia. Crítica ferrenha dos grandes
conglomerados farmacêuticos, a jornalista norte-americana decidiu escrever um livro
para “lavar a roupa suja” e contar o que acontece dentro dos laboratórios. Angell coloca
o dedo na ferida: diz que os consumidores estão sendo passados para trás e que as
empresas fabricam remédios para doenças imaginárias. A obra “A verdade sobre os
laboratórios farmacêuticos – como somos enganados e o que podemos fazer a respeito”
(Ed. Record, 322 págs., R$ 45) acaba de chegar ao País. Ex-editora-chefe do jornal
“The New England Journal of Medicine”, a mais conceituada publicação da área no
mundo, e membro da Harvard Medical School, Angell foi apontada pela revista “Time”
como uma das 25 pessoas mais influentes da América em 1997. A disparada do lucro do
setor nos anos 80 e 90 chamou sua atenção. Diz que passou noites e noites em claro,
teve medo de represálias, mas foi em frente na busca por informações. “Os
consumidores podem não saber dos detalhes da política comercial dos laboratórios, mas
eles entendem que os preços estão subindo aos céus e que essas empresas têm lucros
exorbitantes, sustentados por vendas suspeitas”, afirma ela, nessa entrevista exclusiva à
DINHEIRO.
DINHEIRO – Em seu livro, a sra. afirma que, nas últimas duas décadas, a indústria
farmacêutica tem se distanciado de sua proposta original, que é descobrir e produzir
novos medicamentos úteis à humanidade. Nós estamos sendo enganados?
MARCIA ANGELL – Sim, estamos sendo enganados. Não há a menor dúvida disso. Os
laboratórios farmacêuticos querem que acreditemos que eles têm de cobrar altos preços
pelos medicamentos por conta dos investimentos com pesquisa e desenvolvimento de
novas fórmulas. Mas isso não é verdade. Na prática, eles gastam mais de duas vezes em
marketing do que gastam em pesquisa e desenvolvimento e têm embolsado, em termos
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de lucro, mais dinheiro do que o valor gasto nessas duas áreas. Então, é correto afirmar
que os altos preços cobrados por eles cobrem os imensos gastos em marketing e mantêm
os lucros absurdos. A verdade está na nossa cara. Qualquer um pode ir aos websites das
companhias e ver o relatório anual para descobrir o quanto eles têm dito que gastam em
pesquisa e desenvolvimento e o quanto gastam em marketing e administração.
ANGELL – A indústria fala que desembolsa cerca de US$ 802 milhões para criar um
novo medicamento (segundo levantamento do setor de 2002), mas análises de
especialistas independentes informam que o valor é apenas uma pequena fração disso
(algo entre US$ 71 milhões e US$ 150 milhões, segundo levantamento da Healthy
Research Group). Somente uma parte mínima do que é lançado pode ser realmente
classificada como novos medicamentos.
ANGELL – O que as empresas dizem é que o alto risco do negócio exige investimentos
elevados sem garantia de sucesso no desenvolvimento de medicamentos. No entanto,
ano a ano as companhias do setor registram os lucros mais elevados entre todas as
indústrias da economia. Em 2004, a lista das nove maiores empresas do setor nos EUA,
montada pela revista “Fortune 500”, mostrava que a margem de lucro média do
segmento atingia os maiores patamares entre todos os setores da economia norte-
americana. Essa taxa foi de 16% das vendas em 2004, comparada com a média de 5,2%
de todas as empresas verificadas pela pesquisa. São os consumidores que pagam por
esse enorme lucro.
ANGELL – Os americanos gastam quase duas vezes mais, em média, pelos mesmos
medicamentos adquiridos por canadenses e europeus. Nessas duas regiões, os países
possuem formatos de regulação de preço, com intervenção governamental, que os EUA
não têm. Eu não posso dizer que a situação dos países emergentes, como o Brasil, é
semelhante à que ocorre nos Estados Unidos, com valores exorbitantes cobrados pelas
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DINHEIRO – Em seu livro, a sra. afirma que a indústria farmacêutica tem enchido o
mercado com produtos que a sra. chama de “medicamentos de imitação”. Como isso
pode acontecer? Não há fiscalização dos órgãos reguladores?
informa que próximo a 80% do que foi lançado pelas empresas nos últimos sete anos
não eram mercadorias muito melhores ou diferentes do que aquelas que já estavam
sendo vendidas pelo mercado. Mas eles não podem fazer nada. A ação do órgão se
restringe a liberar medicamentos que tenham efeito sobre a doença identificada. E o
produto irá agir, já que ele é uma cópia de outros medicamentos que já atuam sobre a
doença. Então não há muito o que fazer nesse sentido.
DINHEIRO – O que seria necessário para mudar esse cenário? Elevar a fiscalização em
cima dos grupos, ou implantar mudanças mais drásticas por meio do poder público?
ANGELL - Para se ter uma idéia, há questões éticas nisso também. Os laboratórios dão
presentes e privilégios para os médicos. Eles provavelmente gastam bilhões de dólares
ao ano cortejando os doutores. Isso é evidentemente um absurdo. Contamina o sistema
porque deixa o médico desconfortável, menos propenso a realizar críticas e a ser
imparcial em relação a alguma marca, por exemplo.
ANGELL – No passado, as empresas do setor pagavam por ensaios clínicos para testar
medicamentos, mas isso acabou. Agora, elas estão envolvidos diretamente na
elaboração desses estudos que determinam a eficiência do medicamento. São elas
mesmas que não só elaboram o estudo como analisam e interpretam os resultados. Isso
dá aos laboratórios uma imensa capacidade de controlar todo o sistema e, obviamente,
eles podem maquiar o medicamento, mostrando no estudo que o produto é melhor do
que realmente é. Mais que isso: enquanto eles enaltecem o lado positivo, escondem o
lado negativo, como efeitos colaterais. Por conta disso, eu acredito muito que a
literatura médica, na descrição dos seus produtos, não é nada confiável.