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Devem ser os meus olhos, não sei, ou as lentes sujas dos meus óculos, mas nos últimos anos,

por aí
afora, no supermercado, no trabalho, no ponto de ônibus, vejo as pessoas como personagens ruins
de romances baratos. Devem ser os muitos espelhos ao meu redor. Cada vez mais prefiro as pessoas
que habitam dentro dos romances de que gosto, as pessoas do mundo escrito com as cores que
prefiro. Não que seja mais fácil lidar com um livro apenas fechando suas páginas, mesmo porque,
depois de deixadas as linhas e as letras, o pensamento às vezes permanece agarrado a tudo aquilo.
Mentira. Assim que Guillermo entrou em casa naquela tarde, eu só conseguia imaginar onde
estavam meus papéis e caneta, eu só queria trazê-lo pra cá, pretensiosamente, fazê-lo habitar as
letras, ainda que talvez ele já fosse personagem de outra história. Não era a primeira nem a segunda,
mas foi a última vez, quem sabe, que o encontrei. Eu comia um glorioso e refinadíssimo arroz com
ovos fritos, que lhe ofereci. Ele agradeceu. Me perguntou em seguida se estava bom aquele almoço
que eu devorava, esfomeado por um dia longo. Sorrindo, eu disse que sim. Pues, que lo desfrute:
las personas hoy no saben disfrutar nada, no sienten, no tienen placer por nada.
Continuei comendo, e assisti a Guillermo subir à varanda para fumar, depois descer pelas mesmas
escadas. Passos lentos, um degrau de cada vez, cuidadosamente, o corpo curvado, de lado para o
sentido do caminho, apoiando-se nas paredes. Não precisava perguntar, Guillermo sentia medo de
uma queda, algo que quem o vê apenas caminhando, o passo aberto, largo, firme, dificilmente pode
imaginar. Guillermo tem os gestos rápidos, o movimento da cabeça ao jogar os cabelos compridos
prum lado. Quem o vê também montado à bicicleta cruzando a cidade, ou empoleirado sem
capacete na traseira de uma moto, tampouco imaginaria o medo de uma queda nas escadas.
Eu também não imaginaria, e pensava sobre isso quando, logo depois, Guillermo se despediu,
perguntando meu nome. Guillermo, eu sorria novamente, desconcertado, repetindo, Guillermo. ¡Ay,
ya nos conocemos! ¡Perdón! ¡Perdón! Es que no me recuerdo de las cosas, o de muchas cosas
recientemente. Já retomara o passo firme, a postura altiva, nos despedimos, ele montou na garupa
da moto e partiu, ao menos dessa vez, de capacete, escondendo-se sexagenário.
Meu nome completo quis saber Guillermo assim que fomos apresentados. Devo ter feito cara de
interrogação, achei inusitado — quase debochei — , pensei em perguntar se ele fazia um cadastro
qualquer, se queria minha identidade e tipo sanguíneo. Mas antes que eu me decidisse pelo que
responder, Guillermo já justificava a questão: que tienen histórias los nombres, aún más los
apellidos, nos cuentam sin que digamos nada, nos guste o no. Lo mío es Guerra aunque no me
gustem esas mierdas, me dio mi mamá. ¿Lo tuyo es de tu mamá? Não, eu lhe disse, não tenho o
sobrenome de minha mãe. A cara de interrogação foi dele então.
Eu reparava em suas mãos, que vira pela primeira vez uma semana antes, no auditório da biblioteca,
com um chocalho ao fundo de uma apresentação. Guillermo transitava atrás do palco com o
instrumento, marcando o passo das canções apresentadas e, às vezes, nos intervalos, lendo um ou
outro poema. Completavam-se cem anos desde o nascimento de Violeta Parra, cujas músicas eram
celebradas naquela noite. A cantora intérprete, no palco, insistia com uma das mãos lateralmente,
com bastante discrição, voltando-se para trás, eu entendia, o chocalho atravessava o ritmo do violão
que acompanhava a voz.
Mas Guillermo, se atravessava as músicas naquela noite, tinha mãos de músico, eu reparava
enquanto fomos apresentados. As unhas, os dedos, são mãos de músico, eu estava confuso.
Guillermo voltara da Alemanha havia alguns anos, fora músico de algumas bandas, especialmente
percussionista, me contaram. Foi casado, não teve filhos, e viveu ainda mais alguns anos com sua
esposa na saída da cidade, numa casa grande e com jardins enormes, como seguia a história.
Guillermo era músico, eu repetia voltando pra casa, então eu duvidava, era como se ele imitasse a
vida de um personagem, ou seria eu quem via em Guillermo a personagem de um destino já escrito.
Durante alguns anos, Guillermo continuou tocando em alguns bares, com algumas bandas, mas
ficou conhecido mesmo foi da vizinhança, por andar desnudo pela casa toda aberta. Houve um dia,
diziam, que militares vistoriavam as casas. Solicitando entrada na residência, um grupo de homens
fardados foi recebido por um Guillermo pelado a sua própria porta. Solo pasan sin botas, en mi casa
nadie pasa en botas, además tengo mis jardines.
Depois da separação, a casa foi vendida, e Guillermo passou a viver de favor no hotel de um amigo
como tradutor e guia turístico. Às vezes o chamam para uma apresentação na casa de shows de
alguns amigos, também músicos. Após o acidente com a moto, que lhe levou meses no hospital e
muitas cirurgias, uma cicatriz no rosto a barba lhe esconde, ele mais causa confusão pelo excesso de
bebida y otras cositas do que toca. Tornou-se persona non grata nos circuitos artísticos da cidade.
Sentado num botequim para ver a decisão do campeonato continental, vi Guillermo chegar com sua
bicicleta. Sentou-se na nossa mesa, de costas para a televisão. ¿Les gusta el fútbol, no? A mi no me
importa, no puedo creer, no puedo gustar de algo que da el tiempo por quitarse, que a ti te va a
quitar el final por el tiempo. Más interesante incluso el tenis así me parece, no juega contra el
tiempo. Sempre preocupado com as horas, se vai dar tempo de fazer tudo, estou também sempre
perdendo meu tempo: ouvi aquilo com pressa, quase pedindo para que ele se calasse.
Me gusta el mambe, ¿sabes?, yo mambeo. Sim, lhe disse. Cuando lo hago, casi siempre es para
dejarme con mi guitarra por la tarde, que pueda yo dejarme con mis tambores, que venga la noche.
Ah, sim, e para os Uitoto nessa mistura de folhas de coca moídas com cinzas de outras árvores está
também o dom da palavra: o que, seguramente, você já tem, não é, Guillermo?! Rimos e ficamos
amigos naquela noite, quando novamente ele quis saber meu nome, mesmo que já tivéssemos sido
apresentados outras duas vezes. Era possível, claro, que, não conseguindo guardar o nome de
alguém que já encontrou algumas vezes, ele pudesse atualizar devaneios sobre um viagem de metrô,
estendendo o intervalo de uma estação à outra para os acordes de um violão. Eu apenas não
acreditava nisso.
Degrau após degrau, lentamente, para subir e descer até a varanda naquela tarde, por fim, entendi
um pouco Guillermo. Aquele senhor que eu primeiro vi circulando atrás de um palco, com seu
chocalho atrapalhando a cantora, sua roupa surrada, sua boina, seus cabelos emaranhados, fazia da
música sua história, seu enredo, sua profecia. Volver a los diecisiete/ después de vivir un siglo era a
profecia vivida por Guillermo. Volver a ser de repente/ Tan frágil como un segundo. Alguém que se
va enredando, enredando, era um roteiro ainda tateante, cuidadoso, calejado mas decidido, como
quem desce as escadas com medo de cair e, mesmo assim, sobe atrás de uma moto sem capacete.

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