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FACULDADE ESTADUAL DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE UNIÃO DA VITÓRIA

IEPS - INSTITUTO DE ENSINO, PESQUISA E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS

EXPEDIENTE

LUMINÁRIA, n. 9, volume 1 / 2008

ISSN 1519-745-X

Realização
FAFI Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras - UVA
IEPS Instituto de Ensino, Pesquisa e Prestação de Serviços

Apoio
Fundação Araucária

DIREÇÃO DA FAFIUV
Professor Valderlei Garcias Sanchez

VICE-DIREÇÃO DA FAFIUV
Professora Leni T. Gaspari

DIREÇÃO DO IEPS
Professor Osvaldo Nogara

COORDENAÇÃO GERAL DA REVISTA


Professor André da Silva Bueno

COMISSÃO EDITORIAL – 2008

- Prof. Alcimara Aparecida Foetsch


- Prof. Álvaro Fontana
- Prof. André da Silva Bueno
- Prof. Antonio Marcio Haliski
- Prof. Aurélio Bona Junior
- Prof. Áureo Quintas Garcias
- Prof. Daniela R. H. Woldan
- Prof. Everton Grein
- Prof. José Fagundes
- Prof. Karim S. Britto
- Prof. Lutécia Hiera da Cruz
- Prof. Marcia Marlene Stenzler Garcia de Lima
- Prof. Marieli Musial
- Prof. Roseli Bilobran Klein
- Prof. Sérgio Bazilio
- Prof. Valéria de Fátima Carvalho Vaz Boni

Capa & Diagramação


André da Silva Bueno

__________________________________ 2 __________________________________
SUMÁRIO

DO HIBRIDISMO AO INTERGÊNERO: UMA ANÁLISE DA FORMA E DO PROPÓSITO


COMUNICATIVO
Atílio A. Matozzo........................................................................................................................... p.5

PABLO NERUDA: O INTELECTUAL DIANTE DO PODER


Inês Skrepetz............................................................................................................................... p.12

AÇOES AFIRMATIVAS E A POLÍTICA DE COTAS: ENTRE O MÉRITO E O


PRECONCEITO
Éderson José de Lima ............................................................................................................... p.18

A POTÊNCIA DA IMAGEM EM OUTONO/O JARDIM PETRIFICADO,


DE MÁRIO PEIXOTO E SAULO PEREIRA DE MELLO
Caio Ricardo Bona Moreira........................................................................................................ p.26

ANA MARIA MACHADO: UMA VOZ ENTRE A REPRESSÃO E A RESISTÊNCIA


Mirele Carolina Werneque Jacomel........................................................................................... p.33

MOTIVOS MÍTICOS E DAEMONIZAÇÃO EM GUIMARÃES ROSA


Josoel Kovalski........................................................................................................................... p.38

ISABEL ALLENDE – UM CONTO PARA CONTAR


Ana Paula Such........................................................................................................................... p.43

CONTRAPONTOS DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA EM HEGEL E MARX


Ivanor Luiz Guarnieri.................................................................................................................. p.49

UMA BREVE ANÁLISE DA HISTORIOGRAFIA CLÁSSICA CHINESA


André Bueno................................................................................................................................ p.55

CARCINOFAUNA NO RIO BONITO LOCALIZADO NO MUNICIPIO DE PORTO


UNIÃO - SC, ATRAVÉS DO MÉTODO DE COLETA TIPO “COVO”
Sérgio Werle.............................................................................................................................. p.61

ESTRATÉGIAS ALIMENTARES DO BEM-TE-VI (Pitangus sulphuratus Linnaeus, 1766)


EM DIVERSOS AMBIENTES
Huilquer Vogel e Rafael Metri.................................................................................................. p.70

HISTÓRIA DA FILOSOFIA E FILOSOFAR - UM OLHAR CRÍTICO SOBRE O MÉTODO


DAS ESTRUTURAS DE M. GUEROULT
Alessandro Pimenta.................................................................................................................. p.74

A GEOGRAFIA HUMANISTA NO 3º MILÊNIO: UMA NOVA PERSPECTIVA


Marcos A. Correia..................................................................................................................... p.83

O SURGIMENTO DA INTEGRAL
Gilson Tumelero e Marieli Musial............................................................................................ p.88

__________________________________ 3 __________________________________
ARTIGOS

__________________________________ 4 __________________________________
DO HIBRIDISMO AO INTERGÊNERO: UMA ANÁLISE DA FORMA E DO PROPÓSITO COMUNICATIVO

Atilio Augustinho Matozzo1

Introdução

Ao fazermos uso da linguagem em nosso dia-a-dia, conseqüentemente fazemos uso dos gêneros, pois
nossos discursos se dão em forma de textos, centralizados e catalizados nos diversos gêneros que produzimos
conscientemente, ou inconscientemente, é isso que nos permite a comunicação verbal, nesse sentido
percebemos que os gêneros servem como mediadores e organizadores de nossas atividades sociais, eis a
importância e a relevância de seu estudo de forma aprofundada e dialogizada.

O uso diário dos gêneros provoca várias mudanças tanto na estrutura como no propósito, estas
mudanças dependem do uso que cada comunidade discursiva realiza com cada gênero. De forma interativa,
propósito e forma entrecruzam-se, ajudando na identificação e caracterização de cada gênero, por esse motivo
não podemos dicotomizar forma e propósito.

Ao discutirmos as relações que caracterizam um gênero, logo pensamos que todos poderão ser
classificados igualmente, porém, essa classificação exata não é possível, pois os gêneros são inúmeros, não
permitindo uma lista classificatória, pois o que irá, muitas vezes, constituir e caracterizar um gênero é a sua
estrutura (forma) e a sua função (propósito comunicativo).

Pensando na intrínseca relação que há entre forma e propósito, dividimos nosso trabalho em três
etapas interligadas entre si de forma reflexiva-interativa, primeiramente fazemos uma discussão em torno da
noção sobre gêneros textuais/discursivos, partindo, primeiramente, de uma definição de gênero dada por
Bazerman (2006) a qual caracteriza os gêneros como organizadores das atividades sociais. Em seqüência
realizamos uma reflexão em torno da forma e do propósito comunicativo enquanto elementos caracterizadores
dos gêneros, baseamo-nos em Marcuschi (2005) que realiza uma densa discussão referente a esses
elementos. E em um terceiro momento, concentramos nossa discussão no surgimento do hibridismo,
contrapondo-o, de forma crítica e reflexiva, ao termo “intergênero” cunhado a partir das teorias de Marcuschi
(2002) e Koch e Elias (2006).

1. A noção de Gênero Textual/Discursivo

Vivemos em um mundo altamente textual, diariamente entramos em contato com uma avalanche de
textos que modelam/conduzem as nossas atividades sociais, esses textos se dão em forma de gêneros, como
afirma Marcuschi (2006, p. 25): “todas as nossas manifestações verbais mediante a língua se dão como textos
e não como elementos lingüísticos isolados. Esses textos são enunciados no plano das ações sociais situadas
e históricas”, ou seja, são gêneros.

Para exemplificar esse nosso contato diário com os gêneros, vejamos uma passagem de ônibus, esta é
um gênero, pois tem uma função e uma estrutura, ou seja, para que possamos viajar, necessitamos da
passagem, a qual tem por função organizar a atividade (social) de embarque dos passageiros, somente poderá
viajar quem tem a passagem, os passageiros sabem disso, porque conhecem o propósito deste gênero. Temos,
desta forma, a percepção que os gêneros são entidades altamente sociais (já que são produzidos para e pela
sociedade), organizando, assim, as atividades sociais realizadas através de textos (orais eescritos).

1
Especialista em Língua Portuguesa e Literaturas pela Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da
Vitória – Paraná (FAFIUV). Professor de Lingüística do Colegiado de Letras da FAFIUV. Pesquisador do Grupo de Pesquisa
e Estudos em Lingüística e Língua Portuguesa (GPELLP) da UFTM. Coordenador do Grupo de Pesquisa e Estudos em
Gêneros Textuais e Ensino de Língua Materna e Estrangeira (GenTE) da FAFIUV.

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Bazerman (2006, p. 23) afirma que:

Gêneros não são apenas formas. Gêneros são formas de vida, modos de ser. São
frames para a ação social. São ambientes para a aprendizagem. São lugares onde o
sentido é construído. Os gêneros moldam os pensamentos que formamos e as
comunicações através das quais interagimos.

Bazermam (2006) define o lugar dos gêneros na sociedade, afirmando que eles servem como
modeladores das práticas comunicativas. Voltando ao nosso exemplo, destacamos uma reação importante, o
passageiro não chamará a passagem de gênero (“quero um gênero para Brasília, por favor”), mas sim de
passagem (“quero uma passagem para Brasília, por favor”), pois é este seu nome
(classificação/caracterização). O mesmo acontece com a carta, o e-mail, a bula, o memorando, o ofício, entre
tantos milhares de gêneros que circulam socialmente, ou seja, serão designados por seus nomes, a partir de
uma forma e de um propósito próprio.

A circulação dos gêneros dá-se em comunidades discursivas, estas são variadas e múltiplas, pois um
mesmo sujeito poderá participar de várias comunidades ao mesmo tempo, porém este precisa deter o
conhecimento em torno dos inúmeros gêneros que ali circulam, para que possa realizar variadas ações
retóricas e tipificadas, conforme a visão de Miller (1994).

Hemais e Biasi-Rodrigues (2005, p. 115) afirmam que:

A noção de comunidade discursiva é empregada em relação ao ensino de produção


de texto como uma atividade social, realizada por comunidades que têm convenções
específicas e para as quais o discurso faz parte de seu comportamento social. Dentro
dessa visão o discurso mostra o conhecimento do grupo. As convenções discursivas
facilitam a iniciação de novos membros na comunidade, ou seja, os novatos são
estimulados a usar de forma apropriada as convenções discursivas reconhecidas
pela comunidade.

Basicamente, como percebemos acima, a comunidade discursiva é o espaço onde um grupo de


sujeitos, com interesses em comum, atuam enquanto agentes sociais, por exemplo, a diretoria de uma empresa
é uma comunidade (apesar de ser uma esfera privada de circulação de gêneros), pois nela circulam gêneros
como: memorandos, cartas, e-mails, editais, etc. Os membros desta comunidade devem conhecer e produzir os
gêneros que ali circulam, neste momento entra em jogo um desafio para os membros mais novos (menos
experientes), estes deverão entrar em contato com esses gêneros, geralmente sob a supervisão dos membros
mais experientes da comunidade, os quais manipularão os gêneros que ali circulam, como afirma Swales
(1990).

Com tudo isso podemos pensar que os gêneros são categorias semi-prontas para o uso dentro das
comunidades, isso seria um erro, pois os gêneros são produzidos de acordo com as necessidades específicas
de cada comunidade. Sobre isso Marcuschi (2006) afirma que: “[...] pode-se dizer que os gêneros não pré-
existem como formas prontas e acabadas, para um investimento em situações reais, mas são categorias
operativas, instrumentos globais de ação social e cognitiva”.

Chegamos, assim, às primeiras conclusões sobre a caracterização/definição dos gêneros: (i) os


gêneros são produtos sociais que organizam atividades/ações sociais; (ii) circulam socialmente em inúmeras
comunidades discursivas; (iii) não são formas prontas e acabadas, mas são produzidas conforme as exigências
da sociedade e da comunidade discursiva; (iv) todos os gêneros têm uma forma e um propósito comunicativo.
Bazerman (2005, p. 31) completa nossas conclusões dizendo que: “gêneros são fenômenos de reconhecimento
psicossocial que são parte de processos de atividades socialmente organizáveis”.

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2. Entre a forma e o propósito comunicativo: o (re)conhecimento do gênero

Iniciamos, neste ponto, nossa reflexão sobre a forma e propósito a partir de uma conferência proferida
no III SIGET (Simpósio Internacional de Estudos dos Gêneros Textuais) por Luiz Antônio Marcuschi, no ano de
2005, na Universidade Federal de Santa Maria - RS, na qual ele discute, de forma clara, sobre a importância do
propósito e da forma, deixando em evidência a sua preferência pelo propósito.

Retornemos ao exemplo da passagem, quando alguém quer viajar compra uma passagem, encontra,
então, uma forma pré-estabelecida pela empresa (seja ela qual for), o motorista somente deixará embarcar
quem tem uma passagem com a forma (estrutura) que ele conhece, ou seja, o passageiro ao adquirir a
passagem da empresa X, deverá embarcar na empresa X e não na Y, pois o motorista da empresa X não
aceita a forma (estrutura) da passagem da empresa Y, apesar do propósito comunicativo da passagem ser o
mesmo: embarcar e viajar, porém a forma não. Neste caso, temos a FORMA sobressaindo-se sobre o
PROPÓSITO COMUNICATIVO, pois é a forma que definirá a ação a ser realizada socialmente através do
gênero.

Agora um novo exemplo: quando encontramos uma receita com dicas de beleza dadas por loja de
peças íntimas, e esta “receita de beleza” traz além do endereço da loja, telefone, e-mail e a logomarca da
empresa, temos, também, aqui uma forma (estrutura) e um propósito (função), neste caso identificamos, a
forma receita, mas o propósito é outro, não é de produzir um bolo, ou uma carne assada, mas sim de fazer a
publicidade da loja. Então, neste caso, chamaremos o gênero de propaganda e não de receita, justamente
porque o propósito é que nos definiu o gênero. Temos, agora, o PROPÓSITO sobressaindo-se sobre a
FORMA.

Marcuschi (2005) deixa claro a sua opção pelo propósito, afirmando que este é o definidor do gênero,
independentemente da forma que dado gênero venha a ter. Porém, voltemos aos nossos exemplos: apesar de
definirmos que no caso da passagem o propósito fica em segundo plano, pois os sujeitos realizarão suas ações
a partir da forma, ele aparece, pois faz parte do gênero, a passagem só existe porque alguém precisa viajar,
logo ela passagem) tem a função (propósito) de autorizar o passageiro a embarcar no ônibus. O mesmo
acontece com a propaganda, a forma também aparece, porém não com a função da forma que ali está (bula),
mas com uma outra função percebida a partir da leitura mais apurada do gênero. Chegamos, assim, em mais
uma conclusão, tanto o propósito comunicativo, quanto a forma são importantes e os dois trabalham unidos,
sendo ambos definidores/caracterizadores dos gêneros.

Não podemos esquecer que cabe ao propósito comunicativo a tarefa de organizar as ações que são
feitas com os gêneros dentro das comunidades discursivas, ou seja, é o determinante das atividades a serem
cumpridas com os gêneros.

Sobre isso Swales (1990, p. 10)2 aponta que é o propósito que organiza as ações que são feitas com
gêneros dentro das comunidades:

É o propósito comunicativo que conduz as atividades lingüísticas da comunidade


discursiva; é o propósito comunicativo que serve de critério prototípico para a
identidade do gênero e é o propósito comunicativo que opera como determinante
primário da tarefa. (tradução nossa).

Vemos, então, que o propósito serve como um condutor das atividades sociais realizadas através dos
gêneros, por isso Marcuschi (2005) pende sua pesquisa e sua preferência para este elemento, porém, sabemos

2
Swales (1990, p. 10): It is communicative It is communicative purpose that drives the language actives of the discourse
community; it is communicative purpose that is prototypical criterion for genre identity, and it is communicative purpose that
operates as the primary determinant of task.

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que ele não serve como único definidor do gênero, devemos levar em consideração tanto a forma como o
propósito, pois ora identificamos determinado gênero por sua forma, ora por sua função.

3. Hibridismo ou intergênero? Uma análise da relação entre gêneros

Escolhemos como corpus analítico uma propaganda que integra-se aos gêneros híbridos, pois mantém
a forma de uma história em quadrinhos (doravante HQ), porém com o propósito de uma propaganda, retirado
da revista Mundo Estranho, junho de 2007, além da relação com a HQ, aparecem outros gêneros dentro deste
gênero, assim, temos, também, uma relação entre os gêneros primários e secundários.

Comecemos por algumas discussões acerca das relações entre hibridismo e intergênero, levando em
consideração a citação de Bakhtin (1992, p. 262) que além de fazer uma definição dos gêneros faz uma
importante afirmação com relação à instabilidade dos gêneros:

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos


e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana.
(...) Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os
quais denominamos gêneros do discurso.

Bakhtin ao destacar os gêneros como formas relativamente estáveis, mostra que há uma incerteza
enquanto a estabilidade formal dos gêneros, pois estes não serão sempre os mesmos, sofrerão modificações,
tanto estruturais como funcionais. Essa relação de instabilidade mais tarde ficou conhecida como hibridismo,
principalmente pelos trabalhos de Marcuschi (2002 e 2006).

Sobre hibridismo Marcuschi (2006, p. 29) diz que: “a hibridização é a confluência de dois gêneros e este
é o fato mais corriqueiro do dia-a-dia em que passamos de um gênero a outro ou até mesmo inserimos um no
outro seja na fala ou na escrita”. O hibridismo ocorre dentro e fora das mais variadas comunidades discursivas,
pois serve como um medidor da evolução genérica. Ainda sobre essa hibridização Kress (2003) comenta que
caminhamos para uma mesclagem sem fim dos gêneros, pois estamos a todo o momento criando formas
híbridas, assim, chegaremos ao ponto de não mais termos formas puras, mas isso não passa de uma evolução
normal dos gêneros, que obedecem as evoluções sociais.

Koch e Elias (2006, p. 114) afirmam que: “a hibridização ou a intertextualidade intergêneros é o


fenômeno segundo o qual um gênero pode assumir a forma de um outro gênero, tendo em vista o propósito de
comunicação”. Sobre esta citação temos alguns questionamentos a fazer: (i) sabemos que todos os textos se
dão em forma de gêneros, bem como a intertextualidade é a relação que um texto estabelece com outro texto,
esta relação se dá a partir das retomadas internas dos textos, ou seja, somente há intertextualidade entre o que
está escrito; (ii) sendo o hibridismo a transformação de um gênero em outro, como podemos chamar esta
relação de intergenérica, já que não é uma retomada interna, mas uma nova caracterização do gênero,
fazendo, além de uma retomada interna, uma externaestrutural, por exemplo, uma receita quando se
transforma numa propaganda não é mais uma receita, mas sim uma propaganda, assim teríamos a estrutura
(forma) de uma receita, mas o propósito de uma propaganda, neste caso o que seria intertextual? A forma? Se
levarmos em consideração a forma enquanto elemento intertextual, teríamos muitas paredesintertextuais.

Koch e Elias (2006, p. 86) definem intertextualidade desta forma:

[...] a intertextualidade é o elemento constituinte e constitutivo do processo de


escrita/leitura e compreende as diversas maneiras pelas quais a produção/recepção
de um dado texto depende de reconhecimentos de outros textos por parte dos
interlocutores, ou seja, dos diversos tipos de relações que um texto mantém com
outros textos.

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As próprias autoras definem, na mesma obra, intertextualidade diferentemente de hibridismo, pois este
se refere aos gêneros (forma e propósito) e aquele se refere aos elementos internos do texto, logo o termo
intertextualidade intergêneros não passaria de uma redundância, ou uma pequena confusão, pois se todo texto
se dá em forma de gêneros, conforme aponta Marcuschi (2006), teríamos a seguinte “fórmula”: TEXTO =
GÊNERO, logo poderá haver intertextualidade entre os textos (escritos e orais) na sua relação interna, ou seja,
somente através do que está escrito e não entre a forma, já que não existe intertextualidade ente formas. O
hibridismo, ao oposto, refere-se, justamente, a forma, bem como ao propósito, trabalhando interdialogicamente
com vários gêneros.

Em resumo, a relação entre um gênero e outro é chamado de intertextualidade, e não intergênero, pois
uma música que retoma uma poesia realiza uma relação interna (escrita) e não uma relação estrutural, logo é
intertextualidade, e se um poema tiver a função de uma propaganda apresentará uma relação híbrida, pois
temos a forma de um poema e o propósito de uma propaganda, e não uma intertextualidade (embora possa
haver intertextualidade entre o que está escrito, os elementos internos).

Através de uma breve análise, mostraremos como propósito e forma agem de modo a definir o gênero.

Definimos nosso corpus de análise como uma propaganda a partir de alguns pontos analisados que
envolvem o propósito comunicativo e a forma. Ao observarmos esse gênero somente no viés da forma teremos
uma HQ, e não uma propaganda, mas ao observarmos pelo viés do propósito teremos uma propaganda e não
uma HQ. Temos, aqui, um gênero híbrido, pois é uma propaganda em forma de HQ, ou seja, um gênero com a
forma de outro.

Levando em consideração a forma, percebemos em todos os quadrinhos a estrutura típica de uma HQ,
principalmente com a presença de onomatopéias: “SHHH”, “PUF”; linguagem simples e não-padrão destinada a
um público específico, leitores assíduos do suporte revista (Mundo Estranho), neste caso aos jovens: “Caraca!
Tropecei em um bule!”, “Não mané (...)”, “Ar-condicionado bombadão”, desta forma, a variação de linguagem
marca a comunidade discursiva a qual é destinado este suporte e este gênero.

Chegamos a definição do gênero a partir do propósito comunicativo, que neste caso é o definidor do
gênero (não esquecendo que não podemos dicotomizar propósito e forma). O propósito vem marcado através
da presença da logomarca no título: “Zoeiras PEPSI TWIST apresenta”, assim como a presença de uma lata de
Pepsi nos quadrinhos: 1, 8, 9 e 13. Ainda, no último quadrinho, os personagens típicos de HQ, dois limões,
comentam que a Pepsi Twist é o melhor refrigerante do mundo.

Através das características presentes nesse gênero híbrido também podemos classificá-lo como um
gênero multimodal, por apresentar imagens, palavras, cores, estilos gráficos diferenciados, etc., que chamam a
atenção do leitor, deixando-o mais interessante.

Com relação a isso Dionísio (2006, p. 133) afirma que:

Se as ações sociais são fenômenos multimodais, consequentemente, os gêneros


textuais falados ou escritos são também multimodais porque, quando falamos ou
escrevemos um texto, estamos usando no mínimo dois modos de representação:
palavras e gestos, palavras e entonações, palavras e imagens, palavras tipográficas,
palavras e sorrisos, palavras e animações etc.

Além da presença da multimodalidade encontramos a presença de outros gêneros dentro desse


gênero, no quadrinho 10 temos a presença de um guia de gourmets e no quadrinho 12 a presença de uma lista.
Conforme a teoria de Bakhtin (1992) temos a relação entre o gênero secundário (a propaganda em si, mais
complexa) e os gêneros primários (o guia de gourmet e a lista, menos complexos).

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Temos, também, a presença da intertextualidade, pois o gênero faz menção a uma história muito
conhecida: “Aladim e a Lâmpada Mágica”, percebemos que não é a forma que faz a relação intertextual, mas a
história (escrita ou contada, estrutura interna) que realiza essa relação, mesmo assim, surge como um aspecto
secundário, já que a intenção do gênero não é recriar a história de Aladim, mas de fazer uma propaganda
utilizando como pano de fundo uma HQ que retoma a história de Aladim.

Temos, desta forma, a presença do hibridismo e da intertextualidade, ambos separados, realizando


cada um sua função, o hibridismo criou outro gênero e a intertextualidade serviu de base, como pano de fundo,
retomando uma história conhecida do público leitor. Chegamos, assim, a uma conclusão: hibridismo e
intertextualidade são totalmente diferentes, embora possam aparecer juntos na definição/criação de um gênero.

4. Considerações finais

A intenção principal deste trabalho não está centrada na construção de novas teorias, mas sim na
discussão das teorias já existentes levando em consideração as inúmeras relações, e usos, que podemos fazer
com elas (e delas). Por isso, discutimos a criação do termo intergênero, levando em consideração alguns
pontos importantes da teoria de Marcuschi (2002, 2005 e 2006) a qual caracteriza todo, e qualquer, gênero a
partir de uma forma e de um propósito, assim como da presença de uma relação híbrida, e não intergenérica.

Assim, centramos nosso pensamento em torno da definição/caracterização de um gênero a partir de


sua forma (estrutura), que, na maioria das vezes, leva ao leitor/sujeito reconhecer os gêneros, e do propósito
comunicativo (função) que está internalizado em cada sujeito, levando-o a reconhecer dado gênero por causa
de sua função. Chegamos à conclusão de que forma e propósito são os irmãos siameses dos gêneros, pois são
indissolúveis, servindo como formas de reconhecimento/caracterização dos gêneros.

Referências

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BAZERMAN, C. Gênero, agência e escrita. São Paulo: Cortez, 2006.

_________. Gêneros textuais, tipificação e interação. São Paulo: Cortez, 2005.

DIONISIO, A. P. Gêneros multimodais e multiletramento. In: KARWOSKI, A. M.;

GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S (Orgs.). Gêneros textuais: reflexão e ensino. 2 ed. Rio de Janeiro: Lucerna,
2006.

HEMAIS, B.; BIASE-RODRIGUES, B. A proposta sócio-retórica de John M. Swales para o estudo de gêneros
textuais. In: MEURER, J. L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (Orgs.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São
Paulo: Parábola, 2005.

KOCH, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender: os sentidos dos textos. São Paulo: Contexto, 2006.

KRESS, G. Literacy in the new media age. London: Routledge, 2003.

MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In:KARWOSKI, A. M.;


GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S (Orgs.). Gêneros textuais: reflexão e ensino. 2 ed. Rio de Janeiro: Lucerna,
2006.

__________. Os desafios da identificação do gênero textual nas atividades de ensino: propósitos


comunicativos versus forma estrutural. III SIGET. Santa Maria – RS, 2005.

__________________________________ 10 __________________________________
__________. Gêneros textuais: constituição e práticas sociais. In: DIONISIO, A. P.; MACHADO, A. R.;
BEZERRA, M. A. (Orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

MILLER, C. Genre as social action. In: FREEDMAN, A.; MEDWAY, P. Genre and new rhetoric. London: Taylor
& Francis, [1984]1994.

SWALES, J. M. Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cup, 1990.

Imagem retirada da Revista Mundo Estranho, junho de 2007.

__________________________________ 11 __________________________________
PABLO NERUDA: O INTELECTUAL DIANTE DO PODER

Inês Skrepetz3

Neruda por Skármeta: (...) Não sei se foi um grande amante, mas sua poesia fez os
casais se amarem. Não sei se foi um grande político, mas semeou sua palavra em
tempos de conflito e com ela animou a esperança em luminosas cidades de justiça.
(Skármeta, 2005, p.11)

Em todas as épocas tivemos personalidades que tatuaram o seu pensamento na pele da História, ou
melhor, seres humanos inconformados perante uma realidade que os vestia com um manto nada acalentador.
Por isso se despiam dela e, desnudos de qualquer veste “modeladora”, iam para o campo de batalha somente
com a espada e o escudo criados por seus ideais. Podemos, então, chamar estas armas de Poesia, Filosofia....
indignação perante uma marcha controlada por um poder condicionante, sem canalizadores para a maior razão
da vida: a Liberdade!

Porém, não há como sermos apenas historiadores didáticos que mostram a vida através de painéis
históricos sobre o que aconteceu em uma determinada época, tempo ou espaço. Precisamos ir além; como
num jogo de espelhos, vemos ainda o passado refletindo em nosso presente, ou melhor, a batalha ainda não
acabou e não podemos ficar imóveis como prisioneiros em um campo de concentração. É necessário que
rompamos as cercas de arame feitas de medo e comodidade. Portanto, é aqui que entra em cena a arte das
palavras, não como um conforto espiritual, mas como uma provocação....um grito inquietante que nos repele
para uma atitude.

Já que estamos falando em épocas, ocasiões em que se vive ou acontece algo, nada mais instigador
do que falar de nossa época, do momento em que estamos vivendo e, por tantas vezes, nos omitindo. Pior
ainda, amordaçamos os lábios de grandes pensadores que não se dobraram diante dos acontecimentos
desumanos. E como fazemos isso?... Simplesmente perdendo a memória, esquecemos que a vida é um
contínuo movimento e não uma trava letárgica com sombras criadas pela própria consciência adormecida,
como nas palavras do indomável poeta Neruda: “O poeta nos entrega uma galeria de fantasmas sacudidos pelo
fogo e a sombra de sua própria época”. (1983, p.7). Aqui, Neruda usa maravilhosamente bem a palavra
“sacudidos”, agitados, movimentados por um espírito incômodo de tal forma que a letargia conveniente se
rompe e faz jorrar milhares de perguntas e uma delas é: por que o silêncio dos intelectuais?

Mas, antes de prosseguir neste questionamento, vamos trazer para esta arena de conflitos uma
definição mais precisa sobre “quem é um intelectual?”. Quem teve a perspicácia profunda para defini-lo foi o
jornalista e professor Adauto Novaes (2005). Ele coloca que o intelectual não é essencialmente o homem das
letras, o artista, o historiador, o escultor, o sábio, etc: em outras palavras, seria necessário refletir sobre a
definição de Maurice Blanchot, na qual o intelectual é “uma parte de nós mesmos que não apenas nos desvia
momentaneamente de nossa tarefa mas que nos conduz ao que se faz no mundo para julgar e apreciar o que
se faz” (apud NOVAES, 2005, p.5). Novaes prossegue na definição de que para transformar-se em intelectual é
essencial que haja um desdobramento, um acúmulo momentâneo em si mesmo para outras funções,
marginalizando um pouco os saberes particulares para que o trabalho da crítica e a luta pelos ideais
universalizantes como a razão, a justiça, a liberdade e a felicidade recebam um olhar mais profundo e uma
dedicação maior.Como o próprio Neruda escreve em Confesso que vivi: “Talvez não tenha vivido em mim
mesmo, talvez tenha vivido a vida dos outros” (1983, p.3). Neste sentido, o intelectual se caracteriza pela
mudança de trajeto em relação a todo determinismo e começa a labutar com potências indeterminadas; “Ele
não é um teórico, muito menos um homem da vida prática e do saber objetivo: pode-se dizer, mais
precisamente, que ele encarna o espírito crítico, capaz ao mesmo tempo de reconstruir o passado e construir
idealmente o futuro” (2005, p.3).

3
Prof. Letras Espanhol/ Português e Literatura Hispano-americana; Mestranda em Literatura da UFPR.

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Neruda na solidão da Grande Muralha da China

E para dar mais uma apimentada neste nosso prato da vida, retornamos ao nosso questionamento: por
que o silêncio dos intelectuais? Será que a tristeza, a decepção, o desencanto tomaram conta? Onde está a
força retirada da definição dada, por Novaes, para o intelectual em que ele reconstrói o passado e constrói
idealmente o futuro? Portanto, esta mudez, esta letargia não está contribuindo até mesmo para silenciar a voz
de quem não se calou em sua época? Conseqüentemente, as mordaças estão tanto para o presente quanto
para o passado? É neste ponto que devemos refletir mais perspicazmente - o fato de se deixar ouvir as “vozes
do passado” talvez seja uma forma de despertar a atualidade. Então surge outro questionamento: se o
intelectual não é essencialmente um artista, o que tem a ver o intelectual com a arte?

A arte é mais que expressão, ela é uma doação. O artista se doa através de sua arte. Assim como o
intelectual, que se envolve com ideais universalizantes, não há como fechar-se em si mesmo, pois tanto a arte,
o pensamento filosófico, a política, etc. desembocarão no mesmo oceano que é a própria vida do ser humano.
E envolvidos neste cataclismo de reflexões sobre o intelectual e sua encarnação de ideais universais, é
interessante lembrar de uma entrevista realizada por Clarice Lispector a Pablo Neruda, numa de suas vindas ao
Brasil, em que ela pergunta como é que ele descrevia um ser humano o mais completo possível, e então ele
respondeu: “Político. Poético. Físico” (2007, p.72).

Esta resposta de Neruda não significa necessariamente que todos os seres humanos devem se
envolver num partido político, escrever versos como um poeta ou coisa parecida. Mas sim, que ser político,
poético e físico é imanente ao ser humano. Novaes aprofunda novamente a discussão sobre como se constrói
um intelectual quando afirma:

O intelectual seria, enfim, aquele que tenta infatigavelmente construir a si mesmo e a


todas as coisas através de atos articulados do espírito. Mais: por encarnar os ideais
universais, procura reunir em si o que está disperso, “dispersão e junção, essa seria a
respiração do espírito, o duplo movimento que não se unifica, mas que a inteligência
tende a estabilizar para evitar a vertigem de um aprofundamento sem fim”. O
intelectual seria, pois, um matemático que trabalha com símbolos e os combina com
certa coerência sem nenhuma relação com o real. Assim, ele está, como lembra
Blanchot, tanto mais próximo da ação e do poder quanto mais ele não se mistura com
a ação e com o poder político estabelecido. Ao mesmo tempo ele não pode ser
desinteressado da política: “afastado da política, não sai dela, mas tenta manter este
espaço de afastamento, e esse esforço de retirada para aproveitar essa proximidade
que o distancia a fim de se instalar nela (instalação precária) como um guardião que

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está lá apenas para velar, manter-se alerta, por uma atenção ativa onde se exprime
menos o cuidado de si do que o cuidado dos outros” (Novaes, 2005, p.5-6).

Como já comentamos nos parágrafos anteriores, todos o seres humanos não necessitam,
essencialmente, serem poetas que rabiscam versos ou políticos que fazem parte de um partido, até porque
Novaes também deixa bem claro que o fato de alguns serem artistas ou políticos não os torna intelectuais.
Acreditamos que um destes adjetivos (“político”) dos quais Neruda fala é, justamente, aquilo que Novaes (2005,
p.6) coloca na citação anterior em que ser um intelectual é ser um consciente, é “manter-se alerta”, instalar-se
nela, a política, “como um guardião que está lá apenas para velar”. Só que entre estas colocações, surge outro
questionamento: mas Neruda não fazia parte de um partido, o comunista, chegou a ser senador e quase
concorreu à presidência do Chile? Neruda se engajou politicamente, mas não como um almejador de poder
dominante, mas, via no comunismo o caminho para a concretização de seus ideais. Aqueles ideais
universalizantes que já comentados, tais como a razão, justiça, liberdade e felicidade.

Assim como as experiências de Neruda, na infância, sobre trens, navios, o oceano, a natureza fecunda
nos bosques do Chile, enfim, os seus primeiros amores....assim também, a guerra entrou em sua vida! E é
possível perceber o reflexo desta experiência, ainda mais profundamente, em duas de suas obras em que esta
tensão se faz com maior presença: España en el corazón, escrita em meados da década de 30, e Incitação ao
Nixoncídio e louvor da Revolução Chilena, do início da década de 70. Neste sentido, mais tarde, em seu livro de
memórias Confesso que vivi, Neruda lembra da época em que escreveu España en el corazón e sobre a
experiência que teve durante a guerra civil na Espanha, vivendo lá ainda como um jovem cônsul chileno, e
relata que:

Desde aquela época e com intermitências se infiltrou a política em minha poesia e em


minha vida. Não era possível fechar-me em meus poemas, assim como não era
possível tampouco fechar a porta ao amor, à vida, à alegria ou à tristeza em meu
coração de jovem poeta (1983, p.57).

Prosseguindo, podemos dizer que “experiência” é tudo o que passa por nossa vida e nos penetra,
sentimos e vivenciamos com todos os nossos sentidos e intelecto, assim, a guerra não apenas passou diante
dos olhos de Neruda, mas o violentou, deixando marcas e cicatrizes irrevogáveis no poeta. Portanto,
parafraseando Neruda (1980), a poesia é uma insurreição, é uma revolta consciente e indignada perante o
poder que lhe é apresentado em forma de domínio e opressão. Assim sendo, este mesmo ser humano poético,
político, físico, este intelectual que não se fechou num gabinete para “deduzir” em seu tratado filosófico o que é
a vida, mas que saiu para penetrar o mundo, permitindo que o mundo também penetrasse nele, tornou-se um
pensador ativo que, ao reconstruir o passado, foi capaz de idealizar o futuro. E esta prova podemos encontrar
em sua obra Para nascer nasci, em que o poeta escreve:

Porém a vida e os livros, as viagens e a guerra, a bondade e a crueldade, a amizade


e a ameaça, fizeram mudar cem vezes o traje de minha poesia. Coube-me viver em
todas as distâncias e em todos os climas, coube-me padecer e amar como um
homem qualquer de nosso tempo, amar e defender causas profundas, padecer os
pesares meus e a condição humilhada dos povos (1980, p.335).

Neste sentido, não podemos perder de foco o nosso objetivo que é pensar Neruda como um intelectual
diante do poder e, ao mesmo tempo, nos questionarmos sobre a sua voz em nossa atualidade. Mas como?
Pensamos que, ao resgatarmos a sua poesia e sua luta, possamos quebrar, nem que seja um pouco, a letargia
que nos encontramos. Até porque nossa intenção não é condenar a situação dos intelectuais, mas sim, através
da arte - propriamente a poesia-, provocar, instigar o que chamamos de realidade. Não sabemos se caberia
bem o termo “ressuscitar Neruda” para o nosso contexto, pois acreditamos que tirar as mordaças de seus
lábios, para que sua voz propague, seria mais interessante. E quem colocou as mordaças nele e em outros
pensadores revolucionários? Deduzimos que foi nossa própria comodidade, exemplificada claramente pelo
velho chavão popular: “não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe”. É muito mais fácil apagar as

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luzes e adormecer! Neste seguimento, a poesia possui uma força inexplicável, ela realmente “sacode com fogo”
qualquer época.

Neruda em ação, numa transmissão de rádio

Na obra de Alfredo Bosi Literatura e Resistência, o autor e professor de literatura, coloca que
“resistência” é um conceito que vem da ética e não da estética, e ele ainda aprofunda explicando que:

O seu sentido mais profundo apela para a força da vontade que resiste a outra força,
exterior ao sujeito. Resistir é opor a força própria à força alheia. O cognato próximo é
in/sistir, o antônimo familiar é des/sistir. A experiência dos artistas e o seu
testemunho dizem, em geral, que a arte não é uma atividade que nasça da força de
vontade. Esta vem depois. A arte teria a ver primeiramente com as potências do
conhecimento: a intuição, a imaginação, a percepção e a memória. (Bosi, 2002a,
p.118)

Se partirmos do cognato mais próximo da palavra resistir que é insistir, vamos poder encontrar este
verbo no espírito da poesia de Neruda. Mas como? Neruda não só viu a Guerra Civil Espanhola passar diante
dos seus olhos; ele foi mais que testemunha ocular das atrocidades, até mesmo colaborou para refugiar alguns
republicanos, usando de sua presença política como cônsul do Chile na Espanha, para fazê-los atravessar a
fronteira até a França. Se reuniu com intelectuais, poetas, escritores, artistas para que, depois de terem
evidenciado uma atitude de indignação, que também mostrassem resistência perante as barbáries cometidas,
não com o poder dominante, mas com a vítima de sempre: o povo inocente. E quando retomamos a palavra
“insistir” é para fazer um salto da Guerra Civil Espanhola para a Revolução Chilena, em que o mesmo
intelectual-poeta que se indignou e utilizou-se da poesia para resistir perante os atos desumanos do poder na
Espanha, veio pelos trilhos da história insistindo/resistindo até desembocar na Revolução Chilena com o
mesmo, ou até mais fecundo, espírito revolucionário contra a ideologia dominante que explora e oprime. E é
nesta reflexão que se faz necessário dar um bom tom à voz de Bosi (2002b, p.167) quando ele se refere à
ideologia dominante em sua obra O ser e o tempo da poesia:

A resistência tem muitas faces. Ora propõe a recuperação do sentido comunitário


perdido (poesia mítica, poesia da natureza); ora a melodia dos afetos em plena
defensiva (lirismo de confissão, que data, pelo menos, da prosa ardente de
Rousseau); ora a crítica direta ou velada da desordem estabelecida (vertente de
sátira, da paródia, do epos revolucionário, da utopia).

E esta resistência de várias faces, mostra um rosto diferente para cada realidade. Ou melhor, cada face
se dá a conhecer e ao mesmo tempo possui um olhar, não há como resistir sem ver o que se quer ver. Por isso,
Neruda não entrou na Revolução Chilena apenas como um “rosto sisudo” e sim com uma face política

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resistente e com um olhar crítico perante o poder, assim como ele mesmo escreve em sua obra Incitação ao
Nixoncídio, com o seu poema “Eu não me calo”:

Perdoe o cidadão esperançado


Minha lembrança de ações miseráveis,
Que levantam os homens do passado.
Eu preconizo um amor inexorável.
E não me importa pessoa nem cão:
Só o povo me é considerável,
Só a pátria é minha condição.
Povo e pátria manejam meu cuidado,
Pátria e povo destinam meus deveres
E se logram matar o revoltado
Pelo povo, é minha Pátria quem morre.
É esse meu temor e minha agonia.
Por isso no combate ninguém espere
Que se quede sem voz minha poesia.
(Neruda, 1980, p.114)

Refletindo nos versos desta poesia, percebemos que os últimos ressaltam com mais agudeza de
espírito, próprio de um poeta e intelectual que não teme lançar este olhar crítico, perante o que chamamos até
aqui de “poder”, principalmente quando ele expõe que: “por isso no combate ninguém espere / que se quede
sem voz minha poesia”. E é assim como, instigantemente, Bosi coloca: “E quero ver em toda grande poesia
moderna, a partir do Pré-romantismo, uma forma de resistência simbólica aos discursos dominantes” (2002b,
p.167).

Já que, muitas vezes, ouvimos falar por aí que “a cada dia muitos estão com a memória cada vez mais
curta”, é de extrema importância lembrar de grandes personalidades - intelectuais, artistas, filósofos, etc. - para
que a atualidade não pense que a sociedade, a vida, o ser humano, os ideais já estão prontos e já foram todos
alcançados. Não podemos apenas nos lamentar ou pensar que a poesia/utopia, os ideais, são apenas palavras
adormecidas em livros de teorias ou simplesmente discutidos em ciclos de conferências, é necessário encarná-
las!

Vivemos hoje no meio de um turbilhão de palavras que constroem frases, depois se transformam em
discursos e, tantas vezes, lamentavelmente formam um desvairado ser humano sem memória do passado, sem
consciência do presente e sem ideais para o futuro. É necessário rompermos esta ostra que nos mantém num
calor cômodo e letárgico, e eis então....que entra a poesia nos lábios de um poeta, ou em livros que desejam
ardentemente serem lidos, pois, o intelectual unido a arte se torna mais forte, porque ele não só pensa o
mundo, como alguém que vela solitariamente, mas sim o toca, o movimenta....o provoca para uma atitude.

A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, “esta coleção de
objetos de não amor” (Drummond). Resiste ao contínuo “harmonioso” pelo
descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso.
Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova
ordem que se recorta no horizonte da utopia (Bosi, 2002b, p.169).

Portanto, desde a Guerra Civil Espanhola até a Revolução Chilena, Neruda não se calou, resistiu
humanamente e simbolicamente aos discursos dominantes, um exemplo inspirador de intelectual que, mesmo
tendo se decepcionado tantas vezes com os caminhos da política, jamais deixou de se calar! E sua voz que, no
princípio era verbo, se tornou carne e habitou o seio do povo, que não abandonou a luta.

Como já ressaltamos desde o início deste texto, a intenção é de instigar a todos para uma reflexão: se o
silêncio dos intelectuais é tanto que chega a fazer um “rumor incômodo”, por que não buscarmos pela memória

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(se esta não encurtou ainda mais) grandes espíritos que, repetindo as palavras de Novaes (2005), se
dedicaram “ao trabalho da crítica e à luta pelos ideais universalizantes: razão, justiça, liberdade e felicidade”.
Neste sentido, nosso objetivo maior foi o de refletir sobre Neruda como um intelectual diante do poder, suas
ações e atitudes. Os acontecimentos históricos foram apresentados em rápidos “flashes” apenas para nos dar
uma noção do contexto em que as obras citadas, de Neruda, foram escritas. E além de refletir sobre este poeta-
intelectual perante um poder dominante trouxemos esta reflexão de uma forma provocadora, também, para o
nosso contexto atual: “minha vida é uma vida feita de todas as vidas” (Neruda, 1980, p.7).

Referências Bibliográficas

BOSI, A. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002a.

BOSI, A. O ser e tempo da Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002b.

LISPECTOR, C. Entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

NERUDA, P. Confesso que vivi. São Paulo: Círculo do Livro, 1983.

NERUDA, P. Para nascer nasci. São Paulo: Difel, 1980.

NERUDA, P. Incitação ao Nixoncídio e louvor da Revolução Chilena. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980.

NOVAES, A. Intelectuais em tempos de incerteza in O Silêncio dos Intelectuais. Curitiba: SESC da Esquina,
2005.

SKARMETA, A. Neruda por Skarmeta. Rio de Janeiro: Record, 2005.

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AÇOES AFIRMATIVAS E A POLÍTICA DE COTAS: ENTRE O MÉRITO E O PRECONCEITO

Éderson José de Lima4

1. AÇÕES AFIRMATIVAS: POLÍTICAS COMPENSATÓRIAS E SUAS CONQUISTAS HISTÓRICAS

De acordo com Silveira (2003, p.11), desde 1995 com a “Marcha Zumbi dos Palmares, contra o
racismo, pela cidadania e a vida”, as políticas de ações afirmativas5 vêm se reavivando e ganhando força com a
participação dos movimentos negros, os quais se organizaram em prol da luta de igualdade, que teve seu
processo embrionário na década de 706. Em torno destas movimentações, a opinião pública brasileira vem
tomando conhecimento da realidade étnico-racial de nosso país, principalmente no que diz respeito à realidade
social e política da negritude brasileira. As reivindicações dos grupos negros vêm aparentemente se tornando e
se materializando em conquistas de direitos constitucionais frente a uma sociedade que relutou por anos em
assumir a diferença e a exclusão em relação ao negro.

Estas conquistas constitucionais dos movimentos negros vêm acompanhadas de um processo de


mobilização popular, pois a opinião pública7 exerce um papel de destaque no aparente processo de
democratização das igualdades de oportunidades no país e um exemplo destas conquistas foi à aprovação
recentemente da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e
pelo ministro da Educação Cristovam Buarque, que dá o devido reconhecimento ao Vinte de Novembro8 como
dia Nacional da Consciência Negra, incluindo a data no calendário oficial e a inclusão na grade curricular
nacional das escolas públicas, o ensino obrigatório da história e da cultura do povo brasileiro afrodescendente.

Sob os fatores legais legitimadores das medidas afirmativas, a política de cotas ou medidas de
discriminação positiva ou ainda políticas compensatórias se ancoram e se legitimam no artigo 206, inciso I da
Constituição Federal, que reproduz o artigo 3º, inciso I da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB
9394/96), na qual está assegurada a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (SILVA
JUNIOR, 2003). Partindo deste princípio de igualdade de condições a todos os cidadãos é que a polêmica das
cotas se instaura no meio acadêmico, pois dados como do IBGE e do IPEA, como afirma Munanga (2003,
p.118), “não deixam dúvida sobre a gravidade gritante da exclusão do negro [...] Fazendo um cruzamento
sistêmico entre a pertença racial e os indicadores econômicos de renda, emprego, escolaridade”. Estes

4
Graduado em Letras pela FAFI/UVA com Mestrado em Estudos Lingüísticos na linha de Estudos do Texto e do Discurso:
Análise do Discurso de corrente francesa pela Universidade Estadual de Maringá/UEM. O presente artigo apresenta uma
breve reflexão a respeito da temática das cotas raciais nas IES. O trabalho de dissertação na integra pode ser acessado
pelo endereço: www.ple.uem.br.
5
Neste item apresentaremos as ações inclusivas e as medidas práticas que justificam a exclusão do negro ao espaço
universitário, levantando algumas justificativas históricas para a legitimação das cotas.
6
Em toda conjuntura histórica da década de 70, surgem, em um processo embrionário, as lutas por reformas sociais, porém
não só da luta social dos movimentos negros por maiores direitos, mas sobretudo, de grupos considerados como
“minoritários” em representatividade social. Surgindo, então, as lutas no interior dos movimentos organizados tais como:
feministas, estudantis, operários, em uma época de extrema repressão política, intelectual e social, aflora uma voz de justiça
social entre as massas. Uma vez que eram as que mais sentiam os efeitos ou reflexos de um governo autoritário e
antidemocrático, no qual imperava uma política em defesa dos interesses das elites nacionais e ignorava os problemas
sociais vividos pelas classes menos favorecidas, legando ao silêncio toda e qualquer manifestação minoritária contra o
preconceito e a exclusão.
7
A opinião pública parece ter exercido um papel coercitivo sobre os órgãos governamentais, fazendo com que houvesse um
engajamento também por parte das autoridades políticas sobre assuntos que são de interesse da população ou de grupos
sociais “minoritários”, pressionando os órgãos institucionais para a necessidade de se ter uma política pública voltada à
correção de “erros” do passado, que se reflete diretamente nas práticas sociais cotidianas de grupos segregados.
8
Esta data surge como um grito contra toda a “forjada” história política oficial da libertação dos escravos em 13 de maio de
1888 e se manifesta como um grito “verdadeiro” de liberdade e resistência negra dizendo um não a uma história de negros
feita por brancos. Negando toda e qualquer forma de ocultação, uma vez que as relações de poder travadas no campo das
práticas quotidianas abriram novos espaços nas rachaduras dessa história de exclusão. O silêncio de não falar sobre a
diferença, faz parte de um passado recente de lutas em que vontades de “verdades” prevaleceram e silenciaram o grito de
negritude em um jogo de coerções que culminaram na construção de uma neo-história racial brasileira aristocrata.

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indicadores da desigualdade entre brancos e negros no Brasil são números construídos ao longo de uma
história de desigualdades, diferenças e privilégios proporcionados por um sistema institucional desigualitário.

Quando Silva Júnior (2003, p.105), sociólogo engajado no estudo dos fatores históricos raciais
brasileiros, fala sobre as ações legais antidiscriminatórias em relação à raça no Brasil, chega à conclusão que
“[...] as leis punitivas são insuficientes para estancar práticas discriminatórias”, pois mesmo com a lei n.º
7716/89 ou Lei Caó, que propunha como ato criminoso qualquer forma de preconceito fundado em raça, cor,
etnia ou religião, a discriminação e/ou preconceito não foram contidos ou erradicados no Brasil.

A lei Caó em seu artigo 3º, inciso IV, prevê a proibição do preconceito e da discriminação de qualquer
natureza e o artigo 5º, inciso XLII, no âmbito das relações internacionais, criminaliza a prática do racismo. Ainda
segundo Silva Júnior (2003), a constituição de 1988 prevê “medidas especiais”9, as quais têm, por objetivo
primeiro, igualar direitos sendo permitidas quaisquer medidas práticas para a eliminação da discriminação,
como medidas positivas, imediatas e eficazes para erradicar a discriminação.

Silva Júnior (2003) faz referência, ainda, ao Programa de Ação deliberado na III Conferência Mundial
contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a intolerância. Relata também que estas discussões
devem servir de balizas para a implementação de uma política de promoção da igualdade racial e de acesso ao
ensino superior, diminuindo o abismo étnico-racial de povos “minoritários”.

Sendo assim, as ações afirmativas, podem ser entendidas como políticas de correções de distorções
sociais, pois falamos de um “lugar”, no qual entendemos as medidas afirmativas enquanto justificativa para/de
correções de distorções sociais, que acreditamos existirem e propomos um axioma no qual entendemos e
relegamos ao discurso jurídico constitucional da “igualdade de todos os cidadãos perante a lei”10, enquanto
elemento necessário para a promoção da igualdade, justificando e legitimando ações afirmativas para que
eventuais distorções sejam corrigidas e fazendo com que as cotas adquiriam o valor de “políticas
compensatórias”. Entendemos também que falar em distorções sociais ou ações afirmativas, adquire sentidos
diferenciados, apresentando inúmeros sentidos variando de acordo com os “lugares” em que o termo é
empregado. Para Contins e Sant’ Ana (1996, p.210) as ações afirmativas teriam como uma das funções
específicas:

[...] à promoção de oportunidades iguais para pessoas vitimadas por discriminação.


Seu objetivo é, portanto, o de fazer com que os beneficiados possam a vir competir
efetivamente por serviços educacionais e por posições no mercado de trabalho.

Pinto (apud VIEIRA, 2003) aponta alguns dados que comprovam a diferença social do negro em relação
ao branco e afirma que os negros:

representam quase a metade da população brasileira [...] segundo dados da


Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2001, o rendimento médio
dos negros é inferior à metade do que recebem os brancos e do total de rendimentos
atribuídos às pessoas brancas em uma população de 53% ficam com 71% do bolo,
enquanto aos pardos de 39% da população, restam 23% do bolo e aos negros de 6%
da população cabem 4% do bolo. E quando o assunto são indicadores de
analfabetismo, os negros também se destacam como pessoas que possuem um

9
Com estas medidas, o Estado brasileiro assume e reconhece as desvantagens educacionais e sociais de grande parcela
da população negra. Estas são desigualdades que culminam e materializam-se em diversos fatores e maneiras a
discriminação racial vivenciadas no cotidiano destas pessoas, as quais são vítimas de um sistema desigualitário e injusto,
que se materializa nas práticas cotidianas de sua história.
10
Este discurso jurídico fomentou e suscitou muita discussão e liminares contra as cotas no meio jurídico, haja vista o
entendimento que muitos juristas tinham sobre as políticas de cotas

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baixo índice de permanência na escola, sendo que entre um total da população negra
entre 15 anos ou mais é de 18,7%, contra 7,7% entre os brancos (VIEIRA, 2003,
p.85).

De posse dos indicadores estatísticos, constatamos que existem no país 36% de analfabetos funcionais
negros contra 20% da população branca. As desigualdades sociais, pelos dados apresentados por Pinto (apud
VIEIRA, 2003), são gestos de leitura, que explicitam indícios de que existem desigualdades ao acesso à
educação e, desta forma, procuram legitimar a necessidade de medidas afirmativas com o objetivo de
democratizar o acesso e a permanência no ensino superior dos grupos fragilizados econômica e socialmente.

Quando se fala em democratizar o acesso à educação, não se está, de maneira alguma, enunciando de
um “lugar” discursivo, no qual o sentido adquirido pela política de cotas é o de efetivar “privilégios” a um
determinado conjunto étnico. A propósito destes discursos de repúdio às cotas, faz-se necessário refletir sobre
outros discursos cristalizados em nossa memória discursiva, quando a discussão é a viabilidade das cotas, pois
comumente ouvimos, na mídia ou mesmo em conversas de pessoas que são contrárias às medidas afirmativas,
que as cotas são políticas de privilégios aos negros e é uma medida que vem para “prejudicar a qualidade do
ensino”.

Já para as posições-sujeito que defendem o sistema de cotas, o discurso é de que elas vêm para
melhorar a qualidade das instituições por proporcionar o multiculturalismo no interior da academia, pondo em
evidência e inteiração diferentes grupos segregados, em conseqüência diferentes vivências e experiências
culturais. Portanto, para este espaço discursivo, o multiculturalismo é benéfico à produção de conhecimento à
academia, pois “a universidade enquanto espaço intelectual científico e político não se sustentará
desinteressada das questões que dizem respeito aos direitos humanos, ao diálogo entre culturas, aos direitos
dos povos” (SILVÉRIO, 2003, p.46).

As políticas de ações afirmativas11 surgem permeadas por um discurso que propõe o combate às
desigualdades raciais vivenciadas nas práticas sociais do cotidiano, erradicando o preconceito, para propiciar
espaços sociais e horizontes onde antes não havia. Porém, esta é uma luta incessante não só contra o racismo
em si, mas contra o poder institucional, contra a ordem discursiva que nos fez pensar por tanto tempo que a
desigualdade étnico-racial12 não existia em nossa conjectura sócio-política, que fez valer, na memória coletiva
ou em nosso imaginário, que o preconceito aqui não existe e assim, cumpriu o seu papel simbólico-ideológico e
coercitivo, que nos fez acreditar que vivemos em uma sociedade étnica-política igualitária.

Corroborando com Silvério (2003), propomos que as ações afirmativas são conjuntos de conceitos e
ideais que procuram compensar, devolver ou corrigir possíveis atos discriminatórios sofridos no cotidiano das
práticas sociais por grupos considerados “minoritários”, ou mesmo pela discriminação sofrida no passado. E,
como forma de reparação de desigualdades e para que a justiça reparatória seja efetivada, o Estado deve
oferecer políticas de distribuição de recursos sociais como empregos, educação, moradias, com o objetivo de
que a igualdade social seja promovida e as injustiças sociais sejam erradicadas ou mesmo amenizadas.

Desse modo, as políticas antidiscriminatórias, segundo Mattos (2003), devem culminar na superação
dos efeitos da discriminação, que foram passados ao longo de uma história de desigualdades sociais. Há que
se ter em mente que estas medidas vêm para erradicar o pensamento racista em suas práticas sociais,
procurando fazer com que a sociedade adote padrões que não sejam baseados em conceitos racistas que

11
Estas medidas foram impulsionadas pelos movimentos negros, que lutaram por medidas legais com o intuito de coibir as
discriminações raciais e toda e qualquer forma de racismo e desigualdade social.
12
Faz-se importante pensar o conceito de raça na contemporaneidade não como uma categoria biologizante, mas sim
enquanto um construto social. Pensar o conceito de raça enquanto categoria biológica é também submetê-lo a um campo
ideológico estereotipado legando ao negro um papel de inferioridade em relação ao branco criando fronteiras entre o feio e o
bonito, o desejável e o indesejável, o normal e o anormal, o perverso e o austero, enfim, um mecanismo ideológico criado
por brancos para brancos. Este mecanismo ideológico é também responsável pela criação do imaginário coletivo sobre as
raças ao longo das práticas discursivas. (SILVÉRIO, 2003).

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fazem, por exemplo, com que um negro de mesmo patamar social tenha um salário muito inferior a um branco.
Enfim, estas medidas procuram criar uma sociedade em que todos os esforços e potencialidades sejam
compensados de forma mais igualitária erradicando o olhar xenófobo e excludente. O que se espera é
desencadear, com as ações afirmativas, como propõe Mattos (2003, p.149), um efeito multiplicador da melhoria
nas condições socioeconômicas e “[...] educacionais das famílias e comunidades que ainda hoje amargam os
efeitos nefastos da escravidão e da discriminação racial”. Esta é uma luta pela eliminação de toda e qualquer
forma de preconceito e diferença étnico-racial.

2. As Ações Afirmativas em sua Práxis: a política de cotas em questão

As políticas de ações afirmativas ou medidas compensatórias vêm causando muita polêmica na


sociedade brasileira e em especial no meio acadêmico pela reserva de vagas á alunos negros ou pardos ou
ainda para alunos provenientes de escolas públicas. O descontentamento gera inúmeras tomadas de posições,
que culminam e se materializam em cadeias parafrásticas de discursos favoráveis ou contrários às medidas ora
vistas como “compensatórias” ora “antidemocráticas”, ora “constitucional” ora “inconstitucional”. As tomadas de
posições demarcam espaços sociais que apontam e evidenciam de que posição-sujeito se pensa a política de
cotas. Deste engendramento discursivo, surgem discursos que são retomados da memória dos discursos, cuja
fonte caracteriza-se pelo esquecimento, mas ressurgem acentuando a polêmica em forma de uma memória
histórica em que o sujeito perde o controle sobre sua gênese, sendo estes discursos entendidos como
mecanismos que exercem uma função ideológico-coercitiva no interior das práticas discursivas do cotidiano.

No campo ideológico, as discussões sobre as cotas estabelecem dois grandes campos discursivos: os
que são favoráveis as medidas afirmativas e os que são contrários. Porém entendemos que, dentro de um
mesmo espaço discursivo ideológico, pode haver diferentes lugares discursivos, de modo que ser favorável às
cotas, ou seja, pertencer a um mesmo campo ideológico, não implica necessariamente compartilhar o mesmo
discurso. Seguindo esta linha de raciocínio, entendemos que foram veiculados três diferentes discursos
favoráveis às cotas.

O primeiro discurso favorável às cotas defende um modelo no qual as vagas sejam destinadas somente
a alunos negros. Sendo assim, as políticas afirmativas deveriam contemplar somente fatores étnicos. Neste
campo discursivo, as cotas definidas por fatores étnicos ganham legitimidade pela falta de acesso à educação
para os negros, pela sua exclusão social e destaca o fator socioeconômico como fator preponderante da
exclusão social do negro. Conforme se vê no discurso de Jaime Tadeu, presidente da Associação Cultural de
Negritude e Ação Popular (ACNAP), o qual profere que, para o negro, é mais difícil ingressar na universidade, e
mais difícil ainda se este amargar o estado de pobreza, já que: "os negros têm de batalhar muito pela
sobrevivência. Só depois de muita “luta” conseguem entrar para uma universidade. A forma de ensino, ainda
hoje, exclui o negro"13. Outro lugar discursivo mobilizado propõe que o modelo de cotas deveria considerar
estado ou condição de pobreza; portanto, a política de cotas ideal para este lugar discursivo seria aquele no
qual fossem considerados somente os fatores de ordem socioeconômicos. Este discurso silencia um outro
discurso, no qual se acredita no substrato de que a maioria dos negros são pobres. Trata-se, portanto, de um
modelo de cotas para alunos pobres, no qual teríamos uma maior amplitude, cumprindo assim seu real papel
de medida de correção de distorções sociais, pois não abarcariam somente negros, mas também os negros que
são em sua maioria carentes, portanto, neste modelo de cotas as vagas para negros não estariam legitimadas
pela sua condição étnica, mas sim pela sua posição sócio-econômica.

Por último, referendamos um lugar discursivo no qual o modelo de cotas deveria contemplar tanto
alunos negros, como alunos provenientes de escolas públicas, deste modo, as cotas deveriam levar em
consideração fatores étnicos e socioeconômicos reservando uma porcentagem de vagas tanto para negros
como para alunos provenientes de escolas públicas.

Retomamos o discurso de Munanga (2003), com o intuito de desconstruir um discurso permeado de

13
Citação extraída do Jornal Gazeta do Povo, reportagem intitulada: “Estado cria sistema de cotas para índios nas
universidades”, dia 24 de novembro de 2001 (vide referencia bibliográfica).

__________________________________ 21 __________________________________
vontades de “verdades” sobre a política de cotas, que se perderam na memória histórica dos discursos, mas
que sempre são veiculadas nas práticas cotidianas quando a discussão são as cotas. Sendo assim,
apresentamos discursos que repudiam as cotas do tipo: “as cotas não resolvem o problema, o que precisa ser
feito para democratizar o acesso dos negros à universidade é o investimento maciço nas bases educacionais,
ou seja, investir mais na escola pública”. Munanga (2003, p. 119) procura responder este tipo de discurso
dizendo que: “...se por um milagre os ensinos básicos e fundamental melhorassem seus níveis para que os
seus alunos pudessem competir igualmente no vestibular [...] os negros levariam cerca de 32 anos para atingir
o nível dos atuais alunos brancos”.

Por isso, o que se coloca em pauta na discussão da reserva de vagas não é o que pode vir a acontecer
com a adoção de medidas de equiparação14, mas sim tentar reparar diferenças que são realidades
contemporâneas, neste momento histórico e tendo em mente que são medidas provisórias com o intuito de
amadurecer o ideal de sociedade democrática igualitária.

Munanga (2003), ainda, alerta sobre outros discursos que se materializam no cotidiano da discussão
sobre as cotas, e que têm uma memória histórica dispersa, a saber: “que é absurdo reservar vagas para
negros” ou ainda, “no Brasil não existe negro, pois somos todos mestiços”. Discursos que são veiculados nos
espaços sociais da vida cotidiana, seja na mídia, nas conversas informais, na roda de amigos ou no próprio
espaço escolar ou acadêmico. Estes são discursos que se respaldam no princípio de que no Brasil não existem
negros ou que esta reserva de vagas é injusta em relação aos brancos pobres. Estes são alguns sentidos
cristalizados, que acompanham os discursos ao longo da história de suas formulações e que se materializam na
práxis cotidiana dos enunciados contrários às cotas.

Outro argumento contrário ao sistema de cotas é o de que as “[...] propostas de ‘cotas’ seriam
incompatíveis com o princípio da igualdade de todos enunciada pela Constituição Federal” (SILVA JUNIOR,
2003, p.113). O discurso jurídico da inconstitucionalidade das cotas foi o mais veiculado nos lugares discursivos
contrários as cotas. Quando as cotas são implantadas na UFPR ocorreram inúmeros pedidos de liminares
judiciais contra sua implementação. Liminares fundamentadas na Constituição Federal, que no seu texto
integral fala dos direitos e deveres individuais e coletivos em seu artigo 5º, o qual prevê que “Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)”.

Para Silva Junior (2003), estes argumentos são menos jurídicos15, e, sobretudo ideológicos e completa
dizendo que os princípios democráticos em que se ancora este tipo de proposição são infundados, pois

14
Falamos de uma “posição sujeito”, na qual entendemos que as cotas são políticas públicas ou privadas que têm o objetivo
de diminuir ou combater a desigualdade de grupos mais vulneráveis à discriminação na tentativa de equiparação dos grupos
“minoritários” (LENZ CESAR, 2003). Este tipo de discurso de “melhoria na qualidade de ensino” é um discurso marcado por
um comodismo que revela um espaço discursivo, no qual nada deve mudar, destoando o foco do “problema” para o acesso
a educação para grupos “minoritários”.
15
Foucault (1998) e militantes maoístas, em junho de 1971, propõem uma discussão acerca de um tribunal popular para
julgar aos desmandes da polícia. Nesta reflexão procura-se estabelecer um axioma a respeito da genealogia do discurso
jurídico, pois no pensamento ocidental, o aparelho de justiça foi um aparelho de Estado extremamente importante, cuja
história sempre foi mascarada. Procurou-se fazer a história do direito, da economia, porém a historia da justiça, do que
foram os sistemas de repressão, a sociedade ocidental apaga e silencia. O poder jurídico surge permeado por um poder
policial, ou seja, como mecanismo punitivo à indivíduos que se recusavam a seguir as normas, pois em um modelo de
sociedade burguesa era preciso calar a vadiagem, a vagabundagem, a ociosidade. Enfim, a justiça desde sua gênese no
século XIV, surgiu como algo lucrativo, pois se passou da idéia do consentimento mutuo para por fim a um litígio, para a
aplicação de multas, confiscações dos bens, das gratificações, enfim, fazer justiça era algo lucrativo. No Estado Burguês a
justiça passa a ser fonte de riqueza (propriedades), o espaço jurídico passa a ser um espaço de circulação de riquezas e,
neste ponto nodal, que vemos surgir para o pensamento ocidental à justiça e a força das armas substituírem as guerras
privadas por uma justiça obrigatória e lucrativa, ou seja, impor-se a uma justiça em que ao mesmo tempo se é juiz. A justiça
penal não foi produzida nem pelo campesinato, nem pela plebe, mas pura e simplesmente pela burguesia como um
mecanismo importante no jogo das divisões que ela queria introduzir. Em relação ao discurso das cotas a história parece
repetir-se, pois mais uma vez a o direito de Estado burguês quer nos fazer acreditar em uma hermenêutica da “verdade” da
justiça, da sua justiça como elemento a serviço do poder. Mais uma vez “contemplamos” o aparecimento do espaço jurídico
como único “lugar” legitimado para pensar e/ou estabelecer o discurso da “verdade”, e agora sobre as cotas.

__________________________________ 22 __________________________________
promover a igualdade é um dos objetivos e princípios da Constituição Federal Brasileira não sendo uma
proposta recente como muitos acreditam ser. Outra justificativa é de que a Constituição vista pela lógica
aristotélica prevê e regulamenta medidas afirmativas como as cotas pelo fato de que, na promoção da
igualdade, as políticas sociais devem “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em
que eles se desigualam”.

Há outros discursos que orientam para proposições contraditórias em sua práxis como a proposta de
que “o crescimento econômico diminuiria as desigualdades sociais, presenciaram um quadro cada vez mais
grave, na qual gradativamente, ampliou-se a fronteira a ser atravessada” (VIEIRA, 2003, p.85). Retomamos um
outro discurso que contraria o princípio ideológico de que o crescimento econômico diminuiria as desigualdades
sociais, pois deste lugar enuncia-se que o aumento populacional e o inchamento das cidades provocaram o
empobrecimento de muitos grupos sociais, e em conseqüência, o aumento da exclusão e, em contraposição, o
aumento da necessidade de políticas reparatórias ou compensatórias.

Ao falar sobre as diferenças raciais, o sociólogo e professor Silvério (2003, p.60), aponta que “raça em
abstrato sempre tem sido um tema sociológico, desde a fundação do campo das ciências sociais até o presente
momento”. Ele afirma ainda que, no início do século XX, ocorreu uma nova interpretação sociológica do
fenômeno racial, sendo esta a primeira grande mudança nos usos e sentidos do termo raça, pois desde o
período clássico, as idéias biológicas sobre raça imperaram no imaginário social, propiciando o surgimento de
discursos preconceituosos e racistas de caráter ideológico, procurando situar o negro na sociedade como ser
subalterno em relação ao branco16.

Com o advento da sociologia das relações raciais no pós-segunda Guerra Mundial e com a destruição
do colonialismo europeu e o surgimento dos movimentos pelos direitos civis, as relações raciais tomam força e
o conflito ideológico entre as raças claras e escuras tornam-se uma realidade mais efetiva nas práticas
cotidianas. Este período ficou conhecido como “linha de cor”. Nesse momento, o campo sociológico volta-se
para a discussão racial mais crítica no contraponto entre ideologias e fatores étnicos, enquanto que nas práticas
cotidianas o alvo era o preconceito e a discriminação de grupos “minoritários” (SILVÉRIO, 2003, p.61).

Já na passagem do século XX para o século XXI, as questões raciais ganham questionamentos acerca
de suas práticas cotidianas. As formas ideológicas de como são vistas as relações raciais se deslocam para o
campo das práticas sociais com o impulso dos fatores ideológicos dos diversos grupos “minoritários”. E esses
questionamentos das práticas cotidianas fazem impulsionar o campo das ciências sociológicas em consonância
com as proposições inferidas no campo da biologia genética, que substitui o conceito de raça como fator
biologizante genético da diferença, para a igualdade anacrônica dos sujeitos e a diferença passa a existir
somente no campo sócio-ideológico.

Nesse período, o conceito de raça envereda para o campo da cosmopolitalização17, na qual admitia-se
as diferenças de caráter sociológico com o objetivo da erradicação étnico-raciais entre os povos e esta tentativa
de erradicação, para Silvério:

[...] teria permitido a formação de uma ideologia que, centrada no princípio de


indivíduo autônomo e cidadania, teria materializado as diferenças naturais como
diferenças de habilidade, capacidade e de aquisição de competências (SILVÉRIO,
2003, p.63).

Sob este viés, podemos pensar em dois prismas ou dois lugares sociais sobre a questão do modelo de

16
Joel Rufino dos Santos apud Silvério (2003), afirma que não existem raças superiores ou puras da perspectiva científica
como muitas pseudociências tentaram impor para o pensamento ocidental. Estas diferenças são apenas de ordem
ideológica que se apresentam como vontades de “verdades” na manutenção do poder.
17
Este termo faz referência ao princípio que impulsionou o campo da sociologia a tentar erradicar o princípio da diferença
racial, transformando o planeta em um grande universo de uma raça só.

__________________________________ 23 __________________________________
cotas para negros: os que são favoráveis por acreditarem que raça e status social estão inter-relacionados e os
que são contra as políticas de ações afirmativas, por ocuparem uma posição ideológica18, na qual concebem a
cor como motivo da desigualdade social.

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18
O sujeito ao enunciar ocupa uma posição-sujeito, na qual sua fala é legitimada e ao mesmo tempo é controlada pelas
instituições que compõem e instituem o poder no interior dessas práticas discursivas. Os sentidos não são absolutos, eles
dependem da tomada ou inserção do sujeito em um determinado espaço discursivo legitimado pelas práticas discursivas. E
estas práticas discursivas se traduzem em mecanismos de dominação e controle sobre o sujeito na sua relação com as
instituições. (Foucault, 1996).

__________________________________ 24 __________________________________
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__________________________________ 25 __________________________________
A POTÊNCIA DA IMAGEM EM OUTONO/O JARDIM PETRIFICADO,
DE MÁRIO PEIXOTO E SAULO PEREIRA DE MELLO

Caio Ricardo Bona Moreira19

“O que buscamos no cinema está além da imagem,


além do ‘ver com os olhos do corpo’,
e o que está além da imagem tem que ser visto
com os ‘olhos do espírito’; mas o que vemos
com os olhos do espírito está fundado
– e ‘bem fundado’ – nos olhos do corpo,
e somente chegamos a uns, pelos outros”
Saulo Pereira de Mello

1. UMA MISSA DE VÁRIOS GALOS

Em 1964, o escritor pernambucano Osman Lins e a escritora paulista Julieta de Godoy Ladeira
elaboraram, cada um a seu modo, versões do conto Missa do galo, de Machado de Assis. Treze anos depois,
Osman retomou o projeto e convidou um grupo de contistas para que fizessem o mesmo20. Os textos
produzidos foram reunidos e publicados sob o título: Missa do Galo (de) Machado de Assis; variações sobre o
mesmo tema. O livro trazia, além das variações, o conto original do bruxo do Cosme Velho. Os novos textos
evocavam não só a marca da repetição, pautada na releitura de um conto já consagrado, mas principalmente o
traço da diferença, marcada por uma espécie profanação, entendida aqui como uma desleitura criativa, capaz
de devolver potência ao texto de Machado. Talvez fosse melhor, assim, falarmos em iterabilidade21 e não em
repetição. Ao revisitar o conto, a antologia apostou na disseminação de outros pontos de vista sobre uma
mesma situação: o amor impossível do adolescente pela mulher adulta, casada.

Curiosamente, no mesmo ano, o roteirista gaúcho Saulo Pereira de Mello também se interessou pelo
conto. Na introdução do livro Outono/O jardim petrificado, que traz o scenario homônimo, escrito em parceria
com o cineasta Mário Peixoto, Saulo lembra que, na época, recebera de um produtor de filmes publicitários a
proposta de co-dirigir com ele um longa-metragem. Saulo deveria partir de um argumento inicial e finalizá-lo.
Tratava-se da história de um homem que, tiranizado pela mulher, decide sair à noite e perambular pelo centro
do Rio de Janeiro. Quando volta para casa, é outro homem. Quando a mulher tenta impor a sua tirania, percebe
que o marido tinha mudado – a submissa, agora era ela. Saulo tentou concluir o roteiro, mas não conseguiu
criar as imagens necessárias que pudessem representar os conflitos entre o pólo feminino/masculino. Foi então
que lembrou de Missa do Galo:

19
Graduado em Letras, Português-Inglês, pela FAFIUV (Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da
Vitória); Especialista em Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas, pela FAFIUV; Mestre em Ciências da Linguagem,
pela UNISUL (Universidade do Sul de Santa Catarina); Doutorando em Teoria Literária, pela UFSC (Universidade Federal
de Santa Catarina); Professor de Literatura Brasileira na FAFIUV.
20
No prefácio do livro, Osman Lins esclarece: “Imaginava um certo número de ficcionistas, cada um deles aceitando o
desafio de refazer, com maior ou menor aproximação, o texto machadiano, que sabíamos insuperável. Este fator, aliás, se
era próprio a fazer-nos perder o ânimo, também aliviava-nos: partiríamos para uma aposta antecipadamente perdida” (1977,
p.7). Completaram o grupo de Osman Lins e de Julieta de Godoy Ladeira os contistas Autran Dourado, Antonio Callado,
Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon.
21
Niall Lucy, ao analisar a noção de iterabilidade na concepção desconstrucionista de Derrida, utiliza uma metáfora bastante
significativa na investigação do termo: “First thing every morning I make myself a cup of coffee; in fact I make several cups.
Each coffee is singular, unique, unlike the others (the second cup is not the first and so on), but each one is also an instance
of the same, the general, the others that it resembles and to which it belongs. This is not a feature peculiar to coffee; it´s a
condition of the singularity of a thing – any thing – that the thing in itself belongs to a general form of such things which that
particular thing represents. (…) In so far as everything can always be repeated, then the condition of repeatability (repetition
in general, as it were) belongs to every thing in ‘itself’, contaminating or compromising its purity. This is why Derrida uses the
term iterability to refer to this condition (…)” (2004, p. 59).

__________________________________ 26 __________________________________
O conto de Machado sempre tinha me impressionado muito por ter conseguido tornar
concreta (e quase visível) – pelo menos para mim – a situação de uma tensa
polaridade entre o feminino e o masculino; elementar, primeva, originária e toda uma
gama de relações diferenciadas que podem existir nela (2001, p.17-18).

O que Saulo queria era tornar visível o próprio amor, por um “puro jogo cinematográfico de imagens”.
Queria imagens e não palavras. Foi então que pensou em Mário Peixoto. Pediu que o autor de Limite o
auxiliasse na confecção do roteiro. A partir de então, trabalharam juntos em um scenario que viria a ser
conhecido como Outono/O jardim petrificado, e que jamais seria filmado.

Pelo fato de não ter sido filmado, Outono/O jardim petrificado manteria na potência as imagens criadas
pela dupla de roteiristas. Walter Salles pensou filmá-lo, mas desistiu da idéia, confessando que só Mário
Peixoto poderia fazê-lo. Nesse sentido, o fato de não ter sido filmado não necessariamente deveria fazer do
filme um projeto não realizado: “Compreendi, também, que existem roteiros que nasceram para viver dentro de
nós, sugerindo imagens que guardaremos para sempre, mesmo se não as virmos jamais na tela grande”
(SALLES in PEIXOTO e MELLO, 2001, p.11). Encontramos implícita nessa frase de Walter Salles uma
concepção de arte que vê na potência do não realizado uma possibilidade de força da obra. Um filme de todos
e ao mesmo tempo de ninguém. Ao apresentar o roteiro, Saulo Pereira de Mello afirma: “Todo o filme está aí –
mas apenas em potência -, obscuramente ainda para nós” (2001, p.52). Saulo Pereira de Mello lembra que
Mário Peixoto resistiu a todas as pressões que recebeu para dirigir o roteiro: “Este cineasta extremamente
responsável com a sua arte não fazia concessões nem se deixava dobrar por interesses imediatos. (...) Eu tinha
sido ingênuo ao pensar que o convenceria a dirigi-lo – ou, principalmente, que o filme poderia ser realizado”
(2001, p.59). O fato nos faz lembrar de uma passagem de A comunidade que vem, de Giorgio Agamben,
intitulada “Bartleby”. Lembrando do famoso personagem de Herman Melville, Agamben observa a existência de
dois tipos de potência: a potência de ser e potência de não ser. A potência de ser pressupõe a passagem a um
certo ato, no sentido em que, para ela, energein, só pode significar passar a essa atividade determinada. Para a
potência de não ser, ao contrário, o ato não pressupõe um trânsito de potentia ad actum. É um tipo de potência
que tanto pode a potência como a impotência. Essa seria uma forma de potência suprema. Agamben nos diz:
“Se toda a potência é simultaneamente potência de ser e potência de não ser, a passagem ao ato só pode
acontecer transportando (Aristóteles diz ‘salvando’) no ato a própria potência de não ser” (1993, p. 34). O gesto
de Mário Peixoto, “I would prefer not to”, à maneira de um Bartleby do Brasil, seria como uma espécie de
potencialização dessa potentia potentiae. Não seria fortuito lembrar que a obra máxima de Mário recebera o
título de Limite, um lugar sem lugar, onde se marca um ponto entre a potência de ser e de não ser. Poderíamos
comparar Mário Peixoto a Bartleby, ainda que a título de ficção. Tanto o ato de escrever quanto o de dirigir um
filme provém não só de uma potência, mas principalmente de uma impotência que se vira para si própria:
“Bartleby, isto é, um escrivão que não deixa simplesmente de escrever, mas ‘prefere não’, é a figura extrema
desse anjo, que não escreve outra coisa do que a sua potência de não escrever” (AGAMBEN, 1993, p. 35).

Não são raros os roteiros que não chegaram a ser filmados, ou os filmes que não foram concluídos.
Poderíamos lembrar de Tecnicamente Doce, roteiro que Michelangelo Antonioni escreveu em parceria com
Tonino Guerra e Mark Peploe, nos anos 60. O cineasta italiano planejara rodá-lo em Brasília e na floresta
amazônica, retratando um triângulo amoroso em meio a uma vegetação selvagem22, mas o projeto foi vetado
pelo produtor que cortou seu financiamento. Outro exemplo pode ser encontrado no roteiro A viagem de
Giuseppe Mastorna, inspirado em um conto de Dino Buzzati, e que seria dirigido por Fellini. As primeiras
filmagens chegaram a ser feitas em 1966, mas o projeto foi abandonado pelo próprio Fellini23.

22
No texto “Minha batalha contra a obra”, Antonioni comenta o projeto: “A minha intenção era fazer desse ‘fragmento de
filme’ uma espécie de oposição crua entre a luta de dois organismos humanos e a de outros organismos, vegetais e
animais. Mas ainda queria falar de uma outra luta ainda mais aterrorizante, aquela que ocorre entre as plantas que lutam
pelos poucos raios de sol. E a dos animais, à cata de qualquer tipo de alimentação. Minha intenção, em resumo, era tocar
no tema do canibalismo, declinando sob todas as suas formas” (ANTONIONI, 2008, p. 5).
23
O filme representaria a vida de Mastorna após a morte. O personagem, um violoncelista italiano, seria protagonizado por
Marcello Matroianni.

__________________________________ 27 __________________________________
O filme Outono/O jardim petrificado existe não necessariamente porque o roteiro foi escrito, mas porque
uma potência de ser/não ser lhe confere existência. Maurice Blanchot, em um dos ensaios de O livro por vir,
lembra de Joubert, um escritor que nunca escreveu um livro, apenas preparou-se para escrever um. Esse fato
já permite que Blanchot o considere um escritor, um dos primeiros completamente modernos, aquele que
preferiu o “centro à esfera, sacrificando os resultados à descoberta de suas condições (...)” (2005, p. 70). Não é
à toa que Mallarmé tenha sido reivindicado por Blanchot em vários momentos de sua trajetória. Tal atitude
inscreve-se, de certa maneira, nas obras do tempo presente ao compactuar com elas uma determinada noção
de “abandono do projeto”24. Assim como Joubert não escreveria apenas para acrescentar um livro a outros,
Mário e Saulo estavam conscientes da potentia potentiare que a tarefa pressupunha: “(...) éramos capazes de
sonhar e planejar um filme, pouco ligando se ele pudesse ou não ter qualquer base real de realização.
Amávamos o cinema” (2001, p. 59).

2. EM TORNO DE MACHADO, MÁRIO E SAULO

O conto Missa do Galo, de Machado de Assis fora publicado em livro pela primeira vez em 1899, em
Páginas Recolhidas, sete anos antes de apresentar o livro de contos Relíquias de Casa Velha, em 1906.
Páginas Recolhidas apresentava como epígrafe a seguinte frase de Montaigne, extraída do primeiro livro dos
Essais: “Quelque diversité d´herbes qui´il y ayt, tout s´enveloppe sous le nom de salade”. A presença de
Montaigne não é fortuita na epígrafe. Ela se justifica na variedade do livro, uma espécie de “salada”, reunião de
textos como crônicas, contos e novelas, muitos dos quais publicados inicialmente nas folhas de jornais da
época, em datas diversas.

O contexto do qual participa a publicação do livro é de grande euforia no cenário cultural. No ano
anterior, Machado fora eleito presidente da Academia Brasileira de Letras. Em 1900, a Garnier publica
integralmente o romance Dom Casmurro. Acontecimentos como o suicídio de Raul Pompéia, em 1895, e o fim
de Canudos, em 1897, ainda ressoavam enquanto se anunciava um novo Rio de Janeiro, que passaria por
grandes transformações em sua reurbanização, iniciada em 1904, pelo prefeito Pereira Passos, uma espécie de
Barão Haussmann dos trópicos. Brito Broca (1960), em A vida literária no Brasil - 1900, assinala que a
transformação da paisagem urbana se refletia na paisagem social e igualmente no quadro de nossa vida
literária. Tais mudanças anunciavam não apenas uma nova paisagem a ser descrita, mas principalmente novos
modos de operar na literatura as complexas relações entre o homem e o mundo25. Na mesma época, José do
Patrocínio traz da Europa para o Rio parisiense o automóvel, fazendo todo mundo correr espantado “para
contemplar aquela máquina diabólica, de que se desprendia muita fumaça e um cheiro insuportável de
gasolina” (BROCA, 1960, p.5). Entre a derrocada de um sistema messiânico, que resultaria na morte de Antônio
Conselheiro, e o anúncio de um Brasil moderno, pautado pelo nascimento do século XX, uma Missa do Galo.

Difícil dizer se a Conceição pintada por Machado seria uma femme fatale ou uma femme fragile; um
tipo de personagem presente em outros textos do escritor, e que encontraria em Capitu sua fórmula máxima. É
provável que essa margem de indecisão seja o fator primordial do fascínio da personagem de Missa do Galo

24
Susana Scramim, em Literatura do Presente, analisa o conceito de obras do tempo presente com base na noção de
“Formas Originárias”, que Benjamin encontra, por exemplo, no drama barroco alemão do século XVI e XVII e que, por sua
vez, sobreviveram no expressionismo alemão da primeira década do século XX. Para ela, o tempo presente se constitui com
base no conceito de forma originária: “Desse modo, as obras do tempo presente, além de manifestarem uma forte opção
pela arte produtora de pensamento, estariam ligadas a certas noções de fazer literário que incluem um não-fazer,
reafirmam, ao contrário, apenas um ‘querer‘ fazer, isto é, incluem uma noção de abandono do próprio ato de ‘fazer’
literatura” (2007, p.15).
25
Talvez seja na modalidade da crônica que Machado apresente de maneira mais contundente os reflexos do processo de
modernização do país. Não que seus romances não o façam, mas é por meio de uma literatura não institucionalizada como
a da crônica produzida no final de século XIX que tais questões aparecem com mais freqüência. É o que Ana Luiza Andrade
analisa em Transportes pelo olhar de Machado de Assis: “Machado de Assis foi um leitor de seu tempo e do nosso. De seu
olhar transicional entre oitocentistas e novecentistas despontam radicais transformações, substituições e deslocamentos
culturais, a partir da industrialização. No trânsito finissecular para a modernidade, coincidente com os inícios da
reprodutibilidade técnica e com a chegada da imprensa de maior circulação, Machado se projeta, entre o feitiço do olhar e o
fetiche do capital, sobre a crônica como metonímia abreviada e desligada de uma literatura institucionalizada” (1999, p.18).

__________________________________ 28 __________________________________
em outros escritores. Não muito distante estaria Salomé, figura bíblica que inspirou várias representações na
pintura, no cinema e na literatura, principalmente no século XIX. Salomé ora seria uma espécie de anjo, mesmo
no momento em que pede a cabeça de João Batista, ora uma devassa, como fora representada na peça
homônima de Oscar Wilde. É justamente por aparecer e desaparecer, como que escorregando para o vazio,
delicadamente envolta em levíssima musselina de um amarelo junquilho pintalgado de preto, que Salomé, de
Jules Laforgue, ganha contornos de um anjo que seduz ao mostrar e não mostrar ao mesmo tempo o seu
corpo. Visão semelhante é a do narrador que contempla o “aparecer” e “desaparecer” do corpo de Conceição:

Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e


metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas,
caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do
que se poderia supor (...).

Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a
furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão
era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas (MACHADO DE ASSIS,
1959, p.587).

A frase bastaria para fundamentar a própria teoria implícita na produção imagética de Mário Peixoto,
que, por sinal, era avesso a teorizações. Blanchot nos diz que ver supõe a distância, “a decisão separadora, o
poder de não estar em contato e de evitar no contato a confusão” (1987, p.22). Se tomássemos esse contato
meramente como um completo aparecimento, deveríamos concordar que tal experiência, mais do que trazer
confusão, esvaziaria o próprio contato. Falemos então em aparecimento-desaparecimento. O que parece
interessar a Mário é justamente o hífen (hímen), aquilo se apresenta como resto no jogo do aparecer e do
desaparecer, um entre-lugar. Dessa maneira, o que vemos à distância pode também sugerir um tipo de “toque”.
O hífen não seria mais que o erótico, fundamentando a lógica de suas imagens. Se fosse pornográfico, o
excesso resultaria numa espécie de falta; não seria mais que um contato esvaziado pela própria presença.
Questão semelhante nos é apresentada por Roland Barthes, um escritor que soube muito bem identificar na
linguagem o que anteriormente chamamos de hífen:

O lugar mais erótico de um corpo não é lá onde o vestuário se entreabre? Na


perversão (que é o regime do prazer textual) não há ‘zonas erógenas’ (expressão
aliás bastante importuna); é a intermitência, como o disse muito bem a psicanálise,
que é erótica; a da pele que cintila entre duas peças (as calças e a malha), entre duas
bordas (a camisa entreaberta, a luva e a manga); é essa cintilação mesma que seduz,
ou ainda: a encenação de um aparecimento-desaparecimento (BARTHES, 2002, p.15-
16).

No roteiro, o jogo mostrar-não mostrar, criado por Machado, é mantido:

114. CORTE. MEDIUM CLOSE SHOT

(...) uma expressão de aborrecimento se desenha, e ela se inclina em direção ao


chinelo que caiu. Ao fazê-lo, o pano da gola do robe, que bambeara, abre-se,
revelando o começo dos seios e a separação entre eles (2000, p. 96).

(...)

374. CORTE. CLOSE MEDIUM SHOT

do primeiro plano do joelho de Helena. Câmera baixa; ao fundo, Abel. Helena segura
a bandeja. O robe começa a abrir.

__________________________________ 29 __________________________________
375. CORTE. CLOSE MEDIUM SHOT

de Helena segurando a bandeja, com a mão em primeiro plano. Ao fundo o robe que
acaba de abrir vendo-se a parte interna do joelho (2000, p. 143).

Uma das diferenças significativas do roteiro em relação ao conto é que os personagens são
apresentados com outros nomes: Conceição agora é Helena; Nogueira é Abel. Outro fator importante é que
Helena possui uma feição sedutora mais nítida do que Conceição. Em vários momentos, impõe-se o desejo
feminino como um dos motes que conduzem o encontro. Criar uma imagem que represente esse fato é uma
das preocupações dos roteiristas, o que esclarecem numa das notas presentes no scenario: “A decisão de
seduzir o rapaz deve expressar-se claramente – mas não é uma sensualidade puramente carnal: há uma certa
espiritualidade nela, indefinível ternura, grande doçura e muita delicadeza” (2000, p. 114). Essa delicadeza se
apresenta de maneira contundente numa das cenas mais bonitas do roteiro, aquela em que o contato é
traduzido em imagem, num crescendo que culmina no ato mínimo do gesto:

428. CORTE. MEDIUM CLOSE-UP

de Helena. Câmera aproxima-se dela. Pára. Mão de Abel entra em quadro pousa nos
cabelos de Helena, acaricia-os, depois penetra por eles sob a cabeça e puxa para a
objetiva até o máximo.

429. CORTE. CLOSE-UP

do rosto de Abel crescendo para a câmera até o máximo.

430. CORTE. EXTREME BIG CLOSE-UP

dos lábios. De lado: entram em quadro e lentamente se tocam – depois se unem -, se


esmagam.

431. CORTE. EXTREME BIG CLOSE-UP

de pingo de água na janela – “explode” em luzes... (2000, p.153).

Julio Bressane, um cineasta que se interessou pela obra de Machado de Assis, e que criou uma versão
de Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1985, observa que o que é fundamental nesse tipo de atividade é a
tradução criativa, uma desleitura capaz de forçar os limites do meio traduzido: “tradução em cinema faz-se com
luz-movimento-angulação-montagem” (BRESSANE, 2000, p.49). Essa espécie de tradução identificadora
poderia ser pensada como uma espécie de profanação - tal como aquela desenvolvida pelo grupo de Osman
Lins -, que não estaria preocupada nem em repetir o original, o que seria mesmo impossível; nem em destruí-lo,
o que anularia a própria idéia de uma possível desleitura. Lembremos com Giorgio Agamben (2007) que
profanar não significa destruir, mas aprender a fazer um uso novo do objeto profanado. O espaço profanador
em que circula tal prática seria responsável por fundar uma maneira diferente de operar a própria noção de
transformação:

Descobrir a luz, o ritmo, o fino fio de uma tradição de clichês cinematográficos que,
transformados, transvalorados, recriados, reinventados, podem, de alguma maneira,
nos sugerir, nos remeter, dar-nos uma idéia do formalismo do texto, do objeto, do
humor, do mau humor, do original (BRESSANE, 2000, p. 49).

Mario Peixoto e Saulo Pereira de Mello trabalharam em Outono/O jardim petrificado em prol da desleitura,
o que faz com que o roteiro ganhe um traço poético fortemente marcado pela justaposição de planos sugeridos.

__________________________________ 30 __________________________________
Julio Bressane, no artigo intitulado “Brás Cubas”, presente em Cinemancia, observa: “Brás Cubas filme
começa por objetos sólidos, passa às águas de um poço e depois ao mar. De líquido torna-se fumaça, neblina,
nuvem e termina no céu gasoso. De imagem saturada a imagem rarefeita. Do figurativo ao abstrato. De todas
as cores ao branco” (2000, p. 57). Essa valorização do branco, uma espécie de procura do Neutro, em que as
imagens rarefeitas ganham força, já pode ser encontrada na definição apresentada por Saulo Pereira de Mello
sobre o cinema de Mário Peixoto: “Em cinema tudo deve ser indireto. Esta formulação simples, como todas as
de Mário Peixoto, resume, na verdade, toda a poética do cinema silencioso do qual seu filme Limite é a obra
final, resumo e remate” (2001, p.27). Esse reino absoluto do indireto poderia ser lido como uma perversão da
própria linguagem. Nesse reino, acredita-se na infinita possibilidade narrativa da imagem. Essa concepção não
seria estranha a um escritor como José Lezama Lima, que entendia a imagem como uma paisagem que tece a
própria história. O poeta cubano, no ensaio “Las imágenes possibles”, amplia o conceito, adotando uma
concepção de mundo como imagem: “La imagen como un absoluto, la imagen que se sabe imagen, la imagen
como la última de las historias posibles” (1977, p. 152).

É como se as imagens tivessem vida e pudessem se relacionar umas com as outras. Aliás, uma das
cenas de Outono/O jardim petrificado nos faz lembrar uma das passagens de Dom Casmurro, aquela em que o
narrador descreve os olhos de ressaca de Capitu: “442. CORTE. LONG SHOT de Helena – como no shot
número 250. Onda se formando, erguendo-se – quebrando e correndo – câmera segue até que “explode” em
rochedo. Ruído de mar” (2000, p.155). Esse parentesco entre passagens, seja do roteiro com outros textos, ou
entre as próprias cenas, é um sintoma de imagens que funcionam como uma espécie de mônada leibniziana.
Ou seja, em cada cena do roteiro estaria presente a dobra da cena anterior e o desdobramento da cena
seguinte, ou mesmo todo o roteiro. Os corpos de Helena e Abel seriam também o espectro das duas estátuas
que aparecem no início do texto, povoando o jardim petrificado, à espera de um incidente que possa mudar o
seu estado de pedra, dar-lhe vida, permitir-lhe o amor. O incidente poderia ser uma folha que cai no outono.
Poderia também ser o encontro enigmático entre um jovem e uma mulher casada, um encontro que transforma
em imagem o gesto de um amor que não se realiza; o único amor que se concretiza aqui é entre o cinema e a
literatura. Para finalizar poderíamos perguntar: “Por que dois títulos?” Outono é de Mário. O Jardim Petrificado é
de Paulo. Talvez o conto de Machado de Assis nos responda.

REFERÊNCIAS:

AGAMBEN, G. A comunidade que vem. Lisboa: Editorial Presença, 1993.

____. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

ANDRADE, A. L. Transportes pelo olhar de Machado de Assis: “passagens entre o livro e o jornal”.
Chapecó: Grifos, 1999.

ANTONIONI, M.. Minha batalha contra o filme. Folha de São Paulo, Mais!, 6 jan, 2008. (p.5)

ASSIS, M. de. Obra Completa – conto e teatro. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1959, v. 2.

BARTHES, R. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2002.

BLANCHOT, M. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

____. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BRESSANE, J. Cinemancia. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

BROCA, B. A vida literária no Brasil – 1900. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.

__________________________________ 31 __________________________________
CALLADO, A.; DOURADO, A.; LADEIRA, J. de G.; LINS, O.; PIÑON, N.; TELLES, L. F. Missa do galo de
Machado de Assis: variações sobre o mesmo tema. 5 ed. São Paulo: Summus, 1977.

LEZAMA LIMA, J. Obras completas: Ensayos/Cuentos. Vol. 2. México, Aguilar, 1977.

LUCY, N. A Derrida Dictionary. Malden, USA; Oxford, UK; Carlton, Australia: Blackwell Publishing, 2004.

PEIXOTO, M.; MELLO, S. P. de. Outono - O jardim petrificado. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2000.

SCRAMIM, S. Literatura do Presente. História e anacronismo dos textos. Chapecó: Editora Universitária
Argos, 2007.

__________________________________ 32 __________________________________
ANA MARIA MACHADO: UMA VOZ ENTRE A REPRESSÃO E A RESISTÊNCIA

Mirele Carolina Werneque Jacomel*

Presenciar o condicionamento que a sociedade brasileira foi submetida, dos anos 60 a 80, foi objeto de
discussão para as mulheres ficcionistas no Brasil. Deitar os olhos sobre uma sociedade que havia conhecido os
“Anos dourados” e a promessa do urbanismo industrial que exaurisse a sociedade de classes, mas que a linha
dura silenciou com suas forças armadas prontas para a repressão, foi a maneira que muitos artistas
encontraram para contribuir com a luta de resistência. Alegoricamente disfarçadas, as ficções tentavam criticar
a forma de governo e ao mesmo tempo sobreviver ao “esmagamento” do mercado consumidor.

A produção literária de algumas escritoras recupera a problemática do gênero na cultura por meio de
uma discussão mais ampla. Quer dizer, além de criticar a retaliação do feminino na cultura patriarcal, muitas
ficções também ressaltam a participação direta e/ou indireta das mulheres na política social e na política
partidária. As guerrilhas urbanas, no episódio da Ditadura Militar, constituem uma das temáticas discutidas na
Literatura de autoria feminina publicada após a década de 70, manejando situações em que as mulheres
contribuem com a crítica ao autoritarismo.

Essas obras, além de contemplar a visão de uma mulher de um percurso da história, constituem
documentos imprescindíveis de uma geração que ainda não conhecemos completamente. No interior dessas
obras, diferentes discursos se entrecruzam e desmistificam uma nova face da Ditadura de 64. A autoridade da
história, como bem falou Dalcastagnè (1996), é colocada à prova diante de revelações íntimas das mães, das
esposas, das filhas dos guerrilheiros. Cada uma dessas vozes carrega uma geração. Carrega dezenas de
outras vozes que dialogam constantemente a ponto de ultrapassar o “universo ficcional” e questionar o próprio
tempo, o próprio cotidiano.

De fato, romances, poesias, contos, enfim, textos que foram publicados por mulheres durante e após o
golpe militar, e que resgatam essa temática a partir de uma perspectiva das relações de gênero, são
substancialmente feministas e mostram, sobretudo, a autonomia que as escritoras possuíam, e possuem, para
fazer veicular esses símbolos de sua indignação.

Uma das mais importantes contribuições a esse recorte dentro da genealogia de autoria feminina é
Tropical sol da Liberdade, de Ana Maria Machado, romance publicado poucos anos após o fim da Ditadura
Militar no Brasil, mas que carrega em cada capítulo, em cada parágrafo, a documentação de uma história vista
de “baixo”, por olhos de uma mulher fragilizada sim, pelo barulho das armas, pelo peso das fardas, pelo medo
da violência instituída com o AI-5, mas que não destituiu a mulher de ser uma cidadã crítica que deseja mostrar
ao mundo que a Ditadura Militar deixou cicatrizes dolorosas em gerações de mulheres. Que esse referido
sistema de governo finalizou em meados da década de 80, porém, deixou como herança as marcas da
opressão/repressão que a história oficial não se preocupa em contar.

Em sua carreira literária, Ana Maria Machado possui mais de trinta publicações no Brasil e no exterior.
Trata-se de uma importante escritora brasileira que vêm contribuindo com a literatura infantil e infanto-juvenil,
além de publicar romances para jovens e adultos em uma linhagem mais politizada. Sua obra, portanto, é
destinada a diferentes públicos, de diferentes gerações e gostos, marcando a dedicação de uma mulher num
campo literário habitado secularmente por homens canonizados.

Ana Maria Machado vivenciou um dos mais conturbados anos de sua vida durante o Governo Militar.
Em pleno peso do Ato Institucional n. 5, por volta de 1969, a escritora, então professora de uma faculdade no
interior do Rio de Janeiro, foi presa e teve amigos e alunos também detidos pela repressão. Participou de
reuniões e manifestações organizadas por movimentos sociais contra o governo, atuando, inclusive, nos
projetos que organizaram o seqüestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil. A experiência lhe forçou

*
Doutoranda em Letras pela Universidade Estadual de Londrina.

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tomar a decisão de deixar o país e seguir num exílio voluntário. Em 1970, Ana M. Machado, instalada em Paris,
trabalhou como jornalista e lecionou na Sorbonne. Com a ânsia por continuar os estudos, tornou-se estudante
da Ecole Pratique dês Hautes Etudes, orientada pelo semiólogo Roland Barthes26.

Novas oportunidades surgiram à escritora que não deixou de produzir literatura durante o exílio. Foi
para Londres trabalhar na BBC e no fim de 1972 estaria de volta ao Brasil trabalhando novamente em um
jornal, desta vez no Jornal do Brasil. Essa experiência lhe proporcionou uma descoberta estética: sua
linguagem se encontrava cada vez mais próxima da oralidade e, portanto, mais atraente ao público leitor juvenil.

Premiada por diversas vezes, Ana Maria Machado deixou os trabalhos jornalísticos para dedicar-se à
literatura. O primeiro romance surgiu dessa decisão, Alice e Ulisses, publicado em 1983. Seu segundo romance
foi Tropical Sol da Liberdade, resultado dos anos que vivenciou durante a Ditadura no Brasil. Publicado três
anos após o último militar no poder, essa narrativa apresenta um fato interessante que coincide com a biografia
da autora. A personagem protagonista Helena Maria de Andrade, a Lena, também viveu uma situação de exílio
voluntário durante a Ditadura. Mais que isso, Lena também tinha inspiração pela escritura e seu maior desejo
era conseguir ordenar seus pensamentos e construir estórias, peças de teatro, poesia, artigos para revistas e
outras finalidades. No entanto, a personagem possui algum desvio de atenção que não permite a coerência em
sua escrita e o motivo desse problema é um fato, de certa maneira, ambíguo no romance. Lena deseja
pertencer a uma geração de escritoras que possam registrar todos os fatos de uma maneira mais intimista,
narrar um recorte da história da sociedade brasileira a partir de uma análise pessoal. Em seu caso, do ponto de
vista de uma mulher, apontando reflexões sobre os desmandos da referida sociedade. A diferença é que Ana
Maria Machado, a criadora de Lena, realizou sua vontade de ser escritora e a sua criação, Lena, não o poderia
justamente por se inscrever em um grupo de mulheres profundamente atingidas pela repressão, mais fracas,
menos preparadas para enfrentar os discursos dominantes.

A complexidade de Tropical Sol da Liberdade pode residir na apropriação que a literatura faz da
realidade. Ana Maria Machado poderia ter nos oferecido uma narrativa que afirmasse as verdades históricas,
como tantos escritores o fizeram. No entanto, uma realidade empírica destituiria o romance, como obra literária,
de uma de suas mais importantes funções: propor a reflexão sobre diferentes valores sociais e morais e
questionar os diversos tipos de alienação diante de um fato dado e descrito de maneira linear, sem abertura
para os grupos historicamente marginalizados. Essa é a função social do artista, e foi a maneira de Ana M.
Machado contribuir com parte da história do país. Tropical Sol da Liberdade apresenta uma narrativa
documental cuja escolha de registros valoriza o universo feminino, que não se quer experimental. De fato, a
integração entre o conceito de estética literária e o universo da arte especificamente feminina se afirma nessa
trama.

Embora não seja reconhecido e divulgado como A audácia dessa mulher (1999), Alice e Ulisses e
outros livros da autora, Tropical Sol da Liberdade oferece, com propriedade, a noção de que a Literatura se
apóia na História e a partir dessa relação indissociável, o texto mostra abertura para uma discussão sociológica,
capaz de analisar a obra como parte de um contexto maior, como fato social, tendo em vista pressupor valores
que estão impregnados na linguagem do sujeito-autor(a), historicamente situado na mesma época em que a
narrativa é projetada.

Alguns críticos literários consideram comuns as publicações de obras no período pós-ditatorial que
expressam o espírito dilacerado, mas esperançoso pela redemocratização. O sentimento da nação aflorava
através de suas diferentes expressões e, talvez a mais profunda história da realidade das décadas de 60 a 80
esteja, de fato, na literatura pós-ditatorial. Rocha (2003) considera que as obras desse gênero que apresentam
aspectos da história recente do país podem ser reconhecidas como “contranarrativas performáticas”, ou seja,
apresentam um novo ponto de vista sobre a história, desafiando os discursos pedagógicos e totalizantes do
poder.

26
A Tese de Doutorado de Ana Maria Machado resultou no livro O Recado do Nome, que aborda questões da obra de
Guimarães Rosa.

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É importante considerarmos que ao mesmo tempo em que o espírito de democratização aflorou na
sociedade brasileira do pós-guerra, o século XX também fortaleceu os regimes autoritários do exército. A
influência européia de figuras como Hitler e Mussolini criou nas organizações militares o desejo pela totalização
das formas de governo. No entanto, essa natureza da autoridade não se originou no ensejo do momento, mas
sim foi despertada como um dos sincretismos próprios do ser humano. Foi a ocasião que fez insurgir a vontade
de exercer o poder sobre a nação.

Tropical Sol da Liberdade questiona essa natureza da autoridade. A representação, então, da real figura
do ditador se dissolve na sociedade e a tônica do debate recai sobre as relações de poder que imperam dentro
de cada grupo. Do mesmo modo que Gramsci aponta para a sociedade hegemônica os diversos níveis de
autoridade e hegemonia, o romance pós-ditatorial problematiza o ser humano enquanto processo dialético,
resultado de constantes transformações. Isso quer dizer que existem diversos tipos de ditadura e que todo ser
humano está inserido em uma rede hierárquica de poderes. A partir do universo e da própria trajetória de Lena,
nossa protagonista, constataremos isso.

Nas palavras de Vieira (2004), Ana Maria Machado motiva o leitor a refletir sobre sua capacidade de
transformar o mundo e um dos aspectos mais relevantes de sua literatura é o diálogo entre “realidade vivida e
ficção, em que o leitor é convidado a (re)visitar o passado histórico em suas múltiplas faces, por meio da
experiência estética oferecida pelo texto literário” (VIEIRA, 2004, p. 36). A narrativa histórica no texto literário de
Ana Maria é apresentada de forma crítica, ressaltando pontos de vista diferentes dos enunciados histórico-
tradicionais.

Em outras obras, Ana Maria Machado também trabalhou as diferentes relações de poder. Em seu livro
De olho nas penas, publicado em 1981, a personagem “Quivira” encontrada por “Miguel” em seu sonho,
representa a parte oprimida do processo de exploração e dominação dos europeus sobre os indígenas e
negros. A viagem que Miguel realiza em seu sonho contextualiza três regiões e cada uma delas retrata uma
parte da história da “conquista” do continente americano. Nessa “viagem” ao mundo íntimo de Miguel, a
personagem “Quivira” expressa um ponto de vista crítico com relação à escola que, muitas vezes, faz com que
seus alunos acreditem na história dos homens brancos, contada “de cima para baixo”.

Umas das personagens mais conhecidas de Ana Maria Machado é Isabel, do livro Bisa Bia, Bisa Bel,
publicado em 1985. Trata-se de uma garota recém chegada à puberdade, que começa a tomar consciência de
si e do meio em que vive (FERREIRA, 2004). A menina, a partir de uma fusão entre a identidade de sua avó,
Bia, e sua própria identidade, convida o leitor a refletir sobre os papéis sociais e sobre a formação do sujeito
fundamentado nas escolhas que se faz no presente, em diálogo com o passado e, por que não dizer?, com o
futuro.

Esse modo de narrar de Ana Maria Machado traz consigo projetos ideológicos. Suas marcas estão
inscritas na linguagem, na escolha dos termos, das personagens e no resgate dos fatos históricos de nossa
sociedade. Para Vieira (2004, p. 46), “a literatura de Ana Maria Machado procura derrubar e denunciar a
ideologia oficial dominante, destacando a necessidade de ouvir as várias vozes, muitas vezes silenciadas, que
em conjunto formam a cultura e a história de um povo”.

Tropical Sol da Liberdade também carrega as marcas ideológicas da escritora. O modo como foi
construída essa narrativa denuncia a ligação direta da autora com os fatos narrados em seu romance. A análise
de uma estrutura subjacente ao acontecimento político que marcou o final do século XX no Brasil coloca ênfase
na necessidade de se conhecer a história por diferentes perspectivas e deixar de lado o próprio termo
“verdade”, tendo em vista a particularidade de cada sujeito contemporâneo.

Mas, se por um lado a narrativa coloca o leitor em situação de conflito com a história, por outro, seu
estilo promove nesse leitor aspirações críticas no sentido de concordar ou não com os diferentes discursos.
Esse trabalho envolve valores sociais vigentes e, nessa situação, o leitor se encontra diante de uma
encruzilhada: ou reafirma as verdades históricas e condena sua leitura ao esquecimento ou completa as

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lacunas do texto com novos questionamentos e elege a leitura ao caráter inteligível das grandes sabedorias
simbólicas. Um narrador pleno, completo, é aquele que testa o leitor, tira-o da zona de conforto e o transporta
para um campo de questionamentos, já dizia Adorno (2003).

Para Adorno, a grande arte é aquela que questiona a alienação do leitor. Não necessariamente com a
problematização das verdades históricas, mas com a apresentação de múltiplas concepções de verdade. Em
um estudo sobre o romance contemporâneo, Adorno (2003, p. 55) destaca a posição do narrador e afirma que
hoje “não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narrativa”. O romance contemporâneo, nos
termos de Adorno, está perdendo lugar para gêneros como a reportagem e outros meios de comunicação
proporcionados pela indústria cultural. Mas a tentativa de Adorno explicar a cadência do romance
contemporâneo recai sobre outras questões. O narrador privilegiado necessita de distanciamento do fato para
que seja possível narrá-lo ideologicamente e não transformá-lo em relato biográfico.

Seria mesquinho rejeitar sua tentativa como uma excêntrica arbitrariedade


individualista. O que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada
e em si mesma contínua, que só a postura do narrador permite. Basta perceber o
quanto é impossível, para alguém que tenha participado da guerra, narrar essa
experiência como antes uma pessoa costumava contar suas aventuras. A narrativa
que se apresentasse como se o narrador fosse capaz de dominar esse tipo de
experiência seria recebida, justamente, com impaciência e ceticismo (ADORNO,
2003, p. 56).

Além da experiência do indivíduo que trava ligações com a esfera psicológica do romance, psicologia
do caráter inteligível, da essência, e não do ser empírico, o narrador deve situar o realismo fictício muito
distante da realidade histórica, no plano estético. “Se o romance quiser permanecer fiel à sua herança realista e
dizer como realmente as coisas são, então ele precisa renunciar a um realismo que, na medida em que
reproduz a fachada, apenas a auxilia na produção do engodo” (ADORNO, 2003, p. 57 – grifos do autor).

O romance é, por excelência, uma invenção da burguesia. Ao substituir a epopéia e a concepção


coletiva de autor por um autor individualista, quebra-se o ciclo das narrativas orais de virtuosa sabedoria. No
primeiro grande romance que se tem notícia na Literatura, Dom Quixote, W. Benjamin (1994) considera o
descompromisso dessa narrativa com o leitor no que se refere ao fenômeno do conselho e da sabedoria das
grandes epopéias.

Benjamin trata esse estado de perda da essência da narrativa como produto do alto capitalismo, o que
consolidou a burguesia e estabeleceu um novo modo de comunicação: a informação que aspira a verificação
imediata e, conforme relata o próprio Benjamin (1994, p. 203), “se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da
informação é decisivamente responsável por esse declínio”. O crítico discorre à respeito da arte de narrar
contemporânea a ele e atesta que as narrativas de sua época são prontas, explicativas em excesso, quase que
sem ações e cansativas ao leitor desejoso pelos “conselhos” das tradicionais narrativas.

Por esse ângulo, o leitor encontra-se preso às explicações e às informações do texto, sem espaço para
interagir e colocar sua reflexão diante das ações narradas. Além disso, as informações só possuem valor
enquanto são inéditas. Do contrário, chegam a causar exaustão no público, e este segue cada vez mais
individualista. Talvez seja por isso que Ana Maria Machado apresenta em sua literatura diferentes projetos de
articulação à história, dinamizando um processo de reescrita das histórias e explorando ao máximo as
potencialidades do próprio leitor em questionar a história convencional.

A narrativa de Ana Maria Machado não dá conselhos. Mas proporciona ao leitor caminhos para que ele
ganhe autonomia. Mostra que a sociedade é mais ampla, que possui seres humanos diferentes e, sobretudo,
que a cultura é a grande alienação dos indivíduos.

__________________________________ 36 __________________________________
As relações de gênero se inscrevem nesse contexto. Em Tropical Sol da Liberdade, é possível
visualizar que as relações de poder e de gênero são parte de uma mesma unidade de pensamento. O
autoritarismo desperta no indivíduo a partir do local onde ele se encontra na história. Por isso, mulher e
autoridade são, na maioria das vezes, opostos. Lena, protagonista da obra, é historicamente violentada. Seu
estado psíquico presente não é apenas resultado da repressão ditatorial de 64, mas da opressão ditatorial do
ser humano. Uma ditadura na qual o homem assumiu o papel do militar e, ao longo da história, não concedeu
espaço para a ação transparente da mulher na sociedade.

Seguindo o raciocínio de Rocha (2003), a identidade também é debatida em obras de ficção


fundamentadas no materialismo histórico. Embora Rocha faça uma análise da memória de Portugal, é possível
reter de seu estudo que a literatura organiza “contranarrativas” que denunciam a visão totalizante da história ao
mesmo tempo em que representa a vivência particular de grupos geralmente marginalizados.

Perante a nova ordem imposta pelo golpe de Estado, e perante as conseqüentes


rupturas e distorções da vivência do quotidiano e da identidade, a escrita mobiliza um
programa de acção: a procura da sanidade individual e colectiva a partir da evocação
e do testemunho, que reencenam o trauma e o colocam em perspectiva histórica.
Nestas circunstâncias, a literatura orienta-se para uma função homeostática, na
medida em que visa a busca de um reequilíbrio face aos destroços de uma
consciência colectiva manipulada pelo regime (ROCHA, 2003, p. 34).

Essa literatura que busca a identidade é também a literatura de resistência. Do ponto de vista da ética
social, o discurso literário funciona como resposta ao autoritarismo, desvelando as relações de poder e
interesse, reconstruindo as referências históricas e os valores camuflados pelo discurso masculino e de direita.
As representações de liberdade, observadas na pesquisa de Rocha (2003), se aplicam perfeitamente no
romance de Ana Maria Machado. A liberdade, na cultura ocidental, é condicionada. E a liberdade da mulher,
seja de expressão ou de ação, passa pelo julgamento dos valores sociais e patriarcais.

Por meio de sua narrativa, Ana Maria Machado contempla todo aparato teórico/histórico do final do
século XX. A partir de Lena, a quem Ana Maria Machado se dedica para expressar sua crítica à dupla
opressão, desvela-se um passado fictício e histórico e, junto a ele, o passado de uma geração de mulheres que
vivenciaram o Golpe Militar.

REFERÊNCIAS:

ADORNO T. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34, 2003.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Vol.
1, 7 ed. Trad. Sergio P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: Editora UnB, ,
1996.
FERREIRA, Carlos. Bisa Bia, Bisa Bel: presente, tempo de liberdade. In: SILVA, Vera M.Tietzmann (Org.).
Mundos e submundos: estudos sobre Ana Maria Machado. Goiânia: Cânone Editorial, 2004.
MACHADO, Ana M. Tropical Sol da Liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
ROCHA, Clara. A memória literária da ditadura: autoridade, identidade, liberdade. In: Revista Ipotese, vol. 7, n.
2. Juiz de Fora, 2003, p. 29-39.
VIEIRA, Ilma S. G. O diálogo entre literatura e história na obra de Ana Maria Machado. In: PEREIRA, M.;
ANTUNES, B. Trança de histórias: a criação literária de Ana Maria Machado. São Paulo: Editora Unesp,
2004.

__________________________________ 37 __________________________________
MOTIVOS MÍTICOS E DAEMONIZAÇÃO EM GUIMARÃES ROSA

Josoel Kovalski27

A obra de João Guimarães Rosa se nos mostra um cabedal imenso de pesquisa, e abrangê-la, em
todos os seus aspectos, é objetivo inatingível. Um conjunto de escritos de tal magnitude suscita mais e mais
estudos, pois seus aspectos variados enfocando o lado folclórico, social, dramático do homem multiplicam-se a
cada leitura. As referências a temas universais se nos mostram, a cada lance, mais e mais explícitas (ao passo
que implicam reconsiderações de nossas prévias conclusões); re-criações semânticas, plurissignificações
ocorrem a cada linha, a cada novo encontro com o texto. Um trabalho de tal monta necessitaria muito mais que
poucas laudas e exigiria um extenso estudo em que o tempo demandado fosse do mesmo tamanho que nossa
admiração pelos livros do escritor mineiro. Recomendável, sabemos, ao pesquisador, fazer uma delimitação
dos possíveis objetos de estudos e em alguns se aprofundar. Por esse motivo, recorremos em analisar
unicamente, neste trabalho, alguns motivos míticos que abarcam alguns textos do escritor mineiro, tentando
fazer uma desleitura à luz da teoria bloomiana.

Debalde falaríamos da notoriedade do autor de Grande Sertão: veredas no cenário nacional. Então, a
guisa de introdução, limitar-nos-emos em descrever apenas alguns aspectos mais determinantes para o
reconhecimento de um dos maiores escritores brasileiros do século XX.

O nome de João Guimarães Rosa representa a refinada consolidação do falar popular e do pensar
erudito. João Rosa percebeu que o refazer conceitual pela palavra determinava e abria séries múltiplas de
representações – o que para ele seria “um reacionário das palavras”–, e que o próprio homem é um ser
dicotômico por excelência: vida e morte, o conhecer e o re-conhecer, agir e sentir são peças chaves para tentar
entender como se projeta o incrível vulcão humano, cheio de peripécias, a todo tempo mostrando-se e velando-
se. Guimarães Rosa é o homem das palavras, e nessas mesmas palavras re-significadas é que constrói e
desconstrói o mundo, re-mitificando as sendas por onde passam suas personagens prenhes de reflexos do
homem universal.

Desde sua estréia, em 1946, Rosa tem sido considerado um dos maiores autores da literatura brasileira
de todos os tempos. Sua obra literária apresenta-nos a representação artística regional e universal como uma
nova técnica literária no campo da literatura de nossa pátria. O sertão brasileiro, mostrado em matizes regionais
e históricos, aparece em seus livros como pano de fundo em que se delineiam os dramas humanos. Sua arte
em representar a realidade sertaneja vale-se também de outras maneiras de colocar o homem no mundo de
uma maneira não tão clara: a mítica. Partindo desse ponto, fica-nos mais intensa a vontade de adentrar um
estudo referente aos processos mítico-mitológicos da escritura de João Guimarães Rosa, a des-construção e
re-construção desses mesmos mitos pelo talento rosiano.

São três grandes esferas que circundam o ser-no-mundo, a saber, a artística, a mítica e a científica,
permeadas pela linguagem. Dito dessa forma, pensamos primeiramente em diferenciações cabíveis nesses três
níveis, como uma tripartição independente em suas configurações, o que não é exato. Cada senda de
conhecimento – ou possibilidade de conhecimento – traz em seu imo uma profunda complexidade, no sentido
de que cada uma delas gera e parteja seu próprio mundo significativo, mas desde sempre envolvida por outros
saberes: nunca se está só quando se pensa cientificamente, artisticamente ou miticamente, mas entre um e
outros envolvidos. Assim a realidade se forma, organizada e definidamente pelos recursos dessas formas de
ideação que se inteiram e se condicionam mutuamente.

Entender a literatura rosiana é também se debruçar pelo lado simbólico do pensar, pelos mitos que
envolvem alguns de seus textos. A metáfora é a propiciadora do pensamento mítico, a possibilitadora da
expressão poética, a imagem do mundo arrancada do texto e voltada ao texto: imago mundi que talhamos em

27
Professor de Literatura Brasileira, Literatura norte-americana e Literatura Juvenil da Faculdade Estadual de Filosofia,
Ciências e Letras de União da Vitória.

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busca do sagrado que está em nós, às vezes inerte, mas sempre pronto à explosão que caracteriza o terremoto
humano em prosa ou verso. Basta que demos atenção a nós mesmos e permitamos, como entes realizadores
da experiência da vida, o adentrar no cabedal imenso de significações que pululam e agitam o pensar, sempre
em busca de uma transcendência inebriante, uma epifania – adjacente ao homem – das quais os sonhos são
meros reflexos, meras agulhadas que nos remete a expressar o que o pensamento cotidiano não dá conta: a
arte em toda sua sacralidade, como aspecto intrínseco do homem. Por isso nos valemos do mito, embora seja
um tanto complexa uma definição satisfatória.

Acaso é possivel encontrar uma definição única capaz de abarcar todos os tipos e
funções dos mitos em todas as sociedades, arcaicas e tradicionais? O mito é uma
realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordarda e interpretada en
perspectivas múltiplas e complementares. (ELIADE, 1972, p.11)

A palavra poética é essencialmente metafórica. Pela metáfora os mitos se cristalizam, pois “o mito é
uma metáfora daquilo que repousa por trás do mundo visível” (CAMPBELL, 1991, p.11). O abordar
expressivamente a metáfora é também terreno da literatura: arte condicionada ao mítico, ao científico, à
expressão da linguagem por vias significativas que o pensamento reverte em fonte sustentável pelos anseios
dos que habitam o mundo. Os heróis que buscamos, e que a mitologia criou como modelos a nós, foram
preservados pela palavra poética, metafórica e sagrada chegando até nós também via literatura.

A figura do herói é representativa nos textos de Rosa. Valendo-nos dos aspectos míticos
encontraremos esse herói na famosa viagem em busca da transcendência (seja viagem física ou espiritual). Em
Conversa de bois, uma das nove novelas do livro Sagarana, de 1946, Guimarães Rosa descreve a viagem de
um menino, recém-órfão, Tiãõzinho, que vai numa viagem de seis léguas (ROSA, 1995, p.321) de sua casa até
um arraial enterrar seu pai, viagem essa em que o carro de bois serve tanto de carro funerário quanto de carro
de entrega de rapaduras. Na liderança do carro vai Agenor Soronho, certamente o amante da mãe de
Tiãozinho, e quatro duplas de bois que “conversam” entre si, tecendo considerações acerca do homem e de
seus mundos, humano e bovino. Ou nas palavras de Álvaro Lins:

Revela-se aqui uma espécie de filosofia dos bois, uma síntese do que pensam da
vida e dos homens. Eles não se movimentam nessas páginas como elementos
acessórios ou completivos, mas como verdadeiros personagens, aos quais o seu
criador amplamente concedeu ritmo vital e direção autônoma. (LINS, 1963, p. 262)

Nessa viagem o menino Tiãozinho mergulha para dentro de si mesmo, numa confluência de
consciência com os bois, denotando nossa animalidade, nossa identificação com o caráter animal e, ao mesmo
tempo, dos bois com o menino, posto que pensam e refletem. É característica do herói ser influenciado por
motivos excepcionais, ultra humanos e assim realizar suas tarefas. Segundo Joseph Campbell há dois tipos de
proezas que os heróis fazem:

Uma é a proeza física, em que o herói pratica um ato de coragem, durante a batalha,
ou salva uma vida. O outro tipo é a proeza espiritual, na qual o herói aprende a lidar
com o nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma mensagem.
(CAMPBELL 1991, p.137)

O menino Tiãozinho abandona sua condição de criança, após essa viagem, após "morrer" e "ressurgir"
como homem numa viagem de partida e regresso: tinha que descobrir algo além do usual, além do cotidiano,
pois o herói é aquele que ultrapassa as barreiras conhecidas em busca de algo do que se lembrará e o
transformará numa pessoa diferente.

Evoluir dessa posição de imaturidade psicológica para a coragem da auto


responsabilidade e a confiança exige morte e ressurreição. Esse é o motivo básico do

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périplo universal do herói – ele abandona determinada condição e encontra a fonte
da vida, que o conduz a uma condição mais rica e madura. (CAMPBELL 1991, p.137)

A viagem de Tiãozinho pode ser vista como uma viagem de iniciação, mito universal, em que a criança
abandona sua condição de infantilidade e passa a transitar num meio mais responsável, maduro, adulto.
Trilhamos essa senda diversas vezes, desde nosso nascimento, onde temos que sair de uma vida aquática e
transcender, ressurgir em um novo indivíduo, que a cada etapa vencida torna-se mais forte e com experiências
importantes. Todos os heróis empreendem essas viagens, às vezes intencionais, às vezes não, mas que os
fazem sair de sua imanência de seres humanos comuns para trazer algo novo, seres, pois, transformados.

O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas


limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas,
humanas. As visões, idéias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das
fontes primárias da vida e do pensamento humanos. Eis por que falam com
eloqüência, não da sociedade e da psique atuais, em estado de desintegração, mas
da fonte inesgotável por intermédio da qual a sociedade renasce. O herói morreu
como homem moderno; mas, como homem eterno — aperfeiçoado, não específico e
universal —, renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é, por conseguinte,
retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que
aprendeu. (CAMPBELL, 1959, p.26) 28(Nossa tradução).

Abarcando as similitudes da obra rosiana, o conto em questão, com os mitos universais,


reconheceríamos a história de Telêmaco, filho do grande Odisseu que na Telemaquia sai de sua terra em
busca de notícias de seu pai. Encontra o rei Menelau e sua esposa Helena – motivo do embate entre aqueus e
troianos – e a eles pede informações concernentes ao paradeiro de seu pai. O herói tem seu lar assediado por
pretendentes ao trono que outrora seu pai ocupara, crente que estavam da morte dele. A rainha tece a trama,
dia após dia, e no final da noite a destrincha, como que para dar mais tempo para seu amado retornar ao lar. O
chefe dos pretendentes é Alcino, que no conto Conversa de Bois poderíamos associar com Agenor Soronho, o
carreiro. Aquele que usurpara o lugar de seu pai, que “estava sustentando a família toda” (ROSA, 1995, p.316).
De sua mãe Tiãozinho não gostava. Ela era jovem e bonita, e possivelmente isso era o que atraía o
pretendente Soronho, além do fato de que seu pai era cego e entrevado havia anos. Com a mãe de Tiãozinho
Soronho estava, pois o menino lembrava que ele só ficava “sempre perto da mãe, cochichando, fazendo
dengos” (ROSA, 1995, p.316). Alcino iria ocupar o lugar de Odisseu como esposo de Penélope e como seu
novo pai, assim como Soronho, pois no velório de seu pai Tiãozinho nota uma alegria naquele que vem para
tomar o luar de seu pai:

E até quando Tiãozinho, zonzo de tanta confusão, se sentara na pedra que faz
degrau na porta da cozinha, o carreiro tinha vindo consolar sua tristeza, dizendo que
daí em diante ia tomar conta dele de verdade, ia ser que nem seu pai... (ROSA, 1995,
p.321).

Encontramos, então, a daimonização29 de Tiãozinho, da mãe e de Agenor. Há o caráter do contra-


sublime no conto de Rosa, visto que ele, fazendo as vezes do escritor efebo, tenta ir contra o Sublime

28
El héroe, por lo tanto, es el hombre o la mujer que ha sido capaz de combatir e triunfar sobre sus limitaciones históricas
personales y locales y ha alzanzado las formas humanas generales, válidas e normales. De esta manera las visiones, las
ideas e las inspiraciones surgen prístinas de las fuentes primarias de la vida y del pensamiento humano. De aquí su
elocuencia, no de la sociedad y de la psique presentes y em estado de desintegración, sino de la fuente inagotable a través
de la cual la sociedade ha de renacer. El héroe ha muerto em cuanto hombre moderno; pero como hombre eterno –perfecto,
no específico, universal – ha vuelto a nacer. Su segunda tarea y hazaña formal ha de ser volver a nosotros transfigurado y
enseñar las lecciones que ha aprendido sobre la renovación de la vida. (CAMPBELL, 1959, p.26)

29
Conceito desenvolvido pelo crítico norte-americano Harold bloom no livro A angústia da influência. Nesse livro o autor
preconiza seis movimentos A cada um desses movimentos, o crítico atribui um tropo, que são as interpretações da

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primordial, o mito universal, daemonizando-o. Na visão daemônica, o Grande Original (nesse caso tanto o mito
quanto as personagens) permanece grande, mas perde sua originalidade, é uma guerra em que prevalece o
poder da novidade. O precursor torna-se humanizado e o que ele professava é absorvido no terreno da
tradição. A daemonização é, portanto, uma relação revisionária do efebo ao pai-precursor.

A daemonização, como relação revisionária, é um ato de autocerceamento, destinado


a comprar conhecimento jogando com a perda do poder, mas com mais freqüência
resultando numa verdadeira perda dos poderes de criação. É um falso gesto
dionisíaco, que reduz a glória humana do precursor, entregando de volta todas as
suas vitórias duramente conquistadas ao mundo daemônico. (BLOOM, 2002, p. 157).

Em outras palavras, Bloom acredita que toda obra poética luta angustiadamente pela superação de
modelos poéticos anteriores, os precursores, que todo poema é uma resposta angustiante contra um poema
anterior. Dessa porfia nasce a obra de arte definitivamente forte. A obra de Guimarães Rosa é um terreno farto
onde encontraremos exemplos vários dessa luta.

Outro texto muito instrutivo nessa perspectiva daemônica é A terceira margem do rio, do livro Primeiras
Estórias. O mito aqui presente é o de Édipo e Laio, seu pai. Édipo mata o próprio pai e amaldiçoa o assassino
(por sinal, ele mesmo, embora não soubesse). O filho também vive à margem da figura do pai, fazendo de tudo
para que ele desistisse da vida na canoa e voltasse a viver com eles (nem o casamento da filha, nem o
nascimento do neto, ninguém conseguiu demovê-lo de seu intento: ficar vagando com uma canoa sobre um rio
próximo a sua residência). No final, o pai decide, após um apelo do filho (que já se estava entrado em anos)
ceder e trocar de lugar com o filho na canoa. Mas o herói falha em realizar a troca.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E
eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um
saudar de gestos – o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não
podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento
desatinado. Porquanto ele me pareceu vir: da parte do além. E estou pedindo,
pedindo, pedindo um perdão. (ROSA, 1988, p. 37)

Assim como Édipo buscava o perdão pelo assassínio de seu pai, o filho pedia esse perdão pela falta de
coragem em finalmente trazer seu pai “do além”, da canoa e com ele trocar de lugar. Há um problema de viver a
vida com essa falha, “Sou homem, depois desse falimento?” e a resposta “Sou o que não foi, o que vai ficar
calado”. O filho não mata fisicamente o pai, mas a culpa é que faz as semelhanças entre as histórias e a
retomada mítica pode ser analisada pela daemonização de Édipo no filho. Temos, então, mais alguns motivos
míticos num conto que por si só já é um manancial de estudos e pesquisas, fora a beleza inquietante que
sempre imputou em seus leitores.

A partir desse breve esboço notamos o quão grande é a obra de João Guimarães Rosa. Sua
importância, é cediço, extrapola os limites do regional, universalizando o homem e retomando motivos míticos
universais. Sejam as particularidades vocabulares – terreno em que Rosa também foi um mestre – seja no
estudo do homem em suas múltiplas acepções, seja em vieses sociológicos, a recriação de uma natureza ultra
natura (os bichos pensando e seus movimentos, as cores pintadas dos sertões de Minas Gerais) o escritor tem,
além disso, o talento de ser um re-criador de mitos, pois reconfigura temas universais recriados pela força de
sua imaginação singular, transfiguradas por sua memória, característica de um exímio contador de estórias.
Também por essas razões buscamos na literatura de Rosa a fantasia, a imaginação. O mundo por si só é tão
real, tão maquinalmente composto e tão preenchido por representantes de um sistema de não-vida (ou
compreensão anti-poética da vida) que os sonhos se nos apresentam como o escape necessário, a mesma

influência e seu modo de ler ou “desler”, cuja ação é realizada a partir do contato de um texto com outro. Eles são:
Clinamen, Tessera, Kenosis, Askesis, Apophrades e Daemonização, ou movimento para um Contra-Sublime personalizado,
em relação ao Sublime do precursor.

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válvula de escape que engendrou os homens antigamente a formularem mitologias, a buscarem sacralidades
em deuses e religiões. Somos feitos dessa mesma matéria dos sonhos, buscamos a comunhão com o que nos
torne transcendente a esse mundo tão aceitador de utilidades, de matérias funcionalmente explicáveis. Nos
prendemos em teorias científicas e nos deixamos ficar alheios ao maravilhoso em nosso ser, relegando todo
fascínio que outrora tínhamos pelas deidades que de longe nos observavam e protegiam a meras estórias do
faz-de-conta. A ciência explica e tenta solucionar nossas dúvidas ante a existência, mas ao mesmo tempo ela
torna-se tão sagrada quanto os mitos e metáforas que tentava explicar. O homem busca na arte a linguagem do
que não se explica, mas se aprecia pelo olho do que ainda tem a sentimentalidade acima do comumente aceito
a uma sociedade pragmática. A literatura refaz o caminho. Não se relega a simples antônimo do que é real, cria
sua própria realidade e nela enxerta os anseios e sonhos do homem: entidade criadora que reconsidera sua
vida e mundo sempre em busca de um novo começar, um novo trilhar de expectativas, pois ele mesmo é a
senda que labuta na terra do dizer não ao maravilhoso, buscando o que expressa e re-significando a prosa com
matizes poéticos, metafóricos, científicos, artísticos, míticos. A todo tempo estamos buscando heróis e motivos
míticos, mesmo que inconscientemente. João Guimarães Rosa foi um excelente criador de ambos.

BIBLIOGRAFIA

BLOOM, Harold. A angústia da influência. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2002.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1991.

________________ El héroe de las mil caras. México: Fondo de Cultura Económica, 1959.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.

LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.

ROSA, João Guimarães. Sagarana. São Paulo: Record, 1995.

___________________ Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

__________________________________ 42 __________________________________
ISABEL ALLENDE – UM CONTO PARA CONTAR

Ana Paula Such30

1 ISABEL ALLENDE

Escritora chilena que na última década experimentou uma grande ascensão na literatura latino-
americana.

Tomas Allende Pesce de Bilbaire, primo irmão de Salvador Allende, de origem francesa por parte
materna, foi um intelectual e boêmio, caracterizado por seu senso de humor e inteligência perspicaz. Ele e
Francisca Llona Bardos, conhecida com o apelido de Panchita, conheceram-se numa tertúlia juvenil, para
aficcionados pelas letras, surgida em Santiago para debater as obras dos principais autores europeus da
época, como James Joyce, Viginia Wolf e Franz Kafka. Pouco tempo depois casaram-se sem o consentimento
de don Agustín Llona, pai da noiva. Durante o ano de 1942, os noivos viveram em Lima (peru), pois Tomás
trabalhava como secretario da embaixada chilena. Ali nasceram Francisco, Juan e Isabel.

A família Allende separou-se em 1945 porque a mãe decidiu voltar às raízes para fugir do abandono e
do desamor de seu marido, que desapareceu misteriosamente, fato que aparentemente tem relação com os
rumores de um escândalo entre funcionários diplomáticos de alto escalão. Devido a este momento difícil, mãe e
filha construíram uma relação insubstituível que, com o passar dos anos viria a aumentar ainda mais sua
intensidade. O avô dos pequenos, don Agustín, ocupou a posição de pai. Panchita, por sua vez, seguiu com a
marca de um estigma social, imperdoável para a época: o divorcio segundo Allende (2006).

Tempo depois, Panchita uniria-se ao também diplomata Ramón Huidoro, amigo intimo de salvador
Allende, feito que estreitaria ainda mais a relação entre Salvador e sua sobrinha. Esta relação também foi mal
vista pela sociedade já que ele era um homem casado, pai de quatro filhos e sobrinho de um bispo. A profissão
de Ramón permitiu que Panchita e seus filhos viajassem através da geografia mundial. Viveram na Bolívia e em
Beirut, onde Isabel estudou em colégios particulares norteamericanos e britânicos, conforme Allende (2006).

Em 1958, contando 16 anos, Isabel volta ao Chile, raiz da crise do canal de Suez, para terminar seus
estudos secundários. Nessa época conhece quem seria seu primeiro marido, Miguel Frias, que então era
estudante de engenharia. No ano seguinte Isabel começa a trabalhar para FAO(Food and Agriculture
Organizatio) no departamento de Informação das Nações Unidas na cidade de Santiago; desempenharia esta
tarefa durante seis anos e a conduziria a trabalhar na televisão conforme nos afirma Allende (2007).

Em 1962, Isabel e Miguel casam-se e um ano após nasce sua primeira filha, Paula. Durante os dois
anos seguintes a recém formada família viaja pela Europa, vivendo em Bruxelas e na Suíça. Em 1966
regressam ao Chile e nasce o segundo filho do casal, Nicolas.

Entre os anos de 1967 e 1974, Isabel e Miguel colabora com aa revista feminina Paula, na qual
participa da primeira equipe editorial. Durante 1973 e 1974, em Santiago, colabora coma a revista infantil
“Mampato”, a qual dirigiria durante um breve período de tempo. Também nessa época publica dois contos
infantis para a coleção “Zapatito Rojo”, “La abuela Pancha” e “Laucha y lauchones, ratas y ratones”; e uma re-
compilação de artigos humorísticos escritos anteriormente em sua coluna de Paula, e outros de temática
feminista e anti-machista, exaltando a liberação da mulher.

Em 1970, Salvador Allende é eleito o primeiro presidente socialista do Chile e como conseqüência o
padrasto de Isabel, Ramón Huidoro é nomeado embaixador na Argentina. Deste ano ate 1975, Isabel passa a
trabalhar nos canais 13 e 7 de televisão de Santiago, nos quais tem um programa de humor e outro de
entrevistas, graças a eles consegue alcançar grande popularidade entre o público.

30
Especialista, professora de Literatura Portuguesa na FAFIUV.

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Em 11 de setembro de 1973, eclode o golpe de estado encabeçado pelo general Augusto Pinochet
Ugarte sob os olhos atentos da CIA, devido a Pinochet ter sido treinado sobre as artes ditatoriais na Escola das
Américas, situada na costa leste americana. A conseqüência direta desse ataque à democracia é a morte do
presidente Allende e de um número impreciso de desaparecidos, que eram contrários ao regime autoritário.
Durante os primeiros dias do golpe militar o Estado Nacional transforma-se numa prisão e cenário onde
ocorrem torturas e assassinatos. O desaparecimento de centenas de pessoas ficou conhecido como a
“caravana da morte”. A respeito da deposição de Salvador Allende, que se deu no Palácio da Moeda, a versão
dada pelo governo militar era que seu desaparecimento era fruto de um suicídio. Outras versões, com certeza
as reais, afirmam que foi assassinado segundo O Leme (2007).

Dois anos depois, Isabel e sua família mudam-se para Venezuela, país em que permaneceriam durante
um período de treze anos devido a ameaça e perseguições da ditadura militar chilena; exilam-se buscando asilo
político em embaixadas para esconder-se ou fugir do Chile, onde o nome Allende era um estigma no atual Chile
de Pinochet. Nesse momento, quando passa a viver na Venezuela, Isabel da-se conta do que significava ser
uma Allende e sobrinha de Salvador.

Em 1978 separa-se temporariamente de Miguel Frias. Vai morar na Espanha impulsionada pela
flamejante paixão que sente por um músico argentino. Porém a relação não teve futuro algum, já que Isabel
permaneceu somente dois meses na Península Ibérica. Depois desta curta paixão, volta a Caracas, onde
trabalha por dois anos como administradora no colégio Marrocos. Seus filhos, Paula e Nicolas, mostram-se
distantes com ela devido a sua ausência, mas com o tempo e com uma grande dose de carinho materno, a
incomoda situação iría desaparecendo.

Em 1981, após saber que seu avô, Augustin Llona Cuevas, de 99 anos, está morrendo, começa a
escrever-lhe uma carta que se transformaria no manuscrito de “La casa de los espíritus”. Não consegue a
publicação da obra na Venezuela, logrando êxito somente em Barcelona.

A partir desse ano consolida-se a carreira de escritora, reconhecida por diversos prêmios recebidos.
Sua obra é marcada pela ditadura no Chile, implantada com o golpe militar que em 1973 derrubou o governo
Allende segundo Wikipédia (2007).

Na melhor tradição da narrativa hispano-americana, Isabel Allende registra a vulcânica situação política,
sejam vulcões adormecidos ou em erupção. Não falta nenhum sintoma da enfermidade crônica: ditaduras e
ditadores, torturadores e torturados, manifestações de estudantes e operários, e também numa ocasião, de
prostitutas, que causou uma autentica revolta nacional, ações da guerrilha que atua nas montanhas ou nas
matas, e cujas filas são alimentadas por jovens idealistas que terminam por serem massacrados.

Nessas condições cria a personagem Eva Luna. Uma mulher forte, decidida, que enfrenta o mundo
masculino e com a docilidade feminina acaba dominando esse mundo machista. Eva Luna pode ser
considerado como o alter ego de Isabel. A seguir conheceremos um pouco mais sobre essa personagem criada
na obra que leva seu próprio nome “Eva Luna” e num segundo momento aparece como narradora de contos na
obra “Cuentos de Eva Luna”.

1.1 EVA LUNA

Seu nome, em si mesmo, é a essência do que é sua pessoa. Eva significa vida, e isso é o que lhe resta,
seu mundo interior é tão imenso, que inclusive é capaz de inventar histórias para distrair as pessoas. Luna, seu
sobrenome, transforma-se em luna (lua), essa visão noturna, magnífica e sugestiva; a lua simboliza a
feminilidade e o feminismo, e ao ter este sobrenome, a pessoa adota essas qualidades.

Conforme Allende (2007) a autora ao unir nome e sobrenome, forma-se Eva Luna, uma moça com um
intenso desejo de vida e com um arraigada ânsia de lutar por seus direitos de mulher, que não se deixa

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amedrontar por nada nem por ninguém. Desde tenra idade já percebe que a vida é uma continua luta por menor
ou mais insignificante que pareça.

Desde pequena, ouvindo sua mãe contar-lhe histórias, Eva cresce com um talento e uma sensibilidade
a flor da pele que a fazem capaz de contar histórias e contos que emocionam até a pessoa mais insensível.
Tem uma aura de bondade e de ternura que conquista.

Segundo Allende (2006), a própria autora afirma que sua personagem, Eva Luna é uma narradora de
contos, uma Sherazade latina, o que a faz viver e ver a vida com certos ideais, lutando contra a repressão a sua
maneira. Suas origens (um pai da tribo dos filhos da lua e uma mãe criada na selva por missionários) fizeram-
lhe perceber as coisas de forma distinta do restante das pessoas, e que mostra este seu jeito peculiar nas
histórias que conta. O fato de saber contar histórias a converte num ser assombroso ante os olhos dos homens,
e este mesmo assombro transforma-se em respeito, já que sabe fazer algo que só se consegue com
sensibilidade, e os homens, ao carecerem dela, invejam e deixam-se perder nas teias de quem a possui.

Eva é antes de tudo uma mulher que se faz por si mesma, que luta por seus ideais e cresce ante as
dificuldades, vai em frente quando tudo parece perdido, não se dá por vencida, pensa em tempos melhores e
luta para que eles venham a concretizar-se.

Neste período de ditadura militar no qual Eva esta inserida, apesar de todo uma esfera machista e de opressão,
a mulher da classe média vai chegando aos poucos à universidade vencendo a oposição dos pais, até mesmo
do noivo ou namorado. Enfrenta, ainda, a barreira do preconceito social que mantém a imagem da mulher
restrita a ser dona-de-casa e esposa, exercendo a postura submissa frente ao marido. Naturalmente, as
mulheres foram em busca de cursos socialmente reconhecidos como “cursos para as mulheres”. Como
exemplo, citamos o curso de filosofia, que proporcionava a mulher ingressar no magistério de ginásio, do
clássico ou científico. A grande maioria das moças de classe média permaneciam como “professora primária”,
na idéia de continuar praticando o papel da maternidade no “segundo lar”; a escola. Outras que não
conseguiram a oportunidade de estudar, buscaram garantir o trabalho fora de casa, reduzindo a submissão ao
marido. Talvez nem todas conseguiram a autonomia almejada, pois embora tivessem renda, precisavam
justificar: “era para ajudar o marido”, deixando claro a desigualdade, pois além de ganhar pouco, ainda eram
incompreendidas, uma vez que precisavam justificar o “trabalho fora de casa”. Assim, nem sempre a
preocupação estava centrada no desenvolvimento profissional. De qualquer forma, o cotidiano tornou-se mais
sacrificado do que do próprio homem, pois mesmo com o trabalho fora de casa, ainda permanecia com a
responsabilidade das tarefas do lar. Neste contexto, novos hábitos foram sendo adquiridos e proporcionando
uma diferente visão de família, em relação ao papel da mulher e a do homem. Assim Eva é uma dessas
mulheres que não tem medo de enfrentar a situação para encontrar e conquistar seu espaço por direito, sem
jamais perder a feminilidade, ternura e principalmente a coragem conforme nos aponta Allende (2006).

Na cama com seu amante, Eva Luna é requisitada por ele para que lhe conte um conto “que jamais
tenha contado antes”. A improvisada Sherazade não conta um mas 23 vidas completando todo o registro de
sentimentos possíveis na alma humana. Personagens muito próximas das realidade latino americana
enfocando, essencialmente, a mulher e sua luta silenciosa. É o protótipo matriarcal que impulsiona a vida, que
conecta todos os fios invisíveis na tela chamada existência. Eva é a mulher que tem sempre pronto um conto
para seu rei. Com Eva “(...) a obra de arte procura dizer o real (ainda que subjetivo), como o real procura se
dizer através da obra: cada uma diz o seu outro e se diz no outro (como faz todo elemento alegórico).”
(KOTHE,1986,p.14) Na protagonista desperta uma especial atração pelos relatos e pelas histórias de todo o
tipo, e quando aprende a ler e escrever uma clara vocação de escritora aflora de maneira de se pode apreciar
um reflexo de sua autobiografia. Se estabelecemos uma distinção convencional entre a narradora-autora (Isabel
Allende) e a narradora-fictícia (Eva Luna) teremos que admitir que a primeira não só descobre sua psicologia e
filosofia de vida através de sua personagem, como também esta é, protótipo de sua vocação. A seguir teremos
um breve comentário sobre a abordagem da obra Cuentos de Eva Luna, narradora-fictiva que se coloca entre
Isabel Allende e o leitor.

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1.2 CONTOS DE EVA LUNA

Os contrastes entre os temas que se tratam nos Cuentos de Eva Luna são muito extremos, mesmo que
de fundo sempre esteja a temática do amor, apesar do amor que se conta aqui esteja como classe de
sentimentos que não pode ser bom, que é desprezado pela sociedade,por ser impossível de levar a cabo ou
por ser impossível realizar por causa da sociedade. São amores que manipulam a vontade das pessoas que os
possui, que pode levar tanto a loucura como ao assassinato.

O amor apesar de ser perigoso também proporciona alegrias, já que nunca ninguém é tão feliz como
quando está apaixonado. Os apaixonados estão envolvidos num manto de irrealidade e fantasia, o que os faz
imunes à realidade, mas não à dor.

A ditadura militar está presente como pano de fundo já que todos lutam para derrotá-la. Pensam que
com a democracia tudo será melhor, já que o regime está massacrando o país e sua gente. Há guerrilhas nas
montanhas que tentam sabotar os militares, e pouco a pouco vão conseguindo. Eva luta por ela, já que pensa
que se libertarem-se desse regime opressor, a igualdade entre os homens e mulheres acontecera, porém
acaba por dar-se conta de que mesmo com a democracia a sociedade sempre fará distinções entre os sexos,
principalmente na sociedade chilena, machista por tradição.

Todas as histórias são contadas por Eva Luna, com exceção de Walimai que é narrada por seu pai. Eva
conta relatos de maneira pura, descrevendo os detalhes que têm uma grande importância, já que as vezes os
contos apenas insinuam e é graças aos pormenores significativos que se entende uma história.

O realismo mágico está presente neste livro, por isso não é de se estranhar que tudo possa acontecer
sem que pareça estranho. Ele manifesta-se em detalhes concretos e pequenos, ou ao contrário, em episódios
de duração mais ou menos prolongada.

A seguir teremos a análise de dois contos, escolhidos aleatóriamente, sob a ótica do Realismo Mágico
como uma maneira de burlar a ditadura militar e ao mesmo tempo denunciá-lo.

1.3 CLARISSA Y LO MÁS OLVIDADO DEL OLVIDO

Esses dois contos, escolhidos ao acaso, servirão de suporte ao que nos propusemos a analisar, a
questão do realismo mágico como uma forma de burlar a censura instaurada pelo regime ditatorial e ao mesmo
tempo de denunciar todas as atrocidades, mandos e desmandos. A mão forte que tudo pode e tudo comanda
veremos em “Clarissa”, já em “Lo más olvidado del olvido” veremos como as feridas ainda não cicatrizadas
ainda sangram e machucam, desencadeando um processo de martírio, onde sentimentos são sufocados e nem
o amor consegue se fazer por conta das torturas sofridas.

1.4 CLARISSA

É a história de Clarissa contada por Eva Luna. Clarissa é uma mulher muito devota e lutadora, que
sempre perseguiu seus desejos até concretizá-los, neste caso, buscar maneiras de ajudar aos outros, apesar
de que sua própria realidade não era muito diferente já que "…resultaba difícil encontrar pobres más pobres
que ella". O aspecto narrativo do conto permite entrever este e outros problemas que vive a protagonista e as
personagens que vivem ao seu redor, tais como a relação que mantinha com o marido, que vivia fechado num
quarto separado e a unica comunicação que mantinha era por meio de batidas na porta. Seu casamento foi
produto da conformidade e da imposição de seus pais, nunca houve uma relação de amor. A submissão do
marido era apena uma amostra do pouco amor que sentia por seus filhos anormais.

Ver como Clarissa reagia diante dessa situação durante tantos anos é uma amostra da fortaleza que
possuia e a covardia do marido ao não encarar sua realidade. Outras virtudes importantes são vista quando
uma noite, Clarissa é abordada por um ladrão em sua própria casa, ela muito tranqüilamente, enfrenta o

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assaltante com uma valentia admirável ao dizer-lhe: "No, esto no es un robo. Yo no te voy a dejar que cometas
un pecado. Te voy a dar algo de dinero por mi voluntad. No me lo estás quitando, te lo estoy dando, ¿está
claro?" e em seguida o convida para tomar um chá, que lhe conte o por quê de sua atitude. Destacando seu
impeto, seu carater forte e decidido é a descrição de como: "conseguía de los jesuitas becas para niños ateos,
de la Acción de Damas Católicas ropa usada para las prostitutas de su barrio, del Instituto Alemán instrumentos
de música para un coro hebreo, de los dueños de viñas fondos para los alcohólicos". Esta ajuda assim como
tambem outra foi produto de sua amizade com o deputado Diego Cienfuegos, que com o passar do tempo,
estas duas personagens encontram o que necessitam um no outro e foi assim como os dois filhos menores de
Clarissa foram fruto dessa paixao.

Clarissa nunca adaptou-se às mudanças trazidas com o passar do tempo, assim quando chegou o
Papa em visita e os homossexuias sairam ao su encontro trajados com habitos de freiras, Clarissa soube,
quando viu isso, que seu fim estava masi proximo, ou melhor ela assim decidiu, e anunciou a todos para que
estivessem preparados.

Eva sempre a seu lado a acompanhou em seus últimos dias, dando-le valor para enfrentar sua última
prova e obsequiando-se de todo seu sentimento. Seu marido nem sequer pos luto e seus filhos a
acompanharam e providenciaram todo o que era necessario, além de ajudar a receber todas as visitas que
chegaram de muito longe para despedirem-se efusivamente de Clarissa: o assaltante, a Senhora, Diego
Cienfuegos, e toda a multidao que a conhecia e a considerava santa.

Quando ja havia despedido-se de todos e de cada um dos que haviam sido parte de sua vida, Clarisa
morre. É a ditadura que morre personificada por Clarissa.

É importante dizer que este conto nao está situado num lugar especifico, nem seus personagens são
oriundos de algum lugar. Este conto é reflexo da sociedade latinoamericana

1.5 LO MÁS OLVIDADO DEL OLVIDO

Este conto recria os sentimentos das personagens que foram torturdas por Pinochet e suas eaquelas e
que seguem com vida, para tal revivem uma outra vez o que desejariam esquecer par asempre. Tanto é o medo
que guardam em seu interior, que nem sequer são capazes de falar do tema, porque esse tormento não pára
de rondar-les pela mente. A lembrança da tortura os faz impossibilitados de manter uma relação amorosa, ja
que se veem continuamente atormentados por suas lembranças: por tudo que sofreram, os griots dos
companheiros, as cicatrizes que permanecem em seus corpos e almas por causa da tortura sofrida.

É uma amostra do que resta, ainda vivo, do período ditatorial, de quem conseguiu sair vivo de toda a
barbárie. Vivo porém corporeamete, pois seu interior, ainda continua preso, sofrendo, isto se já nao foi morto. Ai
apresenta-se o realismo maravilhoso, a morte aparente, a pessoa esta viva e morta ao mesmo tempo.
Enquanto vivo, tem necessidade de amar e satisfazer seus impetos, mas seu lado morto não permite a
consumção do ato.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O homem, absorvido pelos acontecimentos ao seu redor, torna-se um ser miserável cheio de ânsias e
frustrações. A literatura de Isabel Allende, mais precisamente na obra “Cuentos de Eva Luna” apresenta as
experiências e consequências da ditadura militar nas pessoas, como uma via de introspecção, uma
oportunidade de refletir sobre si mesmo e encontrar um caminho que conduza ao encontro com nosso
verdadeiro ser, ou ao menos amenizar as profundas cicatrizes causadas pelso horrores vivenciados.

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REFERÊNCIAS

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__________. La autora. Disponível em <http://www.clubcultura.com/clubliteratura/clubescritores/allende/>
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<http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u198.jhtm> Acesso em 02 de dezembro de 2006.

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CONTRAPONTOS DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA EM HEGEL E MARX

Ivanor Luiz Guarnieri31

Introdução

A hipótese se há um sentido na história e, em havendo qual seria este sentido, pode ser tomada
como fio condutor da exposição que aqui se apresenta, não sem antes fazer algumas considerações.

A história, como ciência, ao menos como nós a entendemos, a partir da criação de cadeiras de
história nas universidades, teve um início recente. No século 19, no conjunto de teorias e ciências nascidas no
belicoso e imperialista solo europeu, se irá formatar a disciplina de história, no processo de expansão do
capitalismo europeu que requeria materiais e matéria-prima para suas indústrias. Por conta disso, foi levado ao
território africano o barulho da Revolução Industrial, só que de modo mais aterrador, com tiros e explosões
variadas, procurando dominar os habitantes das regiões africanas, ou explodindo montanhas e construindo
minas em busca materiais preciosos para a construção de indústrias a se expandirem continuamente.

A necessidade de conhecer a cultura dos povos das regiões, para melhor dominá-los, bem como de
criação de mapas de localização dos lugares mais apropriados para exploração, levou os europeus a
impulsionar o desenvolvimento da antropologia e da geografia. A geografia, não por acaso, teve seu primeiro
congresso internacional presidido por Leopoldo II, imperador belga, interessado que estava em dominar ricas
áreas de mineração na África.

Nesse contexto se instauram os procedimentos metodológicos da história, que passará a ser


reconhecida como ciência. Para tanto adotou muito da forma de trabalho e pesquisa das outras ciências de
então. Primeiramente, a história recebia o modelo teórico do positivismo, graças ao predomínio da física. A
física que naquele tempo era coroada como a ciência modelar, da qual as demais procuravam seguir as regras,
ou ao menos se aproximar dela. O que hoje é chamado, com certo desdém, de Positivismo, deve muito aos
princípios metodológicos da física, que acabaram contaminando as ciências humanas e, por conseguinte, a
história.

Logo após a grande influência do Positivismo, os historiadores descobriram um poderoso ferramental


teórico nas categorias de análise marxistas. Com a corrente historiográfica marxista, predomina a busca de um
sentido de totalidade explicativa para os fenômenos históricos. Justiça se faça: a Escola de Annales, fundada
em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre, vindo logo após o marxismo, apesar da extraordinária abertura
propiciada, com a inclusão de inúmeros outros objetos e enfoques para o historiador, procurava ainda ter em
vista certa visão de totalidade herdada do marxismo.

O mesmo não se pode dizer da chamada Nova História, originada na década de 60 do século
passado, que acabou por fragmentar os objetos da história, pulverizando-os em inúmeros problemas raramente
conectados, e que se julga terem um valor em si mesmo para o estudo. Trata-se de procedimento metodológico
característico do mundo pós-moderno e de ambientes em que algumas pesquisas atuais são desenvolvidas.

A prudência e a humildade, porém, recomendam sempre o retorno aos grandes nomes da filosofia,
procurando observar suas significativas contribuições. Não por acaso, o jornal “O Estado de São Paulo”, na
edição de 22 de julho de 2007, anuncia a publicação de várias obras dedicadas a Karl Marx. Numa dessa
obras, intitulada “Karl Marx ou o espírito do mundo”, de Jacques Attali, o pensador alemão é definido como o
primeiro teórico da mundialização, o que o torna , acima de tudo, atual. Atualidade e presença da teoria

31
Mestre em História pela UFF – Universidade Federal Fluminense; Mestrando em Filosofia pela UNIOESTE – Universidade
Estadual do Oeste do Paraná. Professor de Filosofia e Metodologia de História da UNIPAR – Universidade Paranaense,
campus de Cascavel – PR

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marxista que pode ser percebia, entre outras, em sua concepção de história, cuja influência marca
profundamente desses estudos.

O presente trabalho apresenta algumas nuanças da filosofia da história em Marx e Hegel. Na primeira
seção trata de algumas idéias de Marx presentes em “A Ideologia Alemã” e no “Manifesto Comunista”. Em
seguida destaca a posição de Hegel acerca da história, para, na terceira parte, retornar brevemente a Marx, e,
ao final citar alguns pontos de distanciamento entre Marx e Hegel.

Elemento de substancial importância no desenvolvimento da teoria marxiana, a história é reconhecida


por Marx como o palco das lutas de classes. Lutas que se sucede em diferentes modos de organização social
ao longo da história.

Toda sociedade possui uma base material sustentada pelo trabalho humano, único capaz de produzir
riqueza e bens necessários à satisfação das diferentes necessidades do homem. Saber como o trabalho foi
organizado historicamente, e perceber elementos comuns entre os diferentes sistemas de produção, requer
análises capazes de atingir os fundamentos dos diferentes sistemas de organização da produção social.

A afirmação contida originalmente em “A Ideologia Alemã” de que “conhecemos apenas uma única
ciência, a ciência da história” (MARX; ENGELS, 1987, p.23), dá uma idéia da importância da história para Marx,
e a relevância das considerações e análises que, ao tomar algum objeto para estudo, reconheça nele seu
caráter histórico. Escrita em 1846, “A Ideologia Alemã”, a exemplo do “Manifesto Comunista” de 1848, permite
notar que em Marx já havia preocupação com a dimensão histórica das análises feitas sobre economia, política
e sociedade.

De tal sorte a história ocupa papel relevante na teoria marxiana, que numa obra de divulgação das
idéias socialistas, encontramos logo na abertura do primeiro capítulo a frase que hoje é quase um chavão: “A
história de todas as sociedades que existiram até hoje tem sido a história das lutas de classes” (MARX, 1988, p.
75). Ainda no “Manifesto Comunista”, logo em seguida, há uma brevíssima descrição de classes antagônicas,
opondo-se historicamente: homens livres e escravos, patrícios e plebeus, barões e servos, mestres de
corporações e companheiros, são personagens centrais na análise dos modos de produção feita por Marx. De
alguma forma são também esboço preliminar e uma prova de como Marx já tinha uma orientação histórica
definida, a ser utilizada nas pesquisas e aprofundamentos que foram feitos em obras posteriores e de maior
fôlego, como se nota no “Grundrisse” e em “O Capital”.

No item história da obra “A Ideologia Alemã”, Marx afirma “[...] que o primeiro pressuposto de toda a
existência humana e, portanto, de toda história, é que os homens devem estar em condições de viver para
poder ‘fazer história’” (MARX, 1987, p. 39). Nota-se aqui o predomínio do sentido concreto da existência
humana, isto é, em Marx, não se há de encontrar ensaios e flertes com justificativas transcendentais, no sentido
supra-humano, no sentido religioso. Embora seus escritos transcendam o específico da história factual, não o
nega, pois antes quer ver as relações concretas desveladas em seus fundamentos.

No plano mais amplo da história humana, após ter afirmado a necessidade de existência física dos
homens, pois sem isso sequer história haveria, faz em seguida, desdobramento lógico apontando para as
necessidades que precisam ser satisfeitas, como comer, abrigar-se, vestir-se, entre outras. O desenvolvimento
seguinte da análise indica o trabalho como fator fundamental para a satisfação das necessidades, ao dizer que,

O primeiro ato histórico é, portanto a produção dos meios que permitam a satisfação
dessas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato este é um ato
histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, como há
milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias e todas as horas, simplesmente
para manter os homens vivos (MARX, 1987, p. 39).

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Quando Marx se refere a toda a história, impõe um sentido de totalidade e universalização próprias
da Filosofia da História. Esta é entendida como a história do gênero humano, e não a história deste ou daquele
povo em particular, embora as histórias particulares acabem por compor o conjunto da história universal, e o
filósofo perscrute nestas os fundamentos daquela aquilatando seus movimentos.

Considerando o que adverte Hegel, de que a Filosofia da História “[...] no es otra cosa que la
consideracion pensante de la historia” (HEGEL, 1953, p. 17 - grifo do autor). Tem-se então, dentro do espírito
iluminista em que Hegel se inscreve, o papel da Filosofia da História que é buscar um sentido, uma razão para
a história universal, isto é, uma explicação racional destituída de subjetividade.

Ora, considerar a história a partir de um sentido racionalmente colocado, implica considerar um


princípio norteador, pelo qual seria possível demonstrar que há uma razão que rege a história. “Pero el único
pensamiento que aporta es el simples pensamiento de la razón, de que la razón rige el mundo y que, por tanto,
tambien la historia universal há transcurrido racionalmente” (HEGEL, 1953, p. 20). Sendo o homem, na
distinção feita por Hegel, o único animal capaz de racionalidade, cabe a ele descobrir o sentido da razão
presente na história, procurando eliminar da pesquisa aquilo que pertence ao contingente. Portanto, deve ser
buscado um fim universal, não particular, pois “damos por supuesto, como verdad, que em los acontecimentos
de los pueblos domina um fin último” (HEGEL, 1953, p. 21).

Logicamente a idéia de um sentido para a história não significa que haja imobilidade. A busca pelo
sentido se refere aos fundamentos que norteiam as variações históricas, mesmo porque, para Hegel, só há
história onde há variações, onde há mudança, que seguem em direção a um fim último que é a concretização
da racionalidade.

Se o primeiro elemento apontado por Hegel para a Filosofia da História é a existência de um princípio
que rege a História, o segundo elemento é a caracterização do sujeito da História, que, para ele, é a razão, ou o
espírito absoluto, ou mesmo Deus. Nesse último caso, fiel à idéia iluminista de razão, Deus seria uma espécie
de intelecto a determinar as leis que regem a história. O homem em sua existência, aparece como uma espécie
de operário submetido a leis universais, colocadas por esta divina razão ou razão divinizada.

Dizendo que Deus não quer ver seus filhos de cabeça vazia e espírito estreito, mas sim ricos de
conhecimento e particularmente do conhecimento acerca do próprio Deus, e de suas leis. Desse modo Hegel
insere o homem em um contexto de determinações, pois, “siendo la historia el desarollo de la naturaleza divina
en un elemento particular y determinado” (HEGEL, 1953, p. 36). Então os atos particulares nessa história se
inscrevem de modo necessário. Mas, sobre o elemento determinado e particular só se pode ter um
conhecimento particularizado. O que se deseja, não é isso, pois “tiene que haber llegado em fin
necessariamente el tiempo de concebir tambien esta rica producción de la razón creadora, que se llama la
historia universal” (HEGEL, 1953, p. 36). O sujeito é Deus, que ordenou todas as coisas. Então, para não ser
cabeça vazia, cabe ao homem, ao adquirir conhecimento, descobrir esta ordem histórica universal estabelecida
por Deus.

Marx se vale das concepções hegelianas da história, porém para ele o sujeito da história são os
próprios homens, e não em Deus como razão universal. Para ele são os homens em suas relações concretas
que se constroem e se fazem a si mesmos pelo trabalho. Por isso, da afirmação de que o primeiro fato histórico
é a existência de seres humanos vivos, que sofrem necessidades e transformam a natureza, para satisfazer as
necessidades. É do modo como os homens se organizam para produzir e transformar, do modo como
organizam o trabalho, que se devem inferir os princípios que regem a história universal.

Uma concepção de história precisa, portanto, atender as idéias definidas por Marx como base
primeira. Ou seja, é da existência concreta dos homens que se deve partir. Portanto, “essa concepção da
história consiste, pois, em expor o processo de produção, partindo da produção material da vida imediata”
(MARX, 1987, p. 55). Eis o princípio norteador das investigações realizadas, e o elemento que está na base de
todas as formas de organização da história do gênero humano.

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Se em Hegel há variações para que exista história, em Marx estas variações poderiam ser chamadas
de modos de produção, que são os diferentes modos como os homens se organizam para o trabalho e pelo
trabalho. Que sejam eles denominados de modo de produção asiático, escravista, feudal, capitalista, variando
enquanto sistemas, não importa tanto quanto reconhecer que há neles um elemento comum, qual seja, o fato
de em todos eles existir a dominação de uma classe sobre outra, de em todos eles existir dominantes e
dominados. A base desse domínio de uns sobre outros é a econômica, isto é, a produção material a partir da
qual se estabelecem formas de exploração que são dissimuladas pela estrutura de leis, normas, e valores que
escondem a dominação e a fazem parecer natural.

II

Para Marx as investigações históricas deveriam levar em consideração, primeiramente, esta base
material. Porém “toda concepção histórica, até o momento, ou tem omitido completamente esta base real da
história, ou tem considerado como algo secundário, sem qualquer conexão com o curso da história” (MARX,
1987, p. 57).

Observe-se, por exemplo, a concepção de história dada por Hegel, e o sentido que ela tem. Como
Hegel parte do princípio de um espírito absoluto, e considera a existência de um razão como princípio presente
na história, toma a racionalidade como a principal característica do homem, que se valendo dela deve descobrir
o fio condutor da história. Hegel, ao caracterizar o homem como ser racional põe nisso seu ser, sua natureza,
ou substância. Desse modo, procura observar na história as diferentes proximidades e afastamentos dessa
natureza humana em relação às condições de existência. Na relação da essência do homem com sua
existência, o critério adotado é o do maior ou menor desenvolvimento da liberdade e racionalidade humanas.
Por isso sua concepção de história começa com um afastamento entre ser e existir, para progressivamente
aproximar as condições de existência do homem de sua essência, culminando a junção das mesmas no Estado
moderno.

Desse modo, no ponto de partida da história universal, Hegel argumenta que há uma oposição entre
o ser do homem e sua existência. As condições de existência negam o ser do homem, ou contradizem sua
essência, que a racionalidade. Entre os orientais, por exemplo, colocados pó Hegel no ponto de partida da
história, a escravidão impede o desenvolvimento da racionalidade e extingue a liberdade. Entre eles apenas o
monarca é efetivamente sujeito da história. Mas talvez nem mesmo esse, se for levado em conta o sentido
pleno da palavra sujeito, pois “los orientales no saben que el espiritu, o el hombre como tal, es libre em si. Y
como no lo saben, no lo son. Solo saben que hay uno que es libre”. Porém, talvez nem mesmo este, já que,
devido as arbitrariedades que comete “este uno es, por lo tanto, um déspota, no um hombre libre, um humano”
(HEGEL, 1953. p. 48).

E assim, desde o ponto de partida da história, quando a essência do homem e sua existência se
encontravam no ponto mais eqüidistante entre si, desde o início e na seqüência de toda a história humana,
esta estaria em processo de superação dessa contradição. E em tal processo, acredita Hegel, que o homem ao
se esclarecer sobre sua natureza, supera gradativamente a contradição entre ser e existência, uma vez que “la
historia univeral es el progreso em la consciência de la liberdad [...]” (HEGEL, 1953. p. 49), dentro de uma
perspectiva de desenvolvimento do espírito, incrementado ainda mais com o advento da educação.

Numa perspectiva otimista, acredita Hegel que “el verdadero bien, la divina razón universal, es
tambien el poder de realizar-se a si mismo. (...) Este bien, esta razón, em su representación mas concreta, es
Dios” (HEGEL, 1953, p. 61). Cabe a Filosofia conduzir os homens ao conhecimento do mundo real, isto é, do
mundo ordenado por Deus. Se há leis que regem o mundo, estas foram ordenadas por Deus, Suprema Razão.
Cabe ao homem alcançá-las pelo conhecimento deste plano divinal.

Se o primeiro momento da história começa quando o homem se une ao trabalho, embora permaneça
distante o ser do homem, isto é a razão e a liberdade, das condições de existência, o processo histórico
conduzirá ao segundo momento, no qual estará se constituindo o Estado. Para Hegel, [...] um Estado bien

__________________________________ 52 __________________________________
constituido y será fuerte em si mismo cuando el interes privado de los ciudadanos esté unido a su fin general y
el uno encuente em el outro su satisfacción y realización” (HEGEL, 1953, p. 69). Embora ele reconheça haver
disputas e contendas na história, até que o Estado finalmente atinja seu fim.

No começo da história do Estado “[...] el fin se determinara más precisamente en el de conservar la


ciudade de Atenas o la de Roma [...]” (HEGEL, 1953, p. 69). Mas já há um progresso, no sentido de que os
indivíduos começam a submeter-se ao desígnio do Estado.

Hegel descreve o momento seguinte, da cultura germano-cristã, como um período da história


universal ainda mais desenvolvido, em direção à plenitude dos homens como sujeitos da história. A idéia cristã
de que todos são iguais e as primeiras considerações de que os homens são livres e racionais, são marcos da
superação da concepção limitada de homem. Nessa marcha da evolução como se expressa Hegel, o Estado
moderno é constituído para garantir a liberdade e a igualdade, e os desígnios de Deus expressos na lei. Mas,
em sendo assim, onde estão os indivíduos concretos? Para Hegel a individualidade deve estar submetida aos
interesses do Estado, para o próprio bem desses indivíduos.

De qualquer forma, na modernidade a essência do homem, isto é, sua racionalidade e sua liberdade,
se encontrariam com suas condições de existência, pois que se cumpriria a finalidade da história, que
representa em Hegel “[...] la evolucion de la conciencia que el espiritu tiene de su liberdad y también la
evolución de la realización que esta obtiene por médio de tal conciencia” (HEGEL, 1953, p. 137).

III

Marx compartilha com Hegel a idéia de que a história tem um sentido. Porém para Marx o sentido é
inverso daquele atribuído por Hegel. A começar pelo princípio que - como foi apontado anteriormente em “A
Ideologia Alemã” -, o primeiro pressuposto histórico é o da existência de seres humanos vivos, e o primeiro ato
histórico é a produção de bens necessários à vida.

Com relação ao processo histórico, em Hegel a história tem em seu início uma grande dicotomia
entre o ser do homem e a sua existência. Há um progresso, contudo, que vai deste início paulatinamente
convergindo ser e existência humana, pela utilização da racionalidade no entendimento do sentido da história,
até culminar, finalmente, com a modernidade, na qual o homem ao agir e desenvolver racionalmente sua
existência compreenderia o espírito do mundo expresso no devir histórico.

Em Marx o sentido é oposto. No início há uma unidade indiferenciada entre homem e natureza,
desdobrando-se um determinado movimento que separa progressivamente o homem e a natureza. Desde o
primeiro homem que se descobre livre e racional, depois alguns homens livres, isto é, os dominadores nos
diferentes modos de produção, até chegar ao Estado burguês, onde o homem é livre, porém, distantes da
natureza. Homem e natureza se diferenciam cada vez mais num movimento que perpassa a história.

O problema em Marx não é tanto saber como as sociedades do passado se organizaram, mas
compreendê-las no contexto da história universal para analisar como se processa o desenvolvimento histórico
que leva a constituição da sociedade capitalista. A questão é saber como as diferentes sociedades organizam o
trabalho necessário a produção dos bens, pois o trabalho está na base de todas elas e saber enfim como isso
resulta na organização capitalista.

Ao analisar os modos de produção, a começar pelo asiático, pois é o primeiro em que aparece o
trabalhador, já há nele separação entre aquele que produz e, ao menos, um dos meios de produção. Neste
modo de produção, a terra, trabalhada pelas diferentes comunidades, não é propriedade de quem nela trabalha,
está separada do trabalhador. Se por um lado o trabalhador tem a posse para produzir, por outro lado a
propriedade da terra não lhe pertence, pertence aos Brahmanes, no caso da Índia, ou ao Faraó, no caso do
Egito. Em favor destes os camponeses devem pagar tributos pelo uso da terra. É a primeira separação, o
trabalhador trabalha a terra que é propriedade de outrem, nesse caso do Estado que é dominado pelas castas

__________________________________ 53 __________________________________
superiores. Por outro lado, se o trabalhador não tem a terra, porém permanece ainda com ele a ferramenta, o
conhecimento, os fundos de consumo. De todo modo, é um primeiro movimento do processo que culminará na
total separação do trabalhador dos meios de produção, das ferramentas, do conhecimento e mesmo dos
víveres, quando ocorre a forma de organização do modo de produção capitalista.

O estudo dos modos de produção, escravista, na Roma antiga e na Grécia, feudal, na Europa da
Idade Média, e capitalista, compõe o quadro das análises de Marx, que demonstra logicamente o progressivo
afastamento homem-natureza, e o desenvolvimento que resultou na organização capitalista, na qual o homem é
livre apenas juridicamente, já que o trabalhador continua submetido e preso às condições econômicas as quais,
na esfera do mercado, o forçam a vender sua força de trabalho em troca de salário. A compreensão desse
último sistema ocupou a vida intelectual de Marx e resultou na obra “O Capital”, que não será abordada aqui,
pois fugiria dos propósitos deste trabalho.

A guisa de conclusão é possível apresentar brevemente ao menos algumas diferenças: ao otimismo


de Hegel, contrapõe-se certo pessimismo de Marx. A história em Hegel tem um final na modernidade. Em Marx
vivemos até agora a pré-história da humanidade, a ser iniciada com um novo sistema onde não haja mais
exploração entre as classes. Na concepção hegeliana os conflitos estão diluídos ou não aparecem, enquanto
na Filosofia da História marxiana o conflito é patente. Por fim, o sujeito da história na teoria de Hegel é um ser
supra-sensível, enquanto em Marx são os próprios homens encarnados em diferentes condições concretas de
existência que são os sujeitos da história.

O retorno às grandes reflexões em torno da Filosofia da História permite compreender pontos de


intersecção e separação entre dois dos maiores teóricos da Filosofia, cuja influência permanece aguda nos
métodos de abordagem da própria ciência da História. A perenidade de suas análises torna atuais seus
estudos e exigem seguidos estudos de suas teorias, que aqui se procurou traçar contornos em contrapontos
sistematicamente apresentados.

Referências Bibliográficas

CARDOSO, C. F; VAINFAS, R. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro:


Campus, 1997.

HEGEL, J. G. F. Lecciones sobre la Filosofia de la História Universal. Madrid : Revista do Occidente, 1953.

MARX, K. Manifesto Comunista. São Paulo : Graal, 1988.

_____.A Ideologia Alemã. São Paulo : HUCITEC, 1987.

_____. O Capital. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Col. “Os Economistas”).

Jornal O Estado de São Paulo. 22/07/2007.

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UMA BREVE ANÁLISE DA HISTORIOGRAFIA CLÁSSICA CHINESA

André Bueno32

Em contraste com outras civilizações asiáticas (e talvez com o próprio Ocidente), os chineses possuem
desde a antiguidade um senso histórico singular e bastante aprofundado. A história chinesa é, para estes
autores antigos, um objeto de referência e reverência - os tempos passados não narram apenas o que
aconteceu, mas toda uma experiência que nos serve agora, no presente, e que se projeta em nossas
construções futuras.

Assim, o historiador chinês se coloca sempre no ponto axial de uma transição contínua entre o tempo, a
matéria e a sociedade. Não tem ilusões de recriar perfeitamente o passado, mas intui o poder advindo de uma
leitura esclarecida sobre o mesmo. Desde cedo, fugirá da gaiola textual e buscará também em relíquias
materiais as informações que precisa para comprovar sua tese. Ele o sabe - seu trabalho é apenas um parecer
metafórico sobre o passado. No entanto, a mesma metáfora é uma leitura sobre o real; então, como dizer que
ela não é igualmente real?

O primeiro destes ilustrados historiadores que a tradição chinesa nos legou foi o grande mestre
Confúcio (ele mesmo um divisor de águas da sua civilização), do século -6 (datas tradicionais -551-479)33.
Costumam os chineses afirmar que outros "pensadores-historiadores" vieram antes dele, mas nenhum chegou-
nos até nós senão pelas mãos do mestre. Confúcio via na história um dos caminhos para a redenção moral. O
passado - ainda que não possa ser reconstituído em sua totalidade - está repleto de exemplos dignificantes de
como o ser humano deve proceder. Não são apenas grandes soberanos, mas também pequenos heróis,
importantes discursos, eventos marcantes...uma plêiade de referências que embasam e ilustram o discurso
ético da escola dos letrados. Confúcio tinha consciência de que seu resgate dos tempos antigos era incompleto
e possivelmente problemático - não foi o mestre, pois, que reclamou da insuficiência de textos, objetos e
tradições das dinastias antigas? "Posso falar sobre o ritual Xia? Seu herdeiro, o país de Qi, não preservou
suficientes evidências. Posso falar sobre o ritual Yin? Seu herdeiro, o país de Song, não preservou suficientes
evidências. Não existem registros suficientes e tampouco homens sábios suficientes; caso contrário, eu poderia
obter evidências a partir deles" (Lunyu 3 e Zhongyong, 28). Mesmo assim, fragmentos desta antiguidade
garantem subsídios mínimos para o estudo do presente. Confúcio capta com grande excelência a idéia desta
“decadência contínua” que todas as sociedades sentem, e que gera a idéia do passado sempre como uma
“época melhor”. O Mestre nos mostra que os tempos antigos estão repletos de bons e maus exemplos, e o que
nos cabe é escolher em qual iremos nos inspirar. Queremos ser como o sábio Shun ou o tirano Zhou, de
Shang? Lega-nos ainda dois livros importantes; o Shujing (O Tratado dos Livros, recolha de discursos e
eventos históricos importantes da antiguidade) e o Chunqiu (Primaveras e Outonos, uma longa cronologia de
eventos históricos desde -781).

Depois de Confúcio, outros tantos historiadores anônimos dedicar-se-iam a escrever a história de suas
regiões em meio aos tempos claudicantes dos Estados Combatentes. Vestígios esparsos destas obras
sobreviveram, e mesmo assim só podem ser encontrados em obras posteriores. Apenas os comentários do
Chunqiu (nomeados como tradição Zuo, Guliang e Gungyang) mantiveram-se intactos, além do Anais de
Bambu (Zhushu jinian). A China teria que esperar um pouco para ver surgir o grande luminar de sua
historiografia, Sima Qian (-145-85).

Sima foi o Taishi (historiador e astrólogo oficial) da primeira dinastia Han. Seu livro, o Shiji
(Recordações Históricas) é uma grande antologia comentada dos tempos antigos, trazendo novas luzes sobre o
passado chinês. Fruto de uma longa pesquisa material e textual feita em todo o império, Sima inova nas
técnicas de datação e pesquisa. Verifica tabelas astronômicas para afirmar a autenticidade de certos eventos.
Realiza uma exegese nos textos, vestígios materiais e epigráficos para analisar as possíveis inferências, as

32
Prof. Dr. Adjunto de História e Filosofia da FAFIUV.
33
No caso específico da Sinologia, usualmente utiliza-se a notação “-“ para datas a.C. e “+” para datas d.C., como
doravante empregaremos.

__________________________________ 55 __________________________________
interpolações e adulterações. Assume suas dificuldades em reconstituir certos momentos desta história, e
busca argumentar de forma coerente ao defender um ponto de vista (realização rara em todos os tempos). Cria
ainda o “parecer do Taishi”, uma análise crítica apresentada ao final do texto como uma espécie de “veredicto”
sobre determinada figura ou circunstância histórica, com fins de possibilitar a reflexão moral sobre o tema. Sima
têm perfeita consciência - tal como Confúcio - de que sua produção intelectual é fruto de um tempo, uma
releitura do passado. Como se afirma num comentário do Zuozhuan, "a história serve para interpretar e
conhecer o passado", mas o próprio Sima afirma, diante desta perspectiva, que " a história busca compreender
as mudanças dos passado e do presente". Esta perspectiva influenciará decididamente os historiadores
chineses posteriores, que nunca se iludirão com a idéia de possuir uma “opinião isenta”; verificar-se-á a história
pelos modelos construídos, pelas “evidências”, enfim, pela possibilidade que uma interpretação tem de ser
lógica, profunda e fundamentada. Ainda assim, venera a história como caminho de ilustração moral; “ela
distingue o que é suspeito e duvidoso, elucida o certo e o errado, e decide o que é incerto. Classifica o que é
bom como bom e o que é ruim como ruim, honra o que é digno e condena o que não é merecedor. Preserva
existências perdidas e restaura as famílias em deterioração. Esclarece o que foi negligenciado e restabelece o
que foi abandonado” (Shiji, 130).

Sima cria o modelo de como a história deve ser produzida. Banbiao, historiador do séc. +1 comentará
esta obra fazendo-lhe adendos com “novas descobertas históricas” no Shiji Lun. Seu filho Bangu se conduzirá
por esta trilha aberta, redigindo a história oficial da Dinastia Han. Segue os mesmos procedimentos de
pesquisa, recolha, análise e compilação. Não termina sua obra, porém. Quem lhe sucederá no encargo é sua
irmã, Banzhao (+32 +92), talvez a primeira historiadora reconhecida da humanidade. Intelectual confucionista,
finda o texto e recebe a benção da imortalidade de seu nome, tal como o irmão. É também a época do filósofo
Wang Chong (+27 +91), o cético que assumi definitivamente a materialidade da história - um momento no
espaço-tempo que já findou, e do qual nos restaria apenas uma herança.

Seguem-se as dinastias, e o trabalho individual do historiador é substituído pela formação de equipes


de pesquisadores (com Taishi assumindo um papel diretor). Gradualmente estas comissões - que tinham por
objetivo ampliar o espectro do estudo histórico - perdem o sentido crítico e terminam por criar versões da
história que tendem geralmente a conciliar visões divergentes através de inúmeros artifícios teóricos. Li Zhiji
(+661 +721) denunciará esta perda da capacidade crítica, sobre a qual se estabelece o processo de discernir.
Luta contra os malabarismos metodológicos, e não aceita tão simplesmente o consenso como uma forma de
resolução dos problemas históricos. Seu Shitong (Observações sobre História) será um dos melhores manuais
teóricos sobre “fazer história” após a obra de Sima Qian. Para Li, estava mais do que claro que a história era
uma metáfora, vinculada por uma linguagem coerente através de fragementos do real (fontes, vestígios,
epígrafes, etc.). Mas nem por isso ela perde sua objetividade; um discurso falacioso sempre carece de base e
possui falhas, contudo, a história deve precaver-se de acreditar que se encerra numa visão "verdadeira" do real.
O que ela constrói são hipóteses, na medida do possível, válidas.

Seguir-se-á o trabalho de Sima Guang (+1019 +1086), o Zizhi Tongzhian (Espelho para um bom
governo), que aprofunda o problema da crítica histórica. Guang achava imprecisas as datações pautadas nas
referências dinásticas. Defendia um descompasso entre as “impressões” do tempo que os segmentos sociais
percebiam, e aprovava o uso de versões históricas contraditórias, que deixassem o sabor do juízo ao leitor.
Constrói um modelo cronológico de “espaços temporais”, e não de períodos dinásticos. Valorizava alguns
personagens históricos, mas também perspectivas coletivas. Estudou as leis da história, aspectos do Direito, da
política e dos costumes sociais. Todavia, neste momento fértil da história chinesa Zhu Xi (1130+1200), o grande
comentador confucionista, escreveria também o seu Tongjian gangmu, inspirado no estilo taciturno do Chunqiu
(Primaveras e Outonos) e comentando as passagens históricas tal como feito no Zuozhuan. Num átimo, os
historiadores chineses olham para o passado e futuro simultaneamente: a marca distintiva de uma civilização
que se calca igualmente na alternância do mutável e do imutável.

Assim, pois, o desenvolvimento do prisma teórico assenta-se gradualmente em camadas, influenciando


o trabalho destas comissões de histórias dinásticas. Livres de amarras teológicas que pudessem criar entraves
ao problema da transgressão lógica, a história chinesa dá passos calmos e vagarosos - porém seguros - para
desenvolver-se.

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Guyenwu (+1613 +1682) trará para campo a necessidade de avaliar a importância da diversidade
cultural na constituição histórica social. Em período próximo outro historiador, Kaozheng, alertará contra os
perigos da “valorização da evidência” como “prova da verdade”. Kao acreditava apenas em testemunhos
históricos, e não na “reprodução” da realidade pelo documento. Retoma a antiga consciência de Confúcio e
Sima sobre a dificuldade em tomar a fonte por ela mesma, e indica a necessidade constante de renovar o papel
crítico do historiador.

Já nos fins do séc. 18, Xuecheng (+1738 +1801) desenvolve o aspecto das histórias locais e do
relativismo cultural proposto por Guyenwu. A história conquista definitivamente o campo do estudo ético
transcultural e ganha dimensão extra-temporal. Espraia-se na possibilidade de transcender a fronteira chinesa,
consolidando um arcabouço teórico adaptável à diversidade de civilizações. Mas esta experiência durará pouco
tempo, e algumas décadas depois as invasões européias minarão gradualmente a capacidade criativa desta
historiografia, que terminará alijada a uma posição secundária na modernidade.

Ler o passado, para inferir o futuro: a história como um fundo moral, a base sobre a qual se assenta a
sociedade; eis os princípios que nortearam a construção da história tradicional chinesa, definida sempre pelo
mister de aperfeiçoar o ser humano. Trata-se, pois, de uma história ética, avaliativa e engajada - e
oportunamente bastante consciente de sua posição. Se não pode prever completamente o futuro - posto que
este é construído agora - a história faz o sábio. Ou, como disse Confúcio; “aquele que por meio do antigo
descobre o que é novo, este pode ser um mestre!” (Lunyu, 2).

ALGUNS CONCEITOS DA HISTÓRIA CHINESA

Tendo em vista esta apresentação sobre a historiografia chinesa e seus principais autores, é
interessante que passemos, agora, à análise de alguns conceitos presentes no pensamento histórico chinês.

O Tempo

A "ação humana ao longo do tempo"- uma definição mais que sucinta para a história. Pertinente, porém,
para o que significa o estudo sobre o passado feito pela civilização chinesa. A ação humana é o domínio da
moral. O tempo é o campo onde ela evolui, se renova e se repete. Todos estes aspectos estão presentes no
contexto da eterna mutação da matéria e da sociedade. Assim sendo, é a história também um elemento do
círculo cósmico que tudo açambarca; ela é um fragmento do real que traduz o próprio real.

No entanto, o tempo chinês é diferente do nosso. Repete-se em ciclos, ciclos de mutação. Ou seja,
engendram-se numa espiral de ascensão e queda, tal como a dinâmica de yin e yang - as duas grandes
energias do universo que se completam por sua natural oposição. O tempo é, portanto, o vazio onde se realiza
a transformação. Ele é construído sob a forma material num determinado contexto - o passado - e dissolve-se
no inexorável processo de degradação do físico.

Se este é seu padrão, supuseram então os chineses que o tempo se repete, e se repetem os
acontecimentos históricos - mas estes acontecimentos nunca serão os mesmos! Como se explica esta noção
tão complexa?

O tempo é uma impressão, como afirmou Sima Guang (+1019 +1086). Uma impressão de vários
aspectos; mental, material, circunstancial....No tempo, reproduz-se o ciclo de criação e destruição de yin e yang,
eis o que não pode ser mudado, o padrão de repetição. Mas, se a realidade é definida justamente pela
mutação, então o padrão se repetirá, mas nunca da mesma forma. Esta é a chave para entender o avanço das
técnicas, e a diferença entre os contextos históricos.

Sima Qian (-145 -85) já havia alertado que o tempo organiza-se nestes ciclos, que podem ser
observados pela manifestação dos cinco agentes (ou elementos, o wu xing - madeira, terra, fogo, água e metal)
na matéria. Até mesmo o movimento das dinastias podia ser interpretado pela sucessão destes agentes na

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natureza, tal como foi o caso de Qin (-221-206), do elemento água, que foi suplantado pelos Han (-206 +220),
do elemento terra.

Estaríamos inclinados a acreditar que esta suposição seria fantasiosa, se Sima não fosse um
astrônomo (ou astrólogo, na época tanto fazia) de capacidades absurdas. Calculando o tempo de transposição
destas forças nas dinastias passadas, e comparando-as com eventos astronômicos importantes citados nos
documentos, este historiador conseguiu traçar uma cronologia histórica precisa até o século -10, quando afirma
não ter mais segurança sobre as datas que propõe. Se a arqueologia ocidental é nossa referência para validar
tal afirmação, saibamos que ela o comprovou. E mais: atualmente, esta mesma arqueologia tem observado que
datas anteriores ao período do século -10 estão bem próximas de serem iguais as propostas por Sima. Diante
do nosso desconhecimento acerca da ciência chinesa, poderíamos afirmar credulamente que isso seria quase
místico, se não fossem os chineses bastante cônscios do funcionamento do seu sistema de interpretação da
natureza.

Assim, podemos compreender que a espiral de Sima Qian é ascendente; o que ela demonstra é que os
eventos do passado são similares aos do presente, mas não são exatamente os mesmos. Tem causas
parecidas, dão-se de forma semelhante, e podem mesmo descambar numa conclusão próxima da que
tradicionalmente conhecemos. Mas há a variabilidade! E é este fator que gera a descoberta, a invenção, a
transformação. A mutação é que faz dar o passo além na história. Ela quem modifica as estruturas, a
sociedade, a cultura. Muda, para manter-se a mesma. E nunca o será.

Diante desta consideração sobre o tempo que os chineses tomam a história como um arcabouço de
ilustração intelectual; nela estão contidos os arquivos da experiência humana, uma biblioteca formada por
fragmentos do saber temporal e atemporal que, conjugados, formam a base da realidade atual. É, pois, o fundo
infinito da sapiência humana.

A Verdade Histórica

Disse o legista Hanfeizi (séc. -3): “A dificuldade em falar a uma pessoa não está em saber o que dizer,
nem no método de argumentação que torne claro o que se pretende. Também não está na dificuldade de ter
coragem para expor total e francamente o que se tem no espírito. A dificuldade está em conhecer a
mentalidade da pessoa a quem se fala e em adotar o meio mais adequado a atingi-la”. Lubuwei,
contemporâneo de Hanfei, afirmou igualmente; “É indispensável submeter toda a informação a um exame
preliminar. Após muitas transmissões, ela é deformada a ponto do branco virar preto e o preto virar branco”.

Tendo em vista estas duas afirmações, podemos constatar claramente a consciência dos antigos
chineses acerca do problema da “verdade” histórica. Esta é (e sempre será) determinada pela intenção de
quem a faz ou de quem a interpreta. Confúcio (séc. -6) aconselhava seu discípulo; "Recolhe muita informação,
põe de lado o que é duvidoso, repete cuidadosamente o resto; então, raramente dirás algo errado. Faz muitas
observações, deixa de lado o que é suspeito, dedica-te cuidadosamente ao resto; então raramente terás do que
te arrepender. Com poucos erros no que dizes e poucos arrependimentos pelo que fazes, tua carreira está
garantida" pois “Busco transmitir, não inventar. Confio no passado e o amo” (idem, 7). Eis aqui a noção que
parece permear a concepção de verdade na história chinesa. Se ela é uma criação pessoal (ou não), tente
fazê-la da forma mais consciente e esclarecida possível. “Estudar sem pensar é inútil, pensar sem estudar é
perigoso” (Lunyu, 2), afirmava o grande mestre. Esta é a base do discernimento sobre a qual uma “verdade
histórica” se impõe - sua articulação lógica com a impressão do passado.

Por esta razão é que Li Zhiji (+661 +721) , no capítulo 22 "Xushi", nos dirá que "quanto mais se fala, mais
caótica e complexa se torna a História" - o uso das palavras deve ser mais do que cuidadoso, no sentido de
expressar aquilo que realmente se quer dizer.

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Tendência, Propensão

Zisi, retomando Confúcio, explana ainda sobre uma outra possibilidade, a do sábio adquirir a
capacidade da vidência sobre a sociedade, a política e sobre si mesmo (Zhong Yong, 24). Devemos esclarecer
que esta não é um “poder sobrenatural”, tal como usualmente se considera no Ocidente. Esta tendência é a
disposição e a sensibilidade de acompanhar, inferir e presumir os movimentos do fluxo criativo que concretiza o
contínuo processo de geração da natureza, tal como proposto na estrutura do pensar chinês. Tendo
conhecimento das tensões que permeiam um objeto de análise, o sábio pode definir, ou inferir, a direção do
contexto em função de sua aproximação (ou afastamento) da centralidade – ou ainda, para que ponto a
centralidade se desloca. Seu método é basear-se na experimentação consigo mesmo e com os outros seres
humanos, o que lhe dá o arcabouço necessário a reconhecer os padrões de movimento das coisas e elocubrar
as probabilidades. É assim que ele pode “prever” o movimento de pessoas, de governos ou sociedades. Sua
“vidência” é uma análise profunda dos seres, fundamentada em sua experiência íntima com os limites e a
moderação. Métodos oraculares como as carapaças de tartaruga e o Yijing (Tratado das Mutações) são
recursos a sua investigação; mas o perfeito desdobramento de sua “vidência” se dá por uma capacidade
própria, interna, independente destes mesmos meios: “a perfeição moral é, num estágio avançado, como a
dimensão do próprio espírito” (Zhong Yong, 24). Tal consideração pode resumir-se numa passagem em que o
discípulo Zizhang pergunta a Confúcio; "é possível predizer o que será dos próximos dez reinados?", ao que o
Mestre responde: " O Shang herdaram os ritos de Xia; nós, Zhou, herdamos os de Shang. Ora, sabemos o que
cada um dessas dinastias acrescentou e suprimiu. E o mesmo acontecerá com todos os reinos que sucederem
Zhou, sejam eles em dez ou em cem" (Lunyu, 2).

A Investigação

Escrutinar o passado significa utilizar todos os recursos disponíveis para reconstituí-lo. Aqueles que se
dispuseram a narrá-lo fizeram uso do pincel ou da memória oral, constituída por um milenar processo de
condicionamento e repetição de poesias e histórias. Os historiadores chineses não abriam mão, porém, dos
objetos materiais para avaliar as transformações de uma cultura. Confúcio constatava a desarticulação da
linguagem pictórica chinesa com o processo de representação do real quando reclamava “hoje, um vaso não é
mais um vaso” (ou seja, a forma estilística dos vasos rituais já não possuía mais uma relação direta com a
representação gráfica da palavra “vaso”. Lunyu, 6).

Sima Qian (séc.-2) visitou a terra de Confúcio em busca de informações, e ficou vivamente
impressionado com a velha carroça da família do mestre a apodrecer num canto. Indignou-se igualmente por
haver tão poucos que conhecessem mais sobre as tradições. Ambos, portanto, pareciam desconfiar seriamente
que apenas os textos pudessem lhes gerar as informações que precisavam.

Na verdade, uma fonte de informações já utilizada na época baseava-se em inscrições epigráficas e


oraculares, muitas vezes presentes em vasos das dinastias Shang e Zhou. Esta tradição seria retomada no
período Han (séc -2 +2), Tang (séc. 7 +10) e Song (960 + 1279). Este último foi um período extremamente
importante para o desenvolvimento da arqueologia chinesa, tendo em vista o início de escavações com fins
claramente historiográficos que visavam formar coleções de vasos e cerâmicas representativas sobre as
épocas passadas. Tais coleções foram agrupadas em classificações estilísticas e funcionais até hoje
conhecidas, embora grande parte das listas e objetos tenha se perdido nas transições dinásticas. Muitas seriam
analisadas por artistas da época que buscavam traduzir o “espírito das culturas antigas”, investigando um
possível processo de evolução das formas estéticas.

Buscava-se ainda correlacionar estes vestígios materiais e textuais com as datações astronômicas
existentes em eficazes tabelas de registro do movimento dos corpos celestes. Como tal movimento podia ser
calculado num ciclo relativamente regular, algumas datações poderiam verificar-se exatas, enganosas ou
posteriores. Nestes casos, uma análise comparativa das fontes favorecia o enquadramento de um determinado
contexto e a dissecação de possíveis contradições. Sima Qian organizava sua cronologia através de um
sistema que articulava o movimento de determinadas constelações com o chamado “ramo terrestre” - um ciclo
de doze anos que hoje conhecemos através do horóscopo chinês. Desta correlação formava-se um grande

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ciclo de sessenta anos que espaçava razoavelmente bem a possibilidade de determinados eventos históricos
mesclarem-se numa confusão cronológica. Sima ainda aperfeiçoou este sistema através da inserção das
“marcas dinásticas”, períodos de duração do reinado de cada soberano que delimitavam um espaço-tempo.

Apesar da razoável precisão deste sistema, Sima Guang (+1019 +1086) criticou-o posteriormente por
ele ser preciso apenas em termos quantitativos. Os tempos de transformação ou de transição dos segmentos
culturais de uma sociedade podem estar em descompasso com estas marcações. A crítica de Guang é
bastante pertinente se aplicada ao contexto das histórias locais e do relativismo cultural. Afinal, o "tempo" do
camponês que trabalha a terra da mesma forma há séculos pode basear-se numa percepção completamente
diferente do "tempo" que acompanha a esfera política. Tais transformações devem ser investigadas.

Conhecer e investigar, aliás, é a base da história e da ética; “[os antigos] Desejando cultivar suas
pessoas, primeiro corrigiram seus corações. Desejando corrigir seus corações, primeiro trataram de ser
sinceros em seus pensamentos. Desejando ser sinceros em seus pensamentos, primeiro ampliaram ao máximo
o seu conhecimento. Essa extensão do conhecimento baseia-se na investigação das coisas” (Daxue, 1).

CONCLUSÃO

A história chinesa apresenta-se como um excelente contraponto à nossa realidade historiográfica.


Calcada num processo de construção e continuidade desconhecidas no Ocidente, ela serve como referência
para um debate profundo sobre os modos de se “fazer” história. Além disso, a história chinesa rompe (para os
chineses) o paradigma da cientificidade, posto que para eles ela representa tanto uma ciência quanto um
gênero literário cujos objetivos parecem ser definidos, mas os procedimentos e teorias, variáveis. Esta
condição, totalmente contraditória ao nosso modo de ver, encontra-se resolvida na oposição complementar do
pensamento desta civilização. Logo, sua versatilidade e potencial devem ser investigados mais profundamente,
a fim de construirmos uma perspectiva historiográfica mais abrangente e rica através de sua compreensão.

REFERÊNCIAS

As fontes primárias aqui utilizadas (Lunyu, Daxue, Zhongyong, Shiji, etc.) podem ser encontradas no original em
www.guoxue.com Último acesso em novembro de 2006.

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(org.) As culturas e o tempo. São Paulo: Vozes-USP, 1975.

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WATSON, B. Ssu Ma Chien, Grand Historian of China. Columbia: CUP, 1958.

__________________________________ 60 __________________________________
CARCINOFAUNA NO RIO BONITO LOCALIZADO NO MUNICIPIO DE PORTO UNIÃO - SC, ATRAVÉS DO
MÉTODO DE COLETA TIPO “COVO”

WERLE, Sérgio (Ciências Biológicas – FAFI)

Orientador: Ms. Sérgio Bazílio (FAFI)

1 INTRODUÇÃO

A região norte do estado de Santa Catarina é uma região muito rica em nascentes, córregos e rios de
pequeno porte. Porém, essa região encontra-se em contínuo processo de degradação em virtude do acelerado
crescimento urbano, ocupação antrópica para a agricultura, ou ainda, estabelecimento de atividades industrial e
de mineração por parte de diversas empresas que atuam na extração de areia nesses rios e do basalto próximo
aos corpos de água. Como conseqüência, os habitats naturais ficam seriamente comprometidos ou mesmo
deixam de existir. Como resultado desse processo, populações inteiras de diversas entidades biológicas,
inclusive de crustáceos decápodes, pode desaparecer completamente.

Para Rocha e Bueno (2004) a escassez de trabalhos de sistemática e inventários faunísticos, bem
como de dados biológicos, nestes últimos anos, têm contribuído para que continuássemos com um
conhecimento fragmentário sobre os decápodas existentes nos principais corpos de água do Brasil.

No Manual de Identificação dos Decápodas de Água Doce do Brasil, Melo (2003) descreve sete
famílias de crustáceos decápodas dulcícolas, 26 gêneros e 117 espécies reconhecidas para ambientes lóticos e
lênticos do território brasileiro.

O objetivo da presente pesquisa foi levantar a carcinofauna com ocorrência no Rio Bonito, desde a
foz (no rio Timbó) até aproximadamente 7000 metros a montante, nas localidades de São Pedro do Timbó e
Salto do Rio Bonito, município de Porto União, Santa Catarina bem como levantar alguns aspectos das suas
populações, como diferença entre machos e fêmeas, período de incubação dos ovos, locais de maior incidência
destes espécimes.

2 MATERIAIS E MÉTODOS

2.1 ÁREA DE ESTUDO

As coletas foram realizadas no Rio Bonito, afluente da margem esquerda do Rio Timbó no município
de Porto União, estado de Santa Catarina, BR. Este rio localiza-se no interior do município, alternando entre
regiões de agricultura e regiões de mata, com uma paisagem fitogeográfica representada por florestas
subtropicais, com presença de araucárias e matas de várzeas derivando numa rica e diversificada fauna. Na
região delimitada para as coletas, o rio tem como características o fundo predominantemente rochoso, águas
rasas, ligeiramente frias e claras, com poucas regiões profundas e fica entre as altitudes de 774 m e 879 m.

As coletas foram realizadas em uma extensão de 7000 metros aproximadamente, iniciando na foz do
rio, lat. 26º26’13’’ S e long. 50º49’59’’ W (localidade de São Pedro do Timbó) até a localidade do Salto do Rio
Bonito, lat. 26º27’47’’ S e long. 50º53’17’’ W, sendo distribuídos nesta área aleatoriamente seis pontos de
coletas.

Estes pontos ficaram todos em regiões de águas rasas, sendo o Ponto I o mais próximo da foz, (lat.
26º26’13’’ S e long. 50º49’59’’ W) sofrendo influência direta do rio Timbó, quando este enche, o Rio Bonito sobe
também, às margens existe uma faixa pequena de vegetação, sendo que nas duas margens é praticada a

__________________________________ 61 __________________________________
agricultura. O Ponto II (lat. 26º26’30’’ S e long. 50º50’00’’ W) fica logo abaixo de uma queda de água (cachoeira)
de aproximadamente 30 metros, é uma região de águas rasas e mata preservada em ambas as margens. O
Ponto III (lat. 26º26’49’’ S e long. 50º51’00’’ W) situa-se no início de uma região de remanso e praticamente não
apresenta nenhuma vegetação às suas margens, sendo praticada a agricultura nas duas margens. Ponto IV
(lat. 26º27’11’’ S e long. 50º51’46’’ W), situado em uma região de final de poço, neste local o rio possui mata
ciliar à margem esquerda, na margem direita não possui vegetação, sendo praticada a agricultura e em uma
parte, há um potreiro para bovinos. Ponto V, (lat. 26º27’47’’ S e long. 50º53’17’’ W) localiza-se logo abaixo do
segundo salto do rio Bonito, com mata ciliar preservada em ambas as margens. Ponto VI, (lat. 26º27’52’’ S e
lon. 50º53’11’’ W) este ponto fica acima do segundo salto do Rio Bonito com uma queda de aproximadamente
de 50 m, em uma região de corredeira, Com vegetação preservada na margem direita, e a margem esquerda
possui mata ciliar parcialmente destruída.

2.2 AMOSTRAGEM

Os decápodes foram capturados com armadilhas fabricadas artesanalmente, uma espécie de “covo”34
(Figura 01). Sendo esta, confeccionada com frascos descartáveis de cinco litros de água e cera.

Figura 01 - Passo a passo da confecção das armadilhas, tipo “covo”, utilizadas na captura dos crustáceos

Para confeccionar as armadilhas inicialmente (1º) cortou-se o bico do frasco, aumentando um pouco
o buraco para facilitar a entrada dos crustáceos, e em seguida, (2º) foi cortada a parte superior dos frascos, (3º)
invertendo e encaixando a parte superior na parte inferior, que passou a ser a base, formando assim, uma
espécie de funil, no qual os crustáceos tinham fácil acesso ao interior do mesmo, ficando impossibilitados de
saírem. Posteriormente (4º) furou-se a armadilha para fixar a parte superior e costurar a tela na mesma. A
armadilha (5º) foi envolvida externamente com uma malha de náilon para facilitar a subida dos crustáceos e
posterior entrada na armadilha.

Utilizou-se barbante para amarar as armadilhas, e para mantê-las no fundo do rio foram utilizadas
pedras como peso. (6º) Temos a armadilha pronta para a captura.

Para capturar os decápodes nas duas primeiras coletas, utilizaram-se duas armadilhas por pontos,
totalizando 12, as quais eram distribuídas sempre que possível, uma em cada margem, e posteriormente, este
número foi elevado a 18, sendo utilizados três por ponto.

34
Armadilha para apanhar peixes, espécie de cesto de vime, taquara, BUENO (2001).

__________________________________ 62 __________________________________
Em cada coleta as armadilhas foram mantidas aproximadamente 24 horas no rio, nas primeiras cinco
coletas as armadilhas foram colocadas pela manhã, iniciando a distribuição por volta das 8h40min, terminando
às 11h30min, verificadas no final da tarde, quando eram retirados os espécimes capturados e recolocado as
iscas, deixando as mesmas no rio até a manhã do dia seguinte, retirando-as aproximadamente nos mesmos
horários em que foram colocadas no dia anterior.

Nas três coletas seguintes as armadilhas foram colocadas no período da tarde, iniciando a
distribuição por volta das 15 horas e terminando por volta das 17h50min, sendo estas revistadas na manhã
seguinte, retirando os espécimes capturados e recolocadas iscas, mantendo as mesmas até o final do dia no
rio, retirando-as aproximadamente nos mesmos horários em que foram colocadas no dia anterior. Nas quatros
ultimas coletas passou-se a colocar as armadilhas no final do dia e a retira-las na manhã seguinte. Realizando
somente a coleta noturna. Como atrativo para os crustáceos utilizou-se ração para gato ou cão e miúdos de
frango, principalmente, fígado.

Durante as coletas foram feitas três medidas de temperatura da água, nas oito primeiras coletas, uma
quando as armadilhas eram colocadas, outra no momento da primeira revista e uma última na hora da retirada
das armadilhas. E nas ultimas quatro coletas, duas aferições da temperatura, uma quando as armadilhas eram
colocadas e a outra na hora da retirada das armadilhas, para isto utilizou-se um termômetro de mercúrio marca
da ARBA na escala Celsius com graduação de -10°C a 110°C. As coordenadas e altitudes foram obtidas com
um GPS Garmim Etrex.

Os animais capturados foram fixados em álcool 70% no próprio local de coleta e acondicionados em
frascos de vidro com tampa e etiqueta de identificação. No laboratório, os espécimes foram identificados até o
nível de espécie com o auxílio de chaves dicotômicas de Bond-Buckup (2003) e Magalhães (2003), disponíveis
no Manual de Identificação dos Crustáceos decápodas de Água Doce do Brasil, Melo (2003). E em seguida,
foram enviados 12 espécimes amostrando todos os pontos, para Georgina Bond-Buckup da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, renomada especialista em decápodas de água doce para a confirmação das
espécies.

Os exemplares, após sua identificação, foram tombados e encontram-se depositados no laboratório


de Zoologia da Faculdade Estadual de Filosofia Ciências e letras de União da Vitória.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram realizadas coletas mensais de janeiro a dezembro de 2007, totalizando doze coletas nos seis
pontos amostrais. E durante o período amostra foram coletados 602 crustáceos decápodas, sendo 426 machos
e 176 fêmeas.

Ao longo das coletas obteve-se 71% de machos entre os espécimes, apesar de, nos totais, obter-se um
número relativamente bem maior de machos que de fêmeas, ocorreu alguns meses em que o número de
fêmeas foi quase o mesmo que de machos (maio), ou até mesmo maior (abril) conforme se pode observar no
(Gráfico 01).

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Gráfico 01 - Gráfico representando a diferença entre o número de machos e fêmeas em cada coleta no Rio
Bonito, município de Porto União, SC.

O período de amostragem abrangeu todas as estações, e como a área de estudo está inserida na zona
de clima subtropical, tem uma variação considerável do clima entre as estações. Sendo que a temperatura
média da água no verão foi de aproximadamente 24ºC, no outono ficou em torno de 18ºC, no inverno abaixou
para aproximadamente 13ºC e na primavera 20ºC. Mesmo com esta variação de temperatura obteve-se
sucesso em todas as coletas como podemos ver no (Gráfico 01).

Provavelmente devido à diferença de vegetação das margens do rio nos pontos de coleta e também às
variações no leito35 do rio, com regiões de poço e locais de corredeira, obteve-se números diferentes de
espécimes coletados em cada ponto (Gráfico 02). Obtendo um número expressivamente maior de crustáceos
decápodas, nos pontos com vegetação preservada às suas margens, e com menor profundidade, os pontos II e
V os quais sozinhos correspondem a mais de 65% dos espécimes coletadas, ambos ficam em uma região de
mata preservada e logo abaixo de uma queda de água (cachoeira) o que aumenta a oxigenação da água.

Já os pontos III e IV estão em locais em que se pratica a agricultura em ambas as margens, portanto,
sem mata ciliar. E, respectivamente, início de poço, onde se pratica a agricultura em uma das margens com a
outra preservada e fim de poço.

Gráfico 02 - Gráfico do número de espécimes coletados por ponto no Rio Bonito, Porto União, SC

35
Parte do rio coberta pela água, FERNADES et al, (2001)

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Nas primeira oito coletas foram realizadas amostras diurnas e noturnas, sendo capturado um número
bem maior de espécimes nas coletas noturnas (83%) que nas diurnas (17%). Isto demonstra que estes animais
têm hábitos preferencialmente noturnos, o que já havia sido citado por Masunari (2007); Magalhães (1999b) e
Gomides et al (2006), devido a baixa incidência de crustáceos decápodes nas coletas diurnas, a partir da nona
coleta, passou-se a realizar-se somente coletas noturnas.

As armadilhas utilizadas na captura dos crustáceos decápodes no Rio Bonito (Figura 01) são iguais
às que foram utilizadas anteriormente com sucesso por Werle e Sartor (2006) em um levantamento de
Crustáceos no Rio Iguaçu na região entre Porto União, SC e União da Vitória, PR.

Entre os espécimes coletados, foram identificadas duas famílias (Gráfico 03). Os aeglideos, que
segundo Bond-Buckup, (2003) sob ponto de vista biográfico, é grupo endêmico do Sul da América do Sul,
restrito a regiões de clima temperado e subtropical, ocorrendo nas bacias hidrográficas do sul do Brasil,
Uruguai, Argentina, sul da Bolívia, Paraguai e centro sul do Chile, entre 20º60’ S; 47º40’ W e 50º01’ S; 75º18’ W
e os Trichodactylidae, que segundo Magalhães (2003), estão distribuídos com pouco menos de 50 espécies na
América do Sul e América Central, ocorrendo desde o sul do México até a Argentina, sempre em rios da
drenagem atlântica. Seus representantes estão presentes em praticamente todas as bacias hidrográficas do
território nacional. No país, ocorrem mais de 60% das espécies atualmente conhecidas sendo que a maioria
está distribuída na bacia amazônica.

Gráfico 03 - Porcentagem dos espécimes coletadas no Rio Bonito, Porto União, SC nas respectivas famílias

O Gráfico 03 apresenta a proporção de indivíduos coletados nas famílias Aeglidae e Trichodactylidae.


Sendo que oitenta e sete por cento dos indivíduos coletados pertencem à família Aeglidae e treze por cento aos
Trichodactylidae.

Com o auxílio das chaves dicotômicas disponíveis em Melo (2003) e posteriormente confirmado por
Georgina Bond-Buckup, identificou-se somente uma espécie entre os espécimes pertencentes à família
Aeglidae que é a Aegla parana Schimitt, 1942 (Fig.02).

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Figura 02 - Em A temos uma foto da vista dorsal da A. parana e em B a vista ventral da A. parana coletada no
Rio Bonito, localidade de São Pedro do Timbó, Porto União, SC

Bond-Buckup; Buckup (1994) faz referência à A. parana para o município de Porto União, sendo
registrada a sua ocorrência para o Rio Timbó jusante do Rio Bonito.

Durante a presente pesquisa, foi coletado um total de 531 exemplares pertencentes à espécie A.
parana, da qual se registrou a ocorrência em todos os pontos de coleta (Gráfico 04).

Gráfico 04 - Ocorrência da A. parana entre os pontos de coleta, no Rio Bonito no município de Porto União, SC

No Ponto V (Gráfico 04), foi capturado um número expressivamente maior de Aegla que nos demais,
sendo este sozinho responsável por mais de 50% dos animais coletados. E nos pontos III e IV tivemos uma
contribuição muito pequena para o total, somando menos de 4% das Aegla capturadas.

Entre as Aegla capturadas temos 72,1% de machos e 27,9% de fêmeas, o que corresponde a uma
razão sexual de (2,6:1). Das fêmeas coletadas 12,3% apresentavam-se com ovos na placa incubadora (Gráfico
05), sendo que estas foram registradas de maio a setembro, com maior ocorrência em agosto e setembro. O
que vem a confirmar que o período de incubação dos ovos se dá nos meses mais frios, o que já havia sido
relatado por Masunari, 2007.

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Gráfico 05 - Número mensal de fêmeas e de fêmeas ovígeras da A. parana coletadas no Rio Bonito no
Município de Porto União, SC

E entre os espécimes pertencentes à família Trichodactylidae também se identificou somente uma


espécie a Trichodactylus fluviatilis Latreille, 1828 (Figura 03)

Figura 03 - Espécime de Trichodactylus fluviatilis, coletado no Rio Bonito, município de Porto União, SC

Costa Neto (2007) em um artigo sobre o caranguejo de água doce, Trichodactylus fluviatilis, relata
que a família Trichodactylidae é representada por menos de 50 espécies, com distribuição na América do Sul e
Central, ocorrendo desde o sul do México até a Argentina, sempre em rios da drenagem Atlântica.

Magalhães (2003) divide a família Trichodactylidae em dez gêneros e entre estes, o gênero
Trichodactylus Latreille, 1828, com nove espécies sendo uma delas a Trichodactylus fluviatilis Latreille, 1828.

Neste levantamento registrou-se a ocorrência de 71 crustáceos decápodes pertencentes à espécie T.


fluviatilis, sendo 36 machos e 35 fêmeas, é importante ressaltar que no período mais frio do ano (de junho a
setembro) não foi capturado nenhum T. fluviatilis. No gráfico 06 podemos ver a distribuição dos T. fluviatilis por
pontos de coleta.

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Gráfico 06 - Número de espécimes de Trichodactylus fluviatilis coletados por pontos no Rio Bonito, Município de
Porto União, SC

No Gráfico 06 podemos observar que o ponto com maior ocorrência da espécie Trichodactylus
fluviatilis foi o ponto II com 50% dos Trichodactylus capturados. No geral, com exceção do ponto II, a ocorrência
desta espécie foi baixa.

4 CONCLUSÃO

Registrou-se a ocorrência de crustáceos em toda a área pesquisada, sendo capturado um número


maior de indivíduos nos pontos onde as margens sofreram menor pressão antrópica e que estão localizadas
próximas às regiões de cachoeiras.

Registrou-se a presença de duas famílias de Crustáceos Decápodas na área estudada, sendo os


Aeglidae e os Trichodactylidae, que ocorrem em toda a extensão amostrada.

Entre os Aeglidae, registrou-se a presença de somente uma espécie, a Aegla parana, a qual já foi
citada por Bond-Buckup (1994), para o Rio Timbó, jusante do Rio Bonito. E entre os Trichodactylidae, também
foi identificada somente uma espécie, o Trichodactylis fluviatilis.

As coletas diurnas e noturnas serviram para demonstrar que estes animais têm hábitos
preferencialmente noturnos.

Dentre as espécimes fêmeas da A. parana coletadas no Rio Bonito, foram identificadas ovígeras
somente nas coletas do outono e no inverno, isto confirma que o período de incubação dos ovos dos aeglideos
é nos meses mais frios do ano.

As armadilhas utilizadas na captura dos crustáceos foram de grande eficiência, com êxito em quase
todas as coletas, capturando uma média de 2,4 indivíduos em um período de 12 horas nas coletas noturnas e
0,4 indivíduos nas coletas diurnas. Portanto o método tipo “covo” mostrou-se um sistema eficiente para a
captura de caranguejos de água doce, por ser um sistema que não exige muito esforço do pesquisador, visto
que é uma armadilha atrativa.

__________________________________ 68 __________________________________
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ESTRATÉGIAS ALIMENTARES DO BEM-TE-VI (Pitangus sulphuratus Linnaeus, 1766) EM DIVERSOS
AMBIENTES

36
VOGEL, Huilquer Francisco

37
METRI, Rafael

Introdução

O bem-te-vi Pitangus sulphuratus (Linnaeus, 1766), é uma das espécies mais abundantes no Brasil,
pertence à família Tyrannidae (Vigors, 1825), mede cerca de 22,5cm, e pesa de 54 a 60g (SICK, 1997, p. 627).
Apresenta uma alta capacidade de adaptar-se praticamente a qualquer ambiente, graças à utilização de muitas
fontes alternativas de alimentação. A habilidade apresentada por P. sulphuratus para identificar itens
alimentares ausentes de ambientes mais naturais e de explorar recursos com distribuição imprevisível no tempo
e no espaço, confere à espécie uma flexibilidade alimentar que possivelmente contribui para sua eficiência em
colonizar ambientes urbanos (ARGEL-DE-OLIVEIRA et al.1998).

Beltzer (1983) indica que tal espécie pode se alimentar de peixes em águas pouco profundas,
pequenas cobras, filhotes de tartarugas, crustáceos e aracnídeos, desta forma, indo contrariamente as idéias
de Brooks (1997), que o inclui no grupo de insetívoros. Muitos autores como Nores e Yzurieta (1980) e Canevari
et al. (1991), propõe que a espécie pode se alimentar diretamente do solo, pescar como um martim-pescador,
ou capturar insetos no ar. Predam também ninhos de outras aves, como, por exemplo, os da cambacica
(Coereba flaveola) (HÖFLING et al. 2002). Bologna (1981) propõe que a espécie também se alimenta de frutos,
particularmente na estação do outono. Muitos representantes da família Tyrannidae, são insetívoros e
apresentam diversas estratégias alimentares (VISCHER E MORATORIO, 1982; BELTZER, 1985).

Estas diferentes opções alimentares conferem um especial interesse pela biologia alimentar de P.
sulphuratus, já que esta pode servir de modelo para o estudo de outras espécies da mesma família. Desta
forma, este trabalho objetivou conhecer as diferentes estratégias de alimentação desta ave, buscando possíveis
interpretações para tais comportamentos.

Material e métodos

As observações do comportamento alimentar de P. sulphuratus ocorreram de Julho de 2006 a Junho de


2007, e foram realizadas em dois locais distintos.

A primeira área foi o campus da Universidade Estadual do Centro-Oeste (CEDETEG - UNICENTRO),


Guarapuava-PR, localizado entre (25°23’31”S, 51°30’ 62”W). A vegetação original é de campo limpo com
florestas de Araucárias. O clima é extratropical, com média anual de 17,1 ºC. O inverno é frio e o verão
amenizado pelas altitudes, chuvas abundantes e distribuídas ao longo do ano, (média anual 1953,8mm) sem
distinção de período seco (MAACK, 1981). A altitude média do campus é de 1.035 m.s.n.m.

Nos meses de janeiro, fevereiro e julho de 2007 foram realizadas observações no município de Sulina
(25° 42' 07"S, 52° 43' 19"W), Sudoeste do Paraná. A área amostrada foi uma chácara a cerca de 500m do
perímetro urbano. Sulina possui uma área de 170,76 Km², clima Subtropical Úmido Mesotérmico, temperatura
média anual de 19°C (MAACK, 1981). Possui verões quentes e geadas pouco freqüentes, sem estação seca
definida e com as principais médias de chuva variando de 1.700 a 1.900 mm. A vegetação original era
composta por floresta subtropical subperinifólia (Estacional Semidecidual) que atingia praticamente 100% da
área municipal. Porém o remanescente cobre menos de 9 % da área natural.

36
Biólogo, estudante de pós-graduação - UNICENTRO (Guarapuava – PR).
37
Professor do Departamento de Biologia -UNICENTRO (Guarapuava – PR).

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Nas áreas foram percorridos diversos ambientes, utilizando-se de binóculos 7x35mm para os registros
visuais, sendo que o animal foi procurado ativamente e localizado pelo seu canto característico.

Resultados e discussão

P. sulphuratus, apresentou diversos comportamentos de forrageamento, dentre os mais observados,


esteve à captura e alimentação de insetos, frutos, alevinos, girinos, ração canina e restos de pão. Uma
estratégia comumente usada por esta ave no meio urbano é a de utilização instalações elétricas (Fig. 1A), como
ponto de parada, de onde espreitam e capturam insetos em vôo. Foi observado um comportamento pós-
captura, de golpear a presa violentamente contra o substrato no qual ave estiver pousada. Hudson (1974) cita
este mesmo comportamento, no entanto acredita-se que não seja somente para matar a presa, mas também
para quebrá-la para facilitar a ingestão, pois as presas podem ser muitas vezes maiores que o bico do animal.

Figura 01: Etograma de algumas das diferentes estratégias de alimentação adotadas por Pitangus sulphuratus
nos ambientes amostrados.

Outro comportamento freqüente foi o de pesca, sendo que dois padrões básicos foram observados
nesta estratégia. No primeiro, a ave sobrevoou o lago atacando diretamente a presa, e no segundo, a espécie
espreita suas presas de um galho da vegetação lacustre (Fig. 1B). Durante o campo, verificou-se em março de
2007, mais de 30 indivíduos alimentando-se simultaneamente utilizando a segunda estratégia. Atribui-se esta
grande abundância deste animal pescando neste período, a grande quantidade de alevinos de Tilápia
Oreochromis niloticus (Linnaeus, 1758), assim como grade quantidade de girinos de várias espécies de
anfíbios, como os da rã (Leptodactylis cf. gracilis Duméril & Bibron, 1841).

A utilização de frutos na dieta, esta representada na Fig. 1C. As plantas da família Lauraceae e
Myrtaceae, foram altamente visitas pelo bem-te-vi. Scheibler e Scheibler (2001) estudaram a planta Ligustrum
lucidum W. T. Aiton, (Oleaceae) e apontaram esta como importante fonte de alimento para O bem-te-vi durante

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o inverno, quando a disponibilidade de frutos da flora nativa diminui, já que esta planta produz grandes
quantidades de frutos no período invernal, no entanto trata-se de uma espécie invasora, a qual esta ave pode
estar contribuindo para a dispersão, já que foi visualizada utilizando L. lucidum como recurso alimentar.

A estratégia (Fig.1D), é uma das mais observadas em locais muito antropizados Argel-De-Oliveira, et al.
(1998), apontam que esta ave no meio urbano tem sua dieta complementada com itens e ou materiais
elaborados pelo ser humano (restos de comida, pellets de ração animal) entro outros. De fato, foi observada
muitas vezes esta ave procurando alimento em lixeiras no campus da Unicentro (primeira área de estudo
citada). Esta ave comumente alimenta-se de ração canina, disponíveis em várias residências no entorno do
campus, quando a presença humana afugenta esta espécie, a mesma pousa no galho de uma arvore, até que a
ameaça humana recue, ou que o pardal (Passer domesticus Linnaeus, 1758) espécie mais tolerante a presença
humana, apanhe um pequeno pellets de ração, em seguida o bem-te-vi ataca o pardal, roubando-lhe o
alimento.

Durante a primavera ocorre à oferta sazonal de aleluias (casta alada de cupins) aproveitadas por muitas
aves para alimentação. Uma freqüente estratégia de alimentação foi a descrita na (Fig.1E), onde estas são
capturadas em vôos curtos, sendo que o bem-te-vi pode pousar a cima do cupinzeiro, ou procurá-las
ativamente depois que estas estão pousadas no solo. Esta oferta de alimento é muito importante, já que trata-
se de um recurso calórico e rico em aminoácidos, essenciais para a síntese de proteínas (REDFORD e DOREA
1984, CROUCH 1997 apud KOPIJ, 2000). Comumente são observadas diversas espécies alimentando-se
desta oferta de alimento, principalmente aves da família Tyrannidae como o suiriri (Tyrannus melancholicus
Vieillot, 1819) e Apodidae (andorinhões) como (Streptoprocne zonaris Shaw, 1796), que forrageia em vôo, até
vários metros de altura.

Muito frequentemente, registrou-se P. sulphuratus alimentando-se no solo, levantando Odonatos,


Hemíptera, Grillidae ou ainda moluscos. Muitas vezes o animal é visto perseguindo suas presas no solo, como
pequenas mariposas e borboletas (Fig. 1F).

Observou-se que durante a estação reprodutiva, esta ave passa a defender um pequeno território,
neste, podem existir indivíduos da mesma espécie, e em outros momentos, o bem-te-vi não tolera a presença
de tais indivíduos, que são violentamente afugentados. O bem-te-vi constrói seu ninho em forma de cesto, com
uma única abertura de entrada, põe entre 3 a 4 ovos. Seu ninho pode ser parasitado pelo chopim (Molothrus
bonariensis Gmelin, 1789). Não foi observado durante o trabalho o comportamento de predação dos ninhos de
outras aves por Pitangus sulphuratus, e também não se constatou a presença de 38helpers, no cuidado parental
com filhotes.

Conclusões

A habilidade apresentada por P. sulphuratus para identificar alimentos em ambientes naturais e para
explorar recursos alimentares de origem antrópica, confere uma flexibilidade alimentar que possivelmente
contribui para sua eficiência em colonizar ambientes urbanos e assim apresentar-se abundante em vários
ambientes.

Concorda-se com D`Agelo-Neto et al. (1998), que a onívoria pode ser considerada como uma
adaptação ambiental, já que o aumento desta teria um efeito tampão contra a flutuação nos suprimentos
principalmente em ambientes antropizados. Com base nas observações de campo, surge uma hipótese, que a
esta ave possui diferentes estratégias alimentares, como uma possível forma de fugir da pressão competitiva
intra-específica, já que indivíduos da mesma espécie, em um mesmo ambiente, podem apresentar diferentes
estratégias de alimentação, utilizando diferentes recursos alimentares.

38
Indivíduos que não fazem parte do casal em reprodução, mas atuam durante a construção do ninho e durante a
alimentação de ninhegos e filhotes, mas não durante a incubação (ARGEL-DE-OLIVEIRA, 1989).

__________________________________ 72 __________________________________
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__________________________________ 73 __________________________________
HISTÓRIA DA FILOSOFIA E FILOSOFAR - UM OLHAR CRÍTICO SOBRE O MÉTODO DAS ESTRUTURAS
DE M. GUEROULT39

Alessandro Pimenta40

Os equívocos de que a filosofia se vê constantemente


cercada são mais fomentados pelo que nós fazemos, isto é,
pelo professores de filosofia.

Martin Heidegger

1 SITUANDO A QUESTÃO

Uma perspectiva positiva se abre aos professores licenciados em filosofia, a saber, o retorno desta
disciplina no ensino médio. Não se pode negar que ao profissional que dedicou parte de seu tempo em sua
formação como docente é uma realidade que se amplia. Junto a este olhar otimista, em virtude da nova
entronização da filosofia no ensino médio, são postas algumas questões que são pertinentes. Entre as várias
que podem ser abordadas, uma terá destaque neste artigo. Trata-se da investigação sobre o método de M.
Gueroult. Ora, esta questão não é secundária, pois a influência desta maneira de estudar e ensinar filosofia foi,
durante algumas décadas, quase hegemônica, para não dizer em sua totalidade. Se a influência de Gueroult foi
determinante na formação de várias gerações de professores de filosofia, é necessário perceber o que constitui
tal metodologia, perceber as razões pelas quais ela se tornou padrão e quais as fragilidades de uma aceitação
radical da proposta de Gueroult. Este é o cerne da questão, pois os professores já licenciados, conscientes ou
não, receberam, inevitavelmente, uma formação estruturalista, salvo certas exceções.

Uma primeira inserção do ensino de filosofia no Brasil se efetiva já com a presença dos jesuítas. Não é
de se estranhar que a filosofia e o método de ensino ministrado constituíam expressões da ideologia
subjacente: filosofia tomista e ratio studiorum como método de ensino e aprendizagem. Certamente, um estudo
da influencia dos jesuítas na educação brasileira não pode ser desconsiderada, todavia o que se privilegia aqui
é um outro evento41: a filosofia uspiana.

O ensino de filosofia bem como sua difusão no Brasil, tem como evento fundamental a missão francesa
na década de 40 do séc. XX, na jovem Universidade de São Paulo, fundada em 1934. A metodologia trazida
pelos professores vai constituir, futuramente, a metodologia do ensino desta disciplina, ainda mais, constituirá a
forma considerada por excelência desta atividade. Há, então, “a implantação do modelo historiográfico francês”
(MARQUES, 1999, p. 648), que tem em Gueroult seu expoente mais conhecido no Brasil. Segundo Marques
(1999, p. 649), a recepção da proposta metodológica de Gueroult foi aceita passivamente. Ainda, sua expansão
e ratificação deveram-se ao texto que Victor Goldschmidt apresentou em 1957 no XII Congresso de Filosofia
intitulado Temps historique et temps logique dans l’interprétation des systèmes philosophiques, traduzindo para
o português por Porchat Pereira como apêndice ao livro A religião de Platão. Referindo-se à contribuição de
Gueroult sobre a metodologia do estudo e do ensino de filosofia, Teixeira (1964, p. 209) salienta que não pode
existir filosofia em detrimento da história da filosofia. O estudo, então, busca a compreensão dos conceitos e da
ordem interna do texto filosófico. Acrescente-se que, “diversamente do que ocorre nas ciências, a história da
filosofia é, de fato, o principal instrumento de iniciação à filosofia e, para a filosofia, permanente inspiração”

39
Este artigo foi pronunciado como conferência no I Colóquio Nacional do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, realizado em
Uberlândia-MG, de 22 a 26 de outubro de 2007.
40
Bacharel e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás. Doutorando em Filosofia pela Universidade Gama
Filho/RJ, onde também leciona. As idéias contidas neste artigo, ainda propedêuticas, surgiram de discussões com colegas
na Université Paris I – Sorbonne, onde realizei um Estágio de Doutorado.
41
O termo evento é usado aqui segundo a perspectiva de Alain Badiou. Événement pode ser melhor traduzido como
acontecimento, entendido como aquele que rompe com a situação e inicia uma nova realidade.

__________________________________ 74 __________________________________
(GUEROULT, 2000, p. 162). Assim, a busca da identificação e da reconstrução da ordem interna ou ordem das
razões será a meta da pesquisa e do ensino de filosofia na Universidade de São Paulo. O PCN (1999, p. 331),
no que tange à filosofia, é tributário do método estruturalista, porém adiciona aspectos negligenciados pela
prática estruturalista no Brasil, a saber, a crítica e a reflexão, a partir dos clássicos da história da filosofia, sobre
a realidade contemporânea.

Antes do que se denomina missão francesa, encontrava-se, no Brasil, um solo filosófico que possuía
duas características principais: o tomismo e o ensaio, considerados descompromissados com o rigor
acadêmico. O ensino de cunho tomista se deve à educação católica difundida principalmente pelos padres
jesuítas, segundo a metodologia de ensino denominada ratio studiorum. A segunda perspectiva se caracteriza
pelo escrito leve e solto, acusado, posteriormente, de ignorar a tradição, não por negá-las, mas pelo simples
desconhecimento de sua existência.

Ao se pensar o que vem a ser a metodologia uspiana de fazer filosofia, deve-se ter em mente o
referencial teórico que lhe é inerente: “o ensino de filosofia não pode prescindir da história da filosofia”
(LEOPOLDO E SILVA, 1993, p. 801). Assim, tanto Gueroult como Goldschmidt são importantes, pois são os
expoentes teóricos do método estruturalista no Brasil.

Não se questiona a necessidade de ler os textos filosóficos com rigor, ou mesmo a legitimidade da
história da filosofia, pois neste aspecto Gueroult (2000, p. 159-171) mostrou, coerentemente, como se pode
além do quid fact defender seu quid juris. Estudar história da filosofia é fazer filosofia. Entretanto, a simples
leitura, com a finalidade em si mesma é debalde. Fazer filosofia é dialogar com sua história: “o fundador da
historiografia filosófica antiga, Aristóteles, interpreta o passado da filosofia em função de seu sistema das
causas e da passagem da potência ao ato” (GUEROULT, 2000, p. 164).

É assim que se vê Aristóteles como leitor e crítico de Platão, Descartes como leitor e crítico da tradição
escolástica e, no séc. XX, Heidegger leitor de Platão, Aristóteles, Nietzsche etc. Saliente-se que estes
pensadores supra-citados não buscaram reconstruir a ordem interna ou a ordem das razões nas obras de
outros filósofos. Eles foram além do historiador da filosofia, eles filosofaram a partir da história da filosofia. Eles
vão além, pois a partir de uma compreensão rigorosa dos pensamentos de certos filósofos vão tecendo sua
própria filosofia. O problema que se aborda, aqui, é a sacralização de um método.

As conseqüências pedagógicas são facilmente identificadas: uma filosofia estéril, um “pensamento


tímido”. A expressão pensamento tímido designa uma atitude de demasiada reserva ou medo de ousar. E isto
de duas maneiras. Primeiro, ousar na hermenêutica e, segundo, ousar no diálogo intenso com o texto. É neste
segundo ponto que, mesmo com todos os avanços desde a missão francesa no Brasil, o diálogo filosófico,
propriamente dito, é quase inexistente. Não se pode pensar que seja por má formação, pois a pós-graduação
brasileira (stricto sensu), em geral, é de boa qualidade e, também, há um grande número de pesquisadores que
realizaram sua formação na Europa e, ainda mais, orientados por filósofos, como Habermas, Apel, Badiou etc.

É interessante a atitude designada como pensamento tímido, na medida em que expressa sua
esterilidade, pois produz pouco. Na verdade, são comentários de comentários. Ao se ter acesso a periódicos
internacionais e vasculhar fontes, não é raro encontrar artigos que, não somente serviram de base para a
confecção de artigos no Brasil, mas foram transpostos para o português quase literalmente.

Não se quer, aqui, nem apontar em contraposição a um pensamento tímido, uma atitude pueril, ou
mesmo de crítica imediatista, nem um quadro da filosofia como a base para uma educação moral e cívica.
Pensar a filosofia como auxiliar nas formalidades e convenções não se sustenta. Basta lembrar que Sócrates foi
condenado por expor um conteúdo que contrariava as convenções da época (ateísmo, introdução de novos
deuses e corrupção da juventude). Entretanto, abrir mão de seu caráter crítico é, para a filosofia, uma auto-
flagelação. Em muitos casos, a filosofia é desconstrutiva, para usar a linguagem de Derrida. Uma leitura crítica
dos clássicos pode auxiliar na compreensão da época presente, ou mesmo clarear certas ideologias que não se
percebem facilmente.

__________________________________ 75 __________________________________
É bem verdade, e uma pena, que professores de filosofia política não tenham quase nada a dizer sobre
a política nacional e mundial. Talvez, sim, mas comentando, por exemplo, um texto de Habermas sobre
conflitos internacionais, mas dialogar com a argumentação de Habermas seria de uma audácia que não é
hábito. Se a filosofia é crítica em sua constituição e se uma metodologia de análise rigorosa corrobora as
pesquisas e leituras de textos filosóficos, então uma leitura rigorosa dos textos merece um olhar crítico aos
mesmos, avaliando teses e dialogando com as mesmas. Entretanto, não é o caso no Brasil e na América
Latina, salvo raras exceções.

O PCN referente ao conhecimento de filosofia lembra que os “motivos de autoritarismo para retirar a
Filosofia dos currículos escolares” (PCN, 1999, p. 327) foram decisivos para sua exoneração. Ora, se uma
disciplina não fosse, pelo menos hipoteticamente, perigosa, ela não teria sido abolida no período recente da
história do Brasil, a saber, a ditadura. Mas um ensino de filosofia estéril como o de hoje, pouco teria a dizer e
refletir criticamente sobre as atrocidades cometidas, ou pouco auxiliaria na efetivação de sua natureza reflexiva
caracterizada pela reconstrução e pela crítica (PCN, 1999, p. 330-331). A filosofia seria, idealmente, por
exemplo, um empecilho para uma ditadura, mas tal como ela tem se constituído, seria mais uma disciplina
ministrada de maneira técnica. Ela seria, enfim, inofensiva.

2 MÉTODO DAS ESTRUTURAS DE MARTIAL GUEROULT

O discurso do professor Lívio Teixeira por ocasião do III Congresso Brasileiro de Filosofia, promovido
pela Universidade de São Paulo em 1959, traz algumas declarações que são pertinentes. A primeira é que a
USP foi a primeira instituição a introduzir o ensino de filosofia nos cursos universitários (TEIXEIRA, 2003, p.
141). Desta afirmação, depreende-se que os ensinamentos de filosofia no Brasil, desde o período colonial até a
fundação do departamento de filosofia da USP, eram apenas uma caricatura de um ensino de filosofia, marcado
pelo amadorismo, pelo nacionalismo e pelo desconhecimento da história da filosofia. A segunda informação que
Lívio Teixeira (2003, p. 142) aponta é que em 1959, a função do departamento de filosofia será a preparação de
um ensino calcado cada vez mais em bases mais sólidas, a partir da experiência francesa. Assim, era preciso
estabelecer “novas perspectivas e novos rumos” (TEIXEIRA, 2003, p. 142). É importante notar que Lívio
Teixeira foi assistente de Martial Gueroult que lecionara pela primeira vez no Brasil em 1949. A metodologia por
ele trazida foi acatada passivamente (MARQUES, 1999, p. 648-649), constituindo, assim, um estudo direto dos
textos filosóficos (abolição dos manuais), porém dócil à doutrina estrangeira. A ampliação da aceitação da
metodologia estruturalista de Gueroult se realizou através dos escritos de Victor Goldschimdt, principalmente
após a tradução de La religion de Platon, por O. Porchat Pereira. Note-se, ainda, que já em 1962 Lívio Teixeira
publica um artigo intitulado Filosofia e história da filosofia, na Revista da Faculdade de Letras de Lisboa. Este
artigo pretende mostrar que, diferentemente do que se fazia no Brasil, a filosofia não pode prescindir de sua
história em função do nacionalismo ou de uma concepção perene de filosofia oriunda da formação jesuíta ainda
remanescente (TEIXEIRA, 2003, p. 177).

Nesta perspectiva, é necessário apresentar uma alternativa eficaz contra as experiências acadêmicas
ou extra-acadêmicas de cunho nacionalista que minimizavam a importância da história da filosofia em
detrimento de problemas nacionais. Tais nacionalistas para L. Teixeira (2003, p. 197) “julgam contrário ao bom
sendo interessar-se por Platão, Descartes ou Kant neste país jovem oprimido por problemas urgentes, dentre
os quais a educação primária não é a menor”. A metodologia de Gueroult se constitui, então, como uma
alternativa ao nacionalismo e ao amadorismo. Como expressão desse nacionalismo e amadorismo Lívio
Teixeira cita Farias Brito e o Apostolado Positivista fundado no Rio de Janeiro em 1880 (TEIXEIRA, 2003, p.
196). Voltando-se contra um pensamento de cunho nacionalista, Teixeira já indicava que tal atitude não seria
propriamente filosofia, mas somente uma visão de mundo, uma vez que mesmo com as influências indígenas e
africanas, nosso pensamento é europeu (TEIXEIRA, 2003, p. 194).

Como instrumento desse rompimento com o ensino de filosofia no Brasil especialmente do séc. XIX,
Teixeira aponta os estudos de Gueroult como expressões primordiais, ao abordar a relação necessária entre
filosofia e sua história. Nesse sentido as relações entre filosofia e sua história possuem dois aspectos: a) não
pode haver filosofia sem história da filosofia; b) a história da filosofia pode parecer uma negação da própria
filosofia. Em ambos os casos, estatui-se o estudo de história da filosofia como parâmetro fundamental para a

__________________________________ 76 __________________________________
formação e junto a isso o método das estruturas, que visa reconstruir a arquitetônica lógica de cada sistema
filosófico. Teixeira, discípulo de Gueroult, irá defender a idéia estruturalista segundo a qual a história da filosofia
é condição de possibilidade da própria filosofia (TEIXEIRA, 2003, p. 200).

Em que consiste o método de Gueroult?

Na conferência pronunciada na Faculdade de Filosofia da Universidade de Ottawa, em 19 de outubro


de 1970, intitulada Méthode en histoire de da philosophie, Gueroult inicia sua comunicação com a afirmação de
que a aceitação de um método está condicionada aos seus frutos. Ora, isso serve para que se pense
imediatamente na aplicação metodológica que se julga eficaz na análise de textos filosóficos. Esse é o caso,
por exemplo, de seus livros sobre Descartes, Fichte, Spinoza e Malebranche (GUEROULT, 1970, p. 8).

Atrelada à idéia de método, encontra-se a problemática da busca por uma definição do que seja a
filosofia, ou seja, a investigação de “uma concepção da natureza ou da essência da filosofia” (GUEROULT,
1970, p. 7). Posterior a esta definição, tem-se a necessidade da aplicação de um método. Cabe lembrar, aqui, a
influência do racionalismo do séc. XVII que tem em Descartes seu maior expoente.

Uma idéia que se encontra subjacente é a compreensão do termo história, pois se trata de indicar um
método que colabore de modo eficaz para o trabalho do historiador da filosofia. Este historiador das idéias tem
por objeto, não propriamente fatos, mas a arquitetônica dos sistemas. Ao se pensar que há uma sucessão de
fenômenos articulados por um princípio de causalidade, o historiador da filosofia e o historiador das idéias
encontram certas dificuldades que se consistem na determinação da causa dos eventos (idéias).

O projeto de Gueroult, então, é evitar que uma absorção da história da filosofia seja efetivada pela
psicologia ou pela sociologia. Certamente, seu projeto nega a temporalidade, ou melhor, instaura uma outra
concepção de temporalidade. A subtração do tempo histórico instaura o que se denomina tempo lógico42. Isso
significa que, distanciando-se de análises, por um lado, psicologizantes e, por outro, sociológicas, busca-se a
coerência interna da singularidade de uma obra ou de um autor. Isso se denominada dianoemática que
consiste na percepção da coerência interna dos sistemas, ou ainda, a descoberta da ordem das razões. O que
está em questão é a condição de possibilidade da experiência filosófica. Dito de outro modo, busca-se
estabelecer um método que possa ser aplicado aos objetos da história da filosofia. Segundo Gueroult, trata-se
de “uma maneira de olhar a matéria desta história, isto é, dizer os sistemas como objetos tendo em si mesmos
um valor, uma realidade que se refere somente a eles e se aplica somente a eles” (GUEROULT, 1979, p. 243).
Assim, os sistemas filosóficos estão de alguma forma submetidos à prova do tempo histórico, à medida que são
investigados ao longo das épocas sobre sua coerência interna. Para François Dosse, o otimismo de Gueroult, já
em 1951, é o prelúdio do triunfo do estruturalismo nos anos 60 (DOSSE, 1991, 50). A demarcação realizada é
negadora de uma concepção de temporalidade, substituindo a diacronia pela sincronia. A prática pedagógica
sofrerá grande influência desta concepção, pois se pode perceber nas monografias a busca da reconstrução da
ordem das razões e da coerência interna. Enfim, os sistemas filosóficos são, para ele, essência atemporais cuja
grandeza está condicionada à solidez de sua estrutura. Não há mais, então, sistema verdadeiro ou falso, mas
mais coerente e menos coerente.

É necessário substituir a noção de sistema falso pela de inconsistente, que não tem
uma realidade nem uma tensão interna suficientes para viver, para resistir à força
brotada da história e, longe de ser dissipado por ela, poder se incorporar, ao
contrário, a ela de maneira de maneira definitiva (GUEROULT, 1979, p. 154).

Se por um lado o trabalho do historiador da filosofia não depende da biografia do autor, a


paralelamente, não é possível demonstrar o nexo causal entre a emersão de uma obra e seu contexto, como se

42
Expressão também utilizada por Goldschmidt e outros adeptos do estruturalismo em filosofia.

__________________________________ 77 __________________________________
ela fosse somente fruto de sua época, não se pode negar que é no tempo histórico que se preservam e
selecionam as mais coerentes43.

Nesta perspectiva, a história da filosofia é compreendida em dois sentidos, a saber, história horizontal e
história vertical. A história horizontal significa a sucessão de doutrinas, o movimento das idéias através do
tempo. Nesta, é encontrada, pelo menos, uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem se refere quando o
objetivo é eminente histórico, já a desvantagem se estabelece se o interesse for filosófico, pois a análise não se
fixa sobre os objetos do historiador da filosofia, as doutrinas. As conseqüências são os resumos e as análises
superficiais das doutrinas. A estrutura não é considerada como algo fundamental. Já a história vertical é a
investigação sobre as doutrinas nelas mesmas, tornando claro a arquitetônica ou a ordem interna. Assim, cada
sistema é uma realidade em si mesmo.

Aqui, abre-se ao historiador da filosofia um novo ponto de vista. As doutrinas são


vistas nela mesmas. Todos os esforços tendem à fixação e ao aprofundamento de
seu sentido nos fins da meditação filosófica. O historiador se fixa em monografias. É
o lugar do que eu chamarei de história vertical da filosofia, história menos
propriamente histórica que a outra, menos preocupada com o movimento coletivo das
idéias, mas filosófica no sentido que ela persegue a significação profunda de tais ou
tais obras postas uma a uma (GUEROULT, 1970, p. 10. Grifos do autor).

Ora, a procura de tal significação filosófica é proposta por mais de uma escola. A conferência de Ottawa
mostra duas, a saber, o méthode des sources e méthode des structures.

3 A LEGITIMIDADE DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA

O questionamento acerca da legitimidade da história da filosofia é, segundo Gueroult (2000, p. 159),


reapresentado sobre os mesmos argumentos. Primeiramente, a constatação de um fato: sua existência.
Legítima ou não, a existência da história da filosofia é incontestável. Assim, existem dois âmbitos, a saber, o
quid fact e o quid juris. A investigação que se segue é sobre a legitimidade e possibilidade de tal, ao passo que
sua existência não parece problemática.

O problema kantiano das condições de possibilidade da metafísica é o mesmo que conduz a questão
sobre a legitimidade da mesma. Gueroult se interroga, então, sobre a distinção entre ciência e filosofia. Uma
primeira singularidade da filosofia em relação à ciência é ser perene: “Supõe-se, assim, que estas filosofias
conservem, seja qual for sua época, certa validade para a reflexão filosófica” (GUEROULT, 2000, p. 160).

Não se trata de satisfazer a uma vã curiosidade erudita, nem a uma preocupação


psicológica, sociológica, mas sim, de assegurar o melhor contato efetivo entre o
pensamento de outrora, com o propósito de robustecer e estimular a reflexão
filosófica atual (GUEROULT, 2000, p. 161).

Ao debruçar sobre outras possibilidades de diferenciação entre filosofia e ciência, Gueroult, identifica
dois aspectos: “A ciência só é de ontem pelos erros, hoje denunciados como tais, que fazem dela uma não-
ciência” (p. 161). Pode-se, a partir deste enunciado afirmar que a ciência e a história da ciência não têm os
mesmo objetos de investigação (GUEROULT, 2000, 161). Outra diferenciação consiste na entronização na
filosofia. Enquanto que a história da ciência não é uma condição necessária para a realização de uma atividade
científica, na filosofia, o conhecimento de sua história é uma condição necessária: “Além disso, diversamente do
que ocorre nas ciências, a história da filosofia é, de fato, o principal instrumento de iniciação à filosofia e, para a
filosofia, permanente inspiração” (GUEROULT, 2000, p. 162). O fato da história da filosofia ser uma condição

43
Isso é, conforme mostrou Thomas Kuhn em A estrutura das revoluções científicas, parcialmente verdadeiro, pois a
aceitação de uma obra, de uma teoria ou sistema não se deve necessariamente à sua coerência interna, mas à noção de
paradigma e de ciência normal aí subjacente.

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necessária para que qualquer pessoa possa se inserir nela, não segue que seja uma condição suficiente. Aqui
reside o entrave entre história da filosofia e filosofar. Em concordância com Gueroult, pode-se dizer que a
história da filosofia é uma condição necessária para qualquer pessoa que queira se adentrar na filosofia, mas
indo além deste pensador, sabe-se que a história da filosofia é uma condição para qualquer pessoa que se
pretenda filósofo, sem os preconceitos e receios que este termo possa trazer.

Na atividade científica, uma teoria é considerada do passado por ser ultrapassada por um presente, já
na filosofia, uma corrente ou pensador do presente não é mais verdadeiro que um do passado,
necessariamente. Não existe filosofia mais verdadeira que outra. Existe filosofia mais coerente que outra,
quando se analisa a ordem das razões internamente no sistema. Nenhuma filosofia, então, é verdadeira. É sim,
coerente, somente. Os sistemas filosóficos não são uns mais verdadeiros que outros, eles são considerados
mais ou menos coerentes segundo a ordem interna das razões ou a arquitetônica (GUEROULT, 2007, p. 244).
Nessa perspectiva, não se pode dizer que uma filosofia pode provar sua verdade ou refutar definitivamente
qualquer outra (GUEROULT, 2000, 162).

É necessário, a partir do problema da possibilidade da história da filosofia, pensar a possibilidade dos


objetos dessa disciplina, ou seja, a possibilidade das filosofias como “objetos permanentes de uma história
possível” (GUEROULT, 2000, p. 162).

A história da filosofia é presença de um passado vivo. Como é fato que existem várias filosofias, pode-
se afirmar que, segundo perspectiva de Gueroult, elas são semelhantemente válidas e tão heterogêneas a
ponto de excluírem entre si qualquer hierarquia ou síntese (GUEROULT, 2000, p. 168) como pretendia o
ecletismo dos séc. XVIII e XIX. Não se pode negar que o método das estruturas de Gueroult, mais do que
problemas de cunho nacionalista no Brasil, pretende ser uma alternativa viável ao ecletismo, à hermenêutica e
às análises de cunho tanto sociológico, como histórico, ou mesmo, psicologizante. Enfim, cada sistema
filosófico instaura, segundo Gueroult (2000, p. 170), uma realidade completa e original em quase sua totalidade
que não pode ser analisada segundo o tempo histórico, mas somente segundo a lógica interna, dito de outra
maneira, como cada filosofia se apresenta como um sistema fechado, só pode ser analisada segundo sua
arquitetônica.

Se foi dito que falar de verdade na história da filosofia não corresponde à proposta de Gueroult e que
ele fala de sistema coerente, pode-se indagar se não há uma noção de verdade no método estruturalista. A
resposta pode ser sintetizada da seguinte maneira: se a análise capta os vários sistemas ao longo da história e
estes são por vezes contraditórios e impossíveis de serem sintetizados em uma filosofia como pretendeu o
ecletismo, então não há verdade, mas sistemas mais coerentes e menos coerentes. Entretanto, se a análise se
volta ao sistema fechado em sua arquitetônica, Gueroult (2000, p. 170) utilizada a expressão veritas in re. Sua
verdade se limita à estruturação interna. Isso faz com que a filosofia não seja, nem ciência, nem arte. Nem
ciência, pois para esta o passado é o lugar da não-verdade e nem arte, pois mesmo que esta se assemelhe à
filosofia pela veritas in re, a filosofia pretende ser uma teoria do real. A filosofia tem sua história (sistemas
filosóficos) sempre viva e atual e seu valor não vem de fora, mas em sua estrutura interna (GUEROULT, 2000,
p. 170). Por outro lado, visa, outrossim, a um discurso que explique o real. Este não deixa de ser um entrave,
um sistema que se organiza e que é fechado em si e que pretenda ser uma explicação real. Isso leva à
afirmação de que a dianoemática, compreendida como a ciência que trata das condições de possibilidade das
obras filosóficas, à medida que estas possuem um valor filosófico indestrutível (dianoema, doutrina), constituir-
se-á como uma problemática do real (GUEROULT, 2000, p. 171). É este conceito, a saber, a dianoemática que
faz com que a filosofia se aproxime da ciência e da arte e não se confunda, nem com a ciência, nem com a
arte.

4 O TEXTO FILOSÓFICO E A ABORDAGEM ESTRUTURAL

A arte de ler e interpretar textos é conhecida como hermenêutica, sejam eles sagrados ou profanos.
Saliente-se que esta não se constitui em uma atividade espontânea ou mesmo inocente. Deve-se, como
hermeneuta, desconfiar do texto, pois o sentido do texto não está sempre latente, já que pode haver a
precipitação do leitor.

__________________________________ 79 __________________________________
Ao tentar captar o sentido de um texto filosófico, ou se pretende remontar à intenção do autor, ao
contexto de produção e difusão da obra, ou à estrutura da obra. Assim, há um viés psicológico e historicista e
um viés positivista ou formalista onde se privilegia o texto em sua positividade e na forma que se encontra e
que se organiza (DOMINGUES, 1995, p. 139). Distinguem-se, pelo menos, três linhas de interpretação. A
primeira é a hermenêutica romântica que remonta a Schleiermacher e Dilthey. A segunda se refere à
abordagem marxista e à hermenêutica pós-romântica de Gadamer. A terceira analisa o texto em sua
positividade seja pelo método histórico-filológico ou na análise das estruturas. É nesta ultima vertente que se
insere Martial Gueroult.

A partir destas linhas de interpretação, Ivan Domingues (1995) identifica o que ela chama de tentações:

A) A tentação psicologista: pretende desvelar sentido do texto a partir da intenção do autor.


Representante: Benedetto Croce.

B) A tentação historicista: pretende derivar o sentido do texto a partir do contexto sócio-cultural onde foi
produzido. Representante: Lucien Goldmann.

C) Tentação relativista: O sentido do texto se encontra atrelado à recepção do mesmo pelo público.
Representante: Gadamer (propõe como operador hermenêutico a categoria de “história efetual” e
“história atuante”).

D) A tentação subjetivista: o sentido do texto se encontra no olhar do intérprete, que o restitui e o


reatualiza. Esta postura desconsidera a intenção do autor, contexto de produção, difusão da obra e o
texto enquanto tal. É a tentação do “achismo”.

E) A tentação positivista: o sentido do texto se encontra no texto em sua positividade, independente da


intenção do autor, do contexto de produção ou de recepção, ou mesmo do olhar do intérprete.
Representante: Gueroult e Goldschmidt.

Este último que tem sido objeto da investigação aqui, corre o risco de enclausurar-se dentro de si
mesmo, e por conseguinte romper toda a comunicação da obra com o autor, com o contexto e o público de
seus leitores.

Cabe lembrar que não existe em filosofia uma “escola estruturalista” como há na antropologia ou na
psicanálise. Todavia, pode-se afirmar que se encontram autores mais ou menos dispersos que se aproximam
do método estrutural, pois já antes da eclosão da moda estruturalista na França na década de 60 do séc. XX,
percebem os trabalhos de Sorriau, Gueroult e Goldschimidt. A obra de Soriau, por exemplo, data da década de
30 do século passado. A obra magna de Gueroult sobre Descartes onde ele já aplicou o método estruturalista é
do início da década de 50. Goldschmidt chega a citar nomes menos conhecidos que já nas décadas de 20 e 30
do séc. XX, na Alemanha e na Inglaterra já empregavam a idéia de estrutura ao texto filosófico. São eles K.
Gross, Leisang e Collingwood (GOLDSCHIMIDT, 1982, p. 121).

Semelhantemente a Gueroult, Goldschmidt entende o termo estrutura como um “sistema de relações”.


Pode-se analogamente usar a terminologia de Gueroult, a saber, “arquitetônica”.

5 CONCLUSÃO OU UMA CRÍTICA AO MÉTODO ESTRUTURAL

Uma interrogação permanece e sua emersão já é um sinal positivo: a universidade quer formar filósofos
ou historiadores da filosofia? Sabe-se que Gueroult e Goldschmidt trouxeram ao Brasil e, mais especificamente,
à USP, o método estruturalista francês. Entretanto, Gonçalo Palácios (2004, p. 122) chama à atenção para uma
outra questão que deve ser, necessariamente, posta. Se, por um lado, o estruturalismo, como método de
ensino foi eficaz na formação de historiadores de filosofia, por outro lado, existiria um método sobre o qual se
podem formar filósofos? E, ainda, existiria uma metodologia capaz de tal empreita? O estruturalismo parece

__________________________________ 80 __________________________________
eficaz no que tange à formação de historiadores de filosofia, entretanto, nota Palácios (2004, p. 122), o quê
fazer com aqueles estudantes que possuem outras perspectivas ou impulsos, como uma aprendizagem crítica?
A universidade e, especificamente, os professores de graduação em filosofia, colaboram para concretização
destes impulsos ou para a anulação dos mesmos?

Não há, como à primeira vista se poderia pensar, uma contradição necessária entre o historiador de
filosofia e o filósofo, como se o estudante e futuro professor com pretensões outras que a história da filosofia,
negasse a história do pensamento ocidental, pois discutir filosoficamente problemas e avaliar as teses já
apresentadas pela tradição e propor outras, se for o caso, é fazer filosofia. Por isso, a história da filosofia não se
refere a um passado estagnado, é antes um passado presente, um passado atual no qual é sempre possível
recorrer para auxílio de questões contemporâneas, uma vez que “a história da filosofia é presença do passado,
mas não como passado morto: como passado vivo” (GUEROULT, 2000, p. 168). Não é sem razão que
Agostinho, no Livro XI das Confissões, ao tratar do problema do tempo, afirma que o tempo é sempre o
presente: presente das coisas passadas, presente das coisas presentes e presente das coisas futuras. Então, o
tempo é compreendido como uma distensão da alma.

Como mudar uma realidade não muito propícia ao ensino desta disciplina no ensino médio? A estrutura
das grades curriculares dos cursos de filosofia é, demasiadamente, historiográfica. Palácios (2004, p. 127)
propõe uma outra estrutura que parece aglutinar pensadores de diferentes épocas. Isto poderia ser um estudo
temático tendo como referência filósofos de escolas distintas. Assim, seria possível um curso de filosofia da
linguagem no qual se pudessem estudar, por exemplo, o Crátilo de Platão, o Ensaio sobre a origem das línguas
de Rousseau, e as Investigações filosóficas de Wittgenstein. Deste modo, a base da elaboração e
desenvolvimento do curso seriam os textos filosóficos. Isso permitiria tanto uma ênfase no pensamento
contemporâneo como nos clássicos da filosofia ocidental. Ainda, seria menos dogmático do que estudar
somente um pensador ou uma obra, pois o aluno teria mais condições de, em uma mesma temática, avaliar
teses diferentes e formular com maior consistência as suas, o que não o ocorreria se o curso fosse,
exclusivamente, por exemplo, sobre a compreensão de linguagem em Wittgenstein. Como um professor
licenciado em filosofia que estudou em sua graduação, por exemplo, na disciplina filosofia da linguagem,
somente Wittgenstein ou a tradição analítica, vai discutir com seus alunos a linguagem como problema
filosófico? A limitação é grande. E o quase inevitável é a reprodução de sua formação universitária no ensino
médio. O efeito seria, por um lado, a animosidade em ralação à disciplina por parte dos discentes, por ser
demasiadamente historiográfica, e por outro lado, a impossibilidade da disciplina colaborar com as pulsões
críticas que caracterizam a juventude. Ora, se isso acontecer, o retorno da filosofia ao ensino médio será assaz
desastroso e, neste âmbito, a filosofia já nasce morta.

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__________________________________ 82 __________________________________
A GEOGRAFIA HUMANISTA NO III MILÊNIO: UMA NOVA PERSPECTIVA

Marcos Antonio Correia44

Introdução

Este artigo enfocando a geografia no III milênio, assim como os saberes de modo geral, procura mostrar
que o subjetivismo e o intersubjetivismo podem fazer parte na elaboração e disseminação dos conhecimentos.
Pois o momento de transição dos valores éticos, morais, e estético, principalmente este último quando se fala
de conhecimento científico, levam a novas reflexões e partem de várias áreas de interesse, que por sua vez na
geografia, podem ser evidenciadas através dos questionamentos e reflexões da geografia humanista cultural.
Esta se reveste de novas aboradagem e sentidos em seus estudos, os quais prometem amplos e necessários
avanços epistemológico, filosóficos e metodológicos, a servirem de aportes científicos a mesma.

Sendo assim o artigo aponta para as novas perspectivas oriundas destas transformações que ocorrem no
presente momento, em que o sentimento e a emoção, além do razão, também entram no circuito do saber, pois
o penso para existir, pode ser completado com o sinto e existo para também pensar. Sendo esta visão mais
ampla que a primeira, que acaba, de certa foram sendo reducionista, e exclusivista. O homem não é apenas
uma máquina, possuidor de alma racional, mas alguém que sente e tem imagens diferenciadas dos lugares
onde vive ou tem contato.

Desta maneira a ciência adquire caráter mais democrático e mais politizado, sendo distribuída e
organizada por mais pessoas que poderão entrar em contato com este conhecimento que esteve e ainda está
concentrado nas mãos de parte da humanidade. Seguindo esta lógica, pode-se dizer que, precipuamente
falando, é no ambiente escolar, e neste caso destacando a ciência geográfica, é que o conhecimento pode e
deve ser encarado e disseminado dentro dessa nova visão, ou seja, usando toda a potencialidade do ser
humano para a busca de suas ambições e realizações.

A Geografia Humanista: Novas Perspectivas

Com o artigo ora realizado, -- A geografia humanista no III milênio -- não se pretende chegar ao
radicalismo de se desvencilhar do método ou de algum método, mas pretende-se refletir sobre a possibilidade
de unir o racional e o emocional, pois tanto a natureza intelectual como criativa imaginária, através da
subjetividade, principalmente esta última podem dar novo ânimo à produção do conhecimento. Sendo assim, na
tentativa de situar estas mudanças é importante assinalar que, a institucionalização da razão, efetivou-se no
último quartel do século XVII, segundo Gomes (1996, p.25-26), a qual adquiri status de ciência, seguindo
princípios e modelos galileanos, evocando o racional e a generalização na organização e elaboração dos
saberes, ao mundo humano, delineando este caminho como o único para se chegar e conquistar o modelo
moderno do qual sai, na época, o equilíbrio a ordem e o progresso, assim como mesmo sufocadas, ocorrem
oposição á esta superestrutura do conhecimento, enfatizando posições anarquistas, e elaborações místicas,
caracterizando-se como “Contracorrentes”, contestando o poder da razão o espírito científico e a estrutura dos
saberes científica ora institucionalizados.

Segundo Bailly (1995, p.155) tanto na geografia, como em outras áreas do conhecimento, tudo parece
progredir através da revolução que na realidade não se caracteriza como tal, mas pode ser analisada como
adaptação a um novo modelo. O humanismo na geografia segue este mesmo caminho evolucionista, nem
revolução, nem mudança/desordem, porém, antes de tudo uma alteração nos estados de espírito, ampliação
dos pontos de vista e dos métodos. E, é lógico, cada mudança gera a raiva/ira de tal ou qual autor, garantia do
bom caminho que deveria seguir sua geografia. Nesta mesma obra, Pocock diz que a abordagem humanista
em geografia não se contenta em estudar o homem que raciocina, mas também aquele que experimenta os
sentimentos, que reflete, que cria, pois toda a divisão rígida entre o mundo objetivo, exterior e o mundo

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Mestrando em Geografia – UFPR, Professor da FAFIUV; e-mail: korreya@uol.com.br

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subjetivo, interior é rejeitada já que o mundo encontra sua coerência nos conceitos estruturadores e ele
constitui uma extensão de nossa consciência; o sujeito estando envolvido nos processos de conhecimento, não
podendo haver separação entre fatos e valores. Portanto, descrever e compreender, insistindo sobre a empatia
com os homens, tais são os objetivos principais da geografia humanista.

Ainda segundo Bailly (1995, p.156-7), quando evidencia as palavras de Chistinger, diz que para cada
indivíduo, o universo se compõe, dele mesmo de um domínio que lhe é inicialmente estranho, mas que ele
procura dominar fisicamente e intelectualmente baseado nos conceitos de Ser/estar e conhecer-se os quais
estão indissoluvelmente ligados. Já Fremont destaca o vivido e toda a carga geográfica e conceitual que
permeia esta concepção. Este conceito sintetiza as relações muito complexas dos homens e seu espaço de
vida, materiais, mas também ecológicos e psicológicos. Este integra o próprio olhar dos geógrafos sobre as
sociedades e as regiões que eles estudam, o qual (o olhar/ o geógrafo) nunca é verdadeiramente neutro. O
espaço vivido é também o espaço dos geógrafos. Por outro lado à geografia pode aparecer assim como um
jogo complexo de espelhos onde os homens enviam sua própria imagem e a imagem dos outros, do espaço
onde eles vivem, para eles mesmos e inversamente, mais também aos geógrafos que os olham
reciprocamente.

O novo milênio, iniciado no século XXI apresenta tendência à transição, reestruturação e evidente
metamorfose no projeto arquitetado pela sociedade, desde os séculos XV e XVI até o presente momento.
Levando o homem á repensar toda a sua produção nos diversos saberes que permeiam a sua existência. Sobre
estes novos tempos, ditos por (Gomes, l996, p.19-21) como pós-modernos, iniciam-se nos anos setenta do
século XX, uma nova preocupação, preferencialmente de ordem estética, desencadeando outras
manifestações. Esta preocupação na visão do autor, não deixa de lado o monumentalismo existente na época,
suas respectivas técnicas e materiais consagrados pelo modernismo. Já o pós-modernismo afasta-se do
universalismo e das generalizações que embasaram e embasam o modernismo, pois estabelece outras formas
de legitimidade diferenciando-se da racionalidade a qual expurgou o sentimento, a intuição ilativa; a indefinição,
a polimorfologia, a polissemia, estes caminhos, que fogem das unificações generalizadas e evitam a razão
totalizante.

Estas novas concepções estéticas e artísticas inauguram visões diferenciadas de espaço e tempo,
tornando-se relativas e mutáveis constituindo-se em renovadas “Unidades Fenomenológicas”, sendo que nas
manifestações artísticas são mais perceptíveis. Já nos saberes científicos, isto não ocorre com tanta
visibilidade, ao mesmo tempo em que avança de forma mais lenta, no entanto não menos efetiva. Na ciência a
iniciativa mais evidente é a teoria anarquista de Feyerabend, dizendo que os instrumentos metodológicos
convencionais são inconsistentes e a hegemonia da razão e o mito equiparam-se na sua condição
epistemológica, valorizando o particular e o único advindo do sujeito e seu mundo. Como já se reportou Paulo
Cesar da Costa Gomes (1996 p.21-23).

No que concerne ao pensamento de Fritjof Capra (1999, p.35-37), a razão e a intuição são maneiras
indissociáveis no funcionamento do cérebro humano. A primeira é concentrada, analítica e linear. Já da
intuição, parte da realidade, do vivido, do não pensado, privilegiando a percepção consciente. Isto provocou
cisão entre matéria e espírito, levando a um pensamento mecanicista reduzindo e separando os elementos
assim como seccionando a natureza. A mesma estende-se aos organismos vivos, caracterizados como
máquinas formadas por peças disjuntas. Isto ainda ocorre na estrutura básica da maior parte das ciências,
exercendo grande influência nas nossas vidas, provocando, também separação das disciplinas acadêmicas,
assim como visões fragmentadas de políticas de governos e entidades responsáveis pelo meio ambiente.

Como reflete Capra (1982, p.44), a maior parte dos ramos científicos seguem os princípios da física
clássica, aceitando o reducionismo e o mecanicismo da mesma. Mesmo os economistas, psicólogos e
sociólogos acabam aderindo, quase naturalmente à física newtoniana, quando na tentativa de tornar científicas
suas respectivas teorias. Mas no último século a visão mecanicista da física passa por grandes modificações e
sustenta estrutura orgânica e ecológica aproximando-se de um holismo e certo misticismo. O universo é visto
como um todo harmonioso e indissociável, promovendo ligações dinâmicas, complexas e ligando todos os
objetos, elementos e fenômenos que se interconectam ao ser humano e sua consciência essencial.

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Na realidade retomam-se alguns conceitos já idealizados por alguns pensadores, como diz Fritjof Capra
(1999, p.53-54), que antigamente conceituava-se a Terra como mãe nutriente o qual sofre alterações nos
relatos de Bacon desintegrando-se por completo na revolução científica, a qual optou-se pela concepção do
mundo como máquina, em detrimento de idéias orgânicas. Este enfoque foi de grande importância para o
assentamento da sociedade moderna ocidental que foi arquitetada por dois personagens: Descartes e Newton.
O primeiro com sua conhecida premissa “Gogito, Ergo Sum”, “Penso Logo Existo”, deduz que a essência
humana está no pensamento e que o conhecimento correto é adquirido pela intuição e dedução,
caracterizando-se em instrumentos imprescindíveis à edificação do pensamento e conhecimento humano.

Seguindo o pensamento do mesmo autor (1999, p.56-58), o universo material para Descartes constituía-
se, simplesmente em uma máquina, desprovida de espiritualidade ou vida, funcionando através de leis
mecânicas explicadas por intermédio dos movimentos de suas partes. Com este pensamento mecanicista, ele
tenta constituir parâmetros a uma completa ciência natural, estendendo esta concepção dos organismos vivos.
Aos quais plantas e animais são considerados máquinas e o ser humano, possuidor de alma racional, estava
ligado ao corpo pela glândula pineal e tido como animal-máquina. Newton praticamente continua o pensamento
de Descartes, concretizando seu projeto, matematizando a concepção mecanicista da natureza, sintetizando,
inclusive, além de Descartes, as obras de Nicolau Copérnico, Kepler; Bacon e Galileu.

Diante do exposto torna-se visível a necessidade de uma reestruturação dos ideais humanos, partindo-se
de uma reeducação de seus saberes e uma revisão de suas capacidades e possibilidades que atendam estas
necessidades, que não são tão novas assim, mas ficam subjugadas e proteladas, como já ditas, por parte da
sociedade, que talvez não levou em conta o todo na execução de seu projeto de vida desde a modernidade.
Neste sentido a geografia humanista apresenta-se com alternativa palpável a tal intento, realçando o
sentimento ao pensamento na realização do conhecimento.

O Subjetivismo e o Intersubjetivismo na Geografia

Esta subsecção do artigo sugere, que a resistência à subjetividade esta mais presente quando se trata
da elaboração do conhecimento científico de modo geral e da geografia em particular, por outro lado a
subjetividade acrescentada da intersubjetividade tornam-se imprescindíveis aos aspectos pedagógicos e
didáticos do conhecimento geográficos. Quanto ao primeiro sentido, Bailly (1990, p.159), destacando as
palavras de Pouliot diz que, com efeito, um pesquisador não pode querer chegar ao nível do discurso científico
se é colocado diante da paisagem armado somente de sua afetividade e de suas emoções. A partir de então,
pode produzir unicamente um discurso subjetivo, portanto cientificamente inaceitável, sobre a paisagem
analisada, mas mesmo isto, pode ser repensado diante das manifestações de mudanças do mundo
contemporâneo.

Mas as palavras de Bailly (1990, p.159), já sinalizam para uma visão mais amena e consonante com os
anseios da sociedade atual em relação a este aspecto, principalmente no tocante ao âmbito social quando diz
que, toda a construção do real é parcialmente lógica e ao mesmo tempo parcialmente ilógica, pois é
inconsciente; este paradoxo só é levado em conta apenas pelas teorias probabilistas; as outras só pegam do
fato social sua projeção no real, superestrutura coerente em aparência. Também é ilusório querer fechar/trancar
o social numa couraça de um sistema determinado se não se aborda a questão dos aspectos não comunicáveis
e não descritíveis da experiência humana.

O autor reafirma que para entender esta dificuldade, remonta-se aos níveis cognitivos de Bouding: fazer,
regular, informar, memorizar, decidir, coordenar, imaginar, finalizar. Parece fácil dar um modelo, nesta
experiência cognitiva ativa, o que se descreve, se comunica, como fazê-lo, regulá-lo, informá-lo, decidi-lo,
coordená-lo, finalizá-lo, é mais delicado abordar o memorizar que é só uma hipótese, sem a qual o sistema
cognitivo não é inteligível/compreensível. Ora, este elemento fundamental, na estrutura da inteligência artificial
não é descritível e, portanto a priori dificilmente compreensível. O mesmo acontece com todos os elementos
invisíveis (e, portanto imprevisíveis) que testemunham a subjetividade da interioridade humana; muitos
sentimentos (bem-estar, por exemplo) não se manifestam pelas ações, nem por raciocínio, eles são, entretanto
imperceptíveis em termos de experiência cognitiva.

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Em relação ao subjetivismo e seu desenrolar intersubjetivo na ciência e outras facetas que não o
objetivismo e o racionalismo, se tem atualmente várias discussões, que buscam introduzir o emocional no
tratamento científico. No caso da geografia, a fenomenologia e a geografia crítica se apresentam com seus
respectivos humanismos, mas de modo particular o método fenomenológico, no que diz respeito ao emocional
e subjetivo, consegue subsidiar a ciência geográfica no que tange a este aspecto, vinculado ao espaço vivido e
seu cotidiano. Mas ainda muitos questionamentos, devem ser feitos nesse sentido, pois a própria
fenomenologia não é muito divulgada e aceita nos meios acadêmicos no geral e na geografia ela está para ser
elaborada. Muitas reflexões ainda se fazem necessárias, desde seu posicionamento epistêmico-filosófico até
sua composição teórico-metodológica. Portanto muitos estudos devem ser realizados para a participação
efetiva da geografia no novo projeto da sociedade atual.

O Subjetivismo no Ensino de Geografia

Olhando pelo lado pedagógico e didático da geografia humanista cultural fica mais fácil de entender e até
de justificar a subjetividade em relação ao conhecimento. Já pelo lado científico as críticas são contundentes,
mas de certa forma precipitadas, pois o tema deve ser debatido com mais afinco e rigor. Neste caso pode-se
citar as palavras de Kozel (2002, p.228), quando diz que para se perceber a subjetividade das pessoas, tem-se
que remontar as representações mundanas das mesmas. Portanto as representações tornam-se fundamento
das ações, as quais pressupõem conhecimentos e não somente um processo de aprendizagem.

Bailly (1990, p.10), quando se reporta ao subjetivo de onde vem o imaginário e a representação diz que
esta é constantemente descartada por causa de nossa identidade racional cartesiana a qual exalta a
objetividade e o pensamento funcional e desdenha toda a manifestação subjetiva. Por este caminho o autor
tenta aproximar o ensino da geografia à ciência, atitude esta que é compartilhada na elaboração deste artigo.
Isto é observado quando estimula a ligação do imaginário ao conteúdo científico e seu respectivo conteúdo
trabalhado no ensino de geografia. Na seqüência, diz que o conteúdo geográfico sistematizado não é tudo e o
subjetivo e as representações sociais, assim como o imaginário deve estar em estreita afinidade com o saber
científico.

Embora esta relação ensino da disciplina geográfica escolar, através das representações e a produção
científica que embasa a mesma estejam em consonância com este artigo, é importante notar que além das
representações proporcionadas pelo conhecimento geográfico, tem-se a intenção de destacar o subjetivo e a
percepção do espaço vivido, em outras palavras o cotidiano do indivíduo e sua forma de apreensão. Então fica
claro, que a percepção individual de cada pessoa, seguida das interações perceptivas organizadas através de
atividades elaboradas pelos mesmos, e mediadas pelo professor, devem ser o ponto de partida para a prática
educativa, a qual num primeiro momento deve contar com o método fenomenológico, o qual já oferece certo
aporte à geografia, mesmo com algumas ressalvas científicas, mas muito próximo de uma elaboração
metodológica e didático-pedagógica.

Como a fenomenologia discute o percebido, o vivido, através do sentido e


subjetivamente concebido. Pode-se depreender que estes fundamentos – já
identificados por alguns geógrafos humanistas, fenomenológicos e da percepção
podem enriquecer a construção epistemológica e metodológica da geografia,
principalmente no que diz respeito a categorias como lugar, espaço vivido e
paisagem, dinamizando até outros fundamentos da ciência geográfica. (CORREIA,
2006, p. 69).

Bailly (1990, p. 161) relata questionando o que acontece quando o sonho do geógrafo se apaga quando
sob pretextos de cientificidade e de falta de originalidade ambiental, nós perdemos o gosto do imaginário
coletivo que, longe de nos arrastar em um caminho incerto, nos afasta da existência mesmo de nossos vividos.
Existem imagens de lugares que tocam os nossos seres, nossas memórias coletivas, além das paisagens e das
práticas ditas objetivas; e sem estas imagens, como nós poderíamos compreender estas mesmas práticas?
Assim como cada homem possui uma imagem de si mesmo, longe da anatomia, vive em nós a imagem dos
lugares, diferentes daquelas paisagens cartográficas, sistemáticas ou caricaturas. O humanismo na geografia é

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sensível às emoções, à familiaridade, para colocar em evidencia esses componentes invisíveis de nossas
imagens.

Considerações Finais

As reflexões aqui expostas destacam dois temas instigantes das ciências. O primeiro trata da inserção do
subjetivismo como algo a ser considerado na construção dos saberes na atualidade e outro trata da
disseminação dos conhecimentos e neste artigo particularmente no conhecimento geográfico. Estas
considerações sinalizam para o momento de transição nos caminhos da sociedade, pois outros interesses que
talvez estavam latentes dede o Iluminismo estão se manifestando de maneira mais evidentes, ou seja, a
emoção, a imaginação, os sonhos e o estético, através da arte, quase que exigem sua participação nas
elaborações humanas. Por isso, o individual, o uno, o particular e o relativo se fazem presentes e necessários
nesta nova empreitado do ser humano. O que na geografia também não poderia ser diferente, mesmo porque
esta está inserida naquela e seguramente este modelo fenomenológico perceptivo e representacional se
encaixam neste apelo sócio-cultural.

Também é de fundamental importância, além de mostrar que a representação provinda do social é a


conseqüência do movimento processual do conhecimento, ele resgata a percepção individual como apreensão
precípua e inata do indivíduo na busca inexorável pelo conhecimento, fazendo deste movimento o ponto de
partida do mesmo. Em contrapartida, apesar das dificuldades epistemológicas para se tratar da subjetividade e
da intersubjetividade na questão da estrutura do saber geográfico, acredita-se lograr êxito quanto ao tratamento
didático pedagógico do mesmo, observando que no ambiente pedagógico é mais fácil agir autonomamente e
trabalhar os conceitos e categorias científica.

Referências Bibliográficas

BAILLY, Antoine et al. Géographie Régionale et Représentations. Paris: Anthropos, 1995.

BAILLY, Antoine; SCARIATI, R. L’ Humanisme en Géographie. Paris: Anthropos, 1990.

CAPRA, Frijof. O Ponto de Mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. (Trad.) Álvaro Cabral.
São Paulo: Cultrix. 1999.

CORREIA, Marcos Antonio. Ponderações Reflexivas Sobre a contribuição da Fenomenologia à Geografia


Cultural. RA' EGA (UFPR). Curitiba, v.11, p.67-75, 2006. Editora UFPR.

GOMES, Paulo Cesar da Costa. Geografia e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand, 1996.

KOZEL, S. As representações no geográfico. In: MENDNÇA, F.; KOZEL, S. (Orgs.). Elementos de


epistemologia da geografia contemporânea. Curitiba: Contexto, 2002.

__________________________________ 87 __________________________________
O SURGIMENTO DA INTEGRAL

Gilson Tumelero45

Marieli Musial46

1 Introdução

O conceito de integral é mais antigo que o de derivada. Enquanto este surgiu no século XVII, à idéia
de integral, como área de uma figura plana ou volume de um sólido, surge e alcança um razoável
desenvolvimento com Arquimedes (285-212a.C.) na antiguidade. Naquela época, entretanto, a matemática era
muito geométrica, não havia simbologia desenvolvida, portanto, faltavam recursos para o natural desabrochar
de um “calculo integral” sistematizado.

Devido a isto, os problemas que se punham eram os de calcular áreas, volumes e comprimentos de
arcos. Por exemplo: suponhamos dada uma função f: [a; b] IR, limitada no intervalo [a; b]. Admitamos, por
simplicidade, que f seja não negativa, isto é, f ( x) 0, x IR . Consideremos o conjunto
S {( x, y ) IR ²; a x b,0 y f ( x)} , formadas pelos pontos compreendidos entre os eixos das
abscissas, o gráfico de f e as retas verticais x = a e x = b. Qual a área deste conjunto? Em primeiro lugar, é
necessário dizer o que significa a “área” de S, e em seguida, tentar calculá-la.

A área de um subconjunto limitado S no plano IR² deve ser um número real. Como defini-lo?
Podemos admitir que sabemos calcular a áreas de polígonos e tomar como aproximações por falta deste
número as áreas dos polígonos contidos em S. Isto equivale a pôr: a área de S é o supremo das áreas dos
polígonos contido em S. Poderíamos também considerar as áreas dos polígonos que contém S como
aproximações por excesso para a área de S. Neste caso, definiríamos a área de S como o ínfimo das áreas dos
polígonos que contém S. Porém, estes dois métodos de definir a área de S nem sempre conduzem a um
mesmo resultado.

Ao considerar a área de um conjunto S podemos, por simplicidade, restringir nossa atenção a


polígonos de um tipo especial, que chamaremos de polígonos retangulares, os quais são reuniões de
retângulos justapostos cujos lados são paralelos aos eixos x = 0 e y = 0.

Mais particularmente ainda, se o conjunto S é determinado por uma função não negativa f: [a; b] IR,
de modo que S {( x, y ) IR ²; a x b,0 y f ( x)} , basta considerar os polígonos retangulares
formados por retângulos cujas bases inferiores estão sobre os eixos das abscissas e cujas bases superiores
tocam o gráfico da função conforme a figura 1.

45
Professor da FAFIUV, mestre em Matemática pela UEM
46
Professora da FAFIUV, mestre em Matemática pela UEM

__________________________________ 88 __________________________________
Figura 1:

A área de S, por falta, será definida como integral inferior (figura 1) e a área por excesso, como
integral superior de f.

A teoria da integral desenvolveu-se, segundo as idéias de Newton e Leibniz como o inverso da


derivada. Entretanto, Cauchy retornou a concepção de Leibniz com o estudo da integral na classe das funções
contínuas em um intervalo [a; b]. De posse da noção de limite definiu integral para uma função contínua em [a;
b] representada por:

f ( x)dx .

Posteriormente o conceito de integral de Cauchy foi estendido à classe das funções quase contínuas
por Riemann. O passo decisivo na teoria de integral foi dado em 1901 por Lebesgue.

2 Integral De Newton-Leibniz

Considere uma função contínua y = f(x), dado em um intervalo [a; b], salvo seu sinal neste intervalo
(figura 2). A figura, limitada pelo gráfico desta função no intervalo [a; b] e as linhas retas x = a e x = b, é
chamado de trapezóide curvilíneo. Para calcular a área de trapezóides curvilíneos a seguinte propriedade é
usada: Se f é uma função contínua e não-negativa no intervalo [a; b], e F sua primitiva neste intervalo, então a
área A que corresponde à área do trapezóide curvilíneo, é igual a um incremento da primitiva no intervalo [a; b],
isto é A = F(b) - F(a).

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Figura 2

Considere uma função S(x), em um intervalo [a; b] dado. Se a x b , então S(x) é a área da parte
do trapezóide curvilíneo, que é colocado na esquerda de uma linha vertical reta, passando pelo ponto de
coordenadas (x; 0). Note que, se x = a, então S(a) = 0 e se x = b, então S(b) = A (A é a área do trapezóide
curvilíneo). Ou seja,

S (x x) S ( x) S ( x)
lim lim f ( x)
x 0 x x 0 x

S ' ( x) f ( x)

isto é, S(x) é uma primitiva para f(x). De acordo com a propriedade básica das primitivas, x [a; b] tem-se
S(x) = F(x) + C onde C é alguma constante, F é uma das primitivas para uma função f.

Para encontrar C, substituímos x = a em F(a) + C = S(a) = 0, donde, C = -F(a) e S(x) = F(x)- F(a).
Porque a área do trapezóide curvilíneo é igual a S(b), substituindo x = b, temos: A = S(b) = F(b) - F(a)

2.1 Integral Definida

Considere uma outra maneira calcular a área de um trapezóide curvilíneo. Divida um intervalo [a; b]
em n segmentos de comprimento iguais por pontos:

(b a)
x0 a x1 x2 xn 1 xn b e pondo x x k x k 1 onde k = 1,2,...,n-1,n. Cada um dos
n
intervalos [ x k 1 ; x k ] será a base do retângulo cuja altura é f ( x k 1 ) . A área deste retângulo é igual a:

b a
f ( xk 1 ) x f ( xk 1 )
n

e as somas das áreas retangulares são:

__________________________________ 90 __________________________________
b a
Sn [ f ( x0 ) f ( x1 ) f ( x k 1 )] .
n

Na seguinte figura 1, podemos observar os retângulos os quais tem como base as partições acima
citadas. O primeiro resulta na área inferior e o segundo na área superior:

Em vista da continuidade de uma função f(x) uma união dos retângulos inscritos ou que inscrevem o
trapezóide, construídos em grande número, isto é, em pequeno x , coincide com o nosso trapezóide
curvilíneo, então S n A para uma quantidade grande de n. Isso significa que S n A quando n . Este
a
limite é chamado integral de uma função f(x) de a até b ou uma integral definida f ( x)dx , isto é,
b
a
Sn f ( x)dx quando n . Os números a e b são chamados limites da integração e f(x)dx o
b
integrando. Assim se f (x) 0 em um intervalo [a; b] então uma área A correspondente ao trapezóide
a
curvilíneo é representado pela fórmula: A f ( x)dx .
b

2.2 Fórmula de Newton-Leibniz

Comparando as duas fórmulas de área de um trapezóide curvilíneo chegamos a conclusão: se F(x) é


uma primitiva para a função f(x) em um intervalo [a; b], então

a
f ( x)dx F (b) F (a ) .
b

Esta é a famosa fórmula de Newton-Leibniz, válida para toda função f(x), que for contínua num intervalo [a; b].

3 Integral De Cauchy

No século XVIII a derivada era interpretada mais como um operador algébrico que transformava umas
em outras expressões analíticas que representavam as funções. De maneira análoga, a integral definida,
embora sabidamente a área sob o gráfico de uma função era interpretada como a diferença de valores de uma
mesma primitiva da função. Assim, calcular uma integral definida significava essencialmente achar uma
primitiva, ou seja, transformar algebricamente a expressão analítica de uma função em outra. Como se vê, a
ênfase era posta na idéia de função dada por uma expressão analítica. Mas esses conceitos do século XVIII -
não só de derivada e integral, como os de funções e continuidade - eram insuficientes para lidar com os novos
problemas que surgiam no final do século.

Cauchy foi o primeiro a introduzir a integral analiticamente. Em seu “Ressumée” de 1823 ele define
integral como o limite de somas do tipo:

n
f ( xi 1 )( xi xi 1 ) .
i 1

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Ou seja, quebrou o domínio da integração em subintervalos de tamanho arbitrário por uma divisória
( x 0 , x1 , , x n ) e calculou a área como o limite de f ( x0 )( x1 x0 ) f ( x1 )( x 2 x1 ) f ( x n )( x n x n 1 ) ,
então quando n aumenta, esta soma se aproxima da área do trapezóide definido sob o gráfico de f,
estabelecendo assim sua existência para toda a função contínua. E com essa definição demonstra que toda
função contínua num intervalo limitado é integrável (embora em sua demonstração proceda
desapercebidamente como se a função fosse uniformemente contínua). Disto resulta que toda função f possui
primitiva.

Como se vê, a integral assim definida dispensa com a restrita concepção de que f tenha uma função
analítica. Basta que a função f seja contínua para que exista F tal que F ' ( x) f ( x) ; F é a integral definida de
f num intervalo [a; b].

4 Integral De Riemann

Georg Friedrich Bernhard Riemann (1826-1866) estudou em Göttingen, onde obteve seu doutorado
com uma tese sobre funções de variáveis complexas. Após o que começou a se preparar para a “habilitação”
(que lhe daria direito de dar aulas na universidade como “Privatdozent”), e para isso tinha de apresentar uma
tese. Ele subteu três trabalhos diferentes, um sobre as séries trigonométricas, outro sobre os fundamentos da
geometria e um terceiro em Física-Matemática. A comissão de exame, presidida por Gauss, escolheu ouvi-lo
sobre os fundamentos da geometria. Diz-se que Gauss saiu do exame elogiando o trabalho de Riemann, o que
dá a medida do novo talento, já que Gauss não era muito dado a elogios. Esse trabalho de Riemann, diga-se de
passagem, é aquele que lançava os fundamentos de uma nova disciplina, a Geometria Riemanniana.

Riemann foi aluno de Dirichlet, num curso sobre teoria dos números em Berlin, e por ele nutria grande
admiração. Em 1852 Dirichlet esteve visitando Göttingen, quando novamente dele se aproximou. Desta vez,
engajado que estava na preparação de seu trabalho sobre as séries trigonométricas, teve, nesse assunto, a
influência direta e o estímulo de Dirichlet. Ao que parece, foi esse mesmo ano que Riemann concluiu o referido
trabalho, cuja publicação (por Dedekind), todavia só ocorreu em 1867, após sua morte.

O ponto de partida de Riemann é a questão não resolvida por Dirichlet em 1829: o que significa dizer
que uma função é integrável? Ao contrário de Cauchy, que se restringiu, em suas considerações, a funções que
são contínuas, ou, no máximo, seccionalmente contínuas, Riemann não faz outra hipótese sobre a função a ser
integrada, além da exigência de que suas “somas de Riemann”, convirjam. E estabelece, a partir daí, critérios
para a integrabilidade que caracterizam completamente a classe das funções integráveis.

Para isso, Riemann particionou o intervalo [a; b] num conjunto finito de pontos como já citados
anteriormente. Só que nesse caso, os retângulos formados, não precisavam ter a mesma base, ou seja, a
amplitude do intervalo [ xi 1 ; xi ] , indicada por xi xi xi 1 , podiam ou não ser diferentes. Essas partições
determinam uma decomposição da área S em polígonos retangulares. Isto nos motiva a noção de soma inferior
ou de soma superior associado a esta partição de [a; b]. Esta mesma idéia que vimos na figura 3.

A soma inferior é o supremo dos polígonos contidos em S, ou seja, o maior deles. Denotada por s(f,
P), como sendo

n
s( f , P) mi ( x i xi 1 )
i 0

onde mi inf{ f ( x); xi 1 x xi } .

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E a soma superior é o ínfimo dos polígonos que contém S, o menor deles e é denotada por S(f, P),
como sendo

n
S ( f , P) M i ( xi xi 1 )
i 0

onde M i sup f { f ( x); xi 1 x xi } .

“As duas somas definidas acima, são as chamadas somas de Darboux-Riemann”.

Define assim a integral de Riemann, f uma função definida em [a; b], L um número real e
ci [ xi 1 ; xi ] . Dizemos que:

n
f (ci ) xi
i 1

tende a L, quando max xi 0 e escrevemos

n
lim f (ci ) xi L
max xi 0
i 1

se, para todo 0 , existir um 0 que só dependa de mas não da particular escolha dos ci, tal que:

n
| f (ci ) xi L|
i 1

para toda partição P de [a; b], com max xi . Tal número L, que quando existe é único, denomina-se
a
integral (de Riemann) de f em [a; b] e indica-se por f ( x)dx . Então por definição:
b

a n
f ( x)dx lim f (ci ) xi L.
b max xi 0
i 1

a
Se f ( x)dx existe, então diremos que f é integrável (segundo Riemann) em [a; b]. É comum referir-se a
b
a
f ( x)dx como integral definida de f em [a; b].
b

Mas então, quando uma função é integrável a Riemann? Vejamos dois critérios:

Primeiro Critério: f: [a; b] IR uma função limitada em [a; b]. Então f é integrável se, e somente se, para
qualquer 0 dado, existir uma partição P do intervalo [a; b] tal que:

__________________________________ 93 __________________________________
S(f; P) - s(f; P) < ,

isto é, a diferença entre as somas é mínima.

Segundo Critério: Uma condição necessária e suficiente para que uma função f, definida e limitada num
intervalo [a; b], seja integrável, é que seus pontos de descontinuidades formem um conjunto de intervalos cujo
comprimento é menor que .

As demonstrações dadas por Riemann em seu trabalho contêm várias lacunas; muitas passagens só
podem ser justificadas a luz de resultados sobre continuidades e convergência uniformes, e na época de
Riemann esses conceitos ainda não tinham sido definitivamente identificados e incorporados a matemática.
Aliás, isto é motivo para admirarmos ainda mais as realizações de Riemann. Essas lacunas foram logo
preenchidas por outros matemáticos.

5 Integral de Lebesgue

Henri Lebesgue nasceu na cidade francesa de Beauvais, em 28 de junho de 1875. Durante toda a
sua vida, ocupou vários postos docentes nas universidades de Rennes e Poitiers, até que se tornou professor
do Colégio da França. Pela década de 1920, Lebesgue foi reconhecido como um dos mais destacados
matemáticos de sua época e eleito membro das mais prestigiosas sociedades científicas de sua época, como a
Academia de Ciências de París e a Sociedade Matemática de Londres. Desenvolveu notáveis trabalhos nos
campos da topologia e sobre as séries numéricas aplicadas aos teoremas da conservação da energia. Sua
principal obra corresponde as suas investigações sobre as integrais.

Em 1901, Lebesgue publicou uma nota na qual propõe um novo conceito de integral contendo como
caso particular a de Riemann, consequentemente a de Cauchy, eliminando várias deficiências dessas integrais,
e em particular, dando uma resposta mais geral sobre a validade da fórmula de Newton-Leibniz. Este novo
conceito permitiu estender a classe das funções integráveis.

Uma forma simples de ilustrar a diferença entre a integral de Lebesgue e a de Riemann é a seguinte
analogia: Suponhamos que temos um saco cheio moedas (digamos reais!) e que pretendemos saber quantos
reais temos no saco. Podemos contar estas moedas de duas formas distintas:

(i) Retiramos as moedas uma a uma do saco e vamos adicionando os seus valores;

(ii) Agrupamos as moedas do saco pelos seus valores, formando um grupo de moedas de 5 centavos, outro
grupo de 10 centavos, etc. Contamos as moedas em cada grupo, multiplicamos pelos seus valores e somamos;

A segunda forma de contagem (que corresponde ao integral de Lebesgue) é muito mais eficiente do
que a primeira forma de contagem (correspondente ao integral de Riemann), embora ambas forneçam o mesmo
valor, claro. Note-se que para descrever (ii) tivemos de usar uma linguagem um pouco mais elaborada do que
para descrever (i).

A definição da integral de Lebesgue também envolve de fato um pouco mais de conceitualização do


que a definição da integral de Riemann, mas por fim as funções integráveis a Riemann também são integráveis
a Lebesgue e o valor do integral e o mesmo.

Para a definição da integral de Riemann, foi necessário tomarmos uma função f(x) fosse limitada. Se
não fosse limitada se generalizava a Integral mediante a soma de seus limites. Com a diversidade com que se
apresentam em muitas exposições da teoria de Lebesgue, o caso das funções limitadas ou não, desaparecem
com a definição anterior, pois não são necessárias. A integral de Lebesgue permite reformular muitos conceitos
de análise matemática de modo muito mais claro e natural. Houveram outros matemáticos que desenvolveram

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algumas teorias sobre integrais, algumas muito semelhantes, mas foi através de Riemann e Lebesgue que se
pode ver a grande importância do estudo das figuras no desenvolvimento das integrais. Desenvolvimento esse
que se deu de forma graduada e que até continuam sendo estudados.

Referências

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FIGUEREDO, D. G. Análise I. 2ªed., Rio de Janeiro: LTC, 1996.

GUIDORIZZI, H. L. Um curso de Cálculo. Vol. 1, 2a ed., Rio de Janeiro: LTC, 1987.

LIMA, E. L. Análise Real. Vol.1, 3ª ed., Rio De Janeiro: IMPA, 1997.

_________. Curso de Análise. Vol. 1, 10ª ed., 2ª imp., Rio de Janeiro: IMPA, 2002.

MEDEIROS, L. A. & MELLO, E. A. Textos de Métodos Matemáticos 18 - A Integral de Lebesgue. IM- UFRJ
Rio de Janeiro, 1985.

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