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VOLUME

227

REVISTA TRIMESTRAL
DE JURISPRUDÊNCIA
janeiro a março de 2014
REVISTA TRIMESTRAL
DE JURISPRUDÊNCIA

volume 227
janeiro a março de 2014
Disponível também em: <http://stf.jus.br/portal/indiceRtj/pesquisarIndiceRtj.asp>

Secretaria-Geral da Presidência
Flávia Beatriz Eckhardt da Silva
Secretaria de Documentação
Janeth Aparecida Dias de Melo
Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência
Juliana Viana Cardoso
Equipe técnica:Jessica Scheidemantel Conceição Silva (estagiária), Juliana Aparecida de
Souza Figueiredo, Priscila Heringer Cerqueira Pooter e Valquirio Cubo Junior
Diagramação:Eduardo Franco Dias e Roberto Hara Watanabe

Revisão:Amélia Lopes Dias de Araújo, Divina Célia Duarte Pereira Brandão, Mariana
Sanmartin de Mello, Patrícia Keico Honda Daher, Rayane Lima Martins (estagiária) e
Rochelle Quito
Capa e projeto gráfico:Eduardo Franco Dias

(Supremo Tribunal Fe­­deral — Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)


Revista Trimestral de Jurisprudência / Supremo Tribunal Fe­­deral. – V. 1, n. 1 (abr./jun.
1957) ‑­ . – Brasília : STF, 1957‑ .
v. ; 22 × 15 cm.
Trimestral.
Título varia: RTJ.
Repositório Oficial de Jurisprudência do Supremo Tribunal Fe­­deral.
Nome do editor varia: Imprensa Nacional / Supremo Tribunal Fe­­deral, 1957 a 2001;
Editora Brasília Jurídica, 2002 a 2006; Supremo Tribunal Fe­­deral, 2007‑ .
Disponível também em formato eletrônico a partir de abr. 1957:
http://www.stf.jus.br/portal/indiceRtj/pesquisarIndiceRtj.asp.
ISSN 0035‑0540.
1. Tribunal supremo, jurisprudência, Brasil. 2. Tribunal supremo, periódico,
Brasil. I. Brasil. Supremo Tribunal Fe­­deral (STF). Coordenadoria de Divulgação de
Jurisprudência. II. Título: RTJ.
CDD 340.6

Solicita­‑se permuta. Seção de Distribuição de Edições


Pídese canje. Maria Cristina Hilário da Silva
On demande l’échange. Supremo Tribunal Fe­­deral, Anexo II­‑A, Cobertura, Sala
Si richiede lo scambio. C­‑624 – Praça dos Três Poderes – 70175‑900 – Brasília­‑DF
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SU­PRE­MO TRIBUNAL FEDERAL

Mi­nis­tro Joaquim Benedito Barbosa Gomes (25‑6‑2003), Presidente


Mi­nis­tro Enrique Ricardo Lewandowski (16‑3‑2006), Vice-Presidente
Mi­nis­tro José Celso de Mello Filho (17‑8‑1989)
Mi­nis­tro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello (13‑6‑1990)
Mi­nis­tro Gilmar Ferreira Mendes (20‑6‑2002)
Mi­nis­tra Cármen Lúcia Antunes Rocha (21‑6‑2006)
Ministro José Antonio Dias Toffoli (23‑10‑2009)
Ministro Luiz Fux (3‑3‑2011)
Ministra Rosa Maria Weber Candiota da Rosa (19­‑12­‑2011)
Ministro Teori Albino Zavascki (29-11-2012)
Ministro Luís Roberto Barroso (26-6-2013)

COMPOSIÇÃO DAS TURMAS

PRIMEIRA TURMA

Ministro Marco Aurélio, Presidente


Ministro Dias Toffoli
Ministro Luiz Fux
Ministra Rosa Weber
Ministro Roberto Barroso

SEGUNDA TURMA

Ministra Cármen Lúcia, Presidente


Ministro Celso de Mello
Ministro Gilmar Mendes
Ministro Ricardo Lewandowski
Ministro Teori Zavascki

PROCURADOR‑GERAL DA REPÚBLICA

Doutor Rodrigo Janot Monteiro de Barros


COMPOSIÇÃO DAS COMISSÕES

COMISSÃO DE REGIMENTO

Mi­nis­tro Marco Aurélio


Mi­nis­tro Luiz Fux
Ministro Teori Zavascki
Ministra Rosa Weber

COMISSÃO DE JURISPRUDÊNCIA

Mi­nis­tro Gilmar Mendes


Mi­nis­tra Cármen Lúcia
Ministro Dias Toffoli

COMISSÃO DE DOCUMENTAÇÃO

Mi­nis­tro Celso de Mello


Ministra Rosa Weber
Mi­nis­tro Roberto Barroso

COMISSÃO DE COORDENAÇÃO

Mi­nis­tro Ricardo Lewandowski


Ministro Dias Toffoli
Ministro Teori Zavascki
ÍNDICE ALFABÉTICO
ADC-ADC

A
Ct Ação civil pública. Legitimidade ativa. Ministério Público: 749
defesa do direito à saúde. CF/1988, art. 129, III. AI 759.543 AgR
PrSTF Ação direta de inconstitucionalidade. Cabimento. Decreto 114
autônomo. ADI 3.702
PrSTF Ação direta de inconstitucionalidade. Ilegitimidade ativa. 125
Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMA‑
GES). Representação parcial da categoria. Extinção sem
exame de mérito da ADI 4.372. ADI 4.425
PrSTF Ação direta de inconstitucionalidade. Legitimidade ativa. 114
Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipa‑
mentos (ABIMAQ). Entidade de classe de âmbito nacional.
Pertinência temática. CF/1988, art. 103, IX. ADI 3.702
PrPn Ação penal. Diplomação do réu como parlamentar. Alte‑ 28
ração superveniente de competência. Nulidade absoluta
inocorrente. Ratificação dos atos de instrução pelo juízo
competente: possibilidade. CPP/1941, art. 567: inaplicabili‑
dade. AP 695 AgR
Ct Ação penal no Superior Tribunal de Justiça (STJ). (...) Pro­ 46
curador-geral da República. ADI 2.913
Ct ADCT da Constituição Federal/1988, art. 97, redação da EC 125
62/2009: inconstitucionalidade. (...) Precatório. ADI 4.425
ADC-Ass

Ct ADCT da Constituição Federal/1988, art. 97, § 1º, II, e § 16, 125


redação da EC 62/2009, expressão “índice oficial de remune‑
ração básica da caderneta de poupança”: inconstitucionali‑
dade. (...) Precatório. ADI 4.425
Trbt Adiamento do pagamento do imposto: recolhimento no 114
momento da desincorporação do bem do ativo permanente.
(...) Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
(ICMS). ADI 3.702
Ct Admissibilidade excepcional: hipóteses. (...) Mandado de 330
segurança. MS 32.033
PrPn Agravo regimental. Prejudicialidade. Habeas corpus: medi‑ 574
da liminar indeferida no STJ. Julgamento de mérito do HC:
não abrandamento da Súmula 691. HC 102.836 AgR
PrPn Agravo regimental. Recurso em habeas corpus: interposição 574
pelo próprio paciente. Capacidade postulatória: inexigibili‑
dade. Lei 8.906/1994, art. 1º, § 1º. HC 102.836 AgR
El Alteração da jurisprudência do TSE no período eleitoral. (...) 675
Processo eleitoral. RE 637.485
PrPn Alteração superveniente de competência. (...) Ação penal. 28
AP 695 AgR
Ct Amici curiae: admissibilidade de parlamentares. (...) Manda­ 330
do de segurança. MS 32.033
Pn Antecedentes criminais: inexistência. (...) Descaminho. HC 618
120.617
Pn Apreensão e perícia da arma: prescindibilidade. (...) Roubo 559
qualificado. HC 96.099
PrSTF Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipa‑ 114
mentos (ABIMAQ). (...) Ação direta de inconstitucionalida­
de. ADI 3.702
PrSTF Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMA‑ 125
GES). (...) Ação direta de inconstitucionalidade. ADI 4.425
Ati-CF/

Pn Atividade clandestina de telecomunicação. Radiodifusão: 611


operação sem autorização do poder público. Interferência
em outros serviços de comunicação situados em grande
centro urbano. Princípio da insignificância: inaplicabilida‑
de. Lei 9.472/1997, art. 183. HC 119.979
Ct Atualização monetária. (...) Precatório. ADI 4.425 125

B
Trbt Benefício fiscal: concessão indireta. (...) Imposto sobre Cir­ 114
culação de Mercadorias e Serviços (ICMS). ADI 3.702

C
PrSTF Cabimento. (...) Ação direta de inconstitucionalidade. ADI 114
3.702
Pn Cabimento excepcional. (...) Prisão domiciliar. RHC 94.358 546

PrPn Capacidade postulatória: inexigibilidade. (...) Agravo regi­ 574


mental. HC 102.836 AgR
Ct Cargo público estadual. Provimento e desprovimento. Go‑ 671
vernador de Estado: competência. Delegação a secretário
estadual: possibilidade. Princípio da simetria. CF/1988, art.
84, XXV e parágrafo único. RE 633.009 AgR
Pn Casa de prostituição. Manutenção por conta própria. Mora‑ 596
lidade sexual e bons costumes: valores de elevada importân‑
cia social. Princípios da fragmentariedade e da adequação
social: inaplicabilidade. Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro, art. 2º. CP/1940, art. 229: revogação ino‑
corrente. HC 104.467
El Causa de inelegibilidade. (...) Processo eleitoral. RE 637.485 675

Ct CF/1988, arts. 1º, caput; 2º; e 5º, caput, XXXV e XXXVI: ofen‑ 125
sa. (...) Precatório. ADI 4.425
CF/-CF/

Pn CF/1988, arts. 1º, III; e 5º, XLIX. (...) Prisão domiciliar. RHC 546
94.358
El CF/1988, art. 14, § 5º: nova interpretação. (...) Mandato eleti­ 675
vo. RE 637.485
El CF/1988, arts. 14, § 5º; e 16. (...) Processo eleitoral. RE 637.485 675

Ct CF/1988, art. 30, VII. (...) Direito à saúde. AI 759.543 AgR 749

Adm CF/1988, art. 41, § 1º, II. (...) Servidor público. RE 594.040 AgR 633

Ct CF/1988, art. 60, § 2º: ofensa inocorrente. (...) Processo legis­ 125
lativo. ADI 4.425
Ct CF/1988, art. 84, XXV e parágrafo único. (...) Cargo público 671
estadual. RE 633.009 AgR
Ct CF/1988, art. 100, § 2º, redação da EC 62/2009. (...) Precató­ 125
rio. ADI 4.425
Ct CF/1988, art. 100, § 9º e § 10, redação da EC 62/2009: incons‑ 125
titucionalidade. (...) Precatório. ADI 4.425
Ct CF/1988, art. 100, § 12, redação da EC 62/2009, expressão “in‑ 125
dependentemente de sua natureza”: inconstitucionalidade
parcial sem redução de texto. (...) Precatório. ADI 4.425
Ct CF/1988, art. 100, § 12, redação da EC 62/2009, expressão 125
“índice oficial de remuneração básica da caderneta de pou‑
pança”: inconstitucionalidade. (...) Precatório. ADI 4.425
Ct CF/1988, art. 100, § 15, redação da EC 62/2009: inconstitucio‑ 125
nalidade. (...) Precatório. ADI 4.425
PrSTF CF/1988, art. 103, IX. (...) Ação direta de inconstitucionali­ 114
dade. ADI 3.702
Ct CF/1988, art. 105, I, a. (...) Procurador-geral da República. 46
ADI 2.913
Ct CF/1988, art. 129, III. (...) Ação civil pública. AI 759.543 AgR 749

Trbt CF/1988, art. 150, VI, c. (...) Imunidade tributária recíproca. 745
AI 731.786 AgR
CF/-Con

Trbt CF/1988, art. 150, VI, d: interpretação restritiva. (...) Imposto 625
sobre Serviços (ISS). RE 530.121 AgR
Trbt CF/1988, arts. 150, § 6º; e 155, § 2º, XII, g: ofensa. (...) Imposto so­ 114
bre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). ADI 3.702
Trbt CF/1988, art. 155, § 2º, X, a. (...) Contribuição social. RE 636
606.107
Ct CF/1988, art. 220: ofensa inocorrente. (...) Programa de rádio 771
“A Voz do Brasil”. RE 646.135
El Chefe do Poder Executivo. (...) Mandato eletivo. RE 637.485 675

Ct Cláusula da “reserva do possível”: inaplicabilidade. (...) Di­ 749


reito à saúde. AI 759.543 AgR
Trbt Código Tributário Nacional (CTN), art. 118. (...) Imposto de 532
Renda (IR). HC 94.240
Ct Compensação do crédito executado com débitos perante a 125
Fazenda Pública. (...) Precatório. ADI 4.425
Ct Compensação instituída unilateralmente: proveito exclusi‑ 125
vo da Fazenda Pública. (...) Precatório. ADI 4.425
PrCv Comprovação da condição de cidadão: ausência. (...) Embar­ 57
gos de declaração. Pet 3.388 ED
Ct Contingenciamento de recursos para o pagamento de pre‑ 125
catório: nova moratória na quitação dos débitos da Fazenda
Pública. (...) Precatório. ADI 4.425
Trbt Contribuição social. PIS e Cofins. Empresa exportadora. 636
Valor obtido com a transferência de crédito de ICMS: receita
não tributável. CF/1988, art. 155, § 2º, X, a. RE 606.107
Ct Controle abstrato de constitucionalidade. Medida cautelar: 629
indeferimento. Julgamento de mérito: ausência. Julgamento
de outros processos sobre idêntica controvérsia: possibilida‑
de. AI 589.182 AgR
Con-Dec

Ct Controle preventivo de constitucionalidade. Inadmissibilida‑ 330


de. Projeto de lei. Vício de inconstitucionalidade material: ale‑
gação de violação à interpretação constitucional exarada na
ADI 4.430. Mandado de segurança: indeferimento. MS 32.033
Ct Controle preventivo de constitucionalidade de projeto de lei. 330
(...) Mandado de segurança. MS 32.033
Trbt Convênio interestadual: ausência. (...) Imposto sobre Circu­ 114
lação de Mercadorias e Serviços (ICMS). ADI 3.702
Pn CP/1940, art. 157, § 2º, I. (...) Roubo qualificado. HC 96.099 559

Pn CP/1940, art. 229: revogação inocorrente. (...) Casa de prosti­ 596


tuição. HC 104.467
PrCv CPC/1973, art. 475-N, I, redação da Lei 11.232/2005. (...) Em­ 57
bargos de declaração. Pet 3.388 ED
PrPn CPP/1941, art. 427. (...) Júri. RHC 118.615 603

PrPn CPP/1941, art. 567: inaplicabilidade. (...) Ação penal. AP 695 AgR 28

Ct Credor idoso: débito de natureza alimentícia. (...) Precatório. 125


ADI 4.425
Ct Credor idoso ou portador de doença grave: débito de nature‑ 125
za alimentícia. (...) Precatório. ADI 4.425

D
PrCv Decisão proferida na Pet 3.388 e suas condicionantes: não 57
vinculação a processos relativos a terras indígenas diversas.
(...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED
PrSTF Decreto autônomo. (...) Ação direta de inconstitucionalida­ 114
de. ADI 3.702
Trbt Decreto estadual 1.542-R/2005/ES: inconstitucionalidade. 114
(...) Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
(ICMS). ADI 3.702
Dec-Des

Adm Decreto presidencial expropriatório: legalidade da declara‑ 315


ção de interesse social. (...) Desapropriação. MS 28.160
PrPn Degravação integral do conteúdo: necessidade. (...) Prova 11
criminal. AP 508-AgR
Ct Delegação a secretário estadual: possibilidade. (...) Cargo 671
público estadual. RE 633.009-AgR
Ct Delegação ao subprocurador-geral da República: possibili‑ 46
dade. (...) Procurador-geral da República. ADI 2.913
PrCv Demarcação da terra indígena “Raposa Serra do Sol”: au‑ 57
sência de citação do Estado de Roraima. (...) Embargos de
declaração. Pet 3.388-ED
PrCv Demarcação da terra indígena “Raposa Serra do Sol”: escla‑ 57
recimentos. (...) Embargos de declaração. Pet 3.388-ED
PrCv Demarcação da terra indígena “Raposa Serra do Sol”: execu‑ 57
ção da ordem de retirada dos não índios. (...) Embargos de
declaração. Pet 3.388-ED
PrCv Demarcação da terra indígena “Raposa Serra do Sol”: ques‑ 57
tões explicitadas na Pet 3.388. (...) Embargos de declaração.
Pet 3.388-ED
PrCv Demarcação da terra indígena “Raposa Serra do Sol”: tema 57
não integrante do objeto da Pet 3.388. (...) Embargos de de­
claração. Pet 3.388-ED
Adm Demissão imotivada. (...) Servidor público. RE 594.040-AgR 633

Pn Demonstração por outros meios de prova: possibilidade. (...) 559


Roubo qualificado. HC 96.099
PrPn Desaforamento: inocorrência. (...) Júri. RHC 118.615 603

Adm Desapropriação. Reforma agrária. Processo administrativo 315


expropriatório: nulidade inocorrente. Vistoria: ­regularidade
da notificação. Transmissão da propriedade no curso do
processo expropriatório: notificação do adquirente do imó‑
vel. Laudo Agronômico de Fiscalização: entrega fora do
prazo. MS 28.160
Des-Dis

Adm Desapropriação. Reforma agrária. Recurso administrativo 315


sem efeito suspensivo: pendência. Decreto presidencial ex‑
propriatório: legalidade da declaração de interesse social.
MS 28.160
PrPn Descabimento. (...) Habeas corpus. RHC 118.615 603

PrCv Descabimento. (...) Mandado de segurança. MS 28.160 315

Pn Descaminho. Elisão de tributo federal. Antecedentes crimi‑ 618


nais: inexistência. Quantia inferior a vinte mil reais: atipici‑
dade material. Princípio da insignificância: aplicabilidade.
Lei 10.522/2002, art. 20. Portarias 75/2012 e 130/2012-Minis‑
tério da Fazenda. HC 120.617
PrCv Desprovimento. (...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED 57

PrCv Determinação imposta pela Portaria 534/2005-Ministério 57


da Justiça: validade declarada pelo STF. (...) Embargos de
declaração. Pet 3.388 ED
Int Detração penal. (...) Extradição. Ext 1.259 36

Trbt Diferimento: descaracterização. (...) Imposto sobre Circula­ 114


ção de Mercadorias e Serviços (ICMS). ADI 3.702
PrPn Diplomação do réu como parlamentar. (...) Ação penal. AP 28
695 AgR
Ct Direito à saúde. Hospital Municipal Souza Aguiar: amplia‑ 749
ção e melhoria no atendimento. Obrigação do Município:
configuração de omissão inconstitucional. Cláusula da “re‑
serva do possível”: inaplicabilidade. Princípio da proibição
do retrocesso. CF/1988, art. 30, VII. AI 759.543 AgR
Ct Direito de propriedade: ofensa. (...) Precatório. ADI 4.425 125

PrCv Direitos dos índios, interesses da União e meio ambiente: 57


ponderação. (...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED
Ct Discriminação entre devedor público e privado. (...) Preca­ 125
tório. ADI 4.425
Div-Emb

PrPn Divulgação do fato criminoso pela imprensa: irrelevância. 603


(...) Júri. RHC 118.615
Int Dupla tipicidade. (...) Extradição. Ext 1.259 36

Int Duplicidade de pedidos. (...) Extradição. Ext 1.259 36

PrPn Dúvida sobre a imparcialidade dos jurados: não comprova‑ 603


ção. (...) Júri. RHC 118.615

E
Pn Elisão de tributo federal. (...) Descaminho. HC 120.617 618

PrCv Embargos de declaração. Desprovimento. Demarcação da 57


terra indígena “Raposa Serra do Sol”: ausência de citação do
Estado de Roraima. Pleito de admissão do Estado como litis‑
consorte: admissão como assistente simples do autor popu‑
lar. Questão superada no acórdão embargado. Pet 3.388 ED
PrCv Embargos de declaração. Desprovimento. Demarcação da 57
terra indígena “Raposa Serra do Sol”: execução da ordem de
retirada dos não índios. Determinação imposta pela Portaria
534/2005-Ministério da Justiça: validade declarada pelo STF.
Sentença declaratória: possibilidade de execução. CPC/1973,
art. 475-N, I, redação da Lei 11.232/2005. Pet 3.388 ED
PrCv Embargos de declaração. Desprovimento. Demarcação da 57
terra indígena “Raposa Serra do Sol”: questões explicitadas na
Pet 3.388. Permanência de pessoas miscigenadas na reserva.
Exercício de atividades religiosas de denominação não indíge‑
na na reserva. Funcionamento de escolas públicas na reserva:
currículo escolar. Rodovias federais localizadas na reserva:
direito de passagem de não índios. Direitos dos índios, inte‑
resses da União e meio ambiente: ponderação. Participação
das comunidades indígenas nas deliberações que afetem seus
interesses e direitos. Vedação à ampliação da área demarcada
(condicionante “r”). Exercício das competências do Estado de
Roraima: não exoneração. Sentido e alcance da lei comple‑
mentar prevista no § 6º do art. 231 da CF/1988. Pet 3.388 ED
Emb-Ent

PrCv Embargos de declaração. Desprovimento. Demarcação da 57


terra indígena “Raposa Serra do Sol”: tema não integrante do
objeto da Pet 3.388. Posse das fazendas desocupadas: querela
a ser resolvida entre grupos indígenas com participação da
União e Funai. Impacto decorrente de obras públicas fora da
área demarcada: eventual indenização. Pet 3.388 ED
PrCv Embargos de declaração. Desprovimento. Obscuridade, 57
contradição e omissão: ausência. Pedido de exclusão de área
situada na terra indígena “Raposa Serra do Sol”: Fazenda
Guanabara. Ponto expressa e claramente examinado no
acórdão embargado. Pet 3.388 ED
PrCv Embargos de declaração. Não conhecimento. Omissão, con‑ 57
tradição ou obscuridade: não demonstração. Mera irresig‑
nação do decidido em petição de ação popular. Pet 3.388 ED
PrCv Embargos de declaração. Não conhecimento. Terceiro 57
prejudicado. Interesse em intervir em ação popular: não
demonstração. Comprovação da condição de cidadão: au‑
sência. Lei 4.717/1965, arts. 1º, § 3º; e 19, § 2º. Pet 3.388 ED
PrCv Embargos de declaração. Provimento parcial. Demarcação 57
da terra indígena “Raposa Serra do Sol”: esclarecimentos.
Decisão proferida na Pet 3.388 e suas condicionantes: não
vinculação a processos relativos a terras indígenas diversas.
Inadmissibilidade de ação possessória na área demarcada:
possibilidade de discussão sobre benfeitoria derivada de
ocupação de boa-fé. Garimpagem e faiscação (condicionante
d): ausência de direito exclusivo de exploração. Pet 3.388 ED
Ct Emenda Constitucional. (...) Processo legislativo. ADI 4.425 125

Ct Emenda Constitucional 62/2009: constitucionalidade for‑ 125


mal. (...) Processo legislativo. ADI 4.425
Pn Emprego de arma de fogo. (...) Roubo qualificado. HC 96.099 559

Trbt Empresa exportadora. (...) Contribuição social. RE 606.107 636

PrSTF Entidade de classe de âmbito nacional. (...) Ação direta de 114


inconstitucionalidade. ADI 3.702
Ent-Fun

Trbt Entidade educacional: contribuinte de fato. (...) Imunidade 745


tributária recíproca. AI 731.786 AgR
Int Estados e crimes diversos. (...) Extradição. Ext 1.259 36

Adm Estágio probatório. (...) Servidor público. RE 594.040 AgR 633

Int Exame de mérito: impossibilidade. (...) Extradição. Ext 1.259 36

PrCv Exercício das competências do Estado de Roraima: não exo‑ 57


neração. (...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED
PrCv Exercício de atividades religiosas de denominação não indí‑ 57
gena na reserva. (...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED
PrSTF Extinção sem exame de mérito da ADI 4.372. (...) Ação direta 125
de inconstitucionalidade. ADI 4.425
Int Extradição. Detração penal. Prisão preventiva cumprida no 36
Brasil. Lei 6.815/1980, art. 91, II. Ext 1.259
Int Extradição. Dupla tipicidade. Tráfico de drogas. Prescrição ino‑ 36
corrente. Tratado entre os Estados-Partes do Mercosul. Ext 1.259
Int Extradição. Duplicidade de pedidos. Estados e crimes diver‑ 36
sos. Preferência ao pedido do Governo da Argentina: crime
mais grave segundo a lei brasileira. Pedido do Governo dos
Estados Unidos da América (Ext 1.277): prejudicialidade. Lei
6.815/1980, art. 79, § 1º, I. Ext 1.259
Int Extradição. Exame de mérito: impossibilidade. Sistema da 36
contenciosidade limitada. Ext 1.259

F
El Figura do “prefeito itinerante” ou do “prefeito profissional”: 675
vedação. (...) Mandato eletivo. RE 637.485
PrPn Formalidade essencial à validade da prova: previsão legal. 11
(...) Prova criminal. AP 508 AgR
PrCv Funcionamento de escolas públicas na reserva: currículo 57
escolar. (...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED
Gar-Imp

PrCv Garimpagem e faiscação (condicionante d): ausência de di‑ 57


reito exclusivo de exploração. (...) Embargos de declaração.
Pet 3.388 ED
Ct Governador de Estado: competência. (...) Cargo público esta­ 671
dual. RE 633.009 AgR

H
PrPn Habeas corpus. Descabimento. Sucedâneo de recurso ordi‑ 603
nário. RHC 118.615
PrPn Habeas corpus. Questão não apreciada pelo STJ. Supressão 532
de instância. Lei 8.137/1990, art. 1º, I: pedido de desclassifica‑
ção do tipo penal. HC 94.240
PrPn Habeas corpus: medida liminar indeferida no STJ. (...) Agravo 574
regimental. HC 102.836 AgR
Ct Horário oficialmente estabelecido. (...) Programa de rádio “A 771
Voz do Brasil”. RE 646.135
Ct Hospital Municipal Souza Aguiar: ampliação e melhoria no 749
atendimento. (...) Direito à saúde. AI 759.543 AgR

I
Pn Idosa com grave patologia cardíaca: risco de morte iminen‑ 546
te. (...) Prisão domiciliar. RHC 94.358
PrSTF Ilegitimidade ativa. (...) Ação direta de inconstitucionalida­ 125
de. ADI 4.425
PrCv Impacto decorrente de obras públicas fora da área demar‑ 57
cada: eventual indenização. (...) Embargos de declaração.
Pet 3.388 ED
Imp-Ina

Ct Implementação: assistência à saúde. (...) Política pública. AI 749


759.543 AgR
Trbt Importação de máquinas e equipamentos. (...) Imposto so­ 114
bre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). ADI 3.702
Trbt Imposto de Renda (IR). Renda proveniente de contravenção 532
penal (jogo do bicho): tributação. Não declaração da renda:
sonegação fiscal. Princípio do non olet. Código Tributário
Nacional (CTN), art. 118. HC 94.240
Trbt Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). 114
Importação de máquinas e equipamentos. Adiamento do
pagamento do imposto: recolhimento no momento da de‑
sincorporação do bem do ativo permanente. Diferimento:
descaracterização. Benefício fiscal: concessão indireta.
Convênio interestadual: ausência. CF/1988, arts. 150, § 6º;
e 155, § 2º, XII, g: ofensa. Decreto estadual 1.542-R/2005/ES:
inconstitucionalidade. ADI 3.702
Trbt Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). 745
(...) Imunidade tributária recíproca. AI 731.786 AgR
Trbt Imposto sobre Serviços (ISS). Imunidade tributária: inocor‑ 625
rência. Serviço de distribuição, transporte ou entrega de livro,
jornal, periódico e do papel destinado a sua impressão. CF/
1988, art. 150, VI, d: interpretação restritiva. RE 530.121 AgR
Trbt Imunidade tributária: inocorrência. (...) Imposto sobre Ser­ 625
viços (ISS). RE 530.121 AgR
Trbt Imunidade tributária recíproca. Inaplicabilidade. Imposto 745
sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Enti‑
dade educacional: contribuinte de fato. Serviço de energia
elétrica. CF/1988, art. 150, VI, c. AI 731.786 AgR
Ct Inadmissibilidade. (...) Controle preventivo de constitucio­ 330
nalidade. MS 32.033
PrCv Inadmissibilidade de ação possessória na área demarcada: 57
possibilidade de discussão sobre benfeitoria derivada de
ocupa­ção de boa-fé. (...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED
Ina-Jul

Trbt Inaplicabilidade. (...) Imunidade tributária recíproca. AI 745


731.786 AgR
El Inaplicabilidade da nova interpretação ao pleito eleitoral 675
em curso: eleições municipais de 2008. (...) Processo eleito­
ral. RE 637.485
Ct Inconstitucionalidade formal: vício concretizado no curso de 330
formação da norma. (...) Mandado de segurança. MS 32.033
Ct Índice oficial de remuneração da caderneta de poupança. 125
(...) Precatório. ADI 4.425
El Inelegibilidade para o mesmo cargo em qualquer Município 675
da Federação. (...) Mandato eletivo. RE 637.485
PrPn Interceptação telefônica. (...) Prova criminal. AP 508 AgR 11

PrCv Interesse em intervir em ação popular: não demonstração. 57


(...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED
Pn Interferência em outros serviços de comunicação situados 611
em grande centro urbano. (...) Atividade clandestina de te­
lecomunicação. HC 119.979
Ct Interstício mínimo entre os dois turnos: ausência de previ‑ 125
são constitucional. (...) Processo legislativo. ADI 4.425
Ct Intervenção do Poder Judiciário: situação excepcional. (...) 749
Política pública. AI 759.543 AgR

J
Ct Julgamento de mérito: ausência. (...) Controle abstrato de 629
constitucionalidade. AI 589.182 AgR
PrPn Julgamento de mérito do HC: não abrandamento da Súmula 574
691. (...) Agravo regimental. HC 102.836 AgR
Ct Julgamento de outros processos sobre idêntica controvérsia: 629
possibilidade. (...) Controle abstrato de constitucionalida­
de. AI 589.182 AgR
Júr-Lei

PrPn Júri. Desaforamento: inocorrência. Dúvida sobre a impar‑ 603


cialidade dos jurados: não comprovação. Divulgação do fato
criminoso pela imprensa: irrelevância. CPP/1941, art. 427.
RHC 118.615
Ct Juros da mora tributária em favor do Estado: taxa de 1% ao 125
mês. (...) Precatório. ADI 4.425
Ct Juros moratórios. (...) Precatório. ADI 4.425 125

L
Adm Laudo Agronômico de Fiscalização: entrega fora do prazo. 315
(...) Desapropriação. MS 28.160
Ct Legitimidade ativa. (...) Ação civil pública. AI 759.543 AgR 749

PrSTF Legitimidade ativa. (...) Ação direta de inconstitucionalida­ 114


de. ADI 3.702
Ct Legitimidade ativa. (...) Procurador-geral da República. ADI 46
2.913
Ct Lei 4.117/1962: recepção pela CF/1988. (...) Programa de rá­ 771
dio “A Voz do Brasil”. RE 646.135
PrCv Lei 4.717/1965, arts. 1º, § 3º; e 19, § 2º. (...) Embargos de decla­ 57
ração. Pet 3.388 ED
Int Lei 6.815/1980, art. 79, § 1º, I. (...) Extradição. Ext 1.259 36

Int Lei 6.815/1980, art. 91, II. (...) Extradição. Ext 1.259 36

PrPn Lei 8.137/1990, art. 1º, I: pedido de desclassificação do tipo 532


penal. (...) Habeas corpus. HC 94.240
PrPn Lei 8.906/1994, art. 1º, § 1º. (...) Agravo regimental. HC 574
102.836 AgR
PrPn Lei 9.296/1996, art. 6º, § 1º. (...) Prova criminal. AP 508 AgR 11

Pn Lei 9.472/1997, art. 183. (...) Atividade clandestina de teleco­ 611


municação. HC 119.979
Lei-Man

Ct Lei 9.494/1997, art. 1º-F, redação da Lei 11.960/2009: incons‑ 125


titucionalidade por arrastamento. (...) Precatório. ADI 4.425
Pn Lei 10.522/2002, art. 20. (...) Descaminho. HC 120.617 618

Ct Lei Complementar 75/1993, art. 48, II e parágrafo único: 46


constitucionalidade. (...) Procurador-geral da República.
ADI 2.913
Pn Lei de Execução Penal (LEP), arts. 10; 11, II; 14; 40; 41, VII; e 546
43. (...) Prisão domiciliar. RHC 94.358
Pn Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, art. 2º. 596
(...) Casa de prostituição. HC 104.467
Ct Limite de pagamento prioritário: constitucionalidade. (...) 125
Precatório. ADI 4.425

M
Ct Mandado de segurança. Controle preventivo de constitu‑ 330
cionalidade de projeto de lei. Admissibilidade excepcional:
hipóteses. Inconstitucionalidade formal: vício concretizado
no curso de formação da norma. Amici curiae: admissibili‑
dade de parlamentares. MS 32.033
PrCv Mandado de segurança. Descabimento. Matéria de prova: 315
produtividade de imóvel objeto de desapropriação. MS 28.160
Ct Mandado de segurança: indeferimento. (...) Controle preven­ 330
tivo de constitucionalidade. MS 32.033
El Mandado eletivo. Chefe do Poder Executivo. Segunda reelei‑ 675
ção em cargo da mesma natureza: proibição. Inelegibilidade
para o mesmo cargo em qualquer Município da Federação.
Figura do “prefeito itinerante” ou do “prefeito profissional”:
vedação. Princípio republicano. Postulado da temporarie‑
dade/alternância do exercício do poder. CF/1988, art. 14, § 5º:
nova interpretação. RE 637.485
Man-Omi

Pn Manutenção por conta própria. (...) Casa de prostituição. 596


HC 104.467
PrCv Matéria de prova: produtividade de imóvel objeto de desa‑ 315
propriação. (...) Mandado de segurança. MS 28.160
Ct Medida cautelar: indeferimento. (...) Controle abstrato de 629
constitucionalidade. AI 589.182 AgR
PrCv Mera irresignação do decidido em petição de ação popular. 57
(...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED
Ct Ministério Público: defesa do direito à saúde. (...) Ação civil 749
pública. AI 759.543 AgR
Pn Moralidade sexual e bons costumes: valores de elevada im‑ 596
portância social. (...) Casa de prostituição. HC 104.467

N
PrCv Não conhecimento. (...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED 57

Trbt Não declaração da renda: sonegação fiscal. (...) Imposto de 532


Renda (IR). HC 94.240
PrPn Nulidade absoluta inocorrente. (...) Ação penal. AP 695 AgR 28

O
Ct Obrigação do Município: configuração de omissão inconsti‑ 749
tucional. (...) Direito à saúde. AI 759.543 AgR
PrCv Obscuridade, contradição e omissão: ausência. (...) Embar­ 57
gos de declaração. Pet 3.388 ED
PrCv Omissão, contradição ou obscuridade: não demonstração. 57
(...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED
Par-Pos

PrCv Participação das comunidades indígenas nas deliberações 57


que afetem seus interesses e direitos. (...) Embargos de de­
claração. Pet 3.388 ED
PrCv Pedido de exclusão de área situada na terra indígena “Ra‑ 57
posa Serra do Sol”: Fazenda Guanabara. (...) Embargos de
declaração. Pet 3.388 ED
Int Pedido do Governo dos Estados Unidos da América (Ext 36
1.277): prejudicialidade. (...) Extradição. Ext 1.259
PrCv Permanência de pessoas miscigenadas na reserva. (...) Em­ 57
bargos de declaração. Pet 3.388 ED
PrSTF Pertinência temática. (...) Ação direta de inconstitucionali­ 114
dade. ADI 3.702
Trbt PIS e Cofins. (...) Contribuição social. RE 606.107 636

PrCv Pleito de admissão do Estado como litisconsorte: admissão 57


como assistente simples do autor popular. (...) Embargos de
declaração. Pet 3.388 ED
Ct Política pública. Implementação: assistência à saúde. Inter‑ 749
venção do Poder Judiciário: situação excepcional. Princípio
da separação dos Poderes: ofensa inocorrente. AI 759.543 AgR
PrCv Ponto expressa e claramente examinado no acórdão embar‑ 57
gado. (...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED
Pn Portarias 75/2012 e 130/2012-Ministério da Fazenda. (...) 618
Descaminho. HC 120.617
PrCv Posse das fazendas desocupadas: querela a ser resolvida en‑ 57
tre grupos indígenas com participação da União e Funai. (...)
Embargos de declaração. Pet 3.388 ED
El Postulado da temporariedade/alternância do exercício do 675
poder. (...) Mandato eletivo. RE 637.485
Pre-Pre

Ct Precatório. Atualização monetária. Índice oficial de re‑ 125


muneração da caderneta de poupança. Preservação do
valor real do crédito: inadequação do índice. Direito de
propriedade: ofensa. CF/1988, art. 100, § 12, redação da EC
62/2009, expressão “índice oficial de remuneração básica
da caderneta de poupança”: inconstitucionalidade. ADCT
da Constituição Federal/1988, art. 97, § 1º, II, e § 16, redação
da EC 62/2009, expressão “índice oficial de remuneração
básica da caderneta de poupança”: inconstitucionalidade.
Lei 9.494/1997, art. 1º-F, redação da Lei 11.960/2009: incons‑
titucionalidade por arrastamento. ADI 4.425
Ct Precatório. Compensação do crédito executado com dé‑ 125
bitos perante a Fazenda Pública. Compensação instituída
unilateralmente: proveito exclusivo da Fazenda Pública.
CF/1988, arts. 1º, caput; 2º; e 5º, caput, XXXV e XXXVI:
ofensa. CF/1988, art. 100, § 9º e § 10, redação da EC 62/2009:
inconstitucionalidade. ADI 4.425
Ct Precatório. Juros moratórios. Quantificação pelo índice 125
oficial de remuneração da caderneta de poupança. Juros
da mora tributária em favor do Estado: taxa de 1% ao mês.
Discriminação entre devedor público e privado. Princípio da
isonomia: ofensa. ADCT da Constituição Federal/1988, art.
97, § 1º, II, e § 16, redação da EC 62/2009, expressão “índice
oficial de remuneração básica da caderneta de poupança”:
inconstitucionalidade. CF/1988, art. 100, § 12, redação da EC
62/2009, expressão “independentemente de sua natureza”:
inconstitucionalidade parcial sem redução de texto. Lei
9.494/1997, art. 1º-F, redação da Lei 11.960/2009: inconstitu‑
cionalidade por arrastamento. ADI 4.425
Ct Precatório. Regime de “superpreferência”. Credor idoso: dé‑ 125
bito de natureza alimentícia. Verificação da idade na data de
expedição do precatório: exigência inconstitucional. Princí‑
pio da isonomia: ofensa. CF/1988, art. 100, § 2º, redação da
EC 62/2009. ADI 4.425
Pre-Pri

Ct Precatório. Regime de “superpreferência”. Credor idoso ou 125


portador de doença grave: débito de natureza alimentícia.
Limite de pagamento prioritário: constitucionalidade. Prin‑
cípio da dignidade da pessoa humana e da proporcionalida‑
de. CF/1988, art. 100, § 2º, redação da EC 62/2009. ADI 4.425
Ct Precatório. Regime especial de pagamento para Estados, 125
Distrito Federal e Municípios. Contingenciamento de re‑
cursos para o pagamento de precatório: nova moratória na
quitação dos débitos da Fazenda Pública. CF/1988, arts. 1º,
caput; 2º; e 5º, caput, XXXV e XXXVI: ofensa. CF/1988, art.
100, § 15, redação da EC 62/2009: inconstitucionalidade.
ADCT da Constituição Federal/1988, art. 97, redação da EC
62/2009: inconstitucionalidade. ADI 4.425
Int Preferência ao pedido do Governo da Argentina: crime mais 36
grave segundo a lei brasileira. (...) Extradição. Ext 1.259
PrPn Prejudicialidade. (...) Agravo regimental. HC 102.836 AgR 574

Int Prescrição inocorrente. (...) Extradição. Ext 1.259 36

Ct Preservação do valor real do crédito: inadequação do índice. 125


(...) Precatório. ADI 4.425
Pn Princípio da dignidade da pessoa humana. (...) Prisão domi­ 546
ciliar. RHC 94.358
Ct Princípio da dignidade da pessoa humana e da proporciona‑ 125
lidade. (...) Precatório. ADI 4.425
Pn Princípio da fragmentariedade e da adequação social: ina‑ 596
plicabilidade. (...) Casa de prostituição. HC 104.467
Pn Princípio da insignificância: aplicabilidade. (...) Descami­ 618
nho. HC 120.617
Pn Princípio da insignificância: inaplicabilidade. (...) Atividade 611
clandestina de telecomunicação. HC 119.979
Ct Princípio da isonomia: ofensa. (...) Precatório. ADI 4.425 125

Ct Princípio da proibição do retrocesso. (...) Direito à saúde. AI 749


759.543 AgR
Pri-Pro

El Princípio da segurança jurídica e da anterioridade eleitoral. 675


(...) Processo eleitoral. RE 637.485
Ct Princípio da separação dos Poderes: ofensa inocorrente. (...) 749
Política pública. AI 759.543 AgR
Ct Princípio da simetria. (...) Cargo público estadual. RE 671
633.009 AgR
Adm Princípio do contraditório e da ampla defesa. (...) Servidor 633
público. RE 594.040 AgR
Trbt Princípio do non olet. (...) Imposto de Renda (IR). HC 94.240 532

El Princípio republicano. (...) Mandato eletivo. RE 637.485 675

Pn Prisão domiciliar. Cabimento excepcional. Idosa com grave 546


patologia cardíaca: risco de morte iminente. Tratamento
médico-hospitalar adequado em ambiente penitenciário: in‑
capacidade do poder público. Princípio da dignidade da pes‑
soa humana. CF/1988, arts. 1º, III; e 5º, XLIX. Lei de Execução
Penal (LEP), arts. 10; 11, II; 14; 40; 41, VII; e 43. RHC 94.358
Int Prisão preventiva cumprida no Brasil. (...) Extradição. Ext 1.259 36

Adm Processo administrativo expropriatório: nulidade inocor‑ 315


rente. (...) Desapropriação. MS 28.160
Adm Processo administrativo prévio: necessidade. (...) Servidor 633
público. RE 594.040 AgR
El Processo eleitoral. Causa de inelegibilidade. Alteração da 675
jurisprudência do TSE no período eleitoral. Inaplicabilidade
da nova interpretação ao pleito eleitoral em curso: eleições
municipais de 2008. Princípio da segurança jurídica e da an‑
terioridade eleitoral. CF/1988, arts. 14, § 5º; e 16. RE 637.485
Ct Processo legislativo. Emenda constitucional. Votação em dois 125
turnos em cada Casa do Congresso Nacional. Interstício mí‑
nimo entre os dois turnos: ausência de previsão constitucio‑
nal. CF/1988, art. 60, § 2º: ofensa inocorrente. Emenda Consti‑
tucional 62/2009: constitucionalidade formal. ADI 4.425
Pro-Que

Ct Procurador-geral da República. Legitimidade ativa. Ação 46


penal no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Delegação ao
subprocurador-geral da República: possibilidade. CF/1988,
art. 105, I, a. Lei Complementar 75/1993, art. 48, II e parágra‑
fo único: constitucionalidade. ADI 2.913
Ct Programa de rádio “A Voz do Brasil”. Transmissão obriga‑ 771
tória. Horário oficialmente estabelecido. CF/1988, art. 220:
ofensa inocorrente. Lei 4.117/1962: recepção pela CF/1988.
RE 646.135
Ct Projeto de lei. (...) Controle preventivo de constitucionalida­ 330
de. MS 32.033
PrPn Prova criminal. Interceptação telefônica. Degravação in‑ 11
tegral do conteúdo: necessidade. Formalidade essencial à
validade da prova: previsão legal. Lei 9.296/1996, art. 6º, § 1º.
AP 508 AgR
Ct Provimento e desprovimento. (...) Cargo público estadual. 671
RE 633.009 AgR
PrCv Provimento parcial. (...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED 57

Q
Pn Quantia inferior a vinte mil reais: atipicidade material. (...) 618
Descaminho. HC 120.617
Ct Quantificação pelo índice oficial de remuneração da cader‑ 125
neta de poupança. (...) Precatório. ADI 4.425
PrPn Questão não apreciada pelo STJ. (...) Habeas corpus. HC 532
94.240
PrCv Questão superada no acórdão embargado. (...) Embargos de 57
declaração. Pet 3.388 ED
Rad-Sen

Pn Radiodifusão: operação sem autorização do poder público. 611


(...) Atividade clandestina de telecomunicação. HC 119.979
PrPn Ratificação dos atos de instrução pelo juízo competente: 28
possibilidade. (...) Ação penal. AP 695 AgR
Adm Recurso administrativo sem efeito suspensivo: pendência. 315
(...) Desapropriação. MS 28.160
PrPn Recurso em habeas corpus: interposição pelo próprio pa‑ 574
ciente. (...) Agravo regimental. HC 102.836 AgR
Adm Reforma agrária. (...) Desapropriação. MS 28.160 315

Ct Regime de “superpreferência”. (...) Precatório. ADI 4.425 125

Ct Regime especial de pagamento para Estados, Distrito Fe­ 125


deral e Municípios. (...) Precatório. ADI 4.425
Trbt Renda proveniente de contravenção penal (jogo do bicho): 532
tributação. (...) Imposto de Renda (IR). HC 94.240
PrSTF Representação parcial da categoria. (...) Ação direta de in­ 125
constitucionalidade. ADI 4.425
PrCv Rodovias federais localizadas na reserva: direito de passagem 57
de não índios. (...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED
Pn Roubo qualificado. Emprego de arma de fogo. Apreensão e 559
perícia da arma: prescindibilidade. Demonstração por ou‑
tros meios de prova: possibilidade. CP/1940, art. 157, § 2º, I.
HC 96.099

S
El Segunda reeleição em cargo da mesma natureza: proibição. 675
(...) Mandato eletivo. RE 637.485
PrCv Sentença declaratória: possibilidade de execução. (...) Em­ 57
bargos de declaração. Pet 3.388 ED
Sen-Tra

PrCv Sentido e alcance da lei complementar prevista no § 6º do art. 57


231 da CF/1988. (...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED
Trbt Serviço de distribuição, transporte ou entrega de livro, 625
jornal, periódico e do papel destinado a sua impressão. (...)
Imposto sobre Serviços (ISS). RE 530.121 AgR
Trbt Serviço de energia elétrica. (...) Imunidade tributária recí­ 745
proca. AI 731.786 AgR
Adm Servidor público. Estágio probatório. Demissão imotivada. 633
Processo administrativo prévio: necessidade. Princípio do
contraditório e da ampla defesa. CF/1988, art. 41, § 1º, II. RE
594.040 AgR
Int Sistema da contenciosidade limitada. (...) Extradição. Ext 1.259 36

PrPn Sucedâneo de recurso ordinário. (...) Habeas corpus. RHC 603


118.615
PrPn Supressão de instância. (...) Habeas corpus. HC 94.240 532

T
PrCv Terceiro prejudicado. (...) Embargos de declaração. Pet 57
3.388 ED
Int Tráfico de drogas. (...) Extradição. Ext 1.259 36

Adm Transmissão da propriedade no curso do processo expro‑ 315


priatório: notificação do adquirente do imóvel. (...) Desapro­
priação. MS 28.160
Ct Transmissão obrigatória. (...) Programa de rádio “A Voz do 771
Brasil”. RE 646.135
Int Tratado entre os Estados-Partes do Mercosul. (...) Extradi­ 36
ção. Ext 1.259
Pn Tratamento médico-hospitalar adequado em ambiente 546
penitenciário: incapacidade do poder público. (...) Prisão
domiciliar. RHC 94.358
Val-Vot

Trbt Valor obtido com a transferência de crédito de ICMS: receita 636


não tributável. (...) Contribuição social. RE 606.107
PrCv Vedação à ampliação da área demarcada (condicionante 57
“r”). (...) Embargos de declaração. Pet 3.388 ED
Ct Verificação da idade na data de expedição do precatório: 125
exigência inconstitucional. (...) Precatório. ADI 4.425
Ct Vício de inconstitucionalidade material: alegação de viola‑ 330
ção à interpretação constitucional exarada na ADI 4.430. (...)
Controle preventivo de constitucionalidade. MS 32.033
Adm Vistoria: regularidade da notificação. (...) Desapropriação. 315
MS 28.160
Ct Votação em dois turnos em cada Casa do Congresso Nacio‑ 125
nal. (...) Processo legislativo. ADI 4.425
ACÓRDÃOS
AP 508 AgR

AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO PENAL 508 — AP


Relator: O sr. ministro Marco Aurélio
Agravante: Ministério Público Federal
Agravado: Sebastião Ferreira da Rocha

Interceptação telefônica – Mídia – Degravação. A degravação


consubstancia formalidade essencial a que os dados alvo da intercep‑
tação sejam considerados como prova – art. 6º, § 1º, da Lei 9.296/1996.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo
Tribunal Federal em desprover o agravo regimental na ação penal, nos termos
do voto do relator e por maioria, em sessão presidida pelo ministro Ayres Britto,
na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas.
Brasília, 7 de fevereiro de 2013 — Marco Aurélio, relator.

RELATÓRIO
O sr. ministro Marco Aurélio: O Gabinete prestou as seguintes informações:
Às fls. 2754 e 2755, Vossa Excelência determinou a degravação de mídia eletrônica
referente a diálogos telefônicos interceptados durante investigação policial.
O agravante, na peça de fls. 2760 a 2765, sustenta ter a questão se esgotado na
simples entrega da aludida mídia ao réu, não sendo cabível, na fase final da ação
penal e após a defesa quedar silente, a degravação integral de todos os diálogos
interceptados. Alega encontrarem-se as conversas transcritas no documento de
fls. 409 a 453, constando do processo certidão comprobatória da vista à defesa, a
fim de examinar o teor dos diálogos, e a consequente devolução posterior. Assevera

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haver o intuito meramente protelatório por parte de Sebastião Ferreira da Rocha.


Afirma estar-se diante da real probabilidade de prescrição da pretensão punitiva.
O agravado argui a irrecorribilidade da decisão impugnada e a circunstância de
não ter tido acesso às mídias, fato que ensejou cerceamento da defesa. Aduz prever
a Lei 9.296/1996 a necessidade de degravação de mídia eletrônica. Ressalta não
pretender a degravação integral dos mencioandos cds-rom, apenas dos trechos nos
quais é citado, especialmente os que serviram de base à denúncia do Ministério
Público (fls. 2779 a 2783).
Após examinar o processo, verifiquei constar, à fl. 409 à 453, relatório do Depar‑
tamento da Polícia Federal acerca da degravação dos diálogos colhidos nas inter‑
ceptações telefônicas determinadas pelo Juízo competente. Anoto que, no citado
relatório, foram reproduzidos unicamente trechos de inúmeras conversas obtidas
em dias e horários diversos.
Informo encontrar-se a ação penal na fase do art. 12 da Lei 8.038/1990.
É o relatório.

VOTO
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Na interposição deste agravo, atendeu‑
-se aos pressupostos de recorribilidade. A peça, subscrita pelo procurador-geral
da República, foi protocolada no prazo assinado em lei.
Cabe lembrar que pronunciamento do relator com carga decisória desafia o
agravo regimental interposto quer pela defesa, quer pela acusação, como ocorreu
no caso. No mais, reitero o que consignei ao deferir a degravação:
2. A existência de processo eletrônico não implica o afastamento da Lei 9.296/1996.
O conteúdo da interceptação telefônica verificada, registrado em mídia, há de
passar pela degravação. Também cumpre solicitar ao Juízo da 2ª Vara Federal da
Seção Judiciária do Amapá a mídia, para degravação, da interceptação telefônica
mencionada na denúncia.

A formalidade é essencial à valia, como prova, do que contido na interceptação


telefônica. Está prevista, de modo claro, na Lei 9.296/1996:
Art. 6º (...)
§ 1º No caso de a diligência possibilitar a gravação da comunicação interceptada,
será determinada a sua transcrição.

Frise-se, por oportuno, que a referida formalidade não está retratada no do­­
cumento de fls. 409 a 453. Neste constam apenas trechos de inúmeros diálo‑
gos obtidos em dias e horários diversos, não havendo a transcrição integral de
nenhum debate envolvendo o agravado e os demais envolvidos.
Desprovejo o agravo regimental.

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EXPLICAÇÃO
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Bom, aqui o que está em discussão
é aquela questão consistente em saber se há obrigatoriedade de degravação da
integralidade da interceptação ou se apenas do que for necessário à instrução.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Desde que disponibilizada toda a gravação.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Nós sabemos que há situa‑
ções em que, se for fazer toda a degravação, paralisa-se na prática a ação penal.
Eu ouço o ministro Teori Zavascki...
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Lembro-me do precedente. Lanço um
esclarecimento. No caso da Operação Furacão, não se observou o prazo peremp‑
tório alusivo à interceptação e alcançou-se mais de quarenta mil horas de gra‑
vação. Então, o Tribunal, diante dessa peculiaridade, determinou a entrega da
mídia. Esse não é o caso concreto. A própria lei prevê que, feita a degravação,
deverá ser expungido o que não diga respeito ao próprio processo.

VOTO
O sr. ministro Teori Zavascki: Presidente, vou pedir vênia ao ministro Marco
Aurélio para, adotando a jurisprudência firmada no Plenário do Supremo, que
tive oportunidade de consultar, considerar legítima a degravação das partes
que interessam, sem necessidade de degravar justamente aquilo que não inte‑
ressa, nada impedindo que se dê acesso amplo aos interessados da totalidade
da mídia eletrônica.
O voto é, pois, pelo provimento.

VOTO
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, também peço vênia ao eminente
relator e, forte na decisão do Plenário – o Inq 2.424 –, estou acompanhando a
divergência aberta pelo ministro Teori Zavascki, entendendo pela necessidade
de degravação apenas daqueles trechos da interceptação que a embasam. E aqui,
no caso, ainda destaco o aspecto de uma quase preclusão, porque esta matéria já
está sendo debatida em oportunidades anteriores e não foi levantada pela parte.

ESCLARECIMENTO
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Ressalto, mais uma vez, que se ficou

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a meio caminho no cumprimento da lei. Apenas degravou-se uma parte, que,


segundo o acusado, não viabiliza o direito de defesa.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: É interessante, eu estou sensibilizado
pelos argumentos do ministro Marco Aurélio, isso tem me preocupado muito,
porque a transcrição de apenas trechos da degravação dificulta sobremaneira a
defesa, parece que isso ocorreu no caso, segundo o eminente relator. Eu tenho
resolvido essas questões mandando entregar a transcrição integral para a defesa
para que ela possa agir como entender de direito, que é uma das soluções que
me parece mais factível.
O sr. ministro Luiz Fux: É que na defesa prévia o acusado pediu e foi entregue.
A sra. ministra Rosa Weber: E foi feita a entrega do disquete.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Foi entregue; aí, no caso, foi
entregue.
O sr. ministro Luiz Fux: A que pediu, foi entregue o CD.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Neste caso, foi entregue.
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): O problema não é esse. O problema
é ter-se a dualidade: a mídia e uma parte degravada. A parte degravada é que
atende à persecução criminal.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Mas, se o interessado teve acesso
à mídia...
O sr. ministro Luiz Fux: O interessado pode impugnar a parte degravada, sob
a alegação de que a mídia tem um...
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): No mais, quanto ao exercício do
direito de defesa, será que o interessado, com a valia dessa degravação oficial,
pode ofertar a degravação do que lhe interesse?
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Não, mas, aí, Ministro Marco Aurélio,
apenas pensando em voz alta, eu sempre imaginei o seguinte: quando a defesa
tem a cópia integral, ela pode se contrapor à acusação e apresentar aqueles tre‑
chos que entende relevante, para fazer a contradita que entender conveniente.
Quer dizer, ainda que tenham sido transcritos apenas os trechos que interessam.
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Vejam o elemento complicador: o
relator, pelo menos – já que deverá preparar relatório e voto –, e o revisor terão
que considerar o que foi degravado e terão que ir, também, à mídia, e extrair, dessa
mídia, trecho que, porventura, possa corroborar o que revelado como conteúdo
pela própria defesa. Ou se degrava tudo, ou não se degrava nada.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ministro Marco Aurélio, mui­
tas vezes, proceder-se à degravação total significa, simplesmente, a paralisação
da ação.

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O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Mas, Ministro, a lei é imperativa e


não dispositiva.
O sr. ministro Dias Toffoli: Mas eu pergunto: o relator não poderia fazer isso
de ofício? O relator não poderia fazê-lo de ofício?
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Claro, claro. Eu, por exemplo, não
poderia determinar?
O sr. ministro Dias Toffoli: Poderia fazer de ofício. Haveria motivo para nós
determinarmos a não degravação?
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): A lei é imperativa quanto a essa for‑
malidade que é essencial à valia do ato como prova.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Agora o que me impressiona, Ministro
Marco Aurélio – eu estou absolutamente sensibilizado com o que Vossa Excelên‑
cia está dizendo – é que, naquele caso da Operação Furacão, por exemplo, havia
uma impossibilidade prática, quarenta mil folhas de...
O sr. ministro Dias Toffoli: E lá era a defesa, aqui não; aqui é a acusação. Se o
juiz relator do caso entende que, realmente, cabe a degravação, nós vamos aqui,
no Plenário, dizer que o relator não pode determiná-la? Eu não estou entrando
na questão da nulidade, ou não, das degravações em todo ou qualquer caso, mas
o juiz relator aqui é o instrutor do processo.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Entendi.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ele mandou degravar a inte‑
gralidade.
O sr. ministro Dias Toffoli: Ele mandou degravar; é o Ministério Público que
está se opondo. Nós vamos cassar a decisão do relator que mandou degravar?
Eu penso que não é possível.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Entendi. Não, está certo.
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): A parte da degravação.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Bem, agora eu entendi a questão.
O relator, entendendo conveniente, para a instrução, a degravação, essencial,
até, para a compreensão dos argumentos de parte a parte, essa decisão do relator
é que está sendo contestada?
O sr. ministro Dias Toffoli: Exatamente.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Está bem. Agora eu estou bem in­­
formado.
O sr. ministro Teori Zavascki: Ao que eu entendi da discussão, Senhor Pre­
sidente, quem pediu foi a defesa.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Não, quem pediu foi a defesa.
O sr. ministro Dias Toffoli: A defesa.

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O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Deixem-me ver o introito da deci‑


são, porque apenas transcrevi, no voto, a parte alusiva à fundamentação e frisei
esse aspecto.
O sr. ministro Dias Toffoli: Mas o relator deferiu a degravação.
A sra. ministra Rosa Weber: Ele mandou entregar, sim.
O sr. ministro Teori Zavascki: Ele deferiu um pedido da defesa.
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): É que a degravação, contida no do­­
cumen­­to de fls. 409 a 453, mostrou-se parcial e não total. Deixem-me ver quem
requereu.
A sra. ministra Rosa Weber: Houve preclusão, por isso falei sobre ela.
O sr. ministro Dias Toffoli: Aí, vem para cá e eu não posso mandar degravar?
A sra. ministra Rosa Weber: A denúncia foi recebida em 2005. Desloca­men­­to
ao Supremo Tribunal em 2008.
O sr. ministro Dias Toffoli: Nos outros casos, era a defesa que tinha indefe‑
rido o seu pedido e vinha para cá. Aqui não, foi a acusação que veio. É o contrário.
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Na petição, a defesa pediu abertura
do prazo de dez dias para oferecer resposta escrita. Vossa Excelência determinou
o encaminhamento do processo. A Procuradoria manifestou-se... O Ministério
Público foi quem requereu a sequência da ação, extraindo-se cópia da mídia, de
fl. 2664, para entrega ao acusado, e a intimação do advogado visando a juntada
das alegações finais no prazo de quinze dias.
Então, decidi, conforme contido no item 9 da manifestação do titular da ação
penal. A denúncia foi recebida, e o processo veio a ser deslocado para o Supremo.
Descabe voltar à fase ultrapassada. No mais, tem-se como procedente o que
preconizado quanto a viabilizar cópia da mídia à defesa, e abrir prazo. Indefiro
o pleito de retorno à fase anterior.
E, posteriormente, em petição assinada digitalmente por profissional da advo‑
cacia, levando em conta o pronunciamento – que mandei entregar a mídia –,
pleiteou, antes da abertura de prazo para apresentação das alegações finais, a
degravação.
Houve requerimento, portanto, da defesa, e o deferi.
A sra. ministra Cármen Lúcia: E aí é que o Ministério Público se insurge.

VOTO
(Confirmação)
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, mantenho, com todo respeito,
o meu voto, porque vislumbro uma atitude absolutamente protelatória nesse

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requerimento. Na medida em que a denúncia foi recebida, em 2005, o acusado


foi interrogado, apresentou defesa prévia, nada alegou sobre eventual degravação
dos diálogos interceptados, que já estavam, no que interessava à denúncia, degra‑
vados, transcritos; veio a remessa dos autos a esta Corte; a defesa foi intimada
a manifestar-se, sem atender, entretanto, ao chamado judicial, uma certidão –
estou me louvando aqui do parecer, mas examinei esses dados; houve, então,
um despacho do eminente relator determinando a intimação das partes para
alegações finais. Novamente intimada, a defesa manteve-se silente. Esgotado o
prazo de alegações finais, e após o procurador-geral da República ter pedido a
designação de defensor dativo para a defesa do acusado, veio aos autos uma peti‑
ção subscrita pelo mesmo advogado, que sempre defendera o réu, que, em petição
de janeiro de 2007, pediu que o feito retornasse à fase inicial do art. 396, com a
redação da Lei 11.719, para permitir “que o acusado possa responder articulada‑
mente à denúncia do Ministério Público. Nessa mesma petição, a defesa do acu‑
sado referiu-se a um requerimento da degravação ou cópia da mídia digitalizada
juntada aos autos”, que, até aquele momento, ainda não havia sido apreciado.
Em decisão juntada à fl. 2724, o eminente relator acolheu a manifestação do
Ministério Público e indeferiu o pedido, porque, na verdade, destacou, verbis:
Descabe, ante a organicidade e a dinâmica do Direito, voltar a fase ultrapassada
para cogitar, a esta altura, da observação da Lei 11.719/2008, que alterou o art. 396
do Código de Processo Penal. Deve-se dar sequência processual presente a Lei
8.038/1990, em virtude, até mesmo, do princípio da especialidade.
No mais, tem-se como procedente o que preconizado quanto a viabilizar cópia
da mídia de fl. 2664 à defesa e abrir prazo para formalização de alegações finais.

E aí houve a oposição de embargos declaratórios em que não havia, enfim, não


se apresentava nenhuma impugnação, e esses embargos foram acolhidos para
esclarecer que a simples sequência de colocação dos itens da decisão embargada
conduzia a inferir que o prazo relativo às alegações finais seria contado após a
entrega da mídia à defesa, no que, em última análise, haveria elementos do pro‑
cesso. Enfim, aqueles declaratórios foram providos para esses esclarecimentos.
Na verdade, agora, por força de nova petição, vem essa questão da apresentação,
esse requerimento de degravação.
Então, com todo respeito, já disse: o processo marcha para a frente; não dá
para voltar; desde 2005.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Protelação.

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EXPLICAÇÃO
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Presidente, apenas um detalhe: trata-se de
nulidade absoluta, que não preclui com a passagem do tempo, já que a formalidade
é essencial à valia do ato, à valia da prova. Hoje sabemos que não há mais, prin‑
cipalmente no processo penal, campo específico para o saneamento processual.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Vossa Excelência deferiu?
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Deferi, Presidente. Pedi que o Juízo
enviasse a mídia que serviu de base à denúncia, porque esse processo veio des‑
locado, ante assunção da cadeira de deputado federal pelo acusado. Ocorreu
desmembramento, mandaram o processo quanto ao acusado. Então, solicitei o
envio da mídia e determinei a degravação.

VOTO
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, eu também tenho aqui anotações que
conduzem exatamente a essa preclusão. Só depois, nas alegações finais, depois
de ter obtido a mídia, e, de posse da mídia, poderia ter impugnado degravações
eventualmente incorretas, é que a parte vem, depois das alegações finais, solici‑
tar a degravação integral pelo mesmo advogado constituído no processo. Data
maxima venia, os magistrados sabem quando essas manobras da defesa tendem
a tornar infindável o processo.
Eu tenho essa cautela e eu vou acompanhar a jurisprudência, exatamente
por esse quadro fático. Peço vênia para prover o recurso do Ministério Público.

VOTO
O sr. ministro Dias Toffoli: Senhor Presidente, penso que a situação colocada
nestes autos é distinta da daqueles precedentes que foram citados. Por quê?
Porque aqui, o que nós temos? Na fase final de diligência requereu a defesa a
degravação. O relator entendeu por bem deferir. Pelo tempo entre o despacho
e o julgamento desse agravo, era provável que essa degravação já estivesse nos
autos. Vamos e venhamos. Vamos trazer à realidade temporal as coisas.
O sr. ministro Teori Zavascki: E reabrir a instrução.
O sr. ministro Dias Toffoli: Não se reabriu a instrução, porque o ministro
relator, no seu despacho, não anulou nada. Simplesmente, deferiu a degravação
na fase do antigo 499 (atual 402 do CPP). Não foi isso, Ministro Marco Aurélio?
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Sim, a degravação...

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O sr. ministro Dias Toffoli: O despacho que é agravado não assenta nenhuma
nulidade: não assenta nulidade de denúncia, de instrução, de nada.
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Não, não, tanto que refutei – e essa
matéria não está em jogo – o pleito de abertura de prazo para o acusado se
manifestar quanto à denúncia. Disse que o Direito é orgânico e dinâmico e que,
à época própria, não incidia a lei que previa essa abertura de prazo.
O sr. ministro Dias Toffoli: Então, Vossa Excelência indeferiu essa parte do
pedido da defesa.
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Indeferi essa parte.
O sr. ministro Dias Toffoli: O que se discute aqui é uma ordem do instru‑
tor do processo de deferir a degravação. Vamos e venhamos, qual o prejuízo à
acusação?
Eu não estou partindo de premissas de nulidade, de impossibilidade de julgar
sem degravação, não estou entrando nessas questões. Eu estou aqui analisando o
tema do ponto de vista de um Colegiado que julga ação penal. Por ser um Cole‑
giado, as ações e os inquéritos são dados a um dos juízes, para que este faça a
instrução do processo.
Ora, essa decisão do eminente ministro Marco Aurélio poderia ser feita de
ofício, de ofício! E nós vamos cassá-la aqui? Não envolveu decisão de nulidade.
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Em outra decisão, atentei que não
estava em curso ainda o prazo para alegações finais, porque nem a mídia a defesa
recebera.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: E aí há um fato que está me impres‑
sionando, data venia, no sentido da argumentação do eminente ministro relator.
O item 12 do parecer do Ministério Público.
Os diálogos referidos na denúncia e que sustentam a acusação foram degra‑
vados, estão transcritos no documento de folhas tais. O acusado, quando o feito
ainda tramitava perante o Juízo da Segunda Vara da Seção Judiciária do Amapá,
solicitou vista dos autos, do procedimento de interceptação que continha as
gravações de todos os diálogos interceptados, tendo-se deferido o requerimento.
O documento anexo comprova que o advogado do acusado retirou os autos do
cartório, somente os devolveu após trinta dias.
O que eu estou verificando aqui é o seguinte: na verdade, a transcrição que
foi feita e que chegou às mãos do acusado são só aqueles trechos que constam
da denúncia. E ele, agora, quer a transcrição integral, até para contextualizar.
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): E, claro, pinçou-se da fita e se degra‑
vou o que interessou à persecução criminal. E a defesa, como fica?
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Isso é que impressiona.

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O sr. ministro Luiz Fux: E aí a defesa tem vista da mídia e não aponta nenhuma
incorreção naquela degravação nem diz que, do contexto...
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Mas ela não teve vista.
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Não, Ministro. Não sei se teve no
Juízo, mas determinei para a entrega, como preconizado pelo procurador-geral
da República, a remessa da mídia. Chegando a mídia, é que veio, então, o pleito
da defesa no sentido da degravação, porque da denúncia e do documento que a
acompanha só constam alguns trechos das conversas.
O sr. ministro Luiz Fux: É porque a informação que há aqui é a de que ele
obteve.
O sr. ministro Dias Toffoli: Só queria concluir o meu voto, Senhor Presidente.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ministro Toffoli, antes de Vossa
Excelência...
O sr. ministro Dias Toffoli: Pois não!
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): É bom que estejamos atentos
para o seguinte fato: mantida a decisão do relator, é muito provável que a parte,
logo em seguida, venha com um pedido de reabertura do prazo.
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): O prazo para as alegações finais ainda
não começou a correr.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ele vai dizer que respondeu
a denúncia sobre os fatos que foram pinçados, e que, agora com a degravação,
novos elementos surgiram. Então, portanto...
O sr. ministro Dias Toffoli: Mas o ministro relator indeferiu a retomada
dos prazos.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Mas o ministro relator indeferiu.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Oi?
A sra. ministra Cármen Lúcia: O ministro relator indeferiu qualquer reaber‑
tura de prazo.
O sr. ministro Dias Toffoli: A fase do 402 é para fins de manifestação e ale‑
gações finais. Não é para reabrir instrução.
A sra. ministra Cármen Lúcia: E o ministro relator informa que nem começou
a correr prazo para as alegações.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Eu entendo. Nós podemos
manter a decisão do relator sem proclamar nenhuma nulidade.
O sr. ministro Dias Toffoli: Sem proclamar nenhuma nulidade. Exatamente!
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Sim, Presidente, ressaltando-se que
o prazo para as alegações finais não chegou a ser aberto.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ainda não.

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O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Na fase que antecede às alegações


finais.
O sr. ministro Dias Toffoli: Se houvesse o agravo regimental, talvez já tivesse
aberto essa fase e a superado.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Está em fase de instrução, não é?
Pois não, Ministro Toffoli, Vossa Excelência prossegue.
O sr. ministro Dias Toffoli: Não, só para concluir, para deixar claro, Senhor
Presidente, que eu não estou entrando na discussão da possibilidade ou da impos‑
sibilidade de apenas entregar a mídia.
A premissa do meu voto é que, se o juiz instrutor entendeu por bem que,
no caso, deveria ser feita a degravação – seja de ofício, seja a requerimento da
defesa, seja a requerimento do Ministério Público –, eu penso que isso, de fato,
cabe ao juiz instrutor do caso, e que não há motivo para que o Plenário reforme
a sua decisão. Qual é o prejuízo? Qual é a nulidade? Qual é a razão pela qual essa
decisão do instrutor do caso, da ação penal, deva ser reformada? Eu não vejo
razão para ser reformada. Eu não vejo motivação.
O sr. ministro Luiz Fux: Ministro Toffoli, se Vossa Excelência...
O sr. ministro Dias Toffoli: Só para concluir...
Então, acompanho o voto do ministro relator, sem me comprometer com
outras questões que os colegas colocaram aqui. Só para ficar bem claro isso.

DEBATE
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, eu só queria ponderar que o desti‑
natário da prova é o órgão julgador. E, no caso aqui, um órgão subjetivamente
complexo.
O que dispõe a Lei? Que o juiz do caso, quem vai julgar, que é o destinatário
da prova, deverá rejeitar as provas inúteis ou meramente protelatórias.
Então, suponhamos que o relator entenda que a prova seja útil e o Ministério
Público, que é parte, entenda que a prova seja inútil, seja meramente protelató‑
ria, e que vai acabar, por exemplo, implicando a prescrição da persecução penal;
quer dizer, o Ministério Público tem o direito de agravar. E quem vai julgar esse
agravo? O Plenário. Então, quer dizer, na verdade, o Plenário, eventualmente,
pode entender que, muito embora o relator seja o instrutor do feito...
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Ministro, mas veja a situação concreta.
Houve a degravação parcial, e esta serviu de base à denúncia.
O sr. ministro Luiz Fux: Não, não. Não é no caso concreto, é de uma tese
afirmada.

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O sr. ministro Marco Aurélio (relator): E, quando se pretendeu a degravação


total, o Ministério Público se opôs.
Presumo que normalmente ocorre. Deve haver algo que atende à defesa.
O sr. ministro Luiz Fux: Ah, sim, Vossa Excelência entende que o Ministério
Público se opôs, porque ele teme o conteúdo da parte remanescente.
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Digo que não foi o procurador-geral
da República, porque a denúncia já veio do Estado do Amapá.
O sr. ministro Luiz Fux: Não, apenas há a fixação da tese de que eventual‑
mente o Plenário pode entender que a transcrição integral não seja necessária
a despeito de o relator ter entendido. Se o Ministério Público recorrer, podemos
decidir diferente do relator.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Não é o caso aqui.

VOTO
A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, gostaria de fazer duas obser‑
vações, apenas para pontuar e para que em outros julgamentos não haja nenhum
tipo de confusão sobre o meu posicionamento. Considero que não há nulidade,
tanto de ser deferida quanto de ser indeferida; que não é imprescindível que haja
degravação; isto fica ao talante, segundo o que se comprovar como necessário
pelo juiz, pelo órgão julgador. Considero que é válido, sim, o processo no qual
não se tem a degravação de todo o conjunto, desde que o órgão julgador assim
entenda. Portanto, não vejo nenhuma nulidade em qualquer tipo de apresenta‑
ção de transcrição de conteúdo que não seja integral de degravações de escutas
telefônicas que sejam realizadas.
Entretanto, o que se mostra neste caso parece-me diferenciado: o relator do
caso no Supremo entendeu como não sendo protelatório, não sendo indevido, e
não é antijurídico o deferimento do pleito da defesa em momento próprio, sem
qualquer reabertura do prazo que me levaria a pensar numa protelação.
Então, com essas pontuações expressas, Senhor Presidente, porque, inclusive,
fui redatora para o acórdão num habeas corpus no qual se discutiu exatamente a
possibilidade de não haver a degravação – e permaneço com esse mesmo enten‑
dimento –, mas, no caso específico agora posto, tenho que não há nenhuma ile‑
galidade, não há nada a ser acolhido ou provido no agravo do Ministério Público.
Razão pela qual, com essas ponderações e acentuando esses pontos, estou,
neste caso, também negando provimento ao agravo e acompanhando, portanto,
o ministro relator, com as vênias da divergência.

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VOTO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, peço vênia aos que
divergem, mas vou acompanhar o relator para negar provimento ao agravo. Isto
sem entrar nas teses veiculadas aqui. Também já manifestei a minha posição
com relação à entrega da mídia, mas, neste caso concreto, entendo que o rela‑
tor, utilizando o seu prudente arbítrio, entendeu que era necessária a juntada
da transcrição das escutas telefônicas para melhor compreensão da questão.
Entendo e vejo, com o devido respeito, que o Ministério Público se insurge contra
essa providência, que é própria do relator – a meu ver, poderia ser determinada até
de ofício –, dizendo o seguinte, no item 17, de forma vaga e um tanto quanto abstrata,
sempre com o devido respeito: “(...) A transcrição integral das interceptações, como
quer a defesa, certamente levará anos para ser executada [não acredito, data venia,
que levará anos], levando os crimes necessariamente à prescrição”.
Também, numa análise muito superficial, tendo em conta inclusive que o réu
é acusado de inúmeros crimes – 288 do Código Penal; 317, que é corrupção pas‑
siva, cuja pena varia de dois a doze anos, ainda que medeiem cinco anos entre
o recebimento da denúncia e até a presente data –, não creio, data venia, pelo
menos nessa avaliação preliminar, que a denúncia esteja próxima. Ademais,
imputa-se ao acusado não só esse art. 317, 319, mas ainda o art. 90 da Lei 9.866,
que é a Lei de Licitações. Se houvesse realmente a possibilidade real e efetiva da
prescrição, penso que o Ministério Público deveria ter colocado isso com todas
as letras, apresentando, inclusive, dados concretos.
De modo que, especialmente em respeito à decisão do relator, que, no caso
concreto, considerou imprescindível essa prova, acompanho Sua Excelência,
negando provimento ao agravo.

VOTO
O sr. ministro Gilmar Mendes: Senhor Presidente, este é um caso que me causa
desconforto. Já naquele precedente, eu me manifestei no sentido da necessidade
da degravação. Era um caso de todo singular, mas evidente que nós estamos
sendo, a toda hora, atropelados por essa evolução tecnológica, não só hoje, na
capacidade da escuta telefônica, todos esses novos aparatos, há um pouco de mito,
mas também de realidade em torno desse assunto. A própria vulnerabilidade, no
que diz respeito à privacidade, quando se fala hoje – ainda há pouco lia um texto
em que se falava da possibilidade de fazer monitoramentos de residências, o que
esvazia a ideia da inviolabilidade do domicílio –, na possibilidade de se fazer busca

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  23


AP 508 AgR

e apreensão nos computadores, a partir de um monitoramento, de um aparato


tecnológico. Em suma, temos aí uma série. E, claro, aqui também, amontoamos
essas gravações em função do desenvolvimento tecnológico.
Agora, o Colegiado pronunciou-se sobre isso, e eu temo que nós produzamos
uma insegurança jurídica se começarmos a ter variações em torno desse assunto,
inclusive suscitando discussões sobre nulidade ou não.
Eu venho consolidando a impressão em torno disso – o ministro Marco Auré‑
lio já apontou isso várias vezes –, que a própria lei que disciplina a intercepta‑
ção telefônica, a de número 9.296, já nasceu com problemas, porque, ao fixar o
prazo – isso já foi apontado aqui, várias vezes, pelo ministro Marco Aurélio –,
de quinze dias, obviamente que ela...
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Prorrogável por mais quinze apenas.
O sr. ministro Gilmar Mendes: E pode ser renovada por quinze anos. E até é
difícil, por via interpretativa, fazer essa limitação. Então, nós temos já esse pro‑
blema. E fica o juiz então a renovar, a cada quinze dias, esse pedido. Às vezes,
nós sabemos casos de um ano e meio, dois anos de interceptação ou de escuta.
Ao mesmo tempo, nos vemos numa situação delicadíssima, porque, na medida
em que consideramos a liceidade de uma práxis, vamos para a prova ilícita. Nuli‑
ficamos todo o trabalho realizado.
É interessante que essa própria lei já foi uma resposta dada a uma decisão do
Supremo Tribunal Federal, quando o Supremo considerou não recepcionado o
Código de Telecomunicações, porque entendia que ele não atendia a esse cha‑
mado requisito da reserva legal qualificada; as condições que a Constituição
manda que a Lei estabeleça não eram atendidas no velho Código de Telecomu‑
nicações. De modo que eu acho oportuna a discussão da matéria.
Vou pedir vênia ao relator, porque vou ficar com a decisão tomada pelo Cole‑
giado, mas eu tenho a impressão de que chega a hora de o Tribunal fazer um
apelo para que o legislador se debruce sobre a necessidade de reformulação, de
atualização dessa legislação.
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Ministro, Vossa Excelência me per‑
mite apenas fazer uma colocação? Como relator, vou ter que considerar não só
o documento que revela a degravação parcial, acostado à inicial da ação penal,
como também a integralidade da mídia. Talvez chegue, porque poderei fazê‑
-lo, mesmo que não junte ao processo a própria degravação integral para ter a
visão do todo.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Naquele caso que nós discutimos, da cha‑
mada Operação Furacão, o ministro Cezar Peluso trouxe argumentos que eram
assustadores: uma equipe de degravadores, taquígrafos, ocupar-se-ia por anos.

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AP 508 AgR

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Quarenta mil horas, e com certo
aparelho de interceptação, que é multiplicador quanto aos telefones apanhados.
O sr. ministro Gilmar Mendes: É isso que estou dizendo, fruto dessa tec‑
nologia, desses avanços, e por isso nós chegaríamos também a um resultado...
O sr. ministro Teori Zavascki: Vossa Excelência me permite?
Na verdade, a discussão aqui se resume em definir um meio de prova. Ninguém
pode, obviamente, negar ao réu o acesso às conversas interceptadas. O que se
discute aqui é se ele tem direito de obter isso no papel ou se basta que ele tenha
acesso pela via eletrônica. Esse problema, provavelmente no futuro, vai desa‑
parecer, na medida em que o próprio processo será todo eletrônico. No futuro,
provavelmente, esse problema...
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): E o processo aqui é eletrônico.
O sr. ministro Dias Toffoli: O fato de o processo ser eletrônico não invia‑
biliza a transcrição do áudio, porque uma coisa é o áudio, outra coisa é o texto
escrito. Imagine se o juiz fosse surdo, ele não poderia mandar degravar o áudio
e ler o texto?
O sr. ministro Teori Zavascki: Evidentemente que não, evidentemente que não.
O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Originariamente, não. Ele foi digitali‑
zado. O processo originariamente se mostrou físico. No Supremo, foi digitalizado.
O sr. ministro Teori Zavascki: Agora, nada impede que se considere a mídia
eletrônica, para todos os efeitos, como prova no processo.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Talvez até a própria evolução tecnológica
permita, daqui a pouco, a transcrição.
O sr. ministro Dias Toffoli: Podemos ter um juiz cego – esse passará o texto
para a sua versão oral – ou um juiz surdo – que passará o texto para a sua versão
escrita.
Mas eu queria ponderar aqui: essa denúncia é de 2005. Ao longo das intercep‑
tações, os órgãos persecutórios já poderiam vir fazendo as transcrições. Eu tenho
no meu gabinete quatorze ações penais. Portanto, sou instrutor, sou juiz ins‑
trutor, de quatorze ações penais. E tenho quarenta e três inquéritos. Todo dia,
estamos a proferir despachos decisórios nesses procedimentos. Se, toda hora,
isso for colocado em suspeição, se houver necessidade de trazer isso a Plenário,
realmente não andarão os procedimentos.
Eu penso que nós temos que considerar o juízo daquele que está com o pro‑
cesso instrutório, que é o relator. E eu volto a perguntar: não poderia Sua Exce‑
lência tê-lo feito de ofício? Não poderá Sua excelência fazê-lo de ofício após este
julgamento?

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AP 508 AgR

O sr. ministro Luiz Fux: Decisão de ofício é também recorrível, decisão de


ofício é recorrível.
O sr. ministro Teori Zavascki: Acho que poderia e pode, mas não foi o caso.
A sra. ministra Rosa Weber: Poderia e pode, eu também acho.
O sr. ministro Dias Toffoli: Volto a insistir: não estou aqui discutindo nuli‑
dades, estou aqui a discutir uma decisão instrutória do eminente relator do feito.
Qual o prejuízo que isso causou? Qual a sucumbência? Ah, porque pode levar
muito tempo! Mas isso, desde 2005, já foi apresentado à Justiça. E foi apresentado
à Justiça porque houve uma investigação anterior. É a denúncia que é de 2005.
Então, que prejuízo é esse?
Por todos esses motivos, eu reafirmo minha posição, acompanhando o emi‑
nente relator. E, mais uma vez, destaco que nós temos de dar, realmente, o cré‑
dito a todos nós, que somos instrutores de inúmeros procedimentos; se não,
nós viraremos um Tacrim, um Tribunal de Alçada Criminal, porque todos esses
despachos instrutórios vão ser submetidos ao Plenário. Estamos aqui, há uma
hora e meia, a discutir um despacho instrutório.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Bem, eu... Vossa Excelência
quer acrescentar?
O sr. ministro Luiz Fux: Eu só iria observar que, mesmo que seja de ofício,
não se pode suprimir, nem da defesa, nem do Ministério Público, o recurso. Mas
não é comum o Plenário se debruçar em recurso dessa natureza, de sorte que é
tão excepcional, que a situação deve ser excepcional. Eu não me recordo de ter
julgado agravo de decisão de relator... deferiu prova, pelo contrário. Não, claro,
naquele processo da AP 470, Vossa Excelência trouxe aqui vários agravos da
defesa contra as determinações de provas, de desqualificação de provas produ‑
zidas. Isso é mais comum à defesa, mas não se pode sonegar esse direito à outra
parte do processo penal.
O sr. ministro Dias Toffoli: Ninguém está sonegando.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): É, ninguém está sonegando.
O sr. ministro Luiz Fux: Não, mas o relator não é senhor absoluto do processo
que não pode recorrer.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): É. Eu também nego provimento
ao agravo, mantenho a decisão do relator.

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AP 508 AgR

EXTRATO DA ATA
AP 508 AgR/AP — Relator: Ministro Marco Aurélio. Agravante: Ministério Público
Federal (Procurador: Procurador-geral da República). Agravado: Sebastião Fer‑
reira da Rocha (Advogados: Walter José Faiad de Moura e outros).
Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do relator, negou
provimento ao agravo regimental, vencidos os ministros Teori Zavascki, Rosa
Weber, Luiz Fux e Gilmar Mendes. Votou o presidente, ministro Joaquim Barbosa.
Ausente, justificadamente, o ministro Celso de Mello.
Presidência do ministro Joaquim Barbosa. Presentes à sessão os ministros
Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias
Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavascki. Procurador-geral da República,
doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 7 de fevereiro de 2013 — Luiz Tomimatsu, assessor-chefe do Plenário.

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AP 695 AgR

AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO PENAL 695 — MT


Relatora: A sra. ministra Rosa Weber
Agravante: Josué Bengtson
Agravado: Ministério Público Federal

Agravo regimental em ação penal. Atos processuais praticados


pelo Juízo de primeiro grau após a diplomação do réu como
deputado federal. Atos instrutórios.
1. Na fase de instauração da ação penal, com o oferecimento e rece‑
bimento da denúncia, o Juízo de primeiro grau era o competente. Des‑
necessária, em decorrência, a ratificação da decisão de recebimento
da denúncia, e válidos os atos praticados até a diplomação do réu
como parlamentar federal.
2. Meros atos de instrução da causa não são atos decisórios, não
incidindo a norma do art. 567 do Código de Processo Penal. É possível
o aproveitamento dos atos da instrução. Além disso, foi assegurada
à defesa a reinquirição de testemunhas. As partes poderão, ainda,
apresentar, requerer ou renovar requerimento de juntada de prova
documental em qualquer fase do processo.
3. Agravo regimental conhecido e não provido.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a presidência do ministro Ricardo
Lewandowski – vice-presidente no exercício da presidência –, na conformidade
da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos e nos
termos do voto da relatora, em negar provimento ao agravo regimental. Ausentes,

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AP 695 AgR

justificadamente, o ministro Celso de Mello e, neste julgamento, os ministros


Joaquim Barbosa (presidente), Dias Toffoli, Luiz Fux e Roberto Barroso.
Brasília, 13 de fevereiro de 2014 — Rosa Weber, relatora.

RELATÓRIO
A sra. ministra Rosa Weber: Trata-se de agravo regimental contra decisão mono‑
crática de minha lavra em que, diante da vinda dos autos de ação penal a esta
Suprema Corte em razão de o acusado Josué Bengtson ter assumido o mandato
de deputado federal, reputei válidos, na linha requerida pelo Ministério Público
Federal, os atos processuais anteriormente praticados pelo Juízo competente,
ressalvando expressamente a quebra de sigilo bancário.
Em síntese, argumenta o recorrente que o acusado se diplomou deputado
federal no dia 1º-1-2011, motivo pelo qual, à luz dos arts. 564 e 567 do CPP, defende
seja declarada nula a decisão das fls. 826-30 do Juízo de primeiro grau, prolatada
em 19-4-2011, quando já competente o STF, e da qual afirma advir prejuízo à
defesa. Pede o desentranhamento dos documentos das fls. 731 e 744-822 (laudos
do Denasus), bem como de todos os documentos acostados após a posse do réu
na Câmara dos Deputados que se relacionam com a imputação do crime previsto
no art. 90 da Lei de Licitações.
O Ministério Público Federal manifesta-se às fls. 1083-5 pelo desprovimento
do agravo regimental.
É o relatório.

VOTO
A sra. ministra Rosa Weber (relatora): 1. Como relatado, ataca o presente agravo
regimental, nos autos da presente ação penal – AP 695 –, decisão monocrática da
minha lavra em que reputei válidos os atos processuais praticados no primeiro
grau de jurisdição antes de sua remessa a esta Suprema Corte, por força da diplo‑
mação do acusado como deputado federal em 1º-1-2011 – com expressa ressalva
da decretação da quebra de sigilo bancário –, na linha do requerido pelo Minis‑
tério Público Federal. Busca o agravante ver decretada a nulidade da decisão do
Juízo da 7ª Vara Federal Criminal de Mato Grosso das fls. 826-30, porque exarada
em 19-4-2011 e à alegação de prejuízo à defesa, bem como o desentranhamento
dos documentos das fls. 731 e 744-822 e de todos os acostados aos autos após sua
posse como parlamentar federal pertinentes à imputação do crime de fraude à
licitação previsto no art. 90 da Lei 8.666/1993.

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AP 695 AgR

2. Breve resumo do caso se impõe.


Trata-se de ação penal proposta pelo Ministério Público Federal contra o depu‑
tado federal Josué Bengtson pela prática dos crimes de formação de quadrilha,
corrupção passiva e lavagem de dinheiro, objeto, respectivamente, dos arts. 288
e 317, § 1º, do Código Penal e do art. 1º, V e VII, da Lei 9.613/1998.
A ação está relacionada à assim denominada Operação Sanguessuga. Na
investigação em tela, teria sido desvelado esquema criminoso que, em síntese,
consistiria no desvio de recursos públicos mediante a aquisição, por prefeitu‑
ras municipais, de veículos, especialmente ambulâncias, superfaturados e com
licitações direcionadas às empresas ligadas ao Grupo Planam, controlado por
Darci José Vedoin e Luiz Antônio Trevisan Vedoin. O esquema criminoso teria
sido viabilizado por emendas parlamentares disponibilizadoras da verba para as
aquisições, com posterior pagamento de vantagem indevida aos parlamentares
envolvidos. Segundo a denúncia (fls. 3-9), o acusado teria recebido valores de
forma direta e indireta, em diferentes datas, e apresentado, em contrapartida,
quinze emendas ao orçamento destinadas à aquisição de unidades móveis de
saúde para Municípios do Estado do Pará, cujas licitações foram posteriormente
ganhas pelas empresas do Grupo Planan.
A denúncia foi recebida em 16-7-2007 (fl. 10), no primeiro grau de jurisdição,
quando o acusado não exercia o mandato de parlamentar. O acusado foi interro‑
gado (fls. 165-7) e apresentou defesa prévia por defensor constituído (fls. 168-81).
Ouvidas as testemunhas arroladas pela acusação, na qualidade de informantes
(fls. 371-3), e as testemunhas de defesa Álvaro Aires da Costa (fls. 381-3), Astrid
Maria da Cunha e Silva (fls. 578-9) e Denilson Batalha Guimarães (fls. 593-4).
Exarada, então, a decisão das fls. 826-30, em 19-4-2011, ao exame das petições
das fls. 597-601 e fls. 694-6 das partes, em que (i) rejeitada a arguição da defesa
de nulidade da oitiva das testemunhas domiciliadas no Estado do Pará pela
falta de intimação da data das audiências nos juízos deprecados, ao fundamento
de que suficiente, consoante a jurisprudência do STF e do STJ, a intimação, cer‑
tificada nos autos, da expedição das cartas precatórias; (ii) rejeitada a arguição
da defesa de oitiva de todas as testemunhas pela ausência, nas cartas preca‑
tórias, de peças relativas aos fatos apurados em outro processo, ao fundamento
de que pertinente a outra ação penal, de instrução autônoma, com a oitiva das
testemunhas a serem indicadas no momento oportuno; (iii) acolhida a argui-
ção de nulidade da oitiva da testemunha de defesa Denilson, pela ausência
de defensor constituído ou dativo no ato; (iv) afirmada a preclusão quanto às
alegações de inépcia da denúncia e incompetência daquele Juízo por já decididas

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  30


AP 695 AgR

às fls. 303-9; (v) refutada a defesa da rejeição da denúncia quanto ao crime de


formação de quadrilha; (vi) e decretada a quebra do sigilo bancário do acusado.
Novamente ouvida a testemunha Denilson Batalha Guimarães (fls. 1050-1051),
foi exarado comando de remessa dos autos a este Supremo Tribunal Federal – em
2-7-2012 –, diante da prerrogativa de foro de que o denunciado passara a gozar.
3. A alteração da competência por fato superveniente não afeta a vali-
dade dos atos processuais anteriormente praticados perante o Juízo então
competente.
O réu Josué Bengtson foi diplomado no cargo de deputado federal em 1º-1-2011,
data em que passou a este Supremo Tribunal Federal a competência para processá‑
-lo e julgá-lo por infrações penais comuns, a teor do art. 102, I, b, da Constituição
da República. Quando da prolação da decisão das fls. 826-30, já havia, portanto,
cessado a competência do Juízo de primeiro grau, uma vez diplomado deputado
federal em data anterior, o que não implica, todavia – considerado o respectivo
conteúdo e o teor da decisão ora agravada –, haja nulidade a decretar.
Em primeiro lugar, não se cogita, enfatizo, de decisão de instauração da de­­
manda penal, tampouco de alteração dos termos da acusação, certo que, no
momento do oferecimento e do recebimento da denúncia, o Juízo de primeiro
grau era o competente. A decisão das fls. 826-30 pertine basicamente a atos da
instrução da causa, sendo elucidativo o magistério de Pacelli:
(...) não havendo qualquer modificação da acusação; se mantidas as mesmas partes;
e, por fim, não havendo qualquer alteração na defesa (seja quanto à prova, seja
quanto às teses alegadas), nada impedirá o aproveitamento de atos da instrução,
incluindo prova testemunhal. Não se trata de aplicação do art. 567, CPP, mas da
convalidação de atos eficazmente produzidos pelas partes.
Não admitir tais provas seria o mesmo que recusar validade à prova emprestada,
se quando produzida entre as mesmas partes em outro processo! A prova, ainda
que nulo o processo, pode perfeitamente ser válida, no que toca à legalidade de
sua fonte e à regularização na sua produção. [Curso de processo penal. 14. ed. São
Paulo: Atlas, 2012. p. 841.]

Por outro lado, o conteúdo decisório das fls. 826-30, a despeito da ressalva
expressa, na decisão agravada, apenas à quebra de sigilo bancário, não foi rati‑
ficado em prejuízo ao réu. Confira-se:
(i e ii) rejeitada, na decisão das fls. 826-30, a arguição de nulidade da oitiva
das testemunhas de defesa sob duplo fundamento – falta de intimação da defesa
da data das audiências nos juízos deprecados e ausência, nos autos das precató‑
rias, de peças relativas aos fatos apurados em outro processo –, oportunizou-se à
defesa a reinquirição das testemunhas já ouvidas quando em trâmite o processo

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AP 695 AgR

em primeiro grau, e, ainda, a oitiva das não ouvidas. Com efeito, apresentados os
novos endereços das testemunhas às fls. 1076-7, com pedido de reinquirição das
já ouvidas, operacionalizou-se o comando para a oitiva de todas as testemunhas
de defesa por meio do despacho das fls. 1132-3;
(iii) a decisão das fls. 826-30 acolheu a arguição de nulidade quanto à teste‑
munha Denilson, e determinou sua reinquirição;
(iv e v) as teses defensivas relativas à inépcia da denúncia, incompetência
da Justiça Federal e rejeição da acusação quanto à imputação de formação de
quadrilha foram matérias analisadas quando da fase de recebimento da denún‑
cia e apreciação da resposta à acusação, período no qual o Juízo de primeiro
grau detinha competência para tanto, restando superadas. Ademais, constituem
matérias passíveis de apreciação nesta Suprema Corte na fase de julgamento;
(vi) a decisão de quebra do sigilo bancário do réu, a seu turno, não foi – de
forma expressa – ratificada na decisão por mim prolatada, presente inclusive
a manifestação do titular da ação penal nesta Corte no sentido de sua desneces‑
sidade (fls. 1064-7 e 1069-73).
Quanto ao deferimento do requerimento do Ministério Público Federal de
remessa dos laudos elaborados pelo Departamento Nacional de Auditoria do
Sistema Único de Saúde (DENASUS) – mero ato instrutório de coleta de provas
não alcançado pelo art. 567 do Código de Processo Penal –, ditos laudos, conforme
bem destaca o Ministério Público Federal nesta Suprema Corte, foram juntados
aos autos em agosto de 2010, antes da diplomação do denunciado. Tendo em
conta que se impunha o desentranhamento dos documentos que formavam os
apensos II a V, os quais não possuíam relação com os fatos investigados nessa
ação penal, foi determinada a vinda dos laudos elaborados pelo Denasus em
substituição aos processos licitatórios solicitados pelo acusado (fls. 1083-5).
Pelos mesmos motivos, nada colhe a alegação da defesa de que deveriam ser
desentranhados dos autos todos os documentos trazidos após a diplomação
do réu, enquanto atos de mera instrução do procedimento, cuja juntada é pas‑
sível de ser objeto de requerimento das partes a qualquer momento (art. 231 do
Código de Processo Penal), desde a fase investigatória, forte no art. 155, in fine, do
Código de Processo Penal, até a fase do art. 10 da Lei 8.038/1990, sem que se possa
cogitar de nulidade ou prejuízo. Além disso, o ofício para a Controladoria-Geral
da União foi mera reiteração de pedido formulado ainda em 15-12-2008 (fl. 317).
Para além disso, a imputação do crime de fraude à licitação capitulado no
art. 90 da Lei 8.666/1993 não é objeto de apuração nestes autos, mas, sim, na
AP 702. Conforme se constata da decisão das fls. 1069-73, este segundo procedi‑
mento havia sido autuado de forma inadequada, em apenso a esta AP 695, motivo

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pelo qual foi determinada a correção, com a separação dos apensos I, II e III, e
sua distribuição como nova ação penal, conexa a este feito, formando então a
AP 702. Vale observar, aqui, que o próprio agravante afirma aviado, o presente
recurso, no aspecto, apenas ad cautelam.
Nessa linha, a pretensão do recorrente de que venham aos autos os procedi‑
mentos administrativos realizados pelos Municípios destinatários de emendas
orçamentárias de autoria do réu – na esteira do que fora decidido pelo e. TRF da
1ª Região no HC 2009.01.59464 –, de modo a permitir a comprovação da inexis‑
tência de fraude à licitação, deve ser formulada nos autos da AP 702. De qualquer
modo, entendendo a defesa pela juntada de novos documentos neste feito, basta
requerer a qualquer tempo até a fase do art. 10 da Lei 8.038/1990.
Sendo assim, resta claro que a decisão objurgada em nada ratificou a decisão
das fls. 826-30 em prejuízo ao agravante.
4. A jurisprudência desta Suprema Corte é tranquila quanto à validade da
ratificação, pelo juízo competente, de atos instrutórios praticados pelo juízo
anterior, quando ocorrer alteração superveniente de competência. Nesse sentido,
anoto a seguinte ementa, que não tem grifos no original:
Processual penal. Habeas corpus. Tráfico internacional de drogas. Ratificação da
denúncia e de atos instrutórios pelo juízo competente. Nulidade do processo. Ine-
xistência. Cerceamento de defesa. Inocorrência. Matérias não levantadas na Corte
a quo. Indevida supressão de instância. Ordem parcialmente conhecida, e, nessa
parte, denegada. I – No processo penal não há que se cogitar de nulidade se o vício
alegado não causou nenhum prejuízo ao réu. II – Com a superveniente alteração
de competência do juízo, é possível a ratificação da denúncia pelo Ministério
Público e dos atos instrutórios pelo magistrado competente. III – Alegações
não apreciadas nas instâncias inferiores impedem o seu conhecimento em sede
originária pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de indevida supressão de ins‑
tância. IV – Ordem parcialmente conhecida e, nessa parte, denegada. [HC 98.373/
SP, Primeira Turma, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJ de 23-4-2010.]

Aliás, até mesmo a ratificação de atos decisórios realizados no juízo incompe‑


tente tem sido admitida, como se vê dos seguintes precedentes, que não levam
grifos no original:
Habeas corpus. 2. Crimes de estelionato. 3. Alegações de: a) ausência de indícios de
autoria e materialidade; b) falta de fundamentação da preventiva; c) violação ao
princípio do juiz natural; e d) excesso de prazo da prisão preventiva. 4. Prejudicia‑
lidade parcial do pedido, o qual prossegue apenas com relação à alegada violação
ao princípio do juiz natural. 5. Em princípio, a jurisprudência desta Corte enten-
dia que, para os casos de incompetência absoluta, somente os atos decisórios

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seriam anulados. Sendo possível, portanto, a ratificação de atos não decisórios.


Precedentes citados: HC 71.278/PR, rel. min. Néri da Silveira, Segunda Turma, jul‑
gado em 31-10-1994, DJ de 27-9-1996; e RHC 72.962/GO, rel. min. Maurício Corrêa,
Segunda Turma, julgado em 12-9-1995, DJ de 20-10-1995. 6. Posteriormente, a partir
do julgamento do HC 83.006/SP, Pleno, por maioria, rel. min. Ellen Gracie, DJ de
29-8-2003, a jurisprudência do Tribunal evoluiu para admitir a possibilidade de
ratificação pelo juízo competente inclusive quanto aos atos decisórios. 7. Declinada
a competência pelo Juízo estadual, o Juízo de origem federal, ao ratificar o sequestro
de bens (medida determinada pela Justiça comum), fez referência expressa a uma
série de indícios plausíveis acerca da origem ilícita dos bens, como a incompatibi‑
lidade do patrimônio do paciente em relação aos rendimentos declarados. 8. No
decreto cautelar, ainda, a manifestação da juíza da vara federal criminal é expressa
no sentido de que, da análise dos autos, há elementos de materialidade do crime
e indícios de autoria. 9. Ordem indeferida. [HC 88.262, segundo julgamento, rel.
min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJ de 30-3-2007.]

Agravo regimental no recurso extraordinário. Processual penal. Incompetência abso-


luta. Atos decisórios. Possibilidade de ratificação. 1. Este Tribunal fixara anterior‑
mente entendimento no sentido de que, nos casos de incompetência absoluta,
somente os atos decisórios seriam anulados, sendo possível a ratificação dos atos
sem caráter decisório. Posteriormente, passou a admitir a possibilidade de rati-
ficação inclusive dos atos decisórios. Precedentes. Agravo regimental a que se
nega seguimento. [RE 464.894 AgR, rel. min. Eros Grau, Segunda Turma, DJE 152,
de 15-8-2008.]

E, na espécie, como visto, a decisão agravada – considerada em seu conjunto –,


embora tenha feito ressalva expressa apenas à quebra do sigilo bancário, na
verdade reputou válidos apenas os atos da instância de origem quando ainda
competente para a sua prática, sem ratificação de decisão ou comando relativo
à instrução do feito, em prejuízo à defesa. Incólumes os arts. 564 e 567 do CPP.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.
É como voto.

EXTRATO DA ATA
AP 695 AgR/MT — Relatora: Ministra Rosa Weber. Agravante: Josué Bengtson
(Advogado: Luís Maximiliano Telesca). Agravado: Ministério Público Federal
(Procurador: Procurador-geral da República).
Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto da relatora, negou
provimento ao agravo regimental. Votou o presidente. Ausentes, justificadamente,
o ministro Celso de Mello e, neste julgamento, os ministros Joaquim Barbosa

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  34


AP 695 AgR

(presidente), Dias Toffoli, Luiz Fux e Roberto Barroso. Presidiu o julgamento


o ministro Ricardo Lewandowski, vice-presidente no exercício da presidência.
Presidência do ministro Joaquim Barbosa. Presentes à sessão os ministros
Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias
Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Teori Zavascki e Roberto Barroso. Procurador‑
-geral da República, doutor Rodrigo Janot Monteiro de Barros.
Brasília, 13 de fevereiro de 2014 — Luiz Tomimatsu, assessor-chefe do Plenário.

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Ext 1.259

EXTRADIÇÃO 1.259 — DF
Relator: O sr. ministro Dias Toffoli
Requerente: Governo da Argentina
Extraditando: José Martín Martín

Extradição instrutória. Duplicidade do pedido. Governos da


Argentina e dos Estados Unidos da América (Ext 1.277). Preferên‑
cia do pleito formulado pelo Governo argentino. Inteligência
do art. 79, § 1º, I, da Lei 6.815/1980. Pedido instruído com os do­­
cumentos necessários à sua análise. Atendimento aos requisitos
da Lei 6.815/1980 e do tratado de extradição firmado entre os
Estados constituintes do Mercosul. Prescrição. Não ocorrên‑
cia, tanto sob a óptica da legislação alienígena quanto sob a
óptica da legislação penal brasileira. Dupla tipicidade. Ocor‑
rência. Alegação de insuficiência de provas que vinculem o
extraditando à prática delitiva. Reexame de fatos subjacentes à
investigação. Impossibilidade. Sistema de contenciosidade limi‑
tada. Precedentes. Pedido deferido. Assegurada a detração do
tempo de prisão ao qual o extraditando foi submetido no Brasil
(art. 91, II, da Lei 6.815/1980). Consequente prejudicialidade do
pedido formulado pelo Governo dos Estados Unidos da América.
1. Pelos mesmos fatos narrados neste pleito extradicional, o Go­­verno
dos Estados Unidos da América, com base no tratado de extradição
firmado entre o Governo daquele país e o da República Federativa do
Brasil, em data posterior, formulou pedido de extradição do súdito
estrangeiro em questão, imputando-lhe o crime de conspiração (Ext
1.277/Estados Unidos da América, de minha relatoria).

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  36


Ext 1.259

2. Prevendo esse tipo de impasse, o legislador ordinário fez constar


do Estatuto do Estrangeiro regra específica. No caso, a solução repousa
no inciso I, § 1º, do art. 79 da Lei 6.815/1980, ou seja, tem preferência
no pedido de extradição o “Estado requerente em cujo território haja
sido cometido o crime mais grave, segundo a lei brasileira”.
3. Considerando que o crime mais grave imputado ao extraditando,
segundo a legislação brasileira, fora praticado em território argentino,
tem este preferência quanto ao pedido de extradição.
4. O pedido formulado pelo Governo da Argentina, com base em
tratado de extradição firmado entre os Estados constituintes do Mer‑
cosul, atende aos pressupostos necessários ao seu deferimento, nos
termos da Lei 6.815/1980.
5. Pedido que foi instruído com os documentos necessários à sua
análise, trazendo, inclusive, detalhes precisos quanto ao local, à data,
à natureza e às circunstâncias dos fatos delituosos. Portanto, em per‑
feita consonância com as regras do tratado bilateral e do art. 80, caput,
da Lei 6.815/1980.
6. Os requisitos da dupla tipicidade e da dupla punibilidade estão
presentes na espécie. Ao extraditando foi imputada a prática do crime
de tráfico de entorpecentes, que tem correspondência no Brasil com
o crime tipificado no art. 33, caput, da Lei 11.343/2006, cuja pena de
reclusão é de cinco a quinze anos.
7. Não ocorrência da prescrição da pretensão punitiva, seja sob a
óptica da legislação alienígena, seja sob a óptica da legislação brasi‑
leira (art. 109, I, do Código Penal).
8. No Brasil, o processo extradicional se pauta pelo princípio da con‑
tenciosidade limitada, não competindo a esta Suprema Corte indagar
sobre o mérito da pretensão deduzida pelo Estado requerente ou sobre
o contexto probatório em que a postulação extradicional se apoia.
9. De acordo com o art. 91, II, da Lei 6.815/1980, o Governo da Argen‑
tina deverá assegurar a detração do tempo em que o extraditando
houver permanecido preso no Brasil por força do pedido formulado.
10. Extradição deferida.
11. Consequente prejudicialidade do pedido formulado pelo Go­­verno
dos Estados Unidos da América.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  37


Ext 1.259

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a presidência do ministro Dias Toffoli,
na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimi‑
dade de votos, em deferir a extradição, nos termos do voto do relator.
Brasília, 22 de maio de 2012 — Dias Toffoli, relator.

RELATÓRIO
O sr. ministro Dias Toffoli: Trata-se de pedido de extradição instrutória, encami‑
nhado por via diplomática ao Ministério das Relações Exteriores, formulado pelo
Governo da Argentina, com base em tratado de extradição firmado entre os Estados
componentes do Mercosul, pelo qual pede a extradição do nacional venezuelano José
Martín Martín, investigado naquele país por suposto delito de tráfico de entorpecentes.
Colhe-se da Nota Verbal 280/2011:
A embaixada da República Argentina apresenta seus atenciosos cumprimentos
ao Ministério das Relações Exteriores – Divisão de Cooperação Jurídica Internacio-
nal – na oportunidade de solicitar, em nome do Governo argentino, com base no
artigo 6º do Tratado de Extradição firmado entre a Argentina e o Brasil, a prisão
preventiva com fins de extradição de: 1) José Martín Martín, nacionalidade vene‑
zuelana (...); e (...), nacionalidade espanhola (...).
O presente pedido de prisão preventiva com fins de extradição está baseado na
solicitação efetuada na Chancelaria argentina mediante Ofício do Juzgado Nacional
em lo Criminal y Correccional Federal n. 5, Secretaria n. 9, causa n. 7.429/11, intitu‑
lada “Martín Martín José y Ostros/Infracción Ley 23.737” (art. 5 inc. C).
O fato pelo qual os nominados são acusados consiste em que no dia 15 de junho
de 2011, como tripulantes do veleiro Traful (...) que navegava no território argentino
em direção à Punta del Este, Uruguai, solicitaram auxílio por uma falha técnica.
Os nominados solicitaram ser escoltados até Piriápolis, Uruguai. Não obstante, o
pessoal da Prefectura Naval Argentina os trasladou à doca e do porto da Cidade de
Buenos Aires, para logo ser amarrado o veleiro no Yacht Club Argentino.
Posteriormente, no dia 17 de junho de 2011, técnicos da empresa de manuten‑
ção encontraram no interior do veleiro Traful um total de 444 quilos de cocaína.
Os nominados foram trasladados a Colônia, Uruguai, no dia 15 de junho de 2011,
e se encontrariam, atualmente, em Canoas, Pelotas, Capo do Leto, Rio Grande do
Sul, República Federativa do Brasil.
O descrito se enquadraria nas previsões do Artigo 5, inciso “C”, na modalidade
de transporte da Lei 23.737, que tem prevista pena entre 4 e 15 anos, e autoriza a
extradição de acordo com o Tratado de Extradição vigente entre Argentina e Brasil.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  38


Ext 1.259

O mencionado Tribunal Federal expediu ordem de prisão internacional na data


de 17 de junho de 2011. [Fls. 3/4 – Grifos no original.]

Em 5-8-2011, decretei a prisão preventiva do extraditando, por entender pre‑


enchidos os requisitos estabelecidos no art. 82 da Lei 6.815, de 19 de agosto de
1980 (PPE 663, em apenso – fls. 11 a 13).
O ministro de Estado da Justiça comunicou que, aos 25-11-2011, foi efetivada a
prisão do extraditando (fl. 19 da PPE 663, em apenso), que atualmente se encon‑
tra custodiado na penitenciária de alta segurança de Charqueadas/RS (fl. 33).
O extraditando foi interrogado (fl. 68/68v.). Apresentou a defesa escrita (fls.
12/13), na qual sustenta a insuficiência das provas que o vinculam à prática deli‑
tiva, bem como a existência de risco de vida, caso seja extraditado, uma vez
que, segundo alega, estaria ele “sendo ameaçado de morte pelas pessoas que o
contrataram para intermediar a compra da embarcação” (fl. 13).
Instado a manifestar-se, o Ministério Público Federal, pelo parecer do ilustre
subprocurador-geral da República doutor Mario José Gisi, opinou pelo deferi‑
mento do pedido de extradição (fls. 93 a 98).
É o relatório.

VOTO
O sr. ministro Dias Toffoli (relator): Conforme relatado, trata-se de extradição
fundada em título prisional preventivo decretado contra o extraditando no país
requerente, visando ao seu processamento por suposta prática do crime de trá‑
fico de entorpecentes, tendo a nota verbal fornecido indicações concretas sobre
local, data, natureza e circunstâncias dos fatos delituosos.
Colhe-se do ato de indictment do extraditando (fl. 12/12v.) a descrição do crime
que lhe é atribuído:
c. Relação sumária dos fatos: No dia 15 de junho deste ano, o veleiro denominado
“Traful”, matrícula DL 4451X, com bandeira estadunidense, se encontrava nave‑
gando à altura do quilômetro 30 do canal Emilio Mitre, em um percurso entre
a cidade de La Plata, em território argentino, e a cidade de Punta del Este, em
território uruguaio quando seus tripulantes solicitaram o auxílio do pessoal da
“Prefectura Naval Argentina” a causa de uma avaria técnica. Corresponde destacar
que na embarcação mencionada estavam duas pessoas, identificadas como José
Martín Martín, passaporte espanhol AD 703469 e (...), com passaporte espanhol
BE 539819, que solicitam ser escoltados até a cidade de Piriápolis, no Uruguai.
Contudo, o pessoal da “Prefectura Naval Argentina” trasladaram o navio até a Doca
“E” do Porto de Cidade de Buenos Aires, Argentina, para ser finalmente amarrado
no Yacht Club Argentino.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  39


Ext 1.259

Posteriormente, no dia 17 de junho deste ano, técnicos da empresa de reparações


“Polinave” acharam no interior do veleiro denominado “Traful” painéis ou tijolos que
pareciam conter material entorpecente. Depois disso, e consultado este juizado, a
“Prefectura Naval Argentina” informou que, conforme aparece nos seus registros, no
dia 15 de junho deste ano, às 18:30 horas, José Martín Martín e (...) o transladaram-se
a Colônia, República Oriental do Uruguai e que, na atualidade, estavam residindo na
República Federativa do Brasil; a sua Localização foi possível pois se manifesta nos
endereços de IP n. 189.27.128.215, que corresponderia ao Estado do Rio Grande do
Sul, cidade de Capão do Leão; 189.27.140.123 que corresponderia ao Estado do Rio
Grande do Sul, cidade de Pelotas, ambos dois pertencentes à empresa Global Village
Telecom, no IP n. 189.30.52.17 da empresa Brasil Telecom S.A. do Distrito Federal,
que corresponderia ao Estado do Rio Grande do Sul, cidade de Canoas; e no IP n.
189.27.133.59, que corresponderia ao Estado do Rio Grande do Sul, cidade de Pelotas.
d. Penalidade prevista para o fato que motiva o pedido de detenção e extradição,
textos legais que tipificam o delito: A norma que se aplica a este caso é a presumível
comissão do delito previsto e reprimido pelo art. 5º “C” da Lei 23.737 na modali‑
dade de transporte. Nesse sentido, o art. 5º “C” da Lei 23.737 refere: “Será reprimido
com reclusão de 4 a 15 anos e multa de 2.250.000 a 187.500.000 australes, quem,
sem autorização ou destino ilegítimo, (...) ‘C’: comercie com entorpecentes ou
matérias primas para sua produção ou fabricação, ou os armazene, ou os trans‑
porte.” Acompanha a presente Carta Rogatória cópia certificada do texto legal. [Fl.
12/12v. – Grifos conforme o original.]

Como se vê, os fatos expostos identificam o crime de tráfico de entorpecentes,


praticado em 15-6-2011, dentro do território argentino, estando individualizada a
conduta imputada ao extraditando de forma suficiente e bastante ao exercício
do direito de defesa.
Pois bem, dito isso, faz-se necessário consignar que, pelos mesmos fatos
narrados, o Governo dos Estados Unidos da América, com base no tratado de
extradição firmado entre o Governo daquele país e o da República Federativa do
Brasil, em data posterior ao presente pleito extradicional, igualmente formulou
pedido de extradição do súdito estrangeiro em questão, imputando-lhe o crime de
conspiração. Cuida-se da Ext 1.277/Estados Unidos da América, que, sob minha
relatoria, encontra-se em trâmite na Corte.
Diante desse quadro, a solução do impasse repousa na regra do art. 79, § 1º, I,
da Lei 6.815/1980, segundo a qual, in verbis:
Art. 79. Quando mais de um Estado requerer a extradição da mesma pessoa, pelo mes-
mo fato, terá preferência o pedido daquele em cujo território a infração foi cometida.
§ 1º Tratando-se de crimes diversos, terão preferência, sucessivamente:
I – o Estado requerente em cujo território haja sido cometido o crime mais grave,
segundo a lei brasileira; [Grifei.]

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  40


Ext 1.259

Desta feita, é preciso registrar que, em relação ao crime de conspiração, con‑


soante já decidido reiteradas vezes por esta Corte, há correspondência desse
delito com o de quadrilha (art. 288 do Código Penal). A esse respeito, Ext 1.212/
Estados Unidos da América, Primeira Turma, de minha relatoria, DJE de 13-9-
2011; Ext 966/Estados Unidos da América, Tribunal Pleno, rel. min. Sepúlveda
Pertence, DJ de 1º-9-2006; Ext 912/Estados Unidos da América, Tribunal Pleno,
rel. min. Joaquim Barbosa, DJ de 29-4-2005, entre outros.
Fixada essa premissa, anoto que o crime de tráfico de entorpecentes, segundo
a lei brasileira, é considerado mais grave que o delito de quadrilha, pois se trata
de delito equiparado a hediondo. Assim, tendo em conta que esse delito foi pra‑
ticado em território argentino, segundo a lei de regência indicada, tem esse país
preferência quanto ao pedido de extradição, cujos requisitos passo a analisar.
O Estado requerente possui competência para a instrução e o julgamento dos
fatos narrados no mandado de prisão expedido, pois, como já mencionado, o
crime imputado ao extraditando foi praticado naquele território, estando este
caso em perfeita consonância com o disposto no art. 78, I, da Lei 6.815/1980.
O crime também não possui conotação política, afastando-se, portanto, a
vedação do art. 77 da Lei 6.815/1980 e do art. V do tratado bilateral.
O pedido formal de extradição foi devidamente apresentado pelo Estado
requerente (art. 80 da Lei 6.815/1980) e instruído com cópias do mandado de
detenção internacional expedido por autoridade judiciária competente (fl. 10),
havendo indicações precisas sobre local, data, natureza e circunstâncias dos
fatos delituosos, como se verifica pela análise dos documentos de fls. 5 a 9, devi‑
damente traduzidos (fls. 11 a 14v.).
Os requisitos da dupla tipicidade e da dupla punibilidade estão presentes na
espécie. Note-se que ao extraditando foi imputada a prática do crime de tráfico
de entorpecentes, que tem correspondência no Brasil com o crime tipificado no
art. 33, caput, da Lei 11.343/2006, cuja pena de reclusão é de cinco a quinze anos.
Em atendimento ao disposto no art. III, c, do tratado bilateral e no art. 77, VI,
da Lei 6.815/1980, cumpre salientar que não ocorreu a prescrição da pretensão
executória, sob a óptica da legislação de ambos os Estados.
Não obstante inexistir nos autos cópia dos textos legais relativos à suspensão,
à interrupção ou aos prazos prescricionais das penas e dos delitos, há declaração
expressa do Estado requerente acerca da não ocorrência da prescrição, in verbis:
A investigação está na etapa processual de instrução e (...) e José Martín Martín
ainda não foram ouvidos na Causa, mas ostentam o caráter de imputado, sem
registrar, até este momento, auto de processamento nem condenas [sic] por estes
fatos. Os delitos que lhes são imputados não estão prescritos, quer dizer, a ação

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  41


Ext 1.259

penal seguida contra os nomeados encontra-se em absoluta vigência. [Fl. 12v. –


Grifos conforme o original.]

À luz do art. 18, 4, iii, do tratado de extradição firmado entre os Estados com‑


ponentes do Mercosul, é o que basta para se atestar a sua não ocorrência da
óptica da legislação alienígena. Confira-se:
Artigo 18
Do Pedido
(...)
1. O pedido de extradição será encaminhado por via diplomática. Seu diligencia‑
mento será regulado pela legislação do Estado Parte requerido.
2. Quando se tratar de indivíduo não condenado, o pedido de extradição deverá
ser acompanhado de original ou cópia do mandado de prisão ou de ato de processo
criminal equivalente, conforme a legislação do Estado Parte requerido, emanado
de autoridade competente.
(...)
4. Nas hipóteses referidas nos parágrafos 2 e 3, deverão, ainda, acompanhar o
pedido:
(...)
iii) cópia ou transcrição autêntica dos textos legais que tipificam e sancionam
o delito, identificando a pena aplicável, os textos que estabelecem a jurisdição do
Estado Parte requerente para deles tomar conhecimento, assim como uma decla‑
ração de que a ação e a pena não estejam prescritas de acordo com sua legislação.

No ordenamento jurídico brasileiro (art. 109, I, do Código Penal), os crimes do


art. 33, caput, da Lei 11.343/2006 prescrevem no prazo de vinte anos, considerando
o patamar máximo da pena alcançada pelo delito. Datado o fato de 15-6-2011,
obviamente não se operou a prescrição.
Portanto, sob todos os ângulos, não há que se falar em prescrição da preten‑
são punitiva estatal do delito praticado pelo extraditando, seja sob a óptica da
legislação alienígena, seja sob a óptica da legislação brasileira.
No que concerne à alegação do extraditando acerca da insuficiência das provas
que o vinculam à pratica delitiva, anoto que a jurisprudência desta Suprema
Corte tem, reiteradamente, assinalado que
O modelo extradicional vigente no Brasil – que consagra o sistema de contencio‑
sidade limitada, fundado em norma legal (Estatuto do Estrangeiro, art. 85, § 1º)
reputada compatível com o texto da Constituição da República (RTJ 105/4-5 –
RTJ 160/433-434 – RTJ 161/409-411 – RTJ 183/42-43 – Ext 811/República do Peru) –
não autoriza que se renove, no âmbito da ação de extradição passiva promovida
perante o Supremo Tribunal Federal, o litígio penal que lhe deu origem, nem que se

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  42


Ext 1.259

efetive o reexame do quadro probatório ou a discussão sobre o mérito da acusação


ou da condenação emanadas de órgão competente do Estado estrangeiro. [Ext 866/
República Portuguesa, Tribunal Pleno, rel. min. Celso de Mello, DJ de 13-2-2004.]

Perfilhando esse entendimento, destaco, ainda, os seguintes precedentes:


Extradição. Governo da Itália. Formação de quadrilha voltada ao tráfico ilícito de
entorpecentes, concurso em extorsão e concurso em lesões graves. Extraditando que
possui doença mental atestada por laudo. Preliminar de prejudicialidade afastada.
Análise que cabe ao Estado requerente. Presença da dupla tipicidade. Inocorrência de
extinção da punibilidade, tanto pela lei brasileira como pela lei italiana, quanto aos
fatos relativos aos mandados de prisão expedidos pela justiça italiana. Ausência de
óbice ao deferimento da extradição. Prescrição da pretensão executória reconhecida,
nos termos da legislação brasileira. Pedido parcialmente deferido. 1. Os crimes de
tráfico ilícito de substâncias entorpecentes, associação para o tráfico, extorsão e
lesões graves, pelos quais o extraditando foi condenado na Itália, encontram tipos
penais correspondentes no ordenamento jurídico brasileiro. Presente, portanto, o
requisito da dupla tipicidade. 2. Não cabe a esta Corte examinar matéria atinente à
eventual inimputabilidade do extraditando, pois no Brasil o processo extradicional se
pauta pelo princípio da contenciosidade limitada. Cabe ao Estado requerente a aná-
lise sobre aplicação de pena ou medida de segurança ao extraditando. 3. A prescrição
da pretensão executória regulada pela pena residual em caso de fuga não admite o
cômputo do tempo de prisão provisória. Precedentes. Prescrição consumada em
11-6-2006, em relação à sentença penal condenatória proferida pela Justiça italiana
em 11-6-1994, nos termos da legislação brasileira. 4. Prescrição não ocorrida, porém,
à luz da legislação brasileira, tampouco nos termos da lei italiana, quanto aos fatos
que deram origem aos mandados de prisão expedidos pela Justiça italiana. 5. Pedido
de extradição parcialmente deferido. [Ext 932/República Italiana, Tribunal Pleno,
rel. min. Joaquim Barbosa, DJ de 28-3-2008 – Grifos nossos.]

Extradição passiva de caráter executório – Inexistência de tratado de extradição entre


o Brasil e a República Tcheca – Promessa de reciprocidade – Fundamento jurídico
suficiente – Dupla tipicidade – Condenação pela prática do delito de estelionato –
Pretendida nulidade do julgamento do extraditando, porque alegadamente realizado
sob a égide de regime autoritário – Inocorrência – Alegação de ausência de fair trial
e de julgamento político – Afirmação inconsistente – Pretendida discussão sobre a
prova penal produzida perante tribunal do Estado requerente – Inadmissibilidade –
Sistema de contenciosidade limitada – Extradição deferida. Inexistência de tratado
de extradição e oferecimento de promessa de reciprocidade por parte do Estado
requerente. – A inexistência de tratado de extradição não impede a formulação e
o eventual atendimento do pleito extradicional, desde que o Estado requerente
prometa reciprocidade de tratamento ao Brasil, mediante expediente (nota verbal)
formalmente transmitido por via diplomática. Doutrina. Precedentes. Extradição

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  43


Ext 1.259

e respeito aos direitos humanos: paradigma ético-jurídico cuja observância condi-


ciona o deferimento do pedido extradicional. – A essencialidade da cooperação
internacional na repressão penal aos delitos comuns não exonera o Estado bra‑
sileiro e, em particular, o Supremo Tribunal Federal, de velar pelo respeito aos
direitos fundamentais do súdito estrangeiro que venha a sofrer, em nosso país,
processo extradicional instaurado por iniciativa de qualquer Estado estrangeiro.
O extraditando assume, no processo extradicional, a condição indisponível de
sujeito de direitos, cuja intangibilidade há de ser preservada pelo Estado a que foi
dirigido o pedido de extradição (o Brasil, no caso). – O Supremo Tribunal Federal
não deve autorizar a extradição, se se demonstrar que o ordenamento jurídico do
Estado estrangeiro que a requer não se revela capaz de assegurar, aos réus, em
juízo criminal, os direitos básicos que resultam do postulado do due process of
law (RTJ 134/56-58 – RTJ 177/485-488), notadamente as prerrogativas inerentes à
garantia da ampla defesa, à garantia do contraditório, à igualdade entre as partes
perante o juiz natural e à garantia de imparcialidade do magistrado processante.
Demonstração, no caso, de que o regime político que informa as instituições do
Estado requerente reveste-se de caráter democrático, assegurador das liberdades
públicas fundamentais. Extradição e dupla tipicidade. – A possível diversidade
formal concernente ao nomen juris das entidades delituosas não atua como causa
obstativa da extradição, desde que o fato imputado constitua crime sob a dupla
perspectiva dos ordenamentos jurídicos vigentes no Brasil e no Estado estrangeiro
que requer a efetivação da medida extradicional. O postulado da dupla tipicidade,
por constituir requisito essencial ao atendimento do pedido de extradição, impõe
que o ilícito penal atribuído ao extraditando seja juridicamente qualificado como
crime tanto no Brasil quanto no Estado requerente, sendo irrelevante, para esse
específico efeito, a eventual variação terminológica registrada nas leis penais em
confronto. O que realmente importa, na aferição do postulado da dupla tipicidade,
é a presença dos elementos estruturantes do tipo penal (essentialia delicti), tais
como definidos nos preceitos primários de incriminação constantes da legislação
brasileira e vigentes no ordenamento positivo do Estado requerente, independen‑
temente da designação formal por eles atribuída aos fatos delituosos. Processo
extradicional e sistema de contenciosidade limitada: inadmissibilidade de discussão
sobre a prova penal produzida perante o tribunal do Estado requerente. – A ação de
extradição passiva não confere, ao Supremo Tribunal Federal, qualquer poder de
indagação sobre o mérito da pretensão deduzida pelo Estado requerente ou sobre
o contexto probatório em que a postulação extradicional se apoia. – O sistema de
contenciosidade limitada, que caracteriza o regime jurídico da extradição passiva no
direito positivo brasileiro (RTJ 140/436 – RTJ 160/105 – RTJ 161/409-411 – RTJ 170/746-
747 – RTJ 183/42-43), não permite qualquer indagação probatória pertinente ao ilícito
criminal cuja persecução, no exterior, justificou o ajuizamento da demanda extradi-
cional perante o Supremo Tribunal Federal. Revelar-se-á excepcionalmente possí‑
vel, no entanto, a análise, pelo Supremo Tribunal Federal, de aspectos materiais
concernentes à própria substância da imputação penal, sempre que tal exame

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  44


Ext 1.259

se mostrar indispensável à solução de controvérsia pertinente (a) à ocorrência


de prescrição penal, (b) à observância do princípio da dupla tipicidade ou (c) à
configuração eventualmente política tanto do delito atribuído ao extraditando
quanto das razões que levaram o Estado estrangeiro a requerer a extradição de
determinada pessoa ao Governo brasileiro. [Ext 897/República Tcheca, Tribunal
Pleno, rel. min. Celso de Mello, DJ de 18-2-2005 – Grifei.]

De outra parte, no que tange aos argumentos de que o extraditando corre


risco de morte, conforme pontuado pelo Ministério Público Federal, “não há
como dar-lhes relevância, eis que completamente despid[o]s de qualquer suporte
concreto” (fl. 98).
Portanto, no meu entendimento, encontram-se presentes todos os requisitos
legais necessários ao deferimento da extradição.
Ante o exposto, defiro o pedido de extradição, devendo efetuar-se a detra‑
ção do tempo de prisão ao qual ele foi submetido no Brasil (art. 91, II, da Lei
6.815/1980).
Para fins de detração, informo que o extraditando foi mantido preso, preventi‑
vamente, em virtude do pedido de extradição, desde o dia 25 de novembro de 2011.
Via de consequência, anoto a prejudicialidade da Ext 1.277/Estados Unidos
da América, que deverá receber cópia do inteiro teor deste julgado.
É como voto.

EXTRATO DA ATA
Ext 1.259/DF — Relator: Ministro Dias Toffoli. Requerente: Governo da Argen‑
tina. Extraditando: José Martín Martín (Advogado dativo: Charlô Lorenz da Silva
Seifert) (Procurador: Defensor público-geral federal).
Decisão: A Turma deferiu a extradição, nos termos do voto do relator. Unâ‑
nime. Presidência do ministro Dias Toffoli.
Presidência do ministro Dias Toffoli. Presentes à sessão os ministros Marco
Aurélio, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Rosa Weber. Subprocurador-geral da Repú‑
blica, doutor Wagner Mathias.
Brasília, 22 de maio de 2012 — Carmen Lilian Oliveira de Souza, secretária
da Primeira Turma.

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ADI 2.913

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.913 — DF


Relator: O sr. ministro Carlos Velloso
Relatora para o acórdão: A sra. ministra Cármen Lúcia
Requerente: Procurador-geral da República
Interessados: Presidente da República
Congresso Nacional

Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 48, II e parágrafo


único, da Lei Complementar 75/1993 (Lei Orgânica do Ministé‑
rio Público). Atuação do procurador-geral da República no
Superior Tribunal de Justiça. Ampliação de atribuições por lei
complementar. Constitucionalidade.
1. São constitucionais o inciso II e o parágrafo único do art. 48 da Lei
Complementar 75/1993, que atribuem ao procurador-geral da República
a competência para propor, no Superior Tribunal de Justiça, a ação penal
prevista no art. 105, I, a, da Constituição da República, além de permiti‑
rem a delegação dessa competência a subprocurador-geral da República.
2. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo Tri‑
bunal Federal, em Tribunal Pleno, sob a presidência do ministro Gilmar Mendes,
na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de
votos, em julgar improcedente a ação direta de inconstitucionalidade, nos termos
do voto do relator. Vencidos os ministros Marco Aurélio e Carlos Britto. Votou
o presidente, ministro Gilmar Mendes. Ausentes, justificadamente, a ministra

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  46


ADI 2.913

Ellen Gracie e os ministros Joaquim Barbosa e Menezes Direito. Não votou o


ministro Ricardo Lewandowski por suceder ao ministro Carlos Velloso (relator).
Brasília, 20 de maio de 2009 — Cármen Lúcia, relatora para o acórdão.

RELATÓRIO
O sr. ministro Carlos Velloso: O procurador-geral da República, com funda‑
mento no art. 103, VI, da Constituição Federal, propõe ação direta de inconsti-
tucionalidade do art. 48, II e parágrafo único, da Lei Complementar 75/1993.
O dispositivo impugnado tem o seguinte teor:
Art. 48. Incumbe ao Procurador-Geral da República propor perante o Superior
Tribunal de Justiça:
(...)
II – a ação penal, nos casos previstos no art. 105, I, a, da Constituição Federal.
Parágrafo único. A competência prevista neste artigo poderá ser delegada a
Subprocurador-Geral da República.

Sustenta o requerente, em síntese, que o dispositivo impugnado extrapolou


as legitimações constitucionalmente conferidas ao chefe do Ministério Público
da União, porquanto incumbe ao procurador-geral da República exercer funções
junto ao Supremo Tribunal Federal, manifestando-se previamente em todos os
processos de sua competência, e não perante o Superior Tribunal de Justiça. Nesse
contexto, ressalta que “nada há na Constituição Federal, expressa ou implicita‑
mente, que legitime a atuação do Procurador-Geral da República no Superior Tri‑
bunal de Justiça, salvo a real e unívoca situação que se vem de examinar” (fls. 9-10).
Ao final, requer a declaração de inconstitucionalidade do inciso II e parágrafo
único do art. 48 da Lei Complementar 75/1993.
Solicitadas informações (fl. 13), na forma do parágrafo único do art. 6º da Lei
9.868/1999, o presidente da República sustenta (fls. 19-37), preliminarmente,
a inépcia da inicial, uma vez que o requerente não indicou, na petição inicial
ou no processo administrativo utilizado para lastrear sua fundamentação, qual
o dispositivo constitucional teria sido supostamente violado pelos dispositivos
questionados. No mérito, aduz, em síntese, que o dispositivo impugnado não
contradiz qualquer norma constitucional.
Por sua vez, o segundo vice-presidente do Congresso Nacional, em suas
informações (fls. 39-42), sustenta, em síntese, a inépcia da inicial, tendo em vista
a ausência de especificação do pedido, requisito essencial ao conhecimento da
presente ação.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  47


ADI 2.913

O ilustre advogado-geral da União, doutor Álvaro Augusto Ribeiro Costa,


manifestou-se, preliminarmente, pela inépcia da inicial e, no mérito, pela cons-
titucionalidade do inteiro teor da redação do inciso II e do parágrafo único do
art. 48 da Lei Complementar federal 75/1993 (fls. 44-51).
O então procurador-geral da República, professor Claúdio Fonteles, opinou
pela procedência da presente ação direta de inconstitucionalidade, “para que
seja declarada a inconstitucionalidade do parágrafo único e inciso II do art. 48
da Lei Complementar 75, de 20 de maio de 1993 – Lei Orgânica do Ministério
Público da União” (fls. 53-56).
É o relatório, do qual serão expedidas cópias aos excelentíssimos senhores
ministros.

VOTO
O sr. ministro Carlos Velloso (relator): Trata-se de ação direta de inconstitu‑
cionalidade proposta pelo procurador-geral da República, com o objetivo de ser
declarada a inconstitucionalidade do art. 48, II e parágrafo único, da Lei Com‑
plementar 75, de 1993, Lei Orgânica do Ministério Público, que dispõe:
Art. 48. Incumbe ao Procurador-Geral da República propor perante o Superior
Tribunal de Justiça:
(...)
II – a ação penal, nos casos previstos no art. 105, I, a, da Constituição Federal.
Parágrafo único. A competência prevista neste artigo poderá ser delegada a Sub‑
procurador-Geral da República.

O argumento básico do autor é este: o procurador-geral da República, chefe


do Ministério Público da União, atua no Supremo Tribunal, no seu Plenário.
No Superior Tribunal de Justiça, atuará o subprocurador-geral da República.
Esse quadro decorre, segundo o autor, do disposto nos arts. 102, I, b; 103, VI; e 36,
III e IV, todos da Constituição Federal.
Preliminarmente, rejeito a arguição de inépcia da inicial. É que esta indica
preceitos da Constituição Federal dos quais decorreria a inconstitucionalidade
do art. 48, II, parágrafo único, da Lei Complementar 75/1993.
Examino o mérito da questão.
Não tem procedência a arguição da inconstitucionalidade do art. 48, II e pará‑
grafo único, da Lei Complementar 75/1993.
Com efeito.
O art. 36, III, da Constituição Federal cuida da intervenção federal no Estado‑
-Membro, que dependerá de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  48


ADI 2.913

representação do procurador-geral da República, na hipótese do art. 34, VII (asse‑


gurar a observância de princípios constitucionais sensíveis), e no caso de recusa
à execução de lei federal, o que não implica afirmar que daí decorreria não ter o
procurador-geral da República atribuição de propor, perante o Superior Tribunal
de Justiça, ação penal originária.
O inciso IV do art. 36, CF, foi revogado pela EC 45, de 2004.
Do disposto no art. 102, I, b, que estabelece a competência originária do Su­­
premo Tribunal para processar e julgar o procurador-geral da República nas
infrações penais comuns, não decorre, data venia, que as atribuições do pro­
curador-geral somente são exercidas perante a Corte Suprema. O mesmo pode ser
dito do fato de a Constituição Federal conferir ao procurador-geral legitimidade
ativa para a ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103, VI).
Não é inconstitucional, portanto, o dispositivo legal apontado, art. 48, II e
parágrafo único, da Lei Complementar 75, de 1993, lei complementar que decorre
de disposição expressa da Constituição Federal, art. 128, § 5º.
Do exposto, julgo improcedente a ação e declaro a constitucionalidade do
art. 48, II e parágrafo único, da Lei Complementar 75, de 1993.

VOTO
O sr. ministro Sepúlveda Pertence: Senhor Presidente, estou para levar à Turma
um habeas corpus que aventa este problema. Concluí, também, pela constitu‑
cionalidade da norma ora questionada, que outorga ao procurador-geral da
República a atribuição de propor a ação penal de competência originária do
Superior Tribunal de Justiça.
Basta ver, na estrutura do próprio Ministério Público, um dado fundamental:
incumbe originariamente ao Superior Tribunal de Justiça julgar os subprocura‑
dores-gerais da República: mais que autorizar, a circunstância recomenda que
seja o único membro do Ministério Público de hierarquia superior o autor da
eventual ação penal contra um deles.
Afora o que Vossa Excelência lembrou – quer dizer, a representação interven‑
tiva que se propunha perante o Superior Tribunal de Justiça, que, pela Constitui‑
ção, era privativa do procurador-geral, hoje, com a EC 45, avocação dos processos
por “crimes contra os direitos humanos”, também é decidida pelo STJ mediante
provocação do procurador-geral.
Para não falar de outra tradicional atribuição cumulativa do procurador-geral
da República, que é o exercício das funções de procurador-geral eleitoral perante
o TSE, por força de lei.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  49


ADI 2.913

Não há, assim, a alegada extravagância do dispositivo impugnado.


Estou de acordo com o ministro relator e julgo improcedente a ação direta.

EXTRATO DA ATA
ADI 2.913/DF — Relator: Ministro Carlos Velloso. Requerente: Procurador-geral
da República. Interessados: Presidente da República e Congresso Nacional.
Decisão: Após os votos dos ministros Carlos Velloso (relator) e Sepúlveda
Pertence, que julgavam improcedente a ação, pediu vista dos autos o ministro
Marco Aurélio. Presidência do ministro Nelson Jobim. Plenário, 17-11-2005.
Decisão: Renovado o pedido de vista do ministro Marco Aurélio, justificada‑
mente, nos termos do § 1º do art. 1º da Resolução 278, de 15 de dezembro de 2003.
Presidência do ministro Nelson Jobim.
Presidência do ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os ministros Sepúl‑
veda Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar
Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Vice-pro­
curador-geral da República, doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 8 de fevereiro de 2006 — Luiz Tomimatsu, secretário.

VOTO-VISTA
O sr. ministro Marco Aurélio: Esta ação direta de inconstitucionalidade foi
formalizada pelo procurador-geral da República e está dirigida contra o inciso II
do art. 48 da Lei Complementar 75/1993, que estabelece incumbir ao procurador‑
-geral da República propor a ação penal perante o Superior Tribunal de Justiça
nos casos previstos no art. 105, I, a, da Constituição Federal, podendo a compe‑
tência ser delegada a subprocurador-geral da República, conforme versado no
parágrafo único do citado artigo. Na assentada em que teve início o julgamento,
os ministros Carlos Velloso – relator – e Sepúlveda Pertence pronunciaram-se
no sentido da improcedência do pedido.
Passo a votar na matéria.
A Constituição Federal revela serem princípios institucionais do Ministério
Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. Em termos
gerais, esse preceito corresponde à unidade do Judiciário – § 1º do art. 127 da Lei
Maior. Relativamente ao Ministério Público da União, observa-se a chefia dos
diversos segmentos – Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho,
Ministério Público Militar, Ministério Público do Distrito Federal e Territórios –
pelo procurador-geral da República – § 1º do art. 128 da Carta Federal. Neste

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  50


ADI 2.913

mesmo artigo, o § 5º preceitua que leis complementares da União e dos Estados,
cuja iniciativa é facultada aos respectivos procuradores-gerais, estabelecerão a
organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas
as garantias e as vedações explicitadas. Entrementes, deve-se levar em conta,
na edição da lei complementar, o sistema consagrado pela Constituição Federal.
Pois bem, o exame do Diploma Maior revela, considerada até mesmo a tradição,
a atuação direta do procurador-geral da República no órgão máximo do Judiciário,
ou seja, no Supremo – arts. 36, III (decretação da intervenção), 103, VI e § 1º, da Carta
Federal. Quanto à ação penal, também ele atua junto ao Plenário, sendo que, nos
processos em geral, pode haver, tratando-se de jurisdição das turmas, o credencia‑
mento de subprocurador. Mais do que isso, a íntima ligação do procurador-geral da
República com o Supremo está demonstrada na competência deste para proces‑
sar e julgar aquele, originariamente, nas infrações penais comuns e também nos
habeas corpus quando seja coator ou paciente – art. 102, I, b e i, da Carta de 1988.
No tocante ao Superior Tribunal de Justiça, reserva-lhe a Constituição Federal
a competência para processar e julgar, originariamente, os membros do Ministé‑
rio Público da União que oficiem perante tribunais, bem como os habeas quando
qualquer deles seja coator ou paciente – art. 105, I, a e c, da Constituição Federal.
Além do mais, a participação direta do procurador-geral da República em ins‑
tância estranha ao Supremo veio a ser versada expressamente no § 5º do art. 109
do Diploma Maior, a preceituar que, nas hipóteses de grave violação de direitos
humanos, o procurador-geral da República – com a finalidade de assegurar o
cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos
humanos dos quais o Brasil seja parte – poderá suscitar, perante o Superior
Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de
deslocamento de competência para a Justiça Federal. Vale dizer que a Lei Fun‑
damental é explícita ao prever situação jurídica em que possível a atuação direta
do procurador-geral da República junto ao Superior Tribunal de Justiça.
Ora, tanto o Judiciário quanto o Ministério Público estão organizados em
patamares, havendo elos reveladores da atuação nos diversos órgãos. Daí a con‑
clusão de o art. 48 da Lei Complementar 75/1993 – ao estabelecer que incumbe
ao procurador-geral da República ajuizar também ação penal da competência
do Superior Tribunal de Justiça, nesse último – discrepar do sistema consagrado
na Constituição Federal, do princípio da razoabilidade com o qual guarda perti‑
nência a proporcionalidade. Nem se diga sobre a possibilidade de ser delegada
a atuação. O parágrafo único do citado art. 48 encerra a exceção e não a regra.
Notem que a concentração prevista não atende sequer ao sistema de
freios e contrapesos inerente à Constituição Federal. Sabidamente, pleiteado

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  51


ADI 2.913

arquivamento de inquérito policial ou de qualquer peça de informação por órgão


do Ministério Público, o juiz, no caso de considerar improcedente as razões invo‑
cadas, há de fazer a remessa do inquérito ou das peças ao procurador-geral da
República, podendo este, aqui sim e levando em conta o disposto no art. 28 do
Código de Processo Penal, ofertar a denúncia ou designar outro órgão do Ministé‑
rio Público para oferecê-la, ou insistir no pedido de arquivamento ao qual, então,
o juiz estará obrigado a atender. Pois bem, a partir do momento em que ocorra
a concentração consagrada no aludido art. 48, fica afastada essa possibilidade,
esse segundo crivo. Vale ter presente trecho de voto do ministro Francisco Rezek
a envolver a matéria. Sua Excelência fez ver que “sempre houve no Judiciário
brasileiro, sobre sua relação com o Ministério Público, perfeita consciência da
horizontalidade hierárquica dos tribunais superiores, e da correspondência desse
nível, no Ministério Público, ao cargo do subprocurador-geral” – HC 70.029-2/CE,
publicado no Diário da Justiça de 13 de agosto de 1993, por mim relatado.
Tenho, assim, como inconstitucional, conforme preconizado pelo procurador‑
-geral da República à época, doutor Cláudio Fonteles, o inciso II do art. 48 da Lei
Complementar 75/1993, bem como, até mesmo por arrastamento, o parágrafo único
nele contido, já que, deixando de haver atribuição ao procurador-geral da Repú‑
blica, tem-se como inevitável o afastamento da delegação. É como voto na espécie.

VOTO
A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, li os votos do ministro rela‑
tor e vou pedir vênia ao ministro Marco Aurélio, mas me convenci das razões
apresentadas pelo ministro Carlos Velloso, que julgou improcedente a ação, e
vou acompanhá-lo.

EXTRATO DA ATA
ADI 2.913/DF — Relator: Ministro Carlos Velloso. Requerente: Procurador-geral
da República. Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional.
Decisão: Após os votos dos ministros Marco Aurélio e Carlos Britto, julgando
procedente a ação, e dos votos da ministra Cármen Lúcia e do ministro Eros
Grau, acompanhando o relator, julgando improcedente a ação, pediu vista dos
autos o ministro Cezar Peluso. Não participam da votação os ministros Ricardo
Lewandowski e Menezes Direito por sucederem aos ministros Carlos Velloso
(relator) e Sepúlveda Pertence. Ausente, justificadamente, o ministro Joaquim
Barbosa. Presidência do ministro Gilmar Mendes.

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ADI 2.913

Presidência do ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os ministros Celso


de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Ricardo Lewan‑
dowski, Eros Grau, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Vice-procurador-geral da
República, doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 14 de agosto de 2008 — Luiz Tomimatsu, secretário.

VOTO-VISTA
O sr. ministro Cezar Peluso: 1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade
que, ajuizada pelo procurador-geral da República, tem por objeto o art. 48, II
e parágrafo único, da Lei Complementar 75/1993 (Lei Orgânica do Ministério
Público da União – LOMP). Essa norma atribui ao procurador-geral da República
legitimação ativa para as ações penais previstas no art. 105, I, a, da Constituição
Federal, permitida delegação ao subprocurador-geral da República.
Alega o demandante que tal dispositivo teria transposto os limites das atribui‑
ções constitucionais conferidas ao procurador-geral (PGR), bem como ferido a cor‑
respondência de níveis com os quadros estruturais dos demais poderes da União.
Extrai-se da petição inicial:
12. É por isso que a Constituição Federal estabelecendo esta correspondência faz
da Suprema Corte o juízo natural originário ao processo criminal do Procurador‑
-Geral da República (artigo 102, I, b). Também, no âmbito do Ministério Público,
só o Procurador-Geral da República legitima-se à propositura da ação direta de
inconstitucionalidade ante a Suprema Corte (artigo 103, VI).
13. É do Procurador-Geral da República a legitimação exclusiva à representação
interventiva para assegurar observância aos princípios constitucionais nominados
na Carta Maior (artigo 36, III).
14. Sem dúvida que neste espaço, representação interventiva da União no
Estado-membro – a Constituição Federal expressamente legitimou o Procurador‑
-Geral da República a postular, por tanto, ante o Superior Tribunal de Justiça, “no
caso de recusa à execução da lei federal” (artigo 36, IV).
15. Mas fê-lo a própria Constituição Federal.
16. E fê-lo, não para quebrar o sistema de correspondência, preservado no jul‑
gamento aqui comentado da Suprema Corte, mas tendo em conta a natureza do
pleito, que é sempre de intervenção da Federação na Unidade federada.
17. Nesta perspectiva excepcional, quem há de pedir, em tema de grave com‑
prometimento ao pacto federativo, é sempre o Procurador-Geral da República e,
segundo a matéria que deduzirá, o foro será tal, ou qual, pela própria definição
constitucional da missão da Suprema Corte, e do Superior Tribunal de Justiça.
18. Contudo, insistimos, a perspectiva é excepcional, e portanto posta nos exatos
limites do enunciado constitucional, que não pode transbordar.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  53


ADI 2.913

19. A Lei Complementar, todavia, transborda, e vai além.


20. Com efeito, nada há na Constituição Federal, expressa ou implicitamente,
que legitime a atuação do Procurador-Geral da República no Superior Tribunal
de Justiça, salvo a real e unívoca situação que se vem examinar.
21. É extravagância inconstitucional titular o Procurador-Geral da República para
denunciar, originariamente, no Superior Tribunal de Justiça, Conselheiro do Tri‑
bunal de Contas de município; o Juiz do Tribunal Regional Federal; ou Procurador
Regional da República, por exemplo.
22. Quebra-se com a correspondência de níveis, que a Constituição Federal
marcou por existente no sistema judicial brasileiro, porque “sempre houve”, para
recordamos as palavras do Magistrado Francisco Rezek, e que só pelo texto cons‑
titucional expresso, e nos limites do que exprime, pode ser excepcionada, por
supressão, ou ampliação.

O relator, ministro Carlos Velloso, na sessão de 17‑11‑2005, julgou improce‑


dente a ação e declarou a constitucionalidade do art. 48, II e parágrafo único,
da Lei Complementar 75/1993. Entendeu que o fato de a Constituição Federal
cometer determinadas atribuições ao procurador-geral da República não implica
que outras não possam ser-lhe conferidas por lei. Além disso, do
disposto no art. 102, I, b, que estabelece a competência originária do Supremo
Tribunal para processar e julgar o procurador-geral da República nas infrações
penais comuns, não decorre, data venia, que as atribuições do procurador-geral
somente são exercidas perante a Corte Suprema. O mesmo pode ser dito do fato
de a Constituição Federal conferir ao procurador-geral legitimidade ativa para a
ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103, VI).

Foi acompanhado pelo ministro Sepúlveda Pertence.


O ministro Marco Aurélio, na sessão de 14‑8‑2008, proferiu voto-vista pela
inconstitucionalidade do preceito atacado, por “discrepar do sistema consagrado
na Constituição Federal, do princípio com o qual guarda pertinência a propor‑
cionalidade”. No mesmo sentido, votou o ministro Carlos Britto. Votaram, ainda,
a ministra Cármen Lúcia e o ministro Eros Grau, acompanhando o relator, pela
improcedência da ação. Pedi vista dos autos para mais bem analisar a questão.
2. Tenho por improcedente a ação.
Ultrapassada a questão da inépcia da inicial, examino o mérito. A norma
impugnada, a meu juízo, não exorbitou.
Conforme se confirma do Ofício 33/03/GAB/DCR, de 17‑7‑2003, da subprocura‑
dora-geral da República Delza Curvello Rocha – de cuja manifestação me valho –,
a relativa simetria entre as organizações dos Poderes não foi quebrada, senão
garantida pela norma. É que foi reservada ao chefe de cada ramo do Ministério

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ADI 2.913

Público da União a competência ou atribuição para atuar perante os tribunais


superiores, nas áreas respectivas. É o que se dispõe em relação ao procurador‑
-geral Militar, do Trabalho e do Distrito Federal e Territórios. Dessa forma, tendo
em vista que o procurador-geral da República, além de ser chefe do Ministério
Público da União, também desempenha tal papel sobre o Ministério Público
Federal e o Eleitoral, entende-se que lhe tenha sido outorgada legitimação ativa
para a ação penal perante o Plenário do STJ.
Ao depois, a só falta, na Constituição, de disposição expressa sobre atribui‑
ções, não pré-exclui possam estas ser previstas por lei, como se tira ao pró‑
prio texto constitucional (art. 128, § 5º). A Constituição contém, aliás, apenas
algumas hipóteses de atribuições específicas, que, como a da representação
interventiva (art. 36, III), se não confundem com outras funções essenciais do
Ministério Público, como é o caso da legitimação exclusiva para propositura
de ação penal pública.
Ademais, das informações oriundas do Ministério da Justiça (Ofício 334/2003-
CJ/MJ, de 16‑7‑2003, fls.29-37) consta:
Nesse passo, vale notar que coube ao então Procurador-Geral da República, hoje
Ministro Sepúlveda Pertence, submeter ao Congresso Nacional o projeto de Lei
Orgânica do Ministério Público da União.
Vale lembrar, ainda, que, tal como esclarece a Mensagem n. 2, de 31 de março de
1989, do então Procurador-Geral da República, o trabalho de coordenação final
na elaboração do projeto foi desenvolvido pelo Subprocurador-Geral da República
Alfonso Henrique Prates Correia, ressaltada a colaboração da Associação Nacional
dos Procuradores da República, por intermédio de Comissão por ela constituída e
da qual fazia parte, dentre outros nomes de destaque na carreira, o Subprocurador‑
-Geral da República Álvaro Ribeiro da Costa.
O projeto original foi amplamente discutido em ambas as casas do Congresso
(PLC 69-A, de 1989, na Câmara dos Deputados, e PLC 11/1991 – Complementar, no
Senado Federal). O texto definitivo foi aprovado e, oportunamente, sancionado
pelo Presidente da República, na forma da Lei Complementar 75, de 1993). [Fl. 34.]

Em suma, não vejo nenhum prejuízo à instituição, nem ofensa à Constituição


da República, razão por que acompanho o relator, para julgar improcedente a
ação, declarando constitucional o art. 48, II e parágrafo único, da LOMP.

EXPLICAÇÃO
O sr. ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, no caso concreto, alcançada
foi a maioria absoluta exigida para a declaração de constitucionalidade.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  55


ADI 2.913

O sr. ministro Gilmar Mendes (presidente): Sim. Porque já votaram julgando


improcedente os ministros Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence, Cármen Lúcia,
Eros Grau...
O sr. ministro Marco Aurélio: Está bem. É que Vossa Excelência não estava
presente e rediscutimos essa matéria. Houve proclamação parcial de consti‑
tucionalidade com apenas cinco votos, isso em processo objetivo. O tema
será reaberto – acredito – quando seguirmos no julgamento da ação direta de
inconstitucionalidade.
O sr. ministro Gilmar Mendes (presidente): Julgavam procedente a ação
Vossa Excelência e o ministro Carlos Britto.
Portanto, está composto devidamente o quórum para a proclamação.

EXTRATO DA ATA
ADI 2.913/DF — Relator: Ministro Carlos Velloso. Relatora para o acórdão: Minis‑
tra Cármen Lúcia (art. 38, IV, b, do RISTF). Requerente: Procurador-geral da Repú‑
blica. Interessados: Presidente da República e Congresso Nacional.
Decisão: Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria e nos termos do
voto do relator, julgou improcedente a ação direta, vencidos os ministros Marco
Aurélio e Carlos Britto. Votou o presidente, ministro Gilmar Mendes. Redigirá o
acórdão a ministra Cármen Lúcia. Ausentes, justificadamente, a ministra Ellen
Gracie e os ministros Joaquim Barbosa e Menezes Direito. Não votou o ministro
Ricardo Lewandowski, por suceder ao ministro Carlos Velloso (relator).
Presidência do ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os ministros Celso
de Mello, Marco Aurélio, Cezar Peluso, Carlos Britto, Eros Grau, Ricardo Lewan‑
dowski e Cármen Lúcia. Procurador-geral da República, doutor Antonio Fernando
Barros e Silva de Souza.
Brasília, 20 de maio de 2009 — Luiz Tomimatsu, secretário.

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Pet 3.388 ED

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NA PETIÇÃO 3.388 — RR


(Pet 3.388 AgR na RTJ 200/1111 e Pet 3.388 na RTJ 212/49)

Relator: O sr. ministro Roberto Barroso


Embargantes: Augusto Affonso Botelho Neto, Lawrence Manly Harte e outros, Francisco
Mozarildo de Melo Cavalcanti, Comunidade Indígena Socó e outros, Estado
de Roraima, Ministério Público Federal, Ação Integralista Brasileira e outros
Embargados: União e Augusto Affonso Botelho Neto
Interessada: Fundação Nacional do Índio – FUNAI

Embargos de declaração. Ação popular. Demarcação da Terra


Indígena Raposa Serra do Sol.
1. Embargos de declaração opostos pelo autor, por assistentes, pelo
Ministério Público, pelas comunidades indígenas, pelo Estado de Roraima
e por terceiros. Recursos inadmitidos, desprovidos, ou parcialmente
providos para fins de mero esclarecimento, sem efeitos modificativos.
2. Com o trânsito em julgado do acórdão embargado, todos os pro‑
cessos relacionados à Terra Indígena Raposa Serra do Sol deverão
adotar as seguintes premissas como necessárias: (i) são válidos a Por‑
taria/MJ 534/2005 e o decreto presidencial de 15-4-2005, observadas as
condições previstas no acórdão; e (ii) a caracterização da área como
terra indígena, para os fins dos arts. 20, XI, e 231 da Constituição, torna
insubsistentes eventuais pretensões possessórias ou dominiais de par‑
ticulares, salvo no tocante à indenização por benfeitorias derivadas
da ocupação de boa-fé (CF/1988, art. 231, § 6º).
3. As chamadas condições ou condicionantes foram consideradas pres‑
supostos para o reconhecimento da validade da demarcação efetuada.
Não apenas por decorrerem, em essência, da própria Constituição, mas

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Pet 3.388 ED

também pela necessidade de se explicitarem as diretrizes básicas para


o exercício do usufruto indígena, de modo a solucionar de forma efetiva
as graves controvérsias existentes na região. Nesse sentido, as condições
integram o objeto do que foi decidido e fazem coisa julgada material.
Isso significa que a sua incidência na Reserva da Raposa Serra do Sol
não poderá ser objeto de questionamento em eventuais novos processos.
4. A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vin‑
culante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados
pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros proces‑
sos em que se discuta matéria similar. Sem prejuízo disso, o acórdão
embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais
alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo
nos casos em que se cogite da superação de suas razões.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a presidência do ministro Joaquim
Barbosa, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, em:
(i) por unanimidade, não conhecer dos embargos de declaração opostos por
Ação Integralista Brasileira, Movimento Integralista Brasileiro e Anésio de Lara
Campos Júnior, nos termos do voto do relator;
(ii) por unanimidade, negar provimento aos embargos opostos por Lawrence
Manly Harte e outros e pelo Estado de Roraima, nos termos do voto do relator;
(iii) por maioria, dar parcial provimento, sem efeitos modificativos, aos embar‑
gos de declaração opostos pelo senador Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti,
pela Procuradoria-Geral da República e pelas comunidades indígenas, apenas
para prestar os esclarecimentos expressos na ementa, nos termos do voto do
relator. Quanto aos embargos opostos pelo senador Mozarildo Cavalcanti, ficou
vencido o ministro Marco Aurélio, que lhes dava provimento em maior extensão.
Quanto aos embargos da Procuradoria-Geral da República, ficaram vencidos os
ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa (presidente), que lhe davam provi‑
mento com efeitos modificativos;
(iv) por unanimidade, delegar ao relator a incumbência de dirigir um ofício,
em nome da Corte, ao desembargador federal Jirair Aram Meguerian, cumpri‑
mentando-o pela dedicação e pelo excelente trabalho desenvolvido na supervi‑
são judicial sobre a execução da portaria e do decreto que demarcaram a Terra
Indígena Raposa Serra do Sol; e

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(v) por unanimidade, declarar exaurida a competência originária deste Tri‑


bunal para julgar processos relacionados à referida Terra Indígena, quando do
trânsito em julgado deste acórdão.
Brasília, 23 de outubro de 2013 — Roberto Barroso, relator.

RELATÓRIO
O sr. ministro Roberto Barroso: 1. Trata-se de embargos de declaração opostos
em face do acórdão do Tribunal Pleno que julgou parcialmente procedente o
pedido formulado na ação popular para, observadas algumas condições, decla‑
rar a validade da Portaria 534, de 13-4-2005, do ministro de Estado da Justiça,
que demarcou a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e do Decreto de 15-4-2005,
que a homologou. Confira-se a ementa e o dispositivo do acórdão embargado:
Ação popular. Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Inexistência de
vícios no processo administrativo-demarcatório. Observância dos arts. 231 e 232 da
Constituição Federal, bem como da Lei 6.001/1973 e seus decretos regulamentares.
Constitucionalidade e legalidade da Portaria 534/2005, do ministro da Justiça, assim
como do decreto presidencial homologatório. Reconhecimento da condição indígena
da área demarcada, em sua totalidade. Modelo contínuo de demarcação. Constitu-
cionalidade. Revelação do regime constitucional de demarcação das terras indígenas.
A Constituição Federal como estatuto jurídico da causa indígena. A demarcação das
terras indígenas como capítulo avançado do constitucionalismo fraternal. Inclusão
comunitária pela via da identidade étnica. Voto do relator que faz agregar aos respec-
tivos fundamentos salvaguardas institucionais ditadas pela superlativa importância
histórico-cultural da causa. Salvaguardas ampliadas a partir de voto-vista do ministro
Menezes Direito e deslocadas para a parte dispositiva da decisão.
1. Ação não conhecida em parte. Ação não conhecida quanto à pretensão autoral
de excluir da área demarcada o que dela já fora excluída: o 6º Pelotão Especial
de Fronteira, os núcleos urbanos dos Municípios de Uiramutã e Normandia, os
equipamentos e instalações públicos federais e estaduais atualmente existentes,
as linhas de transmissão de energia elétrica e os leitos das rodovias federais e esta‑
duais também já existentes. Ausência de interesse jurídico. Pedidos já contempla‑
dos na Portaria 534/2005 do ministro da Justiça. Quanto à sede do Município de
Pacaraima, cuida-se de território encravado na Terra Indígena São Marcos, matéria
estranha à presente demanda. Pleito, por igual, não conhecido.
2. Inexistência de vícios processuais na ação popular. 2.1. Nulidade dos atos, ainda
que formais, tendo por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras situadas na
área indígena Raposa Serra do Sol. Pretensos titulares privados que não são partes
na presente ação popular. Ação que se destina à proteção do patrimônio público
ou de entidade de que o Estado participe (inciso LXXIII do art. 5º da Constituição

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Federal), e não à defesa de interesses particulares. 2.2. Ilegitimidade passiva do


Estado de Roraima, que não foi acusado de praticar ato lesivo ao tipo de bem jurí‑
dico para cuja proteção se preordena a ação popular. Impossibilidade de ingresso
do Estado-membro na condição de autor, tendo em vista que a legitimidade ativa
da ação popular é tão somente do cidadão. 2.3. Ingresso do Estado de Roraima e de
outros interessados, inclusive de representantes das comunidades indígenas, exclu‑
sivamente como assistentes simples. 2.4. Regular atuação do Ministério Público.
3. Inexistência de vícios no processo administrativo demarcatório. 3.1. Processo
que observou as regras do Decreto 1.775/1996, já declaradas constitucionais pelo
Supremo Tribunal Federal no MS 24.045, da relatoria do ministro Joaquim Barbosa.
Os interessados tiveram a oportunidade de se habilitar no processo administrativo
de demarcação das terras indígenas, como de fato assim procederam o Estado de
Roraima, o Município de Normandia, os pretensos posseiros e comunidades indí‑
genas, estas por meio de petições, cartas e prestação de informações. Observância
das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. 3.2. Os dados e
peças de caráter antropológico foram revelados e subscritos por profissionais de
reconhecida qualificação científica e se dotaram de todos os elementos exigidos pela
Constituição e pelo Direito infraconstitucional para a demarcação de terras indíge‑
nas, não sendo obrigatória a subscrição do laudo por todos os integrantes do grupo
técnico (Decretos 22/1991 e 1.775/1996). 3.3. A demarcação administrativa, homolo‑
gada pelo presidente da República, é ato estatal que se reveste da presunção juris
tantum de legitimidade e de veracidade (RE 183.188, da relatoria do ministro Celso
de Mello), além de se revestir de natureza declaratória e força autoexecutória. Não
comprovação das fraudes alegadas pelo autor popular e seu originário assistente.
4. O significado do substantivo índios na Constituição Federal. O substantivo índios
é usado pela Constituição Federal de 1988 por um modo invariavelmente plural,
para exprimir a diferenciação dos aborígenes por numerosas etnias. Propósito
constitucional de retratar uma diversidade indígena tanto interétnica quanto
intraétnica. Índios em processo de aculturação permanecem índios para o fim de
proteção constitucional. Proteção constitucional que não se limita aos silvícolas,
estes, sim, índios ainda em primitivo estádio de habitantes da selva.
5. As terras indígenas como parte essencial do território brasileiro. 5.1 As terras indí‑
genas versadas pela Constituição Federal de 1988 fazem parte de um território
estatal-brasileiro sobre o qual incide, com exclusividade, o Direito nacional. E como
tudo o mais que faz parte do domínio de qualquer das pessoas federadas brasileiras,
são terras que se submetem unicamente ao primeiro dos princípios regentes das
relações internacionais da República Federativa do Brasil: a soberania ou indepen‑
dência nacional (inciso I do art. 1º da CF). 5.2 Todas as terras indígenas são um bem
público federal (inciso XI do art. 20 da CF), o que não significa dizer que o ato em
si da demarcação extinga ou amesquinhe qualquer unidade federada. Primeiro,
porque as unidades federadas pós-Constituição de 1988 já nascem com seu território
jungido ao regime constitucional de preexistência dos direitos originários dos índios
sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas. Segundo, porque a titularidade

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de bens não se confunde com o senhorio de um território político. Nenhuma terra


indígena se eleva ao patamar de território político, assim como nenhuma etnia ou
comunidade indígena se constitui em unidade federada. Cuida-se, cada etnia indí‑
gena, de realidade sociocultural, e não de natureza político-territorial.
6. Necessária liderança institucional da União, sempre que os Estados e Municípios
atuarem no próprio interior das terras já demarcadas como de afetação indígena.
A vontade objetiva da Constituição obriga a efetiva presença de todas as pessoas
federadas em terras indígenas, desde que em sintonia com o modelo de ocupação
por ela concebido, que é de centralidade da União. Modelo de ocupação que tanto
preserva a identidade de cada etnia quanto sua abertura para um relacionamento
de mútuo proveito com outras etnias indígenas e grupamentos de não índios.
A atuação complementar de Estados e Municípios em terras já demarcadas como
indígenas há de se fazer, contudo, em regime de concerto com a União e sob a
liderança desta. Papel de centralidade institucional desempenhado pela União,
que não pode deixar de ser imediatamente coadjuvado pelos próprios índios, suas
comunidades e organizações, além da protagonização de tutela e fiscalização do
Ministério Público (inciso V do art. 129 e art. 232, ambos da CF).
7. As terras indígenas como categoria jurídica distinta de territórios indígenas. O desa-
bono constitucional aos vocábulos povo, país, território, pátria ou nação indígena.
Somente o território enquanto categoria jurídico-política é que se põe como o preciso
âmbito espacial de incidência de uma dada Ordem Jurídica soberana, ou autônoma.
O substantivo terras é termo que assume compostura nitidamente sociocultural, e
não política. A Constituição teve o cuidado de não falar em territórios indígenas, mas,
tão só, em terras indígenas. A traduzir que os grupos, organizações, populações ou
comunidades indígenas não constituem pessoa federada. Não formam circunscri‑
ção ou instância espacial que se orne de dimensão política. Daí não se reconhecer a
qualquer das organizações sociais indígenas, ao conjunto delas, ou à sua base pecu‑
liarmente antropológica a dimensão de instância transnacional. Pelo que nenhuma
das comunidades indígenas brasileiras detém estatura normativa para comparecer
perante a Ordem Jurídica Internacional como Nação, País, Pátria, território nacio‑
nal ou povo independente. Sendo de fácil percepção que, todas as vezes em que a
Constituição de 1988 tratou de nacionalidade e dos demais vocábulos aspeados (País,
Pátria, território nacional e povo), foi para se referir ao Brasil por inteiro.
8. A demarcação como competência do Poder Executivo da União. Somente à União,
por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo, compete instaurar,
sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras indíge‑
nas, tanto quanto efetivá-lo materialmente, nada impedindo que o presidente da
República venha a consultar o Conselho de Defesa Nacional (inciso III do § 1º do
art. 91 da CF), especialmente se as terras indígenas a demarcar coincidirem com
faixa de fronteira. As competências deferidas ao Congresso Nacional, com efeito
concreto ou sem densidade normativa, exaurem-se nos fazeres a que se referem o
inciso XVI do art. 49 e o § 5º do art. 231, ambos da Constituição Federal.
9. A demarcação de terras indígenas como capítulo avançado do constitucionalismo

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fraternal. Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente


fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efe‑
tivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em
vista o protovalor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de
desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais
de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes
assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem
preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma acultura‑
ção que não se dilui no convívio com os não índios, pois a aculturação de que trata a
Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências.
Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo
proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretiza‑
ção constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica.
10. O falso antagonismo entre a questão indígena e o desenvolvimento. Ao poder
público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é subestimar, e muito
menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para
diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federati‑
vos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encon‑
trarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o
objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da Constituição Federal, assecuratório de
um tipo de desenvolvimento nacional tão ecologicamente equilibrado quanto huma‑
nizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena.
11. O conteúdo positivo do ato de demarcação das terras indígenas. 11.1. O marco
temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa – a data da
promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) – como insubstituível referencial
para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela
etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da
ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário
também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de con‑
tinuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde
onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não
ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não índios. Caso das fazendas
situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos
índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em
todo o complexo geográfico da Raposa Serra do Sol. 11.3. O marco da concreta abran‑
gência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas
são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de
uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produ‑
tivas, mais as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários
a seu bem-estar e ainda aquelas que se revelarem necessárias à reprodução física e
cultural de cada qual das comunidades étnico-indígenas, segundo seus usos, costu‑
mes e tradições (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes

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e tradições dos não índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é
um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que
resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma
etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles
tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse
permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras são
inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis (§ 4º do art. 231
da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um
heterodoxo instituto de direito constitucional, e não uma ortodoxa figura de direito
civil. Donde a clara intelecção de que os arts. 231 e 232 da Constituição Federal cons‑
tituem um completo estatuto jurídico da causa indígena. 11.4. O marco do conceito
fundiariamente extensivo do chamado princípio da proporcionalidade. A Consti‑
tuição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a
compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação,
da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas. O pró‑
prio conceito do chamado princípio da proporcionalidade, quando aplicado ao tema
da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo peculiarmente extensivo.
12. Direitos originários. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente
ocupam foram constitucionalmente reconhecidos, e não simplesmente outorgados,
com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propria‑
mente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente.
Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de originários, a traduzir um
direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pre‑
tensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou
títulos de legitimação de posse em favor de não índios. Atos, estes, que a própria
Constituição declarou como nulos e extintos (§ 6º do art. 231 da CF).
13. O modelo peculiarmente contínuo de demarcação das terras indígenas. O modelo
de demarcação das terras indígenas é orientado pela ideia de continuidade. Demarca‑
ção por fronteiras vivas ou abertas em seu interior, para que se forme um perfil cole‑
tivo e se afirme a autossuficiência econômica de toda uma comunidade usufrutuária.
Modelo bem mais serviente da ideia cultural e econômica de abertura de horizontes
do que de fechamento em bolsões, ilhas, blocos ou clusters, a evitar que se dizime o
espírito pela eliminação progressiva dos elementos de uma dada cultura (etnocídio).
14. A conciliação entre terras indígenas e a visita de não índios, tanto quanto com a
abertura de vias de comunicação e a montagem de bases físicas para a prestação de
serviços públicos ou de relevância pública. A exclusividade de usufruto das rique‑
zas do solo, dos rios e dos lagos nas terras indígenas é conciliável com a eventual
presença de não índios, bem assim com a instalação de equipamentos públicos, a
abertura de estradas e outras vias de comunicação, a montagem ou construção de
bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública, desde
que tudo se processe sob a liderança institucional da União, controle do Ministério
Público e atuação coadjuvante de entidades tanto da administração federal quanto
representativas dos próprios indígenas. O que já impede os próprios índios e suas

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comunidades, por exemplo, de interditar ou bloquear estradas, cobrar pedágio pelo


uso delas e inibir o regular funcionamento das repartições públicas.
15. A relação de pertinência entre terras indígenas e meio ambiente. Há perfeita
compatibilidade entre meio ambiente e terras indígenas, ainda que estas envolvam
áreas de conservação e preservação ambiental. Essa compatibilidade é que autoriza
a dupla afetação, sob a administração do competente órgão de defesa ambiental.
16. A demarcação necessariamente endógena ou intraétnica. Cada etnia autóctone
tem para si, com exclusividade, uma porção de terra compatível com sua peculiar
forma de organização social. Daí o modelo contínuo de demarcação, que é mono‑
étnico, excluindo-se os intervalados espaços fundiários entre uma etnia e outra.
Modelo intraétnico que subsiste mesmo nos casos de etnias lindeiras, salvo se as
prolongadas relações amistosas entre etnias aborígines venham a gerar, como no
caso da Raposa Serra do Sol, uma condivisão empírica de espaços que impossi‑
bilite uma precisa fixação de fronteiras interétnicas. Sendo assim, se essa mais
entranhada aproximação física ocorrer no plano dos fatos, como efetivamente
se deu na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, não há como falar de demarcação
intraétnica, menos ainda de espaços intervalados para legítima ocupação por não
índios, caracterização de terras estaduais devolutas, ou implantação de Municípios.
17. Compatibilidade entre faixa de fronteira e terras indígenas. Há compatibilidade
entre o usufruto de terras indígenas e faixa de fronteira. Longe de se pôr como um
ponto de fragilidade estrutural das faixas de fronteira, a permanente alocação indí‑
gena nesses estratégicos espaços em muito facilita e até obriga que as instituições
de Estado (Forças Armadas e Polícia Federal, principalmente) se façam também
presentes com seus postos de vigilância, equipamentos, batalhões, companhias e
agentes. Sem precisar de licença de quem quer que seja para fazê-lo. Mecanismos,
esses, a serem aproveitados como oportunidade ímpar para conscientizar ainda mais
os nossos indígenas, instruí-los (a partir dos conscritos), alertá-los contra a influên‑
cia eventualmente malsã de certas organizações não governamentais estrangeiras,
mobilizá-los em defesa da soberania nacional e reforçar neles o inato sentimento
de brasilidade. Missão favorecida pelo fato de serem os nossos índios as primeiras
pessoas a revelar devoção pelo nosso país (eles, os índios, que em toda nossa história
contribuíram decisivamente para a defesa e integridade do território nacional) e até
hoje dar mostras de conhecerem o seu interior e as suas bordas mais que ninguém.
18. Fundamentos jurídicos e salvaguardas institucionais que se complementam. Voto
do relator que faz agregar aos respectivos fundamentos salvaguardas institucionais
ditadas pela superlativa importância histórico-cultural da causa. Salvaguardas
ampliadas a partir de voto-vista do ministro Menezes Direito e deslocadas, por
iniciativa deste, para a parte dispositiva da decisão. Técnica de decidibilidade que
se adota para conferir maior teor de operacionalidade ao acórdão.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo Tri‑
bunal Federal em:

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I) preliminarmente, por unanimidade de votos, resolver questão de ordem, pro‑


posta pelo relator, ministro Carlos Ayres Britto, no sentido de admitir o ingresso na
lide do Estado de Roraima e de Lawrence Manly Harte, Olga Silva Fortes, Raimundo
de Jesus Cardoso Sobrinho, Ivalcir Centenaro, Nelson Massami Itikawa, Genor
Luiz Faccio, Luiz Afonso Faccio, Paulo Cezar Justo Quartiero, Itikawa Indústria e
Comércio Ltda., Adolfo Esbell, Domício de Souza Cruz, Ernesto Francisco Hart,
Jaqueline Magalhães Lima, e do espólio de Joaquim Ribeiro Peres, na condição
de assistentes do autor popular, e da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), da
Comunidade Indígena Socó e da Comunidade Indígena Barro, Comunidade Indí‑
gena Maturuca, Comunidade Indígena Jawari, Comunidade Indígena Tamanduá,
Comunidade Indígena Jacarezinho e Comunidade Indígena Manalai, todos na posi‑
ção de assistentes da União, recebendo o processo no estado em que se encontra.
Presidência do ministro Gilmar Mendes, em 27-8-2008;
II) por maioria de votos, julgar a ação parcialmente procedente, nos termos dos
fundamentos e salvaguardas institucionais constantes do voto do relator, ministro
Carlos Ayres Britto, mas sob complemento de tais salvaguardas institucionais a
partir do voto-vista do ministro Menezes Direito e colegiadamente ajustadas em
sua redação final. Vencidos os ministros Joaquim Barbosa, que julgava totalmente
improcedente a ação, e Marco Aurélio, que suscitara preliminar de nulidade do pro‑
cesso e, no mérito, declarava a ação popular inteiramente procedente. Declarada,
então, a constitucionalidade da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa
Serra do Sol e afirmada a constitucionalidade do procedimento administrativo‑
-demarcatório, sob as seguintes salvaguardas institucionais majoritariamente
aprovadas: a) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas
terras indígenas (§ 2º do art. 231 da Constituição Federal) não se sobrepõe ao rele‑
vante interesse público da União, tal como ressaído da Constituição e na forma de
lei complementar (§ 6º do art. 231 da CF); b) o usufruto dos índios não abrange a
exploração mercantil dos recursos hídricos e dos potenciais energéticos, que sempre
dependerá (tal exploração) de autorização do Congresso Nacional; c) o usufruto dos
índios não alcança a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, que sempre depen‑
derão de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação
nos resultados da lavra, tudo de acordo com a Constituição e a lei; d) o usufruto
dos índios não compreende a garimpagem nem a faiscação, devendo-se obter, se
for o caso, a permissão de lavra garimpeira; e) o usufruto dos índios não se sobre‑
põe aos interesses da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e
postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha
viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo
das riquezas de cunho igualmente estratégico, a critério dos órgãos competentes
(Ministério da Defesa, ouvido o Conselho de Defesa Nacional), serão implementados
independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas, assim como
à Fundação Nacional do Índio (FUNAI); f) a atuação das Forças Armadas e da Polícia
Federal na área indígena, no âmbito das respectivas atribuições, fica assegurada
e se dará independentemente de consulta às respectivas comunidades indígenas,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  65


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ou à Funai; g) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal,
de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte,
além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União,
especialmente os de saúde e educação; h) o usufruto dos índios na área afetada por
unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes
de Conservação da Biodiversidade, respeitada a legislação ambiental; i) o Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração
da área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena, com a
participação das comunidades aborígines, que deverão ser ouvidas, levando-se
em conta os usos, tradições e costumes deles, indígenas, que poderão contar com
a consultoria da Funai, observada a legislação ambiental; j) o trânsito de visitantes
e pesquisadores não índios é de ser admitido na área afetada à unidade de conser‑
vação, nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Con‑
servação da Biodiversidade; l) admitem-se o ingresso, o trânsito e a permanência de
não índios em terras indígenas não ecologicamente afetadas, observados, porém, as
condições estabelecidas pela Funai e os fundamentos desta decisão; m) o ingresso,
o trânsito e a permanência de não índios, respeitado o disposto na letra l, não
podem ser objeto de cobrança de nenhuma tarifa ou quantia de qualquer natureza
por parte das comunidades indígenas; n) a cobrança de qualquer tarifa ou quantia
também não é exigível pela utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas
de transmissão de energia ou outros equipamentos e instalações públicas, ainda
que não expressamente excluídos da homologação; o) as terras indígenas não pode‑
rão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que atente
contra o pleno exercício do usufruto e da posse direta por comunidade indígena
ou pelos índios (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, caput, Lei 6.001/1973);
p) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha às etnias nativas a
prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária
ou extrativista (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, § 1º, Lei 6.001/1973);
q) as terras sob ocupação e posse das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo
das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado
o disposto nos arts. 49, XVI, e 231, § 3º, da CR/1988, bem como a renda indígena
(art. 43 da Lei 6.001/1973), gozam de imunidade tributária, não cabendo a cobrança
de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros; r) é vedada a
ampliação da terra indígena já demarcada; s) os direitos dos índios sobre as suas
terras são imprescritíveis, reputando-se todas elas como inalienáveis e indisponí‑
veis (art. 231, § 4º, CR/1988); t) é assegurada a participação dos entes federados no
procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, situadas em
seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento. Vencidos,
quanto à alínea r, a ministra Cármen Lúcia e os ministros Eros Grau e Carlos Ayres
Britto, relator. Cassada a liminar concedida na AC 2.009-3/RR. Quanto à execução
da decisão, o Tribunal determinou seu imediato cumprimento, independentemente
da publicação deste acórdão, confiando sua supervisão ao relator do feito, ministro
Carlos Ayres Britto, em entendimento com o Tribunal Regional Federal da 1ª Região,

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especialmente com o seu presidente, desembargador Jirair Aram Meguerian. Pre‑


sidência do ministro Gilmar Mendes, que votou no processo.

2. Foram opostos sete embargos de declaração:


(i) O senador Augusto Affonso Botelho Neto (autor) sustenta ter ocorrido omis‑
são e contradição no acórdão quanto à situação específica da chamada Fazenda
Guanabara. Pede sua exclusão da área da terra indígena sob o fundamento de que
seria de ocupação privada desde o início do século XX, o que teria sido reconhe‑
cido por sentença proferida em ação discriminatória, já transitada em julgado.
(ii) O senador Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti (assistente do autor)
afirma que o acórdão seria contraditório ao dar natureza mandamental a uma
decisão declaratória proferida em sede de ação popular. Aponta também outra
suposta contradição, consistente no fato de o Estado de Roraima não ter sido
citado para integrar a lide como litisconsorte do autor, embora a competência
desta Corte para julgar a ação popular tenha resultado da existência de conflito
federativo. Suscita também onze questões sobre as quais o Tribunal, em sua
avaliação, deveria se pronunciar:
a) Pessoas miscigenadas podem permanecer na reserva?
b) Pessoas que vivem maritalmente com índios podem permanecer na reserva?
c) Autoridades religiosas de denominações não indígenas podem continuar
a exercer suas atividades na reserva?
d) Os templos religiosos já construídos devem ser destruídos?
e) As escolas públicas estaduais ou municipais podem continuar em funcio‑
namento?
f) Em caso positivo, podem continuar a lecionar o currículo voltado à popu‑
lação não índia?
g) A passagem de não índios pela única rodovia federal que liga Boa Vista à
cidade de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, foi negada ou assegurada,
no todo ou em parte (i.e., dependente de autorização)?
h) Idem, quanto à rodovia BR-433, que liga Normandia a Pacaraima.
i) A quem cabe autorizar a passagem por essas rodovias?
j) Como ficam as ações individuais que questionam a boa-fé dos portadores
dos títulos de propriedade? Foram automaticamente extintas, com violação ao
contraditório e à ampla defesa, ou serão julgadas individualmente?
k) “Como se dará a posse das fazendas desocupadas? Se um grupo ou entidade
indígena, já ocupa determinada área, pode ser retirada sob o pretexto de que
foram contrários à homologação nos termos decididos pelo eg. STF?” (fl. 15646)
(iii) Lawrence Manly Harte e outros (assistentes dos autores) afirmam que
haveria omissão e contradição no acórdão, na parte em que determinou o

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cumprimento de uma decisão declaratória como se condenatória fosse. Susten‑


tam ainda que o acórdão teria sido omisso ao impor-lhes uma decisão prejudicial
sem que tenham tido oportunidade de produzir as provas de que poderiam dispor.
(iv) As Comunidades Indígenas Socó, Maturuca, Jawari, Tamanduá, Jacarezi‑
nho e Manalai (assistentes da ré) suscitam dúvidas relativas:
a) Ao exercício da garimpagem pelos índios;
b) À necessidade de lei complementar com relação às proposições e e g do
acórdão;
c) À exigência de prévia consulta às comunidades indígenas, quanto à con‑
dicionante e;
d) Ao risco de o Instituto Chico Mendes restringir a posse permanente e o
usufruto dos índios (condicionantes h e i);
e) À necessidade de prévia consulta ou autorização, por parte dos índios,
quanto ao ingresso, trânsito e permanência de não índios que não sejam auto‑
ridades públicas no exercício de suas funções (condicionante l).
f) Ao eventual pagamento de indenizações pela “ocupação” de parte das terras
indígenas para execução de obras que, embora situadas fora da área demarcada,
gerem impactos sobre as comunidades ou que restrinjam seu usufruto exclusivo;
g) À proibição de ampliação da área demarcada (condicionante r);
(v) O Estado de Roraima (assistente do autor) suscita, de início, uma omissão
relativa à liderança da União na prestação de serviços de saúde e educação. Isso
pelo fato de que o Estado tem diversas escolas em áreas indígenas, além de uma
empresa sob seu controle (CER) prestar o serviço de distribuição de energia elétrica
no interior do território estadual. Alega, também, que o acórdão teria sido omisso
quanto à possibilidade de as comunidades indígenas restringirem a passagem de
não índios pelas rodovias federais e pelos rios que cruzam a área homologada.
(vi) A Procuradoria-Geral da República (custos legis) questiona, inicialmente,
a fixação de condições em abstrato pela Corte, considerando, em especial, os
limites impostos pelos princípios do Estado de Direito, da separação de Pode‑
res e do devido processo legal, uma vez que as condições indicadas não teriam
sido objeto de contraditório. Em particular, alega que o acórdão teria dado uma
primazia incondicionada aos interesses (por vezes econômicos) da União, bem
como à proteção do meio ambiente, em detrimento dos índios. Teria ainda
desconsiderado a exigência de prévia edição da lei complementar prevista no
art. 231, § 6º, da Constituição. Sustenta, ainda, que o julgado teria violado diver‑
sos dispositivos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
ao afastar a consulta aos índios em algumas hipóteses, ou ao dar-lhe um cará‑
ter meramente opinativo. Por fim, aponta que a vedação à expansão das áreas

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demarcadas equivaleria a uma “proibição do avanço social”, além de impedir a


correção de eventuais vícios e até a aquisição de novas áreas, pelos índios, pelas
vias tradicionais do direito civil.
(vii) A Ação Integralista Brasileira, o Movimento Integralista Brasileiro e Anésio
de Lara Campos Júnior sustentam, em síntese, que a demarcação impede o pro‑
gresso e gera um “um regime de apartheid a favor de um conjunto de pessoas
que trabalham com muito menos intensidade” (fl. 15700). Pedem, ao final, que se
declare que: “não é possível expulsar os não índios dessa área denominada Raposa
Serra do Sol, porque isso implicaria em discriminação racial; não é possível que
uma demarcação de terras envolvendo tantos interesses de tantas pessoas e do
Estado de Roraima, seja feita por processo administrativo, no qual a interessada
e autora a Funai julgava em causa própria, sem a imprescindível imparcialidade;
a demarcação só podendo ser feita mediante processo judicial com citação de
todos os interessados; que devem ser respeitados os prazos de prescrição extin‑
tiva, e o direito de propriedade particular; que devem ficar revogadas as decisões
tomadas em 19-3-2009, eis que o que ali foi deferido não constava no petitório
daquela ação popular, sendo, pois, decisões extra petita e/ou sine petitum; e pelas
demais causas de pedir desta petição recursal” (fl. 15736).
3. É o relatório.

VOTO
O sr. ministro Roberto Barroso (relator): 1. Antes de passar ao exame dos itens
específicos que foram objeto de embargos de declaração, penso que é importante
fazer três registros gerais. O primeiro diz respeito ao alcance dos embargos de
declaração, cujos pressupostos de cabimento e análise são restritos, limitando-se à
verificação de eventuais omissões, contradições ou obscuridades. Isso faz com que
o exame desse recurso seja um exercício de apuro técnico e humildade, incompatí‑
vel com a pretensão de se reabrir o julgamento. Atento a esse parâmetro legal, não
estudei o acórdão com olhos de quem quer fazer dele algo diverso do que é. Não
proponho, nem poderia propor, uma revisão de mérito da decisão. Em vez disso, o
voto se concentra na análise dos supostos vícios internos suscitados pelas partes.
2. Em segundo lugar, entendo que a premissa mais destacada do acórdão é a
importância diferenciada que a Constituição atribui à proteção dos índios e do
seu modo de viver. De forma objetiva, aliás, o cerne da decisão foi a confirmação
da validade da demarcação contínua realizada pela União, assentando que o
direito das comunidades indígenas é reconhecido a partir da identificação de suas
terras tradicionais, e não constituído por escolha política. Mesmo quando isso

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produza um extenso recorte no território antes submetido à autonomia plena


de um Estado-membro da Federação, situado em área de fronteira estratégica
com outros países. Não é pouca coisa.
3. Feitas essas considerações, passo a examinar de forma específica cada um
dos embargos de declaração.

I. Embargos opostos por Ação Integralista Brasileira, Movimento Integralista Brasileiro


e Anésio de Lara Campos Júnior
4. Não sendo partes no processo, a Ação Integralista Brasileira e o Movimento
Integralista Brasileiro só poderiam interpor recurso se demonstrassem “o nexo de
interdependência entre o seu interesse de intervir e a relação jurídica submetida
à apreciação judicial” (CPC, art. 499, § 1º) – o que não ocorreu. Os embargos se
limitam a questionar as premissas fáticas e jurídicas do acórdão, sem apontar
qualquer conexão entre essas duas embargantes e as questões concretamente
envolvidas na demanda. Nessas condições, o recurso não pode ser conhecido
(RE 466.348 AgR/MG, rel. min. Cezar Peluso; RMS 22.307 ED-ED/DF, rel. min.
Ilmar Galvão; AI 115.775 AgR/MA, rel. min. Sydney Sanches).
5. Os embargos tampouco podem ser recebidos em relação a Anésio de Lara
Campos Júnior. Embora a Lei 4.717/1965 atribua genericamente aos cidadãos a legi‑
timidade para recorrer contra sentenças proferidas em desfavor do autor popular
(art. 19, § 2º), não há comprovação nos autos da sua condição de cidadão, como
exige o art. 1º, § 3º, da Lei 4.717/1965 (título eleitoral ou documento correspondente).
6. Ainda que essa irregularidade pudesse ser sanada, a medida se provaria
inútil. Os embargos de declaração de que se trata contêm uma série de ilações
genéricas acerca de alegado prejuízo ao interesse público, de difícil compreensão
global. Isso já bastaria para que não fossem admitidos, tendo em vista a deficiên‑
cia na sua fundamentação (AI 490.513 AgR-ED/SP, rel. min. Gilmar Mendes). Além
disso, a petição não aponta omissão, contradição ou obscuridade, limitando-se a
externar a mera irresignação do embargante com o que restou decidido e pedindo
uma nova apreciação de mérito. Como é corrente, não é essa a destinação dos
embargos de declaração, sujeitos a limites técnicos estreitos.
7. Dessa forma, não conheço dos embargos.

II. Embargos opostos pelo senador Augusto Affonso Botelho Neto


8. O ponto suscitado pelo embargante diz respeito à Fazenda Guanabara,
que, em sua avaliação, deveria ser excluída da área demarcada. Sustenta que a
fazenda seria de ocupação privada desde 1918, tendo sido reconhecido o domínio
particular por sentença proferida em ação discriminatória, transitada em julgado

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em 1983. Isso teria constado do Despacho 80/1996, do ministro de Estado da Jus‑


tiça, e só poderia ter sido alterado caso tivesse sido apontada alguma nulidade.
9. Não verifico qualquer vício quanto ao ponto, que foi expressa e claramente
examinado no acórdão embargado. Já em sua ementa, o julgado destacou o cará‑
ter originário do direito dos índios, que preponderaria sobre quaisquer outros.
Observou-se, ainda, que a “tradicionalidade da posse nativa (...) não se perde onde,
ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocor‑
reu por efeito de renitente esbulho por parte de não índios. Caso das ‘fazendas’
situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu
nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença
em todo o complexo geográfico da ‘Raposa Serra do Sol’” (negrito acrescentado).
10. Embora essas considerações gerais se apliquem também à Fazenda Guana‑
bara, esse imóvel em particular foi objeto de consideração específica no acórdão,
tanto no voto do relator, ministro Carlos Ayres Britto, como nos votos dos minis‑
tros Carlos Alberto Menezes Direito e Gilmar Mendes, cujos trechos pertinentes
seguem transcritos, respectivamente, abaixo:
(...) são nulas as titulações conferidas pelo Incra, na Terra Indígena Raposa Serra
do Sol, assim como inválida é a ocupação da “Fazenda Guanabara”. Se não, veja‑
-se: a) a autarquia federal, baseada em estudo de 1979, constante de procedimento
declaratório inconcluso (ausentes portaria declaratória e decreto homologató‑
rio), sem qualquer consulta à Funai arrecadou terras da União como se devolutas
fossem, alienando-as diretamente a particulares; b) sucede que as terras já eram,
e permanecem, indígenas, sendo provisoriamente excluídas nos estudos de 1979 e
de 1985 apenas para superar “dificuldades que teria o Órgão Tutelar em demarcar”
tal área (dificuldades consistentes em litígios dos índios frente aos não índios); c)
já a titulação da Fazenda Guanabara, alegadamente escorada em sentença com
trânsito em julgado, proferida em ação discriminatória, também ela padece de vício
insanável. É que a referida ação não cuidou da temática indígena, pois, equivoca‑
damente, partiu do pressuposto de se tratar de terra devoluta. O que se comprova
pelo acórdão do TRF da 1ª Região, transitado em julgado, na ação de manutenção
de posse que teve por autor o suposto proprietário privado. Acórdão que vocalizou
o seguinte: “comprovada através de laudo pericial idôneo a posse indígena, é pro‑
cedente a oposição para reintegrar a União na posse do bem”. Pelo que não podem
prosperar as determinações do Despacho 80/96, do então ministro de Estado da
Justiça, pois o que somente cabe aos detentores privados dos títulos de proprie‑
dade é postular indenização pelas benfeitorias realizadas de boa-fé. [Fls. 340-1.]

No caso concreto, segundo o autor e seus assistentes, a demarcação violou direitos


particulares que se constituíram antes mesmo da vigência da política de atribuição
aos índios das terras por eles ocupadas tradicionalmente.

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Seria o caso dos imóveis com posse ou propriedade anteriores ao ano de 1934,
quando foi promulgada a primeira Constituição que assegurou o direito dos índios
à posse da terra que tradicionalmente ocupavam. Antes disso, sustentam, não
havia proteção quanto às terras indígenas.
Mas essa argumentação não pode prosperar nos termos do art. 231 da Consti‑
tuição de 1988, que reconhece um direito insuscetível de prescrição aquisitiva (...).
Ainda que assim não fosse, as imagens de satélite juntadas aos autos (fls. 5003
a 5011, v. 19, e fl. 9440, v. 38) demonstram nitidamente que a ocupação das Fazen‑
das Depósito e Guanabara-Canadá, junto ao rio Surumu, e Iemanjá, junto ao rio
Tacutu, não existia como tal antes de 1991. [Fl. 385 – Negrito no original.]

Restam, portanto, as áreas correspondentes às Vilas Água Fria, Socó, Vila Pereira e
Mutum, às titulações conferidas pelo Incra, à Fazenda Guanabara e às propriedades
dos pequenos rizicultores privados que passaram a ocupar as terras a partir de 1992.
Com relação a essas áreas, cumpre ressaltar que as ocupações e domínios ante‑
riores à demarcação, como consignado pelo ministro Menezes Direito em seu
voto-vista, não prevalecem sobre o direito do índio à demarcação de suas terras,
nos termos do § 6º do art. 231 da Constituição Federal (...).
Assim, ainda que algumas áreas abrangidas pela demarcação sejam ocupadas por
não índios há muitas décadas, estando situadas em terras de posse indígena, o direito
de seus ocupantes não poderá prevalecer sobre o direito dos índios. [Fls. 812-3.]

11. A matéria foi, portanto, objeto de decisão expressa do Plenário, inclusive no


tocante ao alegado direito de propriedade protegido por decisão transitada em
julgado. Inexistindo, no ponto, qualquer omissão, contradição ou obscuridade,
devem ser desprovidos os embargos.

III. Embargos opostos pelo senador Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti


12. Com legítimo interesse, o senador Mozarildo Cavalcanti veio aos autos
e foi admitido como assistente do autor popular. Além de diversas questões
pontuais – examinadas ao final –, seus embargos suscitam duas contradições:
a primeira relativa à impossibilidade de se proceder à execução de uma decisão
declaratória; a segunda referente à ausência de citação do Estado de Roraima
para integrar a lide. Inicie-se pela segunda.

III.1 A ausência de citação do Estado de Roraima


13. Depois de já encerrada a instrução do processo, o Estado de Roraima plei‑
teou sua admissão como litisconsorte do autor popular. O Tribunal, por maio‑
ria, decidiu admiti-lo como assistente simples do autor. A matéria é realmente
complexa, como bem demonstrou o substancioso voto-vista em linha diver‑
gente apresentado pelo ministro Marco Aurélio. Sua Excelência manifestou-se

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no sentido de “chamar-se o processo à ordem, reabrindo-se, na extensão cabível,


a instrução processual”, por considerar “indispensável para a correta forma‑
ção do processo que o ente dito alcançado pelo ato lesivo apontado como nulo
figure na relação subjetiva processual”, referindo-se ao Estado de Roraima e aos
Municípios envolvidos. A questão, porém, foi superada pelo Plenário, não sendo
possível reabrir a discussão por meio de embargos declaratórios. Nesta parte,
portanto, o recurso deve ser desprovido.

III.2 A execução da ordem de retirada dos não índios


14. Nesse ponto, dois fundamentos afastam a irresignação do embargante.
Em primeiro lugar, a doutrina contemporânea já não afirma, em caráter absoluto,
que apenas sentenças condenatórias seriam suscetíveis de execução. Essa per‑
cepção ficou reforçada após a edição da Lei 11.232/2005, que alterou o CPC para
suprimir a listagem de títulos executivos judiciais antes enunciada no art. 584,
no qual constava a referência à “sentença condenatória proferida no processo
civil”. A previsão foi substituída pelo art. 475-N, cujo inciso I identifica como título
executivo a “sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de
obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia” (CPC, art. 475-N,
I). Dando aplicação ao novo comando, o Superior Tribunal de Justiça já registrou,
em acórdão da lavra do ministro Teori Zavascki: “o art. 475-N, I, do CPC se aplica
também à sentença que, julgando improcedente (parcial ou totalmente) o pedido
de declaração de inexistência de relação jurídica obrigacional, reconhece a existên‑
cia de obrigação do demandante para com o demandado” (STJ, REsp 1.300.213/RS).
15. Ainda que a matéria permaneça envolta em alguma controvérsia1, a altera‑
ção legislativa veio ao encontro da tendência de se buscar a máxima efetividade
dos pronunciamentos judiciais, integrando, na maior medida possível, as etapas
de conhecimento e execução. Nessa linha, já não há necessariamente uma con‑
tradição na sentença que, embora declaratória, disponha sobre o cumprimento
de suas disposições. No caso, porém, sequer seria necessário aprofundar o debate
acerca dessa questão processual.
16. Isso porque não foi o Supremo Tribunal Federal que determinou a reti‑
rada dos não índios. O acórdão simplesmente declarou a validade da Portaria/

1 V., por todos: CARNEIRO, Athos Gusmão. Cumprimento da sentença civil e procedimentos execu-
tivos. 2010, p. 69 et seq.; FUX, Luiz. A reforma do processo civil: comentários e análise crítica da
reforma infraconstitucional do Poder Judiciário e da reforma do CPC. 2006, p. 112-3; ROCHA,
Elias Gazal. Execução de sentenças de improcedência. Revista de Direito da Procuradoria-Geral
do Estado do Rio de Janeiro 62:64 et seq. 2007.

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MJ 534/2005, que já impunha a saída dessas pessoas em seu art. 5º, parágrafo


único (“A extrusão dos ocupantes não índios presentes na área da Terra Indígena
Raposa Serra do Sol será realizada em prazo razoável, não superior a um ano, a
partir da data de homologação da demarcação administrativa por decreto pre‑
sidencial”). A ordem partiu, portanto, do Poder Executivo e só não foi executada
antes por força de decisão deste Tribunal na AC 2.009 MC/RR, que suspendera a
ordem de remoção. Quando do julgamento da Pet 3.388/RR, foi cassada a liminar
proferida na ação cautelar, do que resultou a exequibilidade imediata do art. 5º,
parágrafo único, da Portaria/MJ 534/2005.
17. Para além dessa justificação na técnica jurídica, convém destacar a impor‑
tância da atuação levada a cabo por esta Corte e pelo Tribunal Regional Federal
da 1ª Região, no sentido de tornar efetiva a conclusão a que se chegou no pre‑
sente processo. Diante de todo o histórico de conflitos na região – fartamente
documentado nos autos –, teria sido ingênuo supor que a mera proclamação
judicial teria o efeito de fazer cessar, de forma imediata, toda e qualquer oposi‑
ção indevida aos direitos reconhecidos no processo.
18. Para ajudar a superar as compreensíveis resistências e cumprir verdadei‑
ramente a sua função, o Judiciário adotou a postura louvável de “deslocar-se” até
o lugar do conflito fundiário (CF/1988, art. 126, parágrafo único), nas pessoas do
ministro Carlos Ayres Britto e do desembargador federal Jirair Aram Meguerian,
que estiveram fisicamente na região. Sem retirar do Executivo o encargo – que
lhe é próprio – de executar a portaria demarcatória, o Supremo Tribunal Federal
manteve supervisão sobre os atos praticados. Não havia uma forma simples e
inteiramente consensual para se resolver o complexo litígio que foi submetido a
esta Corte, relativo a variadas disputas que remontam a muitas décadas. O melhor
que se podia fazer era assegurar a autoridade do acórdão, produzindo o desfecho
necessário para essa triste história de incompreensões e violação a direitos.
19. Com essas considerações, nego provimento aos embargos de declaração
também nesse ponto.

III.3 Questões pontuais apresentadas


20. Além das alegações analisadas acima, já enfrentadas, o embargante apresenta
onze questões, sendo todas pertinentes ao conteúdo do acórdão ou à sua execução.
Por facilidade, elas serão examinadas individualmente ou por grupos temáticos.

Pessoas miscigenadas, ou que vivam maritalmente com índios, podem permanecer na área?
21. Com base no caráter pluralista e inclusivo da Constituição de 1988, o critério
adotado pelo acórdão não foi genético, mas sociocultural: podem permanecer

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na área demarcada e valer-se do usufruto exclusivo todos aqueles que integrem


as comunidades indígenas locais. Pouco importa, para isso, quantos ancestrais
índios a pessoa tenha ou que o vínculo familiar com indígenas resulte não de
sangue, mas de adoção, casamento ou união estável. O que interessa é sua comu‑
nhão com o modo de vida tradicional dos índios da região. Também esses pontos
foram ressaltados no acórdão, como se pode ver nos votos dos ministros Carlos
Ayres Britto e Cármen Lúcia, respectivamente:
(...) no contexto do meu voto, a expressão “não índios” é significante de expulsão
dos que litigam com os índios, disputando-lhes a posse, o uso, a ocupação da área
em questão.
Eu não falei, evidente que não quis incluir os não índios, cônjuges de índios. Seria
um disparate, um contrassenso. [Fls. 423-4.]

Nesses espaços, a presença dos brasileiros índios e não índios faz com que se acei‑
tem, segundo a legislação aplicável pelo regime especial que submete a condição e os
direitos dos índios, manterem tais espaços possíveis da presença dos que passaram
a compor inclusive núcleos familiares complexos, formados por índios e não índios.
Não haveria como, juridicamente, decotar a presença dos não índios que com‑
ponham tais núcleos, o que faz com que seja possível, apenas nestes casos e não
para qualquer outro efeito, permitir-se tal presença, mesmo sendo a área, como
é, na forma da demarcação feita, indígena. (...) Daí porque não se há de impor
restrição a tais presenças, nem cabe, aqui, proibir-se ou exilar-se de tais áreas os
não índios que com eles se tenham composto em comunidades estáveis, como
famílias constituídas. [Fls. 477-8.]

22. Nego provimento aos embargos nesta parte.

Autoridades religiosas de denominações não indígenas podem continuar a exercer suas


atividades na reserva? Os templos religiosos já construídos devem ser destruídos?
23. A presença de autoridades religiosas ou de templos de denominações não
indígenas não foi debatida no acórdão como questão autônoma. Como o tema surgiu
quando da retirada dos não índios, parece conveniente examiná-lo mais detidamente.
24. O objetivo da Constituição é resguardar aos índios um espaço exclusivo
onde possam manter e viver as suas tradições – o que, na grande maioria dos
casos, não exige a interdição absoluta de qualquer contato com pessoas de fora
da terra indígena. Por isso mesmo, a presença de não índios nas áreas demarcadas
não é proibida sempre e em todos os casos. Em princípio, a mesma lógica se aplica
à entrada ou à permanência de missionários e à construção de templos de deno‑
minações não indígenas. Há, todavia, um elemento importante a ser considerado,
que justifica um cuidado adicional: não se legitima a presença de indivíduos que

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tenham como propósito interferir com a religião dos índios, aspecto destacado
de sua cultura. No passado, a presença desses missionários pode ter sido até
encorajada, a fim de promover a assimilação dos índios à cultura majoritária no
Brasil. Esse fim certamente não foi acolhido pela Constituição de 1988.
25. No entanto, nem por isso se deve supor – incidindo no equívoco oposto –
que a Constituição tenha o papel de proteger os índios contra suas próprias
escolhas, transformando o direito de preservarem sua cultura em um dever de
isolamento incondicional. Nessa matéria, o maior erro é imaginar que caberia a
alguém, senão aos próprios índios, decidir sobre o seu presente e o seu futuro – o
que ocorre tanto pela imposição de valores externos quanto pela proibição de
contato com outros modos de vida. Por certo, a ideia não é assimilar ou aculturar
os índios, mas tampouco se pode impedir que eles mesmos decidam entrar em
contato com outros grupos humanos e ideias.
26. Dessa forma, parece possível concluir que também a situação dos mis‑
sionários e templos de denominações não indígenas se encaixa na equilibrada
moldura definida pelo acórdão embargado. Incide aqui a diretriz contida na
própria ementa do julgado – no sentido de que a “exclusividade de usufruto das
riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras indígenas é conciliável com a
eventual presença de não índios (...), desde que tudo se processe sob a liderança
institucional da União, controle do Ministério Público e atuação coadjuvante
de entidades tanto da administração federal quanto representativas dos pró‑
prios indígenas”.
27. Nessa matéria específica, porém, a liderança da União não pode se traduzir
em uma espécie de dirigismo cultural por parte do poder público. Aqui estão em
jogo dois direitos atribuídos exclusivamente aos índios, a saber: (i) a proteção
de suas culturas, como integrantes de grupos minoritários; e (ii) sua autonomia
individual, como quaisquer outros seres humanos. Por ser assim, deve caber às
comunidades indígenas, e apenas a elas, o direito de decidir se, como e em que
circunstâncias se admitirá a presença dos missionários e seus templos. Não se
trata, portanto, de ouvir a sua opinião, mas de dar a ela o caráter definitivo que
qualquer escolha existencial deve ter, infensa à imposição externa, por parte da
União, das denominações religiosas ou de quem quer que seja.
28. Observada essa premissa, caberá à União e ao Ministério Público organizar
e supervisionar a entrada, a permanência e a saída de missionários e a construção
de templos na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, tomando as medidas necessá‑
rias para que a escolha dos grupos indígenas seja respeitada a cada tempo e para
que os não índios tenham os seus direitos preservados durante seus períodos
de permanência. Quanto aos templos e demais instalações erguidas por essas

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pessoas, como é natural, sua eventual construção não gerará qualquer direito
de propriedade, nem tutela possessória.
29. Seja como for, todas essas considerações são compatíveis com as pre‑
missas adotadas no acórdão embargado. Também nesta parte, portanto, nego
provimento aos embargos.

As escolas públicas estaduais ou municipais podem continuar em funcionamento? Em


caso positivo, podem continuar a lecionar o currículo voltado à população não índia?
30. O ponto foi explicitamente abordado pelo acórdão embargado. Confira-se
o trecho pertinente de sua ementa:
Necessária liderança institucional da União, sempre que os Estados e Municí-
pios atuarem no próprio interior das terras já demarcadas como de afetação
indígena. A vontade objetiva da Constituição obriga a efetiva presença de todas
as pessoas federadas em terras indígenas, desde que em sintonia com o modelo de
ocupação por ela concebido, que é de centralidade da União. Modelo de ocupação
que tanto preserva a identidade de cada etnia quanto sua abertura para um rela‑
cionamento de mútuo proveito com outras etnias indígenas e grupamentos de não
índios. A atuação complementar de Estados e Municípios em terras já demarcadas
como indígenas há de se fazer, contudo, em regime de concerto com a União e sob
a liderança desta. Papel de centralidade institucional desempenhado pela União,
que não pode deixar de ser imediatamente coadjuvado pelos próprios índios, suas
comunidades e organizações, além da protagonização de tutela e fiscalização do
Ministério Público (inciso V do art. 129 e art. 232, ambos da CF).

31. Além do voto do relator (fls. 272-6 e 306-7), constam referências ao tema,
por exemplo, nos votos do ministro Ricardo Lewandowski (fl. 495) – que fala em
“prestação compartilhada” de serviços públicos, mencionando a educação – e
do ministro Gilmar Mendes, que fez referência expressa aos diplomas ordinários
que tratam do tema.
32. Nos termos do acórdão, as terras indígenas não são entidades políticas
autônomas, como os entes federativos; nem autarquias territoriais da União,
como os territórios federais. A demarcação não altera o status político da região,
mas opera apenas no plano dominial, declarando o direito de propriedade da
União sobre a área (CF/1988, art. 20, XI) e afetando-a a uma finalidade específica.
Nessas condições, o reconhecimento da terra indígena não afasta dos Estados e
Municípios as atribuições que a Constituição e suas respectivas ordens jurídicas
lhes impõem, em particular quanto aos serviços públicos, como a educação.
33. Entretanto, a atuação dos entes locais nas áreas demarcadas deve obser‑
var a legislação federal pertinente – não porque a região se submeta ao controle

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direto da União, mas porque cabe a esta legislar, em caráter privativo, sobre
as “populações indígenas” (CF/1988, art. 22, XIV) e o uso das terras indígenas
(CF/1988, art. 231). Vale dizer: a liderança atribuída à União não decorre de um
ato de vontade do Supremo Tribunal Federal e nem mesmo do seu domínio sobre
a área, e sim de um elemento pessoal e um patrimonial, quais sejam: a presença
de populações indígenas no local e o usufruto de um bem público federal.
34. Em suma: é perfeitamente viável o funcionamento das escolas estaduais e
municipais na área, desde que se respeitem as normas federais sobre a educação
dos índios, o que abarca, naturalmente, o currículo escolar e o conteúdo pro‑
gramático. Como o tema já fora decidido pelo acórdão, devem ser desprovidos
os embargos no ponto.

A passagem de não índios pela única rodovia federal que liga Boa Vista à cidade de
Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, foi negada ou assegurada, no todo ou em
parte (i.e., dependente de autorização)? E quanto à rodovia BR-433, que liga Normandia
a Pacaraima? A quem cabe autorizar a passagem por essas rodovias?
35. O acórdão afirma claramente que os índios não exercem poder de polícia,
nem podem tornar inviável a passagem de outras pessoas pelas vias públicas
que atravessem a área demarcada. Confira-se o trecho pertinente da ementa:
A exclusividade de usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras indí‑
genas é conciliável com a eventual presença de não índios, bem assim com a instala‑
ção de equipamentos públicos, a abertura de estradas e outras vias de comunicação,
a montagem ou construção de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou
de relevância pública (...) O que já impede os próprios índios e suas comunidades,
por exemplo, de interditar ou bloquear estradas, cobrar pedágio pelo uso delas e
inibir o regular funcionamento das repartições públicas. [Negrito acrescentado.]

36. O ponto foi destacado, por exemplo, nos votos dos ministros Carlos Ayres
Britto (fl. 310) e Gilmar Mendes (fl. 795). Como ressaltou a ministra Cármen Lúcia
(fl. 475), o próprio Despacho 80/1996, do ministro de Estado da Justiça (DOU de
24-12-1996, p. 28285) – mantido nesta parte pela Portaria 534/2005 –, já havia
excluído “da fruição indígena exclusiva as estradas e vias públicas que atravessam
a área indígena, bem como suas respectivas faixas de domínio público a assegurar
a livre circulação de pessoas e veículos em tais estradas” (negrito acrescentado).
37. Naturalmente, o tráfego por vias públicas não importa uma autorização
para o ingresso em outras partes da terra indígena, nem para o usufruto das rique‑
zas do solo, dos rios ou dos lagos (e.g., a pesca nos rios que servem de hidrovia).
38. Inexistindo omissão, voto pelo desprovimento dos embargos nesta parte.

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Como ficam as ações individuais que questionam a boa-fé dos portadores dos títulos
de propriedade? Foram automaticamente extintas ou serão julgadas individualmente?
39. Convém explicitar o ponto. Na Pet 3.388/RR, o Supremo Tribunal Federal
julgou tão somente a validade da Portaria/MJ 534/2005 e do decreto presidencial
de 15-4-2005. Não foram apreciados os outros processos que discutem questões
individuais relacionadas à Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
40. Ocorre, porém, que, uma vez transitadas em julgado, as sentenças de
mérito proferidas em ação popular são oponíveis erga omnes, nos termos do
art. 18 da Lei 4.717/1965, ressalvados apenas os casos de insuficiência de provas.2
Disso resulta que todos os processos relacionados a essa terra indígena deverão
adotar, como necessárias, as seguintes premissas: (i) a validade da Portaria/
MJ 534/2005 e do decreto presidencial de 15-4-2005, observadas as condições
previstas no acórdão; e (ii) a caracterização da área como terra indígena, para
os fins dos arts. 20, XI, e 231 da Constituição – do que resulta não poderem per‑
sistir pretensões possessórias ou dominiais de particulares, salvo no tocante a
benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (CF/1988, art. 231, § 6º).
41. Nessa linha, dou parcial provimento aos embargos apenas para prestar
os esclarecimentos acima, sem efeitos modificativos.

Como se dará a posse das fazendas desocupadas? Se um grupo ou entidade indígena


já ocupa determinada área, pode ser retirada sob o pretexto de que foi contrária à ho-
mologação nos termos decididos pelo eg. STF? (Fl. 15646.)
42. Não se trata de uma omissão, porque o tema não integrava o objeto da
ação. Eventuais querelas entre grupos indígenas devem ser resolvidas pelas comu‑
nidades envolvidas, com a participação da União e da Funai, sem prejuízo da
intervenção do Ministério Público e do Poder Judiciário. A conclusão, portanto,
é pelo desprovimento dos embargos quanto a essa questão.

IV. Embargos opostos por Lawrence Manly Harte e outros


43. Tais embargos reiteram a objeção ao fato de se haver determinado a execu‑
ção de uma decisão declaratória, bem como a circunstância de que, tendo sido
admitidos como assistentes simples, não tiveram oportunidade de produzir as
provas de que poderiam dispor. Ambas as questões já foram examinadas acima,
quando da apreciação dos embargos opostos pelo senador Mozarildo Cavalcanti.

2 Lei 4.717/1965, art. 18: “A sentença terá eficácia de coisa julgada oponível erga omnes, exceto no
caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer
cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.”

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Embora Sua Excelência tenha questionado a não participação do Estado de


Roraima como parte – e não a dos particulares ora embargantes –, aplicam-se
aqui as mesmas considerações expostas acima: o ponto é relevante e sensível,
mas foi debatido pelo Plenário, que, para além de qualquer dúvida, considerou
correto admiti-los como assistentes simples, recebendo o processo no estado
em que se encontrava. Não é viável reabrir a discussão sobre o tema em sede
de embargos de declaração. Voto, assim, pelo desprovimento dos embargos.

V. Embargos opostos pelo Estado de Roraima


44. Os pontos suscitados por esse embargante também já foram examinados
anteriormente.
45. A primeira questão diz respeito às competências estaduais, notadamente
as que se relacionam aos serviços de educação. Não há qualquer dúvida quanto
ao fato de que as competências do Estado de Roraima podem e devem ser exer‑
cidas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A liderança da União, mencionada
no acórdão, não exonera as autoridades estaduais e municipais das suas incum‑
bências, mas apenas submete o seu exercício ao cumprimento das leis federais
pertinentes. Naturalmente, o reconhecimento do direito originário à terra indí‑
gena afasta qualquer titularidade do Estado ou das entidades de sua adminis‑
tração indireta a imóveis que, inseridos na área demarcada, não tenham sido
excluídos pela portaria e pelo decreto. Nada impede, contudo, seu uso regular,
conforme acertado com a União.
46. A segunda questão envolve o direito de passagem pelas vias públicas situa‑
das na reserva, que não poderá ser obstado pelas comunidades indígenas, sendo
irrelevante que se trate de rodovias ou hidrovias.
47. Voto pelo desprovimento dos embargos.

VI. Embargos opostos pelo Ministério Público Federal


48. Os embargos opostos pelo Ministério Público abordam diversos pontos,
os quais se passam a abordar.

VI.1 Validade e natureza das condicionantes incorporadas ao acórdão


49. O Parquet suscita uma questão prejudicial acerca das condições incorpora‑
das ao dispositivo do acórdão por proposta do ministro Menezes Direito. Segundo a
doutora Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, procuradora-geral da República
então em exercício, “não cabe ao STF, a partir de obiter dictum lançado em voto
proferido em sede de processo subjetivo, traçar parâmetros abstratos de conduta,
máxime em contexto em que os mesmos não foram sequer objeto de discussão no

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curso da lide” (fl. 10158). Sua Excelência reconhece que o Tribunal vem relativizando
sua autolimitação à condição de “legislador negativo”, mas afirma que (fls. 10158-9):
(...) os princípios democrático e da separação de poderes impõem limites para
esta atividade normativa do STF, que foram ostensivamente ultrapassados no
caso. Na hipótese, sem nenhuma discussão prévia na sociedade, simplesmente
foi proposta a edição de comandos gerais e abstratos, em tema extremamente
complexo e de enorme relevância social e jurídica.
Tal procedimento viola não apenas as regras legais concernentes aos limites obje‑
tivos e subjetivo da coisa julgada (CPC, arts. 469 e 472, art. 18 da Lei n. 4.717/65),
como também fere de morte os princípios do Estado Democrático de Direito (art. 1º,
CF) e da Separação de Poderes (art. 2º, CF), segundo os quais cabe ao legislador,
devidamente legitimado pelo voto popular, a prerrogativa constitucional de expedir
normas gerais e abstratas de conduta.
Não bastasse, o procedimento adotado para imposição das mencionadas condi‑
ções ofendeu também a garantia constitucional do devido processo legal (art. 5º,
LIV, CF). Com efeito, a maior parte das questões abordadas nas referidas condições
não guarda qualquer relação com o objeto específico da lide, ou seja, os limites
traçados para a procedência ou não de uma ação popular. Portanto, sobre elas não
se estabeleceu o contraditório. Não se concedeu nem às partes, nem aos diversos
grupos e instituições afetadas por medidas tão impactantes, qualquer possibilidade
de se manifestarem e de tentarem influir na elaboração das citadas condições.

50. Por fim, alega que condições definidas em caráter geral e abstrato só poderiam
ser impostas, a partir de casos concretos, pela via das súmulas vinculantes. Mas isso,
de todo modo, não seria viável na hipótese porque inexistiriam reiteradas decisões
do Tribunal sobre o tema ou risco de multiplicação de processos sobre essa matéria.
51. Passo a examinar o ponto. Embora o acórdão me pareça bastante claro
neste aspecto, é fato que as chamadas condicionantes a ele incorporadas vêm
gerando alguma polêmica. Por conta disso, convém fazer alguns esclarecimentos.
Para tanto, sequer é necessário debater a limitação do Tribunal à condição de
“legislador negativo”. Embora instigante, o debate seria irrelevante para o caso
em exame. Não é difícil observar por quê.
52. As condições em tela são elementos que a maioria dos ministros considerou
pressupostos para o reconhecimento da demarcação válida, notadamente por
decorrerem essencialmente da própria Constituição. Na prática, a sua inserção
no acórdão pode ser lida da seguinte forma: se o fundamento para se reconhecer
a validade da demarcação é o sistema constitucional, a Corte achou por bem
explicitar não apenas esse resultado isoladamente, mas também as diretrizes
desse mesmo sistema que conferem substância ao usufruto indígena e o com‑
patibilizam com outros elementos igualmente protegidos pela Constituição.

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53. Na esteira da proposta do ministro Menezes Direito, a maioria entendeu


que não era possível pôr fim ao conflito fundiário e social que lhe foi submetido
sem enunciar os aspectos básicos do regime jurídico aplicável à área demarcada.
Nesse sentido, as condições integram o objeto do que foi decidido e fazem coisa
julgada material. Isso significa que a incidência das referidas diretrizes na Reserva
da Raposa Serra do Sol não poderá ser objeto de questionamento em outros pro‑
cessos. Não foi por outra razão, aliás, que o Tribunal substituiu a improcedência
do pedido pela procedência parcial. Como observou a ministra Cármen Lúcia,
o que se fez foi acolher o pleito para interpretar os atos impugnados à luz das
disposições constitucionais pertinentes ao tema.
54. Essa circunstância, porém, não produz uma transformação da coisa julgada
em ato normativo geral e abstrato, vinculante para outros eventuais processos
que discutam matéria similar. No atual estado da arte, as decisões do Supremo
Tribunal Federal não possuem, sempre e em todos os casos, caráter vinculante.
Não se aplica, no Brasil, o modelo de stare decisis em vigor nos países do common
law, no qual as razões de decidir adotadas pelos tribunais superiores vinculam os
órgãos inferiores. Embora essa regra admita exceções, entre elas não se encon‑
tram as sentenças e acórdãos proferidos em sede de ação popular, ainda que
emanados deste Tribunal.
55. Dessa forma, a decisão proferida na Pet 3.388/RR não vincula juízes e tribu‑
nais quando do exame de outros processos, relativos a terras indígenas diversas.
Como destacou o ministro Carlos Ayres Britto, “a presente ação tem por objeto
tão somente a Terra Indígena Raposa Serra do Sol” (fl. 336). Vale notar que essa
linha já vem sendo observada pelo Tribunal: foram extintas monocraticamente
várias reclamações que pretendiam a extensão automática da decisão a outras
áreas demarcadas (Rcl 8.070 MC/MS, dec. min. Carlos Ayres Britto [RISTF, art. 38,
I], DJE de 24-4-2009; Rcl 15.668/DF, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJE de 13-5-
2013; Rcl 15.051/DF, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJE de 18-12-2012; Rcl 13.769/
DF, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJE de 28-5-2012).
56. Apesar disso, seria igualmente equivocado afirmar que as decisões do
Supremo Tribunal Federal se limitariam a resolver casos concretos, sem qual‑
quer repercussão sobre outras situações. Ao contrário, a ausência de vincula‑
ção formal não tem impedido que, nos últimos anos, a jurisprudência da Corte
venha exercendo o papel de construir o sentido das normas constitucionais,
estabelecendo diretrizes que têm sido observadas pelos demais juízos e órgãos
do poder público de forma geral. Nas palavras da ministra Cármen Lúcia, em
decisão monocrática (Rcl 4.708/GO):

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Precedente, no direito brasileiro, não pode ser o que a doutrina aproveita ao cuidar
dos sistemas do common law. Conquanto já não se creia que o sistema do civil
law possa ser tido como o modelo que cobre, com todo rigor, o sistema jurídico
brasileiro, é certo que o leading case não tem, aqui, as consequências vinculantes
para os juízes daquele primeiro sistema. O papel de fonte do direito que o prece‑
dente tem, naquele, não é desempenhado pelo precedente no direito brasileiro,
salvo nos casos constitucional ou legalmente previstos, como se dá com as ações
constitucionais para o controle abstrato.
Mas também é certo que o precedente judicial – julgado anterior sobre a matéria
não substituído ou desautorizado por entendimento sobre aplicação de norma
jurídica em sentido contrário exarado pelo Supremo Tribunal – influi, direta ou
indiretamente, na aplicação do direito pela jurisdição inferior. O precedente serve,
no sistema brasileiro, apenas como elemento judicial orientador, inicialmente, para
a solução dos casos postos a exame. É ponto de partida, não é ponto de chegada.
Não se faz inexorável a decisão proferida por ter tido outra em determinado sentido.

57. É apenas nesse sentido limitado que as condições indicadas no acórdão


embargado produzem efeitos sobre futuros processos, tendo por objeto demar‑
cações distintas. Vale dizer: tendo a Corte enunciado a sua compreensão acerca
da matéria, a partir da interpretação do sistema constitucional, é apenas natural
que esse pronunciamento sirva de diretriz relevante para as autoridades esta‑
tais – não apenas do Poder Judiciário – que venham a enfrentar novamente as
mesmas questões. O ponto foi objeto de registro expresso por parte do ministro
Cezar Peluso (fls. 543 e 545):
(...) a postura que esta Corte está tomando hoje não é de julgamento de um caso
qualquer, cujos efeitos se exaurem em âmbito mais ou menos limitado, mas é
autêntico caso-padrão, ou leading case, que traça diretrizes não apenas para solu‑
ção da hipótese, mas para disciplina de ações futuras e, em certo sentido, até de
ações pretéritas, nesse tema.
Parece-me, daí, justificada a pertinência de certos enunciados que deixem claro
o pensamento da Corte a respeito. Isso vale, principalmente, em relação às novas
demarcações, que envolvem um complexo de interesses, direitos e poderes de
vários sujeitos jurídicos, seja de direito público, seja de direito privado, envolvendo,
basicamente, questões de segurança nacional no sentido estrito da expressão (...).
Desde logo (...), compreendo a inspiração de Sua Excelência [o Ministro Mene‑
zes Direito] ao fugir um pouco, vamos dizer assim, das técnicas tradicionais de
comandos ou disposições decisórias, com o propósito de deixar clara a postura
da Corte a respeito das questões ora suscitadas e prevenindo outras que possam
surgir em demarcações futuras.

58. Isto é: embora não tenha efeitos vinculantes em sentido formal, o acórdão
embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte

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do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em que se


cogite de superação das suas razões.
59. Dessa forma, dou parcial provimento aos embargos de declaração, sem
efeitos modificativos, apenas para prestar os esclarecimentos acima.

VI.2 Ponderações envolvendo os direitos dos índios


60. Em diversas passagens, a procuradora-geral da República sustenta que o
Tribunal teria dado primazia incondicionada a interesses da União – inclusive
econômicos –, bem como à tutela do meio ambiente, em detrimento dos direitos
dos índios. Preocupação semelhante se verifica também nos embargos opostos
pelas comunidades indígenas, adiante analisados.
61. Não há como acolher os embargos no ponto. Observo inicialmente que
não há omissão, contradição ou obscuridade quanto a essa questão. O acór‑
dão é claro e expresso a respeito da orientação adotada. Seja como for, não
vislumbro, no julgado, uma primazia incondicionada em favor de quem quer
que seja. Como destacado pela ministra Cármen Lúcia, “aos índios, como a
quaisquer outros brasileiros nas suas terras, aplicam-se os regimes de proteção
ambiental e de segurança nacional” ( fl. 519). O que fez o acórdão embargado foi
uma ponderação: diante do choque de direitos constitucionais e fins públicos
relevantes, o Tribunal definiu como devem ser conciliadas, em princípio, essas
pretensões antagônicas. De ordinário, essa tarefa compete ao legislador, mas,
na ausência de disposições claras sobre essas questões, coube à Corte discorrer
sobre o sentido das exigências constitucionais na matéria, à luz das circuns‑
tâncias do caso em exame.
62. Nesse ponto, é importante observar que a ponderação em abstrato feita
pelo Tribunal não impede que outros juízes, diante dos elementos específicos
de um caso concreto, cheguem a conclusões específicas diversas. Essas decisões
poderão ser questionadas pelos meios tradicionais de impugnação do direito
brasileiro, podendo até mesmo chegar ao Supremo Tribunal Federal (via recurso
extraordinário, por exemplo).
63. Dessa forma, nego provimento aos embargos nesta parte.

VI.3 Sentido e alcance da lei complementar prevista no art. 231, § 6º, da Constituição


64. Segundo o Ministério Público Federal, a utilização das terras indígenas
pela União (para fins econômicos ou militares, ou para a prestação de serviços
públicos) dependeria da prévia edição da lei complementar prevista no art. 231,
§ 6º, da Constituição. Veja-se o dispositivo:

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São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por
objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou
a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existen‑
tes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a
ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da
ocupação de boa-fé.

65. Também neste ponto, os embargos não merecem ser acolhidos. O tema
foi explicitamente tratado no voto do ministro Menezes Direito, que integrou a
maioria (fls. 391-2):
Ainda de acordo com o art. 231, § 2º, da Constituição, cabe aos índios o usufruto
exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas,
salvo, como dispõe o art. 231, § 6º, quando houver relevante interesse público
da União, na forma de lei complementar, caso em que esta poderá iniciar a
exploração dessas riquezas.
Merecem destaque as restrições referentes à exploração dos recursos hídricos e
potenciais energéticos e à pesquisa e lavra de riquezas minerais, especialmente
em razão da incongruência que a uma primeira vista se apresenta entre os §§ 3º
e 6º do art. 231.
(...)
De fato, a lei de que trata o § 3º do art. 231 é exigida para a fixação do percen‑
tual de participação dos índios na exploração dos recursos em suas terras. Nada
mais. A lei complementar referida no § 6º do art. 231, por sua vez, é requisito para
a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos existentes nas
terras indígenas. Não alcança a exploração de recursos hídricos e, principalmente
do potencial energético ou a pesquisa e lavra dos recursos minerais, presente o
interesse público da União.

66. Dessa forma, na interpretação adotada pelo acórdão embargado, a reserva


de lei complementar prevista no art. 231, § 6º, da Constituição não alcança toda e
qualquer atuação da União nas terras indígenas. Em particular, o patrulhamento
de fronteiras, a defesa nacional e a conservação ambiental nas áreas demarcadas
não dependem da prévia promulgação da referida lei.

VI.4 A participação das comunidades indígenas nas deliberações que afetem os seus
interesses e direitos
67. A consulta aos indígenas é um elemento central da Convenção 169, da
Organização Internacional do Trabalho. Essa convenção integra o direito brasi‑
leiro, tendo sido internalizada pelo Decreto Legislativo 143/2002 e pelo Decreto
presidencial 5.051/2004, e foi considerada em diversas passagens do acórdão

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embargado. Mas esse direito de participação não é absoluto – como, de resto,


nenhum outro. Sendo assim, certos interesses também protegidos pela Consti‑
tuição podem excepcionar ou limitar, sob certas condições, o procedimento de
consulta prévia. A defesa nacional é um exemplo acadêmico do que se acaba de
dizer. Se questões estratégicas justificam até a aplicação de sigilo a informações
de interesse público (CF/1988, art. 5º, XXXIII), é natural que possam prescindir
de prévia comunicação a quem quer que seja – aqui incluídas as comunidades
indígenas. O tema também foi abordado pelo ministro Menezes Direito, com
referência expressa à convenção (fl. 408):
Dessa forma, estando a terra indígena em faixa de fronteira, o que se dá no caso
ora em exame, o usufruto dos índios sobre a terra estará sujeito a restrições sempre
que o interesse público de defesa nacional esteja em jogo. A instalação de bases
militares e demais intervenções militares a critério dos órgãos competentes, ao
contrário do que parece se extrair da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas
e da Convenção 169 da OIT, será implementada independentemente de consulta às
comunidades indígenas envolvidas ou à Funai. O mesmo deverá ocorrer quando
o interesse da defesa nacional coincidir com a expansão da malha viária ou das
alternativas energéticas e o resguardo de riquezas estratégicas, conforme mani‑
festação favorável do Conselho de Defesa Nacional.

68. Na mesma linha, confira-se trecho do voto do ministro Celso de Mello (fl. 731):
A circunstância de a faixa de fronteira constituir área indispensável à segurança
nacional, à defesa da integridade territorial do Brasil e à proteção da soberania
nacional justifica, plenamente, todas as medidas preconizadas no voto que o
eminente ministro Menezes Direito proferiu nesta causa, notadamente aquelas
concernentes à desnecessidade de prévia autorização da Funai ou de consulta
prévia às comunidades tribais interessadas, para efeito de instalação, em tais áreas
indígenas, de unidades militares e de atuação, nessas mesmas áreas, de qualquer
das Forças Singulares.

69. Dessa forma, o acórdão não infirma os termos da Convenção 169/OIT,


mas apenas destaca que, em linha de princípio, o direito de prévia consulta deve
ceder diante de questões estratégicas relacionadas à defesa nacional. Natural‑
mente, o acórdão embargado não sugere – nem poderia sugerir – que a expres‑
são “defesa nacional” possa ser usada como rótulo para qualquer tipo de fim,
apenas como subterfúgio para afastar a participação dos indígenas. Via de regra,
o planejamento das operações militares não envolverá a necessidade de prévia
consulta. Situação inversa ocorrerá, por exemplo, em relação à construção de
uma estrada, ainda que ela seja estrategicamente relevante para o País. Caberá

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às autoridades competentes e, conforme o caso, ao Poder Judiciário fazer valer as


disposições da convenção, ponderando os interesses em jogo à luz do princípio
da razoabilidade-proporcionalidade.
70. Por fim, conforme observado pelo ministro Gilmar Mendes, a relevância
da consulta às comunidades indígenas “não significa que as decisões dependam
formalmente da aceitação das comunidades indígenas como requisito de vali‑
dade” (fl. 799). Os índios devem ser ouvidos e seus interesses devem ser honesta e
seriamente considerados. Disso não se extrai, porém, que a deliberação tomada,
ao final, só possa valer se contar com a sua aquiescência. Em uma democracia,
as divergências são normais e esperadas. Nenhum indivíduo ou grupo social tem
o direito subjetivo de determinar sozinho a decisão do Estado. Não é esse tipo
de prerrogativa que a Constituição atribuiu aos índios.
71. A mesma lógica se aplica em matéria ambiental, que também mereceu
proteção diferenciada por parte do constituinte. Por isso mesmo, e com a devida
vênia em relação à posição da embargante ( fl. 16165), não há um problema a priori
no fato de que “as tradições e costumes indígenas” sejam considerados como
“apenas mais um fator, a ser sopesado pela autoridade ambiental”. Em verdade,
essa é uma circunstância inerente à unidade do sistema constitucional, que
promove a tutela de um conjunto variado de interesses e direitos que, em diver‑
sas situações, podem entrar em rota de colisão. Ao não instituir uma hierarquia
rígida ou estática entre tais elementos, a Constituição impõe a necessidade de
que a concordância entre eles seja produzida em cada contexto específico, à luz
de suas peculiaridades.
72. Assim, como responsável pela administração das áreas de preservação, o
Instituto Chico Mendes não pode decidir apenas com base nos interesses dos
indígenas, devendo levar em conta as exigências relacionadas à tutela do meio
ambiente. Nesse cenário, é de fato possível – como afirma a embargante – que
“o administrador da unidade de conservação, até pela sua posição institucio‑
nal, ponha em primeiro plano a tutela ambiental, em detrimento do direito das
comunidades indígenas”. Contudo, é igualmente possível que isso não ocorra,
não cabendo a este Tribunal antecipar o erro, a negligência ou a má-fé. Em qual‑
quer caso, os índios, suas comunidades e o próprio Ministério Público poderão
recorrer ao Poder Judiciário sempre que reputarem inválida uma decisão do
instituto (ou de qualquer outra autoridade).
73. Como também este ponto já havia sido equacionado pelo acórdão embar‑
gado, nego provimento aos embargos nesta parte.

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VI.5 Vedação à ampliação das áreas demarcadas


74. A condição r foi acolhida pela maioria do Tribunal, vencidos os ministros
Carlos Ayres Britto (relator), Eros Grau e Cármen Lúcia. Prevaleceu a ideia de
que a demarcação das terras indígenas não poderia permanecer em aberto, por
acarretar consequências gravíssimas para terceiros – em particular a privação de
direitos de propriedade sem indenização, ressalvadas apenas as benfeitorias de
boa-fé (CF/1988, art. 231, § 6º). A questão comporta, contudo, três esclarecimentos.
75. Em primeiro lugar, afirmou-se que o instrumento da demarcação previsto
no art. 231 da Constituição não pode ser empregado, em sede de revisão adminis‑
trativa, para ampliar a terra indígena já reconhecida, submetendo todo o espaço
adjacente a uma permanente situação de insegurança jurídica. Nada disso impede
que a área sujeita a uso pelos índios seja aumentada por outros instrumentos pre‑
vistos no Direito. Os próprios índios e suas comunidades podem adquirir imóveis,
na forma da lei civil (Lei 6.001/1973, arts. 32 e 33). Nessa qualidade, terão todos os
direitos e poderes de qualquer proprietário privado (CF/1988, art. 5º, XXII). A União
Federal também pode obter o domínio de outras áreas, seja pelos meios nego‑
ciais tradicionais (como a compra e venda ou a doação), seja pela desapropriação
(CF/1988, art. 5º, XXIV). Essas questões se refletiram nos debates de fls. 850-2:
O sr. ministro Cezar Peluso: Se Vossa Excelência me permite?
Isso aí é o pressuposto de toda a demarcação, isto é, se foi demarcado e, no ato
da demarcação, se reconheceu que a área demarcada correspondia à posse efe‑
tivamente provada. Noutras palavras, se nós admitirmos que a área demarcada
possa ser ampliada, significa que é duvidosa a área ocupada. Foi demarcada em
situação duvidosa, porque, quando se demarca a área, é porque se reconheceu
que essa é a área ocupada.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Mediante laudo técnico, antropológico.
O sr. ministro Cezar Peluso: Exatamente. Isto é, se nós deixarmos em aberto a
possibilidade de discussão dos limites da demarcação, nós deixamos em aberto
para todos os efeitos – e não é só para a ampliação – o alcance da posse na data
da Constituição.
(...)
O sr. ministro Marco Aurélio: A título de demarcação.
O sr. ministro Cezar Peluso: A título de demarcação.
O sr. ministro Marco Aurélio: Agora, nada impede que certos indígenas supe‑
raculturados venham a adquirir outras áreas.
O sr. ministro Cezar Peluso: Isso é outra coisa.
O sr. ministro Gilmar Mendes (presidente): Ou até por desapropriação.
O sr. ministro Menezes Direito: (...) uma vez feita a demarcação, considerando o
padrão da Constituição de 88, se nós vamos estender essa demarcação permitindo

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a ampliação, vamos, a meu ver, criar esse problema, que pode ser resolvido, man‑
tido o critério da vedação da ampliação, pelo sistema ordinário das expropriações.
Pode ser necessário, e a União pode exercer o direito expropriatório.

76. Em segundo lugar, o acórdão embargado não proíbe toda e qualquer revi‑
são do ato de demarcação. O controle judicial, por exemplo, é plenamente admi‑
tido (CF/1988, 5º, XXXV) – não fosse assim, a presente ação jamais poderia ter sido
julgada no mérito, já que seu objeto era justamente a validade de uma demar‑
cação. A limitação prevista no acórdão alcança apenas o exercício da autotutela
administrativa. Em absoluta coerência com as razões expostas, assentou-se que
a demarcação de terras indígenas “não abre espaço para nenhum tipo de revisão
fundada na conveniência e oportunidade do administrador” (ministro Menezes
Direito, fl. 395). Isso porque a inclusão de determinada área entre as “terras tradi‑
cionalmente ocupadas pelos índios” não depende de uma avaliação puramente
política das autoridades envolvidas, e sim de um estudo técnico antropológico.
Sendo assim, a modificação da área demarcada não pode decorrer apenas das
preferências políticas do agente decisório.
77. O mesmo não ocorre, porém, nos casos em que haja vícios no processo
de demarcação. A vinculação do poder público à juridicidade – que autoriza
o controle judicial dos seus atos – impõe à administração pública o dever de
anular suas decisões quando ilícitas, observado o prazo decadencial de cinco
anos (Súmula 473/STF; Lei 9.784/1999, arts. 53 e 54). Nesses casos, em homena‑
gem aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa
(CF/1988, art. 5º, LVI e LV), a anulação deve ser precedida de procedimento admi‑
nistrativo idôneo, em que se permita a participação de todos os envolvidos (Lei
9.784/1999, arts. 3º e 9º) e do Ministério Público Federal (CF/1988, art. 232; Lei
Complementar 75/1993, art. 5º, III, e), e deve ser sempre veiculada por decisão
motivada (Lei 9.784/1999, art. 50, I e VIII). Ademais, como a nulidade é um vício
de origem, fatos ou interesses supervenientes à demarcação não podem dar
ensejo à cassação administrativa do ato. Esses pontos foram bem sintetizados
no voto do ministro Gilmar Mendes (fls. 776, 782-3):
Terminado o procedimento demarcatório, com o registro da área demarcada no
Cartório de Imóveis, resta configurada a denominada coisa julgada administra‑
tiva, que veda à União nova análise da questão. No entanto, caso se faça neces‑
sária a revisão do procedimento, tendo em vista a existência de graves vícios ou
erros em sua condução, será imprescindível a instauração de novo procedimento
administrativo, em que sejam adotadas as mesmas cautelas empregadas anterior‑
mente e seja garantido aos interessados o direito de manifestação. Não se revela
admissível, contudo, a revisão fundada apenas na conveniência e oportunidade

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do administrador público, como bem salientado no percuciente voto do ministro


Menezes Direito.
(...)
Ressalte-se que não se está a defender a total impossibilidade de revisão do procedi‑
mento administrativo demarcatório. Disso não se trata. A revisão deve estar restrita
às hipóteses excepcionais, ante a constatação de grave e insanável erro na condução
do procedimento administrativo e na definição dos limites da terra indígena.
(...)
A variedade e a complexidade de interesses envolvidos na demarcação da terra
indígena e a consolidação de situações e expectativas individuais constituem limi‑
tes ao exercício do poder-dever de autotutela pela administração pública.
(...)
Nesse sentido, revela-se premente a adoção de critérios objetivos e de limites
temporais claros para a resolução das questões fundiária, ambiental e indígena
em nosso país, a fim de que o quadro de insegurança jurídica que hoje presencia‑
mos possa ser, enfim, debelado ou, pelo menos, atenuado. Não se pode admitir a
possibilidade de que, a qualquer momento, sejam ampliados os limites das terras
indígenas já demarcadas, sob a alegação de que as necessidades dos grupos autóc‑
tones não foram corretamente aquilatadas à época da demarcação ou de que novos
interesses teriam surgido após a sua conclusão.
A adoção da tese oposta daria azo a ampliações desmedidas e infundadas das
dimensões das terras indígenas.

78. Em terceiro lugar, e por fim, independentemente do que se observou acima,


é vedado à União rever os atos de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do
Sol, ainda que no exercício de sua autotutela administrativa. Recorrendo nova‑
mente às palavras do ministro Gilmar Mendes: “Como bem salientado pelo minis‑
tro Menezes Direito, o procedimento demarcatório que redundou na demarcação
da Terra Indígena Raposa Serra do Sol não poderá ser revisto, considerando que
a sua correção formal e material foi atestada por este Supremo Tribunal Federal”
(fl. 782). Essa orientação também contava com a adesão, e.g., do ministro Carlos
Ayres Britto (relator). Embora discordasse da condicionante r em caráter geral,
Sua Excelência explicitamente observou que estava “de pleno acordo” com sua
aplicação ao caso concreto decidido pelo Tribunal (fl. 848).
79. Como essas observações já estavam presentes no acórdão embargado,
nego provimento aos embargos neste ponto.

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VII. Embargos das comunidades indígenas


80. Por fim, analiso as questões suscitadas pelas comunidades indígenas.

VII.1 Garimpagem e faiscação


81. O primeiro ponto diz respeito à condição d (“o usufruto dos índios não
compreende a garimpagem nem a faiscação, devendo-se obter, se for o caso, a
permissão de lavra garimpeira”). As embargantes afirmam, em síntese, que cabe‑
ria apenas aos índios o “aproveitamento de jazimento mineral que aflora ao solo
e nos leitos dos rios e lagos, localizados nas terras tradicionalmente ocupadas
pelos índios” (fl. 15855).
82. Não há omissão quanto à matéria, que foi debatida, e.g., no voto do minis‑
tro Menezes Direito, e novamente suscitada pelo ministro Carlos Ayres Britto.
Vejam-se, respectivamente, os trechos pertinentes dessas manifestações:
O que deve ser lembrado é que a edição de uma lei prévia é também exigência de
outro dispositivo constitucional, o § 1º do art. 176. E este está diretamente dirigido
à exploração de potenciais hidráulicos e riquezas minerais.
(...)
É importante afirmar que os indígenas também não poderão, sem a autorização
do Congresso e dos demais requisitos exigidos em lei, explorar os recursos hídricos
e os potenciais energéticos (arts. 49, XVI, e 231, § 3º, ambos da Constituição Federal),
já que não lhes é assegurado pela Carta Magna nenhum privilégio nesse sentido.
Nem, tampouco, poderão criar obstáculos ou impor exigências.
A Constituição, seguindo a tradição iniciada em 1934, distingue o solo do sub‑
solo para fins de tratamento dos direitos de propriedade (arts. 20, IX, e 176, caput).
Da mesma forma, o Código Civil (art. 1.230). Estando ou não aflorada, a jazida é parte
distinta do solo (art. 176, caput, da Constituição Federal e art. 4º, Código de Mineração).
É bom notar que a garimpagem é, na interpretação sistemática das Leis 11.685, de 2
de junho de 2008, e 7.805, de 18 de julho de 1989, “a atividade de extração de substân‑
cias minerais garimpáveis, com aproveitamento imediato do jazimento mineral, que,
por sua natureza, dimensão, localização e utilização econômica, possam ser lavradas,
independentemente de prévios trabalhos de pesquisa, segundo critérios técnicos do
Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM)” (art. 2º da Lei 11.685/2008).
Como tal, é espécie de lavra (Lei 7.805/1989), devendo ser autorizada previamente
pelo DNPM, que outorgará, nesse caso, o título minerário (art. 3º da Lei 11.685/2008).
Assim, sendo o objeto de sua exploração uma jazida, não há como reconhecer
diferença entre os índios e os não índios no que se refere à lavra garimpeira, já
que estes têm apenas o usufruto das riquezas do solo. Por isso, não havendo nas
disposições constitucionais que proíbem a pesquisa e a lavra de riquezas minerais
nenhuma exceção que beneficie os índios, também eles devem obter a adequada
permissão (Leis 7.805/1989 e 11.685/2008).

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Embora não se trate de enfrentar este tema agora, haverá de ser examinada no
momento próprio a questão da recepção do caput do art. 22, do art. 24, do inciso II
do art. 39, do art. 44 e do art. 45 da Lei 6.001/1973, bem como do Decreto 88.985,
de 10 de novembro de 1983.

O sr. ministro Gilmar Mendes (presidente): Sobre as propostas constantes do


voto do ministro Menezes Direito, já houve, inclusive, manifestações dos ministros,
ausentes hoje, Celso de Mello e Ellen Gracie.
Ministro Carlos Britto, Vossa Excelência teria?
O sr. ministro Carlos Britto (relator): Umas sugestões meramente pontuais,
se Vossa Excelência permitir?
O sr. ministro Gilmar Mendes (presidente): Por favor.
O sr. ministro Carlos Britto (relator): Ministro Menezes Direito, na primeira
condição, sugiro a Vossa Excelência a seguinte modificação:
(...)
III: o usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra dos recursos minerais.
Na Constituição, tem das riquezas minerais. Se Vossa Excelência quiser fazer a
adaptação das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Con‑
gresso Nacional.
(...)
IV: o usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo,
se for o caso, ser obtida a permissão de lavra garimpeira. Aqui tenho uma dúvida:
não sei se é permitido garimpagem em terra indígena? Mas Vossa Excelência deve
ter feito um estudo mais.
O sr. ministro Menezes Direito: Dependendo da autorização.
O sr. ministro Carlos Britto (relator): Muito bem. Então, não faço sugestão.

83. No acórdão embargado, não se discutiu à exaustão o regime legal e regu‑


lamentar aplicável à garimpagem e à faiscação. Nem seria próprio fazê-lo. Limi‑
tando-se à interpretação do sistema constitucional, o Tribunal definiu apenas
que o usufruto dos índios não lhes confere o direito de explorar recursos minerais
(bens públicos federais) sem autorização da União, nos termos de lei específica
(CF/1988, arts. 176, § 1º, e 231, § 3º). De toda forma, não se pode confundir a mine‑
ração, como atividade econômica, com aquelas formas tradicionais de extrati‑
vismo, praticadas imemorialmente, nas quais a coleta constitui uma expressão
cultural ou um elemento do modo de vida de determinadas comunidades indí‑
genas. No primeiro caso, não há como se afastarem as exigências previstas nos
arts. 176, § 1º, e 231, § 3º, da Constituição.
84. Embora esse ponto me pareça claro, creio ser conveniente prover parcial-
mente os embargos apenas para prestar os esclarecimentos acima.

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VII.2 Exigência de lei complementar


85. O ponto já foi examinado no item VI.3, a que se remete, por concisão.

VII.3 Prévia consulta às comunidades indígenas


86. Esse ponto também já foi abordado – v. item VI.4, acima.

VII.4 Indenizações pela “ocupação” de parte das terras indígenas


87. A questão diz respeito ao pagamento de indenização quando a realização
de obras públicas, fora da terra indígena, prejudique o usufruto exclusivo dos
índios sobre a área. O ponto não integra o objeto da ação e, por isso, não foi
abordado pelo acórdão embargado. Nesse sentido, não há por que acolher os
embargos. A configuração do dever de indenizar depende de pressupostos que
devem ser examinados em cada caso concreto, à luz da legislação pertinente.
Nego provimento aos embargos.

VII.5 Vedação à ampliação da área demarcada


88. O ponto já foi examinado acima – v. item VI.5.

VIII. Conclusão
89. Por todo o exposto, voto no sentido de:
(i) não conhecer dos embargos de declaração opostos por Ação Integralista
Brasileira, Movimento Integralista Brasileiro e Anésio de Lara Campos Júnior;
(ii) desprover os embargos opostos por Lawrence Manly Harte e outros e pelo
Estado de Roraima; e
(iii) acolher parcialmente, sem efeitos modificativos, os embargos de declara‑
ção opostos pelo senador Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti, pela Procurado-
ria-Geral da República e pelas Comunidades Indígenas, apenas para esclarecer que:
a) A decisão proferida na Pet 3.388/RR tem a força intelectual e persuasiva de
uma decisão do Supremo Tribunal Federal, mas não é vinculante, em sentido
técnico, para juízes e tribunais, quando do exame de outros processos, relativos
a terras indígenas diversas;
b) Com o trânsito em julgado do acórdão proferido na Pet 3.388/RR, todos os
processos relacionados à Terra Indígena Raposa Serra do Sol deverão adotar as
seguintes premissas como necessárias: (i) são válidos a Portaria/MJ 534/2005 e
o decreto presidencial de 15-4-2005, que demarcaram a área, observadas as con‑
dições indicadas no acórdão; e (ii) a caracterização da área como terra indígena,
para os fins dos arts. 20, XI, e 231 da Constituição, importa em nela não poderem

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persistir pretensões possessórias ou dominiais de particulares, salvo no tocante


a benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (CF/1988, art. 231, § 6º);
c) O usufruto dos índios não lhes confere o direito exclusivo de explorar recursos
minerais nas terras indígenas. Para fazê-lo, quaisquer pessoas devem contar com
autorização da União, nos termos de lei específica (CF/1988, arts. 176, § 1º, e 231,
§ 3º). De toda forma, não se pode confundir a mineração, como atividade econô‑
mica, com as formas tradicionais de extrativismo, praticadas imemorialmente,
nas quais a coleta constitui uma expressão cultural ou um elemento do modo de
vida de determinadas comunidades indígenas. No primeiro caso, não há como
se afastarem as exigências previstas nos arts. 176, § 1º, e 231, § 3º, da Constituição.
90. Antes de concluir, gostaria de fazer dois registros. Pensei em trazê-los como
questões de ordem, mas, na verdade, é possível fazer de uma forma mais simples.
91. O primeiro deles diz respeito à supervisão judicial sobre o cumprimento da
portaria demarcatória. Assim que assumi a relatoria do processo, determinei a
expedição de ofício ao desembargador federal Jirair Aram Meguerian, solicitando
um relatório final sobre o tema. Em homenagem à colegialidade, submeto à con‑
sideração do Plenário as principais informações prestadas por Sua Excelência:
(i) em junho de 2009, já não havia mais nenhum “não índio” residindo na Terra
Indígena Raposa Serra do Sol;
(ii) não houve necessidade de nenhuma prisão;
(iii) a grande maior parte dos retirantes já sacou os valores depositados pela
Funai a título de indenização por benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
92. Diante disso, se o Tribunal estiver de acordo em me delegar essa atribui‑
ção, gostaria de dirigir um ofício, em nome da Corte, ao desembargador federal
Jirair, cumprimentando-o pela dedicação e pelo excelente trabalho desenvolvido.
93. O segundo registro diz respeito ao exaurimento da competência deste
Tribunal. Na Rcl 3.331/RR, decidiu-se que incumbiria “a esta colenda Corte apre‑
ciar todos os feitos processuais intimamente relacionados com a demarcação
da referida reserva indígena [Raposa Serra do Sol]”. No entanto, reconhecida a
validade dos atos que demarcaram a área, não me parece que ainda haja motivo
que justifique a competência originária genérica deste Tribunal para toda e qual‑
quer ação relacionada à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. O conflito federativo
que se alegava existir foi resolvido em definitivo com a decisão desta Corte. Nada
impede que outras lides autorizem a invocação do art. 102, I, da Constituição,
mas caberá aos interessados – como sempre – demonstrar os fundamentos dessa
excepcional atuação originária.
94. Nessa linha, proponho que se declare exaurida a jurisdição desta Corte
com o trânsito em julgado do acórdão, a fim de que os demais processos sobre

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a terra indígena sejam julgados pelos órgãos locais competentes. Naturalmente,


nada impede que outros conflitos federativos provoquem nova manifestação
originária do Tribunal, nem que se chegue ao STF pelas vias recursais próprias
ou, eventualmente, por reclamação.
95. É como voto.

VOTO
(Sobre os terceiros embargos de declaração –
Embargos opostos pelo senador Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti)
O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, acompanho o relator, sem
prejuízo de algumas observações que farei, mais adiante, em relação à eficácia
geral dessa decisão do Supremo Tribunal Federal.

VOTO
(Sobre os terceiros embargos de declaração)
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, estou de acordo também.
Quanto aos templos religiosos e locais de culto, eu apenas, como obiter dictum,
me permitiria salientar que é preciso conciliar essa excelente solução dada pelo
eminente relator com aquilo que consta no art. 5º, VI, da nossa Constituição,
que assevera que:
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais
de culto e a suas liturgias;

Não há nenhuma incompatibilidade disto que eu estou afirmando com aquilo


que foi assentado por Sua Excelência, até porque os índios gozam e usufruem
também – apesar do status especial que possuem por força da Constituição – de
todos os direitos que estão listados no art. 5º desta Constituição.
Quanto aos locais de culto, estes têm uma situação diferenciada, no sentido
de que merecem uma proteção toda especial, nos termos da Constituição.

VOTO
(Sobre os terceiros embargos de declaração)
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, tenho uma única divergência rela‑
cionada à conclusão, até mesmo para que não ocorram leituras equivocadas do

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que decidido pelo Plenário. Houve a apreciação da ação popular, oportunidade


na qual fiquei vencido, no que julgava inteiramente procedente, como ressaltado
pelo ministro Luís Roberto Barroso, o pedido formulado na inicial.
Sua Excelência – isso está revelado na extensão do voto – acaba, até mesmo,
a partir de premissas do acórdão formalizado, por prestar inúmeros esclareci‑
mentos que, a meu ver, não ficaram limitados à penúltima questão. Esses escla‑
recimentos dizem respeito a outros itens veiculados pelo senador embargante,
como, por exemplo, o referente à atividade religiosa, já agora com o aspecto
destacado pelo ministro Ricardo Lewandowski, ou seja, a liberdade de culto.
Também, Sua Excelência, muito embora desprovendo os declaratórios – e
pediria vênia para provê-los, justamente para dar uma envergadura maior aos
esclarecimentos –, adentrou a problemática das escolas públicas existentes e
apontou, ressaltando algo que estaria implícito na decisão do Tribunal, a direção
maior da própria União.
Também veio a prestar esclarecimentos quanto à passagem de não índios
pelas rodovias existentes. Creio que é interessante – até mesmo para alcançar‑
-se, de uma forma mais efetiva, a paz social na localidade – prover os embargos,
sem eficácia modificativa, apenas para dar-se, como disse, envergadura maior
aos esclarecimentos.
Penso que são esses os itens, em síntese, em que Sua Excelência foi adiante
para prestar esclarecimentos. Sabemos que os embargos declaratórios podem ter
dois objetivos: o primeiro, se for o caso, integrar o pronunciamento embargado;
e o segundo, justamente, afastar a possível obscuridade na leitura da própria
decisão proferida, prestando-se esclarecimentos.
Por isso é que me permito, Presidente, divergir quanto aos itens que mencio‑
nei, para, ao invés de desprover o recurso, provê-lo, visando encampar os escla‑
recimentos constantes do voto do ministro Luís Roberto Barroso.
É como me pronuncio sobre a matéria.

VOTO
(Sobre os sextos embargos de declaração –
Embargos opostos pela Procuradoria-Geral da República – Antecipação)
O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, pediria licença para, nesse
ponto, tecer algumas considerações a mais, devendo desde logo antecipar que,
nas conclusões, acompanho o ministro relator. Apenas registro um enfoque um
pouco diferente no que se refere à eficácia subjetiva e a alguns aspectos da efi‑
cácia temporal da decisão que aqui se proferiu.

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1. Conforme salientado no voto do ministro Roberto Barroso, os embargos


de declaração não se prestam, em princípio, a promover a reforma do acórdão
embargado mediante formulação de novo juízo sobre as questões decididas. E, no
caso, ficou demonstrado que, em sua essência, a matéria suscitada nos diversos
embargos de declaração diz respeito não a omissões ou contradições porventura
verificadas na decisão embargada, mas a questões que nela foram enfrentadas e
decididas, não comportando, por isso mesmo, um novo juízo de revisão.
2. Os pontos que mereceram atenção – e, eventualmente, esclarecimentos –
pelo relator dizem respeito à eficácia subjetiva do acórdão recorrido, especial‑
mente no que se refere às denominadas “condicionantes” nele estabelecidas.
3. A propósito, desde logo é preciso enfatizar que tais condicionantes repre‑
sentam, na verdade, os fundamentos jurídicos adotados como pressupostos para
a conclusão, que foi pela procedência parcial do pedido. De qualquer modo, é
importante considerar que o acórdão embargado está revestido dessa peculiar
característica de ter estabelecido a definição do regime jurídico a ser observado
em relação à área de terra indígena nele demarcada. Isso desperta duas espécies
relevantes de questionamento: quanto à sua eficácia subjetiva, ou seja, quanto
aos efeitos da decisão em face de terceiros não vinculados à relação processual;
e a segunda, quanto à sua eficácia temporal, ou seja, relativamente aos efeitos
prospectivos da decisão em face de eventuais modificações futuras do estado
de fato ou de direito.
4. Quanto ao primeiro aspecto, é preciso registrar a distinção entre eficácia e
imutabilidade das sentenças. A imutabilidade é uma qualidade própria da coisa
julgada, na exata dicção do art. 467 do CPC. Nesse sentido, não há dúvida de que
a coisa julgada, assim considerada “a eficácia que torna imutável e indiscutível a
sentença” (CPC, art. 467), tem âmbito subjetivo restrito “às partes entre as quais
é dada” (art. 472 do CPC, primeira parte). Isso, todavia, não significa que os efei‑
tos da sentença também estejam assim circunscritos. Pelo contrário: como todo
ato estatal, a sentença produz efeitos naturais de amplitude subjetiva universal.
Há, a propósito do tema, estudo clássico de Enrico Tullio Liebman, sempre lem‑
brado, em que afirma:
[A] sentença, como ato autoritativo ditado por um órgão do Estado, reivindica natu‑
ralmente, perante todos, seu ofício de formular qual seja o comando concreto da lei
ou, mais genericamente, a vontade do Estado para um caso determinado. As partes,
como sujeitos da relação processual a que se refere a decisão, são certamente as
primeiras que sofrem a sua eficácia, mas não há motivo que exima os terceiros de
sofrê-la igualmente. Uma vez que o juiz é o órgão ao qual atribui o Estado o mister
de fazer atuar a vontade da lei no caso concreto, apresenta-se a sua sentença como

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eficaz exercício dessa função perante todo o ordenamento jurídico e todos os sujei‑
tos que nele operam. Certamente, muitos terceiros permanecem indiferentes em
face da sentença que decidiu somente a relação jurídica que em caso concreto foi
submetida a exame do juiz; mas todos, sem distinção, se encontram potencialmente
em pé de igualdade de sujeição a respeito dos efeitos da sentença, efeitos que se
produzirão efetivamente para todos aqueles cuja posição jurídica tenha qualquer
conexão com o objeto do processo, porque para todos contém a decisão a atuação
da vontade da lei no caso concreto. O juiz, que na plenitude de seus poderes e com
todas as garantias outorgadas pela lei, cumpre sua função, declarando, resolvendo
ou modificando uma relação jurídica, exerce essa atividade (e não é possível pensar
diversamente) para um escopo que outra coisa não é senão a rigorosa e imparcial
aplicação e atuação da lei; e não se compreenderia como esse resultado todo objetivo
e de interesse geral pudesse ser válido e eficaz só para determinados destinatários
e limitado a eles. [LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença. Tradu‑
ção de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 123.]

A eficácia universal do julgado, assim estabelecida, é particularmente signi‑


ficativa em se tratando de sentença proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
A sua vocação expansiva e persuasiva em relação às questões decididas fica
realçada pela superior autoridade da chancela dessa mais alta Corte de Justiça.
5. Isso não significa, é certo, que os terceiros prejudicados estejam inibidos de,
em ação própria, deduzir em juízo pretensões que entendam legítimas. O direito de
ação, em casos tais, além de garantido pelo art. 5º, XXXV, da Constituição, decorre
do próprio art. 472 do CPC. No estudo já citado Liebman deixou isso expresso:
[D]iversamente do que ocorre com as partes, para quem a própria sentença adquire
a coisa julgada e seus efeitos se tornam imutáveis, para os terceiros a sentença é
eficaz, mas – não ficando coberta pelo julgado – é discutível a qualquer tempo.
O terceiro, desde que tenha interesse, pode, em qualquer circunstância e em qual‑
quer novo juízo, demonstrar que a sentença está errada e não lhe pode ser oposta.
(...) Por isso os terceiros, embora sujeitos à eficácia da sentença, podem opor-lhe
razões de fato e de direito que demonstrem a sua contrariedade à justiça. Nem por
isso podem os terceiros, é claro, modificar ou anular a sentença, mas podem torná‑
-la inaplicável, paralisando a sua eficácia no que lhe diz respeito. [Op. cit., p. 289.]

É nesse sentido também a doutrina pátria, fundada no sistema que entre nós
disciplina a eficácia subjetiva da sentença e da coisa julgada, notadamente no
art. 472 do CPC:
Verifica-se, portanto [do art. 472], que o julgamento apenas entre as partes é imutá‑
vel. Disto não se deduz, porém, que não deva produzir efeitos em relação a terceiros.
Todo julgamento tem eficácia natural e imperativa, que resulta de sua qualidade
de ato estatal. (...) Donde deve concluir-se que o julgamento final, como ato de

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órgão do Estado, tem eficácia erga omnes; mas seus efeitos somente são imutá‑
veis entre as inter partes, pelo que o terceiro, que tenha interesse jurídico, poderá
impugnar os efeitos do julgamento, demonstranto estar ele em desacordo com o
direito objetivo. [MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. 9. ed.
São Paulo: Saraiva, 1987. v. 3, p. 243.]

A sentença, do mesmo modo que todo ato jurídico – diz Chiovenda – existe e vale
em relação a todos (...). Mas afirmar que a sentença, e, pois, a coisa julgada, vale
em relação a terceiros, não quer dizer que possa prejudicar terceiros. Apenas quer
dizer que terceiros não podem desconhecê-la, não que por ela podem ser preju‑
dicados. [SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 21.
ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 3, p. 75⁄76.]

“A sentença faz coisa julgada às partes entre aos quais é dada, não beneficiando
nem prejudicando terceiros”. Não quer dizer isto que os estranhos possam ignorar
a coisa julgada. “Como todo ato jurídico relativamente às partes entre as quais
intervém, a sentença existe e vale com respeito a todos” [Chiovenda, Instituições
de Direito Processual Civil, 3. ed. v. I, n. 133, p. 414]. Não é certo, portanto, dizer
que a sentença só prevalece ou somente vale entre as partes. O que ocorre é que
apenas a imutabilidade e a indiscutibilidade da sentença não podem prejudicar,
nem beneficiar, estranhos ao processo em que foi preferida a decisão trânsita em
julgado (...) Assim, um estranho pode rebelar-se contra aquilo que foi julgado entre
as partes e que se acha sob a autoridade da coisa julgada, em outro processo, desde
que tenha sofrido prejuízo jurídico. [THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito
processual civil. 51. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v. I, p. 557.]

6. Quanto à eficácia temporal, a decisão embargada, como toda sentença de


efeitos prospectivos, deve ser compreendida com implícita cláusula rebus sic stan-
tibus: sua eficácia supõe a manutenção do estado de fato e de direito tomados
como pressupostos do julgamento. Essa observação é particularmente significa‑
tiva para o caso, uma vez que, como salientado, a sentença definiu vários aspectos
importantes do regime jurídico da terra indígena demarcada. Ora, não há regime
jurídico imutável. Nem mesmo o regime constitucional o é. É certo, portanto, que
a decisão embargada não pode inibir futura atuação do legislador, seja no plano
constitucional, seja no exercício da edição da lei complementar ou da ordinária
(como as a que se refere o § 6º do art. 231 da CF). Nesse sentido, sem prejuízo,
obviamente, do controle jurisdicional da sua legitimidade, eventuais disposições
normativas futuras, legitimamente editadas, hão de ser observadas para todos os
efeitos, inclusive no que se refere às “condicionantes” de que trata a decisão embar‑
gada. Da mesma forma, não fica inibida futura atuação do próprio Poder Judiciário,
no âmbito jurisdicional, para promover, como prevê o art. 471, I, do CPC, revisão

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ou complementação dos termos dessas “condicionantes”, para compatibilizá-las


com supervenientes modificações futuras no estado de fato ou de direito.
7. Enfatizo que essas observações nada mais representam do que a explicitação
de decorrências próprias do sistema normativo processual, em nada compro‑
metendo ou alterando os termos do acórdão embargado. Acompanho, assim, o
voto do ministro relator. É o voto.

OBSERVAÇÃO
O sr. ministro Roberto Barroso (relator): Senhor Presidente, não tenho ne­­nhuma
divergência substancial em relação ao que diz o eminente ministro Teori Zavascki.
O acórdão, rigorosamente, faz coisa julgada a propósito de duas coisas: a por‑
taria do Ministério da Justiça, que fez a demarcação, e o decreto presidencial,
que a homologou, são válidos. Penso que isso, fora de dúvida, faz coisa julgada.
Ademais, acho que faz coisa julgada a caracterização desta terra como terra
indígena para as consequências constitucionais, inclusive no tocante à inde‑
nização ou benfeitorias derivadas de ocupação de boa-fé. Essas duas questões
inequivocamente fazem coisa julgada.
Agora, concordo com o ministro Teori em que, se houver uma substancial
mudança de fato no mundo, ou se houver uma substancial mudança na disciplina
constitucional da matéria, é possível que eventualmente haja algum impacto.
Estou de acordo. Mas acho que qualquer coisa julgada no mundo está sujeita a
esse tipo de modificação – pode cair um meteorito na região...
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Mas é para isso que os parla‑
mentos são eleitos a cada quatro, cinco anos, para examinar eventuais mudanças
sociais, políticas, econômicas.

VOTO
(Sobre os sextos embargos de declaração –
Embargos opostos pela Procuradoria-Geral da República)
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, no quadro ao qual objetiva, a deci‑
são faz coisa julgada em relação ao pedido principal, e, no meu modo de ver, há
os efeitos acessórios dessa decisão, porque, não fossem essas condicionantes,
talvez até se inutilizaria o resultado do processo. Quer dizer, se não houvesse
essa aplicação das condicionantes, que, na verdade, são efeitos acessórios até
contidos no pedido principal, não teria a menor relevância a procedência, em
parte, do pedido.

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Agora, se houver uma modificação tal como se prevê, aí não se estará falando
de coisa julgada, porque, para se falar de coisa julgada, é preciso que haja uma
tríplice identidade: é preciso que sejam os bens sujeitos; é preciso que seja o
mesmo pedido e a mesma causa petendi. Ora, se isso tudo for transformado, a
causa petendi, por exemplo, ela é composta por fatos, e, se os fatos são novos,
não é a mesma causa petendi, não estaremos falando de coisa julgada. Essa coisa
julgada, ela se mantém tal como ela está hoje assentada: essa terra foi demar‑
cada, com essas condições e com esses efeitos acessórios, que inclusive estão
previstos na própria Constituição. Por exemplo, diz a Lei de Locações: Extinta
a locação, automaticamente estará extinta a sua locação; extinto o casamento,
automaticamente será extinto o regime matrimonial de bens.
Diz a Constituição:
Art. 231. (...)
(...)
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham
por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras (...) [dessas que aqui foram
demarcadas].

De sorte que, realmente, se houver uma modificação do estado fático, esta‑


remos diante de outra ação, de outro pedido, e não haverá nenhuma interfe‑
rência na coisa julgada. Até porque pedi a palavra, pela ordem, e, pela ordem,
peço licença à ministra Rosa para já adiantar que acompanho o voto do
ministro relator.

VOTO
(Sobre os sextos embargos de declaração)
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, evidentemente já há convencimento
da maioria sobre a matéria, mas começo subscrevendo as preocupações do minis‑
tro Teori Zavascki. Nós não julgamos mandado de injunção e, mesmo assim,
quando o fazemos, fixamos as condições para o exercício do direito assegurado
constitucionalmente, compondo o pronunciamento uma condição resolutiva,
que é a revelada por lei superveniente disciplinando a matéria. A decisão, então,
perde eficácia em termos de regulamentação.
Vou me restringir, quanto aos embargos do Ministério Público, à questão
estritamente instrumental. Ressalto, de início, que as condicionantes contidas
na parte dispositiva do pronunciamento do Tribunal encerram normas abstratas
autônomas. Sabemos que a ação popular não é uma ação de mão dupla, como

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a possessória, por exemplo. O que se pleiteou na inicial desta ação – e digo que
o autor, talvez, tenha vindo à ultima trincheira da cidadania buscar lã e acabou
tosqueado? Unicamente a declaração de nulidade da Portaria 534, de 2005, do
Ministério da Justiça, homologada pelo presidente da República em 15 de abril
de 2005, em que definidos os limites da Terra Indígena Raposa Serra do Sol –
sustentando que, em síntese, o ato derivou de procedimento de demarcação
viciado e ofensivo aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, segurança
jurídica, legalidade e devido processo legal.
Fiquei a imaginar-me, atuando no campo extraordinário, julgando recurso
extraordinário, em que as condições tivessem sido fixadas por órgão do Judiciário.
Diria que o Tribunal, presumido o que normalmente ocorre, partiria para a glosa.
Mas o Supremo não pode, atuando originariamente – e isso restou proclamado
na decisão proferida e ora embargada –, abandonar, com a devida vênia daque‑
les que entendem de forma diversa, o arcabouço normativo regedor da maté‑
ria. E, em vez de julgar simplesmente improcedente o pedido de declaração de
nulidade, partir para a fixação de normas que não foram discutidas no processo.
Digo que o Executivo nacional está aguardando o julgamento desses embargos
declaratórios para ter diretriz quanto a outras situações conflituosas envolvendo
povos indígenas e que tomará de empréstimo porque, repito, as condicionantes
ou as salvaguardas institucionais criadas são abrangentes, abstratas – o que for
proclamado pelo Tribunal. E fomos muito criativos. Quem sabe talvez o Con‑
gresso não o fosse, isso na estipulação do que deve ser observado em termos do
gênero terras indígenas, não apenas quanto à Raposa Serra do Sol, à reserva que
revista de grande circulação, após o afastamento dos cidadãos em geral, apon‑
tou – refiro-me à Veja, não me lembro o número – como a reserva da miséria.
Não tenho, Presidente, sob pena de colocar em segundo plano a ordem jurí‑
dica, como deixar de agasalhar o que assentado pelo Ministério Público. Não con‑
cebo o Supremo atuando de forma tão larga, tão linear, como legislador positivo.
Sempre soube que a atuação possível é como legislador negativo e não positivo.
Mas acabou, no lançamento das salvaguardas, na parte dispositiva do acórdão,
como se isso implicasse a procedência do pedido inicial, estivesse compreendido
no pedido inicial, por introduzir, no cenário normativo, normas que somente
poderiam vir à balha mediante a atuação dos deputados federais e dos senado‑
res da República. Substituiu-se o Supremo – e devo dizer com desassombro – ao
Congresso Nacional, atuando no vácuo por ele deixado, e o fez abandonando a
postura que se aguarda do Judiciário, principalmente diante de lide que tem
balizas certas, já que, até mesmo no processo objetivo, o Tribunal está submetido
ao pedido formulado pelo requerente.

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Presidente, longe de mim buscar a prevalência do voto vencido que proferi pela
procedência total do pedido veiculado na ação popular. Um voto que, inclusive,
como deixei registrado para histórico da própria Corte, para ficar nos anais da
Corte, acabei proferindo quando o imaginei inicialmente como o terceiro voto e
acabou sendo o nono, porque o presidente, à época, em vez de proclamar o pedido
de vista, suspendeu a sessão para o lanche e, no retorno, os colegas, mesmo diante
do pedido de vista, anteciparam o convencimento. Houve, inclusive, um colega que
queria que a Corte proclamasse o resultado do julgamento sem o meu voto. Então
lembrei a ele que ainda havia um Colegiado e que essa proclamação seria impossível.
Mas, se apreciarmos, com a equidistância que se imagina tenha o juiz, o que
fixado em termos de salvaguardas, colocando em segundo plano as balizas da
lide, concluiremos – daí ter subscrito as preocupações do ministro Teori Zavas‑
cki – que, realmente, foram criadas condições não apenas para essa situação
concreta de “Raposa Serra do Sol”, mas que se irradiam a outras áreas, já que o
tratamento deve ser, pela própria Carta da República, igualitário.
Acolho, Presidente, com eficácia modificativa substancial, para afastar, portanto,
as salvaguardas, que, para mim, são normas abstratas autônomas, ao todo, deze‑
nove salvaguardas – chegou-se ao ponto de disciplinar questão tributária, questão
de usufruto, questão de atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal, questões
não colocadas, como disse, no processo –, os embargos interpostos para afastar
essas salvaguardas e concluir, pura e simplesmente, porque não houve procedên‑
cia parcial, já que não compreendo, no pedido do autor, as questões decididas, e o
meu voto no sentido da procedência ficou isolado pela improcedência do pedido.
É como voto.

VOTO
(Sobre os sextos embargos de declaração)
O sr. ministro Gilmar Mendes: Senhor Presidente, a essa altura, a gente tem
enorme dificuldade de reconstituir todas as questões que foram postas nesse já
longínquo julgamento de 2009; isso mostra também um pouco a nossa disfun‑
cionalidade em termos de atuação do Plenário, uma vez que estamos discutindo
somente agora, em 2013, essa questão.
O sr. ministro Marco Aurélio: E prolação de uma decisão, sem dúvida al­­
guma, constitutiva.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Claro, o ministro Teori chama a atenção para
um tema que é extremamente importante e que tem ocupado a própria doutrina
processual, a partir das próprias lições clássicas de Liebmen, sobre a submissão

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da coisa julgada à cláusula rebus sic stantibus. Mas, de qualquer forma, o eminente
ministro Roberto Barroso já precisou que essas condições deveriam estar e ser
observadas. De modo que eu também não vejo aqui contradição substancial
entre as duas posições elencadas.
O sr. ministro Marco Aurélio: Vossa Excelência me permite, Ministro Gilmar
Mendes? Inicialmente, o relator apontou que as salvaguardas somente seriam –
a não ser que tenha ouvido mal – aplicáveis a essa reserva.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Sim, mas, na verdade, o relator também res‑
salta que isso funciona como precedente para efeito de orientação geral, isso
está claro. Agora – ele dizia condizente com a nossa doutrina e a nossa jurispru‑
dência –, é que essa decisão não é dotada de efeito vinculante, tanto é que citou
precedentes nos quais nós já indeferimos reclamações, mas é uma orientação
que demanda do Tribunal.
De qualquer forma, eu gostaria de lembrar que essas questões todas, por exem‑
plo, hoje a memória já está um tanto quanto prejudicada em relação às questões
que se colocaram, mas, à época, quando essa questão chegou ao Tribunal, se
dizia até que tinha que se pedir licença ou tinha que fazer tratado com as tribos
indígenas para assentar bases militares – portanto, essas questões todas foram
devidamente contempladas – ou para passar uma estrada, ou realizar uma obra
pública. Portanto, a rigor, não são respostas dadas no vazio, mas a partir das
situações que se colocaram neste caso.
O debate foi muito intenso a propósito da chamada demarcação em ilha, ou
demarcação de forma alongada, a colocação de distritos dentro desta demar‑
cação, mais ampla, que provocou tanta discussão. Vossa Excelência, mesmo,
Ministro Marco Aurélio, sustentou, e depois veio, inclusive, este resultado, que é
altamente constrangedor, quer dizer, a exclusão da área de atividade econômica,
que empregava parte da população indígena, e que levou depois aos resultados
que nós conhecemos.
Eu me lembro dessa reportagem e de outras que mostravam que muitos desses...
O sr. ministro Marco Aurélio: Todos aculturados, migraram para a capital
para mendigar.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Exatamente. Ou mostraram parte desses
índios, hoje, vivendo nos lixões de Boa Vista, tendo em vista a desativação da ati‑
vidade econômica, o que faz parte do aprendizado em que sugere a necessidade
talvez de revisão de regime. E, aí, sim, entra o legislador para permitir parcerias.
É nesse sentido que eu entendo a observação do ministro Teori. É no sentido de
que esse modelo, esse regime, esse estatuto é passível de atualização no tempo,
tendo em vista as mudanças que inevitavelmente já ocorreram, e ocorrem.

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Agora, essas questões todas que foram tratadas, muitas delas, claro, proma‑
nam efeitos, em função da jurisprudência, para outras situações, de qualquer
forma, essas questões estavam postas no caso. Por exemplo, o Estado de Roraima
suscitava que não só neste caso, mas, em relação às demais demarcações de
terra, ele estava ficando desprovido de base territorial, sem que participasse do
processo de demarcação. Então, se chamou a atenção para a necessidade de que
a unidade federada... ora, o texto constitucional consagra como cláusula pétrea.
O sr. ministro Marco Aurélio: E foi tomado como um assistente simples.
Onde está o conflito federativo?
O sr. ministro Gilmar Mendes: Pois é. Mas veja, essa questão veio: era impor‑
tante que, tendo em vista inclusive que o princípio federativo compõe a Cons‑
tituição como cláusula pétrea, que o Estado-membro participasse do processo
demarcatório. Nesta própria demarcação, retirava-se base territorial de Municí‑
pios, sem que houvesse nenhuma participação do Município. Então, chamava-se
a atenção para a necessidade de que se observasse.
E por isso, inclusive, no debate, no Plenário, o ministro Barroso já respondeu
bem quando falou da questão da legislação negativa e legislação positiva, no
âmbito dos tribunais. E disse que, já há muito, não se pode falar que a resposta
há de ser apenas no sentido de um juízo cassatório, muitas vezes é inevitável
buscar uma outra solução.
Aqui, o Tribunal debateu isso de forma bastante clara, para dizer, inclusive,
que estava julgando parcialmente procedente a ação para estabelecer, inclusive,
essas condições. Vossa Excelência se lembra, não é, Ministro Celso de Mello, de
que nós discutimos isso, tendo em vista a necessidade de que essas condições
compusessem a coisa julgada. Então, houve consciência em relação a esse debate.
Só gostaria de deixar claro que a própria referência que Kelsen faz a propósito
desse chamado legislador negativo tinha, na sua origem, não apenas um referen‑
cial histórico, que é claro. Evidente que, naquele momento, dominava o modelo
de direitos fundamentais e de relações com o Estado de caráter negativo, logo,
a intervenção judicial seria basicamente de caráter cassatório. Era o modelo do
chamado status negativus, era o que era o modelo dominante na relação entre o
indivíduo e o Estado. Mas Kelsen também partia de uma premissa filosófica, tanto
é que, em princípio, ele dizia: “Não pode haver uma declaração de nulidade da
lei inconstitucional, a lei terá que ser apenas anulada”. E a Corte constitucional
austríaca, que é por ele inspirada e desenvolvida, ela, só em casos excepcionais,
aceita a eficácia assim chamada retroativa. Dizia Kelsen que isso era um absurdo,
porque declarar a nulidade de uma lei era mandar alguém fazer algo ontem.
Então, dizia ele, isso é incompossível com as próprias premissas do sistema.

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Então, a rigor, essa imagem diz com o seu próprio modelo ou sistema, mas diz
também com a sua historicidade. Claro que, depois, com a própria evolução que
tivemos em matéria de omissão inconstitucional, passamos a ter necessidade
de dar outras respostas. E aqui ficou evidente, porque o Tribunal, a partir das
questões que se colocavam, deu respostas para as várias questões, como essa:
saber se era possível ou não instalar quartel ou se precisava de licença da comu‑
nidade para instalar quartel nas áreas indígenas, ou para passar uma estrada, ou
para realizar uma obra pública, ou uma obra de comunicação, que muitas vezes
levava benefício para a própria comunidade.
Então, essas questões estavam postas. E, nesse sentido, vou pedir vênia ao
ministro Marco Aurélio para assentar que o Tribunal discutiu essas condições,
claro que olhando também para o futuro, o desenvolvimento, mas tendo em
vista as questões concretas que se colocaram neste caso, daí o juízo inclusive
de procedência parcial.
Tendo feito essas considerações, Presidente, eu gostaria também de agregar
o meu voto, a minha manifestação, e cumprimentar a manifestação cuidadosa
e bem elaborada do ministro Barroso.

VOTO
(Sobre os sextos embargos de declaração)
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, eu quero fazer uma
rapidíssima intervenção também, porque acabei não sendo ouvido, pelo fato
de os demais ministros exercerem o seu direito regimental de se manifestarem.
Mas eu queria assentar que o ministro Barroso, em boa hora, afasta esta
expressão “condições”, dizendo que, na verdade, e leio trecho aqui, páginas 32 e
seguintes do voto do ministro relator, que diz que não são propriamente condi‑
ções, mas a maioria dos ministros, na verdade, explicitou os pressupostos para
o reconhecimento da demarcação válida da terra indígena.
E mais ainda, disse o eminente relator, a meu ver, com bastante propriedade,
que a Corte, por sua maioria, entendeu que não era possível pôr fim ao conflito
fundiário e social que lhe foi submetido sem enunciar os aspectos básicos do
regime jurídico aplicável à terra indígena.
Então, o que nós fizemos aqui, e eu me recordo bem, apesar do tempo que já se
passou desde aquele julgamento, que, a rigor, nós não estabelecemos condições, nós
não legislamos em abstrato, mas nós simplesmente assentamos o regime jurídico
que deve reger as terras indígenas, e que era necessário, naquele momento, explicitar
para pormos fim a um conflito social e fundiário que objetivamente posto à Corte.

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Eu também queria me reportar e dizer que fui honrado com a menção a uma
reclamação da qual fui relator, a 15.668, em que eu assento que, na verdade,
quando nós julgamos aquela ação popular, em nenhum momento, nós tomamos
a decisão com efeito vinculante, que é próprio das decisões de natureza abstrata,
mas simplesmente nós enunciamos uma decisão com efeitos erga omnes.
Não obstante isso, consta do meu voto, e Sua Excelência o relator também
traz à colação um trecho da manifestação do ministro Cezar Peluso, dizendo
que: não obstante aquele julgamento não tenha efeito vinculante, mas, sim, erga
omnes – e há uma distinção muito clara, que os teóricos conhecem muito bem –,
o ministro Cezar Peluso disse que, naquele momento, a Corte estava, na ver‑
dade, enunciando um voto ou manifestando um pronunciamento que era um
verdadeiro leading case, um caso padrão que traçava diretrizes não apenas para
a solução concreta que se estava examinando, mas para a disciplina de todas as
ações futuras. E até o ministro Cezar Peluso dizia que, num certo sentido, pode‑
ria nortear a solução até de questões pretéritas já colocadas acerca do tema.
Então, com essas ponderações, Senhor Presidente, eu quero dizer que também
não vejo nenhum conflito fundamental básico entre as posições do ministro
Teori e do ministro relator, Luís Roberto Barroso, porque, claro, todas as decisões
judiciais e os contratos, de modo geral, se baseiam na cláusula rebus sic stantibus.
Se as condições se alterarem fundamentalmente, este vínculo jurídico, seja de
natureza judicial, seja de natureza contratual, não pode mais subsistir.
Acompanho o relator, portanto, Senhor Presidente.

VOTO
(Sobre os sextos embargos de declaração –
Embargos opostos pela Procuradoria-Geral da República)
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, faço questão de registrar, ini‑
cialmente, a profundidade e clareza, não só do voto do eminente relator, mas
da exposição que fez aqui, neste Plenário. Sabe-se que não é fácil sintetizar de
uma forma – talvez, porque tenha ocupado tanto tempo a tribuna – e expressar
o pensamento. Então, faço esse registro primeiro.
Senhor Presidente, em um segundo momento, registro que estamos – todos
sabemos – em sede de embargos de declaração. E tenho uma posição restritiva
quando da análise de embargos de declaração. Claro que as visões, os olhares e as
compreensões são diferentes, cada um de nós com a sua circunstância – já dizia
Ortega y Gasset – e sequer a decisão foi unânime, foi majoritária. Vossa Exce‑
lência emitiu um juízo de improcedência da ação; o eminente ministro Marco

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Aurélio um juízo de procedência, inclusive, declarando a própria nulidade, pelo


que compreendi do voto de Sua Excelência; e a maioria se formou no sentido de
um juízo de procedência parcial.
Eu não participei do julgamento. Se o eminente ministro Gilmar, que parti‑
cipou, manifestou dificuldade até de reconstituir as condições em que ele foi
efetuado, com todas as particularidades e peculiaridades que foram trazidas
à época – os próprios embargos já demonstram a quantidade de questões que
foram ventiladas –, então, eu não teria como, em embargos de declaração, chegar
a uma conclusão diferente daquela a que chegou o eminente relator.
Também registro, especificamente com relação às ponderações sempre tão
profundas, tão bem colocadas pelo eminente ministro Teori, que não vejo con‑
flito no que foi dito, tanto que acompanhou o ministro Barroso.
O sr. ministro Teori Zavascki: Vossa Excelência me permite? Quero dizer
que comecei o meu voto dizendo que não há esse conflito.
A sra. ministra Rosa Weber: Isso.
O sr. ministro Teori Zavascki: Eu concordei integralmente com o ministro
Barroso. Apenas fiz algumas ponderações que, na verdade, são complementares,
especialmente no que se referem aos efeitos prospectivos dessa decisão, que, na
verdade, agora ficou salientado no debate, veio estabelecer um regime jurídico
com efeito prospectivo em relação a uma reserva indígena de grande dimensão.

VOTO
(Sobre os sextos embargos de declaração –
Embargos opostos pela Procuradoria-Geral da República)
O sr. ministro Celso de Mello: Peço vênia, Senhor Presidente, para acom-
panhar o eminente relator, cujo voto examinou, com absoluta clareza e total
precisão, os diversos aspectos que foram suscitados nos vários embargos de
declaração opostos à decisão plenária, explicitando, inclusive, algumas passa‑
gens dela constantes, o que se tornou importante para efeito de clarificação do
próprio alcance da parte dispositiva do acórdão em questão.
É o meu voto.

VOTO
(Sobre os sextos embargos de declaração –
Embargos opostos pela Procuradoria-Geral da República – Continuação)
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, posso concluir o meu voto?

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  108


Pet 3.388 ED

Concedi um aparte ao ministro Teori, e foi excelente, porque Sua Excelência disse
exatamente o que eu ia dizer, portanto, concluo o meu voto. Na minha compreensão,
os fundamentos trazidos pelo ministro Teori, na sua explicitação quanto à eficácia
subjetiva e à eficácia temporal da decisão, na verdade, complementam – na minha
compreensão, repito – todos os fundamentos adotados pelo eminente relator.
Por isso, endosso a fundamentação de ambos. Acompanho o que foi deci‑
dido com relação ao acolhimento dos embargos, nos termos propostos por Suas
Excelências.
É como voto, Senhor Presidente.

VOTO
(Sobre os sextos embargos de declaração –
Embargos opostos pela Procuradoria-Geral da República)
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Eu peço vênia ao eminente relator
e aos que o acompanham para acolher os embargos com efeitos infringentes,
tal como fez o ministro Marco Aurélio, por entender que, realmente, o Tribunal
extrapolou, o Tribunal traçou parâmetros excessivamente abstratos e comple‑
tamente alheios ao que foi proposto na ação originariamente. O Tribunal agiu
como um verdadeiro legislador.
Por essas razões, eu acolho parcialmente os embargos para expungir da deci‑
são as dezenove condicionantes que foram acrescentadas.

EXPLICAÇÃO
O sr. ministro Roberto Barroso (relator): Senhor Presidente, eu gostaria só
de fazer uma brevíssima observação. Eu li o voto de Vossa Excelência, como li
o voto do ministro Marco Aurélio. Acho que Sua Excelência, o ministro Marco
Aurélio, vocalizou com grande empenho, num voto analítico, uma posição que era
importante, que vicejava na sociedade brasileira. Teria sido ruim se essa posição
não tivesse sido vocalizada por alguém no Tribunal. Embora não corresponda
ao meu ponto de vista, ela foi sustentada com grande proficiência, como tudo o
que o ministro Marco Aurélio faz.
Agora, eu gostaria de fazer uma defesa do acórdão, do ponto de vista do inte‑
resse das comunidades indígenas, que é a minha constatação, depois de ter lido
os votos – em particular, os votos do ministro Carlos Ayres Britto e o do minis‑
tro Carlos Alberto Direito, que merecem ambos a minha reverência pelo traba‑
lho que fizeram, o voto do ministro Gilmar, o voto do ministro Celso... A minha

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  109


Pet 3.388 ED

constatação é que, se o Tribunal não tivesse feito do modo como fez – se tivesse
se limitado a julgar a ação improcedente ou procedente em parte –, a execução
do julgado não teria sido concretizada. Então, eu acho que o Tribunal foi ousado
e que esta é uma decisão atípica. Como um padrão, não creio que seja o melhor
e, portanto, não acho que o Tribunal deva fazer isso rotineiramente. Mas, neste
caso, não se decidiu só a questão pontual, mas se definiu o sistema: nós vamos
executar e o modo de executar é esse, está aqui o pacote. Portanto, eu reconheço,
na linha do que falaram o ministro Marco Aurélio e Vossa Excelência, que houve
uma atuação um tanto atípica, talvez uma sentença quase aditiva.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): O ministro Marco Aurélio disse
que um pouco criativa, uma atuação um pouco criativa.
O sr. ministro Marco Aurélio: Atuamos como se estivéssemos julgando, na
Justiça do Trabalho, um dissídio coletivo de natureza econômica: criando normas.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Vossa Excelência me permite só uma ob­­
servação?
O sr. ministro Roberto Barroso (relator): Claro.
O sr. ministro Gilmar Mendes: O ministro Celso lembrava há pouco que,
quando dessa discussão, e de fato os fatos vão se perdendo diante da distância
no tempo, mas lembrava um pronunciamento do general Heleno – todos devem
se lembrar – em que ele disse da necessidade que se impunha ao Exército de ter
licença para entrar no âmbito territorial de determinadas comunidades.
O sr. ministro Marco Aurélio: Ministro, o Exército não precisou recorrer
ao Supremo!
O sr. ministro Gilmar Mendes: Não, mas o quadro de conflito estava estrutu‑
rado; o ministro Barroso acaba de mencionar: nós tínhamos queima de pontes,
episódios vários ligados com a dificuldade de execução. Portanto, as questões que
foram tratadas, nessas condições estabelecidas, a rigor, foram suscitadas nesse
contexto, nesse processo, e, claro, irradia para os demais processos.
Não é demais recordar que este Tribunal já tinha anteriormente se pronun‑
ciado sobre a necessidade do contraditório e da ampla defesa no contexto da
demarcação, porque antes isso não era previsto, até que veio o célebre caso da
impetração, acho que ligado a uma dada fazenda no Mato Grosso do Sul, em que
o Tribunal, seguindo a jurisprudência que já se acentuava de que, em qualquer
procedimento administrativo, era de observar o devido processo legal e o con‑
traditório; impunha-se então essa revisão. E, aí, então houve um pedido de vista,
e, enquanto não se retomava o julgamento, o próprio governo, sabedor de que
haveria a revisão da jurisprudência do Tribunal, com risco de anulação de tudo
o que fora feito antes, ao contrário do que se dizia, a cláusula do contraditório e

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  110


Pet 3.388 ED

da ampla defesa, que foi estabelecido em decreto, veio para inclusive proteger –
como Vossa Excelência está dizendo também – as demarcações já realizadas,
para evitar que houvesse a possibilidade de anulação. Esse foi o primeiro passo:
foi a questão do contraditório e da ampla defesa, tendo em vista o que está esta‑
belecido no texto constitucional.
Por isso que é importante, realmente, o que Vossa Excelência está ressaltando.
O sr. ministro Roberto Barroso (relator): Obrigado pelo aparte.
O que eu queria concluir, em defesa do Tribunal e do meu estudo do processo,
é que não teria acontecido, com a presteza e a eficiência que aconteceu, se o Tri‑
bunal não tivesse ousado, indo um pouco além do convencional, ao estabelecer
essas salvaguardas. Via de regra, eu me alinho a uma visão mais crítica do excesso
de normatização abstrata feita pelo Tribunal. Mas, neste caso, eu acho que hoje
nós não estaríamos celebrando uma execução bem sucedida de um caso difícil,
sem que o Tribunal tivesse sido mais ousado.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Veja, Ministro Barroso, eu, nos
últimos meses, recebi, por mais de uma vez, os representantes dos dois lados
nesse conflito e, em razão disso, estou informado de que, talvez, algumas dessas
condicionantes sejam até do agrado dos representantes das comunidades indí‑
genas. Apenas eu externei o meu ponto de vista quanto à restrição, o aspecto
restrito, limitado do que foi postulado, aqui, perante o Tribunal.

EXTRATO DA ATA
Pet 3.388 ED/RR — Relator: Ministro Roberto Barroso. Embargantes: Augusto
Affonso Botelho Neto (Advogado: Antônio Márcio Gomes das Chagas), Lawrence
Manly Harte e outros (Advogado: Luiz Valdemar Albrecth), Francisco Mozarildo
de Melo Cavalcanti (Advogado: Antonio Glaucius de Morais), Comunidade Indí‑
gena Socó e outros (Advogado: Paulo Machado Guimarães), Estado de Roraima
(Procurador: Procurador-geral do Estado de Roraima), Ministério Público Fe­­deral
(Procurador: Procurador-geral da República) e Ação Integralista Brasileira e
outros (Advogado: Cármino Eudóxio Santoléri). Embargados: União (Procurador:
Advogado-geral da União) e Augusto Affonso Botelho Neto (Advogado: Antônio
Márcio Gomes das Chagas). Interessada: Fundação Nacional do Índio – FUNAI
(Procurador: Procurador-geral federal).
Decisão: Retirado de mesa em face da aposentadoria do relator. Presidência
do ministro Joaquim Barbosa. Plenário, 26-11-2012.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, não conheceu dos embargos de decla‑
ração opostos por Ação Integralista Brasileira, Movimento Integralista Brasileiro

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  111


Pet 3.388 ED

e Anésio de Lara Campos Júnior. Votou o presidente, ministro Joaquim Barbosa.


Também por unanimidade, desproveu os embargos de declaração opostos por
Lawrence Manly Harte e outros, pelo Estado de Roraima e pelo senador Augusto
Affonso Botelho Neto. Votou o presidente, ministro Joaquim Barbosa. Quanto
aos embargos opostos pelo senador Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti, em
que ficou vencido o ministro Marco Aurélio, que os acolhia em maior extensão;
quanto aos embargos opostos pela Procuradoria-Geral da República, em que
ficaram vencidos os ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa (presidente),
que os acolhiam com efeitos modificativos, e quanto aos embargos opostos pelas
comunidades indígenas, o Tribunal os acolheu parcialmente, sem efeitos modi‑
ficativos, apenas para esclarecer que: a) a decisão proferida na Pet 3.388/RR
não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos, relativos
a terras indígenas diversas; b) com o trânsito em julgado do acórdão proferido
na Pet 3.388/RR, todos os processos relacionados à Terra Indígena Raposa Serra
do Sol deverão adotar as seguintes premissas como necessárias: (i) são válidos
a Portaria/MJ 534/2005 e o decreto presidencial de 15-4-2005, que demarcaram
a área, observadas as condições indicadas no acórdão; e (ii) a caracterização
da área como terra indígena, para os fins dos arts. 20, XI, e 231 da Constitui‑
ção, importa em nela não poderem persistir pretensões possessórias ou domi‑
niais de particulares, salvo no tocante a benfeitorias derivadas da ocupação de
boa-fé (CF/1988, art. 231, § 6º); c) o usufruto dos índios não lhes confere o direito
exclusivo de explorar recursos minerais nas terras indígenas. Para fazê-lo, quais
pessoas devem contar com autorização da União, nos termos de lei específica
(CF/1988, arts. 176, § 1º, e 231, § 3º). De toda forma, não se pode confundir a mine‑
ração, como atividade econômica, com as formas tradicionais de extrativismo,
praticadas imemorialmente, nas quais a coleta constitui uma expressão cultu‑
ral ou um elemento do modo de vida de determinadas comunidades indígenas.
No primeiro caso, não há como se afastarem as exigências previstas nos arts. 176,
§ 1º, e 231, § 3º, da Constituição. Tudo nos termos do voto do relator, ministro
Roberto Barroso. Quanto à votação dos embargos opostos pelas comunidades
indígenas, ausentes os ministros Joaquim Barbosa (presidente) e Marco Aurélio.
Presidiu e votou o ministro Ricardo Lewandowski (vice-presidente). O Tribu‑
nal, por unanimidade, resolveu as questões de ordem suscitadas pelo relator
para: a) declarar encerrada a supervisão judicial sobre os atos relacionados ao
cumprimento da Portaria/MJ 534/2005 e do decreto presidencial de 15-4-2005; e
b) declarar exaurida a eficácia do acórdão proferido na Rcl 3.331/RR, pondo fim à
presunção absoluta de competência desta Corte para as causas que versem sobre
a referida terra indígena, sem prejuízo da possibilidade de que, em cada situação

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Pet 3.388 ED

concreta, os interessados demonstrem ser esse o caso. Votou o ministro Ricardo


Lewandowski (vice-presidente). Ausentes, ocasionalmente, os ministros Joaquim
Barbosa (presidente) e Marco Aurélio. Impedido o ministro Dias Toffoli. Ausente,
justificadamente, a ministra Cármen Lúcia, em viagem oficial para participar do
Programa del VI Observatorio Judicial Electoral e do Congresso Internacional de
Derecho Electoral, promovidos pela Comissão de Veneza, na Cidade do México.
Presidência do ministro Joaquim Barbosa. Presentes à sessão os ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias
Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Teori Zavascki e Roberto Barroso. Procurador‑
-geral da República, doutor Rodrigo Janot Monteiro de Barros.
Brasília, 23 de outubro de 2013 — Luiz Tomimatsu, assessor-chefe do Plenário.

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ADI 3.702

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.702 — ES


Relator: O sr. ministro Dias Toffoli
Requerente: Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos – ABIMAQ
Interessado: Governador do Estado do Espírito Santo

Ação direta de inconstitucionalidade. Decreto 1.542-R, de 15


de setembro de 2005, do Estado do Espírito Santo. Inclusão de
hipótese de diferimento de ICMS. Descaracterização do insti‑
tuto. Benefício fiscal. Ausência de convênio entre os Estados‑
-membros. Inconstitucionalidade.
1. Caracterização da Abimaq como entidade de classe de âmbito
nacional. O novo estatuto social prevê que a associação é composta
apenas por entidades singulares de natureza empresarial, com classe
econômica bem definida, não mais restando caracterizada a hete‑
rogeneidade de sua composição, que impedira o conhecimento da
ADI 1.804/RS. Prova, nos autos, da composição associativa ampla,
estando presente a associação em mais de nove estados da federação.
Cumprimento da exigência da pertinência temática, ante a existência
de correlação entre o objeto do pedido de declaração de inconstitu‑
cionalidade e os objetivos institucionais da associação.
2. O decreto impugnado tem autonomia e suficiente abstratividade
para figurar como objeto de ação de controle concentrado de consti‑
tucionalidade. Precedentes.
3. O decreto estadual prevê hipótese de diferimento do pagamento
do ICMS sobre a importação de máquinas e equipamentos destinados
à avicultura e à suinocultura para o momento da desincorporação
desses equipamentos do ativo permanente do estabelecimento.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  114


ADI 3.702

4. A tradicional jurisprudência da Corte encara a figura do dife‑


rimento do ICMS como mero adiamento no recolhimento do valor
devido, não implicando qualquer dispensa do pagamento do tributo
ou outra forma de benefício fiscal (ADI 2.056/MS, Tribunal Pleno, rel.
min. Gilmar Mendes, DJE de 17-8-2007).
5. Os bens do ativo permanente do estabelecimento não fazem parte
de qualquer cadeia de consumo mais ampla, restando ausente o cará‑
ter de posterior circulação jurídica, uma vez que fadados a permanecer
no estabelecimento, estando sujeitos à deterioração, ao perecimento
ou à obsolescência. Nesses casos, o fato gerador do ICMS será uma
operação, em regra, monofásica, restrita à transferência de domínio do
bem entre exportador e importador (d3estinatário final), cuja configu‑
ração fática descaracteriza o conceito de diferimento. A desincorpora‑
ção do bem do ativo permanente e, consequentemente, o pagamento
do tributo ficariam a cargo exclusivamente do arbítrio do contribuinte,
que poderia se evadir do recolhimento do tributo com a manutenção
do bem no seu patrimônio.
6. O nominado diferimento, em verdade, reveste-se de caráter de
benefício fiscal, resultando em forma de não pagamento do imposto, e
não no simples adiamento. Assim, o Decreto 1.542-R, de 15 de setembro
de 2005, do Estado do Espírito Santo, ao conceder forma indireta de
benefício fiscal, sem aprovação prévia dos demais Estados-Membros,
viola o art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição Federal.
7. Ação direta julgada procedente.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo Tri‑
bunal Federal, em sessão plenária, sob a presidência do ministro Cezar Peluso,
na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimi‑
dade de votos, em julgar procedente a ação direta, nos termos do voto do relator.
Brasília, 1º de junho de 2011 — Dias Toffoli, relator.

RELATÓRIO
O sr. ministro Dias Toffoli: Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade
proposta pela Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamen‑
tos (ABIMAQ) dirigida contra o Decreto 1.542-R, de 15 de setembro de 2005, do

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  115


ADI 3.702

Estado do Espírito Santo, questionando a validade da inclusão, no regulamento


estadual do ICMS, de forma de diferimento do pagamento do imposto. Eis o teor
da norma impugnada:
Decreto n. 1.542-R, de 14 de setembro de 2005.
Introduz alterações no RICMS/ES, aprovado pelo Decreto n. 1.090-R, de 25 de
outubro de 2002.
O Governador do Estado do Espírito Santo, no uso das atribuições que lhe confere
o artigo 91, III, da Constituição Estadual;
Decreta:
Art. 1º O Anexo III do Regulamento do Imposto sobre Operações Relativas à Cir‑
culação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual
e Intermunicipal e de Comunicação do Estado do Espírito Santo – RICMS/ES –,
aprovado pelo Decreto n. 1.090-R, de 25 de outubro de 2002, fica alterado na forma
do Anexo Único, que com este se publica.
Art. 2º Este decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Anexo único do Decreto n. 1.542-R, de 14 de setembro de 2005.
Anexo III
(a que se refere o art. 10 do RICMS/ES)
Do diferimento

Item Hipóteses e condições

(...) (...)

27 Nas importações, do exterior, de máquinas e equipamentos realizadas por esta-


belecimentos avicultores, suinocultores ou pelas cooperativas de produtores que
atuam nestes segmentos, desde que destinadas à instalação de unidades de bene-
ficiamento industrial, ou à ampliação, modernização ou recuperação de instalações
agropecuárias industriais, relacionados às suas atividades, para o momento de sua
desincorporação do ativo permanente.

Sustenta a associação ter legitimidade para propor ações de controle concen‑


trado, por enquadrar-se no conceito de associação de classe de âmbito nacional,
possuindo associados em doze estados da Federação.
Aduz, ainda, que satisfaz o requisito da pertinência temática, haja vista a
impugnação de previsão normativa que afeta as empresas por ela representa‑
das, ocorrendo a aderência entre os objetivos estatutários e o tema abordado
no dispositivo impugnado.
No mérito, afirma que o decreto estadual, ao estabelecer hipótese de dife‑
rimento do pagamento de ICMS – nos casos de importação de máquinas e
equipamentos destinados à avicultura e à suinocultura – para o momento da

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  116


ADI 3.702

desincorporação desses equipamentos do ativo permanente do estabelecimento,


em verdade, “resulta na desoneração tributária do produto importado, com
efeitos idênticos aos da isenção ou ao da não incidência, o que contraria, fron‑
talmente as normas do Confaz, ao qual (sic) a Constituição Federal atribuiu
competência para a concessão desses tratamentos tributários, do que resulta,
consequentemente, contrariedade à própria Constituição [art. 155, § 2º, XII, g,
CF/88]” (fl. 9). Isso porque, segundo a autora, “os bens destinados ao ativo per‑
manente, por serem utilizados no processo fabril de empresas, afetos, portanto,
à manutenção da sua atividade, não são sujeitos a mercância, o que implica dizer
que, regra geral, não deverá ocorrer uma posterior saída” (fl. 9).
Aponta, ademais, ofensa ao art. 152 da Constituição Federal, o qual proíbe
diferenciações tributárias em razão da procedência, pois “a operação praticada
com bem de fabricação nacional estará sujeita à incidência normal do ICMS,
enquanto o importado não” (fl. 14).
Adotado o rito do art. 12 da Lei 9.868/1999, o governador do Estado do Espírito
Santo prestou informações (fls. 100/125) alegando, como preliminares, a ausência
de legitimidade ativa da autora e o não cabimento de ação direta contra decreto
meramente regulamentar. No mérito, defende a constitucionalidade da norma
impugnada, uma vez que seria desnecessária, nos termos da jurisprudência desta
Corte, a celebração de convênio para a instituição de hipótese de diferimento.
O advogado-geral da União (fls. 127/139) pronunciou-se pelo conhecimento
da ação e, no mérito, pela inconstitucionalidade do item impugnado, por ofensa
aos arts. 152 e 155, § 2º, XII, g, da Lei Maior.
O procurador-geral da República (fls. 143/147) manifestou-se, igualmente, pela
procedência da ação.
É o relatório.
Junte-se aos autos e distribua-se cópia aos ministros (art. 9º da Lei 9.868/1999
e art. 172 do RISTF).
A julgamento pelo Plenário.

VOTO
O sr. ministro Dias Toffoli (relator): Como relatado, versa a presente ação de
controle concentrado sobre a constitucionalidade de decreto estadual que prevê
hipótese de diferimento do pagamento do ICMS sobre a importação de máquinas
e equipamentos destinados à avicultura e à suinocultura para o momento da
desincorporação desses equipamentos do ativo permanente do estabelecimento.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  117


ADI 3.702

A. Da preliminar de ilegitimidade ativa e de impertinência temática


Asseverou o governador do Estado do Espírito Santo que a associação autora
careceria de legitimidade para inaugurar processo de controle de constituciona‑
lidade objetivo, porquanto não se amoldaria ao conceito de entidade de classe
de âmbito nacional.
Apresentou, a favor da tese, acórdão desta Casa proferido na ADI 1.804/RS,
de autoria da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos
(ABIMAQ), cujo teor é o seguinte:
Ação direta de inconstitucionalidade. Legitimidade para agir da Associação Brasileira
da Indústria de Máquinas e Equipamentos (ABIMAQ). CF, art. 103, IX. A heterogenei‑
dade de composição dessa associação, integrada tanto por entes civis de natureza
empresarial, quanto por pessoas jurídicas de direito público, associações, sindica‑
tos, entidades diversas e instituições de ensino e pesquisa, vinculadas ao setor de
máquinas e equipamentos, a desqualifica como entidade de classe, por se tratar de
associação de associações. Caracterizando-se como de natureza híbrida, à luz da
jurisprudência, falta-lhe a necessária legitimidade ad causam. Não conhecimento
da ação. [Rel. min. Ilmar Galvão. DJ de 19-6-1998.]

Percebe-se que a causa do não reconhecimento da legitimidade ad causam da


ora autora, na ocasião, era o hibridismo do seu quadro social, composto tanto
por entidades singulares de natureza empresarial como por outros entes asso‑
ciativos e sindicatos, fato que a qualificava como “associação de associações”,
a qual o Supremo Tribunal vinha reiteradamente negando acesso à jurisdição
constitucional concentrada.
Ocorre que a jurisprudência desta Corte sofreu alteração quanto à matéria,
passando a admitir a possibilidade de que essas associações fossem reconhecidas
como entidades de classe de âmbito nacional. Vide:
I. ADI: legitimidade ativa: “entidade de classe de âmbito nacional” (art. 103, IX, CF):
compreensão da “associação de associações” de classe. Ao julgar a ADI 3.153 AgR,
12-8-2004, Pertence, Inf STF 356, o Plenário do Supremo Tribunal abandonou o
entendimento que excluía as entidades de classe de segundo grau – as chamadas
“associações de associações” – do rol dos legitimados à ação direta. [ADI 15/DF,
Tribunal Pleno, rel. min. Sepúlveda Pertence, DJ de 31-8-2007.]

Ademais, de acordo com o novo estatuto social da Abimaq (art. 5º), com data
de 2004, a associação passou a ser composta apenas por empresas fabricantes dos
bens mencionados no art. 1º do seu estatuto e, portanto, somente por entidades
singulares de natureza empresarial, não mais restando caracterizada a hetero‑
geneidade de sua composição, que impedira o conhecimento da ADI 1.804/RS.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  118


ADI 3.702

Outrossim, há prova nos autos do caráter nacional da associação, que é for‑


mada por empresas de mais de nove estados da Federação, caractere numérico
assentado na ADI 108 QO/DF (rel. min. Celso de Mello, DJ de 5-6-1992) como
expressão da fórmula “âmbito nacional”, expressa no art. 103, IX, “parte final”,
da Constituição Federal.
Satisfaz, ademais, a exigência da pertinência temática, ante a existência de
correlação entre o objeto do pedido de declaração de inconstitucionalidade e os
objetivos institucionais da associação.
Registro, portanto, a legitimidade da Abimaq para a propositura da presente
ação direta, restando igualmente presente a pertinência temática para o ajui‑
zamento da ação.

B. Da preliminar de não cabimento da ação em face de decreto regulamentar


Afirma, ainda, o governador que o decreto impugnado não poderia ser ques‑
tionado na via da ação direta de inconstitucionalidade, porque tem caráter mera‑
mente regulamentar.
Do mesmo modo, não prospera a arguição.
A norma veio a incluir no regulamento estadual do ICMS previsão de nova
hipótese de diferimento no pagamento do imposto, em conformidade com a
legislação daquele Estado que remeteu ao nível infralegal a competência para a
definição do tema. Eis a redação do art. 10 da Lei 7.000/2001:
Art. 10. O lançamento e o pagamento do imposto poderão ser diferidos conforme
dispuser o Regulamento.

Desse modo, o decreto ora impugnado tem autonomia e suficiente abstrativi‑


dade para figurar como objeto de ação de controle concentrado de constitucio‑
nalidade. Em casos como esse, tem a Corte admitido a utilização da ação direta
de inconstitucionalidade com a finalidade de averiguar a compatibilidade da
norma impugnada com a Constituição Federal. Confira-se:
Ementa: Medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade. 2. Caráter nor‑
mativo autônomo e abstrato dos dispositivos impugnados. Possibilidade de sua
submissão ao controle abstrato de constitucionalidade. Precedentes. 3. ICMS.
Guerra fiscal. Art. 2º da Lei 10.689/1993 do Estado do Paraná. Dispositivo que traduz
permissão legal para que o Estado do Paraná, por meio de seu Poder Executivo,
desencadeie a denominada “guerra fiscal”, repelida por larga jurisprudência deste
Tribunal. Precedentes. 4. Art. 50, XXXII e XXXIII, e §§ 36, 37 e 38, do Decreto esta‑
dual 5.141/2001. Ausência de convênio interestadual para a concessão de benefí‑
cios fiscais. Violação ao art. 155, § 2º, XII, g, da CF/1988. A ausência de convênio

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  119


ADI 3.702

interestadual viola o art. 155, § 2º, IV, V e VI, da CF. A Constituição é clara ao vedar
aos Estados e ao Distrito Federal a fixação de alíquotas internas em patamares
inferiores àquele instituído pelo Senado para a alíquota interestadual. Violação
ao art. 152 da CF/1988, que constitui o princípio da não diferenciação ou da uni‑
formidade tributária, que veda aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios
estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em
razão de sua procedência ou destino. 5. Medida cautelar deferida. [ADI 3.936 MC/
PR, Tribunal Pleno, rel. min. Gilmar Mendes, DJE de 9-11-2007.]

Assim sendo, conheço da presente ação direta de inconstitucionalidade.

C. Do mérito
A questão nodal posta na presente ação direta é verificar se o decreto questio‑
nado estabelece efetiva causa de diferimento, visando à simples postergação do
momento do pagamento do imposto, ou institui, em verdade, fórmula indireta
de concessão de isenção tributária.
A tradicional jurisprudência da Corte encara a figura do diferimento do ICMS
como mero adiamento no recolhimento do valor devido, não implicando qual‑
quer dispensa do pagamento do tributo ou outra forma de benefício fiscal. Vide:
Ação direta de inconstitucionalidade. Arts. 9º a 11 e 22 da Lei 1.963, de 1999, do
Estado do Mato Grosso do Sul. 2. Criação do Fundo de Desenvolvimento do Sistema
Rodoviário do Estado de Mato Grosso do Sul (FUNDERSUL). Diferimento do ICMS
em operações internas com produtos agropecuários. 3. A contribuição criada pela
lei estadual não possui natureza tributária, pois está despida do elemento essencial
da compulsoriedade. Assim, não se submete aos limites constitucionais ao poder
de tributar. 4. O diferimento, pelo qual se transfere o momento do recolhimento
do tributo cujo fato gerador já ocorreu, não pode ser confundido com a isenção
ou com a imunidade e, dessa forma, pode ser disciplinado por lei estadual sem
a prévia celebração de convênio. 5. Precedentes. 6. Ação que se julga improce‑
dente. [ADI 2.056/MS, Tribunal Pleno, rel. min. Gilmar Mendes, DJE de 17-8-2007.]

Por sua vez, a norma em exame efetua o diferimento do ICMS incidente sobre
a importação de equipamentos para o momento da desincorporação do bem do
ativo permanente do estabelecimento importador, ou seja, para a ocasião em que
o produto importado é transferido a outrem, onerosamente ou não.
Ocorre que os bens pertencentes ao ativo permanente – ou, num conceito
mais estrito, ao ativo imobilizado, composto por aqueles bens destinados à manu‑
tenção das atividades da empresa, tais como máquinas, equipamentos e mobili‑
ário –, em regra, não pertencem a qualquer cadeia de consumo mais ampla,
restando, então, ausente o potencial de posterior circulação jurídica, uma vez

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  120


ADI 3.702

que fadados a permanecer no estabelecimento, estando sujeitos à deterioração,


ao perecimento ou à obsolescência.
Em verdade, a transferência da titularidade jurídica desses bens é incerta ou
improvável, posto que normalmente não servem diretamente como objetos da prá‑
tica produtiva ou mercantil. São, ao revés, substratos da produção ou da mercancia,
utilizados como instrumentos de suporte ao exercício da atividade econômica.
Dessa perspectiva é que surge a inconstitucionalidade do decreto impugnado.
Os bens ali elencados, direcionados nitidamente ao ativo permanente das
empresas contribuintes – encarando-se, ainda, o benefício como facilitador para a
instalação de novas unidades produtivas ou como incentivo à melhoria tecnológica
do processo –, não farão, certamente, parte de cadeia posterior de circulação.
Nesses casos, o fato gerador do ICMS será uma operação, em regra, monofásica,
restrita à transferência de domínio do bem entre exportador e importador (desti‑
natário final), cuja configuração fática descaracteriza o conceito de diferimento.
Assim, a desincorporação do bem do ativo permanente e, consequente-
mente, o pagamento do tributo ficariam a cargo exclusivamente do arbítrio
do contribuinte, que poderia se evadir do recolhimento do tributo com a
manutenção do bem no seu patrimônio.
Dessa perspectiva, o nominado diferimento reveste-se de caráter de benefício
fiscal, resultando em forma de não pagamento do imposto – e não no simples adia‑
mento –, cuja concessão, no caso do ICMS, é dependente da celebração de con-
vênio entre os todos os Estados, na forma do art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição.
A essa conclusão também chegou a Advocacia-Geral da União em esclarece‑
dora e impecável manifestação, a qual transcrevo, em parte, a seguir:
De início, cumpre averiguar se a postergação do pagamento do tributo em aná‑
lise constitui-se em benefício fiscal, porquanto essa é a vedação a que se refere a
alínea g do art. 155 da Lei Maior.
Com efeito, tem a Advocacia-Geral da União defendido a tese de que o diferimento
no pagamento do ICMS, por si só, não representa, de modo algum, benefício fiscal
concedido pelo ente federado. Na medida em que significa técnica de mero expe‑
diente administrativo para o recolhimento do imposto, sem a anulação do valor
devido, não há qualquer descaracterização do tributo de modo a necessitar da apro‑
vação dos demais Estados-Membros, a teor do que determina a alínea g do art. 155
da Carta de 1988. Conforme foi manifestado recentemente na Ação Direta 3.676/DF,
o fenômeno do diferimento não substantiva espécie de benefício fiscal, mas sim-
ples técnica de arrecadação, utilizada para conferir eficiência à atividade de
cobrança de tributos.
Naquele caso, em que se discutia haver eventual benefício fiscal para as indústrias
do Estado de São Paulo, verificou-se que elas “continuam a suportar os mesmos

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  121


ADI 3.702

ônus que suportariam caso continuassem a contribuir quando da saída do alu‑


mínio bruto de seus estabelecimentos, em cenário destituído da substituição”.
Assim, o diferimento não importa qualquer prejuízo às regras de compensação
entre as fases do imposto, tampouco lhe altera o valor devido, fato gerador ou
contribuinte, razão pela qual não se confunde, de modo algum, com o benefício
fiscal de que trata o art. 155, § 2º, XII, g, já citado. Noutros termos: diferimento não
é benefício fiscal, e, por isso, dispensa-se a anuência dos demais Entes Federados.
Entretanto, no caso dos autos, o que se percebe é que o mecanismo disciplinado
pela Administração do Estado do Espírito Santo não configura diferimento, muito
embora tenha referido nome.
Dentre as diversas razões para se adotar a técnica do diferimento, destaca-se
a necessidade de se facilitar, ao longo da cadeia produtiva, a cobrança do ICMS
devido. Assim, entre uma etapa e outra, sem prejuízo de sua caracterização a partir
dos respectivos fatos geradores, o recolhimento do imposto pode ocorrer imedia‑
tamente ao nascimento da obrigação tributária ou em momento posterior. Dada
a complexidade de alguns processos produtivos, típicos da atual fase industrial,
mostra-se imperiosa a adoção de mecanismos que otimizem a atuação da Fazenda.
Assim, são motivos de índole administrativa (eficiência, rapidez, controle etc.) que
justificam a concentração em apenas algumas fases da cadeia econômica dos atos
estatais de cobrança. Daí afirmar-se que o diferimento representa, não um bene‑
fício, mas uma forma de agir da Administração para arrecadar.
Entretanto, in casu, o dispositivo impugnado, ao prever que o momento de exigi‑
bilidade do ICMS pela Fazenda Estadual será quando da desincorporação do bem
no ativo permanente, remete a um futuro incerto, inibindo a ação estatal. Em con‑
sequência, sob a nomenclatura de diferimento, ao invés de facilitar a fiscalização e a
arrecadação do tributo, o dispositivo cria verdadeiro obstáculo à atividade do Fisco.
Assim, em que pese o nome, de diferimento não se trata. Tal metodologia não
torna a atividade do Fisco mais eficiente; pelo contrário, cria embaraços. Constitui,
na realidade, meio de favorecimento de importação de máquinas e equipamentos,
na medida em que adia para o instante de evento incerto, ao exclusivo arbítrio do
contribuinte, a arrecadação do ICMS sobre a circulação dos bens. E, assim sendo,
representa indiscutivelmente concessão de benefício fiscal.
Ademais, a importação de máquinas e equipamentos, cujo destinatário final será
o próprio importador, não possui complexidade que possa justificar a postergação
da arrecadação do imposto. E, ao contrário da situação da ADI 3.676/DF acima
citada, em que o alumínio era objeto de transformação e por isso passava por inú‑
meras etapas de incidência do imposto, no caso dos autos, o bem importado não
é mais objeto de circulação dali por adiante, pois encontra, no estabelecimento,
seu destinatário final.
Como não se tem notícia de que houve a aprovação prévia dos demais Estados‑
-Membros, o dispositivo impugnado figura-se inconstitucional, por violar o disposto
no art. 155, § 2º, XII, g, da Lei Maior, devendo, pois, no ponto, ser julgada procedente
a presente ação direta. [Fls. 132/135.]

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  122


ADI 3.702

Com efeito, é tranquilo o entendimento deste Supremo Tribunal Federal de


que são inconstitucionais as normas que concedem ou autorizam a concessão
de benefícios fiscais de ICMS independentemente de deliberação do Confaz, por
violação dos arts. 150, § 6º, e 155, § 2º, XII, g, da Constituição Federal. Confira-se:
Ação direta de inconstitucionalidade contra a integralidade da Lei estadual 8.299,
de 29 de janeiro de 2003, que dispõe sobre escoamento do sal marinho produzido
no Rio Grande do Norte. Presença dos pressupostos da ação. Suspensão gradativa
do escoamento de sal marinho não beneficiado para outras unidades da Federa‑
ção. Inconstitucionalidade dos arts. 6º e 7º da lei impugnada por usurpação de
competência privativa da União (art. 22, VIII, da Constituição). Precedentes. Con‑
cessão unilateral de benefício fiscal. Ausência de convênio interestadual. Violação
ao art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição. Precedentes. Declaração de nulidade sem
redução de texto do art. 9º da lei estadual para excluir a concessão de benefícios
fiscais em relação ao ICMS. Ação julgada parcialmente procedente. [ADI 2.866/
RN, Tribunal Pleno, rel. min. Gilmar Mendes, DJE de 6-8-2010.]

Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 8.366, de 7 de julho de 2006, do Estado do


Espírito Santo. Lei que institui incentivo fiscal para as empresas que contratarem
apenados e egressos. Matéria de índole tributária e não orçamentária. A concessão
unilateral de benefícios fiscais, sem a prévia celebração de convênio intergovernamen-
tal, afronta ao disposto no art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição do Brasil. 1. A lei insti‑
tuidora de incentivo fiscal para as empresas que contratarem apenados e egressos
no Estado do Espírito Santo não consubstancia matéria orçamentária. Assim, não
subsiste a alegação, do requerente, de que a iniciativa seria reservada ao chefe do
Poder Executivo. 2. O texto normativo capixaba efetivamente viola o disposto no
art. 155, § 2º, XII, g, Constituição do Brasil, ao conceder isenções fiscais às empresas
que contratarem apenados e egressos no Estado do Espírito Santo. A lei atacada
admite a concessão de incentivos mediante desconto percentual na alíquota do
ICMS, que será proporcional ao número de empregados admitidos. 3. Pacífico o
entendimento desta Corte no sentido de que a concessão unilateral de benefícios
fiscais relativos ao ICMS, sem a prévia celebração de convênio intergovernamental,
nos termos do que dispõe a LC 24/1975, afronta ao disposto no art. 155, § 2º, XII, g, da
Constituição Federal. Precedentes. 4. Ação direta julgada procedente para declarar
inconstitucional a Lei 8.366, de 7 de julho de 2006, do Estado do Espírito Santo.
[ADI 3.809/ES, Tribunal Pleno, rel. min. Eros Grau, DJE de 14-9-2007.]

Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei 13.670/2002, do Estado do Paraná, que


instituiu o Programa de Incentivo à Produção e à Industrialização do Algodão do
Paraná (PROALPAR). Lei estadual que concede créditos fiscais relativos ao ICMS
sem a observância de lei complementar federal e sem a existência de convênio entre
os Estados e o Distrito Federal. 3. Violação ao art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  123


ADI 3.702

Federal. Inconstitucionalidade. Precedentes. 4. Ação direta julgada procedente.


[ADI 2.722/PR, Tribunal Pleno, rel. min. Gilmar Mendes, DJE de 19-12-2006.]

Assim sendo, o decreto impugnado, ao conceder de forma indireta benefício


fiscal, sem a aprovação prévia dos demais Estados-membros, viola o art. 155, § 2º,
XII, g, da Constituição Federal.
Ante o exposto, julgo procedente o pedido para declarar a inconstitucionali‑
dade do Decreto 1.542-R/2005 do Estado do Espírito Santo.
É como voto.

EXTRATO DA ATA
ADI 3.702/ES — Relator: Ministro Dias Toffoli. Requerente: Associação Brasileira
da Indústria de Máquinas e Equipamentos – ABIMAQ (Advogados: Denis Che‑
quer Angher e outros, Anne Joyce Angher e Nivaldo Ary Nogueira). Interessado:
Governador do Estado do Espírito Santo.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do relator, julgou
procedente a ação direta. Votou o presidente, ministro Cezar Peluso. Ausente,
justificadamente, o ministro Celso de Mello.
Presidência do ministro Cezar Peluso. Presentes à sessão os ministros Marco
Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo
Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli e Luiz Fux. Procurador-geral da Repú‑
blica, doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 1º de junho de 2011 — Luiz Tomimatsu, secretário.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  124


ADI 4.425

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.425 — DF


Relator: O sr. ministro Ayres Britto
Relator para o acórdão: O sr. ministro Luiz Fux
Requerente: Confederação Nacional da Indústria – CNI
Interessado: Congresso Nacional
Amicus curiae: Estado do Pará

Direito constitucional. Regime de execução da Fazenda Pública


mediante precatório. Emenda Constitucional 62/2009. Inconsti‑
tucionalidade formal não configurada. Inexistência de inters‑
tício constitucional mínimo entre os dois turnos de votação
de emendas à Lei Maior (CF, art. 60, § 2º). Constitucionalidade da
sistemática de “superpreferência” a credores de verbas alimen‑
tícias quando idosos ou portadores de doença grave. Respeito à
dignidade da pessoa humana e à proporcionalidade. Invalidade
jurídico-constitucional da limitação da preferência a idosos
que completem 60 anos até a expedição do precatório. Discri‑
minação arbitrária e violação à isonomia (CF, art. 5º, caput).
Inconstitucionalidade da sistemática de compensação de débi‑
tos inscritos em precatórios em proveito exclusivo da Fazenda
Pública. Embaraço à efetividade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV),
desrespeito à coisa julgada material (CF, art. 5º, XXXVI), ofensa à
Separação dos Poderes (CF, art. 2º) e ultraje à isonomia entre o
Estado e o particular (CF, art. 1º, caput, c/c art. 5º, caput). Impos‑
sibilidade jurídica da utilização do índice de remuneração
da caderneta de poupança como critério de correção mone‑
tária. Violação ao direito fundamental de propriedade (CF,

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ADI 4.425

art. 5º, XXII). Inadequação manifesta entre meios e fins. Incons‑


titucionalidade da utilização do rendimento da caderneta
de poupança como índice definidor dos juros moratórios dos
créditos inscritos em precatórios, quando oriundos de rela‑
ções jurídico-tributárias. Discriminação arbitrária e viola‑
ção à isonomia entre devedor público e devedor privado (CF,
art. 5º, caput). Inconstitucionalidade do regime especial de
pagamento. Ofensa à cláusula constitucional do Estado de
Direito (CF, art. 1º, caput), ao princípio da Separação de Poderes
(CF, art. 2º), ao postulado da isonomia (CF, art. 5º, caput), à garan‑
tia do acesso à justiça e à efetividade da tutela jurisdicional
(CF, art. 5º, XXXV) e ao direito adquirido e à coisa julgada (CF,
art. 5º, XXXVI). Pedido julgado procedente em parte.
1. A Constituição Federal de 1988 não fixou um intervalo tempo‑
ral mínimo entre os dois turnos de votação para fins de aprovação
de emendas à Constituição (CF, art. 62, § 2º), de sorte que inexiste
parâmetro objetivo que oriente o exame judicial do grau de solidez
da vontade política de reformar a Lei Maior. A interferência judicial
no âmago do processo político, verdadeiro locus da atuação típica dos
agentes do Poder Legislativo, tem de gozar de lastro forte e categórico
no que prevê o texto da Constituição Federal. Inexistência de ofensa
formal à Constituição brasileira.
2. O pagamento prioritário, até certo limite, de precatórios devidos
a titulares idosos ou que sejam portadores de doença grave promove,
com razoabilidade, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e a
proporcionalidade (CF, art. 5º, LIV), situando-se dentro da margem
de conformação do legislador constituinte para operacionalização da
novel preferência subjetiva criada pela Emenda Constitucional 62/2009.
3. A expressão “na data de expedição do precatório”, contida no
art. 100, § 2º, da CF, com redação dada pela EC 62/2009, enquanto
baliza temporal para a aplicação da preferência no pagamento de
idosos, ultraja a isonomia (CF, art. 5º, caput) entre os cidadãos credo‑
res da Fazenda Pública, na medida em que discrimina, sem qualquer
fundamento, aqueles que venham a alcançar a idade de 60 anos não na
data da expedição do precatório, mas sim posteriormente, enquanto
pendente este e ainda não ocorrido o pagamento.
4. O regime de compensação dos débitos da Fazenda Pública inscri‑
tos em precatórios, previsto nos §§ 9º e 10 do art. 100 da Constituição

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  126


ADI 4.425

Federal, incluídos pela EC 62/2009, embaraça a efetividade da juris‑


dição (CF, art. 5º, XXXV), desrespeita a coisa julgada material (CF,
art. 5º, XXXVI), vulnera a Separação dos Poderes (CF, art. 2º) e ofende
a isonomia entre o poder público e o particular (CF, art. 5º, caput),
cânone essencial do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput).
5. A atualização monetária dos débitos fazendários inscritos em
precatórios segundo o índice oficial de remuneração da caderneta de
poupança viola o direito fundamental de propriedade (CF, art. 5º, XXII)
na medida em que é manifestamente incapaz de preservar o valor real
do crédito de que é titular o cidadão. A inflação, fenômeno tipicamente
econômico-monetário, mostra-se insuscetível de captação apriorística
(ex ante), de modo que o meio escolhido pelo legislador constituinte
(remuneração da caderneta de poupança) é inidôneo a promover o
fim a que se destina (traduzir a inflação do período).
6. A quantificação dos juros moratórios relativos a débitos fazen‑
dários inscritos em precatórios segundo o índice de remuneração da
caderneta de poupança vulnera o princípio constitucional da isonomia
(CF, art. 5º, caput) ao incidir sobre débitos estatais de natureza tribu‑
tária, pela discriminação em detrimento da parte processual privada
que, salvo expressa determinação em contrário, responde pelos juros da
mora tributária à taxa de 1% ao mês em favor do Estado (ex vi do art. 161,
§ 1º, CTN). Declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução da
expressão “independentemente de sua natureza”, contida no art. 100,
§ 12, da CF, incluído pela EC 62/2009, para determinar que, quanto aos
precatórios de natureza tributária, sejam aplicados os mesmos juros de
mora incidentes sobre todo e qualquer crédito tributário.
7. O art. 1º-F da Lei 9.494/1997, com redação dada pela Lei 11.960/
2009, ao reproduzir as regras da EC 62/2009 quanto à atualização
mo­­netária e à fixação de juros moratórios de créditos inscritos em
precatórios, incorre nos mesmos vícios de juridicidade que inquinam
o art. 100, § 12, da CF, razão pela qual se revela inconstitucional por
arrastamento, na mesma extensão dos itens 5 e 6 supra.
8. O regime “especial” de pagamento de precatórios para Estados
e Municípios criado pela EC 62/2009, ao veicular nova moratória na
quitação dos débitos judiciais da Fazenda Pública e ao impor o contin‑
genciamento de recursos para esse fim, viola a cláusula constitucional
do Estado de Direito (CF, art. 1º, caput), o princípio da Separação de
Poderes (CF, art. 2º), o postulado da isonomia (CF, art. 5º), a garantia

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  127


ADI 4.425

do acesso à justiça e a efetividade da tutela jurisdicional (CF, art. 5º,


XXXV), o direito adquirido e a coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI).
9. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado proce‑
dente em parte.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a presidência do ministro Joaquim
Barbosa, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
maioria de votos e nos termos do voto do ministro Ayres Britto (relator), em julgar
parcialmente procedente a ação direta, vencidos os ministros Gilmar Mendes,
Teori Zavascki e Dias Toffoli, que a julgavam totalmente improcedente, e os
ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, que a julgavam procedente
em menor extensão.
Brasília, 14 de março de 2013 — Luiz Fux, relator para o acórdão.

RELATÓRIO
O sr. ministro Ayres Britto: Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade,
aparelhada com pedido de medida liminar, proposta pela Confederação Nacional
da Indústria (CNI). Ação que se volta contra os §§ 9º e 12 do art. 100 da Constituição
Federal, contra o art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, todos
com a redação dada pela Emenda Constitucional 62, de 9 de dezembro de 2009,
além dos arts. 3º, 4º e 6º da referida emenda. Eis o teor das normas impugnadas:
Art. 1º O art. 100 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais,
Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusiva‑
mente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos
créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações
orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
(...)
§ 9º No momento da expedição dos precatórios, independentemente de re­­
gulamentação, deles deverá ser abatido, a título de compensação, valor cor‑
respondente aos débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e
constituídos contra o credor original pela Fazenda Pública devedora, incluídas
parcelas vincendas de parcelamentos, ressalvados aqueles cuja execução esteja
suspensa em virtude de contestação administrativa ou judicial.
(...)

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  128


ADI 4.425

§ 12. A partir da promulgação desta Emenda Constitucional, a atualização de


valores de requisitórios, após sua expedição, até o efetivo pagamento, indepen‑
dentemente de sua natureza, será feita pelo índice oficial de remuneração básica
da caderneta de poupança, e, para fins de compensação da mora, incidirão
juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de
poupança, ficando excluída a incidência de juros compensatórios.”
Art. 2º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acres‑
cido do seguinte art. 97:
“Art. 97. Até que seja editada a lei complementar de que trata o § 15 do art. 100 da
Constituição Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que, na data
de publicação desta Emenda Constitucional, estejam em mora na quitação de
precatórios vencidos, relativos às suas administrações direta e indireta, inclusive
os emitidos durante o período de vigência do regime especial instituído por este
artigo, farão esses pagamentos de acordo com as normas a seguir estabelecidas,
sendo inaplicável o disposto no art. 100 desta Constituição Federal, exceto em
seus §§ 2º, 3º, 9º, 10, 11, 12, 13 e 14, e sem prejuízo dos acordos de juízos concilia‑
tórios já formalizados na data de promulgação desta Emenda Constitucional.
§ 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios sujeitos ao regime especial
de que trata este artigo optarão, por meio de ato do Poder Executivo:
I – pelo depósito em conta especial do valor referido pelo § 2º deste artigo; ou
II – pela adoção do regime especial pelo prazo de até 15 anos, caso em que o
percentual a ser depositado na conta especial a que se refere o § 2º deste artigo
corresponderá, anualmente, ao saldo total dos precatórios devidos, acrescido do
índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança e de juros sim‑
ples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança
para fins de compensação da mora, excluída a incidência de juros compensa‑
tórios, diminuído das amortizações e dividido pelo número de anos restantes
no regime especial de pagamento.
§ 2º Para saldar os precatórios, vencidos e a vencer, pelo regime especial, os Esta‑
dos, o Distrito Federal e os Municípios devedores depositarão mensalmente, em
conta especial criada para tal fim, 1/12 do valor calculado percentualmente sobre as
respectivas receitas correntes líquidas, apuradas no segundo mês anterior ao mês
de pagamento, sendo que esse percentual, calculado no momento de opção pelo
regime e mantido fixo até o final do prazo a que se refere o § 14 deste artigo, será:
I – para os Estados e para o Distrito Federal:
a) de, no mínimo, 1,5%, para os Estados das regiões Norte, Nordeste e Centro‑
-Oeste, além do Distrito Federal, ou cujo estoque de precatórios pendentes
das suas administrações direta e indireta corresponder a até 35% do total da
receita corrente líquida;
b) de, no mínimo, 2%, para os Estados das regiões Sul e Sudeste, cujo estoque
de precatórios pendentes das suas administrações direta e indireta correspon‑
der a mais de 35% (trinta e cinco por cento) da receita corrente líquida;
II – para Municípios:

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  129


ADI 4.425

a) de, no mínimo, 1%, para Municípios das regiões Norte, Nordeste e Centro‑
-Oeste, ou cujo estoque de precatórios pendentes das suas administrações direta
e indireta corresponder a até 35% da receita corrente líquida;
b) de, no mínimo, 1,5%, para Municípios das regiões Sul e Sudeste, cujo estoque
de precatórios pendentes das suas administrações direta e indireta correspon‑
der a mais de 35 % da receita corrente líquida.
§ 3º Entende-se como receita corrente líquida, para os fins de que trata este
artigo, o somatório das receitas tributárias, patrimoniais, industriais, agrope‑
cuárias, de contribuições e de serviços, transferências correntes e outras recei‑
tas correntes, incluindo as oriundas do § 1º do art. 20 da Constituição Federal,
verificado no período compreendido pelo mês de referência e os 11 (onze) meses
anteriores, excluídas as duplicidades, e deduzidas:
I – nos Estados, as parcelas entregues aos Municípios por determinação cons‑
titucional;
II – nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, a contribuição dos
servidores para custeio do seu sistema de previdência e assistência social e as
receitas provenientes da compensação financeira referida no § 9º do art. 201
da Constituição Federal.
§ 4º As contas especiais de que tratam os §§ 1º e 2º serão administradas pelo Tri‑
bunal de Justiça local, para pagamento de precatórios expedidos pelos tribunais.
§ 5º Os recursos depositados nas contas especiais de que tratam os §§ 1º e 2º deste
artigo não poderão retornar para Estados, Distrito Federal e Municípios devedores.
§ 6º Pelo menos 50% dos recursos de que tratam os §§ 1º e 2º deste artigo serão
utilizados para pagamento de precatórios em ordem cronológica de apresen‑
tação, respeitadas as preferências definidas no § 1º, para os requisitórios do
mesmo ano e no § 2º do art. 100, para requisitórios de todos os anos.
§ 7º Nos casos em que não se possa estabelecer a precedência cronológica
entre 2 precatórios, pagar-se-á primeiramente o precatório de menor valor.
§ 8º A aplicação dos recursos restantes dependerá de opção a ser exercida
por Estados, Distrito Federal e Municípios devedores, por ato do Poder Execu‑
tivo, obedecendo à seguinte forma, que poderá ser aplicada isoladamente ou
simultaneamente:
I – destinados ao pagamento dos precatórios por meio do leilão;
II – destinados a pagamento a vista de precatórios não quitados na forma do
§ 6° e do inciso I, em ordem única e crescente de valor por precatório;
III – destinados a pagamento por acordo direto com os credores, na forma
estabelecida por lei própria da entidade devedora, que poderá prever criação
e forma de funcionamento de câmara de conciliação.
§ 9º Os leilões de que trata o inciso I do § 8º deste artigo:
I – serão realizados por meio de sistema eletrônico administrado por entidade
autorizada pela Comissão de Valores Mobiliários ou pelo Banco Central do Brasil;
II – admitirão a habilitação de precatórios, ou parcela de cada precatório indi‑
cada pelo seu detentor, em relação aos quais não esteja pendente, no âmbito do

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ADI 4.425

Poder Judiciário, recurso ou impugnação de qualquer natureza, permitida por


iniciativa do Poder Executivo a compensação com débitos líquidos e certos, inscri‑
tos ou não em dívida ativa e constituídos contra devedor originário pela Fazenda
Pública devedora até a data da expedição do precatório, ressalvados aqueles cuja
exigibilidade esteja suspensa nos termos da legislação, ou que já tenham sido
objeto de abatimento nos termos do § 9º do art. 100 da Constituição Federal;
III – ocorrerão por meio de oferta pública a todos os credores habilitados pelo
respectivo ente federativo devedor;
IV – considerarão automaticamente habilitado o credor que satisfaça o que
consta no inciso II;
V – serão realizados tantas vezes quanto necessário em função do valor dis‑
ponível;
VI – a competição por parcela do valor total ocorrerá a critério do credor, com
deságio sobre o valor desta;
VII – ocorrerão na modalidade deságio, associado ao maior volume ofertado
cumulado ou não com o maior percentual de deságio, pelo maior percentual
de deságio, podendo ser fixado valor máximo por credor, ou por outro critério
a ser definido em edital;
VIII – o mecanismo de formação de preço constará nos editais publicados
para cada leilão;
IX – a quitação parcial dos precatórios será homologada pelo respectivo Tri‑
bunal que o expediu.
§ 10. No caso de não liberação tempestiva dos recursos de que tratam o inciso II
do § 1º e os §§ 2º e 6º deste artigo:
I – haverá o sequestro de quantia nas contas de Estados, Distrito Federal e
Municípios devedores, por ordem do Presidente do Tribunal referido no § 4º,
até o limite do valor não liberado;
II – constituir-se-á, alternativamente, por ordem do Presidente do Tribunal
requerido, em favor dos credores de precatórios, contra Estados, Distrito Federal
e Municípios devedores, direito líquido e certo, autoaplicável e independente‑
mente de regulamentação, à compensação automática com débitos líquidos
lançados por esta contra aqueles, e, havendo saldo em favor do credor, o valor
terá automaticamente poder liberatório do pagamento de tributos de Estados,
Distrito Federal e Municípios devedores, até onde se compensarem;
III – o chefe do Poder Executivo responderá na forma da legislação de respon‑
sabilidade fiscal e de improbidade administrativa;
IV – enquanto perdurar a omissão, a entidade devedora:
a) não poderá contrair empréstimo externo ou interno;
b) ficará impedida de receber transferências voluntárias;
V – a União reterá os repasses relativos ao Fundo de Participação dos Estados
e do Distrito Federal e ao Fundo de Participação dos Municípios, e os depositará
nas contas especiais referidas no § 1º, devendo sua utilização obedecer ao que
prescreve o § 5º, ambos deste artigo.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  131


ADI 4.425

§ 11. No caso de precatórios relativos a diversos credores, em litisconsórcio,


admite-se o desmembramento do valor, realizado pelo Tribunal de origem do
precatório, por credor, e, por este, a habilitação do valor total a que tem direito,
não se aplicando, neste caso, a regra do § 3º do art. 100 da Constituição Federal.
§ 12. Se a lei a que se refere o § 4º do art. 100 não estiver publicada em até
180 dias, contados da data de publicação desta Emenda Constitucional, será
considerado, para os fins referidos, em relação a Estados, Distrito Federal e
Municípios devedores, omissos na regulamentação, o valor de:
I – 40 salários mínimos para Estados e para o Distrito Federal;
II – 30 salários mínimos para Municípios.
§ 13. Enquanto Estados, Distrito Federal e Municípios devedores estiverem
realizando pagamentos de precatórios pelo regime especial, não poderão sofrer
sequestro de valores, exceto no caso de não liberação tempestiva dos recursos
de que tratam o inciso II do § 1º e o § 2º deste artigo.
§ 14. O regime especial de pagamento de precatório previsto no inciso I do
§ 1º vigorará enquanto o valor dos precatórios devidos for superior ao valor dos
recursos vinculados, nos termos do § 2º, ambos deste artigo, ou pelo prazo fixo
de até 15 anos, no caso da opção prevista no inciso II do § 1º.
§ 15. Os precatórios parcelados na forma do art. 33 ou do art. 78 deste Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias e ainda pendentes de pagamento ingres‑
sarão no regime especial com o valor atualizado das parcelas não pagas relativas
a cada precatório, bem como o saldo dos acordos judiciais e extrajudiciais.
§ 16. A partir da promulgação desta Emenda Constitucional, a atualização de
valores de requisitórios, até o efetivo pagamento, independentemente de sua
natureza, será feita pelo índice oficial de remuneração básica da caderneta de
poupança, e, para fins de compensação da mora, incidirão juros simples no
mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança, ficando
excluída a incidência de juros compensatórios.
§ 17. O valor que exceder o limite previsto no § 2º do art. 100 da Constituição
Federal será pago, durante a vigência do regime especial, na forma prevista
nos §§ 6º e 7º ou nos incisos I, II e III do § 8° deste artigo, devendo os valores
dispendidos para o atendimento do disposto no § 2º do art. 100 da Constituição
Federal serem computados para efeito do § 6º deste artigo.
§ 18. Durante a vigência do regime especial a que se refere este artigo, gozarão
também da preferência a que se refere o § 6º os titulares originais de precatórios
que tenham completado 60 anos de idade até a data da promulgação desta
Emenda Constitucional.”
Art. 3º A implantação do regime de pagamento criado pelo art. 97 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias deverá ocorrer no prazo de até 90, con‑
tados da data da publicação desta Emenda Constitucional.
Art. 4º A entidade federativa voltará a observar somente o disposto no art. 100
da Constituição Federal:
I – no caso de opção pelo sistema previsto no inciso I do § 1º do art. 97 do Ato das

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ADI 4.425

Disposições Constitucionais Transitórias, quando o valor dos precatórios devidos


for inferior ao dos recursos destinados ao seu pagamento;
II – no caso de opção pelo sistema previsto no inciso II do § 1º do art. 97 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias, ao final do prazo.
(...)
Art. 6º Ficam também convalidadas todas as compensações de precatórios com
tributos vencidos até 31 de outubro de 2009 da entidade devedora, efetuadas na
forma do disposto no § 2º do art. 78 do ADCT, realizadas antes da promulgação
desta Emenda Constitucional.
Art. 7º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.

2. Pois bem, argui a requerente numerosos vícios de inconstitucionalidade


material, assim resumidos:
I – Art. 97 do ADCT (acrescentado pelo art. 2º da EC 62/2009): a possibilidade
de o poder público dilatar por quinze anos a completa execução das sentenças
judiciais transitadas em julgado significaria desrespeito às garantias do livre e
eficaz acesso ao Poder Judiciário (inciso XXXV do art. 5º da CF) e da razoável
duração do processo (inciso LXXVIII do art. 5º do CF), além de afrontar a autori‑
dade das decisões judiciais já insuscetíveis de recurso e os princípios do Estado
de Direito, da igualdade e da proporcionalidade. Ademais, haveria desrespeito
ao princípio da Separação dos Poderes, porque a “moratória estabelecida para o
pagamento da indenização devida pelo Estado enquanto administração (Poder
Executivo), significa fracionar a execução definida e viabilizada por outro poder
estatal: o Poder Judiciário. Em outros termos, fica o Poder Executivo imune aos
comandos emitidos pelo Poder Judiciário”. Haveria ainda incorrido a EC 62/2009
em violação à coisa julgada, pois “uma dívida que, segundo a sentença transi‑
tada em julgado, estava vencida sendo juridicamente exigível de imediato e
por inteiro, não pode por lei posterior, nem de hierarquia constitucional, ser
dividida em parcelas anuais”;
II – § 9º do art. 100 da CF: ao tornar obrigatória a compensação do crédito a
ser inscrito em precatório com “débitos líquidos e certos, inscritos ou não em
dívida ativa e constituídos contra o credor original pela Fazenda Pública deve‑
dora”, os novos dispositivos constitucionais violariam os direitos de liberdade,
segurança jurídica e igualdade dos indivíduos (caput do art. 5º da CF). É que “o
credor, depois de longo tempo de espera, poderá não receber o que lhe é devido,
na eventualidade de existirem débitos passíveis de compensação”. Compensação
que “é obrigatória e de mão única: estabelece-se apenas em favor da Fazenda.
Não há garantia, pois, de reciprocidade de tratamento em prol do particular,
quando colocado na condição de devedor e ao mesmo tempo credor do Estado”;

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ADI 4.425

III – § 12 do art. 100 da CF, inciso II do § 1º e § 16, ambos do art. 97 do ADCT:
esses dispositivos, acrescentados pela Emenda Constitucional 62/2009, viola‑
riam a garantia constitucional da coisa julgada (inciso XXXVI do art. 5º da CF) e
o princípio da moralidade (caput do art. 37 da CF). É que os membros do Poder
Judiciário perderão a autonomia para fixar o critério que considerem adequado
para atualização do débito, atingindo, de igual forma, as sentenças judiciais já
prolatadas. Ademais, o índice oficial de remuneração básica da caderneta de pou‑
pança “cria distorções em favor do Poder Público, na medida em que enquanto
devedor os seus débitos serão corrigidos pela TR e, na condição de credor, os
seus créditos fiscais se corrigem por meio da Selic”.
3. Ao fim da petição inicial, a requerente defende a necessidade de concessão
da medida cautelar. Após o que pleiteia a declaração de inconstitucionalidade
dos arts. 2º, 3º, 4º e 6º da Emenda Constitucional 62, de 9 de dezembro de 2009,
bem como dos §§ 9º e 12 do art. 100 da Constituição Federal, com a redação dada
pela multicitada emenda constitucional.
4. Continuo neste reavivar das coisas para dizer que adotei o procedimento
abreviado de que trata o art. 12 da Lei 9.868/1999 e solicitei informações aos
requeridos. Informações que foram prestadas pela Câmara dos Deputados (peti‑
ção 35.858/2010) e pelo Senado Federal (petição 42.082/2010).
5. Aberta vista do processo ao advogado-geral da União, este pugnou, prelimi‑
narmente, pelo não conhecimento da ação direta, por ausência parcial de fun‑
damentação do pedido. No mérito, manifestou-se pela improcedência da ação.
Já o procurador-geral da República, este opinou pela “procedência do pedido, em
face da inconstitucionalidade formal relativa ao modo como se deu a votação
da proposta que veio a resultar na EC 62, e acaso superada essa questão, pela
procedência parcial, a fim seja declarada a inconstitucionalidade do art. 97 do
ADCT, introduzido pela EC 62/2009”.
6. Por fim, registro que admiti o ingresso nos autos, na condição de amicus
curiae do Estado do Pará.
É o relatório.

VOTO
(Sobre preliminar)
O sr. ministro Ayres Britto (relator): Analiso a preliminar, suscitada pelo advo‑
gado-geral da União, de que o pedido de declaração de inconstitucionalidade do
art. 97 do ADCT, à exceção dos §§ 1º e 16, e dos arts. 3º, 4º e 6º da EC 62/2009 estaria

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  134


ADI 4.425

desprovido de fundamentação. Tenho que é de ser desacolhida a preliminar. É que


os mencionados dispositivos constitucionais estão umbilicalmente ligados ao caput
e aos §§ 1º e 2º do art. 97 do ADCT. Noutro dizer, se declarada a inconstitucionali‑
dade destes dispositivos, aqueles perderão completamente o sentido. Daí por que
não se exige, quanto aos demais parágrafos do art. 97 do ADCT e aos arts. 3º, 4º e 6º
da EC 62/2009, maior esforço argumentativo. Noutras palavras, caso sejam julgados
inconstitucionais os §§ 1º e 2º do art. 97 do ADCT, que preveem os regimes espe‑
ciais de pagamento de precatório, e que foram minuciosamente combatidos pelo
requerente, os demais parágrafos do mesmo artigo sucumbem por arrastamento.

PROPOSTA
O sr. ministro Ayres Britto (relator): Senhor Presidente, com esse enfrenta‑
mento das preliminares, gostaria de propor à Corte a suspensão do julgamento.
Deixaríamos para outra oportunidade as questões de mérito, porque há sessões
eleitorais de três ministros da Casa, que precisam sair, e não há quorum expres‑
sivo para deliberar sobre matéria tão importante. Basta lembrar aos senhores
que essa Emenda 62 aportou consigo, entre disposições permanentes e transi‑
tórias, 76 dispositivos.
O sr. ministro Luiz Fux: Vossa Excelência não irá nem abordar a questão da
inconstitucionalidade formal?
O sr. ministro Ayres Britto (relator): Não. Nem a questão formal. Eu deixaria
também a questão formal, se o ministro Cezar Peluso concordar, para a próxima
assentada de julgamento.

EXTRATO DA ATA
ADI 4.425/DF — Relator: Ministro Ayres Britto. Requerente: Confederação Nacio‑
nal da Indústria – CNI (Advogados: Cassio Augusto Muniz Borges e outros).
Interessado: Congresso Nacional. Amicus curiae: Estado do Pará (Procurador:
Procurador-geral do Estado do Pará).
Decisão: Chamadas para julgamento em conjunto as ADI 4.357, 4.372, 4.400
e 4.425, e após o voto do ministro Ayres Britto (relator), rejeitando as prelimina‑
res e conhecendo, em parte, da ADI 4.372, foi o julgamento dos feitos suspenso.
Ausentes o ministro Celso de Mello, justificadamente; o ministro Gilmar Mendes,
representando o Tribunal na Comissão de Veneza, Itália; e o ministro Joaquim
Barbosa, licenciado. Falaram, pelos requerentes Conselho Federal da Ordem
dos Advogados do Brasil (ADI 4.357 e 4.372); Associação Nacional dos Servidores

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ADI 4.425

do Poder Judiciário (ADI 4.357) e Confederação Nacional dos Servidores Públi‑


cos (ADI 4.357); Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho
(ADI 4.400); e Confederação Nacional da Indústria (ADI 4.425), respectivamente,
o doutor Ophir Cavalcante Júnior; o doutor Júlio Bonafonte; o doutor Alberto
Pavie Ribeiro; e o doutor Sérgio Campinho; pela Advocacia-Geral da União, o
ministro Luís Inácio Lucena Adams; e, pelos amici curiae Município de São Paulo
(ADI 4.357 e 4.372); Estado do Pará (ADI 4.357, 4.372, 4.400 e 4.425), Sindicato
Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ADI 4.357) e Confe‑
deração Nacional dos Trabalhadores em Educação (ADI 4.357) e Associação dos
Advogados de São Paulo (ADI 4.357), respectivamente, a doutora Simone Andrea
Barcelos Coutinho, procuradora do Município; o doutor José Aluysio Cavalcante
Campos, procurador do Estado; o doutor Cláudio Pereira de Souza Netto e o
doutor Roberto Timoner. Presidência do ministro Cezar Peluso.
Presidência do ministro Cezar Peluso. Presentes à sessão os ministros Marco
Aurélio, Ellen Gracie, Ayres Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias
Toffoli e Luiz Fux. Procurador-geral da República, doutor Roberto Monteiro
Gurgel Santos.
Brasília, 16 de junho de 2011 — Luiz Tomimatsu, secretário.

VOTO
O sr. ministro Ayres Britto (relator): Principio por examinar os vícios de incons‑
titucionalidade atinentes aos §§ 9º e 10 do art. 100 da Constituição Federal. Con‑
fira-se a redação dos dispositivos impugnados:
§ 9º No momento da expedição dos precatórios, independentemente de regula‑
mentação, deles deverá ser abatido, a título de compensação, valor correspondente
aos débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra
o credor original pela Fazenda Pública devedora, incluídas parcelas vincendas de
parcelamentos, ressalvados aqueles cuja execução esteja suspensa em virtude de
contestação administrativa ou judicial.
§ 10. Antes da expedição dos precatórios, o Tribunal solicitará à Fazenda Pública
devedora, para resposta em até 30 dias, sob pena de perda do direito de abatimento,
informação sobre os débitos que preencham as condições estabelecidas no § 9º,
para os fins nele previstos.

9. Como se vê, as normas jurídicas atacadas chancelam uma compensação


obrigatória do crédito a ser inscrito em precatório com débitos perante a Fazenda
Pública. Compensação que se opera “antes da expedição dos precatórios” e
mediante informação da Fazenda devedora, no prazo de trinta dias. Dando-se que

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ADI 4.425

o objetivo da norma é, nas palavras do próprio advogado-geral da União, precisa‑


mente este: “impedir que os administrados (especialmente os que devem valores
vultosos à Fazenda) recebam seus créditos sem que suas dívidas perante o Estado
sejam satisfeitas”. E, se é assim, o que se tem – penso – é um acréscimo de prerro‑
gativa processual do Estado, como se já fosse pouco a prerrogativa do regime em
si do precatório. Mas uma “super” ou sobreprerrogativa que, ao menos quanto aos
créditos privados já reconhecidos em decisão judicial com trânsito em julgado, vai
implicar violação da res judicata. Mais até, vai consagrar um tipo de superioridade
processual da parte pública sem a menor observância da garantia do devido pro‑
cesso legal e seus principais desdobramentos: o contraditório e a ampla defesa.
10. Em palavras outras, a via crucis do precatório passou a conhecer uma nova
estação, a configurar arrevezada espécie de terceiro turno processual-judiciário,
ou, quando menos, processual-administrativo. Com a agravante da não participa‑
ção da contraparte privada. É como dizer: depois de todo um demorado processo
judicial em que o administrado vê reconhecido seu direito de crédito contra a
Fazenda Pública (muitas vezes de natureza alimentícia), esta poderá frustrar a
satisfação do crédito afinal reconhecido. E não se argumente que ao administrado
é facultada a impugnação judicial ou administrativa dos débitos informados pela
Fazenda Pública. É que o cumprimento das decisões judiciais não pode ficar na
dependência de manifestação alguma da administração pública, nem as deman‑
das devem se eternizar (e se multiplicar), porque “a todos, no âmbito judicial e
administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação” (inciso LXXVIII do art. 5º da CF).1 e 2

1 Na ADI 3.453, ao apreciar a constitucionalidade de dispositivo legal que condicionava o paga-


mento de precatórios à apresentação de certidões negativas de tributos, o ministro Cezar Peluso
assim vocalizou: “Parece mais, Senhor Presidente, a meu ver, com o devido respeito, que há
ofensa ao devido processo legal, entendido aqui como o processo legal que deva ser justo, devido
perante exigências de justiça e de equidade. Ninguém pode ser privado de nenhum direito subjetivo
sem o devido processo legal. Neste caso, o credor está sendo privado, ainda que temporariamente, não
se sabe por quanto tempo, da possibilidade do exercício desse direito subjetivo sem processo algum.
A lei não prevê nenhum incidente em que se pudesse discutir o alcance desse suposto débito,
acusado em eventual certidão negativa.
Em segundo lugar, porque não há a mínima possibilidade de defesa contra o objeto de uma certidão
de caráter positivo. Isto é, ainda que conste da certidão exibida a existência de algum débito, não há
previsão legal de como o credor pode escapar à eficácia paralisante dessa norma dentro do mesmo
processo. O que o obrigará a promover outro processo contra a Fazenda Pública, para que, ao cabo do
qual e não se sabe em quantos anos, possa levantar o depósito. Isso, se já não for credor de terceira
ou quarta geração, como sucede ordinariamente com o recebimento de precatórios.” [Grifou-se.]
2 Como bem observou Júlio César Soares, em artigo publicado no site “Consultor Jurídico” na
internet, em 13 de junho de 2011 (Compensação de precatório com débito cria confusão), o Conselho
da Justiça Federal editou, em 28 de outubro de 2010, a Resolução 122, que “regulamenta, no

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ADI 4.425

11. Em síntese, esse tipo unilateral e automático de compensação de valores,


agora constante dos §§ 9º e 10 da Magna Carta (redação dada pela EC 62/2009),
embaraça a efetividade da jurisdição e desrespeita a coisa julgada.3 E nessa linha é
que se pronunciou o Supremo Tribunal Federal quanto a mecanismo semelhante,
inserido no art. 19 da Lei 11.033/2004.4 Artigo que foi unanimemente declarado
inconstitucional pelo Plenário desta nossa Corte na ADI 3.453. Colho do voto da
ministra Cármen Lúcia, relatora, o seguinte trecho:
As formas de obter a Fazenda Pública o que lhe é devido e a constrição da contri‑
buição para o pagamento de eventual débito havido com a Fazenda Pública estão
estabelecidas no ordenamento jurídico e não podem ser obtidas por meios que
frustrem direitos constitucionais dos cidadãos.
Ademais, tal como tratada na Constituição, a matéria relativa a precatórios não
chama a atuação do legislador infraconstitucional, menos ainda para impor res‑
trições que não se coadunam com o direito à efetividade da jurisdição e o respeito
à coisa julgada. E a jurisdição é respeitada em sua condição efetiva, às vezes, pelo
pagamento de valor definido judicialmente.
O condicionamento do levantamento do que é devido por força de decisão judicial
ou da autorização para o depósito em conta bancária de valores decorrentes de pre‑
catório judicial, estabelecido pela norma questionada, agrava o que vem estatuído
como dever da Fazenda Pública em face de obrigação que se tenha reconhecido
judicialmente em razão e nas condições estabelecidas pelo Poder Judiciário, não
se mesclando, confundindo ou, menos ainda, frustrando pela exigência paralela
de débitos de outra fonte e natureza que, eventualmente, o jurisdicionado tenha
com a Fazenda Pública.
(...)
Ademais, a decisão judicial não pode ter a sua efetividade e o seu respeito condi‑
cionados à exigência que venha a ser imposta pelo legislador infraconstitucional

âmbito da Justiça Federal de primeiro e segundo graus, os procedimentos relativos à expedição


de ofícios requisitórios, ao cumprimento da ordem cronológica dos pagamentos e compen-
sações e ao saque e levantamento dos depósitos”. E o fato é que o inciso XV do art. 7º dessa
resolução já faz da “data do trânsito em julgado da decisão que deferiu o abatimento para fins
de compensação” uma informação necessária do ofício requisitório.
3 Nada a ver, portanto, com o que decidiu este Supremo Tribunal Federal na ADI 2.851. Naquela
oportunidade, tratava-se de lei estadual que facultava (não obrigava, portanto) ao contribuinte
(e não em prejuízo deste) a compensação de crédito tributário com débito da Fazenda Pública
decorrente de precatório judicial pendente de pagamento. Compensação que apenas se mate-
rializava mediante provocação do contribuinte e após a concordância da Fazenda Pública.
4 “Art. 19. O levantamento ou autorização para depósito em conta bancária de valores decorrentes
de precatório judicial somente poderá ocorrer mediante a apresentação ao juízo de certidão
negativa de tributos federais, estaduais, municipais, bem como certidão de regularidade para
com a Seguridade Social, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e a Dívida Ativa
da União, depois de ouvida a Fazenda Pública.”

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  138


ADI 4.425

[nem pelo constituinte reformador], em detrimento do julgado e da satisfatividade


da prestação jurisdicional.
Nesse sentido, o princípio da separação de poderes estaria agravado pelo preceito
infraconstitucional, que restringe o vigor e a eficácia das decisões judiciais ou da
satisfação a elas devidas na formulação constitucional prevalecente no ordena‑
mento jurídico.
(...)
A assertiva feita nas informações pelo Congresso Nacional [e, nestes autos, repe‑
tida pelo advogado-geral da União] de que a norma legal sob análise teria “espírito
moralizador” demonstra-se, bem ao contrário, desmoralizadora das decisões judi‑
ciais e frustradora de direitos dos jurisdicionados.

12. Com efeito, esse tipo de conformação normativa, mesmo que veiculada por
emenda à Constituição, também importa contratura no princípio da Separação dos
Poderes. No caso, em desfavor do Poder Judiciário. Como ainda se contrapõe àquele
traço ou àquela nota que, integrativa da proporcionalidade, demanda a observância
obrigatória da exigibilidade/necessidade para a restrição de direito. Isso porque a
Fazenda Pública dispõe de outros meios igualmente eficazes para a cobrança de
seus créditos tributários e não tributários. Basta pensar que o crédito, constituído
e inscrito em dívida ativa pelo próprio poder público, pode imediatamente ser exe‑
cutado, inclusive com a obtenção de penhora de eventual precatório existente
em favor do administrado. Sem falar na inclusão do devedor nos cadastros de
inadimplentes. A propósito, este Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência
firme no sentido de vedar o uso, pelo Estado, de meios coercitivos indiretos de
cobrança de tributo. Confiram-se, nesse sentido, as Súmulas 70, 323 e 547.5 Assim
também vocalizou o ministro Joaquim Barbosa na citada ADI 3.453, verbis:
Também eu entendo que a subordinação da solução de créditos, que devem ser
pagos mediante precatório, à comprovação da ausência de débitos inscritos em
dívida ativa é desproporcional em relação aos limites impostos pelo art. 100 da
Constituição, especialmente o seu respectivo § 1º, que afirma ser obrigatória a
inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verbas necessárias ao
pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado. Assim,
o Estado está obrigado a solver suas obrigações, independentemente da existência
ou inexistência de créditos oponíveis ao seu credor.

5 Súmula 70: “É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança
de tributo.”
Súmula 323: “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para paga-
mento de tributos.”
Súmula 547: “Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estam-
pilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.”

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ADI 4.425

A Fazenda Pública possui inúmeros mecanismos destinados à salvaguarda de


seus créditos, inclusive com a constrição do patrimônio do devedor e o registro
das dívidas em cadastros de inadimplência.
De forma semelhante às tentativas do fisco de embaraçar a atividade econômica
do contribuinte inadimplente, rechaçadas por esta Corte em diversos precedentes
(cf., e.g., o RE 413.782, rel. min. Marco Aurélio, Pleno, DJ de 3-6-2005, e as Súmulas
70, 323 e 547 da Corte), a vinculação em exame representa típica hipótese de sanção
política, inadmissível no sistema tributário brasileiro.

13. Não é tudo, porque também me parece resultar preterido o princípio cons‑
titucional da isonomia. Explico. Exige-se do poder público, para o recebimento
de valores em execução fiscal, a prova de que o Estado nada deve à contraparte
privada? Claro que não! Ao cobrar o crédito de que é titular, a Fazenda Pública não
é obrigada a compensá-lo com eventual débito dela (Fazenda Pública) em face do
credor-contribuinte. Por conseguinte, revela-se, por mais um título, anti-isonômica
a sistemática dos §§ 9º e 10 do art. 100 da Constituição da República, incluídos
pela Emenda Constitucional 62/2009. Pelas mesmas razões, é inconstitucional a
expressão “permitida por iniciativa do Poder Executivo a compensação com débitos
líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra o devedor
originário pela Fazenda Pública devedora até a data da expedição do precatório,
ressalvados aqueles cuja exigibilidade esteja suspensa nos termos do § 9º do art. 100
da Constituição Federal”, contida no inciso II do § 9º do art. 97 do ADCT.
14. Prossigo neste voto para assentar, agora, a inconstitucionalidade parcial
do atual § 12 do art. 100 da Constituição da República. Dispositivo assim verna‑
cularmente posto pela Emenda Constitucional 62/2009:
§ 12. A partir da promulgação desta Emenda Constitucional, a atualização de valo‑
res de requisitórios, após sua expedição, até o efetivo pagamento, independente‑
mente de sua natureza, será feita pelo índice oficial de remuneração básica da
caderneta de poupança, e, para fins de compensação da mora, incidirão juros
simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança,
ficando excluída a incidência de juros compensatórios. [Grifei.]

15. Ora, o § 5º do art. 100 da Magna Carta, cuja redação é idêntica àquela
que já constava do § 1º do mesmo artigo da Constituição originária, dispõe ser
“obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba
necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas
em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho,
fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus
valores atualizados monetariamente”. Pois foi justamente em face desse dispo‑
sitivo constitucional (e também do art. 33 do ADCT) que este Supremo Tribunal

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Federal consolidou sua jurisprudência no sentido de que: a) “o valor do crédito


constante de precatório deve ser atualizado monetariamente – também a partir
de 1º de julho do exercício de sua expedição, até a data do efetivo pagamento”
(RE 212.285 AgR, rel. min. Néri da Silveira); b) “durante o período previsto no § 1º
do art. 100 da Constituição, não incidem juros de mora sobre os precatórios que
nele sejam pagos” (Súmula Vinculante 17), sendo cabíveis os juros moratórios
apenas “se houver atraso no pagamento” (AI 643.732 AgR, rel. min. Cármen Lúcia);
c) “não são devidos [juros compensatórios] ainda que o pagamento do precatório
tenha ocorrido a destempo” (AI 494.526 ED-AgR, rel. min. Sepúlveda Pertence).
16. Observa-se, então, que, em princípio, o novo § 12 do art. 100 da Constitui‑
ção Federal retratou a jurisprudência consolidada desta nossa Corte, ao deixar
mais clara: a) a exigência da “atualização de valores de requisitórios, após sua
expedição [e] até o efetivo pagamento”; b) a incidência de juros simples “para
fins de compensação da mora”; c) a não incidência de juros compensatórios
(parte final do § 12 do art. 100 da CF). Mas o fato é que o dispositivo em exame
foi além: fixou, desde logo, como referência para correção monetária, o índice ofi-
cial de remuneração básica da caderneta de poupança, bem como, “para fins de
compensação de mora”, o mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta
de poupança. E contra esse plus normativo é que se insurge a requerente.
17. Insurgência, a meu ver, que é de ser acolhida quanto à utilização do “índice
oficial de remuneração básica da caderneta de poupança” para a atualização
monetária dos débitos inscritos em precatório. É que a correção monetária,
consoante já defendi em artigo doutrinário,6 é instituto jurídico-constitucional,
porque tema específico ou a própria matéria de algumas normas figurantes do
nosso magno texto, tracejadoras de um peculiar regime jurídico para ela.7 Ins‑
tituto que tem o pagamento em dinheiro como fato-condição de sua incidência
e, como objeto, a agravação quantitativa desse mesmo pagamento. Agravação,
porém, que não corresponde a uma sobrepaga, no sentido de constituir obriga‑
ção nova que se adiciona à primeira, com o fito de favorecer uma das partes da
relação jurídica e desfavorecer a outra. Não é isso. Ao menos no plano dos fins a
que visa a Constituição, na matéria, ninguém enriquece e ninguém empobrece
por efeito de correção monetária, porque a dívida que tem o seu valor nominal
atualizado ainda é a mesma dívida. Sendo assim, impõe-se a compreensão de que,

6 BRITTO, Carlos Ayres. O regime constitucional da correção monetária. Revista de Direito


Administrativo, Rio de Janeiro, Renovar, v. 203, p. 41-58, jan.-mar. 1996.
7 Exemplos de normas constitucionais veiculadoras do instituto da correção monetária: inciso X
do art. 37; §§ 8º e 17 do art. 40; inciso III do § 4º do art. 182; caput do art. 184; §§ 3º e 4º do art. 201;
arts. 33, 46 e 78 do ADCT.

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com a correção monetária, a Constituição manda que as coisas mudem..., para


que nada mude; quero dizer: o objetivo constitucional é mudar o valor nominal
de uma dada obrigação de pagamento em dinheiro, para que essa mesma obri‑
gação de pagamento em dinheiro não mude quanto ao seu valor real. É ainda
inferir: a correção monetária é instrumento de preservação do valor real de um
determinado bem, constitucionalmente protegido e redutível a pecúnia. Valor real
a preservar que é sinônimo de poder de compra ou “poder aquisitivo”, tal como
se vê na redação do inciso IV do art. 7º da CF, atinente ao instituto do salário
mínimo.8 E, se se coloca assim na aplainada tela da Constituição a imagem de um
poder aquisitivo a resguardar, é porque a expressão financeira do bem juridica‑
mente protegido passa a experimentar, com o tempo, uma deterioração ou perda
de substância, por efeito, obviamente, do fato econômico genérico a que se dá o
nome de “inflação”. Daí porque deixar de assegurar a continuidade desse valor
real é, no fim das contas, desequilibrar a equação econômico-financeira entre
devedor e credor de uma dada obrigação de pagamento, em desfavor do último.
18. Com efeito, neste ponto de intelecção das coisas, nota-se que a correção
monetária se caracteriza, operacionalmente, pela citada aptidão para manter
um equilíbrio econômico-financeiro entre sujeitos jurídicos. E falar de equilíbrio
econômico-financeiro entre partes jurídicas é, simplesmente, manter as respec‑
tivas pretensões ou os respectivos interesses no estado em que primitivamente
se encontravam. Pois não se trata de favorecer ou beneficiar ninguém. O de que
se cuida é impedir que a perda do poder aquisitivo da moeda redunde no empo‑
brecimento do credor e no correlato enriquecimento do devedor de uma dada
obrigação de pagamento em dinheiro. Pelo que já se pode compreender melhor
que a agravação no quantum devido pelo sujeito passivo da relação jurídica não
é propriamente qualitativa, mas tão somente quantitativa. A finalidade da cor‑
reção monetária, enquanto instituto de direito constitucional, não é deixar mais
rico o beneficiário, nem mais pobre o sujeito passivo de uma dada obrigação de
pagamento. É deixá-los tal como qualitativamente se encontravam, no momento
em que se formou a relação obrigacional. Daí me parecer correto ajuizar que
a correção monetária constitui verdadeiro direito subjetivo do credor, seja ele

8 “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria
de sua condição social:
(...)
IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas neces-
sidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer,
vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem
o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.”

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público, ou, então, privado. Não, porém, uma nova categoria de direito subjetivo,
superposta àquele de receber uma prestação obrigacional em dinheiro. O direito
mesmo à percepção da originária paga é que só existe em plenitude, se mone-
tariamente corrigido. Donde a correção monetária constituir-se em elemento do
direito subjetivo à percepção de uma determinada paga (integral) em dinheiro.
Não há dois direitos, portanto, mas um único direito de receber, corrigidamente,
um valor em dinheiro. Pois que, sem a correção, o titular do direito só o recebe
mutilada ou parcialmente. Enquanto o sujeito passivo da obrigação, correlata‑
mente, dessa obrigação apenas se desincumbe de modo reduzido.
19. Convém insistir no raciocínio. Se há um direito subjetivo à correção mone‑
tária de determinado crédito, direito que, como visto, não difere do crédito ori‑
ginário, fica evidente que o reajuste há de corresponder ao preciso índice de
desvalorização da moeda, ao cabo de um certo período; quer dizer, conhecido
que seja o índice de depreciação do valor real da moeda – a cada período
legalmente estabelecido para a respectiva medição –, é ele que por inteiro
vai recair sobre a expressão financeira do instituto jurídico protegido com a
cláusula de permanente atualização monetária. É o mesmo que dizer: medido
que seja o tamanho da inflação num dado período, tem-se, naturalmente, o per‑
centual de defasagem ou de efetiva perda de poder aquisitivo da moeda que vai
servir de critério matemático para a necessária preservação do valor real do bem
ou direito constitucionalmente protegido.
20. O que determinou, no entanto, a EC 62/2009? Que a atualização monetária
dos valores inscritos em precatório, após sua expedição e até o efetivo pagamento,
se dará pelo “índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança”.
Índice que, segundo já assentou este Supremo Tribunal Federal na ADI 493, não
reflete a perda de poder aquisitivo da moeda.9 Cito passagem do minucioso
voto do ministro Moreira Alves:
Como se vê, a TR é a taxa que resulta, com a utilização das complexas e suces‑
sivas fórmulas contidas na Resolução 1.085 do Conselho Monetário Nacional, do

9 A Segunda Turma deste Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 175.678, de relatoria do minis-
tro Carlos Velloso, assentou a não exclusão da TR do universo jurídico; vale dizer, não houve
proibição de sua utilização como índice de indexação. Acertado tal entendimento, mas que
em nada se aplica ao caso sob análise. Naquela oportunidade, esta nossa Corte julgava recurso
extraordinário em embargos à execução. Embargos que se manejavam contra a utilização da
TR para atualizar monetariamente um crédito trabalhista. Sucede que o recorrente, no caso,
“em momento algum apontou ou sugeriu índice que, a seu ver, melhor refletisse a inflação do
período, pretendendo, tão somente, a não aplicação de qualquer índice, o que importaria na
liquidação da dívida sem correção, com total injustiça para o credor”.

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ADI 4.425

cálculo da taxa média ponderada da remuneração dos CDB/RDB das vinte ins‑
tituições selecionadas, expurgada esta de 2% que representam genericamente
o valor da tributação e da “taxa real histórica de juros da economia” embutidos
nessa remuneração.
Seria a TR índice de correção monetária, e, portanto, índice de desvalorização
da moeda, se inequivocamente essa taxa média ponderada da remuneração dos
CDB/RDB com o expurgo de 2% fosse constituída apenas do valor correspondente à
desvalorização esperada da moeda em virtude da inflação. Em se tratando, porém,
de taxa de remuneração de títulos para efeito de captação de recursos por parte de
entidades financeiras, isso não ocorre por causa dos diversos fatores que influem
na fixação do custo do dinheiro a ser captado.
(...)
A variação dos valores das taxas desse custo prefixados por essas entidades decorre
de fatores econômicos vários, inclusive peculiares a cada uma delas (assim, suas
necessidades de liquidez) ou comuns a todas (como, por exemplo, a concorrência com
outras fontes de captação de dinheiro, a política de juros adotada pelo Banco Central,
a maior ou menor oferta de moeda), e fatores esses que nada têm que ver com o valor
de troca da moeda, mas, sim – o que é diverso –, com o custo da captação desta.

21. O que se conclui, portanto, é que o § 12 do art. 100 da Constituição acabou


por artificializar o conceito de atualização monetária. Conceito que está onto‑
logicamente associado à manutenção do valor real da moeda. Valor real que só
se mantém pela aplicação de índice que reflita a desvalorização dessa moeda
em determinado período. Ora, se a correção monetária dos valores inscritos
em precatório deixa de corresponder à perda do poder aquisitivo da moeda, o
direito reconhecido por sentença judicial transitada em julgado será satisfeito de
forma excessiva ou, de revés, deficitária. Em ambas as hipóteses, com enrique-
cimento ilícito de uma das partes da relação jurídica. E não é difícil constatar
que a parte prejudicada, no caso, será, quase que invariavelmente, o credor da
Fazenda Pública. Basta ver que, nos últimos quinze anos (1996 a 2010), enquanto
a TR (taxa de remuneração da poupança) foi de 55,77%, a inflação foi de 97,85%,
de acordo com o IPCA.
22. Não há como, portanto, deixar de reconhecer a inconstitucionalidade da
norma atacada, na medida em que a fixação da remuneração básica da cader‑
neta de poupança como índice de correção monetária dos valores inscritos em
precatório implica indevida e intolerável constrição à eficácia da atividade juris‑
dicional. Uma afronta à garantia da coisa julgada e, por reverberação, ao proto‑
princípio da Separação dos Poderes.
23. Certo que, bem pontuou o advogado-geral da União, o § 12 do art. 100
da Constituição Federal não se reporta à correção monetária já aplicada pelo

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juízo competente.10 Trata, isto sim, de atualização dos valores constantes de


ofícios requisitórios, após sua expedição e até a data do efetivo pagamento.
Também correta a assertiva de que pode a lei, a fim de evitar “dissensos juris-
prudenciais e morosos debates acerca do índice a ser aplicado”, fixar, desde
logo, um índice oficial. Mas nem por isso deixa de haver violação à coisa jul-
gada e à Separação dos Poderes. Primeiro, porque de nada adianta o direito
reconhecido pelo Judiciário ser corretamente atualizado até a data de expe-
dição do precatório11, se, entre a expedição do requisitório e seu efetivo paga-
mento, pode ele (o direito) sofrer depreciação de 10, 20, 40%. Qualquer ideia de
incidência mutilada da correção monetária, isto é, qualquer tentativa de aplicá‑
-la a partir de um percentualizado redutor, caracteriza fraude à Constituição.
Segundo, o que jaz à disponibilidade do legislador (inclusive o de reforma da
Constituição) não é o percentual da inflação. Esse percentual, seja qual for, já
estará constitucionalmente recepcionado como o próprio reajuste nominal
da moeda. O que fica à mercê do poder normativo do Estado é a indicação
de providências viabilizadoras de uma isenta aferição do crescimento infla-
cionário, tais como: a) o lapso temporal em que se fará a medida da inflação,
compreendendo a data-base e a periodicidade; b) as mercadorias ou os bens de
consumo que servirão de objeto de pesquisa para o fim daquela aferição, com
o que se terá um índice geral, ou, então, um índice setorial de preços; c) o órgão
ou entidade encarregada da pesquisa de mercado. Daí que um dado índice ofi‑
cial de correção monetária de precatórios possa constar de lei, desde que tal
índice traduza o grau de desvalorização da moeda. Principalmente se se levar
em conta que o art. 97 do ADCT (acrescentado pela EC 62/2009) instituiu nova
moratória de quinze anos para pagamento de precatórios por Estados, Distrito
Federal e Municípios. Do que resulta o óbvio: se a “preservação do valor real” do
patrimônio particular é constitucionalmente assegurada, mesmo nos casos de
descumprimento da função social da propriedade (inciso III do § 4º do art. 182 e
caput do art. 184, ambos da CF12), como justificar o sacrifício ao crédito daquele
que tem a seu favor uma sentença judicial transitada em julgado?

10 Atualização esta que hoje se encontra inconstitucionalmente regida pelo art. 1º-F da Lei
9.494/1997, com a redação dada pela Lei 11.960/2009.
11 Correta atualização que, como visto na nota de rodapé anterior, também se encontra obstada
pela atual redação do art. 1º-F da Lei 9.494/1997.
12 “Art. 182. (...)
(...)
§ 4º É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área incluída no
plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado,

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ADI 4.425

24. Com esses fundamentos, tenho por inconstitucional a expressão “índice


oficial de remuneração básica da caderneta de poupança”, constante do § 12 do
art. 100 da Constituição Federal, do inciso II do § 1º e do § 16, ambos do art. 97
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.13
25. Já no tocante à “compensação da mora”, estabeleceu o novo § 12 do art. 100
da Constituição Federal que “incidirão juros simples no mesmo percentual de
juros incidentes sobre a caderneta de poupança”. Incidência que se dará sobre os
valores dos ofícios requisitórios, após sua expedição e até o efetivo pagamento,
“independentemente de sua natureza”. Pelo que a autora argui violação ao princí‑
pio da isonomia, devido a que foi adotado critério de discriminação, sem motivo
razoável, entre a aplicação de juros aos débitos do Estado e aos do contribuinte.
26. Muito bem. Este Supremo Tribunal Federal já se debruçou sobre o tema no
RE 453.740. Naquela oportunidade, o Plenário desta nossa Corte julgou constitu‑
cional o art. 1º-F da Lei 9.494/1997, em sua redação originária, que dispunha não
poderem ultrapassar o percentual de 6% ao ano os juros de mora, “nas condena‑
ções impostas à Fazenda Pública para pagamento de verbas remuneratórias

subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, suces-
sivamente, de:
(...)
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previa-
mente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais,
iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.”
“Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o
imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização
em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de
até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.”
13 “Art. 97. (...)
§ 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios sujeitos ao regime especial de que trata
este artigo optarão, por meio de ato do Poder Executivo:
(...)
II – pela adoção do regime especial pelo prazo de até 15 (quinze) anos, caso em que o per-
centual a ser depositado na conta especial a que se refere o § 2º deste artigo corresponderá,
anualmente, ao saldo total dos precatórios devidos, acrescido do índice oficial de remuneração
básica da caderneta de poupança e de juros simples no mesmo percentual de juros incidentes
sobre a caderneta de poupança para fins de compensação da mora, excluída a incidência de
juros compensatórios, diminuído das amortizações e dividido pelo número de anos restantes
no regime especial de pagamento.
(...)
§ 16. A partir da promulgação desta Emenda Constitucional, a atualização de valores de
requisitórios, até o efetivo pagamento, independentemente de sua natureza, será feita pelo
índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança, e, para fins de compensação da
mora, incidirão juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de
poupança, ficando excluída a incidência de juros compensatórios.”

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devidas a servidores e empregados públicos”. Lembro que fiquei vencido, na


honrosa companhia da ministra Cármen Lúcia e dos ministros Marco Aurélio e
Sepúlveda Pertence, por entender preterido o princípio da isonomia, pela discri‑
minação que se abria entre a parte processual privada credora e a parte estatal
eventualmente credora, também em juízo, sabido que, pelo § 1º do art. 161 do
Código Tributário Nacional, os juros de mora são calculados à taxa de 1% ao mês
em favor do Estado, salvo expressa determinação legal em contrário.
27. Ora, no caso dos autos, as mesmas razões me parecem socorrer a requerente.
Há, porém, uma outra: no julgamento do RE 453.740, esta nossa Corte julgou cons‑
titucional o art. 1º-F da Lei 9.494, em sua redação originária, porque o dispositivo
legal se referia à específica condenação do Estado ao pagamento de verbas remu‑
neratórias devidas a servidores e empregados públicos. Aduziu o eminente relator,
ministro Gilmar Mendes, no que foi acompanhado pela maioria deste Supremo
Tribunal, que a situação não era comparável aos juros incidentes sobre o crédito
tributário. Isso porque “o indébito tributário é resolvido por meio de compensação
ou restituição, nos termos do § 4º do art. 39 da Lei 9.250, de 1995, que nos remete à
taxa Selic”. “Remunera-se do mesmo modo como se exige o pagamento”, asseverou
Sua Excelência. Sucede que o § 12 do art. 100 da Constituição da República, com a
redação dada pela EC 62/2009, ordenou que se aplicassem os juros de mora inci-
dentes sobre a caderneta de poupança aos valores constantes de ofícios requisi-
tórios, “independentemente de sua natureza”. Logo, até mesmo aos precatórios
concernentes a restituições tributárias. Daí por que tenho por inconstitucional, se
não todo o § 12 do art. 100 da Constituição, pelo menos o fraseado “independente‑
mente de sua natureza”, para que aos precatórios de natureza tributária se apliquem
os mesmos juros de mora incidentes sobre todo e qualquer crédito tributário.14 e 15
28. Chego, finalmente, ao ponto que avalio como central nesta ação direta de
inconstitucionalidade. Refiro-me ao § 15 do art. 100 da Constituição da República
e ao art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ambos incluídos
pela EC 62/2009 e assim redigidos, respectivamente:

14 Parece-me oportuno ajuizar, até porque o Conselho Federal da OAB pugnou pela declaração
de inconstitucionalidade por arrastamento, que o art. 1º-F da Lei 9.494/1997, com a redação
dada pela Lei 11.960/2009, sofre dos mesmos vícios de inconstitucionalidade do § 12 do art. 100
da Constituição Federal. Tanto no que diz respeito à correção monetária, em descompasso
com a perda do valor real da moeda, quanto à aplicação dos juros de mora nas condenações
impostas à Fazenda Pública, “independentemente de sua natureza”.
15 Se se entender que a expressão “independentemente de sua natureza” tanto se refere aos
créditos de natureza alimentícia quanto aos de outra natureza, sem qualquer remissão aos
precatórios representativos de indébito tributário, basta que, em vez da declaração de incons-
titucionalidade com redução de texto, proceda-se à interpretação conforme à Constituição.

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ADI 4.425

§ 15. Sem prejuízo do disposto neste artigo, lei complementar a esta Constituição
Federal poderá estabelecer regime especial para pagamento de crédito de preca‑
tórios de Estados, Distrito Federal e Municípios, dispondo sobre vinculações à
receita corrente líquida e forma e prazo de liquidação.

Art. 97. Até que seja editada a lei complementar de que trata o § 15 do art. 100 da
Constituição Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que, na data
de publicação desta Emenda Constitucional, estejam em mora na quitação de
precatórios vencidos, relativos às suas administrações direta e indireta, inclusive
os emitidos durante o período de vigência do regime especial instituído por este
artigo, farão esses pagamentos de acordo com as normas a seguir estabelecidas,
sendo inaplicável o disposto no art. 100 desta Constituição Federal, exceto em seus
§§ 2º, 3º, 9º, 10, 11, 12, 13 e 14, e sem prejuízo dos acordos de juízos conciliatórios já
formalizados na data de promulgação desta Emenda Constitucional.

29. Como se vê, a Constituição Federal possibilitou à lei complementar estabe‑


lecer um “regime especial” para pagamento de precatórios pelos Estados, Distrito
Federal e Municípios, “dispondo sobre vinculações à receita corrente líquida e
forma e prazo de liquidação”. Regime especial que, na falta da lei complementar,
foi, desde logo, instituído pelo art. 97 do ADCT. Em que termos? Vejamos:
I – ao Poder Executivo dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios foi
aberta a opção entre dois “modelos” de regime especial de pagamento de pre‑
catórios (§ 1º);
II – o primeiro dos “modelos” (inciso I do § 1º) opera da seguinte forma: os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios, “para saldar os precatórios, vencidos
e a vencer”, “depositarão mensalmente, em conta especial criada para tal fim, 1/12
(um doze avos) do valor calculado percentualmente sobre as respectivas receitas
correntes líquidas” (§ 2º). Percentuais que variam de 1 a 2 conforme a região em
que localizadas as unidades da Federação e o estoque de precatórios em atraso
(incisos I e II do § 2º). Este modelo de regime especial “vigorará enquanto o valor
dos precatórios devidos for superior ao valor dos recursos vinculados”, deposi‑
tados na conta especial (§ 14);
III – o segundo “modelo” funciona assim: Estados, Distrito Federal e Municí‑
pios dispõem do prazo de quinze anos para pagamento dos precatórios. O valor
a ser anualmente depositado na conta especial corresponde “ao saldo total dos
precatórios devidos”, “dividido pelo número de anos restantes no regime especial
de pagamento”. Modelo de regime especial que findará, portanto, no “prazo fixo
de até 15 (quinze) anos” (parte final do § 14);
IV – os “modelos” de regime especial de pagamento de precatórios, como visto,
diferem quanto ao prazo de duração e quanto ao montante depositado na conta

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ADI 4.425

especial. Igualam-se, porém, na forma de liberação dos recursos depositados aos


credores. Em primeiro lugar, “as contas especiais de que tratam os §§ 1º e 2º serão
administradas pelo Tribunal de Justiça local, para pagamento de precatórios
expedidos pelos tribunais” (§ 4º). Pelo menos 50% dos recursos depositados na
conta “serão utilizados para pagamento de precatórios em ordem cronológica de
apresentação” (§ 6º). A aplicação da outra metade “dependerá de [nova] opção a
ser exercida por Estados, Distrito Federal e Municípios devedores, por ato do Poder
Executivo” (§ 8º). As alternativas, a serem aplicadas isolada ou simultaneamente,
são as seguintes: a) leilão (inciso I do § 8º), realizado “na modalidade deságio,
associado ao maior volume ofertado cumulado ou não com o maior percentual
de deságio, pelo maior percentual de deságio, podendo ser fixado valor máximo
por credor, ou por outro critério a ser definido em edital” (inciso VII do § 9º); b)
pagamento à vista, “em ordem única e crescente de valor por precatório” (inciso II
do § 8º); c) “pagamento por acordo direto com os credores, na forma estabelecida
por lei própria da entidade devedora, que poderá prever criação e forma de fun‑
cionamento de câmara de conciliação” (inciso III do § 8º);
V – por fim, é de se frisar que, “enquanto Estados, Distrito Federal e Municípios
devedores estiverem realizando pagamentos de precatórios pelo regime espe‑
cial, não poderão sofrer sequestro de valores, exceto no caso de não liberação
tempestiva dos recursos de que tratam o inciso II do § 1º e o § 2º deste artigo”
(§ 13). Caso em que, além do sequestro, incidirão as consequências previstas no
§ 10 do art. 97 do ADCT.
30. Pois bem, argui a autora que a possibilidade de o poder público estender por
quinze anos a completa execução das sentenças judiciais transitadas em julgado
significaria desrespeito às garantias do livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário
(inciso XXXV do art. 5º da CF); do devido processo legal (inciso LIV do art. 5º da
CF); e da razoável duração do processo (inciso LXXVIII do art. 5º do CF), além
de afrontar a autoridade das decisões judiciais. Mais ainda, a “Emenda [ feriu]
a própria divisão dos Poderes, posto que partir em até 15 anos a indenização
significa, antes de tudo, fracionar o pagamento das execuções contra o Estado,
tornando a Administração (função executiva) praticamente imune aos comandos
do Poder Judiciário, além de transformar o adimplemento de precatórios em mera
escolha política dos governantes”. Na mesma violação (ao princípio da Separação
dos Poderes) incorreria a EC 62/2009 ao limitar os valores orçamentários para
pagamento de precatórios (§ 2º do art. 97 do ADCT), “haja vista que o contingen‑
ciamento de recursos tem por escopo o descumprimento das decisões judiciais”.
31. Outra vez penso assistir razão à requerente. Tenho que ambos os “mode‑
los” de regime especial de pagamento de precatórios, instituídos pelo art. 97 do

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ADI 4.425

ADCT, foram concebidos com menosprezo à própria ideia central do Estado


Democrático de Direito como um regime que faz residir numa vontade norma‑
tiva superior à do Estado o fundamento da submissão dele, Estado, a deveres
e finalidades. E essa vontade normativa superior é a Constituição originária,
consagradora, dentre outras cláusulas pétreas, do direito subjetivo de acesso
a uma jurisdição eficaz (inciso XXXV do art. 5º). É o que sinonimiza “Estado
Democrático de Direito” e “Estado Constitucional”, porque, antes desse Estado
Constitucional, o fundamento da submissão do Estado a deveres era a própria
vontade normativa dele, Estado. O que significava um precário estado de segu‑
rança jurídica para os atores sociais privados e a coletividade como um todo,
pois aquele que se autolimita discricionariamente também discricionariamente
se autodeslimita a qualquer momento.
32. Ora bem, essa altissonante regra de que “a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” é o que se tem apropriadamente
chamado de livre e eficaz acesso às instâncias judiciárias, a se interpretar con‑
juntamente com a norma da intangibilidade da decisão que resultar, com defi‑
nitividade, de tais instâncias. Decisões que, assim carimbadas com o selo da
irreformabilidade, se tornam imperativas para os sujeitos a quem desaproveitam,
neles incluído o Estado. É a conhecida fórmula de que “a lei não prejudicará
o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (inciso XXXVI do
art. 5º), dando-se que o substantivo “lei” é de ser lido como “direito-lei”, porque
nesse direito-lei se compreende a própria emenda à Constituição, cláusula pétrea
que é (§ 4º do art. 60 da CF).
33. Com efeito, sem que se garanta ao particular um meio eficaz de repara‑
ção às lesões de seus direitos, notadamente àquelas perpetradas pelo Estado,
o princípio em tela não passa de letra morta. E também é óbvio que por meio
eficaz há de se entender a prolação e execução de sentença judicial, mediante
um devido e célere processo legal.
34. Daqui se desata a ilação de que o art. 97 do ADCT, incluído pela EC 62/2009,
acabou por subverter esses valores (Estado de Direito, devido processo legal, livre
e eficaz acesso ao Poder Judiciário, razoável duração do processo). Primeiro, por
esticar por mais quinze anos o cumprimento de sentenças judiciais com trânsito
em julgado e em desfavor do poder público. Cumprimento – acresça-se – que já
havia sido prorrogado por um decênio pela EC 30, de 13 de setembro de 2000.16

16 Emenda constitucional que é objeto das ADI 2.356 e 2.362, em trâmite neste Supremo Tribunal
Federal. Ações diretas em que foram recentemente deferidas medidas cautelares para suspen-
der a eficácia do art. 78 do ADCT.

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ADI 4.425

Depois disso, pelo sabidamente demorado processo judicial em que o particular


vê reconhecido seu direito, a parte vencida simplesmente dispõe de mais quinze
anos para cumprir a decisão. E não se diga que esse novo alongamento temporal
do perfil da dívida estatal em nada atingiria a efetividade da jurisdição, por ser o
precatório um mecanismo de feição administrativa. E assim não se diga porque
a execução da sentença judicial e a consequente entrega, a quem de direito,
do bem jurídico objeto da demanda (ou seu correspondente em pecúnia) inte-
gra o próprio núcleo da garantia do livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário.
Doutro modo, a função jurisdicional seria mera atividade lúdica. Não por outro
motivo é que a Corte Europeia de Direitos Humanos, já em 19-3-1997, ao julgar
o caso Hornsby × Grécia, assentou que “a execução de uma sentença, qualquer
que seja o órgão jurisdicional, deve ser considerada como parte integrante do
processo”.17 Pelo que, “se a Administração se recusa ou se omite a executar [a
sentença], ou ainda se demora a fazê-lo, as garantias do art. 6º [da Convenção
Europeia de Direitos Humanos],18 das quais se beneficia o demandante durante
a fase judicial do processo, perderiam qualquer razão de ser” (tradução livre).19
35. De se ver que o mesmo debate vem sendo encetado nesta nossa Corte
de Justiça, no âmbito das ADI 2.356 e 2.362, cujo objeto é a EC 30/2000. Com a
circunstância agravante de que, no caso dos autos: o primeiro dos “modelos”
de regime especial de pagamento de precatórios, a que se refere o inciso I
do § 1º do art. 97 do ADCT, não tem prazo para acabar. E não tem prazo para
acabar porque “vigorará enquanto o valor dos precatórios devidos for supe‑
rior ao valor dos recursos vinculados”, depositados na conta especial (§ 14 do
art. 97). Como o montante de recursos a ser depositado na referida conta está
limitado a um pequeno percentual da receita corrente líquida da entidade
pública devedora, é de se imaginar que a fila de precatórios só aumentará,
principalmente porque a dívida acumulada em todos esses anos de ostensivo
descaso por parte de algumas unidades da Federação ingressará no regime

17 “L’exécution d’un jugement ou arrêêt, de quelque juridiction que ce soit doit donc eê tre considérée
comme faisant intégrate du ‘procès’. ”
18 Art. 6º da Convenção Europeia de Direitos Humanos: “Qualquer pessoa tem direito a que a
sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal
independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação
dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação
em matéria penal dirigida contra ela. (...)”
19 “Si l’administration refuse ou omet de s’exécuter, ou encore tarde à le faire, les garanties de l’article
6 (art. 6) dont a bénéficié le justiciable pendant la phase judiciaire de la procédure perdraient toute
raison d’eêtre.”

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ADI 4.425

especial, conforme o § 15 do art. 97 do ADCT.20 e 21 Nesse cenário de caricato


surrealismo jurídico, o Estado se coloca muito acima da lei e da Constituição.
36. Com a devida vênia daqueles que entendem diversamente, penso adequada
a referência à EC 62/2009 como a “emenda do calote”. Calote que termina por ferir
o princípio da moralidade administrativa, que se lê no caput do art. 37 da Constitui‑
ção Federal, na medida em que se reconheça – como pessoalmente reconheço – o
adimplemento das próprias dívidas como um dos necessários conteúdos do prin‑
cípio da moralidade administrativa. Noutros termos, o Estado reconhece que não
cumpriu, durante anos, as ordens judiciais de pagamento em desfavor do erário;
propõe-se a adimpli-las, mas limitado o valor a um pequeno percentual de sua
receita. Com o que efetivamente força os titulares de créditos assim inscritos a
levá-los a leilão. Certame em que o objeto a ser “arrematado” é o direito à execução
de sentença judicial transitada em julgado! E que tem por “moeda”, exatamente,
o perdão de parte desse direito! Pelo que se verifica, de pronto, a inconstituciona‑
lidade do inciso I do § 8º e de todo o § 9º, ambos do art. 97 do ADCT.
37. Melhor sorte não socorre os incisos II e III do § 8º do art. 97 do ADCT.
É que, nas palavras do ministro Celso de Mello, “o regime constitucional de exe‑
cução por quantia certa contra o poder público – qualquer que seja a natureza
do crédito exequendo (RTJ 150/337) – impõe a necessária extração de precatório,
cujo pagamento deve observar, em obséquio aos princípios ético-jurídicos
da moralidade, da impessoalidade e da igualdade, a regra fundamental que
outorga preferência apenas a quem dispuser de precedência cronológica (prior
in tempore, potior in jure).” Ainda segundo Sua Excelência, “a exigência consti‑
tucional pertinente à expedição de precatório – com a consequente obrigação
imposta ao Estado de estrita observância da ordem cronológica de apresen-
tação desse instrumento de requisição judicial de pagamento – tem por fina‑
lidade (a) assegurar a igualdade entre os credores e proclamar a inafastabilidade
do dever estatal de solver os débitos judicialmente reconhecidos (RTJ 108/463),

20 “§ 15. Os precatórios parcelados na forma do art. 33 ou do art. 78 deste Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias e ainda pendentes de pagamento ingressarão no regime especial
com o valor atualizado das parcelas não pagas relativas a cada precatório, bem como o saldo
dos acordos judiciais e extrajudiciais.”
21 Os requerentes impugnam o art. 6º da EC 62/2009, sob a alegação de que o poder liberatório
do pagamento de tributos da entidade devedora, a que se refere o § 2º do art. 78 do ADCT,
teria sido cassado. Na verdade, o que fez o art. 6º da referida emenda constitucional foi apenas
convalidar as compensações de precatórios com tributos, realizadas antes da promulgação
dela própria. O dispositivo que cassou o poder liberatório previsto no § 2º do art. 78 do ADCT
foi o § 15 do art. 97 do ADCT, ao incluir no novo regime especial os precatórios parcelados na
forma do art. 78 do ADCT, mas ainda pendentes de pagamento.

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ADI 4.425

(b) impedir favorecimentos pessoais indevidos e (c) frustrar tratamentos dis-


criminatórios, evitando injustas perseguições ditadas por razões de caráter
político-administrativo” (RE 132.031, julgado em 15-9-1995; Rcl 2.143 AgR, julgada
em 12-3-2003). Se é assim, o que se vê dos dispositivos impugnados? A violação
àqueles princípios ético-jurídicos da moralidade, da impessoalidade e da igual‑
dade. Isso porque o pagamento de precatórios “em ordem única e crescente de
valor” acaba por favorecer, de forma desarrazoada, credores mais recentes, em
detrimento de quem já espera há mais tempo pela satisfação de seu crédito.22 E
o que dizer do “acordo direto” constante do inciso III do § 8º do art. 97 do ADCT?
Certamente não rima com os princípios da impessoalidade e da moralidade, por
tornar fortemente subjetivo o critério de escolha para pagamento de precatórios.
38. Acresça-se a todos esses vícios de inconstitucionalidade o apontado pela
Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) na
ADI 4.400: o § 4º do art. 97 do ADCT concede somente aos tribunais de justiça
locais a administração da conta especial de depósito dos valores para pagamento
dos precatórios. Pelo que resulta prejudicada a autonomia dos tribunais do Tra‑
balho, pois esse ramo especializado da Justiça Federal decairá do poder de, na
vigência do regime especial de pagamento de precatórios, ordenar o cumpri‑
mento integral de suas decisões condenatórias da Fazenda Pública.
39. Em síntese, neste ponto, o que se tem é dolorosamente isso: todo o regime
especial veiculado pelo art. 97 do ADCT é reverente à lógica hedonista de que as
dívidas do Estado em face de terceiros hão de ser pagas, em acentuada medida,
quando e se o poder público desejar. É um segundo passo da caminhada que se
iniciou com a EC 30/2000 e que não terá fim enquanto este Supremo Tribunal
Federal sucumbir às tão antigas quanto deletérias “razões de Estado”. Razões
artificializadas ou indisfarçavelmente falsas, como passo a demonstrar.
40. Nos termos do § 1º do art. 9º da Lei 9.868/1999, solicitei informações adi‑
cionais aos tribunais de justiça dos Estados e ao do Distrito Federal e Territórios,
aos tribunais regionais do Trabalho, às secretarias de Fazenda dos Estados e
do Distrito Federal e às secretarias municipais de Fazenda das capitais. Minha
intenção era conhecer mais a fundo o alegado caos nas contas públicas que,
supostamente, impede os governantes de honrar as dívidas públicas para com

22 O menor valor do precatório também é previsto como critério de precedência no § 7º do art. 97
do ADCT. Aqui, no entanto, não há violação ao princípio da igualdade. É que o critério se aplica
apenas quando “não se possa estabelecer a precedência cronológica entre 2 (dois) precatórios”.
Noutro dizer: havendo os pagamentos sido requisitados na mesma data, e sendo da mesma
natureza, atende-se primeiro àquele de menor valor.

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ADI 4.425

os particulares. E, de posse de alguns dados dos últimos dez anos (receitas cor‑
rentes líquidas, pagamento anual de precatórios e estoque da dívida vencida e
vincenda), minha conclusão foi a de que, o mais das vezes, não falta dinheiro para
o pagamento de precatórios. Em alguns casos, fica até evidente que o montante
atual da dívida é resultado da falta de compromisso dos governantes quanto
ao cumprimento das decisões judiciais.23 Ainda que apenas por amostragem,
tendo em vista a incompletude de algumas informações e a carência de outras,
foi-me possível constatar que:
I – em 2007, o Distrito Federal despendeu R$ 1,7 milhão em precatórios e R$ 103,8
milhões em publicidade e propaganda (os dados sobre publicidade e propaganda
foram obtidos nos pareceres prévios sobre as contas do governo, disponíveis na
página eletrônica oficial do Tribunal de Contas do Distrito Federal, na rede mun‑
dial de computadores). Já em 2008, essas despesas foram de R$ 6,57 milhões em
precatórios e de R$ 152,8 milhões em publicidade e propaganda. A despesa com
publicidade e propaganda registrou um aumento de 47,6% entre 2007 e 2008, já
considerada a variação média pelo IPCA. Flagrante desproporção que fica ainda
mais patente diante de uma dívida total de mais de R$ 2,4 bilhões, apurada em 2009;
II – o Estado do Espírito Santo responde por uma dívida judicial de R$ 9,54
bilhões, aproximadamente. No entanto, nada pagou em precatórios nos últimos
dez anos, à exceção de uma liquidação de R$ 2,5 milhões em 2004, mesmo assim
mediante acordo levado a efeito por iniciativa judicial. Esse valor corresponde a
ínfimos 0,033% da receita corrente líquida do Estado no exercício 2009. Receita
corrente líquida que alcançou a cifra de R$ 7,5 bilhões. Ajunto: mesmo que se
adote a sistemática de reserva de 1,5% da RCL, prevista na emenda constitucional
objeto desta ação direta, o Espírito Santo levará 85 anos para quitar seus preca‑
tórios, desconsideradas as novas obrigações que surgirem por força de sentença
judicial. Situação vexatória para a qual certamente não contribuíram os credores;
III – a dívida do Rio Grande do Sul é de R$ 1,6 bilhão, em valores aproximados.
Contudo, seus gastos com precatórios em 2009 foram de R$ 38,6 milhões, embora
suas despesas com publicidade e propaganda hajam alcançado montante supe‑
rior a R$ 55 milhões (os dados de publicidade e propaganda foram extraídos do
parecer prévio das contas do governo gaúcho, na página oficial do tribunal de
contas daquele Estado, na rede mundial de computadores). Tudo num contexto
de absoluta inversão de prioridades, na medida em que o Município de Porto

23 Descaso para o qual – é necessário que se faça o mea culpa – este Supremo Tribunal Federal
contribuiu, ao não deferir pedidos de intervenção federal, sob a alegação de que os Estados
se encontravam sob dificuldades financeiras.

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ADI 4.425

Alegre quitou precatórios, em 2008, no valor de R$ 10,4 milhões, quase o dobro


do que pagou o Estado gaúcho no mesmo exercício: R$ 5,4 milhões;
IV – o Município de João Pessoa nada pagou em precatórios vinculados ao
Tribunal de Justiça da Paraíba nos últimos dez anos, apesar de sua dívida judicial
ultrapassar R$ 24 milhões;
V – o Estado de Pernambuco nada pagou, em 2008 e 2009, de seus débitos
judiciais, que já superam a casa dos R$ 136 milhões. Grande parte da dívida se
originou nesse período.
41. Como se vê, e já me encaminhando para o final deste voto, o cenário de
colapso financeiro do Estado não parece verdadeiro, ao menos na extensão em
que se alardeia. O pagamento de precatórios não se contrapõe, de forma inconci‑
liável, à prestação de serviços públicos. E mesmo que fosse real o propalado caos
financeiro-administrativo nos Estados e Municípios brasileiros, poder-se-iam
adotar outras medidas menos prejudiciais ao direito fundamental dos credores.
Uma delas, inclusive, está no novo § 16 do art. 100 da Constituição Federal, segundo
o qual, “a seu critério exclusivo e na forma da lei, a União poderá assumir débitos
oriundos de precatórios, de Estados, Distrito Federal e Municípios, refinanciando‑
-os diretamente”. Donde nos ser autorizado concluir que impor aos credores
a sobrecarga do novo alongamento temporal do perfil das dívidas estatais em
causa, inclusive mediante leilões, deságios e outros embaraços para os credores,
configura atentado à lógica elementar da razoabilidade e da proporcionalidade.
42. Por todo o exposto, julgo parcialmente procedente a ação para o fim de: a)
declarar inconstitucionais os §§ 9º e 10 do art. 100 da Constituição da República;
b) assentar a inconstitucionalidade da expressão “índice oficial de remuneração
básica da caderneta de poupança”, constante do § 12 do art. 100 da Constituição
Federal, do inciso II do § 1º e do § 16, ambos do art. 97 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias; c) declarar inconstitucional o fraseado “indepen‑
dentemente de sua natureza”, contido no § 12 do art. 100 da Constituição, para
que aos precatórios de natureza tributária se apliquem os mesmos juros de mora
incidentes sobre o crédito tributário; d) declarar a inconstitucionalidade, por
arrastamento (itens b e c acima), do art. 5º da Lei 11.960/2009 e dos arts. 3º, 4º
e 6º da EC 62/2009; e) assentar a inconstitucionalidade do § 15 do art. 100 da
Constituição Federal e de todo o art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (especificamente o caput e os §§ 1º, 2º, 4º, 6º, 8º, 9º, 14 e 15, sendo os
demais por arrastamento ou reverberação normativa).
43. É como voto.

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ADI 4.425

EXTRATO DA ATA
ADI 4.425/DF — Relator: Ministro Ayres Britto. Requerente: Confederação Nacio‑
nal da Indústria – CNI (Advogados: Cassio Augusto Muniz Borges e outros).
Interessado: Congresso Nacional. Amicus curiae: Estado do Pará (Procurador:
Procurador-geral do Estado do Pará).
Decisão: Após o voto do ministro Ayres Britto (relator), que julgava parcial‑
mente procedente a ação direta, pediu vista dos autos o ministro Luiz Fux. Ausen‑
tes, justificadamente, os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. Presidên‑
cia do ministro Cezar Peluso.
Presidência do ministro Cezar Peluso. Presentes à sessão os ministros Celso
de Mello, Marco Aurélio, Ayres Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia,
Dias Toffoli e Luiz Fux. Procurador-geral da República, doutor Roberto Monteiro
Gurgel Santos.
Brasília, 6 de outubro de 2011 — Luiz Tomimatsu, secretário.

ESCLARECIMENTO
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, egrégio Plenário, ilustre Represen‑
tante do Ministério Público, Senhores Advogados aqui presentes, Procuradores.
Senhor Presidente, gostaria de fazer apenas duas observações: nessas ações
diretas de inconstitucionalidade, há uma preliminar de natureza formal, que é
uma preliminar extensível a todas as demandas, que é uma preliminar de legiti-
matio ad causam. E, além disso, há uma questão prévia de mérito, porque o mérito
aqui é a inconstitucionalidade. Então, são apontadas inconstitucionalidades:
uma, de natureza formal; e a outra, de natureza material. E essa de natureza
material tem várias causas petendi; a de natureza formal é apenas uma razão
do pedido. E, no meu modo de ver, ela é uma questão prévia que precisa ser
enfrentada antes, porque ela é, por si só, suficiente para inibir eventualmente a
apreciação das demais matérias.
Muito embora eu tenha voto integral, sugiro, em primeiro lugar, a aprecia‑
ção da legitimatio ad causam de uma das entidades que promoveu essa ação
direta de inconstitucionalidade, e depois, então, debateremos a questão prévia
da inconstitucionalidade formal, porque isso evidentemente prejudica a análise
da inconstitucionalidade material.

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ADI 4.425

VOTO-VISTA
O sr. ministro Luiz Fux: Cuida-se de quatro ações diretas de inconstitucionalidade,
autuadas sob os números 4.357, 4.372, 4.400 e 4.425, ajuizadas, respectivamente pelo
Conselho Federal da OAB (e outros), pela Associação dos Magistrados Estaduais
(ANAMAGES), pela Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMA‑
TRA) e pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), todas em face da Emenda
Constitucional 62, de 9 de dezembro de 2009, que modificou o regime jurídico dos
precatórios devidos pela Fazenda Pública, alterando o art. 100 da Constituição e
inserindo o art. 97 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
Na assentada de 16 de junho de 2011, o ministro relator trouxe o feito a julga‑
mento e votou pela procedência do pedido de declaração de inconstituciona‑
lidade da aludida emenda por vício formal durante sua tramitação pelas casas
legislativas e, caso vencido neste ponto, pela procedência parcial da demanda
com base em diferentes fundamentos de índole material.
Pedi vista dos autos para aprofundar minhas reflexões sobre a matéria. Ama‑
durecidas minhas considerações, submeto-as à apreciação do Plenário.

I. Preliminarmente
I.1 Legitimidade
O voto do eminente relator, em preliminar, conheceu apenas em parte da
ADI 4.372/DF, reputando inexistente a necessária fundamentação da inicial
quanto ao pedido de declaração de inconstitucionalidade do art. 100, § 2º, da
Constituição.
Entendo, no entanto, que a referida ADI 4.372/DF não deve ser conhecida in
totum, porquanto carece a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANA‑
MAGES) de legitimidade ad causam para provocar a fiscalização abstrata de consti‑
tucionalidade. É que a referida entidade expressa uma representação apenas parcial
da categoria dos magistrados, conforme já decidido por esta Corte (ADI 3.843, rel.
min. Cezar Peluso; ADI 3.617, rel. min. Cezar Peluso; e ADI 4.600, rel. min. Luiz Fux).
E tal constatação se torna ainda mais evidente, in casu, pelo fato de a Associação
dos Magistrados Brasileiro (AMB) ter igualmente ajuizado uma ação direta de
inconstitucionalidade contra a Emenda Constitucional 62/2009 (ADI 4.357, em
julgamento também nesta oportunidade), assim já manifestando a insurgência de
toda a categoria quanto à reforma da sistemática constitucional dos precatórios.
A mesma ordem de razões, em tese, conduziria ao reconhecimento da ilegiti‑
midade também da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho
(ANAMATRA), autora da ADI 4.400. Ocorre, entretanto, que a referida autora

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  157


ADI 4.425

suscita, entre outros pontos, questão afeta estrita e especificamente à esfera de


interesses de seus associados, e isso com possível choque diante das atribuições
dos demais membros da AMB. Sustenta a autora, com efeito, que o art. 97, § 4º,
do ADCT, ao instituir a alegada centralização nos tribunais de justiça estaduais
da gestão das contas do regime especial, assim afastando a atribuição da Jus‑
tiça do Trabalho para os precatórios decorrentes de decisões por ela proferidas,
ofenderia a autonomia e o autogoverno dos tribunais, o devido processo legal
e o pacto federativo. Neste cenário, impedir o acesso da Anamatra ao controle
concentrado redundaria no silenciamento dessa relevante controvérsia, não
retratada na ADI 4.357, presume-se, por conta da colisão com o interesse majo‑
ritário da categoria mais abrangente.
Acolho, portanto, a preliminar de ilegitimidade ativa ad causam da Anamages,
e por isso voto pela extinção sem exame de mérito da ADI 4.372/DF.

II. Mérito
Passo, então, ao exame de mérito das alegações, que se desdobram em argu‑
mentos de inconstitucionalidade formal e material.

II.1 Inconstitucionalidade formal


Sustenta-se, de início, que a Emenda Constitucional 62/2009 padeceria de
inconstitucionalidade formal, de vez que votada e aprovada, no Senado Federal,
em duas sessões realizadas no mesmo dia 2 de dezembro de 2009, com menos de
uma hora de intervalo entre ambas. Assim, configurar-se-ia ofensa à teleologia do
art. 60, § 2º, da Constituição, segundo o qual a proposta de emenda à Constitui‑
ção deve ser “discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois
turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos
dos respectivos membros”, reclamando um debate suficientemente refletido
para a alteração do texto constitucional, em absoluta incompatibilidade com a
realização dos dois turnos na mesma data, ofensa essa evidenciada ainda pelo
fato de não ter havido, in casu, o interstício mínimo de cinco dias úteis exigido
pelo art. 362 do Regimento Interno do próprio Senado Federal.
A despeito dos substanciosos fundamentos do voto do eminente ministro rela‑
tor, entendo, com a devida vênia, que a tese não merece acolhida. Não se ignora,
por certo, que cabe à Corte Constitucional o dever de assegurar as regras do jogo
democrático, no que têm destaque as formas que presidem o processo legislativo,
conceituado, na clássica lição do professor José Afonso da Silva, como o “complexo
de atos necessários à concretização da função legislativa do Estado” (Processo
constitucional de formação das leis. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 41). Tutela-se

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assim, em última análise, a própria legitimidade das manifestações das casas do


Congresso Nacional, que, em uma sociedade pluralista marcada pelo dissenso,
deve assegurar a justiça do resultado ao menos pela justiça do procedimento,
preservando a voz e a representatividade das minorias no cenário político.
A interferência judicial no que se pode denominar de âmago do processo
político, verdadeiro locus da atuação típica dos agentes do Poder Legislativo,
no entanto, para justificar-se, tem de gozar de lastro forte e categórico no que
prevê o texto das normas da Constituição Federal. Corre-se o grave risco, do
contrário, de sufocar e de engessar a dinâmica própria aos agentes políticos
eleitos, aprisionando-a por força externa em fórmulas rígidas que não se ajustam
bem à cambiante necessidade de acomodar uma ampla gama de anseios sociais
divergentes no Parlamento. Sendo a Constituição um documento que se situa
na fronteira entre a política e o Direito, e que corporifica a difícil pretensão de
conter e racionalizar o fenômeno político, é preciso ter presente a eterna adver‑
tência de que “We must never forget that it is a constitution we are expounding”,
nas palavras do chief justice Marshall, da Suprema Corte norte-americana, no
julgamento do caso McCulloch v. Maryland (1819), em alusão clara aos fatores
subjacentes à ordem constitucional que muitas vezes não podem ser reduzidos
aos mesmos conceitos lógicos ou teleológicos que perpassam as técnicas tradi‑
cionais de exegese da legislação ordinária.
Sob esse pano de fundo, cabe indagar qual o amparo normativo em que se
funda o argumento de vício formal da Emenda Constitucional 62/2009, para que
assim se examine se ele é fruto, verdadeiramente, de um cotejo claro e inequívoco
entre a forma exigida pela Constituição e aquilo que levado a cabo pelo Congresso
Nacional, ou se, ao contrário, decorre ele de uma construção um tanto quanto
arrojada das regras constitucionais, mesmo quando seu texto indica o contrário.
Pois bem. A redação do art. 60, § 2º, da Constituição, como visto acima, men‑
ciona apenas a exigência de que a proposta de emenda à Constituição seja dis‑
cutida e votada em cada casa do Congresso Nacional em dois turnos, conside‑
rando-se aprovada se obtiver, em ambos, 3/5 dos votos dos respectivos membros.
Cada turno, como assenta a doutrina constitucional, é constituído das etapas
de discussão e votação (SILVA, José Afonso. Processo constitucional de formação
das leis. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 283), compondo a denominada fase de
discussão em Plenário da elaboração legislativa. É mais do que claro, por certo,
que a intenção do constituinte ao impor a duplicidade de momentos para o
debate e votação de emendas foi a de assegurar a reflexão profunda e a matu‑
ração das ideias antes da modificação de um documento jurídico com vocação
de perenidade como é a Constituição (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito

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constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo


modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 140 et seq.). Mas a partir dessa finalidade
abstrata, no entanto, e com a devida vênia, não me parece possível extrair-se a
imprescindibilidade de um interstício mínimo entre os dois referidos turnos.
Com efeito, não cuidou o constituinte de desde logo aludir a um interstício, de
modo a explicitar um espaço de tempo que servisse de parâmetro objetivo para o
exame do grau de solidez da vontade política de reformar a Constituição. Poderia
tê-lo feito, evidentemente, mas não o fez. Mais do que isso: não só poderia fazê‑
-lo como de fato o fez de modo expresso, categórico e inequívoco com relação a
duas outras hipóteses de processos legislativos especiais, e que guardam estrita
sintonia com a hipótese agora examinada. É que, em primeiro lugar, o art. 29,
caput, da Constituição Federal, após assentar que “O Município reger-se-á por lei
orgânica”, prevê que tal lei deverá ser “votada em dois turnos, com o interstício
mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Munici‑
pal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição,
na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: (...)”. E a mesma
lógica presidiu a redação do art. 32, caput, da Constituição Federal, que, ao tratar
da Lei Orgânica do Distrito Federal, também impôs que tal espécie normativa
fosse “votada em dois turnos com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por
dois terços da Câmara Legislativa, que a promulgará, atendidos os princípios
estabelecidos nesta Constituição”. Como se vê, quando a intenção se fez presente,
não se furtou o constituinte de impor o interstício mínimo de modo expresso, exi‑
gindo o espaço de dez dias entre a realização dos dois turnos de debate e votação.
Esse cotejo entre as normas da própria Constituição de 1988 revela dois aspec‑
tos de inegável repercussão para a solução do presente caso. Em primeiro lugar,
percebe-se que o constituinte atribuiu sentidos diversos às expressões “dois turnos”
e “interstício mínimo”, afastando uma possível relação de continência necessária
entre aquela e esta. Em outras palavras, não é possível que se interprete a expres‑
são “dois turnos”, mesmo sob o ângulo lógico ou teleológico, de modo a conter
também implicitamente a referência a um interregno temporal mínimo entre as
duas deliberações, pois ambas as expressões foram previstas de forma expressa
quando pretendeu o constituinte originário a conjugação dos dois institutos no
processo legislativo. Tanto assim que as duas figuras nem sempre andaram juntas
no histórico constitucional brasileiro, a exemplo do que ocorreu sob a vigência das
Constituições de 1967 e 1969 (VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva
de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo:
Malheiros, 1999. p. 124-5), como ainda se verá a seguir no presente voto. Entender
de modo contrário conduziria a dois pecados hermenêuticos, extravasando-se os

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limites do texto do art. 60, § 2º, da Constituição e, simultaneamente, nulificando‑


-se as palavras contidas nos arts. 29 e 32 do mesmo texto constitucional, já que
relegadas à inutilidade naquilo que excede a expressão “dez dias”.
Por essa razão é que, com a devida vênia do voto do eminente ministro relator,
não se mostra possível, a meu sentir, o recurso às técnicas de interpretação de
conceitos jurídicos indeterminados para a exegese da expressão “dois turnos”.
Ora, simplesmente não há qualquer indeterminação na definição do sentido e
do alcance de tal cláusula, que somente exige a realização de duas etapas de
discussão e de votação de proposta de emenda à Constituição. E, do ponto de
vista objetivo, tal exigência foi de fato satisfeita na aprovação da EC 62/2009
no Senado Federal, ainda que realizados os dois turnos de modo sucessivo no
mesmo dia, porquanto, a rigor, o único controle que se faria possível de ser rea‑
lizado judicialmente diz respeito à hipótese de proclamarem-se duas supostas
votações e debates realizados em um mesmo e único momento incindível no
tempo, quando então, por absoluta impossibilidade prática, os dois turnos exi‑
gidos constitucionalmente se transmudariam em um único turno – inválido e
inconstitucional, reconheça-se. Mas não é disso que se trata, como visto. E o
digo porque a conclusão ora defendida seria substancialmente diferente caso a
redação do art. 60, § 2º, da Constituição fosse vazada, por hipótese, no sentido
de exigir “dois turnos, com interstício mínimo razoável” ou somente “dois turnos,
com interstício mínimo”, pois aí caberia a esta Corte a definição do que sentido
da cláusula aberta do “interstício mínimo razoável” ou do “interstício mínimo”,
sobretudo à luz da teleologia que inspira tal exigência e dos conceitos teóricos
de zona de certeza positiva e negativa, defendidos, no Brasil, pelo professor Celso
Antônio Bandeira de Mello, conforme ressaltado pelo ministro relator. Para o bem
ou para o mal, contudo, não foi essa a opção do constituinte de 1988 ao redigir
o § 2º do art. 60 do texto constitucional.
Em segundo lugar, o cotejo entre as normas da Constituição de 1988 tornam
claro que o silêncio do texto constitucional, no que concerne ao art. 60, § 2º, é um
silêncio verdadeiramente eloquente, que não permite a aproximação, ainda que
parcial, com o regime de interstício instituído em local diverso pelo mesmo cons‑
tituinte. Como assinala a doutrina de Paulo Gustavo Gonet Branco, o silêncio elo‑
quente se caracteriza quando a “hipótese concreta examinada pelo aplicador não
foi inserida pelo constituinte no âmbito de certa regulação, porque o constituinte
não quis atribuir ao caso a mesma consequência que ligou às hipóteses similares
que tratou explicitamente”, de modo que “a omissão da regulação, nesse âmbito,
terá sido o resultado do objetivo consciente de excluir o tema da disciplina esta‑
tuída”. Diferencia-se a figura, portanto, da mera “lacuna de formulação”, fruto de

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“apenas um lapso do constituinte, que não pretendera excluir a categoria de fatos


em apreciação da incidência da norma” (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo
Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 100-1).
Ora, se o constituinte previu não somente em uma, mas em duas regras consti‑
tucionais de processo legislativo o interstício mínimo, seria equivocado, concessa
venia, reputar que esse mesmo constituinte, por mero lapso, teria simplesmente
se esquecido de imprimir, apesar de querê-lo, disciplina similar justamente ao
processo de reforma da Constituição Federal, muito mais impactante e relevante
sob o ângulo jurídico-político para o Estado brasileiro como um todo do que os
casos previstos nos arts. 29 e 32 do texto constitucional.
Essa conclusão é reforçada também pela trajetória histórica do constitucio‑
nalismo brasileiro. Previu a Constituição de 1824, em seus arts. 174, 175, 176 e 177,
uma sistemática em que, embora não fosse exigido quórum especial, fazia-se
necessária a aprovação de emenda constitucional por duas legislaturas conse‑
cutivas, sendo que a legislatura posterior deveria receber autorização explícita
do eleitorado para tanto, através de mandato ou procuração especial para a
reforma. A Constituição de 1891, por sua vez, em seu art. 90, instituiu também
mecanismo similar, impondo, além do quórum de 2/3 e o número de três dis‑
cussões antes de cada votação, que a proposta de emenda fosse considerada
aprovada apenas no ano seguinte ao que votada de início, quando então nova
deliberação parlamentar deveria ser conduzida. A Carta de 1934, muito embora
tenha distinguido, conforme a matéria, entre os procedimentos de emenda e de
revisão, aplicou às duas hipóteses, de regra, requisitos temporais de igual ordem:
a emenda, aprovada de regra por maioria absoluta, teria que ser aprovada em
dois anos consecutivos, salvo quando obtivesse 2/3 de aprovação; a revisão, após
aprovada em deliberação inicial por maioria das casas do Congresso Nacional,
deveria ser convertida em anteprojeto, para que então ocorresse nova apreciação,
na legislatura seguinte, pelo Parlamento (CF/1934, art. 178, §§ 1º e 2º).
Passado o período de vigência da Constituição de 1937, que não instituiu qual‑
quer forma de intervalo temporal entre as deliberações, a Carta de 1946 retomou
a sistemática adotada na Constituição de 1934, com o adendo de ter unificado o
procedimento de reforma com a supressão da dualidade entre emenda e revisão,
mantendo-se, para ambos os casos, a regra de que a aprovação por maioria abso‑
luta dependeria de apreciação “em duas sessões legislativas ordinárias consecuti‑
vas”, apenas afastada diante da obtenção do quórum de 2/3 na aprovação (art. 217,
§§ 2º e 3º). As Constituições de 1967 e de 1969 também não adotaram qualquer
forma de interregno entre as deliberações parlamentares, limitando-se a exigir
os dois turnos em cada casa para aprovação (CF/1967, art. 51, e CF/1969, art. 48).

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Diante de um histórico desse viés, a evidenciar que a figura do interstício


jamais poderia ser reputada como desconhecida pelo constituinte brasileiro,
parece não haver dúvida de que a opção da Assembleia Constituinte de 1987-88
de afastá-lo da redação literal do art. 60, § 2º, assim se distanciando da linha per‑
filhada pelas Cartas democráticas anteriores, foi realizada de forma consciente,
sobretudo pelo confronto, repita-se, com a redação que este mesmo constituinte
atribuiu aos arts. 29 e 32 da Constituição de 1988.
E, veja-se bem, não é outro o entendimento que se extrai da doutrina cons‑
titucional que se debruçou sobre o tema à luz da atual Constituição Federal.
Ao analisar os limites formais para a edição, sob a vigência da Carta de 1988, de
emendas constitucionais no Brasil, Wellington Márcio Kublisckas assevera que,
no que concerne aos dois turnos, “não foi estabelecido qualquer lapso temporal
entre ambas as votações”, para logo a seguir propugnar, em tom crítico, que “a
Constituição Federal de 1988 deveria ter fixado um período mínimo entre as vota‑
ções realizadas em primeiro e segundo turno” (KUBLISCKAS, Wellington Márcio.
Emendas e mutações constitucionais: análise dos mecanismos de alteração formal e
informal da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Atlas, 2009. p. 185-6). O ponto
é abordado de igual forma por Gustavo Just da Costa e Silva, para quem, no sis‑
tema constitucional de 1988, “a exigência de dois turnos – ausente por exemplo na
Constituição alemã, que todavia exige quórum mais difícil de ser obtido (2/3) – não
chega a expressar um agravamento significativo na medida em que a Constituição
não estipulou um intervalo mínimo entre os turnos de votação; é esse intervalo
que justifica, nas Constituições que o adotam, a exigência de dupla votação como
um meio de expressar um consenso mais consolidado sobre a proposta” (SILVA,
Gustavo Just Costa e. Os limites da reforma constitucional. Rio de Janeiro: Reno‑
var, 2000. p. 65-66). As proposições de lege ferenda, como se vê, evidenciam que
a mesma conclusão não pode ser alcançada, pela via interpretativa, de lege lata.
Em suma, parece-me que esta Suprema Corte não pode se arvorar à condição
de juiz da robustez do debate parlamentar para além das formas expressamente
exigidas pela Constituição Federal. No que excede os limites constitucionais,
há que se reconhecer uma espécie de deferência à atuação do Poder Legislativo
no campo dos atos formais que se inserem no processo político, dotadas de um
valor intrínseco pelo batismo democrático também no que concerne à interpre‑
tação da Constituição. É tênue, com efeito, o limite entre a defesa judicial dos
valores da Constituição, missão irrenunciável deste Supremo Tribunal Federal
por força da própria Carta de 1988 (CF, art. 102, caput), e uma espécie perigosa
de supremacia judicial, através da qual esta Corte acabe por negar qualquer
voz aos demais poderes políticos na construção do sentido e do alcance das

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normas constitucionais. Como aponta a moderna doutrina, “é fundamental para


a realização dos pressupostos do Estado Democrático de Direito um desenho
institucional em que o sentido futuro da Constituição se dê através de um diá‑
logo aberto entre as instituições políticas e a sociedade civil, em que nenhum
deles seja ‘supremo’, mas antes, que cada um dos ‘poderes’ contribua com a sua
específica capacidade institucional” (BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial
versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da
Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 287).
No entanto, mesmo que assumida como verdadeira a premissa oposta, é
importante ressaltar que ainda assim, sob o ângulo material, a argumentação dos
autores não prosperaria. É que não se revela verdadeira a tese de que a reforma da
sistemática constitucional dos precatórios foi levada a cabo, no Senado Federal,
sem o devido debate democrático.
Conforme relatado nas informações prestadas pela Presidência do Senado
Federal (fls. 2245 e seguintes), a EC 62/2009 teve origem nas PEC 12 e 12-A, ambas
de 2006. A proposta original refletiu com grande fidelidade a minuta de PEC
encaminhada pelo então presidente desta Suprema Corte, ministro Nelson Jobim,
ao Senado Federal pelo Ofício/GP 26/2006, de 15 de fevereiro de 2006, que, por
sua vez, já continha parcela substancial dos aspectos polêmicos incorporados
à EC 62/2009, como “a compensação obrigatória dos créditos com débitos do
credor para com a Fazenda Pública; vinculação mínima de despesas primárias
líquidas e previsão de regime especial de pagamentos mediante leilão” (fl. 2246).
Após requerimento do senador César Borges à Comissão de Constituição e Jus‑
tiça, foi realizada audiência pública em 13 de dezembro de 2006, com participa‑
ção do ministro Gilmar Mendes – na qualidade de representante do STF –, da
Ordem dos Advogados do Brasil, do Conselho Nacional da Política Fazendária,
da Associação dos Magistrados Brasileiros, da Frente Nacional dos Prefeitos e
da União Nacional de Credores de Precatórios.
Posteriormente, três novas audiências públicas foram realizadas no Senado
Federal, após requerimento apresentado pelo senador Valdir Raupp, relator na
CCJ, com a intenção de incrementar o número de participantes da sociedade civil
no processo legislativo. Na audiência de 16 de outubro de 2007, foram ouvidos
o Conselho Federal da OAB, a Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo, a
Secretaria do Tesouro Nacional e a Comissão de Precatórios da OAB/MG. Na data
de 14 de novembro de 2007, participaram da audiência “representantes da Con‑
federação Nacional dos Municípios, do Poder Judiciário, da Comissão de Preca‑
tórios dos Municípios e do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de
Ensino Superior (ANDES)” (fl. 2249). A quarta audiência pública, por sua vez,

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realizada em 3 de junho de 2008, teve participação novamente de representan‑


tes do Conselho Federal da OAB, da Secretaria de Fazenda de Minas Gerais, da
Confederação Nacional dos Municípios e da Frente Nacional de Prefeitos.
Terminadas as audiências públicas, a PEC foi aprovada na Comissão de Cons‑
tituição e Justiça do Senado em 18 de junho de 2008, com base no texto de substi‑
tutivo apresentado pelo relator, posteriormente também aprovada no Plenário da
Casa Legislativa. Encaminhada a proposta à Câmara dos Deputados, “foi aprovada
naquela Casa um substitutivo novamente submetido ao Senado Federal. O substitu‑
tivo foi considerado como nova proposta no Senado, conforme expressa dicção do
art. 367 do Regimento Interno, e autuado como PEC 12-A. Em parecer na Comissão
de Constituição e Justiça (fls. 82/94 – PEC 12-A), após relatar as alterações sofridas
no âmbito da Câmara dos Deputados, a Senadora Kátia Abreu manifestou-se favo‑
ravelmente à aprovação do projeto, asseverando: ‘As alterações perpetradas pela
Câmara dos Deputados representam uma evolução no modelo desenhado por esta
Casa, mesmo considerando a sua profundidade e extensão. Parece a esta relatoria
que o Congresso Nacional está oferecendo a solução possível ao grave problema
dos estoques de precatórios pendentes de pagamento, equalizando, na medida do
possível, os interesses das Fazendas devedoras – as quais estão sujeitas também a
outros encargos, igualmente importantes, como os ligados à saúde e à educação –
e dos credores, que estão obtendo instrumentos de recuperação de seus créditos
judicialmente assentados, contra o Poder Público’. A proposta foi finalmente apro‑
vada pelo Senado após votação em dois turnos, contando no primeiro turno com
56 (cinquenta e seis) votos favoráveis e 1 (um) contrário, e no segundo turno com
54 (cinquenta e quatro) votos favoráveis e 2 (dois) contrários” (fls. 2250-1).
Ora, em um processo legislativo longo e aberto como este, iniciado em 2006
e findo em 2009, pautado não por uma, mas por quatro audiências públicas
realizadas com a participação da sociedade civil, parece não haver espaço, sob
o ângulo material, para a tese de inocorrência de debate parlamentar suficien‑
temente refletido para a aprovação da EC 62/2009, de modo que não cabe falar
em vício formal nem mesmo sob a suposta vertente teleológica de interpretação
do art. 60, § 2º, da Constituição.
Rejeito, por todas essas razões, o alegado vício de forma da Emenda Consti‑
tucional 62/2009.

II.2 Inconstitucionalidades materiais


Passo, então, ao exame das numerosas alegações de inconstitucionalidade mate‑
rial da Emenda Constitucional 62/2009. De modo a racionalizar o enfrentamento
dos diversos argumentos brandidos pelos autores, mister que se avalie, em primeiro

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lugar, aqueles direcionados à nova disciplina contida no corpo permanente da


Constituição, em especial no seu art. 100. Em seguida serão analisadas as impugna‑
ções dirigidas ao regime especial para pagamento de crédito de precatório, consubs‑
tanciado no art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).

II.2.1 Superpreferência
Impugnam os autores, em primeiro lugar, o regime da assim chamada “super‑
preferência” instituída pelo § 2º do art. 100 da Constituição, segundo o qual “os
débitos de natureza alimentícia cujos titulares tenham 60 (sessenta) anos de idade
ou mais na data de expedição do precatório, ou sejam portadores de doença grave,
definidos na forma da lei, serão pagos com preferência sobre todos os demais
débitos, até o valor equivalente ao triplo do fixado em lei para os fins do disposto
no § 3º deste artigo, admitido o fracionamento para essa finalidade, sendo que o
restante será pago na ordem cronológica de apresentação do precatório”.
Ao assim dispor, o constituinte reformador teria infringido, segundo a inicial,
os princípios da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e da igualdade (CF,
art. 5º, caput), de vez que irrazoável a eleição da data da expedição do precatório
como critério para a aferição do direito à preferência, porquanto afastados do
benefício aqueles cujos precatórios já tenham sido expedidos antes da entrada
em vigor da emenda, ainda que com 60 anos, e, da mesma forma, por não pro‑
teger quem venha a completar 60 anos apenas após a expedição do precatório, a
despeito de revelar a mesma necessidade na satisfação do crédito. De outro lado,
a restrição da preferência em até três vezes o valor fixado em lei como limite para
a expedição de requisição de pequeno valor – quarenta salários mínimos para
Estados e trinta para Municípios, quando omissos na edição de leis próprias (CF,
100, §§ 3º e 4º, c/c art. 97, § 12, do ADCT), valendo para a União o limite de sessenta
salários mínimos (Lei 10.259/2001, art. 17, § 1º, c/c art. 3º, caput) – fragilizaria o
princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e afrontaria a razoabili‑
dade e a proporcionalidade, ao tolher a eficácia integral dos créditos titularizados
por pessoas em condições de fragilidade, sem justificativa suficiente para tanto.
O eminente ministro relator acolheu, em parte, as alegações dos requerentes,
apenas no que toca à inconstitucionalidade da expressão “na data de expedição
do precatório”, porquanto, segundo seu juízo, “a providência correta, à luz do prin‑
cípio isonômico, seria destinar a preferência a todos que (e à medida que) com‑
pletem 60 anos de idade na pendência de pagamento de precatório de natureza
alimentícia”. Quanto ao teto fixado pelo constituinte reformador, o ministro relator
rejeitou a arguição de inconstitucionalidade, forte no argumento de que o regime
de “superpreferência”, por ter sido originalmente criado pela própria EC 62/2009,

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não possuía contornos anteriores na Carta de 1988, de sorte que o legislador deti‑
nha liberdade para criá-lo limitadamente, isto é, dentro de balizas bem definidas.
Entendo inteiramente acertado o entendimento do eminente ministro relator,
de modo que o acompanho integralmente neste item.
Sabe-se que foi a redação original da Constituição Federal de 1988 que inovou,
no histórico constitucional brasileiro, ao estabelecer um regime diferenciado para
os créditos de natureza alimentar contra a Fazenda Pública no universo dos pre‑
catórios judiciais (CF/1988, art. 100, caput, primeira parte). Fundou-se tal regime
na consideração da premência a que se sujeitam os titulares de créditos alimen‑
tares não adimplidos, já que intimamente ligados a necessidades essenciais,
assim merecedores de um tratamento privilegiado em face dos demais débitos
judiciais da Fazenda. Discutiu-se muito, após a entrada em vigor da Carta, se
tal inovação teria o condão de simplesmente retirar os créditos alimentares do
sistema de precatórios, para que com isso fosse devido o pagamento imediato
pela Fazenda Pública, conforme narra Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva em
obra doutrinária (Execução contra a Fazenda Pública. São Paulo: Malheiros, 1999.
p. 127-30). Referida tese restou vencida nesta Suprema Corte a partir do julga‑
mento da ADI 47/SP, rel. min. Octavio Gallotti, assentando-se o entendimento de
que os créditos alimentares estão submetidos a uma ordem cronológica prefe‑
rencial para satisfação dos respectivos precatórios, em sequenciamento paralelo
à ordem cronológica dos demais credores da Fazenda, conforme hoje afirma a
Súmula 655 deste Tribunal (“A exceção prevista no art. 100, caput, da Constitui‑
ção, em favor dos créditos de natureza alimentícia, não dispensa a expedição de
precatório, limitando-se a isentá-los da observância da ordem cronológica dos
precatórios decorrentes de condenações de outra natureza”).
Sob esse pano de fundo, o que pretendeu a EC 62/2009 foi incrementar essa
diferenciação no regime de pagamentos, adicionando agora, ao referido critério
objetivo da natureza do crédito alimentar, alguns parâmetros subjetivos quanto
à pessoa do credor, cujo preenchimento alça o precatório de que é titular a uma
segunda e mais elevada ordem de precedência, acima dos precatórios alimenta‑
res ordinários e dos precatórios sem qualquer qualificativo. Daí a denominação
de “superpreferência” ao regime instituído pelo § 2º do art. 100 da Constituição,
que toca os créditos alimentícios cujos titulares (i) tenham 60 anos de idade
ou mais na data de expedição do precatório ou (ii) sejam portadores de doença
grave, definidos na forma da lei, limitada a preferência, em qualquer caso, “até o
valor equivalente ao triplo do fixado em lei para os fins do disposto no § 3º deste
artigo, admitido o fracionamento para essa finalidade, sendo que o restante será
pago na ordem cronológica de apresentação do precatório”.

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ADI 4.425

Ao assim proceder, na realidade a emenda ora em análise atendeu a um re­­


clamo social que já vinha encontrando eco no cenário jurídico, inclusive na juris‑
prudência deste Supremo Tribunal Federal, e que se baseava em um juízo sobre
os efeitos particularmente gravosos do tempo e da constância da inadimplência
sobre determinadas classes de credores, de expectativa de vida mais reduzida
quando comparada com os demais. No plano legislativo, essa finalidade de con‑
ferir tratamento mais benéfico aos idosos na execução contra a Fazenda Pública
guiou a elaboração das Propostas de Emenda à Constituição 1 de 2003, de autoria
do senador Maguito Vilela, 29 de 2005, de autoria do senador Sérgio Cabral, e 61
de 2005, de autoria do senador Paulo Paim, todas voltadas a dispensar tais cré‑
ditos do regime de precatórios, equiparando-os, assim, ao regime da requisição
de pequeno valor (apud CANTOARIO, Diego Martinez Fervenza. A execução por
quantia certa em face dos entes públicos: um estudo sob a perspectiva do direito
à execução das decisões judiciais. Dissertação (Mestrado em Direito Proces‑
sual) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2011. p. 161). Em paralelo, a doutrina processual já aventava a possibili‑
dade de se aplicar aos precatórios a regra do art. 1.211-A do CPC, que, na redação
da Lei 10.173/2001, conferia prioridade de tramitação aos feitos em que figurasse
como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a 65 anos –
posteriormente reduzida para 60 anos ou mais com a entrada em vigor da Lei
12.008/2009 –, ainda que com respeitáveis vozes apontando a impossibilidade
de extensão da regra diante da natureza administrativa do procedimento do
precatório (CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Os precatórios e a prioridade aos
processos de idosos. Repertório IOB de Jurisprudência, n. 14, Caderno 3, p. 280, jul.
2001). De forma similar, o voto do ministro Eros Grau na Rcl 3.034 AgR/PB, rel.
min. Sepúlveda Pertence, calcou-se explicitamente na circunstância de o credor
do precatório ser portador de doença grave e incurável para validar a ordem de
sequestro determinada pela decisão então reclamada, assim excepcionando a
jurisprudência tradicional desta Corte quanto às hipóteses restritivas de seques‑
tro previstas na Constituição.
Diante desse quadro, não prospera, em primeiro lugar, a tese de inconstitucio‑
nalidade na limitação objetiva da preferência em até o triplo do valor instituído
em lei para as requisições de pequeno valor, conforme dispõe a parte final do
art. 100, § 2º, da Constituição, que não fere o postulado da proporcionalidade ou
o princípio da dignidade da pessoa humana.
Com efeito, a lógica que perpassa a regra constitucional é clara: ao mesmo
tempo em que se defere às pessoas ali determinadas um tratamento mais bené‑
fico, favorecendo o pagamento célere, pretendeu o constituinte reformador

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ADI 4.425

permitir que o mais amplo leque de credores se beneficiasse de tal preferência,


restringindo o valor total que poderia ser pago a cada credor sob tal regime, de
modo que a destinação orçamentária será voltada, ainda que parcialmente, à
satisfação não de um único credor de elevadíssimo valor, mas de diversos bene‑
ficiários de quantias até o limite constitucional. Privilegiou-se, assim, a massa
de pequenos credores de valores razoáveis, ao invés de um único credor de valor
elevado. E se, por um lado, parece difícil de extrair do direito à dignidade a pers‑
pectiva de receber um valor estratosférico, é muito mais consentâneo com o
núcleo essencial de tal princípio que uma difusão de credores em condição de
fragilidade receba o quanto antes ao menos uma parcela reduzida, ainda que
não integral, para que assim possam usufruir ao menos minimamente de seus
respectivos créditos. Vale destacar que, na órbita federal, onde vigora o limite
de sessenta salários mínimos para requisições de pequeno valor, a restrição
objetiva da preferência alcançará o patamar de R$ 91.800,00, como ressalta a
Advocacia-Geral da União à fl. 2383, tendo por base, assim, um juízo razoável
sobre a finitude de recursos públicos, de modo a disseminar a preferência ao
maior número possível de credores.
Além disso, a limitação objetiva da superpreferência assegura que os titulares
de créditos meramente alimentares não tenham a efetividade da respectiva pre‑
ferência simplesmente frustrada, ou, ainda, que a posição jurídica dos credores
que não gozam de qualquer preferência não seja ignorada de modo absoluto em
um cenário de escassez das finanças públicas. Nesse sentido é que se manifestou
a Procuradoria-Geral da República (fl. 3154), ao assentar que, “num quadro de
escassez de recursos, é proporcional e razoável que, ao mesmo tempo em que se
assegura prioridade a tais pessoas, outras tantas, também credoras de prestações
de natureza alimentar, não fiquem ao desamparo. O limite, portanto, tem em
conta o postulado da sociedade fraterna, que é atenta à diferença, acolhedora
de seus idosos e doentes, mas consciente também de outras urgências, e que é
necessário equilibrar todas essas demandas”.
De qualquer modo, é importante frisar que, na hipótese de o valor do crédito
ser superior à limitação prevista no § 2º do art. 100, será lícito ao credor optar
pelo fracionamento referido na parte final do dispositivo, de modo que, após a
satisfação do quantum de acordo com a preferência, o que exceder o limite ali
estipulado remanescerá sob o regime da preferência do crédito alimentar (CF,
art. 100, § 1º), conforme bem destacado pelo voto do eminente ministro relator e
como hoje reconhece a doutrina (SCAFF, Fernando Facury. O uso de precatórios
para pagamento de tributos após a EC 62. Revista Dialética de Direito Tributá-
rio, n. 175, p. 91, abr. 2010), e que era a regra geral e única da preferência antes da

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ADI 4.425

EC 62/2009, de modo que é implausível, mesmo em uma interpretação evolutiva,


a arguição de violação à dignidade da pessoa humana. E, como afirmado ainda
pelo eminente relator, “o poder de reforma constitucional bem pode instituir um
benefício (preferência entre os débitos já favorecidos) mais amplo (o pagamento
integral, por exemplo)! Como também pode deixar de instituí-lo. E se assim é,
incontroverso que pode fazê-lo por modo limitado, segundo a parêmia do ‘quem
pode o mais pode menos’, aqui perfeitamente aplicável”.
Por outro lado, é evidente a inconstitucionalidade do novo § 2º do art. 100 da
Constituição quanto ao balizamento temporal fixado para a aplicação da prefe‑
rência no que concerne aos idosos. Consoante o texto introduzido pela Emenda
Constitucional 62/2009, a preferência a idosos com 60 anos ou mais de idade
será apurada “na data de expedição do precatório”. Ora, ao assim proceder, o
constituinte derivado incorreu em ultraje à isonomia entre os cidadãos credo‑
res da Fazenda Pública, na medida em que preteriu, sem qualquer fundamento,
aqueles que venham a alcançar a idade de 60 anos não no momento da expe‑
dição do precatório, mas sim posteriormente, enquanto pendente este e ainda
não ocorrido o pagamento.
O princípio constitucional da isonomia (CF, art. 5º, caput), núcleo elementar
do Estado Democrático de Direito em que se assenta a República Federativa do
Brasil (CF, art. 1º, caput), requer uma mesma e única maneira de tratar todos os
idosos titulares de créditos judiciais contra a Fazenda Pública. Isso decorre da
presença da mesma razão subjacente à preferência em ambos os casos, bem
enunciada pelo voto do ministro relator ao se referir à “necessidade do mais breve
recebimento dos seus créditos, porque a passagem do tempo lhes ameaça mais
fortemente de não poder sequer desfrutar dos seus direitos tardiamente concre‑
tizados”. Ao diferenciar a hipótese de incidência da nova preferência segundo a
data de expedição do precatório, a EC 62/2009 negou a dimensão mais rudimen‑
tar da igualdade, na sua acepção de isonomia perante a lei, caracterizando ver‑
dadeira discriminação arbitrária, na medida em que despida de razão suficiente
para diferenciar as hipóteses de idosos com 60 anos na data de expedição do
precatório e de idosos que venham a completar tal idade em momento posterior
à expedição, mas anterior ao pagamento.
Acolho, portanto, a inconstitucionalidade imputada ao art. 100, § 2º, da Cons‑
tituição Federal, quanto ao balizamento temporal fixado para a aplicação da
preferência no que concerne aos idosos, porquanto caracterizador de ofensa à
garantia fundamental da igualdade entre os cidadãos (CF, art. 5º, caput), tal como
precisamente apontado no voto do eminente ministro relator.

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ADI 4.425

II.2.2 Compensação
De outro lado, sustentam os autores a inconstitucionalidade do disposto nos
§§ 9º e 10 do art. 100 da Constituição, nos quais se lê, respectivamente, que, “no
momento da expedição dos precatórios, independentemente de regulamenta‑
ção, deles deverá ser abatido, a título de compensação, valor correspondente aos
débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra
o credor original pela Fazenda Pública devedora, incluídas parcelas vincendas
de parcelamentos, ressalvados aqueles cuja execução esteja suspensa em virtude
de contestação administrativa ou judicial”, e, sob o ângulo procedimental, que,
“antes da expedição dos precatórios, o Tribunal solicitará à Fazenda Pública
devedora, para resposta em até 30 (trinta) dias, sob pena de perda do direito
de abatimento, informação sobre os débitos que preencham as condições esta‑
belecidas no § 9º, para os fins nele previstos”. As alegações, nesse ponto, são
numerosas e podem ser assim sumariadas.
Em primeiro lugar, ao tornar obrigatória a compensação do crédito executado
com tributos, a EC 62/2009 teria violado o direito à liberdade do credor (CF,
art. 5º, caput), já que limitado o poder da vontade do indivíduo sobre a dispo‑
sição de seus bens, automaticamente destinados à compensação, em hipótese
coercitiva de cobrança de tributos, de modo que, segue o argumento, dever-se-ia
conferir interpretação conforme para condicionar a compensação à anuência
do credor privado. Aponta-se, ainda, suposta afronta à duração razoável do pro‑
cesso (CF, art. 5º, LXXVIII), pois o incidente de compensação gerará um novo foco
de litigiosidade no precatório judicial, de vez que os particulares apresentarão
impugnações à possibilidade de utilização do crédito da Fazenda para fins de
compensação, de que é exemplo o argumento de prescrição tributária, “o que só
procrastinará a expedição do precatório”.
Alega-se, além disso, que a compensação violaria o direito de propriedade
dos eventuais cessionários (CF, art. 5º, XXII), pois, caso haja cessão do precató‑
rio, a Fazenda poderá compensar o crédito do atual titular tão somente com os
débitos do credor originário, segundo dispõe textualmente a Constituição, o que
conduzirá a que, ao final, o titular último do crédito receba menos do que faz jus,
e isso em razão de débitos que não são seus, tornando assim inviabilizada, sob
o ângulo prático, a operação de cessão de precatórios. O regime também feriria
a segurança jurídica (CF, art. 5º, caput), pois o cessionário poderá ser surpreen‑
dido pela compensação operada com relação a débitos adquiridos pelo cedente
posteriormente à cessão, sem qualquer balizamento que garanta previsibilidade.
Haveria, ainda, violação à igualdade (CF, art. 5º, caput), de vez que o § 9º inclui
sob o âmbito da compensação as parcelas vincendas de parcelamento, mas

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ADI 4.425

exclui os débitos impugnados judicial e extrajudicialmente, sendo que as duas


hipóteses – de impugnação e de parcelamento –, de acordo com o CTN, devem
ensejar a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, de modo que não
haveria motivo para sujeitar à compensação o contribuinte que optou por pagar,
ainda que sob o parcelamento, e não fazê-lo com relação ao que tenha oferecido
impugnação, o que só estimula a litigiosidade.
Por fim, e ainda no que concerne à compensação, alegam os autores que o
art. 6º do corpo da emenda, ao prever que “ficam também convalidadas todas as
compensações de precatórios com tributos vencidos até 31 de outubro de 2009 da
entidade devedora, efetuadas na forma do disposto no § 2º do art. 78 do ADCT,
realizadas antes da promulgação desta Emenda Constitucional”, ofende o direito
adquirido (CF, art. 5º, XXXVI), pois não poderia ser impedida a compensação
futura de parcelas já vencidas de acordo com o parcelamento referido pelo art. 78,
§ 2º, do ADCT, razão pela qual se mostraria inválida a restrição da convalidação
tão somente no que toca aos tributos vencidos até a data de 31 de outubro de
2009 ou às compensações realizadas antes da promulgação da emenda.
O eminente ministro relator acolheu as impugnações para declarar a incons‑
titucionalidade dos §§ 9º e 10 do art. 100 da Constituição Federal, ao fundamento
de que a sistemática de compensação ali prevista implica violação à coisa julgada,
embaraço à efetividade da jurisdição, desrespeito ao contraditório e à ampla
defesa, além de ultraje à isonomia entre o Estado e o cidadão.
A complexidade do tema suscita algumas considerações preliminares.
Nos domínios do direito privado, o instituto jurídico da compensação é modo
de extinção das obrigações que tem lugar quando duas pessoas são, simultane‑
amente, credora e devedora uma da outra. Nas palavras de Pontes de Miranda,
“compensar é pesar dois créditos, um de A contra B e outro de B contra A, um
pelo outro (debiti et crediti inter se contributio, MODESTINO, L. 1, D., de compen-
sationibus, 16,2). Compensam-se crédito e dívida. Um vai a um prato; o outro,
ao outro prato da balança.” (Tratado de direito privado: parte especial. Rio de
Janeiro: Borsoi, 1959. t. XXIV. p. 305 – grifos no original). A compensação, por‑
tanto, extingue as obrigações recíprocas, que se consideram pagas, totalmente, se
forem iguais, ou até a concorrência da menor, se forem desiguais. É o que dispõe
o Código Civil brasileiro de 2002, em seu art. 368, verbis: “se duas pessoas forem
ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem‑
-se, até onde se compensarem”.
A racionalidade que inspira o instituto foi muito bem captada por Carvalho
Santos, ao pontuar o nítido propósito de equidade e de utilidade da compen‑
sação: “funda-se na equidade, sem dúvida, porquanto não seria justo que uma

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ADI 4.425

pessoa tivesse de pagar o seu débito a quem não lhe paga o seu crédito, de igual ou
superior importância. Dolo facit qui petit quod redditurus est, diziam os romanos.
Funda-se, igualmente, na utilidade, por isso que evita demandas sucessivas, despe‑
sas inúteis, retardamentos prejudiciais, facilitando, grandemente, os pagamentos”
(Código Civil brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958. p. 217).
A compensação, portanto, é não apenas medida de justiça, mas mecanismo de
justiça eficiente. É exatamente essa premissa que deve informar o enfrentamento
das presentes impugnações aos §§ 9º e 10 do art. 100 da Carta Magna.
Inicialmente, verifica-se que a compensação não viola a liberdade do credor,
na medida em que toda a compensação, no ordenamento jurídico nacional,
opera-se de pleno direito, sem que dependa da vontade dos credores recíprocos
(TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de.
Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro:
Renovar, 2007. p. 676). O suporte fático da compensação prescinde de anuência
ou acordo, perfazendo-se ex lege diante das seguintes circunstâncias objetivas:
(i) reciprocidade de dívidas, (ii) liquidez das prestações, (iii) exigibilidade dos
débitos e (iv) fungibilidade dos objetos. Reunidos tais elementos, não é cabível
exigir a anuência do credor privado para que ocorra a compensação, pois disso
resultaria, em última análise, um tratamento mais restritivo para a Fazenda do
que o que ocorre na compensação entre créditos privados em geral, que inde‑
pendem da concordância, operando ipso iure.
De igual modo, a compensação não viola o direito de propriedade do credor, na
medida em que, se terá seu crédito compensado, é porque também deve à Fazenda
prestação líquida, exigível e fungível, como estipula o Código Civil brasileiro. Nesse
cenário é justo e eficiente que se proceda à compensação. Em verdade, a compen‑
sação funciona como uma garantia da preservação da boa-fé na relação entre o
credor público e o credor privado, reciprocamente considerados, na vertente do
tu quoque, pois impede que o credor privado receba seu crédito sem pagar o que
deve ao credor público. Como afirmado pelo procurador-geral da República (fl.
3155), “a providência vem ao encontro da coletividade. Se os recursos são escassos,
como parece revelar o quadro histórico de inadimplência dos precatórios, nada
mais justo do que aqueles que têm a receber acertem seus débitos primeiramente
junto ao Estado. Materializa-se aqui o princípio da igualdade material”.
Ademais, a previsão de que a compensação ocorrerá em face dos débitos do
“credor originário” do precatório serve tão somente como garantia de eficácia
do dispositivo. Se bastasse a cessão para afastar a compensação, os propósitos
mais elevados de justiça e eficiência que inspiram o instituto estariam ameaça‑
dos. Nesse sentido, a doutrina entoa que “o objetivo da regra é evitar que a cessão

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  173


ADI 4.425

constitua uma burla à possibilidade de a Fazenda Pública realizar o abatimento, a


título de compensação, do precatório com débitos do credor originário” (CUNHA,
Leonardo José Carneiro da. Execução contra a Fazenda Pública e as alterações
impostas pela Emenda Constitucional 62/2009. Revista Dialética de Direito Pro-
cessual, São Paulo, Dialética, n. 85, p. 27, abr. 2010). Trata-se, portanto, de norma
preventiva de fraude à lei. De qualquer modo, é regra elementar da cessão privada
de crédito a possibilidade de que ao cessionário sejam opostas as exceções que o
devedor poderia opor ao cedente quando notificado da cessão (CC, art. 294: “O
devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como
as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o
cedente”). Não faria qualquer sentido aplicar regra distinta à Fazenda Pública.
Na realidade, é difícil até mesmo imaginar situação em que a cessão do pre‑
catório ocorra após a sua expedição e antes da compensação, a ponto de sur‑
preender o cessionário, como sugere a Ordem dos Advogados do Brasil. É que a
cessão do § 9º do art. 100 deve ocorrer, como prega a redação do dispositivo, “no
momento da expedição do precatório”, sob pena de caducidade. Dessa forma, se
a cessão ocorrer antes da expedição, já não será cessão do precatório, mas sim
sucessão na execução. Assim, não parece, à primeira vista, haver espaço para a
oposição da compensação após a prática de cessões do precatório, a menos que
se trate de precatórios cuja expedição tenha se dado antes da entrada em vigor da
EC 62/2009 – desde que assentada a premissa de que a compensação do art. 100,
§ 9º, da CF se aplica também a tais precatórios, o que, desde logo, já afasto, em
razão do princípio constitucional da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput).
Aponte-se, ainda, que o § 9º do art. 100 da CF foi cauteloso na delimitação
temporal quanto aos débitos do cedente que possam ser opostos pela Fazenda
devedora ao cessionário. Com efeito, para que este não fique sujeito à surpresa
e tenha sua esfera jurídica atingida apenas pelo que ele mesmo poderia ter afe‑
rido no momento em que adquiriu o crédito cedido, a Emenda Constitucional
62/2009 fixou como marco os débitos do particular (credor originário/cedente)
constituídos até a data da expedição do precatório. Assim, não tem cabimento
qualquer tentativa da Fazenda em compensar o que deve ao cessionário com
débitos do cedente constituídos após a expedição do precatório. Rejeito, portanto,
a alegação de violação à segurança jurídica.
Não vislumbro ainda violação ao contraditório ou à ampla defesa. Apesar
de não haver previsão expressa no art. 100 quanto à manifestação do credor, a
necessidade de sua intimação prévia à compensação é medida que se impõe
como corolário direto e imediato da garantia insculpida no art. 5º da Lei Maior.
A falta de previsão específica nos §§ 9º e 10 do art. 100 não autoriza a respectiva

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ADI 4.425

declaração de inconstitucionalidade, senão apenas, quando máximo, sua inter‑


pretação conforme para se afastar qualquer entendimento que importe no
menoscabo de tais garantias fundamentais. De qualquer sorte, deve-se notar
que a Resolução 115 de 2010, editada pelo Conselho Nacional de Justiça para
dispor sobre a gestão dos precatórios no âmbito do Poder Judiciário, já equa‑
cionou devidamente o tema. Em seu art. 9º, § 1º, previu que o juiz da execução
somente poderá decidir a respeito da compensação após manifestação da parte
contrária, que deverá ocorrer em dez dias (art. 9º, § 1º: “Havendo resposta de
pretensão de compensação pela entidade devedora, o juiz da execução decidirá
o incidente nos próprios autos da execução, após ouvir a parte contrária que
deverá se manifestar em 10 (dez) dias, valendo-se, se necessário, do exame pela
contadoria judicial”). É evidente, pois, a observância aos princípios do contra‑
ditório e da ampla defesa, como não poderia deixar de ser.
Outrossim, não entendo configurado ultraje à duração razoável do processo,
insculpida no art. 5º, LXXVIII, da CF/1988. É que só se compensarão créditos já
constituídos e exigíveis, revestidos de liquidez e certeza. Não há espaço para
qualquer discussão que prolongue o feito. E, mesmo que haja dúvida, a mera
impugnação administrativa ou eventual suspensão judicial impede a compen‑
sação. O juiz da execução, portanto, não deverá julgar qualquer demanda inci‑
dental, senão apenas constatar, objetivamente, a existência (ou não) de crédito
da Fazenda em face do titular do precatório. E aí não se perde qualquer tempo,
sobretudo porque a própria Constituição, em sua nova redação, limita em trinta
dias o prazo para prestação de tais informações pela Fazenda, sob pena de cadu‑
cidade do direito de compensar (CF, art. 100, § 10).
Não se argua que o STF já tenha se posicionado contrariamente à compensa‑
ção de precatórios. Em verdade, o precedente da ADI 3.453, citado pelo eminente
ministro relator, teve como ratio decidendi a inconstitucionalidade formal do ato
impugnado, entendendo que o legislador ordinário não poderia impor condicio‑
nantes ao levantamento de valores de precatórios por parte dos credores – in
casu, certidão negativa de débitos tributários –, já que o tema dos precatórios
seria matéria de índole exclusivamente constitucional. A EC 62/2009, porém,
supera tal fundamento, já que erigiu a compensação prévia ao pagamento como
regra de estatura constitucional, sem incorrer no mesmo vício formal. Eis trecho
da ementa do julgado:
Ação direta de inconstitucionalidade. Precatórios. Art. 19 da Lei Nacional 11.033, de 21
de dezembro de 2004. Afronta aos arts. 5º, XXXVI, e 100 da Constituição da República.
1. O art. 19 da Lei 11.033/2004 impõe condições para o levantamento dos valores do
precatório devido pela Fazenda Pública. 2. A norma infraconstitucional estatuiu

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ADI 4.425

condição para a satisfação do direito do jurisdicionado – constitucionalmente


garantido – que não se contém na norma fundamental da República. 3. A matéria
relativa a precatórios não chama a atuação do legislador infraconstitucional, menos
ainda para impor restrições que não se coadunam com o direito à efetividade da
jurisdição e o respeito à coisa julgada. (...) 8. Ação direta de inconstitucionalidade
julgada procedente. [ADI 3.453, rel. min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgada
em 30-11-2006, DJ de 16-3-2007.]

Com efeito, após a EC 62/2009, o instituto da compensação ganhou sede cons‑


titucional, o que conduziu a doutrina a reputar superado o vício de forma pre‑
sente nas tentativas de instituir a técnica pela via legislativa infraconstitucional
(SCAFF, Fernando Facury. O uso de precatórios para pagamento de tributos após
a EC 62. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 175, p. 92, abr. 2010).
Também não impõe a declaração de inconstitucionalidade da sistemática da
compensação o fato de já existirem mecanismos administrativos ou judiciais
destinados à salvaguarda de créditos titularizados pela Fazenda Pública. É que
tal circunstância não significa que o emprego de tais mecanismos, in concreto,
seja sempre a alternativa mais eficiente para o Estado e, portanto, para toda a
coletividade. Em situações de reciprocidade de créditos e débitos, a compensa‑
ção é o meio ótimo de extinção das obrigações. Nesse cenário, a compensação
não malfere a coisa julgada material, senão apenas prestigia, de modo eficiente,
a pacificação social, escopo último da própria jurisdição.
Sem embargo de tudo quanto exposto, ressalto que a sistemática da compen‑
sação inaugurada pela EC 62/2009 encontra óbice intransponível na garantia
constitucional da isonomia. Na linha apontada pelo eminente ministro relator, “ao
cobrar o crédito de que é titular, a Fazenda Pública não é obrigada a compensá‑
-lo com eventual débito dela (Fazenda Pública) em face do credor-contribuinte”.
E mais: a própria Lei 6.830/1980, ao disciplinar o procedimento da execução
fiscal, veda a compensação (art. 16, § 3º). Ora, as mesmas razões que justificam
a compensação dos débitos titularizados pela Fazenda também justificam a
compensação dos seus créditos. Não há razoabilidade mínima na diferenciação
das hipóteses. Os valores maiores de justiça e eficiência estão presentes, com
a mesma intensidade, em ambas as situações. Se a compensação de débitos
da Fazenda evita o ajuizamento de execuções desnecessárias, o mesmo ocorre
com o particular que é credor do Fisco e vê-se executado por débitos tributários
ou de qualquer outra natureza. Prestigiar apenas o credor fazendário (ou, sob
outra perspectiva, proteger apenas o devedor público) é usar a retórica da justiça
eficiente para oprimir o particular. Com essa situação o Judiciário brasileiro e o
Supremo Tribunal Federal, em especial, não podem compactuar.

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ADI 4.425

Em estudo já clássico no direito público brasileiro, Gustavo Binenbojm enfren‑


tou, com maestria, o tema das prerrogativas da Fazenda Pública:
As prerrogativas processuais e materiais da Administração Pública, em sua relação
com os cidadãos, constituíram, desde os primórdios da disciplina, a matéria-prima
básica da qual se nutriu e sobre a qual se erigiu o arcabouço teórico do direito
administrativo. Todas, sem exceção, justificadas por remissão ao dito princípio
da supremacia do interesse público sobre o particular.
(...)
Ocorre que todas as (...) prerrogativas da Administração, vistas como desequi‑
parações entre o Poder Público e os particulares, não podem ser justificadas à luz
de uma regra de prevalência apriorística e absoluta dos interesses da coletividade
sobre os interesses individuais. Veja-se, a seguir, por quê.
Em primeiro lugar, porque a máxima preservação dos direitos individuais cons‑
titui porção do próprio interesse público. São metas gerais da sociedade política,
juridicamente estabelecidas, tanto viabilizar o funcionamento da Administração
Pública, mediante instituição de prerrogativas materiais e processuais, como pre‑
servar e promover, da forma mais extensa quanto possível, os direitos dos par‑
ticulares. Assim, esse esforço da harmonização não se coaduna com qualquer
regra absoluta de prevalência a priori dos papéis institucionais do Estado sobre
os interesses individuais privados.
Em segundo lugar, é de sublinhar-se que a isonomia, tal como os fins de inte‑
resse coletivo cometidos ao Poder Público, também está prevista como norma
constitucional. Deste modo, as hipóteses de tratamento diferenciado conferido ao
Poder Público em relação aos particulares devem obedecer aos rígidos critérios
estabelecidos pela lógica do princípio constitucional da igualdade. [BINENBOJM,
Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia
e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 113/114.]

O juízo de constitucionalidade acerca da instituição de prerrogativas proces‑


suais à administração pública já foi realizado, sob a perspectiva da isonomia,
pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 1.753/DF, em
que se discutia a validade da ampliação do prazo para a propositura de ações
rescisórias pelo poder público, de dois para cinco anos, como fixado pela Medida
Provisória 1.577-6/1997. Na ementa do aresto, ficou assentada conclusão inteira‑
mente pertinente à hipótese discutida nestes autos:
A igualdade das partes é imanente ao procedural due process of law; quando uma
das partes é o Estado, a jurisprudência tem transigido com alguns favores legais
que, além da vetustez, tem sido reputados não arbitrários por visarem a compen‑
sar dificuldades da defesa em juízo das entidades públicas; se, ao contrário, desa‑
fiam a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade, caracterizam privilégios

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ADI 4.425

inconstitucionais: parece ser esse o caso das inovações discutidas, de favorecimento


unilateral aparentemente não explicável por diferenças reais entre as partes e que,
somadas a outras vantagens processuais da Fazenda Pública, agravam a conse‑
quência perversa de retardar sem limites a satisfação do direito do particular já
reconhecido em juízo. [ADI 1.753 MC, rel. min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno,
julgado em 16-4-1998, DJ de 12-6-1998.]

Como argutamente apontado pelo i. ministro Sepúlveda Pertence, o que estava


em jogo na ADI 1.753/DF não era a razoabilidade, em si, da ampliação do prazo
para ajuizamento da ação rescisória, “mas sim a de sua unilateralidade, a favo‑
recer unicamente o poder público”. E concluiu:
Admita-se que a burocracia, o gigantismo e a consequente lerdeza da máquina
estatal expliquem dilatação de prazos processuais em dimensões aceitáveis, qual
a do prazo para responder – multiplicado de quinze para sessenta dias, ou a dupli‑
cação dos prazos para a interposição de recursos. Mas é difícil dizer o mesmo da
disparidade criada pela regra discutida, que mantém em dois anos o prazo do
particular para propor a rescisória, seja qual for o vício da sentença, mas eleva a
cinco anos o da Fazenda.
(...)
Desse modo, para ser razoável e proporcional ao sacrifício imposto à segurança
jurídica que a coisa julgada se destina a criar, parece que o único a reclamar de
ambas as alterações legislativas arguidas é que fossem equânimes, bilaterais, tra‑
tando igualmente as partes, dado que uma e outra poderão queixar-se, seja da
angústia do prazo bienal, seja da falta de remédio contra a indenização injusta.

In casu, não está em debate a razoabilidade da compensação de créditos ins‑


critos em precatórios. Tal como já apontado linhas atrás, o instituto jurídico da
compensação é, em si, instrumento de justiça e de eficiência na disciplina das
relações obrigacionais. O que aqui se discute é, como na ADI 1.753/DF, a validade
da compensação instituída unilateralmente, em proveito exclusivo da Fazenda
Pública. E não me parece haver razoabilidade nesta discriminação. Segundo o
magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello, “é agredida a igualdade quando
o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda
relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido
ou com a inserção ou arrendamento do gravame imposto” (MELLO, Celso Antônio
Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1984. p. 49). Na hipótese aqui analisada, o fator de discrímen (natureza
pública ou privada do credor/devedor) não mantém qualquer relação com o tra‑
tamento jurídico dispensado às partes (possibilidade ou não da compensação
do crédito/débito).

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ADI 4.425

De fato, se o custo do ajuizamento de execuções fiscais pela Fazenda Pública


é elevado e pode ser evitado pela sistemática da compensação, também é ver‑
dade que o custo de demandar contra o Estado é elevado tanto para o indiví‑
duo litigante quanto para a sociedade em geral, que arca com todos os custos
(financeiros ou não) da multiplicidade de processos judiciais. Por que apenas a
administração pública, quando devedora, poderá ter seus débitos compensados
com seus créditos? Não há justificativa plausível para tamanha discriminação.
A medida deve valer para credores e devedores públicos e privados, ou acaba
por configurar autêntico privilégio odioso.
Por essa razão, acompanho o eminente ministro relator quanto ao ponto, ainda
que a partir de fundamentação mais estreita, para fins de declarar a inconstitu‑
cionalidade dos §§ 9º e 10 do art. 100, na redação conferida pela EC 62/2009, por
manifesta ofensa ao princípio constitucional da isonomia (art. 5º, caput, CF/1988),
corolário elementar do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, CF/1988).

II.2.3 Atualização monetária e juros de mora


Na sequência, alegam os autores a inconstitucionalidade material do novo
regime da atualização monetária e dos juros moratórios no precatório, previsto
no § 12 do art. 100 da CF (“§ 12. A partir da promulgação desta Emenda Constitu‑
cional, a atualização de valores de requisitórios, após sua expedição, até o efetivo
pagamento, independentemente de sua natureza, será feita pelo índice oficial de
remuneração básica da caderneta de poupança, e, para fins de compensação da
mora, incidirão juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a
caderneta de poupança, ficando excluída a incidência de juros compensatórios”)
e nos §§ 1º, II, e 16 do art. 97 do ADCT (“§ 1º Os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios sujeitos ao regime especial de que trata este artigo optarão, por meio
de ato do Poder Executivo: (...) II – pela adoção do regime especial pelo prazo de
até 15 (quinze) anos, caso em que o percentual a ser depositado na conta especial
a que se refere o § 2º deste artigo corresponderá, anualmente, ao saldo total dos
precatórios devidos, acrescido do índice oficial de remuneração básica da cader‑
neta de poupança e de juros simples no mesmo percentual de juros incidentes
sobre a caderneta de poupança para fins de compensação da mora, excluída a
incidência de juros compensatórios, diminuído das amortizações e dividido pelo
número de anos restantes no regime especial de pagamento. (...) § 16. A partir da
promulgação desta Emenda Constitucional, a atualização de valores de requisi‑
tórios, até o efetivo pagamento, independentemente de sua natureza, será feita
pelo índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança, e, para
fins de compensação da mora, incidirão juros simples no mesmo percentual de

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ADI 4.425

juros incidentes sobre a caderneta de poupança, ficando excluída a incidência


de juros compensatórios”).
Sustenta-se, em primeiro lugar, a configuração de ofensa ao direito de pro‑
priedade (CF, art. 5º, XXII), na medida em que o atual índice de remuneração da
caderneta de poupança – Taxa Referencial (TR) –, por ser muito inferior ao IPC,
acarretará brusca redução do valor dos créditos judiciais, com a perspectiva
de que a inflação corroa o valor do crédito no decurso dos anos a que se refere
o regime especial do art. 97 do ADCT. Assim, o índice eleito não recompõe o
poder aquisitivo da moeda, caracterizando-se violação à isonomia (CF, art. 5º,
caput) diante da utilização, pelo poder público, da taxa Selic para os seus crédi‑
tos, afirmando-se, ainda, que tal regime ensejará a ineficiência e a imoralidade
administrativas (CF, art. 37, caput), na medida em que estimulará condutas pro‑
telatórias do poder público para que se beneficie economicamente da discus‑
são judicial. Restariam violados também a garantia da coisa julgada (CF, art. 5º,
XXXVI) e o princípio da Separação de Poderes (CF, art. 2º), pois, segundo a inicial,
independentemente do critério adotado na sentença, a partir da expedição do
precatório fluirá o índice fixado no texto da Constituição, o que cerceia o campo
de atuação do Poder Judiciário, motivo pelo qual requer, subsidiariamente, a
declaração de interpretação conforme a fim de serem respeitados os critérios
fixados na coisa julgada.
A OAB requer também, em petição posterior, que seja reconhecida a inconsti‑
tucionalidade por arrastamento do art. 5º da Lei 11.960/2009, que, antes mesmo
da entrada em vigor da EC 62/2009, alterou a redação do art. 1º-F da Lei 9.494/
1997 para prever a aplicação dos índices oficiais de remuneração básica e juros
da caderneta de poupança para as condenações judiciais da Fazenda Pública
(“Art. 1º-F. Nas condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de
sua natureza e para fins de atualização monetária, remuneração do capital e com‑
pensação da mora, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, dos
índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança”).
O eminente ministro relator assentou a inconstitucionalidade parcial do § 12 do
art. 100 da Constituição, para afastar a expressão “índice oficial de remuneração
da caderneta de poupança”, quanto à atualização monetária dos créditos em pre‑
catórios, e para afastar a expressão “independentemente de sua natureza”, quanto
ao índice de juros moratórios incidentes sobre precatórios de natureza tributária.
Entendo que lhe assiste razão em parte, pelo que, neste ponto, acompanho-o
nos seguintes termos.
Quanto à disciplina da correção monetária dos créditos inscritos em pre‑
catórios, a EC 62/2009 fixou como critério o “índice oficial de remuneração da

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ADI 4.425

caderneta de poupança”. Ocorre que o referencial adotado não é idôneo a men‑


surar a variação do poder aquisitivo da moeda. Isso porque a remuneração da
caderneta de poupança, regida pelo art. 12 da Lei 8.177/1991, com atual redação
dada pela Lei 12.703/2012, é fixada ex ante, a partir de critérios técnicos em nada
relacionados com a inflação empiricamente considerada. Já se sabe, na data de
hoje, quanto irá render a caderneta de poupança. E é natural que seja assim,
afinal a poupança é uma alternativa de investimento de baixo risco, no qual o
investidor consegue prever com segurança a margem de retorno do seu capital.
A inflação, por outro lado, é fenômeno econômico insuscetível de captação
apriorística. O máximo que se consegue é estimá-la para certo período, mas
jamais fixá-la de antemão. Daí por que os índices criados especialmente para
captar o fenômeno inflacionário são sempre definidos em momentos posteriores
ao período analisado, como ocorre com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo
(IPCA), divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
e o Índice de Preços ao Consumidor (IPC), divulgado pela Fundação Getúlio
Vargas (FGV). A razão disso é clara: a inflação é sempre constatada em apuração
ex post, de sorte que todo índice definido ex ante é incapaz de refletir a efetiva
variação de preços que caracteriza a inflação. É o que ocorre na hipótese dos
autos. A prevalecer o critério adotado pela EC 62/2009, os créditos inscritos em
precatórios seriam atualizados por índices pré-fixados e independentes da real
flutuação de preços apurada no período de referência. Assim, o índice oficial de
remuneração da caderneta de poupança não é critério adequado para refletir o
fenômeno inflacionário.
Destaco que nesse juízo não levo em conta qualquer consideração técnico‑
-econômica que implique usurpação pelo Supremo Tribunal Federal de com‑
petência própria de órgãos especializados. Não se trata de definição judicial
de índice de correção. Essa circunstância, já rechaçada pela jurisprudência da
Casa, evidentemente transcenderia as capacidades institucionais do Poder Judi‑
ciário. Não obstante, a hipótese aqui é outra. Diz respeito à idoneidade lógica
do índice fixado pelo constituinte reformador para capturar a inflação, e não do
valor específico que deve assumir o índice para determinado período. Reitero:
não se pode quantificar, em definitivo, um fenômeno essencialmente empírico
antes mesmo da sua ocorrência. A inadequação do índice aqui é autoevidente.
Corrobora essa conclusão reportagem esclarecedora veiculada em 21 de
janeiro de 2013 pelo jornal especializado Valor Econômico. Na matéria intitulada
“Cuidado com a inflação”, o periódico aponta que “o rendimento da poupança
perdeu para a inflação oficial, medida pelo IPCA, mês a mês desde setembro” de
2012. E ilustra: “Quem investiu R$ 1 mil na caderneta em 31 de junho [de 2012],

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ADI 4.425

fechou o ano com poder de compra equivalente a R$ 996,40. Ganham da inflação


apenas os depósitos feitos na caderneta antes de 4 de maio, com retorno de 6%.
Para os outros, vale a nova regra, definida no ano passado, de rendimento equi‑
valente a 70% da meta para a Selic, ou seja, de 5,075%”. Em suma: há manifesta
discrepância entre o índice oficial de remuneração da caderneta de poupança
e o fenômeno inflacionário, de modo que o primeiro não se presta a capturar o
segundo. O meio escolhido pelo legislador constituinte (remuneração da cader‑
neta de poupança) é, portanto, inidôneo a promover o fim a que se destina (tra‑
duzir a inflação do período).
Não bastasse essa constatação, é de se ver que o próprio Supremo Tribunal
Federal já decidiu que a Taxa Referencial não reflete a perda do poder aquisitivo
da moeda. Ao julgar a ADI 493, rel. min. Moreira Alves, o Plenário desta Corte
entendeu que o aludido índice não foi criado para captar a variação de preços na
economia, daí ser insuscetível de operar como critério de atualização monetária.
Eis trecho esclarecedor da respetiva ementa:
A Taxa Referencial (TR) não é índice de correção monetária, pois, refletindo as
variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não cons‑
titui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda. Por isso, não há
necessidade de se examinar a questão de saber se as normas que alteram índice
de correção monetária se aplicam imediatamente, alcançando, pois, as prestações
futuras de contratos celebrados no passado, sem violarem o disposto no art. 5º,
XXXVI, da Carta Magna. Também ofendem o ato jurídico perfeito os dispositivos
impugnados que alteram o critério de reajuste das prestações nos contratos já cele‑
brados pelo sistema do Plano de Equivalência Salarial por Categoria Profissional
(PES/CP). Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente, para declarar
a inconstitucionalidade dos arts. 18, caput e §§ 1º e 4º; 20; 21 e paragrafo único; 23 e
parágrafos; e 24 e parágrafos, todos da Lei 8.177, de 1º de maio de 1991. [ADI 493, rel.
min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, julgado em 25-6-1992, DJ de 4-9-1992.]

Assentada a premissa quanto à inadequação do aludido índice, mister enfrentar


a natureza do direito à correção monetária. Na linha já exposta pelo i. ministro
relator, “a finalidade da correção monetária, enquanto instituto de direito consti‑
tucional, não é deixar mais rico o beneficiário, nem mais pobre o sujeito passivo
de uma dada obrigação de pagamento. É deixá-los tal como qualitativamente se
encontravam, no momento em que se formou a relação obrigacional”. Daí que a
correção monetária de valores no tempo é circunstância que decorre diretamente
do núcleo essencial do direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII). Corrigem-se valo‑
res nominais para que permaneçam com o mesmo valor econômico ao longo do
tempo, diante da inflação. A ideia é simplesmente preservar o direito original

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ADI 4.425

em sua genuína extensão. Nesse sentido, o direito à correção monetária é reflexo


imediato da proteção da propriedade. Deixar de atualizar valores pecuniários ou
atualizá-los segundo critérios evidentemente incapazes de capturar o fenômeno
inflacionário representa aniquilar o direito de propriedade em seu núcleo essencial.
Tal constatação implica a pronúncia de inconstitucionalidade parcial da
EC 62/2009, de modo a afastar a expressão “índice oficial de remuneração da
caderneta de poupança” introduzida no § 12 do art. 100 da Lei Maior como crité‑
rio de correção monetária dos créditos inscritos em precatório, por violação ao
direito fundamental de propriedade (art. 5º, XII, CF/1988), inegável limite material
ao poder de reforma da Constituição (art. 60, § 4º, IV, CF/1988).
Quanto ao regime dos juros moratórios incidentes sobre condenações judiciais
da Fazenda Pública, a EC 62/2009 também fixou, como critério de quantificação,
o índice de remuneração da caderneta de poupança. Segundo os requerentes, tal
situação configuraria ultraje à isonomia entre o Estado e os cidadãos, porquanto
o poder público teria seus créditos corrigidos pela taxa Selic, cujo valor, de fato,
supera o rendimento da poupança, notadamente após as nova regras de seu fun‑
cionamento, editadas em maio de 2012. Pela sistemática em vigor, a caderneta de
poupança tem remuneração composta de duas parcelas: (i) a básica, dada pela
Taxa Referencial (TR) e (ii) a adicional, cujo montante varia em função da taxa
Selic, da seguinte forma: (a) 0,5% ao mês, enquanto a meta da taxa Selic ao ano
for superior a 8,5%; ou (b) 70% da meta da taxa Selic ao ano, mensalizada, vigente
na data de início do período de rendimento, enquanto a meta da taxa Selic ao
ano for igual ou inferior a 8,5%. Assim é que a atual remuneração da caderneta
de poupança é sempre inferior à taxa Selic, o que reforça os argumentos de vio‑
lação à isonomia entre o Estado e o particular.
Sem embargo das diferentes visões sobre o tema, a análise da constituciona‑
lidade do dispositivo requer atenção à tese jurídica encampada pela Corte no
julgamento do RE 453.740, rel. min. Gilmar Mendes. Naquela oportunidade, dis­
cutia-se a constitucionalidade da antiga redação do art. 1º-F da Lei 9.494/1997, que
estabelecia que “os juros de mora, nas condenações impostas à Fazenda Pública
para pagamento de verbas remuneratórias devidas a servidores e empregados
públicos, não poderão ultrapassar o percentual de 6% ao ano”. O cerne da contro‑
vérsia era saber se o aludido patamar de juros violava o princípio constitucional
da isonomia (CF, art. 5º, caput), na medida em que o Código Civil, ao remeter
à legislação tributária, fixa, como regra geral, o percentual de 12% ao ano para
fins de compensação da mora (ex vi do seu art. 406, c/c art. 161, § 1º, do Código
Tributário Nacional). Diante desse cenário, enquanto os devedores em geral se
sujeitariam ao Código Civil e ao Código Tributário Nacional, a administração

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pública, quando estivesse em mora perante seus servidores e empregados, esta‑


ria obrigada a pagar juros pela metade do percentual codificado, configurando
suposto privilégio odioso.
Pois bem. Postas as teses jurídicas perante a Corte, prevaleceu o entendi‑
mento do relator quanto ao referencial de isonomia que deve presidir as relações
entre Estado e particulares. Consoante suas razões, o relevante é investigar a
igualdade em cada relação jurídica específica (e.g., tributária, estatutária, pro‑
cessual, contratual etc.), e não a partir de uma dicotomia genérica entre poder
público/cidadão. Assim é que o Estado e o particular devem estar sujeitos à
mesma disciplina em matéria de juros no contexto de uma relação jurídica de
igual natureza. Nesse sentido, o STF afirmou a constitucionalidade da limitação
de 6% ao ano como índice de juros moratórios de verbas devidas a servidores e
empregados públicos, desde que reconhecido que a limitação “também deverá
ser observada pela Fazenda Pública, na cobrança de seus créditos, decorren‑
tes de verbas remuneratórias indevidamente pagas a servidores e empregados
públicos, fixando-se juros moratórios em 6% ao ano, de modo que o crédito e o
débito tenham tratamento idêntico, entre a Fazenda Pública e seus empregados
e servidores, no tocante à fixação de juros moratórios”.
A mesma lógica se aplica à hipótese vertida nestes autos. O ponto fundamental
é que haja o mesmo regime de tratamento quanto aos juros moratórios para o
credor público e para o credor privado em cada relação jurídica específica que
integrem. Ocorre que, à época do julgamento do RE 453.740, o valor dos juros
moratórios devidos pela Fazenda Pública dependia da disciplina legal de cada
relação jurídica de que fosse parte, como apontou o ministro Gilmar Mendes.
Não havia tratamento constitucional da matéria. Com o advento da EC 62/2009,
o valor dos juros moratórios devidos pela Fazenda passou a ser único para toda
e qualquer relação jurídica de que faça parte a administração. À luz das premis‑
sas já definidas pela Corte, dois são os caminhos possíveis: (i) entender que a
EC 62/2009, ao delimitar, no plano constitucional, o valor único de juros mora‑
tórios devidos pela Fazenda em razão de débito oriundo de sentença judicial, a
despeito da natureza da relação jurídica discutida, é válida, desde que necessa‑
riamente implique o mesmo valor de juros devidos pelo particular à Fazenda, ex
vi do princípio da isonomia; (ii) entender que a EC 62/2009 não é válida porque
deixou de alterar o regime de juros moratórios devidos pelos particulares, atu‑
almente regido por diplomas infraconstitucionais que estabelecem patamares
diferentes quanto ao respectivo cálculo.
Entendo que a melhor inteligência do dispositivo impõe a observância da hie‑
rarquia das fontes. Dado que, segundo o Plenário do Supremo Tribunal Federal,

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os critérios de fixação dos juros moratórios devem ser idênticos para Fazenda
Pública e para o cidadão, a depender da natureza da relação jurídica em jogo,
havendo divergência entre índices previstos pelo ordenamento para uma mesma
situação, deve-se prestigiar aquele critério que esteja albergado por dispositivo
de maior magnitude hierárquica. In casu, os juros moratórios incidentes sobre
condenações judiciais foram fixados, para o devedor público, de forma genérica
no plano constitucional. Devem ser, portanto, aplicados, de forma igualmente
genérica, aos devedores particulares da Fazenda, prevalecendo sobre quaisquer
leis específicas que disponham de forma diferente sobre o assunto, as quais per‑
deram sua validade desde o advento da EC 62/2009.
Entendimento em contrário, no sentido de censurar a emenda por não obser‑
var os índices infraconstitucionais aplicáveis ao devedor privado, teria o grave
inconveniente de condicionar a validade de uma emenda constitucional à disci‑
plina ordinária do tema, que sequer é objeto da presente ação direta. É nítida aí
a subversão da hierarquia das fontes no direito brasileiro, em cujo ápice figura
a Carta Magna da República.
Ex positis, forte na tese jurídica acolhida pela Corte no julgamento do RE
453.740, rel. min. Gilmar Mendes, entendo que os mesmos critérios de fixa‑
ção de juros moratórios devem prevalecer para devedores públicos e privados,
nos limites da natureza de cada relação jurídica analisada. Com a edição da
EC 62/2009, a questão do índice específico, até então tratada pela legislação
ordinária, ganhou foros constitucionais, ainda que por norma endereçada apenas
ao devedor público. Destarte, havendo índice constitucional bem definido para
todas as condenações judiciais da Fazenda Pública, esta deve ser aplicada para
o devedor particular na exata extensão em que aplicado ao poder público.
Divirjo, portanto, do entendimento do i. ministro relator para rejeitar a argui‑
ção de inconstitucionalidade do § 12 do art. 100 da Constituição, com redação
dada pela EC 62/2009, ao fixar o índice de juros moratórios devidos pela Fazenda
Pública em valor equivalente à remuneração básica da caderneta de poupança,
critério que, por força do princípio constitucional da isonomia (CF, art. 5º, caput),
deve ser aplicado de imediato aos devedores privados da Fazenda.
Por fim, à luz das premissas já delineadas, reputo procedente, em parte, o
pedido de inconstitucionalidade por arrastamento da nova redação conferida
ao art. 1º-F da Lei 9.494/1997 pelo art. 5º da Lei 11.960/2009. Como já delineado
no voto do i. ministro relator, a invalidade da sistemática constitucional de juros
e de atualização monetária nos precatórios retira desde logo o amparo em que
se apoia o art. 1º-F da Lei 9.494/1997, fulminando-o na exata medida em que
fulminado seu fundamento constitucional (art. 100, § 12, CF/1988). Assim é que,

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ADI 4.425

nos termos do presente voto, declaro inconstitucional a referência à “atualização


monetária” contida no art. 1º-F da Lei 9.494/1997, rejeitando, porém, o pedido
de declaração de inconstitucionalidade quanto ao regime de juros moratórios,
desde que incidente de forma recíproca para o Estado e o cidadão.

II.2.4 O regime especial de pagamentos


No que concerne ao regime especial de pagamentos, autorizado pelo § 15 do
art. 100 da CF/1988 e detalhado, transitoriamente, no caput e nos parágrafos do
art. 97 do ADCT, alegam os autores que a EC 62/2009 teria instituído um verda‑
deiro “calote oficial”, impulsionando o cenário já traçado pelos parcelamentos
previstos nos arts. 33 e 78 do ADCT. Os argumentos e os pontos suscitados pelos
autores, nessa passagem, são também em grande número e reclamam sistema‑
tização a fim de permitir a precisa compreensão da controvérsia.
Em primeiro lugar, sustenta-se que a demora na execução em até quinze anos,
ou mesmo indefinidamente, de acordo com a sistemática dos §§ 1º, 2º e 14 do
art. 97 do ADCT (“§ 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios sujeitos
ao regime especial de que trata este artigo optarão, por meio de ato do Poder
Executivo: I – pelo depósito em conta especial do valor referido pelo § 2º deste
artigo; ou II – pela adoção do regime especial pelo prazo de até 15 (quinze) anos,
caso em que o percentual a ser depositado na conta especial a que se refere o § 2º
deste artigo corresponderá, anualmente, ao saldo total dos precatórios devidos,
acrescido do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança
e de juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta
de poupança para fins de compensação da mora, excluída a incidência de juros
compensatórios, diminuído das amortizações e dividido pelo número de anos
restantes no regime especial de pagamento”; “§ 2º Para saldar os precatórios,
vencidos e a vencer, pelo regime especial, os Estados, o Distrito Federal e os Muni‑
cípios devedores depositarão mensalmente, em conta especial criada para tal
fim, 1/12 (um doze avos) do valor calculado percentualmente sobre as respectivas
receitas correntes líquidas, apuradas no segundo mês anterior ao mês de paga‑
mento, sendo que esse percentual, calculado no momento de opção pelo regime
e mantido fixo até o final do prazo a que se refere o § 14 deste artigo, será: I – para
os Estados e para o Distrito Federal: a) de, no mínimo, 1,5% (um inteiro e cinco
décimos por cento), para os Estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste,
além do Distrito Federal, ou cujo estoque de precatórios pendentes das suas admi‑
nistrações direta e indireta corresponder a até 35% (trinta e cinco por cento) do
total da receita corrente líquida; b) de, no mínimo, 2% (dois por cento), para os
Estados das regiões Sul e Sudeste, cujo estoque de precatórios pendentes das suas

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ADI 4.425

administrações direta e indireta corresponder a mais de 35% (trinta e cinco por


cento) da receita corrente líquida; II – para Municípios: a) de, no mínimo, 1% (um
por cento), para Municípios das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, ou cujo
estoque de precatórios pendentes das suas administrações direta e indireta cor‑
responder a até 35% (trinta e cinco por cento) da receita corrente líquida; b) de, no
mínimo, 1,5% (um inteiro e cinco décimos por cento), para Municípios das regiões
Sul e Sudeste, cujo estoque de precatórios pendentes das suas administrações
direta e indireta corresponder a mais de 35% (trinta e cinco por cento) da receita
corrente líquida”; e “§ 14. O regime especial de pagamento de precatório previsto
no inciso I do § 1º vigorará enquanto o valor dos precatórios devidos for superior
ao valor dos recursos vinculados, nos termos do § 2º, ambos deste artigo, ou pelo
prazo fixo de até 15 (quinze) anos, no caso da opção prevista no inciso II do § 1º”),
bem como do art. 4º do corpo da Emenda 62/2009 (“Art. 4º A entidade federativa
voltará a observar somente o disposto no art. 100 da Constituição Federal: I – no
caso de opção pelo sistema previsto no inciso I do § 1º do art. 97 do Ato das Dis‑
posições Constitucionais Transitórias, quando o valor dos precatórios devidos
for inferior ao dos recursos destinados ao seu pagamento; II – no caso de opção
pelo sistema previsto no inciso II do § 1º do art. 97 do Ato das Disposições Cons‑
titucionais Transitórias, ao final do prazo”), implicaria violação às garantias da
duração razoável do processo (CF, art. 5º, LXXVIII), da tutela jurisdicional efetiva
(CF, art. 5º, XXXV) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), além de ofender o
princípio da Separação dos Poderes (CF, art. 2º).
Segundo a inicial, com efeito, as razões que justificam a impenhorabilidade dos
bens públicos não são suficientes a autorizar a fragilização da eficácia das deci‑
sões do Poder Judiciário, de modo a fracionar em até quinze anos as indenizações
devidas pela Fazenda Pública, sacrificando os direitos individuais sem amparo na
razoabilidade. De outro lado, a definição de um percentual fixo da receita corrente
líquida para o pagamento de precatórios (ADCT, art. 97, § 2º, I e II) representaria
contingenciamento indevido e desproporcional de valores, condicionando à von‑
tade do devedor o cumprimento das ordens judiciais e sem atentar para o dever
de pagamento integral dos precatórios pendentes, em descompromisso com a
cláusula constitucional do Estado de Direito (CF, art. 1º, caput).
Além disso, alegam os autores que haveria também inconstitucionalidade
na desvinculação parcial, no regime do art. 97, da observância da ordem cro‑
nológica de apresentação dos precatórios como critério para pagamento dos
débitos judiciais, restrita ao percentual definido no § 6º do dispositivo (ADCT,
art. 97, § 6º: “Pelo menos 50% (cinquenta por cento) dos recursos de que tratam os
§§ 1º e 2º deste artigo serão utilizados para pagamento de precatórios em ordem

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ADI 4.425

cronológica de apresentação, respeitadas as preferências definidas no § 1º, para


os requisitórios do mesmo ano, e no § 2º do art. 100, para requisitórios de todos
os anos”). Nos termos do texto constitucional, o restante dos valores deposita‑
dos durante o regime especial, segundo o § 8º, pode ser utilizado em leilões de
precatórios, no pagamento de precatórios de acordo com a ordem crescente de
valor e, ainda, em acordos diretos com credores através de câmaras de conciliação
(art. 97, § 8º, do ADCT – “§ 8º A aplicação dos recursos restantes dependerá de
opção a ser exercida por Estados, Distrito Federal e Municípios devedores, por
ato do Poder Executivo, obedecendo à seguinte forma, que poderá ser aplicada
isoladamente ou simultaneamente: I – destinados ao pagamento dos precató‑
rios por meio do leilão; II – destinados a pagamento a vista de precatórios não
quitados na forma do § 6º e do inciso I, em ordem única e crescente de valor por
precatório; III – destinados a pagamento por acordo direto com os credores,
na forma estabelecida por lei própria da entidade devedora, que poderá prever
criação e forma de funcionamento de câmara de conciliação”).
Nesse cenário, sustenta a inicial que tais mecanismos, ao estimularem a redu‑
ção dos valores a que os credores fazem jus, resultam em violação à garantia
da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI) e ao princípio da Separação de Poderes
(CF, art. 2º), configurando “verdadeira banca de negociata e absoluto amesqui‑
nhamento da autoridade do comando judicial”, vendo-se o cidadão coagido a
aderir sob pena de frustração de qualquer perspectiva plausível de percepção
do crédito que lhe é devido. Haveria, ainda, ofensa à igualdade (CF, art. 5º, caput)
ao eleger-se o menor valor como critério subsidiário para os casos em que não
for possível identificar a precedência cronológica entre credores – no que toca,
evidentemente, à parcela de recursos submetida a tal critério – (art. 97, § 7º, do
ADCT – “§ 7º Nos casos em que não se possa estabelecer a precedência cro‑
nológica entre 2 (dois) precatórios, pagar-se-á primeiramente o precatório de
menor valor”), pois, segundo a inicial, não haveria nenhuma pertinência lógica
a justificar tal discriminação entre credores em igual situação.
Por fim, alega-se também violação ao direito adquirido e ao ato jurídico per‑
feito (CF, art. 5º, XXXVI) na submissão ao regime especial daqueles precatórios
que já haviam sido incluídos nos parcelamentos previstos nos arts. 33 e 78 do
ADCT, conforme determina o § 15 do art. 97 do ADCT (“§ 15. Os precatórios parce‑
lados na forma do art. 33 ou do art. 78 deste Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias e ainda pendentes de pagamento ingressarão no regime especial
com o valor atualizado das parcelas não pagas relativas a cada precatório, bem
como o saldo dos acordos judiciais e extrajudiciais”), diferindo ainda mais no
tempo a satisfação de tais créditos.

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ADI 4.425

O eminente ministro relator acolheu as impugnações para declarar a incons‑


titucionalidade do § 15 do art. 100 da Constituição e do art. 97 do ADCT, introdu‑
zidos pela EC 62/2009, assentando a invalidade da moratória sob o argumento
de violação ao Estado de Direito, ao devido processo legal, ao livre e eficaz acesso
ao Poder Judiciário e à duração razoável do processo.
Entendo que lhe assiste plena razão neste ponto, motivo pelo qual o acom‑
panho na integralidade.
Segundo a letra do art. 97 do ADCT, criou-se um regime dito “especial” de
pagamento de precatórios para Estados e Municípios que estivessem em mora,
na data de promulgação da EC 62/2009, quanto ao cumprimento de sentenças
condenatórias pecuniárias. Tal regime se subdivide em dois modelos distintos,
sujeitos a regras próprias, que poderiam ser objeto de opção pelo Poder Execu‑
tivo da respectiva unidade da Federação dentro do prazo de noventa dias fixado
pelo art. 3º da aludida emenda constitucional.
O primeiro modelo prevê percentuais fixos, ainda que mínimos, da receita
corrente líquida dos entes devedores para depósito em conta especial desti‑
nada a saldar os débitos existentes. Mais especificamente, reza o art. 97, § 2º, do
ADCT que “os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devedores depositarão
mensalmente, em conta especial criada para tal fim, 1/12 (um doze avos) do valor
calculado percentualmente sobre as respectivas receitas correntes líquidas, apu‑
radas no segundo mês anterior ao mês de pagamento”. Em seguida, os incisos I
e II do citado § 2º definem os percentuais mínimos para Estados e Municípios
respectivamente. Na forma do art. 97, § 14, do ADCT, não há horizonte temporal
pré-definido para o fim desse modelo, que perdurará enquanto os estoques de
precatórios pendentes de pagamento forem superiores ao valor dos recursos
vinculados à sua satisfação.
Já o segundo modelo se baseia no depósito anual, em conta destinada ao paga‑
mento de precatórios, de montante equivalente ao quociente entre o saldo total
de precatórios devidos (atualizado pela remuneração da caderneta de poupança,
acrescido de juros moratórios pelo mesmo índice e descontadas as amortizações)
e o número de anos restantes no regime especial de pagamento. Diferentemente
do primeiro modelo, o diferimento do prazo de quitação tem aqui prazo máximo,
o de até quinze anos, na forma do art. 97, § 1º, II, do ADCT.
Como bem apontado pelo eminente ministro relator, os modelos de regime
especial diferem apenas quanto ao prazo para pagamento e quanto ao montante
a ser depositado na conta especial. São idênticos na forma de liberação dos
recursos aos credores. Assim é que o art. 97, § 6º, do ADCT estipula que “pelo
menos 50% (cinquenta por cento) dos recursos de que tratam os §§ 1º e 2º deste

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artigo serão utilizados para pagamento de precatórios em ordem cronológica


de apresentação”. Os outros 50% dos recursos depositados em conta especial
poderão ser empregados de três formas distintas, isolada ou simultaneamente:
(i) leilão (ADCT, art. 97, § 8º, I), realizado na modalidade deságio, associado
ao maior volume ofertado cumulado ou não com o maior percentual de deságio,
pelo maior percentual de deságio, podendo ser fixado valor máximo por credor,
ou por outro critério a ser definido em edital;
(ii) pagamento à vista, em ordem única e crescente de valor por precatório,
dos débitos não quitados com os recursos da conta especial obrigatoriamente
vinculados à satisfação dos requisitórios (ADCT, art. 97, § 8º, II);
(iii) pagamento por acordo direto com os credores, na forma estabelecida por
lei própria da entidade devedora, que poderá prever criação e forma de funcio‑
namento de câmara de conciliação (ADCT, art. 97, § 8º, III).
Como se observa pela leitura dos dispositivos transitórios, os modelos de
pagamento consagram evidente moratória no pagamento de precatórios, além
de preverem nítido contingenciamento de recursos voltados à respectiva quitação.
Mais que isso, inovam na disciplina da matéria ao criarem uma original siste‑
mática de satisfação dos débitos pela Fazenda: o leilão presidido pelo critério do
maior valor de deságio, que, em poucas palavras, significa pagar para o credor
que aceitar receber menos do que tem direito.
Pois bem. A controvérsia constitucional sobre a viabilidade jurídica de mora‑
tória de precatórios não é nova na Corte. No julgamento da medida cautelar na
ADI 2.356, rel. p/ o ac. min. Ayres Britto, o Supremo Tribunal Federal analisou a
constitucionalidade da EC 30/2000, que, ao incluir o art. 78 no ADCT, previu a
possibilidade de liquidação “em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo
máximo de dez anos” dos “precatórios pendentes na data de promulgação” da
emenda e daqueles “que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro
de 1999”. A Corte, por maioria, suspendeu a eficácia do dispositivo, reconhe‑
cendo que o aludido parcelamento violou inúmeros dispositivos constitucionais.
Confira-se o teor da ementa:
Ementa: Medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade. Art. 2º da EC 30,
de 13 de setembro de 2000, que acrescentou o art. 78 ao Ato das Disposições Cons-
titucionais Transitórias. Parcelamento da liquidação de precatórios pela Fazenda
Pública. 1. O precatório de que trata o art. 100 da Constituição consiste em prer‑
rogativa processual do poder público. Possibilidade de pagar os seus débitos não
à vista, mas num prazo que se estende até dezoito meses. Prerrogativa compen‑
sada, no entanto, pelo rigor dispensado aos responsáveis pelo cumprimento das
ordens judiciais, cujo desrespeito constitui, primeiro, pressuposto de intervenção

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ADI 4.425

federal (inciso VI do art. 34 e inciso V do art. 35 da CF) e, segundo, crime de res‑


ponsabilidade (inciso VII do art. 85 da CF). 2. O sistema de precatórios é garantia
constitucional do cumprimento de decisão judicial contra a Fazenda Pública, que
se define em regras de natureza processual conducentes à efetividade da sentença
condenatória trânsita em julgado por quantia certa contra entidades de direito
público. Além de homenagear o direito de propriedade (inciso XXII do art. 5º da
CF), prestigia o acesso à jurisdição e a coisa julgada (incisos XXXV e XXXVI do
art. 5º da CF). 3. A eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte
(redundantemente chamado de “originário”) não está sujeita a nenhuma limitação
normativa, seja de ordem material, seja formal, porque provém do exercício de
um poder de fato ou suprapositivo. Já as normas produzidas pelo poder reforma‑
dor, essas têm sua validez e eficácia condicionadas à legitimação que recebam da
ordem constitucional. Daí a necessária obediência das emendas constitucionais
às chamadas cláusulas pétreas. 4. O art. 78 do Ato das Disposições Constitucio‑
nais Transitórias, acrescentado pelo art. 2º da Emenda Constitucional 30/2000, ao
admitir a liquidação “em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo
de dez anos” dos “precatórios pendentes na data de promulgação” da emenda,
violou o direito adquirido do beneficiário do precatório, o ato jurídico perfeito e
a coisa julgada. Atentou ainda contra a independência do Poder Judiciário, cuja
autoridade é insuscetível de ser negada, máxime no concernente ao exercício do
poder de julgar os litígios que lhe são submetidos e fazer cumpridas as suas deci‑
sões, inclusive contra a Fazenda Pública, na forma prevista na Constituição e na
lei. Pelo que a alteração constitucional pretendida encontra óbice nos incisos III
e IV do § 4º do art. 60 da Constituição, pois afronta “a separação dos Poderes” e
“os direitos e garantias individuais”. 5. Quanto aos precatórios “que decorram de
ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999”, sua liquidação parcelada não
se compatibiliza com o caput do art. 5º da Constituição Federal. Não respeita o
princípio da igualdade a admissão de que um certo número de precatórios, oriun‑
dos de ações ajuizadas até 31-12-1999, fique sujeito ao regime especial do art. 78 do
ADCT, com o pagamento a ser efetuado em prestações anuais, iguais e sucessivas,
no prazo máximo de dez anos, enquanto os demais créditos sejam beneficiados
com o tratamento mais favorável do § 1º do art. 100 da Constituição. 6. Medida
cautelar deferida para suspender a eficácia do art. 2º da Emenda Constitucional
30/2000, que introduziu o art. 78 no ADCT da Constituição de 1988. [ADI 2.356 MC,
rel. min. Néri da Silveira, rel. p/ o ac. min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em
25-11-2010, DJE 94, divulgado em 18-5-2011.]

Entendo que as mesmas razões que levaram a Corte a suspender a eficácia da


moratória instituída pela EC 30/2000 impõem a declaração de inconstituciona‑
lidade da moratória trazida pela EC 62/2009.
Com efeito, a cláusula constitucional do Estado de Direito (CF, art. 1º, caput),
acompanhada do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (CF, art. 5º,

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ADI 4.425

XXXV), tem como núcleo a limitação jurídica do exercício do poder político.


Cuida-se da histórica busca da domesticação da administração pública com
uma espécie de barreira em face das arbitrariedades do Estado, notadamente
pela supremacia da lei (NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado
de Direito. Coimbra: Almedina, 2006. p. 40). Essa ideia de controlabilidade do
poder político a partir de parâmetros jurídico-normativos tem como origem
histórica mais imediata a superação do Estado absolutista, inicialmente pelo
ângulo formal, através da organização e da racionalização do aparelho adminis‑
trativo do Estado segundo o princípio da legalidade. Evoluiu, modernamente,
para uma concepção também substancial ou material, que “só adquire sentido,
justificação e inteligibilidade em função do respeito, garantia e promoção dos
direitos e liberdades fundamentais” (idem, p. 25), assim não mais se compade‑
cendo com uma espécie de “casca vazia de legalidade”, conforme consagrada
expressão de Ulrich Scheuner.
De qualquer modo, se a ideia de Estado de Direito caminha em direção à
supremacia da lei como baliza para a atuação administrativa, parece claro que
as garantias do acesso à justiça e da tutela jurisdicional efetiva representam
componentes imprescindíveis à concretização de tal princípio constitucional.
Incorrer-se-ia na mais retumbante incoerência caso fossem proclamadas com
tintas fortes as restrições de índole formal e material à atuação do Estado, mas
desacompanhadas de instrumentos que lhes assegurassem a observância in con-
creto, justamente ao que se destina a prestação jurisdicional. Em última análise,
em um cenário como este a própria violação das normas de direito material pelo
poder público seria relegada à irrelevância, já que impossível desencadear de
modo forçoso as consequências desse comportamento ilícito, no que tem des‑
taque a responsabilidade civil do Estado prevista no art. 37, § 6º, da Constituição.
Submissão à lei e sujeição às consequências pelo descumprimento desta mesma
lei, portanto, são conceitos que necessariamente devem andar juntos, por isso
que ninguém há de negar que a completa supressão do acesso e da efetividade
da tutela jurisdicional em face do poder público traduziria ofensa ao núcleo
essencial do princípio do Estado de Direito.
Diante desse quadro, as modificações introduzidas podem ser analisadas
sob três perspectivas: (i) a dos precatórios que venham a ser expedidos após a
promulgação da EC 62/2009; (ii) a dos precatórios já expedidos antes da entrada
em vigor da EC 62/2009; e (iii) a dos precatórios que, além de já terem sido expe‑
didos antes da entrada em vigor da EC 62/2009, já haviam sido submetidos aos
parcelamentos previstos no arts. 33 e 78 do ADCT ou que foram objeto de acor‑
dos judiciais ou extrajudiciais (ADCT, art. 97, § 15: “Os precatórios parcelados na

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ADI 4.425

forma do art. 33 ou do art. 78 deste Ato das Disposições Constitucionais Tran‑


sitórias e ainda pendentes de pagamento ingressarão no regime especial com o
valor atualizado das parcelas não pagas relativas a cada precatório, bem como
o saldo dos acordos judiciais e extrajudiciais”) – os acordos foram mencionados
no caput, parte final, do art. 97 (“sem prejuízo dos acordos de juízos conciliató‑
rios já formalizados na data de promulgação desta Emenda Constitucional”).
Sob quaisquer das três perspectivas, a sistemática implementada pela Emenda
Constitucional 62/2009 é medida estatal que aniquila o Estado Democrático de
Direito brasileiro e esvazia os postulados mais básicos do constitucionalismo,
incorporados ao núcleo duro da Carta cidadã de 1988.
Em primeiro lugar, ambos os modelos de moratória violam, a mais não poder,
a duração razoável do processo (CF, art. 5º, LXXVIII). Permitir que precatórios
judiciais sejam saldados em até quinze anos – ou em prazos até maiores, con‑
siderada a ausência de balizas temporais no modelo de parcelamento previsto
do art. 97, § 1º, II, do ADCT – é medida que ultrapassa qualquer senso de razoa‑
bilidade. Trata-se de intervalo de tempo evidentemente excessivo para o cum‑
primento de uma decisão judicial já transitada em julgado, sobretudo se levado
em consideração o processo já especial de execução contra a Fazenda Pública,
que não se sujeita à penhora de seus bens e detém, no mínimo, seis meses para
quitação de seus débitos judiciais (na forma do art. 100 da Constituição). A natu‑
reza abusiva da presente moratória constitucional é ainda mais evidente quando
considerado o fato de que precatórios já anteriormente parcelados pelos art. 33
e 78 do ADCT também poderão ser incluídos na nova prorrogação de prazo, ex
vi do art. 97, § 15, do ADCT. Ao final, é possível imaginar situações de precatórios
parcelados em oito anos, pelo art. 33 do ADCT, seguidos de novo parcelamento
por mais dez anos, na forma do art. 78 do ADCT, e agora passíveis de serem qui‑
tados em até quinze anos, consoante o novel art. 97 do ADCT.
Falece razão à Advocacia-Geral da União quando sustenta que a garantia da
razoável duração do processo seria inaplicável ao processamento dos precató‑
rios, por não se revestir de natureza jurisdicional, já que, alega-se, trata-se de ato
administrativo que sequer configuraria processo administrativo (fl. 2423). Ora, a
redação do inciso LXXVIII do art. 5º é suficientemente ampla, afirmando que “a
todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração
do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. E, como
assenta a doutrina, o instituto do processo administrativo retrata a “Administração
em movimento” (FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administra-
tivo. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 24), abrangendo “toda a atividade decisória da
Administração” (SUNDFELD, Carlos Ari. Processo e procedimento administrativo

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ADI 4.425

no Brasil. In: As leis de processo administrativo: Lei federal 9.784/99 e Lei paulista
10.177/98. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 19), sobretudo quando em pauta os interes‑
ses jurídicos dos administrados, como se passa evidentemente com o precatório.
A moratória criada pela EC 62/2009 compromete ainda o amplo acesso à
justiça e a plena efetividade da prestação jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV). É que
a fase executiva do processo é o momento fundamental de realização do direito,
etapa em que praticados os atos materiais necessários à entrega do bem da vida
àquele que, após o devido processo legal, foi reconhecido por sentença como
seu justo titular. Sob a ótica jusfilosófica, a execução restaura efetivamente a
ordem jurídica afrontada pela lesão, realizando a sanção correspondente à vio‑
lação. A atividade judicial que atua essa sanção é a própria execução, conforme
ensina Liebman em seu notável Processo de execução (São Paulo: Saraiva, 2003).
Por meio da atividade executiva, o Estado cumpre a promessa do legislador de
que, diante da lesão, o Judiciário deve atuar prontamente, de sorte a repará-la
a tal ponto que a parte lesada não sofra as consequências do inadimplemento.
Ao permitir que o pagamento de precatórios seja realizado em até quinze anos
(para não mencionar os casos que não têm prazo sequer definido, como já apon‑
tado), a EC 62/2009 frustrou a efetividade da tutela jurisdicional e embaraçou
o acesso à justiça. De que serve uma sentença condenatória incapaz de surtir
efeitos práticos? A resposta é simples e direta: nada. Uma sentença condenatória
despida de força executiva é incapaz de tutelar a esfera do cidadão, sob o ângulo
subjetivo, e insuscetível de restaurar a higidez da ordem jurídica, sob o prisma obje-
tivo. Um processo efetivo é aquele apto a proporcionar os resultados que almeja.
A moratória instituída pela EC 62/2009 frustra qualquer pretensão de efetividade
da tutela jurisdicional, fazendo com que o descumprimento das regras de direito
material fique desacompanhado de atos efetivos de execução por quantia certa.
E não se diga que a aludida emenda teria apenas postergado o cumprimento
de decisões condenatórias impostas ao poder público, como se algum dia no
futuro elas fossem cumpridas. A par de configurar em si mesmo problemática
à luz da duração razoável do processo (CF, art. 5º, LXXVIII), a moratória de hoje
é o prenúncio da moratória de amanhã. Basta observar a recente história do
Brasil. A primeira moratória, contida no texto originário da Carta Magna (ADCT,
art. 33), apresentou-se como solução excepcional para o problema da inadim‑
plência pública. Ledo engano. Pouco mais de uma década depois, a EC 30/2000
introduziu nova moratória, incluindo o art. 78 do ADCT. Mais uma vez a medida
foi bradada como solução. A promessa, porém, não foi cumprida: em 2009 surgiu
o presente “regime especial”, rótulo dissimulado para esconder a mais nova
moratória. Nada indica que essa seja a última. O círculo vicioso já está instalado.

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ADI 4.425

É bem provável que daqui a dez anos o Supremo Tribunal Federal seja novamente
chamado para avaliar a constitucionalidade de pretensos “regimes especiais”, que
em essência servem apenas para mascarar a realidade, dobrando as instituições
jurídicas segundo a conveniência do poder. E nessa afirmação não vai nenhum
prognóstico, senão apenas constatação objetiva diante da vergonhosa realidade
que marca a trajetória histórica do instituto do precatório.
A previsão de contingenciamento de recursos orçamentários para o paga‑
mento de precatórios também subverte o amplo acesso à justiça e a plena efeti‑
vidade da prestação jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV). Com efeito, beira as raias
do absurdo jurídico que a autoridade pública no Brasil, independentemente do
número de ilícitos que cometa, somente responda até certo limite, traduzido
em percentuais de receita corrente líquida. O que a EC 62/2009 introduz no
ordenamento brasileiro é uma grotesca espécie de imunidade parcial do Estado
à ordem jurídica, em franca colisão com a ideia de Estado de Direito, que clama
pela sujeição completa e irrestrita do poder ao império da lei (rule of law). A par‑
cela de condenações que sobeje o limite fixado pelo constituinte reformador não
seria atendida de plano, deixando o cidadão cujo direito já foi reconhecido pelo
Poder Judiciário ao sabor dos caprichos da autoridade. O ponto foi precisamente
apontado por Marçal Justen Filho, em lição que merece transcrição, in verbis:
A sistemática [da EC 62/2009] também produz a eliminação da responsabilidade
civil da Fazenda Pública de Estados, Distrito Federal e Municípios.
Com a EC n. 62, esses entes estatais adquirem a opção de não cumprir as suas
obrigações pecuniárias, reconhecidas como devidas por sentença judicial. Mais
precisamente, a satisfação de obrigações pecuniárias dependerá do valor da arreca‑
dação futura. Ou seja, será indiferente à Fazenda Pública o cometimento de ilícitos e
infrações. A condenação judicial ao pagamento de importância certa não produzirá
efeito prático e concreto, eis que existirá uma limitação orçamentária ao pagamento.
Nenhum valor superior ao limite orçamentário deverá ser destinado à satisfação
da responsabilidade civil do Estado. Portanto, o Estado estará liberado para infrin‑
gir o Direito e ignorar as ordens judiciais. Estará sendo concedida a imunidade
ao Estado para quaisquer descalabros, eis que se traduzirão eles em dívidas que
constitucionalmente não precisam ser liquidadas.
Em outras palavras, será estabelecido um limite quantitativo e numérico para a
responsabilização civil do Estado, uma espécie de franquia ou patamar máximo de
subordinação da Fazenda Pública ao dever de pagar indenização devida a outrem
em virtude da prática de atos ilícitos. A partir de certo valor, o Estado estará legi‑
timado para atuar como bem o entender, para descumprir o Direito, para lesar
os particulares, para espezinhar os direitos, eis que a Constituição assegurará a
ausência de efeito jurídico concreto. Não fará diferença jurídica a Fazenda Pública

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ADI 4.425

ser responsabilizada por um centavo a mais, depois de ultrapassado o limite da


incidência do sistema previsto na EC.
Anote-se que a essência da responsabilidade civil do Estado se relaciona com a
vinculação ao dever de indenizar as perdas e danos, na medida da sua extensão.
Quando se impõe ao Estado a obrigação de compor os prejuízos derivados de sua
atuação defeituosa ou quando se determina a ele o dever de cumprir o Direito,
não se admite uma reserva limitativa em vista de valores pecuniários. [JUSTEN
FILHO, Marçal. Emenda Constitucional 62/2009: Estado Democrático de Direito
e responsabilidade civil do Estado. In: JUSTEN FILHO, Marçal; NASCIMENTO, Carlos
Valder do. Emenda dos precatórios: fundamentos de sua inconstitucionalidade.
Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 76.]

E não é só. A moratória instituída pela EC 62/2009 ultraja ainda a Separação


de Poderes (CF, art. 2º), o direito adquirido e a coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI),
no mínimo quanto aos precatórios já expedidos na data de sua promulgação.
Foi o que registrou com precisão o ministro Néri da Silveira, no julgamento da
ADI 2.362, ao consignar a moratória do pagamento de precatórios, verbis:
se não chega a anular a decisão judicial trânsita em julgado, de que resultou o pre‑
catório pendente, nem este, não menos certo é que, se houvesse de incidir a regra
impugnada, lhes retiraria a possibilidade de imediata eficácia garantida pelo art. 100,
§ 1º, da Constituição, na redação original, com o pagamento de precatório pendente,
no máximo, até o final do exercício seguinte, com evidente desprestígio à autoridade
da sentença judiciária trânsita em julgado, ao determinar à Fazenda Pública o paga‑
mento de quantia certa ao credor, assim prejudicado, e cujo precatório já se expe‑
dira, com a garantia constitucional de pagamento até o final do exercício seguinte.

E arremata:
Essa circunstância autoriza invocar-se, aqui, também, a norma do art. 60, § 4º, III,
da Lei Maior, pois, quanto aos “precatórios pendentes”, a deliberação do Congresso
Nacional veio a privar da imediata eficácia a decisão judicial, com o cumprimento
do precatório já pendente de pagamento, atentando contra a independência do
Poder Judiciário, cuja autoridade é insuscetível de ser coarctada, máxime, no que
concerne ao exercício do poder de julgar os litígios que lhe são submetidos e fazer
cumpridas as suas decisões, inclusive contra a Fazenda Pública, na forma prevista
na Constituição e na lei, sendo correto no ponto que essa parte sucumbente não
possui, no ordenamento jurídico instituído originariamente pela Constituição
de 1988, o privilégio de poder satisfazer suas obrigações de pagar decorrentes de
sentenças judiciárias em prazos dilatados e prestações anuais.

É exatamente o que ocorre com a EC 62/2009, que permite que decisões


emanadas do Poder Judiciário, já definitivamente constituídas e revestidas de

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exigibilidade, percam, repentinamente, sua força executiva. Em um autêntico


Estado de Direito não há alternativa: pronunciamentos judiciais devem ser cum‑
pridos por quem quer que seja, inclusive pelo Estado. O desrespeito à autoridade
do Poder Judiciário representa escárnio à nobre função jurisdicional, que ao ser
assim tratada se assemelharia a “mera atividade lúdica”, como bem pontuou o
eminente ministro relator. Não há ofensa mais patente ao núcleo da Separação
de Poderes e da coisa julgada do que a aprovação de ato legislativo que chancele
o absurdo quadro patológico de descumprimento de decisões judiciais, acenando
com a promessa vã, porquanto já desmentida pela história, de que um suposto
pagamento ocorrerá no futuro (remoto!).
Também merecem censura, sob o ângulo constitucional, as regras introduzidas
pela EC 62/2009 que afastam o critério cronológico de apresentação dos preca‑
tórios para fins de determinar a ordem de satisfação dos débitos pela Fazenda
Pública. Trata-se dos seguintes critérios: (i) o leilão por maior deságio, (ii) o paga‑
mento dos débitos em ordem crescente e (iii) negociação direta com o credor.
Os dois primeiros critérios, a meu sentir, violam, de modo ostensivo, a moralidade
administrativa, impessoalidade republicana e a igualdade entre os cidadãos.
O leilão por maior deságio é prática verdadeiramente antijurídica, porquanto
incentiva o cidadão a abrir do seu direito, já reconhecido em juízo, para ver-se
satisfeito. E o pior: aquele que dispor de parcela maior terá mais chances de
receber algum valor. No limite, a medida incentiva um verdadeiro perdão de
dívida, como se o errado fosse receber o que de direito. É a completa inversão
da ordem natural das coisas. Aquele que deve tem de pagar, sobretudo quando
se trata do Estado, cuja sanha arrecadatória não deixa escapar qualquer centavo
do contribuinte. Configura ato atentatório à moralidade administrativa, na ver‑
tente da boa-fé e da lealdade, portar-se de maneira tão contraditória enquanto
credor e devedor. O ilícito perpetrado pelo poder público deve ser sanado na
exata extensão em que reconhecido pelo Estado-juiz.
E não se diga que opção pelo leilão é puramente voluntária, representando
ato de disposição livre de cidadãos autônomos. A pergunta que se coloca aqui
é simples e direta: há manifestação válida e livre de vontade do credor, no sis‑
tema de precatório, em que a perspectiva de pagamento é remota? A resposta
é categórica: não. Como bem destacado pela Ordem dos Advogados do Brasil,
“caso não opte por participar, dos valores disponíveis em orçamento, apenas 50%
é que sobram para o pagamento dos créditos em ordem cronológica, situação
essa que impõe àquele credor que não participa a amargura de esperar mais
tempo para ver seu crédito solvido” (grifos no original). E é isto que realmente
ocorrerá: caso não “opte” por receber menos que lhe é de direito, o cidadão não

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ADI 4.425

terá ideia de quando receberá seu crédito. Na prática, o poderio do Estado, que
apenas remotamente paga o que deve de maneira correta, é utilizado como forma
de coação velada para forçar a renúncia parcial do crédito pelo cidadão. Não há
aí, portanto, verdadeira escolha ou exercício pleno de autonomia da vontade.
Outrossim, não há cabimento na comparação travada pela Advocacia-Geral
da União (fls. 2421-2) entre a cessão onerosa do precatório a terceiros e o leilão
por maior valor de deságio. Por um lado, as situações guardam a única seme‑
lhança de permitir o pagamento de precatórios por montante inferior ao valor
de face, o que só é imaginável ante o dramático quadro de inadimplência do
Estado brasileiro. A similitude, no entanto, para por aí. É que, enquanto a cessão
onerosa a terceiros representa mera resposta do mercado ao aludido problema,
o mecanismo de leilão criado pela EC 62/2009 caracteriza tentativa de o Estado
valer-se da própria torpeza. O deságio é consequência imediata da falta de liqui‑
dez do título. Falta de liquidez, por seu turno, ocasionada pela recalcitrância dos
Estados em cumprir pontualmente suas obrigações pecuniárias. A existência de
oportunistas no mercado que tiram proveito dessa circunstância em prejuízo
dos credores não justifica que o Estado, único responsável pela baixa liquidez do
título, se comporte da mesma maneira, afinal é o Estado o responsável pela baixa
liquidez do título. E mais além: a existência de um sistema de leilão por maior
valor do deságio representaria incentivo para que o Estado continuasse a não
cumprir suas obrigações, agravando a iliquidez dos precatórios e aumentando o
deságio no pagamento das suas sentenças condenatórias. Em poucas palavras:
o sistema de incentivos gerado pelo modelo de leilão proporciona resultados
contrários aos colimados pela Lei Maior.
O pagamento de débitos em ordem crescente também afronta a ordem cons‑
titucional pátria. É que não importa por quanto tempo um credor possa já estar
aguardando seu pagamento, se surgir novo débito da Fazenda em menor mon‑
tante, este será satisfeito com preferência. No limite, se a importância devida
for vultosa, seu credor poderá ser eternamente preterido e jamais satisfeito,
sobretudo porque a parcela de valores destinados ao pagamento cronológico é
consideravelmente inferior ao atual passivo das entidades devedoras. Essa cir‑
cunstância agride o princípio constitucional da igualdade entre os cidadãos, cuja
distinção, em termos de quitação de precatórios, deve se basear no tempo em que
já se encontram aguardando o que lhes cabe. Aliás, o Plenário do Supremo Tribu‑
nal Federal já rechaçou a validade de qualquer regime jurídico que estabelecesse
distinção no pagamento de precatórios a partir do valor do crédito. A ementa da
ADI 1.098, rel. min. Marco Aurélio, registrou a precisa conclusão, verbis:

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ADI 4.425

Precatório – Valor real – Distinção de tratamento. A Carta da República homenageia


a igualação dos credores. Com ela colide norma no sentido da satisfação total do
débito apenas quando situado em certa faixa quantitativa.

Em face de todo o exposto, comungo do entendimento do relator, que, atento


às vozes da sociedade, bem qualificou a presente emenda constitucional como
“emenda do calote”. Acolho, portanto, a arguição de inconstitucionalidade mate‑
rial do art. 100, § 15, da Constituição e do art. 97 do ADCT em sua integralidade,
por manifesto ultraje à cláusula constitucional do Estado de Direito (CF, art. 1º,
caput), ao princípio da Separação de Poderes (CF, art. 2º), ao postulado da iso‑
nomia (CF, art. 5º), à garantia do acesso à justiça e à efetividade da tutela juris‑
dicional (CF, art. 5º, XXXV), ao direito adquirido e à coisa julgada (CF, art. 5º,
XXXVI), todos limites materiais ao poder de reforma da Constituição, nos termos
do art. 60, § 4º, III e IV, da Carta Magna.

III. Considerações finais


Antes que se passe ao final do presente voto, são necessárias algumas consi‑
derações quanto ao quadro atual dos precatórios no Brasil.
Na sua origem, o instituto jurídico do precatório foi pensado como medida
de eficiência administrativa. Por seu intermédio, a Fazenda Pública é blindada
contra atos constritivos que, de outra forma, poderiam, repentinamente, preju‑
dicar a consecução do interesse coletivo. Daí que as condenações pecuniárias
impostas ao Estado somente serão cumpridas no exercício financeiro seguinte
àquele em que prolatadas, e mesmo assim se apresentadas ao presidente do tri‑
bunal até julho do ano em questão. Do contrário, se apresentadas em momento
posterior, serão incluídas no orçamento do segundo exercício seguinte àquele
em que tomadas. Prestigia-se, sob este ângulo, a boa gestão dos serviços públi‑
cos, criando espaço suficiente para o devido planejamento orçamentário e a
racionalidade gerencial da esfera pública.
Para além da eficiência, o ideal republicano também motivou a criação do
modelo especial de execução pecuniária da Fazenda Pública. Nesse sentido, o
regime de pagamentos na forma de precatórios – essencialmente vinculado à sua
ordem cronológica de apresentação – pretende evitar favorecimentos injustifica‑
dos ou perseguições indevidas, resguardando a impessoalidade e a moralidade
que devem presidir a administração da res publica. Não por outra razão o ministro
Celso de Mello, com o brilhantismo peculiar, pontuou que “a exigência consti‑
tucional pertinente à expedição de precatório – com a consequente obrigação
imposta ao Estado de estrita observância da ordem cronológica de apresentação
desse instrumento de requisição judicial de pagamento – tem por finalidade (a)

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ADI 4.425

assegurar a igualdade entre os credores e proclamar a inafastabilidade do dever


estatal de solver os débitos judicialmente reconhecidos em decisão transitada
em julgado (RTJ 108/463), (b) impedir favorecimentos pessoais indevidos e (c)
frustrar tratamentos discriminatórios, evitando injustas perseguições ou prete‑
rições motivadas por razões destituídas de legitimidade jurídica” (Rcl 2.143 AgR,
rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 12-3-2003, DJ de 6-6-2003).
Ocorre que a práxis administrativa brasileira subverteu, por completo, o espírito
do instituto, que de instrumento de uma República eficiente passou a símbolo
vergonhoso da fragilidade do regime democrático nacional. Com efeito, ao longo
de mais de duas décadas de vigência da Carta de 1988, o montante de precatórios
pendentes de pagamento por Estados e Municípios já se aproxima de 88 bilhões
de reais, segundo levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça até
julho de 2012. Desse total, 70% são devidos por entes da região Sudeste, área mais
rica do território nacional. Diante de números tão escandalosos, deve-se questio‑
nar se realmente o Brasil é um Estado Democrático de Direito. Um país em que a
autoridade pública não se dobra aos ditames da lei – nem mesmo quando deter‑
minadas por sentença judicial – não se pode dizer verdadeiramente democrático.
Essa perplexidade é ainda maior quando se constata a desigualdade gritante
que marca a situação jurídica dos credores do poder público no Brasil. Para
certos segmentos sociais, notadamente os mais abastados, o regime de pre‑
catórios sequer se coloca. Exemplo eloquente do que me refiro é a recente Lei
11.079/2004, a Lei das Parcerias Público-Privadas, que, no intuito de atrair inves‑
tidores particulares, sobretudo instituições financeiras, criou a figura do Fundo
Garantidor das Parcerias Público-Privadas (FGP). O fundo, segundo a lei, terá
natureza privada e patrimônio próprio, separado das entidades federativas que
o instituíram (art. 16, § 1º). O objetivo é bem claro: retirar do caminho o regime
de execução por precatório, cuja falência evidente afastaria qualquer investidor
sério e cauteloso. Em outras palavras, a legislação infraconstitucional brasileira
carrega estampada em si a marca da diferença: para credores que interessam ao
Estado, o regime de execução é equiparável ao de particulares; para os demais,
o precatório, cujos níveis de inadimplência são aviltantes. O modelo fracassado,
portanto, é seletivo e só atinge os mais fracos.
E não se diga que o problema não será resolvido porque não existem recur‑
sos disponíveis. A EC 62/2009 teve o mérito de escancarar a realidade do (falso)
drama dos precatórios no Brasil: os recursos para pagamento, de fato, existem.
Tanto existem que, na semana passada, as Fazendas devedoras percorreram
os gabinetes dos ministros desta Corte com o objetivo de revelar que, após a
EC 62/2009, teria ocorrido um aumento do volume de pagamento de precatórios.

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ADI 4.425

Ora, emenda constitucional não cria dinheiro. Se após a EC 62/2009 o volume


de pagamentos aumentou, sinal é que a crônica recalcitrância das entidades
públicas no pagamento de suas obrigações, longe de decorrer de uma pretensa
escassez de recursos, têm raízes, isto sim, em uma vexatória escassez de vontade
política de cumprir a ordem judicial.
Essa constatação quanto à efetiva existência de recursos públicos capazes de,
ao menos em parte, fazer frente ao volume de precatórios devidos é corroborada
pelos dados concretos trazidos ao julgamento pelo eminente ministro Ayres
Britto, ao apontar que “o cenário de colapso financeiro do Estado não parece
ser verdadeiro, ao menos na extensão em que se alardeia”. Os recursos existem
sim. Estão apenas sendo mal administrados por governantes inescrupulosos
que, pela sua omissão, negam a essência do Estado de Direito há pelo menos
duas décadas no Brasil.
Também não me sensibilizo com o argumento de que a EC 62/2009 teria
avançado na consolidação do Estado de Direito no Brasil, na medida em que,
pela primeira vez, estariam ocorrendo pagamentos regulares de precatórios
pelos Estados, Municípios e pelo Distrito Federal. Segundo essa visão, só teria
sentido declarar a inconstitucionalidade da EC 62/2009 se ela representasse,
realmente, um retrocesso, não em relação a um projeto ideal de Constituição,
mas em relação a nossa realidade do art. 100.
O equívoco dessa visão está em supor uma dicotomia rígida entre o passado
essencialmente cruel de completa inadimplência estatal e o presente não menos
cruel em que há algum pagamento de precatórios. Ocorre que entre a realidade
e o ideal existem inúmeras opções factíveis de solução do crônico problema dos
precatórios no Brasil. Soluções essas que, diferentemente do regime especial ins‑
tituído pela EC 62/2009, não impõem ao credor do poder público todo o ônus da
inadimplência estatal. A primeira delas está no próprio § 16 do art. 100 da Cons‑
tituição, incluído pela mesma EC 62/2009, que prevê a possibilidade de refinan‑
ciamento dos precatórios estaduais e municipais diretamente pela União. Des‑
taque-se ainda o exemplo concreto trazido da tribuna pelo ilustre representante
da Ordem dos Advogados do Brasil, em que se indicou a utilização no Estado do
Mato Grosso de engenhosos arranjos financeiros voltados para o aproveitamento
inteligente da dívida pública já existente como forma de, por um lado, alavancar
recursos para projetos relevantes de interesse público (v.g., financiamento de
infraestrutura) e, de outro lado, não deixar desemparado o credor privado.
O que salta aos olhos na análise da constitucionalidade da EC 62/2009 é a
extrema facilidade e criatividade com que se formulam soluções que preservam –
quando não verdadeiramente premiam – a Fazenda Pública devedora, onerando,

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ADI 4.425

em contrapartida, exclusivamente os seus credores. Por mais contraditório que


isto possa parecer: em matéria de precatórios no Brasil, quem sempre paga a
conta é o credor. E o pior: não é esta a primeira vez (relembrem-se as moratórias
do art. 33 e do art. 78 do ADCT). Não há por que acreditar que agora esta seja a
solução, sobretudo se considerados:
(i) os ínfimos percentuais da receita corrente líquida que são vinculados ao
pagamento de precatórios, os quais, como apontado pelo i. ministro Ayres Britto,
poderão, em alguns casos, só ser quitados daqui a mais de cinquenta anos; e
(ii) o absurdo sistema de leilão por maior deságio, que, na realidade, esconde
a inadimplência do poder público com o pagamento de precatórios com valores
muito inferiores ao respectivo valor de face, sem que haja adesão verdadeira‑
mente opção ao credor.
Em suma, não se pode dizer que a EC 62/2009 representou verdadeiro avanço
enquanto existir a possibilidade de pagamento precatório por valor inferior ao
efetivamente devido e em prazo que pode chegar a mais de cinquenta anos. É pre‑
ciso que a criatividade de nossos legisladores seja colocada em prática conforme
a Constituição, de modo a erigir um regime regulatório de precatórios que resolva
essa crônica problemática institucional brasileira, sem, contudo, despejar nos
ombros do cidadão o ônus de um descaso que nunca foi seu.
Ex positis, julgo procedentes, em parte, os pedidos de declaração de inconsti‑
tucionalidade da EC 62/2009 veiculados nas presentes ações diretas para
(i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “na data de expedição do
precatório” contida no § 2º do art. 100 da Constituição, porquanto violadora
do núcleo essencial da isonomia (CF, art. 5º, caput), em sua dimensão formal,
ao instituir verdadeira discriminação arbitrária em detrimento de credores da
Fazenda Pública que completem 60 anos após a expedição do precatório, porém
antes do respectivo pagamento;
(ii) declarar a inconstitucionalidade dos §§ 9º e 10 do art. 100 da Constituição,
que instituem um modelo unilateral de compensação de créditos da Fazenda
para fins de abatimento do valor dos precatórios no momento de sua expedição,
por desrespeito à igualdade (CF, art. 5º, caput) que deve presidir as relações entre
Estado e particular;
(iii) afastar a expressão “índice oficial de remuneração da caderneta de pou‑
pança”, quanto à atualização monetária dos créditos em precatórios, contida
no § 12 do art. 100 da CF, por manifesta violação ao direito de propriedade (CF,
art. 5º, XXII) e ao postulado da proporcionalidade, extraível da garantia do devido
processo legal substantivo (CF, art. 5º, LIV), inegáveis limites materiais ao poder
de reforma da Constituição (CF, art. 60, § 4º, IV);

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(iv) afastar, por arrastamento, a mesma expressão (“índice oficial de remu‑


neração da caderneta de poupança”) contida no art. 1º-F da Lei 9.494/1997, com
redação pelo art. 5º da Lei 11.960/2009;
(v) declarar a inconstitucionalidade material de todo o regime especial de
pagamentos, autorizado pelo § 15 do art. 100 da CF/1988 e detalhado, transito‑
riamente, no caput e nos parágrafos do art. 97 do ADCT, por manifesto ultraje
à cláusula constitucional do Estado de Direito (CF, art. 1º, caput), ao princípio
da Separação de Poderes (CF, art. 2º), ao postulado da isonomia (CF, art. 5º), à
garantia do acesso à justiça e a efetividade da tutela jurisdicional (CF, art. 5º,
XXXV), ao direito adquirido e à coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI), todos limites
materiais ao poder de reforma da Constituição (CF, art. 60, § 4º, III e IV).
Consoante os fundamentos já apresentados, rejeito as seguintes alegações de
inconstitucionalidade imputadas à EC 62/2009:
(i) caracterização de vício de forma durante o processo de tramitação, suposta‑
mente caracterizado pela votação e aprovação da aludida emenda constitucional
em duas sessões realizadas no mesmo dia, com menos de uma hora de intervalo;
(ii) ultraje à isonomia (CF, art. 5º, caput), à eficiência e à moralidade admi‑
nistrativas (CF, art. 37, caput), à coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI) e à Separação
de Poderes (CF, art. 2º) pela parte final do § 12 do art. 100 da Constituição, ao
fixar como índice de juros moratórios incidentes sobre precatórios o “mesmo
percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança, ficando excluída
a incidência de juros compensatórios”. O voto pela rejeição do pedido quanto a
essa impugnação depende do acolhimento, pela Corte, da tese segundo a qual
resta afastada do ordenamento jurídico brasileiro qualquer previsão legal ou
administrativa que fixe critério distinto de cômputo dos juros moratórios devi‑
dos pelo cidadão à Fazenda Pública.
É como voto.

VOTO
(Sobre preliminar)
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, peço vênia para ir um pouco além e
concluir que também não há a legitimidade da Associação dos Magistrados Bra‑
sileiros (AMB) e da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho.
Por que o faço? Porque não vislumbro, ante a representação dessas associações, a
pertinência temática. Os juízes são realmente atores no processo, mas são atores
equidistantes. Não há o ataque – ainda se poderia cogitar do interesse dos magistra‑
dos como credores – à definição de como se deve satisfazer os créditos alimentícios.

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ADI 4.425

Por isso, concluo pela ilegitimidade das três associações. Quanto à Associação
Nacional dos Magistrados Estaduais, há esse outro problema, que diz respeito à
absorção da representatividade pela AMB.

ESCLARECIMENTO
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, como o eminente ministro Marco
Aurélio fez esse adendo, talvez seja importante já encaminharmos essa questão
da ilegitimidade.
Então, destaquei bem a ilegitimidade da Anamages porque isso é uma matéria
já pacificada no seio do Plenário.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Luiz Fux: Ad causam, exatamente.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
A sra. ministra Cármen Lúcia: Eu também, até monocraticamente.
O sr. ministro Luiz Fux: Agora, como o ministro Marco Aurélio trouxe luzes
sobre essa outra questão, eu gostaria de entender que, efetivamente, as demais
associações têm essa legitimidade. A Anamatra porque há um dispositivo espe‑
cífico que retinha a competência constitucional dela para centralizar os precató‑
rios dos tribunais de justiça estaduais, mesmo que os débitos sejam oriundos de
decisões trabalhistas. E, com relação à AMB, há uma pluralidade de causa petendi
aqui nestas ações, entre outras, que o regime especial vai infirmar coisa julgada,
vai postergar a duração razoável dos processos, vai desrespeitar a autoridade
das decisões judiciais. Então, há total pertinência no sentido da legitimatio ad
causam de todas essas outras entidades que não a Anamages.
Por essa razão, Senhor Presidente, eu estou enfrentando as demais ações de­­
claratórias de inconstitucionalidade.

VOTO
(Sobre preliminar)
A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, acompanho o ministro Marco
Aurélio quanto à Anamatra porque, a despeito de haver essa pertinência, fiz
constar nos meus estudos exatamente que, como aqui estamos falando de con‑
trole abstrato, mesmo havendo a referência à competência, como o ministro Fux
alerta, seriam aquelas entidades que tivessem legitimidade, porque não se está
cuidando de interesse subjetivo de quem quer que seja, ou de qualquer pessoa.
Essa a razão pela qual acompanho o ministro Marco Aurélio não apenas

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ADI 4.425

quanto à Anamages, acompanhando o ministro Fux, mas também quanto à


Anamatra. Conheço apenas quanto à AMB, que congrega todas as entidades.
O sr. ministro Marco Aurélio: Diverge apenas quanto à Associação dos Ma­­
gistrados Brasileiros, que passaria a ter legitimação como a do Conselho Federal
da Ordem dos Advogados do Brasil, ou seja, universal?
A sra. ministra Cármen Lúcia: Exatamente. Então, neste caso só é que eu
acolho, mas acompanho em parte também o ministro Marco Aurélio.

VOTO
(Sobre preliminar)
O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, vou acompanhar o ministro
Marco Aurélio e a ministra Cármen Lúcia, inclusive quanto às associações de
magistrados. Não há uma relação de pertinência temática entre os fins institucio‑
nais dessas entidades com a finalidade, aqui proposta, de julgar inconstitucional
uma emenda constitucional sobre precatórios judiciais. Essa é uma pretensão
que envolve a higidez da ordem jurídica constitucional.
De modo que não vejo relação direta entre os fins institucionais de uma asso‑
ciação de magistrados com o objeto dessa ação. Eu julgo extinta a ação tanto em
relação à ADI 4.372 quanto em relação à ADI 4.400.

VOTO
(Sobre preliminar)
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, peço vênia para acompanhar,
quanto às preliminares, o ministro Luiz Fux, reconhecendo legitimatio ad causam
ativa à AMB e à Anamatra para as presentes ações.
Eu não reconheço legitimatio ad causam ativa exclusivamente à Anamages,
extinguindo o processo, sem resolução do mérito, quanto a ela.

VOTO
(Sobre preliminar)
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, enquanto o ministro
Dias Toffoli não vem, encontra-se temporariamente ausente, eu, consultando os
estatutos da Associação dos Magistrados Brasileiros, verifico que, no art. 2º, X,
consta que, entre as finalidades desta entidade, encontra-se a defesa do Estado
democrático e a preservação dos direitos e garantias individuais e coletivos.
Como o ministro Luiz Fux salientou, há, sim, uma pluralidade de pedidos ou

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de objeto, no que diz respeito a essas ações que foram ajuizadas pela AMB. Pelo
que o ministro Luiz Fux relatou, verifica-se que os direitos fundamentais estão,
sem dúvida, em causa, inclusive a razoável duração do processo. No entanto, vou
pedir vênia para acompanhar a divergência aberta pela ministra Cármen Lúcia;
acompanhando, de certa maneira, em parte, o ministro Marco Aurélio e o ministro
Teori Zavascki, para excluir também a Anamatra, porque não vejo nela uma legiti‑
mação universal, como se reconhece, por exemplo, ao Conselho Federal da Ordem
dos Advogados, e, também, aí, acompanhando o relator, excluo a Anamages.
Então, reconheço apenas a legitimidade ativa da AMB.

ESCLARECIMENTO
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, apenas para facilitar a proclamação
do resultado. Na verdade, estou trazendo um voto-vista, e estão se referindo a
mim como se fosse o relator. O relator foi o ministro Ayres, que não considerou
nenhuma parte ilegítima. Tem que computar o voto dele, levando em consideração
que todas têm legitimidade, inclusive a Anamages. Ele considerou todas legítimas.
Eu não sou o relator.

VOTO
(Sobre preliminar – Aditamento)
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, apenas um esclare‑
cimento, eu acho que o ministro Celso de Mello levantou uma questão impor‑
tante. Eu quero também afirmar que não reconheço à AMB essa legitimação
universal, só que, tendo em conta o que disse o ministro Fux, vendo a realidade
do processo, examinado o pedido e confrontando com os estatutos, eu vejo que
há uma pertinência temática.

VOTO
(Sobre preliminar – Aditamento)
A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, também quero fazer essa res‑
salva, exatamente nessa linha, porque o ministro Marco Aurélio até me indagou:
como a OAB? Mas, na verdade, considero que, neste caso, ela tem legitimidade
por haver, como afirma o ministro Fux e realço agora, matérias postas em julga‑
mento como causa de pedir com pertinência aos seus fins.
Mas eu não reconheço a legitimação universal.

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O sr. ministro Marco Aurélio: Em síntese, porque os juízes congregados


dirigem os processos. É isso!
O sr. ministro Luiz Fux: Não, basicamente aqui...
O sr. ministro Marco Aurélio: Para mim, o sistema não fecha, porque, no
caso de impugnação a uma norma instrumental comum, também teremos que
reconhecer a legitimidade.
O sr. ministro Luiz Fux: Por exemplo, Senhor Presidente, alega-se que a deci‑
são é proferida, a sentença prolatada, transita em julgado, gera um quantum
debeatur, e, depois disso, o Executivo diz que a parte não tem o direito de receber
aquilo que transitou em julgado, mas, sim, uma outra importância que vai ser
aferida pelo Executivo. Então também há uma alegação de violação da cláusula
pétrea da separação de Poderes, tem essa pertinência a que Vossa Excelência se
referiu e que o ministro Lewandowski, com apoio na legislação infraconstitucio‑
nal, levou também a ministra Cármen Lúcia a entender da legitimação da AMB.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Luiz Fux: Não.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Ela não está incluída naquela relação do 103.
O sr. ministro Luiz Fux: Mas nós temos a jurisprudência no sentido de que,
quando há essa pertinência, é admissível a legitimatio.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Luiz Fux: Exatamente.

VOTO
(Sobre preliminar)
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Eu acompanho o voto do minis‑
tro Celso de Mello, não entendo que haja legitimação universal para a AMB.
A exemplo do relator, também excluo a Anamages e a Anamatra, acompanhando
o ministro Marco Aurélio.

DEBATE
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, então, vamos uniformizar isso para
facilitar. Eu imagino que, na verdade, na essência, o que o Plenário quis estabele‑
cer foi o seguinte: são partes ilegítimas a Anamages e a Anamatra; de resto, a AMB,
apesar de não ser legitimada universal, em caso, tem a legitimação. Isso resolve.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): A ADI 4.372, nesse caso, está
extinta.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  207


ADI 4.425

O sr. ministro Luiz Fux: E a ADI 4.400 também.


O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): A 4.400 e a 4.372; prosseguem
as duas: 4.357 e 4.425.
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, quanto à legitimidade da Asso‑
ciação dos Magistrados Brasileiros, apenas para ficar estreme de dúvidas, fico
vencido na companhia honrosa do ministro Teori Zavascki.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Acompanharam o ministro Fux,
que tinha vista do processo. Ficaram extintas, portanto, as ADI 4.372 e 4.400.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ele não tocou nessa questão.
O sr. ministro Luiz Fux: Não, não. Ele admitiu.
A sra. ministra Rosa Weber: Ele admitiu.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Acompanhando o ministro Fux,
na verdade, porque o ministro Britto não mencionou a questão da...
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Implicitamente.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Ele admitiu a legitimidade ativa.
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, quais são os vencidos em
relação à Anamatra? Desculpe-me, fiquei perdida na conta.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Só o ministro relator.
A sra. ministra Rosa Weber: O ministro Luiz Fux, o ministro Dias Toffoli e
eu. Não ouvi como votou o ministro Gilmar Mendes com relação à Anamatra.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): O ministro Gilmar acompanhou
o ministro Fux.
A sra. ministra Rosa Weber: Porque, na verdade, o ministro relator rejeitou
a preliminar, ou seja, reconheceu a legitimatio ad causam de todas as associa‑
ções. Eu acompanhei o ministro Luiz Fux no sentido de excluir exclusivamente
a Anamages. O ministro Dias Toffoli também, e entendi que o ministro Gilmar
Mendes também.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
A sra. ministra Rosa Weber: São cinco vencidos então.

APARTE
O sr. ministro Marco Aurélio: Vossa Excelência me permite?
Vossa Excelência, então, assenta que, para se ter a aprovação da lei orgânica
do Município, há de se respeitar o interstício.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  208


ADI 4.425

O sr. ministro Luiz Fux: Isso.


O sr. ministro Marco Aurélio: Assenta também que, para se ter a aprovação
da verdadeira constituição, que é a Lei Orgânica do Distrito Federal, há necessi‑
dade de se observar o interstício.
O sr. ministro Luiz Fux: E ainda não concluí, mas vou concluir.
O sr. ministro Marco Aurélio: Mas, para alterar-se a Carta da República, a
Lei Maior do País, diz que não há necessidade do interregno!
O sr. ministro Luiz Fux: Eu vou concluir, ainda, Senhor Presidente, se for
possível, aí, depois, eu me submeto ao debate do Plenário.

ESCLARECIMENTO
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, eu aqui chamo a atenção para um
raciocínio consequencialista que foi levado a efeito aqui quando da última deli‑
beração sobre, digamos assim, no meu modo de ver, um costume constitucional
contra legem, que foi abonado pelo Plenário em relação ao processo legislativo.
Evidentemente que eu estou trazendo com um tom de adversidade, porque eu
votei vencido. Mas o que há de imbricação com aquela hipótese é o seguinte: é
que eu não tenho a menor dúvida de que todas as emendas constitucionais não
obedeceram a esse interstício.
Aqui, sob o ângulo consequencialista, vai-se colocar o mesmo problema: me­­
dida provisória...
O sr. ministro Marco Aurélio: O Regimento Interno das Casas é algo lírico,
simplesmente formal?
O sr. ministro Luiz Fux: Nós ficamos vencidos naquela oportunidade.
O sr. ministro Marco Aurélio: Porque Vossa Excelência fez uma afirmação
peremptória, e não poderia, por falta de conhecimento talvez, subscrevê-la, ou
seja, de que todas as emendas foram aprovadas sem observância do interregno
entre uma votação e outra.
O sr. ministro Luiz Fux: Não, Ministro Marco Aurélio, eu estou fazendo aqui
uma ilação, realmente, porque todas as medidas provisórias foram votadas assim.
Depois, nós vimos que os vetos também não obedeceram ao processo legislativo.
O sr. ministro Marco Aurélio: Será que todas, Excelência?
O sr. ministro Luiz Fux: Não, eu não sei. Eu posso, eventualmente, fazer...
O sr. ministro Marco Aurélio: Presumo o que normalmente ocorre, e, para
mim, a observância do arcabouço normativo – não estou a me referir apenas à
Carta, tão mal-amada, que é a da República – é o que se deve presumir.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  209


ADI 4.425

O sr. ministro Luiz Fux: Não, eu também acho. É por isso que ficamos ven‑
cidos na última vez.
O sr. ministro Marco Aurélio: Mesmo porque tenho o Congresso em alta conta!
O sr. ministro Luiz Fux: Mas eu temo que as emendas tenham sido aprovadas
sem essa obediência, tendo em vista os exemplos anteriores.
Só para chamar a atenção, porque houve aqui uma preocupação consequen‑
cialista com aquela decisão.

VOTO
(Sobre inconstitucionalidade formal)
O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, quanto ao fundamento de
vício formal, acompanho o voto do ministro Luiz Fux. O vício apontado – de
que não decorreu o interstício de cinco dias entre a discussão e a aprovação em
primeiro e segundo turnos – não encontra respaldo na Constituição, que não
prevê o referido interstício. Trata-se de exigência de natureza regimental situada
em domínio interna corporis do Congresso.
Por outro lado, um tema tão importante quanto o disciplinado pela Emenda
Constitucional 62, de 2009, oriunda de proposta longamente gestada e intensa‑
mente debatida nos mais variados foros políticos, jurídicos e administrativos do
País, não se pode afirmar que o estreito tempo que mediou entre as duas votações
no Senado Federal tenha, por si só, importado em resolução açodada ou irresponsá‑
vel daquela Casa legislativa a ponto de acarretar a sua inconstitucionalidade formal.
Meu voto é pela rejeição desse fundamento.

VOTO
(Sobre inconstitucionalidade formal)
O sr. ministro Gilmar Mendes: Senhor Presidente, eu também vou votar no
sentido já manifestado pelo eminente relator. Não acredito, tal como Sua Exce‑
lência, que aqui haja fundamento para a declaração de inconstitucionalidade
formal da emenda.
Acredito, também, que essa norma quer que haja um espaço de reflexão no
âmbito do Congresso Nacional. Mas, como disse o ministro Fux, a própria ausên‑
cia de disciplina normativa a propósito significa confiar ao Congresso Nacional
as escolhas quanto à maior ou menor intensidade deste espaço de reflexão.
Agora, Presidente, se me permitisse – e aí, eu vou pedir, também, licença ao
ministro Fux, tendo em vista o adiantado da hora e a dificuldade que talvez eu

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  210


ADI 4.425

tenha de participar do julgamento –, eu gostaria de me pronunciar, já, um pouco,


sobre o mérito.
Brevemente, também não vou me estender. Mas eu gostaria de, ao contrário
do ministro Britto, o ministro relator, me manifestar no sentido da improcedên‑
cia da ação nos aspectos versados a propósito da inconstitucionalidade. Aqui,
há uma longa discussão, que nós vimos acompanhando desde a origem, desde
o art. 100, toda a crise sobre as disposições transitórias e aquelas aplicações, o
problema dos escândalos e desvios em torno dessa matéria e, depois, as disci‑
plinas advenientes das emendas constitucionais.
Talvez, pela primeira vez – e os dados trazidos pelos procuradores-gerais
indicam –, graças à disciplina aqui imposta e também graças à disciplina esta‑
belecida pelo CNJ, nós estamos no terceiro ano do cumprimento efetivo daquilo
que se estabeleceu na emenda e, portanto, do respeito ao que foi estabelecido
nas sentenças, no cumprimento, na execução das decisões. Inclusive, valendo-se
dessa dupla fila que marca a emenda, muitos Estados estão logrando avançar e
cumprir efetivamente os precatórios.
O quadro anterior – e nós tivemos, aqui, debates importantes, por exemplo,
quando houve o pedido de intervenção federal no Estado de São Paulo; o minis‑
tro Marco Aurélio, inclusive, sustentou a necessidade da intervenção federal,
nesses casos, como resposta. Mas nós fizemos, inclusive, a análise, à época, e
vimos que, também, esse remédio não era suficiente nem adequado para solver
o problema que se colocava.
O amontoado de dívidas ao longo dos anos não permitia que... Se o orçamento
todo fosse dedicado ao pagamento de precatórios, ele não seria suficiente. Na prá‑
tica, o que acabava por ocorrer? Acabava por ocorrer o seguinte: os Estados
optavam por não pagar, ou por pagar parcialmente, e se gerava um sistema de
desvios múltiplos, porque aqueles que, de fato, são credores, às vezes de quantias
pequenas, não eram nunca consultados para o pagamento. Acabavam vendendo
esses créditos no mercado secundário, e depois, Deus lá sabe como, ocorriam as
negociações entre grandes credores e as próprias autoridades estaduais.
Então, a mim me parece que, pela primeira vez – e os dados trazidos pelos
procuradores, que têm fé pública, indicam –, nós estamos nos aproximando do
cumprimento efetivo e desbastando essa montanha de precatórios acumulados.
Então, parece que estamos dando passos importantes – e aí há uma teoria
de possibilidades, uma interpretação pensada sobre um critério possibilista –, a
mim me parece recomendar que nós julguemos improcedente também aqui as
ações diretas de inconstitucionalidade que foram propostas, ressaltando, claro,
que não mais se pode, evidentemente – aí tem razão o voto do ministro Ayres

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  211


ADI 4.425

Britto –, dar continuidade a esse processo de sucessivos parcelamentos. É pre‑


ciso que essa emenda seja, de fato, a última com vistas a solucionar esse tema,
porque é algo que reclama uma solução.
Eu peço desculpas ao ministro Luiz Fux por conta dessa antecipação, mas,
realmente, por um pensamento de necessidade, eu terei que me afastar daqui a
pouco, eu gostaria também de me manifestar contrapondo-me, então, ao voto
do relator, ministro Ayres Britto, no sentido da improcedência da ação também
quanto à inconstitucionalidade material.

VOTO
(Sobre inconstitucionalidade formal)
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, com relação à inconstituciona‑
lidade formal, acompanho a divergência aberta pelo ministro Luiz Fux, na linha,
também, dos votos dos ministros Teori Zavascki e Gilmar Mendes, julgando
improcedente a ação no que pertine à arguição de inconstitucionalidade formal
da Emenda Constitucional 62/2009 por violação do devido processo legislativo.
O comando constitucional exige, como dito, a votação em dois turnos sem
definir objetivamente o interstício temporal entre eles, tendo o eminente relator,
ministro Ayres Britto, concluído por afronta à teleologia da norma, uma vez que
sua ratio essendi, também quanto à duplicidade de turnos, seria a necessária
maturação do tema, como fazem certo as exigências de quórum qualificado e
as hipóteses taxativas, em jogo a alteração do texto constitucional, em Consti‑
tuição rígida, como é a nossa.
Embora me cative a colocação, e toda a fundamentação, do eminente relator,
quando conclui violado o art. 60, § 2º, da Constituição em sua substância – como
já enfatizado, o preceito não fixa o interstício temporal entre os dois turnos,
diversamente do que fazem os arts. 29 e 32, concernentes a Municípios e ao
Distrito Federal –, parece-me, na linha do que foi sustentado pelos votos que
me antecederam nesta data, que a ratio essendi foi atendida pelo largo debate
ocorrido no Congresso Nacional sobre o tema, ao longo dos três anos de trami‑
tação da PEC, com inclusive quatro audiências públicas promovidas. Não há
falar, portanto, em violação do texto constitucional, em sua literalidade ou em
sua essência, pelo fato de ter sido votada a emenda na mesma noite, com uma
hora apenas de intervalo, em regime de urgência, a pedido das lideranças dos
partidos, em questão que classifico como interna corporis.
Senhor Presidente, a melhor conclusão, pedindo vênia a quem entende o con‑
trário, não me parece ser a declaração da inconstitucionalidade formal.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  212


ADI 4.425

VOTO
O sr. ministro Dias Toffoli:

1. Das limitações ao controle de constitucionalidade de emenda constitucional


Senhores Ministros, o poder de reforma constitucional, outorgado pelo cons‑
tituinte originário às casas do Parlamento brasileiro, representa mecanismo de
relevância no nosso contexto político peculiar.
Por meio dele, permite-se ao legislador equacionar as tensões e as anacronias
sociais surgidas na comunidade e que, eventualmente, confrontem com as posi‑
ções políticas e jurídicas adotadas pela Constituição Federal.
A solução é particularmente dolorosa no caso brasileiro, diante da caracte‑
rística analítica da Lei Fundamental de 1988, situação essa que, por vezes, não
permite uma maior adaptabilidade do texto aos novos reclamos sociais.
Por óbvio, tratando-se de poder instituído (não original), reconhecem-se limi‑
tes ao seu exercício. Contudo, embora seja possível a aferição da constituciona‑
lidade material de emenda constitucional, nos termos do art. 60, § 4º, CF/1988,
essa análise não se faz possível de forma tão ampla e corriqueira como se esti‑
véssemos diante de legislação ordinária. Ao contrário, exige-se, na espécie, uma
atuação cautelosa. Nesse sentido é a esclarecedora lição do eminente ministro
Gilmar Mendes:
Não se pode negar que a aplicação ortodoxa das cláusulas pétreas, ao invés de
assegurar a continuidade do sistema constitucional, pode antecipar a sua ruptura,
permitindo que o desenvolvimento constitucional se realize fora de eventual camisa
de força do regime da imutabilidade.
Aí reside o grande desafio da Jurisdição Constitucional: não permitir a eliminação
do núcleo essencial da Constituição, mediante decisão ou gradual processo de erosão,
nem ensejar que uma interpretação ortodoxa ou atípica acabe por colocar a ruptura
como alternativa à impossibilidade de um desenvolvimento constitucional legítimo.
As questões que envolvem as cláusulas pétreas são objeto desse intenso debate dou‑
trinário, a evidenciar sua marcante complexidade. Admiti-las, por certo, implica uma
restrição significativa à atividade legislativa ordinária e mesmo ao poder constituinte
derivado. Mas tal como estão postas em nosso sistema, estabelecem limites à reforma
constitucional que não têm o condão de fixar uma restrição insuperável ao exercí‑
cio da democracia parlamentar. As possibilidades da atividade legislativa ordinária
ou reformadora, ainda que dentro dos limites constitucionais à revisão, são muito
amplas. O que há, por certo, ao nos atermos às restrições impostas pelo constituinte
originário à reforma constitucional, é um dever de consistência nas formulações que
procuram justificar a compatibilidade de determinada alteração constitucional com as
cláusulas de imutabilidade. [ADI 2.395/DF, rel. min. Gilmar Mendes, DJ de 23-5-2008.]

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  213


ADI 4.425

Nesses termos, esta Corte tem assentado que “(...) as limitações materiais ao
poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera,
não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição
originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institu‑
tos cuja preservação nelas se protege (...)” (ADI 2.024/DF, rel. min. Sepúlveda
Pertence, DJE de 22-6-2007).
Com efeito, a teor da previsão expressa do art. 60, § 4º, CF/1988, não resta
vedada ao poder constituinte derivado toda e qualquer restrição às chamadas
cláusulas pétreas, mas somente àquelas que atinjam núcleo essencial desses
limites materiais; vedam-se, tão somente, as propostas de emendas tendentes
a abolir as cláusulas pétreas.
Partindo-se, portanto, dessa premissa restritiva, passo à análise da Emenda Cons‑
titucional 62/2009, que alterou o regime constitucional do sistema de precatório.

2. Da constitucionalidade formal da EC 62/2009


De início, alega o autor que a aprovação da Emenda Constitucional 62/2009
ofende os limites formais impostos ao poder constituinte de reforma, na medida
em que a proposição de origem da norma teria desrespeitado o devido processo
legislativo, já que foi o texto aprovado no Senado Federal em duas sessões subse‑
quentes. Ao passo que, de acordo com o art. 362 do Regimento Interno da Casa,
seria mister um interstício mínimo de cinco dias entre as duas reuniões delibera‑
tivas exigidas para a aprovação da emenda à Constituição Federal (art. 60, § 2º).
Bem observado o regramento constitucional, tenho que tal argumento não
deve ser acatado.
Como dito, a sindicância da emenda à Constituição, pela especificidade de
aderir ao texto constitucional no mesmo patamar hierárquico das prescrições
originárias, tem parâmetros restritos de controle, sem que se deixe de ressaltar
a importância destes na construção do núcleo de identidade da Carta Federal.
Admitir que se utilize um preceito regimental como paradigma de confronto
equivaleria, na prática, à constitucionalização de regra despida desse status.
Tal conjectura resultaria na própria intangibilidade dessa parte do regimento
interno, sendo impossibilitada qualquer investida no sentido de se alterar o prazo
entre uma e outra votação, fato esse que é despido de fundamento.
Vale salientar que a Corte, tradicionalmente, possui entendimento contrário à
tese do controle jurisdicional dos atos do Parlamento, quando envolvem discus‑
são sobre a aplicação de normas regimentais de qualquer das casas, afirmando
tratar-se de problemática interna corporis. Vide:

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  214


ADI 4.425

Agravo regimental. Mandado de segurança. Questão interna corporis. Atos do


Poder Legislativo. Controle judicial. Precedente da Suprema Corte. 1. A sistemá-
tica interna dos procedimentos da Presidência da Câmara dos Deputados para
processar os recursos dirigidos ao Plenário daquela Casa não é passível de
questionamento perante o Poder Judiciário, inexistente qualquer violação da
disciplina constitucional. 2. Agravo regimental desprovido. [MS 25.588 AgR/DF,
Tribunal Pleno, rel. min. Menezes Direito, DJE de 8-5-2009.]

Agravo regimental em mandado de segurança. 2. Oferecimento de denúncia por


qualquer cidadão imputando crime de responsabilidade ao presidente da República
(art. 218 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados). 3. Impossibilidade de
interposição de recurso contra decisão que negou seguimento à denúncia. Ausência
de previsão legal (Lei 1.079/1950). 4. A interpretação e a aplicação do Regimento
Interno da Câmara dos Deputados constituem matéria interna corporis, insus-
cetível de apreciação pelo Poder Judiciário. 5. Agravo regimental improvido.
[MS 26.062 AgR/DF, Tribunal Pleno, rel. min. Gilmar Mendes, DJE de 4-4-2008.]

A despeito disso, se possível a análise da norma sob a perspectiva da legitimi‑


dade da aprovação, o quórum deliberativo para a chancela de emenda constitucio‑
nal seria bastante para alterar o regimento interno ou, ao menos, excepcioná-lo.
Repriso a passagem exposta pela Advocacia-Geral da União, na qual apre‑
senta caso em que a Câmara dos Deputados criou exceção ao próprio regimento
interno, a fim de votar proposta de emenda à Constituição sem a observância
do intervalo mínimo entre as sessões. Confira-se:
Com efeito, na tramitação da PEC n. 559/2002, que deu origem à Emenda Cons‑
titucional n. 39/09 (responsável por instituir a contribuição social para o custeio
do serviço de iluminação pública), a Câmara dos Deputados, após 6 (seis) meses
de amplo debate parlamentar, aprovou referido projeto, em primeiro turno, no dia
18-12-2002, com 328 favoráveis, 20 (vinte) vencidos e 5 (cinco) abstenções.
Na ocasião, a Presidência da Casa, acolhendo solicitação dos líderes partidários,
dispensou a observância da regra regimental que prevê o interstício mínimo de
5 (cinco) sessões entre uma e outra, afastando, pois, a aplicação do artigo 202,
§ 6º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Então, referida proposta
de emenda constitucional foi aprovada, em segundo turno, no mesmo dia 18-12-
2002, com 329 (trezentos e vinte e nove) votos favoráveis, 18 (dezoito) vencidos e
4 (quatro) abstenções.

Com efeito, a Casa que aprova o ato normativo é a mesma que elabora seu
regimento interno. Nesse passo, não verifico invalidade em deliberação, direta
ou implícita, que reforma regra de processo interno de apreciação ou estabelece
exceção ao rito, em conformidade com o texto constitucional.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  215


ADI 4.425

Em última análise, a meu ver, não deflui do art. 60, § 2º, da Carta Federal de
1988 o mencionado interstício entre as sessões deliberativas, que apenas alude
ao quórum qualificado e à necessidade de dois turnos de votação, os quais
restaram plenamente atendidos no presente caso.
Como bem lembra a Advocacia-Geral da União, se o texto constitucional “hou‑
vesse pretendido estabelecer semelhante intervalo mínimo (conforme supõe
requerente), teria feito previsão expressa nesse sentido, a exemplo do que esta‑
belece o artigo 29, caput, da Constituição acerca da votação da Lei Orgânica dos
Municípios”, no qual se estabelece que “[o] Município reger-se-á por lei orgânica,
votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias”.
Tampouco assiste razão ao autor, no que foi acompanhado pela Procuradoria‑
-Geral da República, quando afirma ter o processamento da Emenda Constitu‑
cional 62/2009 desrespeitado a finalidade da regra estampada no art. 60, § 2º,
da Lei Fundamental, ao prever dois turnos de votação da espécie. Salientam
que a modificação da Constituição requer um melhor amadurecimento dos par‑
lamentares sobre o tema tratado, sendo necessário, portanto, um prazo mínimo
entre uma e outra sessão de deliberação da proposta.
Apesar da fluidez do argumento e de sua difícil construção na seara jurídica,
tenho que a maturação ou não de propostas legislativas não deve ser compre‑
endida sob a ótica da maior ou menor duração entre os dois turnos de votação.
De forma oposta, a análise deve ater-se ao processo legislativo como um todo,
ou seja, da fase de iniciativa até a deliberação final da casa revisora – no caso
das emendas constitucionais. Esse é o sentido de um verdadeiro processo deli-
berativo, no qual se conta inclusive com a participação da sociedade na discussão
e no amadurecimento da questão.
Pelo que expõe a Advocacia-Geral da União, a emenda contestada teve origem
no próprio Senado Federal, no ano de 2006 (PEC 12/2006), onde foi aprovada
bem mais tarde, já em 2009, mesmo ano em que retornou à Casa para votação
do texto final, após a deliberação da Câmara dos Deputados (onde tramitou
como PEC 351/2009).
Com efeito, na situação presente, não há margem para se firmar a precocidade
de aprovação da norma, ou mesmo a ausência de amadurecimento da ques‑
tão. Ora, é de conhecimento notório de todos a ampla discussão no âmbito do
Congresso Nacional a respeito da PEC dos Precatórios, a envolver não apenas
os parlamentares, mas também integrantes dos Governos Federal, Estaduais,
Distrital e Municipais. Afinal, tratou-se de proposta de emenda que tramitou no
Senado Federal por três anos e foi objeto de aprovação duas vezes nessa mesma

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  216


ADI 4.425

Casa Legislativa. Não há razão, portanto, para se afirmar que sua aprovação teria
ocorrido sem a devida reflexão ou amadurecimento por parte dos parlamentares.
Por essas razões, concluo que a Emenda Constitucional 62/2009 não padece
de vício formal, uma vez que foi aprovada pelo Senado Federal com a observância
do devido processo legislativo constitucional.

3. Da constitucionalidade material da nova disciplina contida no art. 100 da Constituição


Federal
Quanto às supostas inconstitucionalidades materiais apontadas à nova dis‑
ciplina dos precatórios contida no art. 100 e seus parágrafos da Constituição da
República, também não vejo nenhuma disposição que afronte núcleo essencial
das cláusulas pétreas.
A preferência da ordem de pagamento dos débitos de natureza alimentícia
para aqueles que contem com 60 anos ou mais na data da expedição do pre‑
catório ou sejam portadores de doença grave, conforme determinou o § 2º do
art. 100, não tem como atentar contra nenhuma cláusula pétrea. Ao contrário
do que afirma o autor, tal disposição realiza o princípio da igualdade, bem
como o dever de proteção aos idosos (art. 230, CF) e a dignidade da pessoa
humana (art. 1º, III, CF).
Por outro lado, como a criação dessa nova modalidade de crédito alimentar
com base na idade depende da fixação de um critério que delimite o momento
em que se vai averiguar tal requisito, nada mais normal que a sua aferição ocorra
no momento da expedição do precatório, tratando-se, portanto, de critério ple‑
namente razoável. Como salienta a Advocacia-Geral da União:
De fato, permitir o ingresso posterior na ordem privilegiada daqueles que não pos‑
suíam 60 (sessenta anos) quando da expedição do precatório causaria desorgani‑
zação e falta de previsibilidade a respeito do quantitativo de credores inscritos em
determinada ordem. Haveria uma intensa migração dos precatórios alimentares
(CF, art. 100, § 1º) para os precatórios alimentares qualificados (CF, art. 100, § 2º).
Desse modo, constata-se a insubsistência da pretensão veiculada pelos requeren‑
tes, já que a ordem cronológica seria alterada a cada sexagésimo aniversário de um
credor da Fazenda Pública, tornando operacionalmente inviável a concretização
do benefício constitucional.

Já em relação à limitação da preferência ao triplo das obrigações considera‑


das de pequeno valor, admitido o fracionamento para essa finalidade, como bem
defende a Procuradoria-Geral da República: “Num quadro de escassez de recursos,
é proporcional e razoável que, ao mesmo tempo em que se assegura prioridade a

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  217


ADI 4.425

tais pessoas, outras tantas, também credoras de prestações de natureza alimen‑


tar, não fiquem ao desamparo. O limite, portanto, tem em conta o postulado da
sociedade fraterna, que é atenta à diferença, acolhedora de seus idosos e doen‑
tes, mas consciente também de outras urgências, e que é necessário equilibrar.”
Em outra sede, questionam os autores a validade dos §§ 9º e 10 do art. 100 da
Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional 62/2009, os
quais versam acerca da hipótese de compensação dos créditos públicos devi‑
dos pelo titular do precatório com os valores objeto de pagamento pelo Estado.
A norma não traz inovação jurídica significativa, uma vez que teve por escopo,
simplesmente, facultar aos entes estatais a realização de operação já autorizada
quando do interesse do particular, normalmente, no adimplemento de dívidas
tributárias com créditos oriundos de precatórios.
O instituto encontra amparo, precipuamente, no campo cível. Como prescreve
o Código de 2002, em seu art. 368, a compensação pode ser definida como a ope‑
ração de abatimento (quitação) mútuo de obrigações líquidas e certas, quando
há reciprocidade de créditos e débitos entre duas ou mais pessoas.
De modo idêntico, a compensação é disciplinada no campo fiscal pelo art. 170 do
Código Tributário Nacional, inclusive quanto a créditos ainda vincendos, a saber:
Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipu‑
lação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação
de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do
sujeito passivo contra a Fazenda pública.

A inserção de tal medida na Constituição Federal, longe de representar ofensa


a qualquer das reservas materiais de reforma, visa promover a moralidade e a
eficiência da administração pública (art. 37 da CF/1988), haja vista, simultane‑
amente, evitar que a Fazenda efetue o pagamento a quem também lhe deva, bem
assim realizar o crédito público de maneira bem menos onerosa, em comparação
com aquela prevista nas execuções fiscais. Em verdade, é regra de otimização
que atende o interesse público.
São sabidas as dificuldades de cobrança do crédito público, em especial, pelos
excessivos custos do rito processual da execução fiscal, que demanda tanto a
atuação do Poder Executivo, na fase pré e processual, quanto a obrigatória inter‑
venção do Poder Judiciário, tendo em vista a regra de reserva de jurisdição para
os atos de constrição patrimonial.
Nesse passo, a satisfação do crédito público por meio da compensação é extre‑
mamente salutar, tendo em vista a praticidade e a racionalidade do procedimento,
tanto o quanto o é para o particular no adimplemento do crédito tributário.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  218


ADI 4.425

Ressalte-se que este Supremo Tribunal Federal reconheceu, no julgamento da


ADI 2.851, a constitucionalidade de lei estadual que autorizara a compensação
de crédito tributário com débito da Fazenda do Estado, decorrente de precatório
judicial pendente de pagamento, no limite das parcelas não liquidadas a que se
refere o art. 78 do ADCT. O acórdão ostenta a seguinte ementa:
Constitucional precatório. Compensação de crédito tributário com débito do Estado
decorrente de precatório. CF, art. 100, art. 78, ADCT, introduzido pela EC 30, de 2002.
I – Constitucionalidade da Lei 1.142, de 2002, do Estado de Rondônia, que autoriza
a compensação de crédito tributário com débito da Fazenda do Estado, decorrente
de precatório judicial pendente de pagamento, no limite das parcelas vencidas
a que se refere o art. 78, ADCT/CF, introduzido pela EC 30, de 2000. II – Ação
direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. [ADI 2.851, rel. min. Carlos
Velloso, DJ de 2-12-2004.]

Naquela ocasião, o relator do feito, ministro Carlos Velloso, ressaltou que “o


Supremo Tribunal Federal tem, na verdade, decidido que, na forma do art. 100 da
Constituição Federal, os pagamentos devidos pela Fazenda Pública, em virtude
de sentença, devem ser feitos na ordem cronológica de apresentação dos res‑
pectivos precatórios: (...)”. Entretanto, admitiu que a matéria sofrera alterações
com a EC 30, de 2000, que acrescentou o art. 78 ao ADCT, de modo a permitir a
compensação de crédito tributário com débitos da Fazenda Pública decorrentes
de precatórios.
Ademais, ao contrário do que se afirma, o fato de a compensação se operar com
o credor original do precatório não abriga qualquer ofensa à Constituição Federal.
A disciplina colocada nos referidos parágrafos não traduz privilégio da Fa­­
zenda Pública, porquanto se assemelha muito às regras aplicadas no âmbito
privado, contidas no art. 377 do Código Civil, as quais admitem a oposição do
direito de compensação pelo devedor ao cessionário adquirente do crédito. Vide:
Art. 377. O devedor que, notificado, nada opõe à cessão que o credor faz a tercei‑
ros dos seus direitos, não pode opor ao cessionário a compensação, que antes
da cessão teria podido opor ao cedente. Se, porém, a cessão lhe não tiver sido
notificada, poderá opor ao cessionário compensação do crédito que antes tinha
contra o cedente.

Outrossim, o fato de os dispositivos serem silentes sobre um eventual procedi‑


mento de averiguação da compensação não tem condão de excluir a incidência
do postulado do devido processo legal e de seus corolários, garantindo-se ao
credor a utilização ampla de todos os meios judiciais para a correção de eventual
irregularidade na aplicação do instituto.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  219


ADI 4.425

Falece, ainda, de sustentação o argumento de quebra do princípio da segu‑


rança jurídica. A sustentação feita pelos autores, no sentido da incerteza advinda
da compensação, já que o adquirente do precatório não saberia de antemão se
poderia utilizar da totalidade do crédito, carece de embasamento.
Diz expressamente o § 9º do art. 100 da Lei Fundamental que a compensação
se realiza no momento da expedição do precatório, e não no efetivo pagamento
pelo Estado. Ora, no caso apresentado, por se tratar a cessão de ato superveniente
à expedição do precatório, ou o adquirente já obtém este no valor compensado,
ou, se pendente alguma discussão judicial, compete-lhe ser diligente no ato nego‑
cial, não se podendo, portanto, imputar à Fazenda eventual prejuízo na operação.
Verifica-se, portanto, a plena compatibilidade dos dispositivos com as normas
e objetivos da Constituição Federal.
Por fim, no tocante à adoção do índice oficial de remuneração básica da cader‑
neta de poupança para a atualização de precatórios, a EC 62/2009 consolidou no
texto constitucional previsão já contida no art. 1º-F da Lei 9.494/1997, segundo o
qual, na redação conferida pela Lei 11.960/2009:
Art. 1º-F. Nas condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua
natureza e para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compen‑
sação da mora, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, dos
índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança.

A respeito, esta Suprema Corte já reconheceu, no RE 453.740/RJ, a constitu‑


cionalidade do dispositivo legal, exatamente, por entender que os juros de 0,5%
ao mês são adequados para remunerar os débitos dos entes públicos. Colho do
voto do eminente ministro Gilmar Mendes:
A razão determinante do art. 1º-F da Lei 9.494, de 1997, decorreu de tentativa de se
pacificar entendimento inadequado que se fazia, e que, ao fixar juros em 12% ao
ano, propiciava aumento de 100% nos valores devidos pela Fazenda, que adequa‑
damente remunerava juros moratórios com base em 6% ao ano, modo também
prescrito pelo Código Civil de 1916, vigente à época da medida provisória que inseriu
o art. 1º-F na Lei 9.494, de 1997.
A fixação dos juros moratórios em 6% ao ano, nos casos previstos no art. 1º-F
da Lei 9.494, de 1997, nos termos da Exposição de Motivos Conjunta/AGU/MPO
13/2001, decorreu do fato de que “(...) a matéria merece definitiva regulamenta‑
ção legislativa para evitar a ocorrência de graves prejuízos ao interesse público”.
O art. 1º-F da Lei 9.494, de 1997, disputa com outras disposições normativas a
fixação de juros de mora, quando devidos pela Fazenda Pública.
A decisão de inconstitucionalidade por parte dos Juízos de primeiro e de segundo
graus deu-se em razão de suposto desrespeito ao princípio da isonomia.

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ADI 4.425

Afigura-se que não teria sido confirmada adequação do art. 1º-F da Lei 9.494, de
1997, em face do art. 5º, caput, da Constituição Federal.
(...)
Não penso assim!
O atentado à isonomia consiste em se tratar desigualmente situações iguais, ou
em se tratar igualmente situações diferenciadas, de forma arbitrária e não funda‑
mentada. É na busca da isonomia que se faz necessário tratamento diferenciado,
em decorrência de situações que exigem tratamento distinto, como forma de rea‑
lização da igualdade.
(...)
Se a lei trata igualmente os credores da Fazenda Pública, fixando os mesmos
níveis de juros moratórios, inclusive para verbas remuneratórias, não há falar
em inconstitucionalidade do art. 1º-F da Lei 9.494, de 1997.

De fato, não há que se falar em violação ao princípio da isonomia, uma vez


que agora os precatórios, assim como se dá em relação às demais condenações
impostas à Fazenda Pública, são atualizados todos no percentual de 6% ao ano.
Ademais, não há violação à coisa julgada, uma vez que, como expressamente
estabelece o § 12 do art. 100 da Constituição, os índices fixados dizem respeito à
atualização dos valores, após a expedição do precatório, até o efetivo pagamento.
Não se interfere, de forma alguma, na decisão judicial transitada em julgada.

4. Do regime especial contido no art. 97 do ADCT


Os autores insurgem-se, ainda, contra o regime especial de pagamento de
precatórios previsto no art. 97 do ADCT.
A norma transitória prevê, em seu § 1º, a opção, por parte dos Estados, Distrito
Federal e Municípios, pelo sistema de depósito mensal em conta especial de
valor apurado na forma de seu § 2º, ou pelo sistema de parcelamento em até
quinze anos com depósito em conta especial do valor do saldo dos precatórios
devidos, apurado na forma do inciso II do mencionado § 1º.
Prevê, ainda, que, dos recursos depositados nessa conta especial, pelo menos
50% deverão ser destinados ao pagamento dos precatórios na ordem cronológica
de apresentação, respeitadas as preferências estabelecidas (§ 6º), e o restante
deverá ser aplicado, de acordo com a opção a ser exercida pelos entes por ato
do Poder Executivo, isolada ou simultaneamente, da seguinte maneira: (i) paga‑
mento dos precatórios por meio de leilão; (ii) pagamento à vista; (iii) pagamento
por acordo direto com os credores, na forma a ser estabelecida por lei própria
da entidade devedora (§ 8º do art. 97 do ADCT).
Na hipótese de opção pelo sistema de depósito mensal em conta especial,
previsto no inciso I do § 1º, somente vigorará enquanto o valor dos precatórios

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  221


ADI 4.425

devidos for superior ao valor dos recursos vinculados ao seu pagamento (§ 14
do art. 97 do ADCT).
Nesse ponto, já adianto que mantenho o posicionamento firmado no julga‑
mento das medidas cautelares das ADI 2.356 e 2.362, nas quais se discutiu a
constitucionalidade do regime de parcelamento instituído pelo art. 78 do ADCT,
acrescentado pelo art. 2º da EC 30/2000.
Em que pese, naquela ocasião, a Corte tenha deferido, por maioria, a medida
cautelar, suspendendo a eficácia do dispositivo introduzido pela EC 30/2000,
mantenho-me fiel ao voto proferido naquela assentada.
Em consonância com a premissa já esclarecida no início deste voto, não vejo
como essa emenda constitucional tenha de alguma forma tentado abolir do
mundo jurídico qualquer dos princípios e garantias individuais destacados nas
iniciais, como a garantia do acesso à jurisdição (art. 5º, XXXV, CF), a coisa julgada
e o princípio da separação dos Poderes.
No julgamento da ADI 1.098/SP (rel. min. Marco Aurélio, DJ de 25-10-1996),
esta Corte manifestou-se quanto à natureza administrativa das decisões da pre‑
sidência dos tribunais no cumprimento dos precatórios judiciais, visto que essa
atividade decorre do exercício de função eminentemente administrativa, tendo a
fase judicial se encerrado com a expedição do precatório. O acórdão da decisão
acima referida restou assim ementado:
Precatório – Objeto. Os preceitos constitucionais direcionam à liquidação dos débi‑
tos da Fazenda. O sistema de execução revelado pelos precatórios longe fica de
implicar a perpetuação da relação jurídica devedor-credor. Precatório – Tramita-
ção – Regência. Observadas as balizas constitucionais e legais, cabe ao tribunal,
mediante dispositivos do regimento, disciplinar a tramitação dos precatórios, a fim
de que possam ser cumpridos. Precatório – Tramitação – Cumprimento – Ato
do presidente do tribunal – Natureza. A ordem judicial de pagamento (§ 2º do
art. 100 da Constituição Federal), bem como os demais atos necessários a tal
finalidade, concerne ao campo administrativo e não jurisdicional. A respaldá‑
-la tem-se sempre uma sentença exequenda. Precatório – Valor real – Distinção
de tratamento. A Carta da República homenageia a igualação dos credores. Com
ela colide norma no sentido da satisfação total do débito apenas quando situado
em certa faixa quantitativa. Precatório – Atualização de valores – Erros materiais –
Inexatidões – Correção – Competência. Constatado erro material ou inexatidão nos
cálculos, compete ao presidente do tribunal determinar as correções, fazendo-o a
partir dos parâmetros do título executivo judicial, ou seja, da sentença exequenda.
Precatório – Atualização – Substituição de índice. Ocorrendo a extinção do índice
inicialmente previsto, o tribunal deve observar aquele que, sob o ângulo legal,
vier a substituí-lo. Precatório – Satisfação – Consignação – Depósito. Não se há de

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  222


ADI 4.425

confundir a consignação de créditos, a ser feita ao Poder Judiciário, com o depósito


do valor do precatório, de responsabilidade da pessoa jurídica devedora à qual
são recolhidas, materialmente, “as importâncias respectivas” (§ 2º do art. 100 da
Constituição Federal).

Para melhor esclarecimento, transcrevo, ainda, parte do voto do ministro


Celso de Mello, constante do referido julgamento, que aborda a questão da natu‑
reza administrativa do processamento do precatório:
Entendo, Senhor Presidente – e assim pude acentuar no julgamento do Ag
162.775/SP, de que fui relator –, que a atividade desenvolvida pelo presidente do
tribunal no processamento dos precatórios decorre do exercício de função emi-
nentemente administrativa.
É por isso que se enfatizou, em julgamento realizado pelo Supremo Tribunal
Federal, que “(...) a atribuição do presidente do tribunal, ao processar o precatório,
não é sequer jurisdicional. É atividade puramente administrativa”, pois, conso-
ante foi então ressaltado, “A atividade jurisdicional termina com a expedição do
precatório (...)” (RTJ 71/572, 575 – grifei).
Posteriormente, esse mesmo entendimento sobre o tema ora em análise veio a ser
reiterado no voto proferido pelo saudoso ministro Rodrigues Alckmin, que expendeu
lúcido magistério a propósito da matéria em questão (RTJ 80/691):
“A função do presidente do tribunal é, no caso, meramente administrativa.
Ele não é juiz da execução. Juiz da execução é o juiz que expede o precatório.
Pelo nosso sistema, é o presidente do tribunal, a cuja disposição estão as verbas,
quem expede a ordem de pagamento. Encerra-se a execução com a expedição
do precatório. Esta é a função executória.
(...)
Não pode, assim, haver conflito de atribuições, porque compete ao juiz da
execução expedir o precatório. Essa função é jurisdicional, de execução.
Compete ao presidente do tribunal determinar o pagamento: função admi-
nistrativa de outro órgão. E ninguém quer invadir a atribuição de outro, para
praticar-lhe a função.
Acontece que o presidente do tribunal, ao examinar formalmente o precató‑
rio, foi além da marca; passou a examinar o mérito do precatório. Terá cometido,
como autoridade administrativa, uma demasia, que não se corrige através de
conflito de jurisdição, nem de atribuição, que não há.” (Grifei.)
(...)
Vê-se, desse modo, que o presidente do tribunal, ao desempenhar as suas atri‑
buições no processamento dos precatórios, atua como autoridade administrativa,
não exercendo, em consequência, nesse estrito contexto procedimental, qualquer
parcela de poder jurisdicional. [PINTO FERREIRA. Comentários à Constituição bra-
sileira. Saraiva, 1992. 4 v. p. 67-68.]

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ADI 4.425

Nesse sentido: AI 409.331 AgR/SP, rel. min. Carlos Velloso, DJ de 4-4-2003;


AI 157.166/SP, decisão monocrática, rel. min. Celso de Mello, DJ de 5-5-1997;
RE 211.689/SP, Tribunal Pleno, rel. min. Carlos Velloso, DJ de 6-2-1998; RE 213.696
AgR/SP, rel. min. Carlos Velloso, DJ de 6-2-1998.
Assim sendo, em relação à garantia do acesso ao Judiciário, essa já se efeti‑
vou com o encerramento do processo judicial, não havendo, no caso, restrição a
nenhum cidadão de ter acesso ao Judiciário. Também não há como se sustentar
a alegação de ofensa à coisa julgada, pois o provimento jurisdicional permane‑
cerá exatamente da mesma maneira que foi entregue aos jurisdicionados, sendo
alterados apenas os atos posteriores relativos ao pagamento do precatório, os
quais não se revestem de natureza jurisdicional, mas sim administrativa.
Com efeito, o regime especial de pagamento previsto no art. 97 do ADCT não
tem o efeito de desconstituir nenhuma decisão do Poder Judiciário transitada em
julgado; ele apenas e tão somente estabeleceu regras transitórias de pagamento
de precatórios vencidos e inadimplidos, estabelecendo um sistema de depósito
mensal vinculado ou um sistema de parcelamento de débitos dos Estados, do
Distrito Federal ou dos Municípios para com os seus credores.
Reconhecida, portanto, a natureza administrativa dos procedimentos relativos
aos precatórios e que a sua expedição pressupõe o encerramento da atividade juris‑
dicional do Estado, no meu sentir, torna-se forçoso concluir que a alteração das
regras relacionadas ao seu pagamento não tem o condão de ofender a garantia do
acesso à jurisdição, à coisa julgada e ao princípio da separação dos Poderes, uma
vez que a satisfação do crédito já não mais integra a fase jurisdicional do processo.
Mas não é só.
A meu ver, o julgamento desta ação está correlacionado com a situação incon‑
teste de mora dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Não podemos
esquecer que estamos diante de entes federativos que, além de já se encontrarem
em estado de inadimplência, não dispõem de recursos orçamentários suficien‑
tes para o pagamento desses débitos, em razão da acumulação dessas dívidas
ao longo dos anos.
Com efeito, não dá para analisar o problema dos precatórios sem um olhar
atento à difícil realidade de que vários Estados e Municípios não têm orçamento
suficiente para pagar as dívidas decorrentes de precatórios. Como se verifica das
justificativas da proposta da emenda constitucional:
Seria desejável que os orçamentos dos estados e municípios permitissem o paga‑
mento imediato das dívidas de precatórios. A realidade, entretanto, é bem dife‑
rente. A situação de muitos estados e municípios em relação ao endividamento
de precatórios é bastante delicada. No Estado do Espírito Santo, por exemplo, o

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ADI 4.425

saldo de precatórios em atraso alcançou em 2007 a marca de R$ 7 bilhões, o que


representa eis que o valor de toda a receita anual do estado. Em outros entes a
situação é semelhante. No município de São Paulo o saldo atual de precatórios
é de R$ 11,2 bilhões, montante equivalente a 40% da receita anual do município.

Não se esqueça que a inadimplência dos entes federativos por dívidas com
o pagamento de precatório já foi objeto de inúmeras intervenções federais já
decididas por esta Suprema Corte. E, como ficou assentado por esta Corte, por
exemplo, na IF 3.091/RS:
Intervenção federal. 2. Precatórios judiciais. 3. Não configuração de atuação dolosa
e deliberada do Estado do Rio Grande do Sul com finalidade de não pagamento.
4. Estado sujeito a quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia. Neces‑
sidade de garantir eficácia a outras normas constitucionais, como, por exemplo,
a continuidade de prestação de serviços públicos. 5. A intervenção, como medida
extrema, deve atender à máxima da proporcionalidade. 6. Adoção da chamada
relação de precedência condicionada entre princípios constitucionais concor‑
rentes. 7. Pedido de intervenção indeferido. [Rel. min. Marco Aurélio, rel. p/ o ac.
min. Gilmar Mendes, DJ de 26-3-2004.]

Assim, se, por um lado, é inviável – sob os aspectos econômicos e sociais –


exigir a quitação imediata do total das dívidas dos entes federativos referentes
aos pagamentos de precatórios, por outro, não havia como manter inalterada
tal situação de inadimplência.
Nesse contexto, a sistemática adotada pelo art. 97 do ADCT, ao criar um com‑
plexo regime transitório de pagamento de precatórios, com previsão de parcela‑
mento até quinze anos, vinculações à receita corrente líquida dos entes federati‑
vos, bem como ao estabelecer novas formas de pagamento desses débitos durante
a vigência do regime especial, constitui medida que possibilita solucionar essa
difícil realidade de inadimplemento dos entes endividados.
Não há dúvida de que o parcelamento em quinze anos dos precatórios traz
ônus aos credores, mas também é inegável que o problema das dívidas dos entes
federativos com o pagamento de precatórios não tem solução fácil, sendo neces‑
sário um planejamento realista, que seja apto a permitir o adimplemento dos
precatórios judiciais, sem que a prestação de serviços públicos seja atingida.
Não são soluções idealistas que irão resolver tal situação. Eventual declaração
de inconstitucionalidade proferida por esta Corte resultará na invalidade desse
regime especial, e os entes federativos continuarão na situação de devedores e
os particulares sem receber os seus créditos. E sinceramente, Senhores Minis‑
tros, retornar ao sistema de pagamento na modalidade constitucional anterior
importará em grave retrocesso e na repristinação de modelo que efetivamente

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  225


ADI 4.425

não assegurou o pagamento pela administração pública de seus precatórios.


Como anotou o ministro Nelson Jobim, por ocasião do julgamento cautelar da
ADI 1.662, “não há dúvida de que a fórmula constitucional do art. 100 tem criado
dificuldades no que diz respeito à execução e ao cumprimento dos créditos par‑
ticulares contra o Estado. Isso é um fato indiscutível. A solução do art. 100, efe‑
tivamente, não compôs os conflitos decorrentes dos interesses entre credores
do Estado e o Estado genericamente considerado”.
Em suma, a EC 62/2009 busca solucionar esse problema de endividamento,
criando um regime transitório através do qual os devedores (Estados, Distrito
Federal e Municípios) comprometem uma parcela fixa de suas receitas, viabili‑
zando forma mais efetiva de cumprimento das decisões judiciais, já que contri‑
buirá para a formação do volume de recursos a serem utilizados no pagamento
dos precatórios por eles devidos.
Bem se sabe que grande parte das entidades devedoras pagavam percentu‑
ais bem inferiores a esses percentuais fixados pela EC 62/2009, muitos, por sua
vez, nada quitavam. Por outro lado, essa vinculação da receita líquida resultará,
com o tempo, na necessária mudança de mentalidade dos agentes públicos em
relação à essencialidade do pagamento de precatórios.
Destaque-se que as contas especiais serão administradas pelo tribunal de
justiça local (art. 97, § 4º), e os seus recursos têm destinação específica para o
pagamento de precatórios, não podendo retornar para os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios devedores, mecanismos esses que dão aos credores uma
maior garantia de recebimento.
Para além disso tudo, a EC 62 estabelece sanções que buscam inibir, de forma
mais veemente, o descumprimento das regras de transição, quais sejam (§ 10
do art. 97):
(i) haverá o sequestro de quantia nas contas de Estados, Distrito Federal e
Municípios devedores, por ordem do presidente do tribunal;
(ii) a compensação automática com débitos líquidos lançados pelo ente pú­­
blico contra os credores ou, alternativamente, por ordem do presidente do tri‑
bunal requerido, e, havendo saldo em favor do credor, o valor terá automatica‑
mente poder liberatório do pagamento de tributos de Estados, Distrito Federal
e Municípios devedores, até onde se compensarem;
(iii) o chefe do Poder Executivo responderá na forma da legislação de respon‑
sabilidade fiscal e de improbidade administrativa;
(iv) enquanto perdurar o não cumprimento, a entidade devedora não poderá
contrair empréstimo externo ou interno e ficará impedida de receber transfe‑
rências voluntárias;

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  226


ADI 4.425

(v) a União reterá os repasses relativos ao Fundo de Participação dos Estados


e do Distrito Federal e ao Fundo de Participação dos Municípios e os depositará
nas contas especiais, sempre que o ente quebrar o pacto.
Como se vê, os desdobramentos desse regime especial trouxeram reais expec‑
tativas aos jurisdicionados, implantando medidas que visam à efetiva satisfação
dos créditos pelas entidades devedoras, inclusive com a possibilidade automática
de poder liberatório pelo credor do pagamento de tributos do ente devedor. Além
disso, encarregou-se o Judiciário de gerir esse novo sistema, administrando com
transparência as listas de pagamento.
Essa é a finalidade primordial da EC 62/2009, ora impugnada: viabilizar meios
eficazes de pagamento dos precatórios vencidos pelos entes federativos, sem
descuidar de medidas punitivas para sua inobservância.
Por fim, quanto à questionada e polêmica previsão de leilão para pagamento
de precatórios (§ 9º do art. 97 do ADCT), de início, é importante considerarmos
que se trata de alternativa mais benéfica tanto para os credores como para o
poder público que o conhecido “mercado paralelo dos precatórios”. Com efeito,
viabiliza-se solução mais eficiente que os caminhos heterodoxos que já se fazem
presentes na nossa realidade.
O leilão previsto nas disposições constitucionais transitórias será realizado
por meio de sistema eletrônico administrado por entidade autorizada pela Co­­
missão de Valores Mobiliários ou pelo Banco Central do Brasil. Além disso, será
admitida a habilitação de precatórios ou parcela que não esteja pendente de
recurso ou impugnação de qualquer natureza, ocorrendo por meio de oferta
pública a todos os credores habilitados.
Dessa forma, o credor terá direito de opção de participar ou não do leilão, res‑
tando devidamente respeitados os princípios da autonomia da vontade, pois o
detentor do precatório participará apenas se lhe for conveniente. Resta, igualmente,
resguardado o princípio da isonomia na oferta de pagamento, já que todos os cre‑
dores habilitados podem participar da oferta pública sob as mesmas condições.
Assim sendo, a modalidade de leilão, assim como os acordos diretos com os
credores, viabilizará, com respeito ao princípio da autonomia da vontade e da iso‑
nomia entre os credores, o pagamento de um maior número de precatórios com um
menor ônus para o poder público, sem falar que se trata de alternativa a credores
com necessidade financeira imediata, que tenham pressa em receber os valores.
Com efeito, trata-se de mecanismo que viabiliza oficialmente que credores
recebam mais rapidamente o seu crédito, com segurança jurídica e com menor
deságio. Além disso, nesse caso, ambas as partes – credor e devedor – são bene‑
ficiadas: ganham os credores que receberão mais prontamente seus créditos,

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ADI 4.425

ainda que com deságio; e ganham os entes estatais com o aceleramento do ritmo
de pagamento das dívidas.
Ademais, gostaria de ressaltar aqui uma questão curiosa acerca da realização
de leilões e de acordos como formas de pagamento de precatórios. No âmbito
das relações entre particulares é natural que, numa situação de inadimplência,
busque o credor a negociação da dívida, resultando, muitas vezes, no parcela‑
mento das dívidas, na retirada de juros e multas e até mesmo na diminuição desse
valor. Se essas orientações são salutares em se tratando de relações privadas,
porque não aplicá-las quando estamos diante de entes federativos inadimplentes?
No meu sentir, a celebração de acordos – e a realização de leilões é uma forma
de transação –, no âmbito da administração pública, são plenamente viáveis,
devendo ser estimuladas, pois viabiliza a busca de soluções consensuais entre
administrados e administração. A meu ver, a regra do pagamento na ordem cro‑
nológica (não temos aqui cláusula pétrea) não é óbice a impedir a adoção de
soluções consensuais no pagamento de precatórios, pois o que se deve verificar
no caso é se restam atendidos os princípios da impessoalidade e da isonomia.
Com efeito, pode parecer que a celebração de um acordo pode dar ensejo à
suposição de que a parte envolvida receberá tratamento privilegiado em relação
aos demais credores do poder público. Contudo essa situação não ocorre, pois
teremos, na hipótese de leilão ou de acordo, situação distinta, pois os credores,
nesses casos, não receberão integralmente os seus créditos, situação que, por si
só, os distingue dos demais.
Dessa forma, entendo que esses mecanismos, ao lado da hipótese de pagamento
de precatórios em ordem cronológica de apresentação, atendem, em última aná‑
lise, o princípio da eficiência da administração pública (art. 37, CF/1988), consti‑
tuindo meio hábil e menos gravoso para o pagamento de débitos públicos.
Só para exemplificar os avanços atingidos pelo atual regime, veja-se análise
de inegável relevo para a presente ação que o Estado de São Paulo apresentou
em memoriais contendo os seguintes dados:
Como primeira medida, o Estado de São Paulo editou o Decreto 55.300/09, implan‑
tando, com efeitos a partir de 1º-1-2010, o Regime Especial instituído pela referida
Emenda Constitucional. Conforme disposto no art. 97 por ela acrescentado ao Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias (inciso I do § 1º e § 2º), foi exercida
opção pelo comprometimento de 1,5% (um e meio porcento) da receita corrente
líquida do Estado, por prazo indeterminável, até a liquidação total do estoque,
ficando para momento posterior a definição do uso a ser feito com os 50% desses
recursos que, por disposição do art. 97, § 8º do ADCT, não necessariamente preci‑
sam ser aplicados segundo a ordem cronológica, podendo ser destinados a leilão,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  228


ADI 4.425

a pagamento de valor, ou a acordo direto com os credores (consoante previsto,


respectivamente, nos incisos I, II e II do § 8º do ADCT).
A partir dos dados sobre o estoque e composição da dívida, a receita corrente
líquida do Estado, constatou-se que além do evidente benefício aos credores de
menor valor, medida de importante e inegável alcance social, o pagamento em
ordem de valor, ao menos nos dois primeiros exercícios (em 2010 e 2011), permi‑
tiria promover uma redução significativa do número de processos em estoque
(permitindo, no biênio 2010/2011, uma redução de nada menos do que 78,10% do
estoque atual de precatórios, que se reduziria de 20.047 para apenas 4.389), faci‑
litando a administração dos remanescentes e a própria gestão dos leilões e/ou
acordos diretos que, para a maximização dos recursos disponíveis, futuramente
se pretende realizar. E assim, pelo Decreto 55.529/2010, foi definido que os recursos
transferidos durante o exercício de 2010 seriam destinados a pagamento em ordem
de valor, vindo tal destinação a ser renovada no exercício de 2011, por disposição
do Decreto 56.146/2011.
(...)
Dessa forma, o passivo de R$ 19.198.830.440,48 apurado em dezembro de 2009
(quando do ingresso do Estado no Regime Especial da EC 62), mesmo depois de
acrescidos os precatórios dos anos de 2010 e 2011, veio a ser reduzido para R$
16.971.570.306,96, em abril de 2011. Sendo que, de janeiro de 2010 a abril de 2011, as
transferências financeiras efetuadas pelo Estado totalizam R$ 1.890 milhões, tendo
o Tribunal de Justiça, em conjunto com os tribunais a ele conveniados, efetuado
pagamento de apenas R$ 150 milhões, remanescendo pendentes de aplicação
(mas já despendidos pelo Estado, e assim abatidos da dívida), um total de R$ 1.740
milhões (segundo posição de 30-04-2011, e contabilização efetuada até aquela data),
aos quais, no período de maio a dezembro de 2011, devem ser acrescidos cerca de
R$ 1 bilhão em transferências financeiras, fazendo com que a dívida atual se reduza
a cerca de R$ 16 bilhões, em dezembro de 2011.

5. Conclusão
Por todas essas razões, Senhores Ministros, entendo que a Emenda Constitu‑
cional 62/2009 estabeleceu solução viável para a problemática dos precatórios
em nosso país sem atingir núcleo essencial das cláusulas pétreas contidas no
art. 60, § 4º, da Carta da República. Prevê novas fórmulas que vêm capacitando
os entes federativos a efetivamente dar cumprimento às suas obrigações judiciais,
de forma que esses débitos começam a ser, paulatinamente, honrados.
Voto pela improcedência do pedido.

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ADI 4.425

VOTO
(Sobre inconstitucionalidade formal – Aditamento)
O sr. ministro Dias Toffoli: Senhor Presidente, quando se exigem os dois turnos,
isso não implica maturação, implica uma realidade material de se votar duas
vezes. Simples assim.
No caso específico, houve, em razão do que dispõe o Regimento do Senado – o
qual prevê o interstício –, a aprovação de requerimento dispensando o interstí‑
cio pela unanimidade dos líderes. Eu não concebo, da leitura da Constituição, a
ideia de que, quando se exigem os dois turnos, se exige uma maturação. Exige-se
votação duas vezes, uma confirmação da votação. É o que houve, é o que basta,
e não prevê prazo a Constituição, como destacou o voto divergente.
Peço vênia ao ministro relator e desde já ao ministro Marco Aurélio, que já
antecipou posição na linha do relator, para acompanhar a divergência.
Trago voto por escrito, Senhor Presidente, abordando essa questão de uma
maneira pormenorizada, mas não vou fazer a sua leitura.

VOTO
(Sobre inconstitucionalidade formal)
A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, também peço vênia ao senhor
ministro relator, entendendo as razões do muito bem exposto voto, porém con‑
sidero que não houve o descumprimento da Constituição, uma vez que foram
observados os dois turnos porque foram votadas duas vezes.
E a mim parece que, mesmo a pesquisa da finalidade da norma constitucional
no sentido de que o que se pretende é que não se vote de forma atabalhoada,
ou sem o devido acompanhamento pela própria sociedade, pelos seus repre‑
sentantes, foi cumprido, neste caso, exatamente como posto pelo ministro Fux.
Portanto, como disse, acompanho Sua Excelência com as vênias dos que
pensam em contrário.

VOTO
(Sobre inconstitucionalidade formal)
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, com a devida vênia do
ministo relator, também acompanho a divergência aberta pelo ministro Luiz Fux.
Entendo que a Constituição, no art. 60, § 2º, referiu-se apenas a uma votação
em dois turnos, não estabelecendo prazo entre esses dois turnos, tal como fez,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  230


ADI 4.425

por exemplo, no art. 29 da mesma Carta, em que se exige, ao se votar a lei orgâ‑
nica municipal, um prazo de dez dias entre os dois turnos. Ou seja, quando o
constituinte quis se referir a prazo – como disse muito bem o ministro Luiz Fux –,
ele o fez expressamente. Neste caso, embora a Carta Magna seja a lei maior do
País, ele não exigiu interstício.
É verdade – como salientou o ministro Dias Toffoli – que o interstício de
cinco dias consta tanto do Regimento Interno do Senado quanto do Regimento
Interno da Câmara dos Deputados. Mas ocorre que – também como salientado
pelo ministro Dias Toffoli – houve um requerimento de todos os líderes parti‑
dários endereçados ao presidente da Câmara, para que esse prazo de cinco dias
fosse suspenso. E o presidente assim o fez, acolhendo essa demanda. E creio
que o fez dentro de suas atribuições previstas no art. 17 do mesmo regimento
interno, porque cumpre ao presidente da Câmara dos Deputados, segundo esse
dispositivo que acabo de citar, cumprir e fazer cumprir o regimento da Casa.
Ademais, como já foi mencionado pelos ministros que me precederam, sobre‑
tudo pela ministra Rosa Weber e também pelo ministro Luiz Fux, esta emenda
foi aprovada por uma amplíssima maioria; portanto, não carece de legitimidade.
No primeiro turno, ela foi contemplada com 328 votos afirmativos e, no segundo
turno, com 329 votos afirmativos também – e isso após uma longa discussão que
incluiu inclusive audiências públicas, como já salientado.
Portanto, rejeito essa preliminar, acompanhando a divergência aberta pelo
ministro Luiz Fux, pedindo vênia aos que discordam desse entendimento.

VOTO
(Sobre inconstitucionalidade formal)
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, permita-me – o Ministério Público –
subscrever a manifestação sobre a matéria. E, nessa manifestação, temos os
seguintes trechos:
29. A realização de mudança no texto constitucional envolve [embora não pareça,
até mesmo pelo número de emendas constitucionais, já apontei que, certa vez,
um cidadão entrou numa livraria tentando adquirir um exemplar da Constituição
brasileira, e o balconista o avisou que aquela livraria não trabalhava com perió‑
dicos, tem-se Constituição rígida] decisão extremamente grave e que, por isso,
merece ampla discussão e detida reflexão por parte dos parlamentares. Não é
por outra razão que a Constituição exigiu [sob o ângulo estritamente formal? A
meu ver, não; sob o ângulo do conteúdo] a realização de dois turnos de votação
em cada casa legislativa.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  231


ADI 4.425

30. Através deste procedimento, permite-se que, no intervalo entre cada votação,
os parlamentares envolvidos discutam e meditem sobre a questão, ponderando
todos os argumentos favoráveis e contrários à proposta, inclusive para, se for o
caso, reverem a sua posição original (...).

Tanto é assim, digo, que o texto constitucional se refere a 3/5 dos votos dos
respectivos membros em cada turno, pressupondo, portanto, que, em um turno,
possa ser alcançada essa maioria qualificada e, em outro, não seja alcançada essa
mesma maioria qualificada.
Continua o parecer:
31. Trata-se de um expediente que serve à ideia de democracia deliberativa. Esta
parte da premissa que a democracia não se esgota no respeito à regra da maioria,
mas se assenta na busca, através do diálogo, de respostas adequadas e justas para
os problemas sociais, de forma a promover o bem comum, sem desrespeito dos
direitos fundamentais.

A interpretação teleológica do disposto no § 2º do art. 60 da Carta Federal


exclui, seja qual for o interesse momentâneo, a queima de etapas, ao prever que
a proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em
dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambas, e em cada qual
duplamente, 3/5 dos votos dos respectivos membros.
O preceito não agasalha o açodamento, ou seja, não agasalha simplesmente
a forma pela forma.
Ter-se dupla votação contempla espaço razoável para a necessária reflexão, no
que se pretende alterar o documento básico da República, a Constituição Federal.
No caso, não houve esse espaço, por isso ou por aquilo – e, assim, vamos con‑
tando, como costumo ressaltar, a história do Brasil. Resolveu-se que, no Senado,
a votação seria imediata quanto ao segundo turno. Potencializou-se, como disse,
a forma pela forma em detrimento do conteúdo na norma.
A própria Casa interpretou bem o texto constitucional, no que editou o regi‑
mento prevendo o interregno entre uma votação e outra e ele não foi respeitado.
Não estou invertendo as coisas, a ordem natural das coisas, interpretando a
Constitucional Federal à luz do regimento interno. Não, o que estou apontando
é que o Regimento Interno do Senado da República – e o Senado não é uma terra
sem lei –, ao prever o intervalo de cinco dias, homenageou o texto constitucio‑
nal. Vem o argumento de que, em outras situações jurídicas, a Carta contempla
expressamente o intervalo. Esse argumento, Presidente, para chegar-se com
ele à conclusão de que por isso não se há de exigir qualquer intervalo quanto à
emenda constitucional, prova em demasia. É uma petição de princípio, porque

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  232


ADI 4.425

não posso interpretar a Carta da República de forma literal, gramatical. Devo


buscar o objetivo dessa mesma Carta da República e das regras nela contidas.
Partiria mesmo, perdoem-me aqueles que entendem de maneira adversa, para a
incongruência, caso viesse – segundo minha ciência e consciência, não é a ciência
e consciência de colegas – a afirmar que, no caso de aprovação de lei orgânica
do Município, uma lei complementar, uma lei também de envergadura maior,
deve haver o interregno, que, no caso da aprovação da Lei Orgânica do Distrito
Federal, que é uma verdadeira constituição – já dissemos isso aqui, tanto que
desafia o controle concentrado de constitucionalidade –, também há de se obser‑
var o intervalo. Mas que, para emendar-se a Carta Federal, não há necessidade
de observar período razoável – e, para mim, os cinco dias o revelam – visando
à meditação, à reflexão. É esse o objetivo maior do § 2º, ao dispor que a matéria
deve ser votada em dois turnos, alcançando-se, em cada qual, portanto, turnos
diversos, a maioria qualificada de 3/5.
Poderia prosseguir, Presidente, mas subscrevo o parecer da Procuradoria‑
-Geral da República, inclusive quanto à lição de Sarmento, e poderia continuar
na leitura desse mesmo parecer, que vem assinado pela vice-procuradora-geral
da República, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, e pelo procurador-geral
da República, que nos assiste.
Não tomarei o tempo do Colegiado, mesmo porque a votação já está definida,
porém reafirmo que é preciso manter as balizas que dificultam – e o objetivo é
esse – a alteração da Carta da República, que deveria ser um documento estável
e não o é. Emenda-se a Constituição Federal como se aprova uma lei ordinária –
ordinária no bom sentido – sobre certa matéria.
Peço vênia, Presidente, para subscrever o parecer e o voto proferido pelo rela‑
tor, ministro Carlos Ayres Britto, entendendo que o vício formal salta aos olhos e
que a Constituição Federal não é um documento simplesmente formal, mas de
conteúdo maior, ao qual precisa ser conferida uma concretude que lhe é própria.
Por isso, acolho o pedido formulado sob o ângulo do vício formal, com a devida
vênia daqueles que entendem de forma diversa.

VOTO
(Sobre a alegação de vício formal – Procedimento legislativo)
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Senhores Ministros, concordo com as obser‑
vações do eminente ministro Ayres Britto, relator, acerca da inconstitucionali‑
dade formal da EC 62/2009. A legitimidade de qualquer ato jurídico, inclusive os
atos legislativos próprios, também se afere pelo devido procedimento previsto,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  233


ADI 4.425

exercido pela pessoa competente. Assim, a aderência ao procedimento é forma


de controle de validade dos atos jurídicos posta à disposição do jurisdicionado.
O art. 60, § 2º, da Constituição prevê expressamente que as propostas de
emenda à Constituição serão discutidas e votadas em cada casa do Congresso
Nacional em dois turnos.
Essa segmentação do processo legislativo tem por propósito impedir vota‑
ções meramente simbólicas, isto é, representativas de acordos realizados fora do
ambiente de plena publicidade e transparência e cuja motivação não é carreada
para o campo da plena discussão democrática.
O ministro Ayres Britto entendeu que a votação da Proposta de Emenda
12-A/2006 foi meramente simbólica, embora Sua Excelência tenha usado pala‑
vras diferentes. Conforme nos lembramos, o eminente relator registrou que o
Senado discutiu, votou, tornou a discutir e a votar a proposta de emenda em
menos de uma hora.
Disse o ministro Britto:
O artifício de abrir e encerrar, nu’a mesma noite, sucessivas sessões deliberati‑
vas não atende à exigência constitucional da realização de uma segunda rodada
de discussão e votação, precedida de razoável intervalo até para a serenização
de ânimos eventualmente exacerbados, ao lado de amadurecimento das ideias.
Segundo turno que, não se limitando a uma nova e imediata votação, implica a
necessidade de um tão renovado quanto amplo debate da proposta de emenda à
Constituição, volto a dizer. O que demanda o encarecido espaçamento temporal,
ora maior, ora menor, mas nunca num mesmo dia, ou no curso de uma única noite
e, pior ainda, de mecânicos sessenta minutos.
(...)
Seja como for, a pretensa segunda rodada de discussão e votação da emenda sub
judice implicou um tipo de arremedo procedimental que não tem como escapar à
pecha de fraude à vontade objetiva da Constituição.

Pergunta-se se não competiria ao Senado definir o que são turnos, para fins
de aplicação do art. 60, § 2º, da Constituição. A resposta é positiva, e o Judiciário
não pode definir originariamente se turnos compreendem semanas, dias, meses
ou qualquer outra medida de tempo.
Porém, compete ao Supremo Tribunal Federal garantir que a definição dos
“turnos” assegure a cada um dos congressistas e dos cidadãos brasileiros que o
processo legislativo possa ser entendido e debatido.
Cabe à Suprema Corte apontar se uma dada definição de “turno” viola expec‑
tativas constitucionais legítimas.
A propósito, lembro a sábia observação do justice Stone na mais famosa nota

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  234


ADI 4.425

de rodapé da história da jurisdição constitucional norte-americana: atenção


especialíssima deve ser conferida às alegações de inconstitucionalidade em des‑
favor de grupos insulares e discretos, pois eles não têm acesso pleno ao processo
político democrático.
A votação apressada do projeto de emenda tolheu a capacidade individual
de cada congressista, das minorias políticas representantes e de cada um dos
cidadãos representados de compreender e de influenciar, no momento oportuno,
a discussão de tema tão grave. Talvez essa falta de oportunidade para boa com‑
preensão do tema tenha resultado no placar final de votação, que não registrou
contrariedade à proposta.
É como voto sobre o alegado vício formal.

EXTRATO DA ATA
ADI 4.425/DF — Relator: Ministro Ayres Britto. Requerente: Confederação Nacio‑
nal da Indústria – CNI (Advogados: Cassio Augusto Muniz Borges e outros). In­­
teressado: Congresso Nacional. Amicus curiae: Estado do Pará (Procurador:
Procurador-geral do Estado do Pará).
Decisão: Prosseguindo no julgamento, o Tribunal rejeitou a alegação de inconsti‑
tucionalidade formal da Emenda Constitucional 62, por inobservância de interstício
dos turnos de votação, vencidos os ministros Ayres Britto (relator), Marco Aurélio,
Celso de Mello e Joaquim Barbosa (presidente). O ministro Gilmar Mendes adiantou
o voto no sentido da improcedência da ação. Em seguida, o julgamento foi suspenso.
Presidência do ministro Joaquim Barbosa. Presentes à sessão os ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen
Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavascki. Procurador-geral da
República, doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 6 de março de 2013 — Carlos Alberto Cantanhede, secretário.

ESCLARECIMENTO
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, egrégio Plenário, ilustre Represen‑
tante do Ministério Público, Senhores Advogados presentes, temos agora o capí‑
tulo inerente às inconstitucionalidades materiais.
Há uma pluralidade de causa petendi. De sorte que, com toda boa vontade que
eu sempre tenho manifestado em resumir os votos – o que, aliás, não tem sido
uma experiência muito feliz essa minha solidariedade ao Plenário, porque sempre
o Plenário indaga algumas coisas que não estão explicitadas nessa consolidação

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  235


ADI 4.425

que procuro fazer, para poupá-los –, neste caso específico eu, necessariamente,
terei que proceder à leitura de alguns trechos.
Tanto mais que é matéria de extrema relevância, e há anseios sociais em torno
dessa questão. Então, peço vênia para não utilizar de hábito. Aliás, bem advertido,
na última sessão, pelo ministro Celso de Mello, que, com sua experiência e com seu
exemplo, fez aqui uma alusão de que eu deveria ter lido o voto, e não o fiz em prol,
digamos assim, não o açodamento, mas uma celeridade na possibilidade de julgar.
Senhor Presidente, vamos, então, às inconstitucionalidades materiais. Em al­­
gumas delas, tenho possibilidade de fazer uma síntese; em outras, efetivamente,
é impossível.

PROPOSTA
A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, são muitos dispositivos. E o
que me parece que o ministro Fux diz, e eu concordo, é que, se cada dispositivo
for sendo examinado e votado, facilitaria para os ministros, pois eles saberiam
exatamente qual o dispositivo votado e a discussão sobre ele. São matérias dife‑
rentes, quer dizer, tudo é precatório, mas...
O sr. ministro Luiz Fux: Se o Plenário entender assim...
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Todos estão de acordo com o
fatiamento, digamos assim.
O sr. ministro Marco Aurélio: É mais seguro, Presidente, para apreciação
dos diversos tópicos.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Para sabermos do que se cuida.
O sr. ministro Luiz Fux: Naquela lei de Alagoas, levamos um pouco mais de
tempo, mas fracionamos a lei inteira.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Mas assim saberemos o que estamos votando.

VOTO
(Sobre proposta)
O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, do meu ponto de vista de
examinar a constitucionalidade dessa emenda constitucional, qualquer um dos
dispositivos, ainda que considerado isoladamente, supõe um contexto geral que
teria de ser investigado.
Não me oponho, de modo algum, que haja esse fatiamento, mas, desde logo,
adianto que precisaria de um tempo maior para colocar, já o primeiro item, num
contexto mais amplo.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  236


ADI 4.425

DEBATE
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Ministro Teori Zavascki, Vossa Excelência
propõe que o ministro Fux leia todo o seu voto, no que diz respeito ao mérito,
e, depois, a votação seja feita de modo, enfim, fatiado? Apenas para que nós
entendamos a mecânica.
O sr. ministro Luiz Fux: Vamos perder um pouco a memória.
O sr. ministro Teori Zavascki: Pode ser assim. Eu não me oponho que se
fracione. Eu só vou...
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Porque, realmente, a nova sistemática
de pagamento de precatórios tem uma metodologia única, é um todo único que
precisa ser compreendido em sua...
O sr. ministro Luiz Fux: Mas tem muitos aspectos.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Sim, há múltiplos aspectos.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Temos duas ações diretas com
vários fundamentos. É essa a dificuldade.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Porque uma coisa diz respeito, por exemplo,
no § 2º do art. 100, especificamente, sobre pagar, a superpreferência para aqueles
que tiverem pelo menos 60 anos na data da expedição do precatório – a expressão
é esta –, e isso tem uma finalidade, uma justificativa. Outra é o parcelamento,
outra é a compensação. Então, é um contexto, sim.
O sr. ministro Luiz Fux: Pela relevância da matéria, a ministra Cármen Lúcia
sugere uma boa proposta.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Se o ministro Luiz Fux conseguir em
cada item, digamos assim, apresentar, e certamente apresentará, um raciocínio
encadeado para que nós possamos entender, realmente, a substância...
O sr. ministro Luiz Fux: Eu vou narrando esse novo regime de pagamento
dos precatórios e evidentemente as impugnações que ele sofre. Então, há uma
impugnação a essa superpreferência. Então, eu dei aqui as razões pelas quais se
impugna isso, essa superpreferência, e a conclusão a que o ministro Ayres Britto
chegou, e a que cheguei. Onde eu puder sintetizar, sintetizarei. Há casos em que
é impossível. Eu acho que fica claro, fica fácil julgar.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Eu não me oponho ao fatiamento,
então.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Não haverá vantagem alguma no fatiamento.
O fatiamento seria para tornar a coisa muito mais clara, mais límpida.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Mas o que o ministro propõe é isso, que ele
clareie, fazendo até o link necessário.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  237


ADI 4.425

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Vossa Excelência já concluiu


o primeiro item?
O sr. ministro Luiz Fux: Eu concluí, dentro dessa proposta de sintetizar.
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, permite-me? Lembro-me da
compreensão do ministro Gilmar Mendes, que, ontem, teve que fazer o resumo
do resumo, em um juízo de improcedência.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): O ministro Gilmar Mendes
julgou improcedente um tópico, não é?
O sr. ministro Luiz Fux: Não, mas o ministro Gilmar Mendes julgou impro‑
cedente numa postura da jurisprudência de resultado. Ele disse assim: isso
está dando certo, de sorte que não vamos mexer nisso, e eu estou sem tempo
para votar, esse é o meu entendimento. Muito bem, mas ele, efetivamente, não
debateu item por item. Quer dizer, nós estamos aqui, eu não tenho nenhuma
restrição – se Vossa Excelência tem essa memória toda – a que eu leia – eu estou
na página 22 – até a 59. Se a memória estiver bem refrescada, eu vou sintetizar
até onde eu puder. Mas tenho a impressão de que, realmente, a votação de tema
por tema talvez seja melhor, porque, por exemplo, eu posso não me convencer
em relação a um fundamento, e o outro ministro pode entender que, por esse
fundamento, ele acolhe, mas, pelo outro, não acolhe. Enfim, eu acho que isso
é natural do julgamento das declaratórias de constitucionalidade e das ações
em geral, quando elas têm pluralidade de causas de pedir. Posso ficar com uma,
não ficar com a outra.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Inúmeras vezes nós já fizemos isso.
O sr. ministro Luiz Fux: Por exemplo, naquela lei de Alagoas, da criação do
juizado coletivo criminal, nós votamos artigo por artigo. Demorou um pouco,
mas é melhor.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Com o Estatuto da OAB, foi a
mesma coisa.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Teve até pedido de vista só de um dispositivo
e continuou o julgamento dos outros.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Sim, no Estatuto da OAB, o pedido de vista
sobre certos dispositivos.
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, só para completar o pensa‑
mento, nada impede que cada um de nós, ao votar, expresse, desde logo, segundo
a própria convicção, um pensamento global ou segmentado. Eu, particularmente,
inclino-me na linha do voto do ministro Luiz Fux.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Luiz Fux: Aliás, até para a tranquilidade de todos, eu dividi nos

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  238


ADI 4.425

tópicos interligados: superpreferência, compensação, atualização monetária e


o regime especial.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Então, Ministro Fux, já que nós
não temos um consenso claro.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Então, Vossa Excelência pros‑
segue, não?
O sr. ministro Luiz Fux: Bom, se o Colegiado está de acordo, eu passo, agora,
então, quer dizer, Vossa Excelência não votou, Vossa Excelência não submeteu à
votação essa primeira. Vai submeter à votação ou eu vou usar minha metodologia.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Parágrafo 2º do art. 100.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Esse primeiro tópico?
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
A sra. ministra Cármen Lúcia: É o § 2º do art. 100.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Luiz Fux: Eu rejeito a inconstitucionalidade quanto ao art. 100,
§ 2º, com redução de texto.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Ele diverge do ministro relator. Subtrair só a
expressão, exatamente.
O sr. ministro Luiz Fux: E, aí, eu digo o seguinte, quer dizer, com essa redução
de texto, nós vamos ter de considerar que todo mundo que fizer 60 anos, mesmo
que in itinere, vai ter que reorganizar a ordem dos precatórios.
Então, não há nada de razoável que o poder público estabeleça um critério.
E aqui eu cito várias passagens no sentido de que isso, digamos assim, perpassa por
todos os critérios da razoabilidade, da proporcionalidade, não viola nenhum direito
fundamental e atende a uma massa maior de credores mais velhos, doentes. Então,
vamos dizer assim, se nós considerarmos que o centro de gravidade do ordenamento
jurídico hoje é a dignidade da pessoa humana, atender a doentes e a pessoas idosas,
não há nada mais escorreito sobre o prisma constitucional e ideológico.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ministro Fux, então, concreta‑
mente, sobre o § 2º?
O sr. ministro Luiz Fux: Eu rejeito essa inconstitucionalidade do § 2º.
O sr. ministro Dias Toffoli: Julga improcedente a ação.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Julga improcedente.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  239


ADI 4.425

DEBATE
O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, eu vou insistir num ponto.
Não estou contra o fatiamento deste julgamento.
Todavia, julgamento de inconstitucionalidade de uma emenda constitucional
é muito diferente do julgamento de inconstitucionalidade de uma lei infracons‑
titucional, porque o parâmetro de legitimidade de uma emenda constitucional
são as cláusulas pétreas apenas.
De modo que o que nós estamos decidindo aqui, única e exclusivamente, é se
essa emenda constitucional ofendeu ou não cláusula pétrea. É só isso que nós
estamos julgando.
O sr. ministro Luiz Fux: E, a bem da verdade, a Ordem dos Advogados do
Brasil alega a violação de cláusulas pétreas como, por exemplo, separação de
poderes, violação de direitos fundamentais.
O sr. ministro Teori Zavascki: Sim, mas é só isso. Por isso que eu acho difícil
nós julgarmos individualmente. Não me oponho, apenas o meu voto já nesse
primeiro tópico vai ser praticamente completo, porque vai valer para todos os
outros. É isso que eu quero dizer.
Então, se Vossa Excelência me permite, eu vou votar nesse prisma.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Vai adiantar já o seu voto em
relação ao resto.
O sr. ministro Teori Zavascki: Para praticamente tudo.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Isso dificultaria?
O sr. ministro Luiz Fux: Não, eu tenho a impressão de que, aí, nós vamos recair
no mesmo problema que nós recaímos aqui, num julgamento recentíssimo fatiado
em que, assim, no limite da discordância, chegou-se a uma conclusão absoluta‑
mente inviável na prática, e que acabou não sendo adotada: cada um vota como
quer. É impossível, Senhor Presidente. É impossível, porque, no mínimo, há um
certo, digamos assim, uma certa irritualidade, digamos assim, nesse comporta‑
mento colegiado, por quê? Porque eu não me manifestei no voto-vista ainda sobre
o ponto e o colega já vai adiantar. Não tenho nada, digamos assim... Eu trabalhei
dez anos com o ministro Teori, conheço a maneira dele trabalhar. É que aqui eu
me adaptei a essa realidade. Então, o fatiamento, ele pode ser... Agora, se...
O sr. ministro Teori Zavascki: Eu não sou contra. Só estou dizendo que, para
votar nesse ponto, eu vou...
O sr. ministro Luiz Fux: Eu sei, mas, por exemplo, a ministra Rosa também, de
alguma maneira, aventou a possibilidade de utilizar a metodologia do ministro
Gilmar Mendes. Claro que foi uma metodologia de urgência. Ele tinha que sair.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  240


ADI 4.425

Não é a mesma coisa. Mas, de qualquer maneira, se os colegas forem antecipar


o voto, aí eu já acho mais razoável eu ler tudo.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: É, isso é verdade. Vossa Excelência
está lembrando um fato muito interessante. Eu me recordo de que, durante o
julgamento da AP 470, quando se decidiu pelo fatiamento, eu me restringi aos
pontos feridos pelo relator, sob pena de o revisor ultrapassar o relator, ou seja,
analisar questões que não foram ainda examinadas pelo relator.
O sr. ministro Luiz Fux: A bem da verdade, nós todos tínhamos voto – nós
todos eu não sei –, mas nós tínhamos voto pronto sobre tudo.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Pois é. Eu acho que aqui nesse caso
também, com a devida vênia, se nós individualmente examinarmos a emenda
como um todo, e o eminente relator se pronunciar apenas sobre alguns pontos,
nós estaremos agindo antirregimentalmente, porque nós votaríamos antes do
próprio relator.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Mas o relator é o ministro Ayres Britto, que
já votou.
O sr. ministro Marco Aurélio: Sua Excelência não é o relator. O relator já
não está mais compondo o Tribunal.
O sr. ministro Dias Toffoli: Mas nós estaríamos na conclusão do voto do
ministro Fux, provavelmente, se não houvesse este debate.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: É verdade. O ministro Marco Aurélio
está levantando uma questão, é um erro em que nós incorremos também, quase
todos nós, nos julgamentos anteriores: quando o julgamento é muito dilatado
no tempo, ele é retomado muitos meses, ou, às vezes, anos depois, então nós
nos olvidamos de quem foi o relator original. E, neste caso, o relator original é
o ministro Ayres Britto.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ministro Fux, tendo em vista
que não há um consenso sobre a metodologia, Vossa Excelência teria algum
problema em continuar o seu voto?
O sr. ministro Luiz Fux: Não, nenhum.

EXTRATO DA ATA
ADI 4.425/DF — Relator: Ministro Ayres Britto. Requerente: Confederação Nacio‑
nal da Indústria – CNI (Advogados: Cassio Augusto Muniz Borges e outros). In­­
te­res­sa­do: Congresso Nacional. Amicus curiae: Estado do Pará (Procurador: Pro­
curador-geral do Estado do Pará).
Decisão: Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do ministro Luiz Fux

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  241


ADI 4.425

rejeitando a alegação de inconstitucionalidade do § 2º do art. 100 da Constitui‑


ção Federal; declarando inconstitucionais os §§ 9º e 10 do art. 100; declarando
inconstitucional a expressão “índice oficial de remuneração básica da caderneta
de poupança,” constante do § 12 do art. 100, bem como dando interpretação con‑
forme ao referido dispositivo para que os mesmos critérios de fixação de juros
moratórios prevaleçam para devedores públicos e privados nos limites da natu‑
reza de cada relação jurídica analisada; declarando a inconstitucionalidade, em
parte, por arrastamento, do art. 1º-F da Lei 9.494, com a redação dada pelo art. 5º
da Lei 11.960, de 29 de junho de 2009; e acolhendo as impugnações para declarar
a inconstitucionalidade do § 15 do art. 100 e do art. 97 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, introduzidos pela EC 62/2009, o julgamento foi
suspenso. Ausente o ministro Gilmar Mendes, em viagem oficial para participar
da 94ª sessão plenária da Comissão Europeia para a Democracia pelo Direito,
em Veneza, Itália. Presidência do ministro Joaquim Barbosa.
Presidência do ministro Joaquim Barbosa. Presentes à sessão os ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli,
Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavascki. Procurador-geral da República, doutor
Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 7 de março de 2013 — Carlos Alberto Cantanhede, secretário.

DEBATE
O sr. ministro Gilmar Mendes: Interessante anotar que a dívida – e isso acho
que os dados, até os memoriais trazidos pelo Estado, falam – dos Estados excede
em muito a capacidade de pagamento, talvez não do seu rico Estado do Rio de
Janeiro, mas, certamente, do meu pobre Estado do Mato Grosso e de vários outros
Estados. Excede muito.
Então, se houver uma inclusão simplesmente, não há como pagar; quer dizer,
nós vamos estar falando do ad impossibilia nemo tenetur. Isso nós já vimos no
debate de São Paulo, quando se pediu aqui a intervenção no Estado de São Paulo.
Se São Paulo passasse todo o dinheiro que dispõe para pagar precatório, não teria
dinheiro para colocar gasolina em carro de polícia.
O sr. ministro Luiz Fux: O ministro Ayres Britto desmistificou isso. E esse
argumento, pietatis causae, da pobreza de um Estado, isso é uma questão de má
administração. Governador bom faz o Estado ter lucro; governador ruim faz...
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Ministro Fux, me permite um aparte?
Eu queria fazer um aparte no sentido do que disse o eminente ministro Gilmar
Mendes. Quem teve uma certa experiência na administração pública pôde

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  242


ADI 4.425

verificar que grande parte dessa dívida dos precatórios é absolutamente artifi‑
cial, totalmente incompatível com o valor, por exemplo, de um bem expropriado.
Isso se vê claramente quando se trata da expropriação de imóveis. Os imóveis
eram expropriados e na indenização eram calculados a correção monetária e
os juros moratórios. Depois houve uma criação pretoriana à qual se chamou de
juros compensatórios, em que se pagavam rendas a imóveis que não eram dota‑
dos de nenhuma renda, automaticamente se pagavam os juros compensatórios.
O sr. ministro Luiz Fux: Mas, Ministro Lewandowski, isso é um problema do
processo de conhecimento donde derivou o título.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Exatamente. Chegou, então, a um de­­
terminado ponto, aí se acrescia a sucumbência, honorários, etc. Chegou a um
determinado momento em que o valor do precatório não guardava nenhuma
correspondência com o valor do bem expropriado.
O sr. ministro Luiz Fux: Quem chancelou isso?
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Então isso era uma bola de neve, as
administrações foram se sucedendo e herdaram uma dívida impagável.
O sr. ministro Luiz Fux: Mas quem chancelou essa dívida? Foi o Judiciário,
foi o Judiciário que chancelou isso. Há coisa julgada. Há discussões possíveis
em ação rescisória.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Sim, mas eu, por exemplo, me deparei
com alguns casos que eram absolutamente teratológicos, isso como desembar‑
gador em São Paulo.
O sr. ministro Gilmar Mendes: O “Caso Pirambeira”, de São Paulo.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Pois é, das Pirambeiras. Era um caso
desses. Vejam como existiam distorções. É claro que o credor do Estado precisa
receber, mas é preciso desfazer alguns mitos com relação a esses precatórios.
Eu me lembro de um caso, Ministro Gilmar, da época em que eu era desembar‑
gador no Tribunal de Justiça de São Paulo, numa câmara de direito público.
E, lá, o governo do Estado resolveu declarar como área de proteção ambiental
a parte mais elevada da Serra do Mar, o cume da Serra do Mar, e, por decreto,
então, declarou-a de preservação permanente. Alguns cidadãos mais inteligen‑
tes, ou quiçá, melhor informados, antes mesmo do decreto, compraram aque‑
las áreas todas. Muito bem, então entraram com uma ação de desapropriação
indireta contra o Estado. E a desapropriação foi evidentemente deferida pelo
Poder Judiciário. O processo tramitou por anos e anos, e, ao final, pagou-se uma
indenização integral por uma área que era absolutamente protegida, onde não
se podia plantar nem construir nada. A indenização alcançou a mata, a terra, as
pirambeiras, quer dizer, aquelas áreas em declive, absolutamente inaproveitáveis.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  243


ADI 4.425

Muito bem, o precatório chegou a um valor bilionário, e a Fazenda Pública do


Estado de São Paulo ingressou com uma ação de anulação desse precatório – eu não
me lembro bem de que ação que era, mas eu participei desse julgamento. Acabei
pedindo vista dos autos e fiz os cálculos do valor do metro quadrado que seria pago
por essa terra, assim expropriada, quer dizer, aquele cocuruto da Serra do Mar.
Eu fiquei curioso com esse valor, liguei para uma ex-aluna minha, que era juíza em
Ribeirão Preto – Ribeirão Preto, como todos nós sabemos, é o coração agrícola do
País, onde a terra é a mais cara que existe, onde o alqueire é o mais caro do Brasil –,
fiz os cálculos, e a juíza me informou, após consultar um perito, quanto que estava
custando o alqueire, naquela época, de terra roxa, onde se plantava café e milho.
Refiz os cálculos, dividi o valor do precatório pelo metro quadrado, comparando
com o valor que a juíza tinha me dado, e cheguei à conclusão, eminente Ministro
Fux, que se estava pagando por uma terra absolutamente inaproveitável mais de
cem vezes o valor de alqueire de terra roxa em Ribeirão Preto. Portanto, quando
se fala nessa dívida de precatório, nós temos que examinar isso cum grano salis.
O sr. ministro Luiz Fux: É que Vossa Excelência, com essa experiência, que
até louvo, porque há várias críticas que se lançam ao Judiciário, exatamente,
naquela parte que nós não temos capacidade institucional para entendermos
alguns temas. Por isso, foram feitas audiências públicas para a questão do feto
anencefálico, células-tronco.
Eu confesso a Vossa Excelência que essa terra roxa, essas metragens, eu não
conheço. Mas eu perguntaria a Vossa Excelência: com a experiência que Vossa
Excelência tem, Vossa Excelência entende que esse seja um caso excepcional,
passivo de impugnação, ou todos os precatórios são, mais ou menos, fraudes
cometidas através da chancela do Judiciário contra o poder público?
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Não, não há fraudes. Foi o sistema
processual e o sistema de indenização, que se criou pretorianamente, que levou
a essas distorções.
Eu me lembro, também – Ministro, apenas mais um pequeno detalhe –, quan­­
do fui secretário jurídico de um grande Município no Estado de São Paulo, enfren‑
tei uma “crise de precatórios”. Centenas de pedidos de intervenção no Município,
de sequestro de rendas etc. Bem, o que nós podíamos fazer? O prefeito entrou
em desespero, me consultou, e eu disse o seguinte: “Vamos devolver os imóveis”.
Porque havia muitos imóveis que foram desapropriados em administrações ante‑
riores e não utilizados. Nenhum proprietário quis receber o imóvel de volta. Por
quê? Porque o precatório valia de cinquenta a cem vezes mais. É claro.
Então, são essas as distorções que nós temos de trazer a público. É evidente
que o credor do Estado precisa ser pago. É sabido que os Estados e Municípios,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  244


ADI 4.425

a Fazenda Pública, em geral, está em mora. Agora, é preciso colocar, data venia,
os pontos nos “is”.
O sr. ministro Gilmar Mendes: A falta de uma regulamentação leva exata‑
mente para um quadro de anomia. Por quê? Na verdade, o que vai acontecer
diante da impossibilidade do pagamento, tal como resulta da não possibilidade
de inclusão ou de não adiantar nada, e incluir no orçamento, se não se consegue
cumprir, uma vez que os números já estão aí? Certamente, a dívida ultrapassa
orçamentos anuais de todos esses Estados, a receita desses Estados.
O que acontece? Nós jogamos essas pessoas, na verdade, na falta de regras,
no quadro de anomia. Eles vão negociar o precatório como puderem e, depois,
haverá o tipo de negociação – isso sim –, a negociação recôndita, no âmbito
político para o pagamento e encontro de contas. Esse é o problema. A falta de
regras, aqui, cria a lei do caos. A falta de lei. Esse é o problema sério.
O sr. advogado: Senhor Presidente, pela OAB, matéria de fato, por favor.
O sr. ministro Luiz Fux: Eu concedo a palavra ao advogado.
O sr. advogado: Muito obrigado. Os precatórios do Estado de Mato Grosso
estão 100% quitados. O Estado de Mato Grosso não deve um tostão em preca‑
tórios. O Estado de Mato Grosso fez uma operação com financiamento interna‑
cional, liquidou todos os seus precatórios. E nós temos notícia de que diversos
outros Estados estão negociando operações similares. Ou seja, o Brasil é um
risco de crédito bastante aceitável no mercado internacional, especialmente
com garantia federal. E não existe, na nossa visão – estou falando de matéria de
fato –, nenhuma razão para se alegar que isso seja impossível.
Nós, da OAB, entregamos aos senhores ministros memoriais, explicando mais
de quinze opções de solução boas, onde não existe nenhuma restrição ao fluxo
de caixa de Estados. Uma operação realmente – se me permite a expressão –
ganha-ganha. Essas dívidas são reestruturadas por prazo longo, o dinheiro pode
ser investido em projetos de infraestrutura, o precatório pode ser utilizado para
pagamento de financiamentos, como Minha Casa Minha Vida. Pode ser utilizado
em compensação tributária, sem afetar o fluxo de caixas dos governos. Então,
se existe um mito, na nossa visão – mais uma vez, é matéria de fato –, é que não
existem soluções para este caso.
A dívida mobiliária brasileira pública voluntária é de R$ 2,7 trilhões. Ou seja,
investidores compram voluntariamente papéis nesse montante. Aumentar essa
dívida, que existe hoje, é rolada todo dia, em mais R$ 100 bilhões, não significa
absolutamente nada. Então, é uma questão de vontade do poder público, do
poder federal, auxiliar Estados e Municípios que, sim, têm sido oprimidos pelo
Governo Federal e merecem apoio.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  245


ADI 4.425

O sr. ministro Luiz Fux: Acho que já está bom, Doutor. Estou satisfeito.
O sr. advogado: Agradeço a Vossa Excelência.
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, apenas uma observação. Preci-
samos perceber como surge o precatório. O precatório diz respeito a débito reco‑
nhecido em sentença judicial, que se presume prolatada com a observância do
devido processo legal. Por isso, não podemos nos impressionar, a essa altura, ao
julgar o que está em mesa, com o montante da dívida de São Paulo, que é um
Estado estruturado. Evidentemente, nos processos de conhecimento, defendeu‑
-se lançando mão dos recursos assegurados pela legislação instrumental.
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, eu tenho sempre o vezo de estar
aberto ao debate, mas eu tenho a impressão de que, para o melhor andamento
dos trabalhos, quer dizer, acho já indiciam uma conclusão do que eu vou chegar;
então, esses argumentos interessantes, uns interdisciplinares, outros ad terro-
rem, são argumentos que efetivamente não vão influir no desate daquilo que
eu vou decidir.
Então, eu pediria a Vossa Excelência, tenho a impressão de que consigo agi‑
lizar mais, e, depois, damos a palavra aos colegas que estão já anunciando uma
divergência.

ESCLARECIMENTO
O sr. ministro Marco Aurélio: Vossa Excelência me permite?
O sr. ministro Luiz Fux: Claro.
O sr. ministro Marco Aurélio: O relator apenas glosou a época em que devem
ser apurados os 60 anos.
O sr. ministro Luiz Fux: Pois é, mas essa época, é exatamente isso, Ministro
Marco Aurélio. Mas eu pondero...
O sr. ministro Marco Aurélio: Implicaria tratamento diferenciado. Apontou,
inclusive, que se poderia ter um credor, ante a projeção da liquidação dos débitos
para as calendas gregas, com 80 anos, que não teria 60 quando da expedição do
precatório, e estaria fora do benefício previsto.
A sra. ministra Cármen Lúcia: A data da expedição do precatório.
O sr. ministro Luiz Fux: Essa expressão do ministro Ayres, agora explicitada
pelos ministros Marco Aurélio e Cármen Lúcia, me faz, realmente, ponderar e
acompanhar Sua Excelência nesse particular também para declarar... Ele deu
interpretação conforme com redução de texto. Reduziu o texto.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Só a expressão.
O sr. ministro Marco Aurélio: Só a expressão.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  246


ADI 4.425

O sr. ministro Luiz Fux: Até a data da expedição dos diplomas. Então, acom‑
panho integralmente.
O sr. ministro Marco Aurélio: O preceito não prevê a liquidação total do
débito, mas parte. A satisfação de parte do débito.
O sr. ministro Luiz Fux: Então acompanho integralmente, nesse particular,
o ministro Ayres Britto.
É assim como voto, Senhor Presidente, pela manutenção do Estado Democrá‑
tico de Direito, que é uma promessa constitucional da Carta de 1988.

VOTO
O sr. ministro Teori Zavascki: 1. Em nosso sistema, a inconstitucionalidade de
emenda constitucional pode ser identificada e declarada em duas situações:
(a) por vício formal do processo legislativo para a sua aprovação, previsto no
art. 60 da CF, que dispõe sobre esse processo (no qual se pode considerar inclu‑
ído o limite, que se costume denominar de circunstancial, estabelecido no § 1º,
inibindo reformas constitucionais na vigência de intervenção federal, estado de
defesa e estado de sítio), ou (b) por ofensa (= incompatibilidade material) a uma
das cláusulas pétreas previstas no § 4º do art. 60 da CF. O parâmetro para aferição
da legitimidade de emenda constitucional não é, portanto, a Constituição em seu
todo, mas apenas o seu art. 60 e, implicitamente, os dispositivos que a ele vincu‑
lados por derivação. Respeitado o processo legislativo próprio e observadas as
cláusulas pétreas, é soberano o poder constituinte reformador. Embora se saiba
que as normas constitucionais formam um todo orgânico e entrelaçado, não faz
sentido algum, à luz desse amplo poder de reforma conferido pela Constitui‑
ção, pretender o reconhecimento da ilegitimidade de emenda à luz de qualquer
outro parâmetro constitucional que não seja aquele núcleo central, ou, o que
seria mais grave, à luz de normas ou de princípios de origem infraconstitucional.
É indispensável ter presente que qualquer emenda constitucional, justamente
por modificar a Constituição, tem, sempre, por sua própria natureza, o caráter
de norma contrária a algum preceito constitucional, pelo menos ao que visa a
modificar, mas, afirmar, só por isso, a sua inconstitucionalidade significaria eli‑
minar do sistema o próprio poder constituinte reformador.
2. Afastado, como foi, o argumento da inconstitucionalidade formal, cumpre
examinar eventual ferimento a cláusula pétrea de que trata o § 4º do art. 60
da Constituição. Nesse dispositivo, há o seguinte limitador ao poder consti‑
tuinte derivado:

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  247


ADI 4.425

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a
forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a
separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais.

A expressão “tendente a abolir” é tradicional em nosso constitucionalismo.


Todas as Constituições republicanas, com exceção da de 1937, a utilizaram, ao
tratar dos limites do poder constituinte reformador (Constituição da República
dos Estados Unidos do Brasil/1891, art. 90, § 4º; Constituição da República dos
Estados Unidos do Brasil/1934, art. 178; Constituição dos Estados Unidos do
Brasil/1946, art. 217, § 6º; Constituição da República Federativa do Brasil/1967,
art. 50, § 1º; EC 1/1969, art. 47, § 1º; e Constituição da República Federativa do
Brasil/1988, art. 60, § 4º).
Abolir significa eliminar, extinguir, revogar, anular, suprimir. Daí o entendi‑
mento de que emenda constitucional tendente a abolir os princípios e institutos a
que se refere o § 4º do art. 60 da Constituição é a que os atinge em seus alicerces
fundamentais e estruturantes, ou seja, em seu “núcleo essencial”. Rui Barbosa, a
propósito da Constituição de 1891, falava da inalterabilidade “naqueles centros
vitais do seu organismo, a respeito dos quaes a revisão importaria em verdadeira
revolução constitucional” (BARBOSA, Rui. Commentarios à Constituição Federal
brasileira: colligidos e ordenados por Homero Pires. São Paulo: Saraiva, 1934. 6 v.,
p. 461). Pontes de Miranda, a propósito da Constituição de 1946, aludia à proteção
a um “cerne” fundamental, considerando “ingênuas e imprudentes” as Constitui‑
ções que, indo além, “se fizessem inalteráveis, eternas”, até porque “emendar-se,
permitir alterar-se, nos indivíduos e nos grupos sociais, é sinal de sabedoria. A ten‑
dência é para mínimo de inalterável, de fixo, de preciso (...)” (MIRANDA, Pontes de.
Comentários à Constituição de 1947. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1960. t. VI, p. 472).
Não é outro o entendimento dos constitucionalistas contemporâneos, como a
ministra Cármen Lúcia, que, em texto doutrinário de 2001, observou:
O que primeiro se há de cuidar é do que significa, exatamente, proposta de emenda
tendente a abolir. É que a Constituição não veda modificação das matérias arrola‑
das entre aquelas que configuram limites materiais expressos ou mesmo implícitos.
Apenas proíbe até mesmo a sujeição à deliberação daquela proposta na qual se
indique uma tendência à extinção de matriz constitucional, que é o que se contém
nas normas havidas como impossíveis de ser excluídas do sistema. A sua extinção
(ou a sua abolição, para se valer da expressão constitucional) equivaleria a uma
transformação da raiz, da semente do sistema, e ter-se-ia, então, uma nova configu‑
ração do desenho do Estado. (...) Afinal, do que o sistema constitucional preserva‑
-se é da extinção ou aniquilação daquilo que é a sua essência e que, se alterado,
determinaria a recriação do sistema e não a sua mera reforma. [ROCHA, Cármen

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  248


ADI 4.425

Lúcia Antunes. Limites constitucionais à competência de reforma constitucional


no direito brasileiro. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Estudos em home-
nagem ao ministro Adhemar Ferreira Macial. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 154-155.]

No mesmo sentido:
O que se busca defender, com o estabelecimento de cláusulas superconstitucio‑
nais – ao menos como instituídas pelo constituinte brasileiro – é a essência da
Constituição: direitos e princípios básicos que buscam estruturar a democracia e
o Estado de direito. [VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça.
São Paulo: Malheiros, 1999. p. 235.]

Essa orientação foi abonada inúmeras vezes pelo Plenário dessa Casa, como,
v.g., na ADI 2.024 MC/DF (min. Sepúlveda Pertence, Pleno, unânime, DJ de 1º-12-
2000, decisão cautelar confirmada no julgamento definitivo em 3-5-2007, con‑
forme DJ de 22-6-2007). Alegava-se, nesse precedente, a ilegitimidade da EC 20/
1998, na parte que dera nova redação ao § 13 do art. 40 da Constituição, ao fun‑
damento de que, ao dispor sobre regime previdenciário de servidores estaduais,
a referida emenda atentava contra a autonomia legislativa dos Estados, compro‑
metendo o princípio federativo, além de violar também o princípio da isonomia.
Reproduzindo o voto que proferira no MS 23.047 MC/DF, na sessão de 11-2-1998
(DJ de 14-11-2003), sustentou o ministro Sepúlveda Pertence na oportunidade:
Reitero, de logo, que a meu ver as limitações materiais ao poder constituinte de
reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibi‑
lidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a prote‑
ção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege.
Convém não olvidar que, no ponto, uma interpretação radical e expansiva das
normas de intangibilidade da Constituição, antes de assegurar a estabilidade ins‑
titucional, é a que arrisca legitimar rupturas revolucionárias ou dar pretexto fácil
à tentação dos golpes de Estado. [MS 23.047 MC/DF, rel. min. Sepúlveda Pertence,
fl. 2556, p. 4 do pronunciamento do relator.]

Não se trata, porém, de um precedente isolado. Ao julgar a ADI 2.381 MC/RS


(DJ de 14-12-2001), também tratando do sistema federativo (especificamente a
norma inserida pela EC 15/1996, que modificou o procedimento do art. 18, § 4º,
da CF/1988 para a criação de novos municípios), o ministro Sepúlveda Pertence,
relator, deixou registrado, em seu voto:
Por diversas vezes tenho tido oportunidade de ressaltar, com respaldo do Plenário,
que o limite material invocado ao poder de emenda constitucional não implica
vedar qualquer alteração do modelo positivo originário da forma federativa do
Estado, mas apenas de seus núcleos essenciais de identificação (v.g., MS 23.047,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  249


ADI 4.425

11-2-1998, Pertence, Inf./STF 99; voto na ADI 1.749 MC, 18-12-1997, Gallotti; ADI 2.024


MC, 27-10-1999, Pertence, DJ de 1º-12-2000; ADI 1.196 MC, 16-2-1995, Pertence, DJ
de 24-3-1995). [ADI 2.381 MC/RS, rel. min. Sepúlveda Pertence, fl. 597, p. 16 do pro‑
nunciamento do relator.]

Essa orientação foi também recentemente invocada e chancelada por decisões


monocráticas dos ministros Dias Toffoli (RE 631.113/SC, DJE de 7-2-2013) e Rosa
Weber (AI 739.793 ED/SP, DJE de 1º-3-2013).
3. Ora, é manifesto exagero supor que a EC 62/2009, que veio dar nova disci‑
plina ao art. 100 da CF, tenha se destinado ou tenha aptidão para abolir, ainda que
parcialmente, qualquer dos princípios e institutos protegidos pelo § 4º do art. 60
da Constituição, que sequer foram por ela afetados, nem mesmo perifericamente.
O dispositivo modificado cuida de outro tema, o do regime de pagamento de preca‑
tórios, tema que, a rigor, poderia, sem qualquer gravame ao modelo constitucional,
ser retirado do texto da Constituição. A existência, ou não, do art. 100 no texto
constitucional não comprometeria, nem mesmo modificaria, muito menos abo‑
liria o núcleo estruturante da forma federativa de Estado, do voto direto, secreto,
universal e periódico, da separação dos Poderes ou dos direitos e garantias indi‑
viduais. Considerar ilegítima até mesmo emenda constitucional que discipline o
regime de precatórios judiciais, essa, sim, seria, com perdão do trocadilho, uma
interpretação constitucional tendente a abolir o poder constituinte reformador!
A inexistência de ofensa a qualquer cláusula pétrea, bem se vê, é razão sufi‑
ciente para afastar a inconstitucionalidade da EC 62/2009.
4. Por outro lado, ainda que assim não fosse, só faria sentido declarar a incons‑
titucionalidade de uma emenda constitucional se ela, de alguma forma, impu‑
sesse um retrocesso institucional significativo, pressuposto de duvidosa constata‑
ção no caso. É que a declaração de inconstitucionalidade da EC 62/2009 significa
retornar ao primitivo regime do art. 100 da Constituição. Quem se preocupa com
uma interpretação que vá um pouco além da mera expressão formal das normas
constitucionais e se detenha, como é apropriado, no exame de sua eficácia social,
constatará, sem esforço, que o modelo original do art. 100 da Constituição é um
modelo absolutamente perverso para os credores, pois deixa à pura conveniência
da Fazenda Pública a satisfação das condenações judiciais de pagar quantia, sem
que ao credor e ao Judiciário fique assegurado qualquer meio executivo apto a
impor a satisfação da prestação devida. Todos sabemos que não cabe sequestro
contra essa inadimplência (a não ser em caso de inobservância da ordem crono‑
lógica de pagamento), nem cabe a alternativa de decretar a intervenção federal
nos Estados, ou estadual nos Municípios, para obrigá-los a pagar seus débitos.
É farta a jurisprudência do STF a respeito (v.g., há dez anos, a IF 300/SP, min.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  250


ADI 4.425

Gilmar Mendes, DJ de 14-11-2003; e, mais recentemente, a IF 4.640 AgR/RS, min.


Cezar Peluso, DJE de 25-4-2012, em que se considerou suficiente para afastar o
pedido de intervenção a alegação do Estado de que não dispunha de recursos
financeiros para pagar precatórios). Na prática, portanto, as sentenças judiciais,
pelo regime originalmente previsto no art. 100 da CF/1988, somente são cum‑
pridas se e quando aprouver à Fazenda Pública. São, portanto, obrigações sem
prazo e sem sanção. Isso, sim, é atentatório ao direito subjetivo dos credores e à
autoridade das decisões do Poder Judiciário.
Um juízo de valor sobre o sistema original de pagamento de precatório com‑
parado com o que agora foi implantado revela, portanto, que, por mais deficiente
que possa ser a alternativa oferecida pela EC 62/2009, é difícil sustentar que ela
represente um retrocesso em termos institucionais. Foi o primitivo sistema, com
efeito, que gerou os altíssimos passivos por parte de inúmeros Estados e Muni‑
cípios brasileiros, a ponto de, em muitos casos, tornar inviável a perspectiva de
quitação. Insistir na manutenção desse sistema significa, na verdade, aprofundar
a crise e tornar cada vez mais remota a possibilidade de satisfação dos legíti‑
mos direitos dos credores, ficando o devedor na confortável posição de inércia,
insuscetível de ser alterada coercitivamente por meio judicial. Soa, no mínimo,
estranho, nessas circunstâncias, supor que as várias emendas à Constituição,
entre as quais a agora questionada (EC 62/2009), tendentes a modificar um
modelo falido, tenham óbice em cláusulas pétreas. Aparentemente, qualquer
modificação que atribua ao credor uma perspectiva concreta de satisfação da
dívida, e que confira ao Poder Judiciário, em caso de inadimplência da Fazenda
Pública, mecanismos aptos a viabilizar a sua execução forçada, representa um
ganho em relação ao sistema anterior.
Não é a primeira vez, aliás, que o constituinte buscou solucionar a crise dos pre‑
catórios, iniciativas sempre vistas com muitas reservas, provavelmente porque são
avaliadas tendo como parâmetro não o modelo anteriormente vigente, mas um
modelo ideal, que lamentavelmente nunca existiu. Esse método de avaliação, que
pode ser adequado sob o aspecto político ou de conveniência da proposta refor‑
madora, certamente não pode ser adotado no exame de sua constitucionalidade,
em que o contraste deve ser entre o modelo que era e o que agora se apresenta.
Pois bem, uma das iniciativas empreendidas nesse campo foi a da EC 30/2000,
que introduziu o art. 78 do ADCT. Recebida inicialmente com muitas críticas
por parte dos credores – foi objeto de contestação por ação direta de incons‑
titucionalidade, na qual foi recentemente deferida liminar para suspender a
execução –, essa emenda ofereceu solução que, com o passar do tempo (e da
persistente inércia do poder público em honrar sua dívida), acabou se tornando

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  251


ADI 4.425

atrativa também para os credores nela não contemplados (que permaneceram


submetidos ao regime comum do art. 100 da CF/1988), pois, embora conferisse
à Fazenda Pública a faculdade de pagar parceladamente (em até dez anos) o
valor de precatórios judiciais vencidos, assegurava ao credor, em contrapar‑
tida, meios executivos eficientes para obter o seu crédito: permitia a cessão do
crédito, conferia ao crédito poder liberatório do pagamento de tributos (§ 2º) e
previa o sequestro do valor como meio executivo, em caso de descumprimento
da obrigação do devedor de incluir no orçamento ou de efetivar o pagamento
das parcelas anualmente devidas (§ 4º). Essa contrapartida, não assegurada
aos demais credores pelo regime geral do primitivo art. 100 da CF/1988, acabou
fazendo com que esses credores, entre eles os titulares de créditos alimenta‑
res, desesperançados de receber a prestação, viessem postular judicialmente a
aplicação do regime do art. 78 do ADCT, como atestam inúmeros precedentes
julgados pelo Superior Tribunal de Justiça.
Esse registro histórico recomenda que se avalie e se compare, também sob
o prisma da eficácia social – e não apenas da sua mera expressão formal –, o
regime do primitivo art. 100 da Constituição e o regime agora implementado pela
EC 62/2009. A uma promessa formal de pagamento no exercício seguinte à da
expedição de precatório – cujo descumprimento sistemático não acarreta qual‑
quer consequência, o que transforma a obrigação em obrigação sem prazo deter‑
minado e sem sanção –, o constituinte está contrapondo uma alternativa de paga‑
mento parcelado, mas acompanhada de vários meios executivos aptos a tornar
efetiva, nesse prazo, a satisfação integral do seu crédito, em valores corrigidos.
Sopesadas essas circunstâncias, não se pode imputar à EC 62/2009 a pecha de
se tratar de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais ou de atentar
contra a autoridade das decisões do Judiciário, que, supostamente, estariam con‑
sagrados pelo regime do primitivo art. 100 da Constituição. Que direito era esse do
credor, se não podia exigir a prestação? Que autoridade é essa do Poder Judiciário,
que não tinha meios de impor o cumprimento das condenações pecuniárias? A
reconhecida falência do primitivo sistema de pagamento dos precatórios judi‑
ciais indica, sem dúvida, que o novo sistema, agora implantado pela EC 62/2009,
embora esteja longe de um modelo ideal de tutela dos legítimos interesses dos
credores, certamente não pode ser considerado um retrocesso em relação ao
anterior. De alguma forma, ele representa uma iniciativa tendente a implemen‑
tar, efetivamente, o cumprimento das sentenças que impuseram as prestações
pecuniárias devidas e até então solenemente desprezadas por muitos Estados e
Municípios. E, como afirmado, sem a demonstração de que a emenda impõe um
retrocesso institucional, não há como afirmar um juízo de inconstitucionalidade.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  252


ADI 4.425

5. Indo adiante e se admitindo, para argumentar, que o regime revogado era


mais favorável ao credor do que o novo sistema, poder-se-ia alegar, numa visão
absolutamente ampliativa das cláusulas pétreas (e, portanto, restritiva ao poder
constituinte reformador), que a Emenda 62/2009, ao criar, no seu art. 2º, um
regime especial menos favorecido para precatórios já vencidos, embora não ten‑
desse a abolir direitos fundamentais, acabou, pelo menos, afetando a garantia
do inciso XXXVI do art. 5º da CF, que dispõe:
XXXVI – A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada.

Colocado o debate nessa dimensão, o que se deve investigar é o alcance da­­


quele preceito constitucional. O que fica em questão é o sentido da palavra lei
inserida no dispositivo: deve a lei ser entendida em sentido amplo, para incluir
também as emendas constitucionais, ou deve ela ser interpretada restritivamente,
para se referir apenas aos preceitos normativos infraconstitucionais? Em outras
palavras: está o constituinte reformador autorizado a dispor retroativamente,
para atingir situações jurídicas consolidadas no passado?
Registre-se que, da orientação que for adotada pelo STF a respeito dessa rele‑
vantíssima – e, por sinal, antiga – controvérsia, deriva o reconhecimento posi‑
tivo ou negativo da constitucionalidade, não apenas das disposições da EC 62/
2009 aqui questionadas, como de várias outras emendas à Constituição de 1988,
também editadas com efeitos retroativos e com explícito comprometimento de
situações jurídicas já constituídas e até mesmo reconhecidas definitivamente por
sentenças judiciais transitadas em julgado. São exemplos: a EC 30/2000, sobre
pagamento de precatórios (art. 2º), a EC 41/2003, sobre limites a subsídios, pro‑
ventos e outras espécies remuneratórias auferidas dos cofres públicos (art. 9º),
a EC 47/2005, sobre previdência social (art. 6º) e a EC 57/2008, que teve como
única e exclusiva finalidade convalidar, com efeitos retroativos, atos ilegítimos
de criação, fusão, incorporação e desmembramento de Municípios.
6. O Supremo Tribunal Federal não tem pronunciamento explícito e definitivo
sobre o tema à luz da Constituição de 1988. A matéria foi abordada – porém, não de
modo definitivo –, em julgados recentes a propósito do art. 78 do ADCT, na ADI 2.356
MC/DF e na ADI 2.362 MC/DF, ambas min. Ayres Britto, DJ de 19-5-2011, em decisão
cautelar, com votação dividida; e no MS 23.047 MC/DF, min. Sepúlveda Pertence, DJ
de 14-11-2002, a propósito da PEC 33-I, da reforma previdenciária. Há, entretanto,
manifestação do STF considerando legítima a norma inserta no art. 33 deste Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que também dispôs sobre
precatórios judiciais pendentes de pagamento, autorizando seu parcelamento em

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ADI 4.425

até oito anos (RE 148.272/SP, Primeira Turma, min. Moreira Alves, DJ de 11-12-1992;
RE 154.126/SP, Segunda Turma, min. Carlos Velloso, DJ de 1º-9-1995; RE 155.979/SP,
Pleno, min. Marco Aurélio, DJ de 23-2-2001). Registre-se que esse art. 33 traz norma
assemelhada à do art. 78 do mesmo ato, que está suspensa por medida cautelar defe‑
rida na ADI 2.356 MC/DF e na ADI 2.362 MC/DF, min. Ayres Britto, DJ de 19-5-2011.
Embora assemelhados em seu conteúdo, aponta-se uma peculiar distin‑
ção entre o art. 33 e o art. 78 do ADCT (que se estenderia aos dispositivos da
EC 62/2009), considerada significativa para o equacionamento do tema: o art. 33
do ADCT constou do texto original da Constituição, enquanto que o art. 78 foi
introduzido por emenda constitucional superveniente. Essa diferença tem ser‑
vido para fixar o ponto central da controvérsia: sustenta-se, como fundamento da
constitucionalidade do art. 33 e da inconstitucionalidade do art. 78, que o exercí‑
cio do poder constituinte originário não está sujeito ao postulado da irretroativi‑
dade (art. 5º, XXXVI, da CF/1988, reprodução de norma semelhante de anteriores
Constituições), mas o contrário se dá em relação ao poder constituinte derivado.
Em outras palavras: ao constituinte de 1988, que exercia poder originário, era
permitido dispor legitimamente contra direito adquirido, ato jurídico perfeito
e coisa julgada, o mesmo não ocorrendo em relação ao constituinte derivado.
Há expressiva corrente da doutrina essa tese, que amplia os limites das cláusu‑
las pétreas. É o que se verifica, v.g., de resenha doutrinária compilada por Elival da
Silva Ramos (A proteção aos direitos adquiridos no direito constitucional brasileiro.
São Paulo: Saraiva, 2003. p. 240). É também essa a convicção de Celso Antônio
Bandeira de Mello, Luis Roberto Barroso e Lúcia Valle Figueiredo manifestada
em pareceres juntados em processo julgado pelo STJ (RMS 15.963/PR, Primeira
Turma, min. Luiz Fux, DJ de 20-2-2006). Todavia, o entendimento é contestado
por não menos renomados doutrinadores, que, em interpretação estrita, enten‑
dem que a limitação imposta no art. 5º, XXXVI, da Constituição tem como desti‑
natário único o legislador infraconstitucional, o que confere ao sistema de direito
meios menos rígidos e mais democráticos e seguros de se adaptar às mudanças
da realidade social em que atua. Nesse sentido: BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS,
Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro
de 1988. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 209; CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à
Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. 1 v.,
p. 455; MACHADO, Hugo de Brito. Direito adquirido e coisa julgada como garantias
constitucionais. RT 714/19-26; CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade
da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 324.
7. O argumento que distingue as situações pela natureza do poder constituinte
que produziu a norma constitucional parte de um pressuposto questionável: o

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ADI 4.425

de que a Constituição de 1988 é manifestação do poder constituinte originário.


Embora seja relativamente fácil, no plano teórico, distinguir os conceitos de
poder constituinte originário e poder constituinte derivado (ou constituído), há
uma enorme dificuldade em identificar, concretamente, no plano histórico, um
do outro. Tem-se, em doutrina, como poder constituinte originário o de fundar
uma nova ordem constitucional, rompendo a ordem jurídica anterior. Trata-se,
portanto, de poder que não deriva de uma anterior Constituição, que está fora
das Constituições e acima delas, um poder essencialmente político, um poder de
fato, quase sempre produto de revolução ou de golpe de estado, e que, portanto,
tudo pode em seu desiderato fundante. Já o poder constituinte derivado seria o
poder de revisar ou reformar a ordem constitucional vigente, e sua legitimidade
estaria justamente em ser exercido na forma e nos limites fixados em norma
jurídica pré-existente, qualificando-se, assim, não como um poder de fato, mas
como um poder de direito, formalmente legitimado pela ordem constitucional.
Com base nessas premissas, é comum afirmar-se que, em nossa história política,
identifica-se como poder constituinte originário o de que resultou a Constituição
do Império, de 1824, nascida da proclamação da independência; o da primeira
Constituição republicana, de 1891, nascida do golpe que pôs fim ao Império; o
das Constituições de 1934 e de 1937, decorrentes da Revolução de 1930 e do golpe
de estado subsequente; o da Constituição de 1946, identificada com a ruína do
chamado Estado Novo; e o das Constituições de 1967 e de 1969, derivadas do
movimento revolucionário de 1964.
Mas a atual Constituição, de 1988, não derivou de golpe de estado, nem de
revolução, nem de rompimento com a ordem jurídica precedente. Ainda que se
reconheça ter sido ela impulsionada por um incontido desejo social de mudança,
é inegável que ela foi protagonizada sem quebra do regime constitucional. “Com
efeito”, proclamam os historiadores, “foi ela a primeira Constituinte brasileira
que não se originou de uma ruptura anterior das instituições; esta, portanto, a
primeira constatação que a mais superficial análise histórica de nosso passado
prontamente descobre” (BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitu-
cional do Brasil. 4. ed. OAB. p. 455). Por mais procedente a afirmação de que, na
época, a ruptura “se operou na alma da Nação, profundamente rebelada contra
o mais longo eclipse das liberdades públicas” (BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes
de. História constitucional do Brasil. op. e loc. cit.), não há como negar a ausên‑
cia de qualquer ruptura institucional na oportunidade. O poder constituinte
de 1988 atuou não como poder de fato, mas como autêntico poder de direito,
tendo sido convocado e instalado por força de emenda à Constituição (Emenda
Constitucional 26, de 27-11-1985), e isso lhe retira a característica teórica mais

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  255


ADI 4.425

significativa de poder constituinte originário, que é a do rompimento com a


ordem jurídica vigente.
Essa realidade histórica não pode deixar de ser considerada na interpretação
da Constituição, especialmente quando se busca identificar os domínios das
chamadas cláusulas pétreas, estabelecidas, elas também, como decorrência de
um poder constituinte que não havia rompido com o regime anterior, ou seja,
que, pelo menos no plano teórico, dificilmente pode ser tido como genuíno poder
constituinte originário. Por isso é que há dificuldade em identificar, sob esse
aspecto, uma real diferença entre as disposições do texto original da Constitui‑
ção, que atingem ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada (como é
o caso do art. 33 do ADCT), com normas da mesma feição editadas por emendas
constitucionais. É que também na Constituição anterior se garantia que “A lei
não prejudicará direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada” (art. 153,
§ 3º, da EC 1, de 1969), reiterando, aliás, o que já constava em todas as anteriores
Cartas Constitucionais, com exceção da de 1937 (Constituição Imperial, de 1824,
art. 179, III; Constituição da República, de 1891, art. 11, § 3º; Constituição de 1934,
art. 113.3; Constituição de 1946, art. 141, § 3º; Constituição de 1967, art. 150, § 3º;
Constituição de 1969, art. 153, § 3º; e Constituição de 1988, art. 5º, XXXVI). Seria
estranho imaginar que o constituinte de 1988, sem alterar o texto desse tradicio-
nal dispositivo, tivesse pretendido modificar o sentido histórico da garantia nele
inserida. Aliás, se assim tivesse pretendido fazer, teria agido contraditoriamente,
pois ele próprio atuou largamente contra a cláusula da intangibilidade do direito
adquirido, como se pode perceber não apenas do art. 33 do ADCT, mas também
dos seus arts. 17, 18, 46, parágrafo único, III, e 47.
Assim, o mais lógico é concluir, com base no próprio comportamento do cons‑
tituinte, que aquela garantia fundamental, já existente em anteriores Constitui‑
ções, foi reproduzida em 1988 não apenas com o mesmo texto, mas também com
o mesmo sentido: o de que o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada são intangíveis para o legislador infraconstitucional, não para o poder
constituinte reformador.
8. Milita em favor dessa doutrina, além do argumento histórico, a jurisprudên‑
cia deste STF formada à luz das Constituições anteriores, nas quais a garantia
constitucional da irretroatividade da lei era assegurada exatamente nos mesmos
termos que a atual. Ilustrativo, nesse particular, o acórdão do STF, no RE 94.414/
SP, DJ de 19-4-1985, rel. min. Moreira Alves, que assentou:
1. É firme a jurisprudência desta Corte – assim, por exemplo, já se decidiu nos
RE 90.391 e 100.144, o primeiro do Plenário e o segundo desta Segunda Turma – no
sentido de que, ainda com referência à relação de trabalho regida pela CLT, não

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ADI 4.425

há direito adquirido contra texto constitucional resultante do poder constituinte


originário ou do poder constituinte derivado. As normas constitucionais se aplicam
de imediato, sem que se possa invocar contra elas a figura do direito adquirido.
Mesmo nas Constituições que vedam ao legislador ordinário a edição de leis retro‑
ativas, declarando que a lei nova não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada, esse preceito se dirige apenas ao legislador ordinário,
e não ao constituinte, seja ele ordinário, seja ele derivado. Por isso, Barbalho, ao
comentar o art. 11, 3º, da Constituição de 1891 (dispositivo que vedava aos Estados
e à União prescrever leis retroativas), acentuava: “Mas, porquanto a proibição de
leis retroativas é estabelecida por amor e garantia dos direitos individuais, não
há motivo para que ela prevaleça em casos nos quais ofensa não lhes é feita e a
retroação é proveitosa ao bem geral; e eis porque têm pleno efeito com relação a
fatos anteriores: 1º as leis constitucionais ou políticas; (...)” (Constituição Federal
brasileira: comentários. Rio de Janeiro: 1902. p. 42). Igualmente, Carlos Maximi-
liano, ao comentar o art. 141, § 3º, da Constituição de 1946, escreve, ao examinar o
conceito de direito adquirido: “Não há direitos adquiridos contra a Constituição”
(Comentários à Constituição brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: 1954. 3 v., n. 505, nota
7). No mesmo sentido, manifesta-se Pontes de Miranda, em mais de uma passagem
de seus Comentários à Constituição de 1967: com a Emenda 1, de 1969: “Impõe-se ao
legislador cogitar de lei que de certo modo indenize as perdas, porque não basta
invocar-se a proteção dos direitos adquiridos (arts. 150, § 3º, e 22), pois as Consti‑
tuições são retroeficazes” (op. cit., t. I, p. 538); “No retirado art. 176, no art. 177 (hoje
art. 194) e nos retirados arts. 179 e 180, parágrafo único, a Constituição de 1967 abria
exceção ao princípio da imediatividade eficacial das regras jurídicas constitucio‑
nais, porque, se não o fizesse, os direitos adquiridos pelas pessoas mencionadas
estariam prejudicados (op. cit., t. VI, p. 389); e “As Constituições têm incidência
imediata, ou desde o momento em que ela mesma fixou como aquele em que
começaria a incidir. Para as Constituições, o passado só importa naquilo que ela
aponta ou menciona. Fora daí não” (op. cit., t. VI, p. 392). Afirmações semelhantes –
com larga citação de autores nacionais e estrangeiros – se encontram em obras
dedicadas, em nosso país, ao direito intertemporal. Assim, em Carlos Maximiliano,
Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis, Rio de Janeiro, 1946, n. 43,
p. 60; e Bento Faria, Aplicação e retroatividade da lei, Rio de Janeiro, 1934, n. 8, p.
25 et seq. Essas assertivas se coadunam com a natureza mesma das coisas. Se se
elabora uma norma constitucional que veda situação anteriormente admitida,
quer isso dizer que o poder constituinte, originário ou derivado, entende ser essa
vedação exigida pelo interesse comum, e, portanto, aplicável de imediato, salvo
disposição expressa em contrário.

9. Não se pode desmerecer a preocupação da corrente que advoga a inter‑


pretação ampliativa das cláusulas pétreas, como meio de conferir estabilidade
à Constituição mediante limitação do poder constituinte reformador. Mas,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  257


ADI 4.425

mesmo sob esse ângulo, é preciso considerar que uma interpretação estrita
ainda é o melhor caminho para dar estabilidade ao sistema, razão de ser dessas
cláusulas inalteráveis. É sabido que a ordem constitucional se consolida e se
fortalece na medida em que for capaz, não apenas de operar ajustes no âmbito
social, mas também de se ajustar aos fenômenos sociais sobre os quais opera.
Se é importante a estabilidade das normas constitucionais para alavancar sua
força prospectiva, de impor comportamentos, é igualmente essencial para a
sua sobrevivência que elas tenham aptidão para se acomodar às inevitáveis
mutações da realidade das coisas.
Nesse contexto, tem papel estratégico o poder constituinte reformador, ins‑
tituído pelo poder fundante do constituinte originário como mecanismo indis‑
pensável para manter a Constituição afinada com a sociedade e a realidade em
que atua. Como observou Bonavides, com toda a razão:
a imutabilidade constitucional, tese absurda, colide com a vida, que é mudança,
movimento, renovação, progresso, rotatividade. Adotá-la, equivaleria a cerrar
todos os caminhos à reforma pacífica do sistema político, entregando à revolução
e ao golpe de Estado a solução das crises. A força e a violência, tomadas assim por
árbitro das refregas constitucionais, fariam cedo o descrédito da lei fundamental.
[BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. Malheiros. p. 196/197.]

Essa advertência é particularmente importante em nossa realidade jurí‑


dica, fundada numa Constituição reconhecidamente recheada de promessas
nem sempre compatíveis com a capacidade política e econômica da Nação de
atendê-las adequadamente. Engessar a Constituição mais que o necessário,
ampliando os domínios das suas cláusulas pétreas, significa, no mínimo, operar
para o seu descrédito a curto prazo, e, a longo prazo, para o seu integral com‑
prometimento. Certamente configura demasia a adoção ilimitada e irrestrita
do postulado inscrito na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da
Assembleia Francesa de 1798, segundo o qual “Um povo tem sempre o direito de
rever, de reformar e de mudar a sua Constituição. Uma geração não pode sujei‑
tar às suas leis as gerações futuras” (art. XXVIII). Em nosso constitucionalismo,
está fora de dúvida a intangibilidade, ao constituinte derivado, daquele núcleo
de princípios identificadores do Estado e fundamentais para os cidadãos, que
compõe as cláusulas pétreas. Entretanto, é preciso cautela ao definir o alcance
de cada um desses dispositivos, a fim de que não se incorra na impropriedade
de, ampliando-os além dos limites que o constituinte originário definiu, negar
efetividade ao próprio mecanismo de reforma e, portanto, à possibilidade de
adaptação da carta constitucional que ele mesmo, originariamente, quis admitir.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  258


ADI 4.425

Nesse sentido, ganha relevo a observação do ministro Sepúlveda Pertence, em


voto proferido no STF (MS 23.047/DF, Tribunal Pleno, DJ de 14-11-2003), de que:
uma interpretação radical e expansiva das normas de intangibilidade da Consti‑
tuição, antes de assegurar a estabilidade institucional, é a que arrisca legitimar
rupturas revolucionárias ou dar pretexto fácil à tentação dos golpes de Estado.

Afirma-se, portanto, que, ao se estimular, além dos limites essenciais, a imu‑


tabilidade da Constituição, aumenta-se, de certa forma, o risco de ruptura da
ordem constitucional. É dizer: a interpretação elástica do conteúdo das cláusulas
pétreas opera, a longo prazo, em sentido contrário ao da própria razão de ser
dessas cláusulas, que é a da estabilidade constitucional.
10. Concluo, em suma, que não há a apontada inconstitucionalidade formal
da EC 62/2009, nem há, no seu conteúdo, violação de qualquer das cláusulas
pétreas do § 4º do art. 60 da CF/1988, razão pela qual voto pela improcedência
do pedido. É o voto.

ESCLARECIMENTO
O sr. ministro Gilmar Mendes: Eu gostaria de observar o seguinte: Vossa Exce‑
lência fez uma série de considerações a propósito do modelo do nosso processo
constituinte. Essa questão comporta, sem dúvida nenhuma, discussão, o próprio
modelo de feitura da Constituição de 1988, que se coloca como uma alternativa.
Há até Constituições, hoje, que preveem expressamente essa terceira via, prevista,
salvo engano, no art. 68 da Constituição espanhola, como manifestação do poder
constituinte com a possibilidade de manifestação do titular do poder, referendo,
plebiscito, em suma, fórmulas que tentam compor. E, aparentemente, a emenda
constitucional de convocação inspirou-se, ou, pelo menos, levou em conta esses
referenciais, tal como resulta do seu quadro, porque ela faz a convocação, mas
como resultado, na verdade, de um amplo movimento de opinião, de um amplo
movimento popular. Portanto, não era uma emenda constitucional tradicional,
até porque, se fosse, ela seria incompatível com a própria ordem constitucional,
porque ela estava pondo fim à ordem de 1967 e 1969. Por isso, então, ela anun‑
ciava a aprovação de uma assembleia que seria votada; portanto, a votação para
o parlamento constituía, na verdade, uma votação também para uma assembleia
constituinte. É um modelo realmente singular e hábil de transição, mas nós não
podemos, na verdade, ficar apenas no aspecto formal.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  259


ADI 4.425

QUESTÃO DE ORDEM
O sr. ministro Marco Aurélio: Ministro, Vossa Excelência me permite? Sabemos
que os extremos são condenáveis. Precisamos admitir que, com a EC 62, houve
um avanço. Diria que ocorreu, até mesmo, mudança de mentalidade.
Creio que precisamos, na apreciação dessa ação direta de inconstitucionali‑
dade, dividir as matérias. Por isso, teria uma proposta a fazer ao Plenário: ini‑
cialmente, enfrentarmos a inconstitucionalidade evocada do art. 100, para, pos‑
teriormente, cogitar de algo que veio à balha para colocar um termo final no que
seria o calote oficial – destaco o regime especial, regime transitório, do art. 97
da Constituição Federal.
Claro que temos alguns aspectos quanto ao art. 100 que merecem reflexão
e, do meu ponto de vista, merecem glosa – refiro-me ao problema da idade,
ao problema da compensação, ao problema da atualização segundo os índices
da caderneta de poupança. Mas não podemos deixar de reconhecer que, pela
primeira vez, deu-se um mecanismo capaz de realmente conduzir à satisfação
dos débitos da Fazenda. Que mecanismo foi esse? Em primeiro lugar, a exten‑
são do sequestro, que, no texto primitivo, somente cabia no caso de preterição.
Estendeu-se para a hipótese de não haver inserção a previsão no orçamento de
numerário capaz de satisfazer o débito existente.
O sr. ministro Luiz Fux: Foi impugnado.
O sr. ministro Marco Aurélio: Não, claro que não se impugnaria esse meca‑
nismo. Não estou querendo dizer que é inconstitucional. Ao contrário, tem esse
mecanismo o meu aplauso quanto à extensão do sequestro.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Pelo vício formal, cairia.
O sr. ministro Marco Aurélio: O segundo aspecto, que penso importantís‑
simo, é a vinculação. É a destinação de uma percentagem da receita e depósito, à
disposição do tribunal de justiça, em conta administrada pelo tribunal de justiça,
de numerário para essa liquidação.
Por isso, creio que talvez seja interessante dividirmos as matérias. Apreciar‑
mos, num primeiro passo, o art. 100, na redação imprimida pela Emenda 62.
Posteriormente, em um segundo passo, nos debruçarmos sobre o denominado
regime especial. Colho do parecer da Procuradoria-Geral da República o item
elucidador do objetivo buscado mediante esse regime especial:
Todo esse quadro parece sugerir [item 65 do parecer] que a Emenda constitucio‑
nal 62, especificamente no que diz respeito ao artigo 97 do ADCT, é uma resposta
do Direito a uma situação de fato que já não encontrava mais solução na ordem
constitucional a ela anterior.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  260


ADI 4.425

O sr. ministro Gilmar Mendes: Mas esse é o ponto.


O sr. ministro Marco Aurélio: Por isso, acredito que a parte mais delicada
deste julgamento diz respeito ao art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias. Deveríamos deixar a apreciação para uma fase posterior à do pedido
quanto ao art. 100.
O sr. ministro Luiz Fux: Eu até sugeri no início do julgamento.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Esse é o ponto para o qual eu gostaria realmente
de chamar a atenção. Era o segundo ponto da minha observação. Primeiro era esse
quanto à natureza do processo constituinte e, daí, inclusive, concordo com a jurispru‑
dência que aqui desenvolvemos, ao longo dos anos, quanto ao significado das cláu‑
sulas pétreas, com esse caráter estabilizador que decorre do modelo do art. 60, § 4º.
Agora, o ministro Marco Aurélio toca num ponto exatamente que antecipa a
segunda observação que eu gostaria de fazer. É o seguinte: diante de uma situa‑
ção factualmente inconstitucional, porque é disso que estávamos a falar, e isso
resulta dos trabalhos legislativos, do cuidadoso parecer, por exemplo, da sena‑
dora Kátia Abreu, mostrando o descompasso entre a receita líquida corrente de
várias unidades e a dívida acumulada.
O sr. ministro Marco Aurélio: Ministro, há certas partes que podem ser feri‑
das, e mesmo glosadas, pelo Tribunal, sem prejuízo da substância da Emenda
Constitucional 62.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Mas veja, então, e é esse o ponto. Então, temos
uma situação de fato, em relação a essas unidades, porque há unidades que estavam
com os precatórios em dia, ou a União não tinha nenhum problema, até se permi‑
tiu avançar, no modelo dos juizados especiais, com a requisição de pequeno valor.
A sra. ministra Cármen Lúcia: O § 16 permite que a União refinancie, inclu‑
sive, os débitos dos Estados e Municípios, a demonstrar que ela pode inclusive
chegar a isso. E não tinha problema.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Então, diante de uma situação – e, nesse
sentido, acho que é interessante a observação do ministro Teori – factualmente
inconstitucional, porque, de fato, o Estado que acumulou esse débito, ainda
que valorizemos ao extremo a força normativa da Constituição, e a Europa está
vivendo essa realidade nesse momento, e pulveriza...
O sr. ministro Marco Aurélio: Quero dizer, Ministro, se Vossa Excelência me
permite, que não podemos – talvez de forma não refletida à exaustão – chegar
ao ponto de fulminar a Emenda Constitucional 62 no seu todo. Porque em vez
de avançarmos culturalmente, teremos um retrocesso. Voltaremos àquele está‑
gio anterior em que não se via possibilidade de liquidação do grande débito dos
Estados e Municípios para com os credores.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  261


ADI 4.425

O sr. ministro Gilmar Mendes: Exatamente. Mas voltando, então, a esse


ponto: diante de cláusulas como direito adquirido, diante de cláusulas como o
próprio devido processo legal ou da coisa julgada e do descumprimento fático
para o qual não tem remédio, vimos a discussão em relação ao mais poderoso
Estado da Federação e as dificuldades de resolver por meio de uma intervenção
federal. Por quê? Porque manda-se um interventor. E ele leva o quê? Afasta-se o
governador, e ele vai lá com vontade política de pagar?
O sr. ministro Marco Aurélio: Mas aqui não está em jogo a intervenção.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Não, mas porque é um dos remédios que o
texto constitucional...
O sr. ministro Marco Aurélio: É uma página virada. Devo admitir que trouxe
apenas um processo para versar a matéria – como presidente do Tribunal –,
porque vinha negociando solução, quando comecei a receber e-mails de que já
estaria cooptado pelo devedor, pela Fazenda devedora, e estaria tentando colocar
na situação panos quentes. Por isso trouxe o processo e disse: “Olha,” – ainda
avisei aos senhores advogados que estiveram comigo – “levarei o processo, alu‑
sivo à intervenção, e só teremos um voto a favor, que será o meu”.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Não, Ministro. Veja que não se trata de ne­­
nhuma censura, mas de um juízo de constatação, em relação a esta situação.
Quer dizer, o remédio que o texto constitucional previu para esse tipo de situa‑
ção, o remédio jurídico é a intervenção federal. Agora, manda-se um interventor
a São Paulo, a mais forte unidade da Federação, para fazer os pagamentos? E
ele vai dispor de que recursos? Diferentes daqueles de que dispõe o governa‑
dor? Ele levará recursos da União? Veja a situação. Mas não estamos falando
hoje de São Paulo, estamos falando de Estados muito mais fracos e com muito
mais problemas.
O sr. ministro Luiz Fux: Pois é, Ministro Gilmar, entretanto a questão é essa
premissa em relação à qual não temos capacidade institucional para afirmarmos
que os Estados não estão nesse estado de insolvabilidade, que Vossa Excelência
afirma com base em um memorial de duas laudas o qual me foi levado à véspera
do julgamento pelos procuradores do Estado.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Não, o próprio Congresso Nacional fez todo
esse levantamento.
O sr. ministro Luiz Fux: Ministro Ayres Britto comprovou que o dinheiro está
sendo mal usado.
O sr. ministro Marco Aurélio: Ministro, o que me preocupa é, talvez, a pos‑
sibilidade de se fulminar instrumental que vem viabilizando a liquidação de
débitos, e voltarmos àquele estágio anterior de impasse absoluto.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  262


ADI 4.425

O sr. ministro Gilmar Mendes: Eu só queria concluir o meu aparte ao voto


do ministro Teori para dizer o seguinte: diante de uma situação fática, que revela
um descumprimento à Constituição, não pode o constituinte, o legislador cons‑
tituinte, o poder reformador, portanto, propor normas de organização e procedi‑
mento que realizem uma aproximação, a superação desse estado fático de viola‑
ção à Constituição, a um modelo que atende ao processo constitucional digno de
nome de uma civilização? É essa a questão que se coloca, porque a outra opção
é instalar um quadro de anomia, de falta de regras, que leva ao descumprimento
sem sanção, nós vamos voltar ao modelo do pedido de intervenção.
É essa a questão. Então, eu não subscrevo as premissas do ministro Teori no
que diz respeito às limitações e às restritivas das cláusulas pétreas.
O sr. ministro Marco Aurélio: Exato, Ministro. Sufragarei o entendimento
do relator nas questões relativas à problemática dos 60 anos, ao problema da
compensação unilateral após uma sentença transitada em julgado reconhecendo
o débito, quando não se pediu qualquer compensação anteriormente, à questão
do desprezo à real inflação – necessidade de reposição do poder aquisitivo da
moeda. Nessas questões, vou sufragar o voto do relator, porque o que ele coloca é
irrespondível. Agora, não poderei fazê-lo no que fulmina, por exemplo, o inciso II
do § 1º do art. 97, a versar:
II – pela adoção do regime especial pelo prazo de até [o prazo é limitado] 15 (quinze
anos), caso em que o percentual a ser depositado na conta especial a que se refere o
§ 2º deste artigo corresponderá, anualmente, ao saldo total dos precatórios devidos, (...)

Veja, Presidente, isso foi previsto tendo-se como compelir as pessoas jurídicas
devedoras à observância do preceito, mediante a possibilidade de sequestro.
Não posso fulminar esse preceito. Por isso, proponho que enfrentemos – e para
mim é a parte mais fácil – a impugnação ao art. 100 do corpo permanente da
Carta, e deixemos a análise do art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias para a fase posterior.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Eu só queria concluir, Presidente, nesse sen‑
tido. A despeito dessas reservas em relação ao modelo de cláusula pétrea, eu acho
que tem feito bem ao Brasil, porque o Brasil é um país com peculiaridades. Como
fez a opção por uma Constituição analítica e permitiu que fossem galvanizadas,
na Constituição, normas de perfil do direito ordinário, pelo menos na prática de
muitos outros países, ele exige também, independentemente de opção política
ou não, a feitura de emendas constitucionais, e não raras vezes, então, nós nos
deparamos com a situação de ter que se fazer, depois, o controle de constitucio‑
nalidade das emendas em face dessas cláusulas pétreas.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  263


ADI 4.425

Mas aqui o que se tem, a rigor, é uma situação fática de descumprimento


daquilo que já estava estabelecido no art. 100. Nem vou adentrar as razões muito
bem lançadas, aqui, pelo ministro Lewandowski quanto às distorções do próprio
sistema. Todos sabem que o modelo, hoje, dos juros e da correção monetária
está sobreposto num modelo de economia não inflacionária. Daí os exageros,
quer dizer, depois de cinco anos se descobre que aquilo que se despende para
pagar uma fazenda poderia comprar dez, quinze ou vinte, o exemplo que Vossa
Excelência trouxe de todas essas distorções que estão acumuladas. Por isso que
também discutir índices aqui é extremamente problemático. Não me parece,
portanto, como também ao ministro Marco Aurélio, que o fato de o legislador
constituinte decidir adotar normas de organização e procedimento que permitem
a regularização, a aproximação dessa realidade fática ao texto constitucional,
que isso configure uma inconstitucionalidade.
Então, nesse ponto, eu subscrevo as preocupações já manifestadas pelo minis‑
tro Teori Zavascki.

VOTO
(Sobre questão de ordem)
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, pela ordem.
Eu me recordo, porque isso ocorreu bem recentemente, que houve essa pro‑
posta de fatiamento, e esse fatiamento não foi aceito. Mas isso não representa
que haja uma posição irreversível de qualquer membro da Corte, porque o que
nós temos que erigir, aqui, é a melhor solução.
Na verdade, se há ponderações de que podemos, de alguma maneira, salvar,
em benefício da coletividade, alguns textos da emenda – porque, aqui, nós esta‑
mos falando em realidade fática, premissas inafastáveis que eu não sei se são
verdadeiras; aqui, afirmou-se que o Estado era pobre, e o advogado, da tribuna,
disse que o Estado está com os precatórios pagos. Então, esse conhecimento
empírico eu não tenho. Agora, a fiscalização é abstrata.
O sr. ministro Marco Aurélio: Ministro, é a colocação da própria Procurado‑
ria-Geral da República. Não podemos deixar de aquiescer ao que está consignado.
Vou ler novamente o trecho:
Todo esse quadro parece sugerir que a EC 62, (...) [aí vem a parte, por isso propus
a separação das matérias] especificamente no que diz respeito ao artigo 97 do
ADCT, é uma resposta do Direito a uma situação de fato que já não encontrava
mais solução na ordem constitucional a ela anterior.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  264


ADI 4.425

O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, quando se propôs a votação em


bloco – e a fiscalização é abstrata –, eu fiz uma separação muito enfática de que
as cláusulas pétreas não poderiam engessar gerações. Isso eu li, aqui, exaustiva‑
mente. E, à luz exatamente dessa axiologia, eu fui propondo as soluções.
Agora, há uma proposta de fatiamento no afã de compatibilizar algumas
normas dessa emenda, no sentido de aproveitamento dela sobre outro enfo‑
que. Então, eu pediria a Vossa Excelência, como não votei em fases, que, se essa
proposta for aceita, eu terei de volta a...
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Nós temos três enfoques dife‑
rentes: do relator, do ministro Teori e do ministro Gilmar Mendes.
O sr. ministro Luiz Fux: Então. Se a proposta para julgarmos o que é aprovei‑
tável no regime especial for aceita, eu trarei o voto sobre isso.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Vossa Excelência já não proferiu
o voto e já não disse quais os dispositivos que julgava inconstitucional?
O sr. ministro Luiz Fux: Exatamente. Eu acompanhei o relator.
Agora, a proposta é outra. Essa proposta tem que permitir que nós possamos...
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): A proposta é no sentido de
examinar, em separado, o art. 100.
O sr. ministro Marco Aurélio: O art. 100. Feriríamos esses problemas: pri‑
meiro, a idade, segundo, a compensação, terceiro, a atualização pelo índice da
caderneta, com repercussões também no art. 97 relativamente a esses itens.
Depois, veríamos o problema tal como foi equacionado para afastar algo que
parecia que não tinha solução.
O sr. ministro Luiz Fux: Eu estou de acordo com essa proposta de votarmos
o 100, e, depois, irmos para o regime especial.

VOTO
(Aditamento)
O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, eu estou concluindo o meu
voto, que está baseado em três fundamentos sucessivos. No primeiro deles, sus‑
tento que não há comprometimento a cláusula pétrea. No segundo, sustento
que não há um retrocesso institucional, porque não cabe avaliar a Emenda 62
à luz de um sistema ideal, mas à luz do sistema revogado. Aliás, a nova redação
do art. 100, do texto permanente, a rigor, não tem grandes avanços. Eu diria que
são muito escassos os avanços do art. 100. A possibilidade de sequestro é para
não inclusão em um orçamento, não é para pagamento.
O sr. ministro Luiz Fux: E o crime de responsabilidade é para não inclusão.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  265


ADI 4.425

O sr. ministro Teori Zavascki: Não. O crime de responsabilidade refere-se ao


presidente do tribunal; não tem nada a ver com orçamento nem com o pagamento.
O sr. ministro Luiz Fux: (Cancelado)
O sr. ministro Teori Zavascki: Essa responsabilidade do presidente já existia,
e isso aí é quando ele retardava ou tentava frustrar a liquidação regular. Essa
medida já existia, isso não representa propriamente alteração.
O grande avanço está, justamente, no art. 2º, que está ligado aos parcelamen‑
tos. Os meios executivos se referem aos precatórios vencidos, que impõem ou o
depósito de 1/12 do saldo dos débitos, significa dizer que, ao final de doze anos, no
máximo, necessariamente, isso vai estar pago, ou impõem um regime diferente
de alocação de recursos, de percentual de recursos, para essa finalidade. Regime
que durará no máximo quinze anos, segundo o art. 4º, acompanhado de meios
efetivos: de cessão de créditos, de poder liberatório para aquisição de imóveis...
A sra. ministra Cármen Lúcia: Leilão.
O sr. ministro Teori Zavascki: O leilão não é obrigatório.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Não, estou dizendo a opção.
O sr. ministro Teori Zavascki: Mas tem a possibilidade de leilão.
O sr. ministro Luiz Fux: Uma é a opção de quinze anos, e a outra opção que
não tem quinze anos. A segunda opção não tem quinze anos.
O sr. ministro Teori Zavascki: A segunda opção tem quinze anos.
O sr. ministro Luiz Fux: Não, a primeira é que tem quinze anos, e a segunda
não tem limite temporal.
O sr. ministro Teori Zavascki: Tem limite temporal. Vamos ler, aqui, o art. 4º:
A entidade federativa voltará a observar somente o disposto no art. 100 da Cons‑
tituição Federal:
I – No caso de opção pelo [regime do] inciso I (...)

O sr. ministro Luiz Fux: Por opção.


O sr. ministro Teori Zavascki: Ele vai optar entre um regime e outro, são dois
regimes: um de doze anos e um de quinze.
I – No caso de opção pelo [regime do] inciso I (...), quando o valor dos precatórios
devidos for inferior ao dos recursos destinados ao seu pagamento;

Aqui é 1/12 por ano, então, necessariamente, ao final de doze anos, nós temos
12/12, não pode passar de doze anos, pode terminar antes, mas não vai passar de
doze anos. E, no caso de opção pelo sistema do inciso II do art. 97, no final do
prazo. Qual é o prazo? Quinze anos. Então, nenhuma das duas hipóteses passa
de quinze anos.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  266


ADI 4.425

O sr. ministro Luiz Fux: Mas não resolvemos o problema daqueles outros
que já tinham dez anos em curso, e agora vão entrar nos quinze anos. Então, a
questão é a seguinte...
O sr. ministro Teori Zavascki: Vou concluir: os avanços, na verdade, esses
mecanismos executivos, que, no meu entender, representam um avanço em
relação... esses se referem exclusivamente ao parcelamento, não se referem ao
regime geral, que, na prática, não muda muito.
A questão do direito adquirido, ou não, e a questão de ser a Constituição de 1988,
realmente, um poder constituinte originário é um argumento de reforço, mas que
supõe a superação dos dois outros. Independentemente de ser constituinte originá‑
rio, ou não ser, a verdade é que a jurisprudência tradicional do Supremo Tribunal
Federal sempre foi de dar uma interpretação restrita à cláusula pétrea, no que se
refere à modificação de situações jurídicas já consolidadas. Eu exemplifiquei, aqui,
que isso tem sido reiterado em várias emendas constitucionais, o princípio que
adotarmos aqui, nós vamos ter que adotar para outras emendas constitucionais,
que vieram, expressamente, modificar situações jurídicas já consolidadas.
De modo que, sem prejuízo de voltar a examinar, especificamente, um ou
outro dispositivo, no momento, meu voto é pela improcedência.

VOTO
(Confirmação)
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, eu vou manter o meu voto, porque
essa alforria de permitir que o poder constituinte derivado possa ter essa fle‑
xibilização em relação às cláusulas pétreas, tenho a impressão de que tem que
ser analisado cum grano salis. O ministro Marco Aurélio, por exemplo, reiterou
que vai insistir no ponto. Nós, aqui, temos violações flagrantes à isonomia, quer
na compensação, quer na atualização monetária; temos violação à isonomia e
à dignidade humana, que é o centro e gravidade do ordenamento jurídico no
momento em que se posterga o pagamento de idosos e de doentes.
Então, tenho muita preocupação com essa carta de alforria que vamos con‑
ferir, aqui, a essa formatação. E, mais uma vez, confere-se verossimilhança à
preocupação de que, quem sabe, daqui a pouco, não surgirá uma nova fórmula.
O sr. ministro Marco Aurélio: Vossa Excelência me permite? Em um dos
últimos votos prolatados no Plenário, citei um médico da antiguidade que disse:
a diferença entre o remédio e o veneno está na dose. Não podemos simplesmente
fulminar a Emenda Constitucional 62, inclusive levando por arrastamento, como
preconizado pelo relator, dispositivos do art. 97. Precisamos realmente pinçar o

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  267


ADI 4.425

que conflita com a Carta, considerado o art. 100, e, posteriormente, examinar o


que veio, sob o ângulo transitório, sob o título de “regime especial”.
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, uma fórmula prática: eu proferi o
meu voto; o ministro Teori proferiu o voto dele. Nenhum desses votos se adapta
a essa solução sob medida que o ministro Marco Aurélio preconiza.
Vou aguardar que um dos demais integrantes da Corte formule essa proposta
de solução sob medida, que seja o artesão dessa solução e, eventualmente, eu
posso aderir a essa proposta.
Por ora, já votei.

VOTO
(Sobre questão de ordem)
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, com relação à metodologia do
julgamento, não tenho dificuldade em apreciar o feito quer de forma fatiada,
quer a partir das premissas colocadas pelo ministro Teori Zavascki.

VOTO
(Sobre questão de ordem)
O sr. ministro Dias Toffoli: Senhor Presidente, pelo Regimento, eu votaria antes
do ministro Marco Aurélio, mas gostaria de ouvir Sua Excelência.
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente...
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Vossa Excelência não se opõe
à proposta?
O sr. ministro Dias Toffoli: Não. Não me oponho à proposta formulada.

VOTO
(Sobre questão de ordem)
A sra. ministra Cármen Lúcia: Também acompanho o ministro Marco Aurélio,
votando primeiro o art. 100 e, posteriormente, o art. 97.

VOTO
(Sobre questão de ordem)
O sr. ministro Gilmar Mendes: Senhor Presidente, já iniciado julgamento, tenho
a impressão de que as alternativas estão postas, e acho que tanto se pode afirmar

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  268


ADI 4.425

pontualmente a inconstitucionalidade de disposições constantes do art. 100 e,


também, eventualmente, do art. 97, como também rejeitar toda a impugnação.
Como já começamos o julgamento, acredito até que poderia ter sido a melhor
metodologia.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Vossa Excelência prefere que
continue?
O sr. ministro Gilmar Mendes: Que se mantenha a fórmula. O relator já votou
em duas sessões com essa metodologia. E, agora, fazer a revisão?

VOTO
(Sobre questão de ordem)
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Também entendo que, iniciado o
julgamento, seria mais conveniente que continuássemos com o mesmo método
adotado desde o início.

DEBATE
O sr. ministro Marco Aurélio: Ministra, a interpretação conforme seria em
que sentido?
A sra. ministra Rosa Weber: A minha proposta é no sentido da declaração de
inconstitucionalidade. Acompanho o voto do ministro Ayres Britto.
O sr. ministro Marco Aurélio: Porque o relator acabou por introduzir dis‑
tinção conforme a origem do crédito. Se tributário, haverá os juros próprios da
dívida ativa da Fazenda. Não sendo tributário, juros simples, de 0,5% ao mês.
A sra. ministra Rosa Weber: Ministro Marco Aurélio, ainda estou na com‑
pensação.
O sr. ministro Luiz Fux: Na correção monetária.
O sr. ministro Marco Aurélio: Vossa Excelência já está no § 12.
A sra. ministra Rosa Weber: Mas o § 12 abrange tanto o índice quanto a
natureza.
O sr. ministro Marco Aurélio: Porque lembraria apenas um aspecto. A pre­
valecer o voto do relator, o princípio isonômico estará realmente fulminado, porque
o credor, por exemplo, alimentício, que não é credor de algo que tenha origem em
tributo, terá juro menor? O relator, não sei o enfoque do ministro Luiz Fux.
O sr. ministro Luiz Fux: Eu acompanhei o relator e disse que, d ­ ependendo
do julgamento do Plenário, vou fazer uma opção entre essa proposta e a inter‑
pretação conforme. Se for via de mão dupla e os dois receberem de acordo com
o mesmo índice, acho correto.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  269


ADI 4.425

O sr. ministro Marco Aurélio: O que penso é que não cabe a variação con‑
forme a origem do crédito.
O sr. ministro Luiz Fux: É, qualquer que seja a natureza, exatamente.
A sra. ministra Rosa Weber: Por isso voto exatamente nesse sentido. Acom‑
panho o relator com relação às duas expressões: “índice oficial de remunera‑
ção básica da caderneta de poupança” e “independentemente de sua natureza”.
As duas expressões – embora examinadas pelo relator em tópicos distintos –
estão contidas no mesmo § 12 do art. 100 da Constituição Federal.
O sr. ministro Luiz Fux: Então, Ministra Rosa, mais uma vez, Vossa Excelên‑
cia está acompanhando o relator e o ministro Fux, porque essa foi a proposta
originária. Eu disse que, dependendo da deliberação do Plenário, poder-se-ia até
dar uma interpretação conforme.
A sra. ministra Rosa Weber: Vossa Excelência, em um primeiro momento,
havia pensado numa interpretação conforme, e o ministro Marco Aurélio fez
uma observação.
O sr. ministro Luiz Fux: Não, a observação do ministro Marco Aurélio foi da
superpreferência, não foi do juros.
A sra. ministra Rosa Weber: Ah, não foi?
O sr. ministro Luiz Fux: Foi da superpreferência dos idosos.
A sra. ministra Rosa Weber: Então, desculpe-me.

VOTO
(Sobre o art. 100 – Aditamento)
O sr. ministro Dias Toffoli: Senhor Presidente, eu trago voto por escrito.
Julgo improcedentes os pleitos que estão sendo debatidos. É como voto, acom‑
panhando a divergência aberta pelo ministro Gilmar Mendes, que foi o primeiro
a votar pela total improcedência.

VOTO
(Sobre o art. 100 – Aditamento)
A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, eu também estou acompa‑
nhando, com as vênias da divergência, o ministro relator exatamente como foi posto.
Serei extremamente breve. Acho que estamos todos de acordo, e faço isso
porque o ministro Gilmar foi enfático e partilho inteiramente do que foi dito por
ele, dessa preocupação quanto à questão do pagamento de precatórios. Esse é
um dos problemas mais graves. Ministro Toffoli, ministro Gilmar e eu, que fomos

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  270


ADI 4.425

da Advocacia Pública, sabemos bem o sofrimento, eu mais do que os dois porque


eles eram da União, e a União não tem tanto problema como nos Estados. Isso não
significa que a decisão aqui, portanto, desconheça ou não leve em consideração
a gravidade do problema. O que estamos analisando é exclusivamente a consti‑
tucionalidade dos dispositivos que foram impugnados abstratamente. Portanto,
até mesmo para chegar à conclusão relativamente à solução adotada, vamos levar
em consideração isso sem desconhecer absolutamente a gravidade dessa questão.
Também queria rapidamente dizer que, para mim, o acesso à Justiça significa
chegar ao Poder Judiciário, ter uma resposta do Poder Judiciário – nós temos a
Constituição – e ter a execução desse julgado, o que é próprio do princípio do
acesso, que é cláusula pétrea da Constituição, e que realmente há de ser atendido.
É exatamente por isso, Senhor Presidente, que, relativamente ao § 2º do art.
100, a expressão especificamente que levou o ministro Ayres Britto parcialmente
a julgar inconstitucional; aos §§ 9º e 10, desse mesmo art. 100, relativos à compen‑
sação forçada, e ao § 12, que diz respeito ao índice, tal como já votei, inclusive,
juntamente com o ministro Carlos Britto, naquele recurso extraordinário a que
se referiu, agora mesmo, a ministra Rosa Weber, votamos vencidos, mas venceu
a posição do ministro Gilmar. Eu, em todos estes casos e com relação especifi‑
camente às expressões, tal como posto pelo ministro Ayres Britto, estou acom‑
panhando Sua Excelência para julgar, portanto, procedente, nos termos do voto.

VOTO
(Sobre o art. 100 – Aditamento)
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, eu não quero me adian‑
tar e anunciar qualquer juízo sobre o § 15 do art. 100 e, muito menos, sobre o
art. 97 do ADCT, porque isso, certamente, será objeto de um aprofundado debate
numa sessão subsequente a esta, certamente não dará tempo de discutirmos
a matéria em profundidade porque realmente é uma questão extremamente
séria, que afeta a Fazenda Pública e, talvez, a própria estabilidade econômico‑
-financeira do País.
Eu, já, de certa maneira, adiantei alguns pontos de vista sobre o tema, mas
não farei nenhum pronunciamento sobre ele neste momento. Mas eu fiquei sen‑
sibilizado pelos argumentos: de um lado, do relator, o ministro Fux; e de outro,
da ministra Rosa Weber; do ministro Marco Aurélio, que aqui, ao meu lado, vem
comentando, também, alguns aspectos desta discussão. E eu, também, penso que
seria válido – e não obstante os aprofundados argumentos lançados pelo minis‑
tro Teori que entende que não houve ofensa às cláusulas pétreas, nem qualquer

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  271


ADI 4.425

ameaça tendente a aboli-las, ainda que remotamente –, eu vejo, sim, algumas


inconstitucionalidades em certos parágrafos do art. 100, e me refiro exatamente
à questão dos sexagenários, ao aspecto da compensação unilateral dos créditos
pela Fazenda Pública e ao tema da correção monetária. São três aspectos que
me parecem extremamente importantes, relevantes.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Doença grave, eu acho que a emenda deixou
para: “na forma da lei”. O marco diz respeito tão somente, se eu entendi bem,
ao sexagenário.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Ah, perdão, Vossa Excelência tem toda
a razão. Eu estou, agora, verificando melhor isso. Tem toda razão.
Então eu vou, atentando a essa observação do ministro Gilmar Mendes, numa
releitura do § 2º do art. 100, eu excluo apenas: “na data da expedição do precatório.”
Mas, de qualquer maneira, essa minha observação vale, já, como uma adver‑
tência para o futuro legislador, mostrando que um tratamento discriminatório
para aqueles que tenham uma doença grave ao longo do processo, ou que con‑
traiam uma doença grave ao longo do processo, em tese, pode ser entendido
como inconstitucional. Então, eu, aqui, extraio, no texto, esta expressão: “na
data da expedição do precatório”.
Depois, Senhor Presidente, também entendo que nos §§ 9º e 10 nós temos que
verificar que há, também, uma inconstitucionalidade. E, aqui, eu diria que, de
um lado, nós temos uma ofensa à coisa julgada, porque o credor já tem um título
executivo contra a Fazenda, e esse título não pode ser modificado; e, de outra
parte, eu também ousaria apontar uma lesão ao princípio do devido processo
legal, porque a Fazenda, unilateralmente, se compensa sem qualquer procedi‑
mento previsto em lei, e, muito menos, sem a manifestação do Poder Judiciário.
O sr. ministro Marco Aurélio: Vossa Excelência me permite?
E o fará no campo estritamente administrativo, como assentamos ser o da
própria tramitação do precatório.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Perfeitamente. Então, eu declaro essa
compensação inconstitucional, portanto o § 9º e o § 10. E, depois, também, tenho
uma restrição ao § 12. Eu entendo que a correção deve, sim, fazer-se, não pelos
índices oficiais da caderneta de poupança, até porque aqueles que acompanham
o noticiário econômico dos últimos tempos têm visto que os índices da caderneta
de poupança estão abaixo da inflação, e, se isso for mantido, tal como está veicu‑
lado no § 12 do art. 100, nós temos uma ofensa, em tese, ao direito de propriedade.
Então, nesse ponto, eu creio que estou coincidindo com o relator, com o minis‑
tro Fux, com a ministra Rosa, com a ministra Cármen e, não sei ainda como

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  272


ADI 4.425

se pronunciará o ministro Marco Aurélio, mas creio que ele tende, também, a
pronunciar-se nesse sentido.
É como voto, por enquanto, Senhor Presidente.

VOTO
(Sobre o art. 100)
O sr. ministro Gilmar Mendes: Na verdade, eu já me manifestei, e, apenas para
ressaltar, eu não teria dificuldade de fazer considerações em relação, por exem‑
plo, a essa questão do sexagenário. Acho que, aqui, foi um defeito técnico. É a
necessidade do legislador constituinte de precisar o momento, a fim de organi‑
zar esse processo.
Em relação, porém, à questão do índice, eu tenho a impressão – na linha até
do que falou anteriormente o ministro Lewandowski – de que nós precisamos
realmente caminhar para a superação do modelo da correção monetária.
As distorções que nós acumulamos, inclusive em matéria de precatório, têm
a ver exatamente com a contagem que fizemos – às vezes em duplicata – com o
modelo, primeiro, dos juros compensatórios, que vieram para superar a ideia da
falta de correção monetária, e que depois ficaram como um acréscimo, por isso
as distorções. E, depois, também, com o modelo da correção monetária. De modo
que me parece que até se poderia dizer: “Ah, no caso específico, se se aplicam
a decisões já transitadas em julgado, teria alguma repercussão sobre núcleos
que estão protegidos por cláusulas pétreas”. Mas, em se tratando de uma regra
estatutária, o que se busca, na verdade, é ir uniformizando. O que é importante é
que não haja privilégios – e foi a discussão que nós tivemos naquele precedente:
que o critério que se adota para a Fazenda seja também adotado em relação ao
credor, de modo que nós não tenhamos, aqui, um modelo dessintonizado. É isso
que eu acho importante que se coloque.
De modo que eu só queria fazer essa ressalva em relação a este tópico.

VOTO
(Sobre o art. 100)
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, começo elogiando o voto do ministro
relator, verdadeiramente relator, Carlos Ayres Britto, e também o voto proferido,
de substância, pelo ministro Luiz Fux.
De início, digo que a Emenda Constitucional 62 não merece, sob o ângulo
da inconstitucionalidade, a excomunhão maior. Precisamos sopesar, analisar

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  273


ADI 4.425

os diversos preceitos afastando aqueles que, realmente, conflitam com a Carta


da República, e, sob a minha óptica, não há a menor dúvida de que existem
dispositivos decorrentes da Emenda Constitucional 62 que conflitam com a
Constituição Federal.
Acompanho aqueles que entendem que o fator de discriminação para a liqui‑
dação imediata de parte do débito contido no § 2º do art. 62, ou seja, ter 60 anos
à data da expedição do precatório, acaba por conflitar com a Carta, porque a
distinção não é socialmente aceitável. Não compreendo como se trate de forma
diferente quem tem 60 anos à data da expedição do precatório e aquele que com‑
plete 60 anos na tramitação do precatório. Conforme ressaltado pelo relator, a
origem do preceito está na presunção da necessidade maior dos sexagenários,
entre os quais me incluo. Acompanho, portanto, o relator e os colegas que já
votaram, quanto a esse item.
Surge a problemática da compensação. Compensação que veio a lume não
para corrigir algo que se mostrava crônico, porque sabemos que a Fazenda está
muito bem aparelhada em termos de representação técnica e conta com o Exe‑
cutivo fiscal. Conta até mesmo com a possibilidade de, no âmbito jurisdicional,
pretender penhora de crédito daquele que se mostre devedor. Assentamos, tanto
que não admitimos recurso extraordinário em se tratando de incidente na tra‑
mitação do precatório, que a tramitação se faz no âmbito administrativo, e que
qualquer controvérsia deve ser alvo de instrumento próprio, adentrando o inte‑
ressado o campo do Judiciário. A emenda veio e, visando solucionar problema
que parecia não ter solução – porque a bola de neve, em termos de débito da
Fazenda, estava crescendo –, introduziu essa compensação que o relator apontou
como unilateral, mitigando, inclusive, o título executivo judicial, e que, portanto,
não foi pleiteada no processo de conhecimento.
Também acompanho os colegas no que fulminam os preceitos que versam
essa compensação, e penso que são os do § 9º e § 10 do art. 100.
Vou adiante e pronuncio o voto quanto à correção, à reposição do poder aqui‑
sitivo da moeda, que não é plus. Visa, acima de tudo, evitar o desequilíbrio da
equação inicial envolvendo credor e devedor. E, se entendermos que pode haver
a utilização de índice que não corresponda ao oficial alusivo à inflação, estare‑
mos mitigando o título judicial e também viabilizando o enriquecimento sem
causa do devedor.
O ministro Carlos Ayres Britto teve a oportunidade de dar um exemplo: pinçou
o período de 1996 a 2010, portanto, recente, em que, no tocante à correção da
caderneta, observou-se o percentual de 55,77%, quando, na verdade, a inflação
pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo chegou a 97,85% – quase

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  274


ADI 4.425

o dobro. Portanto, cabe a interpretação conforme à Carta da República – a prin‑


cípio, implícito na Constituição, a obstaculizar o mal-trato à coisa julgada e
também ao enriquecimento ilícito – para que a correção reflita realmente a
necessária reposição do poder aquisitivo da moeda.
Agora, no § 12, tem-se cláusula que não vislumbro como a conflitar com qual‑
quer dispositivo da Carta: é a que afasta a possibilidade de distinguir a natureza
do crédito, ou seja, a expressão “independentemente de sua natureza”, que foi
lançada para guiar o índice de atualização da moeda. Tanto quanto possível, é
preciso homenagear o tratamento igualitário. Ela encerra o tratamento iguali‑
tário dos credores.
Vou adiante – e deixamos o art. 97 para a fase posterior – e digo que não cabe
distinguir a origem do crédito, como fez o relator, no que previu que, no tocante
àqueles decorrentes de relação tributária, deveria adotar-se, sob o ângulo dos
juros da mora, o índice que a Fazenda utiliza quanto à dívida ativa. O enfoque
contraria, a meu ver, o princípio tão caro em uma sociedade que se diga demo‑
crática, que é o isonômico.
Chego, Presidente, ao § 15. Tão cedo não teremos a lei complementar nele
prevista, por uma razão muito simples: cuidou o próprio legislador de emenda
à Carta da disciplina da matéria, no art. 97.
O § 15 do art. 100 preceitua:
§ 15. Sem prejuízo do disposto neste artigo, lei complementar a esta Constituição
Federal poderá estabelecer regime especial para pagamento de crédito de preca‑
tórios de Estados, Distrito Federal e Municípios, dispondo sobre vinculações à
receita corrente líquida e forma e prazo de liquidação (...).

Não vislumbro, Presidente – e não estou aqui a me defrontar com a citada lei
complementar, mas sim com norma programática –, qualquer contrariedade
por esse § 15 à Carta da República. Creio que, ao votar nele, esgoto os temas
quanto ao art. 100.

VOTO
(Sobre o art. 100)
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Marco Aurélio: Ah, ele não estaria, então, para apreciação
nessa fase?
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Marco Aurélio: Deixamos para depois?

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  275


ADI 4.425

O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)


O sr. ministro Marco Aurélio: Sim, presente o art. 97.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Marco Aurélio: A partir do apadrinhamento.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)

EXTRATO DA ATA
ADI 4.425/DF — Relator: Ministro Ayres Britto. Requerente: Confederação Nacio‑
nal da Indústria – CNI (Advogados: Cassio Augusto Muniz Borges e outros).
Interessado: Congresso Nacional. Amicus curiae: Estado do Pará (Procurador:
Procurador-geral do Estado do Pará).
Decisão: Prosseguindo no julgamento, o ministro Luiz Fux concluiu seu voto
declarando a inconstitucionalidade do § 15 do art. 100 e do art. 97 do ADCT.
O ministro Teori Zavascki votou no sentido da improcedência da ação. O Tribunal
resolveu questão de ordem suscitada pelo ministro Marco Aurélio no sentido de
serem apreciadas em primeiro lugar as impugnações ao art. 100 da Constituição
Federal, vencidos os ministros Teori Zavascki, Gilmar Mendes, Celso de Mello
e presidente. Em seguida, o Tribunal julgou procedente a ação para declarar a
inconstitucionalidade da expressão “na data de expedição do precatório”, contida
no § 2º; os §§ 9º e 10; e das expressões “índice oficial de remuneração básica da
caderneta de poupança” e “independentemente de sua natureza”, constantes do
§ 12, todos dispositivos do art. 100 da CF, com a redação dada pela EC 62/2009,
vencidos os ministros Gilmar Mendes, Teori Zavascki e Dias Toffoli. Votou o
presidente, ministro Joaquim Barbosa. Em seguida, o julgamento foi suspenso.
Presidência do ministro Joaquim Barbosa. Presentes à sessão os ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen
Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavascki. Procurador-geral da
República, doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 13 de março de 2013 — Luiz Tomimatsu, assessor-chefe do Plenário.

DEBATE
O sr. ministro Gilmar Mendes: Sem querer interromper, mas a alternativa que o
advogado disse que está dando certo é empréstimo. Empréstimo depende de uma
série de fatores. Desculpe-me, nós sabemos quão difícil é, depende de o Estado
ter capacidade de pagamento, de ter autorização do Senado, de ter autorização
do Tesouro; quer dizer, não se trata de uma opção política simplesmente, capaz

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  276


ADI 4.425

de se resolver assim. Não se trata disso. Eu nem respondi, porque, a rigor, não é
um argumento sério.
O sr. ministro Luiz Fux: Sim, Ministro Gilmar, mas, de qualquer maneira, há
outras alternativas.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Sim, mas, veja, o argumento do empréstimo –
isso nós sabemos, é de conhecimento fácil tanto do cidadão comum como do
Estado –, ele precisa ter capacidade de pagamento.
O sr. ministro Luiz Fux: O que entendo, Senhor Presidente, como disse ontem
o ministro Celso de Mello, é que o Parlamento pode muito, mas não pode tudo,
nem conceder essa alforria parlamentar de entregar o jurisdicionado à sua pró‑
pria sorte.

VOTO
(Confirmação)
O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, repito aqui o meu voto de
ontem, que foi extenso, cujo cerne mantenho.
Continuo entendendo que a disciplina relativa a pagamento de precatórios
está compreendida no poder constituinte derivado. Continuo entendendo que
é um exagero supor que a disciplina dessa matéria possa atentar contra a forma
federativa de Estado, voto direto, secreto, universal e periódico, separação dos
Poderes, ou que tenda a abolir direitos e garantias individuais.
Mas, de qualquer modo, o mais importante – e eu vejo que esse é o ponto
central do debate – é a questão, vamos dizer assim, da conveniência, ou não, da
fórmula encontrada pela Emenda 62 para solucionar essa crise dos precatórios.
E aqui – eu disse isso no meu voto – temos que estabelecer como parâmetro
não o que entendemos que é o ideal para pagamento de precatório. O nosso juízo
de constitucionalidade é entre o sistema anterior e o sistema proposto. Se cair o
sistema proposto na emenda, vamos voltar ao sistema anterior; não temos aqui
a prerrogativa de criar uma alternativa nova. Não temos aqui a prerrogativa de
criar um modelo novo.
No meu voto de ontem, salientei várias vezes que o modelo, proposto aqui,
está muito longe de ser o modelo ideal para tutela de legítimos interesses dos
credores. Mas não podemos fugir de uma verdade: é que o modelo anterior era
mais perverso ainda.
Os Estados inadimplentes estão inadimplentes há quinze, vinte anos, ou mais.
E as condenações judiciais – que o Judiciário não conseguiu fazer executar nesse
período – são condenações ineficazes, porque não existe execução forçada contra

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  277


ADI 4.425

a Fazenda Pública. A Constituição, no seu art. 100, disciplinou uma forma de paga‑


mento que não prevê meios executivos. É por isso, justamente, que se estabeleceu
a crise; é porque o Judiciário não tem como fazer cumprir suas condenações.
Assim, a alternativa que temos é entre adotar esse sistema parcelado de paga‑
mento – agregando meios executivos –, ou voltarmos ao sistema anterior, com
a redação que agora foi dada ao art. 100, a qual continua sem meios executivos
eficientes, porque se prevê a inclusão da dívida em orçamento, mas não existe
nenhum meio que obrigue o efetivo pagamento, quando, e se, essas receitas
orçamentárias forem sendo arrecadadas. Essa é a questão.
Ninguém pode estar satisfeito, muito antes pelo contrário, com o sistema
anterior.
Mas a verdade é que, de alguma forma, está-se avançando. Se, lá no Espírito
Santo – para usar aqui o exemplo do ministro relator –, há uma dívida de preca‑
tório de R$ 9,54 bilhões, o fato de ele ter gasto mais em publicidade do que em
precatórios é um fato muito significativo para demonstrar que não há meios de
fazer pagar precatório. Ele gastou R$ 2,5 milhões – pelos dados que estão aqui –
em precatório. E, pelo histórico anterior, não havia como obrigá-lo a pagar mais.
Isso equivale a 0,033% da receita líquida, segundo cálculo que foi feito aqui. Com
a Emenda Constitucional 62 obriga-se a aplicar 1/12 da receita líquida, pelo menos.
É um grande avanço.
Então, essa é a comparação que nós temos de fazer. Não considero que o
modelo proposto seja atentatório a um direito de crédito que não se conseguia
fazer valer. Essa é a questão. Se pudéssemos aqui construir uma norma alterna‑
tiva, talvez a solução fosse outra. Mas não podemos construir. Temos de optar
entre os dois modelos, dois modelos que existem. Não é entre um modelo pro‑
posto e um modelo ideal, que nunca existiu.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Ministro Teori, essa questão vem imperfeita já
desde o processo constituinte. Tanto é que, lá, nós tivemos o art. 33 do ADCT, de tão
triste memória. Nós sabemos de todos os escândalos, porque já havia um acúmulo
de precatórios, e num quadro inflacionário que agravava terrivelmente essa situação.
É muito interessante que os dados aqui indicam exatamente que essa monta‑
nha de precatório agora vem sendo desbastada. É muito significativa, por exem‑
plo, a manifestação do movimento de advogados em defesa dos credores alimen‑
tares, por conta do erro cometido na Emenda 30, que, exatamente por privilegiar
os créditos alimentícios, não permitia, então aqui, o parcelamento, e fez com que
se escolhesse pagar os outros créditos e não os créditos de natureza alimentícia.
Tudo isso vem sendo corrigido na Emenda 62. O que me parece interessante
aqui – é importante que se destaque, e o ministro Marco Aurélio destacava ontem

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  278


ADI 4.425

isso – é que a opção – e aqui seremos realmente legisladores negativos, no sentido


kelseniano – é voltar ao status quo da Emenda 30; essa é a alternativa...
O sr. ministro Marco Aurélio: Vossa Excelência me permite?
O sr. ministro Gilmar Mendes: Sim, por favor.
O sr. ministro Marco Aurélio: Até pela complexidade da matéria, penso que
deveríamos retornar ao sistema antigo de votação, porque temos dois vieses: um
liquida o regime especial, outro salva na integralidade. Há inúmeros preceitos no
art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias com peculiaridades
próprias. É interessante apreciarmos dispositivo por dispositivo, como fazía‑
mos anteriormente, principalmente quando se tratava de julgamento de fundo
da complexidade deste. Receio muito que esta votação em conjunto acabe até
mesmo por prejudicar o julgamento da matéria.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ministro Marco Aurélio, ontem
Vossa Excelência propôs o destaque do art. 100.
O sr. ministro Marco Aurélio: De qualquer forma, Presidente, é um ponto
de vista. Quando chegar minha vez, votarei dispositivo por dispositivo. Estou
preparado para isso.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Não impede que cada qual faça ponderações
específicas, como ontem já foi feito em relação ao art. 100, não vejo nenhuma
dificuldade.
Agora, eu estou chamando atenção para a consequência desse tipo de decisão,
porque, na medida em que nós varremos, como propõe o relator, o art. 97 – e
agora subscreve a posição o ministro Fux –, nós voltamos ao modelo anterior da
não exequibilidade, com todos os problemas que daí decorrem, e os dados pelo
menos existentes em relação àqueles Estados que vêm cumprindo o modelo,
e Estados que têm problemas. E nós não estamos falando de Estados débeis
financeiramente, aqui aparece logo o Estado de São Paulo, aparece o Município
de São Paulo.
O sr. ministro Luiz Fux: Ministro Gilmar, Vossa Excelência tem razão. E eu
me recordo que Vossa Excelência recebeu a mesma comitiva que eu, dos pro‑
curadores do Estado, e eles efetivamente têm conhecimento jurídico profundo
para saber que aqui há violações. Então eles disseram que, ao menos, o Supremo
Tribunal Federal modulasse, porque, independentemente da lei, eles já começa‑
ram a dar azo ao cumprimento dessa metodologia e precisavam se reorganizar.
Agora, modular, o Supremo Tribunal Federal faz todo dia, mas dizer que esse é
o melhor dos mundos é impossível.
O sr. ministro Gilmar Mendes: O ministro Celso ainda lembra que o modelo
do parcelamento da Emenda 30 ainda restou suspenso pela medida cautelar,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  279


ADI 4.425

portanto é o regresso ao sistema do art. 100. Veja, portanto, as consequências, com


toda essa dificuldade de execução. Então, a mim me impressiona exatamente isso.
Por outro lado, esse sistema dual, bipartido, a rigor, hoje com a supervisão do
CNJ – o CNJ emitiu uma resolução que permite acompanhar e monitorar o sis‑
tema junto aos tribunais –, vem permitindo exatamente esse avanço, avanço sig‑
nificativo. Isso é dito não por ninguém suspeito, mas pelo movimento dos advo‑
gados em defesa dos credores alimentares, que reconhecem progresso que, até
então, não se experimentara nessa matéria. É um tema extremamente sensível.
Quer dizer, a opção é deitar por terra aquilo que o legislador constituinte
estabeleceu em razão não do descumprimento pela emenda de cláusula pétrea,
mas em razão de a emenda ter tentado fazer uma aproximação entre o art. 100
e uma nova realidade institucional, superar aquele estado de fato que importava
realmente num claro dano. Então, parece-me que esse é o problema.
Claro que a questão do Espírito Santo é séria, como de qualquer outro Estado.
Agora, não se trata de pagar em 85 anos, 100 anos. Na verdade, esse sistema é
dinâmico e vem induzindo ao cumprimento. Tanto é que os Estados aumentaram
significativamente o percentual de pagamento, como os dados aqui atestam.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ministro Teori Zavascki.
O sr. ministro Teori Zavascki: Só para concluir, Senhor Presidente, eu acho
que o próprio exemplo do Espírito Santo é um atestado mais claro e mais cabal
de que o sistema anterior, que gerou esse passivo, é um sistema falido, é um
sistema perverso para o credor. De modo que essa é opção que se tem. Não se
tem o melhor de dois mundos. Nenhum dos dois mundos é bom. Um é péssimo
e outro é menos péssimo. E essa é a escolha que tem que se fazer.
Então, mantenho meu voto, Senhor Presidente.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Não. Na verdade, é pensamento de possibili‑
dades, por quê? Porque, obviamente, quem lida com orçamento estadual sabe
que tem as receitas vinculadas e que são elevadíssimas: educação, saúde, todo
o comprometimento de débito e tudo mais. Esse exercício nós fizemos quando
julgamos o caso de São Paulo, o pedido de intervenção. Se o Estado, por acaso,
decidisse, de forma insana, pagar de uma vez todos os precatórios, ele fecharia
para balanço. Não se trata, portanto, desse discurso balofo de: “ah, falta vontade
política”. Não é nada disso de que se cuida. Aqui, há limites. O Estado pode sofrer
intervenção por conta de não investir 25% na educação, de não investir tanto
na saúde, problemas sérios com o endividamento, inclusive para com a União,
com a retenção. Em suma, o que remanesce para investimento – isso é um dis‑
curso de todo dia – é peanuts. E disso que se cuida. É nesse universo que se está

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  280


ADI 4.425

discutindo o pagamento de precatório, é dentro de um discurso de possibilidades


e não discurso voluntarista.
O sr. ministro Luiz Fux: Presidente, se houve discurso voluntarista, foi da
própria Constituição Federal, que estabeleceu:
A seu critério exclusivo e na forma de lei, a União poderá assumir débitos, oriun‑
dos de precatórios, de Estados, Distrito Federal e Municípios, refinanciando-os
diretamente. [Em nome próprio.]

Por quê? Porque a União não está devendo nada a ninguém.

VOTO
(Sobre o item III – Antecipação)
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, todos sabemos que a Consti‑
tuição atua como instrumento de limitação do poder, limitação esta que se faz –
pode-se dizer em linhas gerais e em simplificação didática – pela separação de
poderes e pela garantia dos direitos fundamentais, de modo a que ela, a Constitui‑
ção, cumpra uma de suas relevantes funções, que é a da estabilidade do sistema.
Essa função de estabilidade da Constituição não significa, por óbvio, esteja
ela imune a mudanças, mudanças que são fruto da necessidade das coisas e do
apelo do tempo.
O próprio constituinte originário, ao fixar limites formais e materiais ao poder
de reforma constitucional, busca assegurar essa estabilidade sem engessar o texto
constitucional, lançando mão de mecanismos como o das cláusulas pétreas,
que visam ao resguardo da identidade constitucional, da essência mesma da
Constituição.
E surgem aí questões delicadíssimas, como a que estamos a enfrentar nestas
ações diretas de inconstitucionalidade e que o ministro Teori tão brilhante‑
mente enunciou em seu voto, ainda que eu peça vênia a Sua Excelência para
não acompanhá-lo em suas conclusões.
Sou sensível e não desconheço todas as dificuldades, distorções e diria mesmo
perversidades ensejadas pelo regime dos precatórios, cuja implantação, em sua
origem, como ontem destacado pelo ministro Celso, teve tão altos propósitos,
perpassados por princípios como os da moralidade, impessoalidade e igualdade.
Tive contato direto com todas essas dificuldades ao exercer a presidência do
Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, em que constituímos, em
2003, à semelhança do que havia em Minas Gerais, no âmbito da Justiça do Tra‑
balho – e a ministra Cármen Lúcia fez uma alusão a respeito –, um juízo auxiliar

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  281


ADI 4.425

de precatórios, para promover a conciliação nas execuções contra a Fazenda


Pública no tocante a forma e tempo de pagamento, com enorme êxito quanto
aos débitos trabalhistas de municípios gaúchos.
Em controle concentrado de constitucionalidade, contudo, o equacionamento
da matéria, a meu juízo, prende-se, em síntese, à seguinte questão:
Pode o constituinte reformador interferir na efetividade da jurisdição?
Essa jurisdição – e aqui me permito homenagear o meu mestre de processo
civil na Faculdade de Direito de Porto Alegre, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul –, essa jurisdição que o saudoso professor Galeno Lacerda ensi‑
nava ser não apenas o poder de declarar o direito, mas também o de realizá-lo,
com plena eficácia vinculativa, na justa composição da lide, tomada esta em
sentido amplo.
Volto à questão:
Pode o constituinte reformador interferir na efetividade da jurisdição, nesse
poder de realizar o direito com plena eficácia vinculativa em lides já soluciona‑
das por decisões com trânsito em julgado, ao abrigo, portanto, da autoridade
da coisa julgada?
Para mim, com todas as vênias, a resposta é negativa.
Compartilho da compreensão dos que conferem exegese ampla às cláusulas
pétreas do art. 60, § 4º, do nosso Texto Magno.
Entendo que também o poder constituinte derivado ou reformador – e não
apenas o legislador ordinário – está submetido ao postulado da irretroatividade
consagrado no art. 5º, XXXVI – “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurí‑
dico perfeito e a coisa julgada”. Assim, a meu juízo, a lei a que o constituinte origi‑
nário veda prejudique o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada
não é apenas a norma infraconstitucional, mas também a emenda constitucional.
E interpreto a dicção do art. 60, § 4º, da CF – não será objeto de deliberação
proposta de emenda constitucional tendente a abolir, na fração de interesse,
os direitos e garantias individuais –, no sentido de que também se encontram
vedadas restrições equivalentes a uma efetiva supressão.
Ora, o acesso à Justiça, a efetividade da jurisdição, a efetividade do processo
como instrumento de tutela de direitos, a irretroatividade da lei frente ao ato
jurídico perfeito e à coisa julgada estão contemplados em nossa Constituição
como garantias individuais, garantias fundamentais, e nessa medida foram eri‑
gidos à condição de cláusulas pétreas no texto constitucional. Agrego, quanto
ao instituto da coisa julgada – fazendo coro ao ministro Celso de Mello em um
de seus sempre brilhantes votos nesta Corte –, que ela, a coisa julgada, nas pala‑
vras de Sua Excelência, representa valor de essencial importância na concepção

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  282


ADI 4.425

axiológica que se encerra em nosso sistema constitucional, na preservação da


segurança jurídica, enquanto propicia a estabilidade das relações sociais e a
superação dos conflitos submetidos ao Judiciário.
Não há, portanto, como admitir qualquer flexibilização a respeito, máxime
em instância administrativa, instância esta, administrativa, em que, permito-me
relembrar, tramita o precatório.
Todos esses postulados, com a devida vênia, foram atropelados pela Emenda
Constitucional 62, em vários de seus ditames, como ontem já se decidiu, e, a meu
juízo, da mesma inconstitucionalidade material se ressente o § 15 do art. 100
da CF, com a redação da Emenda 62. Subscrevo na íntegra os fundamentos do
eminente relator, ministro Ayres Britto, quando conclui que os dois modelos
de regime especial para pagamento de precatórios instituídos no ADCT, art. 97,
afrontam a ideia central de Estado Democrático de Direito, violam as garantias
do livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário, 5º, XXXV, do devido processo legal,
5º, LIV, e da razoável duração do processo, 5º, LXXVIII, e afrontam a autoridade
das decisões judiciais, ao prolongar por mais de quinze anos o cumprimento de
sentenças judiciais com trânsito em julgado, já prorrogado por um decênio pela
Emenda Constitucional 30, de 2000.
Declaro a inconstitucionalidade material do § 15 do art. 100 da CF e do art. 97
do ADCT (especificamente o caput e os §§ 1º, 2º, 4º, 6º, 8º, 9º, 14 e 15, sendo os
demais por arrastamento ou reverberação normativa).
Pelo que, Senhor Presidente, quanto à inconstitucionalidade material, com
as vênias de estilo, acompanho o voto do eminente relator, ministro Ayres Britto,
para, em juízo de parcial procedência das ações remanescentes:
(i) declarar a inconstitucionalidade do art. 100, § 2º, da Constituição, com a
redação da Emenda 62/2009, quanto à expressão “na data da expedição do pre-
catório”, por afronta ao princípio isonômico que exige tratamento igual aos que se
encontram nas mesmas condições autorizadoras do discrímen, no caso os credores
com 60 anos na pendência de pagamento de precatório de natureza alimentar.
Destaco que a ratio essendi da exceção aberta à regra geral é a premência dos
credores em receber, presente a passagem irreversível do tempo, pena de, na
perspectiva individual, inútil se tornar o pagamento. A menor perspectiva de
vida decorrente da idade ou de doença grave justifica a prioridade conferida
pelo legislador constituinte derivado não só para os que completarem 60 anos
na data da expedição do precatório, como também para os que implementarem
tal idade na pendência do precatório.
Registro, de outra parte, que não vislumbro inconstitucionalidade na limita‑
ção da preferência, entre os precatórios de natureza alimentar já priorizados, ao

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ADI 4.425

triplo fixado em lei como obrigação de pequeno valor. Não há violência à auto‑
ridade das decisões judiciais porque não se está a restringir o valor do crédito
judicialmente reconhecido, e sim a definir o valor do crédito objeto da preferência
entre os que já ostentam, como disse, o caráter de créditos privilegiados por sua
natureza alimentar.
(ii) declarar inconstitucional o § 9º do art. 100, por ofensa ao princípio da
isonomia, e, por consequência, o § 10.
Relembro que, na dicção do § 9º, do montante a ser inscrito no precatório,
quando de sua expedição, independentemente de regulamentação, se há de
abater, a título de compensação, o valor correspondente aos débitos líquidos e
certos, inscritos ou não em dívida ativa, e constituídos contra o credor original
pela Fazenda Pública devedora. Vale dizer, chancela-se compensação compul‑
sória (automática e unilateral) do crédito judicial determinante da expedição do
precatório com débitos do credor perante a Fazenda Pública, mediante infor‑
mação da Fazenda devedora, no prazo de trinta dias. Isso significa conceder
superprerrogativa à Fazenda Pública, que já dispõe de meios eficazes à cobrança
de seus créditos, com desrespeito ao princípio isonômico, como bem ressaltado
nos votos anteriores, cujos fundamentos endosso.
(iii) declarar a inconstitucionalidade parcial do § 12 do art. 100 da CF com a
redação da Emenda 62, no tocante à expressão “índice oficial de remuneração
básica da caderneta de poupança” (e do inciso II do § 1º e do § 16, ambos do
art. 97 do ADCT, também quanto ao índice oficial da caderneta de poupança),
bem como no tocante à expressão “independentemente de sua natureza”, por
afronta ao princípio isonômico.
A correção monetária nada mais é do que redimensionamento do valor nomi‑
nal da moeda, desgastado pela inflação, em especial em épocas inflacionárias,
para que mantenha seu valor real. Como já ressaltado, a atualização monetária
fixada com base em índice ex ante, ou seja, em índice que, pela própria metodo‑
logia de sua definição, não reflete aquele desgaste, implica indevida redução do
crédito conferido por título judicial trânsito em julgado.
Assim, a fixação da remuneração básica da caderneta de poupança como
índice de correção monetária dos valores objeto do precatório (quanto ao período
entre a data da expedição do precatório e o efetivo pagamento) atinge a própria
eficácia e a efetividade do título judicial, com afronta à coisa julgada – porque
tal índice, repito, não reflete a desvalorização do valor da moeda, desgastado
pela inflação –, e ofende também o princípio da separação de poderes e o pró‑
prio direito de propriedade, em sua essência, como destacado nos votos que me
antecederam (art. 5º, XXII).

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ADI 4.425

Igualmente a violação do princípio isonômico enseja a declaração de incons-


titucionalidade do § 12 do art. 100, com a redação da EC 62, no tocante à
expressão “independentemente de sua natureza”. Ao prescrever, tal preceito,
que incidirão juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a cader-
neta de poupança sobre os valores dos ofícios requisitórios, após sua expedição
e até o efetivo pagamento, independentemente de sua natureza, consagra discri‑
minação, sem motivo razoável, entre os juros incidentes sobre os créditos da
Fazenda Pública e os do contribuinte. Lembro que no julgamento do RE 453.740
esta Corte declarou constitucional o art. 1º-F da Lei 9.494/1997, em sua redação
originária, ao fundamento de que dizia respeito à específica condenação do
Estado ao pagamento de verbas remuneratórias a servidores públicos, situação
não compatível, segundo a ilustrada maioria à época, com juros incidentes sobre
créditos tributários. Aquele preceito, vale recordar, dispunha não poderem ultra‑
passar os juros de mora o percentual de 6% ao ano “nas condenações impostas à
Fazenda Pública, para pagamento de verbas remuneratórias devidas a servido‑
res e empregados públicos” (vencidos os ministros Ayres Britto, Cármen Lúcia,
Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence, que reputavam preterido o princípio da
isonomia, pela discriminação entre a parte processual privada credora e a parte
estatal eventualmente credora, também em juízo, uma vez calculados, a teor
do § 1º do art. 161 do CTN, os juros de mora à taxa de 1% ao mês, salvo expressa
determinação legal em contrário).
Logo, como pontua o eminente relator Ayres Britto, ao incluir a expressão
“independentemente da natureza do crédito”, a Emenda 62 mandou aplicar os
juros da caderneta de poupança também aos precatórios relativos a restituições
tributárias, o que, igualmente por esse ângulo, viola a isonomia segundo a juris‑
prudência consolidada desta Corte.
(iv) e declarar, por fim, nos moldes supraexpostos, a inconstitucionalidade,
por arrastamento, do art. 5º da Lei 11.960/2009.
É como voto.

VOTO
(Sobre o item III – Aditamento)
O sr. ministro Dias Toffoli: Senhor Presidente, eu nem ia fazer a leitura do
meu voto, mas, diante dos argumentos trazidos agora pela ministra Rosa, no
sentido de que estaria atingindo a coisa julgada, tenho que disso não se trata,
de maneira nenhuma. Ninguém está interferindo no quantum debeatur atribu‑
ído ao Estado. De maneira nenhuma. Não há ofensa nenhuma à coisa julgada.

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ADI 4.425

Gostaria de entender onde está a ofensa à coisa julgada? Está-se rescindindo,


está-se alterando o conteúdo da decisão judicial anteriormente proferida e tran‑
sitada em julgado?
A sra. ministra Rosa Weber: Ministro Dias Toffoli, Vossa Excelência me permite?
A ofensa se faz à efetividade da coisa julgada, efetividade da coisa julgada que
se encontra abrangida na efetividade da jurisdição.
O sr. ministro Dias Toffoli: Alterou o conteúdo?
O sr. ministro Luiz Fux: E o título judicial não mandou pagar parcelado.
Mandou fazer a entrega de soma direta.
A sra. ministra Rosa Weber: É a realização concreta.
O sr. ministro Dias Toffoli: Essa pergunta é irrespondível. A emenda cons‑
titucional não ofende de maneira nenhuma o Poder Judiciário. Aqui assim já se
decidiu. O meu voto é longo e não vou ficar aqui o lendo. Todo mundo já tem
opinião formada.
Na ADI 1.098, de 1996, da relatoria do ministro Marco Aurélio, firmou-se que
todo processo precatório é administrativo.
Nós decidimos, reiteradamente, que as questões relativas ao processamento
de precatório estão no âmbito do direito administrativo e não no âmbito jurisdi‑
cional. E aqui não estamos a falar de uma lei ordinária, numa lei complementar.
Estamos falando da legitimidade de uma emenda constitucional aprovada por
maioria qualificada, nos termos da Constituição, em dois turnos de votação, por
representantes eleitos pelo povo! Por representantes eleitos pelo povo!
O sr. ministro Luiz Fux: Mas, se for assim, o Supremo não pode declarar a
inconstitucionalidade de lei nenhuma.
O sr. ministro Dias Toffoli: Mas é que, materialmente, não há nenhuma
inconstitucionalidade. Que ofensa há ao trânsito em julgado? Que ofensa há
ao Poder Judiciário? Que ofensa há às decisões do Poder Judiciário? Nenhuma.
O que essa emenda constitucional procurou trazer – é público e notório que ela
foi gestada dentro deste Tribunal, na época da presidência do ministro Nelson
Jobim – foi uma racionalidade ao sistema e uma série de responsabilizações.
Se nós formos ao § 10 do art. 97, introduzido por essa emenda, há uma série de
responsabilizações, exatamente para dar a efetividade que o sistema anterior
não deu. Então, em razão de uma ideia de maior efetividade, nós vamos voltar –
já foi dito – a uma situação anterior.
Mas o meu voto, Senhor Presidente, não vai exatamente nesses aspectos da
questão da dívida dos Estados, embora os cite, obviamente – eu coloco isso no
meu voto. O meu voto deixa claro que não há ofensa a cláusula pétrea. Eu não vou
lê-lo, não vejo necessidade de o ler, porque é absolutamente desnecessário. Não há

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ADI 4.425

alteração da coisa julgada, não há ofensa ao Poder Judiciário. O Poder Judiciário es-
tá sendo abolido por essa emenda? É uma tentativa de abolir o Poder Judiciário?
Eu julgo totalmente improcedente esta ação. Eu vou fazer juntar o meu voto,
não vou cansar Vossas Excelências.

VOTO
(Sobre o item III – Aditamento)
A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, Senhores Ministros, ontem tive
oportunidade de, na minha rapidíssima fala, e reitero – até pela experiência que
tive, neste caso específico, como procuradora encarregada de precatórios num
Estado que tinha precatórios grandes e que os resolveu por outros caminhos,
sem precisar dessa emenda – que há uma enorme preocupação com este que
é um dos temas gravíssimos da eficácia jurídica e social das decisões judiciais.
Respeito todas as posições. Ontem referia-me a item que cala muito fundo, posto
pelo ministro Gilmar Mendes acerca da inconstitucionalidade de fato, que havia
antes dessa emenda. Todos nos preocupamos com isso, mas peço vênia a quem
vota em sentido contrário.
Agora o ministro Dias Toffoli a dizer que não há o que atinja a Constituição.
A meu ver, há. E digo que há nos termos enunciados pela ministra Rosa Weber:
decidido judicialmente o quanto, inclusive, quando se põe um regime, que não
oferece alternativa para o credor, é claro que há mudança. Peço vênia também
ao ministro Teori Zavascki, porque acho que a emenda pode tender a abolir,
sim, ou pode ser interpretada nesse sentido. Claro que a compreensão de cada
um de nós é diferenciada, Presidente, a compreensão da emenda, dos termos da
emenda, da questão. E é por isso que somos onze votos. Hoje somos dez, mas,
se houvesse verdade absoluta sobre o tema, nem precisaríamos ter mais de um
ministro. Acho que não é isso.
A meu ver é grave, realmente, a situação do erro de fato, ou, como observado
pelo ministro Gilmar Mendes, da inconstitucionalidade de fato. Assim como
ele, que foi advogado público, vivi essa preocupação, que mantenho como juíza.
Digo que algumas passagens da emenda me preocupam desde a primeira leitura,
porque o § 15 – para o qual a ministra Rosa Weber chamou a atenção, ao votar
pela sua inconstitucionalidade – prevê:
§ 15. Sem prejuízo do disposto neste artigo, [o 100] lei complementar a esta Cons‑
tituição Federal poderá estabelecer regime especial para pagamento (...)

E o art. 97, que foi introduzido pelo art. 2º, estabelece que:

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ADI 4.425

Art. 97. Até que seja editada a lei complementar de que trata o § 15 do art. 100 da
Constituição Federal, [que poderá vir; que poderia, quando foi editada] os Esta‑
dos, o Distrito Federal e os Municípios que, na data de publicação desta Emenda
Constitucional, estejam em mora na quitação de precatórios vencidos, relativos às
suas administrações direta e indireta, (...) farão esses pagamentos de acordo com
as normas a seguir estabelecidas, (...)

Ou seja, prevê-se num parágrafo, introduzido pela emenda, a possibilidade


da lei, e, no art. 97, está enunciado que, até que venha a lei, os Estados farão a
aplicação. Então, que os procuradores nos demonstrem que já estão fazendo.
Todo juiz, como todo advogado, lê o sistema inteiro. A prática veio antes da lei.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Ministra, isso tem acontecido. Não, isso tem
acontecido. Desculpe. Isso tem acontecido em relação a várias emendas.
A sra. ministra Cármen Lúcia: A várias emendas, Ministro. Não é este o ponto
a que eu estou chegando.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Não, não, pois é. Na verdade, o art. 100 tenta
anunciar uma lei complementar, e o ADCT já traz a disposição, como ocorreu,
por exemplo, na emenda...
A sra. ministra Cármen Lúcia: Só que a lei era facultativa. A lei poderia não vir,
e eles já estariam criando a situação e agora dizendo que já estão pagando. Só isso.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Sim, mas é como aconteceu com a emenda da
saúde, em que a vinculação prometida já foi antecipada. Poderia ser modificada.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Sim. E por isso, Ministro, como disse antes e
escutei Vossa Excelência com toda atenção, reitero que a preocupação de Vossa
Excelência é a mesma de todos nós.
O que estou afirmando é que, quando se cria uma situação imutável, há que
se considerar, em primeiro lugar, que este Supremo Tribunal Federal declara, às
vezes, a inconstitucionalidade dez, vinte anos depois; em segundo lugar, o fato de
a lei ser feita por representantes do povo, como é legítimo e está posto na Cons‑
tituição, não desvincula nem tira a obrigação, o dever constitucional do juiz de
julgar abstratamente as normas que lhe forem submetidas; e, em terceiro lugar,
assinalo que esta lei era uma possibilidade; no art. 97, afirma-se, então, que seria
feito o parcelamento ou se adotaria o regime especial na forma ali especificada.
É preciso que seja lido, pelos procuradores, e os Estados têm grandes procu‑
radores, devo dizer, que havia, sim, outros caminhos postos, que não o regime
especial, definido no modelo. Até mesmo o § 16 permitia, e continua permitindo,
independente do resultado deste julgamento, que a União pudesse financiar
diretamente os Estados para perfazer os precatórios.
E, como disse a ministra Rosa, com quem me ponho inteiramente de acordo,

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ADI 4.425

com as vênias de quem pense em contrário, a despeito da perversidade do trata‑


mento dado ao credor do Judiciário do Estado, até agora, não seria honesto com
o cidadão que espera a jurisdição que eu afirmasse que o sistema em análise não
contraria o § 4º do inciso IV do art. 60 da Constituição, e julgasse improcedente
a ação, só porque o considero menos ruim que o anterior.
E, por isso, Senhor Presidente, pelas razões que foram expendidas desde o voto
do ministro Ayres Britto, com o belo voto do ministro Fux, agora, tão minucioso,
e, em que pese o belíssimo trabalho apresentado pelo ministro Teori, que chama
a atenção pela sua consistência, e demais observações em sentido contrário, vou
ficar com as razões expostas de forma muito clara, direta, objetiva e tranquila,
como é próprio da ministra Rosa Weber, e acompanhar o relator no sentido da
procedência da ação, relativamente ao § 15 do art. 100 e ao art. 97 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias.
É como voto, Senhor Presidente.

VOTO
(Sobre o item III – Aditamento)
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, nós estamos aqui
diante de uma situação daquelas que os antigos juristas, que se expressavam,
ainda, em latim, denominavam de summum ius summa iniuria ou, também, por
meio de outro brocardo, qualificavam assim: fiat justitia pereat mundus. Ou seja,
no primeiro caso, queriam dizer que uma interpretação excessivamente literal
da lei – e aqui lei compreendendo também a Carta Magna, as normas constitu‑
cionais – levaria, fatalmente, à injustiça. E, no segundo caso, com esta expressão
fiat justitia et pereat mundus, eles queriam dizer o seguinte: levando-se a justiça
a um extremo, também numa interpretação literal do texto, o mundo poderia
perecer. Era uma advertência aos hermeneutas, aos exegetas. Aqui eu penso que
estas advertências dos antigos juristas cabem perfeitamente.
E eu gostaria de invocar, preliminarmente, até como uma homenagem ao bri‑
lhante voto trazido pelo eminente Teori Zavascki, um trecho, que me impressio‑
nou vivamente, de seu pronunciamento. O que disse Sua Excelência no voto? E
tenho em mãos uma cópia com que Sua Excelência me honrou. Diz ele o seguinte:
É que a declaração de inconstitucionalidade da EC 62/2009 significa retornar ao
primitivo regime do art. 100 (...).

Ou então, como disse o ministro Gilmar Mendes, ao regime da Emenda Cons‑


titucional 30, porque nós estamos aqui...

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ADI 4.425

O sr. ministro Gilmar Mendes: Agora já suspensa.


O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Pois é, porque nós estamos aqui, tam­
bém como disse o ministro Gilmar Mendes, atuando como legisladores negativos,
numa visão estritamente kelseniana da interpretação do texto constitucional.
E aí continua o ministro Teori Zavascki, a meu ver, com uma pertinência ex­­
traordinária.
Quem se preocupa com uma interpretação que vá um pouco além da mera expres‑
são formal das normas constitucionais e se detenha, como é apropriado, no exame
de sua eficácia social, constatará, sem esforço, que o modelo original do art. 100 da
Constituição é um modelo absolutamente perverso para os credores, pois deixa à
pura conveniência da Fazenda Pública a satisfação das condenações judiciais de
pagar quantia, sem que ao credor e ao Judiciário fique assegurado qualquer meio
executivo apto a impor a sanção da prestação devida.

Ou seja, o regime anterior era um regime absolutamente ineficaz, não funcio‑


nava, era prejudicial ao credor, e aí, sim, é que os comandos judiciais não tinham
nenhuma eficácia. Quem viveu esse período, seja do lado do Judiciário, seja do
lado da administração, ou ainda como credor da Fazenda Pública, viveu muito
bem essa experiência lamentável.
E o ministro Teori – mais um pequeno trecho que eu acho relevantíssimo –
diz o seguinte, salto aqui algumas observações intermediárias:
Na prática (...), as sentenças judiciais, pelo regime originalmente previsto no art. 100
da CF/1988, somente são cumpridas se e quando aprouver à Fazenda Pública. São,
portanto, obrigações sem prazo e sem sanção. Isso, sim, é atentatório ao direito
subjetivo dos credores e à autoridade das decisões do Poder Judiciário.

Então, diz, ainda mais adiante, o ministro Teori:


(...) por mais deficiente que possa ser a alternativa oferecida pela EC 62/2009, é
difícil sustentar que ela represente um retrocesso em termos institucionais.

E, mais adiante ainda, diz Sua Excelência:


(...) [a] manutenção desse sistema significa, na verdade, aprofundar a crise e tornar
cada vez mais remota a possibilidade de satisfação dos legítimos direitos dos cre‑
dores, ficando o devedor na confortável posição de inércia, insuscetível de ser
alterada coercitivamente por meio judicial.

Diz ele ainda, agora termino:


(...) qualquer modificação que atribua ao credor uma perspectiva concreta de

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ADI 4.425

satisfação da dívida [como é o caso da Emenda 62], e que confira ao Poder Judici‑
ário, em caso de inadimplência da Fazenda Pública, mecanismos aptos a viabilizar
a sua execução forçada, representa um ganho em relação ao sistema anterior.

Penso que Sua Excelência equacionou bem a questão, porque nós vivemos
no mundo da realidade dos fatos, no mundo fenomenológico, no mundo em que
cada causa tem uma consequência.
E esse foi o sistema, como lembrou muito bem o ministro Dias Toffoli, que
foi gestado aqui no interior do próprio Supremo Tribunal Federal e resultou de
um amplo debate no Congresso Nacional, onde todas as lideranças partidárias,
que representam a soberania nacional, se manifestaram e encontraram uma
solução para a crise, na qual a Fazenda Pública estadual e municipal e todo o
País estavam profundamente mergulhados.
Existem vários argumentos que atacam os distintos aspectos desse regime
especial, mas, a meu ver, basicamente dois são os mais relevantes.
Em primeiro lugar, fala-se em ofensa à coisa julgada e, depois, ofensa ao direito
adquirido, sem falar também em ofensa à separação dos Poderes, enfim, à própria
eficácia da coisa julgada, eficácia das decisões judiciais. Mas, com relação à ofensa
à coisa julgada, eu, sinceramente, não consigo entrever, a partir da leitura dos
distintos dispositivos dessa EC 62, qualquer ofensa, qualquer lesão a esse valor.
O ministro Dias Toffoli lembrou muito bem que as normas que dizem respeito
ao processamento e ao pagamento dos precatórios têm natureza eminentemente
administrativa. E o Supremo Tribunal Federal já se manifestou diversas vezes
nesse sentido, especialmente na ADI 1.098. Por que tem natureza administra‑
tiva? Porque já se esgotou a prestação jurisdicional: como vai pagar, a forma
como serão pagos esses precatórios, desde que se respeite o valor original, com
a correção monetária devida, tal como decidimos ontem, é uma questão emi‑
nentemente administrativa. E, na ADI 1.098, o que se decidiu a partir da emenda?
A ordem judicial de pagamento (§ 2º do art. 100 da CF), bem como os demais atos
necessários a tal finalidade, concerne ao campo administrativo e não jurisdicional.
A respaldá-la tem-se sempre uma sentença exequenda.

Portanto, não há, a meu ver, por esses argumentos que foram já esboçados,
ofensa à coisa julgada porque a questão é administrativa. Nós estamos no campo
estritamente administrativo.
Verifico também que não se pode falar em lesão a direito adquirido. Por quê?
Porque o Tribunal também afirmou, por diversas vezes, que não há direito adqui‑
rido a regime jurídico. E aqui nós estamos diante de um regime jurídico admi‑
nistrativo de pagamentos de débitos da Fazenda Pública.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  291


ADI 4.425

Então, não vejo qualquer ofensa a direito adquirido, sobretudo, insisto mais
uma vez, depois que, a partir da sessão de ontem, esta Suprema Corte expungiu do
art. 100, examinando os distintos parágrafos, as eventuais inconstitucionalidades.
O que houve na espécie? Houve uma alteração significativa no substrato fático,
uma alteração no mundo dos fatos, no mundo fenomenológico, que levou neces‑
sariamente a uma alteração do Direito que rege a matéria. Isso é absolutamente
comum especialmente nos contratos administrativos. Quer dizer, havendo alte‑
rações significativas nas condições originais, mudam-se, evidentemente, as cláu‑
sulas desse contrato administrativo, porque todos os contratos, enfim, todas as
obrigações repousam sobre o famoso, importante e conhecido princípio rebus
sic stantibus, ou seja, enquanto as condições se mantiverem tais como foram
originalmente concebidas, essas normas se mantêm; mas, alterado o substrato
fático, é preciso mudar, também, o Direito, que nada mais é do que uma supe‑
restrutura que se assenta sobre esse mundo fático.
De outra parte, também – ainda refletindo em voz alta, mas essa matéria já foi
referida por vários colegas que me antecederam e também se encontra nos memo‑
riais que foram distribuídos aos magistrados desta Corte –, a metodologia esta‑
belecida pela Emenda Constitucional 62/2009 para o pagamento dos precatórios
mostrou-se, em primeiro lugar, necessária. Portanto, esse é um dado, é um valor,
é um critério importante: o critério da necessidade, porque resolveu um quadro
crítico de endividamento de determinados entes federados, senão a maioria deles.
De outra parte, também, a metodologia introduzida pelo art. 62 mostrou-se
adequada, porque viabilizou a retomada dos pagamentos dos créditos que os
particulares tinham perante a Fazenda Pública. E, finalmente, revelou-se uma
metodologia proporcional, por quê? Porque conciliou, harmonizou o interesse
público com o interesse dos particulares, especificamente dos credores, com o
menor ônus possível, a meu ver, para ambas as partes.
E, finalmente, eu entendo que essa metodologia prestigia o princípio da segu‑
rança jurídica. É que, a partir da Emenda Constitucional 62/2009, os entes públi‑
cos passaram a ser compelidos a inscrever, nos respectivos orçamentos, aquelas
parcelas que são devidas aos credores nos termos da Emenda Constitucional
62/2009. E, mais ainda, estabeleceram-se nesta emenda, justamente, instrumen‑
tos processuais aptos a compelir as Fazendas Públicas a adimplirem os débitos
que têm com os credores.
Por todas essas razões, Senhor Presidente, entendo que esse regime especial
de pagamento de precatórios, introduzido pela Emenda Constitucional 62/2009,
é integramente constitucional.
É como voto.

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ADI 4.425

VOTO
(Sobre o item III)
O sr. ministro Gilmar Mendes: Senhor Presidente, já me manifestei a propó‑
sito deste tema. É importante que nós rememoremos todo esse quadro, porque,
dependendo do discurso que resolvamos adotar – eu brincava aqui com o ministro
Celso –, deveríamos, talvez, declarar originalmente a inconstitucionalidade do
próprio art. 100, porque ele já nasceu com parcelamento, ele já nasceu com a pre‑
visão daquele modelo da complementação do art. 33, porque não há norma, a rigor,
capaz de dar efetividade a esse sistema. O art. 33 é aquele famigerado artigo que deu
ensejo ao famoso “Caso dos Precatórios”, a CPI dos Precatórios, de triste memória.
Depois tivemos, então, o esforço do parcelamento, o art. 78, a discussão que
veio, inclusive, até o Supremo Tribunal Federal e que, afinal, teve o deferimento
da liminar já no final do parcelamento para aqueles Estados que haviam cum‑
prido e aderido ao modelo de forma integral.
Como é óbvio aqui, houve uma pane no próprio modelo da Emenda 30, que,
entendendo valorar os créditos de natureza alimentícia, deixou-os fora do par‑
celamento e fez com que, numa visão estratégica, a Fazenda, então, priorizasse
o pagamento dos créditos não alimentícios, assim chamados.
Então, vejam todas as peripécias. Óbvio que a Emenda 62 não vem aqui para
anular direitos; não vem aqui para comprometer a coisa julgada, muito menos
para desmerecer o Judiciário. Pelo contrário, trata-se de uma fórmula de tran‑
sição para superar um estado, de fato, inequivocamente inconstitucional. Mas
não é inconstitucional desde a Emenda 62. Na verdade, nós estamos a falar de
débitos que se acumularam ao longo do tempo. E ontem o ministro Lewan­dowski
chamava a atenção para todos os problemas associados a isso, que estavam
associados à miséria da inflação, que faz, então, a riqueza...
O sr. ministro Marco Aurélio: Vossa Excelência me permite?
Quando cheguei ao Tribunal, encontrei jurisprudência no sentido de que
não podia haver a atualização do precatório, isso com a inflação a pleno galope,
levando a um círculo vicioso e ao crescimento do que aponto como bola de neve.
Então, passo a passo, estamos avançando. Não há a menor dúvida.
O sr. ministro Gilmar Mendes: E daí a expedição dos chamados precatórios
complementares.
O sr. ministro Marco Aurélio: Complementares, que agora estão proibidos.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Sim, mas o que significava que havia um tipo
de pensão vitalícia em relação a essas grandes dívidas. Eu me lembro disso, em
relação à União. Então, esse era o quadro de desorganização.

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ADI 4.425

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Ministro, Vossa Excelência me permite?


Imagine Vossa Excelência que, no caso dos juros compensatórios, porque à
correção monetária somavam-se os juros moratórios e compensatórios. Os com‑
pensatórios chegavam até 24% ao ano. Hoje, a taxa Selic representa 7,5%. Então,
é possível imaginar o quanto as Fazendas Públicas ficaram endividadas.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Vossa Excelência se referia ontem a determina‑
dos casos de desapropriação, em que o montante chegava a valores que superava,
de muito, a base territorial de um Estado. Vossa Excelência fez a comparação
com o que ocorria lá na Serra do Mar em relação ao valor da terra em Ribeirão
Preto. Veja, portanto, o que isso significa. Por quê? Porque há um fenômeno de
correção monetária infindável.
Eu me lembro de que, quando estava na União, discutia-se, na Advocacia‑
-Geral da União, em algum momento, ainda, o pagamento da desapropriação,
salvo engano, da Fazenda Sarandi, no Rio Grande do Sul, onde teria começado
o Movimento dos Sem-Terra. Desapropriação por interesse social para reforma
agrária, inicialmente. Depois, caiu a desapropriação para reforma agrária, enten‑
dendo-se que a propriedade era produtiva. A rigor, em algum momento, disse-se
que o dinheiro que se destinava a pagar a Fazenda Sarandi dava para comprar
todas as fazendas do Rio Grande do Sul.
É esse o modelo de cálculo que leva a essa crise. Claro que já se fez muito, mas
há assimetrias. Nós sabemos, por exemplo, que a Justiça do Trabalho é muito
mais generosa do que a Justiça comum em matéria, por exemplo, de cálculo de
juros e de modelo de correção.
O sr. ministro Marco Aurélio: Protecionista não é Justiça do Trabalho, mas
sim a legislação trabalhista.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Não, pois é. Mas veja os descompassos e as
incongruências, que depois se traduzem em precatórios, se houver.
Veja, então, o que diz, Presidente, o Movimento dos Advogados em Defesa dos
Credores Alimentares do Poder Público. O que eles dizem? E esse é o quadro efetivo:
como se sabe, dizem eles, antes da promulgação da Emenda 62, o texto constitu‑
cional era peremptoriamente desrespeitado – eles estão falando da versão original
e da versão emendada – pelos governantes, especialmente no que diz respeito aos
precatórios alimentícios – é a situação dessa associação; nada ou quase nada lhes
era pago, apesar da suposta preferência constante da Constituição cidadã.
O sr. ministro Marco Aurélio: Porque antes o Judiciário estava manietado: apenas
podia determinar o sequestro no caso de preterição. Hoje, não. A ausência de inclusão
de verba no orçamento para liquidação da dívida, satisfação do crédito, é conducente
ao sequestro. Então, avançamos muito com a Emenda Constitucional 62/2009.

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ADI 4.425

O sr. ministro Gilmar Mendes: Claro. Só que nós sabemos hoje que, diante
dos dados constantes da própria emenda, dos trabalhos parlamentares, que a
simples inclusão no orçamento – e isso vai satisfazer – não vai resolver, porque
uma coisa é a inclusão no orçamento, outra coisa é a efetiva disponibilidade.
Então, o que eles dizem?
Como a Emenda 30 previu o parcelamento apenas para os precatórios não
alimentares, com expressa previsão de sanção, em caso de inadimplemento
dos décimos, a eles foi dada absoluta paridade, em nítida inversão de valores,
chegando-se ao ponto de que, na edição da Emenda 62, já haviam sido pagos
nove décimos, neles incluídos os juros compensatórios de 12%, além dos esta‑
belecidos nos títulos judiciais.
Aos credores alimentares restavam migalhas, quando muito, o único remédio
então possível era a intervenção federal, cujo julgamento e deslinde é conhecido
por todos.
É isso que diz essa associação.
Após as hesitações iniciais quanto à forma de implementar os preceitos esta‑
belecidos na Emenda 62, regime especial, fundamental para a esperança desses
mesmos credores alimentares, passados mais de três anos da sua promulgação,
a situação dos credores alimentares melhorou – é isso que diz a associação –
significativamente em diversos aspectos, apesar de alguns de seus dispositivos
representarem uma enorme covardia contra aqueles que já se encontram na pior
posição jurídica possível, a de credores do poder público.
Depois eles repassam, para apontar pontos, apontar núcleos que já foram dis‑
cutidos no art. 100, a questão dos idosos, da doença, dos portadores de doença
grave, da atualização monetária e dos juros.
E aí diz o seguinte:
Muito embora a Emenda Constitucional contenha as disposições que precisam
ser urgentemente afastadas no ordenamento jurídico, a possibilidade de adoção
de um regime especial para o pagamento de precatórios, em até quinze anos, é
medida que – frise-se – paradoxalmente, reconheça-se, é motivo de celebração
por parte dos credores alimentares do Poder Público.

E aí dizem:
Afinal, foram tantas as frustrações dessa verdadeira via crucis que, ao recebimento
dos créditos alimentares, atualmente não se tem mais qualquer ilusão de que seja
cumprido o disposto no § 5º do artigo 100, que impõe o pagamento até o final do
exercício seguinte à apresentação dos precatórios.

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ADI 4.425

Veja, portanto, a análise que fazem pessoas que têm a experiência concreta,
que estão a postular o recebimento desses créditos.
E dizem mais:
Avanços como vinculação de receita – que é o dado importante da Emenda 62 –,
e prazo máximo de pagamento, não podem ser perdidos.

Veja que isso é categoricamente um outro quadro em relação ao que existia,


é uma constante. Cria-se um mecanismo de enforcement do modelo de decisão.
Vossa Excelência já destacava isso ontem quando postulava a separação do jul‑
gamento em relação ao art. 100 e ao art. 97, Ministro Marco Aurélio.
Então, veja esse ponto importante. Os dados também trazidos pelo Colégio
Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados mostram que, exatamente em
razão do novo modelo institucional, nós temos um quadro diferente. Vários
Estados estão pagando a dívida; eles estão conseguindo pagar antes do prazo
estabelecido, por exemplo, em relação a Mato Grosso do Sul. Projeção indica
que, no prazo de seis anos, o Estado quitará a sua dívida judicial, em função
exatamente desse equacionamento, da determinação de que haja vinculação
da receita ou desses mecanismos estabelecidos.
Outros Estados aumentaram substancialmente o pagamento. O Rio de Ja­­nei­
­ro, que, em 2003, pagava R$ 55 milhões, está pagando, em 2012, R$ 365 milhões;
o Rio Grande do Sul também aumentou substancialmente: em 2003, pagou R$
2,7 milhões; em 2011, R$ 796 milhões.
Veja, portanto, que algo de diferente implementou essa emenda, que é obvia‑
mente uma emenda transitória; quer dizer, é uma regulação transitória. Eu
mesmo disse: se se trata de fazer uma emenda para depois fazer outra, obvia‑
mente que não podemos mais conviver com isso. Daí a importância inclusive
desse monitoramento que hoje vem sendo exercido pelo CNJ para que os próprios
tribunais cumpram adequadamente aquilo que está estabelecido na emenda.
O sr. ministro Marco Aurélio: O Conselho Nacional de Justiça deu uma pince‑
lada muito interessante. No tocante ao prazo de quinze anos, tem-se, no preceito,
disjuntiva “ou”, que viabiliza a indeterminação desse mesmo prazo de quinze
anos, projetando, para as calendas gregas, a liquidação dos débitos. Apontou
que, no regime especial, ter-se-á a liquidação daqueles precatórios vencidos,
pendentes à época da Emenda Constitucional 62, em quinze anos, com o fecha‑
mento da equação.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Em quinze anos. Estabelecendo, portanto, um
monitoramento anual desse pagamento com essa regulamentação. Em relação a
outros Estados, o quadro é também alvissareiro. Veja que o Estado de Santa Catarina

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ADI 4.425

pagava de precatórios R$ 4,397 milhões em 2007; em 2011, passou a pagar R$ 42


milhões. Portanto, o quadro é de mudança. O Estado de São Paulo, a locomotiva
do Brasil, tinha um valor passivo em precatórios, em 12/2009, de R$ 19,198 bilhões.
Esse passivo caiu, em 12/2012, para R$ 15 bilhões. Veja, portanto, que os números
indicam exatamente essa transição positiva, por quê? Porque, diferentemente de
um mero parcelamento, criou-se modelo de constraints, no sistema da Emenda 62,
reforçada agora pela própria disciplina ocorrida, levada a efeito pelo próprio CNJ.
Também o Estado do Sergipe avançou significativamente. No Estado de Ala‑
goas, os valores repassados até julho/2012 aumentaram em 57%, comparados
com 2011; o Estado de Goiás, que praticamente não pagava, em 2007, repasse de
R$ 700 mil em 2007, repasse já, em 2009, de R$ 5,6 milhões e, em 2013, o valor
mensal será de R$ 6,8 milhões. Portanto, esse quadro é muito expressivo.
Outros Estados também têm essa situação hoje. Mato Grosso zerou os esto‑
ques. O Estado do Pará efetuou o depósito referente ao pagamento da parcela
anual de 2010, 2011 e 2012, estando regular no pagamento dos precatórios.
Portanto, a medida vem cumprindo essa função. Qual é o sentido agora de
declarar a inconstitucionalidade e retornar ao texto original? Porque uma vez que
vamos superar também a Emenda 30, uma vez que ela está com a sua vigência
suspensa, qual é o sentido? Para dizer que o caos é melhor do que a ordem? De
que a desorganização se recomenda? Em nome do fiat justitia et pereat mundus?
Ora, fizemos recentemente modulação de efeitos em relação à questão do
art. 62, a exigência da comissão mista, para não causar uma desordem no sistema
das medidas provisórias. E não aceitamos uma regra de transição que permite,
exatamente, que os fatos sejam adequados ao modelo institucional.
Em suma, Presidente, é muito difícil entender que essa deva ser a opção da
jurisdição constitucional, que obviamente tem responsabilidade em face do texto
constitucional, mas que tem responsabilidade em face da própria realidade. Não
irei falar sobre teorias aqui. Evidente que os elementos fáticos compõem, inte‑
gram o próprio elemento normativo; já o disse bem o ministro Lewandowski.
Há teoria sobre isso. Friedrich Müller trabalha com o programa normativo e o
âmbito normativo.
Agora, o que essa emenda fez de extravagante? Descumpriu coisa julgada?
Atingiu direito adquirido? Não. A rigor, já tínhamos um estado de não cum‑
primento das decisões. E já tivemos aqui pedidos de intervenção federal, que
resultavam inócuos, até porque o ônus de sua implementação e a dificuldade,
inclusive, de sua implementação levavam o Tribunal a não encampar essa ideia.
E, no passado, isso já ocorreu; tanto é que, quando julgamos esse caso aqui, lem‑
brávamos, salvo engano, de precedente de Nelson Hungria, em que dizia que...

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ADI 4.425

O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)


O sr. ministro Gilmar Mendes: Por outro lado, não podemos também esque‑
cer que, voltando ao modelo originário do Texto de 1988, vai restar para o Tribunal
apenas a intervenção. E aí poderá escolher: faz intervenção, eventualmente, em
São Paulo, decreta a intervenção em outros Estados, para implementar, garantir,
a coisa julgada e o direito adquirido. Porque essa é a alternativa que se coloca
fora desse modelo. É disso que estamos a falar? Direito é um instrumento de
vida, instrumento de paz social. É disso que estamos a falar.
A sra. ministra Rosa Weber: Permite-me, Ministro? Colho dados da minha
experiência, a que já aludi, na Presidência do Tribunal Regional do Trabalho,
biênio 2001 a 2003, no Estado do Rio Grande do Sul. Verificava que a União cum‑
pria absolutamente as normas de pagamentos, observando os prazos. E a grande
maioria dos Municípios gaúchos também. Havia descumprimento apenas por
parte de alguns Municípios e uma grande dificuldade do Estado do Rio Grande do
Sul em pagar, como os próprios dados que Vossa Excelência trouxe demonstram.
Em termos de Brasil, ainda hoje, há Estados – pelo menos, foi dito da tribuna,
parece-me que ouvi uma referência ao Estado do Ceará – que estão em situação
de adimplência absoluta, ou seja, cumprindo os precatórios. Então, de fato, a
dificuldade é uma situação que existe, mas não com relação a todos, ainda que
sejam muitos Brasis dentro de um mesmo Brasil. Por isso trouxe a realidade do
Rio Grande do Sul, nas diferentes esferas.
De qualquer sorte, do ponto de vista do pragmatismo – e é preocupação de
todos nós, sem dúvida alguma –, não há como deixar de concordar com as colo‑
cações de Vossa Excelência nessa linha.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Obrigado pela intervenção, mas o que eu quero
dizer que são muitos os Estados, portanto, nessa situação de inadimplência.
A sra. ministra Rosa Weber: Mas não são todos.
O sr. ministro Gilmar Mendes: Claro que não são todos, mas são muitos os
Estados, a começar por pequenos Estados, como o Estado de São Paulo, o Estado
do Rio de Janeiro, o Estado do Rio Grande do Sul, o Estado do Paraná. Portanto,
uma boa parte da Federação, se nós formos considerar o PIB, certamente mais
de 60% do PIB estão nessa situação de desconforto. E se nós formos olhar a
proporção de débito acumulado em relação à receita líquida corrente, vamos
verificar que a opção pelo pagamento, ainda que houvesse vontade política,
que Madre Teresa de Calcutá assumisse as chefias executivas desses Estados,
não haveria essa abertura, por quê? Porque, a rigor, nós sabemos que da receita
líquida corrente sobra muito pouco; há as receitas vinculadas à educação, à
saúde, aos débitos para com a União. O próprio exemplo que Vossa Excelência

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ADI 4.425

acaba de citar – e eu tenho conforto para falar sobre isso, porque trabalhei na
Advocacia-Geral da União de 2000 a 2002 – foi muito claro. Hoje os Estados e
os Municípios perderam importância, em termos financeiros, em face da União.
Essa é a crise que está aí instalada. Se nós olharmos a situação efetiva em 1988
e a situação hoje, em termos de arrecadação, vamos ver que a União avançou
sobre a receita dos Estados e dos Municípios. Esse é o quadro efetivo. Daí essa
crise, a briga dos royalties, a briga do FPE, a discussão sobre guerra fiscal, em
suma, que está instalada.
A União não tem essa dificuldade, até porque resolveu o problema da partilha
via crescimento de tributação com as contribuições; aumenta a sua participação
enquanto decresce a dos Estados; e não aumenta nem IPI nem imposto de renda,
porque isso faz parte da partilha. Tanto é que a União se deu ao luxo – isso foi na
minha época de advogado-geral da União – de adotar o modelo do pagamento
direto sem precatórios. Vejam, falo com a tranquila autoridade de quem fez isso,
de quem é responsável também pela criação dos juizados especiais federais, cujo
teto de pagamento é de sessenta salários mínimos, e hoje 1/3 do que a União gasta
nessa área é no âmbito dos juizados especiais; dos doze bilhões, quatro bilhões
vão por aí. Então o quadro é outro.
Agora, é importante que se tenha uma ponte para atravessar esse momento
difícil, e a Emenda 62 faz exatamente essa proposta.
Eu aqui encerro, Presidente, lembrando uma frase do notável professor alemão
Konrad Hesse, que dizia, na célebre palestra que faz nos anos cinquenta, como
professor titular, agora assumindo a titularidade da Universidade de Freiburg,
escreveu o texto que se tornou célebre, depois tornou-se capítulo de seu livro
Die normative Kraft der Verfassung, A força normativa da Constituição. E Hesse,
então, naquele momento em que a Alemanha estava submetida ainda ao jugo
dos aliados, dizia: “é preciso que haja um modelo de exceção na própria Consti‑
tuição, os regimes de emergências, o regime excepcional”. Por quê? Porque todos
os Estados passam por momentos difíceis. É preciso que isso esteja previsto no
próprio texto constitucional. Com isso, claro, Hesse advogava que, no modelo da
Constituição alemã de 1949, poder-se-ia dispensar a tutela dos aliados. E Hesse
diz: “é fundamental que haja uma disciplina normativa do estado de necessi‑
dade”. Por quê? Porque not kennt kein gebot, necessidade não conhece princípio;
quer dizer, se se instala o caos, o caos passa a reger (ininteligível). É isso que a
Emenda Constitucional 62 tenta evitar; regrar uma travessia para que nós, de
fato, cheguemos a um padrão civilizatório digno do século XXI. Eu voto pela
improcedência deste ponto, Presidente.

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ADI 4.425

VOTO
(Sobre o item III)
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, repito que chegamos à parte mais
sensível da matéria, introduzida na Carta de 1988, pela Emenda Constitucio‑
nal 62/2009. E constatamos que o Tribunal está dividido. Tem-se quatro votos
fulminando o regime especial, diga-se, o art. 97 do Ato das Disposições Cons‑
titucionais Transitórias, como um grande todo. E quatro votos declarando, do
início ao término, o art. 97 harmônico com a Constituição Federal. Sem crítica
alguma ao convencimento dos colegas que já votaram, lembro-me sempre da
máxima dos antigos filósofos materialistas gregos: a virtude está no meio termo.
E preconizo, Presidente, que a apreciação do 97 se faça tal como ocorreu com
a do art. 100 do corpo permanente da Carta. Onde tivermos que podar o art. 97
para tornar realmente suprema a Constituição Federal, devemos podar. Agora,
não podemos desconhecer – e voltarei ao item do parecer da Procuradoria-Geral
da República – a origem da Emenda Constitucional 62/2009, derradeira, espero,
tentativa de liquidar a pendência insolúvel notada em 2009.
Leio no item 65 do parecer:
Todo esse quadro parece sugerir que a EC 62, especificamente no que diz respeito
ao artigo 97 do ADCT [ao regime especial, portanto], é uma resposta do Direito a
uma situação de fato que já não encontrava mais solução na ordem constitucional
a ela anterior. Tal, contudo, não afasta a necessidade de exame de sua constitucio‑
nalidade, na perspectiva já bastante restritiva que este parecer adota.

Vivencio, Presidente, a problemática do famigerado – e agora com a Emenda


Constitucional 62/2009, já não é tão famigerado assim – precatório desde minha
chegada a este Tribunal. E, em 1996, com desassombro, tive a oportunidade de
consignar em acórdão, em ação direta de inconstitucionalidade que atacava
resolução do Tribunal de Justiça de São Paulo, lei do Estado de São Paulo, que o
contexto revelava, à época, um verdadeiro calote oficial. E que o Estado-gênero
acabava tripudiando, considerados os cidadãos credores, adotando o vezo popu‑
lar: “devo, não nego, pagarei quando puder”. Pior, adotando outro vezo: “devo,
não nego, pagarei quando quiser”. E a responsabilidade recaía nos ombros do
Judiciário, porque o cidadão comum, sem o domínio do Direito posto, sempre
percebeu que podíamos nós, órgãos do Judiciário, atuar e não o fazíamos.
Presidente, chegamos a uma situação incrível. Valho-me, mais uma vez, do
parecer da Procuradoria-Geral da República, de nota de rodapé sob o número 25,
considerada a IF 2.915, relator, digo eu, redator ministro Gilmar Mendes, porque
o relator é único, é aquele definido pela distribuição do processo, tanto que

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  300


ADI 4.425

quem é designado para redigir tem que adotar o que por ele veiculado, a título
de relatório:
Na IF 2.915, Relator p/ Acórdão Ministro Gilmar Mendes, DJ de 28-11-2003, o Minis‑
tro Marco Aurélio destacou em seu voto [era relator como Presidente do Tribunal]
a existência de milhares de pedidos de intervenção, a maioria relativa a descumpri‑
mento do regime de precatórios dos seguintes Estados: Alagoas (1 processo), Ceará
(17 processos), Distrito Federal (48 processos), Espírito Santo (10 processos), Goiás
(10 processos), Mato Grosso (10 processos), Pará (11 processos), Paraná (10 proces‑
sos), Rio de Janeiro (8 processos), Rio Grande do Sul (176 processos), Rondônia (2
processos), Santa Catarina (111 processos), Tocantins (16 processos) e [pasmem,
o Estado que é um verdadeiro país dentro do País] São Paulo (2.822 processos).

Então, chegamos a um verdadeiro impasse. A bola de neve, quanto ao débito


dos Estados e Municípios, foi crescendo, e já disse, nesta assentada, que o Judi‑
ciário é, em parte, culpado por esse crescimento, porque, em uma época em que
a inflação estava nos dois dígitos, o Supremo assentou que o valor constante do
precatório não podia ser corrigido. Com isso, acabou criando – como já disse o
ministro Gilmar Mendes – pensões vitalícias, sobrecarregando a máquina judi‑
ciária e decepcionando, a mais não poder, os credores.
Presidente, ontem propus a separação das matérias, que apreciássemos as
ações diretas de inconstitucionalidade que sobejaram, após a extinção de duas
delas, considerados o art. 100 do corpo permanente da Carta, tal como intro‑
duzido pela Emenda 62, e o art. 97 do ADCT, que é um artigo que, até mesmo
pela colocação geográfica, veio à balha para viger por período certo, por período
determinado. A Emenda Constitucional 62 conta, hoje, com três anos, três meses
e quatro dias de vida. Fulminado o art. 97, o que haverá de concreto? O retorno
ao estado anterior, sem o progresso – devemos reconhecer –, mediante solução
de direito, para impasse que essa emenda trouxe à balha.
Permito-me, Presidente, recordar a composição antiga do Tribunal. E recordar
do sistema que sempre observamos nesses processos objetivos quanto à vota‑
ção, principalmente quando se tem matéria complexa, como é o caso – reputo a
matéria complexa e de repercussão social ímpar –, e sabemos que, ao contrário
do relator, os demais integrantes, quase sempre – a não ser que peçam vista –,
votam de ouvido, votam de improviso. Permito-me, portanto, tomar o tempo
do Colegiado, discrepando do pragmatismo, talvez decorrente da avalanche de
processos, e apreciar dispositivo atacado por dispositivo atacado. Começo pela
cabeça do art. 97. O que temos?
Art. 97. Até que seja editada a lei complementar de que trata o § 15 do artigo 100

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ADI 4.425

da Constituição Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que, na


data da publicação desta Emenda Constitucional, estejam em mora [apanhou-se
quadro, uma realidade existente do mais absoluto inadimplemento] na quitação
de precatórios vencidos, relativos às suas administrações direta e indireta, inclu‑
sive os emitidos durante o período de vigência do regime especial instituído por
este artigo [vou pronunciar-me quanto a essa cláusula], farão esses pagamentos
de acordo com as normas a seguir estabelecidas, sendo inaplicável o disposto no
artigo 100 desta Constituição Federal, exceto em seus §§ 2º, 3º, 9º, 10, 11, 12, 13 e
14, e sem prejuízo dos acordos de juízos conciliatórios já formalizados na data da
promulgação desta Emenda Constitucional.

Esses parágrafos se referem: § 2º, aos 60 anos – e portadores de doença grave;


à satisfação parcial do precatório, com preferência; § 3º, à liquidação dos débitos
de pequeno valor, no guichê, sem a utilização do precatório; §§ 9º e 10, à compen‑
sação – que já foi fulminada pela maioria; § 11, à compra, mediante precatório, de
imóveis públicos; § 12, à atualização – atualização para repor o poder aquisitivo
da moeda e evitar, evidentemente, o enriquecimento sem causa, justamente
por parte do Estado devedor; § 13, à cessão de crédito; e § 14, à comunicação da
cessão de crédito.
Esses parágrafos são aplicáveis considerado o regime especial. Esse texto
do art. 97, cabeça, está a merecer censura? A meu ver, está a merecer censura,
porque, se é transitório, não pode se projetar no tempo de forma indeterminada.
O que visou a Emenda Constitucional 62? Afastar o impasse decorrente da
não satisfação de valores estampados em títulos judiciais – que não se mostram
simplesmente formais para serem colocados como quadro na sala de visitas –
possuidores de conteúdo econômico-financeiro, revelando obrigação de dar,
obrigação de pagar.
Presidente, concluo pela inconstitucionalidade parcial do preceito, para dele
expungir, porque conflitante com a Carta da República, o trecho: “(...) inclusive
os emitidos durante o período de vigência do regime especial instituído por esse
artigo.” Se é um regime especial, a confirmá-lo tem-se o regime-regra. E este é o
que decorre do corpo permanente da Carta, com a possibilidade, inclusive, de
sequestro, não apenas no caso de preterimento – vocábulo utilizado no texto –,
mas também de falta de alocação orçamentária do valor necessário à liquidação
do débito – § 6º do art. 100.
O princípio do terceiro excluído fulmina a cláusula: ou bem o art. 97 revela
disposição transitória, ou bem anula, nulifica, ou melhor, mitiga o corpo perma‑
nente da Carta, e será aplicado de forma indeterminada, mesmo porque os per‑
centuais da receita alocados, as percentagens mínimas previstas no próprio art. 97,
talvez não sejam suficientes a ter-se a liquidação do passivo, à época da Emenda

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Constitucional 62, dentro dos quinze anos. E já aplaudi – muito embora na visão
leiga, ante o fato de o Conselho não exercer o controle concentrado de constitucio‑
nalidade, muito menos de forma cogente – a resolução do Conselho Nacional de
Justiça que versa a necessidade de a equação fechar. De que forma? Chegando-se,
após os quinze anos, à liquidação daquele passivo apanhado, quando da promul‑
gação da Emenda Constitucional 62, de dezembro de 2009. A meu ver, salta aos
olhos a inconstitucionalidade da expressão referida – repito para haver a cabível
anotação na certidão de julgamento – contida na cabeça do artigo: inclusive os
emitidos durante o período de vigência do regime especial instituído por este artigo.
É como voto nesta primeira matéria.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Art. 97, caput.
O sr. ministro Marco Aurélio: Prossigo considerada a impugnação aos inci‑
sos I e II do § 1º do art. 97.
O ministro relator, que não é o ministro Luiz Fux, mas o ministro Carlos Ayres
Britto, fulmina o artigo como um todo, até mesmo por arrastamento. Impugna‑
-se esse dispositivo, mas, a meu ver, a partir de óptica equivocada, de óptica
que acaba por fulminar o regime especial, retornando-se ao que apontei como
impasse, o que, evidentemente, não atende aos interesses dos credores. Talvez
atenda aos interesses dos dirigentes das entidades públicas dos Estados e Muni‑
cípios, no que convivem com as dificuldades de caixa.
Não vejo inconstitucionalidade no inciso I, mas vejo parcial no inciso II, e já
agora com base no que assentou a maioria. O inciso II preceitua:
II – pela adoção do regime especial [aí vem algo que revela que realmente é um
preceito transitório] pelo prazo de até [limite, o “até” é advérbio de modo] 15 (quinze
anos), caso em que o percentual a ser depositado na conta especial a que se refere o
§ 2º deste artigo corresponderá, anualmente, ao saldo total dos precatórios devidos,
[vem a parte inconstitucional] acrescido do índice oficial de remuneração básica
da caderneta de poupança e de juros simples no mesmo percentual de juros inci‑
dentes sobre a caderneta de poupança (...).

Tenho uma proposta para voltar ao art. 100, porque votei afastando não só a
reposição do poder aquisitivo pelo índice utilizado quanto à caderneta de pou‑
pança, como também afastando os juros da caderneta. E lembraria que o que se tem
na caderneta é um todo que confunde a reposição do poder aquisitivo com os juros.
Então, Presidente, continua o preceito:
(...) para fins de compensação da mora, excluída a incidência de juros compensa‑
tórios, diminuído das amortizações e dividido pelo número de anos restantes no
regime especial de pagamento.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  303


ADI 4.425

Esse regime especial de pagamento não pode, sob pena de perpetuar-se a


situação que o motivou, ultrapassar o período fechado de quinze anos. Ocorreu
a primeira moratória de oito anos, a segunda, de dez e, agora, essa terceira, de
quinze. Que seja a última, porque, caso contrário, daqui a pouco – e não precisa‑
ria sequer de nova emenda, porque a própria 62/2009, considerado o art. 97 dela
decorrente, já contempla –, ter-se-á uma moratória por prazo indeterminado
para a liquidação de débitos da Fazenda.
Concluo pela inconstitucionalidade da expressão “acrescido do índice oficial
de remuneração básica da caderneta de poupança e de juros simples no mesmo
percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança”. E o afastamento
dessa regência não implicará, evidentemente, vácuo normativo, porque atrairá
o restabelecimento das regras antecedentes, anteriores.
Continuo, Presidente. O § 2º também foi impugnado.
O sr. ministro Teori Zavascki: Vossa Excelência me permite? Apenas para
colaborar.
O sr. ministro Marco Aurélio: Sim.
O sr. ministro Teori Zavascki: É que, declarando a inconstitucionalidade de
correção monetária e juros simples, não vai ter juros.
O sr. ministro Marco Aurélio: Juros, sim, juros da mora, na redação primi‑
tiva, não mediante...
O sr. ministro Teori Zavascki: Não tem, era só correção monetária.
O sr. ministro Marco Aurélio: Juros mediante a disciplina direta da Carta,
mas da legislação aplicável, de 0,5% ao mês, ante a mora.
O sr. ministro Teori Zavascki: Ah, sim. Porque, pela Constituição, era só
correção monetária, não tem juros.
O sr. ministro Marco Aurélio: Sim, mas com o precatório, modo de execução,
a mora não desaparece e ela gera os juros.
O sr. ministro Teori Zavascki: Inclusive, a jurisprudência do Supremo era no
sentido de que não incidiam juros.
O sr. ministro Marco Aurélio: Em que pese – fiquei vencido – o Tribunal ter,
no campo jurisprudencial, implementado até uma moratória, no que assentou
que desapareceria a mora entre a data da requisição e da liquidação do pre‑
catório, se verificado nos dezoito meses, voltando à mora, se não houvesse a
liquidação, em que pese esse enfoque, os juros sempre incidiram à razão de 0,5%
ao ano. E esse enfoque implica, na verdade – perdoem-me a expressão forte do
carioca –, em se garfar o credor em 9% dos dezoito meses.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Ministro Marco Aurélio, apenas um
esclarecimento. Quando nós julgamos o art. 100 e os distintos parágrafos, lembro

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  304


ADI 4.425

que nós expungimos do § 12 do art. 100 a expressão, pelo que eu me lembro, “inde‑
pendentemente de sua natureza, será feita pelo índice oficial de remuneração
da caderneta de poupança”. Ou seja, a atualização dos valores não será feita. Aí,
Ministro, apenas para completar, nós mantivemos “e, para fins de compensação
da mora, incidirão juros simples do mesmo percentual de juros incidentes sobre
a caderneta de poupança”. Ou seja, nós dissemos: a correção da caderneta pou‑
pança para fins de atualização? Não. Tem que ser o índice oficial da correção
monetária, mas tem que haver juros também.
O sr. ministro Marco Aurélio: O que ocorre com a caderneta, na prática, para
finalidade mesmo de propaganda, de arregimentar poupadores, anuncia-se um
total. Não há divisão nítida, considerada a reposição do poder aquisitivo – e o
ministro Carlos Ayres Britto revelou haver ficado aquém da inflação, em certo
período recente, é certo – e o juros.
Votei, Presidente, já que se tocou no art. 100 – pediria inclusive que se reti‑
ficasse a certidão –, concluindo que não cabe tomar de empréstimo qualquer
elemento da caderneta de poupança, quer para repor o poder aquisitivo do débito
da Fazenda, quer para encontrarem-se os juros da mora. E também votei enten‑
dendo que a expressão “independentemente de sua natureza” é uma expressão
meramente pedagógica, porque não cabe distinguir, evidentemente, onde o legis‑
lador não distinguiu, estabelecendo diferenças além daquelas já contempladas
pela própria Constituição Federal. Concluo que não cabe assentar a inconstitu‑
cionalidade da expressão “independentemente de sua natureza”.
Prosseguindo, Presidente, tem-se, no § 2º, que o regime especial é para saldar
os precatórios vencidos e a vencer. Sendo a norma transitória, sob pena de proje‑
tar no tempo a vigência do texto permanente da Carta, não pode se projetar de
forma indeterminada, no tempo, pegando os precatórios, quem sabe, relativos a
ações que ainda serão propostas, que se vencerem. Então, no § 2º, concluo pela
inconstitucionalidade da expressão “e a vencer”, da mesma forma que assim
concluí quanto à cabeça do artigo, no que englobados os precatórios emitidos
durante o período de vigência do regime especial.
Tem-se, Presidente, nos incisos, pisos referentes ao comprometimento das
receitas. E verificamos que, para os Estados e para o Distrito Federal, haverá,
no mínimo, é piso, o Estado pode, até mesmo para atender à equação a que me
referi, que é a liquidação do passivo de 2009, considerados os quinze anos, pode
e deve aumentar essas percentagens: 1,5% para os Estados das Regiões Norte,
Nordeste e Centro-Oeste, além do Distrito Federal, ou cujo estoque de precatórios
pendentes das suas administrações direta e indireta corresponder a até 35% do
total da receita corrente líquida; de, no mínimo, 2% para os Estados das Regiões

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  305


ADI 4.425

Sul e Sudeste – Estados mais ricos, ao menos na visão leiga –, cujo estoque de
precatórios pendentes de suas administrações direta e indireta corresponder a
mais de 35% da receita corrente líquida; para os Municípios, de, no mínimo, 1% –
e há Estados que estão avançando, sendo que o Município de São Paulo já teria
caminhado no sentido de abandonar essa percentagem mínima de 1%, chegando
a 2,75%. O ministro Gilmar Mendes fez o cotejo do que era satisfeito em 2003, e
foi satisfeito, penso, no último ano, ou nos últimos anos, em termos de débitos
estampados em precatórios.
Não vejo qualquer inconstitucionalidade nesses dispositivos, como também
não vejo inconstitucionalidade – não vou cansar os colegas com a leitura – no
§ 3º, e chego pulando o 4º e o 5º ao 6º. Neste é preciso parar e pensar na maldade
que se fez, considerados os credores. Por que maldade? Porque se tivesse que
haver alguma alteração do débito, deveria ser para se acrescentar, e não para se
diminuir, tanto assim que se tem os juros da mora. Mas o que fez o legislador?
Destruindo o sistema, a medula do sistema de precatório, que é o tratamento
igualitário, na ordem cronológica dos precatórios, dos credores, destinou 50%
dos recursos de que tratam os §§ 1º e 2º do artigo para pagamento de precató‑
rios em ordem cronológica de apresentação, a tradicional em nosso sistema, e
que continua prevista segundo o corpo permanente da Carta, segundo o art. 100
da Constituição Federal, respeitadas as preferências definidas no § 1º, para os
requisitórios do mesmo ano, e no § 2º do art. 100, para requisitórios de todos os
anos – são aquelas preferências do corpo permanente.
Presidente, para onde foram os outros 50%? Foram para um fenômeno que
implica, como disse, tripudiar, porque sabemos que os credores não têm fôlego
para aguardar a liquidação dos precatórios. Foram colocados na “bacia das
almas.” Os outros 50% ficaram destinados, quebrando-se a ordem cronológica,
a espinha dorsal do sistema de precatórios, para liquidação de precatórios em
leilões. Estes terão uma tônica: quem der o maior abatimento no crédito estam‑
pado em título executivo judicial será atendido.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Essa foi a primeira.
O sr. ministro Marco Aurélio: Podemos fechar os olhos a essa aberração
constitucional? A meu ver, não, Presidente. A meu ver 100% da receita compro‑
metida devem ser destinados à liquidação dos precatórios, observadas as prefe‑
rências do corpo permanente, na ordem cronológica em que esses precatórios
surgiram, na ordem cronológica das requisições. Por isso, concluo que a destina‑
ção dos outros 50% ao leilão é inconstitucional. E tenho como inconstitucionais
os diversos incisos do § 9º do art. 97, em comento, e inconstitucionais também os
incisos I, II e III do § 8º, que versam justamente a destinação dos 50% para o leilão.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  306


ADI 4.425

Continuo, Presidente. Não vejo inconstitucionalidade no § 10, no dado, ao


Judiciário e aos credores, o instrumental capaz de tornar a Constituição concreta,
de eficácia maior, no que se previu que:
§ 10. No caso de não liberação tempestiva dos recursos de que tratam o inciso II
do § 1º e os §§ 2º e 6º deste artigo:
I – haverá o sequestro de quantia...

E cogita-se uma alternatividade que pode implicar, por ordem do presidente


do tribunal requerido, benefício, e não prejuízo, dos credores de precatórios,
contra Estados, Distrito Federal e Municípios devedores.
É algo que beneficia o credor. Como se recebesse em pecúnia e liquidasse os débi‑
tos líquidos lançados pelas entidades de direito público contra si. É salutar o preceito.
Continua o inciso III, no qual também não vejo qualquer inconstitucionali‑
dade, o IV, e chegamos ao § 11. O que está no § 11 do art. 97?
§ 11. No caso de precatórios relativos a diversos credores, em litisconsórcio, admite‑
-se o desmembramento do valor, realizado pelo Tribunal de origem do precatório,
por credor, e, por este, a habilitação do valor total a que tem direito, não se apli‑
cando, neste caso, a regra do § 3º do artigo 100 da Constituição Federal.

Que regra é essa? É a revelar os créditos de pequeno valor. Quando ocorre o


litisconsórcio ativo no processo de conhecimento, tem-se tantas ações ajuizadas
quantos os litisconsortes. E o crédito é pessoal de cada qual. Por isso devem os
créditos – tenho, inclusive, pronunciamento nesse sentido – ser aferidos indivi‑
dualmente. Caso o crédito, considerado de forma individualizada em que pese
a ação plúrima, fique aquém do que previsto no § 3º do art. 100, a liquidação é
desse crédito, permitido o pagamento na boca do caixa, sem adentrar-se a via
crucis do precatório. Por isso, assento a inconstitucionalidade da expressão “não
se aplicando neste caso” de desmembramento – o desmembramento é ínsito ao
sistema, tendo em conta a individualização dos créditos na ação plúrima –, a
regra do § 3º do art. 100 da Constituição Federal.
Observo a regra, quer se trate de situação regida pelo corpo permanente da
Carta, quer se trate – e admite o preceito que se observe, porque remete ao § 3º –
de liquidação de débito pelo regime especial.
Prossigo, Presidente, no exame da impugnação também aos outros incisos,
mas vou pular. E aí vem – perdão, não são incisos, são parágrafos – o § 14:
§ 14. O regime especial desse pagamento de precatório previsto no inciso I do
§ 1º vigorará enquanto o valor dos precatórios devidos for superior ao valor dos

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ADI 4.425

recursos vinculados, nos termos do § 2º, ambos deste artigo, ou pelo prazo fixo de
até 15 (quinze) anos, no caso da opção prevista no inciso II do § 1º.

Se a opção não for a prevista nesse inciso II, for a do inciso I, pelo depósito
em conta especial do valor referido pelo § 2º do art. 97, ter-se-á a projeção, no
tempo, do regime especial.
Inspirado esteve o Conselho Nacional de Justiça, muito embora, atuando, sob
a minha óptica, em campo no qual não poderia atuar. Tanto que conversava com
a nossa vice-procuradora-geral da República, doutora Deborah Duprat, e cum‑
primentamos Sua Excelência pela vinda a esta sessão, sobre uma ação direta de
inconstitucionalidade contra essa resolução do Conselho Nacional de Justiça.
Presidente, a premissa do regime especial é única. O móvel do regime espe‑
cial é único: liquidar o impasse existente à época em que promulgada a Emenda
Constitucional 62. Não posso conceber dispositivo transitório que se torne per‑
pétuo. E aventou o relator até um período um pouco demasiado, de 85 anos, de
vigência desse mesmo regime especial.
O mesmo enfoque que me levou a concluir pela aplicação irrestrita do regime
especial, quanto à cabeça do art. 97 e, quanto ao § 2º, também me conduz a
assentar que, no caso do regime especial – e confiro interpretação ao § 14 con‑
forme a Carta da República –, há de ter-se o resultado prático de liquidação
daquela bola de neve apanhada pela emenda, dentro desse período já dilatado,
superior aos oito anos da primeira moratória, do art. 33 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias que veio com a Carta de 1988, e superior também à
moratória da Emenda Constittucional 30, de dez anos, ou seja, quinze anos. Caso
não ocorra a liquidação desse débito em quinze anos, haverá o descumprimento
da Constituição Federal, que a todos, indistintamente, submete.
Por isso, assento, quanto ao § 14, a interpretação, tomando de empréstimo,
como inspiração, o que o próprio Conselho Nacional de Justiça assentou. Depois
ainda dizem que sou contra o Conselho Nacional de Justiça, não sou. Estou aqui
para aplaudi-lo, já que a Corte declarou constitucional a Emenda 45, que o criou,
em tudo que fizer no campo do que entenda como salutar. Embora no caso não
tivesse base para fazê-lo, porque não é órgão jurisdicional, mas simplesmente
administrativo, acabou interpretando, ele não concluiu pela inconstitucionali‑
dade do preceito, de forma sistemática, o todo da Carta de 1988.
Prossigo, Presidente, e chego ao § 16, pulando o § 15, porque nele não vejo,
não vislumbro qualquer inconstitucionalidade. O § 16 não vou ler, porque os
colegas devem ter, também, se debruçado sobre a questão. Trata-se da atuali‑
zação de valores. É a mesma matéria já decidida pelo Plenário, isto é, a tomada
de empréstimo da atualização das cadernetas de poupança e também dos juros.

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ADI 4.425

Concluo pela inconstitucionalidade da expressão:


(...) será feita pelo índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança,
e, para fins de compensação da mora, incidirão juros simples no mesmo percentual
de juros incidentes sobre a caderneta de poupança.

É como voto.
E chegamos ao § 17:
O valor que exceder o limite previsto no § 2º do artigo 100 da Constituição Federal
será pago, durante a vigência do regime especial, na forma prevista nos §§ 6º e 7º
ou nos incisos I, II, III do § 8º deste artigo, devendo os valores dispendidos para
o atendimento do disposto no § 2º do artigo 100 da Constituição Federal serem
computados para efeito do § 6º.

Uma miscelânea na referência a preceitos, mas o que encerra? Encerra a apli‑


cação do regime especial a precatórios que se vencerem posteriormente, após
dezembro de 2009. E esses precatórios estarão regidos pelo corpo permanente
da Carta, pelo art. 100.
Dou interpretação conforme à Constituição Federal, às regras básicas da
Constituição Federal, ao § 17, para entender que o que nele se contém apenas se
aplica ao débito existente, em termos de precatório, à data em que promulgada
a Emenda Constitucional 62.
Vou ao § 18:
Durante a vigência do regime especial a que se refere este artigo, gozarão também
da preferência a que se refere o § 6º os titulares originais de precatórios que tenham
completado 60 (sessenta) anos de idade até a data da promulgação desta Emenda
Constitucional.

Há de se adotar o mesmo enfoque que prevaleceu quanto ao corpo permanente.


Pouco importa em que época se chegue a essa idade que reputo de plenitude maior,
em termos de amadurecimento, de vivência, que é a revelada pelos 60 anos.
Termino, Presidente, então, no caso, fulminando a regra final do § 18, no que
remete à apuração dos 60 anos até a data da promulgação da emenda.
É como voto na espécie, reiterando o desejo de que se retifique o meu voto
na certidão passada para consignar que alcança a tomada de empréstimo dos
parâmetros da caderneta de poupança quer quanto à reposição do poder aqui‑
sitivo quer quanto aos juros.
Olhei para o ministro decano e lembrei de certo dispositivo, o § 15 do art. 100.
Como terei que me retirar para o Eleitoral, e é difícil servir, sem sacrifício, a

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ADI 4.425

dois senhores ao mesmo tempo, peço vênia para adiantar o voto. Entendo que
esse dispositivo não é inconstitucional, é suprainconstitucional, no que dá uma
carta em branco – e não pretendo ter dois trabalhos, não pretendo defrontar-me
com outra ação contra a lei complementar que vier – ao legislador ordinário da
lei complementar – ordinário no bom sentido – para simplesmente colocar em
segundo plano o sistema de precatórios e, então, perpetuar algo que tem que
ser encarado como excepcional, para corrigir a situação jurídica, retratada no
parecer da Procuradoria, de impasse, que é o regime especial, para mim provi‑
sório, em que pese vigorar, como está previsto, por quinze anos.

VOTO
(Sobre violações materiais)
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Senhores Ministros, as duas ações diretas de
inconstitucionalidade impugnam a terceira moratória para pagamento de pre‑
catórios, chamada de “regime especial” pela EC 62/2009.
As regras dessa moratória devem ser definidas em lei complementar da União
(art. 100, § 15, da Constituição, tal como emendada). Na ausência de referida lei
complementar, a própria emenda previu um regime subsidiário, inserido no ADCT.
Na linha exposta pelo relator, ministro Ayres Britto, e reforçada pelo voto-vista
do ministro Luiz Fux, eu também considero o “regime especial” incompatível
com a Constituição, com a vênia dos ministros que seguem a divergência iniciada
pelo ministro Gilmar Mendes.
Parece-me que a modalidade moratória prevista no art. 97, § 1º, I, do ADCT não
tem um limite temporal definido, exatamente conforme exposto pelo ministro
Ayres Britto.
O método estabelecido para essa modalidade obriga o ente devedor a depo‑
sitar mensalmente 1/12 de valor calculado sobre uma fração da respectiva receita
corrente líquida. Essa fração tem como piso porcentagens que variam entre 1%
e 2% da receita corrente líquida, conforme o tipo de ente devedor e seu estoque
de precatórios (art. 97, § 2º, I e II, do ADCT, tal como emendado).
Por ser calculado com base na receita corrente líquida reduzida, e não sobre
o valor do precatório, não há limite objetivo de prazo para pagamento das dívi‑
das, segundo esse método de cálculo. A moratória durará enquanto o valor dos
precatórios for superior aos recursos vinculados para pagamento.
Nesse sentido, o art. 4º, I, da EC 62/2009 é expresso ao manter o regime espe‑
cial enquanto os recursos destinados ao pagamento, calculados sobre uma fração
da receita corrente líquida, forem insuficientes para o pagamento integral.

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ADI 4.425

A propósito, eis o texto de referido artigo:


Art. 4º A entidade federativa voltará a observar somente o disposto no art. 100 da
Constituição Federal:
I – no caso de opção pelo sistema previsto no inciso I do § 1º do art. 97 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, quando o valor dos precatórios devidos
for inferior ao dos recursos destinados ao seu pagamento;

É por essa razão que considero correta a afirmação do ministro Ayres Britto
de que é possível que alguns entes federados levem até 85 anos para pagar seus
precatórios.
A meu sentir, impor aos credores que aguardem lapso temporal equivalente
à expectativa de vida média do brasileiro (IBGE/2011) retira por completo a con‑
fiança na Jurisdição e sua efetividade (arts. 2º e 5º, XXXV, da Constituição).
Ademais, o regime especial premia a gestão fiscal e administrativa irrespon‑
sável passada e futura com uma solução prejudicial apenas aos credores, contra‑
riando o devido processo legal substantivo ou material (art. 5º, LIV, da Constitui‑
ção), o princípio da eficiência (art. 37, caput, da Constituição) e a responsabilidade
fiscal (arts. 70, caput, e 74, II, da Constituição).
Prevista no art. 97, § 1º, II, do ADCT, a outra modalidade de cálculo moratório
tem como prazo máximo quinze anos. Esse prazo também é excessivo, conside‑
rando-se que o credor já enfrentou os lapsos de tempo decorrentes do devido
processo legal de conhecimento e de execução, bem como, provavelmente, de ao
menos uma das duas moratórias anteriores (dez e oito anos, respectivamente).
De forma semelhante, também são incompatíveis com a Constituição os meios
de pagamento antecipado dos precatórios, ou seja, os acordos ou os leilões pre‑
vistos no art. 97, § 8º, I e III, do ADCT.
Esses acordos e leilões permitem aos credores o recebimento antecipado
de seus créditos, se aceito um desconto ou deságio sobre o valor efetivamente
devido pelo ente público.
A desproporcionalidade do “regime especial” é tão exacerbada que há credores
dispostos a aceitar o recebimento de apenas 25% do valor do precatório. O Estado de
Santa Catarina ofereceu pagamento antecipado àqueles que aceitassem abrir mão
de valores entre 50% e 75% da quantia efetivamente devida. Enquanto maior o desá‑
gio aceito, mais rápido seria o pagamento. Como o valor disponibilizado pelo Estado
era limitado, a procuradoria local avisou aos credores que quanto maior o sacri‑
fício, maior a chance do credor “furar a fila” estabelecida pela ordem cronológica.
O Tribunal de Justiça de Goiás tem homologado acordos em que os credores
alimentares aceitam 66% e 67% de deságio (DJGO de 23-4-2012, S1, p. 90; DJGO de

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ADI 4.425

17-1-2012, S1, p. 65, e.g.). Por sua vez, alguns credores do Estado do Pará ou seus
sucessores puderam receber os valores ao concordarem com redução de 35%
da quantia reconhecida como devida em sentença transitada em julgado (DJPA
de 14-5-2013, p. 14, e.g.). No extremo sul do País, o deságio médio praticado pelo
Estado do Rio Grande do Sul é de 30%.
Inúmeros entes federados lembram aos credores que juntamente com o desá‑
gio também serão subtraídos os valores pertinentes ao imposto de renda, às
contribuições previdenciárias e aos demais encargos cabíveis.
Por impor ao cidadão uma escolha trágica, entre não receber os valores em
vida ou sacrificar uma parte relevante de direito legítimo, o regime especial,
aliado às formas de quebra da ordem cronológica, também viola o princípio da
moralidade (art. 37, caput, da Constituição).
Por fim, examino o critério de atualização dos créditos.
Como o critério de correção monetária dos valores segue o índice da pou‑
pança, calibrado para ser reduzido sempre que ele puder oferecer remuneração
maior do que os investimentos sujeitos às taxas de administração das instituições
financeiras e de títulos e valores mobiliários, a tendência é a de que a quantia
prevista no precatório perca da própria inflação. Ao final de 15 ou de 85 anos,
talvez os valores remanescentes sejam meramente simbólicos.
Aliás, a iniquidade do critério de correção adotado pela EC 62/2009 empurra
ainda mais o credor a aceitar os termos imensuravelmente desfavoráveis que se
tem visto nos acordos celebrados.
Ao depreciar o valor devido, submetendo-o a critério de correção monetária
incapaz de seguir a inflação e muitíssimo inferior ao índice utilizado para remu‑
nerar os créditos tributários e não tributários, a EC 62/2009 ofendeu o direito à
propriedade e a isonomia (art. 5º, XXII, da Constituição).
No momento em que induz o jurisdicionado a nem sequer litigar contra o
Estado, diante da perspectiva de não receber valores eventualmente confirmados
após longo processo judicial, ou, para recebê-los, abrir mão de parte significativa
das quantias devidas, o regime especial desmoraliza a Jurisdição (arts. 2º e 5º,
XXXV, da Constituição).
Se o “regime especial” tem uma virtude, é a de assumir ostensivamente a
enorme dificuldade que o jurisdicionado tem para ver satisfeita a sentença tran‑
sitada em julgado contrária ao Estado. Conforme visto nos debates precedentes,
a forma como executado o regime ordinário dos precatórios (art. 100 da Cons‑
tituição) e as duas primeiras moratórias constitucionais ocultavam a alegada
inexequibilidade do sistema.
Diante do exposto, acompanho o voto do eminente ministro Ayres (...).

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ADI 4.425

DEBATE
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Eu creio que nós temos seis votos
na linha do voto do relator.
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, na verdade, o ministro Marco
Aurélio fez algumas observações, mas 90% do voto dele foi em menor exten‑
são, mínima.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Luiz Fux: No art. 100, todos acompanharam.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): O art. 100 eu já proclamei ontem.
O sr. ministro Luiz Fux: Todos já acompanharam, menos o § 15.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Não, o § 15 não estava incluído
na impugnação.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Luiz Fux: Não, estava. O § 16 que não estava.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Luiz Fux: Julgamos exatamente por arrastamento para nuli‑
ficar o regime especial.
O sr. José Aluysio Cavalcante Campos (advogado): Senhor Presidente, uma
questão de ordem. Sou procurador do Estado do Pará, que é parte neste pro‑
cesso. Eu não sei se Vossa Excelência já vai proclamar o resultado, mas há umas
questões que preocupam neste processo todo, e eu pontuo apenas uma: a ordem
crescente dos precatórios, na realidade, com os pagamentos já efetivados, concre‑
tizados, a juízo da tese vencedora, implicou uma quebra da ordem de pagamento.
Repristinando o art. 100, eliminando esse regime, há vários desdobramentos que
ficam pendentes: acordos que foram celebrados, quitados, parcelamentos em
curso, orçamento em execução de 2013 e essa questão, leilões que foram reali‑
zados, os pagamentos que foram feitos em ordem crescente.
Por exemplo, o Estado de São Paulo, nesses quase R$ 5 bilhões que foram
quitados, isso implicou o pagamento de precatórios alimentares, cuja conclusão
fática, demonstrada nos memoriais que trazem os autos, significa que não existe
hoje, em São Paulo, nenhum pagamento alimentar efetuado a menor do que R$
500 mil. Isso daí pode provocar, eventualmente, credores que já foram satisfeitos
nessa ordem, dentro desse quadro, um dilema: receberam por leilão, na ordem
crescente. Então são essas questões que eu trago à Corte.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): As dúvidas que eventualmente
surjam do acórdão a ser lavrado pelo eminente ministro Luiz Fux poderão, caso
cabíveis as medidas, serem resolvidas pelo instrumento próprio.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  313


ADI 4.425

O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, as preocupações da Procurado‑


ria são pertinentes, mas, de toda sorte, pelo precedente que nós temos, nós não
temos quorum para fazer essa modulação. Eu entendo que devamos fazer, mas
talvez esperar, elaborar o acórdão, oferecer uma petição a título de...
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Luiz Fux: Eu trarei ao Plenário o quanto antes. Claro, claro.
A preocupação tem todo fundamento.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Luiz Fux: É porque não toma conhecimento do que cada um fez.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Luiz Fux: Cadenciar bem e trazer.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Luiz Fux: Só para tranquilizar os procuradores do Estado, nós
vamos trazer a modulação à apreciação do Plenário com quorum qualificado.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Mas, por enquanto...
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)

EXTRATO DA ATA
ADI 4.425/DF — Relator: Ministro Ayres Britto. Relator para o acórdão: Ministro
Luiz Fux. Requerente: Confederação Nacional da Indústria – CNI (Advogados:
Cassio Augusto Muniz Borges e outros). Interessado: Congresso Nacional. Amicus
curiae: Estado do Pará (Procurador: Procurador-geral do Estado do Pará).
Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do ministro Ayres Britto
(relator), julgou parcialmente procedente a ação direta, vencidos os ministros
Gilmar Mendes, Teori Zavascki e Dias Toffoli, que a julgavam totalmente impro‑
cedente, e os ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, que a julgavam
procedente em menor extensão. Votou o presidente, ministro Joaquim Barbosa.
O ministro Marco Aurélio requereu a retificação da ata da sessão anterior para
fazer constar que não declarava a inconstitucionalidade da expressão “inde‑
pendentemente de sua natureza”, contida no § 12 do art. 100 da CF. Redigirá o
acórdão o ministro Luiz Fux.
Presidência do ministro Joaquim Barbosa. Presentes à sessão os ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen
Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavascki. Vice-procuradora‑geral
da República, doutora Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira.
Brasília, 14 de março de 2013 — Luiz Tomimatsu, assessor-chefe do Plenário.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  314


MS 28.160

MANDADO DE SEGURANÇA 28.160 — DF
Relatora: A sra. ministra Rosa Weber
Impetrante: Agro-Indústria e Comércio de Alimentos Franbel Ltda.
Impetrado: Presidente da República

Mandado de segurança. Decreto presidencial expropriatório.


Reforma agrária. Transmissão da propriedade. Notificação
regular. Recurso administrativo. Ausência de efeito suspen‑
sivo. Grau de Utilização da Terra (GUT). Devido processo legal.
Lícita a edição do decreto presidencial expropriatório antes do julga‑
mento do recurso interposto na esfera administrativa, desprovido o
apelo de efeito suspensivo. Cumpre à administração pública, mane‑
jadas as peças de defesa – contestação ao laudo agronômico de fis‑
calização e recurso – pelo ex-proprietário, tão somente notificar o
adquirente do imóvel acerca da existência de processo administrativo
expropriatório em curso. Extrapolação do prazo previsto em ordem
de serviço do Incra, para fins de apresentação do LAF, que não se
traduz em vício a acarretar a nulidade do processo administrativo.
A via mandamental, por não comportar dilação probatória, desserve
à rediscussão da produtividade do imóvel rural objeto de desapropria‑
ção para fins de reforma agrária. Precedentes.
Mandado de segurança denegado.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a presidência do ministro Ricardo

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  315


MS 28.160

Lewandowski (vice-presidente), na conformidade da ata do julgamento e das


notas taquigráficas, por unanimidade e nos termos do voto da relatora, em dene‑
gar a segurança e revogar a liminar concedida. Votou o presidente em exercício.
Ausente, por motivo de licença médica, o ministro Joaquim Barbosa (presidente).
Brasília, 1º de agosto de 2013 — Rosa Weber, relatora.

RELATÓRIO
A sra. ministra Rosa Weber: Trata-se de mandado de segurança impetrado por
Agro-Indústria e Comércio de Alimentos Franbel Ltda., contra ato da Presidência
da República consubstanciado em Decreto expropriatório de 25-5-2009, sem
número, pelo qual declarado de interesse social, para fins de reforma agrária,
o imóvel rural denominado Fazenda Dulcinéia (área de 450 hectares e 90 ares),
localizado no Município de Chorozinho, Estado do Ceará.
A impetrante – empresa agroindustrial dedicada à produção e comercialização
de fécula e outros subprodutos da mandioca – sustenta, em suma, a ilegalidade
do citado decreto expropriatório presidencial, à alegação de que contaminado
pelas nulidades que eivam o processo administrativo embasador – de número
54130.000229/2008-53, do Incra –, assim sintetizadas: i) inexistência de notifi‑
cação da impetrante, real proprietária do imóvel, bem como ausência de legi‑
timidade de Pedro José Philomeno Gomes de Figueiredo para figurar no polo
passivo do processo administrativo; ii) edição do decreto expropriatório antes do
encerramento da via processual administrativa; iii) ausência de fundamentação
na decisão pela qual julgada a contestação ao Laudo Agronômico de Fiscaliza‑
ção (LAF); iv) suspeição ou impedimento do perito agrônomo, que elaborou o
laudo, para julgar a contestação; v) ausência de conhecimento prévio do pare‑
cer submetido à Divisão de Obtenção de Terras, em resposta à contestação ao
laudo; vi) extrapolação, em quatro dias, do prazo previsto na Ordem de Serviço
Incra/SR2-35/2008, da Superintendência Regional, para a apresentação do LAF,
a implicar a incompetência de seu firmatário, uma vez expirados os poderes
delegados; vii) incorreção do cálculo do Grau de Utilização das Terras (GUT); e
viii) atendimento, pelo imóvel rural, da função social da propriedade. Pede, em
liminar, a suspensão dos efeitos do decreto presidencial expropriatório e a con‑
cessão da segurança ao final para cancelar a ilegítima declaração de interesse
social para fins de reforma agrária da Fazenda Dulcinéia de sua propriedade.
A Presidência da República, por seu órgão de representação judicial, às fls.
291-338, prestou informações, invocando, ainda, as preliminares de carência da

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  316


MS 28.160

ação por falta de interesse de agir e a inidoneidade da via eleita, ausente com‑
provação de direito líquido e certo.
Às fls. 343-56, a ministra Ellen Gracie, então relatora da presente ação man‑
damental, indeferiu o pedido liminar, não verificada, “em princípio, a plausibi‑
lidade jurídica dos argumentos expostos pela impetrante”, e abriu vista do feito
ao procurador-geral da República.
Em 28-9-2009, a Franbel manejou agravo regimental (fls. 375-86) e, em 27-5-
2010 (fls. 389-90), pleiteou a reconsideração do indeferimento da liminar forte
no fato novo de que, em 25-5-2010, o Incra lograra êxito em obter, em ação de
desapropriação então ajuizada, o mandado de imissão na posse do imóvel.
Deferida a liminar tão só “para suspender a imissão do Incra na posse do imóvel”
(fls. 394-7), restou prejudicado o agravo regimental interposto pela impetrante.
Desafiou, contudo, tal decisão concessiva da liminar, agravo regimental desta
feita por parte da União (fls. 417-33).
Contraminuta às fls. 467-71.
Opina o Ministério Público Federal pela denegação da ordem (fls. 474-81).
Substituição da ministra relatora (fl. 482).
O Ministério Público do Estado do Ceará, em ofício subscrito pelo procurador‑
-geral da Justiça daquele Estado e pelo promotor de justiça coordenador do Núcleo
de Prevenção e Monitoramento dos Conflitos Fundiários, noticiando a situação de
vulnerabilidade em que cerca de vinte famílias se encontram no Acampamento
Dulcinéia, às margens da rodovia BR 116, solicita prioridade na tramitação do feito.
Impedido o ministro Dias Toffoli, porquanto atuou no processo na qualidade
de advogado-geral da União (fl. 289).
É o relatório.

VOTO
A sra. ministra Rosa Weber (relatora): Rejeito as preliminares de extinção do
processo sem resolução do mérito invocadas pela Advocacia-Geral da União, a
primeira por carência da ação por falta de interesse de agir, ao argumento de que
o decreto declaratório de interesse social constitui mera condição de procedibili‑
dade da ação de desapropriação, incapaz, enquanto tal, de gerar dano efetivo ao
direito de propriedade da impetrante; e a segunda, à alegação da inidoneidade
da via eleita, ausente comprovação de direito líquido e certo.
O interesse de agir da impetrante foi afirmado pela então ministra relatora,
na primeira decisão exarada, antes de apreciar o pedido de liminar, diante da
possibilidade – que veio a se concretizar – de ajuizamento pelo Incra da ação

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  317


MS 28.160

de desapropriação, com pedido de imissão na posse do imóvel, o que por si só


evidencia a necessidade/utilidade da medida. Merece, a meu juízo, endosso o
decidido em juízo de delibação no aspecto. Nessa linha, cito o MS 29.041 MC
(DJE 78, de 28-4-2011) e o MS 28.786 MC (DJE 116, de 25-6-2010).
No que pertine à inadequação da via eleita, conducente à extinção do feito
sem resolução do mérito, a preliminar também há de ser superada enquanto tal,
por comportar o tema de fundo exame por mais de um viés, embasado o ataque
ao decreto presidencial expropriatório em diferentes arguições de nulidade do
processo administrativo, e não apenas, v.g., na pretensa desconsideração, no
cálculo de utilização das terras, do efetivo pecuário, para o que não constitui em
princípio o mandado de segurança o meio processual adequado.
Superadas as preliminares, passo à análise das teses da inexistência de noti-
ficação da impetrante e da ilegitimidade de Pedro José Philomeno Gomes de
Figueiredo para figurar no polo passivo do Processo Administrativo Expropria‑
tório 54130.000229/2008-53.
Verifico hígida a notificação da vistoria direcionada, em 8-5-2008, a Pedro
José Philomeno Gomes de Figueiredo, e recebida em 15-5-2008, porquanto, à
época, como a própria impetrante admite, constava o nome dele como proprietá‑
rio do imóvel junto ao Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Chorozinho/
CE, aperfeiçoada a transferência da propriedade, segundo assevera a impetrante,
apenas em 26-11-2008.
A tese da impetrante, que admite, reitero, que à época da vistoria levada a
efeito pelo Incra constava do Registro de Imóveis como proprietário o senhor
Pedro José Philomeno Gomes de Figueiredo, é a de que a fazenda havia sido
incorporada ao patrimônio da impetrante, conforme aditivo ao contrato social
registrado na Junta Comercial, em 5 e 12/2007, mas que, em função de hipotecas
e outras pendências documentais, o pedido de lavratura da escritura pública de
incorporação ficou em tramitação no Cartório de Registro de Notas e Registros
Públicos de Chorozinho desde 21-12-2007.
Registro, a propósito, que a data apontada na exordial, 26-11-2008, se refere à
lavratura da escritura pública de incorporação, pela Franbel Ltda., da Fazenda
Dulcinéia (fls. 259-61), não à data em que registrado o título translativo da pro‑
priedade no Cartório de Registro de Imóveis, qual seja 1º-12-2008, conforme
certificado no verso da fl. 267. E, consabido, à luz do art. 1.245 do Código Civil (Lei
10.406/2002), “transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título
translativo no Registro de Imóveis” e, “enquanto não se registrar o título trans‑
lativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel” (cf. § 1º), razão
pela qual, na espécie, transferida a propriedade tão somente em 1º-12-2008.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  318


MS 28.160

Firmadas tais premissas, concluo pela legitimidade de Pedro José Philomeno


Gomes de Figueiredo, regularmente notificado da vistoria, para figurar no polo
passivo do processo administrativo, bem como para interposição, em 28-11-2008
(fl. 213), do recurso administrativo, enquanto real proprietário da Fazenda Dul‑
cinéia, ao feitio legal, até 1º-12-2008.
Ressalto que duas as defesas apresentadas no processo administrativo – a
contestação ou impugnação ao laudo agronômico de fiscalização e o recurso
administrativo propriamente dito, este manejado contra a decisão proferida
pelo Comitê de Decisão do Incra no Ceará. E ambas as peças de defesa – con‑
testação e recurso administrativo – foram veiculadas pelo ex-proprietário, em
data anterior à transferência do imóvel.
Impõe-se, portanto, a conclusão de que, observado o momento em que a
impetrante passou a ostentar, à luz do ordenamento jurídico, a qualidade de
proprietária da Fazenda Dulcinéia, restava à administração pública tão somente
notificá-la da existência do processo administrativo expropriatório em curso.
Acresço, no aspecto, que o fato de a transferência do imóvel ter ocorrido passados
seis meses da notificação da vistoria (prazo no qual modificações quanto ao domínio
devem ser desconsideradas, nos moldes do art. 2º da Lei 8.629/1993), argumento
trazido pela impetrante em defesa da licitude da operação de compra e venda, não
altera tal conclusão, porquanto foi justamente a regular transferência do imóvel que
ensejou a notificação, por parte da administração pública, da nova proprietária.
E a notificação da ora impetrante se concretizou por meio do Ofício 1.292/09,
de 10-8-2009, dirigido pela Superintendência Regional do Incra no Estado do
Ceará à Agro-Indústria e Comércio de Alimentos Franbel Ltda., verbis: “(...) tramita
nesta Instituição processo de desapropriação do imóvel em questão, em nome
do antigo proprietário, Sr. Pedro José Philomeno Gomes Figueiredo”, trazido no
agravo regimental da União.
Não há falar, noutro turno, em ilegalidade do decreto presidencial porque
editado antes do julgamento do recurso administrativo, em 25-5-2009, remansosa
a jurisprudência desta Suprema Corte no sentido de que a pendência de recurso
manejado na esfera administrativa, à míngua de efeito suspensivo, não obsta a
edição do decreto de desapropriação. Colho precedentes:
Ementa: Constitucional. Mandado de segurança. Desapropriação. Decreto presiden-
cial que declara imóvel rural de interesse social, para fins de reforma agrária. 1. (...) 3.
Existência de recurso em processo administrativo não impede a expedição do
decreto expropriatório. 4. Índice de produtividade do imóvel: questão que não se
discute na via do mandado de segurança. Precedentes. 5. Mandado de segurança
denegado. [MS 26.121, rel. min. Cármen Lúcia, DJE 60, de 4-4-2008.]

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  319


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Mandado de segurança. Desapropriação para fins de reforma agrária. Ofensa aos


princípios do devido processo legal e da ampla defesa. Inocorrência. 1. Recurso
administrativo. Art. 61 da Lei 9.784/1999. Inexistência de efeito suspensivo e de
impedimento à edição do decreto expropriatório. (...) 5. Segurança denegada.
[MS 24.449, rel. min. Ellen Gracie, DJE 74, de 25-4-2008.]

Em suma, operada a transferência da propriedade do imóvel rural apenas em


1º-12-2008, pelo registro imobiliário, quando já interposto recurso administrativo
pelo proprietário anterior, em 28-11-2008, de todo irrelevante datar o decreto
expropriatório de 25-5-2009, a presente impetração de 29-7-2009 e o ofício do
Incra, número 1.292/2009, à impetrante, de 10-8-2009, uma vez que a pendência
do recurso, como dito, não inibe a expedição do decreto expropriatório, segundo
a jurisprudência desta Corte, com o que se evidencia a observância do devido
processo administrativo.
Não prospera, por sua vez, a ventilada pecha da ausência de fundamenta-
ção da decisão proferida ao julgamento da contestação ao laudo agronômico
de fiscalização.
A motivação da decisão por adoção de fundamentos – in casu, por remissão
aos elementos coletados e à conclusão técnica registrados no LAF – não se traduz
em ausência de fundamentação no julgado. Consoante pacificada jurisprudência
desta Casa, tem-se por cumprida a exigência constitucional da fundamentação
das decisões na hipótese de o julgador lançar mão da motivação referenciada
(per relationem). Nesse sentido:
Valho-me, para tanto, da técnica da motivação per relationem, o que basta para
afastar eventual alegação de que este ato decisório apresentar-se-ia destituído de
fundamentação. Não se desconhece, na linha de diversos precedentes que esta
Suprema Corte estabeleceu a propósito da motivação por referência ou por remissão
(RTJ 173/805-810, 808/809, rel. min. Celso de Mello – RTJ 195/183-184, rel. min. Sepúl-
veda Pertence, v.g.), que se revela legítima, para efeito do que dispõe o art. 93, IX, da
Constituição da República, a motivação per relationem, desde que os fundamentos
existentes aliunde, a que se haja explicitamente reportado a decisão questionada,
atendam às exigências estabelecidas pela jurisprudência constitucional do Supremo
Tribunal Federal. [MS 27.350 MC/DF, rel. min. Celso de Mello, DJ de 4-6-2008.]

A documentação acostada igualmente comprova que a condução do feito


na esfera administrativa observou os atos e instâncias previstas na Norma de
Execução/Incra/SD 35, de 25 de março de 2004, a qual assegura o julgamento dos
recursos administrativos, no âmbito das Superintendências Regionais do Incra,
pela Divisão Técnica, que poderá ouvir o perito, pelo superintendente regional
e, ainda, pelo Comitê de Decisão Regional.

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MS 28.160

Assim, a teor da norma de execução, dirigido à Divisão de Obtenção de Terras


o parecer técnico, descabe falar em nulidade por ausência de conhecimento
prévio do referido documento.
De igual modo, não se sustenta a arguição de que suspeito ou impedido para
julgar a contestação, o engenheiro agrônomo que elaborou o LAF e apresentou
parecer, à evidência de que a contestação restou decidida pelo Comitê de Deci‑
são do Incra no Ceará, consoante registrado na ata da 9ª Reunião Ordinária (fl.
200), órgão administrativo colegiado do qual sequer faz parte o perito federal
agrário em questão.
Nada colhe, nesse contexto, a invocação do art. 18, II, da Lei 9.784/1999, que, à
semelhança do Código de Processo Civil, aponta impedido de atuar, em processo
administrativo, dentre outras hipóteses, o servidor ou autoridade que “tenha
participado ou venha a participar como perito”. Por óbvio que não se insere
no âmbito de incidência da norma a hipótese de o engenheiro agrônomo/
perito, que participou da vistoria do imóvel e elaborou o laudo agronômico de
fiscalização – peça que condensa as informações levantadas na vistoria –, vir
a opinar, em parecer, sobre os aspectos estritamente técnicos levantados em
eventual recurso – impugnação ou contestação – àquele laudo, caso dos autos,
como sói acontecer no processo judicial, em que pode o juiz, antes de decidir,
ouvir o perito sobre as impugnações oferecidas ao laudo por ele apresentado.
Corrobora tal linha de raciocínio o teor do inciso I do parágrafo único do
art. 5º da Norma de Execução 35 do Incra, ao dispor que, na alçada da Divisão
Técnica, quando o recurso for de ordem técnica, será “ouvido preferencialmente
o Presidente da Comissão de Vistoria”, vale dizer, em âmbito recursal poderá ser
ouvido o elaborador do laudo.
Procedeu, nesse compasso, a autoridade apontada como coatora, sopesadas
as particularidades dos procedimentos afeitos ao processo administrativo ten‑
dente à desapropriação de imóvel para fins de reforma agrária, no campo estrito
da legalidade (Lei 9.784/1999).
A extrapolação – no caso em quatro dias – do prazo previsto na Ordem de
Serviço Incra/SR2-35/2008, da Superintendência Regional, para a apresentação
do laudo agronômico de fiscalização, não representa vício apto a acarretar a
nulidade do processo administrativo, conforme já decidido por este Plenário
ao exame do MS 25.534, da relatoria do ministro Eros Grau, cujo teor da ementa
transcrevo: “a entrega extemporânea do laudo agronômico de fiscalização não
implica a nulidade do documento, ensejando apenas a instauração de procedi‑
mento disciplinar para averiguar eventuais faltas dos servidores responsáveis
pelo atraso” (DJ de 10-11-2006).

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MS 28.160

Ademais, bem lembrado aqui o brocardo pas de nullité sans grief, informador
da teoria das nulidades, ausente prejuízo.
Quanto ao cálculo do Grau de Utilização das Terras (GUT), a exigir ingresso na
seara fático-probatória acerca da alegada intermitente acomodação de rebanho
bovino na área de pastagem natural da Fazenda Dulcinéia, no período e com a
quantidade de cabeças de gado asseverados pela impetrante, resta desautori‑
zada a via estreita do mandado de segurança, na trilha dos precedentes deste
Supremo Tribunal, verbis:
Ementa: Constitucional. Agrário. Reforma agrária. Desapropriação. I – A questão rela‑
tiva à produtividade, ou não, do imóvel rural objeto da desapropriação apresenta-se
controvertida, a exigir dilação probatória, o que não se admite em sede de man‑
dado de segurança, dado que o direito líquido e certo tem como pressuposto fatos
incontroversos apoiados em prova prévia constituída. II – Mandado de segurança
indeferido. [MS 24.518, rel. min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, DJ de 30-4-2004.]

Acresço, no aspecto, os seguintes julgados do Plenário desta Casa, os quais


igualmente corroboram a inadequação da via mandamental: MS 22.022, rel.
min. Celso de Mello, DJ de 4-11-1994; MS 24.487, rel. min. Carlos Britto, DJE 223,
de 27-11-2009; MS 24.482, rel. min. Gilmar Mendes, DJ de 16-2-2007; MS 26.357
AgR/DF, rel. min. Cármen Lúcia, DJE 200, de 23-10-2009; e MS 25.142/DF, rel. min.
Joaquim Barbosa, DJE 177, de 19-9-2008.
Quanto ao ventilado atendimento da função social da propriedade, ausente
de projeto formal de crescimento e utilização da Fazenda Dulcinéia, consoante
admitido na peça de ingresso, não há como dar guarida à tese da impetrante,
desatendido o art. 7º da Lei 8.629/1993, preceito que exige, entre outros requisi‑
tos, a comprovação de que o imóvel é objeto de implantação de projeto técnico
aprovado pelo órgão federal competente.
Ante o exposto, prejudicado o exame do agravo regimental manejado pela
União, denego a ordem, revogando a liminar (art. 206 do RISTF). Comunique-
-se o teor desta decisão, com urgência, à autoridade apontada como coatora e
ao Juízo da 5ª Vara Federal da Seção Judiciária de Fortaleza, na qual proposta
ação judicial de expropriação.
É como voto.

VOTO
Ementa: 1. Cabe mandado de segurança para questionar decreto presi‑
dencial que declara imóvel rural de interesse social para fins de reforma
agrária. Preliminar de inadequação da via eleita rejeitada. 2. Em sede

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  322


MS 28.160

mandamental, não é possível dilação probatória para aferir supostos erros


de cálculo quanto ao índice de produtividade da terra. 3. Não estão presen‑
tes no caso os requisitos que o art. 7º da Lei 8.629/1993 prevê como óbices
à desapropriação. 4. Inexistência de vícios formais no processo administra‑
tivo. 5. Voto pela revogação da medida liminar e denegação da segurança.

O sr. ministro Roberto Barroso: Trata-se de mandado de segurança impetrado


contra Decreto Presidencial de 25-5-2009, que declarou de interesse social, para
fins de reforma agrária, o imóvel rural denominado “Fazenda Dulcinéia”, em
Chorozinho/CE.
A segurança deve ser denegada.
De início, rejeito a preliminar de inadequação da via eleita, uma vez que a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica em admitir a impugnação,
por mandado de segurança, de decreto presidencial que declara imóvel rural de
interesse social para fins de reforma agrária (e.g., MS 25.391, rel. min. Ayres Britto).
No mérito, a impetrante apresenta três fundamentos que impediriam a desa‑
propriação por interesse social: (i) erro de cálculo do Incra quanto aos índices
de aproveitamento da terra; (ii) implantação, na área, de um complexo fabril
da impetrante destinado ao processamento da mandioca produzida na pro‑
priedade, o que atrairia a incidência do art. 7º da Lei 8.629/1993; e (iii) vícios
formais no processo administrativo, decorrentes de inexistência de comunicação
à impetrante, incompetência do engenheiro que lavrou o laudo, impedimento
do mesmo engenheiro para se manifestar quanto à impugnação ao laudo, vícios
na motivação e ausência de apreciação de recurso administrativo. Entendo que
nenhuma dessas alegações merece subsistir.
A discussão acerca de eventual erro de cálculo do Incra quanto aos índices
de aproveitamento da terra demandaria dilação probatória, incompatível com
esta via processual. Sobre o tema, veja-se o MS 25.576 AgR, rel. min. Ricardo
Lewandowski:
Agravo regimental. Mandado de segurança. Desapropriação. Reforma agrária. Con-
trovérsia acerca da produtividade de imóvel rural. Necessidade de dilação probatória.
Impossibilidade de produzir provas em mandado de segurança. (...) I – O entendi-
mento pacífico desta Corte é no sentido da impossibilidade de se discutir em
sede de mandado de segurança questões controversas sobre a correta classifi-
cação da produtividade do imóvel suscetível de desapropriação, por demandar
dilação probatória. Precedentes. (...) [Destaques acrescentados.]

Também não pode ser acolhida a alegação de incidência do art. 7º da Lei


8.629/1993, o que obstaria a desapropriação. O dispositivo legal é expresso ao exigir

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que o projeto técnico obedeça a uma série de requisitos, tais como a elaboração
por profissional legalmente habilitado e identificado, o cumprimento do crono‑
grama físico-financeiro e a aprovação pelo órgão federal competente, no mínimo
seis meses antes da comunicação da vistoria. Ora, a própria impetrante reconhece
que nenhum destes requisitos foi observado, e que o complexo industrial sequer se
situa na terra que se pretende desapropriar, mas em área vizinha. Assim, a pretexto
dos investimentos realizados, não é cabível invocar o suposto “princípio da verdade
material” para defender a aplicação de dispositivo incabível à espécie. A propósito,
assim já decidiu este Tribunal (MS 25.391, rel. min. Ayres Britto):
Mandado de segurança. Desapropriação. Reforma agrária. (...) A inexistência de
prova do cumprimento dos requisitos do art. 7º da Lei 8.629/1993 afasta a proteção
conferida ao imóvel rural objeto de implantação de projeto técnico. (...) 5. A prote-
ção conferida pelo art. 7º da Lei 8.629/1993 ao imóvel objeto de implantação
de projeto técnico não se aplica quando desatendidos os requisitos legais. Não
comprovado, pela impetrante, o cumprimento de tais requisitos. (...) 8. Segurança
denegada. (...) [Destaques acrescentados.]

Além disso, não se extrai dos autos que tenham ocorrido nulidades formais no
processo administrativo. Segundo as informações da autoridade impetrada, a noti‑
ficação sobre a realização da vistoria ocorreu em 15-5-2008, na pessoa do senhor
Pedro José Philomeno Gomes Figueiredo, que, à época, figurava como proprietá‑
rio. O imóvel somente foi transferido à impetrante em 1º-12-2008, data do registro
imobiliário, único meio apto a tal fim (CC, arts. 108, 1.227 e 1.245). Desse modo, é
válida a notificação feita ao então proprietário, sendo indiferentes, a esse respeito,
alterações supervenientes na titularidade do bem, ainda que válidas e eficazes
pela observância do prazo de seis meses previsto no art. 2º, § 4º, da Lei 8.629/1993.
Note-se que todas as comunicações posteriores à transferência de titularidade
do imóvel foram dirigidas não mais ao ex-proprietário, mas, sim, à impetrante, que
inclusive ofereceu impugnações tempestivas. Assim, sequer houve prejuízo apto a
justificar a declaração de nulidade. Nesse sentido (MS 24.911, rel. min. Ayres Britto):
Constitucional. Administrativo. Desapropriação: reforma agrária. Motivo de força
maior: Lei 8.629/1993, art. 6º, § 7º. Utilização de índices para o cálculo do GUT e do
GEE. Direito de defesa: devido processo legal. (...) III – Inexistência de prejuízo para
a defesa, que impugnou, no procedimento administrativo, o laudo e interpôs
os recursos cabíveis. Não tendo havido prejuízo para a defesa, não há falar em
nulidade: pas de nullité sans grief. IV – Produtividade do imóvel: a ausência de
dilação probatória, no processo do mandado de segurança, afasta a existência
de direito líquido e certo, que pressupõe fatos incontroversos. V – Mandado de
segurança indeferido. [Destaques acrescentados.]

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Ainda quanto aos vícios formais, não seria consistente concluir pela incom‑
petência do engenheiro que elaborou o laudo agronômico apenas por haver
entregue o trabalho quatro dias depois do prazo previsto. Ao contrário do que
sustenta a impetrante, tal prazo não é peremptório e, portanto, não caracteriza
limite temporal a suposta delegação de competência. Trata-se tão somente de
um marco para conclusão dos trabalhos em lapso razoável.
Igualmente não procede a alegação de que o engenheiro responsável pela
elaboração do laudo teria decidido a impugnação. Como informou a autoridade
impetrada, o engenheiro apenas ofereceu parecer sobre a irresignação da impe‑
trante, em razão de sua natureza técnica, na forma prevista no art. 5º, parágrafo
único, I, da Norma de Execução/Incra/SD 35, de 25-3-2004. Não se aplica ao caso,
portanto, o art. 44 da Lei 9.784/1999, tendo em vista que o referido parecer não
constitui ato de instrução.
Também não vislumbro impedimento do engenheiro que elaborou o laudo
para ofertar parecer sobre os aspectos técnicos da impugnação administrativa.
Ao contrário, trata-se da pessoa mais indicada para tal fim, em razão de seu
conhecimento específico dos fatos em discussão. Não seria necessário que o
Incra nomeasse um outro engenheiro para opinar no caso, em razão da presun‑
ção de legitimidade dos atos administrativos, especialmente perante a própria
administração. Diante desse contexto, não está presente interesse direto ou
indireto do servidor capaz de ensejar seu impedimento, nem de comprometer o
princípio da impessoalidade, verdadeira razão de ser do art. 18 da Lei 9.784/1999.
A motivação das decisões administrativas não padece de vícios formais, pois
o art. 50, § 1º, da Lei 9.784/1999 permite a fundamentação por remissão a parecer.
Por fim, não prospera a alegação de ausência de intimação do julgamento do
recurso administrativo interposto em 28-11-2008. Isso porque, segundo as infor‑
mações constantes dos autos, a impetrante foi comunicada da decisão por meio
do Ofício/Incra/SR(02)G 1.292, de 10-9-2009. De todo modo, ainda que assim não
fosse, a alegada ausência de apreciação do recurso administrativo não impediria
a expedição do decreto presidencial impugnado, em razão da ausência de efeito
suspensivo da irresignação, na forma do art. 61 da Lei 9.784/1999, c/c o art. 5º,
caput, da Norma de Execução/Incra 35/04.
Em caso parecido, esta Corte já afastou diversas alegações de nulidade seme‑
lhantes às formuladas nos presentes autos (MS 25.534, rel. min. Eros Grau):
Constitucional. Agrário. Desapropriação. Reforma agrária. Mandado de segurança.
Relatório agronômico de fiscalização. Atraso. Ausência de nulidade. Recurso sem
efeito suspensivo. Possibilidade de edição do decreto expropriatório. Oportunidade e
alcance. Art. 61 da Lei 9.784/1999. Art. 184, § 2º, da CB/1988. Renovação de pastagens.

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Impedimento à classificação do imóvel como propriedade improdutiva. Art. 6º, § 3º, V,


e § 7º, da Lei 8.629/1993. Necessidade de projeto tecnicamente conduzido. Art. 7º da Lei
8.629/1993. Aferição do efetivo pecuário por meio de fichas de vacinação. Possibilidade.
Produtividade do imóvel. Dilação probatória. Apreciação em mandado de segurança.
Impossibilidade. 1. A entrega extemporânea do laudo agronômico de fiscalização
não implica a nulidade do documento, ensejando apenas a instauração de pro-
cedimento disciplinar para averiguar eventuais faltas dos servidores responsá-
veis pelo atraso. 2. A ausência de efeito suspensivo no recurso administrativo
interposto contra o laudo agronômico de fiscalização não impede a edição do
decreto do presidente da República, que apenas declara o imóvel de interesse
social para fins de reforma agrária, mera condição para a propositura da ação
de desapropriação (art. 184, § 2º, da CB/1988). A perda do direito de propriedade
ocorrerá somente ao cabo da ação de desapropriação. Precedente (MS 24.163, rel.
min. Marco Aurélio, DJ de 19-9-2003; e MS 24.484, rel. min. Eros Grau, DJ de 2-6-2006).
3. O processo de renovação de pastagens que impede a classificação do imóvel rural
como propriedade improdutiva – art. 6º, §§ 3º e 7º, da Lei 8.629/1993 – reclama
a existência de projeto técnico, que deve atender aos requisitos previstos no
art. 7º daquele texto normativo. (...) 5. A impossibilidade de dilação probatória
em mandado de segurança torna insuscetível de apreciação a questão relativa
à produtividade do imóvel rural. Precedente (MS 24.518, rel. min. Carlos Velloso,
DJ de 30-4-2004; e MS 25.351, rel. min. Eros Grau, DJ de 16-9-2005). 6. Segurança
denegada, prejudicado o agravo regimental interposto. [Destaques acrescentados.]

Diante do exposto, tendo em vista as informações que vieram aos autos,


manifesto-me no sentido de revogar a medida liminar e denegar a segurança,
ficando prejudicado o agravo regimental interposto pela União.
É como voto.

VOTO
(Aditamento)
O sr. ministro Roberto Barroso: Senhor Presidente, em primeiro lugar, eu cum‑
primento os advogados que estiveram na tribuna, doutor Vito Simon de Morais
e doutora Grace Maria Mendonça, cuja sustentação ajudou a organizar as ideias
e os argumentos que conduzem este julgamento.
Eu procurei sistematizar as alegações do impetrante em três grandes linhas: na
primeira delas, há uma alegação de que há um erro de cálculo do Incra e, portanto,
um erro de conclusão quanto à improdutividade do imóvel; esse é o primeiro argu‑
mento. O segundo argumento é o de que existiria um complexo industrial implan‑
tado nessa propriedade, o que impediria a desapropriação para fins de reforma
agrária. E a terceira linha de argumentos é um conjunto amplo de vícios processuais.

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MS 28.160

O primeiro argumento quanto ao erro do Incra, como é pacífico na jurispru‑


dência desta Casa, trata-se de uma matéria que exige dilação probatória e, por‑
tanto, insuscetível de apreciação. Eu mesmo cito um acórdão do nosso presidente
em exercício, o ministro Ricardo Lewandowski.
Quanto à implantação do complexo fabril, a lei estabelece um conjunto de
requisitos para que isso possa ser um impedimento à desapropriação. Esses
requisitos não foram preenchidos, como reconhecido pelo impetrante, e, por‑
tanto, também descarto este argumento.
E, por fim, há um conjunto de vícios processuais, todos eles já exaustiva‑
mente enfrentados e respondidos pelo voto da ministra Rosa Weber, que ouvi
com prazer, proveito e concordância. De modo que não há necessidade de eu
percorrer todos esses elementos. Eu trouxe um voto escrito, mais ou menos da
extensão do da ministra Rosa Weber, mas não há sentido em lê-lo para chegar
à mesma conclusão.
Faço, antes de concluir, duas observações: uma, e me disponho a fazer assim,
se eu tivesse sabido as conclusões do voto da ministra Rosa Weber, com as quais
eu estou de acordo, teria me poupado algumas horas de trabalho, não que eu
quisesse utilizá-las no meu lazer, mas poderia dedicá-las a outros muitos pro‑
cessos que estão na fila. De modo que eu mesmo me disponho, se não houver
nenhuma objeção, na medida do possível, eu mesmo circular as conclusões dos
meus votos e, na medida do possível, tentar evitar um retrabalho, o que, nas
circunstâncias, eu acho que faria bem a todos.
Em segundo lugar, embora eu não tenha acolhido, tal como a ministra Rosa
Weber, a preliminar de inadequação da via eleita porque, pela Constituição, cabe
de fato mandado de segurança contra ato do presidente da República – e este
é um decreto do presidente da República –, só de ouvir o voto da ministra Rosa
Weber, me convenci à exaustão de que esse processo não está sendo discutido
no lugar certo. Portanto, um mandado de segurança em que se discutem aspec‑
tos minuciosos de prova de tramitação administrativa, de modo que, talvez, em
algum lugar, num futuro próximo, como já mencionava o eminente ministro Luiz
Fux, talvez conviesse repensar a jurisprudência de que, quando não se trata de
uma questão estritamente de Direito, em abstrato, mais adequado seria enca‑
minhar esse tipo de demanda para as instâncias ordinárias.
De modo que eu acompanho a ministra Rosa Weber e, portanto, também
revogo a liminar, denego a segurança e considero prejudicado o agravo regimen‑
tal interposto pela União.
É como voto.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  327


MS 28.160

PROPOSTA
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (presidente): Eu queria também me asso‑
ciar às preocupações manifestadas pelo eminente ministro Roberto Barroso.
Estava aqui também, enquanto Sua Excelência a ministra Rosa Weber estava
desfiando o seu brilhante e profundo voto, imaginando se não seria o caso, pelo
menos num primeiro passo, de nós remetermos essa matéria às Turmas, como
fizemos com as extradições, e com muito êxito, porque as extradições, hoje, fluem
rapidamente. De fato, pela exposição feita pela ministra Rosa Weber e, agora,
secundada pelo ministro Barroso, não há nenhuma matéria constitucional a ser
examinada pelo Plenário da Corte.
Eu creio que com uma pequena modificação regimental, num primeiro passo,
poderíamos remeter isso às Turmas e depois, quem sabe, numa reflexão mais
aprofundada, acolhermos integralmente a proposta do ministro Barroso.
O sr. ministro Luiz Fux: Eu comentava com o ministro Teori Zavascki e tam­
bém com o ministro Luís Roberto Barroso que esse era um ato típico da Presi‑
dência da República que encerra a necessidade de se impetrar um mandado de
segurança. Isso é algo que se alegam vícios de procedimento, error in procedendo,
que são apreciáveis na instância a quo através de uma ação de cognição plenária.
Há até aqui um ensaio dessa posição quando o ministro Marco Aurélio, numa
decisão no MS 24.163, assentou a natureza meramente declaratória desse decreto
que não ensejaria nenhum periculum in mora ou fumus boni iuris que fosse capaz
de proporcionar essa ação mandamental. Mas, de toda sorte, realmente, pelo que
se discutiu aqui, foram vícios procedimentais que são inimputáveis ao presidente
da República. Então, talvez esse primeiro passo e, depois, então, a eliminação
total dessa competência.

EXTRATO DA ATA
MS 28.160/DF — Relatora: Ministra Rosa Weber. Impetrante: Agro-Indústria e
Comércio de Alimentos Franbel Ltda. (Advogados: Vito Simon de Morais e outros
e Cid Marconi Gurgel de Souza). Impetrado: Presidente da República (Advogado:
Advogado-geral da União).
Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto da relatora, dene‑
gou a segurança e revogou a liminar concedida. Votou o presidente em exercí‑
cio. Impedido o ministro Dias Toffoli. Ausente, por motivo de licença médica,
o ministro Joaquim Barbosa (presidente). Falaram, pela impetrante, o doutor
Vito Simon de Morais e, pela Advocacia-Geral da União, a doutora Grace Maria

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  328


MS 28.160

Fernandes Mendonça, secretária-geral de Contencioso. Presidiu o julgamento


o ministro Ricardo Lewandowski (vice-presidente).
Presidência do ministro Ricardo Lewandowski (vice-presidente). Presentes
à sessão os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cármen
Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Teori Zavascki e Roberto Barroso. Vice‑
-procuradora-geral da República, doutora Sandra Verônica Cureau.
Brasília, 1º de agosto de 2013 — Luiz Tomimatsu, assessor-chefe do Plenário.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  329


MS 32.033

MANDADO DE SEGURANÇA 32.033 — DF
Relator: O sr. ministro Gilmar Mendes
Relator para o acórdão: O sr. ministro Teori Zavascki
Impetrante: Rodrigo Sobral Rollemberg
Impetrados: Presidente da Câmara dos Deputados
Presidente do Senado Federal
Interessados: Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado – PSTU
Rede Sustentabilidade
Partido Político Solidariedade
Pedro Taques
Carlos Henrique Focesi Sampaio
Partido Popular Socialista – PPS

Constitucional. Mandado de segurança. Controle preventivo de


constitucionalidade material de projeto de lei. Inviabilidade.
1. Não se admite, no sistema brasileiro, o controle jurisdicional de cons‑
titucionalidade material de projetos de lei (controle preventivo de normas
em curso de formação). O que a jurisprudência do STF tem admitido,
como exceção, é “a legitimidade do parlamentar – e somente do parla‑
mentar – para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir
atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucio‑
nal incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o pro‑
cesso legislativo” (MS 24.667, Pleno, min. Carlos Velloso, DJ de 23-4-2004).
Nessas excepcionais situações, em que o vício de inconstitucionalidade
está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da
atuação legislativa, a impetração de segurança é admissível, segundo
a jurisprudência do STF, porque visa a corrigir vício já efetivamente

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  330


MS 32.033

concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes


mesmo e independentemente de sua final aprovação ou não.
2. Sendo inadmissível o controle preventivo da constitucionali‑
dade material das normas em curso de formação, não cabe atribuir a
parlamentar, a quem a Constituição nega habilitação para provocar
o controle abstrato repressivo, a prerrogativa, sob todos os aspectos
mais abrangente e mais eficiente, de provocar esse mesmo controle
antecipadamente, por via de mandado de segurança.
3. A prematura intervenção do Judiciário em domínio jurídico e polí‑
tico de formação dos atos normativos em curso no parlamento, além
de universalizar um sistema de controle preventivo não admitido pela
Constituição, subtrairia dos outros Poderes da República, sem justifi‑
cação plausível, a prerrogativa constitucional que detém de debater
e aperfeiçoar os projetos, inclusive para sanar seus eventuais vícios
de inconstitucionalidade. Quanto mais evidente e grotesca possa ser
a inconstitucionalidade material de projetos de leis, menos ainda se
deverá duvidar do exercício responsável do papel do Legislativo, de
negar-lhe aprovação, e do Executivo, de apor-lhe veto, se for o caso.
Partir da suposição contrária significaria menosprezar a seriedade e o
senso de responsabilidade desses dois Poderes do Estado. E se, even‑
tualmente, um projeto assim se transformar em lei, sempre haverá a
possibilidade de provocar o controle repressivo pelo Judiciário, para
negar-lhe validade, retirando-a do ordenamento jurídico.
4. Mandado de segurança indeferido.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a presidência do ministro Joaquim
Barbosa, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, preli‑
minarmente, em negar provimento ao agravo regimental interposto pela União,
que impugnava a admissão dos amici curiae, vencidos os ministros Teori Zavas‑
cki, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Joaquim Barbosa (presidente). Por
maioria, o Tribunal conheceu do mandado de segurança, vencidos os ministros
Marco Aurélio e Cármen Lúcia, e, no mérito, indeferiu-o, cassando a liminar
concedida, vencidos os ministros Gilmar Mendes (relator), Dias Toffoli e Celso
de Mello, que deferiam em parte o mandado de segurança. Votou o presidente.
Brasília, 20 de junho de 2013 — Teori Zavascki, relator para o acórdão.

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MS 32.033

RELATÓRIO
O sr. ministro Gilmar Mendes: Trata-se de mandado de segurança preventivo,
com pedido de medida liminar, impetrado pelo Excelentíssimo Senhor Senador
Rodrigo Sobral Rollemberg, em que se alega violação constitucional em razão
da tramitação do PL 4.470/2012, o qual estabeleceria “que a migração partidária
que ocorrer durante a legislatura não importará na transferência dos recursos do
fundo partidário e do horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão”.
Aponta-se como autoridade coatora tanto (1) a Câmara dos Deputados – por
já ter procedido à votação, à aprovação e ao envio do Projeto de Lei 4.470/2012,
supostamente viciado, ao Plenário do Senado Federal, para posterior delibera‑
ção – quanto (2) o Excelentíssimo Senhor Presidente do Senado Federal, tendo em
vista que poderá vir a incluir, a qualquer momento, o referido projeto de lei
em pauta de votação.
O impetrante alega que, logo após o julgamento da ADI 4.430 (rel. min. Dias
Toffoli, Pleno, ata de julgamento publicada em 9-8-2012), que dispôs expressa‑
mente sobre o tema, houve a apresentação do mencionado projeto de lei (de
autoria do deputado Edinho Araújo – PMDB/SP), com disposições que colidi‑
riam com os termos da mencionada decisão desta Corte acerca da adequada
interpretação de dispositivos constitucionais e legais.
Afirma, ainda, que, após ficar sem tramitação desde meados de 2012, o projeto
de lei em questão passou a tramitar no ano de 2013, com aprovação rápida de
adoção de regime de urgência na Câmara dos Deputados, com o nítido objetivo
de prejudicar a formação de novas agremiações partidárias de oposição (em fase
avançada de criação, a saber: partido “Rede” e partido “Solidariedade”), bem como
a fusão de agremiações partidárias de oposição (PPS e PMN): “fusão ao final apro‑
vada pelas agremiações em congresso ocorrido no último dia 17-4, quarta-feira”.
Assevera que se trata de uma manobra arbitrária, casuística e inconstitucio‑
nal da maioria parlamentar para obstaculizar a criação de novas agremiações
partidárias antes das eleições gerais de 2014, por meio de utilização inadequada
do processo legislativo como forma de sufocamento da legítima mobilização das
minorias parlamentares que intentariam formar novos partidos políticos (já em
estado avançado e com notoriedade nacional).
Alega que, ao se permitir a migração de parlamentares para novos partidos cria‑
dos, sem que com isso ocorra a transferência proporcional dos recursos do fundo
partidário e do horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão, haveria, de
fato, uma verdadeira barreira ou desestímulo à criação de novas agremiações polí‑
ticas, em evidente frustração da norma constitucional (art. 17, caput e § 3º, CF/1988).

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  332


MS 32.033

Assevera, ainda, que a proposição do referido projeto de lei é diametralmente


oposta às diretrizes definidas na decisão tomada por esta Corte no recente jul‑
gamento da ADI 4.430, o que pode ser constatado por simples cotejo analítico.
Em síntese, afirma que o seu direito líquido e certo consiste na demonstração
do abuso de poder legislativo, o que se verificaria a partir dos seguintes aspectos:
(1) tramitação de projeto de lei casuisticamente forjado para prejudicar destina‑
tários certos e definidos na presente legislatura; (2) ofensa a cláusula pétrea, em
virtude do esvaziamento do direito fundamental à livre criação de novos partidos
e do pluralismo político, nos termos definidos pelo STF na decisão proferida na
ADI 4.430; (3) esmagamento e sufocamento de novos movimentos políticos; (4)
quebra do princípio da igualdade entre partidos, ainda que permitida certa gra‑
dação de tratamento diferenciado; (5) discriminação indevida pela criação de
parlamentares de primeira e de segunda categorias; (6) excepcionalidade do caso.
Dessa forma, o impetrante afirma ser essencial a impetração do presente
writ para defender seu direito líquido e certo de “não se submeter à votação de
proposta legislativa que, além de claramente ofensiva à Constituição da Repú‑
blica, foi casuística, abusiva e ilicitamente forjada com o espúrio propósito de
atingir, especificamente, pela via da lei, determinados movimentos políticos,
que se pretende esvaziar”.
No mérito, pede a concessão, “em definitivo, da ordem mandamental, confir‑
mando-se a liminar anteriormente deferida, para que referido projeto de lei seja
definitivamente arquivado, considerando-se que sua mera tramitação, casuística
e abusiva, além de se qualificar como causa de sensível perturbação institucional,
ofende de morte os postulados básicos, centrais e fundantes da ordem constitu‑
cional, tais como o pluripartidarismo, a igualdade entre agremiações partidárias,
o direito à livre criação de partidos, elementos sem os quais resta substancial‑
mente comprometida a própria sobrevivência de nosso sistema democrático”.
Em 17-4-2013, o deputado federal Paulo Pereira da Silva (Paulinho da Força –
PDT/SP) impetrou o MS 32.018 contra o mencionado projeto de lei, enquanto
tramitava na Câmara dos Deputados. A mim distribuído o mencionado mandado
de segurança, tomei a precaução de solicitar informações à Mesa Diretora da
Câmara de Deputados antes de decidir o pedido de liminar.
No entanto, antes de prestadas as informações – efetivamente só protocoladas
em 30-4-2013 – o referido projeto de lei foi aprovado na Câmara dos Deputados
em 23-4-2013 e, na mesma data, remetido ao Senado Federal. Em 24-4-2013, a
Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou também
parecer pela admissibilidade da PEC 33/2011, que altera sensivelmente o funcio‑
namento do Supremo Tribunal Federal.

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MS 32.033

Daí a impetração do presente mandado de segurança, a mim distribuído em


24-4-2013. Na mesma data, por entender presentes os requisitos legais, deferi o
pedido liminar, nos seguintes termos:
(...) Ante o exposto, considerando (i) a excepcionalidade do presente caso, con‑
firmada pela extrema velocidade de tramitação do mencionado projeto de lei –
em detrimento da adequada reflexão e ponderação que devem nortear tamanha
modificação na organização política nacional; (ii) a aparente tentativa casuística
de alterar as regras para criação de partidos na corrente legislatura, em prejuízo de
minorias políticas e, por conseguinte, da própria democracia; e (iii) a contradição
entre a proposição em questão e o teor da Constituição Federal de 1988 e da decisão
proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 4.430, vislumbro possível violação
do direito público subjetivo do parlamentar de não se submeter a processo legisla‑
tivo inconstitucional e defiro o pedido de liminar para suspender a tramitação
do PLC 14/2013, até o julgamento de mérito do presente mandado de segurança.

Em 25-4-2013, a Mesa do Senado interpôs agravo (petição 19.254/2013) contra a


decisão liminar, em que aponta, inicialmente, a inadequação da via eleita, pois “o
mandado de segurança não é sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade
e não se presta ao controle concentrado de constitucionalidade”.
Alega a ilegitimidade da intervenção do STF no caso em questão, que consubs‑
tanciaria decisão de natureza política, cuja competência constitucional seria do
Congresso Nacional, devendo o Judiciário se limitar a um dever de autoconten‑
ção, mesmo em sede de jurisdição constitucional.
Afirma a impossibilidade de ingerência nas competências próprias do Poder
Legislativo, pois “a Constituição da República assegurou ao Supremo Tribunal
Federal tão somente o controle de constitucionalidade repressivo dentro dos
estritos parâmetros delineados na legislação processual de referência”.
Nesse sentido, assevera que, embora reconheça que “a jurisprudência constru‑
tiva da corte admitiu, em casos excepcionais, a hipótese de controle repressivo,
desde que haja inconstitucionalidade escabrosa da matéria sob deliberação,
que configure inequívoco desvirtuamento do due process of law (...)”, entende que,
“no caso dos autos, não se afigura hipótese de inconstitucionalidade flagrante,
nem há risco de aviltamento de cláusula pétrea (...)”.
Argumenta inexistir inconstitucionalidade do mérito do Projeto de Lei 14/2013,
que tramita no Senado Federal, inexistindo violação ao art. 17, § 3º, da Constitui‑
ção. Defende que não se deve obstar a deliberação sobre a proposição, até porque
“também poderia ocorrer a apresentação de argumentos relevantes para revisão
do precedente firmado na ADI 4.430”.
Afirma ainda que, se o PLC 14/2013 fosse convertido em lei, não teria “efeitos

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  334


MS 32.033

imediatos e poderia, em momento oportuno, ser apreciado por esta Egrégia


Corte e aí então ter eventualmente sua eficácia suspensa”.
Por fim, defende ser incabível a extensão, ao Poder Legislativo, de efeitos vin‑
culantes do controle de constitucionalidade concentrado, podendo o legislador,
em tese, editar nova lei com conteúdo material idêntico ao de texto normativo
declarado inconstitucional.
Em 30-4-2013, o presidente da Câmara dos Deputados prestou informações
(petição 20.030/2013), alegando a regularidade e constitucionalidade da trami‑
tação do Projeto de Lei 4.470/2012.
Informou que a proposição se deu em 19-9-2012, houve a adoção do requeri‑
mento de urgência, em 16-4-2013, e que o projeto de lei em questão foi aprovado
definitivamente em sessão deliberativa extraordinária da Câmara dos Deputados
realizada em 23-4-2013, tendo sido, consequentemente, enviado para a aprecia‑
ção do Senado Federal.
Afirmou, ainda, ser incabível o pedido de sustação de tramitação de projeto
de lei com base no mérito da proposição, o que só poderia ocorrer na hipótese
do art. 60, § 4º, da Constituição.
O presidente do Senado também prestou informações (petição 20.579/2013)
em 3-5-2013, em que reitera os argumentos trazidos no bojo do agravo interposto
pela Mesa do Senado, requerendo o não conhecimento do writ e, caso assim não
se entenda, pela denegação da segurança.
Em 6-5-2013, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) peti‑
cionou nos autos (petições 20.920/2013 e 20.922/2013), requerendo sua admissão
no feito na condição de assistente ou, alternativamente, na qualidade de amicus
curiae, bem como postulando a concessão da segurança, nos termos requeridos
pelo impetrante.
Da mesma forma, a Rede Sustentabilidade (petição 24.460/2013) e o Partido
Solidariedade (petição 24.421/2013) – partidos políticos em fase de formação e
que podem vir a ser afetados pelo ato ora impugnado – pleitearam seu ingresso
no feito, na condição de amicus curiae, trazendo argumentos e informações
diversas e requerendo a concessão da segurança.
O senador da República Pedro Taques, na qualidade de parlamentar e membro
da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, bem como o Partido Popular
Socialista (petição 25.983/2013) também pleitearam ingressar no feito, na quali‑
dade de amicus curiae, apresentando informações e argumentos e pleiteando a
concessão da segurança. Da mesma forma, o deputado federal Carlos Henrique
Focesi Sampaio, na qualidade de líder da bancada federal do Partido da Social

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Democracia (PSDB) na Câmara dos Deputados, requereu seu ingresso na con‑


dição de amicus curiae, pugnando pelo conhecimento e provimento do writ.
Dada a relevância, a excepcionalidade e a repercussão da questão aqui de­­
batida e por entender inexistir prejuízo à tramitação regular do writ, deferi o
ingresso dos referidos peticionantes neste feito, na condição de amici curiae,
à semelhança do que esta Corte tem feito nos casos de recurso extraordinário
(RE 415.454/SC, rel. min. Gilmar Mendes, Pleno, DJ de 26-10-2007) e em outros
mandados de segurança (RMS 25.841, rel. min. Gilmar Mendes; rel. p/ o ac. min.
Marco Aurélio, Pleno, DJE de 20-5-2013).
Consignei, em despacho fundamentado, as razões dessa admissão, ressal‑
tando tratar-se de writ que envolve a defesa de direitos vinculados a cláusulas
pétreas, cuja controvérsia transcende os limites subjetivos do processo, pois
atinge vários congressistas e influencia diretamente o sistema político como um
todo e as mobilizações políticas dos candidatos com vistas ao próximo pleito
eleitoral de 2014.
Além disso, destaquei inexistir óbice legal para tanto, apontando que a me­­
dida condiz com o processo constitucional, dado que a interferência de uma
pluralidade de sujeitos, argumentos e visões é essencial e constitui um excelente
instrumento de informação para a Corte Suprema, com subsídios técnicos, impli‑
cações político-jurídicas e elementos os mais variados, conferindo ao processo
um colorido diferenciado, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto, que, a
meu ver, não pode ficar restrito ao controle concentrado.
A Procuradoria-Geral da República, em 13-5-2013, manifestou-se pelo conhe‑
cimento e provimento do writ, com prejuízo do agravo regimental, em parecer
(petição 22.277/2013) que tem a seguinte ementa:
Mandado de segurança impetrado por senador da República objetivando sustar o
trânsito de projeto de lei cujo conteúdo afronta princípios constitucionais configu-
radores de cláusulas pétreas. Hipótese em que até a uma emenda constitucional
seria vedado dispor como pretende o projeto de lei, disso resultando a possibilidade
de legítima atuação do Supremo Tribunal Federal. Parecer pelo conhecimento da
impetração e concessão da segurança.

Preliminarmente, o procurador-geral da República destaca que, no presente


caso, a questão do cabimento do mandado de segurança deve ser analisada em
conjunto com o próprio mérito do writ.
Ademais, afirma que a proposição legislativa em tela acarreta desdobramentos
cruciais para a vida política e constitucional e que “é inegável, além disso, que o
só curso do projeto, com as suas peculiaridades reportadas nos autos, por si só, já

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motiva insegurança no meio político parlamentar impossível de ser eufemizada.


(...) Soma-se a isso a circunstância, que no caso ganha relevo próprio, de que se
avizinham as próximas eleições e se aproxima o término do prazo para filiação
partidária, necessária para candidaturas a cargos políticos”.
Assevera, ainda, que o propósito do projeto de lei afronta o que decidido na
ADI 4.430, a qual tomou como fundamentos diversos princípios constitucionais
nucleares da vida política, bem como o reconhecimento da relevância central dos
partidos políticos para a concretização do ideal constitucional do pluralismo.
Nesse sentido, aponta a semelhança deste caso com o que decidido na ADI 2.797
(rel. min. Sepúlveda Pertence, DJ de 19-12-2006), pois “ambos os casos – o do
precedente e o deste mandado de segurança – têm em comum a oposição dia‑
metral de manifestação legislativa ordinária com inteligência estabelecida pelo
Supremo Tribunal Federal, à vista da Constituição, de um dado instituto jurídico.”
Além disso, aponta ser cabível o controle preventivo de constitucionalidade
em casos como este, ainda que em trâmite projeto de lei, conforme precedentes
do STF (MS 24.667 AgR, rel. min. Carlos Velloso, DJ de 23-4-2004, entre outros).
Nesse sentido, argumenta que, se, sobre o tema em exame, “até mesmo uma pro‑
posta de emenda à Constituição tem a sua deliberação vetada, permitir que o
mesmo assunto possa ser livremente deliberado pelo Congresso Nacional, desde
que por meio de projeto de lei, corresponderia a ladear especiosamente o que o
constituinte claramente repeliu”.
Por fim, argumenta que, se o legislador, em casos como este, não pode o mais
(promover alterações via emenda constitucional), certamente não faria sentido
poder o menos (via projeto de lei), sob pena de afrontar a Constituição em suas
cláusulas pétreas, em expediente que configuraria “a figura de fraude à Consti‑
tuição” – rechaçada em diversos precedentes do STF.
Por fim destaco que, em 15-5-2013, a União também interpôs agravo contra a
decisão liminar (petição 22.950/2013). Em síntese, alega: a inadequação da via
eleita (por não ser o writ sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade ou
de reclamação), a ausência de direito líquido e certo (por inexistir inconstitu‑
cionalidade no conteúdo do projeto de lei impugnado); e a impossibilidade de
extensão, ao Poder Legislativo, de efeitos vinculantes do controle de constitucio‑
nalidade concentrado. Pugna, assim, pela reconsideração da decisão agravada ou
pelo acolhimento do recurso para que o Plenário do STF reveja a decisão liminar.
É o relatório.

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PRELIMINAR
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Pois não.
O sr. Luís Inácio Lucena Adams (advogado-geral da União): Uma questão
de fato: hoje, pela manhã, foi publicada a decisão do ministro Gilmar relativa
à admissão dos amicus curiae, e, de imediato, nós agravamos regimentalmente
dessa decisão. A questão de fato é que, tomando por prepostas as decisões nos
MS 26.552, ministro Celso de Mello; MS 30.260, que foi decidido por unanimi‑
dade, relatora ministra Cármen Lúcia; MS 26.150 e MS 25.875, do ministro Eros
Grau, ela propugna que seja apreciada, preliminarmente às sustentações orais,
a admissibilidade dos amicus curiae, já que esta Corte tem, nesses mandados de
segurança, rejeitado a presença, no controle difuso, da figura amicus curiae, até
porque não há, no mandado de segurança, o efeito vinculante da decisão, como
há no recurso de repercussão geral ou na ação direta de inconstitucionalidade.
E, de fato, nós temos, aqui, não caracterizados amigos da Corte, mas, de fato,
amigos do impetrante, ou seja, há uma manifestação, são manifestações que
defendem a posição do impetrante.
Por essa razão, a questão de fato é que seja apreciado, antes das sustentações
orais, o agravo apresentado pela União.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Senhor Presidente, como já relatei, eu
deferi a participação do amicus curiae, porque dois – salvo engano – são parla‑
mentares: senador e deputado. O processo, a rigor, tal como nós temos admitido,
tem esta feição ampla de controle preventivo; os demais são partidos políticos
interessados na tramitação. É o que nós temos feito nos próprios recursos extra‑
ordinários, e eu citei até um precedente em recurso em mandado de segurança.
De modo que, na verdade, a mim me parece que a decisão que se toma num pro‑
cesso como este tem ampla repercussão. Poderíamos admitir até litisconsortes, ou
assistentes litisconsorciais, se fosse o caso, de modo que não há nenhum problema,
a meu ver, me parece que não fere a dogmática processual, pelo contrário, antes se
recomenda que haja sim a defesa e a presença de amicus curiae de todos os lados.

VOTO
(Sobre preliminar)
O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, essa questão põe em foco
a própria natureza do presente mandado de segurança. Ele, no meu entender,
contém uma pretensão de controle preventivo de constitucionalidade de norma,
pois objetiva o controle da constitucionalidade de um projeto de lei.

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Assim, há dois óbices à admissão de amicus curiae: se se considerar um simples


mandado de segurança, há a impossibilidade de amicus curiae ante a incompati‑
bilidade com o mandado de segurança no seu sentido estrito, de tutela de direitos
subjetivos individuais ameaçados ou lesados. E, em se tratando de ação direta de
inconstitucionalidade, há o óbice, previsto na lei que regulamenta a ação direta
de inconstitucionalidade, de admissão de terceiros e de assistentes. Aqui, con‑
forme expressou o ministro relator, a razão para admitir o amicus curiae decorre
da sua condição de estar legitimado a figurar como litisconsorte ativo ou como
assistente litisconsorcial. Ora, nessa condição, o seu ingresso é para defender
direito próprio, e não para ser “amigo da Corte”. A Corte continuará sem amigo!
Se não se admite assistente ou litisconsorte na ação direta de inconstitucio‑
nalidade, não há como admitir essas figuras no presente mandado de segurança.
Nessa linha, voto no sentido de indeferir a participação.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Só para deixar claro: o Tribunal não
tem feito essa distinção em relação a amicus curiae em ação direta de inconsti‑
tucionalidade. Nesse sentido, Vossa Excelência está inovando. O Tribunal não
toma, não faz essa aferição; no máximo, faz uma aferição quanto ao interesse
em jogo na matéria.
O sr. ministro Teori Zavascki: Sim, mas temos que fazer essa distinção entre
o amicus curiae, o assistente e o litisconsorte. Na ação direta, admite-se amicus
curiae, mas não se admite assistente e litisconsorte.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Então vai se proibir... Vossa Excelência
está propondo que se proíba que o amicus curiae defenda uma das posições em jogo?
O sr. ministro Teori Zavascki: Não, estou afirmando que, na ação direta, a
lei impede a figura do assistente. Aqui, as pessoas que Vossa Excelência admitiu
como amicus curiae são pessoas diretamente interessadas no desfecho da causa,
tanto que, segundo sua afirmação, estariam aptos a assumir a condição de litis‑
consortes. De modo que, se há essa identificação, eu não vejo como admitir seu
ingresso como amicus curiae.

VOTO
(Sobre preliminar)
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, compartilho das mesmas pre‑
ocupações do ministro Teori, pedindo vênia ao ministro Gilmar.
Agora, a questão que se coloca aqui, que também foi muito – a meu juízo –
bem evidenciada por Sua Excelência, é a de que, na verdade, estamos com um
mandado de segurança travestido, com uma ação de controle preventivo de

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constitucionalidade de norma que está a ser construída no âmbito do Congresso.


Esta Corte tem admitido esse tipo de mandado de segurança, em que se busca
o controle prévio. E, se a Corte tem admitido mandado de segurança para esse
controle prévio quando impetrado por parlamentar, me pareceria razoável que
também se admitisse a presença dos amici curiae, por essa ótica. Agora, na linha
trazida pelo ministro Teori, como não se admite, no mandado de segurança,
a figura do assistente, embora pudesse ser litisconsorte e ter a sua admissão
admitida antes da notificação inicial, seria o caso de indeferir a participação
como amicus curiae.
Eu confesso a Vossas Excelências que ficaria imensamente intranquila em
prestigiar a admissão em tais condições.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Eu só gostaria de lembrar, Ministra
Rosa, que, neste RMS 25.841, o Tribunal aceitou, a partir de uma decisão que eu
tomei, a participação como amicus curiae – foi relator para o acórdão o minis‑
tro Marco Aurélio Mello – da Associação dos Juízes Classistas Aposentados de
Primeira Instância. Foi um caso que recentemente nós julgamos e, obviamente,
não havia nenhuma dúvida de que eles estavam atuando para sustentar um dado
interesse. Obviamente, o Tribunal entendeu que isso era absolutamente claro.
E, aqui, Vossa Excelência percebeu bem: quando se admite a discussão do
mandado de segurança quanto a controle preventivo – e é uma jurisprudência de,
pelo menos, 33 anos, a primeira decisão é de Moreira Alves, de 1980; nós estamos
falando, até em sala de aula, quando a gente trabalha isso em pedagogia com
os alunos, a gente diz que “esse é um mandado de segurança do B”, a propósito
de partidos –, é porque é um mandado de segurança em que se discute uma
questão de maneira ampla. O direito subjetivo do parlamentar, aqui, é quanto à
tramitação ou não do projeto. Claro que os efeitos se projetam, e se o argumento
realmente fosse inarredável, outro parlamentar poderia impetrar mandado de
segurança, poderia haver litisconsorte, poderia haver a assistência litisconsorcial.
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, gosto muito de refletir sobre
os temas. Entendo que essa proposição merece uma reflexão profunda, e o insti‑
tuto do amicus curiae justamente visa a trazer à Corte, quem sabe, novos olha‑
res, novas compreensões. Então, até em função dos próprios termos do agravo
manejado pela União, do voto do ministro Teori, das ponderações do ministro
Gilmar, eu opto por votar no sentido de negar provimento ao agravo, admitindo
a presença dos amici curiae até para, quem sabe, amanhã ou depois, evoluir em
sentido diverso, mas, por ora, eu admito o ingresso.

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VOTO
(Sobre preliminar)
O sr. ministro Dias Toffoli: Senhor Presidente, já tive a oportunidade de me
manifestar, em questões formais na área do processo penal, a respeito do tempo
que a Corte perde debatendo questões formais em agravos regimentais, de ques‑
tões relativas a despachos ordinatórios. Não se trata de despachos decisórios.
Vamos, aqui, ficar debatendo aquilo que o relator, em nome da Corte, admitiu?
Se fosse a rejeição, eu até entenderia, porque a rejeição, ou seja, quando se fecha
a porta a uma entidade que deveria ser aceita – a alguém que tem representa‑
ção na sociedade –, eu até entendo que o agravo regimental seja possível, mas,
quando o próprio relator admite o amigo da Corte...
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Até pode trazer uma terceira opinião
ou fazer uma ponderação técnica.
O sr. ministro Dias Toffoli: Até atrapalhar aquele que ele quer ajudar.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): É.
O sr. ministro Dias Toffoli: Porque, às vezes, acontece. Dependendo do de­­
sempenho.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): É. Nos habeas corpus impetrados em
nome de figuras notórias, acontece isso.
O sr. ministro Dias Toffoli: Pois bem. Já tive oportunidade, até em casos de
agravo regimental trazidos por Vossa Excelência, de consignar que esses casos
deveriam ficar para serem julgados junto com o mérito.
No Tribunal Superior Eleitoral, inclusive, nós não admitimos mais, no que
tange à Justiça Eleitoral, o agravo de instrumento. Firmamos essa jurisprudên‑
cia lá porque senão se eternizariam as discussões formais e processuais e não se
enfrentaria nunca o mérito. E o mérito da questão posta é extremamente relevante:
os limites do Estado democrático brasileiro, se a maioria pode, em determinadas
circunstâncias, havendo movimentação da minoria, vir a mudar as regras do jogo.
O debate que está posto não é um debate formal de tramitação dentro do par‑
lamento, única e exclusivamente, é um tema de fundo muito mais complexo e
muito mais grave para a sociedade, para a democracia e para o Estado brasileiro.
Que tipo de democracia queremos jogar? Que tipo de democracia vamos, como
Suprema Corte ao aplicar a Constituição, admitir para o Estado brasileiro? Aquela
em que, conjunturalmente, as maiorias se formam e começam a mudar as regras
do jogo? O tema é complexo; o tema merece a admissão dos amigos da Corte.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Há outras questões constitu‑
cionais em debate, Ministro. Vossa Excelência admite, portanto?

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O sr. ministro Dias Toffoli: Admito. Por enquanto estou me manifestando


sobre essa. Há outra agora já em votação? Eu me manifesto.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Há outras, sem dúvida, embu‑
tidas na discussão.
O sr. ministro Dias Toffoli: Já agora, no agravo regimental?

VOTO
(Sobre preliminar)
A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, hoje estou quase sem voz,
podendo falar muito pouco.
Como se trata de mandado de segurança, em princípio, não admitiria a figura
do amicus curiae, porque nessa classe de ação a matéria é subjetiva, como foi
posto pelo ministro Teori Zavascki. Entretanto, considerando que era mandado
de segurança preventivo, com peculiaridades, pois os que se apresentaram como
amicus curiae eram pessoas que poderiam estar na situação de litisconsorte
até, e, em face de que foi ponderado, no sentido de que, sendo preventivo, vai se
discutir questão relativa a direitos subjetivos de alguém, em que pese a minha
posição inicial e sem me vincular absolutamente à tese, em face dessa peculia‑
ridade, neste caso, acompanho o relator, mas reitero que não me comprometo
com a tese, até porque, num estudo que fiz inicialmente, não iria aceitar.

VOTO
(Sobre preliminar)
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, peço vênia ao emi‑
nente relator para acompanhar a divergência.
A jurisprudência da Casa é absolutamente torrencial em não admitir amicus
curiae em mandado de segurança. Cito, por exemplo, o agravo regimental na
medida cautelar no MS 29.058, do Distrito Federal, em que foi relator o ministro
Celso de Mello; cito o MS 30.531, do Distrito Federal, em que foi relatora a eminente
ministra Cármen Lúcia; cito a medida cautelar no MS 30.952, do Distrito Federal,
em que foi relator o ministro Luiz Fux; outro, de Sua Excelência o ministro Luiz
Fux, agravo regimental no agravo regimental no MS 25.763, do Distrito Federal.
O precedente invocado pelo eminente ministro relator, em seu voto, foi o
RE 415.454, de Santa Catarina, de relatoria dele mesmo, Sua Excelência o ministro
Gilmar Mendes, em que ele admitiu, foi admitido num recurso extraordinário.
E sabemos que, quando o recurso extraordinário tem reconhecida a repercussão

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  342


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geral, os seus efeitos são erga omnes, é um processo subjetivo, e que, por exce‑
ção, pode-se admitir um amigo da Corte, que é aquele que intervém de forma
neutra, amparando, auxiliando a Corte, não ao lado de uma das partes. Mas este
RE 415.454 foi superado, logo em seguida, porque ele é de 8-2-2007, pelo agravo
regimental no agravo regimental no MS 26.552/DF, do Tribunal Pleno, de 22-11-
2007, relatado pelo eminente ministro Celso de Mello, em que Sua Excelência,
como sempre, traz um voto absolutamente lapidar, em que ele diz, agora, assim:
Analiso, agora, o recurso de agravo deduzido às fls. 73/77 pela Ordem dos Advoga­­
dos do Brasil (5ª Subseção de Volta Redonda – Estado do Rio de Janeiro) contra deci-
são que indeferiu o pedido de ingresso, da subseção em questão, como amicus curiae,
no processo de mandado de segurança instaurado por Alcinete Nascimento de Souza.

Então, diz o ministro Celso, com ênfase:


Conforme destaquei na decisão agravada, indeferi o pedido de ingresso, na causa,
como amicus curiae, da Ordem dos Advogados do Brasil – 5ª Subseção de Volta
Redonda – Estado do Rio de Janeiro (fls. 31/43), porque a legislação invocada (Lei
9.868/1999) – por referir-se a processo de índole eminentemente objetiva, como
o são os processos de controle normativo abstrato (RTJ 113/22, rel. min. Néri da
Silveira – RTJ 131/1001, rel. min. Celso de Mello – RTJ 136/467, rel. min. Celso de
Mello – RTJ 164/506-507, rel. min. Celso de Mello, v.g.) – não se aplica aos processos
de caráter meramente subjetivo, como o processo de mandamental.
Ressaltei, ainda, na oportunidade, a impossibilidade do ingresso, no feito, da
OAB/5ª Subseção de Volta Redonda (RJ), como se tratasse de mera intervenção
assistencial, ad coadjuvandum, não admitida pelo Supremo Tribunal Federal.
É que o magistério jurisprudencial desta Suprema Corte firmou-se no sentido
“do descabimento da assistência no mandado de segurança, tendo em vista o
que dispõe o art. 19 da Lei 1.553/1951, na redação dada pela Lei 6.071/1974, que
restringiu a intervenção de terceiros, no procedimento do writ, ao instituto do
litisconsórcio” [RTJ 123, rel. min. Célio Borja – Grifei].

E continua Sua Excelência, nesse lapidar e magnífico voto:


Esse entendimento – que tem sido reinterado, em inúmeras oportunidades, pelo
Supremo Tribunal Federal (RTJ 182/548-549 – rel. min. Celso de Mello – AO 534 MC/
TO, rel. min. Marco Aurélio – AO 571 MC/AL, rel. min. Marco Aurélio – MS 23.671/
PE, rel. min. Marco Aurélio – MS 23.856/MS, rel. min. Cezar Peluso – RE 321.958/SP,
rel. min. Joaquim Barbosa – RE 431.380/MG, rel. min. Carlos Britto, v.g.) – encontra
apoio, igualmente, no magistério da doutrina [DIREITO, Carlos Alberto Menezes.
Manual do mandado de segurança. 4. ed. Renovar, 2003. p. 117].

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Diz ele:
(...) não me parece possível enfrentar a expressa disposição legal. A Lei 6.071/74,
alterando a redação do art. 19 da lei especial, sem meias palavras, não alcançou
assistência, limitando-se a determinar aplicação, ao processo do mandado de
segurança, dos artigos do Código de Processo Civil que regula o litesconsórcio.
Desse modo, na linha do precedente do Supremo Tribunal Federal, entendo não
ser admissível assistente em mandado de segurança. [Grifei.]

Diz o ministro Celso, em continuação:


Essa orientação vem de ser reafirmada pelo Plenário do Supremo Tribunal Fe­­
deral, em decisão consubstanciada, no ponto, em acórdão assim ementado:
“1. Intervenção de terceiro. Assistência. Mandado de segurança. Inadmissi-
bilidade. Preliminar acolhida. Inteligência do art. 19 da Lei 1.533/1951. Não
se admite assistência em mandado de segurança (...).” [RTJ 188/663, rel. min.
Cezar Peluso – Grifei.]

Então, o ministro, por essas razões e outras, nega provimento ao recurso de


agravo, e o ministro Celso se referiu ao MS 24.414.
O ministro relator, salvo engano, referiu-se ao recurso em mandado de segu‑
rança, cujo número não captei bem, mas – salvo melhor juízo –, naquele recurso
em mandado de segurança, excepcionalmente, admitiu-se o amicus curiae, mas
representando uma entidade. Mas foi uma questão excepcional e, também, que
fugiu à habitualidade da Corte.
De outro lado, eu observo as questões que foram levantadas aqui no sentido
de que esse mandado de segurança confunde-se com o processo de natureza
objetiva. Essa que é a grande questão que será resolvida durante o julgamento
deste mandado de segurança. Será que é o mandado de segurança que se volta
contra dispositivos do regimento do Congresso Nacional, no sentido de impedir
a tramitação regular daquele projeto de lei, ou se trata realmente de entrar no
âmago do projeto de lei e fazer-se, desde já, uma espécie de controle prévio de
constitucionalidade, transformando-se esse mandado de segurança num pro‑
cesso de natureza objetiva? Essa é a grande questão. Ser for assim, em tese, seria
admissível a presença dos amici curiae. No entanto, se for o mandado de segu‑
rança de natureza ordinária, claramente a jurisprudência da Corte é contrária,
e solidamente contrária, à admissão dessa figura.
Então, Senhor Presidente, com o devido respeito pelo sempre abalizado voto
e às ponderáveis razões apresentadas pelo ministro relator, voto no sentido do
provimento do agravo para não admitir os amici curiae em nenhum mandado
de segurança, especialmente neste mandado de segurança.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  344


MS 32.033

VOTO
(Sobre preliminar)
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, por ora, não estamos a decidir sobre
a adequação do mandado de segurança, nem a procedência do pedido formulado
na inicial. Cabe-nos apenas fixar as balizas subjetivas desse mesmo mandado
de segurança. A regência é especial. Decorre de lei aprovada pelo Congresso
Nacional, a de número 12.016/2009. Se formos a ela – e gostaria de cumprimen‑
tar o ministro Teori Zavascki pela coerência, porque reafirmou voto prolatado
na Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça quanto à inadimissibilidade
da assistência simples no mandado de segurança –, veremos que remete aos
artigos do Código de Processo Civil que versam o litisconsórcio, o facultativo e
o necessário. Vem-nos do art. 24 da lei de regência do mandado de segurança:
Art. 24. Aplicam-se ao mandado de segurança os arts. 46 a 49 da Lei n. 5.869, de 11
de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.

Não se remeteu ao art. 50, que trata da assistência do terceiro juridicamente


interessado. Quanto ao litisconsórcio, as balizas foram delimitadas, ficaram
definitivamente assentadas com as informações prestadas no mandado de segu‑
rança. Ouvi que o pleito de participação foi formalizado ontem, quando inclu‑
sive já havia a pauta publicada e a inserção do processo no sítio da internet do
Tribunal, considerada a pauta dirigida.
Presidente, peço vênia ao relator e aos colegas que o acompanharam para
entender que, se a própria lei veda a participação do terceiro juridicamente inte‑
ressado, não é dado acionar a legislação que dispõe sobre o processo objetivo
para entender que o denominado amigo da Corte – já disse que não é bem amigo
da Corte, porque acaba dando a esta mais trabalho – pode participar desse pro‑
cesso, dessa ação nobre – reconheço –, que é o mandado de segurança, voltada
à proteção de direito individual.
Acompanho a divergência do ministro Teori Zavascki.

ESCLARECIMENTO
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, apenas um esclarecimento, para que
não fique no ar a possibilidade de ter incidido em incongruência: não fui o relator
do recurso ordinário em MS 25.841. O relator foi o próprio ministro Gilmar Mendes.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Eu disse isso claramente. Vossa Exce‑
lência é o relator para o acórdão.

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MS 32.033

O sr. ministro Marco Aurélio: Apenas estou esclarecendo. Atuei como relator
designado, e, se formos à ementa do acórdão, desdobrada em vários itens, vere‑
mos que não constou item quanto à possibilidade de assistência no mandado
de segurança. A razão se mostrou muito simples: a matéria não foi discutida e
deliberada pelo Plenário.
Era o esclarecimento que queria prestar.

VOTO
(Sobre preliminar)
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Eu acompanho a divergência. Não
vejo, na legislação do mandado de segurança, nenhuma alusão à possibilidade de
admissão de amici curiae, que é figura importada do Direito americano, e, como
tal, acho que deveria ser concebida aqui entre nós. Mas reconheço que a Corte,
em situações como a presente, em que há um interesse geral, evidentemente,
(inaudível) a toda a discussão de mérito da questão, tem admitido, sim, a figura
do amici curiae ou amicus curiae em processos de índole subjetiva.
Eu acompanho, portanto, a divergência.

SUSPENSÃO DE JULGAMENTO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (presidente): Agradeço à doutora Deborah
pela colaboração que dá à Corte com o seu ponto de vista.
Indago, agora, ao eminente relator se continuamos com o julgamento, que é
um julgamento complexo, evidentemente, como se viu a partir das discussões
que já foram travadas, tanto pelos ministros como da tribuna. Indago a Vossa
Excelência, tendo em conta que faltam, aproximadamente, dez minutos para
encerrarmos a sessão, se continuamos ou adiamos o julgamento?
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Acho que nós vamos ter que adiar
por conta do adiantado da hora e da ausência do ministro Fux. E, salvo engano,
o ministro Toffoli, também, amanhã, não estará. Então, talvez, passemos para
a próxima quarta-feira.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (presidente): Pois não. O próprio minis‑
tro presidente, neste momento, que está cuidando de outros assuntos igualmente
importantes, não se encontra presente.
Consulto os pares se estão de acordo com o adiamento? Então, a discussão
deste MS 32.033 fica adiada para a próxima quarta-feira.

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MS 32.033

EXTRATO DA ATA
MS 32.033/DF — Relator: Ministro Gilmar Mendes. Impetrante: Rodrigo Sobral
Rollemberg (Advogada: Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro). Impetrados: Pre­
sidente da Câmara dos Deputados (Advogado: Advogado-geral da União) e presi‑
dente do Senado Federal (Advogados: Alberto Cascais e outros). Interessados: Par‑
tido Socialista dos Trabalhadores Unificado – PSTU (Advogados: Bruno Colares
Soares Figueiredo Alves e outros), Rede Sustentabilidade (Advogado: Rogerio Paz
Lima), Partido Político Solidariedade (Advogado: Marcilio Duarte Lima), Pedro
Taques (Advogados: Marco Aurélio Marrafon e outros), Carlos Henrique Focesi
Sampaio (Advogada: Alessia Barroso Lima Brito Campos Chevitarese) e Partido
Popular Socialista – PPS (Advogados: Fabrício de Alencastro Gaertner e outros).
Decisão: Preliminarmente, o Tribunal, por maioria, negou provimento ao
agravo interposto pela União que impugnava a admissão dos amici curiae, ven‑
cidos os ministros Teori Zavascki, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. Votou
o presidente, ministro Joaquim Barbosa. Em seguida, após o relatório e as sus‑
tentações orais, o julgamento foi suspenso. Falaram: pelo impetrante, Rodrigo
Sobral Rollemberg, a doutora Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro; pelo interes‑
sado Pedro Taques, o doutor Marco Aurélio Marrafon; pelo interessado Carlos
Henrique Focesi Sampaio, a doutora Alessia Barroso Lima Britto Campos; pela
Advocacia-Geral da União, o ministro Luís Inácio Lucena Adams, advogado‑
-geral da União; pelo impetrado presidente do Senado Federal, o doutor Alberto
Cascais, advogado-geral do Senado Federal; e, pelo Ministério Público Federal,
a doutora Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, vice-procuradora-geral da
República. Ausente, justificadamente, o ministro Luiz Fux.
Presidência do ministro Joaquim Barbosa. Presentes à sessão os ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen
Lúcia, Dias Toffoli, Rosa Weber e Teori Zavascki. Vice-procuradora-geral da Repú‑
blica, doutora Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira.
Brasília, 5 de junho de 2013 — Luiz Tomimatsu, assessor-chefe do Plenário.

VOTO
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator):

I – O mandado de segurança para vedar a deliberação legislativa


Após o deferimento da liminar neste mandado de segurança, alguma polê‑
mica foi instaurada nos meios de comunicação a partir da pressuposição de que

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MS 32.033

a medida teria sido heterodoxa, não orientada pela jurisprudência do Supremo


Tribunal Federal e invasiva da competência reservada pela Constituição ao Poder
Legislativo. Demonstrar-se-á, portanto, a absoluta impropriedade dessas posições.
Deve-se destacar que, considerada a estatura do tema, tanto a impetração
como a medida liminar deferida são assuntos ordinários na jurisprudência da
Corte há algum tempo. O cabimento de mandado de segurança preventivo na
defesa do direito público subjetivo do parlamentar de não se submeter a pro‑
cesso legislativo veiculador de proposição tendente a abolir cláusulas pétreas
foi aventado, pela primeira vez, ainda sob a vigência da Constituição de 1967/69,
no MS 20.257, impetrado por senadores da República contra a tramitação de
proposta de emenda à Constituição que aumentava a duração dos mandatos
dos prefeitos, vice-prefeitos e vereadores municipais de dois para quatro anos.
Nesse caso, julgado em 1980, os impetrantes eram os senadores Itamar Franco
e Antonio Mendes Canale, os quais requeriam o impedimento da tramitação
das Propostas de Emenda Constitucional 51 e 52, ambas de 1980, assim como da
Emenda 3 às referidas propostas. Argumentavam que a proposição de elevação a
duração dos mandatos municipais não poderia ser objeto de deliberação, ante o
disposto no art. 47, § 1º, da Carta vigente à época, que dispunha: “não será objeto
de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a Federação e a República”.
O ministro Décio Miranda, relator do MS 20.257, julgava prejudicado o writ e
era acompanhado pelos ministros que votaram até o pedido de vista do ministro
Moreira Alves. No entanto, ao trazer seu voto-vista, acompanhado pela maioria
da Corte, Moreira Alves expôs o que continua a ser a jurisprudência pacífica do
Supremo sobre o assunto:
No § 1º do art. 47 da Constituição Federal [de 1967/69], preceitua-se que:
“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a Fe­­
deração ou a República.”
Objeto de deliberação significa, sem a menor dúvida, objeto de votação, porque
é neste momento que se delibera a favor da emenda ou contra ela.
Por outro lado, se a direção dos trabalhos do Congresso cabe ao presidente do
Senado; se este, pelo próprio Regimento Comum do Congresso Nacional (art. 73),
pode, liminarmente, rejeitar a proposta de emenda que não atenda ao disposto
no art. 47, § 1º, da Constituição (e quem tem poder de rejeição liminar o tem, igual‑
mente, no curso do processo); e se a Constituição alude a objeto de deliberação (o
que implica dizer que seu termo é o momento imediatamente anterior à votação),
não há dúvida, a meu ver, de que, a qualquer tempo, antes da votação, pode a Presi‑
dência do Congresso, convencendo-se de que a proposta de emenda tende a abolir
a Federação ou a República, rejeitá-la, ainda que não o tenha feito inicialmente.
Cabível, portanto, no momento em que o presente mandado de segurança foi

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  348


MS 32.033

impetrado, sua impetração preventiva, uma vez que visava ele a impedir que a
Presidência do Congresso colocasse em votação a proposta de emenda. Aprovada
esta, o mandado de segurança – como tem entendido esta Corte – se transforma
de preventivo em restaurador da legalidade.
3. Afastada essa preliminar, também não acolho a outra – que é de mérito –, com a
qual fundamentam seus votos os eminentes colegas que estão indeferindo o pedido.
Não admito mandado de segurança para impedir tramitação de projeto de lei ou
proposta de emenda constitucional com base na alegação de que seu conteúdo
entra em choque com algum princípio constitucional. E não admito porque, nesse
caso, a violação à Constituição só ocorrerá depois de o projeto se transformar em
lei ou de a proposta de emenda vir a ser aprovada. Antes disso, nem o presidente da
Casa do Congresso, ou deste, nem a Mesa, nem o Poder Legislativo estão praticando
qualquer inconstitucionalidade, mas estão, sim, exercitando seus poderes cons‑
titucionais referentes ao processamento da lei em geral. A inconstitucionalidade,
nesse caso, não será quanto ao processo da lei ou da emenda, mas, ao contrário,
será da própria lei ou da própria emenda, razão por que só poderá ser atacada
depois da existência de uma ou de outra.
Diversas, porém, são as hipóteses como a presente, em que a vedação cons-
titucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a
sua apresentação (como é o caso previsto no parágrafo único do art. 57) ou a
sua deliberação (como na espécie). Aqui, a inconstitucionalidade diz respeito
ao próprio andamento do processo legislativo, e isso porque a Constituição não
quer – em face da gravidade dessas deliberações, se consumadas – que sequer
se chegue à deliberação, proibindo-a taxativamente. A inconstitucionalidade,
neste caso, já existe antes de o projeto ou de a proposta se transformarem em
lei ou em emenda constitucional, porque o próprio processamento já desres-
peita, frontalmente, a Constituição.
E cabe ao Poder Judiciário – nos sistemas em que o controle da constituciona‑
lidade lhe é outorgado – impedir que se desrespeite a Constituição. Na guarda da
observância desta, está ele acima dos demais Poderes, não havendo, pois, que se
falar, a esse respeito, em independência de Poderes. Não fora assim e não poderia ele
exercer a função que a própria Constituição, para a preservação dela, lhe outorga.
4. Considero, portanto, cabível, em tese, o presente mandado de segurança.

O acórdão do mencionado MS 20.257, cuja redação ficou a cargo do ministro


Moreira Alves, ficou assim ementado:
Mandado de segurança contra ato da Mesa do Congresso que admitiu a delibera‑
ção de proposta de emenda constitucional que a impetração alega ser tendente
à abolição da República.
Cabimento do mandado de segurança em hipóteses em que a vedação cons-
titucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a
sua apresentação (como é o caso previsto no parágrafo único do art. 57) ou a

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MS 32.033

sua deliberação (como na espécie). Nesses casos, a inconstitucionalidade diz


respeito ao próprio andamento do processo legislativo, e isso porque a Consti‑
tuição não quer – em face da gravidade dessas deliberações, se consumadas – que
sequer se chegue à deliberação, proibindo-a taxativamente. A inconstitucionali‑
dade, se ocorrente, já existe antes de o projeto ou de a proposta se transformar em
lei ou em emenda constitucional, porque o próprio processamento já desrespeita,
frontalmente, a Constituição.
Inexistência, no caso, da pretendida inconstitucionalidade, uma vez que a pror‑
rogação de mandato de dois para quatro anos, tendo em vista a conveniência da
coincidência de mandatos nos vários níveis da Federação, não implica introdução
do princípio de que os mandatos não mais são temporários, nem envolve, indire‑
tamente, sua adoção de fatos. Mandado de segurança indeferido. [DJ de 27-2-1981,
RTJ 99/1031.]

A partir de então, a jurisprudência da Corte pacificou-se no sentido do cabi‑


mento do mandado de segurança como instrumento para a defesa do direito
público subjetivo do parlamentar a não deliberar sobre proposta tendente a
abolir cláusulas pétreas.
Em 1984, o Supremo Tribunal conheceu do MS 20.452, rel. min. Aldir Passarinho,
por meio do qual o senador da República Severo Fagundes Gomes, o deputado
federal Airton Sandoval Santana e o vice-governador de São Paulo, Orestes Quér‑
cia, impugnavam a votação da Proposta de Emenda Constitucional 5, de 1983,
conhecida como “Emenda Dante Oliveira”. Ressalte-se que o vice-governador
foi excluído da lide por ilegitimidade ativa, restando claro, portanto, que a
legitimidade para a impetração de mandado de segurança contra a tramitação
de propostas de emenda constitucional é apenas dos parlamentares.
Já sob a égide da Constituição Federal de 1988, o ministro Celso de Mello, no
MS 21.642, de modo didático, explicitou a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal na matéria:
O controle de constitucionalidade tem por objeto lei ou emenda constitucional pro‑
mulgada. Todavia, cabe ser exercido em caso de projeto de lei ou emenda consti-
tucional quando a Constituição taxativamente veda sua apresentação ou a deli-
beração. Legitimidade ativa privativa dos membros do Congresso Nacional. [Grifei.]

O Supremo Tribunal deixava claro que a legitimidade para a impetração de man‑


dado de segurança como instrumento de controle prévio de constitucionalidade
de proposições legislativas tendentes a abolir cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, CF) é
exclusiva dos parlamentares, os quais possuem o direito de não se submeterem à
deliberação de propostas desse viés. A legitimidade ativa, na hipótese, é apenas dos
parlamentares, conforme o Tribunal teve a oportunidade de frisar ainda em 1991:

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  350


MS 32.033

Mandado de segurança requerido pelo impetrante na qualidade de cidadão bra‑


sileiro, contra ato de Comissão da Câmara dos Deputados, tendente a possibilitar
a adoção da pena de morte, mediante consulta plebiscitária.
Falta de legitimidade ativa do requerente, por falta de ameaça concreta a direito
individual, particularizado em sua pessoa. [DJ de 2-8-1991, RTJ 139/783.]

Se é certo que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhece a possibi‑


lidade de exercer essa espécie de controle prévio de constitucionalidade de propos‑
tas legislativas que atentem contra as cláusulas pétreas da Constituição, também é
verdade que a Corte é extremamente prudente na utilização dessa competência,
visto que a mantém como uma espécie de competência reserva, a ser utilizada
apenas quando a proposição for realmente ofensiva às cláusulas pétreas.
Em 1996, os deputados federais Jandira Feghali (PC do B/RJ), Sérgio Miranda
(PC do B/MG), Matheus José Schmidt Filho (PDT/RS), Sandra Meira Starling
(PT/MG), Alexandre Aguiar Cardoso (PSB), Agnelo Santos Queiroz Filho (PC do
B/DF), Aldo Silva Arantes (PC do B/GO), Eduardo Jorge Martins Alves Sobrinho
(PT/SP), Haroldo Borges Rodrigues Lima (PC do B/BA), Humberto Sérgio Costa
Lima (PT/PE), Inácio Francisco de Assis Nunes Arruda (PC do B/CE), José Aldo
Rebelo Figueiredo (PC do B/SP), Luiz Lindbergh Farias Filho (PC do B/RJ), Maria
do Socorro Gomes Rodrigues (PC do B/PA), Miro Teixeira (PDT/RJ) e Ricardo
Krachineski Gomyde (PC do B/PR) impetraram mandado de segurança preventivo
contra o processamento da PEC 33-A/1995, que tratava da Reforma da Previdência.
O ministro Marco Aurélio conheceu do writ, com base na pacífica jurispru‑
dência da Corte, e concedeu a liminar determinando a suspensão do trâmite da
referida proposição legislativa, nos seguintes termos:
presente a guarda da ordem jurídico-constitucional atribuída ao Supremo Tribunal
Federal, concedo a liminar pleiteada a fim de que a Câmara dos Deputados, até o
julgamento final deste mandado de segurança, abstenha-se da prática de qualquer
ato concernente à tramitação da Proposta de Emenda Constitucional 33-A/1995.
[MS 22.503 MC, rel. min. Marco Aurélio, DJ de 14-4-1996.]

Cumpre ressaltar que, muito embora não haja confirmado a liminar concedida
pelo relator, o Tribunal conheceu do mandado de segurança na parte que dizia
respeito à alegação de violação constitucional, fazendo a clara distinção entre
esta matéria e a doutrina dos atos interna corporis, relacionados à interpretação
do regimento interno das casas legislativas.
Confira-se a ementa do julgamento de mérito:
Mandado de segurança impetrado contra ato do presidente da Câmara dos Depu­
tados, relativo à tramitação de emenda constitucional. Alegação de violação de diver-
sas normas do regimento interno e do art. 60, § 5º, da Constituição Federal.

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MS 32.033

Preliminar: impetração não conhecida quanto aos fundamentos regimentais, por


se tratar de matéria interna corporis que só pode encontrar solução no âmbito do
Poder Legislativo, não sujeita à apreciação do Poder Judiciário; conhecimento quanto
ao fundamento constitucional.
Mérito: reapresentação, na mesma sessão legislativa, de proposta de emenda consti-
tucional do Poder Executivo, que modifica o sistema de previdência social, estabelece
normas de transição e dá outras providências (PEC 33-A, de 1995).
I – Preliminar.
1. Impugnação de ato do presidente da Câmara dos Deputados que submeteu à
discussão e votação emenda aglutinativa, com alegação de que, além de ofender
ao parágrafo único do art. 43 e ao § 3º do art. 118, estava prejudicada nos termos
do inciso VI do art. 163, e que deveria ter sido declarada prejudicada, a teor do que
dispõe o n. 1 do inciso I do art. 17, todos do Regimento Interno, lesando o direito
dos impetrantes de terem assegurados os princípios da legalidade e moralidade
durante o processo de elaboração legislativa.
A alegação, contrariada pelas informações, de impedimento do relator – matéria
de fato – e de que a emenda aglutinativa inova e aproveita matérias prejudicada
e rejeitada, para reputá-la inadmissível de apreciação, é questão interna corporis
do Poder Legislativo, não sujeita à reapreciação pelo Poder Judiciário. Mandado
de segurança não conhecido nesta parte.
2. Entretanto, ainda que a inicial não se refira ao § 5º do art. 60 da Constituição, ela
menciona dispositivo regimental com a mesma regra; assim interpretada, chega-se
à conclusão de que nela há ínsita uma questão constitucional, esta, sim, sujeita
ao controle jurisdicional. Mandado de segurança conhecido quanto à alegação de
impossibilidade de matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida
por prejudicada poder ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.
II – Mérito.
1. Não ocorre contrariedade ao § 5º do art. 60 da Constituição na medida em que
o presidente da Câmara dos Deputados, autoridade coatora, aplica dispositivo
regimental adequado e declara prejudicada a proposição que tiver substitutivo
aprovado, e não rejeitado, ressalvados os destaques (art. 163, V).
2. É de ver-se, pois, que, tendo a Câmara dos Deputados apenas rejeitado o subs‑
titutivo, e não o projeto que veio por mensagem do Poder Executivo, não se cuida
de aplicar a norma do art. 60, § 5º, da Constituição. Por isso mesmo, afastada a
rejeição do substitutivo, nada impede que se prossiga na votação do projeto origi‑
nário. O que não pode ser votado na mesma sessão legislativa é a emenda rejeitada
ou havida por prejudicada, e não o substitutivo que é uma subespécie do projeto
originariamente proposto.
3. Mandado de segurança conhecido em parte e nesta parte indeferido. [MS 22.503,
rel. p/ o ac. min. Maurício Corrêa, Plenário, DJ de 6-6-1997.]

Relembro, ainda, que, em 1997, os deputados federais Jaques Wagner, Hélio


Pereira Bicudo, Arlindo Chinaglia Júnior, Sandra Meira Starling e Miguel Soldatelli

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MS 32.033

Rosseto impetraram o MS 22.972 com vistas a obstar o processamento da PEC


20-A/1995, que tinha por objeto instituir o parlamentarismo no País, alegando
a violação de diversos princípios fundamentais constantes da ordem constitu‑
cional brasileira.
Nesse caso, o ministro Néri da Silveira, relator, conheceu do mandado de segu‑
rança, nos termos da jurisprudência do Tribunal. Indeferiu, todavia, a liminar
por não vislumbrar presentes, na hipótese, os seus pressupostos autorizadores
(MS 22.972, rel. min. Néri da Silveira, DJ de 2-2-1998).
O ministro Néri da Silveira também conheceu do MS 21.311 impetrado por
José Genoíno e outros deputados federais contra a tramitação da PEC 1/1988,
que visava a instituir a pena de morte no Brasil, nos casos de roubo, sequestro e
estupro seguidos de morte. Na espécie, o relator assim se pronunciou:
(...) decidi pela não suspensão da tramitação da proposta de emenda em exame, por
não caracterizada, àquela altura, periculum in mora. (...) Na espécie, haveria tempo
suficiente ao julgamento do mandado de segurança, antes de estar a proposta de
emenda constitucional em condições de ser submetida ao Plenário. [MS 22.972,
rel. min. Néri da Silveira, DJ de 25-5-1999.]

Adiante, o ministro Néri da Silveira reconheceu estar prejudicado o mandado


de segurança, em razão do arquivamento da proposição legislativa atacada.
É digno de nota que, entre os deputados federais impetrantes dos mandados
de segurança referidos, estão várias das figuras políticas mais importantes do
País, as quais são ou já foram governadores de Estado, senadores da República,
deputados federais, ministros de Estado, entre outros cargos.
A jurisprudência clara, uníssona e antiga da Corte, somada ao comprovado
conhecimento que dela possuem os atores centrais da vida política brasileira,
tem o condão de demonstrar que a impetração de mandado de segurança com
vistas ao trancamento do trâmite de proposta legislativa ofensiva a cláusula
pétrea da Constituição é algo que está inserido na tradição constitucional bra‑
sileira, por fazer parte da rotina do nosso sistema político-constitucional há
mais de trinta anos.
Por essa razão, em ocasiões anteriores tive a oportunidade de consignar que
tal utilização do mandado de segurança, por parlamentar, a fim de obstar a
deliberação de proposição legislativa ofensiva às cláusulas pétreas significa uma
verdadeira doutrina brasileira do mandado de segurança (MS 24.356, rel. min.
Carlos Velloso, Plenário, DJ de 12-9-2003).

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  353


MS 32.033

a) A impetração de mandado de segurança para suspender a tramitação de projeto de


lei violador de cláusulas pétreas
Quanto às alegações de que essas vedações apenas devem incidir sobre pro‑
postas de emenda constitucional, parece evidente que uma leitura sistemática da
Carta de 1988 e da história da criação do controle judicial de constitucionalidade
conduz-nos à admissão do controle, também, dos projetos de lei.
Eu mesmo tive a oportunidade de atuar como relator, sucedendo ao eminente
ministro Néri da Silveira, em caso em que o Plenário desta Corte conheceu de
mandado de segurança impetrado por parlamentar contra a tramitação de
projeto de lei alegadamente violador de cláusula pétrea.
Cuidava-se de mandado de segurança preventivo, impetrado pelo deputado
federal Rubens Bueno, contra a eventual deliberação do Projeto de Lei 5.483/2001,
enviado pelo Poder Executivo, com proposta de nova redação ao art. 618 da Con‑
solidação das Leis do Trabalho, concernente à disciplina de convenções e acordos
coletivos. Em meu voto, acompanhado de forma unânime pelo Tribunal, assentei:
O controle de constitucionalidade preventivo de emenda constitucional foi admi‑
tido, entre outros, no MS 20.257 (rel. min. Moreira Alves), tendo-se assentado, então,
que, quando “a vedação constitucional se dirige ao próprio processamento
da lei ou da emenda (...), a inconstitucionalidade (...) já existe antes de o pro-
jeto ou de a proposta se transformarem em lei ou em emenda constitucional,
porque o próprio processamento já desrespeita, frontalmente, a Constituição”
(RTJ 99, p. 1040).
(...)
Entre nós, a despeito da pouca racionalização em torno do uso diferenciado
do mandado de segurança nessa outra dimensão, convém anotar que tal instru‑
mento tem sido utilizado não só para solver judicialmente conflitos entre órgãos
constitucionais, mas, de certa forma, conflitos de atribuição entre órgãos admi‑
nistrativos em geral.
No que diz respeito à admissibilidade do controle preventivo de atos normativos,
o mandado de segurança opera como autêntico processo de solução de conflitos
entre órgãos de perfil constitucional.
Embora não haja dúvida quanto ao cabimento do mandado de segurança
nessa situação diferenciada, é certo que no caso em apreço não se vislumbra a
priori a existência de qualquer norma constitucional indicativa de expressa proi‑
bição ao processamento do aludido projeto de lei. [MS 24.138, de minha relatoria,
Plenário, DJ de 14-3-2003 – Grifei.]

Note-se que o Supremo Tribunal Federal julga, portanto, os mandados de


segurança impetrados para o exercício dessa modalidade de controle prévio de
constitucionalidade de proposições tendentes a abolir cláusulas pétreas, sejam

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  354


MS 32.033

elas propostas de emendas à Constituição, sejam projetos de lei ou, ainda,


proposições violadoras do processo legislativo constitucional.
A rigidez e a supremacia da Constituição, que garantem o seu núcleo essen-
cial até mesmo em face do constituinte reformador, não podem ser relativi-
zados ante o legislador ordinário.
A tese segundo a qual o controle prévio de constitucionalidade, mediante
impetração de mandado de segurança por parlamentar, apenas se admitiria em
face de tramitação de proposta de emenda à Constituição somente faria sentido
caso esta Corte não realizasse o controle repressivo de emendas constitucionais.
Essa linha de raciocínio trabalharia com a necessidade de se paralisar a tra‑
mitação de PECs potencialmente violadoras das cláusulas pétreas, ante a vir‑
tual impossibilidade de se controlar repressivamente a constitucionalidade da
emenda constitucional depois de promulgada. Por essa argumentação, poder‑
-se-ia admitir o raciocínio de que o controle prévio não se aplica aos projetos
de lei, uma vez que, em face de lei efetivamente aprovada, caberia o controle de
constitucionalidade repressivo.
Essa não é, no entanto, a hipótese que se consolidou na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal. Desde o julgamento da ADI 939, rel. min. Sydney
Sanches, Plenário, DJ de 18-3-1994, esta Corte regularmente admite o controle
de constitucionalidade de emendas constitucionais.
Confira-se a ementa do acórdão de mérito:
Direito constitucional e tributário. Ação direta de inconstitucionalidade de
emenda constitucional e de lei complementar. IPMF. Imposto Provisório sobre a
Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza
Financeira (IPMF). Arts. 5º, § 2º; 60, § 4º, I e IV; 150, III, b; e VI, a, b, c e d, da Constitui‑
ção Federal. 1. Uma emenda constitucional, emanada, portanto, de constituinte
derivado, incidindo em violação a Constituição originária, pode ser declarada
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é de
guarda da Constituição (art. 102, I, a, da CF). 2. A Emenda Constitucional 3, de
17-3-1993, que, no art. 2º, autorizou a União a instituir o IPMF, incidiu em vício
de inconstitucionalidade, ao dispor, no § 2º desse dispositivo, que, quanto a tal
tributo, não se aplica “o art. 150, III, b, e VI”, da Constituição, porque, desse modo,
violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): 1º – o
princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (art. 5º, § 2º;
60, § 4º, IV; e 150, III, b, da Constituição); 2º – o princípio da imunidade tributária
recíproca (que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a
instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e
que é garantia da Federação (art. 60, § 4º, I, e art. 150, VI, a, da CF); 3º – a norma
que, estabelecendo outras imunidades, impede a criação de impostos (art. 150, III)

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sobre: b): templos de qualquer culto; c): patrimônio, renda ou serviços dos partidos
políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das
instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os
requisitos da lei; e d): livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impres‑
são; 3. Em consequência, é inconstitucional, também, a Lei Complementar 77, de
13-7-1993, sem redução de textos, nos pontos em que determinou a incidência do
tributo no mesmo ano (art. 28) e deixou de reconhecer as imunidades previstas
no art. 150, VI, a, b, c e d, da CF (arts. 3º, 4º e 8º do mesmo diploma, LC 77/1993).
4. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente, em parte, para tais
fins, por maioria, nos termos do voto do relator, mantida, com relação a todos os
contribuintes, em caráter definitivo, a medida cautelar, que suspendera a cobrança
do tributo no ano de 1993. [Grifei.]

Já são inúmeros os precedentes em que o Supremo Tribunal Federal conheceu


de ações diretas em face de emendas constitucionais. Ora, se a Corte controla
repressivamente a constitucionalidade de emendas, não há distinção nos pro‑
cedimentos de fiscalização de constitucionalidade de reformas constitucionais
e de legislação, de modo que também não deverá haver, como de fato não há,
diferenciação no tratamento do controle preventivo por intermédio do mandado
de segurança impetrado por parlamentar.
Em verdade, o controle preventivo justifica-se em razão da gravidade da lesão
que se pode perpetrar na ordem jurídica. Observe-se, ademais, que a lesão às
cláusulas pétreas pode ser efetuada não apenas por propostas de emenda consti‑
tucional, mas também mediante a utilização de projetos de lei. Basta que imagi-
nemos, à guisa de exemplo, que uma maioria parlamentar, por meio de projeto
de lei, decida aprovar a pena de morte ou, por absurdo, a descriminalização da
pedofilia ou, ainda, estabelecer a censura prévia a jornais, livros e periódicos.
Essas hipóteses extremadas revelam não fazer sentido admitir-se o man-
dado de segurança preventivo em face de proposta de emenda e não o admitir
em face de projetos de lei violadores de cláusulas pétreas.
Dessa forma, se a jurisprudência admite o mandado de segurança em face
da tramitação de PEC, também o deve fazer, e o faz, ante o processamento de
projeto de lei. Isso porque os limites materiais ao poder constituinte derivado
são logicamente aplicáveis ao Poder Legislativo, sob pena de se autorizar o
legislador ordinário a alterar a Constituição naquilo que ela mesma vedou.
Ademais, quando se alega violação a normas meramente procedimentais, regi‑
mentais das casas legislativas, esta Corte, aí sim, vem afirmando o caráter interna
corporis da matéria. De maneira que só se admite o controle prévio mediante a
impetração de mandado de segurança para a defesa do direito público subjetivo
de parlamentar à observância, pelo Poder Legislativo, das limitações materiais à

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reforma da Constituição, dispostas nas cláusulas pétreas explícitas e implícitas


da Carta de 1988, ou para fazer cumprir o processo legislativo constitucional.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal permaneceu uníssona, por‑
tanto, no que concerne à admissão do controle de constitucionalidade prévio
de proposições legislativas tendentes a abolir cláusulas pétreas, nos termos do
art. 60, § 4º, da Constituição:
sempre que os corpos legislativos ultrapassem os limites delineados pela Constituição
ou exerçam as suas atribuições institucionais com ofensa a direitos públicos subjeti‑
vos impregnados de qualificação constitucional e titularizados, ou não, por membros
do Congresso Nacional. [MS 24.849, Pleno, rel. min. Celso de Mello, DJ de 29-9-2006.]

É também firme o posicionamento desta Corte no sentido do cabimento de man‑


dado de segurança para “coibir atos praticados no processo de aprovação de leis
e emendas constitucionais que não se compatibilizam com o processo legislativo
constitucional” (MS 24.642, rel. min. Carlos Velloso, DJ de 18-6-2004; MS 20.452/DF,
rel. min. Aldir Passarinho, RTJ, 116 (1)/47; MS 21.642/DF, rel. min. Celso de Mello,
RDA, 191/200; MS 24.645/DF, rel. min. Celso de Mello, DJ de 15-9-2003; MS 24.593/
DF, rel. min. Maurício Corrêa, DJ de 8-8-2003; MS 24.576/DF, rel. min. Ellen Gracie,
DJ de 12-9-2003; MS 24.356/DF, rel. min. Carlos Velloso, DJ de 12-9-2003).
Um caso emblemático na jurisprudência da Corte e na história ainda recente
da Constituição Federal de 1988 diz respeito ao início dos trabalhos do Congresso
Nacional sobre o processo de revisão constitucional. No dia 22 de setembro de
1993, a Mesa do Congresso Nacional pretendia instalar a sessão na qual faria a
leitura do Projeto de Resolução 3/1993, que disporia sobre a organização dos
trabalhos da revisão constitucional.
O art. 28 do Regimento Comum dispunha que as sessões somente poderiam ser
abertas com a presença de, no mínimo, 1/6 dos representantes de cada casa legisla‑
tiva. Durante a sessão, houve dúvida acerca da contagem dos parlamentares pre‑
sentes, uma vez que o painel eletrônico acusava determinado montante e, segundo
a Presidência do Congresso, mais congressistas estavam presentes no Plenário.
Apesar de o art. 29 do Regimento Comum dispor que a sessão apenas seria aberta
se houvesse o quórum regimental e que, não havendo, após se aguardar trinta minu‑
tos, a sessão não se realizaria, o então presidente do Congresso, senador Humberto
Lucena, chegou a abrir os trabalhos, os quais, após tumulto, foram suspensos.
Contra esse ato, os parlamentares Luiz Alfredo Salomão, Hélio Bicudo, Miguel
Arraes e Aldo Rebelo impetraram mandado de segurança, cujo pedido principal
consistiu na concessão da segurança “para o fim de declarar a nulidade da sessão
do Congresso Nacional do dia 22-9-2003, em respeito ao Regimento Comum do

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Congresso Nacional, e sustar a tramitação do projeto de resolução multireferido,


garantindo aos impetrantes o exercício de todas as prerrogativas do seu mandato”.
Ao analisar o pedido, o relator do MS 21.754, ministro Marco Aurélio, houve
por bem conceder a liminar requerida, em 5-10-1993, por entender que a forma
correta e regimental de aferição do quórum das sessões congressuais é o “ponto
eletrônico”, e não qualquer outra modalidade de contagem eventualmente uti‑
lizada pela Presidência do Congresso. O ministro Marco Aurélio assim se pro‑
nunciou ao conceder a liminar:
(...) Em questão faz-se, na verdade, a obediência ao regimento, que consagra
o sistema eletrônico como o natural para saber-se da existência do quórum e,
também, dos resultados das votações.
Vejo esta impetração e o pedido de liminar como assentados no sinal do bom
direito. Repito que a espécie não envolve, em si, ato praticado sob o ângulo da
conveniência e da oportunidade, mas a inobservância de artigos do próprio
Regimento Comum que as duas casas do Congresso obrigaram-se a respeitar.
No que concerne ao risco de manter-se com plena eficácia a sessão em que lido o
Projeto de Resolução 3, de 1993, do Congresso Nacional, revela-o o fato de se estar
à véspera do início, propriamente dito, dos trabalhos de revisão constitucional.
A extensão das deliberações a se seguirem pressupõe a ausência de vício dos atos
que se mostraram preparatórios, caminhando-se, assim, com segurança, no que
visada a revisão constitucional.
Por tais razões, concedo a liminar pleiteada, para suspender, com os consectá-
rios legais pertinentes, a eficácia do procedimento formalizado na Quadragé-
sima Sétima Sessão Extraordinária do Congresso Nacional, ou seja, da leitura
do Projeto de Resolução 3, de 1993, que versa sobre os trabalhos da revisão
constitucional, até a decisão final deste mandado de segurança. [Grifei.]

O referido relator, com presteza, encaminhou o feito ao exame do Pleno do


Supremo Tribunal Federal. Em 7-10-1993, a Corte acompanhou voto do ministro
Francisco Rezek, a quem coube a redação do acórdão, para, ao contrário do que
entendeu o ministro Marco Aurélio, não conhecer do mandado de segurança,
ante a natureza interna corporis da matéria debatida nos autos. O acórdão restou
assim ementado:
Agravo regimental. Mandado de segurança. Liminar: (in)deferimento. Preliminar:
objeto do pedido. Decisão do Congresso Nacional. Interpretação do Regimento Interno.
Matéria interna corporis. Hipótese de não conhecimento.
I – O tema da cognoscibilidade do pedido precede o da apreciação do agravo
regimental contra despacho concessivo de liminar, e de seu cabimento à vista da
jurisprudência do Supremo.

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II – A natureza interna corporis da deliberação congressional – interpretação de


normas do Regimento Interno do Congresso – desautoriza a via utilizada. Cuida-se
de tema imune à análise judiciária. Precedentes do STF. Inocorrência de afronta
a direito subjetivo.
Agravo regimental parcialmente conhecido e provido, levando ao não conheci‑
mento do mandado de segurança. [MS 21.754, rel. p/ o ac. min. Francisco Rezek,
Plenário, DJ de 21-2-1997.]

Esse importante episódio demonstra que o Supremo Tribunal Federal tem sido
extremamente prudente ao exercer o controle preventivo de constitucionalidade
pela via do mandado de segurança impetrado por parlamentar, exigindo, sempre,
a demonstração de violação a cláusulas pétreas da Constituição e, assim, ao
direito subjetivo do parlamentar de não deliberar sobre proposições tendentes
a aboli-las, conforme disposto pelo art. 60, § 4º, CF/1988.
Isso significa, também, que de modo algum cabe, em hipóteses como a pre‑
sente, tentar evitar o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre pro‑
posição legislativa violadora de cláusulas pétreas, sob a alegação de se cuidar
de questão política.
Pedro Lessa já doutrinava que a violação da Constituição sempre abriria as
portas da jurisdição e, em especial, do Supremo Tribunal Federal, por mais polí‑
tica que se considerar a questão. Trecho de ementa de acórdão desta Corte,
publicado em 1914, revela que a jurisprudência é antiga e tranquila no sentido de
considerar que assuntos disciplinados por texto constitucional não são apenas
políticos: “O Supremo Tribunal Federal conhece de questões que não são mera-
mente políticas, o que, aliás, é um rudimento do sistema. Desde que a questão
está subordinada a textos expressos na Constituição, deixa de ser questão
exclusivamente política” (Grifei). (Sobre o assunto, ver: HORBACH, Carlos Bas‑
tide. Controle judicial da atividade política: As questões políticas e os atos de
governo. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 46, n. 182, abr./jun. 2009.)
Em meu discurso de posse na Presidência desta Corte, fiz questão de ressaltar:
O cumprimento dessas complexas tarefas, todavia, não tem o condão de interferir
negativamente nas atividades do legislador democrático.
Não há “judicialização da política”, pelo menos no sentido pejorativo do termo,
quando as questões políticas estão configuradas como verdadeiras questões
de direitos.
Essa tem sido a orientação fixada pelo Supremo, desde os primórdios da Re­­pública.
É certo, por outro lado, que esta Corte tem a real dimensão de que não lhe cabe
substituir-se ao legislador, muito menos restringir o exercício da atividade política,
de essencial importância ao Estado Constitucional.
Democracia se faz com política e mediante a atuação de políticos.

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Quando se tenta depreciar ou execrar a atividade política, está-se a menosprezar


a consciente opção de todos os brasileiros pelo regime democrático.
De igual forma, qualquer obstáculo erguido em oposição ao poder-dever de legis‑
lar – de que é exemplo o já desgastado modelo de edição de medidas provisórias –
afeta a construção de um processo democrático livre e dinâmico.
Nesse sentido, é necessário que se encontre um modelo de aplicação das medidas
provisórias que possibilite o uso racional desse instrumento, viabilizando, assim,
tanto a condução ágil e eficiente dos governos quanto a atuação independente
dos legisladores.
Os Poderes da República encontram-se preparados e maduros para o diálogo
político inteligente, suprapartidário, no intuito de solucionar um impasse que,
paralisando o Congresso, embaraça o processo democrático.
De fato, nos Estados constitucionais contemporâneos, legislador democrático
e jurisdição constitucional têm papéis igualmente relevantes. A interpretação e a
aplicação da Constituição são tarefas cometidas a todos os Poderes, assim como
a toda a sociedade.
A imanente e aparente tensão dialética entre democracia e Constituição, entre
direitos fundamentais e soberania popular, entre jurisdição constitucional e legis‑
lador democrático é o que alimenta e engrandece o Estado de Direito, tornando‑
-lhe possível o desenvolvimento, no contexto de uma sociedade aberta e plural,
baseada em princípios e valores fundamentais.
(...)
Nesse contexto também se mostra relevante o papel da jurisdição constitu-
cional na consolidação desse ambiente democrático. O Brasil tem talvez uma
das mais ativas jurisdições constitucionais do mundo, com amplo controle de
constitucionalidade concreto e abstrato. [Grifei.]

A atividade da jurisdição constitucional fortalece, assim, as condições para o


exercício legítimo da democracia. É exatamente isso que se faz presente neste
caso. Nos dias atuais, portanto, é mais que pacífico o entendimento no sentido
de que, havendo matéria constitucional em debate, não há como se afastar a
competência do Supremo Tribunal Federal.

b) O art. 60, § 4º, da Constituição Federal exige a análise do mérito da proposição


legislativa impugnada
Toda a jurisprudência do Supremo sobre a admissibilidade do controle preven‑
tivo de constitucionalidade, mediante impetração de mandado de segurança por
parlamentar, está intimamente relacionada à previsão constitucional de cláusu‑
las pétreas, bem como à específica redação da nossa Constituição nesse ponto.
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, em seu art. 60, § 4º, limitações
materiais ao poder de reforma da Constituição:

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§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:


I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.

Em razão de a redação do § 4º ser expressa ao se referir a objeto de delibera‑


ção, negando tal possibilidade às propostas tendentes a abolir cláusulas pétreas,
é que a jurisprudência do Supremo construiu essa possibilidade de controle
preventivo dessas proposições, mediante mandado de segurança impetrado
por parlamentar, para fazer valer o texto constitucional. É nesse sentido que as
limitações materiais fazem-se observar no procedimento legislativo.
Isso porque a vedação constitucional dirige-se à própria deliberação parlamen‑
tar, isto é, ao próprio procedimento legislativo, mas o parâmetro de controle
imposto pela Carta são as cláusulas pétreas (limites materiais, substanciais).
Desse modo, não há como esta Corte analisar a compatibilidade entre propo‑
sições legislativas e o núcleo essencial da Constituição sem examinar-lhes os
respectivos conteúdos.
Por essa razão, ante a redação que o constituinte originário conferiu ao art. 60,
§ 4º, as vedações materiais ao poder de reforma incidem, também, no momento
do procedimento legislativo, de modo que se convolam em espécies de limites,
a um só tempo, materiais e procedimentais.
Ao dispor, portanto, que não será objeto sequer de deliberação a proposta de
emenda tendente a abolir cláusulas pétreas, a Constituição, evidentemente, não
coloca apenas limites procedimentais ou formais ao processo legislativo, mas a
ele impõe, de modo explícito, limitações de ordem material.
Isso quer dizer que o parlamentar, para impetrar mandado de segurança com
vistas ao trancamento da tramitação de proposição legislativa, deve fazer juízo
sobre o objeto da proposta. O impetrante precisa analisar, na prática, se a PEC
ou o PL veiculam matéria cuja tramitação é vedada pelo art. 60, § 4º, da CF.
A impetração, assim, trabalha com o conteúdo, com a matéria da proposta
legislativa. Do mesmo modo, o Supremo Tribunal Federal necessita examinar o
texto, o objeto da proposição legislativa, para poder vislumbrar eventual ofensa
ao parâmetro constitucional previsto no art. 60, § 4º. Em outras palavras, para
saber se determinada proposta legislativa é tendente a abolir cláusulas pétreas,
a Corte precisa examinar, por óbvio, o conteúdo da proposição tal como se apre‑
senta no momento da impetração.
Por essa razão, só se consegue perceber a inconstitucionalidade do PLC
14/2013 verificando-se o seu conteúdo e a circunstância que envolvia a sua

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deliberação, que revelou seu caráter casuístico, ofensivo a direitos fundamen-


tais como a isonomia, a igualdade de chances, a proporcionalidade, a segu-
rança jurídica e a liberdade de criação de legendas, todos cláusulas pétreas
da Constituição Federal de 1988. Neste ponto, destaco que a Procuradoria-
-Geral da República, em sua manifestação, corroborou esse entendimento.
Isso porque a Constituição veda o próprio processamento de proposição ofen‑
siva às cláusulas pétreas. Quer evitar-se a deliberação, o debate a respeito de
proposta legislativa que viole o núcleo essencial da Constituição. Dessa forma,
ante a clareza do texto constitucional e a firmeza da jurisprudência da Corte
sobre o tema, não há como admitir a tese de que o mandado de segurança,
nesses casos, só deve ser conhecido nas hipóteses de existência de vício formal
no processo legislativo.
É que o texto constitucional requer a análise do mérito da proposição legis‑
lativa para que se possa aferir eventual violação ao seu art. 60, § 4º. E essa é a
orientação pacífica da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Nesses casos, portanto, a inconstitucionalidade já existiria, como afirmado,
antes mesmo de o projeto ou a proposta se transformar ou em lei ou em emenda
constitucional, porque o processamento, por si só, já desrespeitaria, frontalmente,
a própria Constituição.
E dizer que essa jurisprudência da Corte apenas se aplica às PECs, e não aos
PLs, não revela apenas desconhecimento, mas também uma interpretação incon‑
gruente e desarrazoada. Evidentemente, é mais fácil fraudar o núcleo essencial
da Constituição, condensado nas cláusulas pétreas, mediante a aprovação de
projetos de lei, do que por meio de emendas constitucionais, cujo processo de
aprovação é mais dificultoso.
Desse modo, reitere-se, não admitir mandado de segurança em face de projeto
de lei violador de cláusulas pétreas significaria permitir uma completa inversão
de valores e de hierarquia, concedendo ao legislador ordinário prerrogativa que
a Constituição vedou ao seu próprio poder de reforma.
Atento a isso, concedi a liminar no presente caso, ante a possibilidade real
de afronta ao direito fundamental de participação política, mediante a livre
criação de partidos em situação de igualdade com relação aos demais atores
públicos. Além disso, considerei o fato peculiar de a proposição legislativa apre-
sentar regulamentação em sentido diametralmente oposto à diretriz traçada
recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.430.
É bom que fique claro do que se está a cuidar. No referido julgamento da
ADI 4.430, ocorrido em 29-6-2012, o Plenário desta Corte, por maioria, acom-
panhou o voto do relator, ministro Dias Toffoli, para entender que o art. 17

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da Constituição protege, de modo especial, os partidos políticos que tenham


representação no Congresso, não importando se esta representatividade é
resultado da criação de nova legenda no curso da legislatura, em razão do
direito político fundamental da liberdade de criação de partidos. Confira-se
trecho do bem fundamentado voto do ministro Dias Toffoli:
Além das razões acima, para chegar à conclusão do meu voto, tomo ainda por
base, em resumo, os seguintes preceitos:
A) a liberdade de criação de partidos políticos (art. 17, CF/1988);
B) a paridade constitucional entre as hipóteses de criação, fusão e incorporação
de partidos políticos;
C) a inviabilidade de aplicação do critério do desempenho eleitoral para os casos
de criação de novas legendas partidárias;
D) a distinção entre a hipótese de migração direta de deputados federais para
partido político novo (criação, fusão e incorporação de partido político) e a hipó‑
tese de migração para legenda que já participou de eleições anteriores (justa causa
sem perda de mandato).
Como salienta a sempre clássica lição de Giovanni Sartori, o pluralismo político
“indica uma diversificação do poder e, mais precisamente, a existência de uma
pluralidade de grupos que são ao mesmo tempo independentes e não inclusivos”
(Partidos e sistema partidários. Ed. Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar; Brasília: Uni‑
versidade de Brasília, 1982. p. 34).
Na atualidade, são os partidos políticos os principais entes pluralistas. Consectárias
diretas do pluralismo, as agremiações partidárias constituem fundamento próprio da
República Federativa do Brasil, conforme inscrito no art. 1º, V, da Lei Fundamental.
Mereceram, por isso, na Constituição de 1988, atenção e disciplina especial, tendo‑
-se destacado sua relevância no processo eleitoral, estabelecendo-se, inclusive,
como condição de elegibilidade a filiação partidária (CF, art. 17).
A Carta da República consagra, ademais, logo na cabeça do art. 17 da Carta Maior,
a liberdade de criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos,
limitada essa liberdade à necessidade de resguardar os valores da soberania popu‑
lar, do regime democrático, do pluripartidarismo e dos direitos fundamentais da
pessoa humana. Vide:
“Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos,
resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo,
os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:
I – caráter nacional;
II – proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo
estrangeiros ou de subordinação a estes;
III – prestação de contas à Justiça Eleitoral;
IV – funcionamento parlamentar de acordo com a lei.”

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Tal inovação não passou despercebida nos debates da Assembleia Nacional Cons‑
tituinte. Nas palavras do deputado Francisco Rossi:
“Por oportuno, lembramos, nossa proposta contempla a possibilidade da livre
criação de partidos. Essa medida, fundamental na construção de uma socie‑
dade democrática e pluralista, harmoniza-se, de forma incontestável, com a
criação dos distritos e, nestes, com o voto majoritário e proporcional, elementos
essenciais para a ativação do processo de criação de agremiações partidárias.”
(...)
Se o processo eleitoral deve representar o instrumento mediante o qual as diver‑
sas e variáveis alternativas políticas, sociais e econômicas são apresentadas ao
conjunto de eleitores, que apontarão suas preferências com o exercício do sufrágio,
são os partidos políticos, nesse contexto, que viabilizam o aporte de ideias plurais.
Como salienta Fávila Ribeiro, o partido político, em consonância com o postu‑
lado do pluralismo político,
“[c]orresponde antes de tudo a uma exigência da democratização do poder
político de modo a que se possa refletir a pluralidade de opiniões no ambiente
da sociedade, tornando possível o pacífico revezamento das investiduras gover‑
namentais aplicando o método da determinação aritmética das tendências
majoritárias.” (Op. cit., p. 222.)
Daí a relevância do pluripartidarismo e do estímulo constitucional à formação e ao
desenvolvimento das agremiações partidárias como sujeitos do processo eleitoral.
Por outro lado, como já apontava Maurice Duverger, primeiro autor a estudar as
influências dos sistemas eleitorais no processo político, é própria da representa‑
ção proporcional a capacidade de multiplicar o número de partidos, favorecendo
a criação de novos e a cisão dos existentes (Os partidos políticos. Rio de Janeiro:
Zahar, 1970).
Extraio, portanto, do princípio da liberdade de criação e transformação de
partidos, contido no caput do art. 17 da Constituição da República, o fundamento
constitucional para reputar como legítimo o entendimento de que, na hipótese de
criação de um novo partido, a novel legenda, para fins de acesso proporcional
ao rádio e à televisão, leva consigo a representatividade dos deputados federais
que para ela migraram diretamente dos partidos pelos quais foram eleitos.
Destaque-se que não se está a falar apenas em liberdade abstrata de criação,
no sentido formal de não se estabelecerem obstáculos a sua formação, mas,
especialmente, no seu sentido material de viabilizar a permanência e o desen-
volvimento dessas novas agremiações.

E prossegue o ministro Dias Toffoli, em seu substancioso voto, a demonstrar


que conceder o direito de livre criação de agremiações partidárias e entender
como justa causa para a troca de partidos a criação de legenda nova não pode se
compatibilizar com a retirada das prerrogativas da representatividade política
do parlamentar:

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Com efeito, impedir que o parlamentar fundador de novo partido leve consigo sua
representatividade, para fins de divisão do tempo de TV e rádio, esbarra, exata‑
mente, no princípio da livre criação de partidos políticos, pois atribui, em última
análise, um desvalor ao mandato do parlamentar que migrou para o novo par-
tido, retirando-lhe parte das prerrogativas de sua representatividade política.
Restaria, em evidência, desestimulada a criação de novos partidos, em especial
por parte daqueles que já ocupam mandato na Câmara Federal.
Ressalte-se, ademais, que a liberdade de criação de agremiações foi pre-
vista, constitucionalmente, ao lado da liberdade de fusão, de incorporação e
de extinção de partidos. Recebeu, portanto, o mesmo patamar constitucional
dos direitos de fusão e incorporação, cabendo à lei, e também ao seu intérprete,
preservar essa equipação do sistema constitucional.
Sendo assim, diante da explicitação operada pelo § 4º do art. 47 da Lei das Elei‑
ções de que “o número de representantes de partido que tenha resultado de fusão
ou a que se tenha incorporado outro corresponderá à soma dos representantes
que os partidos de origem possuíam na data mencionada no parágrafo anterior”,
deve-se aplicar entendimento semelhante em relação à hipótese de criação de novo
partido, de forma a preservar a paridade constitucional entre as hipóteses de
criação, fusão e incorporação de partidos políticos.
É bem verdade que, segundo o § 3º do art. 47 da Lei 9.504/1997, a representação
de cada partido na Câmara dos Deputados será a resultante da eleição. Segundo
essa regra, o número de representantes de cada partido na Câmara Federal, que
serve de base para o cálculo do tempo de televisão e de rádio, é aquele definido
pela última eleição para deputado federal.
De início, a redação originária do § 3º do art. 47 da Lei 9.504/1997 estabelecia
que “a representação de cada partido na Câmara dos Deputados será a existente
na data de início da legislatura que estiver em curso”.
(...)
Como o deputado federal eleito por um partido ainda poderia mudar para outro
até o início da legislatura, na sequência, a Lei 11.300, de 2006, alterou o dispositivo
legal, passando a fazer a previsão hoje vigente de que “a representação de cada
partido na Câmara dos Deputados é a resultante da eleição”.
Sabe-se que o objetivo dessa regra era exatamente evitar alterações partidárias
rotineiras após o pleito, com o objetivo evidente de se aumentar a participação da
legenda, seja quanto aos recursos do Fundo Partidário, seja quanto ao tempo de
propaganda partidária e eleitoral. Tal prática servia para aumentar a base daquelas
legendas que saíam vencedoras da disputa ao cargo majoritário e passavam, pois, a
ter um alto poder de sedução. Essa realidade era prática recorrente, pública e notória.
Foi exatamente nessa toada que a legislação vinculou a proporcionalidade da
representação na Câmara dos Deputados, para o cálculo do tempo do rádio e da TV,
ao início da legislatura em curso, e, posteriormente, com a alteração promovida
pela Lei 11.300/2006, ao resultado da eleição. Já não adiantava a mudança de par‑
tido após o pleito para aumentar ou diminuir o tempo de rádio e televisão a que

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cada partido teria direito, já que tal contabilização passou a ser feita levando-se
em conta o resultado das votações.
Contudo, tal quadro sofreu substancial alteração.
Com efeito, esta Suprema Corte, confirmando o posicionamento do Tribunal
Superior Eleitoral na Consulta 1.398/DF, de 27-3-2007, e alterando o entendimento
consolidado no MS 20.927, de 1989, consagrou o princípio constitucional da fide-
lidade partidária, entendendo que a troca de partido por parlamentar eleito por
dada agremiação enseja a essa o direito de reaver o mandato perdido, em face
da caracterização da infidelidade partidária, de forma que as modificações de
legendas resultam, em consequência, na perda do mandato (MS 26.602/DF, rel.
min. Eros Grau; MS 26.603/DF, rel. min. Celso de Mello; MS 26.604/DF, rel. min.
Cármen Lúcia; MS 26.890/DF, rel. min. Celso de Mello).
Por outro lado, foram fixadas justas causas aptas a legitimarem a mudança de
legenda e, entre essas causas, sobressaem, exatamente, o nascimento de novo
partido político legalmente constituído no Estado pluripartidário brasileiro e
a fusão ou a incorporação de partidos.
Com esse espírito, em observância ao que decidido pelo Supremo Tribunal Federal
nos mandados de segurança citados, o Tribunal Superior Eleitoral, por meio da
Resolução 22.610, de 2007, disciplinou o processo de perda de cargo eletivo, bem
como o de justificação de desfiliação partidária, definindo as seguintes hipóteses
de justa causa para a mudança partidária:
“Art. 1º O partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a
decretação da perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária
sem justa causa.
§ 1º Considera-se justa causa:
I – incorporação ou fusão do partido;
II – criação de novo partido;
III – mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário;
IV – grave discriminação pessoal.”
Com efeito, se o parlamentar resolve participar da criação de nova legenda ou
migrar para novo partido, tudo com a chancela deste Supremo Tribunal Federal
e do Tribunal Superior Eleitoral, e em consonância com o pluralismo político e a
liberdade de criação de partidos, não há que se falar em infidelidade partidária.
Os debates relativos à fidelidade partidária são, sem dúvida, relevantes para o
deslinde da questão aqui posta, especialmente no que toca à criação de novas
legendas e à legítima migração de parlamentares para o novel partido. Entretanto,
a pergunta a ser respondida, na presente análise, não é se o mandato pertence
ao eleito (mandato livre) ou ao partido (mandato partidário). Não se está a dis‑
cutir a titularidade do mandato, mas a representatividade do parlamentar que,
legitimamente, migra para um partido recém-criado.
Ora, se se entende que a criação de partido político autoriza a migração dos par‑
lamentares para a novel legenda, sem que se possa falar em infidelidade partidária

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ou em perda do mandato parlamentar, essa mudança resulta, de igual forma, na


alteração da representação política da legenda originária.
Prestigiando a Constituição da República, o pluralismo político e o nascimento
de novas legendas, não é consonante com o espírito constitucional retirar dos par‑
lamentares que participarem da criação de novel partido a representatividade de
seu mandatos e as benesses políticas que deles decorrem. Fazer isso seria o mesmo
que dizer que os parlamentares que migram para uma nova legenda mantêm
o mandato mas não mais carregam, durante toda a legislatura sequente, a
representatividade que lhes conferiram seus eleitores.
Desse modo, não há “autêntica” liberdade de criação de partidos políticos se não se
admite que os fundadores de uma nova agremiação que detenham mandato parla‑
mentar possam contar com sua representatividade para a divisão do tempo de propa‑
ganda. Permitir que isso ocorra significa desigualar esses parlamentares de seus pares.
Cumpre observar, ademais, que a Lei das Eleições, ao adotar o marco da última
eleição para deputado federal para fins de verificação da representação do
partido (art. 47, § 3º, da Lei 9.504/1997), não considerou a hipótese de criação
de nova legenda.
Essa limitação somente faz sentido quando aplicada aos partidos políticos que
já tenham participado de eleição e não tenham logrado eleger representantes
na Câmara dos Deputados. Situação bastante distinta é a daqueles partidos
políticos criados após finda a eleição e que, por óbvio, dela não participaram.
Ora, se o partido novo não pôde participar de qualquer certame, como poderia
ele se submeter a um critério de desempenho?
Aplicando-se tal critério, um partido novo que já nasça com representação na
Câmara dos Deputados deverá aguardar novas eleições para a Câmara Federal
para, somente a partir da representação obtida nesse pleito, participar da divi‑
são proporcional do tempo de propaganda eleitoral na TV e no rádio. Ou seja,
um partido criado, por exemplo, nesta legislatura, independentemente das suas
dimensões e da representação atual, somente passaria a contar com o tempo de
propaganda eleitoral de forma proporcional após as eleições de 2014. O novo par‑
tido ficaria com sua representação em suspenso até a realização de novas eleições
para deputado federal, em condições de subpartido pelo período de quatro anos.
A toda evidência, esse entendimento resulta em forte obstáculo direcionado às
agremiações partidárias recém-criadas, desconsiderando-se, ainda, a dimensão
desses partidos e a representação de seus quadros parlamentares.
O resultado de eleição anterior não pode ter o efeito de afastar, para pleito eleito‑
ral diverso, a representatividade adquirida por partido novo, que, evidentemente,
não tomou parte do referido pleito. Aqui o que deve prevalecer não é o desem-
penho do partido nas eleições (critério inaplicável aos novos partidos), mas,
sim, a representatividade política conferida aos parlamentares que deixaram
seus partidos de origem para se filiarem ao novo partido político, recém-criado.
(...)
Se, por um lado, a legenda ainda não participou da eleição, afastar a aplicação do

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inciso II do § 2º do art. 47 da Lei 9.504/1997 seria conferir ao partido novo, que já
nasce e conta com parlamentares, o mesmo tratamento conferido aos partidos
já rejeitados pelo voto popular e que, por isso, não contam com representação
na Câmara Federal. Situações que, no meu sentir, não se equiparam.
Com efeito, conforme já salientado anteriormente, a Constituição Federal dis-
tinguiu os partidos que têm representação no Congresso Nacional daqueles que
não têm essa representação, concedendo certas prerrogativas, exclusivamente,
às agremiações que gozam de representatividade nacional (art. 5º, LXX, a; art. 103,
VIII; art. 53, § 3º; art. 55, § 2º e § 3º; art. 58, § 1º).
Todavia, não faz a Lei Maior distinção em relação ao momento em que é aufe-
rida a representação pela agremiação partidária, se resultante da eleição ou de
momento posterior. A Carta Maior exige a representação, mas não faz nenhum
tipo de restrição em relação ao momento em que o partido a adquire. Sendo assim,
não poderia fazê-lo o legislador ordinário nos casos de criação, fusão e incor-
poração, haja vista o princípio da liberdade de criação e transformação dos
partidos políticos contido no caput do art. 17 da Constituição Federal.
Dessa forma, conquanto admitida a distinção entre partidos políticos com e
sem representação no Congresso Nacional, entendo que não há respaldo consti‑
tucional para a adoção de tratamento distinto entre os partidos que gozam dessa
representação, penalizando as agremiações recém-criadas que a adquiram
pela migração de parlamentares de outros partidos, ainda que em momento
posterior à realização das eleições nacionais.
Se esse fosse o caso, os novos partidos, durante toda a legislatura em que criados,
estariam impedidos de ajuizar ação direta de inconstitucionalidade e mandado de
segurança coletivo, bem como de oferecer representação em face de parlamenta‑
res pela prática de atos passíveis de perda de mandato, ainda que contassem com
parlamentares em seus quadros e que fossem, por isso, dotados de representação
no Congresso Nacional.
Compare-se, ademais, a criação de partido novo com a fusão de legendas em
momento posterior às eleições. Nesse caso, a agremiação resultante da fusão de
legendas também não participa do pleito eleitoral pertinente. No caso de fusão,
desaparecem dois partidos para formar um terceiro, que não se confunde com
nenhuma das agremiações que lhe dão origem, podendo, inclusive, contar com
programa partidário completamente distinto do desses. Nesse caso, contudo, ainda
que esse partido também não tenha participado de eleições gerais para a Câmara
dos Deputados, tal como na hipótese de criação de partido, conforme disposição
expressa no § 4º do art. 47 da Lei das Eleições, ele preserva a representatividade
dos partidos que o originam.
Não há razão, portanto, para conferir às hipóteses de criação de nova legenda
tratamento diverso daquele conferido aos casos de fusão, já que ambas as pos-
sibilidades detêm o mesmo patamar constitucional (art. 17, caput, CF/1988),
cabendo à lei, e também ao seu intérprete, preservar o sistema.
(...)

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Por todas essas razões, reputo constitucional a interpretação que reconhece aos
partidos criados após a realização de eleições para a Câmara dos Deputados o direito
à devida proporcionalidade na divisão do tempo de propaganda eleitoral no rádio e
na televisão prevista no inciso II do § 2º do art. 47 da Lei 9.504/1997, devendo-se con‑
siderar, para tanto, a representação dos deputados federais que, embora eleitos por
outros partidos, migrarem direta e legitimamente para a novel legenda na sua criação.
Essa interpretação prestigia, por um lado, a liberdade constitucional de cria-
ção de partidos (art. 17, caput, CF/1988) e, por outro, a representatividade do
partido que já nasce com representantes parlamentares, tudo em consonância
com o sistema de representação proporcional brasileiro.

Há menos de um ano, o Supremo Tribunal Federal adotou essas razões ao


analisar o art. 17 da Constituição. O projeto de lei em exame (PLC 14/2013), nos
termos em que foi aprovado pela Câmara dos Deputados, dispôs em sentido
diametralmente oposto à interpretação constitucional do Supremo, impe-
dindo que os parlamentares que deixem seus partidos para criarem novas
legendas portem consigo as prerrogativas da representação (tempo de rádio
e TV e cotas de Fundo Partidário).
Haverá evidente casuísmo se o sistema político brasileiro, em uma mesma
legislatura, permitir que um grupo de parlamentares (beneficiados pela decisão
desta Corte na ADI 4.430) carregue consigo as prerrogativas da representação
e vedar o mesmo benefício a outros parlamentares, que seriam atingidos pelo
projeto PLC 14/2013. Daí o ajuizamento do presente mandado de segurança.
Isso porque a simples lesão ao princípio da isonomia, cláusula pétrea da
Constituição de 1988, configura razão suficiente para embasar a irresignação.
A essas circunstâncias soma-se a clareza do posicionamento desta Corte
quanto à inviabilidade de tramitação de proposição legislativa tendente a
abolir cláusulas pétreas da Constituição, nos termos do seu art. 60, § 4º. Por-
tanto, não há dúvida de que tanto a impetração quanto a liminar concedida
nesse mandado de segurança estão absolutamente inseridos na tradição
constitucional brasileira, representando práxis político-jurídica admitida
pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

II – Mérito
a) O direito à participação política como direito fundamental (cláusula pétrea) e a centra-
lidade dos partidos políticos no regime democrático disciplinado pela CF/1988
O mandado de segurança em exame foi impetrado para obstar a tramitação do
Projeto de Lei 4.470/2012, que já foi aprovado pela Câmara dos Deputados e encon‑
trava-se no Senado Federal (PLS 14/2013), em fase de iminente votação de reque‑
rimento de urgência, quando concedi a liminar para suspender-lhe a tramitação.

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Alega o impetrante que o referido projeto de lei tem por objetivo, nos termos de
sua própria ementa, determinar que “a migração partidária que ocorrer durante
a legislatura não importará na transferência dos recursos do fundo partidário e
do horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão”.
Consoante afirmei na decisão liminar, a intenção do projeto é impedir que
os parlamentares, ao criarem novas legendas, levem consigo as suas respecti‑
vas “cotas de representatividade”, ou seja, carreguem para o novo partido o que
equivaleria às suas participações em termos de valores do fundo partidário e
de tempo de propaganda eleitoral no horário gratuito de rádio e de televisão
distribuído aos partidos.
Conforme fundamentei até aqui neste voto, para se proceder ao exame da
violação de cláusulas pétreas em razão da tramitação de proposição legislativa,
faz-se imprescindível analisar o seu conteúdo, uma vez que representam limi‑
tações materiais ao poder de reforma, com reflexos procedimentais, na medida
em que a vedação recai sobre a própria deliberação (art. 60, § 4º, CF/1988).
O Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência sólida e já antiga sobre a
qualificação dos direitos políticos fundamentais como cláusulas pétreas. Isso
porque são os direitos políticos os viabilizadores do direito de participação polí‑
tica inerente ao regime democrático. Nesse contexto, a ordem constitucional
brasileira de 1988 elevou os partidos políticos a uma posição institucional central,
uma vez que não se admite candidatura avulsa, ou seja, a filiação partidária é
condição sine qua non para o exercício da democracia no Brasil.
Em razão desse reconhecimento da importância dos partidos em nosso regime
democrático, esta Corte, com acerto, reconhece serem fundamentais os direitos
relacionados à liberdade de criação de legendas, à viabilidade do funcionamento
parlamentar, à autonomia partidária e ao próprio pluripartidarismo, consti‑
tuindo, assim, cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988.
São diversos os precedentes nos quais o Supremo Tribunal Federal teve a
oportunidade de assentar o caráter de fundamentalidade dos direitos políticos,
em especial daqueles relacionados aos partidos políticos. Entre eles, deve-se res‑
saltar o julgamento conjunto das ADI 1.351 e 1.354, rel. min. Marco Aurélio (DJ de
30-3-2007), em que se discutiu a constitucionalidade da denominada cláusula de
barreira, bem como o julgamento da ADI 3.685, rel. min. Ellen Gracie, Plenário,
DJ de 10-8-2006, em que se discutiu a constitucionalidade da EC 52/2006, que
restabeleceu a chamada desverticalização.
Neste último caso, teci considerações sobre a fundamentalidade dos partidos
políticos em nosso sistema constitucional. Se é certo que o constituinte de 1988,
ao estabelecer a possibilidade de reforma constitucional, impôs limites formais

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rígidos para tal processo (CF, art. 60, I, II, III, §§ 1º, 2º, 3º e 5º), por outro lado,
deixou a cargo do intérprete constitucional a tarefa de delimitar os princípios que
conformariam a identidade material da Constituição, ao estabelecer, no art. 60,
§ 4º, um rol relativamente aberto de cláusulas de imutabilidade.
Tem sido intensa a discussão, entre nós, sobre a aplicação das chamadas
cláusulas pétreas. Muitos afirmam que determinado princípio ou disposição
não pode ser alterado sem afronta às cláusulas pétreas. Outros sustentam que
determinada proposta afrontaria uma decisão fundamental do constituinte e
não poderia, por isso, ser admitida.
Uma concepção decorrente da ideia de soberania popular deveria admitir que
a Constituição pudesse ser alterada a qualquer tempo por decisão do povo ou de
seus representantes (MAUNZ-DÜRIG, Kommentar zum Grundgesetz, art. 79, III, n.
21). Evidentemente, tal entendimento levaria a uma instabilidade da Constituição,
a despeito das cautelas formais estabelecidas para uma eventual mudança. Fica
evidenciada, nesse ponto, a permanente contradição entre o poder constituinte
originário, que outorga ao povo o direito de alterar a Constituição, e a vocação
de permanência desta, que repugna mudanças substanciais (cf., sobre o assunto,
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. v. II, p. 151 e seguintes).
Do prisma teórico, a questão foi seriamente contemplada por Carl Schmitt,
no seu Verfassungslehre (Teoria da Constituição). A problemática assentar-se-ia,
segundo Schmitt, na distinção entre constituinte (Verfassungsgeber = Schöpfer der
Verfassung) e legislador constituinte (Verfassungsgezetzgeber = Gesetzgeber über
die Verfassung). Schmitt enfatizava que a modificação de uma constituição não
se confunde com sua abolição, acrescentando, com base no exemplo colhido do
art. 2º da Lei Constitucional francesa, de 14 de agosto de 1884 (La forme républi-
caine du Gouvernement ne peut faire 1’objet d “une proposition de revision”):
Se uma determinada modificação da Constituição é vedada por uma disposição
constitucional, se trata apenas de uma confirmação da diferença entre revisão
e abolição da Constituição. [Teoría de la Constitución. Trad. de Francisco Ayala.
Madrid: Alianza, 1996. p. 121.]

Portanto, para Schmitt, não se fazia mister que a Constituição declarasse a


imutabilidade de determinados princípios. É que a revisão não poderia, de modo
algum, afetar a continuidade e a identidade da Constituição:
Os limites da faculdade de reformar a Constituição resultam do bom entendimento do
conceito de reforma constitucional. Uma faculdade de reformar a Constituição atri‑
buída por uma normatização constitucional, significa que uma ou várias regulações
constitucionais podem ser substituídas por outras regulações constitucionais, mas

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apenas sob o pressuposto de que permaneçam garantidas a identidade e a continui‑


dade da Constituição considerada como um todo. A faculdade de reformar a Consti‑
tuição contém, pois, tão somente a faculdade de praticar, nas disposições constitucio‑
nais, reformas, adições, refundições, supressões, etc.; porém mantendo a Constituição
(...). [Teoría de la Constitución. Trad. de Francisco Ayala. Madrid: Alianza, 1996. p. 121.]

Assim, para Carl Schmitt, “reforma constitucional não é, pois, destruição da


Constituição”, de forma que devem ser proibidas “expressamente as reformas que
vulnerem o espírito e os princípios da Constituição” (Teoría de la Constitución.
Trad. de Francisco Ayala. Madrid: Alianza, 1996, p. 119/121).
A alteração de elementos essenciais da Constituição configuraria, assim, não
uma simples revisão, mas, verdadeiramente, a sua própria supressão (cf., também,
BRYDE, Otto-Brun. Verfassungsentwicklung, Stabilität und Dynamik im Verfassungs-
recht der Bundesrepublik Deutschland. Baden-Baden, 1982. p. 233).
A concepção de Schmitt relativiza um pouco o valor exclusivo da declaração
do constituinte originário sobre a imutabilidade de determinados princípios ou
disposições, atribuindo-lhe quase conteúdo declaratório.
Tais cláusulas devem impedir, todavia, não só a supressão da ordem constitu‑
cional [BVerfGE, 30:1(24), mas também qualquer reforma que altere os elementos
fundamentais de sua identidade histórica (HESSE, Konrad. Grundzüge des Ver-
fassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 1982, cit., p. 262). É verdade que
importantes autores consideram risíveis os resultados práticos de tais cláusulas,
diante de sua falta de eficácia em face de eventos históricos como os golpes e as
revoluções (cf. LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Tradução espanhola,
2. ed. Barcelona, 1976. p. 192).
Isso não deve impedir, porém, que o constituinte e os órgãos constitucionais
procurem evitar a ocorrência de tais golpes. Certo é que tais proibições dirigidas
ao poder de revisão constituem um dos instrumentos de proteção da Constitui‑
ção (BRYDE, Otto-Brun. Op. cit., 1982. p. 227).
Otto-Brun Bryde destaca que as ideias de limites materiais de revisão e de cláu-
sulas pétreas expressamente consagradas na Constituição podem estar muito
próximas. Se o constituinte considerou determinados elementos de sua obra tão
fundamentais que os gravou com cláusulas de imutabilidade, é legítimo supor
que nelas foram contemplados os princípios fundamentais (BRYDE, Verfassungs-
entwicklung, op. cit., 1982. p. 236). Nesse sentido, a disposição contida no art. 79,
III, da Lei Fundamental de Bonn poderia ser considerada, em grande parte, de
caráter declaratório.
Em qualquer hipótese, os limites do poder de revisão não se restringem, neces‑
sariamente, aos casos expressamente elencados nas garantias de eternidade. Tal

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como observado por Bryde, a decisão sobre a imutabilidade de determinado


princípio não significa que outros postulados fundamentais estejam submetidos
ao poder de revisão (BRYDE, Verfassungsentwicklung, p. 237).
O efetivo significado dessas cláusulas de imutabilidade na práxis constitu‑
cional não está imune a controvérsias. Caso se entenda que elas contêm uma
“proibição de ruptura de determinados princípios constitucionais” (Verfassungs-
prinzipiendurchbrechungsverbot), tem-se de admitir que o seu significado é bem
mais amplo do que uma proibição de revolução ou de destruição da própria
Constituição (Revolutions – und Verfassungsbeseitigungsverbot).
É que, nesse caso, a proibição atinge emendas constitucionais que, sem supri‑
mir princípios fundamentais, acabam por lesá-los topicamente, deflagrando um
processo de erosão da própria Constituição (BRYDE, Verfassungsentwicklung, op.
cit., 1982. p. 242).
A Corte constitucional alemã confrontou-se com esta questão na controvérsia
sobre a constitucionalidade de emenda que introduzia restrição à inviolabili‑
dade do sigilo da correspondência e das comunicações telefônicas e telegráfi‑
cas, à revelia do eventual atingido, vedando, nesses casos, o recurso ao Poder
Judiciário (Lei Fundamental, art. 10, II, c/c art. 19, IV). A questão foi submetida
ao Bundesverfassungsgericht, em processo de controle abstrato, pelo Governo
do Estado de Hessen, e em recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde), for‑
mulado, entre outros, por advogados e juízes, sob a alegação de que a restrição
à garantia judicial (arts. 10, § 2º, e 19, § 4º) não se mostrava compatível com o
princípio do Estado de Direito (Rechtsstaatsprinzip).
Nessa decisão do Bundesverfassungsgericht, de 1970, sustentou-se que a dis‑
posição contida no art. 79, III, da Lei Fundamental visa a impedir que “a ordem
constitucional vigente seja destruída, na sua substância ou nos seus fundamentos,
mediante a utilização de mecanismos formais, permitindo a posterior legalização
de regime totalitário” (BVerfGE, 30:1(24); BVerfGE, 34:9(19); HESSE, Grundzüge des
Verfassungsrechts, cit., p. 262-4).
Essa interpretação minimalista das garantias de eternidade foi amplamente
criticada na doutrina, uma vez que, na prática, o Tribunal acabou por consagrar
uma atitude demissionária, que retira quase toda a eficácia daquelas disposições.
A propósito dessa decisão, vale registrar a observação de Bryde:
Enquanto a ordem constitucional subsistir, não será necessário que o Bundesver-
fassungsgericht suspenda decisões dos órgãos de representação popular tomadas
por 2/3 de votos. Já não terá relevância a opinião do Tribunal numa situação política
em que princípios fundamentais contidos no art. 79, III, sejam derrogados. [BRYDE,
Verfassungsentwicklung, op. cit., 1982. p. 240.]

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Não há dúvida, outrossim, de que a tese que vislumbra nas garantias de eter‑
nidade uma “proibição de ruptura de determinados princípios constitucionais”
(Verfassungsprinzipiendurchbrechungsverbot) não parece merecer reparos do prisma
estritamente teórico. Não se cuida de uma autovinculação (Selbstbindung) do cons‑
tituinte, até porque esta somente poderia ser admitida no caso de identidade entre
o constituinte e o legislador constituinte ou, em outros termos, entre o detentor do
poder constituinte originário e o derivado. Ao revés, é a distinção entre os poderes
constituintes originário e derivado que permite afirmar a legitimidade do estabe‑
lecimento dessa proibição (BRYDE, Verfassungsentwicklung, op. cit., 1982. p. 242).
Nesse sentido, afigura-se extremamente consequente e lógico previsão cons-
titucional das cláusulas pétreas, entre as quais se incluem os direitos políticos.
Essa explicação é importante, pois apenas se revelará a inconstituciona-
lidade da tramitação de proposição tendente a abolir cláusulas pétreas da
Constituição a partir do exame do conteúdo da proposição legislativa. Assim,
faz-se necessário examinar se a votação do PLC 14/2013, pelo Senado Federal,
afigurar-se-ia violadora do núcleo essencial da Carta de 1988.
Antes, no entanto, deve-se ter em mente a importância constitucional da atu‑
ação dos partidos políticos para efetivar as garantias políticas de perfil institu‑
cional. Nesse particular, é válido abordar a interessante relação entre os partidos
e a Constituição. Nos dizeres de Dieter Grimm:
Los partidos políticos son una consecuencia de la admisión por parte de la Constitui-
ción de la participación social en las decisiones del Estado. Responden al problema de
mediar entre una diversidad no ordenada de opciones e intereses sociales sin regular
y una unidad estatal de decisión y accíon. Agregando opiniones e intereses afines y
presentándolos para que se pueda decidir sobre ellos, constituyen un eslabón interme-
dio necesario en el proceso de formación de la voluntad política. [GRIMM, Dieter. Los
partidos políticos. In: BENDA, Ernst; MAIHOFER, Werner; VOGEL, Hans-Jochen;
HESSE, Konrad; HEYDE, Wolfgang (Hrsg.). Manual de Derecho Constitucional (Hand-
buch des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland – Tradução Espanhola).
Madri: Marcial Pons Ediciones Jurídicas e Sociales, S.A., 1996. p. 389.]

Fixada essa premissa, o tema da autonomia partidária relaciona-se não somente


à liberdade de fundação ou criação, mas também aos inúmeros elementos do sis‑
tema partidário adotado. Aqui, entram em cena uma série de alternativas cons‑
titucionais abertas para a configuração de determinada realidade política (tais
como: o sistema uni, bi ou pluripartidarista; a admissão de partidos ideológicos,
de interesses de classe ou corporativos, ou, ainda, de caráter popular; entre outros).
É exatamente por esse motivo, afirma Grimm, que “el régimen electoral, en
especial, puede influir de forma determinante en el sistema de partidos, si bien que

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no se da una relación monocausal como durante mucho tiempo se pensó” (GRIMM,


Dieter. Op. cit., 1996. p. 407).
A esse respeito, reitero algumas palavras sobre o tratamento que essa realidade
institucional encontra no texto constitucional. Conforme lição de J. J. Gomes
Canotilho:
As chamadas garantias institucionais (Einrichtungsgarantien) compreendiam as
garantias jurídico-públicas (institutionnelle Garantien) e as garantias jurídico-priva‑
das (Institutsgarantie). Embora muitas vezes estejam consagradas e protegidas pelas
leis constitucionais, elas não seriam verdadeiros direitos atribuídos directamente a
uma pessoa; as instituições, como tais, têm um sujeito e um objecto diferente dos
direitos dos cidadãos. Assim, a maternidade, a família, a administração autônoma,
a imprensa livre, o funcionalismo público, a autonomia acadêmica, são instituições
protegidas directamente como realidades sociais objectivas e só, indirectamente,
se expandem para a protecção dos direitos individuais. [CANOTILHO, J. J. Gomes.
Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 397.]

Ainda, sobre o assunto, assevera Canotilho:


As garantias institucionais, constitucionalmente protegidas, visam não tanto
“firmar”, “manter” ou “conservar” certas “instituições naturais”, mas impedir a
sua submissão à completa discricionariedade dos órgãos estaduais, proteger a ins‑
tituição e defender o cidadão contra ingerências desproporcionadas ou coactivas.
Todavia, a partir do pensamento institucionalístico, inverte-se, por vezes, o sentido
destas garantias. As instituições são consideradas com uma existência autônoma
a se, pré-existente à constituição, o que leva pressuposta uma ideia conservadora
da instituição, conducente, em último termo, ao sacrifício dos próprios direitos
individuais perante as exigências da instituição como tal. (...) Aqui apenas se volta a
acentuar que as garantias institucionais contribuem, em primeiro lugar, para a efec‑
tividade óptima dos direitos fundamentais (garantias institucionais como meio) e,
só depois, se deve transitar para a fixação e estabilização de entes institucionais.
Cfr. Häberle, Die Wesensgehaltgarantie des art. 19 Abs. 2º Grundgesetz, 2. ed., Karls‑
ruhe, 1972, p. 70. Como informa P. Saladin, Grundrechte im Wandel, Bern, 1970, p. 296,
o movimento institucionalístico actual encontra paralelo na teologia protestante que
considera a “instituição’”como um medium entre o direito natural e o direito positivo.
Sobre a noção (noções) de instituição cfr., por último, Baptista Machado, Introdu-
ção ao Direito, pp. 14 e ss; J.M. Bano Leon, La distinctión entre derecho fundamental y
garantia institucional em la Constitución española, REDC, 24 (1988), pp. 155 e ss.; Márcio
Aranha, Interpretação Constitucional e as Garantias Institucionais dos Direitos Funda-
mentais, São Paulo, 1999, pp. 131 e ss. [CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., 2003. p. 1171.]

De acordo com o próprio complexo normativo constitucional relativo aos


direitos políticos e às agremiações partidárias (CF, arts. 14 a 17), constata-se que a

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conformação do sistema eleitoral brasileiro assume feição nitidamente institucio‑


nal. Isso, vale enfatizar, não é inovação no direito constitucional. Há uma série de
normas constitucionais garantidoras de realidades institucionais que não encon‑
tram uma definição expressa de seus limites no texto da Constituição (tais como:
propriedade, liberdade, família, consumidor, renda, confisco, grande fortuna etc.).
As disposições legais e constitucionais referentes aos partidos políticos,
mormente quando capazes de afetar o processo democrático-eleitoral, pos-
suem, por conseguinte, inconfundível caráter estatutário, constituindo ver-
dadeiro regime jurídico dos partidos políticos no País.
E isso, obviamente, não significa a admissão de um poder legislativo ilimitado,
visto que os direitos políticos, que têm por principal corolário a participação polí‑
tica por meio da institucionalidade partidária, são considerados cláusulas pétreas
da Constituição Federal de 1988, conforme esta Corte asseverou, à unanimidade,
no julgamento da ADI 3.685, rel. min. Ellen Gracie, Plenário, DJ de 10-8-2006.
Confira-se a ementa:
Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 2º da EC 52, de 8-3-2006. Aplicação imediata
da nova regra sobre coligações partidárias eleitorais, introduzida no texto do art. 17,
§ 1º, da CF. Alegação de violação ao princípio da anterioridade da lei eleitoral (CF,
art. 16) e às garantias individuais da segurança jurídica e do devido processo
legal (CF, art. 5º, caput e LIV). Limites materiais à atividade do legislador cons-
tituinte reformador. Arts. 60, § 4º, IV, e 5º, § 2º, da CF.
1. Preliminar quanto à deficiência na fundamentação do pedido formulado afas‑
tada, tendo em vista a sucinta, porém suficiente, demonstração da tese de violação
constitucional na inicial deduzida em juízo.
2. A inovação trazida pela EC 52/2006 conferiu status constitucional à matéria até
então integralmente regulamentada por legislação ordinária federal, provocando,
assim, a perda da validade de qualquer restrição à plena autonomia das coligações
partidárias no plano federal, estadual, distrital e municipal.
3. Todavia, a utilização da nova regra às eleições gerais que se realizarão a menos
de sete meses colide com o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no art. 16
da CF, que busca evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legisla-
tivo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral
(ADI 354, rel. min. Octavio Gallotti, DJ de 12-2-1993).
4. Enquanto o art. 150, III, b, da CF encerra garantia individual do contribuinte
(ADI 939, rel. min. Sydney Sanches, DJ de 18-3-1994), o art. 16 representa garantia
individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos repre‑
sentantes eleitos e “a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário
grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras
inerentes à disputa eleitoral” (ADI 3.345, rel. min. Celso de Mello).
5. Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam

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como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador


constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que
contido no art. 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF,
art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV).
6. A modificação no texto do art. 16 pela EC 4/1993 em nada alterou seu conteúdo
principiológico fundamental. Tratou-se de mero aperfeiçoamento técnico levado
a efeito para facilitar a regulamentação do processo eleitoral.
7. Pedido que se julga procedente para dar interpretação conforme no sentido
de que a inovação trazida no art. 1º da EC 52/2006 somente seja aplicada após
decorrido um ano da data de sua vigência. [Grifei.]

A Corte já reconheceu, portanto, e não poderia ser de outra forma, que os


direitos políticos, tanto no que dizem respeito à segurança do processo elei-
toral e estabilidade de suas regras, quanto no que concerne à participação
política, com todos os seus consectários, são considerados cláusulas pétreas
da Constituição Federal de 1988.
Assim, nesse processo de concretização ou realização, somente podem ser
admitidas interpretações que não desbordem os múltiplos significados admitidos
pelas normas constitucionais concretizadas. Da perspectiva de proteção a direi‑
tos individuais, tais como as prerrogativas constitucionais dos partidos políticos
e dos cidadãos na qualidade de potenciais criadores de novas legendas, deverá
ser observado especialmente o princípio da proporcionalidade, que exige que as
restrições ou ampliações legais sejam adequadas, necessárias e proporcionais.
A inclusão de elementos ou procedimentos “estranhos” ou diferentes dos
inicialmente previstos, além de afetar a segurança jurídica das regras do
devido processo legal eleitoral, influencia a própria possibilidade de que as
minorias exerçam suas estratégias de articulação política em conformidade
com os parâmetros inicialmente instituídos.
Trata-se, portanto, de uma garantia destinada a também assegurar o próprio
exercício do direito das minorias políticas e parlamentares em situações nas
quais, por razões de conveniência da maioria – ainda que qualificada – dos parla‑
mentares, o poder legislativo ou constituinte derivado pretenda modificar, a qual‑
quer tempo, as regras e critérios que regerão o processo democrático-eleitoral.
Nesse particular, é pertinente mencionar, por exemplo, os efeitos drásticos
que seriam impostos à própria autonomia dos partidos políticos, nos casos de
introdução, a qualquer momento, de uma cláusula de barreira não razoável.
Trata-se, sem dúvida, de alterações que comprometem a segurança das leis
eleitorais até então vigentes. Entretanto, o que pretendo enfatizar é que, ao se
reconhecer a legitimidade de uma imposição aleatória da conformação do pro‑
cesso eleitoral, coloca-se em risco uma dimensão indisponível dos direitos e

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garantias fundamentais relacionados aos partidos políticos, tanto na dimensão


de criação de novas legendas, quanto na dimensão da funcionalidade e viabili‑
dade eleitoral delas, uma vez constituídas.
É dizer, a modificação irrestrita das regras que regulam o processo democrá‑
tico compromete, sobremaneira, a igualdade dos partidos políticos. Segundo
problematiza Dieter Grimm:
Si el principio de concurrencia de los partidos debe operar como el instrumento más
importante para la direccion democrática del Estado, ello presupone no sólo la garantía
de la libre competencia sino, y por los mismos motivos, que el Estado observe neutralidad
respecto de los competidores. La expresión jurídica de esta neutralidad es el principio
de igualdad de los partidos. El Estado en tal que objeto de la pugna partidaria no puede
hacer diferencias entre los grupos políticos que concurren para hacerse con la dirección
del Estado. Se trata de una condición tan elemental como difícil de realizar. Las dificul-
tades se plantean tanto en aspectos jurídicos como fácticos. Jurídicamente obedecen al
hecho de que el mandato de igualdad afecta a un objecto por demás desigual. Los par-
tidos cobran su sentido sobre la base de sus diferencias en personalidades y programa,
que también desemboca en desigualdades en cuanto a militancia, votantes, capacidad
económica, etc. Esta desigualdad viene impuesta al Estado en cuanto que producto de
un proceso político libre y abierto. La neutralidad estatal sólo puede significar entonces
que los poderes públicos no deben tratar de influir sobre tal desigualdad. En esta medida,
la igualdad de los partidos aparece como igualdad formal. Por ello no encuentra su
fundamento jurídico en el art. 3 GG sino en el mismo art. 21 GG. En una serie de casos, la
igualdad formal de trato no es, sin embargo, identificable con neutralidad estatal. Para
dxésta carecemos aún de fórmulas convincentes. Las dificultades fácticas consisten en
que el Estado, que está obligado a la neutralidad frente a la competencia entre los par-
tidos, es en sí mismo un Estado políticamente ocupado por los partidos. La neutralidad
se exige por ello de una parte de los partidos representados en el parlamento frente a
los que compitieron sin éxito o son de nueva fundación y, por otra, de los partidos en el
gobierno frente a la oposición. Por este motivo la neutralidad estatal representa una
pauta de conducta por demás difícil de alcanzar y, en su caso, siempre amenazada de
nuevo. [GRIMM, Dieter. Op. cit., 1992. p. 415 – Sem os grifos no original.]

Ante a evidente necessidade de se garantir a segurança jurídica em matéria


concernente ao processo democrático-eleitoral e de proteção institucional
dos direitos políticos e, nesse sentido, também da institucionalidade dos
partidos, o presente exame deve atentar para a centralidade dos partidos
no modelo de participação política nacional e, assim, garantir que os atores
políticos interessados possam contar com regras justas, isonômicas e previ-
síveis, de modo a preservar o direito fundamental de livre e leal concorrência
democrática, cláusula pétrea da ordem constitucional positivada em 1988.

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b) A violação ao direito fundamental relativo à igualdade de chances na concorrência


democrática
Ainda mais relevante é que a aprovação do projeto de lei, nos termos atuais,
significaria o tratamento desigual de parlamentares e partidos políticos em uma
mesma legislatura. Essa interferência seria ofensiva à lealdade da concorrência
democrática, afigurando-se casuística e direcionada a atores políticos específicos.
Importante salientar que o Supremo Tribunal não pretende impedir que o
Congresso Nacional aprove as medidas legislativas que julgar necessárias à racio‑
nalização do quadro partidário brasileiro, tampouco visa a obstar a deliberação
de reformas no sistema político nacional.
O que se pretende resguardar, consoante afirmei ao conceder a liminar, é a
manifestação do Pleno do Tribunal acerca de sua fiel interpretação da Constitui‑
ção e o tratamento isonômico, em uma mesma legislatura, de todos os atores e
partidos políticos interessados, sob pena de violação ao princípio democrático
e aos princípios do pluripartidarismo e da liberdade de criação de legendas.
Note-se que esta Corte não é imune ao cometimento de erros, e é evidente que
modelos normativos podem e devem ser elaborados pelo Congresso Nacional.
O projeto em exame, no entanto, nas circunstâncias nas quais seria aprovado,
revelava-se casuístico por potencialmente permitir tratamento distinto a par‑
lamentares e partidos políticos que devem ser tratados de forma isonômica,
sobretudo no curso de uma mesma legislatura.
Com isso quero dizer que o legislador não pode ignorar a intervenção no pro‑
cesso político-partidário representada pela decisão desta Corte nas ADI 4.430 e
4.795, ambas de relatoria do ministro Dias Toffoli e julgadas em 29-6-2012. Essa
decisão permitiu que atores políticos identificáveis, que criaram ou estavam em
processo de criação de partidos políticos, portassem consigo, paras as novas
legendas, suas respectivas cotas de tempo de TV e rádio e de fundo partidário.
Uma vez que veio a lume a referida decisão da Corte e que ela surtiu efeitos
políticos e jurídicos, admitir-se o tratamento diferenciado entre os atores envol‑
vidos significaria uma chapada afronta ao princípio da igualdade de chances,
inerente à concorrência democrática pelo poder e garantidor da lealdade e da
segurança jurídica em democracias modernas.
Importa observar que, no referido julgamento das ADI 1.351 e 1.354, de relatoria
do ministro Marco Aurélio, o Tribunal, por unanimidade, fixou que a igualdade
de chances no processo de concorrência democrática é direito fundamental e,
assim, cláusula pétrea de nossa Constituição. Confira-se a ementa do julgado:
Partido político – Funcionamento parlamentar – Propaganda partidária gratuita –
Fundo partidário. Surge conflitante com a Constituição Federal lei que, em face

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da gradação de votos obtidos por partido político, afasta o funcionamento


parlamentar e reduz, substancialmente, o tempo de propaganda partidária
gratuita e a participação no rateio do Fundo Partidário.
Normatização – Inconstitucionalidade – Vácuo. Ante a declaração de inconstitu‑
cionalidade de leis, incumbe atentar para a inconveniência do vácuo normativo,
projetando-se, no tempo, a vigência de preceito transitório, isso visando a aguardar
nova atuação das casas do Congresso Nacional. [Grifei.]

Já tive a oportunidade de anotar que alguns sistemas constitucionais, como o


alemão, lograram formular o princípio da igualdade de chances, entre os partidos
políticos, como autêntico direito fundamental, assentando seus fundamentos,
entre outros, no postulado geral da igualdade (Lei Fundamental, art. 3º, I).
O princípio da “Chancengleicheit” parece ter encontrado sua formulação inicial
na República de Weimar, com as obras de Herman Heller (Probleme der Demo-
kratie, I und II, 1931, e Europa und der Faschismus, 1929) e de Carl Schmitt (Der
Hüter der Verfassung, 1931, e Legalität und Legitimität, 1932).
Na concepção de Heller, “o Estado de Direito Democrático atual encontra seu
fundamento, principalmente, na liberdade e igualdade da propaganda política,
devendo assegurar-se a todas as agremiações e partidos igual possibilidade jurí‑
dica de lutar pela prevalência de suas ideias e interesses”.
O notável publicista acrescentava que a fórmula técnica para preservar a uni-
dade da formação democrática assenta-se na livre submissão da minoria, à von-
tade majoritária, isto é, na renúncia das frações minoritárias a uma superação
da maioria, mediante o uso da violência. Isso pressupõe a renúncia à opressão
da minoria e exige a preservação das perspectivas de ela vir a se tornar maioria.
Por seu turno, advertia Carl Schmitt que um procedimento neutro e indiferente
da democracia parlamentar poderia dar ensejo à fixação de uma maioria por via
da matemática ou da estatística, causando, dessa forma, o próprio esfacelamento
do sistema de legalidade. Tal situação somente haveria de ser evitada com adoção
de um princípio consagrador da igualdade de chances para alcançar a maioria,
aberto a todas as tendências e movimentos. E, enfaticamente, asseverava Carl
Schmitt, in verbis:
Sin este principio, las matemáticas de las mayorías, con su indiferencia frente al con-
tenido del resultado, no solo serían ún juego grotesco y un insolene escarnio de toda
justicia, sino que, a causa del concepto de legalidad derivado de dichas matemáticas,
estas acabaríam también con el sistema mismo, desde el instante en que se ganara
la primera mayoría, pues esta primera mayoría se instituiría enseguida legalmente
como poder permanente. La igualdad de chance abierta a todos no puede separarse
mentalmente del Estado legislativo parlamentario. Dicha igualdad permanece como
el principio de justicia y como una condición vital para la autoconservación.

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Com impecável lógica, consignava o publicista que a legalidade do poder esta‑


tal conduz à negação e à derrogação do direito de resistência enquanto Direito,
uma vez que ao poder legal, conceitualmente, não é dado cometer injustiças,
podendo, para isso, converter em “ilegalidade” toda resistência e revolta contra
a injustiça e antijuridicidade. E o eminente mestre acrescentava o seguinte:
Si la mayoría puede fijar a su arbitrio la legalidad y la ilegalidad, también puede
declarar ilegales a sus adversarios políticos internos, es decir, puede declararlos hors-
la-loi, excluyéndolos así de la homogeneidad democrática del pueblo. Quien domine
el 51 por 100 podría ilegalizar, de modo legal, al 49 por 100 restante. Podría cerrar tras
sí, de modo legal, la puerta de la legalidad por la que ha entrado y tratar como a un
delincuente común al partido político contrário, que tal vez golpeaba con sus botas
la puerta que se le tenía cerrada.

Essas colocações de Schmitt evidenciam a importância de se tratar do princí‑


pio de “igualdade de chances” como condição indispensável ao exercício legal do
poder, uma vez que a minoria somente há de renunciar ao direito de resistência
se ficar assegurada a possibilidade de vir a se tornar maioria. Vale registrar, ainda
nesse particular, o seu magistério, in verbis:
El Estado legislativo parlamentario de hoy, basado en la dominación de las mayorías
del momento, solo puede entregar el monopolio del ejercicio legal del poder al partido
momentàneamente mayoritario, y solo puede exigir a la minoría que renuncie al dere-
cho de resistencia mientras permanezca efectivamente abierta a todos la igualdad
de chance para la obtención de la mayoría y mientras presente visos de verdad este
presupuesto de su principio de justicia.

Na vigência da Lei Fundamental de Bonn (1949), a discussão sobre a igualdade


de chances entre os partidos foi introduzida por Forsthoff, que assentou os seus
fundamentos nas disposições que consagram a liberdade de criação das agre‑
miações políticas (art. 21, I, 2) e asseguram a igualdade de condições na disputa
eleitoral (arts. 38 e 28).
Também Gerhard Leibholz considerou inerente ao modelo constitucional o prin‑
cípio de “igualdade de chances”, derivando-o, porém, diretamente, do preceito que
consagra a ordem liberal-democrática (“freiheitlich demokratischen Grundordnung”).
Mais tarde, após os primeiros pronunciamentos do Tribunal Federal Consti‑
tucional, passou Leibholz a considerar que o postulado da igualdade de chances
encontrava assento no princípio da liberdade e pluralidade partidárias (arts. 21,
I, e 38, I) e no princípio geral de igualdade (art. 3º, l).
Tais elementos serviram de base para o desenvolvimento da construção juris‑
prudencial iniciada pelo “Bundesverfassungsgericht” em 1952. Observe-se que,

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nos primeiros tempos, a jurisprudência da Corte Constitucional parecia iden‑


tificar o princípio de igualdade de chances com o direito de igualdade eleito‑
ral – Wahlrechtsgleicheit – (Lei Fundamental, art. 38, l). As controvérsias sobre o
financiamento dos partidos e a distribuição de horários para transmissões radio‑
fônicas e televisivas ensejaram o estabelecimento da distinção entre o princípio
da igualdade de chances, propriamente dito, e o direito de igualdade eleitoral.
Os preceitos constitucionais atinentes à liberdade partidária (art. 21, l) e ao pos‑
tulado geral da isonomia (art. 3º, I) passaram a ser invocados como fundamento
do direito de igualdade de chances dos partidos políticos.
Converteu-se, assim, a igualdade de chances em princípio constitucional autô‑
nomo, um autêntico direito fundamental dos partidos, assegurando-se às agre‑
miações tratamento igualitário por parte do poder público e dos seus delegados.
Inicialmente, perfilhou o Tribunal Constitucional orientação que preconizava
a aplicação estritamente formal do princípio de igualdade de chances. Todavia,
ao apreciar controvérsia sobre a distribuição de horário para transmissão radio‑
fônica, introduziu o 2º Senado da Corte Constitucional o conceito de “igualdade
de chances gradual” – abgestufte Chancengleicheit, de acordo com a “significação
do Partido” (Parteibedeutung).
Considerou-se, entre outros aspectos, que o tratamento absolutamente iguali‑
tário levaria a uma completa distorção da concorrência, configurando a equipa‑
ração legal das diferentes possibilidades (“faktische Chancen”) manifesta afronta
ao princípio da neutralidade que deveria ser observado pelo poder público em
relação a todos os partidos políticos.
A Lei dos Partidos de 1967 veio consagrar, no § 5º, o princípio da igualdade de
chances tal como concebido pela Jurisprudência do Bundesverfassungsgericht,
estabelecendo o seguinte exercício: “(1) Se um delegado do Poder Público coloca
suas instalações ou serviços à disposição dos partidos, há de se dar igual trata‑
mento às demais agremiações partidárias. A amplitude da garantia pode ser atri‑
buída, gradualmente, de acordo com a ‘significação do partido’, assegurando-se,
porém, um mínimo razoável à consecução dos objetivos partidários. A significação
do partido é aferida, em especial, pelos resultados obtidos nas últimas eleições
para a Câmara de Representantes. Ao partido com representação no Parlamento
há de se assegurar uma participação não inferior à metade daquela reconhecida
a qualquer outro partido”. (“Wein ein Träger öffentlicher Gewalt den Parteien Ein-
richtungen zur Verfügung stellt oder andere offentliche Leistungen gewärht, sollen
alle Parteien gleichbehandelt werden. Der Umfang der Gewährung kann nach der
Dedeutung der Parteien bis zu dem für die Erreichung ihres Zweckes erforderlichen
Mindestmass abgestuft werden. Die Bedeutung der Parteien bemisst sich insbesondere

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auch nach den Ergebnissen vorausgegangener Wahlen zu Volksvertretungen. Für


eine Partei, die im Bundestag in Fraktiosstärke vertreten ist, muss der Umfang der
Gewährung mindestens halb so gross vie für jede andere Partei sein”).
Como se constata, o § 5º da Lei dos Partidos consagrou a gradação da “igual‑
dade de chances” (abgestufte Chancengleicheit), estabelecendo inequívoca “cláu‑
sula de diferenciação” (“Differenzierungsklausel”). É evidente que uma interpreta‑
ção literal do dispositivo poderia converter o postulado da “igualdade de chances”
numa garantia do status quo, consolidando-se a posição dos partidos estabele-
cidos (etablierte Parteien).
Tal possibilidade já havia sido enunciada por Carl Schmitt, ao reconhecer que
os partidos no governo desfrutam de inevitável vantagem, configurando-se uma
autêntica e supralegal “mais-valia política” decorrente do exercício do poder. Após
asseverar que a detenção do poder outorga ao partido dominante a forma de poder
político que supera de muito o simples valor das normas, observa Carl Schmitt:
El partido dominante dispone de toda la preponderancia que lleva consigo, en un
Estado donde impera esta clase de legalidad, la mera posesión de los medios legales
del poder. La mayoria deja repentinamente de ser un partido; es el Estado mismo.
Por mas estrictas y delimitadas que sean las normas a las que se sujeta el’Estado
legislativo en la ejecución de la ley, resalta “siempre lo ilimitado que está detrás”,
como dijo una vez Otto Mayer. En consecuencia, por encima de toda normatividad,
la mera posesión del poder estatal produce una plusvalía política adicional, que
viene a añadirse al poder puramente legal y normativista, una prima superlegal a la
posesión legal del poder legal y al logro de la mayoria.

Não se pode negar, pois, que os partidos estabelecidos gozam de evidente


primazia em relação aos “newcomers”, decorrente sobretudo de sua posição
consolidada na ordem política. Por outro lado, a realização de eleições com o
propósito de formar um parlamento capaz de tomar decisões respaldado por uma
nítida maioria enseja, não raras vezes, modificações legítimas nas condições de
igualdade. Disso pode resultar, à evidência, um congelamento (“Erstarrung”)
do sistema partidário.
Não há dúvida de que a gradação da “igualdade de chances” deve ser reali‑
zada cum grano salis, de modo a assegurar razoável e adequada eficácia a todo e
qualquer esforço partidário. Até porque o abandono da orientação que consagra
a igualdade formal entre os partidos não pode ensejar, em hipótese alguma, a
nulificação do tratamento igualitário que lhes deve ser assegurado pelo poder
público. Eventual gradação do direito de igualdade de chances há de se efetivar
com a observância de critério capaz de preservar a própria seriedade do sistema
democrático e pluripartidário.

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Tal constatação mostra-se particularmente problemática no que concerne à


distribuição dos horários para as transmissões radiofônicas e televisivas (Wahl-
sendezeit). Uma radical gradação do direito de igualdade de chances acabaria
por converter-se em autêntica garantia do status quo. Daí ter-se consolidado na
Jurisprudência constitucional alemã orientação que assegura a todos os par‑
tícipes do prélio eleitoral, pelo menos, uma “adequada e eficaz propaganda”
(“angemessene und wirksame Wahl-propaganda”). Considera-se, assim, que um
Sendezeitminimum (“tempo mínimo de transmissão”) deve ser assegurado a todos
os concorrentes, independentemente de sua “significação”.
Ainda assim, verificam-se na doutrina sérias reservas à gradação do direito de
igualdade de chances, no tocante às “transmissões eleitorais” (Wahlsendezeit).
É que tal oportunidade assume relevância extraordinária para os pequenos par‑
tidos e as novas agremiações, que, diversamente dos etablierten Parteien, não
dispõem de meios adequados para difundir a sua plataforma eleitoral.
Também Tsatsos e Morlok sustentam, nesse particular, que a igualdade formal
de todos os que participam do processo eleitoral deve ser decididamente afir‑
mada. Entendem que, “em uma democracia, não constitui tarefa de um Poder
onisciente e interventivo tomar providências que indiquem aos eleitores a ima­
gem ‘correta’ dos partidos. Ao revés, com a escolha prévia dos partidos ar­­roga-se
o Estado, um direito que apenas é de se reconhecer à cidadania na sua mani‑
festação eleitoral”.
A “igualdade de chances”, concebida como princípio constitucional autônomo,
constitui expressão jurídica da neutralidade do Estado em relação aos diversos
concorrentes. O seu fundamento não se assenta única e exclusivamente no pos‑
tulado geral da “igualdade de chances” (Lei Fundamental, art. 3º, I). Ao revés,
a igualdade de chances é considerada como derivação direta dos preceitos
constitucionais que consagram o regime democrático (art. 20, I) e pluripar-
tidário (art. 21, I).
O princípio da igualdade de chances deve imperar não apenas durante o
processo eleitoral, mas já antes dele, na preparação das eleições. A democracia
não tem como ser exitosa no momento em que partidos políticos ingressam na
campanha eleitoral em diferentes condições (BVerfGE 82, 322; 44, 125).
No direito alemão, consagra-se que o partido político que não obtiver 5% dos
votos na votação proporcional, ou pelo menos três mandatos diretos, não obterá
mandato algum, também na eleição para o chamado primeiro voto. Nesse caso,
despreza-se a votação dada ao partido. Tal cláusula de barreira (Sperrklausel)
faz parte do sistema eleitoral germânico desde 1975. Em 1990, o Tribunal Cons‑
titucional Federal alemão foi demandado a apreciar a constitucionalidade dessa

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cláusula para as eleições, para o Bundestag, de 1990, as primeiras a serem reali‑


zadas após a Reunificação [BVerfGE 82, 322].
Ao considerar o excepcional momento histórico vivido na Alemanha, a Corte
utilizou-se do princípio da Chancengleicheit para justificar que a cláusula de
barreira não seria aplicada aos Estados da antiga República Democrática da
Alemanha. Entendeu que os novos partidos surgidos nesse antigo território
comunista não teriam condições de se estruturar em tempo hábil de competir em
igualdade de chances com as agremiações já constituídas na República Federal
da Alemanha [BVerfGE 82, 322].
Além de assegurar que tratamentos diferenciados a partidos políticos são
aceitáveis apenas quando apresentarem forte e legítima justificativa para tanto,
a jurisprudência da Corte é firme no sentido de que o campo de atuação (Spiel-
raum) do legislador nessa matéria é extremamente reduzido [BVerfGE 82, 322].
Assentes tais fundamentos, cumpre indagar se o princípio de igualdade de
chances, tal como desenvolvido pela doutrina e jurisprudência alemãs, afigura‑
-se compatível com o ordenamento constitucional brasileiro.
Considere-se, de imediato, que o postulado geral de igualdade tem ampla
aplicação entre nós, não se afigurando possível limitar o seu alcance, em princí‑
pio, às pessoas naturais, ou restringir a sua utilização a determinadas situações
ou atividades. Nesse sentido, já observara Seabra Fagundes que “tão vital se afi‑
gura o princípio ao perfeito estruturamento do Estado democrático, e tal é a sua
importância como uma das liberdades públicas, para usar a clássica terminologia
de inspiração francesa, que, não obstante expresso como garantia conferida a
‘brasileiros e estrangeiros residentes no País’, o que denota, à primeira vista, ter
tido em mira apenas as pessoas físicas, se tornou pacífico alcançar, também, as
pessoas jurídicas”.
Em virtude disso, a chamada “força irradiante do princípio da igualdade”
parece espraiar-se por todo o ordenamento jurídico, contemplando, de forma
ampla, todos os direitos e situações. Daí ter asseverado Francisco Campos:
A cláusula relativa à igualdade diante da lei vem em primeiro lugar, na lista dos
direitos e garantias que a Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País. Não foi por acaso ou arbitrariamente que o legislador cons‑
tituinte iniciou com o direito à igualdade a enumeração dos direitos individu‑
ais. Dando-lhe o primeiro lugar na enumeração, quis significar expressivamente,
embora de maneira tácita, que o princípio de igualdade rege todos os direitos em
seguida a ele enumerados. É como se o art. 141 da Constituição estivesse assim
redigido: “A Constituição assegura com igualdade os direitos concernentes à vida,
à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”.

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Explicitando esse pensamento, acrescenta o insigne jurista que o princípio


de igualdade tem por escopo a proteção da livre concorrência entre os homens
em todos os âmbitos de atividade. Vale transcrever, nesse particular, o seu mag‑
nífico magistério:
O alcance do princípio de igualdade perante a lei há de ser, portanto, interpretado
na maior latitude dos seus termos, ou como envolvendo não só a hipótese de que,
embora não havendo existido, venha, entretanto, a se criar no País o regime de
classes, como toda e qualquer situação, a que, embora casualmente ou episodica‑
mente, sem caráter sistemático, ou de modo puramente singular, se deixe de aplicar
o critério ou a medida geral prevista para casos ou situações da mesma espécie, e
se lhes aplique critério ou medida de exceção. O princípio não tem, portanto, como
foco de incidência, um ponto preciso e definido. Ele se difunde por todo o tecido
das relações humanas que possam constituir objeto de regulamentação jurídica
ou sejam suscetíveis de configurar-se em conteúdo de um ato ou de um comando
da autoridade pública. Não é princípio adstrito a um aspecto ou a uma forma de
organização social; é um postulado de ordem geral, destinado a reger o comércio
jurídico em todas as modalidades, de modo a assegurar, particularmente sob as
constituições liberais e democráticas, o regime da concorrência, que é a categoria sob
a qual elas concebem não somente a ordem social, como a ordem política, a ordem
econômica e a ordem jurídica. O princípio de igualdade tem por principal função
proteger e garantir a livre concorrência entre os homens, seja quando a sua atividade
tem por objeto o poder, seja quando o polo de seu interesse são os bens materiais
ou imateriais, cujo gozo exclusivo lhes é assegurado pelo direito de propriedade.

De resto, a concorrência é imanente ao regime liberal e democrático, tendo


como pressuposto essencial e inafastável a neutralidade do Estado.
É o que se constata na seguinte passagem do preclaro magistério de Fran‑
cisco Campos:
O regime liberal e democrático postula a concorrência não apenas como categoria
histórica, mas como a categoria ideal da convivência humana. Ora, a concorrência
pressupõe, como condição essencial, necessária ou imprescindível, que o Estado
não favoreça a qualquer dos concorrentes, devendo, ao contrário, assegurar a todos
um tratamento absolutamente igual, a nenhum deles podendo atribuir prioridade
ou privilégio, que possa colocá-lo em situação especialmente vantajosa em relação
aos demais. Esta, no mundo moderno, a significação do princípio da igualdade
perante a lei. Por ele, todos ficarão certos de que na concorrência, tomada esta
expressão no seu sentido mais amplo, o Estado mantém-se neutro ou não procurará
intervir senão para manter entre os concorrentes as liberdades ou as vantagens
a que cada um deles já tinha direito ou que venha a adquirir, mediante os proces‑
sos normais da concorrência. O princípio de igualdade tem hoje, como se vê, um

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campo mais vasto de aplicação do que nos tempos que se seguiram imediatamente
às suas primeiras declarações.

Afigura-se, pois, despiciendo ressaltar a importância do princípio da isonomia


no âmbito das relações estatais. Como a ninguém é dado recusar a integração
a uma determinada ordem estatal, faz-se mister reconhecer o direito de parti‑
cipação igualitária como correlato necessário da inevitável submissão a esse
poder de império. E o direito de participação igualitária na vida da comunidade
estatal e na formação da vontade do Estado não se restringe à igualdade eleitoral,
ao acesso aos cargos públicos, ao direito de informação e de manifestação de
opinião, abrangendo a própria participação nos partidos políticos e associações
como forma de exercer influência na formação da vontade política.
Vê-se, pois, que o princípio de igualdade entre os partidos políticos constitui
elementar exigência do modelo democrático e pluripartidário. No entanto, não
se pode ignorar que a aplicação do princípio de igualdade de chances encontra
dificuldade de ordem jurídica e fática. Do prisma jurídico, não há dúvida de que
o postulado da igualdade de chances incide sobre uma variedade significativa
de objetos (“Gegenstand”). E, do ponto de vista fático, impende constatar que o
Estado, que deve conduzir-se de forma neutra, é, ao mesmo tempo, um Estado
partidariamente ocupado (“Die tatsächlichen Schwierigkeiten bestehen darin,
dass der Staat, der sich neutral gegenüber dem Parteienwettbewerb zu verhalten
hat, selbst ein parteipolitisch besetzter Staat ist”).
Aludidas dificuldades não devem ensejar, à evidência, o estabelecimento
de quaisquer discriminações entre os partidos estabelecidos e os “newcom­
ers”, porquanto eventual distinção haveria de resultar, inevitavelmente, no
próprio falseamento do processo de livre concorrência.
É fácil de ver, assim, que toda e qualquer distorção no sistema de con-
corrência entre os partidos afeta de forma direta e frontal o princípio de
isonomia, enquanto parâmetro e baldrame dos demais direitos e garantias.
Não se afirme, outrossim, que ao legislador seria dado estabelecer distinções
entre os concorrentes com base em critérios objetivos. Desde que tais distinções
impliquem alteração das condições mínimas de concorrência, evidente se afi‑
gura sua incompatibilidade com a ordem constitucional calcada no postulado
de isonomia. Mais uma vez é de se invocar a lição de Francisco Campos, in verbis:
Se o princípio deve reger apenas a aplicação da lei, é claro que ao legislador fica‑
ria devassada a imensidade de um arbítrio sem fronteiras, podendo alterar, à sua
discrição, por via de medidas concretas ou individuais, as condições da concor‑
rência, de maneira a favorecer, na corrida, a um dos concorrentes, em detrimento
dos demais. O que garante, efetivamente, a concorrência não é tão só o princípio

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da legalidade, entendido como a exigência que os atos da justiça e da adminis‑


tração possam ser referidos ou imputados à lei. Desde que ficasse assegurada ao
legislador a faculdade de alterar a posição de neutralidade do Estado em face dos
concorrentes, tomando o partido de uns contra outros, a ordem da concorrência
não poderia ter a posição central e dominante que lhe cabe, incontestavelmente,
no ciclo histórico que se abriu com a revolução industrial do Século passado e
que ainda não se pode dar como encerrado no mundo ocidental. O caráter de
norma obrigatória para o legislador, para ele especialmente, resulta da natureza
e da extensão do princípio de igualdade perante a lei. Seria, de outra maneira, um
princípio supérfluo ou destituído de qualquer significação.

Não parece subsistir dúvida, portanto, de que o princípio da isonomia tem


integral aplicação à atividade político-partidária, fixando os limites e contornos
do poder de regular a concorrência entre os partidos.
Ademais, como já observado, faz-se mister notar que o princípio da igualdade
de chances entre os partidos políticos parece encontrar fundamento, igualmente,
nos preceitos constitucionais que instituem o regime democrático, representativo
e pluripartidário (CF, arts. 1º, § 1º; 152; e 148). Tal modelo realiza-se, efetivamente,
através da atuação dos partidos, que são, por isso, elevados à condição de autên‑
ticos e peculiares órgãos estatais, com relevantes e indispensáveis funções ati‑
nentes à formação da vontade política, à criação de legitimidade e ao processo
contínuo de mediação (“Vermittlung”) entre povo e Estado (Lei 5.682/1971, art. 2º).
Essa mediação tem seu ponto de culminância na realização de eleições, com
a livre concorrência das diversas agremiações partidárias. E a disputa eleitoral
é condição indispensável do próprio modelo representativo, como assinala com
habitual precisão o eminente ministro Francisco Rezek, in verbis:
O regime representativo pressupõe disputa eleitoral cuja racionalidade deriva
da livre concorrência entre os partidos, cada um deles empenhado na reunião
da vontade popular em torno de seu programa político. Não merece o nome de
partido político, visto que não lhe tem a essência, chamado “partido único”: aqui
se trata, antes, de um grande departamento político do Estado, fundado na pre‑
sunção de que seu ideário representa a vontade geral a ponto de alcançar o foro
da incontestabilidade. As eleições, no Estado unipartidário, não traduzem o con‑
fronto de teses programas, mas a mera expedição popular, em favor dos eleitos,
de um atestado de habilitação ao cumprimento do programa que de antemão se
erigira em dogma. A pluralidade de partidos não é, dessa forma, uma opção.
Sem ela não há que falar, senão por abusiva metáfora, em partido político de
espécie alguma. [Grifei.]

Portanto, não se afigura necessário despender qualquer esforço de argu-


mentação para que se possa afirmar que a concorrência entre os partidos,

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inerente ao próprio modelo democrático e representativo, tem como pressu-


posto inarredável o princípio de igualdade de chances. Assim, tal princípio
constitui cláusula pétrea da Constituição de 1988 e pilar do próprio regime
democrático brasileiro.
Note-se que, em vários pronunciamentos, este Tribunal já se utilizou do prin‑
cípio da igualdade de chances, bem como da anterioridade eleitoral, como parâ‑
metros de controle. Na ADI 3.741 (rel. min. Ricardo Lewandowski, Plenário, DJ
de 23-2-2007), por exemplo, a Corte entendeu que a Lei 11.300/2006, que operou
a chamada minirreforma eleitoral para o pleito de 2006, não violou os referidos
direitos. Confira-se a ementa do julgado:
Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 11.300/2006 (Minirreforma eleitoral). Alegada
ofensa ao princípio da anterioridade da lei eleitoral (CF, art. 16). Inocorrência. Mero
aperfeiçoamento dos procedimentos eleitorais. Inexistência de alteração do processo
eleitoral. Proibição de divulgação de pesquisas eleitorais quinze dias antes do pleito.
Inconstitucionalidade. Garantia da liberdade de expressão e do direito à informação
livre e plural no Estado Democrático de Direito. Procedência parcial da ação direta.
I – Inocorrência de rompimento da igualdade de participação dos partidos
políticos e dos respectivos candidatos no processo eleitoral.
II – Legislação que não introduz deformação de modo a afetar a normalidade
das eleições.
III – Dispositivos que não constituem fator de perturbação do pleito.
IV – Inexistência de alteração motivada por propósito casuístico.
V – Inaplicabilidade do postulado da anterioridade da lei eleitoral.
VI – Direto à informação livre e plural como valor indissociável da ideia de de­­
mocracia.
VII – Ação direta julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitu‑
cionalidade do art. 35-A da Lei introduzido pela Lei 11.300/2006 na Lei 9.504/1997.
[Grifei.]

A jurisprudência do Supremo é farta, portanto, de exemplos de utilização


do postulado da igualdade de chances para a verificação da compatibilidade
entre as leis que interferem diretamente no processo eleitoral, ou até mesmo
em momentos que o antecedem, e a Constituição de 1988.
A restrição, pelo legislador, dos critérios relacionados à distribuição dos horá‑
rios de propaganda eleitoral e de cotas do fundo partidário, ainda que limitada,
deve ser razoável e proporcional para que se compatibilize com o postulado da
“igualdade de chances”. Além disso, não se pode admitir a criação de situações
jurídicas distintas a abarcar parlamentares regularmente eleitos na mesma elei‑
ção, para uma mesma legislatura.

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No presente feito, a violação ao princípio da igualdade de chances apresenta-


-se nítida, em razão da diferença de tratamento jurídico dispensada a atores
e partidos políticos no curso de uma mesma legislatura, sem que para tanto
haja qualquer justificativa plausível, o que revela o casuísmo da deliberação
apressada do projeto de lei em exame, conforme ficará evidenciado a seguir.
Por essa razão, leis casuísticas são altamente questionáveis. No presente caso,
o projeto de lei permite ao observador até mesmo vislumbrar os seus destinatá‑
rios específicos, o que o torna ainda mais gravoso às referidas cláusulas pétreas da
Constituição de 1988. Em outras oportunidades, manifestei-me sobre a eventual
aprovação de leis casuísticas:
Outra limitação implícita que há de ser observada diz respeito à proibição de leis
restritivas, de conteúdo casuístico ou discriminatório. Em outros termos, as res-
trições aos direitos individuais devem ser estabelecidas por leis que atendam aos
requisitos da generalidade e da abstração, evitando, assim, tanto a violação do
princípio da igualdade material quanto a possibilidade de que, por meio de leis
individuais e concretas, o legislador acabe por editar autênticos atos adminis-
trativos. (Bodo Pieroth e Bernhard Schlink, Grundrechte – Staatsrecht II, cit., p. 70.)
Sobre o significado de princípio, vale registrar o magistério de Canotilho:
“As razões materiais desta proibição sintetizam-se da seguinte forma: (a) as leis
particulares (individuais e concretas), de natureza restritiva, violam o princípio
material da igualdade, discriminando, de forma arbitrária, quanto à imposição
de encargos para uns cidadãos em relação aos outros; (b) as leis individuais e
concretas restritivas de direitos, liberdades e garantias representam a manipula‑
ção da forma da lei pelos órgãos legislativos ao praticarem um ato administrativo
individual e concreto sob as vestes legais (os autores discutem a existência, neste
caso, de abuso de poder legislativo e violação do princípio da separação dos
poderes; (c) as leis individuais e concretas não contêm uma normatização dos
pressupostos da limitação, expressa de forma previsível e calculável e, por isso,
não garantem aos cidadãos nem a proteção da confiança nem alternativas de
ação e racionalidade de atuação.” (Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 614.)
Diferentemente das ordens constitucionais alemã e portuguesa, a Constituição
brasileira não contempla expressamente a proibição de lei casuística no seu texto.
Isso não significa, todavia, que o princípio da proibição da lei restritiva de
caráter casuístico não tenha aplicação entre nós. Como amplamente admi-
tido na doutrina, tal princípio deriva do postulado material da igualdade, que
veda o tratamento discriminatório ou arbitrário, seja para prejudicar, seja para
favorecer. (Cf., sobre o assunto, Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 614-615;
Herzog, in Maunz-Dürig, entre outros, Grundgestz, cit., Kommentar zu art. 19, I, n. 9.)
Resta evidente, assim, que a elaboração de normas de caráter casuístico afronta,
de plano, o princípio da isonomia.

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É de observar, outrossim, que tal proibição traduz uma exigência do Estado de


Direito Democrático, que se não compatibiliza com a prática de atos discrimina‑
tórios ou arbitrários. Nesse sentido, é preciso o magistério de Pontes de Miranda
nos seus comentários ao art. 153, § 2º, da Constituição de 1967/69:
“Nos Estados contemporâneos não democratizados, a segurança de que as
regras jurídicas emanam de certa fonte, com a observância de pressupostos
formais, muito serve à liberdade, sem, contudo, bastar-lhe. Não é aqui o lugar
para mostrarmos como se obtém tal asseguração completa da liberdade, pela
convergência de três caminhos humanos (democracia, liberdade, igualdade).
(...) O art. 153, § 2º, contém em si um dos exemplos: se o Estado é democrático,
a proposição, que se acha no art. 153, § 2º, é como se dissera ‘Ninguém pode
ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de regra
jurídica emanada dos representantes do povo (democracia, arts. 27-59), for‑
malmente igual para todos (igualdade, art. 153, § 1º)’ ”. (Pontes de Miranda,
Comentários à Constituição de 1967/69, cit., t. 5, p. 2-3.)
Se não há dúvida de que, também entre nós, revela-se inadmissível a adoção de
leis singulares, individuais ou pessoais com objetivo de restringir direitos, cumpre
explicitar as características dessas leis. Segundo Canotilho (Canotilho, Direito
constitucional, cit., p. 614), lei individual restritiva inconstitucional é toda lei que:
– imponha restrições aos direitos, liberdades e garantias de uma pessoa ou de
várias pessoas determinadas;
– imponha restrições a uma pessoa ou a um círculo de pessoas que, embora não
determinadas, podem ser determináveis por intermédio da conformação intrínseca
da lei e tendo em conta o momento de sua entrada em vigor.
O notável publicista português acentua que o critério fundamental para a identi‑
ficação de uma lei individual restritiva não é a sua formulação ou o seu enunciado
linguístico, mas o seu conteúdo e respectivos efeitos. Daí reconhecer a possibili‑
dade de leis individuais camufladas, isto é, leis que, formalmente, contêm uma
normação geral e abstrata, mas que, materialmente, segundo o conteúdo e efeitos,
dirigem-se a um círculo determinado ou determinável de pessoas. (Canotilho,
Direito constitucional, cit., p. 614).
Não parece ser outra a orientação da doutrina tedesca. A técnica de formulação
da lei não é decisiva para a identificação da lei restritiva individual ou casuística.
Decisiva é a consequência fática (tatsächliche Wirkung) da lei no momento de sua
entrada em vigor. (Herzog, in Maunz-Dürig, entre outros, Grundgesetz, cit., Kom-
mentar zu art. 19, I, n. 36).
A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade da Lei dos
Partidos Políticos parece compreender-se também no contexto dessa proibição,
na medida em que se afirma ali que se cuida, propriamente, de repudiar uma deci‑
são que limita a participação dos partidos no pleito eleitoral, mas de se ter como
inaceitável a adoção de critérios assentados no passado – em fatos já verificados
e consumados – para definir essa participação futura. [ADI 958, rel. min. Marco
Aurélio, DJ de 25-8-1995, p. 26021.]

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Nota-se, portanto, que a aprovação de leis casuísticas caminha lado a lado com
intenções discriminatórias da parte do legislador. Esse tipo de providência atenta
frontalmente contra o princípio da isonomia e, no caso em exame, contra a igual‑
dade de chances, sem a qual não há processo democrático-eleitoral imparcial e justo.

c) A proteção à minoria como pilar legitimador da jurisdição constitucional


Além de todo o exposto, tem-se que a proteção da minoria parlamentar e
política em geral representa um fundamento elevado da razão de ser da juris‑
dição constitucional.
Como se sabe, devemos a Kelsen a associação sistemática da jurisdição a
esse aspecto importante do conceito de democracia, que é, exatamente, a pos‑
sibilidade de sobrevivência e de proteção das minorias. A opção de Kelsen pelo
modelo democrático está vinculada à concepção teórica do relativismo. O sis‑
tema democrático não se legitima pela verdade, mas, sim, pelo consenso.
Na famosa conferência proferida perante a Associação dos Professores de
Direito Público alemães, Kelsen deixou claro que a jurisdição constitucional
haveria de ter papel central em um sistema democrático moderno:
Contra as muitas censuras que se fazem ao sistema democrático – muitas delas cor‑
retas e adequadas –, não há melhor defesa senão a da instituição de garantias que
assegurem a plena legitimidade do exercício das funções do Estado. Na medida em
que amplia o processo de democratização, deve-se desenvolver também o sistema
de controle. É dessa perspectiva que se deve avaliar aqui a jurisdição constitucio‑
nal. Se a jurisdição constitucional assegura um processo escorreito de elaboração
legislativa, inclusive no que se refere ao conteúdo da lei, então ela desempenha
uma importante função na proteção da minoria contra os avanços da maioria,
cuja predominância somente há de ser aceita e tolerada se exercida dentro do
quadro de legalidade. A exigência de um quorum qualificado para a mudança da
Constituição traduz a ideia de que determinadas questões fundamentais devem
ser decididas com a participação da minoria. A maioria simples não tem o direito
de impor a sua vontade – pelo menos em algumas questões – à minoria. Nesse
ponto, apenas mediante a aprovação de uma lei inconstitucional poderia a maioria
afetar os interesses da minoria constitucionalmente protegidos. Por isso, a minoria,
qualquer que seja a sua natureza – de classe, de nacionalidade ou de religião – tem
um interesse eminente na constitucionalidade da lei.
Isto se aplica sobretudo em caso de mudança das relações entre maioria e mino‑
ria, se uma eventual maioria passa a ser minoria, mas ainda suficientemente forte
para obstar uma decisão qualificada relativa à reforma constitucional. Se se con‑
sidera que a essência da democracia reside não no império absoluto da maio‑
ria, mas exatamente no permanente compromisso entre maioria e minoria dos
grupos populares representados no Parlamento, então representa a jurisdição

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constitucional um instrumento adequado para a concretização dessa ideia. A sim‑


ples possibilidade de impugnação perante a Corte Constitucional parece configu‑
rar instrumento adequado para preservar os interesses da minoria contra lesões,
evitando a configuração de uma ditadura da maioria, que, tanto quanto a ditadura
da minoria, se revela perigosa para a paz social.

Na experiência do direito comparado, Klaus Stüwe realiza profunda análise sobre


a jurisprudência do Tribunal Alemão desde o seu surgimento (1951) até os dias atuais.
O jurista alemão afirma que, na repartição das funções do Estado de Direito,
o controle das instituições democráticas é exercido, de forma compartilhada,
entre a “oposição parlamentar” e a “jurisdição constitucional”.
Acerca dessa “oposição parlamentar”, Canotilho enuncia o “direito de oposição
democrática”, o qual, em suas palavras:
(...) é um direito imediatamente decorrente da liberdade de opinião e da liber‑
dade de associação partidária. Precisamente por isso, o direito de oposição não se
limita à oposição parlamentar (o art. 114º/3, conjugado com o número 1º do mesmo
artigo, poderia ser interpretado nesse sentido), antes abrange o direito à oposição
extraparlamentar, desde que exercido nos termos da Constituição (art. 10º/2). Por
outro lado, como salienta o Tribunal Constitucional Alemão, a oposição exerce-se
não apenas face à maioria parlamentar mas também face à maioria parlamentar e
governo. A interpretação restritiva do direito à oposição (no sentido de uma simples
oposição parlamentar ao “governo de sua majestade”), conduziria, desde logo, a
que as forças políticas não representadas no Parlamento vissem a sua liberdade
política, o seu direito de participação na vida pública, o seu direito fundamental de
associação e a sua liberdade de expressão, indirectamente restringidos (para além
do permitido pelo art. 18º) por uma “anódina” interpretação do direito de oposição
democrática (cfr. art. lº/3 da L n. 24/98, de 26 de Maio – Estatuto de Direito de
Oposição –, onde se refere precisamente o direito de oposição dos partidos sem
representação parlamentar). A ideia de oposição extraparlamentar conexiona-se,
de resto, com outros direitos fundamentais como, por ex., os direitos de reunião
e manifestação (art. 45º), e com o próprio princípio democrático (cfr. Lei n. 24/98,
art. 3º/4). O princípio democrático postulará mesmo a oposição extraparlamen‑
tar quando a oposição parlamentar deixar de ter expressão significativa, como é
o caso das “grandes coligações” formadas por todos ou pelos principais partidos
com assento no Parlamento (Allparteienregierung).
Específico da oposição parlamentar é o direito à informação regular e directa sobre
o andamento dos principais assuntos de interesse público (art. 114º/3), o direito de
fiscalização e de crítica no âmbito da Assembleia da República (arts. 156º, 180º/2/c
e 194º), o direito de participação na organização e funcionamento do próprio par‑
lamento (arts. 175º/b, 176º/3, 178º/2 e 180º/1) e o direito de antena (art. 40º/2).
Particularmente relevante é o direito de consulta prévia (cf. Lei n. 24/98, art. 5º)
sobre questões políticas importantes (marcação da data de eleições, orientações

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de política externa, políticas de defesa e segurança interna). O conjunto destes


direitos designa-se por direitos de oposição. Constitucionalmente duvidosa é a
limitação do direito de réplica política apenas aos partidos de oposição represen‑
tados na Assembleia da República (cfr., porém, L 36/86, are. 2º, de 5/9 – garantia
de réplica política dos partidos de oposição).

Nesse particular, o próprio Klaus Stüwe realça o papel desempenhado pelos


controles derivados dos direitos da minoria, os quais são importantes, sobretudo,
nas hipóteses em que tais prerrogativas sejam “absolutas”, ou seja, independam
da vontade da maioria.
Como algumas categorias desses importantes controles, Stüwe destaca dois
exemplos da Lei Fundamental alemã. O primeiro é aquele da convocação anteci‑
pada do parlamento (Bundestag) por meio da petição de 1/3 de seus membros (art.
39, III). O segundo exemplo diz respeito à obrigação de constituir uma comissão de
investigação diante da solicitação de, pelo menos, 1/4 dos parlamentares (art. 44, I).
Daí afirmar-se coerentemente na doutrina alemã que, se requerido, o par‑
lamento (Bundestag) pode instalar a CPI. O órgão parlamentar deve, porém,
instituir a comissão se o requerimento contar com o apoio de pelo menos 1/4 dos
membros do parlamento. Cuida-se, pois de um direito da minoria em face da
maioria – dies ist ein Recht der Minderheit gegenüber der Mehrheit.
Tendo em vista essa circunstância particular, indaga-se, no direito alemão, se,
no caso de requerimento da maioria, seria necessária a edição de uma resolução
do parlamento, especialmente se o tema da investigação apresenta-se devida‑
mente definido. A resposta é afirmativa. A resolução é também exigida porque
o número de membros da comissão há de ser devidamente fixado.
Já com relação ao aspecto do exercício da “jurisdição constitucional”, devo
alertar que as modernas constituições, não obstante consagrarem os direitos
fundamentais e o princípio da soberania popular como princípios básicos do
Estado de Direito, dispõem, em geral, sobre a forma de manifestação da vontade
popular e sobre a atuação dos órgãos representativos dessa vontade.
Nesse contexto, os entes de representação devem agir dentro de limites pres‑
critos, estando os seus atos vinculados a determinados procedimentos. Essas
constituições pretendem, portanto, que os atos praticados pelos órgãos repre‑
sentativos possam ser objeto de crítica e controle. Trata-se, em verdade, de um
modelo de fiscalização democrática dos atos do poder público.
Tal como observado por Dieter Grimm, um sistema que admite o conflito de
opinião e a pluralidade de interesses como legítimo somente poderá subsistir
se houver consenso sobre a forma de resolução de conflitos e sobre os próprios
limites desses conflitos. Se a controvérsia tiver por objeto o próprio método de

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solução dos conflitos, o sistema democrático não estará livre da ameaça de ins‑
tabilidades e de tumultos no seu funcionamento.
Essa colocação tem a virtude de ressaltar que a jurisdição constitucional não
se mostra incompatível com um sistema democrático que imponha limites aos
ímpetos da maioria e discipline o exercício da vontade majoritária. Ao revés,
esse órgão de controle cumpre uma função importante no sentido de reforçar
as condições normativas da democracia e atenuar a possibilidade de conflitos
básicos que afetem o próprio sistema.
A missão de um tribunal como o Supremo é aplicar a Constituição, ainda que
contra a opinião majoritária. Esse é o ethos de uma corte constitucional. É fun‑
damental que tenhamos essa visão.
Isso está, na verdade, na obra de Zagrebelsky, que versa um tema histórico e
teológico fascinante: a crucificação e a democracia.
Diz Zagrebelsky:
Para a democracia crítica, nada é tão insensato como a divinização do povo que se
expressa pela máxima vox populi, vox dei, autêntica forma de idolatria política. Esta
grosseira teologia política democrática corresponde aos conceitos triunfalistas e acrí‑
ticos do poder do povo que, como já vimos, não passam de adulações interesseiras.
Na democracia crítica, a autoridade do povo não depende de suas supostas qua‑
lidades sobre-humanas, como a onipotência e a infalibilidade.
Depende, ao contrário, de fator exatamente oposto, a saber, do fato de se assu‑
mir que todos os homens e o povo, em seu conjunto, são necessariamente limi‑
tados e falíveis.
Este ponto de vista parece conter uma contradição que é necessário aclarar. Como
é possível confiar na decisão de alguém, como atribuir-lhe autoridade quando
não se lhe reconhecem méritos e virtudes, e sim vícios e defeitos? A resposta está
precisamente no caráter geral dos vícios e defeitos.
A democracia, em geral, e particularmente a democracia crítica, baseia-se em um
fator essencial: em que os méritos e defeitos de um são também de todos. Se no
valor político essa igualdade é negada, já não teríamos democracia, quer dizer, um
governo de todos para todos; teríamos, ao contrário, alguma forma de autocracia,
ou seja, o governo de uma parte (os melhores) sobre a outra (os piores).
Portanto, se todos são iguais nos vícios e nas virtudes políticas, ou, o que é a mesma
coisa, se não existe nenhum critério geralmente aceito, através do qual possam ser
estabelecidas hierarquias de mérito e demérito, não teremos outra possibilidade
senão atribuir a autoridade a todos, em seu conjunto. Portanto, para a democracia
crítica, a autoridade do povo não depende de suas virtudes, ao contrário, desprende‑
-se – é necessário estar de acordo com isso – de uma insuperável falta de algo melhor.
[ZAGREBELSKY, Gustavo. La crucifixión y la democracia. Trad. espanhola. Ariel, 1996.
p. 105 – Título original: II Crucifige! e la democracia. Giulio Einaudi, Torino, 1995.]

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Zagrebelsky encerra essa passagem notável, falando do julgamento de Cristo.


Dizia: Quem é democrático: Jesus ou Pilatos?, retomando um debate que tinha sido
colocado por Kelsen no trabalho sobre a democracia. E ele diz:
Voltemos, uma vez mais, ao processo contra Jesus. A multidão gritava Crucifica-
-lhe! Era exatamente o contrário do que se pressupõe na democracia crítica. Tinha
pressa, estava atomizada, mas era totalitária, não havia instituições nem procedi‑
mentos. Não era estável, era emotiva e, portanto, extremista e manipulável. Uma
multidão terrivelmente parecida ao povo, esse povo a que a democracia poderia
confiar sua sorte no futuro próximo. Essa turba condenava democraticamente
Jesus, e terminava reforçando o dogma do Sanedrim e o poder de Pilatos.
Poderíamos então perguntar quem naquela cena exercia o papel de verdadeiro
amigo da democracia. Hans Kelsen contestava: Pilatos. Coisa que equivaleria a
dizer: o que obrava pelo poder desnudo. Ante essa repugnante visão da democra‑
cia, que a colocava nas mãos de grupos de negociantes sem escrúpulos e até de
bandos de gangsters que apontam para o alto – como já ocorreu neste século entre
as duas guerras e como pode ocorrer novamente com grandes organizações crimi‑
nais de dimensões mundiais e potência ilimitada –, dariam vontade de contestar,
contrapondo ao poder desnudo a força de uma verdade: o fanatismo do Sanedrim.
Ao concluir essa reconstrução, queremos dizer que o amigo da democracia – da
democracia crítica – é Jesus: aquele que, calado, convida, até o final, ao diálogo
e à reflexão retrospectiva. Jesus que cala, esperando até o final, é um modelo.
Lamentavelmente para nós, sem embargo, nós, diferentemente dele, não estamos
tão seguros de ressuscitar ao terceiro dia, e não podemos nos permitir aguardar
em silêncio até o final.
Por isso, a democracia da possibilidade e da busca, a democracia crítica, tem que se
mobilizar contra quem rechaça o diálogo, nega a tolerância, busca somente o poder
e crê ter sempre razão. A mansidão – como atitude do espírito aberto ao diálogo,
que não aspira a vencer, senão a convencer, e está disposto a deixar-se convencer – é
certamente a virtude capital da democracia crítica. Porém só o filho de Deus pôde
ser manso como o cordeiro. A mansidão, na política, a fim de não se expor à irrisão,
como imbecilidade, há de ser uma virtude recíproca. Se não é, em determinado
momento, antes do final, haverá de romper o silêncio e deixar de aguentar.

É o que fazem o impetrante e os amici curiae ao gritarem contra um projeto


de lei de caráter sufocante, ambíguo e que condena os partidos em forma-
ção à morte por inanição, conforme assentou esta Corte, por unanimidade,
no julgamento das ADI 1.351 e 1.354, pela voz do relator, ministro Marco Aurélio,
DJ de 30-3-2007.
O catálogo de direitos fundamentais não está à disposição; ao contrário, cabe à
Corte Constitucional fazer o trabalho diuturno, exatamente porque ela não julga

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cada caso individualmente, mas, quando julga o caso, ela o faz na perspectiva
de estar definindo temas. Cabe à Corte fazer, diuturnamente, a pedagogia dos
direitos fundamentais, contribuindo para um processo civilizatório mais elevado.
É preciso ressaltar que a questão da proteção das minorias políticas é cons‑
tantemente revisitada nos debates desta Corte. É o que se colhe, por exemplo,
da firme jurisprudência desta Corte quanto ao direito de oposição das minorias
parlamentares para a instalação de CPIs. Nesse sentido, vale lembrar o julga‑
mento do MS 24.831, rel. min. Celso de Mello, Pleno, DJ de 4-8-2006, em que o
Plenário assentou a impossibilidade de a maioria parlamentar frustrar, no âmbito
do Congresso Nacional, o exercício, pelas minorias legislativas, do direito cons‑
titucional à investigação parlamentar.
Naquela oportunidade, o ministro Celso de Mello, em aprofundado voto, des‑
tacou o seguinte:
A matéria ora submetida ao julgamento do Supremo Tribunal Federal, Senhor
Presidente, reveste-se de inquestionável relevância. A afirmação que ora faço
apoia-se no reconhecimento de que existe, em nosso sistema político-jurídico,
um verdadeiro estatuto constitucional das minorias parlamentares, o que deve
conduzir esta Suprema Corte a proclamar o alto significado que assume, para o
regime democrático, a essencialidade da proteção jurisdicional a ser dispensada
ao direito de oposição, analisado na perspectiva da prática republicana das ins‑
tituições parlamentares.
Essa percepção do tema – que reconhece, no direito à efetiva instauração do
inquérito parlamentar, uma garantia instrumental constitucionalmente atribuída
às minorias legislativas, por efeito da imanência do direito de oposição em face
do próprio modelo democrático de Estado que entre nós prevalece – encontra
pleno suporte no mais autorizado magistério doutrinário (...).
Não se revela possível desconsiderar, por isso mesmo, a própria ratio subjacente
ao preceito normativo inscrito no art. 58, § 3º, da Constituição, cujo fundamento
político-jurídico – que deriva da necessidade de respeito incondicional às minorias
parlamentares – atua como verdadeiro pressuposto de legitimação da ordem demo‑
crática, tal como adverte o próprio magistério da jurisprudência dos Tribunais (...).
Vê-se, daí, que a questão ora submetida ao julgamento desta Suprema Corte faz
com que este Tribunal se defronte com um tema de extração iniludivelmente cons‑
titucional, eis que o reconhecimento do direito de oposição, de um lado, e a afir-
mação da necessidade de se assegurar, em nosso sistema jurídico, a proteção às
minorias parlamentares, de outro, qualificam-se, na verdade, como fundamentos
imprescindíveis à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito.

Além disso, o ministro Celso de Mello deixou registrado que se deve conce‑
der um direito de oposição que não esteja reduzido a uma previsão meramente

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formal, mas também garantir efetividade por meio de instrumentos hábeis a


garantir uma atuação condizente com o nosso sistema democrático:
Para que o regime democrático não se reduza a uma categoria político-jurídica
meramente conceitual, torna-se necessário assegurar, às minorias, mesmo em
sede jurisdicional, quando tal se impuser, a plenitude de meios que lhes permitam
exercer, de modo efetivo, um direito fundamental que vela ao pé das instituições
democráticas: o direito de oposição.
Não basta, desse modo, que se atribua, aos grupos minoritários, o direito de
oposição, quer se cuide de oposição parlamentar, quer se trate de oposição extra‑
parlamentar. Mais do que o mero reconhecimento formal da existência desse
direito, torna-se imperioso garantir-lhe, em plenitude, o seu efetivo exercício,
com todas as consequências que dele derivem.
Isso significa, portanto, numa perspectiva pluralística, em tudo compatível com
os fundamentos estruturantes da própria ordem democrática (CF, art. 1º, V), que,
ao lado do direito de oposição, há que haver a garantia de opor-se, para que essa
prerrogativa essencial não se converta em fórmula destituída de significação, o que
subtrairia – consoante adverte a doutrina (CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Fundamentos
de direito constitucional. Saraiva, 2004. p. 161/162, item n. 602.73) – o necessário coefi‑
ciente de legitimidade jurídico-democrática ao regime político vigente em nosso país.
Por isso mesmo, o direito de oposição, Senhor Presidente, especialmente aquele
reconhecido às minorias legislativas, para que não se transforme numa promessa
constitucional inconsequente, há de ser aparelhado com instrumentos de atuação
que viabilizem a sua prática concreta.

Também assentei em voto, no referido julgamento, que esta Corte era acionada
justamente para dar eficácia ao direito da minoria parlamentar, relembrando que
devemos a Kelsen a associação sistemática da jurisdição constitucional a esse
aspecto importante do conceito de democracia, que é, exatamente, a possibili‑
dade de sobrevivência e de proteção das minorias, dado que o sistema democrá‑
tico não se legitima pela verdade, mas sim pelo consenso. Naquela oportunidade,
ressaltei o seguinte:
Nesse contexto, os entes de representação devem agir dentro de limites prescritos,
estando os seus atos vinculados a determinados procedimentos (cf., a propósito,
GRIMM, Dieter. Verfassungserichtsbarkeit – Funktion und Funktionsgrenzen in demo‑
kratischem Staat. In: Jus-Didaktik, Heft 4, Munique, 1977, p. 83 (95).). Essas consti‑
tuições pretendem, portanto, que os atos praticados pelos órgãos representativos
possam ser objeto de crítica e controle (GRIMM, Dieter. Op. cit., p. 83 (95).). Trata-se,
em verdade, de um modelo de fiscalização democrática dos atos do poder público.
Tal como observado por Dieter Grimm, um sistema que admite o conflito de
opinião e a pluralidade de interesses como legítimo somente poderá subsistir

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se houver consenso sobre a forma de resolução de conflitos e sobre os próprios


limites desses conflitos (GRIMM, Dieter. Op. cit., p. 83 (96).). Se a controvérsia tiver
por objeto o próprio método de solução dos conflitos, o sistema democrático não
estará livre da ameaça de instabilidades e de tumultos no seu funcionamento.
Essa colocação tem a virtude de ressaltar que a jurisdição constitucional não
se mostra incompatível com um sistema democrático que imponha limites aos
ímpetos da maioria e discipline o exercício da vontade majoritária. Ao revés, esse
órgão de controle cumpre uma função importante no sentido de reforçar as con‑
dições normativas da democracia e atenuar a possibilidade de conflitos básicos
que afetem o próprio sistema (GRIMM, Dieter. Op. cit., p. 83 (96).).

O caso em apreço também demonstra, à saciedade, a necessidade de proteção


à minoria, reforçado, ademais, pela proteção à confiança que os parlamentares
depositaram na prevalência da decisão emanada desta Corte no julgamento da ADI
4.430, a qual garantiu a que o tempo de rádio e TV e as cotas de fundo partidário
fossem transferidos em conjunto com os congressistas que criassem novas legendas.
O casuísmo da aprovação do PLC 14/2013, após a referida decisão do Su­­
premo, exatamente no momento em que forças políticas minoritárias mobi-
lizavam-se para a criação de partidos novos, os quais certamente contariam
com a adesão de parlamentares eleitos, significa um bloqueio dessa mesma
mobilização, em razão da frustração das expectativas nutridas pelos atores
políticos envolvidos.
Isso tem o condão de desrespeitar o direito das minorias de livremente
associarem-se politicamente, por meio de manobra que eleva sobremaneira
os ônus relacionados à liberdade de criação de legendas. E o faz de modo des‑
respeitoso, por um lado, ao princípio da isonomia e da igualdade de chances,
visto que visa a tratar distintamente grupos políticos que merecem igual con‑
sideração, em especial no curso de uma mesma legislatura; e, por outro lado, a
aprovação do PLC 14/2013 significaria um duro golpe contra o Estado de Direito,
corporificado em afronta ao princípio da segurança jurídica, que deve nortear
todo o processo democrático, sobretudo em sua modalidade de proteção à con‑
fiança legítima, uma vez que os grupos políticos mobilizavam-se para a criação
de novos partidos, ancorados em pronunciamento recentíssimo do Supremo
Tribunal Federal deste país (ADI 4.430).
Ante essas considerações, não há dúvida de que a deliberação para aprova‑
ção do PLC 14/2013, mediante procedimento legislativo abreviado em razão de
requerimentos de urgência, e nos termos em que se encaminhava a votação até
a decisão liminar de minha lavra que a suspendeu, afigura-se inconstitucional,
também, por afronta ao direito das minorias parlamentares.

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d) A jurisdição constitucional como garante das condições da democracia


Algumas decisões adotadas pelos Poderes constituídos da República reverbe‑
ram normalmente em outros. Algumas vezes esse fato é lido como se um Poder
estivesse a invadir a seara do outro, ou a lhe usurpar competências, conforme se
tem visto noticiar em alguns casos. Ocorre que a inter-relação entre os Poderes,
de uma forma ou de outra, leva a esses influxos. É esse relacionamento que per‑
mite à separação dos Poderes operar de modo eficiente, desde sua formulação
clássica, dada por Montesquieu.
No caso em exame, esta Suprema Corte está a exercer função básica da juris‑
dição constitucional. Em muitos países, ocasionalmente ocorre de as cortes
constitucionais serem criticadas em razão de proferirem decisões alegadamente
ativistas. Apesar de ativismo judicial ser algo relativamente difícil de se conceituar
com precisão e de ser dependente da configuração de cada ordenamento jurídico,
a noção é tão difundida e comentada que não se faz necessário aqui explicá-la.
O ponto é que uma das principais características da jurisdição constitu-
cional – e que, por isso mesmo, torna-se parte de sua essência – é funcionar
como uma espécie de garante das condições mínimas da democracia. Esse tipo
de atuação das cortes constitucionais e das supremas cortes é consensual, aceito
e prestigiado até pelos mais fervorosos críticos do chamado ativismo judicial.
Por essa razão, a garantia do exercício dos direitos fundamentais e democrá‑
ticos de participação política está intrinsecamente ligada à própria regularidade
do processo democrático, e a atuação da jurisdição constitucional nessa seara
revela-se de extrema importância sempre que haja lesão ou ameaça de lesão a
tais direitos. Desde a publicação da obra de John Hart Ely (Democracy and dis-
trust: A theory of judicial review. Cambridge and London: Harvard University
Press, 1980), compreende-se que a proteção do funcionamento regular do pro‑
cesso democrático é a principal função da jurisdição constitucional e, portanto,
também desta Suprema Corte.
Coincidentemente, a obra clássica de Ely é de 1980, mesmo ano em que o STF
julgou o MS 20.257 e, em acórdão lavrado pelo ministro Moreira Alves, fixou a sua
jurisprudência no sentido do cabimento de mandado de segurança em hipóte‑
ses como a presente. Em um ambiente de questionamentos sobre os limites da
atuação do Judiciário no exercício do controle de constitucionalidade, o autor
norte-americano definiu a seara essencial na qual o controle realizado pela juris‑
dição constitucional é imprescindível à democracia.
Para Ely, a atuação do Poder Judiciário está vinculada à identificação de falhas
no que chamou de mercado político, fazendo analogia com o exercício de uma
função antitruste, no sentido regulatório-econômico. Quer dizer que a jurisdição

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constitucional deve atuar quando esse mercado político estiver funcionando mal,
em afronta aos direitos fundamentais (ELY, John Hart. Toward a representation-
reinforcing mode of judicial review. Maryland Law Review, v. 37, 1977, p. 488).
Ely afirma, com acuidade, que é obrigação e dever do Judiciário: (i) aplicar
as regras expressas do texto constitucional; (ii) intervir no processo político
quando isso for necessário para a proteção do funcionamento regular do
sistema democrático; (iii) bem como para garantir o adequado tratamento
dispensado pelas maiorias às minorias.
Nesse sentido, a concessão da medida liminar no presente mandado de segu‑
rança nada mais fez do que aplicar normas constitucionais, para garantir a regu‑
laridade do processo democrático e assegurar o respeito aos direitos das minorias
políticas, que estavam sendo violados pela maioria parlamentar. E o julgamento
de mérito deve pôr fim a essa ameaça de forma definitiva e fundamentada.
Vale lembrar que a proposição legislativa se deu em 19-9-2012, que houve a
adoção do requerimento de urgência, em 16-4-2013, e que o projeto de lei em
questão foi aprovado definitivamente em sessão deliberativa extraordinária
da Câmara dos Deputados realizada em 23-4-2013. Em seguida, foi enviado
para a apreciação do Senado Federal. No dia 24-4-2013, o Plenário do Senado
estava reunido apreciando requerimento de urgência para a aprovação do
PLC 14/2013, quando concedi a liminar no presente mandado de segurança.
O resultado de uma eventual aprovação casuística e apressada do PLC 14/2013
seria o sufocamento das mobilizações políticas envolvidas na criação de alguns
novos partidos. Assim, o trâmite singularmente célere do PLC 14/2013 visava a
impedir que os respectivos tempos de rádio e TV, bem como as respectivas par‑
celas do fundo partidário acompanhassem os congressistas que deixassem seus
partidos para ingressarem em novas legendas, contrariando a decisão adotada
por esta Corte na ADI 4.430, rel. min. Dias Toffoli, Plenário, julgada em 29-6-2012.
Note-se que o processo de criação de legendas é relativamente complicado e
demorado. Requer o recolhimento de assinaturas em âmbito nacional (mais de
nove Estados da Federação) e consolidação de complexa documentação, além
da observância de prazos específicos e improrrogáveis. A viabilidade eleitoral de
um novo partido está intimamente relacionada ao tempo de rádio e TV de que
poderá usufruir, assim como à cota do fundo partidário que receberá, de modo
que a adesão de parlamentares às novas legendas, em nosso modelo, tornou-se
questão de sobrevivência para as novas agremiações políticas.
Também não se pode ignorar, por imperdoável ingenuidade, que para todos
os atores políticos envolvidos no processo eleitoral a decisão sobre manter-se
na agremiação em que se encontra ou dela se retirar para ingressar em legenda

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em processo de formação é extremamente delicada. Os cálculos empreendidos


são diversos e complicados, pois os atores políticos tentarão antever as conse‑
quências de suas respectivas adesões aos novos partidos em termos de tempo de
rádio e TV, de verbas do fundo partidário, de financiamento de suas campanhas,
de situação política local, estadual e nacional, bem como em termos de posicio‑
namento a favor ou em oposição aos governos em todas as esferas da Federação.
Nesse sentido é que a impetração do mandado de segurança com intuito de
vedar a deliberação de proposição legislativa violadora de cláusulas pétreas
torna-se extremamente relevante. É que, em razão das dificuldades relaciona‑
das ao processo de criação de novas legendas e, sobretudo, da complexidade da
decisão política dos parlamentares em aderirem aos novos partidos, a simples
tramitação, casuística e em velocidade recorde, do PLC 14/2013 já representa um
forte empecilho à viabilidade das novas legendas.
Isso porque, evidentemente, a simples ameaça de que os parlamentares não
portarão consigo, caso decidam aderir aos novos partidos em formação, seus res‑
pectivos tempos de TV e rádio, bem como suas cotas de fundo partidário, já é sufi‑
cientemente forte para dissuadir as mobilizações políticas nesse sentido e, assim,
esmagar as minorias políticas que procuram organizar-se como alternativa eleitoral.
Isso tudo deve ser entendido tendo-se em mira que todo o processo de
constituição dos novos partidos e de adesão de novos parlamentares deverá
estar concluído até o início do mês de outubro do corrente ano, em razão do
princípio da anterioridade eleitoral e dos prazos fixados pela legislação e
pela justiça especializada.
Por todas essas razões, a decisão desta Suprema Corte, confirmando a liminar
neste mandado de segurança, antes de significar ingerência indevida na atuação
do Poder Legislativo, representa imprescindível caráter de proteção da regulari‑
dade do processo democrático, do direito fundamental de participação política
e de criação de legendas, de proteção das minorias face ao poder das maiorias
políticas e da preservação da igualdade de chances, essencial em democracias.

e) O PLC 14/2013 em face dos princípios da igualdade e da segurança jurídica e a ofensa


à jurisprudência do STF
Além de todas as considerações anteriores, é importante salientar que o tema
não é novo nesta Corte. No julgamento das ADI 1.351 e 1.354, rel. min. Marco
Aurélio, Plenário, DJ de 30-3-2007, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade,
declarou a inconstitucionalidade de lei que visava a restringir o funcionamento
parlamentar, por meio da adoção de uma cláusula de desempenho, bem como
da redução do tempo de propaganda partidária gratuita e da participação

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no rateio do fundo partidário. O acórdão das referidas ações diretas de incons‑


titucionalidade, julgadas em conjunto, restou assim ementado:
Partido político – Funcionamento parlamentar – Propaganda partidária gratuita –
Fundo partidário. Surge conflitante com a Constituição Federal lei que, em face
da gradação de votos obtidos por partido político, afasta o funcionamento parla‑
mentar e reduz, substancialmente, o tempo de propaganda partidária gratuita e
a participação no rateio do fundo partidário.
Normatização – Inconstitucionalidade – Vácuo. Ante a declaração de inconstitu‑
cionalidade de leis, incumbe atentar para a inconveniência do vácuo normativo,
projetando-se, no tempo, a vigência de preceito transitório, isso visando a aguardar
nova atuação das casas do Congresso Nacional.

Nesse julgamento, mencionei, em obiter dictum, que o sistema político brasi‑


leiro passava por uma crise e que a intensa migração de parlamentares de uma
legenda para outra estava a merecer maior atenção, uma vez que poderia signi‑
ficar afronta à vontade do eleitor.
Em momento posterior, o Supremo Tribunal afirmou que a fidelidade parti‑
dária decorria do sistema eleitoral adotado, bem como de outras regras e princí‑
pios constitucionais (confiram-se os MS 26.602, 26.603 e 26.604, de relatoria dos
ministros Eros Grau, Celso de Mello e Cármen Lúcia, respectivamente).
No julgamento dos referidos mandados de segurança, salientei que a fidelidade
partidária condicionava o processo democrático, ao impor normas de preserva‑
ção dos vínculos políticos e ideológicos entre eleitores, eleitos e partidos. Nesse
sentido, o “transfuguismo” partidário excessivo que se estava a vivenciar conta‑
minava todo o processo democrático, gerando repercussões negativas sobre o
funcionamento parlamentar dos partidos.
Ao assentar a necessidade de se observar a fidelidade partidária, a Corte dele‑
gou ao Tribunal Superior Eleitoral a edição de resolução que regulamentasse
todos os aspectos decorrentes de sua decisão. Verifique-se trecho da ementa do
julgado do MS 26.602, rel. min. Eros Grau:
O abandono de legenda enseja a extinção do mandato do parlamentar, ressalvadas
situações específicas, tais como mudanças na ideologia do partido ou perseguições
políticas, a serem definidas e apreciadas caso a caso pelo Tribunal Superior Eleitoral.

A proibição do “troca-troca” partidário não representou, por óbvio, a asfixia da


liberdade de criação de partidos políticos, garantida pelo art. 17 da Constituição
Federal, tampouco a vedação do acesso de novos partidos aos recursos do fundo
partidário e ao tempo de propaganda eleitoral no rádio e na televisão, in verbis:

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Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, res‑


guardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os
direitos fundamentais da pessoa humanas e observados os seguintes preceitos:
(...)
§ 3º Os partidos políticos têm direito a recursos do fundo partidário e acesso
gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei.

Justamente nesse contexto, o STF, ao interpretar os dispositivos transcritos, em


sessão plenária realizada em 29-6-2012, julgou a ADI 4.430, de relatoria do minis‑
tro Dias Toffoli, e concedeu interpretação conforme à Constituição ao inciso II
do § 2º do art. 47 da Lei 9.504/1997, para assegurar aos partidos novos, criados
após a realização das últimas eleições gerais para a Câmara dos Deputados, o
direito de acesso proporcional aos 2/3 do tempo destinado à propaganda eleito‑
ral gratuita no rádio e na televisão, considerada a representação dos deputados
federais que migrarem diretamente dos partidos pelos quais foram eleitos para
a nova legenda no momento de sua criação.
Essa interpretação foi observada pelo sistema político nas últimas eleições
municipais e, portanto, abarcou os atores políticos aos quais foi aplicada até
o momento. O PLC 14/2013 afronta diretamente a interpretação constitucio-
nal veiculada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4.430,
rel. min. Dias Toffoli, a qual resultou de gradual evolução da jurisprudência
da Corte, conforme demonstrado.
A interpretação conferida pelo Tribunal ao art. 47, § 2º, II, da Lei 9.504/1997
visou tutelar o pluripartidarismo, direito constitucional afirmado e consubstan‑
ciado na livre criação de partidos, e a centralidade que os partidos exercem no
sistema dos direitos políticos positivado pela Constituição de 1988, no qual são
imprescindíveis para a plena realização da cidadania, visto que condicionam o
direito de participação política.
O PLC 14/2013 pretende, em verdade, rever a decisão da ADI 4.430. Segundo o
referido projeto de lei, as redações do art. 29, § 6º, e do art. 41-A da Lei 9.096/1995
passariam a ser as seguintes:
Art. 29. (...)
(...)
§ 6º Havendo fusão ou incorporação, devem ser somados exclusivamente os
votos dos partidos fundidos ou incorporados, obtidos na última eleição geral
para a Câmara dos Deputados, para efeito da distribuição dos recursos do Fundo
Partidário e do acesso gratuito ao rádio e à televisão.
Art. 41-A. Do total do Fundo Partidário:
I – 5% (cinco por cento) serão destacados para entrega, em partes iguais, a todos
os partidos que tenham seus estatutos registrados no Tribunal Superior Eleitoral; e

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II – 95% (noventa e cinco por cento) serão distribuídos aos partidos na proporção
dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados.
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II, serão desconsideradas as
mudanças de filiação partidária, em quaisquer hipóteses, ressalvado o disposto
no § 6º do art. 29. [Grifei.]

Não há a menor dúvida de que esse projeto de lei introduz em seus dispositivos
normas de caráter interpretativo, que buscam afastar a interpretação conferida
a tal matéria por esta Corte, no julgamento da ADI 4.430. Ou seja, nessa ação
direta o Supremo interpretou a Constituição para entender que o pluripar-
tidarismo e a livre criação de legendas são direitos políticos fundamentais
(cláusulas pétreas) que impedem a proibição da transferência, em conjunto
com os parlamentares que deixarem suas legendas para criarem novas agre-
miações, de seus respectivos tempos de rádio e TV e cotas do fundo partidário.
E o PLC 14/2013 pretende dispor em sentido diametralmente oposto.
Ressalvando que fiquei vencido na espécie, cumpre notar que esta Corte já
decidiu ser inconstitucional a lei que possua como objetivo imediato rever inter‑
pretação constitucional previamente declarada pelo Supremo (ADI 2.797, rel. min.
Sepúlveda Pertence, DJ de 19-12-2006). O ministro Sepúlveda Pertence aduziu
em seu voto que, muito embora o efeito vinculante das decisões do Supremo
Tribunal Federal nas ações de controle abstrato de normas não abarque o Poder
Legislativo, a este não é dado aprovar lei que se destine a conferir à Constituição
exegese imediatamente oposta àquela exarada pelo Supremo Tribunal Federal.
Diante de tal jurisprudência, é extremamente provável que o PLC 14/2013,
caso fosse aprovado em sua versão atual, viria a ser declarado inconstitucio-
nal por esta Corte.
Há ainda elementos graves a serem considerados. Nas presentes circunstâncias
e ante a referida decisão desta Corte na ADI 4.430, a aprovação do PLC 14/2013
implicaria uma de duas alternativas, ambas ofensivas a direitos fundamentais
tutelados pela Constituição Federal de 1988: (i) ou representaria grave viola-
ção ao princípio da igualdade de chances; ou (ii) significaria ofensa frontal
ao princípio da segurança jurídica, considerado em sua acepção especial de
proteção à confiança legítima. E até mesmo ambas.
Não tenho dúvida em afirmar que a decisão deste Tribunal, tomada há menos
de um ano, na ADI 4.430, de relatoria do ministro Dias Toffoli, significou um
sinal verde para que os parlamentares pudessem deixar seus partidos, para criar
novas legendas, portando seus respectivos tempos de rádio e TV e cotas do fundo
partidário. No momento em que foi adotada, a decisão, sem dúvida, beneficiou
a alguns parlamentares e a algumas novas agremiações partidárias (a exemplo

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do Partido Ecológico Nacional (PEN) e do Partido Social Democrático (PSD)),


pois permitiu que tais legendas se tornassem viáveis, política e eleitoralmente.
Conforme exposto acima, não se pode permitir, em uma democracia sau-
dável, que atores e partidos políticos sejam tratados de forma desigual pelo
legislador, impondo ônus a determinados grupos que não foram impostos a
outros, sobretudo durante o curso de uma mesma legislatura.
Sempre que o Poder Legislativo, no afã do cumprimento da vontade de
uma maioria ocasional, violar as regras que devem nortear a concorrência
democrática leal, igualitária e justa, sufocando os direitos e mobilizações das
minorias, a precípua função da jurisdição constitucional será a de afastar
qualquer constrangimento imposto pelo legislador à lisura e à regularidade
do processo democrático. É exatamente isso que se faz presente neste caso.
Mas essa violação ao princípio da isonomia e da igualdade de chances, que
configurou o foco dos debates do presente mandado de segurança, sempre
in­­dicada não apenas pelo impetrante, mas também pelas manifestações dos
amici curiae e do procurador-geral da República, não é a única leitura possível
do PLC 14/2013.
O que pretendo demonstrar é que a interpretação direta do texto do projeto de
lei em questão não revela simples ofensa à isonomia e ao princípio da igualdade
de chances, mas evidencia uma grave ofensa à segurança jurídica, na acepção
da proteção à confiança legítima.
Isso porque a decisão do Supremo na ADI 4.430, que garantiu aos congres‑
sistas que deixaram suas agremiações para se integrarem a novos partidos que
levassem consigo seus respectivos tempos de rádio e TV e suas cotas do fundo
partidário, foi aplicada nas eleições municipais de 2012 e serve de base para a
distribuição mensal das verbas do referido fundo neste ano.
O PLC 14/2013, no entanto, visa a impedir essa aderência aos parlamenta‑
res dessas prerrogativas da representação e remete a distribuição do tempo
de rádio e TV e das cotas do fundo partidário a critérios fixados pelo resultado
das últimas eleições para a Câmara dos Deputados, ocorridas em 2010, quando
ainda não existiam nem a Rede Sustentabilidade, nem o Partido Solidariedade,
tampouco o Partido Ecológico Nacional (PEN) e o Partido Social Democrático
(PSD). Ressalte-se que o PSD conta com 46 deputados federais, constituindo
a quarta maior bancada da Casa Legislativa, atrás apenas do PMDB, do PT e
do PSDB, que possui 49 deputados, apenas 3 a mais.
Isso significa que todos esses partidos, por não terem participado das eleições
de 2010, apenas terão direitos às cotas mínimas de rádio e TV e do fundo partidá‑
rio, sempre restringidas ainda mais pelo projeto em exame, o que surpreenderia

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os parlamentares que migraram para essas legendas (PSD e PEN, especial-


mente), antes do advento da nova lei, caso seja aprovado o PLC 14/2013, em
sua versão atual.
Evidentemente que isso ofenderia a segurança jurídica, bem como a con-
fiança legítima dos parlamentares e dos partidos envolvidos, os quais toma-
ram suas respectivas decisões políticas resguardados por interpretação cons-
titucional emanada desta Corte, no julgamento da ADI 4.430.
Basta que se confira, na parte que interessa, o teor do PLC 14/2013, na forma
como se encaminhava a sua aprovação no Senado da República quando concedi
a liminar no presente feito. Segundo o projeto, as redações do art. 29, § 6º, e do
art. 41-A da Lei 9.096/1995 passariam a ser as seguintes:
Art. 29. (...)
(...)
§ 6º Havendo fusão ou incorporação, devem ser somados exclusivamente os
votos dos partidos fundidos ou incorporados, obtidos na última eleição geral
para a Câmara dos Deputados, para efeito da distribuição dos recursos do
Fundo Partidário e do acesso gratuito ao rádio e à televisão.

Art. 41-A. Do total do Fundo Partidário:


I – 5% (cinco por cento) serão destacados para entrega, em partes iguais, a todos
os partidos que tenham seus estatutos registrados no Tribunal Superior Eleitoral; e
II – 95% (noventa e cinco por cento) serão distribuídos aos partidos na pro-
porção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados.
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II, serão desconsideradas as
mudanças de filiação partidária, em quaisquer hipóteses, ressalvado o disposto
no § 6º do art. 29. [Grifei.]

Pela simples leitura dos dispositivos fica claro que o critério adotado pelo
PLC 14/2013 para a distribuição do tempo de rádio e TV e das cotas do Fundo
Partidário é o resultado da última eleição para a Câmara dos Deputados, ocorrida
em 2010. Sendo assim, mesmo partidos como o PSD e o PEN, já criados e que
receberam parlamentares de outras legendas no curso da presente legislatura,
apenas teriam acesso às cotas mínimas do fundo partidário.
No que diz respeito ao tempo de rádio e TV, haveria a agravante de que
os respectivos tempos mínimos distribuídos igualitariamente, pela redação
do projeto, passariam a ser de 1/9, e não de 1/3, como prevê a legislação atual.
Confira-se:
Art. 2º O art. 47 da Lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997, passa a vigorar com as
seguintes alterações:

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“Art. 47. (...)
(...)
§ 2º Os horários reservados à propaganda de cada eleição, nos termos do § 1º,
serão distribuídos entre todos os partidos e coligações que tenham candidato,
observados os seguintes critérios:
I – 2/3 (dois terços) distribuídos proporcionalmente ao número de representan‑
tes na Câmara dos Deputados, considerado, no caso de coligação, o resultado
da soma de representantes de todos os partidos que a integram;
II – do restante, 1/3 (um terço) distribuído igualitariamente e 2/3 (dois terços)
proporcionalmente ao número de representantes eleitos no pleito no pleito
imediatamente anterior para a Câmara dos Deputados, considerado, no caso
de coligação, o resultado da soma do número de representantes de todos os
partidos que a integram.
§ 7º Para efeito do disposto no § 2º, serão desconsideradas as mudanças
de filiação partidária, em quaisquer hipóteses, ressalvado o disposto no § 6º
do art. 29 da Lei n. 9.096, de 19 de setembro de 1995.” [Grifei.]

Note-se que, além da restrição absolutamente exagerada das cotas distribuídas


igualitariamente, o projeto (vide § 7º supra) cria um novo e verdadeiro regime
jurídico acerca do tema e, nesse sentido, aplica-se indistintamente a todos os
partidos para as próximas eleições gerais a ocorrerem em 2014.
Ao criar um verdadeiro estatuto, o qual dispõe que as cotas do fundo partidá‑
rio, bem como os tempos de rádio e TV proporcionais terão como marco para
a definição de sua distribuição o resultado das últimas eleições (2010) para a
Câmara dos Deputados, o projeto tem o condão de:
(i) desmobilizar as forças políticas que se reúnem para a formação de novos
partidos (viola a isonomia e a igualdade de chances);
(ii) afigurar-se ofensivo à segurança jurídica, ao quebrar a confiança legí-
tima dos parlamentares que fundaram anteriormente, mas nesta mesma legis‑
latura, novas legendas;
(iii) e, além disso, afronta diretamente a decisão desta Corte na ADI 4.430,
na qual se deu interpretação conforme ao § 3º do art. 47 da Lei 9.504/1997, para
se fixar que ele não se aplicaria aos novos partidos, criados após as últimas
eleições (2010).
Na prática, isso quer dizer que todos os partidos e congressistas confiaram em
um regime jurídico que seria afastado pela aprovação do projeto em tela, o que
representaria grave violação ao princípio da proteção à confiança, que decorre
diretamente do princípio da segurança jurídica.
Sendo certo que esses e outros partidos já receberam e continuam a perceber
as cotas do fundo partidário com base em suas atuais bancadas, a aprovação

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do projeto em exame ainda significaria a necessidade de rever a distribuição do


fundo e, eventualmente, de devolver valores recebidos indevidamente.
Ante todas essas considerações, o que salta claro aos olhos é que, por uma
interpretação imediata, o PLC 14/2013 visa a superar o entendimento esposado
pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 4.430 e, nesse sentido, obviamente
significa violação ao princípio da confiança legítima dos parlamentares e
partidos que acreditaram que os critérios referidos na decisão prevaleceriam
nas eleições gerais de 2014 e, firmes nessa crença, adotaram suas respectivas
estratégias políticas.
Por outro lado, caso se pretenda interpretar a proposição de modo a res-
guardar a segurança jurídica e proteger a confiança dispensada pelos parla-
mentares que migraram, por exemplo, para o PSD e para o PEN, o que restaria
seria um projeto frontalmente violador do princípio da isonomia, em sua
acepção da igualdade de chances no processo político-democrático, pois
trata de modo desigual atores políticos e parlamentares eleitos legitimamente
para uma mesma legislatura.
Nesse sentido, o projeto revela-se, também, ofensivo aos direitos das mino-
rias parlamentares, pois a sua simples tramitação tem o condão de desesti-
mular a mobilização política visando à criação de novas legendas, cujo prazo
final é outubro deste ano, o que inviabilizaria a constituição de partidos elei-
toralmente competitivos para o pleito de 2014.
Desse modo, se o País pretende construir uma democracia sólida e sau-
dável, precisa cultivar a regularidade e a lisura do processo democrático,
bem como a lealdade da concorrência democrática pelo poder, a qual, se e
quando violada, deverá contar com a intervenção desta Suprema Corte para
a restabelecer. Essa é precisamente a hipótese desses autos.
Isso porque a simples tramitação do projeto de lei em exame, consoante
demonstrei, tem o condão de violar cláusulas pétreas da Constituição de
1988, todas intrinsecamente ligadas ao direito fundamental de participação
política, tão caro às democracias.

f) Diálogo institucional e a construção de soluções constitucionais


É preciso explicitar, ainda, que esta Corte não interveio indevidamente nas
atividades do Congresso Nacional e não tem a pretensão de fazê-lo. Ao cuidar de
assuntos caros ao próprio exercício da democracia, é importante deixar claro que
os órgãos e Poderes do Estado devem considerar mutuamente as suas decisões
para buscar compreender as inter-relações que delas surgem.
Faço essas considerações para esclarecer que não se pretende impedir que

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o Congresso Nacional realize, por exemplo, uma reforma política, que vise a
responder aos principais problemas enfrentados por nosso sistema, entre eles
a quantidade elevada de partidos políticos.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal revela que a Corte empe-
nha-se, regularmente, em garantir as prerrogativas do Poder Legislativo.
Bons exemplos nesse sentido são as decisões desta Corte que cuidaram da dis‑
ciplina das medidas provisórias. Após o entendimento que permitiu a reedição
de medida provisória que não tenha sido convertida em lei no prazo constitu‑
cionalmente estabelecido, tampouco haja sido rejeitada pelo Congresso Nacio‑
nal, o abuso por parte do Executivo levou o Congresso Nacional a promulgar
EC 32/2001, conferindo novo tratamento à matéria.
Mesmo após a aprovação da referida emenda constitucional, a Presidência
da República continuou a editar medidas provisórias em ritmo e quantidade
abusivos. Isso teve o condão de trancar a pauta das casas legislativas, em razão
do disposto no § 6º do art. 62 da Constituição. Verificou-se, a partir disso, que o
presidente da República detinha um verdadeiro poder de agenda sobre a pauta
das casas do Congresso Nacional.
O Supremo, então, exarou decisões que visavam a proteger as prerrogativas
do Congresso. Na ADI 4.048 MC, de minha relatoria, Plenário, DJE de 22-8-2008,
admitiu-se a análise excepcional da presença dos pressupostos de relevância e
urgência para a edição de medidas provisórias, bem como a aferição da natureza
dos créditos que o ato legislativo visava a abrir, se verdadeiramente extraordiná‑
rios ou não. Desse modo, a Corte estava a tutelar o controle congressual de sua
própria pauta, bem como de suas prerrogativas. Confira-se a ementa do julgado:
Medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade. Medida Provisória 405,
de 18-12-2007. Abertura de crédito extraordinário. Limites constitucionais à ativi‑
dade legislativa excepcional do Poder Executivo na edição de medidas provisórias.
I – Medida provisória e sua conversão em lei. Conversão da medida provisória na
Lei 11.658/2008, sem alteração substancial. Aditamento ao pedido inicial. Inexistên‑
cia de obstáculo processual ao prosseguimento do julgamento. A lei de conversão
não convalida os vícios existentes na medida provisória. Precedentes.
II – Controle abstrato de constitucionalidade de normas orçamentárias. Revisão de
jurisprudência. O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de
fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver
um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente
do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de
submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade.
III – Limites constitucionais à atividade legislativa excepcional do Poder Exe-
cutivo na edição de medidas provisórias para abertura de crédito extraordinário.

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Interpretação do art. 167, § 3º, c/c o art. 62, § 1º, I, d, da Constituição. Além dos


requisitos de relevância e urgência (art. 62), a Constituição exige que a abertura
do crédito extraordinário seja feita apenas para atender a despesas imprevisíveis
e urgentes. Ao contrário do que ocorre em relação aos requisitos de relevância e
urgência (art. 62), que se submetem a uma ampla margem de discricionariedade
por parte do presidente da República, os requisitos de imprevisibilidade e urgên-
cia (art. 167, § 3º) recebem densificação normativa da Constituição. Os conteúdos
semânticos das expressões “guerra”, “comoção interna” e “calamidade pública”
constituem vetores para a interpretação/aplicação do art. 167, § 3º, c/c o art. 62,
§ 1º, I, d, da Constituição. “Guerra”, “comoção interna” e “calamidade pública” são
conceitos que representam realidades ou situações fáticas de extrema gravidade
e de consequências imprevisíveis para a ordem pública e a paz social, e que dessa
forma requerem, com a devida urgência, a adoção de medidas singulares e extra‑
ordinárias. A leitura atenta e a análise interpretativa do texto e da exposição de
motivos da MP 405/2007 demonstram que os créditos abertos são destinados
a prover despesas correntes, que não estão qualificadas pela imprevisibilidade
ou pela urgência. A edição da MP 405/2007 configurou um patente desvirtu-
amento dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas
provisórias para a abertura de créditos extraordinários.
IV – Medida cautelar deferida. Suspensão da vigência da Lei 11.658/2008, desde
a sua publicação, ocorrida em 22 de abril de 2008. [Grifei.]

Em outro caso, o ministro Celso de Mello denegou a liminar requerida em man‑


dado de segurança para manter em vigor interpretação do então presidente da
Câmara dos Deputados, Michel Temer, segundo a qual o trancamento de pauta,
previsto no § 6º do art. 62 do texto constitucional, apenas se refere às proposições
legislativas ordinárias, cujos conteúdos, via de regra, podem ser veiculados por
meio de medida provisória.
Essa interpretação, que até o momento é chancelada pelo Supremo, mantém
as pautas das casas do Congresso livres para a votação de projetos de emenda
constitucional, leis complementares, decretos legislativos e resoluções. É impor‑
tante notar que a interpretação constitucional inovadora, nesse caso, é emanada
do próprio Poder Legislativo. Tal interpretação foi impugnada por parlamentares
da oposição. Apesar de o Supremo Tribunal Federal ainda não haver concluído o
julgamento de mérito do mandado de segurança em questão, o ministro Celso de
Mello, relator do caso, indeferiu o pedido de liminar e manteve a interpretação
inovadora oriunda do Congresso Nacional (MS 27.931, rel. min. Celso de Mello,
DJE de 1º-4-2009.) No mérito, o ministro relator manteve seu posicionamento em
prestígio da interpretação constitucional elaborada pelo presidente da Câmara
dos Deputados; todavia, o julgamento foi interrompido por pedido de vista da
ministra Cármen Lúcia.

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Em outra importante decisão, o Supremo defendeu as prerrogativas do Con‑


gresso Nacional. Na ADI 3.964 MC, rel. min. Carlos Britto, Plenário, DJE de 11-4-
2008, a Corte considerou que o presidente da República não poderia revogar
medida provisória e, na mesma sessão legislativa, editar uma nova medida pro‑
visória cuidando do mesmo tema, ante a configuração de reedição, vedada pela
Constituição. Confira-se a ementa:
Ação direta de inconstitucionalidade. Medida liminar. Medida Provisória 394/2007,
que “dá nova redação ao § 3º do art. 5º da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003”. Lei
que “dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre
o Sistema Nacional de Armas (SINARM)”.
1. Num exame prefacial, tem consistência a alegação de que a MP 394/2007 é
mera reedição de parte da MP 379/2007. Isso porque a mais recente incorpora
temas da mais antiga, sem o aporte de modificações substanciais. São os temas:
a) da prorrogação do prazo para renovação de registros de propriedade de armas
de fogo, expedidos pelos órgãos estaduais; b) da fixação dos valores das taxas a
recolher em caso de registro de armas, renovação do certificado de registro, expe‑
dição de porte da arma, etc.
2. Impossibilidade de reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provi-
sória revogada. Tese contrária importaria violação do princípio da Separação
de Poderes, na medida em que o presidente da República passaria, com tais
expedientes revocatório-reedicionais de medidas provisórias, a organizar e
operacionalizar a pauta dos trabalhos legislativos. Pauta que se inscreve no
âmbito do funcionamento da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e, por
isso mesmo, matéria de competência privativa dessas duas casas legislativas
(inciso IV do art. 51 e inciso XIII do art. 52, ambos da CF/1988).
3. De outra parte, o ato de revogação pura e simples de uma medida provisória
outra coisa não é senão uma autorrejeição; ou seja, o autor da medida a se antecipar
a qualquer deliberação legislativa para proclamar, ele mesmo (Poder Executivo),
que sua obra normativa já não tem serventia. Logo, reeditá-la significaria artifi‑
cializar os requisitos constitucionais de urgência e relevância, já categoricamente
desmentidos pela revogação em si.
4. Medida liminar deferida para suspender a eficácia da MP 397/2007 até o julga‑
mento de mérito desta ação direta de inconstitucionalidade. [Grifei.]

Na ADI 4.029, rel. min. Luiz Fux, DJE de 27-6-2012, a Corte deliberou no sentido
de reconhecer a inconstitucionalidade das medidas provisórias que, da data do
julgamento em diante, não tramitassem e recebessem parecer da Comissão Mista
a que faz referência o art. 62, § 9º, da Constituição. Há diversos outros preceden‑
tes reveladores da atenção e reverência desta Corte às prerrogativas do Poder
Legislativo, de modo que não se deve falar, de forma alguma, em atrito entre os
Poderes Judiciário e Legislativo.

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No caso em apreço, deve-se atentar para o fato de que, ao aprovar legislação


que incida sobre o processo democrático, o parlamento deve voltar sua atenção
para as manifestações prévias que conformaram esse mesmo processo. No pre‑
sente caso, há menos de um ano (29-6-2012), o Supremo Tribunal Federal decidiu
a ADI 4.430, de relatoria do ministro Dias Toffoli, na qual ficou fixado o direito
de os parlamentares levarem às novas legendas os seus respectivos tempos de
rádio e TV, bem como suas cotas do fundo partidário.
Como é de se esperar, essa decisão surtiu efeitos e o ambiente político, com
todos os seus atores, a levou em consideração na tomada de uma série de decisões
diretamente relacionadas aos direitos de participação. Desse modo, qualquer
alteração legislativa posterior precisa considerar os impactos dessa decisão sobre
a atividade político-eleitoral dos parlamentares, sob pena de ofensa à isonomia
e à segurança jurídica, conforme demonstrei aqui.
Um saudável relacionamento entre os Poderes precisa trabalhar com a hipó‑
tese de que novas conformações de matérias previamente decididas podem
representar aperfeiçoamento institucional, e não simplesmente afronta a deci‑
sões oriundas de outro Poder.
Sinto-me particularmente confortável em fazer essa afirmação porque fiquei
vencido no julgamento da ADI 2.797, rel. min. Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ de
19-12-2006, oportunidade em que o STF afirmou ser inconstitucional a legislação
cujo objetivo imediato seja superar prévia interpretação constitucional da Corte,
como ocorre no caso em exame. Confira-se trecho da ementa desse julgado:
2. Tanto a Súmula 394 como a decisão do Supremo Tribunal, que a cancelou, deri‑
varam de interpretação direta e exclusiva da Constituição Federal.
3. Não pode a lei ordinária pretender impor, como seu objeto imediato, uma
interpretação da Constituição: a questão é de inconstitucionalidade formal,
ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação
da norma de hierarquia superior.
4. Quando, ao vício de inconstitucionalidade formal, a lei interpretativa da
Constituição acresça o de opor-se ao entendimento da jurisprudência constitu-
cional do Supremo Tribunal – guarda da Constituição –, às razões dogmáticas
acentuadas se impõem ao Tribunal razões de alta política institucional para repe-
lir a usurpação pelo legislador de sua missão de intérprete final da Lei Funda-
mental: admitir pudesse a lei ordinária inverter a leitura pelo Supremo Tribunal
da Constituição seria dizer que a interpretação constitucional da Corte estaria
sujeita ao referendo do legislador, ou seja, que a Constituição – como entendida
pelo órgão que ela própria erigiu em guarda da sua supremacia –, só constituiria o
correto entendimento da Lei Suprema na medida da inteligência que lhe desse outro
órgão constituído, o legislador ordinário, ao contrário, submetido aos seus ditames.

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5. Inconstitucionalidade do § 1º do art. 84, Código de Processo Penal, acrescido


pela lei questionada e, por arrastamento, da regra final do § 2º do mesmo artigo,
que manda estender a regra à ação de improbidade administrativa. [Grifei.]

Durante os debates, no julgamento da ADI 2.797, afirmei meu posicionamento


contrário ao do relator, defendendo que o Poder Legislativo também é legítimo
intérprete da Constituição e sempre que aprova leis está a interpretar a Carta
de 1988. Por essa razão, defendi que a nova lei, contrária a entendimento prévio
da Corte, deve ser objeto de novo exame de fundo pelo Supremo, o qual poderá
sensibilizar-se com as razões do legislador e evoluir em sua orientação.
Na oportunidade, ao mencionar que a interpretação constitucional está aberta
aos diversos atores sociais, em especial ao legislador, que é quem dispõe da mais
ampla liberdade de conformação na atividade de concretização da Constituição,
afirmei que “não é possível presumir a inconstitucionalidade dos dispositivos
atacados simplesmente porque eles contrariam a ‘última palavra’ dada pelo
Supremo Tribunal Federal sobre o tema. O que pretendo ressaltar, pelo contrário,
é que, se o legislador federal (re)incide, cria ou regula essa matéria consti-
tucional de modo completamente diverso, o diálogo, o debate institucional
deve continuar”.
Apesar de ter ficado vencido, penso poder afirmar que uma decisão do Su­­
premo Tribunal Federal não deve representar o fim do debate sobre dada matéria,
tampouco deve impedir uma reforma no sistema político nacional. De modo que
o Congresso Nacional pode levar a efeito sua interpretação, desde que respeite os
direitos fundamentais envolvidos, conforme dele exige o art. 60, § 4º, da CF/1988.
Assim, ainda que o Poder Legislativo decida legislar no sentido de impor
restrições mais severas ao funcionamento dos partidos políticos e à distri-
buição dos direitos inerentes às suas atividades, tal disciplina não pode vir
à luz de forma casuística, atingindo de modo desigual a atores políticos em
situação semelhante. Mormente quando afetar parlamentares legitimamente
eleitos, no curso de uma mesma legislatura, e em afronta à segurança jurídica.
Ao discorrer sobre os modelos de parceria e majoritário de democracia, Ronald
Dworkin alerta sobre os riscos inerentes aos modelos majoritários, como o
vigente no Brasil. Nas palavras do autor:
A concepção de parceria da democracia é diferente: afirma que o conceito de
governo democrático significa um governo não pela maioria das pessoas que exer‑
cem autoridade sobre todas as pessoas, mas pelas pessoas, que agem como um
todo enquanto parceiras. Esta deve ser, certamente, uma parceria que se divide em
relação à política, uma vez que a unanimidade é rara nas comunidades políticas,
sejam quais forem as suas dimensões. No entanto, pode ser uma parceria, se os

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membros admitirem que, na política, têm que agir com respeito e preocupação
iguais por todos os outros parceiros. Ou seja, pode ser uma parceria se todos
respeitarem as condições de legitimidade que discutimos nos Capítulos 14 e
15 – se cada pessoa aceitar a obrigação não só de obedecer à lei da comunidade,
mas também de tentar tornar a lei consistente com a sua compreensão de boa-fé
daquilo que é exigido pela dignidade de cada cidadão.
(...) A concepção de parceria liga a democracia às condições substantivas da
legitimidade. Dado que a legitimidade é uma questão de grau, o mesmo acon-
tece, segundo esta concepção, com a democracia. É um ideal pelo qual algumas
comunidades políticas lutam, algumas com mais êxito do que outras. No entanto,
a concepção de parceria, pelo menos, faz do governo democrático um ideal inte‑
ligível. A concepção maioritária – a meu ver – não faz isso, porque nada descreve
que possa ser visto como um governo democrático exercido por membros de uma
minoria política. Ou até por membros de uma maioria.
O contraste profundo entre as duas concepções é claramente ilustrado no debate
(principalmente nos Estados Unidos) sobre a compatibilidade entre democracia
e escrutínio judicial. A concepção maioritária não descarta automaticamente um
sistema político que atribua aos juízes um poder de impor uma Constituição ao
declararem uma legislação nula e inválida. Alguns juristas habilidosos e filósofos
afirmaram que o escrutínio judicial, adequadamente concebido e limitado,
pode servir a concepção maioritária, tornando mais provável que a legislação
reflita a opinião estabelecida pela maioria das pessoas. John Hart Ely afirmou,
por exemplo, que os juízes devem proteger o poder do povo, salvaguardando a
liberdade de expressão e de imprensa dos políticos ansiosos por esconderem a
sua corrupção ou estupidez, e Janos Kis, na mesma esteira, disse que os juízes
podem proteger as pessoas dos governantes que ficam menos entusiasmados com
a maioria quando esta constitui uma ameaça para a manutenção do seu poder.
(...)
No entanto, na concepção de parceria, este popular argumento é claramente
circular. Pressupõe que uma maioria política tem autoridade moral para deci-
dir questões controversas para todos; mas, nesta concepção, uma maioria só
tem autoridade moral para decidir alguma coisa, se as instituições através
das quais governa forem suficientemente legítimas. O escrutínio judicial é uma
estratégia possível (e sublinho o fato de ser apenas uma possível) para reforçar a
legitimidade de um governo – para proteger a independência ética de uma mino‑
ria, por exemplo – e, desse modo, reforçar o direito moral de uma minoria para
impor a sua vontade em relação a outras questões. [DWORKIN, Ronald. Justiça
para ouriços. Coimbra: Almedina, 2012. p. 392-393.]

Essas colocações permitem entrever que, em uma concepção majoritária


de democracia, as regras que regem o processo democrático-eleitoral devem
ser previsíveis e justas, de modo a viabilizar que a minoria de hoje possa

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transformar-se em maioria no dia seguinte. Sem isso, minam-se as próprias


condições de legitimidade do regime democrático.
E cumpre alertar, seguindo as observações de Dworkin, que o Poder Judiciá‑
rio pode ser manipulado em função dos interesses políticos de grupos políticos
específicos. Desse modo, ainda que uma maioria no Congresso Nacional acredite
estar absolutamente equivocada a interpretação constitucional proferida por
esta Corte na ADI 4.430, uma nova conformação legislativa da matéria não pode
simplesmente ignorar que tal decisão impactou o sistema político e preordenou
comportamentos de atores e partidos sobre os quais impactou.
Muito menos poderia, em matéria estreitamente ligada ao processo demo‑
crático, fazer tramitar proposição cujo resultado prático é o de desestimular
mobilizações políticas visando à criação de novas legendas, em desrespeito ao
princípio da isonomia, da igualdade de chances, da segurança jurídica, e visando
a atingir destinatários certos, nesta legislatura.
Uma vez que a interpretação constitucional desta Corte impactou atores e
partidos políticos nesta legislatura, a segurança jurídica e a isonomia exigem
que qualquer nova conformação jurisprudencial ou legislativa da matéria
somente sejam debatidas e produzam efeitos a partir, pelo menos, da pró-
xima legislatura.
Por essa razão, a construção de soluções constitucionais em temas tão deli‑
cados e relevantes, envolvendo o próprio processo democrático, deve levar em
consideração as decisões de todos os Poderes do Estado, em ambiente de verda‑
deiro diálogo institucional, resguardando-se, sempre, os direitos fundamentais
que possam ser atingidos.
É nesse sentido, portanto, que a ordem de segurança deve ser parcialmente
concedida, para declarar a inconstitucionalidade da deliberação legislativa
sobre o PLC 14/2013, nos termos atuais, isto é, se aprovado para reger esta
legislatura e, portanto, as eleições que ocorrerão em 2014.

Conclusão
Em conclusão, pode-se afirmar, com tranquilidade, que:
(i) os direitos políticos, neles contidos a livre criação de partidos em situa‑
ção isonômica à dos demais atores envolvidos, o pluripartidarismo e o direito
à participação política, são cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988;
(ii) o projeto de lei em exame pretendia impor interpretação constitucional
diametralmente oposta à exarada pelo STF na ADI 4.430;
(iii) o projeto afigura-se casuístico, resultando no atingimento de atores polí‑
ticos previamente identificáveis;

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(iv) a sua aprovação significaria a introdução de odiosa discriminação polí‑


tica entre parlamentares em uma mesma legislatura, com nefastos efeitos para
o regime democrático, ante a produção de uma desigualdade prejudicial à con‑
corrência democrática;
(v) o projeto viola o princípio da igualdade de chances e, assim, viola o direito das
minorias políticas de livremente mobilizarem-se para a criação de novas legendas; e
(vi) viola a segurança jurídica, em sua expressão concernente à proteção da
confiança legítima, uma vez que todo o sistema político confiava que, pelo menos
nessa legislatura, isto é, nas próximas eleições gerais, a regra seria aquela fixada
pelo STF na ADI 4.430.
Isso tudo fica evidenciado pelos dados dos autos. O PL foi proposto em 19-9-
2012, portanto, cerca de três meses após a decisão da ADI 4.430 (ata de julga‑
mento publicada em 9-8-2012). Em 16-4-2013 foi adotado, na Câmara dos Depu‑
tados, o requerimento de urgência, Casa em que o PL foi aprovado em 23-4-2013.
Encaminhado ao Senado Federal no dia 24-4-2013, esta Casa Legislativa estava em
pleno procedimento de votação de requerimento de urgência para a aprovação
do PL, às pressas, quando, no mesmo dia 24-4-2013, deferi a liminar no presente
mandado de segurança para suspender a tramitação do projeto.
Esta urgência evidencia, a despeito de algumas alegações constantes dos
autos, que a proposição deveria ser aprovada no Senado nos estritos termos
em que apreciada agora por esta Corte, razão pela qual a análise insere-se com
tranquilidade no âmbito de conhecimento desta Corte, com base no art. 60,
§ 4º, da CF/1988, e na tradicional jurisprudência do STF, mencionada neste voto.
Ressalte-se que a urgência para a aprovação do referido projeto está relacio‑
nada à noticiada mobilização de setores do cenário político para a formação de
novas legendas visando à participação no pleito eleitoral de 2014. Tais mobiliza‑
ções, que levam tempo, devem estar concluídas antes de outubro do corrente ano,
para se cumprir o princípio da anualidade eleitoral, de modo que a tramitação
do PLC 14/2013, em si, já se afigurava suficientemente desmotivadora e, assim,
desconstrutiva dos anseios de boa parte dos atores políticos nacionais.
Isso sobejamente revela o caráter antidemocrático, contrário aos direitos das
minorias, bem como discriminatório e ofensivo ao princípio da igualdade do
referido projeto, nos termos e circunstâncias em que seria aprovado.
Cumpre observar que o pedido do impetrante é no sentido do arquivamento defi‑
nitivo do projeto de lei em exame, ante a inconstitucionalidade de sua tramitação.
Assim, concedo parcialmente a segurança, para reconhecer a ilegitimidade
do PLC 14/2013, nos termos em que aprovado pela Câmara dos Deputados,
por ofensa às cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988.

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EXTRATO DA ATA
MS  32.033/DF  — Relator: Ministro Gilmar Mendes. Impetrante: Rodrigo
Sobral Rollemberg (Advogada: Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro). Impetra‑
dos: Presidente da Câmara dos Deputados (Advogado: Advogado-geral da União)
e presidente do Senado Federal (Advogados: Alberto Cascais e outros). Interessa‑
dos: Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado – PSTU (Advogados: Bruno
Colares Soares Figueiredo Alves e outros), Rede Sustentabilidade (Advogado: Roge‑
rio Paz Lima), Partido Político Solidariedade (Advogado: Marcilio Duarte Lima),
Pedro Taques (Advogados: Marco Aurélio Marrafon e outros), Carlos Henrique
Focesi Sampaio (Advogada: Alessia Barroso Lima Brito Campos Chevitarese) e Par‑
tido Popular Socialista – PPS (Advogados: Fabrício de Alencastro Gaertner e outros).
Decisão: Após o voto do ministro Gilmar Mendes (relator), concedendo par‑
cialmente o mandado de segurança, o julgamento foi suspenso. Ausente, jus‑
tificadamente, a ministra Cármen Lúcia, representando a Corte na 95º Sessão
Plenária da Comissão de Veneza e da Reunião da Comissão para Democracia
Eleitoral, e em visita à Corte Constitucional da República da Itália, em Roma.
Presidência do ministro Joaquim Barbosa.
Presidência do ministro Joaquim Barbosa. Presentes à sessão os ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias
Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavascki. Procurador-geral da República,
doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 12 de junho de 2013 — Luiz Tomimatsu, assessor-chefe do Plenário.

VOTO
O sr. ministro Teori Zavascki: 1. Trata-se de mandado de segurança impetrado
por senador da República visando a obter provimento jurisdicional que deter‑
mine a suspensão da tramitação e o arquivamento de projeto de lei, já aprovado
na Câmara dos Deputados sob o número 4.470/2012, ora tramitando no Senado
Federal sob o número 14/2013. O que se alega, substancialmente, é que tal PL está
impregnado de manifesto vício de inconstitucionalidade material, por ofender o
art. 1º, V, e o art. 17, caput, da Constituição. Sustenta o impetrante que tem direito
líquido e certo de, na condição de parlamentar, “não participar da produção de atos
normativos” eivados com vício desse jaez. Em nome e para tutela desse afirmado
direito é que deduz o pedido de sentença mandamental com a extensão indicada.
2. É evidente, registre-se desde logo, que o direito líquido e certo afirmado na
impetração – de não ser obrigado, o parlamentar impetrante, a participar do

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processo legislativo – não traduz a verdadeira e delicada questão constitucional


que decorre do pedido formulado na demanda. Esse alegado direito representa,
na verdade, uma engenhosa criação mental para justificar a utilização da ação
de mandado de segurança, cujo objetivo real, todavia, é outro. Realmente, a esse
afirmado direito subjetivo individual de não participar da formação da questio‑
nada proposição normativa, seria simples contrapor que tal direito não está sendo
sequer ameaçado, nem mesmo em tese, eis que a participação do parlamentar no
processo de formação das leis não é obrigatória, nada impedindo o impetrante
de, espontaneamente, exercer o afirmado direito, abstendo-se de participar ou de
votar ou mesmo, ainda, de apresentar voto contrário à aprovação. Em termos
estritamente formais, portanto, está clara a dissociação lógica entre o direito
tido como ameaçado e a efetiva pretensão deduzida na demanda. Na verdade,
o que se busca, a pretexto de tutelar direito individual, é provimento de conse‑
quência muito mais profunda e abrangente: de inibir a própria tramitação do
projeto de lei, o que significa impedir, não apenas o impetrante, mas todos os
demais parlamentares, de discutir e votar a proposta.
Assim definida a efetiva pretensão da demanda e abstraindo as implicações
de natureza processual daí decorrentes, as questões constitucionais que a ela
subjazem ganham contornos de maior dimensão. Põe-se em primeiro plano a
questão, prejudicial a todas as demais, referente à viabilidade constitucional da
intervenção do Poder Judiciário na atividade do Legislativo para, a pedido de um
parlamentar, fazer juízo sobre a constitucionalidade material de projetos de lei ou
de emendas à Constituição lá em andamento, ordenando, como aqui se pretende,
a suspensão do correspondente processo legislativo e o próprio arquivamento da
proposta. A discussão dessa matéria, bem se percebe, assume, do ponto de vista
institucional, importância maior que a do próprio tema de mérito da impetra‑
ção. É que, por mais relevantes que sejam as alegações de inconstitucionalidade
da proposta legislativa aqui questionada – e inegavelmente o são, como ficou
demonstrado pelos exaustivos fundamentos do erudito voto do ministro rela‑
tor –, elas dizem respeito a tema pontual e circunstancial no cenário normativo
e no contexto político, que, se não for agora, poderá ser enfrentado e resolvido
se e quando o projeto se transformar em lei. Já a discussão sobre a legitimidade
do controle jurisdicional preventivo da constitucionalidade de propostas legis‑
lativas, essa tem natureza institucional de consequências transcendentais, com
reflexos não apenas para o caso em pauta, mas principalmente para o futuro, já
que definirá um marco permanente nas relações entre os Poderes da República.
Envolvendo, como envolve, juízo sobre os limites dos espaços de competências, é
questão que toca o cerne da autonomia e da harmonia dos Poderes e, portanto, do

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sistema representativo e do próprio princípio democrático estabelecido na Cons‑


tituição. Não custa enfatizar que, no vasto domínio da jurisdição constitucional, é
justamente no plano do controle de constitucionalidade das normas que as rela‑
ções de poder se mostram mais sensíveis. É que ali se estabelece, como percebeu
Mauro Cappelletti, um confronto entre Jurisdição e Legislação. “O aspecto mais
sedutor”, escreveu ele, “diria também o aspecto mais audaz e, certamente, o mais
problemático do fenômeno que estamos para examinar está, de fato, justamente
aqui: o encontro entre a lei e a sentença, entre a norma e o julgamento, entre o
legislador e o juiz” (CAPPELLETTI, Mauro. O controle de constitucionalidade das leis
no direito comparado. Tradução de Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Sérgio
Fabris, 1999. p. 26). Daí a importância que deve merecer essa questão.
3. É sabido que nosso sistema constitucional não prevê nem autoriza o controle
de constitucionalidade de meros projetos normativos. A jurisprudência desta Corte
Suprema está firmemente consolidada na orientação de que, em regra, devem ser
rechaçadas as demandas judiciais com tal finalidade. A título ilustrativo, que reflete
a visão tradicional da Corte, reporto-me ao que ficou assentado na ADI 466/DF (DJ
de 10-5-1991), relatada pelo ministro Celso de Mello, em que se pretendia, mediante
ação direta, o reconhecimento da inconstitucionalidade da Proposta de Emenda
Constitucional (PEC) 1-B, de 1988, que submetia a plebiscito popular a instituição
de pena de morte para os crimes nela indicados. Na oportunidade, o Tribunal não
admitiu a ação, sob fundamentos assim expostos pelo ministro relator:
O direito constitucional positivo brasileiro, ao longo de sua evolução histórica,
jamais autorizou – como a nova Constituição promulgada em 1988 também não o
admite – o sistema de controle jurisdicional preventivo de constitucionalidade,
em abstrato. Inexiste, desse modo, em nosso sistema jurídico, a possibilidade de
fiscalização abstrata preventiva da legitimidade constitucional de meras propo‑
sições normativas pelo Supremo Tribunal Federal.
Atos normativos in fieri, ainda em fase de formação, com tramitação procedi‑
mental não concluída, não ensejam e nem dão margem ao controle concentrado
ou em tese de constitucionalidade, que supõe – ressalvadas as situações configu‑
radoras de omissão juridicamente relevante – a existência de espécies normativas
definitivas, perfeitas e acabadas. Ao contrário do ato normativo – que existe e que
pode dispor de eficácia jurídica imediata, constituindo, por isso mesmo, uma
realidade inovadora da ordem positiva –, a mera proposição legislativa nada mais
encerra do que simples proposta de direito novo, a ser submetida à apreciação do
órgão competente, para que, de sua eventual aprovação, possa derivar, então, a
sua introdução formal no universo jurídico.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem refletido claramente essa
posição em tema de controle normativo abstrato, exigindo, nos termos do que

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prescreve o próprio texto constitucional – e ressalvada a hipótese de inconsti‑


tucionalidade por omissão – que a ação direta tenha, e só possa ter, como objeto
juridicamente idôneo, apenas leis e atos normativos, federais ou estaduais, já
promulgados, editados e publicados.

Somente em duas situações a jurisprudência do STF abre exceção a essa regra:


a primeira, quando se trata de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que seja
manifestamente ofensiva a cláusula pétrea; e a segunda, em relação a projeto de
lei ou de PEC em cuja tramitação for verificada manifesta ofensa a alguma das
cláusulas constitucionais que disciplinam o correspondente processo legislativo.
Nos dois casos, as justificativas para excepcionar a regra estão claramente defi‑
nidas na jurisprudência do Tribunal: em ambos, o vício de inconstitucionalidade
está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação
legislativa. Assim, a impetração de segurança é admissível, segundo essa juris‑
prudência, porque visa a corrigir vício já efetivamente concretizado no próprio
curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente
de sua final aprovação ou não.
Realmente, na primeira situação (PEC ofensiva a cláusulas pétreas), o que
levou o STF a justificar o cabimento do mandado de segurança foi assim enun‑
ciado na ementa do acórdão em que, pela primeira vez, tal orientação foi tomada:
Mandado de segurança contra ato da Mesa do Congresso que admitiu a delibera‑
ção de proposta de emenda constitucional que a impetração alega ser tendente
à abolição da República.
Cabimento do mandado de segurança em hipóteses em que a vedação consti‑
tucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a sua
apresentação (como é o caso previsto no parágrafo único do art. 57) ou a sua deli‑
beração (como na espécie). Nesses casos, a inconstitucionalidade diz respeito ao
próprio andamento do processo legislativo, e isso porque a Constituição não quer
em face da gravidade dessas deliberações, proibindo-a taxativamente. A inconsti‑
tucionalidade, se ocorrente, já existe antes de o projeto ou de a proposta se trans‑
formar em lei ou em emenda constitucional, porque o próprio processamento já
desrespeita, frontalmente, a Constituição. (...) [MS 20.257/DF, Pleno, maioria, rel.
p/ o ac. min. Moreira Alves, julgamento em 8-10-1980, DJ de 27-8-1981.]

O voto então proferido, ainda à luz da Constituição anterior, esclarece bem a


excepcional razão de admitir o controle preventivo nesses casos:
No § 1º do ar. 47 da Constituição Federal, preceitua-se que:
“não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a Fe­­
deração ou a República.”

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Objeto de deliberação significa, sem a menor dúvida, objeto de votação, porque


é neste momento que se delibera a favor da emenda ou contra ela.
Por outro lado, se a direção dos trabalhos do Congresso cabe ao presidente do
Senado; se este, pelo próprio Regimento Comum do Congresso Nacional (art. 73),
pode, liminarmente, rejeitar a proposta de emenda que não atende ao disposto
no art. 47, § 1º, da Constituição (e quem tem poder de rejeição liminar o tem, igual‑
mente, no curso do processo); e se a Constituição alude a objeto de deliberação (o
que implica dizer que seu termo é o momento imediatamente anterior à votação);
não há dúvida, a meu ver, de que, a qualquer tempo, antes da votação, pode a Presi‑
dência do Congresso, convencendo-se de que a proposta de emenda tende a abolir
a Federação ou a República, rejeitá-la, ainda que não tenha feito inicialmente.
Cabível, portanto, no momento em que o presente mandado de segurança foi
impetrado, sua impetração preventiva, uma vez que visava ele a impedir que a
Presidência do Congresso colocasse em votação a proposta de emenda. Aprovada
esta, o mandado de segurança – como tem entendido esta Corte – se transforma
de preventivo em restaurador da legalidade.

Registre-se que a Constituição de 1988, ao tratar das cláusulas pétreas, repro‑


duz a mesma linguagem proibitiva, no seu art. 60, § 4º (“Não será objeto de
deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (...)”). Justifica-se essa cláu‑
sula limitadora, que não existe para projetos de lei, não apenas porque se trata
de proposta de norma com suprema hierarquia no ordenamento jurídico, mas
sobretudo porque, ao contrário das outras espécies normativas – cuja aprovação
está subordinada a uma segunda instância de Poder, a do Executivo, que poderá
vetá-las –, a proposta de emenda constitucional é aprovada por deliberação de
instância única, apenas a do poder constituinte reformador, de que se investe,
com exclusividade, o Congresso Nacional.
Na outra situação – de projetos de lei ou de PEC em cuja tramitação não seja
observado o processo legislativo disciplinado na Constituição –, a justificação
é a mesma: em casos tais, a ofensa à Constituição se manifesta desde logo, no
curso da própria tramitação do projeto, independentemente de aprovação ou
não. Reporto-me à própria decisão liminar aqui proferida, que atesta essa cir‑
cunstância ao afirmar:
A orientação aqui perfilhada (quanto ao cabimento do presente writ) está em con‑
sonância com o entendimento desta Corte, que, desde o julgamento do MS 20.257/
DF (rel. p/ o ac. min. Moreira Alves, Pleno, DJ de 27-2-1981), já acolhia a tese do
cabimento do mandado de segurança preventivo nas hipóteses em que a vedação
constitucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda. Nesse caso,
a inconstitucionalidade já existiria antes mesmo de o projeto ou de a proposta se
transformar em lei ou em emenda constitucional, porque o processamento, por
si só, já desrespeitaria, frontalmente, a própria Constituição.

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Apenas nessas duas excepcionais situações é que se tem admitido, portanto,


o controle da legitimidade constitucional de projetos de lei ou de emenda à
Constituição, controle que se viabiliza por mandado de segurança, de iniciativa
exclusiva de membro do parlamento.
Em voto proferido no MS 31.816, manifestei reservas pessoais quanto ao cabi‑
mento da medida, mesmo nesses casos excepcionais, notadamente em face da
reserva de iniciativa assegurada a parlamentar, a quem a Constituição sequer
confere legitimidade para provocar o controle de constitucionalidade sucessivo,
por ação. Não posso deixar de reconhecer, entretanto, que se trata de orientação
com o abono – e por isso merece o devido respeito – da jurisprudência do STF,
como documenta o seguinte precedente:
Constitucional. Poder Legislativo: atos: controle judicial. Mandado de segurança. Par-
lamentares. I – O Supremo Tribunal Federal admite a legitimidade do parlamentar –
e somente do parlamentar – para impetrar mandado de segurança com a finalidade
de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucio‑
nal incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo
legislativo. II – Precedentes do STF: MS 20.257/DF, min. Moreira Alves (leading
case) (RTJ 99/1031); MS 20.452/DF, min. Aldir Passarinho (RTJ 116/47); MS 21.642/
DF, min. Celso de Mello (RDA 191/200); MS 24.645/DF, min. Celso de Mello, DJ de
15-9-2003; MS 24.593/DF, min. Maurício Corrêa, DJ de 8-8-2003; MS 24.576/DF, min.
Ellen Gracie, DJ de 12-9-2003; MS 24.356/DF, min. Carlos Velloso, DJ de 12-9-2003.
III – Agravo não provido. [MS 24.667, Pleno, min. Carlos Velloso, DJ de 23-4-2004.]

4. Todavia, a hipótese dos autos não se enquadra em qualquer dessas duas


excepcionais situações. Aqui, não se está a tratar de PEC ofensiva a cláusula
pétrea, mas de projeto de lei. Tampouco se alega, na inicial, que na tramitação do
projeto de lei tenha sido descumprida alguma das exigências estabelecidas pela
Constituição para o regular processo legislativo. O que se afirma, simplesmente,
é que o projeto de lei tem conteúdo incompatível com o art. 1º, V, e com o art. 17,
caput, da Constituição Federal. Com fundamento nessa exclusiva alegação de
inconstitucionalidade material é que se pede ao STF para suspender a tramitação
do projeto e inibir qualquer discussão ou deliberação parlamentar a respeito.
Ora, admitir mandado de segurança com essa finalidade significa alterar radi‑
calmente o entendimento até aqui adotado, a respeito do controle da atividade
parlamentar pelo Supremo Tribunal Federal. A mais notória e evidente conse­
quên­cia será a universalização do controle preventivo de constitucionalidade, em
manifesto desalinhamento com o sistema estabelecido na Carta da República,
abonado, nesse aspecto, por antiga e pacífica jurisprudência da Corte, como
ao início ficou demonstrado. Ao modelo constitucional de exclusivo controle

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de normas (= controle sucessivo-repressivo), exercido com exclusividade pelos


órgãos e instituições arrolados no art. 103 da CF, mediante ação própria ali indi‑
cada, admitir-se-á, caso acolhido o pedido formulado nesta impetração, um
controle jurisdicional, por ação, da constitucionalidade material de projetos de
normas (= controle preventivo), a ser exercido por qualquer parlamentar, e exclu‑
sivamente por parlamentar, mediante utilização, com essa exótica finalidade,
da via do mandado de segurança, sob o artificioso pretexto de tutelar direito
líquido e certo de não participar da votação do projeto. Tal elastério – que con‑
sagraria um modelo de controle jurisdicional preventivo sem similar no direito
comparado, porque direcionado a meros projetos, antes mesmo de qualquer
deliberação definitiva do legislador a respeito (o exemplo, sempre referido, de
controle preventivo, exercido pelo Conselho Constitucional na França, tem por
objeto leis ainda não promulgadas, mas já aprovadas pelo Parlamento) – cer‑
tamente ultrapassa os limites constitucionais da intervenção do Judiciário no
processo de formação das leis, judicializando-o excessiva e injustificadamente.
5. É preciso considerar, nesse ponto, que o processo legislativo constitui a
mais típica e peculiar atividade do Poder Legislativo, que o exerce por critérios
e mediante instrumentos de caráter marcadamente políticos. Embora se saiba,
como assinalou Dieter Grimm, que, nos Estados modernos, “não é mais possível
uma separação entre direito e política no nível da legislação”, é preciso acentuar,
como ele também reconhece, que as decisões políticas, no plano da formação
da lei, pertencem ao Legislativo, não ao Judiciário, cujas decisões somente são
consideradas políticas quando e porque têm por substrato o controle de consti‑
tucionalidade, ou a interpretação ou a aplicação de leis, já formadas, de conte‑
údo político (GRIMM, Dieter. Constituição e política. Trad. Geraldo de Carvalho.
Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 11, 14-15). É indispensável, por isso mesmo, que,
na relação entre direito e política e seus correspondentes atores institucionais,
se leve na devida conta a necessária separação que há entre o processo para a
formação da lei e o processo para interpretação e aplicação da lei já formada:
aquele, pertencente ao domínio político do parlamento e do poder de veto do
Executivo, deve ser resguardado de interferências jurisdicionais indevidas, assim
como esse, que pertence ao domínio judiciário, não pode ser contaminado por
interferências externas de origem política. Invocando outra vez a lição experiente
do professor Dieter Grimm, escrita já na condição de ex-juiz e presidente da Corte
Constitucional da Alemanha, “(...) tribunais constitucionais só podem cumprir sua
função fiscalizadora a partir de uma posição de distância da política. A vincula‑
ção constitucional a que a política está submetida no estado democrático é uma
vinculação jurídica” (op. cit., p. 169). Ora, inserir os tribunais na fiscalização do

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conteúdo material de projetos de lei significa transportá-los para o próprio âmago


do debate político, o que compromete o distanciamento que se recomenda. E se
recomenda, quanto mais não seja, até para preservar as cortes constitucionais de
sua reconhecida inaptidão “para resolver, por via de ação, os conflitos carregados
de paixões políticas”, uma vez que, como foi anotado com ironia e certo exagero,
“à semelhança dos sismógrafos, que registram com precisão os abalos sísmicos
ocorridos à distância, esses tribunais se transformam em escombros quando situ‑
ados no epicentro dos terremotos políticos” (Inocêncio Mártires Coelho, citando
Georges Burdeau, na apresentação da obra citada, de Dieter Grimm, cit., p. XXIII).
6. Pois bem, se as hipóteses de intervenção jurisdicional no processo legislativo
hão de estar contidas nos parâmetros expressamente estabelecidos na Cons‑
tituição, não faz sentido algum atribuir a parlamentar, a quem a Constituição
nega habilitação para provocar o controle abstrato de constitucionalidade de
normas, uma prerrogativa, sob todos os aspectos muito mais abrangente e muito
mais eficiente, de provocar esse controle sobre os próprios projetos legislativos.
Aliás, a se admitir, em situação assim, a legitimação ativa de um parlamentar,
certamente não haveria razão alguma para negar – pelo contrário, seria uma
imposição necessária do sistema admitir – que medida semelhante e com a
mesma finalidade fosse proposta por qualquer dos legitimados pela Constituição
(art. 103) a promover o controle repressivo, ou sucessivo.
7. Também não se pode admitir, como justificativa para essa espécie de con‑
trole preventivo por mandado de segurança, o argumento da gravidade do vício
que visa a atacar. Soa um pouco redundante falar em inconstitucionalidade
grave. A inconstitucionalidade de uma norma pode ser classificada como mais
ou menos evidente, mais ou menos manifesta, porque tal classificação depende
apenas da sofisticação maior ou menor dos recursos hermenêuticos necessários
para identificar sua ilegitimidade. Todavia, identificada a inconstitucionalidade,
ela será invariavelmente grave, como é grave, sempre, qualquer ofensa à Constitui‑
ção. Assim, a discriminação pelo critério de gravidade – que, de resto, é conceito
jurídico manifestamente indeterminado, sujeito a preenchimento valorativo
de múltiplos matizes – apenas comprova essa inafastável constatação: admitir
essa espécie de mandado de segurança, para controle da constitucionalidade
material de projetos de lei, significa, na prática, consagrar a universalização do
seu controle preventivo, o que afronta o sistema consagrado na Constituição.
8. Outra relevante consequência da prematura intervenção do Judiciário em
domínio jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no parla‑
mento é a de subtrair dos outros Poderes da República, sem justificação plausível,
a prerrogativa constitucional que detém de, eles próprios, exercerem o controle

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preventivo da legitimidade das normas. Convém enfatizar que a manutenção e


a preservação do Estado Constitucional de Direito é poder-dever comum aos
três Poderes, a ser exercido e exaurido no âmbito das suas correspondentes
atividades, no seu devido tempo e segundo seus métodos e sua pauta. Não há
dúvida que a antecipada intervenção do Judiciário no processo de formação das
leis, ressalvadas as excepcionais hipóteses antes indicadas e justificadas, retira
do Poder Legislativo a prerrogativa constitucional de ele próprio, através do
debate parlamentar, aperfeiçoar o projeto e, quem sabe, sanar os seus eventuais
defeitos. Reside justamente nesse debate a tipicidade e a essência da atividade
parlamentar, com sua lógica e sua logística peculiares, que, embora diferentes
das do Judiciário, devem ser igualmente respeitadas e preservadas. Não se pode
desacreditar ou dispensar, por antecipação, a eficácia depuradora e enriquece‑
dora da função parlamentar. O mesmo se diga, aliás, da prerrogativa de controle
de constitucionalidade que a Constituição atribui ao presidente da República,
investido que está do poder, do qual não pode ser destituído por antecipação,
de apor vetos a projetos inconstitucionais (CF, art. 66, § 1º).
9. Em suma, ainda que se reconheça – e se reconhece – a plausibilidade da ale‑
gação de inconstitucionalidade material do projeto de lei aqui atacado, e ainda
que se dê crédito à afirmação do impetrante – de que a aprovação do projeto é de
interesse da maioria hegemônica do parlamento e da Presidência da República e
que, portanto, é elevada a probabilidade de sua transformação em lei –, isso não
justifica, no meu entender, que se abra precedente com tão graves consequências
para a relação institucional entre os Poderes da República, que é o de inaugurar
e universalizar a tutela jurisdicional da atividade parlamentar mediante controle
de constitucionalidade material de projetos de lei, tudo fundado na presunção de
que tanto o Legislativo quanto o Executivo permitirão que a inconstitucionalidade
se concretize. Aliás, quanto mais evidente e grotesca for a inconstitucionalidade
material de projetos de leis – como seriam as dos exemplos trazidos no voto do
relator (instituição de pena de morte, descriminalização da pedofilia ou instituição
de censura aos meios de comunicação) –, menos ainda se deverá duvidar do exer‑
cício responsável do papel do Legislativo, de negar-lhe aprovação, e do Executivo,
de apor-lhe veto, se for o caso. Partir da suposição contrária significaria menospre‑
zar por inteiro a seriedade e o senso de responsabilidade desses dois Poderes do
Estado. Mas, se, por absurdo, um projeto assim viesse a ser transformado em lei,
ainda não ficaria de modo algum comprometida a eficácia do controle repressivo
pelo Judiciário, para negar-lhe validade, retirando-a do ordenamento jurídico.
10. Ante o exposto, por não ver presente a alegada ameaça ao afirmado direito
líquido e certo do impetrante de não participar do processo legislativo aqui

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questionado e por não reconhecer como direito subjetivo ou prerrogativa cons‑


titucional de parlamentar a de provocar o controle preventivo de inconstitu‑
cionalidade material de projetos de lei, voto no sentido de revogar a liminar e
denegar a ordem. É o voto.

VOTO
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, começo louvando o voto pleno
de brilho e maestria do eminente relator, a quem rendo as minhas homenagens.
E, apenas para ordenar o pensamento, porque já destacadas com precisão
pelos que me antecederam, contextualizo as circunstâncias da impetração.
Trata-se de mandado de segurança preventivo em que eminente senador da
República sustenta violação de direito subjetivo público de sua titularidade. A vio‑
lação estaria perpetrada, na sua visão, pelo trâmite, no Congresso Nacional, de
projeto de lei ordinária eivado de manifesta inconstitucionalidade, projeto de lei
este já aprovado na Câmara dos Deputados e na iminência de ser submetido ao
Senado. E direito líquido e certo consubstanciado na inviabilidade de ser com‑
pelido, “enquanto integrante do Congresso Nacional”, a “participar da produção
de atos normativos casuisticamente concebidos para aniquilar direitos funda‑
mentais de grupos políticos minoritários e que visivelmente conspurcam, desde
sua tramitação, os mandamentos centrais derivados do texto da Carta Política”.
O projeto de lei é o de número 4.470 e visa a alterar as Leis 9.096/1995 e 9.504/
1997, “estabelecendo que a migração partidária durante a legislatura não impor‑
tará na transferência dos recursos do fundo partidário e do horário de propa‑
ganda eleitoral no rádio e na televisão”.
Ao exame da inicial, nos moldes em que deduzida a pretensão, e observado
o princípio da demanda – estamos em sede de mandado de segurança, e não de
ação de controle concentrado de constitucionalidade –, verifico que o impetrante
erigiu como premissa básica de seu pedido, em busca do controle judicial prévio
de constitucionalidade de projeto de lei, a decisão proferida por esta Corte, por
maioria, na ADI 4.430, da relatoria do eminente ministro Dias Toffoli, posta na
posição de verdadeiro “centro de gravidade” em torno do qual as questões rela‑
cionadas ao tema da impetração estariam a orbitar. Assim, o quanto decidido por
esta Suprema Corte, na ADI 4.430, nortearia a solução das questões de natureza
processual e material que este mandado de segurança suscita.
Tais questões, observo, estão todas atreladas a temas da maior envergadura,
como o da definição da relação adequada entre os Poderes da República e o do
próprio papel deste Supremo Tribunal Federal e limites de sua atuação, a atraírem

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reflexão profunda sobre princípios e garantias constitucionais em Estado orga‑


nizado em torno das balizas fundamentais da República e da democracia.
E a questão preliminar cuja análise se impõe ao exercício do juízo prévio de
admissibilidade – ou de cognoscibilidade – do próprio mandado de segurança
diz com a adequação deste instrumento processual, verdadeira garantia cons‑
titucional, com sede na Carta Política – art. 5º, LXIX, da Constituição –, para o
controle preventivo de constitucionalidade de projeto de lei. Em outras palavras,
há que perquirir sobre o cabimento da ação autônoma de impugnação manejada
para o fim perseguido.
Rememoro a propósito a clássica lição de Pontes de Miranda:
A ação de mandado de segurança foi concebida para se adaptar à técnica do habeas
corpus o que nos vinha da apelação extrajudicial ou de atos extrajudiciais. O man‑
dado de segurança é remédio jurídico judiciário, adotado no Brasil por sugestão
das pretendidas extensões que tivera o habeas corpus, na feição primeira da ação,
ao tempo da Constituição de 1891. Nada tem com o contencioso administrativo, de
que copiáramos, no Império, um dos exemplares mais interessantes. “Dizer que, com
ele, se derroga o princípio da separação de poderes é um fácil dito, que revela pouca
meditação sobre a natureza do judicial control, em cujo âmbito o mandado de segu-
rança e o habeas corpus entram por igual. (...)”. Assim escrevíamos em comentários à
Constituição de 1934. [Tratado das ações: ações mandamentais. Atualizado por Vilson
Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 1999. t. VI, p. 64-4 – Sem grifos no original.]

É inerente à natureza do mandado de segurança, portanto, certo grau de


tensão entre o princípio da separação dos Poderes e a possibilidade, que ele
viabiliza, de o Judiciário revisar atos comissivos ou omissivos de autoridade
pública. Ainda no dizer de Pontes de Miranda:
A prestação jurisdicional, no mandado de segurança, é mandamento. O juiz ou
tribunal manda; o que ele manda já é conteúdo dessa prestação: manda que se
tenha como existente, ou como não existente, alguma relação jurídica, que a auto‑
ridade pública teve por inexistente, ou por existente, contra a Constituição, ou
contra a lei; manda que se tenha como constituído, ou por desconstituído, algum
ato jurídico, porque, contra a Constituição, ou contra a lei, a autoridade pública,
ou o teve por inconstituível, ou como constituído; manda que se emposse, ou que
se desemposse, ou que se reintegre, ou que se destitua algum funcionário público,
ou pessoa que foi ofendida, ou cujo atendimento pela autoridade pública, contra
a Constituição ou contra a lei, ofenderia a outrem. [Op. cit., p. 73.]

A indagação que se põe, quanto à possibilidade de exercício, via ação de segu‑


rança, do controle preventivo de constitucionalidade de projeto de lei, por vício
formal ou material, encontra resposta na jurisprudência desta Corte. Inúmeros

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os julgados em que há décadas reconhecida ao parlamentar legitimidade ativa


para a ação mandamental com a finalidade de coibir atos praticados no processo
de aprovação de leis e emendas constitucionais incompatíveis com o processo
legislativo constitucional.
Recentemente lembrado neste Plenário, de outra parte, o fato de a jurisprudên‑
cia da Casa assentar inviável, na sistemática vigente, a fiscalização preventiva em
abstrato, por este STF, de meras proposições normativas em formação (ADI 466/
DF, DJ de 10-5-1991), no exercício do controle concentrado de constitucionalidade,
ao julgamento do MS 31.816 MC-AgR/DF, sessão de 27-2-2013, em voto vencedor
do ministro Teori Zavascki, redator do acórdão, a quem acompanhei. Tratar-se‑
-ia, contudo, de utilização especial do mandado de segurança, não propriamente
para assegurar direito líquido e certo de parlamentar, mas para resolver peculiar
conflito de atribuições ou conflito entre órgãos.
Lembro ainda que a Súmula 206/STF consagra o não cabimento do mandado
de segurança contra lei em tese, ainda que este tema talvez esteja a merecer
revisita, diante da sistemática e teleologia das ações coletivas, em especial do
mandado de segurança coletivo trazido pela CF/1988 e de institutos como o da
substituição processual.
Passo a breve exame do controle preventivo de constitucionalidade no Brasil e
no direito comparado, lembrando, a partir de sua finalidade, qual seja, a de evitar
que a norma inconstitucional ingresse no ordenamento jurídico, o magistério
de Canotilho, a respeito do modelo português, no sentido de que, devido a essa
característica,
(...) a fiscalização preventiva é mais marcadamente política do que a fiscalização
sucessiva, pois, dada a imediaticidade entre a aprovação dos diplomas e sua fisca‑
lização pelo TC, corre o risco de se transformar em meio ou de legitimar diplomas
inconstitucionais de duvidosa constitucionalidade, ou, em sentido oposto, num
instrumento de obstrução às iniciativas legislativas do governo e do parlamento.
[CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coim‑
bra: Almedina. p. 1026 – Sem grifos no original.]

Volto à proposição de que o controle judicial preventivo de constituciona‑


lidade, assim entendida a fiscalização da constitucionalidade dos atos e com‑
portamentos do processo legislativo, comporta exame por duas vertentes: (i) a
exposição, à jurisdição constitucional, da conformidade dos atos legislativos à
forma prescrita no texto constitucional; e (ii) o exame do próprio mérito consti‑
tucional da iniciativa legislativa em gestação.
Quanto à primeira vertente, reitero firme a jurisprudência desta Corte no

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sentido de admitir o controle preventivo, mediante mandado de segurança de


iniciativa parlamentar.
Resta a indagação: afirmada a adequação do mandado de segurança, quando
impetrado por parlamentar, para resguardo da regularidade jurídico-constitu‑
cional do processo legislativo, em verdadeiro controle prévio de constituciona‑
lidade, cabe alargar o foco de modo a reputá-lo cabível também para o controle
prévio da constitucionalidade do mérito do projeto de lei? Dito de outra forma: só
eventual afronta às normas constitucionais conformadoras do devido processo
legislativo é que abre a via do mandado de segurança ao parlamentar?
Não é desprovida de importância a diferença semântica entre controle de
constitucionalidade e jurisdição constitucional. A tutela jurisdicional não esgota
todas as dimensões do conceito de controle de constitucionalidade em sentido
amplo, que contempla, notadamente, o controle político, feito pelas comissões
responsáveis por avaliar, no âmbito interno das casas legislativas, a adequação
constitucional dos projetos de lei ali em tramitação (Comissão de Constituição
e Justiça e Redação, na Câmara dos Deputados, e Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania, no Senado Federal) e pelo presidente da República ao vetar
ou sancionar os projetos de lei aprovados pelo Congresso Nacional (art. 66, § 19).
Além de políticos, ou não judiciais, ambos os exemplos citados constituem moda‑
lidades de controle de constitucionalidade prévio.
Nas democracias ocidentais, de um modo geral, o controle preventivo de cons‑
titucionalidade, quando presente, apresenta alcance notadamente parcimonioso:
(...) o controle prévio existe perante os Tribunais Constitucionais alemão, italiano,
espanhol, austríaco e português, uma vez que essas Cortes exercem um controle
jurisdicional não apenas a posteriori, mas também quando elas estatuem a priori.
Portanto, quer sejam provocadas a priori ou a posteriori, pelas minorias parla‑
mentares ou pela autoridade do Estado, as Cortes asseguram esse tipo de controle
preconizado por Kelsen, que é de fato um controle de interesse para a ordem cons‑
titucional. No entanto, se olharmos de perto, perceberemos que somente a França
conhece hoje esse tipo de controle correspondente ao esquema inicial: de fato, na
Alemanha, Áustria e Itália ele ocupa um lugar bem menor em relação ao volume
da atividade geral da Corte; quanto à Espanha e Portugal, a tendência é a mesma.

No modelo preventivo de controle de constitucionalidade praticado na França


desde 1958, a guarda da Constituição é exercida por um órgão – o Conseil Constitu-
tionnel – de feição marcadamente política, pois diretamente vinculado ao Poder
Legislativo. No singular modelo francês, de fato, a guarda da Constituição foi
confiada a instituição outra que não o Poder Judiciário: trata-se de mecanismo de
controle de constitucionalidade que não ostenta natureza jurisdicional. Mesmo

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em tal modelo, impende destacar que somente após “exauridas todas as fases do
Processo Legislativo, o projeto de lei pode ser encaminhado ou não ao Conselho
Constitucional para receber manifestações sobre sua possível constitucionalidade”.
Vale ressaltar, ainda, que, desde 2008, com a promulgação da Lei de Reforma Cons‑
titucional 724, o Conseil Constitutionnel incorporou às suas atribuições o exercício
do controle abstrato de constitucionalidade repressivo (a posteriori), aproximando,
assim, o modelo francês do praticado nas demais democracias europeias.
No sistema constitucional italiano, a Corte Constitucional em regra exerce
jurisdição acerca da constitucionalidade de atos normativos após a conclusão
do processo legislativo – promulgação e publicação da lei. Apenas em relação
às leis regionais, o Texto Supremo italiano (art. 127, n. 3º e 4º) prevê uma moda‑
lidade de controle preventivo pela Corte Constitucional – antes da conversão
em lei. Tal mecanismo, deflagrado pelo Estado ou pelas regiões, ostenta índole
eminentemente política, e não propriamente jurisdicional, e visa a permitir que
o mérito do ato normativo seja avaliado em face dos interesses nacionais e de
outras regiões. Ainda assim, sua instauração somente tem lugar após a conclusão
das deliberações na casa legislativa regional.
A Constituição Austríaca prevê, no art. 138, 2, a competência da Corte Cons‑
titucional para decidir preventivamente apernas acerca de conflitos federati‑
vos – “se um ato legislativo ou administrativo é da competência da Federação
ou dos Lander”, atribuição essa que é “exercida em relação a projetos de lei, de
regulamentos – ou de outros atos administrativos – ainda não votados pelas
assembleias ou publicadas pelas autoridades administrativas”.
Na Alemanha, o controle preventivo de constitucionalidade das leis se verifica
em três hipóteses:
a) antes da sua promulgação, mas após a conclusão das deliberações, uma lei que
aprova um tratado pode ser encaminhada ao Tribunal Constitucional, por requeri‑
mento de governadores dos Lander ou de 1/3 dos membros do parlamento (Bundestag);
b) no caso de o presidente da República se recusar a promulgar uma lei, o Tri‑
bunal Constitucional pode ser acionado por outro órgão de feição constitucional,
contrário à recusa – trata-se, aqui, de submeter a eficácia do veto presidencial à
aquiescência do Tribunal Constitucional;
c) diferimento provisório do início da vigência de uma lei até o julgamento da
sua constitucionalidade, por provocação, após a sua promulgação, dos atores
legitimados a deflagrar o controle de constitucionalidade.
A Espanha suprimiu do seu ordenamento jurídico, desde 1985, a possibilidade
de controle preventivo, no curso do processo legislativo, da constitucionalidade
de leis orgânicas.

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Em Portugal, o controle preventivo de constitucionalidade de atos normativos,


que pode ser invocado pelo presidente da República, pelo primeiro-ministro ou
por 1/5 dos deputados, se interpõe à promulgação do ato, mas somente tem lugar
após a fase de deliberação legislativa. Novamente, o paralelo que pode ser feito é
com o veto presidencial, cuja eficácia, todavia, fica condicionada à manifestação
do Tribunal Constitucional. Além disso, “a Assembleia da República pode decidir
manter as disposições julgadas inconstitucionais”.
Quando presente no direito comparado, verifica-se portanto que o que cos‑
tuma ser chamado de controle preventivo de constitucionalidade é prévio em
relação à edição, à promulgação, à vigência da norma, à conclusão e aperfeiço‑
amento do processo legislativo, mas não a ponto de impedir o próprio processo
legislativo, a deliberação das casas legislativas.
Voltando ao Brasil, em que admitido por esta Corte o controle prévio judicial
de constitucionalidade de projeto de lei em mandado de segurança impetrado
por parlamentar, nas condições já lembradas, a questão se desloca para a deli‑
mitação de sua atuação do Poder Judiciário. É dizer, diante do modelo já implan‑
tado, importa definir até que ponto pode o Judiciário interferir na vontade do
Legislativo, no sentido de suas funções precípuas, no momento em que ainda
não se encontra perfectibilizada.
Ao exame de liminares, no exercício da jurisdição aqui no STF, em casos que
envolviam equacionamento entre a necessidade de controle judicial e o respeito
às competências próprias do Poder Legislativo, tenho adotado, ainda que em
juízo perfunctório, posição restritiva (exemplifico: MS 31.388/DF, MS 31.475/DF
e MS 31.444/DF). E o fiz na trilha do decidido no MS 20.257/DF, Pleno, ministro
Moreira Alves (relator para o acórdão), DJ de 27-2-1981, impetrado por senadores
contra ato da Mesa do Congresso Nacional, a fim de “impedir a tramitação das
Propostas de Emendas Constitucionais n. 51 e 52/80, bem assim da Emenda n.
3 às referidas Propostas”, as quais versavam sobre prorrogação dos mandatos dos
prefeitos, vice-prefeitos e vereadores, ao fundamento de que tais propostas eram
tendentes a abolir a Federação, matéria cuja deliberação o art. 47, § 1º, da Carta
Política anterior vedava, nos moldes do que consagra o art. 60, § 4º, da vigente Lei
Maior. Nesse acórdão, a meu juízo, firmaram-se as balizas quanto ao cabimento
do writ em hipóteses como a que ora se examina, que endossei. Reproduzo os
fundamentos do voto, em parte já lidos pelo eminente relator:
No § 1º do art. 47 da Constituição Federal, preceitua-se que:
“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a Fe­­
dera­ção ou a República.”

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Objeto de deliberação significa, sem a menor dúvida, objeto de votação, porque


é neste momento que se delibera a favor da emenda ou contra ela.
Por outro lado, se a direção dos trabalhos do Congresso cabe ao presidente do
Senado; se este, pelo próprio Regimento Comum do Congresso Nacional (art. 73),
pode, liminarmente, rejeitar a proposta de emenda que não atenda ao disposto
no art. 47, § 1º, da Constituição (e quem tem poder de rejeição liminar o tem, igual‑
mente, no curso do processo); e, se a Constituição alude a objeto de deliberação (o
que implica dizer que seu termo é o momento imediatamente anterior à votação),
não há dúvida, a meu ver, de que, a qualquer tempo, antes da votação, pode a Presi‑
dência do Congresso, convencendo-se de que a proposta de emenda tende a abolir
a Federação ou a República, rejeitá-la, ainda que não o tenha feito inicialmente.
Não admito mandado de segurança para impedir tramitação de projeto de lei ou
proposta de emenda constitucional com base na alegação de que seu conteúdo
entra em choque com algum princípio constitucional. E não admito porque, nesse
caso, a violação à Constituição só ocorrerá depois de o projeto se transformar em
lei ou de a proposta de emenda vir a ser aprovada. Antes disso, nem o presidente da
Casa do Congresso, ou deste, nem a Mesa, nem o Poder Legislativo estão praticando
qualquer inconstitucionalidade, mas estão, sim, exercitando seus poderes cons‑
titucionais referentes ao processamento da lei em geral. A inconstitucionalidade,
nesse caso, não será quanto ao processo da lei ou da emenda, mas, ao contrário,
será da própria lei ou da própria emenda, razão por que só poderá ser atacada
depois da existência de uma ou de outra.
Diversas, porém, são as hipóteses como a presente, em que a vedação consti‑
tucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a sua
apresentação (como é o caso previsto no parágrafo único do art. 57) ou a sua deli‑
beração (como na espécie). Aqui, a inconstitucionalidade diz respeito ao próprio
andamento do processo legislativo, e isso porque a Constituição não quer – em
face da gravidade dessas deliberações, se consumadas – que sequer se chegue à
deliberação, proibindo-a taxativamente.
A inconstitucionalidade, neste caso, já existe antes de o projeto ou de a proposta
se transformarem em lei ou em emenda constitucional, porque o próprio proces‑
samento já desrespeita, frontalmente, a Constituição.
E cabe ao Poder Judiciário – nos sistemas em que o controle da constituciona‑
lidade lhe é outorgado – impedir que se desrespeite a Constituição. Na guarda da
observância desta, está ele acima dos demais Poderes, não havendo, pois, que falar‑
-se, a esse respeito, em independência de Poderes. Não fora assim e não poderia ele
exercer a função que a própria Constituição, para a preservação dela, lhe outorga.
4. Considero, portanto, cabível, em tese, o presente mandado de segurança.
Indefiro-o, porém, por ser manifesta a improcedência de sua fundamentação.
[Sem grifos no original.]

Essa a posição restritiva que tenho adotado, reitero, no exame de pedidos


que envolvem a jurisdicionalização do exercício de competências próprias do

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Legislativo, atenta à minha compreensão sobre o princípio da separação e har‑


monia entre os Poderes da República, à oxigenação do próprio Direito, que há
de responder ao dinamismo da vida, e ao entendimento de que o parlamento é o
palco adequado, o locus próprio ao debate político dos grandes temas nacionais.
Na presente hipótese, com a máxima vênia do eminente ministro relator,
não vejo motivo para alterar essa orientação fundamental e, sob tal premissa,
acompanho a divergência, renovando minhas homenagens aos que têm respei‑
tabilíssimo entendimento contrário.
É como voto.

DEBATE
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): É exatamente esse o ponto que se coloca,
porque é disso que se cuida quando se trata de apresentar. E aí é indiferente, cuide
de projeto de emenda, cuide de projeto de lei, por quê? Como eu disse ontem,
é muito mais fácil a uma maioria poderosa aprovar projeto de lei que contraria
cláusula pétrea do que aprovar a própria emenda constitucional, porque esta
tem trâmites e dificuldades – nós vemos os incidentes que ocorrem hoje no
próprio Supremo Tribunal Federal em torno do chamado interstício para fins
de aprovação de primeiro e segundo turno.
É só lembrar um exemplo histórico: Hitler só não modificou a Constituição de
Weimar, fez por lei. A rigor, é disto que se cuida: é mais fácil fazer uma aberração
por lei do que por emenda constitucional. Agora, se esse projeto de lei contraria
chapadamente – é isso que tem que ser examinado, se não nós saímos para os
aspectos formais –, se de fato se dá a contrariedade ao texto constitucional, a
esse chamado núcleo pétreo ou as cláusulas estruturantes, por projeto de lei,
nós já temos exatamente o caso de inconstitucionalidade material vedado hoje
no art. 60, § 4º. Logo, a cláusula tendente a abolir aqui a proibição se aplica a
projeto de lei, inevitavelmente: é disso que se cuida. É disso que fala Moreira
Alves nesse segundo parágrafo.
O sr. ministro Dias Toffoli: Permita-me, Ministra Rosa.
A sra. ministra Rosa Weber: Pois não.
O sr. ministro Dias Toffoli: No caso, não há que se falar em interdição do
debate parlamentar, porque, na verdade, aquelas críticas que foram feitas à deci‑
são liminar, de que era uma intervenção em outro Poder etc., só podem ter sido
feitas por aqueles que não leram o texto do projeto de lei aprovado pela Câmara
dos Deputados. Ou seja, esse projeto de lei já foi aprovado pela Câmara dos Depu‑
tados e é, na prática, uma rescisória da ação direta de inconstitucionalidade,

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julgada por essa Suprema Corte, de número 4.430. É disso que se trata aqui.
Mesmo que o Senado aprove um outro texto, esse texto volta à Câmara, e a Câ­­
mara já aprovou um texto de chapada inconstitucionalidade.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Dias Toffoli: Ou seja, quem está invadindo a competência de
outro Poder, na verdade, é o Legislativo, e não esta Corte.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Luiz Fux: Ministro Celso, se Vossa Excelência me permite, em rela‑
ção a esse aspecto agora debatido, o art. 28, parágrafo único, da lei que regula a ação
direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade expõe:
Art. 28. (...)
Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionali‑
dade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de
inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito
vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública
federal, estadual e municipal.

Isso significa dizer que a elaboração de um projeto de lei não faz as vezes de
uma ação rescisória. E isso não é dito por nenhuma doutrina de escol, isso é dito
pela jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal. Por que a Constituição
Federal estabelece que a decisão da ação declaratória de inconstitucionalidade
vincula o Poder Judiciário e a administração e não inclui, aí, na função material‑
mente legislativa, o Legislativo? Porque há casos inúmeros de correção legislativa
de decisões adotadas em sede de controle de constitucionalidade.
Então, só para vir ao encontro da ideia que Vossa Excelência, Ministra Rosa
Weber, está sustentando.
Na Rcl 2.617, agravo regimental, de Minas Gerais, relator ministro Cezar Peluso,
o Tribunal Pleno decidiu:
(...) A eficácia geral e o efeito vinculante de decisão, proferida pelo Supremo Tribu‑
nal Federal, em ação direta de constitucionalidade ou direta inconstitucionalidade
de lei ou ato normativo federal, só atingem os demais órgãos do Poder Judiciário
e todos do Poder Executivo, não alcançando o legislador, que pode editar nova
lei com idêntico conteúdo normativo, sem ofender autoridade daquela decisão.

No mesmo sentido, ADI 1.850, medida cautelar, ministro Sepúlveda Pertence:


Ementa: I. Reclamação: Cabimento para garantir a autoridade das decisões do
STF no controle direto de constitucionalidade de normas. Hipóteses de cabimento
hoje admitidas pela jurisprudência (precedentes), que, entretanto, não abran‑
gem o caso de edição de lei de conteúdo idêntico ou similar ao da anteriormente

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declarada inconstitucional, à falta de vinculação do legislador à motivação do


julgamento sobre a validez do diploma legal precedente, que há de ser objeto de
nova ação direta.

E há vários dispositivos nesse sentido.


E aqui encontramos uma resposta, na parte final do voto do ministro Teori,
que, fazendo um raciocínio ex absurdo, afirmou que, ainda que se vote o absurdo,
é possível que, depois, esse absurdo venha a ser consagrado com a vontade popu‑
lar, ou, então, venha a ser submetido ao controle e à fiscalização abstrata do
Supremo Tribunal Federal.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Corrigido pelo Supremo Tri‑
bunal Federal.
O sr. ministro Luiz Fux: Quer dizer, a conformação institucional dos Pode‑
res – pelo menos, até hoje – está assim sedimentada.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Só para deixar claro. Nesse caso espe‑
cífico, o que houve foi uma interpretação conforme à Constituição – nesse caso
da ADI 4.430.
Portanto, a decisão, obviamente, vincula o legislador, gostemos ou não. Quer
dizer, a interpretação será constitucional na medida em que aplicada dessa forma.
O que está a ocorrer – e chamo a atenção do ministro Dias Toffoli, com proprie‑
dade, e falo com autoridade de quem tem acompanhado essa questão do efeito
vinculante desde a Emenda 3, que diz claramente isso. Agora, o que estamos a
falar é de coisa julgada. A eficácia erga omnes já fixa esse sentido.
O sr. ministro Dias Toffoli: Essa interpretação que o parlamento está dando,
já aprovada na Câmara dos Deputados, está interditada, de acordo com a inter‑
pretação dada pela maioria do Supremo. É isso.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Foi vedada. Exatamente. Esse é o
ponto. Não é nem preciso falar de efeito vinculante. É a eficácia erga omnes da
decisão que está sendo malbaratada. É disso que estamos a falar.
Mas esse é o argumento, na verdade, terciário nesse contexto. Essa é uma ques‑
tão seriíssima, porque isso está invadindo a competência fixada pelo Supremo
neste caso, porque a interpretação conforme que foi definida. Portanto, é a coisa
julgada da decisão do Supremo que está, de fato, sendo rescindida, vilipendiada
nesse projeto. E não se trata de um projeto qualquer. Claro que não se trata de
um projeto que está a tramitar nas comissões, está a debater. Nós vimos aqui,
pelas narrativas, que o tempo de debate desse projeto no Plenário das Casas é
um tempo de alguns minutos. É disso que se cuida. E o pior é que nós, chance‑
lando essa forma, vamos criar dois modelos de partidos no mesmo período, na

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mesma legislatura. Vamos criar o partido A, que conta com benefícios contabi‑
lizados, se for o caso.
O sr. ministro Dias Toffoli: O TSE terá grandes dificuldades, ao fazer as
instruções, para interpretar essa nova lei.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Até porque tem que se deparar in­­
clusive com a discussão da constitucionalidade dessa lei, no TSE, para regula­
mentá-la.
O sr. ministro Dias Toffoli: Eu, como relator das instruções, já parei para
imaginar o que será possível fazer. É evidente que não posso falar pelo Colegiado
do TSE, mas assentarei a inconstitucionalidade se o PL virar lei.
O sr. ministro Luiz Fux: Na realidade, há dois aspectos.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Trata-se de um caso de rescisória. Por‑
tanto, é a coisa julgada... Porque, quando nós falamos em eficácia erga omnes, nós
falamos em coisa julgada com eficácia erga omnes. E isso vincula, sim, ao legislador.
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente...
O sr. ministro Dias Toffoli: Caberia até uma reclamação ao Supremo se o TSE
acatasse uma interpretação do parlamento que fosse contrária à interpretação
dada pela Corte Suprema em processo com efeito vinculante.
O sr. ministro Luiz Fux: Bom, há vários doutrinadores num sentido e noutro.
Nós devemos respeitar todas as opiniões em contrário.
Mas apenas dois aspectos, Senhor Presidente: nós temos casos em que houve
correção legislativa da jurisprudência do Supremo em ação direta de inconstitucio‑
nalidade. Eu cito aqui – exatamente porque o Supremo não deve ter um monopólio
da interpretação constitucional, que também deve ser concretizada pelos demais
agentes políticos – julgado recente, inclusive, em que a Corte reviu seu posiciona‑
mento acerca da Súmula 726 nos autos da ADI 3.772, da relatoria do ministro Ayres
Britto, relator para o acórdão o ministro Ricardo Lewan­dowski. A súmula dispunha:
Para efeito de aposentadoria especial de professor, não se computa o tempo de
serviço prestado fora da sala de aula.

Não se computa.
E o Supremo Tribunal Federal, julgando a ADI 3.772, entendeu constitucio‑
nal, num voto capitaneado pelo ministro Ricardo Lewandowski, a possibilidade
de se contarem horas fora da sala de aula como tempo de serviço. Eis, aí, um
exemplo de que...
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Era de lei.
O sr. ministro Luiz Fux: Mas eis o exemplo em que houve uma opção do
legislador...

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O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não, não.


O sr. ministro Dias Toffoli: Não, não é cláusula pétrea.
O sr. ministro Luiz Fux: E o Supremo Tribunal Federal acolheu a correção
legislativa. O que impede? Ad argumentandum tantum, o que impede, amanhã
ou depois, que o parlamento faça uma opção política diferente? O que impede?
Como mencionou o ministro Teori Zavascki, o que impede que o parlamento
tente votar o absurdo? O Supremo tem esse controle prévio de constitucionali‑
dade material? Esse controle prévio de constitucionalidade material é absolu‑
tamente desconhecido do modelo institucional brasileiro. É isso que a ministra
Rosa está debatendo.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Exatamente.
O sr. ministro Luiz Fux: Aqui não se está criando partido, nem deixando de
criar partido. Estamos discutindo é se a via é adequada para o controle prévio
da constitucionalidade material. É só isso.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: O ministro...
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Por isso que eu disse que a questão...
O sr. ministro Luiz Fux: Não há compromisso com a tese de fundo. A tese de
fundo de Vossa Excelência foi bem exposta.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não, a questão é indissociável. Por
isso que eu disse que o controle preventivo aqui era indissociável da questão de
fundo que estava sendo debatida.
O exemplo que Vossa Excelência dá é de interpretação com base em legisla‑
ção. Se mudar a legislação, obviamente, muda-se a interpretação. Mas o que nós
estamos a falar aqui é de uma interpretação conforme, que o Supremo Tribunal
Federal adotou nas ações diretas de inconstitucionalidade já referidas, da rela‑
toria do ministro Dias Toffoli. E por que adotou? Porque o Tribunal, na verdade,
fixou, a partir daqueles casos da fidelidade partidária, que é um grande leading
case desta Corte, o Tribunal fixou que era possível sair do partido para criar uma
outra entidade partidária.
E aí veio, então, a discussão, à luz da legislação vigente, quanto à contagem
do tempo de TV. Essa é uma questão fundamental, nós sabemos.
O sr. ministro Dias Toffoli: Aí o projeto de lei quer dizer que essa interpre‑
tação que o Supremo deu não vale.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): É isso.
O sr. ministro Dias Toffoli: Não vale.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): É disso que estamos a falar. Mas mais
do que isso, Presidente – que se encerre, porque nós queremos ouvir a ministra
Rosa –, de fato, do que nós estamos a falar? A ser verdade que o legislador pode

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tudo, a partir desse teste que ele cancela tempo de TV e fundo partidário de
alguns partidos, por que não dar todo o tempo para os partidos do Governo? Veja
só. Isso é compatível? Se amanhã ele decidisse fazer isso? Ah, não, o controle não
pode se fazer, por quê? Porque o legislador tudo pode. Não é disso que se cuida.
O sr. ministro Dias Toffoli: A questão de fundo aqui é da maior gravidade.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Ontem foi discutida por que essa ques‑
tão era importante; porque o simples anúncio do projeto de lei, com essa massiva
aprovação, com esse massivo suporte, já inviabilizava a iniciativa de criação das
entidades partidárias. Por isso que o projeto de lei – e eu disse – tinha um efeito
prévio. Isso não acontece toda hora. Imaginemos, nós vimos a corrida que aque‑
les que articulam a candidatura – nós temos, aqui, a ex-senadora Marina Silva.
Esse projeto poderia se chamar “Projeto Anti-Marina Silva”. É disso que estamos
a falar. Por isso eu disse ontem que me sentia fraudado de ter votado no sentido
daquela ação direta de inconstitucionalidade do ministro Toffoli e hoje ver o que se
está a fazer com o resultado desta ação, com essa manipulação. Vamos chamar as
coisas pelo nome: estamos fazendo uma lei casuística, estamos chancelando isso.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ministro Gilmar, o que impe‑
dirá alguns dos legitimados do art. 103 da Constituição, caso eventualmente esse
projeto venha a ser aprovado em menos de um mês, três semanas, de obter uma
liminar no Supremo, suspendendo a eficácia desse projeto de lei? Nós estamos
a um ano e quatro meses das eleições; um ano e quatro meses.
Eu conheço precedentes desta Casa em que lei foi suspensa em menos de um
mês. Eficácia de lei aprovada pelo Congresso. Agora, a questão central aqui não
é discutir o que vem sendo discutido. A questão central é que nós vivemos num
sistema presidencialista com separação de Poderes. Num sistema como esse, é
bizarra a intervenção de uma corte judiciária no sentido de proibir o Legislativo
de deliberar. Essa é a questão.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não é bizarro. E essa jurisprudência
do Tribunal tem mais de cem anos.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Não, o Supremo não tem ne­­
nhum precedente de mérito.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Tem.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Eu digo de mérito. Há escara‑
muças. Não há nenhum precedente de mérito em que o Supremo tenha inter‑
rompido uma deliberação do Congresso no meio. É isso. Vamos ao âmago da
questão. Essa é a questão.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Veja Vossa Excelência, citei ontem um
caso da relatoria do ministro Néri, em que foi arquivado o mandado de segurança

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exatamente porque arquivou-se o projeto que tramitava no Congresso no caso de


pena de morte. Por quê? Porque esse próprio controle preventivo inibiu.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Em todos esses casos, no mérito,
o Tribunal denegou a ordem.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Agora, este é um caso diferenciado,
porque o processo de fazimento de partidos está exatamente em desenvolvi‑
mento. Daí a importância da discussão que aqui se trava.
O sr. ministro Dias Toffoli: Ela já sinaliza, tal qual, mutatis mutandis, Ministro
Gilmar Mendes, a discussão que Vossa Excelência trouxe em um mandado de
injunção a respeito da ausência de normação em relação ao aviso prévio pro‑
porcional. Assim que a Corte sinalizou que ia implementar uma interpretação
e que ia dar efetividade a ela, em três meses o Congresso Nacional aprovou uma
lei que deveria ter feito há mais de vinte anos.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Exatamente.

VOTO
(Aditamento)
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, o debate é sempre enriquece‑
dor, mas entendo que o debate político tem por palco adequado o parlamento.
É o Congresso Nacional o locus próprio para a discussão das grandes questões
políticas nacionais, e entendo, na linha do que consagram doutrina e jurispru‑
dência, que o nosso sistema de controle de constitucionalidade não admite con‑
trole prévio judicial de constitucionalidade por meio de mandado de segurança,
salvo em excepcionalíssimas situações, como já exposto, casos em que alargado
como forma de atingir finalidade que, digamos assim, não estava na sua gênese.
Por isso a doutrina diz, e tanto o ministro Gilmar e o ministro Fux afirmam, em
sede doutrinária, que, na verdade, não se trata, em tais hipóteses excepcionais,
propriamente de defesa de direito líquido e certo, e, sim, de solução engendrada
para resolver um conflito de atribuições, naquelas situações absolutamente
excepcionais, repito.
Faço questão de frisar que, em mandado de segurança, conforme disse no
início, não estamos em sede de controle concentrado, e, consequentemente, do
meu ponto de vista, aplica-se o princípio da demanda. E o pedido deduzido aqui
é de arquivamento ou suspensão, tanto que o eminente relator concede apenas
em parte a ordem. Como mandar que se cale o Legislativo no exercício da sua
função precípua e que pressupõe o debate? Eu tenho o maior respeito pelas
posições contrárias, mas estou convicta quanto ao tema. Por isso adotei, quando

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cheguei a esta Corte, essa posição restritiva, não só em respeito ao princípio da


separação dos Poderes e da sua harmonia – como eu o concebo –, mas, também,
como forma de responder ao próprio dinamismo da vida. A vida é muita rica, ela
propõe muitas questões que levam a jurisprudência a evoluir.
Então, a jurisprudência desta Corte Constitucional – vide exemplos agora lem‑
brados pelo ministro Fux na sua manifestação – evolui, o olhar se modifica com
o passar do tempo. Então, se vamos vedar o debate dos temas políticos no parla‑
mento, indiretamente estamos impedindo a própria evolução da jurisprudência.
Com todo respeito, ouvi com a maior atenção tudo o que foi dito, e que eu assino
com relação ao tema de fundo, no voto do eminente relator, mas eu não chego ao
enfrentamento do mérito. O que eu discuto é a adequação do mandado de segu‑
rança para impedir o debate e a tramitação de um projeto de lei, quando não se
aponta – e digo isso em reverência à posição do Supremo Tribunal Fe­­deral – vício
formal. Eximo-me de fazer a leitura da inicial porque o ponto foi focado expres‑
samente pelo ministro Teori, não se alega vício formal na tramitação...
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Ministra Rosa, não é necessário vício
formal...
A sra. ministra Rosa Weber: ...e nem afronta a cláusula pétrea. O que se diz,
e o ministro Teori citou ipsis litteris, e até me lembro do seu voto, entre aspas,
disse Sua Excelência, e eu também transcrevi: “seria [na percepção do eminente
parlamentar impetrante] inviável que se o compelisse, enquanto integrante do
Congresso Nacional, a participar da produção de atos normativos concebidos
de forma casuística, para aniquilar direitos fundamentais de grupos políticos
minoritários em ofensa à Carta Política”, e, aí, já sou eu fazendo adequações.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Vossa Excelência me permite, só para
argumentar? Eu lembrei ontem que já é da jurisprudência pacífica deste Tribunal
que os direitos políticos, inclusive dos partidos políticos, integram a cláusula
pétrea, e foi aquilo que nós firmamos naquela jurisprudência da relatoria, aquela
ação direta de inconstitucionalidade da relatoria da ministra Ellen Gracie, que
responde pelo nome da ação direta de inconstitucionalidade da desverticalização.
Portanto, não se trata de falar apenas do art. 17. É aqui que nós estamos dis‑
cutindo, no contexto dos partidos políticos, o chamado princípio da Chancen-
gleichheit, o princípio da igualdade de chance. Porque aqui, de que se cuida?
Dar apenas traço para esses partidos em formação em termos de tempo de TV,
e dar muito mais tempo a outros, violando esse princípio básico do pluralismo.
É disso que nós estamos a falar. E Vossa Excelência me honra quando diz: “de
fato, eu concordaria no mérito”. Mas aqui nós estamos a discutir, sim, cláusula
pétrea, cláusula pétrea de partido.

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O sr. ministro Dias Toffoli: É um texto que já foi aprovado na Câmara e que,
mesmo se o Senado o alterar, voltará à Câmara; se a Câmara mantiver o texto
original, ele será inconstitucional.
A sra. ministra Rosa Weber: E, por isso, entendo, na linha do que foi defen‑
dido pelo ministro Teori, inclusive, que devemos dar chance...
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Se é inconstitucional, aguardemos o mo­­
mento oportuno para o Supremo Tribunal Federal proclamá-lo.
A sra. ministra Rosa Weber: ...dar chance tanto ao...
O sr. ministro Dias Toffoli: É preciso fazer a divisão do fundo partidário
imediatamente. Será necessário reformular resoluções recentes, debatidas após
a ação direta de inconstitucionalidade do Supremo Tribunal Federal. O texto
altera, sim, aquela decisão que já foi alterada por resoluções administrativas do
Tribunal Superior Eleitoral sobre a forma de divisão de tempo de televisão, de
acesso ao rádio e à TV, porque não se está aqui a falar só do acesso ao rádio e à
televisão na época da campanha eleitoral, da propaganda eleitoral. A lei já atin‑
giria imediatamente a propaganda partidária, assim que viesse a ser sancionada,
causando prejuízos de imediato.
A sra. ministra Rosa Weber: De qualquer sorte, entendo, como estava a refe‑
rir, que temos que dar chance e permitir que o próprio Legislativo e o Executivo
exerçam o controle prévio de constitucionalidade que lhes cabe. Agora, uma vez
perfectibilizada a norma, aí, sim, a tarefa passa a ser do Judiciário.
Senhor Presidente, renovo o meu pedido de vênia, mas mantenho o meu voto.
Pela lei do mandado de segurança posso denegar a ordem acompanhando a diver‑
gência, porque, na verdade, eu sequer a admitiria, eu já iria para o indeferimento
da inicial e, com todo o respeito, cassaria a liminar deferida.
Acompanho a divergência, renovando as escusas e o meu pedido de vênia ao
eminente relator.

EXPLICAÇÃO
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Antes de passar a palavra ao minis‑
tro Fux, permitam-me, perdoem-me, mas eu não consigo conter a minha vontade
de dizer o que vou dizer.
Vendo essa discussão aqui travada entre nós, eu diria o seguinte: James Madi‑
son deve estar se contorcendo no túmulo, porque é simplesmente bizantina essa
discussão. Ele, que foi um dos grandes formuladores da teoria da separação dos
Poderes, disse com clareza absoluta: separação de Poderes não cuida apenas de

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separação entre órgãos, mas também de separação intraórgãos, ou seja, cuida


da existência de controles externos e internos, endógenos e exógenos.
Ora, dentro do Poder Legislativo, existem esses controles. Para que existe a
câmara alta do Congresso Nacional? Para controlar os excessos e abusos eventu‑
almente cometidos pela câmara baixa. Ora, não cabe ao Poder Judiciário avançar,
antecipar-se e exercer esse controle.
O sr. ministro Dias Toffoli: Mas, na forma da nossa Constituição, quem dá
a última palavra aqui é a Câmara do Deputados.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): O projeto de lei mal começou
a ser debatido no Congresso Nacional.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não, já está em sua fase final. Se não
tivesse havido a liminar, teria tido votação em 24 horas.
O sr. ministro Dias Toffoli: Não existe revisão. Na nossa Constituição não
há câmara alta e câmara baixa.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Pode haver ainda. E mais, exis‑
tem dois tipos de controle: um, de uma segunda câmara ou o retorno à primeira, e
há o controle do Supremo Tribunal Federal, controle pós-sanção do projeto de lei.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Se Vossa Excelência me permite, Senhor
Presidente, ainda há um outro controle, que é óbvio e todos sabem, que é o con‑
trole do próprio Poder Executivo, que faz um controle de constitucionalidade, se
for o caso. Então, nós estaríamos, inclusive, saltando sobre o Poder Executivo, que
tem essa magna função de examinar a constitucionalidade dos projetos de lei.
O sr. ministro Dias Toffoli: A AGU agravou de um despacho de aceitação de
amicus curiae. Há alguma dúvida de qual será a posição?
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): O engajamento da AGU aqui mostra
que o controle de constitucionalidade seria exercido no Executivo.
O sr. ministro Dias Toffoli: A AGU está defendendo a constitucionalidade.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Mas tal seria se a AGU não fosse vee‑
mente nas suas intervenções. Teríamos o quê?
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Tentaram proibir a fala de amicus
curiae aqui, fazendo confusão e comprometendo uma sessão.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Nós vamos, então, impedir a fala do
representante da AGU? É disso que se trata?
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ministro Fux, Vossa Excelência
tem a palavra.

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VOTO
(Antecipação)
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, aqui se fala em rapidez na apreciação
de projeto que seria apreciado em 24 horas.
Eu trouxe aqui um caso emblemático de que não se respeitava ordem de vota‑
ção dos vetos, regra constitucional explícita. E isso foi absolutamente aban‑
donado em nome de um minimalismo judicial, em respeito à independência
política do parlamento.
Ninguém aqui entendeu que havia algo de mais em julgar, em uma hora, a emenda
constitucional dos precatórios, quando foi arguida essa inconstitucionalidade pelo
ministro Ayres Britto! Então, não vamos nos preocupar com a celeridade na tra‑
mitação de projetos de lei ou de outras resoluções do parlamento, porque, desse
susto aqui, muita gente nunca morreu. De sorte que esse não é o problema maior.
Senhor Presidente, aqui já foram enunciados várias vezes o pedido, a causa
petendi, a razão de ser, de sorte que eu gostaria também de, até em homena‑
gem – e aqui não vai nenhum elogio gratuito – à profundidade e ao brilhantismo
sempre aguardado do voto do ministro Gilmar Mendes, de traçar aqui algumas
premissas teóricas, exatamente centradas na questão fulcral deste debate que é
saber sobre se é ou não possível, em primeiro lugar, a jurisdição constitucional ir
tão além; em segundo lugar, saber se este é o modelo de controle; e, em terceiro
lugar, Senhor Presidente, dizer que nós estamos julgando um caso em abstrato.
Este é um caso que, eventualmente, cria um precedente do Plenário. Este caso
não tem nome. E, como Vossa Excelência muito bem disse, o controle repressivo
é possível, provável e eficaz. De sorte que nós temos que manter aqui, digamos
assim, pelo menos cada um de nós, a nossa coerência.
Então, eu trago, vou trazer aqui os mesmos fundamentos que eu utilizei
quando foi julgado o MS 31.816, da minha relatoria, com relação à apreciação dos
vetos, no qual eu destacava que a Constituição estabelecia uma ordem que tinha
que ser obedecida. E essa ordem foi desobedecida em nome da independência
do parlamento e da conjuração dessa doença, desse defeito que se afirma ser a
“supremocracia”, a hegemonia, a instância hegemônica que não deve representar
o Supremo Tribunal Federal.
Então, em homenagem aos debates, Senhor Presidente, eu preparei também
aqui algumas linhas, vou saltar aquilo que for possível, mas eu vou centrar o
debate exatamente nessas questões.
Tudo quanto deveria ser debatido de forma colateral já o foi, até prenunciando
as opiniões e as conclusões de cada membro integrante. Então, com o devido

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respeito às diversidades manifestadas, eu peço vênia para expor, rapidamente,


o meu pensamento sobre essa questão.

VOTO
O sr. ministro Luiz Fux: Cuida-se de mandado de segurança, aparelhado com
pedido liminar, impetrado pelo senador da República Rodrigo Sobral Rollem‑
berg, objetivando sustar o andamento do Projeto de Lei 4.470/2012 (Câmara
dos Deputados), atual PLC 14/2013 (Senado Federal), que visa a alterar as Leis
9.096/1995 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos) e 9.504/1997 (Lei das Eleições),
para estabelecer que a migração partidária ocorrida durante a legislatura não
importará a transferência de recursos do fundo partidário e do horário de pro‑
paganda eleitoral no rádio e na televisão, cognominado “direito de antena”.
Sustenta o impetrante que tais restrições (quais sejam, acesso aos recursos
do fundo partidário e ao direito de antena) configuram ultraje à liberdade de
criação de novas agremiações partidárias. Ademais, afirma que a tramitação
do projeto de lei (i) possui viés casuístico e visa a atingir destinatários certos na
atual legislatura; (ii) esvazia o conteúdo essencial do direito à livre criação de
novos partidos e o princípio do pluralismo político, notadamente nos termos
preconizados pelo STF nos autos da ADI 4.430; (iii) aniquila os novos movimen‑
tos políticos; (iv) ofende o princípio de igualdade de chances entre os partidos
políticos, ainda que permita certa gradação de tratamento diferenciado; e (v)
estabelece discriminação odiosa, ao criar as figuras de parlamentares de pri-
meira e de segunda classe.
Em suas informações de estilo, o presidente do Senado Federal aduziu, pre‑
liminarmente, a inadequação da via eleita. No mérito, asseverou a inexistência
de ultraje à Constituição de 1988. Ademais, afirmou que o tema versado no pro‑
jeto de lei ostenta natureza eminentemente política, de competência, portanto,
exclusiva do Congresso Nacional. Por fim, articula que os efeitos vinculantes das
decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concen‑
trado e abstrato de constitucionalidade não alcançam as deliberações legislativas.
A seu turno, o presidente da Câmara dos Deputados prestou informações,
alegando (i) a tramitação regular do projeto de lei questionado, observados os
ditames constitucionais e regimentais; (ii) que, em 16 de abril de 2013, foi apro‑
vado pela maioria absoluta dos membros da Câmara, com 259 votos favoráveis,
o Requerimento de Urgência 7.494, de 2013, para tramitação do aludido projeto;
e (iii) que, em 23 de abril, seguinte, o projeto foi aprovado definitivamente em
sessão deliberativa extraordinária, seguindo para votação no Senado.

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Em 24-4-2013, a liminar foi deferida pelo relator, ministro Gilmar Mendes, para
suspender a tramitação do PLC 14/2013 até o julgamento de mérito do mandamus.
Também foram admitidos para ingressar no feito, na qualidade de amici curiae,
o PSTU, o PPS, a Rede de Sustentabilidade e o senador Pedro Taques.
Em seu parecer, o Ministério Público Federal manifestou-se pelo conhecimento
da impetração e pela concessão da ordem.
Na assentada passada, todavia, a então vice-procuradora-geral da República
divergiu do parecer inicialmente exarado, opinando pela denegação do pedido
deduzido neste writ.
Em 11-6-2013, o procurador-geral da República atravessou petição nos pre‑
sentes autos em que ratifica os argumentos expendidos no primeiro parecer
ministerial.
É o relatório.

I – Preliminar
Preliminarmente, verifico de plano a legitimidade ativa ad causam do impe‑
trante para deduzir a pretensão veiculada nesta ação mandamental, na esteira
da remansosa jurisprudência desta Corte quanto à existência de direito público
subjetivo do parlamentar ao devido processo legislativo (Precedentes: MS 20.257,
rel. min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, julgamento em 8-10-1980, DJ de 27-2-
1981; MS 21.642, rel. min. Celso de Mello, RDA 191/200; MS 21.303, rel. min. Octa‑
vio Gallotti; MS 24.356, rel. min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, julgamento em
13-2-2003, DJ de 12-9-2003; e MS 24.642, rel. min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno,
julgamento em 18-2-2004, DJ de 18-6-2004).
É cediço que o parlamentar, fundado na sua condição de copartícipe do proce‑
dimento de formação das normas estatais, dispõe, por tal razão, da prerrogativa
irrecusável de impugnar, em juízo, o eventual descumprimento, pela Casa legis‑
lativa, das cláusulas constitucionais que lhe condicionam, no domínio material
ou no plano formal, a atividade de positivação dos atos normativos (MS 23.565,
rel. min. Celso de Mello, julgamento em 10-11-1999, DJ de 17-11-1999).
Conheço, pois, do presente mandamus e procedo ao exame do mérito.

II – Mérito
II.1 Premissas teóricas
A controvérsia travada nestes autos, tal qual ocorreu no MS 31.816, de minha
relatoria (Apreciação do Veto 38/2012 – PL dos Royalties), atinge o cerne da teoria
constitucional em um Estado Democrático de Direito na medida em que conclama
que o Supremo Tribunal Federal se pronuncie sobre a validade jurídica do processo

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de elaboração das leis, núcleo fundamental da atuação política exercida pelos


representantes do povo. Indispensável, por tal motivo, uma incursão, ainda que
breve, sobre os limites da atuação do Poder Judiciário em um regime democrático.
Os ideais da democracia e do constitucionalismo não obstante caminhem lado
a lado vez por outra revelam uma tensão latente entre si. É que, de um lado, a
democracia, apostando na autonomia coletiva dos cidadãos, preconiza a sobe‑
rania popular, que tem no princípio majoritário uma de suas mais importantes
dimensões, tal qual preleciona Robert Dahl. De outro lado, o constitucionalismo
propugna pela limitação do poder através de sua sujeição ao direito, o que impõe
obstáculos às deliberações do povo. Como bem destacou Vital Moreira, ao afirmar
que, “(...) por definição, toda Constituição constitui um limite da expressão e da
autonomia da vontade popular. Constituição quer dizer limitação da maioria de
cada momento, e, neste sentido, quanto mais Constituição, mais limitação do
princípio democrático. (...) O problema consiste em saber até que ponto é que a
excessiva constitucionalização não se traduz em prejuízo do princípio democrá‑
tico” (MOREIRA, Vital. Constituição e Democracia. In: MAUÉS, Antonio G. Moreira
(Org.). Constituição e democracia. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 272).
Essa aparente contradição entre os valores albergados pelo Estado Democrático
de Direito impõe um dever de cautela redobrado no exercício da jurisdição cons‑
titucional. Com efeito, certo é que os tribunais não podem asfixiar a autonomia
pública dos cidadãos, substituindo as escolhas políticas de seus representantes
por preferências pessoais de magistrados não eleitos pelo povo, como, aliás, tes‑
temunhado pela história constitucional norte-americana durante a cognominada
Era da Lochner (1905-1937), período em que a Suprema Corte daquele país freou
a implantação do Estado social a partir de uma exegese inflacionada da cláusula
aberta do devido processo legal (CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional law: prin‑
ciples and policies. New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2011. p. 630-645).
Nesse sentido, a Constituição não pode ser vista como repositório de todas
as decisões coletivas, senão apenas dos lineamentos básicos e objetivos funda‑
mentais da República. Deve-se, portanto, rechaçar qualquer leitura maximalista
das cláusulas constitucionais que acabe por amesquinhar o papel da política
ordinária na vida social. É esse o magistério de Dieter Grimm:
A Constituição estrutura a ação política organizando-a, guiando-a, limitando-a.
Mas ela não regula a ponto de a política estar reduzida à mera execução de ordens
constitucionais. Dentro da moldura constitucional, os órgãos políticos estão livres
para fazer as escolhas que, de acordo com seu ponto de vista, o bem comum exige.
A eleição decide qual dos pontos de vista em competição é o preferido pela socie‑
dade e qual o grupo político deve, dessa forma, liderar as posições no Estado e

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executar seu programa político. A seu turno, as Cortes, especificamente as Cortes


Constitucionais, são chamadas a controlar se os outros ramos de poder, ao definir,
concretizar e implementar os objetivos políticos agiram de acordo com os princí‑
pios constitucionais e não ultrapassaram os limites constitucionais.
[Do original: The constitution structures political action by organizing, guiding and
limiting it. But it does not regulate it to an extent which would reduce politics to mere
execution of constitutional orders. Within the framework of the constitution the politi-
cal organs are free to make those choices which, according to their view, the common
best requires. The election decides which of the competing views is preferred by society
and which political group may therefore fill the leading positions in the state and carry
out its political program. By contrast, courts and especially constitutional courts, are
called to control whether the other branches of government, in defining, concretizing
and implementing the political goals, have acted in accordance with the constitutional
principles and not transgressed the constitutional limits]. [GRIMM, Dieter. Constitu-
tion adjudication and democracy. v. 33. Israel Law Review, 1999. p. 210.]

Sem embargo, não se pode perder de mira que a Constituição representa


autêntica norma jurídica, dotada de força cogente, vocacionada a conformar
condutas e apta a ensejar consequências pelo seu descumprimento. De há muito
as Constituições deixaram de ser vistas como mera folha de papel, como sugeria
Ferdinand Lassale (A essência da Constituição. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1988),
para assumir a posição de centralidade no sistema jurídico, enquanto definidora
dos cânones estruturantes do Estado de Direito.
A efetividade da Constituição depende, em grande medida, da atuação das
cortes, as quais, embora não monopolizem a sua interpretação, como ensina o
jurista alemão Peter Häberle (Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta
dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e
“procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: S. A. Fabris, 2002), têm como função precípua fiscalizar a observância e
zelar pelo respeito das limitações constitucionais, cuja própria existência, como
apontava Alexander Hamilton, “somente pode ser preservada por meio do Judici‑
ário, cuja função deve ser a de declarar nulos todos os atos contrários ao conteúdo
manifesto da Constituição. Sem isso todos os direitos e prerrogativas não signifi‑
cariam nada” (tradução livre do original): [By a limited Constitution, I understand
one which contains certain specified exceptions to the legislative authority; such, for
instance, as that it shall pass no bills of attainder, no ex post facto laws, and the like.
Limitations of this kind] can be preserved in practice in no other way than through
the medium of courts of justice, whose duty it must be to declare all acts contrary
to the manifest tenor of the constitution void. Without this, all the reservations of

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particular rights or privileges would amount to nothing]. (HAMILTON, Alexander.


The Federalist, n. LXXVIII. Nova Iorque: Scribner, Armstrong, 1876. p. 541).
Eis o desafio da jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito:
não ir além da sua missão, nem ficar aquém do seu dever. Na lição irretocável de
Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto, de um lado, deve-se reconhecer o
importante papel do Judiciário na garantia da Constituição, especialmente dos direitos
fundamentais e dos pressupostos da democracia. Mas, de outro, cumpre também valo-
rizar o constitucionalismo que se expressa fora das cortes judiciais, em fóruns como os
parlamentos e nas reivindicações da sociedade civil que vêm à tona no espaço público
informal (SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucio-
nal: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 240).
Firmadas essas premissas teóricas, passa-se ao deslinde da controvérsia.
No caso sub examine, pretende o impetrante suspender a tramitação do
PLC 14/2013, porquanto violaria o seu direito líquido e certo a um hígido processo
legislativo constitucional. A seu juízo, o PLC 14/2013, ao determinar que a migração
partidária ocorrida durante a legislatura não importará a transferência de recursos
do fundo partidário e não assegurará o “direito de antena”, esvazia o conteúdo essen‑
cial do direito à livre criação de novos partidos e do princípio do pluralismo polí‑
tico, notadamente nos termos consignados por esta Suprema Corte na ADI 4.430.
Ocorre que a pretensão veiculada neste writ possui uma questão prévia a ser
enfrentada: consiste em saber se é legítimo e recomendável, à luz do desenho
institucional delineado pelo constituinte de 1988, em especial no tocante ao
controle de constitucionalidade das leis, que o Supremo Tribunal Federal
realize, em juízo preventivo, o exame da compatibilidade material de um
projeto de lei com o texto da Constituição da República, notadamente as
cognominadas cláusulas superconstitucionais (“cláusulas pétreas”).

II.2 Breve inventário da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca do controle


preventivo de constitucionalidade de projetos de leis ou de proposta de emendas à
Constituição por ofensa às cláusulas pétreas
Para tanto, cumpre proceder a um breve inventário da jurisprudência da Corte
no que tange às violações do direito público subjetivo do parlamentar de não se
submeter a processo legislativo que veicule proposição tendente a abolir cláu‑
sulas pétreas.
Sob a égide da Constituição de 1967/1969, o Supremo Tribunal Federal julgou
o MS 20.257/DF, rel. min. Décio Miranda, rel. p/ o ac. min. Moreira Alves, Plená‑
rio, DJ de 27-2-1981, em que parlamentares federais (no caso senadores da Repú‑
blica) postulavam o trancamento de proposta de emenda àquela Constituição,

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que aumentava o tempo de duração do mandato de prefeitos, vice-prefeitos e


vereadores municipais de dois para quatro anos, por ultraje às cláusulas pétreas
da República e da Federação (CF 1967/1969, art. 47, § 1º). Naquela assentada, a
despeito de o mandamus ter sido conhecido, o ministro Moreira Alves, em seu
voto-vista, acolhido pela maioria do Tribunal, consignou expressamente que
“não admito mandado de segurança para impedir a tramitação de projeto de
lei ou de emenda constitucional com base na alegação de que seu conteúdo
entra em choque com algum princípio constitucional. E não admito porque,
nesse caso, a violação à Constituição só ocorrerá depois que o projeto se trans-
formar em lei ou de a proposta de emenda vir a ser aprovada. Antes disso,
nem o presidente da Casa do Congresso, ou deste, nem a Mesa, nem o Poder
Legislativo estão praticando qualquer inconstitucionalidade, mas estão, sim,
exercitando seus poderes constitucionais referentes ao processamento da lei
em geral. A inconstitucionalidade, nesse caso, não será quanto ao processo de
lei ou da emenda, mas, ao contrário, será da própria lei ou da própria emenda,
razão por que só poderá ser atacada depois da existência de uma ou de outra”.
De forma expressa e categórica, o ministro Moreira Alves rejeitou a possibi‑
lidade de se efetuar controle preventivo material de constitucionalidade, por‑
quanto, em tais situações, o Poder Legislativo estaria agindo dentro de seu espaço
constitucionalmente legítimo de atuação. De sorte que a ingerência do Poder
Judiciário, antes do advento da edição da lei ou da emenda, representaria ultraje
ao postulado da independência e harmonia entre os Poderes.
A única ressalva feita pelo ministro Moreira Alves na ocasião se relacionava
com as hipóteses em que a própria Constituição interditou a atuação do legisla‑
dor quando do processo de deliberação da lei ou da emenda. Em suas palavras,
“diversas, porém, são as hipóteses em que a vedação constitucional se dirige ao
processamento da lei ou da emenda, vedando a sua apresentação (como é o caso
previsto no parágrafo único do art. 57) ou a sua deliberação (como na espécie).
Aqui, a inconstitucionalidade diz respeito ao próprio andamento do processo
legislativo, e isso porque a Constituição não quer – em face da gravidade dessas
deliberações, se consumadas – que sequer se chegue à deliberação, proibindo-a
taxativamente. A inconstitucionalidade, neste caso, já existe antes de o projeto
de lei ou de a proposta se transformarem em lei ou em emenda constitucional,
porque o próprio processamento já desrespeita, frontalmente, a Constituição”.
De fato, o ministro Moreira Alves vislumbrou situações as quais seria legítima
a fiscalização prévia acerca do conteúdo de projetos de lei ou de propostas de
emenda pelo Supremo Tribunal Federal. Contudo, não é possível extrair do voto
do ministro Moreira Alves um doutrina ampla e abrangente, como pretendem

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alguns, de controle prévio de constitucionalidade material de projetos de lei ou


de propostas de emenda quando tendentes a abolir cláusulas pétreas. Na rea‑
lidade, a conclusão é diametralmente oposta: onde o constituinte quis limitar,
assim o fez, mencionando expressamente a espécie normativa (i.e., lei ou emenda
constitucional) cujo processamento estaria vinculado.
Em outro precedente, ainda sob a égide da Carta de 1967/1969 (MS 20.452/DF,
rel. min. Aldir Passarinho, Plenário, DJ de 11-10-1985), em que se questionava a
votação da PEC 5/1983 (Emenda Dante de Oliveira), o Tribunal denegou a segu‑
rança, por não ter vislumbrado, in casu, qualquer ofensa ao quórum de votação.
Note-se que neste precedente a discussão gravitou em torno de suposto vício
formal, o que não se aplica à espécie.
Na fase pós-Constituição de 1988, a Suprema Corte examinou o MS 22.503/DF,
rel. min. Marco Aurélio, DJ de 6-6-1997, em que se aduzia ofensa ao art. 60, § 5º,
da Lei Fundamental, na medida em que o presidente da Câmara dos Deputados
reapresentou, na mesma sessão legislativa, proposta de emenda constitucional
do Poder Executivo (PEC 33-A/1995). O ministro Marco Aurélio deferiu o pleito
sem aludir a qualquer vício de cariz substancial, limitando-se a examinar o fumus
boni iuris sob o ângulo formal. Na decisão final de mérito, todavia, a Corte revo‑
gou a liminar e indeferiu a segurança, na parte conhecida.
Ao que interessa ao presente caso, e sem adentrar nas minúcias do caso con‑
creto (e.g., em que restou assentado que a rejeição de substitutivo não atrai a
incidência do limite temporal do art. 60, § 5º, da CRFB/1988, não impedindo o
prosseguimento da votação no tocante ao projeto original encaminhado pelo
Poder Executivo, entre outras), certo é que, mais uma vez, se trata de controle
preventivo formal de constitucionalidade, não sendo de qualquer valia para o
deslinde do caso em tela.
É inelutável a conclusão a que se chega depois desse inventário jurispru-
dencial: inexiste precedente na Corte autorizando, de forma expressa e cate-
górica, o controle preventivo de constitucionalidade de projeto de lei por
vício material, ainda que supostamente tendende a abolir cláusula pétrea.
Em suma, diversamente do que propugnado por alguns, não é práxis juris‑
prudencial da Corte realizar controle preventivo de projeto de leis por ofensa às
cláusulas superconstitucionais, cognominadas “cláusulas pétreas”.
Reconheço, todavia, que o fato de não existir jurisprudência sobre a temática
ora debatida não significa qualquer proibição de exame material do projeto de
lei ora atacado. Deveras, o inventário buscou apenas e tão somente desmisti‑
ficar alguns dogmas reproduzidos acriticamente, no sentido de que existe um

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entendimento consolidado no Tribunal no tocante ao controle preventivo de


constitucionalidade por vício material.
Nada obstante isso, reputo que a fiscalização a priori de projetos de lei por
suposta ofensa às cláusulas pétreas é incompatível, sob o ponto de vista descritivo,
com o desenho institucional do controle de constitucionalidade no ordenamento
jurídico pátrio, como também não é recomendável, sob o enfoque prescritivo.

II.3 Incompatibilidade com o sistema constitucional de controle de constitucionalidade


Do ponto de vista descritivo, quatro são os argumentos que amparam a incom‑
patibilidade de se proceder ao controle preventivo de constitucionalidade, nas
hipóteses em que o projeto de lei supostamente veicular matérias tendentes
a abolir as cláusulas pétreas: (i) argumento literal ou textual, (ii) argumento
ontológico, (iii) deturpação do sistema constitucional de controle de constitu‑
cionalidade, tornando o modelo preventivo a regra, e, especificamente aplicável
à espécie, (iv) os efeitos vinculantes não alcançam o Poder Legislativo, em sua
função típica legiferante. Vejamos como se desenvolvem, separadamente, cada
um desses argumentos.
O argumento literal ou textual é o primeiro que, a meu juízo, desautoriza o
exercício de um controle substantivo prévio de constitucionalidade, de modo a
suspender projetos de lei que veiculem normas que atentem contra as cláusu‑
las pétreas. Isso porque o art. 60, § 4º, da Constituição de 1988 é categórico ao
afirmar que “não serão admitidas propostas de emenda tendentes a abolir (...)”,
não fazendo qualquer alusão a projetos de lei ou outras espécies normativas. Mas
não é só. Topograficamente, o art. 60, § 4º, da CRFB/1988 se localiza na subseção
atinente às emendas constitucionais (Subseção II da Seção VIII do Capítulo I do
Título IV), que não se aplica, por razões óbvias, aos projetos de lei. Caso o consti‑
tuinte pretendesse emprestar o mesmo regime jurídico às propostas de emenda
à Constituição e aos projetos de lei, não teria apartado o regramento de tais
espécies normativas primárias. Na realidade, há uma disciplina normativa espe‑
cífica para cada uma delas. Mais que isso, quando quis utilizar um tratamento
normativo parecido entre ambos os atos normativos, assim o fez, como no art. 60,
§ 5º (“Art. 60. (...) § 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou
havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão
legislativa”) e no art. 67 (“Art. 67. A matéria constante de projeto de lei rejeitado
somente poderá constituir objeto de novo projeto, na mesma sessão legislativa,
mediante proposta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do
Congresso Nacional”). E essa técnica legislativa, repisa-se, não foi empregada
no tocante ao exame de projetos de lei. Ou seja: inexiste norma constitucional

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expressa que se assemelhe ao art. 60, § 4º, da Constituição, prevendo a possibili‑


dade de controle prévio, sob o prisma material, de projetos de lei. Há mais, porém.
Ainda que se considere insuficiente o argumento literal, sob a justificativa de
que, se o poder constituinte derivado reformador está limitado pelas cláusulas
superconstitucionais, a fortiori também restariam vinculados os projetos de lei,
também não assiste razão ao impetrante. Aqui, exsurge o argumento ontológico.
É intuitivo que existe uma diferença entre a elaboração ou alteração de uma
Constituição e a mera confecção de leis ordinárias. Trata-se do fenômeno que o
professor da Yale Law School Bruce Ackerman intitula de dualismo constitucio-
nal (ACKERMAN, Bruce. We the people: foundations. v. 1. Cambridge: The Bleknap
University Press, 1991. p. 3-33). No caso brasileiro, por exemplo, a Constituição
de 1988 foi promulgada em um ambiente de ampla mobilização popular. Havia
entre 1987/1988 um “momento constitucional”, para valer-me de uma expressão
também cunhada por Ackerman. Nada obstante isso, o constituinte de 1988 foi
extremamente prudente e cauteloso ao prever os mecanismos de alteração e
reforma do texto constitucional, notadamente em razão da falibilidade humana
(LUTZ, Donald. Toward a theory of constitutional amendment. In: LEVINSON,
Sandford. Responding to Imperfection: The theory and practice of constitutional
amendment. Princeton: Princeton University Press, 1995. p. 239-240), bem assim
ante a especial necessidade de adaptar a Constituição à realidade subjacente e,
consequentemente, evitar indesejadas rupturas institucionais. Contudo, o cons‑
tituinte de 1988 retirou do tráfico jurídico alguns valores que considerou caros
à sociedade brasileira, com vistas a manter a identidade deste pacto originário,
limitando a atividade do poder de reforma da Constituição, que somente poderá
tratar do tema se não afetar o núcleo essencial destas cláusulas de proteção
(“cláusulas pétreas”). É dizer, as cláusulas pétreas exsurgem como salvaguarda
dos parâmetros constitucionais de controle da atuação do legislador ordinário
considerados mais relevantes dentro do “momento constitucional”. Por outro
lado, em momentos de política ordinária, em que os representantes do povo,
investidos pelo batismo popular, atuem em seu nome, o que se está em jogo é
concretização da vontade do constituinte originário, e não alteração de um parâ‑
metro constitucional. Não há identidade do pacto originário a ser preservada
pelo legislador. E dentro do juízo de conveniência e oportunidade política devem
ser admitidos todos os argumentos, sob pena de restringir o debate público e,
no limite, descaracterizar a própria atividade parlamentar. Daí por que o cons‑
tituinte não previu qualquer mecanismo prévio de controle de constituciona‑
lidade sobre projetos de lei, ainda que supostamente atentatórios às cláusulas
pétreas. A regra, em nosso controle judicial de constitucionalidade, é que não seja

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asfixiado o debate na origem, e eventuais transgressões à ordem constitucional


vigente serão examinadas após o aperfeiçoamento do ato legislativo.
Em termos mais claros: as cláusulas pétreas vinculam o poder constituinte
derivado reformador apenas e tão somente para salvaguardar a identidade do
pacto originário, i.e., dos parâmetros constitucionais, considerados relevantes em
um momento constitucional. Isso não ocorre quando da atuação do legislador
ordinário, cuja função precípua é concretizar diuturnamente os comandos cons‑
titucionais. Ao realizá-la, os agentes políticos não podem sofrer limitações prévias
de cunho material, ao risco de se comprometer a própria atividade do Legislativo.
Um terceiro argumento, e umbilicalmente ligado ao anterior, pode ser invocado
contra a suspensão do PLC 14/2013. Trata-se de reconhecer que, se se admite o con‑
trole prévio do mencionado projeto de lei por suposta ofensa às cláusulas pétreas,
estar-se-ia subvertendo a sistemática atual do controle de constitucionalidade,
que tem no modelo repressivo ou a posteriori a sua regra. É dizer, somente se auto‑
riza o juízo preventivo de inconstitucionalidade de um projeto de lei, sob bases
excepcionais. Esse é o desenho institucional delineado pelo constituinte de 1988.
Com efeito, o controle judicial de constitucionalidade, desde a sua origem no
direito brasileiro, ocorre, via de regra, após a edição da lei ou do ato normativo.
Caso se considere que este PLC 14/2013 ofende cláusulas superconstitucionais e,
por tal razão, deve ser determinado o seu arquivamento, o STF modificará esta
sistemática e, no médio e longo prazo, ter-se-á uma enxurrada de mandados de
segurança, postulando a suspensão da tramitação de projetos de lei que supos‑
tamente teriam violado o direito líquido e certo dos parlamentares a um hígido
devido processo legislativo constitucional.
Com isso não se quer afirmar que os parlamentares devam ser subservientes
às violações perpetradas dentro de suas casas legislativas. Muito pelo contrá‑
rio. Devem os parlamentares, quando inobservadas as regras procedimentais,
constitucionais ou regimentais, concernentes ao processo legislativo, pugnar
judicialmente pela sua nulidade. Tal afirmação não implica, contudo, que o Poder
Judiciário se arvore no direito de declarar a inconstitucionalidade de projetos de
lei por vícios materiais (ofensa às cláusulas pétreas), suprimindo o indispensável
e salutar debate parlamentar.
Não bastasse isso, há ainda uma singularidade na espécie. Segundo alega o
impetrante, o PLC 14/2013 teria supostamente esvaziado o conteúdo essencial
do direito à livre criação de novos partidos e o princípio do pluralismo político,
notadamente nos termos preconizados pelo STF nos autos da ADI 4.430. Ocorre
que trasladar os fundamentos consignados naquela assentada para o caso sub
examine implica estender os efeitos vinculantes, em uma decisão proferida em

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sede de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, ao Poder Legis‑


lativo, o que não se revela possível, consoante abalizado magistério doutrinário
de Gilmar Mendes e de Ives Gandra (Controle concentrado de constitucionalidade.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 526-529). De efeito, tanto a Constituição, em seu
art. 102, § 2º, quanto a Lei 9.868/1999, em seu art. 28, parágrafo único, dispõem
que a eficácia erga omnes e o efeito vinculante das decisões proferidas em sede
de controle abstrato de constitucionalidade somente alcançam aos órgãos da
administração pública e aos demais órgãos do Poder Judiciário, com o nítido
propósito de impedir a petrificação da interpretação constitucional. No mesmo
sentido é a jurisprudência remansosa da Corte, que afirma ser possível a edição
de nova lei com idêntico conteúdo, sem incorrer em inconstitucionalidade. Cola‑
ciono, por oportuno, alguns precedentes do Plenário:
Ementa: Inconstitucionalidade. Ação direta. Lei estadual. Tributo. Taxa de segurança
pública. Uso potencial do serviço de extinção de incêndio. Atividade que só pode
sustentada pelos impostos. Liminar concedida pelo STF. Edição de lei posterior, de
outro Estado, com idêntico conteúdo normativo. Ofensa à autoridade da decisão do
STF. Não caracterização. Função legislativa que não é alcançada pela eficácia erga
omnes, nem pelo efeito vinculante da decisão cautelar na ação direta. Reclamação
indeferida liminarmente. Agravo regimental improvido. Inteligência do art. 102,
§ 2º, da CF, e do art. 28, parágrafo único, da Lei federal 9.868/1999. A eficácia geral
e o efeito vinculante de decisão, proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em
ação direta de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo federal, só atingem os demais órgãos do Poder Judiciário e todos os
do Poder Executivo, não alcançando o legislador, que pode editar nova lei com
idêntico conteúdo normativo, sem ofender a autoridade daquela decisão. [Rcl
2.617 AgR/MG, rel. min. Cezar Peluso, Plenário, DJ de 23-2-2005.]

Ementa: I – Reclamação: cabimento para garantir a autoridade das decisões do


STF no controle direto de constitucionalidade de normas: hipóteses de cabi-
mento hoje admitidas pela jurisprudência (precedentes), que, entretanto, não
abrangem o caso da edição de lei de conteúdo idêntico ou similar ao da anterior-
mente declarada inconstitucional, à falta de vinculação do legislador à motivação
do julgamento sobre a validez do diploma legal precedente, que há de ser objeto
de nova ação direta. II – Medida cautelar: implausibilidade da arguição de incons‑
titucionalidade fundada na concessão de cautelar em outra ação direta sobre lei
similar, que, no entanto, a decisão definitiva veio a declarar constitucional (ADI 1.591).
III – Concurso público: não contraria a exigência do concurso público a criação
de carreira por fusão de carreiras precedentes: o que pode afrontá-la é a forma de
provimento dos cargos da carreira nova pelos integrantes das carreiras anteriores.
[ADI 1.850 MC/RS, rel. min. Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ de 27-4-2001.]

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Ementa: Lei 2.130, de 16 de junho de 1993, do Estado do Rio de Janeiro. Pedido de


suspensão de sua eficácia manifestado por meio de reclamação, sob alegação de
tratar-se de reprodução de lei anterior (número 1.914, de 1991), da mesma unidade
federada, cujos efeitos foram suspensos pelo Supremo Tribunal Federal, na ADI 669.
Reclamação convertida em ação direta de inconstitucionalidade, na forma de
precedentes do STF (ADI 864, rel. min. Moreira Alves), com deferimento de nova
cautelar, face à subsistência das razões determinantes da provisória privação dos
efeitos da lei reproduzida. Medida liminar deferida. [ADI 907 MC/RJ, rel. min. Ilmar
Galvão, Plenário, DJ de 3-12-1993.]

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Medida liminar. A presente ação


direta diz respeito à lei do Estado do Rio Grande do Sul – a de número 9.844, de 24
de marco de 1993 – cujo conteúdo abrange parcialmente a do art. 5º da Lei 9.265,
de 13-6-1991, do mesmo Estado, do qual a eficácia ficou suspensa em virtude do
deferimento do pedido de liminar na ADI 546. Em casos como este, cabível é outra
ação direta de inconstitucionalidade, e não reclamação. Diferença entre eficácia erga
omnes e efeito vinculante. Ocorrência, no caso, de relevância jurídica e de periculum
in mora, bem como de conveniência da suspensão cautelar requerida. Ação conhe‑
cida como direta de inconstitucionalidade, deferindo-se o pedido de liminar, para
suspender, até decisão final, os efeitos da Lei 9.844, de 24-3-1993, do Estado do Rio
Grande do Sul. [ADI 864 MC/RS, rel. min. Moreira Alves, Plenário, DJ de 17-9-1993.]

Ementa: Reclamação – Ação direta de inconstitucionalidade – Garantia da autori-


dade de decisão do STF – Cabimento – Inocorrência do descumprimento alegado –
Pedido indeferido. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reconhecido
a possibilidade de utilização, ainda que em caráter excepcional, da via reclamatória
como instrumento processual idôneo de preservação da autoridade decisória dos
julgados proferidos em sede de ação direta de inconstitucionalidade. Precedentes.
A instauração do controle normativo abstrato perante o Supremo Tribunal Federal
não impede que o Estado venha a dispor, em novo ato legislativo, sobre a mesma
matéria versada nos atos estatais impugnados, especialmente quando o conteúdo
material da nova lei implicar tratamento jurídico diverso daquele resultante das
normas questionadas na ação direta de inconstitucionalidade. [Rcl 467/DF, rel.
min. Celso de Mello, Plenário, DJ de 9-12-1994.]

No mesmo sentido as seguintes decisões monocráticas: Rcl 14.156 MC/DF, rel.


min. Celso de Mello, DJE de 5-4-2013; Rcl 13.019 MC/DF, rel. min. Celso de Mello,
DJ de 15-5-2012; Rcl 5.442 MC/PE, rel. min. Celso de Mello, DJ de 6-9-2007; Rcl
4.270/RN, rel. min. Eros Grau, DJ de 25-4-2006; Rcl 4.137/RN, rel. min. Eros Grau,
DJ de 20-3-2006; Rcl 4.156/SC, rel. min. Eros Grau, DJ de 20-3-2006.
Desse modo, resta defeso transplantar a fundamentação e racionalidade
desenvolvidas nos autos da ADI 4.430, rel. min. Dias Toffoli, para o caso ver‑
tente, uma vez que, aí sim, aniquilaria o robusto debate parlamentar. A propósito,

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demarque-se ser juridicamente possível e politicamente recomendável a correção


legislativa de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. É que o STF não detém
o monopólio da interpretação constitucional, que também deve ser concretizada
pelos demais agentes políticos (parlamentares, membros do Poder Executivo,
sociedade civil etc.), naquilo que se convencionou denominar de sociedade aberta
aos intérpretes da Constituição. Em julgado recente, inclusive, esta Suprema Corte
reviu seu posicionamento acerca da Súmula 726, nos autos da ADI 3.772/DF, de
rel. min. Ayres Britto, rel. p/ o ac. min. Ricardo Lewandowski, Plenário, DJE de
27-3-2009. A referida súmula dispunha que, “para efeito de aposentadoria espe‑
cial de professores, não se computa o tempo de serviço prestado fora da sala de
aula”. No julgamento da ADI 3.772/DF, na linha do voto capitaneado pelo ministro
Ricardo Lewadowski, assentou-se a constitucionalidade das alterações feitas pela
Lei 11.301/2006, que passou a considerar o serviço prestado fora de sala de aula
para fins de contagem de aposentadoria, mercê do art. 40, § 5º, da CRFB/1988,
ou seja, em sentido diametralmente oposto à jurisprudência até então consoli‑
dada. Alguém poderia cogitar que os valores em jogo se encontram em posições
hierárquicas distintas: o pluralismo político, a livre criação de novos partidos
políticos e a isonomia de chances entre as agremiações partidárias gozariam de
maior prestígio dentro do ordenamento constitucional, ao passo que a simples
consideração acerca do exercício de uma atividade como tempo de serviço para
fins de aposentadoria teria um substatus, por assim dizer. Tal raciocínio, porém,
não subsiste ao escrutínio acima desenvolvido, no sentido de que o texto cons‑
titucional não procede à valoração de conteúdos de projetos de lei no intuito de
realizar um controle prévio judicial de constitucionalidade. Pode, sim, ser reali‑
zado pelas Comissões de Constituição e Justiça, no seio do Poder Legislativo, e
pelo veto jurídico, exercido pelo presidente da República. Reputo, por isso, como
ilegítima e incompatível com o nosso desenho institucional engendrado pelo
constituinte de 1988 qualquer forma de controle prévio material de constituciona‑
lidade de projeto de lei, ainda que supostamente atentatório às cláusulas pétreas.

II.4 Inconvenientes de se proceder ao controle preventivo de projetos de lei por ofensa


a supostas cláusulas pétreas
Sob o prisma prescritivo, também considero não recomendável a concessão
da segurança. Duas são as minhas razões.
Em primeiro lugar, examinando a questão por um viés consequencialista, a
concessão da ordem produzirá efeitos deletérios tanto para a atividade par­
lamentar quanto para a atividade do Supremo Tribunal Federal. É que todo parla‑
mentar que, a partir de agora, se opuser ao conteúdo de determinada proposição

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legislativa, por vislumbrar ofensa a uma cláusula pétrea, demandará a jurisdição


desta Corte pela via do mandado de segurança. Se hoje o Tribunal atue como
uma espécie de terceiro turno das rodadas parlamentares, em se admitindo
o controle material prévio de constitucionalidade de projetos de lei, passará
a ocupar o papel que cabe, constitucionalmente, ao Poder Legislativo. Have‑
ria, assim, um aumento exponencial no número de ações e, paulatinamente, o
controle judicial repressivo, até então a regra no nosso sistema de controle de
constitucionalidade, cederá espaço ao controle judicial preventivo. Penso que
o melhor dos caminhos não passa por essa possibilidade.
Ademais, e em segundo lugar, a não suspensão do trâmite do PCL 14/2013 se
revela uma medida de respeito e deferência ao Poder Legislativo. De efeito, um
standard de atuação legítimo do Poder Judiciário reside justamente na manuten‑
ção e adequado funcionamento das instituições democráticas. Assim, como bem
adverte John Hart Ely, o Poder Judiciário deve atuar de maneira mais ativa para
proteger direitos e valores diretamente relacionados com o funcionamento da
democracia (ELY, John Hart. Democracy and distrust: a theory of judicial review.
Cambridge: Harvard University Press, 1980). Ocorre que acolher o pedido dedu‑
zido pelo impetrante, de sorte a suspender a tramitação do PLC 14/93, é extin‑
guir o debate. E isso não pode ser tolerado e não é o que se espera de uma corte
constitucional. Se, por um lado, é legítimo admitir uma atuação menos contida
pelo Poder Judiciário para assegurar os direitos individuais indispensáveis para
a participação popular no procedimento democrático de tomada de decisões,
por outro lado, o Poder Judiciário não pode antecipar o desfecho de um debate
parlamentar. É no parlamento, e não no Poder Judiciário, que as discussões públi‑
cas devem ocorrer por excelência. Não se trata de um argumento acaciano, mas,
ao revés, de um postulado ínsito à democracia, que não pode ser negligenciado.
No caso vertente, não se sabe se o projeto de lei será arquivado, alterado ou apro‑
vado. A questão deve permanecer em discussão, sob pena de um paternalismo
judicial ou, para utilizar uma expressão bastante em voga, uma supremocracia.
Na realidade, tutelar o direito dos parlamentares de oposição, diversamente do
que abreviar a discussão, como pretende o impetrante, é permitir que os debates
sejam realizados de forma republicana, transparentes e com os canais de parti‑
cipação abertos a todos os que queiram deles participar. Esse, sim, é o modelo
de atuação legislativa legítima, tal qual concebido por John Hart Ely.
Nesse ponto, uma postura de deferência com relação à declaração de inva‑
lidade de proposições legislativas por ofensa às cláusulas pétreas indica que o
Poder Judiciário mantém uma postura dialógica com o Poder Legislativo, não
se arvorando como detentor da última palavra em matéria de interpretação

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constitucional. Em verdade, a Constituição outorga ao Supremo Tribunal Federal


a última palavra sob o prisma formal. Em uma perspectiva sociológica e da ciência
política, todavia, a decisão judicial apenas fecha uma rodada de deliberações,
ao mesmo tempo que oferece um input aos demais atores políticos (Legislativo,
Executivo, sociedade civil etc.) que permanecerão discutindo a questão em novas
rodadas procedimentais. Tal como leciona o professor de direito constitucional
da USP Conrado Hübner Mendes, esta Suprema Corte pode, e deve, de modo pro‑
posital e responsável, atuar como um “catalisador deliberativo”, promovendo a
interação e o diálogo institucional, de modo a maximizar a qualidade democrática
em “produzir boas decisões” (MENDES, Conrado Hübner. Direitos fundamentais,
separação de Poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 212), o que não
ocorrerá caso se suspenda a tramitação do PLC ora atacado. Perfilhando similar
entendimento, a jurista canadense Christine Bateup preleciona que o uso judicial
das virtudes passivas promove o diálogo constitucional por propiciarem aos pode‑
res políticos de governo, em conjunto com a sociedade, a oportunidade de debater
e resolver questões constitucionais divisoras por meio de canais democráticos
(BATEUP. Christine. The dialogic promisse: assessing the normative potential of
theories of constitutional dialogue. Brooklyn Law Review. v. 71 (3), 2006, p. 1132).
Destarte, por toda a linha de argumentação desenvolvida até o momento, a
solução que melhor se apresenta in casu é aquela que prestigia a deliberação
parlamentar do PLC 14/2013. Ela é a que, a um só tempo, prestigia o desenho
institucional delineado pelo constituinte de 1988 e promove de forma mais satis‑
fatória os postulados democráticos, sem asfixiar o âmbito de atuação constitu‑
cionalmente assegurado ao Poder Legislativo.
Ex positis, conheço do writ, e, no mérito, voto pela denegação da ordem.

VOTO
O sr. ministro Dias Toffoli: Senhor Presidente, inicialmente, registro meus
cumprimentos à defesa feita da tribuna por parte da advogada do impetrante.
Uma defesa bastante precisa a respeito do tema, que foi colocado de maneira
bastante apropriada.
Senhor Presidente, o tema aqui em discussão, diante da divergência aberta, é,
de um lado, a possibilidade de atuação da Suprema Corte em relação a tema em
tramitação no Congresso Nacional que atente contra cláusulas pétreas e, de outro
lado, os limites de atuação da Corte em relação ao debate político no parlamento.
Indo à Constituição Federal, sem entrar no tema específico, nós temos lá
no § 4º do art. 60: não será objeto de deliberação proposta tendente a atingir

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determinados direitos. A questão é simples, não é complexa. Não é preciso ir a


Madison, não é preciso citar vários autores. E quem é o guarda da Constituição?
O ministro Gilmar Mendes trouxe vários precedentes em seu judicioso voto,
pelo qual, também, faço meus cumprimentos – belíssimo voto, voto que entra
para a história do Supremo.
Com a devida vênia da divergência, apesar de todo esforço argumentativo e
dos belos votos proferidos pelos três colegas que já divergiram, não me convenci
da posição contrária àquela adotada pelo ministro Gilmar Mendes.
Como disse nos apartes, Senhor Presidente, aquelas críticas feitas à liminar
dizendo que ela configuraria uma intervenção no parlamento, na verdade, se
aplicariam ao Poder Legislativo, pois o objeto material do projeto de lei, como
disse, que caracteriza uma intervenção, uma verdadeira rescisória da decisão
desta Suprema Corte tomada na ADI 4.430, de minha relatoria. Ficaram vencidos,
naquela oportunidade, Vossa Excelência, Senhor Presidente, juntamente com
a ministra Cármen Lúcia. Julgavam procedente a ação, em maior amplitude, o
ministro Cezar Peluso e o ministro Marco Aurélio. O voto que prevaleceu, por
maioria, foi aquele que eu trouxe à Corte. Vejam o que foi decidido naquela ação
direta. Leio a conclusão de meu voto:
(...) julgo parcialmente procedente a ADI 4.430, no sentido de:
i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “e representação na Câmara dos
Deputados” contida na cabeça do § 2º do art. 47 da Lei 9.504/1997;
ii) dar interpretação conforme à Constituição Federal ao inciso II do § 2º do
art. 47 da mesma lei, para assegurar aos partidos novos, criados após a realização
de eleições para a Câmara dos Deputados, o direito de acesso proporcional aos 2/3
do tempo destinado à propaganda eleitoral no rádio e na televisão, considerada
a representação dos deputados federais que migrarem diretamente dos partidos
pelos quais foram eleitos para a nova legenda na sua criação.

Essa foi a decisão tomada pela Corte.


Leiamos, agora, o que diz o projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputados.
Pelo rito processual definido na Constituição Federal, o Senado pode, em tese,
alterar o texto. Mas, caso haja alteração, o texto volta à Câmara dos Deputados.
O que pleiteia o impetrante é o seu direito subjetivo líquido e certo de não ter que
votar esse texto saído da Câmara dos Deputados. E esse texto, obrigatoriamente,
tem que ser votado no Senado, porque é o texto que saiu da Câmara. O Senado não
pode se furtar a colocar, no Plenário do Senado da República, esse texto que veio
da Câmara. Daí a presença do direito líquido e certo público subjetivo do parla‑
mentar de não apreciar um texto que entende atentar contra as cláusulas pétreas.
O que diz o texto? Vamos ao seu § 7º, que acrescenta ao art. 47 da Lei 9.096/1995:

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§ 7º Para efeito do disposto no inciso II do § 2º [ao qual nós demos interpretação con‑
forme] serão desconsideradas as mudanças de filiação partidária, em quaisquer hipó‑
teses, ressalvado o disposto no § 6º do art. 29 da Lei n. 9.096, de 19 de setembro de 1995.

O § 6º do art. 29 é o que dispõe sobre a fusão e a incorporação de partidos


políticos. Quando dizem “em quaisquer hipóteses”, inclusive naquela hipótese
à qual nós demos interpretação conforme. Isso é, portanto, uma rescisória da
decisão tomada na ADI 4.430.
Por isso, na verdade, no caso, foi o parlamento que atentou contra a decisão
do Supremo.
Pois não, Ministro Gilmar.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): O efeito vinculante não atinge o par‑
lamento, ou não o afeta. Vejo que Vossa Excelência propôs, e a Corte adotou, uma
interpretação conforme que acrescenta sentido àquela norma então estabelecida
sobre a distribuição de tempo e tudo mais. Logo, é uma sentença de caráter adi‑
tivo. Aqui nós estamos falando de coisa julgada e estamos falando de eficácia erga
omnes, portanto, de coisa julgada dotada de eficácia erga omnes. Não tem como
se dizer que o Congresso Nacional está livre para fazer o que quiser em relação
a essa lei. Eu poderia até reformular o modelo, mas teria que observar deter‑
minados parâmetros – não no curso de uma legislatura –, suprimir o benefício
que se reconhecia a um grupo ou dar a um grupo e suprimir em relação a outro.
Portanto, essa vinculação existe e decorre do próprio modelo, não é preciso ir
além disso. É a própria coisa julgada com eficácia erga omnes que estabelece essa
vinculação a partir de sua manifestação, da manifestação de Vossa Excelência.
O sr. ministro Dias Toffoli: Então, basta colocar, em uma coluna, o que foi
a decisão final desta Corte e, na coluna ao lado, o que é o texto desse projeto
de lei para ver que aquilo que a Corte entendeu como interpretação aplicável
de acordo com a Constituição, não de acordo com a lei, não pode ser aplicada.
Essa interpretação se aplicou nas eleições de 2012 e que agora não se quer que
se aplique nas eleições de 2012.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): De 2014.
O sr. ministro Dias Toffoli: Desculpe-me, de 2014. E as leis não são feitas
para a abstração, elas são feitas para a realidade. Não há como negar um caráter
casuístico aqui. Não dá para negar que grupos majoritários no parlamento estão
querendo atingir a essência da disputa democrática por intermédio dos instru‑
mentos mais importantes do debate político e do debate político eleitoral, que
são o acesso gratuito ao rádio e à televisão – seja no caso de programa partidário
(Lei 9.096), seja no caso da propaganda eleitoral gratuita (Lei 9.504) – e ao fundo
partidário, disciplinado na Lei 9.096/1995.

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Ora, após a decisão do Supremo Tribunal Federal na referida ação direta de


inconstitucionalidade, houve, por parte do Tribunal Superior Eleitoral, a ade‑
quação das instruções referentes à distribuição do fundo partidário e do tempo
de rádio e televisão, seja para o programa partidário, seja para os programas
eleitorais, visando à orientação dos tribunais regionais eleitorais, porque se tra‑
tava das eleições municipais que ocorreriam em 2012. Tudo feito com base em
parâmetros fixados previamente ao início da legislatura.
Vejam Vossas Excelências, especialmente os colegas que divergiram e os cole‑
gas que eventualmente venham a divergir da posição adotada pelo relator, que
ora subscrevo, que a Lei 9.096, editada em 1995, quando estabeleceu a distribuição
do tempo de rádio e televisão, a qual foi depois, na ADI 1.351, julgada em parte
inconstitucional pela Corte, estabeleceu também, no seu art. 57, uma regra de
transição. E a regra de transição deveria valer para duas legislaturas, exatamente
para que o acesso ao rádio e à televisão fosse dado, de uma maneira mais iguali‑
tária, a todos os partidos. Assim, só depois de duas legislaturas é que viria a ser
implementada a cláusula de barreira. Ou seja, os partidos em questão teriam a
possibilidade de ser submetidos ao crivo do voto popular por duas legislaturas.
Depois, então, incidiria a cláusula de barreira.
Eu pergunto – e aqui não se trata só do conteúdo material desse projeto de
lei, que, para mim, é chapadamente uma rescisória da decisão da ADI 4.430 –:
poderia um outro projeto de lei, por outros meios, alterar isto que vai ser a dis‑
tribuição do tempo de acesso ao rádio e à televisão para as eleições de 2014 ao
bel-prazer da maioria e em detrimento da minoria? Será que é possível placitar
isso? É disso que se trata, é isto que está sendo colocado em jogo aqui neste
momento: os instrumentos de acesso ao poder. É grave. Pode a maioria conjun‑
tural, ao seu bel-prazer, alterar instrumentos fixados com base na data de início
de uma legislatura? No caso, para a disputa de 2014, as regras se basearam no
início da legislatura de 2011.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Vossa Excelência me permite mais
uma observação?
O sr. ministro Dias Toffoli: Pois não, Ministro Gilmar.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): O que não podemos sequer separar –
é importante lembrar – é que essa medida é aquilo que os americanos chamam de
packing of court, é um caso de preparar um pacote para a Corte. Nós não podemos
separar. Essa medida foi uma rescisão de uma decisão tomada, tanto é que, da
tribuna, ficou muito claro na belíssima sustentação que o projeto apresentado
dias após a decisão tomada pela...
O sr. ministro Dias Toffoli: Dias após a decisão.

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O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): E depois ganhou toda a celeridade.


E não foi por acaso que esse projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados nos
mesmos dias em que a Comissão de Constituição e Justiça aprovou aquele infeliz
projeto de emenda constitucional, do Nazareno de tal, que trata do empacota‑
mento, do fechamento do Supremo Tribunal Federal, cujo mandado de segurança
está sob a relatoria de Vossa Excelência.
O sr. ministro Dias Toffoli: Eu neguei a liminar naquele caso, até porque o
próprio presidente da Câmara dos Deputados disse que não instalaria – disse
de público – a comissão especial.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Dias Toffoli: Agradeço, Ministro Celso.
E a decisão tomada, que agora o parlamento quer rescindir, foi tomada com
base no art. 17 da Constituição Federal, que diz o seguinte:
Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos.

Foi garantido aos partidos o acesso ao rádio e à televisão e ao fundo partidário.


Ora, qual foi a tese que prevaleceu na ação direta? Foi que a aplicação literal
do dispositivo do art. 47, II, § 2º, da Lei 9.096 aos novos partidos políticos que
não tinham participado de eleições anteriores mas tinham representatividade
parlamentar inibia aquilo a que a Constituição tinha dado liberdade total: a
criação, fusão ou incorporação de partidos políticos.
Ora, o que quer esse projeto de lei é, realmente, dizer que essa liberdade não
é total: um partido político pode ser criado, a legenda partidária pode ter seu
registro no TSE, uma vez preenchidos os requisitos de apoiamento e de filiação,
só que não terá acesso aos meios de comunicação e ao fundo partidário na pro‑
porção da representação política que já tenha, por adesão de parlamentares a
essa nova agremiação partidária.
Vejam que o resultado da criação e da fusão de partidos é um novo partido,
porque há um novo estatuto, um novo registro. Trata-se de uma nova agremiação
partidária. É essa interpretação que o Supremo deu para garantir aquilo que está
no art. 17 que se quer agora rescindir com o projeto de lei em análise.
Eu vou além, Senhor Presidente, com a devida vênia dos que manifestaram
entendimento contrário – eu sei que não enfrentaram o mérito da questão, embora
já tenha sinalizado a ministra Rosa Weber que até tem entendimento, já adian‑
tando um posicionamento sobre o próprio mérito, na linha do voto do ministro
Gilmar Mendes. Pois bem, mas esse é um tema para o futuro, caso prevaleça a
opinião da divergência. Mas eu não posso me furtar a enfrentar esse tema de
fundo, porque, para mim, aqui está em jogo cláusula pétrea e algo mais do que

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a cláusula pétrea: o que está colocado aqui é o pacto político relativo à maneira
como se disputa o poder. Trata-se de cláusula verdadeiramente não escrita e o
parâmetro é o início da legislatura. Não se pode alterar esse parâmetro do início
da legislatura, ao longo da legislatura, a favor das maiorias. Não se pode, senão é
dar um poder, um cheque em branco para aqueles que detêm as maiorias políticas
para sufocarem as minorias. Vai contra a jurisprudência que o Supremo formou no
que diz respeito à cláusula de barreira e no que diz respeito à decisão da ADI 4.430.
Eu fico aqui a pensar, Ministro Gilmar Mendes, e eu pergunto a Vossa Exce‑
lência, dentro da ordem natural das coisas – fique à vontade, Vossa Excelência,
como sempre, para responder –: Vossa Excelência integrará o TSE, no ano que
vem, como titular – estarei lá eu também –; Vossa Excelência placitaria essa lei
na Justiça Eleitoral?
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Sem dúvida alguma, não. Essa lei, na
verdade, é afrontosa. Ainda aqui se perguntou: essa lei fere que princípio consti‑
tucional? Vossa Excelência respondeu quando falou do art. 17. A ministra Ellen
já tinha dito que o art. 16 compõe o rol de cláusulas pétreas.
O sr. ministro Dias Toffoli: Não só a ministra Ellen; a ministra Ellen placi‑
tada pela Corte.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Pela Corte. Mas nós poderíamos dizer
que essa lei, esse projeto de lei, que vem nesse contexto de empacotamento deste
Tribunal – é nesse contexto que esse projeto foi aprovado na Câmara...
O sr. ministro Dias Toffoli: Ela afronta o Tribunal e afronta as minorias.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): ...viola a Constituição de Deus a Ulys‑
ses Guimarães, de Deus a Ulysses Guimarães, como se dizia no passado, em
relação à Constituição de 1946, de Deus a Mello Vianna. Fere a Constituição de
Deus a Ulysses Guimarães, de ponta-cabeça, é disso que se cuida. Quem estiver
espiolhando o art. 17 ou um outro artigo não está lendo o texto constitucional
que nós temos. A igualdade desaparece. Como aplicar isso no TSE e dizer que
tem um partido de primeira classe e um partido de segunda classe? E como dizer
que isso é compatível com a nossa ordem constitucional?
O sr. ministro Dias Toffoli: Pois bem, Senhor Presidente, resumindo a minha
manifestação – até porque, quando acompanhamos seja o relator, seja a divergên‑
cia, não precisamos agregar muito mais do que aquilo que seja o suficiente para
a manifestação do voto –, como, muitas vezes, nós acompanhamos o relator, mas
fazemos algumas diferenças de fundamentação ou tiramos certos adjetivos, eu
gostaria de deixar registrado que, neste caso, eu acompanho o ministro Gilmar
Mendes em todos os adjetivos formulados por ele, seja no voto, seja nos debates.
Não placitarei esse projeto de lei se aprovado e sancionado no Tribunal Superior

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Eleitoral e não placitarei aqui no Supremo Tribunal Federal. É evidente que me


submeterei à maioria, seja no TSE, seja aqui no Supremo Tribunal Federal. Mas
fica o registro, seja para a história, seja para os parlamentares, que ainda poderão
debater esse tema se prevalecer o voto da divergência.
É como voto, acompanhando o relator, Senhor Presidente, e pedindo vênia
à divergência.

VOTO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de mandado de segurança, com
pedido de medida liminar, impetrado por Rodrigo Sobral Rollemberg, senador da Re­­
pública, com objetivo de obstar a tramitação do PL 4.470/2012, recebido no Se­­nado
Federal como PLC 14/2013, no qual se pretende estabelecer regras sobre migração
partidária de parlamentar no curso de determinada legislatura, bem assim acerca
da transferência de recursos do fundo partidário e do chamado “direito de antena”.
Na inicial, o impetrante alega, em síntese, que tal projeto constituiria manobra
“casuística” da maioria parlamentar com o intuito de obstar a criação de partidos
de oposição no Brasil, de forma “espúria e inconstitucional”. Sustenta, ainda, que
o referido projeto de lei quebra a igualdade entre os partidos, além de ofender o
postulado do pluralismo político.
O relator, ministro Gilmar Mendes, decidiu suspender a tramitação do PLC
14/2013, considerando
(i) a excepcionalidade do presente caso, confirmada pela extrema velocidade de
tramitação do mencionado projeto de lei – em detrimento da adequada reflexão
e ponderação que devem nortear tamanha modificação na organização política
nacional; (ii) a aparente tentativa casuística de alterar as regras para criação de
partidos na corrente legislatura, em prejuízo de minorias políticas e, por conse‑
guinte, da própria democracia; e (iii) a contradição entre a proposição em questão e
o teor da Constituição Federal de 1988 e da decisão proferida pelo Supremo Tribunal
Federal na ADI 4.430. [MS 32.033 MC/DF, rel. min. Gilmar Mendes, de 24-4-2013.]

A questão central versada no presente mandado de segurança é saber se a


tramitação de projeto de lei – que discute a tese segundo a qual “a migração
partidária que ocorrer durante a legislatura, não importará na transferência dos
recursos do fundo partidário e do horário de propaganda eleitoral no rádio e na
televisão” – vulnera, ou não, o direito líquido e certo do impetrante.
Recordo, de início, que o Supremo Tribunal Federal discutiu, pela primeira
vez, o cabimento de mandado de segurança para sustar a tramitação de projetos
de lei alegadamente contrários à Constituição, na sessão plenária de 17-9-1980.

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Cuidava-se do MS 20.257/DF, impetrado por Itamar Franco e Antônio Mendes


Canale, contra ato da Mesa do Congresso Nacional, que admitiu a deliberação de
proposta de emenda à Constituição a qual, segundo os impetrantes, seria tendente
“à abolição da República”, por prorrogar mandatos de dois para quatro anos.
Naquele julgamento histórico, prevaleceu o voto do ministro Moreira Alves,
no sentido de que seria possível, em tese, a impetração de writ para obstar pro‑
posta de emenda alegadamente contrária à regra fixada no art. 47, § 1º, da Cons‑
tituição de 1967, com a redação dada pela EC 1/1969, vigente à época, que tem o
seguinte teor: “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente
a abolir a Federação ou a República”.
Seria o caso, por exemplo, nos dias atuais, de proposta de emenda tendente
a abolir as cláusulas pétreas protegidas pelo art. 60, § 4º, I a IV, da Constituição:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(...)
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.

No que importa para o presente caso, colho do voto-vista, que prevaleceu


naquele leading case, a lapidar argumentação desenvolvida pelo ministro Moreira
Alves, o qual não identificou a alegada inconstitucionalidade na emenda em
questão, deixando assentada a seguinte orientação jurisprudencial:
Não admito mandado de segurança para impedir tramitação de projeto de
lei ou proposta de emenda constitucional com base na alegação de que seu
conteúdo entra em choque com algum princípio constitucional. E não admito
porque, nesse caso, a violação à Constituição só acorrerá depois de o projeto se
transformar em lei ou de a proposta de emenda vir a ser aprovada. Antes disso,
nem o presidente da Casa do Congresso, ou deste, nem a Mesa, nem o Poder
Legislativo estão praticando qualquer inconstitucionalidade. Mas estão, sim,
exercitando seus poderes constitucionais referentes ao processamento da lei em
geral. A inconstitucionalidade, nesse caso, não será quanto ao processo da lei ou
da emenda, mas, ao contrário, será da própria lei ou da própria emenda, razão
por que só poderá ser atacada depois da existência de uma ou de outra. [Grifei.]

Resta, então, perquirir, na espécie, se a discussão de projeto de lei concer‑


nente à migração partidária durante certa legislatura e, ainda, à transferência
de recursos do fundo partidário e do horário de propaganda eleitoral para outra

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agremiação colide, em face de sua simples tramitação, com as cláusulas pétreas


abrigadas no § 4º do art. 60 da Lei Maior.
A Constituição de 1988, em seu “Capítulo V – Dos partidos políticos”, mais
especificamente, no art. 17, § 3º, estabelece que “os partidos políticos têm direito
a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma
da lei” (grifei).
Ora, a partir desse comando constitucional, a matéria foi regulada pela Lei
9.096/1995, denominada Lei dos Partidos Políticos, que disciplinou o rateio do
fundo partidário e o exercício do “direito de antena”.
Ou seja, a autorização para regular a matéria, por lei, decorre do próprio texto
constitucional.
Cumpre notar, ademais, que, a partir de uma simples leitura da Carta Maior,
depreende-se que o limite constitucional imposto ao legislador derivado, previsto
em seu art. 60, § 4º, que pode ensejar o trancamento do próprio processo legis‑
lativo, diz respeito tão somente a propostas de emenda ao texto constitucional.
Na espécie, a proposição legislativa que se pretende obstar com a impetração
deste mandamus configura mero projeto de lei (PLC 14/2013), não havendo falar,
pois, de aplicação do referido preceito, sobretudo porque se quer alcançar tal
desiderato por meio de um mandado de segurança, cuja vocação é, sabidamente,
proteger direito líquido e certo (cf. MS 30.956, de minha relatoria).
E aqui é preciso esclarecer importante questão constitucional: por que o limite
imposto pelo constituinte originário ao constituinte derivado, que autoriza o
controle judicial preventivo de constitucionalidade, diz respeito, apenas, a pro‑
postas de emenda à Constituição atentatórias às cláusulas pétreas, mas silencia
a respeito das leis infraconstitucionais que padeceriam do mesmo vício?
Não há qualquer dúvida entre os estudiosos de que os constituintes origi‑
nários buscaram preservar aquilo que se poderia chamar de “cerne imutável”
ou de “núcleo duro” da Constituição, impedindo que uma proposta de emenda
constitucional pudesse vir a alterá-lo.
Daí a vedação imposta pelo art. 60, § 4º, da Constituição, que impede deli‑
beração desse tipo de PEC e silencia, eloquentemente, sobre a tramitação de
projetos de lei infraconstitucionais.
O “silêncio eloquente” da Constituição, nesse ponto, se justifica, em primeiro
lugar, porque um mero projeto de lei em discussão, ainda que possa vir a ser
aprovado, não tem a força de alterar as balizas constitucionais que configuram
paradigmas para o controle judicial repressivo de constitucionalidade. Quer
dizer, um simples projeto de lei, ainda que aprovado, sancionado e publicado,
não ameaça, em absolutamente nada, a higidez da Carta Maior.

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Com efeito, uma interpretação desse dispositivo constitucional menos harmô‑


nica com a independência e os limites dos Poderes da República poderia levar ao
entendimento – francamente errôneo a meu sentir – de que o Judiciário estaria
autorizado a barrar a tramitação, no Legislativo, de todo e qualquer projeto de
lei que discuta temas supostamente ameaçadores às cláusulas pétreas, com base
no velho brocardo latino “in eo quod plus est semper inest et minus”, traduzido
por Carlos Maximiliano como “quem pode o mais, pode o menos” (Hermenêutica
e aplicação do direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense. p. 343).
Entretanto, essa não é, com a devida vênia, a interpretação mais consentânea
com os princípios constitucionais, eis que ampliaria, em demasia, os limites de
atuação do Judiciário, permitindo-lhe interferir, de forma indevida, a meu ver, nos
debates do Legislativo, que age, como se sabe, nas matérias que lhe são afetas,
com amplíssima discricionariedade. Incidiria, desenganadamente, naquilo que
o eminente constitucionalista José Afonso da Silva chama de “abuso no exercício
da função jurisdicional”, que, para ele, “é tão inconstitucional como o abuso das
funções executiva e legislativa” (palestra proferida na OAB, em comemoração
aos 25 anos da Constituição, aos 12-6-2013).
Em suma, a razão de ser do dispositivo constitucional em questão, que per‑
mite obstar o processo legislativo no caso da tramitação de emenda à Carta
Magna tendente a abolir alguma das cláusulas pétreas, consiste em evitar-se
a alteração de um paradigma normativo da mais alta hierarquia jurídica, cujo
dano potencial ao ordenamento legal é incomensuravelmente maior do que
aquele causado pela eventual aprovação de uma lei ordinária tisnada pelo vício
da inconstitucionalidade, o qual, de resto, é reparável a qualquer tempo, quer
por meio do controle concentrado, quer mediante o controle difuso, cometidos
pela Constituição ao Judiciário, com exclusividade.
Por tais razões, a saber: seja porque o projeto de lei está sendo atacado por
meio de um instrumento processual inadequado, seja porque – ao menos numa
análise prefacial que ora se faz – ele não vulnera nenhuma das cláusulas pétreas,
penso que o PLC 14/2013, aqui impugnado, não pode ser objeto de controle prévio
de constitucionalidade.
Em outras palavras, somente após a sua regular tramitação e eventual trans‑
formação em direito posto é que esta Suprema Corte estará autorizada, caso
provocada mediante o instrumento processual adequado, a examinar a sua com‑
patibilidade com a Constituição, exercendo, assim, de forma legítima, o controle
de constitucionalidade, de caráter repressivo que lhe compete.
Uma das justificativas para atacar o projeto legislativo consigna que o obje‑
tivo do projeto de lei consiste em evitar o “comércio” de filiações partidárias,

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fomentando a infidelidade partidária, tendo como “moeda de troca” recursos


do fundo partidário e o direito de antena, ambos garantidos pelo art. 17, § 3º, da
Constituição e regulamentados por norma infraconstitucional, qual seja, a já
mencionada Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/1995).
Ora, é da essência do parlamento a discussão de temas políticos, entre os quais,
à evidência, se insere o rateio do fundo partidário e a distribuição do tempo de
propaganda política e partidária.
Apenas o resultado desses debates, uma vez transformados em lei, segundo
entendo, é que poderá ser objeto do controle de constitucionalidade, mas sempre
a posteriori, pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse ponto, com razão o advogado‑
-geral da União, Luís Inácio Lucena Adams, quando assentou da tribuna, na
sessão plenária de 5 de junho de 2013, que
(...) não se pode estabelecer que, com o argumento maniqueísta da relação maio‑
ria versus minoria, se estabeleça uma definição prévia da pauta legislativa sobre
o que o Congresso pode deliberar. (...) Negar ao Congresso Nacional o direito de
estabelecer a sua própria pauta é negar a democracia. Houve interferência prévia
ao processo legislativo, que não está concluído. Se o projeto for aprovado, será
objeto de discussão no Supremo. (...) É errado dizer que a minoria não tenha defesa,
não tenha instrumento.

A questão é tão controvertida que causou perplexidade no próprio Ministério


Público Federal.
Com efeito, de um lado, tem-se o abalizado parecer do digno procurador-geral
da República, doutor Roberto Gurgel, segundo o qual o projeto de lei atacado
expõe-se “à corrigenda pelo Supremo Tribunal federal em mandado de segurança
impetrado por Senador da República antes mesmo de se ultimar a votação em
Plenário do Senado para que a Corte possa desempenhar a sua missão de guarda
maior da Carta Política (...)”.
De outro, vê-se a substanciosa sustentação oral da eminente vice-procuradora‑
-geral da República à época, doutora Deborah Duprat, que, durante os debates
havidos na supramencionada sessão, sustentou o seguinte:
Acredito que esse é um importante e perigoso precedente. Preocupa-me a pre‑
servação do espaço democrático de decisão. E quanto a isso não posso me calar.
O controle preventivo tem de ser reservado a situações de absoluta excepcio-
nalidade. [Grifei.]

Com efeito, penso, com o devido respeito, que impedir o parlamento de deli‑
berar sobre um projeto de lei que disciplina matéria de natureza eminentemente

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política é que colidiria – isso sim – com uma das cláusulas pétreas, a saber, aquela
que assegura a Separação dos Poderes, postulado fundamental do Estado Demo‑
crático de Direito (art. 60, § 4º, IV, da Constituição).
Permito-me repisar, mais uma vez, que, não se pode transformar o mandado
de segurança, cuja admissibilidade pressupõe a existência de direito líquido e
certo, aferível de plano, por meio de prova pré-constituída, em uma espécie de
ação direta de inconstitucionalidade “preventiva”, porque tal procedimento ine‑
xiste na jurisdição constitucional brasileira.
Nesse sentido, bem assentou alhures o ministro Celso de Mello que “o man‑
dado de segurança não é sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade nem
pode substituí-la, sob pena de grave deformação do instituto e inaceitável desvio
de sua verdadeira função jurídico-processual” (MS 21.074 AgR/DF, RTJ 132/189).
Cito, ainda, no mesmo sentido, precedente de lavra do ministro Néri da Sil­veira,
nos autos do MS 24.138 MC/DF, impetrado pelo deputado federal Ru­­bens Bueno
para trancar proposição legislativa que tramitava na Câmara dos Deputados:
Não se adotou, no Brasil, o controle judicial preventivo de constitucionalidade
da lei. Não é, assim, em princípio, admissível o exame, por esta Corte, de projetos
de lei ou mesmo de propostas de emenda constitucional, para pronunciamento
prévio sobre sua validade. Não se acolhe, em princípio, súplica para impedir a
tramitação de projeto de lei ou proposta de emenda à Constituição, ao fun-
damento de contrariar princípio básico da ordem constitucional em vigor.
Somente depois de editada a lei ou emenda à Constituição, caberá o amplo
controle judicial de constitucionalidade da norma, que se consagra no País,
nos sistemas concentrado e difuso.
(...) Sustenta-se que o projeto de lei em foco é inconstitucional e inconveniente,
pelas razões longamente deduzidas na inicial. Não há, entretanto, arguição de
vício de origem, nem de qualquer nulidade ou mesmo irregularidade em seu
processamento. O que se pretende, em realidade, é discutir, por antecipação,
a quaestio juris de inconstitucionalidade do projeto de lei. Releva notar que a
matéria, sujeita ao debate da Câmara dos Deputados – se, nela, aprovada –, ainda
dependerá da deliberação do Senado Federal.
7. Não tenho, como cabível, em hipótese dessa natureza, impedir que a Câmara
dos Deputados discuta a espécie e sobre ela delibere. O controle judicial, quanto
ao mérito de constitucionalidade, não encontra espaço para ser, aqui, realizado;
de contrário, estaria o STF intervindo na deliberação da Câmara dos Deputa-
dos, referentemente ao processo de elaboração da legislação ordinária, sem que se
alegue esteja ocorrendo, no procedimento legislativo, qualquer vício formal. Há,
pois, um limite ao controle prévio, sempre excepcional, que importa conside-
rar, inclusive em face do princípio básico da separação e independência dos
Poderes da República. [MS 24.138 MC/DF, de 27-11-2001 – Grifei.]

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O Plenário desta Suprema Corte, naquele caso, confirmou a medida liminar


e, no mérito, denegou a ordem, nos termos de acórdão relatado pelo ministro
Gilmar Mendes.
A respeito de eventuais mudanças em nosso ordenamento no tocante ao con‑
trole jurisdicional de constitucionalidade das normas, lembro-me que, há pouco
tempo atrás, o ministro Cezar Peluso, na condição de presidente do Supremo
Tribunal Federal, trouxe à tona novamente a discussão quanto à conveniência
de se instaurar no Brasil o controle preventivo de constitucionalidade das leis
editadas pelo Congresso Nacional.
Em evento promovido pelo Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP),
em 25-3-2011, anunciou o então presidente que poderia incluir no projeto de “3º
Pacto Republicano” a proposta de instituição de um controle prévio de cons‑
titucionalidade, mediante a eventual provocação do presidente da República,
para os projetos de lei aprovados pelo Congresso Nacional e encaminhados para
sanção ou veto presidencial.
Defendeu o ministro Cezar Peluso, na ocasião, que a possibilidade de emis‑
são de um “parecer técnico” pelo STF antes da sanção de projetos considerados
polêmicos o livraria do acúmulo das múltiplas ações diretas de inconstitucio‑
nalidade, que têm sobrecarregado os seus trabalhos.
Todavia, logo sobrevieram fortes críticas à ideia, as quais motivaram o ministro
Cezar Peluso a abrir mão da proposta, tendo ele, a partir de então, se limitado a
conclamar as comunidades jurídica e política a refletir sobre o vigente sistema
de controle de constitucionalidade.
Por fim, assento que não impressiona, data venia, o argumento da “veloci‑
dade” na tramitação do projeto de lei ora atacado, pois, como bem observou
Virgílio Afonso da Silva, professor titular de direito constitucional da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo, “desde que respeitadas as regras do pro‑
cesso legislativo, o quão rápido um projeto é analisado é uma questão política,
não jurídica. Não cabe ao STF ditar o ritmo do processo legislativo” (A emenda
e o Supremo, jornal Valor Econômico de 3-5-2013).
Também não sensibiliza a alegação de que se trataria de uma “manobra ca­­
suística” da maioria parlamentar, pois não é lícito à Suprema Corte ingressar
prematuramente no próprio mérito dos projetos de lei em tramitação no Con‑
gresso Nacional e, assim, impedir que os distintos temas sejam exaustivamente
debatidos pelos representantes do povo legitimamente eleitos, como é próprio
do regime democrático.
Para terminar, manifestando a minha admiração pelo ilustre decano, minis‑
tro Celso de Mello, aproveito para lembrar uma frase sua segundo a qual “O

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Congresso pode muito, mas não pode tudo!”. Parafraseando, ouso dizer: “O Judi‑
ciário pode muito, mas não pode tudo!”.
Isso posto, pelo meu voto, casso a liminar concedida e, no mérito, denego a
segurança.

VOTO
(Antecipação)
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, ante a importância institucional, a
importância da matéria para a higidez do Estado de Direito, devo estender-me
um pouco mais, considerada a prática que geralmente adoto ao votar no Plená‑
rio e na Turma como vogal.
Faço um retrospecto do quadro revelado neste mandado de segurança e res‑
salto o objeto da impetração, assentando, de início, que estamos vinculados às
causas de pedir e também ao pleito formulado.

VOTO
O sr. ministro Marco Aurélio: Ante a importância institucional, ante a impor‑
tância da matéria para a higidez do Estado de Direito, devo estender-me no voto
a ser proferido, fugindo à regra que sempre adoto na conciliação do binômio
celeridade e conteúdo.
Eis o quadro com o qual o Plenário se defronta:

Objeto e pedido da impetração


O mandado de segurança foi impetrado por Rodrigo Sobral Rollemberg ante
a tramitação e a deliberação relativa ao Projeto de Lei Ordinária – na Câmara,
4.470, de 2012, no Senado, 14, de 2013 – que visa alterar as Leis 9.096, de 1995,
e 9.504, de 1997, para prever que “a migração partidária que ocorrer durante a
legislatura não importará a transferência de recursos do fundo partidário e do
horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão”. As restrições quanto à
migração alcançam a criação de novos partidos. Liminarmente, pediu-se para
sustar a tramitação do aludido projeto. No mérito, busca-se vê-lo arquivado.
O projeto de lei questionado segue abaixo transcrito:
Art. 1º Os seguintes dispositivos da Lei n. 9.096, de 19 de setembro de 1995, passam
a vigorar com a seguinte redação:

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“Art. 29. (...)1
(...)
§ 6º Havendo fusão ou incorporação, devem ser somados exclusivamente os
votos dos partidos fundidos ou incorporados, obtidos na última eleição geral
para a Câmara dos Deputados, para efeito da distribuição dos recursos do Fundo
Partidário e do acesso gratuito ao rádio e à televisão.
Art. 41-A. Do total do Fundo Partidário:
I – 5% (cinco por cento) serão destacados para entrega, em partes iguais, a todos
os partidos que tenham seus estatutos registrados no Tribunal Superior Eleitoral; e
II – 95% (noventa e cinco por cento) serão distribuídos aos partidos na pro‑
porção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados.
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II, serão desconsideradas
as mudanças de filiação partidária, em quaisquer hipóteses, ressalvado o dis‑
posto no § 6º do art. 29.2 ”
Art. 2º Acrescente-se o § 7º ao art. 47 da Lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997,
com a seguinte redação:
“Art. 47. (...)
(...)
§ 7º Para efeito do disposto no inciso II do § 2º, serão desconsideradas as
mudanças de filiação partidária, em quaisquer hipóteses, ressalvado o disposto
no § 6º do art. 29 da Lei n. 9.096, de 19 de setembro de 1995.3 ”
Art. 3º Esta lei entra em vigor na data da sua publicação.

1 Redação anterior:
“Art. 29. Por decisão de seus órgãos nacionais de deliberação, dois ou mais partidos poderão
fundir-se num só ou incorporar-se um ao outro. (...)
(...)
§ 6º Havendo fusão ou incorporação de partidos, os votos obtidos por eles, na última eleição
geral para a Câmara dos Deputados, devem ser somados para efeito do funcionamento par-
lamentar, nos termos do art. 13, da distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do acesso
gratuito ao rádio e à televisão.”
2 Redação anterior:
“Art. 41-A. 5% (cinco por cento) do total do Fundo Partidário serão destacados para entrega, em
partes iguais, a todos os partidos que tenham seus estatutos registrados no Tribunal Superior
Eleitoral e 95% (noventa e cinco por cento) do total do Fundo Partidário serão distribuídos a
eles na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados.
(Incluído pela Lei n. 11.459, de 2007.)”
3 Redação do aludido art. 47, § 2º, II:
“Art. 47. As emissoras de rádio e de televisão e os canais de televisão por assinatura mencio-
nados no art. 57 reservarão, nos quarenta e cinco dias anteriores à antevéspera das eleições,
horário destinado à divulgação, em rede, da propaganda eleitoral gratuita, na forma estabe-
lecida neste artigo.
(...)
§ 2º Os horários reservados à propaganda de cada eleição, nos termos do parágrafo anterior,
serão distribuídos entre todos os partidos e coligações que tenham candidato e representação
na Câmara dos Deputados, observados os seguintes critérios:

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Premissas e fundamentos teóricos da impetração (síntese da petição inicial)


O impetrante aponta violação ao devido processo legislativo e “abuso de poder
legislativo” ante as restrições que se pretende impor em relação à propaganda
eleitoral e ao financiamento partidário consideradas as novas agremiações a
serem criadas a partir da promulgação da lei, o que o legitimaria a fazer uso do
mandado de segurança preventivo com a finalidade de coibir atos praticados no
processo de aprovação de leis incompatíveis com dispositivos constitucionais.
Afirma a existência de direito líquido e certo, porque integrante do Congresso
Nacional, de “não participar da produção de atos casuisticamente concebidos
para aniquilar direitos fundamentais de grupos políticos minoritários e que visi‑
velmente conspurcam, desde sua tramitação, os mandamentos centrais derivados
do texto da Carta Política”.
Conforme diz, o projeto de lei, que tramitou em regime de urgência na Câ­­
mara, foi forjado pela maioria para restringir direitos fundamentais de grupos
políticos minoritários determinados e perfeitamente individualizáveis, caracte‑
rizando “abuso do poder legislativo”. Identifica como alvos específicos a criação,
em andamento, dos futuros partidos “Rede” e “Solidariedade”, ambos de oposi‑
ção, bem como a articulação de fusão de alguns partidos também de oposição
à coalizão governante.
Afirma a pretensão de esvaziamento, de modo arbitrário, inconstitucional e
casuístico, de iniciativas de instituição de novos partidos, sufocando-se movi‑
mentos políticos e a articulação e atração de pessoas e ideias.
Assinala o estabelecimento de diferenças materiais entre parlamentares eleitos
para uma mesma legislatura, permitindo que alguns, ditos de primeira classe,
possam se transferir a um novo partido político, recém-fundado, sem a perda dos
direitos derivados da representatividade adquirida nas urnas, enquanto outros,
os de segunda classe, não poderão migrar para um partido recém-fundado sem
sofrer as restrições que se busca impor.
Como corolário da objeção acima, destaca que haveria quebra do princípio
da igualdade entre partidos dentro da mesma legislatura, sendo criados, como
resultado da lei pretendida, agremiações recém-fundadas de primeira classe,
como o Partido Social Democrático, e outras de segunda classe, a surgirem depois
de promulgada a lei.

(...)
II – dois terços, proporcionalmente ao número de representantes na Câmara dos Deputados,
considerado, no caso de coligação, o resultado da soma do número de representantes de todos
os partidos que a integram.”

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Argui ofensa aos direitos fundamentais de liberdade de criação partidária e


ao princípio fundamental do pluralismo político (arts. 1º, V, e 17, cabeça e § 3º,
da Carta da República), tal como definidos na ADI 4.430, rel. min. Dias Toffoli,
julgada em 29 de junho de 2012 (acórdão pendente de publicação). Cita o prece‑
dente como principal base de apoio e aponta a apresentação do projeto legislativo
como uma reação ao que fora decidido pelo Supremo.

Fundamentos da liminar deferida


Em 24 de abril de 2013, o ministro Gilmar Mendes deferiu a liminar, determi‑
nando a suspensão da tramitação do projeto de lei até o julgamento de mérito
do mandado de segurança.
Sua Excelência mencionou precedentes do Supremo em que reconhecida a
possibilidade de controle de constitucionalidade prévio dos atos legislativos e
a legitimidade ativa dos parlamentares para provocar esse controle por meio
de mandado de segurança. Destacou que esse controle tem sido admitido em
situações excepcionais, quando “há flagrante desrespeito ao devido processo
legislativo e aos direitos fundamentais”. Nesses casos, consoante Sua Excelência,
a discricionariedade das medidas políticas não pode impedir o controle judicial.
Assentou que o Supremo deve examinar a regularidade do processo legislativo,
sempre tendo em vista eventual afronta à Constituição, sobretudo aos direitos
fundamentais. Advertiu que a feição deste caso requer maior rigor na apreciação
do cabimento da ação e cuidado redobrado para deferimento de medida limi‑
nar, haja vista o elevado potencial de tensão para a harmonia e independência
dos Poderes. Nesse sentido, ressaltou a conveniência da autocontenção judicial,
evitando que o Judiciário venha a definir as “pautas do Legislativo”, sob pena de
obstaculizar a devida realização do próprio projeto constitucional.
Não obstante essas premissas teóricas de cautela institucional, concluiu pela
pertinência da impetração, citando o MS 20.257/DF, Pleno, rel. p/ o ac. min.
Moreira Alves, julgado em 8-10-1980. Consignou “a peculiaridade de a tramitação
aparentemente ocorrer em sentido diametralmente oposto à diretriz traçada
recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.430”.
Fez ver que a “intenção do projeto é impedir que os parlamentares, ao criarem
novas legendas, levem consigo as suas respectivas ‘cotas de representatividade’,
ou seja, carreguem para o novo partido o que equivaleria às suas participações
em termos de valores do fundo partidário e de tempo de propaganda eleitoral
no horário gratuito de rádio e de televisão distribuído aos partidos”. Evocou as
decisões concernentes às ADI 1.351 e 1.354, de minha relatoria, nas quais assen‑
tada a inconstitucionalidade desse propósito legislativo.

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Disse do tratamento desigual de parlamentares e partidos políticos, em uma


mesma legislatura, promovido pela pretensa lei, de maneira a acarretar interfe‑
rência “ofensiva à lealdade da concorrência democrática, afigurando-se casuística
e direcionada a atores políticos específicos”.
Reiterou que o projeto de lei atacado afronta “diretamente a interpretação
constitucional veiculada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI
4.430, rel. min. Dias Toffoli, a qual resultou de gradual evolução da jurisprudên‑
cia da Corte”. Fundamentando a conclusão, citou o pronunciamento atinente à
ADI 2.797 – rel. min. Sepúlveda Pertence, acórdão publicado no Diário da Justiça
de 19-12-2006 – em que declarada a inconstitucionalidade da tentativa de o legis‑
lador superar interpretação constitucional fixada previamente pelo Tribunal.
Ressalvou ter ficado vencido na ocasião.
No âmbito do risco, apontou a “singular celeridade da tramitação” do projeto,
considerando ainda o impacto da proposição legislativa sobre as mobilizações
políticas voltadas à criação e fusão de novos partidos. Relembrou a importância
de as regras eleitorais serem claras e aplicadas de modo isonômico e uniforme
em relação ao próximo pleito.
Ressaltando a excepcionalidade do caso, a extrema velocidade de tramitação
do projeto em detrimento da adequada reflexão e ponderação que devem nor‑
tear a deliberação de projetos da espécie, o caráter casuístico da proposta em
prejuízo das minorias políticas e da própria democracia e o descompasso entre
a proposição legislativa e a decisão do Supremo na ADI 4.430, concluiu pela vio‑
lação a direito público subjetivo do impetrante de não se submeter a processo
legislativo inconstitucional, deferindo o pedido de liminar.

Das informações do presidente da Câmara dos Deputados


Em 30 de abril de 2013, o presidente da Câmara dos Deputados prestou infor‑
mações, sustentando, em síntese, a tramitação regular do projeto de lei questio‑
nado, observados os ditames constitucionais e regimentais.
Narrou que, em 16 de abril de 2013, foi aprovado pela maioria absoluta dos
membros da Casa, com 259 votos favoráveis, o Requerimento de Urgência 7.494,
de 2013, para tramitação do aludido projeto, o qual, em 23 seguinte, veio a ser
aprovado definitivamente em sessão deliberativa extraordinária, seguindo para
votação no Senado.
Enfatizou, alfim, veicular-se, na impetração, verdadeiro pedido de controle
judicial em abstrato de constitucionalidade, o que seria possível apenas se envol‑
vido o art. 60, § 4º, da Carta da República.

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Das informações do presidente do Senado Federal


Em 3 de maio de 2013, o presidente do Senado também prestou informações.
Aduziu a inadequação da via eleita, apontando-a como sucedânea de ação direta
de inconstitucionalidade. Destacou a intenção do impetrante de obter a decla‑
ração de inconstitucionalidade do projeto de lei em razão de possível incompa‑
tibilidade com a Constituição e a decisão alusiva à ADI 4.430.
Disse da necessidade de uma postura de autorrestrição judicial pelo Supremo
em favor da liberdade de conformação do Legislativo quanto à disciplina do
funcionamento dos partidos políticos.
Asseverou que o esvaziamento precoce da discussão do projeto de lei implica
a cassação do poder de deliberação do parlamento, o que coloca em risco a pró‑
pria estabilidade das instituições democráticas. Não caberia, portanto, o controle
de constitucionalidade preventivo. Alegou que a segurança pretendida inibiria
“meras intenções”, considerado o processo legislativo ainda em andamento.
No tocante à liminar implementada, afirmou que a suspensão do processo
le­­gislativo no estágio em que se encontra importou na impossibilidade de o
Se­­nado Federal exercer o papel de “Casa Revisora”, ignorando-se que poderia
efetivamente modificar o projeto de lei questionado.
Salientou a inviabilidade de extensão dos efeitos vinculantes do pronunciamento
do Supremo na ADI 4.430 em relação ao Poder Legislativo. Citou como precedente
o agravo regimental na Rcl 2.617/MG, rel. min. Cezar Peluso, julgado em 23-2-2005.
Quanto à questão de fundo, buscou demonstrar a constitucionalidade do
conteúdo do projeto de lei.
Pediu a extinção do processo sem resolução de mérito e, sucessivamente, o
indeferimento da ordem.

Do parecer do procurador-geral da União


Em 13 de maio de 2013, o procurador-geral da União opinou pela admissibili‑
dade da impetração e concessão da segurança.
Observou que a verificação da possibilidade de parlamentar obter do Supremo
ordem de sustação de processo legislativo em curso deve ocorrer no momento
de análise do mérito da impetração.
Salientou que a tramitação do projeto de lei, por si só, leva insegurança ao meio
político parlamentar, considerados os efeitos sobre as perspectivas de viabilidade
prática de novas agremiações e o avizinhamento das eleições nacionais e esta‑
duais. Esclareceu tratar a proposta legislativa da distribuição de tempo de expo‑
sição em rádio e televisão, assim como da repartição de recursos financeiros do
fundo partidário, em termos prejudiciais aos partidos que venham a ser criados.

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Sustentou estar o teor do projeto em descompasso com a óptica prevale‑


cente no julgamento da ADI 4.430, da relatoria do ministro Dias Toffoli, resul‑
tando, então, em ofensa aos mesmos princípios constitucionais resguardados
por aquele ato.
Disse da impossibilidade de lei ordinária superar a interpretação fixada pelo
Supremo, à luz da Carta Federal, relativamente a determinada questão, asse‑
verando que essa dinâmica teria como consequência sujeitar a inteligência do
Tribunal em matéria constitucional ao referendo do legislador.
Realçou que, ante a expressa vedação constitucional à deliberação sobre pro‑
posta de emenda contrária a cláusulas pétreas e a pacífica jurisprudência do
Tribunal com relação à legitimidade ativa do parlamentar para impetrar man‑
dado de segurança visando obstar o andamento do processo legislativo nessas
situações, tais precedentes sinalizariam que os mesmos agentes políticos podem
impugnar a tramitação de projetos de lei com idêntico vício, na linha do que
decidido no MS 24.667, da relatoria do ministro Carlos Velloso. Apontou ser esse
o caso versado neste processo, articulando com a ofensa ao princípio do plura‑
lismo político e ao sistema partidário dele decorrente. Alegou que conclusão
diversa resultaria em afronta à Carta da República.

Do agravo da Mesa do Senado Federal


Em 25 de abril de 2013, a Mesa do Senado Federal interpôs agravo contra a
decisão liminar. Repetiu quase todos os argumentos das informações do presi‑
dente do Senado.
Acrescentou que a “singular celeridade da tramitação” do projeto, mencionada
pelo relator como justificativa do implemento da medida acauteladora, é necessá‑
ria para definir, o mais breve possível, as regras eleitorais de regência alusivas ao
pleito de outubro de 2014, de modo a assegurar a adequação tempestiva de todos
às novas regras. Registrou o estranhamento diante da premissa, porque, segundo
afirmou, a citada celeridade, uma vez observadas as regras constitucionais e regi‑
mentais pertinentes, significa atuação eficiente e regular exercício do mister cons‑
titucional do parlamento. A decisão teria gerado estado de insegurança jurídica.

Do agravo da União
Em 15 de maio de 2013, a União interpôs agravo.
Arguiu a inadequação da via eleita, sustentando o uso da ação mandamental
como sucedânea de ação direta de inconstitucionalidade. Destacou a ausência
de direito líquido e certo do parlamentar porquanto inexistente violação do
devido processo legislativo.

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MS 32.033

Defendeu a constitucionalidade do conteúdo do projeto de lei, asseverando ser


voltado a evitar a prática do comércio de filiações partidárias em troca de mais
tempo relativo ao “direito de antena” e de mais recursos do fundo constitucio‑
nal partidário. O propósito legislativo seria o de valorizar os partidos políticos.
Ressaltou, como fez a Mesa do Senado, a inviabilidade de os efeitos vinculantes
da decisão do Supremo na ADI 4.430 alcançarem o Poder Legislativo.
Menciono os precedentes do Tribunal, ressaltando que, nas ADI 1.351/DF e
1.354/DF, das quais fui relator, o Tribunal examinou, após o devido processo
legislativo instrumental e substancial, preceitos da Lei 9.096/1995, presente, é
certo, a busca da preservação da salutar, para a democracia, minoria.
Esclareço que, apenas em uma das impetrações a seguir referidas, a preten‑
são esteve voltada contra projeto de lei, a de número 24.138, rel. min. Gilmar
Mendes. Consta, no extrato de ata do julgamento ocorrido em 28 de novembro
de 2002, terem estado ausentes eu próprio e os ministros Sepúlveda Pertence,
Celso de Mello e Nelson Jobim. Na oportunidade, não houve debate e decisão
quanto à admissibilidade do instrumental, sendo que a ordem foi indeferida,
nas palavras do relator, ante o risco de comprometimento do amplo modelo de
controle repressivo de constitucionalidade, que vigora entre nós, e do sistema
de divisão de poderes estabelecido na Constituição.
Cito os precedentes:
MS 20.257 – rel. p/ o ac. min. Moreira Alves – julgamento em 8-10-1980.
Contra proposta de emenda constitucional (prorrogação de mandatos eletivos).
Aduzida matéria vedada para deliberação (violação da Federação e da República).
Admitido e indeferida a ordem.

MS 20.452 – rel. min. Aldir Passarinho – julgado em 7-11-1984.


Contra proposta de emenda constitucional (Emenda Dante de Oliveira).
Arguido vício do processo legislativo – quórum constitucional de aprovação.
Admitido e indeferida a ordem.

MS 21.642 – rel. min. Celso de Mello (presidente) – julgado em 25-1-1993.


Negado seguimento pelo relator.

MS 21.754 – de minha relatoria – julgado em 7-10-1993.


Contra o Projeto de Resolução 3, de 1993, do Congresso Nacional voltado à rea‑
lização da Revisão Constitucional de que trata o art. 3º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias.
Afirmado vício do processo legislativo – não observância do quórum regimental
exigido para a leitura do projeto de resolução.
A maioria do Pleno julgou inadequado o mandado de segurança por entender

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  479


MS 32.033

configurada necessidade de interpretação do Regimento Interno, desautorizada a


via utilizada ante a natureza interna corporis da deliberação do Congresso.

MS 22.503 – de minha relatoria – julgado em 8-5-1996.


Contra proposta de emenda constitucional (Reforma da Previdência).
Afirmado vício do processo legislativo – identidade entre autor e relator, presença
de propostas rejeitadas e inéditas em emendas aglutinativas.
Liminar concedida pelo relator.
Mandado de segurança não admitido em relação à violação de normas regimen‑
tais, admitido quanto às normas constitucionais e indeferida a ordem.

MS 22.972 – rel. min. Néri da Silveira – julgado em 18-12-1997.


Contra proposta de emenda constitucional (institui o parlamentarismo pós‑
-plebiscito).
Sustentada matéria vedada para deliberação (violação de cláusula pétrea).
O relator admitiu a impetração e indeferiu a liminar. O colegiado não julgou a ação.

MS 21.311 – rel. min. Néri da Silveira – julgado em 13 de maio de 1999.


Contra proposta de emenda constitucional (institui pena de morte).
Aduzida matéria vedada para deliberação (violação de cláusula pétrea).
O relator julgou prejudicado por perda de objeto (a Comissão de Constituição e
Justiça e de Redação rejeitou a proposta, que foi arquivada).

O aludido MS 24.138 – rel. min. Gilmar Mendes – julgado em 28-11-2002.


Contra proposta de lei ordinária (alteração da CLT – art. 618).
Alega ofensa ao art. 60, § 4º, da Constituição (violação de cláusula pétrea – con‑
trole prévio de constitucionalidade).
O Pleno indeferiu a ordem.

MS 24.576 – rel. min. Ellen Gracie – julgado em 27-6-2003.


Contra proposta de emenda constitucional (Reforma da Previdência – tributa‑
ção dos inativos).
Articulado com matéria vedada para deliberação (violação de cláusula pétrea).
A relatora negou seguimento por falta de legitimidade ativa do impetrante: a
ação não foi proposta por parlamentar.

MS 24.593 – rel. min. Maurício Corrêa – julgado em 31-7-2003.


Contra proposta de emenda constitucional (Reforma da Previdência – tributa‑
ção dos inativos).
Aduzida matéria vedada para deliberação (violação de cláusula pétrea).
O relator negou seguimento por falta de legitimidade ativa do impetrante: a ação
não foi proposta por parlamentar.

MS 24.645 – rel. min. Celso de Mello – julgado em 21-11-2003.


Contra proposta de emenda constitucional (Reforma Tributária).

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MS 32.033

Apontada matéria vedada para deliberação (violação de cláusula pétrea).


O relator indeferiu a liminar e depois julgou prejudicada ação por perda de objeto
(o pedido restringia-se a suspender o processo na Câmara e este já se encontrava
no Senado).

MS 24.642 – rel. min. Carlos Velloso – julgado em 18-2-2004.


Contra proposta de emenda constitucional (limite máximo de remuneração de
servidores).
Afirmados vícios procedimentais – art. 60, § 2º, da Constituição (votação em
turno único).
O Pleno admitiu a impetração e indeferiu a ordem.

Não estamos a falar de lei, mas de projeto ainda em tramitação – tramitação


suspensa, na casa revisora, por liminar. Em síntese, foi afastado o curso do pro‑
cesso legislativo.
O caso é de inadequação do mandado de segurança.
A leitura da inicial, consideradas as premissas veiculadas e os fundamen‑
tos desenvolvidos, revela inequívoca pretensão do impetrante de obter o con‑
trole de constitucionalidade material prévio da lei a ser aprovada. O pedido de
suspensão da tramitação do projeto decorreu exclusivamente de discordância
quanto ao conteúdo deste, quanto à questão de fundo. Não foi apontado vício
procedimental, apenas material – violação aos arts. 1º, V, 17, cabeça e § 3º, da
Carta da República, tal como interpretados na ADI 4.430, rel. min. Dias Toffoli,
julgada em 29-6-2012, acórdão pendente de publicação. Na decisão que implicou
o deferimento da liminar, ficou consignado que a lei, se aprovada, será inconsti‑
tucional por supostamente resultar em afronta a esses preceitos constitucionais.
Evidencia-se, então, a busca do controle prévio de constitucionalidade.
Na petição inicial, o impetrante, em momento algum, argui vício na tramitação
do processo legislativo, o que poderia legitimar a impetração do mandado de
segurança, conforme a jurisprudência do Supremo. Ao contrário, a todo tempo,
sustenta que a irregularidade advém do conteúdo do projeto, das restrições pro‑
postas. Afirma direito subjetivo fundamental de não ser compelido a participar,
consoante assevera, como coautor e copartícipe de:
(...) projeto de lei que inaceitavelmente está sendo utilizado, de modo casuístico,
como subalterna forma de impedir, concretamente, que determinados movimentos
políticos, engajados em legítimo projeto de fundação de agremiação partidária e
facilmente identificáveis, possuam força (financeira e de mídia) no próximo pleito
de 2014, disputando-a em pé de igualdade com os demais partidos, tal como lhes
assegura a Constituição da República, nos termos do que assentado, poucos meses
atrás, por este Supremo Tribunal Federal.

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MS 32.033

O julgamento referido é o concernente à ADI 4.430.


A única justificativa apresentada para a inviabilidade da tramitação é não
poderem ser objeto de deliberação e de disposição pela maioria parlamentar
propostas passíveis de prejudicar “direitos fundamentais de determinados grupos
políticos minoritários (...), retirando-lhes, de forma anti-isonômica, prerrogativas
que, nos termos do já decidido por este Supremo Tribunal Federal, integram a
própria ideia de democracia constitucional, de pluralismo político e de liberdade
material de criação partidária”.
Não há, e é muito fácil ver, qualquer argumento de violação ao devido processo
legislativo a respaldar a admissibilidade do mandado de segurança. Conforme
destaquei, existem apenas premissas e fundamentos que poderiam ser lançados
contra a lei promulgada, por meio do controle de constitucionalidade repressivo.
A tentativa de uso do mandado de segurança como instrumento de controle abs‑
trato e prévio de constitucionalidade material é inequívoco, impondo a rejeição.
O impetrante procura contornar esse obstáculo dando enfoque impróprio à
jurisprudência do Supremo, em especial ao que decidido no MS 20.257/DF, rel.
p/ o ac. min. Moreira Alves, julgado em 8-10-1980. Ressalta que o Supremo não
fez diferenciação entre projetos de lei e propostas de emenda à Constituição para
viabilizar o controle prévio material. A alegação não procede. No voto vencedor,
o ministro Moreira Alves – a quem não me canso de render homenagem –, ainda
sob a égide da ordem constitucional anterior, fez ver:
Não admito mandado de segurança para impedir tramitação de projeto de lei ou
proposta de emenda constitucional com base na alegação de que seu conteúdo
entra em choque com algum princípio constitucional. E não admito porque, nesse
caso, a violação à Constituição só ocorrerá depois de o projeto se transformar em
lei ou de a proposta de emenda vir a ser aprovada. Antes disso, nem o presidente da
Casa do Congresso, ou deste, nem a Mesa, nem o Poder Legislativo estão praticando
qualquer inconstitucionalidade, mas estão, sim, exercitando seus poderes cons‑
titucionais referentes ao processamento da lei em geral. A inconstitucionalidade,
nesse caso, não será quanto ao processo da lei ou da emenda, mas, ao contrário,
será da própria lei ou da própria emenda, razão por que só poderá ser atacada
depois da existência de uma ou de outra.
Diversas, porém, são as hipóteses como a presente, em que a vedação constitucio‑
nal se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a sua apresen‑
tação (como é o caso previsto no parágrafo único do art. 574) ou a sua deliberação

4 Constituição de 1967, com a redação dada pela EC 1, de 1969:


“Art. 57. É da competência exclusiva do Presidente da República a iniciativa das leis que:
(...)

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MS 32.033

(como na espécie5). Aqui, a inconstitucionalidade diz respeito ao próprio andamento


do processo legislativo, e isso porque a Constituição não quer – em face da gravi‑
dade dessas deliberações, se consumadas – que sequer se chegue à deliberação,
proibindo-a taxativamente. A inconstitucionalidade, neste caso, já existe antes de
o projeto ou de a proposta se transformarem em lei ou em emenda constitucional,
porque o próprio processamento já desrespeita, frontalmente, a Constituição.

O voto do ministro Moreira Alves não deixa dúvida de que o Supremo não
admitiu, como ainda não admite, controle prévio de constitucionalidade de pro‑
jeto de lei por ofensa a princípios constitucionais. Sob a égide da Carta anterior,
era possível impetrar mandado de segurança para obstaculizar a deliberação
quando a Carta assim determinava, como fazia em relação às normas sobre o
processo legislativo. O que mudou com a Constituição de 1988? Foi ampliado
o rol de matérias que não podem ser objeto de deliberação por emenda cons‑
titucional, as chamadas cláusulas pétreas, versadas no art. 60, § 4º. Trata-se de
situação taxativa em que a Carta autoriza o controle de constitucionalidade
prévio. O constituinte originário expressamente excluiu da revisão ou reforma
constitucional certas matérias, atraindo a intervenção judicial no caso de des‑
cumprimento por parte do poder constituinte derivado.
Quanto aos processos legislativos ordinários, não há previsão constitucio‑
nal a permitir o controle de constitucionalidade do conteúdo dos projetos de
lei, ainda que sob o argumento de desrespeito a princípios constitucionais ou a
direitos fundamentais. Os projetos de lei apenas são impugnáveis, via mandado
de segurança impetrado por parlamentar, quando e se verificada a inobservância
a dispositivos regimentais, legais ou constitucionais que disciplinam o processo
legislativo. O sistema constitucional continua a ser de “todo avesso” a essa possibi‑
lidade, considerada “hipótese excepcionalíssima” até mesmo diante de emendas
constitucionais (MS 23.047/DF, rel. min. Sepúlveda Pertence, julgado em 11-2-1998).
Em duas oportunidades, implementei liminares para suspender a tramitação
de processos legislativos, mas nenhum dos casos envolveu projeto de lei e con‑
trole do conteúdo da proposta.

Parágrafo único. Não serão admitidas emendas que aumentem a despesa prevista:
a) nos projetos cuja iniciativa seja da exclusiva competência do Presidente da República; ou
b) nos projetos sobre organização dos serviços administrativos da Câmara dos Deputados,
do Senado Federal e dos Tribunais Federais.”
5 Constituição de 1967, com a redação dada pela EC 1, de 1969:
“Art. 47. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(...)
§ 1º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a Federação ou
a República.”

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MS 32.033

No MS 21.754/RJ, tendo por objeto ato da Mesa do Congresso Nacional, que


prosseguiu com sessão de leitura do Projeto de Resolução n. 3, de 1993, versando
sobre os trabalhos de revisão constitucional de que trata o art. 3º do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, os impetrantes alegaram ausência
do quórum regimental exigido para apreciação. Pleitearam fosse sustada a tra‑
mitação do mencionado projeto ante o vício procedimental. Deferi liminar por
entender não se cuidar, na espécie, de pedido de modificação de ato interna
corporis, mas do propósito de preservar o cumprimento do Regimento Interno
do Congresso Nacional. Consignei a competência do Supremo para verificar, em
determinado quadro, o atendimento às regras internas que regulam o processo
legislativo. Assentei que a deliberação no tocante à conveniência e à oportuni‑
dade, considerados os atos de qualquer das Casas Parlamentares ou decorrentes
da atuação conjunta, faz-se no estrito campo político, ficando excluída a atuação
judicante. Quanto ao cumprimento objetivo das regras do Regimento Interno, a
intangibilidade da ordem jurídica justifica a intervenção do Supremo. Na situ‑
ação concreta, foram demonstrados, a partir das notas taquigráficas da sessão
legislativa, a falta de quórum e o vício do processo. Em 7 de outubro de 1993, no
julgamento colegiado de agravo interposto, destaquei que a espécie não dizia
respeito a controle do “conteúdo de ato praticado sob o ângulo da conveniência e
da oportunidade”, o que eu não admitiria, mas a transgressão objetiva de norma
regimental. A sempre ilustre maioria julgou inadequado o mandado de segurança
por entender configurada a necessidade de interpretação do Regimento Interno
e desautorizada a via utilizada ante a natureza interna corporis da deliberação
do Congresso. O acórdão foi redigido pelo ministro Francisco Rezek.
No MS 22.503/DF, os impetrantes buscaram infirmar ato do presidente da Mesa
da Câmara dos Deputados relacionado à Proposta de Emenda à Constituição
33-A, de 1995, versando sobre o Sistema de Previdência Social. Apontaram vício
de procedimento consubstanciado na coincidência entre a autoria e a relatoria de
emenda aglutinativa – na ocasião, o relator, então deputado Michel Temer, assu‑
miu, em Plenário, ter sido um dos autores da proposta de emenda. Sustentaram
que a emenda aglutinativa incluía dispositivos já rejeitados e novas proposições.
Pediram fosse liminarmente suspensa a tramitação do processo legislativo em
face dos diferentes vícios formais. Ressaltei não se estar diante de discussão de
atos interna corporis, de procedimento circunscrito ao âmbito da conveniên‑
cia política, da discricionariedade parlamentar. Tratava-se, sim, de desprezo
ao processo legislativo, até mesmo no tocante ao regramento constitucional.
Fiz ver a ausência de envolvimento do “mérito do que contido em proposta de
emenda constitucional, a conveniência e oportunidade de estabelecer-se certo

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MS 32.033

regramento, mas sim a tramitação daquela”. Assentei a violação ao art. 60, § 5º,


da Carta e a normas do Regimento Interno do Congresso, configurada lesão ao
devido processo legislativo a autorizar o implemento da liminar. Submetida a
decisão ao Pleno do Supremo, a maioria concluiu pela inadequação do man‑
dado de segurança relativamente ao questionamento concernente às normas
regimentais, porque se mostraria indispensável a interpretação do Regimento
Interno, ato de natureza interna corporis do Congresso e imune à análise judiciá‑
ria. Admitiu a impetração quanto à suposta ofensa ao art. 60, § 5º, mas indeferiu
a ordem. O ministro Maurício Corrêa redigiu o acórdão.
Vale notar que, nos casos apreciados, não se fez em jogo controle prévio de
projeto de lei nem controle do conteúdo das propostas legislativas. Ambas as
impetrações tiveram por causa supostos vícios do processo legislativo conside‑
radas propostas de revisão ou modificação do texto constitucional. Não servem,
portanto, de precedentes para defesa de controle prévio de conteúdo de proje‑
tos de leis. Ao contrário, mesmo se restringindo os mandados de segurança a
impugnar apontados vícios de procedimento, a maioria julgou-os com cautela e
ampla deferência ao campo de deliberação parlamentar, inclusive não admitindo
a impetração acerca da aplicação das normas regimentais. Fiquei vencido por
vislumbrar transgressão às regras disciplinadoras do processo legislativo, mas
sempre consignando a visão contrária ao controle judicial prévio do conteúdo
dos atos praticados no âmbito da conveniência política.
Então, muito diferente do que defende o impetrante e do que consta do parecer
do procurador-geral da República, a jurisprudência do Supremo, em consonância
com o disposto no texto da Constituição, não sinaliza a viabilidade de os agentes
políticos impugnarem a tramitação de projetos de lei por violação a princípios
constitucionais e direitos fundamentais. No julgamento do MS 24.667, da relatoria
do ministro Carlos Velloso, citado no aludido parecer, o Tribunal restringiu o con‑
trole prévio de constitucionalidade das leis aos parâmetros normativos superiores
acerca do processo legislativo. É possível controlar este último se versar tema
que a Constituição exclui do campo passível de deliberação, mas não se admite
a formalização da ação mandamental para exame da validade do conteúdo de
projeto de lei que trate de matéria que a Carta da República permite seja apre‑
ciada pelo Congresso. No caso, a disciplina do funcionamento dos partidos, como
desenvolvimento político ordinário dos princípios constitucionais articulados, é
questão livre à análise parlamentar, afastado o controle prévio, ficando a legitimi‑
dade constitucional de eventual lei sujeita ao controle repressivo pelo Supremo.
Não impressiona a afirmação da Procuradoria “se não se pode o mais, não se
pode o menos”, na tentativa de explicitar a extensão da possibilidade do controle

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prévio de emenda, por afronta a cláusula pétrea, aos projetos de lei. A objeção
textual, no sentido da falta de previsão constitucional expressa, por si só, basta.
Há mais: uma razão de caráter ontológico. O processo de aprovação de emendas
corresponde ao momento de reforma do texto constitucional, de modificação
dos parâmetros de validade de toda ordem jurídica nacional. Em se tratando
dos riscos de alteração da Constituição, é necessário que o controle sobre essa
atividade seja reforçado considerados os aspectos fundantes da ordem constitu‑
cional e a defesa da identidade do pacto originário. No tocante aos projetos de lei,
os poderes políticos interpretam e aplicam a Constituição no tráfego cotidiano.
Isso não implica mudança do texto constitucional, apenas o desenvolvimento
legislativo do conteúdo normativo da Carta – o desenvolvimento político do pro‑
jeto constitucional. Nessa última situação, amolda-se perfeitamente o controle
repressivo exercido pelo Supremo, se provocado, permitida a plena deliberação
anterior do parlamento. Essa é a estrutura de um Estado que pretenda ser cons‑
titucional e democrático, linearmente.
Ante essas razões de política constitucional, o constituinte originário foi sábio
em restringir o controle de constitucionalidade material prévio aos processos de
reforma constitucional, dimensionando e delimitando o sistema de jurisdição
constitucional à luz do princípio de separação de Poderes. No caso concreto, em
razão da ausência de norma constante do Diploma Maior indicativa de expressa
proibição ao processamento do projeto de lei atacado e em virtude da amplíssima
abertura semântica e axiológica dos preceitos constitucionais ditos violados, é
estreme de dúvida que, se admitida a plena discussão sobre a constitucionalidade
do projeto no âmbito deste mandado de segurança, restará, na linha destacada
pelo ministro Gilmar Mendes, da relatoria do MS 24.138/DF, julgado em 28 de
novembro de 2002, “comprometido não só o modelo de controle repressivo amplo
existente entre nós, mas o próprio sistema de divisão de poderes estabelecido
na Constituição”. O uso dessa via, sempre extrema e, por isso, necessariamente
excepcional, não pode ser banalizado.
Além do mais, considerada a disciplina constitucional de todo abrangente acerca
dos direitos fundamentais e da organização da Federação, incluída a distribuição
de competências legislativas, é de se refletir o que revelaria, para o sistema político
nacional e a indispensável harmonia entre os Poderes, a possibilidade de interven‑
ção precoce do Supremo sobre a atuação do Congresso sempre que envolvidos esses
temas. Basta pensarmos no volume de ações diretas com pedido de declaração de
inconstitucionalidade de leis e de atos normativos por violação a direitos funda‑
mentais e a regras de organização do Estado federativo. Em prevalecendo a tese
autoral, esse número passará a representar os mandados de segurança impetrados

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contra projetos de lei que, presumidamente, violem essas cláusulas pétreas, de


modo a lançar o Supremo dentro do processo legislativo ordinário, tornando-o um
dos partícipes dessa deliberação, com autêntico poder de veto prévio.
Trata-se de absoluta inversão do sistema de controles recíprocos estruturado
pelo constituinte originário. Pensando essa amplitude da disciplina constitucio‑
nal primária acerca dos direitos fundamentais e da repartição, sob a óptica tanto
vertical como horizontal, das competências legislativas e administrativas, além
de outros temas envolvendo o § 4º do art. 60 da Carta da República, é de se afir‑
mar que o Supremo viria a desempenhar primordialmente o papel de censor do
processo legislativo ordinário e não das leis e atos normativos já produzidos pelos
poderes políticos. Não haveria limite para a interferência do Tribunal no tocante
aos trabalhos legislativos em desenvolvimento, podendo qualquer ministro, indi‑
vidualmente, mediante liminar, exercer veto sobre todo o Congresso Nacional
quanto ao que pode ou não deliberar. O processo democrático cotidiano de atu‑
ação parlamentar teria, em cada um de nós, um árbitro ao qual seria permitido
paralisá-lo, contra a vontade dos próprios titulares, em razão do conteúdo das
decisões legislativas ainda em andamento. Em síntese, a vingar a tese defendida
na impetração, mesmo que tenha o propósito de assegurar maior proteção às
cláusulas pétreas, acabará ferindo de morte aquela que visa garantir e dar eficácia
às demais e a toda ordem constitucional – a da separação de Poderes.
Os parâmetros objetivos do caso concreto não revelam a busca de proteção
do devido processo legislativo, mas a pretensão de impedir o debate parlamentar
legítimo, no Senado, sobre regras partidárias que, se aprovadas, aí sim, poderão
ser questionadas no Supremo, sob a alegação de afronta a princípios constitucio‑
nais, por meio da via judicial repressiva adequada, como prevê o texto da Carta.
Ao Supremo descabe obstaculizar a deliberação parlamentar – a mais demo‑
crática das práticas institucionais – relativamente a um tema porque discorda
do conteúdo de eventual lei aprovada. Nesse estágio do processo legislativo, o
Supremo não está autorizado, mediante mandado de segurança ou qualquer
outra medida, a julgar questão de fundo de projeto em tramitação.
Por esses motivos, concluo cuidar-se de pedido de controle prévio de consti‑
tucionalidade material de lei futura, e não de tutela de direito subjetivo público
do parlamentar. Então, assentando a impropriedade da via eleita, preconizo a
extinção do processo sem apreciação do mérito.
Admitindo a sempre ilustrada maioria o curso do mandado de segurança,
indefiro a ordem.
O impetrante articula com a ofensa aos direitos fundamentais de liberdade de
criação partidária e ao princípio fundamental do pluralismo político (arts. 1º, V,

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e 17, cabeça e § 3º, da Carta da República), tal como definidos na ADI 4.430, rel.
min. Dias Toffoli, julgada em 29-6-2012 (acórdão pendente de publicação). Esse
precedente do Supremo é fundamento relevante da impetração.
Na decisão liminar, o relator concluiu pela pertinência do mandado de segu‑
rança, destacando a peculiaridade de a tramitação aparentemente ocorrer em sen‑
tido diametralmente oposto ao decidido pelo Supremo no julgamento da aludida
ADI 4.430. Para implementar a medida acauteladora, apontou a inconstituciona‑
lidade do conteúdo do projeto porque afronta “diretamente a interpretação cons‑
titucional veiculada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4.430”.
Em síntese, lançou a premissa de não ser aceitável que sobrevenha lei em sentido
contrário à interpretação do Supremo sobre determinado preceito constitucional,
ou seja, lei que confira interpretação ao texto constitucional diversa da formalizada
pelo Tribunal. A pretensão legislativa justificaria suspender a tramitação do pro‑
jeto. Ocorreu referência a julgamento do Supremo – ADI 2.797, rel. min. Sepúlveda
Pertence, julgado em 15-9-2005 –, embora tenha ressalvado voto vencido.
O fundamento alcança, inegavelmente, a vinculação do Poder Legislativo
ao que decidido pelo Supremo em sede de controle abstrato e concentrado de
constitucionalidade.
Acontece que o aludido precedente não revela a óptica atual do Supremo
quanto ao tema. Em decisão posterior, na ADI 3.772/DF, rel. p/ o ac. min. Ricardo
Lewandowski, julgada em 29-10-2008, concluiu-se em sentido diametralmente
oposto ao que formulado na mencionada ADI 2.797, admitindo-se a possibili‑
dade de o legislador alterar a interpretação constitucional anterior. Também se
entendeu constitucional o exercício concreto.
Em diversas ocasiões6, o Supremo havia fixado a interpretação de que a expres‑
são “funções de magistério”, prevista no § 5º do art. 40 da Constituição Federal,
para efeito de cômputo de tempo de aposentadoria especial relativa à carreira
de professor, deveria ser compreendida estritamente como “funções de docência
exercidas em sala de aula”. O Tribunal chegou a editar o Verbete 726 da Súmula,
estampando que, “para efeito de aposentadoria especial de professores, não se
computa o tempo de serviço prestado fora de sala de aula”7. Assim, o profissio‑
nal “professor” não poderia contar, para a aposentadoria especial da carreira,

6 Entre outras, ADI 152/MG, rel. min. Ilmar Galvão, julgada em 18-3-1992, acórdão publicado no
DJ de 24-4-1992; ADI 122/DF, rel. min. Paulo Brossard, julgada em 18-3-1992, acórdão publicado
no DJ de 16-6-1992; e ADI 2.253/ES, rel min. Maurício Corrêa, julgado em 25-3-2004, acórdão
publicado no DJ de 7-5-2004.
7 Verbete 726 da Súmula do Supremo, sessão plenária de 26-11-2003, DJ de 11-12-2003.

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o tempo de atividade de caráter administrativo na área de educação, como a


atividade de diretor de escola ou de coordenador escolar, sendo válido apenas
o tempo de ensino propriamente dito – em sala de aula.
Essa orientação foi posteriormente desafiada pela Lei federal 11.301, de 2006,
segundo a qual “funções de magistério”, para efeito de concessão de aposenta‑
doria especial aos professores, deveriam ser compreendidas como as “exerci‑
das por professores e especialistas em educação no desempenho de atividades
educativas”, incluídas, “além do exercício da docência, as de direção de unidade
escolar e as de coordenação e assessoramento pedagógico”. Ao expandir o sen‑
tido da expressão constitucional “funções de magistério” para alcançar “serviços
educacionais prestados fora de sala de aula” – direção, coordenação e assessora‑
mento pedagógico –, o legislador ordinário, a toda evidência, procurou reverter
a interpretação constitucional anteriormente consolidada pelo Supremo.
A lei foi impugnada por meio da citada ADI 3.772. O autor – procurador-geral
da República – sustentou que a norma implicou inobservância aos precedentes
do Supremo, inclusive ao Verbete 726. O Supremo recusou os argumentos e reco‑
nheceu a superação, mediante lei ordinária, da interpretação anterior do art. 40,
§ 5º, da Carta Federal, modificando, ele mesmo, a orientação antecedente quanto
ao tema. Entrou no debate sobre os significados constitucionais com o legislador
ordinário e permitiu que a Constituição fosse desenvolvida e concretizada também
na arena parlamentar, exatamente como deve ocorrer em uma democracia real.
Essa postura do Supremo foi defendida veementemente pelo ministro Gilmar
Mendes na mencionada ADI 2.797, o que creio mostrar-se a direção correta a ser
tomada neste caso, haja vista o precedente da ADI 3.772. Em que pese a maior
importância dos princípios constitucionais em jogo neste mandado de segurança,
comparados à questão de fundo da citada ADI 3.772, ainda assim não há motivo para
mudança de orientação no tocante ao enfoque interpretativo nesses casos. A apli‑
cação do art. 102, § 2º, da Constituição, quanto ao alcance subjetivo da eficácia das
decisões do Supremo, deve ocorrer de modo linear, não podendo ser diferenciada
conforme a matéria julgada – a depender do envolvimento de princípios constitu‑
cionais e de direitos fundamentais, estendendo-se os efeitos ao Legislativo em certos
casos. A Carta da República não prevê tal eficácia, muito menos a discriminação.
No julgamento da ADI 2.797/DF, o ministro Gilmar Mendes fez uma defesa
forte no sentido de descaber encarar a interpretação constitucional como uma
tarefa exclusiva do Supremo. Estava em jogo ato do legislador ordinário, por meio
da Lei 10.628/2002, a desafiar a interpretação anterior do Supremo sobre o tema da
“extensão do foro especial por prerrogativa de função para depois do exercício
da função pública”. Em um primeiro momento, o Tribunal entendeu que o foro

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especial por prerrogativa de função seria próprio em relação aos atos praticados
durante o exercício da função pública, inclusive se o acusado tiver deixado o cargo
público antes do início do inquérito ou da ação penal. Essa óptica constava do
Verbete 3848. Em um segundo momento, julgando o Inq 6879, concluiu que essa
solução era incompatível com a interpretação mais límpida que o princípio da
isonomia impunha e, desse modo, por unanimidade, cancelou o referido verbete
e passou a recusar o foro privilegiado para ex-exercentes de funções públicas.
Em um terceiro momento, o legislador federal tentou reverter a situação cons‑
tituída pela nova decisão do Supremo e, com isso, restaurar o estágio do Verbete
384. A Lei 10.628, de 2002, introduziu o § 1º ao art. 84 do Código de Processo Penal,
estabelecendo expressamente que “a competência especial por prerrogativa de
função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece, ainda que o inquérito
ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública”.
A maioria julgou a lei inconstitucional por vício formal. O ministro Pertence,
relator, qualificou a postura do legislador como “desconcerto institucional” e
defendeu a inconstitucionalidade formal da lei. Afirmou que, além de fundamen‑
tos puramente dogmáticos, “razões de alta política institucional” são impostas
ao Tribunal para “repelir a usurpação pelo legislador de sua missão de intérprete
final da Lei Fundamental”. Exercício legislativo dessa espécie, argumentou, deve
ser encarado como pretensão de inverter a leitura do Diploma Maior feita pelo
órgão da jurisdição constitucional, uma usurpação do papel institucional da
Corte de “guarda da Constituição”.
Na ocasião, votei pela inconstitucionalidade formal, mas não por entender
defeso ao legislador superar decisões do Supremo, editando leis que alterem a
interpretação anterior do Tribunal. Concluí que as competências originária e
recursal do Supremo são previstas de forma exaustiva na Constituição, de modo
a impossibilitar, diante da rigidez da Carta, o elastecimento ou o encurtamento –
por isso disse do vício formal – desse rol mediante lei. Assim, não havia como
assentar a viabilidade de o legislador inovar o campo de atuação do Supremo,
como ocorria com a norma então impugnada. Consignei não se tratar de mera
interpretação da Lei Fundamental.
O ministro Gilmar Mendes, acompanhado pelo ministro Eros Grau, discor‑
dou da conclusão pela inconstitucionalidade formal da lei e da fundamentação

8 Verbete 384 (editado sob a égide da Constituição Federal de 1946): “Cometido o crime durante
o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que
o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.”
9 Plenário, Inq 687 QO, rel. min. Sydney Sanches, julgamento em 25-8-1999, DJ de 9-11-2001.

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desenvolvida pelo ministro Sepúlveda Pertence para defender que o legislador


ordinário não pode ter a capacidade de interpretação da Constituição excluída
pelas decisões do Supremo. Forte na premissa de que o efeito vinculante das
declarações de inconstitucionalidade não abrange o legislador, tal como argu‑
mentado nas informações do presidente do Senado, Sua Excelência consignou
que o exercício da liberdade de conformação legislativa não pode, em qualquer
hipótese, ser considerado uma “ofensa”, um “desaforo”, um “ato injurioso” em face
do Supremo. Reafirmou o papel próprio do Legislativo em interpretar a Constitui‑
ção, do qual decorre a possibilidade de, “eventualmente, superar o entendimento
anterior ou provocar um novo pronunciamento da Corte via nova proposta”.
O ministro Gilmar Mendes fez ver que o Supremo deve estar aberto às novas
interpretações da Constituição promovidas pelo legislador:
Não é possível presumir, portanto, a inconstitucionalidade dos dispositivos ata‑
cados simplesmente porque eles contrariam a “última palavra” conferida pelo
Supremo Tribunal Federal sobre o tema. O que pretendo ressaltar, pelo contrá‑
rio, é o fato de que, se o legislador federal (re)incide, cria ou regula essa matéria
constitucional de modo inteiramente diverso, o “diálogo”, o debate institucional
deve continuar.

Estou de acordo com essas passagens do voto do ministro Gilmar Mendes


e acredito que são pertinentes neste caso, servindo a afastar a visão de que o
legislador está vinculado aos efeitos do decidido pelo Supremo na ADI 4.430 e
viabilizando, assim, a tramitação do projeto de lei questionado, embora possa
ter em tese conteúdo “desafiador” de interpretação anterior do Supremo. A pre‑
missa da possibilidade de suspensão da tramitação não é condizente com o que
o Tribunal assentou na ADI 3.772, inexistindo motivo suficiente, então, para
mudança tão radical.
É exigência da democracia e das prerrogativas do Legislativo a possibilidade
do debate em torno da interpretação da Constituição, sendo-lhe vedado apenas
deliberar sobre aquelas matérias que a própria Carta exclui taxativamente e
no âmbito dos processos de reforma constitucional (art. 60, § 4º). Sabedor da
relevância dos momentos de alteração do texto constitucional, o constituinte
originário impôs restrições severas ao processo legislativo, inclusive abrindo
margem ao controle de constitucionalidade prévio de conteúdo. Fora as situa‑
ções taxativas de proibição textual de deliberar, específicas quanto aos processos
de reforma e revisão da Constituição, o conteúdo dos projetos legislativos não
deve sofrer censura judicial prévia, em respeito à independência dos Poderes e
ao devido processo político-legislativo.

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Ressalto que não há que se falar, na espécie, de violação a quaisquer normas


constitucionais, legais ou regimentais do processo legislativo a ensejar a inter‑
venção do Supremo, considerada a apontada celeridade da tramitação do projeto.
Como bem destacado pelo presidente da Câmara nas informações e reconhe‑
cido pelo próprio impetrante na inicial, o regime de urgência da tramitação foi
requerido e aprovado por maioria absoluta em 16 de abril de 2013, nos termos
regimentais. Assim, a celeridade da tramitação em nada afronta o devido pro‑
cesso legislativo, nem mesmo o substantivo, concernente ao grau de reflexão
deliberativa, insuscetível de ser avaliado nesta sede. Descabe ao Supremo, em
situações como a presente e em um sistema político democrático e de Pode‑
res separados, buscar definir a pauta e a velocidade das deliberações do Poder
Legislativo. No mais, abre-se um leque de opções político-normativas que se
circunscrevem à atuação dos representantes do povo brasileiro – deputados
federais – e dos Estados – senadores da República.
Por último, ontem, no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil,
após aludir à sabatina de Luís Roberto Barroso na caminhada para ocupar uma
cadeira neste Tribunal, considerada a aposentadoria do ministro Carlos Ayres
Britto, com a mestria de sempre e sob o título “Ativismo Judicial e seus Limites”,
Afonso da Silva – José, o pai, o varão – ressaltou que, na Comissão de Constitui‑
ção, Justiça e Cidadania do Senado Federal, o tema foi a tônica predominante
em todas as arguições.
No tópico “Abuso no exercício da função jurisdicional”, com inexcedível orgu‑
lho no que pôde citar outro Afonso da Silva – Virgílio, o filho –, referiu-se à forma
de interpretação que Umberto Eco chama de “superinterpretação”, veiculando:
É nessa forma de interpretação ilegítima ou de ativismo judicial distorcido que
se encaixam algumas das interferências judiciais no processo legislativo. Grave
nesse sentido são as interferências na tramitação de matéria legislativa por deci‑
são monocrática por via de concessão de medida cautelar, como se deu no caso
da distribuição do percentual do produto de petróleo (decisão do Min. Luiz Fux),
o bloqueio pelo Min. Gilmar Mendes da tramitação do projeto de lei em debate no
Senado sobre as regras de acesso dos partidos políticos à TV e ao fundo partidário
e a decisão inusitada do Min. Dias Toffoli exigindo explicação da Câmara dos Depu‑
tados acerca do que estava sendo discutido na CCJ, como se a Câmara devesse dar
alguma satisfação ao magistrado ou mesmo ao Poder Judiciário a esse respeito.
As observações de Virgílio Afonso da Silva sobre a decisão do Min. Gilmar Mendes
serve para os outros casos.

E arrematou, com a sabedoria do estudioso, do experiente jurista:

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Vamos concluir, voltando ao já novo Ministro, Luís Roberto Barroso, que nos ofe‑
rece uma síntese expressiva dos fundamentos e limites do ativismo judicial em
seu Curso de Direito Constitucional Contemporâneo:
“A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e
intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com
maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ati‑
vista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação
direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto
e independentemente de manifestação do legislador; (ii) a declaração de inconsti‑
tucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios
menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a impo‑
sição de condutas ou de abstenções ao poder público, notadamente em matéria
de políticas públicas. Sobre esse último caso, podemos lembrar a interferência no
campo da saúde, fornecimento de medicamentos, internação etc. Enfrenta ele a
questão sempre suscitada, em favor da autocontenção judicial, qual seja a de que
os membros do Poder Legislativo e o chefe do Poder Executivo são agentes públi‑
cos eleitos, investidos em seus cargos pela vontade popular, enquanto a atividade
criadora do Judiciário e, sobretudo, sua competência para invadir atos dos outros
Poderes devem ser confrontadas como argumento da falta de justo título, e, então,
mostra que esse justo título, o fundamento de uma jurisprudência criadora, está
no fato de que a Constituição desempenha dois grandes papéis: a) assegurar o jogo
democrático, propiciando a participação política ampla e o governo da maioria;
b) mas, como a democracia não se resume ao princípio majoritário, o outro papel
da Constituição consiste em proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que
contra a vontade circunstancial de quem tem mais voto.”

Então, por tudo e para prevalência da independência e harmonia entre os


Poderes, para o fortalecimento da Democracia com o “d” maiúsculo, que o Su­­
premo, na postura de Supremo, de guarda maior da amada Constituição Fe­­deral,
reserve-se para atuar, se for o caso, no controle repressivo de constitucionali‑
dade, encerrado o devido processo legislativo, que tem como atores não juízes,
mas os representantes do povo brasileiro – os deputados federais – e os dos
Estados – os senadores da República – e a chefe do Executivo Nacional – a pre‑
sidenta Dilma Rousseff.
Inadmito o mandado de segurança e, vencido na preliminar, indefiro a ordem.

EXPLICAÇÃO
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Marco Aurélio: Senhor Ministro Celso de Mello (inserido ante
o cancelamento do aparte por Sua Excelência), no tocante ao MS 21.642, anoto

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que o sistema não possibilitou o acesso às peças e, por isso, deixei de lançar
o resumo. Mas, presente o autor do ato que colocou fim ao processo, tivemos o
esclarecimento dos parâmetros da impetração. Apenas para não parecer que omiti
alguma informação, reafirmo: o sistema nem sempre é ágil e apropriado como
se imagina. Por isso, sou fã incondicional do processo físico e não do eletrônico.
(Segue leitura do voto)

EXPLICAÇÃO
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Vossa Excelência me permite só um
aparte? Vossa Excelência está fazendo uma leitura personalíssima do § 2º. O que
diz o texto?
§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas
ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão
eficácia contra todos [essa é a coisa julgada erga omnes de que falei] e efeito vinculante
[aí, sim,] relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo.

O Legislativo não se exclui da eficácia erga omnes, até por razões óbvias.
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, a interpretação é um ato de vontade.
E evidentemente é implementado segundo a formação técnica e humanística de
cada qual. Dou ao vocábulo “todos” direcionamento próprio, porque, quando...
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não é o que diz o texto constitucional.
O sr. ministro Marco Aurélio: ...quando o constituinte originário quis se
referir a Poder, fê-lo no preceito, aludindo tão somente ao Poder Judiciário.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Nem é constituinte originário; é fruto
de emenda constitucional.
O sr. ministro Marco Aurélio: Não digo que o Poder Legislativo está apa‑
nhado pelo vocábulo “todos”. Sinto-o muito mais dirigido aos cidadãos em geral,
pessoas naturais, pessoas jurídicas de direito público e privado, mas não diri‑
gido, porque seria muito fácil aludir-se ao Poder Legislativo, a um Poder, além
daquele referido expressamente, o Judiciário. E o Legislativo merece tratamento
de envergadura maior, não sendo colocado evidentemente na vala comum reve‑
lada pelo vocábulo “todos”.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): É uma questão técnica. Não se trata
de colocar na vala comum. É a leitura que se faz no mundo todo. Eficácia erga
omnes é coisa julgada com eficácia erga omnes.
O sr. ministro Marco Aurélio: A beleza do Colegiado, Presidente, está justa‑
mente na divergência. Hoje mesmo, numa entrevista, para a memória do Tribunal

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Superior Eleitoral, repeti o que já foi dito por um integrante desta Casa: se pudesse
dar peso a pronunciamento formalizado a uma só voz e formalizado por maioria
de voto, daria o maior a este último, porque a estampar a certeza de que ópticas
diversificadas foram debatidas, foram exploradas pelos integrantes do Colegiado.
Mas continuo, Presidente. No julgamento da ADI 2.797/DF, o ministro Gilmar
Mendes fez uma defesa forte no sentido de a interpretação constitucional não
poder ser encarada como uma tarefa exclusiva do Supremo.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Ministro, se Vossa Excelência está
querendo apontar contradições, isso está no meu voto aqui. Eu me abstive de
ler por conta do tempo. Não há nenhuma contradição. Debati largamente. E, se
há alguém que porta com honestidade intelectual nessa matéria, sou eu. Nun­ca
escondo precedentes. Não tenho nenhum caso de esconder precedentes no Tribu‑
nal. Nunca falsifiquei ata ou alterei qualquer documento que eu tenha subscrito.
Eu digo sempre o que eu faço. Isso está no meu voto que está publicado. Dita
exatamente essa posição. O Tribunal entendeu que havia inconstitucionalidade
formal com a ressalva do meu ponto de vista.
Agora, neste caso específico, para o que estou chamando atenção? Estou cha‑
mando atenção para o fato de que o Tribunal adotou uma interpretação con‑
forme, que vincula, sim, pela coisa julgada ao legislador. Não há contradição. Isso
está no meu voto. Eu transcrevo. Isso é de conhecimento público. Debati com
o ministro Sepúlveda Pertence toda a questão, dizendo que é legítimo, sim, ao
parlamento apresentar novas interpretações.
O sr. ministro Marco Aurélio: Retomo, Presidente, o voto.
No julgamento da ADI 2.797/DF, o ministro Gilmar Mendes fez uma defesa forte...
(Segue leitura do voto)

EXTRATO DA ATA
MS 32.033/DF — Relator: Ministro Gilmar Mendes. Impetrante: Rodrigo Sobral
Rollemberg (Advogada: Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro). Impetrados: Presi‑
dente da Câmara dos Deputados (Advogado: Advogado-geral da União) e presi‑
dente do Senado Federal (Advogados: Alberto Cascais e outros). Interessados: Par‑
tido Socialista dos Trabalhadores Unificado – PSTU (Advogados: Bruno Colares
Soares Figueiredo Alves e outros), Rede Sustentabilidade (Advogado: Rogerio Paz
Lima), Partido Político Solidariedade (Advogado: Marcilio Duarte Lima), Pedro
Taques (Advogados: Marco Aurélio Marrafon e outros), Carlos Henrique Focesi
Sampaio (Advogada: Alessia Barroso Lima Brito Campos Chevitarese) e Partido
Popular Socialista – PPS (Advogados: Fabrício de Alencastro Gaertner e outros).

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Decisão: Prosseguindo no julgamento, após os votos dos ministros Teori Zavas‑


cki, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, denegando
a segurança e cassando a liminar concedida, e o voto do ministro Dias Toffoli,
acompanhando o relator, o julgamento foi suspenso. Ausente, justificadamente, a
ministra Cármen Lúcia, representando a Corte na 95º Sessão Plénaria da Comis‑
são de Veneza e da Reunião da Comissão para Democracia Eleitoral, e em visita
à Corte Constitucional da República da Itália, em Roma. Presidência do ministro
Joaquim Barbosa.
Presidência do ministro Joaquim Barbosa. Presentes à sessão os ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias
Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavascki. Procurador-geral da República,
doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 13 de junho de 2013 — Luiz Tomimatsu, assessor-chefe do Plenário.

VOTO
A sra. ministra Cármen Lúcia:

O caso
1. Mandado de segurança preventivo impetrado pelo senador Rodrigo Rol‑
lemberg (PSB/DF) contra a tramitação do Projeto de Lei 4.470/2012 (Câmara
dos Deputados), atual Projeto de Lei 14/2013 (Senado Federal), cujo objeto é a
alteração das Leis 9.096/1995 e 9.504/1997.
Esse projeto dispõe que “a migração partidária que ocorrer durante a legisla‑
tura, não importará a transferência de recursos do fundo partidário e do horário
de propaganda eleitoral no rádio e na televisão”.
O impetrante alega que a proposição, cuja tramitação pretende seja obstada,
teria:
a) constituído abuso de poder legislativo por ser resultado de atuação “casuis‑
ticamente forjada, pela maioria, para especificamente restringir direitos funda‑
mentais de grupos políticos minoritários”;
b) esvaziado iniciativas de lideranças políticas e grupos sociais para criação
de novos partidos, o que representaria “esmagamento e sufocamento de novos
movimentos políticos”;
c) criado “diferenças materiais entre parlamentares federais eleitos para uma
mesma legislatura, pois a uns seria garantido o exercício legítimo de se transferir
a um novo partido político recém-fundado, enquanto para outros parlamentares
(de segunda categoria), não haveria essa possibilidade, pois o direito de legítima

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escolha em relação à vinculação partidária com uma nova agremiação somente


poderia ser exercido em condições de severas restrições e em detrimento da
representatividade conquistada pelo voto”;
d) importado em desigualdade entre partidos, pois haveria aqueles de primeira
classe com mais facilidade de “sobreviverem à fase inicial da vida partidária e de
florescerem no corpo político“, diferentes de outros;
e) contrariado o direito fundamental de liberdade de criação e transforma‑
ção partidária e o princípio fundamental do pluralismo político, definido pelo
Supremo Tribunal na ADI 4.430/DF.
Os argumentos seriam, no dizer do impetrante, plausíveis o suficiente a justifi‑
car a concessão da segurança, pois evidenciariam “o direito líquido e certo do autor
da presente ação mandamental de, enquanto integrante do Congresso Nacional,
não participar da produção de atos normativos casuisticamente concebidos para
aniquilar direitos fundamentais de grupos políticos minoritários e que visivelmente
conspurcam, desde sua tramitação, os mandamentos centrais derivados do texto
da Carta Política” (grifos no original).
2. Distribuído por prevenção ao MS 32.018 (no qual o relator apenas pediu infor‑
mações e não apreciou a liminar), em 24-4-2013, o ministro Gilmar Mendes deferiu
a liminar para suspender a tramitação do Projeto de Lei Complementar 14/2013,
até o julgamento do mérito do mandado de segurança ao fundamento de que:
a) “ao se permitir a migração de parlamentares para novos partidos criados, sem
que com isso ocorra a transferência proporcional dos recursos do fundo partidá‑
rio e do horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão, haveria, de fato,
uma verdadeira barreira ou desestímulo à criação de novas agremiações políticas,
em evidente frustração da norma constitucional (art. 17, caput e § 3º, CF/1988)”; e
b) “a aprovação do projeto de lei em exame significará, assim, o tratamento
desigual de parlamentares e partidos políticos em uma mesma legislatura; essa
interferência seria ofensiva à lealdade da concorrência democrática, afigurando‑
-se casuística e direcionada a atores políticos específicos; o perigo na demora
revela-se na singular celeridade da tramitação do PL em questão, principalmente
considerando o impacto da proposição legislativa nas mobilizações políticas
voltadas à criação e fusão de novos partidos; é necessário que as regras de regên‑
cia do próximo pleito sejam claras e aplicadas de modo isonômico e uniforme
a todos os envolvidos”.
3. Em suas informações, o Senado Federal argumentou:
a) não ser o mandado de segurança meio processual adequado para o exercí‑
cio do controle concentrado de constitucionalidade, não se devendo admitir a
presente ação como sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade;

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b) o exercício da jurisdição constitucional haveria de ser criterioso para não


desrespeitar atuações constitucionais dos demais Poderes, especialmente aquela
amparada por sufrágio popular, como é o caso do parlamento;
c) o PLC 14/2013 não se enquadra em caso de inconstitucionalidade para o
que o Supremo Tribunal admite o controle preventivo da constitucionalidade e,
ainda que assim fosse, o meio processual adequado para sua impugnação não
seria o mandado de segurança;
d) o PLC 14/2013 não ofende o art. 17, caput e § 3º, da Constituição, pois não
retira o acesso ao fundo partidário das novas agremiações. A suspensão liminar do
trâmite do projeto retira a possibilidade do pleno exercício da atuação do Senado
que poderia, a qualquer tempo, sanar eventuais inconstitucionalidades, além de
suprimir a possibilidade de discussão da organização partidária em nosso país;
e) as decisões proferidas em controle abstrato de constitucionalidade não vincu‑
lam o Poder Legislativo, segundo a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal;
f) a liminar teria sido concedida sem a presença dos requisitos que a autori‑
zam, pelo que seu deferimento geraria incerteza e insegurança jurídicas, retar‑
dando a definição de novas regras a vigorarem nas próximas eleições, deixando
pouco tempo aos candidatos a elas se adequarem.
Ao final, pediu a extinção do processo sem julgamento de mérito e, se supe‑
rado tal entendimento, a denegação da segurança.
4. A Câmara dos Deputados, em suas informações, esclareceu que:
a) a tramitação do projeto de lei, encerrado na Câmara dos Deputados, teria
observado os ditames constitucionais e regimentais;
b) em 16-4-2013 o Requerimento de Urgência 7.494/2013 foi aprovado por maio‑
ria absoluta (259 votos favoráveis), tendo sido aprovado definitivamente na sessão
deliberativa extraordinária de 23-4-2013 e enviado para o Senado;
c) não seria possível o controle judicial abstrato de constitucionalidade do
projeto, salvo por afronta ao art. 60, § 4º, da Constituição da República, o que
não se dá no caso vertente.
5. A União e o Senado Federal interpuseram agravos regimentais, nos quais
pediram, em síntese, a revogação da medida liminar e, no mérito, a denegação
da segurança.
6. Foram admitidos na condição de amici curiae o Partido Socialista dos Tra‑
balhadores Unificado, o Partido Político Solidariedade, a Rede de Sustentabili‑
dade, o Partido Popular Socialista, o senador Pedro Taques e o deputado federal
Carlos Henrique Focesi Sampaio.
7. Em seu parecer, o procurador-geral da República opinou pela admissibi‑
lidade da impetração e pela concessão da segurança, conclusão ratificada em

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11-6-2013, após sustentação oral em sentido diverso pela então vice-procuradora‑


-geral da República.
De se realçar que, de maneira inusitada, a então vice-procuradora opôs-se ao
que afirmado no parecer apresentado, em que pese a Constituição da República
estabeleça a unidade e a indivisibilidade do Ministério Público (§ 1º do art. 127
da Constituição da República).
8. Iniciado o julgamento na sessão de 5-6-2013, preliminarmente, o Tribunal,
por maioria, negou provimento ao agravo interposto pela União que impug‑
nava a admissão dos amici curiae, vencidos os ministros Teori Zavascki, Ricardo
Lewandowski e Marco Aurélio.
Na sessão de 12-6-2013, o ministro Gilmar Mendes apresentou voto, con‑
cluindo pela parcial concessão da segurança “para reconhecer a ilegitimidade do
PLC 14/2013, nos termos em que aprovado pela Câmara dos Deputados, por ofensa
às cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988”, assentando em síntese:
a) a possibilidade de controle preventivo de constitucionalidade de projetos
de lei, que “justifica-se em razão da gravidade da lesão que se pode perpetrar
na ordem jurídica. Observe-se, ademais, que a lesão às cláusulas pétreas pode
ser efetuada não apenas por propostas de emenda constitucional, mas também
mediante a utilização de projetos de lei. (...) Isso porque os limites materiais ao
poder constituinte derivado são logicamente aplicáveis ao Poder Legislativo,
sob pena de se autorizar o legislador ordinário a alterar a Constituição naquilo
que ela mesma vedou”;
b) “ante a redação que o constituinte originário conferiu ao art. 60, § 4º, as
vedações materiais ao poder de reforma incidem, também, no momento do pro‑
cedimento legislativo, de modo que se convolam em espécies de limites, a um
só tempo, materiais e procedimentais. Ao dispor, portanto, que não será objeto
sequer de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir cláusulas pétreas,
a Constituição, evidentemente, não coloca apenas limites procedimentais ou
formais ao processo legislativo, mas a ele impõe, de modo explícito, limitações
de ordem material. Isso quer dizer que o parlamentar, para impetrar mandado
de segurança com vistas ao trancamento da tramitação de proposição legisla‑
tiva, deve fazer juízo sobre o objeto da proposta. O impetrante precisa analisar,
na prática, se a PEC ou o PL veiculam matéria cuja tramitação é vedada pelo
art. 60, § 4º, da CF”;
c) “(...) dizer que essa jurisprudência da Corte apenas se aplica às PECs, e não
aos PLs, não revela apenas desconhecimento, mas também uma interpretação
incongruente e desarrazoada. Evidentemente, é mais fácil fraudar o núcleo essen‑
cial da Constituição, condensado nas cláusulas pétreas, mediante a aprovação

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de projetos de lei, do que por meio de emendas constitucionais, cujo processo


de aprovação é mais dificultoso”;
d) “O Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência sólida e já antiga sobre
a qualificação dos direitos políticos fundamentais como cláusulas pétreas. Isso
porque são os direitos políticos os viabilizadores do direito de participação polí‑
tica inerente ao regime democrático (...) visto que os direitos políticos, que têm
por principal corolário a participação política por meio da institucionalidade
partidária, são considerados cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988,
conforme esta Corte asseverou, à unanimidade, no julgamento da ADI 3.685, rel.
min. Ellen Gracie, Plenário, DJ de 10-8-2006”;
e) “Ao criar um verdadeiro estatuto, o qual dispõe que as cotas do fundo par‑
tidário, bem como os tempos de rádio e TV proporcionais terão como marco
para a definição de sua distribuição o resultado das últimas eleições (2010) para
a Câmara dos Deputados, o projeto tem o condão de: (i) desmobilizar as forças
políticas que se reúnem para a formação de novos partidos (viola a isonomia e
a igualdade de chances); (ii) afigurar-se ofensivo à segurança jurídica, ao que‑
brar a confiança legítima dos parlamentares que fundaram anteriormente, mas
nesta mesma legislatura, novas legendas; (iii) e, além disso, afronta diretamente
a decisão desta Corte na ADI 4.430, na qual se deu interpretação conforme ao
§ 3º do art. 47 da Lei 9.504/1997, para se fixar que ele não se aplicaria aos novos
partidos, criados após as últimas eleições (2010)”.
9. O ministro Teori Zavascki abriu divergência, tendo sido acompanhado pela
ministra Rosa Weber e pelos ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Marco
Aurélio, para os quais, em síntese:
a) não é possível exercer o controle prévio de constitucionalidade de projeto
de lei pelo Poder Judiciário;
b) não se aplicam as restrições do § 4º do art. 60 da Constituição do Brasil de
1988 a projetos de lei.
10. O ministro Dias Toffoli acompanhou o voto do relator.
Lanço esses dados do julgamento iniciado para rememorar o caso.
11. De logo peço vênia ao ministro Gilmar Mendes, relator, cujos alentados
argumentos são compreensíveis e vários, mas dele divirjo, acompanhando o
entendimento dos colegas que concluíram pela denegação da ordem, se supe‑
rados os óbices ao conhecimento da ação.

Cabimento do mandado de segurança


12. O mandado de segurança é ação constitucional colocada à disposição do
jurisdicionado para salvaguardar direito próprio, dotado de liquidez e certeza

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e que tenha sido lesado ou esteja ameaçado de sê-lo por ato ilegal e abusivo de
autoridade pública ou de agente no exercício de atribuição do poder público.
A legitimidade ativa para a impetração do mandado de segurança é de quem,
acreditando-se titular de direito líquido e certo, pede esta especial e importante
proteção constitucional.
13. Na espécie, membro do Poder Legislativo pretende obstar a tramitação
de projeto de lei a versar sobre tema que alega atingir direitos fundamentais de
minorias partidárias e destoaria do entendimento afirmado por este Supremo
Tribunal no julgamento da ADI 4.430/DF.
O que se busca, na presente ação, é o controle preventivo da constitucionali‑
dade material do Projeto de Lei 14/2013.
14. A questão a ser inicialmente solvida respeita ao cabimento da presente
ação mandamental para suspender, preventivamente, tramitação de projeto de
lei que poderia, segundo a tese adotada e exposta pelo impetrante, prejudicar
aspirações de grupos políticos minoritários em reordenar ou criar novas agre‑
miações partidárias.
15. Quanto ao cabimento de mandado de segurança impetrado por parlamen‑
tar para impugnar vício formal no processo legislativo de elaboração de lei ou
emenda constitucional, há consolidada jurisprudência deste Supremo Tribunal
no sentido positivo.
No julgamento do agravo regimental no MS 24.667/DF, rel. min. Carlos Velloso,
o Plenário deste Supremo Tribunal Federal assentou:
Ementa: Constitucional. Poder Legislativo: Atos: Controle judicial. Mandado de segu-
rança. Parlamentares. I – O Supremo Tribunal Federal admite a legitimidade do
parlamentar – e somente do parlamentar – para impetrar mandado de segurança
com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou
emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que dis‑
ciplinam o processo legislativo. II – Precedentes do STF: MS 20.257/DF, ministro
Moreira Alves (leading case) (RTJ 99/1031); MS 20.452/DF, ministro Aldir Passarinho
(RTJ 116/47); MS 21.642/DF, ministro Celso de Mello (RDA 191/200); MS 24.645/DF,
ministro Celso de Mello, DJ de 15-9-2003; MS 24.593/DF, ministro Maurício Corrêa,
DJ de 8-8-2003; MS 24.576/DF, ministra Ellen Gracie, DJ de 12-9-2003; MS 24.356/DF,
ministro Carlos Velloso, DJ de 12-9-2003. III – Agravo não provido (DJ de 23-4-2004).

E ainda: MS 23.565/DF, rel. min. Celso de Mello, decisão monocrática, DJ de


17-11-1999; MS 20.257, rel. min. Moreira Alves, Plenário, DJ de 27-2-1981; MS 21.642,
rel. min. Celso de Mello; MS 21.303, rel. min. Octavio Gallotti; MS 24.356, rel. min.
Carlos Velloso, Plenário, DJ de 12-9-2003; e MS 24.642, rel. min. Carlos Velloso,
Plenário, DJ de 18-6-2004.

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16. Tanto não significa ser cabível mandado de segurança em qualquer situa‑
ção de exercício próprio da função legislativa por parlamentar. Há que se apurar
objetivamente quando o seu direito-dever está sob ameaça ou lesão e quando o
que se pretende é debater interesses políticos afetos à esfera própria da política,
incorrendo-se em indébita judicialização.
Na presente ação, a argumentação expendida pelo impetrante volta-se contra
o conteúdo do projeto de lei, a evidenciar sua pretensão em instaurar, precoce e
indevidamente, o controle de constitucionalidade material do que sequer ainda
é norma, porque em fase regular de deliberação das casas legislativas. O que se
pretende, pois, é estancar a continuidade dos trabalhos do Congresso Nacional
naquilo que é seu dever-poder, qual seja, debater e elaborar o direito a vigorar
segundo o seu entendimento do que seja legítimo.
17. Daí por que, não obstante aquela assentada jurisprudência quanto ao
cabimento do mandado de segurança por parlamentar, o seu cabimento fica a
depender do objeto que se ponha a julgamento. Na espécie em pauta, a minha
conclusão, no ponto, coincide com a do ministro Marco Aurélio, no sentido de
que não haveria de ser conhecida a presente ação.
Vencida, contudo, no ponto, pela maioria já formada, sigo ao exame do objeto
posto em questão na ação.
18. Ponto central a ser enfrentado, como aliás realçado nas assentadas pri‑
meiras deste julgamento, diz com a competência deste Supremo Tribunal para
promover o controle preventivo de constitucionalidade de projetos de lei em
face de normas constitucionais, mas em especial em relação às matérias listadas
como limites materiais à atuação até mesmo do poder constituinte reformador.
Sem demonstrar qualquer vício no processo legislativo do Projeto de Lei 4.470
(Projeto de Lei 14/2013 do Senado), o impetrante é taxativo ao afirmar ser “absoluta‑
mente inconstitucional tramitação desta proposta, claramente concebida, de modo
oportunista e casuístico, para prejudicar os direitos fundamentais de determinados
grupos políticos minoritários, especialmente daqueles, plenamente identificáveis,
que se acham em adiantada fase de fundação de partido político (ou que acabam
de se submeter a processo de fusão), retirando-lhes, de forma anti-isonômica, prer‑
rogativas que, nos termos do que já decidido por este Supremo Tribunal Federal,
integram a própria ideia de democracia constitucional, de pluralismo político e de
liberdade material de criação partidária, que se impetra o presente writ”.
Assevera que a afirmativa de “ser absolutamente inconstitucional a própria
tramitação de projeto de lei cujos vícios materiais, cuja natureza abusiva e casu‑
ística e cujo objetivo de criar situações absolutamente anti-isonômicas entre
parlamentares eleitos numa mesma legislatura, bem revelam a impossibilidade

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de que tal temática sequer pudesse ser objeto de deliberação e de disposição


pela maioria parlamentar” não demonstra direito do parlamentar nem justifica
a alegação de liquidez e certeza do interesse defendido pelo impetrante de “não
participar de proposta normativa de tal natureza”.

Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal


19. Os precedentes deste Supremo Tribunal analisados nos votos divergentes
que me antecederam reforçam o entendimento acima exposto.
Nos doutos votos proferidos nas sessões anteriores, muitas vezes foi mencionado
o MS 20.257, rel. p/ o ac. min. Moreira Alves, impetrado pelos senadores Itamar
Franco e Antônio Mendes Canale, cujo objeto foi a proposta de emenda à Consti‑
tuição visando à prorrogação de mandatos de prefeitos, vice-prefeitos e vereadores.
Argumentou-se, então, que a mera tramitação dessa proposta contrariaria o
art. 47, § 1º, da Carta então vigente, que previa: “não será objeto de deliberação
a proposta de emenda tendente a abolir a Federação ou a República”.
No voto condutor do acórdão, o ministro Moreira Alves divergiu do relator, minis‑
tro Décio Miranda, que votara pela prejudicialidade da impetração, e acentuou:
Não admito mandado de segurança para impedir tramitação de projeto de lei ou
proposta de emenda constitucional com base na alegação de que seu conteúdo
entra em choque com algum princípio constitucional. E não admito porque, nesse
caso, a violação à Constituição só ocorrerá depois de o projeto se transformar em
lei ou de a proposta de emenda vir a ser aprovada. Antes disso, nem o presidente da
Casa do Congresso, ou deste, nem a Mesa, nem o Poder Legislativo estão praticando
qualquer inconstitucionalidade, mas estão, sim, exercitando seus poderes cons‑
titucionais referentes ao processamento da lei em geral. A inconstitucionalidade,
nesse caso, não será quanto ao processo da lei ou da emenda, mas, ao contrário,
será da própria lei ou da própria emenda, razão por que só poderá ser atacada
depois da existência de uma ou de outra.
Diversas, porém, são as hipóteses como a presente, em que a vedação consti‑
tucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a sua
apresentação (como é o caso previsto no parágrafo único do art. 57) ou a sua deli‑
beração (como na espécie). Aqui, a inconstitucionalidade diz respeito ao próprio
andamento do processo legislativo, e isso porque a Constituição não quer – em face
da gravidade dessas deliberações, se consumadas – que sequer se chegue à delibera‑
ção, proibindo-a taxativamente. A inconstitucionalidade, neste caso, já existe antes
de o projeto ou de a proposta se transformar em lei ou em emenda constitucional,
porque o próprio processamento já desrespeita, frontalmente, a Constituição.
E cabe ao Poder Judiciário – nos sistemas em que o controle da constitucionalidade
lhe é outorgado – impedir que se desrespeite a Constituição. Na guarda da obser‑
vância desta, está ele acima dos demais Poderes, não havendo, pois, que falar-se,

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a esse respeito, em independência de Poderes. Não fora assim e não poderia ele
exercer a função que a própria Constituição, para a preservação dela, lhe outorga.
4. Considero, portanto, cabível, em tese, o presente mandado de segurança.
Indefiro-o, porém, por ser manifesta a improcedência de sua fundamentação.
A emenda constitucional, em causa, não viola, evidentemente, a República, que
pressupõe a temporariedade dos mandatos eletivos. De fato, prorrogar mandato
de dois para quatro anos, tendo em vista a conveniência da coincidência de man‑
datos nos vários níveis da Federação, não implica introdução do princípio de que
os mandatos não mais são temporários, nem envolve, indiretamente, sua adoção
de fato, como sustentam os impetrantes, sob a alegação de que, a admitir-se qual‑
quer prorrogação, ínfima que fosse, estar-se-ia a admitir prorrogação por vinte,
trinta ou mais anos.
Julga-se à vista do fato concreto, e não de suposição, que, se vier a concretizar‑
-se, merecerá, então, julgamento para aferir-se da existência, ou não, de fraude à
proibição constitucional.

Naquele precedente, ainda que se tenha reconhecido o cabimento de mandado


de segurança para obstar a tramitação de proposta de emenda constitucional,
cujo conteúdo se alegava tender a abolir a Federação ou a República, concluiu‑
-se não se ter situação grave o suficiente para autorizar imediata intervenção do
Supremo Tribunal nos trabalhos do Poder Legislativo.
Lê-se na ementa:
Ementa – Mandado de segurança contra ato da Mesa do Congresso que admitiu a
deliberação de proposta de emenda constitucional que a impetração alega ser ten‑
dente a abolição da República. – Cabimento do mandado de segurança em hipóteses
em que a vedação constitucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da
emenda, vedando a sua apresentação (como é o caso previsto no parágrafo único do
art. 57) ou a sua deliberação (como na espécie). Nesses casos, a inconstitucionalidade
diz respeito ao próprio andamento do processo legislativo, e isso porque a Consti‑
tuição não quer – em face da gravidade dessas deliberações, se consumadas – que
sequer se chegue a deliberação, proibindo-a taxativamente. A inconstitucionalidade,
se ocorrente, já existe antes de o projeto ou de a proposta se transformar em lei ou
em emenda constitucional, porque o próprio processamento já desrespeita, frontal‑
mente, a Constituição. Inexistência, no caso, da pretendida inconstitucionalidade,
uma vez que a prorrogação de mandato de dois para quatro anos, tendo em vista
a conveniência da coincidência de mandatos nos vários níveis da Federação, não
implica introdução do princípio de que os mandatos não mais são temporários,
nem envolve, indiretamente, sua adoção de fato. Mandado de segurança indeferido.
[MS 20.257, rel. p/ o ac. min. Moreira Alves, Plenário, DJ de 27-2-1981.]

O cabimento de mandado de segurança foi reconhecido pelo conteúdo da


proposta em tramitação.

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Naquela mesma linha se tem que apenas situação excepcional e autorizada


pela Constituição de 1988 torna cabível o mandado de segurança para proteger
cláusula constitucional fundamental, cuja afronta se evidencie.
20. Outros precedentes citados na decisão liminar do ministro relator tinham
como causa de pedir vício no processo legislativo em curso. É o caso, por exem‑
plo, do MS 22.503, rel. p/ o ac. min. Maurício Corrêa:
Ementa: Mandado de segurança impetrado contra ato do presidente da Câmara dos
Deputados, relativo à tramitação de emenda constitucional. Alegação de violação
de diversas normas do Regimento Interno e do art. 60, § 5º, da Constituição Fede-
ral. Preliminar: impetração não conhecida quanto aos fundamentos regimentais,
por se tratar de matéria interna corporis que só pode encontrar solução no âmbito
do Poder Legislativo, não sujeita à apreciação do Poder Judiciário; conhecimento
quanto ao fundamento constitucional. Mérito: reapresentação, na mesma sessão
legislativa, de proposta de emenda constitucional do Poder Executivo, que modifica
o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e dá outras provi-
dências (PEC 33-a, de 1995). I – Preliminar. 1. Impugnação de ato do presidente da
Câmara dos Deputados que submeteu a discussão e votação emenda aglutinativa,
com alegação de que, além de ofender ao parágrafo único do art. 43 e ao § 3º do
art. 118, estava prejudicada nos termos do inciso VI do art. 163, e que deveria ter
sido declarada prejudicada, a teor do que dispõe o n. 1 do inciso I do art. 17, todos
do Regimento Interno, lesando o direito dos impetrantes de terem assegurados os
princípios da legalidade e moralidade durante o processo de elaboração legislativa.
A alegação, contrariada pelas informações, de impedimento do relator – matéria
de fato – e de que a emenda aglutinativa inova e aproveita matérias prejudicada
e rejeitada, para reputá-la inadmissível de apreciação, é questão interna corporis
do Poder Legislativo, não sujeita à reapreciação pelo Poder Judiciário. Mandado
de segurança não conhecido nesta parte. 2. Entretanto, ainda que a inicial não se
refira ao § 5º do art. 60 da Constituição, ela menciona dispositivo regimental com a
mesma regra; assim interpretada, chega-se à conclusão de que nela há ínsita uma
questão constitucional, esta sim, sujeita ao controle jurisdicional. Mandado de
segurança conhecido quanto à alegação de impossibilidade de matéria constante
de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada pode ser objeto de
nova proposta na mesma sessão legislativa. II – Mérito. 1. Não ocorre contrariedade
ao § 5º do art. 60 da Constituição na medida em que o presidente da Câmara dos
Depu­tados, autoridade coatora, aplica dispositivo regimental adequado e declara
prejudicada a proposição que tiver substitutivo aprovado, e não rejeitado, ressal‑
vados os destaques (art. 163, V). 2. É de ver-se, pois, que tendo a Câmara dos Depu‑
tados apenas rejeitado o substitutivo, e não o projeto que veio por mensagem do
Poder Executivo, não se cuida de aplicar a norma do art. 60, § 5º, da Constituição.
Por isso mesmo, afastada a rejeição do substitutivo, nada impede que se prossiga
na votação do projeto originário. O que não pode ser votado na mesma sessão

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legislativa é a emenda rejeitada ou havida por prejudicada, e não o substitutivo


que é uma subespécie do projeto originariamente proposto. 3. Mandado de segu‑
rança conhecido em parte, e nesta parte indeferido. [MS 22.503, rel. p/ o ac. min.
Maurício Corrêa, Plenário, DJ de 6-6-1997.]

21. Aquela impetração teve liminar deferida pelo relator, o ministro Marco
Aurélio, para trancar a tramitação da Proposta de Emenda à Constituição 33-A,
por nela ter sido incluída matéria antes rejeitada. Contudo, na assentada de 8-5-
1996, o Plenário cassou a liminar proferida e denegou a segurança.
22. Por igual não me parece, data venia, aplicável à espécie o que decidido
no MS 20.452, impetrado contra a tramitação da emenda apelidada Dante de
Oliveira, ao argumento de que não teria sido alçando o quórum constitucio‑
nalmente previsto para sua aprovação. Logo, a causa de pedir também era de
natureza procedimental:
Emenda constitucional. Emenda “Dante de Oliveira”. Quórum de aprovação. Art. 48 da
Constituição Federal, na redação que lhe deu a Emenda Constitucional 22, de junho
de 1982. O quórum para aprovação de emenda constitucional é, segundo o art. 48
da Constituição Federal, na redação da Emenda Constitucional 22/1982, o de 2/3 de
votos do total de membros de cada uma das Casas do Congresso Nacional, e não o
de 2/3 dos membros de cada uma das Casas presentes à sessão. Alias, é da tradição
do nosso direito constitucional ser o quórum adotado para a aprovação de emenda
constitucional tomado sempre levando-se em conta o total de deputados e senadores,
em conjunto ou separadamente, por maioria ou por 2/3, mas sempre com referência ao
total existente, e não dos presentes. Rejeição da emenda por não ter sido atingido o
quórum necessário a sua aprovação. Alterações constitucionais a respeito e manifes-
tações da doutrina. [MS 20.452, rel. min. Aldir Passarinho, Plenário, DJ de 11-10-1985.]

23. Ainda distante do caso ora analisado, o MS 24.645, rel. min. Celso de Mello,
julgado prejudicado por decisão monocrática de 27-11-2003, pois seu objeto, a
PEC 41/2003, estava em tramitação no Senado, e o pedido era de paralisação da
tramitação simultânea na Câmara.
E o MS 24.593, rel. min. Maurício Corrêa, teve seguimento negado por falta de
legitimidade ativa do impetrante (DJ de 8-8-2003).
Também citado como precedente a ação contra a Proposta de Emenda à Cons‑
tituição 1-A de 1988, que instituía “a pena de morte, nos casos de roubo, sequestro
e estupro, seguidos de morte, o que se deverá submeter ao eleitorado, através de
plebiscito, dentro de 18 (dezoito) meses de aprovação da Emenda”, MS 21.331, rel.
min. Néri da Silveira, foi julgado prejudicado, em razão do seu arquivamento no
Congresso Nacional (DJ de 25-5-1999).
24. De se destacar o MS 24.138, rel. min. Gilmar Mendes, cujo objeto era o

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projeto de lei que alterava o art. 618 da CLT e que teve liminar indeferida pelo
ministro Néri da Silveira, nos seguintes termos:
2. Não se adotou, no Brasil, o controle judicial preventivo de constitucionalidade da
lei. Não é, assim, em princípio, admissível o exame, por esta Corte, de projetos de
lei ou mesmo de propostas de emenda constitucional, para pronunciamento prévio
sobre sua validade. Não se acolhe, em princípio, súplica para impedir a tramitação
de projeto de lei ou proposta de emenda à Constituição, ao fundamento de contra‑
riar princípio básico da ordem constitucional em vigor. Somente depois de editada
a lei ou emenda à Constituição, caberá o amplo controle judicial de constitucio‑
nalidade da norma, que se consagra no País, nos sistemas concentrado e difuso.
3. Tem-se reconhecido, entretanto, ao parlamentar – deputado federal ou sena‑
dor – legitimidade ativa a requerer mandado de segurança, para garantir direito
público subjetivo de seu titular no sentido de não ver submetida à deliberação
proposta de emenda à Lei Magna da República, nas hipóteses em que a própria
Constituição obsta logre curso o processo legislativo, que, desse modo, se entremos‑
tra, desde logo, inconstitucional. Tal sucede, diante do art. 60, § 4º, da Lei Magna,
quando preceitua que não será objeto de deliberação a proposta de emenda ten‑
dente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal
e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais.
Nesse sentido, anotei, ao despachar, ad exemplum, o MS 21.311-6/160, quando par‑
lamentares impetraram segurança contra ato da Mesa da Câmara dos Deputados,
que tornou possível o exame da “Proposta de Emenda à Constituição Federal n.
1, de 1988”, instituindo a pena de morte, nas hipóteses que então eram alinhadas.
4. Tenho, pois, como possível, na linha da jurisprudência do STF, a impetração
aforada pelo deputado federal requerente, a tanto, legitimado.
5. Não vejo, na espécie, entretanto, caracterizada hipótese de concessão de liminar
pretendida, em ordem a impedir venha a Câmara dos Deputados a deliberar sobre
o Projeto de Lei 5.483, de 2001, que alterou o art. 681 da Constituição.
6. Cumpre observar, desde logo, que não se trata de deliberação sobre proposta de
emenda constitucional. Sustenta-se que o projeto de lei em foco é inconstitucional
e inconveniente, pelas razões longamente deduzidas na inicial. Não há, entretanto,
arguição de vício de origem, nem de qualquer nulidade ou mesmo irregularidade
em seu processamento. O que se pretende, em realidade, é discutir, por antecipa‑
ção, a quaestio juris de inconstitucionalidade do projeto de lei. Releva notar que a
matéria, sujeita ao debate da Câmara dos Deputados – se, nela, aprovada –, ainda
dependerá da deliberação do Senado Federal.
7. Não tenho, como cabível, em hipótese dessa natureza, impedir que a Câmara
dos Deputados discuta a espécie e sobre ela delibere. O controle judicial, quanto
ao mérito de constitucionalidade, não encontra espaço para ser, aqui, realizado; de
contrário, estaria o STF intervindo na deliberação da Câmara dos Deputados, refe‑
rentemente ao processo de elaboração da legislação ordinária, sem que se alegue

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esteja ocorrendo, no procedimento legislativo, qualquer vício formal. Há, pois, um


limite ao controle prévio, sempre excepcional, que importa considerar, inclusive em
face do princípio básico da separação e independência dos Poderes da República.
8. Do exposto, indefiro a medida liminar.

No julgamento do mérito desse mandado de segurança, o ministro Gilmar


Mendes, sucessor do ministro Néri da Silveira na relatoria, acentuou:
Embora não haja dúvida quanto ao cabimento do mandado de segurança nessa
situação diferenciada, é certo que no caso em apreço não se vislumbra a priori a
existência de qualquer norma constitucional indicativa de expressa proibição ao
processamento do aludido projeto de lei.
(...)
Ressalte-se, outrossim, que, se se admitisse, em casos como o dos presentes autos,
a plena discussão sobre a constitucionalidade do projeto, restaria comprometido
não só o modelo de controle repressivo amplo existente entre nós, mas o próprio
sistema de divisão de poderes estabelecido na Constituição.
Nesses termos o meu voto é pela denegação da ordem.

25. Não tenho como taxativa a inexistência de controle prévio de constitucio‑


nalidade de proposta de emenda constitucional no sistema brasileiro. Interpreto
a alínea a do inciso I do art. 103 da Constituição da República no sentido de
permitir o controle preventivo e repressivo de leis e atos normativos no Brasil.
Entretanto, o controle preventivo é excepcionalíssimo, admissível apenas em
casos em que a proposta de emenda à Constituição ou o projeto de lei tenda a
abolir direito estabelecido como limite material ao poder constituinte reforma‑
dor e, mais ainda, ao poder legislativo ordinário.
Também como enfatizado pelo ministro Marco Aurélio, em seu voto, não se há
de esquecer inexistir, até o presente, precedente deste Supremo Tribunal no qual
se tenha concedido ordem de segurança para trancar processo de projeto de lei
por suposta inconstitucionalidade material, vale dizer, do objeto por ela cuidado.
O controle prévio de constitucionalidade é conferido, constitucional e priorita‑
riamente, aos Poderes Legislativo e Executivo. Com ele se busca estancar prática
contrária à Constituição na ação política que é a de elaborar a produção normativa:
Sem dúvida, grande vantagem haveria em impedir-se de modo absoluto a entrada
em vigor de ato inconstitucional. Todavia, a experiência revela que toda tentativa
de organizar um controle preventivo tem por efeito politizar o órgão incumbido de
tal controle, que passa a apreciar a matéria segundo o que entende ser a conveni‑
ência pública e não segundo a sua concordância com a lei fundamental. Isso é mais
grave ainda no que concerne à lei, que se considera, na democracia representativa,

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expressão da vontade geral, pois vem dar a um órgão normalmente de origem não
popular uma influência decisiva na elaboração das leis.
O controle preventivo, entretanto, foi previsto em várias Constituições antigas,
como é previsto nalgumas modernas. Exercia, por exemplo, esse controle preven‑
tivo o Senado conservador da Constituição francesa do ano VIII (1799), que deixou
passar em brancas nuvens todas as alterações constitucionais reclamadas por
Napoleão, evidentemente inconstitucionais. Mais recentemente, a Corte Consti‑
tucional austríaca, prevista na Constituição de 1920 (art. 138, n. 2), foi incumbida
do controle preventivo com resultado desanimador. Ainda atualmente a Consti‑
tuição francesa de 1958 o atribui, no art. 61, ao Conselho Constitucional. [FERREIRA
FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 38. ed. São Paulo: Saraiva,
2012. p. 62-63.]

Ensina, entre outros, Anna Cândida Ferraz:


ante o sistema vigente, não existe a previsão do controle preventivo jurisdicional
de constitucionalidade, nos moldes existentes no direito comparado. Não é pre‑
vista a possibilidade de o Judiciário, em tese, impedir a tramitação (frustrando
a iniciativa, discussão ou aprovação) de projetos de lei em curso no Congresso
Nacional e a consequente conversão destes em lei, fundado em motivo de incons‑
titucionalidade. (...)
O direito constitucional positivo brasileiro, ao longo de sua evolução histórica,
jamais autorizou como a nova Constituição promulgada em 1988 também não o
admite o sistema de controle jurisdicional preventivo, em abstrato. (...)
Atos normativos in fieri, ainda em fase de formação, com tramitação não concluída,
não ensejam e nem dão margem ao controle concentrado ou em tese de constitu‑
cionalidade, que supõe ressalvadas as situações configuradoras de omissão juridica‑
mente relevante a existência de espécies normativas definitivas, perfeitas e acabadas.
(...) a mera proposição legislativa nada mais encerra do que simples proposta de
direito novo, a ser submetida à apreciação do órgão competente, para que, de sua
eventual aprovação, possa derivar, então, a sua introdução formal no universo jurídico.
(...) sob certos aspectos, é possível vislumbrar-se a incidência de um controle
de constitucionalidade preventivo, ainda que indireto, ao menos no modelo do
controle difuso de constitucionalidade.
(...) Não figura o controle preventivo entre os que a doutrina elege como ideal
para a defesa da Constituição.
(...) Todavia, a experiência revela que toda tentativa de organizar um controle
preventivo tem por efeito politizar o órgão incumbido de tal controle, que passa a
apreciar a matéria segundo o que entende ser a conveniência pública e não segundo
a sua concordância com a lei fundamental.
(...) o controle preventivo usual, inegavelmente eficaz, incide sobre o próprio exer‑
cício da competência constitucional do órgão legislativo, impedindo o nascimento

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da lei. O controle preventivo aborta o nascimento da lei, ata a ação parlamentar,


claro em nome de uma grande causa.
(...) Admitir-se, assim, a interposição de um poder estranho sobre a atuação de
outro poder, quando este exerce competência própria, é certamente questão pre‑
ocupante, particularmente onde se adota o sistema da separação ou divisão de
poderes, tal como ocorre nos sistemas presidencialistas e parlamentaristas.
(...) De outro lado, não há como negar-se: o controle preventivo impressiona pela
eficácia. Impede o nascimento de um ato inconstitucional, de um ato em descon‑
formidade com a Constituição, e isso é bem significativo. Todavia, em razão dos
pontos negativos que apresenta, é preciso acentuar os cuidados com que se deve
cercar o controle preventivo, nos casos em que é ele adotado e se porventura se
cogitar de vir a adotá-lo no Brasil. [FERRAZ, Ana Cândida da Cunha. Notas sobre
o controle preventivo de constitucionalidade. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, v. 36, n. 142, p. 279-296, abr./jun. 1999.]

É de Luís Roberto Barroso a assertiva:


Existe, ainda, uma hipótese de controle prévio de constitucionalidade, em sede
judicial, que tem sido admitida no direito brasileiro. O Supremo Tribunal Federal
tem conhecido de mandados de segurança, requeridos por parlamentares, contra
o simples processamento de propostas de emenda à Constituição cujo conteúdo
viole alguma das cláusulas pétreas do art. 60, § 4º. Em mais de um precedente, a
Corte reconheceu a possibilidade de fiscalização jurisdicional da constituciona‑
lidade de propostas de emenda à Constituição que veicularem matéria vedada ao
poder reformador do Congresso Nacional. [BARROSO, Luís Roberto. O controle de
constitucionalidade no direito brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 45-46.]

Sobre a questão, o Plenário deste Supremo Tribunal Federal teve a oportuni‑


dade de se manifestar na assentada de 3-4-1991, no julgamento da ADI 466/DF,
rel. min. Celso de Mello:
ADI 466 – Ação direta de inconstitucionalidade – Proposta de emenda à Constituição
Federal – Instituição da pena de morte mediante prévia consulta plebiscitária – Limi-
tação material explícita do poder reformador do Congresso Nacional (art. 60, § 4º,
IV) – Inexistência de controle preventivo abstrato (em tese) no direito brasileiro –
Ausência de ato normativo – Não conhecimento da ação direta. O direito constitu‑
cional positivo brasileiro, ao longo de sua evolução histórica, jamais autorizou –
como a nova Constituição promulgada em 1988 também não o admite – o sistema
de controle jurisdicional preventivo de constitucionalidade, em abstrato. Inexiste,
desse modo, em nosso sistema jurídico, a possibilidade de fiscalização abstrata
preventiva da legitimidade constitucional de meras proposições normativas pelo
Supremo Tribunal Federal. Atos normativos in fieri, ainda em fase de formação,
com tramitação procedimental não concluída, não ensejam e nem dão margem ao

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controle concentrado ou em tese de constitucionalidade, que supõe – ressalvadas


as situações configuradoras de omissão juridicamente relevante – a existência
de espécies normativas definitivas, perfeitas e acabadas. Ao contrário do ato nor‑
mativo – que existe e que pode dispor de eficácia jurídica imediata, constituindo,
por isso mesmo, uma realidade inovadora da ordem positiva –, a mera proposição
legislativa nada mais encerra do que simples proposta de direito novo, a ser sub‑
metida à apreciação do órgão competente, para que de sua eventual aprovação
possa derivar, então, a sua introdução formal no universo jurídico. A jurisprudên‑
cia do Supremo Tribunal Federal tem refletido claramente essa posição em tema
de controle normativo abstrato, exigindo, nos termos do que prescreve o próprio
texto constitucional – e ressalvada a hipótese de inconstitucionalidade por omis‑
são – que a ação direta tenha, e só possa ter, como objeto juridicamente idôneo,
apenas leis e atos normativos, federais ou estaduais, já promulgados, editados e
publicados. A impossibilidade jurídica de controle abstrato preventivo de meras
propostas de emenda não obsta a sua fiscalização em tese quando transformadas
em emendas à Constituição. Estas – que não são normas constitucionais origi‑
nárias – não estão excluídas, por isso mesmo, do âmbito do controle sucessivo
ou repressivo de constitucionalidade. O Congresso Nacional, no exercício de sua
atividade constituinte derivada e no desempenho de sua função reformadora, está
juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte originário que, a par
de restrições de ordem circunstancial, inibitórias do poder reformador (CF, art. 60,
§ 1º), identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível
e imune à ação revisora da instituição parlamentar. As limitações materiais explíci‑
tas, definidas no § 4º do art. 60 da Constituição da República, incidem diretamente
sobre o poder de reforma conferido ao Poder Legislativo da União, inibindo-lhe o
exercício nos pontos ali discriminados. A irreformabilidade desse núcleo temático,
acaso desrespeitada, pode legitimar o controle normativo abstrato, e mesmo a
fiscalização jurisdicional concreta, de constitucionalidade.

De se acentuar que: a) não prevalece o controle prévio abstrato no sistema


brasileiro, que tenha por objeto projeto de lei (ressalva feita a proposta de emenda
constitucional, em controle concreto, para assegurar o direito do parlamentar,
garantindo-lhe o direito-dever posto no § 4º do art. 60 da Constituição do Brasil);
b) mandado de segurança não substitui ação direta de inconstitucionalidade
preventiva, por ser esta inadmitida no sistema brasileiro; c) o controle de cons‑
titucionalidade é jurídico; o da legitimidade de interesses, aventado na presente
ação, é político-partidário.
26. A presente impetração visa suspender a tramitação de projeto de lei sob
alegação de contrariedade entre o seu conteúdo (Projeto de Lei 4.470/2012 e
14/2013) e o art. 17, § 3º, da Constituição da República e ainda ao que decidido
na ADI 4.430, rel. min. Dias Toffoli, julgada em 29-6-2012.

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27. De se anotar não haver na espécie alegação de qualquer vício no processo
legislativo.
O que se sustentou, tão somente, é que a existência de projeto de lei impeditivo
da transferência de recursos do fundo partidário e do horário de propaganda elei‑
toral por migração partidária, na mesma legislatura, afrontaria cláusula pétrea,
pelo que exigiria imediato controle jurisdicional de constitucionalidade.
A análise dos elementos havidos no processo e dos precedentes do Supremo
Tribunal leva-me à conclusão de que a Constituição da República autoriza o
controle prévio do conteúdo de propostas de emenda à Constituição ou de pro‑
jeto de lei que atente contra princípio listado como limite material ao poder
constituinte reformador, logo também e mais ainda ao legislador.
É de se afastar também a afirmativa do impetrante segundo a qual, “decorridos
poucos dias da publicação da referida ata de julgamento – que viabilizou, em
termos práticos, que o recém-fundado Partido Social Democrático disputasse o
pleito eleitoral de 2012 com recursos financeiros e de comunicação compatíveis
com sua representatividade, considerado o expressivo número de Parlamentares
Federais que, livre e legitimamente, optaram por ingressar em seus quadros – foi
apresentado pelo Senhor Deputado Edinho Araújo (PMDB/SP) o Projeto de Lei
4.470/2012, cujo objetivo, nos termos de sua própria ementa, é estabelecer que “a
migração partidária que ocorrer durante a legislatura não importará na transfe‑
rência dos recursos do fundo partidário e do horário de propaganda eleitoral no
rádio e na televisão”. O claro objetivo da mencionada proposta legislativa, por‑
tanto, é aniquilar, por via ordinária, prerrogativas partidárias que foram expres‑
samente definidas por esta Suprema Corte como imprescindíveis à existência
de uma ‘autêntica liberdade de criação de partidos políticos’”.
A competência deste Supremo Tribunal atém-se ao início da competência
deliberativa para legislar, desde que ao exercê-la não adentre matéria blindada
constitucionalmente à sua atuação, único caso em que seria deflagrado o dever‑
-direito do Supremo.
A assertiva do impetrante no sentido de que o Poder Legislativo, ao processar
o Projeto de Lei 4.470/2012 na Câmara dos Deputados e o Projeto de Lei 14/2013
no Senado Federal, estaria emitindo sinais de sua insatisfação e discordância
com o resultado legitimamente firmado no julgamento da ADI 4.430/DF não
autoriza a atuação deste Supremo Tribunal no sentido de impedir a legítima e
necessária atuação do Poder Legislativo.
Na assentada de 15-5-1996, no julgamento do MS 22.439/DF, rel. min. Maurício
Corrêa, o ministro Celso de Mello bem esclareceu sobre o processo legislativo
no ordenamento jurídico brasileiro:

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O processo de formação das leis, em nosso sistema jurídico-constitucional, obser‑


vada a ordem ritual que lhe é inerente, compreende três fases sequenciais, assim
caracterizadas: (a) fase introdutória; (b) fase constitutiva e (c) fase complementar
(FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. Saraiva, 1968. p. 60/63,
itens n. 46-49; SILVA, José Afonso da. Princípios do processo de formação das leis no
direito constitucional. RT, 1964. p. 250-270, itens n. 119-128).
A fase introdutória do processo legislativo permite identificar, sempre a partir
do texto constitucional, os órgãos e agentes qualificados a agir em sede de elabo‑
ração legislativa.
O poder de iniciativa das leis, por isso mesmo, funda-se na Constituição. Tra‑
tando-se de matéria essencialmente disciplinável mediante regramento de índole
constitucional, incumbe à Carta Política – enquanto exclusivo estatuto de regência
do tema – definir os órgãos investidos dessa prerrogativa de instauração do pro‑
cesso legislativo e, também, dispor sobre o próprio momento de apresentação, ao
Poder Legislativo, do concernente projeto de lei.
Essa é a razão pela qual o magistério da doutrina (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de
direito constitucional. 11. ed. Saraiva, 1989. p. 312, item n. 1), ao versar a teoria geral
do processo de formação dos atos normativos primários, adverte que o processo
legislativo somente pode ser instaurado por órgão constitucionalmente qualificado
a exercer o poder de iniciativa das leis, pois, cuidando-se de prerrogativa de extra‑
ção nitidamente constitucional, revela-se acessível apenas àqueles a quem foi ela
expressamente outorgada pelo próprio texto da Carta Política. [DJ de 11-4-2003.]

28. Há de se distinguir, pois, os supostos vícios de inconstitucionalidade decor‑


rentes da inobservância do devido processo legislativo e aqueles outros que estão
no conteúdo da norma aprovada.
29. O vício do processo legislativo que importa em inconstitucionalidade
formal pode decorrer da incompetência para se legislar sobre a matéria (vício
orgânico), da ausência de previsão constitucional para apresentar o respectivo
projeto (vício de iniciativa) e, ainda, da inobservância do quórum de instauração
da sessão, de deliberação e/ou de aprovação do projeto, por exemplo.
O que se extrai, entretanto, do extenso voto do ministro relator Gilmar Mendes,
acompanhado pelo ministro Dias Toffoli, é a possibilidade de análise da incons‑
titucionalidade material de projeto de lei, à luz do que assentado no julgamento
da ADI 4.430/DF, na qual, aliás, votei vencida, conquanto acatado, como é óbvio
e desnecessário dizer, o resultado proclamado.
A questão central debatida nessa ação direta foi a inconstitucionalidade material
das normas ordinárias que desatenderiam o princípio republicano, o pluralismo e
o princípio da liberdade de criação e transformação de partidos (art. 17 da Cons‑
tituição da República), o que configuraria também desrespeito à cláusula pétrea.
30. Observa-se que o impetrante assevera que “A lei (...) está a ser utilizada

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como forma de esmagamento de dissidências políticas; como modo de esva‑


ziamento de legítimas pretensões, quanto à criação de novas agremiações par‑
tidárias ou quanto à fusão de duas agremiações já existentes; como forma de
arrefecimento do legítimo e desejado debate político; como modo de restrição
do pluralismo partidário; enfim, como forma de preservação de posições de
vantagem, em detrimento das legítimas aspirações e expectativas das minorias
sociais e políticas” (grifos nossos).
Assevera, ainda, que “o que se pretende, por meio do abusivo, casuístico e dis‑
criminatório projeto de lei é, por via meramente ordinária, privar movimentos
políticos minoritários e agremiações partidárias recém fundadas, de direitos que
foram tidos por essa Suprema Corte, como integrantes do próprio conceito de
liberdade – em sentido material, e não meramente formal – de criação de partidos
políticos, nos termos do que demanda uma sociedade que se pretenda plural”.
Parece certo que o impetrante pretende transferir para este Tribunal o debate
e a deliberação política, matéria afeta às casas congressuais, em cuja seara ele
haverá de discutir e tentar convencer os seus pares. Porque aqui, em matéria
jurídica, não me deixo convencer da pretensão trazida a exame. Até porque,
como lecionava Rui Barbosa:
Cada um dos poderes do Estado tem, inevitavelmente, a sua região (...) em que esse
poder é discricionário. Limitando a cada poder as suas funções discricionárias, a
lei, dentro das divisas em que as confina, o deixa entregue a si mesmo, sem outros
freios além do da idoneidade, que lhe supõe, e da opinião pública, a que está sujeito.
(...) o Congresso Nacional, sem ultrapassar a órbita da sua autoridade privativa e
discricionária, pode legislar desacertos, loucuras e ruínas. Onde a responsabilidade
executável contra esses excessos? (...) Declarar, pois, inconstitucionais esses atos
quer dizer que tais atos excedem, respectivamente, a competência de cada um
desses dois poderes (executivo e legislativo). Entregando, logo, ao Supremo Tribunal
Federal a missão de pronunciar como incursos no vício de inconstitucionalidade
os atos do Poder Executivo ou do Poder Legislativo, o que faz a Constituição é
investir o Supremo Tribunal Federal na competência de fixar a competência a
esses dois poderes, e verificar se estão dentro ou fora dessa competência os seus
atos, quando judicialmente contestados sob esse aspecto. [BARBOSA, Rui. Escritos
e discursos seletos. Rio de Janeiro: Nova Aguillar S.A., 1997. p. 558.]

O limite da competência constitucional do Supremo Tribunal Federal é a aná‑


lise jurídico-constitucional do exercício da competência da casa legislativa, que,
no caso, sequer é posta na ação de maneira clara, pois os argumentos expostos
na peça inicial traduzem inconformismo com o debate e possível solução da
matéria, não confronto com a Constituição do Brasil.

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Os debates legislativos e o regular processo não confirmam sequer a existência


da lei, pelo que não se poderia cogitar, a meu ver, de exorbitância de competência
da atuação legislativa.
31. A competência do Supremo Tribunal Federal para promover o controle
preventivo de constitucionalidade de projetos de lei em face da Constituição da
República é excepcional e apenas pode ser exercida quando o paradigma sejam
as denominadas cláusulas pétreas.
Dispõe o art. 60 da Constituição da República:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Se­­
nado Federal;
II – do Presidente da República;
III – de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação,
manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.
(...)
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.

32. Não há, expressamente, no texto constitucional previsão conferindo ao


Poder Judiciário competência para promover o controle prévio de constitucio‑
nalidade de projetos de lei, a evidenciar a excepcionalidade de tal atuação, como
lembrado pelo ministro Sepúlveda Pertence no julgamento do MS 23.047.
A vedação constitucional estampada no § 4º do art. 60 da Constituição da
República dirige-se à deliberação e, portanto, ao processamento de proposta
de emenda constitucional tendente a abolir quaisquer das disposições expostas
naquele núcleo sensível do sistema constitucional. Como destacado pelo ministro
Marco Aurélio, “trata-se de situação taxativa em que a Carta autoriza o controle
de constitucionalidade”, tal como fez constar, em seu voto:
(...) O constituinte originário expressamente excluiu, da revisão ou reforma cons‑
titucional, certas matérias, atraindo a intervenção judicial no caso de descumpri‑
mento por parte do poder constituinte derivado. (...) Os projetos de lei apenas são
impugnáveis, via mandado de segurança impetrado por parlamentar, quando e
se verificada a inobservância a dispositivos regimentais, legais ou constitucionais
que disciplinam o processo legislativo. O sistema constitucional continua a ser
de todo avesso a essa possibilidade, considerada hipótese excepcionalíssima até

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mesmo diante de emendas constitucionais. [MS 23.047/DF, rel. min. Sepúlveda


Pertence, julgado em 11-2-1998.]

A competência constitucional de controle prévio de propostas de emenda


decorre da gravidade da atuação legislativa: a alteração do constituinte derivado
tem como consequência última a alteração da própria Constituição.
Tanto significa dizer que, emendada a Constituição, a depender da matéria
e da extensão promovida pelo novo regramento, modificada estará a estrutura
jurídico-política de todo o Estado brasileiro. Daí a preocupação em se obstar
toda e qualquer tentativa inadvertida de alteração do núcleo sensível, que fun‑
damenta todo o sistema jurídico, no qual se contém a identidade constitucional.
Tenho, porém, que se projeto de lei viesse a tratar daquelas matérias expos‑
tas no § 4º do art. 60 da Constituição, não estaria ele infenso ao controle prévio
de constitucionalidade por este Supremo Tribunal e, no caso, até mesmo pelo
aspecto formal, pois estaria o legislador a substituir-se ao constituinte derivado.
33. No caso dos autos, não se vislumbra agressão à competência legítima e
regular do Congresso Nacional no debate e deliberação da matéria que se situa
em sua esfera de competência própria, nem se tem por suscitada a competência
deste Supremo Tribunal Federal para atuar.
O Congresso Nacional está a atuar, no caso apresentado, no exercício de sua
função típica, sem qualquer exacerbação gravosa à Constituição, estando a fazer
o que lhe é próprio e devido, a saber, a política no sentido de elaborar normas.
Não há competência deste Supremo Tribunal Federal a ser exercida.
34. O art. 2º da Constituição do Brasil estabelece serem Poderes independen‑
tes e harmônicos da União o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, conferindo
o sistema a cada qual competências que lhes são próprias.
Interpretando esse princípio, que se continha na Constituição de 1891, acentu‑
ava João Barbalho que “(...) convém advertir aqui para perfeita inteligência do que
se refere às atribuições de cada um desses ramos do poder público nacional que
essas atribuições não passam além das que estão expressamente consagradas na
Constituição (poderes enumerados e limitados) e das que destas decorre como
condição necessária para que possam ser exercidas (poderes implícitos ou por
compreensão). Isto resulta da própria índole do sistema de governo consagrado
pela Constituição. (BARBALHO, João. Constituição Federal brasileira: comentários.
Rio de Janeiro: F. Briguiet e Cia., 1924. p. 72).
Igual a lição de Rui Barbosa sobre o princípio, enfatizando ele que “Se esses
poderes são órgãos da soberania nacional (a expressão era a que se continha
na Constituição de 1891) o que daqui resulta, é que toda a autoridade, em cujo
depósito se acham investidos, constitui uma delegação dessa soberania, e que a

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ela respondem estritamente pela maneira como devem executar a incumbência


recebida. Por outro lado, se esses poderes são harmônicos entre si, nenhum deles
será senhor senão da competência, que lhe for designada no seu quinhão cons‑
titucional, e nenhum, muito menos, poderá exercer sobre qualquer dos outros
dois ascendente, restrição ou fiscalização, quando a lei constitucional lhas não
der claramente (...)” (BARBOSA, Rui. Comentários à Constituição Federal brasileira.
São Paulo: Saraiva & Cia., 1932, v. I, p. 408).
35. A perfeita compreensão e natureza fundamental daquele princípio, garan‑
tia do equilíbrio das competências estatais, conduz ao reconhecimento de que,
estando a exercer a sua legítima atribuição e em fase de regular processamento
de projeto de lei, o Congresso Nacional não se submete à atuação do controle de
constitucionalidade prévio deste Poder Judiciário. A circunstância singela está
em que não há desbordamento de suas competências típicas a serem assinala‑
das nesta fase, não havendo no que atuar, neste momento, em defesa e guarda
da Constituição este Supremo Tribunal.
Não convence, portanto, a alegação feita na peça inicial desta ação, no sen‑
tido de que estaria agravado o § 3º do art. 17 da Constituição da República, no
que se refere à “transferência de recursos do fundo partidário e do horário de
propaganda eleitoral em razão da migração partidária na mesma legislatura”.
A discussão do tema em nível infraconstitucional e na fase de tramitação do pro‑
jeto exorbita da competência do princípio da separação dos Poderes, e não autoriza
a atuação deste Supremo Tribunal, com a vênia dos que entendem de modo diverso.
Adverte Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “claro está que, em um Estado demo‑
crático estruturado segundo a separação dos poderes, como o Brasil (cf. a Cons‑
tituição, arts. 2º e 60, § 4º, III), é ao Poder Legislativo que cabe a manifestação
da vontade geral, portanto, a formação da lei”.
Para aquele autor:
a) Num Estado Democrático de Direito, organizado segundo a separação dos pode‑
res, a otimização dos princípios compete ao legislador. Este, com efeito, é que,
dentre os representantes, fica incumbido da tarefa de exprimir a vontade (legisla‑
tiva) geral; b) Tal otimização se faz pela lei a expressão por excelência da vontade
geral ou ato com força de lei, o que atende ao princípio básico do Estado de Direito,
a legalidade. Essa otimização, portanto, se traduz na concretização legal do prin‑
cípio; c) Esta concretização legal é obrigatória para juízes e administradores; d)
Por isso, é absolutamente vedada a aplicação, e, a fortiori, a concretização contra
legem de princípios; (...) g) A lei pode ser afastada, por inconstitucionalidade, se
manifestamente contradisser um princípio. Isso configura inconstitucionalidade
que há de ser reconhecida como tal. Mas tal inconstitucionalidade inexiste se a

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lei consagrar uma opção razoável, dentre muitas, de concretização; h) A concre‑


tização pelo juiz cede sempre à concretização legal superveniente. [FERREIRA
FILHO, Manoel Gonçalves. A concretização dos princípios constitucionais no Estado
Democrático de Direito, apud YARSHELL, Flávio Luiz; MORAES, Maurício Zanoide
de (Coord.). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo:
DJP, 2005. p. 283/288-289.]

E é de José Afonso da Silva a lição:


A Harmonia entre os Poderes verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia
no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente
todos têm direito. De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções
entre os órgãos do Poder nem sua independência são absolutas. Há interferências,
que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do
equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para
evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro, e especialmente
dos governados. Se ao Legislativo cabe a edição de normas gerais e impessoais,
estabelece-se um processo para a sua formação em que o Executivo tem partici‑
pação importante, quer pela iniciativa das leis, quer pela sanção e pelo veto. Mas
a iniciativa legislativa do Executivo é contrabalançada pela possibilidade que o
Congresso tem de modificar-lhe o projeto por via de emendas, e até de rejeitá-lo.
O presidente da República tem o poder de veto, que pode exercer em relação a
projetos de iniciativa dos congressistas como em relação às emendas aprovadas
a projetos de sua iniciativa. Em compensação, o Congresso, pelo voto da maioria
absoluta de seus membros, poderá rejeitar o veto e, pelo presidente do Senado,
promulgar a lei, se o presidente da República não o fizer no prazo previsto (art. 66,
§ 7º). Se o presidente da República não pode interferir nos trabalhos legislativos,
para obter aprovação rápida de seus projetos, é-lhe, porém, facultado marcar prazo
para sua apreciação, nos termos dos §§ do art. 64. Se os Tribunais não podem
influir no Legislativo, são autorizados a declarar a inconstitucionalidade das leis,
não as aplicando, neste caso. O presidente da República não interfere na função
jurisdicional; em compensação, os ministros dos Tribunais Superiores são por ele
nomeados (art. 84, XIX-XVI), sob controle do Senado Federal, a que cabe aprovar o
nome escolhido (art. 52, III, a). (...) 5.4 Freios e contrapesos. São esses apenas alguns
exemplos do mecanismo dos freios e contrapesos caracterizador da harmonia entre
os Poderes. Tudo isso demonstra que os trabalhos do Legislativo e do Executivo
especialmente, mas também do Judiciário, só se desenvolverão a bom termo se
esses órgãos se subordinarem ao princípio da harmonia, que não significa nem o
domínio de um pelo outro, nem a usurpação de atribuições, mas a verificação de
que entre eles há de haver consciente colaboração e controle recíproco (que, aliás,
integra o mecanismo), para evitar distorções e desmando. A desarmonia, porém,
se dá sempre que se acrescem atribuições, faculdades e prerrogativas de um em

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detrimento de outro. [SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição.


5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. 1027. p. 44-45.]

Ter como válido o exercício de controle pelo Supremo Tribunal Federal quanto
ao projeto de lei em tramitação seria permitir que ele se substituísse ao Senado
Federal, permitindo-lhe pressupor que as deliberações na Casa revisora condu‑
ziriam a resultado contrário à Constituição.
Na hora certa, se essa chegar, o controle da lei decorrente daquele agir con‑
gressual poderá ocorrer, não agora porém.
O princípio que garante a separação dos Poderes, a cada qual resguardando
espaço de competência típica, porém intransponível, forja-se também sob o pálio
da harmonia a ser guardada entre eles.
Não se há imaginar que coibir, em seu nascedouro, a atuação do Poder Legis‑
lativo, no exercício de sua função ordinária e típica, harmonizaria os Poderes
da República.
Interesses internos dos membros do Poder haverão de se manter no espaço
de ação própria e única de cada qual deles, ressalva feita apenas aos desborda‑
mentos que patenteiem agressão ou inobservância à Constituição do Brasil.
Se inconstitucionalidade vier a ser praticada na elaboração normativa pelo
Congresso Nacional, o Supremo Tribunal poderá vir a ser convocado para atuar.
Mas é certo que o direito tem o seu tempo e projeto de lei e exercício de compe‑
tência, mas a matéria cuidada pelo Congresso lei ainda não é.
36. No voto do relator, ministro Gilmar Mendes, ficou demonstrada a sua
preocupação em que seja mantido o posicionamento no sentido de garantir
a prevalência do entendimento afirmado no julgamento da ADI 4.430/DF, na
qual foi “declara[da] a constitucionalidade do § 6º do art. 45 da Lei 9.504/1997; a
inconstitucionalidade da expressão e representação na Câmara dos Deputados,
contida no § 2º do art. 47, da Lei 9.504/1997, e para dar interpretação conforme
à Constituição Federal ao inciso II do § 2º do art. 47 da mesma lei, para asse‑
gurar aos partidos novos, criados após a realização de eleições para a Câmara
dos Deputados, o direito de acesso proporcional aos 2/3 do tempo destinado à
propaganda eleitoral no rádio e na televisão, considerada a representação dos
deputados federais que migrarem diretamente dos partidos pelos quais foram
eleitos para a nova legenda na sua criação”, nos termos do inciso V do art. 1º e
§ 3º e caput do art. 17 da Constituição da República.
A extensão dos efeitos decorrentes das decisões deste Supremo Tribunal Fe­­
deral pelas quais se declaram a inconstitucionalidade de normas está prevista
no art. 102, § 2º, da Constituição da República:

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§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas
ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade
produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos
do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas fe­­deral,
estadual e municipal. (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004).

E o parágrafo único do art. 28 da Lei 9.868/1999 prevê:


Art. 28. Dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão, o
Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário da Justiça e
do Diário Oficial da União a parte dispositiva do acórdão.
Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionali‑
dade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de
inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito
vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública
federal, estadual e municipal.

A assentada jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é no sentido de


que o efeito vinculante das decisões proferidas em processos de controle abstrato
de constitucionalidade não se aplica à atividade legislativa.
No julgamento do agravo regimental na Rcl 2.617/MG, rel. min. Cezar Peluso,
o Plenário deste Supremo Tribunal Federal assentou:
Ementa: Inconstitucionalidade. Ação direta. Lei estadual. Tributo. Taxa de segurança
pública. Uso potencial do serviço de extinção de incêndio. Atividade que só pode
sustentada pelos impostos. Liminar concedida pelo STF. Edição de lei posterior, de
outro Estado, com idêntico conteúdo normativo. Ofensa à autoridade da decisão do
STF. Não caracterização. Função legislativa que não é alcançada pela eficácia erga
omnes, nem pelo efeito vinculante da decisão cautelar na ação direta. Reclamação
indeferida liminarmente. Agravo regimental improvido. Inteligência do art. 102,
§ 2º, da CF, e do art. 28, parágarfo único, da Lei federal 9.868/1999. A eficácia geral
e o efeito vinculante de decisão, proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em ação
direta de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo
federal, só atingem os demais órgãos do Poder Judiciário e todos os do Poder Exe‑
cutivo, não alcançando o legislador, que pode editar nova lei com idêntico conteúdo
normativo, sem ofender a autoridade daquela decisão. [DJ de 20-5-2005.]

No mesmo sentido a ADI 2.903/PB, rel. min. Celso de Mello:


Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade (...) A eficácia vinculante, no processo
de controle abstrato de constitucionalidade, não se estende ao Poder Legislativo (...) –
Inconstitucionalidade caracterizada – Ação direta julgada procedente. (...) Direito a ter
direitos: uma prerrogativa básica, que se qualifica como fator de viabilização dos demais
direitos e liberdades – Direito essencial que assiste a qualquer pessoa, especialmente

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àquelas que nada têm e de que tudo necessitam. Prerrogativa fundamental que põe
em evidência – cuidando-se de pessoas necessitadas (CF, art 5º, LXXIV) – A significa-
tiva importância jurídico-institucional e político-social da Defensoria Pública. Legis-
lação que derroga diploma legal anteriormente submetido à fiscalização normativa
abstrata – Inocorrência, em tal hipótese, de usurpação da competência do Supremo
Tribunal Federal – A eficácia vinculante, no processo de controle abstrato de consti-
tucionalidade, não se estende ao Poder Legislativo. A mera instauração do processo
de controle normativo abstrato não se reveste, só por si, de efeitos inibitórios das
atividades normativas do Poder Legislativo, que não fica impossibilitado, por isso
mesmo, de revogar, enquanto pendente a respectiva ação direta, a própria lei objeto
de impugnação perante o Supremo Tribunal, podendo, até mesmo, reeditar o diploma
anteriormente pronunciado inconstitucional, eis que não se estende, ao parlamento,
a eficácia vinculante que resulta, naturalmente, da própria declaração de incons‑
titucionalidade proferida em sede concentrada. [DJ de 19-9-2008 – Grifos nossos.]

Ementa: Reclamação (...) Eficácia vinculante e fiscalização normativa abstrata de


constitucionalidade – Legitimidade constitucional do art. 28 da Lei 9.868/1999. As
decisões consubstanciadoras de declaração de constitucionalidade ou de incons‑
titucionalidade, inclusive aquelas que importem em interpretação conforme à
Constituição e em declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de
texto, quando proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de fiscalização
normativa abstrata, revestem-se de eficácia contra todos (erga omnes) e possuem
efeito vinculante em relação a todos os magistrados e tribunais, bem assim em
face da administração pública federal, estadual, distrital e municipal, impondo-se,
em consequência, à necessária observância por tais órgãos estatais, que deverão
adequar-se, por isso mesmo, em seus pronunciamentos, ao que a Suprema Corte,
em manifestação subordinante, houver decidido, seja no âmbito da ação direta
de inconstitucionalidade, seja no da ação declaratória de constitucionalidade, a
propósito da validade ou da invalidade jurídico-constitucional de determinada lei
ou ato normativo. Precedente. [Rcl 2.143 AgR/SP, rel. min. Celso de Mello, Plenário,
DJ de 6-6-2003.]

Em idêntico sentido, entre outros: ADI 2.797/DF, rel. min. Sepúlveda Pertence,


Plenário, DJ de 19-12-2006; Rcl 14.156 MC/DF, rel. min. Celso de Mello, decisão
monocrática, DJ de 5-4-2013; Rcl 13.019 MC/DF, rel. min. Celso de Mello, decisão
monocrática, DJ de 15-5-2012; Rcl 10.323 MC, de minha relatoria, decisão mono‑
crática, DJE de 2-8-2010; Rcl 5.442 MC, rel. min. Celso de Mello, decisão mono‑
crática, DJ de 6-9-2007.
E tanto assim o é que, em pelo menos duas situações, o Poder Legislativo,
supostamente contrariando o entendimento firmado nas ADI 2.797 e 3.772, teve a
oportunidade concreta de alterar, mediante leis aprovadas nos moldes constitu‑
cionalmente exigidos, o tratamento até então conferido a determinadas matérias.

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Republicanamente, essas novas leis foram posteriormente questionadas neste


Supremo Tribunal Federal, que, no exercício independente de sua atribuição
precípua, a de guardar a Constituição, afirmou a constitucionalidade dos novos
direitos assegurados aos destinatários das respectivas normas.
Sobre a não vinculação do Poder Legislativo ao que decidido pelo Supremo
Tribunal Federal nessas ações de controle concentrado, o ministro Gilmar
Mendes, em obra doutrinária, mencionada em vários dos precedentes acima
apontados, esclarece:
Poder-se-ia indagar se a eficácia erga omnes teria o condão de vincular o legisla‑
dor, de modo a impedi-lo de editar norma de teor idêntico àquela que foi objeto
de declaração de inconstitucionalidade.
A doutrina tedesca, firme na orientação segundo a qual a eficácia erga omnes
tal como a coisa julgada abrange exclusivamente a parte dispositiva da decisão,
responde negativamente à indagação. Uma nova lei, ainda que de teor idêntico ao
do texto normativo declarado inconstitucional, não estaria abrangida pela força
de lei. Também o Supremo Tribunal Federal tem entendido que a declaração de
inconstitucionalidade não impede o legislador de promulgar lei de conteúdo idên‑
tico ao do texto anteriormente censurado.
Tanto é assim que, nessas hipóteses, tem o Tribunal processado e julgado nova
ação direta, entendendo legítima a propositura de uma nova ação direta de incons‑
titucionalidade. [MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle
de constitucionalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 335.]

Clèmerson Clève também aduz:


Um certo controle preventivo da constitucionalidade é praticado no Brasil pelas
Comissões de Constituição e Justiça das Casas Legislativas, bem como pelos Chefes
do Poder Executivo das três esferas da federação, os últimos à medida em que estão
capacitados a vetar projetos de lei também por motivo de inconstitucionalidade
(art. 66, § 1º, da CF). É possível, por outro lado, no Brasil advogar a viabilidade, por
meio da ação direta, da fiscalização preventiva da constitucionalidade das emen‑
das à Constituição (inclusive as decorrentes da revisão), controle que não exclui o
concreto, como é o caso do mandado de segurança manejado por parlamentar para
a defesa de suas prerrogativas em face de proposta inconstitucional de emendas à
Constituição. [CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constituciona-
lidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 73-74.]

37. No presente mandado de segurança o que se pleiteia ultrapassa a legitimi‑


dade do impetrante, porque não se lhe está a negar direito-dever de participar
de deliberação insujeita ao debate e conclusão parlamentar e também a com‑
petência deste Supremo Tribunal Federal, que não pode exercer o controle de

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constitucionalidade da regular tramitação de projeto de lei que esteja coerente com


os comandos constitucionais relativos à competência da Casa política legislativa.
Uma das principais virtudes republicanas, abrigadas na ética constitucional do
sistema brasileiro vigente, é a garantia da autocontenção institucional e o reconhe‑
cimento dos limites da atuação constitucional de cada um dos Poderes da Repú‑
blica, circunscrito aos limites da competência que lhe tenha sido assegurada. Daí
por que o controle judicial preventivo de constitucionalidade há de ser tido como
excepcionalíssimo e a atuação do Supremo Tribunal parcimoniosa na matéria.
Inexistente abuso do Poder Legislativo no processamento do projeto de lei, o
que em nenhum momento demonstrou o impetrante, não se tem deflagrada a
competência jurídico-constitucional controladora de constitucionalidade pelo
Supremo Tribunal.
É de Jorge Miranda a lição segundo a qual:
A Constituição permite ao legislador escolher o tempo e as circunstâncias da sua
intervenção e determinar ou densificar o seu conteúdo, desde que respeitados os
fins, os valores e os critérios constitucionais. E a estrutura dos princípios e das
normas programáticas implica mesmo alternativas variáveis de concretização.
(...)
Só recorrendo à noção de desvio de poder legislativo pode aperceber-se o que
seja a violação dos princípios constitucionais, como o da igualdade e o da pro‑
porcionalidade; ou a violação de normas programáticas; e, em geral, de normas
não exequíveis por si mesmas, as quais não apenas proíbem a prática de compor‑
tamentos contrários como fixam diretivas para o legislador ordinário. Só através
da noção de desvio de poder legislativo pode sindicar-se o uso das autorizações
constitucionais de restrições e de suspensão de direitos fundamentais. Só através
dela pode sindicar-se o respeito pelo Parlamento da obrigação de definir bases
gerais, regimes gerais ou enquadramento de certas matérias; ou a obrigação de
definir o sentido das delegações ou autorizações legislativas. [MIRANDA, Jorge.
Teoria do Estado e da Constituição. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 425/453.]

38. Pelo exposto, acompanhando a divergência inaugurada pelo ministro Teori


Zavascki, e vencida no não conhecimento do presente mandado de segurança,
voto pela denegação da segurança.

VOTO
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Senhores Ministros, nossa Constituição asse‑
gura a plenitude do espaço destinado à livre elaboração e debate de ideias (art. 5º,
caput e IV, VI e IX da Constituição). Esse direito fundamental projeta-se para além

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da esfera individual e coletiva privada, de forma a também assegurar à discussão


política própria da atividade parlamentar as salvaguardas necessárias à boa e
motivada representação da vontade popular.
A propósito, as palavras e opiniões emitidas em regular atividade parlamentar
democrática são imunes à cassação (arts. 29, VIII, e 53, caput, da Constituição).
O texto constitucional é absolutamente inequívoco e rigoroso ao vedar da mais
tímida à mais ostensiva tentativa de calar o discurso cívico nos foros políticos.
O cancelamento do espaço de discussão civil equivale à supressão dos inúmeros
sacrifícios necessários à consolidação dos direitos fundamentais individuais e
coletivos à representação popular na condução do Estado.
Não vislumbro prejuízo de monta ao impetrante ou para o seu grupo parla‑
mentar caso tenham que aguardar a promulgação do diploma em discussão para
só então proporem a competente ação direta de inconstitucionalidade ou outra
medida que julgarem adequada.
A antecipação desse debate não tem cunho jurídico, apenas político, porque
permite, por meio dessa antecipação, obter algum tipo de constrangimento pú­­
blico, de maneira que o interesse dos parlamentares alcance de alguma maneira
um nível supostamente qualificado de repercussão.
Ora, uma corte suprema não foi pensada para albergar pretensões deste tipo.
Se existe um rito constitucional de impugnação da constitucionalidade das leis,
por que não segui-lo no presente caso?
O fato é que não observo qualquer tipo de violação ao processo legislativo que
justificasse o corte abrupto da atividade parlamentar. Não houve qualquer alegação
de grave desvio procedimental capaz de manietar quaisquer dos legítimos interes‑
ses representados no Congresso, nem de tolher vozes dissonantes ao conteúdo da
proposta. A definição da urgência na tramitação em nada reduziu a capacidade
do representante do povo de fazer ouvir as objeções de seu eleitorado na matéria.
Por outro lado, nenhum prejuízo haveria se, eventualmente transformada a
proposta em lei, o controle de constitucionalidade fosse acionado por meio do
devido processo judicial. Admitir o controle de conteúdo de proposta ainda em
debate no foro legislativo adequado, sem qualquer densidade normativa, causa
desnecessária fragilização dos mecanismos de checks and counterchecks e de
separação de Poderes de nosso sistema.
Indago retoricamente se alguma corte constitucional ou tribunal supremo
de países dotados de sólidas instituições políticas, republicanas e democráticas,
oferece algum precedente que registre caso de intervenção tão brusca quanto
insólita, a pretexto de restaurar o equilíbrio entre Poderes ou de preservar direi‑
tos. A resposta é negativa.

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Situações concretas de tensão entre os Poderes são corriqueiras em todas as


democracias, mas não há registro histórico de corte constitucional que tenha
impedido um parlamento de deliberar a respeito de matéria de sua competência.
Pude apurar que até mesmo na França não se tem registro de sustação pre‑
ventiva de deliberação de projeto de lei, ainda que o Conselho constitucional
tenha, em pelo menos uma oportunidade, decretado a inconstitucionalidade de
dispositivo legal que reproduzira conteúdo de diploma anterior, ainda que de
forma mais “suave” (Decisão 89-258 DC, de 8-7-1989). Tratava-se, naquele caso,
do art. 3º da lei de anistia adotada pelo parlamento em 3 de julho de 1989. No jul‑
gamento, a coisa julgada relativa à lei anteriormente declarada inconstitucional
suplantou a deliberação parlamentar mais recente, mas isso apenas depois de
transcorrido todo o processo legislativo, isto é, depois de aprovado, pelo parla‑
mento, o ato que veio a ser declarado inconstitucional.10
Deve-se supor, portanto, que assegurar a deliberação parlamentar é ponto de
honra do direito constitucional democrático, até porque é na oportunidade da delibe‑
ração que se pode realizar diálogo mínimo a respeito dos fins buscados pela norma.
O que se pretende aqui ultrapassa em arrogância até mesmo o controle prévio,
pois neste se aguarda necessariamente o esgotamento do processo legislativo.
O mandado de segurança contra proposta de ato legislativo é medida absolu‑
tamente excepcional na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Qualquer análise exaustiva dos precedentes da Corte vai constatar que as
oportunidades em que se reconheceu o cabimento do mandado de segurança
versavam hipóteses de envergadura ímpar, verdadeiras crises constitucionais.
No caso que consagrou a tese do cabimento excepcional da ação mandamental
(MS 20.257, rel. p/ o ac. min. Moreira Alves, julgamento em 8-10-1980), tratava-se,
por exemplo, de impugnação, por parlamentar, de proposta de emenda cons‑
titucional que permitia a extensão de mandatos de chefes do Poder Executivo
municipal. Aquele julgamento, ainda que tenha admitido o cabimento do man‑
dado de segurança, resultou no indeferimento da ordem.
No julgamento do MS 22.503, rel. min. Marco Aurélio, julgamento em 9-5-1996, a

10 Vale acrescentar que, de acordo com o art. 41 da Constituição de 4 de outubro de 1958, o


Conselho constitucional pode vir a ser acionado para decidir se determinado projeto em delibe-
ração no parlamento insere-se ou não no domínio da lei, isto é, se pode ou não ser votado pelo
Poder Legislativo, considerando-se os temas reservados à lei, o poder regulamentar autônomo
e a matéria reservada à lei que eventualmente tenha sido delegada ao governo (arts. 34, 37 e
38 da Constituição francesa). A medida por meio da qual o governo ou o presidente de uma
das casas do parlamento pode provocar a manifestação do Conselho constitucional recebe o
nome de “exception d’irrecevabilité”.

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impetração só veio a ser conhecida quanto ao argumento de que se tratava de rea‑


presentação de emenda constitucional anteriormente rejeitada na mesma sessão
legislativa e, neste ponto, veio a ser indeferida pelo Tribunal, ante a comprovação
de que o texto rejeitado era mero substitutivo, e não emenda propriamente dita.
Repito: qualquer análise exaustiva da jurisprudência da Corte vai concluir
que não há precedente no sentido pretendido pelo voto do relator, o qual, por
essa razão, pode ser descrito como perigosamente inovador.
O que se encontrará, se essa pesquisa jurisprudencial for realizada com aten‑
ção, zelo e boa-fé, sem os tortuosos contorcionismos que se encontram nesses
argumentos, serão os inúmeros casos em que este Tribunal assentou a absoluta
impossibilidade de se apreciar, por exemplo, mandado de segurança em que a
proposta legislativa alvo da impetração foi promulgada no curso do processo
judicial (ver, por exemplo, MS 24.645, rel. min. Celso de Mello, DJ de 27-11-2003).
A razão para essa conclusão, que me parece bastante óbvia, é a impossibilidade
lógica e minimamente coerente de se decretar via mandado de segurança a nuli‑
dade de lei em gestação, ante o total descompromisso para com a soberania
popular embutido na mera afirmação dessa temerosa possibilidade.
O diagnóstico, precipitado, de que a proposta legislativa impugnada revelaria
a preponderância iníqua da maioria sobre a minoria exige, como sempre, uma
distinção prévia. De que minorias estamos tratando? É possível falar, em nosso
regime, da existência de minorias parlamentares? Será que a nossa prática par‑
lamentar admite o rótulo, aplicável a várias outras democracias, de uma disputa
clara e transparente entre maioria e minoria plenamente identificáveis, tais como
faz crer o impetrante? Será que a situação descrita nestes autos não revela apenas
a reprodução da antiga prática do transfuguismo parlamentar, motivado pela
conjuntura política e pela aproximação das eleições?
Do ponto de vista da jurisprudência da Corte, que é o que realmente nos
interessa, a noção de minoria parlamentar ingressou no debate a respeito do
processo legislativo em um lapidar acórdão relatado pelo ministro Celso de
Mello (MS 24.849), julgado em 22-6-2005. Como se sabe, discutiu-se, naquela
oportunidade, se havia suporte constitucional para o alegado direito de um grupo
parlamentar minoritário de ver em funcionamento determinada comissão par‑
lamentar de inquérito cuja constituição encontrava-se obstada por omissão
imputada ao presidente do Senado Federal. A conclusão do julgamento, favorá‑
vel aos impetrantes, revela que o reconhecimento judicial da noção de minoria
tem seu gérmen em um contexto de disputa política pelo exercício da atribuição
parlamentar de fiscalizar o exercício do poder. Competência absolutamente
legítima e salutar, tal encargo não se confunde com a competência legiferante

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do órgão parlamentar, cujo exercício se organiza, em nosso sistema, justamente


pelo confronto democrático das posições divergentes, por meio dos processos de
votação. Para o processo de elaboração de leis, não parece útil, à primeira vista,
valer-se da noção de minoria, tal como consagrada naquele acórdão, salvo se
estivermos falando de hipótese absolutamente nítida de perseguição política, o
que não me parece claramente demonstrado, ainda, no presente caso.
Ante o exposto, denego a segurança.

EXPLICAÇÃO
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Vossa Excelência me permite uma con‑
sideração? Já se discutiu amplamente esse assunto aqui e, a mim, parece-me
muito claro que, se se aceita o controle de constitucionalidade – e isso não está
em xeque, não está em questão – em relação às emendas constitucionais, com
maior razão há de se aceitar – e Vossa Excelência destaca isso muito bem – em
relação a projetos de lei que tentem contornar as cláusulas pétreas por razões
óbvias: porque temos, de fato, um rito procedimental próprio para as emendas
que não se faz presente em relação aos projetos de lei.
Disse-se também que, neste caso, era adequado que se deixasse ao Congresso
a liberdade para deliberar e para, sobretudo, debater o projeto. Num aparte que
fiz à ministra Rosa Weber, quando nós discutimos o tema, eu dizia que esse é o
livre diálogo que se está a estabelecer entre a faca e o pescoço, porque, de fato,
não há debate nenhum. Se houvesse propósito de debate, essa matéria estaria
na Comissão de Constituição e Justiça.
O sr. ministro Celso de Mello: Para lá, não foi encaminhada.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Mas não no âmbito do Plenário para
ser discutido. Disse-se também que, em relação aos precedentes anteriores,
discutiu-se processo legislativo e, por isso, justificava-se a concessão de liminar,
com maior razão, aqui, em que nós estamos discutindo, sim, violação à cláusula
pétrea. Nós vimos precedentes em que se deu liminar por conta de contagem de
votos em matéria interna corporis, como a Corte veio a reconhecer: se se contava
por voto ou se se contava por ponto eletrônico. E a Corte veio a dizer que aí é
questão interna corporis, mesmo. E de fato era. Mas aqui, não, o que se está a
discutir é de fato cláusula pétrea.
Portanto, eu tenho absoluta convicção – e é importante que se frise que não se
está a deliberar para frustrar a liberdade do Congresso Nacional. Todos querem
que o Congresso Nacional, e eu ressaltei aqui, delibere e debata as questões.
O que não houve, neste caso, foi debate. Na Câmara, votação em menos de 24

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  527


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horas e, no Senado, não fosse a liminar, entre a urgência e a votação, em menos


de 1 hora haveria deliberação. É bom que isso seja frisado.
O sr. ministro Celso de Mello: E é importante ressaltar também que o Su­­
premo Tribunal Federal já interveio no próprio processo de formação das leis
e julgou o mérito.
E eu destaco, sim, um caso de Pernambuco – está na Revista de Direito Adminis-
trativo, v. 70, p. 308 –, caso de que foi relator o saudoso ministro Ary Franco. O que
aconteceu? Um determinado projeto de lei, aprovado pela Assembleia Le­­gislativa
do Estado de Pernambuco, foi encaminhado ao governador do Estado, que o
vetou. Portanto, nós estamos cuidando do veto que representa um momento que
compõe a fase complementar do processo legislativo. E, naquele momento, Cons‑
tituição de 1946, o prazo para sancionar ou vetar era de dez dias, não de quinze
dias úteis, como hoje. Naquele decêndio, depois de encaminhada a mensagem
de veto à Assembleia, o governador se retrata do seu veto e diz: “não, reconside‑
rando alguns outros aspectos novos que foram submetidos a mim, eu entendo
que devo retratar-me do veto que eu manifestei”. E o fez, ainda no prazo consti‑
tucional de dez dias. Naquela época, eram dez dias. A questão veio ao Supremo
Tribunal Federal, por iniciativa do eminente procurador-geral da República, e
o Supremo Tribunal Federal entendeu inconstitucional esse procedimento do
governador do Estado na fase complementar do processo de formação das leis,
dizendo que: “vetado o projeto, não pode o governador retratar-se e sancioná-lo”.
E qual foi a consequência desse julgamento iniciado nesta Corte por iniciativa
do saudoso e então procurador-geral da República, posteriormente ministro da
Corte, Carlos Medeiros Silva? Foi o de que o processo legislativo – é o de que se
cuida – deveria ser remetido à Assembleia Legislativa do Estado para que essa
se manifestasse sobre o quê? Sobre o veto que o governador pretendeu retirar,
do qual ele se retratou. Então, o Supremo Tribunal Federal interveio e discutiu
essa questão na então Rp 432.

DEBATE
O sr. ministro Dias Toffoli: Essas tentativas não ocorrem só em regimes de
exceção.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Dias Toffoli: Nós estamos verificando na Argentina, atual‑
mente, um intenso debate, inclusive com um pacote de leis editadas para impedir
decisões liminares das cortes de Justiça e do Judiciário contra atos de governo.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)

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O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): E, no dia em que esse projeto foi
aprovado – é bom não esquecer isso, eu friso porque há um dado simbólico
importante –, na Câmara dos Deputados, foi aprovada, também na Comissão de
Constituição e Justiça, a proposta daquele deputado Nazareno de tal que fechava
este Tribunal, encerrava as suas atividades, se aprovada. É preciso que isso seja
relembrado e reafirmado.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Dias Toffoli: A vigilância é permanente.

EXPLICAÇÃO
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Sobre isso, foi dito, de forma muito
alargada, que esse controle preventivo que se estava a estabelecer – e eu penso
que está demonstrado no meu voto que não havia nenhuma novidade – era
algo de novo. Parece que o que há de novo nesse processo é a desinformação
e a ignorância.

DEBATE
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, esta votação é continuação de uma
votação que já se iniciou em várias outras sessões. De sorte que nós estamos aqui
de forma urbana, ouvindo os votos que estão sendo proferidos.
Evidentemente que a característica do Colegiado é a diversidade de opiniões
e conviver com essa adversidade de opiniões. E a maioria, baseada numa larga
jurisprudência e na doutrina constitucional, inclusive apregoada por doutrinado‑
res que pertencem a essa bancada, curvaram-se à ideia de que há uma anomalia
na ingerência do poder político quando o Judiciário exerce o controle prévio de
constitucionalidade da lei, não previsto no nosso sistema.
Eu tenho a impressão de que algo de novo que houve aqui neste julgamento
agora foi exatamente, talvez, uma falta de tolerância com a adversidade do ponto
de vista diverso. O ministro Gilmar aludiu a uma insciência dos nossos colegas
em relação a esses...
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Eu não!
O sr. ministro Luiz Fux: ...a esses precedentes a que se refere o ministro Celso
de Mello.
A verdade é que cada um de nós tem uma visão acerca do que se está deba‑
tendo e fundamenta, dá a sua roupagem jurídica àquilo que foi decidido, data
maxima venia.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  529


O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Vossa Excelência está confundindo.
Eu fiz referência a todo debate que o ministro Celso está fazendo sobre a celeuma
na imprensa a propósito do tema, desde a liminar.
O sr. ministro Luiz Fux: Vossa Excelência se referiu que o que há de novo
neste julgamento é a ignorância.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não! O que há de novo na matéria.
Vossa Excelência não, não...
O sr. ministro Luiz Fux: Mas ignorância de quem? A ignorância seria de quem,
essa ignorância?
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Foram escritos artigos sobre esse
assunto, foi dito, na imprensa, que isso era novo. O ministro Celso está citando
a matéria desde o começo, e eu disse que o que há de novo nesse fato é a igno‑
rância, quando se diz – e estou reafirmando –, quando se diz que, de fato, não
tinha precedente a propósito do tema.
O sr. ministro Luiz Fux: Não, a verdade é a seguinte: nós assentamos que...
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Ah, Vossa Excelência não quer me
interpelar! Ora! Ah!
O sr. ministro Luiz Fux: Claro que vou interpelar, porque eu não vou admitir
que Vossa Excelência diga que eu tenha agido com ignorância. Eu posso enten‑
der que a ignorância reside exatamente num doutrinador assentar um sistema
de constitucionalidade rígido, como é o nosso, e admitir, através de mandado de
segurança, o controle da constitucionalidade material das leis.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Ora!
O sr. ministro Luiz Fux: Então, eu repudio, se a mim se refere esse adjetivo.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)

EXPLICAÇÃO
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Vossa Excelência me permite? Essa ques‑
tão sobre o efeito vinculante, que já foi objeto de discussão a partir da Emenda
3/1993, não tem o significado que se pretende atribuir; o que se afirma é que não
há a vinculação ao legislador para fins do cabimento de eventual reclamação
contra uma medida que contraria aquela orientação, mas não significa que ele
não esteja vinculado, por exemplo, à coisa julgada material ou à eficácia erga
omnes da decisão, que é ultra partes.
Veja o exemplo de uma interpretação conforme que se adota, como se adotou,
no caso; obviamente que essa decisão faz coisa julgada, inclusive em relação
ao legislador, da mesma forma como tem ocorrido até mesmo nos casos de

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  530


uma declaração de constitucionalidade, com o obiter dictum eventual de uma
mudança ou de uma evolução para a inconstitucionalidade, a lei ainda consti‑
tucional. Óbvio que esse apelo ou essa ordem é voltada para o legislador. Ou,
ainda, os casos que nós temos do art. 27, declaração de inconstitucionalidade sem
pronúncia da nulidade para que o legislador complemente os casos de omissão
parcial. Claro que é uma ordem voltada para o legislador.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)

EXTRATO DA ATA
MS 32.033/DF — Relator: Ministro Gilmar Mendes. Relator para o acórdão: Minis‑
tro Teori Zavascki. Impetrante: Rodrigo Sobral Rollemberg (Advogada: Maria
Claudia Bucchianeri Pinheiro). Impetrados: Presidente da Câmara dos Deputados
(Advogado: Advogado-geral da União) e presidente do Senado Federal (Advo‑
gados: Alberto Cascais e outros). Interessados: Partido Socialista dos Trabalha‑
dores Unificado – PSTU (Advogados: Bruno Colares Soares Figueiredo Alves e
outros), Rede Sustentabilidade (Advogado: Rogerio Paz Lima), Partido Político
Solidariedade (Advogado: Marcilio Duarte Lima), Pedro Taques (Advogados:
Marco Aurélio Marrafon e outros), Carlos Henrique Focesi Sampaio (Advogada:
Alessia Barroso Lima Brito Campos Chevitarese) e Partido Popular Socialista –
PPS (Advogados: Fabrício de Alencastro Gaertner e outros).
Decisão: Preliminarmente, o Tribunal, por maioria, negou provimento ao
agravo regimental interposto pela União, que impugnava a admissão dos amici
curiae, vencidos os ministros Teori Zavascki, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio
e Joaquim Barbosa (presidente). Por maioria, o Tribunal conheceu do mandado
de segurança, vencidos os ministros Marco Aurélio e Cármen Lúcia, e, no mérito,
indeferiu-o e cassou a liminar concedida, vencidos os ministros Gilmar Mendes
(relator), Dias Toffoli e Celso de Mello, que deferiam em parte o mandado de segu‑
rança. Votou o presidente. Redigirá o acórdão o ministro Teori Zavascki. Retifi‑
cada a proclamação da assentada do dia 5 de junho, para constar que o ministro
Joaquim Barbosa (presidente) dava provimento ao agravo regimental da União.
Presidência do ministro Joaquim Barbosa. Presentes à sessão os ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen
Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavascki. Procurador-geral da
República, doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 20 de junho de 2013 — Luiz Tomimatsu, assessor-chefe do Plenário.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  531


HC 94.240

HABEAS CORPUS 94.240 — SP


Relator: O sr. ministro Dias Toffoli
Paciente: César Antonio Muzetti
Impetrantes: Antônio de Pádua Faria e outros
Coator: Superior Tribunal de Justiça

Habeas corpus. Penal. Processual penal. Crime contra a ordem


tributária. Art. 1º, I, da Lei 8.137/1990. Desclassificação para tipo
previsto no art. 2º, I, da indigitada lei. Questão não analisada
pelo Superior Tribunal de Justiça. Supressão de instância. Inad‑
missibilidade. Precedentes. Alegada atipicidade da conduta
baseada na circunstância de que os valores movimentados nas
contas bancárias do paciente seriam provenientes de contra‑
venção penal. Art. 58 do Decreto-Lei 6.259/1944 – jogo do bicho.
Possibilidade jurídica de tributação sobre valores oriundos
de prática ou atividade ilícita. Princípio do direito tributá‑
rio do non olet. Precedente. Ordem parcialmente conhecida
e denegada.
1. A pretendida desclassificação do tipo previsto no art. 1º, I, para
art. 2º, I, da Lei 8.137/1990 não foi analisada pelo Superior Tribunal de
Justiça. Com efeito, sua análise neste ensejo configuraria, na linha de
precedentes, verdadeira supressão de instância, o que não se admite.
2. A jurisprudência da Corte, à luz do art. 118 do Código Tributá‑
rio Nacional, assentou entendimento de ser possível a tributação de
renda obtida em razão de atividade ilícita, visto que a definição legal
do fato gerador é interpretada com abstração da validade jurídica do
ato efetivamente praticado, bem como da natureza do seu objeto ou

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HC 94.240

dos seus efeitos. Princípio do non olet. Vide o HC 77.530/RS, Primeira


Turma, rel. min. Sepúlveda Pertence, DJ de 18-9-1998.
3. Ordem parcialmente conhecida e denegada.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a presidência da ministra Cármen Lúcia,
na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria
de votos, em conhecer, em parte, da ordem de habeas corpus e, nessa parte, a
denegar, nos termos do voto do relator.
Brasília, 23 de agosto de 2011 — Dias Toffoli, relator.

RELATÓRIO
O sr. ministro Dias Toffoli: Habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado
pelos advogados Antônio de Pádua Faria e Ronald M. Silva Marques em favor de
César Antonio Muzetti, apontando como órgão coator a Quinta Turma do Superior
Tribunal de Justiça, que denegou a ordem no HC 83.292/SP, rel. min. Felix Fischer,
impetrado àquela Corte com o mesmo objetivo perseguido nesta oportunidade.
Narram os impetrantes que o paciente sofre constrangimento ilegal, pois foi
condenado pelo crime tributário previsto no art. 1º, II, da Lei 8.137/1990, decisão
essa mantida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região na apelação por ele
interposta.
Alegam que:
(...) a condenação imposta ao Paciente se apresenta absolutamente dissociada do
fato jurídico submetido à apreciação jurisdicional, revelando a flagrante atipici-
dade da conduta, violadora de textos expressos de Lei, encartados no artigo 166
do Código Civil, no artigo 114 do Código Tributário Nacional, artigo 91, inciso II,
alínea b, do Código Penal e no artigo 125 do Código de Processo Penal, além da
própria interpretação sistemática do nosso Direito, revelada por posicionamento
de Tribunal Superior, deve ser concedida a presente Ordem de Habeas Corpus para
anular o Venerando Acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, assim
como todo o processo, a partir do recebimento da denúncia, determinando-se,
como consequência, o arquivamento do feito, face à prescrição da conduta ilícita
remanescente, consistente na prática da contravenção penal do “jogo do bicho”,
de modo a conceder o respectivo writ em favor do Paciente.
(...)
(...) a interpretação sistemática do nosso Direito fulmina de nulidade todo e

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  533


HC 94.240

qualquer resultado decorrente do ato ilícito, não podendo, por essa razão, ser man‑
tido o Venerando Acórdão proferido pela colenda 5ª Turma do Tribunal Regional
Federal da 3ª Região, seja porque tal decisão contraria entendimento de Tribunal
que lhe é Superior, seja porque, no mérito, ao reconhecer a existência de tributo
decorrente de ato ilícito, decide de maneira contrária a texto expresso de Lei,
revelando, com isso, a atipicidade da conduta praticada pelo Paciente.
Por outro lado, já não bastasse a existência de decisão proferida pelo Tribunal
Superior em regular processo de uniformização de jurisprudência, como acima
citado, não é demais acrescentar a presente Impetração as várias outras violações
de princípios elementares de Direito, que maculam a denúncia de inépcia e o Vene‑
rando Acórdão de nulidade, em razão da flagrante atipicidade nele contemplada.
Induzido a erro pela Autoridade Policial, indignada com a política criminal ado‑
tada para o combate do “jogo do bicho”, o Ministério Público Federal, visando
configurar crime mais grave para o Paciente, ofereceu denúncia manifestamente
inepta, tendo em vista o inequívoco desacerto entre o fato jurídico e o tipo penal
imputado, como já amplamente demonstrado. [Fls. 9 a 13.]

Sustentam, ainda, que:


À vista desses elementos doutrinários que informam e dão os contornos à inter‑
pretação sistemática do nosso ordenamento jurídico, é inegável que a respeitável
decisão, proferida pelo Egrégio Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que manteve
a condenação do Paciente nas penas do artigo 1º, inciso II, da Lei n. 8.137/90, não
guarda qualquer relação com o fato jurídico que se propôs solucionar, agindo
como se a contravenção penal do “jogo do bicho” não fosse um fato típico e anti‑
jurídico e como se não tivesse tutela jurídica própria, como demonstrará a seguir:
A contravenção penal do “jogo do bicho” se constitui em conduta penalmente
sancionada, com tutela jurídica, conduta e resultados próprios.
Toda figura típica visa a preservar algum bem juridicamente tutelado e a sua
previsão na lei penal não é mero capricho, mas existe para coibir práticas que
atentam à algum destes bens juridicamente tutelados, sendo que, notadamente,
a contravenção penal do “jogo do bicho” visa à “manutenção dos bons costumes”,
como assinala Damásio de Jesus:
A previsão do “jogo do bicho” como fato punível representa uma política preven‑
tiva do Estado brasileiro com as finalidades de manter um comportamento social
dentro da moralidade e dos bons costumes – prevenção – e de reprimir as práticas
que atentam contra esse comportamento social – repressão.
Já o crime contra a Ordem Tributária, como diz o seu próprio nomem iuris, tem
como bem juridicamente tutelado a Administração do Estado brasileiro, prote‑
gendo o seu poder arrecadatório.
A derrogada Lei n. 4.729/65, bem como a vigente Lei n. 8.137/90 foram editadas
com a finalidade precípua de coibir a sonegação fiscal, visando, com isso, incre‑
mentar a arrecadação da Fazenda Pública.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  534


HC 94.240

Como se vê, as figuras delitivas não guardam qualquer semelhança entre si e


nem podem ser consequência uma da outra, pois a contravenção penal o “jogo do
bicho”, figura típica que é, nunca poderá servir de atividade lícita, que é um dos
pressupostos para a cobrança de tributos. [Fls. 14 a 16.]

Mais adiante, aduzem que o enquadramento do fato típico para o caso con‑
creto seria aquele previsto no art. 2º, I, da Lei 8.137/1990, e não o do art. 1º, I, no
qual foi o paciente condenado.
Em caráter liminar, requerem a expedição de salvo-conduto em favor do
paciente, até a decisão final do writ (fl. 15).
No mérito, trazem os seguintes pedidos:
II – Por todo o exposto, é de rigor o enfrentamento da questio iuris lançada com a
presente Impetração, como forma de uniformizar a interpretação sistemática do
nosso Direito pátrio, no que se refere à contravenção penal do “jogo do bicho”, a
qual, para as mais diversas áreas do direito brasileiro, é absolutamente incapaz
de gerar qualquer consequência de direito, por representar ato ilícito, incapaz,
também, de configurar fato gerador de cobrança de tributo;
III – Ademais, requer-se que se realize a correta subsunção do fato à norma,
desclassificando-se o tipo penal a qual foi condenado o paciente, visto que o caso
concreto enquadra-se definitivamente à letra do art. 2º, I da Lei n. 8.137/90.
Dessa forma, verificando-se a flagrante atipicidade da conduta imputada ao
Paciente, bem como o flagrante equívoco de enquadramento penal ao caso con‑
creto, denota-se que a concessão da presente Ordem de Habeas Corpus é medida
que se impõe, para reformar a r. decisão o Venerando Acórdão proferido pelo
Superior Tribunal de Justiça, assim como todo o processo, a partir do recebimento
da denúncia, determinando-se, como consequência, o arquivamento do feito, face
à prescrição da conduta ilícita remanescente, consistente na prática da contra‑
venção penal do “jogo do bicho”, pondo fim ao inegável constrangimento ilegal a
que o Paciente se encontra submetido, e tendo em vista, ainda, que o Venerando
Acórdão, está desacordo com decisão proferida pelo próprio Tribunal Superior,
obtida em processo regular de uniformização de jurisprudência, atendendo-se,
dessa forma, à função constitucional de uniformização da interpretação sistemá‑
tica do nosso ordenamento jurídico. [Fls. 20/21 – Grifos no original.]

Em 7-4-2008, o saudoso ministro Menezes Direito indeferiu o pedido de limi‑


nar, solicitou informações à autoridade apontada como coatora e determinou que
se encaminhassem os autos à Presidência desta Suprema Corte, para análise de
eventual prevenção do ministro Ayres Britto, relator do AI 625.419/SP (fls. 69 a 78).
Em 8-5-2008, o eminente ministro Gilmar Mendes não reconheceu a existên‑
cia da alegada prevenção (fls. 83/84).
As informações foram prestadas (fls. 86 a 98).

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  535


HC 94.240

O Ministério Público Federal, pelo parecer do ilustre subprocurador-ge­­ral da


República doutor Mario José Gisi, opinou pela denegação da ordem (fls. 101 a 105).
Em 9-7-2008, os impetrantes, por intermédio da petição/STF 97.973/2008,
requereram juntada da cópia das principais peças do processo originário (fl. 108).
Em nova manifestação referente à petição suso mencionada, o ilustre subpro‑
curador-geral da República doutor Mario José Gisi ratificou o parecer anterior
pela denegação da ordem (fls. 389 a 396).
É o relatório.

VOTO
O sr. ministro Dias Toffoli (relator): Conforme relatado, volta-se essa impetra‑
ção contra ato da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que denegou a
ordem no HC 83.292/SP, rel. min. Felix Fischer.
Do relatório elaborado no HC 83.292/SP pelo eminente relator, colhe-se a
informação de que o paciente foi condenado à pena de quatro anos, nove meses
e dezoito dias de reclusão, pela prática do crime previsto no art. 1º, I, da Lei
8.137/1990, a ser cumprida em regime semiaberto.
Contra essa decisão, o paciente interpôs apelação para o Tribunal Regional
Federal da 3ª Região, que negou provimento ao recurso.
Alegando as mesmas nulidades apontadas nesta ação, foi impetrado habeas
corpus no Superior Tribunal de Justiça, que denegou a ordem, nos seguintes termos:
Penal. Habeas corpus. Art. 1º, I, da Lei n. 8.137/90. Sonegação fiscal de lucro advindo
de atividades ilícitas. “Non olet”.
Segundo a orientação jurisprudencial firmada nesta Corte e no Pretório Excelso,
é possível a tributação sobre rendimentos auferidos de atividade ilícita, seja de
natureza civil ou penal; o pagamento de tributo não é uma sanção (art. 4º do
CTN – “que não constitui sanção por ato ilícito”), mas uma arrecadação decorrente
de renda ou lucro percebidos, mesmo que obtidos de forma ilícita (STJ: HC 7.444/
RS, 5ª Turma, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ de 3-8-1998). A exoneração tributária dos
resultados econômicos de fato criminoso – antes de ser corolário do princípio da
moralidade – constitui violação do princípio de isonomia fiscal, de manifesta ins‑
piração ética (STF: HC 77.530/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence,
DJU de 18-9-1998). Ainda, de acordo com o art. 118 do Código Tributário Nacional a
definição legal do fato gerador é interpretada com abstração da validade jurídica
dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis ou terceiros,
bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos (STJ: REsp 182.563/RJ, 5ª
Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU de 23-11-1998).
Habeas corpus denegado. [Fl. 24 – Grifos conforme o original.]

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  536


HC 94.240

Essa é a decisão contra a qual se insurgem os impetrantes no presente habeas


corpus.
Pelo que se tem na decisão proferida pela Quinta Turma do Superior Tribunal,
não se vislumbra nenhuma ilegalidade flagrante, abuso de poder ou teratologia
que justifique a concessão da ordem. Com efeito, o julgado proferido por aquela
Corte de Justiça encontra-se suficientemente fundamentado, estando devida‑
mente justificado o convencimento formado, além de estar em sintonia com a
pacífica jurisprudência da Corte. Vejamos.
O paciente foi condenado pelo crime previsto no art. 1º, I, da Lei 8.137/1990,
porque teria prestado declarações falsas às autoridades fazendárias.
No voto proferido pelo ministro Felix Fischer, está o resumo de como se deram
os fatos tidos como delituosos:
Segundo consta dos autos, nos anos de 1997 e 1998, o paciente obteve em suas contas
bancárias depósitos no valor total de R$ 924.539,73 (novecentos e vinte e quatro mil,
quinhentos e trinta e nove reais e setenta centavos), apesar de constar em sua decla‑
ração de Imposto de Renda rendimentos de R$ 14.246,77 (quatorze mil, duzentos e
quarenta e seis reais e setenta e sete centavos), em 1997, ano-calendário 1996, e R$
12.765,00 (doze mil, setecentos e sessenta e cinco reais), em 1998, ano-calendário 1997.
No punctum saliens, quanto a autoria e materialidade, assim, se pronunciou o
e. Tribunal a quo:
“Materialidade. A materialidade do delito está comprovada pelos seguintes
elementos:
a) declarações de Imposto sobre a Renda Pessoa Física do réu, relativas aos
exercícios de 1997 e 1998 (fls. 78/79 e 95/98);
b) informação fiscal da Receita Federal emitida a partir da análise dos dados
bancários em cotejo com os dados fiscais do acusado (fls. 738/748);
c) documentos de fls. 791/799 e 802;
d) depósitos bancários de fls. 823/906;
e) cópias dos extratos bancários (fls. 907/999 e 1002/1032);
f) termo de inscrição na dívida ativa (fls. 1042/1045).
Autoria. De início, cumpre observar que as informações bancárias (extratos)
e fiscais (declarações de Imposto sobre a Renda Pessoa Física) que comprovam
o volume de gasto a descoberto foram obtidas mediante adequada requisição
judicial. A quebra do sigilo bancário, fiscal e tributário foi autorizada judicial‑
mente (fl. 101).
Não há qualquer dúvida de que o acusado é responsável pelo fato material‑
mente ocorrido, consoante evidenciam as declarações de rendimentos de fls.
78/79 e 95/98, por ele subscritas.
A fiscalização efetuada pela Receita Federal concluiu que os valores deposi‑
tados nas contas-correntes do réu foram consumidos e não informados nas

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  537


HC 94.240

declarações do Imposto sobre a Renda Pessoa Física, sendo que deveriam ser
tributados (fl. 747).
A testemunha de acusação, Wladimir Machado Vieira, Auditor Fiscal da Re­­
ceita Federal, em seu depoimento judicial confirmou o teor do auto de infração
de fls. 795/799, esclarecendo que foi lavrado pela ausência de recolhimentos de
Imposto sobre a Renda Pessoa Física dos anos de 1997 e 1998:
‘(...) que procedeu, na qualidade de agente fiscal, a uma fiscalização na
vida pessoal do réu, a partir de uma solicitação judicial, e esta fiscalização
constatou, a partir da quebra de sigilo bancário, uma movimentação finan‑
ceira acima da renda declarada, nos anos de 1995 a 1999; foi lavrado auto de
infração quanto aos anos de 1997 e 1998 pela ausência de recolhimentos de
imposto de renda de pessoa física e quanto a 1999, constatou a testemunha
que a movimentação financeira não daria razão a obrigação de declarar
imposto de renda; diz ainda que o réu foi intimado várias vezes para justi‑
ficar sua movimentação financeira, nunca o fez oficialmente; em algumas
conversas extraoficiais, disse à testemunha que esta movimentação se devia
a empréstimos que pegava em uma época e pagava posteriormente.’ (fl. 1070)
Não procede o argumento de atipicidade da conduta para o crime contra a
ordem tributária, dado que os valores movimentados nas contas bancárias do
réu seriam provenientes de contravenção penal.
Cumpre ressaltar que, na fase inquisitorial, o réu preferiu exercer o direito de
permanecer calado (fl. 762). Em seu interrogatório judicial, todavia, esclareceu
que, no período descrito na denúncia, era microempresário do ramo de comér‑
cio de frios e que o dinheiro depositado em sua conta-corrente provinha das
vendas que realizava. Além disso, negou sua vinculação à contravenção penal
denominada jogo do bicho, consoante transcrevo:
(...)
Não há nenhuma dúvida acerca da realização de depósitos nas contas do
acusado, a implicar auferimento de renda sujeita à tributação. A exemplo do
réu, as testemunhas de defesa aduzem que essa receita decorreria de empre‑
endimento comercial irregular, posto que desprovido de documentação fiscal.
Por outro lado, a alegada origem ilícita do rendimento, tido como proveniente
do “jogo do bicho”, não desconfigura o fato gerador do Imposto sobre a Renda
e, consequentemente, do delito de sonegação fiscal.
A verdade é que a sonegação fiscal decorre da falsidade das declarações de
rendimentos, as quais são de responsabilidade do acusado.
A defesa apresentada não produziu nenhuma prova apta a afastar a culpa‑
bilidade do réu.
Acresça-se que, na fase do art. 499 do Código de Processo Penal, decorreu in
albis o prazo para manifestação da defesa (fl. 1105).
Sendo incontroverso que, no período descrito na denúncia, o acusado omitiu
informações nas declarações de Imposto sobre a Renda, é dificultoso sustentar
sua não culpabilidade pelo delito cometido por meio dessa conduta.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  538


HC 94.240

Em suas razões, a defesa sustenta que a atividade ilícita não se sujeita à tributa‑
ção, pois não seria legítimo que o Estado participasse do seu resultado. Ademais,
o produto do crime deve ser objeto de confisco ou perdimento. Contudo, não se
trata de fazer do Estado sócio na empreitada criminosa, cujo resultado espúrio
enseja a sanção penal específica. A questão presente concerne à incidência de
Imposto sobre a Renda em decorrência da percepção da renda, não de que esta
deva ser repassada ao Estado. Por isso que a tributação in casu não consubs‑
tancia sanção por ato ilícito. Ao contrário, a atividade de realizar depósitos em
instituição financeira não é crime nem contravenção. É certo que, atualmente,
é forte a tendência de se fiscalizar a origem dos recursos movimentados nessas
instituições. No entanto, isso para coibir o crime e impedir o seu exaurimento.
O controle da movimentação financeira não é fenômeno elisivo da tributação
pertinente, a qual observa seu regime jurídico específico.
À vista do conjunto probatório, não há dúvida quanto à materialidade e a autoria,
justificando-se a condenação” (fls. 61/62). [Fls. 24 a 27.]

Os impetrantes sustentam que foi imposto constrangimento ilegal ao paciente,


pois o enquadramento do fato típico para o caso concreto seria o previsto no
art. 2º, I, da Lei 8.137/1990, e não aquele previsto no art. 1º, I, com base no qual
ele foi condenado. Contudo, a questão não pode ser analisada por esta Suprema
Corte, visto que ela não foi analisada pelo Superior Tribunal de Justiça. Desse
modo, a apreciação desse tema, de forma originária, neste ensejo, configuraria
verdadeira supressão de instância, o que não é admitido por esta Suprema Corte.
Nesse sentido: HC 96.977/PA, Primeira Turma, rel. min. Ricardo Lewan­dowski,
DJE de 1º-7-2009; HC 96.220/PR, Primeira Turma, rel. min. Cármen Lúcia, DJE
de 1º-7-2009; e HC 90.654/SP, Primeira Turma, rel. min. Sepúlveda Pertence, DJ
de 25-5-2007.
Ainda que superado esse óbice processual, apenas para fins de registro, destaco
existirem elementos concretos e suficientes para que as condutas do paciente
tenham tipificação no art. 1º, I, da Lei 8.137/1990, com base no qual foi ele con‑
denado. Note-se que o paciente omitiu à Receita Federal a existência de movi‑
mentação, em suas contas bancárias, de vultosa quantia (R$ 924.539,70), diga-se
de passagem, muito superior à renda por ele declarada no período de 1997 (R$
14.246,77) e 1998 (R$ 12.765,00). Portanto, à luz do que consta dos autos, não há
dúvidas acerca da materialidade das condutas, sendo certo que, na via estreita
do habeas corpus, não é possível maior aprofundamento sobre a controvertida
tipificação penal, principalmente porque isso demandaria a análise dos ele‑
mentos fático-probatórios ligados ao mérito da ação penal. Dessa forma, não
há como afastar, de plano, a tipicidade das condutas tidas como configuradoras
do crime em questão.

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HC 94.240

Aliás, nas palavras do ilustre subprocurador-geral da República doutor Mário


José Gisi, “o tipo incriminador caracteriza-se com a omissão da declaração às autori‑
dades fazendárias da totalidade das rendas auferidas pelo paciente, buscando supri‑
mir o tributo devido. A omissão dolosa restou configurada a partir da verificação da
existência de depósitos incompatíveis com os valores lançados nas declarações de
renda no período de 1997 e 1998, que mostrou a aquisição de disponibilidade econô‑
mica pelo réu e a consequente omissão em declará-los à Receita Federal” (fl. 394).
De mais a mais, como é sabido, o trancamento da ação penal por ausência
de justa causa é medida excepcional, justificando-se quando despontar, fora de
dúvida, atipicidade da conduta, causa extintiva da punibilidade ou ausência
de indícios de autoria, o que não ocorreu no caso sob exame (HC 106.271/ES,
Primeira Turma, rel. min. Cármen Lúcia, DJE de 6-5-2011; HC 101.012/SP, Pri‑
meira Turma, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJE de 10-12-2010; e HC 94.752/
RS, Segunda Turma, rel. min. Eros Grau, DJE de 17-10-2008, entre outros).
De resto, anoto que carece de plausibilidade jurídica e de respaldo na juris-
prudência da Corte a alegação dos impetrantes de que a conduta praticada pelo
paciente se subsumiria ao tipo contravencional previsto no art. 58 do Decreto-Lei
6.259/1944 – jogo do bicho –, e que, por se tratar de conduta ilícita, não haveria
como incidir, na espécie, qualquer tributo, tornando-se, assim, atípicas as con‑
dutas por ele praticadas e enquadradas no art. 1º, I, da Lei 8.137/1990.
Rememoro que esta Primeira Turma denegou a ordem no HC 77.530/RS, rel.
min. Sepúlveda Pertence, no qual se discutia, justamente, a possibilidade ou não
de tributação de renda obtida em razão de atividade ilícita. Confira-se a ementa
deste elucidativo e predominante precedente da Corte:
Sonegação fiscal de lucro advindo de atividade criminosa: non olet. Drogas: tráfico de
drogas, envolvendo sociedades comerciais organizadas, com lucros vultosos subtraí‑
dos à contabilização regular das empresas e subtraídos à declaração de rendimentos:
caracterização, em tese, de crime de sonegação fiscal, a acarretar a competência
da Justiça Federal e atrair, pela conexão, o tráfico de entorpecentes: irrelevância da
origem ilícita, mesmo quando criminal, da renda subtraída à tributação.
A exoneração tributária dos resultados econômicos de fato criminoso – antes
de ser corolário do princípio da moralidade – constitui violação do princípio de
isonomia fiscal, de manifesta inspiração ética. [DJ de 18-9-1998 – Grifei.]

Desse entendimento não divergiu o Parquet federal ao ressaltar que:


O fato gerador do imposto de renda é a aquisição de disponibilidade econômica ou
jurídica de renda – e até a renda proveniente de ilícito penal. A teor do disposto no
art. 118 do Código Tributário Nacional, as operações ou atividades ilícitas ou imorais

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  540


HC 94.240

são tributáveis, pois a definição do fato gerador é interpretada independentemente


da validade, da natureza e dos efeitos dos atos praticados pelo contribuinte.
O fato gerador do imposto de renda é a aquisição de disponibilidade de renda.
Não declarada a renda, mesmo que obtida de forma ilícita, omitiu-a o contribuinte,
suprimindo o pagamento do tributo, o que o caracteriza a sonegação fiscal. [Fl. 394.]

Por fim, destaco, ainda, ter sido negado seguimento ao AI 625.419/SP inter‑
posto pelo paciente, o qual visava dar seguimento ao recurso extraordinário
apresentado contra o acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, impug‑
nado perante o Superior Tribunal de Justiça e nesta Corte com o presente habeas
corpus. Vejamos a fundamentação da decisão proferida pelo relator do mencio‑
nado agravo, ministro Ayres Britto:
O agravo não merece acolhida. É que a pretensão do recorrente demandaria o ree‑
xame da legislação infraconstitucional pertinente. Desse modo, a alegada ofensa à
Carta Magna, se existente, ocorreria de modo reflexo ou indireto, o que não enseja
a abertura da via extraordinária.
De mais a mais, em sede de habeas corpus, esta colenda Corte já firmou o seguinte
entendimento:
“Sonegação fiscal de lucro advindo de atividade criminosa: non olet. Drogas:
tráfico de drogas, envolvendo sociedades comerciais organizadas, com lucros
vultosos subtraídos à contabilização regular das empresas e subtraídos à decla‑
ração de rendimentos: caracterização, em tese, de crime de sonegação fiscal, a
acarretar a competência da Justiça Federal e atrair, pela conexão, o tráfico de
entorpecentes: irrelevância da origem ilícita, mesmo quando criminal, da renda
subtraída à tributação. A exoneração tributária dos resultados econômicos
de fato criminoso – antes de ser corolário do princípio da moralidade – cons‑
titui violação do princípio de isonomia fiscal, de manifesta inspiração ética.”
(HC 77.530, da relatoria do ministro Sepúlveda Pertence).
Isso posto, e frente ao art. 38 da Lei 8.038/1990 e ao § 1º do art. 21 do RISTF, nego
seguimento ao recurso. [Fls. 368/369.]

Com essas considerações, não se tendo configurado o constrangimento ilegal


alegado pelos impetrantes, conheço em parte da impetração e, na parte conhe‑
cida, denego a ordem de habeas corpus.
É como voto.

VOTO
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, a meu ver, salta aos olhos a incongru‑
ência, se há conduta que é glosada no campo das contravenções penais. Seria isso?
O sr. ministro Dias Toffoli (relator): Isso.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  541


HC 94.240

O sr. ministro Marco Aurélio: Como o valor arrecadado pode gerar obriga‑
ção tributária?
O sr. ministro Dias Toffoli (relator): Eu resumi, mas então eu vou apontar
aqui o precedente que cito e o princípio do non olet.
O sr. ministro Marco Aurélio: A não ser que se pretenda legitimar o jogo
do bicho.
O sr. ministro Dias Toffoli (relator): Mas veja o que dispõe o art. 118 do CTN.
É que eu fiz um resumo, vou passar a leitura de meu voto.
O sr. ministro Luiz Fux: Na Teoria Geral de Direito Tributário, a atividade
ilícita não inibe...
O sr. ministro Dias Toffoli (relator): Não inibe a incidência do tributo.
O sr. ministro Marco Aurélio: Tenho sérias dificuldades em reconhecer que,
de um lado, o aporte do numerário conflita com a ordem jurídica, mas, de outro, o
Estado tem o direito de, a partir desse aporte, lograr recolhimento de tributo. Esse
recolhimento pressupõe atividade legítima, e a atividade do jogo do bicho não o é.
Lembro quando estava na Justiça do Trabalho e chegamos a reconhecer consequ‑
ências, mas o fizemos presente, apenas, a força do trabalho, ou seja, a remuneração
na prestação do serviço, sem concluir pelo direito a outros benefícios trabalhistas.
Transporto essa mesma óptica para o campo tributário, e não vejo como
cobrar-se, considerado possível lucro decorrente do jogo do bicho, por exemplo,
imposto de renda, a não ser que se tenha chegado à conclusão da existência de
outro numerário, segundo a denúncia, decorrente do jogo do bicho.
O sr. ministro Dias Toffoli (relator): É disso que se trata. Diante do posicio‑
namento do ministro Marco Aurélio, eu vou fazer a leitura do voto, no que diz
respeito a esse ponto.
O sr. ministro Marco Aurélio: Confesso que estou a pronunciar-me pela
primeira vez sobre a matéria. Não me lembro de haver composto o Colegiado,
quando, em caso relatado pelo ministro Sepúlveda Pertence, teria assentado que
prospera o crime tributário decorrente da sonegação.
O sr. ministro Dias Toffoli (relator): Então, digo eu nesta parte:
De resto, anoto que carece de plausibilidade jurídica e de respaldo na jurisprudência
da Corte a alegação dos impetrantes de que a conduta praticada pelo paciente teria
subsunção ao tipo contravencional previsto no art. 58 do Decreto-Lei 6.259/1944 –
jogo do bicho –, e que, por se tratar de conduta ilícita, não haveria como incidir,
na espécie, qualquer tributo, tornando-se, assim, atípicas as condutas por ele pra‑
ticadas e enquadradas no art. 1º, I, da Lei 8.137/1990.
Rememoro que esta Primeira Turma denegou a ordem no HC 77.530/RS, rel. min.
Sepúlveda Pertence, no qual se discutia, justamente, a possibilidade ou não de

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  542


HC 94.240

tributação de renda obtida em razão de atividade ilícita. Confira-se a ementa deste


elucidativo e predominante precedente da Corte:
“Sonegação fiscal de lucro advindo de atividade criminosa: non olet. Drogas: trá‑
fico de drogas, envolvendo sociedades comerciais organizadas, com lucros
vultuosos subtraídos à contabilização regular das empresas e subtraídos à decla‑
ração de rendimentos: caracterização, em tese, de crime de sonegação fiscal,
a acarretar a competência da Justiça Federal e atrair, pela conexão, o tráfico
de entorpecentes: irrelevância da origem ilícita, mesmo quando criminal, da
renda subtraída à tributação.
A exoneração tributária dos resultados econômicos de fato criminoso – antes
de ser corolário do princípio da moralidade – constitui violação do princípio de
isonomia fiscal, de manifesta inspiração ética” (DJ de 18-9-1998).

E ainda apontei trecho do parecer do Ministério Público, que diz o seguinte:


O fato gerador do imposto de renda é a aquisição de disponibilidade econômica ou
jurídica de renda – e até a renda proveniente de ilícito penal. A teor do disposto no
art. 118 do Código Tributário Nacional, as operações ou atividades ilícitas ou imorais
são tributáveis, pois a definição do fato gerador é interpretada independentemente
da validade, da natureza e dos efeitos dos atos praticados pelo contribuinte.
O fato gerador do imposto de renda é a aquisição de disponibilidade de renda.
Não declarada a renda, mesmo que obtida de forma ilícita, omitiu-se o contri‑
buinte, suprimindo o pagamento do tributo, o que caracteriza sonegação fiscal.

Prosseguindo no voto, digo o seguinte:


Destaco, ainda, ter sido negado seguimento ao AI 625.419/SP interposto pelo pa­­
ciente, o qual visava dar seguimento ao recurso extraordinário apresentado contra
o acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, impugnado perante o Supe‑
rior Tribunal de Justiça e nesta Corte com o presente habeas corpus. Vejamos a
fundamentação da decisão proferida pelo relator do mencionado agravo, ministro
Ayres Britto:
“O agravo não merece acolhida. É que a pretensão do recorrente demandaria
o reexame da legislação infraconstitucional pertinente. Desse modo, a alegada
ofensa à Carta Magna, se existente, ocorreria de modo reflexo ou indireto, o que
não enseja a abertura da via extraordinária. De mais a mais, em sede de habeas
corpus, esta colenda Corte já firmou o seguinte entendimento:
(...) [Cito exatamente aquele mesmo precedente da relatoria do ministro Se­­
púlveda Pertence].”
Com essas considerações, não se tendo configurado o constrangimento ilegal
alegado pelos impetrantes, conheço em parte da impetração e, na parte conhe‑
cida, denego a ordem.

Senhora Presidente, é como voto. Mantenho, então, o meu voto.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  543


HC 94.240

VOTO
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, não imagino, por exemplo, que, no
caso de extorsão em que não se encontre o valor satisfeito, até tendo em conta
sequestro, se conclua que, mesmo assim, esse fato, esse recebimento, gera para
o agente que praticou o crime uma obrigação tributária. Não consigo perceber
um ato ilícito glosado sob o ângulo penal ou sob o ângulo da contravenção penal
ensejando o fato gerador do tributo.
Peço vênia ao relator para conceder a ordem.

VOTO
O sr. ministro Luiz Fux: Senhora Presidente, peço vênia ao ministro Marco Auré‑
lio; é que a Teoria Geral do Direito Tributário é uma teoria sui generis. Na verdade,
o tributo tem um efeito fiscal qual o de satisfazer as necessidades coletivas. Por
isso é que se torna indiferente, digamos assim, a atividade geradora da obrigação
tributária, porque prevalece o interesse público daquela operação.
Por outro lado, há um princípio também de direito privado a informar a Teoria
Geral do Direito Tributário, que seria a vedação a que a parte possa locupletar da
própria torpeza, então ela comete um ilícito, esse ilícito reverte em renda, mas
ela não paga o tributo porque está cometendo um ilícito. Então isso também
revela uma contradictio in terminis.
Não é por outra razão que o art. 118 do Código Tributário Nacional dispõe:
Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se:
I – da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes,
responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos;

Recordo-me de que, por exemplo, os professores Amílcar Falcão e Hugo de


Brito Machado citam até aqueles casos de tolerância que eram tributados na
antiguidade, exatamente porque não poderia haver um locupletamento da pró‑
pria torpeza, em detrimento do interesse público da satisfação das necessidades
coletivas através da arrecadação de tributos.
Tenho aqui acórdãos do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal
Federal e esse acórdão do ministro Sepúlveda Pertence, que já foi citado pelo
ministro Dias Toffoli.
Peço vênia, então, para acompanhar o voto do ministro Dias Toffoli.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  544


EXTRATO DA ATA
HC 94.240/SP — Relator: Ministro Dias Toffoli. Paciente: César Antonio Muzetti.
Impetrantes: Antônio de Pádua Faria e outros. Coator: Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: Por maioria de votos, a Turma conheceu, em parte, da ordem de
habeas corpus e, nessa parte, a denegou, nos termos do voto do relator, vencido
o ministro Marco Aurélio. Presidência da ministra Cármen Lúcia.
Presidência da ministra Cármen Lúcia. Presentes à sessão os ministros Marco
Aurélio, Dias Toffoli e Luiz Fux. Subprocurador-geral da República, doutor
Rodrigo Janot.
Brasília, 23 de agosto de 2011 — Carmen Lilian, coordenadora.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  545


RHC 94.358

RECURSO EM HABEAS CORPUS 94.358 — SC


Relator: O sr. ministro Celso de Mello
Recorrente: Ministério Público Federal
Recorrido: Superior Tribunal de Justiça
Paciente: Maria Pereira Gomes

Habeas corpus – Recurso ordinário – Paciente recolhida ao


sistema penitenciário local – Precário estado de saúde da sen‑
tenciada, idosa, que sofre de grave patologia cardíaca, com
distúrbios neurocirculatórios – Risco de morte iminente –
Comprovação idônea, mediante laudos oficiais elaborados por
peritos médicos, da existência de patologia grave e da inade‑
quação da assistência e do tratamento médico-hospitalares
no próprio estabelecimento penitenciário a que recolhida a
sentenciada-paciente – Efetiva constatação da incapacidade
do poder público de dispensar à sentenciada adequado trata‑
mento médico-hospitalar em ambiente penitenciário – Situação
excepcional que permite a inclusão da condenada em regime de
prisão domiciliar – Observância do postulado constitucional
da dignidade da pessoa humana – Recurso ordinário provido.
– A preservação da integridade física e moral dos presos cautela‑
res e dos condenados em geral traduz indeclinável dever que a Lei
Fundamental da República impõe ao poder público em cláusula que
constitui projeção concretizadora do princípio da essencial dignidade
da pessoa humana, que representa um dos fundamentos estruturantes
do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, III, c/c art. 5º, XLIX).
– O réu preso – precisamente porque submetido à custódia do

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  546


RHC 94.358

Estado – tem direito a que se lhe dispense efetivo e inadiável trata‑


mento médico-hospitalar (LEP, arts. 10, 11, II, 14, 40, 41, VII, e 43).
– O reconhecimento desse direito apoia-se no postulado da dig‑
nidade da pessoa humana, que representa – considerada a centra‑
lidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor
interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o
ordenamento constitucional vigente em nosso país e que traduz, de
modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a
ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito
constitucional positivo.
– A execução da pena em regime de prisão domiciliar, sempre sob
a imediata e direta fiscalização do magistrado competente, consti‑
tui medida excepcional, que só se justifica – especialmente quando
se tratar de pessoa condenada em caráter definitivo – em situações
extraordinárias, apuráveis em cada caso ocorrente, como sucede na
hipótese de o sentenciado ostentar, comprovadamente, mediante
laudo oficial elaborado por peritos médicos designados pela autori‑
dade judiciária competente, precário estado de saúde, provocado por
grave patologia, e o poder público não dispuser de meios que viabi‑
lizem pronto, adequado e efetivo tratamento médico-hospitalar no
próprio estabelecimento prisional ao qual se ache recolhida a pessoa
sob custódia estatal. Precedentes.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a presidência do ministro Celso de
Mello, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por una‑
nimidade de votos, em dar provimento ao recurso ordinário, nos termos do voto
do relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, a ministra Ellen Gracie.
Brasília, 29 de abril de 2008 — Celso de Mello, relator.

VOTO
(Explicação)
O sr. ministro Celso de Mello (relator): O tema versado na presente sede recur‑
sal, como pretendo demonstrar ao longo do meu voto, concerne ao reconheci‑
mento do direito de qualquer pessoa sob custódia do Estado à preservação de

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  547


RHC 94.358

sua integridade física, como sucede neste caso, em que a ora paciente, idosa,
ostenta precário estado de saúde, provocado por grave patologia cardíaca com
distúrbios neurocirculatórios (o que se acha devidamente comprovado mediante
laudos médicos oficiais), constatada, ainda, a inadequação da assistência e do
tratamento médico-hospitalares no próprio estabelecimento penitenciário a
que se acha recolhida essa mesma sentenciada.
Observo, ainda, que a douta Procuradoria-Geral da República, em fundamen-
tado parecer, opinou pelo provimento do presente recurso ordinário, propondo
seja concedido o “habeas corpus” em favor de referida paciente.
Passo, desse modo, com tais observações preliminares, à leitura do relatório
e do meu voto.

RELATÓRIO
O sr. ministro Celso de Mello: O Ministério Público Federal, em parecer da
lavra do ilustre subprocurador-geral da República doutor MARIO JOSÉ GISI,
assim resumiu e apreciou a presente impetração (fls. 133/139):
RECURSO ORDINÁRIO EM “HABEAS CORPUS”. EXECUÇÃO PENAL. RÉ CONDENADA A
CUMPRIR PENA EM REGIME FECHADO. PLEITO DE CONCESSÃO DE PRISÃO DOMICILIAR.
DOENÇA GRAVE. COMPROVAÇÃO POR LAUDO PERICIAL. ATESTADO DE INADEQUAÇÃO
DO ESTABELECIMENTO PRISIONAL PARA A CUSTÓDIA DA CONDENADA.
– O cumprimento da pena em residência particular traduz-se em benefício res­
trito por lei aos apenados em regime prisional aberto e excepcionalmente a outros
regimes prisionais por abrandamento jurisprudencial, diante da gravidade do
estado de saúde do detento e da ineficiência e inadequação do tratamento médico
prestado no estabelecimento prisional.
– Parecer pelo provimento do recurso.
(...)
Trata-se de recurso ordinário constitucional, interposto com fulcro no art. 102,
inciso II, alínea “a”, da Carta Magna, contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça,
reproduzido às fls. 95/108, cuja ementa possui o seguinte teor:
‘‘ ‘HABEAS CORPUS’. EXECUÇÃO PENAL. DOENÇA GRAVE. TRATAMENTO ADEQUADO.
PRISÃO DOMICILIAR. INCABIMENTO. USO DE ALGEMAS NO ENFERMO. CONSTRAN­
GIMENTO ILEGAL. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.
1. A jurisprudência desta Corte, interpretando o artigo 117 da Lei de Execução
Penal, somente tem admitido o recolhimento domiciliar do preso portador de
doença grave quando demonstrada a necessidade de assistência médica contí-
nua, impossível de ser prestada no estabelecimento prisional.
2. ‘É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral’ (Constituição
da República, artigo 5º, inciso XLIX).

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  548


RHC 94.358

3. Ordem parcialmente concedida” (fl. 112).


Fora impetrado o “mandamus” n. 55.421/SC, com pedido de liminar, em favor de
Maria Pereira Gomes, condenada por tráfico ilícito de entorpecentes, ao cumprimento
de 10 anos e 4 meses de reclusão em regime integralmente fechado, postulando a
concessão da prisão domiciliar, alegando que a paciente, portadora de Cardiopatia
Hipertensiva, cumpre pena em um presídio que não possui condições adequadas
para tratamento de sua saúde.
Indeferida a liminar (fl. 78), sobreveio decisão que, em consonância com a mani-
festação do “Parquet” (fls. 81/86), denegou a ordem (fls. 95/108).
Diante do agravamento do estado de saúde da paciente, o Ministério Público
Federal interpõe o presente recurso ordinário constitucional, objetivando a concessão
de prisão domiciliar à condenada, alegando insuficiência do tratamento médico
disponibilizado pelo estabelecimento prisional e a possibilidade de concessão do bene-
fício aos condenados submetidos a regime integralmente fechado de cumprimento
de pena, face ao reconhecimento de progressão de regime nas hipóteses de crimes
hediondos, pelo Pretório Excelso (fls. 116/119).
Transcorreu “in albis” o prazo para contrarrazões – fl. 123.
Despacho de admissibilidade à fl. 124.
É o breve relatório.
Preliminarmente, constata-se estarem preenchidos os pressupostos de admissibi-
lidade, do que merece ser conhecido o recurso.
É verdade que o art. 117 da Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84) apenas autoriza
a prisão domiciliar para o condenado submetido ao regime prisional aberto, nas
hipóteses ali previstas.
Assim, o sentenciado ao cumprimento de pena em regime fechado, pelo cometimento
de crime hediondo, em princípio, não faz jus a tal benefício.
Contudo, pode-se admitir, excepcionalmente, o deferimento da benesse ao peni-
tente que esteja cumprindo pena em regime prisional diverso do aberto, a exemplo
do acometido de doença grave, quando demonstrada a impossibilidade de prestação
da devida assistência médica pelo estabelecimento penal, como forma de garantia
do direito à vida e à saúde do sentenciado, e efetivação do princípio da dignidade
da pessoa humana.
Nesse sentido, leciona a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, assim
como a desse Egrégio Tribunal:
‘‘ ‘HABEAS CORPUS’. PACIENTE IDOSO CONDENADO POR ATENTADO VIOLENTO AO
PUDOR. PRETENSÃO DE TRANSFERÊNCIA PARA PRISÃO DOMICILIAR EM RAZÃO DO
PRECÁRIO ESTADO DE SAÚDE DO DETENTO. O fato de o paciente estar condenado
por delito tipificado como hediondo não enseja, por si só, uma proibição obje-
tiva incondicional à concessão de prisão domiciliar, pois a dignidade da pessoa
humana, especialmente a dos idosos, sempre será preponderante, dada a sua
condição de princípio fundamental da República (art. 1º, inciso III, da CF/88). Por
outro lado, incontroverso que essa mesma dignidade se encontrará ameaçada nas
hipóteses excepcionalíssimas em que o apenado idoso estiver acometido de doença

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  549


RHC 94.358

grave que exija cuidados especiais, os quais não podem ser fornecidos no local da
custódia ou em estabelecimento hospitalar adequado. No caso, deixou de haver
demonstração satisfatória da situação extraordinária autorizadora da custódia
domiciliar. ‘Habeas corpus’ indeferido.” (HC 83.358/SP – STF – Rel. Ministro CARLOS
BRITTO, Primeira Turma, DJ de 4-6-2004)
“CRIMINAL. ‘HC’. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRISÃO PREVENTIVA. INSTRUÇÃO DEFI­
CIENTE. AUSÊNCIA DE PEÇA IMPRESCINDÍVEL À COMPREENSÃO DA CONTROVÉRSIA.
PACIENTE PORTADOR DE MOLÉSTIA GRAVE. IMPOSSIBILIDADE DE TRATAMENTO
NO SISTEMA PRISIONAL ATESTADA NOS AUTOS. PEDIDO DE PRISÃO DOMICILIAR.
ACOLHIMENTO. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E CONCEDIDA.
Hipótese na qual paciente preso preventivamente pretende a revogação da
custódia ou a concessão de prisão domiciliar para tratamento de saúde, por ser
portador de doença grave.
(...)
Somente em casos excepcionais é possível o deferimento da prisão domici­
liar, quando demonstrada, de plano, a necessidade de especial tratamento de
saúde, que não poderia ser suprida no local em que o condenado se encontra
preso. Precedentes.
Impetração que logrou comprovar as circunstâncias pelas quais o paciente
teria necessidade de tratamento especial, que não poderia ser suprido pelo Sis-
tema Prisional.
Comprovada a situação de excepcionalidade, deve ser concedido o pedido
de concessão do benefício de regime domiciliar de prisão, possibilitando-se que o
paciente permaneça nesta condição até seu julgamento.
Ordem parcialmente conhecida e concedida, nos termos do voto do relator.” (HC
66.702/MT – STJ – Rel. Ministro GILSON DIPP, Quinta Turma, DJ 05-02-2007, p. 309)
Com efeito, o caso dos autos amolda-se à hipótese excepcional que autoriza a
custódia domiciliar.
Os laudos médicos juntados às fls. 22/24 não deixam dúvidas de que Maria Pereira
Gomes é portadora de doença grave e o tratamento de saúde prestado no presídio
é ineficiente e inadequado.
Não fosse isso, a paciente teve seu quadro de saúde agravado devido a uma crise
hipertensiva cumulada com complicações cerebrovasculares (fls. 93/94), demons­
trando que “o tratamento, tal como feito, não surtira o efeito previsto e desejado”
(fl. 118), e que o presídio não é o local apropriado para a sua permanência no atual
estágio da doença.
Idêntico entendimento foi externado pela ilustre Desembargadora Maria Thereza
de Assis Moura, nos autos da decisão recorrida, que, em detida e primorosa análise
dos fatos, proferiu o seguinte voto vencido, “verbis”:
“O que observo, pelos documentos dos autos, é que, conquanto exista certa dis-
cussão no acórdão hostilizado (fls. 16/20) acerca da gravidade dos problemas
de saúde da Paciente, o fato é que ela necessita de cuidados especiais devido ao
seu estado. Isso pode ser reconhecido pelas opiniões médicas de fls. 22/24 e pelos

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  550


RHC 94.358

receituários de fls. 55/65. Veja-se a opinião da junta médica adredemente consti-


tuída para o caso (fl. 22):
‘Após exame clínico e documental da apenada, a Junta Médica Oficial de
Joinville concluiu que a mesma é portadora de Cardiopatia Hipertensiva, tendo
apresentado Acidente Vascular Transitório Isquêmico. Os exames de Eletrocar-
diograma e Ecocardiograma confirmam o diagnóstico. Está em uso de vários
medicamentos que controlam sua hipertensão, mas, mesmo assim, apresentou
crises hipertensivas enquanto no presídio e está sujeita a novas crises, tendo
que ter atendimento.’ (...).
Outro laudo, à fl. 24, também afirmou:
‘O tratamento prestado pela administração prisional é suficiente enquanto
sob internação hospitalar, no entanto, tratamento ambulatorial em regime
prisional é totalmente inadequado, podendo agravar substancialmente seu
quadro patológico.’ (...).
Em sentido contrário, o voto condutor do acórdão do Tribunal ‘a quo’ construiu,
de forma isolada, a seguinte análise técnica (fl. 18):
‘Em que pese os laudos médicos, o fato é que o cateterismo, fl. 37, apresenta
coronárias normais e ventrículo esquerdo normal. Tais circunstâncias eviden-
ciam ser a paciente portadora de hipertensão arterial sistêmica moderada,
devendo, por isso, ser acompanhada ambulatorialmente, de trinta em trinta
dias, ou a critério médico, haja vista que isso poderá ser feito tanto na residên-
cia, como no presídio.’ (...).
A saúde precária da Paciente pode ser também corroborada com o relatório de
vida carcerária, à fl. 67, que destaca o seguinte: ‘04-07-05 – Internada no Hospital
Regional Hans Dieter Schmidt, com problemas cardíacos, até a presente data’. (...)
Isto é, até 28 de novembro de 2005.
Pelo que se nota, a Paciente, indiscutivelmente, necessita de cuidados especiais,
a serem prestados fora do sistema prisional. Minha consciência impede-me cons-
truir outra opinião, distante do que foi consagrado pelos laudos dos especialistas.
Se o caso é esse, devo, obviamente, ponderar pela questão humanitária, mote
reiteradamente aplicado a casos como tais pela Jurisprudência, inclusive, aqui
deste Tribunal.
Ocorre que, a mim, isso só não basta. Lanço um questionamento aos meus pares
que me parece, no caso do nosso sistema prisional, uma realidade intransponível.
Se a Paciente ficou internada por tanto tempo (de 4-7 a 28-11-05), o que não dizer
das dificuldades de acompanhar esse período? Sim, porque, enquanto internada,
alguns agentes devem ter sido destacados para fazer a escolta e a vigia da reedu-
canda. Sem dizer que o próprio hospital público, com a estrutura deficiente que
todos nós conhecemos, teve que dispor de leito específico, talvez separado das
pessoas comuns. E isso tudo, repita-se, pelo longo período.
Nesse aspecto, as imagens acostadas às fls. 72/75 mostram uma senhora acor­
rentada à cama do Hospital, tudo indicando que é a medida mais cômoda para o
Estado, que, sem agentes para acompanhar o apenado, amarra-o ao pé da cama.

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No meu sentir, isso não é cumprimento de pena; isso é degradação humana. Ofende
a dignidade da pessoa, fundamento da República (art. 1º, III, da CR), mesmo sendo
ela condenada.
Outra questão que me soa difícil é analisar o argumento da negativa da preten-
dida prisão domiciliar. Dizem as decisões indeferitórias, em síntese, que a Paciente
cumpre pena no regime integralmente fechado. A entonação parece dizer que ela
não tem sequer direito à progressão, haja vista o fato de o regime domiciliar caber
somente ao regime aberto. Uma dúvida que tenho, porque não consta dos autos,
é se a Paciente já foi conduzida ao regime semiaberto. Se foi, então, o argumento
indeferitório cai por terra.
(...)
Deste modo, Ilustres Ministros, não me seduzindo pela ideia do delito (passado),
voto com o relator, no sentido de conceder a ordem, porque a situação (presente)
enquadra-se na exceção a que vem preconizando a jurisprudência desta Corte”
(fls. 106/108).
Ante ao exposto, opinamos pelo provimento do recurso, para que Maria Pereira
Gomes tenha o direito de cumprir a pena em regime prisional domiciliar, conforme
estabelecer o MM. Juízo singular. [Grifei.]

É o relatório.

VOTO
O sr. ministro Celso de Mello (relator): O presente recurso ordinário insurge-
-se contra decisão que, emanada do e. Superior Tribunal de Justiça, encontra-se
consubstanciada em acórdão assim ementado (fl. 112):
“HABEAS CORPUS”. EXECUÇÃO PENAL. DOENÇA GRAVE. TRATAMENTO ADEQUADO.
PRISÃO DOMICILIAR. INCABIMENTO. USO DE ALGEMAS NO ENFERMO. CONSTRANGI­
MENTO. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.
1. A jurisprudência desta Corte, interpretando o art. 117 da Lei de Execução Penal,
somente tem admitido o recolhimento domiciliar do preso portador de doença grave
quando demonstrada a necessidade de assistência médica contínua, impossível de
ser prestada no estabelecimento prisional.
2. “É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (Constituição
da República, artigo 5º, inciso XLIX).
3. Ordem parcialmente concedida. [HC 55.421/SC, rel. p/ o ac. min. HAMILTON
CARVALHIDO – Grifei.]

O Ministério Público Federal, ao interpor o presente recurso ordinário, alega


que, “(...) agravando-se o estado já grave da paciente, mostra-se insuficiente o sis-
tema prisional para assisti-la na doença, o que deve ser corrigido” (fl. 118 – grifei).

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Postula-se, na presente sede recursal, a concessão da ordem, “(...) para o fim


de reconhecer à paciente o direito à prisão domiciliar” (fl. 119 – grifei).
Esse pleito mereceu o integral beneplácito da douta Procuradoria-Geral da
República, que ressalta, em seu parecer, que “Os laudos médicos juntados às fls.
22/24 não deixam dúvidas de que Maria Pereira Gomes é portadora de doença grave
e que o tratamento de saúde prestado no presídio é ineficiente e inadequado” (fl. 137).
Está comprovado, nos autos, desse modo, que se mostra dramática a situação
a que hoje se vê reduzida essa detenta, a qual – precisamente porque submetida
à custódia do Estado – tem direito a que se lhe dispense efetivo e inadiável tra‑
tamento médico-hospitalar (LEP, arts. 10, 11, inciso II, 14, 40, 41, inciso VII, e 43).
Os fundamentos do “writ” constitucional impetrado no Superior Tribunal de
Justiça foram, a meu ver, muito bem analisados no douto voto vencido proferido
pela eminente ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, que, ao reconhecer
a excepcionalidade da situação versada nestes autos, asseverou, com absoluta
correção, o que se segue (fls. 107/108):
Pelo que se nota, a Paciente, indiscutivelmente, necessita de cuidados especiais, a
serem prestados fora do sistema prisional. Minha consciência impede-me construir
outra opinião, distante do que foi consagrado pelos laudos dos especialistas.
Se o caso é esse, devo, obviamente, ponderar pela questão humanitária, mote reitera-
damente aplicado a casos como tais pela Jurisprudência, inclusive, aqui deste Tribunal.
Ocorre que, a mim, isso só não basta. Lanço um questionamento aos meus pares
que me parece, no caso do nosso sistema prisional, uma realidade intransponível.
Se a Paciente ficou internada por tanto tempo (de 4/7 a 28/11/05), o que não dizer
das dificuldades de acompanhar esse período? Sim, porque, enquanto internada,
alguns agentes devem ter sido destacados para fazer a escolta e a vigia da reeducanda.
Sem dizer que o próprio hospital público, com a estrutura deficiente que todos nós
conhecemos, teve que dispor de leito específico, talvez separado das pessoas comuns.
E isso tudo, repita-se, pelo longo período.
Nesse aspecto, as imagens acostadas às fls. 72/75 mostram uma senhora acorrentada
à cama do Hospital, tudo indicando que é a medida mais cômoda para o Estado, que,
sem agentes para acompanhar o apenado, amarra-o ao pé da cama. No meu sentir,
isso não é cumprimento de pena; isso é degradação humana. Ofende a dignidade da
pessoa, fundamento da República (art. 1º, III, da CR), mesmo sendo ela condenada.
Outra questão que me soa difícil é analisar o argumento da negativa da pretendida
prisão domiciliar. Dizem as decisões indeferitórias, em síntese, que a Paciente cumpre
pena no regime integralmente fechado. A entonação parece dizer que ela não tem sequer
direito à progressão, haja vista o fato de o regime domiciliar caber somente ao regime
aberto. Uma dúvida que tenho, porque não consta dos autos, é se a Paciente já foi condu-
zida ao regime semiaberto. Se foi, então, o argumento indeferitório cai por terra. [Grifei.]

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Assinalo, desde logo, que o Supremo Tribunal Federal, na década de 1990,


advertiu que o acesso ao benefício legal da prisão domiciliar somente seria pos‑
sível nas estritas hipóteses, taxativamente enumeradas, previstas no art. 117 da
Lei de Execução Penal (RTJ 142/164 – RTJ 153/540 – HC 71.590/MG).
Essa orientação jurisprudencial, no entanto, sofreu abrandamento, em
tempos mais recentes, como o demonstra, por exemplo, decisão desta Suprema
Corte que admitiu a possibilidade de transferência de paciente idoso, conde-
nado por crime hediondo, para prisão domiciliar, em virtude do precário estado
de saúde do condenado:
O fato de o paciente estar condenado por delito tipificado como hediondo não
enseja, por si só, uma proibição objetiva incondicional à concessão de prisão domi­
ciliar, pois a dignidade da pessoa humana, especialmente a dos idosos, sempre
será preponderante, dada a sua condição de princípio fundamental da República
(art. 1º, III, da CF/1988). Por outro lado, incontroverso que essa mesma dignidade se
encontrará ameaçada nas hipóteses excepcionalíssimas em que o apenado idoso
estiver acometido de doença grave que exija cuidados especiais, os quais não podem
ser fornecidos no local da custódia ou em estabelecimento hospitalar adequado.
[RTJ 191/234-235, rel. min. AYRES BRITTO – Grifei.]

Impende registrar, ainda, que também o e. Superior Tribunal de Justiça, sempre


em caráter excepcional, tem deferido a prisão domiciliar, quando presente situ‑
ação de necessidade (HC 40.748/MT, rel. min. PAULO MEDINA – HC 66.702/MT,
rel. min. GILSON DIPP – RHC 10.961/MG, rel. min. FELIX FISCHER, v.g.):
1. O cumprimento da pena em regime domiciliar, de acordo com o art. 117 da LEP,
somente será concedido aos réus que foram beneficiados com o regime prisional
aberto e desde que sejam maior de 70 anos ou estejam, comprovadamente, acome-
tidos de doença grave.
2. Excepcionalmente, porém, tem-se admitido que, mesmo na hipótese de fixação
de regime prisional diverso do aberto para o cumprimento da reprimenda, é possível
o deferimento da prisão domiciliar, quando demonstrada, de plano, a necessidade
de especial tratamento de saúde, que não possa ser suprido no local onde o condenado
ou acautelado se encontra preso.
3. “In casu”, os documentos juntados pelo impetrante nos autos revelam que o
paciente, de fato, sofre de uma cardiopatia grave, necessitando de tratamento que
não pode ser ministrado dentro do estabelecimento prisional.
4. Parecer do Ministério Público Federal pela concessão da ordem.
5. Ordem concedida para revogar o decreto de prisão preventiva, para que se
possa dar cumprimento a pena em regime domiciliar, conforme já deferido pelo
Juízo da VEC, nos autos da execução da condenação definitiva, sem prejuízo de que

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  554


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seja posteriormente decretada novamente, caso haja necessidade. [HC 87.901/AL,


rel. min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO – Grifei.]

Mostra-se importante observar, por necessário, que essa diretriz jurispru-


dencial, que reconhece a possibilidade da prisão em regime domiciliar, apoia-se
no postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a
centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor inter‑
pretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento
constitucional vigente em nosso país e que traduz, de modo expressivo, um dos
fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática
consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo.
A espécie ora em exame evidencia que se registra a situação de excepcionali‑
dade que tem levado esta Corte Suprema a permitir a prisão em regime domiciliar.
É que, tal como assinalado em atestado médico fornecido por cardiologista
vinculado à Secretaria da Saúde do Estado de Santa Catarina, a ora paciente
“(...) corre perigo de vida (...)” (fl. 56), se continuar recolhida a estabelecimento
penitenciário, pois é portadora de “(...) Doença de difícil controle (...)” (fl. 57),
havendo sido expressamente recomendado, em consequência, que a sentenciada
em questão “(...) cumpra o restante de sua pena em regime domiciliar (...)” (fl. 56).
Vale registrar, no ponto, a conclusão a que chegaram, nesse mesmo sentido,
os profissionais que compõem “a Junta Médica Oficial de Joinville” (fl. 22):
Após exame clínico e documental da apenada, a Junta Médica Oficial Joinville con-
cluiu que a mesma é portadora de Cardiopatia Hipertensiva tendo apresentado Aci-
dente Vascular Transitório Isquêmico. Os Exames de Eletrocardiograma e Ecocardio-
grama confirmam o diagnóstico. Está em uso de vários medicamentos que controlam
sua hipertensão mas mesmo assim apresentou crises extensivas enquanto no presídio
e está sujeita a novas crises tendo que ter atendimento emergencial. Sua segregação
agrava seu estado de saúde. Portanto somos favoráveis a sua prisão domiciliar.

A essa mesma conclusão já havia chegado, em data anterior, o senhor médico


perito do IML de Joinville/SC, que procedeu a um exame pericial na pessoa da
ora paciente (fl. 24):
B. São suficientes os tratamentos prestados pela administração prisional (acom-
panhamentos médico, internação junto ao Hospital H. Regional) para controle de
doença da apenada Maria Pereira Gomes?
O tratamento prestado pela administração prisional é suficiente enquanto sob inter­
nação hospitalar, entretanto, enquanto tratamento ambulatorial em regime prisional
é totalmente inadequado, podendo agravar substancialmente seu quadro patológico.
C1. A segregação da apenada Maria Pereira Gomes junto ao presídio de Joinville
acarreta a ineficiência do tratamento médico prestado (item b acima)?

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Resposta: Sim.
C2. Em caso positivo em uma escala de 1 a 10?
Resposta: 8.
D1. Há necessidade de dieta diferenciada?
Resposta: Sim.
D2. Caso positivo, em que consiste as restrições?
Resposta: Alimentação hipossódica, sem gorduras, sem carboidratos. [Grifei.]

Em suma: tenho que se impõe, no caso, a concessão à ora paciente, em caráter


extraordinário, do benefício da prisão domiciliar, para efeito de cumprimento
da pena, independentemente da modalidade de regime de execução penal,
pois demonstrada, mediante perícia idônea, a impossibilidade de assistência e
tratamento médicos adequados no estabelecimento penitenciário a que se acha
presentemente recolhida a sentenciada em questão, sob pena de, caso negada a
transferência pretendida pelo próprio Ministério Público, expor-se a condenada
em referência a “(...) risco de vida (...)” (fl. 56).
A execução da pena em regime de prisão domiciliar, sempre sob a imediata e
direta fiscalização do magistrado competente, constitui medida excepcional,
que só se justifica – especialmente quando se tratar de pessoa condenada em
caráter definitivo – em situações extraordinárias, apuráveis em cada caso ocor-
rente, como sucede na hipótese de o sentenciado ostentar, comprovadamente,
mediante laudo oficial elaborado por peritos médicos designados pela autori‑
dade judiciária competente, precário estado de saúde, provocado por grave pato-
logia, e o poder público não dispuser de meios que viabilizem pronto, adequado
e efetivo tratamento médico-hospitalar no próprio estabelecimento prisional ao
qual se ache recolhida a pessoa sob custódia estatal.
Sendo assim, em face das razões expostas, e acolhendo, ainda, o parecer da
douta Procuradoria-Geral da República, dou provimento a este recurso ordiná‑
rio, em ordem a assegurar à ora paciente o direito ao cumprimento do restante
de sua pena em regime de prisão domiciliar, devendo o MM. Juiz de Direito da Vara
das Execuções Penais adotar as medidas necessárias e as cautelas pertinentes
ao cumprimento da presente decisão.
É o meu voto.

VOTO
O sr. ministro Eros Grau: Senhor Presidente, acompanho Vossa Excelência.
Lembro-me de um caso de pai e filho em que – penso – votei vencido; se não
me engano o relator era o ministro Joaquim Barbosa.

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O sr. ministro Joaquim Barbosa: Aliás, neste caso, se me permitem a palavra,


a Corte foi vergonhosamente ludibriada. Concedemos a prisão domiciliar para
que ele obtivesse assistência médica.
O sr. ministro Celso de Mello (relator): Exato.
O sr. ministro Cezar Peluso: Eles conseguiram uma questão de ordem depois
de encerrado o julgamento. Eles reabriram o caso em questão de ordem, quando
já não havia ordem nenhuma, porque o julgamento estava encerrado, e conce‑
deram o habeas. Nós negamos, mas eles tornaram a conceder.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: E ele fugiu.
O sr. ministro Celso de Mello (relator): Achava-se ele internado em um hos‑
pital de Curitiba.
O sr. ministro Eros Grau: Se Vossa Excelência me permitir, mesmo que fosse
para correr o risco de a minha decisão ser desmoralizada, eu não correria o risco
de deixar sem proteção a defesa da vítima.
Lembro que, naquele caso do pai e do filho, não foi a decisão do Pleno que
concedeu a prisão domiciliar; eles fugiram, mas em função de uma decisão dada
em Curitiba. Aqui, a minha proposta não foi acolhida pelo Pleno.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: O Pleno julgou procedente uma reclamação
proposta pelo procurador-geral da República, porque tinha havido um descum‑
primento da decisão desta Turma.
O sr. ministro Eros Grau: Depois aparentemente houve a fuga.
De qualquer modo, mesmo com o risco de fuga, voto no sentido de se proteger
a defesa da saúde, neste caso, acompanhando Vossa Excelência.

VOTO
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Senhor Presidente, no caso, aí, o próprio Minis‑
tério Público foi quem recorreu. Ele assume a totalidade dos riscos.
Tenho muito temor em relação a essa tentacularidade desse crime organizado,
especialmente esse tipo de criminalidade ligada a tráfico de drogas. Desconfio e
não hesito em externar a minha desconfiança quanto a possíveis laudos médi‑
cos graciosos.
No caso, é o próprio Ministério Público que está requerendo.
O sr. ministro Celso de Mello (relator): Sim, é o Ministério Público Federal
quem recorre, postulando, em favor da ora paciente, a concessão da ordem de
“habeas corpus”.
De outro lado, comprovou-se, nestes autos, mediante documentação idônea
fundada em laudos médicos oficiais, inclusive do próprio Instituto Médico Legal,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  557


RHC 94.358

que se mostra extremamente precário o estado de saúde dessa mesma paciente,


acometida de patologia grave, cuja permanência no sistema penitenciário, inca-
paz de lhe dispensar adequado tratamento médico-hospitalar, constitui fator
apto a provocar-lhe, até mesmo, “risco de vida” (fl. 56).
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Estou de acordo.

EXTRATO DA ATA
RHC 94.358/SC — Relator: Ministro Celso de Mello. Recorrente: Ministério Pú­­
blico Federal. Recorrido: Superior Tribunal de Justiça. Paciente: Maria Pereira
Gomes (Advogado: Mauro Marcio Seadi Filho).
Decisão: A Turma, por votação unânime, deu provimento ao recurso ordiná‑
rio, nos termos do voto do relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento,
a ministra Ellen Gracie.
Presidência do ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os ministros Cezar
Peluso, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Ausente, justificadamente, a ministra Ellen
Gracie. Subprocurador-geral da República, doutor Mário José Gisi.
Brasília, 29 de abril de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, coordenador.

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HC 96.099

HABEAS CORPUS 96.099 — RS
Relator: O sr. ministro Ricardo Lewandowski
Paciente: Luiz Antônio de Mello Viegas
Impetrante: Defensoria Pública da União
Coator: Superior Tribunal de Justiça

Roubo qualificado pelo emprego de arma de fogo. Apreensão e


perícia para a comprovação de seu potencial ofensivo. Desne‑
cessidade. Circunstância que pode ser evidenciada por outros
meios de prova. Ordem denegada.
I – Não se mostra necessária a apreensão e perícia da arma de fogo
empregada no roubo para comprovar o seu potencial lesivo, visto que
tal qualidade integra a própria natureza do artefato.
II – Lesividade do instrumento que se encontra in re ipsa.
III – A qualificadora do art. 157, § 2º, I, do Código Penal pode ser
evidenciada por qualquer meio de prova, em especial pela palavra da
vítima – reduzida à impossibilidade de resistência pelo agente – ou
pelo depoimento de testemunha presencial.
IV – Se o acusado alegar o contrário ou sustentar a ausência de
potencial lesivo da arma empregada para intimidar a vítima, será dele
o ônus de produzir tal prova, nos termos do art. 156 do Código de
Processo Penal.
V – A arma de fogo, mesmo que não tenha o poder de disparar
projéteis, pode ser empregada como instrumento contundente, apto
a produzir lesões graves.
VI – Hipótese que não guarda correspondência com o roubo pra‑
ticado com arma de brinquedo.

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HC 96.099

VII – Precedente do STF.


VIII – Ordem indeferida.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo Tri‑
bunal Federal, em sessão plenária, sob a presidência do ministro Gilmar Mendes,
na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria
e nos termos do voto do relator, indeferir o pedido de habeas corpus; vencidos
os ministros Cezar Peluso, Eros Grau e o presidente, ministro Gilmar Mendes.
Ausentes, justificadamente, o ministro Celso de Mello, a ministra Ellen Gracie
e, neste julgamento, o ministro Joaquim Barbosa.
Brasília, 19 de fevereiro de 2009 — Ricardo Lewandowski, relator.

PROPOSTA DE REMESSA AO PLENO


O sr. ministro Marco Aurélio: Senhor Relator, Vossa Excelência permite apenas
uma palavra do integrante mais antigo na Turma?
Houve uma ponderação da tribuna quanto ao descompasso, à divergência intes‑
tina notada, no que a Segunda Turma estaria a exigir a perícia na arma de fogo
para chegar-se à qualificadora. Não seria o caso, para evitarmos até que o habeas
corpus ganhe sabor lotérico – sendo concedida a ordem na Segunda Turma e inde‑
ferida na Primeira –, de levarmos ao Pleno? Eu sei que o Pleno está sobrecarregado.
O sr. ministro Carlos Britto (presidente): Eu também estou pensando que
o caso é de afetação.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): Eminente Presidente, eu ia
realmente abordar esse aspecto.
Quando proferi o primeiro voto, que acabou sendo seguido de forma pratica‑
mente majoritária, a própria ministra Cármen Lúcia acabou seguindo esse voto
com a ressalva de haver realmente prova.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Ressalvei que eu passava a acompanhar quando
houvesse provas, condições de provas.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): Uma outra prova, testemunhal,
ou a própria palavra da vítima, etc. Mas sei que Vossa Excelência, também, vem
acompanhando esse posicionamento nosso no sentido de que é dispensável a
perícia para a caracterização da majorante do art. 157.
O sr. ministro Carlos Britto (presidente): A depender da prova de que se
valeu o magistrado.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  560


HC 96.099

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): Claro, evidentemente, em


havendo outra prova, não se faz necessário.
Eu dei um longo voto. Mas, por ocasião daquele meu primeiro voto, eu me
baseei também num voto proferido pela Segunda Turma, de relatoria da emi‑
nente ministra Ellen Gracie, no HC 84.032, de São Paulo, que tem a seguinte
ementa – é curtíssima:
Roubo. Uso de arma de fogo (CP, art. 157, § 2º, I).
1. A qualificadora de uso de arma de fogo (CP, art. 157, § 2º, I) independe da apre‑
ensão da arma, principalmente quando, como ocorreu nos autos, a arma foi levada
pelos comparsas que conseguiram fugir.

Ou seja, eu queria colocar uma premissa no sentido de dizer que não me


parece caracterizada, pelo menos até agora, essa divergência jurisprudencial.
O sr. ministro Marco Aurélio: Essa versão seria superveniente, não é? Recente?
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): O defensor público está ci­­
tando uma decisão do ministro.
O sr. ministro Marco Aurélio: Seria uma decisão recente.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): E eu estou dizendo que há
outra em sentido contrário da própria Segunda Turma. Não creio, data venia, que
o assunto esteja por ora maduro para ser levado ao Plenário. A meu ver, seriam
necessárias mais decisões em sentido contrário.
O sr. ministro Carlos Britto (presidente): Parece que já existe uma decisão,
de 11-11-2008, da Segunda Turma, já sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): No sentido contrário?
O sr. ministro Carlos Britto (presidente): No sentido contrário.
O sr. ministro Marco Aurélio: No sentido de ser dispensável a perícia. É dis‑
pensável ou indispensável a perícia?
Quanto à matéria de fundo, continuo convencido.
O sr. ministro Carlos Britto (presidente): É dispensável a perícia. Ministro
Joaquim Barbosa, no dia 11-11.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): Pois é, portanto, não há una‑
nimidade.
A sra. ministra Cármen Lúcia: É, então está na mesma linha.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): Claro, eu me curvo ao Plená‑
rio. Vossa Excelência sempre diz que o Colegiado tem sempre razão. Portanto,
se o Plenário entender de mandar... Mas o meu ponto de vista é que não está
maduro ainda para tanto.
O sr. ministro Marco Aurélio: O senhor não tem a data dessa decisão?

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  561


HC 96.099

O sr. Antônio de Maia e Pádua (defensor público da União): Tenho, é de 18 de


novembro de 2008.
O sr. ministro Marco Aurélio: Dezoito de novembro. Essa é do dia 11. Então, a
divergência mostra-se superintestina. Ocorre no âmbito da própria Segunda Turma.
O sr. ministro Carlos Britto (presidente): Talvez seja precoce a afetação,
não é?
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): Eu acho que é precoce.
O sr. ministro Marco Aurélio: De qualquer forma, Presidente, vou pedir
vênia para ficar vencido.
Creio que estamos a versar a liberdade de ir e vir, notando que, na própria
Segunda Turma, há divergência, com decisão favorável à impetração.
Os pronunciamentos da Primeira Turma têm sido no sentido – e continuo
convencido de que há o acerto desses pronunciamentos – de dispensar-se a
perícia. Muito embora sejamos cinco e, com o voto da ministra Ellen Gracie,
tenhamos maioria, de qualquer forma é preciso que se uniformize a jurispru‑
dência em nome da Turma.
Por isso, penso que devemos deslocar.

VOTO
(Sobre a proposta de remessa ao Pleno)
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): Presidente, eu, como relator,
não me oponho. Curvo-me às ponderações do eminente ministro Marco Aurélio.
É um tema momentoso. Talvez seja interessante que nós pacifiquemos de
vez esse assunto.
O sr. ministro Marco Aurélio: Até para desestimular novas impetrações.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Uma vez que o Supremo Tribunal tenha dito
pelo Plenário, o assunto, inclusive para os outros tribunais, para os outros juízes,
passa a ter uma vertente.
O sr. ministro Marco Aurélio: Muito embora, Ministra, aquele que precisa
dar o exemplo não observe, como deveria, as decisões do Supremo. Refiro-me
ao Estado gênero.
O sr. ministro Carlos Britto (presidente): O Estado como instituição.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Lamentavelmente.
O sr. ministro Menezes Direito: Há dezenas de habeas nesse sentido. Então,
seria prudente e mais prático que nós adotássemos agora, até para que possamos
dar instruções ao gabinete no sentido de fazer um levantamento dos que tem e
determinar o sobrestamento até o julgamento deste. Há dezenas espalhados aí.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  562


HC 96.099

EXTRATO DA ATA
HC 96.099/RS — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Paciente: Luiz Antô‑
nio de Mello Viegas. Impetrante: Defensoria Pública da União. Coator: Superior
Tribunal de Justiça.
Decisão: A Turma decidiu afetar ao Tribunal Pleno o julgamento do presente
habeas corpus e sobrestar todos os processos que tramitam pela Turma em igual
situação. Unânime. Falou o doutor Antônio de Maia e Pádua, defensor público
da União, pelo paciente.
Presidência do ministro Carlos Britto. Presentes à sessão os ministros Marco
Aurélio, Ricardo Lewandowski, a ministra Cármen Lúcia e o ministro Menezes
Direito. Subprocuradora-geral da República, doutora Cláudia Sampaio Marques.
Brasília, 3 de fevereiro de 2009 — Ricardo Dias Duarte, coordenador.

RELATÓRIO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de habeas corpus, impetrado pela
Defensoria Pública da União em favor de Luiz Antônio de Mello Viegas, contra
decisão proferida pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça no Resp
805.440 AgRg/RS, rel. min. Paulo Gallotti.
Narra a impetrante, em suma, que o paciente foi denunciado pela prática de
roubo qualificado pelo emprego de arma de fogo e pelo concurso de pessoas
(art. 157, § 2º, I e II, do Código Penal), sendo condenado à pena de cinco anos, seis
meses e vinte dias de reclusão em regime inicial fechado (fl. 2).
Afirma que, no exame da sua apelação, o TJRS reformou a sentença para excluir
a majorante do emprego de arma de fogo, uma vez que ela não foi apreendida.
Registra, ainda, que, após o Parquet estadual apresentar recurso especial, o STJ
reformou o acórdão e entendeu desnecessária a apreensão ou perícia na arma
de fogo para a caracterização da causa de aumento de pena do crime de roubo,
quando outros elementos comprovam sua utilização.
Dessa decisão foi interposto agravo regimental, o qual restou improvido. Eis
a ementa da decisão (fl. 101):
Penal. Agravo regimental. Roubo. Emprego de arma de fogo. Incidência da causa de
aumento de pena. Desnecessidade de apreensão ou perícia.
1. Pacífico o entendimento desta Corte de que, para a caracterização da majo‑
rante prevista no artigo 157, § 2º, I, do Código Penal, não se exige que a arma de
fogo seja periciada ou apreendida, desde que comprovado, por outros meios, que
foi efetivamente utilizada para intimidar a vítima.
2. Agravo regimental a que se nega provimento.

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HC 96.099

Sustenta a impetrante, em síntese, a inaplicabilidade da majorante do inciso I


do § 2º do art. 157 – violência ou ameaça exercida com o emprego de arma –,
uma vez que o instrumento não foi apreendido e, portanto, não foi provado o
seu potencial lesivo (fl. 4).
Afirma, mais, ser indispensável a realização de perícia para atestar a poten‑
cialidade lesiva da arma, de maneira a ensejar a aplicação da majorante.
Requer, ao final, a concessão da ordem para que seja excluída do cálculo da
pena a circunstância do emprego da arma de fogo (fl. 15).
O Ministério Público Federal, em parecer da lavra da subprocuradora-geral
da República Cláudia Sampaio Marques, opinou pelo indeferimento da ordem
pleiteada (fls. 109-120).
Em 3-2-2009, a Primeira Turma afetou o processo ao Plenário.
É o relatório.

VOTO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): Bem examinados os autos, tenho
que é caso de denegação da ordem.
Quanto à questão versada nos autos, o STF já se pronunciou algumas vezes
em sentido contrário à pretensão veiculada na inicial. Veja-se, verbi gratia, na
Primeira Turma o HC 93.353/SP, de minha relatoria, e, na Segunda Turma, o
HC 94.448/RS, rel. min. Joaquim Barbosa.
Desse modo, o pleito referente à exclusão da causa especial de aumento de
pena relativa ao emprego de arma no delito de roubo não pode ser atendido.
Com efeito, não se mostra necessária a apreensão e perícia da arma de fogo
para comprovar o seu potencial lesivo, visto que tal qualidade integra a própria
natureza do artefato. Sua lesividade encontra-se in re ipsa. Supor o contrário
significaria dar guarida à exceção, àquilo que normalmente não ocorre. Iria de
encontro ao id quod plerumque accidit.
Se por qualquer meio de prova, em especial pela palavra da vítima – reduzida
à impossibilidade de resistência pelo agente –, ou pelo depoimento de testemu‑
nha presencial ficar comprovado o emprego de arma de fogo, esta circunstância
deverá ser levada em consideração pelo magistrado na fixação da pena.
E, no caso sob exame, o depoimento da vítima é firme nesse sentido, conforme
se observa de trecho retirado da sentença, abaixo transcrito:
Luiz Carlos Jacoby, vítima, aduziu que “(...) acompanhado de sua esposa e um menino
que estava internado na fazenda Senhor Jesus (tratamento para drogados), estavam
no Fiat Pálio, placas AP 2211, no Morro do Paula, na estrada das Pedreiras, defronte o

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Bar Santa Clara quando quatro indivíduos saíram do interior do referido bar, todos de
revólver em punho, se aproximaram do veículo do depoente e anunciaram o assalto.
O indivíduo que abordou o depoente foi Luiz Antônio de Mello Viegas, vulgo ‘Tonho’
(...) ato contínuo assumiu a direção do veículo Pálio, e os outros indivíduos entraram
no veículo e saíram em direção aos becos no Morro do Paula. Que passada 01:30h, os
indivíduos abandonaram o veículo do depoente na Pedreira dos Mello (...)”. [Fl. 22.]

Caso o acusado pretenda contraditar o que se contém no acervo probatório


ou sustentar a ausência de potencial lesivo da arma empregada para intimidar a
vítima, será dele o ônus de produzir tal evidência, nos termos do art. 156 do Código
de Processo Penal, segundo o qual a prova da alegação incumbirá a quem a fizer.
Sim, porque incumbe à acusação demonstrar os fatos criminosos imputados
ao acusado, cabendo a este, contudo, caso o alegue, provar eventual causa exclu‑
dente de tipicidade, antijuricidade, culpabilidade ou extintiva da punibilidade.
Como se sabe, a lei processual civil e penal outorga à parte o direito e, ao
mesmo tempo, a obrigação de demonstrar fato que alega em seu interesse. Não
seria razoável exigir da vítima ou do Estado-acusador comprovar o potencial
lesivo da arma, quando o seu emprego tiver sido evidenciado por outros meios
de prova, mormente quando esta desaparece por ação do próprio acusado, como
usualmente acontece após a prática de delitos dessa natureza.
Ademais, a arma de fogo, mesmo que, eventualmente, não tenha o poder de
disparar projéteis, pode ser empregada como instrumento contundente, apto a
produzir lesões graves, como sangramentos e fraturas, não sendo raros, na crônica
policial e forense, os relatos de coronhadas e chuçadas desferidas com cabos e
canos de revólveres, pistolas e artefatos afins, contra vítimas inermes. Sublinho,
por oportuno, que o art. 157, § 2º, I, alude a “violência ou ameaça (...) exercida com
emprego de arma”, não especificado a sua natureza, se de fogo ou de outra espécie.
A hipótese não guarda nenhuma correspondência com o roubo perpetrado
com o emprego de arma de brinquedo – exemplo frequentemente invocado pelos
que defendem a necessidade de perícia para caracterização da forma qualificada
do delito –, em que o tipo penal fica circunscrito àquele capitulado no caput do
art. 157 do Código Penal, porquanto a ameaça contra a vítima restringe-se apenas
ao plano psicológico, diante da impossibilidade material de que lhe sobrevenha
qualquer mal físico.
Esta Suprema Corte, ademais, já afastou, expressamente, a tese veiculada pela
defesa neste writ, no julgamento, pela Segunda Turma, do HC 84.032-9/SP, rel.
min. Ellen Gracie, assim ementado:
Roubo. Uso de arma de fogo (CP, art. 157, § 2º, I).
1. A qualificadora de uso de arma de fogo (CP, art. 157, § 2º, I) independe da

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apreensão da arma, principalmente quando, como ocorreu nos autos, a arma foi
levada pelos comparsas que conseguiram fugir.

Naquele julgamento ficou assentado que o emprego de arma de fogo no assalto


a um estabelecimento bancário – embora não tenha sido ela recuperada – foi
comprovado por testemunhas, sendo assim apto a caracterizar a respectiva
qualificadora, repelindo-se, no acórdão, o precedente invocado pelo impetrante,
“que cuidou de crime praticado com arma de brinquedo”.
Não se olvide, de resto, que constitui dever da autoridade judicial não apenas
zelar para que os direitos fundamentais do acusado sejam estritamente respei‑
tados, mas também velar para que a norma penal seja aplicada com vistas à
prevenção do crime e ao cerceamento da delinquência.
Nesse sentido, observa Guilherme de Souza Nucci, a política criminal – da qual
o magistrado também é um executor – exige uma “postura crítica permanente
do sistema penal, tanto no campo das normas em abstrato quanto no contexto
da aplicação das leis aos casos concretos, implicando, em suma, na postura do
Estado no combate à criminalidade”.1
Exigir uma perícia para atestar a potencialidade lesiva da arma de fogo em­­
pregada no delito de roubo, ainda que cogitável no plano das especulações aca‑
dêmicas, teria como resultado prático estimular os criminosos a desaparecer com
elas, de modo a que a qualificadora do art. 157, § 2º, I, do Código Penal dificilmente
possa ser aplicada, a não ser nas raras situações em que restem presos em flagrante,
empunhando o artefato ofensivo. Significaria, em suma, beneficiá-los com a própria
torpeza, hermenêutica essa que não se coaduna com a boa aplicação do Direito.
Isso posto, denego a ordem.

VOTO
O sr. ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, Vossa Excelência me permite?
Como eu fui relator recentemente na decisão de 18 de novembro do ano pas‑
sado, na Segunda Turma, nós, com o devido respeito, adotamos uma tese abso‑
lutamente oposta, por dois motivos fundamentais:
O primeiro deles é a qualificadora do art. 157, § 2º. Ela só pode ser aplicada
nos casos em que fique demonstrada a lesividade potencial da arma, porque
a intimidação, a violência e a grave ameaça fazem parte do tipo. Ou seja, não
importa que seja arma de brinquedo, seja arma tal. A capacidade de intimidação

1 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2008. p. 59.

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já faz parte da figura do caput, do tipo. A agravante exige mais do que isso, exige
a prova da potencialidade e da lesividade real da arma.
E, em segundo lugar, nós acentuamos – inclusive invocando, aqui, o HC 70.523,
do qual foi relator o ministro Marco Aurélio – a necessidade dessa prova, até
porque, em matéria penal, como se sabe, nenhuma presunção pode correr contra
o réu. Em caso de dúvida – e o caso aqui é de dúvida, porque, realmente não se
sabe se a arma tinha ou não real capacidade ofensiva –, só corre em favor do réu,
seja por força do princípio do “favor rei”, seja pelo princípio do ônus da prova que,
em matéria penal, recai sempre sobre a acusação. É conhecida a afirmação de que
o réu, no processo penal, não precisa provar coisa alguma. Ele pode ficar abso‑
lutamente inerte, e todo o peso da acusação recai sobre o autor da ação penal.
O ministro Celso de Mello, no HC 73.338, esse de 1996 – e, portanto, não re­­
cente –, diz o seguinte:
Nenhuma acusação penal se presume provada.
(...)
(...) não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Antes, cabe ao Ministério
Público demonstrar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. Hoje já não
mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra hedionda que, em dado
momento histórico de nosso processo político – ele se referia ao Estado Novo –,
criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a
obrigação de ele, acusado, provar a sua própria inocência!

E é o que proclama a doutrina – invoquei Magalhães Gomes Filho, e, invo‑


cando-o, não preciso invocar outrem:
Não se pode negar que as mais irrelevantes consequências da aceitação do prin‑
cípio da presunção de inocência se situam na disciplina da prova. Tanto assim,
que, dos ordenamentos em que vem consagrado legislativamente com a utili‑
zação de sua expressão histórica, registra-se a tendência ordinária em tratá-lo
como verdadeira presunção em juris tantum, com a consequência de se entender
recair totalmente sobre a acusação o ônus da prova, pois as presunções – como é
sabido – importam na dispensa do encargo de provar para quem as tem a seu favor.
Nisso resulta, em um processo penal, a dúvida acerca da existência de qualquer
fato deve sempre favorecer o acusado, até porque, como ressaltou Sarraceno, as
circunstâncias impeditivas não são senão o inverso das constitutivas, e uma dúvida
sobre aquelas constitui também uma dúvida a respeito desta uma.

Razões pelas quais, Senhor Presidente, pedindo vênia ao eminente relator e


aos ministros que deveriam, pela ordem, votar antes de mim, concedo a ordem
para revogar a qualificadora do § 2º do art. 157 do Código Penal.

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EXPLICAÇÃO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): Senhor Presidente, louvo o brilho
da intervenção do eminente ministro Cezar Peluso, como sempre, peço vênia
para ressaltar um pequeno trecho do meu voto em que digo exatamente isso: a
arma de fogo, por si mesma, tem um potencial ofensivo, esteja carregada ou não,
seja apta a produzir disparos ou não. Eu disse aqui:
Ademais, a arma de fogo, mesmo que, eventualmente, não tenha o poder de dis‑
parar projéteis – seja ela uma pistola, um revólver, uma metralhadora ou uma
espingarda –, pode ser empregada como instrumento contundente, apto a produzir
lesões graves, como sangramentos e fraturas, não sendo raros, na crônica policial
e forense, os relatos de coronhadas e chuçadas desferidas com cabos e canos de
revólveres, pistolas e artefatos afins, desferidas contra vítimas inermes.

Esse é o meu ponto de vista. Independentemente de estar carregada ou não,


de ter um potencial lesivo ou não, a própria arma, em si mesma, pode ser usada
como instrumento para causar lesões físicas.
O sr. ministro Carlos Britto: O fato é que o visual de uma arma de fogo
apontada contra alguém, sem dúvida, é um fator de intimidação.
O sr. ministro Cezar Peluso: Este é o problema, a intimidação faz parte do
tipo, e estamos discutindo qualificadora.
O sr. ministro Carlos Britto: Eu sei.
O sr. ministro Cezar Peluso: Ameaça, isso faz parte do tipo.
O sr. ministro Carlos Britto: Perfeito, mas, quanto à qualificadora, inde‑
pende da apreensão da arma e independe da perícia, se há prova robusta, se há
prova outra.
O sr. ministro Cezar Peluso: Se não houver a possibilidade de intimidação,
não há grave ameaça, nem violência que qualifique o crime. Se não houver nem
grave ameaça, nem violência que qualifique o crime, não existe o crime. Estamos
agora discutindo, além dessa intimidação que constitui e integra o tipo penal,
se cabe também a qualificadora.
O sr. ministro Carlos Britto: O que estamos discutindo aqui é exatamen-
te isso.
O sr. ministro Cezar Peluso: Ministro, se eu tiver um isqueiro no bolso, que
pode ser atirado, dependendo do material, e ferir a vítima, estou na mesma cir‑
cunstância de uma arma de fogo ineficiente como tal ou de arma aparente que
não foi encontrada.
O sr. ministro Carlos Britto: De jeito nenhum, Excelência. Comparar um
isqueiro com uma arma de fogo?

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O sr. ministro Cezar Peluso: Uma arma de fogo que é ineficiente? Para que
serve?
O sr. ministro Carlos Britto: O isqueiro faz fogo, mas não se compara jamais
com uma arma de fogo.
O sr. ministro Cezar Peluso: Uma arma de brinquedo, para que serve? Para
atirar na cabeça da vítima?
O sr. ministro Carlos Britto: Aqui, se trata da qualificadora. E há provas
robustas de que o emprego da arma de fogo se fez.
O sr. ministro Cezar Peluso: Como se sabe se a arma era apta para justificar
a aplicação da qualificadora? É só pela intimidação, a intimidação inerente ao
crime, que se aplicou a qualificadora. Mas o paciente já foi condenado por isso,
Ministro!
O sr. ministro Carlos Britto: Como causa de aumento de pena, não é neces‑
sário nem apreensão, nem perícia da arma. Temos decidido isso reiteradamente.
O sr. ministro Cezar Peluso: Se fosse provado que era arma de brinquedo,
não se poderia aplicar a qualificadora.
O sr. ministro Carlos Britto: Hoje em dia, aluga-se arma para assaltar, pra‑
ticar crime. Logo depois do crime, a arma de aluguel é devolvida. E, quando é
própria, o assaltante faz questão de se desfazer dela para evitar a perícia. Ou seja,
se essa tese vingar, a impunidade vai grassar mais uma vez, dará as cartas.
O sr. ministro Marco Aurélio: Ante a estratégia que será utilizada pelos
delinquentes – sumir com a arma –, só ocorrerá a aplicação da causa de aumento
no caso de flagrante.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): No jargão dos criminosos: é
dispensar a arma. Ele dispensa a arma num riacho ou num matagal.

VOTO
O sr. ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, vou simplificar, porque já
votei esse mesmo tema no HC 93.353, de São Paulo, na mesma linha do voto do
eminente ministro Ricardo Lewandowski, o qual eu acompanho, subscrevendo
as razões de Sua Excelência.

VOTO
A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, já discutimos esses casos
inúmeras vezes na Primeira Turma, tal como deve ter acontecido na Segunda
Turma. Aliás, fui voto vencido durante muito tempo.

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Neste caso, vou acompanhar, conforme tenho feito em outros casos na Turma,
porque tenho como certo – do mesmo modo que acaba de afirmar também o
ministro Cezar Peluso – ser elementar do tipo a existência de um instrumento
que possa, de alguma forma, constituir a gravidade que já se contém neste tipo
penal. Porém, evoluí para acompanhar, em alguns casos, tal qual os eminentes
pares da Turma têm visto.
Neste caso, houve outros meios pelos quais se considerou comprovada a gra‑
vidade, independentemente da perícia. Quer dizer, para mim, a perícia não é a
única forma de comprovação das condições potencialmente lesivas dessa arma.
Por isso, neste caso, tal como voto na Primeira Turma, acompanho o emi‑
nente ministro relator.
O sr. ministro Cezar Peluso: Eu também aceito essa restrição.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Neste caso, consideraram que havia outros
meios de comprovação.
O sr. ministro Cezar Peluso: Por exemplo, se a arma foi usada e houve dis‑
paro, evidentemente que não releva possa ter sumido depois. Não há aí problema
nenhum. Isto é, desde que de algum modo resulte das circunstâncias que a arma
tinha capacidade ofensiva, não importa, a perícia está dispensada.
Agora, a arma aqui não foi apreendida, não se sabe se a arma era de brinquedo
ou ineficiente doutro modo, ou não, e, sendo-o, não é arma, e a qualificadora
exige que seja arma. A norma da qualificadora é textual: exige que seja arma. Por
isso é que fiz referência ao isqueiro, que suscitou resposta jocosa do eminente
ministro em assunto tão sério, mas qualquer outro objeto pode, teoricamente,
ser transformado em arma eventual, mas não é a arma a que se refere o § 2º do
art. 157. A arma do art. 157, § 2º, é aquela que o é por natureza, e não qualquer
objeto que pode transformar-se numa arma circunstancialmente.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Por isso que, nos votos a que me referi – inclu‑
sive fiquei vencida –, eu citava sempre um julgado do ministro Pertence que
dizia: o caco de vidro também pode constituir, em determinadas circunstâncias,
algo grave e que intimide a vítima, e nem por isso se encontra absolutamente
na qualificadora.
Mantenho o meu ponto de vista, acompanhando o voto do ministro relator,
portanto, tal como estou votando na Primeira Turma, porque, neste caso, como
foi enfatizado, havia outros meios de comprovação, exatamente do que pode ser
qualificado no § 2º do art. 157.
É como voto, Senhor Presidente.

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VOTO
O sr. ministro Eros Grau: Senhor Presidente, peço vênia aos ministros Ricardo
Lewandowski, Menezes Direito e Cármen Lúcia para acompanhar o voto do
ministro Cezar Peluso, que me parece tecnicamente correto. O desafio do
Direito é exatamente este aqui, há sempre mais de uma resposta correta para
a mesma questão.
Acompanho a divergência.

VOTO
O sr. ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, nós estamos discutindo um
tema sério, a exigir de nossa parte um equacionamento jurídico preciso. E eu não
fiz blague ou brincadeira, de nenhum modo, na discussão da matéria, quando
falei de comparação entre o isqueiro e a arma de fogo. Eu quis apenas reforçar
o meu poder de argumentação, a comparação foi um recurso argumentativo.
E insisto nele. Se, num sinal de trânsito, apontassem-me um isqueiro, eu não
entregaria a minha bolsa, minha carteira, mas se me apontassem uma arma de
fogo, eu entregaria. Isso não é jocosidade, é recurso de argumentação.
No caso, entendo que a qualificadora se aplica, porque o eminente relator
demonstrou que a prova é robusta. Convenhamos, um filme, testemunhas, a
própria vítima a deixar, num contexto, evidenciado que foi rendida por uma
arma de fogo ou pelo que parecia uma arma de fogo. Quem vai pensar na distin‑
ção entre uma arma de brinquedo e uma arma de fogo, se o artefato tem todas
as aparências de uma arma de fogo e se o intuito, intento malsão do assaltante,
foi alcançado? Exatamente o susto, o medo e a rendição da vítima. E nós temos
decidido assim – não é isso, Ministro Marco Aurélio –, à unanimidade – a nossa
Turma –, reiteradamente, todas as semanas.
O sr. ministro Marco Aurélio: E hoje constato que a Primeira Turma está
em número majoritário no Plenário – 5 × 2.
O sr. ministro Carlos Britto: É verdade. Então se o ministro Cezar Peluso
entendeu diferentemente, peço desculpas a Sua Excelência, mas não houve a
menor intenção, até porque o ministro Peluso é mestre de todos nós, além de
um operador jurídico, é um teórico portentoso do Direito. Então, peço escusas
a Sua Excelência se entendeu como uma tirada de humor, ou coisa que o valha,
com um assunto tão sério.
Acompanho o voto do relator.

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HC 96.099

VOTO
O sr. ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, já sinalizei convencimento
sobre a matéria e chego mesmo a dizer que, a prevalecer a corrente contrária, a
corrente formalizada a uma só voz pela Segunda Turma, o negócio será desapa‑
recer, sempre e sempre, com a arma utilizada. Arma que, como ressaltou o minis‑
tro Carlos Ayres Britto, está, inclusive, no mercado de aluguel e, quase sempre,
é devolvida de imediato àquele que a disponibilizou.
Senhor Presidente, de início, a não ser que a lei restrinja, em Direito são admi‑
tidos todos os meios de prova e, no caso, não há a imposição, para ter-se a inci‑
dência da causa de aumento, de fazer-se a perícia. Mais do que isso, o ordena‑
mento jurídico é um grande todo. O que constatamos quanto ao exame de corpo
e de delito quando o ato praticado, discrepante da ordem penal, deixa vestígios?
Deve ser feito o exame, mas o próprio Código de Processo Penal prevê que, não
sendo possível realizá-lo, por haverem desaparecido vestígios – e aqui seria o
desaparecimento, muito oportuno para o acusado, da própria arma –, a prova
testemunhal poderá suprir-lhe a falta – art. 167. Com maior razão quanto à causa
de aumento alusiva ao roubo.
Não estou lembrado do precedente que foi citado e que seria de minha lavra.
Mas, se no passado concluí de forma diversa, estou a evoluir, e deve o juiz sempre
evoluir tão logo convencido de assistir maior razão – não estou reconhecendo
o precedente, eu teria que conferir – à tese inicialmente rechaçada, repudiada.
Peço vênia, Presidente, ao ministro Cezar Peluso e também ao ministro Eros
Grau, para acompanhar o relator indeferindo a ordem.

VOTO
O sr. ministro Gilmar Mendes (presidente): Na Turma, tenho a impressão de
que já me manifestei no sentido do voto do ministro Cezar Peluso e ficaria com
suas razões.

EXTRATO DA ATA
HC 96.099/RS — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Paciente: Luiz Antô‑
nio de Mello Viegas. Impetrante: Defensoria Pública da União. Coator: Superior
Tribunal de Justiça.
Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do relator, indeferiu
o pedido de habeas corpus, vencidos os ministros Cezar Peluso, Eros Grau e o

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HC 96.099

presidente, ministro Gilmar Mendes. Ausentes, justificadamente, o ministro Celso


de Mello, a ministra Ellen Gracie e, neste julgamento, o ministro Joaquim Barbosa.
Falaram pelo paciente o doutor Antônio de Maia e Pádua, defensor público da
União, e pelo Ministério Público Federal o procurador-geral da República, doutor
Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.
Presidência do ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os ministros Marco
Aurélio, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski,
Eros Grau, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Procurador-geral da República,
doutor Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, e vice-procurador-geral da
República, doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 19 de fevereiro de 2009 — Luiz Tomimatsu, secretário.

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HC 102.836 AgR

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS 102.836 — PE


Relatora: A sra. ministra Cármen Lúcia
Relator para o acórdão: O sr. ministro Dias Toffoli
Agravante: Adriano Silva de Lima
Agravado: Relator do HC 117.440 do Superior Tribunal de Justiça

Agravo regimental em habeas corpus. Inicial indeferida limi‑


narmente, em razão do enunciado da Súmula 691/STF. Recurso
interposto pelo próprio paciente, que não detinha habilitação
legal para tanto. Possibilidade. Precedentes. Opção legislativa
de se excluir das atividades típicas de advocacia o manuseio do
remédio constitucional (art. 1º, § 1º, da Lei 8.906/1994). Ação de
caráter constitucional penal e de procedimento especial, des‑
prendida de rigor técnico e formal. Conhecimento do recurso.
Julgamento de mérito do writ impetrado ao Superior Tribunal
de Justiça. Prejudicialidade. Precedentes.
1. Habeas corpus que teve seu seguimento negado (art. 21, § 1º, do
RISTF) por incidir, na espécie, a Súmula 691/STF, pois não foi cons‑
tatada situação de flagrante ilegalidade que ensejasse o afastamento
excepcional do enunciado em questão.
2. O habeas corpus, por ser uma ação constitucional de caráter penal
e de procedimento especial, desprendida de rigor técnico e formal,
legitima todo aquele que, sofrendo ou vendo-se ameaçado de sofrer
violência ou coação em sua liberdade de locomoção, dele se utiliza,
em causa própria ou em favor de outrem (art. 654 do Código de Pro‑
cesso Penal).
3. Essa foi opção do legislador ao excluir da atividade típica de

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  574


HC 102.836 AgR

advocacia a impetração desse remédio constitucional (art. 1º, § 1º, da


Lei 8.906/1994).
4. Calcado nesta premissa, parafraseando o eminente ministro
Francisco Rezek, “quem tem legitimação para propor habeas corpus
tem também legitimação para dele recorrer” (HC 73.455/DF, Segunda
Turma, DJE de 7-3-1997).
5. A Primeira Turma também já consignou que, “versando o pro‑
cesso sobre a ação constitucional de habeas corpus, tem-se a possi‑
bilidade de acompanhamento pelo leigo, que pode interpor recurso,
sem a exigência de a peça mostrar-se subscrita por profissional da
advocacia” (HC 84.716/MG, rel. min. Marco Aurélio, DJ de 26-11-2004).
6. Recurso conhecido; porém, prejudicado.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a presidência da ministra Cármen Lúcia,
na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria
de votos, em conhecer do agravo regimental e julgar prejudicada a ordem de
habeas corpus, nos termos do voto do ministro Dias Toffoli, relator para o acór‑
dão; vencidos a ministra Cármen Lúcia, relatora presidente, que não conhecia
do recurso, e, em parte, o ministro Marco Aurélio, que dele conhecia e afastava
o prejuízo da impetração.
Brasília, 8 de novembro de 2011 — Dias Toffoli, relator para o acórdão.

RELATÓRIO
A sra. ministra Cármen Lúcia: 1. Em 26 de fevereiro de 2010, neguei seguimento
ao habeas corpus impetrado por Adriano Silva de Lima, em benefício próprio.
A decisão agravada teve a seguinte fundamentação:
1. Habeas corpus, com pedido de medida liminar, impetrado por Adriano Silva de
Lima, em benefício próprio, contra decisão do ministro Jorge Mussi, do Superior
Tribunal de Justiça, que, em 30‑9‑2008, expôs o caso e indeferiu o pedido de liminar
requerido no Habeas Corpus 117.440, nos termos seguintes:
“Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado por Adriano Silva
de Lima, em causa própria, indicando como autoridade coatora Desembarga‑
dor componente da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de
Pernambuco, que indeferiu a postulação sumária, na qual se buscava alterar

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HC 102.836 AgR

o regime inicial para o semiaberto, decorrente de sua condenação à pena de 7


anos de reclusão, como incurso na sanção do art. 33 da Lei 11.343/2006.
Entende o impetrante que é vítima de constrangimento ilegal, pois a reprimenda
firmada é inferior a 8 anos, é primário e o delito não foi perpetrado com violência
ou grave ameaça à pessoa, devendo-lhe ser abrandado o modo prisional.
Requer a concessão sumária do remédio constitucional para que seja alte‑
rado o sistema inicial para o intermediário, transferindo-o ao estabelecimento
prisional compatível.
É o relatório.
Esta Corte Superior, nos termos do verbete sumular 691 do Supremo Tribunal
Federal, pacificou orientação no sentido de que “não se admite habeas corpus
contra decisão proferida pelo relator da impetração na instância de origem,
excetuados os casos de indeferimento de pedido liminar em decisão inques‑
tionavelmente teratológica, despida de qualquer razoabilidade” (HC 86.415/SP,
rel. Min. Laurita Vaz, Quinta Turma, j. em 21‑2‑2008).
E, na hipótese, não se vislumbra flagrante ilegalidade na decisão monocrá‑
tica que, em sede sumária, negou a pretensão deduzida, por não se verificar,
de plano, a sustentada coação.
Ademais, a motivação que dá suporte à pretensão liminar confunde-se com
o mérito do writ, devendo o caso concreto ser analisado mais detalhadamente
quando da apreciação e do julgamento definitivo do mandamus.
Ante o exposto, indefiro a liminar.
Solicitem-se informações, atualizadas e pormenorizadas, ao Tribunal impe‑
trado e à 1ª Vara da Criminal da Comarca de Cabo de Santo Agostinho.
Após, dê-se vista ao Ministério Público Federal.
Publique-se e intime-se (...) (fl. 23).”
2. É contra essa decisão que se insurge o impetrante, que reitera as questões
suscitadas no Superior Tribunal de Justiça, defendendo ser possível, no caso, o
afastamento da Súmula 691 deste Supremo Tribunal.
3. Requer, assim, “seja expedida liminar determinando a transferência do paciente
do injusto Regime atual em que se encontra fechado para o Regime semiaberto” (fl.
12). E, no mérito, pede a concessão da “ordem em sede de habeas corpus de ofício
ou no julgamento final, concedendo a liberdade condicional ao paciente” (fl. 19).
Examinada a matéria posta à apreciação, decido.
4. A presente ação não oferece fundamentação jurídica que possibilite o seu regu‑
lar prosseguimento neste Supremo, pelo menos na fase em que está a outra idêntica
ação de habeas corpus pendente de julgamento no Superior Tribunal de Justiça.
A decisão questionada é monocrática e tem natureza precária, desprovida, por‑
tanto, de conteúdo definitivo. Nela, o ministro Jorge Mussi indeferiu tão somente
a liminar requerida, por entender ausentes os requisitos para o acolhimento do
pedido, restringindo-se a analisar o acerto da decisão monocrática proferida pelo
“Desembargador componente da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do
Estado de Pernambuco”, para saber se, excepcionalmente, seria possível conhecer

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HC 102.836 AgR

da impetração e deferir a liminar negada no Tribunal de Justiça pernambucano.


Além disso, requisitou informações ao Tribunal de Justiça de Pernambuco e à 1ª
Vara Criminal da Comarca de Cabo de Santo Agostinho/PE, determinando o con‑
sequente encaminhamento dos autos ao Ministério Público Federal, a fim de que,
instruídos os autos, houvesse o regular prosseguimento do habeas corpus até o seu
julgamento, na forma pedida pela parte.
Inequívoca é a incidência, portanto, da Súmula 691 deste Supremo Tribunal (“Não
compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra
decisão do relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere
a liminar”) na espécie vertente.
5. É bem certo que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem admitido, em
casos excepcionais e em face de circunstâncias fora do ordinário, o temperamento
na aplicação daquela súmula. Tal excepcionalidade fica demonstrada nos casos em
que se patenteie flagrante ilegalidade ou afronta a princípios constitucionais ou
legais na decisão questionada, o que não se tem na espécie em pauta, não sendo,
pois, o caso de se cogitar daquela flexibilização.
Sem adentrar no mérito da impetração, mas apenas para afastar a alegação de
estar-se diante de caso excepcional, ressalte-se que, pelo que se tem na sentença
penal condenatória, a fixação do regime inicial de cumprimento de pena mais severo
ao paciente foi determinada com fundamento em elementos concretos, que satis‑
fariam os requisitos específicos previstos na legislação processual penal vigente.
Nesse sentido, entre outros, o julgamento do HC 863.930, relator o eminente minis‑
tro Sepúlveda Pertence, no qual se verificou ser viável na sentença a imposição de
regime mais severo que o autorizado pela pena aplicada, desde que fundamentada
em dados concretos ocorridos no processo-crime, verbis:
“Ementa: Execução penal: regime inicial de cumprimento. 1. A gravidade do
tipo incidente, para todos os efeitos jurídicos, traduz-se na escala penal a ele
cominado e, em concreto, na pena aplicada: por isso, é inadmissível a imposição
de regime mais severo que o correspondente, em princípio, à pena aplicada,
quando baseada apenas na valoração judicial subjetiva da gravidade em abs‑
trato do crime praticado: Súmula 718. 2. Quando fundada não apenas na gra‑
vidade abstrata do crime, mas também em circunstâncias específicas do fato,
pode a sentença impor ao condenado regime mais severo que o autorizado
pela quantidade de pena aplicada. 3. Verificar, no contexto do fato concreto,
se as circunstâncias, às quais apelou no tópico o julgado, justificam ou não o
regime mais severo ultrapassa os lindes do habeas corpus.” (HC 83.930, rel. min.
Sepúlveda Pertence, DJ de 6‑8‑2004, grifos nossos).
E:
“Ementa: Habeas corpus. Penal. Imposição de regime inicial de cumprimento
de pena mais severo. Art. 33, §§ 2º e 3º, do Código Penal. Possibilidade. Sentença
devidamente fundamentada. Ordem denegada. I – No caso sob exame, a sen‑
tença encontra-se devidamente fundamentada, expondo, de modo inequívoco,
as razões de convencimento do magistrado que o conduziram à fixação do

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  577


HC 102.836 AgR

cumprimento da pena em regime inicialmente fechado. II – Ordem denegada.”


(HC 96.472, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJ de 20‑11‑2009).
6. No presente caso, as circunstâncias expostas na inicial e os documentos jun‑
tados comprovam ser imprescindível prudência na análise e na conclusão do que
se contém no pleito, porque não se pode permitir, sem qualquer fundamentação,
a supressão da instância a quo. Ora, a decisão liminar e precária proferida pelo
digno ministro Jorge Mussi, do Superior Tribunal de Justiça, não exaure o cuidado
do quanto posto a exame, estando a ação, ali em curso, a aguardar julgamento
definitivo, tal como pedido pela parte.
Nesse sentido:
“Ementa: Agravo regimental. Habeas corpus. Processual penal. Impetração contra
decisão que indeferiu liminar no Superior Tribunal de Justiça: supressão de ins-
tância: incidência da Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal. Excepcionalidade
não demonstrada. Agravo regimental não provido. 1. A decisão questionada nesta
ação é monocrática e tem natureza precária, desprovida, portanto, de conte‑
údo definitivo. Não vislumbrando a existência de manifesto constrangimento
ilegal, incide, na espécie, a Súmula 691 deste Supremo Tribunal (‘Não compete
ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra
decisão do relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere
a liminar’). Precedentes. 2. Agravo regimental não provido” (HC 90.716 AgR, rel.
min. Cármen Lúcia, DJ de 1º-6-2007).
E, ainda,
“Ementa: Habeas corpus – Objeto – Indeferimento de liminar em idêntica medida –
Ver­­bete 691 da Súmula do Supremo. A Súmula do Supremo revela, como regra, o não
cabimento do habeas contra ato de relator que, em idêntica medida, haja implicado
o indeferimento de liminar” (HC 90.602, rel. min. Marco Aurélio, DJ de 22‑6‑2007).
Confiram-se, ainda, entre outros: HC 89.970, rel. min. Cármen Lúcia, DJ de
22‑6‑2007; HC 90.232, rel. min. Sepúlveda Pertence, DJ de 2‑3‑2007; e HC 89.675
AgR, rel. min. Cezar Peluso, DJ de 2‑2‑2007.
7. De se realçar, também, que a requisição de informações pelo nobre relator no
Superior Tribunal impõe se reconheça – tal qual no caso presente – a deficiência
do pedido ali apresentado, fundamento, em tese, suficiente para o reconhecimento
de haver razões jurídicas para o indeferimento de liminar e o seguimento regular
da ação naquele digno órgão judicial.
8. Pelo exposto, nego seguimento ao presente habeas corpus (art. 21, § 1º, do Regi‑
mento Interno do Supremo Tribunal Federal), ficando, por óbvio, prejudicado o
pedido de liminar. [Fls. 30-35.]

2. Publicada essa decisão no DJE de 5‑3‑2010 (fl. 36), interpõe Adriano Silva de
Lima, ora agravante, em 9‑3‑2010, tempestivamente, agravo regimental (fls. 123-128).
3. O agravante afirma que “já encontra-se há tempos de progredir de regime
do mais severo para o mediano e por conseguinte para o livramento condicional,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  578


HC 102.836 AgR

conquanto fora pedida a liminar no sentido de se restabelecer o que se é de


direito, e quando em caráter definitivo, quando se tomasse lugar o julgamento do
mérito, fosse concedido a ordem para o livramento condicional, como também
fora solicitado a esta Relatoria, que demandasse os esforços suficientes no sentido
de ensejar a instituição prisional os informes acerca da declaração de compor‑
tamento e o quanto de dias fora cumprido no cárcere, para assim atender aos
critérios objetivos para a obtenção da progressão de regime” (fl. 40).
Sustenta que “o deslinde da presente ordem demanda maior sensibilidade
acerca da incidência ou não do verbete 691-STF, é bem certo que cada julgador,
tem uma interpretação da matéria de fundo, cada um com a sua humanística,
com suas considerações, a tentativa, a busca incessante no sentido de ver a ordem
concedida, se insurge a propositura da presente ação nesta última esfera” (fl. 41).
Requer que “receba o presente agravo regimental, com ou sem o parecer do
Douto representante do Ministério Público, seja apresentada em mesa para a
colenda 1ª turma deste excelso Tribunal, procedendo assim com o julgamento
do presente agravo, e por conseguinte concedendo a ordem de habeas corpus
nos termos inicialmente requeridos” (fl. 43).
4. Em 17 de maio de 2010, determinei vista dos autos ao procurador-geral da
República.
5. Em 7 de junho de 2010, a subprocuradora-geral da República Claúdia Sam‑
paio Marques opinou pelo desprovimento do agravo regimental, nos termos
seguintes:
5. A decisão agravada, entretanto, não merece reparos.
6. Isso porque o presente habeas corpus é um claro exemplo de impetração contra
decisão denegatória de liminar proferida pela instância a quo. Logo, o não conheci‑
mento do writ pela Ministra Relatora era medida que se impunha, eis que não havia
na hipótese qualquer ilegalidade manifesta passível de justificar a excepcional miti‑
gação da Súmula 691/STF, devendo prevalecer, no momento da decisão, a incompe‑
tência dessa Corte para o julgamento da matéria, sob pena de supressão de instância.
(...)
9. Com efeito, a Suprema Corte tem adotado orientação pacífica segundo a qual
“não há nulidade na decisão que majora a pena-base e fixa o regime inicial mais
gravoso, considerando-se as circunstâncias judiciais desfavoráveis” (HC 93.818/
RJ, rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 16‑5‑2008), não servindo o habeas corpus como
instrumento idôneo para realizar a ponderação, em concreto, das circunstâncias
judiciais do art. 59, do Código Penal.
(...)
11. No tocante ao excesso de prazo para julgamento do mandamus impetrado no
Superior Tribunal de Justiça, o argumento encontra-se prejudicado, pois segundo

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  579


HC 102.836 AgR

consulta na página eletrônica oficial do Superior Tribunal de Justiça constata-se


que a Quinta Turma, em julgamento datado de 25 de maio de 2010, por unanimi‑
dade, denegou a ordem ao HC 117.440/PE (...).
12. Ante o exposto, o Ministério Público Federal pugna pelo desprovimento do
agravo regimental, mantendo-se integralmente a decisão agravada. [Fls. 58-61.]

É o relatório.

VOTO
A sra. ministra Cármen Lúcia (relatora): 1. Conforme relatado, por entender
incabível o exame, per saltum, de fundamentos não apreciados pelo órgão judici‑
ário apontado como coator, neguei seguimento ao habeas corpus impetrado por
Adriano Silva de Lima, em benefício próprio, contra decisão monocrática pro‑
latada no HC 117.440 pelo ministro Jorge Mussi, do Superior Tribunal de Justiça.
2. O ora agravante requer, basicamente, o julgamento do habeas corpus aqui
impetrado e, para fins de afastamento da Súmula 691 do Supremo Tribunal, alega
o excesso de prazo para julgamento do habeas no Superior Tribunal de Justiça.
3. O que se tem na presente ação, ora sujeita ao recurso de agravo regimen‑
tal, é o questionamento da decisão precária proferida no HC 117.440, impetrado
em favor do ora agravante, no Superior Tribunal de Justiça, por meio da qual o
ministro Jorge Mussi indeferiu o pedido de liminar.
Por essa razão, neguei seguimento ao habeas corpus, por entender incabível
o exame, per saltum, de fundamentos não apreciados em definitivo pelo órgão
judiciário apontado como coator, e apliquei a Súmula 691 do Supremo Tribu‑
nal (“Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus
impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a tribu‑
nal superior, indefere a liminar”), cujo temperamento, possível de se adotar em
casos excepcionais, não haveria de ter aplicação à espécie vertente, pois não se
demonstra ilegalidade flagrante ou afronta a princípios constitucionais ou legais
na decisão questionada.
4. Independentemente disso, o presente agravo regimental não pode ser
conhecido.
Além do título judicial questionado na presente impetração ter sido substi‑
tuído pelo julgamento definitivo do HC 117.440, pela Quinta Turma do Superior
Tribunal de Justiça, o que ensejaria o prejuízo do presente agravo regimental em
habeas corpus em razão da perda superveniente de objeto (art. 659 do Código
de Processo Penal), verifica-se que o presente recurso não pode ser conhecido,
pois o agravante não tem capacidade postulatória.

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HC 102.836 AgR

Nesse sentido, o julgamento do agravo regimental no HC 97.658, relator o


ministro Carlos Britto, verbis:
Ementa: Processo penal. Habeas corpus. Competência originária do STF não caracte-
rizada. Recorrente sem capacidade postulatória. Prejuízo da impetração. Agravo não
conhecido. 1. Não se conhece de agravo regimental interposto por quem não detém
capacidade postulatória. Ademais, o título prisional impugnado no habeas corpus foi
revogado antes mesmo da impetração. 2. Agravo não conhecido. [DJ de 21‑8‑2009.]

5. Pelo exposto, não conheço do presente agravo regimental.


É o meu voto.

VOTO
O sr. ministro Marco Aurélio: O recurso, em relação ao habeas corpus, é acessó‑
rio, segue a sorte do principal. Se, para a impetração, é dispensável a capacidade
postulatória – somente o bacharel em Direito inscrito na Ordem a tem –, para o
recurso, até mesmo o de embargos declaratórios – não é o caso –, não se há de
exigir que o paciente-impetrante credencie advogado.
Por isso, conheço do recurso.

PEDIDO DE VISTA
O sr. ministro Dias Toffoli: Senhor Presidente, eu até ia, a princípio, pedir vista
do processo. Realmente, nós falamos tanto do art. 5º da Constituição Federal,
dos direitos e garantias individuais, quantos seminários, quantos livros escritos,
mas e a possibilidade da autodefesa? Jamais defendida!
A sra. ministra Cármen Lúcia (relatora): Aqui não é pela impossibilidade, é até
o contrário, não é, Ministro? Quando, na década de sessenta, no caso do Gideon, a
Suprema Corte americana entendeu que o direito de defesa é o direito, exatamente,
de ter direito a um advogado. Houve a mudança, e a Constituição de 1988 veio
exatamente fortalecer a Defensoria Pública para isso. E, por isso, é que eu tomo
tanto cuidado, como todos nós. Aliás, quando eu cheguei aqui, foram os minis‑
tros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence que eram os pioneiros em determinar.
O sr. ministro Marco Aurélio: Vossa Excelência me prestaria um esclare‑
cimento?
A sra. ministra Cármen Lúcia (relatora): Claro.
O sr. ministro Marco Aurélio: Após a decisão prolatada, Vossa Excelência
determinou fosse dada ciência da decisão à Defensoria Pública?

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  581


HC 102.836 AgR

A sra. ministra Cármen Lúcia (relatora): Determinei que fosse dada ciência
ao defensor público da decisão. Todas as decisões minhas têm até um padrão já:
comunico a ele, comunico ao defensor, seja comunicado ao defensor geral, comu‑
nico a ele que ele tem direito a esse advogado. E o prazo é contado exatamente
disso. Aliás, esse aqui é um paciente, até acho que, no meu caso, só comigo, é o
sexto habeas corpus que ele impetra.
O sr. ministro Marco Aurélio: Resolveu atuar por mão própria, como atuou
impetrando o habeas corpus.
A sra. ministra Cármen Lúcia (relatora): Ele resolveu atuar sozinho.
Então, Ministro Dias Toffoli, respeitando inclusive o pedido de vista, a única
coisa que eu acentuo é que, ao contrário: o art. 5º, quando fala de direitos funda‑
mentais e do direito de defesa, quer que a defesa técnica seja feita rigorosamente
por alguém que tenha conhecimento, porque uma preliminar, na matéria penal,
pode fazer uma pessoa ganhar ou perder a sua liberdade. É o contrário; quer dizer, a
autodefesa, como naquele caso da década de sessenta, que mudou esse paradigma
constitucional no mundo ocidental, foi quando a Suprema Corte americana disse
isto: autodefesa não significa, como diz o Gideon, naquele caso, que eu pudesse
saber tudo que eu podia alegar. Daí por que, desde que eu entrei, seguindo exata‑
mente a linha dos ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio, eu comunico.
O sr. ministro Dias Toffoli: (Cancelado)
A sra. ministra Cármen Lúcia (relatora): Mas eu só estou respondendo porque
Vossa Excelência disse: “Nós falamos tanto em direito de defesa!”. Falamos e
garantimos. Por isso, eu sou a maior defensora da Defensoria.
O sr. ministro Dias Toffoli: Mas eu penso, por exemplo, que o monopólio da
advocacia, em matéria de direito disponível, limitaria a cidadania; a lei poderia
abrir à autotutela.
A sra. ministra Cármen Lúcia (relatora): Mas a Constituição não abriu.
O sr. ministro Marco Aurélio: A Constituição não abriu, mas o Supremo,
contra o meu voto, o fez quanto ao art. 791 da Consolidação das Leis do Trabalho,
placitando a atuação direta do trabalhador e do empregador.
A sra. ministra Cármen Lúcia (relatora): Que fica muitas vezes em desvalia,
mas, enfim, eu apliquei a jurisprudência.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (presidente): Eu fico a imaginar aqui se,
levado esse raciocínio às últimas consequências, nós podemos eventualmente
admitir que um paciente semiletrado ou até semialfabetizado poderia até ajuizar
embargos de divergência, que, para mim, é um dos recursos mais difíceis, porque
ele precisa comprovar a divergência jurisprudencial.
O sr. ministro Dias Toffoli: Essa era a minha dificuldade – sem desconhecer

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  582


HC 102.836 AgR

todos os elementos. É por isso que o Estado brasileiro estabeleceu na Constitui‑


ção de 1988 a Defensoria Pública; é por isso que o Estado brasileiro dedica parte
do seu orçamento ao aparelhamento dos advogados públicos; é por isso que, em
muitos locais, temos advogados públicos abnegados. Eu atuei em assistência
judiciária gratuita quase dez anos da minha vida profissional como advogado,
mas o que está em discussão, aqui, não é isso. O que está em discussão aqui é
que houve a notificação da Defensoria e a Defensoria não atuou. E aí ele vem,
subsidiariamente, apresentar o recurso pessoalmente.
A sra. ministra Cármen Lúcia (relatora): Não. Não consta que ele tenha sequer
pedido. Eu que mandei, eu que determinei, mas todos os casos em que eles
requerem seja...
O sr. ministro Marco Aurélio: Mas foi na fase anterior...
A sra. ministra Cármen Lúcia (relatora): Não. Quando eu neguei impetração
é que eu comuniquei.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (presidente): Talvez a Defensoria tenha
avaliado que essa decisão de não conhecimento é mais favorável ao paciente,
porque ele tem a possibilidade de apresentar o seu pleito na origem, ou no STJ,
ou mesmo na primeira instância.
A sra. ministra Cármen Lúcia (relatora): Até porque aqui, de todo jeito, há um
outro dado: está prejudicado, porque ele era contra a liminar, apliquei a 691. E, se
houvesse, como houve, a mudança de quadro, porque já houve o julgamento, nós
teríamos julgamento per saltum, neste caso, teria que, portanto, de toda sorte,
não conhecer do habeas.
O sr. ministro Dias Toffoli: Mas eu tenho a minha preocupação com o fato
de o cidadão depender, sem dúvida nenhuma, de uma técnica – e nós somos
extremamente formalistas. Isso faz parte de uma concepção particular minha.
É evidente que aqui estou aproveitando essa peculiaridade da situação para divi‑
dir com os nobres colegas esta reflexão, que é exatamente a ideia da necessidade
de se ter, exclusivamente, o acesso ao Judiciário por meio de um profissional da
advocacia. Eu tenho reservas quanto a isso. Eu acho que entre os direitos e garan‑
tias individuais da Constituição deveria estar a autotutela. Não está lá colocado
isso expressamente, mas não seria ela decorrência lógica da própria substância
dos direitos individuais garantidos a todos?
A sra. ministra Cármen Lúcia (relatora): Pelo contrário. Hoje, até na parte admi‑
nistrativa, todo mundo tem direito a um advogado. Até nos processos administrativos.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (presidente): Eu tenho – até já expus
essa tese num habeas corpus – uma visão um pouco mais limitada desse dispo‑
sitivo constitucional, dizendo que a autodefesa é praticada pelo acusado na hora

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  583


HC 102.836 AgR

do interrogatório, por exemplo, ou quando ele está acompanhando a oitiva das


testemunhas. Esta é a autodefesa, que não se confunde com a defesa técnica,
que é uma outra garantia.
O sr. ministro Dias Toffoli: Mas temos, ao longo da história, Excelentíssimo
Presidente, situações concretas em que pessoas tentaram levar aos tribunais
alguns pleitos – estou falando de situações específicas da Alemanha, mas há em
outros lugares e locais, talvez no Brasil também haja – em que o cidadão não
conseguiu um profissional da advocacia que quisesse assumir a sua defesa. Isso
são registros históricos. O que fazer então?
Por isso, Senhor Presidente, eu estou aqui trazendo questões para reflexão.
Eu estou aqui em razão da situação concreta, levantando alguns temas à reflexão,
e um deles é o da autotutela. Eu sou daqueles que pensam mais na justiça mate‑
rial do que na formal. A formal é garantia de igualdade para as partes, garantia
de armas. Não tenho dúvida de ser a norma processual a mais igualitária de
todas, na medida em que todos têm o mesmo prazo, todos têm o mesmo nível
de acesso formal ao Poder Judiciário. Mas, em relação a impedir a autotutela, eu
tenho as minhas reservas, pois aqui é a própria parte, maior e capaz, que abre
mão do profissional da advocacia para se defender diretamente. É claro que terá
de fazê-lo observando as normas formais, processuais.
Por isso, vou pedir vista, aproveitando o caso concreto, muito embora eu
entenda que, no caso concreto, haja a questão da Súmula 691, da prejudicialidade.
Mas é só para uma reflexão um pouco mais alentada sobre esses temas, e sem
querer ser maçante com os colegas, porque é uma oportunidade que eu tenho de
me manifestar sobre temas que ainda não havia, enquanto juiz, enfrentado, mas
que são temas que me tem sido muito caros ao longo da minha formação histórica,
da minha formação profissional e da minha vida profissional, Senhor Presidente.

EXTRATO DA ATA
HC 102.836 AgR/PE — Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Agravante: Adriano
Silva de Lima. Agravado: Relator do HC 117.440 do Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: Após o voto da ministra Cármen Lúcia, relatora, que não conhecia
do agravo regimental em habeas corpus, pediu vista do processo o ministro Dias
Toffoli. Presidência do ministro Ricardo Lewandowski.
Presidência do ministro Ricardo Lewandowski. Presentes à sessão o ministro
Marco Aurélio, a ministra Cármen Lúcia e o ministro Dias Toffoli. Subprocura‑
dora-geral da República, doutora Cláudia Sampaio Marques.
Brasília, 21 de setembro de 2010 — Fabiane Duarte, coordenadora.

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HC 102.836 AgR

VOTO-VISTA
O sr. ministro Dias Toffoli: Rememoro o caso para uma perfeita compreensão
da controvérsia.
Habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado por Adriano Silva de Lima,
em causa própria, buscando a alteração do regime inicial de cumprimento de
sua pena para o semiaberto, tendo em vista a sua condenação, como incurso na
sanção do art. 33 da Lei 11.343/2006, à pena de sete anos de reclusão.
Aponta como autoridade coatora o ministro Jorge Mussi, do Superior Tribunal
de Justiça, que indeferiu a liminar no HC 117.440/PE, impetrado àquela Corte.
O impetrante/paciente sustenta, em linhas gerais, o constrangimento ilegal
a ele imposto, tendo em vista a demora no julgamento do writ impetrado ao
Superior Tribunal de Justiça, bem como a ilegalidade na fixação do regime ini‑
cial fechado para o cumprimento da sua pena. Traz como fundamentos que o
delito não foi praticado mediante violência ou grave ameaça à pessoa, que ele
seria primário e que a pena fixada em patamar inferior a oito anos permitiria,
nos termos do art. 33, § 2º, b, do Código Penal, o início do cumprimento da sua
pena em regime menos gravoso.
Requer o deferimento da liminar para determinar sua “transferência (...) do
injusto Regime atual em que se encontra (fechado) para o Regime (semiaberto)”
e, no mérito, pede a concessão da ordem “em sede de habeas corpus de ofício/
ou no julgamento final, concedendo a liberdade condicional (...)” (fl. 19 – grifos
conforme o original).
A eminente relatora negou seguimento ao presente habeas corpus (art. 21, § 1º,
do RISTF), por incidir, na espécie, a Súmula 691/STF, não tendo ela constatado
situação de flagrante ilegalidade que ensejasse o afastamento excepcional do
enunciado em questão (fls. 30 a 35).
Contra essa decisão, o impetrante/paciente interpôs, tempestivamente, o
presente agravo regimental, no qual busca, basicamente, o julgamento da impe‑
tração para fins de afastamento da Súmula 691 desta Suprema Corte (fls. 37 a 43).
Em sessão desta Primeira Turma, a ilustre relatora, ministra Cármen Lúcia,
verificando que o agravante não detinha capacidade postulatória para interpor
o recurso, dele não conheceu. Naquela oportunidade, pedi vista dos autos para
melhor analisar a questão.
É o breve relatório.
O que está em jogo é saber se o impetrante/paciente, que não detém habili‑
tação para o exercício da advocacia, apesar de poder interpor recurso em seu
favor, segundo o comando do art. 577 do Código de Processo Penal, não pode

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  585


HC 102.836 AgR

arrazoá-lo, dada a ausência de capacidade postulatória. Este é o entendimento


jurisprudencial consolidado desta Corte. Confira-se:
Habeas corpus. Penal. Processual penal. Defesa técnica. Direito indisponível e irrenun-
ciável. Inadmissibilidade de o réu subscrever sua própria defesa. Autodefesa. Direito
excepcional do acusado. Possibilidade restrita às hipóteses previstas na Constituição
e nas leis processuais. Ordem denegada. I – A defesa técnica é aquela exercida por
profissional legalmente habilitado, com capacidade postulatória, constituindo direito
indisponível e irrenunciável. II – A pretensão do paciente de realizar sua própria
defesa mostra-se inadmissível, pois se trata de faculdade excepcional, exercida nas
hipóteses estritamente previstas na Constituição e nas leis processuais. III – Ao réu
é assegurado o exercício da autodefesa consistente em ser interrogado pelo juízo ou
em invocar direito ao silêncio, bem como de poder acompanhar os atos da instrução
criminal, além de apresentar ao respectivo advogado a sua versão dos fatos para que
este elabore as teses defensivas. IV – Ao acusado, contudo, não é dado apresentar sua
própria defesa, quando não possuir capacidade postulatória. V – Ordem denegada.
[HC 102.019/PB, Primeira Turma, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJE de 22-10-2010.]

Habeas corpus. Processo penal. Capacidade postulatória. Embargos declaratórios


opostos pelo réu, de punho próprio. Ordem denegada. 1. Paciente que não tem habi‑
litação para o exercício da advocacia, apesar de poder interpor recurso em seu
favor (Código de Processo Penal, art. 577), não pode arrazoá-lo, porque lhe falta
capacidade postulatória. 2. Somente quando a lei abre a hipótese excepcional de
o próprio réu arrazoar recurso é que este é admitido. Não é o caso dos embargos
de declaração (Código de Processo Penal, arts. 619 e 620). 3. Ordem denegada.
[RHC 83.765/PR, Primeira Turma, rel. min. Joaquim Barbosa, DJ de 27-2-2004.]

Entendo que o tema é interessantíssimo e merece, sob o ângulo da autotu‑


tela, as mais variadas reflexões. Não vou, contudo, muito adiante, uma vez que,
considerado o óbice do enunciado da Súmula 691/STF e a noticiada prejudicia‑
lidade da impetração, em razão do julgamento de mérito do writ impetrado ao
Superior Tribunal de Justiça, na linha de julgados desta Corte, alguns de minha
relatoria, o desfecho desta impetração, inevitavelmente, será o da prejudiciali‑
dade, pela perda superveniente de objeto, como já destacou a eminente relatora
em seu minucioso voto.
Em razão disso, entendo que o caso concreto, dadas as circunstâncias, não
é suficientemente maduro para um reflexão mais aprofundada a respeito do
tema, o que farei em uma próxima oportunidade em que esse vier à discussão.
No entanto, deixo consignado que as minhas convicções pessoais me levam a
admitir, por se tratar de habeas corpus, que se interponha recurso independen‑
temente de se ter habilitação legal ou de representação para tanto.

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HC 102.836 AgR

Segundo o caput do art. 654 do Código de Processo Penal, independentemente


de habilitação legal ou de representação, qualquer um pode impetrar habeas
corpus em causa própria ou em favor de outrem. Aliás, o próprio estatuto dos
advogados exclui da atividade privativa de advocacia a impetração de habeas
corpus em qualquer instância ou tribunal (art. 1º, § 1º, da Lei 8.906/1994).
Considerando que a opção do legislador foi a de excluir da atividade típica de
advocacia a impetração desse remédio constitucional, abriu-se passagem para
todo aquele que estiver sofrendo ou se achar ameaçado de sofrer violência ou
coação em sua liberdade de locomoção se utilizar, em causa própria ou em favor
de outrem, dessa ferramenta de cunho constitucional. Portanto, não me parece
razoável que se exija daquele que impetra a ordem de habeas corpus habilitação
legal ou representação para dele recorrer. Parafraseando o eminente ministro
Francisco Rezek, “quem tem legitimação para propor habeas corpus tem também
legitimação para dele recorrer” (HC 73.455/DF, Segunda Turma, DJE de 7-3-1997).
No julgado em questão, a Segunda Turma assentou a possibilidade de a parte,
nas hipóteses de denegação de habeas corpus no tribunal de origem, indepen‑
dentemente de habilitação legal ou de representação, interpor recurso ordinário
constitucional.
Aliás, outro não foi o entendimento desta Primeira Turma ao consignar que,
“versando o processo sobre a ação constitucional de habeas corpus, tem-se a pos‑
sibilidade de acompanhamento pelo leigo, que pode interpor recurso, sem a exi‑
gência de a peça mostrar-se subscrita por profissional da advocacia” (HC 84.716/
MG, rel. min. Marco Aurélio, DJ de 26-11-2004).
Penso que esse raciocínio se mostra mais consentâneo com essa ação cons‑
titucional de caráter penal e de procedimento especial, desprendida de rigor
técnico e formal.
Com essas singelas considerações, conheço do recurso e, pelas razões expostas
anteriormente, julgo-o prejudicado.
É como voto.

VOTO
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, penso que a questão da capacidade
postulatória prefere ao crivo quanto ao possível – que, a meu ver, não houve – pre‑
juízo deste habeas, porque, a rigor, o Colegiado acabou por confirmar a decisão
precária e efêmera, formalizada pelo relator indeferindo a liminar. E, preferindo
a capacidade postulatória, devo me pronunciar quanto a ela.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  587


HC 102.836 AgR

O sr. ministro Dias Toffoli: Vossa Excelência me permite? Se a eminente


relatora evoluir, também a acompanho. Tentei, aqui, um meio termo.
A sra. ministra Cármen Lúcia (presidente e relatora): Estou aberta até para
o debate.
O sr. ministro Marco Aurélio: Não posso conceber que se diga que o cidadão
comum pode impetrar o habeas corpus para, depois, fechar a porta da prática
de outros atos, em um mesmo processo de habeas corpus, e exigir a presença do
advogado. Afasto a capacidade postulatória quanto a qualquer ato a ser formali‑
zado no processo revelador de habeas corpus, inclusive interposição de recurso,
inclusive ato próprio a incidente verificado no processo.
Admito, Presidente, a válida interposição do recurso – do agravo – e, por isso,
dele conheço.

VOTO
(Confirmação)
A sra. ministra Cármen Lúcia (presidente e relatora): Acho que é um debate
muito pertinente e adequado. Os debates que travamos já demonstravam isso.
Em outro caso, eu acharia apropriado e estaria disposta a evoluir no entendi‑
mento de fundo, mas, neste caso, considerando todo o quadro – e, como foi dito
naquela ocasião, nos debates, é preciso realmente uma mudança, e seria uma
mudança de orientação –, prefiro repensar e continuarei repensando.
Ministro Marco Aurélio, tocam-me as ponderações de Vossa Excelência.
Apenas neste caso, pelo quadro que se tem, vou manter o meu voto.

DEBATE
O sr. ministro Dias Toffoli: Senhora Presidente, acompanho Vossa Excelência,
diante dessa peculiaridade. Mas já afirmei – está registrado aqui no meu voto – o
mesmo entendimento do ministro Marco Aurélio.
O sr. ministro Marco Aurélio: Ministro Dias Toffoli, Vossa Excelência não
conhece o agravo?
O sr. ministro Dias Toffoli: Eu acompanho a eminente...
A sra. ministra Cármen Lúcia (presidente e relatora): Nós estamos negando...
Não conhece porque está prejudicado.
O sr. ministro Dias Toffoli: A eminente relatora votou pela prejudicialidade.
O sr. ministro Marco Aurélio: Mas somente cabe ir à matéria de fundo
do agravo, para assentar inclusive o prejuízo do agravo, se ultrapassada a

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HC 102.836 AgR

problemática alusiva à capacidade postulatória. É uma preliminar que, a meu


ver, antecede a análise do prejuízo.
A sra. ministra Cármen Lúcia (presidente e relatora): Por isso não conheci.
O sr. ministro Dias Toffoli: Estou verificando.
O sr. ministro Marco Aurélio: E, no tocante ao prejuízo, tenderia a concluir
que não houve.
Esta Turma teve jurisprudência pacificada, na composição anterior – na velha
composição, vamos falar assim –, no sentido de que, julgado o habeas no qual
indeferida a liminar no Superior Tribunal de Justiça, já não existiria mais o óbice do
Verbete 691 da Súmula da Jurisprudência Predominante. Por quê? Porque, se inde‑
ferida a ordem – logicamente o Colegiado acabou por endossar a postura inicial do
relator –, com maior razão se tem a porta aberta ao acesso ao Supremo para apre‑
ciar possível ato de constrangimento a alcançar a liberdade de ir e vir do paciente.
Agora, a meu ver, essa matéria somente poderá ser apreciada se admitido o
recurso. Não admitido, por falta de capacidade postulatória, não se chegará a esse
tema sob pena de inversão da ordem natural das coisas, da ordem processual.
A sra. ministra Cármen Lúcia (presidente e relatora): Eu não estou conhecendo.
O sr. ministro Dias Toffoli: A eminente relatora mantém a posição do não
conhecimento?
A sra. ministra Cármen Lúcia (presidente e relatora): Sim. Mantenho o não
conhecimento.
O sr. ministro Dias Toffoli: Eu havia inicialmente votado porque pensei que
ia ser necessária uma construção forte a respeito.
A sra. ministra Cármen Lúcia (presidente e relatora): É uma mudança de
jurisprudência também.
O sr. ministro Dias Toffoli: Exatamente. Mas, de qualquer sorte, é esse o
meu entendimento.
A sra. ministra Cármen Lúcia (presidente e relatora): Estou disposta a evoluir,
mas acho que faria isso na ocasião em que a...
O sr. ministro Marco Aurélio: Não há uma corrida de revezamento. Quer dizer,
o próprio cidadão pode impetrar habeas corpus, mas depois, sem sucesso, não
pode recorrer, tendo que credenciar um advogado e passar-lhe, portanto, a tarefa.
O sr. ministro Dias Toffoli: Pensei que a causa não era muito boa, pela pre‑
judicialidade de fundo, para discutir esse tema.
A sra. ministra Cármen Lúcia (presidente e relatora): E também por um outro
motivo. A Constituição quer uma defesa técnica bem elaborada. Por isso deter‑
minei que fosse chamado.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  589


HC 102.836 AgR

O sr. ministro Marco Aurélio: Então, não vamos admitir mais a impetração
de habeas corpus por mão própria!
A sra. ministra Cármen Lúcia (presidente e relatora): Não, porque acho que aí,
realmente, é uma garantia constitucional concernente aos direitos fundamentais.
Mas, por exemplo, lembro-me de que na discussão, não sei por qual dos ministros
foi dito aqui – não sei se pelo próprio ministro Dias Toffoli...
O sr. ministro Dias Toffoli: Foi um debate.
A sra. ministra Cármen Lúcia (presidente e relatora): Foi um debate intenso
em que foi dito que poderia ser até prejudicial a ele admitir isso. Não sei se foi
Vossa Excelência, Ministro Toffoli, que afirmou isso, mas, no caso de embargos
infringentes, por exemplo, se ele resolve fazer de mão própria, aí, realmente, ele
se prejudica e a Constituição acaba garantindo-lhe um direito maior.
O sr. ministro Luiz Fux: A tese jurídica, neste caso específico, ficou adstrita à
possibilidade que tem o impetrante, quando é denegada a ordem, em recorrer?
A sra. ministra Cármen Lúcia (presidente e relatora): Eu não conheci. Logo
depois, o não conhecimento...
O sr. ministro Luiz Fux: Se está adstrita a isso, vou pedir vista.
O sr. ministro Marco Aurélio: A situação concreta é que a relatora negou
seguimento à impetração. Ele próprio, que tinha formalizado a impetração, pro‑
tocolou o agravo. Esse agravo não é admissível?
O sr. ministro Luiz Fux: É interessante a questão. Não estou habilitado a
julgar. Vou pedir vista.
O sr. ministro Dias Toffoli: De qualquer sorte, vou assentar, então, o conhe‑
cimento do agravo para, no mérito, dar pela prejudicialidade.

EXTRATO DA ATA
HC 102.836 AgR/PE — Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Agravante: Adriano
Silva de Lima. Agravado: Relator do HC 117.440 do Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: Após o voto da ministra Cármen Lúcia, relatora presidente, que não
conhecia do agravo regimental no habeas corpus; do voto do ministro Dias Toffoli,
que conhecia do agravo regimental e julgava prejudicado o habeas corpus; e do
voto do ministro Marco Aurélio, que conhecia do agravo regimental e afastava
o prejuízo da impetração, pediu vista do processo o ministro Luiz Fux.
Presidência da ministra Cármen Lúcia. Presentes à sessão os ministros Marco
Aurélio, Dias Toffoli e Luiz Fux. Subprocuradora-geral da República, doutora
Cláudia Sampaio Marques.
Brasília, 30 de agosto de 2011 — Carmen Lilian, coordenadora.

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HC 102.836 AgR

VOTO-VISTA
Processo penal. Constitucional. Capacidade postulatória da parte para
interposição de agravo regimental em habeas corpus. Admissibilidade.
Interpretação extensiva e aplicação analógica. Art. 3º do CPP. Ampla
defesa. Direito à liberdade. Prejuízo do agravo. Substituição da decisão
impugnada. Julgamento definitivo do writ pelo STJ. Precedentes. Agravo
conhecido. Declarado o prejuízo do agravo.
1. A capacidade postulatória no processo penal revela peculiaridades ine‑
rentes aos cânones da ampla defesa e à magnitude do direito de liberdade.
2. A possibilidade de a parte, pessoalmente e independentemente da con‑
dição de advogado, interpor recurso por termo nos autos (art. 578 do Código
de Processo Penal), ajuizar revisão criminal (art. 623 do CPP), impetrar a ação
constitucional de habeas corpus (art. 654 do CPP) e peticionar na execução
penal (art. 41, XIV, da Lei 7.210/1984) é exemplo dessa excepcionalidade.
3. A admissão do jus postulandi pela própria parte de per se no processo
penal autoriza concluir-se no sentido de que o agravo regimental contra
decisão em habeas corpus pode ser interposto pelo paciente, máxime ante
a previsão do art. 3º do CPP de que “A lei processual penal admitirá inter‑
pretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos
princípios gerais de direito”. Precedentes: HC 73.455/DF, rel. min. Francisco
Rezek, Segunda Turma, DJ de 7‑3‑1997; HC 84.716/MG, rel. min. Marco
Aurélio, Primeira Turma, DJ de 26‑11‑2004, p. 25.
4. O habeas corpus impetrado contra decisão indeferitória de liminar
falece de interesse processual superveniente nas hipóteses de julgamento
definitivo do writ. Precedentes: HC 95.447/SP, rel. min. Ricardo Lewan‑
dowski, Primeira Turma, DJ de 17‑11‑2010; HC 96.114/RJ, rel. min. Marco
Aurélio, Primeira Turma, DJ de 25‑6‑2010; HC 99.860/SP, rel. min. Ricardo
Lewandowski, Primeira Turma, DJ de 4‑6‑2010; HC 101.281/RN, rel. min.
Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJ de 23-4-2010; HC 99.462/RS,
rel. min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJ de 19‑3‑2010; HC 94.412
AgR/RJ, rel. min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJ de 22‑10‑2008.
5. In casu, no mérito, ocorreu o prejuízo da impetração (e, por via de
consequência, do agravo) nos moldes da jurisprudência da Corte, por‑
quanto este habeas corpus foi impetrado contra decisão indeferitória de
liminar que não mais subsiste ante o julgamento definitivo do writ pelo STJ.
6. Agravo conhecido e prejudicado por falta de interesse recursal super‑
veniente.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  591


HC 102.836 AgR

O sr. ministro Luiz Fux: Trata-se de agravo regimental interposto contra decisão
da ministra Cármen Lúcia, relatora, que negou seguimento à impetração nos
termos da Súmula 691 desta Corte.
Sua Excelência não conheceu do agravo, porquanto subscrito pelo próprio
paciente, que não é advogado e, consequentemente, não teria capacidade pos‑
tulatória para esse fim. No mérito, votou pela prejudicialidade da impetração
devido ao julgamento definitivo do habeas corpus em curso no STJ.
O ministro Dias Toffoli pediu vista e votou no sentido de que conhecer do
agravo, reconhecendo a capacidade postulatória da parte para interpor o agravo
regimental em habeas corpus. Mas também concluiu pelo prejuízo do writ, con‑
forme jurisprudência pacífica desta Corte.
É o breve relato. Passo a votar.
Neste agravo, discute-se, preliminarmente, a capacidade postulatória do
paciente, que não é profissional da advocacia, de interpor agravo regimental
contra decisão monocrática da relatora negando seguimento ao recurso.
No processo penal, franqueia-se à parte, excepcionalmente, a capacidade
postulatória em determinadas situações, homenageando-se a ampla defesa e a
magnitude do direito de liberdade, em jogo nessa seara.
Assim o é quanto à possibilidade de, por exemplo, interpor recurso por termo
nos autos, conforme previsto no art. 578 do Código de Processo Penal, in verbis:
Art. 578. O recurso será interposto por petição ou por termo nos autos, assinado
pelo recorrente ou por seu representante.
§ 1º Não sabendo ou não podendo o réu assinar o nome, o termo será assinado
por alguém, a seu rogo, na presença de duas testemunhas.
§ 2º A petição de interposição de recurso, com o despacho do juiz, será, até o
dia seguinte ao último do prazo, entregue ao escrivão, que certificará no termo
da juntada a data da entrega.
§ 3º Interposto por termo o recurso, o escrivão, sob pena de suspensão por dez a
trinta dias, fará conclusos os autos ao juiz, até o dia seguinte ao último do prazo.

A revisão criminal também pode ser requerida pelo próprio réu, consoante
o art. 623 do CPP, in litteris: “Art. 623. A revisão poderá ser pedida pelo próprio
réu ou por procurador legalmente habilitado ou, no caso de morte do réu, pelo
cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.”
Da mesma forma a ação constitucional de habeas corpus, conforme previsão
do art. 654 do mesmo diploma legal: “O habeas corpus poderá ser impetrado por
qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério Público.”
Na execução penal, os presos podem pleitear às autoridades judiciárias direta‑
mente, em defesa de seus direitos, segundo o art. 41, XIV, da Lei 7.210/1984, in verbis:

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  592


HC 102.836 AgR

Art. 41. Constituem direitos do preso:


(...)
XIV – representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;
Ainda no âmbito da execução, a doutrina de Julio Fabbrini Mirabete revela a
virtude da sua justeza ao consignar que:
Pode o preso dirigir-se à autoridade judiciária ou a outras competentes, sem cen‑
sura, para solicitação ou encaminhamento de alguma pretensão ou reclamação, de
acordo com a via prevista legalmente. É muito comum, nas prisões, a elaboração
de petições de habeas corpus, de pedidos de revisão ou de benefícios, muitos deles
atendidos, complementando-se a assistência jurídica que, em muitos presídios, é
extremamente insuficiente. [MIRABETE. Execução penal: comentários à Lei 7.210,
de 11‑7‑1984. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 127-128.]
Essas previsões convergem no sentido de admitir a capacidade postulatória
da parte no processo penal com razoável amplitude, autorizando concluir-se no
sentido de que o agravo regimental contra decisão em habeas corpus não deve
ser diferente, máxime ante a previsão do art. 3º do CPP de que “A lei processual
penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suple‑
mento dos princípios gerais de direito”.
Ademais, esta Corte já teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema por
suas duas Turmas, equacionando o tema, em ambas as oportunidades, no mesmo
sentido do convencimento ora externado. Confiram-se os seguintes julgados:
Ementa: Habeas corpus. Inépcia da denúncia. Preclusão. Recurso ordinário. Seguimento
negado. Procuração para o advogado: falta. Ordem concedida. I – Alegação de inépcia
da denúncia. Questão preclusa ante a existência de sentença condenatória. Preceden‑
tes do STF. II – Quem tem legitimação para propor habeas corpus tem também legiti-
mação para dele recorrer. Nas hipóteses de denegação do writ no tribunal de origem,
aceita-se a interposição, pelo impetrante – independentemente de habilitação legal
ou de representação – de recurso ordinário constitucional. Tal entendimento se aplica
ao impetrante que é bacharel em Direito, sob pena do fracionamento da isonomia
em detrimento de quem optou pelos serviços de um advogado. Ordem parcialmente
concedida para determinar o processamento e a subida do recurso ordinário inter‑
posto. [HC 73.455/DF, rel. min. Francisco Rezek, Segunda Turma, DJ de 7‑3‑1997.]
Recurso – Habeas corpus – Dispensa da capacidade postulatória. Versando o processo
sobre a ação constitucional de habeas corpus, tem-se a possibilidade de acompanhamento
pelo leigo, que pode interpor recurso, sem a exigência de a peça mostrar-se subscrita por
profissional da advocacia. Precedentes: HC 73.455-3/DF, Segunda Turma, rel. min. Fran‑
cisco Rezek, DJ de 7-3-1997, e RHC 60.421-8/ES, Segunda Turma, rel. min. Moreira Alves,
RTJ 108/117-20. O enfoque é linear, alcançando o recurso interposto contra decisão de
turma recursal de juizado especial proferida por força de habeas corpus. [HC 84.716/
MG, rel. min. Marco Aurélio, Primeira Turma, DJ de 26‑11‑2004, p. 25.]

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  593


HC 102.836 AgR

Portanto, o agravo é de ser conhecido.


No mérito, acompanho a relatora e o ministro Dias Toffoli, declarando o pre‑
juízo da impetração (e, por via de consequência, do agravo) nos moldes da juris‑
prudência da Corte, porquanto este habeas corpus foi impetrado contra decisão
monocrática que não mais subsiste ante o julgamento definitivo do writ pelo STJ.
Nesse sentido, confiram-se os seguintes precedentes:
Ementa: Habeas corpus. Impetração contra decisão monocrática que, no Superior Tri-
bunal de Justiça, indeferiu pedido de liminar. Superveniência do julgamento de mérito.
Prejuízo desta impetração. Alegada violação ao princípio do promotor natural. Inocor-
rência. Não configurado o constrangimento ilegal. Writ prejudicado. I – A superveniência
do julgamento de mérito do habeas corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça
torna prejudicado este writ, que ataca a decisão denegatória de liminar. Precedentes.
II – A violação ao princípio do promotor natural visa a impedir que haja designação
de promotor ad hoc ou de exceção com a finalidade de processar uma pessoa ou caso
específico, o que não ocorreu na espécie. Precedentes. III – Habeas corpus prejudicado.
[HC 95.447/SP, rel. min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJ de 17‑11‑2010.]
Habeas corpus – Impetrações sucessivas – Julgamento do habeas em curso na Corte de
origem – Decisão concedendo a ordem – Prejuízo do pedido formulado no Supremo.
Uma vez dirigida a impetração contra ato de relator que tenha implicado o indefe‑
rimento de liminar em idêntica medida, vindo esta a ser julgada com a concessão
da ordem, há o prejuízo do pedido formulado no Supremo. [HC 96.114/RJ, rel. min.
Marco Aurélio, Primeira Turma, DJ de 25‑6‑2010.]
Ementa: Habeas corpus. Impetração contra decisão monocrática que, no Superior
Tribunal de Justiça, indeferiu pedido de liminar. Superveniência do julgamento de
mérito. Prejuízo deste habeas corpus. Excesso de prazo para o término da instru-
ção processual. Complexidade do feito. Não configurado o constrangimento ilegal.
Habeas corpus prejudicado. I – A superveniência do julgamento de mérito do habeas
corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça torna prejudicado este writ, que
somente ataca a decisão denegatória de liminar. Precedentes. II – A demora no
processamento da ação penal provocada pela complexidade do feito, em tese, não
configura constrangimento ilegal. III – Habeas corpus prejudicado. [HC 99.860/SP,
rel. min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJ de 4‑6‑2010.]
Ementa: Habeas corpus. Impetração contra decisão monocrática de relator que, no
Superior Tribunal de Justiça, indeferiu pedido de liminar. Superveniência do julga-
mento de mérito. Prejuízo deste habeas corpus. Tráfico de drogas. Prisão em flagrante.
Crime hediondo. Liberdade provisória. Inadmissibilidade. Vedação constitucional.
Delitos inafiançáveis. Art. 5º, XLIII, da Constituição. Excesso de prazo para o término
da instrução processual. Complexidade do feito. Não configurado o constrangimento
ilegal. Habeas corpus prejudicado. I – A superveniência do julgamento de mérito
do habeas corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça torna prejudicado

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  594


HC 102.836 AgR

este writ, que somente ataca a decisão denegatória de liminar. Precedentes. II – A
vedação à liberdade provisória para o delito de tráfico de drogas advém da própria
Constituição, a qual prevê a inafiançabilidade (art. 5º, XLIII). III – A demora no
processamento da ação penal provocada pela complexidade do feito não configura
constrangimento ilegal. IV – Habeas corpus prejudicado. [HC 101.281/RN, rel. min.
Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJ de 23-4-2010.]
Ementa: Habeas corpus. Impetração contra decisão monocrática de relator que, no Superior
Tribunal de Justiça, indeferiu pedido de liminar. Superveniência do julgamento de mérito.
Habeas corpus prejudicado. I – A superveniência do julgamento de mérito do habeas
corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça torna prejudicado o presente writ, que
somente ataca a decisão denegatória de liminar. Precedentes. II – Habeas corpus preju‑
dicado. [HC 99.462/RS, rel. min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJ de 19‑3‑2010.]
Ementa: Agravo regimental no habeas corpus. Processual penal. Liminar indeferida
no Superior Tribunal de Justiça. Incidência, a princípio, da Súmula 691 do Supremo
Tribunal Federal. Julgamento definitivo do habeas corpus impetrado no Superior Tri-
bunal de Justiça. Agravo regimental prejudicado. 1. O Supremo Tribunal Federal não
admite o conhecimento de habeas corpus quando não houve a apreciação definitiva
dos fundamentos pelo órgão judiciário apontado como coator, mormente quando
o objeto foi prejudicado pelo julgamento definitivo do habeas corpus impetrado
no Superior Tribunal de Justiça. 2. Superveniência de decisão do habeas corpus no
Superior Tribunal de Justiça. 3. Agravo regimental em habeas corpus prejudicado.
[HC 94.412 AgR/RJ, rel. min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJ de 22‑10‑2008.]

Ante o exposto, voto pelo conhecimento do agravo, declarando-o prejudicado


ante a perda de objeto.

EXTRATO DA ATA
HC 102.836 AgR/PE — Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Relator para o acórdão:
Ministro Dias Toffoli. Agravante: Adriano Silva de Lima. Agravado: Relator do
HC 117.440 do Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: Por maioria de votos, a Turma conheceu do agravo regimental e
julgou prejudicada a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do ministro
Dias Toffoli, relator para o acórdão, vencida a ministra Cármen Lúcia, relatora
presidente, que não conhecia do recurso; e vencido, em parte, o ministro Marco
Aurélio, que o conhecia e afastava o prejuízo da impetração.
Presidência da ministra Cármen Lúcia. Presentes à sessão os ministros Marco
Aurélio, Dias Toffoli e Luiz Fux. Subprocurador-geral da República, doutor
Wagner Mathias.
Brasília, 8 de novembro de 2011 — Carmen Lilian, coordenadora.

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HC 104.467

HABEAS CORPUS 104.467 — RS
Relatora: A sra. ministra Cármen Lúcia
Pacientes: Arionildo Felix de Menezes
Janete da Silva
Impetrante: Defensoria Pública da União
Coator: Superior Tribunal de Justiça

Habeas corpus. Constitucional. Processual penal. Casa de pros‑


tituição. Aplicação dos princípios da fragmentariedade e da
adequação social: impossibilidade. Conduta típica. Constran‑
gimento não configurado.
1. No crime de manter casa de prostituição, imputado aos pacientes,
os bens jurídicos protegidos são a moralidade sexual e os bons cos‑
tumes, valores de elevada importância social a serem resguardados
pelo direito penal, não havendo que se falar em aplicação do princípio
da fragmentariedade.
2. Quanto à aplicação do princípio da adequação social, esse, por si
só, não tem o condão de revogar tipos penais. Nos termos do art. 2º da
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (com alteração da
Lei 12.376/2010), “não se destinando à vigência temporária, a lei terá
vigor até que outra a modifique ou revogue”.
3. Mesmo que a conduta imputada aos pacientes fizesse parte dos
costumes ou fosse socialmente aceita, isso não seria suficiente para
revogar a lei penal em vigor.
4. Habeas corpus denegado.

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HC 104.467

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Primeira Turma, sob a presidência da ministra Cármen
Lúcia, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, à unani‑
midade, em denegar a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da relatora.
Brasília, 8 de fevereiro de 2011 — Cármen Lúcia, relatora.

RELATÓRIO
A sra. ministra Cármen Lúcia: 1. Habeas corpus, com pedido de medida liminar,
impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de Arionildo Felix de Menezes
e Janete da Silva, contra julgado da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça,
que, em 27-4-2010, negou provimento ao Agravo Regimental no Recurso Especial
1.167.646, rel. min. Haroldo Rodrigues.
2. Tem-se nos autos que, em 9-5-2006, o Ministério Público do Rio Grande
do Sul denunciou os pacientes pela suposta prática do crime de manter casa de
prostituição (art. 229 do Código Penal – fls. 10-12).
Em 29-1-2009, o Juízo da 1ª Vara Criminal da Comarca de Tramandaí/RS absol‑
veu os pacientes ao fundamento de que “casa de prostituição é conduta que vem
sendo descriminalizada pela jurisprudência em razão da liberação dos costumes,
sendo a conduta atípica” (fl. 19).
3. Contra essa decisão o Ministério Público interpôs apelação. Em 4-6-2009, a
Sexta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul negou provi‑
mento ao recurso para manter a absolvição dos pacientes, nos termos seguintes:
Apelação criminal. Manutenção de casa de prostituição. Adequação social do fato.
Atipicidade. Apelo [não] provido. Absolvição mantida.
À unanimidade, negaram provimento ao apelo ministerial. [Fl. 20.]

4. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso especial, que, em 11-3-


2010, foi provido monocraticamente pelo ministro relator do Superior Tribunal
de Justiça Haroldo Rodrigues:
Penal. Casa de prostituição. Tolerância ou desuso. Tipicidade.
1. Esta Corte firmou compreensão de que a tolerância pela sociedade ou o desuso
não geram a atipicidade da conduta relativa à prática do crime do artigo 229 do
Código Penal.
2. Precedentes.
3. Recurso especial provido. [Fl. 29.]

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  597


HC 104.467

5. Contra essa decisão a Defensoria Pública da União interpôs agravo regi‑


mental, sobrevindo, em 27-4-2010, a decisão objeto da presente impetração, cuja
ementa é a seguinte:
Penal. Casa de prostituição. Tolerância ou desuso. Tipicidade.
1. Esta Corte firmou compreensão de que a tolerância pela sociedade ou o desuso
não geram a atipicidade da conduta relativa à prática do crime do artigo 229 do
Código Penal.
2. Precedentes.
3. Agravo Regimental a que se nega provimento. [Fl. 32.]

6. No presente habeas corpus, a impetrante sustenta que, pela aplicação dos


princípios da fragmentariedade e da adequação social, a conduta praticada pelos
pacientes não seria materialmente típica.
Alega que, “apesar da norma penal incriminadora prevista no art. 229 do
Código Penal estar em plena vigência, é necessário interpretá-la de forma cui‑
dadosa para que possa ter validade e aplicabilidade em relação aos fatos da
vida real” (fl. 8).
7. Este o teor dos pedidos:
1. seja concedida liminarmente medida cautelar, a fim de suspender a decisão do
Superior Tribunal de Justiça até decisão final de mérito, informando-se o Juízo de
primeira instância;
(...)
5. seja concedida a ordem de habeas corpus, para cassar a decisão do Superior Tri‑
bunal de Justiça, restabelecendo-se a absolvição conferida nas decisões de primeira
e segunda instâncias, haja vista a atipicidade da conduta dos assistidos Arionildo
Felix de Menezes e Janete da Silva, em face da aplicação dos Princípios da Fragmen‑
tariedade e da Adequação Social ao artigo 229 do Código Penal Brasileiro. [Fl. 9.]

8. Em 23-6-2010, indeferi o pedido de medida liminar e determinei vista dos


autos ao procurador-geral da República (fls. 42-45).
9. Em 27-8-2010, a Procuradoria-Geral da República opinou “pela denegação
da ordem” (fl. 51).
É o relatório.

VOTO
A sra. ministra Cármen Lúcia (relatora): 1. Conforme relatado, a impetrante pre‑
tende a aplicação dos princípios da fragmentariedade e da adequação social para
que a conduta praticada pelos pacientes seja considerada materialmente atípica.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  598


HC 104.467

2. A exposição dos fatos e a verificação das circunstâncias presentes e com‑


provadas na ação conduzem à denegação da ordem.
3. Na espécie vertente, a denúncia imputa aos pacientes a seguinte conduta:
Em 30 de dezembro de 2004, por volta das 09h30min, na “Boate Pantera”, localizada
na Estrada da Fortaleza, n. 700, em Cidreira/RS, nesta Comarca, os denunciados
Arionildo Felix de Menezes e Janete da Luz mantinham, por conta própria, casa
de prostituição destinada a encontros para fins libidinosos, com intuito de lucro.
Na ocasião, Policiais Civis, em cumprimento de mandado de busca e apreensão,
deslocaram-se até o local supramencionado, oportunidade em que constataram
a prática de prostituição, com exploração sexual.
Os denunciados quando inquiridos na Delegacia de Polícia, confessaram a prá‑
tica do fato delituoso. [Fl. 11.]

4. Pelo que se tem na peça inicial acusatória, os acusados praticavam, em tese,


espécie de lenocínio ao agirem como proxenetas, mantendo casa de prostituição,
no caso concreto, com intuito de lucro.
5. Esse comportamento, à época dos fatos, estava tipificado no art. 229 do
Código Penal, nos termos seguintes:
Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar
destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou media‑
ção direta do proprietário ou gerente.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Casa de prostituição é o local destinado à prática de relacionamento sexual


habitual mediante remuneração e, consequentemente, com exploração sexual.
Já o lugar destinado a fim libidinoso é aquele em que regularmente ocorrem
encontros com o objetivo de satisfazer o prazer sexual.
6. O caráter fragmentário do direito penal significa que, para esse ramo da
ciência jurídica, interessa tutelar tão somente aqueles bens mais importantes e
necessários ao convívio em sociedade. Todos os demais bens deverão ser prote‑
gidos pelos outros ramos do ordenamento jurídico, tais como o direito civil ou
o direito administrativo.
No crime de manter casa de prostituição, imputado aos pacientes, os bens
jurídicos protegidos em benefício de toda a coletividade são a moralidade sexual
e os bons costumes, valores de elevada importância que, portanto, devem ser
resguardados pelo direito penal, não havendo que se falar em aplicação do prin‑
cípio da fragmentariedade.
7. Na linha do que exposto e confirmando a importância desses bens para a
sociedade, a Lei 12.015/2009 alterou o tipo penal previsto no art. 229 do Código

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  599


HC 104.467

Penal para retirar-lhe a expressão “lugar destinado a encontros para fim libidi‑
noso”, mas manteve como típica a conduta imputada aos ora pacientes:
Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra
exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprie‑
tário ou gerente.
Pena – reclusão, de dois a cinco anos, e multa.

Ao contrário do que ocorria com a redação primitiva do art. 229 do Código


Penal, a nova redação do dispositivo, ao adequar o tipo penal ao atual momento
da sociedade, tornou atípica a conduta de manter estabelecimento destinado a
encontros para fim libidinoso, tais como motéis e casas noturnas, mas conser‑
vou, contudo, a criminalização da conduta de manter casa de prostituição, já
que nesses locais ocorre exploração sexual.
Na espécie vertente, foi constatada no estabelecimento dos pacientes a prática,
em tese, de prostituição. Assim, mesmo com a recente alteração legislativa, a
conduta imputada aos ora pacientes permaneceu criminalizada pelo legislador.
8. Em sentido semelhante é o parecer da Procuradoria-Geral da República:
Ocorre que o Título VI do Código Penal foi recentemente alterado pela Lei n.
12.015/09, tendo permanecido típica, em seu Capítulo V, que trata do lenocínio,
do tráfico de pessoas para fins de prostituição e outras formas de exploração sexual,
a conduta atribuída aos pacientes.
(...)
Bem se vê que após praticamente 70 anos, a prática imputada aos pacientes continua
a ser, na visão do legislador ordinário, ofensiva a bem jurídico protegido: não propria‑
mente à alegada “moralidade pública sexual” – até porque, conforme ensinamentos
introdutórios de Direito e Filosofia do Direito, direito e moral não se confundem –,
mas sim à “dignidade sexual”, inerente à esfera de dignidade da pessoa humana, fun‑
damento da República Federativa do Brasil, ex vi do art. 1º da Constituição Federal.
Temerário defender-se, assim, interpretação do texto constitucional que, a pre‑
texto de prestigiar o pleno exercício das liberdades públicas, o faz em detrimento
de princípio fundamental.
Frisamos que a liberdade sexual, inserida aí a disposição do próprio corpo, me­­
diante paga, para fins libidinosos, não se confunde com a exploração da liber‑
dade sexual alheia, levada a cabo em estabelecimentos quaisquer, paupérrimos
ou luxuosos, cuja distinção, por certo, limita-se ao gosto e ao poder aquisitivo da
clientela. [Fls. 49-50.]

9. De fato, o legislador não poderia ter agido de maneira diferente. No estabe‑


lecimento mantido pelo proxeneta ocorre exploração sexual de pessoas, conduta
inadimissível que, portanto, merece ser reprimida pelo direito penal.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  600


HC 104.467

Ademais, embora a obtenção de lucro com a prostituição de terceiros não


seja elemento objetivo do tipo, trata-se de regra nessa espécie de atividade e,
inclusive, teria ocorrido no fato concreto imputado aos pacientes.
Por todo o exposto, não há como se aplicar o princípio da fragmentariedade
à espécie vertente.
10. Quanto à aplicação do princípio da adequação social, esse, por si só, não
tem o condão de revogar tipos penais.
Nos termos do art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
(com alteração da Lei 12.376/2010), “não se destinando à vigência temporária,
a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”. Somente uma lei pode
revogar outra lei.
Assim, mesmo que a conduta imputada aos pacientes fizesse parte dos cos‑
tumes ou fosse socialmente aceita, isso não seria suficiente para revogar a lei
penal em vigor.
11. Em sentido semelhante ao que foi dito é a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal:
Ementa: Casa de prostituição (art. 229 do CP). Habeas corpus para trancamento da
ação penal por falta de justa causa. Indeferimento na instância de origem. Recurso
de habeas corpus improvido. Havendo elementos no inquérito, que autorizam a
denúncia; em se tratando de crime permanente, que exige prova de habitualidade, a
ser completada no curso da instrução; e não contendo a licença, para funcionamento
de estabelecimento comercial autorização (aliás, inadmissível) para nele se instalar
casa de prostituição; não é caso de trancamento da ação penal, adequadamente
proposta. [RHC 65.391, rel. min. Sydney Sanches, DJ de 6-11-1987.]

Tem-se do conteúdo do voto do ministro Sydney Sanches, relator do RHC


65.391:
Não podem ser colhidas, por último, as considerações no sentido de que, nos
tempos atuais, já não se justifica a punição da mantença de casa de prostituição.
Ao Ministério Público e ao juiz competem a interpretação e a aplicação da lei,
jamais a negativa de sua vigência. A descriminalização é tarefa do legislador e não
daquele, cuja missão é aplicar a lei. [www.stf.jus.br]

12. Pelo exposto, encaminho a votação no sentido de denegar a ordem.

VOTO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Presidente, estou de acordo; considerações
de ordem moral não cabem, evidentemente, numa discussão jurídica como esta.

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HC 104.467

VOTO
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, este caso lembrou-me de artigo que
li, hoje, no jornal O Estado de São Paulo: Calígula somos todos nós, de autoria
de um ator justamente para estampar certa hipocrisia. Agora, a atuação judicial
é vinculada, e o tipo do art. 229 do Código Penal está em pleno vigor. Não tenho
como fechar a legislação e conceder a ordem, muito embora reconheça a tole‑
rância que vem se verificando nos dias atuais.
Acompanho Vossa Excelência, indeferindo a ordem.

EXTRATO DA ATA
HC 104.467/RS — Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Pacientes: Arionildo Felix de
Menezes e Janete da Silva. Impetrante: Defensoria Pública da União (Procurador:
Defensor público-geral federal). Coator: Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: A Turma denegou a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da
relatora. Unânime. Presidência da ministra Cármen Lúcia.
Presidência da ministra Cármen Lúcia. Presentes à sessão os ministros Marco
Aurélio, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Subprocurador-geral da República,
doutor Paulo de Tarso Braz Lucas.
Brasília, 8 de fevereiro de 2011 — Carmen Lilian, coordenadora.

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RHC 118.615

RECURSO EM HABEAS CORPUS 118.615 — DF


Relatora: A sra. ministra Rosa Weber
Recorrente: Rodolfo Ramos Costa
Recorrido: Ministério Público Federal

Recurso ordinário em habeas corpus. Processo penal. Impetra‑


ção denegada no Superior Tribunal de Justiça por inadequação
da via eleita. Substitutivo de recurso constitucional. Tribu‑
nal do Júri. Desaforamento. Imparcialidade dos jurados. Não
comprovação. Divulgação dos fatos pela mídia. Irrelevância.
1. O Superior Tribunal de Justiça observou os precedentes da Pri‑
meira Turma desta Suprema Corte que não vêm admitindo a utilização
de habeas corpus em substituição a recurso constitucional.
2. O desaforamento desloca o julgamento da ação penal para outra
comarca da região, quando “o interesse da ordem pública o reclamar
ou houver dúvida sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pes‑
soal do acusado” (art. 427, caput, do Código de Processo Penal), ou,
ainda, “comprovado excesso de serviço” impeditivo da realização do
júri no prazo de seis meses após o trânsito em julgado da decisão de
pronúncia (art. 428, caput, do Código de Processo Penal).
3. A mera alegação de dúvida sobre a imparcialidade dos jurados
sem a devida comprovação não autoriza o desaforamento. Precedentes.
4. A divulgação do fato criminoso pela mídia não reflete o ânimo
dos membros integrantes do conselho de sentença. Precedente.
5. Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega provimento.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  603


RHC 118.615

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Primeira Turma, sob a presidência do ministro Luiz Fux,
na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimi‑
dade de votos, em negar provimento ao recurso ordinário em habeas corpus, nos
termos do voto da relatora.
Brasília, 17 de dezembro de 2013 — Rosa Weber, relatora.

RELATÓRIO
A sra. ministra Rosa Weber: Trata-se de recurso ordinário em habeas corpus
interposto por Rodolfo Ramos Costa contra acórdão do Superior Tribunal de
Justiça que, nos autos do HC 214.294/SP, não conheceu do writ.
O recorrente foi denunciado e, posteriormente, pronunciado pela suposta
prática do crime de homicídio qualificado, por duas vezes, tipificado no art. 121,
§ 2º, I e IV, c/c os arts. 29 e 69, todos do Código Penal, por ter efetuado disparos
que levaram a óbito pai e filha de um ano e seis meses de idade.
A defesa, ao argumento de dúvida sobre a imparcialidade do júri, formulou
pedido de desaforamento nos termos do art. 427 do Código de Processo Penal.
Os autos foram distribuídos ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que,
ao fundamento de não comprovação da suposta imparcialidade dos jurados,
indeferiu o pleito defensivo.
Contra essa decisão, impetrado o HC 214.914/SP perante o Superior Tribunal
de Justiça, que não conheceu da ordem em acórdão assim ementado:
Penal. Habeas corpus substitutivo de recurso especial. Descabimento. Modificação
do entendimento jurisprudencial do STJ, em consonância com orientação adotada
pelo Pretório Excelso. Homicídio qualificado. Pedido de desaforamento. Alegado
comprometimento da imparcialidade do Conselho de Sentença. Ausência de dados
concretos. Relevância da opinião do magistrado singular. Inexistência de constran-
gimento ilegal. Habeas corpus não conhecido.
– O Supremo Tribunal Federal, pela sua Primeira Turma, passou a adotar orien‑
tação no sentido de não mais admitir habeas corpus substitutivo de recurso pró‑
prio. Precedentes: HC 109.956/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, DJE de 11-9-2012, e
HC 104.045/RJ, Rel. Min. Rosa Weber, DJE de 6-9-2012, dentre outros.
– O Superior Tribunal de Justiça, na esteira desse entendimento, tem amoldado
o cabimento do remédio heroico, sem perder de vista, contudo, princípios cons‑
titucionais, sobretudo o do devido processo legal e da ampla defesa. Nessa toada,
tem-se analisado as questões suscitadas na exordial a fim de se verificar a existência

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  604


RHC 118.615

de constrangimento ilegal para, se for o caso, deferir-se a ordem de ofício. A pro‑


pósito: HC 221.200/DF, Rel. Min. Laurita Vaz, DJE 19-9-2012.
– O desaforamento é medida excepcional que altera a competência territorial,
fazendo-se necessária para tanto que estejam presentes concretamente uma das
hipóteses previstas no art. 427 do CPP, quais sejam: o interesse da ordem pública,
a imparcialidade do júri e o risco à segurança pessoal do acusado.
– Os elementos acostados nos autos – matérias jornalísticas – não têm concre‑
tude suficiente a fim de se concluir sobre eventual interferência no ânimo dos
jurados, de modo a colocar em dúvida a imparcialidade do Conselho de Sentença.
– A opinião do magistrado singular, que não apontou nenhuma circunstância que
pudesse acarretar dúvida relativa à parcialidade do júri, possui papel relevante na
análise da necessidade de desaforamento, por emitir o posicionamento daquele
que se encontra mais próximos aos fatos.
– Habeas corpus não conhecido.
No presente recurso, alega a defesa, em síntese, que a manutenção da compe‑
tência do Tribunal do Júri da Comarca de Sumaré/SP afronta os princípios consti‑
tucionais da ampla defesa, nos termos do art. 5º, XXXVIII, a, da Carta da República.
Para tanto, sustenta dúvida quanto à imparcialidade do júri, pois “o caso teve
imensa repercussão na pequena cidade de Sumaré, como se comprova pelas
matérias publicadas na imprensa local, (...) por se tratar do assassino de uma
criança conjuntamente com o pai, meliante conhecido por sua reputação vio‑
lenta”. Acrescenta que “o choque causado na população se evidencia, às escânca‑
ras, nos bares, ruas, praças e escolas, onde toda população manifesta sua indig‑
nação e clama pela condenação do assassino”.
Requer o desaforamento da ação penal de origem, em trâmite na Comarca
de Sumaré, para a Comarca de Campinas, nos termos do art. 427 do Código de
Processo Penal.
Contrarrazões apresentadas.
O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do subprocurador-geral
da República Mario José Gisi, opina pelo não provimento do recurso ordinário
em habeas corpus.
Expedido telegrama para dar ciência da sessão de julgamento do feito.
É o relatório.

VOTO
A sra. ministra Rosa Weber (relatora): O presente recurso ordinário em habeas
corpus diz com o desaforamento pleiteado pela defesa, ao argumento da suposta
imparcialidade dos jurados, para deslocar a competência atribuída ao Tribunal
do Júri da Comarca de Sumaré/SP para a Comarca de Campinas/SP.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  605


RHC 118.615

A decisão teve por fundamento a inadequação da via eleita pela defesa, tendo
em vista o entendimento fixado pelo Superior Tribunal de Justiça e pela Primeira
Turma desta Suprema Corte de obstar a utilização do habeas corpus como subs‑
titutivo do recurso ordinário constitucional.
Primeiramente, destaco a observância, com as devidas adaptações, dos pre‑
cedentes da Primeira Turma desta Suprema Corte que não vêm admitindo a
utilização de habeas corpus em substituição ao recurso ordinário.
Tal entendimento foi assentado, em 8-8-2012, no julgamento do HC 109.956/PR:
Habeas corpus – Julgamento por tribunal superior – Impugnação. A teor do dis‑
posto no art. 102, II, a, da Constituição Federal, contra decisão, proferida em pro‑
cesso revelador de habeas corpus, a implicar a não concessão da ordem, cabível é
o recurso ordinário. Evolução quanto à admissibilidade do substitutivo do habeas
corpus. Processo – Crime – Diligências – Inadequação. Uma vez inexistente base para
o implemento de diligências, cumpre ao juízo, na condução do processo, indeferi‑
-las. [HC 109.956/PR, rel. min. Marco Aurélio, DJE de 11-9-2012.]

Da minha lavra, destaco o HC 108.390/MS:


Habeas corpus. Processo penal. Substitutivo do recurso constitucional. Inadmissibili-
dade. Constituição Federal, art. 102, II, a. Tráfico de drogas. Dosimetria da pena. Causa
de diminuição do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006. Regime inicial de cumprimento de
pena. 1. O habeas corpus tem uma rica história, constituindo garantia fundamental
do cidadão. Ação constitucional que é, não pode ser amesquinhado, mas também
não é passível de vulgarização, sob pena de restar descaracterizado como remédio
heroico. Contra a denegação de habeas corpus por tribunal superior, prevê a Cons‑
tituição Federal remédio jurídico expresso, o recurso ordinário. Diante da dicção
do art. 102, II, a, da Constituição da República, a impetração de novo habeas corpus
em caráter substitutivo escamoteia o instituto recursal próprio, em manifesta burla
ao preceito constitucional. Precedente da Primeira Turma desta Suprema Corte.
[HC 108.390/MS, Primeira Turma, DJE de 2-10-2012.]

O desvirtuamento do habeas corpus tem efeito ainda mais grave nos tribunais
superiores, diante das funções precípuas quer do Superior Tribunal de Justiça – a úl-
tima palavra na interpretação da lei federal –, quer desta Suprema Corte – a
guarda da Constituição.
Como a decisão atacada está conforme os precedentes da Primeira Turma,
não haveria como reconhecer a plausibilidade da pretensão veiculada na inicial.
Passo à análise da possibilidade da concessão de ofício da ordem de habeas cor­­pus,
visto que apreciada a questão de mérito pela autoridade apontada como coatora.
O cerne da questão diz com o indeferimento do pedido de desaforamento
formulado pela defesa.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  606


RHC 118.615

Consoante as regras previstas no Código de Processo Penal (arts. 69 a 91), o


lugar do crime, em regra, determinará o juízo competente para processamento
e julgamento da ação penal. Para os crimes dolosos contra a vida, a competência
é privativa do Tribunal do Júri da localidade do cometimento do delito.
O desaforamento, incidente previsto no procedimento do Júri derrogatória da
competência territorial, desloca o julgamento da ação penal para outra comarca
da região, quando “o interesse da ordem pública o reclamar ou houver dúvida
sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pessoal do acusado” (art. 427, caput,
do Código de Processo Penal), ou, ainda, “comprovado excesso de serviço” impe‑
ditivo da realização do Júri no prazo de seis meses após o trânsito em julgado da
decisão de pronúncia (art. 428, caput, do Código de Processo Penal).
A excepcionalidade dessa medida é pautada pela inequívoca comprovação
da ocorrência de fatos gravíssimos que atentam contra a própria instituição do
Júri, em especial a plenitude de defesa e a imparcialidade do julgamento (art. 5º,
XXXVIII, da Constituição da República).
Nessa linha, “a mera alegação de parcialidade do júri, desacompanhada de
qualquer manifestação idônea e eficaz, não basta para justificar o desaforamento”
(HC 91.617/RJ, rel. min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJE de 9-12-2011).
Para a defesa, a necessidade de desaforamento pela imparcialidade dos jura‑
dos estaria configurada “na imensa repercussão na pequena cidade de Sumaré,
como se comprova pelas matérias publicadas na imprensa local, (...) por se tratar
do assassino de uma criança conjuntamente com o pai, meliante conhecido por
sua reputação violenta”.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo indeferiu o pedido de desafora‑
mento formulado pela defesa aos seguintes fundamentos:
No presente caso, não logrou o requerente comprovar a suposta imparcialidade
dos jurados a fim de justificar a necessidade da derrogação originária do julga‑
mento pelo Júri.
Além disso, o Defensor, conhecendo a lista de jurados, poderia afastar quaisquer
nomes que pudessem ser influenciados, daquela forma, para o julgamento, no
momento adequado.
Sobre o tema já se posicionou a jurisprudência: “O desaforamento – que atua
como causa derrogatória da competência do Júri – reveste-se do caráter de medida
absolutamente excepcional. O réu deve ser julgado no lugar em que supostamente
cometeu o delito que lhe foi imputado. A mera alegação de parcialidade dos jura‑
dos, desacompanhada de qualquer comprovação idônea e eficaz, não basta para
justificar o desaforamento” (RT 701/408).
Assim, indefere-se o presente pedido de desaforamento.

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RHC 118.615

Não destoou desse entendimento o Superior Tribunal de Justiça. Confira-se:


Na hipótese em testilha, entendo que os elementos acostados aos autos – matérias
jornalísticas – não têm concretude suficiente a fim de se concluir sobre eventual
interferência no ânimo dos jurados, de modo a colocar em dúvida a imparcialidade
do Conselho de Sentença.
(...)
Há de se destacar, ainda, que no caso de análise da necessidade de desafora‑
mento, a opinião do magistrado singular tem relevante importância, por emitir o
posicionamento daquele que se encontra mais próximo aos fatos.
No caso, ao prestar informações a esta Corte (fls. 42-917), o juiz de primeiro
grau não apontou nenhuma circunstância que pudesse acarretar dúvida relativa
à imparcialidade do júri, destacando, não haver a repercussão social alegada pela
defesa, afirmando, ainda, que a cidade de Sumaré, por possuir cerca de duzentos e
cinquenta mil habitantes, não pode ser tida por pequena, bem como que “se loca‑
liza no entorno da cidade de Campinas, com mais de um milhão de habitantes, e
é vizinha de Hortolândia, com algo em torno de duzentos mil habitantes” (fl. 42).
(...)
Assim, constata-se não ser o caso de concessão da ordem de ofício, pois não há
flagrante ilegalidade a sanar.
Pelo exposto, não conheço do habeas corpus.

Com efeito, as instâncias ordinárias consignaram que as matérias jornalísticas


sobre o evento criminoso juntadas pela defesa perante a Corte estadual não são
elementos, por si sós, suficientes a comprovar a tese defensiva da dúvida quanto
à imparcialidade dos jurados.
Na hipótese, o juiz de direito da 1ª Vara Criminal da Comarca de Sumaré/SP, ao
encaminhar cópias integrais dos autos ao Superior Tribunal de Justiça, inclusive a
matéria jornalística publicada, noticiou não ser do seu conhecimento “repercussão
tal do presente caso que possa interferir na imparcialidade dos jurados”. Informa
ainda que “a cidade de Sumaré conta com cerca de duzentos e cinquenta mil habi‑
tantes, não podendo, salvo melhor juízo, ser reputada pequena”, porquanto “se
localiza no entorno da cidade de Campinas, com mais de um milhão de habitan‑
tes, e é vizinha de Hortolândia, com algo em torno de duzentos mil habitantes”.
Nesse contexto, acentuada a relevância dos esclarecimentos prestados pelo
magistrado de primeiro grau, dotados de fé pública, pois, dada a proximidade
dos fatos, “ninguém melhor que a autoridade judiciária encarregada de presi‑
dir o julgamento para informar a realidade da situação ao Tribunal, pois tanto
a ordem jurídica, como a segurança do réu e até mesmo a imparcialidade dos
jurados são do seu conhecimento direto” (NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal
do Júri. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 146).

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RHC 118.615

Ademais, a decisão hostilizada converge para jurisprudência deste Supremo Tri‑


bunal Federal no sentido de que a mera alegação de dúvida sobre a imparcialidade
dos jurados sem a devida comprovação não autoriza o desaforamento. Veja-se:
Habeas corpus – Desaforamento – Medida excepcional – Magistrado que acentua a
“relevância social” do julgamento – Alegada parcialidade do magistrado local e dos
jurados – Ausência de demonstração dos requisitos autorizadores da medida (CPP,
art. 424) – Norma de direito estrito – Inocorrência de constrangimento ilegal – Pedido
indeferido. – O desaforamento – que atua como causa derrogatória da competência
territorial do Júri – qualifica-se como medida de caráter excepcional, só devendo
ser deferido quando houver prova inequívoca de que ocorre qualquer dos pressu‑
postos taxativamente referidos no art. 424 do Código de Processo Penal. – O réu
deve ser julgado no lugar em que supostamente cometeu o delito cuja prática lhe
foi imputada. A mera alegação de parcialidade do júri, desacompanhada de qual‑
quer comprovação idônea e eficaz, não basta para justificar o desaforamento. – A
manifestação do juiz que afirma a “relevância social” do julgamento a ser reali‑
zado pelo Tribunal do Júri não basta, só por si, para descaracterizar a imparciali‑
dade dos jurados e, consequentemente, justificar o desaforamento do julgamento.
[HC 91.617/RJ, rel. min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJE de 9-12-2011.]
Habeas corpus. Processual penal. Crime contra a vida. Julgamento. Desaforamento.
Alegações de possível parcialidade do júri e de risco à segurança do réu. Ausência de
comprovação. Constrangimento ilegal não caracterizado. Denegada. I – O desafora‑
mento constitui medida excepcional, que somente terá lugar quando presente um
dos seguintes motivos: i) interesse da ordem pública; ii) risco para a segurança do
réu; iii) dúvida sobre a imparcialidade do júri. II – No caso sob exame não se faz
presente nenhuma das hipóteses elencadas, o que torna inviável o acolhimento
do pleito. III – Ordem denegada. [HC 103.646/GO, rel. min. Ricardo Lewandowski,
Primeira Turma, DJE de 1º-10-2010.]
Recurso ordinário em habeas corpus. Processual penal. Júri. Desaforamento. Excep-
cionalidade. Inocorrência. O desaforamento é medida excepcional que somente se
justifica “[s]e o interesse da ordem pública o reclamar, ou houver dúvida sobre a
imparcialidade do júri ou sobre a segurança pessoal do réu” (CPP, art. 424). No caso
concreto, a mera suposição de parcialidade do júri, sem nada que a demonstre, fun‑
dada tão somente na circunstância de a irmã da vítima ser funcionária do Juízo, não é
suficiente para a decretação do ato. Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega
provimento. [HC 90.001/PE, rel. min. Eros Grau, Segunda Turma, DJ de 7-12-2006.]

Agregue-se o fato de que, em situação semelhante à presente, esta Suprema


Corte, no julgamento do HC 70.228/MS, rel. min. Celso de Mello, Primeira Turma,
DJ de 4-5-1993, já assentou a inexistência de justificativa para o desaforamento
quando há circulação da notícia do fato criminoso na imprensa, por não refle‑
tir o ânimo dos membros integrantes do Conselho de Sentença. Eis a ementa:

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  609


RHC 118.615

Habeas corpus – Desaforamento – Medida excepcional – Incidente causado pelo irmão


do réu – Fato superado – Ausência de demonstração da quebra da imparcialidade do
júri – Importância das informações do magistrado de primeiro grau – Irrelevância da
divulgação do incidente pelos meios de comunicação social – CPP, art. 424 – Norma de
direito estrito – Inocorrência de constrangimento ilegal – Pedido indeferido. – O desa‑
foramento – que atua como causa derrogatória da competência territorial do Júri –
reveste-se do caráter de medida absolutamente excepcional. – O réu deve ser julgado
no lugar em que supostamente cometeu o delito que lhe foi imputado. A mera alegação
de parcialidade dos jurados, desacompanhada de qualquer comprovação idônea e
eficaz, não basta para justificar o desaforamento. – A manifestação do juiz, em infor‑
mações atualizadas e precisas, revela-se de fundamental importância – ante a idonei‑
dade de que se reveste a sua opinião – na apreciação do pedido de desaforamento, que
só deve ser concedido quando houver prova inequívoca de que ocorre qualquer dos
pressupostos taxativamente referidos no art. 424 do Código de Processo Penal. – A
maior divulgação do fato e dos seus incidentes e consequências, pelos meios de comuni-
cação social, não basta, só por si, para justificar o desaforamento, sempre excepcional,
do julgamento pelo Júri. A opinião da imprensa não reflete, necessariamente, o estado de
ânimo da coletividade e, por extensão, dos membros integrantes do Conselho de Sentença.

Em consulta ao acompanhamento processual da ação penal na origem, verifico


que a sessão de julgamento do Tribunal do Júri foi designada para o dia 9-1-2014.
Por derradeiro, não comprovada, na espécie, dúvida sobre a imparcialidade
dos jurados necessária à excepcionalidade da medida de desaforamento, nos
termos do art. 427 do Código de Processo Penal.
Não vislumbro, portanto, manifesta ilegalidade ou teratologia no ato apon‑
tado como coator a autorizar a concessão de ofício da ordem de habeas corpus.
Ante o exposto, nego provimento ao presente recurso ordinário.
É como voto.

EXTRATO DA ATA
RHC 118.615/DF — Relatora: Ministra Rosa Weber. Recorrente: Rodolfo Ramos
Costa (Advogado: Nicolau Aun Júnior). Recorrido: Ministério Público Federal
(Procurador: Procurador-geral da República).
Decisão: A Turma negou provimento ao recurso ordinário em habeas corpus,
nos termos do voto da relatora. Unânime. Presidência do ministro Luiz Fux.
Presidência do ministro Luiz Fux. Presentes à sessão os ministros Marco
Aurélio, Dias Toffoli, Rosa Weber e Roberto Barroso. Subprocuradora-geral da
República, doutora Cláudia Sampaio Marques.
Brasília, 17 de dezembro de 2013 — Carmen Lilian Oliveira de Souza, secretária
da Primeira Turma.

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HC 119.979

HABEAS CORPUS 119.979 — MG
Relatora: A sra. ministra Rosa Weber
Paciente: Alan Valério dos Santos
Impetrante: Defensoria Pública da União
Coator: Superior Tribunal de Justiça

Habeas corpus. Direito penal. Exploração clandestina de radio‑


difusão. Art. 183 da Lei 9.472/1997. Princípio da insignificância.
Inaplicabilidade. Reprovabilidade da conduta. Expressividade
do bem jurídico tutelado. Adequado funcionamento dos servi‑
ços de comunicação regularmente instalados. Ordem denegada.
1. Avalia-se a pertinência do princípio da insignificância a partir
dos aspectos relevantes da conduta imputada.
2. Inegável a expressividade do bem jurídico tutelado pelo art. 183
da Lei 9.472/1997 consubstanciado no adequado e no seguro funciona‑
mento dos serviços de comunicação regularmente instalados no País.
3. A suposta operação de rádio clandestina em frequência capaz
de interferir no regular funcionamento dos serviços de comunicação
devidamente autorizados impede a aplicação do princípio da insig‑
nificância.
4. Ordem denegada.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Primeira Turma, sob a presidência do ministro Luiz Fux, na
conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade,

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HC 119.979

em denegar a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da relatora. Ausente,


justificadamente, o ministro Dias Toffoli.
Brasília, 10 de dezembro de 2013 — Rosa Weber, relatora.

RELATÓRIO
A sra. ministra Rosa Weber: Trata-se de habeas corpus impetrado pela Defen‑
soria Pública da União em favor de Alan Valério dos Santos contra acórdão do
Superior Tribunal de Justiça que negou provimento ao agravo regimental no
AREsp 312.024/MG.
O paciente foi denunciado pelo Ministério Público Federal pela suposta prá‑
tica do crime de atividade clandestina de telecomunicação, tipificado no art. 183
da Lei 9.472/1997, por ter explorado serviço de comunicação multimídia por
intermédio da Rádio Cidade FM, 96,1 MHz, instalada em Belo Horizonte/MG.
O Juízo Federal da 9ª Vara Criminal da Seção Judiciária de Minas Gerais rejei‑
tou a denúncia por falta de justa causa (art. 395, III, do Código de Processo Penal).
Entretanto, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região deu provimento ao re­­
curso em sentido estrito da acusação para receber a denúncia e determinar, em
consequência, o retorno dos autos à origem para o regular prosseguimento da
ação penal.
Contra esse acórdão, a defesa manejou recurso especial, inadmitido pelo Tri‑
bunal de origem, desafiando a interposição de agravo. No Superior Tribunal
de Justiça, o ministro Marco Aurélio Bellizze negou provimento ao agravo em
recurso especial. Submetida a questão ao Colegiado, a Quinta Turma da Corte
Superior negou provimento ao agravo regimental em acórdão assim ementado:
Penal e processo penal. Agravo regimental no agravo em recurso especial. 1. Con-
trariedade ao art. 183 da Lei 9.472/1997. Atividade clandestina de telecomunicação.
Princípio da insignificância. Inaplicabilidade. 2. Baixa potência do equipamento.
Irrelevância. Crime de perigo abstrato. Desnecessidade de comprovação da lesividade
da conduta. Decisão recorrida em consonância com a jurisprudência desta Corte.
Súmula 83/STJ. 3. Agravo regimental improvido.
1. Prevalece no Superior Tribunal de Justiça o entendimento no sentido de não
ser possível a incidência do princípio da insignificância nos casos de prática do
delito descrito no art. 183 da Lei n. 9.472/1997. De fato, a instalação de estação
clandestina de radiofrequência sem autorização dos órgãos e entes com atribui‑
ções para tanto – Ministério das Comunicações e ANATEL –, já é, por si só, sufi‑
ciente para comprometer a segurança, a regularidade e a operabilidade do sistema
de telecomunicações do país, não podendo, portanto, ser vista como uma lesão
inexpressiva. Ademais, as particularidades do caso não justificam a excepcional

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  612


HC 119.979

aplicação do referido princípio, pois, ainda que o laudo tenha atestado a potência
de 10,37 W, constatou-se que mesmo com esse valor, o equipamento foi capaz de
causar interferência em outros serviços, além de estar situado em grande centro
urbano – Belo Horizonte.
2. Quanto à alegação de que o delito do art. 183 da Lei n. 9.427/1997 seria de perigo
concreto, tem-se que é assente a jurisprudência deste Tribunal Superior no sentido
de que se trata de crime de perigo abstrato. Isso porque, para sua consumação,
basta que alguém desenvolva de forma clandestina as atividades de telecomuni‑
cações, sem necessidade de demonstrar o prejuízo concreto para o sistema de
telecomunicações. Dessa forma, patente que o acórdão recorrido encontra-se em
consonância com a jurisprudência desta Corte, tanto no que concerne à não inci‑
dência do princípio da insignificância, quanto no que se refere à desnecessidade
de demonstração de prejuízo concreto, o que atrai a incidência do enunciado n.
83 da Súmula desta Corte.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.

Neste habeas corpus, a impetrante sustenta a possibilidade de aplicação do


princípio da insignificância, sobretudo porque a rádio operada pelo paciente
“desenvolvia, exclusivamente, programação musical, sem qualquer divulgação
de informes publicitários”, bem como por inexistir dados relevantes sobre a
potencialidade lesiva da operação clandestina de radiodifusão.
Requer a concessão da ordem com o trancamento da ação penal por aplicação
do princípio da insignificância.
O Ministério Público Federal, em parecer da lavra da subprocuradora-geral
da República Cláudia Sampaio Marques, opina pelo não conhecimento do writ
ou pela denegação da ordem.
Expedido telegrama para dar ciência da sessão de julgamento do feito.
É o relatório.

VOTO
A sra. ministra Rosa Weber (relatora): A tese em debate no presente habeas
corpus diz com a aplicação ou não do princípio da insignificância ao caso concreto.
Conforme relatado, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região deu provimento
ao recurso em sentido estrito e recebeu a denúncia oferecida em desfavor do
paciente pela suposta prática do crime de exploração clandestina de radiodi‑
fusão, descrito no art. 183 da Lei 9.427/1997. A inaplicabilidade do princípio da
insignificância foi corroborada pelo Superior Tribunal de Justiça.
A impetrante invoca a baixa frequência da rádio comunitária como justifica‑
tiva para a aplicação do princípio da bagatela.

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HC 119.979

Esta Suprema Corte, a princípio, tem admitido a aplicação do princípio da


insignificância em casos envolvendo crimes de pequena dimensão.
A conduta delitiva seria tão diminuta que não afetaria materialmente o bem
jurídico protegido pela norma penal, sendo atípica da perspectiva material.
Tal entendimento encontra-se consubstanciado em diversos acórdãos desta
Suprema Corte:
A tipicidade penal não pode ser percebida como o trivial exercício de adequação
do fato concreto à norma abstrata. Além da correspondência formal, para a confi‑
guração da tipicidade, é necessária análise materialmente valorativa das circuns‑
tâncias do caso concreto, no sentido de se verificar a ocorrência de alguma lesão
grave, contundente e penalmente relevante do bem jurídico tutelado. [HC 109.739/
SP, rel. min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJE de 13-2-2012.]

O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os pos‑


tulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria
penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada
na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado – que considera
necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos
vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma
periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do com‑
portamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em
seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidi‑
ário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele
visados, a intervenção mínima do poder público. [RHC 107.264/DF, rel. min. Celso
de Mello, Segunda Turma, DJE de 6-12-2011.]

A doutrina majoritária tem se posicionado no sentido de que o princípio da


insignificância afeta a tipicidade material. Por todos, considerando a torrencial
doutrina existente sobre o tema, cito o eminente e saudoso ministro Francisco
de Assis Toledo:
Note-se que a gradação qualitativa e quantitativa do injusto referida inicialmente
(supra, n. 123), permite que o fato penalmente insignificante seja excluído da tipi‑
cidade penal, mas possa receber tratamento adequado – se necessário – como
ilícito civil, administrativo etc., quando assim o exigirem preceitos legais ou regu‑
lamentares extrapenais. [TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito
penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 134.]

O princípio da insignificância também encontraria fundamento nos princípios


da proporcionalidade e da razoabilidade. Impor prisão ou condenação criminal
por crimes de diminuta dimensão não se justificaria por sua desproporcionalidade.

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HC 119.979

Nessa linha, alguns julgados desta Corte, entre eles o seguinte, da lavra do
eminente ministro Ayres Britto:
Reiteradas vezes este Supremo Tribunal Federal debateu o tema da insignificância
penal. Oportunidades em que me posicionei pelo reconhecimento da insignifi‑
cância penal como expressão de um necessário juízo de razoabilidade e propor‑
cionalidade de condutas que, embora formalmente encaixadas no molde legal‑
-punitivo, materialmente escapam desse encaixe. [HC 109.277/SE, rel. min. Ayres
Britto, Segunda Turma, DJE de 17-2-2012.]

De todo modo, qualquer que seja a base jurídica para a aplicação do princípio da
insignificância, a pontual atenuação do rigor da lei em crimes de diminuta expres‑
são é medida necessária sob pena da criação de situações de acentuada injustiça
e da incômoda sensação de identificação da Justiça e do acusado com os perso‑
nagens literários inspetor Javert e Jean Valjean, da obra imortal de Victor Hugo.
Na espécie, o reconhecimento da prática de crime de perigo abstrato e a
potencialidade lesiva da conduta nortearam a inaplicabilidade do princípio da
insignificância pelas Cortes anteriores. Com percuciência, asseverou o Superior
Tribunal de Justiça:
Nesta Corte, prevalece o entendimento no sentido de não ser possível a incidência
do princípio da insignificância nos casos de prática do delito descrito no art. 183
da Lei n. 9.472/1997. Isso porque se considera que a instalação de estação clandes‑
tina de radiofrequência sem autorização dos órgãos e entes com atribuições para
tanto – Ministério das Comunicações e ANATEL –, já é, por si só, suficiente para
comprometer a segurança, a regularidade e a operabilidade do sistema de teleco‑
municações do país, não podendo, portanto, ser vista como uma lesão inexpressiva.
(...)
Ademais, diversamente do que afirmado pelo agravante, entendo que as parti‑
cularidades do caso não justificam a excepcional aplicação do referido princípio.
Com efeito, ainda que o laudo tenha atestado a potência de 10,37 W, constatou‑
-se que mesmo com esse valor, o equipamento foi capaz de causar interferência
em outros serviços (fl. 14). E, ao contrário do caso analisado pelo Supremo Tribu‑
nal Federal, a rádio não se encontra em município pequeno afastado de grandes
centros urbanos, e sim na região de Belo Horizonte, capaz, assim, de vir a causar
prejuízos à segurança dos meios de comunicação.
(...)
Portanto, não há se falar em aplicação do princípio da insignificância.
Quanto à alegação de que o delito do art. 183 da Lei n. 9.427/1997 seria de perigo
concreto, verifico, da mesma forma, que a irresignação também não deve pros‑
perar. De fato, é assente a jurisprudência deste Tribunal Superior no sentido
de que se trata de crime de perigo abstrato. Isso porque, para sua consumação,

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HC 119.979

basta que alguém desenvolva de forma clandestina as atividades de telecomuni‑


cações, sem necessidade de demonstrar o prejuízo concreto para o sistema de
telecomunicações.
(...)
Dessarte, constato que o acórdão recorrido encontra-se em consonância com a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, tanto no que concerne à não inci‑
dência do princípio da insignificância, quanto no que se refere à desnecessidade
de demonstração de prejuízo concreto. Diante disso, incide no caso o enunciado
n. 83 da Súmula desta Corte: “não se conhece do recurso especial pela divergência,
quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”.

Igualmente corroboro a expressividade do bem jurídico tutelado, obstáculo


intransponível à aplicação do princípio da insignificância no caso em apreço.
A Lei 9.472/1997 foi editada com o propósito de garantir o adequado e o seguro
funcionamento dos serviços de comunicação regularmente instalados no País –
como os utilizados pela polícia, pelo corpo de bombeiros, nos aeroportos, no
âmbito doméstico –, evitando-se possíveis interferências prejudicais ao seu bom
funcionamento.
Na hipótese, sobressai, também, a efetiva possibilidade de interferência em
outros meios de comunicação decorrente do funcionamento da rádio clandes‑
tina, operada na potência de 10,3W, consoante conclusão do parecer técnico
elaborado por agentes da Anatel: “O conjunto transmissor/antena interfere no
espectro radioelétrico destinado ao serviço de Radiodifusão Sonora em FM con‑
cedido pelo poder público federal”.
A propósito da controvérsia, esta Primeira Turma, no julgamento do HC
104.530/RS, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, DJE de 7-12-2010,
por empate de votação, concedeu a ordem em acórdão assim ementado:
Habeas corpus. Penal. Rádio comunitária. Operação sem autorização do poder
público. Imputação aos pacientes da prática do crime previsto no art. 183 da Lei
9.472/1997. Bem jurídico tutelado. Lesão. Inexpressividade. Princípio da insignificân-
cia. Aplicabilidade. Critérios objetivos. Excepcionalidade. Presença. Apuração na
esfera administrativa. Possibilidade. Ordem concedida. I – Consta dos autos que o
serviço de radiodifusão utilizado pela emissora é considerado de baixa potência,
não tendo, deste modo, capacidade de causar interferência relevante nos demais
meios de comunicação. II – Rádio comunitária localizada em pequeno Município
do interior gaúcho, distante de outras emissoras de rádio e televisão, bem como
de aeroportos, o que demonstra que o bem jurídico tutelado pela norma – segu‑
rança dos meios de telecomunicações – permaneceu incólume. III – A aplicação
do princípio da insignificância deve observar alguns vetores objetivos: (i) con‑
duta minimamente ofensiva do agente; (ii) ausência de risco social da ação; (iii)
reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e (iv) inexpressividade da

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  616


HC 119.979

lesão jurídica. IV – Critérios que se fazem presentes, excepcionalmente, na espé‑


cie, levando ao reconhecimento do denominado crime de bagatela. V – Ordem
concedida, sem prejuízo da possível apuração dos fatos atribuídos aos pacientes
na esfera administrativa.

Como bem destacado pelo Superior Tribunal de Justiça, o precedente per‑


mitiu a aplicação do princípio da bagatela diante das situações excepcionalís‑
simas naquela oportunidade constadas – rádio comunitária localizada em um
pequeno Município, distante de rádios, emissoras de televisão e aeroportos –,
sobretudo porque incólume o bem jurídico tutelado pela norma, hipótese que
não se amolda ao caso em apreço.
Na espécie, o paciente, sem autorização do poder público, estaria a explorar
serviço de radiofusão sonora na metrópole de Belo Horizonte, com interferência
“no espectro radioelétrico” da região.
Em síntese, a reprovabilidade da conduta atribuída ao paciente impede a
aplicação do princípio da insignificância que ensejaria o reconhecimento da
pretendida atipicidade.
Ante o exposto, denego a ordem de habeas corpus.
É como voto.

EXTRATO DA ATA
HC 119.979/MG — Relatora: Ministra Rosa Weber. Paciente: Alan Valério dos
Santos. Impetrante: Defensoria Pública da União (Procurador: Defensor público‑
-geral federal). Coator: Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: A Turma denegou a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da
relatora. Unânime. Ausente, justificadamente, o ministro Dias Toffoli. Presidên‑
cia do ministro Luiz Fux.
Presidência do ministro Luiz Fux. Presentes à sessão os ministros Marco Auré‑
lio, Rosa Weber e Roberto Barroso. Ausente, justificadamente, o ministro Dias
Toffoli. Compareceu o ministro Teori Zavascki para julgar processos a ele vin‑
culados. Subprocurador-geral da República, doutor Edson Oliveira de Almeida.
Brasília, 10 de dezembro de 2013 — Carmen Lilian Oliveira de Souza, secretária
da Primeira Turma.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  617


HC 120.617

HABEAS CORPUS 120.617 — PR
Relatora: A sra. ministra Rosa Weber
Paciente: Charlie Cavaglieri
Impetrante: Defensoria Pública da União
Coator: Superior Tribunal de Justiça

Habeas corpus. Direito penal. Descaminho. Valor inferior ao


estipulado pelo art. 20 da Lei 10.522/2002. Portarias 75 e 130/2012
do Ministério da Fazenda. Princípio da insignificância. Aplica‑
bilidade. Ordem concedida.
1. A pertinência do princípio da insignificância deve ser avaliada
considerando-se todos os aspectos relevantes da conduta imputada.
2. Para crimes de descaminho, considera-se, para a avaliação da
insignificância, o patamar de R$ 20.000,00, previsto no art. 20 da Lei
10.522/2002, atualizado pelas Portarias 75 e 130/2012 do Ministério da
Fazenda. Precedentes.
3. Na espécie, aplica-se o princípio da insignificância, pois o des‑
caminho envolveu elisão de tributos federais que perfazem quantia
inferior ao previsto no referido diploma legal.
4. Ordem concedida.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo Tri‑
bunal Federal, em Primeira Turma, sob a presidência do ministro Marco Aurélio,
na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  618


HC 120.617

de votos, em deferir a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da relatora,


vencido o ministro Marco Aurélio.
Brasília, 4 de fevereiro de 2014 — Rosa Weber, relatora.

RELATÓRIO
A sra. ministra Rosa Weber: Trata-se de habeas corpus impetrado pela Defenso‑
ria Pública da União em favor de Charlie Cavaglieri contra acórdão do Superior
Tribunal de Justiça, que rejeitou os embargos de declaração no agravo regimental
no REsp 1.404.750/PR.
O paciente foi denunciado pela suposta prática do crime de contrabando
ou descaminho, tipificado no art. 334, § 1º, d, do Código Penal, por transportar
mercadorias de origem estrangeira desacompanhadas de documentação legal,
tendo elidido tributos federais no valor de R$ 11.789,90.
O Juízo de Direito da 2ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Foz de Iguaçu/
PR absolveu sumariamente o paciente, por atipicidade da conduta, forte na apli‑
cação do princípio da insignificância.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no julgamento da apelação minis‑
terial, também considerou atípico o crime de descaminho, pois o total da elisão
tributária não ultrapassava o valor estabelecido legalmente para o arquivamento
das ações fiscais de débitos inscritos como dívida ativa da União.
Irresignado, o Ministério Público Federal manejou o Recurso Especial 1.404.750/
PR ao Superior Tribunal de Justiça, que, por decisão monocrática da lavra do
ministro Moura Ribeiro, deu provimento ao apelo especial para afastar o princí‑
pio da insignificância e determinar o prosseguimento da ação penal na origem.
Contra essa decisão, a defesa interpôs agravo regimental, não provido pela
Corte Superior. Eis o teor do acórdão:
Agravo regimental no recurso especial. Crime de descaminho. Art. 334 do CP. Princípio
da insignificância. Não aplicação. Tributo ilidido acima do patamar previsto em lei
e apreciado pelo STJ. Agravo regimental não provido.
1. A Terceira Seção desta Corte Superior, no julgamento do REsp n. 1.112.748/TO,
representativo da controvérsia, firmou o entendimento de que é possível a aplica‑
ção do princípio da insignificância ao delito previsto no art. 334, do Código Penal,
desde que o total do tributo ilidido não ultrapasse o patamar de R$ 10.000,00 (dez
mil reais) previstos no art. 20, da Lei n. 10.522/02.
2. Na hipótese, inviável a aplicação do princípio da insignificância, tendo em
vista que o próprio acórdão recorrido destacou que o quantum indevidamente
apropriado pelo acusado monta o importe de R$ 11.789,90 (onze mil, setecentos e

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  619


HC 120.617

oitenta e nove reais e noventa centavos), superior, portanto, ao limite estabelecido


pelo art. 20, da Lei n. 10.522/02 e pela jurisprudência desta Corte Superior.
3. Agravo regimental não provido.

Opostos embargos de declaração, foram rejeitados em acórdão assim ementado:


Embargos de declaração no agravo regimental no recurso especial. Omissão. Não
ocorrência. Manifestação fundamentada do acórdão recorrido sobre todos os pontos
suscitados no agravo regimental. Embargos declaratórios rejeitados.
1. O acórdão recorrido, proferido em agravo regimental, não foi omisso e funda‑
mentadamente entendeu que a Terceira Seção desta Corte Superior, no julgamento
do REsp n. 1.112.748/TO, representativo de controvérsia, firmou o entendimento
de que é possível a aplicação do princípio da insignificância ao delito previsto
no art. 334, do Código Penal, desde que o total do tributo ilidido não ultrapasse
o patamar de R$ 10.000,00 (dez mil reais), nos termos do limite estabelecido pelo
art. 20, da Lei n. 10.522/02 e pela jurisprudência desta Corte, o que não ocorre in
casu, conforme asseverado pelo próprio embargante.
2. Nos termos da jurisprudência desta Corte, o órgão julgador não é obrigado a se
manifestar sobre todos os pontos alegados pelas partes, mas somente sobre aque‑
les que entender necessários para o julgamento do feito, de acordo com seu livre
convencimento fundamentado, não caracterizando omissão ou ofensa à legislação
infraconstitucional o resultado diferente do pretendido pela parte.
3. Não há, portanto, falar em omissão no julgado, estando ausentes os requisi‑
tos autorizadores dos embargos declaratórios, previstos no art. 619, do Código de
Processo Penal.
4. Embargos declaratórios rejeitados.

Nesse writ, alega a defesa, em síntese, a aplicação do princípio da insignificân‑


cia na espécie, visto que o valor do tributo suprimido é inferior a R$ 20.000,00,
na forma da Lei 10.522/2002, atualizada pelas Portarias 75 e 130 do Ministério da
Fazenda, de 22 de março de 2012.
Requer a concessão da ordem para que seja reconhecida a atipicidade da
conduta.
Parecer do Ministério Público Federal, da lavra da subprocuradora-geral da
República Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, pela denegação da ordem.
Expedido telegrama para dar ciência da sessão de julgamento do feito.
É o relatório.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  620


HC 120.617

VOTO
A sra. ministra Rosa Weber (relatora): O presente habeas corpus diz com a apli‑
cação ou não do princípio da insignificância ao crime de descaminho, cujo tributo
elidido corresponde ao valor de R$ 11.789,90.
Esta Suprema Corte tem admitido a aplicação do princípio da insignificância
em casos envolvendo crimes de pequena dimensão.
A conduta delitiva seria tão diminuta que não afetaria materialmente o bem
jurídico protegido pela norma penal, sendo atípica da perspectiva material.
Tal entendimento encontra-se consubstanciado em diversos acórdãos desta
Suprema Corte:
A tipicidade penal não pode ser percebida como o trivial exercício de adequação do
fato concreto à norma abstrata. Além da correspondência formal, para a configura‑
ção da tipicidade, é necessária análise materialmente valorativa das circunstâncias
do caso concreto, no sentido de se verificar a ocorrência de alguma lesão grave,
contundente e penalmente relevante do bem jurídico tutelado. [HC 109.739/SP, rel.
min. Cármen Lúcia, Primeira Turma do STF, un., j. 13-12-2011, DJE 32, de 13-2-2012.]

O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os pos‑


tulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria
penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada
na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado – que considera
necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos
vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma
periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do com‑
portamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em
seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidi‑
ário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele
visados, a intervenção mínima do poder público. [RHC 107.264/DF, rel. min. Celso
de Mello, Segunda Turma, un., j. 19-4-2011, DJE 232, de 6-12-2011.]

A doutrina majoritária também tem se posicionado no sentido de que o prin‑


cípio da insignificância afeta a tipicidade material. Por todos, considerando a
torrencial doutrina existente sobre o tema, cito o eminente e saudoso ministro
Francisco de Assis Toledo:
Note-se que a gradação qualitativa e quantitativa do injusto referida inicialmente
(supra, n. 123), permite que o fato penalmente insignificante seja excluído da tipi‑
cidade penal, mas possa receber tratamento adequado – se necessário – como
ilícito civil, administrativo etc., quando assim o exigirem preceitos legais ou

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  621


HC 120.617

regulamentares extrapenais. [TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de


direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 134.]

O princípio da insignificância também pode ser invocado como decorrência


dos princípios da proporcionalidade ou da razoabilidade. Impor prisão ou con‑
denação criminal por crimes de diminuta dimensão não se justificaria por sua
desproporcionalidade.
Invocando a insignificância como consequência do princípio da proporciona‑
lidade, encontram-se alguns julgados desta Corte, entre eles o seguinte, da lavra
do eminente ministro Ayres Britto:
Reiteradas vezes este Supremo Tribunal Federal debateu o tema da insignificância
penal. Oportunidades em que me posicionei pelo reconhecimento da insignifi‑
cância penal como expressão de um necessário juízo de razoabilidade e propor‑
cionalidade de condutas que, embora formalmente encaixadas no molde legal‑
-punitivo, materialmente escapam desse encaixe. [HC 109.277/SE, rel. min. Ayres
Britto, Segunda Turma, un., j. 13-12-2011, DJE 36, de 17-2-2012.]

De todo modo, qualquer que seja a base jurídica para a aplicação do princípio da
insignificância, a pontual atenuação do rigor da lei em crimes de diminuta expres‑
são é medida necessária sob pena da criação de situações de acentuada injustiça
e da incômoda sensação de identificação da Justiça e do acusado com os perso‑
nagens literários inspetor Javert e Jean Valjean, da obra imortal de Victor Hugo.
A hipótese dos autos envolve a prática de crime de descaminho, pelo não reco‑
lhimento de tributos devidos pela importação de mercadorias de procedência
estrangeira, no montante de R$ 11.789,90.
Para crimes de descaminho, a jurisprudência predominante da Suprema Corte
considerava, até pouco tempo, para avaliação da insignificância, o patamar de
R$ 10.000,00, o mesmo previsto no art. 20 da Lei 10.522/2002, que determina
o arquivamento de execuções fiscais de valor igual ou inferior a este patamar.
Nesse sentido:
Penal. Habeas corpus. Crime de descaminho. Valor sonegado inferior ao fixado no
art. 20 da Lei 10.522/2002, com a redação dada pela Lei 11.033/2004. Princípio da
insignificância. Aplicabilidade. Precedentes. Ordem concedida. I – Nos termos da
jurisprudência deste Tribunal, o princípio da insignificância deve ser aplicado ao
delito de descaminho quando o valor sonegado for inferior ao estabelecido no
art. 20 da Lei 10.522/2002, com a redação dada pela Lei 11.033/2004. II – Ordem
concedida para, reconhecendo-se a atipicidade da conduta, determinar o tran‑
camento da ação penal. [HC 112.772/PR, rel. min. Ricardo Lewandowski, Segunda
Turma, por maioria, j. 11-9-2012.]

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  622


HC 120.617

Penal. Habeas corpus. Descaminho (art. 334, caput, do CP). Princípio da insignificân-


cia. Requisitos presentes. Delito puramente fiscal. Tributo iludido em valor inferior a
R$ 10.000,00. Atipicidade material da conduta. Art. 20 da Lei 10.522/2002. Dispensa
da União de executar os créditos fiscais em valor inferior a esse patamar. Precedentes.
Ordem concedida. 1. O princípio da insignificância incide quando o tributo iludido
pelo delito de descaminho for de valor inferior a R$ 10.000,00, presentes o princí‑
pio da lesividade, da fragmentariedade, da intervenção mínima e ante o disposto
no art. 20 da Lei 10.522/2002, que dispensa a União de executar os créditos fiscais
em valor inferior a esse patamar. Precedentes: HC 96.412/SP, rel. p/ o ac. min. Dias
Toffoli, Primeira Turma, DJ de 18-3-2011; HC 97.257/RS, rel. min. Marco Aurélio, Pri‑
meira Turma, DJ de 1º-12-2010; HC 102.935, rel. min. Dias Toffoli, Primeira Turma,
DJ de 19-11-2010; HC 96.852/PR, rel. min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJ de
15-3-2011; HC 96.307/GO, rel. min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJ de 10-12-
2009; HC 100.365/PR, rel. min. Joaquim Barbosa, DJ de 5-2-2010. 2. In casu, a paciente
fora denunciada pela prática do crime de descaminho por iludir, no ingresso de
mercadorias em território nacional, tributos no valor de R$ 3.045,98. 3. Ordem
concedida para restabelecer a decisão do Juízo rejeitando a denúncia. [HC 100.942/
PR, Primeira Turma, rel. min. Luiz Fux, por maioria, j. 9-8-2011.]

Recentemente, o patamar de R$ 10.000,00 para o arquivamento de execu‑


ções fiscais, estabelecido pela Lei 10.522/2002, foi majorado para R$ 20.000,00
pelas Portarias 75 e 130/2012 do Ministério da Fazenda. Desse modo, as execu‑
ções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado for igual
ou inferior a R$ 20.000,00, podem ser arquivadas, aplicando-se o princípio da
insignificância.
Oportuno destacar que este Supremo Tribunal Federal já tem considerado o
patamar de R$ 20.000,00, fixado pelas mencionadas portarias do Ministério da
Fazenda, como parâmetro de aplicação do princípio da insignificância nesses
casos. Destaco precedente:
(...) I – Nos termos da jurisprudência deste Tribunal, o princípio da insignificância
deve ser aplicado ao delito de descaminho quando o valor sonegado for inferior ao
estabelecido no art. 20 da Lei 10.522/2002, com as atualizações feitas pelas Porta‑
rias 75 e 130, ambas do Ministério da Fazenda. [HC 118.000/PR, rel. min. Ricardo
Lewandowski, Segunda Turma, DJE de 17-9-2011.]

Na espécie, a soma dos tributos não recolhidos perfaz a quantia de R$ 11.789,90.


Nesse contexto, como o montante de impostos devidos não ultrapassa o limite
de R$ 20.000,00, é de se afastar a tipicidade material do delito de descaminho,
por aplicação do princípio da insignificância.
Por fim, inaplicáveis à espécie os julgados elencados pelo Ministério Público
Federal em seu parecer – HC 116.242/RR, rel. min. Luiz Fux, Primeira Turma,

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HC 120.617

DJE de 17-9-2013; e HC 115.331, rel. min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJE de
1º-7-2013 –, uma vez afastado o princípio da insignificância dada a reiteração da
conduta criminosa.
In casu, juntada aos autos certidão de antecedentes criminais atestando a
inexistência de registros criminais pretéritos em nome do paciente.
Ante o exposto, concedo a ordem de habeas corpus, para reconhecer a ati‑
picidade da conduta imputada ao paciente com o consequente trancamento da
ação penal de origem.
É como voto.

VOTO
O sr. ministro Marco Aurélio (presidente): A responsabilidade penal é inde‑
pendente da fiscal. Entendo que o que disciplinado quanto a não se tocar o
executivo fiscal, quando o débito deixa de não alcançar determinado valor, não
afasta a responsabilidade penal.
Por isso, indefiro a ordem.

EXTRATO DA ATA
HC 120.617/PR — Relatora: Ministra Rosa Weber. Paciente: Charlie Cavaglieri.
Impetrante: Defensoria Pública da União (Procurador: Defensor público-geral
federal). Coator: Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: Por maioria de votos, a Turma deferiu a ordem de habeas corpus,
nos termos do voto da relatora, vencido o ministro Marco Aurélio, presidente.
Presidência do ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os ministros Dias
Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Roberto Barroso. Subprocuradora-geral da Repú‑
blica, doutora Cláudia Sampaio Marques.
Brasília, 4 de fevereiro de 2014 — Carmen Lilian Oliveira de Souza, secretária
da Primeira Turma.

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RE 530.121 AgR

AGRAVO REGIMENTAL NO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 530.121 — PR
Relator: O sr. ministro Ricardo Lewandowski
Agravante: Ghignone Distribuidora de Publicações Ltda.
Agravado: Município de Curitiba

Tributário. ISS. Imunidade tributária. Art. 150, VI, d, da CF. Servi‑


ços de distribuição, transporte ou entrega de livros, jornais,
periódicos e do papel destinado a sua impressão. Abrangência.
Impossibilidade. Interpretação restritiva. Agravo improvido.
I – A imunidade tributária prevista no art. 150, VI, d, da Constituição
Federal não abrange os serviços prestados por empresas que fazem a
distribuição, o transporte ou a entrega de livros, jornais, periódicos e
do papel destinado a sua impressão. Precedentes.
II – O Supremo Tribunal Federal possui entendimento no sentido de
que a imunidade em discussão deve ser interpretada restritivamente.
III – Agravo regimental improvido.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a presidência do ministro Ricardo
Lewandowski, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráfi‑
cas, por maioria de votos, negar provimento ao agravo regimental no recurso
extraordinário, nos termos do voto do relator, vencido o ministro Marco Aurélio.
Brasília, 9 de novembro de 2010 — Ricardo Lewandowski, presidente e relator.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  625


RE 530.121 AgR

RELATÓRIO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de agravo regimental interposto
contra decisão que negou seguimento ao recurso extraordinário.
A agravante sustentou, em suma, que a decisão agravada deve ser reformada, ao
argumento de que a imunidade tributária prevista no art. 150, VI, d, da Constituição
Federal abrange, também, o serviço de distribuição de livros, jornais e periódicos,
sob pena de se desconhecer o objeto precípuo da norma constitucional, que tem
de ser o verdadeiro estímulo à veiculação de ideias e notícias, tal como inerente
ao próprio Estado Democrático de Direito. [Fl. 380.]

É o relatório.

VOTO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): Eis o teor da decisão agravada:
Trata-se de recurso extraordinário interposto contra acórdão que entendeu pela
incidência do ISS sobre o serviço de distribuição de livros e periódicos, ao argu‑
mento de que a imunidade tributária prevista no art. 150, VI, d, da Constituição
Federal não alcança o referido serviço.
Neste recurso extraordinário, fundado no art. 102, III, a, da Constituição, alegou‑
-se, em suma, que a atividade desenvolvida pela recorrente está abrangida pela
mencionada imunidade.
A pretensão recursal não merece acolhida.
O acórdão recorrido está em conformidade com a jurisprudência desta Corte
no sentido de que a imunidade em questão não alcança os serviços prestados por
empresas que fazem a distribuição, o transporte ou a entrega de livros, jornais,
periódicos e do papel destinado a sua impressão.
Nesse sentido, menciono as seguintes decisões, entre outras: AI 368.077 AgR/SP,
rel. min. Sepúlveda Pertence; RE 206.774/RS, rel. min. Ilmar Galvão; RE 116.607 EDv‑
-AgR/SP e RE 375.603/MG, rel. min. Carlos Velloso; RE 541.941/MS, rel. min. Gilmar
Mendes; AI 738.717/SP, rel. min. Carlos Britto; RE 116.607/SP, rel. min. Moreira Alves.
Isso posto, nego seguimento ao recurso extraordinário (CPC, art. 557, caput).
[Fl. 368.]

Bem reexaminada a questão, verifica-se que a decisão ora atacada não merece
reforma, visto que a recorrente não aduz novos argumentos capazes de afastar as
razões nela expendidas, que devem ser mantidas por seus próprios fundamentos.
Com efeito, a decisão agravada está em conformidade com a jurisprudência
desta Corte, que possui entendimento no sentido de que a imunidade tributária

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  626


RE 530.121 AgR

prevista no art. 150, VI, d, da Constituição Federal não abrange os serviços prestados


por empresas que fazem a distribuição, o transporte ou a entrega de livros, jornais,
periódicos e do papel destinado a sua impressão, conforme se observa do julga‑
mento do RE 116.607/SP, rel. min. Moreira Alves, cuja ementa transcrevo a seguir:
Recurso extraordinário. Imunidade. Art. 19, III, d, da Emenda Constitucional 1/1969.
– Essa imunidade não abrange os serviços prestados por empresa que transporta
jornais para a sua distribuição, a qual, com referência a esse serviço, está sujeita
ao ISS (art. 24, II, da Emenda Constitucional 1/1969). Precedente do STF.
Recurso extraordinário conhecido e provido.

No mesmo sentido, menciono as seguintes decisões, entre outras: RE 375.603/


MG e RE 116.607 EDv AgR/SP, rel. min. Carlos Velloso; RE 541.941/MS, rel. min.
Gilmar Mendes; AI 738.717/SP, rel. min. Ayres Britto; AI 368.077 AgR/SP, rel. min.
Sepúlveda Pertence; RE 206.774/RS, rel. min. Ilmar Galvão.
Além disso, cumpre ressaltar que o Supremo Tribunal Federal possui enten‑
dimento no sentido de que a imunidade em discussão deve ser interpretada
restritivamente. Nesse sentido, menciono os seguintes precedentes, entre outros:
RE 412.786/MS, rel. min. Sepúlveda Pertence; RE 203.859/SP, rel. p/ o ac. min.
Maurício Corrêa; AI 778.289/SP, rel. min. Cármen Lúcia.
Isso posto, nego provimento ao agravo regimental.

EXTRATO DA ATA
RE 530.121 AgR/PR — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Agravante: Ghig‑
none Distribuidora de Publicações Ltda. (Advogados: Jamil Ibrahim Tawil Filho
e outros). Agravado: Município de Curitiba (Procurador: Procurador-geral do
Município de Curitiba).
Decisão: Após os votos dos ministros Ricardo Lewandowski, relator presi‑
dente, e Dias Toffoli e da ministra Cármen Lúcia, que negavam provimento ao
agravo regimental no recurso extraordinário, pediu vista do processo o ministro
Marco Aurélio.
Presidência do ministro Ricardo Lewandowski. Presentes à sessão o ministro
Marco Aurélio, a ministra Cármen Lúcia e o ministro Dias Toffoli. Compareceu
à abertura da sessão o ministro Ayres Britto. Subprocurador-geral da República,
doutor Edson Oliveira de Almeida.
Brasília, 17 de agosto de 2010 — Fabiane Duarte, coordenadora.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  627


RE 530.121 AgR

VOTO-VISTA
O sr. ministro Marco Aurélio: O processo de número 23 da lista versa:
Tributário. ISS. Imunidade tributária. (...) Serviços de distribuição, transporte ou
entrega de livros, jornais, periódicos e do papel destinado a sua impressão. Impossi-
bilidade. Interpretação restritiva.

Aqui, Presidente, penso que o recurso é do contribuinte e creio que estamos de


acordo quanto à premissa de que a imunidade tributária alcança a distribuição,
transporte ou entrega de livros. Pelo menos é meu convencimento.
Por isso, penso que o agravo merece provimento.

EXTRATO DA ATA
RE 530.121 AgR/PR — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Agravante: Ghig‑
none Distribuidora de Publicações Ltda. (Advogados: Jamil Ibrahim Tawil Filho
e outros). Agravado: Município de Curitiba (Procurador: Procurador-geral do
Município de Curitiba).
Decisão: Por maioria de votos, a Turma negou provimento ao agravo regimen‑
tal no recurso extraordinário, nos termos do voto do relator, vencido o ministro
Marco Aurélio. Presidência do ministro Ricardo Lewandowski.
Presidência do ministro Ricardo Lewandowski. Presentes à sessão o ministro
Marco Aurélio, a ministra Cármen Lúcia e o ministro Dias Toffoli. Compareceu
à sessão o ministro Joaquim Barbosa para julgar processos a ele vinculados.
Subprocuradora-geral da República, doutora Cláudia Sampaio Marques.
Brasília, 9 de novembro de 2010 — Fabiane Duarte, coordenadora.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  628


AI 589.182 AgR

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 589.182 — RJ


Relator: O sr. ministro Ricardo Lewandowski
Agravante: Associação Auxiliadora das Classes Laboriosas
Agravada: Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS

Processual civil. Agravo regimental. Existência de ação direta


de inconstitucionalidade sobre o tema, na qual a medida cau‑
telar foi indeferida. Julgamento imediato de outras causas
sobre idêntica controvérsia. Possibilidade. Precedentes. Res‑
sarcimento ao SUS. Art. 32 da Lei 9.656/1998. Constitucionalidade.
Precedentes. Agravo regimental desprovido.
I – A existência de decisão em controle abstrato, na qual a medida
cautelar foi indeferida, não impede o julgamento de outros processos
sobre idêntica controvérsia. Precedentes.
II – A jurisprudência desta Corte ratificou a tese da constituciona‑
lidade do art. 32 da Lei 9.656/1998. Precedentes.
III – Agravo regimental desprovido.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a presidência do ministro Carlos Ayres
Britto, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por deci‑
são unânime, negar provimento ao agravo regimental no agravo de instrumento,
nos termos do voto do relator.
Brasília, 15 de dezembro de 2009 — Ricardo Lewandowski, relator.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  629


AI 589.182 AgR

RELATÓRIO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de agravo regimental interposto
contra decisão em que neguei seguimento ao agravo de instrumento sob o argu‑
mento de que o acórdão recorrido estava em harmonia com o entendimento do
Supremo Tribunal Federal, que, ao julgar a ADI 1.931 MC/DF, rel. min. Maurício
Corrêa, decidiu pela manutenção da vigência do art. 32 da Lei 9.656/1998.
A agravante sustentou, em suma, que a decisão na ADI 1.931/DF foi proferida
em sede cautelar e não no julgamento de mérito.
Argumentou, ademais, a inconstitucionalidade formal e material do art. 32
da Lei 9.656/1998.
É o relatório.

VOTO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): Bem reexaminada a questão,
verifico que a decisão ora atacada não merece reforma, visto que a recorrente
não aduziu novos argumentos capazes de afastar as razões nela expendidas.
Inicialmente, assento que, após refletir sobre o tema, e com base nos prece‑
dentes já citados na decisão agravada, não há razão para sobrestar este feito.
O sobrestamento é requerido sob o fundamento de que ainda pende de apre‑
ciação por esta Corte o mérito da ADI 1.931/DF, rel. min. Marco Aurélio.
Nessa ação direta a Confederação Nacional de Saúde – Hospitais, Estabeleci‑
mentos e Serviços (CNS) impugnou a Lei 9.656/1998, que dispõe sobre os planos
e seguros privados de assistência à saúde.
No julgamento da cautelar na referida ação direta de inconstitucionalidade, o
Plenário desta Corte deferiu, em parte, a medida tão somente para suspender a
eficácia do art. 35-E (redação dada pela MP 2.177-44/2001), da expressão “atuais
e” constante no § 2º do art. 10 e da expressão “artigo 35-E”, contida no art. 3º da
Medida Provisória 1.908-18/1999.
À ocasião, quanto à inconstitucionalidade do art. 32 da Lei 9.656/1998, assen‑
tou o ministro Maurício Corrêa que
outra questão tida como contrária e ofensiva ao princípio da proporcionalidade
seria o ressarcimento, de que trata o caput do art. 32 da lei, ao poder público dos
serviços de atendimento que a rede hospitalar de saúde pública prestar ao contra‑
tado do plano. Frise-se que esses serviços só atingem os atendimentos previstos em
contrato e que forem prestados aos respectivos consumidores e seus dependentes
por instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  630


AI 589.182 AgR

do SUS, como está explicitamente disciplinado no § 1º do art. 32, na versão atual,


verbis: “O ressarcimento a que se refere o caput será efetuado pelas operadoras
à entidade prestadora de serviços, quando esta possuir personalidade jurídica
própria, e ao Sistema Único de Saúde – SUS, mediante tabela de procedimento a
ser aprovada pelo CONSU”.
45. Não vejo atentado ao devido processo legal em disposição contratual que asse‑
gurou a cobertura desses serviços que, não atendidos pelas operadoras no momento
de sua necessidade, foram prestados pela rede do SUS e por instituições conveniadas
e, por isso, devem ser ressarcidos à administração pública, mediante condições pre‑
estabelecidas em resoluções internas da Câmara de Saúde Complementar. Observo
que não há nada nos autos relativamente aos preços que serão fixados, se atendem
ou não as expectativas da requerente. Tudo gira em torno de hipóteses.
46. Também nenhuma consistência tem a argumentação de que a instituição
dessa modalidade de ressarcimento estaria a exigir lei complementar nos termos
do art. 195, § 4º, da Constituição Federal, que remete sua implementação ao art. 154,
I, da mesma Carta. Como resulta claro e expresso na norma, não impõe ela a cria‑
ção de nenhum tributo, mas exige que o agente do plano restitua à administração
pública os gastos efetuados pelos consumidores com que lhe cumpre executar.

Verifica-se, nesse passo, que o art. 32 – objeto da controvérsia posta em de­­


bate – não teve sua eficácia suspensa pela ADI 1.931 MC/DF, uma vez que a Corte
não entendeu plausível a tese da inconstitucionalidade.
Assim, a disposição ali contida continua vigente e aplicável.
Por esse motivo o ministro Celso de Mello levou a julgamento na Segunda
Turma o RE 500.306 ED/RJ, que versa sobre idêntica controvérsia, e concluiu
que a existência de decisão em controle abstrato, na qual a cautelar foi indefe‑
rida, não impede o julgamento de outros processos sobre idêntica controvérsia.
O acórdão foi assim ementado:
Recurso extraordinário – Embargos de declaração recebidos como recurso de agravo –
Ressarcimento ao Sistema Único de Saúde (SUS) – Art. 32 da Lei 9.656/1998 – Cons-
titucionalidade – Medida cautelar apreciada pelo Plenário do Supremo Tribunal
Federal – Possibilidade de julgamento imediato de outras causas, versando o mesmo
tema, pelas turmas ou juízes do Supremo Tribunal Federal, com fundamento no
leading case – Recurso de agravo improvido. A denegação de medida cautelar, em
sede de controle normativo abstrato, não impede que se proceda ao julgamento con-
creto, pelo método difuso, de idêntico litígio constitucional. A existência de decisão
plenária, proferida em sede de controle normativo abstrato, de que tenha resul‑
tado o indeferimento do pedido de medida cautelar, não impede que se proceda,
desde logo, por meio do controle difuso, ao julgamento de causas em que se deva
resolver, incidenter tantum, litígio instaurado em torno de idêntica controvérsia
constitucional. Precedentes.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  631


AI 589.182 AgR

No mesmo sentido, menciono julgamentos da Primeira Turma desta Corte


no RE 219.146/RN e RE 224.835/RN, rel. min. Sepúlveda Pertence.
No mérito, a jurisprudência desta Corte ratificou a tese da constitucionali‑
dade do art. 32 da Lei 9.656/1998, conforme se observa dos seguintes julgados:
Agravo regimental no recurso extraordinário. Ressarcimento ao SUS. Art. 32 da Lei
9.656/1998. Constitucionalidade. O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do jul‑
gamento da ADI 1.931 MC, rel. min. Maurício Corrêa, DJ de 28-5-2004, decidiu pela
constitucionalidade do ressarcimento ao SUS instituído pela Lei 9.656/1998. Agravo
regimental a que se nega provimento. [RE 597.261 AgR/RJ, rel. min. Eros Grau.]

Embargos de declaração no agravo regimental no recurso extraordinário. Ressarci-


mento ao SUS. Art. 32 da Lei 9.656/1998. Constitucionalidade. Omissão. Contradição.
Obscuridade. Inexistência. 1. Constitucionalidade do ressarcimento ao SUS institu‑
ído pela Lei 9.656/1998 (ADI 1.931 MC, rel. min. Maurício Corrêa, DJ de 28-5-2004).
2. Não se encontram configuradas no acórdão embargado a obscuridade, a con‑
tradição ou a omissão que autorizariam a integração do julgado com fundamento
nos incisos I e II do art. 535 do Código de Processo Civil. Embargos de declaração
rejeitados. [RE 488.026 AgR-ED/RJ, rel. min. Eros Grau.]

Ainda quanto à constitucionalidade, menciono os seguintes precedentes:


RE 501.981 AgR/RJ e RE 488.026 AgR-ED/RJ, rel. min. Eros Grau; RE 581.020/RJ, de
minha relatoria; RE 493.217/RJ, rel. min. Gilmar Mendes; RE 511.338/RJ, rel. min.
Carlos Britto; RE 583.548/RJ, rel. min. Celso de Mello; AI 685.831/RJ e RE 572.881/
RJ, rel. min. Cármen Lúcia.
Isso posto, nego provimento ao agravo regimental.

EXTRATO DA ATA
AI 589.182 AgR/RJ — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Agravante: Asso‑
ciação Auxiliadora das Classes Laboriosas (Advogados: Osmar Mendes Paixão
Côrtes e outros e Karla Marçon Spechoto). Agravada: Agência Nacional de Saúde
Suplementar – ANS (Advogada: Procuradoria-Geral Federal).
Decisão: A Turma negou provimento ao agravo regimental no agravo de ins‑
trumento, nos termos do voto do relator. Unânime. Presidência do ministro
Carlos Ayres Britto.
Presidência do ministro Carlos Ayres Britto. Presentes à sessão os ministros
Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, a ministra Cármen Lúcia e o ministro Dias
Toffoli. Subprocurador-geral da República, doutor Wagner de Castro Mathias Netto.
Brasília, 15 de dezembro de 2009 — Ricardo Dias Duarte, coordenador.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  632


RE 594.040 AgR

AGRAVO REGIMENTAL NO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 594.040 — SP
Relator: O sr. ministro Ricardo Lewandowski
Agravante: Departamento Autônomo de Água e Esgotos de Araraquara
Agravado: Dejair Maximino da Silva

Agravo regimental em recurso extraordinário. Constitucio‑


nal. Administrativo. Servidor público não estável. Demissão.
Necessidade de observância de contraditório e ampla defesa.
I – A demissão de servidor público, mesmo que não estável, deve
ser precedida por processo administrativo, em que sejam assegurados
o contraditório e a ampla defesa. Precedentes.
II – Agravo regimental não provido.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a presidência do ministro Ricardo
Lewandowski, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas,
por decisão unânime, negar provimento ao agravo regimental no recurso extra‑
ordinário, nos termos do voto do relator.
Brasília, 6 de abril de 2010 — Ricardo Lewandowski, presidente e relator.

RELATÓRIO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de agravo regimental interposto
contra decisão que deu provimento ao recurso extraordinário (fls. 169-173), sob
o fundamento de que não é válida a demissão de servidor público, mesmo que

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  633


RE 594.040 AgR

não estável, sem o devido processo administrativo em que se garantam o con‑


traditório e a ampla defesa.
O agravante sustentou, em suma, que o recurso extraordinário não deveria
ter sido conhecido, tendo em vista a incidência no caso da Súmula 279 do STF e
a necessidade de reexame de normas infraconstitucionais.
Aduziu, também, que a demissão do recorrido foi precedida da avaliação de
desempenho funcional, o que atende as formalidades necessárias ao desliga‑
mento do servidor não estável.
Salientou, por fim, que a exigência de instauração de processo administrativo
para demissão de servidor aplica-se apenas aos servidores estáveis.
É o relatório.

VOTO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): Eis o teor da decisão agravada:
Trata-se de recurso extraordinário interposto contra acórdão que entendeu válida
a dispensa imotivada de servidor público em estágio probatório, ao argumento de
que ainda não gozava o direito à estabilidade.
Neste recurso extraordinário, fundado no art. 102, III, a, da Constituição, alegou‑
-se ofensa aos arts. 5º, II, XXXV, LIV e LV, e 41, § 1º, II, da mesma Carta.
A pretensão recursal merece acolhida. Consta do voto vencido do relator origi‑
nário do acórdão recorrido:
(...) A situação dos autos, entretanto, não se limita ao reconhecimento da esta‑
bilidade do art. 41 da Constituição Federal ao empregado público admitido
por concurso público, porquanto, na hipótese, o reclamante foi dispensado
imotivadamente no curso do estágio probatório (...) (fl. 126).
O acórdão recorrido, assim, está em confronto com a jurisprudência desta Corte,
que, no julgamento do RE 223.904/MG, rel. min. Ellen Gracie, concluiu:
Constitucional. Administrativo. Recurso extraordinário. Servidor público estadual
não estável. Lei 10.254/1990/MG. Demissão por conveniência administrativa. Con-
traditório e ampla defesa. Necessidade.
1. É necessário o devido processo administrativo, em que se garantam o contra‑
ditório e a ampla defesa, para a demissão de servidores públicos, mesmo que não
estáveis. Precedentes: RE 223.927 AgR, DJ de 23-3-2001, e RE 244.543, DJ de 26-9-2003.
2. Recurso extraordinário conhecido e improvido.
No mesmo sentido, menciono precedentes de ambas as Turmas: RE 222.532/MG,
rel. min. Sepúlveda Pertence, e RE 378.041/MG, rel. min. Carlos Britto, Primeira
Turma; RE 240.735 AgR/MG, rel. min. Eros Grau, e AI 560.566 AgR/SP, rel. min.
Gilmar Mendes, Segunda Turma.
Cito, ainda, as seguintes decisões, entre outras: RE 395.219/ES, rel. min. Carlos Velloso;
AI 436.387/SP, rel. min. Sepúlveda Pertence; AI 521.843/SP, rel. min. Gilmar Mendes.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  634


RE 594.040 AgR

Por fim, o acórdão recorrido afronta a Súmula 21 do STF, que determina que o
“funcionário em estágio probatório não pode ser exonerado nem demitido sem
inquérito ou sem as formalidades legais de apuração de sua capacidade”.
Isso posto, dou provimento ao recurso (CPC, art. 557, § 1º-A), mantidos os ônus
da sucumbência fixados no acórdão de fls. 85-88.

Bem reexaminada a questão, verifica-se que a decisão ora atacada não merece
reforma, visto que o recorrente não aduz novos argumentos capazes de afastar
as razões nela expendidas.
Não há falar, na espécie, em ofensa reflexa ou em necessidade de reexame de
provas, visto que o acórdão impugnado entendeu que o ora agravado, por não
ser estável, não faz jus à garantia constitucional de prévio processo adminis‑
trativo para sua dispensa (art. 41, § 1º), o que está em patente confronto com a
jurisprudência desta Corte.
Por oportuno, transcrevo a ementa do RE 223.927 AgR/MG, rel. min. Maurício
Corrêa, que bem ilustra o entendimento deste Tribunal sobre a questão em exame:
Agravo regimental em recurso extraordinário. Constitucional. Administrativo. Demis-
são de servidor público não estável. Garantia do contraditório e da ampla defesa.
Inobservância. 1. Servidor público não estável. Demissão por motivo de conveni‑
ência administrativa e interesse público. Inexistência de processo administrativo.
Nulidade do ato de dispensa por inobservância da garantia constitucional do con‑
traditório e da ampla defesa. Agravo regimental não provido.

No mesmo sentido, menciono, ainda, os seguintes precedentes: RE 491.724


AgR/MG, rel. min. Ellen Gracie; AI 560.566 AgR/SP, rel. min. Gilmar Mendes; RE
380.400 AgR/SE, rel. min. Cezar Peluso; RE 409.997 AgR/AL, rel. min. Carlos Velloso.
Isso posto, nego provimento ao agravo regimental.

EXTRATO DA ATA
RE 594.040 AgR/SP — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Agravante: Depar‑
tamento Autônomo de Água e Esgotos de Araraquara (Advogados: Walter José
Faiad de Moura e outros). Agravado: Dejair Maximino da Silva (Advogados: Antô‑
nio Daniel Cunha Rodrigues de Souza e outros).
Decisão: A Turma negou provimento ao agravo regimental no recurso extraor‑
dinário, nos termos do voto do relator. Unânime. Presidência do ministro Ricardo
Lewandowski.
Presidência do ministro Ricardo Lewandowski. Presentes à sessão os ministros
Marco Aurélio, Ayres Britto, Cármen Lúcia e Dias Toffoli. Subprocurador-geral
da República, doutor Edson Oliveira de Almeida.
Brasília, 6 de abril de 2010 — Fabiane Duarte, coordenadora.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  635


RE 606.107

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 606.107 — RS


Relatora: A sra. ministra Rosa Weber
Recorrente: União
Recorrida: Schmidt Irmãos Calçados Ltda.

Recurso extraordinário. Constitucional. Tributário. Imuni‑


dade. Hermenêutica. Contribuição ao PIS e Cofins. Não incidên‑
cia. Teleologia da norma. Empresa exportadora. Créditos de
ICMS transferidos a terceiros.
I – Esta Suprema Corte, nas inúmeras oportunidades em que de­­
batida a questão da hermenêutica constitucional aplicada ao tema
das imunidades, adotou a interpretação teleológica do instituto, a
emprestar-lhe abrangência maior, com escopo de assegurar à norma
supralegal máxima efetividade.
II – A interpretação dos conceitos utilizados pela Carta da Repú‑
blica para outorgar competências impositivas (entre os quais se insere
o conceito de “receita” constante do seu art. 195, I, b) não está sujeita,
por óbvio, à prévia edição de lei. Tampouco está condicionada à lei
a exegese dos dispositivos que estabelecem imunidades tributárias,
como aqueles que fundamentaram o acórdão de origem (arts. 149,
§ 2º, I, e 155, § 2º, X, a, da CF). Em ambos os casos, trata-se de inter‑
pretação da Lei Maior voltada a desvelar o alcance de regras tipica‑
mente constitucionais, com absoluta independência da atuação do
legislador tributário.
III – A apropriação de créditos de ICMS na aquisição de merca‑
dorias tem suporte na técnica da não cumulatividade, imposta para
tal tributo pelo art. 155, § 2º, I, da Lei Maior, a fim de evitar que a sua

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  636


RE 606.107

incidência em cascata onere demasiadamente a atividade econômica


e gere distorções concorrenciais.
IV – O art. 155, § 2º, X, a, da CF – cuja finalidade é o incentivo às
exportações, desonerando as mercadorias nacionais do seu ônus eco‑
nômico, de modo a permitir que as empresas brasileiras exportem pro‑
dutos, e não tributos – imuniza as operações de exportação e assegura
“a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado
nas operações e prestações anteriores”. Não incidem, pois, a Cofins e
a contribuição ao PIS sobre os créditos de ICMS cedidos a terceiros,
sob pena de frontal violação do preceito constitucional.
V – O conceito de receita, acolhido pelo art. 195, I, b, da Constitui‑
ção Federal, não se confunde com o conceito contábil. Entendimento,
aliás, expresso nas Leis 10.637/2002 (art. 1º) e 10.833/2003 (art. 1º), que
determinam a incidência da contribuição ao PIS/Pasep e da Cofins
não cumulativas sobre o total das receitas, “independentemente de
sua denominação ou classificação contábil”. Ainda que a contabilidade
elaborada para fins de informação ao mercado, gestão e planejamento
das empresas possa ser tomada pela lei como ponto de partida para
a determinação das bases de cálculo de diversos tributos, de modo
algum subordina a tributação. A contabilidade constitui ferramenta
utilizada também para fins tributários, mas moldada nesta seara
pelos princípios e regras próprios do direito tributário. Sob o espe‑
cífico prisma constitucional, receita bruta pode ser definida como
o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de
elemento novo e positivo, sem reservas ou condições.
VI – O aproveitamento dos créditos de ICMS por ocasião da saída
imune para o exterior não gera receita tributável. Cuida-se de mera
recuperação do ônus econômico advindo do ICMS, assegurada expres‑
samente pelo art. 155, § 2º, X, a, da Constituição Federal.
VII – Adquirida a mercadoria, a empresa exportadora pode creditar‑
-se do ICMS anteriormente pago, mas somente poderá transferir a
terceiros o saldo credor acumulado após a saída da mercadoria com
destino ao exterior (art. 25, § 1º, da LC 87/1996). Porquanto só se viabi‑
liza a cessão do crédito em função da exportação, além de vocacionada
a desonerar as empresas exportadoras do ônus econômico do ICMS,
as verbas respectivas qualificam-se como decorrentes da exportação
para efeito da imunidade do art. 149, § 2º, I, da Constituição Federal.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  637


RE 606.107

VIII – Assenta esta Suprema Corte a tese da inconstitucionalidade


da incidência da contribuição ao PIS e da Cofins não cumulativas sobre
os valores auferidos por empresa exportadora em razão da transfe‑
rência a terceiros de créditos de ICMS.
IX – Ausência de afronta aos arts. 155, § 2º, X; 149, § 2º, I; 150, § 6º; e
195, caput e I, b, da Constituição Federal.
Recurso extraordinário conhecido e não provido, aplicando-se aos
recursos sobrestados, que versem sobre o tema decidido, o art. 543-B,
§ 3º, do CPC.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo
Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a presidência do ministro Joaquim
Barbosa, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
maioria e nos termos do voto da relatora, em conhecer e negar provimento ao
recurso extraordinário, vencido o ministro Dias Toffoli. Votou o presidente, minis‑
tro Joaquim Barbosa.
Brasília, 22 de maio de 2013 — Rosa Weber, relatora.

RELATÓRIO
A sra. ministra Rosa Weber: Trata-se de recurso extraordinário fundamentado
no art. 102, III, a, da Constituição Federal, interposto pela União, por alegada
violação dos arts. 155, § 2º, X; 149, § 2º, I; 150, § 6º; e 195, caput e I, b, da CF/1988,
contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região em que negado provi‑
mento à apelação e à remessa oficial em mandado de segurança impetrado por
Schmidt Irmãos Calçados Ltda., para resguardar suposto direito à desoneração
da incidência do PIS e da Cofins sobre as transferências de créditos de ICMS a
terceiros, decorrentes de exportação.
A Corte de origem asseverou que, “na busca da desoneração das exportações,
o art. 155, § 2º, X, da Constituição Federal, previu a não incidência do ICMS sobre
operações que destinem mercadorias para o exterior, assegurando a manutenção
e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações anteriores”
(fl. 145v.). Nessa linha, concluiu se tratar de regra de imunidade, regulamentada
pelo art. 25, § 1º e § 2º, da Lei Complementar 87/1996, ao garantir “às empresas
exportadoras a possibilidade de transferir os seus créditos excedentes para outros
contribuintes do mesmo Estado” (fl. 146).

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  638


RE 606.107

O entendimento do acórdão recorrido está retratado na seguinte ementa


(fls. 144-9):
Tributário. Mandado de segurança. PIS e Cofins. Base de cálculo. Crédito de ICMS.
Imunidade.
(...)
2. O PIS e a Cofins não incidem sobre os créditos de ICMS obtidos em razão do
benefício fiscal de que trata o art. 25 da LC 87/96, porquanto não constituem recei‑
tas, mas custo recuperável sob a forma de compensação ou restituição.

Os embargos de declaração opostos pela recorrente (fls. 154-7) foram acolhidos


em parte, tão somente para fins de prequestionamento (fls. 162-4).
Nas razões do presente recurso extraordinário (fls. 183-94), defende-se a inte‑
gração – à base de cálculo da Cofins e da contribuição ao PIS não cumulativas –
do valor correspondente às transferências de créditos de ICMS a terceiros pela
empresa contribuinte. Destaca-se que: i) como as operações de transferência
de créditos de ICMS configuram espécie de alienação (cessão de créditos), seu
resultado, por força do art. 195, I, b, da CF, deve ser incluído na base de cálculo
das contribuições PIS/Cofins, nos termos da legislação de regência; ii) é inapli‑
cável ao presente caso a imunidade consagrada no art. 149, § 2º, da Carta Cons‑
titucional, por se restringir às contribuições previstas no seu caput, em que não
incluídas a Cofins e a contribuição ao PIS, previstas respectivamente nos arts. 195
e 239 da CF; e iii) o art. 150, § 6º, da Magna Carta subordina o reconhecimento
de crédito presumido à existência de lei específica e, portanto, ao princípio da
legalidade. E ainda: as exonerações interpretativas afrontam o comando cons‑
titucional (art. 195, caput) de que a atividade (seguridade social) será financiada
por toda a sociedade.
Nessa linha propugna-se a legitimidade da “inclusão na base das contribui‑
ções ao PIS/Cofins das quantias decorrentes da transferência do saldo credor de
ICMS a terceiros” (fl. 194), nos termos dos arts. 155, § 2º, X; 149, § 2º, I; 150, § 6º; e
195, caput e I, b, da Constituição da República.
A recorrida, nas contrarrazões ao recurso extraordinário (fls. 229-50), defende
o não conhecimento e o não provimento do recurso. Pontua que a controvérsia
diz com a “inexigibilidade da Cofins sobre a transferência a terceiros de créditos
de ICMS apurados em operações de exportação” e que, enquanto o TRF4 concluiu
que o PIS e a Cofins não incidem sobre os créditos de ICMS obtidos em razão
do benefício fiscal de que trata o art. 25 da LC 87/1996, a recorrente se limita a
defender a tese contrária forte no princípio da legalidade e na compreensão de
que as exonerações interpretativas afrontam o comando constitucional de que

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  639


RE 606.107

a seguridade social será financiada por toda a sociedade, com mera reprodu‑
ção, quanto ao art. 155, § 2º, X, a, da Lei Maior, das informações prestadas pela
Delegacia da Receita Federal em Novo Hamburgo/RS. Daí reputar incólumes
praticamente todos os fundamentos esgrimidos no acórdão recorrido, a atrair,
deficiente a fundamentação, as Súmulas 283 e 284/STF. Quanto ao mérito recur‑
sal, pugna pelo desprovimento do extraordinário, na esteira da jurisprudência
uníssona no âmbito da 4ª Região, afirmando incólumes os preceitos constitu‑
cionais invocados.
Inadmitido na origem o recurso especial (fls. 252-3), foi negado provimento
pelo STJ ao agravo interposto (fl. 256).
Admitido o recurso extraordinário (fl. 254), vieram os autos a este Tribunal.
A minha antecessora, ministra Ellen Gracie, manifestou-se pela existência
de repercussão geral da matéria (fl. 259), reconhecida pela Corte (fls. 260-64).
O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do subprocurador-geral
da República Rodrigo Janot Monteiro de Barros, oficia no sentido do não provi‑
mento do recurso. Aponta que, “ao definir a base de cálculo das contribuições
para o PIS/Cofins, a Constituição adotou conceitos técnicos contábeis (receita
ou faturamento), o que não autoriza ao legislador federal extrapolá-lo, dentro de
sua competência tributária, com o fim de ampliar a conceituação de institutos
constitucionais, para neles fazer inserir elementos destinados a lhe propiciar
maior arrecadação” (fl. 274). Registra que “a EC n. 20/98, ao ampliar a base de
incidência do PIS/Cofins no art. 195, I, b, da Constituição Federal, para abranger
a receita, não significou deva tributar todo lançamento independentemente
da classificação contábil”, sustentando que em qualquer hipótese a receita e o
faturamento, para serem tributados, devem constituir riquezas reveladoras de
capacidade contributiva, e que os créditos de ICMS recolhidos nas operações
anteriores não compõem o patrimônio da empresa nem constituem receita pró‑
pria ou faturamento, enquanto meras receitas escriturais que reverterão após
aos cofres dos Estados e do Distrito Federal. Ressalta ainda a peculiaridade de
a mercadoria, na espécie, ser destinada ao exterior: “Nesse caso, o art. 155, § 2º,
X, a, da CF, com a redação conferida pela EC n. 42/2003, consagra o princípio
do país de destino que regula, em matéria de tributos indiretos, as operações
internacionais de bens e serviços, com a finalidade de que a tributação ocorra
no país importador, exonerando-se, portanto, as imposições no país de origem,
para que não haja ‘exportação de impostos’.” (fls. 271-7).
É o relatório.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  640


RE 606.107

VOTO
A sra. ministra Rosa Weber (relatora): Trata-se de recurso extraordinário inter‑
posto pela União contra acórdão da Segunda Turma do egrégio Tribunal Regional
Federal da 4ª Região que, em mandado de segurança impetrado contra ato do
delegado da Receita Federal em Novo Hamburgo/RS, no qual concedida a ordem
para assegurar à impetrante o direito de excluir da base de cálculo do PIS e da
Cofins o valor relativo aos créditos de ICMS transferidos a terceiros, desproveu
a apelação e o recurso de ofício sob o fundamento de que as contribuições PIS
e Cofins “não incidem sobre os créditos de ICMS obtidos em razão do benefício
fiscal de que trata o art. 25 da LC 87/96, porquanto não constituem receitas, mas
custo recuperável sob a forma de compensação ou restituição”. Configurada,
portanto, a hipótese do art. 102, III, a, da Constituição da República.
Os dispositivos constitucionais que a União reputa violados – arts. 155, § 2º, X;
149, § 2º, I; 150, § 6º; e 195, caput e I, b – foram objeto de exame durante a discussão
do feito nas instâncias anteriores. Logo, satisfeito o requisito do prequestionamento.
A repercussão geral da matéria, por sua vez, não apenas foi suscitada em preli‑
minar no recurso extraordinário ora trazido a julgamento (item Da Repercussão
Geral, à fl. 184 dos autos), como restou reconhecida por esta Corte no âmbito do
Plenário Virtual, em 1º de julho de 2010.
Presentes os demais requisitos extrínsecos de admissibilidade, o recurso está
apto a ter o seu mérito analisado.
A União busca reverter o acolhimento da pretensão do contribuinte, empresa
exclusivamente exportadora, de não ter de lançar, na base de cálculo da Cofins
e da contribuição ao PIS não cumulativas, o valor obtido na transferência de
créditos de ICMS a terceiros.
Dita pretensão foi acolhida nas instâncias anteriores por mais de um funda‑
mento, a saber: i) pelos limites do conceito de receita; ii) pela imunidade das
receitas decorrentes de exportação frente às contribuições sociais e interventi‑
vas; e iii) pela própria imunidade das operações de exportação perante o ICMS.
Há, efetivamente, diversos enfoques para o deslinde da controvérsia, sendo que
todos convergem para a mesma solução. Nenhum deles, contudo, diz respeito à
concessão de benefícios fiscais, de modo a ensejar a invocação do art. 150, § 6º,
da Carta de 1988, que preceitua, verbis:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado
à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
§ 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de cré‑
dito presumido, anistia ou remissão, relativas a impostos, taxas ou contribuições,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  641


RE 606.107

só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal,


que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente
tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no artigo 155, § 2º, XII, g. (Reda‑
ção dada pela Emenda Constitucional 3, de 17-3-1993.)

Esse dispositivo se aplica à concessão de benefícios fiscais, o que pressupõe a


disposição, pelo ente político, do poder de tributar. Não diz respeito à delimita‑
ção do poder impositivo, fruto da interpretação dos dispositivos que atribuem
competências tributárias e daqueles que estabelecem imunidades.
A interpretação dos conceitos utilizados pela Carta da República para outor‑
gar competências impositivas (entre os quais se insere o conceito de “receita”
constante do seu art. 195, I, b) não está sujeita, por óbvio, à prévia edição de
lei. Tampouco está condicionada à lei a exegese dos dispositivos que estabele‑
cem imunidades tributárias, como aqueles que fundamentaram o acórdão de
origem (arts. 149, § 2º, I, e 155, § 2º, X, a, da CF). Em ambos os casos, trata-se de
interpretação da Lei Maior voltada a desvelar o alcance de regras tipicamente
constitucionais, com absoluta independência da atuação do legislador tributário.
Descabida, portanto, a invocação do art. 150, § 6º, da Constituição da Re­­pública.
Nesse diapasão, cabe destacar que esta Suprema Corte, nas inúmeras opor‑
tunidades em que debatida a questão da hermenêutica constitucional aplicada
ao tema das imunidades, adotou a interpretação teleológica do instituto, a em­­
prestar-lhe abrangência maior, com escopo de assegurar à norma supralegal
máxima efetividade.
A corroborar tal compreensão, mutatis mutandis, reproduzo excertos, a prin‑
cipiar pelo acórdão proferido ao julgamento do RE 217.233, no âmbito da Primeira
Turma desta Casa, no qual o ministro Ilmar Galvão, relator do feito, culmina
por aditar seu voto, a fim de acompanhar a fundamentação trazida à baila pelo
ministro Sepúlveda Pertence, relator para o acórdão:
Ementa: Imunidade tributária do patrimônio das instituições de educação, sem fins
lucrativos (fundação autárquica mantenedora de universidade federal) (CF, art. 150,
VI, c): sua aplicabilidade de modo a pré-excluir a incidência do IPTU sobre imóvel
de propriedade da entidade imune, ainda quando alugado a terceiro, sempre que
a renda dos aluguéis seja aplicada em suas finalidades institucionais.
(...)
O sr. ministro Sepúlveda Pertence:
(...)
De resto, ainda mantenho reservas – que deixei entrevistas na ADI 1.802, de 27-8-
1998 – quanto à validade de limitações materiais impostas por lei – ainda que lei
complementar – às regras constitucionais de imunidade tributária.

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RE 606.107

Não obstante, estou em que o entendimento do acórdão – conforme ao do pre‑


cedente anterior à Constituição – é o que se afina melhor à linha da jurisprudên-
cia do Tribunal nos últimos tempos, decisivamente inclinada à interpretação
teleológica das normas de imunidade tributária, de modo a maximizar-lhes o
potencial de efetividade, como garantia ou estímulo à concretização dos valores
constitucionais que inspiram as limitações ao poder de tributar.
São exemplos marcantes dessa tendência a aplicação liberal que a Casa tem
dado à imunidade de livros, jornais e periódicos (v.g., RE 141.441, Pleno, 4-11-1987,
Sanches, RTJ 126/216; ERE 104.563, Pleno, 9-6-1993, Néri, RTJ 151/235), assim como à
do papel destinado à sua impressão (RE 174.476, Pleno, 26-9-1996, Marco Aurélio;
RE 203.859, Pleno, 17-12-1996, Corrêa).
Também expressiva dessa mesma orientação é a decisão que alçou, não apenas
a imunidade recíproca dos entes estatais, mas também as imunidades tributárias
do art. 150, VI, b e c, à dignidade de limitações ao poder de reforma da Constituição,
em razão da relevância dos direitos e liberdades fundamentais a cuja proteção
estão voltadas.
Na ocasião, em meu voto – o primeiro a ampliar no ponto a procedência da
arguição – ADI 939, 15-12-1993, Sanches, RTJ 151/756, 821 –, acentuei:
(...)
Parece clara a sintonia desses julgados com extratos doutrinários que vale res‑
saltar, porque reduzem à dimensão marcada pela teleologia do instituto da imuni‑
dade tributária a norma do art. 150, § 2º, CF, onde o recurso pretende alicerçar-se.
“A norma constitucional” – quando se refere às “rendas relacionadas a finalidades
essenciais da entidade” – observa Luciano Amaro (In: GANDRA, Ives (Coord.). Imu-
nidades tributárias. CEU/RT, 1998. p. 143/51) – “atém-se à destinação das rendas
da entidade, e não à natureza destas” (...): “independentemente da natureza da
renda, sendo esta destinada ao atendimento da finalidade essencial da entidade,
a imunidade deve ser reconhecida”.
“Seria um dislate” – explica – “supor que ‘rendas relacionadas com as finalidades
essenciais’ pudesse significar, restritivamente, rendas produzidas pelo objeto
social da entidade. Frequentemente, o entendimento do objeto social é motivo
para despesas e não fonte de recursos. Fosse aquele o sentido, qualquer fonte de
custeio da entidade que não derivasse dos próprios usuários de seus serviços ficaria
fora do alcance da imunidade”.
“Seria atribuir incoerência ao Texto Constitucional” – acentua na mesma linha
o douto Aires Bernadino (GANDRA, Ives (Coord.), op. cit., p. 151, 171) – “imaginar
que ele tenha criado expressamente uma imunidade (a das rendas das entidades
de assistência social) impossível de ser aplicada. Se for inviável à manutenção da
imunidade o fato de virem a ser prestados serviços (ou obtidas rendas, de qualquer
natureza), então o preceito imunitório é vazio, inaplicável, destituído de valor
e de razão. A isso levará interpretação não teleológica e que despreze exegese
sistemática do § 4º do art. 150”.
O que assim se afirma – sem réplica consistente – da imunidade aos impostos

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RE 606.107

incidentes ou calculados sobre as rendas advindas da exploração do patrimônio


das instituições consideradas, igualmente é de asserir, por óbvio, dos que incidem
sobre o patrimônio gerador dessas mesmas rendas.
Estão acordes – afora o referido precedente da Casa (RE 97.708) – autores de
tomo que enfrentaram o problema específico.
(...)
Supondo desnecessário repisar outros argumentos e invocar mais autoridades,
entendo correta a decisão recorrida.
(...)
Peço vênia ao eminente relator para conhecer do recurso extraordinário e lhe
dar provimento: é o meu voto.
Voto
(Aditamento)
O sr. ministro Ilmar Galvão (relator): Senhor Presidente, em alguns dos prece‑
dentes trazidos à colação pelo eminente ministro Sepúlveda Pertence, já havia
votado em sentido contrário ao entendimento manifestado neste caso, plenamente
convencido de seu desacerto, convicção que restou reforçada pelo excelente voto
que Sua Excelência acaba de proferir.
Mantenho, entretanto, aberta a divergência, tão somente para que não venhamos
a ser privados do acórdão que ao autor do voto vitorioso caberá elaborar. [RE 217.233,
rel. min. Ilmar Galvão, rel. p/ o ac. min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, julgado
em 14-8-2001, DJ de 14-9-2001, p. 62, Ement Vol-02043-03 PP-00612 – Destaquei.]
Por seu turno, trazendo a lume diversos julgados desta Casa, registra o minis‑
tro Gilmar Mendes, na qualidade de relator do RE 474.132, julgado por este Tri‑
bunal Pleno, que “o Tribunal sempre adotou uma interpretação teleológica do
enunciado normativo” concernente a imunidades constitucionais, bem como,
em tal assentada, encampou a Corte posição de que “possível extrair da Consti-
tuição Federal de 1988 clara orientação normativa no sentido da desoneração
da atividade exportadora, com a finalidade de aumentar a competitividade
dos produtos brasileiros no mercado internacional”, verbis:
Ementa: Recurso extraordinário. 2. Contribuições sociais. Contribuição Social
sobre o Lucro Líquido (CSLL) e Contribuição Provisória sobre Movimentação ou
Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF).
3. Imunidade. Receitas decorrentes de exportação. Abrangência. 4. A imunidade
prevista no art. 149, § 2º, I, da Constituição, introduzida pela Emenda Constitu‑
cional 33/2001, não alcança a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL),
haja vista a distinção ontológica entre os conceitos de lucro e receita. 6. Vencida
a tese segundo a qual a interpretação teleológica da mencionada regra de imu‑
nidade conduziria à exclusão do lucro decorrente das receitas de exportação da
hipótese de incidência da CSLL, pois o conceito de lucro pressuporia o de receita,

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RE 606.107

e a finalidade do referido dispositivo constitucional seria a desoneração ampla


das exportações, com o escopo de conferir efetividade ao princípio da garantia
do desenvolvimento nacional (art. 3º, I, da Constituição). 7. A norma de exone‑
ração tributária prevista no art. 149, § 2º, I, da Constituição também não alcança
a Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de
Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF), pois o referido tributo não
se vincula diretamente à operação de exportação. A exação não incide sobre o
resultado imediato da operação, mas sobre operações financeiras posteriormente
realizadas. 8. Recurso extraordinário a que se nega provimento.
(...)
Não obstante o fato de que, em alguns julgados, este Supremo Tribunal Federal
tenha adotado uma interpretação ampliativa das imunidades, de modo a abar‑
car fatos, situações ou objetos a priori não abrangidos pela expressão literal do
enunciado normativo, e, em outros, tenha excluído da regra desonerativa algumas
hipóteses fáticas, por intermédio de uma interpretação que se poderia denominar
de restritiva, é indubitável que, em todas essas decisões, a Corte sempre se ateve
às finalidades constitucionais às quais estão vinculadas as mencionadas regras
de imunidade tributária.
Tanto para ampliar o alcance da norma quanto para restringi-lo, o Tribunal
sempre adotou uma interpretação teleológica do enunciado normativo.
No sentido da interpretação ampliativa (ampliação teleológica), destacam-se os
seguintes julgados: RE 221.239/SP, rel. min. Ellen Gracie, DJ de 6-8-2004, em que esta
Corte entendeu que a imunidade prevista no art. 150, VI, d, da CF/1988 também abran‑
geria os álbuns de figurinha; RE 221.395, rel. min. Marco Aurélio, DJ de 21-5-2000, no
qual foi declarado que os imóveis utilizados como escritório e residência de mem‑
bros de instituições de educação e de assistência social estariam inseridos na regra
desonerativa do art. 150, VI, c, § 4º, da CF/1988; RE 144.900, rel. min. Ilmar Galvão, DJ
de 26-9-1997, em que se definiu que a mencionada regra de imunidade também alcan‑
çaria as rendas obtidas pelas instituições de assistência social mediante a cobrança
de estacionamento de veículos em área interna da entidade; RE 116.188/SP, rel. min.
Sydney Sanches, DJ de 16-3-1990, no qual se entendeu que a prestação de serviços de
diversão pública por entidades de assistência social gozaria de imunidade tributária.
(...)
Isso porque as regras de imunidade tributária – embora imediatamente pres‑
critivas, impondo aos entes federativos um dever de abstenção legislativa – têm
por escopo a consecução de determinadas finalidades ou a preservação de
certos valores consagrados no texto constitucional. E, somente à luz dessas
finalidades e valores, elas devem ser interpretadas.
A regra de imunidade não se afigura apenas como simples óbice à imposição de
um gravame tributário, mas como a exclusão de uma determinada atividade,
situação ou objeto do âmbito da tributação, com vistas ao atendimento de um
escopo constitucional.
Nesse sentido, o magistério de José Souto Maior Borges:

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  645


RE 606.107

“Sistematicamente através da imunidade resguardam-se princípios, ideias‑


-força ou postulados essenciais ao regime político. Consequentemente, pode-se
afirmar que as imunidades representam muito mais um problema do direito
constitucional do que um problema de direito tributário. (...)
Analisada sob o prisma do fim, objetivo ou escopo, a imunidade visa a assegu‑
rar certos princípios fundamentais ao regime, a incolumidade dos valores éticos
e culturais consagrados pelo ordenamento constitucional positivo e que se
pretendem manter livres das interferências ou perturbações da tributação. (...)
A imunidade, diversamente do que ocorre com a isenção, não se caracteriza
como regra excepcional frente ao princípio da generalidade do tributo.” (BORGES,
José Souto Maior. Isenções tributárias. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias,
1980. p. 184-185.)
Por conseguinte, na definição do conteúdo semântico de um enunciado norma‑
tivo que veicule uma imunidade tributária, deve-se perquirir sobre a finalidade
constitucional que deu ensejo à sua instituição. Somente por intermédio desse
esforço interpretativo, é possível definir se determinado fato está ou não excluído
da competência impositiva de determinado ente.
Revela-se, pois, impróprio afirmar-se genericamente que as imunidades sempre
deverão ser interpretadas de forma ampla ou restrita.
Apenas em relação às normas constitucionais que atribuem competência tribu‑
tária e às normas legais que instituem isenções pode-se afirmar peremptoriamente
que a interpretação constitucionalmente adequada é a restritiva ou a literal. As pri‑
meiras, por constituírem restrições à liberdade e à propriedade do cidadão. E as
segundas, por se caracterizarem como regras excepcionais frente ao princípio da
generalidade do tributo (BORGES, José Souto Maior. op. cit. p. 185).
Assim, a admissão de uma interpretação ampla das normas de imunidade depen‑
derá do contexto normativo e das circunstâncias do caso. Também devem ser pon‑
deradas as finalidades e os princípios que a regra desonerativa busca resguardar
com outros princípios e interesses também consagrados no texto constitucional.
A adoção, por esta Corte, de uma interpretação teleológica das normas de imuni‑
dade tributária se extrai facilmente da leitura das ementas dos seguintes julgados:
“Constitucional. Tributário. Imunidade. Art. 150, VI, d, da CF/1988. “Álbum de figuri-
nhas”. Admissibilidade. 1. A imunidade tributária sobre livros, jornais, periódicos
e o papel destinado à sua impressão tem por escopo evitar embaraços ao exercí‑
cio da liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação,
bem como facilitar o acesso da população à cultura, à informação e à educação.
2. O constituinte, ao instituir esta benesse, não fez ressalvas quanto ao valor
artístico ou didático, à relevância das informações divulgadas ou à qualidade
cultural de uma publicação. 3. Não cabe ao aplicador da norma constitucional
em tela afastar este benefício fiscal instituído para proteger direito tão impor‑
tante ao exercício da democracia, por força de um juízo subjetivo acerca da qua‑
lidade cultural ou do valor pedagógico de uma publicação destinada ao público

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RE 606.107

infanto-juvenil. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (RE 221.239/SP,


rel. min. Ellen Gracie, DJ de 6-8-2004.)
“Imunidade tributária. Livro. Constituição, art. 19, III, d. Em se tratando de norma
constitucional relativa às imunidades tributárias genéricas, admite-se a interpreta-
ção ampla, de modo a transparecerem os princípios e postulados nela consagrados.
O livro, como objeto da imunidade tributária, não é apenas o produto acabado,
mas o conjunto de serviços que o realiza, desde a redação, até a revisão de obra,
sem restrição dos valores que o formam e que a Constituição protege.” (RE 102.141/
RJ, rel. min. Carlos Madeira, DJ de 29-11-1985.)
No tocante ao estímulo às exportações, entendo razoável a sua admissão como
diretriz decorrente do art. 3º, I, da Constituição, que estabelece como um dos obje‑
tivos da República Federativa do Brasil a garantia do desenvolvimento nacional.
É possível extrair da Constituição Federal de 1988 clara orientação norma-
tiva no sentido da desoneração da atividade exportadora, com a finalidade de
aumentar a competitividade dos produtos brasileiros no mercado internacio-
nal. Nesse particular, cabe observar, sobretudo, as regras contidas nos arts. 153,
§ 2º, III, e 155, § 2º, X, da Constituição, que impedem a incidência do IPI e do ICMS
sobre os produtos industrializados destinados ao exterior. [RE 474.132, rel. min.
Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 12-8-2010, DJE 231, divulgado em 30-11-
2010, publicado em 1º-12-2010, Ement Vol-02442-01 PP-00026 – Destaquei.]

Igualmente representativo da jurisprudência consagrada nesta Suprema Corte,


no que diz com a técnica de interpretação das imunidades constitucionais, o
voto do ministro Celso de Mello, na relatoria do agravo regimental do RE 327.414,
cujos fundamentos transcrevo:
Com efeito, como já enfatizado na decisão ora agravada, a controvérsia consti-
tucional suscitada na presente causa põe em evidência a discussão em torno da
abrangência normativa da imunidade tributária a que se refere o art. 150, VI, d,
da Constituição da República.
Devo registrar, neste ponto, conforme já destaquei no ato decisório ora impug‑
nado, que dissinto, respeitosamente, da orientação majoritária que tem sido
observada, no tema em análise, pela jurisprudência desta Suprema Corte.
É que, embora vencido no julgamento do RE 203.859/SP, ocasião em que o
Supremo Tribunal Federal consagrou entendimento restritivo a propósito da
matéria em causa, sustento – com fundamento em autorizada lição doutrinária
(MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário, p. 248, item n. 3.12, 20. ed.,
2002, Malheiros; CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributá-
rio, p. 681, item n. 4.4.3, 17. ed., 2002, Malheiros; COSTA, Regina Helena. Imunidades
tributárias, p. 192, item n. 2.4.5, 2001, Malheiros, v.g.) – a possibilidade de inter-
pretação extensiva do postulado da imunidade tributária, na hipótese prevista
no art. 150, VI, d, da Constituição da República, considerando, para esse efeito, a
própria teleologia da cláusula que impõe, ao Estado, essa específica limitação
constitucional ao poder de tributar.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  647


RE 606.107

É preciso ter presente, na análise do tema em exame, que a garantia da imuni-


dade estabelecida pela Constituição republicana brasileira, em favor dos livros,
dos jornais, dos periódicos e do papel destinado à sua impressão (CF, art. 150, VI,
d), reveste-se de significativa importância de ordem político-jurídica, destinada
a preservar e a assegurar o próprio exercício das liberdades de manifestação do
pensamento e de informação jornalística, valores em função dos quais essa prer‑
rogativa de índole constitucional foi conferida, instituída e assegurada.
(...)
O instituto da imunidade tributária não constitui um fim em si mesmo. Antes,
representa um poderoso fator de contenção do arbítrio do Estado, na medida em
que esse postulado fundamental, ao inibir, constitucionalmente, o poder público
no exercício de sua competência impositiva, impedindo-lhe a prática de eventuais
excessos, prestigia, favorece e tutela o espaço em que florescem aquelas liberdades
públicas. [RE 327.414 AgR, rel. min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 7-3-
2006, DJE 27, divulgado em 11-2-2010, publicado em 12-2-2010, Ement Vol-02389-03
PP-00635 RTJ Vol-00216 – PP-00513 – Destaques no original.]

Ressalto, igualmente, os fundamentos do voto-vista proferido pelo ministro


Moreira Alves, ao exame do agravo regimental do RE 205.355, na parte em que
analisa a interpretação constitucional das imunidades tributárias:
1. Pedi vista destes autos em virtude de diversos aspectos relevantes que têm sido
objeto da controvérsia que grassa na doutrina e na jurisprudência sobre o tema
nele versado: o alcance do § 3º do art. 155 da Constituição Federal, no caso em sua
redação originária, no que diz respeito a saber se a vedação nele contida abrange,
ou não, a contribuição representada pelo Finsocial.
(...)
Para tomar-se partido na controvérsia a que aludi de início, é mister que se enfren‑
tem três questões:
a) esse dispositivo trata de imunidade?
b) que alcance tem o termo “tributo” aí empregado?
c) qual o sentido da frase “nenhum outro tributo incidirá sobre operações rela‑
tivas a energia elétrica, combustíveis líquidos e gasosos, lubrificantes e minerais
do País” que nele se encontra?
Passo a examinar cada uma dessas questões.
(...)
5. Mais complexa é a terceira questão: qual o sentido, no § 3º do art. 155, da frase
“nenhum outro tributo incidirá sobre operações relativas a energia elétrica, com‑
bustíveis líquidos e gasosos, lubrificantes e minerais do País”?
Tenho como correta a crítica que a professora Misabel Dersi faz, na atualização do
livro de Aliomar Baleeiro (Direito tributário brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1999. p. 530), à interpretação estritamente apegada à letra da Constituição e que,
em resumo, é a que se segue. Se interpretado literalmente o texto constitucional em

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RE 606.107

exame, essa interpretação restringiria a imunidade em causa aos tributos a que a


Carta Magna expressamente aludisse a “operações” como sendo o núcleo material
possível de sua hipótese de incidência, o que alcançaria apenas dois: o ICMS e o
IOF. Sucede, porém, que, se assim fosse, a imunidade não teria razão de ser, pois
dela o ICMS já está excluído, e, de outra parte, o IOF, por adstringir-se a operações
de crédito, câmbio e seguros ou títulos e valores mobiliários, não estaria em causa.
Ademais, não haveria também razão para que os impostos de importação e
de exportação estivessem excluídos dessa imunidade, certo como é que eles,
tecnicamente, não incidem sobre operações, mas, sim, respectivamente, sobre
os fatos da entrada de produtos estrangeiros no território nacional e da saída
de produtos nacionais ou nacionalizados do território brasileiro.
De outra parte, tratando-se, como se trata, de imunidade e não de isenção, não se
aplica o disposto no art. 111, II, do Código Tributário Nacional, que impõe a inter‑
pretação literal da legislação tributária que disponha sobre outorga de isenção.
Para a exegese da imunidade, como instituto constitucional que é, podem ser
utilizados todos os métodos empregados na interpretação dos textos constitu-
cionais, e, assim, sem se deixar de lado a exegese literal ou gramatical porque
a interpretação não deve ultrapassar os limites do conteúdo significativo das
palavras da norma, há de se usar necessariamente da interpretação lógica,
onde, na hermenêutica constitucional, avulta o valor do elemento teleológico.
Ora, é manifesto que a finalidade a que visa a Constituição com essa imuni-
dade é a de evitar que haja excessiva oneração fiscal desses bens – energia elé‑
trica, combustíveis líquidos e gasosos, lubrificantes e minerais – que são de vital
importância para a economia nacional, e que, assim, teriam seus preços de venda
demasiadamente aumentados. Isso decorre até do exame da base de cálculo dos
impostos excepcionados pelo § 3º do art. 155 da Constituição. Com efeito, em se
tratando do ICMS, é ela o valor da operação, ou, na falta dele, o preço corrente
da mercadoria, ou sua similar, no mercado atacadista da praça do remetente; no
imposto de importação, quando a alíquota é ad valorem, o preço normal que o
produto alcançaria em venda em condições de livre concorrência, para entrega
no porto ou lugar de entrada do produto no País; e no imposto de exportação,
igualmente quando a alíquota é ad valorem, o preço normal que o produto, ou
seu similar, alcançaria, ao tempo da exportação, em uma venda em condições de
livre concorrência. O mesmo, aliás, ocorria com o outro imposto que, na redação
originária da Constituição de 1988, estava excluído dessa imunidade, e que era o
imposto municipal de vendas a varejo de combustíveis líquidos e gasosos, exceto
óleo diesel, o qual foi extinto pela Emenda Constitucional 3/1993.
Essa finalidade eminentemente econômica, que é a razão de ser da imunidade
em causa, será atingida, na extensão necessária para que ela seja efetivamente
alcançada, com a interpretação, estritamente técnica, que restrinja o sentido da
expressão utilizada pela Constituição – “incidirá sobre as operações relativas a
esses bens” – a tributos que tenham como fato gerador qualquer das operações
negociais ou não, relativas a esses bens? Não me parece que assim seja. Basta

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  649


RE 606.107

atentar para a circunstância de que o exame de quais seriam os tributos que, por
esse critério, seriam alcançados por essa imunidade, para se ver que essa exegese
deve ser afastada por tornar a norma constitucional quase inócua. Com efeito, quais
seriam eles? Afastados os já excepcionados por ela, os demais impostos municipais
e estaduais são apenas os previstos na Constituição e seus fatos geradores não são
as operações pertinentes aos bens aludidos no § 3º do art. 153, o mesmo ocorrendo
com os federais nela previstos e com as contribuições de melhoria e as demais
contribuições, inclusive as sociais, admitidas como tributos pela Carta Magna.
Restariam os impostos federais, as contribuições a que alude o art. 149 da Consti‑
tuição e os empréstimos compulsórios que viessem a ser instituídos pela União e
as taxas. Mas também, com relação a esses tributos, a aplicação dessa imunidade
dificilmente poderia ocorrer, tendo em vista que, quanto aos impostos, estão eles
sujeitos às restrições do art. 154, I (vedação à cumulatividade e à utilização do fato
gerador ou da base de cálculo próprios dos previstos na Carta Magna), e os impos‑
tos excepcionados pelo § 3º do art. 155 abarcam a quase totalidade de hipóteses
de operações (mesmo quando usada essa expressão em sentido impróprio para
abarcar a importação e a exportação) que podem ser fatos geradores de tributos
dessa natureza, o mesmo se dando, e ainda com mais intensidade, com as taxas
por incidirem elas necessária e diretamente sobre a atuação do Estado com rela‑
ção ao contribuinte, quer por prestação de serviço público específico e divisível,
quer por exercício do poder de polícia, e também com as contribuições sociais, de
intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou
econômicas, por praticamente não poderem ter como fato gerador, em virtude de
sua natureza, cada operação relativa a bens. Portanto, livre dessas peias ficariam,
apenas, os empréstimos compulsórios que viessem a ser instituídos e que são excep‑
cionais. Tal imunidade teria sido criada para alcançar apenas esse magérrimo saldo?
Incidência nesse texto, para se lhe dar sentido realmente útil, não é apenas a deter‑
minante do fato gerador do tributo, mas a que, de modo imediato ou mediato, se
relacione exclusivamente às operações referentes aos bens em causa. Para finalidade
exclusivamente econômica de imunidade concedida pela vital importância desses
bens para a economia do País, é de dar-se aos termos que a instituíram significado
que, embora não estritamente técnico, lhes permita alcançar plenamente esse fim.
Por isso, não tenho dúvida em interpretar esse texto constitucional como abar‑
cando não só a incidência de tributo que incida imediatamente sobre as operações
relativas aos bens a que ele se refere, mas também aquele que incida mediatamente
sobre elas, como o que tenha como fato gerador a receita exclusivamente decor‑
rente dessas operações, cuja base de cálculo, por ser o valor dessa receita, venha
a ser fator de aumento do preço de venda desses bens.
Aliás, em matéria de receita, é preciso fazer-se distinção que se me afigura indis‑
pensável, principalmente porque, no caso sob exame, se está no terreno da inter‑
pretação, que é constitucional, do alcance de imunidade com finalidade exclusiva‑
mente econômica, e não no campo de igualdade de fatos geradores para se dizer
que o fato gerador “operação” não se confunde com o fato gerador “produto dessa

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RE 606.107

operação”. Há receita que decorre de atos econômicos ou jurídicos de naturezas


diferentes e que é fato gerador de tributos diversos dos que têm como fato gerador
esses atos singularmente considerados. Mas existe também receita que resulta
simplesmente da multiplicidade da prática de atos econômicos ou jurídicos da
mesma espécie e que é fato gerador de tributo a par do que tem como fato gera‑
dor cada um desses atos. Essa hipótese é a que sucede com relação a tributo que
incida sobre operação relativa aos bens em causa e a tributo (como sucede com
o Finsocial) que incida sobre a receita bruta, apurada no final de determinado
período, da reiteração da prática exclusiva dessa mesma operação, em que a base
de cálculo do primeiro – e a base de cálculo é o aspecto econômico do tributo por
ser a grandeza mensurável em que ele se assenta – seja o preço da venda e a do
segundo seja o somatório desses preços em certo espaço de tempo, que a tanto
corresponde economicamente a receita bruta exclusivamente resultante desses
preços. Em ambos os casos, há substancialmente a incidência desses tributos
sobre essas operações para o efeito econômico a que a imunidade em questão
visa evitar, pois é evidente que ambos acarretam a oneração do preço de venda,
uma vez que também o segundo desses tributos permite que a cada operação
realizada se saiba a parcela correspondente do tributo que, com as parcelas das
outras operações da mesma natureza, virá, ao final do período, constituir a receita
bruta dessas operações. Com todas as vênias, não me parece ter sentido que,
no tocante a imunidade que tem por fim evitar que se onere o preço de venda
de bens vitais à economia do País, se restrinja o seu alcance aos tributos que
aumentam o preço de venda de cada uma dessas operações, e se exclua delas
os que, por só serem devidos no fim de determinado período pela pluralidade
da prática das mesmas operações, ocasionem esse aumento. [RE 205.355 AgR,
rel. min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, julgado em 1º-7-1999, DJ de 8-11-2002, p. 21,
Ement Vol-02090-04 PP-00636 – Destaquei.]

E, ao lado da uníssona compreensão de que, às imunidades constitucionais,


aplicável a sistemática teleológica, firma-se nesta Casa jurisprudência pela
adoção de modelo interpretativo que, ao perquirir sobre a abrangência do ins‑
tituto, maximize a eficácia da norma constitucional. Nesse sentido, colho os
seguintes precedentes:
Decisão: Imunidade – Alcance – Art. 150, VI, d, da Constituição Federal – Distribuição
de livros – Imposto sobre serviços – Precedentes – Negativa de seguimento. 1. Discute‑
-se, na espécie, se a vedação constitucional ao poder de tributar relativa a “livros,
jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão” – art. 150, VI, d – também
se estenderia à distribuição de tais bens, ou se a imunidade estaria limitada à pro‑
dução. 2. Cumpre emprestar à Constituição Federal a máxima eficácia. Confira-
-se a abrangência da imunidade na ementa do acórdão prolatado quando do
julgamento do RE 174.476-6/SP, ocorrido em 26 de setembro de 1996, em sessão
plenária, do qual fui designado redator: Imunidade – Impostos – Livros – Jornais

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e periódicos – Art. 150, VI, d, da Constituição Federal. A razão de ser da imunidade


prevista no texto constitucional, e nada surge sem uma causa, uma razão suficiente,
uma necessidade, está no interesse da sociedade em ver afastados procedimentos,
ainda que normatizados, capazes de inibir a produção material e intelectual de
livros, jornais e periódicos. O benefício constitucional alcança não só o papel uti‑
lizado diretamente na confecção dos bens referidos, como também insumos nela
consumidos, como são os filmes e papéis fotográficos. O preceito constitucional
há de merecer interpretação teleológica. A parte final da norma, ao conter refe‑
rência a livros, jornais e periódicos, deve ser interpretada de forma integrativa, e
não literal, de tal modo que não se pode dizer que somente se configura hipótese
de imunidade quando em jogo a confecção dos bens, e não a distribuição destes.
Essa óptica redundaria no esvaziamento da regra constitucional que disciplina
o tema da maneira mais ampla possível. Nunca é demais relembrar a importância
de todos os esforços, por menores ou insignificantes que pareçam ser, voltarem‑
-se à preservação da liberdade e, como corolários, da liberdade de expressão e
do acesso à informação. A distribuição dos livros, jornais e periódicos também
está abrangida pela imunidade tributária, sob pena de se desconhecer o objetivo
precípuo da norma constitucional, que, incansavelmente repito, tem de ser o de
verdadeiro estímulo à veiculação de ideias e notícias, tal como inerente ao pró‑
prio Estado Democrático de Direito. Nessa toada, registro precedentes anteriores
à Carta de 1988, em que a Corte, interpretando texto constitucional de outrora –
art. 19, III, d, da Emenda Constitucional 1/1969 –, cujo conteúdo é de todo seme‑
lhante ao atual, consignou a necessidade de se ampliar a compreensão do instituto
da imunidade. (...) O Tribunal de origem, por haver enfatizado a necessidade de
ampla proteção constitucional à educação, à cultura e à liberdade de comunicação
e de pensamento, não divergiu da melhor interpretação conferida à Carta Maior
pelo Supremo. 3. Nego seguimento ao extraordinário. [RE 453.670, rel. min. Marco
Aurélio, julgado em 27-6-2005, publicado no DJ de 10-8-2005, p. 110 – Destaquei.]
A linha da jurisprudência desta Corte referente à imunidade tributária está “decisiva‑
mente inclinada à interpretação teleológica das normas de imunidade tributária, de
modo a maximizar o potencial de efetividade, como garantia ou estímulo à concreti‑
zação dos valores constitucionais que inspiram limitações ao poder de tributar”. Esta
diretriz foi assentada no julgamento pelo Plenário do RE 237.718, rel. min. Sepúlveda
Pertence, por maioria, DJ de 6-9-2001, e consolida posicionamento anterior da Segunda
Turma no RE 221.395, rel. min. Marco Aurélio, unânime, DJ de 12-5-2000, que estendeu
esta benesse aos imóveis de entidades religiosas destinados a escritórios, depósito
de material e moradia de seus membros. [RE 251.772, rel. min. Ellen Gracie, Segunda
Turma, julgado em 24-6-2003, DJ de 29-8-2003, p. 37, Ement Vol-02121-17 PP-03487.]
Decisão: (...) A partir da moldura fática delineada no v. acórdão, incontroverso que
a recorrente é entidade de educação que possui também caráter assistencial. Ponto
incontroverso nos autos, também, é que o imóvel está vago, sem edificação, resul‑
tando, para o acórdão recorrido, o seu não enquadramento na definição legal. (fl. 254).

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Todavia, essa situação fática, por si só, não é suficiente para afastar a imunidade,
na esteira da jurisprudência desta Corte, que tem se inclinado à interpretação
teleológica das normas de imunidade tributária, de modo a maximizar-lhes o
potencial de efetividade, como garantia ou estímulo à concretização dos valores
constitucionais que inspiram limitações ao poder de tributar. [AI 674.339, rel.
min. Dias Toffoli, julgado em 27-2-2013, publicado no DJE 43, divulgado em 5-3-2013,
publicado em 6-3-2013.]

Noutro turno, a apropriação de créditos de ICMS na aquisição de mercado‑


rias tem suporte na técnica da não cumulatividade, imposta para tal tributo
pelo art. 155, § 2º, I, da Lei Maior, a fim de evitar que a sua incidência em cascata
onere demasiadamente a atividade econômica e gere distorções concorrenciais.
Relembro a dicção do preceito constitucional: “Art. 155. Compete aos Estados e ao
Distrito Federal instituir impostos sobre: (...) § 2º O imposto previsto no inciso II
atenderá ao seguinte: I – será não cumulativo, compensando-se o que for devido
em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços
com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo
Distrito Federal”.
Nos termos do art. 155, § 2º, II, b, da Carta Constitucional, a não incidência
e a isenção nas operações de saída implicam a anulação do crédito relativo às
operações anteriores. Mas, para as exportações – o que aqui sobreleva –, o trata‑
mento é distinto. O art. 155, § 2º, X, a, da CF, a um só tempo, imuniza as operações
de exportação e assegura “a manutenção e o aproveitamento do montante do
imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”.
A finalidade desse dispositivo não é evitar a incidência cumulativa do ICMS,
mas incentivar as exportações, desonerando, por completo, as mercadorias
nacionais do seu ônus econômico e permitindo, dessa forma, que as empresas
brasileiras exportem produtos, e não tributos.
Nessa linha, sujeitar à incidência do PIS e da Cofins os valores auferidos pela
transferência dos créditos de ICMS a terceiros significaria vilipendiar a letra e o
escopo da imunidade estampada no art. 155, § 2º, X, a, da Carta Constitucional.
Violar-se-ia a sua letra porque se estaria obstaculizando o integral “aproveita‑
mento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”,
mediante a expropriação parcial dos créditos, na parcela correspondente à carga
tributária advinda da incidência das contribuições citadas. Ofender-se-ia o seu
escopo porque se estaria chancelando a exportação de tributos, nomeadamente
do PIS e da Cofins incidentes sobre os créditos de ICMS cedidos a terceiros,
cujo ônus econômico fatalmente teria de ser acrescido ao valor das mercado‑
rias oferecidas à venda pelas empresas exportadoras, abalando-se, assim, a sua

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competitividade no âmbito internacional e lesando-se, por consequência, a fina‑


lidade última do art. 155, § 2º, X, a, da Carta Constitucional: garantir o desenvol‑
vimento nacional e erradicar a pobreza, objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, nos termos do art. 3º, II e III, da Lei Fundamental.
Como bem assinalou a juíza federal Vânia Hack de Almeida no voto condutor
do acórdão recorrido, a inclusão do valor do ICMS na base de cálculo das con‑
tribuições “retiraria da imunidade seu pleno alcance (...) estar-se-ia dando com
uma mão e retirando com a outra” (fl. 147v.).
Inviável, portanto, a incidência da Cofins e do PIS sobre os créditos de ICMS
cedidos a terceiros, sob pena de frontal violação do art. 155, § 2º, X, a, da Cons‑
tituição de 1988.
Com a EC 20/1998, que deu nova redação ao art. 195, I, da Lei Maior, passou
a ser possível a instituição de contribuição para o financiamento da seguridade
social alternativamente sobre o faturamento ou a receita (alínea b), conceito
este mais largo, é verdade, mas nem por isso uma carta em branco nas mãos do
legislador ou do exegeta. Trata-se de um conceito constitucional, cujo conteúdo,
em que pese abrangente, é delimitado, específico e vinculante, impondo-se ao
legislador e à administração tributária. Cabe ao intérprete da Constituição Fede‑
ral defini-lo, à luz dos usos linguísticos correntes, dos postulados e dos princípios
constitucionais tributários, dentre os quais sobressai o princípio da capacidade
contributiva (art. 145, § 1º, da CF).
Pois bem, o conceito constitucional de receita, acolhido pelo art. 195, I, b, da
CF, não se confunde com o conceito contábil. Isso, aliás, está claramente expresso
nas Leis 10.637/2002 (art. 1º) e 10.833/2003 (art. 1º), que determinam a incidên‑
cia da contribuição ao PIS/Pasep e da Cofins não cumulativas sobre o total das
receitas, “independentemente de sua denominação ou classificação contábil”.
Não há, assim, que buscar equivalência absoluta entre os conceitos contábil
e tributário.
Ainda que a contabilidade elaborada para fins de informação ao mercado,
gestão e planejamento das empresas possa ser tomada pela lei como ponto de
partida para a determinação das bases de cálculo de diversos tributos, de modo
algum subordina a tributação. Trata-se, apenas, de um ponto de partida. Basta
ver os ajustes (adições, deduções e compensações) determinados pela legis‑
lação tributária. A contabilidade constitui ferramenta utilizada também para
fins tributários, mas moldada nesta seara pelos princípios e regras próprios do
direito tributário.
Conforme adverte José Antonio Minatel: “há equívoco nessa tentativa genera‑
lizada de tomar o registro contábil como o elemento definidor da natureza dos

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eventos registrados. O conteúdo dos fatos revela a natureza pela qual espera-se
sejam retratados, não o contrário”.1
Quanto ao conteúdo específico do conceito constitucional, a receita bruta pode
ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição
de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições, na esteira da clássica
definição que Aliomar Baleeiro cunhou acerca do conceito de receita pública:
Receita pública é a entrada que, integrando-se no patrimônio público sem quais‑
quer reservas, condições ou correspondências no passivo, vem acrescer o seu vulto,
como elemento novo e positivo.2

Ricardo Mariz de Oliveira especifica ser a receita “algo novo, que se incorpora
a um determinado patrimônio”, constituindo um “dado positivo para a mutação
patrimonial”.3
O aproveitamento dos créditos de ICMS por ocasião da saída imune para o
exterior não gera, de modo algum, receita tributável. Cuida-se de mera recupe‑
ração do ônus econômico advindo do ICMS, assegurada expressamente pelo
art. 155, § 2º, X, a, da Constituição Federal.
Nessa senda, José Antônio Minatel assinala que, na imensa maioria dos casos
de recuperação de custos ou despesas, não resta configurada receita tributável,
haja vista que:
(...) seu efeito econômico é de mera recomposição do patrimônio anteriormente
desfalcado, ou recomposição da mesma disponibilidade preexistente, não caracte‑
rizando nova riqueza auferida, tampouco é proveniente de remuneração de esforço,
direito ou atividade (...). A recuperação de custo ou despesa pode ser equiparada
aos efeitos da indenização, pela similitude no caráter de recomposição patrimonial,
guardadas as demais peculiaridades que tipificam os demais eventos.4

O modo de aproveitamento dos créditos é irrelevante para a sua qualificação


como receita tributável. Em qualquer caso, trata-se de mera recuperação do
montante pago a título de ICMS nas operações antecedentes, cuja finalidade é

1 MINATEL, José Antonio. Conteúdo do conceito de receita e regime jurídico para sua tributação. São
Paulo: MP, 2005. p. 244.
2 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
p. 126.
3 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Conceito de receita como hipótese de incidência das contribuições
para a seguridade social (para efeitos da Cofins e da contribuição ao PIS). IOB – Repertório de
Jurisprudência: tributário, constitucional e administrativo, n. 1, p. 30, jan. 2001.
4 MINATEL, José Antonio. Op. cit., p. 218-9.

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simplesmente desonerar a empresa exportadora do seu ônus econômico e, assim,


evitar a nociva “exportação de tributos”.
Ainda que os valores do ICMS acumulado e transferido a terceiros fossem
enquadrados como receita, não poderiam ser considerados na base de cálculo
das contribuições PIS e Cofins, porque o art. 149, § 2º, I, da Constituição Fede‑
ral, aplicável a todas as contribuições sociais, inclusive às de seguridade social,
imuniza as receitas decorrentes de exportação, nestes termos:
Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de inter‑
venção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou eco‑
nômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o
disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º,
relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.
(...)
§ 2º As contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que
trata o caput deste artigo: (Incluído pela Emenda Constitucional n. 33, de 2001)
I – não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação;

Noutras palavras, as receitas advindas da cessão a terceiros, por empresa


exportadora, de créditos do ICMS são imunes, por se enquadrarem como “recei‑
tas decorrentes de exportação”. Com efeito, adquirida a mercadoria, a empresa
exportadora pode creditar-se do ICMS anteriormente pago, mas somente poderá
transferir a terceiros o saldo credor acumulado após a saída da mercadoria com
destino ao exterior (art. 25, § 1º, da LC 87/1996, verbis: “Art. 25. Para efeito de
aplicação do disposto no art. 24, os débitos e créditos devem ser apurados em
cada estabelecimento, compensando-se os saldos credores e devedores entre
os estabelecimentos do mesmo sujeito passivo localizados no Estado. (Redação
dada pela LCP n. 102, de 11-7-2000.) § 1º Saldos credores acumulados a partir da
data de publicação desta Lei Complementar por estabelecimentos que reali‑
zem operações e prestações de que tratam o inciso II do art. 3º e seu parágrafo
único podem ser, na proporção que estas saídas representem do total das saídas
realizadas pelo estabelecimento: I – imputados pelo sujeito passivo a qualquer
estabelecimento seu no Estado; II – havendo saldo remanescente, transferidos
pelo sujeito passivo a outros contribuintes do mesmo Estado, mediante a emis‑
são pela autoridade competente de documento que reconheça o crédito”). Como
a cessão do crédito só se viabiliza em função da exportação e, além disso, está
vocacionada a desonerar as empresas exportadoras do ônus econômico do ICMS,
as verbas respectivas devem ser qualificadas como decorrentes da exportação
para fins de aplicação da imunidade do art. 149, § 2º, I, da Constituição Federal.

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Este, aliás, foi um dos fundamentos da sentença concessiva da segurança


prolatada pela juíza federal Karine da Silva Cordeiro, que afirmou: “a efetiva
alteração patrimonial positiva da empresa se dá no momento da exportação,
pois é nesse momento que ela adquire o direito de dispor do crédito de ICMS
nas formas preconizadas no art. 25 da LC 87/96. Após, ao transferir o crédito
para terceiros, o seu patrimônio permanecerá inalterado, porquanto não haverá
ingresso de novos recursos, mas, tão somente, a realização do crédito. (...) o
direito de manter e aproveitar o crédito de ICMS trata-se de exceção conferida
às operações de exportação” (fl. 85).
Conclui-se que, ao reconhecer a ilegitimidade da incidência das contribui‑
ções PIS e Cofins não cumulativas sobre os valores recebidos pela transferência
a terceiros de créditos de ICMS, o acórdão recorrido de modo algum ofende os
arts. 149, § 2º, I; 155, § 2º, X, a; e 195, caput e I, b, da Constituição. Está, sim, dando‑
-lhes aplicação, razão pela qual deve ser mantido.
Isso posto, conheço do recurso extraordinário da União, mas nego-lhe provi‑
mento, assentando a tese da inconstitucionalidade da incidência da contribui‑
ção ao PIS e da Cofins não cumulativas sobre os valores recebidos por empresa
exportadora em razão da transferência a terceiros de créditos de ICMS.
Recurso extraordinário conhecido e não provido.
Aos recursos sobrestados, que aguardam a análise da matéria por esta Corte,
aplica-se o art. 543-B, § 3º, do CPC.

VOTO
O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, quando essa matéria foi colo‑
cada à consideração do Superior Tribunal de Justiça, para que lá fosse examinada,
do ponto de vista da legislação infraconstitucional, chegou-se à conclusão – e
essa acabou sendo uma jurisprudência pacífica – exatamente idêntica à que
chegou agora o voto da ministra Rosa Weber.
Eu mesmo tive oportunidade de acompanhar esse entendimento. Portanto,
do ponto de vista infraconstitucional, não há nenhuma ilegalidade no entendi‑
mento de que o aproveitamento do crédito de ICMS, nessas circunstâncias, não
é receita decorrente de operação sujeita à incidência do PIS e Cofins.
Agora, olhando a questão do ponto de vista constitucional, eu chego à mesma
conclusão. A interpretação dada pelo acórdão recorrido não ofende qualquer
norma da Constituição. Pelo contrário, dá concretude à cláusula constitucio‑
nal do art. 155, § 2º, X, que assegura ao exportador o direito a aproveitamento
do montante do ICMS cobrado nas operações anteriores a da exportação,

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aproveitamento que se dá, entre outros modos, mediante transferência dos cor‑
respondentes créditos a terceiros, a outros sujeitos passivos do mesmo Estado,
segundo a Lei Complementar 87/1996, art. 25, § 1º, II.
De modo que o meu voto é acompanhando o voto da relatora.

VOTO
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, egrégio Plenário, ilustre represen‑
tante do Ministério Público, senhores advogados e estudantes aqui presentes.
Senhor Presidente, eu tive também a honra de participar do Superior Tribunal
de Justiça exatamente na mesma Turma a que pertenceu o meu eminente colega
Teori Zavascki, e, lá, sob o ângulo infraconstitucional, também esposamos esse
entendimento. Não só por isso, mas restaria muito pouco a dizer diante do bri‑
lhantismo do voto da ministra Rosa Weber, que esgotou o tema, com bastante
singularidade, e das manifestas sustentações orais empreendidas da tribuna,
tanto pela Fazenda Pública, quanto pelo advogado particular. Mas eu apenas
queria fazer pequenas digressões coloquiais, Senhor Presidente, para demonstrar
talvez quão assimilável seja esse resultado.
Não é do desconhecimento de quem quer que atue no âmbito tributário que o
regime de exportação tem um tratamento privilegiado. No Superior Tribunal de
Justiça nós tivemos, durante anos, exatamente uma discussão sobre o denomi‑
nado crédito-prêmio do IPI. E havia também, com relação a esse crédito-prêmio,
algumas inserções nesse tema do aproveitamento.
Em segundo lugar, a pretensão do particular encontra previsão expressa na
Constituição, em dois dispositivos específicos: no art. 149, § 2º, que exime as recei‑
tas de exportação da incidência das contribuições sociais; e no art. 155, X, a, que,
num sistema de integração normativa – aqui relembrado pelo ministro Teori
Zavascki –, vem ao encontro exatamente da Lei Complementar 87/1996, que, no
seu art. 25, complementa o inciso X, a – que regula exatamente as operações que
se destinam ao exterior –, ressaltando que é assegurada a manutenção e o aprovei‑
tamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores.
E, como bem explicitou o nobre advogado, essas operações anteriores não são
as operações de exportação, são aqueles créditos de ICMS que ele tem anterior‑
mente à realização da exportação, através da aquisição de insumos etc. E, como
bem se destacou, se esse crédito, pelo princípio da não cumulatividade, não é
receita, por que esse outro, principalmente no regime privilegiado da exportação,
há de ser considerado receita e tributado? Então a própria lei complementar
veio taxativamente e integrou esses cânones constitucionais, permitindo esse

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RE 606.107

aproveitamento do crédito, mediante a transferência a terceiro desses crédi‑


tos remanescentes.
A ministra Rosa Weber teve oportunidade de destacar, no seu longo voto, a
posição uníssona da doutrina no sentido de que esse crédito que é repassado,
pelo que ele é compensado através da transferência, não significa evidentemente
nenhuma receita, isso é ressarcimento de custo e não se inclui no conceito de
receita, que já foi há muito estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal.
Eu também cito, aqui, en passant, uma doutrina semelhante àquela que chega
à mesma conclusão da ministra Rosa Weber. Mas o mais importante, no meu
modo de ver tudo isso, é que nós sabemos que, no âmbito tributário, a imunidade
pode até ter uma interpretação extensiva, como mais ou menos essa a que Vossa
Excelência se referiu em relação às operações de exportação e esses consectá‑
rios, esses acessórios, em relação à operação de exportação. Agora, a pretensão
da Fazenda é uma pretensão que ou deriva de uma analogia que não pode criar
tributação, ou de uma interpretação extensiva que não pode criar tributação.
E o próprio fisco, para efeito de expungir qualquer dúvida – isso que me pareceu
extremamente importante –, na Lei Federal 9.718, o art. 3º dispõe:
Art. 3º O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à receita bruta
da pessoa jurídica.
(...)
§ 2º Para fins de determinação da base de cálculo das contribuições a que se
refere o art. 2º, excluem-se da receita bruta:
(...)
V – a receita decorrente da transferência onerosa a outros contribuintes do ICMS
de créditos de ICMS originados de operações de exportação, conforme o disposto
no inciso II do § 1º do art. 25 da Lei Complementar n. 87, de 13 de setembro de 1996.

E também concordo com o eminente advogado quando afirma que essas


normas ulteriores são normas interpretativas e, portanto, contemporâneas à
lei interpretada, porque, no cenário federal, surgiram duas leis específicas para
expungir qualquer dúvida sobre essa posição muito bem adotada pela ministra
Rosa Weber. A Lei 10.637/2002, quando trata da cobrança não cumulativa do PIS
e do Pasep, dispõe no § 3º do art. 1º:
§ 3º Não integram a base de cálculo a que se refere este artigo, as receitas:
(...)
VII – decorrentes de transferência onerosa a outros contribuintes do Imposto
sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Ser‑
viços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS de

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RE 606.107

créditos de ICMS originados de operações de exportação, conforme o disposto no


inciso II do § 1º do art. 25 da Lei Complementar n. 87, de 13 de setembro de 1996.
(Incluído pela Lei n. 11.945, de 2009)

E repisa essa mesma redação, na Lei 10.833/2003, em relação à Cofins. De sorte


que, não bastasse a erudição do voto da ministra Rosa Weber, a quem cumpri‑
mento mais uma vez, a própria base legal hoje existente no sistema normativo
tributário indica quão acertada é a solução pelo desprovimento do recurso, nos
termos do voto da relatora.

VOTO
(Antecipação)
O sr. ministro Dias Toffoli: Senhor Presidente, cumprimento a eminente rela‑
tora pelo voto trazido nesta data, mas também não deixo de cumprimentar
as belas sustentações formuladas pela Fazenda Pública e pelo advogado dos
contribuintes.
Inicio, Senhor Presidente, por dizer que eu não vejo, na letra a do inciso X do
art. 155 da Constituição, quando, na parte final, se diz que será “assegurada a
manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas opera‑
ções e prestações anteriores”, uma imunidade em relação a integrarem ou não
esses créditos a receita.
O que se está colocando, nesse dispositivo – e veja que o art. 155 se dirige aos
Estados, não se dirige à União –, é que esses créditos deverão, por parte daqueles
entes da Federação, ser assegurados. E dá-se, então, esse direito relativamente
às exportações, no sentido de assegurar esses créditos.
Qual é a tese que desenvolve a Fazenda? A tese que desenvolve a Fazenda – e
procurou explicitá-la, da tribuna, o procurador que fez a sustentação – é que,
ao adquirir esses créditos, o exportador já os coloca no preço. Então, ele estaria
tendo uma dupla vantagem, ele estaria tendo uma duplicidade de creditamento,
porque ele repassa isso no preço do produto da exportação e, depois, numa
operação que não é de exportação, numa operação que é interna, ele cede isso
a terceiros. E muito embora essa cessão a terceiros seja colocada como valor a
ser recuperado, e não como receita, isso não isenta esse valor da base de cálculo.
Ora, nós estamos a analisar sob a óptica da Constituição, nós não estamos,
aqui, a analisar sob a óptica das leis infraconstitucionais. E, sob a óptica da
Constituição, eu não vejo vedação de incidência da contribuição sobre o produto
dessa cessão. E não vejo – como já disse –, pela leitura da letra a referida, que ali
haja uma imunidade em relação à contribuição social.

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RE 606.107

Por isso, Senhor Presidente, sem me alongar, porque já se desenha um resul‑


tado na linha do não provimento, farei juntar minhas razões por escrito, deixando
claro que eu não vejo, nessa operação de cessão a terceiros, na venda desse
crédito, operação de exportação. Qual é a operação de exportação que há nessa
venda? Não há operação de exportação.
Por essas razões e por outras que farei juntar, eu dou provimento ao recurso,
pedindo vênia àqueles que já proferiram seus votos.

VOTO
O sr. ministro Dias Toffoli: Cinge-se a controvérsia a verificar a possibilidade
de se fazer incidir a Cofins sobre valores recebidos a título de créditos escritu‑
rais de ICMS cedidos onerosamente a terceiros, acumulados em operações e
prestações anteriores e não repassados, em razão de a operação seguinte – a
destinação de mercadorias para o exterior – ser imune, conforme o art. 155, X,
a, da Constituição Federal, o qual estabelece:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
(...)
X – não incidirá:
a) sobre operações que destinem mercadorias para o exterior, nem sobre serviços
prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveita-
mento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores.

Como se vê, a partir do texto constitucional, a problemática que se verifica,


in casu, ocorre pelo fato de não haver como aproveitar os créditos de ICMS na
forma tradicionalmente concebida pelo emprego da não cumulatividade.
Para evitar que o contribuinte não suporte a repercussão do imposto prove‑
niente de valores repassados por outros entes da cadeia anterior, os fiscos dos
Estados, autorizados na forma prevista pela LC 87/1996, regulam formas alter‑
nativas de aproveitamento desses créditos acumulados.
A forma mais comum de se viabilizar o aproveitamento desses créditos acu‑
mulados é a cessão onerosa. Ao vender os títulos emitidos (cessão de direitos),
o comerciante aufere valores que são contabilizados como valores resgatáveis,
ou “a recuperar”. Dessa forma, a importância entra no caixa sem transitar pela
conta de receita, conforme já reconhecido na origem. Daí a impossibilidade,
no entender do julgado, nesse primeiro momento, de se fazer incidir a Cofins.
Verifico que a tese da exclusão dos valores recebidos com a alienação dos crédi‑
tos de ICMS encontra amparo em dois argumentos centrais: (i) o importe recebido

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RE 606.107

com a venda dos créditos cedidos não traduz um ganho, ou seja, não é receita,
trata-se do ressarcimento do imposto pago por outros entes da cadeia; e (ii) os
valores auferidos com os créditos cedidos estariam contemplados pela imunidade
que acoberta a operação de exportação, em face da Cofins/PIS e perante o ICMS.
Ousamos divergir das conclusões externadas pela eminente ministra Rosa
Weber, rogando vênia desde já à ilustre relatora.
Em primeiro lugar, vislumbro uma problemática na adoção conjunta dos dois
fundamentos acima. Se o importe recebido com a venda dos créditos cedidos a
terceiros não é receita, constituindo-se mera recuperação de créditos, como pode
estar inserido no conceito de “receita de exportação” e ser, consequentemente,
imune à Cofins, na forma do art. 149, § 2º, I, da Constituição Federal? Ou bem tais
valores traduzem um ganho e são receitas, e, a partir dessa premissa, podemos
discutir se são receitas de exportação e, portanto, imunes às contribuições em tela;
ou bem não são receitas e não podemos avançar na defesa da tese da imunidade.
Feita essa distinção, avançamos sobre o argumento que respaldaria a não inci‑
dência, consistente em verificar se os valores auferidos traduzem tão somente um
ressarcimento, de modo que, na operação de alienação dos créditos, não se apura
um ganho, não havendo, a partir de tal premissa, receita em sentido jurídico.
A partir desse entendimento, o valor obtido com a venda seria a recuperação do
imposto pago que não era próprio do exportador e, sim, daquele ou daqueles que o
antecederam na cadeia. Essa jurisprudência é firme no Superior Tribunal de Justiça,
para quem “a transferência de crédito de ICMS para terceiros não dá ensejo à inci‑
dência de PIS e Cofins, por não configurar receita, mas sim tributo” (AgRg no REsp
1.318.196/RS, rel. min. Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJE de 24-8-2012).
O entendimento externado no feito, confirmando o posicionamento do prece‑
dente acima, se legitima a depender da premissa adotada. Segundo entendo – e
essa é a premissa que adoto –, a análise do fenômeno econômico que ocorre
por trás do cenário narrado no aresto colacionado conduz a conclusão diversa.
Ao meu sentir, o entendimento sedimentado no Superior Tribunal de Justiça e
adotado pela ilustre relatora preteriu um substancial argumento deduzido pela
Fazenda Nacional. Não se sobrelevou o fato de que o expurgo do encargo cor‑
respondente ao imposto pago nas operações anteriores se verifica por “dentro”,
ou seja, no preço da mercadoria, e que, portanto, o valor recebido pelo alienante
dos créditos de ICMS é receita nova e não mera recuperação de crédito, apesar
de, contabilmente, circular pela conta de “valores a recuperar”.
O princípio é básico. O que faz um comerciante toda vez que o processo pro‑
dutivo revela um custo que não será recuperado? Acresce o custo no preço. E é
isso é o que se verifica neste caso.

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RE 606.107

Ao dispor de créditos acumulados, provenientes de imposto pago em opera‑


ções anteriores, o exportador promove a alienação. Ora, nessa operação haverá
uma depreciação com relação ao valor nominal. Obviamente, o deságio é justa‑
mente o que anima o interesse do adquirente. Se fosse adquirir os títulos com
absoluta identidade com o valor real, o adquirente que compra o crédito para
proceder à compensação pagaria logo seus impostos pela via ordinária. O emi‑
nente ministro Marco Aurélio alertou, em sua manifestação, para a existência
dessa diferença a menor (deságio) que se verifica na venda.
Ainda que disponha da faculdade de ceder onerosamente os créditos, a compen‑
sação não seria completa em virtude do deságio. A faculdade de alienar o imposto
pago ainda não seria equivalente ao emprego hodierno da não cumulatividade, que
se daria, na compensação, com as saídas. Constata-se que essa versão “artificial”
da não cumulatividade, com a qual se pretende eliminar o encargo de operações
anteriores sem que ocorra uma compensação, representa, de toda sorte, uma perda.
Diante do cenário descrito, é razoável crer que essa perda que descrevemos
anteriormente não fique pairando na contabilidade do exportador. É bem de se
observar que o exportador não assumirá o ônus aludido.
Imaginemos que um comerciante de Porto Alegre possua, em sua escrita, um
crédito de cem reais. As mercadorias a serem remetidas para o Uruguai chegam
na loja pelo preço de mil reais. O comerciante pretende um lucro de quinhentos
reais. Como se dará esta operação?
Se vender a mercadoria por R$ 1.500,00, o comerciante ficará com um lucro
de R$ 400,00 (valor da diferença entre entrada e saída menos o imposto). Ocorre
que o comerciante mantém sua intenção de lucrar quinhentos reais. Como ele
fará isso? Revenderá os produtos por R$ 1.600,00. Nesse caso, os créditos ainda
continuam em conta e serão alienados, com deságio é verdade. Mas, agora, o
deságio não será problema, porque o custo já terá sido resgatado. A venda do
crédito representará um ganho real.
Em outras palavras, ao adquirir a mercadoria, o contribuinte adquire o bem
que será exportado e o crédito das operações anteriores. Ambos formam um
preço único que será repassado ao adquirente com a venda. O preço de venda
compõe repasse do custo direto da mercadoria mais o repasse do ônus das ope‑
rações anteriores (crédito) e o lucro.
Pela impossibilidade de fazer com que a venda seja equivalente à compensa‑
ção tradicionalmente operada com a não cumulatividade, por força do deságio,
que torna a operação atraente para o adquirente, o comerciante opta por não
absorver o impacto da não utilização dos créditos. Ele repassa, ou seja, ele “vende
o crédito” junto com a mercadoria.

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RE 606.107

Na lógica concebida no acórdão do Superior Tribunal de Justiça colacionado,


o qual externa entendimento sedimentado por esta Corte, o contribuinte registra
a perda e depois se recupera com a alienação. O raciocínio está perfeito, par‑
tindo da premissa de que houve uma perda inicial. Se há uma perda e depois
um ganho, não há acréscimo. Não há acréscimo, não há receita, não há Cofins.
A sequência se harmoniza. O problema é que esse cenário não se confirma do
ponto de vista econômico.
Em nenhum momento o contribuinte registra a perda. A não cumulativi‑
dade não utilizada se desloca para o preço. No ato da venda são simultâneos
a perda e o resgate. Quando parte para a alienação, o contribuinte já está no
equilíbrio e o que sobrevier é lucro. Agora temos ganho, temos receita e temos
Cofins. Se não houver o que recuperar, se entrar em caixa, é porque se acresceu
um valor ao patrimônio.
O resultado da cessão onerosa é receita no sentido jurídico da acepção, uma
vez que chega aos cofres do comerciante como acréscimo e pelo exercício de
seu objeto social.
Firmado o entendimento de que os valores decorrentes da alienação dos cré‑
ditos de ICMS são receitas, passamos a analisar, então, se tais receitas são decor‑
rentes da exportação, de modo a legitimar a não incidência da Cofins, por força
da regra de imunidade constante do art. 149, § 2º, I, da Constituição Federal.
O Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do RE 564.413, de relato‑
ria do ministro Marco Aurélio, deixou assentado que a imunidade de que trata
o art. 149, § 2º, I, da Constituição Federal é objetiva, ou seja, a imunização é das
receitas de exportação, e não das empresas exportadoras, o que é relevante para
a interpretação da norma.
Colho trecho do voto da ministra Ellen Gracie, pelas substanciosas lições
que de lá se extraem:
A compreensão da amplitude da regra de imunidade não pode estar dissociada dos
limites semânticos dos termos utilizados para estabelecê-la e da sua percepção
harmônica com o sistema constitucional, sem alargamentos ou restrições. Não
há que se dizer que as imunidades, como a do art. 149, § 2º, I, mereçam interpre‑
tação ampliativa ou restritiva. Cabe ao intérprete ser fiel ao sentido e à extensão
da norma tal qual ela se apresenta.
Note-se que, enquanto algumas imunidades estão a serviço de garantias funda‑
mentais (a dos livros, em prol da livre manifestação do pensamento; a dos tem‑
plos, em prol da liberdade de crença), o art. 149, § 2º, I, limita-se a elevar ao nível
constitucional norma de desoneração das exportações, anteriormente veiculada
mediante dispositivos das leis do PIS e da Cofins.

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RE 606.107

Há de se ter em conta, ainda, que o custeio da seguridade social é regido pelo prin‑
cípio da universalidade do custeio e organizado tendo como objetivo a diversidade da
base de financiamento, nos termos dos arts. 194 e 195 da Constituição, de modo que
não se deve buscar interpretação que contrarie tais preceitos, reduzindo o custeio.
Aliás, foi justamente com fundamento na previsão constitucional de que a seguridade
social será financiada por toda a sociedade que esta Corte considerou abrangido pelo
vocábulo empregador, constante da redação original do art. 195, I, da CF, inclusive
a pessoa jurídica empregadora em potencial (RE 249.841 AgR, de minha relatoria).
O fato de cuidar-se de uma imunidade objetiva, por fim, também orienta o in­­
térprete.
Isso porque as imunidades objetivas visam, como já se viu, preservar da tributa‑
ção determinadas grandezas, atividades ou operações consideradas em si mesmas,
independentemente de quem as realize ou detenha.

Na ocasião, a ministra Ellen Gracie bem delimitou o alcance do que sejam


“receitas de exportação”, nestes termos:
Colocadas tais premissas, é necessário verificar o que se deve entender por recei-
tas de exportação.
7. O art. 149, § 2º, I, refere-se às receitas de exportação, qualificadas, assim, pela
sua origem.
Conceitualmente, receitas são os ingressos que a pessoa jurídica aufere e que
se incorporam ao seu patrimônio, não se restringindo à noção de faturamento
(receita percebida na realização do seu objeto ou atividade típica), mas abarcando
também o produto de operações financeiras e de qualquer outra natureza, desde
que revelador de capacidade contributiva.
Exportação, por sua vez, é a operação de envio ou prestação de bem ou serviço
ao exterior.
Receita de exportação, pois, é o ingresso proveniente de uma operação de
exportação de bem ou serviço.
Para o seu cotejo com outras bases econômicas, vejamos a inserção de tal dis‑
positivo no texto constitucional.
Sobreveio o § 2º do art. 149 por força da EC 33/2001, que acresceu à Constituição,
simultaneamente, diversas normas relativas às contribuições sociais e de inter‑
venção no domínio econômico, entre as quais: a) a imunidade das receitas de
exportação; b) a autorização para instituição de contribuições sobre a importação
de produtos estrangeiros ou serviços; c) a definição da base tributável quando da
adoção de alíquotas ad valorem e a permissão da adoção de alíquota específica.
Sua natureza de receita, como ingresso que se incorpora ao patrimônio, justifica
o tratamento.

Podemos afirmar, a partir dessas lições, que a imunidade das receitas de


exportação de que trata o art. 149, § 2º, I, da Constituição Federal, no que se

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RE 606.107

refere aos tributos incidentes sobre essa base econômica (Cofins/PIS), abrange
as receitas que se originam da operação de exportação, ou seja, aquelas recei‑
tas que se incorporam ao patrimônio do exportador adquiridas com a venda
de mercadorias ou serviços ao exterior. Essa foi a premissa adotada pela Corte
no julgamento referido.
O argumento de que a máxima efetividade da norma de imunidade (e aqui
estamos falando da Cofins/PIS) só se alcançaria caso os valores que ingressam no
patrimônio do contribuinte com a venda de créditos de ICMS no mercado interno
não integrem a base de cálculo da Cofins, no meu entender, parte de um ponto
de vista estritamente econômico. Mas tal noção, importante para a elaboração
de políticas fiscais, é de todo insuficiente quando se lida com as competências e
com as leis tributárias. Por outro lado, pode-se até argumentar que o aproveita‑
mento dos créditos de ICMS visa dar máxima efetividade à imunidade prevista
no art. 155, X, a, da Carta Magna, relativamente ao ICMS, mas isso não implica
necessariamente o alargamento da desoneração para outras bases econômicas,
como as receitas decorrentes da exportação.
Ao que parece, a dinâmica do caso revela duas operações, que, embora, em
tese, possam se correlacionar indiretamente, são distintas e autônomas em sua
essência. A primeira operação é a remessa ao exterior da mercadoria. A segunda,
a cessão dos créditos acumulados dentro do território nacional.
Embora as operações possam ser consideradas como correlacionadas, pelo
menos indiretamente, na medida em que só haverá crédito a ser cedido se não
houver imposto na saída, as receitas adquiridas com a venda dos créditos não
são receitas de exportação, ou seja, não são “ingressos provenientes de uma
operação de exportação de bem ou serviço” (RE 564.413). Note-se que, se houver
imposto devido, não haverá crédito a alienar. Imagine um exportador que prati‑
que vendas internas e vendas ao exterior. Os créditos obtidos com as vendas ao
exterior poderão ser aproveitados nas saídas internas. Teremos, nesse caso, um
exportador que não aliena créditos, pois não haverá o que ceder, eis que os valo‑
res foram lançados como amortização das saídas que se operarem no território
nacional. Temos uma operação que se inicia e se exaure no mercado interno.
O acúmulo de crédito proveniente da não cumulatividade não é consequência
de exportação, mas de saídas desoneradas, seja por qual motivo for. Um deter‑
minado Estado, por exemplo, pode desonerar a remessa de produtos de saúde
para outro Estado da Federação vítima de uma catástrofe natural e permitir o
aproveitamento de créditos acumulados nessas operações pela via da cessão.
Indago: nessa situação, a alienação de tais créditos será desonerada dos demais
encargos? É evidente que não.

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RE 606.107

Mais uma vez rendendo nossas sinceras homenagens ao judicioso voto da


eminente relatora e prestigiando todos os argumentos defendidos pelos emi‑
nentes ministros que a acompanharam, peço vênia para divergir, razão pela qual
dou provimento ao recurso para reconhecer a incidência da Cofins na espécie.
É como voto.

VOTO
A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, quero, inicialmente, parabe‑
nizar a ministra Rosa Weber pelo brilhantíssimo voto, no qual faz levantamento
e traz à rememoração de todos nós as decisões, a doutrina e as decisões deste
Tribunal, na linha tratando essa matéria.
E, sem me alongar também, Senhor Presidente, porque vou votar exatamente
no sentido de negar provimento – tal como já me manifestei sobre a matéria
em alguns precedentes, pelo menos que trataram tangencialmente do tema, e
até sobre, especificamente, o artigo da Constituição –, também voto no sentido
do que foi realçado pela ministra Rosa Weber, ou seja, não há contrariedade à
Constituição. Com as vênias do entendimento do eminente Dias Toffoli, a meu
ver, o que se faz, aqui, é exatamente fazer com que a norma constitucional tenha
concretude, segundo a teleologia proposta no sistema.
Razão pela qual acompanho, portanto, o voto da ministra para negar provi‑
mento ao recurso.

VOTO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, nós estamos num
momento histórico em que vários setores da sociedade insurgem-se contra aquilo
que chamam de “custo Brasil”. Esse “custo Brasil” é integrado não apenas por
ônus de natureza fiscal, mas também por outros tipos de gravames que pesam
sobre a indústria nacional e que impedem que ela se desenvolva e que se torne
um empreendimento nacional, à altura dos países desenvolvidos. Dentro desse
“custo Brasil”, como têm apontado os especialistas, encontra-se, exatamente, o
gravame que pesa sobre as exportações, e que onera sobremaneira este setor da
atividade empresarial nacional.
Nós acabamos de verificar que, depois de intenso debate, aprovou-se, no Con‑
gresso Nacional, a medida provisória relativa aos portos, eliminando ou, pelo
menos, diminuindo o gargalo que existia no que tange ao fluxo de mercadorias
nacionais para o exterior e das que provêm do exterior para o País. Eu quero

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  667


RE 606.107

crer, Senhor Presidente, que estamos num cenário assemelhado a esse ao qual
me referi, em que se cuida exatamente de desonerar as exportações.
Eu queria me associar aos argumentos muito bem expostos pela eminente
ministra Rosa Weber, que, como bem assentou a ministra Cármen Lúcia, esgo‑
tou o assunto, a meu ver, do ponto de vista doutrinário e do ponto de vista juris‑
prudencial. Mas eu gostaria de assinalar um ponto que também já foi ventilado
pelos magistrados que me precederam: os créditos de ICMS não compõem, de
forma nenhuma, o patrimônio da empresa e nem constituem renda própria ou
faturamento, nos termos do art. 195, I, b, da Constituição Federal. Eles são meras
receitas escriturais, que, posteriormente, reverterão aos cofres da União, e, por
isso, não podem integrar a base de cálculo do PIS e Cofins.
Nesse sentido, então, acompanho a ministra Rosa Weber para negar provi‑
mento ao recurso da União.

VOTO
O sr. ministro Gilmar Mendes: Senhor Presidente, também vou acompanhar as
doutas lições exauridas do voto da ministra Rosa Weber, que, eu diria, proferiu
um voto antológico sobre a matéria.
Gostaria de registrar os cumprimentos e acompanhar Sua Excelência.

VOTO
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, constatamos julgamento exemplar,
considerada a sustentação feita da tribuna pelo doutor Danilo Knijnik, e o voto
substancioso da ministra Rosa Weber.
Percebo, passo a passo, a origem dos recordes na arrecadação tributária e
tenho presente, em primeiro lugar, que o contribuinte não fatura tributo e, em
segundo, que o Estado não pode dar com uma das mãos e tirar com a outra.
Também considero, Presidente, que não estamos a vislumbrar receita, aporte
de riqueza, levando em conta o patrimônio da exportadora. O que há, em última
análise – é impróprio falar de receita decorrente de crédito –, é recuperação de
custo havido com o ingresso da matéria-prima tributada. Então, veio a Lei Comple‑
mentar 87/1996, em plena harmonia com a imunidade constitucional, presentes as
importadoras, e versou a compensação de saldos credores, contemplando várias
situações jurídicas: aquela em que possa haver transferência para estabelecimento
diverso da empresa, a que a empresa, além das exportações, atua no mercado
interno – e se entendermos que, não atuando, há a incidência do PIS/Cofins sobre

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  668


RE 606.107

essa recuperação, estaremos a adentrar o campo do tratamento diferenciado,


sem uma justificativa plausível, socialmente aceitável –, e o caso em que somente
ocorrem as exportações. A não se concluir, como concluiu a ministra Rosa Weber,
ter-se-á que caminhar para a glosa, ante a pecha de inconstitucional, da lei que
resultou da Medida Provisória 451/2008, da Lei 11.941/2009, no que, para mim, no
campo estritamente pedagógico e esclarecedor da matéria, afastou a incidência
do PIS/Cofins sobre esses valores decorrentes da transferência do crédito.
A lei complementar como também a lei a que acabo de me referir são do­­
cumentos, diplomas, corolários da imunidade prevista não só no art. 155, § 2º,
X, a – e é uma verdadeira imunidade –, mas também da imunidade que está
estampada, sob o ângulo das contribuições e no tocante às empresas exporta‑
doras, no art. 149, § 2º, da Carta Federal. É preciso, como ressaltou o ministro
Ricardo Lewandowski, ter atenção com a situação das empresas exportadoras,
considerada a concorrência no mercado internacional.
Por isso, reportando-me a precedente do Tribunal – e diria que no recurso
extraordinário, ainda pendente de conclusão de julgamento, de número 240.785/
MG, do qual sou relator, já há seis votos quanto à inconstitucionalidade da inclu‑
são do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins –, acompanho o voto proferido
por Sua Excelência e desprovejo o recurso.

VOTO
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Também eu mantenho a decisão
recorrida, porque entendo que os créditos a que se refere a lei complementar
não representam receita operacional da empresa. Trata-se, pura e simplesmente,
de reparação de prejuízo.
O sr. ministro Marco Aurélio: O desejável seria que a empresa exportadora
pudesse, como ressaltou o advogado da tribuna, ir ao guichê do Estado e receber
o crédito, e não transferi-lo, com deságio, como geralmente ocorre.
O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): É.
Então, por isso, acompanhando o belíssimo voto da ministra Rosa Weber, a
quem eu felicito pela magnífica peça, eu nego provimento ao recurso.

EXTRATO DA ATA
RE 606.107/RS — Relatora: Ministra Rosa Weber. Recorrente: União (Procurador:
Procurador-geral da Fazenda Nacional). Recorrida: Schmidt Irmãos Calçados
Ltda. (Advogado: Danilo Knijnik).

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  669


RE 606.107

Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto da relatora, conheceu


e negou provimento ao recurso extraordinário, vencido o ministro Dias Toffoli.
Votou o presidente, ministro Joaquim Barbosa. Falaram, pela recorrente, o doutor
Luiz Carlos Martins Alves, procurador da Fazenda Nacional, e, pela recorrida, o
doutor Danilo Knijnik.
Presidência do ministro Joaquim Barbosa. Presentes à sessão os ministros
Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen
Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavascki. Procurador-geral da
República, doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 22 de maio de 2013 — Luiz Tomimatsu, assessor-chefe do Plenário.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  670


RE 633.009 AgR

AGRAVO REGIMENTAL NO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 633.009 — GO
Relator: O sr. ministro Ricardo Lewandowski
Agravante: Sinvaldo Rodrigues de Morais
Agravado: Estado de Goiás

Agravo regimental no recurso extraordinário. Constitucional.


Demissão de servidor público estadual. Governador do Estado.
Delegação de competência. Secretário estadual. Art. 37, XII e
parágrafo único, da Constituição estadual. Princípio da sime‑
tria. Art. 84, XXV e parágrafo único, da Constituição Federal.
Agravo improvido.
I – Esta Corte firmou orientação no sentido da legitimidade de
delegação a ministro de Estado da competência do chefe do Execu‑
tivo federal para, nos termos do art. 84, XXV e parágrafo único, da
Constituição Federal, aplicar pena de demissão a servidores públicos
federais. Precedentes.
II – Legitimidade da delegação a secretários estaduais da compe‑
tência do governador do Estado de Goiás para, nos termos do art. 37,
XII e parágrafo único, da Constituição estadual, aplicar penalidade
de demissão aos servidores do Executivo, tendo em vista o princípio
da simetria. Precedentes.
III – Agravo regimental improvido.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  671


RE 633.009 AgR

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros da Segunda
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a presidência do ministro Ayres Britto,
na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por decisão
unânime, negar provimento ao recurso de agravo, nos termos do voto do relator.
Ausente, justificadamente, o ministro Joaquim Barbosa.
Brasília, 13 de setembro de 2011 — Ricardo Lewandowski, relator.

RELATÓRIO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de agravo regimental interposto
contra decisão que conheceu do recurso extraordinário e deu-lhe provimento,
sob o entendimento de que é legítima a delegação pelo governador às suas secre‑
tarias da competência para aplicar penalidades de demissão aos servidores do
Executivo, tendo em vista o princípio da simetria.
O agravante sustenta, inicialmente, a ausência de prequestionamento em
relação aos arts. 37, caput, e 97 da Constituição Federal.
Alega, ainda, que a ofensa à Lei Maior se deu de forma reflexa, ao argumento
de que a questão foi decidida à luz da legislação local.
Quanto ao mérito, aduz que
nos arestos citados pelo Eminente Relator, havia previsão expressa da delegação de
competência para aplicação da penalidade de demissão. Entretanto, na hipótese
dos autos, a legislação estadual excepcionou da delegação a aplicação da pena de
demissão. [Fl. 1530.]

É o relatório.

VOTO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): Bem reexaminada a questão,
verifica-se que a decisão ora atacada não merece reforma, visto que o recorrente
não aduz novos argumentos capazes de afastar as razões nela expendidas.
Com efeito, não assiste razão ao agravante quanto à alegada ausência de preques‑
tionamento dos arts. 37, caput, e 97 da Constituição Federal. Tais dispositivos cons‑
titucionais não foram apontados como violados pelo Estado de Goiás em sua peça
de recurso extraordinário. A propósito, a questão constitucional suscitada no apelo
extremo (art. 84, parágrafo único, da Lei Maior) restou devidamente prequestionada.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  672


RE 633.009 AgR

Também não prospera o argumento de que a ofensa ao texto constitucional


se deu de forma reflexa. De fato, a questão dos autos está diretamente ligada à
interpretação do art. 84, XXV e parágrafo único, da Constituição Federal à luz
do princípio da simetria.
Nesse contexto, conforme assinalado na decisão recorrida, o Plenário desta
Corte, no julgamento do MS 25.518/DF, rel. min. Sepúlveda Pertence, entendeu
legítima a delegação a ministro de Estado da competência do chefe do Executivo
federal para, nos termos do art. 84, XXV, da Constituição Federal, aplicar pena
de demissão a servidores públicos federais. No mesmo sentido, cito, ainda, os
seguintes precedentes: RMS 24.128/DF, rel. min. Sepúlveda Pertence; RMS 25.367
ED/DF, rel. min. Ayres Britto; RMS 24.079/DF, rel. min. Ellen Gracie.
Ademais, consoante destaquei na decisão impugnada, em situação idêntica à
dos autos, a Segunda Turma, no julgamento do AI 725.590 AgR/GO, rel. min. Ellen
Gracie, entendeu legítima a delegação pelo governador do Estado de Goiás às suas
secretarias da competência para a aplicação da penalidade de demissão aos ser‑
vidores do Executivo, tendo em vista o princípio da simetria. No mesmo sentido,
menciono as seguintes decisões, entre outras: ARE 638.599/GO e RE 536.973/GO,
rel. min. Cármen Lúcia; AI 731.400/GO, rel. min. Celso de Mello.
Por fim, também não prospera a alegação do agravante no sentido de que, no
caso dos autos, a legislação estadual excepcionou da delegação de competência
a aplicação da pena de demissão.
Com efeito, há que se ressaltar que, em ambas as Constituições, a competência
para demissão de servidores é atribuída privativamente ao chefe do Poder Exe‑
cutivo, e, portanto, passível de delegação, conforme expressa previsão do art. 37,
caput, XII e parágrafo único, da Constituição estadual e do art. 84, caput, XXV e
parágrafo único, da Constituição Federal. Assim, a legislação estadual pertinente
(art. 312, II e III, a, da Lei 10.460/1988, com redação dada pela Lei 14.210/2002)
estabeleceu como da competência privativa do governador estadual a imposição
de pena de demissão aos servidores estaduais e aos servidores de suas autarquias,
bem como, contrariamente ao alegado pelo agravante, disciplinou expressamente
a delegação dessa competência aos secretários estaduais.
Isso posto, nego provimento ao agravo regimental.

EXTRATO DA ATA
RE 633.009 AgR/GO — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Agravante: Sin‑
valdo Rodrigues de Morais (Advogados: Juscimar Pinto Ribeiro e outros). Agra‑
vado: Estado de Goiás (Procurador: Procurador-geral do Estado de Goiás).

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  673


RE 633.009 AgR

Decisão: Recurso improvido, nos termos do voto do relator. Decisão unânime.


Ausente, justificadamente, o ministro Joaquim Barbosa.
Presidência do ministro Ayres Britto. Presentes à sessão os ministros Celso
de Mello, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Ausente, justificadamente,
o ministro Joaquim Barbosa. Subprocurador-geral da República, doutor Mário
José Gisi.
Brasília, 13 de setembro de 2011 — Karima Batista Kassab, coordenadora.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  674


RE 637.485

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 637.485 — RJ
Relator: O sr. ministro Gilmar Mendes
Recorrente: Vicente de Paula de Souza Guedes
Recorrido: Ministério Público Eleitoral
Interessada: Dilma Dantas Moreira Mazzeo

Recurso extraordinário. Repercussão geral. Reeleição. Pre‑


feito. Interpretação do art. 14, § 5º, da Constituição. Mudança
da jurisprudência em matéria eleitoral. Segurança jurídica.
I – Reeleição. Municípios. Interpretação do art. 14, § 5º, da
Constituição. Prefeito. Proibição de terceira eleição em cargo
da mesma natureza, ainda que em Município diverso. O instituto
da reeleição tem fundamento não somente no postulado da conti‑
nuidade administrativa, mas também no princípio republicano, que
impede a perpetuação de uma mesma pessoa ou grupo no poder.
O princípio republicano condiciona a interpretação e a aplicação do
próprio comando da norma constitucional, de modo que a reeleição
é permitida por apenas uma única vez. Esse princípio impede a ter‑
ceira eleição não apenas no mesmo Município, mas em relação a qual‑
quer outro Município da Federação. Entendimento contrário tornaria
possível a figura do denominado “prefeito itinerante” ou do “prefeito
profissional”, o que claramente é incompatível com esse princípio,
que também traduz um postulado de temporariedade/alternância
do exercício do poder. Portanto, ambos os princípios – continuidade
administrativa e republicanismo – condicionam a interpretação e a
aplicação teleológicas do art. 14, § 5º, da Constituição. O cidadão que
exerce dois mandatos consecutivos como prefeito de determinado

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  675


RE 637.485

Município fica inelegível para o cargo da mesma natureza em qualquer


outro Município da Federação.
II – Mudança da jurisprudência em matéria eleitoral. Segu‑
rança jurídica. Anterioridade eleitoral. Necessidade de
ajuste dos efeitos da decisão. Mudanças radicais na interpreta‑
ção da Constituição devem ser acompanhadas da devida e cuidadosa
reflexão sobre suas consequências, tendo em vista o postulado da
segurança jurídica. Não só a Corte Constitucional mas também o
Tribunal que exerce o papel de órgão de cúpula da Justiça Eleito‑
ral devem adotar tais cautelas por ocasião das chamadas viragens
jurisprudenciais na interpretação dos preceitos constitucionais que
dizem respeito aos direitos políticos e ao processo eleitoral. Não se
pode deixar de considerar o peculiar caráter normativo dos atos
judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, que regem todo
o processo eleitoral. Mudanças na jurisprudência eleitoral, portanto,
têm efeitos normativos diretos sobre os pleitos eleitorais, com sérias
repercussões sobre os direitos fundamentais dos cidadãos (eleitores
e candidatos) e partidos políticos. No âmbito eleitoral, a segurança
jurídica assume a sua face de princípio da confiança para proteger
a estabilização das expectativas de todos aqueles que de alguma
forma participam dos prélios eleitorais. A importância fundamen‑
tal do princípio da segurança jurídica para o regular transcurso dos
processos eleitorais está plasmada no princípio da anterioridade
eleitoral positivado no art. 16 da Constituição. O Supremo Tribunal
Federal fixou a interpretação desse art. 16, entendendo-o como uma
garantia constitucional (1) do devido processo legal eleitoral, (2) da
igualdade de chances e (3) das minorias (RE 633.703). Em razão do
caráter especialmente peculiar dos atos judiciais emanados do Tri‑
bunal Superior Eleitoral, os quais regem normativamente todo o
processo eleitoral, é razoável concluir que a Constituição também
alberga uma norma, ainda que implícita, que traduz o postulado da
segurança jurídica como princípio da anterioridade ou anualidade
em relação à alteração da jurisprudência do TSE. Assim, as decisões
do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral (ou
logo após o seu encerramento), impliquem mudança de jurisprudên‑
cia (e dessa forma repercutam sobre a segurança jurídica) não têm
aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia
sobre outros casos no pleito eleitoral posterior.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  676


RE 637.485

III – Repercussão geral. Reconhecida a repercussão geral das


questões constitucionais atinentes à (1) elegibilidade para o cargo de
prefeito de cidadão que já exerceu dois mandatos consecutivos em
cargo da mesma natureza em Município diverso (interpretação do
art. 14, § 5º, da Constituição) e (2) retroatividade ou aplicabilidade
imediata no curso do período eleitoral da decisão do Tribunal Supe‑
rior Eleitoral que implica mudança de sua jurisprudência, de modo a
permitir aos tribunais a adoção dos procedimentos relacionados ao
exercício de retratação ou declaração de inadmissibilidade dos recur‑
sos repetitivos, sempre que as decisões recorridas contrariarem ou se
pautarem pela orientação ora firmada.
IV – Efeitos do provimento do recurso extraordinário. Re­­
curso extraordinário provido para: (1) resolver o caso concreto no sen‑
tido de que a decisão do TSE no REspe 41.980-06, apesar de ter enten‑
dido corretamente que é inelegível para o cargo de prefeito o cidadão
que exerceu por dois mandatos consecutivos cargo de mesma natureza
em Município diverso, não pode incidir sobre o diploma regularmente
concedido ao recorrente, vencedor das eleições de 2008 para prefeito
do Município de Valença/RJ; (2) deixar assentados, sob o regime da
repercussão geral, os seguintes entendimentos: (2.1) o art. 14, § 5º, da
Constituição deve ser interpretado no sentido de que a proibição da
segunda reeleição é absoluta e torna inelegível para determinado cargo
de chefe do Poder Executivo o cidadão que já exerceu dois mandatos
consecutivos (reeleito uma única vez) em cargo da mesma natureza,
ainda que em ente da Federação diverso; (2.2) as decisões do Tribunal
Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral ou logo após o seu
encerramento, impliquem mudança de jurisprudência não têm apli‑
cabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre
outros casos no pleito eleitoral posterior.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo Tri‑
bunal Federal, em sessão plenária, sob a presidência do ministro Ayres Britto, na
conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade
de votos, reconhecer a repercussão geral das questões constitucionais e, por
maioria, dar provimento ao recurso e julgar inaplicável a alteração da jurispru‑
dência do Tribunal Superior Eleitoral quanto à interpretação do § 5º do art. 14

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  677


RE 637.485

da Constituição Federal nas eleições de 2008, nos termos do voto do relator,


ministro Gilmar Mendes.
Brasília, 1º de agosto de 2012 — Gilmar Mendes, relator.

RELATÓRIO
O sr. ministro Gilmar Mendes: Vicente de Paula de Souza Guedes interpõe re­­
curso extraordinário contra acórdão do Tribunal Superior Eleitoral que, nos autos
do REspe 41.980-06, negou provimento a agravo regimental interposto contra
decisão monocrática do ministro Felix Fischer, que proveu recurso especial e
cassou o diploma do autor como prefeito do Município de Valença/RJ.
A petição do recurso relata que o autor, após exercer dois mandatos consecu‑
tivos como prefeito do Município de Rio das Flores/RJ, nos períodos 2001-2004 e
2005-2008, transferiu seu domicílio eleitoral e, atendendo às regras quanto à desin‑
compatibilização, candidatou-se ao cargo de prefeito do Município de Valença/RJ
no pleito de 2008. Na época, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral era
firme em considerar que, nessas hipóteses, não se haveria de cogitar da falta de
condição de elegibilidade prevista no art. 14, § 5º, da Constituição (reeleição), pois
a candidatura se daria em Município diverso. A candidatura sequer foi impugnada
e, transcorrido um período de exitosa campanha, o autor saiu vitorioso no pleito.
Ocorre que, em 17 de dezembro de 2008, já no período de diplomação, o TSE
alterou sua jurisprudência e passou a considerar tal hipótese como vedada pelo
art. 14, § 5º, da Constituição. Em razão dessa mudança jurisprudencial, o Minis‑
tério Público Eleitoral e a coligação adversária naquele pleito impugnaram a
expedição do diploma do autor, com fundamento no art. 262, I, do Código Elei‑
toral. O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, com base na anterior juris‑
prudência do TSE, negou provimento ao recurso e manteve o diploma do autor.
Porém, no TSE, o recurso especial eleitoral foi julgado procedente por decisão
monocrática do ministro Felix Fischer. Contra essa decisão monocrática foi inter‑
posto agravo regimental, o qual foi negado pelo TSE, em decisão cuja ementa traz
os seguintes trechos representativos do novo entendimento adotado:
2. A partir do julgamento do Recurso Especial n. 32.507/AL, em 17-12-2008, esta c.
Corte deu nova interpretação ao art. 14, § 5º, da Constituição Federal, passando
a entender que, no Brasil, qualquer Chefe de Poder Executivo – Presidente da
República, Governador de Estado e Prefeito Municipal – somente pode exercer
dois mandatos consecutivos nesse cargo. Assim, concluiu que não é possível o
exercício de terceiro mandato subsequente para o cargo de prefeito, ainda que
em município diverso.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  678


RE 637.485

3. A faculdade de transferência de domicílio eleitoral não pode ser utilizada para


fraudar a vedação contida no art. 14, § 5º, da Constituição Federal, de forma a per‑
mitir que prefeitos concorram sucessivamente e ilimitadamente ao mesmo cargo
em diferentes municípios, criando a figura do “prefeito profissional”.
4. A nova interpretação do art. 14, § 5º, da Constituição Federal adotada pelo e.
TSE no julgamento dos Recursos Especiais 32.507/AL e 32.539/AL em 2008 é a que
deve prevalecer, tendo em vista a observância ao princípio republicano, fundado
nas ideias de eletividade, temporariedade e responsabilidade dos governantes.

Opostos embargos de declaração, estes foram rejeitados. O recurso extraordi‑


nário ataca essa decisão e alega violação ao art. 14, §§ 5º e 6º, e ao art. 5º, caput, da
Constituição, ressaltando a repercussão geral da questão constitucional debatida.
Alega o autor que o entendimento do TSE está equivocado, pois, na aplicação
do art. 14, § 5º, da Constituição, não leva em conta a distinção entre reeleição para
o mesmo cargo e reeleição para cargo de mesma natureza, distinção esta que já
está estabelecida na jurisprudência do STF, especificamente no RE 100.825, rel.
min. Aldir Passarinho (DJ de 7-12-1984), de onde se extrai o seguinte trecho: “(...)
a inelegibilidade prevista na letra a, ainda do § 1º do art. 151, há de ser compreen‑
dida como descabendo a reeleição para o mesmo cargo que o candidato já vinha
ocupando (...). Com este não pode ser confundido o cargo de prefeito de um novo
Município, pois aí, embora se trate de cargo de mesma natureza e resultante do
antigo Município, é um outro cargo”. Esse entendimento, segundo o autor, também
teria sido adotado pelo STF no julgamento do AI 531.089/AM, rel. min. Joaquim
Barbosa. Cita, ainda, a Consulta 706 do TSE, rel. min. Sepúlveda Pertence, que
demonstraria que o antigo entendimento do TSE é que estaria correto em face do
que dispõem os §§ 5º e 6º do art. 14 da Constituição. Em verdade, sustenta o autor:
“uma vez que a proibição de reeleição tem a ver com o valor republicano de impe‑
dir a indefinida continuidade de uma pessoa na condução de uma determinada
comunidade, não faz sentido algum vislumbrar que essa mesma pessoa não possa
governar o destino de outra comunidade, sobre qual o fato de o candidato ter sido
Prefeito de outro Município não exerce influência apta a desequilibrar o pleito”.
O autor aduz, ainda, que a aplicação do novo entendimento do TSE às eleições
de 2008 viola o princípio da segurança jurídica (art. 5º, caput, da Constituição).
Ressalta que o registro de sua candidatura sequer foi impugnado e que o recurso
que cassou seu diploma foi interposto com base em uma nova orientação jurispru‑
dencial fixada já no período de diplomação dos eleitos. Assim, defende que, caso
este Tribunal entenda por albergar a nova orientação do TSE, o recurso extraor‑
dinário deve ser provido para que seja observado o princípio da segurança jurí‑
dica, “com a consequente modulação dos efeitos da nova interpretação da norma

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  679


RE 637.485

constitucional, respeitando-se a manifestação do eleitorado que confiou na circuns‑


tância de a Justiça Eleitoral ter deferido o registro da candidatura do candidato”.
Registre-se que, em decisão proferida na AC 2.788, em 4 de fevereiro de 2011,
deferi o pedido de medida cautelar para conceder o efeito suspensivo ao recurso
extraordinário. Em consequência, foi suspenso o pleito eleitoral marcado para o
dia 6 de fevereiro de 2011 no Município de Valença/RJ, assegurando-se ao autor
o exercício do mandato de prefeito daquele Município até o julgamento final do
recurso extraordinário. Eis os fundamentos dessa decisão:
A análise sumária do caso apresentado nestes autos revela a presença dos pressu‑
postos para a concessão da medida cautelar.
O recurso extraordinário já foi admitido pela Presidência do Tribunal Superior
Eleitoral e versa sobre importante questão constitucional relativa à interpretação
do § 5º do art. 14 da Constituição, que trata do instituto da reeleição. A plausibi‑
lidade da tese defendida pelo autor encontra respaldo em antigo julgado desta
Corte, cuja ementa assim dispõe:
“Eleitoral. Constituição de Município. Desmembramento territorial de um
Município. Eleição de prefeito municipal. Inelegibilidade e irreelegibilidade.
O prefeito de um Município – na hipótese dos autos, o Município de Curiúva, no
Paraná – pode, desde que se desincompatibilize oportunamente, candidatar‑
-se ao cargo de prefeito de outro Município – no caso o de Figueira, no mesmo
Estado –, embora este tenha resultado do desmembramento territorial daquele
primeiro. Não se tornou o candidato inelegível, por não ter ocorrido a substi‑
tuição prevista na letra b do § 1º do art. 151 da Constituição Federal, e em face
de haver ele sido afastado tempestivamente do exercício do cargo (letra c do
§ 1º do mesmo artigo), e a irreelegibilidade prevista na letra a, ainda do § 1º do
art. 151, há de ser compreendida como descabendo a reeleição para o mesmo
cargo que o candidato já vinha ocupando, ou seja, o de prefeito de Curiúva.
Com este não pode ser confundido o cargo de prefeito de um novo Município,
pois aí, embora se trate de cargo da mesma natureza e resultante do desmem‑
bramento do antigo Município, é um outro cargo.” (RE 100.825, rel. p/ o ac. min.
Aldir Passarinho, DJ de 7-12-1984).
Ademais, impressiona o fato de o autor ter regularmente transferido seu domicílio
eleitoral, ter-se desincompatibilizado, registrado sua candidatura e participado
do período de campanha e de todo o pleito eleitoral, sem qualquer contestação
ou impugnação por parte do Ministério Público Eleitoral ou de qualquer partido
ou coligação. As regras do processo eleitoral vigentes à época, de acordo com a
jurisprudência da Justiça Eleitoral amplamente aceita naquele período, davam
ao autor plenas condições de elegibilidade. E, neste ponto, é importante enfatizar
que as condições de elegibilidade são aferidas na data do registro da candidatura,
conforme o entendimento pacificado na jurisprudência do TSE e positivado no
atual § 1º do art. 11 da Lei 9.504/1997 (redação conferida pela Lei 12.034/2009).

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  680


RE 637.485

Apenas a mudança ocorrida em antiga jurisprudência do TSE, já no período de


diplomação, teria justificado o recurso, manejado pelo Ministério Público e pela
coligação adversária, contra a expedição do diploma do autor. O quadro fático
apresentado nestes autos está a revelar uma séria questão constitucional que
envolve um princípio muito caro no Estado de Direito, que é a segurança jurídica.
Parece extremamente plausível considerar, tal como o fez o autor, que mudan‑
ças jurisprudenciais ocorridas uma vez encerrado o pleito eleitoral não devam
retroagir para atingir aqueles que dele participaram de forma regular (conforme
a interpretação jurisprudencial das normas eleitorais vigentes à época do registro
de sua candidatura) e nele se sagraram vitoriosos.
Essas questões constitucionais devem ser apreciadas pelo Supremo Tribunal
Federal, o que justifica a cautela para assegurar o regular e efetivo julgamento do
recurso extraordinário.
A urgência da pretensão cautelar é evidente, tendo em vista o pleito eleitoral
municipal cuja realização ocorrerá no próximo dia 6 de fevereiro de 2011. Ressalte‑
-se, ainda, o fato de o autor estar afastado do exercício do mandato para o qual foi
eleito. Deve-se ter em mente, como inclusive já decidiu o Tribunal Superior Eleitoral
em diversas ocasiões (Ac. 1.012, de 18-10-2001, rel. min. Fernando Neves; AMS 3.345,
de 19-5-2005, rel. min. Humberto Gomes de Barros; Ac. 317, de 19-8-1997, rel. min.
Costa Leite; MS 3.349, de 25-5-2005, rel. min. Gilmar Mendes; Ac. 341, de 31-3-1998,
rel. min. Maurício Corrêa), que a pendência de recurso no qual se discute a cassa‑
ção do mandato recomenda que novas eleições não sejam realizadas até que haja
um julgamento definitivo, evitando-se alterações sucessivas no exercício do cargo.
Essas breves razões, desenvolvidas em juízo preliminar sobre a controvérsia, são
suficientes para a concessão da medida cautelar, a qual deverá ser submetida ao
referendo do órgão colegiado.
Ante o exposto, defiro o pedido de medida cautelar e concedo o efeito suspensivo
ao recurso extraordinário interposto nos autos do REspe 41.980-06 e já admitido
pela Presidência do Tribunal Superior Eleitoral. Em consequência, deverá ser sus‑
penso o pleito eleitoral marcado para o próximo dia 6 de fevereiro de 2011 no Muni‑
cípio de Valença/RJ, assegurando-se ao autor o exercício do mandato de prefeito
daquele Município, até o julgamento final do recurso extraordinário.

Contra essa decisão na AC 2.788 foi interposto agravo regimental.


O Ministério Público Eleitoral apresentou contrarrazões, pugnando pelo des‑
provimento do recurso (fls. 811-821).
O parecer do procurador-geral da República é pelo desprovimento do recurso
extraordinário.
É o relatório.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  681


RE 637.485

VOTO
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator):

1. Questões constitucionais e repercussão geral


O presente recurso discute duas questões constitucionais distintas, não obs‑
tante estejam inter-relacionadas no caso concreto.
A primeira diz respeito à controvérsia quanto à interpretação do § 5º do art. 14
da Constituição, o qual permite uma única reeleição subsequente dos ocupantes
dos cargos de chefe do Poder Executivo (no caso, os prefeitos) ou de quem os
houver sucedido ou substituído no curso do mandato. Discute-se, por um lado,
se tal preceito constitucional permitiria a candidatura ao cargo de prefeito do
Município X de cidadão que ocupou, por dois mandatos consecutivos (reeleito
uma única vez), cargo da mesma natureza no Município Y; ou se, por outro lado, a
norma constitucional evidencia uma vedação absoluta à segunda reeleição para
cargo de mesma natureza, mesmo que a nova eleição ocorra (mediante prévia
alteração do domicílio eleitoral) em ente da Federação diverso daquele em que
o cidadão ocupara o cargo em referência.
A segunda questão reside na importante relação entre mudança jurispruden‑
cial e segurança jurídica e perscruta os problemas da retroação e da aplicabili‑
dade imediata dos efeitos das decisões que impliquem modificação de enten‑
dimento do órgão de cúpula da Justiça Eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral.
Pergunta-se se o princípio da segurança jurídica, também em sua face de princí‑
pio da confiança, pode constituir uma barreira normativa contra a retroatividade
e a aplicabilidade imediata dessas decisões que implicam câmbio jurisprudencial
em matéria eleitoral, especialmente no curso do período eleitoral.
Como se pode facilmente constatar, tais questões inegavelmente ultrapassam
os lindes do caso concreto discutido nos autos do presente recurso extraordiná‑
rio, de modo que a decisão desta Corte que defina as soluções para ambas terá
repercussão sobre todas as demais questões semelhantes. O requisito da reper‑
cussão geral, portanto, está plenamente preenchido no presente caso.
Também estão presentes os demais requisitos processuais (intrínsecos e
extrínsecos) de admissibilidade do recurso extraordinário, o que torna possível
o pleno conhecimento e análise de mérito das questões constitucionais referidas.

2. A interpretação do art. 14, § 5º, da Constituição


O art. 14, § 5º, da Constituição, com a redação determinada pela Emenda Consti‑
tucional 16/1997, dispõe que “o Presidente da República, os Governadores de Estado

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  682


RE 637.485

e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido ou substituído no


curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente”.
Como é sabido, a Emenda Constitucional 16, de 1997, instituiu a reeleição para
os cargos de chefe do Poder Executivo, permitindo que ela ocorra apenas uma
única vez. O novo texto do § 5º do art. 14 foi objeto de apreciação do Supremo
Tribunal Federal na ADI 1.805 MC (rel. min. Néri da Silveira, julgado em 26-3-
1998). Na ocasião, o Tribunal indeferiu o pedido de medida cautelar, acolhendo o
voto substancioso do ministro Néri da Silveira, que realizou um profundo estudo
sobre o instituto da reeleição. Julgado o pedido de medida cautelar, o mérito da
ação continua pendente de apreciação. Após a aposentadoria do ministro Néri
da Silveira, houve substituição de relator por três vezes e a ação encontra-se
atualmente sob a relatoria da ministra Rosa Weber.
Apesar de estar pendente a análise dessa ADI 1.805, entendo que o Tribunal, ao
julgar o presente caso, pode utilizar como fundamento de sua decisão o § 5º do
art. 14 da Constituição, proferindo a interpretação que entenda mais adequada
para tal dispositivo constitucional. O futuro e eventual julgamento de mérito
dessa ADI 1.805 não é óbice ao pleno conhecimento deste recurso extraordinário,
pois aqui se trata de analisar o texto constitucional em sua aplicação concreta,
pressuposta a sua plena vigência normativa.
Com efeito, não se podem desprezar os quatorze anos que se passaram desde
o julgamento da medida cautelar, em que a norma do art. 14, § 5º, manteve plena
vigência e teve ampla aplicação. Realizadas quatro eleições gerais (1998, 2002,
2006, 2010) e três eleições municipais (2000, 2004, 2008) sob a égide da norma
introduzida pela EC 16/1997, parece impensável uma decisão de mérito desta
Corte que venha a interferir nesse estado de coisas já conformado e consoli‑
dado. Portanto, trazido a esta Corte um caso concreto (das eleições municipais
de 2008) em que se requer seja dada a interpretação adequada ao art. 14, § 5º,
da Constituição, este Tribunal deve efetivamente conhecer e decidir o caso em
questão, independentemente do eventual julgamento de mérito da ADI 1.805.
Feitas essas considerações iniciais, analisemos o art. 14, § 5º, da Constituição.
O instituto da reeleição criado pela EC 16/1997 constituiu mais uma condição
de elegibilidade do cidadão. Como esclarecido e definido pelo Supremo Tribunal
Federal no julgamento da referida ADI 1.805, na redação original, o § 5º do art. 14
da Constituição perfazia uma causa de inelegibilidade absoluta, na medida em
que proibia a reeleição dos ocupantes dos cargos de chefe do Poder Executivo.
Com a EC 16/1997, o dispositivo passou a ter a natureza de norma de elegi-
bilidade. Assim, na dicção do Tribunal, “não se tratando, no § 5º do art. 14 da
Constituição, na redação dada pela Emenda Constitucional 16/1997, de caso de

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RE 637.485

inelegibilidade, mas, sim, de hipótese em que se estipula ser possível a elegibili‑


dade dos chefes dos Poderes Executivos federal, estadual, distrital e municipal e
dos que os hajam sucedido ou substituído no curso dos mandatos, para o mesmo
cargo, para um período subsequente, não cabe exigir-lhes desincompatibilização
para concorrer ao segundo mandato, assim constitucionalmente autorizado”. Por‑
tanto, concluiu a Corte: “a exegese conferida ao § 5º do art. 14 da Constituição, na
redação da Emenda Constitucional 16/1997, ao não exigir desincompatibilização
do titular para concorrer à reeleição, não ofende o art. 60, § 4º, IV, da Constituição”.
A reelegibilidade, como vem asseverado pelo ministro Carlos Velloso, assenta‑
-se em um postulado de continuidade administrativa. “É dizer [nas palavras do
ministro Carlos Velloso] a permissão para a reeleição do chefe do Executivo, nos
seus diversos graus, assenta-se na presunção de que a continuidade administra‑
tiva, de regra, é necessária” (ADI 1.805 MC, acima referida). Por outro lado, não se
olvide que a Constituição de 1988, mais especificamente a Emenda Constitucional
16/1997, ao inovar, criando o instituto da reeleição (até então não previsto na histó‑
ria republicana brasileira1), o fez permitindo apenas uma única nova eleição para
o cargo de chefe do Poder Executivo de mesma natureza. Assim, contemplou-se
não somente o postulado da continuidade administrativa, mas também o princípio
republicano que impede a perpetuação de uma mesma pessoa ou grupo no poder,
chegando-se à equação cujo denominador comum está hoje disposto no art. 14,
§ 5º, da Constituição: permite-se a reeleição, porém apenas por uma única vez.
A clareza da norma quanto à unicidade da reeleição não afasta diversas questões
quanto à sua interpretação e aplicação aos variados casos concretos. A jurisprudên‑
cia desta Corte, por exemplo, já teve a oportunidade de enfrentar diversos casos em
que se colocaram difíceis questões quanto à interpretação/aplicação desse insti‑
tuto da reeleição (RE 597.994, rel. p/ o ac. min. Eros Grau, julgamento em 4-6-2009,

1 Assim esclareceu o ministro Pertence no julgamento do RE 344.882 (DJ de 6-8-2004): “A evo-


lução do direito eleitoral brasileiro, no campo das inelegibilidades, girou durante décadas em
torno do princípio basilar da vedação de reeleição para o período imediato dos titulares do
Poder Executivo: regra introduzida, como única previsão constitucional de inelegibilidade, na
primeira Carta Política da República (Constituição de 1891, art. 47, § 4º), a proibição se manteve
incólume ao advento dos textos posteriores, incluídos os que regeram as fases de mais acen-
drado autoritarismo (assim, na Carta de 1937, os arts. 75 a 84, embora equívocos, não chegaram
à admissão explícita da reeleição; e a de 1969 – art. 151, § 1º, a – manteve-lhe o veto absoluto).
As inspirações da irreelegibilidade dos titulares serviram de explicação legitimadora da ine-
legibilidade de seus familiares próximos, de modo a obviar que, por meio da eleição deles, se
pudesse conduzir ao continuísmo familiar. Com essa tradição uniforme do constitucionalismo
republicano, rompeu, entretanto, a EC 16/1997, que, com a norma permissiva do § 5º do art. 14
da CF, explicitou a viabilidade de uma reeleição imediata para os chefes do Executivo”.

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RE 637.485

Plenário, DJE de 28-8-2009, com repercussão geral; RE 344.882, rel. min. Sepúlveda
Pertence, julgamento em 7-4-2003, Plenário, DJ de 6-8-2004; RE 366.488, rel. min.
Carlos Velloso, julgamento em 4-10-2005, Segunda Turma, DJ de 28-10-2005).
Interessante questão diz respeito à elegibilidade de cidadão que, tendo exer‑
cido por dois períodos consecutivos o cargo de prefeito do Município X, transfere
regularmente seu domicílio eleitoral para o Município Y (comumente o Municí‑
pio Y é limítrofe ou resulta de desmembramento do Município X) e tenta nova
eleição nesse último em cargo de mesma natureza do anterior.
Mesmo antes do advento do instituto da reeleição, a questão já se colocava
ante a regra da inelegibilidade absoluta (“irreelegibilidade”) de quem já havia
exercido cargos de chefe do Poder Executivo. Sob a égide da Constituição de
1967/69, no julgamento do RE 100.825 (rel. p/ o ac. min. Aldir Passarinho, DJ de
7-12-1984), o Supremo Tribunal Federal enfrentou a questão de saber se o prefeito
de um Município – na hipótese dos autos, o Município de Curiúva, no Paraná –
poderia, desde que se desincompatibilizasse oportunamente, candidatar-se
ao cargo de prefeito de outro Município – no caso, o Município de Figueira, no
mesmo Estado, resultante do desmembramento do Município de Curiúva. Na oca‑
sião, a Corte entendeu que a irreelegibilidade prevista na letra a do § 1º do art. 151
da Constituição de 1967/69 deve ser compreendida como proibitiva da reeleição
para o mesmo cargo. No caso dos autos, o cargo de prefeito de Figueira, embora
se tratasse de cargo da mesma natureza e resultante do desmembramento do
antigo Município, seria um outro cargo, na visão do Tribunal. Ao proferir voto‑
-vista, o ministro Oscar Corrêa teceu as seguintes considerações:
Há, pois, que lhe buscar o sentido exato, que é o de vedação de reeleição. E, obvia‑
mente, não há de ser senão de eleger, de novo, para o mesmo lugar. Não se reelege
quem se elege, de novo, para outro cargo. Quando se afirma que alguém se reelegeu,
não se precisa acrescentar nada, pois, no vocábulo, está implícita a exigência de
ser para a mesma função, cargo. Ou não seria reeleição.

O ministro Moreira Alves assim se manifestou sobre a questão:


A questão da irreelegibilidade é de natureza estritamente objetiva: a Constituição
impede que alguém, por duas vezes consecutivas, exerça o mesmo cargo. Ora, no
caso presente, os cargos são inequivocamente diversos, o que afasta a incidência
da vedação constitucional.

A ementa do julgado está assim transcrita:


Eleitoral. Constituição de Município. Desmembramento territorial de um Municí‑
pio. Eleição de prefeito municipal. Inelegibilidade e irreelegibilidade. O prefeito de

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um Município – na hipótese dos autos, o Município de Curiúva, no Paraná – pode,


desde que se desincompatibilize oportunamente, candidatar-se ao cargo de pre‑
feito de outro Município – no caso o de Figueira, no mesmo Estado –, embora este
tenha resultado do desmembramento territorial daquele primeiro. Não se tornou
o candidato inelegível, por não ter ocorrido a substituição prevista na letra b do
§ 1º do art. 151 da Constituição Federal, e em face de haver ele sido afastado tem‑
pestivamente do exercício do cargo (letra c do § 1º do mesmo artigo), e a irreelegi-
bilidade prevista na letra “a”, ainda do § 1º do art. 151, há de ser compreendida como
descabendo a reeleição para o mesmo cargo que o candidato já vinha ocupando, ou
seja, o de prefeito de Curiúva. Com este não pode ser confundido o cargo de prefeito
de um novo Município, pois aí, embora se trate de cargo da mesma natureza e resul-
tante do desmembramento do antigo Município, é um outro cargo. [RE 100.825, rel.
p/ o ac. min. Aldir Passarinho, DJ de 7-12-1984 – Ênfases acrescidas.]

No presente caso, discute-se sobre a elegibilidade para o cargo de prefeito de


cidadão que já exerceu dois mandatos consecutivos em cargo da mesma natureza
em Município diverso (interpretação do art. 14, § 5º, da Constituição).
Sobre a questão, o Tribunal Superior Eleitoral manteve por muitos anos enten‑
dimento pacífico no sentido de que o instituto da reeleição diz respeito à candida‑
tura ao mesmo cargo e no mesmo território, de modo que não haveria proibição
a que o prefeito reeleito em determinado Município se candidatasse a cargo de
mesma natureza em outro Município, vizinho ou não, em período subsequente,
desde que transferisse regularmente seu domicílio eleitoral e se afastasse do
cargo seis meses antes do pleito. A exceção a essa regra ocorreria apenas nas
hipóteses de Município desmembrado, incorporado ou que resultasse de fusão
em relação ao Município anterior (Acórdão 21.564/DF, rel. min. Carlos Velloso,
DJ de 5-12-2003; Acórdão 21.487/DF, rel. min. Barros Monteiro; DJ de 16-9-2003;
CTA 1.016, Resolução 21.706, rel. min. Carlos Velloso, DJ de 7-5-2004; CTA 841, rel.
min. Fernando Neves, DJ de 27-2-2003).
Em sessão do dia 17 de dezembro de 2008, o Tribunal Superior Eleitoral, ao
julgar o Recurso Especial Eleitoral 32.507 (rel. min. Eros Grau), modificou sua
antiga jurisprudência, passando a adotar o seguinte entendimento, bem resu‑
mido em trecho do voto do ministro Carlos Britto:
(...) o princípio republicano está a inspirar a seguinte interpretação basilar dos
§§ 5º e 6º do art. 14 da Carta Política: somente é possível eleger-se para o cargo de
“prefeito municipal” por duas vezes consecutivas. Após isso, apenas permite-se,
respeitado o prazo de desincompatibilização de 6 meses, a candidatura a “outro
cargo”, ou seja, a mandato legislativo, ou aos cargos de Governador de Estado ou
de Presidente da República; não mais de Prefeito Municipal, portanto.

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RE 637.485

Na mesma ocasião, o TSE julgou o Recurso Especial Eleitoral 32.539 e igual‑


mente adotou o novo entendimento, resumido na seguinte ementa:
Recurso especial eleitoral. Mudança de domicílio eleitoral. “Prefeito itinerante”. Exercí-
cio consecutivo de mais de dois mandatos de chefia do Executivo em Municípios dife-
rentes. Impossibilidade. Indevida perpetuação no poder. Ofensa aos §§ 5º e 6º do art. 14
da Constituição da República. Nova jurisprudência do TSE. Não se pode, mediante a
prática de ato formalmente lícito (mudança de domicílio eleitoral), alcançar finali‑
dades incompatíveis com a Constituição: a perpetuação no poder e o apoderamento
de unidades federadas para a formação de clãs políticos ou hegemonias familiares.
O princípio republicano está a inspirar a seguinte interpretação basilar dos §§ 5º e
6º do art. 14 da Carta Política: somente é possível eleger-se para o cargo de “prefeito
municipal” por duas vezes consecutivas. Após isso, apenas permite-se, respeitado o
prazo de desincompatibilização de 6 meses, a candidatura a “outro cargo”, ou seja,
a mandato legislativo, ou aos cargos de Governador de Estado ou de Presidente da
República; não mais de Prefeito Municipal, portanto. Nova orientação jurispruden‑
cial do Tribunal Superior Eleitoral, firmada no REspe 32.507.

O novo entendimento do TSE parte do pressuposto de que a mudança do


domicílio eleitoral para o Município Y, por quem já exerceu dois mandatos con‑
secutivos como prefeito do Município X, configura fraude à regra constitucional
que proíbe uma segunda reeleição (art. 14, § 5º). A prática de um ato aparente‑
mente lícito (a mudança do domicílio eleitoral) configuraria, em verdade, um
desvio de finalidade, uma clara burla à regra constitucional visando à monopo‑
lização do poder local.
Analisemos os fundamentos da decisão do TSE para verificar a sua con­
sistência.
O argumento baseado nas noções de “fraude à lei” (à regra constitucio‑
nal do art. 14, § 5º), “abuso do direito” (direito de transferir o domicílio eleito‑
ral) e “desvio de finalidade” (finalidade do direito à fixação do domicílio eleitoral) é
plenamente válido quando utilizado em casos concretos cujas circunstâncias fáti‑
cas demostrem um estado de coisas com as seguintes características: 1) os Muni‑
cípios possuem territórios limítrofes ou muito próximos, permitindo pressupor a
existência de uma mesma microrregião eleitoral, formada por um eleitorado com
características comuns e igualmente influenciado pelos mesmos grupos políticos
atuantes nessa região; 2) os Municípios têm uma origem comum, resultantes de
desmembramento, incorporação ou fusão, conforme o art. 18, § 4º, da Constitui‑
ção. Nessas hipóteses, é possível criar-se uma presunção jurídica (juris tantum) no
sentido de que o ato de transferência do domicílio eleitoral do Município X para
o Município Y, por parte do cidadão que, por duas vezes consecutivas, exerceu

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RE 637.485

o mandato de chefe do Poder Executivo no Município X, foi realizado em fraude


à regra constitucional do art. 14, § 5º, visando alcançar uma finalidade com ela
incompatível, isto é, a perpetuação de uma mesma pessoa no poder local.
Não obstante, o argumento não é generalizável e, dessa forma, não é válido
para outras várias situações, como as que se configuram quando os Municípios:
3) pertencem ao mesmo Estado-membro, mas são territorialmente distantes
o bastante para se pressupor que possuem bases eleitorais e grupos políticos
completamente distintos; e 4) estão situados em diferentes Estados-membros e
estão territorialmente distantes.
Ressalte-se que tais hipóteses são plenamente possíveis, em razão do conceito
amplo de domicílio eleitoral adotado pela Justiça Eleitoral, que permite que o
cidadão possa legitimamente manter, ao longo de sua vida política, distintos
domicílios conforme mantenha vínculos econômicos ou afetivos em diversas
localidades dentro do território brasileiro. Pense-se, por exemplo, no filho de pais
separados, um (o pai) residindo no Acre e o outro (a mãe) com domicílio residen‑
cial fixo no Rio Grande do Sul, fato que legitima o desenvolvimento simultâneo de
dois fortes vínculos domiciliares (no conceito do direito eleitoral) por um mesmo
cidadão e, dessa forma, torna possível a sua candidatura tanto no Acre como no
Rio Grande do Sul. Imagine-se, igualmente, o cidadão que passou os vinte pri‑
meiros anos de vida em sua cidade natal no interior do Ceará e depois resolveu
ir cursar a universidade e construir sua vida profissional em São Paulo, tornando
legítima a fixação de seu domicílio eleitoral tanto em um como em outro Estado
da Federação. As situações são diversas e variadas e, nesses casos, a existência de
dois domicílios eleitorais não é fruto de qualquer estratégia política de grupos ou
partidos, mas um simples resultado da contingência da vida privada individual.
O fato é que, nas hipóteses acima descritas (3 e 4), não se poderia pressupor
que a transferência de domicílio, com vistas à nova eleição em outro Município,
visaria à perpetuação do mesmo poder político na mesma microrregião eleitoral.
A antiga jurisprudência do TSE, apesar de permitir uma “terceira” eleição
em Município diverso, sempre excepcionou as hipóteses em que os Municípios
envolvidos estivessem localizados numa mesma microrregião eleitoral e fossem
resultados de desmembramento, incorporação ou fusão de Municípios.
Portanto, não seria inteiramente novo, ou pelo menos não seria razão sufi‑
ciente para uma modificação radical na jurisprudência, o argumento que constata
a fraude à regra constitucional pelo ato de transferência do domicílio eleitoral
visando à perpetuação de um mesmo indivíduo ou grupo político no poder local.
O argumento que assim se constrói com base na monopolização do poder regional
ou no “apoderamento de unidades federadas” seria inválido quando aplicado às

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  688


RE 637.485

hipóteses acima descritas, em que o cidadão transfere seu domicílio de um Municí‑


pio no Acre para um Município no Rio Grande do Sul, ou do Ceará para São Paulo.
Como o entendimento jurisprudencial que se constrói deve valer não apenas
para os casos concretos específicos que são objeto das decisões paradigmas, mas
para todos os demais casos em tese, parece certo então que devemos procurar
fundamentos que sejam generalizáveis o bastante para justificar a aplicação do
entendimento fixado em casos futuros com as mesmas características.
Fossem as hipóteses de sucessivas reeleições em Municípios pertencentes a
uma mesma microrregião (hipóteses 1 e 2 acima explicadas), as únicas circuns‑
tâncias relevantes a serem tratadas pela jurisprudência, não haveria dúvida a
respeito da plena suficiência dos argumentos adotados pelo TSE. No entanto,
como explicado, a questão constitucional posta é mais ampla e abarca uma
gama mais variada de situações que não se circunscrevem à sucessiva eleição em
Municípios vizinhos, o que faria pressupor a monopolização do poder regional
ou local, em clara violação à Constituição.
Devemos, portanto, interpretar o art. 14, § 5º, da Constituição levando em
conta não apenas as situações específicas que, tal como a que foi descrita nos
presentes autos, caracterizam-se pela presença de Municípios pertencentes a
uma mesma microrregião eleitoral. O fato de os Municípios possuírem uma
mesma origem territorial não se torna circunstância relevante (ou pelo menos
unicamente relevante) para o deslinde da controvérsia e para a fixação de um
entendimento jurisprudencial generalizável o bastante para aplicação aos mais
variados casos futuros. É necessário levar em consideração todas as hipóteses,
isto é, tomar como parâmetro situações de transferência de domicílio e de ree‑
leição entre quaisquer Municípios.
Assim, a solução para a questão constitucional posta (elegibilidade para o
cargo de prefeito de cidadão que já exerceu dois mandatos consecutivos em cargo
da mesma natureza em Município diverso) deve se basear numa interpretação
do art. 14, § 5º, da Constituição que leve em conta o significado do instituto da
reeleição. Importante frisar que, para tanto, a própria jurisprudência desta Corte
já oferece os parâmetros necessários.
Como analisado acima, a jurisprudência do STF, a respeito do art. 14, § 5º, da
Constituição, entende que essa norma constitucional configura (1) uma condição
de elegibilidade, fundamenta-se em (2) um postulado de continuidade adminis-
trativa e, ao permitir a reeleição por apenas uma única vez, visa (3) impedir a
perpetuação no poder de uma mesma pessoa ou grupo.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da citada ADI 1.805, considerou
que o § 5º do art. 14 da Constituição, na sua redação original, perfazia uma causa

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  689


RE 637.485

de inelegibilidade absoluta, na medida em que proibia a reeleição “para os mesmos


cargos”, no período subsequente, dos ocupantes dos cargos de chefe do Poder
Executivo. Com a EC 16/1997, o dispositivo passou a ter a natureza de condição
de elegibilidade. A mudança foi, portanto, substancial.
Na redação anterior, ao instituir causa de inelegibilidade absoluta, a norma do
§ 5º do art. 14 da Constituição assumia caráter proibitivo, vedando a candidatura
daqueles cidadãos que se encaixavam em sua hipótese de aplicação: ter exercido
o cargo de presidente da República, governador de Estado ou do Distrito Federal,
os prefeitos e quem os houver sucedido ou substituído nos seis meses anteriores
ao pleito. Assim, tal como nas Constituições anteriores, a norma constitucional
estabelecia uma causa de inelegibilidade que, de acordo com a interpretação
adotada pelo STF no citado RE 100.825, vedava somente a candidatura para “o
mesmo cargo”, isto é, o cargo de chefe do Poder Executivo da unidade da Fe­­dera­
ção em questão. Daí o Tribunal realizar a diferenciação entre “cargo de mesma
natureza” e “mesmo cargo”. Nas palavras do ministro Oscar Corrêa, o sentido
exato da reeleição vedada (“irreelegibilidade” na expressão da Constituição de
1967/69) “não há de ser senão de eleger, de novo, para o mesmo lugar”. Até o
advento da EC 16/1997, portanto, a proibição de reeleição constituía verdadeira
causa de inelegibilidade absoluta e tinha o sentido de vedar a eleição para o
mesmo cargo, no mesmo domicílio eleitoral.
A EC 16/1997 passou a permitir a reeleição, ainda que por uma única vez,
e, dessa forma, estruturou o § 5º do art. 14 como uma permissão, isto é, perfa‑
zendo uma condição de elegibilidade para os cargos de chefe do Poder Executivo.
Assim, diz a norma que “o Presidente da República, os Governadores de Estado
e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido ou substituído no
curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente”.
A nova condição de elegibilidade fundamenta-se no postulado de continuidade
administrativa, que lhe dá sentido e, dessa forma, condiciona sua aplicação tele‑
ológica. Não estando presente a possibilidade e a necessidade da continuidade
administrativa, não se preenche o requisito essencial dessa condição de elegibi‑
lidade. Em outros termos, pode-se dizer que esse princípio constitui o substrato
da condição de aplicação da norma do art. 14, § 5º, da Constituição.
De toda forma, crucial é compreender que, como abordado acima, o instituto
da reeleição tem fundamento não somente no postulado da continuidade admi-
nistrativa, mas também no princípio republicano, que impede a perpetuação de
uma mesma pessoa ou grupo no poder. O princípio republicano condiciona a
interpretação e a aplicação do próprio comando da norma (resultado ou solu‑
ção normativa): a reeleição é permitida por apenas uma única vez. E é sensato

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  690


RE 637.485

considerar que esse princípio impede a terceira eleição não apenas no mesmo
Município, mas em relação a qualquer outro Município da Federação. Entendi‑
mento contrário tornaria possível a figura do denominado “prefeito itinerante”
ou do “prefeito profissional”, o que claramente é incompatível com esse princípio
republicano, que também traduz um postulado de temporariedade/alternância
do exercício do poder.
Portanto, ambos os princípios – continuidade administrativa e republica‑
nismo – condicionam a interpretação e a aplicação teleológicas do art. 14, § 5º,
da Constituição. A reeleição, como condição de elegibilidade, somente estará
presente nas hipóteses em que esses princípios forem igualmente contempla‑
dos e concretizados. Não estando presentes as hipóteses de incidência desses
princípios (é o que ocorre quando o caso envolve Municípios diversos) e, dessa
forma, não havendo a condição de elegibilidade, fica proibida a reeleição. Sig‑
nifica, ao fim e ao cabo, que o cidadão que exerce dois mandatos consecutivos
como prefeito de determinado Município fica inelegível para o cargo da mesma
natureza em qualquer outro Município da Federação.
Em suma, traduzindo em outros termos, pode-se placitar a interpretação
do art. 14, § 5º, da Constituição dada pelo ministro Carlos Britto no âmbito
do Tribunal Superior Eleitoral: “somente é possível eleger-se para o cargo de
prefeito municipal por duas vezes consecutivas. Após isso, apenas permite-
-se, respeitado o prazo de desincompatibilização de 6 meses, a candidatura
a outro cargo, ou seja, a mandato legislativo, ou aos cargos de Governador
de Estado ou de Presidente da República; não mais de Prefeito Municipal,
portanto” (Recurso Especial Eleitoral 32.359/AL).
Para se resolver o caso concreto, porém, não se pode deixar de analisar se a
decisão do TSE, ao modificar jurisprudência de longa data, respeitou o princípio
da segurança jurídica.

3. Mudança jurisprudencial e segurança jurídica


O caso apresentado nos autos é deveras peculiar. O recurso extraordinário
relata que o autor, após exercer dois mandatos consecutivos como prefeito do
Município de Rio das Flores/RJ, nos períodos de 2001-2004 e 2005-2008, transferiu
seu domicílio eleitoral e, atendendo às regras quanto à desincompatibilização,
candidatou-se ao cargo de prefeito do Município de Valença/RJ no pleito de 2008.
Na época, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral era firme em con‑
siderar que, nessas hipóteses, não se haveria de cogitar da falta de condição de
elegibilidade prevista no art. 14, § 5º, da Constituição, pois a candidatura se daria
em Município diverso.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  691


RE 637.485

Por isso, a candidatura do autor sequer chegou a ser impugnada pelo Ministé‑
rio Público ou por partido político. Assim, transcorrido todo o período de campa‑
nha, pressuposta a regularidade da candidatura, tudo conforme as normas (legais
e jurisprudenciais) vigentes à época, o autor saiu-se vitorioso no pleito eleitoral.
Em 17 de dezembro de 2008, já no período de diplomação dos eleitos, o TSE
alterou radicalmente sua jurisprudência e passou a considerar tal hipótese como
vedada pelo art. 14, § 5º, da Constituição.
Em razão dessa mudança jurisprudencial, o Ministério Público Eleitoral e a
coligação adversária naquele pleito impugnaram a expedição do diploma do
autor, com fundamento no art. 262, I, do Código Eleitoral. O Tribunal Regional
Eleitoral do Rio de Janeiro, com base na anterior jurisprudência do TSE, negou
provimento ao recurso e manteve o diploma do autor. Porém, no TSE, o recurso
especial eleitoral foi julgado procedente e, após rejeição dos recursos cabíveis,
determinou-se a cassação do diploma do autor.
O caso descrito, portanto, revela uma situação diferenciada, em que houve
regular registro da candidatura, legítima participação e vitória no pleito elei-
toral e efetiva diplomação do autor, tudo conforme as regras então vigentes
e sua interpretação pela Justiça Eleitoral. As circunstâncias levam a crer que
a alteração repentina e radical dessas regras, uma vez o período eleitoral já
praticamente encerrado, repercute drasticamente na segurança jurídica que
deve nortear o processo eleitoral, mais especificamente na confiança não
somente do cidadão candidato, mas também na confiança depositada no
sistema pelo cidadão-eleitor.
Em casos como este, em que se altera jurisprudência longamente ado-
tada, parece sensato considerar seriamente a necessidade de se modular os
efeitos da decisão, com base em razões de segurança jurídica. Essa tem sido
a praxe neste Supremo Tribunal Federal, quando há modificação radical de
jurisprudência.
Cito, a título de exemplo, a decisão proferida no Inq 687 QO (DJ de 9-11-2001),
em que o Tribunal cancelou o enunciado da Súmula 394, ressalvando os atos
praticados e as decisões já proferidas que nela se basearam.
No CC 7.204/MG, rel. min. Carlos Britto (julgamento em 29-6-2005), fixou-se
o entendimento de que “o Supremo Tribunal Federal, guardião-mor da Consti‑
tuição republicana, pode e deve, em prol da segurança jurídica, atribuir eficácia
prospectiva às suas decisões, com a delimitação precisa dos respectivos efeitos,
toda vez que proceder a revisões de jurisprudência definidora de competência
ex ratione materiae. O escopo é preservar os jurisdicionados de alterações juris‑
prudenciais que ocorram sem mudança formal do Magno Texto”.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  692


RE 637.485

Assim também ocorreu no julgamento do HC 82.959, em que declaramos, com


efeitos prospectivos, a inconstitucionalidade da vedação legal da progressão
de regime para os crimes hediondos (art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/1990, com radical
modificação da antiga jurisprudência do Tribunal).
Recordo, igualmente, o importante e emblemático caso da fidelidade par-
tidária, no qual esta Corte, ante a radical mudança que se operava, naquele
momento, em antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, e com base
em razões de segurança jurídica, entendeu que os efeitos de sua decisão deveriam
ser modulados no tempo, fixando o marco temporal desde o qual tais efeitos
pudessem ser efetivamente produzidos, especificamente a data da decisão do
Tribunal Superior Eleitoral na Consulta 1.398/2007, rel. min. Cesar Asfor Rocha,
que ocorreu na sessão do dia 27 de março de 2007.
Ressalte-se, neste ponto, que não se trata aqui de declaração de incons-
titucionalidade em controle abstrato, a qual pode suscitar a modulação dos
efeitos da decisão mediante a aplicação do art. 27 da Lei 9.868/1999. O caso é
de substancial mudança de jurisprudência, decorrente de nova interpretação
do texto constitucional, o que impõe ao Tribunal, tendo em vista razões de
segurança jurídica, a tarefa de proceder a uma ponderação das consequên-
cias e o devido ajuste do resultado, adotando a técnica de decisão que possa
melhor traduzir a mutação constitucional operada. Esse entendimento ficou
bem esclarecido no julgamento do RE 353.657/PR, rel. min. Marco Aurélio, e do
RE 370.682/SC, rel. min. Ilmar Galvão (caso IPI alíquota zero).
Assim, também o Tribunal Superior Eleitoral, quando modifica sua juris-
prudência, especialmente no decorrer do período eleitoral, deve ajustar o
resultado de sua decisão, em razão da necessária preservação da segurança
jurídica que deve lastrear a realização das eleições, especialmente a confiança
dos cidadãos candidatos e cidadãos eleitores.
Talvez um dos temas mais ricos da teoria do direito e da moderna teoria
constitucional seja aquele relativo à evolução jurisprudencial e, especialmente,
à possível mutação constitucional. Se a sua repercussão no plano material é
inegável, são inúmeros os desafios no plano do processo em geral e, em especial,
do processo constitucional.
Nesse sentido, vale registrar a observação de Karl Larenz:
De entre os factores que dão motivo a uma revisão e, com isso, frequentemente, a
uma modificação da interpretação anterior, cabe uma importância proeminente
à alteração da situação normativa. Trata-se a este propósito de que as relações
fácticas ou usos que o legislador histórico tinha perante si e em conformidade
aos quais projectou a sua regulação, para os quais a tinha pensado, variaram de

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RE 637.485

tal modo que a norma dada deixou de se “ajustar” às novas relações. É o factor
temporal que se faz notar aqui. Qualquer lei está, como facto histórico, em relação
actuante com o seu tempo. Mas o tempo também não está em quietude; o que no
momento da gênese da lei actuava de modo determinado, desejado pelo legisla‑
dor, pode posteriormente actuar de um modo que nem sequer o legislador previu,
nem, se o pudesse ter previsto, estaria disposto a aprovar. Mas, uma vez que a lei,
dado que pretende ter também validade para uma multiplicidade de casos futu‑
ros, procura também garantir uma certa constância nas relações inter-humanas,
a qual é, por seu lado, pressuposto de muitas disposições orientadas para o futuro,
nem toda a modificação de relações acarreta por si só, de imediato, uma alteração
do conteúdo da norma. Existe a princípio, ao invés, uma relação de tensão que
só impele a uma solução – por via de uma interpretação modificada ou de um
desenvolvimento judicial do Direito – quando a insuficiência do entendimento
anterior da lei passou a ser “evidente”. [LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do
direito. 3. ed. Lisboa: 1997. p. 495.]

Daí afirmar Larenz:


A alteração da situação normativa pode assim conduzir à modificação – restrição
ou extensão – do significado da norma até aqui prevalecente. De par com a alte‑
ração da situação normativa, existem factos tais como, sobretudo, modificações
na estrutura da ordem jurídica global, uma nítida tendência da legislação mais
recente, um novo entendimento da ratio legis ou dos critérios teleológico-objec‑
tivos, bem como a necessidade de adequação do Direito pré-constitucional aos
princípios constitucionais, que podem provocar uma alteração de interpretação.
Disto falámos nós já. Os tribunais podem abandonar a sua interpretação anterior
porque se convenceram que era incorrecta, que assentava em falsas suposições
ou em conclusões não suficientemente seguras. Mas ao tomar em consideração
o factor temporal, pode também resultar que uma interpretação que antes era
correcta agora não o seja. [LARENZ. Op. cit., p. 498-500.]

Por isso, ensina Larenz, de forma lapidar:


O preciso momento em que deixou de ser “correcta” é impossível de determinar.
Isto assenta em que as alterações subjacentes se efectuam na maior parte das
vezes de modo contínuo e não de repente. Durante um “tempo intermédio” podem
ser “plausíveis” ambas as coisas, a manutenção de uma interpretação constante
e a passagem a uma interpretação modificada, adequada ao tempo. É também
possível que uma interpretação que aparecia originariamente como conforme à
Constituição, deixe de o ser na sequência de uma modificação das relações deter‑
minantes. Então é de escolher a interpretação, no quadro das possíveis, segundo os
outros critérios de interpretação, que seja agora a única conforme à Constituição.

No plano constitucional, esse tema mereceu uma análise superior no trabalho de

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RE 637.485

Inocêncio Mártires Coelho sobre interpretação constitucional (COELHO, Inocêncio


Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997).
No Capítulo 4 da obra em referência, que trata das consequências da diferença
entre lei e Constituição, propicia-se uma releitura do fenômeno da chamada
mutação constitucional, asseverando-se que as situações da vida são cons‑
titutivas do significado das regras de direito, na medida em que é somente no
momento de sua aplicação aos casos ocorrentes que se revelam o sentido e o
alcance dos enunciados normativos. Com base em Perez Luño e Reale, enfatiza‑
-se que, em verdade, a norma jurídica não é o pressuposto, mas o resultado do
processo interpretativo ou que a norma é a sua interpretação.
Essa colocação coincide, fundamentalmente, com a observação de Häberle,
segundo a qual não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada (Es
gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretierte Rechtsnormen), ressaltando-se
que interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou
integrá-lo na realidade pública (Einen Rechssatz “auslegen” bedeutet, ihn in die Zeit,
d.h. in die öffentliche Wirklichkeit stellen – um seiner Wirksamkeit willen). Por isso,
Häberle introduz o conceito de pós-compreensão (Nachverständnis), entendido
como o conjunto de fatores temporalmente condicionados com base nos quais
se compreende “supervenientemente” uma dada norma. A pós-compreensão nada
mais seria, para Häberle, do que a pré-compreensão do futuro, isto é, o elemento
dialético correspondente da ideia de pré-compreensão (HÄBERLE, Peter. Zeit
und Verfassung. In: DREIER, Ralf; SCHWEGMANN, Friedrich (Org.). Probleme der
Verfassungsinterpretation. Baden-Baden: Nomos, 1976. p. 312-313).
Tal concepção permite a Häberle afirmar que, em sentido amplo, toda lei
interpretada – não apenas as chamadas leis temporárias – é uma lei com duração
temporal limitada (In einem weiteren Sinne sind alle – interpretierten – Gesetzen
“Zeitgesetze” – nicht nur die zeitlich befristeten). Em outras palavras, o texto, con‑
frontado com novas experiências, transforma-se necessariamente em outro texto.
Essa reflexão e a ideia segundo a qual a atividade hermenêutica nada mais é
do que um procedimento historicamente situado autorizam Häberle a realçar
que uma interpretação constitucional aberta prescinde do conceito de mutação
constitucional (Verfassungswandel) enquanto categoria autônoma.
Nesses casos, fica evidente que o Tribunal não poderá fingir que sempre
pensara dessa forma. Daí a necessidade de, em tais casos, fazer-se o ajuste do
resultado, adotando-se técnica de decisão que, tanto quanto possível, traduza
a mudança de valoração. No plano constitucional, esses casos de mudança na
concepção jurídica podem produzir uma mutação normativa ou a evolução na
interpretação, permitindo que venha a ser reconhecida a inconstitucionalidade

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RE 637.485

de situações anteriormente consideradas legítimas. A orientação doutrinária


tradicional, marcada por uma alternativa rigorosa entre atos legítimos ou ilegí-
timos (entweder als rechtmässig oder als rechtswidrig), encontra dificuldade para
identificar a consolidação de um processo de inconstitucionalização (Prozess
des Verfassungswid rigwerdens). Prefere-se admitir que, embora não tivesse sido
identificada, a ilegitimidade sempre existira.
Daí afirmar Häberle:
O Direito Constitucional vive, prima facie, uma problemática temporal. De um
lado, a dificuldade de alteração e a consequente duração e continuidade, confia‑
bilidade e segurança; de outro, o tempo envolve agora mesmo, especificamente o
Direito Constitucional. É que o processo de reforma constitucional deverá ser feito
de forma flexível e a partir de uma interpretação constitucional aberta. A conti‑
nuidade da Constituição somente será possível se passado e futuro estiverem nela
associados. [HÄBERLE. Zeit und Verfassung. Op. cit., p. 295-296.]

Häberle indaga:
O que significa tempo? Objetivamente, tempo é a possibilidade de se introduzir
mudança, ainda que não haja a necessidade de produzi-la. [HÄBERLE. Zeit und
Verfassung. Op. cit., p. 300.]

Tal como anota Häberle, “o tempo sinaliza ou indica uma reunião (ensemble)
de forças sociais e ideias. (...) A ênfase ao ‘fator tempo’ não deve levar ao entendi‑
mento de que o tempo há de ser utilizado como ‘sujeito’ de transformação ou de
movimento (...). A história (da comunidade) tem muitos sujeitos. O tempo nada
mais é do que a dimensão na qual as mudanças se tornam possíveis e necessárias
(...)” (HÄBERLE. Zeit und Verfassung. Op. cit., p. 300).
Não é raro que essas alterações de concepções se verifiquem, entre outros
campos, exatamente em matéria de defesa dos direitos fundamentais. Aqui talvez
se mesclem as mais diversas concepções existentes na própria sociedade e o
processo dialético que as envolve. E os diversos entendimentos de mundo con‑
vivem, sem que, muitas vezes, o “novo” tenha condições de superar o “velho”.
É natural também que esse tipo de situação se coloque de forma bastante
evidente no quadro de uma nova ordem constitucional. Aqui, entendimentos
na jurisprudência, doutrina e legislação tornam, às vezes, inevitável que a inter‑
pretação da Constituição se realize, em um primeiro momento, com base na
situação jurídica pré-existente. Assim, até mesmo institutos novos poderão ser
interpretados segundo entendimento consolidado na jurisprudência e na legis‑
lação pré-constitucionais. Nesse caso, é igualmente compreensível que uma nova
orientação hermenêutica reclame cuidados especiais.

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RE 637.485

Nesse sentido, refiro-me mais uma vez às lições de Larenz:


O que é para os tribunais civis, quando muito, uma excepção, adequa-se em muito
maior medida a um Tribunal Constitucional. Decerto que se poderá, por exemplo,
resolver muitas vezes sobre recursos constitucionais de modo rotineiro, com os
meios normais da argumentação jurídica. Aqui tão pouco faltam casos comparáveis.
Mas nas resoluções de grande alcance político para o futuro da comunidade, estes
meios não são suficientes. Ao Tribunal Constitucional incumbe uma responsabili‑
dade política na manutenção da ordem jurídico-estadual e da sua capacidade de
funcionamento. Não pode proceder segundo a máxima: fiat justitia, pereat res publica.
Nenhum juiz constitucional procederá assim na prática. Aqui a ponderação das
consequências é, portanto, de todo irrenunciável, e neste ponto tem KRIELE razão.
Certamente que as consequências (mais remotas) tão pouco são susceptíveis de ser
entrevistas com segurança por um Tribunal Constitucional, se bem que este dispo‑
nha de possibilidades muito mais amplas do que um simples juiz civil de conseguir
uma imagem daquelas. Mas isto tem que ser aceite. No que se refere à avaliação das
consequências previsíveis, esta avaliação só pode estar orientada à ideia de “bem
comum”, especialmente à manutenção ou aperfeiçoamento da capacidade funcional
do Estado de Direito. É, neste sentido, uma avaliação política, mas devendo exigir‑
-se de cada juiz constitucional que se liberte, tanto quanto lhe seja possível – e este
é, seguramente, em larga escala o caso – da sua orientação política subjectiva, de
simpatia para com determinados grupos políticos, ou de antipatia para com outros,
e procure uma resolução despreconceituada, “racional”. [Op. cit., p. 517.]

Talvez o caso historicamente mais relevante da assim chamada mutação cons-


titucional seja expresso na concepção da igualdade racial nos Estados Unidos.
Em 1896, no caso Plessy versus Ferguson, a Corte Suprema americana reconheceu
que a separação entre brancos e negros em espaços distintos, no caso especí‑
fico – em vagões de trens –, era legítima. Foi a consagração da fórmula equal but
separated. Essa orientação veio a ser superada no já clássico Brown versus Board
of Education (1954), no qual se assentou a incompatibilidade dessa separação
com os princípios básicos da igualdade.
Nos próprios Estados Unidos, a decisão tomada em Mapp versus Ohio, 367
U.S. 643 (1961), posteriormente confirmada em Linkletter versus Walker, 381 U.S.
618 (1965), a propósito da busca e apreensão realizada na residência da senhora
Dollree Mapp, acusada de portar material pornográfico, em evidente violação
às leis de Ohio, traduz uma significativa mudança da orientação até então espo‑
sada pela Corte Suprema.
A condenação de Dolree Mapp foi determinada com base em evidências obti‑
das pela polícia quando adentraram sua residência, em 1957, apesar de não dispo‑
rem de mandado judicial de busca e apreensão. A Suprema Corte, contrariando

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o julgamento da primeira instância, declarou que a “regra de exclusão” (baseada


na Quarta Emenda da Constituição), que proíbe o uso de provas obtidas por
meios ilegais nas cortes federais, deveria ser estendida também às cortes esta‑
duais. A decisão provocou muita controvérsia, mas os proponentes da “regra
de exclusão” afirmavam constituir esta a única forma de assegurar que provas
obtidas ilegalmente não fossem utilizadas.
A decisão de Mapp v. Ohio superou o precedente Wolf v. Colorado, 338 U.S.
25 (1949), tornando a regra obrigatória aos Estados e àqueles acusados cujas
investigações e processos não tinham atendido a esses princípios, era conferido
o direito de habeas corpus.
Em 1965 a Suprema Corte americana julgou o caso Linkletter v. Walker, 381 U.S.
618, no qual um condenado por arrombamento na Corte de Louisiana requereu
o direito de habeas corpus, com fundamento na decisão do caso Mapp v. Ohio.
A Suprema Corte decidiu contrariamente à aplicação retroativa da norma
naqueles casos que tiveram o julgamento final antes da decisão proferida em Mapp.
Essa mudança foi descrita por Christina Aires Lima em sua dissertação de mestrado:
Apesar do entendimento da Corte Federal do Distrito de Louisiana e da Corte de
Apelação do Estado, de que no caso Linkletter as investigações sobre a pessoa e
bens do acusado foram feitas de modo ilegal, tais Cortes decidiram que a regra
estabelecida no caso Mapp não poderia ser aplicada retroativamente às conde‑
nações das cortes estaduais, que se tornaram finais antes do anúncio da decisão
do referido precedente.
As decisões dessas Cortes foram fundadas no entendimento de que, conferir‑
-se efeito retroativo aos casos que tiveram julgamento final antes da decisão do
caso Mapp, causaria um enorme e preocupante problema para a administração
da Justiça.
A Suprema Corte americana admitiu o certiorari requerido por Linkletter, restrito
à questão de saber se deveria, ou não, aplicar efeito retroativo à decisão profe‑
rida no caso Mapp. [LIMA, Christina Aires Corrêa. O princípio da nulidade das leis
inconstitucionais. UnB, 2000. p. 84.]

Ao justificar o indeferimento da aplicação da norma retroativamente, a opi‑


nião majoritária da Corte Suprema americana, no julgamento do caso Linkletter
v. Walker, foi no seguinte sentido:
Uma vez aceita a premissa de que não somos requeridos e nem proibidos de apli‑
car uma decisão retroativamente, devemos então sopesar os méritos e deméritos
em cada caso, analisando o histórico anterior da norma em questão, seu obje‑
tivo e efeito, e se a operação retrospectiva irá adiantar ou retardar sua operação.
Acreditamos que essa abordagem é particularmente correta com referência às

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proibições da 4ª Emenda, no que concerne às buscas e apreensões desarrazoadas.


Ao invés de “depreciar” a Emenda devemos aplicar a sabedoria do Justice Holmes
que dizia que “na vida da lei não existe lógica: o que há é experiência”. [United
States reports. v. 381. p. 629.]

E mais adiante ressaltou:


A conduta imprópria da polícia, anterior à decisão em Mapp, já ocorreu e não será
corrigida pela soltura dos prisioneiros envolvidos. Nem sequer dará harmonia ao
delicado relacionamento estadual-federal que discutimos como parte do objetivo
de Mapp. Finalmente, a invasão de privacidade nos lares das vítimas e seus efeitos
não podem ser revertidos. A reparação chegou muito tarde. [United States reports.
v. 381. p. 637.]

No direito alemão, mencione-se o famoso caso sobre o regime da execução


penal (Strafgefangene), de 14 de março de 1972. Segundo a concepção tradicio‑
nal, o estabelecimento de restrições aos direitos fundamentais dos presidiários,
mediante atos normativos secundários, era considerado, inicialmente, compa‑
tível com a Lei Fundamental. Na espécie, cuidava-se de Verfassungsbeschwerde
proposta por preso que tivera carta dirigida a uma organização de ajuda aos pre‑
sidiários interceptada, porque continha críticas à direção do presídio. A decisão
respaldava-se em uma portaria do Ministério da Justiça do Estado.
A Corte Constitucional alemã colocou em dúvida esse entendimento na deci‑
são proferida sobre problemática da execução penal, como se logra depreender
da seguinte passagem do acórdão:
O constituinte contemplou, por ocasião da promulgação da Lei Fundamental, a
situação tradicional da execução da pena, tal como resulta dos artigos 2º, parágrafo
2º, 2º período, e 104, parágrafos 1º e 2º da Lei Fundamental, não existindo qualquer
sinal de que ele partira da premissa de que o legislador haveria de editar uma lei
imediatamente após a entrada em vigor da Lei Fundamental. Na apreciação da
questão sobre o decurso de prazo razoável para o legislador disciplinar a matéria e,
por conseguinte, sobre a configuração de ofensa à Constituição, deve-se considerar
também que, até recentemente, admitia-se, com fundamento das relações peculia‑
res de poder (besondere Gewaltverhältnisse), que os direitos fundamentais do preso
estavam submetidos a uma restrição geral decorrente das condições de execução da
pena. Cuidar-se-ia de limitação implícita, que não precisava estar prevista expres‑
samente em lei. Assinale-se, todavia, que, segundo a orientação que se contrapõe
à corrente tradicional, a Lei Fundamental, enquanto ordenação objetiva de valores
com ampla proteção dos direitos fundamentais, não pode admitir uma restrição ipso
jure da proteção dos direitos fundamentais para determinados grupos de pessoas.
Essa corrente somente impôs-se após lento e gradual processo. [BVerfGE 33, 1 (12).]

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RE 637.485

A especificidade da situação impunha, todavia, que se tolerassem, provisoria‑


mente, as restrições aos direitos fundamentais dos presidiários, ainda que sem fun‑
damento legal expresso. O legislador deveria emprestar nova disciplina à matéria,
em consonância com a orientação agora dominante sobre os direitos fundamentais.
A evolução do entendimento doutrinário e jurisprudencial – uma autêntica
mutação constitucional – passava a exigir, no entanto, que qualquer restrição
a esses direitos devesse ser estabelecida mediante expressa autorização legal.
Todas essas considerações estão a evidenciar que as mudanças radicais
na interpretação da Constituição devem ser acompanhadas da devida e cui-
dadosa reflexão sobre suas consequências, tendo em vista o postulado da
segurança jurídica.
Não só a Corte Constitucional mas também o Tribunal que exerce o papel
de órgão de cúpula da Justiça Eleitoral devem adotar tais cautelas por ocasião
das chamadas “viragens jurisprudenciais” na interpretação dos preceitos cons-
titucionais que dizem respeito aos direitos políticos e ao processo eleitoral.
Aqui não se pode deixar de considerar o peculiar caráter normativo dos atos
judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, que regem todo o processo
eleitoral. Mudanças na jurisprudência eleitoral, portanto, têm efeitos nor-
mativos diretos sobre os pleitos eleitorais, com sérias repercussões sobre os
direitos fundamentais dos cidadãos (eleitores e candidatos) e partidos polí-
ticos. No âmbito eleitoral, portanto, a segurança jurídica assume a sua face
de princípio da confiança para proteger a estabilização das expectativas de
todos aqueles que de alguma forma participam dos prélios eleitorais.
A importância fundamental do princípio da segurança jurídica para o regular
transcurso dos processos eleitorais está plasmada no princípio da anteriori-
dade eleitoral positivado no art. 16 da Constituição. Esta norma constitucio‑
nal afirma que qualquer modificação normativa que altere o processo eleitoral
poderá entrar em vigor na data de sua publicação, mas não poderá ser aplicada
à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.
O Supremo Tribunal Federal fixou a interpretação desse art. 16, entendendo-o
como uma garantia constitucional (1) do devido processo legal eleitoral, (2) da
igualdade de chances e (3) das minorias. A ementa do RE 633.703 (rel. min. Gilmar
Mendes) deixa explícito o entendimento assentado pelo Tribunal:
Lei Complementar 135/2010, denominada Lei da Ficha Limpa. Inaplicabilidade às
eleições gerais de 2010. Princípio da anterioridade eleitoral (art. 16 da Constituição
da República).
I – O princípio da anterioridade eleitoral como garantia do devido processo legal elei-
toral. O pleno exercício de direitos políticos por seus titulares (eleitores, candidatos

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e partidos) é assegurado pela Constituição por meio de um sistema de normas que


conformam o que se poderia denominar de devido processo legal eleitoral. Na medida
em que estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políti‑
cos, essas regras também compõem o rol das normas denominadas cláusulas pétreas
e, por isso, estão imunes a qualquer reforma que vise a aboli-las. O art. 16 da Cons‑
tituição, ao submeter a alteração legal do processo eleitoral à regra da anualidade,
constitui uma garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos.
Precedente: ADI 3.685, rel. min. Ellen Gracie, julgamento em 22-3-2006. A LC 135/2010
interferiu numa fase específica do processo eleitoral, qualificada na jurisprudência
como a fase pré-eleitoral, que se inicia com a escolha e a apresentação das candidatu‑
ras pelos partidos políticos e vai até o registro das candidaturas na Justiça Eleitoral.
Essa fase não pode ser delimitada temporalmente entre os dias 10 e 30 de junho,
nos quais ocorrem as convenções partidárias, pois o processo político de escolha
de candidaturas é muito mais complexo e tem início com a própria filiação parti‑
dária do candidato, em outubro do ano anterior. A fase pré-eleitoral de que trata a
jurisprudência desta Corte não coincide com as datas de realização das convenções
partidárias. Ela começa muito antes, com a própria filiação partidária e a fixação de
domicílio eleitoral dos candidatos, assim como o registro dos partidos no Tribunal
Superior Eleitoral. A competição eleitoral se inicia exatamente um ano antes da
data das eleições e, nesse interregno, o art. 16 da Constituição exige que qualquer
modificação nas regras do jogo não terá eficácia imediata para o pleito em curso.
II – O princípio da anterioridade eleitoral como garantia constitucional da igual-
dade de chances. Toda limitação legal ao direito de sufrágio passivo, isto é, qualquer
restrição legal à elegibilidade do cidadão, constitui uma limitação da igualdade
de oportunidades na competição eleitoral. Não há como conceber causa de ine‑
legibilidade que não restrinja a liberdade de acesso aos cargos públicos, por parte
dos candidatos, assim como a liberdade para escolher e apresentar candidaturas
por parte dos partidos políticos. E um dos fundamentos teleológicos do art. 16
da Constituição é impedir alterações no sistema eleitoral que venham a atingir a
igualdade de participação no prélio eleitoral.
III – O princípio da anterioridade eleitoral como garantia constitucional das
minorias e o papel da jurisdição constitucional na democracia. O princípio da
anterioridade eleitoral constitui uma garantia fundamental também destinada
a assegurar o próprio exercício do direito de minoria parlamentar em situações
nas quais, por razões de conveniência da maioria, o Poder Legislativo pretenda
modificar, a qualquer tempo, as regras e critérios que regerão o processo eleitoral.
A aplicação do princípio da anterioridade não depende de considerações sobre a
moralidade da legislação. O art. 16 é uma barreira objetiva contra abusos e desvios
da maioria e dessa forma deve ser aplicado por esta Corte. A proteção das minorias
parlamentares exige reflexão acerca do papel da jurisdição constitucional nessa
tarefa. A jurisdição constitucional cumpre a sua função quando aplica rigorosa‑
mente, sem subterfúgios calcados em considerações subjetivas de moralidade, o
princípio da anterioridade eleitoral previsto no art. 16 da Constituição, pois essa

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norma constitui uma garantia da minoria, portanto, uma barreira contra a atuação
sempre ameaçadora da maioria.
IV – Recurso extraordinário conhecido e provido. Recurso extraordinário conhe‑
cido para: a) reconhecer a repercussão geral da questão constitucional atinente
à aplicabilidade da LC 135/2010 às eleições de 2010, em face do princípio da ante‑
rioridade eleitoral (art. 16 da Constituição), de modo a permitir aos tribunais e
turmas recursais do País a adoção dos procedimentos relacionados ao exercício de
retratação ou declaração de inadmissibilidade dos recursos repetitivos, sempre que
as decisões recorridas contrariarem ou se pautarem pela orientação ora firmada;
b) dar provimento ao recurso, fixando a não aplicabilidade da Lei Complementar
135/2010 às eleições gerais de 2010.

O art. 16 da Constituição traduziu o postulado da segurança jurídica como


princípio da anterioridade ou anualidade em relação à mudança na legislação
eleitoral. Em razão do caráter especialmente peculiar dos atos judiciais ema-
nados do Tribunal Superior Eleitoral, os quais regem normativamente todo
o processo eleitoral, é razoável concluir que a Constituição também alberga
uma norma, ainda que implícita, que traduz o postulado da segurança jurí-
dica como princípio da anterioridade ou anualidade em relação à alteração
da jurisprudência do TSE.
Logo, é possível concluir que a mudança de jurisprudência do Tribunal Supe-
rior Eleitoral está submetida ao princípio da anterioridade eleitoral. Assim,
as decisões do TSE que, no curso do pleito eleitoral (ou logo após o seu encer-
ramento), impliquem mudança de jurisprudência (e dessa forma repercutam
sobre a segurança jurídica) não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto
e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior.
No caso concreto posto nos autos do presente recurso extraordinário, a decisão
do TSE no REspe 41.980-06, apesar de ter entendido corretamente que é inelegível
para o cargo de prefeito o cidadão que exerceu por dois mandatos consecutivos
cargo de mesma natureza em Município diverso, não pode retroagir para incidir
sobre o diploma regularmente concedido a Vicente de Paula de Souza Guedes,
vencedor das eleições de 2008 para prefeito do Município de Valença/RJ.

4. Conclusão
Ante o exposto, dou provimento ao recurso para:
a) reconhecer a repercussão geral das questões constitucionais atinentes à
(a.1) elegibilidade para o cargo de prefeito de cidadão que já exerceu dois mandatos
consecutivos em cargo da mesma natureza em Município diverso (interpretação
do art. 14, § 5º, da Constituição); e (a.2) retroatividade ou aplicabilidade imediata
no curso do período eleitoral da decisão do Tribunal Superior Eleitoral que implica

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  702


RE 637.485

mudança de sua jurisprudência, de modo a permitir aos tribunais a adoção dos


procedimentos relacionados ao exercício de retratação ou declaração de inad‑
missibilidade dos recursos repetitivos, sempre que as decisões recorridas con‑
trariarem ou se pautarem pela orientação ora firmada;
b) dar provimento ao presente recurso, de modo a:
(b.1) resolver o caso concreto no sentido de que a decisão do TSE no REspe
41.980-06, apesar de ter entendido corretamente que é inelegível para o cargo de
prefeito o cidadão que exerceu por dois mandatos consecutivos cargo de mesma
natureza em Município diverso, não pode incidir sobre o diploma regularmente
concedido a Vicente de Paula de Souza Guedes, vencedor das eleições de 2008
para prefeito do Município de Valença/RJ;
(b.2) deixar assentados, sob o regime da repercussão geral, os seguintes enten‑
dimentos: (b.2.1) o art. 14, § 5º, da Constituição deve ser interpretado no sentido de
que a proibição da segunda reeleição é absoluta e torna inelegível para determi‑
nado cargo de chefe do Poder Executivo o cidadão que já exerceu dois mandatos
consecutivos (reeleito uma única vez) em cargo da mesma natureza, ainda que
em ente da Federação diverso; (b.2.2) as decisões do Tribunal Superior Eleitoral
que, no curso do pleito eleitoral ou logo após o seu encerramento, impliquem
mudança de jurisprudência não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e
somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior.

DEBATE
A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, Vossa Excelência me permite
só uma indagação para efeito de esclarecimento para os que vão votar?
A modulação, portanto, se refere ao caso concreto, porque se tratava das elei‑
ções de 2008, o que significa que a jurisprudência, que por maioria se afirmou
no Tribunal Superior Eleitoral no sentido desta proibição, vale para as eleições
de 2012, porque aí já não há mais novidade. Há quatro anos, por maioria, vem
sendo aplicada. Estou entendendo corretamente?
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Ministra Cármen Lúcia, Vossa Exce‑
lência me permite uma pequena intervenção?
Eu, lendo aqui atentamente o doutíssimo voto do ministro Aldir Passarinho
Filho, ele rechaça, com argumentos, a meu ver, muito fortes, essa questão da
retroação, dizendo que, em matéria constitucional, não há essa possibilidade de
retroação. Quando há mudança constitucional, e cita inclusive um acórdão do
ministro Cezar Peluso, em que diz que a mudança de jurisprudência não tem o
condão de afetar direitos fundamentais, em primeiro lugar.

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RE 637.485

Segundo lugar, agora em resposta ao que Vossa Excelência levanta, aliás, inclu‑
sive há uma citação de um acórdão do ministro Joaquim Barbosa, em resposta
mais específica ao que Vossa Excelência levanta, o ministro Aldir Passarinho
assinala exatamente o seguinte: “Se não aplicarmos às eleições de 2008, nós
vamos inclusive ferir o princípio da isonomia, porque nós estamos aplicando
sistematicamente aos casos já pretéritos ocorridos nas eleições de 2008”. Então,
eu ousaria apontar que, na verdade, se nós dermos um efeito prospectivo a este
caso e aplicarmos a repercussão geral, isto repercutirá sobre todas as questões
já julgadas relativamente ao pleito de 2008.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Pois é. Esta questão é que está posta.
Na verdade, não me parece correto afirmar que a interpretação constitucional
nova adotada não afeta direitos fundamentais. Ao revés, a toda hora nós vamos
ter esse fenômeno. É o princípio da confiança jurídica. É elementar que o Estado
de Direito se assenta pelo menos em duas premissas básicas: de um lado, a ideia
estrita de legalidade; de outro, a ideia de segurança jurídica. Neste caso, o que
nós estamos discutindo é o caso específico. Tanto é que a ministra Cármen Lúcia
há pouco chamava a atenção para um outro fenômeno em que houve uma con‑
sulta de um prefeito.
A sra. ministra Cármen Lúcia: É, foi um único caso.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Houve a autorização para que ele
fosse, portanto...
A sra. ministra Cármen Lúcia: Nós votamos exatamente, foi o único caso
no qual eu votei diferentemente, que era um caso de Santa Catarina, em que
o prefeito, antes de se desincompatibilizar, ele questionou o Tribunal Regional
Eleitoral, e o Tribunal respondeu afirmativamente.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Ou seja, mostrando absoluta boa-fé.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): É.
A sra. ministra Cármen Lúcia: E, com base nesta decisão que lhe era específica,
ele então se desincompatibilizou. Foi o único caso em que eu votei diferentemente,
mas apenas para afirmar isso, que aceito que neste caso havia confiança jurídica.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Mas eu estou dizendo que a jurispru‑
dência dominante faz com que, voltando ao texto de Larenz e Häberle, a norma é
a sua interpretação, na verdade, o entendimento do TSE integrava esse conceito
de elegibilidade, tanto é que, neste caso específico, não houve sequer impugna‑
ção, nem por parte do Ministério Público nem por parte dos adversários. É para
esse ponto que estou chamando a atenção.
O sr. ministro Luiz Fux: Ministro Gilmar, a questão que se põe, no meu
modo de ver – a modulação é corretíssima, porque realmente hoje a força da

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RE 637.485

jurisprudência tem a presunção de legitimidade das leis –, a questão é o termo a


quo dessa modulação, se não me falha a memória, é isso mais ou menos que a...
A sra. ministra Cármen Lúcia: Mas ele esclareceu: para essa eleição de 2012,
nenhuma dúvida.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Estou adotando isso, quer dizer, como
a modificação se deu em 2008, para essas eleições no que diz respeito.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Senhor Presidente.
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Pois não, Excelência.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Eu gostaria de levantar aqui alguns dados
relativos a esse caso.
Nós estamos decidindo um recurso extraordinário que se refere às eleições
de 2008, certo? Ainda no período eleitoral, o candidato vitorioso nas eleições
teve o seu diploma impugnado, antes, portanto, de tomar posse, o diploma foi
impugnado perante o Tribunal Superior Eleitoral. Não sei por que razão, apesar
da decisão contrária aos seus interesses, esse candidato tomou posse e encontra‑
-se no exercício das funções até hoje, até esta data.
Eu não vejo por que razão conceder essa suposta modulação.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: É que o próprio Tribunal está reco‑
nhecendo, se Vossa Excelência me permite, que houve fraude à Constituição,
ao art. 14, § 5º.
O sr. ministro Cezar Peluso: Mas está reconhecendo? O Tribunal já re­­
conheceu?
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Pelo menos a teoria, a tese, foi reco‑
nhecida pelo eminente ministro Gilmar Mendes, o que ele está fazendo é dar
um efeito prospectivo. Agora, indiscutivelmente, o TSE reconheceu que houve
uma fraude à Constituição, porque o prefeito se reelegeu pela terceira vez num
Município vizinho, e nós constatamos que houve clientelismo para que ele fosse
eleito para um terceiro mandato, em clara burla à Constituição; o ministro Gilmar
Mendes, com a proficiência intelectual que sempre revela, reconhece que isso
em tese é possível em situações que tais, só que, no caso concreto, entende que
houve uma ameaça à segurança jurídica, ou, em tese, ela se encontraria vulne‑
rada, e está dando um efeito prospectivo.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Mas aí é que eu questiono: que ameaça à
segurança jurídica é essa se, ainda durante o período eleitoral, antes de o inte‑
ressado tomar posse no cargo, houve uma impugnação por quem de direito, essa
impugnação foi julgada perante o Tribunal Superior Eleitoral, ainda no período
eleitoral, qual a razão?
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Exatamente essa é a discussão, se o

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RE 637.485

TSE pode modificar o seu entendimento, com tal repercussão, com efeitos sobre
pleitos que estão em curso, é essa a discussão.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Ele está lá para isso. O TSE está aí para isso.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não, não me parece que seja.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: E mais: o TSE julgou no sentido da Consti‑
tuição, da preservação da Constituição, e não o contrário.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não, até então o TSE tinha um enten‑
dimento que se dizia compatível com a Constituição, depois mudou de entendi‑
mento, e ambos eram compatíveis com a Constituição. Nós já tivemos casos aqui,
Presidente, por exemplo: progressão de regime. Progressão de regime, o Tribunal
dizia que a lei era constitucional, a lei que estabelece a obrigatoriedade de cum‑
primento da pena em regime fechado, depois o Tribunal mudou de orientação.
Qual era o entendimento correto? Ambos.
O sr. ministro Dias Toffoli: Tinha a resolução.
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Do ponto de vista kelseniano de
proposição normativa, ambos os entendimentos eram corretos.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Tanto é que nós fizemos a modulação
para compatibilizar as decisões.
O sr. ministro Dias Toffoli: Ministro Gilmar, tinha uma resolução de fevereiro
de 2008, Instrução 120 do TSE, que dizia o seguinte (art. 14, cabeça):
Art. 14. Para concorrerem a outros cargos, o presidente da República, os governado‑
res de estado e do Distrito Federal e os prefeitos devem renunciar aos respectivos
mandatos até 6 meses antes do pleito (Constituição Federal, art. 14, § 6º).
Parágrafo único. O prefeito reeleito não poderá candidatar-se ao mesmo cargo,
nem ao cargo de vice, para mandato consecutivo no mesmo município (Resolução
n. 22.005, de 8-3-2005).

Explicitamente, essa era a orientação do Tribunal Superior Eleitoral, mediante


uma instrução normativa para as eleições de 2008. Ou seja, quem se desincompa‑
tibilizou para ir para a disputa em um Município vizinho o fez baseado, primeiro,
na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral e na deste Supremo Tribunal
Federal; segundo, o fez baseado numa instrução do próprio Tribunal Superior
Eleitoral. Por aquelas contingências que bem conhecemos da composição do
Tribunal Superior Eleitoral – com as modificações de integrantes –, quando isso
foi jurisdicionalizado houve uma mudança de entendimento, mas já em dezem‑
bro de 2008, quando as eleições já haviam ocorrido.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Haviam ocorrido, mas não tinha se tomado
posse, Ministro.

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O sr. ministro Dias Toffoli: Então, eu penso que a solução dada pelo minis‑
tro Gilmar Mendes – de aplicar o art. 16 da CF – é uma solução não só para essa
hipótese como para várias outras. Por quê? Porque, na Justiça Eleitoral, se nós
formos mudar a jurisprudência na mesma eleição, sempre encontraremos o pro‑
blema da segurança jurídica. A aplicação sábia, inteligente e ponderada de Sua
Excelência, com forte substrato teórico, constitucional, em relação à aplicação,
aqui, do art. 16 da Constituição Federal, parece-me que é realmente a melhor
solução, dando-se à nova hermenêutica efeitos prospectivos para a eleição que
se iniciou em 2012.
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, pela ordem, apenas para corro‑
borar o que o ministro Gilmar destacou, esse não é um recurso extraordinário
simples, é um recurso extraordinário que terá repercussão geral; então não é só
para esse caso específico. No caso, a solução, a tese que aqui vier a ser firmada,
vai ser aplicada genericamente a todas as hipóteses que se enquadrem a essa
solução que nós estamos proferindo.
No mundo inteiro, hoje, se preconiza que a jurisprudência tem a mesma presun‑
ção de legitimidade que as leis, basta se verificar os poderes do relator, enfim, toda
a força que a lei conferiu à jurisprudência: o juiz pode indeferir o pedido do autor;
se ele estiver contrário à jurisprudência dominante dos tribunais, o relator pode
ser porta-voz do colegiado, negar seguimento ao recurso. E já, na nova ordenação
processual, virá também essa regra da modulação temporal da jurisprudência,
porque ninguém desconhece na prática que todo advogado, todo operador do
direito, hoje, quando inicia o seu trabalho, consulta a rede mundial de compu‑
tadores para saber como é que está a jurisprudência dos tribunais superiores.
Então, o rompimento, a ruptura do entendimento de muitos anos, realmente
surpreende o jurisdicionado e viola o princípio da proteção da confiança. Então,
a modulação, hoje, é uma regra máxime num recurso que tem um caráter obje‑
tivo, porque nós vamos dar a ele uma repercussão geral.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Ministro Fux, essa modulação só servirá
para uma coisa...
A sra. ministra Cármen Lúcia: Só tem um detalhe, Ministro, e um detalhe da
maior importância: é que, de 2008 para cá, o Tribunal Superior Eleitoral julgou
inúmeras vezes, capitaneado até pelo ministro Carlos Britto. Inúmeras decisões
foram tomadas, outros prefeitos que não chegaram aqui com recursos foram
afastados, portanto, surpresa vai ter, ou vai ter daquele que foi afastado, que não
teve recurso e que não veio, ou...
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Mas nós estamos fixando uma orien‑
tação.

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O sr. ministro Joaquim Barbosa: Nós vamos trazer surpresa para a eleição
deste ano, com certeza.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Não, deste ano não, porque já é algo que se
sedimentou...
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Como não? Para esse indivíduo, essa decisão
será uma carta branca, uma autorização para ele se candidatar, para se reeleger.
Com certeza.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Não, para ele não. Para ele a modulação não
serve. Nós estamos discutindo 2008.
O sr. ministro Luiz Fux: Esse é um termo inicial.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não. Para ele encerrar o mandato
que está terminando.
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): A modulação não chega a esse
ponto, não.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Não, essa nossa decisão vai garantir a ree‑
leição ilegal, mais uma vez, desse cidadão. É para isso que ela vai servir.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não, não garante não.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Não, esse não. Ele não tem direito a se reeleger
num cargo em que ele já não podia ter sido eleito.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não, estamos adotando o entendi‑
mento do TSE.
O sr. ministro Luiz Fux: Não levando em consideração o caso concreto, a
Corte, inúmeras vezes, declarou a lei inconstitucional, que outrora tinha eficácia
ex tunc, e estabeleceu muitas vezes o efeito ex nunc, quiçá estabeleceu o efeito
prospectivo; a lei ainda é considerada constitucional até determinado prazo.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): No conflito de competência a que me
referi, nós fizemos exatamente esse entendimento quanto à competência da Justiça
do Trabalho ou da Justiça comum, fazendo com que o novo e o velho convivessem.
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Foi isso mesmo.

VOTO
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Senhor Presidente, eu lembro bem que nós
decidimos aqui, há cerca de três anos, um caso de uma promotora de justiça que,
inconstitucionalmente, se candidatou ao cargo de prefeito, foi eleita e, depois, sob
a alegação de que tinha direito adquirido, se reelegeu, mesmo após o advento da
proibição pela Constituição, e nós vamos, mais uma vez, incidir no mesmo erro.

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RE 637.485

Ou seja, remendar sempre, trazer remendos, porque esse indivíduo foi eleito,
e não podia sê-lo, já cumpriu quase todo o mandato, só restam três ou quatro
meses, nós agora vamos apor o carimbo de legalidade da sua eleição. Eu não
vejo sentido nisso.
O sr. ministro Luiz Fux: E os atos que ele já praticou?
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Vossa Excelência nega provimento
ao recurso?
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Eu nego provimento, mantenho a decisão
do TSE.

VOTO
A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, ouvindo os debates, mais me
convenço da plausibilidade da fundamentação que enseja e embasa as posições
divergentes, porque os argumentos são todos extremamente bem colocados e
profundos. Isso mostra – e eu sempre acreditei na força criadora da jurispru‑
dência – que, de fato – e o ministro Gilmar Mendes invocou Larenz e Häberle
para fundamentar o seu doutíssimo voto no sentido de que realmente a norma
é o resultado do texto legislativo interpretado e, em função do tempo, alterada a
interpretação imposta pela nova época –, nós temos uma nova norma. Por isso,
comungo em número, gênero e grau com a interpretação teleológica do art. 14,
§ 5º, da Constituição Federal, proposta pelo eminente relator.
Ministro Presidente, trouxe o voto de Vossa Excelência, numa ação cautelar,
no sentido de que:
(...) é da essência do princípio republicano a possibilidade de alternância na chefia
do Poder Executivo de qualquer das esferas da nossa Federação, o que já significa
a proibição do uso de artifícios que levem ao apoderamento de tal Poder por mais
de dois mandatos consecutivos. Pena de formação de clãs ou hegemonias eleitoral‑
mente espúrias, sobretudo as familiares. Noutros termos, [disse Vossa Excelência]
somente é possível eleger-se para o cargo de “prefeito municipal” por duas vezes
consecutivas. Após isso, apenas permite-se, respeitado o prazo de desincompatibi‑
lização de seis meses, a candidatura para “outro cargo”, ou seja, para a conquista de
mandato legislativo, ou para os cargos de governador de Estado ou de presidente da
República; não mais de prefeito municipal, portanto, que a tanto se opõem os §§ 5º
e 6º do art. 14 da Constituição Federal [com a redação da Emenda Constitucional 16].

Ainda fiz a leitura para homenagear Vossa Excelência, porque comungo com
essa compreensão trazida pelo eminente relator, é a interpretação teleológica
do Texto Constitucional que hoje se impõe.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  709


RE 637.485

Mas, da mesma forma, e pedindo vênia aos que entendem de forma diversa,
acompanho o voto do eminente relator quanto aos efeitos prospectivos dessa
interpretação. Entendo que devem ser efeitos ex nunc e não ex tunc, pedindo
vênia às compreensões contrárias, porque há um princípio, um postulado da
segurança jurídica que se impõe; e este recorrente, na verdade, ele se elegeu
segundo os cânones à época vigentes, segundo a interpretação que o TSE con‑
feria ao Texto Constitucional.
Senhor Presidente, por essa razão, estou acompanhando o voto do eminente
relator.

VOTO
O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, como mencionado pelo eminente
relator, eu trouxe, para referendo aqui no Plenário, uma liminar na AC 2.821, do
Amazonas, na qual ficou assentada a seguinte tese:
“Prefeito itinerante”. Candidatura em Município diverso, após exercício de dois man-
datos em Município contíguo. Impossibilidade. Nova interpretação do art. 14, § 5º, da
Constituição Federal pelo Tribunal Superior Eleitoral. Princípio republicano. Mani-
pulação da máquina pública em microrregiões. Alteração do domicílio eleitoral com
finalidade de burla à previsão constitucional de uma única reeleição.

E aí, então, efetivamente, eu repugnei a tentativa dessa burla do art. 14, § 5º,


impedindo essa eleição em novo Município, através de uma interpretação fina‑
lística do art. 14, § 5º, depois da alteração pela Emenda Constitucional 16/1997.
Esse processo teve até um pedido de vista do ministro Gilmar, e exatamente
agora Sua Excelência traz o voto nessa linha de entendimento, de sorte que,
até porque mantenho a coerência com o entendimento lavrado na cautelar, eu
acompanho o ministro Gilmar.
Por outro lado, Senhor Presidente, tendo em vista que se dará uma reper‑
cussão geral a essa tese, é, como eu disse, muitíssimo importante a modulação
máxime, porque, no âmbito político, no âmbito do art. 16, é quase que uma regra
de supradireito; quer dizer, as regras do jogo não podem ser alteradas no ano
da eleição. Ora, nós aplicamos isso aqui no art. 16 tanto para dizer que, na Lei
da Ficha Limpa, ela não podia ser aplicada, agora, nas eleições vindouras, a Lei
da Ficha Limpa será aplicada. A mesma ratio informa essa alteração abrupta da
jurisprudência. Todos os ordenamentos que se baseiam exatamente no ordena‑
mento americano, que tem o instituto da “overruling”, que é a modificação da
jurisprudência, se preocupam com a questão da segurança jurídica, porque a
mudança abrupta da jurisprudência tanto pode ser desastrosa para o particular

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  710


RE 637.485

quanto para o Estado. Imagine Vossa Excelência que o Estado cobre tributos e,
num dado momento, se chegue à conclusão de que ele não deveria ter cobrado, e
ele já gastou aquele tributo com a satisfação das necessidades coletivas. E rever‑
samente: se uma empresa se estrutura para não pagar um tributo que o Tribunal
afirma, na sua jurisprudência mais do que decenária, que ela não deve pagar,
ela se organiza para não pagar aquele tributo; dez anos depois muda a juris‑
prudência com efeito ex tunc, a empresa não tem condições de suportar aquele
ônus financeiro.
De sorte que, hoje, a modulação é uma técnica moderna de não se surpreender
o jurisdicionado, porque o acesso à ordem jurídica justa pressupõe exatamente
essa previsibilidade; ninguém vive sem previsibilidade. E a segurança jurídica é
uma cláusula pétrea consagrada na Constituição Federal.
Por esses fundamentos, Senhor Presidente, eu acompanho integralmente o
voto do relator, aguardando que Sua Excelência também referende a liminar que
eu proferi na AC 2.821, do Amazonas.

VOTO
O sr. ministro Dias Toffoli: Senhor Presidente, o que nós temos no caso? O
cidadão, no exercício do segundo mandato de prefeito, faz uma consulta, em
fevereiro ou março, para saber se pode ou não ser candidato. Aí ele verifica que
a jurisprudência de anos de eleições a fio do Tribunal Superior Eleitoral é no
sentido da possibilidade de, caso ele renuncie seis meses antes do pleito ao seu
atual mandato, disputar as eleições no Município vizinho, ou em outro Muni‑
cípio. E a resolução do Tribunal Superior Eleitoral assim o dizia: é lícito fazê-lo.
Ou seja, o Estado-Juiz disse a esse cidadão, no início do ano de 2008: cidadão,
você pode ser candidato em outro Município, caso deixe o cargo que hoje ocupa.
E o mesmo Estado-Juiz vai lá e lhe diz: Não, você não podia. É disso que se trata!
A mudança de jurisprudência é possível? É possível. Qual a maneira de aplicá‑
-la na Justiça Eleitoral? A maneira engendrada pelo ministro Gilmar Mendes
parece ser compatível não só com a Constituição, mas com a lógica de não haver
alterações, dentro do mesmo processo eleitoral, abruptas, que pegam o cidadão
na disputa do jus honorum – talvez o mais sagrado dos direitos, o de representar
os concidadãos –; que pegam esse cidadão de maneira imprevista. Como ficam
os advogados que aconselham sem uma jurisprudência que se sabe que valerá?
E mais, quando há instrução! Instrução tem efeito de norma, nós todos sabemos!
Com as razões pelas quais o Tribunal Superior Eleitoral, no precedente de
dezembro de 2008, veio a afirmar essa mudança de jurisprudência, eu estou de

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  711


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pleno acordo. Estou de pleno acordo. Mas não poderia tê-la aplicado àquelas
mesmas eleições de 2008. Por isso, eu faço remissão ao meu voto no REspe 36.643,
do Estado do Piauí, recentemente julgado pelo TSE:
Não é demais ressaltar que uma ação como esta, ora sob análise, é dotada de objeto
restrito, por força de disposição constitucional expressa e se destina, tão somente,
à apuração das hipóteses estritamente previstas no texto da Magna Carta (artigo
14, § 10) e que se referem a abuso de poder econômico, corrupção e fraude.
Ao referir-se à hipótese de fraude, contudo, a aludida norma não traz restrições a
seu campo de incidência e, por isso, entendo não poder o intérprete reduzi-la a epi‑
sódios que teriam ocorrido apenas na oportunidade mesmo da eleição e não antes.
Sobre o tema, já tive oportunidade de tecer algumas considerações, em artigo
publicado pela Revista Brasileira de Direito Eleitoral – RBDE, n. 1, p. 45-61, jul./
dez.09, que me permito ora transcrever:
“A legislação eleitoral não prevê expressamente os casos de fraude. Entretanto,
a atualidade do tema inspirou o constituinte originário a estabelecer a fraude
como um dos motivos que viabilizam o ingresso do mais importante instru‑
mento da processualística eleitoral: a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo.
(...)
A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral é no sentido de que a fraude a
ser apurada na ação constitucional de impugnação de mandato eletivo refere‑
-se àquela verificada tão somente no processo de votação:
‘2. Não é possível examinar a fraude em transferência de domicílio eleitoral
em sede de ação de impugnação de mandato eletivo, porque o conceito de
fraude, para fins desse remédio processual, é aquele relativo à votação, ten‑
dente a comprometer a legitimidade do pleito, operando-se, pois, a preclusão
(...)’ (Recurso Ordinário n. 888, Relator Ministro Caputo Bastos).
Ocorre, como demonstrado, que os vícios no processo de votação em grande
parte foram corrigidos com o advento da urna eletrônica e serão, mais ainda,
com a total implementação da identificação biométrica.
Dessa forma, a ação de impugnação de mandato eletivo por fraude, atual‑
mente, é quase que exclusiva para a apuração de compra de votos, ilícito previsto
no artigo 41-A, da Lei n. 9.504/97.
Por outro lado, o Código Eleitoral permite que as inelegibilidades constitu‑
cionais sejam apuradas em recurso contra expedição de diploma, sem que se
opere a preclusão.
Assim, seria apropriado – e esse é o ponto para reflexão – que as fraudes
pertinentes às inelegibilidades, e também às elegibilidades constitucionais –
excluídas de apuração no RCED – pudessem ser apuradas via de ação de impug‑
nação de mandato eletivo, sob pena de se dar prevalência a uma ação prevista
em legislação infraconstitucional em detrimento da ação constitucional de
impugnação ao mandato eletivo.

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De outra sorte, a natureza de ação ordinária dada à ação de impugnação


de mandato eletivo tem feito com que sejam utilizados outros instrumentos
processuais mais céleres para a tentativa de apear do poder aquele que tenha
vencido o pleito eleitoral com algum vício.
É necessário um novo olhar para esta nobre ação, de previsão constitucional,
a fim de que ela não seja escanteada como um instrumento ineficaz de combate
à fraude eleitoral” (fls. 56/57.)
Assim, e voltando à análise do presente caso, tem-se que o episódio de fraude que
teria sido perpetrado pelo recorrente e que já foi assim qualificada, ao ser descrita
nos autos do precedente responsável pela alteração da jurisprudência desta Corte
Eleitoral a respeito do tema (RESPE 32.507/AL, datado de 17-12-08, relator o Ministro
Eros Grau) seria, sim, em tese, apta a fundamentar o ajuizamento de uma ação de
impugnação de mandato eletivo, da forma como aqui se deu.
Afasto, pois, a preliminar de extinção do feito sem apreciação do mérito, acolhida
pela sentença proferida pelo Juízo Eleitoral de primeiro grau, passando à análise
do mérito da questão.
Nesse passo, chamo a atenção dos Senhores Ministros para as peculiaridades
do presente caso, que me levam a optar pelo decreto de improcedência da ação.
Conforme dantes ressaltado, a partir do julgamento do RESPE n. 32.507/AL, esta
Corte Superior passou a entender que comportamento como esse adotado pelo
correcorrente José configurariam burla à norma do artigo 14, § 5º, da Constituição
Federal, a impedir que alguém disputasse, ainda que em município diverso, um
terceiro cargo consecutivo de prefeito municipal.
Destaque-se que o julgamento desse recurso foi concluído no dia 17-12-08, quando
já encerradas as eleições municipais daquele ano, e possivelmente diplomados
todos os eleitos.
A presente ação foi ajuizada no dia 29-12-08, apenas doze dias depois de publi‑
cado o acórdão através do qual se alterou a jurisprudência da Corte sobre o tema,
ressaltando-se que não houve pretéritas impugnações ao registro da candidatura
do correcorrido José, ou recurso contra a expedição de seu diploma.
Parece intuitivo constatar, destarte, que apenas em razão dessa mudança de
entendimento jurisprudencial, dantes referida, é que a recorrida animou-se a
buscar, em Juízo, ver-se empossada no cargo que não logrou obter nas urnas (pois
esse era seu principal objetivo, com o ajuizamento desta ação, conforme consta de
sua petição inicial, embora o Tribunal Regional Eleitoral de origem tenha deter‑
minado a realização de novas eleições municipais).
Mister, então, proceder-se à análise da situação fática decorrente dessa alteração
de posicionamento da Corte, bem assim das regras que disciplinaram a realização
das eleições municipais de 2008.
Até que proferido o novo “leading case” a respeito do tema, a jurisprudência desta
Corte admitia como lícitas práticas semelhantes a essa feita pelo correcorrente José,
com o fito de obter mandato de prefeito em município diverso daquele para o qual
já fora eleito chefe do Poder Executivo municipal por dois mandatos consecutivos.

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Bem por isso, quando se editou, no mês de fevereiro de 2008, a Instrução n. 120, a
disciplinar as eleições municipais que iriam ocorrer no país, naquele ano, consubs‑
tanciada na Resolução n. 22.717, seu artigo 14 e parágrafo único, assim dispunham:
“Art. 14. Para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, os Gover‑
nadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar aos res‑
pectivos mandatos até 6 meses antes do pleito (Constituição Federal, art. 14, § 6º).
Parágrafo único. O Prefeito reeleito não poderá candidatar-se ao mesmo cargo,
nem ao cargo de vice, para mandato consecutivo no mesmo município (Reso‑
lução n. 22.005, de 8-3-2005).”
De resto, tal norma apenas repetia o que já constara de idêntica resolução, baixada
para as eleições municipais do período imediatamente anterior (Resolução n. 21.608/
DF, de 5-2-04, Instrução n. 73), sobre o mesmo tema e cuja redação era a seguinte:
“Art. 12. Para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, os Gover‑
nadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar aos
respectivos mandatos até seis meses antes do pleito (Constituição, art. 14, § 6º).
§ 1º O Prefeito que se reelegeu não pode candidatar-se ao mesmo cargo, nem
ao cargo de vice, para mandato consecutivo na mesma circunscrição.
§ 2º O Prefeito, reeleito ou não, que, em eleição consecutiva, pretenda candi‑
datar-se em outro município, deverá observar a regra do art. 14, § 6º, da Consti‑
tuição da República, bem como as exigências de filiação partidária e domicílio
eleitoral na circunscrição em que pretenda concorrer, pelo menos um ano antes
do pleito, desde que o município não tenha sido criado por desmembramento,
incorporação ou fusão daquele onde ocupou o cargo.”
De resto, inúmeras consultas foram apresentadas a esta Corte por pessoas que
se encontravam em situação similar ao do correcorrente José e que pretendiam
assim disputar um terceiro mandato consecutivo de prefeito municipal e rece‑
beram, invariavelmente, respostas positivas, quanto à perfeita licitude em assim
proceder (v.g.: Consultas – Acórdãos n. 21.487, 21.564 e 21.706).
Destarte, quando esse correcorrente alterou seu domicílio e renunciou ao cargo
que ocupava, para vir a postular outro, similar, em município diverso, estava a
agir da forma como determinada em Resolução baixada pelo Tribunal Superior
Eleitoral, a qual, em consonância com a pacífica jurisprudência então emanada
da Corte, não considerava ilícito tal comportamento.
A alteração desse entendimento apenas veio a consolidar-se quando do julga‑
mento do RESPE n. 32.507, publicado no dia 17 de dezembro de 2008, quando já
ultimado o pleito municipal daquele ano e a que se refere o presente recurso.
Parece-me, Sr. Presidente, que aplicar retroativamente tal entendimento, para
disciplinar processo eleitoral perfeito e acabado antes mesmo de ultimado esse
julgamento, não é a melhor solução para o presente litígio.
Muito embora não se ignore posição jurisprudencial consolidada nesta Corte
sobre a pronta aplicação, a casos pendentes de julgamento, de mudanças na posição
jurisprudencial do Tribunal a respeito de tema submetido à sua apreciação, no caso
presente há particularidade a apontar para solução diversa, pois havia Resoluções

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  714


RE 637.485

deste Tribunal referendando a legalidade do comportamento adotado pelo corre‑


corrente José, bem assim o caminho a seguir, para proceder da forma como o fez.
Parece-me, destarte, absoluto desrespeito ao postulado da segurança jurídica
aplicar o referido precedente àqueles que disputaram o pleito municipal de 2008,
e o fizeram segundo as regras editadas pelo TSE acerca do tema.
Ressalto, Sr. Presidente, que o princípio da segurança jurídica é amplamente
respeitado por nossos Tribunais Superiores, como corolário lógico do Estado
Democrático de Direito sobre o qual constituída a República Federativa do Brasil.
Assim, o respeito à primazia das leis não pode ser barateado, tampouco desprezado
o comportamento de quem agiu, antes de disputar uma eleição, sob orientação de
regulamentos editados pela mais alta autoridade pátria em matéria de direito eleitoral.
Não é demais ressaltar que, no âmbito do direito eleitoral, as Resoluções ema‑
nadas do TSE constituem inegável fonte do direito, vez que dotadas de força de
Lei Ordinária, conforme de há muito decidido pela Corte, nos autos do RESPE n.
1.943/RS, publicado em sessão do dia 10-7-52.
Então, em respeito ao princípio da segurança jurídica, que deve nortear toda a
atuação de nossas Cortes Superiores, máxime aquelas dotadas do poder de editar
normas com força legiferante, entendo, Sr. Presidente, que o aludido precedente
apenas deve ser aplicado às hipóteses ocorridas depois de sua publicação, ou
seja, 17 de dezembro de 2008, disciplinando, destarte, as eleições que vierem a ser
realizadas depois daquela data e não as anteriores.
Sobre o tema e, em arremate, permito-me tecer algumas considerações.
Quando do julgamento do MS n. 26.603/DF, que cuidava da perda de mandato
eletivo, por infidelidade partidária, por parlamentares que mudaram de partido,
o Plenário do Supremo Tribunal Federal assentou a importância de que a eventual
mudança de posicionamento jurisprudencial pacífico tivesse um marco temporal
claro a delimitá-lo, para evitar prejuízos aos interessados.
Transcreve-se, na parte em que interessa, o que diz sua ementa:
“Revisão jurisprudencial e segurança jurídica: a indicação de marco temporal
definidor do momento inicial de eficácia da nova orientação pretoriana. Os pre‑
cedentes firmados pelo Supremo Tribunal Federal desempenham múltiplas e
relevantes funções no sistema jurídico, pois lhes cabe conferir previsibilidade às
futuras decisões judiciais nas matérias por eles abrangidas, atribuir estabilidade
às relações jurídicas constituídas sob a sua égide e em decorrência deles, gerar
certeza quanto à validade dos efeitos decorrentes de atos praticados de acordo
com esses mesmos precedentes e preservar, assim, em respeito à ética do Direito,
a confiança dos cidadãos nas ações do Estado. Os postulados da segurança jurí‑
dica e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático
de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico,
projetando-se sobre as relações jurídicas, inclusive as de direito público, sempre
que se registre alteração substancial de diretrizes hermenêuticas, impondo-se à
observância de qualquer dos Poderes do Estado e, desse modo, permitindo pre‑
servar situações já consolidadas no passado e anteriores aos marcos temporais

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RE 637.485

definidos pelo próprio Tribunal. Doutrina. Precedentes. A ruptura de paradigma


resultante de substancial revisão de padrões jurisprudenciais, com o reconheci‑
mento do caráter partidário do mandato eletivo proporcional, impõe, em respeito
à exigência de segurança jurídica e ao princípio da proteção da confiança dos
cidadãos, que se defina o momento a partir do qual terá aplicabilidade a nova
diretriz hermenêutica. Marco temporal que o Supremo Tribunal Federal definiu na
matéria ora em julgamento: data em que o Tribunal Superior Eleitoral apreciou a
Consulta 1.398/DF (27-3-2007) e, nela, respondeu, em tese, à indagação que lhe foi
submetida” (Relator o Ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJE de 19-12-08).
Dadas as percucientes e profundas lições apresentadas quando da fundamen‑
tação daquele julgamento, estão a merecer transcrição partes dos votos então
proferidos, que bem se aplicam, a meu sentir, à solução que ora proponho para o
presente recurso:
“Esta Suprema Corte, considerando os precedentes por ela própria firmados,
analisados sob a perspectiva das múltiplas funções que lhe são inerentes – tais
como conferir previsibilidade às futuras decisões judiciais nas matérias por eles
abrangidas, atribuir estabilidade às relações jurídicas constituídas sob a sua
égide, gerar certeza quanto à validade dos efeitos decorrentes de atos praticados
de acordo com esses mesmos precedentes e preservar, assim, em respeito à ética
do Direito, a confiança dos cidadãos nas ações do Estado –, tem reconhecido a
possibilidade, mesmo em temas de índole constitucional (RE 197.917/SP, rel. min.
Maurício Corrêa), de determinar, nas hipóteses de revisão substancial da jurispru‑
dência, derivada da ruptura de paradigma, a não incidência, sobre situações pre‑
viamente consolidadas, dos novos critérios consagrados pelo Supremo Tribunal.
É importante referir, neste ponto, em face de sua extrema pertinência, a aguda
observação de J. J. Gomes Canotilho (Direito constitucional e teoria da Constitui-
ção. Almedina, 1998. p. 250):
‘Estes dois princípios – segurança jurídica e protecção da confiança – andam
estreitamente associados a ponto de alguns autores considerarem o princípio
da protecção de confiança como um subprincípio ou como uma dimensão
específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança
jurídica está conexionada com os elementos objectivos da ordem jurídica –
garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do
direito – enquanto a protecção da confiança se prende mais com as com‑
ponentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e
previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos
poderes públicos. A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo:
(1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder;
(2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas
suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos.
Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da con‑
fiança são exigíveis perante ‘qualquer acto’ de ‘qualquer poder’ – legislativo,
executivo e judicial.’

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RE 637.485

Esse entendimento não é estranho à experiência jurisprudencial do Supremo


Tribunal Federal, que já fez incidir o postulado da segurança jurídica em
questões várias, inclusive naquelas envolvendo relações de direito público
(MS 24.268/MG, rel. p/ o ac. min. Gilmar Mendes – MS 24.927/RO, rel. min.
Cezar Peluso, v.g.) e de caráter político (RE 197.917/SP, rel. min. Maurício Corrêa),
cabendo mencionar a decisão do Plenário que se acha consubstanciada, no
ponto, em acórdão assim ementado:
‘(...) 5. Obrigatoriedade da observância do princípio da segurança jurídica
enquanto subprincípio do Estado de Direito. Necessidade de estabilidade
das situações criadas administrativamente. 6. Princípio da confiança como
elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de uma componente
de ética jurídica e sua aplicação nas relações jurídicas de direito público (...).’
(MS 22.357/DF, rel. min. Gilmar Mendes.)
Vale mencionar, por oportuno, que também a prática jurisprudencial da
Suprema Corte dos EUA tem observado esse critério, fazendo-o incidir naque‑
las hipóteses em que sobrevém alteração substancial de diretrizes que, até
então, vinham sendo observadas na formação das relações jurídicas, inclusive
em matéria penal.
Refiro-me não só ao conhecido caso ‘Linkletter’ – Linkletter v. Walker, 381 U.S.
618, 629, 1965 –, como, ainda, a muitas outras decisões daquele alto Tribunal,
nas quais se proclamou, a partir de certos marcos temporais, considerando‑
-se determinadas premissas e com apoio na técnica do prospective overruling,
a inaplicabilidade do novo precedente a situações já consolidadas no pas‑
sado, cabendo relembrar, entre vários julgados, os seguintes: Chevron Oil Co.
v. Huson, 404 U.S. 97, 1971; Hanover Shoe v. United Shoe Mach. Corp., 392 U.S.
481, 1968; Simpson v. Union Oil Co., 377 U.S. 411, 1964; City of Phoenix v. Kolo‑
dziejki, 399 U.S. 204, 1970; Cipriano v. City of Houma, 395 U.S. 701, 1969; Allen
v. State Bd. Of Educ., 393 U.S. 544, 1969, v.g. (fls. 465 a 468)” (trechos do voto do
ministro Celso de Mello).
(...)
“Feitas essas considerações, é preciso saber se a inegavelmente bem inspirada
Resolução do TSE 22.526, de 27-3-2007, resultante de consulta formulada, em
tese, pelo antigo Partido da Frente Liberal, pode aplicar-se aos parlamentares
que figuram como litisconsortes nos presentes mandados de segurança, e que
trocaram de partido antes da interpretação dada por aquela Corte aos princí‑
pios constitucionais que entendeu aplicáveis à espécie.
Em primeiro lugar cumpre assentar que no ápice da hierarquia axiológica de
todas as constituições figuram alguns princípios, explícitos ou implícitos, iden‑
tificados pelo festejado jurista alemão Otto Bachoff como preceitos de caráter
pré-estatal, supralegal ou pré-positivo, que servem de paradigmas às demais
normas constitucionais, que não podem afrontá-los sob pena de nulidade.
Dentre tais princípios sobressai o valor ‘segurança’, que alicerça a gênese da
própria sociedade. Com efeito, pelo menos desde meados do século XVII, a partir

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RE 637.485

da edição do Leviatã de Thomas Hobbes, incorporou-se à Teoria Política a ideia


de que, sem segurança, não pode existir vida social organizada, passando a
constituir um dos pilares sobre os quais se assenta o pacto fundante do Estado,
inclusive para legitimar o exercício da autoridade.
Em nosso texto constitucional, esse valor encontra abrigo em lócus privile‑
giado. De fato, dentre as cláusulas pétreas listadas no art. 60, § 4º, da Carta
Magna, sobressai a especial proteção que o constituinte originário conferiu aos
direitos e garantias individuais, em cujo cerne encontram-se o direito à vida
e à segurança, expressamente mencionados no caput do art. 5º, sem os quais
sequer se pode cogitar do exercício dos demais.
E por segurança, à evidência, deve-se compreender não apenas a segurança
física do cidadão, mas também a segurança jurídica, com destaque para a segu‑
rança político-institucional.
Ainda que a segurança jurídica não encontre menção expressa na Constituição
Federal, trata-se de um valor indissociável da concepção de Estado de Direito,
‘já que do contrário’ – como adverte Ingo Wolfgag Sarlet – ‘também o ‘governo
de leis’ (até pelo fato de serem expressão da vontade política de um grupo)
poderá resultar em despotismo e toda a sorte de iniquidades’.
Na mesma linha Paulo de Barros Carvalho ensina o seguinte:
‘A segurança jurídica é, por excelência, um sobreprincípio. Não temos notícia
de que algum ordenamento a contenha como regra explícita. Efetiva-se pela
atuação de princípio, tais como o da legalidade, da anterioridade, da igual‑
dade, da irretroatividade, da universalidade da jurisdição e outros mais. Isso
contudo em termos de concepção estática, de análise das normas enquanto
tais, de avaliação de um sistema normativo sem considerarmos sua projeção
sobre o meio social. Se nos detivermos num direito positivo, historicamente
dado, e isolarmos o conjunto de suas normas (tanto as somente válidas como
as vigentes), indagando dos teores de sua racionalidade; do nível de congru‑
ência e harmonia que as proposições apresentam; dos vínculos de coorde‑
nação e de subordinação que armam os vários patamares da ordem posta;
da rede de relações sintáticas e semânticas que respondem pela tessitura
do todo; então será possível emitirmos um juízo de realidade que conclua
pela existência do primado da segurança, justamente porque neste ordena‑
mento empírico estão cravados aqueles valores que operam para realizá-lo.’
A segurança jurídica, pois, insere-se no rol de direitos e garantias individuais,
que integram o núcleo imodificável do Texto Magno, dela podendo deduzir-se
o subprincípio da proteção na confiança das leis, o qual, segundo Canotilho,
consubstancia-se
‘na exigência de leis tendencialmente estáveis, ou, pelo menos, não lesiva
da previsibilidade e calculabilidade dos cidadãos relativamente aos seus
efeitos jurídicos.’
Para o constitucionalista português, os princípios da segurança jurídica e da
proteção da confiança significam que:

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RE 637.485

‘o cidadão deve poder confiar em que seus actos ou às decisões públicas


incidentes sobre os seis direitos, posições jurídicas e relações, praticadas
ou tomadas de acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligamos efeitos
jurídicos duradouros, previstos ou calculados com base nas mesmas normas’
(fls. 498 a 501).” (trechos do voto do ministro Ricardo Lewandowski.)
Ante o exposto, Senhor Presidente, pelo meu voto, estou propondo seja dado
provimento ao recurso para, reformando o acórdão recorrido, julgar desde logo
improcedente a presente ação.

Acompanho Sua Excelência, provendo o recurso extraordinário, reconhecendo


a sua repercussão geral e dando a ele efeitos prospectivos, Senhor Presidente.
Louvo e parabenizo o belo voto trazido pelo eminente ministro Gilmar Mendes.

VOTO
(Antecipação)
A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, eu vou fazer a juntada do
meu voto, até porque as razões que me levam a votar em sentido contrário, com
as vênias do ministro Gilmar, no sentido de negar provimento e acompanhar a
divergência iniciada pelo ministro Joaquim Barbosa no que se refere ao provi‑
mento – como eu disse –, porque me ponho de acordo quanto à tese, que é a
mesma que vem sendo adotada pelo Tribunal Superior Eleitoral no sentido de
dar repercussão geral quanto ao entendimento que prevalece no Tribunal, desde
o julgamento do Recurso Especial 32.507. E vou pedir vênia para não acompa‑
nhar no caso da modulação, primeiro porque já não acho, realmente, que, como
acentuado pelo ministro Eros Grau naquele julgamento:
Quem interpreta a Constituição – e não simplesmente a lê – sabe que a regra do
§ 5º do seu art. 14 veda a perpetuação de ocupante de cargo de chefe do Poder Exe‑
cutivo nesse cargo. Qualquer chefe de Poder Executivo – presidente da República,
governador de Estado e prefeito municipal – somente pode, no Brasil, exercer dois
mandatos consecutivos no cargo de chefe de Poder Executivo.
(...)
Cumpre-nos o afastamento do erro. A fraude é aqui consumada mediante o des‑
virtuamento da faculdade de transferir-se domicílio eleitoral de um para outro
Município, de modo a ilidir-se a incidência do preceito.

Ele relata o caso e depois afirma:


O recorrente, ao terminar o quarto mandato consecutivo, poderá continuar a
concorrer saltando de Município a Município, de modo a tornar-se efetivamente

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RE 637.485

um prefeito profissional que pode exercer quarenta anos ou mais, dependendo de


sua longevidade e das eleições, o cargo de chefe do Poder Executivo municipal.
Compete relevar, por imprescindível, que evidentemente não foi esse o sentido
buscado pela norma. Se a regra anterior era o impedimento absoluto da reeleição
para cargos de chefe do Poder Executivo e a mudança operou-se apenas para per‑
mitir mais um mandato, a reeleição, não tem qualquer senso de razoabilidade a
interpretação que permite a perpetuação por violação indireta à norma proibitiva
composta no princípio republicano de tradição constitucional brasileira. A conduta
efetiva, por via transversa, indireta, tenciona esquivar-se da proibição da norma.

E Vossa Excelência, Ministro Carlos Britto, no Recurso Especial 32.539, acen‑


tuou que, mesmo neste caso, não haveria descumprimento, não haveria problema
à segurança jurídica, porque a norma constitucional já vinha, e, portanto, quem
se esquivou do seu cumprimento não poderia ser considerado alguém que, de
alguma forma, se surpreende, mas que surpreende os outros.
Estou ainda fazendo algumas observações, e concordo com a questão da segu‑
rança jurídica, mas o que se assentou, no Tribunal Superior Eleitoral, foi que
não surpreendia ninguém a norma constitucional porque ela estava posta, em
que pese agora se afirmar que a jurisprudência vinha num sentido e até mesmo
a referência à instrução para aquelas eleições – mas isso também foi discutido.
E, como eu disse, quando se teve um caso concreto em que – eu achei que havia
uma segurança jurídica caracterizada, e o princípio da confiança, realmente, que
foi naquele caso do Dario, de Santa Catarina – a Justiça Eleitoral foi chamada e
respondeu a uma consulta, naquele caso, votei exatamente com base no mesmo
princípio da segurança jurídica.
Por isso, Senhor Presidente, farei a juntada do voto, mas, pelas razões que já
expus em mais de uma ocasião, considerando que realmente me parece que aqui
não é a questão da natureza do cargo específico em determinado local, mas da
natureza do cargo que impede que haja esta burla à norma e aos objetivos das
finalidades da Constituição, nego provimento ao recurso.
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Muito bem. Vossa Excelência nega
provimento ao recurso, acompanhando a divergência inaugurada pelo ministro
Joaquim Barbosa.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Sim, mas, como eu disse, acentuando que me
ponho inteiramente de acordo quanto à repercussão geral no sentido de que há a
vedação – que o ministro afirma – constitucional; aplica-se, portanto, às eleições
de 2012 – só para deixar claro, porque estamos em pleno período, para que não
haja nenhuma dúvida –, mas apenas nego provimento porque a conclusão baseia‑
-se no fundamento da segurança jurídica, o que, neste caso, não se aplicaria.

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RE 637.485

VOTO
A sra. ministra Cármen Lúcia: 1. Recurso extraordinário interposto contra acór‑
dão do Tribunal Superior Eleitoral, pelo qual se confirmou a cassação dos diplo‑
mas de prefeito e vice-prefeita do Município de Valença/RJ, por contrariedade
ao art. 14, §§ 5º e 6º, da Constituição da República, pois já teriam exercido dois
mandatos no Município de Rio das Flores/RJ, o que configuraria situação do
chamado “prefeito itinerante”.
2. O acórdão ora recorrido manteve decisão monocrática do ministro Felix
Fischer, nos seguintes termos:
Agravos regimentais. Recurso especial eleitoral. Recurso contra expedição de diploma.
Mudança de domicílio eleitoral “prefeito itinerante”. Exercício consecutivo de mais
de dois mandatos de chefia do Executivo em municípios diferentes. Impossibilidade.
Violação ao art. 14, § 5º da Constituição Federal.
1. Não merece ser conhecida a alegação dos agravantes de descabimento do
Recurso contra Expedição de Diploma, uma vez que não foi decidida pelo e. Tri‑
bunal a quo, faltando-lhe, pois, o imprescindível requisito do prequestionamento,
o que impede sua admissibilidade na via do recurso especial. Aplica-se, portanto,
à espécie, o disposto na Súmula n. 282 do c. STF: “É inadmissível o recurso extraor‑
dinário quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”.
2. A partir do julgamento do Recurso Especial n. 32.507/AL, em 17-12-2008, esta c.
Corte deu nova interpretação ao art. 14, § 5º, da Constituição Federal, passando a
entender que, no Brasil, qualquer Chefe de Poder Executivo – Presidente da Repú‑
blica, Governador de Estado e Prefeito Municipal – somente pode exercer dois man‑
datos consecutivos nesse cargo. Assim, concluiu que não é possível o exercício de ter‑
ceiro mandato subsequente para o cargo de prefeito, ainda que em município diverso.
3. A faculdade de transferência de domicílio eleitoral não pode ser utilizada para
fraudar a vedação contida no art. 14, § 5º, da Constituição Federal, de forma a per‑
mitir que prefeitos concorram sucessivamente e ilimitadamente ao mesmo cargo
em diferentes municípios, criando a figura do “prefeito profissional”.
4. A nova interpretação do art. 14, § 5º, da Constituição Federal adotada pelo e.
TSE no julgamento dos Recursos Especiais n. 32.507/AL e 32.539/AL em 2008 é a que
deve prevalecer, tendo em vista a observância ao princípio republicano, fundado
nas ideias de eletividade, temporariedade e responsabilidade dos governantes.
5. Agravos regimentais não providos.

Contra essa decisão foi interposto o presente recurso extraordinário, ao qual


foi atribuído efeito suspensivo por meio da medida cautelar na AC 2.788, rel.
min. Gilmar Mendes, com os seguintes argumentos: a) alegada distinção entre
proibição de ocupação de mesmo cargo e cargo de mesma natureza; b) sugerida
violação ao princípio da segurança jurídica, pela aplicação de entendimento na

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RE 637.485

fase de diplomação e ausência de impugnação prévia da candidatura; c) con‑


dições de elegibilidade seriam aferidas na data do registro da candidatura, nos
termos do art. 11, § 10, da Lei 9.504/1997.
Por meio do deferimento da liminar nessa ação cautelar, não referendada pelo
Plenário, foi suspenso o pleito eleitoral que havia sido marcado para 6-2-2011 no
Município de Valença/RJ, permitindo-se o exercício do mandato de prefeito pelo
ora recorrente (DJ de 4-2-2011).
3. Neste recurso, o recorrente sustenta que:
uma vez que a proibição de reeleição tem a ver com o valor republicano de impedir
a indefinida continuidade de uma mesma pessoa na condução de uma determinada
comunidade, não faz sentido algum vislumbrar que essa mesma pessoa não possa
governar o destino de outra comunidade, sobre a qual pelo fato de o candidato ter
sido Prefeito de outro Município não exerce influência apta a desequilibrar o pleito.

Cita como precedente desse entendimento o RE 100.825, rel. min. Aldir Pas‑
sarinho.
4. A decisão recorrida amparou-se nos Recursos Especiais Eleitorais 32.507/
AL e 32.539/AL, nos quais o Tribunal Superior Eleitoral concluiu não ser possível
a ocupação do cargo de prefeito em três mandatos consecutivos, ainda que em
Municípios diferentes, por contrariedade ao art. 14, § 5º, da Constituição da Repú‑
blica. Fixou-se, ainda, que a faculdade de transferência de domicílio eleitoral não
pode ser utilizada para fraudar a vedação contida nesse dispositivo constitucional.
No voto condutor do acórdão do REspe 32.507/AL, o ministro Eros Grau
enfatizou:
Quem interpreta a Constituição – e não simplesmente a lê – sabe que a regra do
§ 5º do seu artigo 14 veda a perpetuação de ocupante de cargo de Chefe de Poder
Executivo nesse cargo.
Qualquer Chefe de Poder Executivo – Presidente da República, Governador de
Estado e Prefeito Municipal – somente pode, no Brasil, exercer dois mandatos
consecutivos no cargo de Chefe de Poder Executivo.
(...) Cumpre-nos o afastamento do erro. A fraude é aqui consumada mediante o
desvirtuamento da faculdade de transferir-se domicílio eleitoral de um para outro
Município, de modo a ilidir-se a incidência do preceito.
(...) O recorrente, na síntese que colho no voto do Juiz Manoel Cavalcante de
Lima Neto – voto condutor no acórdão recorrido –, “já exerceu um mandato em
Barra de Santo Antônio, deixando sua esposa no cargo para concorrer em outro
município, estando exercendo um segundo mandato consecutivo na cidade de
Porto de Pedras e pretende o registro de candidatura para um terceiro mandato
consecutivo para um mesmo cargo do Poder Executivo”.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  722


RE 637.485

Leio ainda nesse mesmo voto as seguintes ponderações:


“(...) Aliás, se prevalecer a interpretação de eterna reeleição, a norma consti‑
tucional se torna absolutamente inócua. O recorrente ao terminar o quarto
mandato consecutivo poderá continuar a concorrer saltando de município
a município, de modo a tornar-se efetivamente um prefeito profissional que
pode exercer 40 (quarenta) anos ou mais, dependendo de sua longevidade e das
eleições, o cargo de Chefe do Poder Executivo Municipal. Compete relevar, por
imprescindível, que evidentemente não foi esse o sentido buscado pela norma.
Se a regra anterior era o impedimento absoluto da reeleição para cargos de
Chefe do Poder Executivo e a mudança operou-se apenas para permitir mais um
mandato, a reeleição, não tem qualquer senso de razoabilidade a interpretação
que permite a perpetuação por violação indireta à norma proibitiva composta
no princípio republicano de tradição constitucional brasileira. A conduta efe‑
tiva, por via transversa, indireta, tenciona esquivar-se da proibição da norma.”

E no REspe 32.539, o ministro Ayres Britto sustentou que:


Não se pode, mediante a prática de ato formalmente lícito (mudança de domicílio
eleitoral), alcançar finalidades incompatíveis com a Constituição: a perpetuação no
poder e o apoderamento de unidades federadas para a formação de clãs políticos ou
hegemonias familiares. O princípio republicano está a inspirar a seguinte interpre‑
tação basilar dos §§ 5º e 6º do art. 14 da Carta Política: somente é possível eleger-se
para o cargo de “prefeito municipal” por duas vezes consecutivas. Após isso, apenas
permite-se, respeitado o prazo de desincompatibilização de 6 meses, a candidatura
a “outro cargo”, ou seja, a mandato legislativo, ou aos cargos de Governador de
Estado ou de Presidente da República; não mais de Prefeito Municipal, portanto.

Com fundamento nos mesmos dispositivos constitucionais, art. 14, §§ 5º e 6º,


que o ora recorrente interpôs o presente recurso extraordinário, pelo que se há
de apreciar a interpretação a eles dada pelo Tribunal Superior Eleitoral.

A interpretação do art. 14, § 5º, da Constituição da República e a proibição da prática


do “prefeito itinerante”
5. O art. 14, § 5º, da Constituição da República cuida da figura da reeleição. Para
José Afonso da Silva, no direito eleitoral brasileiro, a reeleição significa “possibili‑
dade que a Constituição reconhece ao titular de um mandato eletivo de pleitear
sua própria eleição para um mandato sucessivo ao que está desempenhando”
(SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. 6. ed. 2009).
Originariamente, a Constituição de 1988 fixou em quatro anos o período de
mandato dos chefes do Poder Executivo, vedando-se a reeleição no mesmo cargo
para o período subsequente:

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RE 637.485

§ 5º São inelegíveis para os mesmos cargos, no período subsequente, o Presidente


da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem
os houver sucedido, ou substituído nos seis meses anteriores ao pleito.

Com a edição da Emenda Constitucional 16, de 5 de junho de 1997, esse dis­


positivo foi alterado, pelo que se viabilizou a reeleição para os cargos de presi‑
dente da República, governadores de Estado e do Distrito Federal e prefeitos:
§ 5º O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal,
os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos
poderão ser reeleitos para um único período subsequente.

Sobre essa alteração no dispositivo constitucional, afirmou José Afonso da


Silva que:
Inverteu-se a regra do referido § 5º, que, de conteúdo de direitos políticos negati‑
vos (inelegibilidade), se transformou em direitos positivos, ao assegurar o direito
subjetivo de titulares daqueles mandatos executivos de participação no processo
eleitoral subsequente para o mesmo cargo, mas uma única vez. [SILVA, José Afonso.
Comentário contextual à Constituição. 6. ed. 2009.]

6. No voto condutor do acórdão recorrido, o Tribunal Superior Eleitoral inter‑


pretou esse dispositivo constitucional no sentido de “não ser possível o exercício
de terceiro mandato subsequente para o cargo de prefeito, ainda que em muni‑
cípio diverso”.
Isso porque se constatou a frequente prática da desincompatibilização por prefei‑
tos e alteração de domicílio eleitoral para Municípios próximos, no intuito de candi‑
datar-se e continuar ocupando, por três mandatos consecutivos, o cargo de prefeito.
7. A interpretação feita pelo Tribunal Superior Eleitoral não merece repa‑
ros e atende ao princípio republicano e à necessidade de alternância no poder,
evitando-se a perpetuação e personificação do cargo na figura de quem o ocupa.
Ainda que a Emenda Constitucional 16/1997 tenha instituído a possibilidade
de reeleição para os chefes do Poder Executivo, acolhendo argumentos de neces‑
sidade de mais tempo para cumprimento dos planos de governo, a Constituição
da República limita essa possibilidade a uma única reeleição, o que revela a valo‑
rização da alternância de poder e a limitação temporal de seu exercício como
meios de controle de abusos por seu titular.
Nessa linha, é consequência lógica do princípio republicano a temporarie‑
dade e a alternância nos mandatos eletivos, como afirmam Cruz e Cademartori:
A Temporalidade dos Mandatos Eletivos é um dos elementos caracterizadores da
República, pois funciona como um dos princípios dela derivados, que serve como

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RE 637.485

instrumento para, de tempos em tempos, aferir-se o Interesse da Maioria em um


de seus aspectos, ou seja, na definição de quem governa e de como será composta
a dieta que representa os cidadãos. O sentido aristotélico de República indica o
Governo em que a multidão governa no sentido do interesse coletivo, da maioria,
do Bem Comum. [CRUZ, Paulo Márcio; CADEMARTORI, Luiz Henrique. O princípio
republicano: aportes para um entendimento sobre o interesse da maioria. Revista de
Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD). 1(1): p. 87-96.]

É essa a finalidade da norma constitucional ao restringir a possibilidade de


exercício de apenas um novo mandato. Não se quer a perpetuação, a ocupação
ilimitada do espaço público como algo que pertença ao mandatário e que pode
ser renovada ininterruptamente.
Logo, a interpretação dada pelo Tribunal Superior Eleitoral prestigia o prin‑
cípio republicano, pelo que a pretensão do recorrente não merece acolhida.
8. Também deve ser afastado o argumento trazido pelo recorrente, ao trans‑
crever trecho do voto do ministro Moreira Alves, pelo qual não se poderia ser
irreelegível para dois cargos ao mesmo tempo:
É possível – e é a indicação que eu faço – alguém ser irreelegível para dois cargos?
Esta é uma impossibilidade até lógica. Ninguém pode ser irreelegível para dois
cargos ao mesmo tempo, porque a irreelegibilidade só pode existir com relação
ao cargo anteriormente ocupado. [RE 100.825.]

A premissa não se sustenta, pois o que existe é a impossibilidade lógica de


alguém ser elegível em mais de um Município, pois só o é onde tem domicílio
eleitoral. Essa constatação, contudo, em nada contradiz a norma de que não se
pode ocupar o cargo de prefeito por três vezes consecutivas, como bem inter‑
pretou o Tribunal Superior Eleitoral.
9. Tampouco cabe a referência ao RE 345.822, rel. min. Carlos Velloso, pois,
naquele caso, cuidava-se de presidente da Câmara, ocupante do cargo de prefeito
por seis meses e que se candidatou ao cargo de vereador, pelo que este Supremo
Tribunal concluiu ser hipótese do § 6º do art. 14 da Constituição da República, e
não do seu § 5º, já que não concorrera ao cargo de prefeito (mesmo cargo). Logo,
não cuidou este Supremo Tribunal da situação de transferência de domicílio
eleitoral para candidatura a terceiro mandato de prefeito municipal.

Ponderação: segurança jurídica e resultado eleitoral legítimo (princípio democrático)


10. Não se há falar, na espécie, em afronta à segurança jurídica decorrente da
ausência de discussão da matéria quando do registro de candidatura do recor‑
rente. Isso se dá pela singela circunstância de que ao candidato, uma vez eleito,

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RE 637.485

não se pode garantir uma espécie de “salvo conduto” de modo a imunizá-lo das
ações constitucionais e infraconstitucionais previstas para a impugnação do
mandato ou da diplomação.
O sistema eleitoral, sob cujas normas o candidato concorreu e viu-se eleger, já
previa, desde o registro de sua candidatura e paralelamente à ação de impug‑
nação desse registro (art. 3º da Lei Complementar 64/19902), ainda, o recurso
contra expedição de diploma,3 o qual, nos termos do art. 262, I, do Código
Eleitoral,4 é plenamente cabível para suscitar inelegibilidade ou incompatibi‑
lidade de candidato.
11. No julgamento da ADI 1.805, este Supremo Tribunal, à guisa do que preco‑
nizado pelo TSE (Resolução 19.952/1997), apenas considerou que a Emenda Cons‑
titucional 16/1997 instituiu uma nova “hipótese [e não condição] de elegibilidade
de presidente da República, governadores de Estado e do Distrito Federal e dos
prefeitos”, ressalvando que, “na redação original, o § 5º do art. 14 da Constituição
de 5 de outubro de 1988 previa, ao contrário, regra de inelegibilidade absoluta”,
concluindo que, “não se tratando, no § 5º do art. 14 da Constituição, na redação
da Emenda Constitucional 16/1997, de caso de inelegibilidade, mas, sim, de hipó‑
tese em que se garante elegibilidade dos chefes dos Poderes Executivos federal,
estadual, distrital e municipal e dos que os hajam sucedido ou substituído no
curso dos mandatos, para o mesmo cargo, para um período subsequente, bem
de entender é que não cabe exigir-lhes desincompatibilização para concorrer
ao segundo mandato, assim constitucionalmente autorizado”.

2 “Art. 3º Caberá a qualquer candidato, a partido político, coligação ou ao Ministério Público, no


prazo de 5 (cinco) dias, contados da publicação do pedido de registro do candidato, impugná-
-lo em petição fundamentada.”
3 Sobre o não cabimento de AIME nesses casos, sob fundamento de fraude: “O fato de o pre-
feito reeleito de município transferir seu domicílio eleitoral e concorrer ao mesmo cargo em
município diverso, no mandato subsequente ao da reeleição, pode ensejar discussão sobre
eventual configuração de terceiro mandato e, por via de consequência, da inelegibilidade do
art. 14, § 5º, da Constituição Federal, a ser apurada por outros meios na Justiça Eleitoral, mas
não por intermédio da ação de impugnação de mandato eletivo, sob o fundamento de fraude”
(REspe 36.643/PI, rel. min. Arnaldo Versiani, julgado em 12-5-2011, DJE de 28-6-2011).
4 “Art. 262. O recurso contra expedição de diploma caberá somente nos seguintes casos:
I – inelegibilidade ou incompatibilidade de candidato;
II – errônea interpretação da lei quanto à aplicação do sistema de representação proporcional;
III – erro de direito ou de fato na apuração final, quanto à determinação do quociente elei-
toral ou partidário, contagem de votos e classificação de candidato, ou a sua contemplação
sob determinada legenda;
IV – concessão ou denegação do diploma em manifesta contradição com a prova dos autos,
nas hipóteses do art. 222 desta Lei, e do art. 41-A da Lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997.
(Redação dada pela Lei n. 9.840, de 28-9-1999).”

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  726


RE 637.485

Desse modo, não procede o argumento de que a questão em análise estaria


resumida a uma condição de elegibilidade, pois o que se preconiza neste julga‑
mento é o impedimento do prefeito de se eleger para três mandatos consecuti‑
vos, fora, portanto, daquele permissivo (hipótese) constitucional discutido na
ADI 1.805, resvalando para a inelegibilidade (para o impedimento).
Tem-se, portanto, e desde sempre, a obstinada preocupação do legislador em
garantir o acesso ao cargo público apenas daqueles absolutamente aptos para tanto,
independentemente de terem ultrapassado a fase de registro e mesmo sido eleitos.
12. É de se ressaltar que, apesar de a norma do § 10 do art. 11 da Lei 9.504/1997
dispor que “as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade devem
ser aferidas no momento da formalização do pedido de registro da candidatura,
ressalvadas as alterações, fáticas ou jurídicas, supervenientes ao registro que
afastem a inelegibilidade”, a jurisprudência pacífica do Tribunal Superior Elei‑
toral é enfática ao esclarecer tratar-se de marco temporal para a mera aferição
“em tese” da inelegibilidade, e não o termo fatal para a sua arguição, sob pena
de se esvaziar completamente o recurso contra expedição de diploma fundado
em inelegibilidade, previsto no art. 262, I, do Código Eleitoral.
Em outras palavras, o que o legislador erigiu foi um momento limite para a
configuração da inelegibilidade de um candidato, para um determinado pleito,
e não para a sua arguição, passível de dar-se também às vésperas da diploma‑
ção no recurso contra ela manejado. Nesse sentido, os seguintes precedentes do
Tribunal Superior Eleitoral:
O Juiz Eleitoral não pode conhecer de ofício de causa de inelegibilidade superve‑
niente ao pedido de registro, mas tão somente daquelas anteriores ao requerimento
de candidatura. Como se sabe, as inelegibilidades supervenientes devem ser apuradas
em recurso contra expedição de diploma. Nesse sentido:
“Recurso contra expedição de diploma. Inelegibilidade superveniente.
1. A inelegibilidade do art. 1º, I, g, da LC n. 64/90 somente surte efeitos a partir
da irrecorribilidade da decisão de rejeição de contas pelo órgão competente, e
não a partir da publicação desta.
2. Se a decisão de rejeição de contas de candidato se tornou irrecorrível so­­
mente após o prazo para impugnação do registro de candidatura, é de reco‑
nhecer configurada causa de inelegibilidade infraconstitucional superveniente,
que pode ser arguida em sede de recurso contra expedição de diploma, com base
no art. 262, I, do Código Eleitoral. Agravo regimental a que se nega provimento”
(AgR-REspe 950.098.718/MA, Rel. Min. Arnaldo Versiani – grifei).
“Embargos de declaração. Agravo de instrumento. Decisão monocrática. Rece-
bimento. Agravo regimental. Inelegibilidade superveniente. Reconhecimento de
ofício. Impossibilidade. Manutenção da decisão agravada. (...) II – É incabível

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RE 637.485

a apuração de inelegibilidade superveniente de ofício pelo juízo, mormente


quando ainda possível a propositura de recurso contra expedição de diploma
pelos interessados. III – Decisão agravada que se mantém pelos seus próprios
fundamentos” (AgR-AI 12.113/CE, de minha relatoria – grifei).
Demais disso, anoto, neste juízo provisório, que o Tribunal Superior Eleitoral,
interpretando o art. 10, § 11, da Lei 9.504/97, tem concluído, ao contrário do TRE/
AM, que tal dispositivo incide em situações fáticas ou jurídicas que afastem a
inelegibilidade, não em hipóteses que assentam a inelegibilidade. Nesse sentido:
“Agravo regimental. Recurso ordinário. Eleições 2010. Deputado estadual. Rejeição
de contas. Incidência da causa de inelegibilidade do art. 1º, I, g, da LC n. 64/90,
com redação da LC n. 135/2010. Decurso do prazo da inelegibilidade. Circunstância
superveniente que afasta a inelegibilidade. Possibilidade de conhecimento de ofício.
1. Alterações fáticas ou jurídicas posteriores podem afastar causa de inelegi‑
bilidade inicialmente averiguada no momento do pedido de registro de candi‑
datura, nos termos do art. 11, § 10, da Lei n. 9.504/97.
2. O art. 7º, parágrafo único, da LC n. 64/90, por sua vez, dispõe que no julga‑
mento dos pedidos de registro o magistrado deve apreciar livremente a prova,
atendendo aos fatos e às circunstâncias constantes dos autos, ainda que não
alegados pelas partes.
3. Tendo em vista que em 1º-8-2010 e em 4-9-2010 ocorreu o decurso do prazo
de 8 (oito) anos de inelegibilidade previsto no art. 1º, I, g, da LC n. 64/90, é de
ser deferido o pedido de registro de candidatura da agravada.
4. Agravo regimental não provido” (AgR-RO 437.609/CE, Rel. Min. Aldir
Passarinho – grifei).
“Eleições 2010. Registro de candidatura. Embargos de declaração no recurso
ordinário. Acolhimento. Fato superveniente. Alteração da situação do candidato.
Elegibilidade.
1 – Consoante disciplina estabelecida no artigo 11, § 10, da Lei n. 9.504/97,
as alterações, fáticas ou jurídicas, supervenientes ao registro afastam a
inelegibilidade.
2 – Embargos de declaração acolhidos, com atribuição de efeitos modificati‑
vos, para deferir o pedido de registro de candidatura” (ED-RO 333.763/MA, Rel.
Min. Hamilton Carvalhido – grifei).
Destaco, ainda, recente acórdão do Tribunal Superior Eleitoral que, ao inter‑
pretar questão semelhante (inelegibilidade superveniente advinda de cassação
de diploma posterior ao pedido de registro), reiterou o entendimento no sentido
de que a disciplina prevista no art. 10, § 11, da Lei 9.504/97 aplica-se a situações
que afastem a inelegibilidade, sendo vedada a sua invocação para assentar causa
de inelegibilidade que surgiu após o pedido de registro de candidatura. O acórdão
exibe a seguinte ementa:
“Eleições 2010. Recursos ordinários. Requerimento de registro de candidatura.
Candidato ao cargo de deputado federal condenado pelo Tribunal Regional Elei‑
toral por captação ilícita de sufrágio. Art. 1º, I, j, da Lei Complementar 64/1990,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  728


RE 637.485

alterado pela Lei Complementar 135/2010. Inelegibilidade afastada pelo Tribunal


Superior Eleitoral que deu provimento ao RO 1.533-MT e reformou a decisão
que condenou o ora recorrente por captação ilícita de sufrágio.
Inelegibilidade do art. 1º, I, d, da Lei Complementar 64/1990. Condenação
do candidato por abuso de poder político e de autoridade. Julgamento ocor-
rido após a formalização do pedido de registro de candidatura. Conhecimento
de ofício pelo acórdão do Tribunal Regional Eleitoral que julgou as ações de
impugnação ao registro de candidatura. Impossibilidade. Condições de elegi‑
bilidade e causas de inelegibilidade que devem ser aferidas no momento da
formalização do pedido de registro da candidatura. Atendimento à norma do
art. 11, § 10, da Lei 9.504/97. Recurso ordinário do Ministério Público Eleitoral a
que se nega seguimento.
Recursos ordinários de Pedro Henry Neto e da Coligação Mato Grosso Pro‑
gressista providos para deferir o registro de candidatura” (RO 1.742-02/MT,
Rel. Min. Cármen Lúcia – grifei). [AC 427.707, rel. p/ o ac. min. Ricardo Lewan­
dowski, DJE de 2-2-2011.]

Na espécie, tem-se como incontroverso que, no momento da formalização do


pedido de registro de sua candidatura, o então candidato Vicente de Paula Souza
Guedes já havia sido duas vezes eleito para o cargo de prefeito, ou seja, já incidia,
ao menos “em tese”, na proibição legal do art. 14, § 5º, desde aquele momento.
13. O resguardo da higidez constitucional dos candidatos eleitos é, portanto,
o imperativo maior a conduzir o processo eleitoral, maior até que os direitos
subjetivos dos participantes deste mesmo processo. Como tenho reiteradamente
afirmado, a repercussão das matérias constitucionais vai além do direito das
partes. Exemplo dessa “obstinação republicana” pode ser encontrado nos termos
da Súmula 11 do Tribunal Superior Eleitoral, segundo a qual, “no processo de
registro de candidatos, o partido que não o impugnou não tem legitimidade para
recorrer da sentença que o deferiu, salvo se se cuidar de matéria constitucional”.
Desse modo, tendo sido ajuizado tempestivamente o recurso contra a expe‑
dição de diploma, legalmente previsto desde a redação original do Código Elei‑
toral em 1965, o reconhecimento pela Justiça Eleitoral de inelegibilidade nele
suscitada, à luz da Constituição da República, não fica vedado ou engessado
aos seus pronunciamentos anteriores,5 sob pena de se subverterem o interesse

5 Antes do julgamento dos REspe 32.507/AL e 32.539/AL, de 17-12-2008, rel. min. Eros Grau, o TSE
admitia a tripla eleição consecutiva do prefeito, desde que para Municípios diversos. Confira-se: “A
candidatura a cargo de prefeito de outro município, vizinho ou não, caracteriza candidatura a outro
cargo, devendo ser observada a regra do art. 14, § 6º, da Constituição da República, ou seja, a desin-
compatibilização seis meses antes do pleito” (Acórdão 21.297/RJ, DJ de 27-2-2003, rel. min. Fernando
Neves) e ainda “A candidatura a cargo de prefeito de outro município caracteriza candidatura a

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RE 637.485

público e o legítimo processo eleitoral democrático em favor da segurança jurí‑


dica, subjetivamente considerada.
Daí a definição do caso dada pelo Tribunal Superior Eleitoral quando do jul‑
gamento do agravo regimental no Recurso Especial 4198006:
Também não ocorreu, na espécie, a alegada preclusão da matéria relativa à inele‑
gibilidade. É que a questão discutida nos autos refere-se à interpretação do art. 14,
§ 5º, da Constituição Federal e de acordo com a jurisprudência pacífica do e. TSE,
mesmo após o encerramento da fase de impugnação ao registro de candidatura
não há preclusão quanto à análise de inelegibilidade constitucional. Confira-se:
2. A inelegibilidade fundada no art. 14, § 7º, da Constituição Federal pode ser
arguida em recurso contra a expedição de diploma, por se tratar de inelegibilidade
de natureza constitucional, razão pela qual não há que se falar em preclusão, ao
argumento de que a questão não foi suscitada na fase de registro de candidatura
(Ac. n. 3.632-SP). Precedentes. (AAG n. 7.022-PR, Rel. Min. José Gerardo Grossi, DJ
de 14-9-2007).
III – As inelegibilidades constitucionais podem ser arguidas tanto na impug‑
nação de candidatura quanto no recurso contra expedição de diploma, mesmo
se existentes no momento do registro, pois aí não há falar em preclusão. (AAG n.
3.328-MG, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 21-2-2003.)

Reitero tratar-se de jurisprudência consolidada na Justiça Eleitoral desde


dezembro de 2008, cujo eventual abalo em favor do interesse pessoal do can‑
didato (ou mesmo de um pretenso – porém ilegítimo – eleitorado) colocaria
em risco a utilidade do recurso contra a expedição de diploma na arguição das
inelegibilidades, recurso que, pela sua própria dinâmica e nomenclatura, só tem
lugar após a eleição e antes da diplomação.
Cuida-se de importante instrumento jurídico para a consecução do resul‑
tado eleitoral legítimo por meio do qual fica garantida aos eleitores e à Justiça
Eleitoral mais uma oportunidade para debelar eventuais afrontas às normas da
Constituição, como observado na espécie.
Tem-se, portanto, a meu ver, numa ponderação de valores constitucionais,
que mais importante que primar pela segurança jurídica do eleito é garantir,
finalmente, efetividade à própria norma constitucional que, desde 1988, proibia
a reeleição e, a partir de 1997 (Emenda Constitucional 16), passou a admiti-la
apenas para dois mandatos consecutivos de prefeito. Segurança que, em última

outro cargo, devendo ser observada a desincompatibilização seis meses antes do pleito, domicílio
eleitoral na circunscrição e transferência do título eleitoral pelo menos um ano antes da eleição”
(Acórdão 21.564/DF, DJ de 5-12-2003, rel. min. Carlos Velloso).

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RE 637.485

análise, labora em favor do princípio democrático e da coletividade como um


todo, destinatária final do produto eleitoral que se quer livre da nociva perpetu‑
ação de um ou alguns no exercício exclusivo do poder executivo.
14. O precedente abaixo situa com riqueza a jurisprudência do TSE sobre a
matéria:
Desde o julgamento do Recurso Especial Eleitoral n. 32.507/AL, em 17-12-2008,
esta c. Corte, contra o meu voto, passou a entender que o art. 14, § 5º, da CF veda
a perpetuação de Chefe do Poder Executivo no cargo, concluindo não ser possível o
exercício de terceiro mandato subsequente, ainda que em município diverso.
Ponderou-se, ainda, que a faculdade de transferência de domicílio eleitoral não
pode ser utilizada para fraudar a vedação contida no art. 14, § 5º, da CF, sob pena de
tornar a norma constitucional absolutamente inócua.
Reafirmando esse entendimento, na mesma sessão de 17-12-2008, o e. TSE negou
provimento ao REspe n. 32.539/AL, que recebeu a seguinte ementa:
“Recurso especial eleitoral. Mudança de domicílio eleitoral. ‘Prefeito itinerante’.
Exercício consecutivo de mais de dois mandatos de chefia do Executivo em muni-
cípios diferentes. Impossibilidade. Indevida perpetuação no poder. Ofensa aos
§§ 5º e 6º do art. 14 da Constituição da República. Nova jurisprudência do TSE.
Não se pode, mediante a prática de ato formalmente lícito (mudança de domicílio
eleitoral), alcançar finalidades incompatíveis com a Constituição: a perpetuação
no poder e o apoderamento de unidades federadas para a formação de clãs
políticos ou hegemonias familiares.
O princípio republicano está a inspirar a seguinte interpretação basilar dos
§§ 5º e 6º do art. 14 da Carta Política: somente é possível eleger-se para o cargo
de ‘prefeito municipal’ por duas vezes consecutivas. Após isso, apenas permite‑
-se, respeitado o prazo de desincompatibilização de 6 meses, a candidatura a
‘outro cargo’, ou seja, a mandato legislativo, ou aos cargos de Governador de
Estado ou de Presidente da República; não mais de Prefeito Municipal, portanto.
Nova orientação jurisprudencial do Tribunal Superior Eleitoral, firmada no
REspe 32.507.” (Grifei.)
(REspe n. 32.539/AL, rel. para o acórdão, Min. Ayres Britto, PSESS de 17-12-2008).
Tal posicionamento foi novamente reiterado em recente julgado, no AgRg-REspe n.
419.8006/RJ, em sessão do dia 27-5-2010.
Como se vê, a jurisprudência deste Tribunal consolidou-se quanto à referida inter‑
pretação do art. 14, § 5º, da CF, motivo por que o novo entendimento deve ser apli-
cado ao caso em questão, não merecendo ser acolhida a alegação de que a mudança
na jurisprudência acerca da matéria ofenderia o princípio da segurança jurídica.
Com efeito, tanto as condições de elegibilidade quanto as causas de inelegibi‑
lidade devem ser aferidas a cada eleição, na conformidade das regras aplicáveis
atualmente, não cabendo cogitar-se de coisa julgada, direito adquirido ou violação
à segurança jurídica.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  731


RE 637.485

Nesse sentido, cito os seguintes precedentes:


“Embargos de declaração. Recurso especial. Inelegibilidade. Rejeição de contas.
LC n. 64/90, I, g. Omissão. Ausência. Rejeição. (...)
2. As condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade são aferidas a
cada pleito, não havendo direito adquirido à candidatura decorrente de even‑
tual deferimento de registro em eleição pretérita (grifei).
3. Embargos de declaração rejeitados.” (ED AgR-REspe n. 30.306/MA, de minha
relatoria, DJE de 18-3-2009).
“Agravo regimental. Recurso especial eleitoral. Registro de candidatura. Eleições
2008. Jurisprudência. Evolução. Princípios e garantias constitucionais. Não viola-
ção. Prefeito. Contas. Rejeição. Câmara municipal. Súmula n. 1 do TSE. Provimento
jurisdicional liminar. Necessidade. Irregularidades insanáveis. Não provimento.
1. A mutabilidade é própria do entendimento jurisprudencial, pelo que a alte-
ração da jurisprudência, por si só, não afronta a segurança jurídica, não desca‑
racteriza a garantia da irretroatividade da lei e, além disso, não há se falar em
direito adquirido. Precedentes: AgR-REspe n. 32.158/MG, relator designado Min.
Arnaldo Versiani, publicado em sessão em 25-11-2008; AgR-REspe n. 30.174/RS,
de minha relatoria, publicado em sessão em 18-11-2008; AgR-REspe n. 32.762/
MG, Rel. Min. Joaquim Barbosa, publicado na sessão de 27-10-2008; AgR-REspe
n. 29.456/SP, de minha relatoria, publicado em 10-9-2008; AgR-RO n. 1.841/SP,
Rel. Min. Arnaldo Versiani, publicado na sessão de 21-8-2008; AgR-MS n. 3.829/
MG, Rel. Min. Marcelo Ribeiro, DJ de 6-8-2008; AAG n. 7.147/MG, Rel. Min. Cezar
Peluso, DJ de 1º-2-2008. (Grifei.) (...) 4. Agravo regimental desprovido.” (AgR‑
-REspe n. 33.659/SP, rel. Min. Felix Fischer, PSESS de 4-12-2008).
Ademais, cumpre registrar que, por ocasião do julgamento dos REspes n.
32.507/AL e 35.539/AL supramencionados, não houve qualquer restrição quanto
ao momento em que as decisões deveriam produzir efeitos. Ao contrário, o novo
entendimento foi aplicado às eleições de 2008, devendo, pois, ser utilizado também
no caso em tela, sob pena de ofensa ao princípio da isonomia.
Por fim, não se diga, na espécie, que a ausência de impugnação ao registro de
candidatura do recorrente no ponto seria óbice ao reconhecimento posterior da
alegada inelegibilidade. É que, de acordo com a jurisprudência pacífica do e. TSE,
mesmo após o encerramento da fase de impugnação ao registro de candidatura,
não há preclusão quanto à análise de inelegibilidade constitucional. [AI 11.539, rel.
min. Marcelo Ribeiro, DJE de 2-8-2010, grifos nossos.]

15. Pelo exposto, voto no sentido do desprovimento deste recurso ex­­tra­


ordinário.

VOTO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, inicio louvando o voto
do ministro Gilmar Mendes – completo, como de hábito –, e digo que comungo da

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RE 637.485

tese central defendida por Sua Excelência, que, de fato, há fraude à Constituição
quando, embora aparentemente haja uma licitude formal no ato de mudança de
domicílio, na verdade o que está havendo é uma fraude à Constituição. Porque se
pretende, mediante expedientes pretensamente lícitos, ferir de morte a norma da
Carta Magna, que é uma norma fundamental, que faz parte inclusive do núcleo
central do princípio republicano – que é a proibição de reeleições sucessivas.
No caso, verifico que o TSE, mais uma vez, constatou que houve – no exame
do caso concreto – uma fraude, uma burla à lei. E o TSE começou a chegar a
esta conclusão depois de examinar dezenas e dezenas de cargos, verificando que
certos candidatos se perpetuavam no poder, formando verdadeiras oligarquias
regionais mediante esse expediente, que nós lá, na Justiça Eleitoral, batizamos de
“prefeitos itinerantes”. Então, ele fica dois mandatos no Município, faz benesses
para o Município vizinho, candidata-se no Município vizinho, e vai fazendo um
círculo completo. Imaginemos isso numa região metropolitana de São Paulo, nós
então admitiríamos que alguém pudesse exercer o mandato de prefeito 37 vezes.
Isso é um rematado absurdo do ponto de vista constitucional.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Ministro Lewandowski, Vossa Excelência me
permite rapidamente? E há um outro dado para o qual o procurador chamou a
atenção, em algumas ocasiões lá e sob a presidência de Vossa Excelência, nós
julgamos, em que isso não era tudo. É que ele sempre deixava alguém da famí‑
lia, a mãe num Município e o irmão em outro, ia mudando, e aí a mãe já estava
domiciliada em outro, e era prefeito do de cá, de tal maneira que realmente o
quadro é um quadro grave.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Veja, acho que isso não está em jogo.
Acho até que essa prática...
A sra. ministra Cármen Lúcia: Sim.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não, não.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Vossa Excelência chamou a atenção. Estou
apenas relevando.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Exatamente. Eu disse isso. A prática
constitucional mostrou que, de fato, o princípio republicano estava sendo violado.
Numa interpretação literal – de novo volto a dizer –, um texto, uma modifica‑
ção dessa dimensão, ela acabou por produzir uma modificação em todo o texto
constitucional e, por isso, fomos apreendendo aos poucos a sua repercussão.
Inicialmente, se fosse aqui ou acolá um caso tópico, mas se viu que se poderia
engendrar fórmulas até mesmo para usar a influência, não é?
A sra. ministra Cármen Lúcia: Vossa Excelência até chamou a atenção disso.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Agora, o que se está a discutir é

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  733


RE 637.485

exatamente esse ponto: tendo a Justiça Eleitoral consagrado inclusive em orienta‑


ção normativa que era possível a candidatura – portanto a interpretação consti‑
tucional era aquela adotada –, teria que honrar também o princípio da segurança
jurídica. Essa é a questão que está... Portanto, nós não estamos a discutir agora a
correta interpretação do art. 14, § 5º, embora nós devamos dizer que, em algum
momento, houve essa convivência de interpretações. Alguns que consideravam
que o art. 14, § 5º, vedava a reeleição e outros que admitiam, inclusive o TSE.
E, por isso, a necessidade de respeito à segurança jurídica.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, então eu acompa‑
nho o ministro Gilmar Mendes na tese central, mas peço vênia para discordar
no que diz respeito à modulação. E o faço com base nos mesmos argumentos
que foram expendidos pelo eminente ministro Aldir Passarinho Junior e pelo
ministro Hamilton Carvalhido. O que disseram Suas Excelências?
Em primeiro lugar, não há direito subjetivo ao exercício de mandato eletivo
eivado por causa de inelegibilidade constitucional. Portanto, disseram eles, a
meu ver, com razão, que não há direito adquirido contra a Constituição.
Em segundo lugar, afastaram também a incidência do art. 16 da Constituição,
porque não se tratava, no caso – como continua não se tratando –, de alteração
de normas de natureza procedimental, no que diz respeito ao pleito eleitoral.
Nada disso. Lá, interpretou-se exatamente o art. 14, § 5º, da Constituição, que
diz respeito a uma causa de inelegibilidade.
E, por fim, disseram aqueles eminentes magistrados que honram a Justiça
brasileira: os agravantes, então, na época, não tinham razão, dizendo que a nova
jurisprudência não poderia atingir registros de candidatura já deferidos porque
a causa de inelegibilidade prevista no art. 14, § 5º, da Constituição já se encon‑
trava posta, ou seja, esse registro já se fez com ofensa, a meu ver, flagrante ao
dispositivo constitucional. O que o TSE fez foi meramente dar uma interpreta‑
ção, pacificando o entendimento, pelo menos naquela Corte, e vejo que agora
esta Corte também sufraga este entendimento. Portanto, entendo que não há
retroação para atingir uma situação jurídica já consolidada, não há, portanto,
ofensa à segurança jurídica, a meu ver, data venia das opiniões em contrário, e,
se o fizermos, estaremos consolidando uma fraude escancarada à Constituição,
que foi desnudada pelo Tribunal Superior Eleitoral.
É como voto, Senhor Presidente, acompanhando, portanto, em parte, o minis‑
tro Gilmar Mendes e apenas divergindo no que diz respeito à modulação dos
efeitos.
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Então Vossa Excelência nega pro‑
vimento ao recurso.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  734


RE 637.485

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Nego provimento, mas explicitando


que estou de acordo com a tese central.

VOTO
O sr. ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, quero inicialmente louvar, como
todos já fizeram, o como sempre bem fundamentado voto do ministro Gilmar
Mendes, e dizer que a minha conclusão também é de provimento ao recurso,
mas por razões absolutamente contrárias. O meu ponto de vista é de manter a
velha jurisprudência deste Tribunal e do próprio Tribunal Superior Eleitoral.
A pergunta que me faço, Senhor Presidente, acerca da interpretação da norma,
a despeito do seu texto e das inúmeras possibilidades teóricas de interpreta‑
ção – a interpretação tem certo limite, mas guarda também um espectro de
possibilidades muito amplas –, é: qual é a ratio iuris ou, mais precisamente, a
ratio constitutionis do art. 14, § 5º? A meu ver, não é a de proibição de eleição
sucessiva para mandatos em cargos diferentes. Nada impede que um prefeito se
eleja deputado, vereador, governador ou presidente da República. E nada impede
que o presidente da República, guardadas as condições constitucionais, se eleja
governador, vereador, prefeito. Noutras palavras, não há nenhuma vedação cons‑
titucional absoluta, não existe uma regra constitucional de caráter geral que
proíba eleições sucessivas para vários cargos. Então, a meu ver, essa racionali‑
dade não está em vedar a criação daquilo que, com evidente espírito crítico, se
chama de “político profissional” ou de “prefeito itinerante”, como alguém que se
elege para diversos cargos sucessiva e indefinidamente. Isso é possível acontecer
com todos os demais cargos, só não o é com o de prefeito. Só nesta hipótese se
trata do mesmo cargo, e a norma não pode ser interpretada como referência a
cargo da mesma natureza.
Aliás, sob certo ponto de vista, a experiência na administração pode ser até
coisa muito boa para efeito da tutela dos interesses públicos, porque também
é verdade que a inexperiência, em relação à administração pública, pode ser
desastrosa para, no caso, o Município, enfim, para o governo, para a adminis‑
tração pública em geral.
Então, a meu ver, a única explicação lógica e razoável para a norma consti‑
tucional é a inconveniência de uma sucessão indefinida em cargos do Execu‑
tivo, ou seja, a perpetuação na administração de uma mesma cidade, de um
mesmo Estado ou do País. Por quê? Para evitar aquilo que poderíamos chamar,
de um modo muito largo, o abuso ou a patrimonialização do poder. Isto é,
depois de certo tempo, o ocupante do cargo pode incorporar, como se fosse

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  735


RE 637.485

seu, o cargo da administração pública. Isto, sim, é ruim para a democracia, é o


que deve ser evitado.
E é essa a ideia exatamente que está atrás das palavras, do léxico do texto,
que se refere a mandatos e à reeleição. Ora, tanto o mandato como a reeleição,
enquanto conceitos, significam referência a quê? Ao mesmo cargo. Não existe
reeleição para outro cargo. O prefeito de uma cidade não é reeleito para cargo
de outra cidade; isto não é reeleição. Quando se diz que o cidadão foi reeleito,
evidentemente, se supõe e entende, a menos que haja outra convenção linguís‑
tica, que ele foi eleito para o mesmo cargo! Então, se a Constituição fala em
reeleição, evidentemente, significa para o mesmo cargo. E também, quando se
refere a mandato, significa, evidentemente, mandato relativo ao mesmo cargo.
Logo, a meu ver, e com o devido respeito, neste caso não há lugar para a ideia
da fraude à Constituição, ou à fraus constitutionis, porque não existe nenhuma
regra constitucional, como tal cogente, proibitiva dessa reeleição.
Eu não vejo, Senhor Presidente, nenhuma infração à norma constitucional,
razão pela qual também dou provimento ao recurso.

VOTO
O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, na disputa familiar e intelectual,
considerados os Aldir, e ambos Passarinho, patronímico que encerra a sinonímia
de homens honrados, fico com a visão do patriarca, não com a visão do Junior.
Faço-o tendo presente, como ressaltou o ministro Gilmar Mendes, que o ato
interpretativo é ato de vontade. Mas é ato, acima de tudo, vinculado ao Direito
posto, ao Direito subordinante, e especialmente à Carta da República.
O que se tem na espécie? Podemos interpretar norma restritiva de um direito
inerente à cidadania de forma elástica, incluindo, no preceito constitucional,
cláusula de inelegibilidade que dele não consta? A resposta é desenganadamente
negativa. Até mesmo sob o ângulo etimológico, teria imensa dificuldade em enqua‑
drar na espécie como reveladora de um terceiro mandato, que seria para cargo
diverso e com eleitores diversos. Não sou contra, Presidente, o político bom de voto.
Da Constituição extraio as normas alusivas à elegibilidade; extraio que os casos
de inelegibilidade estão previstos de forma exaustiva, e não exemplificativa, não
sendo dado ao intérprete incluir restrição não contemplada em preceito, prin‑
cipalmente constitucional.
A Lei Maior refere-se a situações jurídicas geradoras da inelegibilidade. Re­­mete
à lei complementar a introdução, no cenário, de outros casos de inelegibilidade.

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RE 637.485

Versa, realmente, a reeleição. Aponta a possibilidade – e discrepou-se da tradição


brasileira – de reeleição.
Há mais, Presidente. No art. 14, § 6º – e não podemos interpretar dispositivo
algum de forma isolada, temos que partir para o método sistemático de aplicação
do Direito e de hermenêutica –, o que está em vernáculo muito claro é a desin‑
compatibilização. A desincompatibilização para concorrer, visando à reeleição?
Não. Porque não passou a emenda que buscava a desincompatibilização para
tentar-se segundo mandato.
Os representantes – os deputados federais, do povo brasileiro, e os senado‑
res, dos Estados – rejeitaram a proposta que imporia a desincompatibilização.
Mas, relativamente a outros cargos, está – como disse – em bom português, no
§ 6º, que:
Art. 14. (...)
(...)
§ 6º Para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, os Governa‑
dores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar [não é nem
licenciamento, é renúncia] aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito.

Anotou o ministro Cezar Peluso que encerra incongruência afirmar que aquele
que já honrou – e com isso tem o beneplácito do povo – dois mandatos não pode
concorrer em outro Município, ainda que de Estado diferente. Assentar tal óptica
é introduzir restrição, considerado um predicado da cidadania, que é o direito
de se apresentar para disputar um pleito e se tornar representante – como disse
o ministro Dias Toffoli – de seus concidadãos.
Eis algumas premissas a revelar a incongruência: o prefeito, renunciando ao
cargo, mesmo no segundo mandato, pode ser candidato a presidente da Repú‑
blica, cargo maior que se tem; pode ser candidato a governador; pode ser candi‑
dato – talvez em uma visão, para alguns, de decesso – à câmara de vereadores do
mesmo Município; pode ser candidato a deputado estadual; pode ser candidato
a deputado federal; pode ser candidato a senador da República; mas não pode
ser candidato à chefia de Poder Executivo em Município diverso, ainda – como
disse – que se trate de Município situado em Estado diverso.
Como conciliar todas as possibilidades a que me referi com a vedação? Veda‑
ção que não está prevista em termos de inelegibilidade, e teria que estar. Fraude?
Será que é dado presumir vício na manifestação de vontade? Ou o vício, segundo
comezinhas noções de Direito, deve ser provado? Mais do que isso: a fraude pres‑
supõe situação em que não haja fraude. Em que caso aquele que já cumpriu, em
um Município, dois mandatos seria, na visão da ilustrada maioria, com todo o

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  737


RE 637.485

respeito, candidato não alcançado pela fraude? A fraude, para mim, é exceção.
Pressupõe prova. Presumo o que normalmente ocorre, não um procedimento
estranho à postura que se aguarda do homem médio.
Presidente, torno a dizer que estamos no campo dos direitos fundamentais.
Estamos, pelo visto, a reescrever, e não a interpretar, a Carta da República. A inter‑
pretação sistemática dos diversos parágrafos do art. 14 dela constante é condu‑
cente a dizer-se que, em se apresentando o político para concorrer a cargo de
prefeito em Município diverso, não está impedido de fazê-lo, desde que sejam
observadas as regras como, por exemplo, a do domicílio eleitoral.
Não posso, Presidente – diante especialmente do que se contém no § 6º do
art. 14 da Constituição Federal quanto à possibilidade de candidatura a outro
cargo –, introduzir, nesse preceito, restrição que nele não se contém. É possível
a candidatura a qualquer outro cargo da República, até o de presidente, mas não
o é a um cargo que implique a chefia do Poder Executivo em Município diverso.
Peço vênia, Presidente, àqueles que concluem de forma diversa – e precisa‑
mos realmente consertar o Brasil, mas o início desse conserto, com “c” e com
“s”, começa com o respeito irrestrito à Carta da República –, para entender que
não se faz presente a inelegibilidade.
Portanto, provejo o recurso, de forma linear, adotando esse entendimento: que
norma geradora da inelegibilidade há de ser expressa, aprovada pelos integrantes
do Congresso Nacional. Não se aprovou a espécie de vedação até aqui prevalecente.
É como voto.

VOTO
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Marco Aurélio: Com a aprovação do povo.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Cezar Peluso: Mas, Ministro, ele pode ficar o resto da vida
em cargo público, elegendo-se sucessivamente para outros. Só porque é para
prefeito não pode?
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Cezar Peluso: Ele pode passar o resto da vida sendo eleito
sucessivamente deputado, senador, governador, prefeito.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: São esferas diferentes, Ministro.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Os americanos também.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  738


RE 637.485

O sr. ministro Marco Aurélio: No mesmo cargo.


O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Cezar Peluso: Está certo, a recondução é proibida mesmo.
O sr. ministro Celso de Mello: Cancelado.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Vossa Excelência me permite um bre‑
víssimo aparte, já que estamos no idioma anglo-saxão? A diferença do prefeito
para outros mandatários é que eles têm o chamado power of the purse, o poder
do erário, da bolsa, traduzido literalmente. O que eles fazem? Eles começam, na
periferia de seus Municípios, a construir creches, construir estádios, distribuir
bolsas famílias ou cestas básicas e, dessa maneira, fazem uma espécie de clien‑
telismo, preparando o terreno para uma eleição no Município vizinho. Isso é o
que nós detectamos na prática, nos casos concretos.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Luiz Fux: Há até casos, Ministro Celso, em que o território é
desmembrado em dois Municípios, e esse prefeito concorre depois para o terri‑
tório que foi fruto do desmembramento.
O sr. ministro Cezar Peluso: Mas essas condições já estavam implícitas na
jurisprudência anterior do TSE.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Já.
O sr. ministro Cezar Peluso: Exato. Quanto a isso não temos restrição ne­­
nhuma. Agora, o prefeito que foi prefeito de uma cidade, por exemplo, no Rio
Grande do Sul, se se muda para o Amazonas, não pode ser prefeito no Amazo‑
nas, por quê?
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Não é o caso, aqui.
O sr. ministro Cezar Peluso: Não, nós não estamos julgando o caso. Nós
estamos julgando tese. Esse é que é o problema.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Essa hipótese do ministro Peluso teria um
problema. Como é que alguém tem domicílio no Amazonas e é prefeito no Rio
Grande do Sul?
O sr. ministro Cezar Peluso: Durante a gestão ele pode mudar de domicílio.
A sra. ministra Cármen Lúcia: Se fosse levar a tese... Só que ele não faz isso.
O sr. ministro Marco Aurélio: Que se breque com esse argumento: domicílio.
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Esse risco do apoderamento se
manifesta com mais frequência nas chamadas conurbações a que se refere Vossa
Excelência, porque o prefeito passa a descrever, com sua itinerância eletiva, uma
trajetória de zigue-zague. Ele vai para um Município e volta para o dele e retorna
para o outro Município. No caso concreto, o prefeito saiu de Rio das Flores, venceu
em Valença e elegeu o vice em Rio das Flores. Quer dizer, é um movimento de

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  739


RE 637.485

zigue-zague, com uma inconveniência que me parece grave: é que para se can‑
didatar é preciso ter o domicílio eleitoral de pelo menos um ano. Significa que
ele abriu mão do domicílio do Município do qual era prefeito, ele deixou de ser
eleitoralmente filiado.
O sr. ministro Marco Aurélio: Ele pode ter renunciado com antecedência,
o ano.
Agora, Presidente, indago àqueles que concluem pela modulação: esse recor‑
rente poderá candidatar-se à reeleição?
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Não.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Assegura-se a ele concluir o mandato,
apenas isso. Porque toda a premissa, eu procurei deixar claro, é no sentido de que
a jurisprudência da Justiça Eleitoral é mais do que isto, o ministro Toffoli chamou
a atenção, a própria resolução, que tinha a orientação normativa nesse sentido,
permitia a candidatura, então a invocação é apenas de segurança jurídica para
que ele conclua o mandato, tão somente isso, portanto, colocando cobro. Até
porque eu estou convencido, Presidente, eu deixei isto muito claro, inicialmente
eu fazia a mesma leitura que fizera o ministro Peluso, mas depois eu percebi
exatamente nesse contraste, ou nessa ambiência entre norma e realidade, que,
a partir desta leitura que nós estávamos a fazer, a leitura, vamos chamar assim,
literal, nós estávamos a produzir aquilo que exatamente a emenda constitucio‑
nal não pretendeu, porque estávamos a ter um fenômeno, uma reeleição atípica,
que propiciava essa eternização do mandato. Vossa Excelência apontou muito
bem, portanto, a mim me parece que está correta, e esse é o espírito, inclusive,
da Emenda Constitucional 16, e parece que o sentido teleológico é esse que o
ministro Celso também está a enfatizar.
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Nesse ponto, me permita, Ministro
Celso de Mello?
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Nesse ponto do apoderamento de uma
circunscrição eleitoral por grupos, clãs, hegemonias, não há divergência quanto ao
voto do ministro Gilmar Mendes, voto magnífico sob todos os títulos, com a grande
novidade, trazida pelo ministro Gilmar Mendes, que é a tentativa de conciliação
da aplicabilidade da Constituição com o princípio, na proibição de reelegibilidade,
com o princípio da segurança jurídica. Mas aí, Ministro Gilmar Mendes, eu me per‑
mito ponderar que a técnica da aplicabilidade prospectiva das decisões judiciais
opera no interior de uma mesma Corte, é quando uma mesma Corte decide num
sentido e, com o tempo, muda, então ela faz essa conciliação com o princípio da

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  740


RE 637.485

segurança. Não devemos aplicar prospectivamente às nossas decisões de incons‑


titucionalidade em sede de revisão, a nossa jurisprudência não é essa.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Já fizemos isso. Já fizemos isso no
recurso extraordinário; no caso Vereadores, no caso Mira Estrela, em que nós aco‑
lhemos o recurso e fizemos a modulação de efeitos, na questão de competência...
O sr. ministro Dias Toffoli: Fidelidade partidária.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Na fidelidade partidária.
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Eu não me fiz entender bem: eu
estou dizendo quando nós mudamos de jurisprudência aqui...
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não, não, o que nós estamos a dizer
é que o TSE poderia mudar também de jurisprudência, mas deveria se ater ao
princípio da segurança jurídica, e quando ele não observa, nós... E por isso nós
estamos provendo o recurso extraordinário, como já fizemos naquele caso de
Vossa Excelência. Vossa Excelência foi o relator daquele caso...
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Foi do conflito de competência.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Do conflito de competência em que
nós harmonizamos, ao dizer que aquilo já estava decidido, que já houvesse deci‑
são de mérito, ficava na competência da Justiça comum.
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Nós mudamos a nossa própria juris‑
prudência, porque duas vezes antes nós dissemos que não reconhecíamos essa
competência da Justiça do Trabalho.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Não, mas isso se aplica a qualquer
caso, por exemplo, o caso dos Municípios, dos vereadores, a rigor nós estávamos
a falar de decisão de tribunal.
Veja, aqui se trata de um fundamento autônomo, que é lesão à segurança jurí‑
dica. Por quem? Pelo Tribunal que não a observou, tão somente isso. Veja que o
próprio ministro Pertence aqui, quando falou no devido processo legal eleitoral, ele
dizia que o art. 16 deveria ser observado também pela Justiça Eleitoral enquanto
jurisdição, e nós estamos dizendo isso, nesse caso, a lesão está onde? No princípio
da segurança jurídica, quando o ministro Lewandowski suscitava essa discussão, eu
dizia que o Estado de Direito tem, pelo menos, essa dupla perspectiva, a perspec‑
tiva da legalidade, da legalidade estrita, mas a perspectiva da segurança jurídica.
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): A minha dificuldade, Ministro Celso
de Mello, me permita ainda...
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Sem querer alongar demasiada‑
mente esse aparte.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  741


RE 637.485

O sr. ministro Ayres Britto (presidente): É de que os §§ 5º e 6º do art. 14 da


Constituição, que são de ser interpretados rigorosamente por forma geminada,
conjugada, porque um dispositivo aclara o sentido do outro, eles terminam sendo
autorreferentes, interreferentes; é que eles são, sem dúvida, normas constitu‑
cionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata. E, em tema de magnitude
ímpar, porque se trata de depurar o conceito de democracia representativa, ou
seja, dotar o País de qualidade de vida política no plano da democracia que nós
praticamos com habitualidade. A democracia representativa...
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Isso não está em discussão. Mas o
que eu estava chamando a atenção, Presidente, é para o fato de que o TSE até
aqui – até essa decisão de 2008, portanto que afetou essas eleições – entendia,
fazia a interpretação do art. 14, § 5º, no sentido da possibilidade...
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Essa tese de Vossa Excelência foi
magnificamente exposta.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Portanto, eu não estou discordando
da decisão substancial.
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Mas, ainda assim, eu teria uma
dificuldade para assimilar o raciocínio de Vossa Excelência, porque, em últi­­
ma análise, há uma diferença de qualidade entre o TSE e o Supremo. O TSE
não é o supremo guardião da Constituição, e o Supremo é o guardião-mor da
Constituição.
O sr. ministro Luiz Fux: Mas o problema é a objetivação do recurso extra‑
ordinário.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Isso, o art. 16, que já foi tese, aqui,
esgrimida pelo ministro Pertence, para evitar exatamente o casuísmo neste perí‑
odo eleitoral.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Mas é interessante, Ministro, se Vossa
Excelência me permite um rápido exemplo em que a Corte decidiu de forma
contrária, e eu, inclusive, fiquei vencido de forma isolada, foi no RE 353.657 QO,
do Paraná – a matéria não era eleitoral, mas tributária –, em que a Corte alterou
o seu entendimento quanto ao direito de crédito, no caso de IPI com alíquota
zero, eu propus a modulação, invocando exatamente o princípio da segurança
jurídica, e a Corte acabou beneficiando a Fazenda Pública da União com um
crédito de R$ 20 bilhões, aproximadamente, pelo menos o que se alega, em detri‑
mento dos contribuintes.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  742


RE 637.485

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Pois é, mas aí a jurisprudência re­­


troagiu.
O sra. ministra Cármen Lúcia: Alegou-se que não havia terminado a discussão
porque a União continuava recorrendo. Aqui também.
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Exatamente, aliás o ministro Joaquim Bar‑
bosa levantou isso, no caso em que estamos examinando, havia recurso pendente.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: O Tribunal decidiu antes da posse.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Da advocacia.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Cezar Peluso: Vossa Excelência me permite? Embora isto, do
ponto de vista prático, seja irrelevante para o meu voto, estou de pleno acordo
com a tese do eminente relator, porque, entre outros argumentos, há a parti‑
cularidade do art. 16: no instante em que o Tribunal Superior Eleitoral alterou
substancialmente o sentido da regra que ditou a resolução que presidiu as elei‑
ções e a aplicou retroativamente, editou norma diferente com violação do art. 16
da Constituição Federal.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Se Vossa Excelência me permite um
aparte, desculpe-me. Em relação à objeção do presidente, eu gostaria de dizer o
seguinte: nós já tivemos alguns casos aqui de provimento de recurso da Fazenda
tão somente para modular o efeito. Portanto, houve a declaração de inconsti‑
tucionalidade de uma matéria, e aí vem a Fazenda e pede claro que a revisão
daquele entendimento, mas, se não for possível, que se dê pelo menos a modu‑
lação de efeitos. E o Tribunal o faz com base na ideia de segurança jurídica, por‑
tanto, fazendo uma revisão da jurisprudência e entendendo que já a Corte a quo
deveria fazer essa modulação de efeitos, de modo que isso não é algo incomum.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Vossa Excelência me permite?
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Joaquim Barbosa: A Suprema Corte fazia esse tipo de modu‑
lação. Não faz mais.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): E nós seguimos essa opção, no caso
da progressão de regime, quando dissemos que não haveria possibilidade de se
pedir indenização.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Marco Aurélio: É um provimento em menor extensão.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  743


RE 637.485

O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)


O sr. ministro Marco Aurélio: É um provimento em menor extensão.
O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Em menor extensão.
O sr. ministro Celso de Mello: (Cancelado)
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Toma-se uma decisão contrária à Consti‑
tuição, mas se confere efeito a essa decisão, contrário ao que deveria ser, sem a
exigência do quórum de 2/3?
O sr. ministro Marco Aurélio: Na visão de Vossa Excelência. Porque nós,
por exemplo, eu e o ministro Cezar Peluso – Vossa Excelência não estava no
Plenário quando prolatamos voto –, entendemos que, no caso, não há restrição
na Carta da República.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Estava aqui ao lado.
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Perfeito.
O sr. ministro Joaquim Barbosa: Eu não entendo a modulação.
O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Perfeito.

EXTRATO DA ATA
RE 637.485/RJ — Relator: Ministro Gilmar Mendes. Recorrente: Vicente de Paula
de Souza Guedes (Advogado: José Eduardo Rangel de Alckmin). Recorrido: Minis‑
tério Público Eleitoral (Procurador: Procurador-geral da República). Interessada:
Dilma Dantas Moreira Mazzeo (Advogados: Eduardo Damian Duarte e outros).
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, reconheceu a repercussão geral das
questões constitucionais. Em seguida, o Tribunal, por maioria e nos termos do voto
do relator, deu provimento ao recurso e julgou inaplicável a alteração da jurispru‑
dência do Tribunal Superior Eleitoral quanto à interpretação do § 5º do art. 14 da
Constituição Federal nas eleições de 2008, vencidos os ministros Cármen Lúcia,
Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e presidente, que negavam provimento
ao recurso. Os ministros Cezar Peluso e Marco Aurélio davam provimento em
maior extensão. Falaram, pelo recorrente, o doutor José Eduardo Rangel de Alck‑
min e, pelo Ministério Público Federal, o doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos,
procurador-geral da República. Presidiu o julgamento o ministro Ayres Britto.
Presidência do ministro Ayres Britto. Presentes à sessão os ministros Celso de
Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Joaquim Barbosa, Ricardo
Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux e Rosa Weber. Procurador‑
-geral da República, doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 1º de agosto de 2012 — Luiz Tomimatsu, assessor-chefe do Plenário.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  744


AI 731.786 AgR

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 731.786 — SC


Relator: O sr. ministro Ricardo Lewandowski
Agravante: Instituto Maria Auxiliadora
Agravados: Centrais Elétricas de Santa Catarina S.A. – CELESC
Estado de Santa Catarina

Agravo regimental em agravo de instrumento. Tributário. ICMS.


Entidade sem fins lucrativos. Imunidade recíproca. Impossibi‑
lidade. Benefício da imunidade não alcança contribuinte de
fato. Agravo improvido.
I – Entidade educacional que não é contribuinte de direito do ICMS
relativo a serviço de energia elétrica, não tem benefício da imunidade
em questão, uma vez que esta não alcança o contribuinte de fato.
II – Agravo regimental improvido.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a presidência do ministro Ricardo
Lewandowski, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas,
por decisão unânime, negar provimento ao agravo regimental no agravo de ins‑
trumento, nos termos do voto do relator. Ausente, justificadamente, a ministra
Cármen Lúcia.
Brasília, 19 de outubro de 2010 — Ricardo Lewandowski, presidente e relator.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  745


AI 731.786 AgR

RELATÓRIO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de agravo regimental interposto
contra decisão que negou seguimento ao agravo de instrumento.
O agravante sustentou, em suma, que a decisão agravada deve ser reformada,
ao argumento de que é ilegítima a cobrança do ICMS incidente sobre os serviços
de energia elétrica e telefonia, uma vez que a renda da entidade é atingida, o que é
vedado pela imunidade tributária prevista no art. 150, VI, c, da Constituição Federal.
É o relatório.

VOTO
O sr. ministro Ricardo Lewandowski (presidente e relator): Eis o teor da deci‑
são agravada:
Trata-se de agravo de instrumento contra decisão que negou seguimento a recurso
extraordinário interposto de acórdão o qual entendeu que a imunidade prevista
no art. 150, VI, c, da Lei Maior não alcança o ICMS recolhido em razão da aquisição
de bens no mercado interno, realizada por entidade de assistência social sem fins
lucrativos, sob o argumento de que esse ente atua na qualidade de contribuinte
de fato do imposto (consumidor) e não de direito.
No recurso extraordinário, fundado no art. 102, III, a, da Constituição Federal,
alegou-se, em suma, a não incidência do ICMS sobre as aquisições de bens e ser‑
viços feitas pela entidade beneficente no mercado interno, com base no art. 150,
VI, c, da mesma Carta.
O agravo não merece acolhida.
O acórdão recorrido encontra-se em consonância com o atual entendimento
desta Corte, no sentido de que a imunidade em questão alcança o contribuinte de
direito e não o contribuinte de fato, como se vê do julgamento do AI 671.412 AgR/
SP, rel. min. Eros Grau, cuja ementa transcrevo a seguir:
“Agravo regimental no agravo de instrumento. Tributário. Fornecimento de ener-
gia elétrica para iluminação pública. ICMS. Imunidade invocada pelo Município.
Impossibilidade.
2. A jurisprudência do Supremo firmou-se no sentido de que a imunidade de
que trata o art. 150, VI, a, da CB/1988 somente se aplica a imposto incidente
sobre serviço, patrimônio ou renda do próprio Município.
3. Esta Corte firmou entendimento no sentido de que o Município não é con‑
tribuinte de direito do ICMS, descabendo confundi-lo com a figura do contri‑
buinte de fato e a imunidade recíproca não beneficia o contribuinte de fato.
Agravo regimental a que se nega provimento.”
No mesmo sentido, menciono, ainda, as seguintes decisões, entre outras: AC 457
MC/MG, rel. min. Carlos Britto; AI 488.132/SP, rel. min. Marco Aurélio; AI 550.300/SP,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  746


AI 731.786 AgR

rel. min. Gilmar Mendes; AI 717.793/PR, rel. min. Cármen Lúcia; AC 2.024 MC/RS,
rel. min. Cezar Peluso; AI 664.610/SC, rel. min. Celso de Mello; RE 600.084/RS, de
minha relatoria.
Isso posto, nego seguimento ao recurso. [Fls. 120-121.]

Bem reexaminada a questão, verifico que a decisão ora impugnada não merece
reforma, visto que o recorrente não aduz argumentos plausíveis capazes de
afastar as razões nela expendidas, que devem ser mantidas por seus próprios
fundamentos.
Por oportuno, cumpre ressaltar que a imunidade do art. 150, VI, c, da Constitui‑
ção somente se aplica ao imposto incidente sobre serviço, patrimônio ou renda
do próprio ente beneficiado, na qualidade de contribuinte de direito.
No caso, como a entidade educacional não é contribuinte de direito do ICMS
relativo a serviço de energia elétrica, não tem o benefício da imunidade em ques‑
tão, uma vez que esta não alcança o contribuinte de fato. Nesse sentido, a Pri‑
meira Turma desta Corte recentemente reafirmou o entendimento adotado na
decisão agravada, conforme se observa no julgamento do AI 634.050 AgR/SC, de
minha relatoria, cuja ementa transcrevo a seguir:
Constitucional. Tributário. Análise de legislação ordinária. Ofensa indireta à Cons-
tituição. ICMS. Município. Contribuinte de fato. Imunidade tributária recíproca.
Inaplicável. Agravo improvido.
I – O acórdão recorrido decidiu a questão com base na legislação ordinária e na
jurisprudência do STJ. A ofensa à Constituição, se ocorrente, seria indireta. Inca‑
bível, portanto, o recurso extraordinário.
II – A imunidade de que trata o art. 150, VI, a, da Constituição somente se aplica
ao imposto incidente sobre serviço, patrimônio ou renda.
III – Como não é contribuinte de direito do ICMS relativo a serviços de energia
elétrica e telefonia, o Município não é beneficiário da imunidade prevista no art. 150,
VI, a, da Constituição. Precedentes.
IV – Agravo regimental improvido.

No mesmo sentido, menciono, ainda, as seguintes decisões, entre outras:


RE 344.729/PR, rel. min. Joaquim Barbosa; AI 652.207/SC, rel. min. Cármen Lúcia.
Isso posto, nego provimento ao agravo regimental.

EXTRATO DA ATA
AI 731.786 AgR/SC — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Agravante: Insti‑
tuto Maria Auxiliadora (Advogado: Ceres Cavalcanti de Albuquerque). Agravados:
Centrais Elétricas de Santa Catarina S.A. – CELESC (Advogado: Lycurgo Leite

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  747


AI 731.786 AgR

Neto) e Estado de Santa Catarina (Procurador: Procurador-geral do Estado de


Santa Catarina).
Decisão: Após os votos dos ministros Ricardo Lewandowski, relator presidente,
e Dias Toffoli, e da ministra Cármen Lúcia, que negavam provimento ao agravo
regimental no agravo de instrumento, pediu vista do processo o ministro Marco
Aurélio. Primeira Turma, 17-8-2010.
Decisão: A Turma negou provimento ao agravo regimental no agravo de ins‑
trumento, nos termos do voto do relator. Unânime. Ausente, justificadamente,
a ministra Cármen Lúcia. Presidência do ministro Ricardo Lewandowski.
Presidência do ministro Ricardo Lewandowski. Presentes à sessão os minis‑
tros Marco Aurélio e Dias Toffoli. Ausente, justificadamente, a ministra Cármen
Lúcia. Subprocurador-geral da República, doutor Paulo de Tarso Braz Lucas.
Brasília, 19 de outubro de 2010 — Fabiane Duarte, coordenadora.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  748


AI 759.543 AgR

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 759.543 — RJ


Relator: O sr. ministro Celso de Mello
Agravante: Município do Rio de Janeiro
Agravado: Ministério Público Federal

Ampliação e melhoria no atendimento à população no Hospi‑


tal Municipal Souza Aguiar – Dever estatal de assistência à
saúde resultante de norma constitucional – Obrigação jurí‑
dico-constitucional que se impõe aos Municípios (CF, art. 30,
VII) – Configuração, no caso, de típica hipótese de omissão
inconstitucional imputável ao Município do Rio de Janeiro/
RJ – Desrespeito à Constituição provocado por inércia estatal
(RTJ 183/818-819) – Comportamento que transgride a autoridade
da Lei Fundamental da República (RTJ 185/794-796) – A questão da
reserva do possível: reconhecimento de sua inaplicabilidade,
sempre que a invocação dessa cláusula puder comprometer o
núcleo básico que qualifica o mínimo existencial (RTJ 200/191-
197) – O papel do Poder Judiciário na implementação de políticas
públicas instituídas pela Constituição e não efetivadas pelo
poder público – A fórmula da reserva do possível na perspec‑
tiva da teoria dos custos dos direitos: impossibilidade de sua
invocação para legitimar o injusto inadimplemento de deve‑
res estatais de prestação constitucionalmente impostos ao
poder público – A teoria da “restrição das restrições” (ou da
“limitação das limitações”) – Caráter cogente e vinculante
das normas constitucionais, inclusive daquelas de conteúdo
programático, que veiculam diretrizes de políticas públicas,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  749


AI 759.543 AgR

especialmente na área da saúde (CF, arts. 6º, 196 e 197) – A


questão das “escolhas trágicas” – A colmatação de omissões
inconstitucionais como necessidade institucional fundada
em comportamento afirmativo dos juízes e tribunais e de que
resulta uma positiva criação jurisprudencial do direito –
Controle jurisdicional de legitimidade da omissão do poder
público: atividade de fiscalização judicial que se justifica pela
necessidade de observância de certos parâmetros constitu‑
cionais (proibição de retrocesso social, proteção ao mínimo
existencial, vedação da proteção insuficiente e proibição de
excesso) – Doutrina – Precedentes do Supremo Tribunal Fede‑
ral em tema de implementação de políticas públicas delinea‑
das na Constituição da República (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213 –
RTJ 199/1219-1220) – Existência, no caso em exame, de relevante
interesse social – Ação civil pública: instrumento processual
adequado à proteção jurisdicional de direitos revestidos de
metaindividualidade – Legitimação ativa do Ministério Público
(CF, art. 129, III) – A função institucional do Ministério Público
como “defensor do povo” (CF, art. 129, II) – Doutrina – Preceden‑
tes – Recurso de agravo improvido.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a presidência da ministra Cármen
Lúcia, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
unanimidade de votos, em negar provimento ao agravo regimental, nos termos
do voto do relator.
Brasília, 17 de dezembro de 2013 — Celso de Mello, relator.

RELATÓRIO
O sr. ministro Celso de Mello: Trata-se de recurso de agravo, tempestivamente
interposto, contra decisão que negou provimento ao agravo de instrumento
deduzido pela parte ora agravante (fls. 2090/2118).
Inconformada com esse ato decisório, a parte ora agravante interpõe o pre‑
sente recurso, postulando o provimento do agravo de instrumento que deduziu
(fls. 2136/2148).

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  750


AI 759.543 AgR

Por não me convencer das razões expostas, submeto à apreciação desta


colenda Turma o presente recurso de agravo.
É o relatório.

VOTO
O sr. ministro Celso de Mello (relator): O recurso extraordinário a que se refere
agravo de instrumento em causa foi interposto contra acórdão que, confir-
mado pelo e. Superior Tribunal de Justiça, em sede de embargos de declaração
(fls. 926/930), está assim ementado (fl. 896):
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MELHORIA DE ATENDIMENTO NO HOSPITAL
MUNICIPAL SOUZA AGUIAR. OBRIGAÇÃO DE FAZER. PREQUESTIONAMENTO. SÚMU­
LAS 282/STF E 211/STJ. ART 1º DA LEI N. 7.347/85.
1. A ausência de emissão de juízo de valor na origem, nem mesmo no âmbito dos
embargos de declaração, dos dispositivos processuais invocados como contrariados
implica ausência de prequestionamento, requisito essencial ao conhecimento do
recurso especial. Incidência das Súmulas 282/STF e 211/STJ.
2. A Constituição Federal de 1988 outorgou ao Ministério Público funções da maior
relevância, atribuindo-lhe um perfil muito mais dinâmico do que ocorria no antigo
ordenamento jurídico, entre elas a competência para a defesa dos interesses sociais
e individuais indisponíveis (art. 127), por meio da ação civil pública (art. 129, III).
3. A legislação de regência da ação civil pública garante ao “Parquet” a utiliza-
ção desse meio processual como forma de defesa do patrimônio público e social, do
meio ambiente ou de outros interesses difusos e coletivos e de interesses individuais
homogêneos.
4. É cabível o ajuizamento da presente ação civil pública que pugna pela defesa
de interesses difusos, considerando-se que a tutela pretendida – direito à saúde
(art. 6º da CF) – é indivisível, pois visa atingir a um número indeterminado de pes-
soas, ou seja, aquelas que são atendidas pelo Hospital Municipal Souza Aguiar.
5. Apoiado na conclusão do inquérito civil, o pedido formulado pelo Ministério
Público não se mostra genérico, tampouco está baseado em reparação de danos,
porque consistiu na condenação do Município na obrigação de fazer novas con­
tratações, mediante concurso, para compor os quadros do Hospital Souza Aguiar
de pessoal da área médica, assim como de renovar os contratos com técnicos de
manutenção dos equipamentos existentes e compra de novos, como forma de garantir
atendimento adequado e satisfatório, com o que se estará cumprindo o mandamento
constitucional de proteção à saúde, obrigação a que o Município vem se omitindo.
6. Recurso especial conhecido em parte e não provido. [REsp 947.324/RJ, rel. min.
CASTRO MEIRA – Grifei.]

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  751


AI 759.543 AgR

O Município do Rio de Janeiro, parte agravante, sustenta que o acórdão


impugnado em sede recursal extraordinária teria transgredido diversos pre‑
ceitos inscritos na Constituição da República.
O Ministério Público Federal, em manifestação da lavra do ilustre subprocu‑
rador-geral da República doutor PAULO DA ROCHA CAMPOS, opinou pelo impro-
vimento do apelo extremo em questão (fls. 2084/2088).
Sendo esse o contexto, passo a apreciar a pretensão recursal deduzida pelo
Município do Rio de Janeiro/RJ. E, ao fazê-lo, assinalo, por relevante, que o exame
desta causa convence-me da inteira correção dos fundamentos que dão suporte
à decisão proferida pelo e. Superior Tribunal de Justiça, objeto do recurso extra‑
ordinário em questão e que informam e dão consistência ao seu v. acórdão.
Cabe acentuar, desde logo, que a essencialidade do direito à saúde fez com
que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública,
as ações e serviços de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar a atuação do
Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos
estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional,
frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável
omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento
governamental desviante.
Isso significa, portanto, que a legitimidade ativa “ad causam” do Ministério
Público para propor ação civil pública visando à defesa do direito à saúde (AI
655.392/RS, rel. min. EROS GRAU – AI 662.339/RS, rel. min. CÁRMEN LÚCIA –
RE 462.416/RS, rel. min. GILMAR MENDES, v.g.) tem o beneplácito da jurispru‑
dência constitucional desta Suprema Corte:
Agravo regimental no agravo de instrumento. Constitucional. Legitimidade do Minis-
tério Público. Ação civil pública. Implementação de políticas públicas. Possibilidade.
Violação do princípio da separação dos poderes. Não ocorrência. Reserva do possível.
Invocação. Impossibilidade. Precedentes.
1. Esta Corte já firmou a orientação de que o Ministério Público detém legitimidade
para requerer, em Juízo, a implementação de políticas públicas por parte do Poder
Executivo de molde a assegurar a concretização de direitos difusos, coletivos e individu-
ais homogêneos garantidos pela Constituição Federal, como é o caso do acesso à saúde.
2. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administra-
ção pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos
como essenciais sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes.
3. A Administração não pode invocar a cláusula da “reserva do possível” a fim de jus­
tificar a frustração de direitos previstos na Constituição da República, voltados à garan-
tia da dignidade da pessoa humana, sob o fundamento de insuficiência orçamentária.
4. Agravo regimental não provido. [AI 674.764 AgR/PI, rel. min. DIAS TOFFOLI – Grifei.]

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  752


AI 759.543 AgR

DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO A SAÚDE. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE


INSTRUMENTO. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PROS-
SEGUIMENTO DE JULGAMENTO. AUSÊNCIA DE INGERÊNCIA NO PODER DISCRICIONÁRIO
DO PODER EXECUTIVO. ARTS. 2º, 6º E 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
1. O direito a saúde é prerrogativa constitucional indisponível, garantido me­­
diante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de
criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço.
2. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quan­­do
inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja inge-
rência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. Precedentes.
3. Agravo regimental improvido. [AI 734.487 AgR/PR, rel. min. ELLEN GRACIE –
Grifei.]

A atuação do Ministério Público em defesa de direitos e interesses metaindivi-


duais, viabilizada, instrumentalmente, por meio processual adequado (a ação
civil pública, no caso), que lhe permite invocar a tutela jurisdicional do Estado
com o objetivo de fazer com que os poderes públicos respeitem, em favor da
coletividade, os serviços de relevância pública (CF, art. 129, II), como se qualifi-
cam, constitucionalmente, as ações e serviços de saúde (CF, art. 197), legitima-se,
plenamente, em decorrência da condição institucional de verdadeiro “defensor
do povo” que é conferida ao “Parquet” pela própria Constituição da República.
Nesse contexto, põe-se em destaque uma das mais significativas funções institu-
cionais do Ministério Público, consistente no reconhecimento de que lhe assiste a
posição eminente de verdadeiro “defensor do povo” (HUGO NIGRO MAZZILLI, “Regime
Jurídico do Ministério Público”, p. 224/227, item n. 24, “b”, 3. ed., 1996, Saraiva,
v.g.), incumbido de impor, aos poderes públicos, o respeito efetivo aos direitos
que a Constituição da República assegura aos cidadãos em geral (CF, art. 129, II),
podendo, para tanto, promover as medidas necessárias ao adimplemento de
tais garantias, o que lhe permite valer-se das ações coletivas, como as ações civis
públicas, que representam poderoso instrumento processual concretizador das
prerrogativas fundamentais atribuídas, a qualquer pessoa, pela Carta Política.
Tenho para mim, desse modo, que se revela inquestionável a qualidade do
Ministério Público para ajuizar ação civil pública objetivando, em sede de pro-
cesso coletivo – hipótese em que estará presente “o interesse social, que legitima
a intervenção e a ação em juízo do Ministério Público (CF 127 ‘caput’ e CF 129 IX)”
(NELSON NERY JUNIOR, “O Ministério Público e as Ações Coletivas”, “in” Ação
Civil Pública, p. 366, coord. por Édis Milaré, 1995, RT – grifei) –, a defesa de direi-
tos impregnados de transindividualidade, porque revestidos de inegável relevância
social (RTJ 178/377-378 – RTJ 185/302, v.g.), como sucede com o direito à saúde,
que traduz prerrogativa jurídica de índole eminentemente constitucional.

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  753


AI 759.543 AgR

Reconhecida, assim, a adequação da via processual eleita, para cuja instau-


ração o Ministério Público dispõe de plena legitimidade ativa (CF, art. 129, III),
impõe-se examinar a questão central da presente causa e verificar se se revela
possível ao Judiciário, sem que incorra em ofensa ao postulado da separação de
poderes, determinar a adoção, pelo Município, quando injustamente omisso
no adimplemento de políticas públicas constitucionalmente estabelecidas, de
medidas ou providências destinadas a assegurar, concretamente, à coletividade
em geral, o acesso e o gozo de direitos afetados pela inexecução governamental
de deveres jurídico-constitucionais.
Observo, quanto a esse tema, que, ao julgar a ADPF 45/DF, rel. min. CELSO DE
MELLO, proferi decisão assim ementada (Informativo/STF 345/2004):
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITI­
MIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM
TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE
DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITU-
CIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO
ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER
RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM
TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO,
EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO
CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES
POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).

Salientei, então, em referida decisão, que o Supremo Tribunal Federal, con-


siderada a dimensão política da jurisdição constitucional outorgada a esta Corte,
não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos eco‑
nômicos, sociais e culturais que se identificam – enquanto direitos de segunda
geração (ou de segunda dimensão) – com as liberdades positivas, reais ou con‑
cretas (RTJ 164/158-161, rel. min. CELSO DE MELLO – RTJ 199/1219-1220, rel. min.
CELSO DE MELLO, v.g.).
É que, se assim não for, restarão comprometidas a integridade e a eficácia
da própria Constituição, por efeito de violação negativa do estatuto constitu‑
cional, motivada por inaceitável inércia governamental no adimplemento de
prestações positivas impostas ao poder público, consoante já advertiu, em tema
de inconstitucionalidade por omissão, por mais de uma vez (RTJ 175/1212-1213,
rel. min. CELSO DE MELLO), o Supremo Tribunal Federal:

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  754


AI 759.543 AgR

DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO – MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTI­


TUCIONAIS DO PODER PÚBLICO.
– O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto
mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode deri-
var de um comportamento ativo do poder público, que age ou edita normas em
desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os
princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em
um “facere” (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação.
– Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta
dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exequíveis,
abstendo-se, em consequência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição
lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse “non facere”
ou “non praestare”, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser
total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente
a medida efetivada pelo poder público.
(...)
– A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão,
a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento
revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o poder
público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se
fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria
aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental. [RTJ 185/794-796,
rel. min. CELSO DE MELLO, Pleno.]

É certo – tal como observei no exame da ADPF 45/DF, rel. min. CELSO DE MELLO
(Informativo/STF 345/2004) – que não se inclui, ordinariamente, no âmbito
das funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, em
especial – a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ
CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Por-
tuguesa de 1976”, p. 207, item n. 5, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio,
o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.
Impende assinalar, contudo, que a incumbência de fazer implementar po­­
líticas públicas fundadas na Constituição poderá atribuir-se, ainda que excep-
cionalmente, ao Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por
descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em cará‑
ter vinculante, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a
integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura
constitucional, como sucede na espécie ora em exame.
Corretíssimo, portanto, o v. acórdão emanado do e. Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro, que bem examinou a controvérsia constitucional,

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dirimindo-a com apoio em fundamentos que têm o beneplácito da jurispru‑


dência do Supremo Tribunal Federal (fls. 773/780).
Vale destacar, por oportuno, fragmento dessa unânime decisão proferida
pelo e. Tribunal de Justiça local, cujo teor acha-se reproduzido, no ponto que
interessa à resolução do presente litígio, em acórdão assim ementado (fl. 773):
O pedido não é inconstitucional, nem juridicamente impossível. O art. 6º da CF/88
estabeleceu entre os direitos sociais, fundamentais ao cidadão, o direito à saúde,
e o inciso VII do art. 30 fixa a competência do Município para prestar, com a
cooperação técnica e financeira da União e do Estado, o atendimento à saúde. Se o
Município se omite em manter a viabilidade da assistência à saúde, chegando a
pôr em risco a vida dos que se dirigem ao Hospital, pode o Judiciário obrigá-lo a
tomar providências, sem que tal signifique intromissão indevida em outro Poder,
mas em cumprimento ao que dispõe a Constituição e o SUS. A alocação de novos
médicos e a falta de verbas orçamentárias, assim como a Lei de Responsabilidade
Fiscal, não afastam a obrigação do Município de manter serviços de saúde satis-
fatórios. Reforma da sentença, adotando-se os fundamentos do parecer ministerial
e de recente decisão do STF na ADPF 45. Fixação do prazo para as providências
em um ano a contar da data da aprovação da lei orçamentária anual, que ocorrer
imediatamente após o trânsito em julgado da decisão. [Grifei.]

Mais do que nunca, é preciso enfatizar que o dever estatal de atribuir efetivi-
dade aos direitos fundamentais, de índole social, qualifica-se como expressiva
limitação à discricionariedade administrativa.
Isso significa que a intervenção jurisdicional, justificada pela ocorrência de
arbitrária recusa governamental em conferir significação real ao direito à saúde,
tornar-se-á plenamente legítima (sem qualquer ofensa, portanto, ao postulado
da separação de poderes), sempre que se impuser, nesse processo de pondera‑
ção de interesses e de valores em conflito, a necessidade de fazer prevalecer a
decisão política fundamental que o legislador constituinte adotou em tema de
respeito e de proteção ao direito à saúde.
Cabe referir, neste ponto, ante a extrema pertinência de suas observações,
a advertência de LUIZA CRISTINA FONSECA FRISCHEISEN, ilustre procuradora
regional da República (“Políticas Públicas – A Responsabilidade do Adminis-
trador e o Ministério Público”, p. 59, 95 e 97, 2000, Max Limonad), cujo magis-
tério, a propósito da limitada discricionariedade governamental em tema de
concretização das políticas públicas constitucionais, corretamente assinala:
Nesse contexto constitucional, que implica também na renovação das práticas
políticas, o administrador está vinculado às políticas públicas estabelecidas na

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Constituição Federal; a sua omissão é passível de responsabilização e a sua margem


de discricionariedade é mínima, não contemplando o não fazer.
(...)
Como demonstrado no item anterior, o administrador público está vinculado à
Constituição e às normas infraconstitucionais para a implementação das políticas
públicas relativas à ordem social constitucional, ou seja, própria à finalidade da
mesma: o bem-estar e a justiça social.
(...)
Conclui-se, portanto, que o administrador não tem discricionariedade para deli-
berar sobre a oportunidade e conveniência de implementação de políticas públicas
discriminadas na ordem social constitucional, pois tal restou deliberado pelo Cons­
tituinte e pelo legislador que elaborou as normas de integração.
(...)
As dúvidas sobre essa margem de discricionariedade devem ser dirimidas pelo
Judiciário, cabendo ao Juiz dar sentido concreto à norma e controlar a legitimi­
dade do ato administrativo (omissivo ou comissivo), verificando se o mesmo não
contraria sua finalidade constitucional, no caso, a concretização da ordem social
constitucional. [Grifei.]

Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo


relevo ao tema pertinente à “reserva do possível” (LUÍS FERNANDO SGARBOSSA,
“Crítica à Teoria dos Custos dos Direitos”, vol. 1, 2010, Fabris Editor; STEPHEN
HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, 1999, Norton, New York; ANA
PAULA DE BARCELLOS, “A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais”,
p. 245/246, 2002, Renovar; FLÁVIO GALDINO, “Introdução à Teoria dos Custos
dos Direitos”, p. 190/198, itens n. 9.5 e 9.6, e p. 345/347, item n. 15.3, 2005, Lumen
Juris), notadamente em sede de efetivação e implementação (usualmente one-
rosas) de determinados direitos cujo adimplemento, pelo poder público, impõe e
exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas
individuais e/ou coletivas.
Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais –
além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização –
depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordi-
nado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada,
objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa
estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limi‑
tação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto
da Carta Política.
Não se mostrará lícito, contudo, ao poder público, em tal hipótese, criar obs‑
táculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade

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financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável


propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preser‑
vação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de
existência (ADPF 45/DF, rel. min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF 345/2004).
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressal-
vada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada,
pelo Município, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento
de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governa-
mental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direi‑
tos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.
Tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se subsume ao conceito
de liberdade real ou concreta, a proteção à saúde – que compreende todas as
prerrogativas, individuais ou coletivas, referidas na Constituição da República
(notadamente em seu art. 196) – tem por fundamento regra constitucional cuja
densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal
comando, o poder público disponha de um amplo espaço de discricionariedade
que lhe enseje maior grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa
resultar, paradoxalmente, com base em simples alegação de mera conveniência
e/ou oportunidade, a nulificação mesma dessa prerrogativa essencial.
O caso ora em exame põe em evidência o altíssimo relevo jurídico-social que
assume, em nosso ordenamento positivo, o direito à saúde, especialmente em
face do mandamento inscrito no art. 196 da Constituição da República, que
assim dispõe:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e
ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação. [Grifei.]

Na realidade, o cumprimento do dever político-constitucional consagrado no


art. 196 da Lei Fundamental do Estado, consistente na obrigação de assegurar, a
todos, a proteção à saúde, representa fator, que, associado a um imperativo de
solidariedade social, impõe-se ao poder público, qualquer que seja a dimensão
institucional em que atue no plano de nossa organização federativa.
A impostergabilidade da efetivação desse dever constitucional desautoriza
o acolhimento do pleito que o Município do Rio de Janeiro deduziu em sede
recursal extraordinária.
Tal como pude enfatizar em decisão por mim proferida no exercício da
presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da

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presente causa (Pet 1.246/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida


e à saúde – que se qualifica como direito subjetivo inalienável a todos assegu‑
rado pela própria Constituição da República (art. 5º, “caput”, e art. 196) – ou fazer
prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e
secundário do Estado, entendo, uma vez configurado esse dilema, que razões
de ordem ético-jurídica impõem, ao julgador, uma só e possível opção: aquela
que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas.
Essa relação dilemática, que se instaura na presente causa, conduz os juízes
deste Supremo Tribunal a proferir decisão que se projeta no contexto das deno-
minadas “escolhas trágicas” (GUIDO CALABRESI e PHILIP BOBBITT, “Tragic Choi-
ces”, 1978, W. W. Norton & Company), que nada mais exprimem senão o estado
de tensão dialética entre a necessidade estatal de tornar concretas e reais as
ações e prestações de saúde em favor das pessoas, de um lado, e as dificuldades
governamentais de viabilizar a alocação de recursos financeiros, sempre tão
dramaticamente escassos, de outro.
Mas, como precedentemente acentuado, a missão institucional desta Suprema
Corte, como guardiã da superioridade da Constituição da República, impõe
aos seus juízes o compromisso de fazer prevalecer os direitos fundamentais
da pessoa, dentre os quais avultam, por sua inegável precedência, o direito à
vida e o direito à saúde.
Cumpre não perder de perspectiva, por isso mesmo, que o direito público
subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível, assegurada
à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República. Traduz
bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de
maneira responsável, o poder público, a quem incumbe formular – e imple-
mentar – políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o
acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar.
O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que
tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institu‑
cional, a organização federativa do Estado brasileiro (JOSÉ CRETELLA JÚNIOR,
“Comentários à Constituição de 1988”, vol. VIII/4332-4334, item n. 181, 1993,
Forense Universitária) – não pode convertê-la em promessa constitucional
inconsequente, sob pena de o poder público, fraudando justas expectativas nele
depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento
de seu impostergável dever por um gesto irresponsável de infidelidade gover‑
namental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.
Nesse contexto, incide sobre o poder público a gravíssima obrigação de tornar
efetivas as ações e prestações de saúde, incumbindo-lhe promover, em favor

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das pessoas e das comunidades, medidas – preventivas e de recuperação –, que,


fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar
concreção ao que prescreve, em seu art. 196, a Constituição da República, tal
como este Supremo Tribunal tem reiteradamente reconhecido:
O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQUÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL
DO DIREITO À VIDA.
– O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponí­
vel assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República
(art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade
deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e
implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cida-
dãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.
– O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a
todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito
à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no
plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao
problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável
omissão, em grave comportamento inconstitucional.
A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PRO­
MESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQUENTE.
– O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem
por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a
organização federativa do Estado brasileiro – não pode convertê-la em promessa
constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expec-
tativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cum-
primento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade
governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. [RE 393.175
AgR/RS, rel. min. CELSO DE MELLO.]

O sentido de fundamentalidade do direito à saúde (CF, arts. 6º e 196) – que


representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa
humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concre‑
tas – impõe ao poder público um dever de prestação positiva que somente se
terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem
providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da deter‑
minação ordenada pelo texto constitucional.
Vê-se, desse modo, que, mais do que a simples positivação dos direitos so­­ci­
ais – que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação constitucional
e que atua como pressuposto indispensável à sua eficácia jurídica (JOSÉ AFONSO
DA SILVA, “Poder Constituinte e Poder Popular”, p. 199, itens n. 20/21, 2000,

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Malheiros) –, recai sobre o Estado inafastável vínculo institucional consistente


em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em ordem a permitir, às
pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento da obrigação estatal, que
tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias instrumentalmente
vinculadas à realização, por parte das entidades governamentais, da tarefa que
lhes impôs a própria Constituição.
Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento
formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração
constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente
garantido, especialmente naqueles casos em que o direito – como o direito à
saúde – se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cida‑
dão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas
pelo próprio ordenamento constitucional.
Tenho para mim, desse modo, presente tal contexto, que o Estado não po­­
derá demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhe foi
outorgado pelo art. 196, da Constituição, e que representa – como anteriormente
já acentuado – fator de limitação da discricionariedade político-administrativa
do poder público, cujas opções, tratando-se de proteção à saúde, não podem ser
exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniên‑
cia ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.
Entendo, por isso mesmo, como já anteriormente assinalado, que se revela
inviável o recurso extraordinário deduzido pelo Município do Rio de Janeiro,
notadamente em face da jurisprudência que se formou, no Supremo Tribunal
Federal, sobre a questão ora em análise.
Nem se atribua, indevidamente, ao Judiciário, no contexto em exame, uma
(inexistente) intrusão em esfera reservada aos demais Poderes da República.
É que, dentre as inúmeras causas que justificam esse comportamento afir-
mativo do Poder Judiciário (de que resulta uma positiva criação jurisprudencial
do direito), inclui-se a necessidade de fazer prevalecer a primazia da Constitui‑
ção da República, muitas vezes transgredida e desrespeitada por pura, simples
e conveniente omissão dos poderes públicos.
Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconsti-
tucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivam restaurar a
Constituição violada pela inércia dos Poderes do Estado, nada mais faz senão
cumprir a sua missão institucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incon‑
dicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República.
A colmatação de omissões inconstitucionais, realizada em sede jurisdi‑
cional, notadamente quando emanada desta Corte Suprema, torna-se uma

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necessidade institucional, quando os órgãos do poder público se omitem ou


retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos
por expressa determinação do próprio estatuto constitucional, ainda mais se se
tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais
ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade.
As situações configuradoras de omissão inconstitucional – ainda que se cuide
de omissão parcial derivada da insuficiente concretização, pelo poder público,
do conteúdo material da norma impositiva fundada na Carta Política – refle-
tem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado
qualifica-se como uma das causas geradoras dos processos informais de mudança
da Constituição, tal como o revela autorizado magistério doutrinário (ANNA CÂN‑
DIDA DA CUNHA FERRAZ, “Processos Informais de Mudança da Constituição”,
p. 230/232, item n. 5, 1986, Max Limonad; JORGE MIRANDA, “Manual de Direito
Constitucional”, tomo II/406 e 409, 2. ed., 1988, Coimbra Editora; J. J. GOMES
CANOTILHO e VITAL MOREIRA, “Fundamentos da Constituição”, p. 46, item n.
2.3.4, 1991, Coimbra Editora).
O fato inquestionável é um só: a inércia estatal em tornar efetivas as impo‑
sições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela Constituição
e configura comportamento que revela um incompreensível sentimento de
desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que se reveste
a Constituição da República.
Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição,
sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá‑
-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que
se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos
interesses maiores dos cidadãos.
A percepção da gravidade e das consequências lesivas derivadas do gesto infiel
do poder público que transgride, por omissão ou por insatisfatória concretização,
os encargos de que se tornou depositário, por efeito de expressa determinação
constitucional, foi revelada, entre nós, já no período monárquico, em lúcido
magistério, por PIMENTA BUENO (“Direito Público Brasileiro e Análise da Cons-
tituição do Império”, p. 45, reedição do Ministério da Justiça, 1958) e reafirmada
por eminentes autores contemporâneos em lições que acentuam o desvalor jurídico
do comportamento estatal omissivo (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Aplicabilidade das
Normas Constitucionais”, p. 226, item n. 4, 3. ed., 1998, Malheiros; ANNA CÂN‑
DIDA DA CUNHA FERRAZ, “Processos Informais de Mudança da Constituição”, p.
217/218, 1986, Max Limonad; PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição
de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969”, tomo I/15-16, 2. ed., 1970, RT, v.g.).

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O desprestígio da Constituição – por inércia de órgãos meramente cons‑


tituídos – representa um dos mais graves aspectos da patologia constitucional,
pois reflete inaceitável desprezo, por parte das instituições governamentais, da
autoridade suprema da Lei Fundamental do Estado.
Essa constatação, feita por KARL LOEWENSTEIN (“Teoria de la Constitución”,
p. 222, 1983, Ariel, Barcelona), coloca em pauta o fenômeno da erosão da consciência
constitucional, motivado pela instauração, no âmbito do Estado, de um preocupante
processo de desvalorização funcional da Constituição escrita, como já ressaltado,
pelo Supremo Tribunal Federal, em diversos julgamentos, como resulta evidente
da seguinte decisão consubstanciada em acórdão assim ementado:
(...) DESCUMPRIMENTO DE IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL LEGIFERANTE E DESVALO­
RIZAÇÃO FUNCIONAL DA CONSTITUIÇÃO ESCRITA.
– O poder público – quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever
de legislar, imposto em cláusula constitucional, de caráter mandatório – infringe,
com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, esti­
mulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência
constitucional (ADI 1.484-DF, rel. min. CELSO DE MELLO).
– A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável
gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo,
comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e
ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir inte-
gralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la
aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desíg-
nios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos.
DIREITO SUBJETIVO À LEGISLAÇÃO E DEVER CONSTITUCIONAL DE LEGISLAR: A NECES­
SÁRIA EXISTÊNCIA DO PERTINENTE NEXO DE CAUSALIDADE.
– O direito à legislação só pode ser invocado pelo interessado, quando também
existir – simultaneamente imposta pelo próprio texto constitucional – a previsão
do dever estatal de emanar normas legais. Isso significa que o direito individual à
atividade legislativa do Estado apenas se evidenciará naquelas estritas hipóteses em
que o desempenho da função de legislar refletir, por efeito de exclusiva determina-
ção constitucional, uma obrigação jurídica indeclinável imposta ao poder público.
[RTJ 183/818-819, rel. min. CELSO DE MELLO, Pleno.]

Em tema de implementação de políticas governamentais previstas e deter-


minadas no texto constitucional, notadamente nas áreas de educação infantil
(RTJ 199/1219-1220) e de saúde pública (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213), a Corte
Suprema brasileira tem proferido decisões que neutralizam os efeitos noci-
vos, lesivos e perversos resultantes da inatividade governamental, em situações
nas quais a omissão do poder público representava um inaceitável insulto a

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direitos básicos assegurados pela própria Constituição da República, mas cujo


exercício estava sendo inviabilizado por contumaz (e irresponsável) inércia do
aparelho estatal.
O Supremo Tribunal Federal, em referidos julgamentos, colmatou a omissão
governamental, conferiu real efetividade a direitos essenciais, dando-lhes con‑
creção, e, desse modo, viabilizou o acesso das pessoas à plena fruição de direitos
fundamentais, cuja realização prática lhes estava sendo negada, injustamente,
por arbitrária abstenção do poder público.
Para além de todas as considerações que venho de fazer, há, ainda, um outro
parâmetro constitucional que merece ser invocado no caso ora em julgamento.
Refiro-me ao princípio da proibição do retrocesso, que, em tema de direitos
fundamentais de caráter social, impede que sejam desconstituídas as conquis‑
tas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive, con-
soante adverte autorizado magistério doutrinário (GILMAR FERREIRA MENDES,
INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, “Hermenêutica
Constitucional e Direitos Fundamentais”, 1. ed./2. tir., p. 127/128, 2002, Brasília
Jurídica; J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional e Teoria da Constitui-
ção”, p. 320/322, item n. 3, 1998, Almedina; ANDREAS JOACHIM KRELL, “Direitos
Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha”, p. 40, 2002, Sergio Antonio
Fabris Editor; INGO W. SARLET, “Algumas considerações em torno do conteúdo,
eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988”, “in” Interesse
Público, p. 91/107, n. 12, 2001, Notadez; THAIS MARIA RIEDEL DE RESENDE ZUBA,
“O Direito Previdenciário e o Princípio da Vedação do Retrocesso”, p. 107/139,
itens ns. 3.1 a 3.4, 2013, LTr, v.g.).
Na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz,
no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos
direitos sociais de natureza prestacional (como o direito à saúde), impedindo,
em consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez
atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto na hipótese – de todo
inocorrente na espécie – em que políticas compensatórias venham a ser imple‑
mentadas pelas instâncias governamentais.
Lapidar, sob todos os aspectos, o magistério de J. J. GOMES CANOTILHO, cuja
lição, a propósito do tema, estimula as seguintes reflexões (“Direito Constitu-
cional e Teoria da Constituição”, p. 320/321, item n. 3, 1998, Almedina):
O princípio da democracia econômica e social aponta para a proibição de retro­
cesso social.
A ideia aqui expressa também tem sido designada como proibição de “contrarrevolu-
ção social” ou da “evolução reacionária”. Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e

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econômicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma
vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente,
uma garantia institucional e um direito subjetivo. A “proibição de retrocesso social”
nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fáctica), mas o
princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança
social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio
da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social
e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela digni-
dade da pessoa humana. O reconhecimento desta proteção de direitos prestacionais
de propriedade, subjetivamente adquiridos, constitui um limite jurídico do legislador
e, ao mesmo tempo, uma obrigação de prossecução de uma política congruente com os
direitos concretos e as expectativas subjetivamente alicerçadas. A violação no núcleo
essencial efetivado justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente aniqui-
ladoras da chamada justiça social. Assim, por ex., será inconstitucional uma lei que
extinga o direito a subsídio de desemprego ou pretenda alargar desproporcionadamente
o tempo de serviço necessário para a aquisição do direito à reforma (...). De qualquer
modo, mesmo que se afirme sem reservas a liberdade de conformação do legislador
nas leis sociais, as eventuais modificações destas leis devem observar os princípios do
Estado de direito vinculativos da atividade legislativa e o núcleo essencial dos direitos
sociais. O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o
núcleo essencial dos direitos já realizado e efetivado através de medidas legislativas
(“lei da segurança social”, “lei do subsídio de desemprego”, “lei do serviço de saúde”)
deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer
medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensa-
tórios, se traduzam na prática numa “anulação”, “revogação” ou “aniquilação” pura a
simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente
autorreversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado. [Grifei.]

Bem por isso, o Tribunal Constitucional português (Acórdão 39/84), ao invocar


a cláusula da proibição do retrocesso, reconheceu a inconstitucionalidade de
ato estatal que revogara garantias já conquistadas em tema de saúde pública,
vindo a proferir decisão assim resumida pelo ilustre relator da causa, conselheiro
VITAL MOREIRA, em douto voto de que extraio o seguinte fragmento (“Acórdãos
do Tribunal Constitucional”, vol. 3/95-131, 117-118, 1984, Imprensa Nacional, Lisboa):
Que o Estado não dê a devida realização às tarefas constitucionais, concretas e
determinadas, que lhe estão cometidas, isso só poderá ser objeto de censura cons­
titucional em sede de inconstitucionalidade por omissão. Mas quando desfaz o que
já havia sido realizado para cumprir essa tarefa, e com isso atinge uma garantia
de um direito fundamental, então a censura constitucional já se coloca no plano
da própria inconstitucionalidade por ação.
Se a Constituição impõe ao Estado a realização de uma determinada tarefa – a
criação de uma certa instituição, uma determinada alteração na ordem jurídica –,

Sumário volume 227  |  janeiro a março de 2014  |  765


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então, quando ela seja levada a cabo, o resultado passa a ter a proteção direta da
Constituição. O Estado não pode voltar atrás, não pode descumprir o que cumpriu,
não pode tornar a colocar-se na situação de devedor. (...) Se o fizesse, incorreria em
violação positiva (...) da Constituição.
(...)
Em grande medida, os direitos sociais traduzem-se para o Estado em obrigação
de fazer, sobretudo de criar certas instituições públicas (sistema escolar, sistema de
segurança social, etc.). Enquanto elas não forem criadas, a Constituição só pode
fundamentar exigências para que se criem; mas após terem sido criadas, a Consti-
tuição passa a proteger a sua existência, como se já existissem à data da Constitui-
ção. As tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais
no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a criá-los,
obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados.
Quer isto dizer que a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcial-
mente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o res-
peito constitucional deste deixa de consistir (ou deixar de consistir apenas) numa obri-
gação positiva, para se transformar (ou passar também a ser) numa obrigação negativa.
O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfação ao direito social, passa a
estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social.
Este enfoque dos direitos sociais faz hoje parte integrante da concepção deles a teoria
constitucional, mesmo lá onde é escasso o elenco constitucional de direitos sociais
e onde, portanto, eles têm de ser extraídos de cláusulas gerais, como a cláusula do
“Estado social”. [Grifei.]

Em suma: as razões ora expostas convencem-me da inviabilidade do recurso


extraordinário deduzido pelo Município do Rio de Janeiro, seja em face das con‑
siderações expendidas, nesta causa, pelos v. acórdãos proferidos pelo e. Superior
Tribunal de Justiça (fls. 877/897) e pelo e. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro (fls. 773/780), seja, ainda, em virtude dos próprios fundamentos que dão
suporte ao parecer do ilustre subprocurador-geral da República doutor PAULO
DA ROCHA CAMPOS, que, no ponto, assim se pronunciou (fl. 2087):
12. Neste sentido, o caráter programático das normas constitucionais referentes ao
direito universal à saúde não permite que o Estado, em nome de sua discricionarie-
dade na definição das políticas públicas, furte-se a praticar atos assecuratórios de
um serviço público de saúde de qualidade, não estando impedido o Poder Judiciá-
rio, por certo, de proceder à tutela dos direitos garantidos por tais normas. [Grifei.]

Isso significa, portanto, considerada a indiscutível primazia constitucional


reconhecida à assistência à saúde, que a ineficiência administrativa, o descaso
governamental com direitos básicos do cidadão, a incapacidade de gerir os recur‑
sos públicos, a incompetência na adequada implementação da programação

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orçamentária em tema de saúde pública, a falta de visão política na justa percep‑


ção, pelo administrador, do enorme significado social de que se reveste a saúde
dos cidadãos, a inoperância funcional dos gestores públicos na concretização
das imposições constitucionais estabelecidas em favor das pessoas carentes não
podem nem devem representar obstáculos à execução, pelo poder público, nota-
damente pelo Município (CF, art. 30, VII), das normas inscritas nos arts. 196 e 197
da Constituição da República, que traduzem e impõem, ao próprio Município, um
inafastável dever de cumprimento obrigacional, sob pena de a ilegitimidade dessa
inaceitável omissão governamental importar em grave vulneração a um direito fun‑
damental da cidadania e que é, no contexto que ora se examina, o direito à saúde.
Desse modo, entendo assistir razão aos acórdãos proferidos pelo e. Superior
Tribunal de Justiça e pelo e. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que
se ajustam à jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria
ora em exame.
Sendo assim, e em face das razões expostas, nego provimento ao presente
recurso de agravo, mantendo, por seus próprios fundamentos, a decisão ora
agravada.
É o meu voto.

EXTRATO DA ATA
AI 759.543 AgR/RJ — Relator: Ministro Celso de Mello. Agravante: Município do
Rio de Janeiro (Advogado: Eduardo de Oliveira Gouvêa). Agravado: Ministério
Público Federal (Procurador: Procurador-geral da República).
Decisão: A Turma, por votação unânime, negou provimento ao agravo regi‑
mental, nos termos do voto do relator.
Presidência da ministra Cármen Lúcia. Presentes à sessão os ministros Celso
de Mello, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Teori Zavascki. Subprocurador‑
-geral da República, doutor Odim Brandão Ferreira.
Brasília, 17 de dezembro de 2013 — Ravena Siqueira, secretária substituta.

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DECISÃO MONOCRÁTICA
RE 646.135

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 646.135 — PR


Relator: O sr. ministro Dias Toffoli
Recorrentes e recorridos: União
Rádio FM Independência Ltda.

DECISÃO
Vistos.
União e Rádio FM Independência Ltda. interpõem recursos extraordinários
contra acórdão proferido pela Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da
4ª Região, assim ementado:
Administrativo. Transmissão do programa “A Voz do Brasil”. Horário alternativo.
Prequestionamento.
1. As rádios-emissoras não se podem eximir do dever de transmitir o programa
obrigatório “A Voz do Brasil”, sobretudo em razão do disposto no art. 21, XII, a, da
Constituição Federal. Todavia, podem retransmiti-lo em horário alternativo que
não aquele oficialmente estabelecido.
2. Prequestionamento delineado pelo exame das disposições legais pertinentes
ao deslinde da causa. Precedentes do STJ e do STF.
3. Apelação parcialmente provida.

Opostos embargos de declaração por ambas as partes, foram ambos acolhi‑


dos, para fins de prequestionamento e para integração do acórdão embargado,
mas sem alteração no resultado do julgamento.
Insurge-se a União, em seu apelo extremo, fundado na alínea a do permissivo
constitucional, contra suposta violação dos arts. 5º, IV e XIV; 21, XI e XII, a; 220,
caput e § 1º; e 223 da Constituição Federal, consubstanciada pelo reconhecimento
de que as emissoras de rádio poderiam retransmitir o programa A Voz do Brasil
em horário diverso daquele oficialmente estabelecido.

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RE 646.135

Já a rádio, em seu recurso, igualmente calcado na alínea a do referido per‑


missivo, alega violação do art. 220, caput e parágrafos, da Constituição Federal,
em razão de não ter sido reconhecida a inconstitucionalidade da imposição de
retransmissão, ainda que em horário alternativo, do aludido programa.
Depois de apresentadas contrarrazões, os recursos foram admitidos na origem,
o que ensejou a subida dos autos a esta Corte.
O recurso especial paralelamente interposto já foi definitivamente rejeitado
pelo Superior Tribunal de Justiça.
Decido.
A Emenda Constitucional 45, de 30-12-2004, que acrescentou o § 3º ao art.
102 da Constituição Federal, criou a exigência da demonstração da existência de
repercussão geral das questões constitucionais trazidas no recurso extraordinário.
A matéria foi regulamentada pela Lei 11.418/2006, que introduziu os arts. 543-A
e 543-B ao Código de Processo Civil, e o Supremo Tribunal Federal, através da
Emenda Regimental 21/2007, dispôs sobre as normas regimentais necessárias
à sua execução.
Prevê o art. 323 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, na reda‑
ção da Emenda Regimental 21/2007, que, quando não for o caso de inadmissibi‑
lidade do recurso extraordinário por outra razão, haverá o procedimento para
avaliar a existência de repercussão geral na matéria objeto do recurso.
Esta Corte, com fundamento na mencionada legislação, quando do julgamento
da questão de ordem no AI 664.567/RS, Pleno, rel. min. Sepúlveda Pertence,
firmou o entendimento de que os recursos extraordinários interpostos contra
acórdãos publicados a partir de 3-5-2007, data da publicação da Emenda Regi‑
mental 21/2007, deverão demonstrar, em preliminar do recurso, a existência da
repercussão geral das questões constitucionais discutidas no apelo.
No caso em tela, os recursos extraordinários possuem a referida preliminar e
os apelos foram interpostos contra acórdão publicado em 15-9-2008, quando já
era plenamente exigível a demonstração da repercussão geral.
Os arts. 543-A, § 3º, do Código de Processo Civil e 323, § 1º, in fine, do RISTF, na
redação da Emenda Regimental 21/2007, preveem que haverá repercussão geral
sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência
dominante desta Corte, o que, efetivamente, ocorre no caso dos autos.
Com efeito, desde a apreciação, pelo Plenário desta Corte, da ADI 561 MC/DF,
pacificou-se o entendimento de que a Lei 4.117/1962 foi recepcionada pela vigente
Constituição Federal; por conseguinte, não se reveste de ilegalidade a determi‑
nação para que empresas de radiodifusão estejam obrigadas à retransmissão
diária do programa conhecido como A Voz do Brasil, no horário determinado.

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RE 646.135

Absolutamente pacíficos, nesse mesmo sentido, os julgamentos proferidos a par­


tir de então por esta Corte, citando-se, para exemplificar, as ementas dos seguintes:
Agravo regimental em recurso extraordinário. Obrigatoriedade de transmissão do
programa A Voz do Brasil. Lei 4.117/1962. Recepção pela Constituição Federal de 1988.
1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende que a Lei 4.117/1962,
que obriga empresa de radiodifusão a transmitir o programa A Voz do Brasil, foi
recepcionada pela Constituição Federal de 1988. 2. Agravo regimental desprovido.
[RE 531.908 AgR/MG, rel. min. Ayres Britto, Segunda Turma, DJE de 13-10-2011.]

Recurso extraordinário – Emissoras de radiodifusão – Retransmissão obrigatória do


programa A Voz do Brasil em horário alternativo – Recepção da Lei 4.117/1962 pela
vigente ordem constitucional – Precedentes – Recurso de agravo improvido. Reveste‑
-se de legitimidade jurídico-constitucional a obrigatoriedade, fundada em lei, de
retransmissão, por emissoras de radiodifusão, do programa A Voz do Brasil. Recep‑
ção, pela vigente Constituição da República, da Lei 4.117/1962 (art. 38, e). Precedentes.
[RE 571.353 AgR/RS, rel. min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJE de 16-6-2011.]

Agravo regimental no recurso extraordinário. Lei 4.117/1962. Recepção pela Constitui-


ção de 1988. Constitucionalidade da transmissão obrigatória do programa A Voz do
Brasil. I – O Plenário do STF, ao julgar a ADI 561 MC/DF, rel. min. Celso de Mello,
decidiu que a Lei 4.117/1962, que prevê a obrigatoriedade de transmissão do pro‑
grama A Voz do Brasil, foi recepcionada pela Constituição Federal. Precedentes.
II – Agravo regimental improvido. [RE 490.769 AgR/RS, rel. min. Ricardo Lewan-
dowski, Primeira Turma, DJE de 21-2-2011.]

Agravo regimental no recurso extraordinário. Constitucional. Empresa de radiodi-


fusão. Transmissão do programa A Voz do Brasil em horário alternativo. Recepção
da Lei 4.117/1962 pela Constituição da República. Precedente. Agravo regimental ao
qual se nega provimento. [RE 602.421 AgR/SC, rel. min. Cármen Lúcia, Primeira
Turma, DJE de 9-12-2010.]

Assim, a decisão regional, ao dispor de modo diverso, divergiu da pacífica


orientação desta Corte sobre o tema e merece ser reformada; por conseguinte,
acolhe-se o apelo da União, rejeitando-se o recurso da rádio.
Ante o exposto, nos termos do art. 557, § 1º-A, do Código de Processo Civil,
conheço do recurso extraordinário da União e lhe dou provimento para julgar
a ação improcedente, negando provimento ao recurso da parte contrária. Por
conseguinte, condeno a rádio no pagamento das custas processuais e em hono‑
rários de advogado que arbitro, nos termos do art. 20, § 4º, do Código de Processo
Civil, em R$ 2.000,00.
Publique-se.
Brasília, 30 de agosto de 2012 — Dias Toffoli, relator.

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ÍNDICE NUMÉRICO
ACÓRDÃOS E DECISÃO MONOCRÁTICA

508 (AP AgR) . . . . . . . . Rel.: Min. Marco Aurélio . . . . . . . . . . . . . 11


695 (AP AgR) . . . . . . . . Rel.: Min. Rosa Weber. . . . . . . . . . . . . . . 28
1.259 (Ext). . . . . . . . . . . Rel.: Min. Dias Toffoli. . . . . . . . . . . . . . . 36
2.913 (ADI) . . . . . . . . . . Rel. p/ o ac.: Min. Cármen Lúcia. . . . . . . . 46
3.388 (Pet ED). . . . . . . . . Rel.: Min. Roberto Barroso. . . . . . . . . . . . 57
3.702 (ADI) . . . . . . . . . . Rel.: Min. Dias Toffoli. . . . . . . . . . . . . . . 114
4.425 (ADI) . . . . . . . . . . Rel. p/ o ac.: Min. Luiz Fux. . . . . . . . . . . . 125
28.160 (MS). . . . . . . . . . . Rel.: Min. Rosa Weber. . . . . . . . . . . . . . . 315
32.033 (MS). . . . . . . . . . . Rel. p/ o ac.: Min. Teori Zavascki. . . . . . . . 330
94.240 (HC). . . . . . . . . . . Rel.: Min. Dias Toffoli. . . . . . . . . . . . . . . 532
94.358 (RHC). . . . . . . . . . Rel.: Min. Celso de Mello. . . . . . . . . . . . . 546
96.099 (HC). . . . . . . . . . . Rel.: Min. Ricardo Lewandowski. . . . . . . . 559
102.836 (HC AgR). . . . . . . . Rel. p/ o ac.: Min. Dias Toffoli. . . . . . . . . . 574
104.467 (HC). . . . . . . . . . . Rel.: Min. Cármen Lúcia . . . . . . . . . . . . . 596
118.615 (RHC). . . . . . . . . . Rel.: Min. Rosa Weber. . . . . . . . . . . . . . . 603
119.979 (HC). . . . . . . . . . . Rel.: Min. Rosa Weber. . . . . . . . . . . . . . . 611
120.617 (HC). . . . . . . . . . . Rel.: Min. Rosa Weber. . . . . . . . . . . . . . . 618
530.121 (RE AgR) . . . . . . . . Rel.: Min. Ricardo Lewandowski. . . . . . . . 625
589.182 (AI AgR) . . . . . . . . Rel.: Min. Ricardo Lewandowski. . . . . . . . 629
594.040 (RE AgR) . . . . . . . . Rel.: Min. Ricardo Lewandowski. . . . . . . . 633
606.107 (RE). . . . . . . . . . . Rel.: Min. Rosa Weber. . . . . . . . . . . . . . . 636
633.009 (RE AgR) . . . . . . . . Rel.: Min. Ricardo Lewandowski. . . . . . . . 671
637.485 (RE). . . . . . . . . . . Rel.: Min. Gilmar Mendes . . . . . . . . . . . . 675
646.135 (RE). . . . . . . . . . . Rel.: Min. Dias Toffoli. . . . . . . . . . . . . . . 771
731.786 (AI AgR) . . . . . . . . Rel.: Min. Ricardo Lewandowski. . . . . . . . 745
759.543 (AI AgR) . . . . . . . . Rel.: Min. Celso de Mello. . . . . . . . . . . . . 749

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Este livro foi projetado e composto por Eduardo Franco Dias, na
Seção de Padronização e Revisão da Secretaria de Documentação
do Supremo Tribunal Federal.

A fonte de texto é a Kepler Std, projetada por Robert Slimbach e


editada pela Adobe Systems em 2003.

Os títulos e destaques foram compostos em Helvetica Neue LT Std.


Ela é uma ampliação da família tipográfica de Max Miedinger e
Eduard Hoffmann, criada em 1957 na Suíça e reeditada em 1983 pela
Adobe Systems.

Este livro foi finalizado em 28 de setembro de 2015, e impresso pela


Coordenadoria de Serviços Gráficos do Conselho da Justiça Federal.

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