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Coletivo canal*MOTOBOY

O nascimento de uma categoria


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Coletivo canal*MOTOBOY
Org. Eliezer Muniz dos Santos

Autores
Andréa Sadocco, Augusto Astiel
Bruna Bo, Eliezer Muniz (Neka)
Fábio Ascempcion, Marcelo Veronez
Ronaldo Simão da Costa

Programa Petrobras Cultural

Apoio
Copyright © 2009 MARCUS VINICIUS FAUSTINI A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL)
esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou
curadoria
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA autorizar a produção cultural dos artistas que se encon-
consultoria tram na periferia por critérios sociais, econômicos e cul-
ECIO SALLES turais. Faz parte dessa percepção de que a cultura da
produção editorial
CAMILLA SAVOIA
periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de
projeto gráfico ter sua voz.
CUBICULO
No entanto, nas últimas décadas, uma série de traba-
GUIA AFETIVO DA PERIFERIA
lhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas
produtor gráfico
SIDNEI BALBINO procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgâ-
revisão nicos, profundamente conectados com experiências
CAMILLA SAVOIA
sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias
REBECA BOLITE
revisão tipográfica
assume contornos biográficos de um sujeito ou de um
CAMILLA SAVOIA grupo mobilizados em torno da sua periferia, suas con-
dições socioeconômicas e a afirmação cultural de suas
comunidades.
Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais,
F271g
criativas, sustentáveis e autônomas, como são exem-
Faustini, Vinícius plos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros
Guia afetivo da periferia / Vinícius Faustini. tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase
- Rio de Janeiro : Aeroplano, 2009.
il.-(Tramas urbanas ; 11) desta coleção.
ISBN 978-85-7820-026-8
Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a con-
1. Faustini, Marcus - Ficção. 2. Diretores e produtores
de teatro - Brasil - Ficção. 3. Subúrbios - Rio de Janeiro tinuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar
(RJ) - Ficção. 4. Romance brasileiro. I. Programa Petrobras
Cultural. II. Título. III. Série. não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas
09-5169. CDD: 869.93 experiências novas formas de responder a questões
CDU: 821.134.3(81)-3
culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como
30.09.09 05.10.09 015517
diz a curadora do projeto, “mais do que a Internet,
a periferia é a grande novidade do século XXI”.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA
AV. ATAULFO DE PAIVA, 658 / SALA 401 Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.
LEBLON – RIO DE JANEIRO – RJ
CEP: 22.440-030
TEL: 21 2529-6974
TELEFAX: 21 2239-7399

aeroplano@aeroplanoeditora.com.br
www.aeroplanoeditora.com.br
Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da peri-
feria se impõe como um dos movimentos culturais de
ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dic-
ção proativa e, claro, projeto de transformação social.
Esses são apenas alguns dos traços de inovação nas prá-
ticas que atualmente se desdobram no panorama da cul-
tura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de
nossa tradição cultural.
Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje
a ser reconhecida como uma das tendências criativas
mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua
história ainda está para ser contada.
É neste sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como
seu objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas
deste novo capítulo da memória cultural brasileira.
Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afe-
tiva ao direito da periferia de contar sua própria história.

Heloisa Buarque de Hollanda


Sumário

Prefácio Antoni Abad


Introdução São Paulo, a cidade dos motoboys
– Eliezer Muniz dos Santos

Parte I O NASCIMENTO DE UMA CATEGORIA

000 Uma breve história da categoria


– Coletivo Canal*Motoboy

000 No espelho retro1sor – Augusto Astiel


000 Cultura motoboy – Eliezer Muniz dos
Santos
Dedico este livro a minha família e a todos os
profissionais motociclistas brasileiros.
Parte II OS MOTOBOYS E AS MOTOGIRLS

000 Meu nome é Ronaldo


000 Andrea Motogirl: Desafio contemporâneo
000 Poeta dos Motoboys
000 Fábio Motoboy
Um agradecimento àqueles que possibilitaram a realização deste
000 Jordana, Motogirl de Iomerê
livro, e em especial, àqueles que lutaram comigo ao escrevê-lo.
000 Neka
Eleilson Leite, Alessandro Buzo, Heloisa Buarque, Júlio César,
Keila Muniz, Andréa Sadocco, Antoni Abad, Augusto Astiel, 000 Índice de Imagens
Bruna Bo, Ronaldo Simão da Costa, Marcelo Veronez, Jordana Peretti,
Roberto Ito, Fábio Ascempcion e ao meu filho Lucas. 000 Sobre o autor
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Prefácio motoboys. O congestionamento do tráfego e as enormes


distâncias fazem do motoboy um personagem impres-
cindível para o funcionamento da cidade, onipresente
em cada semáforo e cada esquina.
A utilização dos seus serviços é profusa e generalizada.
Transportam de tudo: documentos, dinheiro, pizzas...
Dizem que até mesmo órgãos humanos entre hospitais.
Arriscam a vida diariamente circulando a toda veloci-
dade entre os corredores formados pelas intermináveis
filas de carros. Entretanto, esses cavaleiros do apoca-
Há aproximadamente sete anos chegaram ao mercado lipse do asfalto paulista são vítimas de graves precon-
os telefones celulares com câmera integrada. Este dis- ceitos. Nas notícias sobre eles, a imprensa sensaciona-
positivo despontava como um instrumento excepcional, lista destaca as vertiginosas corridas contra o tempo
pois tinha duas características nunca antes reunidas em ou os casos em que assaltantes se fizeram passar por
um aparelho tão pequeno: de um lado, a possibilidade de mensageiros para perpetrar seus delitos. Os motoboys
registro multimídia de fragmentos da realidade em for- aparecem nos meios de comunicação paulistas quase
mato áudio, vídeo, foto e texto; de outro, a capacidade sempre em histórias truculentas que potencializam os
de publicação quase imediata na Internet. O celular com piores preconceitos na percepção social da categoria.
câmera integrada estreita ao máximo, portanto, a dis- Em contrapartida, poucas vezes se enfatiza o lado mais
tância entre uma ideia e sua disseminação. E a publica- positivo desse coletivo, que demonstra um sentimento
ção a partir de celulares alcança um ambiente global, de solidariedade muito particular, uma consciência cor-
como a Internet, e não um ambiente local. A publicação porativa que antepõe o socorro a um companheiro aci-
na Internet é barata, além de praticamente imediata. dentado à urgência de uma entrega. O citado estudo de
Olivato comenta: “Observamos a existência de um sutil
Desde as minhas primeiras visitas a São Paulo, também
código de ética e solidariedade entre eles no trânsito,
há sete anos, o universo de motoboys chamou forte-
fato esse de que nem os próprios motoboys tinham se
mente minha atenção. Segundo o censo de 2000 reali-
apercebido”.
zado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), a cidade de São Paulo contava naquele ano com Diante disso, indaguei-me o que ocorreria se uma
cerca de dez milhões e meio de habitantes. Dentre rede móvel celular, com publicação em tempo real na
eles, e de acordo com a tese de doutorado “Percepção Internet, fosse gerada a partir de uma rede humana pre-
e avaliação da conduta dos motoristas e pedestres no existente como a que formam os motoboys. Ou, o que
trânsito: um estudo sobre espaço público e civilidade vem a ser o mesmo: o que aconteceria se um grupo de
na metrópole paulista”, de Alessandra Olivato, havia motoboys recebesse celulares com câmera com o obje-
374.588 motociclistas, dos quais cerca de 160 mil eram tivo de criar seus próprios canais multimídia na Internet.

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Os motoboys poderiam, dessa maneira, transformar-se em diferentes coletivos – teria de esperar até 2007
em cronistas de sua própria realidade, autorrepresen- para ser realizado, devido às enormes dificuldades para
tando-se e corrigindo a imagem distorcida que os meios obter os recursos necessários, pois poucas instituições
de comunicação projetam deles. dispõem-se a apoiar um universo como o dos motoboys,
que padece de enorme estigma social.
Assim, em 2003, em estreita colaboração com o progra-
mador Eugenio Tisselli, realizamos um primeiro esboço Finalmente, com o apoio do Centro Cultural São Paulo, o
operacional do dispositivo de telefonia móvel para Centro Cultural de España e a Sociedad Estatal para la
publicar um conteúdo na Internet. Quando ficou pronto, Acción Cultural Exterior de España, conseguimos iniciar,
o esboço foi “testado” em um workshop com um grupo em 2007, as transmissões por celular de um grupo de 12
de estudantes na Casa Encendida, de Madri. Eugenio motoqueiros de São Paulo. Três anos depois, as trans-
ficou programando ao vivo, corrigindo as falhas e imple- missões continuam a ser feitas e o canal* MOTOBOY é o
mentando os recursos de narrativa multimídia que se que tem o percurso mais longo entre todos os projetos
mostravam necessários com a prática. A experiência se mencionados neste texto.
chamou ensaio* GERAL e serviu para assentar as bases
Os motoboys estão propondo um mapa distinto, uma
tecnológicas, organizacionais e logísticas desse dis-
interpretação particular da enorme cidade de São Paulo,
positivo de comunicação social baseado em tecnologia
e já não apenas mediante seus vídeos, fotografias e
móvel audiovisual que funcionou como um alto-falante
arquivos de áudio e texto, mas através de um sistema
para todos os coletivos com que eu trabalharia nos anos
de geolocalização implantado no dispositivo, e tam-
seguintes: taxistas na Cidade do México (2004), jovens
bém de um mapa lexicográfico. Nos projetos anterio-
ciganos em Lleida e León (2005), prostitutas em Madri
res ao canal* MOTOBOY, os emissores colocavam seus
(2005), imigrantes nicaraguenses em San José da Costa
envios em canais personalizados, ou ambientes comuns
Rica (2006), pessoas desalojadas e desmobilizadas na
propostos nas reuniões semanais dos participantes.
Colômbia e jovens dos acampamentos de refugiados
Quando o trabalho com cada coletivo terminava, toda
saarianos próximos a Tinduf, na Argélia (2009). Dois des-
essa informação era organizada segundo um sistema de
ses projetos foram realizados por pessoas com mobili-
descritores concebido por um grupo de sociólogos. Mas
dade reduzida – em Barcelona (2006) e Genebra (2008).
no caso dos motoboys – e pela primeira vez – são eles
Os participantes utilizaram telefones GPS com câmera
mesmos que categorizam seus envios. Hoje, observa-
integrada para fotografar os obstáculos e barreiras
mos os cruzamentos que se produzem no léxico entre a
arquitetônicas que encontravam diariamente nas ruas,
descrição da realidade imposta e antropológica e outra
desenhando em tempo real na Web o plano de acessibi-
mais íntima e local.
lidade de suas cidades.
Os motoboys foram também os primeiros a experimentar
O projeto canal*MOTOBOY – que me inspirou, sete anos
o conceito de “megafone”: um telefone móvel comunitá-
atrás, a começar o trabalho que desde então desenvolvi
rio dotado de GPS e que integra as capacidades de regis-
na Internet com o uso de aparelhos de telefonia móvel
tro audiovisual geolocalizado e de publicação imediata
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na Web do software desenvolvido em www.megafone. Introdução


net. O megafone muda de mãos toda semana entre os
participantes, que decidem democraticamente em suas
reuniões editoriais qual deles será o emissor durante a
semana seguinte.
Em suma, os participantes do canal* MOTOBOY vêm
desenvolvendo durante três anos seu próprio disposi-
tivo de comunicação móvel audiovisual na Internet. Mas
também contribuíram generosamente com sua experiên-
cia para o desenvolvimento do megafone, um dispositivo
útil como meio de comunicação alternativo para grupos, São Paulo, a cidade dos motoboys
coletivos, associações e comunidades que desejem se
organizar para projetar sua própria visão da realidade e Todos os dias, milhares de motoboys saem pelas ruas
combater os estereótipos que os meios de comunicação e avenidas da cidade. À noite, de dia, no frio da madru-
difundem, incluindo entre suas possibilidades a geolo- gada. Eles vão, vêm, cruzam o asfalto.
calização, que permite realizar projetos de cartografia Passam pelas vielas e avenidas: é a cidade dos motoboys.
pública digital. Aceleram suas motos, cruzam para todos os lados, nunca
Obrigado, amigos motoqueiros, por estes anos de entrega param. Ditam o ritmo da metrópole e fazem de sua rotina
ao projeto e pelas expectativas de futuro, pelas quais diária a paisagem urbana. São Paulo sem motoboy para.
continuaremos a trabalhar em www. megafone.net. Vida Saberemos um dia quantos são? Mensageiros, moto-
longa ao Canal* MOTOBOY! queiros, deliverys e couriers. Motoboys e motogirls.
Homens e mulheres, manos e minas. Todos profissionais
motociclistas, enfim, guerreiros do asfalto.
Antoni Abad, Barcelona, janeiro de 2010
Cidade em que não se sabe onde começa uma quebrada
e termina outra (aonde os mais ricos só sabem que elas
existem de uma poltrona de avião), onde estão as suas
margens e suas periferias? O motoboy é a rua da que-
brada, o beco e a viela na grande avenida. É a adrenalina
com responsabilidade. O vento na cara é o passaporte
para uma outra urbanidade. Eles vieram para ficar. Ocupar
o espaço reservado e exclusivista dos automóveis.
O motoboy é a cara da cidade, uma das suas identi-
dades mais subterrâneas. É a velocidade com que se
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descobre que entre civilizados de ternos e gravatas e sua sobrevivência no caos do trânsito. Suas vidas não
os caras de botas e capa de chuva, pode ocorrer tanto se reduzem à mera particularidade de serem tomados
o maior respeito, como a maior falta de respeito pela como mais uma tribo urbana: eles têm seus códigos,
vida humana. Que o mesmo cidadão, que pede ali o ser- seus gestos e sua bravura. Mas também seus valores,
viço urgente, pode às vezes, num piscar de olhos, te dá versos e prosas. Assim, a cultura motoboy nasce pela
uma fechada no trânsito. O que mostra também que a via da autonomia a partir da expressão criativa. Da liber-
cidade não tem limites: às vezes, na correria do dia a dade dos profissionais motociclistas em contar suas
dia, a carcaça de um carro pode ser a última parada de próprias experiências, fazerem de sua história, no coti-
um motoboy. diano da metrópole, uma grande narrativa.
Pra ser motoboy é preciso estar atento. Estar além do Nesse sentido, este livro realiza sua intenção quando,
tempo. motivados pela negação de uma visão de categoria
marginalizada, eles se tornam os protagonistas de
Ao descobrirmos que os motoboys são a cara da cidade,
sua própria história e se põem a narrá-la, saindo em
a cidade pode parar, eles não. Pode chover e alagar
defesa da criação, do surgimento de uma nova cultura
que eles chegam. Se cair a ponte, eles atravessam.
urbana e transformando o cotidiano de toda uma cidade.
São insubstituíveis. Impossível narrar o cotidiano de
Abrem-se à vida cultural a que têm direto. Quando este
um único motoboy. Imagina de todos! A vida na cidade
ato de narrar, como num gesto simbólico, significa
é cheia de aventuras e mazelas. Comandas e ordens
aquele momento em que eles tiram os capacetes, dei-
de serviços convivem com o inusitado. É uma profissão
xando então revelar em sua realidade a fisionomia can-
marcada pelo alto risco de acidentes e pela informali-
sada de pessoas comuns, mas por isto mesmo heroicas.
dade de seus serviços. Mas é também na rua, habitat
A ideia de um livro assim só poderia nascer quando um
natural do motoboy, que podemos ouvir seu último grito
grupo de profissionais motociclistas, reunidos em torno
de liberdade. A buzina que toca no corredor quando um
de um projeto cultural como o canal*MOTOBOY, percebe
motoqueiro passa é mais do que um aviso de passagem.
que suas vivências nada mais são do que a própria histó-
A capa de chuva, o capacete colorido e a moto adesivada
ria do surgimento de sua categoria profissional.
são suas marcas, mas o que os une é a solidariedade
entre eles. Seu olhar percorre toda a cidade. Seus movi- Dessa forma, longe de se adotar outras experiências
mentos rápidos entre os carros deslocam os olhares da como modelo de organização cultural e política, essa
cidade. É onde notamos, quando estes motoqueiros se categoria vive hoje um dos mais interessantes proces-
propõem a narrar seu dia a dia e criam seu próprio modo sos coletivos de organização social. Quando ela inventa
de se expressar, pela música, pelos gestos, pela lingua- os seus próprios meios e a partir de seus espaços e tem-
gem, que vemos surgir a força de seu imaginário, um pos mostra sua capacidade de criar o inusitado, nunca se
outro fazer, uma parte de sua cultura. rendendo as soluções fáceis, podemos compreender a
sua especificidade e autonomia e, finalmente agora, por
Portanto, este livro é um protesto organizado por vozes
revelar nesta coletânea de textos uma nova perspectiva
de resistência. Um manifesto dos motoboys e motogirls
que não pode ser visto apenas pela singularidade de
18 19

sobre os motoboys, escritores do amanhã, que podemos


compreender a sua especificidade e autonomia. Então,
ao entrarmos em contato com suas narrativas, aos pou-
cos conhecemos suas histórias, trajetórias e preocupa-
ções. Passamos a conviver com personagens que apon-
tam para uma nova relação com a cidade. Portanto, mais
que uma nova classe de trabalhadores, vemos surgir
uma nova cidadania, ainda em formação.
Como tão bem definiu a motociclista Andrea, que faz
parte desta coletânea e nos faz compreender o papel
deste novo personagem urbano: “O motoboy é prota-
gonista participante contribuinte do novo século, desta
nova sociedade que surge cheia de tecnologias e desa-
fios ambientais. Fundamentalmente, contribui com a
sociedade, fazendo desenrolar com rapidez (as muitas)
burocracias civis, abrindo um novo horizonte para uma
nova cidadania. ”

Eliezer Muniz dos Santos (Organizador)

PARTE
01
Cap.01
Uma breve história da categoria

.01
a breve história da categoria
Uma breve história da categoria 23

em 1999, quando pela primeira vez a prefeitura de São


Paulo tenta regulamentar a profissão de motoboy. Entre
1999 e 2006 haveria ainda mais duas tentativas frus-
tradas, de regulamentar e enquadrar os profissionais
motociclistas, em seguidos decretos-lei criados pelos
gabinetes dos prefeitos Celso Pitta – que assinou o pri-
meiro decreto – Marta Suplicy, em 2004, e José Serra, em
2006. Todos partindo de um mesmo objeto de lei copia-
dos, ipsum literis, de um antigo projeto de Lei de 1968, que
regulamentara o serviço de táxi na capital paulistana.

Se fizermos aqui um breve relato da história da categoria No início de 2007, é apontada a espetacular produção de
dos motoboys, descobriremos que esta é uma profissão 1.2 milhão de motos fabricadas no Brasil. A categoria já
relativamente nova no Brasil. As primeiras empresas superava a marca de 120 mil profissionais motociclistas
que contratavam office-boys motorizados começaram a apenas na capital de São Paulo. No país inteiro os moto-
operar no início da década de 1980, com pouco mais de taxistas se tornavam uma realidade.
meia dúzia de motoqueiros. Em menos de duas décadas,
Em maio daquele ano é inaugurado no Centro Cultural
por conta da crescente demanda por este tipo de ser-
São Paulo (CCSP) o canal*MOTOBOY, projeto que reúne
viço, eles se tornaram uma das maiores categorias de
um grupo de motoboys utilizando celulares a partir de um
rua do país.
site da internet, que permite criar um canal de comuni-
A profissão de motociclista – atividade remunerada que cação com a categoria. Em junho, depois deste coletivo
faz uso da motocicleta para execução de diversas tare- de motoboys solicitar à presidência da Câmara Municipal
fas, como entregas e retiradas, que prescindam de certa uma audiência pública, a fim de voltar à discussão de uma
urgência, de documentos, cheques, malotes, medica- regulamentação da categoria que atendesse suas reivin-
mentos, alimentos e todo tipo de pequenos volumes e dicações, o prefeito Gilberto Kassab envia à Câmara dos
componentes, – surgiu na onda da globalização e do for- Vereadores o malfadado “Decreto do motofrete”, recu-
talecimento do setor de serviços. Entrou definitivamente sado durante anos pelos motoboys. A Câmara aprova, em
na cadeia produtiva da economia a partir 1988, quando a regime de urgência, o projeto de lei 14.491/07, de “auto-
nova Constituição legitimou a terceirização dessas ati- ria” do vereador Adolfo Quintas e, trinta dias depois, o
vidades no setor de serviços. No final daquela década já prefeito recebe de volta o projeto na prefeitura e o san-
havia dezenas de empresas e mais de 5 mil motoqueiros ciona. Em agosto, após a eleição de uma nova diretoria,
rodando por dia nas ruas da cidade de São Paulo. o Sindicato dos Mensageiros Motociclistas do Estado de
São Paulo volta para as mãos da categoria.
A partir de 1994, com o Plano Real, a economia se esta-
biliza e a demanda por estes motociclistas cresce expo- Após inúmeros projetos de lei tramitarem no Congresso
nencialmente, chegando a mais de 80 mil profissionais Nacional, no dia 29 de julho de 2009 o Presidente da

22
24 Coletivo canal*MOTOBOY Uma breve história da categoria 25

República Luiz Inácio Lula da Silva assina a lei que regu-


lamenta definitivamente a profissão de motoboy e moto-
taxista. Os profissionais passam a ter regras claras para
a atividade, que serão definidas pelo Conselho Nacional
de Trânsito, passando às prefeituras municipais a res-
ponsabilidade de regularizar os serviços de acordo com
a necessidade de cada região. A sanção põe fim à polê-
mica em torno da legitimidade do serviço de motoboy e
mototaxista, já que havia um grande preconceito em rela-
ção a estes serviços. O senador Expedito Júnior, relator
do projeto de lei do Senado 203/2001, que propôs a regu-
lamentação das profissões, comenta, em tom de come-
moração, durante o ato que criou a classe dos profissio-
nais motociclistas: “Esses profissionais esperam por
esse momento há mais de dez anos. É justo que agora
consigam ver sua atividade regulamentada. São mais de
2,5 milhões de pais de família que agora podem bater no
peito e dizer que têm uma profissão.”

Coletivo canal*MOTOBOY
Cap.02
No espelho retrovisor
No espelho retrovisor 29

arriscam a vida diariamente carregando documentos,


valores, ofícios, correspondências e outras parafernálias
de nosso cotidiano burocratizado, são, desse modo, agru-
pados à revelia em uma categoria, como sempre acon-
tece nessa construção cotidiana chamada sociedade. O
que foge à categorização transforma-se em caricatura. E
a caricatura é uma imagem sensibilizada pelo persona-
gem criado apesar da pessoa.
Hoje são milhares de motoboys em meio ao tráfego
pesado da cidade. Os corredores de ônibus espremeram
Um espectro ronda o trânsito — o espectro do motoboy. os automóveis, mas garantem o transporte dos periferi-
zados até os centros de trabalho, otimizando o tempo de
Há anos ele vem desaparecendo em meio aos carros, os
quem tem que chegar antes e sair depois. Os tempos dis-
donos por direito do espaço não tão público das ruas e
tintos dos mais diversos trabalhadores assim se crista-
avenidas da cidade. O espelho retrovisor dos automóveis
lizam. O espaço também: corredores segregados imitam
revela a imagem fugaz de um personagem cada vez mais
a separação metafísica entre quem pega ônibus e quem
presente. Invasor de um espaço restrito, o motoboy burla
usa carro, ao mesmo tempo em que sedimenta a opção
códigos e normas para suprir uma demanda de mercado.
da cidade por sua geografia excludente. Dos depósitos
Desobediente, mostra como a falta de regulamentação
de mão de obra barata, entretanto, surge um rebelde por
acarreta problemas a um país que se pensa pacífico,
natureza: a moto, que penetra o espaço que não lhe é de
mas não enxerga seus mortos diários. O motoboy devolve
direito, ágil que é, rebolando entre os automóveis habita-
a imagem que se faz dele, pois é sua única maneira de
dos por quem precisa que determinadas coisas sejam fei-
ser visto: personagem que não se enxerga nem se escuta,
tas em determinado tempo. Ou mais rápido, de preferên-
mas se quer disciplinar, o Leviatã das relações de trabalho
cia. Os eternos trabalhadores invisíveis, que constroem
tenta seduzi-lo com a oportunidade de ser “autônomo”. E
sem aparecer, pois seu espaço restringe-se ao lugar da
transforma-o em “autômato”. Por ser uma relação, mas
produção e não da fruição, sobre a moto tornam-se incô-
com apenas uma via de visibilidade, ao motoboy é dado
modos ao desafiar o olhar atento do motorista — atento
um papel que alguns abraçam com prazer: o delinquente
com o outro no carro e não com seu empregado na moto,
sobre rodas que a nada obedece ou respeita. Da natureza
pois ver o outro significa, primeiro, encaixá-lo dentro de
simbólica da moto nasce o mito do fora da lei que chuta
um discurso. A invisibilidade de alguém pressupõe a ine-
sua própria imagem no espelho. A invisibilidade do moto-
xistência desse alguém dentro do ordenamento social.
boy pode se transformar quando este invade o espaço
Mas a invisibilidade muda historicamente: do escravo
do outro. Alguns sabem disso e invadem com vontade.
aos trabalhadores miseráveis de Engels na Manchester
De aparecer. De conflitar. Não obedecem as regras, pois
do século XIX, o motoboy tem sua existência condicio-
não fazem parte do jogo. Os demais profissionais que
nada à posição social. E esse olhar condicionado, regra

28
30 Coletivo canal*MOTOBOY No espelho retrovisor 31
32 Coletivo canal*MOTOBOY No espelho retrovisor 33
34 Coletivo canal*MOTOBOY No espelho retrovisor 35

na sociedade desigual, é forçado a enxergar quem nunca A civilização do trabalho intelectual tem tradição de
viu: primeiro como incômodo, depois como estatística. rejeitar as tarefas musculares, braçais. Tais tipos de ati-
Inverte-se então o dito de Marx: assim como o serviçal vidade foram continuamente rebaixados à medida que o
submisso vira marginal para depois morrer, o motoboy é processo histórico foi tomando o rumo do intelecto, que
primeiro farsa para depois tornar-se tragédia. Entretanto, domava a natureza e a sobrepujava — colocando-a a seu
ao contrário do enredo cotidiano dos romances policiais serviço —, distanciando-se da sujeira e do suor, sepa-
dos tabloides televisivos diários, o motoboy é um traba- rando-se cada vez mais de sua origem e, assim, manifes-
lhador. No imaginário nacional, isso significa ser o oposto tando o orgulho do caminho percorrido. E com a história,
do “bandido” — que é nosso “vagabundo”. segue o rumo do olhar. O motoboy, nesse ponto, é o final de
uma complexa cadeia produtiva: ele é o responsável pelo
O motoboy trabalha e morre, ou trabalha e se acidenta,
último parafuso de uma grande máquina. Seu trabalho o
pois, como numa guerra, para cada morto aparecem três
obriga a relacionar-se com as ruas e avenidas continua-
feridos: clavículas quebradas, joelhos torcidos e pernas
mente, exposto à fumaça e à fuligem, ao suor e à sujeira
amputadas são outras estatísticas além das 365 mortes
— que não penetra nos automóveis, essas carapaças her-
anuais — ou 366, se o ano for bissexto. Daí a equação
méticas de conforto regulado, fetiche do homem moderno.
simbólica que não fecha: não é bandido, é trabalhador.
A natureza da motocicleta é outra — daí seu apelo não-
Mas morre. Fica o incômodo de algo que não se explica.
conformista. Mas como sujeito do ordenamento social,
Algo que não se entende. Como uma sociedade pode con-
a moto enquanto veículo para o lazer é diversa da moto
viver com um espectro desses lhe rondando a civilidade?
para o trabalho: a sociedade não aceita o conformismo
Apesar de a morte ser o destino humano, o convívio diário em seu seio tão facilmente. Ela restringe ao lazer — o
com sua real possibilidade pode revelar a falta de capa- período do não-trabalho merecido após as horas regula-
cidade da sociedade em gerir bem-estar. As categorias mentares —, ou outro tipo qualquer de regulação, seus
profissionais cujo discurso é perpassado pela fatalidade rompantes de originalidade. A moto também está mais
mostram valores diversos para a vida humana: parece próxima do risco que o carro: os dispositivos de segu-
que, tal a geografia “política” da cidade que circuns- rança desenvolvidos ao longo de anos — e que tornam
creve em um “centro expandido” seu gueto de civilidade, os automóveis cada vez mais seguros e caros — trouxe
o acesso ao conforto e às oportunidades é demasiado ao homem a possibilidade de viver cada vez mais pró-
restrito. Quem se percebe excluído dessa parcela de civi- ximo do limite. Se os carros mudaram muito, as motos,
lização pode optar por não partilhar de seus princípios, no entanto, mudaram pouco, devido aos limites de sua
resignando-se frente à fatalidade ou rebelando-se: a própria concepção. O risco físico fica então ao encargo
morte na fila de um posto de saúde ou na esquina de uma de quem a ele se sujeita, como no caso de inúmeros
avenida torna-se um fato da vida ou um slogan que fala outros trabalhos essenciais à sociedade que, por lida-
da opção por ser outsider: “vida loka”. rem com o que se considera “degradante” — pois con-
trário à norma que valoriza a distância dos subprodutos
36 Coletivo canal*MOTOBOY No espelho retrovisor 37

ou da infraestrutura da máquina social —, são reser- de organização social. O olhar é educado para não ver. O
vados às classes mais abaixo da pirâmide. A sociedade, olhar cria. Sobre o motoboy incide o olhar que vigia. Esse
em suma, deve operar como “por encanto”, magicamente olhar não dá oportunidade ao observado de se pronun-
funcionando sem produzir detritos de qualquer espécie. ciar, pois vigia segundo suas próprias normas. Ele visa ao
O “encanto” é assegurado pelo olhar que ignora quem encaixe em um sistema, em um discurso que viabiliza e
lida com o indesejável — ato agravado em uma socie- reforça ordenamentos já previamente estabelecidos.
dade historicamente segregada cujo ideal de igualdade
Cabe então ao olhar deseducado a tarefa de observar
de direitos é apenas retórica, uma ideia “fora do lugar”: é
e se surpreender. O olhar estrangeiro é aquele que não
o que fica aparente no trato da valoração da vida humana,
participa do conjunto de normas específicas em que
que possui índices diferentes conforme se aproximam do
passeia momentaneamente os olhos. O turista desco-
centro geográfico da metrópole. Aqui, igualdade e auto-
bre o que o nativo não vê, pois encaixa em outro sistema
consciência unem-se para dizer que consciência e demo-
simbólico de valores — ou não encontra lugar defi-
cracia não se separam.
nido para encaixar, e aí fica a surpresa do inusitado. A
No “centro expandido”, a morte ganha destaque, mesmo curiosidade do estrangeiro devolve imagens que muitas
que seja pela força dos números. O motoboy aciden- vezes não vemos. Por isso o estrangeiro pode ser peri-
tado aparece nos noticiários graças ao agravamento do goso, pois com seu olhar desestabiliza toda uma cons-
trânsito de uma cidade cujas veias não suportam mais a trução social. Nesse ponto, o motoboy é o estrangeiro
seiva que transportam. O motoboy, que agiliza serviços e eternamente presente no trânsito da cidade. É o indiví-
encurta prazos, atrasa a rotina da cidade quando sai de duo que não deveria aparecer ali, mas, invisível, deve-
sua rota invisível. Nesse ponto, ele passa a ser visto. Vira ria cumprir sua missão civilizatória e retornar ao gueto,
assunto no jornal. Leis são feitas para ele. Umas “pegam”, como outros milhões, diariamente, mundo afora. Resta
outras viram moeda de troca entre os representantes do saber em que mundo vive esse estrangeiro, ou em que
poder e quem a ele deve se submeter. Outras simples- mundo ele pensa viver.
mente somem. Leis em um país de apenas alguns cida-
Da união de estrangeiros surge a oportunidade de dar
dãos carecem de eficácia. Leis são elementos públicos,
ao “motoboy” o controle de seu discurso. Capturando as
em um país em que as calçadas são mosaicos desarran-
imagens de seu cotidiano, o “profissional do motofrete”
jados da privacidade de cada imóvel a invadir o espaço
pode mostrar o que vê da maneira como sente, tornando-
público das ruas. A falta de normatização é a carência
se visível além da mera estatística. O indivíduo sob o
de um projeto unitário. Isso incentiva a criação de mais
capacete de “motociclista” pode mostrar quem é, o que
leis, para tentar normatizar o caótico, o que provoca a
vê e o que quer nas imagens que produz. Para além do
ingerência nas coisas mais básicas. Chega-se, então,
herdeiro do antigo office-boy, o novo personagem coti-
às normas que impõem roupas padronizadas, com fitas
diano que ronda o trânsito em sua moto pode, finalmente,
luminescentes, para que o motoboy seja visto. Acessório
começar a produzir sua própria caricatura.
indispensável por ser mundialmente aceito como efi-
caz, ele esbarra na questão de que a invisibilidade do
Augusto Stiel Neto
motoboy não é um problema de regras de trânsito, mas
38 Coletivo canal*MOTOBOY No espelho retrovisor 39
Cap.03
Cultura Motoboy

Cap.03
Cultura Motoboy
Cultura Motoboy 43

A realização desse evento é tão surpreendente quanto opor-


tuna. Fomos habituados a ver os motoboys apenas como um
bando de malucos que desafiam as leis da física e os limites
do próprio corpo nos estreitos corredores das avenidas da
metrópole. E a maioria da população, sobretudo os moto-
ristas, nutre uma antipatia em relação a esses mensageiros
de moto. Para muitos, é difícil ver o ser humano por trás do
capacete. Por outro lado, é um fenômeno tão recente que os
estereótipos são compreensíveis em função da falta de infor-
mação e reflexão sobre o perfil desse tipo de profissional. É
chegada a hora de darmos atenção a o que eles pensam e
desejam. Eles, que arriscam a vida diariamente para atender
Em um excelente artigo publicado no site Caderno Brasil do à pressa que temos para entregar documentos, comer pizza,
Le Monde Diplomatique, em 2008, intitulado “A Revolução tomar remédios, entregar flores, receber o jornal — ou seja,
Cultural dos Motoboys”, o historiador e ativista social socorrer-nos na maluquice que virou a vida nos centros urba-
Eleilson Leite revelou uma surpreendente visão do uni- nos, em especial São Paulo.
verso dos motoboys paulistanos que participavam da 1ª O aumento exponencial dos motoboys causa perplexidade.
Semana de Cultura Motoboy, realizada em maio daquele Nos últimos dez anos, saltaram de cerca de 50 mil para um
ano no Centro Cultural Popular da Consolação. Sempre número estimado de 300 mil, só em Sampa. Embora não haja
tendo em mente o contexto em que surge a figura do estatísticas seguras, estimativas apontam um número que
motoboy, segue este material em versão impressa: pode chegar a 500 mil em toda a região metropolitana. Quanto
mais inviável o trânsito, maior a demanda pelo tipo de serviço
A revolução cultural dos motoboys que esse profissional realiza. É uma categoria que surge em
Um evento em São Paulo, um site inusitado e dois filmes função do caos provocado pelos congestionamentos. No ritmo
ajudam a revelar a vida e a cultura destes personagens de em que a indústria automobilística vem produzindo, a pers-
nossas metrópoles. Sempre oprimidos, por vezes violentos, pectiva é de que tenhamos mais e mais motoboys pela cidade.
eles vivem quase todos na periferia, são a própria metáfora do Sem que percebamos, estamos cada vez mais reféns desses
caos urbano e estão construindo uma cultura peculiar. mensageiros. Há quem diga que uma greve de motoboys cau-
saria mais prejuízo a São Paulo do que uma greve de ônibus.
“Termina neste sábado, 17 de maio, a 1ª Semana de Cultura
Motoboy. O evento começou na última segunda-feira, no CCPC Vivendo nos corredores das grandes cidades, os motoboys
— Centro Cultural Popular da Consolação — e a programação são a tradução explícita da alegoria de Brecht: um rio cuja
conta com muita música, intervenções, mostra de filmes e violência das águas é produto da opressão das margens que
oficinas, entre outras atrações. Durante a semana, as ativi- o comprimem.
dades rolaram sempre à noite. No sábado, tudo começará à
Mas existe uma cultura motoboy? Pensando na cultura como
tarde, com workshops e show de encerramento a partir das
a construção simbólica de uma coletividade, cuja expressão
20h, varando a noite.
revela sua identidade, comecei a refletir sobre essa questão.
E é intrigante analisar o que é afirmação de identidade para

42
44 Coletivo canal*MOTOBOY Cultura Motoboy 45
46 Coletivo canal*MOTOBOY Cultura Motoboy 47

este grupo. Conversando com alguns deles, sobretudo os mais A cultura motoboy é um produto do contexto social em que
antigos, percebi que há uma rejeição ao próprio nome. A defi- vive esse profissional. Sendo esse contexto caótico, urgente
nição motoboy popularizou-se em virtude do caso do Maníaco e tenso por natureza, não há como essa cultura não expres-
do Parque, um bandido que, em meados da década de 1990, sar a paisagem urbana que lhe serve de cenário. O motoboy
passando-se por um fotógrafo de agência de modelos, atraía e a motogirl são a própria metáfora do caos urbano. São, ao
jovens garotas para a densa mata do Parque do Estado, onde mesmo tempo, heróis e bandidos em uma cena onde o prota-
estuprava e matava suas vítimas. Esse caso causou uma gonista não é o ser humano, mas o veículo motorizado —carro,
indignação maior do que essa a que assistimos hoje no caso moto, ônibus ou caminhão. São a expressão de um dos lados
Isabella Nardone. O nome motoboy, portanto, surgiu estigma- da luta fratricida pelo espaço público. Cada metro quadrado
tizado. E para piorar a situação, nos últimos anos estatísticas de asfalto é defendido por motoqueiros e motoristas como se
policiais revelaram um grande aumento do número de assal- dele dependesse sua vida, seu destino. Vivendo nessas arté-
tos praticados por ladrões com uso de motos.. rias que são os corredores das grandes avenidas, os motoboys
acabam sendo a tradução explícita da alegoria de Brecht: um
Não é fácil a vida de motoboy e motogirl. Ralam em condições
rio cuja violência das águas é produto da opressão das mar-
de trabalho para lá de precárias, insalubres e periculosas, para
gens que o comprimem.
obter uma remuneração que vai de R$ 250,00 a, no máximo,
R$ 1.200,00 (casos raros). Ainda têm que aguentar o precon- Roupa, moto adesivada, solidariedade entre si e procedência
ceito. Os caras e minas têm uma jornada de trabalho que pode periférica são elementos da cultura motoboy. Mas há algo
chegar a 16 horas, em três serviços diferentes. Alguns deles menos evidente: a semântica. Eles e elas construíram uma lin-
começam às quatro da madrugada, entregando jornal até as guagem própria. Contracenado nesse caos, o motoboy é parte
sete da manhã. Depois, vem o expediente básico na agência de dessa confusão, e sua afirmação enquanto grupo é carregada
motoboys ou numa firma qualquer, até seis da tarde. Cruzam a de contradições. Quem ele é fora do front? Ele leva para sua
cidade e na periferia, onde a maioria mora, ainda complemen- casa e sua comunidade toda essa adrenalina do dia a dia do
tam a renda entregando pizza, ali mesmo pelo pedaço. trampo? O filme de Caito Ortiz é muito feliz ao desconstruir
estereótipos. Há uma motogirl de 44 anos que pede para que
Esse trampo noturno é dos mais ingratos. Normalmente,
o destino lhe reserve um acidente fatal. Assim, ela se livraria
ganham uma diária de R$ 15,00 e mais R$ 1,00 por pizza entre-
da dor que foi a perda do filho morto aos 18, a separação do
gue. Ou seja, se fizer 15 entregas em uma noite, receberá R$
marido e o afastamento da filha que resolveu casar e sumir.
30,00. Essa realidade e muitos outros dramas (e delícias, tam-
Ronaldo, outro personagem real do filme, contradiz a percep-
bém) da vida desses profissionais estão no brilhante docu-
ção que temos do motoboy. Empregado com carteira assinada
mentário Motoboys Vida Loca, de Caito Ortiz, uma produção de
e salário de R$ 1.200,00, ele tem 34 anos e não tem pressa. Faz
2003, que foi premiada na Mostra Internacional de Cinema de
o trampo na boa e no final do dia chega em sua quebrada e é
São Paulo naquele ano. O belo filme 12 Trabalhos, do cineasta
recebido em casa pela mulher e o casal de filhos. Já o Gavião,
Ricardo Elias (De Passagem), ajuda também a entender o cora-
garoto de 20 e poucos anos, é “cachorro loco” – denominação
ção que bate em baixo da jaqueta do motoboy. O filme conta a
usada na periferia para aquele motoqueiro arrojado, ousado e
história do jovem Heracles que, saído da antiga Febem, tenta
que atrai a atenção das minas com suas loucuras ensaiadas.
recomeçar sua vida trabalhando com moto-frete. Embora fic-
Ele adora ser motoboy porque gosta da adrenalina do trân-
cional, a produção, de 2006, revela o perfil de um motoboy com
sito. Parece um “sem destino”, um sujeito que não responde
enorme sensibilidade.
a ninguém que não seja ele próprio, ostentando a máxima
48 Coletivo canal*MOTOBOY Cultura Motoboy 49

segundo a qual, se morrer em cima da moto, “morre feliz”. Que


nada. Mora com a mãe, que lhe prepara o café da manhã com
carinho, reclama da roupa suja e das unhas malcuidadas do
filhinho e todos os dias reza para que ele possa “arrumar um
emprego decente”.

A diversidade revelada pelo documentário Vida loca nos


coloca a indagação. Teriam os motoboys, enquanto categoria,
um sentimento de pertencimento que desse um conteúdo
cultural a sua afirmação? Fiz essa pergunta a Eliezer Muniz,
o Neka, um dos fundadores do canal*Motoboy, coletivo que
organiza a Semana de Cultura Motoboy. Segundo ele, há vários
elementos comuns que criam uma identidade. A roupa, a moto
adesivada, a solidariedade entre eles, a procedência perifé-
rica e a classe social são alguns desses elementos. Mas Neka
destaca outro aspecto muito interessante e talvez menos evi-
dente: a semântica. O motoboy e a motogirl construíram uma
linguagem própria.

Expresso quase totalmente pela oralidade, esse vocabulário


agora pode ser lido pelas narrativas dos motoqueiros que
integram o canal*Motoboy na página (www.zexe.net/sao-
paulo) que mantém na internet . São dez motoqueiros que
se juntaram por iniciativa do artista plástico catalão Antoni
Abad no projeto artístico Motoboys Transmitem de Celula-
res, realizado durante três meses, no primeiro semestre de
2007, no Centro Cultural São Paulo (CCSP). Cada um deles
recebeu um celular de alto padrão tecnológico com conexão
à internet. Enviaram fotos e textos para o site, revelando sua
percepção sobre a vida na cidade. Antoni desenvolveu expe-
riências semelhantes com prostitutas em Madri, imigrantes
nicaraguenses na Costa Rica e taxistas na Cidade do México.
Está tudo lá, no mesmo site.

Lendo as narrativas, no site, nos surpreendemos com relatos


do drama vivido pelos motoboys, mas também nos divertimos
com a comunicação entre eles. São repórteres privilegiados.
A realização desse trabalho teve o apoio do Centro Cultural
da Espanha. Durante e após o término da exposição no CCSP,
o grupo atraiu diversos parceiros, entre eles a Cidade do
50 Coletivo canal*MOTOBOY Cultura Motoboy 51

Conhecimento, da USP, o Instituto Socioambiental (ISA) e a


Ação Educativa. Vale a pena navegar pelo site. Lendo as narra-
tivas, nos surpreendemos com relatos do drama vivido pelos
motoboys, mas também nos divertimos com a comunicação
entre eles. Percebemos uma preocupação com a cidade e nos
chocamos com os acidentes que às vezes são noticiados. O
motoboy é um repórter privilegiado. E essa produção rápida
de notícia, feita por quem sabe bem o que é urgência, tendo
um veículo midiático ao alcance, certamente está produzindo
um indicador muito interessante e revelador do que pode ser
a cultura motoboy.

A Semana de Cultura Motoboy e o canal*Motoboy estão dando


uma contribuição enorme ao entendimento acerca da vida
dessa gente tão batalhadora quanto estigmatizada. A capa-
cidade de articulação do grupo tem produzido parcerias muito
interessantes. A aproximação com o ISA vem possibilitando
o engajamento do motoboy em questões ambientais urba-
nas das mais relevantes. Você sabia que um motoboy utiliza,
em média, 3 litros de óleo por mês e que esse resíduo vai, na
maioria dos casos, para o esgoto? Segundo o ISA, cada litro de
óleo contamina 1 milhão de litros de água. Você pode imaginar
900 mil litros de óleo contaminando a água? Por outro lado,
o contato com a Ação Educativa está pautando a questão do
letramento entre os motoboys e suas dificuldades de leitura
e escrita. A Cidade do Conhecimento está proporcionando
capacitações em mídia digital. Ou seja, há um movimento em
torno de um pequeno grupo de motoboys que pode produzir
uma grande revolução na categoria.

Muitas outras iniciativas estão rolando e ainda dá tempo de


entrar em contato com o canal*Motoboy e participar de seu
evento. Apareça nesse sábado no CCPC e você mudará seu
conceito em relação ao motoboy.

Eleilson Leite, “Caderno Brasil” de Le Monde Diplomatique em


17/05/2008.
52 Coletivo canal*MOTOBOY Cultura Motoboy 53

Para este reconhecido programador cultural e coorde- Entre estas conversas e discussões surgiu a ideia de rea-
nador do Espaço de Cultura e Mobilização Social da lizarmos um evento exclusivamente voltado à cultura
ONG Ação Educativa, a partir de agora não é mais pos- motoboy. Encabecei o projeto imediatamente, colocando
sível olharmos para os motoboys de uma forma limitada, o canal*MOTOBOY à disposição, como o realizador do
mesmo que possamos considerá-los entre mais uma evento, e passamos a chamar aquele evento que organi-
tribo urbana, sua presença e seus modos de sentir estão zaríamos de Semana de Cultura Motoboy.
atravessados por uma trama de significados que nos leva
Como já tínhamos em mente organizar uma festa para
a nos perguntar: como podem ser pensadas suas mani-
comemorar o primeiro ano do projeto canal*MOTOBOY,
festações culturais?
em maio daquele ano, e como estávamos confiantes que
Figura urbana por excelência, morador da periferia e com teríamos uma boa programação, estipulamos que cada
presença diária nos veículos de comunicação, Eleilson banda que conhecíamos na categoria dos motoboys daria
me indagou sobre o que são os motoboys. “Existe uma um show por dia – dia não – noite, porque a ideia era que
cultura motoboy?” ao realizarmos uma pequena atração durante a semana,
à noite haveria a possibilidade de que muitos motoboys
O que pensam estes caras, o que é ser motoboy?
que trabalham de dia pudessem ao menos participar em
No início de 2008, no pavilhão do Centro de Convenções um dos shows.
Imigrantes, durante um evento voltado para o segmento
Assim, nos próximos meses que se seguiram, tivemos
de motoboys e mototaxistas chamado Motoboy Festival ,
um contato direto com diversos artistas motoboys que
tivemos a oportunidade de conhecer o grupo musical CR
começaram a aparecer e que passaram a se reunir em
13 MC’s que naquele momento estava em alta com seu
torno do projeto canal*MOTOBOY. Era o início de um tra-
refrão “Ei, cachorro louco”, que vinha no CD 125 motivos
balho coletivo onde os motoboys que faziam música e
de correria, lançado por eles naquele ano.
falavam da vida sobre duas rodas podiam se reunir e
O líder e cantor do grupo, Junior 13, nos procurou. discutir sobre nossa atuação cultural junto à categoria
Conversando com os motoboys do canal*MOTOBOY, pediu dos motoboys. Conhecemos o Poeta dos Motoboys, que
para que cedêssemos uma parte do pequeno estande já estava na estrada há pelo menos uma década, com
que ganhamos naquele evento para que expusesse ali o seu rap cheio de melodias. Fomos apresentados a um
CD do grupo. dedicado grupo de rappers de Guarulhos, que também
Durante aqueles quatro dias, tivemos o prazer de com- viria a se apresentar na Semana de Cultura, liderada
partilhar com os músicos e outros motoboys que partici- pelo Carlos, ou como o chamamos, o Cal, do grupo Q.I.
pavam do evento uma fraterna parceria de ideias e trocas do Queto. E convidamos para uma apresentação o grupo
de experiências. Nosso estande transformou-se, assim, Núcleo, que tem um trabalho bem desenvolvido, com
em um caldeirão cultural, com distribuição de catálogos canções gravadas durante os útimos anos e duas faixas
do canal*MOTOBOY e adesivos, muitas fotos e vídeos pro- inéditas: “Na Contramão” e “Trânsito”.
duzidos ali e expostos no site do nosso projeto. Além, é
claro, de brindes e vendas do CD do grupo.
54 Coletivo canal*MOTOBOY Cultura Motoboy 55
56 Coletivo canal*MOTOBOY Cultura Motoboy 57

Fechamos então com estes artistas e começamos a pro-


curar apoio para a realização do nosso evento cultural.
Porém, como todos sabem, é muito difícil hoje em dia as
empresas vincularem suas marcas ao nome motoboy por
conta do preconceito.
Tinha sido assim, durante os mais de quatro anos em que
o artista plástico espanhol Antoni Abad, sem sucesso,
tentou realizar no Brasil seu projeto de arte usando celu-
lares com os motoboys. Mas com a experiência que acu-
mulei durante os anos em que me envolvi com nossa cate-
goria profissional, sabia que não seria possível encontrar
patrocinadores dentro do mercado de moto. Então, prepa-
ramos um projeto de captação de outras fontes de apoio
e começamos a levá-lo às instituições que nos apoiavam.
Só depois fomos buscar apoio junto às empresas do setor
de motocicletas.
Antes disso, para que o leitor tenha uma visão mais pró-
xima de como o canal*MOTOBOY funcionava, seria inte-
ressante deixar clara a importância que algumas parce-
rias desempenharam nessa história.
Desde que o projeto do Canal foi lançado, em maio de
2007, no Centro Cultural São Paulo, com o apoio da
Agência Espanhola de Cooperação (AECID) e do Centro
Cultural da Espanha em São Paulo (CCE-SP), tínhamos
desenvolvido uma estratégia de sustentabilidade para o
canal*MOTOBOY.
O CCE-SP, no caso, foi uma grande parceria para nós.
Estabelecemos contato com o pessoal desta instituição
logo que ela foi inaugurada, e o canal*MOTOBOY ainda
tinha pouco tempo de existência. Solicitamos apoio ao
canal*MOTOBOY em suas ações, além de suporte, uma
vez que o projeto era basicamente uma experiência que
agregava um grupo de motoboys e alguns pesquisadores,
58 Coletivo canal*MOTOBOY Cultura Motoboy 59

que desde o início do projeto vinham acompanhando o da necessidade, que surgiu esta parceria. O Astiel, meu
grupo e orientando estas ações. amigo desde nossa formatura na USP, foi uma das pes-
soas que ajudou o artista a fundar o canal*MOTOBOY e
Mas para isto era também necessário apoio financeiro,
participava de todas as reuniões do canal desde o início.
sem o qual seria impossível prosseguirmos. Desde que
Em uma destas reuniões, quando o prazo da exposição
não nos faltassem créditos nos celulares para que fizés-
no CCSP já estava quase se esgotando, e que deveríamos
semos os envios ao site www.zexe.net/SAOPAULO, pode-
cair fora, ele sugeriu que buscássemos uma parceria de
ríamos desenvolver nossos projetos e manter o site e,
alguma outra instituição para acomodar nossas reuniões
mais importante, o grupo de motoboys unidos.
com os motoqueiros aos sábados à tarde. Acredito fiel-
Assim, o projeto da Semana de Cultura Motoboy come- mente que, se não fosse o contato com o Eleilson naquele
çava a nascer. E para isto voltamos a buscar o apoio do dia, quando os motoboys e motogirls aceitaram o convite
CCE-SP, que foi fundamental para a realização do evento. dele, para fazermos nossas reuniões de pauta na sede da
No início tínhamos apenas uma ideia do que queríamos. Ação Educativa, o canal*MOTOBOY teria acabado.
A nossa esperança sempre foi que uma categoria grande
A parceria com a Ação Educativa nos possibilitou mui-
como esta tivesse muitos motoboys-artistas a revelar.
tas outras coisas além do espaço para as reuniões.
Ainda há, todos sabemos disso.
Passamos então a nos encontrar todos os sábados pela
Quando apresentamos nosso projeto, a Sra. Ana Tomé, manhã e a utilizar o centro de multimídia para a edição
diretora do CCE-SP, percebeu que estávamos indo na dos canais dos motoboys do projeto, no canal*MOTOBOY.
direção certa. Além da parceria com este centro cultu- Também passamos a receber nossas correspondências
ral, o canal*MOTOBOY tinha criado uma rede de conta- em um endereço fixo e a ter uma estrutura básica para
tos com outras instituições parceiras. E naquele primeiro trabalharmos, como telefone, internet etc. Foi ali na Ação,
ano o canal já era um grande sucesso, pela quantidade também, que gravamos inúmeras entrevistas para as
de mídia que vínhamos fazendo. Uma das parcerias mais redes de TV, revista e jornais.
sólidas, que mantemos até hoje, era com a ONG Ação
Outra grande parceria que concretizamos e com quem
Educativa. Esta ONG, muito conhecida pelo seu traba-
fizemos muitas ações foi o Instituto Socioambiental (ISA).
lho com a cultura jovem de periferia, imediatamente deu
apoio ao Coletivo canal*MOTOBOY. Esta é uma das maiores ONGs de meio ambiente do país,
e que tem um extenso projeto de preservação dos manan-
O primeiro contato com a Ação Educativa foi realizado
ciais em São Paulo. À primeira vista, até pareceria estra-
pelo antropólogo Augusto Astiel, que nos apresentou
nho termos um contato com eles, já que motoboys e meio
ao Sr. Eleilson, coordenador daquela ONG, em uma de
ambiente, aparentemente, não têm nada a ver. No entanto,
nossas reuniões do canal*MOTOBOY, ainda quando o
não é esta a realidade, principalmente para nós do projeto
canal era apenas uma exposição de arte contemporâ-
canal*MOTOBOY. Esta parceria aconteceu e cresceu jus-
nea no Centro Cultural São Paulo. A Ação Educativa caiu
tamente por conta da preocupação dos motoboys com a
do céu. Digo isto por que foi em boa hora, e por força
poluição causada pela moto. Esta preocupação apareceu
60 Coletivo canal*MOTOBOY Cultura Motoboy 61

em uma das inúmeras e incansáveis reuniões semanais web, das redes de relacionamento e das comunidades,
que realizamos desde que constituímos o projeto. os projetos organizados pelo artista Antoni Abad, em
geral, são todos presenciais. Isto implica que, ao se dis-
Nesse cenário, a Semana de Cultura estava basicamente
por a participar desses encontros, as pessoas realmente
certa. Ou seja, tínhamos muito conteúdo. Mas faltava
se envolvem nos projetos, já que eles são criados para
ainda um local.
que elas possam, frente a frente, discutir as questões
Assim, quando sentamos com a diretora do CCE-SP para que mais afetam sua vida comunitária. No caso, as com-
apresentar nossa proposta de parceria e apoio para a plicadas relações dos profissionais motociclistas com a
1ª Semana de Cultura Motoboy, já tínhamos fechado cidade de São Paulo.
com um espaço que era a nossa cara. O espaço era o
Foi assim, por exemplo, quando o artista esteve no Brasil
Centro Cultural Popular da Consolação (CCPC), na Rua da
para organizar o projeto canal*MOTOBOY e apresentou
Consolação 1.901, quase em frente ao cemitério.
a mostra “MOTOBOYS TRANSMITEM DE CELULARES”,
O lugar, como o nome já diz, tem uma pegada com proje- no Centro Cultural São Paulo, em maio de 2007, e fui con-
tos culturais populares, além de ser um centro de treina- tratado para ser o curador-adjunto da exposição. Lembro
mento para que jovens da periferia se especializem em que, logo nas primeiras discussões sobre este projeto,
iluminação teatral. Em um projeto subsidiado pela pre- eu propus que deveríamos aproveitar a oportunidade da
feitura no piso superior, há um dos principais cursinhos exposição e, já que o momento também era de come-
pré-vestibulares populares, voltado para alunos sem morações dos 25 anos do CCSP, organizarmos paralela-
condições de pagar as altas taxas cobradas pelos cursi- mente à exposição um ciclo de debates e filmes sobre
nhos privados. a temática motoboy. O que, no entanto, dependeria de
Assim, quando fechamos com o Tiago e o Bahia, indi- enormes esforços por parte do pessoal do CCSP para bus-
cados pelo pessoal da Ação Educativa, sabíamos que car todos os filmes que foram realizados sobre motoboys
aquele espaço tinha todas as condições para abrigar o e ainda convidar diversas personalidades públicas para
primeiro evento cultural da nossa categoria profissional. comparecer aos debates, uma vez que eles não tinham
apenas a nossa exposição, mas precisavam cuidar de
Era pôr as mãos à obra. E o Centro Cultural da Espanha toda a comemoração que aconteceria junto à nossa aber-
em São Paulo topou apoiar nossa Semana de Cultura. tura, com dezenas de artistas e eventos simultâneos por
Assim, recebemos um adiantamento de R$ 6 mil para a todo o CCSP. É preciso lembrar também que a Prefeitura
curadoria e as despesas do canal*MOTOBOY pelos próxi- havia liberado uma verba para para as estas comemo-
mos cinco meses. Ainda receberíamos outros recursos a rações, o que possibilitou ao CCSP trazer o artista ao
partir de mais parcerias de peso no projeto. Brasil e montar o canal*MOTOBOY. Ao dar este suporte,
Como já dissemos, a base do canal*MOTOBOY, apesar de e somados os esforços da equipe do CCSP, meu trabalho
ser um projeto de rede social na internet, é a presença de curadoria foi buscaros diretores que haviam filmado
das pessoas nestas reuniões semanais. Ao contrário da com os motoboys e ainda montar as mesas para o Ciclo
62 Coletivo canal*MOTOBOY Cultura Motoboy 63

de debates e filmes – os profissionais motociclistas e a


cidade de São Paulo.
Meu argumento naquele momento era de que precisá-
vamos resgatar o debate público em torno das condi-
ções de vida dos motoboys, uma vez que havia um hiato
criado a partir das sucessivas tentativas de regulamen-
tação, pelo poder público, justamente a favor da criação
de uma política pública voltada à categoria, mostrando
aos cidadãos que nossa categoria mantinha uma rela-
ção quase umbilical com a cidade.
Após a abertura da exposição, ficou claro durante as reu-
niões que os motoboys tinham uma poderosa ferramenta
de comunicação em mãos. E que deveriam se apropriar
dela, como forma de suscitar uma mudança na opinião
pública acerca da categoria.
Voltando à importância das parcerias na realização da
Semana de Cultura, lembro que o formato do projeto –
com reuniões abertas – possibilitou que tivéssemos con-
tato com diversos atores sociais. Por exemplo, o profes-
sor Gilson Schwartz, diretor da Cidade do Conhecimento,
da USP, que naquele momento iniciava uma série de pes-
quisas sobre o uso de celulares em comunidades.
No início do projeto canal*MOTOBOY convidamos o pro-
fessor a participar de uma das mesas de debate, em que
estariam presentes o diretor de cinema Caito Ortiz, o crí-
tico e teórico de arte Alberto Lopez Cuenca - que veio do
México/DC -, o professor de artes e comunicação Martin
Grossmamm. Desde então, Gilson se propôs a fazer
com que nossas contribuições, em termos de experiên-
cias com nossos celulares, se transformassem em pes-
quisa para a academia. De fato, criou em nós uma grande
expectativa. E passamos a colaborar com as iniciativas
64 Coletivo canal*MOTOBOY Cultura Motoboy 65
66 Coletivo canal*MOTOBOY Cultura Motoboy 67

da Cidade do Conhecimento, uma vez que acreditávamos especializadas na venda de produtos para motoboys.
que os benefícios que poderiam resultar das pesquisas Íamos não só atrás do patrocínio deles, mas de apoio e
seriam direcionados a uma mudança radical - que ainda parcerias, buscando levar uma nova proposta de trabalho
não se concretizou, apesar de nossa intensa colaboração e procurando mostrar ao empresariado uma nova visão
- da forma de organização do trabalho dos profissionais dos profissionais motociclistas. Afinal, tudo aquilo que
motociclistas. estávamos desenvolvendo dentro do canal*MOTOBOY não
tinha parâmetro em lugar algum, nem em associações ou
Desse modo, nos meses que se seguiram entre a expo-
sindicatos de motoboys: era totalmente inusitado e per-
sição “Motoboys transmitem de celulares” e a idealiza-
mitia mostrar uma nova face destes cidadãos. E como
ção da Semana de Cultura Motoboy, contribuímos con-
ainda temos esperança de um dia ver o que estava sendo
tinuamente para as pesquisas da USP. Um exemplo disso
pensado por nossos pesquisadores dentro das universi-
ocorreu alguns meses após aquele primeiro debate: a
dades, buscando uma compreensão das dinâmicas dos
Cidade do Conhecimento havia recebido uma proposta
motoboys a partir de um novo modelo de negócio, então,
da Fundação Telefônica da Espanha para participar de
para nós, era hora de demarcar um território. Para essa
uma pesquisa de campo na America Latina, juntamente
finalidade, a Semana de Cultura seria um palco. Dessa
com outras instituições, mas aqui, no Brasil, seria a USP
forma, recebemos muitos brindes de diversas empresas
a responsável pela realização da pesquisa. Graças ao
do ramo de autopeças motociclísticas, e os distribuímos
Coletivo canal*MOTOBOY, que promoveu um debate sobre
aos motoboys e motogirls que foram apreciar o evento. Da
a importância do celular na comunidade dos motoboys
Alba Industrial, de Campinas, recebemos capas de chu-
como uma ferramenta imprescindível para o desenvolvi-
vas. Da Pneus Levorin, em Guarulhos, dezenas de pneus.
mento do trabalho, a comunidade escolhida entre tantas
A Filtros MANN, da cidade de Indaiatuba, nos enviou
para ser pesquisada seria a dos motoboys paulistanos.
diversos kits com brindes. E o mais legal foi a distribui-
Podíamos estar comemorando. Tínhamos bons motivos. ção nas ruas, nas semanas que antecederam o evento, os
Após um ano de trabalho duro, um grupo de motoboys 20 mil folhetos que recebemos como apoio e incentivo da
cruzara diversas fronteiras. Fomos acolhidos por duas empresa AM3 – Feiras e Eventos, organizadora do Moto
das maiores ONGs do Brasil, uma voltada à educação e Festival. Este apoio da AM3, em especial, veio de uma
outra ao meio ambiente. Tínhamos apoios que vinham dos parceria do canal*MOTOBOY com esta empresa, para que
centros culturais e ainda estávamos caminhando com a
mais importante universidade pública do país, que agora,
por meio da pesquisa que ela estava realizando para a
Fundação Telefônica, apoiaria a Semana de Cultura, e foi
assim que conseguimos que eles se responsabilizassem
pelo pagamento da locação do espaço do evento.
Nossa agenda era extremamente corrida. Mas ainda
tivemos tempo de fazer alguns contatos com empresas
68 Coletivo canal*MOTOBOY 69

a Semana de Cultura Motoboy entrasse definitivamente


no calendário oficial do setor das duas rodas.
Assim, entre os dia 12 e 17 de maio de 2008, realiza-
mos a 1ª Semana de Cultura Motoboy, com a seguinte
programação:
12/05 Festa de Abertura/Exposição
Fotográfica1/DJ San

13/05 Apresentação de Q.I. do Gueto e


Poeta dos Motoboys
(transferido p/ sábado)

14/05 Sessões de curta-metragens:


Meu nome é Ronaldo, de Antoni Abad
e Glória Marti
FLUXUS Kynemas, de Pedro Paulo Rocha
15/05 Apresentação NUCLEO - com os rappers
Zaro e Rogério

16/05 Apresentação CR 13 MC’s

17/05 Oficinas: Teatro – Cia Kiwii;


Grafitti – IZU 100% Favela;
Meio ambiente com Cezinha do ISA
– Instituto Socioambiental

Eliezer Muniz dos Santos

1 O painel fotográfico apresentado foi uma doação do Estúdio Madalena e teve


a curadoria do fotógrafo Iatã Cannabrava.
Cap.01
Meu nome é Ronaldo.

Cap.01
Meu nome é Ronaldo.
Meu nome é Ronaldo 73

vermelho-cereja, estava parada há muito tempo e não


funcionava. Fiquei todo empolgado com a ideia de
ter minha primeira moto. Nesta mesma noite quase
nem dormi pensando nela. Na manha seguinte, fui ao
banco e retirei o dinheiro combinado. Na época, eram
setecentos contos. Quando finalmente tive a moto na
mão, eu nem acreditava. Neste mesmo dia, subi lá nas
bocas2 para comprar algumas peças e outras coisinhas
que ainda faltavam para fazê-la funcionar. Voltando à
casa do Marké, no dia seguinte, começamos a desmon-
tagem. Tiramos desde o banco até o tanque de gaso-
lina. Foi uma lavagem completa! Ao final da tarde, está-
Meu nome é Ronaldo, tenho 36 anos e trabalho de moto vamos desanimados por por não termos consertado a
nas ruas de São Paulo todos os dias desde 1992. Tinha moto depois de um dia inteiro de esforço. Um grande
apenas 17 anos quando comecei, e como qualquer mole- amigo chamado Marivaldo, que estava passando em
que nesta idade, também era apaixonado por motocicle- frente a casa do Marké, perguntou:
tas. Naquela época, não existia esta facilidade de hoje
— Vocês já viram o platinado?
para adquirir uma motocicleta, e para quem nunca teve
nem uma bicicleta, ter uma moto era um grande sonho a Um olhou para a cara do outro, e como nos dias de hoje,
ser realizado. Nunca desisti de sonhar. ninguém ali sabia o que era isto. Naquela época, a maio-
ria das motos era a platinado, uma peça que foi pos-
Aos 12 anos perdi meu pai. Foi um grande baque para
teriormente substituída pela ignição. Graças a Deus,
mim, e passei a contar apenas com minha mãe, que
pois, se chovesse e o platinado ficasse molhado, a moto
sempre me ajudou em tudo. Então, fui trabalhar em um
morria e não funcionava. Empurramos minha moto
bar próximo à minha casa, onde separava os vasilhames
várias vezes para fazê-la pegar — sem sucesso. Então,
para entregar às distribuidoras. Aos 14 anos comecei
o Marivaldo, que tinha uma manha que faltava a todos
a trabalhar de office-boy. Nesse momento, aconteceu
nós, pediu licença e fez a moto funcionar. Marivaldo
meu primeiro contato com a cidade de São Paulo. Aos 17,
era daqueles motoqueiros cachorro louco, mas não era
com o dinheiro da rescisão da empresa onde trabalhei de
bobo. Depois de uns minutos de conversa com ela, a moto
boy, comprei minha primeira motocicleta.
cantou o hino! Uma alegria para todos, principalmente
Lembro como se fosse hoje. Eu estava deitado no sofá em para mim. Vrummmmmmmmm... Vrummmmmmmmm.
minha casa quando Marké, um de meus melhores ami-
Todo mundo queria dar uma volta na moto. Quando che-
gos de infância, chegou gritando: “Meu, achei uma moti-
gou minha vez — o dono da moto — eu não quis ir, pois
nha pra você comprar.” Era uma Yamaha RX 125 c. Ele me
dizia, todo eufórico: “Vamos lá Ronaldo, dá uma olhada
2 Região central da cidade onde estão localizadas lojas de motopeças.
na moto.” Quando chegamos lá, era uma motocicleta

72
74 Coletivo canal*MOTOBOY Meu nome é Ronaldo 75

ainda não tinha as manhas de andar... Eu dizia, dando


de ombros: “Depois eu ando.” No final da tarde, fui pra
casa tomar um banho e, lá pelas oito horas, passei de
novo na casa do Marké. Só então a gente saiu para dar
meu primeiro rolé com a moto. O Marké tinha um irmão
muito loko que já tinha motocicleta. Ele empinava e bar-
barizava com a motoca, e como ele tinha alguma base da
tocada, saímos à noite pra dar uma volta. Para mim, era
um sonho se concretizando. Na garupa, ele me explicava
as marchas certas, o que e quando eu devia trocar, e,
logo depois, eu já estava pilotando sozinho... Mas ainda
era daquele jeito, porque eu ainda não tinha confiança. Se
parasse em um semáforo, e a moto morresse, tinha medo
de ficar na mão. Não sabia ainda respeitar as leis de trân-
sito. E o pior, não tinha habilitação.
Naquele tempo, não era obrigatório o uso de capacete
nem de espelho. Era uma sensação de liberdade que eu
queria experimentar, mas tive grandes problemas com a
polícia. Na primeira vez em que os policiais do meu bairro
me pararam sem dó, levaram minha motinha paro o pátio
da Marques de São Vicente. Depois ele ainda me per-
guntou: “Por que você num fugiu com esta merda?” Daí
pra frente foi só balão, não parava mais nas blitze, arris-
cando minha vida e a de outras pessoas. Estava naquela
idade em que pensamos que somos os melhores. E até
hoje é assim na periferia, onde a rapaziada quando junta
uma grana e compra sua primeira moto.
Para recuperar a moto, comecei a trabalhar em uma ofi-
cina de motocicletas, onde tive a oportunidade de apren-
der algumas coisas básicas sobre mecânica de motos.
No mundo das duas rodas, existem vários problemas que
podem ser evitados na motocicleta, como tomar cuidado
com o óleo, a relação e os freios. O óleo é como o sangue
da moto: sem o devido cuidado, as peças se desgastam
mais rápido. Para quem não sabia nada sobre esse tipo
76 Coletivo canal*MOTOBOY Meu nome é Ronaldo 77

de coisa, tive a oportunidade de aprender muito, desde para o hospital Osvaldo Cruz, cuja diária era caríssima.
esticar a corrente atá abrir o próprio motor. O irmão do Marké teve que trabalhar alguns dias para
pagar a conta. Mesmo assim, ele não tinha condições
Um dos anos mais felizes da minha vida seria 1990.
de permanecer neste hospital, então, foi transferido
Porém, quase no fim, acabou sendo um dos mais tristes,
mais uma vez para outro hospital público, onde veio
pois perdi Marké, mais que um grande amigo, um irmão.
falecer. Meu melhor amigo partira. Fiquei sem chão.
Sofremos um acidente pelo qual ele veio a falecer.
Desde os tempos em que andávamos de bicicleta, que
Na manhã desse dia fatídico, chamei Marké pra ir comigo ele mesmo me emprestava para andar, eu nunca tinha
à 24 de maio para comprar uns discos. Era o aniversá- apertado um parafuso, pois ele sempre dava uma mão.
rio de 15 anos da minha sobrinha, Luciane, e estáva- Mas a vida é assim: nós a amamos e aos amigos, mas a
mos muito felizes. Por volta de uma dez da noite, o pai morte nos namora!
de uma amiga de minha sobrinha, que estava na festa,
E até hoje tenho um laço enorme com sua família, todos
veio procurá-la. Disseram a ele que ela estava em uma
me tratam como se fizesse parte dela. Para toda coisa
casa noturna. O velho ficou indignado e falou que ia
ruim, Deus sempre reserva uma coisa boa pra gente.
buscá-la pelos cabelos. Como todo moleque, a gente
Nesta mesma época, conheci aquela que seria minha
quis ver o circo pegar fogo. O Marké ficou insistindo pra
esposa, Patrícia, a melhor amiga da Mônica, namorada
gente ir lá ver, e eu dizendo que era melhor não irmos.
do Marké. Sofremos muito nos primeiros anos com a
Como a gente era muito colado e ele insistiu muito, aca-
morte do meu melhor amigo, mas a vida continua.
bamos indo. Naquela noite, a gente estava com a moto
do Jean, outro grande amigo. Pegamos a moto a parti- Patrícia foi uma peça fundamental em minha vida.
mos. Uma esquina antes da casa do Marké, onde vira- Começamos a namorar de verdade. Estou com ela há 18
ria à direita, ele me falou: “Passa na minha casa que vou anos e temos duas filhas maravilhosas, a Fefe e a Júlia,
pegar uma blusa.” No mesmo instante, quando voltei a que me fazem feliz. Ela também era motoqueira e por
acelerar a moto, recebi um impacto lateral na motoci- alguns anos teve uma Yamaha TT 125 cc, que ela usava
cleta. Fomos arremessados para longe. Tive mais sorte- para ir ao trabalho e ir à escola. Com o passar dos anos ela,
por estar usando capacete e jaqueta. Além disso, caí no tirou sua carteira de motorista e compramos o primeiro
meio da rua e fui deslizando. O Marké, no entanto, coli- carro. Foi uma alegria. Hoje ela trabalha em uma indústria
diu com um poste. O carro, um Fusca vermelho, descia a de tecidos ocupando o cargo de gerente de estoque.
rua após sair de uma festa na casa de outro conhecido
Aos 18 anos, comecei a trabalhar na oficina de motos de
do bairro. No momento da correria, ninguém se tocou,
um grande amigo, o Renatão, e lá aprendi o básico. Trocar
mas o motorista, por estar alcoolizado, teria passado o
o óleo, verificar válvula... Um pouquinho de cada coisa.
volante à mulher, e ela desceu uma rua em que obrigato-
Algum tempo depois, comecei a trabalhar como motoboy
riamente teria que parar e passar com atenção, porque
em uma empresa, mas era fácil. A cidade é muito grande.
a preferência era nossa. Na mesma hora, conseguimos
A experiência adquirida na época de office-boy, me aju-
parar um carro que o levou ao hospital do Mandaqui. O
dou bastante. Esta é a função que exerço até hoje.
quadro dele se agravou e a família resolveu transferi-lo
78 Coletivo canal*MOTOBOY Meu nome é Ronaldo 79
80 Coletivo canal*MOTOBOY Meu nome é Ronaldo 81

Fiquei nesta empresa por uns dois anos. Naquela época, que além de ser aonde alguns amigos de infância moram
eu não tinha muitas responsabilidades. Após algum é onde se concentram muitas das empresas que estes
tempo comecei a trabalhar na contabilidade, e todos os imigrantes constituíram aqui. Foi onde conheci minha
dias tinha um roteiro diferente. Foi lá que pude conhe- mulher e vi minhas filhas nascerem aqui e espero que
cer outras regiões da cidade. Como todo motoboy, eu cresçam como eu cresci.
só queria andar de moto. Mas com o passar do tempo
A vantagem de trabalhar por conta própria é que você
a gente vê que não é só isso. É preciso estar atento aos
não tem só um cliente e nunca falta serviço. Muitos des-
ladrões e à polícia.
ses clientes viraram grandes amigos e sempre passam
Fiquei na contabilidade uns oito anos. Quando os filhos serviço.
do dono começaram a administrar, ela durou um ano ape-
Quando recebo uma chamada, vejo meu roteiro para
nas. A contabilidade chamava-se Roma Contabilidade
poder atendê-las rápido. No começo era mais difícil tra-
Ltda. Novamente fiquei sem saber o que fazer, afinal,
balhar como motoboy em São Paulo, pois dependíamos
foram oito anos naquele contrato. Então resolvi fazer
de uma mensagem que viria por bip, ou se estivesse na
alguns cartões e trabalhar por conta própria. No começo
própria empresa, quando estava passando em frente.
não foi fácil. Alguns dias eu não tinha nenhum serviço.
Mas tudo se modernizou - e o motoboy também mudou.
Cheguei a pensar em parar. Mas como todo brasileiro
Ganhei meu primeiro telefone celular de uma grande
sofredor, lutar sempre, desistir jamais. Depois de alguns
amiga e patroa, que era a mãe do Tutu, outro amigo meu
dias consegui dois clientes muitos bons. Eles me davam
que faleceu em um acidente de motocicleta três meses
trabalho todos os dias. A minha sorte é morar desde que
depois de ter me convidado para trabalhar na firma que
nasci no bairro do Bom Retiro, que além de ser próximo
ele montara em sua casa. Na época, foi um choque para
ao centro de São Paulo, é onde se localizam muitas das
todos os amigos e, principalmente, sua mãe, Maristela,
empresas para as quais distribuía os cartões.
que além de mãe era uma grande amiga para ele. Mas
Graças as Deus hoje tenho alguns clientes que são gran- não desanimamos e seguimos em frente com um dos
des amigos como o pessoal da Araguaia e alguns clien- seus sonhos: demos continuidade à Speed Express
tes especiais como a Sra. Regina Silveira, a Sra. Márcia firma de motoboys , na Alameda Barão de Limeira. Lá
Veek entre outras, que me oferecem trabalho todos os éramos uma grande família. A tia fazia tudo pela gente.
dias. Tenho duas paixões: as duas rodas e o Corinthians, Até moto ela já financiou para dois motoqueiros que não
meu time do coração. Nos finais de semana, vou à qua- tinham condições de comprar as suas. Comigo não foi
dra da Gaviões da Fiel, onde encontro meus amigos e diferente: ela me deu meu primeiro celular. Antes eu era
levo minha família para passear. O bairro do Bom Retiro pequeno, agora me transformara em um gigante, aten-
é um dos mais antigos de São Paulo. Aqui vieram morar dendo toda a freguesia da região.
italianos, judeus, gregos, sírio-libaneses, coreanos,
Em 2004, tive o prazer de conhecer o Antoni Abad por
bolivianos. Além deles, temos, é claro, os nordestinos
meio de uma cliente minha, artista plástica, chamada
e os paulistanos, que sempre estiveram aqui. Por isto é
Regina Silveira. Ela me falou que em breve um amigo
um dos motivos que tenho para não mudar deste bairro
82 Coletivo canal*MOTOBOY Meu nome é Ronaldo 83

dela, também artista plástico, viria ao Brasil com o Ao final de 2006 tivemos finalmente uma boa notícia:
desejo de realizar um projeto que mostrasse a reali- Antoni ligou dizendo que algumas instituições resolve-
dade dos motoboys em São Paulo usando celulares. Na ram apoiar o projeto, o que não fora fácil, pois nenhuma
época achei que não era verdade, pois se um celular sem empresa queria vincular sua marca aos motoboys. Ou
câmera já era muito caro, um com câmera era uma for- seja, faltavam o patrocínio o projeto e os vinte celulares!
tuna. Por isso, não acreditei. Mas resolvi apostar. Em
Quando esteve no Brasil, em 2004, este grande amigo
outra ocasião, ela me ligou para fazer uma entrega e per-
ficara impressionado com o grande número de motoboys
guntei sobre o projeto. Ela me disse que seu amigo espa-
que trafegavam pela cidade e perguntara ao taxista, ao
nhol viria com uma proposta de entregar vinte celulares
passar pela Marginal vindo do aeroporto de Cumbica:
para alguns motoboys para registrarem fatos do nosso
cotidiano. Neste momento, fiquei mais empolgado ainda — Quem são este caras?
e saí falando para todos os meus amigos que tinham E o taxista respondeu:
— Esses são os donos da rua.
motos. Com o passar do tempo – é um bom tempo –
E ele falou:
meus amigos me perguntavam:
— Como assim?
— E aí Ronaldo? Quando vai começar aquele projeto...
Então o taxista disse que aqueles motociclistas que
Eu sem saber o que dizer:
— ... Em breve! passavam pelos corredores eram os motoboys.

Mas só depois de três anos e muitos contatos tive a Naquele mesmo dia, ele comentou aquele seu espanto
notícia que daria certo! Voltei a comentar com meus em relação aos motoboys com Regina Silveira, sua amiga.
camaradas e desta vez tínhamos a esperança de que Então, desde aquele momento até agora, quando íamos
o projeto seria realizado. Naquela época eram poucos começar a construir o projeto havia sido uma grande luta
aparelhos que tinham a tecnologia que têm hoje, com para conseguir trazer o projeto ao Brasil, além do que
câmeras, MP3, internet, GPS etc. Quando comentei com ainda não tínhamos os celulares para começar o projeto.
meus amigos motoqueiros sobre este projeto, ninguém Mas isto foi resolvido na última hora, pois anteriormente,
botou fé, pois ninguém dá nada a ninguém, e se tratando o Antoni Abad havia realizado um projeto com celulares
de motoboys, as coisas eram muito mais difíceis, um com a comunidade de cadeirantes em Barcelona e por
camarada até comentou: conta disso, sobraram 10 celulares daquele projeto e foi
graças a eles que nosso projeto pôde ser realizado. Já
– De novo?
era um grande começo. Para quem já estava esperando
Fiquei com cara de mentiroso.
há três anos, foi uma maravilha! Tinham aí a oportuni-
Estávamos em 2005 e toquei minha vida. Então, um dade de realizar um sonho. O melhor é que não passa-
belo dia recebi um grande presente: minha primeira ria mais por mentiroso entre meus amigos e ainda seria
filha, Fernanda, que seria uma das primeiras palavras- um dos coordenadores do projeto. No final de 2006, tive
chave (TAG) que um dia eu criaria naquele projeto. finalmente a oportunidade de conhecê-lo, e fizemos
os primeiros testes pela internet. Antoni Abad mudou
84 Coletivo canal*MOTOBOY Meu nome é Ronaldo 85

minha vida, pois passei a transmitir para uma página na


internet, que até então era um bicho-de-sete-cabeças,
meu dia a dia. Com o passar dos meses, a cada dia me
empolgava mais com aquela experiência de poder enviar
fotos, vídeos e comentários que até então eu não podia
compartilhar com ninguém.
No primeiro momento em que vi esse cara já gostei
dele. Como todos sabem, a vida do motoboy não é fácil,
e aquele dia estava cheio de trampo. Mas consegui um
tempo para passar na casa da dona Regina, onde ele
estava hospedado. Ele me parecia ser uma pessoa muito
sincera e preocupada com a realidade de pessoas que
muitas vezes não são valorizadas pela sociedade. Como
os motoboys, aqui em São Paulo, os taxistas na Cidade
do México, as prostitutas e os cadeirantes na Europa.
Por isso, este projeto com os motoqueiros era muito
importante, pois iríamos participar de algo que envol-
via comunidades no mundo todo, além de fazer parte de
uma grande família, que seria a ZEXE.NET na internet.
Nesse dia ele me perguntou se eu tinha um aparelho
celular com câmera. Eu disse que não, pois, naquela
época, ter um celular já era uma grande conquista para
os motoboys. Após três meses, minha operadora mandou
uma carta dizendo que tinha um bônus que poderia ser
revertido em um aparelho com câmera. Rapidamente,
fui saber como poderia adquiri-lo. Teria um período a
permanecer naquela operadora. Mesmo assim, adquiri
o aparelho e comecei a fazer fotos da minha família, dos
meus amigos e algumas coisas mais.
Nessa oportunidade tivemos um segundo encontro com
o Antoni, em 2006, e eu já tinha o aparelho compatível
com o projeto. No mesmo ano, fizemos alguns testes de
envio e achei legal essa possibilidade de mostrar coi-
sas que até então eu apenas via pela cidade. Ficamos
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uma tarde inteira fazendo alguns testes na casa da dona Luis, Deton, Tadeu, Edison, Alexandre e uma mina que eu
Regina Silveira. No final da tarde, eu já estava me empol- havia conhecido no dia a dia louco da cidade guardando
gando com a situação. Pois, no mesmo momento que motos no estacionamento da avenida Paulista, que tinha
tirava uma foto, a mesma já estava no computador. Uma o sonho de ser motogirl. Por sorte, quando começamos o
coisa maravilhosa! projeto, ela já era motogirl e convidei-a imediatamente.
Até esse momento eu nunca tivera contato com um com- Fiquei impressionado com a dimensão que o projeto
putador. Achei aquilo maravilhoso e sai fotografando tomou. O que era um simples projeto para mim poderia
tudo o que via pela cidade. Mas tínhamos um grande pro- alcançar tamanha repercussão nos meios de comunica-
blema: naquela época, ninguém ninguém queria patro- ção. Da noite para o dia, começamos receber convites
cinar este projeto. A razão era o nome “motoboy”, uma para TV, para o rádio e para revistas e jornais, aquilo era
profissão indispensável, mas muito discriminada. Esse muito louco. Pela primeira vez, o motoboy era visto com
foi um dos motivos pelos quais passei por mentiroso outros olhos. Poderíamos mostrar a verdadeira reali-
com os motoboys com quem eu já tinha comentado esse dade e também o nosso dia a dia.
projeto, que eu acreditava que podia ser realizado, mas
Aos sábados a gente se reunia em volta de uma grande
os caras não.
mesa redonda que ficava ao centro da biblioteca do
Quando o conheci Antoni, ele me perguntou:
CCSP. A exposição deveria durar apenas dois meses.
— O que você gostaria de ser se não fosse motoboy? Mas tivemos a ideia de continuar este projeto ao tér-
Respondi: mino. No entanto, logo na primeira semana após a inau-
— Eu gostaria de ser o Ronaldinho, mas não tive a chance de guração, liguei minha televisão pela manhã e escutei que
ser jogador de futebol. Então prefiro ser um pessoa feliz, que
havia caído um balão no CCSP. Logo imaginei: “O Centro
pode realizar seus sonhos.
Cultural é grande!” Meia hora depois de ter escutado
Assim, em 12 de maio de 2007, tivemos a oportunidade esta notícia, o artista me ligou, muito triste, dizendo que
de realizar este sonho com a inauguração da exposição o balão que tinha caído justamente em cima da nossa
do projeto canal*MOTOBOY, no Centro Cultural de São exposição! Eu nem acreditei...
Paulo, onde tive a oportunidade de conhecer pessoas
No mesmo momento, liguei para o meu amigo Luis e
maravilhosas, filósofos, antropólogos, sociólogos, artis-
comentei com ele:
tas de várias categorias e muitas outras que compare-
ceram para prestigiar o evento que mudaria definitiva- — Meu! A nossa exposição acabou!
mente minha vida. E ele me perguntou:
— Por quê?
Como coordenador do projeto, junto com o Neka, eu tinha
a missão de organizar os motoboys que convidara para E eu lhe disse que tinha caído um balão sobre o telhado
participar. Cada um recebeu um celular e uma página no e causado um incêndio que destruiu nossa exposição,
Canal. Eram 12 motoboys, alguns convidados por artis- computadores, banners, mesas e até as TVs de plasma!
tas amigos do Antoni, outros eram meus amigos, Cleyton, No mesmo momento, larguei tudo e fomos para lá.
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Chegando lá, vimos a dimensão do estrago. Eu nem também descobririam que poderiam utilizar seu pró-
acreditei... prio celular para e enviar pra qualquer meio de comu-
nicação. Nesse sentido, o inovador e muito interessante
Levamos a mão à cabeça. Depois de tantos anos, de
poderia sim dar voz à sua comunidade. Demos entrevis-
tantos sacrifícios e de tudo que passamos, parecia que
tas para todos os grandes jornais e telejornais, e até
o projeto tinha acabado ali. Mas nossa história estava
para o programa da Ana Maria Braga fomos convidados.
apenas começando.
Estávamos bastante empolgados. Todo dia encontrava
O que era para ser uma exposição de dois meses acabou algum motoboy na rua e falava:
durando quase quatro meses, pois o Centro Cultural São
— Você não é o motoboy daquele site, não foram vocês que
Paulo reservou uma grande espaço em outro local, onde apareceram na televisão (ou jornal)?
foram refeitas todas as instalações do canal*MOTOBOY.
Mas não era mais a mesma coisa. Aquele incêndio ficou Mas não era somente a vida no trânsito que a gente
marcado para sempre em nossa memória. Nosso amigo enviava para o site. Também fizemos vários TAGs (pala-
Antoni Abad tinha ido embora do Brasil logo depois vras-chave) que mandávamos com as fotos e vídeos da
aqueles fatos totalmente desolado, mas com a pro- família, amigos, lazer etc. Ou seja, motoboy também tem
messa da reinauguração, dali a umas semanas, depois família! Mas como tudo na vida, nem todos acreditaram
que tudo tivesse pronto novamente, ele ficou aliviado. no projeto, e tivemos alguns que simplesmente desisti-
Então, quando retomamos o projeto, todos já esta- ram, após algum tempo, de enviar para seus canais. Ali
vam enviando para o canal*MOTOBOY e editando seus no CCSP também tivemos a oportunidade de conhecer
canais com muito profissionalismo. muitas pessoas que visitavam o canal*MOTOBOY, pes-
quisadores, artistas e personalidades, que vinham aos
O projeto cresceu. Estas reuniões de sábados com os debates que realizávamos para discutir os problemas
motoboys emissores eram uma grande confraterniza- da categoria dos motoboys. Coisas assim estão registra-
ção em que muitas vezes aconteciam discussões sobre das no site, mostrando a preocupação dos órgãos públi-
a realidade do motoboy, o dia a dia. cos com os motociclistas, que expunham no site o des-
Eu era o encarregado de combinar os horários, ligando caso que as autoridades tinham em relação à rotina do
para cada um dos motoboys, enquanto o Neka, o outro motoboy em uma cidade tão grande como São Paulo. O
coordenador, cuidava das relações institucionais. Eu projeto canal*MOTOBOY vinha pra ficar, agora os meios
também fazia toda a logística para que pudéssemos de comunicação tinham bastante cuidado ao falar do
atender todos os jornalistas. E eram muitos, às vezes motoboy. Eles estavam acostumados com aqueles moto-
até mais de dois repórteres por dia, e terminávamos fal- boys que só falavam besteiras, se achavam os melhores
tando ao serviço para dar entrevistas. Por fim, solucio- e não respeitavam ninguém. Pela primeira vez, tínhamos
namos o problema revesando as entrevistas com cada a oportunidade de mudar esta imagem negativa com
um dos motoboys participantes, afinal, todos tinham diversos projetos relacionados à cultura motoboy e ao
que ganhar o dia! Mas melhor de tudo isso, além do reco- meio ambiente, que nasceram ali nas reuniões dos moto-
nhecimento da mídia, era saber que muitas pessoas boys e motogirls. Como todos os TAGs, o mais importante,
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naquele momento, para nós, era o TAG “FALA”, que criamos


para ouvirmos a voz do próprio motoboy. Isto representou
uma grande vitória para nós. Um ano depois, durante a 1ª
Semana de Cultura Motoboy, recebemos a notícia de que
o canal*MOTOBOY receberia o Prêmio Orilaxé 2008, como
veículo de comunicação do ano, do Grupo Afroreggae, no
Rio de Janeiro.
No final dos quatro meses em que o projeto canal*MOTOBOY
ficou no CCSP, muitas pessoas vieram nos visitar. Uma
dessas pessoas se tornaria um grande amigo e parceiro,
o Eleilson, e que nos convidaria para continuarmos a nos
reunir em uma sala cedida pela ONG Ação Educativa, de
que ele é diretor, e também onde estamos até hoje. Sempre
fui motoboy em São Paulo. No meu dia a dia, sempre tive
contato com muitas pessoas, mas não imaginava ter con-
tato com antropólogos, sociólogos e ambientalistas, que
se tornariam grandes amigos e parceiros em um projeto
que elaboramos sobre o descarte de óleo das motocicle-
tas no meio ambiente. A maior parte da população desco-
nhece que 1 litro do óleo de moto - que tem que ser tro-
cado em mil e mil quilômetros -, quando lançado no meio
ambiente, pode contaminar 1 milhão de litros de água?
Calcule-se, assim, o estrago causado por 300 mil moto-
boys! Se 20% deles fizerem de maneira errada a troca
de óleo , qual será o impacto no meio ambiente? Esta
preocupação levou a uma parceria com o Instituto
Socioambiental, que cuida dos mananciais há anos em
São Paulo.
Ohando agora para trás, apesar de todas as dificulda-
des que passamos, vejo que o projeto está vivo e já anda
com suas próprias pernas, graças ao esforço daqueles
que sempre acreditaram nele. Com o conhecimento que
acumulamos e as parcerias que realizamos, o próximo
passo é a criação de uma associação que se chamará
canal*MOTOBOY.
98 Coletivo canal*MOTOBOY Meu nome é Ronaldo 99
100 Coletivo canal*MOTOBOY Meu nome é Ronaldo 101

Hoje tenho 36 anos, tenho duas filhas e até já fui cha-


mado de motoboy repórter:
“Estou aqui na avenida Pacaembu, trânsito bom. Um
dos únicos problemas é grande quantidade de lixo,
devido à falta de fiscalização. Então, quando chove, a
gente perde tudo por causa dessas pessoas que, em
vez de pedir uma caçamba pra limpar seu estabeleci-
mento, arrumam um carroceiro e pedem que ele remova
o material. Os carroceiros têm seus filhos, mas acho
isso errado. Então, se não tiver fiscalização, a cidade
vai ficar desse jeito: um lixo.”
Palavra-chave: cidade limpa

Ronaldo Simão da Costa


Cap.02
Andréa Motogirl

Cap.02
Andréa Motogirl
Andréa Motogirl 105

Dia após dia, fui conhecendo a rotina do trabalho, o


Desafio endereço dos clientes, a fiscalização de trânsito, as ruas
desconhecidas de uma grande cidade como São Paulo.

contemporâneo, Os vários tipos de entregas, de documentos a peças de


automóveis, e seus preços variados conforme cada tipo
de serviço. Cada motoboy na empresa recebe uma folha
aventura e de controle de entregas em que são anotadas todas as
saídas e cada entrega feita durante o dia de trabalho.
novidades! Na época, os motoboys recebiam vale-gasolina e tam-
bém convênio com uma loja de peças para manuten-
ção das motocicletas, que era descontado no dia de
pagamento, importante para os motoboys poderem
Maio de 2006. Minha situação financeira estava péssima, continuar a trabalhar. O café da manhã era fornecido
então resolvi procurar um trabalho. Minha mãe viu um pela empresa e todos os motoboys tomavam café jun-
anúncio de emprego de motoboy. Criei coragem e fui pro- tos. Todo dia eu fazia o café, e cada dia um ia buscar o
curar agências. Fui primeiro a uma agência de motoboys pão e complementos como mortadela e suco, que a
na rua Guiará. O rapaz me deu uma ficha para preencher e gente comprava fazendo vaquinha. Era uma festa! Na
pediu que eu esperasse, se precisasse ele ligaria. nossa sala de espera tinha forno de microondas, mesa,
Depois fui até outra agência, preenchi mais uma ficha e cadeira e televisão. Durante essas esperas, a conversa
fui contratada na hora. rolava solta e todos contavam vantagem. Foi nesses
papos que descobri o mundo dos homens e a Casa Azul,
“Esteja aqui pra começar amanhã às oito horas”, disse local de prostituição que havia perto da agência, que
o Sr. Antônio, dono da agência. Fiquei muito contente, era assunto constante entre os motoboys. No decorrer
quase sem acreditar que isso seria possível. Estava deste ano, alguns motoboys saíram da empresa, foram
finalmente empregada, poderia resolver meu problema tentar outras sortes. Alguns se acidentaram e quebra-
financeiro e conhecer melhor a cidade onde moro. Então, ram os ossos, outros foram roubados e ficaram sem
no outro dia eu estava lá, no horário marcado. Começara suas motos, outros ainda trocaram de moto. Outro disse
então minha vida de esporádica, devagar aprendi as que lhe roubaram o dinheiro do cliente. Graças a Deus,
regras do jogo. A rotina profissional de um esporádico não presenciei nenhuma morte dentro de nosso grupo,
funciona assim: o pedido do motofrete é feita por tele- mas presenciei meu próprio acidente. A caminho de
fone, há uma fila de motoboys esporádicos formada por uma entrega, ao fazer uma curva, a moto derrapou por-
ordem de chegada – sai primeiro para buscar a entrega que havia óleo na pista e caí rodopiando no chão. Ralei
quem chega primeiro na fila. Após o término de cada os joelhos e o braço. Que susto! Tudo porque eu queria
entrega, o esporádico volta e entra na fila de novo. aumentar meu salário, mas partir de então, passei a ter
muito medo de cair e comecei a trafegar mais devagar.

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O bom de ser esporádico é fazer muitos trabalhos ao uma palestra do Eleilson da Ação Educativa, e também
mesmo tempo e escolher o horário de trabalho. Tinha um estavam lá alguns motoboys fundadores do projeto,
rapaz chamado Alberto que conseguia fazer 400 horas no como Ronaldo, Luis, Adriana, Beiço, Eliezer, Djalma e o
mês: o normal era a metade disto. Ele ganhou dinheiro, Cleyton. O projeto foi concebido por Antoni Abad, que
mas quase morreu. O ruim de ser esporádico é não ter criou este espaço no mundo virtual para dar “voz aos
registro na carteira – consequentemente, nenhum dos sem voz”, possibilitando a expressão de grupos especí-
benefícios garantidos pela CLT. Trabalhei um ano de espo- ficos, como taxistas no México, prostitutas em Madri,
rádica e valeu a experiência! motoboys em São Paulo e cadeirantes em Barcelona.
As reuniões posteriores passaram a acontecer na Ação
Em 2007, o Sr. Antônio me ofereceu um contrato de car-
Educativa, agora sede do canal*MOTOBOY. Nessas
teira assinada com uma outra empresa, cujo piso sala-
ocasiões ganhei a página no site ZEXE.NET, um celu-
rial seria de R$ 450,00 na carteira, mas eu receberia
lar e créditos para envios pela operadora TIM. Nessas
líquidos R$ 900,00, com a gasolina custeada por mim,
reuniões, aprendíamos a editar a página, configurar e
me sobrando R$ 700,00. Só o condomínio do apartamento
realizar os envios, pautar os assuntos pertinentes ao
era R$ 500,00. Muito pouco, mas pelo menos tinha décimo
grupo, organizar semanas de cultura e participação em
terceiro e registro em carteira, assim como férias, que
eventos, tais como Duas Rodas (2007), Campus Party
vendo todo ano.
(2008/9), Motoboy Festival (2008) e Mobilefest (2008).
Comecei por baixo mesmo, trabalhei muito e foi assim O projeto tornou-se conhecido e participamos de vários
que muito aprendi. Eu rodava muito toda São Paulo, programas de televisão de canais abertos, entre eles o
conheci todas as filiais do Carrefour na cidade, até a programa de Ana Maria Braga, na Rede Globo.
Campinas fui fazer entrega. Mas eu fazia de tudo, desde
O principal objetivo do projeto era retratar o dia a dia
entrega de documentos e peças de alarme, pagamen-
de um profissional motociclista durante seu período de
tos em bancos, troca de aparelhos de manutenção,
trabalho ou mesmo registro de sua vida pessoal, foto-
venda de pilhas e tudo que se pode imaginar de explo-
grafias registradas por celular e depois enviadas para a
ração durante meu horário de trabalho. Eu saía com o
internet. Para mim é encantador quando consigo fazer
baú lotado, de manhã e à tarde. Deus é pai! Trabalhando
uma boa foto. É importante perceber o caráter informa-
com contrato, eu já não ficava mais na sala de espera
tivo das situações em geral, e destes fatos, em peque-
dos esporádicos, raramente encontrava com o pessoal,
nas histórias visuais, produzir o máximo de informação
no máximo quando ia assinar os papéis de pagamento.
com menor custo possível de envios, retratando nossa
Neste mesmo ano, no dia do motociclista , fui abordada contemporaneidade.
no Conjunto Nacional pelo Eliezer, que perguntou se
Há duas intenções muito presentes no canal*MOTOBOY:
podia fazer uma reportagem para o canal*MOTOBOY,
criar um arquivo da atualidade, um acervo para a poste-
me parabenizando pelo dia, me deixando adesivo, tele-
ridade, e promover a inclusão digital entre os motoboys.
fone e convite para uma reunião no Centro Cultural
É incrível como somos protagonistas deste tempo. Esta
São Paulo, na rua Vergueiro. Essa primeira reunião era
110 Coletivo canal*MOTOBOY Andréa Motogirl 111

ideia de arte como memória humana. Dou muito valor à


arte e tento traduzir isto nas fotografias. Por meio do tra-
balho com fotos, descobrimos também o uso de áudio e
vídeo. Tirar fotografias, pra mim, se tornou um canal de
expressão total. Tirar foto é fascinante!
Depois de um ano na empresa, não quiseram aumen-
tar meu salário e desistiram do contrato. Chegou o ano
de 2008, e voltei a trabalhar como esporádica, porém
com carteira assinada. Minha principal cliente era uma
editora e o salário do mês era garantido, mas era roça
demais. Com esta empresa, conheci todos os Centros
Educacionados Unificados (CEUs) de São Paulo: entre-
gava os pacotes de livros didáticos, que eram bastante
pesados, às bibliotecas. Eram locais distantes e eu ia
devagar para não cair da motocicleta. Então, apareceu o
contrato com uma firma grande do ramo de elevadores,
em meados de maio ou junho, para entrega de malotes e
de peças de elevadores.
O Sr. Antônio tinha me dito que era trabalho de escritório,
mas quando fomos nos candidatar, soubemos que se tra-
tava de entregas de peças. Quando fomos dividir as áreas
de entrega, iam me entregar a zona leste, região que eu
não queria por ser osso e roça, então perguntei ao outro
rapaz onde ele morava, e ele me respondeu que era na
zona leste e ficaria feliz em fazer a zona leste. Assim, aca-
bei ficando com a zona sul, o que foi um alívio para mim.
No início, fazíamos apenas duas saídas, uma às nove e
meia e outra à uma e meia. Quando acabavam as entregas
podíamos ir embora, o que me ajudava, pois me sobrava
tempo para outras atividades. Depois de um ano, muda-
ram para três saídas diárias: uma às oito e meia, outra
às dez e meia e a terceira àsduas e meia. As regiões que
cubro são divididas em quatro setores: g7 – Moema e
Vila Olímpia, g8 – Aeroporto, Santo Amaro e Interlagos,
112 Coletivo canal*MOTOBOY Andréa Motogirl 113

g9 – Jabaquara, Ipiranga e Anchieta e g22 – extensão Nestes três anos como motogirl vivi algumas experiên-
da avenida Nações Unidas, do Morumbi a Pinheiros. Tem cias bizarras, por exemplo, aceitar transportar um rolo
dia que é bem light, mas tem dia que é fogo. Os técnicos bem grande de mangueira, tão pesado que quase não
são legais, com a nossa comunicação por celular discu- cabia no baú da moto. Tive que levar da Barra Funda até
timos cada caso de atendimento e sempre entramos em Interlagos. Outra situação, uma encomenda que recebi
acordo. Assim não fica pesado para ninguém. às seis horas da noite de uma sexta-feira chuvosa: uma
firma de material elétrico pedindo entrega de mate-
Neste mesmo ano, participei de uma entrevista para o
rial do centro de São Paulo para Santana do Parnaíba,
programa Profissão Repórter, da Globo, e cheguei à con-
endereço que nem sequer constava no guia da cidade.
clusão que trabalhar dá trabalho, e que as outras pes-
A entrega foi realizada no dia seguinte. Também recebi
soas desta empresa também trabalham muito. Em con-
um pedido de retirada em uma empresa de aparelhos de
sideração a todos, faço meu trabalho da melhor forma
telefonia, mas a caixa era tão grande – do tamanho da
possível. Em 2008, o piso salarial subiu de R$ 450,00
moto –, que a empresa teve que pedir uma Kombi. Havia
para R$ 690,00 e, em 2009, o piso foi para R$ 730,00,
também uma boleira chique que sempre me solicitava
porque ocorreu uma fiscalização sindical que obrigou
serviços e me pediu para retirar uma caixa que estava
este mínino, junto com carteira assinada, a todos os
longe. Chegando lá, eram duas caixas, só sendo pos-
motoboys. Comparado com o salário de um porteiro ou
sível transportar uma, sinto muito! Certa vez, durante
de um segurança, este piso salarial é muito baixo para
meu trabalho, fui picada por uma maribondo, e imagi-
os riscos que corremos. O importante é estar sendo útil
nando não haver problema, comecei a ficar toda inchada
para si e para os outros. Se colocarmos o dinheiro em
e empolada por choque anafilático, uma reação alér-
primeiro plano, poderemos nos corromper e a consequ-
gica que me fez correr para o pronto-socorro. Como
ência pode não ser tão boa. O melhor é fazer o que se
meu caso era grave, fui atendida prontamente, e fiquei
gosta, começar por baixo e ir subindo. Dentro da socie-
internada em observação por doze horas. Já levei uns
dade, apesar de tantas dificuldades para saber qual pro-
vasos de vidro com plantinhas enrolados em papel celo-
fissão escolher e questões de rentabilidade, vocação,
fane. Eram lembranças de fim de ano e a maioria chegou
tempo e necessidade, prefiro a profissão de motogirl,
inteira, mas outras rasgaram um pouquinho. Na hora me
sempre com meu bordão: “Ganho pouco, mas trabalho
perguntei: isso é coisa que se mande por uma motogirl?
pouco.” Sigo trabalhando porque acredito que esta é
minha tábua de salvação e a solução para todos meus Foram tantas histórias que nem posso numerá-las.
problemas, servindo até como terapia. Na minha vida, Gosto mais da viagem quando o pacote é leve, mas não
tenho meus valores, Deus e a Igreja, meus familiares, faço manha e entrego tudo, sempre que possível. Só não
estudos, companheiros de trabalho, o bem. Dou graças levo peças que possam ser avariadas pelo trasnporte
a Deus, porque por intermédio dele, passei a vida de uma na moto. Faz parte da segurança conhecer o limite da
forma que eu desconhecia, me livrando das drogas e vai- motocicleta, pois as entregas não podem cair nem ser
dades mundanas. avariadas, tudo deve estar bem seguro e amarrado,
114 Coletivo canal*MOTOBOY Andréa Motogirl 115

para não correr o risco de cometer um fiasco, que pode


custar o emprego. Todo cuidado é sempre pouco, e a
responsabilidade pesa muito. Graças a Deus, nunca
danifiquei muito o material a mim confiado. Outro dia,
no elevado Costa e Silva, de uma Kombi de carreto caiu
uma gaveta de um dos móveis. Na hora meu coração
gelou...Ainda bem que não veio pro meu lado. Outra
experiência: um pedaço de madeira saiu voando de
outra Kombi, batendo direto na minha viseira, que por
sorte estava fechada - ou eu poderia ter ficado cega.
Outra bem engraçada foi quando eu passava por cima
a ponte da Casa Verde e os papéis amarrados com ara-
nha no tanque da minha moto foram levados pelo vento.
Parei a moto e saí correndo atrás. Consegui resgatá-
los, mas levei um baita susto!
Sei que existem muitos lugares para trabalhar como
motoboy, a demanda é muito grande. Alguns lugares
pagam mais, outros menos, alguns trabalham mais,
outros menos, encomendas pesadas ou mais leves, e tra-
balho não falta a quem entra na profissão. Seja qual for
a encomenda, responsabilidades como pontualidade,
disciplina e asseio são fundamentais. Também é essen-
cial estar com a documentação em dia, fazer a manu-
tenção da moto, ter vestimenta e acessórios adequados
e, principalmente, respeitar às leis de trânsito. Há quem
diga que é fácil ser motoboy. Convido a experimentar...
Estive observando a dificuldade que as pessoas têm
em lidar umas com as outras. Durante meu trabalho,
encontro pichações em muros com frases como “mais
amor, por favor,”, “o amor é importante, porra!”, “odeie
seu ódio, ame seu amor”, frases que me inspiram, e sem
perceber fico remoendo o significado destas palavras,
assim como também outras que fazem parte do nosso
dia a dia sem que percebemos, como a relação com o
116 Coletivo canal*MOTOBOY Andréa Motogirl 117

nome das ruas. Ser motogirl é um privilégio? Além de Sinto liberdade, o movimento de dirigir é como o de
motofretista, sou mãe, filha, tia, catequista, musicista, dançar. Podemos reconhecer o sincronismo da dança
dançarina e fotógrafa. Como aprendiz da vida, sei que na natureza e nas ruas, a liberdade está em ver outros
é preciso perder para ganhar, faz parte do processo lugares e pessoas. Dediquei muitas horas em três anos
de amadurecimento individual. Ganhei experiência na trabalhando como motogirl, na dança também dedicava
vida ao mesmo tempo em que perdi muitas outras coi- muitas horas de ensaio até a exaustão completa.
sas. A vida é um conjunto de práticas diversas: quanto
Pelo caminho, encontrei muitas pessoas de boa von-
mais praticamos, melhor executamos - até o momento
tade, que me deram as informações corretas e facili-
da velhice, que nos impossibilita de praticar muitas coi-
taram meu trabalho. A maior motivação para concluir o
sas. Executar o que se almeja é o desejo de todos desde
trabalho sempre foi a responsabilidade de ser eficaz, e
criança. Tenho muita experiência com a dança, fiz turnê
algumas vezes, ao fracassar por um motivo qualquer, a
por todo o Japão entre as décadas de 1980 e 1990, e mui-
frustração me fez chorar.
tas vezes me perguntei: Por quê? Sempre questionei a
razão de viver e qual a missão a seguir. No Japão, procu- As aventuras foram inúmeras, e os riscos também. Um
rando uma resposta para minha pergunta, fui trabalhar passo de cada vez, arquitetei meus atos com fé nas pes-
em fábricas de máquinas de bebidas, pachinko, toldos soas que me cercam e sempre me inspirando nelas, que
de alumínio e fundição. Descobri então um mundo dife- com amor e carinho, me auxiliaram a sobreviver a muito
rente, pessoas que ganham pouco e trabalham muito. frio, vento, tempestades, poluição e barbeiragens.
O trabalho como dançarina era muito importante para Foram dias em que cheguei em casa com a cara preta
mim, mas o assédio, a inveja, a especulação e a per- de tanta poeira. Descobri muitos lugares bonitos, dife-
seguição dos papparazi me incomodavam. Por isso eu rentes, distantes, de muitos tipos. Observei igrejas, rios
sabia que um dia, para que pudesse ser livre, teria que e vales, cavalos, feiras, mercados, hospitais, estradas,
deixar de dançar. Eu me sentia, na época, um bibelô ruas e casas. Enfim, vi esta cidade imensa por cima de
manipulado, mas creio que valeu a experiência e per- seus arranha-céus.
cebo que ter dançado esse tempo foi uma preparação Sempre tive muito trabalho e aprendi a dividi-lo por
física para andar de moto. Dançar é meu dom de nasci- área ao esquematizar os melhores itinerários. Com este
mento, mas um dia resolvi depositar minhas energia em trabalho, desenvolvi minha memória e consigo decorar
outras atividades, como o exaustivo exercício de dirigir rapidamente as coisas. Consigo entregar várias enco-
moto, ter controle e resistência para aguentar a dire- mendas muito rapidamente.
ção. Esta é uma coisa que sempre desejei fazer, tenho
carteira de motorista desde os 18 anos de idade, incen- Hoje em dia, posso dizer que tenho experiência como
tivada pelo meu pai, e ele sempre foi modelo, porque motogirl e que conheço muito bem a cidade de São
tinha lambreta. Paulo, da qual muito me orgulho. Gosto de ser útil e
ajudar as pessoas. No trânsito, é necessário ter muita
paciência. Com ela longe se vai...
118 Coletivo canal*MOTOBOY Andréa Motogirl 119

Adoro minha moto. Ela é como uma filha ou uma exten- Procuro sempre ter os documentos em ordem, porque
são do meu corpo, sinto vontade de beijá-la e agradecê- prezo muito andar de moto, e não quero não ter pro-
la por me ajudar tanto, minha querida companheira blema nenhum. Ser motogirl, é meu ganha-pão, minha
inseparável. Fico sempre atenta à manutenção e faço independência, meu compromisso, minha labuta, meu
de tudo para conservá-la. Não deixo ninguém guiá-la, estilo de vida, minha observância, meu sincronismo
só dou carona na garupa e olhe lá... No meu baú - meu neste balé das estradas. É, afinal, meu jeito de fazer
porta-tudo -, levo todos os tipos de bagagens, desde parte de um todo.
envelopes e peças grandes até minhas compras pesso-
ais. É muito prático e útil. Andréa Sadocco Giannini de Oliveira

Sempre faço os trabalhos o mais rápido possível para


ter logo meu tempo livre.
Nunca tiro os olhos da minha querida. Sempre que a
deixo, tranco direintinho, faço rápido o que preciso
e volto ansiosa por revê-la no lugar onde a deixei. Às
vezes, quando a deixei sozinha, encontrei surpresas
que me deram prejuízo, como um pneu furado, lacre
arrebentado, pisca-alerta quebrado, a moto tombada
por terem feito uma ré de mau jeito, multas, um espelho
rachado, batida na traseira por um taxista embriagado
etc. Muitas coisas que me aconteceram tive que relevar
e recomeçar, dando Graças a Deus por ter sobrevivido,
poder voltar para casa e ver meus filhos.
Porque eu andava devagar, pelos meus cuidados de
segurança, vários motoristas buzinaram e zombaram de
mim. Tenho esse direito, também pago imposto e a rua é
pública. A velocidade da moto não pode ser motivo para
outros quererem me derrubar. Certa vez, um louco jogou
o carro para cima de mim e me xingou; acho que pensou
que eu era um homem. Nossa, que susto! Deixei que ele
passasse e saí fugindo, afinal, no trânsito nunca se sabe
o que um insano pode fazer. Sempre fujo das confusões
e brigas, só quero viver e mais nada.
Cap.03 Cap.0
Poeta dos motoboys Poeta dos motoboy
Poeta dos motoboys 123

Semanas se passaram, e eu já havia feito muitos ami-


A trajetória gos e perdido alguns também para o trânsito assas-
sino de São Paulo. Consegui meu primeiro contrato na
Embratel: trabalhava seis horas por dia e não ganhava
mal. Retirava as fitas de telefonemas na TELESP da rua
7 de Abril, na Embratel da Cerro Corá e da Amador Bueno
da Veiga, na Penha, e levava para a rua dos Ingleses, para
que efetuassem a leitura. Uma vez por mês eu entregava
faturas nas rádios de São Paulo, como a Rádio Globo, a
Boa Nova de Guarulhos etc.

Chovia bastante. Era uma manhã de julho de 1990. Dando No início dos anos 1990, a profissão de courrier, ou moto-
uma olhadinha nos classificados de emprego, um anún- boy, como é popularmente conhecida hoje, era quase
cio chamou minha atenção: “Precisa-se de rapazes com novidade. Apesar de ter começado nos primórdios dos
moto própria para início imediato.” Eu nem imaginava que anos 80, o número de profissionais era muito pequeno
ali começaria uma história de lutas, tristezas e alegrias. (tanto que a profissão passou despercebida durante
quase uma década).
Chegando ao endereço indicado, no bairro do Tatuapé,
dezenas de motos estavam paradas na porta da casa Naquela época, havia algumas empresas em que nós,
e rapazes conversavam, riam alto e contavam com motoboys autônomos, até tínhamos vontade de traba-
tom heroico suas aventuras do dia anterior. Consegui o lhar. Por causa da fama de loucos que tinham os moto-
emprego e, no dia seguinte, começaria. Eu tinha uma CG boys, consegui, depois de um tempo, trabalhar em algu-
ano 77 frente de mola (canelão). mas delas, como a Protege, RRJ, Mototurbo etc. Meu
contrato com a Embratel terminou em 1993 e fui traba-
No dia seguinte, às sete da manhã, estava eu lá, um dos lhar na Tip Top, próxima à Ponte do Limão. Certa vez, uma
primeiros a chegar. Não demorou muito, foram chegando senhora do escritório me pediu para que eu fosse a uma
os motoboys. Em questão de meia hora, já eram deze- conhecida livraria comprar um livro sobre economia.
nas. Logo chegou o Sr. André, que passava o trampo para Deu o dinheiro contadinho, preso com um clip. Coloquei
os motocas, e chamou meu nome. A primeira entrega no bolso da calça e acabei perdendo o dinheiro. Eu não
deve ser como a história do primeiro sutiã: a gente nunca tinha como repor, e o jeito foi encarar a fera. A mulher
esquece. Era para retirar um documento em uma conhe- ficou furiosa achando que eu havia gasto o dinheiro dela.
cida editora, na Ponte do Piqueri, reconhecer firma no Começamos uma discussão que minutos depois resul-
cartório e devolvê-lo. Lá fui eu. Achava aquilo o máximo, tou na minha demissão. Saí de lá de alma lavada, pois as
agora eu era motoboy (Yes!), em uma época em que a pessoas que ali estavam sabiam que eu não teria cora-
profissão não era tão concorrida e era possível ganhar gem de me sujar por uma porcaria de dinheiro que mal
um dinheirinho. dava para pagar meu almoço.

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124 Coletivo canal*MOTOBOY Poeta dos motoboys 125
126 Coletivo canal*MOTOBOY Poeta dos motoboys 127

Depois de trabalhar em mais três ou quatro empresas, favor, parem de hipocrisia e de jogar a culpa no moto-
fui trabalhar na Mototurbo, na Vila Guilherme. Ali, sim, boy. Que sejam punidos os que desrespeitam pessoas,
comecei a entender alguma coisa sobre a profissão. assim como os motoristas que também o fizerem.
Éramos trezentos motoboys e trabalhávamos para a
Depois de ter socorrido um amigo motociclista que teve
Caixa Econômica Federal e para o Banco do Brasil. Eu já
a perna decepada e morte quase instantânea na ligação
estava com 24 anos, mas o espírito louco, aventureiro - e
Leste-Oeste no ano de 1999, resolvi que não queria mais
muitas vezes inconseqüente -estava bem presente.
ser motoboy. Decidi que poderia exercer uma profissão que
Comecei a presenciar a morte de pelo menos um amigo ajudasse, de fato, meus colegas de profissão. Consegui
por semana, devido ao nosso capacete, que éramos obri- um emprego como motorista de ambulância. Finalmente,
gados a usar, de cor verde (padrão da empresa) e seme- em 2004, consegui entrar no “SAMU 192” (serviço de res-
lhante a uma casca de ovo. Então, resolvi acionar uma gate do governo federal) e hoje em dia contribuo para que
equipe de reportagem para fazer uma matéria sobre o vidas sejam salvas na cidade de São Paulo.
que estava acontecendo e, na época, a matéria foi vei-
Hoje, uma das minhas músicas, “O Rap dos Motoboys”,
culada pelo SBT, no extinto programa Aqui Agora (o que
está com centenas de milhares de acessos no Youtube,
também resultou na minha demissão).
o que me deixa feliz, porque ela transmite a realidade
Na Mototurbo, comecei a escrever músicas e poesias nua e crua do motoboy paulistano. Após encerrarmos
que contavam o nosso dia a dia nas ruas de São Paulo. o grupo Fator Surpresa, desenvolvi uma carreira solo
Um amigo meu, o Fernandão, ouvia e gostava muito, até como poeta dos motoboys. Hoje somos três (DJ, Nando e
que ele pediu para cantar comigo. Montamos, então, o Kiko Melodia) e defendemos com unhas e dentes a causa
grupo Fator Surpresa. Passamos quatro anos cantando justa dos motoboys, por meio de músicas e desta poesia:
e fazendo apresentações por empresas e locais públi-
A poesia dos motoboys
cos, assim como em eventos etc.
Eu rodo por aí para lá e para cá.
A profissão de motoboy sempre foi muito discrimi- De manhã, no sol, na chuva, eu saio para trampar.
nada, devido aos 30 ou 40% de envolvidos na profis- Eu não nasci em berço de ouro, se liga, bacana.
são que desrespeitam pedestres, leis de trânsito etc. Eu atuo na profissão que tritura carne humana.
que chutam espelho, arrumam confusão e mancham a Não arrisco minha vida para chegar primeiro.
imagem dos 70% ou 60% formados por pais de famí- Para ganhar o pão eu conto com a sorte.
lia, gente séria que é profissional de verdade. A mídia Sou um sobrevivente que desliza pelo corredor da morte.
também contribui bastante para esta discriminação: Hei, Joe, preste atenção, você que discrimina e me tira de
ladrão.
por exemplo, quando bandidos usam motocicletas (um
Eu rezo todo dia pedindo proteção.
meio de fuga rápida) para cometer delitos, a mídia logo
Capote violento, homem e máquina no chão.
diz “motoboy bandido”, entendeu? Taxam o profissional É cena normal ver um mano em coma na UTI de um hospital.
motoboy. Motoboy é trabalhador, bandido é bandido e Mas eu não quero ver esta cena nunca mais, vocês e o poeta
ponto final. Quando alguém mata uma pessoa com uma dos motoboys nesta luta pela paz, chegue
faca ninguém diz que o cara é açougueiro, não é? Por mais, dê a mão, são 200.00 para formar este cordão,
128 Coletivo canal*MOTOBOY Poeta dos motoboys 129

Eu luto pela vida e vai ter que ser assim. A motocicleta driblando o trânsito absurdo e desorde-
Vou deixando um recado para os muleques das dream. nado das grandes cidades é como a cadeira elétrica: mui-
Fiquem atentos, ligeiros, aprendam um velho macete. tos sentam e morrem. Já perdi dezenas de amigos que
Ao invés de drogas na cabeça usem sempre o capacete.
trabalhavam como motoboys, na maioria das vezes, com
Porque o perigo não dá trégua nem sequer um momento e
uma idade entre 18 e 25 anos, em que imperam o espírito
pode
te encontrar em qualquer cruzamento.
de aventura e a adrenalina. Quando eu tinha esta idade,
Variante de feirante quase me matou, deu pane no sistema e acreditava que jamais morreria. Abusei muito, e, graças
o cara não freou. a Deus, sobrevivi, por isso tenho propriedade no que falo.

Saí voando, você tinha que ver, para Steven Spielberg eu seria Eu diria que as piores recordações foram os velórios de
o dublê. Levantei rapidinho, nenhum arranhão, tá pensando amigos jovens que se foram, vítimas de um sistema capi-
que é milagre. talista que massacra estes profissionais. Via suas famí-
Mas tem explicação, tô com Deus, sou herói. lias destruídas, filhos e mães chorando e sabia que não
Sem carteira assinada, profissão motoboy, tudo de ruim demoraria muito pra que esta cena horrível se repetisse.
já sumiu da minha lista, chamo no grau, detono na pista, Rezava todas as noites para que eu não fosse o próximo.
também sou artista, versão brasileira do motoboy paulista.
Posso dizer que as melhores lembranças foram as ami-
Quando vejo um comando me mando, volto amanhã, cansei zades, que duram até hoje, e o trabalho que desenvolvo
de deixar moto lá no pátio do Detran. como “poeta dos motoboys”, pois transformo minha
Daelim, RDZ, e até uma Titan realidade como motoboy em cultura e orientação, e,
Terça-feira passada um tremendo sufoco, carrocinha amarela graças a Deus, sou muito querido e respeitado entre
para pegar cachorro louco. meus antigos colegas de profissão.
O guarda olhou para minha motoca e começou a dar risada, Na verdade, não é uma profissão muito mal-remune-
ele achou a magrela um tanto encorpada rada, mas é de alto risco e bastante discriminada. Peço
— Eu nunca vi turuna 80 com motor de estrada
a Deus para nunca mais precisar subir em cima de uma
— Então você não viu nada, tá tudo normal, comprei lá nas
moto para ganhar a vida. Se não houver outro jeito, eu
bocas tenho nota fiscal, na general
— Você é cara de pau, olha esse painel, olha o escapamento,
vou pra cima, mas… Saudades dos amigos e das viagens
olha o pneu careca, e o licenciamento, a casa caiu vou que fazíamos juntos - acredito que era uma das poucas
prender seu documento diversões, pois a realidade é cruel, este é meu ponto de
vista. Sei que uma minoria deve pensar assim. Que Deus
— Pode prender que eu tiro depois, enquanto isso
abençoe os motoboys de todo o Brasil.
vou rodando porque tenho 2, o meu cabrito não berra, eu
quero a paz não a guerra
Marcelo Veronez
Eu levo sua pizza, entrego sua mensagem, percorro em
um segundo os quatro cantos da cidade.

Observe com atenção que você vai perceber, sou cenário da


cidade que não para de crescer.
130 Coletivo canal*MOTOBOY Poeta dos motoboys 131
Cap.04
Fábio, motoboy

Cap.04
Fábio, motoboy
Fábio, motoboy 135

ia no distribuidor retirar umas caixas de O.S. . Lá eles me


Opção ou profissão? dariam outros endereços para fazer que não eram mais
um endereço que ia ser na TV Cultura no bairro da Água
Branca:
Pensei: “Olha, vai dar para fechar legal o dia.” Em
dinheiro, tinha feito mais ou menos R$ 90,00 até aquele
momento. Queria fechar o dia com mais um pouco.
Ainda ia fazer mais alguma ordem de serviço antes de
ir embora, pois sempre fui de chegar cedo e sair tarde.
Na empresa onde trabalho há 15 motoboys, todos anti-
Eram umas quatro da tarde do dia 02 de outubro de 2008, gos na firma. O mais novo tem seis meses e o mais velho,
uma quinta-feira quente, sem previsão de chuva. O dia não de idade, tem oito anos de firma - mas ele é mais
tinha começado bem... velho que o dono da empresa.
A primeira saída fora de Guarulhos a Jardim Cumbica, Somos um pessoal unido, claro que sempre há quem
trampo rápido, só retirar e levar para o cliente. Já conhecia tenha mais amizades. Em relação às outras firmas de
e tinha amizade com a pessoa em Guarulhos, então, era motoboy, pelo que escuto por aí, é bem melhor que mui-
chegar lá e retirar rapidinho e se jogar para Eugenópolis. tas no mercado.
Quando retornei à base, fiquei parado umas duas Quando comecei a trabalhar como esporádico na rua -
horas. Aproveitei para almoçar e já tinha saído uma O.S. em agosto de 2005 - na pizzaria do meu tio na Saúde,
(ordem de serviço) da prefeitura de São Bernardo dos tinha saído da área de manutenção de computadores
Campos para uma entrega de documentos e depois dei porque o salário estava meio ruim. Além disso, meu tio
um retorno na Av. Angélica. Dei risada pois o dia estava tinha sofrido um infarte e pediu para que eu e uma irmã
fraco e já tinha feito umas horas, e com trampo fácil – e dele tocássemos o negocio dele .
a pessoa que pede o trampo – ela é muito gente fina –
Aí comecei a trabalhar quando tinha aperto de entregas
onde trabalho são poucos clientes que são chatos e que
e tal, fiquei lá até meados de janeiro de 2007. Trabalhava
pegam no pé do motoca.
lá à noite e durante o dia fazia uns bicos para pessoas
Fiz o serviço e voltei à base rápido. O dia estava ren- que precisavam pagar contas, comprar alguma coisa,
dendo, farol ajudando, a sorte estava a meu favor. Tive serviços de autônomo mesmo. Não tinha intenção de
a sorte de sair com dois de uma vez. A primeira era um trabalhar em empresa de motoboy.
mamão, para retirar ali perto da FMU e levar até um local
Aí meu tio resolveu vender a pizzaria e os novos donos
próximo ao viaduto 9 de julho. Depois eu ia fazer a outra,
só ficaram com o pizzaiolo. Pensei: “Caramba, fiquei
que era pegar uns cartuchos de impressora na avenida
desempregado. Mas beleza, vou procurar outro serviço
Imirim e depois levar para uma produtora na Lapa. Antes

134
136 Coletivo canal*MOTOBOY Fábio, motoboy 137

para fazer.” Foi quando fui num amigo meu que conhe-
cia o dono da empresa onde trabalho; ele me levou até
lá e acabei ficando já no mesmo dia. Fiz um serviço, pois
estava com falta de motoca e o trabalho estava pen-
dente. Era na mesma empresa que estava com o serviço
na quinta-feira. Foi quando recebi o aval de bem-vindo
à vida de motoboy - ou “cachorro loko” - em São Paulo.
Saí da produtora umas três e meia para levar uma fita até
a Fundação Padre Anchieta. Depois ia retornar à base...
Saí da emissora e peguei a marginal Tietê sentido Penha.
Pretendia ir até a ponte da Casa Verde e pegar a avenida
Rudge sentido Centro. Como sempre, no meio dos car-
ros, mas com o cuidado de não sofrer uma fechada, ou
o pior, uma batida. Na altura de uma loja de material
de construção tinha um ônibus na faixa da esquerda,
ao meu lado, e ele simplesmente veio com tudo para a
faixa central, e percebi e desviei dele, só que ele vol-
tou, porque o carro da faixa da esquerda deixou a tra-
seira do veiculo todinha para mim. Na hora tentei frear
e desviar do carro. Consegui jogar a moto entre o carro e
o ônibus, e bati na ponta lateral do carro da frente. Não
tive como evitar o acidente. Caí na marginal. Na hora,
já por instinto, olhei para trás deitado para ver se vinha
carro. Como a moto caiu antes de mim, fez uma barreira
e ninguém passou por cima. Mexi os dedos dos pés e das
mãos. Não tinha quebrado nada. Então fui rastejando
até a moto para desligá-la. Tirei os óculos e o capacete.
Sentei e me examinei: não tinha feito nenhum arranhão
nos braços. Nada. Foi quando fui me levantar que notei
que, para minha surpresa, meu pé estava para o lado,
aberto. Tive fratura exposta da perna – que mais tarde
soube ser fratura da tíbia e da tíbula. Na hora entrei em
choque: não pela dor, pois na hora não senti a dor, mas
desespero pela situação em que me encontrava – o que
138 Coletivo canal*MOTOBOY Fábio, motoboy 139

aconteceria comigo e tal. Fim de ano, na hora você entra


em desespero. Nisso, o motorista do ônibus foi embora
sem prestar socorro nem olhar o que ele tinha causado.
O cara do carro em que colidi, coitado, estava com os
documentos atrasados. Ele não tinha sido culpado e me
socorreu. Ficou comigo no local e foi embora antes de a
polícia chegar...
O tempo que fiquei no chão pareceu uma eternidade. Cada
minuto que o resgate demorava eu ia piorando. Quando
você sofre o acidente, começa a pensar em tudo ao seu
redor: sua vida, seus familiares, filhos tudo o que acontece
a sua volta.

Fábio Ascempcion
Cap.05
Jordana
Jordana 143

Sentamos na grama amassada e ficamos ali por alguns


Motogirl de Iomerê, minutos. Os poucos carros que passavam levantavam
uma poeira engraçada, que formava desenhos de areia e

Santa Catarina sujava as roupas de um varal. Era exatamente do que eu


precisava. Um cenário, um ouvinte e a vontade de refletir
sobre o futuro-presente que se apresentava para mim.
— Já sei! – falei.
— O que você sabe?
— O que quero ser quando crescer...

Beretta virou o pescoço e me fitou de frente. Foi o que


Nada é mais clichê do que começar uma história pelo bastou para que eu concluísse.
começo. Antes de rabiscar as primeiras palavras, até me — Quero ser livre!
perguntei se teria outra forma de mostrar ao mundo (ou
Iomerê nasceu depois de mim. Foi fundada em 20 de
só a você mesmo, leitor) um pedaço dessa minha vida.
julho de 1995. A principal atividade econômica é a agro-
Pedaço, porque costumo resumir tudo. Baseio-me em
pecuária. E era dela, e de minhas duas rodas preferidas,
fases, e nas melhores delas. Porém, como não encontro
que eu dependia para sobreviver. Mas antes de render-
outra solução, começo pelo começo mesmo, e deixo o
me a confidências e amores, deixo escapar, como quem
meio e o final em seus devidos lugares.
não quer aparecer, meu nome: Jordana.
Uma vez li que planejar é o primeiro passo depois de uma
Agora sim, posso deixar o coração falar por mim e pelos
boa ideia. Mas na minha vida, os planos sempre foram
sentimentos que tenho pela vida. É tudo muito simples.
coadjuvantes, enquanto as surpresas e os imprevistos
Nasci em uma família humilde, que cresceu e se tornou
davam ainda mais velocidade ao meu dia a dia.
forte. Devo tudo o que tenho e tudo o que sou à união e à
Eu me lembro de um dia ter estacionado a bicicleta em perseverança. Parece até conversa mole, mas não é. Meu
uma guia pintada de branco, perto da divisa entre Videira pai, desde muito cedo, sempre me induziu às melhores
e Iomerê. O dia parecia noite. Céu escuro, as luzes já sensações, fruto das escolhas mais sábias que alguém
começavam a se acender nas casas e o comércio estava pode ter.
quieto. Beretta estava comigo. O nome dele é Fernando
Em julho de 1999, meu pai abriu, com um dinheiro que
da Silva Beretta, daí o apelido. Somos amigos desde os
ganhou na Loteria, uma loja agropecuária. Não foi Mega-
tempos dos dentes de leite, mas ele nunca me acompa-
Sena, aviso antes das precipitações. Mas foi um dinheiro
nhava nos passeios de bicicleta. Naquele dia, Beretta
que, na época, jamais conseguiríamos juntar em pou-
estava na garupa.
pança. No início era algo pequeno. Não tínhamos funcio-
nários e quase não havia clientes. Meu pai pensou em

142
144 Coletivo canal*MOTOBOY Jordana 145

fechar, mas Beretta e eu não deixamos. O que fazia com


que ele não desistisse e voltasse à fazenda que traba-
lhava anteriormente era o sonho que, em uma conversa
e outra, eu e Beretta confidenciávamos. Meu pai não
queria nos decepcionar. E não o fez.
Três meses bastaram para que o negócio começasse a
dar certo. Eu, com a bicicleta, ia ajudando no que era
possível. Batia nos sítios, pulava porteiras, conversava
com fazendeiros, e arriscava levar desaforo quando
insistia demais na propaganda. Beretta ia comigo às
vezes, mas eu gostava de estar sozinha para correr
com a bicicleta o máximo que eu conseguisse. Nada era
melhor do que a sensação de dever cumprido e o vento
batendo nos olhos em um final de tarde.
Mas eu queria mais. Meu aniversário de 18 anos estava
chegando e eu sabia que podia pedir o que quisesse.
Eu sabia o que queria, mas tinha medo de me frustrar.
Sempre fui assim. Ilusões demais, sonhos além da conta,
e uma mania tremenda de idealizar meus presentes.
Nunca ganhava o que queria, mas aquele ano seria dife-
rente. A loja estava dando certo, havia dois veterinários e
vários clientes. Meu pai não ia me negar nada.
Decidi que seria ela. A que o vizinho precisava despachar
para outra garagem em troca de dinheiro. Vermelha e
preta, com alguns arranhões que davam a ela um ar
de aventura e adrenalina. Já tinha um nome, mas eu a
batizaria novamente, com um apelido carinhoso à sua
altura. Era aquele o presente que, no fundo, eu sempre
quis. Uma Suzuki Bandit 400, do ano de 1993.
— Eu compro! – consentia meu pai.
— Pois eu não deixo! É perigoso demais... – contestava
minha mãe.
146 Coletivo canal*MOTOBOY Jordana 147

E eu ali, no meio dos dois, com 17 anos de idade, olhos Já havia pensado em alguns, mas nada que me agra-
cheios de lágrimas e com medo de nunca conseguir a dasse. Pensei em Lurdes, para homenagear minha mãe.
liberdade que tanto buscava. Algo me dizia que eu teria Desisti. Depois me veio a ideia de continuar mesmo como
a moto. Se não fosse no aniversário, seria mais tarde, Madalena. Mas não seria original. Cheguei a pedir ajuda
anos depois. Mas eu a teria. Era um sentimento de cer- de Beretta, que disse só gostar de um nome no mundo:
teza que meu coração alimentava em silêncio. o meu. Passaram alguns dias e quando eu estava quase
— Vou tomar cuidado! – Eu argumentava.
me esquecendo do assunto, encontro dentro de uma
— Mas Jordana, se você já corre com a bicicleta, imagine gaveta uma folha com a letra de Piece Of My Heart.
com isso! “Você está fora, nas ruas, parecendo bem,
— Deixa, mulher, ela vai fazer 18 anos... E baby, bem dentro do seu coração,
— Tudo bem! Não adianta discutir mesmo. Mas depois não eu acho que você sabe que isso não é correto.
quero saber de reclamações. Nunca, nunca, nunca, nunca, nunca me ouve
quando eu choro à noite,
Nunca eu havia sentido tamanha alegria. Nem quando a
Baby, eu choro o tempo todo!
moto foi entregue ao meu pai, no dia do meu aniversá-
E a cada vez digo a mim mesma que eu,
rio. Estava feito. Era aquilo. Em poucos dias, eu estaria bem, não consigo suportar a dor.
experimentando a liberdade, o vento mais ríspido, o corpo Mas quando você me segurar em seus braços,
mais solto. Não tenho dúvidas. Foi o melhor presente de vou cantar mais uma vez.”
aniversário que já ganhei na vida.
Como eu não havia pensado nela? Será que a euforia do
Na primeira semana, senti como se todo mundo na presente, os olhares nas ruas da cidade e a movimenta-
cidade me olhasse diferente. Ninguém acreditava que ção da loja haviam me cegado completamente? E aquela
uma garota, filha dos donos da loja agropecuária, estava folha de papel? Ainda tinha algum significado na minha
pilotando a tal moto vermelha. O próprio vizinho me deu vida? Era minha música favorita. Minha cantora favorita.
as primeiras aulas. Andávamos devagar, íamos para Eu jamais vou me perdoar por ter me esquecido de Janis
Videira e voltávamos no fim do dia para Iomerê. Ele me Joplin.
contava algumas aventuras que tivera com a Madalena
Foi assim que batizei a moto.
(era como ele chamava a moto) e eu me imaginava em
cada situação. Era como se eu já tivesse vivido tudo Janis e eu passamos a nos entender bem. A harmonia
aquilo que ele me dizia. Como se já conhecesse cada existia, todos percebiam. Claro que quando eu estava
pedaço de terra ou asfalto de Santa Catarina, montada, nas ruas a concentração aumentava devido aos pedes-
é claro, na Suzuki Bandit 400. Era uma loucura! tres de Iomerê e aos outros veículos. Mas nas estradi-
nhas de terra, só existia nós duas. Janis e eu. O resto do
Com a carta nas mãos, e com o guidom também, a única
cenário era a plateia avulsa, que batia palmas, às vezes,
certeza que eu tinha era a de ter feito a escolha certa.
quando eu levantava uma poeira maior, ou deixava esca-
Mas ainda faltava algo. Minha moto precisava de um
par um grito de euforia.
novo nome.
148 Coletivo canal*MOTOBOY Jordana 149

Um dia, depois de ter deixado algumas vacinas na loja Nunca meus olhos haviam enxergado Beretta além de um
do meu pai, peguei Beretta pelo caminho e levei até meu bom amigo. O coração também não via nada de mais. O
lugar preferido. Não conto onde fica porque é um segredo corpo, talvez, até sentisse alguma atração. Mas ela era
meu e de Janis. Mas sempre confiei em Beretta, queria tão fraca até então que a razão ganhava todas as batalhas
compartilhar com ele os mesmos sentimentos que eu com o instinto. Eu disse até então? Pois foi até que ele
tinha quando estava lá. No caminho, despistamos algu- também tivesse a mesma sensação que eu. Mais tarde,
mas crianças que corriam atrás de nós e entramos em Beretta me disse que procurou palavras para justificar o
uma estradinha cujo destino eu já conhecia. O cami- que viria a fazer, ou simplesmente para não tornar tudo
nho era cheio de pequenos buracos. Beretta reclamou tão confuso. Mas também não as encontrou. Nem preciso
no começo, mas desistiu de falar. Eu não dava ouvidos narrar aqui que lábios se encontraram naquele pôr do sol.
a ninguém quando estava pilotando. Isso talvez possa
Acho que a maioria das pessoas já esteve em situação
ser chamado de sintonia, não sei. Mas sempre foi assim,
parecida. Ter que decidir entre um amor e uma amizade.
desde que ganhei a Janis.
Mas o que me difere da maioria é que o amor e o amigo
Estacionei a moto embaixo de uma árvore com folhas eram a mesma pessoa: Beretta. Às vezes, eu sentia que
secas. Mas até a carência dos galhos tinha beleza ali. não tinha pilotado bem, que havia me arriscado e descui-
Pelo menos eu enxergava. Tiramos o capacete, pendu- dado de Janis. Sentia que meu pai percebia minha cabeça
ramos no guidom e juntos respiramos o ar que pairava longe, mas não perguntava nada. Minha mãe chegou a
na montanha. A visão que tínhamos era basicamente a fazer algum comentário, mas eu não queria falar. Não pre-
de um quadro desses que encontramos na sala da vovó. cisava, ainda. A única hora em que eu não estava pensando
E sempre fui apaixonada por pincéis. Era o lugar per- em Beretta era quando ele estava ali, diante de mim, tra-
feito para rir, chorar, dormir, acordar ou apenas obser- zendo algum doce da padaria ou apenas passando em
var ao redor. frente à loja e me cumprimentando com carinho.
— É lindo mesmo! Nunca tinha vindo aqui... – dizia Beretta. Um dia a conversa foi inevitável. Não que eu não quisesse.
— Eu imaginei, por isso o trouxe. Mas tinha medo do que ele pudesse me dizer. Como isso
Foram as únicas frases que conseguimos trocar. Janis era possível? Eu nunca tive medo de nada. Sempre enfren-
Joplin é testemunha de que tentei balbuciar mais algu- tei meus pais, as pessoas na rua que desrespeitavam o
mas palavras, mas não as encontrei em lugar algum. trânsito, o próprio trânsito. Não tinha medo de cair, me
Era como se todo meu vocabulário tivesse escapado no machucar ou morrer nas idas e vindas para a loja do meu
vento e ido embora para sempre. Não sei se você, leitor, pai. Não tinha medo de que me roubassem a Janis. Se
já teve a mesma sensação. Naquele dia não entendi, mas isso acontecesse, eu moveria as montanhas de Iomerê
hoje até poderia arriscar uma conclusão. Porém, fique- pra encontrá-la. Eu sabia que era corajosa. Então, por
mos apenas com o desfecho em si. que eu estava naquele estado deprimente? Parecia uma
criança quando já espera pela bronca dos pais. Aquilo
não estava acontecendo...
150 Coletivo canal*MOTOBOY Jordana 151
152 Coletivo canal*MOTOBOY Jordana 153

Foi no dia em que precisei ir a Treze Tílias, cidade pró- Foi aí que decidi arriscar. Mudei-me para Florianópolis em
xima a Iomerê, em Santa Catarina. Na verdade, eu tinha outubro de 2002 à procura de um emprego novo, um alu-
vários lugares para ir, entre sítios, bancos e empresas. guel barato e a esperança que estava em falta. Não sei se
Mas foi em Treze Tílias que me encontrei com ele. Quis todo começo é necessariamente difícil, mas aquele foi. E
correr dali, ir embora sem olhar para trás, subir na Janis muito. Não queria recomeçar nada, apenas apagar uma
e voar. Mas fiquei. Existem duas Jordanas. A Jordana vida e acender outra. Era minha forma de ao menos tentar
de antes daquela conversa e a que veio depois daquela voltar a ser feliz.
tarde em Treze Tílias. Dizem que mudar é impor-
Em Florianópolis, tudo parecia o inverso de Iomerê. Era
tante, que faz parte da vida e do crescimento humano.
minha vida de cabeça para baixo, quase literalmente.
Concordo. Mas só agora, depois de todo esse tempo,
Só Janis Joplin era conhecida. Meu primeiro emprego
consigo enxergar as mudanças de maneira positiva.
na capital foi em uma pizzaria. Trabalho duro, penoso.
Como disse no começo dessa história, gosto de resu- Exigia mais do que apenas meu esforço físico, mas psi-
mos. Então, prefiro simplificar nesse mesmo parágrafo cológico também. Achei que não ia aguentar um mês.
tudo o que Beretta me disse naquele dia a perder mais Mas passei dois anos inteiros entregando pizzas na
tempo relembrando frase por frase do que foi nosso diá- tele-entrega.
logo. Não gaguejou, não pigarreou. Não tossiu nem ten-
A rotina era puxada. O cansaço que se apossava de mim
tou voltar atrás. Foi direto, seco e cheio de certezas. Não
durante as noites trazia o sono, os sonhos, alguns pesa-
queria nada comigo, a não ser nossa amizade de tempos
delos e um ânimo novo a cada manhã que acordava.
de criança. Disse que tinha seus medos, seus sonhos e
Era uma onda de sentimentos distintos que embalava
talvez tudo aquilo não fizesse sentido. Desistiu antes
minha nova vida, longe de meus pais, amigos e estranho
mesmo de começar. Eu apenas consenti.
amor, que deixei em Iomerê. Aquilo estava começando
Saí de lá entregue ao desespero. Não consegui chorar, a gerar efeitos confusos. Ao mesmo tempo em que eu
mas não sorri para que não acontecesse. Apenas subi na pensava em desistir de tudo e correr para o colo da mãe,
moto, acelerei o máximo que consegui e desapareci das eu tinha imensa vontade de prender meus pés no asfalto
vistas dos habitantes da cidade. e não arredar dali até poder afirmar a felicidade que eu
estava procurando.
Os dias que se seguiram foram angustiantes. Como uma
bola de neve, todos os problemas possíveis resolveram Mas ela também teve sua vez.
misturar-se. Meu pai acidentou-se na escada da loja e
Datas à parte, ela chegou quando eu menos esperava.
minha mãe também teve problemas de saúde. Comprei
Embora muito desejasse, a surpresa foi inevitável. Em um
o chão de Iomerê em duas quedas que me custou um
sábado desses que chovem sem parar e estragam planos
empréstimo no banco para fazer uma reforma em Janis. A
alheios, bateram no apartamento onde eu morava. Abri
loja estava indo bem, mas os gastos aumentaram demais.
a porta e ali estava minha libertação, minha felicidade,
Faltou dinheiro.
meu estranho amor: Beretta. O susto paralisou os meus
154 Coletivo canal*MOTOBOY Jordana 155

sentidos. Ele também parecia imóvel por algum motivo fiz foi ainda mais simples do que isso. Desmenti a falsa
que nem eu, nem ele podíamos enxergar. Já havia se pas- certeza que ele trazia no olhar. Ele apenas consentiu.
sado dois anos. Dois longos anos sem olhar dentro dos
Da janela, vi Beretta abrir o guarda-chuva e acenar antes
olhos de açúcar do meu amigo de infância. Aquele da
de ir embora. Não foi à toa que escrevi, parágrafos acima,
garupa, das confidências, dos sonhos em comum. E agora
que a felicidade também teve sua vez. Beretta se foi e
ele estava na minha porta. Parado.
levou com ele todas as minhas angústias, medos e arre-
— Eu senti saudades! – disse ele depois de longos segundos. pendimentos. A felicidade entrou. Peguei a chave, o capa-
— Eu também senti. Senti muitas saudades... Pensei em te cete, bati a porta e sai de pantufas no meio da chuva. Subi
ligar, pelos anos de amizade... em Janis Joplin e voei. Mas para não dizer que sai dali
— E por que não ligou?
sem rumo, digo apenas que segui na direção contrária a
— Por que você não ligou?
Beretta. O lado oposto, escolhido pela seta da moto e pelo
Beretta baixou os olhos para o tapete. Outra pausa.
— Entra! – convidei, abrindo mais a porta.
meu coração, livre.
Ele entrou. Olhou a sala, acomodou-se no sofá e voltou a falar.
— Eu vim porque eu precisava te ver, olhar pra você de novo e Bruna Bo
ter absoluta certeza do que quero!
— E o que você quer?
— Eu quero você, Jordana!

Pude identificar cada letra daquela frase, uma após a


outra, como se Beretta estivesse ditando as palavras
diante de mim. O olhar que me lançou foi impecável, niti-
damente lúcido, completamente azul. Tão azul que enxer-
guei o que havia atrás daqueles olhos. E a única certeza
que tinha era que eu levantaria de onde havia me sentado
e correria para lhe dar um abraço de amor, seguido de um
beijo, também movido por aquele sentimento que dormia.
Mas o sentimento que dormia não acordou naquela
manhã de sábado chuvosa. Não acordou durante a noite,
nem durante os meses que vieram depois. Já era tarde.
Beretta estava atrasado dois anos. Naquele instante,
entendi que, mesmo sem perceber, estava dando tempo
ao tempo, enquanto vivia longe de Iomerê e das minhas
lembranças mais antigas. Eu não ia me levantar respi-
rando depressa todo o ar da sala. Não ia correr em direção
a Beretta e abraçá-lo antes de tomar-lhe um beijo. O que
Cap.06
Neka

Cap.06
Neka
Neka 159

Ganhei este apelido quando eu tinha de 3 ou 4 anos de


idade. Nesta época, eu e minha família morávamos no
Rio de Janeiro. Nossa casa ficava nos fundos de um ter-
reno de uma pequena fábrica de picolés, cujo dono era
um português que cuidava da sorveteria com sua famí-
lia. Foi ele quem me arranjou esse apelido, e na verdade
é uma história bem engraçada. O nome do portuga era
Antonio Mota. Não lembro quase nada dele, pois eu era
muito pequeno, embora sua grande barriga não me saia
da memória, ao passar todos os dias junto às máquinas
fazendo picolés e gritando com suas filhas. Sua esposa
I
era muito doente e não podia ajudar nas tarefas. Ele
Meu nome é Eliezer Muniz dos Santos, mas quase todos tinha que dar conta de tudo e ainda atender à fregue-
me chamam de Neka. Entre os motoboys fiquei conhe- sia, formada principalmente pela molecada das redon-
cido como Neka por participar de um coletivo de moto- dezas, que não era pouca e corria de lá pra cá em busca
boys e ex-motoboys que desenvolvem atividades cultu- de um refresco. Com o calor rachando a cuca, a garotada
rais junto à categoria. atrás de um de picolé sob a calha em frente à sorveteria,
e as máquinas não davam conta, e como eu era quase
Esse apelido levo desde criança. Mas só recentemente,
da família, ficava por lá zanzando, brincando no chão, e
quando fui convidado por Antoni Abad, um artista espa-
a molecada que ia lá comprar picolés zoando comigo e
nhol, para junto com ele criar um projeto com os moto-
mexendo com o papagaio do português.
boys na cidade de São Paulo, ao me apresentar pelo meu
apelido, eles começaram a me chamar de Neka, e então O papagaio passava o dia empoleirado no batente junto
me dei conta de que era mais que um apelido, mas uma à porta, dando grunhidos altos e imitando a voz da crian-
identidade. çada e os gritos de Antonio Mota. O papagaio imitava
tudo que o português dizia, e a criançada curtia com as
Acho que nunca me acostumei com nome próprio.
estripulias do bicho.
Na vida, sempre estamos insatisfeitos e queremos mudar
Meu pai sempre viajou muito por conta do trabalho.
alguma coisa, mas há também outras, que mesmo peque-
Minha mãe cuidava da casa, e tinha que correr o dia todo
nas, nos fazem felizes e que não queremos mudar nunca.
atrás dos meus irmãos mais velhos, que agora já esta-
Uma destas é a forma carinhosa com que os amigos nos
vam na escola, além de costurar pra fora para ajudar nas
chamam. Por isto, quando conheci os motoboys e moto-
despesas da casa. Nessa época, ela estava grávida de
girls que vieram participar do projeto canal*MOTOBOY,
uma de minhas irmãs e seu Antonio Mota, que além de
não fiz a mínima questão deles me tratarem pelo nome
ser dono do imóvel, era muito amigo da nossa família,
próprio, e visto que nos tornarmos grandes amigos, mais
trouxe um dia do hospital, no seu calhambeque preto,
uma vez meu apelido substituiu o nome.

158
160 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 161

minha mãe com a pequena Lora no colo. Ela tinha lindos Toda tarde era a mesma coisa. A cada vez que ele desen-
olhos azuis cor do céu e toda a vizinhança veio admirá- formava, tirando os picolés e estes saindo inteirinhos, e
la. Isso foi logo após a Copa de 1970. São poucas as lem- o portuga era habilidoso, ele apontava os picolés intac-
branças de minha primeira infância, mas lembro muito tos pra mim e dizia, em seu jeito de português gozador:
bem o dia que o povo saiu à rua para comemorar o tri- — Neca!
campeonato mundial de futebol - e foi uma festa enorme
nas ruas do Rio de Janeiro. O Brasil viveu um carnaval Bom, daí em diante você já podem imaginar. À tarde era
fora de época aqueles dias, e felicidade assim a gente eu correr pra sorveteria pra descolar uns picolés. Rio
não esquece. 40 graus e eu na fita. O calor a mil, a molecada no ter-
reiro, um olho na pipa e outro na varanda do seu Antonio
Minha mãe tinha suas preocupações, e eu ficava peram- Mota, onde o papagaio fazia a maior algazarra. Cabelo
bulando pelo quintal da vizinhança, em um ferro-velho espetado, barriga de fora e o suor correndo pela testa. O
próximo, na casa do portuga e na sorveteria. Seu Antonio papagaio girava e retorcia na arara e fazia aquele baru-
e as filhas passavam as tardes na sorveteria, desenfor- lho danado na gaiola. Ele gritava e os moleques imitavam
mando e embalando os picolés. Para desenformar era só pra toda vizinhança ouvir:
puxar os picolés pelo palito, dois de cada vez, e então
passavam para o outro balcão para colocar a embala- — Neca! Neca! Neca!

gem, que depois eram guardados novamente em outro A meninada toda se divertia com aquilo e fiquei com o
congelador de prateleiras esfumaçadas. A sorveteria apelido. Recentemente, quando tive que usá-lo para apa-
era um local bastante fresco e limpo, e aqueles sorve- recer na minha página pessoal no canal*MOTOBOY, eu
tes fariam a alegria da gurizada no dia seguinte. Naquele substituí o c pelo k, e definitivamente ficou assim: Neka.
calorão, eu que não era bobo, ficava por lá por que sem-
pre sobrava algum pra mim. Algum não. Vários!
II
Caramba, até vejo a cena.
Sempre fui uma pessoa interessada em saber como são
Eu lá de barriga de fora, pé no chão, e um zóião esperando
as coisas, o porquê delas. Passei por diversos empregos
ganhar um picolé. Eu chegava assim que eles começavam
e em vários momentos da minha vida eu sentia que eles
a mexer com os picolés. Quando seu Antonio ou as meni-
me enchiam de tédio e revolta. Fui bancário, vendedor,
nas viam que algum sorvete saía meio quebrado, ele se
garçom, programador de computadores e até motoboy.
abaixava e me dava o toco. Eu ficava ali, torcendo pra que
Em todos tive a sorte de conviver com pessoas muito
outros mais viessem quebrados. Virei frequentador assí-
boas, mas também com aquelas que não deixam sau-
duo do lugar. O problema é que o português tinha mão boa
dades. Sem saber a hora, em todas estas profissões,
e nem sempre vinha algum quebrado. Ele sabia a hora
simplesmente me desligava quando sentia que não tinha
certa de tirar as formas do congelador, na primeira forma
mais nada pra fazer ali. Independente das razões que
eu já ficava na expectativa, torcendo que algum viesse
me levavam a mudar, nunca criei uma relação tão forte
quebrado, e assim começávamos aquele jogo.
162 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 163

ao ponto de transformar e interferir no resto da minha


vida. Mas foi como motoboy que esta vontade de saber
tudo me levou a compreender muitas das coisas que
sei agora, entrar em contato com alguns aspectos da
vida, que antes eu somente ouvira falar. Consciente ou
não, passei a ter uma vida plena, e meus companheiros
eram mais que colegas de trabalho. Fico pensando às
vezes como seria minha vida se não fosse essa minha
paixão por motos. Onde eu estaria agora? O que estaria
fazendo? Quem seriam meus amigos? Teríamos tido a
experiência que tivemos, se não fosse pelo fato de nos
sentirmos tão frágeis - e ao mesmo tempo tão fortes -
sobre as duas rodas?
A primeira empresa de entregas em que trabalhei ficava
no início da Consolação, antes da rua virar mão única,
uma pequena sala de um prédio de escritórios do lado
direito da rua. No início, a rapaziada curtia com a minha
cara por conta de minha pouca idade - apesar de já estar
casado e ter um filho -, e eu ainda era punk! Para eles,
eu tinha a aparência de alguém que perdera totalmente
o controle, coturno no pé, cabeça raspada e roupas ras-
gadas. Sempre fui alto, muito magro e espetava o cabelo
dentro do capacete. Aos poucos, conforme os outros
mensageiros iam me conhecendo, viam que a imagem
que eu passava não representava aquilo que eu era. Para
mim, naquele momento, aquele jeito que eu andava nada
mais representava do que os restos de um período da
minha juventude em que eu estivera envolvido com do
movimento punk.
Os motoqueiros da empresa, mais velhos, não eram de
muita conversa, mas logo viram que eu tocava bem a
motinha. Eles davam dicas sobre os serviços e me apoia-
vam na hora de montar os roteiros. Eu aprendia rápido
como eles trabalhavam. Por isto, creio que, desde o
164 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 165

começo, meu trabalho de motoqueiro sempre me pare- Mais do que isto. Aquilo lá fora uma toca de velhas rapo-
cera mais uma opção, nunca uma obrigação, apesar de sas, cobras e lagartos. Era preciso ficar esperto porque
ter que tirar dali meu sustento. Eu queria apenas andar aqueles caras eram rápidos no gatilho. Todos ali já tinham
de moto e encontrei uma forma de unir prazer e trabalho. trabalhado em outros empregos, vinham com alguma
experiência de outro lugar. Havia ali torneiros mecânicos,
Hoje, quando passo por lá na rua da Consolação, não
balconistas, taxistas, bancários, operário etc.
há mais toda aquela agitação que fazíamos quando nos
reuníamos para almoçar na padaria que havia embaixo A moto era a companheira de cada um e os manos não
do prédio e ficávamos na calçada aguardando o horário davam mole, mas rolava uma grande irmandade. Cada
dos trampos. Antes havia ali em frente, no canteiro cen- motoqueiro tinha sua história, de longa data, e sabia tudo
tral entre as duas faixas de rolamento, um jardim com de motos. Daí para dominar o trabalho de mensageiro foi
um estacionamento de motos. Melhor ainda é descobrir um pulo. Muitos ainda manjavam de mecânica de motos,
agora que o que aquele tempo tinha de bom era a união - então, nunca ficávamos na mão, um ajudava o outro.
ali todos eram motoqueiros-, e rolava um clima de cama- Ninguém conhecia a cidade mais do que a gente e sabía-
radagem de motoclube entre a gente. No caso, quando mos dar o valor certo aos serviços que fazíamos. Este é um
digo motoqueiros me refiro aos motociclistas que, antes grande diferencial em relação aos demais motoboys: mui-
de existir a profissão, já faziam uso da moto. Portanto, tas vezes, eles não têm noção de quanto vale sua corrida.
tinham muita habilidade e prática de pilotagem, já que a
Além de valorizar nosso trabalho, estipulando o tempo
utilizavam como transporte e lazer.
e o custo, os motoqueiros podiam escolher o serviço.
Digo francamente, fui bem aceito pela galera por que eu Naquela época, havia bem poucos motoqueiros traba-
“não dava milho”, como diz hoje o Poeta dos Motoboys. A lhando. Formávamos uma equipe coesa e ninguém atro-
rapaziada toda era da periferia; São Mateus, Guaianazes, pelava o outro, e por conta disso não faltava serviço.
Cidade Tiradentes, São Miguel, Santo Amaro, Capão, Cheguei ali sem saber nada, aprendi tudo sobre o mer-
Imirim, Freguesia do Ó, Taboão, Osasco... cado e sobre ser motoqueiro.
Eu também vim da periferia. Ainda assim, me sentia um Um dia, a empresa foi obrigada a mudar de endereço.
estranho no ninho. Eu tinha algum estudo e morava com Como havíamos crescido muito rápido, enchendo os cor-
minha esposa no bairro da Saúde. Andava de Vespa e redores com tanto motoqueiros, a coisa ficou pequena e
ouvia rock. Pensavam que eu realmente estava ali mais a sócia da empresa, dona Augusta, recebeu reclamações
por curtição. dos vizinhos, pedindo nossa saída. Fazíamos realmente
uma zoeira danada, descendo e subindo as escadas, ele-
Mas ninguém conhecia realmente minha história. Não
vadores, motoqueiros atravancando a porta principal,
sabiam de onde eu vinha, o que eu sabia e o que não
capacete, luva, capa de chuva, mochilão, botas, baús...
sabia. Aos poucos, passaram a confiar em mim e nos tor-
Não deu outra! O proprietário do prédio deu um basta
namos todos grandes amigos, pois trabalhamos juntos
e tivemos que mudar de lá. Foi assim, no meio dessa
por muitos anos.
galera, que comecei de fato a trabalhar de moto como
um profissional motociclista.
166 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 167

Antes deste emprego, por uns tempos, cheguei a traba-


lhar de delivery para uma fotocopiadora perto da ave-
nida Paulista. Foi nesta empresa que fiz a minha estreia
como office-boy de moto. Aquele bate e volta de entrega
e retornos à empresa era ruim pacas, e por pouco quase
desisti deste trabalho. Além de não ter registro em car-
teira, pagava muito pouco e era um saco ficar parado
esperando a vez, indo e vindo, levando e trazendo foto-
cópia. Continuei no trampo por gostar de andar de moto.
Na empresa da Consolação, entrei em contato com as
múltiplas possibilidades que o trabalho de um profis-
sional pode ser bem remunerado se exercer bem o tra-
balho, e inclusive crescer na vida. Ali cada um era dono
de seu próprio nariz, não tinha tempo ruim, e apesar de
todos os acidentes (todo começo é assim, quem é moto-
queiro sabe que somente o tempo dá maturidade ao
motociclista), aquele trabalho poderia ser uma verda-
deira aventura. A gente começava a trabalhar de moto
de manhã, nas horas em que surgia um monte de entre-
gas, a gente escolhia um trajeto próprio, e depois íamos
mudando nossas estratégias, conforme o dia passava.
Creio que se não tivesse ido trabalhar de mensageiro
motociclista eu não estaria aqui escrevendo este livro
junto com esta rapaziada de agora, que vim a conhecer
quando já tinha vivenciado vinte anos nesta categoria.
Naquela época, eu nunca poderia imaginar que um dia
eu me envolveria com o movimento político que nasceu
junto com a categoria. Nem mesmo poderia imaginar
que um dia se se poderia falar em cultura motoboy e nem
que eu publicaria artigos, daria entrevistas em televisão
e rádio, em jornais e revistas, e muito menos imaginava
que se poderia usar telefone celular para envio de fotos
e vídeos do cotidiano de motoboys para a internet! Outra
168 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 169

coisa que eu jamais poderia imaginar era que eu estu- Para mim, a trama começa quando chego a São Paulo,
daria filosofia e me tornaria professor de uma escola de e descubro pela primeira vez as alegrias e tristezas de
ensino médio na periferia. morar na periferia. Puxando o fio da memória de minha
infância, tentando descobrir como fiz minhas primeiras
A liberdade que a motocicleta me proporcionava, tanto
escolhas, busco de alguma forma uma explicação para
me levando a diferentes lugares como conhecendo pes-
os porquês dessas escolhas - e como elas influenciaram
soas, se tornou um sonho para mim – logo eu, que nunca
minha visão de mundo! O porquê de tudo isto? É justa-
havia sonhado. Um desejo realizado por lances inespe-
mente desta visão que podemos buscar construir uma
rados, tanto agradáveis quanto de frustrações, que não
ponte para o futuro. Buscarmos juntos um contraponto
poderia ter acontecido se não fosse esta paixão que
a tudo o que está aí. E não é porque acredito apenas, é
tenho por motocicletas. Assim, me transformei naquilo
pela experiência que podemos encontrar os argumen-
que sou. Eu queria estudar, mas estava trabalhando e
tos necessários que possam criticar esta realidade, e
sabia das dificuldades que enfrentaria, quase impossí-
que não há outro modo de conhecê-la, senão por meio
vel juntar as duas pontas, escola e trabalho, mas corri
da história de nossa vida e de nosso viver coletivo, então
atrás e consegui. Criei minhas próprias estratégias para
podemos empreender um sentido para nossa história.
escapar da lógica do trabalho que condicionava o moto-
queiro a exercer outras funções, e tenho certeza que foi
a moto que me possibilitou isto, como também as pes-
III
soas que apostaram, acreditaram em meu potencial.
Mas o que, no fundo, sempre me moveu a buscar alguma Numa tarde de muita chuva e calor, deixamos o Rio de
coisa, não era um interesse individual, pois eu sempre Janeiro. Era nossa despedida dos anos de luz, alegrias,
quis que nosso trabalho de moto não se transformasse areia da praia e do brilho do mar, mas também da minha
em martírio, desejando que não houvesse tanta explora- primeira infância, e logo mais à noite embarcaríamos em
ção e injustiça, e que não sacrificasse nossa liberdade, um trem com destino a São Paulo.
nos tirando o prazer de andar moto. Eu queria que todos Pela manhã, um caminhão levara toda nossa mudança,
tivessem oportunidades e que acreditassem em seus e eu não conhecia essa experiência de despedida. Nessa
sonhos, porque eles podem se realizar. época morávamos na casa pastoral que era conjugada
Mas não foi o que aconteceu. A categoria, ao mesmo a uma igrejinha em um morro no bairro de Coelho Neto.
tempo em que crescia, foi ficando cada vez pior, mais Esta igrejinha deve existir até hoje, ela foi construída
radicalmente explorada pelas empresas. Hoje, quando enquanto minha família morava lá. Naquele dia, passa-
vejo no que ela se transformou, pretendo que este livro ram por lá algumas pessoas que moravam perto, e que
possa chegar às mãos dos motoboys, para saberem que eram amigos de minha família. Vieram também alguns
eles também têm história, que há meios de resistir à fiéis da igreja em que meu pai era o pastor, e que com-
exploração. Apesar de toda a violência da vida e do trân- partilhavam, além da fé, a pobreza. Nós, crianças, pas-
sito de São Paulo, criamos uma lógica própria de sobre- samos o dia todo de pernas pro ar, e sem necessidade
vivência e resistência.
170 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 171

de nos despedir, pois mal sabíamos que no dia seguinte tiros, mas logo depois as pipas já estavam voando outra
estaríamos longe dos amigos do morro, e como sentiría- vez. Éramos muitos pobres, e nunca tive vergonha em
mos na pele a fria e fina garoa da vida, nas cruas ruas da falar sobre isso, e sempre que as coisas apertavam os
grande cidade de São Paulo. crentes da igreja que tinham melhor condição social nos
ajudavam com algum socorro. Fazíamos um esforço fora
Era dezembro de 1972, e eu tinha cerca de 6 anos de
do comum para nunca precisar pedir a ninguém. Lembro
idade. No trajeto até a estação, meu pai comprou uma
que sempre apertava quando meu pai viajava. Por muito
garrafa de Coca-Cola e comemos um lanche preparado
tempo tivemos essa vida, minha mãe punha-se, com
pela minha mãe, enquanto víamos pela janela a tem-
muita garra, na máquina de costura para dar conta do
pestade que se aproximava. Choveu até granizo àquela
que vestíamos e comíamos. Aonde quer que fôssemos
tarde, e o vento ameaçou destelhar as casas da vizi-
morar. ela logo conhecia gente e fazia sua freguesia.
nhança. Lá era muito diferente de Brás de Pina e da
Como naquele tempo costureira com máquina própria
sorveteria do portuga Antonio Motta, de onde viemos.
era algo raro, minha mãe logo sugeria novos cortes.
Vivíamos nos mudando devido à função religiosa do
meu pai. Esta igreja protestante, Igreja Adventista da Exceto algumas vezes, quando o carro pipa encalhava
Promessa Conservadora, foi fundada por meu pai e um de subir o morro, nós tínhamos água na caixa e podía-
grupo de pastores dissidentes de outra congregação, a mos tomar banho. A água ali era pouca, o jeito era buscar
Igreja Adventista da Promessa, que existia desde o início água na bica. Vivíamos, então, a época da ditadura, e às
do século, criada por meu avô. vezes acordávamos com o morro cercado pelo Exército.
Eles chegavam de surpresa, no meio da madrugada,
Antes de viver no Rio, tínhamos já morado no Mato
montavam trincheiras nos pés dos morros e fechavam
Grosso, em um lugar chamado Dourados, hoje Mato
todas as ruas e becos que davam para a avenida. Depois
Grosso do Sul, assim como em Votuporanga, no interior
de entrincheirar a comunidade e vistoriar documentos
do estado de São Paulo. Desses lugares eu não tenho
de quem descia ou subia, os soldados ainda se alinha-
qualquer lembrança, mas prestava atenção nas histó-
vam e formavam um cordão de isolamento, que subia
rias que meu pai contava sobre o chão batido de terra
feito funil pelo morro, fazendo uma verdadeira peneira.
vermelho e os índios e as andanças dele pregando a
Diziam que estavam em busca de armas e “terroristas”,
“palavra de Deus” por este Brasil afora. Ele viajou muito
os perseguidos políticos do regime. Em uma destas oca-
e até conheceu outros países. Foi no litoral paulista, em
siões, meu pai sentou-se em um banco do lado de fora da
Santos, que nasci, em 12 de julho de 1966.
igreja, lendo a Bíblia aberta. As portas e janelas ficavam
Aquele bairro carioca, apesar de tudo, era bem tranquilo, abertas para a revista dos soldados, e eles entravam em
visto como se encontram hoje as regiões pobres do Rio todas as casas, com pastores alemães, farejando tudo,
de Janeiro. Naqueles tempos, tão distantes desta guerra soldados com metralhadoras e muita gritaria de ordens.
não declarada de hoje, vivíamos em paz, apesar de O povo da comunidade olhava tudo em silêncio, e se
haver criminalidade, como em qualquer lugar haja falta encontrassem algum barraco fechado, punham abaixo.
emprego e pobreza. O morro fervia quando saíam alguns
172 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 173

Eu não sabia, mas isto acontecia em muitos outros luga- IV


res. Eram tempos do AI-5, e a coisa ficava muito pesada,
Acordamos em São Paulo. Uma neblina opaca cobria a
principalmente para a população pobre. Em vez de acha-
cidade. Nas ruas vazias, as luzes dos postes preenchiam
rem “terroristas” e armas, eles só encontravam alguns
a madrugada. O sol ainda não tinha nascido. O trem visto
facões e armas leves, no máximo algum revólver escon-
pela janela da nossa cabine era de uma cor cinza prata
dido. No retorno do pente fino, ao final da tarde, eles
e seu brilho molhado deslizava pelas curvas lentamente
vinham descendo o morro, passando em frente às casas,
e casas e ruas ainda úmidas da madrugada fria. O trem
e de trás dos muros ficávamos observando enquanto os
diminuiu o ritmo quando foram aparecendo muitas fábri-
soldados levavam alguns homens algemados, em geral
cas, até que passamos pela estação do Brás e chegamos
negros, com uma corda que os prendia uns aos outros
ao terminal Júlio Prestes.
para não fugirem.
Uma multidão tomou a estação com a chegada dos trens
Na partida do Rio, lembro que me juntei aos meus irmãos
suburbanos. Embarcamos em um desses trens, e por
em silêncio, pois nunca tinha viajado de trem. Já estava
causa da neblina, não pudemos ver os prédios altos de
quase escuro quando saímos, meu pai trancou a casa
São Paulo. Assim que o trenzinho começou a andar, o
pastoral e fomos com nossas malas para a estação.
Centro desapareceu e entramos na periferia. As rodas
Embarcaríamos no trem das dez, que na época fazia
metálicas rangiam e o trem estava vazio, demorando
o translado noturno entre Rio e São Paulo. Partimos da
uma eternidade para chegar até Guaianazes, que nessa
Estação Central do Brasil. Do Rio de Janeiro, trago a lem-
época era apenas uma vila em torno da estação de trem.
brança da partida, do Cristo Redentor de braços abertos
O transporte coletivo até o centro da cidade era feito ou
no alto, iluminado, em meio à noite quente. Da lua cheia
por trem ou por uma linha municipal de ônibus da CMTC.
vista pela janela da cabine do trem, enquanto o Cristo
Outra opção era a que vinha de Ferraz de Vasconcelos e
flutuava. Levo também a lembrança das mazelas de
ia até o Parque Dom Pedro II. Após o desembarque, fomos
minha primeira infância, da vida difícil na periferia, dos
a pé da estação até nossa nova casa, que fora alugada da
pés descalços nos paralelepípedos quentes. E também a
mesma maneira como todas as outras em que tínhamos
alegria de vivermos soltos pelas ruas, empinando papa-
morado. O sol já estava aberto, e o calor do dia começava
gaio, correndo o dia todo, e nos divertindo, sem maiores
a aparecer. Chegamos em nossa rua e o caminhão com
preocupações. Como a imagem do Cristo para mim, tenho
a mudança já se encontrava lá, aguardando na porta, e
a impressão de que sempre posso voltar lá e pegar esse
o motorista descansava deitado numa lona embaixo do
trem de novo... Basta fechar os olhos e imaginar. Afinal, a
veículo, tomando um chimarrão.
cidade é realmente maravilhosa.
Quando entramos em nossa nova casa naquela manhã.
Esquecemos nossas mágoas e sentimos um aperto no
coração. São Paulo significava uma oportunidade para
crescermos na vida, mas também era um momento de
174 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 175
176 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 177

separação e tristeza, já que não viveríamos mais com Os domingos eram reservados para as sessões no Cine
nossos primos no Rio. Ao entrarmos na casa número 33 Guaianazes. Foi lá a primeira vez que assisti a um filme
da rua Andes, na Vila Minerva, parecia que havíamos no cinema. Lembro como a tela impregnava meus
ganhado na loto. Na frente, a casa tinha uma varandinha, olhos, e como eu me sentia, sentindo em meu próprio
como quase todas as casas de trabalhadores de antiga- estômago as porradas que o mocinho levava dos bandi-
mente. Sala, cozinha e dois quartos bem distribuídos. dos. Nos filmes, o grande momento era sempre quando
Meu pai comprou três beliches para quarto que eu dividi- ocorriam os duelos entre mocinho e bandido. Cara a
ria com meus irmãos, enquanto no quarto dos meus pais cara! Essa era a única hora em que a molecada parava
ficava o berço do meu irmão mais novo, Davi, que havia de zonear o cinema, e quando não se ouvia nem a respi-
nascido um pouco antes de mudarmos. Lembro que ele ração dos outros. Silêncio total. Todo mundo vidrado na
chorava sem parar. luz do projetor... O momento culminante era quando os
pistoleiros sacavam rápido suas armas. Era um delírio
A casa tinha um baita quintal cujos fundos davam para
geral. Depois a gente ficava tentando recriar os filmes
um pequeno córrego que cortava os terrenos das casas
em nossas brincadeiras. Anos depois o cinema fechou
vizinhas. Tinha tanta árvore que parecia um bosque, com
e no local abriram uma loja das Casas Pernambucanas.
bananeiras, mexeriqueiras, ameixeiras, pés de cáquis,
abacateiros e vários bambuzais. Havia também muitos As peladas de futebol também me marcaram muito.
passarinhos e meu passatempo preferido era subir nas Adorava jogar bola na rua e sempre voltava com um joe-
mangueiras e construir balanços. Passávamos o dia todo lho ralado. Aos sábados, porém, a coisa esquentava,
explorando e brincando, a rua fervilhada de moleques, porque os caras mais velhos, que já trabalhavam, tira-
correndo o dia inteiro. Mil histórias, como qualquer rua vam um rachão e então a molecada ficava em volta do
de periferia. Havia também os moleques da rua de cima campinho esperando uma oportunidade. Não era meu
que sempre jogavam marimbas nas linhas das nossas caso, pois sempre fui muito ruim de bola, cheguei a ten-
pipas, e nós para nos defender atirávamos pedras e esti- tar várias posições, ponta esquerda, defesa e até ata-
lingues neles, por causa dessas tretas havia muitas bri- cante, mas nunca acertava a bola, então acabavam me
gas no bairro. Quase não parávamos dentro de casa, e mandando pro gol, posição que ocupo até hoje.
nos quintais das casas apareciam tantos moleques que
Vivemos lá praticamente toda a década de 1970, che-
deixavam a vizinhança doida. O que mais gostávamos
gamos no início de dezembro de 1972 e no final de 1979
era de brincar de polícia e ladrão, bang-bang e imitarmos
saímos de lá. Por conta da religião, não podíamos jogar
os super-heróis que víamos no cinema. Tudo era impro-
bola, ir ao cinema e assistir à TV, mas fazíamos tudo
visado. Dividíamos os papéis, construíamos os roteiros,
escondido do meu pai. Assim, ele não via a hora que
imaginávamos territórios, ataques, disputas com armas
meus irmãos começassem a trabalhar, e foi o que fize-
que a gente mesmo construía, com paus, folhas de bana-
ram meus três irmãos mais velhos, a Kedma, o Eliseu e
neiras e as tralhas que desciam pelo córrego.
o Elias. Com isso, nossa vida melhorou um pouco, mas
mesmo com essa ajuda deles, ainda era muito difícil
sobrar alguma coisa porque a família era grande.
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Os meninos foram trabalhar de office-boys numa empresa


que ficava no edifício Martinelli, onde trabalhavam mui-
tos office-boys. Eles pegavam no pesado distribuindo
recortes de matérias que saíam nos jornais sobre os
clientes. Minha irmã começou vendendo cosméticos e
depois foi trabalhar de datilógrafa em um escritório. Com
isso, todos passaram a estudar à noite. Comecei a des-
cobrir o mundo quando fui mandado para a escola, com
pouco mais de 7 anos. Estudei na Escola Estadual Pedro
II, onde, logo de cara, levei bomba, por conta das péssi-
mas condições da escola. O lugar era o próprio inferno!
Lembro que mudei de sala umas seis vezes na mesma
série, cada uma era pior do que a anterior. As professoras
não deixavam que os alunos fossem ao banheiro durante
a aula. Então o que acontecia de moleque molhando as
calças não era brincadeira. Pior ainda, todos morriam de
medo de ir ao banheiro sozinhos por conta de uma histó-
ria sensacionalista divulgada nos jornais populares que
falavam da “loira do banheiro”, uma espécie de fantasma
que nos assustava. Por estas e outras razões, as próprias
professoras não iam ao fundo da classe, pois o cheiro era
insuportável de urina. Voltei pra casa muitas vezes com
os shorts molhados. Lembro ainda que acordar cedo era
uma maldade, um frio de gelar os ossos. A escola não
separava o ensino fundamental do ginásio, e por isso, a
molecada sofria na mão dos mais velhos, que desconta-
vam seu ódio na gente.
Depois fui transferido para outra escola, a Escola
Municipal 25 de Janeiro, onde fiz o primário inteiro. Lá
só tinha classes da primeira até a quarta série e tudo
muito limpo e organizado. Foi onde me alfabetizei e des-
cobri que a classe não era lugar de urinar. Aprendi a ser
educado e esperar o lugar na fila, era fila pra tudo. Todos
usavam uniformes, camiseta branca e calção azul.
180 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 181

Descíamos uma classe por vez para a merenda, sendo grande terreno em volta da casa, que ia até o riacho que
que algumas eu odiava, mas éramos obrigados a comer corria nos fundos, foi todo ocupado por pequenas casas
algo como mingau de baunilha ou arroz doce, aquelas de tijolos à vista.
papas brancas. Quem se recusasse a comer passava
Tinha acabado de cair uma chuva e a rua, agora asfal-
todo o intervalo olhando pra cara do prato e não podia
tada, estava vazia, sem ninguém passando. No asfalto,
sair para brincar. O ensino, porém, era de qualidade e era
a água que descia da parte alta corria pelo meio-fio da
divertido atravessar todo dia por dentro da estação do
calçada. Parei em frente à casa e desliguei a moto. Fiquei
trem pra chegar à escola.
um tempo lá olhando cada detalhe, lembrando do dia em
Foi no 25 de Janeiro que eu soube o que era uma biblio- que os postes de luz da rua foram fixados e que a rua toda
teca. Tive muita sorte, pois, nessa idade em que a criança ficou iluminada a noite, e que cada pedacinho daquela
descobre o universo das letras, tive acesso à leitura, calçada tinha uma parte de minha história. Ainda que o
já que a escola ficava na parte de baixo da Biblioteca cimento fosse outro, a calçada era a mesma em que pas-
Municipal, a única em toda a região. A gente tinha o hábito sei a infância, correndo sobre ela. Quantas pessoas que
cabular aula para ficar lendo gibis e livros infantis, pas- passaram por ela, quantas histórias ela tinha pra contar?
sando a tarde toda na biblioteca. Para você ver como a Ainda caiam uns pingos grossos de chuva, tirei o capa-
vida escreve certo por linhas tortas, adquiri o habito da cete e deixei que a chuva molhasse meu rosto.
leitura fazendo coisa errada.
De alma lavada, liguei a moto e parti lentamente subindo
Pouco antes de parar de trabalhar como motoboy, a rua. Reconheci algumas árvores, ou pelo menos, o que
quando eu ia fazer uma última entrega do dia, tive a achei ter reconhecido, e elas ainda lutavam contra o
oportunidade de rever a biblioteca. O local me pareceu tempo. Algumas casas não existiam mais, outras resis-
bastante deteriorado, porém guardava ainda um pouco tiam mesmo que aos pedaços, coladas em outras cons-
daquela atmosfera, com pessoas circulando e muitos truções, como das antigas casas das famílias do Zinho, do
cartazes de eventos culturais fixados na entrada. Mas Boi, do Beto, do Pelé... Mais adiante, sorri quando vi que
não encontrei o tablado de madeira no chão onde pas- uma mercearia onde costumávamos comprar doces, com
sávamos horas deitados devorando o pequeno acervo suas portas altas e finas e com seus bêbados contuma-
de livros e revistas das estantes. Fui até o fundo onde zes, ainda encontrava-se lá. Engatei a segunda marcha
havia uma janela e pude ver algumas crianças brincando até o fim da rua e tomei um atalho em direção à estrada
em um parquinho na parte mais embaixo, onde era o do Lajeado Velho, que eu acreditava ainda conhecer como
antigo pátio da escola. Perguntei a uma funcionária e a palma da minha mão. Cortei por dentro de uns cami-
ela respondeu que o 25 de Janeiro tinha virado creche e nhos que antes conhecia bem para tentar sair do outro
só atendia o pré-primário. Como naquele dia eu estava lado quase em Ferraz de Vasconcelos, já no Jardim Alice,
com bastante tempo, também aproveitei e resolvi rever mas estava tudo mudado, haviam construído muitos bar-
nossa casa na rua Andes. Agora, a varandinha era uma racos e a favela tomava conta de toda a paisagem até a
antessala de um pequeno escritório de advocacia, e o beira das ruas, sem calçadas. Entrei em becos e vielas
182 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 183

que não davam em lugar nenhum... Foi então que eu me


perdi, e tive que refazer o caminho de volta até a avenida
antiga Estrada Dom João Nery. Há algo profundo na peri-
feria, que permanece vivo e resiste ao tempo.
Senti que os espaços e as distâncias da minha rua não
eram mais as mesmos e as medidas que eu tinha em
minhas lembranças eram outras. “Agora”, pensei, “os
poucos passos que levam do nosso portão até a esquina
não eram os quase quarenta passos que eu achava que
era. Vendo agora, aquela distância não me dava a mar-
gem de segurança que eu imaginara ao me esconder do
meu pai.” Por conta disso, dessa inocência, levei muitas
surras do meu pai, quando ele voltava de suas viagens,
e sempre nos pegava jogando bola na rua, ou então nos
encontrava na porta do cinema com a garotada. Aí que o
pau comia! Essas tais correções aconteciam com cinto
de couro ou com o que estivesse à mão, como alguma
vara de amoreira ou mesmo fio do ferro de passar. Havia
um preço por sermos filhos do pastor, e devíamos ser
exemplo para os outros. Deste ponto de vista, eram
tempos difíceis, pois não havia leis como o Estatuto da
Criança e do Adolescente, e ainda por cima vivíamos
tempos de ditadura militar, a esfera política de educar
e disciplinar o povo, a mesma linha dura que de certa
forma legitimava as coças que levávamos em casa. Não
sei se faço alguma comparação exagerada, só posso
dizer que também não sei se seria diferente se a situa-
ção fosse outra. Por conta de destas experiências, hoje
compreendo que temos que carregar na vida tais mar-
cas. É difícil culpar alguém, embora nunca devêssemos
esquecer as responsabilidades devidas, seja do Estado
ou da religião. Como uma rua tão simples, na periferia,
podia conter tanta vida?
184 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 185

Reencontrando meu caminho de volta pra casa, depois O quintal de casa era enorme e os fundos davam para
de terminar o serviço na região, em vez de voltar por den- outras chácaras que também tinham muitas árvores
tro de Itaquera, converti por Itaquaquecetuba e saí na altas e coqueiros. A casa fora construída pelo primo,
rodovia Ayrton Senna. Já havia anoitecido quando entrei quando morava em São Paulo, e fazia jus à sua profissão:
na Marginal Tietê, e o céu se abria às primeiras estrelas, ele era promotor de justiça e a casa tinha muitos cômo-
eu só dentro do meu capacete e com o ronco do motor. dos. A casa foi alugada para nós porque ele tinha se
Abri a viseira e deixei o vento entrar. Nesse momento, me mudado para Chic-chic, uma cidade do interior da Bahia.
lembrei dos versos de Octávio Paz, que andavam pela Estávamos ao mesmo tempo um pouco tristes com essa
memória e que na solidão daquele dia eram minha única mudança – como sempre ocorria, quando deixávamos
companhia no trânsito da cidade de São Paulo.Agora eu os amigos para trás -, mas ao mesmo tempo muito feli-
me preparava pra deixar de trabalhar como motoboy. zes, porque tanto os meninos quanto as meninas tinham
Como se estivessem caindo no nada, os versos vinham: seus próprios quartos. Meu pai comprou mais dois beli-
Sou homem, duro pouco, e é enorme a noite.
ches, já que havia aumentado a família nos últimos anos,
Mas olho para cima e as estrelas escrevem. e minha avó, que às vezes passava uma temporada com
Sem entender, compreendo: a gente, veio então morar conosco.
Também sou escritura! ...
Passamos a tarde limpando as coisas neste dia. Tudo
E nesse mesmo instante
ainda era novo, e nosso olhar acostumado com à pai-
Alguém me soletra.
sagem de Guaianazes agora descobria outras fon-
tes de alegria, como as muitas árvores frutíferas que
V não conhecíamos. Os orvalhos de frutos amarelos, as
pitangueiras - que na época das floradas ficavam bran-
A mais triste notícia que recebi na vida foi a da morte da cas com enxames de abelhas zunindo entre as folhas -,
minha avó. as jabuticabeiras, que brotavam seus frutos no caule
Havíamos mudado de Guaianazes para uma casa que como se fossem grandes bolas de gudes doces e pre-
pertencia a um primo do meu pai, numa rua que termi- tas, e muitas outras, que já nem lembro os nomes. O
nava às margens do rio Tietê, no Itaim Paulista. A rua tam- nosso plano era construir uma horta nos fundos do quin-
bém se chamava Tietê, e na época das chuvas as cheias tal. Todos se envolveram na tarefa e minha avó estava
do rio chegavam bem perto de nossa casa. Próximo de muito disposta, cantando e dando ordens. Meus irmãos
onde morávamos também passava outra linha de trem, mais velhos, que já trabalhavam, só voltavam à noite,
essa ia do Brás, do tronco Variante, até Calmon Viana, e então eu e os pequenos ajudamos minha vó. Quando o
os trens eram bem mais detonados. Fazia oito dias que quintal ficou totalmente limpo, sem nenhum entulho ou
havíamos feito nossa mudança e lembro que era um dia uma folha seca, ela pôs fogo no monte de lixo e entrou
quente de janeiro, início da década de 1980. Eu tinha pra tomar banho. Nós então fomos todos brincar e subir
cerca de 13 anos quando minha avó passou mal. nas árvores.
186 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 187

Mais tarde, depois de jantarmos, começou uma chuva e desde os 12 anos eu já ajudava minha mãe a vender
torrencial. Já que nossa religião não permitia assistir à Tupperware. Meu primeiro emprego com carteira foi, no
TV ou ouvir rádio, estávamos todos deitados sem fazer entanto, de office-boy. Um dia minha mãe falou:
nada. De repente, minha avó teve um infarto. Saímos — Amanhã você começa a trabalhar. Vai lá e compre um
correndo para buscar ajuda e encontramos um táxi jornal, que vou achar um emprego pra você.
que, por milagre, havia acabado de despachar um fre-
guês na esquina, e naquela chuva, ele foi imediatamente Subi até a banca ao lado da padaria na rua da estação
até nossa casa para levar-la para o pronto-socorro de e comprei um Diário Popular. Ela me recortou um anún-
São Miguel Paulista. Vovó Maria ficou na UTI e no dia cio e no outro dia cedo eu liguei da empresa avisando
seguinte um dos nossos tios veio vê-la, transferindo-a que tinha arranjado o emprego. Era uma fotocopiadora
para um hospital de Campinas. Lá ela apresentou breve e acho que o dono era turco. Na entrevista, depois de
melhora e recomendaram que ela ficasse internada por eu ter dito que morava no “Itaim”, ele simpatizou ime-
mais uns dias. Nesse ínterim, lembro que minha mãe não diatamente comigo, mas em seguida ele torceu o nariz,
saiu de perto dela, e minhas irmãs mais velhas, que iam quando repeti que morava no Itaim Paulista3. Os office-
e vinham, contavam-nos como ela estava. Foi em um boys eram a maior parte da periferia, e alguns amigos
desses retornos que encontrei minha irmã Keila na rua meus que já tinham passado por lá me deram muitas
e ela, com tristeza, me contou sobre o falecimento da dicas de como eu deveria trabalhar. O único problema
minha avó, a mãe da minha mãe. era que a copiadora ficava na Praça da Sé e só tinha
uma linha de ônibus que saía de lá até o Itaim. Eu tinha
Aquele episódio me marcou muito. Mas só recentemente, a alternativa de caminhar até o Brás e pegar o trem, ou
por meio de terapia, descobri nestes fatos de minha ado- então ficar horas na fila para me acomodar no aperto de
lescência, um processo depressivo que passei fato que um busão lotado.
antes eu nunca havia identificado com a morte dela. Sei
que muitos tiveram a oportunidade de viver com os avós, Nesse tempo tinham apenas uns seis office-boys, que
mas poucos puderam dividir momentos tão agradáveis batiam perna o dia todo entregando as fotocópias e
como os que tive com ela, como quando íamos visitá-la heliografias em dezenas de escritórios pelo centro da
em sua casa antiga de Poá. Ela deixou uma saudade pro- cidade, e também pegávamos muita fila nos cartórios
funda, que nunca morre. Lembro os momentos em que para autenticar documentos e cópias. Mas houve um
minha mãe me pedia que fosse levar alguma costura até tempo que a copiadora teve mais de vinte boys e era uma
oficina de minha tia que ficava ao lado da casa de minha das maiores copiadoras da cidade, mas com a concor-
avó e passávamos horas ouvindo rádio, tomando chá e rência grande, o movimento caiu e aos poucos os garotos
cuidando do canteiro de rosas. foram diminuindo, até o dia que a fotocopiadora pediu
falência e fomos dispensados. Eu trabalhei lá uns quatro
Antes mesmo de completar meus 15 anos e arrumar um ou cinco meses.
emprego, eu já me virava para levantar algum dinheiro.
Fazia geladinho em casa e vendia na rua, ou fazia car-
reto na feira. Cheguei a entregar marmita em fábrica, 3 Confusão recorrente com outro bairro nobre da capital chamado Itaim Bibi.
188 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 189

Ser boy era mais que um trabalho, era estar em contato descíamos correndo pelas escadas do prédio, deixando
com a cidade. Todo moleque queria ser office-boy. Outra os zeladores loucos. Comíamos as marmitas escondidos
opção, para quem tinha esta idade, era começar a tra- durante o expediente para poder sobrar mais tempo na
balhar nas fábricas como aprendiz, e depois subir como hora do almoço e irmos geralmente para as novíssimas
ajudante de oficial ou meio-oficial, até passar a operá- casas de fliperamas que começavam a brotar em toda
rio oficial na função de torneiro, chapeiro etc. Mas não a cidade. Creio que fliperama e office-boy têm alguma
era fácil, e a vida na rua era uma saída para quem não relação entre si, pois nos anos 1980, pra mim, essa
queria pegar no pesado de uma fábrica escura ou andar união foi muito feliz. Mas tinha um problema: office-boy
incansavelmente sob sol e chuva. Conhecer a cidade, no ganhava mal e muito mal. E eu ainda tinha um problema
entanto, era uma experiência única. Para dizer a verdade, a mais: dividir meu salário mínimo com minha família,
no começo é como entrar em um labirinto de ruas, cru- quero dizer, eu trabalhava, mas ainda não controlava
zamentos, prédios, esquinas, praças, repartições e mui- minha grana, entende?
tos bancos. Até aprender tudo, como me guiar e conhecer
Bom, foi daí que tive uma ideia que nos colocou em verda-
as ruas pelos nomes, ficava me perdendo e me achando,
deiros apuros. Um dia pela manhã cheguei com um enorme
pedindo informação para outros boys e me virando como
ímã na fotocopiadora. O Manuel, que era o boy mais antigo
dava. Não foram poucas as vezes que me perdi. Saía com
e filho de um português que morava na zona cerealista, me
minha pasta de OO7 batendo pelas esquinas até achar
perguntou pra quê eu queria aquilo. Eu disse:
os tais prédios. No começo, o patrão sabia que a gente
se perdia, mas depois que você tinha mais de um mês — Na hora do almoço você verá...
de experiência ele botava pilha, cronometrando a cada Chegou a hora do almoço e o Manuel colou a OO7 em
minuto, ligando para os clientes e descontando os minu- cima da minha, pra ter certeza que sairíamos juntos. Deu
tos do nosso almoço. Para mim foi um aprendizado, me certo, eu, ele e o Tom fomos para a Praça da Sé. “Agora”,
virar sozinho e fazer minhas próprias escolhas, me ligar pensei, “teria grana pra jogar fliperama e eu era um
nas malandragens e não cair nos contos do vigário que gênio!”. Era uma segunda feira, e nos domingos a praça
infestavam a cidade com seus golpes. Nunca caí em tornava-se um dos pontos turísticos mais visitados da
nenhum, afinal, tive a sorte de ter dois irmãos que foram cidade, cheia de gente que lançavam moedas nas fon-
office-boys antes de mim, e eles sabiam de todas as loro- tes e quedas d’água que têm lá. Ou seja, estávamos com
tas e trambiques que os caras jogavam nos otários, turis- sorte! Tirei um rolo de barbante do bolso, amarrei no ímã
tas e até nos moleques que começavam a trabalhar, e e lá fomos nós para nossa pescaria. Imagine nossa ale-
depois simplesmente desapareciam do mapa. São Paulo gria ao lançar o ímã nas piscinas e ele voltar todo colado
era uma verdadeira fauna. de moedas. Os meus amigos davam gritos de felicidade.
Ou seja, saí de casa talhado e pastei até aprender como Os bolsos da calça já estavam lotados e as pernas escor-
andar na cidade, tanto que comecei a ficar malandro. As riam molhadas pela dinheirama, quando de repente uma
horas de almoço eram uma farra, batíamos os pontos e porção de agentes de seguranças do Metrô pulou em
190 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 191

cima da gente. Não houve tempo de correr. Levaram-nos Eu chegava cedo e pegava as fichas dos clientes a visi-
pelos colarinhos a uma sala vazia e ficamos horas tran- tar, colocava-as na mochila e só voltava à tarde. Era uma
cafiados lá, levando um monte de esporro. Os seguran- empresa que vendia ou transferia informação cadas-
ças ainda nos ameaçaram caso voltássemos lá para pes- tral. Para chegar ao trabalho, era preciso pegar o trem
car moedas. Um agente veio conversar e nos levou pelos lotado no Itaim Paulista até o terminal no Brás. Lá fazia
subterrâneos, nos mostrou os cabos de força, expli- a baldeação até a Estação da Luz, que ficava próxima
cando a bobagem que fizemos com o ímã, pois podería- à empresa. Na volta pra casa, era o cão. Enquanto os
mos ter sido eletrocutados nas redes que iluminavam as trens da linha Variant, como era chamado o tronco Brás/
fontes da Praça. No fim não deu em nada, mas ficamos Calmon Viana, ficavam parados pelos trilhos aguardando
com as moedas. Pior foi levar uma senhora bronca do as sinaleiras para serem liberados, com todas aquelas
patrão, o turco estava branco, pois estava desesperado pessoas espremidas feito sardinha em lata, os Litorinas,
sem saber o que fazer com o “sumiço” de três office- que eram trens expressos que faziam a linha Brás-Mogi,
boys em pleno centro da cidade. passavam ao nosso lado aos milhões, e o povo ficava
enraivecido com isso4.
Com a falência da fotocopiadora, eu e os outros boys
tivemos que procurar outro lugar para continuar a tra- Eu estudava à noite na Escola Estadual Mário Kozél
balhar. Assim, como eu já estava descolado, dessa vez Filho, na rua de casa, mas sempre chegava atrasado à
comprei um jornal e logo achei outro emprego de office- aula. Inclusive, ao final do ano, alguns caras que pega-
boy. Agora seria num escritório de uma agência des- vam aquele mesmo trem não foram bem na escola e
pachante localizado na rua Brigadeiro Tobias, atrás do repetiram de série. Acabaram abandonando a escola.
Ministério da Fazenda, e era uma empresa pequena, só Ser office-boy, nesse sentido, era um atraso de vida:
havia os dois sócios e um office-boy, fui contratado na além de ganhar uma mixaria, passávamos horas na lota-
hora para a vaga. ção. Muitos não se interessavam em conhecer a cidade,
pois era preferível procurar trabalho em uma fábrica,
muito menos complicado. Em um mesmo dia, eu podia ir
VI do Alto da Lapa até Osasco, da Penha ou Guarulhos até
Se aquela fotocopiadora na Praça da Sé foi onde aprendi Santana, de Santana a Santo Amaro, e assim por diante.
a me virar no centro da cidade com minha pasta OO7, Logicamente, naquela época não havia motoboys, pois
nesta nova firma próxima à Estação da Luz pude conhe- esse seria um trampo para eles.
cer melhor a cidade e dimensionar de fato o tamanho 4 Para quem quiser conhecer melhor as agruras que o povo da periferia pas-
da metrópole de São Paulo. A partir de agora, em vez do sava nos transportes ferroviários naquela época, uma sugestão de autor é o
boca a boca, perguntando para as pessoas os nomes das Suburbano Convicto, Alessandro Buzo, que em dezembro de 2000 lançou O
trem - baseado em fatos reais, falando do cotidiano desta mesma linha Brás/
ruas, tive que comprar meu primeiro guia de ruas, para
Calmon Viana, e em 2008, publicou pela Coleção Tramas Urbanas seu Favela
não me perder mais por aí. toma conta.
192 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 193

Eu passava o dia andando de busão pra cima e pra baixo. e como minha família era grande, o dinheiro em casa era
O ônibus passou a ser a esfera em que a cidade aconte- coisa rara, daí ou se comia a marmita, em geral arroz,
cia pra mim. Ali onde nada parece acontecer é que real- feijão e ovo, ou se ficava com fome na rua.
mente tudo podia acontecer. Roubos, brigas, acidentes,
Aprender a mentir para o chefe foi o passo seguinte. Eu
namoros e tudo o que se pode imaginar. Conheci todos os
dizia coisas incríveis que aconteciam nos ônibus, e que
bairros e algumas linhas de ônibus pareciam que te leva-
me impediam de chegar aos destinos – a mente é pode-
vam para o outro lado do mundo, de tão longe que iam. A
rosa, acreditem! Claro que nesse tempo minha grande
cidade não tinha fim. Davam mil voltas, enchiam e esva-
paixão continuava a ser o cinema, então, rapidamente
ziavam. São Paulo é a “terra dos mil povos”, e os office-
decorei os horários das sessões e acompanhava pelos
boys que a gente acabava conhecendo pelos ônibus iam
jornais todas as estreias. Fora aqueles filmes sem noção,
trocando ideia, se conhecendo e contando as malandra-
a que a gente assistia por acaso, só pra matar o tempo,
gens que faziam pra matar a grana dos patrões. Eu não
vi praticamente todos os filmes que estrearam nas telas
tinha como fazer isto, pois todos os trampos eram feitos
da cidade. Ia ao Cine Olido, Marrocos, Ipiranga e Marabá.
de ônibus, e meu chefe dava a conta exata das passa-
Os cinemas Metro, Ritz e São João depois passaram a
gens. Só de vez em quando ele dava um trocado a mais,
somente exibir pornochanchadas. As salas no Copan,
talvez por consciência pesada, por que sabia que eu
Bristol e Metrópolis passavam filmes inesquecíveis. O
retornaria muito tarde e ficaria com fome pelo caminho.
famoso e pioneiro dolby stereo, o Cine Comodoro, que
Nem sempre, quando voltava à tarde, a marmita estava ficava na avenida São João, o único a ter este sistema de
em condições de consumo, e muitas vezes voltei pra som estéreo. Todos queriam ir lá porque o som fazia até
casa com fome, porque não havia geladeira no escritó- as cadeiras tremerem. Tinham também os cinemas de
rio, e para esquentar a marmita eu usava uma espiri- bairro, que aos poucos eu fui descobrindo. Lembro-me
teira aquecida a álcool no chão do banheiro. A marmita de tantas tardes que passei no Cine Júpiter, no São
estragava com o calor, lá só tinha arquivos e, às vezes, Geraldo e no Cinema da Penha. Todos estes cinemas
ela voltava cheia de comida azeda pra casa. Então fui perderam suas clientelas e a maioria fechou, apenas um
aprendendo a me virar. Se por um lado não tinha como ou outro ainda resiste lá no centro.
levantar grana como os outros boys, que matavam o
Nessa época, meus irmãos já trabalhavam em bancos e
dinheiro do táxi pegando ônibus, por outro lado tive que
este era o sonho de qualquer office-boy. Como eles, que
criar minha própria estratégia, aprendi a ganhar tempo
começaram nos anos 1970 como boys, eu também que-
e morder os trocados do ônibus. Antigamente nos ôni-
ria chegar lá. Um dia, tomei coragem e fui falar com um
bus os passageiros subiam pela porta de trás e desciam
tio que era gerente do Banco Mercantil de São Paulo e
pela frente, então, eu aprendi como pular por trás e não
havia arrumado uma oportunidade para o Eliseu, meu
pagar a passagem. Virei um especialista e terminava o
irmão mais velho. Esse tio era muito bacana e havia sido
dia sempre com uns trocados no bolso. Esta não deixa
técnico do time juvenil do São Paulo Futebol Clube. No
de ser uma forma consciente para não ficar com fome,
banco ele era conhecido como o são-paulino, em casa
194 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 195

a gente o chamava de Nonô. Conversamos e ele escre- VII


veu uma recomendação em um cartão ao chefe do RH do
Fiquei no banco por quatro anos. Comecei de contí-
banco. Depois de toda a documentação pronta, cheguei
nuo, como a maioria dos que trabalhavam lá. O banco
na agência e mostrei a carteira assinada a um dos sócios,
era muito grande e ocupava quatro andares do prédio, o
com carimbo e tudo, e pedi que ele fizesse minhas con-
mezanino e o subsolo, onde eram a expedição e o caixa
tas, pois agora eu era contínuo. O ex-patrão ficou fulo da
forte. No quinto andar ficava a diretoria. Nós tínhamos
vida, pois eu ia embora e nem o tinha avisado a tempo de
que fazer circular os documentos por todo banco. As
contratar outro office-boy. Neste momento, percebi que
seções não tinham divisórias, portanto, no começo bati
o próximo moleque provavelmente passaria por tudo que
um pouco a cabeça para memorizar onde ficavam todos
passei, como aprender sozinho a dar nó em pingo d’água
os departamentos e as caixinhas de entrada e saída de
e não se perder por aí, mesmo trabalhando sem o regis-
documentos.
tro em carteira. como eu fizera.
Aos poucos fui fazendo amizade com os escriturários, e
No dia 18 de janeiro de 1982, passei a exercer a função
tudo corria na maior tranquilidade. Lá também aprendi
de contínuo no banco, como eram chamados lá os office-
a “rodar pastinha”, uma imagem muito recorrente, anti-
boys. Recebi um uniforme careta, um terno de tergal
gamente, pois quando sempre aparecia na televisão um
preto com oito botões dourados, gravata preta e camisa
moleque no centro da cidade rodando uma pastinha com
branca, e assim comecei minha nova vida de bancário.
o dedo, com certeza era um contínuo. É possível imaginar
Fui locado na agência central, que ficava na rua Líbero
a zorra que fazíamos, principalmente na hora da troca de
Badaró, um edifício todo envidraçado. Para comemorar
turno, ao todo deviam ser uns vinte a trinta rapazes, que
meu novo trampo, peguei a merreca do acerto de contas
na hora de bater o ponto iam trocar de roupa para entrar
do último emprego e passei na antiga loja Mappin que
ou sair, todos nos encontrávamos ao mesmo tempo,
ficava na praça Ramos de Azevedo em frente ao Teatro
fazendo uma farra no vestiário. Não demorou muito para
Municipal. Aquele dia tive o prazer de comprar meu pró-
eu ser recomendado para trabalhar na seção de conta-
prio presente, um skate importado, e voltei todo feliz
bilidade do banco. Muitos departamentos tinham seus
com ele debaixo do braço dentro do trem. Acho mesmo
próprios contínuos, e aqueles que se destacavam eram
que aquele foi o primeiro skate que desceu pelas ruas
locados em seções específicas do banco, e logo tinham
do Itaim Paulista, pois por onde passava todos me para-
oportunidade de se tornar escriturários. Seu Minelli, que
vam e pediam pra olhar a tábua de rodinhas. Queriam
coordenava toda a expedição, era quem nos indicava aos
saber como andava e não resistiam, precisavam pegar
chefes das seções quando estes solicitavam um novo
pra acreditar. O skate era lindo pra c...
contínuo. Os “peixinhos”, aqueles que eram apresenta-
dos por algum funcionário do banco eram promovidos
rapidamente. Muito moleque que tinha até pego o jeito
rápido de trabalhar chegavam a passar quase dois anos
rodando pastinha sem promoção, por não serem peixes.
196 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 197

Este período foi muito bom pra mim. Eu trabalhava seis necessidade pela fé honesta de meu pai, enquanto isso
horas no banco, das sete à uma, e chegava cedo em casa os outros caras, que comandavam a igreja construíam
sem precisar passar aquele maldito sufoco nos trens casas, trocavam de carros e tudo mais. Por conta destas
lotados da tarde. Agora tinha tempo para estudar, andar crises, não tínhamos mais condições de manter as des-
de skate e ainda chegava cedo à porta da escola, para pesas e tive que contribuir com uma parte maior do meu
poder brincar nos fliperamas que tinham por perto. No salário. Nesse sentido, meu emprego no banco para mim
entanto, logo as coisas começaram a piorar pra todo era um refúgio, pois ninguém mexia comigo, eu vivendo
mundo, aquela década de 1980 ficaria conhecida como numa solidão eterna, isolado do mundo. O Brasil vivia a
a “década perdida”, e comprovo isso pelos aperreios que agonia do fim da ditadura e começava a democratização,
passamos. Meus irmãos, que sempre se viraram muito perdemos a Copa de 1982, 1986 e 1990, que foram senti-
bem, começaram a ser mandados embora nos bancos dos como pesadelos seguidos.
onde trabalhavam. Lembro, em certa ocasião, que eles
Depois de morar no Itaim Paulista fomos morar em
rodaram de uma só vez. Minha mãe já não tinha tanta
Ermelino Matarazzo, e aí as coisas começaram a mudar
força para ajudar em casa e as despesas com tantas
para mim.
crianças eram muito altas. Neste período da história
do país faltava carne, leite e outros alimentos básicos,
o Brasil enfrentava uma grave crise e havia uma grande VIII
pressão da sociedade por um regime democrático. Ao
nosso modo, sentimos o reflexo disso em casa também Por causa de todos aqueles conflitos religiosos, um dia
em outras esferas. De um lado, meu pai era cobrado tivemos que sair de casa. Ainda moramos, depois que
pelos fiéis da igreja pelos seus filhos viverem livres e não saímos do Itaim Paulista, em uma pequena casa na rua
seguirem as regras da religião. Por outro, dependendo Rainha do Bosque, junto da favela do Ermelino Matarazzo
dos nossos salários para manter a casa, nosso pai não e até fiz algumas amizades por lá, jogava muita bola com
podia nos botar cabresto nem nos mandar embora. a galera da favela e aprendi a gostar de pagode e samba
de raiz. A violência do bairro não diferia muito do quadro
Meus irmãos mais velhos e meu pai começaram a brigar geral da ZL5. Mas não seriam mais como os tempos de
porque não íamos mais à igreja. Isto aconteceu justa- molecagens na Rua Andes, em Guaianazes, onde eu, o
mente no momento em que começou a rolar uma desa- Betinho, o Pitchú, o Bolão, o Isaias e o Zinho, nós tirá-
vença interna entre os pastores e a igreja começou a vamos o dia para brincar nas árvores, catar latas pelo
rachar. Foi um rolo, que mesmo se eu quisesse não con- córrego para vender no ferro velho e soltar papagaio, lá
seguiria contar, enfim, depois de vinte anos com meu pai na rua formávamos um pelotão de elite de traquinagens
à frente da igreja, ele começou a afundar em depressão, e e planos mirabolantes.
por conta de sua fé nos homens, viu-se traído e abando-
nado, até porque também não tinha mais forças para vol-
tar ao mercado de trabalho. Ele tinha sido gráfico antes de
ser pastor, e nesta função religiosa nossa família passava 5 Zona Leste da capital.
198 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 199

Toda essa molecada cresceu. Cheguei ainda a encontrar


alguns, mas a maioria ficou por lá mesmo, casaram-se e
tiveram filhos na vila, filhos que talvez tivessem as mes-
mas aventuras e agruras que vivemos, incluindo os infe-
lizes traumas de ver de perto alguns tiroteios e assas-
sinatos, como os que chegamos a presenciar na nossas
quebradas. Quando você passa por uma experiência
dessas, isso te deixa marcas que te acompanharão pra
sempre. Creio que o tipo de formação desses garotos, de
baixa escolaridade e pouco, ou nenhum, acesso a cul-
tura termina sendo mais dramático, por isto mais real no
sentido pleno da experiência de viver. A luta pela sobre-
vivência na periferia - em relação àqueles que vivem na
segurança do seu bairro e shopping centers -, para esses
garotos a vida real não se passa na televisão.
Quando fomos morar na rua Quilombo do Ambrósio,
perto da Ponte Rasa, a última casa que morei com meus
pais, eu já não tinha mais amigos, então me isolei por
completo, e todo meu tempo era para estudar e tra-
balhar. Eu estava com 16 para 17 e era tão magro que
passava por um buraco de uma agulha. Não havia mais
clima de morar dentro da casa de meus pais. A igreja que
meu pai agora frequentava era ainda mais radical que as
anteriores, e eu e meus irmãos mais velhos não admití-
amos sermos enquadrados por regras de uma seita que
não tínhamos qualquer ligação. Ficávamos ainda porque
éramos o apoio financeiro da família.
Kedma, minha irmã mais velha, prestara o vestibular
pela primeira vez em 1978 e já trabalhava com arquite-
tura, mas ainda não tinha conseguido juntar dinheiro.
Elias foi quem mais sofreu naquela época, pois estava
desolado por não conseguir recuperar o emprego como
bancário. Eu e o Eliseu, que sempre fora meu irmão mais
esperto, seríamos os únicos que bancaríamos a história
a seguir. A Keila acabara de se casar e encaminhava a
200 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 201

vida dela, os do meio, Carlinhos, Lôra e Davi ainda não teatro e me convidou para fazer a sonoplastia de uma
tinham idade para trabalhar, e os pequenos, John, Kátia peça que eles estavam apresentando. Foi minha pri-
e Pepita, já na escola contribuíam para aumentar ainda meira experiência com arte e carreguei muito cabo, mala
mais as despesas. Apesar do desespero financeiro pela e muito figurino. Como agora era o único responsável pela
posição radical do velho não houve consenso, discus- minha própria grana, fui estudar em um colégio parti-
são que me recusei a tomar parte, e encontraram uma cular na Saúde, dividindo meu tempo ouvindo discos e
saída negociada. Mas não poderíamos ir todos, fomos indo ao cinema, conhecendo novas pessoas, e tudo isto
apenas os homens. Vendi uma bicicleta Caloi 10 que eu bem perto de casa. No banco também meus amigos cur-
tinha, minha única companheira, e meu irmão vendeu tiam muito rock e quando comecei a sair com eles para
um fusquinha que ele havia comprado há pouco tempo. as baladas tínhamos entre 18 a 21 anos, e agora todos já
Com essa grana, alugamos um apartamento. Um ano estávamos promovidos a escriturários. Trocávamos mui-
e meio depois, Kedma, cansada de segurar as pontas tas ideias sobre música, futebol e política. Não era proi-
por lá, veio também morar com a gente na rua Martim bido fumar em lugares fechados, naquela época, então,
Francisco, na Santa Cecília. o banheiro do banco ficava todo impregnado de tanta
fumaça. Ali eu passara a ficar sabendo de tudo o que
rolava no país. Havia muita inquietação política naquele
IX período pré-democrático, e lembro como todos os dias
“Queríamos ser épicos heroicos românticos descabelados chegavam às nossas mãos os folhetos do sindicato dos
suicidas, bancários, informando os movimentos sindicais e políti-
porque era duro lá fora fingir que éramos pessoas como as cos do país.
outras.”
Para escapar à pesada rotina da seção e ficarmos um
Caio Fernando Abreu.
pouco longe dos números e máquinas de calcular, tínha-
Depois que fomos morar no centro da cidade, tudo mos nossas próprias estratégias de fuga. Uma forma de
começou a mudar. Aquela vida sofrida com a apatia de fazer isto era escolher alguma “tarefa” fora do banco,
não poder fazer nada de interessante, o mundo que eu sair por algum motivo não justificado e dar um pulo até a
conhecia ficara definitivamente para trás. Agora minha Leiteria Alfa na rua Dr. Miguel Couto. Lá encontrávamos
vida se transformava e passei a sair com os amigos para sempre algum amigo e comíamos um X-tudo, aprovei-
bater perna pela cidade e beber, literalmente, mudou da tando para tomar uns conhaques, hábito este que todos
água para a vodca. A frase acima que citei resume bem o os boys e contínuos tinham no horário de expediente.
que foram os anos 1980 a partir dali, quando meus ami- Mas era um problema, porque colavam lá alguns caras
gos punks passaram a frequentar meu apartamento. que também eram contínuos, em sua maioria punks,
Trouxemos para a Santa Cecília apenas algumas pou- rockers, office-boys e sempre dava alguma confusão.
cas peças de roupas, um skate quebrado e um desejo Havia também uns caras que eram metaleiros e curtiam
profundo de mudar tudo. Ríamos muito dos tempos que aquelas bandas de metal comercial que a gente odiava,
íamos à igreja. Agora o Elias tinha começado a fazer e tínhamos vontade de socar eles. Enfim, chegamos às
202 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 203

vezes até a voltar ao banco, completamente bêbados. direitos políticos como pelos eternos reajustes salariais
Foi também tempo de reestruturação dos bancos, com que nunca vinham, culminou em uma das maiores greves
reflexo no quadro de chefias, os antigos de linha dura que houve na história do Brasil.
começaram a se aposentar e os novos tentando subir, a
Ao cabo do período de protestos no qual a Justiça deu
maioria bajuladoras de primeira ordem, que impunham
sentença de restituição à antiga diretoria eleita, e expul-
regras extravagantes, e mandavam pra degola os escri-
sou os interventores, os bancários começaram a se
turários que saíam da linha.
mobilizar, tanto pela recuperação das perdas salariais
O ambiente bancário agora era um verdadeiro terror. Com daqueles anos de crise e inflação galopante como por
o país na crise em que se encontrava, nosso medo era ser movimentos políticos mais amplos como as Diretas Já,
mandado embora, pois sabíamos que dificilmente con- que trouxe o país para a democracia. No ABC, os sindica-
seguiríamos outro emprego como aquele. Era um campo listas - que no início da década já haviam feito grandes
minado. Nunca se tinha certeza se um colega próximo paralisações -, agora se articulavam por mudanças na
poderia dedurar alguém. A sorte era que na nossa seção o política, e muito se falava sobre a necessidade de uma
cara que havia assumido a chefia era o Luizão, que estava nova Constituição para o país. Recebíamos diariamente
lá no banco desde os anos 1979 e era bastante tranquilo. o Folha Bancária, folheto do sindicato que passávamos
Além do mais, ele também curtia um bom rock-and-roll. de mão em mão. Quando estourou a greve, nossa agên-
Sofríamos pressão de todos os lados e éramos o tempo cia central foi uma das primeiras a parar. O país vivia um
todo vigiados, pois a cada dia ficava evidente que o sin- pandemônio, que pode ser relatado aqui por uma ima-
dicato estava se fortalecendo e eles temiam que entrás- gem triste e, infelizmente, inesquecível.
semos em greve. Assim, aos poucos fui me identificando
Naquela época, o Estado de São Paulo era governado por
com as reivindicações, com o movimento anarquista
Franco Montoro, que, diga-se de passagem, estava entre a
dos punks, e encontrei, enfim, um lugar para deposi-
cruz e a espada, pois nas ruas o povo pedia as diretas e ele,
tar minha revolta. Graças aos protestos que surgiam de
que já tinha sido eleito pelo voto, tinha medo de um retro-
todos os lados exigindo mudanças no país, houve uma
cesso político, possibilitando que militares interviessem
grande pressão política para a volta de plenos direitos
em seu governo. Nesse caso, não poderia se imaginar o que
políticos. Por nosso lado, o sindicato dos bancários vivia
aconteceria. Nunca podemos esquecer também que se o
uma intervenção pelo governo militar e os antigos sindi-
governador fora eleito, sua polícia fora forjada nas caser-
calistas, que haviam sido caçados, iam pessoalmente à
nas do regime militar, brutalidade conhecida até hoje pela
porta do banco fazer o boca a boca, convocando diversas
população mais pobre, uma polícia estúpida e autoritária.
manifestações de protestos e exigindo a volta da direto-
Nem tudo que o governador dizia era cumprido. A polícia
ria deposta e o fim da intervenção no sindicato. Os pele-
militar descia o cacete em qualquer um que protestasse.
gos e paus mandados do banco ficavam de butuca, na
Este clima pesado trazia um grande medo à população,
eterna expectativa de flagrar algum bancário envolvido
e não foram poucas as vezes que saímos do banco sem
no movimento e dedurá-los. Essa tensão, que refletia o
saber se ia sobrar para a gente.
processo de democratização no país, e lutava tanto por
204 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 205

Assim, em uma dessas tardes de muito calor, enquanto espantaram as outras. De repente, desencadeou-se
nos esforçávamos para manter a concentração nos um corre-corre em todas as direções. Na Praça Ramos
números e fechar os balancetes diários da contabilidade, estava estacionada uma tropa de choque que reagiu ao
alguém que tinha a vista cansada e perdida no Vale cha- ver as pessoas correndo em sua direção. O pelotão foi
mou a atenção de todos: pra cima, descendo o porrete na galera. O corre-corre
— Gente, olhem pr´aquilo!...
geral se espalhou. Vendo apanharem lá na frente, as
pessoas começaram a voltar em direção ao Patriarca,
A agência central, como eu disse, ocupava cinco anda- onde outro pelotão os aguardava. Algumas pessoas des-
res em um daqueles grandes edifícios que tem vista para ceram as escadas e outros seguiram às ruas laterais do
o Vale do Anhangabaú. Da nossa janela do quarto andar viaduto. Ali o pau comeu também. Como embaixo do via-
era possível ver desde o viaduto do Chá, cruzando o Vale, duto, era gente pra todo lado, apanhando sem saber por
até o outro lado, o viaduto Santa Ifigênia. De repente, quê. Criou-se um frenesi geral na cidade e a sensação de
um a um, todos os bancários começaram a sair de suas medo se espalhou. Todos estavam em estado de choque!
mesas com seus jalecos azuis desbotados e se diri-
giram para as janelas: o que víamos era muito grave e Logo depois, ao final do expediente, fomos para a Praça
nos chocávamos pela violência gratuita. A tarde estava da Sé para pegar o metrô. Foi preciso tampar o nariz
abafada, um terrível mormaço. Enquanto aqui e acolá por causa do cheiro forte do gás lacrimogêneo. A cidade
caía um pé d’água, desses rápidos, alguns caminhões estava devastada e aquartelada, lojas e bancos com as
da tropa de choque estavam estacionados próximos ao vidraças e portas destruídas, e muita gente presa e hos-
Teatro Municipal, sobre o viaduto do Chá. Uma segunda pitalizada. Passado uns meses, o povo saia às ruas pelo
tropa estava na Praça do Patriarca e uma terceira, que Movimento Diretas Já, os bancários ocuparam as saca-
só vimos depois, estava estacionada sob o pontilhão das do prédio do Banco Mercantil de São Paulo e grita-
do viaduto. Tropas armadas tomavam as duas pontas vam juntamente com um milhão de pessoas no Vale do
da passarela do Chá, sobre o Vale. Naquela época, os Anhangabaú pela volta da democracia no Brasil e o fim
carros ainda trafegavam nas largas avenidas do Vale do regime militar. Um ano depois, os bancários pararam
do Anhangabaú, hoje ocupado por uma imensa praça e o sistema financeiro do país, com a maior greve de todos
um túnel subterrâneo. Muitos pedestres passavam por os tempos, organizada pelo sindicato da categoria.
ali e os pelotões de choque, que estavam posicionados Essa greve, arquitetada na rua, recuperou a dignidade
em pontos estratégicos, formavam com escudos e cas- dos bancários paulistas. Lembro que na época os ban-
setetes barreiras ao lado dos caminhões. Foi quando cários não tinham o cartaz que têm hoje, mas depois
começaram a cair os pingões de chuva em frente à atual daquela greve todos passaram a nos olhar com outros
Prefeitura de São Paulo, na Praça do Patriarca. Com o olhos. Saíamos de agência em agência, fazendo pique-
começo da chuva, algumas pessoas começaram a cor- tes nas portas. As “comissões de esclarecimento” fica-
rer para se abrigar da chuva, e descuido do acaso criou vam acampadas em frente às portas dos bancos, por-
um caos. As primeiras pessoas que correram da chuva que era difícil convencer a todos sobre a importância
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da greve unificada, e comissões entravam nos bancos Nacional baixinho, outros a acompanhando. De repente,
para convencer os gerentes a encerrarem o expediente. todo a multidão embarcou no hino, e em vez das palavras
Cada agência fechada era uma grande vitória para o de ordem, o hino brasileiro foi entoado com lágrimas nos
movimento, e foi assim dois dias inteiros, 48 horas em olhos. Os policiais congelaram em silêncio profundo, e
que o centro financeiro do país parou. Um fato impor- os maloteiros, que já estavam com o pé na calçada, não
tante que presenciei, e merece ser relembrado, acon- tiveram mais coragem de dar um passo e recuaram para
teceu durante um piquete na porta da Compensação os carros-fortes. Então cantando e comemorando, ocu-
do Banco do Brasil, onde eram compensados todos os pamos a porta de entrada do Banco do Brasil e selamos
cheques da praça da capital. O piquete já durava horas definitivamente a greve.
e não conseguíamos convencer os caras a parar, e havia
Quando lembro tudo isso e vejo esses movimentos nar-
um grande empurra-empurra na porta. De um lado,
rados nos livros de meus alunos, me pergunto quem era
os seguranças do banco junto com a polícia militar, e
aquele garoto de cabelo espetado, magrelo e coturno no
de outro, centenas de bancários com bandeiras, fai-
pé. O que ele pensava? O que eu sabia realmente? O que
xas e apitos. Já eram quase quatro horas da tarde e a
eu poderia ou viria a ser? Como tudo isto veio aconte-
Compensação, que ficava na Líbero Badaró, continu-
cendo? Como vim parar aqui hoje. Que importância tem
ava aberta. Os fatos recentes do viaduto do Chá ainda
esse processo de democratização que vivi para a histó-
estavam frescos na memória. Ninguém queria voltar
ria dos motoboys?
machucado pra casa, mas também não tirávamos o pé da
porta. A tensão era muito grande e formávamos um bloco Depois da greve, meu irmão Eliseu, que hoje trabalha no
com homens mais fortes prendendo-se pelos braços, a Instituto Paulo Freire, foi despedido do Banco Mercantil
linha de frente era ocupada pelos diretores do sindicato. de Descontos, por fazer parte de uma comissão que para-
Quando começaram a chegar os malotes, que naquela lisou sua agência. Houve muitas demissões também no
época eram trazidos pelo pessoal de carro-forte, per- banco em que eu trabalhava. Eliseu foi embora do país,
cebemos que se não fossem parados ali, os cheques como muitos jovens nos anos 1980. Elias casou-se com
iriam para a compensação, assim como no dia seguinte, uma mulher do prédio onde morávamos e se mudaram,
e seria ainda mais difícil paralisar o sistema. Tinha muita então, com 18 anos de idade, passei a morar sozinho no
gente e gritávamos palavras de ordem enquanto a polí- apartamento da Santa Cecília. Foi minha completa inde-
cia tentava formar um cordão de isolamento, e nosso pendência. Sempre me senti muito punk. Meu lema era
objetivo era impedir que os maloteiros entrassem. A tomar vodca e saber até onde ia minha liberdade, mas
calçada foi ficando pequena para tanta gente, o carro- para conhecer seus limites, você precisa chegar neles;
forte abriu as portas e o transportadores desceram com Então, passei a ficar conhecido no bairro durante algum
os malotes nas costas. Estávamos peito a peito, com os tempo apenas pelo apelido de punk. Dava muitas voltas
cacetetes na boca do estômago, os gritos da multidão pelo centro velho, não faltava a um show de bandas punk
atrás e empurra-empurra. Ao meu lado, uma senhora de e batia ponto nas galerias e lojas de discos. Enfim, virei
certa idade, também bancária, começou a cantar o Hino frequentador das casas mais underground da cidade,
208 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 209
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como Carbono 14, Madame Satã - o templo da subcul- Seja na música, na atitude e no comportamento, se
tura-, e Ácido Plástico. Com os grandes movimentos de olharmos com generosidade a juventude daquele perí-
bandas punk e hardcore, com os carecas apavorando odo, podemos reconhecer um lugar de conflito para ela,
a periferia e as noites tenebrosas pelo centro velho da que se situavaem uma sociedade que passava por uma
capital. Nunca tive medo de apanhar das gangues, era transformação profunda.
liso e me dava bem com todo mundo, conhecendo a
noturna e demoníaca cena underground paulistana. Por
exemplo, corriam para a Ácido Plástico todas as verten- X
tes do movimento punk, e se você “marcasse toca”, vol- Eu ainda era estudante, em meados dos anos 1980,
tava pra casa sem os dentes. A casa noturna, para o lei- quando passei a colecionar revistas de moto e a me inte-
tor ter uma ideia, era uma antiga igreja abandonada em ressar por elas. Meu sonho era ter uma Yamaha DT 180,
uma rua escura atrás da Casa de Detenção de São Paulo, que era minha cara. O emprego no banco até me dava
o antigo presídio do Carandiru. Enfeitada com uma cruz algumas oportunidades, e com um pouco de sorte, podia
de néon azul, a igreja ficava no fim da rua, ao lado dos morar sozinho e frequentar um curso técnico de infor-
altos muros da prisão. Lotava de gangues vindas de mática, mesmo assim era quase impossível naquele
todas as regiões da cidade. A coisa era feia! Todo mundo momento comprar uma moto. Portanto, era apenas
trajando preto, moicanos e cintos de metal, a própria um sonho distante. Não era comum naquela época um
visão do inferno. Porém, ao mesmo tempo, era a única garoto vindo do fundão da periferia ter uma relação tão
forma de sentir viva a batida rápida do punk rock, com o próxima com motos, e nem me passava pela cabeça que
sangue correndo nas veias e os olhos secos de fumaça. um dia eu aliaria motos ao trabalho. Na verdade, era
Creio que o movimento resistiu a alguns retrocessos e, algo inimaginável, até porque, como eu estava cursando
com sua revolta vibrante estampada nos gestos, no ves- o técnico em processamento de dados, buscava outro
tuário e na música, buscava uma alternativa à mesmice tipo de horizonte para mim.
medíocre a que se reduzira a vida dos jovens na cidade. Meu primeiro contato real com uma moto foi no próprio
Se por um lado pregávamos um movimento de cultura banco, quando um colega de trabalho, o Osvaldo Alexandre
urbana apolítico e apartidário, ao mesmo tempo havia Jr., comprou uma motocicleta, e curtíamos a liberdade de
enraizamento na luta da democratização política, pois acelerar pelas avenidas da cidade nos finais de semana.
não perdíamos um comício, e como em toda luta os lados Naquela época, a ZN era a região onde se concentrava a
estão visíveis, não poderíamos ficar indiferentes, então maior quantidade de motos na noite de São Paulo. Meu
a integração dava-se junto à esquerda radical6. sonho era voltar lá na periferia, onde eu deixara os velhos
amigos, chegando com uma moto, eu ficava horas imagi-
6 Em Revolução dos boys - a face oculta da cidade (2009), de Gilberto Lobato nando tudo isso. Pra mim, a grana era curtíssima, pagar
Vasconcelos, o leitor poderá encontrar maiores referências sobre esta relação
as despesas e o rango, e quando sobrava algum dinheiro,
dos office-boys e contínuos com a política e os movimentos de revoltas juve-
nis dos anos 1970 e 1980 em São Paulo. eu podia comprar alguns discos no final do mês.
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Ao lado do banco onde trabalhávamos havia um esta- setor e hoje deve ter se aposentado. A maioria tinha
cionamento de motos que, na década de 1990, viria a entrado como contínuo e só conhecia a rotina daquele
ficar conhecido pelos motoqueiros como a “Ilha”, uma banco, não tinha nenhuma outra especialização.
clareira entre os altos prédios da rua Líbero Badaró no
O legal mesmo era que, naquela época, apesar de todas
centro de São Paulo. Era um canto de praça com um
aquelas pressões, ainda mantínhamos nossas “fugas” e
pequeno mirante para o Anhangabaú, onde o pessoal
farras na Leiteria Alfa e começamos a explorar também
se encontrava para bater papo enquanto esperávamos
outros lugares. Nosso passeio começava na Woodstock
o horário de entrar nos bancos. Estacionavam lá suas
Discos da rua Dr. Falcão, onde íamos saber das novida-
motos, o mesmo local de que posteriormente os moto-
des e ouvir música, e terminava invariavelmente na lan-
boys tomariam conta, e foi conversando sobre motos
chonete do Bob’s da rua Direita. Mas entre um lugar e
ali, com aqueles caras, foi que percebi que liberdade e
outro, passávamos pelo Museu do Disco, na Barão, pelo
motocicleta tinham algum tipo de relação muito íntima,
Mappin e pela galeria Presidente. A Galeria do Rock, na
e então compreendi porque eu era apaixonado por elas.
24 de Maio, ainda nem existia. Às vezes, voltávamos com
Além de motos, também rolava um papo sobre as garo-
quatro, cinco ou até dez discos de vinil de uma vez. Íamos
tas e onde levá-las. Era esse o tal sonho de liberdade.
para o banco quase no fim do expediente na maior cara
O Sérgio, um destes caras, um dia foi mandado embora de pau! Um dia, conversando com Sérgio, ele comentou
e encontrou trabalho em uma empresa de contabili- que havia começado a dar uma cobertura aos office-
dade próxima ao nosso banco, na rua São Bento. Nessa boys, que enrolavam muito na rua, e que o chefe dele
época, ele tinha uma Honda XL 250 e foi convidado por gostou da rapidez com que o trampo era feito de moto, e
seu patrão para trabalhar de motoqueiro, uma vez que os que tinha sugerido que ele ficasse só como motoqueiro.
office-boys da contabilidade não estavam dando conta Nesta época, as motocicletas eram apenas utilizadas
do serviço. Daqueles caras, me lembro do Pedro, que para lazer, e combinar a máquina ao serviço era uma
me ensinou a fazer o serviço de contínuo, e sendo o ideia nova. Eu não podia imaginar as avenidas cheias de
primeiro dos demitidos, depois virou pedreiro. O Larry motoboys de hoje. Como ele ganharia a mesmo salário
Jerry Ballock, que depois saiu e terminou a faculdade, da época do banco, topou a parada na hora.
não voltou a trabalhar em bancos e virou consultor. O
A contradição era que eu queria também experimen-
Paulão conseguiu ir para outro banco, mas ficou por
tar isso, pois odiava aquela rotina do banco, então por
pouco tempo, hoje não imagino onde esteja. Creio que
um lado gostei daquele lance do Serginho, uma alter-
apenas que Rodolfo, um japonês bacana que torcia pelo
nativa pra continuar a ganhar bem. Porém, lembro que
Santos junto comigo, tenha se mantido na carreira de
torci o nariz, pois na minha imaginação a moto não era
bancário. Encontrei-o muitas vezes quando ia fazer
para trabalhos, mas para curtir a vida! Depois que saí do
algum pagamento na Nossa Caixa. Poucos ficaram. Em
banco, nunca mais vi este cara e a história desse moto-
especial o Flávio Mello, que fez jornalismo e depois foi
queiro caiu no esquecimento. Eu já estava a ponto de
trabalhar no Jornal da Tarde. De nossa seção só sobrou
explodir com o banco. Por conta de irmos para o traba-
o Luizão, que ficou muito tempo ainda como chefe do
lho com cabelo moicano, coturnos nos pés e as malditas
214 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 215

gravatinhas que o banco impunham, éramos os sujos e XI


revoltados. Não aguentando mais aquela burocracia,
A máquina eletrônica que eu operava no banco para
certo dia tive uma crise e desci correndo pra rua, à deriva,
fechar os balancetes, uma Sharp modelo BA-1000, con-
andando pelo centro da cidade até a noite, quando vol-
tabilizadora que mais parecia uma espécie de com-
tei pra casa. Faltei no dia seguinte de trabalho e voltei
putador movido a cartões magnéticos, hoje provavel-
na sexta. Fui direto para a mesa do diretor, e pra minha
mente ocupa uma prateleira em algum museu. Descobri
surpresa, o cara em vez de me pilhar de broncas, sim-
que aquela máquina era usada em contabilidade em
plesmente ficou me aconselhando a enfrentar as dificul-
algumas grandes empresas e logo achei um trabalho
dades e os conflitos da vida, lembrando-me de que eu
numa empresa distribuidora de produtos químicos, em
era jovem e tinha futuro. Eu pensava, largado na cadeira,
Pinheiros, atrás do Hospital das Clínicas, onde passei
segurando a ponta da gravatinha: “Que futuro? O que ele
uns poucos meses. Pouco tempo depois comecei tam-
sabia disso? Esse cara não passa de um cretino, e só por-
bém a fazer estágios pela manhã em algumas empre-
que é um diretorzinho ele pensa que pode ficar me dando
sas de informática. Logo surgiu uma oportunidade de
moral!” E ele continuava naquele papo furado, dizendo
me fixar em outra empresa, da área de computação. Saí
que se naquele momento eu tinha uma posição estra-
da distribuidora e me tornei trainee, e foi a última vez
tégica no banco, pois era quem lidava na contabilidade
que trabalhei com contabilidade.
com o fechamento do balanço, isto me permitia ter uma
visão panorâmica e galgar os degraus para futuras sub- Entrei nessa área, que então começava a despontar e
chefias... Que belo esforço! Ele realmente não entendera ainda tinha poucos profissionais. Ganhava bem menos
nada da minha agressividade, já começava a ferir minha que os programadores, mas sentia que estava dando os
inteligência com aquelas baboseiras e coisas do tipo. passos certos, e que a oportunidade de trabalhar numa
Eu ficava pensando: “Existe um ser humano embaixo empresa que dava suporte a fábricas de computadores
desse terninho alinhado? Será que ele não percebe que Prológica era um bom começo. Ali eu poderia me tornar
existe um mundo além dessas portas, ou ele é mais um um técnico em informática. Logo fui convidado por um
daqueles burocratas trituradores de pessoas?” Com cliente para trabalhar diretamente para ele, pois ele
franqueza, expliquei as razões do meu desligamento, comprara um daqueles computadores que eu já domi-
de como aquela odiosa estrutura massacrante diária já nava, e precisava de um programador para operar. Não
não interessava mais, e pedi que colocassem meu nome posso dizer que estava muito satisfeito: sempre fui
no topo da lista do próximo corte de funcionários. Saí bom e gostava de lógica computacional - até pensei em
da sala de cabeça erguida e com muito orgulho. Admirei fazer faculdade -, mas, diferente de outros programa-
minha coragem de enfrentar o destino e olhar pra frente, dores, eu me interessava pelos resultados do meu tra-
não tendo mais medo do futuro. Os colegas aguardavam balho. Incomodava-me ver que minha criatividade era
de fora e apertaram minha mão. Pouco depois veio o usada para reestruturação e racionalização dos cus-
facão, e no dia 04 de fevereiro de 1986, após quatro anos tos da empresa que terminavam invariavelmente em
na função, deixei pra sempre aquela seção e o elefante corte de pessoal. Nunca curti o fato de, ao introduzir um
branco que era o banco.
216 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 217

novo processo na gestão da empresa, esta minha ação informação e era muita coisa distorcida. Ao contrário
levasse às decisões de dispensa de funcionários. Eu das outras famílias de pastores, eu e meus irmãos sem-
nem sempre sabia das coisas, mas sentia que as pes- pre buscamos no estudo uma forma de sair da ignorân-
soas me temiam, por conta desse poder que a máquina cia e da pobreza, buscávamos outras referências além
tinha sobre a mente e o trabalho delas. Minha função era da Bíblia. Chegavam lá emcasa alguns livros extraordi-
sistematizar, economizar, racionalizar e maximizar os nários que meus irmãos traziam. Lemos também muita
lucros. Muitas vezes tive vontade de vomitar... bobagem, mas havia muitos livros legais. Li, por exem-
plo, A náusea, de Jean-Paul Sartre, aos 14 anos e sinto
Mas o amor veio me salvar.
orgulho disso até hoje. Curtíamos muito literatura brasi-
Em 1987, eu já era técnico em informática formado e leira, como Jorge Amado e seus Capitães de Areia, Érico
trabalhando numa grande rede de lojas. Então, resolvi Veríssimo com Olhai os lírios do campo, ou alguma coisa
dar um tempo sem estudar, não tinha mais certeza do mais histórica como A Coluna Prestes – rebeldes erran-
que fazer, ou o que queria da vida. Meio frustrado, muita tes, de José Augusto Drummond. Quantas vezes quebra-
coisa havia acontecido naqueles últimos anos e eu já não mos o pau por conta dos mais diversos assuntos, fosse
via meu futuro com os mesmos olhos. Apesar de a área sobre história do Brasil, política ou música, já que minha
de informática naquela época ser uma das mais promis- mãe lecionava música e meus irmãos mais velhos sabiam
soras, eu continuava descontente. Diziam que eu tivera tocar vários instrumentos. Gostávamos até de pintura. A
a sorte de ter escolhido a profissão na hora certa e que Kedma gostava de pintar e todo mês ela comprava fas-
eu deveria seguir em frente, fazer faculdade para com- cículos da coleção Mestres da Pintura, da Editora Abril,
pletar minha formação. Que eu poderia chegar a ser um que a gente colecionava com prazer. Para ficar por dentro
bem-remunerado analista de sistema.. De certa forma, de assuntos mais atuais sobre ciência, lembro que fiz a
as pessoas tinham razão, mas eu era punk, anarquista, assinatura mensal da National Geographic.
ateu, humanista e sei lá mais o quê, e odiava o que per-
Curtíamos música popular e samba. Elias, que começava
cebia como falsa aparência de normalidade e hipocri-
a se interessar por teatro e foi ator por uns tempos, era
sia que as pessoas tinham em relação a sua vida. Não
conhecedor de samba e MPB, e nos anos 1970 ele seus
compreendo ao certo, mas se me sinto desconfortável
amigos black power formaram um conjunto e faziam bai-
com certa situação eu logo largo. Então eu acabara de
les na Chácara do Padre, em Guaianazes. Mesmo depois
ganhar o mundo, mas não queria me prender a projeções
que virei adolescente e passei a curtir rock, não via pro-
de futuro. Precisava de tempo para viver, acho...
blema em conhecer outros estilos de música. Muitas
Vou fazer aqui um parêntese e tentar compreender o por- vezes, eu e o Nêgo, junto com o Vagner, outro amigo
quê de algumas coisas. Enfim, quais eram as expectati- nosso, caíamos para dentro da favela lá no Ermelino
vas para um garoto da periferia no início dos anos 1980? Matarazzo para ouvir os discos raros que os caras tinham
Quais eram as principais fontes de informação? Creio por lá. O pai do Vagner fazia parte de uma roda de samba
que os jornais, a TV e no rádio não eram. Claro que essas e passávamos longas tardes de sábado jogando sinuca
fontes que refletiam a realidade, mas faltava muita
218 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 219

enquanto ouvíamos o chorinho ao vivo pelas quebradas


da avenida Imperador. Samba de raiz, blues, os sons dan-
çantes da black music, sempre com James Brown e Tim
Maia. Também ouvíamos muito Fundo de Quintal, Bezerra
da Silva, Leci Brandão, Beth Carvalho, Almir Guineto e
Zeca Pagodinho, e conhecíamos o verdadeiro samba de
roda antes de virar pagode e tema de novela. Estavam no
começo também os bailes funk em galpões alugados em
São Miguel e fomos a muitos furacões. Enfim, nas domin-
gueiras, eu já tinha uma preferência pelo samba-rock,
porque podíamos dançar sem parar. Foi nessa época que
encontrei, numa edição da National Geographic, uma
matéria falando do universo dos computadores e me
senti motivado a estudar computação.
Na loucura da cidade, em um dia de dezembro, com
bela chuva de final da tarde, visitando uma amiga que
estudava comigo, a Tânia, fui apresentado à sua melhor
amiga, uma pequena menina muito linda que curtia
visual dark. Para minha surpresa, aconteceu o que um
dia teria de acontecer: eu me apaixonei à primeira vista.
Seu nome era Tutte, que em italiano quer dizer tudo. Eu
me apresentei:
— Olá, eu sou o Neka!

Como já se sabe, em Portugal, neca tem o sentido de


negação, ou seja, nada. Logo, alguma coisa aconte-
ceu, Tutte e Neka. Tudo e Nada. Foi inexplicável, mas os
opostos se atraem. Começamos a namorar naquele dia,
e um ano e pouco depois estávamos casados.
Feliz da vida com os preparativos do casamento, comprei
todos os móveis e os eletrodomésticos nós tiramos na loja
onde eu trabalhava. Numa ensolarada manhã de quinta-
feira, 31 de março de 1988, eu e ela fomos até o Cartório
do Jabaquara para casar no papel. Além de nossos
220 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 221

familiares, estiveram presentes alguns amigos. Não fize- operarem como terceirizadores de serviços. Não havia
mos festa. Não tínhamos dinheiro e íamos começar do ainda uma lei que regesse os contratos entre as empre-
zero. De cartório fomos para nosso apartamento de um sas e motoqueiros. Tal relação surgiu após a promulga-
quarto, que havíamos alugado no bairro de Mirandópolis, ção da nova Constituição do país, em 1988. O trabalho que
colocamos roupas mais leves e fomos os dois passear de era, a princípio, informal, passaria a ser caracterizado
mãos dadas pelo Parque do Ibirapuera, que ficava próximo como serviço terceirizado. As empresas interessadas
perto de nosso novo lar. O dia estava lindo e as horas pas- em reduzir custos começaram a contratar estas empre-
saram vagarosamente com o amor no ar... sas de serviço de motos. Tanto os direitos como os deve-
res das empresas terceirizadas em relação aos clientes,
quanto dos trabalhadores assalariados que passaram
XII dessa forma a fazer parte indireta da cadeia produtiva
Enquanto isto, em São Paulo começou a surgir o precur- estavam submetidos à lógica do mercado, permitindo
sor do“motoboy”: o office-boy com moto. àquelas tomadoras de serviço selecionar os melhores
preços sem se preocupar com a qualificação desse pes-
A mais antiga lembrança que tenho desta nova profis- soal. A novidade diminuía drasticamente os custos, pois
são, além do meu colega de banco, que passou a fazer elas não tinham gastos adicionais com contratação de
serviço de boy com sua moto, foi relatada a mim por pessoal, colocando sob responsabilidade das prestado-
minha cunhada, que em 1986 era secretária executiva ras de serviços a contratação de pessoal, muitas vezes
e disse ter usado os serviços de um office-boy externo. com os direitos básicos dos trabalhadores negados.
Tinham entregado lá um cartãozinho. Ela me contou que
o serviço era prestado por um motoqueiro de bigode, Bancos e multinacionais também começariam a fazer uso
cavanhaque e jaqueta de couro com botas altas, com do serviço de terceirizados, dispensando seus funcioná-
uma moto turbinada e um bauzinho branco preso na rios e contratando empresas interpostas para realizaros
rabeta. Havia um adesivo no baú escrito “call boy” (algo mesmos serviços. Antes disso, eram poucos os empresá-
como “chame o garoto” em inglês), com número do tele- rios no setor que se arriscariam a entrar nesse mercado
fone dos caras. Essas pequenas empresas com dois ou e somente quando essas grandes instituições começa-
três motoqueiros do início, não saberíamos dizer a pro- ram a terceirizar estes departamentos é que ficou claro
cedência nem a quantidade, mas apareceriam e desa- o próprio conceito de mensageiro motorizado. O custo
pareceram aos montes na capital em curtos espaços de manter uma frota de motos ainda eram altos, então
de tempo. a mesma dinâmica de relação entre as empresas-clien-
tes e as terceirizadas se aplicou ao contrato de trabalho
As primeiras empresas de entregas rápidas começaram com os mensageiros, e em vez de as prestadoras de ser-
a surgir em meados do anos 1980, contratando moto- viços comprarem e manter uma frota, elas simplesmente
queiros para prestar serviços a escritórios e outros tipos contrataram mensageiros com motos, usando mão de
de clientes, disponibilizando “office-boys com motos”, obra e automóveis de terceiros. Na prática, todos ganha-
mesmo ainda não existindo qualquer estatuto legal para vam, pois como veremos adiante, era uma profissão nova
222 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 223

que possibilitava que pessoas com pouca escolaridade um banco como contínuo e crescer, só poderia ingressar
pudessem entrar no mercado de trabalho e ganhar bem. nestas instituições tendo diploma de faculdade. Os con-
Como não havia ainda uma regra geral para regular este tínuos e boys desapareceram quase por completo.
mercado incipiente, cada empresa praticava o preço de
As condições para o surgimento dessa nova categoria
entrega que preferisse, isso dando margem ao apareci-
profissional não podem ser apenas explicadas apenas
mento do motoboy. O próprio nome motoboy ainda demo-
pela gradual entrada no mercado de empresas que con-
raria quase uma década para aparecer como denomina-
tratavam motoqueiros para prestarem serviços. Deve
ção desta nova profissão.
ser observado também o aumento do trânsito na cidade.
No princípio, éramos chamados apenas de motoquei- O tráfego urbano, com a entrada do Brasil no processo
ros, porque foram os caras que curtiam motos e a liber- amplo da globalização, se tornou um dos principais
dade de pilotar que começaram a buscar formas de usar entraves para a alta circulação do capital, e passou a
as motos como instrumento de trabalho, incentivando ser um dos problemas mais importantes das grandes
o “crescimento da categoria como uma nova forma de metrópoles. A solução apresentada pela motocicleta foi
uso do espaço urbano”, como diz o pesquisador da PUC, peça-chave para o incremento do comércio nos gran-
Roberto Shinji Ito. Esta informação é pertinente em rela- des centros financeiros e da segurança no transporte
ção aos motociclistas pioneiros, pois algumas empresas de documentos e informações. Somente então bancos
tiveram sua origem a partir da vinda destes motociclis- e grandes empresas começaram a confiar em nossos
tas para o setor de entregas, pessoas que após terem serviços e passaram a utilizá-los. Junto à lógica desse
trabalhado como motoqueiros, abririam seus próprios trabalho, uma enorme gama de novos serviços come-
negócios com o conhecimento que tinham sobre o uso çou a ser realizada por motociclistas, e até mesmo
racional da motocicleta. novos negócios surgiram na cidade a partir da inclusão
da moto na produção. Um exemplo clássico disto são as
Se por um lado, no fim da década de 1980, a terceirização
pizzarias, que ampliaram o raio de seus atendimentos
e a flexibilização nas leis permitiram a criação do traba-
aos clientes com as motocicletas, proporcionando con-
lho terceirizado, nem sempre a vida das pessoas melho-
forto e novos hábitos.
rava. O contingente desse pessoal de serviços gerais,
como foi o caso dos antigos contínuos e office-boys, foi O espaço da cidade transmuta-se com a mobilidade da
sendo gradativamente substituído pelos terceirizados, moto, a flexibilização nas relações trabalhistas e o baixo
e suas vagas desapareciam à medida que os motoquei- custo operacional da motocicleta em relação a outros
ros cresciam. Apesar de fazerem os mesmos serviços, a transportes. Estas são as principais razões que possi-
relação destes terceirizados com as instituições sempre bilitam explicar a explosão na contratação destes servi-
foi desvinculada, por exemplo, por nunca ter havido pro- ços a partir da década de 1990.
moção de um motoqueiro a um trabalho interno de um
Estas explicações, contudo, ainda não são suficientes
banco. Assim, estava encerrada mais uma porta para
para dar conta do surgimento da figura do motoboy nos
quem era pobre. Quem antes sonhava em começar em
grandes centros urbanos - e da sua cultura. Acredito
224 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 225

que foi preciso que os antigos motoqueiros e mensa- independência. Como também sua atomização que difi-
geiros motociclistas desconstruíssem sua autoima- culta a criação de estratégias coletivizadas para a orga-
gem, para que enfim a figura intrépida desse persona- nização de seu trabalho, e este é um problema quase
gem altamente urbano pudesse emergir. Aqui, porém, insolvível. Apesar dos motociclistas não terem o controle
já estamos no terceiro tempo do jogo, e para não atro- desta produção, o serviço prestado por eles é vendido no
pelar nossa argumentação, vamos por partes. mercado como produto, ficando ele subordinado a uma
relação empregatícia com seu empregador e assim, uma
É necessário lembrar que a profissão foi formada em
eterna ambivalência em relação aos seus direitos e con-
seu início principalmente por trabalhadores que tinham
tratos. Explico: como é sabido, alguns motoqueiros são
já alguma experiência em outras profissões, como ex-
profissionais autônomos e atendem diretamente aos
bancários, ex-metalúrgicos, ex-operários de construção
seus clientes, sem que dependam de um agênciador para
e assim por diante. Este caldeirão, na verdade, era uma
tanto. Aprendem, assim, a embutir todos os seus custos
experiência à parte, e discutíamos muito a respeito, as
no preço do serviço, mas estes motoqueiros ainda são
vantagens e desvantagens de cada profissão. Para uma
uma minoria. A grande maioria, os motoboys, vive em uma
verdadeira abordagem sobre as dimensões sociais que
situação sem saída, subordinada à lógica do mercado e
estes motoqueiros percebiam em seu dia a dia, desbra-
dependente de um patrão.
vando o trânsito e impondo uma marca de autonomia
que lhes garantia – e ainda garante – uma possível voz Ao seradmitido em uma destas empresas, o motoboy se
a ser sempre ouvida, acontece justamente devido à rela- depara com a seguinte situação: com seu ganho, ele pre-
ção com a motocicleta. cisa manter tanto a moto como a si mesmo. Em geral,
as empresas não registram logo de cara, o motoqueiro
Tal relação não pode ser compreendida se não estiver ao
passa um tempo fazendo serviços esporádicos até o
alcance do leitor a informação de fundo de que esta cate-
dia em que ele consegue um contrato fixo em alguma
goria foi construída a partir de uma diferença: o fato de
empresa-cliente. Quando é registrado, o motoqueiro
as motos, em sua grande maioria, pertencerem aos pró-
tem direito a fazer outro contrato de locação para sua
prios motociclistas. Isso permitiu que estes profissionais
motocicleta, somando o ganho do contrato do aluguel da
tivessem sua autonomia preservada, e por outro lado,
moto com o salário, daí o motoqueiro tira sua sobrevivên-
que se criasse uma cultura própria, talvez se as motos
cia, mas se qualquer custo a mais aparecer com a moto
desde o principio fossem de propriedade das empresas
ele é obrigado a tirar de sua sobrevivência, se quiser
não existiria a categoria no formato que existe hoje. Ou
continuar rodando. Existem outras maneiras de contra-
seja, a motocicleta cumpre não só o papel de ser a fer-
tação também, como os muitos motoboys que passam a
ramenta de trabalho do profissional motociclista, mas
vida toda apenas trabalhando de esporádico, assinando
também, deixando a esfera do trabalho, é objeto de pra-
contratos de autônomo sem ser autônomo na realidade,
zer e desejo, que pertence a outros campos da vida. Este
pois, lembre-se, ao disponibilizar sua força de traba-
diferencial talvez explique as muitas soluções encon-
lho e sua ferramenta ele se terceiriza e muitas vezes
tradas por estes profissionais no seu dia a dia, e aí sua
abre mão dos direitos trabalhistas para poder competir
226 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 227

no mercado. Muitos profissionais sequer sabem que a categoria deu àquelas pessoas que não tinham outra
têm direito a um contrato pela locação da moto, e pas- oportunidade na vida, e que perderam seus empregos e
sam a vida trabalhando como se fossem empregados, vieram tentar a sorte como motoboys, que mesmo des-
ganhando só o salário. É uma confusão e em cada lugar conhecendo completamente a realidade das ruas e dire-
encontramos diferentes situações. ção defensiva, permanecem na profissão, aumentando
ainda mais os problemas do setor. Penso que muitos de
Nosso objetivo neste livro é mostrar que sem o trans-
nós pararam nesta profissão com esperança de voltar às
porte de moto não haveria o negócio de entregas rápidas
antigas profissões. Éramos motoqueiros antes de tudo,
tal como conhecemos hoje. Quem detém o meio mate-
e muitos na primeira oportunidade sonhavam encon-
rial para a realização de tal negócio é o motociclista. No
trar algum tipo de sobrevivência sem deixar de andar de
entanto, como explicar o fato de que eles sejam os gran-
moto. Isso significava que, vendo a profissão como lugar
des prejudicados? Se der problema, as respostas rece-
de passagem, nunca houve um forte compromisso com a
bidas nas empresas variam de acordo com a situação,
coletividade, possibilitando margem para a relativização
tipo, “a moto é sua, você se vira” ou “você é meu empre-
dos direitos e falta de uma identificação com a função.
gado, portanto, me respeite”. Esta ambivalência se
estende assim por toda a teia de produção, o emprega- Este não pertencimento, como se não fizessem parte
dor se eximindo muitas vezes de suas responsabilidades de uma categoria, contribuiu para que a mesma não
e dando ao profissional sua liberdade, com sua própria fosse bem vista pelos próprios motoqueiros, outra rela-
moto e responsabilidade única por seu próprio destino. ção intrinsecamente ligada com a razão dos acidentes
Ao assinar um contrato de locação de seu veículo com e principalmente com a dramática luta diária do moto-
a empresa e outros tipos de contrato de trabalho, este ciclista contra os automóveis no meio do trânsito. No
misto de empregado-patrão, já que ele é proprietário fundo, havia a urgência da vida cotidiana de se obter o
do meio de transporte, e ao mesmo tempo subordinado sustento e competir pelo melhor alcançando seus resul-
ao regime de contrato trabalhista, cria contradições e tados. É necessário, porém, transpor a falta de compro-
vícios difíceis de sanar como a forma injusta de trans- misso com a especificidade deste trabalho, seja em sua
por suas perdas para o valor do serviço. Estas perdas se dimensão coletiva ou política, e compreender que este
acumulam com o passar dos anos sobre o faturamento compromisso tem relação direta com a lógica da produ-
do motoboy, e o motoqueiro fica refém de um sistema ção e do engajamento do trabalho na complexidade da
que lhe explora indecorosamente. vida moderna.
Um problema a ser levantado pode não estar relacionado Ao conversarmos com qualquer motoqueiro, os riscos da
ao fato do motociclista ser o dono da moto, mas sim ao profissão sempre aparecem no meio da narrativa. Ou seja,
fato de não está claro ainda para ele às vantagens e par- fica evidente o paradoxo que é o alto risco de se perder a
ticularidades da profissão e a forma concreta de se tor- vida em acidentes e ao mesmo tempo o prazer único que
nar um profissional competente e valorizado. Talvez daí vem da liberdade de pilotar uma moto. E isto é inenarrável!
venha uma explicação relacionada ao acolhimento que
228 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 229

XIII
Comprei minha primeira moto no final de agosto de 1988.
Era uma Vespa 200/E ano 86. Estava praticamente zero
quilômetro. Ela fora comprada por uma construtora para
os funcionários fazerem o serviço externo, mas depois
que a empresa passou a usar serviços de motoboy ela
tinha ficado encostada em um galpão, e a partir de uma
dica de um amigo, e fui lá e a adquiri. No princípio, foi
apenas para meu lazer. Não imaginava que minha pri-
meira moto seria justamente uma Vespa e que fosse
um dia trabalhar com ela. Nessa época, eu estava jun-
tando dinheiro para comprar outra moto. e então, como
o preço era irrecusável, paguei. Havia certa nostal-
gia nestes modelos de moto - que me interessam até
hoje. Curti muito aprender a andar de moto com ela.
Descobri em seguida que pilotar sem capacete não era
mais permitido, levei duas multas e fui imediatamente
obrigado a comprar um. Meu primeiro capacete Wind foi
um modelo aberto que os motoqueiros apelidaram logo
de peruzinho da Sadia. Além de aprendemos na marra
a usar capacete, que os motoqueiros não gostavam,
pois era muito bom o vento na cara, outra coisa eram
os mata-cachorros, que até hoje ninguém suporta em
moto, e tivemos também que aprender a não retirar os
espelhos nas motos. Depois de alguns tombos, aprendi
que o chão é liso e que pra tomar um róla7 é mais fácil do
que se imagina. Cotovelos e joelhos ralados, eu ia por aí
fazendo gingas com minha Vespa preta.
A princípio eu estava tranquilo, meu casamento ia bem
e dava para pagar as contas. Mas em meu emprego na
rede de lojas de eletrodomésticos, do Jean Bittar, as coi-
sas já não eram como antes e eu percebera que com o

7 Gíria usada para expressar as quedas em alta velocidade em que o motoci-


clista sai rolando pelo asfalto.
230 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 231

passar do tempo eu ficara desatualizado, e que se um Puxei assunto sobre sua profissão e ele começou a me
dia eu saísse dali, dificilmente encontraria um emprego passar o esquema de trabalhar de moto na rua. Era coisa
igual ou melhor que aquele. Na área de computação, fácil. Mas tinha que ser motoqueiro, pois, às vezes, eles
tudo muda muito rápido. Vi então que quem era dessa pegavam umas roças e se a moto quebrasse o cara tinha
área como eu, não poderia ter parado de estudar, pois que se virar sozinho. Tinha também suas vantagens,
rapidamente você poderia ficar fora do mercado. As como não ter que aguentar a cara do patrão o dia inteiro
empresas agora estavam contratando apenas quem já e ficar olhando para as quatro paredes de um escritório.
possuía diploma ou cursava faculdade. Naqueles quase
Conforme ele ia dizendo, eu ia acompanhando seu
três anos que fiquei lá, acabei me atrasando. Teria que
roteiro: buscar disquetes, documentos, fotos e outros
dar um grande salto se quisesse continuar trabalhar
materiais leves nos clientes e fornecedores e levar com
com computação. Então, dias antes de eu sair daquele
rapidez para a agência, pois lá eles fechavam as mídias
emprego, tive uma discussão com o gerente, pois não
e mandavam para a gráfica ou para a TV os anúncios
concordava que eles não fizessem mais investimento em
prontos. O trabalho dos motociclistas era dar cobertura
novos computadores, e que como aqueles equipamen-
a toda esta logística, não importando as condições do
tos não davam mais conta do recado, acabava sobrando
tempo ou do trânsito. Achei interessante e vi ali uma
para mim, pois tinha que fazer parte dos apontamen-
possibilidade de ganhar a vida como motoqueiro e ainda
tos e cálculos com as próprias mãos. Nada era on-line
gozar a antiga liberdade de andar pela cidade, como nos
como hoje, e o computador em que eu trabalhava era
meus tempos office-boy. Eu disse pra ele:
um trambolho. No início de 1989, de novo tomei a inicia-
tiva de pedir meu desligamento do emprego, e dessa vez — Putz! E vocês ainda são pagos para andar de moto?!
sem qualquer perspectiva de futuro, porém sem medo. Às vezes penso que não vale a pena resistir às coisas
Jamais senti qualquer terror de ficar desempregado, belas. Lembro-me da gravidez da minha esposa, um
mesmo estando casado. presente que não esperávamos e que recebemos com
Creio que a ideia de procurar trabalho de moto veio de muita alegria. Para mim, foi uma mudança muito grande
uma conversa que tive com um motoqueiro, que quando em pouco tempo. E com espanto, vi a barriga dela come-
eu trabalhava na rede Jean Bittar, veio sentar ao lado çar a crescer. Éramos muitos jovens ainda, e de repente
no computador e me contou como era seu trabalho. Ele tivemos que começar a ter responsabilidade com o
trampava numa agência de publicidade muito conhecida nascimento do Lucas, nosso filho. Acabamos lidando
e passava por lá às sextas-feiras ao final da tarde para muito bem com a situação, ela já não trabalhava mais
retirar o disquete com os preços promocionais, que eu e recebíamos nossos amigos com alegria e prazer nos
preparava para fazer parte do nosso anúncio no jornal finais de semana em nosso apartamento, para ouvirmos
de domingo. Por conta de ele ter ido muitas vezes lá, música, assistir a filmes e comer pizza. Não tínhamos
ficamos amigos e conversávamos sobre motos, pois na do que reclamar. Essa foi uma época muito boa para
época eu estava me preparando para comprar a minha. termos tempo com outras preocupações. Meu traba-
lho agora se resumia a sair de casa de manhã de moto
232 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 233

até Copeg, uma fotocopiadora perto da avenida Paulista, mais. Alguns até já trabalhavam em contratos e tinham
onde eu encontrava um trabalho de fazer entregas com remuneração fixa, além de receberem altas comissões
motocicleta. Parecia trabalho de office-boy, mas não era por serviços extras. Nessa nova empresa, tive meu pri-
a mesma coisa. Desde meu primeiro dia como delivery, já meiro registro como mensageiro motociclista. Ali eu pas-
comecei com uma baita dor de cabeça por conta do baru- saria os próximos dez anos da minha vida.
lho no capacete, tendo que me acostumar com o trânsito
pesado. Era um serviço que não exigia quase nada, além
da moto, do capacete, às vezes, também necessário o XIV
baú, a carteira de habilitação e o imprescindível guia de Mais que ficar indo e vindo, levando e retirando docu-
rua, que nem todos usavam. Quando meu filho nasceu, no mentos e fotocópias, o trabalho de mensageiro que eu
final daquele ano de 1989, até pensei em não continuar executava agora tinha outras obrigações. Costumo dizer
mais naquele trabalho, porque eu sentia no dia a dia com que comecei minha carreira como delivery, depois virei
os motoqueiros que havia sempre uma sombra rondando mensageiro motociclista e terminei um dia como moto-
nossas cabeças, e mesmo naquele período, muitos moto- boy. Mas não são somente nomes para a mesma coisa.
ciclistas já morriam no trânsito violento da cidade de São
Paulo, e eu sabia a dor que poderia causar caso tivésse- O bate e volta dos deliverys, seja entregando cópias
mos um acidente. Ao final do dia, colocávamos a capa ou lanches e pizzas, não exige muita estratégia. Muito
de chuva e nos mandávamos com a saudade imensa de diferente de um mensageiro, que precisa construir seu
casa, e não víamos a hora de chegar junto à família. cotidiano conforme o trampo vai pegando. O dia vai pas-
sando e o mensageiro vai mudando suas táticas, encai-
Mas ainda éramos muito poucos. A profissão nem mesmo xando os trampos, mudando os roteiros e criando novas
tinha nome. Naquela época, São Paulo era praticamente estratégias. Tampouco os motoboys esporádicos têm
só dos automóveis, e apenas cerca de 3 mil motoqueiros de enfrentar os mesmos problemas. No início, a cate-
trabalhavam como entregadores, e não tínhamos qual- goria ainda não era formada em sua maioria por moto-
quer destaque em relação a outros motociclistas que boys, como hoje, e nem mesmo existia ainda tal palavra.
circulavam pela cidade, deslocando-se para ir ao traba- Acontece que contratar um motoqueiro para fazer um
lho ou a lazer. No início do ano seguinte, um dos moto- serviço era muito caro. No meu trabalho mesmo, muitos
queiros que conheci na fotocopiadora saiu e foi traba- caras como eu entravam e só aos poucos iam trabalhar
lhar em outra empresa só de motoqueiros que prestava nos contratos. Os contratos, no caso, eram os postos de
serviços a grandes escritórios e bancos, e agora eu pas- serviço terceirizados dentro das grandes empresas e
saria a ser chamado de mensageiro motociclista. bancos.
Por isso, quando fui ver esta empresa em que meu cama- Assim, quando entrei, fiquei na reserva para ir suprindo
rada estava trabalhando, fiquei surpreso com a quanti- os motoqueiros quando algum faltava ou quebrava a
dade de motos que tinha por lá: quase trinta motoqueiros! moto. O legal era que os motoqueiros nos tratavam
Percebi que o negócio tinha futuro e cresceria cada vez bem e até ensinavam o trabalho, a fim de que quando
234 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 235

eles faltassem, o serviço fosse bem feito. Minha pri- poderem ser evitados, são a melhor demonstração
meira substituição para valer foi no lugar do Grecco, um de como os homens são falhos. Eu tinha acabado de
negão que ficou muito meu amigo, e mesmo muitos anos entrar na empresa e substituía um motoqueiro que tinha
depois de termos saído da categoria, ainda nos faláva- sofrido uma grave batida, quando eu mesmo sofri este
mos. Fiquei uns dois meses em seu lugar, pois ele havia acidente, entre muitos em que ainda me envolveria.
sofrido um acidente e ficara afastado. O contrato dele Claro que desde que aprendi a andar de moto eu já tinha
era em um banco e fui lá fazer a substituição e tocar seu levado muitos tombos e saído ralado, mas foi um grande
roteiro. O que me impressionou foi como as pessoas que susto quando me vi atingido por um carro na via paralela
trabalhavam no banco vinham perguntar como o Grecco à rodovia Anchieta. Eu estava a milhão quando acelerei
estava, e eu não podia dar nenhuma informação, e ape- pela via livre. Tinha um cara fazendo uma manobra irres-
sar de ainda não conhecê-lo, vi que ele tinha o maior ponsável e ele me atingiu no outro lado da pista. O carro
respeito. Este era um diferencial. O acidente foi até um acertou a traseira da minha moto e eu voei uns 50 metros
pouco grave, quebrando-lhe o maxilar. Quando o Grecco pela pista. A moto foi parar mais longe ainda. Rolei pela
voltou fui substituir outro cara, o Neno. pista feito um carretel e fiquei lá estrebuchado, me
levantaram pelos braços e me retiraram da pista com a
No começo, havia uma grande amizade entre os moto-
clavícula quebrada, meu braço e ombro esquerdos vie-
queiros, e todos tinham uma grande preocupação em
ram encostar-se à orelha, além das fatídicas raladas
evitar acidentes. Na maior parte formadas por moto-
pelo corpo inteiro, que todo motoqueiro sabe como são.
queiros experientes, as empresas ganharam estrutura
para atender bancos e multinacionais. Como eu disse, só Algumas vezes, por exemplo, por conta da má utilização
foi possível o crescimento do setor quando estas insti- dos freios, de uma falha direta de pilotagem ou ainda
tuições deram um voto de confiança necessário para que por inexperiência, não reconhecemos todas as arma-
os setores de transporte de malotes, até mesmo com dilhas do trânsito, o que pode fazer com que beijemos
cheques e valores, passassem a ser feito por nós, moto- o asfalto. A primeira vez em que voei foi naquele dia.
queiros. Na verdade, elas deram o lastro para seguirmos Depois de passar embaixo da alça da rodovia, na Vila
adiante. Logo eu estava ganhando mais do que quando das Mercês, já quase chegando ao meu destino, o Centro
trabalhava de operador de computadores, e não havia de Computação do Banco América do Sul, a única
razão para deixar de trabalhar de moto, já que era um coisa que lembro foi um automóvel que fazia a meia lua
trampo que não tinha patrão na tua orelha te enchendo o bem na minha frente. Como diz um verso do Poeta dos
saco. Estava na rua o dia todo, fazia novas amizades, e o Motoboys, que fala muito desta realidade, “coisas assim
mais importante, dava pra eu dar meus rolés sem preci- ensinam na guerra, a minha vida vale mais que a sua
sar dar satisfação a ninguém. entrega”, naquela instituição ninguém tomou conheci-
mento do meu drama e, assim, a partir daquele acidente
Em meu primeiro acidente quebrei apenas a clavícula.
percebi nossa fragilidade. O motorista também não
Os acidentes não acontecem sem razão. Não existe
assumiu qualquer responsabilidade, dizendo que olhava
acaso. Apesar de serem imprevisíveis e muitas vezes
236 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 237

pelo retrovisor aguardando um momento para manobrar fui jogado longe por um caminhão que vinha por trás.
e não viu que eu me aproximava em alta velocidade. Mas Não deu tempo pra nada, ele mal teve tempo de parar.
naquele local era proibido o retorno, e como nunca pude Carros e caminhões passavam ali em alta velocidade e
processá-lo por ter quase me matado, as coisas ficaram fiquei prensado entre as rodas traseiras do caminhão e
por isso mesmo e passei quatro meses sem poder subir o guard-rail. Bati na roda e fui arremessado feito turbilhão
numa motocicleta. para trás. Da moto não sobrou nada. Caí de costas no
asfalto em brasa. O malote ficou destruído e os cartões
Depois ainda sofri mais outras tantas porradas que
todos espalhados pela pista. Mas saí com vida.
perco as contas de vista. O mais grave acidente que sofri
foi quando eu tinha um contrato em um outro banco e A primeira sensação que se tem depois do primeiro
meu trabalho se resumia a dar apoio à logística da agên- impacto é de que ainda não acabou, que outras porra-
cia do banco que ficava dentro do Centro Operacional, das ainda virão e sua mente te direciona a sair dali ime-
em Santo Amaro. Era um daqueles contratos filés, que a diatamente. Ainda zonzo, tentei me levantar para sair do
gente quase não precisava se preocupar com a correria, alvo. Dei sorte porque o caminhão brecou bruscamente
já que o trabalho de fato era ficar de prontidão para qual- e os carros que vinham atrás pararam, um inferno, as
quer emergência que aparecesse por lá. Naquela manhã freadas. Minha perna esquerda ficou aberta, levantei a
fui até Alphaville buscar um malote de cartões de clien- cabeça e vi a ponta do osso branco. As pessoas saíam
tes do banco que tinham acabado de ser processados. dos automóveis e vinham em minha direção. Quando
Na volta, vim pela pista central da Marginal Pinheiros e você vê o mundo de baixo pra cima, o que se tem a fazer
s’imbora. Ao chegar próximo à antiga ponte do Morumbi, é aguardar o socorro, neste caso com asfalto quente
descobri que a pista de acesso havia mudado com a como fogareiro e mantendo a respiração para não apa-
construção da nova ponte. Fiquei em dúvida se valia a gar. Nesse momento, a cabeça já está longe, você pensa:
pena parar e dar um quebrão ou ir adiante, até a ponte “Puta merda como vou fazer pra pagar o aluguel? Quanto
João Dias, já em Santo Amaro. Parei no acostamento tempo vou ficar sem trabalhar? Como vou fazer pra
da pista para decidir. Próximo às obras, os tapumes arrumar esta moto?” Aí começam os pesadelos, antes
fechavam os canteiros, impedindo a transposição para mesmo de se chegar ao hospital... Esta é a cabeça de
a outra pista. Haviam mudado a logística do acesso à um motoboy. Sem falar que a família, aesta altura, se já
ponte e fiquei pensando como faria pra chegar ao outro foi avisada, entra em desespero. Quando não, é um Deus
lado da avenida Nações Unidas, porque não queria gas- nos acuda!
tar tempo e gasolina andando oito quilômetros até a
Passar três dias internado parece uma eternidade.
próxima ponte.
Alguns motoqueiros que tinham contratos na própria
Como eu estava muito próximo às armações da constru- rede hospitalar faziam questão de me visitar e dar uma
ção da ponte, e as pistas se afunilavam junto aos tapu- força. Mas dor é sempre dor. Acho que sofri mais com
mes, ficou difícil sair dali e seguir adiante. Decidi seguir as costas raladas que com minha perna engessada, que
em frente, mas não cheguei a colocar a segunda marcha: ficava pendurada em uma única posição.
238 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 239

Na mesma ala hospitalar tinha um homem que caíra de de verdade, acima de tudo, deveria estudar, faltava uma
uma laje e ele gritava a noite inteira. Lembro que os médi- formação. Guardei numa gaveta aqueles escritos esqui-
cos já tinham aplicado até morfina e ele ainda sentia sitos que fizera quando passava as noites acordado
muita dor... Não sei se ele ficou melhor, mas depois de um lendo e olhando as estrelas. Pensando bem, um dia
dia assim, com várias juntas médicas em volta dele, na poderiam virar um livro. Mas não foi isso o que aconte-
noite seguinte ele foi levado embora para o Hospital das ceu. Eu simplesmente não pensei mais neles, e depois
Clínicas. Motoboy, pedreiro, cada profissão tem seu risco. que a vida voltou ao normal, voltei a trabalhar.
Agora era se recuperar e fui levado para casa. Nessa época
nós já estávamos morando na rua dos Democráticos,
XV
em São Judas Tadeu. Uma das sócias da empresa, dona
Augusta, foi lá me ver e disse que eu não precisava ficar Há muito eu já tinha trocado de moto. Como disse, come-
preocupado, parte do meu ordenado seria pago normal- cei com uma Vespa, mas ela não era muito prática e a
mente e quando eu voltasse iria recuperar meu contrato. manutenção era bem mais cara que a das motos nor-
Quantas vezes eu agradeci por este dia não lembro. Estar mais. Tirei então no consórcio uma Honda 125 cilindra-
em uma empresa de responsabilidade, com registro em das, zero quilômetro, que, como se sabe, foi o modelo de
carteira e uma boa estrutura de apoio ao motociclista moto adotado pela categoria para seu trabalho. Naquele
acidentado era um privilégio. Como disse, apesar de tudo período tive várias motos. Era normal ver os motoquei-
eu tinha sorte. Outras empresas simplesmente abando- ros ficarem fazendo rolos8. Tinha motoqueiro que dividia
nam seus funcionários à sorte. o tempo de trabalho apenas negociando, e nesses rolos
sempre se fazia uma grana extra. Este mercado acabou
Fiquei despreocupado e em recuperação por oito longos
depois que a moto se popularizou e ficou muito barata.
meses. E para um motoqueiro acostumado ao agito do
dia a dia, oito meses eram anos, pois não via a hora de A razão de a categoria adotar este modelo de motoci-
voltar. Aproveitei aqueles meses para fazer algo que há cleta está em sua relação custo-benefício, sua fácil
muito tempo eu não fazia: ler muito e ficar com meu filho, manutenção e o gasto com combustível, que é muito
que já estava pelos seus 2 anos. Logo, os ossos, a tíbia pouco em comparação às outras cilindradas, além de ser
e o perônio, ficaram novamente colados e eu voltaria a uma moto prática para pilotagem. Uma 125 cc consome
andar, e não fui mais o mesmo depois daquele acidente. em média 1 litro de gasolina a cada 35 quilômetros, ideal
Passei a ter o hábito da leitura, li tanto nesse período para quem roda o dia todo. Nós percebemos isto muito
que até cheguei a tentar escrever e aconteceu meio de cedo, mas durante um bom tempo ainda existiam muitos
repente, sozinho no silêncio da madrugada, a mesa da motoqueiros usando outros modelos, já que a moto sem-
cozinha vazia e uma folha branca. O que ia para o papel pre foi utilizada também para o lazer. Mas com todas
não tinha qualquer ordem ou sentido, pois eu nunca estas vantagens, este modelo acabou dominando o
tinha escrito nada em minha vida, mas também não era
hora ainda, eu acho. Senti que se eu desejasse escrever 8 Trocas.
240 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 241

cenário. É também muito lógico que a moto acabe sendo saí de madrugada para ir trabalhar. Anos mais tarde eu a
investimento para quem tem pouca grana e quer seu transformaria em um conto. Guardei então em sua forma
próprio negócio. Como agora eu estava vacinado, montei original, aquilo que naquele momento era o que eu pro-
numa zero quilômetro e fui trabalhar em outro contrato, curava dar vazão, as agruras da minha vida de motoboy
em um outro banco, na avenida Paulista, onde eu che- e o ódio que sentia pelo descaso e a impotência a que
gava por volta das dez da manhã e saia às seis da tarde. éramos lançados. Esse conto passou a se chamar Ditão
Assim, eu tinha outros trampos de manhã que me aju- e Grillo, os apelidos dos caras que aquele dia com armas
davam nas despesas e aumentavam meu faturamento, em punho levaram minha moto e que tiveram um destino
como a entrega da Gazeta Mercantil no bairro e alguns muito parecido ao de qualquer marginal:
malotinhos que acabava encaixando durante o dia.
dITÃO e Grillo
Em média eu tirava em torno de cinco a seis salários A vida bandida
mínimos. Não era muito, já que outros mensageiros na Um cara um dia saiu para trabalhar,
empresa chegavam a tirar até dez salários mínimos. Este mas ele não sabia o que lhe esperava.
era o sonho de qualquer cara que quisesse levantar um
— Esse é o vez e quando... Quê vou dizer é um lance assim...
bom dinheiro trabalhando de moto, ter uma moto nova e
Bem... bem, o que te espera? Senti isso aquela manhã, quando
a oportunidade de fazer um bom faturamento. Traduzido
passei pela porta de casa e fui trabalhar e quase num volto,
para hoje, eu tirava em torno de R$ 2.400,00, o que equi- com um balaço! Hoje sinto um nó apertado no peito e meu
vale a um salário de alguém que tinha no mínimo uma cérebro ferve, quando penso nisso, o mochilão nas costas
faculdade. Mas isto foi naquele tempo... Confesso que a e um silêncio zuuado nos ouvidos e a tua vida passa nuns
vida estava sossegada. O ruim mesmo era levantar cedo. segundos... Tipo uma luz do poste da rua penetrando pelo
vidro da janela, você saindo sossegado do seu lar e o sol
O jornal era entregue no ponto às cinco e meia da madru-
ainda nem nascera e você fica ali na penumbra, aguardado o
gada, e tínhamos que estar lá. Eu fazia a região da Saúde momento certo de botar o pé na rua, mas nem... Tava escrito.
e do Jabaquara, indo do Parque do Estado até o lado de Aquela manhã não acendi a luz da cozinha, não queria acor-
cá do Aeroporto de Congonhas. Se não chovesse, antes dar ninguém. No quarto escuro Sapotira ainda oprimindo um
da nove da manhã eu já estava em casa tomando um sonho debaixo das cobertas e meu moleque no berço e, coisa
segundo café reforçado e me preparando para ir para o estranha, que o dia nem começara e já sentimos isto... Tava
contrato do banco. cismado o bagulho, mas como saber? Eu poderia não ter ido
aquele dia, mas fui...
Quando estava calor, colocava um bermudão e saía com
Ele fica em silêncio, tenta retomar:
a moto abarrotada de jornal. Quando chovia, tínhamos
que pacientemente embalar os jornais um a um. Em um — Você fica imaginando mil coisas. Mas não sabe nada ainda.
dia assim, você pode pensar que nada pode acontecer Desci pra garagem pra pegar minha moto e cair no mundo. As
com você, mas é aí que você se engana. Em 1993, preci- chaves na mão, você para no parapeito e pensa, o que pode te
samente uma segunda-feira, em maio, depois do dia das acontecer? Um inesperado sempre tá à espreita, e persegue
você atrás da sua mente, quando você acelera no corredor.
mães, tive uma experiência bastante traumática quando
242 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 243

Mas você não quer pensar nisso, então você se manda. Acelera samentos vão passando pro submundo, você olha o carnê com
fundo. Atravessa o tempo. Fura o tempo, anula. Não espera as prestações ainda pra serem pagas e um ódio sobe pelos
nada, sem temer você parte que o dia é longo. Num lance brancos dos olhos, tudo isso aqui é a cidade, Perus, Caieiras,
assim eu nem sei, eu saí e fechei a porta... Não olhei pra trás. Freguesia, Heliópolis, Socorro, Capão, Osasco, Taboão, a capi-
Os caras colaram em mim com uma CB 400. tal. Você não sabe aonde vai ser. Não importa, tem Guarulhos,
tem entrega? Você abraça. “Esse, meu irmão, é o mundo cão,
Levanta gesticulando as mãos e é visível nestes gestos ver sua
e motoboy é cachorro loko, e vive em outro quem não é junto
angústia ao narrar o incidente:
com o seu”, disse o cara que entrega o jornal junto comigo. E eu
— Fui pra batalha, não tem vacilo não! A gente não tem penso: e se foi tu, malandro, que passou essa fita? Ele queria
como escapar é enfrentar esse dia-a-dia, fui eu pro corre- apenas me consolar, e eu no veneno, já corria nas minhas veias
corre. Agora, logo de manhã, meu irmão?! Cara! Num pode esse ódio... E esses caras, o Ditão e o Grillo, montados numa
ser, pensei na hora. O asfalto estava molhado da chuva da cebezona quatrocentas, o berro na cinta, te pegam num beco.
noite anterior, a capa e a bota no pé é uma guerra, você pensa
Assalto
“ninguém sabe quem volta e quem fica estirado”. Agora nem
bem tirei a moto das grades lá embaixo da garagem, passo o “Puxa vida o que faço agora, me pergunto, antes de me dar conta
cadeado no portão, a moto ligada pra rua acelera meu último que a rua não tinha saída. Minha mente silencia por um segundo,
pensamento foi: “pego meus jornais no ponto e”... Então, o dia tentado pensar rápido, como sairia dessa; pois, eles aproximam-
te amanheceu, os caras páah... te metem o cano na cara e me se, o garupa tem as mãos enfiado no bolso... Que enrascado
levam a minha magrela. E o pior... Quê isso fica te martelando onde eu estava? Quando vi já era tarde e colam a moto em mim,
a cabeça por dentro! o garupa saca a arma. Congelei. A ferramenta apontada e o cara
foi gritando:
Com certeza deve ter provocado muita dor, ele continua:
— Saí, saí... fora!
— Foi de encomenda, tenho certeza! A quadrada na sua cara,
e vem aquela primeira sensação de impotência... Depois um A frieza que vi a cara da morte. O portão da casa do cliente
sentimento de revolta sobe e que te consome por dentro... fechado não dá fuga, você se dá conta que a rua não tem saída
Amargura, desespero e ironia juntos e tu pensas “nem tava é madrugada, numa ruela assim num bairro distante, uma CB
paga ainda!” Mas você fez uma troca: A moto pela sua vida! roncando lento.... Levaram minha moto...”

Já mais calmo, senta-se de volta e começa a narrar como Após narrar estes fatos ele começa a remoer suas unhas, era o
foram as coisas a partir dali: pesadelo voltando em relances:

— Depois é voltar pra casa. O B.O.9 em mãos e você anda — Tudo vira contra você, não cabe mais tanta porcaria e ódio
zonzo pelo meio da rua a pé, não querendo ainda acreditar... na tua cabeça e “eu aqui nessa merda desse trampo”, enfiando
“É começar tudo de novo”, um pensamento te consola. Aonde a cabeça nesse capacete o dia todo. Finalmente você chora e
você chega a tua galera tá comentando, dão apoio e uma força. tenta esquecer.
Fica ainda aquele zum-zum-zum, depois a notícia já passou
Ele deixa enfim as unhas, a respiração volta ao normal:
e aquilo cai no esquecimento. “Roubaram a minha moto”, eu
digo, seco, quando perguntam. Sua pressão abaixa e seus pen- — Esse é o meu corre... Eles uma hora pagavam, eu pensei,
e os cambau... Mas eu deixei quieto, nem fui atrás não. Eu ia
9 Boletim de Ocorrência policial. me virar agora com uma moto que eu montei em cima de um
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quadro velho. Ganhei a vida, melhor assim... “Meu, tenho filho, esses trampos, só sobra roça! Mas e a motinha que montei
tou pagando, tenho aluguel”, nada disso adianta... Eles mon- nem rendia, a vontade de destruir ela era grande. Queria jogar
taram nela e saíram fora. Aquele Grillo que fazia o piloto, eu o no poste. Pegar o amortecedor e bater nela. Ruim de pegar,
conhecia de longe, ele era da área. Acabou morto embaixo de fazer curva, pneu furando toda hora e os contratos passando
um caminhão na Avenida do Estado. Antes agonizou em tempo de montão... Andando desse jeito é que eu não ia. Deixando
lá no Hospital do Jabaquara. “Adiantou num farol”, me falaram. na mão... Uns caras fazendo uns rolos e tu pensa... “vai virar,
Ele era desses caras que fazem as correrias erradas e ainda tem que virar...”. Bom, o tempo passou e até que um dia con-
dava uma de migué numa boca de porco10 ali perto na Cupecê. segui, depois de muito trabalho, recuperar meus contratos.
“Êita pôrra”, fico pensando, esse mundo é o cão. Já o Ditão,
Exausto, corre a palma da mão no rosto em sinal de reserva:
que sacou o ferro, veio de garupa e foi quem foi montado
na minha moto. Fiquei sabendo depois que ele foi uns dos — Chorar é que não, mas fazer o quê?
pivetes que, naquela guerra do PCC, anos atrás, acabaram
Depois se mostra esperançoso e abre um pequeno sorriso no
fuzilados na noite atrás dos muros da Polícia Civil. Mas se
canto dos lábios:
for verdade, não foge à realidade. Você se mata de trabalhar
e vêm uns pilantras desses e te levam sua ferramenta de — Então eu também ia chegar lá. Como saco de pancada nes-
trabalho. Faltando ainda vinte e quatro prestações e isso... O ses trabalhos aqui eu tenho que pagar o aluguel, comprar os
que fazer? Bom, agora era ir pra correria. Tinha que ir pra luta, baratos do meu bebê, então foda-se! Um monte de gente que-
me virar. Tinha que ir lá pegar um motor com o João, descolar rendo ditar seu ritmo: “Põe isso aqui no seu roteiro!”,“Passe lá
um quadro na oficina do Zé, e na Ponte dos Remédios, con- no sei aonde!”, “Põe gasolina naquele posto...” Meu, eu queria
seguir uns docs11 com um despachante, amigo meu. João me falar aqui e agora, sou página virada, aquilo que aconteceu,
veio com um zerado de fábrica, agora tinha muito que ralar isso passou, marcou pacas, mas tenho certeza que você não
pra pagar as contas. O Zé apareceu com um eixo oitentinha, sabe o que é isso, se não viu a cara do cano. Sinto que toda
ralado até as horas... Mas acabei pegando. Acabei dando minha desgraça começou ali, naquele dia, não devia ter saído
uns tapas na carenagem e joguei em cima um kit 90. Isso é pra trabalhar!... Então. Se liga, não é que uns meses depois eu
barra, não tinha como não ser, você pensa, e a família? Então, vejo minha moto estacionada na frente do Mappin, na Praça
tinha que continuar. Tinha que descer pras bocas pra pegar Ramos, dá pra acreditar? Os caras passaram ela, meio que
umas peças. Tinha que não sentir culpa ao comprar ali umas estava já zoada, mas era ela sim, eu a reconheceria de longe,
bengalas no balcão (na sua frente o balconista joga assim lembro dela ainda zerada lá em casa na garagem! E havia pen-
de qualquer jeito as peças), por um preço mixo e sem nota. sado que eles tinham picotado ela! Era ela, vermelha e com
Sem nota e sem nada, saí com elas debaixo do braço. Era só todos os amassadinhos e arranhões que fiz nela! Corri para
entrar na loja e comprar. Tinha que não sentir nada e também um posto policial na esquina da rua Barão de Itapetininga.
que não sentir pelos outros. “Má sorte”, se pensa nessa hora, Então, para minha surpresa, o policial que chamei pediu para
para aliviar a culpa. Mas no fundo você sabe... Uma hora a eu virar a moto para conferir o chassi. Virei inclinando-a pra
vida melhorava, “e se aqueles putos lá na firma conseguem ele ver o número do chassi, e ele disse: “Sinto muito cara, sua
uma pá de contratos, também chego lá”, é nisso que a gente moto já foi, essa aí os elementos pinaram12 o número do chassi
pensava. É lógico que a gente pensa na grana e se fode com e não tem como...”. Como assim, eu disse. Não pode ser, mas
é ela? Meu estômago dobrou... Que porra..., sentei por uns
10 Pequenas empresas que agenciam motoboys por hora.
12 Apagar a numeração do chassi.
11 Documentos.
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tempos nas escadarias do Teatro Municipal e fiquei remoendo


em silêncio, o guarda ficou plantado lá, imaginando que talvez
eu voltasse e colocasse fogo na “minha” magrela... Isso, cara,
não tem palavras – pelo menos é uma informação que tenho
desde pequeno, que sinto no silêncio, e aquela coisa e não
poder fazer nada... - na mira a boca negra do cano gelado...

Olhando-me fixo nos olhos ele fica em silêncio, depois torce a


cabeça para os dois lados relaxando os músculos do pescoço,
ouve-se um estalo e ele não diz mais nada por uns instantes,
depois volta-se para mim e conclui:

— Quando passei a porta naquela manhã estava frio lá fora.


Ergui o esqueleto da cama, fui jogar uns jornais lá no bairro, e
aí aquilo, e minha vida desabou, é isso cara...

XVI
Em 16 de fevereiro de 1992, cerca de um ano antes
daquele episódio do assalto, minha mãe morreu. Recebi
a notícia sem estar preparado, e era um dia normal de
trabalho, pois como sempre, eu passava em casa na hora
do almoço. Ao fechar o portão e desligar a moto, minha
esposa veio, pegou minha mão e me levou para dentro.
Choramos longamente aquela tarde. Minha mãe havia
estado hospitalizada por conta de sua saúde muito
debilitada e tínhamos ido visitá-la em Sorocaba, onde
meus país e irmãos menores foram viver depois de se
mudarem de São Miguel Paulista. Triste não é só lem-
brarmos sua morte. Mas também a forma estúpida que
ela morreu.
Uma semana antes nós tínhamos ido visitar minha famí-
lia. Fizemos um churrasco no quintal e até estávamos
bastante descontraídos. Por muito tempo controlando
uma diabetes, ela ia ficando debilitada, nesse dia ela
estava com uma tosse leve e com a garganta bastante
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infl amada. Como havia sempre religiosos por perto, e trabalhar com o artista Eng Goan, um ceramista vindo
ela não ficava sozinha, mas alguma pessoa muito sim- da Indonésia responsável pelo ateliê de cerâmica, que
ples indicou a ela que colocasse uma ponta de sal na estava preparando um projeto de pesquisa para uma
língua, para aliviar a tosse. Ao final da tarde, quando grande exposição naquela instituição. A exposição se
nos preparávamos para partir, ela piorara bastante. chamaria “Homenagem a Gaudí” e reuniria várias téc-
Recomendamos que no outro dia alguém a levasse ao nicas, cerâmica, vidro, tapeçaria etc. O interessante foi
médico, e isto foi feito. O médico não conseguiu diag- que, ao conhecê-lo, ele imediatamente me contratou
nosticar imediatamente e naquela semana ela ficou para organizar a equipe que trabalharia na exposição.
internada. O sal havia destruído parte do seu orga- Aquela seria a minha primeira experiência profissional
nismo e a saúde dela não se recuperou mais. Ficamos com cultura, mas naquele momento eu ainda não sabia
desolados e ela até chegou voltar para casa. Mas não disso. Comecei amassando barro.
houve jeito. Ela foi internada novamente.
Amassar barro era fazer o reaproveitamento da argila que
Na última vez que a vi fiz um retrato dela. Sentado ao sobrava das oficinas e endurecia. Vários tonéis cheios
seu lado na cama, seu sorriso largo tinha algo de pers- até a boca de argila seca e dura, que estavam lá há anos,
picaz. De vez em quando, eu parava de desenhar e a tinham que ser umedecidos para que o barro ficasse em
olhava em silêncio, enquanto seu olhar inocente se per- ponto de uso. Por isso, sempre dizia, quando eu voltasse
dia pela janela do quarto. um dia a trabalhar de moto eu estaria totalmente reno-
vado, aquela experiência com aquele artista oriental
foi um verdadeiro aprendizado espiritual. Amassado o
XVII barro, tínhamos um grande estoque de argila fresca. Era
Durante um curto período me afastei da empresa para pôr a mão na massa. Então comecei a chamar meus ami-
decidir o que fazer da vida. Como eu e minha esposa cur- gos todos que curtiam artes para aprender a fazer cerâ-
tíamos muito o SESC Pompeia, nos matriculamos em mica e mexer no forno de queima. Aqueles que gostavam
alguns cursos de artes. Matriculei também meu filho em de tapeçaria podiam ser instruídos pela artista plástica
um programa de educação infantil mantido por eles cha- Anabela Rodrigues, que veio se juntar a nós no projeto,
mado Curumim. Comecei fazendo desenho e pintura ensinando a galera a fazer esculturas e rendados.
nas oficinas ministras pelos artistas plásticos Carlito Assim, criamos um espaço onde todos podiam se desen-
Contini e Roberta Fortunato. A Tutte já fotografava então volver e aprender alguma linguagem. Tínhamos passado
se matriculou no curso de fotografia, e naquela época por algumas experiências políticas bastante frustran-
estes cursos já eram excelentes. tes naquele tempo. Lembro que quase todos ali esta-
O SESC Pompeia sempre foi um caldeirão cultural e eu já vam desempregados e desiludidos com a vida e, ainda
o frequentava desde os tempos que movimento punk agi- por cima, havia a grande expectativa criada em torno da
tava a cidade. Ali fiz muitos amigos, e em 1993, depois de campanha presidencial de 1989. Como o Collor venceu,
estudar com aqueles artistas, tive o prazer de conhecer todos ficaram sem rumo. Por isso, quando as oficinas
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começaram, havia um certo baixo astral. Enfim, vivíamos


o último refrão dos anos 1980, a década perdida. O país
afundava e não havia qualquer esperança de saírmos
da recessão criada pelo Plano Collor, mesmo depois dos
caras-pintadas e de a população ter ido às ruas pedir o
impeachment do primeiro presidente eleito em 29 anos.
É preciso dizer aqui, no entanto, que aquele momento era
de ressaca moral.
Assim, aquela galera encontrou nas oficinas do SESC
Pompeia um refúgio e ninguém ali reclamava de amassar
barro. Passamos meses desenvolvendo o projeto, a ideia
era que nós reproduzíssemos a experiência que o arqui-
teto catalão Antonio Gaudí realizara na Espanha, quando
construiu o Parque Güell e a famosa Igreja Sagrada
Família em Barcelona, ao trabalhar com o lado orgânico
da forma abrindo a possibilidade de qualquer cidadão
expressar a linguagem artística acumulada pelos artífi-
ces catalães, participando todos assim da criação, por-
que ele acreditava no potencial que cada pessoa tem
para a arte. Em 29 de abril daquele ano inauguramos a
exposição, e minha equipe já contava com mais de trinta
pessoas envolvidas, aprendendo a fazer cerâmica, a
derreter vidro e a tecer. A exposição foi um sucesso e
tomou todo o espaço do SESC Pompeia. Quando saímos
de lá, cada uma daquelas pessoas, ao voltar para sua
vida, levou consigo uma experiência única e ninguém
sairia dali o mesmo. Quem estava sem trabalhar, logo
conseguiu voltar ao mercado. Quem tinha desistido de
estudar, logo redescobriu o valor dos estudos e voltou
pra escola. Aquela experiência nos marcaria para sem-
pre, possibilitando que retomássemos nossa vida.
Alguns meses depois, já em 1994, o Planalto lança-
ria o Plano Real, acabando com a inflação e voltando a
dar estabilidade à economia. Eu voltaria a estudar, não
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agora, mas um ano depois. Antes de voltar a trabalhar histórico de acidentes. Passei então a fazer um con-
de moto, ainda fiquei um tempo como garçom. Foi uma trato em uma empresa onde, em vez de eu rodar o dia
última tentativa de não voltar a trabalhar de moto, mas inteiro, podia fazer rapidamente meu trabalho e depois
eu continuava a pilotar nesse período, e como ainda me acabar de ler e estudar. Desde que sofrera aquele
encontrava meus amigos motoqueiros, eu sempre balan- grave acidente, eu tinha readquirido meu hábito de lei-
çava, sabia que o dinheiro que entrava era imbatível, até tura. Havia descansado bastante durante aquele perí-
que voltei, e mesmo porque, eu já não era mais o mesmo odo, passando as horas apenas vendo meu filho cres-
e também já sabia o que queria fazer da vida. cer, pintando e tentando escrever. Preenchi meu tempo
assim, com muita arte, e tomei João Cabral de Mello
Neto como meu poeta de cabeceira. Quando voltei, os
XVIII motoqueiros vieram me cumprimentar. Muitos ainda
Passado quase um ano, voltei a trabalhar na Moto não me conheciam. A empresa não parava de crescer.
Service. Primeiro tive uma longa conversa com a dona Pelo menos mais uns trinta caras novos haviam entrado
Augusta e expliquei porque queria voltar. Como ela sem- e agora havia mais de 150 mensageiros motociclistas
pre foi muito direta com os motoqueiros desde que a na empresa. Por esta razão, a empresa, mais uma vez,
empresa começou – lá na rua da Consolação –, eu sabia mudara de endereço, para um prédio com garagem na
que ela entenderia as razões porque eu decidira me avenida Santos Dumont, na Ponte Pequena. Não fiquei
afastar. Ela percebeu que andava meio desorientado por muito tempo sem contrato: logo a Augusta achou um
ter perdido minha mãe recentemente e, por isso, quando contrato com meu perfil. Fui alocado no Bank of Boston,
passei um tempo fora, foi como se ela soubesse que eu e a partir dali, por um bom tempo eu seria o motoqueiro
precisava de um tempo para pensar. exclusivo do personal banking, na matriz do banco, que
ficava, de novo, na rua Líbero Badaró. Lá tive até o pra-
Mostrei a ela alguns dos desenhos que fizera e até che- zer de conhecer pessoalmente o atual presidente do
guei a vender a ela umas peças de cerâmica que eu Banco Central, Henrique Meirelles, que na época era o
havia criado quando fiz meu curso de cerâmica no SESC. presidente do banco no Brasil. Sinceramente, quando
Nessa conversa, deixei clara minha intenção de voltar a falo para as pessoas que tudo isso aconteceu, até fico
estudar e ela sabia que eu já tivera outras profissões, em dúvida. Mas aconteceu. Como eu já tinha experiên-
até me sugeriu que eu não voltasse pra rua e ficasse no cia em banco, pude compreender os processos introdu-
suporte da empresa. Mas insisti: eu adorava andar de zidos por ele naquela instituição, e que a transforma-
moto e não queria ficar preso em escritório cuidando de ram numa das mais rentáveis do mundo, levando seu
logística. Como não tinha mais dinheiro para nada, pre- presidente ao posto que ele ocupa hoje.
cisava do dinheiro que os mensageiros ganhavam para
poder tocar meus projetos. Ela me recontratou, com Pergunto-me, principalmente, qual empresa de moto-
a condição de que não fizesse mais tantas comandas boy, ontem e hoje, tem uma relação dessas com seus
de serviços juntas, uma vez que ela já conhecia meu empregados. Sim, porque há um diferencial aqui que
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não pode ser visto como uma coisa menor. Fazia parte Não digo que foi um papo muito feliz, já que foi mais
da filosofia da Moto Service, naquilo que ela se propu- para saudosista. Mas creio que, para além de tudo que
nha como um atendimento completo aos clientes, tratar está sendo dito aqui, ao reavivarmos nossas memórias,
os motoqueiros com respeito e dignidade, e como todos menos que simples lembranças, o que descobriremos é
trabalhavam bem, as empresas-clientes raramente a possibilidade da construção do nosso passado, que é o
tinham alguma reclamação. Nosso serviço de qualidade que interessa aqui. E ele é verdadeiro porque é nosso.
aparecia nos resultados das empresas, assim, não havia
O que notamos então foi que não só se destruiu com o
quebra de contrato e, quando precisávamos de algum
tempo aquele modelo de trabalho, criando espaço para
reajuste (lembrem-se, a inflação era galopante nessa
o surgimento do motoboy, mas a própria possibilidade de
época), eles sempre nos davam. Isso fazia com que a
se inventar outra maneira de organização do trabalho, o
empresa estivesse entre as melhores do mercado, ape-
negócio de entregas rápidas. Assim, escrevi essa narra-
sar da grande concorrência. Crescíamos, assim, a uma
tiva abaixo, em que conto como eram as coisas por lá:
ordem de 30% ao ano.
Cláudio, Leonel, Boy e Paulo Pequim
Mas não eram apenas nossos contratos que engorda-
“Eram várias, R1, CBR, Hornet, Bandit etc...”
vam nossa conta-corrente, já que quanto mais contratos
a empresa tivesse em carteira, maiores eram as possi- Começa aí, Leonel...
bilidades de os mensageiros “casarem” serviços, base- — Xii mano... Não sei... Num lembro bem, mas esse lance não
ando sua logística na parceria empresa-mensageiro- foi logo depois que mudamos para a avenida Santos Dumont
empresa. O mercado estava cada vez mais aquecido. (um dos locais onde a Moto Service operou entre 94 e 96)?!
Logo depois do Plano Real, a economia passou a crescer Lembro que comprei minha primeira CBR 600cc naquela
no nosso ritmo. Quase todos os bancos tinham mensa- época, paguei ela à vista e foi logo depois que saímos lá do
geiros motociclistas e nós tínhamos quase todos os ban- sobradão (que ficava na rua Tomaz de Lima) lá na Liberdade.

cos como clientes, e a Ilha, na rua Líbero Badaró, onde — Ah sim, eu lembro, fazia meus trampos e recolhia os malo-
estacionávamos as motos, estava cada vez mais abarro- tes do Sudameris e nos cruzávamos lá por Santo Amaro. Diz
tada de motoqueiros. Chegou um dia que ficou impossí- o Pequim.
vel estacionar ali, nem os pedestres conseguiam passar. — Eu tava nessa época no contrato do personal banking, aí
Veio então a Associação Viva o Centro e acabou com ela, dava pra fazer meus encaixes. Claro que não ganhava como
mas isto foi mais para a frente. o Cláudio. Depois ele pegou a dele também, lembra, uma R1
azul!
Por enquanto, quero me concentrar num recente “encon-
tro” com alguns amigos motoqueiros daqueles tempos. — Feita pra nós, né? Cada máquina... Mas não era do mesmo
Tivemos um longo papo, trazendo alguns aspectos do ano, a minha era zerada. Só isso já contava tudo, depois a
empresa mudou ali pra Ponte Pequena. Lá no sobradão tinha
nosso dia a dia na Moto Service e na categoria. Tentamos
ficado muito pequeno, e depois fomos para o prédio novo, foi
principalmente descobrir a razão do sucesso e do fra-
quando o Boy montou a oficina no fundo...
casso do modelo de trabalho que montamos ali.
260 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 261

— Tinha ficado pequeno mesmo, Leonel. Diz rapidamente o — Putz! Ali, marcou, levavam sua moto...
Boy. Não ficamos nem dois anos e mudamos de novo.
— Agora, quantos já éramos... No começo, eu lembro, eram uns
— No começo fomos só eu e Cláudio que pegamos aquelas vinte ou trinta caras, aí teve o Plano Collor, lembram? Quem
motos. Que máquinas! Depois um foi comprando, outro tam- ficou daquela primeira turma? O governo tomou o dinheiro de
bém, e até o Augusto foi lá e pegou uma. Logo desistiu e pulou todo mundo, não teve jeito, foi uma quebradeira, e um monte
pra uma Shadow 1.200cc metalizada, era mais a cara dele, de motoqueiro foi pra rua, mas foi bom, não é Leonel, pelo
não? (O outro sócio da empresa chamava-se Augusto – mas menos deu uma peneirada.
apesar dos nomes, os sócios não eram irmãos.)
— É, tinha muito moleque no começo...
— E aquela oitocentas, Suzuki, aquela que você chegou por
— A Augusta, para não fechar as portas, chamou a gente e
lá uma vez, era sua?
jogou em pratos limpos. Então, a gente concordou que os caras
— Não, eu disse, era de um amigo. (Depois este meu amigo que fossem solteiros deveriam ir embora... E você, Silveirinha?
viria a falecer e seu pai vendeu a moto, que ficara na garagem
— Ah... escapei. Meu filho tinha acabado de nascer. Pelo
do prédio estacionada. Ele morrera dormindo e se chamava
menos, depois disso não paramos mais de crescer. Já faz
André – isso eu não digo a eles.)
tempo... hein, que corte! Teve sorte quem era casado, lembra?
O Boy foi por esse tempo o mecânico da empresa. Ele tinha
“Era maldito, os motoqueiros não tinham essa imagem que têm
parado de trabalhar na rua e montou a oficina que atendia
hoje!”, disse-me em voz baixa o Pequim, que até agora não
aos motoqueiros da empresa. Como a empresa cresceu, foi
tinha falado quase nada.
preciso que montássemos uma oficina que atendesse exclu-
sivamente aos nossos motociclistas. Claro que a Augusta e — Foi o jeito que a empresa encontrou pra não fechar, a eco-
o Augusto deram uma força e ele foi fazer alguns cursos de nomia esfriou geral – falei.
mecânicos. Nessa época, já eram mais de cem caras traba-
— Mas também para não pôr nenhum pai de família na rua
lhando e não podíamos depender de serviços externos. Então
– respondeu Leonel. – Os que eram solteiros, depois da crise
a manutenção era feita na própria empresa.
voltaram... Alguns.
— Cheguei a ter várias motos– disse o Leonel. – Uma para o
— Quando veio o Plano Real – entrei no assunto – eu tava
trabalho, outra pro lazer, e para pegarmos o contrato da dis-
de bem, tinha meus contratos e até virava noite cobrindo os
tribuição do Sudameris, tirei um Ford KA zero, naquele pacote
malotes, era muita hora extra, fora as ordens de serviços, e
que fizemos com a revendedora. O pátio ficou lotado de KA, foi
também não podemos esquecer das entregas de fim de ano...
quando eles lançaram esse carro. Como a empresa ficava na
Armênia, dávamos saída direto para a zona sul, norte, leste e — Nossa! Foi com essa grana que juntei que comprei aquela
oeste. Tudo muito rápido. moto. A gente se pergunta agora, o que aconteceu? Como foi
que afundamos?
— Quando a gente começou...
— Fiz meu investimento a tempo – disse o Pequim. – Ainda
— Lá no centro velho?
bem, pra mim maluco não tem vez, quem ganhou, ganhou, eu
— Sim. A empresa ficava numas salinhas no andar de um tirei muito, eu, o Cláudio, Leonel, o Boy, o Michel, o Mineiro,
prédio. Nossas motos a gente largava no canteiro central, na essa é a diferença... Agora esses caras acabaram com o mer-
Consolação. cado, foi isso sim, que fizeram...
262 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 263

— Quem trampava direito tinha vez, era segurar os contrati- por que, em tese, as pessoas que operam o serviço não são
nhos, dar um trampo – disse o Cláudio. contratadas, mas cooperados autônomos, sem quaisquer vín-
culos empregatícios.
— De boa, sem querer cortar sua fala. Leonel, fala aí, de
semana a gente rodava até as horas com as 125 (cilindra- Nesse sentido, dificilmente uma empresa que contrata e
das), eu tinha uma MLzinha nessa época, massa, e nos fins registra seus motociclistas concorre em pé de igualdade com
de semana montávamos nas motos e pegávamos a estrada. estas cooperativas, já que elas podem oferecer um preço
Cara, colava um monte de motoqueiro no pedaço, vinha de bem menor.
Itaquera, tinha cara que vinha de São Matheus, COHAB II e
Até 1994, poucas empresas concorriam no espaço mais
até Parque Novo Mundo, e naquele baita sol de macacão de
fechado dos contratos com bancos e multinacionais. Estas
couro, e custavam uma grana estes equipamentos... Jogá-
instituições solicitavam uma contrapartida à contratação de
vamos em cima e íamos até a praia, a gente descia zique-
terceiros, como já discutimos antes.
zagueando pela Imigrantes, ninguém pegava, mas também
caíamos pra outros lados. Saíamos dando uns rolés fortes, No entanto, as coopergatos13 começaram a penetrar nesse
acelerando em umas cidadezinhas que nunca ninguém ouviu espaço e tomar os contratos das empresas do setor que os
falar aí pelo interior, pegávamos a Rodovia Bandeirantes, detinham. Obviamente, não em pé de igualdade. Por outro
Anhanguera e sumíamos, a gente não era de empinar as lado, a pouca - ou nenhuma - fiscalização sobre as pequenas
motos... Na verdade, o que interessava eram as melhores empresas de entregas rápidas criou a figura fictícia do moto-
pistas, aquele tapete, e as curvas, claro, mas era tudo famí- boy esporádico. Como se tratavam de pequenas empresas
lia, ninguém tava lá pra zoar ninguém, era sentir a velocidade, familiares, ou às vezes de algum motoqueiro que se aventu-
adrenalina a mil, mas também tinham as crianças em casa, rava a virar empresário, eles simplesmente colocavam o preço
eu também dava meus rolés com meus moleques pelo bairro. que bem entendiam, para atrair a clientela, desconsiderando
O Cláudio não... ah, esse sempre foi mulherengo, andava com qualquer parâmetro, mesmo por que estes motoboys nunca
as minas na garupa... eram registrados e não apresentavam custos diretos. E mais
uma vez, não dava para concorrer com estes preços.
Vi que este papo duraria horas, então, puxei novamente o
assunto. Estávamos numa situação muito delicada. As grandes empre-
sas do setor precisavam se mobilizar. Mas não ache o leitor
— Agora, e aquela nossa ideia de nos associarmos à empresa,
que estas informações estavam na ordem do dia. Muitos
lembram?
empresários não tinham nenhuma consciência do que estava
— Foi... Confesso que até hoje não entendi muito bem como acontecendo, e muito menos a maioria dos mensageiros -pou-
foi aquilo tudo – respondeu Silveirinha. cos discutiam isto. Porém, e aqui quero que mais uma vez
mostrar a diferença, na Moto Service, esta era uma discussão
Na verdade, tudo começou quando a Moto Service ainda era
corrente. Tanto que um dia solicitei uma reunião à diretoria e
na avenida Santos Dumont. Como se sabe, o custo principal
apresentei algumas propostas discutidas pelos mensageiros,
de qualquer empresa de entregas rápidas é a folha de pessoal.
para avaliação da empresa. Estávamos interessados em che-
E para manter a empresa competitiva, estes custos precisam
ser muito bem controlados. No entanto, existem outras formas
de organização do empreendimento. Exemplo claro disso são 13 Gíria que designa as cooperativas de fachada, que se utilizam do estatuto
as cooperativas. Nelas, os custos com a folhas são reduzidos de cooperativa para burlar a fiscalização e não pagar os direitos trabalhistas de
seus funcionários.
264 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 265

gar a uma solução juntos, antes que o cerco se fechasse sobre de obra e só chegávamos ao preço final do serviço. Acertado o
a empresa. Uma solução que nos colocasse em um patamar preço, o o trabalho era aceito e feito com eficiência; não eram
que não fosse alcançado por nenhuma outra empresa. Que em esquecidos os desgastes das peças e a alta dos combustí-
vez de enxugarmos os quadros, como era a ameaça que come- veis, que a toda hora comiam o ganho do motoqueiro. Claro
çava a fazer sombra no batente de nossa porta, acolhêssemos que esta era um tipo de mentalidade ligada à constante alta
aqueles motoqueiros que agora entravam no mercado e os inflacionária. Como a cada dia os preços estavam os olhos da
agenciássemos. Mas o que foi feito? cara, tínhamos que estar atentos, e a reposição dos preços era
diária. Coisas assim, que foram esquecidas, destruíram nossa
Para ter uma ideia do que acontecia naquele tempo é preciso
categoria por dentro. Hoje vemos que os motociclistas já não
conhecer a empresa por dentro e um dos motoqueiros que
sabem fazer isso e, exatamente por esse motivo, qualquer um
melhor representava este espírito era o Leonel. Este cara era
que entra, vai dando o preço que quer. Hoje quase pagamos
mensageiro motociclista desde o tempo que tudo começou,
pra trabalhar. Entendo até mesmo a razão da raiva de alguns
lá atrás, em meados dos anos 1980. Hoje ele tem seu próprio
velhos companheiros.
negócio, mexe com caçambas de entulhos, trabalha com seu
caminhão e os filhos já estão grandes. Aprendemos muito com — Tão ferrando com própria vida - diz Silveirinha, que hoje tem
ele, que era sempre aberto e não puxava o saco. Mostrava um bar e faz pinta de aposentado.
ter consciência de sua autonomia e capacidade de trabalho.
— Por isto está uma lástima, “tudo cabaço” - diz Cláudio,
Daqueles motociclistas que conheci quando entrei na Moto
ainda irado. - Pode dizer aí, Eliezer,, quando fizemos a catego-
Service em 1988, era o que ganhava mais por ano! Além dele,
ria a patroa chamava: “E aí, pessoal, vamos rever os contratos,
trabalhavam na empresa seus irmãos, Michel e Armando, e
chegar a um preço melhor, me passem seus custos (calculáva-
Edvaldo, seu cunhado. Na verdade, todos que trabalhavam
mos), vamos negociar com o cliente.” Era nóis...
na Moto Service eram gente boa. Assim como eu, a maioria
da galera fora apresentada. Para trabalhar lá, então, se o — Nós tínhamos uma enorme autonomia, e fazíamos jus a ela.
cara pisava na bola, a chefia primeiro chamava quem havia Os motociclistas faziam parte da vida da empresa - digo.
apresentado o cara e dava um toque. Se o cara continuasse
— E hoje - diz o Leonel -, quem desses caras que estão aí já
no erro, era dispensado. Era uma técnica simples de conví-
viu um contrato?
vio social, que os antigos motoqueiros, que faziam parte de
alguns motoclubes, implantaram na empresa. Naquele tempo, — E quando alguém se quebrava? – corta o Pequim. - Juntá-
nossa opinião era levada em conta, tínhamos uma boa relação vamos e dávamos uma força, ninguém ficava descoberto e a
com a patroa e éramos sempre consultados. Sabíamos que empresa ajudava se a coisa apertava quando roubavam uma
ela sempre nos ouvia antes de tomar alguma decisãoA gente moto, ou quando o cara se quebrava e tinha que passar uns
se reunia e discutia o que dizer. E como ela sempre ouvia a meses em casa...
opinião do Leonel, jogávamos nossas demandas pra ele mos-
— Os brações14 que entravam na empresa não duravam, se
trando as vantagens da empresa estar ao nosso lado. Tanto
corriam com a gente, logo estavam montados em uma moto
que o Boy, o Leonel e os outros caras da velha guarda tinham
nova, saíam do aluguel, casavam e aparecia de carro novo.
um princípio que era muito respeitado, que herdamos dos pri-
Quem acredita que o João Rosa sustentava duas mulheres...
meiros motoqueiros formadores da nossa categoria: antes de
tomarmos qualquer serviço, devíamos calcular os custos, as
despesas com a moto. Também colocávamos o valor da mão
14 Motociclista inexperiente.
266 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 267

(risos). Este entendia do assunto quando era motoqueiro! - diz quer reivindicação, e sim para obter uma resposta direta de
Silveirinha, tirando uma. um projeto que eu levara a ela e que vínhamos discutindo há
meses. O Leonel, que subira na frente, veio já com a resposta:
— Não zoa o cara. Se liga aí... Se o cara abraçava seu contrati-
nho, acordava cedo, montávamos um bom esquema pro cara. — Ela não quer outra reunião, eles fecharam com os caras
Aprendia a negociar, senão era paulera, e a Ivani não passava o do LevEntrega. A coisa é bem maior, todas as empresas do
serviço numa segunda chamada - completou o Paulo Pequim. setor vão entrar nessa proposta, e a Moto Serviçe não tem
como ficar de fora...
— O Cláudio, era só na manha do gato, debaixo do braço a pas-
tinha zipada cheia de O.S.s e outras entregas, no baú, sempre Balancei a cabeça, não acreditando no que ouvia. Apesar de
uns malotinhos. Os clientes dele eram os melhores, podia tudo, o Paulo Pequim, que não via com muito agrado esse
chover ou fazer sol, o moleque arrebentava de comandas no lance de participação no lucro da empresa, também se sentiu
fim do mês. desesperançoso. Todos nos retiramos.

Cumprimentei todos na hora de ir embora naquele dia, quando Ela pedira um tempo. Dissera-nos que voltássemos a procurá-
paramos para trocar uma ideia e relembrar os velhos tempos la em janeiro, após as entregas de Natal. Marcamos outra vez
em que ganhávamos muito dinheiro e éramos verdadeiros na oficina do Boy. Discutimos mais uma vez sobre essa pos-
profissionais. sibilidade de a empresa abrir o capital. Passou o fim do ano.

Nós não achávamos que os malotes e os contratos caiam do Leonel também balançou a cabeça e disse:
céu! Sabíamos como era difícil trazer um novo contrato para
— Deixa’quéto. Vamos tocar o barco, não há nada a fazer, os
a empresa. Eles sabiam que davam duro, “era tudo responsa”,
caras são fortes pra caramba. Eles têm até avião!
e que parte daquele sucesso devia à nossa participação nos
rumos da empresa. Na verdade, eles não tinham. Descobrimos mais tarde. Foi
tudo uma grande jogada de marketing. O tal LevEntrega se
— Quando tinha, era um ou outro que não dava valor. Pensa-
espalhou como uma febre, e quase todas as empresas do
vam sozinhos, perdiam o bonde, atrasavam o malote, queima-
setor passaram a trabalhar com esta logística.
vam o fio com o cliente, aí dançavam... A Ivani deixava os caras
a ver navios - lembrou o Leonel. O cara que criou o LevEntrega era muito ligado aos transporte
aéreos e tentava implantar um sistema de porta a porta no
Certa vez subimos eu, o Leonel, o Paulo Pequim, o Armando, o
Brasil, se utilizando de uma plataforma baseada nas empre-
Boy e o Cláudio até a sala da chefia.
sas de entregas rápidas. A ideia dele era criar uma só empresa
A Augusta sempre perguntava: “Como estão vocês, e os clien- a partir de uma associação entre as empresas do segmento
tes?” O Augusto, o outro sócio da empresa, cuidava mais da de motos com as de cargas, numa espécie de novo Correio.
logística e convivia mais com a gente, deixando as decisões Ficamos em silêncio e descemos a escada de volta ao refei-
com a Augusta. “Satisfeitos? Vamos lá...” tório, onde nossas marmitas esquentavam. Os caras pálidas,
engravatados, dariam a logística. A gente levaria e entregaria
Sempre tratávamos diretamente com ela. Algumas vezes,
as encomendas pra onde desse ou fosse, pensei.
quando estava para estourar uma greve, quando os motoquei-
ros faziam assembleia lá na Ilha, éramos nós que levávamos De certa forma, esta fora uma tentativa dos empresários de
as reivindicações. Naquele dia ela não teve coragem de nos organizar o setor, uma vez que não havia como controlar os
atender, mas nós também não estávamos ali para trazer qual- preços e evitar a concorrência desleal. Mas as coisas não são
tão simples assim. Eles tinham culpa nessa história:
268 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 269
270 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 271

Um dia apareceu por lá um sujeito com cara de bom amigo. empresários confiaram no Brilhante. “Alguém convidou o Bri-
Brasília velha, batendo as latas. Pegou dez contos de alguém lhante?”, perguntaram, um dia. Não, ninguém tinha convidado.
para comprar um saco de gasolina e voltou segurando as cal- Mas ele chegou no dia em que as empresas não podiam mais
ças. Depois que botou a gasosa, ele subiu a ladeira de volta de depender dos insignificantes reajustes salariais dos motoris-
marcha a ré. tas de ônibus da capital. Nossos contratos estavam vincula-
dos à Convenção Coletiva deles, para fazer os reajustes dos
Nós estávamos sentados no pé das escadas, eu, o The Flash,
nossos contratos. Daí que, para os empresários do segmento
que era conhecido assim por que cruzava toda a cidade a 10
de motofrete darem uma mãozinha ao Brilhante, foram dois
km/h, e o Flávio Silveira, que já naquela época chamávamos
pulos. De outra forma, ele nunca teria aberto o Sindicato dos
de Silveirinha. Sem pedir licença, ele passou por nós. Somos
Mensageiros Motociclistas. Lembro até o dia em que estáva-
testemunhas do dia que a figura do Sr. Antonio Brilhante colou
mos atrás do balcão, aguardando o horário pra fazer os malo-
na nossa categoria. Primeiro, ele foi lá Moto Service, quando
tes do Banco Nacional, e a Augusta saiu da sala dela com o fax
era no sobradão da rua Tomas de Lima, na Liberdade, depois
na mão, que acabara de receber:
abriu uma porta de escritório na Sé, para funcionar a sede
do sindicato de fachada. Ninguém foi com a cara daquele — “Brilhante!” - disse ela, em voz alta - Esse Brilhante é
Brilhante. demais, conseguiu!

Na Liberdade, a gente se reunia na cozinha e ficava se pergun- O tal fax era uma cópia estatutária da fundação do Sindicato
tando qual era a dele. dos Mensageiros, com registro em algum cartório na capital.

Um tempo depois de ter montado um escritório na Sé, disse A questão é que quando se coloca a raposa para tomar conta
que era já o nosso sindicato. O mundo é realmente cheio de do galinheiro sempre dá nisso. O tempo foi passando, e em vez
espertalhão. O Brilhante é deste mundo. Fomos tirar satisfa- de o sindicato ser uma instituição de fiscalização e defesa
ção com a dona da empresa. Ela riu e disse: dos nossos interesses, para coibir o abuso das empresas que
abriam a cada dia sem manutenção dos registros dos funcio-
— Não se preocupem. Isso pode até dar certo, ele está só
nários, era mais um aparelho de subordinação e chantagem,
querendo ajudar. Vocês deviam ir lá, ele foi do sindicato dos
ao qual aqueles que “quisessem” poderiam se associar, sem
taxistas, tem experiência, e agora (que correram com ele de
esperar nada em troca. Os que “não quisessem”, tudo bem, o
lá) ele percebeu que vocês tão formando uma nova categoria e
sindicato estava lá para isto, ou seja, para receber a propina,
que alguém precisa “defender” vocês.
não importava de onde viesse.
Nessa época éramos pouco mais de 5 mil motoqueiros, todos
Mas era tarde. Os empresários já haviam criado a cobra que
registrados no Sindicato dos Condutores de São Paulo. Não
os comeria.
tínhamos com o quê nos preocupar. Não parecia que o cara
de tiozão metido a motoqueiro, com um colete velho de couro Assim, o tal LevEntrega se tornara apenas mais um paliativo
e bigode torto, querendo parecer ser de algum motoclube, inventado no meio empresarial para não enxergar a própria
fosse um dia dar problema pra cima dos motoqueiros. Não era miopia. A ruína da categoria já estava à vista, aquele modelo
motoqueiro, logo se via, pois nunca tinha subido numa moto. desapareceria e os motoboys já começavam a tomar conta do
mercado. O preço dos serviços despencava pela tabela.
Com os combustíveis comendo nosso salário todos os dias,
a inflação acabando com os contratos e a necessidade de
termos reajustes mais adequados à nossa realidade, os
272 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 273

Nós mesmos, mensageiros e motoqueiros, acabamos com gente ter nosso sindicato, nós sabíamos que ninguém falta-
a LevEntrega. Afinal, ninguém ali levaria ou entregaria uma ria ao trabalho pra correr atrás de sindicato, só se o cara não
mercadoria ao preço de R$3,00. A ideia deles era trabalhar fosse motoqueiro. Ninguém mais deu muita atenção, a coisa
no atacado, competindo com os Correios, e tentando baixar correu e cada um foi para um lado. O Leonel foi um grande
os custos a partir de uma estreita logística montada a partir amigo e companheiro. Não preciso dizer mais nada, vocês
da rede de empresas associadas. Mas a tabela de preço deles devem imaginá-lo por si. O Cláudio avançou um tempo ainda,
era fora da realidade dos mensageiros motociclistas. Por isto, não fosse o alto custo que era para manter sua nova Speed
deixávamos a encomenda no balcão, que no mesmo tempo Kawazaki ele teria ido longe, mas perdemos os contratos, e
poderíamos fazer dos nossos clientes ao preço da comanda não tive mais notícia dele. Aquele que apelidamos de The Flash
de R$ 26,00! ainda trabalhou por um bom tempo, creio, se não foi o primeiro
mensageiro, deve ter sido um dos, que se aposentou e, para
Um dia, enquanto participava de um congresso, tive o prazer
nossa sorte, deixou seu filho, ótimo motociclista, em seu lugar.
de conhecer o cara que havia inventado o LevEntrega. Seu
Às vezes a gente leva bronca, outras a gente perdoa e quer
nome era Ubira, e falamos de nossas tentativas de modificar
ser perdoado, mas não guardo mágoas da Augusta e do velho
a organização do trabalho de entregas rápidas. Ele me pare-
Augusto, que eram sócios na Moto Service. Hoje todos devem
ceu um cara bacana. Sem vencedores, os serviços de entre-
rodar aí pela cidade, vendo como nossa categoria cresceu.
gas seriam cada vez mais desvalorizados e todos perderiam.
Mesmo as empresas que controlavam o mercado de entregas — O cara veio mansinho, vinha meio sapeando, passa pelo bar,
rápidas naquele período - como a Moto Service, a Moto Forte mas a gente tá nas mesas, alguém diz “vem que tamo faci-
e a Força Tarefa, entre outras – desapareceriam. Falei para o nho”... Ê esse Brilhante, mêu, quê era aquilo... era foda. “Sor-
Ubira: riso gordo de baiano safado”, mas aí, o lance é que quem não
fez nada fomos nós – disse o Pequim. Quem ia faltar ao trampo
— Velho, sinto te dizer, mas você se equivocou quando criou
pra correr atrás de sindicato? Aqui é correria, e se você cola
seu negócio. Mesmo por que, também sonhamos um dia em
por aqui você ainda pode ouvir: “O Grecco mora em Diadema,
expandir a nossa empresa. Mas diferente de você, tínhamos
encaixa ele, pede pra ele fazer esse malote!” Víxi, a Ivani era
a consciência de que as motocicletas pertenciam aos mensa-
f... Era ela quem controlava os motoqueiros, ela gritava o dia
geiros, e creio que foi aí que você se enganou: ao julgar que
todo: “Pequim (ela chamava da janela) vai até Paulista, deixa
os patrões mandavam na gente. Ninguém te contou que aqui
seu malote do BCN lá com o Eliézer, ele tava cobrindo a Vilma
nesse setor as motos são dos motociclistas, e que quando eles
(motomina, grande amiga e confidente), pega os malotes dela
se organizam eles podem tudo? - Ele fez cara de branco. Não
e depois passa no Banco América do Sul, que ela te passa
me deu uma resposta que pudesse acalentar seu desgosto,
o serviço, faz o roteiro dela da tarde, vai, que o Eliezér tá lá
disse que deixara de ganhar 2 milhões de reais.
embaixo na oficina do Boy esperando.”
Todas estas pessoas e empresas estão hoje sumidas do
— E aí, Manuel, me diz um velho camarada, quem decorava
mapa, nós não.
o guia dominava o barato, fala aí, Leonel, cada um na sua, e
Nós estamos na correria. todos na dele, o mapa da cidade na cabeça, ê pois, as motos
andavam, viu... Ziííuuuuumnnnnn... Os escapamentos...
O Renato Fofão, só porque eu falava de política enquanto a
gente separava os roteiros e dividia o bolo de entregas, não
gostava de mim. O sonho do Paulo Pequim não era um dia a
274 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 275

XIX Como ao retonrar para a Moto Service havia escolhido


um contrato que me proporcionasse tempo para estu-
Em outubro de 1999, numa tarde abafada e com muito
dar, trabalhei para escritório da Bracel, uma multina-
trânsito, eu tomaria uma decisão que mudaria total-
cional francesa. Claro que era um contrato em que pou-
mente minha vida. Foi muito difícil encontrar forças
cos desejariam trabalhar, uma vez que se ficava preso
para descrever as razões que me fizeram parar, naquela
dentro da empresa o dia todo. Para mim era perfeito,
tarde, e pôr fim a uma agonia que havia me tomado há
pois passei a levar meus livros para lá e pude me con-
alguns meses. Havia um tempo eu vivia atormentado por
centrar nos estudos. Ao escolher aquele contrato na
um dilema. Tinha que tomar uma decisão de vida, que
Bracel, sabia de antemão que não poderia fazer encai-
implicaria, por um lado, responder a algumas questões
xes e serviços de outros clientes. Assim, meu ganho
que eu levantava em relação à tentativa da prefeitura
estaria limitado apenas àquele contrato. Porém, lá, eu
de regulamentar a categoria dos motoboys, e por outro,
saía no máximo duas vezes ao dia, um banco à tarde ou
como deveria me posicionar, tendo consciência dos pro-
a um cartório qualquer pela manhã. Era um contrato que
blemas em que me meteria ao me envolver com estas
nenhum motoqueiro queria. Mas aquele contrato se tor-
questões. Será que eu realmente devia defendê-las?
naria minha ponte para a universidade. Lá, éramos eu,
Não sabia se era isto que eu queria como projeto de vida,
duas secretárias, uma copeira e um segurança. Uma
me envolver com política.
das secretárias era bilíngue, a copeira cuidava de tudo
A minha posição como homem representava uma pos- e o segurança passava o dia dormindo na garagem da
tura que significava assumir diante do mundo uma res- frente. Ou seja, era a paz necessária para cair de cara
ponsabilidade na qual eu não sabia se estava prepa- nos estudos. A empresa ficava numa casa alugada no
rado para vivê-la. Daí que, ao me encontrar diante dessa alto da Lapa, e os diretores ficavam mais na França do
porta, se deveria abri-la ou não caberia a mim, mas que no Brasil. Assim, quando decidi me matricular no
como dizem os filósofos, esta condição de possibilidade cursinho pré-vestibular, encontrei naquelas moças um
já estava dada, e eu percebi que não teria escolha, na apoio inesperado. Tive muita sorte, as três não só me
medida, que eu já me encontrava diante dela. Quando ajudaram a estudar as apostilas como me tratavam bem
nos deparamos com um problema assim, geralmente e em dias de muito calor deixavam que eu entrasse na
pensamos na família, em nossos filhos e, principal- piscina, nos fundos, completamente nu.
mente, no amor que nos une. Por este motivo, finquei
Para mim, era um investimento. Não podia pensar em
pé e deixei que tudo se resolvesse por si. Mas não foi
dinheiro em curto prazo. Tive que me esforçar muito
possível. Na verdade, foi impossível ficar indiferente.
para ganhar ritmo de estudo e passar no vestibular. Fui
Para que vocês possam compreender meu dilema, tere-
recompensado, enfim, pelo esforço. Após dois anos,
mos que fazer um pequeno recuo no tempo, mais preci-
acabei entrando na USP. Minha primeira tentativa foi
samente até o início de 1996, quando eu me preparava
frustrada. Fiz minha inscrição no curso de cinema e,
para prestar o vestibular.
por pouco, não passei. Mas era muito difícil, e se eu
276 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 277

quisesse tentar novamente teria que dobrar meu horário mal, foi uma mancada da empresa, pois nunca aquela
de estudo, sem a garantia de passar. O curso de cinema comanda poderia aparecer junto às faturas do Boston.
tinha apenas 15 vagas e era ministrado durante o dia. E Assumi a bronca da firma, apesar do erro deles, e fui tro-
eu viveria do quê? Enfim descobri minha vocação para a cado por outro mensageiro.
filosofia, então prestei vestibular novamente. Em 1997,
Dali em diante, até encerrar meu trabalho na Moto
entrei na Universidade de São Paulo. Confesso que tive
Service, passei por dezenas outras empresas-clientes.
um baita apoio, tanto da família, que compreendeu
No dia dos Motociclistas, em 27 de julho de 1999, eu me
minha escolha e não pôde mais contar com o alto salá-
desliguei definitivamente da Moto Service. Nesse perí-
rio que recebia quando tinha vários contratos na Moto
odo, em que eu dividia meu tempo entre as correrias
Service, tanto daquelas meninas na Bracel, que foram
do dia a dia de mensageiro e estudava à noite na USP,
um estímulo a mais para que eu prosseguisse.
passei a questionar todas as condições a que os moto-
Incentivado pela ideia de que eu podia ir aonde quisesse, queiros estavam submetidos. Claro que eu era da velha
e já estudando à noite na faculdade, saí da Bracel e fui guarda e tinha o maior respeito entre os motoqueiros,
para o personal banking do Bank of Boston. Achei que e a empresa sempre pode contar comigo. Mas as con-
era hora de ganhar dinheiro para me manter na facul- dições do mercado de entregas rápidas a cada dia pio-
dade e bancar os custos da carreira de fotógrafa que ravam e a concorrência se tornava cada vez mais feroz.
minha mulher seguia.
Perdíamos quase todo dia um novo contrato, e as coo-
Por isso, neste novo posto passei a encaixar serviços. pergatos deslavadamente pagavam propina às chefias
Além de fazer todas as entregas e atender aos pedidos dos bancos, que passaram a ignorar se os motoqueiros
dos gerentes, por fora eu tinha um malotinho do Banco eram ou não registrados, retirando nossos contratos e
Sudameris. Quando sobrava um tempo, fazia várias oferecendo as estas pseudocooperativas.
comandas de O.S.15 que a Moto Service me passava. No
Algumas delas faziam leasing para adquirir lotes imen-
final de 1998, meu casamento estava quase terminando.
sos de motos com a condição de colocar no mercado
Aproveitei para mudar de ares e fui morar sozinho - alu-
centenas de motociclistas sem experiência e ganhando
guei um novo apartamento nos Jardins. Estava tudo em
salário. Isso barateava absurdamente os custos opera-
ordem, exceto pelos meus estudos na USP, que eram
cionais, pois, depois de algum tempo, eles se desfaziam
muito puxados. Como eu havia assumido muitas dívidas,
dos contratos de leasing e as motos ficavam destruídas,
cada vez mais eu tinha que fazer serviços por fora para
sem qualquer manutenção. Sem contar as inúmeras
bancar o padrão da minha nova vida, o que me deixava
mortes causadas por este tipo de exploração do tra-
menos tempo pra estudar. Até que um dia a casa caiu
balho dos motociclistas, como tão bem comprovou a
no Boston. A Cristina, que me passava os serviços da
experiência do Marcelo Veronez, Poeta dos Motoboys,
gerência, flagrou uma Ordem de Serviço de outro banco
em sua narrativa. Contratando assim trabalhadores
na fatura que a Moto Service mandara. Pegou muito
motociclistas para colocar nos mercado, estes empre-
15 (O.S.) Ordem de Serviço. sários não só aumentavam as altas margens de lucros
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à nossa custa, como não se responsabilizavam pelas


ações destes motociclistas sem experiência no trân-
sito. Morriam mais e mais motoboys e a situação pio-
rava com a falta de respeito e de qualquer ética moto-
ciclística. Discutíamos cada vez mais dentro da Moto
Service qual seria a solução, mas ninguém apontava
uma. Atrevo-me a dizer aqui que quando a Moto Service
optara pela parceria com a LevEntrega perdera uma
chance extraordinária de encontrar uma solução cora-
josa e, juntamente com seus profissionais, apontar
uma saída. Como o leitor pode ter percebido, nas con-
versas com os motoqueiros, na narrativa anterior, havia
um forte potencial dentro da empresa para enfrentar-
mos juntos qualquer crise que viesse - e vencermos.
Nunca saberemos o que poderia ter acontecido se hou-
vesse tempo de amadurecimento daquelas discussões
que iniciamos lá atrás. E se, antes de aparecer aquele
empresário com uma proposta da LevEntrega, talvez a
própria crise nos levasse a uma união em torno de um
projeto? Era isto, pelo menos, que estava se delineando
antes que da chegada dele. Mas nunca saberemos.
Há algo, portanto, que poderíamos saber: a partir da
necessidade de repensar o modelo de negócios do seg-
mento de entregas rápidas, buscamos talvez encontrar
outra base jurídica e vislumbramos uma nova lógica de
crescimento, ou seja, criamos um novo modelo. Para isso,
a solução que apontávamos naquelas discussões era que
devíamos buscar outra forma de contratação: em vez de
torná-los empregados, torná-los profissionais com auto-
nomia, e para isto devíamos agenciá-los, oferecendo-lhes
suporte e preparando-os para atender à forte demanda
que surgia pelos serviços de motoboy, sem vinculá-los
diretamente à estrutura da empresa, mas passássemos
a representá-los de forma associativa com orientação e
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assessoria aos clientes. Desse modo, eles se tornariam vezes ter ganho muito bem para realizar um trabalho
profissionais liberais. Exigia-se, assim, um compro- assim. Fez de mim um defensor irreparável e interlo-
misso mútuo de crescimento. Achávamos que, partindo cutor que a categoria não tinha ainda visto em sua his-
da particularidade da empresa, poderíamos atuar sobre tória. E digo isto sem modéstia, ao contrário de antes,
a totalidade do mercado. Caminho totalmente inverso ao hoje não temo mais represálias, os atores sindicais têm
que foi tentado e não realizado pelos empresários que seus papéis bem definidos, e não posso influenciar em
idealizaram a LevEntrega, que partira da totalidade para nada mais a direção que eles possam tomar, ainda que
o particular. Da venda de uma imagem de empresa para o tenha, por conta da história da categoria, se constituído
mercado, que não tinha qualquer base na realidade par- uma trama de questões que deixamos aqui em aberto,
ticular do profissional motociclista. De uma imagem ina- para ser revelada por um historiador mais autorizado
dequada deste profissional. no futuro. Voltemos ao contexto que me levou ao dilema
aquele dia, de ter que passar para uma perspectiva
Meu pensamento amadureceu com a longa experiência
comunitária de ação sobre o destino de toda a catego-
que tive, principalmente com aqueles motociclistas.
ria, deixando de lado uma visão pessoal e pessimista,
Até hoje eles têm muito a no ensinar, principalmente em
em que deixei de acreditar que outros poderiam fazer
relação à direção defensiva. Conceito tão pouco explo-
aquilo que eu estava destinado a fazer.
rado, que pode salvar a vida de uma motociclista16. Eles
sobreviveriam à carnificina que se tornaria o trânsito da
cidade de São Paulo, nos anos subsequentes. E todos
XX
vivos aí, para contar suas histórias.
O caso do “maníaco do parque”, que em meados dos
Voltando aos números, dos cerca de 3 mil profissionais
anos 1990 havia manchado definitivamente a imagem
motociclistas de quando comecei a trabalhar de moto,
da categoria. Fez com que aparecêssemos na mídia sob
ao chegar o final da década de 1990 este número che-
esta máscara de marginal - sem rosto. Nem mesmo nos
gava à estimativa de cerca de 80 a 90 mil motoqueiros
perguntaram se tínhamos nomes e qual eram nossos
cruzando a cidade diariamente. Para mim, o fato de ter
sonhos sob o capacete. Os fatos que vieram a seguir, no
entrado nesta profissão e ter passado diversos aper-
final daquela década, foram a gota d’água.
tos, acidentes, roubo à mão armada e até ficar preso em
escada de incêndio, além de uma enorme quantidade de Depois de um dia seco de inverno, com muita poluição,
experiências felizes, como o prazeroso sentimento de ficamos sabendo pelos motoqueiros que moravam na
pilotar uma moto por um dia em algumas cidades vizi- região leste que na noite anterior, após uma fechada no
nhas, para fazer uma entrega, e ainda o fato de algumas trânsito, um motoqueiro irritado com seu dia de traba-
lho e com a insistência da motorista que dirigia o auto-
16 Só posteriormente difundido pelo CETET – Centro de Treinamento da móvel em levar adiante a reclamação do motoboy até a
Empresa de Engenharia de Tráfego do Município de São Paulo, este conceito já delegacia mais próxima, eles entraram numa discussão
era aplicado empiricamente e repassado oralmente pelos antigos mensageiros em plena Marginal Tietê.
motociclistas.
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Após esse incidente, divulgado pela imprensa, o que viera com aquelas ideias. O clima esquentou na
governador Mario Covas ligou para o prefeito Celso Moto Service. Ninguém ali estava interessado em pagar
Pitta pedindo providências contra estes “marginais”. mais taxas, além dos encargos de IPVA etc.
Imagina se fosse com sua filha, deve ter dito o governa-
Ao saberem disso, os motoqueiros se revoltaram. Como
dor, preocupado com o índice de acidentes e de desres-
o Brilhante nunca fora motoqueiro, qual era o compro-
peito no trânsito. O caso dizia muito sobre a perspec-
misso dele com a categoria? Nenhum! E foi neste clima
tiva da motorista, que se vira sozinha, à noite, em plena
que deixei a Moto Service. Quando pedi a conta desta
Marginal, cercada por dezenas de motoqueiros com as
vez, eles me mandaram embora, como fizeram com mui-
caras pretas de poluição. Os motoqueiros, compreen-
tos outros que não tinham mais os polpudos contratos
dendo a razão do rapaz - que corria o risco de, além de
dos bancos. Eles perdiam motoqueiros, clientes e a
não ser justamente ressarcido pela barbeiragem da
cabeça. E foi assim que nós todos começamos a sair, a
motorista, ficar sem a moto, quando fosse conversar
colocar em prática os projetos pessoais com o dinheiro
com o delegado. Só pediram para que eles se acertas-
que tínhamos ganho aqueles anos – alguns colocaram
sem, e um cheque resolveria tudo. Porém, ela não que-
a empresa no pau17, aumentando ainda mais os custos
ria ser contrariada, e em vez de ir lá fazer o B.O., para
dela e inviabilizando-a cada vez mais como empresa.
que seu seguro cobrisse seu prejuízo, sozinha, chamou
Uma pequena correção: nós vírgula! Eu não tinha nenhum
a polícia e disse estar sendo constrangida e correndo
tostão guardado quando o barco afundou!
risco de vida. A galera que tinha parado para saber do
caso correu antes da polícia chegar, mas não antes dos Eu estava estudando, bebendo e fumando muito. Nos
repórteres que noticiaram. finais de semana, em vez de lavar a moto eu saia à noite,
não dormia e já não tinha mais ninguém. Na USP, as coi-
O prefeito chamou o secretário, que solicitou ao diretor
sas começaram a piorar, e piorariam ainda mais com a
de departamento de trânsito que chamasse os repre-
decisão que eu tomaria, e enquanto Leonel, Cláudio, Boy,
sentantes da categoria, os empresários das empresas
Pequim, João Rosa, Mineiro, Armando e todos os outros
de motos (SETCESP), os empresários do setor das mon-
punham em prática suas ideias e largavam a profissão
tadoras, os presidentes das cooperativas, os coman-
de motoqueiro eu continuava ali no batente. E pior, ao
dantes do policiamento de trânsito e o representante
sair da Moto Service, tive que virar motoboy.
do sindicato dos motociclistas (SIMMESP), no caso,
em pessoa, o Senhor Brilhante. Isso tudo aconteceu A nova empresa em que comecei a trabalhar era a Alta
em menos de duas semanas. Eles queriam regulamen- Express, na Radial Leste, o maior corredor de motoci-
tar o setor, disseram nossos patrões, quando estiveram clistas da América Latina. Lamentavelmente, o cara que
nessa primeira reunião, e falou-se em muitas coisas, dirigia a empresa era espertalhão, ele chegou tarde ao
inclusive, em colocar coletes nos motoqueiros e impedir mercado, aprendeu rápido como as empresas de moto-
que motos acima de quatro anos circulassem a trabalho boy cresciam e se deu bem à custa dos motoboys. Por
na cidade. Segundo disseram, fora o próprio Brilhante
17 Foram processados na Justiça Trabalhista.
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um lado, eu tinha que fingir que gostava do marketing Mal chegamos para negociar e ela percebeu nossa fragi-
deles. Por outro, eu odiava cada vez mais toda a situa- lidade. Na frente de todos nós, comentou como ajudara
ção, a sensação de impotência diante de uma condição cada um ali:
social que só poderia ser vencida pela união dos moto- - Para este eu adiantei o 13º, pra pagar uma dívida.
queiros. Mas qual união? Era bastante difícil organizar - Para aquele, as férias pra trocar de moto.
qualquer greve, e numa empresa de motoboy é pratica- - Para aquele outro, que vai casar...
mente impossível!
E assim foi...
Certa vez, quando nossos contratos na Moto Service fica-
Saímos humilhados e sem aumento, mas aprendemos
ram defasados por conta da inflação, como estávamos há
a lição. Pena que isto só acontecia na Moto Service.
um tempo sem qualquer reajuste no preço da hora de ser-
Éramos motoqueiros experientes e podíamos até errar,
viço, voltamos a nos reunir em nosso ponto de encontro
porém, aprendíamos rapidinho com os erros cometidos.
na Ilha, na Líbero Badaró. Sabendo os horários de cada
um, nos encontrávamos lá principalmente à noite. “Hoje a Nas outras empresas, os motociclistas tentavam a
cobra vai fumar”, pensei. A Ilha aquela noite ficou lotada mesma sorte, mas não sabiam que quem mandava no
de motos, lá foi um ponto de referência pra todos nós, galinheiro era o patrão: cometiam o erro de organi-
porque era onde discutíamos abertamente nossas dife- zar movimento dentro da empresa, sob as vistas dele.
renças e semelhanças, com outros motoqueiros, conhe- E pior, marcavam as reuniões em dia de pagamento,
cíamos a realidade das empresas. Era onde nos abraçá- quando todos estavam ali para pegar o salário e lou-
vamos e, no dia seguinte, competíamos entre nós. Fazia cos pra ir logo para casa. Ou seja, ser patrão de moto-
um tempo que os bancos não ajustavam os contratos de boy era mamata. Agora, você quer realmente conhecer
acordo com o aumento dos combustíveis. Organizamos, a categoria? Escute essa. Um dia, estou num guichê de
então, nossa primeira grande greve, que começaria em 48 uma repartição e vejo que o carinha na minha frente usa
horas, caso os sócios da empresa não pressionassem os uma jaqueta da mesma empresa que eu. Pergunto a ele
bancos. Levamos nossa pauta e a empresa, que era ainda desde quando estava com a gente, e ele respondeu que
ali na Liberdade, levou nossa proposta no dia seguinte estava na empresa havia cinco meses! Cinco meses?
aos bancos. Em 24 horas, tivemos os primeiros retornos.
Fiquei me perguntando em que tipo de acordos aquele
Eles haviam conseguido nosso aumento. A Ilha guarda na
cara estava se envolvendo na empresa para que nós
memória outras destas empreitadas. Mas certa ocasião
sequer o conhecêssemos. Como poderíamos organizar
caímos na besteira de, em vez de mandarmos cinco repre-
uma categoria onde todos os dias, cada um dos moto-
sentantes, como havíamos feito da outra vez, por conta de
queiros ia para um lado diferente do jogo. De que adianta
terem entrado muito mais motoqueiros na empresa e ficou
trabalharmos “juntos”, se nem nos vemos. Estupefato
uma baita confusão, decidimos todos falar com a Augusta,
com aquela verdade, me dei conta, quase desmaiando
e marcamos na noite seguinte uma assembleia com a pre-
no pé do motoqueiro perto de mim: enquanto na fábrica
sença dela. Nessa noite lembro que apareceu por lá tam-
os peões tão juntos, almoçam juntos e pensam juntos,
bém o tal do Brilhante. Nós o tocamos de lá.
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logo, fazem greves juntos, nós simplesmente estamos Eu sei que a ideia estava amadurecida na cabeça, argu-
fodidos! A lógica do espaço do trabalho do motoboy não mento por argumento, que aquele decreto não se susten-
permite que ele se organize! Nunca esta categoria fará tava. Havia uma cópia do projeto de lei circulando pelas
uma greve salarial! (Que pena, jamais saberá o sabor da empresas. Os diretores nos mostraram e não havia nada
vitória, pensei, lembrando as greves dos tempos de ban- nele que fizesse sentido. Tanto era assim que, passados
cário.) Compreendem minha agonia agora? Trabalhando dez anos, nada do que era proposto ali se concretizou,
na Alta Express, sem registro em carteira, tendo depres- e os motoboys e motogirls resistiram àquele projeto. A
são todos os dias! Eu estava alienado numa lógica ter- minha ideia naquele momento era escrever a um jornal
rível de um trabalho em que eu não era mais do que um e expor os motivos pelos quais o decreto-lei que a pre-
subproduto, vendido no mercado por uma merreca, e feitura estava prestes a baixar não tinha fundamento. O
poderia morrer a qualquer hora embaixo de um ônibus, decreto, que era uma necessidade, tornou-se uma obra
e não deixar absolutamente nada para minha família. de oportunistas, que viram a possibilidade de lucrar com
Cansado de tentar me suicidar pelas ruas, aquela tarde, isto. Muitos empresários vieram “dar seus palpites”, teve
quando faltavam dois dias para o prefeito assinar o tal gente querendo que motoboy tivesse taxímetro, e como
Decreto, a vida me cobrou sua dívida. Saber era saber, e eles não conheciam nosso trabalho, basearam-se numa
tinha um preço. Eu sabia que fizera poucas escolhas até lei que regulamentara - com sucesso - os táxis na capital,
então, e poderia contar na mão quantas foram as deci- e eles acreditavam piamente que aquilo seria aplicado à
sões que mudaram o rumo da minha vida de fato. Nossas gente também.
reais decisões de vida são raras. E ali estava ela, uma
Naquela tarde, eu vinha pela Doutor Arnaldo em direção
decisão a ser tomada, a porta a ser aberta, que eu have-
à avenida Paulista, onde há uma bifurcação, e eu justa-
ria de tomar e enfrentar às tramas lançadas por ela para
mente precisava tomar aquela decisão aquele dia - pois
sempre. Ao trabalhar de moto, pude ver de perto a reali-
o tempo estava passando. Se eu mantivesse a esquerda
dade dos motoboys. Ali, naquele Decreto que o prefeito
passaria por baixo do túnel que ia parar na avenida
assinaria, não havia nada que pudesse salvá-los, senão
Paulista. Se escolhesse a direita eu cairia na Consolação.
enquadrá-los num sistema rígido de regras, que a muito
Meus olhos estavam já totalmente embaçados, então
custo poderiam padronizá-los em uma categoria fictícia,
tomei a decisão, não sei porque virei à esquerda... Saí
mas não lhes daria uma nova identidade, não procuraria
na Paulista. Se eu não tivesse optado por esse caminho,
sanar suas necessidades nem mesmo consideraria suas
viveria o resto de minha vida sabendo que podia ser dife-
próprias determinações.
rente, que eu poderia ter me dedicado a escrever.
Quem foi consultado para que eles lançassem aquele
Parei, então, no estacionamento da rua Padre Manoel ao
projeto e o que deveria ser feito para resolver os reais
lado do restaurante onde tinham algumas mesas abso-
problemas da categoria? Rodei a cidade aquela manhã
lutamente vazias. Sentei-me numa ao fundo, tirei meu
como se fosse um zumbi, não sei quantas entregas fiz,
palm top e o coloquei sobre a mesa, chamei a garçonete
ou se as fiz.
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e pedi um café, e a avisei que todas as vezes que eu soli- baseado nos táxis fora usado, categoria tão diferente
citasse, ela deveria me trazer outro, e escrevi o artigo da nossa, por que foi retirado do Decreto aquele capí-
que estava em minha cabeça. tulo onde eram estabelecidas as formas de cobranças
(UTs) das viagens? Perdeu-se a oportunidade de ofe-
Respirei fundo, abri uma página em branco no compu-
recer algo real aos motoboys, ou seja, não foi criada
tador e comecei um artigo de cerca de cinquenta linhas
a UTM – Unidade Tarifária Motofrete -, que possibili-
onde eu convidada a população a fazer uma reflexão
taria o reajuste da hora do serviço, temporariamente,
sobre o decreto do prefeito Celso Pitta. Minha espe-
contra a inflação. Chamando a atenção para estes e
rança era de que ele lesse o artigo enquanto estivesse
outros pontos, terminei o artigo e peguei minha mochila.
comendo seus brioches pela manhã. E quando fosse
Bom, agora era escolher uma edição. Tirei a sorte e deu
assinar o Decreto, pensasse duas vezes antes de selar o
Estadão. O motoboy Eliezer tinha uma última entrega
destino de toda uma categoria.
a fazer aquela noite, quando saiu pra pegar sua moto
Primeiro, perguntava ao leitor do jornal como poderiam estacionada ao lado do Conjunto Nacional.
os fiscais autuar sobre os motociclistas, quem faria
Chegando ao edifício do jornal, disse ao segurança na
isso? Como determinar os limites da cidade? Qual moto-
portaria que tinha urgência em entregar um computador
boy que trabalha e mora na cidade? E os que não moram,
de mão ao editor, e falei o nome do editor que eu lera ali
eles podem trabalhar e se cadastrar? E com esta pressa,
numa edição que estava sobre a mesa da recepção do
quem fiscalizaria? Por exemplo, quando o táxi pega seu
jornal. Pensei: “motoboy entra em qualquer lugar nessa
cliente na calçada, podemos observá-lo tranquilamente.
cidade, camaradas!”
Por acaso, o motoboy com seu mochilão também será
Convencer eles a publicarem não foi difícil. Vários repór-
observado dentro da empresa, pois não há como deter-
teres leram o que estava escrito em meu computador de
minar quem é motociclista ou motoboy. Quando vier de
mão e discutiram entre si. Depois veio o subeditor-chefe,
uma cidade vizinha fazer trabalho aqui, nessa cidade,
e disse que faltavam ainda 10% de aprovação para que
ele vai pagar as taxas. Sim, porque com essa tecnolo-
o artigo fosse publicado. Como não tinha ali um cabo
gia de comunicação, não importa onde é a firma, o tra-
para transferir o arquivo, ele solicitou que assim que
balho pode ser feito aqui na Paulista e a empresa onde
chegasse em casa eu enviasse por e-mail, que naquela
bem entender, que não há como enquadrá-lo. E as
época eu já tinha, e eles fariam de tudo para publicar.
empresas daqui, como é que ficam? Como os peruei-
ros ilegais estavam sendo alvejados (porque naquela Não sei o que aconteceu com meu artigo, nem sei onde
época os perueiros tinham acabado de passar por uma foi parar. O que sei é que no dia da assinatura do Decreto-
ostensiva regulamentação – que, no futuro, seriam tira- Lei, o repórter Flávio Mello veio me procurar para repe-
dos definitivamente das linhas, e estas entregas aos tir minha opinião, quando estive na redação do jornal.
grandes empresários de coletivos), os motoqueiros que Era coincidência demais, o reporte enviado para cobrir
não fossem se cadastrar também seriam alvejados? aquele evento era meu amigo do banco, que trabalhara
E, por último, já que um programa de regulamentação comigo na seção de contabilidade, e, de fato, enquanto
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conversávamos sentados em uma mesa do lado de fora, trabalhadores motociclistas para servirem a nossa
lembrando nossos dias de bancários, e como acabáva- empresa. E não é que o pato caiu de boa? Tenho até hoje
mos nos encontrando em situações tão inusitadas, no o cartão dele amassado entre meu papéis, e ele não
saguão do lado o prefeito fazia as cerimônias aos con- deve desconfiar de nada até hoje. Ou seja, o jogo estava
vidados. Aproveitei para me desculpar com meu amigo, armado pra cima dos motoqueiros.
por perder a cabeça aquela vez no banco, quando não
Naquela oportunidade, também tive o prazer de me jun-
aceitei que a promoção fosse dada a ele e não a mim, o
tar pela primeira vez à luta dos motoboys, ao ser convi-
que causou aquela crise que resultou em minha saída.
dado para participar da Associação dos Mensageiros
Enfim, naquele dia eu disse como eu fora parar lá, envol-
Motociclistas do Estado de São Paulo por seu próprio
vido com os motoboys, como eu havia desistido da minha
presidente.
carreira de programador de computadores e como estava
sendo uma grande luta para termos reconhecimento. Se
o plano do prefeito desse certo, com certeza, eu teria XXI
razão em acreditar que, em pouco tempo, as fábricas
estariam vendendo motocicletas padronizadas (como No dia seguinte à assinatura do decreto eu não voltaria
queria a lei) diretamente aos empresários, deixando os mais à empresa de motoboy. Fui direto para a associação,
motoqueiros fora do negócio e colocando um monte de para iniciarmos um plano de resistência aos projetos da
gente sem experiência para trabalhar, correndo o risco prefeitura.
de morrer no trânsito e ainda por cima ganhando uma Nessa época, somente a AMM (Associação dos
ninharia, o que prejudicaria a todos. Ele ficou impressio- Mensageiros Motociclistas) batia de frente contra a
nado, pois não sabia que os motoqueiros eram os donos regulamentação dos motoboys. Reunimo-nos no apar-
de 99% das motocicletas que rodavam na cidade, e que tamento do Ernane Pastore, na Barra Funda, que era
apenas poucos trabalhadores motociclistas que eram quem presidia a associação. A casa dele servia de escri-
empregados das transportadoras tinham moto própria. tório para a associação e ponto de encontro do grupo de
Isso dava um outro caráter ao processo. Um último dado mensageiros e motoqueiros que estavam organizados.
antes de terminar este capítulo. Naquela manhã, depois A associação era muito nova e ainda estava se estrutu-
da “festa”, o decreto era assinado em um departamento rando, levada à frente pelo próprio presidente, que eu
de trânsito da prefeitura, longe dos olhos do público e já conhecia dos tempos de Moto Service, quando tra-
dos mensageiros que protestavam em frente à sede da balhávamos juntos, antes da empresa entrar em crise
Prefeitura. Conversando com os empresários do setor quando já chegava a ter cerca de trezentos funcionários.
de motos, joguei um verde em cima de um dos direto- Portanto, já tínhamos alguma experiência em organizar
res de uma das fábricas de motos presente ao evento: as reivindicações dos motociclistas e creio que o movi-
disse que trabalhava na Alta Express e que tínhamos mento dos motoboys nasceu ali, pois pela primeira vez
planos de expandir os negócios. Falamos em adquirir os motoqueiros resolveram criar uma associação para
um lote de mil motos, padronizadas, e contratar alguns defender a categoria.
292 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 293

Durante aqueles meses que se seguiram ao decreto fize- Inacreditável. Sofríamos uma grande pressão todos os
mos várias manifestações públicas, como motopasse- dias e ninguém fazia nada (tanto psicológica Quanto
atas pelo centro da cidade e na avenida Paulista. E, de financeira), chegavam a parar a gente duas vezes num
minha parte, a princípio achei que não era mais possível único dia em blitz de polícia. Os atrasalados metiam
ficar contra a regulamentação, uma vez que o decreto multa na gente e ainda perdíamos o dia parados nas
passava por cima da Câmara Municipal, e não haveria a barreiras policiais. Na verdade, aquilo se tornara uma
possibilidade de mudar substancialmente nada, já que grande perseguição, mas éramos lisos: criamos nos-
não houve um debate público anterior a ele. Eu insistia sos próprios códigos e,assim, conseguíamos escapar.
que a prefeitura cometera um erro ao não ouvir a cate- Talvez os motociclistas de hoje não tenham ideia do que
goria. Assim, eu discordava da forma como fora feita a passamos, mas se o cerco fechasse era correr que a
regulamentação. No entanto, não me oporia a ela dire- polícia vinha aí! Pois é, para onde íamos tinha comando!
tamente porque, simplesmente, como havia apontado Depois de uns meses, vimos uma das imagens mais
no artigo que enviara ao Estadão, eu sabia de ante- absurdas – e que sequer foi citada pela impressa local:
mão que a regulamentação estava fadada ao fracasso. o pátio da Companhia de Engenharia de Trânsito do
Tratava-se agora de gerir o estrago, antes que houvesse Município de São Paulo, na avenida Marques de São
vítimas, e esperar que um dia tivéssemos algum vere- Vicente, tornara-se um mar de motos apreendidas e
ador que fizesse outro projeto de lei que fosse mais a empilhadas, umas sobre as outras, ao ar livre. Muito
nossa cara. Mas isto, infelizmente, jamais aconteceu. motoqueiro que eu conheço não conseguiu mais recu-
perar sua moto. Enquanto isso, a venda de motos novas
Minha lógica era também que, ao forçar a regulamenta-
crescia vertiginosamente!
ção, a prefeitura nos obrigava a nos auto-organizarmos,
e isto não era de todo mal, olhando por esta perspectiva. Fiquei quatro meses na associação. Meu FGTS pelos dez
anos de trabalho na Moto Service se esgotava. As mano-
E de fato ela forçava.
bras da prefeitura para obrigar os motoqueiros a se cadas-
Lembro de uma tarde, ao final do dia, quando os motoquei- trarem tornavam-se cada vez mais duras, pois os policiais
ros se reuniam pra trocar ideia na oficina do Boy, antes de também passaram a mudar suas estratégias. Os moto-
zarparmos cada um para sua casa, que contamos até 27 queiros resistiam, mais vi muito motoboy novo correr pro
comandos da polícia de trânsito na capital. Não era brin- balcão da prefeitura, com medo de não poder trabalhar. Os
cadeira. Junto com o pacote da negociação, a prefeitura cursos nos CFC (Centro de Formação de Condutores) fica-
de São Paulo recebeu como parte pela assinatura a doa- vam lotados. Em vez de pessoas experientes explicando
ção de cinquenta motocicletas das fábricas de moto, pra direção defensiva e outras técnicas pra sobrevivência
serem usadas pela polícia militar, na busca e apreensão no trânsito, apenas boçais formadores, que nem mesmo
dos motoqueiros que não estivessem com a documenta- sabiam subir numa moto, tentando explicar o inexplicável
ção da moto em ordem ou com a manutenção em dia. – os motoboys aproveitavam para tirar uma soneca! E pior,
era ano eleitoral. Salvadores da pátria e oportunistas se
294 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 295

lançavam a vereador como candidato dos motoboys! E adi- por que eu realizaria um velho sonho de trabalhar em
vinha onde eles começaram pregando? Claro, dentro das uma edição. Antes de fazer filosofia na USP, cheguei a
salas de aula e espaços de formação, nestes centros arru- prestar vestibular para cinema na USP, como já contei
mados para “ensinar” os motoboys. aqui, e jornalismo na PUC. Para cinema não passei. Para
a PUC cheguei a passar mas não fui fazer minha matrí-
Estavam, em plena luz do dia, tratando os motoboys
cula, já que o curso custava uma grana – então achei
como um bando de carneirinhos!
melhor fazer mais um ano de cursinho e tentar filosofia.
Era também uma máquina de ganhar dinheiro em cima
Durante um tempo auxiliei a associação enquanto ape-
da categoria. A patifaria corria solta. Assim, por um lado,
nas escrevia para a revista. Mas chegou um momento
cada vez mais tínhamos diversas frentes de batalhas,
que não dava mais. Além de discordar das estratégias
porém, carecíamos deestrutura suficiente para defen-
políticas adotadas, eu apoiava a ideia de fomentar a cria-
der todas estas frentes. Lutávamos para sermos recebi-
ção um novo sindicato de motoboys, já que a justificativa
dos pelo prefeito e ter direito a sentar à mesa onde eram
da prefeitura para não nos receber era não termos “legi-
decididas as ações, que no fundo estava prejudicando a
timidade”. (Porém, não se tratava de legitimidade, mas
todos. Destas reuniões no departamento de transporte
de uma postura política negativa sobre nossa represen-
da prefeitura participavam os empresários do seg-
tação, isolando a AMM das decisões, o que, em qualquer
mento de entregas rápidas, os do setor das duas rodas
situação social onde houvesse uma representação legi-
das fábricas de motos e peças e os técnicos que apoia-
timada, constitucionalmente, era legítimo e por direito
vam explicitamente o Brilhante e a política de repressão
sentarmos à mesa para representar os mensageiros e
da prefeitura. Por outro lado, não tínhamos um veículo de
motoboys. É a situação dos professores do Estado de
comunicação com toda a categoria para esclarecer isto,
São Paulo, por exemplo, que têm em uma associação, a
então, ficávamos reféns de tudo aquilo que eles decidiam
APEOESP, uma forma de representação, para defendê-
e aplicavam a seu bel-prazer.
los inclusive em questões salariais diante do Estado.)
Um pouco antes que toda aquela discussão surgisse em
A AMM, com razão, contestava na justiça a legitimidade
torno da regulamentação, uma jornalista e um publi-
do Sindicato dos Mensageiros Motociclistas do Estado
citário haviam criado um pequeno jornal chamado O
de São Paulo como representante oficial da categoria, já
Motoboy. Um deles me procurou quando eu já estava na
que a assembleia de fundação desta entidade fora des-
associação, com uma proposta de transformar o jornal
caradamente fraudulenta.
numa revista. Uma vez feito isto, poderiam me pagar
para trabalhar com eles, já que os anúncios de jornal Nessa época, portanto, corria no Ministério Público uma
naquele momento não pagavam nem mesmo o trabalho ação movida pela Associação contra o Sr. José Antonio
deles. Então teríamos uma revista mensal, e eu tam- Brilhante, que naquela época tinha feito uso indevido
bém receberia uma coluna nessa revista, para que eu das assinaturas dadas pelos motoqueiros em um curso
pudesse discutir os problemas da categoria. Como não oferecido pelo “seu” sindicato para os motoqueiros da
via a cor do dinheiro há algum tempo aceitei, e também Moto Service para, com isso, fundar o Sindicato.
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Com estas folhas de assinatura (ele retirara o cabeçalho Nessa viagem para o Sul, aproveitei para ter uma longa
e ficara apenas com as assinaturas), ele dera entrada no conversa com as lideranças locais sobre o panorama
cartório, dizendo ter havido uma “assembleia” de fun- político na cidade de São Paulo e sobre as categorias
dação que nunca houve. Ou seja, três boas razões para que estavam nascendo. Com isto, não havia mais clima
responsabilizar esta pessoa tanto pela aparição dos de continuar na associação.
motoboys em empresas irregulares, como pela regu-
E a partir desse ponto passei a atuar dentro da revista
lamentação que, em vez de sanar as reais causas da
Motoboy Magazine, o antigo jornal O Motoboy.
degradação da categoria e a consequente vitimização
dos motoboys no trânsito, estava interessado apenas em A princípio correu tudo bem na minha ida para lá, e até
nos vender. A primeira é que, como se sabe, este senhor tivemos algumas grandes vitórias, se pensarmos que
nunca fora motociclista, então ele não tinha conheci- a revista se resumia a três pessoas trabalhando. Eu
mento de causa e não tinha o apoio dos motoqueiros na escrevia, fotografava, editava e ainda ajudava a vender
rua. Segundo, seu sindicato não tinha legitimidade para anúncios. O Oscar Gonçalves ajudava a fazer as entre-
nos representar, apesar de tentar nos convencer de que vistas, cuidava dos contatos comerciais e gerenciava. E
ele era o único que podia falar oficialmente pela catego- um motoboy nos ajudava fazendo de tudo. A jornalista
ria (embora os patrões tenham confiado na pessoa dele caíra fora e o Oscar passara a gerir o negócio.
para que fosse possível a categoria ter uma Convenção Desse modo, tive a oportunidade de fazer diversas via-
Coletiva própria, o que só foi possível porque eles ofere- gens pelo Brasil conhecendo a realidade da categoria
ceram dinheiro para que ele abrisse o sindicato) – assim, em outras cidades e estados.
pelo menos era o que aguardávamos a justiça decidir. E
em terceiro lugar, a AMM tinha muito mais associados Para mim, antes de tudo foi um grande aprendizado,
do que o SIMMESP, já que a qualquer momento pode- conheci por dentro diversas empresas com culturas com-
ríamos botar o pé na rua e fechar o trânsito, enquanto pletamente diferentes – algumas empresas eram sérias
o sindicato não tinha força política nenhuma para bar- e outras, grandes picaretas. E ainda que tivéssemos que
rar os ditames de um prefeito que fora destituído por passar noites acordados em porta de gráfica pra poder
duas vezes de sua função e ainda, em vida, responderia entregar as revistas nas datas (a revista era distribuída
a vários processos de corrupção e lavagem de dinheiro. gratuitamente e era o único veículo de comunicação de
grande circulação na categoria – outros veículos viriam
Então, de repente, me vi fazendo política – sem, no aparecer e desaparecer sem deixar rastros), era interes-
entanto, ter escolhido ser político. sante desenvolver um trabalho de conscientização tanto
Depois de uma viagem a Blumenau, em que fui fazer dos motoboys quanto dos empresários do setor.
uma matéria sobre a fundação dos sindicatos dos moto- Assim, tínhamos um bom respeito onde íamos e ainda
taxistas – que começavam a se estabelecer naquela podíamos nos posicionar sobre alguns pontos, que sin-
cidade –,eu me desliguei da Associação dos Mensageiros dicatos e associação não estavam em condição de se
Motociclistas. posicionar.
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Iniciamos diversas discussões na categoria e cobrí- O tempo era também um inimigo. A associação todo dia
amos quase todos os eventos do segmento, até que saia na rua. Os empresários, que também liam a revista
numa destas oportunidades tive o prazer de entre- O Motoboy, tomavam consciência dos artigos e matérias
vistar e conhecer o Sr. Luis Nakama, que era dire- que produzíamos. Inclusive que, se de fato a regulamen-
tor do Departamento de Transporte Público (DTP) da tação fosse só no nosso município, poderia ainda haver
Secretária do Trânsito e Transporte, e que era direta- uma nova ameaça de concorrência desleal, com empre-
mente responsável pela implantação da regulamen- sas dos municípios vizinhos atuando aqui – como eu já
tação do motofrete na capital. Termo este, motofrete, havia previsto lá atrás, em meu artigo ao jornal.
que ele mesmo cunhou, na tentativa de bolar uma nova
Assim, foi no meio de todas estas discussões que criei
designação para a categoria, que se diferenciasse
o conceito que passei a chamar de os profissionais
daquelas que os motociclistas utilizavam.
motociclistas.
Estávamos em março e naqueles seis meses a regula-
Como disse, aquele ano era determinante para o futuro
mentação tinha entrado num impasse. Muitos empre-
da categoria. E naquela conversa com o Sr. Nakama,
sários que agênciavam motoboys, inclusive, também
onde discutimos muitos pontos e expusemos nossas
estavam boicotando o processo, já que eles tinham
divergências sobre a regulamentação, que, tendo em
dúvidas se o motofrete iria pegar. E era então o momento
vista uma visão mais ampla sobre o profissional motoci-
em que ou a regulamentação entrava com força total e
clista que chegamos a alguns que convergiam, chegando
“fechava” a categoria, ou o processo poderia correr o
a um consenso sobre os encaminhamentos que deve-
risco de estagnar, como foi de fato. No entanto, apesar
riam ser tomados sobre o processo de regulamentação.
da preocupação da prefeitura em manter o cadastra-
mento aberto (ela havia determinado uma data limite, Deixei de lado uma postura de acusar a gestão e apon-
apenas para obrigar os motoboys a correrem para se tar seus equívocos, quando passara a tábua rasa sobre
cadastrar, não havia interesse em limitar o acesso a ela), a categoria, a fim de que, no futuro, a prefeitura se com-
isto não podia ser anunciado, como o próprio Nakama prometesse a fazer um amplo estudo de prospecção,
tinha me deixado claro numa conversa, afinal, as lojas de para conhecer a fundo os serviços de entregas por motos
motos tinham interesse em continuam a vender muitas e então chamasse os representantes para discutir um
motos. O óbvio interesse político por trás estava ligado projeto comum para todo o setor. Como Luis Nakama era
ao segundo fato: aquele era um ano eleitoral e a regula- um engenheiro técnico, ele tinha uma visão desvincu-
mentação do motofrete deveria constar na agenda polí- lada da politicagem, e pensava a cidade em sua totali-
tica, para um segundo mandato, como uma realização dade, compreendendo a necessidade de uma profunda
da gestão Maluf-Pitta. discussão sobre a mobilidade da motocicleta e uma
revisão sobre o tratamento geométrico das ruas e ave-
Vendo agora, a figura do motoboy tornava-se, assim,
nidas, para promover um melhor uso do espaço público.
o centro de uma trama de interesses em torno de sua
Então, propus a ele que criássemos um fórum de debate,
categoria profissional.
a fim de se discutir publicamente aquelas questões, e
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que seria ao mesmo tempo uma oportunidade do poder Como era a primeira vez que eu assistiria a uma corrida
público ouvir os motoboys. Ele não só topou como pro- de motos, fiquei bastante feliz, coloquei um bermudão,
pôs me ajudar no que fosse preciso, para que eu organi- uns óculos escuros (sou fãs deles), máquina fotográfica
zasse o Fórum. a tiracolo e capacetes. Coloquei meu filho na garupa e
fomos ver as máquinas roncarem na pista.
Lógico que minha cabeça estava ali a trabalho, mas
XXII
meu corpo era pura descontração. Eu sabia que pou-
O primeiro passo estava dado. Receberia dias depois um cos motoboys se interessavam por aquelas colunas de
convite para participar da próxima reunião agendada da esporte, diferente dos antigos motoqueiros, que com-
comissão de regulamentação do motofrete, no DTP. pravam suas próprias revistas de moto, então reali-
O passo seguinte era convencer Oscar da necessidade zava um antigo sonho como leitor de revista de motoci-
daquele Fórum, já que eu precisaria do apoio da revista, clismo. Nessa época já tinha sido apresentado a vários
para sua realização. diretores das montadoras de motos, então ficamos
na torre, onde rolava um bufê, conversando com eles
Mas ainda faltava o mais importante: um nome para o e olhando de binóculos os pilotos fazendo o circuito.
Fórum Nacional, já que como se tratavam de questões Como só havia adultos, Lucas, meu filho, disse pra des-
que tocavam todos profissionais em todo Brasil, aquele cermos para os boxes, onde poderíamos ver as motos
era um momento único. Como por meio da revista eu de perto. Então descemos, e nos enfiamos no meio
mantinha contato com os poucos sindicatos que exis- daquele monte de gente que trabalha e curte motovelo-
tiam naquela época, achei importante envolvê-los e cidade. Tiramos várias fotos e fomos para os guard rail
chamá-los para a discussão – já que não se tratava ape- ver as motos passando a milhão pela reta dos boxes.
nas de debater a regulamentação, mas a própria profis- Como ainda faltavam muitas baterias, fiquei por ali
são. E, finalmente, seria a primeira vez em nossa história conversando com os mecânicos e pilotos, tirando fotos
que todos os representantes dos sindicatos poderiam se e fazendo entrevistas.
reunir aqui em São Paulo para um encontro nacional.
Em um desses bate-papos, sem qualquer pretensão,
Após o carnaval, que fora na passagem de fevereiro a falei para os mecânicos que eu vinha da categoria dos
março, aconteceria em São Paulo, no Autódromo de motoboys. Eles foram legais me dando atenção e, por
Interlagos, a 1ª Etapa de Motovelocidade do GP Brasil. acaso, eu já estava falando de política. Como no universo
Como nossa meta, na revista, era cobrir todos os acon- das duas rodas, quando eu falava nas categorias, eles
tecimentos do mundo das duas rodas, trazendo infor- pensavam em termos de cilindradas, vi então que parti-
mações para nossa categoria, tomei a incumbência de cipávamos de mundos totalmente distantes, assim eles
naquele domingo de manhã cobrir aquela corrida. não compreendiam muito minhas angústias. Naquele
momento, em 2000, os pilotos de motovelocidade tam-
bém estavam começando a discutir novas regras para
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os campeonatos e patrocínios para haver mais profissio- O nome motoboy, como a atividade profissional de entre-
nalismo nas corridas de velocidade, por isto, um deles gas de documentos e todo tipos de apetrechos, foi criado
disse “que deveria haver mais união entre os motociclis- em São Paulo, e se popularizou por todo o Brasil. Mas na
tas profissionais”. verdade, isto só foi possível por que este motoboy tor-
nara-se a síntese do profissional motociclista urbano em
Vindo de alguém que pratica o motociclismo, aqueles
qualquer cidade, que com uma moto própria e sua flexi-
pilotos e mecânicos não estranhariam nunca o que eles
bilidade para encontrar soluções, ganhava cada vez mais
acabavam de dizer. Para mim, aquelas palavras mostra-
espaço no mercado para fazer suas entregas e atender
vam o outro lado da mesma moeda!
à clientela, o nome se estabelecera definitivamente no
Eu com meus botões, que procurava um conceito que imaginário popular.
desse a maior abrangência possível para colocar sob o
Desse modo, ao intuir a necessidade de termos todas
mesmo teto todas as designações que encontrara país
estas categorias juntas, batizamos o 1º Fórum Nacional
afora para os serviços de motoboy e mototáxis, aquela
dos Profissionais Motociclistas, que aconteceria em
nova informação caiu como uma luva. Fiquei bastante
julho daquele mesmo ano.
aliviado quando ouvi aquilo, e fui pesquisar nos site das
Federações de Motociclismo para conferir. De fato, aquele A fim de que não restasse dúvida sobre nossa escolha,
conceito pertencia a eles. Pois, aquela semana, depois de comuniquei a algumas pessoas sua razão, já que não
labutar diversos nomes para o 1º Fórum Nacional, estava podíamos nos referir a estes profissionais com a mesma
bastante confuso em relação a adotar “motociclistas pro- denominação de outra categoria que faz apologia à velo-
fissionais” para o Fórum, uma vez que já havia um sindi- cidade e se diferencia em número e grau da nossa - no
cato no Rio Grande do Sul que utilizava estes dois termos caso, os pilotos de motovelocidade e de teste. Esta razão
juntos, e não era só este o problema, pois eles tinham me pareceu bem simples, ainda que até hoje alguns
acabado de usá-los para a fundação daquele sindicato ainda insistam em não considerar, de um ponto de vista
e outros ainda seguiriam por este caminho. Porém, sem global, as categorias dos profissionais motociclistas,
conhecer a realidade de todo o universo das duas rodas, como uma só. Sem conhecer este conceito, estas pes-
pelo menos naqueles primeiros anos. soas fazem uso do termo “motociclistas profissionais”,
para designar todos os motoboys, mototáxis, mensa-
As atividades profissionais que faziam uso da moto-
geiros, couriers, deliverys, motoentregas etc. como uma
cicleta naquele momento já tinha se diversificado em
única classe, sem levar em conta o próprio termo ao qual
duas grandes categorias, a de motoboy e a de mototáxi.
estes profissionais estão vinculados. Ou seja, a moto, no
Os mototaxistas espalharam-se rapidamente por todo
caso dos profissionais motociclistas, é o meio para sua
o Brasil e, em poucos anos, tornaram-se uma profissão
atividade principal, não o fim. É sua ferramenta de tra-
bastante consistente. Portanto, eram categorias irmãs,
balho, não sua finalidade. Para os motociclistas profis-
embora tivessem funções completamente diferentes
sionais, pilotos de motovelocidade e de testes das fábri-
(ainda que muitos mototaxistas fizessem também servi-
cas de moto, a motocicleta não é o meio, mas o próprio
ços de motoboys).
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fim de sua ação; seja pelo prazer da competição ou pela Alemão, na verdade, era motoboy e poeta, e de tanto eu
técnica que utilizam para desenvolver ainda mais este escrever difícil (de propósito), parecia ter, afinal, atingido
veículo automotor. Desta diferença, nasceu um conceito meus objetivos ali na revista: pelo menos UM motoboy
nessa cidade sabia ler! Ri enquanto ele esbravejava do outro
que, além de tudo, marca um território de pertencimento
lado da linha...
recíproco. Cabe agora a estas categorias profissionais
firmar seus espaços a partir destes termos. — Olha - falei -, esta revista é dos motoboys. Por que você
mesmo não vem aqui e põe a boca no mundo?
O 1º Fórum já nasceria, portanto, dentro de uma discus- — Eu faço poesia... - disse ele
são que apontava o futuro da categoria. E com a pre- — Legal, cola aqui a qualquer hora, vamos conversar, tem
sença dos sindicalistas, a própria categoria tomava seu muita coisa pra fazer e estamos sozinhos... Vamos marcar
destino em suas próprias mãos. um café?

Quando, enfim, levei a proposta ao diretor da revista, Aldemir Martins, o Alemão, apareceu um dia por lá e
vimos que não era possível bancarmos sozinhos o Fórum. pudemos nos conhecer. Ele acompanhava de perto
Então, fechamos diversas parcerias com o intuito de toda a movimentação política dos motoboys e estivera
custear o encontro. Encontramos na própria associa- naquelas manifestações que fizemos contra a regula-
ção das montadoras de motos (ABRACICLO) o apoio mentação quando eu estava na AMM.
que faltava à realização. Assim, nasceria junto com
Conversamos longamente sobre os problemas da cate-
esta oportunidade o 1º Salão do Motoboy, uma feira de
goria. Como ele viera do ABC e tinha uma posição firme
motos e peças voltada aos profissionais motociclistas,
de esquerda, ele discordava do modo como estavam
idealizada e organizada pelo editor da revista Motoboy
sendo feito as coisas. Achei aquilo interessante e esti-
Magazine, que a cada dia encontrava mais reconheci-
mulamos ele a se envolver mais com a classe, já que
mento na categoria.
ele era motoboy e não se sentia representado, para que
Uma tarde, enquanto corríamos para dar conta dos pri- viesse participar também dos debates no 1º Fórum.
meiros preparativos do Fórum, eu receberia um tele-
Assim, naqueles meses vimos surgir uma nova lide-
fonema que, pela abordagem, me deixaria totalmente
rança na categoria.
surpreso:
Em poucos meses, o Alemão organizara um monte de
— Alô, eu queria fazer com esse Eliezer? – diz o motoboy.
motoboy e a revista O Motoboy parecia um bunker cheio
— Pois não, sou eu, digo.
— Mano, você tá louco, você fica escrevendo filosofia pra
de motoboys, capacetes, capa de chuvas, baús. Passamos
motoboy! a apoiá-los e eles criaram assim a União dos Motoboys do
— Como assim? Brasil (UMAB), como uma organização não-governamen-
— Aqui quem fala é o Alemão... tal, para representar todos os motoboys do país. Este era
— Velho, eu apenas escrevo para clarear as mentes, num sei o sonho deles.
escrever diferente...
— Motoboy num lê nem jornal - disse ele, irritado.
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O 1º Fórum Nacional dos Profissionais Motociclistas che- Sindicato dos Mensageiros (SIMMESP) passava para
gava, assim, com várias frentes, com muitos motoboys eles. Inclusive, para nossa surpresa, o representante
envolvidos na luta e com a participação de todos os sin- do sindicato, o senhor Brilhante, a princípio se recusara
dicatos que representavam os motoboys e mototáxis do a sentar à mesa quando me viu.
Brasil, menos, claro, o SIMMESP, sindicado do Brilhante,
Começou logo dando escândalo. Eu, que fora bem-vindo
aqui de São Paulo. Atingimos, graças ao trabalho duro
e estava ali a convite, tinha as melhores intenções em
dessa galera, do Oscar e de muitas pessoas que compre-
promovermos este debate, buscando, com esta inicia-
enderam a importância daquele primeiro grande encon-
tiva, que o poder público ouvisse os pontos de vistas dos
tro para debater os problemas da categoria, nossa meta.
motoboys. E o Sr. Luis Nakama, diretor do DTP, a fim de
Antes de finalizar este capítulo sobre a história da cate- encontrar meios para que a regulamentação saísse do
goria, é necessário ainda relatarmos aqui um dos lances impasse criado pela recusa da maior parte da categoria
decisivos para que pudéssemos organizar este encontro. em se cadastrar, via nessa oportunidade uma forma de
trazer a opinião pública para esta questão. Com isto, me
Como disse, ao conhecer o diretor do Departamento de
apresentava à mesa como um colaborador da revista e
Transporte Público, durante uma entrevista que conce-
organizador do Fórum.
demos a Rádio Eldorado FM, ele me convidou para a reu-
nião da comissão que estava conduzindo o processo de Brilhante, ainda em pé, jogou o estatuto do sindicato
regulamentação na cidade de São Paulo. sobre a mesa, dizendo-se ser o representante oficial da
categoria, e único a ter a legitimidade em representá-
Estas reuniões mensais aconteciam desde que o pre-
la. E recusou-se a sentar. Mesmo com os outros insis-
feito assinara o Decreto e participavam os represen-
tindo com aquele “deixa disso” – senão a reunião não
tantes do setor e as autoridades envolvidas em cada
continuaria.
etapa da regulamentação. Os empresários tinham mais
cadeiras, pois, além do presidente do sindicato patronal Vendo então que era comigo a parada, pedi a palavra. E
(SETCESP) vinham sendo convidados para acompanhar disse:
alguns empresários donos de cooperativas e represen- — Brilhante, não se trata aqui de sabermos se esse ou
tantes do setor das duas rodas. As autoridades eram aquele tem legitimidade para falar em nome dos motoboys.
compostas pela assessoria do secretário de transporte Mas também, não está em questão, para que esta reunião
e os comandantes do policiamento de trânsito, que aconteça, de que tenhamos a mesa o representante “oficial”
estavam ali para receberem instruções sobre a ação da da categoria. Mesmo por que, ninguém aqui esta pondo em
polícia durante o processo. dúvida sua representação, não se trata disso.

Difícil dizer que eu me sentaria ali naquela mesa para E neste momento ele parou. Não sabia o que dizer, ten-
argumentar pela realização daquele debate público, tando acompanhar meu raciocínio.
mas também contrapor as estratégias que eles estavam — Trata-se - continuei falando pausadamente -, de sabermos
seguindo a partir das informações que o presidente do quem tem representatividade. E, como nós sabemos, você
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não tem. A categoria é muito grande, e se fôssemos esperar De fato, durante a realização do Fórum, no mês de julho,
que você fosse registrar todos os trabalhadores, só acabaría- no Instituto Dante Pazzanese, o panorama político era
mos com isto daqui a vinte anos... outro. E numa última tentativa, a prefeitura estenderia
Mas não precisei continuar argumentando. Ele sabia que ainda mais o prazo do cadastramento, mas já era hora de
o Baixinho (era como eu chamava o Ernane, da AMM, na jogar a toalha. O prefeito fora quase cassado. Brilhante,
época) já havia queimado ele da categoria. depois disso, nunca mais botou os pés na rua. A “regu-
lamentação do motofrete” se arrolou ainda pelas ges-
Sentou-se, então, com o rabo entre as pernas, e não
tões seguintes dos dois prefeitos eleitos. Apenas uma
abriu mais o bico. Então, naquele dia presenciei como
pequena parte destes motociclistas se enquadrou na lei.
eram feitas as coisas por lá, e vi atônito cada um daque-
Enquanto isso, nas ruas os motoboys resistem até hoje.
les senhores dar seu voto a favor do posicionamento do
Comandante da Polícia de Trânsito, que deu seu diagnós- Neste conto, escrito em 2001, adiciono ao nosso livro a
tico sobre a atuação dos motoboys em São Paulo e orde- história de Miltinho, amigo que tem moto e morava pró-
nou maior rigor nas batidas. Era, enfim, a solução final ximo à casa do finado tio Nôno, que me deixou sauda-
para eles. Mas como eu disse, aquele era um ano eleitoral. des, em Diadema:

XXIII. Miltinho

Ao relatar estes fatos hoje, posso confessar que quando Se o diferente é o oposto do incerto, Miltinho era o meio-
termo. Não tinha nada de diferente de qualquer um, mas
saí daquela reunião eu sabia (ou pressentia) de antemão
corria pelo certo. Seu irmão, Cassiano, era responsabilidade
que tivemos ali uma grande vitória, que infelizmente não
sua - tirava o dia pra cuidar do menino. Mas se seu dever era
pude compartilhar com ninguém naquele momento. educar o caçula, Miltinho é quem, de verdade, precisava lá de
Meu cálculo era que, ao endossarem a realização do 1º mais educação.
Fórum Nacional dos Profissionais Motociclistas, além Deixava as cuecas sujas no chão do banheiro, largava a escova
de desmoralizar o falso presidente do sindicato dos de dentes no tanque cheio de roupa encardida, sentava de
motoboys perante os outros atores que tocavam a regu- cara pra tevê e ia comendo durante todo o dia. Chegava da
lamentação (afinal, Brilhante sempre fora “cachorro rua, dava um mijão na tampa da privada. Fio-dental pela casa
morto” para nós, motoqueiros), os ânimos a partir dali toda, a mesa nem se fala, ele deixava coberta de porcariadas,
iriam se arrefecer com a expectativa do Fórum. Mas às moscas, nos cinzeiros cheios mofando por dias uma nódoa
cobria a casa. Além de tudo, nunca havia o dia em que se
também, e foi justamente nesse ponto de duração que
habituara a lavar uma simples louça (não fossem as vizinhas!).
baseei a minha estratégia, como eu sabia que em julho
Mas ele era bom motoboy. Lembro-me até de sua mãe falando,
já estaríamos dentro da agenda eleitoral, com menos de quando ela estava viva: “Que menino porquinho. Meu Deus,
três meses para as eleições municipais, dificilmente os nem parece que criei você!”
políticos jogariam a polícia pra cima da gente.
Como outro qualquer.
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Mas essas “qualidades”, acima de tudo, serão sempre dele, à irmã mais velha, quando o pai das crianças desapareceu no
leiamos. mundo. “Filho a gente nunca esquece o nome”, mas de tanto
vó Maria chamá-lo assim, para disfarçar a parca memória que
— Porquiiiinho...? - choramingava o irmãozinho quando acor-
ainda lhe restava, Domêio foi ficando, por conta da avó chamar
dava pela manhã e ficava perambulando pela casa. Chamava-
dona Terezinha, mãe dos meninos, de “minha filha Terezinha,
o assim desde cedo porque gostava de imitar o pessoal da rua,
mais velha”; e o filho mais novo de “meu Cazuza, mais novo”.
que subia na mureta atrás da casa pra chamar o Miltiiiiiiiiinho.
Então o tio, que era “o do meio”, ficou Domêio. (Isso começou
Mas Cassiãn esticava ainda mais o i... – – Porquiiiiiiiiinho...
depois que passou a morte do “mais novo”. Talvez fosse uma
Alguém ia lá na janelinha da porta sem vidro e dizia: forma que ela encontrara pra não se referir mais aos nomes,
mas também nunca esquecer a perda do caçula da família,
– Vai trabalhá não? – Mas Miltinho só levantava após o
sem ter que dizer-lhe o nome.) Já dona Terezinha batia perna
meio-dia.
com apenas um pensamento, levantar a obra. E também, da
Pela manhã, “só tirar atraso”. Desculpava-se sem qualquer mesma forma com que veio parar em São Paulo, o tio Domêio
necessidade, referindo-se ao fato de ter que dormir enquanto foi ficando. Ficando e gostando, que logo resolveu sair de casa.
tomava conta do moleque de dia. Ainda pela madrugada,
Domêio deixou os dois cômodos e foi morar com uma mulher
quando voltava da pizzaria, caia às vezes de botas, capa de
do outro lado de Diadema. Miltinho foi o que mais sentiu sua
chuva e tudo num sofá torto que ficava embaixo de um armário
falta, mas nada disse. Depois que assumira tudo, acostumára-
desengonçado preso à parede da escada que dava pra o lado
se de cara a lidar com o impacto, quando logo depois de a
de cima do sobradinho construído com o suor da sua mãe, que
pobre mãe adoecer e ter “ido para o céu”. “Foi pro céu!”, dizia
um dia voltara da Bahia, após um casamento fracassado, e
ao maninho Cassiãn, na hora de por ele para dormir.
terminara seus dias num cubículo de empregadas numa man-
são, ali no Jardim Paulistano. Milton era bem mais velho, tinha mais do que o dobro da idade
do irmão. Porém, depois do falecimento da mãe, recorreu ao
Enquanto os filhos cresciam, eles viviam na parte de baixo
juizado de menores para que seu irmão ficasse em casa, tal-
da casa de blocos, que tio Domêio ajudava a construir. No
vez um medo inconsciente de vê-lo se perder numa instituição
pequeno cômodo ainda não cabiam todos. Por isto, quando ele
de caridade para menores.
viera ajudar na construção tinha que dormir lá fora no quin-
tal. Tio Domêio tinha o costume de estender uma rede velha Assim cresceu Cassiãn, miudinho entre os arroubos do mundo.
embaixo da laje onde hoje Miltinho guarda sua moto. Quando Na imensa favela, todos sabiam a história dos dois meninos, e
chovia, ele estendia uma lona de plástico preta até o chão, um sentimento de culpa que não tinha por onde nem porquê,
para conter a chuva. Hoje Miltinho ainda guarda esta técnica. apenas com a companhia do irmão e o carinho das “tias”, ou
melhor, das vizinhas, que fizeram uma corrente de apoio ao
Nessa época, dona Terezinha não tinha com que se preocupar,
motoboy e ao irmãozinho órfão.
pois, de manhã, quando saía, deixava comida para os três.
Depois passou a dormir no emprego e tio Domêio passou a Descobriu cedo que ficar sozinho significava abrir mão das
ficar com os meninos até levantar as paredes do quarto de zoeiras de moleque da rua. E de tudo mais que o futuro podia
cima. Esse tio era chamado assim desde criança. Filho do oferecer a um garoto da periferia. Ele queria ser completa-
meio de seu Antonio e dona Maria, os avós maternos, que mente livre, mas o fato é que já tinha tomado um rumo. Não
os meninos nunca chegaram a conhecer no sertão da Bahia. tinha volta. Tinha que se virar sozinho e cuidar do irmão.
Mas Domêio fora um consolo. Até então, era a força que dava
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Juntou uma grana que sua mãe deixara e comprou uma DT de conseguir trocar de motinha, e já calculava a possibilidade,
180 cc, toda cabritada, não demorou pra aprender a pilotar, que lhe aliviaria ao menos não ter que trabalhar de segunda
mas apanhou muito para aprender a consertá-la. No quin- a segunda na pizzaria. Aquelas entregas à noite estavam
talzinho, sentado sobre uma lata velha de tinta, Cassiano acabando com ele. Sem contar os corres pra fugir do risco de
acompanhava a aventura do irmão. Miltinho gostava de não ficar em fogo cruzado na boca da favela. Então sonhava.
chamá-lo “Cassiâããnn” para mantê-lo sob as vistas. Mas com o trânsito, logo esse pensamento ganhou sumiço e
o tempo bom acendeu sua expectativa de chegar logo àquela
O menino tinha uns olhos perdidos no mundo e um tanto dei-
sexta-feira que daria o cano no patrão e sairia com aquela mina
xava para olhar as molecadas das redondezas, que corriam
que conhecera no pancadão do domingo. A calça apertada na
em bando pelos becos da favela em alta velocidade numa
bundinha, o umbiguinho de fora da blusinha, só ia pensando
gritaria danada. E foi numa tarde abafada dessas que Miltinho
nela agora, com certeza ele só pensava nela, “o lance bolava”,
entrou pela viela subindo em primeira marcha até o portão de
e disse, sorrindo, seu nome. A pista quente ainda soprava uma
sua casa. Acelerou, antes de desligar. Quando punha a moto
poeira fina que entrava pela viseira, o vento seco de inverno ia
para dentro, no canto da laje, ao lado do tanque, era porque
apertando os olhos.
tinha que esperar o entardecer, até o horário de a pizzaria
abrir. Então tombava no sofá com as pernas abertas. Quando Na Ipiranga o tempo abriu e viu que seu dia também voara e
não, deixava a moto travada do lado de fora e entrava rapida- ele só tinha mais uma entrega a fazer. Dessa forma, era domar
mente em casa, bebia algo e já logo saia, outra vez acelerando, as curvas e pinar a segunda, pra escapulir dos faróis verme-
deixando um rastro de fumaça pelo ar. Um sentido de gratidão, lhos. Mas tocar sem medo no corredor ainda era o grande
de quem recebe, e apenas silencia a alma, foi o que sentiu risco. Ganhava seus segundos e a cada minuto deixava um
quando passou pelo pequeno Cassiano sentado ali. pra trás, dizia consigo, hasta la vista, baby, dando um que-
brão pra direita, sumindo atrás de um automóvel e fritando
O tempo passava, pensou, “logo o menino ia ter que ir a
o freio dianteiro diante de um policial parado na esquina. “Ô
escola”. Um dia perguntou ao menino “se ele não sonhava
atrasalado”, dizia.
com o futuro, ser alguém na vida”. O garoto, que tinha os olhos
longe, enquanto o irmão inclinava a moto pra medir o óleo, Bloco na mão, saca a caneta, olha, torce o pescoço, coça o
respondeu do ombro da janela: “Se não se sonha com o futuro, canhão pra impor respeito, mas sabe que a moto acelerada
morre-se no presente.” aguarda no ponto-morto. Se o tira tem um dia cansado ele te
esquece, se tem capitão ele avança, se te tira do trânsito, anota
Coisas assim a gente só ouve da boca de um guri. Mas foram
teus dados, faz perguntas inúteis e te lasca uma multa. Milti-
estas as palavras do pequeno Cassiano ao irmão motoboy.
nho é do tipo que fica calmo por fora. Por dentro do capacete,
Saiu pra trabalhar fritando com aquilo na cabeça. O capacete ele sempre está fulo: “Maldito f.d.p.”, pensa, dando uma risada
no cuco preso às orelhas, o mochilão encardido nas costas e nervosa, quando parte acelerando e torcendo, para que o cabo
um cigarro no canto da boca, quando chegou ao asfalto abai- do velô, que quebrou pela décima segunda vez, não o deixe na
xou a viseira e acelerou grandão. mão numa hora dessas! Um bração cola do lado arrastando os
espelhos dos carros e um motorista xinga: “Mais uma vez? Seu
Entrou na Rodovia dos Imigrantes. As dores nas costas vol-
corno!”, e põe a cabeça pra fora pra ajeitar o retrovisor. “Hoje
taram mais fortes nesse dia, então ele puxou a mochila pra
é assim”, pensou Miltinho, “dormiu, vem outro cara e te zoa”.
frente, apoiando-a sobre o tanque da moto. Agora que ele
conseguira umas entregas extras. só pensava em dar um jeito
316 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 317
318 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 319

Mas também tinha os camaradas, que estão de boa, como XXIV


esse que viu Miltinho quando atravessou o Mercado, na Zona
Cerealista, já próximo ao local da sua entrega, o motoqueiro Hoje, em São Paulo - capital e região metropolitana -, a
deu um guincho pra tirar um carro quebrado do meio da pista categoria é uma das principais forças políticas e é for-
e comentou: Putz, hoje tá punk’rock. mada por milhares de motociclistas.
Era ir pras cabeças, costas doendo pelas horas maldormidas Acredito que minha participação na história da catego-
no sofá, de dia fazendo um bate-e-volta na firma do Zelão e a ria, que começou no início dos anos 1990, ao ser mensa-
noite correndo pela pizzaria. Abaixo do grau e no leva e trás geiro motociclista na Moto Service, me deu uma expe-
pensava em Cassiãn, sozinho ou no vizinho, mas sempre sozi- riência de vida que em outro lugar eu não teria. Aprendi
nho. A tarde cuidava de deixar sempre um desses cobertores à
a respeitar e a ser respeitado no convívio com os moto-
mão, e a TV ligada, pedia sempre, que a coisa esfriava na serra
queiros que trabalhavam comigo. Nunca, no entanto,
do Mar, para que o menino não saísse para o quintal. Mas a
friaca vinha e congelava as paredes e o vento da madrugada
esperei ser totalmente compreendido, já que os proble-
fazia tremer as telhas finas dos vizinhos, nem todos tinham mas que afetam os motoboys são extremamente com-
como pôr uma laje. plexos. Também não me preocupo com isto, pois acredito
no potencial destes profissionais e na força essencial
Hoje, nem sempre assim, “mas ele ao entregar aqueles enve-
de sua categoria, e que um dia eles se emanciparão.
lopes tiraria seus 30 pilas”, pensou, era pegar ou largar, senão
eles não passavam mais os trampos e ele ficaria na rua. Confesso que percebi cedo que existia um lugar para
atuar nesta categoria, e já que minha própria história de
Sentado agora na recepção de um edifício, aguardando aquele
vida se entrelaçava na história dela, aceitei este des-
tiozão de camisa branca assinar os documentos, pensou
tino, mas não me agarrei a ele. Afinal, nossa luta sempre
novamente no que o Cassiano dissera, o que era mesmo? Puxa
pela memória, “Futuro?”, disse, lembrando os olhos fundos
foi pelo reconhecimento e por condições melhores que,
do moleque... Pra que queria saber daquilo, “futuro”?, per- independente de quem suba num palanque para fazer
guntava-se Miltinho. Teria ouvido aquilo na televisão? Sentia a defesa destes profissionais motociclistas, sempre
que o moleque mudara muito depois de tudo que aconteceu... deverão se pautar pelo bom-senso e a autonomia des-
Aquela tarde na volta pra casa acelerou macio, deixando a tes profissionais em escolherem suas formas de repre-
raiva e a cidade pra trás, pelo retrovisor. sentação. Paguei um preço pelo caminho que escolhi,
“Soul Favela, Soul a Norte, Sou a Leste,... a Zona é forte”, porém, tive muitas recompensas em termos de aprendi-
tocava uma música ao longe quando entrou no bairro. “Como zado e de reconhecimento pelo meu trabalho como pen-
tudo isso ficara feio”, pensou, lembrando da sua infância: sador. Agora, ao ser convidado para organizar este livro
quando chegara havia tanta arvorada. Agora, só bala perdida. com o Coletivo canal*MOTOBOY, também sou um escri-
tor da categoria. Percebi, entretanto, com mais clareza,
a multiplicidade de pontos de vistas sobre como cada
uma daquelas pessoas que sacrificaram sua vida sobre
as duas rodas tinham algo a dizer quando decidimos
contar aqui a história desta categoria, que se encontra
320 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 321

em pleno desenvolvimento e apenas iniciou sua jornada ele conheceu os sindicalistas de outros estados, e teve
em busca de uma autêntica cidadania, o que, como os uma participação ímpar nos debates, quando eles come-
leitores devem ter também percebido, tem ainda muitas çaram a se mobilizar eu sentia que o caminho deveria
coisas para acontecer. ser lutar por dentro do antigo sindicato dos mensageiros
(SIMMESP), obtendo credenciamento naquela instituição
Assim, já que nossas histórias relatam o próprio surgi-
e forçando seu presidente, o Brilhante, a fazer uma elei-
mento da categoria, julguei que seria muito importante
ção justa. Mas Alemão estava convencido de que o mais
mostrarmos como se enraizaram as lutas, e como tive-
correto seria desmembrar o sindicato dos mensageiros,
mos que nos organizar para evitar que elas fossem des-
que era estadual, de sua base em São Paulo e, a partir do
truídas em sua essência pela ganância e despreparo dos
movimento dos motoboys, fundar outro sindicato. O que
que não tinham condições de defendê-las. Foi desse
foi feito até com certo louvor.
modo, por exemplo, que nosso objetivo passou a ser dar
voz aos motoboys e motogirls, acreditando que, uma vez Minha vida particular a esta altura já estava totalmente
pudessem ser ouvidos, estes trabalhadores incansá- destruída, meus parentes todos longe, meu casamento
veis pudessem ter um futuro melhor, coisa que só eles há muito estava acabado e, por conta da minha parti-
podem conquistar a partir de uma reflexão sobre os pro- cipação no movimento dos motoboys, a universidade
blemas e dilemas com que lidam diariamente na sua vida pedira meu jubilamento, ou seja, eu perderia a única
profissional. Tal visão, que nasceu dentro da experiên- coisa que eu construíra com enorme sacrifício em todos
cia proposta pelo artista Antoni Abad com seu projeto aqueles anos. Ao sair da revista O Motoboy e bater lata
ZEXE.NET canal*MOTOBOY, se desdobrou na Semana em empresas de motoboy, eu apenas tentava sobrevi-
de Cultura Motoboy, organizada dentro do movimento ver e mandar uma pensão para meu filho. Foi quando
dos motoboys que participam deste Coletivo. Agora com conheci o Miltinho, em uma dessas bocas de porco, e
este livro, pudemos expor pontos de vistas de diversos escrevi aquele conto sobre sua vida de motoboy.
motoboys e ex-motoboys, que entendem a importância
Desse modo, vejo como fazia sentido toda minha angús-
desta categoria para a sociedade.
tia quando, no final de 2002, pensei que tudo estava
Após a realização do 1º Fórum Nacional, em 2000, quando acabado e tive que encostar minha moto antes que ela
os motoboys começaram a se organizar-se em torno da me jogasse embaixo de um caminhão – na minha moto
UMAB, e a discutir a criação de um sindicato dos moto- não restava quase mais nada, a não ser um motor que
boys, aos poucos comecei a me desligar do dia a dia de começava a bater, um quadro elástico que às vezes me
lutas, já que meus estudos exigiam-me cada vez mais. E deixava sem a corrente e uma caixa de direção zoada,
se antes eu acreditava que fundar um novo sindicato era que não dava segurança na hora das freadas. O desli-
uma solução, passei a ter sérias dúvidas sobre este cami- gamento da profissão não era apenas uma derrota ou
nho quando iniciaram o processo de fundação de um sin- uma consequência natural, como acontecera a muitos
dicato de motoboys na capital, o Sindimoto. No entanto, outros que passaram por ela, que dela tiraram seu sus-
não compartilhei com o Aldemir, o Alemão, seu presidente, tento e depois procuraram outras formas de sobrevivên-
este meu ponto de vista, pois, como desde o Fórum, onde cia, tendo-a como categoria de passagem. Como alguns
322 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 323

ex-motoboys que conheço, percebi na pele a dificuldade XXV


de sobreviver no trânsito com a moto em pandarecos,
Com as mãos nos bolsos e uma tristeza no coração,
derrotado assim pelas péssimas condições de traba-
eu mais uma vez recomeçaria minha vida. Mas tinha
lho numa empresa de motoboy sem estrutura, mas que
a história dos motoboys. Então, durante uma greve na
continuam a considerá-la porque os motoboys que ficam
Universidade, sentei e comecei a escrever um romance.
são como irmãos para nós. Enfim, eu me voltaria para os
Ele se chamava Linha 10 e era uma ficção sobre meus
estudos. Levava comigo a certeza de que, se algo não
dias de motoboy e a história de uma categoria, que aca-
fosse feito, seria perdida uma parte da história da cate-
bara de nascer. O romance, que ainda tenho numa gaveta
goria, e se não houvesse uma reflexão sobre os proces-
à espera de uma editora, ficou entre os dez títulos no
sos que levaram à sua desestruturação, ela jamais des-
concurso Nascente da Universidade de São Paulo, rece-
cobriria seu incrível potencial humano. Além disso, seria
beu ótimas críticas, mas ainda não emplacou. Creio que
esquecida a parte da resistência que fizemos para evi-
eu mesmo tenha deixado ele lá, até ter tempo e discerni-
tar que fôssemos enganados por abutres que, motiva-
mento18, para transformá-lo em uma obra sem idealiza-
dos pelas sucessivas tentativas de regulamentação de
ções, mas tudo tem sua hora e lugar. Quem sabe ele não
nossos serviços, se aglutinaram em torno da categoria
vira um filme, primeiro!
a fim de se apropriar do capital que girava nas mãos dos
motoqueiros. Se não houvesse outro caminho, a catego- Em 2003 eu finalmente conseguira uma bolsa-trabalho
ria nunca encontraria sua verdadeira emancipação. na Universidade, que agora me dava a oportunidade de
estudar, mas tinha ainda esperança de fazer um estudo
Assim, em fevereiro de 2002 eu entraria com um pedido
mais ampliado sobre os motoboys.
de solicitação de bolsa-moradia na Universidade de São
Paulo, a fim de voltar aos estudos. Naquele mesmo ano, Mas o curso de filosofia, por ser muito difícil e concei-
eu entraria com um recurso, que ganharia em segunda tual, não me dava oportunidade de se voltar aos moto-
estância, para recuperar meu número de matrícula, boys nem a cidade e meus contatos com as lideranças
depois que fora jubilado. E em outubro, já com minha estavam cada vez menores. Estava completamente
vaga recuperada, eu passaria a ser residente do CRUSP - preso dentro dos muros da Universidade, voltado à abs-
Conjunto Residencial dos estudantes da USP, onde moro tração e à leituras dos filósofos. Por um lado, eu realizava
até hoje enquanto preparo meu projeto de mestrado, com finalmente o sonho de uma vida inteira, que que era me
a novidade, agora, de que trouxe meu filho para morarmos dedicar às coisas do pensamento e do desenvolvimento
junto, já que ele passou para curso de Letras na univer- humano. Preenchia meu tempo integralmente com os
sidade, que me deixou muito feliz. Em outubro daquele estudos e minhas notas melhoravam a cada semestre.
mesmo ano eu abandonaria definitivamente a profissão Por minha história de vida até era chamado pelo nome
de motociclista vendendo o que restara de minha moto pelos meus professores, que sempre me perguntavam
a um garoto da favela São Remo, para ele entregar pizza, 18 Lembrando Nietzche, em suas inumeráveis tiradas: “Tudo que era garantia
pelo valor de R$ 300,00. Foi tudo o que restou dela. de um mundo ideal se desvanece a partir do “discernimento” (Einsicht) de que o
verdadeiro, o bem, o belo, são idealizações.”
324 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 325

sobre a luta dos motoboys. Mas não me sentia realizado inscrevem a partir dos espaços ocupados por estes pro-
e o romance que escrevera não tinha naquele momento fissionais motociclistas na malha da trama urbana. O tra-
subsídios suficientes para que eu lutasse pela sua publi- balho apresentado pelos alunos Augusto Stiel Neto, João
cação. Assim, naquele ano, como eu sempre falava dos Mutaf e Silvia Avlasevicius, do Curso de Ciências Sociais
motoboys às pessoas que conhecia, num papo com da USP, intitulado “Pelo espelho retrovisor: motoboys em
uma amiga do curso de antropologia ela me disse que trânsito”, foi posteriormente colocado pelo professor no
naquele semestre estavam formando vários grupos site do NAU - Núcleo de Antropologia Urbana.
de estudos no Curso de Antropologia Urbana e que um
Em 2004, eu continuava a me encontrar com aqueles
deles iria estudaria os motoboys em São Paulo. Como
pesquisadores, principalmente com o Augusto Astiel,
ela conhecia uma das pessoas desse grupo, sugeriu
que viraria um grande amigo e companheiro e fora quem
que eu fosse levado até lá. O curso, ministrado pelo
liderara o grupo de estudos antropológicos. Um belo dia,
professor José Magnani, foi uma excelente oportuni-
o Astiel me procurou e me disse que um artista espanhol
dade para seus alunos realizarem um primeiro estudo
achara a nossa pesquisa na internet e enviara e ele um
antropológico sobre os motoboys.
e-mail, dizendo-se interessado em realizar um projeto
Quando os alunos do grupo me convidaram para partici- de arte contemporânea com os motoboys. Ele queria
par das discussões e eu me dispus a apoiá-los, dando- oferecer uma oportunidade para que os motoboys falas-
lhes informações preciosas sobre as características dos sem de si mesmos na internet usando celulares para
motoboys e onde poderiam encontrá-los em momentos envio de fotos e vídeos.
mais sociáveis, cuidando assim, de evitar que os pesqui-
A princípio achei muito estranho aquilo, não sabia ainda
sadores intercedessem na lógica do trabalhos, da corre-
as reais intenções daquele artista e achei melhor espe-
ria do dia a dia de um motoboy. Outro cuidado, agora em
rar: era ver pra crer. O artista chamava-se Antoni Abad,
relação às informações que passava, era para que meu
e naquele ano apresentaria sua primeira experiência de
olhar não influenciasse o trabalho dos pesquisadores
arte usando celulares com a comunidade de taxistas na
antes que eles fossem às ruas. Assim, tinha certeza de
cidade do México.
que aquele grupo estava bastante interessado e podia me
oferecer uma nova visão sobre algum aspecto da catego- O Augusto, que continuava a falar com ele, disse que em
ria que eu ainda não conhecia! No final do ano, o traba- breve ele viria ao Brasil e fazia questão de me conhe-
lho deles foi apresentado com louvor entre os alunos da cer, pois, segundo o Augusto, eu era o cara que o artista
faculdade, sucesso que se deve também ao professor, que procurava para realizar este projeto no Brasil. Como eu
esteve incentivando o grupo, mostrando aos integrantes conhecia as discussões estéticas envolvidas em um pro-
as peculiaridades dessa nova classe de profissionais, jeto como este e também como tinha um profundo conhe-
que formavam uma tribo urbana e que mantinham com a cimento sobre a categoria dos motoboys, ele propôs um
cidade de São Paulo uma relação bastante complexa, rica contato. Assim, enquanto eu levava adiante meus estu-
em dimensões que, numa metrópole como a nossa, se dos e todos os dias ia ao Museu de Arte Contemporânea
da USP, onde eu tinha uma bolsa trabalho e realizava
326 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 327

minha Iniciação Científica em curadoria de arte, este antes quando estávamos preparando o projeto da expo-
artista, que também se tornaria um grande amigo, viajava sição do Gaudi, no SESC Pompéia, eu tivera que estudar
o mundo, realizando seus projetos com diversos grupos toda a história daquela cidade. Era tudo maravilhoso,
marginalizados pela sociedade, como as prostitutas em e sem saber, já estava apaixonado pela ideia do projeto
Madri, os ciganos na Espanha e os cadeirantes em sua em São Paulo, mas não conseguia imaginar de que forma
própria cidade, em Barcelona. Eu acompanhava atenta- aquilo que os cadeirantes faziam, inclusive apresentando
mente este desenvolvimento, mas ainda com uma dúvida o mapa feito por eles à prefeitura de Barcelona, modifi-
na cabeça: o que aconteceria em São Paulo, quando ele car os espaços públicos onde tinham obstáculos, e que
desse aos motoboys celulares ligados à internet? Era um dia eu sonhava poder realizar junto com o projeto do
uma pergunta cuja resposta eu não conhecia, e precisei Antoni no Brasil. Mas como os motoboys se apropriariam
viver esta fascinante experiência para saber. destas ferramentas? O que eles apontariam? Como eles
iriam lidar com ela? Quais as preocupações deles na hora
Em Barcelona, ao formar o grupo de cadeirantes para
que formassem o grupo participante?
mostrar os obstáculos que as pessoas com deficiên-
cias físicas têm na cidade para se locomover, o artista Finalmente, em 2006 o Antoni Abad veio ao Brasil e tive
ofereceu uma ferramenta absolutamente revolucio- a oportunidade de conhecê-lo. Mas ele pouco falou dos
nária aos participantes do projeto canal*ACCESSIBLE cadeirantes, que eram minha maior curiosidade. Ele
(Canal*Acessível): junto à tecnologia de envio de fotos, falou sobre os motoristas de táxi da capital mexicana
a mídia era feita com um dispositivo de geolocalização, que, nas palavras dele, eram nossos hermanos, por
ou seja, era a primeira vez que eu via o uso do GPS para conta dos problemas que estes lutadores enfrentavam
um uso social. Ao lado da fotografia, que muitas vezes para serem reconhecidos pela sociedade e pela preca-
denunciava um abuso no trânsito de alguém que deixa riedade com que o trabalho lá era feito, com muitos dis-
um carro sobre a calçada, impedindo a passagem de túrbios causados por táxis clandestinos e não haver uma
uma pessoa com deficiência, a foto vinha acompanhada regulamentação destes profissionais por lá. Nesse sen-
de um mapa mostrando exatamente o local onde ela fora tido, éramos muitos marginalizados e parecidos.
tirada. E como muitas daquelas fotos eram de escadas e
Como o artista que teve essa ideia de dar celulares a
batentes de locais públicos e privados, foi montado um
uma comunidade sem voz, quando esteve aqui em São
mapa da cidade acessível, uma verdadeira evidência de
Paulo anos antes, vinha nestes anos tentando realizar
que uma comunidade específica estava mostrando ali as
o projeto aqui, mas não conseguia encontrar patrocina-
limitações impostas pela falta de uma política pública
dores por conta do grande preconceito em relação aos
voltada às diferenças.
motoboys, finalmente parecia ter achado uma parceria
Aquilo encheu meu coração de alegria. Todos os dias para trazer o projeto, recebemos meses depois a notí-
eu visitava canal*ACCESSIBLE para ver como os cia de que começaríamos a desenvolver os trabalhos.
cadeirantes estavam se saindo em Barcelona, como tam- Recebi, assim, o convite para ser curador-adjunto do
bém, pelas suas fotos, reconhecendo naquela cidade que projeto, que seria realizado no CCSP – Centro Cultural
328 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 329

São Paulo. Local que eu passara parte de minha vida sabia da existência do Ronaldo a partir das fotos que ele
seja estudando nas bibliotecas, assistindo filmes e enviava para uma página de testes, que o Antoni criara
peças teatrais e principalmente durante a minha juven- em uma de suas viagens ao Brasil, antes de fundarmos
tude havia visto as primeiras apresentações de bandas o canal*MOTOBOY, quando ele tivera a oportunidade de
punk rock, ou seja, eu estava em casa, e sabia que o conhecer o Ronaldo. Desde o princípio, tinha uma pre-
lugar era perfeito para o canal*MOTOBOY nascer! ocupação de que aquele ponta de lança seria funda-
mental para haver uma parceria na hora de organizar o
O nome canal*MOTOBOY já estava na cabeça do artista
grupo de motoboys do projeto, e deveria ter ele mesmo
há muito tempo. Mas ele esperou pela primeira reu-
um caráter forjado nas ruas, com experiência e dedica-
nião com os organizadores para nos consultar. Então,
ção de anos e conhecimento das complexas relações da
um pouco mais de um mês antes de abrirmos a exposi-
nossa categoria: o Ronaldo tinha tudo isto, e mais que
ção, ele chegou ao Brasil, trazendo consigo sua esposa,
tudo, tinha o carisma necessário para liderar os moto-
Glória, e nessa primeira reunião no CCSP para discutir-
boys e a humildade em reconhecer o grande papel que
mos o projeto tive o prazer de conhecer uma das pessoas
deveria ser desempenhado dali em diante, represen-
que mais me influenciaria desde que o projeto nasceu: o
tando toda a categoria, como uma pessoa sensata e
motoqueiro Ronaldo.
crítica. Nesse sentido, a categoria teve muita grande
O Ronaldo era o profissional ideal. Aquele que em minhas sorte em tê-lo como profissional motociclista à frente
horas de meditação, em que a única forma de deixar do canal*MOTOBOY.
escapar a mente da rotina pesada de motoboy eu pas-
Vou agora terminando nosso pequeno livro. Deixo ao lei-
sava a imaginar qual seriam as qualidades desse profis-
tor a curiosidade de saber mais sobre os motoboys, sobre
sional do futuro. Ele era autônomo e não tinha patrão.
o canal*MOTOBOY e as atividades culturais do nosso
Organizava seu dia a dia, mudava várias vezes suas
Coletivo, que a partir deste projeto do Antoni Abad, vem
estratégias para poder atender a todos os seus clientes,
realizando diversos projetos com os motoboys. Para isto,
usava seu celular para fazer seu serviço e ainda tirava
deixo também um convite para uma visita ao nosso Canal
ótimas fotos. E estes não são elogios vãos, nas fotos
na internet. Lá, todos os dias, o leitor poderá acompa-
dele podíamos ver aquilo que Merleau-Ponty diz em rela-
nhar a jornada diária de Ronaldo e de todos os motoboys
ção ao movimento do pensamento: uma certa “solidarie-
e motogirls, seus companheiros, que enviam flashes ao
dade entre o observador e o observado”19, ou seja, por
vivo da cidade, e nessa saga mostram um outro lado da
trás dos seus cliques, havia o pensamento de alguém
cidade. Dando uma visão aprofundada de pessoas que
que sabe a posição que ocupa no espaço da cidade – e
abrem um tempo em seu dia a dia no trânsito para con-
esta posição, o Ronaldo nos revelava, é única! O que digo
tar um pouco sobre a realidade em que vivem dentro do
é que não acreditávamos em nossa sorte, já pelas fotos
espaço urbano. Que dão um tempo em seus afazeres para
dele víamos que os motoboys proporiam imagens inu-
mostrar seus saberes.
sitadas da cidade. Mas até aquele momento eu apenas

19 O olho do espírito. Marcel Merleau-Ponty.


330 Coletivo canal*MOTOBOY Neka 331

Mais importante ainda é que, para a própria existência Cultura Motoboy. Realizam paralelamente a isto a expec-
desta categoria naquilo que ela tem de mais essencial, tativa de mostrarem suas capacidades e sua cidadania
na sua própria especificidade, foi que neste caminho participativa, o desejo de emancipação que propõem a
que fizemos ficou evidente, com esta experiência, que todos os profissionais do futuro, porque a ele estes moto-
estes profissionais são mais do que meros mensagei- ciclistas pertencem.
ros, mas sujeitos de suas próprias histórias, também
têm sua própria mensagem. Como aquela que faz de
nós, motociclistas, portadores de uma visão única sobre XXVI
nossa cidade e que se abre para um novo tempo. De certa forma, na vida algo sempre nos escapa. Caso
Foi muito difícil chegarmos até aqui. Muito trabalhoso. tenhamos esquecido aqui de citar alguém ou algo, que
Tivemos que rodar muitos caminhos, e depois de bater- nos perdoem a imperfeição, mas também o tempo cor-
mos muita cabeça, descobrimos nesta oportunidade, rido, porque, como vocês sabem, motoboy é correria. E,
quando juntarmos estes motoboys e ex-motoboys para finalizar, volto àquilo que estava tão evidente nos
escritores, que com muita dedicação e perseverança, versos de Octávio Paz, e que eu soletrava, soletrava, na
contaram um pouco como nasceu esta grande cate- tentativa de decifrar seu enigma, e que parecia mostrar
goria, e justamente por que o que nos une é o desejo que nem tudo estava acabado; naquele momento em que
de sermos livres. Assim, da clara certeza que brota pensei que minha desistência era definitiva, e nas situa-
quando dois motociclistas se encontram e conversam ções mais difíceis de minha vida, uma força inconsciente
entre si, e trocam experiências, e que quando cada qual me segurava e fazia com que eu não me perdesse no
coloca seu capacete, a solidão da mente invade os pen- mundo ou enlouquecesse. Assim, minha luta nem mesmo
samentos e ao mesmo tempo cruzando a cidade, estes começara, mas já havia, de algum modo, uma última mis-
pensamentos se encontram e realizam a esperança de são. Aliás, sempre haverá:
um dia, quando encontrarmos outra forma de organi-
zação social do nosso trabalho, aí, realmente, todos “Sem entender, compreendo:
serão livres. Também sou escritura!”

Do mesmo modo que em nosso site estão todos os regis-


tros desta experiência inusitada de vermos simples
motoboys transformarem-se em críticos das condições
de vida dos motociclistas, das preocupações ambien-
tais, e também, do ponto de visto único, que a motoci-
cleta os proporciona. Pela manhã fazem suas entregas,
à tarde dão entrevistas e palestras, promovem debates e,
em breve, preparam sozinhos a esperada 2ª Semana de
Índice de
imagens
P.103 Bandeira da Paraíba e Bandeira do Estado do Rio de Janeiro
P.107 Brasília
P.109 Minha casa no Cezarão
P.110 Um aniversário
P.19 Eu em uma foto de escola
P.113 Praia na Ilha do Governador
P.24-25 O ventilador
P.114 Dois aniversários perdidos no tempo
P.26-27 Cezarão num dia de sol
P.118-119 Carta de conversa com um amigo metaleiro
P.29 Indicação para base aérea de Santa Cruz
P.121 Época do movimento estudantil
P.32 Central do Brasil
P.124 Minha primeira carteira de trabalho
P.37 Estação de Santa Cruz
P.128-129 Minha agenda e adesivos colados em caderno
P.40-41 Uma van
P.131 Candelária
P.42-43 Avenida Brasil
P.135 Proletário e Vanguarda
P.45 Antenas UHF
P.136-137 Pista de skate do Cezarão
P.46-47 Mais uma vista do Cezarão
P.138 Eu e meus avós
P.49 Interior do trem
P.141 Avenida Brasil
P.52-53 Stevie B. e Seiya de Pégasus
P.145 Recortes do jornal O Dia
P.56-57 Placa da Rua 50
P.147 Selo comemorativo do cometa de Halley
P.60-61 Arcos da Lapa
P.150 Bússola
P.62-63 Palácio Gustavo Capanema
P.153 Minha tia e minha mãe comigo na praia
P.64 Carteira de indentificação funcional do Banco do Brasil
P.158-159 Atari
P.67 Banca de jornal da Carioca
P.161 Eu e minha tia em Paquetá
P.71 Eu com o meu padrasto na Praia de Mauá
P.164-165 Eu e minha irmã em Mauá e Porto das Caixas
P.72-73 Eu na escola de teatro Martins Pena
P.168 Minha tia que eu imaginava ser rica
P.77 Máscara de Clóvis
P.169 Eu sentado no sofá da minha tia que eu imaginava ser rica
P.84-85 Placa de indicação
P.172-173 Balas de tamarindo e Pedalinho
P.89 Estação de trem de Madureira
P.174 Cidade de Deus
P.90-91 Igreja Nossa Senhora da Glória
P.179 Meu avô usando telefone doméstico pela primeira vez
P.94-95 Passarela na Avenida Brasil
P.181 Escritos antigos
P.97 Ingresso para cinema no CCBB
P.183 Eu numa festa junina
Sobre o autor

Eliezer Muniz dos Santos, o Neka, como é chamado pelos


amigos, sempre foi interessado por tudo relacionado à cul-
tura de rua. Professor, escritor e curador, exerceu as mais
diversas profissões, mas foi como motoboy, entre 1988 a
2002, que descobriu que a liberdade era mais que andar de
moto. Encontrou, então, um jeito de ser livre, e deu um tempo
no trampo de motoboy para se dedicar aos estudos. Soube,
finalmente, que a verdadeira liberdade é compartilhada.
Hoje é formado e licenciado em Filosofia pela Universidade
de São Paulo. À frente do movimento dos motoboys desde
os anos 1990, articulou e organizou o 1º Fórum Nacional dos
Profissionais Motociclistas em 2000 na capital paulista, que
reuniu pela primeira vez todos os sindicalistas do Brasil,
para discutirem os problemas da categoria. Em 2007, já for-
mado, deixou a política de lado e passou a se dedicar à cul-
tura motoboy. No mesmo ano, foi convidado para a curadoria-
adjunta da Exposição “Motoboys transmitem de celulares,
canal*MOTOBOY”, de Antoni Abad, no Centro Cultural São
Paulo. Em 2008, organizou a 1ª Semana de Cultura Motoboy,
juntamente com o Coletivo canal*MOTOBOY, que chacoalhou
o Centro Cultural Popular da Consolação. Apaixonado por
motocicletas desde que se entende por gente, seu grande
sonho é ver um dia todos os profissionais motociclistas res-
peitados em sua liberdade de seguir em frente em busca de
seu destino, sem que precisem, para isto, perder a vida no
trânsito por conta da pressa do patrão.
Hoje leciona Filosofia em uma escola da rede pública na peri-
feria enquanto organiza da 2ª Semana de Cultura Motoboy.
Este livro foi composto em Akkurat.
O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m².
Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m².
Impresso pela Prol Gráfica em Abril de 2010.

As fotos desse livro são imagens de arquivo pessoal


e também imagens feitas por Diego Felipe e Veruska Taylla.
Todos os recursos foram empenhados para identificar e
obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados.
Qualquer falha nesta obtenção terá ocorrido por total
desinformação ou por erro de identificação do próprio
contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder
os créditos aos verdadeiros titulares.

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