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A MIU HIRAIDA,
OU

A CONVERSÃO, E RECONCILIAÇÃO
DO GENTIO-MUHRA.

POEMA HEROICO EM SEIS CANTOS,


COMPOSTO

PoR H. J. WILKENs.
# DADO A LUZ, E o FFERECIDo
} Ao Ex.mo E REv.mo SENHOR |

D. ANTONIO JOSE D’OLIVEIRA,


Bispo d'Eucarpia, Suffraganeo Coadjutor,
e Provisor do Arcebispado d'Evora, do
* Conselho de S. Magestade, etc. etc. etc.
* PELo SEU CAPELLÃO
O P. CYPRIANO PEREIRA ALHO,
Presbytero Eborense.

# L IS BOA :
-- NA IMPRESSÃO REGIA.
1819. .
} # .
<*
Com Licença,
~~~~ *
/*es/is 47.
{

Igualmente direi sempre ditoso,


Ou quem fez cousas dignas de memoria,
Ou quem poz em memoria o proveitoso. -
Fer. Carta X. Editor.

| Declaro que demandarei em tribunal


competente a pessoa ou pessoas, que impri
mirem ou fizerem imprimir esta Obra, sem
que tenha precedido meu consentimento.
O P. Cypriano Pereira Alho.
Excellentissimo e Reverendissimo Senhor

<

..// Pacificação de hum inimigo, a con


versão de hum gentio, sempre forão e se
rão titulos de alegria politica, e consola
*ção religiosa; e porque estes se verificá
rão, e tiverão lugar em huma das Pro
vincias do dilatado imperio do Brazil (que
se honra com o nascimento de V. Excel
lencia), são na verdade motivos para V.
Excellencia , não só de jubilo como bom
Patriota, mas de ternura paternal como
*hum dos Pontifices da Igreja; apezar de
razões tão attendiveis meu trabalho neces
sita , de protecção, eu a busco á sombra
do respeitavel e venerando Nome de V.
Excellencia,
*
ser : ·a
de quem tenho a honra de
|- •

*** |- Senhor,
* *

De Vossa Excelencia
Subdito, e Capellão muito obediente

O P. Cypriano Pereira Alho.


a 2
*#

*
*
*| •
( 5.)

A R. G. U M E N T O

DO POEMA A MU HR A IDA.

O Feroz, indomavel, e sempre formidavel


Gentio-Múhra, conhecido ha pouco mais de
cincoenta annos, habitando os bosques e la
gos do Rio-Madeira, confluente do famoso e
sem par Amazonas, no Estado do Gran-Pará,
rimeira Capitania Geral da America meri
dional *###### foi sempre fatal aos na
vegantes do Rio-Madeira, no commercio que
O ### faz com Mato-Grosso, sendo a fero

cidade deste Gentio sempre cruel em seu cor


so assim para os Brancos, como para os In
dios de qualquer nação, barbaros ou aldea
dos , levando em seus assaltos as mulheres
moças, e as crianças; estas para as amolda
rem a seus costumes, e aquellas para abusa
rem dellas, e empregallas nos trabalhos pe
niveis á feição de seus usos.
Talvez por hum favor do Ceo, nunca
esta nação se familiarizou com as espingar
das, nem dellas soube fazer uso, pois que se
algumas colhiam em seus saques, quebra
vão-as, e dos estilhaços fazião pontas para
as flechas; ninguem jámais fez hum uso tão ·
*>
( 6 )
terrível, e fatal destas mortíferas armas; he
quasi impossivel que hum Múhra erre hum
tiro de frecha, e por isso mesmo que se não
ouve, ele o faz sempre a salvo, occultando
se no em maranhado dos bosques, cuja con
fusão he acima de toda expressão, mesmo
hyperbolica. |- •

Em 1786 abrio este tremendo inimigo


as suas incursões pelos rios vizinhos, apro
ximando-se até ao Forte da boca do Rio
Negro: no anno, seguinte já enchia de te
mor, espanto, rapinas, e mortes as con
fluencias do Rio-Solimões, ou Amazonas,
impedindo, e aniquilando a novegação, com
municação, e commercio dos povos daquel
les Rios: sem estabelecimento perduravel;
dividido em pequenos corpos (a que os na
turaes chamão Malocas) elle assolava, e con
sternava tudo, porque a sua presença se fa
zia sentir de modo que se não podia nem
plantar, nem caçar, nem pescar: tudo era
victima da sua barbaridade, apezar das op
portunas providencias dadas pelo Governo
daquella Capitania, do valor das armas em
penhadas em huma vigilante opposição, e
do necessario castigo dado a tantos insultos,
e crueldades. Tudo estava álerta, e não me
nos o bem entendido, e apostolico zelo dos
Missionarios das diferentes corporações re
ligiosas, daquelle Estado; quando em 1784
(querendo-o Deos assim) estando governan
do a Capitania do Rio-Negro em chefe João
(7)

Pereira Caldas, Governador e Capitão Ge


neral nomeado para o Mato-Grosso, e prin
cípal Commissario da 4.° Divisão de limites
da Corôa de Portugal, se servio a Divina
Providencia d'hum pequeno instrumento pa
ra operar maravilhas, permittindo que fos
se escolhido hum Mathias Fernandes, que
então era Director dos Índios moradores no
Lugar de Santo Antonio do Imaripy no Rio
Yupurá, o qual já era conhecido do dito
Gentio, e tanto, que era o unico homem
branco a quem temião pelos assaltos reeite
rados em que os tinha batido, e afugentado;
permittindo, digo, que este homem incom
paravel fosse o que buscasse meios de os at
trahir, infundindo-lhes sentimentos de con
fiança, e desejos de se communicarem com
os nossos Chefes; o que alcançou de modo
tal, e tão admiravel que em sua companhia,
e depois sós, passavão ás povoações da Ega,
Alvarães, Nogueira, e Alvellos, aonde fo
rão sempre bem recebidos de todos, e pre
senteados pelo Governo, e pelos moradores
assim Indios como Brancos, para o que ha
via huma exacta recommendação do Com
mandante e Commissario naquelle districto
o Tenente Coronel João Baptista Martel.
Ultimamente, estando huma conside
ravel partida de Múhras no Lugar de No
gueira, teve o dito Commandante o particu
lar gosto, e espiritual consolação de ver of
ferecerem espontaneamente vinte innocentes
(8)
Múhras para serem baptizados, o que com
alegria, e ternura apostolica efectuou o R.
P. Fr. José de Santa Teresa Neves, Reli
gioso Carmelita calçado do Convento do Pa
rá; sendo Padrinho de todos o sobredito
Commandante Martel.
Findo este tão grande como interes
sante acontecimento passou o dito Gentio
Múhra a estabelecer-se por propria escolha,
no Lago do Amaná do Rio Yupurá, aonde
achou commodidades preparadas pelo dito
Mathias Fernandes; o que deo descanço aos
moradores daquelles paizes, reanimou o com
mercio para o Mato-Grosso, e huma livre
confiança a todos os viajantes.
Eis o assumpto do Poema: algumas
notas do Author esclarecerão certos lugares;
outras minhas patentearão, e farão mais per
ceptiveis assim as notas como os lugares no
tados pelo Author.
O desejo de ser util aos meus concida
dãos, e grato aos paizes que habitei me fi
zerão lançar mão desta empreza, lembran
do-me do que diz o nosso Poeta:
O que entre a antiguidade mais se havia
Por infamia, era desprezar a terra, •

De que hum era filho, ou em que vivia.


Ferreira. Carta III.

Cypriano Pereira Alho.


(9)

A MU HR. A IDA

P O EMA – HER O ICO.

C A NTO I.

C Anto o successo fausto inopinado,


Que as faces banha em lagrimas de gosto;
Depois de vêr n’hum seculo passado
Correr só pranto em abatido rosto;
Canto o successo, que faz celebrado
Tudo o que a Providencia tem disposto
Nos impensados meios admiraveis,
Que confirmão os fins inexcrutaveis.
2

Mandai raio de Luz, que communica .


Entendimento, e acerto verdadeiro,
Espirito de paz, que vivifica
A frouxa idêa, e serve de roteiro
No pelago das trevas em que fica
O mesmo mortal, que em captiveiro
Da culpa, e da ignorancia navegando
Sem Vós, he certo, incauto, ir naufragando.
(10)
3

Invoco aquella Luz, que difundida


Nos corações, nas almas obstinadas,
Faz conhecer os erros, e a perdida
Graça adquirir; ficar justificadas;
A Luz resplandecente appetecida
Dos Justos, das nações desenganadas
Da pompa, da vaidade do inimigo,
Que ao Averno conduz final perigo.
4

Mais de dez lustros erão passados,


Que a morte, e o terror acompanhavão
Aos navegantes tristes, que occupados
Estavão co" perigo, que esperavão
A cada passo ter nos descuidados
Segura preza, em que se alimentavão;
Despojo certo, e victima innocente
Na terra, ou mar; do rio na corrente.
5

O Rio que a Penthesilea-prole, (1)


Habitando algum tempo, fez famoso;
Em quanto não afeminada a molle
Ociosidade deo o valoroso
Peito, buscando agora quem console
A magoa no retiro vergonhoso,
Que fez aos densos bosques em que habita,
Inconstante, e feroz, qual outro Scytha.
(11)
6.

Entre os frondosos ramos, que bordando


As altas margens de esmalteraro,
Servindo estão mil rios tributando
Correntes argentinas, que no avaro
Seio recolhe o Amazonas, quando
Descendo vem, soberbo, sem reparo
A terra, e os arvoredos arrastando
Para no mar os ir precipitando.
/

Compete o cabedal do novo oceano


Co'as producções da terra preciosas,
Servindo á ambição do util engano,
Valor, e variedades prodígiosas; +

Uteis á sociedade, e trato humano,


A não serem colheitas perigosas,
Que a liberdade, e vida tem custado
A muitos, que as havião frequentado.
3;

Entre nações immensas, que habitando


A brenha inculta estão, bosques e rios,
Da doce liberdade desfrutando
Os bens, os privilegios, e os desvios
Da sórdida avareza, e desprezando
Projectos de ambição, todos impíos :
A barbara fereza, a ebriedade
Associada se vê cola crueldade.
(12)
9

Nas densas trevas da gentilidade


Sem templo, culto ou rito permanente,
Parece que esquecidos da Deidade
Alheios vivem d'Ella independente;
Abusando da mesma liberdade,
Que lhes concedeo o Ente Omnipotente
Por frivolos motivos vendo a terra
De sangue tinta de humana injusta guerra.
10

Algumas ha nações, que as mais excedem (2)


No barbaro costume, e crueldade,
Com que o esforço, e valentia medem;
Repugnante á razão, á humanidade,
Denvenenada flecha, que despedem;
A escolha pende da voracidade,
Com que o inerme peito accommettendo
Da vida o privão para o ir comendo.
11

Quaes Tartaros, ou outros vagabundos,


No corso, e na rapina se empregando,
Em choça informe vivem tão jucundos,
Como em dourados tectos; espreitando
Nas margens lá do rio, e lagos fundos.
O incautó navegante, que passando
Vai de perigos mil preoccupado,
Só do mais imminente descuidado.
(13)
12

Qual lobo astuto, que o rebanho vendo


Passar de ovelhas, do pastor seguido,
A desgarrada logo accommettendo
Faz certa preza sem ser presentido;
A ensanguentada-fauce então lambendo,
A negra gruta já restituide,
Cruel, insaciavel se prepara,
Medita nova empreza, e se repara.
13

Tal do feroz Múhra agigantado


Costume he certo, invariavel uso,
Que do rio-Madeira já espalhado
Se vê em tal distancia, e tão diffuso
Nos rios confluentes, que habitado
Parece ser por elle, e ao confuso,
Perplexo passageiro intimidando,
Seus barbaros intentos vai logrando.
14

O naufragante vê embaraçado
Em passo, que parece se despenha
A margem sobranceira, ou já parado
Na forte correnteza, que se empenha
O barco a sumergir, arrebatado,
Lá quando esperançado, que só tenha
O descanço lugar, tregoa a fadiga;
Então a vida, e bens, tudo periga.
(14)
15

D'aqui de agudas flechas hum chuveiro


Por entre espessos ramos despedindo,
Traspassa o navegante, e o remeiro;
Que do terror da morte possuido,
O faz precipitar na onda, primeiro,
O faz preferindo deixar tudo perdido,
Que expôr a cara vida a morte certa
Em ara-impura, involuntaria-oferta.
16

Qual ave de rapina insaciavel


Ligeira desce, e despedaça a preza;
Ou de corvos o bando innumeravel
A code a saciar-se na indefeza; ~~

Assim deste gentio a formidavel ' ~~~~


Cohorte repartida com destreza,
Em barcos tão ligeiros, como informes, (3)
Mais temiveis se fazem, mais enormes.
17

Não mitiga o cruel, o feroz peito


A tenra idade do mimoso infante; ******
Nem á piedade move, nem respeito --
Do decrepito-velho, o incessante |

Rógo, e clamor; só fica satisfeito * *


Vendo o cadaver frio, ou palpitante }
O coração; o mar, e a terra tinta ** •

De sangue, que não deixa a terra extinta. ~~


(15)
18

Sem distinção de sexo, ou qualidade,


Ou tudo mata, ou leva maneatado,
Em duro captiveiro, onde a maldade
O trabalho combina, destinado (4)
Aos diferentes sexos, e a idade
Dos prisioneiros; sendo castigado
O negligente com tal aspereza,
Que prova he convincente da fereza.
19

De insipido manjar alimentando


A robustez, na vida vagabunda,
Perigos, e trabalhos desprezando,
Só de fereza na miseria abunda:
Todo o rigor dos tempos aturando,
O maior bem na independencia funda;
Sem leis, sem pouso, e sem authoridade
Accidentes só tem de humanidade.

26

A mesma ás vezes foge d'envergonhada, (5)


Vendo infernal abuso da impiedade;
Que até no fragil sexo exercitada
Depois da morte, extinta a crueldade,
Do modo mais sensível ultrajada,
Que aos tyrannos lembrou em toda a idade,
Transforma a mesma barca de Acheronte,
Em templo da lascivia, altar, e fonte. --
(16)
21

Mas minha casta Musa se horroriza,


Vai-me faltando a voz, destemperada
A Lyra, vejo, a magoa se eterniza:
Suspenda-se a pintura, que enlutada
Das lagrimas, que pede, legaliza,
A natureza em fim vendo ultrajada,
A dôr, o susto, o pasmo, o sentimento,
Procure-se a outro tom novo instrumento.

NOTAS DO 1.º CANTO.

(1) O Rio Amazonas, no estado do Gran


Pará, chamado, ou conhecido com os nomes
de Orellan, e Marãnon por os Espanhoes:
hum dos maiores do mundo conhecido; con
tinúa com o nome de Amazonas, até onde
recebe o Rio-Negro, e d’aqui em diante lhe
chamão os seus habitantes Solimões; he fer
til em caça, peixe d'immensa qualidade;
abunda tanto em Jacarés, ou Crocodilos,
que em muitas paragens apenas se mette o
remo n’agua que se não toque em algum;
mas para compensar estes incommodos elle
apresenta ao especulador, e habil commer
ciante o cacáo, cravo, salsa parrilha, oleo
de cupayba, estopa para calafetar, brêo,
piássáua, puxiry, baunilha, nós moscada,
ou como lá lhe chamão, fruta preciosa, urú
cú, uaraná, e milhares de qualidades de
preciosas madeiras; cera, e mel, hum sem
(17)
mumero de frutas saborosas, e agradaveis ao
paladar; e toda esta espantosa enumeração
de objectos uteis, e interessantes ao com
mercio estão á mercê de quem os vai extrahir,
porque a natureza os produz, espontaneamen
te; afóra muitos outros devidos ao trabalho
da cultura, como são algodão, café, anil,
cacáo, arroz, toda a qualidade de legumes,
milho, farinha de mandioca, carimá, tepio
ca, laranja, melancia, etc. Pelo que respei
ta á caça e pesca, he ella tão abundante que
em poucas semanas se fazem centenares de
arrobas de huma, e outra cousa sêcca, espe
cialmente do porco do mato, e da tartaru
ga; desta, recolhendo-se os ovos que ellas vão
desovar, nas praias a vinte, e a trinta passos
longe d’agoa, se fazem milhões de potes de
manteiga, que he a que se gasta nas luzes
nas duas capitanias do Rio-Negro, e Pará;
tem chegado a tal abundancia, que houve
anno em que na Villa-Nova da Rainha (Tu
pynambá-râna), que era o lugar onde os fa
ctores deste negocio pagavão o dizimo, hou
ve anno, digo, de 10 a 12:000 potes; quantia
incrivel, que se eu não a visse apresentada
em mappas, que entravão na Secretaria, já
mais o deveria acreditar: em fim não póde
dizer-se na pequena extensão, qual convém
a huma nota, o que observei em dez annos,
que alli estive, e sempre colocado em luga
res de o bem poder saber. Alho.
(2) Entre varias *;; gentias de Côrso
(18)
menos conhecidas, como os Manás, Mirê
nhas, Ituás, e muitas outras que habitão o
Rio Yupurá, he mais conhecida a grande
nação Múhra, pois não sendo antropopha
gos, só se empregão em matar, e roubar in
diferentemente os brancos como os Indios
domesticos, isto he, os já aldeados; e os que
habitão os bosques até ao anno de 1756 não
consta que sahissem do Rio-Madeira; já in
festão o Amazonas, e suas confluencias to
das. W.
(3) As embarcações deste gentio são or
dinariamente só o casco da arvore, compri
das, e pouco largas, em que se acommodão
oito, dez, quinze, e mais pessoas assentados
huns adiante dos outros; e para atirar se le
vantão despedindo a flecha com huma violen
cia incrivel. W.
(4) Alguns velhos, e rapazes prizionei
ros, que á morte escapão, são empregados
pelos Múhras em fazer arcos, e preparar
flechas, na fabrica das Choças, na caça, e
pesca, etc. as mulheres em fiar algodão pa
raliar as mesmas flechas, e linhas para a
pesca; em fazer loiça, farinha, meyú, a co
zinha, etc. sendo todos castigados com aspe
reza se não desempenhão suas tarefas. W.
(*) A loiça de que usão todos os Indios
do Ámazonas he realmente muito boa, ainda
que nada tem de vistosa; vão as velhas
(Uagmys), e só ellas, ás ribanceiras dos
rios arrancar o barro que misturão com a
(19 )
cinza de taes e taes cortiças, e depois de
muito bem amalgamados estes dois corpos
passão a fabricar a loiça, que he feita ás
torcidas do tal barro, estendidas com os dedos,
e alizada depois de feita a peça a deixão sec
car, depois as arranjão em huma figura có
nica, e nesta mesma figura a cobrem com
cortiças, (cascas de páo, em sua frase) e lhes
lanção fogo , o qual lentamente as bem co
ze; depois de frias lhes dão por dentro da
peça com certa resina, que por algum tem
po equivale ao nosso vidrado. A'lho.
(5) He constante o como abusão barbara
mente das prizioneiras; ainda mesmo depois
de mortas, na acção de as captivar, a vio
lencia das flechas não se dispensando deste
horroroso, e barbaro costume. W.

b 2
(20)

C A NT o II.

D O Inverno a noite longa, e tenebrosa


Em nuvem densa, envolta, que ameaça,
Alem da obscuridade, ser chuvosa,
E o caminhante em duvidas enlaça;
Temendo sem saber, se a enganosa
Vereda que então segue, nova traça
Do destino será, que á sepultura
Aproximando-o vai certa e segura.
2

Do temor e cançaço em fim rendido,


O passo então suspende irresoluto;
Mil pensamentos tendo no sentido,
Que lhe inspira o pavor, augmenta o susto;
Até que alegre se acha surprendido
Do Sol, que o horizonte, o negro luto
Desterrando lhe infunde hum novo alento,
Com que admire o successo, qual portento.
(21)
3

Na densa treva assim da crueldade , " "


Do terror, do receio, da incerteza
Vivia absorto o povo da Cidade,
Das Villas, do Sertão, em que a fereza».
Dos barbaros Múhras, sem piedade
Estrago amontoando sem defeza,
Achava o vigilante, o descuidado
De todos sendo igual a sorte, o fado.
4 |

Não se cançava o zelo, a piedade


De meios procurar mais adequados (1)
A conservação de tal gentilidade;
Mas sempre os lamentava então frustrados
Mil vezes cofervor da charidade
Das religiões os filhos animados, (2)
Entre os perigos mil, mesmo os da morte,
Se esforçavão buscar-lhes melhor sorte.
5

Mil vezes reduzillos se intentava


Com dadivas, promessas, e caricias;
Do empenho nada em fim mais resultava,
Que as esperanças de paz, todas ficticias:
Nada a fereza indomita abrandava;
Nada impedia as barbaras sevicias
A confiança achava o desengano
De mão traidora, em golpe deshumano.
\, (22)
6

Qual incauto menino, que afagando


A fera, que em descanço está ###ado
A preza que matou, se vai chegando
Ao descuido que leva, se entretendo;
De repente se alcança estar gritando,
Já nas garras da fera, e já morrendo,
De innocente descuido, de imprudente
Confiança exemplar mais conveniente.
7

Ha quem servil temor, pallido susto, (3)


Já mais assalto nosso, em fim causando
Nos encaminhe, a quem o nome augusto
De precursor de hum Deos desempenhãdo (4)
No ministerio, e rito santo e justo;
Só da piedade os meios adoptando,
Os braços seus abrindo com ternura
Justiça, e paz fará só ser ventura.
8

Tereis nos povos vossos, numerosos,


Abundantes colheitas sasonadas;
Vereis nos portos vossos vantajosos . --
Commercios florecer, e procuradas
Serão as armas vossas; poderosos,
Em fim sereis amados; invejadas
Serão vossas venturas; finalmente
Podeis felizes ser eternamente.
(23)
9

Qual fresco orvalho, que nutre humectando


A flor, a fructa, a planta proveitosa
De balsamo, e de aromas cultivando
A qualidade innata, e prodigiosa;
Assim na alma immortal fertilizando
Doutrina foi, disposição ditosa:
Oh força irresistivel da verdade!
Oh da lei santa illustre qualidade |
10

Qual de pezado somno despertando


O Múhra se levanta arrebatado,
E se foi pensativo encaminhando
Só dos cuidados seus acompanhado,
Para onde os companheiros descançando
Estavão do trabalho acostumado;
E, alli de estranho impulso commovido,
Lhes diz em fim por quem foi convencido.
11

Levantai-vos, parentes amados;


Despertai de lethargo tão profundo;
Olhai que para empreza sois chamados,
Que nome vos dará em todo o mundo:
Temidos atégora, e respeitados
Só fomos em desertos, bosque immundo,
Mas já quer o destino, e a nossa sorte,
Que o mundo todo admire o Múhra forte.
(24)
12

#" credito se alcança, que proveito,


e sermos vagabundos matadores?
Se a ser crueis instiga o feroz peito,
Por ventura seremos acredores
Da paz, da piedade, ou do respeito
Dos mais do denso bosque habitadores ?
A pezar do valor, e da destreza
Só nos respeitão monstros de fereza.
13

. Quem póde duvidar que carecemos: {


De tudo que alcançamos na rapina ?
Expor-nos para posse em fim devemos
A mil perigos, mortes, e ruina:
Não he loucura, se isto ter podemos
Sem susto, ou contingencia repentina,
Que os meios adoptemos arriscados,
Ter podendo-os seguros a certados?
14

Por ventura co"a paz sendo aliados


Dos brancos, dos tapuyas moradores,
Dos povos por nós mesmos assolados,
Não seremos tambem merecedores —
De sermos no commercio contemplados ?
De achar, para os efeitos, compradores,
Se o tempo, que em mil crimes empregado
For na pesca, ou colheita aproveitado?
(25)
15

Attentos ouvem todos a proposta


Inda que estranha, sem maior reparo;
Pois á verdade-bella nada opposta
He barbara-fereza, ou peito avaro;
Mas entre os anciãos hum velho encosta
A reseccada mão, com gesto raro
Na negra face adusta, e enrugada;
E tremulo responde em voz irada.
16

Oh dos teus poucos annos louco efeito !


Da confiança vil temeridade!
Que attenção nos merece, ou que conceito,
Conselhos que envilece a tua idade !
Queres que ao ferro generoso peito
Entregue o pai ? ou perca a liberdade,
A doce liberdade, o valoroso
Múhra em grilhão pezado e vergonhoso ?
17

Já não lembra o aggravo a falsidade, (5)


Que contra nós os##### maquinárão ?
Não forão os authores da crueldade,
Que aos infelizes mesmo a ensinárão ?
Debaixo de pretextos de amizade,
Alguns matando, outros maneatárão ?
Levando-os para hum triste captiveiro,
Sorte a mais infeliz, mal verdadeiro ?
(26)
18

Grilhões, ferros, algemas, gargalheira,


Açoites, fome, desamparo e morte,
. Da ingratidão foi sempre a verdadeira
Retribuição que teve a nossa sorte:
Do Madeira a exploração primeira
Impedio, por ventura o Múhra forte ?
Vi canôas passar, vi navegando,
Por ventura então fomos maltratando ?

19

Aquelle que da queda, e do perigo,


Do abysmo me livrou precipitando (6)
Soberbos ramos desse tronco antigo,
Que ao mais alto igualar se hia jactando;
Aquelle Omnipotente, que comtigo,
Com todos tão piedoso se ostentando
O Ceo, a Terra, as aves, feras, tudo
Creou; dá vida ao morto, falla ao mudo.
20

Absorto ouvindo o Múhra a novidade


Dos desusados termos, de admirado
Responde afflicto: Ah! temo na verdade,
Que algum abalo a queda tem causado;
Talvez do tronco, ou ramo a qualidade,
Nocivo humor, veneno disfarçado, o
No sangue o introduz, que delirante
Te inspire hum pensamento extravagante.
(27)
21

Ah! quanto acertas (diz o mensageiro)


Em dizer, que fatal veneno insano
Introduzio occulto o verdadeiro
Motivo do delirio, que esse humano,
Mais perfeito que nós, sendo o primeiro,
Na culpa fez cahir, do grande arcano,
Indagar pertender da Divindade
Comendo o pomo da infidelidade.
22

Menos te entendo agora; misterioso


Parecendo o sentido, em que fallaste,
O barbaro responde já ancioso;
Mas já que a perturbar-me começaste
O trabalho preciso, e que gostoso
Ouvir-te me propuz, em bora gaste
O dia, a noite; e que se perca a caça:
He justo meu desejo eu satisfaça.
(28

NOTAS DO 2.º CANTO.

(1) Não só os Jesuitas, que no Rio-Ma


deira até ao anno de 1756, tiverão a Missão
dos Uacaxys, (*) mas ainda os Carmelitas,
e os Mercenarios intentárão por vezes, ex
plicando-lhes as verdades da Religião, redu
zillos, e convocallos ao gremio da Igreja,
buscando-os já nos bosques, já em os rios,
mas sempre sem efeito. W. |

(*) Os Uacaxys são hoje os povos de que


se fez ou com que se fundou a povoação cha
mada Villa de Serpa, territorio fertillissimo
e abundantissimo de tabaco. Alho.
(2) Os Religiosos das Corporações exis
tentes no Pará, isto he: Jesuitas, Carmeli
tas, Mercenarios, e Capuchos; hoje porém
não existem já os Jesuitas nem os Mercena
rios; aquelles ninguem ignora sua extinção,
estes forão supprimidos no Pará em 1793, e
mandados para o Convento que tem ainda no
Maranhão. Alho.
(3), Apostatas, Indios dos civilizados, e
moradores nas povoações da Capitania, que
humas vezes acoçados do serviço real, outras: ~~
por fugirem ás impertineneias dos Directores
das ditas povoações, se aggregão aos Mú
hras, e os incitão, e ensinão a nos persegui
rem; sendo por isto os ditos Apostatas ain
da peiores que os mesmos Múhras nas mor
(29)
tes, e roubos dos moradores das povoações
que surprendem,
tem. Alho. e viajantes que accommet

(4) Allude a São João Baptista, cujo


era o nome do Commissario da demarcação
Martel, que muita parte teve nesta pacifica
ção. W.
(5) Incursão terrivel que se fez contra os
Múhras, na qual sofrêrão, he verdade, que
bem merecida pena de talião; mas como tal
expedição não foi authorizada senão pela co
biça, o Governo a castigou exemplarmente:
era então Governador na Capitania do Rio
Negro Joaquim Tinoco, Valente, e Gover
nador e Capitão General de todo o Estado
do Pará Fernando da Costa d'Atayde e Tei
ve, bem conhecido alli pela discrição com
que governou aquelles povos, e pelo appel
lido honroso e glorioso de Mequinés. Alho.
(6) Metaphora alludindo ao peccado, e
culpa de Adão, e á anterior rebellião dos
Anjos máos, que com seu chefe Lucifer, fo
rão precipitados no Inferno, por se quere
rem assemelhar ao Altissimo. W.
( 30 )

C A N T O III.

O Zefiro mais brando, que movendo


A flor mimosa, agalla lhe accrescenta,
Tão sereno não he, nem vai fazendo
Efeito tão suave; assim violenta
Torrente das paixões já suspendendo,
As luzes da razão faz ser attenta
O Anjo, quando se lata á formosura
Do Creador, creado, e creatura.
2

Não te posso explicar, irmão amado,


De altos misterios maravilhas tantas; ~~~~
O Author-Supremo (diz o Anjo humanado)…
O seu poder, as providencias santas; /
De densas trevas ainda estás cercado;
Das causas naturaes ainda te espantas:
Tão debil he, tão fraca a natureza,
*Que frustrada fará toda a empreza,
( 31 )
3

Por ora só dizer-te he permittido,


Que já da fé esse feliz reinado
######e chegou, em que admittido
O Múhra venturoso, em fim chamado
Ao rebanho he daquelle, que escolhido
Bom pastor, e supremo (resgatado
Por mais subido preço o captiveiro):
Quiz, sendo Deos, ser homem verdadeiro.
4

Que este rebanho seu, e povo amado,


Na união da fé e charidade,
Hum corpo constitue, que aterrado
Tem o poder das trevas, da maldade:
Hum povo santo e justo destinado
A lograr com seu Chefe eternidade
De gosto, de socego, e de doçura
Na habitação celeste da ventura.
5 *

E para que conheças a verdade


De tudo, o que eu relato, vai correndo,
Vai logo, ajunta os teus com brevidade,
Verás, se he certo, o que te estou dizendo;
Vamos seguindo em quanto ha claridade,
O caminho da Aldeia (1), em que vivendo
Tapúyos como nós; mas satisfeitos
A lei de hum Deos conhecem, e os preceitos.
(32)
6

O povo d'essa Aldeia he conhecido


No repetido estrago, que tem feito,
Dos Múhras a nação; já mais vencido
Nesses vizinhos seus, que o fraco peito
Só sabem lastimar, quando ferido,
Sem do valor ter no despique efeito;
Mas nesse mesmo povo ha quem destina
A Providencia evite nossa ruina.

Assim perdida já toda a esperança


De socêgo, de paz, ou de amizade
De conversão, commercio, ou alliança,
Só lembrava evitar-se a crueldade:
Castigo casual ja mais alcança
Emenda permanente da impiedade;
Fomenta a tolerancia, o sofrimento;
O desprezo, ousadia, atrevimento.
8

Dos monarcas a innata piedade,


O desejo da fé vêr propagada,
De remora servindo a lealdade, - --
Embaraça a vingança desejada, >
E lamenta o valor a ociosidade |

Das armas, que algum dia só empregada


Era em louros tecêr, com que adornava
A fronte, que o triunfo desprezava.
(33)
9

Mas lá desde o divino consistorio |

Do Eterno, Immutavel, Sabio, e Justo,


Omnipotente-Ser, desse alto emporio |
Desce veloz o mensageiro augusto,
Do continente em alto promontorio |
Suspende o vôo então, vê o robusto,
Indomito Múhra fatigado,
Estragos meditando, e descuidado.
10.

Entre elles nos apostatas repara, (2)


Que até a Igreja, os dogmas desprezando,
Quaes aptos emissarios já prepara
O principe das trevas; que inspirando
Aos barbaros rancôr, asfucia rara,
Mais que elles infieis, fossem guiando
O pressuroso passo, á mão-armada,
A empreza executar premeditada.
11:

Em zelo, e charidade então ardendo,


No amor do seu Senhor todo abrazado,
O embaixador celeste removendo
As trevas vai, e todo transformado,
Na apparencia igual aos que está vendo,
Se chega mansamente ao que encostado
Em arco-informe, aguda-flecha aponta;
Só mortes meditando, estrago apronta.
C
(34)
12

Que fazes, uieu irmão? (lhe diz sereno),


De inimigos se teme novo insulto ? *** -

Quando eu cuidava, que em regato amêno,


Te acharia banhando, e dando indulto }

Aos lassos membros, vejo que o terreno |


De fructas, plantas, producções, inculto,
Cuberto está de flechas, de instrumentos,
Que indicão todos, belicos intentos.
13

Ah! deixa estar hum pouco já ocioso


Esse valor cruel, barbaro insano,
Da-me attenção, ouvindo-me officioso
Em relatar-te o que parece arcâno;
Conheças que aborreço o mentiroso;
Ouve-me, em fim, veras o desengano;
Noticia te darei, que não te assuste,
Que lagrimas de gosto só te custe.
14

Perplexo o Múhra então olhando attento,


Vêr parecia no mancebo adusto
Hum seu parente, que hum golpe violento
De ramo separado mais robusto,
Nas ondas fez cahir sanguinolento
Despojo reputado, que do injusto
Fado alimento estava destinado
D'hum crocodilo enorme, e devorado.
}
(35)
15

E's tu (lhe diz em fim) parente amado ?


Como evitar pudeste taes perigos?
}
Ou d’entre os mortos vens resuscitado
A visitar-me a mim, aos teus amigos ?
Vem a meus braços ... mas tenho gelado
O coração ... esta alma ... já aos antigos
Esforços ... mas a lingua não me ajuda!
Não faz efeito tal a fecha aguda.
16

Sou teu irmão, não temas, respondendo


Lhe diz o Paranympho disfarçado;
Igual gosto meu he o que estou vendo
Em ti; mas o que eu tenho he consummado:
Descança, diz o Múhra, que attendendo
Te vou com gosto, alegre, e admirado;
A flecha, o arco, tudo em fim deponho,
E para ouvir-te attento me disponho.
17

A” sombra em relva agreste reclinados


Na margem de hum riacho crystallino
Juntos os dois, fingindo dos cançados
Passos repôsto estar, o que em divino
Serviço, e diligencia os elevados
Espaços tão immensos repentino,
Veloz, ### pensamento peregrado
Tinha; feliz em ser elle empregado.
C 2

\,

__+ === ~~~~


(36)
18

Com placido semblante, alegre rosto


Assim falla o celeste mensageiro,
Mostrando absorto estar no maior-gosto,
De aromas exhalando suave cheiro:
Amado irmão, não sei qual mais ditoso
De nós eu considere; tu primeiro
Escolhido já foste do destino
Para hum Deos conhecer, hum Ser-Divino.
19

Para os alimentar, matalotagem {}


Buscava nosso amor, nosso cuidado
A tartaruga, (4) o peixe na viagem
Huhes davamos, e tudo acompanhado
De fructas, e tributo de homenagem
Em voluntaria oferta, que frustrado
O receio deixase, a confiança
Augmentando, firmasse alliança.
20

Que mais fazer podia o irmão, o amigo ?


Que provas queres mais de falsidade ?
São estes entre os quaes buscas abrigo ?
He nesta, em que te fias, amizade ?
Ah! teme, Múhra incauto, hum inimigo
Que tem de falso toda a qualidade:
O que a força não póde, faz destreza
Valor equivocando co'a vileza.
{

- … =−
(37)
21

Assim fallando o velho se levanta,


O lento passo ao bosque encaminhando;
Mas o orador de nada já se espanta,
Pois tal opposição estava esperando;
E como nelle obrava força-sante (tando;
De hum Deos, que sem esforço hia augmen
Nos barbaros infunde hum tal conceito,
Que a preferencia alcança, e o respeito.
NOTAS DO 3.º CANTO.

(1) Aldeia; — he o lugar de Santo Anto:


nio do Maripy, no rio Yupurá, no qual já
fazendo por vezes hostilidades, e mortes, ul
timamente pertendião cercar, e acabar; o
que conseguirião se o Director do dito lu
gar, o celebre, o heroe Mathias Fernandes
não só os embaraçasse, mas tambem os ata
casse, e vencesse. W.
(2) __Ha a quem etc. — allude ao dito Ma
thias Fernandes nos diferentes choques, que
com os mesmos Múhras teve. W.

###(3)se Matalotagem — Esta palavra posto


tome ####### por o sustento
iario, com tudo ella tem sua accepção pro
pria entre os moradores do sertão; isto he,
naquelles lugares onde constantemente comem
carne de vacca (menos no Rio-Negro, e Ama
zonas, que tem esta carne em desprezo, es
pecialmente as mulheres), que he com espe
(38)

cíalidade aonde ha grandes criações; expli


cando-se estes então quando matão huma vac
ca velha ou maninha: mata huma Matalota
gem. Alho.
(4) Tartaruga — Entre os innumeraveis
milagres, que a Providencia opera constante
mente em favor daquelles povos, deve ter
hum muito particular lugar á existencia des
te amphibio: he a tartaruga o sustento dia
rio de todo o paiz, que decorre desde que o
Rio-Negro entra no Amazonas, e este conti
núa com o nome de Solimões: tudo cónspira
para anniquilar este saboroso, e proveitoso
mantimento; desde que ella depõe os ovos
nas dilatadas praias em covas, que com as
unhas das mãos cava, até que he mais ou
menos grande, ella he perseguida pelos ho
mens por muitos modos; o Indio, o jacaré,
a cobra, a piranha com muitos outros peixes,
os exercitos d'aves aquaticas como são mer
gulhões, massaricos, galleirões, colhereiras,
etc. todos as comem ao sahir do ovo; a on
ga a come das que o homem tem em algum
curral; os Indios as colhem, virando-as na
volta de desovarem, com redes, a que cha
mão Puçás; com arpões; serarácas na pon
ta das flechas; com a punga, que he huma
pequena vara á maneira de huma manopla
de posta, em cuja ponta ha algum corpo pe
zado que dando ### a agua parece á tar
taruga algum fructo que cahe daquelles, que
abundão os arvoredos que bordão as mar
(39)
gens dos rios; finalmente contribue para de
todo acabarem a prodigiosa qualidade de
manteiga, que os moradores de ambas as Ca
pitanias vão fazer ao Solimões, que monta
talvez a biliões de canadas deste liquido, que
faz que de noite se não sinta a falta do Sol;
sendo preciso para hum ## de manteiga de
quarenta e cinco quartilhos, tal montão de
ovosc, que hum homem com braço alçado
nem sempre lhe chega ao cimo; em conclu
são saiba-se que huma tartaruga para ser
das grandes, isto he, das que fazem carga as
hum homem , he preciso que ella tenha dez
annos; isto he: por observação feita nas que
se recolhem pequenas para os curraes, (vi
veiros) que cada pessoa, das que podem, ten
em casa: ella faz boa ôlha, { sopa, bom.
arroz, porque admitte o prestrnto, o touci
nho, e o repolho, alem de muitos guisados
que os nacionaes sabem fazer della. Alko,
/
(40)

• CANT O TV.

· 3º

Qual vento, impetuoso, que arrancando


Do campo a flor, do bosque alto carvalho,
Sem resistencia os leva, e abalando
Vai torres, e edifficios sem trabalho,
No transito violento não deixando
De estrada indicios, ou sinal de atalho,
Assim não de outra sorte irresistivel
Força acompanha a voz, efeito incrivel.
2. :

Vinde, lhe diz o Múhra, ó companheiros;


Que duvidais ainda irresolutos ?
Por ventura seremos os primeiros ?
Entre os mais só discretos? mais astutos ?
Por ser verdade hum facto, verdadeiros
Todos serão ? ah ! não se imite os brutos!
Se valor ostentais em toda a empreza
Valor se ostenta nesta com firmeza.
(41)
3

Disse; e voltando o remo, o arco empunha;


A” margem do rio se encaminha;
Segue o bando maior, que então compunha
Desta Maloca (1) o povo, e da vizinha:
A tal resolução nada se oppunha;
O pensamento alheio se adivinha
A occulta força, que movia o peito
Só produzir podia tal efeito. |

Não se repara em sexo, ou qualidade,


Tudo embarcar pertende á porfia
Nas Ubás (2) não cabendo a quantidade,
Que aos mais associar-se já queria;
Só falta embarcação, sóbra a vontade;
Fica o cuidado, e cresce em cada dia :
Já as crystallinas aguas separando
Ligeira esquadra vai, vai navegando.
5

Não despreza a lembrança util meio


De conciliar o afecto contingente;
Servindo a pesca, e a caça # recreio,
De alimento, e destino de presente;
Já nada inspira horror, nada receio;;
Chegar só pertende brevemente
A #aripy, lugar de Antonio Santo,
De Lysia, e Padua lustre, do orbe espanto.

~~~~ ~ ~ ~~~~ ~ ~ ~ ~~~~ ~ ~~~~ ~~~~


………………………
(42)
6

Se avista em fim o porto procurado;


Tanto espanto, e terror aos moradores
Causando, quanto aos Múhras já cuidado:
Huns, e outros mandando exploradores,
O alvoroço procurão desusado
Saber, se he de inimigos aggressores;
Mas quem lhes guia os passos, a vontade,
Socego inspira, paz, tranquillidade.
7

O rêmo, que o temor tinha suspenso,


De novamente as aguas separando,
Faz que veloz o barco já no extenso
Porto, e praia se veja ir encalhando;
Entre festivas vozes, gosto immenso,
Os hospedes estranhos encontrando
Os moradores vão; vê-se á porfia
A fagos tudo, abraços, e alegria.
8

A todos precedendo vai primeiro


Mathias, já dos Múhras conhecido,
A quem, por director, e por guerreiro
Seguindo, respeitavão destemido:
Alvoroçado estava o povo inteiro,
Os parentes, e o filho já perdido,
Ao pai, irmão, e amigos encontrando,
Com lagrimas o peito hia banhando.
(43)
9

Socega o alvoroço; mutuamente


Nas praias, ruas, casas se festejão;
Cada hum ao Múhra faz lá: seu presente;
Este correspondendo aos que o cortejão,
Reparte a caça, o ### mui contente;
Mas vendo, que saber os mais desejão
Se, como amigos hão de ser tratados,
Lhes diz Fernandes, por quem são chamados.
10

Sus, Múhras valorosos! eu conheço : -


Esta obra ser da mão do Omnipotente;
Que a Elle só se deve em fim confesso;
Louvor lhe seja dado eternamente:
Resta que conheçais a que professo {

Lei santa, immaculada; que esta gente,


Vossa nação inteira reconheça |

A Deos, á Soberana lhe obedeça,


_>{ • 11

Eu sei, que aggravos tendes na lembrança,


Feitos por quem só enganos meditava;
Nos homens, como em tempos, ha mudança;
A ofensa o sangue derramado lava :
Desaffrontado o Múhra hoje alcança
A paz, que elle, que o Rei, que eu desejava;
Sereis nossos irmãos; filhos da Igreja;
Concidadãos, amigos, do orbe inveja.
(44)
12

Este o tempo feliz, que destinava


O Ceo para que em vós a luz raiasse;
Que aquelle que este Estado governava.
Perto de vós, em fim tambem se achasse;
O illustre João Pereira, (3) que buscava
Os meios, que ninguem vos molestasse,
Fé tendo, incontrastavel esperança,
Que Deos em vós faria esta mudanda.

* 13

Pede este heroe, Deos lho concede, e vejo,


Que da virtude he premio este portento;
Que o conheçais, e ameis também desejo,
Pois este o meu empenho, o meu intento:
Tereis em outro João (4) justo festejo;
Ao vosso bem vereis, como elle attento.
No mesmo nome tendo a dignidade
Do precursor preenche a qualidade.
A

14

Eia pois, filhos meus ! (que assim vos chame


Não estranheis, pois vosso bem só quero)
O nosso Deos, a vossa fé se acclame,
Que elle vos fortaleça sempre espero,
Que sua graça sobre vós derrame:
Atterre-se esse monstro hediondo, e fero,
Que em densas trevas, que em vil captiveiro.
Vos aparta de Deos, bem verdadeiro.

____ −−−− –~~~~


(45)
15

Não faz vapor sulfúreo taes efeitos


Veloz lá d'entre as nuvens despedido;
O mesmo ardor anima logo os peitos;
Do mesmo golpe foi cada hum ferido;
Para embarcar não houve mais preceitos;
O gosto co'a saudade confundido
O Múhra leva ao porto, e o acompanha;
Já o liquido elemento o remo banha.
16

Lá o Anjo tutelar da Múhra gente


Desce da etherea habitação celeste,
Deputado de hum Deos Omnipotente,
De luzes desusadas se reveste:
Qual nuvem no deserto, ou facho ardente,
Que o Israelita guia, e lá da peste,
Das pragas, e tambem do captiveiro
Do Egypto o livra, e serve de roteiro.
17

De Mathias assim, do Múhra o peito


Incita o amigo, e uniforme guia
Sendo aquelle o Moyses ao povo acceito
Do Múhra, que gostoso obedecia;
Desempenhando em tudo, tal conceito,
Que de perigos mil de idolatria
Da escravidão o livra felizmente
Do principe das trevas tão potente.
(46)
18

Soberbo recebia o Amazonas


As Ubás do gentio, que até agora
Desconhecido sendo noutras, zônas,
Passava a illustrar terras qu'aurorá
Visita, quando Phebo entre as matronas
Do ortygio nas mantilhas se demora;
E aquelles, em que luminoso giro
Absolvendo, lhe serve de retiro.
19

Veloz, contente, alegre, e curioso


Navega o Múhra, com seu guia honrado,
Até que descobrindo já o vistoso
Rio-Teffé, tem gosto duplicado;
Concorre tudo, ainda duvidoso
De vêr, o que já ouvio verificado:
A praia se povôa, acode a gente,
No sexo, e qualidade indiferente.
20

D'Ega (5) chega ao porto, bem diferente


Do que algum dia usava cauteloso;
No estrago então cuidando occultamente;
Agora a paz a procurar gostoso;
Acompanhado em fim por toda a gente
"Chega ao quartel (6) do chefe generoso,
Este o recebe em braços, que enlaçando,
Demonstrações de gosto lhes vai dando.
(47)
21

Assim d'hum filho a ausencia lamentando


Pai amoroso, a vêlo, quando chega
Nos braços recebendo palpitando
O peito, a voz entrecadente nega
Ya!", articular, e se arrasando
De lagrimas os olhos, só lhe rega
A amada face, em que retrata o gosto
De identico motivo efeito opposto.
NOTAS DO 4.º CANTO.

(1) Maloca ; — são assim denominadas


pelos moradores do Estado do Gran-Pará,
àquelles bandos, que separados, e espalha
dos (ainda que da mesma nação) vivem em
diferentes, e pequenas povoações ás vezes
em numero de cincoenta, cem, e mais Mú
hras com suas mulheres, e filhos, e cujas ca
sas são construidas de huma seve de varas
amparadas interior, e exteriormente de fo
lhas de bananeira, pindóua, uby, ou outra
ualquer qualidade de palha segundo abun
#* o sitio em que as construem, dando-lhes
huma figura cónica; escolhem para assentar
estas pequenas, e temporarias povoações, as
margens de algum rio, ou lago, que lhes
indique ter mais abundancia de peixe, e tar
tarugas, para neste lugar passarem a estação
sêcca, isto he o Verão, que elles (como todos
os habitantes do Estado do Pará) conhecem,

_>
(48)
e denominão pelo nome de vasante do rio;
aonde existem seis mezes pouco mais ou me
nos, segundo lho permitte a estação, vivendo
alli tão sordidamente, que nausearia o Eu
ropêo mais desenfastiado; ainda mesmo que
elle fôra hum serrano dos do Condado de
Niebla: não tem, alem do arco, e a fle
cha, do remo, e cacete, nenhum outro mo
vel, porque mesmo a respeito de utensilios
elles se limitão a hum pequeno forno para
cozerem o meyú, ou pequena porção de fa
rinha (porque as mais das vezes comem o
peixe moqueado, assado, sem ella) por a
perguiça de plantar a mandioca; he tanta a
porqueira nestas povoações , e nas casas,
que custa a supportar o fetido originado da
corrupção dos residuos do peixe, e sua gor
dura; mas no meio de tanta immundice se
fica surprendido de vêr que quando o Mú
hra quer beber agua se mette na Ubá, e rê
ma para o meio # rio ou lago, e lá na cor
rente da agua, aonde ella por sua força e
velocidade não consente impureza alguma,
ahi he que elle a bebe, e só ahi a acha sa
borosa; procedimento este que a meu vêr
não tem explicação, a não ser que até entre
esta gente tão selvagem, e tão afastada (per
mitta-se-me a expressão) da raça humana
haja tambem luxo, e este se limitte ao asseio
da agua para beber; seja o que for, isto
merece reflexão. Alho.
(2) Ubás —, he huma especie de embar
cação feita sómente de hum páo cavado sem
mais beneficio ou obra alguma; porém as
Ubás de todo o gentio em geral são só a cor
tiça de alguma arvore com pontaletes no
meio, e apertada com cipós para a fazerem
convexa, sem poppa, nem prôa , porque
acaba pontaguda em ambas as extremidades;
e em qualquer dellas, como mais geito lhes
faz, se assenta o Yacumaúba, isto he o pi
loto, para a governar, o que faz com hum
remo que lhe serve de leme, ao qual chamão
então Yacumá, para o diferençarem do re
mo a que chamão apecuitá. Alho.
(3) João Pereira Caldas, Governador e
Capitão General, que foi de todo o Estado
do Gran-Pará, então existente em Barcellos,
Capital da Capitania de S. José do Rio-Ne
gro, e subordinada á do Pará, a este tempo
nomeado Capitão General do Mato-Grosso,
e Principal Commissario da quarta Divisão
de Limites da Coroa, sempre fez os possiveis
esforços para que não se molestasse os Múh
ras, esperando, e com razão, que hum pro
ceder liberal, e humano os attrahiria ao gre
mio da Igreja, e teria a Soberana por esta
maneira mais alguns milhares de vassalos. W.
(4). O Tenente Coronel João Baptista
Martel, Commissario na Expedição da quar
}} Divisão de Limites da Coroa de Portugal.
(5) Ega — villa; lugar de deposito, e
concurrencia de ambas as *** ortugue

|
*

} . --
(50)
2a, e Hespanhola na Demarcação de Limi
tes das Coroas de Portugal, e Hespanha, si
tuada na boca do Rio-Teffé. W.
(6) Quartel do Chefe Commissario Portu
guez João Baptista Martel, em Janeiro de
\ +785. JV. - - - - - - -

*-
*
… .

* *

~~~

* *

}
(51)

: ~~

c A N T o v.

O H tu, Supremo Author da natureza! "


Que fundas na equidade o teu juízo,
Protector da innocencia indefeza, |

Que ao insecto não faltas co"o preciso; o ".


Oh tu ! que os corações, alma, e fereza :)
Illustras. e mitigas no conciso *
Prescripto espaço, pondo os elementos,
Do creado regulando os movimentos.
2

Tu foste, que o feroz, barbaro peito " : ?


Do indomito Múhra mitigando,
Tão docil, tão contente, e satisfeito r = ' '
Fizeste á sociedade se ir chegando, ~~~~
Dos que te amando co"maior respeito,
A victima nas aras immolando, |

Propiciatorio tem no Medianeiro


Paz, alimento, pai, Deos verdadeiro. -- G,
d 2
*

}
(52)
@ 3

Faz epoca o successo memoravel


Nos annaes do Pará, da Lusa gente,
Pois faz, que
De maior gostoassumpto sempre lamentavel,
seja transcendente; •

Admiração não causa vêr domavel


O tigre manso, vêr leão, e serpente
Domesticar-se, quando o feroz Múhra •
Deseja paz, socego só procura.
4

Se o templo lá de Jano, entre os Romanos


Na paz se fecha innutil reputando
O culto da deidade, que os humanos
Ao seu capricho vai sacrificando;
Os templos entre os nossos Lusitanos
Mais que nunca ir se devem frequentando;
Agradecendo a Deos Omnipotente
A paz, que Elle promove felizmente.
5

Se elles tambem a Jano dedicárão


Entre os mezes das éras o primeiro,
Ou na primicia a Jove o consagrárão,
Como o principio, entre elles verdadeiro;
Não menos memoraveis nos ficárão *: …

Os dias venturosos de Janeiro; |

Pois nelles nos deo paz, felicidade


O Author da vida, a fonte da verdade.
*

{
(53)
6

De gosto, que transporte, de alegria, … "


Não dava vêr vagando livremente |

O Múhra, pelas ruas, em que via


O povo, de admirado, de contente
Mil provas dando a todos! Vivia
Satisfeito, gostoso, e diferente … "

Do barbaro rancor inveterado, {

Que foi da lei de Christo separado, * **

Já passa a noite, passa o dia, e a sésta


Sem
Coostemor, semdansa
aldeanos receiojá onaMúhra
festa;amigo; , , •

Em choupana qualquer encontra abrigo;


De todos os cuidados só lhe resta
O não poder levar todos com-sigo
As ofertas, os dons, com que gostoso.
O Chefe, o povo, e tudo o faz mimoso,………
3

Tres dias desta sorte já passados, : ~~~~


O Múhra se retira bem saudoso , , , , , , , ,
Levando co'as ofertas, nos agrados, - .
Desengano maior, mais poderoso, *

De quanto lhe convem mais d’alliados.


O privilegio ter, do que horroroso
Desassocego, estrago, certa morte,
De inimigo cruel, destino, e sorte,

*
*
(54)
9

Chegados aos seus ranchos (I), recebidos


Com lagrimas de gosto, e alvoroço
Forão daquelles, que entre mil gemidos,
Choravão dos parentes o destroço, *
Já prezos os suppondo, já perdidos;
Os pés em duros troncos (2), e o pescoço
Ao golpe do cutelo destinado,
Da confiança exemplar mais mallogrado.
10

Mas já do Principal (3) serve o cuidado,


Repartindo os presentes com igualdade,
A desterrar conceito mal fundado;
A persuadir dos brancos a amizade;
Já pedem que não fique então frustrado
Projecto que conduz felicidade;
De acordo todos são, todos contentes;
Não se ouvem pareceres diferentes.
11

Qual bando de aves, que ao #####


grito
Levanta o vôo, deixando amado ninho;
Assim desta maloca o Múhra invicto,
Os animos dispõe, mostra o caminho;
Unanimes deixando este districto,
Ao bando, navegando, mais vizinho
Vão resolutos vêr se persuadidos
Os deixão da verdade, e convencidos.
(55)
12

Hum prófugo, entre os mais muhrificado,"


De Ambrosio (4) tendo nome impropriamente,
Foi logo por Fernandes empregado
Para outros persuadir efficazmente:
Aquelle impresso n’alma assignalado
Sacramento indelevel novamente
Lhe suscita de hum Deos misericordiosa
Attenção, eficaz, prompta, e piedosa.
+

13.

O espirito-celeste, que inspirando


Os pensamentos vai, e acompanhado,
Os passos tem, agora continuando
A difundir o ardor, já destinado
Tem muitos, que ditosos separando
Vão mutuamente a sorte, e o cuidado |

De, aos Múhras, nos mais rios repartidos,


Successos noticiar acontecidos.

14

Em quanto de enviados o destino


Os Múhras deputados vão seguindo, |

Só cuida o bom Fernandes (5) no interino.


Reparo da Colonia, repartindo <?
O córte das madeiras; e do inclino }
Múhra ajudado, e de Indios se servindo,
Do mesmo povo seu com tal presteza,
Que inveja causa á arte, á natureza.
*.
( 56 }
15

Não lhe esquece o preciso, util cuidado


De prover á futura subsistencia;
Em grande roça tendo anticipado
Meio seguro, certa providencia;
Mauyba, milho, fructas já plantado
O Múhra vê na nova residencia;
Esteios huns levantão, outros palha
Conduzem, tecem; tudo em fim trabalha
16

Soberbo Yupurá, vê no seu seio


As agoas do Amaná, lago famoso,
Vertendo crystallinas, que d'enleio
Serve ao Múhra, e Fernandes valoroso,
Em quanto em suas margens busca o meio
De eternizar-se, de fazer ditoso
Na fé, na sujeição o Múhra forte,
Aos outros se destina melhor sorte.

17

Qual da officiosa abelha o numeroso


Bando sahindo da colmea antiga
Se reparte no prado, e proveitoso
Orvalho, e succo ajunta, com que liga
O mixto, que compõe mel saboroso;
Em quanto anterior colheita abriga,
Nos celeiros reparte, e na officina
A abelha, que caseira se destina:
}
(57)
18 |

Assim o antigo albergue já deixando


Os Múhras de malocas diferentes,
Segunda vez afoitos navegando \,

Vem novos povos vêr, com seus presentes.


Já d'Ega, de Alvarães se aproximando
Sem susto, sem receio vão contentes;
Achando no carinho agrado antigo,
E gazalho maior, maior abrigo.
19

Ficando d'entre os nossos de admirados,


Alguns perplexos, vendo estranha, gente,
Lhes diz hum dos antigos: De cuidados
Importunos deixai já livremente
O peito socegar; somos cercados
De amigos, camaradas; felizmente .
Nos conduzio a sorte, não me engano,
A ter-mos de receio o desengano. * *

20 ~~~~

Não são os brancos, não que de aleivoso


Punhal, armada mão, no rosto afavel
De intento vil encobrem astucioso {
Rancor
He dellesformal, ou golpe
o caracter lamentavel;
generoso, • - - - -

Sincero, verdadeiro, e respeitavel;


Cesse pois o terror, que ha tantos annos
Nos tem causado irreparaveis damnos.
(58)
21

Persuadidos os deixa o desengano;


Renasce a confiança lá nos peitos;
Desterrado o temor, receio insano,
Gostosos já se mostrão satisfeitos;
Vê-se hum poder em tudo mais que humano;
Trocados os presentes (6), e os efeitos,
Bem pagos já se ausentão, visitando
s povos, que elles hião encontrando,
NOTAS DO 5.º CANTO.

(1) Ranchos — chamão assim os Brazilei


ros ás casas de seus escravos, e tambem ás
dos Indios, para se diferençarem, do nome
Sanzala, que he o das habitações dos pretos.
Alho. •

(2) Troncos — nome que se dá a dois


grossos páos, com buracos no meio afeiçoa
dos á grossura da perna, com que castigão
não só os Indios, mas tambem os malfeito
res. Alho.
(3) Principal — nome que em portuguez
se dá aos Tuxauas-Chefes, ou principes das
suas nações. Alho.
(4) Ambrosio — Indio do lugar de No
gueira no Rio-Teffé, fronteira á villa da
Ega; tendo fugido para os Múhras, ou ten
do sido ##### por elles, éra seu compa
nheiro havia annos, tinha irmãos vivos, e
moradores em Nogueira. W.
{\
( 59 )
(5) O celebre Mathias Fernandes dá prin
cipio ao novo, e primeiro estabelecimento
dos Múhras no lago Amaná, e confluente do
Rio-Yupurá. W.
(6) Na segunda visita, que fizerão os
Múhras vierão sós, trazendo Yurarás (tarta
rugas), salsa-parrilha, etc. que tudo se lhes
acceitou, e retribuio superabundantemente.
W.
( 60 )

C A N T O VI.

P~~~~ pela mão do Omnipotente


Na semente da fé, da graça o fructo
Dispõe, que da colheita a innocente
Primicia se lhe oferte, que o producto.
Anticipado seja, e permanente
Padrão do seu dominio absoluto,
De altos designios seus, e de alliança
Disposição, motivo d'esperança.
2

Já o Anjo tutelar recondnzindo


Os Múhras viajantes vai contentes,
Preenche o ministerio, e difundindo
Nos peitos vai ideias convincentes
De quanto lhes convém, que reunindo.
Os bandos, e malocas differentes,
Na fé, nos interesses, vassalagem,
Tenhão desta união toda a vantagem.
(61)
3

Mas lá na habitação do eterno damno (1),


O principe das trevas monstro-informe,
Já no successo vendo todo arcano " 2
Da Providencia-Santa, deo o enorme .
Sinal acostumado, que do humano **

Inimigo-esquadrão, negro-disforme , ,,
Veloz, qual pensamento logo ouvido …
Se ajunta na apparencia destemido. . .
4

Eia! lhes diz, briosos companheiros!


Dignos todos de eterna melhor sorte,
Já que igualar quizestes os primeiros,
Conservai sempre tão brioso porte,
Pois tornar vossos dias lisonjeiros
Póde fazer, e por barreira forte, * *

O immenso espaço pôr, que daqui dista


Ao Ceo, que já se negará nossa vista. !
5

Os olhos levantai, vede, essas feras, , , , , ,


Que só de racionaes a fórma o indica, fr.
Já quasi a substituir-nos nas esferas … ,
Celestes destinadas; já publíca . ~~~~ , , ,
Veloz a fama, conjecturas meras, * --

Que só a credulidade justifica; , ,


Mas temo, desprezada esta apparencia, …
Se realize o mal com evidencia, , ,
(62) *

Ide pois precaver a contingencia,


Não se perca da preza a melhor parte;
As luzes lhe ofuscai da intelligencia;
Empenhe-se valor, destreza, e arte,
Não se attribua nunca a negligencia
O desprezo do aviso, pois reparte
O injusto fado com desigualdade
Desventuras, poder, felicidade.
7

Qual do Etna, ou do Vesuvio vasta entranha,


Fermentando indigesta massa ardente,
Da repleção efeito, arroja estranha,
Temivel, larga ignifera-torrente
No transito impetuoso quanto apanha
A cinzas reduzindo, indiferente
A dura penha, a flor, jardim vistoso,
Casal humilde, ou povo numeroso.
8

Do imperio assim das trevas, vai sahindo,


Qual torrente, a cohorte em chama envolta,
O denso fumo os ares já cobrindo
Pestifero vapôr intenso solta;
Nas vastas regiões se difundindo
Vai do Amazonas infernal escolta;
Dos átomos parece a quantidade,
Nelles se identifica a qualidade.
(63)}
9

Em sonhos, em visões, agouro insano,


Aos descuidados Múhras apparecem,
Ora representando hum deshumano,
Infame proceder, no qual lhes tecem
Os brancos aleivosos novo engano; e
Ora essa liberdade, que appetecem, ~~~~
Mallograda, ##### e já perdida - o
Na vassalagem dura, e só fingida, , , ' '
10

Outros da lei os bons santos preceitos,


Qual insofrivel jugo lhes figurão, * •

Persuadem que só certos são efeitos : ~~


Das maximas dos brancos, que assegurão
Dominio universal, poder, respeitos
Na mesma vassalagem, que lhes jurão;
Que a cara esposa, os filhos maneatados
Verão, quando estiverem descuidados.
11

Afflictos, pensativos despertando,


De tal ideia em fim preocupados, e . -
Só mortes, e vinganças respirando, ~~~~
Já lhes tardava o ver executados; , ' '
Mas o Anjo tutelar, que vigiando a vi
Estava, e lamentando os enganados,
Armado do poder do Omnipotente
Tudo faz que se mude de repente.
(64) >

12

Inspira a todos novo ardor, desejo


De discernir o engano, e a verdade;
O tentador infame, e o seu cortejo
Sepulta em infeliz eternidade;
Faz que ao rancor univelsal festejo
Entre os Múhras se siga; a brevidade
Do embarque se procure, realizados
O fim proposto, os meios desejados.
13

Não se encaminha mais veloz a bala,


Quando mixto sulfureo a despede, .
Do que o ligeiro barco, quando abala
Esse humido elemento, retrocede,
Undalando sereno, e já se cala
Bramido impetuoso, com que mede
O esforço no espumoso e argentino.
Monte, que fórma em campo crystallino.
14

Rege o curso quem rege os elementos;


Por isso o Sol duplica o luzimento,
De azul celeste veste os firmamentos,
Zefiro mais brando sendo o vento;
Efeitos naturaes já são portentos;
Não ha na Omnipotencia o violento:
Chega aos povos, navega pelos rios,
Múhra feliz, sem susto, e sem desvios.
(65)
15

Mais festejada que da vez primeira,


Passa Alvarães, encontrem Ega abrigo;
Seu destino o conduz logo a Nogueira
A cumprir de altos fins preceito antigo,
Em dar a Deos primicia verdadeira,
Ao Inferno terror, justo castigo;
Já chega ao porto, e já no interno gozo
Presentimentos tem de venturoso.

16

Era do sexto mez o nono dia, (2)


E quarto neste povo de festejo,
Que o Múhra se admirando do que via
Nos ritos, e costumes tal desejo,
Ardor irresistivel percebia,
Que o temor, repugnancia, inutil pejo
Desterrando, o faz vêr que já demora
Ao astro luminoso a bella aurora.

17

Já lá o Anjo da paz resplandecente


Luz difundindo, as trevas dissipava;
Feroz, mas tenro infante brandamente
Aos peitos ainda a Múhra alimentava:
O impulso sentem todos igualmente,
Que ao templo com seus filhos os levava;
Elles se ajuntão, correm, vem rogando
Que os vão na santa fonte baptizando.
G
(66)
18

Do ministerio o executor condigno


Escolhe a Providencia no Carmelo;
He filho deste, que de hum Deos benigno,
Caracter de christão, da graça o sello,
Ministro imprime, que ao tyranno indigno
Anjo das trevas arrancando o bello
Usurpado dominio, a Deos oferece
Das almas as primicias que merece.
19

Pio promove, vê, gostoso assiste


João, Chefe Portuguez, Baptista agora,
A piedosa acção, quer que se aliste
Por fiador seu nome, pois que implora
A protecção divina, em que consiste
A futura esperança do que adora
Designio, inserutavel providencia
De hum Deos piedoso em sua Omnipotencia
20

No templo de Maria renascidos


Na graça baptismal os innocentes
Vinte infantes alegres conduzidos
Pelos barbaros pais forão contentes:
. Na fé, de mais progressos despedidos,
Se augmentão cumulados de presentes;
Penhor levando da felicidade
Em cada filho, de Anjo a qualidade.
(67)
21.

Do Piuriny desce Amaná nos lagos;


As fundações servião de attractivo •

A's attenções que davão por bem pagos


Desvelos, e cuidado successivo;
Do Manacapurú, e Mamiá os vagos
Sitios formavão já tal distinctivo,
Que o quinto mez deste anno subsequente
Se emprega em numerar a Múhra gente.
22

Sobre principios taes, tal esperança


Fundamenta a razão todo o discurso;
Em Deos se emprega toda a confiança;
Pende do seu poder todo o recurso:
Os fructos já se colhem da aliança;
Apezar dos acasos no concurso, |

Sempre os progressos a cantar disposto,


Aqui suspendo a voz, a Lyra encosto.
( 68)

NOTAS DO 6.º E ULTIMO CANTO.

(1) . Ficção que tem toda a apparencia de


verdade; pois ao inimigo commum do ge
nero humano sería sensivel golpe o da per
da do dominio, que o erro #### neste gen
tio, e o receio da sua proxima conversão.
(2) Chegando em 6 de Junho a Nogueira
os Múrhas, sem preceder persuasão ou pro
messas, passando os dias em regozijo e puras
sés (*), com os Indios daquella povoação,
se resolvêrão unanime e espontaneamente em
o dia 9 do dito mez de Junho a querer, e pe
dir, que fossem baptizados vinte meninos
Múhras d’ambos os sexos, filhos dos que al
li se achavão; o que efectuou o P. Fr. Jo
sé de Santa Teresa "Neves, Carmelita Calça
do do Convento do Pará, que então era Pa
rocho. da Igreja de Nogueira; sendo padri
nho de todos o Tenente Coronel Commissa
rio João Baptista Martel, que cheio de pra
zer cumulou a todos de presentes proprios a
encher a expectação dos Múhras, que posto
não seja ambiciosa (assim como a de todos
os Indios) não deixa com tudo de ser inte
, resseira; o que lhes fez prometter o volta
rem, como na verdade voltárão , trazendo
generos do Sertão, para dar em troca de
(69)
utensilios; e tantos voltárão que em breve
tempo se estabelecêrão em tres diferentes
ontos no Rio-Mamiá, antigo pesqueiro da
azenda Real do Manacapurú, e no lago
Piuriny; fazendo isto que já em Maio de
1786 fossem os nossos colonos Múhras mais
de mil. W. \

(*) Purassé — nome que na lingua geral


do Estado do Pará se dá á dança, seja qual
for o seu assumpto ou motivo, isto he d'a
legria ou tristeza; mas he preciso notar que
nunca se determinão a fazer alguma sem de
antemão terem preparado muita aguardente
ou payauarú; aquella he distillada da man
dioca , e propriamente dita Cauyn meyú
aciodra, quer dizer, aguardente de beijú; es
te (o payauarú) reduz-se á mandioca rala
da, e posta em fermentação; e logo que es
teja azeda, entrão (póde-se dizer que a co
mer), porque tal beberragem he mais antes
humas pappas do que hum verdadeiro liqui
do : quando tudo isto está prompto, começa
a soar o tamborinho, e muitos instrumentos
tão barbaros, e grosseiros como quem os to
ca, e então vão acudindo todos para o lu
gar do Purassé; principia o baile com mui
tos urros, e contorsões; em nada desdiz de
semelhantes figuras; elle dura em quanto du
ra a bebida; alli se embebedam, alli vomi
tão; e tanto que, sendo as casas terreas, se
tornão hum, lamaçal que os atóla até aos
artelhos; alli se espancão, se cortão, e ás
| /* . .
|-
"- , ,
2º - ~~~~ , '', / } _* * *
( 70 )
vezes se matão; sería muito arriscado a hum:
branco, que com authoridade quizesse aca
bar, no occasião, com esta dança: os meni
nos de peito padecem tanto durante os lon
gos Purassés, que chegam a morrer de fome,
porque as mãis não voltão d'elles em quan
to durão. Alho.

FIM
*#
|
|-|

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