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Meu destino era

o Nós do Morro
Meu destino era o Nós do Morro
Luciana Bezerra

Programa Petrobras Cultural Apoio


Copyright © 2010 Luciana Bezerra A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sem-
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL)
pre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar
organização
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA ou autorizar a produção cultural dos artistas que se
consultoria encontram na periferia por critérios sociais, econômi-
ECIO SALLES cos e culturais. Faz parte da percepção de que a cul-
produção editorial
CAMILLA SAVOIA
tura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportu-
projeto gráfico nidade de ter sua voz.
CUBICULO
No entanto, nas últimas décadas, uma série de traba-
MEU DESTINO ERA O NÓS DO MORRO
lhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas
produtor gráfico
SIDNEI BALBINO procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgâ-
designer assistente nicos, profundamente conectados com experiências
DANIEL FROTA
sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias
revisão
CAMILLA SAVOIA
assume contornos biográficos de um sujeito ou de um
ISABELLA LEAL grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas
revisão tipográfica condições socioeconômicas e da afirmação cultural de
CAMILLA SAVOIA
suas comunidades.
Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais,
B469m
Bezerra, Luciana
criativas, sustentáveis e autônomas, como são exem-
Meu destino era o Nós do Morro / Luciana Bezerra. - Rio de Janeiro : plos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros
Aeroplano, 2010. il. -(Tramas urbanas)
ISBN 978-85-7820-046-6
tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase
1. Bezerra, Luciana. 2. Nós do Morro (Grupo teatral). 3. Diretores e desta coleção.
produtores de cinema - Brasil - Biografia. 4. Cinema - Rio de Janeiro
(RJ). 5. Teatro - Rio de Janeiro (RJ). I. Programa Petrobras Cultural. Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a con-
II. Título. II. Série.
tinuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar
10-3376. CDD: 927.9143023 não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas
CDU: 929:791.43.071.2 experiências novas formas de responder a questões
culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como
14.07.10 21.07.10 020294
diz a curadora do projeto, “mais do que a internet,
a periferia é a grande novidade do século XXI”.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA
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LEBLON – RIO DE JANEIRO – RJ
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TELEFAX: 21 2239-7399

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www.aeroplanoeditora.com.br
Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da
periferia se impõe como um dos movimentos culturais
de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçá-
vel dicção proativa e, claro, projeto de transformação
social. Esses são apenas alguns dos traços inovadores
nas práticas que atualmente se desdobram no pano-
rama da cultura popular brasileira, uma das vertentes
mais fortes de nossa tradição cultural.
Ainda que a produção cultural das periferias comece
hoje a ser reconhecida como uma das tendências cria-
tivas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugu-
ral, sua história ainda está para ser contada.
É neste sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como
objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse
novo capítulo da memória cultural brasileira.
Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afe-
tiva ao direito da periferia de contar sua própria história.

Heloisa Buarque de Hollanda


Agradecimentos aulas o sinal tocava e ninguém se apressava para ir
embora, ao contrário, cercávamos a Márcia, que tinha
dificuldade de tirar seu intervalo. “Através do cinema
podemos ver o mundo”, nos dizia sempre. Claro que não
estava se referindo aos blockbusters que costumavam
nos levar ao cinema. Descobri isso mais tarde.
Ao Irineu Pinto, um professor de inglês, que se apresen-
tava dizendo: “Prestem atenção na aula, porque eu já sei
Aos meus mestres, todo o carinho e dedicação. falar inglês.” Ele gostava de mim, nós conversávamos
muito. Eu sempre dizia que queria ser atriz. Ele me acon-
Quero deixar claro que tudo que realizei até hoje, as ideias selhou a procurar um curso sério, que, na minha situação
nas quais acredito e quem sou, devo a todos que influen- financeira, significa procurar um emprego para pagá-lo.
ciaram de alguma maneira minha caminhada: meus pais, Um ano depois eu trabalhava e já fazia parte do Nós do
minha família, meus amigos e meus mestres. Dedico este Morro. Irineu me mandou uma carta com meu nome no
livro a todos que circulam em minha memória e que me cabeçalho e a palavra heifer — Bezerra em inglês — ao
ajudam a perseverar no sonho de me tornar artista. lado, como sugestão de nome artístico, assim como as
À tia Carmem, minha primeira professora. Fiquei na sua grandes atrizes que usavam nomes internacionais. Ainda
turma por dois anos. Não me lembro da sua voz. Não me o encontro de tempos em tempos em alguma exposição,
lembro de ouvi-la falar nada em especial, mas lembro na porta de um teatro ou em um cinema de centro cultu-
que me abraçava com carinho na entrada da escola e ral, e ele me parece o mesmo: um amante das artes. Sei
que, quando minha mãe anunciou que nos mudaríamos, que fica feliz em me ver. E fico feliz em vê-lo também.
me levou para passar seu aniversário na casa dela. E, À professora de filosofia, Virgínia do André Maurois, que
segundo minhas tias, até hoje pergunta por mim e fica nos levou textos para serem discutidos. Apresentou-me
feliz quando vê matérias minhas no jornal. Platão: “O que mais vale não é viver, mas viver bem.” e
À D. Marly, minha professora de português na quinta e na Aristóteles: “É possível que o bem da comunidade e o
sexta série, que me obrigou a ler meus primeiros livros bem do indivíduo sejam idênticos, mas, mesmo assim,
de literatura brasileira. “Ler é a chave-mestra da imagi- o bem da comunidade é um objetivo moral maior e mais
nação”, ela costumava dizer em quase toda aula. perfeito, para o qual se deve trabalhar. Vale a pena con-
seguir o bem do indivíduo, mas o bem da comunidade,
À Márcia, minha professora de geografia no segundo ano
que se compõe de muitos indivíduos, tem uma quali-
do segundo grau, que foi a primeira a trazer vídeos para
dade superior e mais divina.” Deu-me a oportunidade
as aulas. E em sua primeira sessão exibiu o filme “Muito
de questionar a retórica. E nos provocava: “Nós somos
além do jardim”, com Peter Sellers. Foram três ou qua-
aquilo que acreditamos. Vocês acreditam em quê?”
tro aulas de discussões fervorosas sobre o filme. Nessas
Ao Fred Pinheiro, que me apresentou Stanislavski. de democratização do direito de filmar começou, porque
A preparação do ator, a criação da personagem, a criação generosamente uma recém-formada cineasta resolveu
do papel. O método que mais me aproxima da verdade dar aulas a um grupo de jovens artistas que não tinha
na hora de atuar. “Vocês precisam não só ter emoção no nenhuma condição de pagar por um curso desse. Ali nas-
palco, vocês precisam acima de tudo ter consciência, é ceu para mim e para muitos a pulsão pelo cinema. Agra-
isso que fará diferença no seu eu ator.” Em exercício prá- deço por compartilhar cada dia desse sonho até hoje.
tico me ensinou a me posicionar na luz, mesmo quando o
Ao Vinícius Reis, que me apresentou tantos filmes, tan-
refletor desafina durante o espetáculo.
tos nomes, tantas curiosidades, que me ensinou que
Ao Luiz Paulo Corrêa e Castro, que nasceu, cresceu e para se fazer cinema era preciso antes de tudo amar
teve amigos aqui no Vidigal. Formou-se jornalista e dra- cinema. Levou-me a buscar nas locadoras a parede dos
maturgo e, com total propriedade, sempre nos incenti- filmes cult e a preferir os cinemas de centro cultural e os
vou a procurar o mundo além dos limites da favela. “Ser filmes europeus. Ajudou-me a descobrir que eu também
pobre é um estado financeiro, não pode ser o fator pre- tinha histórias para contar. Todos temos. E que “cinema
dominante da sua personalidade. Esse deve ser sem- se faz na cabeça”. A cada dia penso nessa frase e ela me
pre sua inteligência.” Muitas vezes suas aulas eram nas cabe em todos os momentos cinematográficos. Agra-
salas do Nós, no palco ou no boteco. Com Paulo um bom deço pela dedicação.
papo é sempre sinônimo de aprendizagem.
Ao Fernando Meirelles, que tem sempre palavras enco-
Ao Fernando Melo da Costa, que me ensinou a me mover rajadoras, de quem estive perto durante o processo de
cenicamente de maneira que não esbarrasse no cenário. oficinas preparatórias para o filme “Cidade de Deus” e
Primeiro passo para uma boa atuação. Apresentou-me que sempre deu valor ao meu saber, porque no momento
“Cartas a Théo”, “O estrangeiro”, “Temporada no inferno” os saberes da favela lhe eram preciosos. Que me abriu
e muitos outros livros que, ao notar meu gosto pela lei- espaço para opinar, que opinou sobre minhas opiniões e
tura, me trazia ou me recomendava. “O artista não pode que me mostrou que para dirigir bem um filme, devemos
parar, para sua cabeça não pode haver descanso a não ser escutar. Sentado na sala assistindo em uma TV 14 pole-
o tempo certo de alimentar o ato criativo.” gadas uma fita VHS de vários caras em uma improvisa-
ção gritada, Meirelles foi indagado se queria ver a impro-
À Rosane Svartman, que trouxe o cinema para minha
visação inteira, porque era longa. E ele disse: “Deixa eu
vida. Preparou aulas, criou referências cinematográ-
perceber o tempo deles, às vezes é preciso reparar bem
ficas que nos ajudariam a desmistificar a sétima arte.
quem está por trás na cena, é preciso sentir quem sente,
Dividiu e guiou muitas vezes processos criativos. E, como
e às vezes leva tempo.” A escolha de um elenco mudou
boa amiga, ainda me convida a ótimas festas. Foi dela
para mim a partir desse dia.
que ouvi a frase que me impulsionou a fazer cinema até
hoje: “Cinema se faz em turma.” Está aí toda a graça do À Cicely Berry, que veio ao Nós do Morro como um mito.
negócio. Às vezes me pergunto o que teria sido se esta Trabalhando já há muito tempo com a Royal Shakespe-
moça não resolvesse subir o morro em 1996. O processo are Company, chegou num sábado pela manhã e, mesmo
falando em inglês, se fez entender e nos deu aula durante de nos proporcionar a realização de um filme, nos trouxe
seis horas, controlando nossa respiração e nossa dic- pessoas maravilhosas que nos orientaram e nos aju-
ção. Não demonstrou cansaço e, após uma pausa para daram. Foram inesquecíveis os momentos de conversa
almoço, nos ensinou durante mais seis horas. Ao final com Cacá, em sua produtora. Tardes para a vida. “O bra-
do primeiro dia eu estava muito cansada, e ela em roda sileiro tem uma vocação natural para fazer cinema.” Ao
nos falou: “Estão cansados, porque não estão se exerci- ouvi-lo falar assim, tenho de acreditar.
tando. Um ator é fundamentalmente respiração. Quando
Guti Fraga andava pelo Vidigal jovem e falante. Sempre
eu for embora, se exercitem diariamente, e, quando vol-
nos encontrávamos e ele fazia questão de falar comigo.
tar em um ano, poderemos pular esta etapa e ir direto
Toda vez que conversávamos, lembrava da voz que ouvia
aos trabalhos mais pesados. Ah! E não se esqueçam
no escuro do teatro, na abertura da peça “Encontros”.
de que para qualquer aula, por mais prática que lhes
Laçou-me para seu grupo e desde então tem sido meu
pareça, deve-se trazer um pequeno caderno de notas.”
mestre, amigo e incentivador. Por meio de suas ideias
Praticar a respiração eu tento, juro que tento. Mas o
pude me reconhecer cidadã, ter consciência do mundo
caderno de notas jamais foi esquecido após esse dia.
em que vivo. Fez-me atravessar a linha da favela, acre-
À Camila Amado que entrou em minha vida recentemente. ditar que eu era capaz de ser tão boa artista como qual-
Claro que já a conhecia de papéis na TV. Mas ela levan- quer outra se me fossem dadas as ferramentas certas,
tou-se de trás de uma mesa e fez seu show de palavras e me incentivou a procurá-las, a cavar essa mudança.
durante duas horas e meia, deixando vários apaixonados “Não quero de vocês mentiras, quero transformação
naquela sala durante as oficinas do 5x Favela – Agora por verdadeira, vocês podem!”
nós mesmos. E depois pude contar com ela enquanto pre-
O Guti é do tipo pescador de homens e açoitador de
parava meu elenco para o filme. Ela dizia: “Quem quiser
sonhos. Agradeço sempre e sigo em frente!
atender ao telefone, pode atender. Porque a vida moderna
é fragmentada.” Frase que fez diminuir a culpa que sentia
de amamentar enquanto escrevo no computador e de dei-
xar o celular ligado para qualquer emergência.
Ao Carlos Diegues, que era para mim um nome em cré-
ditos de filmes a que assistia na TV. Depois ele era o
cara que não faltava em nossa plateia. Daí ele pas-
sou a ser alguém que citava meu filme como algo novo
acontecendo no cinema, e, então, colegas de trabalho.
Todo esse processo de realização do projeto 5x Favela
– Agora por nós mesmos, longa-metragem dirigido por
mim, Luciano Vidigal, Cacau Amaral, Rodrigo Felha,
Cadu Barcelos, Manaíra Carneiro e Wagner Novaes, além
Sumário

18 Cap.01 Um ser criativo


44 Cap.02 Eu sou assim ou acho que sou
58 Cap.03 As coisas mais minhas
66 Cap.04 Rocinha do Pai
76 Cap.05 Maricá da Mãe
88 Cap.06 Vidigal, a favela do Papa
116 Cap.07 Meu destino era o Nós do Morro
150 Cap.08 Uma geração de guerreiros
164 Cap.09 Atravessando os muros
190 Cap.10 Cinema, uma nova paixão
226 Cap.11 Hoje venci na vida

258 Imagens: índice e créditos


263 Sobre a autora
Cap.01
Um ser criativo

Cap.01
Um ser criativo
Um ser criativo 19

Na roça, em especial naquela época, que tínhamos total


liberdade de estar na rua, e só parávamos em casa nas
horas de comer e dormir, os brinquedos eram escas-
sos, era preciso mesmo inventar. Havia os da Estrela
(marca famosa de brinquedo) e a Gulliver (sua concor-
rente). Meu pai e minha mãe no Natal sempre vinham
com algum brinquedo incrível, que tivesse sido desejado
por mim e pela Martha, minha irmã. De todos os pri-
Desde a minha infância as brincadeiras sempre exigiam mos nós éramos os únicos que tínhamos essa regalia. E
imaginação extrema: compras no lixão do quintal para também herdávamos muitos brinquedos das crianças
montar a casinha (feita apenas com divisórias de madeira que moravam no prédio onde minha mãe trabalhava no
no chão, para marcar bem os espaços) — pote de marga- Leblon. Escolhíamos os presentes que mais nos agra-
rina virava prato, lata virava panela, vidros e jarros abri- davam, sempre com o alerta de nossa mãe em deixar-
gavam flores para enfeitar a mesa de tijolos — ou des- mos uma parte para primos e vizinhos.
cer em caixas plásticas de leite a ribanceira da casa da
minha avó e gritar como quem anda de montanha-russa, A maioria dos brinquedos, em especial os eletrônicos, já
ou brincar de pique-pantera, em que cada um assumia a não funcionava; tínhamos de reinventar utilidade para
personalidade de uma das panteras (do seriado de aven- eles. Nossos brinquedos habituais, os comprados pela
tura que passava na TV Globo nos anos 1970/1980). Claro família, eram o bonecão: um bebê de um ano, de plástico
que, por ser a mais nova, raramente sobrava para mim duro, que mexia as pernas, e podia assim sentar e ficar
uma das panteras; na maioria das vezes tinha de me con- em pé. Vinha com uma fralda de plástico quadriculada,
tentar em ser um dos incríveis criminosos. como um para-pedro tamanho grande — outro boneco
comum nas mãos das crianças de Maricá —, só que
Minha cabeça nunca esteve exatamente sobre meu esse sem nenhuma articulação, mas com uma pequena
pescoço; ela flutua como um balão. E essa é uma sen- mamadeira. Aos meninos, carrinho e bola. Não sentíamos
sação que tenho até hoje, a de andar com a cabeça na tanto a pouca quantidade de brinquedos, pois tínhamos
lua. Inventiva quando criança, no tempo que morei com a rua livre para brincar. Eram comuns brincadeiras, como
minha avó, gostava de sumir para o ponto mais alto do pique-bandeira, pular corda e pique-esconde, que costu-
morro atrás da casa e ficar lá por muito tempo imagi- mava agregar os adultos — umas quatro ou cinco famí-
nando coisas e histórias a serem vividas por mim, minha lias vizinhas. Adorava os balanços em árvores. Na casa da
mãe, irmã, pai e primos. Esses eram os personagens minha avó havia um na jaqueira, que era bem perigoso. Já
principais das histórias nessa época. Também gostava vi um tombo de uma prima que sobrevoou a cerca de ara-
de procurar formas nas nuvens e podia ficar horas nessa mes farpados e caiu viva porque Deus quis.
brincadeira. Algumas histórias eram tão fortes, que me
confundo se foram imaginadas, sonhadas ou vividas. Os banhos de rio e os passeios pelo mato também
Algumas estão na minha cabeça até hoje. preenchiam nosso dia e minha cabeça cheia de histó-
rias. Do outro lado do rio, havia um poço de água azul.

18
Um ser criativo 21

Gostava de ficar me olhando na água e via passar ima-


gens das várias histórias contadas pela minha avó.
Suas preferidas eram as que mexiam com o sobrena-
tural. Tinha a do figo da figueira, sob a qual a madrasta
tinha enterrado uma menina viva, a da moura torta que
pensava que era bonita, porque estava sendo enganada
pela princesa que é transformada em uma pomba, ou a
da cachorrinha encantada que protege sua dona de um
belo homem, metade monstro. Todas traziam músicas
que ainda sei cantar.
Neste tempo a TV fazia parte da minha vida. Jantava
vendo Jornal Nacional, depois vinha a novela e a hora
de ir para cama, mas meus tios Neném e Marco que
estavam com seus 18 e 15 anos seguiam assistindo aos
seriados ou filmes e — algumas vezes escondido da vovó
e do vovô — permitiam que eu e Martha voltássemos à
sala e assistíssemos com eles. Víamos “Casal 20”, “As
panteras” (meu preferido), “O homem de seis milhões de
dólares”, “A mulher biônica”. E filmes de terror: “O cão do
demônio”, “A mansão sangrenta”. Vivi nesse ritmo dos 4
aos 8 anos. Depois dos filmes era difícil dormir sem ima-
ginar mil histórias. Na casa da vovó havia um quarto pos-
suído. Mulher nenhuma conseguia dormir lá. Depois de
um tempo toda a casa foi possuída: eu mesma vi várias
vezes e ouvi mais coisas estranhas acontecerem lá, mas
como eu tinha 6 ou 7 anos e a cabeça na lua, não podia
ser levada muito a sério.
A música também sempre esteve presente. Não lem-
bro de ter músicos na família na época da infância, mas
meu tio Sebastião toca acordeão lindamente no conjunto
da igreja. Quando pequena, os bailes da casa eram ani-
mados por uma vitrola amarela, dessas que o disco fica
para fora da base rodando. Demorava a dormir, gostava
de ficar sentada na poltrona vermelha e segurar nas mãos
a capa do disco que estava tocando ou o encarte, acom-
panhando a letra da música mesmo antes de saber ler.
22 Meu destino era o Nós do Morro

Éramos uma família muito pobre e muito unida. Os Natais


eram animados, tinha amigo-oculto e as crianças, além do
presente da brincadeira, ganhavam outros que, na maio-
ria das vezes, eram iguais para todos. Era comum tam-
bém todos ganharem roupas iguais com cores diferentes,
e saíamos assim, contrariando a individualidade. Disso
nunca gostei. Vivia de forma saudável, mas não me dava
muito conta da vida, que assim ia passando por mim. Com
a mudança da roça para a cidade, perdi a liberdade da rua,
que agora tinha horário e limite físico. Em Maricá entrava
no mato em busca de um bom lugar para um piquenique,
montava em uma árvore e balançava ao som de alguma
parada de sucesso: “Aquela menina em sua cadeira de
rodas...” No Vidigal, como o espaço era pequeno, a rua
muito acidentada e existia o perigo do tráfico, a coisa foi
se agravando. Na favela ou você é bicho solto ou você tem
mãe, que neste caso tem que ter moral e respeito do filho.
Eu sempre respeitei a minha. Chegava na hora marcada e
saía quando tinha permissão. Antes dos 13, claro.
Passei a fazer brincadeiras mais solitárias e dentro
de casa. A Martha completou 13 anos no ano seguinte
à mudança e se enturmou na escola e no bairro. Perdi
a minha irmã para as amigas dela. Ela havia passado o
tempo todo do meu lado, mas agora preferia um papo
sentada na escada a brincar de qualquer coisa comigo.
Vieram então os desenhos. Minha mãe trazia rascunho
de computador, aquelas folhas coladas, e eu às vezes
parecia que ia me afundar em papel amassado na sala
pequena. Papel que depois era catado muitas vezes
sobre os gritos da Martha, porque se aproximava a hora
da mãe chegar do trabalho, e a casa deveria estar limpa.
Também vieram o gosto pelas chamadas artes. Alguém
fez uma arte hoje: riscou a parede, por exemplo. Eu fervia
perfume, como experiência, desenhava as pessoas nos
26 Meu destino era o Nós do Morro Um ser criativo 27

porta-retratos com tesoura, normalmente para preen- Os livros de Monteiro Lobato foram para a estante e, por
cher o tempo vazio deixado pela TV, momento que ainda achá-los bonitos, minha mãe proibiu que fossem leva-
compartilhava com a Martha, mas que já causava brigas dos para a rua. Lia essas histórias e elas me emociona-
na hora da escolha dos programas. Sonhava em me apre- vam muito, em especial, porque me lembravam Maricá.
sentar em um programa de calouros ou ir até o Silvio San- Já tinha amigos no Vidigal, mas tinha saudades do mato.
tos participar da brincadeira de dançar, que premiava com Sofri com isso. E me confortava com “Aritmética da Emí-
uma Caloi novinha. Mesmo depois de já ter ganhado uma lia” ou “Viagem ao céu” — minha favorita, que começa
bicicleta, como era usada, sonhava com uma novinha. com os personagens tentando não pensar. Trama de
Monteiro Lobato que inventava o dia em que é proibido
Estava na idade dos desenhos. Podia ficar deitada o dia
pensar, só ele mesmo para bolar uma história dessas!
inteiro vendo desenho. Desde muito cedo também gos-
tava de assistir às novelas. Havia um horário de reprises Minha irmã ficava às voltas com folhetins chamados
em que assisti a várias, dentro do “TV Mulher”: “Escrava Júlia, Sabrina, Bianca — as meninas da idade dela con-
Isaura”, “Cabocla”, “Feijão Maravilha” e “Dancing days”, seguiam ou roubavam das primas e irmãs mais velhas
que me lembrava durante a reprise ter sido a primeira —, que traziam sempre o mesmo esquema de roteiro
novela que assisti. Assistia sozinha a programas — que e insinuavam cenas de sexo. Lia escondido e perma-
pouco antes eram proibidos por minha avó — no qual neci lendo por toda a adolescência. Mudei de casa, e o
as mulheres discutiam separação, sexualidade, o lugar novo esquema me afastou da leitura. Pequeno e com
da mulher no novo mundo. Muitas vezes tudo aquilo pouca privacidade, o lugar era muito barulhento, e ainda
era incompreensível para mim, mas ficava ali: adorava ouvíamos a televisão do vizinho — que ficava no volume
assistir ao “TV Mulher”. normal. Além disso, durante algum tempo, no espaço
livre tínhamos que trabalhar na obra da casa. Fazía-
Meu pai estava acostumado a levar cordéis para minha
mos comida para os homens que estavam trabalhando
avó. Mas o primeiro livro que ganhei foi presente da
ou ficávamos como ajudantes carregando material ou
madrinha, que morava na Rocinha: “O Pequeno Príncipe”.
lavando e segurando alguma ferramenta.
Li e pulei algumas páginas em busca do final. O que
não aconteceu quando o li pela segunda vez, depois de ter Quando a obra parou já tínhamos um quarto, e, aos pou-
conhecido o amor. Sou como a raposa quando amo — “Tu cos, fui retomando a leitura deitada no meu beliche e de
te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. portas trancadas. A adolescência chegou e o final dos
anos 1980 também — era uma época de transição impor-
Tivemos uma primeira grande doação de livros. Minha
tante, em especial para a cultura musical, e sinto que fui
mãe os trouxe, durante semanas. Veio de tudo: gibi,
fortemente influenciada pela música popular, particu-
almanacão, vários exemplares da Agatha Christie, uma
larmente pelo rock e pelas festas que nos faziam dan-
coleção do Monteiro Lobato, Cazuza (de Viriato Correa),
çar até cair. Martha e eu sempre tivemos o hábito de ter
livro que marcou a minha leitura adolescente. Ia para
cadernos de música com as letras. Nesta época chega-
a rua com os gibis e me juntava aos amigos para ler e
mos a ter mais de 300 músicas copiadas. Todas falavam
andar de bicicleta nos fins de semana.
28 Meu destino era o Nós do Morro Um ser criativo 29

de descobertas, revolta com a falta de oportunidade ou Sei que alguns são bastante pesados, mas foi vendo que
a solidão da juventude, e a maioria era ouvida no rádio. aprendi a valorizar e gostar do nosso cinema e a sonhar
De vez em quando, eram jogados fora pela minha mãe, que um dia faria filmes também. Dentre os filmes sen-
que julgava ocuparem nosso tempo demais. sacionais que me lembro de ter visto ainda adolescente
está “Um trem para as estrelas”, de Cacá Diegues, que
Era também a geração que começava a receber forte-
trazia na trilha sonora Cazuza, o que me influenciava
mente as influências do mercado, a geração Coca-Cola.
ainda mais, por ele ser poeta da minha geração, por can-
E a música foi importante para questionar nossos valo-
tar as músicas que me traduziam. “Feliz Ano Velho”, de
res. Para mim não era possível ter a saia ou o sapato
Roberto Gervitez, é mais um dos poucos que havia assis-
mais desejado pela minha geração, como por exemplo,
tido no cinema e o filme me fez ler o livro.
um Redley da loja Cantão. As roupas vinham do Saara,
da banca de promoção da C&A e de herança da patroa da Durante o segundo grau é que me senti mesmo desa-
minha mãe. Minha mãe tinha uma máquina de costura, fiada, ao mesmo tempo que ganhava elementos para ali-
que usava pouco, mas eu a usava sempre que precisava mentar minha cabeça. Lia de tudo e dava preferência aos
transformar uma roupa. Era engraçado ver as etiquetas romances e aos suspenses. E, com a influência de minha
das lojas famosas em peças que nunca saíram de suas irmã que já fazia parte do grupo de teatro nessa época,
vitrines. Esse gosto por customizar roupas trago até iniciava-me nos textos teatrais. Na escola as aulas de
agora e até hoje me salva. filosofia e de literatura me apuravam o gosto pela escrita;
muitas vezes apressava-me em toda prova para que me
Adorava ver televisão até de madrugada: os filmes e os
sobrasse mais tempo para inventar minhas histórias nas
desenhos de aventura eram os meus preferidos. Ir ao
redações. Vieram então, em especial no turno da noite,
cinema não era um hábito em minha vida. Até começar a
em que terminei o segundo grau, os amigos um pouco
estudá-lo, tinha a minha lista de filmes vistos no cinema:
mais velhos, as paixões mais perigosas, os romances
“Os trapalhões”, “ET”, Poltergeist”, “Brinquedo Assas-
desafiadores, os que me faziam cruzar a cidade. Vieram
sino”, “O Exterminador do Futuro” e “Alien”. Mas tinha
as poesias. Muitas, muito românticas. Sem me dar conta
a sorte de ter uma programação televisiva muito mais
dava início ao tema no qual me debruçaria nesta vida: os
interessante nessa época e ter podido ver filmes que
relacionamentos. “Canto somente o que não pode mais
mudaram a minha vida como “Conta comigo”, do diretor
se calar. Noutras palavras sou muito romântico.”
Rob Reiner, ou “Em algum lugar do passado”, com Chris-
topher Reeve, que assisti mais de mil vezes na sessão da Reconheço que todos o livros que li, os programas de
tarde. “De volta para o futuro”, que fez minha geração TV, as músicas, toda essa memória que foi acumulada
amar os filmes de ficção, e também os filmes nacionais durante esse tempo, comecei a usar e a ter, e a acu-
que passavam na Bandeirantes e eram pouco vistos por- mular mais e mais a cada dia, a partir do momento que
que a maioria das pessoas taxava os filmes brasileiros entrei para o teatro do Nós do Morro, porque minha
de filmes de puro sexo. Eu gosto de sexo, portanto gos- matéria-prima principal era minha capacidade de inven-
tava e gosto de vê-los até hoje. tar histórias e acreditar nelas.
30 Meu destino era o Nós do Morro Um ser criativo 31

No início não era fácil ter acesso aos livros e íamos até “Mina de fé” foi o meu primeiro roteiro a ser superincen-
a Urca, na biblioteca da UniRio. Inaugurava-se assim tivado a trabalhar com afinco, já que Rosane, minha pro-
um outro momento: aquele em que era necessário bus- fessora de roteiro, acreditava de fato na possibilidade
car minhas referências para poder aglutiná-las em mim, de o filme vir a ser aceito em algum edital. Enquanto
compará-las, descartá-las. Durante todos esses anos trabalhava essa história, nasciam outras, e eu seguia
dentro do Nós do Morro, me entreguei a todas as ativida- imaginando cenas entre os trajetos que fazia de ônibus
des. E senti a minha criatividade ter utilidade: todos aque- entre um trabalho e outro ou a pé — caminhadas sempre
les sonhos e aquelas ideias estavam sendo aproveitadas. me ajudaram a pensar. Esses pensamentos às vezes me
levavam tão longe que já andei, sem me dar conta, do
As peças infantis de fim de ano foram o primeiro canal
Vidigal ao Leme e, já cansada e sem dinheiro para passa-
para a criação de histórias nesse novo período. Cheguei
gem, tive de voltar a pé também. No ônibus, esse cará-
a criar aproximadamente uns cinco ou seis textos que
ter inventivo também já me fez perder o ponto muitas
foram encenados com minha direção também. Como
vezes. Em uma das vezes — já atrasada para um com-
atriz, o processo de criação das peças se dava em forma
promisso com minha mãe —, peguei o ônibus que costu-
de improvisação, e tinha, então, a oportunidade de indi-
mava pegar para ir ao trabalho. A cabeça foi para outra
car muitos caminhos às minhas personagens. Passei a
esfera, desci na esquina do trabalho, andei até lá num
acreditar que era possível realizar sonhos e que podia
dia de feriado e, só ao ver o portão fechado, me dei conta
viver tudo que quisesse por meio das minhas persona-
de que meu objetivo quando saí de casa não era ir ao tra-
gens e das histórias que criasse.
balho, era encontrar minha mãe.
Todos esses anos que estive no Nós do Morro foram
Durante o processo de escrita do roteiro “Mina de fé”,
anos de muito crescimento e busca. Os filmes passa-
costumava apresentar as cenas e a turma fazia leituras
ram a ser mais uma fonte de pesquisa para mim. Ainda
(algumas encenadas) para eu visualizar a fluidez da cena
não era fácil ir ao cinema, pois sempre foi um programa
escrita. O filme passou no edital e pela primeira vez iria
caro. No cinema, via os filmes mais importantes, aque-
dirigir um filme. Sabia do desafio que tinha pela frente,
les que não se podia esperar. Contei com a sorte da
ainda mais com esse roteiro em que deveria ser recriada
chegada de um videocassete, que me proporcionou a
uma atmosfera, com o compromisso de ser muito rea-
possibilidade de assistir a mais filmes. E quanto mais
lista. Havia passado pela oficina do “Cidade de Deus” e
os assistia, mais vontade tinha de representar papéis
a proximidade com o trabalho de criação de Fernando
e escrever minhas histórias. Mergulhos profundos para
Meirelles e Kátia Lund — com quem cheguei ir ao set
criação de personagens, textos teatrais para as peças
como assistente e também como atriz em um episódio
de fim de ano e poesias. Vieram então os roteiros para
da série “Cidade dos Homens” — me deixou herança. O
cinema, que crescem a cada dia. Nascem histórias diver-
Lucio, meu assistente, havia sido assistente do Lamar-
sas para filmar, como bem aprendi com Vinícius Reis:
tine Ferreira no “Cidade de Deus”. Mas com uma expe-
“Filme se faz na cabeça.”
riência basicamente teatral, prezava o texto, e fizemos
34 Meu destino era o Nós do Morro Um ser criativo 35

diversas leituras e ensaios em sala, no Nós do Morro. No caso da fotografia do curta, minha principal inspiração
Foi um processo exaustivo, minha cabeça não parava. era “Um céu de estrelas”, da Tatá Amaral. Mas procurei
Às vezes questionava o porquê de fazer o filme. Por que também ver mais de uma vez “O profissional”, de Luc Bes-
enveredei por aquele tema? Deitava na minha cama e me son, filme que Jean Reno faz um matador cheio de senti-
perguntava onde estavam as lindas histórias que criei. mentos, que se mete em mais encrencas ao salvar a vida
Por que optei por contar essa história? de uma menina cuja família foi morta por policiais. Era
assim que deveria tratar Maninho, como Luc Besson tra-
Por volta dos 13 anos, tive uma amiga que tinha uma filha
tou Lèon, me fazendo torcer por esse homem, que era um
pequena de um bandido já morto. Usei seu nome, Sil-
assassino, e eu sabia disso, mas cujo amor pela menina
vana, para a mulher de Maninho, personagem do filme.
o redimia. Eu precisava que Silvana redimisse Maninho.
Belinha, como era chamada, foi o mais próximo que che-
Santiago (o fotógrafo) foi muito corajoso. Tripé e câmera
guei na vida real do mundo da bandidagem. Quando nos
na mão, muita câmera na mão. Acreditando no movimento
aproximamos, sua filha ainda era pequena e seu namo-
livre do ator. Com chuva, gravamos a sequência final três
rado havia morrido há pouco tempo. Mas ela ainda con-
vezes, buscando a visão geral da favela mais clara pos-
servava amigos da época em que namorava o traficante,
sível e de cima pra baixo. Conseguimos no final, em uma
que atendia pelo nome de “Mongol” e que não chegou a
correria, gravar a sequência. Usamos o recurso de enqua-
ter visto a filha. Fiquei na sua companhia uma ou duas
dramento de cima para baixo todas as vezes que estive-
vezes na mira do perigo, aquelas aventuras que mãe
mos na rua, fora dos becos. Na cena da execução do sol-
nenhuma nunca sonhou. Sempre acreditei que as pes-
dado da boca de fumo — sequência que mais sofreu com
soas precisam de uma segunda chance e, por sorte, a
a digitalização —, havia uma espécie de palmeira que
Belinha teve e pôde tomar as rédeas de seu destino, que,
estava com sua copa toda branca e o dia estava muito
além dessa filha, anos depois lhe deu uma família: um
nublado. A câmera também deveria obedecer à regra de
marido e mais duas meninas. E hoje quando nos encon-
se aproximar de um olhar de dentro da favela para fora,
tramos podemos ter saudade do Vidigal e da praia.
uma mistura do “olhar Silvana”, que, por ter se tornado a
Minha maior motivação ao defender este romance era primeira-dama da favela, se tornou também sua prisio-
pensar que no caso das mulheres que moram nos espa- neira, reconhecendo como seu apenas aquele espaço.
ços onde circulam traficantes de drogas, as chances de
Nos becos, optamos por uma câmera que acompanhasse
se relacionarem com eles eram maiores, comparadas
a ação, que se movesse bastante. Dentro de casa,
àquelas que não moram naquela área. Assim como os
uma movimentação mais lenta que dava um sentido de
homens têm muito mais chances de virarem bandidos.
proteção. De que naquele lugar, na casa de Silvana, ele
Era por esse ângulo que via esta história. Com os olhos
estivesse protegido por seu amor. É difícil saber se foi a
do amor, deveríamos enxergar Maninho, como Silvana o
opção acertada. Lia livros, assistia a filmes e projetava
enxergava. Mas como conseguir isso? Tinha então a mis-
imagens descritas nessa história.
são de humanizar este bandido.
Um ser criativo 37

O “Mina de Fé” surgiu a partir da frase de uma música da


banda O Rappa: “Até mulher de bandido na hora da dura
segura a peteca e nega.” Durante a produção, escrevia
em uma máquina de escrever — uma Olivetti portátil —
e, aos sábados, quando dava duas da manhã, no auge do
baile, ia até lá para ver de perto a diversão favorita dos
Maninhos e Silvanas da época.
É muito difícil explicar como se dá o processo criativo.
Umas ideias vêm no sonho, na vontade de tocar num tema
específico. Algumas nascem com títulos, outras não. Há
também as ideias que são encadeadas por outras ideias.
Um filme, um livro ou uma foto. “Coração amarelo”, livro
de Neruda — que só fui conhecer por completo após ler
um de seus poemas em um restaurante-livraria —, traz
o poema “O Outro” que tem a seguinte frase: “De tanto
não responder, tenho o coração amarelo.” Saí meio tonta.
Não sabia exatamente como digerir aquilo dentro de mim.
Aquela sensação de que teria que vomitar aquilo tudo que
essa frase havia colocado dentro de mim, ou morreria.
Caminhei desnorteada de volta ao trabalho e confesso
que não trabalhei muito bem naquela tarde. Não parava
de pensar: “De tanto não responder, tenho o coração
amarelo.” Ainda no trabalho veio a primeira poesia (“San-
gue de gente/De gente mesmo/fora do corpo esfria rápido
e calha!”), depois a segunda, a terceira, e um conjunto de
três fotos que se dividia em um coração verdadeiro pin-
tado de amarelo, um prato branco esmaltado de ágata
cheio de sangue, um bolo de sangue (imagino que possa
ser feito com sangue endurecido) desenformado no for-
mato do prato de cabeça para baixo. Essa obra nunca foi
concluída, recentemente ela também se transformou em
um estêncil, que será aplicado nos muros, tão logo con-
siga alguma verba para gravar mais um trecho. Há um tre-
cho gravado e animado do curta que também faz parte do
38 Meu destino era o Nós do Morro Um ser criativo 39

fluxo de ideias. Este se chama: “Sobre o coração amarelo Meu último trabalho, o filme “Acende a luz”, por exemplo,
de Neruda”, e espero não levar mais o próximo ano sem é uma ideia encomendada. Cacá sugeriu que apresen-
terminá-lo. Contei essa história para dizer que muitas tássemos curtas que passassem no espaço da favela,
vezes uma única frase é tão forte que é capaz de gerar ou de pessoas que vivessem nele. Tinha a preocupação
mais de uma obra em linguagens diferentes. de trabalhar uma temática que fugisse do tráfico, da vio-
lência e da miséria. Não como negação, pois acredito
As ideias que me surgem hoje se manifestam em várias
que quanto mais expomos nossas mazelas, mais temos
áreas: animação, instalação, filmes de curta-metragem,
chances de curá-las. Mas por querer trazer uma história
filmes de longa-metragem, projetos de livros infantis,
diferente das quais estamos acostumados a ver sobre
de poesia, de fazer uma novela para TV, de emplacar um
a vida de nós favelados. Quis trazer também muito de
programa infantil de qualidade, de dirigir peças dentro
mim, que embora tenha passado por um bocado de coi-
do Nós do Morro, de voltar a encenar na companhia sob
sas difíceis, escolhi — como muitos brasileiros — ver a
a direção do Guti. E agradeço por ter encontrado tantas
vida pelo lado da alegria, mesmo quando vivia um drama.
pessoas que acreditam que é possível realizar os proje-
tos com afinco, dedicação e talento. Se não fosse isso, o Ainda tenho dificuldades de falar sobre o “Acende a luz”,
que teria feito com tantas ideias que nascem na minha porque acabou de se completar, ainda é confuso e está
cabeça? Algumas delas devem ser imediatamente tra- achando espaços, porquês, motivações. Um fervilhão de
balhadas e resolvidas. São as que chamo de ideias ime- ideias que ainda se transformam. Tive a sorte de estar
diatas. Em mim, uma ideia imediata vira poesia, que é próxima a pessoas que foram importantíssimas e alimen-
possível fazer e resolver apenas com um papel; e hoje, taram meu ato criativo. As aulas do Ruy Guerra, as indi-
ampliada pelo e-mail, os blogs e os sites de relaciona- cações felinianas de Nelson Pereira dos Santos, os ensi-
mento, posso fazê-la chegar rapidamente a um leitor. namentos de Camila Amado, as palavras de incentivo de
Walter Salles, o carinho de Fernando Meirelles, o teste-
Outras serão filmes, mesmo que não seja de forma tão
munho de Daniel Filho, as referências de João Salles e as
imediata: tenho lentamente desenvolvido uma ideias
muitas conversas com Cacá Diegues, que me ensina não
que julgo imaturas para resolver como filme, mas per-
só para a realização deste projeto, mas para a vida.
cebo progresso nelas a cada ano. “Numa igreja junto
ao mar” é uma fábula sobre a vinda de meus avós, Li uma entrevista com Drauzio Varella em que ele contava
com minha mãe e meus tios, de Minas Gerais até São os conselhos que nortearam sua vida. Identifiquei-me
Vicente, sobre a primeira vez que viram o mar. Já sei que demais quando ele disse ter recebido o conselho de cui-
é um longa-metragem. Este nasceu com título, enquanto dar de sua criatividade e concentrar-se em um projeto e
olhava a Igreja de Saquarema em dia de ressaca. Desci o depois em outro. O que me faz compreender que o ser
morro da igreja, entrei no carro para voltar ao Rio e des- criativo precisa e depende também de escolher uma de
crevi em um bloquinho tudo o que pude naquele mesmo suas criações, realizá-la, e então depois partir para
dia. Tem nome e argumento, mas ainda preciso de tempo outra e para outra. Isso para mim ainda é uma apren-
e maturidade para desenvolver o roteiro. Mas antes que dizagem. Muitas vezes me pego fazendo várias coisas
apodreça, tenho fé que vai virar filme.
40 Meu destino era o Nós do Morro

e não gosto que seja assim, porque muitas se perdem


pelo caminho. Serei mais atenta daqui pra frente e per-
ceberei melhor a hora de investir em uma ideia ou até de
abandoná-la. Momento sempre triste, mas que acontece
quando você nota que aquela ideia não faz mais parte da
sua lista de prioridades. Porque essas ideias que tenho
são, para mim, prioridade, são urgências. Elas precisam
de um canal de escoamento e, quando não realizadas,
morrem em mim mesma. Isso me faz triste.
Então, o que posso pensar é que o ser criativo se ali-
menta de criatividade, mas também de realizações. E
ainda tem muita ideia dentro de mim. E é com o intuito
de pô-las para fora que trabalho todos os dias. Que não
cesse a criatividade e aumente a disciplina.
Cap.02
Eu sou assim ou acho que sou
Eu sou assim ou acho que sou 45

Mais tarde, em 1974, eu nasci. Nossa vida já melhorara


um pouco. Meus pais haviam comprado um barraco de
madeira de dois andares, o que deixava minha mãe muito
orgulhosa, na rua 4, na favela da Rocinha. Segundo rela-
tos, ainda não tinha asfalto até lá, mas já estava perto.
Nasci numa madrugada de quinta-feira, debaixo de muita
chuva. O medo de me ter em casa fez minha mãe se aven-
turar e descer os becos de barro até o hospital e, embora
estivesse com as mãos na cabeça (o que deu um pou-
quinho de trabalho na hora de nascer), vim com saúde e
Chamo-me na certidão Luciana Braga Bezerra. Vim ao dando à minha mãe a felicidade de duas filhas.
mundo sob o signo de Touro, com ascendente em Áries, e
O Brasil naquele ano não teve a mesma sorte. E foi der-
lua em Sagitário, o que me deixa menos pirada. Nasci aos
rotado pela Polônia, ainda na semifinal. Ganhei o nome
nove dias de maio, em ano par, 1974. Ano em que o Bra-
de Luciana porque a cantora Evinha naquele ano defen-
sil perdeu a Copa. Em minha família somos todos de ano
deu uma música com esse nome no festival de MPB.
de Copa. E usamos isso como um slogan. Minha mãe nas-
Acredito que, além de mim, muitas meninas também
ceu em 1950, ano em que o Brasil tinha tudo para ganhar,
ganharam o nome. Em 1982, ano da derrota para a Itá-
jogávamos em casa, mas, naquele dia triste no Maracanã,
lia, nasceu meu irmão, do segundo casamento de meu
o Brasil perdeu para o Uruguai. No interior do interior de
pai. Alexandre — que viveu apenas dezoito anos, pois
Minas Gerais, em São João Evangelista — brinco com
nasceu com uma doença degenerativa dos músculos —
isso, porque ficava a oito horas do interior —, também em
era amante do futebol e conhecedor exímio de todos os
casa, minha avó tinha mais sorte que o Brasil, paria com
times. Foi uma doença bem difícil.
saúde, e passavam bem mãe e bebê. Minha mãe recebeu
o nome de sua tia e madrinha: Maria Augusta. A Carolina, quarto filho e terceira menina do seu Luiz Otí-
lio, também é de ano de Copa, nasceu em 1990. Ano difí-
Em 1970, morando no Rio de Janeiro desde 1964, minha
cil para nós, perdemos para a Argentina antes das quar-
mãe ganhava a minha irmã, ainda nova e com um casa-
tas de final, e tudo que nos restava era vibrar quando a
mento que ocorrera após anunciar à família que havia
Alemanha tirou a taça da Argentina. Confesso que nesse
engravidado. Para o meu avô, naquela época era melhor
dia torci contra meus hermanos latinos e adorei quando
uma filha morta à mãe solteira. Recém-casados e com
minha vizinha deu o nome de Caniggia para seu vira-latas.
um bebê recém-nascido, minha mãe e meu pai mora-
vam com a irmã de meu pai, cujo marido era vigia, em A minha sobrinha Sofia nasceu quatro anos mais tarde,
uma obra de empreitada no Horto. Após alguns meses em 1994, durante a Copa. Vinha ao mundo um bebê tran-
do nascimento de Martha, que é de março, a seleção quilo, enquanto os fogos explodiam. E depois de tanto
trazia a taça do México após derrotar a Itália, e o Brasil tempo o Brasil nos trazia a taça novamente e nos tor-
explodia de alegria. nava tetracampeões. Em 2006, passei todo o meu

44
46 Meu destino era o Nós do Morro Eu sou assim ou acho que sou 47

resguardo assistindo aos jogos com João Pacífico, meu rolinha do coronel. Teria de inventar um nome artístico.
filho que, com apenas quinze dias, já podia sentir como Nunca tive vontade de ter um nome artístico, nem mesmo
dói sair fora da Copa tão cedo. Saímos nas quartas de quando fui ridicularizada na escola. Então disse:
final, ainda por cima perdendo para a França, que já nos
— Ok. Luciana Bezerra, então!
tinha levado a taça em 1998. Mas ele aguentou firme, era
um menino de chorar pouco. Quando falei soou-me bem. Forte. Fiz as contas. Somava
14 letras.
Depois de tantas mulheres nessa família, talvez tenha
nascido um ponta-esquerda, um meia-direita, um cen- — Um mais quatro é igual a cinco. Um número do meio.
troavante, um camisa 10 ou quem sabe um goleiro, que na Número de equilíbrio. E ganho uma letra dobrada autên-
maioria dos casos, tem sido nossos verdadeiros heróis, tica. O RR vale quanto? Vale nove.
ou quem sabe um diplomata. Por enquanto, minha famí- Minha mãe ficou um pouco decepcionada, mas enten-
lia em seu círculo menor é composta por essas pessoas, deu. Ou acha até hoje que inventei essa história do sin-
mais o Gustavo, meu marido, e o Antônio, marido de minha dicato só para justificar assinar com o nome do meu pai.
irmã. E meu pai, Luiz, que diz também ter nascido em ano Ciumenta demais! Com ela, fidelidade sempre foi ques-
de Copa, mas não revela em qual para não denunciar a tão de honra. Herdei meu ciúme dela, mas me controlo.
idade. Sua mulher Graça e dona Rose, avó paterna do meu
Sou uma pessoa diurna. Penso melhor pela manhã, tenho
filho, além de Maurício e Paula, meus cunhados.
mais bom humor pela manhã. A noite para mim foi feita
Durante meu tempo de escola implicaram comigo por para dormir, namorar e ir a uma festinha de vez em quando.
causa do meu sobrenome “Bezerra”. Era chamada ape- No meu caso, de vez em quando é quase sempre. Sou tão
nas de Luciana Braga para evitar constrangimentos. O carente e dependente de meus amigos que se junta-
que não adiantou muito, logo veio o apelido de Luciana rem as noites que vivi até hoje, posso dormir doze horas
Praga Bééé. Isso pode traumatizar uma criança. Sobre- todas as noites pelos próximos sessenta, ou com muita
vivi. Hoje, se alguém me chama de Luciana Braga, eu já sorte, setenta anos que tenho de vida e não serão sufi-
identifico que é alguém de meu tempo de escola, e só cientes para compensar as noites que passei em claro
assino o nome completo em cheques, copiando a assi- em celebrações de amizade.
natura da identidade.
Em festas, em trabalhos muito legais, trabalhos ordiná-
Aos 21 anos, quando fui requerer um registro de atriz, rios. Fazendo nada, tomando cerveja, viajando e apro-
me informaram que não poderia assinar artisticamente veitando cada minuto da viagem. Namorando, ape-
como Luciana Braga. nas na praia, na praia lendo revista, na praia nadando,
— Mas como assim? É o meu nome! na cama lendo livro, ouvindo som e enchendo a cara,
enchendo a cara em silêncio, assistindo a televisão sozi-
Já havia uma atriz com esse nome registrada. Que muito nha, acompanhada, em sessões de corujão que varavam
me inspirou a ser atriz. Durante a novela “Tieta” eu costu- a madrugada, e, quando se popularizaram as locadoras,
mava imitá-la, sonhando fazer o papel da mais cobiçada em sessão tripla na casa dos amigos e principalmente
50 Meu destino era o Nós do Morro Eu sou assim ou acho que sou 51

dançando e jogando conversa fora, que é um dos melho- circulo mais íntimo. Alguns vão dizer que fiquei mais sele-
res prazeres da vida. Nasci contraditória. Quero realizar tiva. Não sei se é bem por aí. Eu digo que mais medrosa.
milhões de coisas, mas adoro um feriado! Uma festa! Um
Virei mãe. Muitas vezes ainda tenho rompantes de explo-
bafafá! Qualquer coisa que reúna mais de cinco amigas
são e jogo todo esse aprendizado fora. É como se tivesse
já é diversão excepcional para mim.
novamente 19 anos. Mas me envergonho disso cada vez
Acredito que na vida temos de ter tempo para todas as coi- mais. Não passo impune pelo meu tempo. Há em mim
sas, às vezes elas precisam acontecer ao mesmo tempo, reflexos da resistência de se socializar ou da superficia-
às vezes não, mas nosso desejo tem de ser saciado sem- lidade das relações no mundo de hoje, mas isso não me
pre. Claro, no limite da precisão e não da luxúria. Nunca agrada e me faz lutar contra.
pensei em ficar rica, mas busco melhorar minha quali-
Farei a cada dia o caminho de volta. Tomo consciência
dade de vida, dos meus familiares, dos meus amigos,
de que devo ser generosa com o outro e sobretudo amar
dos irmãos dos amigos e assim acredito contribuir para
as coisas. Não posso mentir que já me senti mais acre-
melhorar a vida de todos. Afinal cada um tem de fazer
ditada numa mudança ágil, eficaz. Na qual mudaria o
a sua parte. E quando me refiro à riqueza, à melhoria de
Vidigal — bairro onde moro há 28 anos —, e em pouco
vida, estou falando em possibilidades de acesso. Por-
tempo mudaria o mundo e isso se daria por meio da
que é aí que está toda a diferença. Acesso em nosso país
minha mudança e da minha família. Dizer que não con-
ainda é comprado e se paga muito caro por isso.
sigo isso com milhões de colaboradores desse sonho, é
Quando criança era muito chorona, ainda hoje choro facil- mentira. Mas os problemas parecem cada vez maiores
mente. Um nó na garganta. Às vezes de emoção, raiva, com a quantidade de gente que migra, que nasce, que
timidez, desespero, tristeza, alegria e até mesmo de feli- empobrece, com o abandono das áreas rurais, o trá-
cidade que é o sentimento mais raro, mas que apesar fico de drogas, as guerras, o abandono das autoridades.
disso, tenho tido o prêmio de sentir. Nesse ponto, penso Todos esses clichês da nossa sociedade vão tornando
que somos todos parecidos e amargamos a vida em busca a convivência pacífica entre as pessoas cada vez mais
de pequenos momentos de felicidades. Então o segredo é utópica. Enxergamos o outro cada vez mais como nosso
que nesse meio tempo devemos aprender a sentir felici- opositor, e isso nos torna competidores cruéis.
dade também nas pequenas coisas. Quando adolescente
Em uma favela, ou comunidade, que é um termo mais
faltava atirar fogo pelas ventas como um dragão. Era um
compromissado, é preciso ter generosidade. Esse espaço
trator, um bicho quando me sentia desafiada, injustiçada.
— por estar em sua origem fora das leis formais da cons-
No mais, sempre fui uma criatura da paz. Poucas vezes
trução de um bairro, ou de uma cidade — precisa se unir,
me meti em confusão e, quando o fiz, lutei apenas pela
mas a tomada dos morros pelo tráfico intimida todas as
sobrevivência da espécie. Adulta venho aprendendo a
iniciativas de coletividade, porque qualquer liderança
pensar duas vezes antes de falar. Principalmente com a
torna-se uma ameaça. Mas aqui, mais do que em qual-
minha mãe. E a desconfiar mais das pessoas. Também a
quer outro lugar, devemos estar unidos em um ideal de
me manter um pouco mais reservada e ter amigos em um
que todos naquele espaço prosperem.
52 Meu destino era o Nós do Morro Eu sou assim ou acho que sou 53

Nasci na favela, pela necessidade de ter uma casa, sou assim mesmo. Adoro fazer amigos. Desejo por meio
perto de onde meus pais, imigrantes rurais, arrumaram de minhas histórias articular mais colaboradores que
trabalho. Acho que os bairros populares precisam exis- acreditem ser possível provocar mudanças. Ao mesmo
tir e não necessariamente estar longe dos grandes cen- tempo que escrevo em meu quarto, meu filho de 3 anos,
tros. Se servirmos aos patrões, nos deixem ao menos Pacífico, pede a mamadeira de leite com chocolate. O pai
dormir por perto da casa grande depois da festa. E não atende ao pedido. Mas ele continua a me chamar, quer que
atravessar todo o canavial para deitar na senzala do eu o coloque para dormir. Isso é uma rotina, que ainda me
outro lado do rio. Acredito que uma cidade, quando pla- adapto. Levanto-me do computador, não posso suportar
nejada, deva incluir em seu projeto os bairros popula- ele me chamando, sem que lhe atenda. Vou colocá-lo para
res, apesar de não ser um projeto simples. No campo dormir e retornar ao trabalho logo depois. Será assim a
das ideias tudo é simples. Isso é o que me atrai na fic- aventura de escrever. Tem sido assim minha aventura
ção. Poder criar e dar solução para tudo. pessoal. Mas espero nas próximas páginas dar meu tes-
temunho reflexivo sobre todo o processo de aprendizado
Uma senhora não quer se encontrar no mesmo shop-
intelectual, artístico e pessoal. Dentro deste grupo que
ping com sua serviçal e assumir que compra uma bata
há vinte e três anos ajuda jovens pobres a acreditarem
que custa uns três salários da empregada. Quem me
que é possível transformar a sua história. Transformar a
ouve falar assim imagina alguém que fará aqui algum
história de um lugar e do mundo a partir da igualdade de
discurso panfletário, mas essa não sou eu. É que em
oportunidades. Transformei a minha vida e acredito ser
alguns casos as diferenças de condições sociais, que
responsável pela transformação de outras pessoas. Para
podem ser mais bem traduzidas em financeiras, são
que a evolução da espécie se concretize.
vergonhosas. Trabalho desde cedo para o crescimento
do país e acredito que você deve contribuir sendo res-
ponsável por si e pelos seus.
No grupo Nós do Morro me formei atriz, me iniciei dire-
tora, conquistei o respeito artístico de pessoas muito
importantes, que é um incentivo para continuar meu
trabalho e meu desenvolvimento artístico. Apoiada pela
diretoria do grupo, temos como filosofia dar oportuni-
dades às pessoas de se expressarem e de se colocarem
no mundo para que gerem uma rede do bem, por meio
da arte. Sento-me diante do computador para iniciar a
aventura de contar um pouco da minha vida, minha tra-
jetória de mulher carioca, mãe, favelada, artista, agente
transformado e transformador, para quem folhear estas
páginas. Então comecei assim, me apresentando porque
54 Meu destino era o Nós do Morro Eu sou assim ou acho que sou 55
Cap.03
As coisas mais minhas
As coisas mais minhas 59

shopping. Era ele: seu Luiz Otílio Bezerra, meu pai. Isso,
na comunidade, é algo que não dá para escapar. Todos
em algum momento da vida caem na boca do povo. É
tudo muito perto. Os becos têm olhos e as muretas têm
ouvidos. Se você é santo eles vão falar, se é da turma do
barulho vão falar também.
Meu pai costumava nos contar histórias somadas a
canções para nos pôr na cama. Eu, como toda caçula
mimada, fingia dormir para ser posta na cama no colo
ou carregada de um ônibus para outro, e isso enfure-
Durante todo o ano de 1979, minha mãe fez a travessia
cia a Martha, que dizia: “Pai ela tá acordada, bota ela
da ponte todos os dias para ver suas filhas dormirem e,
no chão!” Eu abria e fechava os olhos para ela, me sen-
pela manhã, antes que acordássemos, ela saía de novo
tindo vitoriosa, pois ele me carregava e era muito, muito
para seu trabalho de doméstica no Leblon. Minha mãe,
bom! Nessa época, minha mãe logo começou a namorar,
aos 14 anos, iniciou sua vida de trabalhadora nessa
e nós mudamos para uma casa que apelidamos de Casa
casa. Já teve muitos outros patrões, mas trabalha até
Rosa. Ficamos ali nos três anos seguintes: nós e o novo
hoje com essa família.
marido da minha mãe. Era nossa casa de fim de semana.
Acredito que as idas e vindas da Serra do Lagarto– Essa casa tinha um quarto, que eu dividia com a Martha,
Leblon tenham feito minha mãe chegar ao final do decorado pela minha mãe com umas bonecas de pano de
ano bem cansada. Foi então que tomou a decisão de parede, que ganhamos da Ana Clara, filha de D. Matilde,
que passaria a semana longe da gente. Passou a sair uma amiga do prédio em que minha mãe trabalhava.
na segunda e retornar na sexta-feira. Passávamos a
Era de costume herdar seus brinquedos, sempre incrí-
semana inteira com os meus avós e durante a semana
veis. As bonecas de pano eram lindas, mas a que eu
não tínhamos mãe nem pai.
mais gostava era uma bruxa com vassoura e tudo, que,
Compreendo que vir somente durante o fim da semana por ser a minha preferida, foi colocada sobre a minha
economizava tempo, força e dinheiro, mas era difícil cama. Lá também ganhamos nossa primeira bicicleta
estar sem ela. Não tê-la velando nosso sono todas as e uma vitrola automática que era capaz de tocar vários
noites me fez sentir muita saudade e me apegar muito a vinis, que iam caindo uns sobre os outros. Era do Nani, o
minha irmã Martha, que nascida sobre o signo de Áries, patrão da minha mãe, que a adorava e era um cara muito
sempre foi muito correta e forte. especial. Esses sempre foram pessoas especiais: o Nani
e a Suely, uma patroa difícil de achar.
Meu pai é um cabra paraibano, bonitão. Um dia, já na
minha adolescência, surgiu um boato de que eu estava Essa senhora ajudou a nos criar e nos ensinou e incen-
namorando um cara bem mais velho, assim bonitão, pois tivou em tudo que sonhamos fazer, eu e minha irmã. E
haviam me visto de braços dados a ele passeando em um na sua casa, embora fôssemos as filhas da empregada,

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60 Meu destino era o Nós do Morro As coisas mais minhas 61

nosso território não era restrito ao quarto de empregada porque tinha um corcel 1972, e isso ajudou muito sua
e a cozinha. Lá circulávamos por todos os espaços e nos campanha comigo para namorado da mamãe.
sentávamos à mesa com a família. Uma raridade.
Meus tios, Neném e Marco, que eram ainda muito jovens
Nos fins de semana com minha mãe, ouvíamos principal- e não tinham saído de casa quando fomos para casa da
mente Roberto Carlos, que sou fã até hoje. Posso cantar vó, me influenciaram muito na infância. A discoteca, o
quase todas as letras dos vinis de 1968 até mais ou menos Michael Jackson, o gosto pela cintura baixa e pelo cabelo
1986. Tenho uma memória para letras de música que é alvoroçado. O Fantástico — dá para ver que era um de
fantástica, quem dera fosse assim para matemática. meus programas favoritos — tinha um quadro chamado
Nessa época nasceu da música minha primeira mani- “Histórias fantásticas”. Algumas dessas histórias me
festação artística. Naquele ano, que não consigo lem- marcaram tanto que lembro de detalhes até hoje. Meus
brar qual era, ganhei do Papai Noel um telefone verme- tios, podiam estar namorando, jogando cartas, fazendo
lho que fazia um barulho de chamada. Então eu imitava qualquer coisa no domingo à noite, que nessa hora cor-
Elis Regina cantando no videoclipe “Alô, alô Marciano”, riam para a frente da TV. Na hora de dormir havia sempre
com direito a viradinhas de olhos e esqueminhas irôni- algum comentário pela casa, que me fazia fechar os olhos
cos com a voz assim como a Elis fazia. Só parei de fazer e dormir rapidamente. Mas fazia xixi na cama todos os
esse número (que era um grande sucesso entre os primos dias, porque não tinha coragem de ir ao banheiro. Foi bom
e vizinhos), após a morte da cantora, e a minha irmã colo- crescer e parar de ter medo. Quer dizer: ter menos medo.
car na minha cabeça que não era nada bom imitar alguém Mas foi bom parar de imaginar coisas tão fortemente,
que já havia morrido. Então aposentei o telefone. com tanto poder a ponto de visualizá-las acontecendo.
Neste mesmo quadro do programa “Fantástico” — que Essa criança inventiva vem crescendo e tentando cons-
apresentava videoclipes, que talvez ainda nem tivesse truir um mundo onde se tenha o direito de acreditar nos
essa nomenclatura ainda, em que havia visto Elis cantar sonhos. Já tive muitos deles. E são os sonhos que sus-
— também me lembro de ver Clara Nunes com “Morena tentam minha vida, se multiplicam, dão espaço a outros
de Angola”. A minha avó me proibiu de dançar por consi- sonhos. Gerados pela inquietação intrínseca à alma do
derar ponto de macumba e, com sua educação católica, artista. Sem dúvida alguma, desde pequena já carregava
achar que podia nos causar algum mal. Mas não adian- o gosto pelas apresentações.
tava, adorava dançar com os pés no chão, principalmente
na beira do rio, que me colocava em um cenário igual ao
visto no clipe da cantora na TV. Colocava uma saia ou ves-
tido que pudesse simular uma saia até os pés e amarrava
penduricalhos no tornozelo. A música fazia tanto sucesso
que a moda daquele ano era a tornozeleira. Todas nós
ganhamos do meu padrasto, que, por essa e por outras,
se tornou um cara muito legal. Era moderno. E também
62 Meu destino era o Nós do Morro As coisas mais minhas 63
Rocinha do Pai

Cap.04
Rocinha do Pai
Rocinha do Pai 67

noite voltava para o barraco na Rocinha. Minha mãe


esperava ansiosa eu completar 4 anos para me colocar
na escola. Nos fins de semana, eu ficava em Maricá, na
casa da Vó Nazica, ainda mais depois que o casamento
passou a ir mal.
Algumas vezes não era possível para minha mãe me
levar ao trabalho e eu ficava com minha madrinha, que
morava em frente a nossa casa. Tinha uma casa que não
era barraco, um pequeno quintal e alugava dois quartos
para moças solteiras. Quando não era possível, ficava
Meus pais, eu e minha irmã Martha vivemos na Rocinha com mulheres que tomavam conta de crianças; tinha
até eu completar 4 anos. Não tenho muitas lembranças uma perto da minha casa. Eram muitas crianças e ela,
desse tempo a não ser do que está registrado em fotos para entregar a roupa que lavava para fora, nos deixava
que na época não eram tão simples de se conseguir. Pre- com sua filha, que devia ter 8 anos. Lá os meus biscoitos
cisava esperar um retratista passar pela rua. Esperar eram comidos, não por mim, e também se não quisesse a
ser aniversário, Natal ou festa junina. comida, era melhor que sobrava para o outro. Mas quando
minha mãe me deixava lá nunca reclamava ou falava nada.
Mas ouvi muitas histórias contadas pela minha mãe
Agarrava-me a ela quando chegava a hora dela ir embora.
sobre o tempo em que era bebê, no barraco da rua 4.
Depois, esperava ela voltar para me buscar, me mantinha
Em 1971, eles mudaram para o barraco de dois anda-
quieta e fazia amigos. Da Rocinha nesta época eu lembro
res. No início, minha mãe, feliz, encerava o assoalho de
ainda da D. Filhinha, que me chamava para comer bolo à
madeira envernizado. Nasci três anos após a mudança
tarde e ouvia sempre a Radio Relógio. Lembro também
e a casa já apresentava sinais de problemas. Mas vive-
de correr pelada pelo beco até a casa da minha tia Maria
mos lá por mais quatro. Quando nos mudamos, nos
José. Era impossível passar na rua e não olhar dentro da
relatos de minha mãe, as tábuas da cozinha já tinham
casa dela. Essa lembrança é forte porque a tia sempre
buracos e o esgoto passava aberto embaixo da casa. Ela
fez questão de contar esta história em especial para os
colocava madeiras e as prendia com o peso dos móveis.
namorados que se aventuraram a conhecer a família.
Na escada que dava acesso ao segundo andar faltava
degraus e suas laterais estavam comidas de cupim. Lembro também do Junior, um amigo, que tinha um
Havia uma parte no quarto do segundo andar interdi- palhaço colorido não muito grande. Foi um brinde de festa
tada, pois o chão furou também comido por cupins. Era junina, talvez a primeira da qual eu tenha lembrança. Um
preciso que o barraco sofresse uma reforma. dia, quando brincávamos na laje, o boneco caiu na beirada
para fora da mureta. O Junior, então, pulou o muro para
A Martha passava o dia inteiro em uma escola em Bota-
pegar o boneco e se equilibrou em uma mureta estreita.
fogo — o Educandário da Misericórdia —, e eu ia para
Fiquei olhando e admirando sua coragem. Era perigoso de
o trabalho com minha mãe e adorava o conforto. Só à

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70 Meu destino era o Nós do Morro Rocinha do Pai 71

verdade. O Junior voltou. Ele devia ter uns 6 anos. Demos Geraldo Vandré, com sua canção hino da revolução:
trabalho a nossos anjos da guarda! “Caminhando e cantando”. Ele me deu uma música que
jurava ter sido feita para mim e anos mais tarde desco-
Depois da separação dos meus pais, continuei a ir mui-
bri que era de um cara chamado João Só. Era para outra
tas vezes à Rocinha. Meu pai morou lá por muito tempo
menina, mas podia ser aplicada a mim também.
ainda. Construiu no lugar do barraco de tábua uma qui-
tinete de alvenaria. Também na Rocinha continuamos a Menina que mora na ladeira
frequentar durante esse tempo as casas das famílias de e desce a ladeira sem parar
nossas madrinhas. Debaixo do pé de laranjeira tem sempre
um alguém a esperar
Por sentença do juiz, meu pai teria direito de nos pegar Um silêncio profundo a menina dormiu
nos fins de semana a cada quinze dias. Qualquer outra E esse alguém que esperava por ela partiu
visita deveria ser previamente avisada. Ele sempre foi Partiu para sempre
nos ver quando quis e minha mãe nunca proibiu isso, Para o infinito
mas a distância em que morávamos fazia com que os E um grito se ouviu.
fins de semana quinzenais fossem a chance de nos ver Chorando levanta a menina
e não deixar se perder o contato entre pai e filhas. Hoje e desce a ladeira sem parar
percebo o esforço feito pelo meu pai e agradeço, porque Embaixo do pé de laranjeira, não há
assim pude tê-lo por perto mesmo com a separação. mais ninguém a esperar.

Eram esses fins de semana de farra. Meu pai preparava Era essa a música. Talvez isso explique meu tom dra-
passeios como Parque Lage, Parque da Cidade, Feira mático. Meu pai algumas vezes lia para gente canções
de São Cristóvão, praia, cinema ou até mesmo um pas- ou trechos de peças teatrais que ele escrevia. Eram
seio pelo centro da cidade olhando prédios históricos. momentos que nos quinze dias que separavam a pró-
Em alguns fins de semana, apareciam umas namora- xima visita me traziam saudades, mas também conforto
das dele para passear com a gente. A Martha era mais de um bom convívio. Quando nos mudamos para o Vidigal
fechada, eu logo fazia amizade com elas e tive até as pude voltar a ver minha mãe todos os dias e meu pai com
minhas preferidas. muito mais frequência. Ele se casou novamente.

À noite comíamos algo preparado por ele, que cozinha Com a chegada da adolescência, as visitas ao pai raras
muito bem, e depois ouvíamos música e cantávamos vezes eram para passar o fim de semana ou dormir. Ele
enquanto ele tocava violão. Dele herdei o gosto pela já tinha mais dois filhos e uma esposa. A quitinete havia
música popular brasileira e regional e a boa mão para subido mais dois andares tentando abrigar o cresci-
comida. Ouvíamos de tudo: Gonzaguinha, Raul Seixas, mento da família. A Rocinha crescia a cada dia. A família
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Elomar, do meu pai, que veio da Paraíba para o Rio, estava toda
Edgar Mão Branca, Geraldo Azevedo e, de vez em quando, ali na Rocinha. Seus irmãos, volta e meia, abrigavam-se
sempre baixo, meio escondido, por medo da ditadura, na sua casa, desde quando era casado com minha mãe.
72 Meu destino era o Nós do Morro Rocinha do Pai 73

Era uma família numerosa. Os homens trabalhavam em trabalhando por lá. Em resistência, eu ia visitá-lo, só
restaurantes e bares e as mulheres eram lavadeiras, para ter um testemunho que comprovasse que isso não
donas de casa e empregadas domésticas, todos mora- era verdade. Os boatos que inventam durante conflitos
dores da Rocinha desde os anos 1960. como esses são capazes de causar mais mal que o pró-
prio conflito.
Meu pai tentou, ao sair de um restaurante que trabalhou
durante um tempo, abrir seu próprio negócio na Rocinha. Meu irmão faleceu aos 18 anos e meu pai, há pouco
Teve de tudo: birosca de bebida, birosca de sinuca, mer- tempo, voltou para a Rocinha com sua mulher, minha
cearia. Martha, quando brigou com a minha mãe para irmã Carol e já com minha sobrinha Julia. Hoje a Roci-
continuar fazendo teatro, morou um tempo na Rocinha e nha está mudada. Tem banco, clínicas, comércio. Como
dizia não se habituar ao sobe e desce, ao entra e sai, ao vendeu sua quitinete, mora de aluguel. Um homem em
falatório que parece que não termina nunca, pode ser a idade de se aposentar. Isso me preocupa, pois comprar
hora que for. Minha mãe que se preocupava com o teatro, outro imóvel na Rocinha, mesmo do tamanho da quiti-
quando a Martha se mudou para a Rocinha, passou a se nete antiga, pequenininha, está cada vez mais caro e
preocupar também com a Martha morando lá, sem estar mais difícil de se conseguir.
sobre seus cuidados diários. A Rocinha era muito mais
Tenho orgulho de ver um bairro de operário tão discrimi-
violenta que o Vidigal. Logo a Martha voltaria a morar com
nado se transformar como a Rocinha. Espero ainda ver
a gente, para minha alegria, pois sentia muito sua falta. E
o Vidigal ganhar essa sorte. Costumo ir hoje à Rocinha,
para a tranquilidade de minha mãe. Essa briga durou um
em visitas ao pai, para fazer compras, ir ao banco e levar
ano, mas mudou tudo na minha família.
meu filho para nadar em uma de suas academias, que
A vida do meu pai se complicava na Rocinha, porque foi oferece esse serviço e é a mais barata da Zona Sul. Na
descoberto que meu irmão mais velho tinha uma doença Rocinha o pobre tem opção de sentar com sua família
degenerativa, e aos 7 anos ele já não andava. Meu pai pre- e comer uma pizza no dia do aniversário. E me orgulho
cisava mudar para um lugar com menos vielas e escadas muito disso — de andar nesse bairro com propriedade,
para subir e mudou-se para Jacarepaguá, em 1995. Isso como ando em Copacabana, coisa que poucos cario-
fez com que eu visitasse cada vez menos o lugar onde cas, que não são moradores de lá, fazem. Sinto-me mais
nasci. Passei a frequentar menos a Rocinha, que para carioca e mais brasileira por não precisar ser convidada
mim se tornou por um tempo apenas a via Apia (princi- ou por não ter um guia para entrar na Rocinha. O bairro
pal viela de comércio, até sua esquina com a Estrada da abasteceu meu jantar japonês de sushi no último aniver-
Gávea, mas na Rua 4 nunca mais fui). Meu pai, para qui- sário do Gustavo, meu marido. Bairro construído tam-
tar dívidas, vendeu as quitinetes da Rocinha. Não acho bém pela minha família.
que agiu certo. Assim que tiver uma casa própria, seja
onde for, não vendo por nada.
Durante a guerra entre as facções que dominavam esses
dois morros, corriam boatos de que nenhum morador do
Vidigal poderia ir à Rocinha. Meu pai continuou sempre
Cap.05
Maricá da Mãe

Cap.05
Maricá da Mãe
Maricá da Mãe 77

de apego, ciúme e posse. Lá morávamos numa casa na


beira da estrada, que era ainda de terra. O bairro se
chama Serra do Lagarto. Éramos vizinhos de parede e
meia com minha tia Mara José, irmã mais velha de minha
mãe, viúva e com seus quatro filhos, que se mudara
para Maricá após o tio Lino morrer. Essas casas haviam
sido uma antiga mercearia e deram muito trabalho para
serem transformadas em residência.
Não muito distante, no caminho do rio, que sempre fora a
principal atração nas visitas a família nas férias, morava
Chegamos juntos a Maricá — toda a família — para morar minha avó numa casa que ficava no alto de um pequeno
perto de meus avós. A casa estava mais bonita. Meu pai morro. Mais tarde, já adulta, quando visitava o lugar,
havia aberto uma centena de crediários para comprar percebi que era uma casa normal, mas na infância via
móveis. Já que o pouco que tinha permaneceria na Roci- a casa de minha avó como um lugar muito grande e com
nha, mas a separação ainda não estava declarada. Era seu enorme quintal no alto daquele morro. Não é difícil
preciso que meu avô acreditasse que a intenção dele para uma criança de 4 anos perceber tudo grandioso.
não era abandonar a família. Dormiu lá apenas naquele Com minha avó, que se chama Judite Flor de Maio, assim
fim de semana e foi embora. Ficou um tempo sem nos mesmo sem sobrenome de família (coisas de Minas),
ver. Acho que umas cinco semanas ou mais. Era um fala- morava minha tia Maria da Conceição, a mais nova das
tório na família — minha mãe nervosa. Entendia tudo, meninas e, por isso chamada por todos de Neném —
mas todos pensavam estar escondendo de nós o verda- para nós, tia Neném. O caçula da família era o tio Marco,
deiro motivo da mudança. Quando minha mãe conversou e meu avô, Geraldo, foi quem escolheu esse nome pra ele
com a gente, nós e nossos primos já tínhamos adiantado e também de todos da família, incluindo mãe e avó, que
essa conversa por muitos dias. Todos tinham medo de ele mesmo registrou ao chegar em Niterói nos anos 1960.
perder os pais. O ano de 1978 abalou de fato a família. O sobrenome que ele deu à família foi Acendino Braga.
Meus primos, um ano antes, tinham perdido o pai em Meu avô era uma figura incrível e tinha sempre uma voz
um acidente de carro. Agora podia ser a nossa vez, pelo firme ao se apresentar como Geraldo Acendino Braga.
menos era o que pensávamos naquele momento.
Havia escolhido esse nome porque em Minas tinha uma
No Natal daquele ano, vi meu pai, mas na virada de ano família muito poderosa de nome Braga e ele achava
ele não estava com a gente. Era um direito da minha mãe. bonito. A nossa família Braga começa em meu avô, que
Ela estava feliz. E dançava bem bonita em seu vestido para nós era tão importante quanto qualquer político.
vermelho de flores amarelas. Tínhamos uma vida nova Em Maricá, ele ganhara fama após construir metade dos
em Maricá, eu, minha irmã e minha mãe. Essa enxurrada prédios do centro, a Prefeitura e muitas casas nos arre-
de pronomes possessivos é porque sou taurina e sofro dores dali. Fez também a sua parte ao trazer de Minas

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80 Meu destino era o Nós do Morro Maricá da Mãe 81

muitas famílias, empregando homens em suas emprei- Márcia, Rosana Lúcia, Sandro Mauro e Adriana Maria —
tadas de obra ou de roçado. Todos com o mesmo sonho e os da tia Cacá (Maria das Graças) — Gérson, Gisele,
dele: ganhar a cidade grande a fim de dar oportunidade Jesiléia, Jesilene e Marilene. Esta foi a primeira geração
melhor aos filhos. Lembro de um desfile de aniversário de netos dos meus avós, e fomos criados como irmãos. A
da cidade, que meu avô vinha no caminhão da Prefei- tia Cacá faz até hoje, em seu fogão de lenha, as melhores
tura e recebia do prefeito de Maricá a chave da cidade, rosquinhas fritas e o melhor requeijão duro que já comi.
sendo nomeado cidadão maricaense. Nós ficamos muito Na minha época de criança, ela morava em uma fazenda,
importantes nesse dia. que nos abrigou em muitos fins de semana. Era quando
minha tia preparava o requeijão cozinhando em enor-
Em Maricá, tinha uma rotina gostosa. De manhã frequen-
mes tachos e precisava de muita prática para receber as
tava a escola e à tarde estava livre. Minha avó, que é por
bolinhas de queijo quente nas mãos. Ficávamos ali rode-
todos os netos, chamada de vovó Nazica, ficava em casa
ando todo o processo de feitura, que demorava. Íamos e
com a gente e fazia as coisas da casa além de costurar
voltávamos até que o requeijão estivesse em ponto de
para fora. Ela era vez por outra muito severa, mas fazia o
puxa-puxa. Esticávamos as mãos um a um, tínhamos
melhor mingau de fubá com pedacinhos de queijo minas
que rapidamente passar de um lado a outro para esfriar,
que já comi. Ao escrever essas palavras, minha boca se
fazíamos bolas de queijo e comíamos. Posso, em dias
enche de água e posso até sentir o cheiro do leite quei-
saudosos, sentir o cheiro delas.
mado na leiteira enquanto a vó mexia o mingau. Adorava
raspar aquelas leiteiras! Era a primeira a correr para a Na casa da minha avó, quando estávamos todos jun-
janela quando uma chuva estava se armando e ficava ali tos, eram os dias de hospício. Esperávamos a hora do
esperando ela chegar e varrer os pastos. Tinham três jane- sono da tarde da vovó para aprontarmos todas, o que
las na sala e cada grupo de netos ocupava uma, os últimos muitas vezes resultava em surra ou castigo ou os dois
a chegar se acotovelavam querendo garantir um espaço. dependendo do tamanho da falta cometida. Durante a
semana, a saudade da mãe era confortada por muitas
Quando estava apenas eu, minha vó e minha irmã, cada
brincadeiras e a deliciosa sensação de liberdade da
uma ocupava uma janela. Depois de algum tempo de
roça. Mas eu aguardava a sexta-feira como se aguarda
chuva sempre ia me abrigar na janela da Martha com a
dia de festa. Duvido alguém me pôr para dormir antes
desculpa de que estava com frio, mas ela sabia, como
de subir o último ônibus que normalmente trazia minha
boa irmã mais velha, que era mesmo saudades da
mãe. Às vezes acontecia dela perder esse ônibus e
minha mãe. Abraçava-me e se a barra pesava para ela
depender de lotação, táxi ou mesmo de ir a pé. Nesses
também, propunha um jogo da memória ou uma ade-
casos, eu acabava cochilando, mas ao ouvir sua voz
danha. Até hoje quando chove adoro me debruçar na
chegando a casa, era a primeira a levantar e ir correndo
janela para ver a chuva quando vem se aproximando de
saudá-la. Abraçava e beijava, ela já muito cansada, e
longe. É uma imagem linda.
ainda sempre vinha à clássica pergunta:
Havia dois dias na semana que todos os netos ficavam
— Trouxe o quê pra mim?
com a minha avó. Nós, os filhos da tia Maria José — Ana
82 Meu destino era o Nós do Morro Maricá da Mãe 83

Ela sempre trazia na bolsa caramelo ou bala de goma depois. Seu Liba era o nome do motorista que mesmo
colorida, que eram devorados por mim a hora que fosse. sendo muito legal de nos esperar para nos levar a escola,
Sem nenhuma preocupação de escovar os dentes depois. não escapava de nossa chacota por ser o motorista mais
Nos fins de semana que não eram de meu pai, passeava mole que já conheci: “Seu Liba não é capaz de botar o
na fazenda, tomava banho de rio, brincava com os primos. cento e vinte, lá vai, lá vai, lá vai dos quarenta ele não
Às vezes tinha festa de algum parente e sabia que teria sai.” Era a nossa diversão preferida na volta da escola,
bolo, fazia compras; eram fins de semana gostosos. Mas ficar no fundo do ônibus cantando isso para ele.
também era nos fins de semana que se catava a cabeça
A escola ficava na cidade. Meia hora de ônibus de onde
para verificar se estávamos com piolho, e, caso fosse
morávamos. Ana Márcia, minha prima mais velha, era a
constatado que sim, todo aquele procedimento de remé-
responsável por levar todos nós à escola. Muitas vezes
dio, escovação, pano branco na cabeça, aquela coceira
perdíamos o ônibus para voltar e não podíamos espe-
infernal. Eram os fins de semana de faxina geral, orelha,
rar três horas. Então marchávamos a pé para casa pela
umbigo, pé, unha, de revisão nos dentes e nos deveres de
estrada de terra. Com sorte, passava um motorista
casa. Claro que a mãe tem de se encarregar dessas tare-
conhecido e nos levava. Algumas vezes pararam carros
fas que nós achamos chatas e desnecessárias.
que nunca tínhamos visto e nós nos certificávamos se
Sei também que se ela pudesse escolher, estaria conosco era seguro perguntando se o motorista conhecia o vovô
em um passeio, mas enfim alguém tem de fazer esse tra- Geraldo e, se ele respondesse que sim, pegávamos a
balho. A mãe sempre fez questão de almoços e cafés da carona tranquilamente. Graças a Deus todas as vezes
manhã fartos e com todos à mesa e de fazer pão doce e foram pessoas de bem e nunca aconteceu nada com
bolinhos de chuva em formato de letras onde eu podia nenhum de nós.
escrever meu nome antes de comer. Minha mãe arru-
Em Maricá, passamos por uma enchente. Quando a
mou logo um namorado, e alugaram uma casa distante
chuva começou, estavam somente as crianças em casa,
da casa da minha avó e passamos a ir para lá nos fins
brincando na casa de uma das tias. Tinha uma prima com
de semana. Gostava muito de ir para essa casa onde eu
coqueluche e arrumamos uma briga, o que fez metade
e Martha tínhamos um quarto, que podia me relacio-
do grupo sair em direção a casa da vó. Estava nesse pri-
nar com minha mãe sem interferência dos meus avós.
meiro grupo, e tivemos muita dificuldade de subir a rua,
Ganhava durante os fins de semana uma rotina com a
porque a água em mim, que era a menor, já atingia quase
minha família normal. Foram quatro anos de muitas
a cintura. Meus primos, Sandro e Rosana, ao nos deixar
aventuras e descobertas.
na casa da vó, mesmo após a briga, acharam por bem
Fui matriculada e comecei a ir à escola. Era a primeira a voltar e ajudar os outros a saírem da casa, que ao con-
acordar. Enquanto a Martha estava escovando os den- trário da casa da vó ficava em uma parte baixa.
tes, já tinha tomado o café e me apressava até a casa
Eles desceram e nós ficamos apreensivos até que vol-
de meus primos muitas vezes para acordá-los, e algu-
tassem, muito molhados e carregando a Lelene, que
mas vezes era eu quem impedia o ônibus de ir embora,
estava com coqueluche, enrolada em uma cortina de
já que se isso acontecesse só haveria outro três horas
banheiro. A partir daí, começaram a chegar os adultos
84 Meu destino era o Nós do Morro Maricá da Mãe 85

e a casa não parou mais. Grupos de homens liderados Eu e Martha, por conta de nossas viagens quinzenais ao
pelo meu avô saíam a todo momento para ajudar mais Rio, e o fato de nosso pai morar lá, éramos as cariocas e
pessoas a saírem de suas casas. Era uma sexta-feira e, enchíamos a boca para falar isso. A cada quinze dias tra-
mesmo tendo sido colocada para dormir, os olhos não zíamos uma novidade quando visitávamos meu pai. Nós
fechavam, acompanhava toda aquela movimentação e fazíamos passeios que nenhum de nossos primos nem
rezava quieta pela chegada de minha mãe, que se deu as outras crianças da cidade estavam acostumados.
já na madrugada, contando que teve de atravessar o Muitas vezes faziam roda para escutar as experiências
rio amarrada em uma corda, porque a ponte havia sido vividas em um praia ou em uma sessão de cinema, coisa
levada pela força da água. No dia seguinte bem cedo, a que em Maricá não tem até hoje.
chuva tinha passado, e fomos levados pela minha avó
A minha infância, principalmente dos 4 aos 8 anos, foi
para ver o tamanho dos estragos.
uma época crucial na minha formação. Foi quando
A vó Nazica era uma espécie de “Repórter Esso” — noti- aprendi a falar, o que justifica ter um “s” mais acentu-
ciário histórico do rádio e da televisão brasileira. Gos- ado do que o normal dos cariocas, pela interferência da
tava de saber tudo que se passava a sua volta. Uma vez família mineira. Também foram os anos em que me ali-
lhe contaram que um homem havia se enforcado do outro mentei de muita brincadeira, que na roça não tinha limi-
lado do rio. Era final de almoço. Ela trocou de roupa e tes. Quando nos mudamos, todas as vezes que íamos a
nos ordenou que calçássemos os chinelos para sairmos. Maricá em visita, todos faziam questão de nos apresen-
Foi uma caminhada longa. Quando chegamos, demos tar como as primas do Rio.
de cara com um homem negro, de aproximadamente 40
Depois que comecei a trabalhar com teatro e tive par-
anos, pendurado ainda na árvore com a língua muito roxa
ticipação em novelas e filmes, quando chegava lá, pas-
e inchada para fora e uma cueca vinho saco de batata.
sei a ser apresentada como a artista da família. É difí-
Assim que ela chegou, percebeu que não poderia ter ido
cil fazer as pessoas entenderem que você apareceu em
até lá com aquela criançada toda e começou a mandar a
uma novela, mas não necessariamente você trabalha
gente voltar. Demos a volta assim que ela conseguiu nos
na Globo, ou que você não está em novela nenhuma e
afastar daquela cena e começamos a caminhar de volta
mesmo assim é atriz. Mas a gente vai levando.
para casa. Ninguém falou nada sobre o assunto, princi-
palmente com meu avô; era nosso segredo com a vovó. Não foi fácil sair de Maricá. Estava acostumada com a pro-
ximidade da família, tinha amigos, estava bem adaptada a
Essa cena está em um de meus roteiros. Esse é o melhor
uma escola. Mas minha mãe decidiu que deveríamos nos
momento. O de aproveitar suas histórias, suas experiên-
mudar. Gosto de voltar a Maricá até hoje, mas a cidade
cias, para contar outras histórias. Maricá está em mui-
me passa a sensação de que parou no tempo. Minha mãe
tas das histórias que ainda desejo contar. Aliás, minha
estava certa quando nos mudamos de lá.
família mineira já é por si uma história, minhas tias são
do tipo que contam as desgraças da vida e todo mundo
ri. Pessoas maravilhosas de quem herdei em especial a
generosidade e o gosto por contar histórias.
Cap.06
Vidigal, a favela do Papa

avela do Papa
Vidigal, a favela do Papa 89

Cheguei ao Vidigal havia acabado de fazer 8 anos e a vida


começava a se desvendar sob meus olhos. As primeiras
descobertas, os primeiros amores. Iniciava-se minha
despedida da infância e minha iniciação à adolescência.
O Vidigal vivia tempos menos violentos, e era comum, em
noites quentes, as mães colocarem suas cadeiras de praia
na calçada para assistir ao nosso pique-esconde na rua.
O bairro, que ainda não tinha endereço próprio, era pelo
correio denominado Vidigal-Leblon. Era dividido em ruas,
Em 1982, nos mudamos de volta para o Rio, só que dessa áreas e galerias. O lado direito da subida da rua principal
vez para a favela do Vidigal. A favela do Papa. Minha mãe que corta o morro era urbanizado e chamado de bairro
só revelara a mudança para a gente naquele momento, do Vidigal. Já a parte esquerda da rua principal era loca-
mas já cultivava a ideia há dois anos quando foi até lizada a favela. Isso também de esquerda e direita só ia
a entrada da favela para ver o Papa João Paulo II, que até uma determinada altura, depois da esquina acima do
subiu o morro em sua primeira visita ao Brasil. Águia Futebol Clube, virava tudo favela. Claro que nin-
Nesse dia, ela conta ter virado a noite no trabalho fazendo guém que morava a direita da principal se considerava
o almoço do dia seguinte para que nada atrapalhasse a favelado e essa era a divisão territorial mais clara nesse
hora de ver o Papa. Acabou tudo cedo, mas no repórter da espaço. Isso era difícil de entender. Assim que cheguei
manhã já sabia que não seria fácil chegar perto dele. Foi foram tempos de introspecção. Não tinha amigos, não
então para a rua e o mais perto que ficou foi em frente saía à rua, brincava apenas com minha irmã em casa.
ao Hotel Sheraton, uns dois quilômetros da entrada do Era mês de férias e ano de Copa.
morro, de onde pôde ver o carro de João Paulo II e ace- Seu Antônio, pipoqueiro, senhorio do prédio para onde
nar para ele. Ali decidira morar na favela do Papa. Mas nos mudamos, já era antigo conhecido da mãe, porque
guardou consigo esse desejo durante dois anos, até que seu ponto de pipoca era na pracinha da Aperana, rua que
aparecesse uma oportunidade para se mudar. ela trabalhava desde sempre. Ele havia nos emprestado
Para nós, não era uma mudança fácil, pois fizemos no uma antiga, e já bem quebrada, antena espinha de peixe
meio do ano, apesar de nos trazer para mais perto do para podermos assistir aos jogos. A imagem ruim não
meu pai e poder estar novamente com minha mãe todo nos impediu de ver a derrota do Brasil e depois do jogo,
dia. Demos adeus à rotina na roça, com meus avós e minha mãe, que tinha chegado cedo para assistir em
meus primos, que não preciso dizer, era muito praze- casa, nos chamou para ir à rua, que estava toda enfei-
rosa. Toda mudança é difícil, precisa de adaptação, tada, primeira coisa a me chamar atenção no dia em que
coragem, força e a certeza de que a escolha é acertada. nos mudamos. Mas ao atravessar o portão não tinha
No caso da vinda para o Vidigal, cada vez mais percebo sobrado um enfeite sequer. Os meninos faziam uma
ter sido a escolha certa. grande fogueira e derretiam plásticos. O que fez minha
mãe descer de volta com a gente para casa.

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90 Meu destino era o Nós do Morro Vidigal, a favela do Papa 91

A casa agora era pequena, tinha apenas um quarto e uma a promessa: “Você vai ver na hora da saída.” Voltamos
janela, que ficava no mesmo cômodo. Tinha saudade de para a sala. Jaciara sentou-se ao meu lado e limitou-se
sentar à noite com a Martha na janela do nosso quarto a dizer: “Não vai acontecer nada.”
da Casa Rosa, em Maricá. O único quarto agora era ocu-
Na hora da saída as pernas nem queriam se mover. Atra-
pado por minha mãe e David, meu padrasto. Na sala
vessei os portões e ela estava lá. Na minha cabeça já
haviam colocado um biombo a fim de nos dar um pouco
pensava qual seria a desculpa que arrumaria para minha
de privacidade, mas, como não havia muita ventilação
mãe que não deveria saber nunca que eu havia brigado.
por depender da janela do quarto, não deu certo. Logo
Ela partiu para cima de mim, mas fui salva por uma xará,
ficamos cheias de alergia e o biombo foi retirado. Tam-
a Luciana Soares, que era bem grande, e disse a Lucinha
bém por conta do espaço, muitos brinquedos haviam
que ela não iria me bater e a ameaçou. Lucinha recuou e
sido dados, inclusive as bonecas de parede e a bruxa
eu subi o morro contente com minhas novas amigas. Em
de que tanto gostava. Foi um mês e meio sem sair e só
casa, quando minha mãe chegou, nada falei sobre isso,
brincando com a Martha. Dona Lídea, a senhoria, ficava
nem mesmo com a minha irmã.
atenta, pois se ouvisse muito desentendimento e grita-
ria vinda da nossa casa viria intervir. Ela o fazia pela área Foram dois anos nessa rua. Nela moramos em duas
de serviços, que tinha um andar no meio, onde por conta casas. No ano seguinte havia vagado uma casa que pos-
dessa comunicação fiquei conhecendo Gago (Emerson) suía um pequeno quintal e uma varanda, e fomos para lá.
e Willian, meus primeiros amigos no Vidigal. Eles mora- Ainda era só um quarto, mas o fato de ter mais de uma
vam no andar de cima com os pais. janela, e ter um quintal e uma varanda, já ajudava muito
nossa convivência. Minha mãe saía muito cedo e che-
A volta às aulas nos ajudou a formar nossa primeira
gava tarde. Martha, desde que nos mudamos para o Vidi-
turma de amigos. A escola é sempre um desafio. Em meu
gal, era responsável por mim durante o dia. Estudava no
primeiro dia de aula, cursava a segunda série, a pro-
mesmo colégio que eu, no quarto turno, de 17h às 22h30.
fessora me colocou ao lado de uma menina chamada
Minha mãe não havia gostado nada disso, pois eu ficava
Jaciara. Ficamos amigas na mesma hora e assim per-
sozinha nesse horário, mas a promessa da diretora era
manecemos até que sua família voltou para o Ceará, e
que no ano seguinte a escola teria apenas dois turnos,
eu não tive mais notícias dela. Na hora do recreio, ainda
como todas as outras.
tímida, via o jogo de bola e as crianças correndo de um
lado ao outro do pátio. E eu ali no cantinho. Jaciara Durante o horário de escola da Martha, eu vivia os momen-
me incentivou a brincar com um grupo que, de cima da tos mais difíceis. Minha mãe, algumas vezes, chegava
pedra, refletia a claridade do sol com pedaços de espe- até mais tarde que a Martha. Eram os dias que depois
lhos. Não me recordo de onde saiu meu pedaço, que mais de trabalhar na casa da Suely, fazia jantares em outras
que depressa mirei para o pátio. Sem querer ofusquei os casas ou alguma faxina para completar o orçamento,
olhos de Lucinha, uma menina de no máximo 10 anos, que ficou ainda mais apertado após a mudança para o
mas já temida na escola. Ela veio em minha direção, me Rio. Sem dúvida alguma, a vida em Maricá era bem mais
ameaçou, e para a minha sorte o sinal tocou, deixando barata. Sozinha, eu ouvia rádio para passar o tempo, já
92 Meu destino era o Nós do Morro

que a televisão continuava pegando muito mal. A memó-


ria musical mais forte que tenho dessa época é “Pintura
íntima”, do Kid Abelha, que quase sempre era a última
música a ser tocada antes da programação ser interrom-
pida pela “Voz do Brasil”. Nessa hora eu me debruçava na
janela e esperava que minha família retornasse.
O aniversário de 9 anos foi a primeira vez que fiquei sem
festa, a casa era muito pequena. Mas para compen-
sar ganhei uma bicicleta Caloi, que não era nova, mas
era ótima, e não muito alta do jeito que sonhava, com o
guidom como um chifre de cabra. A bicicleta me ajudou
também a fazer mais amigos. Nossa rua tinha paralele-
pípedos até um pouco depois da minha casa, e depois
era barro. Costumávamos fazer uma rampa para con-
cursos de salto. Muitos deles justificam as marcas que
tenho nas pernas.
As duas casas que moramos nesta rua ficavam no último
andar dos prédios que eram construídos descendo os
terrenos, portanto para andar de bicicleta era preciso
subir muitos degraus com ela nos braços. Como ter uma
bicicleta era bem mais difícil do que hoje em dia, sempre
tinha amigos que ajudavam, interessados em algumas
voltas. No ano seguinte, já bem mais enturmada e numa
casa com quintal, minha mãe preparou uma grande
festa de 10 anos. Ganhei de presente o LP “Thriller”, do
Michael Jackson, do meu padrasto, que tinha guardado
segredo até a hora da festa. Depois que abri o presente
não tocou outra coisa. Fazíamos roda e dançávamos.
Estava fazendo dois anos que eu morava no Vidigal e
minha vinda tinha sido marcada por muito choro, não
queria abandonar a vida que levava em Maricá. Meu
colégio, a tia Carmem, meus primos, o banho de rio.
Mas agora, enquanto dançava o último grito da moda,
vestia calça jeans e jaqueta no aniversário e possuía
94 Meu destino era o Nós do Morro Vidigal, a favela do Papa 95

muitos amigos no meu bairro, não sentia saudades. do que as duas anteriores. Tinha uma pequena varanda
Maricá era agora o lugar que gostava de passar os fins e uma vista paradisíaca. Seu telhado era de telha de
de semana, e onde gostava de contar as novidades da madeira forrada com folhas finas de zinco, quase um
cidade aos primos da roça. laminado. Faziam um barulho muito forte quando cho-
via, parecia que a casa ia cair, era ensurdecedor; para
Minha mãe viu uma chance de comprarmos um bar-
ir ao banheiro era preciso descer uma escada por uma
raco no 314, e logo nos mudamos do bairro Vidigal para
porta bem pequena e estreita.
a favela Vidigal. O 314, na época, era considerado o lugar
mais pobre do Vidigal. Próximo a nossa nova casa havia A cama que eu e Martha estávamos acostumadas a dor-
um beco chamado “Beco da fome”, só para se ter ideia de mir teve de ser serrada para que coubesse no quarto,
como era o lugar. No 314 também estava a boca de fumo. que, além dessa cama, tinha uma pequena sapateira
Eu não via diferença, tinha amigos da escola morando que servia de penteadeira também e um armário de duas
em toda parte do morro e o 314 ainda tinha a vantagem portas. Agora eu dormia no chão, mas meus pés ficavam
de ser mais perto do ponto de ônibus. Calculava que de embaixo da cama da Martha. Mas tínhamos um quarto
lá gastaria 15 minutos da praia até em casa. Isso me aju- de novo, e isso eu adorava. Embora ele não tivesse por-
daria muito, estava com 11 anos e tudo que eu sonhava tas, minha mãe instalou cortinas grossas nos dois quar-
nesse momento era ganhar o direito de ir à praia sozinha. tos, e eu me sentia bem melhor. A obra logo começou e a
Ela ficava ali. Pertinho. Não dava para esperar minha primeira etapa era fazer a fundação da casa e a laje. Não
mãe, que passava o fim de semana trabalhando em é tarefa humana construir uma casa em lugar de difí-
casa, ou a minha irmã, que vivia o auge da adolescência cil acesso, e o 314 é um desses, muitos becos e muitas
e queria ficar só, terem vontade de ir à praia, para que eu escadas. Minha mãe logo percebeu o porquê de ter com-
fosse junto. Não podia mais viver assim. E nisso eu tinha prado barato o barraco. Pagava apenas pela sua linda
razão, assim que mudei para o 314, comecei a ir à praia vista, porque nos arredores a situação era ruim, ainda
sozinha. Porque da varanda da nova casa, minha mãe mais quando compáravamos com a nossa antiga casa.
podia ver eu sair do morro até desaparecer na av. Nie-
Para fazer a obra era preciso comprar o material, além
meyer, e, com um bom binóculo, se eu passasse direto
de pagar para alguém carregar da rua principal até
da entrada da praia, ela também saberia e eu teria que
a casa, e a nossa era bastante distante. Era preciso
explicar o que fui fazer no Leblon.
pagar pedreiro e ajudantes, porque com aquela quanti-
Quando minha mãe anunciou a mudança para as vizi- dade de escadas era impossível um homem sozinho dar
nhas, todas reprovaram e disseram que ela era louca conta. Com a mudança vieram os novos vizinhos, novos
de se mudar com duas filhas para o 314. Minha mãe foi amigos, e os amigos da rua foram se afastando. Depois
rápida no gatilho: “Elas precisam agora é de uma casa que mudei nunca mais fora convidada por nenhum deles
própria!” A vida lá não era fácil, a começar pela mudança, para um aniversário, nem sequer um deles se lembrou
que teve de ser carregada na mão, porque o carro não do meu a partir daquele ano.
conseguia chegar perto da casa, que era ainda menor
96 Meu destino era o Nós do Morro Vidigal, a favela do Papa 97

Estudei no Vidigal, em uma escola do município até da laje pré-moldada que foi colocada na casa. Essa fase
a oitava série nos anos 1986, 1987, 1988 e 1989 — que mais intensa da obra, até que ela ganhasse a estrutura
foram uma catástrofe para o ensino público. Os pro- que tem hoje, foi bem difícil. Todo dinheiro da família era
fessores ganhavam mal e, com a abertura política e a colocado na casa, e no início nem eu nem minha irmã
queda definitiva da ditadura, os militares não injetavam trabalhávamos, apenas estudávamos. Não tínhamos
mais dinheiro no ensino e as coisas foram ficando cada dinheiro para nada. Nunca tinha ouvido tanto não, nunca
vez mais complicadas. A escola que estudava, por ter o tinha ficado tão presa em casa por não ter dinheiro para
nome de um patrono da Marinha, sempre recebera refor- sair, e nunca tínhamos comido tão mal.
mas, visitas da Marinha, mas não me lembro de esses
Perdemos o quarto de novo, mas a promessa de pas-
fatos terem acontecido nesses anos. Foram anos de
sarmos para um quarto só nosso, com um banheiro só
greve. Por ser na favela e com o aumento da violência,
nosso, seria cumprida em pouco tempo. Ficamos um
a escola foi ficando em último lugar na lista de onde um
tempo sem porta. Construíamos uma casa sobre a outra
professor queria dar aulas. Não tive nenhum contato
e foi preciso quebrar a parede de dentro, mas não havia
com a química, tampouco com a física ou com a filosofia.
dinheiro para colocar a porta da sala; o vão foi tapado
Ao rever meu histórico, vejo que em alguns desses anos
com uma folha de madeirite. Ficamos assim bastante
não estudei nem mesmo história e geografia. Mas não
tempo, e vivemos também um tempo sem janelas. Eu
podiam me reprovar por causa da greve, então, fui para o
tinha pena de minha mãe levantar e vir retirar a madeira,
primeiro ano do segundo grau.
mas eu queria ir às festas. Era mais forte que eu. Minha
O 314 ganhou cimento sobre o barro, o que facilitava a irmã queria mais ainda. Às vezes não poupamos nossos
chegada e a saída de casa, e pude assim abandonar o pais por acharmos que só nós estávamos sofrendo.
hábito de descer de chinelos, com meus sapatos de sair
Ao mesmo tempo, via ao meu redor problema muito
dentro de um saco, para que não se enchessem de lama.
maior. Tinha uma amiga com nove irmãos. O pai fazia
Em compensação, a boca de fumo ganhava os fogos de
bicos de marceneiro e a mãe era faxineira diarista, e a
artifícios como principal sistema de aviso, e a favela
vi passar muita necessidade calada. Para convidá-la
nunca mais dormiria tranquila. Nos primeiros momen-
para um programa, tinha de ter grana para mim e para
tos, o corpo estremecia na cama, mas logo a gente vai se
ela. Muitas vezes fizemos vaquinha para que não ficasse
acostumando. Aos poucos, cessaram os fogos das come-
de fora do amigo-oculto da escola. Os mais velhos dessa
morações, e, cada vez que se ouvia um rojão na favela,
família começaram a trabalhar muito cedo: 12, 14 anos.
todos já sabíamos que a polícia estava subindo o morro.
Era a única chance de sobrevivência deles.
A obra lá em casa continuava, já havia passado várias
Eu tinha um pai e uma mãe que estavam tentando pro-
etapas. Primeiro foi a laje: eu, Martha e minha mãe car-
gredir. Mas eu sentia falta de muita coisa. Coisa que eles
regamos mais de 2000 lajotas. Enquanto meu padrasto
nem imaginam. Ia crescendo e me alimentava da cer-
carregava com um tio meu — que veio de Maricá para
teza de que as coisas iam melhorar. Nunca soube exa-
essa finalidade — pedra, cimento, areia e todas as vigas
tamente de onde vinha essa certeza de que tudo estava
98 Meu destino era o Nós do Morro Vidigal, a favela do Papa 99

melhorando. E ia levando assim. A adolescência é sem- minha mãe não me deixou participar. Mas o cara, o que
pre um turbilhão de emoções, e ocupava minha cabeça nem sequer consigo lembrar o nome, me disse que se
com muitas coisas, como a primeira paixão, por exem- interessava muito em trabalhar comigo como modelo.
plo. Se meu peito finalmente ia crescer, se ia ou não me Disse para minha mãe que ele iria me cadastrar na agên-
tornar mocinha. E me trancava. Na minha casa, minha cia, mesmo sem eu participar do concurso. Ela disse:
mãe sempre foi de carinho e de bronca. Mas nunca foi de “Pois bem, vamos ver.”
muita conversa. Teve uma criação muito rigorosa, quase
Com 13 anos já tinha a altura que tenho hoje, então era
ignorante, dos meus avós. Eu observava a vida e apren-
uma loucura. Fui fotografada muitas vezes na praia, e
dia tudo. Caladinha.
adorava. Mas uma vez um gringo, que se dizia fotógrafo
A principal diversão das favelas eram os bailes. Não da Moda Brazil, me deu seu endereço e foi enfático ao
posso dizer que fui a muitos, principalmente na adoles- dizer: “Por favor, traga a sua família.” Minha mãe, a con-
cência quando você tem de escolher bem o programa tragosto do meu padrasto, desceu a escadaria do 14
que vai fazer, porque não é em todo fim de semana que ao cair da noite, assim que chegou do trabalho e foi até
sua mãe está disposta a deixá-la sair. Minha preferência o Costa Azul, o apart-hotel que fica no pé do Morro do
eram as festas de rock, que tinha muita força naquela Vidigal. Subimos. Ele foi supereducado. Fez três fotos
década e se espalhava com bandas cover do “Legião minhas de rosto com uma Polaroid e conversou um
Urbana”, “Paralamas do Sucesso”. Havia uma banda pouco com a minha mãe.
Chamada “Via Brasil”, que muitas noites lotou o Águia
— Eu não tenho nenhuma condição de ir com ela pra
Futebol Clube. Único salão do Vidigal, hoje sede da Igreja nenhum lugar fora daqui, não quero nem ouvir esse papo
Universal do Reino de Deus. Mas me recordo dos bailes de tutor. Eu vou cuidar das minhas filhas.
de mais sucesso no Vidigal, os que ninguém podia faltar
e, claro, eu estava sempre presente. Eram o do shorti- Despedimo-nos. E minha mãe me fez prometer que não
nho, o da sainha, o da calcinha. Estou falando do fim dos deixaria mais ninguém ficar me fotografando. Vai saber.
anos 1980 até meados de 1990. As meninas se candida- O que teria sido? Será que a vida me reservava esse
tavam na hora para dançar. Eu tinha uma vizinha que era destino? Sonhei muitas vezes com isso e internamente
do tipo rainha do baile, já ganhara muito desses prêmios. questionei a decisão da minha mãe. Acho que nunca tive
Ela tinha shorts capazes de levar o baile inteiro à lou- mesmo vocação para modelo. Se tivesse tentado, eles
cura. Uma vez ela confeccionou para mim e para Ales- teriam serrado meu quadril.
sandra, minha comadre, luvas até os cotovelos para Já no caso do concurso “Garota Vidigal”, entendi tudo.
compor nossas fantasias para uma festa. Tinham passado alguns anos, e estava um pouquinho mais
O Vidigal sempre foi o lugar onde as festas a fantasia esperta. O concurso aconteceu, as meninas desfilaram. O
davam certo. Assim como os concursos. Em 1990, acon- Águia lotado, a Virgínia e a Núbia fizeram tudo direitinho.
teceu um desfile no Águia Futebol Clube, que se dividiu Estavam um escândalo. Foram primeiro e segundo luga-
em duas etapas. Inscrevi-me, claro! Claro também que res. Mas o prêmio deveria ser pego, na segunda-feira, na
100 Meu destino era o Nós do Morro Vidigal, a favela do Papa 101

casa do figura. Fomos acompanhadas de todas as mães,


inclusive eu, que não havia participado do desfile, por-
que ele me queria no seu catálogo. Fomos recebidas pelo
cara, pulando em sua minipiscina, em uma cobertura com
cara de sauna. Em seu discurso, as mães perceberam
que ele não oferecia cursos de modelo. Na verdade, pro-
curava garotas de programas. Despedimo-nos e levamos
uma bronca coletiva das mães e fomos aconselhadas: se
achávamos mesmo que íamos ser modelos então era bom
procurar um curso sério e barato, é claro!
Crescer em um lugar onde as pessoas a conhecem
desde pequena é engraçado. Aqui isso sempre gerou
muita fofoca, porque é impossível não comentar que
a filha da D. Maria começou a namorar e estava aos
beijos no beco; que a filha do seu Sebastião é muito
esquisita, não tem namorado; que a filha do seu Celso
está grávida; que a filha da D. Lúcia está andando com
uma galerinha esquisita, está usando droga. No Vidi-
gal, até hoje, todo mundo sabe da vida de todo mundo.
Basta você escolher se vai viver a sua vida ou a vida dos
outros. Eu escolhi desde cedo viver a minha.
Meus familiares haviam se tornado evangélicos da Igreja
Assembleia de Deus. Sou do tipo que respeito às religiões
e espero que cada qual possa exercer sua espiritualidade
da sua forma, mas preferia quando a minha família dava
bailes na sala de vermelhão encerado e jogava cartas à
noite inteira. Sem dúvida, isso nos afastou um pouco.
Não o amor, mas os ideais de vida. Mas ainda fomos para
a casa da minha vó em alguns Natais. Até que um dia, eu
e minha irmã cobramos da minha mãe uma ceia em casa,
mas ela queria que fosse na casa da minha vó, como todo
ano. Eu não queria nem pensar em chegar lá e todos con-
versarem, assistirem o culto e irem dormir. Era Natal, era
para festejar. Eu e a Martha não queríamos estar longe do
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Vidigal, por ser o lugar onde tudo acontecia. Ela foi, nós Já estava trabalhando há alguns meses, tinha minhas
ficamos. Fizemos a ceia com strogonoff feito de pica- contas, minha irmã as dela, e assim minha mãe ficava
dinho. Estávamos tristes. Depois de meia-noite, me um pouco mais aliviada e recuperava-se da operação.
encontrei com meus amigos mais perdidos e fizemos Prometeu-nos que não mais carregaria cimento ou pedra
travessuras. Minha irmã, não tenho ideia do que fez. para construir o barraco. Agora a obra ia acontecer da
Mas voltamos mais cedo que o de costume, e o melhor maneira que desse. Nunca fui de ter vergonha de muita
do Natal foi ver minha mãe voltar mais cedo. Os Natais coisa, mas, na adolescência, ser vista por um menino, não
passaram a ser em nossa casa. precisava nem estar a fim dele, carregando tijolos com as
canelas riscadas pela poeira, era muita humilhação. Claro
No terceiro ano do segundo grau, enfim, consegui enten-
que podiam acontecer coisas muito mais graves que isso.
der um pouco de física, de química e até mesmo deco-
Minha mãe, por exemplo, teve de tirar um órgão, por ter
rei a tabela periódica. Claro que nada foi tão fácil. Ainda
carregado tanto peso no sonho de construir uma casa.
no André Mourois, repetira mais uma vez o primeiro
ano, então comecei a estudar à tarde e passei. Fiquei No trabalho, comecei como auxiliar de recreação e tra-
em recuperação em química no segundo ano, mas pas- balhava de 9h às 18h. Fazia um lanche dentro do ônibus
sei. E estava agora prestes a terminar o segundo grau. no trajeto Botafogo–Jockey, onde estudava às 18h50. No
O fantasma da minha geração. Em outubro, tinha notas meio do ano, com a saída de algumas funcionárias, pas-
para passar, não faltava aulas, exceto o último tempo sei a ser recreadora. Passei a entrar às 7h, mas às 14h
de sexta-feira, que vinha logo após o recreio, para me estava em casa, fazia um curso de datilografia, e manti-
encontrar com amigos de Copacabana. Por conta do nha uma prática de estudo porque pretendia fazer vesti-
contato com minha amiga Márcia, que continuou estu- bular ainda naquele ano.
dando em Copacabana, ainda conservava esse grupo de
No Vidigal, meus amigos também caminhavam para a
amigos. Trabalhava já no meu segundo emprego. O pri-
vida adulta. Escolhi entrar para o teatro. Minha mãe pas-
meiro foi uma passagem relâmpago, não me adaptei,
sou a ser alvo de fofocas e de pessoas querendo lhe aler-
durou um mês, mas tive um primeiro salário perto do
tar contra esse grupo que ensinava aos jovens que eles
meu aniversário, que me rendeu um vestido sonhado.
podiam ser livres por meio da sua arte. No morro é difícil
Fiz estágio de uma semana em uma creche, minha irmã escapar da vida errada, porque nem sempre ela parece
trabalhava em uma creche também. Percebeu que eu errada para você. Minha melhor amiga era aluna de judô,
havia gostado do estágio, me viu empolgada e me indi- aula ministrada pelo chefe do tráfico. Quando assisti
cou na primeira oportunidade que surgiu no trabalho uma aula com ela, vi um cara muito educado, brinca-
dela, e logo comecei a trabalhar. Em casa, estávamos no lhão e que ensinava, além de técnicas de defesa, cuida-
sexto ano de obra. Era muito tempo! Tinha escadas para dos com a alimentação e boas maneiras. Orgulhava-se
todo lado. Mas minha mãe tinha adoecido e até fazer a quando um aluno seu era elogiado por ter cedido o lugar
operação levou algum tempo. Nunca a tinha visto tão no ônibus para alguma senhora. Fernando, ex-namorado
fragilizada. Tive muito medo de perdê-la. da minha irmã — que criou uma relação maternal com
Vidigal, a favela do Papa 105

minha mãe, mesmo depois de virar ex, e continuou pró-


ximo dela —, também fora aluno desse professor de judô
e gostava tanto desse cara, que ficou deprimido quando
ele fugiu em um dia desses de invasão, antes ainda da
força das facções e no tempo dos calibres 38. E nem faz
tanto tempo assim. Levaram-se meses falando na morte
do Pinduca. Um tempo depois surgiram boatos de que ele
estaria bem. Que virou crente, que mudou para a Região
dos Lagos. Minha mãe sempre pedia que Fernando não
fosse vê-lo. Fernando jurou nunca ter ido procurá-lo.
O Vidigal teve outro dono, que cavou um buraco imenso
no topo do morro e que mais tarde foi terminado e inau-
gurado como vila olímpica pela Prefeitura. São esses os
nomes que muitas vezes viram referência para a juven-
tude na favela. Mas no Vidigal nascia por meio do Nós
do Morro e da cabeça do Guti Fraga, pessoas dispostas
a lutar para formar novas referências. Referências que
trouxessem mudanças pela arte e pela cultura, mos-
trando uma nova maneira de pensar.
Minha casa já completava uns dez anos de obras. Minha
irmã, depois de morar um tempo com meu pai na Roci-
nha, morava com a gente de novo. Mas, trabalhando
muito, vinha pouco em casa e se preparava para casar.
Eu e minha mãe estávamos em paz. Eu tinha um namo-
rado de quem ela gostava, e estava tudo certo. Embora
ela achasse que eu gastava energia demais nos ensaios e
compromissos com o teatro, que não davam em nada. Com
o final do colégio, passei a respirar a essência do grupo e
o Vidigal passou a ser, para mim, o teatro Nós do Morro.
Na minha vida as coisas mudavam velozmente, ainda
mais com 19 anos. Você quer se descobrir, se afirmar,
formar suas opiniões que até então você jurava serem
imutáveis. Estava apaixonada, queria sair de casa, mas
a minha mãe, que havia acabado de se separar de seu
segundo marido e temia ficar sozinha, me convenceu de
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que a casa era grande, e que eu podia ficar com o meu Tive uma crise no trabalho, na segunda de manhã, não
namorado lá por enquanto, até a gente ir se acertando. conseguia parar de chorar e tive de explicar as crianças
Eu não pensei duas vezes. Afinal de contas, ele não traba- que a tia Lu estava muito, muito triste. Naquele dia fui
lhava, queria ser baterista, e meu salário de recreadora direto para o trabalho da minha mãe e quando cheguei me
não sustentava nós dois. E ele veio morar com a gente. deparei com ele sentado contando para ela que eu queria
Minha mãe se dava bem com ele, e, com nove meses de terminar o casamento sem motivo algum. A partir daí, a
namoro, todos nos incentivavam a casar. briga começou, uma ameaça atrás da outra, até que um
amigo conseguiu que ele saísse lá de casa. Estava aba-
Com alguma insistência, gostei da história. Achei tam-
lada, mas o teatro representava algo tão forte para mim
bém que se casasse o ciúme dele diminuiria. Casei. Foi
que eu tinha nele a esperança de que vale a pena lutar
um turbilhão de coisas. Sempre me lembro de setem-
pelo que se acredita. Não me via casada com alguém que
bro de 2005 como o mês em que tudo mudou. Eu mudei.
não acreditava no meu sonho. Isso aos 20 anos é gritante
O casamento estava marcado para o dia 30. Assim foi.
e muito latente. Os sonhos são as armas da juventude. E
Mas, depois de casar e partir em lua de mel, o meu
sonhar que o grupo de teatro Nós do Morro ia dar certo era
recém-marido achava que o melhor para nós dois era que
a única coisa que eu tinha naquele momento.
eu abandonasse o teatro. Não conseguia compreender.
Sabia dos seus ciúmes, mas isso? Tivemos alguns dias Continuei meu trabalho no grupo. Estudava, multipli-
tranquilos de passeios, mas na quinta-feira quando o cava meus conhecimentos. Conhecia lugares novos. Era
lembrei que deveria estar de volta ao Rio no sábado para a responsável por levar crianças do Vidigal para assistir
a apresentação e que seria bom voltar na sexta para dar pela primeira vez uma peça. Ia com elas ao CCBB (Cen-
tempo de descansar, pude ver como podia ser agressivo tro Cultural Banco do Brasil), ao Centro Cultural dos Cor-
o cara com quem havia acabado de me casar. Para irmos reios e à Biblioteca Nacional. Não queria que eles levas-
embora, prometi que faria apenas mais aquela semana, sem tanto tempo quanto eu para se apropriar desses
mas que na próxima já teria saído do teatro e Guti teria espaços que são nossos por direito. Nessa época, tam-
tempo de colocar outra pessoa em meu lugar. De verdade bém trabalhei em uma produtora e dizer que morava no
nunca pensei em fazer isso. Mas precisava dar um jeito na Vidigal ainda causava estranheza, ainda mais na área
loucura que havia cometido. Só não sabia como. de atuação da produtora: publicidade. Mas não posso
dizer que já cheguei a sofrer algum tipo de discrimina-
Passaram-se dois meses. Estávamos em cartaz de sexta
ção. Talvez uma assim de leve, velada, que fiz questão
a domingo, e a cada semana foi ficando mais difícil sair
de esquecer. Mas morar no morro é isso. Como o Estado
de casa. Um dia ele me prendeu e em um outro atirou em
não consegue te dar segurança, você estará sempre a
mim com uma espingarda de chumbinho. Acertou meu
mercê do momento. Durante todo esse tempo, vi mui-
braço de raspão. Precisava me livrar desse cara, que
tas vezes bandidos se matarem para controlar o morro,
morava na minha casa, estava casado comigo, e a quem
que não quer dizer nada além de controlar a venda de
minha mãe ainda chamava de filho.
drogas. Mas como serão as leis nesse espaço que está
aquém das leis do Estado?
110 Meu destino era o Nós do Morro Vidigal, a favela do Papa 111

Depois de seis anos estudando cinema e um ano e meio lá embaixo. Com medo, mas subimos. Eu segurei na mão
montando meu filme poderia enfim estreá-lo no Cine do Gustavo, meu marido, e seguramos todos nas mãos de
Odeon. Aquela noite só não foi melhor porque o Vidigal Deus. O Bope descia a ladeira escura contra a multidão
sofria uma incursão policial e eu havia alugado um ôni- que subia. Rezei pra não morrer. Foram mais de seis horas
bus para levar várias pessoas para o cinema, que foram de tiroteio. Não viram que jamais poderiam ter demorado
impedidas de sair. Helicópteros sobrevoavam o Vidigal tanto tempo, que causaram danos irreparáveis. Ao chegar
tão baixo, a ponto de me surpreender com um cara pen- em casa, comemorava por estar viva. Isso é a guerra, você
durado na porta de um helicóptero na altura da minha começa a celebrar porque está vivo. Com fome, com sede,
varanda ao sair do banho. Era o início da guerra, mas sem liberdade, mas vivo. Quando descia para trabalhar ou
ainda não sabíamos. para tentar esquecer que estava em território de guerra,
ia para o Leblon, o bairro vizinho, e era como se nada
Ao voltarmos para casa, com o morro mais calmo, come-
tivesse acontecendo. Era uma vida normal. Não sabia se
morei a noite tranquilamente. Mas a guerra se aproxi-
dava para ouvir os tiros ou se eram só os meus ouvidos
mava e o Vidigal tornou-se o lugar mais terrível para se
que fora do campo de batalha continuava a ouvi-los.
morar. Nunca pensei que fosse passar pelo que passa-
mos aqui. Na noite que antecedia minha viagem ao Festi- Foi um ano muito difícil, mas “Burro sem rabo”, contra-
val de Brasília, onde o filme faria a exibição que lhe daria riando a tudo, estreou no Planetário, depois foi para o
seu principal prêmio, na volta para casa do trabalho, Sesc-SP e o Sesi, também de São Paulo. A arte da favela
avistei o Vidigal às escuras. Os carros voltavam. O ônibus ia bem, mas o restante estava mal. O Vidigal voltou a figu-
parou na altura do hotel Sheraton e ficamos ali. Segui- rar nas manchetes mais sangrentas dos jornais. A guerra
mos a pé e nos juntamos a muitas pessoas que retorna- continuava, com pequenos momentos de recesso. Os
vam do trabalho e não conseguiam chegar a suas casas. conflitos aconteciam a qualquer horário. De noite era
Tive medo do Vidigal, parada no ponto, muito vulnerável. quase impossível sair de casa. As aulas estavam sus-
Um homem foi atingido por um tiro na perna na subida pensas. Pela manhã, muitas vezes iniciávamos o dia e ele
do morro, pessoas separadas pela guerra e um lugar era interrompido rapidamente por tiros, não havia lugar
que nesse momento tinha sua maioria de mães no pé do seguro. Chegamos a ficar por muitas vezes com a favela
morro e suas crianças ouvindo tiros, sozinhas em casa. dividida. O Vidigal se calou. Mudou. Nunca se tinha tido
confrontos como aqueles, a resistência foi vencida.
Não há ninguém que passe por isso sem sofrer trans-
formações. Esse é o único medo que tenho por ser Ficou mais difícil andar nas ruas, fazer show a céu aberto
mãe. Ser impossibilitada de estar com meu filho em um e sonhar que por meio do acesso à arte e à cultura pode-
momento de conflito. Tenho pesadelos com isso. Em mos construir um mundo igualitário. O Vidigal jamais
algum momento, quando não dava mais para conter a seria o mesmo. Nós também não. Perdemos a inocência.
multidão que se dizia disposta a subir, o comandante A guerra permaneceria por uns dois anos, começou no
do Bope ordenou que os policiais descessem. Nós subi- feriado da Semana Santa em 2004 e foi até 2006. O Vidigal
mos quando vimos os primeiros batalhões apontarem ficou sob o comando de outra facção denominada ADA. O
112 Meu destino era o Nós do Morro Vidigal, a favela do Papa 113

que isso difere para mim? Não sei. Esperava que nada. Já pensei muitas vezes em me mudar daqui. Mas isso me
Mas sabia que se a Rocinha já era ADA — e nós estáva- causaria muita mão de obra e confesso que fiquei viciada
mos coladinhos nela — o melhor era que não fôssemos na vista. Para morar tem de ter vista. Um horizonte. E não
inimigos. Não em territórios tão próximos. Custódio, se encontra muitos horizontes baratos como esse aqui.
uma figura folclórica do Vidigal, apesar da bebedeira, Então, por enquanto, é aqui, nesse bairro, que minha vida
tinha a visão mais lúcida do Vidigal que conheci: “A continua e vou escrevendo a minha história.
Rocinha deu um tiro, Vidigal estremeceu.” E saía gri-
tando essa frase pelos becos. Mesmo no fim da guerra,
com uns três meses sem confrontos, os burburinhos
sempre surgiam e a ameaça de retomada continuava.
E o nosso medo também. A vida no Vidigal demorou a
voltar ao seu curso normal.
O medo está até hoje. Vi o Vidigal crescer nesses anos
e as possibilidades aumentarem para muitos, mas den-
tro do meu próprio bairro ainda há bastante a ser feito.
Ele sofre com a falta de áreas de lazer, de condições dig-
nas de trabalho, de boa educação nas escolas. Mesmo
sendo uma favela da Zona Sul, ainda abriga muita gente
em condições precárias de vida. Ainda mata meninos
no tráfico, ainda engravida suas adolescentes sem que
tenham a chance de mudar seus destinos. Seus jovens
abandonam os estudos cedo e vão trabalhar para contri-
buir financeiramente em casa. Mazelas que carregamos
em comunidades carentes há várias gerações.
Mas quando ando por suas ruas, becos e escadarias,
ele é o bairro que me viu crescer, onde comemorei meus
aniversários, onde recebi meus amigos, onde moro com
minha família. Onde vou a missa de domingo, onde
sento no boteco para beber. E é também o lugar pelo
qual vibro a cada vez que abre uma pizzaria ou uma
nova lojinha, que significa o progresso do bairro. Sonho
com um Vidigal com mais de uma rua para que o trânsito
funcione melhor, que as pessoas possam visitar, assim
como você sai de sua cidade para conhecer Ipanema.
Geograficamente o bairro tem potencial para isso.
Cap.07
Meu destino era o Nós do Morro
Meu destino era o Nós do Morro 117

a minha mãe, Guti e uma turma de jovens faziam a divul-


gação da peça no ponto de ônibus. Fui assistir naquele dia
mesmo. Era um domingo e a sessão acabava mais cedo.
Minha mãe não foi, mas marcou a hora que deveria vol-
tar para casa. Era a primeira vez que assistia a uma peça
adulta. Lembrava de ter visto até então “Chapeuzinho
vermelho” e “Pluft”, em montagens de fim de ano no colé-
gio Notre Dame, onde a filha da patroa da minha mãe dava
aulas. A montagem de “Pluft” me servira de inspiração,
tempos mais tarde, para minha própria montagem em um
fim de ano com os alunos do Nós. Embora fosse um teatro
Tinha então 13 anos e seria um ano inesquecível. Não
de escola e feita por professoras, a montagem era muito
era uma má aluna, mas sempre gostei de falar um
bem cuidada. Tinha um barco que parecia se mover. Essa
pouco demais da conta, o que não me ajudava muito.
cena ficou na minha cabeça por toda a vida.
Mas em simpatia sempre fui nota dez. Minha mãe sem-
pre disse: “Luciana, desde bebê, sempre foi com a cara Sempre me lembro também da abertura do primeiro
de todo mundo!” espetáculo do Nós do Morro, com seis ou sete meses
de vida, em que as luzes se apagavam e em off a voz do
Minha irmã, que não era uma adolescente fácil, estava
Guti narrava um texto sobre se encontrar, a busca do eu.
com 17 e muita discordância com a minha mãe. Uma
Vários atores vestidos de preto andavam pelo palco. Era
delas passou a ser a principal: o teatro. Na época, minha
muito emocionante. Depois disso a peça tomava um rumo
mãe achava que o teatro não tinha nada a ver com minha
muito coloquial e apresentava situações da adolescên-
irmã e que ela não devia se meter nisso. Afirmava que sua
cia e assuntos do cotidiano, e foi um grande sucesso. Se
vontade de fazer parte da trupe de atores vinha do fato
fosse contar por mim, por exemplo, assistia todo fim de
de seu namorado ser um dos componentes. Em algumas
semana. O teatro funcionava em um centro cultural de um
famílias, a arte ainda era vista de forma deturpada, os
padre austríaco, apelidado pela comunidade “padre ale-
artistas eram confundidos com libertinos e drogados.
mão”, que tinha seu próprio nome: Centro Cultural Padre
Mas no Vidigal, por meio de um grupo teatral, e da força,
Leeb. Ele era casado com uma mulata chamada Joana,
da crença e da perseverança de Guti Fraga e seus ami-
pelo menos é o que todo mundo dizia. Sabem como é
gos Fred Pinheiro e Fernando Melo da Costa, se dava o
comunidade. Vai ver os dois eram só amigos.
início de uma revolução. Dentro de uma favela carioca,
com moradores do próprio bairro. Eram os precursores O centro era um lugar legal, agradável, bom de estar.
do Nós do Morro. Aos poucos se encheu de atividades: ginástica, dança,
capoeira. Mil coisas. Minha irmã passou a ir cada vez
O Guti havia montado um espetáculo que se chamava
mais ao teatro, pois namorava um rapaz do elenco, que a
“Encontros”, em que estavam dois dos meus amigos:
partir da peça seguinte já contava com ela também. Na
Rômulo e Barton. Uma tarde de 1987, ao subir da praia com

116
118 Meu destino era o Nós do Morro Meu destino era o Nós do Morro 119

minha casa as brigas aumentaram. Eram os ensaios até Niemeyer, em frente ao Vidigal. A escola só funcionava
tarde, as aulas na escola, que ela matava pela manhã. durante o dia e as aulas de teatro deveriam ser à noite, o
Mas quando minha mãe foi assistir “Os dois ou o inglês horário que todos tinham disponibilidade. Mas, ao chegar
maquinista”, em que Martha fazia um papel e estava para a aula, encontravam sempre atos de vandalismos, e
muito bem — era de fato talentosa —, lembro de vê-la a escola também servia de abrigo para moradores de rua.
muito orgulhosa. O que não durou muito, pois ela não via
Tenho boa memória de como eram os tempos do Centro
futuro ali. Já os jornais deram até crítica desta montagem
Cultural do Padre Leeb, a capela que havia sido trans-
tecendo elogios aos atores e, claro, à iniciativa de Guti.
formada em teatro era aconchegante e todo o espaço
Martha chegou a fazer mais um espetáculo com o grupo, era bem administrado e limpo. Nada disso tinham ali,
o que lhe custou ter de sair de casa. Esse se chamava e o Guti sempre conta, ao lembrar dessa época: “O ser
“Biroska”, era o terceiro espetáculo do grupo, e eu conti- humano é assim, vai se acostumando com as coisas,
nuava, agora já com 15 anos, como plateia, assistindo aos com tudo. Mas apesar de nos acostumarmos com tudo,
espetáculos, e poderia substituir a qualquer momento há coisas na vida que não devemos nos acostumar. Por-
um dos atores. Nesse tempo, o grupo começava a rece- que a gente encontrava bosta na porta todo dia e teve
ber crianças e adolescentes, que realizavam, além das dia que já nem tirávamos mais, pulávamos a bosta e
peças, um programa de auditório no centro cultural, cha- assim começava o ensaio. Até um dia que não deu mais
mado “Show das cinco”, porque o público infantil crescia e nós fomos embora da Djalma Maranhão.”
cada vez mais. O show tornou-se muito popular.
Pouco tempo depois, ouvi dizer que no pátio da Escola
Nesse mesmo ano de 1989, o Centro Cultural do Padre Municipal Almirante Tamandaré acontecia um novo pro-
Leeb fecha as suas portas e o Nós do Morro fica sem grama de auditório destinado a toda a família e que se
sede. Eu, como plateia, perdi meu teatro de fim de chamava “Show das sete”. Acontecia uma vez por mês.
semana. Passei a fazer outros programas e desliguei Demorei a aparecer, mas depois que fui a primeira vez,
minha cabeça do teatro. Minha irmã, para felicidade da não faltava mais. O “Show das sete” acontecia todo
minha mãe, trocou de namorado e já não se interessava sábado e o Nós do Morro tinha uma sala fechada no
mais em ser atriz, o que até hoje penso que poderia ter anexo da escola, por todos carinhosamente apelidado de
sido uma carreira promissora. O grupo começava uma Castelo de Greyscow. O show era muito divertido, tinham
difícil peregrinação de dois anos e ficou sem lugar para números preparados pelo grupo, que nessa época tinha
as apresentações, foram tempos difíceis mesmo. Che- aulas com Zezé Silva, hoje nossa diretora, pois ela havia
guei a pensar que estava extinto. Durante esse tempo se juntado ao Guti no momento da perda do espaço e
(fiquei sabendo depois dessas histórias porque foram fora fundamental na não desistência dele. No “Show das
muito marcantes para todos que as viveram e me foram sete” os dois preparavam as cenas e nutriam o desejo de
contadas assim que entrei no grupo) o primeiro lugar a montar um novo espetáculo, que inauguraria o teatro do
lhes abrigar foi a Escola Djalma Maranhão, uma escola Vidigal. Ainda sem um lugar específico para ser cons-
municipal que havia sido recém-inaugurada na avenida truído, era apenas um sonho, uma ideia.
120 Meu destino era o Nós do Morro Meu destino era o Nós do Morro 121

Voltei a ser convidada para o “Show das sete” por um escola não favorecia as cenas, por conta da péssima
ex-namorado que vinha cantando em uma banda cha- acústica: trabalhavam a mímica e as dublagens também
mada “Papel de seda”, formada por integrantes do teatro. por limitação de realização.
Agora o show era semanal e acabei passando por lá em
Enquanto ouvia tudo aquilo, pensava que, mesmo com
um sábado. Fiquei muito tempo na rua esperando, porque
as dificuldades, era um trabalho muito legal. Contou
o “Show das sete” começava às oito em ponto, já havia
também que muitos integrantes começavam a se des-
até virado slogan. Às vezes, o atraso podia ir até nove.
ligar do grupo por não estarem inseridos no elenco da
Aquele foi um desses dias. Atrasou mais que o costume,
peça que eles ensaiavam sem data prevista para estrear,
mas valeu a pena. O show era muito bom, com muitas
com encontros duas vezes por semana. Os outros dias
apresentações da comunidade, que comparecia em peso.
eram dedicados ao “Show das sete”. Ele se interessou
Fazer o show semanal tomava muito o tempo de todos em falar comigo, porque a Marcia havia lhe contado que
e os ensaios do novo espetáculo sofriam. Algumas pes- eu fazia um curso de teatro no Planetário da Gávea.
soas também se sentiam insatisfeitas, por não esta-
Não tinha muito tempo que havia começado. O curso
rem no elenco do espetáculo, que não comportava
era aos sábados. Minha mãe achou a ideia de fazer tea-
tantos atores como um show. Nessa época, o Guti já
tro muito sem propósito, mas como o dinheiro era meu,
trabalhava com uma nova turma. Restavam poucos da
então ela dizia: “Você está trabalhando e não pode atra-
época do Padre Leeb.
palhar seu ano na escola.” Foi a única coisa que pro-
Ao mesmo tempo, todo mundo ouvia falar desse fenô- nunciou sobre a minha decisão de fazer esse curso, que
meno no pátio de uma escola e muitos artistas que ainda tinha a promessa de uma montagem no fim do ano. Mas
habitavam os prédios na subida do Vidigal, foram par- teve problemas, saiu do Planetário, ficou parado e teria
ceiros deste show. Televisões fizeram registros e produ- de arrumar outro espaço para as aulas.
ções de cinema se aproximavam do grupo. Saíram, para
Estava terminando o segundo grau e naquele ano fiz as
fazer filmes, os primeiros “meninos do Guti”. Fomos
provas para a UniRio, fui até a banca avaliadora. Mas
chamados assim durante muito tempo. E sempre tive-
não deu em nada. Na minha memória, ficou apenas o
mos orgulho disso. Ser chamado assim era sinônimo de
olhar entediado da banca enquanto representava o tre-
que nesses se podia confiar, eram talentosos e discipli-
cho escolhido por mim de o “Jardim das cerejeiras”. Uma
nados. Lucio Andrey, que já era na época um dos talen-
pena. Começava a se dissolver o sonho de entrar na facul-
tos do grupo, atuou em filmes como “Veja essa canção”,
dade. O mês passou e o Lucio foi até a minha casa, sem me
de Cacá Diegues, e programas de TV. Um dia, na festa
encontrar. Cheguei tarde e ele havia deixado um recado
de casamento do irmão da Marcia, uma amiga de escola
com a minha mãe. Ao ouvi-lo, apesar da euforia, agi natu-
e prima de Lucio, ele me contou um pouco sobre a difi-
ralmente como se aquelas palavras não tivessem acen-
culdade do grupo e o medo de fazer o “Show das sete”.
dido qualquer coisa dentro de mim: “O Guti quer falar com
É que nesses anos crescia na favela o poder do tráfico, e
você, pediu para aparecer segunda ou terça-feira.” “O que
juntar pessoas em um local foi ficando muito arriscado.
ele quer?” — ela indagou rapidamente. Eu fui evasiva:
Também porque só tinham aquele espaço, e o pátio da
“Vou ver o que é.” E ela: “Olha lá o que vai me arrumar.”
122 Meu destino era o Nós do Morro Meu destino era o Nós do Morro 123

Eu, mais que rapidamente, mudei de assunto. No dia anos atrás. Mas, mesmo cheia de receio, cheguei e de
seguinte, fui procurar o Guti no famoso Castelo de Greys- cara comentei sobre o convite com ela, que se limitou a
cow. O espaço era muito apertado, também úmido e com dizer: “Olha lá!”
muitos figurinos e adereços. Ao atravessar a portinha,
No dia seguinte, estava lá na hora marcada para o
mais se parecia uma caverna, e entendi o apelido na hora.
ensaio. Os dois dias de ensaio passaram a ser três, qua-
O Guti mostrou-se feliz em me ver, sempre nos encontrá-
tro... Todos os dias. Quando não tinha ensaio, estava
vamos na rua e conversávamos, ele gostava de mim, me
envolvida com algum número que seria apresentado
achava uma menina de atitude. Mostrou-me o espaço e
no próximo “Show das sete”. É difícil dizer o que isso
contou os planos de transformá-lo em um teatro. E falou
significou e o que significa para mim até hoje. Mudou
que precisava substituir uma atriz no espetáculo, ainda
minha vida? Claro que sim. Muitas vezes, em momentos
sem prazo para estrear. Nasci em família mineira, sou por
ingratos, disse:
natureza desconfiada, e com tanta gente para chamar,
por que eu? Guti então falou das dificuldades de ensaiar “Sim, mudou minha vida, me tornou mais dura. Sem
só em dois dias na semana, que nem todos estavam inte- nenhuma garantia! Artista pra quê?” Logo depois do
ressados em fazer um espetáculo de Machado de Assis, desabafo, sempre encontro o porquê: Para não calar
coisas que o próprio Lucio já tinha me dito. Disse também nunca, para mudar o rumo das coisas, para contestar,
que o Lucio falara sobre mim, que eu fazia teatro. Tentei para discutir, para alertar, para transformar, para acal-
interromper para dizer que eu apenas iniciara um curso mar minha inquietude, para sentir-me viva a cada dia.
há pouco tempo e, claro, sonhava em ser atriz e estava Essa é minha pulsão como artista.
prestando vestibular para teatro na UniRio, mas estava Os ensaios começaram a esquentar. O Paulo Tatáta (Luiz
nessa vida há apenas quatro meses. Ele me estendeu Paulo Corrêa e Castro, nosso dramaturgo) nos dava aulas
o texto que chamava “O bote de rapé” e disse: “Lê um de literatura e contextualização histórica. Líamos peque-
pouco.” Apresentou-me a Zezé e então eu li. nos trechos de outras obras de Machado de Assis e às
— Então, você fica pro ensaio? vezes de um autor contemporâneo. Isso nos ajudava a
— Gostaria de começar amanhã, pois não avisei à entender mais profundamente aquelas personagens.
minha mãe. Zezé Silva tinha conosco encontros de leitura dos textos,
com cuidados na dicção. Não era fácil para nós, jovens
Despedimo-nos com a confirmação de que eu viria para
atores, porque estávamos todos entre 14 e 20 anos e desa-
o ensaio. Caminhei direto para casa, sem querer che-
fiávamos o português do século XIX. Algumas vezes ela
gar, porque tinha de tomar uma decisão. Não, eu já havia
também se ocupava em extrair dessas personagens um
tomado a decisão quando respondi: “Gostaria de come-
lado não mostrado no texto. O dia da dor de barriga, como
çar amanhã, pois não avisei à minha mãe”. Será que eu
ficava depois de gozar, de mau humor, com cólica. A Zezé
deveria demorar um pouco para falar? Não sei. Milhões
é uma criatura muito interessante, quando ela vibra com
de coisas passavam na minha cabeça, em especial as
uma coisa, ela vibra mesmo, seja uma cena, um gesto, o
brigas que ela teve com a Martha por causa do teatro,
que for, é bom vê-la vibrar! O Guti trabalhava conosco o
Meu destino era o Nós do Morro 125

cotidiano do personagem, a movimentação em cena, sua


memória e a encenação. Vivia meu primeiro processo de
montagem. Eu estava tão feliz! Não tinha muito tempo no
grupo e sentia a evolução, me sentia cada vez mais inte-
rada ao ofício de atuar.
Na creche, a tia Lu ia bem. Continuava trabalhando com
remuneração, e isso acalmava a minha mãe. Com alguns
meses de ensaio, tivemos uma reunião com o Fernando
Melo da Costa e o Fred Pinheiro, cenógrafo e ilumina-
dor, respectivamente. Também fundadores do grupo.
Embora já tivesse ouvido Guti falar deles, desde minha
chegada os dois estavam em viagem na montagem da
peça “Adorável Julia”. Todos trabalhavam com a Marí-
lia Pêra. Recebemos influência direta de sua maneira de
trabalhar. Naquela noite, horário em que se davam nos-
sos encontros, o papo girou em torno da construção do
espaço. Já havíamos cavado bastante, principalmente
o espaço do palco, mas era preciso ainda terminar as
paredes e colocar a laje, que levou uma noite inteira,
com apenas dois pedreiros fazendo o que era preciso e
um curioso de ajudante, e todos cobrando apenas o que
não dava para fazer de graça. No dia da laje, estavam
todos movidos pelo álcool para dar coragem de enca-
rar a luta. Nós havíamos ensaiado à tarde, e, ao término
do ensaio, os meninos foram colocar para mais perto do
teatro a areia e as pedras doadas pelo seu Diniz, que na
época era dono de uma casa de material de construção e
nos ajudou muito. Nós, as meninas, fomos até a casa da
Sabrina, onde sua avó, Dona Antonia, cozinharia o jantar
dos homens que virariam a laje.
O Lucio, por exemplo, nessa virada de laje, ganhou um
desvio na coluna que até hoje deve lhe trazer problemas.
Para conseguirmos a laje e tudo mais que era preciso
para estrearmos, ainda faltava dinheiro. Precisávamos
126 Meu destino era o Nós do Morro Meu destino era o Nós do Morro 127

fazer dinheiro. O Guti em seu discurso da noite nos disse Eu era responsável por ensaiar as meninas. A cada fim
que tínhamos de ter ideias para fazer o “Show das sete” de semana sairiam duas. Tivemos 20 candidatas, entre
pegar fogo. Estávamos começando a ter problemas com elas Cintia Rosa e Rosana Barros, que se tornaram atri-
o tráfico, não que estivesse ali ameaçando ou insultando zes de suma importância para a companhia de teatro
alguém, mas sua presença sempre gerou risco de con- Nós do Morro. Naquela semana, passei quase todos os
fronto e afastava o público. O Vidigal havia tido confli- dias, depois do trabalho na creche, na casa do Guti, que
tos entre traficantes e policiais. Sempre que isso acon- era o escritório do grupo Nós do Morro, assim como o
tece, as manifestações na favela ficam prejudicadas, as quarto da Zezé, também compartilhado por mais dois
pessoas ficam temerosas. Chegamos a pedir, algumas irmãos, que por amor a ela e a causa, ajudaram, ligando
vezes, para alguns traficantes não entrarem armados no para vários cursos de modelo. Até que a Monique Evans
show. Por algum milagre divino, éramos atendidos. Eram atendeu, e Guti rapidamente a convenceu a dar uma
outros tempos. Nos quais você podia, com apenas 15 bolsa na Maison Monique para a escolhida. De olho nos
jovens, realizar um evento com média de público de 500 olhos dele e vendo-os vibrar a cada recepção positiva do
pessoas. Sem a segurança do Estado. outro lado da linha, pensei: Ele está certo. A gente tem
de arriscar. Arriscar sempre. O Guti sempre nos incen-
Após o conflito, o público andava mirrado, tínhamos de
tivou e cobrou muita coragem. Porque ele é otimista.
ter uma atração incrível. Surgiu então a ideia de fazer um
Isso eu herdei dele. E também a passionalidade. Mas
concurso de miss. Seria o Garota Vidigal Verão 95, que
nos dias de hoje ele jura estar se tornando um mate-
chegou a trazer para o pátio, na final do concurso, 800
mático. Todos nós, em especial a turma que esteve com
pessoas, deixando até torcida do lado de fora. A comu-
ele durante esses vinte e três anos, pelo menos quinze,
nidade já tinha uma cultura de concurso de beleza. Con-
temos características em nossa personalidade, que são
vidamos a Virgínia (aquela amiga dos tempos de ginásio),
reflexo dele, assim como de um pai. Alguns até mais do
garota Vidigal, eleita em concurso de 92, para participar
que com a própria família.
e passar a faixa. No dia que anunciou o concurso, imedia-
tamente, Guti disse: “Vamos dar uma bolsa numa escola A final do Garota Vidigal Verão 95 premiou, com uma pla-
de modelos de uma pessoa muito famosa!” O público teia inteira gritando “Linda!”, uma mistura caribenha de
vibrou. Eu vibrei. Pensei: “Ele conseguiu alguém!” Ainda pele como canela em calda. Ela foi fazer o curso e fazia
na boca da cena, ao me afastar para deixar entrar a atra- sucesso na agência, mas estava envolvida emocional-
ção seguinte — as Fogueteiras do 14, que dançariam mente com um cara não bem intencionado, que em algum
“Vou dar a volta no mundo”, de Daniela Mercury —, per- momento a deixou com queimaduras nas pernas. Depois
guntei e mais ouvidos além do meu se fizeram atentos: disso, ela se mudou, incentivada pela família. Nunca
“Guti, de quem é o curso?” E ele: “Não sei. Mas a gente mais soube dela. Nós ganhamos com o concurso: a laje,
vai arrumar.” Essa foi, para mim, a primeira prova do o emboço no buraco da cabine de som, que cavávamos
quanto ele podia ser louco. Acreditando, de verdade, na com ponteiras já havia vários meses, e também finali-
sorte de quem caminha pelo bem. Eu não tinha alterna- zamos o fundo do palco. O Fernando tinha um apoio dos
tiva senão acreditar também. E acreditei.
128 Meu destino era o Nós do Morro Meu destino era o Nós do Morro 129

cenotécnicos de um galpão, que iriam construir o palco. boas. Até mesmo uma temporada de duas semanas com
Mas obra de pobre parece que não acaba nunca, ainda fal- “Os dois cavalheiros de Verona”, no Barbican. O Nós do
tavam um camarim, um banheiro, e tínhamos de estrear. Morro esteve em Londres por duas semanas. Durante o
tempo em que a peça era apresentada, dois atores do
Nesse meio tempo, tivemos oficinas de figurino, ilumina-
Nós, André Santinho e Ninho (William de Paula Lucas),
ção e cenografia. Eu me lembro das mãos de todos cheias
foram convidados para uma montagem de ”A tempes-
de bolhas de tanto trançar as cadeiras de sisal para o
tade”. E o filme “Neguinho e Kika”, com presença de seu
cenário; a tarefa era quase um castigo. Ensaios, constru-
diretor Luciano Vidigal, era exibido em mostra brasileira
ção de cenários, obras, pinturas, figurinos. E as parce-
promovida pela embaixada. Parece um release para a
rias começaram a crescer. Travamos o primeiro contato
imprensa, mas é incrível, e a verdade é que tudo nasceu
com o Royal Shakespeare Company, por meio de Domi-
ali, naquele dia que a arte teve de se antepor às palavras.
nic Bater, que em visitas posteriores ao Nós do Morro
No final daquele primeiro dia, o presente. Eles olharam o
ministrou oficinas da técnica Alexander, o que nos aju-
espaço e Fiona falou que poderiam doar uma mesa de luz:
dou muito na busca da consciência corporal e de domí-
A luz! Estávamos vendo a luz! Dávamos mais um passo
nio dos movimentos. Na primeira visita dele com Fiona —
rumo à realização do sonho de estrear um espetáculo em
coordenadora do projeto Fórum Shakespeare —, o teatro
um teatro na própria comunidade.
ainda estava em obras. O Fórum Shakespeare aconteceu
nos três anos seguintes, dentro do CCBB, sempre com Estávamos já no meio do ano de 1995 quando conhece-
participação do grupo de teatro Nós do Morro. Era assim mos Rosane Svartman, cineasta, recém-formada na UFF,
que nos denominávamos na época. Hoje nos tornamos uma menina, tinha a idade de alguns jovens do grupo, mas
um grupo cultural. O grupo Nós do Morro. ao chegar foi tão forte e tão determinada que se tornou
nossa mestra. Rosane conheceu o grupo num trabalho
No dia marcado para a primeira visita, esperamos os
em que fazia assistência de direção para um filme cana-
gringos a manhã inteira. O Guti, na noite anterior, fizera
dense, que tinha várias crianças do Vidigal. Ela havia feito
discurso dizendo que os caras eram britânicos e então
um projeto para documentar o grupo em sua estreia no
ninguém poderia se atrasar. Nesse dia, os ingleses se
novo espaço. O Guti quando acompanhou os meninos no
atrasaram. Quando chegaram já estávamos desanima-
teste, tinha contado a Rosane um pouco da história. Ela
dos, achando que não viriam. Ficamos nervosos. Eles
então o procurou novamente com o projeto de documen-
falavam mal português, e nós entendíamos quase nada
tário. Ele topou. Como recusar? Mas Rosane sumiu. Achei
de inglês. Somados não completaríamos uma frase. Foi
que não daria em nada. O projeto foi aprovado pela Rio-
tenso. O Guti falou sobre o processo da obra, às vezes
filme e eles voltaram, agora não só a Rosane, mas toda
era ajudado pela mímica, contou também um pouco da
sua equipe. O Vinícius Reis, diretor do filme, foi então
história do grupo até ali. Um mágico. Apresentamos um
apresentado ao grupo, e iniciou-se a pesquisa para filma-
trecho da peça que estávamos ensaiando. Foi emocio-
gem do “Testemunho Nós do Morro”. Toda vez que eu vejo
nante. Fizemos ali uma parceria maravilhosa que se per-
o filme, lembro do quanto éramos loucos.
petua. Esse encontro já se desdobrou em tantas coisas
132 Meu destino era o Nós do Morro Meu destino era o Nós do Morro 133

Foi graças a esse projeto que ganhamos uma mesa de Começamos a ensaiar outra peça assim que estreamos
som e foram feitos os arremates de piso e pintura para o “Machadiando”. Guti não queria intervalos entre uma
a tão sonhada estreia se realizar. As gravações come- montagem e outra. O que não foi possível, mas após
çaram no início de setembro. Uma experiência nova. Os poucos meses sem apresentações no teatro, “Abalou”
ensaios estavam apertados, o teatrinho, como passou estreou. Eu fazia nesta peça um personagem muito
a ser chamado o Castelo de Greyscow, estava quase importante na trama, mas como uma das característi-
pronto. Fechamos a data de estreia que, para coincidir cas da direção do Guti, que tem paixão por muvuca no
com as datas que Vinícius precisava rodar suas cenas, palco, todos eram importantes. Até mesmo os persona-
foi marcada para 22 de setembro, uma sexta. Meu depoi- gens que em maior parte do tempo faziam corpo de baile.
mento e o encontro com a Claudia Abreu, surpresa do Para esse espetáculo, era preciso que todos estivessem
diretor, aconteceram na mesma semana. Era a primeira em todos os ensaios, não era fácil fazer escala de atores
vez que tinha de encarar a câmera. Além da equipe, esta- e cenas, pois ensaiávamos praticamente todos os atores
vam alguns integrantes do grupo que naqueles dias os em todas as cenas. Muitas horas de ensaio, muitas bri-
acompanhavam por todos os lados. Esperei muito essas gas, muita entrega, muitos momentos de criação e bus-
filmagens, estávamos nesse papo desde maio, mas só cas artísticas. Foi preciso amor e vocação para levan-
tive no set nesses dois dias e no dia da estreia. tar o “Abalou”. Mas o espetáculo funcionou. Ele fervia na
temperatura certa. Tudo se encaixava, mas a engrenagem
Naquela semana demos o passo mais importante para
tinha de estar completa. O teatro é pequeno, mas carrega
nós, inaugurar o espaço que nos possibilitaria a expe-
seus artifícios. O principal deste palco é um alçapão. De
rimentação teatral com palco garantido. A temporada
onde surgiam Pilantra e Lagartão — os Mcs que colo-
foi um sucesso. A peça foi indicada ao prêmio Shell de
cavam o palco e a plateia para dançar. Um baile. Crítico,
teatro para categoria especial e ganhou. Na noite da
debochado. Com um bom texto de Luiz Paulo Corrêa. Este
premiação, faltou luz no morro, na hora de me produzir
espetáculo ficou por muito tempo em cartaz.
e arrumar a roupa. Por sorte, meu vestido não era feito
de um tecido que precisasse passar, mas essa não era Passamos novamente por muitas mudanças no corpo de
a sorte de todos. A arrumação e a maquiagem tiveram atores. Como manter um grupo de jovens que está ini-
de ser feitas no escuro e no escuro descemos o morro. ciando sua vida adulta — todos duros, sem dinheiro de
Ao chegar ao teatro João Caetano, onde aconteceria a família, alguns com famílias que passam por necessida-
entrega do prêmio, os fotógrafos se agitaram quando des básicas em casa — neste espetáculo cheio de possi-
pisamos no tapete vermelho. Mas, ao perceber que não bilidades, mas sem nenhum dinheiro? Esse será sempre
havia entre nós algum famoso, desligaram tudo e vol- o grande problema para o artista: se sustentar. Da peça
taram a seus postos. Não demorou muito e lá dentro, “Abalou”, tenho lembranças de todos os tipos. Naquele
quando fomos anunciados como ganhadores, todos momento, o Nós do Morro já fazia parte da minha história.
subiram no palco. Foi emocionante demais! Ficávamos Estava no túnel e queria seguir. Estreamos o espetáculo
olhando aquele prêmio, que foi para nós como uma iden- que foi um sucesso, o público se identificou, a casa vivia
tidade. A partir daquele momento, passamos a existir
para a classe como grupo teatral.
134 Meu destino era o Nós do Morro Meu destino era o Nós do Morro 135

lotada e a plateia de fora do Vidigal subia até o mais novo pedagógico, para aproveitar minha experiência na cre-
teatro off do Rio de Janeiro para assistir a um fenômeno che. Adoro estar em turma, me divirto até com as bri-
teatral, como alguns jornais chegaram a dizer na época. O gas. Porque para viver em turma devemos exercitar a
sucesso do “Abalou” foi como fincar uma bandeira em um tolerância. Essa é uma das palavras de ordem.
território e dizer: Nós existimos e viemos para ficar.
De tanto minha mãe pedir que eu me formasse profes-
Nessa época, o Guti tinha jovens adultos que estavam sora, o destino fez isso comigo. Aula é uma das tarefas
dispostos a apostar e, porque sejamos bem francos, as que me sustenta até hoje e que executo sempre com
condições já eram outras. Estávamos sendo procurados muito prazer, porque dar aula é uma troca, você aprende
com alguma frequência pelo cinema, mais estrangeiro mais do que ensina. Começamos com uma turma e no ano
do que brasileiro, que não vivia seu melhor momento seguinte tínhamos a nossa turma, mais umas cinco tur-
cinematográfico. Alguns de nós já tinham nove meses de mas de crianças e uma turma de adulto, a da Zezé. As duas
contrato. Nove meses de contrato na vida de um ator é turmas se fundiam no espetáculo “Abalou”, que ainda
um sonho, um presente de Papai Noel. As crianças sem- estava em temporada. Nos fins de ano havia as monta-
pre foram as mais procuradas, ficamos conhecidos por gens. Cheguei a fazer trabalhos de texto e montagem
fabricar os melhores moleques de rua e trombadinhas com processos muito interessantes com essas turmas.
que o cinema e a TV já viram. Todos tinham casa, escola, Na maior parte desse tempo, dei aula para adolescentes
alguns poucos problemas, outros muitos problemas, e sei que os influenciei em muitos aspectos. Existem até
aulas de teatro uma a duas vezes por semana, e dois mesmo aqueles que se tornaram os “filhos da Luciana”.
meses de montagem com ensaios todo dia. Com um bom
Nessas aulas ensinava o teatro, apresentava-lhes tex-
texto ou um bom circunstanciador, fariam qualquer per-
tos clássicos, construía referências, discutia o mundo,
sonagem: príncipe, sapos, dragões, crianças possuídas,
os preconceitos, a vida em família, opções sexuais, a
robôs. Era só dar corda.
comunidade onde morávamos, suas possibilidades nesse
Existia, enfim, algo que me inspirava a cada dia: dar mundo. Esse espaço era para muitos desses adoles-
aulas. O processo de me tornar monitora me fez apren- centes o único lugar onde podiam verdadeiramente se
der e me deu oportunidade de pesquisa e exercício. expressar. Surgiram textos muito bons ali, acho até que
Tinha a necessidade de colocar as crianças que cres- deveríamos nos esforçar, resgatá-los e reuni-los em uma
ciam cada vez mais como plateia. Precisávamos inseri- coletânea. Daria certo trabalho, já que a maior parte era
las naquele processo de aprendizagem e descoberta. feita a mão ou em máquinas de escrever e, claro, nunca
Também começávamos a perceber que, quanto mais possuía muitas cópias. Naquele tempo, já tinha cinco
cedo tivessem contato com aquele universo artístico, anos de grupo, duas peças e trabalhava no processo de
mais chances elas teriam de uma mudança verdadeira. um novo espetáculo chamado “Burro sem rabo”, quando
O Lucio deu a ideia de abrir uma turma de crianças. Por fui contratada por uma novela, um papel muito pequeno,
sugestão da Zezé, dividiríamos a turma para que eu mas a garantia de um salário fixo. Logo não deu mais para
ajudasse o Lucio com um pensamento um pouco mais conciliar o emprego da creche com a vida de artista.
136 Meu destino era o Nós do Morro

O grupo foi convidado para se apresentar na Casa de Cul-


tura Laura Alvim, com o propósito de montar três espe-
táculos: “Machadiando”, que havia ganhado o Prêmio
Shell, categoria especial para teatro. O “Abalou”, que
indicou Mary Sheyla de Paula, a primeira atriz do grupo a
ganhar destaque em papéis não só na TV, mas no cinema
e em outros espetáculos teatrais, ao prêmio de melhor
atriz, além de indicações para a coreografia de Johaine
Ildefonso e para o texto de Luiz Paulo Corrêa e Castro.
E um novo espetáculo, que deveria ser infantil, devido
ao horário da sessão. O que caiu como uma luva para
o grupo naquele momento, pois estávamos com algu-
mas crianças em seu terceiro e quarto ano de exercí-
cio teatral. Seria um infantil feito também por crianças.
Foi feita uma seleção nas turmas e tínhamos um grupo
muito interessante: todos entre 8 e 12 anos.
Tínhamos quatro meses para remontar os dois e criar o
infantil. Alguns atores estavam nos três espetáculos.
Outros, além de se revezarem em vários papéis, ainda
faziam parte das equipes técnicas. Foram tempos sem
sol, sem festas, sem passeios. Era trabalho dentro do
casarão dia e noite. Um internato. Já tinha participado
da criação e montagem dos últimos figurinos, assis-
tindo à Fernando Melo. Mas desta vez precisava de uma
equipe de figurinistas, porque era preciso remontar muita
coisa e ainda criar um figurino novo. Veio, então, a esti-
lista Luiza Marcie, hoje dona da marca Colecionadora, a
convite e por indicação de Leonardo Ribeiro, um pintor de
arte, designer português, com sotaque bem carregado,
que fazia um intercâmbio informal com o grupo desde o
meio do ano. Ela fazia figurino em filmes, já havíamos nos
encontrado em um set de filmagem, em que eu acompa-
nhava uma criança que deveria ter sido avisada que era
necessário levar um sapato preto, de festa. Quase todas
as crianças nesse filme eram do Nós do Morro. Ela estava
138 Meu destino era o Nós do Morro Meu destino era o Nós do Morro 139

enlouquecida, debruçada sobre um enorme saco de Guti procurou saber sobre uma casa branca que ficava
sapatos, quase histérica. Entraram com os sapatos que no Vidigal e estava fechada há muito tempo. Descobri-
tinham e eu emprestei minha bota para um deles. Estáva- mos que a casa tinha dívidas de IPTU e a Prefeitura iria
mos nos vendo então pela segunda vez, mas já tínhamos quitá-la e nos alojaria. Nunca mais saímos.
plena certeza de poder trabalhar em equipe.
Na mesma época, por sorte e por mérito também, o João
A Luiza fazia uma pesquisa com materiais recicláveis Madeira chegava ao projeto e nos dava aulas de His-
e principalmente com o plástico. Começamos a assis- tória da Arte. E trazia para o Nós um apoio material da
tir ao ensaio da peça e ter conversas em que partici- Coca-Cola: mesas, quadros, móveis de escritório e uma
pavam também o Fernando e mais alguns assistentes: pequena verba. Isso aconteceu durante a temporada no
Marcio Lopes, Gorette Bezerra, Bruno Maldonado e Isa- Laura Alvim. Todos os monitores, que eram os atores
bele Souza. Todos entre 13 e 16 anos, alunos da primeira mais antigos da companhia, foram incorporados a uma
turma de crianças. folha de pagamento e eu sabia que teria R$150,00 por
mês. Era quase o valor do aluguel e já estava garantido.
A Luiza, com muita generosidade, nos ensinou estéticas e
Não se pode fingir para ninguém que escolhe ser artista
muitas vezes se surpreendeu com a criatividade com que
teatral outra realidade do que essa: aprender a viver
solucionávamos as coisas. Criamos para o espetáculo
normalmente abaixo do limite. Mas esse processo me
vilões que eram palhaços maus, além de extraterrestres
trouxe uma luz. Deveria aprender o máximo, sem des-
tristes e dois grupos de crianças guerreiras: um da beira
cansar e sem negar trabalho. Foram anos de mudanças
da praia, outro do asfalto suburbano. Era uma peça ins-
rápidas, que nos levavam, aos poucos, à realização do
pirada em super-heróis clássicos, e a principal questão
sonho de sobreviver como artista.
desse texto era o governador ter proibido a diversão e até
mesmo o Natal. Só de ver aquela criançada toda no palco Os pais, claro, ficavam preocupados, mas já tinham visto
já era animador. Este, sem dúvida, é um espetáculo que resultados que também os fazia acreditar mais: seus
ainda desejo ver filmado. É meu gosto pela ficção cientí- filhos em palco profissional, em participações em filmes
fica e aventura. São os goonies, de Spielberg, brasileiros. que sempre geraram um dinheiro para a casa, em via-
gens ao exterior.
Como em uma família, nem tudo são flores. Tínhamos
alguma verba para os três espetáculos, mas tínhamos Em 2000, entrávamos em outra era. Já no casarão, e
muitos problemas a resolver, muitos atores em todas sem pretender sair de lá, por conta de multas e IPTUs
as peças, cenários a serem adaptados ao espaço. Era a atrasados, continuávamos, e a Prefeitura ia deixando.
nossa chance de mostrar três trabalhos em um teatro Paramos a produção de “Burro sem rabo”, e agora, ao
nobre da cidade. Esse processo também marcou a nossa retomar a montagem, a ideia era fazer uma peça que
chegada ao casarão, que é sede do grupo ainda hoje. Era trabalhássemos o morro. Então, “Burro sem rabo” espe-
preciso um lugar maior que o teatro para montar os três rou mais um pouco, e foi resgatado um texto que, até
espetáculos e, ao mesmo tempo, a Prefeitura tinha con- então, tudo que existia dele era uma VHS feita por um
seguido um galpão perto da Rodoviária, mas como levar gringo amigo ainda da época do Padre Leeb, que a fez a
e buscar os atores, as crianças? Isso não daria certo. O fim de registrar aquele processo e buscar ajuda para o
140 Meu destino era o Nós do Morro Meu destino era o Nós do Morro 141

grupo. Começamos o processo de criação do espetáculo Naquele dia o elenco ensaiou meio deprimido. Cada
“Noites do Vidigal”. Definidos os personagens, eu tinha um ali sabia onde, quando e como havia caminhado até
um desafio tremendo. Interpretar uma senhora de apro- aquele momento. Os que tinham turmas não montariam
ximadamente 60 anos. E minha parceira de cenas, D. espetáculo, mas ainda assim dariam aulas e soma-
Eunice, que interpretava a mãe de Tião, minha comadre, riam as duas quantias de salário. Era o meu caso. Mui-
aproximava-se da idade de sua personagem, o que me tos ficaram apenas com o salário do espetáculo. Era o
deixava ainda mais exposta. Era bom, muito bom, mas caso da Joanna, Chuchu, minha comadre, que morava
o processo foi muito duro. Ao mesmo tempo que sentia comigo. Fui para casa depois do ensaio e precisava
o meu desenvolvimento artístico — por meio do acú- tomar uma decisão. Iria lagar o espetáculo? Assumiria
mulo de saberes e das experiências que adquiri a cada então que todo aquele tempo de preparação teria sido
montagem —, senti também durante esse processo o para nada? Uma noite inteira de conversas e chegamos
pior momento da vida de um artista: aquele em ele deve a uma decisão: mudaríamos para uma casa mais barata
escolher comer ou viver da sua arte. para que sobrasse algum dinheiro para necessidades
básicas como pão, mortadela, cigarro, absorvente e
Assim que o patrocínio da Petrobras se confirmou, tive-
uma birita de vez em quando.
mos uma reunião e foi colocado ao elenco, que quem
tivesse vontade, desejo e interesse de fazer parte do Estreamos o “Noites no Vidigal” no dia 09 de maio, meu
“Noites do Vidigal”, deveria estar pronto e disponível para aniversário. Com o início do patrocínio da Petrobras, per-
ensaiar de oito a doze horas por dia. Já havia passado cebi que o envolvimento de vários profissionais renoma-
por isso, mas desta vez não estaríamos trabalhando em dos fornece um aparato de espetáculo profissional —
horários alternativos. Era preciso desligar-se de outros importante na qualidade de um todo. Foi o momento em
processos que pudessem atrapalhar. O Guti tinha razão, que o Grupo Nós do Morro deu um salto, com oportuni-
prezava pelo processo, era uma chance muito especial dade de investir o máximo na qualidade. Esta mudança foi
ter um patrocínio, poder estar novamente em um tea- rápida e o “Noites”, primeiro espetáculo depois do patro-
tro de circuito. Mas quando ouvi aquilo meu coração se cínio, ficou muito bonito, deu certo. Tinha lá uma dificul-
desesperou. Nunca havíamos passado por um momento dade ou outra. Mas era bem divertido. Estreia é sempre
assim. O que nos possibilitava ser ator era justamente a estreia. Mas estreia também é um misto de alegria e tris-
flexibilidade com que os ensaios e as aulas aconteciam. teza. É a hora que você percebe que fechou a etapa da
Quando foi anunciado o valor que se destinava ao elenco, montagem e da preparação. Da criação mais profunda.
foi um desespero geral. Havia sido reservado ao elenco Dali por diante estão presentes melhorias técnicas,
— a quem era pedido total entrega e disponibilidade — leveza ao viver a cena e o friozinho de todo dia, que é para
uma pequena quantia ao mês durante todo o projeto. Foi isso que se sobe ao palco. Mas está ali o fechamento de
um choque. Vão se perguntar se houve questionamen- um ciclo para o nascer de outro. Dá um vazio também.
tos. Houve, mas e aí? Na ponta do lápis não tiro a razão
Ficamos no Planetário por um mês, fizemos Sérgio Porto,
de ninguém. Éramos 46 atores em cena. Era uma opera-
duas semanas de SESC em São Paulo, e a peça cami-
ção matemática injusta.
nhava bem. Tivemos muitas críticas favoráveis a este
142 Meu destino era o Nós do Morro Meu destino era o Nós do Morro 143

espetáculo. “Noites do Vidigal” estreou também no Tea- ficar nem mais um mês sem receber nada e trabalhando.
tro Maria Clara Machado e recebeu crítica do jornal “O Finalizava o curta “Mina de fé” e não conseguiria parti-
Globo”, por Barbara Heliodora, que afirmava: “(...) temos cipar deste processo com a entrega de que ele necessi-
de tratar com o devido respeito o trabalho do Nós do tava. Naquela reunião me percebi tendenciosa a traba-
Morro (...). Há, em todo o espetáculo, uma alegria, um lhar mais na área de cinema.
humor, um orgulho do trabalho feito, que se comunicam
Olhava aquela turma, estávamos juntos havia tanto
brilhantemente com a plateia.” Surgiu para o espetáculo
tempo. A maioria queria de verdade ser ator, e alguém
uma oportunidade no teatro Leblon, mas o dinheiro do
tinha de se dedicar mais a área de cinema. Nada mais
projeto já havia acabado, e trabalharíamos por bilheteria.
natural eu querer investir nisso, já que ia ter a possibi-
Começamos a brigar muito também. A principal questão
lidade de estrear um filme. Não achem que foi indolor.
é que quem trabalhava como ator fora do grupo sempre
Não foi. Foi com muito sofrimento. Não participar dos
arrumou um jeitinho de fazer seus trabalhos, mesmo que
ensaios, não estar ali no convívio do dia a dia. Senti-me
isso às vezes prejudicasse um ensaio do outro, além de
muito solitária. Mas a vida corre rápido e você tem de
acarretar atrasos e faltas. Mas as pessoas que tinham
correr com ela. Na minha vida, depois de realizar um
emprego fixo ou trabalhavam em tempo integral não con-
curta, tudo estava mudado. Enquanto isso o Nós estre-
seguiam se dedicar totalmente ao grupo. Para alguns ali
ava o espetáculo “Burro sem rabo”, e eu sentada na pla-
a força de vontade foi mais forte que tudo. Fico feliz em
teia. Aquela posição era esquisita para mim. O espe-
saber que este elenco, em sua maioria, continua ator e
táculo é um dos meus favoritos. Olhava aquele corpo
hoje já consegue sobreviver desta arte. Uns com mais e
trabalhando e pensava. Nesse deu muito certo. A cena
outros com menos aperto. Mas sobrevivem.
não para, funde-se com a música, eles estão leves, estão
Quando a temporada acabou, voltei a trabalhar com dançando e cantando melhor do que nunca. Claro: ali
mais frequência, dando aulas em cursos ou assistindo a estava um corpo que completava seu sétimo ou oitavo
alguém no figurino ou na produção e direção. E ganhei o ano de trabalho junto e mais de dez anos de convivência.
edital da Riofilme para realizar o curta-metragem “Mina Estavam maduros. Lindos!
de fé”. Filmei e, ainda em processo de montagem, iniciei
“O beijo roubado é o beijo mais doce que existe no mundo,
novamente os ensaios criativos do espetáculo “Burro
mesmo que seja uma fração de segundo.” Este é um tre-
sem rabo”. Partimos de partituras já criadas. Seria o
cho de uma música do espetáculo de uma cena deliciosa
próximo espetáculo a ser montado. Com alguns meses
feita por Cíntia Rosa e Roberta Santiago. Comecei a cho-
de processo, tivemos uma reunião para firmar o elenco
rar ali, não parei mais, estava muito emocionada. Cho-
deste novo projeto que se daria da mesma maneira do
rei também num misto de alegria e saudade, muita sau-
outro: início sem salário, mas o grupo via a possibilidade
dade. Mas eu sabia que a decisão que havia tomado era
de criar uma companhia que pudesse receber perma-
acertada. Enquanto eles ensaiavam e levavam mais um
nentemente para criar espetáculos. Eu caí fora nessa
espetáculo para a rua, eu levava, com o curta, o Nós do
reunião. Vi o olhar do Guti entristecer, mas fui clara. Não
Morro para a tela e pelo mundo. Cumpríamos cada um o
estava dando para mim. Estava com 28 anos. Não podia
144 Meu destino era o Nós do Morro Meu destino era o Nós do Morro 145

seu destino. O projeto cresceu muito, principalmente na muito orgulho, e também com abertura de estabelecer
excelência de formar atores, e isso faz com que o número conversas e avaliações críticas com o grupo. No último
de pessoas que procuram o Nós do Morro abertas a des- espetáculo, voltamos a Machado de Assis com uma
cobertas seja cada vez menor. A maioria já chega deter- adaptação de “O alienista”.
minada a ser ator, é uma pena. Não tenho nada contra
Meus amigos me fazem chorar quando estão no palco.
os atores, longe disso, se isso fosse verdade teria con-
Sempre me emociono. Nesse espetáculo, canta-se uma
tra mim mesma, mas sou adepta da frase “Tenham outra
música, que para mim, virou hino do grupo: “Somos todos
profissão ou aprendam ao menos um ofício que não seja
malucos, pirados, da cuca lélé, e quem não é? E quem não
atuar.” Indispensável em minhas aulas ou palestras. É
é?” Pretendo continuar nesta loucura e vê-la dar cada vez
que o ator tem um campo pequeno de trabalho. E é sem-
mais frutos. E, claro, espero em breve poder ter o gosti-
pre preciso criar sua sustentabilidade para que possa
nho de subir novamente no palco sob a direção desse cara
continuar suas realizações.
que eu amo: Guti. Além de poder viver, com a minha famí-
Impulsionados pelo sucesso alcançado pelos meninos lia, mais momentos de loucura. Porque adoro estar do
do filme “Cidade de Deus”, chegam aqui muitos com lado desses doidos que vêm mantendo esse sonho vivo.
sonhos de se tornar uma celebridade artística. Sem se
dar conta que, no mesmo grupo de meninos que fize-
ram o filme, alguns desapareceram em pouco tempo ou
já não faziam mais nenhum trabalho. E ainda hoje, se
formos contar nos dedos — não vou dizer aqui os que
vivem da arte, porque esses são muitos —, os que vivem
exclusivamente de ser atores são poucos em relação à
quantidade de integrantes com mais de quatro anos de
grupo. Neste tempo tudo o que mais tenho aprendido
é me reinventar como artista, buscar maneiras de dar
vazão a minha criatividade, coletar recursos para criar
e transferir a outros os saberes que acumulei e tentar
arregimentar cada vez mais pessoas interessadas nessa
transformação intelectual que a minha experiência den-
tro do grupo me proporcionou.
Depois disso, tivemos mais três espetáculos: “Os dois
cavalheiros de Verona”, que teve até temporada inter-
nacional em Londres, apresentação no festival Shakes-
peare de Teatro, em Stratford-upon-Avon. E também
“Carmem de Tal” e “Machado a 3x4”. Assisti a todos com
146 Meu destino era o Nós do Morro Meu destino era o Nós do Morro 147
Cap.08
Uma geração de guerreiros
Uma geração de guerreiros 151

grau, antes dos 20 anos, e aceitava o destino do subem-


prego. Eu desejava mais. A saga do não estudo, por causa
da necessidade de trabalhar, já havia afastado meus pais
da escola e os jogado em empregos em que se trabalha
muito e ganha-se muito pouco. Eu não tinha a intenção
de repetir a história deles, pelo contrário, tinha obriga-
ção de dar à família uma melhoria de vida. No grupo me vi
comungando esse sonho com várias pessoas que queriam
mais do que o mundo da favela, que queriam o mundo, que
haviam sido despertadas pela arte:

No Nós do Morro encontrei uma segunda família, tam- AGATHA PACHECO, AGUINALDO AGUILAR (AGUI), ALE-
bém com direitos e deveres. Ao chegar, me deparei com XANDRE ALVES (XANDINHO), ANATILDA, ANDRÉ CUNHA
um grupo que já estava com o Guti havia uns três anos, (ANDRÉ SANTINHO), ARTHUR SHERMAN, BABÚ SANTANA,
ninguém da primeira turma. Enquanto adolescentes, BIJU MARTINS, BRUNO MALDONADO, BRUNO MARQUES
os pais não viam problema, era até muito bom saber (ABM), CARLOS ANDRÉ (CARECA), CINTIA ROSA, DÉBORAH
que o filho estava ocupado em uma atividade, mas tão
FRANCISCO, DELIS HERCULANO, DENISE FRANCISCO,
logo chegavam aos 18 anos, eram sempre pressiona-
DIEGO DIAS, EDSON OLIVEIRA, ELIELSON AMARAL,
dos a arranjar um emprego formal. Essa é uma luta até
FÁBIO BEZERRA (DOUG), FABRÍCIO SANTIAGO, FELIPE
hoje, travada pelo jovem que necessita estudar porque
PORTO, FLÁVIA FRENZEL, FLÁVIO FONSECA, GORETTE
deseja ter uma profissão que exige dele entrega por mui-
BEZERRA, GUILHERME ESTEVAN, GUSTAVO MELO, HÉLIO
tas horas ao dia, como ser um bailarino, um ator, um
médico ou um advogado. Estão fora da lista de profis- RODRIGUES, ISABELE SOUZA, JAQUELINE FERREIRA,
sões de direito ao jovem pobre aquelas que necessitam JOANNA COSTA (CHUCHU), JONATHAN HAAGENSEN, KIKO
uma entrega diária de estudo antes de começar a ganhar MORAES, LEANDRA MIRANDA, LUCIANO VIDIGAL, LUCIO
dinheiro. Nós tínhamos entre 13 e 25 anos, e depois veio ANDREY, LUIZ HENRIQUE, MARCELO MELLO, MÁRCIA
uma galera ainda mais jovem que nos fortaleceu. Cres- FRANCISCO, MÁRCIO LOPES, MARIA CORRÊA E CASTRO,
cíamos junto com o sonho. Na minha geração, o sonho MARY SHEYLA DE PAULA, MICAEL BORGES, PHELLIPE
de chegar à faculdade para os jovens pobres era remoto, HAAGENSEN, PIERRE SANTOS, RENAN MONTEIRO,
sem a existência do Enem e do sistema de cotas, que sem ROBERTA RODRIGUES, ROBERTA SANTIAGO, ROBERT
dúvida têm levado um número muito maior de jovens a PACHECO, ROSANA BARROS, SABRINA ROSA, THIAGO
universidade. Quando digo isso, estou falando do pobre MARTINS, VAMPIRO, WENDEL BARROS. GUIADOS POR
que viveu em favelas e sobreviveu do salário dos pais,
FERNANDO MELO DA COSTA, FRED PINHEIRO, MARIA
entre os anos 1990 e 2000. Durante essa década, a maio-
JOSÉ SILVA E TRADUZIDOS EM TEXTOS DE LUIZ PAULO
ria já havia abandonado os estudos ainda no segundo
CORRÊA. TORNAMOS-NOS OS GUERREIROS DO GUTI.

150
152 Meu destino era o Nós do Morro Uma geração de guerreiros 153

Uma geração de guerreiros da arte. Sabíamos que a trouxeram: aprender a exercitar minha cidadania, por
nossa sobrevivência como artista dependia do quanto meio da democratização dos bens culturais e intelec-
de munição estávamos dispostos a gastar nessa bata- tuais a caminho da igualdade social.
lha, e, devo dizer, não economizamos. Acreditamos nas
Compartilhamos a realização de pequenos sonhos, que
ideias do Guti e mergulhamos fundo na proposta de
para nós significaram a construção de uma vida e a pos-
fazer arte compromissada com a transformação social,
sibilidade de escrever nossa própria história. Após qua-
porque dependíamos também dessa transformação
tro ou cinco anos que havia ingressado no grupo, já tínha-
para a nossa própria vida. Nessa época, todo processo
mos nossa identidade, havíamos nos tornado o grupo
de aprendizado e busca era feito por meio das monta-
Nós do Morro. Um grupo cultural fundado na favela do
gens. Os nomes aqui citados são dos amigos que estão
Vidigal com a finalidade de dar acesso a quem não tem
há mais tempo dentro do grupo e com quem comparti-
acesso. Depois vieram muito mais pessoas interessa-
lhei processos criativos. Alguns deles não são atores e
das na experiência deste novo jeito de fazer arte. Veio
faziam parte de nossa equipe técnica; algumas vezes
o que chamamos de escola, que no fundo não é escola,
eu também fiz parte dela dentro do processo, agindo
mas um espaço de experimentação e de despertar para
somente fora do palco. Muitos desses nomes conti-
o exercício artístico. Vieram os professores, o caráter de
nuam na luta comigo até hoje dentro do grupo Nós do
aula, que na época, entre 1998 e 2000, só existiam com
Morro, outros foram buscar diferentes formas de luta
as crianças, por meio dos multiplicadores. Acompanhei
e exercício da arte. Mas tenho certeza da perseverança
os amigos que permaneceram e vi seus trabalhos como
que tiveram esses jovens, que foram guiados por uma
atores se desenvolverem dentro do grupo e fora dele.
certeza maior ainda de que é possível quebrar bar-
São, em sua maioria, atores muito exigentes com sua
reiras e fazer arte de qualidade estética e intelectual
atuação e extremamente talentosos, com ressalva de
com artistas pobres. De cada um, trago, além das lem-
um ou outro mais canastrão, mas o canastra é um tipo de
branças de tempos difíceis, mas incrivelmente praze-
ator necessário em uma companhia, porque há papéis
rosos, a herança do aprendizado da convivência e do
que só podem ser feitos por eles.
respeito mútuo, e muitas, muitas histórias para con-
tar nesses dezesseis anos de convivência. Dizer que Foram esses amigos que durante oito anos dividi não só
nunca brigamos é mentira. Somos um grupo, como já o palco, mas a vida. Horas a fio de ensaios juntos, ofici-
disse antes, uma família, temos interesses em comum nas, pequenas apresentações com a finalidade de divul-
e também interesses pessoais, que têm de estar de gar nosso trabalho. A primeira apresentação no teatro
acordo com o senso comum, sem prejudicar ninguém. do Vidigal, a certeza de que tínhamos construído história
Inúmeras vezes discordamos uns dos outros e muitas ali. A primeira vez em um palco fora do Vidigal também
vezes temos de aceitar decisões, por viver em demo- foi com eles, e a primeira crítica também dividi com meus
cracia e tentar fazer deste espaço um exercício dela. companheiros-irmãos. Passamos por momentos que
Para mim, foi esse o tesouro mais importante que todos nos uniram para sempre. Temos problemas semelhan-
os anos de convivência com esse grupo de pessoas me tes, pois todos ali vinham de famílias humildes, e não era
154 Meu destino era o Nós do Morro Uma geração de guerreiros 155

fácil caminhar e construir esse sonho. Mas a cada nova Era 1998, dez pessoas do grupo viajaram para Portu-
temporada nós nos superávamos, em parte porque não gal, e eu estava entre elas. Essa viagem era a segunda
estávamos sozinhos, tínhamos uns aos outros. parte de um intercâmbio, que tenho certeza ter sido
um passo muito importante para despertar mudança
O Nós conserva a Mostra de Teatro Nós do Morro, nome
em nossas vidas. Rosane Svartman articulou um pro-
criado em 2007, apesar de acontecer desde o primeiro ano
jeto com a comunidade europeia para fazermos um
que tivemos turmas além da companhia, os chamados
intercâmbio com jovens estudantes de outros países.
multiplicadores. No primeiro ano, tivemos uma peça, no
E a coisa aconteceu. Em janeiro, eles vieram para cá. E
segundo, três, no terceiro, seis, e só foi aumentando. Hoje
foi talvez a minha primeira grande experiência de vida,
chegamos a apresentar 18 turmas com trabalhos distin-
socialização, tolerância. No projeto havia muito mais do
tos. Mas era tudo organizado pela turma inicial. Reve-
que fazer cinema. Éramos jovens de cinco países dife-
závamo-nos em mutirão, atuávamos em áreas distintas
rentes: Brasil, Portugal, França, Alemanha e Colômbia.
um no espetáculo do outro, e todas as peças tinham a
Embora muito diferentes, as angústias humanas são
supervisão do Guti e dos outros diretores — cada um em
as mesmas, por isso devemos nos ajudar. Era carnaval
sua área de especialidade. Chegávamos a passar quatro
no Rio. Tenho certeza de que ficou gravado na memó-
meses trabalhando todos os dias para que a mostra se
ria afetiva de todos e de que essa experiência fez dife-
realizasse. Fazíamos tudo. Figurino, cenário, luz, trilha,
rença na maneira dessas pessoas verem o mundo. Foi
da concepção a operação nos dias de espetáculo. Muitas
troca de tudo. Havia os estudantes de circo do Chapitô,
vezes chegamos a fazer três sessões em um único dia.
os de comunicação colombianos, os não sei bem o quê
A arte nos unia, mas também nos unia a situação de alemães e um único estudante de cinema, um fran-
vida que tínhamos. Ali não era preciso fingir, todos se cês, que por pouco não casou no Brasil (Sabrina Rosa e
conheciam e conheciam a realidade de cada um, e nos Arnaud Bouquet namoraram durante este intercâmbio,
ajudávamos. Foi essa união que começou o grupo e nos e por meses depois) e por conta disso ele faz parte de
diferencia até hoje. Quando em cena, essa intimidade nossas vidas até hoje.
aparece, é viva. Olhávamo-nos e sabíamos o que estava
Essa viagem foi tão forte culturalmente para o grupo, que
por vir. Juntos, fizemos muitas conquistas, que se refle-
percebo o salto na qualidade dos espetáculos que foram
tem hoje na vida individual dos membros desse grupo.
montados logo a seguir. Estivemos em Portugal durante
Tenho muito orgulho de ter compartilhado com esses
a Expo’98 na Feira de Cultura e Arte Mundial. Assistimos
amigos o primeiro palco. A primeira viagem para o exte-
a espetáculos incríveis. Grandiosos. Assistimos com Guti
rior. Isso gerou muita confiança em nossos pais de que
ao espetáculo “Ombra” (1998) sobre o poeta Federico
tínhamos futuro, viajar para o exterior era a garantia de
Garcia Lorca, que foi apresentado no pavilhão da feira.
que o grupo evoluía. É o perfil brasileiro, que está sem-
Passeamos por Lisboa, discutimos seus efeitos, suas
pre esperando um reconhecimento externo para que
influências que nasciam ali, na cabeça do diretor e seus
possa então dar valor as coisas da casa.
atores, para a primeira montagem da peça “É proibido
brincar”, montada no mesmo ano. Lisboa, por conta da
feira, abrigava a Europa inteira, foram dias inesquecíveis.
156 Meu destino era o Nós do Morro Uma geração de guerreiros 157

Depois de voltar de Portugal, muito influenciada pelas


moças europeias, passei tempos pintando meus olhos de
preto com contornos extensos, que depois evoluíam para
azul, caso estivesse com um humor melhor. E foram esses
os amigos que me amaram assim mesmo. Sinto falta de
termos mais tempo juntos hoje e de desenvolvermos mais
projetos. Estive com essas pessoas durante uns nove,
dez anos de oito a doze horas por dia, fora as noites. Muito
mais que na minha própria casa. Mas fico feliz de com-
partilharmos as festas de aniversário de nossos filho-
tes que são contemporâneos, e que acredito serem uma
geração com muito mais oportunidades. Tenho a certeza
de estarmos fazendo nossa parte para que isso aconteça.
Não chamamos atenção por acaso. Nós não éramos o
único grupo popular de teatro no Rio, mas estávamos
longe de ter o cenário que temos hoje com ONGs que tra-
zem o teatro como o carro-chefe das oficinas em áreas
carentes. Tinham poucos grupos que trabalhavam como
nós e nenhum tinha a sua sede dentro de uma comuni-
dade, com espetáculos tão bem cuidados. Mesmo depois
de ter me afastado dos palcos do Nós, para trabalhar atra-
vés da lente da câmera, ainda são muitos desses nomes
os envolvidos nos projetos que realizo. Depois desses
meus amigos, irmãos de sonhos, vieram muitos outros,
que também colaboraram, doaram suas vidas, fizeram e
ainda estão fazendo história para que a ideia de Guti não
se perca jamais. Dentro do grupo, sobre os amigos que
dividiram a vida comigo por esse tempo, só tenho a dizer
que me ajudaram muito e que foram ferramentas para
que eu não desistisse de lutar pela revolução da espécie.
Ficamos famosos por namorarmos entre nós mesmos.
Eu sempre justificava que não nos sobrava tempo para
namorar, com tantas horas de trabalho por dia e nos
dias de folga tinha sempre uma apresentação, ou uma
festa aonde íamos juntos, que acabávamos namorando
158 Meu destino era o Nós do Morro Uma geração de guerreiros 159

por ali mesmo. Essa galera era quem, junto a Guti, lugares, nas estreias na CAL (Casa das Artes Laranjei-
sonhava um projeto, desmitificava, ensaiava, criava ras), no centro de artes Calouste Gulbenkian, no Tablado,
recursos para que se realizasse, varria da plateia ao nas festas, nas noites de sinuca e nos forrós. E também
camarim, lavava o banheiro, recolhia o lixo da escada, muitas vezes no forró da garagem no sobradinho, parte
quebrava pedras, virava laje, costurava roupas, cons- mais alta do Vidigal, e depois descer a ladeira com o dia
truía refletores e subia no palco sem ganhar nada. Por amanhecendo. Era preciso não só trabalhar, estudar, era
acreditar que pela arte vale qualquer sacrifício. E que preciso se infiltrar na sociedade, se inserir, ser aceito, se
ela tem poder de transformação. aceitar. Era muita coisa junto.
Para quem acha que o nosso trabalho acabava por aí A escolha de fazer teatro não me ajudou com o estudo for-
está muito enganado. Era preciso não só criar e pôr o mal, nisso minha mãe tinha razão. Assim aconteceu com
espetáculo de pé, mas também arrumar um palco para alguns integrantes do grupo: muitos de nós não havíamos
recebê-lo, ir aonde o povo está e fazer o povo querer terminado o segundo grau e alguns estão até hoje nessa
assistir a peça, ensinar o povo a gostar de teatro, de luta, ou acabaram fazendo escolas a distância. Dos que
cinema, ensinar o povo a apreciar uma exposição. Será já haviam ingressado na faculdade, poucos chegaram ao
que isso é possível? Muitas vezes nos perguntamos se final, e outros, como eu, que estavam tentando ingres-
era essa mesma a nossa missão. Espetáculo no sábado sar, ainda não conseguiram. Para o trabalho, naquele
às 20h. Chegada no teatro às 14h, limpa tudo, arruma, momento, era preciso que fosse assim, entrega incon-
se veste, pega os instrumentos, segue a rua gritando dicional. Para os mais jovens, isso foi diferente. Vários
e batendo tambor: “Machadiando!!!! Três histórias de estão ingressando na faculdade do ano passado para cá,
Machado de Assis. Não percam. Sábado, hoje, às 20h, todos com aproximadamente 22, 23 anos. E os que perse-
domingo às 19h! Venham. Machadiando!!!” Ou “Nós do veraram e estão prestes a se formar têm por volta de 28,
morro. Vidigal. Espetáculo Abalou. Tem funk, tem trai- 29 agora. A minha geração sofreu bem mais com isso. Eu
ção, tem briga, tem romance! Nós do Morro. Vidigal. já estava em idade de responder totalmente por mim, e
Abalou!!!” Nos dias mais empolgados fazíamos peque- tive, como vários do grupo, que bancar meu sonho. Alguns
nas cenas ou alguma coreografia. Era muito trabalho! já tinham filhos, o que torna a situação ainda mais com-
plexa. Não consigo imaginar se não tivesse sido assim.
Fomos também taxados de esquisitos. Os playboys,
Nem quero. Não é fácil nascer artista. Mas o diferen-
os que gostavam de coisa de rico (arte no nosso país
cial desse grupo foi formar artistas diversificados, com
é coisa de rico), os que rejeitavam a favela. Porque ir
expressão em várias áreas.
ao baile para o Nós passou a ser escasso, não porque
o funk fosse rejeitado, mas ele era mais uma cultura a Agora, com 24 anos, o Nós do Morro ainda sonha em ter
ser absorvida dentro de toda efervescência musical na como pagar a companhia de atores para desenvolver sua
década de 1990, em que passamos das festas de rock dramaturgia. Sonha em realizar projetos que sejam cul-
no Circo Voador para a Lapa, inaugurando o sucesso do turais, educacionais e puramente artísticos, porque seus
Zoeira — a festa Hip-hop. A Fundição Progresso com indivíduos se juntaram para transformar com sua criati-
shows de todos os tipos. Queríamos estar em todos os vidade e sua alma de artista o mundo em que vivemos,
160 Meu destino era o Nós do Morro Uma geração de guerreiros 161

transformando-se a si próprio. E ainda há muito o que de árvores quando pequena. Foi com esse grupo e por
fazer. Por meio da história de cada um, busco refletir meio dele que ganhei voz. E pretendo não mais me calar.
sobre como caminhamos até aqui, o que conquistamos
Então, todos em roda e de mãos dadas, olhos nos olhos:
e o que precisamos ainda conquistar. Aos que ainda
Meerdaaaa!
lutam, digo: chegamos apenas na metade do caminho. É
preciso a cada dia procurar saídas, e, quando perceber E nós vamos seguindo...
que não há mais para onde ir, devemos ser fortes.
Nasci em um país pobre, em família pobre, e acre-
dito que a transformação da sua história depende do
esforço que cada indivíduo precisa fazer para estar
vivo, e estar vivo não quer dizer apenas abrir os olhos,
comer e trepar. Quer dizer estar insatisfeito com a con-
dição não digna de vida. E se libertar do coma que se
encontra o Brasil. Não podemos achar normal um lugar
onde moram sete, oito, 12 pessoas e no qual a maioria é
criança, tem apenas um cômodo, e a mãe dessas crian-
ças está grávida novamente. Mulheres em coma com
imensas barrigas que esperam novas crianças, homens
em coma com seus copos de traçado e cerveja, crian-
ças ao Deus dará em pré-coma.
Por meio da arte fui despertada e tenho obrigação de
despertar. Hoje em dia, é preciso muito mais para fazer
qualquer pessoa acreditar que ela pode sair deste
estado, que é possível mudar seu destino, se tudo que
ela vê a sua volta é miséria. A única chance é se alimen-
tar de sonhos, de imaginação. No meu caso, e de meus
amigos, deu certo. Aos poucos, esses sonhos vêm se
tornando realidade. Porque tive muita sorte de me juntar
aos que não se encaixavam muito bem nos padrões que o
mundo determinava: os contestadores, os lunáticos, os
pervertidos, os homossexuais, os sonhadores, os comu-
nistas, os ativistas, os pensadores, os desregrados, nós,
os artistas. Sou feliz de ter encontrado vocês, amigos, e
de ter podido então realizar planos, que sonhei em cima
Cap.09
ravessando os muros

Cap.09
Atravessando os muros
Atravessando os muros 165

Vidigal, Leblon, Maricá e Itaboraí, para onde haviam


mudado meus avós. Durante esse tempo, os únicos pas-
seios diferentes eram o Saara, no Centro, uma ou das
vezes por ano para comprar roupas de aniversário e para
o Natal. Também ia com a família de minha amiga vizinha
às festas do Clube Piraquê, na Lagoa, dada aos funcio-
nários. E também ao Tivoli Parque, que até os 16 anos,
uma vez por ano, arranjávamos uma grana para ir. Minha
mãe havia ficado sócia do Clube do Flamengo, um título
comprado em conjunto, e chegamos a ir algumas vezes,
mas passar o dia no clube saía muito caro, e entre ir à
Estar fora do espaço da favela, apropriar-se da cidade
praia que estavam todos os meus amigos e ir ao clube —
como um espaço único. Isso é uma conquista alcançada
onde na maioria das vezes você tinha de esconder que
lentamente pelo jovem favelado, que, em geral, se sente
morava no Vidigal, caso contrário seria muito difícil de
inferiorizado pela maneira que está vestido, por não ter
fazer amizade com os moradores do Selva de Pedra —, a
dinheiro para consumir coisas ou que lhe permita entrar
praia sem dúvida era uma opção melhor.
em lugares privados. Alguns vão permanecer sem conhe-
cer espaços diferentes ou rejeitando-os por não esta- Sair ou não da favela está totalmente ligado a ser aceito
rem acostumados a eles. Outros só se sentem à vontade ou não. E ser aceito sem estar dentro do grito da moda
quando estão dentro de seu próprio espaço ou em outra para um adolescente é impossível. É preciso ter o tênis
favela que vai lhe trazer o conforto da semelhança. que todos usam, o jeans, a marca. Ao completar 14 anos,
passei a estudar em Copacabana, e essa relação com
A primeira vez que fui sozinha até o Leblon foi come-
os espaços da cidade se expandiram. Tinha amigos em
morado. Tinha 10 anos e fui autorizada pela minha mãe,
outros bairros, era convidada para festas em outros luga-
com milhões de recomendações. Devia pegar o ônibus
res e também frequentava as matinês, em especial, do
no ponto e a encontrar em seu trabalho, que ficava na
Scala — a Babilônia. Aonde iam os adolescentes do Rio.
Aperana, primeira rua após a Niemeyer. Assim fiz e deu
Não era simples conseguir dinheiro para fazer um pro-
tudo certo, embora o coração estivesse disparado.
grama como esse, que acabava tendo intervalos de dois,
Durante minha infância e adolescência pouco circulava três meses ou mais. Economizava o dinheiro do lanche na
pela cidade. Primeiro, quando morávamos em Maricá, escola, descia por trás ou passava por debaixo da roleta
passeávamos sempre com meu pai pela cidade. Mas, do ônibus para economizar a passagem. Valia qualquer
assim que mudamos para o Rio, ele se casou e logo sacrifício para juntar o dinheiro de uma matinê. E quero
sua mulher engravidou. Um bebê novinho e o aumento que fique bem claro: a economia era para o dinheiro da
da família fizeram com que meu pai diminuísse os pas- entrada. Na maior parte das vezes, o trajeto Vidigal-Afrâ-
seios. Como eu estudava no próprio bairro, minha vida nio de Melo Franco (rua do Scala) era feito a pé na ida e na
estava por aqui. Meu espaço de circulação era Rocinha, volta, e sem dinheiro nem para tomar água.

164
166 Meu destino era o Nós do Morro Atravessando os muros 167

Mas meus fins de semana habituais eram em festas, no beco para ver a vida. Esse é o momento temido por todos
baile, ou simplesmente na rua jogando conversa fora sem os pais. O momento em que você quer ver a vida. Porque
sair do Vidigal. Já com 16 anos, cursava o primeiro ano do na vida do beco rola de tudo. Só podia descer quando
segundo grau, que hoje se denomina ensino médio, pela minha mãe chegasse do trabalho. Eu descia, alguém
terceira vez, e nem eu entendia o que havia acontecido avisava que ela estava vindo. Eu corria. Ela chegava, eu
comigo. Não estava acostumada a tirar notas baixas, descia de novo. Mas nunca fui de mentiras graves.
mas foi apenas uma fase rápida da adolescência. Estava
No tempo em que a Martha morou na casa de meu pai, foi
ali, ainda no primeiro ano e na segunda escola. Mudar de
a primeira vez que fiquei sem o convívio dela. Passamos
escola me fez interagir com outros bairros, mas é muito
a nos ver na rua. E fazer coisas juntas. Festas. Shows. Eu
difícil você se enturmar, fazer amizades. Na escola você
dizia em casa que estava com ela. Minha mãe deixava.
tem amigos, mas alguns deles só estão com você durante
Fiz amigos envolvidos com a arte, integrantes do teatro
as aulas. O seu espaço é mesmo a sua rua, o seu bairro.
Nós do Morro. As festas eram como a de qualquer lugar
Sempre sonhei em viajar. Tínhamos, eu e minhas amigas
onde se juntam vários atores. Muitos textos de impro-
mais íntimas, longas conversas sonhando com os países
viso, poesia, muitas cenas, muita música. Para mim não
que conheceríamos, as cidades, mas não tínhamos um
pode faltar Legião Urbana, Cazuza e Marina Lima. No dia
plano concreto de como isso iria acontecer. Como sair do
que o Cazuza morreu, havia comprado um ingresso para
Vidigal e fazer uma viagem? Que tipo de emprego deve-
ir ao show do Legião no Jockey. Era um sonho. Estava
ria ter para conseguir isso? Não tinha ideia ainda. Já era
juntando dinheiro há um bom tempo. Já tinha perdido o
adolescente e a única viagem que fazia era para a casa
show no Maracanãzinho, não podia perder esse. Acordei
de meus avós e para a Aparecida do Norte, em excursão.
cedo, fui comprar o ingresso e voltei logo para começar
Embora meu pai sempre tenha prometido férias na casa
a encerar a casa e deixar minha mãe contente. Liguei o
da vó na Paraíba, isso até hoje não aconteceu.
rádio para abafar o som da TV do vizinho. Tocava Cazuza,
Gostava de olhar revistas de viagem. Comecei a colecio- curti. Tocou três músicas seguidas, intervalo. E anun-
nar a última folha de um jornal que dava dicas de luga- ciou a morte dele. Eu rodei na casa. Nossa, que tristeza
res próximos e baratos e a perturbar a minha mãe com tremenda nesse dia. Quem mais falaria por mim tudo o
pedidos de viajar com meus amigos. Ela não gostava da que desejava falar? Éramos jovens de muitos lugares
ideia e não deixava. Para que eu viajasse sem ela, era nesse dia, nos igualamos na dor de perder Cazuza e na
preciso ter pais responsáveis por essa turma. Durante alegria de poder dividir essa dor cantando com o Renato
esse tempo, viajava em pensamentos enquanto pegava Russo. Quem esteve nesse show sabe o que foi. Muita
sol e mirava o mar na praia. Estudava na medida do pos- confusão, muita euforia, muita baderna, muita energia
sível, mas em uma escola sem muitos atrativos, exigiam também. Pessoas corriam por cima dos carros em frente
pouco de mim. Tirava boas notas, mas não fazia muito à Praça Santos Dumont, no Jockey. Vivia essas experi-
esforço para isso. Então era possível para mim em um ências e, ao mesmo tempo, quando descia para o bate-
dia acordar, ir à praia, voltar, arrumar a casa, ir à escola, papo no beco, a maior parte dos meus amigos não estava
e a noite fazer os deveres e descer até a escada no pé do
168 Meu destino era o Nós do Morro Atravessando os muros 169

interessada em ler poesia, ir a um balé, à Quinta da Boa entrar no teatro e isso me fez ter menos tempo para as
Vista de graça, ou a um show de MPB no parque Garota viagens, que passaram a uma, duas por ano. E o teatro
de Ipanema, no Arpoador. me ajudou mais uma vez: ao ficar no Rio por mais tempo,
pude me relacionar mais com a cidade que passou a ser
Na vida real, aos 17 anos, várias de minhas amigas eram
uma só para mim. Ao contrário da minha adolescência,
mães. Não estavam estudando, tinham ainda mais difi-
que mentíamos sobre onde morávamos na matinê, no
culdades financeiras que eu, já eram consideradas adul-
parque ou na porta do cinema. Recordo-me de ter a par-
tas. Não queria esse destino. A favela é até hoje muito
tir de então muito orgulho do Vidigal, que para mim tinha
machista. Há vinte anos então... Era um mundo confuso
identidade. Não era mais uma comunidade que gerava
para se descobrir, os anos de minha adolescência. Havia
apenas notícias sobre o tráfico de drogas. O Vidigal era
entre os artistas a pregação pela liberdade, e a sociedade
uma comunidade diferente e isso me dava segurança de
ainda reprimia demais as pessoas. Escolhi a liberdade
me afirmar como pessoa do bem.
dos artistas, que quer dizer para mim, antes de tudo, dis-
ciplina. Na minha adolescência, o Vidigal tinha artistas Naquela mesma época, na praça XI, surgia o grupo do
que eram ídolos internos, que cantavam suas próprias Neco (Ernesto Piccolo), que ensaiava no Centro de Artes
canções e canções populares que lotavam o barraco. E Calouste Gulbenkian. As aulas eram de graça, o que
foram esses artistas que impulsionaram as ideias do Guti atraiu jovens de várias áreas carentes da cidade, e tam-
para formar o teatro do Nós do Morro. Assim que comecei bém por ser no centro era próximo para quem estava na
a trabalhar, ganhei a liberdade de viajar, por poder finan- Zona Norte. Um pouco antes do Nós do Morro lançar o
ciar isso. Não precisava mais pedir dinheiro aos meus “Abalou”, quando ainda ensaiávamos a peça, Neco mon-
pais. Ao meu pai, na verdade, até hoje. Uma compra, um tou “Funk-se” e foi um grande sucesso. Eles também
biquíni novo. Logo as páginas que colecionava dos jornais tinham as características de serem muitos no palco e
começaram a ter utilidade, e aos poucos fui conhecendo misturarem números musicais às encenações. Rosane
o entorno da cidade, o estado do Rio, a Região Serrana, Svartman era amiga do Neco e a aproximação entre os
a Região dos Lagos. Viagens se tornaram meu principal grupos foi feita. Foram muitas festas, e passamos a fre-
objetivo. O momento de arrumar minha mala era aquele quentar todas as estreias deles e eles as nossas. Ao nos
que me sentia mais feliz. misturar com essa galera — que já era bem misturada,
por vir de todos os lugares —, nos enturmamos com a
Minhas metas eram trabalhar e juntar alguma graninha
cidade. E isso fez diferença na nossa maneira de pensar
para ir a shows e nos feriados, férias e, às vezes, até
e nas nossas expectativas de realizações, que não esta-
mesmo em um fim de semana comum fazer uma viagem
vam somente dentro da favela.
rápida e barata. Búzios, São Pedro da Serra, Angra, Ilha
Grande, Lumiar, Cabo Frio, Arraial, Visconde de Mauá, Considero que meu envolvimento com o grupo e minha
Penedo, de mochila e barraca nas costas, dinheiro con- conscientização como artista e como cidadã me entre-
tado para passagens e um drinque à noite. A comida garam o Rio e o mundo como espaço de pertencimento.
devia ser feita no fogareiro que era utensílio indispensá- Por meio do meu trabalho com cinema, fiz muitas via-
vel. Ficava pouco no Vidigal. Até que veio o convite para gens ao exterior. Sempre quando estou para viajar, penso
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nos papos que tinha quando adolescente, sonhando em Nessa viagem, fiz também colaboradores e devo dizer
conhecer esses lugares e achando improvável de acon- com muita identificação: Sabrina e Juliane, que me salvou
tecer comigo. Pude conhecer lugares sonhados como dos policias da divisão de tráfico de drogas no aeroporto.
Paris, Madri e Londres. Mas ir a Berlim foi emblemático. Ele revistou toda a minha mala, por considerar que vinha
Colocar os pés sobre o muro derrubado e saber que era de um país de risco. Não é fácil ouvir isso de seu próprio
preciso mais do que retirá-lo, pois vinha de um lugar que país. Ainda mais para mim que tenho um sentimento de
era murado invisivelmente, e o muro tem de ser retirado amor forte pelo Brasil e grito com prazer o meu nacio-
dentro de nós mesmos. nalismo. Deu-me uma sensação de desamparo. Mas Juli
estava ali pontualmente, como sempre, para me salvar,
Nessa minha profissão “cinema turismo” — nome
porque nas minhas primeiras lições de inglês não aprendi
dado por uma amiga de brincadeira pelo fato de meu
muita coisa para sair de situações como essas.
curta-metragem “Mina de fé” ter me levado a muitos
lugares —, me tornei diretora para o mercado de traba- Na fundação, conheci a Nete, uma alemã com uma filha
lho. O curta “Mina de fé” deu credibilidade às minhas que fala um português com sotaque delicioso do Recife, e
ideias e mudou minha vida. Por meio do cinema, come- a Iciar, que já se comunicava comigo por e-mail há algum
cei a realizar o sonho de conhecer outro lugares. E tempo. Todos estavam preocupados em fazer nossa
quando surgiram as oportunidades, nessas viagens, estadia, minha e da Carolina — uma estudiosa de direi-
conheci pessoas e aprofundei meus conhecimentos e tos humanos que falaria sobre sua futura publicação cha-
minhas buscas artísticas. mada “As milícias no Brasil”, assunto muito delicado e que
exige coragem —, um misto de proveitos profissionais e
Fui convidada a participar de um festival de cultura bra-
de diversão na cidade que desta vez apresentava-se uma
sileira em Berlim chamado “Brasil em cena II” e lá fui eu
Berlim diferente da que havia conhecido. Estava sol, era o
de volta a capital da Alemanha. Onde já havia estado,
começo do verão, as pessoas na rua, alegres, as crianças
com o meu bebê, um ano e meio antes. Estava a convite
brincando nas praças, os gramados dos parques lotados,
da Fundación Heinrich Böll, que publica artigos sobre
a beira do rio com muitas pessoas, que como lagartixas
direitos humanos. Tinha como compromisso uma apre-
se prostravam ao sol a fim de esquentar o corpo de tem-
sentação do filme seguida de debate. Na mesma sessão
pos gelados. Devo dizer: a cidade é linda. Ainda bem que
estava a jornalista Cristiane Ramalho, que havia conhe-
retiraram dela o muro que em nada combina com aquele
cido quando ela ainda trabalhava na rádio Viva Rio. Tive-
lugar. Já no dia de vir embora, olhava da janela do hotel e
mos uma sessão de muito sucesso, com bom público e
sentia muitas saudades de meu bebê. Nós, mães, somos
debate caloroso. Era uma sessão de dois filmes bem dis-
mais dependentes dos filhos do que eles de nós. É fato.
tintos: “Mina de fé”, com sua temática pesada de amor e
Lembrava-me dos dias que passei em Berlim com ele, em
tráfico de drogas, e um documentário de nome “O outro
novembro de 2006 e me deliciava com os detalhes que
olhar da favela”, com personagens muito divertidos e
mudam completamente o ritmo de um lugar.
carismáticos. Foi uma junção e tanto, deu muito pano
para manga e o papo rendeu debate até depois no bar.
174 Meu destino era o Nós do Morro

Minha memória era de uma manhã fria. Olhava pela


janela e me preparava para sair. João Pacífico, meu
filho, estava com seis meses. Havia acordado cedo para
mamar e naquele momento dormia tranquilo — como
costumam dizer: o sono dos justos. Minha janela dava
para o pátio do hotel, onde algumas pessoas atravessa-
vam em direção à saída. Abri discretamente a janela a
fim de verificar qual era a temperatura. E fechei imedia-
tamente porque meu rosto foi invadido por um frio que
eu desconhecia e meu nariz rapidamente ficou verme-
lho. Fiquei por ali, com meu bloco de notas, velando o
sono do Pacífico e prestando atenção nas pessoas que
passavam no pátio. Para algumas até inventei histórias,
que, em sua maioria, começavam com meu espanto e
admiração por alguém que se põe na rua tão cedo em
uma temperatura abaixo de dez graus.
Cheguei a Berlim à noite, só vi a cidade passar atra-
vés do vidro do carro, no caminho que fiz do aeroporto
ao hotel. Tive como parceiro de viagem, além de meu
bebê delicioso, um xará do meu filho. João era um dos
curadores da mostra brasileira de curtas-metragens
dentro do festival Interfilm, a qual fui convidada para
apresentar “Mina de fé”. Conhecemo-nos no aeroporto
e ficamos amigos rapidamente. Ele, mesmo sem prá-
tica com crianças, foi peça fundamental na viagem. Ao
chegarmos, me lembro que falávamos sem parar, mas
ao entrar no carro e percorrer as ruas, o Pacífico dormia
e eu e João mudos, com os olhos grudados na janela.
Eu a fim de registrar mentalmente todas aquelas ima-
gens. E o João relembrando sua estada há meses atrás
e pensando se talvez encontraria as mesmas pessoas,
se seria tão legal como a primeira vez.
Já eram nove da manhã. Mas a claridade parecia de seis,
quase madrugada, e eu começava a ter vontade de acor-
dar o neném e me aventurar com ele pelas ruas do lugar,
176 Meu destino era o Nós do Morro Atravessando os muros 177

que durante muitos anos foi, para mim, motivo de mitos e festival de Brasília, em novembro de 2004, quando o
histórias de guerras. Pacífico finalmente abriu os olhos. “Mina de fé” foi premiado com o Candango de melhor
Com a bolsa e o carrinho já preparados, saímos pelos cor- filme, ele estava também na competição e levou a melhor
redores do hotel em direção ao restaurante onde toma- direção com o seu “Vinil verde”, que era considerado
ria café e teria as primeiras informações sobre o festival. pelos críticos o favorito do festival. Eu havia assistido ao
É engraçado como bebês atraem a atenção. Uma mãe filme e devo confessar que foi considerado o melhor por
que viaja com bebê, sozinha então, torna-se quase uma mim também. Lembro da crítica de Eduardo Souza Lima,
supermulher. Foi assim que os olhares me receberam ao no Segundo Caderno, do jornal O Globo, indignado com a
entrar no saguão e me dirigir ao balcão de informações. não premiação do filme de Kleber.
Ali recebi mapas, convites, programações e me comuni-
Estava nervosa com esse encontro, é sempre um
quei com os alemães com meu inglês tupiniquim, e claro,
momento difícil encontrar pessoas que admiramos. Ele
por isso, entrei para a lista de prioridades do hotel, todos
me reconheceu e veio falar comigo. Conversamos um
foram amáveis e prestativos e a cada sorriso que o Pací-
pouco, e ele me ajudou a subir o carrinho do Pacífico até
fico dava, mais colaboradores adquiríamos.
o segundo andar, onde era a sala de credenciamento.
“If you need some help, just tell me.” Essas foram as Conversamos muito. Claro que foi impossível não tietar,
palavras da recepcionista, ao me entregar o crachá. Eu mas acho que tietagem é sempre válida, quando não é
sorri, agradeci e pensei: “Só chamar? Acho que falar vai inconveniente, nem exagerada. Falamos dos filmes, ele
ser minha maior dificuldade aqui.” Depois do café, nos — para minha surpresa — disse que havia assistido ao
aventuramos para a rua. Ao atravessar a porta, o frio era meu curta e que gostara muito. Achava um filme muito
cortante. Conferi os agasalhos que cobriam o neném e sensível, o que me fez adquirir autoconfiança para con-
segui pelas ruas de Berlim Oriental. Parece uma besteira vidá-lo em sua primeira oportunidade no Rio — ele é de
dizer isso depois da queda do muro, mas não é. Ainda é Recife —, a visitar o Nós do Morro, a participar de nosso
visível a diferença dos dois lados da cidade. Tentei me cineclube com seus filmes e a bater um papo com os
entender no mapa, já que quem tem boca vai a Roma... E alunos depois. O nosso papo rendeu, chegaram outros
também a Berlim. brasileiros que estavam no festival: João, que havia sido
meu companheiro de viagem e Karen Black, que já conhe-
Consegui chegar à frente do cinema que era a sede do
cia por ter montado o primeiro filme de produção do Nós
festival. Preparando-me para entrar, conheci o primeiro
do Morro “O jeito brasileiro de ser português”. Também
brasileiro que iria fazer parte de meu grupo naquela via-
estavam Lis Kogan, responsável pelo prêmio Porta Cur-
gem. Nunca o havia visto pessoalmente, mas conhe-
tas (site da Petrobras) e também a primeira incentivadora
cia seus filmes. Era o crítico de cinema e cineasta Kle-
da carreira do ”Mina de fé”, que conheci no primeiro festi-
ber Mendonça, cara que muito admiro. Do tipo “quando
val que participei, que foi o mesmo em que ganhei, o Fes-
crescer quero ser igual a ele”. Já sabia que ele estaria
tival Internacional de Curtas de São Paulo, e a Déborah,
lá, pois lançava no festival seu novo filme “Noite de
que conhecia naquele momento. Todos fazem parte do
sexta, manhã de sábado”, que ainda não tinha tido opor-
Cachaça Cinema Clube, cineclube que acontece uma vez
tunidade de ver. Tínhamos uma história juntos, pois no
178 Meu destino era o Nós do Morro Atravessando os muros 179

por mês no Cine Odeon. Talvez o mais badalado da cidade interessante que sempre me emociona e me diz muito.
e que tem uma curadoria séria e respeitada. Estávamos Eduardo Cerveira, curador de vários festivais nacio-
todos animados de estar ali. nais e internacionais e pessoa boníssima, que em mui-
tas sessões me ajudou traduzindo os filmes e também
Assistimos a uma sessão de cinema e depois busca-
intermediando conversas com outros cineastas, e Aíl-
mos pela rua um lugar para almoçar. Entramos em um
ton Franco, produtor do Curta Cinema, festival que
restaurante indiano de decoração incrível, funcionários
havia premiado meu curta. Prêmio esse responsável
simpáticos e boa comida com muito tempero. O almoço/
pela indicação do curta na participação deste festi-
jantar durou. Falamos de muitas coisas, e todos esta-
val, que é considerado o mais importante festival de
vam encantados com o Pacífico que até o momento se
cinema de curta-metragem mundial. E Júlia, uma bra-
portava muito bem. Nesse jantar, a Karen contou que
sileira, que mora em Paris já há algum tempo, trabalha
estava grávida, e nos enveredamos pelas questões cine-
no festival de Clermont e havia sido indicada para ser
matográficas, maternais, profissionais e principalmente
minha intérprete nas mesas de debate.
as dificuldades da mulher que tem filhos nos dias de
hoje. Mas tenho certeza de que o fato de estar ali com o Era outra turma de brasileiros, mas os sentimentos eram
Pacífico a encorajou. os mesmos: divulgar a cultura cinematográfica do Brasil,
ver bons filmes, filmes curiosos, novidades e conhecer
Quando saímos do restaurante o relógio marcava 17h,
gente. Nesta viagem que fiz, em janeiro de 2005, embora
mas a noite já havia chegado. Coloquei o Pacífico em um
em mim já carregasse a vontade de ser mãe, ainda não
suporte que fica preso ao corpo, passei por cima dele
havia planejado ter o Pacífico. Numa das noites após
duas mantas além de seu casacão, que o transformava
uma sessão, em que nos preparávamos para mais uma
em uma espécie de boneco de neve. E saímos a passos
festa daquelas — que além de muitos filmes incríveis,
muito rápidos em direção ao hotel. Essa era uma viagem
também são incríveis as festas em Clermont —, em um
diferente, meus passeios aconteciam de dia e ao final da
papo me lembro de ter surgido o assunto filhos. E fora
tarde corria para o hotel, sem nenhuma balada, daquelas
aconselhada naquele momento, até mesmo porque a
que os cineastas adoram, após as sessões. Mas assisti-
carreira do filme estava começando e se mostrava pro-
mos a filmes, o Pacífico ainda mamava, e eu então guar-
missora, a não engravidar. Lembro de a Julia dizer que,
dava esse momento para a entrada nas sessões. Depois
por ela morar lá fora e não ter com quem contar para
ele sempre tirava um cochilo e eu podia ver os filmes.
possíveis ajudas, era muito difícil de ela querer engravi-
Não era o primeiro festival internacional que ia. O pri- dar. Mas olhei para o namorado dela, imaginei a mistura
meiro foi em Clermont-Ferrand, no qual meu curta foi e pensei: Nossa, serão filhos lindos!
o único filme brasileiro a participar da mostra compe-
Mulher quando começa a ter esse tipo de papo é por-
titiva. Uma felicidade, o filme estava fazendo história.
que está louca para ter filhos, mas naquele momento
Essa viagem também foi muito importante, tive o prazer
ainda estava apenas namorando o Gustavo, pai do João
de conhecer Cao Guimarães, um cineasta mineiro com
Pacífico, com quem hoje sou casada. Na época estava
um trabalho de documentários e videoarte muitíssimo
Atravessando os muros 181

há três meses com ele, apaixonada, aos 30 anos. Olha


o perigo. E o pior: sem emprego fixo. Nem eu, nem ele.
Artistas. Sabe como é. Então, apenas concordei: filho
para mulher que quer trabalhar, construir uma carreira
é muito difícil de conciliar. Saímos dali e fomos para a
festa. Muita diversão, bons filmes, boas companhias e
longas caminhadas das festas até o hotel sobre a neve.
Numa dessas voltas, em companhia de Cao Guimarães,
que deslizava na neve e mal conseguia ficar em pé, pois
usava sapatos que não davam nenhuma estabilidade,
dizia-me: “Um cineasta precisa de sua câmera e temos
de agradecer os tempos modernos, em que você saca
o celular e tem a possibilidade de fazer um registro. É
realmente incrível.” Ele mostrava sua pequena câmera
fotográfica, e me falava também de suas funções. Mais
um deslize, e eu já ficava preocupada e o ajudava a não
cair. Estava com uma bota emprestada de uma amiga:
uma bota linda, sem salto, mas com um solado muito
pesado. Aquele tipo de sapato que você anda e exercita a
panturrilha. Mas ao sair naquela noite descobri qual era
sua principal utilidade: andar na neve. São essas algu-
mas lembranças deste festival em Clermont-Ferrand.
Voltando ao Brasil, a vida continuou e a vontade de ter
filhos foi maior que os obstáculos que pudesse atraves-
sar. Engravidei oito meses depois. Quando se está grá-
vida dá um medo muito grande. A primeira coisa é pensar
como continuar a trabalhar, a produzir, a criar. Você ima-
gina que o bebê vai te consumir, que todos os momentos
serão para ele. Então viajar com o Pacífico era também
mostrar, para mim, que é possível. E para isso você pre-
cisa de colaboradores. E disso não posso me queixar.
Os dias que se seguiram, e não foram muitos — fiquei
em Berlim quatro dias, sendo que no último dia deve-
ria estar no aeroporto às 15h —, foram dias de cinema,
passeios turísticos pequenos e corridos, jantares em
182 Meu destino era o Nós do Morro Atravessando os muros 183

lugares esfumaçados; coitado do Pacífico! Muito bom A maior parte das vezes que estive na Europa foi durante
papo, doces gostosos e corridas agarradas no neném invernos rigorosos. Os melhores festivais são feitos nessa
em seu baby-bag e o alívio de chegar ao hotel. Na manhã época, até mesmo para movimentar as cidades. Costumo
do último dia, ainda não tinha visto nenhum pedaço do brincar que até alegria de pobre tem de ser sofrida! Desce-
muro. Olhei o mapa do metrô que estava perto. Saímos mos em Amiens, eu, Marina e Andréa Cals, que já conhecia
cedo e fomos até lá. Ele, pendurado, olhava tudo. Ver de nome e tinha na memória sua voz, por ser a apresenta-
o muro de perto é emocionante. Você sente o peso da dora do Festival de Cinema do Rio. Tinha certeza de que
história. Ela está ali, forte, presente nas muitas ener- a viagem seria, com aquelas duas, no mínimo, divertidís-
gias geradas. Mostrei para o Pacífico e conversamos sima. Voamos pela Varig, já quase falida, e sempre lembro
um pouco. Fomos nos abrigar num prédio vizinho, onde que o que me salvou foram bananinhas desidratadas que
funciona um pequeno museu do monumento, com mais estavam na minha mala de mão, pois com quatro meses
ênfase na lojinha que na história. Eu, como boa turista, de gravidez e uma fome de leão, me negaram no voo uma
procurei por ali o que ainda pudesse ter de barato para repetição do pão. Quando disse que estava grávida me
levar de lembrança aos amigos. De pedacinhos do muro trouxeram uma barra de cereal. A empresa já estava
a postais incríveis. Um deles me fez lembrar na hora abandonada e com muitos problemas. Chegamos no dia
de uma grande amiga e parceira, Marina Vieira, no qual de abertura do festival e nos apressamos para chegar
escrevi: “Para a mulher que promove encontros impossí- à festa. Eu, de verdade, estava cansada, mas pensava
veis.” O postal tem o muro ainda com arames farpados, e nos quitutes que acompanhariam o coquetel. Ao chegar
duas mães segurando crianças que se dão as mãos, uma ao espaço principal que o festival ocupava na cidade, a
de cada lado do muro. É uma imagem muito forte. festa era belíssima e como os franceses sempre estão
no grito da moda, tínhamos um bufê chinês. Fui direto
Conheci a Marina em uma dessas viagens. Já havíamos
ao arroz, era algo que considerava seguro e depois me
participado da mostra que ela promove há vários anos,
entretive em uns bolinhos com rabinhos de camarão
a Tangolomango, com curtas, videoinstalação, pintura.
para fora, que me fizeram passar muito mal. Só me senti
Mas nunca tinha estado com ela. Marina me ligou e me
melhor após uns bons goles de Coca-Cola. Esta foi uma
convidou para ser a representante da mostra Tangolo-
viagem de cinema, gastronomia, turismo relâmpago e
mango no Festival de Filmes de Amiens, com vários fil-
muitas ideias de projeto a serem realizadas na volta.
mes do grupo Nós do Morro. A viagem seria em dezem-
Por isso que estar em Berlim, principalmente no dia de
bro, e perguntou se eu topava. Topei na hora. Estava
visita ao muro, me fez lembrar muito a Marina. Voltando
grávida de três meses, na viagem seriam quatro. E achei
à Amiens, viajamos em um trem que nos levava até Paris,
melhor falar com um médico antes. Então liguei de novo
uma cortesia do festival — já que estávamos a uma hora
para Marina e pedi que esperasse eu falar com o médico,
e trinta da cidade-luz —, que fez questão de nos propor-
para ela acertar a passagem. O médico liberou e fomos
cionar esse luxo. Partimos cedo e tínhamos muitos luga-
para Amiens. Éramos a Tangolomango — Mostra de Cur-
res a percorrer e pouco tempo. Acho que podíamos até
tas Brasileiros de Realizadores da Periferia.
mesmo entrar para o livro dos recordes. Fizemos Lou-
vre, Dorsey, Eiffel, lojas na Champs-Élysées, George
184 Meu destino era o Nós do Morro Atravessando os muros 185

Pompidou, com direito a visita a uma curadora de outra sua própria história, que já é tão incomum, e que periga
mostra e entrega de presentes a chef de cozinha do se se tornar maior que sua obra.
restaurante Favela Chic, que matou minha vontade de
Para mim, a obra é busca. Sou reflexo das condições em
comer feijão. Foi mesmo muito legal. Também muito
que fui criada. E isso estará sempre permeando minhas
bom foi o encontro com o Sergio Machado, diretor do
escolhas artísticas. Mas serei mais feliz quando as pes-
longa “Cidade Baixa”, que estava lá para defender um
soas me olharem sem espanto, como se eu fosse um ser
novo projeto com o objetivo de angariar fundos inter-
de outro planeta, apenas por não possuir carro, conta
nacionais. Já conhecia o Sergio e agradeço a ele por ter
personalizada em bancos e imóveis de veraneio. De volta
ganhado o papel da Rosa em “O primeiro dia”, de Walter
ao Rio, depois de conhecer Marina, desenvolvemos um
Salles e Daniela Tomás. O Sergio era assistente de dire-
projeto, sendo para mim, o primeiro, usando como pre-
ção do filme e viu a Rosa em mim.
missa a generosidade intelectual. Acho que antes de
Tínhamos um interprete português chamado Luiz, que conhecê-la nunca havia escutado esse termo tão pode-
adorou um de nossos filmes: “O jeito brasileiro de ser roso. Esse primeiro projeto juntou O Nós do Morro, a
português.” Ele era divertido, me ajudou muito. Quando Cufa e o Nós do Cinema, hoje chamado Cinema Nosso.
a Marina, nossa intérprete oficial nas ruas, não estava, Foi muito especial, gerou filmes interessantes, discus-
era ele quem me livrava de embaraços, mas às vezes sões calorosas e muita cooperação. Não são fáceis e não
não falava exatamente o que eu queria dizer. É difícil ter são poucos os problemas de quem desenvolve algum
que ser interpretada e ver, algumas vezes, suas palavras tipo de trabalho cultural. Muitas vezes nos fechamos e
serem um pouco deturpadas, principalmente eu, que perdemos o tempo da troca.
gosto tanto de falar, de expor minhas ideias. Isso é o que
Já no Rio, logo no início de 2006, e com a barriga de Pací-
mais me abalou em todas essas viagens. Preciso apren-
fico de seis meses, iniciamos o projeto, que teria pausa
der uma língua estrangeira, se quiser mesmo continuar o
para o desenvolvimento do roteiro e para eu parir e ama-
trabalho que comecei e que, às vezes, tenho a impressão
mentar meu filho e voltar para as gravações com um
de ser a única coisa que sei fazer na vida.
bebê de quatro meses. E assim foi. Depois de dez meses
As viagens me fizeram perceber também que todos sem trabalhar, apesar da sensação de resguardo de que
querem ver meu filme, mas querem ainda mais ouvir a nunca mais conseguiria fazer outra coisa na vida que
menina que sai de uma favela no Rio de Janeiro, esse não fosse dar de mamar, estava no set. Gravamos o filme
lugar que muitas vezes a violência domina. Uma mulher durante as eleições e o Pacífico vinha se alimentar nos
que faz cinema, é atriz, participa de um grupo, muda a intervalos. Era possível ter vida profissional pós-parto.
vida de uma comunidade, de alguma maneira, e busca
Por isso, ao olhar aquela foto das crianças separadas pelo
transformar também a vida de um país. O fato de ser
muro, me encontrava pensativa, avaliando tudo. Retor-
mulher e pobre faz com que a minha trajetória pessoal,
naria para casa, com muitas coisas a fazer. Continuaria
em algumas situações, desperte mais o interesse das
meus projetos e não cansaria nunca na busca pela minha
pessoas do que o meu cinema. Isso sempre foi uma ver-
inspiração artística, porque é dela que alimento a minha
dade e não é fácil para um artista ter de se impor sobre
inquietude com as misérias existentes e que crio forças
186 Meu destino era o Nós do Morro Atravessando os muros 187

na esperança de mudar o mundo para que meu bebê


tenha uma vida melhor. Fomos do hotel ao aeroporto
com um motorista muito gentil, que fez questão de nos
embarcar, deixando cada vez mais claro como é hospi-
taleiro o povo alemão. Já no aeroporto, o neném dormia
no carrinho e eu voltava a procurar na bolsa o bloco de
notas. Eram as impressões registradas, com um pouco
de tristeza causada pelas impossibilidades de comuni-
cação. Via meu bebê dormir, gostava de estar voltando.
Sou apegada a minha casa, tinha saudades de meu
marido, meus amigos, minha família e também porque a
coluna já dava sinais de muito cansaço. Olhava o movi-
mento e deixava meu ouvido se acostumar com os vários
idiomas que enchiam o lugar. Quando estamos longe de
casa é que melhor se revelam nossas raízes, nossa filo-
sofia, pois precisamos nos encontrar no meio desse mar
de culturas distintas, sem se fechar. Apenas se permitir
ser quem você é de verdade.
Em todas essas viagens sempre trago planos na baga-
gem de volta. Alguns deles já se concretizaram e outros
estão a caminho. Viagens são os melhores momentos
para se planejar o futuro. Conto essas experiências,
porque elas mudaram minha maneira de me relacionar
com as pessoas. Agregaram valores e saberes a minha
vida, e fazem parte da minha personalidade, e se nunca
tivesse sido encorajada a perceber que o mundo é muito
maior e com horizontes muito mais amplos do que esta-
mos acostumados, nunca teria atravessado o muro. É
preciso atravessar o muro. Acreditar que ele não pode te
impedir. E não impedirá.
Por meio dessas viagens fiz amigos, firmei projetos, criei
outros, dei sequência, em uma esfera muito maior, aos
ensinamentos artísticos que acumulei no grupo — que
no início era apenas da comunidade para a comunidade
e passou a ser para o mundo. Sempre em exercício.
Cap.10
Cinema, uma nova paixão
Cinema, uma nova paixão 191

O Vinícius trazia para a gente a parte histórica e Rosane


nos apresentava a direção cinematográfica e o roteiro.
Nós, os monitores, aproveitamos muito essas aulas,
que eram também aplicadas aos textos teatrais que
escrevíamos. Desde quando começara a ver surgir os
primeiros textos mais elaborados, Rosane nos incen-
tivara a inscrevê-los em editais, concursos ou o que
aparecesse. Cacá faria o “Veja essa canção 2” e sele-
cionava roteiros. Esse foi um dos nossos exercícios
Rosane Svartman e Vinícius Reis, estudantes de cinema, naquele ano. Um projeto de roteiro baseado em uma
começaram a dar aulas de cinema para o grupo de ato- música popular. Quase todos fizemos e mandamos.
res de teatro. Eu me interessei rapidamente pelo roteiro. Acho que o projeto não foi para frente e nem sei se o
Queria escrever minhas histórias, achava também que Cacá chegou a ler todas aquelas loucuras.
aquelas aulas me ajudariam a entender o cinema. Ainda
Fomos apresentados às “Técnicas de roteiro”, “A jor-
não sabia se realmente faria filmes, a ideia inicial era
nada do escritor”, “A jornada do herói”, “Como se tor-
poder reforçar meu trabalho como atriz. Mas no meio
nar um escritor”, “Da criação ao roteiro” — esses são
desse processo veio a paixão pelo fazer cinema.
alguns textos que lembro ter lido na época, e aos quais
No começo, as aulas aconteciam uma vez por semana, recorro com frequência. Também nos enveredávamos
encontrávamos em um semana com Rosane e na outra pelo mundo de Mário Peixoto, Glauber Rocha, Truffaut,
com Vinícius. Era um mundo novo. Nas aulas do Viní- Pazolini, Nelson Pereira dos Santos, Scorsese, Fas-
cius, que assistíamos a filmes, o Guti trazia da sua casa sbinder, Buñuel e muitos outros que mudaram minha
uma TV e o recém-chegado ao grupo Gustavo Melo, esse maneira de ver o cinema. O primeiro exercício de argu-
vindo de longe e indicado pelo Cacá Diegues que, ao mento Rosane nos passou quando já tínhamos algum
receber um fax do Gustavo pedindo ajuda para se tor- tempo de aula. Recordo-me de ter sido massacrada por
nar um cineasta, o incentivou a vir para o Vidigal, onde ela. Não o considerou um argumento. Ela disse: “Está
Rosane acabara de fundar um núcleo de cinema. Ele foi filosofando, não me conte o que não interessa, me
a primeira pessoa a procurar o Nós do Morro interes- conte seu filme, me conte em imagens.” Tenho tentado.
sada em fazer cinema. Veio e trouxe de doação, claro E me lembro dessa frase toda vez que tenho de escre-
que sem a mãe saber, o vídeo da sala, para nós usarmos ver um argumento. Ajuda-me a cair na real sempre.
nas aulas. Foram quatro anos de aula com os dois, com
Rosane conseguiu, com uns amigos, umas pontas de
dois ou três workshops de fotografia, direção de arte e
negativos e propôs um exercício prático. Foram sema-
som até vivermos nosso primeiro set. Todo o restante
nas de preparação e chegou o grande dia. Passamos
havia sido aprendido com Rosane e Vinícius e com os
dois dias filmando com uma bolex. Foi ótimo sentir o
estágios que estávamos fazendo desde que começa-
gostinho de comandar um set. O exercício foi revelado e
mos a fazer aulas de cinema.

190
192 Meu destino era o Nós do Morro Cinema, uma nova paixão 193

gerou a maior decepção. Algumas das latas que usamos instituições de todos os tipos que trabalhassem com
estavam já filmadas e filmamos por cima de um enterro menor e muitas comunidades. Testamos uma média de
do MST, ou coisa parecida. Mas não demorou muito e a três mil meninos. Às vezes, testávamos as meninas, se
sorte batia a nossa porta novamente. Eu trabalhava um eram poucas, para que não se decepcionassem, mas
roteiro chamado “Zé, o super-homem” e havia mais uns sabíamos que não fariam a oficina. As turmas seriam só
dois ou três sendo trabalhados por outros para serem de meninos. Depois de selecionados, uns quatrocentos
enviados ao edital da Riofilme. “O jeito brasileiro de ser meninos fizeram as oficinas que tinham carga horária de
português” foi um dos escolhidos daquele edital. Tínha- cinco horas de aula por semana durante quatro meses
mos agora nosso primeiro set de verdade. e não podiam faltar. Mas ninguém queria faltar. Lem-
bro-me de ter passado o dia inteiro na Cidade de Deus
Era um roteiro do Gustavo que, após quatro anos, ia ter
fazendo os testes e não acho que estavam todos muito
sua primeira experiência como diretor. Reuniamo-nos
empolgados com a possibilidade de se filmar o romance
para as leituras do roteiro e para formar equipe. Alguns
de Paulo Lins, que já não era unanimidade na Cidade de
de nós assumimos funções de suma importância e par-
Deus. O Leandro Firmino da Hora, que veio a ser o Zé
tíamos com tudo para nosso primeiro set. Gustavo con-
Pequeno, e que de fato teve a vida alavancada após fazer
vidou o Dib Lutfi para fotografar o filme e dar aulas para
o filme, não queria fazer o teste. Veio acompanhando o
a gente no set. Ele aceitou e foi incrível tê-lo por perto.
irmão. Eu insisti muito para que ele fizesse, eles eram
Eu que já havia me apaixonado por ele — após ter assis-
muito parecidos e pensava na possibilidade de ter de
tido um curta que conta um pouco da sua habilidade com
montar famílias. No final, fez o teste e tivemos de pro-
a câmera —, fiquei feliz por estar ao lado daquela cria-
curá-los como loucos. O Fernando aprovou os dois, mas
tura incrível movida a paçoca, seu doce predileto. Assumi
eles tinham colocado na ficha o número de um telefone
a assistência de direção apesar de não ter tanta certeza
público perto da associação, o que estava ali próximo na
do que estava fazendo, mas logo descobri tudo direitinho
hora de preencher, mas a casa deles ficava muito longe
no set. O filme levou um ano para ficar pronto e acredito
do aparelho. Tivemos de voltar mais de uma vez até con-
que estreamos com muita qualidade. O Gustavo, que veio
seguirmos avisá-lo de que tinha sido aceito na oficina. A
a fim de fazer cinema, estava conseguindo. Nós estáva-
oficina oferecia vale transporte e lanche. Nesse momento
mos conseguindo. Era preciso acreditar e perseverar.
trabalhavam no projeto eu, Mara, Lu Vidigal, Guti, Kátia
Ainda no início do projeto “Noites do Vidigal”, Guti foi Lund, Fernando Meirelles, Lia e Lamartine Ferreira, já
procurado por Kátia Lund e Fernando Meirelles, que lhe como assistente de direção do filme. Quando o projeto
propuseram uma oficina e também a preparação de alu- das oficinas acabou, Fernando prometeu que assim que
nos para compor as turmas. Preferencialmente negros, estreasse o filme se dedicaria a fundar um projeto para
de comunidades ou instituições que abrigam menores. ensinar cinema a esses alunos da oficina, em especial,
O Guti convidou à mim e ao Luciano Vidigal para ajudá- aos que não foram aproveitados para o filme, mas foram
lo nesse trabalho. Foram uns oito meses de projeto despertados para a arte. Era um dos acordos dele com
no total. Eu e o Lu visitamos mais de cinquenta lares, o Guti. Foi então fundado o Nós do Cinema, que de tanto
194 Meu destino era o Nós do Morro Cinema, uma nova paixão 195

causar confusão, porque as pessoas achavam que esse de que caiu numa cilada. O roteiro precisava de ajustes,
era o nome dado à parte do Nós do Morro de cinema, o estava grande para uma história tão objetiva. Você pre-
nome mudou para Cinema Nosso. Difundia-se no Rio um cisa resolver tudo. Você agora precisa fazer.
movimento de produção audiovisual da periferia.
Foi uma alegria! Dei a notícia para o meu pai enquanto
No Nós eu me dividia entre as aulas de teatro e a mon- tomava um café numa padaria na Rocinha antes que ele
tagem de espetáculos, mas os trabalhos remunerados entrasse no trabalho.
vinham todos das áreas de cinema e TV. Quando acabei
— Cinquenta mil? Mas por que eles te deram esse
a temporada de oito meses do “Noites do Vidigal”, pre- prêmio?
cisava voltar a trabalhar. O Lucio conseguiu me encai- — É um prêmio pelo roteiro que escrevi.
xar na equipe da série “Cidade dos homens”. Estava tra- — E você vai comprar uma casa?
balhando muito e precisava do trabalho para aliviar o — Não, pai. Vou fazer o filme.
tempo de dureza que tinha passado. Gustavo chegou em — Boa sorte!
casa e me anunciou que estava aberto o edital da Rio-
Rapidamente tive também de lidar com os negócios. Não
Filme e que eu deveria inscrever de novo o roteiro. Eu,
é fácil administrar o dinheiro de um filme. Uma obra frá-
muito cansada e vindo de um ano exaustivo, já entregara
gil que, dependendo das condições que forem impostas
os pontos, também porque sabia que naquele mês era
às filmagens, pode mudar. Vai saber aonde vai parar? O
impossível. Estava saindo de casa às 7h e retornando
Lucio, que é um grande amigo e sempre comungou comigo
às 23h. Ele pegou um projeto que ainda era batido na
a vontade de realizar projetos, garantiu que se fosse
máquina de escrever e prometeu me ajudar.
em janeiro ia dar tudo certo. Ele estaria de folga numa
Depois de umas duas semanas ele voltou a minha casa e entressafra de filmes (estava trabalhando com o Lamar-
me obrigou a ir com ele para o fechamento do projeto. tine direto), então seria certo, estaria no filme. A equipe,
Alegava não poder mexer sozinho em minha justifica- por necessidade, foi bem misturada. Mas a mistura se
tiva. Ele tinha digitado o roteiro, sinopse, orçamento. deu também porque nesse tempo havia feito alguns ami-
Sentamos juntos para fazer cronograma e justificativa gos aqui e ali e havia pessoas de lugares diferentes que eu
e precisava assinar a documentação para ser entregue acreditava no trabalho. Mas a maior parte era toda daqui.
por terceiros. Fui para o set sem dormir no dia seguinte. Um momento de muito orgulho na comunidade. Pude per-
E o Gus nos inscreveu. Foram, naquele ano, três proje- ceber isso nas duas vezes que armamos o circo grande no
tos do Nós. Anos mais tarde casei com ele, mas o amor, Vidigal. Todos gostam, porque isso não é comum. Todos
acho que começou ali. sabem o esforço empenhado para isso. Comum são os
A notícia de que o roteiro tinha sido premiado foi dada gringos filmarem a favela. Nós pouco fazemos isso.
pelo Guti, ao telefone, quase histérico. “O prêmio é seu, Só fizemos teste para o personagem da Keite, a afilhada
o ‘Mina de fé’ será filmado.” Fiquei tão louca, não sabia de Maninho, o dono do morro, casado com Silvana, que
o que pensar. É engraçado quando se ganha um prêmio está grávida, mas com muito medo de contar para o
de realização, e, ao mesmo tempo, se tem a sensação marido, porque ele é um cara estourado, que não quer
196 Meu destino era o Nós do Morro Cinema, uma nova paixão 197

ter filhos. Ele está deprimido porque um de seus jovens mais guerreiras, as descendentes dos quilombos, dos
soldados matou um policial para mascarar um roubo e canaviais, das rodas de samba e das crianças nas costas.
teve de ser morto por ele. E Maninho pensava: “Isso não Mas aquela história tratava-se dessa minoria. Não me
vai ficar assim, porque a polícia vai subir o morro para surpreende ver um bandido humanizado. Claro que a vio-
se vingar.” E o casal do filme tem, no máximo, 24 anos. lência cresceu e as armas ficaram cada vez mais podero-
Tinha, às vezes, arrepio nas canelas e pensava: por que sas, mas ainda tenho lembrança de um bandido — apesar
tocar nesse assunto? Por que não contei outra história? de parecer loucura o que vou dizer — que respeitava os
Teria de lidar com todo aquele sofrimento, mas ao mesmo moradores a ponto de ser amado. Tinha em mim a memó-
tempo era também a chance de falar. É difícil condu- ria dos caras que pela manhã levavam o filho à escola.
zir uma história sem ter um herói. E foram surgindo aos Mas, até hoje, não compreendo como isso ocorre. Tenho
poucos os principais questionamentos. Recebemos Fer- dificuldade de entender a profissão de soldado seja ele
nando Meirelles para uma entrevista, e a foto que faría- de que lado esteja. Não compreendo realizar um ofício em
mos na varanda do casarão — lugar com uma das vistas que faz parte de suas funções tirar vidas. Levantar a arma
mais bonitas do Rio de Janeiro — tinha três dos principais e atirar em alguém. Mas os soldados existem e algumas
atores do filme “Cidade de Deus”, integrantes do grupo: pessoas parecem ter nascido para isso.
Roberta Rodrigues, Phellipe Haagensen e Jonathan Haa-
Durante o trabalho de preparação para as filmagens,
gensen. Conversamos um pouco sobre o roteiro.
fiquei mais intensamente com o casal, que precisava
— Está preparada? criar uma intimidade. Também fizemos encontros com
— Não sei. todo o elenco. Era muita gente. Durante esse processo
— Você humaniza demais seu bandido, ninguém está algumas cenas já tinham caído do roteiro, mas ainda
acostumado com isso. Vão lhe acusar de apologia, essas mantinha dois luxos: o baile e um samba em flashback.
coisas. Tem que estar preparada. O tempo passou muito rápido naqueles três meses até
Eu brinquei: “Só as cachorras, as preparadas...” as filmagens e na semana que começaríamos a rodar o
filme a previsão era de chuva todos os dias. Não sabia
Aos poucos tomava noção da história que iria filmar. Mas mais o que fazer e não podia esperar. Equipamento,
esses personagens, para mim, sempre tiveram mais vida equipe. Decidido. Filmamos com chuva. Faríamos um dia,
do que as vidas que aparecem no jornal. Criamos um laço sábado, folgaríamos no domingo e voltaríamos segunda,
psicológico forte entre os dois. Uma história de amor terça e quarta. Tinha uma equipe e tanto. Enfrentou o
adolescente, um envolvimento precoce com o tráfico mau tempo e o cansaço de subir os equipamentos por
e uma mulher omissa, que apesar de ver muita bandi- escadas e vielas. No sábado filmaríamos o baile, mas a
dagem, não tinha nenhum questionamento, nem com chuva foi muito intensa. Eu a vi, do mirante do Vidigal,
o próprio companheiro. Também fui muitas vezes criti- chegar impiedosa. Vinha para acelerar mais meu cora-
cada por isso. Mas sou muito racional e busquei um per- ção. Para fazer daquele momento ainda mais inesquecí-
fil que se permita esse tipo de omissão. Esse, eu sei, não vel. Cheguei à beirada do mirante e rezei:
é o perfil nem de 1% da favela, onde tem as mulheres
200 Meu destino era o Nós do Morro Cinema, uma nova paixão 201

Minha Santa Bárbara. Segura a minha cabeça. boa e uma ruim. A boa: o tempo melhora amanhã, mas
Santa Bárbara, ainda com pancadas de chuva. A ruim: é impossível gra-
que sois mais forte que as torres das fortalezas var a quantidade de sequências que faltam. Tive um
e a violência dos furacões, minuto de ausência. Esse dever de casa é meu. E esse
fazei que os raios não me atinjam, eu aprendi bem com a teacher, como gostamos de cha-
os trovões não me assustem e o troar dos canhões
mar a Rosane.
não me abale a coragem e a bravura.
Ficai sempre ao meu lado para que eu possa enfrentar de Conte seu filme. Esteja sempre ligado no fio narrativo.
fronte erguida e de rosto sereno todas as tempestades Fui para casa e naquela noite não dormi. Lia e relia o
e as batalhas de minha vida, para que, roteiro. Passava na mente os planos que tinha de cada
vencedor de todas as lutas, cena. Mas em algum momento, depois de muito rabis-
com a consciência do dever cumprido, car, veio a iluminação de Santa Bárbara. No roteiro ori-
possa agradecer a vós, minha protetora, ginal, a abertura do filme tinha um jogo de futebol e
e render graças a Deus, Maninho dando bala a uma criançada. Já tinha come-
criador do céu, da terra, da natureza: çado a implicar com essa cena, mas não conseguia até
este Deus que tem poder de dominar então resolvê-la melhor. O tal flashback que suposta-
o furor das tempestades
mente mostraria ali uma rivalidade e um amor de muitas
e abrandar a crueldade das guerras.
mulheres, um clichê do chefão. Considerava essa cena
Santa Bárbara, rogai por nós!
de suma importância para o perfil da Silvana. Somarei
Se a chuva vai ser mesmo inevitável, me ilumina para pen- os dois. Não tem mais flashback. É tudo agora, ontem,
sar. Lucio se aproximou de mim, recolhemos tudo e nos não importa. O jogo, o churrasco, os dois são no mesmo
enfiamos na casa. Eu respondi de pronto: “Sequência 2. dia. Fiquei feliz. É a abertura do filme, que teve ainda de
Maninho sai para trabalhar.” Agora mesmo. Entramos na ganhar retoques com os nomes dos criadores do filme
casa. Era um plano sequência. Fizemos algumas vezes em cartelas para criar um leve espaçamento e um corte
e a chuva só aumentava. Observei o pavor nos olhos do na sequência de imagens. Porque quando fomos gravar
Lucio, mas, como fiel escudeiro, manteve-se calado até essa cena, durante o dia que estivera todo tempo entre
o fim da sequência, que foi comemorada com êxito. Abri- momentos de quase sol e chuva, caiu uma chuva que
mos o set. Agora nada mais deve nos parar. Vamos cum- chegou tão rápida, por trás da Pedra da Gávea. Tremi. A
prir o filme. O Lucio me chamou, o Gustavo havia ligado. tarde já tinha avançado e escureceu em poucos minutos.
O largo da D. Rosa, onde seria o baile, estava todo ala- A cena foi toda rodada de uma só vez. Os atores esta-
gado. O cara da equipe de som queimou uma caixa. Uma vam marcados para congelarem no “corta”. Nós tro-
loucura. Eu respirei: “Continuamos na casa.” cávamos a câmera de lugar e eles retornavam de onde
pararam. Foram perfeitos. As meninas estavam ótimas.
Foi essa loucura todos os dias, cada uma com sua
Fizemos um pequeno aquecimento, sentia segurança
bomba a ser desarmada. Na terça-feira, quando fecha-
nelas, estavam em casa. Algumas das atrizes eu tinha
mos o set, Lucio me chamou preocupado, mas, brinca-
quatro e outras seis anos de companheirismo no palco.
lhão como sempre, disse que tinha duas notícias. Uma
202 Meu destino era o Nós do Morro Cinema, uma nova paixão 203

Conhecíamo-nos. Demos um grito de guerra e fomos para o envelope. Ela já havia ajudado o Gustavo na finaliza-
esse desafio. Dois planos. Um take. Adoro essa cena. Eu ção de “O jeito brasileiro de ser português”. Fernando
sei que o Vampiro, técnico de som do filme, sofre, porque o Meirelles falou que se eu precisasse, era para entrar
som nos trai, está um pouco distante, mas eu gosto ainda em contato por meio dela. Criei coragem. Liguei e pedi
mais. Como é bem no início, é como se fosse aquele pri- ajuda. Ela disse que ofereceria o trabalho para Marcelo
meiro grito. O que o chama para a briga, o que você ainda Pedrazzi finalizar. Era um jovem experiente e pode-
não identifica, mas olha e aí então está ouvindo tudo e ria me auxiliar em todas as etapas. Fui a um primeiro
sabendo o que está acontecendo. encontro com ele e lhe dei duas VHS, mas acho que o
assustei. Após ver as fitas em casa, me ligou, elogiou o
Tinha um time de primeira. Esse último dia parecia
filme e perguntou “Vamos começar a montar quando?”
interminável. Fizemos cenas muito fortes, inclusive
uma segunda tentativa do baile. E me lembro de fechar Tínhamos um espaço em uma ilha na VideoFilmes onde
o set, de madrugada, às 4h e de estarmos trabalhando começamos a trabalhar o filme. O processo de edição
desde às 10h, em um beco da 25, rua onde o acesso se não foi dos mais demorados. Não tínhamos tantos planos
dá apenas por escadas. Precisávamos agora descer assim. A película não dá esse luxo. Mas foi muito praze-
todo o material e entregá-lo. Estava cansada e con- roso. Havíamos perdido a sequência do baile por proble-
fusa. Já não sabia direito o filme que tinha nas mãos. mas no negativo. Sobrou uma cena inteira, que pode-
Ele sofreu mudanças, sofreria ainda mais, era novo para ria ter caído no roteiro, mas às vezes a gente se apega
mim. Precisava descansar. Tive uma depressão pós-set. a cada coisa. Uma outra só entrava um recorte e num
Todo mundo trabalhando, muita correria, muita adrena- contexto totalmente diferente do que era o da cena. Um
lina. Mas agora estava meio só. Precisava montar. Todos típico truque de edição. Para terminar um filme, em algum
aqueles processos de laboratório. Som. Ainda estava momento, você precisa abrir mão dos detalhes. Houve
longe de ver o filme. O copião (filme corrido, sem edi- ainda a finalização da trilha que me fez ver o filme e me
ção) me assustou, e é difícil ver seu próprio Frankens- emocionar depois de já o ter assistido na edição não sei
tein e pensar que é preciso costurá-lo. A Branca Murat, quantas vezes. O Grupo Conecta fez um trabalho primo-
produtora do filme, havia deixado o filme na lata, reve- roso. Quando me reuni com o Marcelinho, baterista amigo
lado, mas já estava em outra. Teria de tocá-lo sozinha. já de algum tempo, e Alexandre, que me foi apresentado
Precisava de ajuda. Liguei para Bel Berlink, que havia por ele, o que eles mais ouviram de mim naquela noite é
visto apenas uma vez, no dia do lançamento do “Cidade que, embora em situação muito hostil, o que tínhamos no
de Deus”, quando entreguei um envelope para ela. Pre- filme era um romance. E eles foram perfeitos, me ajuda-
cisava ir, mas estava trabalhando na série “Cidade dos ram muito na finalização.
homens” com prazo apertado e me ofereci para entregar
Em março de 2004, o “Mina de fé” chegava às telas em
o envelope, quando ouvi pela produtora que deveria che-
noite de Maratona de cinema e vídeo Nós do Morro no
gar à Bel ainda naquele dia. Consegui sair um pouco mais
Odeon. Guardei toda a economia do filme para o lan-
cedo, mas arrumei uma encrenca porque não a conhe-
çamento, precisava mostrá-lo. Era a minha cartada
cia. Foi um tal de pergunta daqui e dali. Até que mais
final: gastar nesta noite o que restava do filme e contar
uma vez o Gustavo me salvou. E consegui entregar à Bel
204 Meu destino era o Nós do Morro Cinema, uma nova paixão 205

com o retorno positivo. O Odeon estava cheio. Foi uma depois e Beth elogiou muito a história, mas por ser minha
noite muito emocionante. Passamos algumas produ- amiga tocou no assunto, e eu logo me justifiquei. Havia
ções que vínhamos realizando, juntamos muita gente e o ido assim que acabara o filme na sala de projeção e o
filme estreou. Eu estava tão magrinha que faria inveja a cara me garantiu que se estava sem sincronia é porque
qualquer modelo. Muito trabalho. Olhava o filme na tela veio assim. Mas eu atestava que já tinha visto o filme três
e às vezes nem acreditava. Ao meu pai e à minha mãe vezes e não estava assim. A Beth não queria saber de des-
disse que aquele dia significava para mim como um dia culpas: “Você está com um filme lindo, mas precisa resol-
de formatura. Apesar de felizes, não engoliram essa, o ver o som.” Concordei. Agradeci e liguei para o Pedrazzi,
diploma ainda estou devendo e pretendo resolver nos que me tranquilizou. Disse que poderia ter sido um defeito
próximos anos. Sinto necessidade de me graduar e tam- na projeção, que eles podem ter emendado mal. Sei que
bém ainda quero lhes dar essa alegria. nunca mais tive esse problema. Nem mesmo quando pas-
sei no Labocine, já no táxi do aeroporto para pegar a cópia
Esse trabalho findava e eu recebia a notícia de que o
perfeita que levaria a Clermont-Ferrand nos braços. Sem
“Mina de fé” passaria em seu primeiro festival. São
nem ver uma sessão teste. Nas mãos de Deus e do seu
Paulo queria o filme. Comemorei! Fui para lá. Era meu
Francisco que fez milagre nesse filme.
primeiro festival. Só tinha dois dias, havia pedido uma
dispensa no trabalho. O filme passaria no MIS (Museu da Seu Francisco era o colorista e o responsável pela amplia-
Imagem e do Som). E tinha recebido um bilhete da Lis, do ção desta cópia que passou por um processo arriscadís-
Porta Curtas, dizendo que tinha gostado muito do filme. simo, tive até mesmo que assinar um termo de respon-
Encorajou-me. Fui para a sessão tremendo. Fiquei mais sabilidade. Quando fizemos o primeiro transfer, a fim de
relaxada de encontrar a Beth Formagine, que conheço baratear e facilitar a produção que tinha pouco dinheiro
de longa data. Estávamos eu e o Rinaldo, um amigo, que e locações apertadas, escolhemos o super 16mm como
era meu convidado para a sessão. Já tinha assistido formato de captação, que foi aceito pelo Santiago Harte,
aquela cópia, única até então, três vezes. A primeira um argentino, com sobrenome de personagem de série
quando retirei do Labocine, a segunda em sessão teste americana, que veio para cá muito cedo, criou-se em
no Cinema Estação, e a terceira na Maratona no Odeon. Santa Tereza e estava então acostumado a fotografar
Essa seria a quarta, sendo a segunda com público. Logo desde pequeno com os próprios olhos o enquadramento
que a exibição começou notei algo esquisito, a imagem de cima para baixo. Dizia sempre isso pra ele: “Vamos
me pareceu meio fora de foco com um leve deslize. No mostrar a favela por dentro e de cima para baixo.” É
primeiro plano mais fechado — e eu tenho um curta com que Silvana é também prisioneira deste espaço, ela vê
muitos planos fechados, já que muitas vezes era isso a cidade de longe, apenas de dentro da favela. Na última
que a chuva me permitia fazer e outras porque gosto cena a ser gravada estávamos em um beco, os policiais
da aproximação do rosto —, vi que estava tudo fora de subiriam e Keite encontraria com eles.
sincronia, ou seja, o som não acompanhava a imagem.
Já fazia mais de uma hora e algumas crianças acompa-
Naquele dia talvez eu gritasse “Para o filme!” Mas não fiz
nhavam as filmagens de uma escada na porta de casa.
nada. Apenas disse ao Rinaldo: “Eu sei que ele tem sincro-
Eu as mandei entrar, perguntei pela mãe que não estava.
nia.” Mesmo assim muitas pessoas me cumprimentaram
206 Meu destino era o Nós do Morro Cinema, uma nova paixão 207

Estavam sozinhos, uns tomavam conta dos outros. Eles cabeça, pensava que ainda não podia exibi-lo no Vidigal,
não entraram enquanto não acabamos, aparecem no porque o lugar atravessava a pior guerra de sua histó-
filme no fundo da cena na mesma condição que a Keite, ria. Pensava em como voltaria para casa. Tive uma boa
ali na rua, desprotegidas. Nessa hora só estavam pes- recepção do público e em seguida foi exibido o “Cabra
soas da equipe estritamente necessárias para o fecha- Cega”. Fui embora de Brasília com a reação do público na
mento daquelas cenas, exaustas. Olhei o Lu, naquele cabeça e com a crítica de Luiz Eduardo Soares nas mãos,
beco para fazer a cena, ele não podia estar sozinho. Olhei bastante abatida. Na terça-feira, sairiam os prêmios de
em volta: “Nego, vem você.” Mas o Vampiro, que coman- Júri, Melhor longa e Melhor curta ficção para “Cabra
dava o som, chiou. O Nego era seu microfonista. “Então Cega” e “Mina de fé”, respectivamente. Ambos saíram na
vai o China.”, disse. E ele que estava ali, de terceiro cara manchete do Caderno B como cinema em tons políticos.
de som, mas tinha uns três anos de aulas no grupo, se
Estava deitada e o telefone tocou, era Carla Severo,
saiu muito bem. Eu gosto muito desta dupla. Eu aprendi
a Silvana, que fez sua estreia no curta e não voltou a
muito durante o filme. Todo o processo. Eu mudei muito
atuar, uma pena. Gosto muito do trabalho dela, que
também. Assim como o mundo. Nessa época, o Vidigal,
era a mais inexperiente do grupo. Já recebeu um prê-
a favela do Papa, entrou em guerra. Mas a guerra não se
mio de melhor atriz em um Festival de curtas e críti-
instalou de imediato, foram quatro ou cinco meses de
cas muito pesadas também. O Junior conseguiu fazer
tentativas, ameaças, sustos, terror psicológico.
um Maninho sensível, o bandido racional, esse tam-
O filme passou no Festival do Rio, com Menção Honrosa bém não continuou atuando e tornou-se guardião de
da ABDeC (Associação Brasileira de Documentaristas piscina. Mas esses personagens, esses atores e todos
e curta-metragistas). Foi aceito em Brasília. Viajei para os amigos que tive na realização desse filme ganharam
Brasília com a cabeça em chamas. Quando subi ao palco, o prêmio que a Carla me falava pelo telefone e muitos
fiz um discurso inflamado, político, sobre exclusão. Não outros. Ela gritava eufórica do outro lado da linha de um
me lembro de nada do que falei. Estava muito emocio- celular. Pedi que se acalmasse e perguntei: “Mas que
nada com os acontecimentos da noite anterior — o Bope tipo de prêmio?” E ela: “Sei lá, mas o que te importa,
havia subido o morro para conter a guerra entre facções, foi premiado.” No dia seguinte, começaram as congra-
e ficamos com três forças guerreando lá dentro —, e este tulações. Havia sido o Prêmio Oficial do Júri. Mais tarde
momento não saía da minha cabeça. Há quem diga que tive oportunidade de agradecer pessoalmente à Lúcia
ganhei o festival no discurso, no grito, e não no filme. Murat e ao Jorge Bodansk, que faziam parte da mesa.
Na manhã seguinte estava feliz até ler o jornal no qual Fui buscar o prêmio na casa da Beth Formagine, que
Luiz Eduardo Soares classifica o filme como inexpe- narrou para mim com emoção o momento e disse não
riente. Caminho para a experiência, ainda chego lá. Não ter acreditado quando ninguém levantou para receber
é nada bom ler palavras tão duras já de cara. Mas ele o prêmio, e então ela se levantou: “Eu levo pro Rio!” E
não estava falando nenhuma mentira. Quando o filme foi ainda subiu e fez discurso encalorado, que me conhecia
exibido naquela tela enorme — que cinema incrível o de desde pequenininha. Adoraria estar lá naquela hora. Mas
Brasília, lotado —, passava todo o processo na minha fui bem representada. E fico feliz de ela ter assistido ao
208 Meu destino era o Nós do Morro Cinema, uma nova paixão 209

filme com o som sincronizado. O filme ganhou ainda o


Prêmio de Melhor Filme Ficção no Festival Curta Cinema.
Esse festival foi especial para o filme, por ser um festi-
val exclusivo de curtas e internacional, que levou o filme
ao conhecimento de um público especializado em cur-
tas-metragens; a partir daí foi convidado para a mostra
competitiva em Clermont-Ferrand, e em mais três cida-
des francesas: Amiens, Paris, Toulouse. Fez Alemanha,
Itália, Portugal, Espanha, África e Guianas por meio da TV
Plus francesa, Inglaterra, Israel, Finlândia, Índia, ganhou
prêmio em Nova Iorque e depois disso foi a praticamente
todos os festivais nacionais, em mostras competitivas ou
anos mais tarde em mostras não competitivas. O filme já
foi exibido em muitos lugares. O curta é um fenômeno.
Durante a finalização do filme iniciamos um projeto cha-
mado “Vidigal Olimpo”. Já fazia um ano que Pedro Rossi,
designer recém-formado pela PUC, e Gabriela Maciel,
artista plástica, davam aulas no casarão. Pedro me ofere-
ceu uma carona e depois de um papo surgiu uma câmera
e um possível projeto. Em uma semana, estávamos nas
ruas com uma câmera de 1 ccd da mãe do Pedro e demos
início às gravações do documentário “Hércules”, que nos
serviria de ponto de partida para outros. Um projeto sobre
trabalhadores que inventavam seu trabalho na busca da
sobrevivência. Projeto esse não concluído. Apenas o vídeo
do primeiro personagem ficou pronto, que conta a histó-
ria de Robson, um carregador de ferro-velho, que causava
muita curiosidade e admiração entre os moradores do
Vidigal. Robson não chegou a ver o filme, morreu vítima de
HIV. Estreamos o vídeo na abertura do espetáculo “Burro
sem rabo”. Estava lotado e o vídeo fez sucesso.
Com o Pedro, a Gabi, o Gustavo e o Lu Vidigal inaugu-
ramos um momento de muitas realizações, a partir da
possibilidade de usar esta câmera da mãe do Pedro.
O prêmio trouxe o reconhecimento das pessoas e a
210 Meu destino era o Nós do Morro Cinema, uma nova paixão 211

parceria do Cavi Borges, hoje conhecido no Rio como o um argumento de André Santinho, ator do grupo, que
maior produtor de filmes digitais. Fizemos “Neguinho sempre se destacou também nas áreas de cenografia,
e Kika” e “As cotias do Campo de Santana”. Chegamos iluminação e textos teatrais, além de trazer aventura e
a tentar fazer uma primeira mostra de cinema e vídeo jovialidade em suas peças. Como multiplicador, deve ter
Nós do Morro. Foi produzida pelo Lucio, tinha o apoio da escrito umas seis peças infanto-juvenis. Havia desenvol-
Prefeitura, aconteceria em setembro de 2004, mas foi vido a história durante as aulas de cinema com a Rosane,
justamente no dia da mostra que um grupo fortemente mas ela ficou na gaveta, até que dois anos depois virou
armado invadiu o Vidigal pela mata vindo do alto do projeto e era trabalhado a cada edital pelo Gustavo, que
morro, local onde aconteceria o evento. Alguns de nós acreditava mais que ninguém nessa história.
já estávamos lá, inclusive nosso amigo e parceiro Cavi,
Naquele ano os projetos foram profissionais, haviam
que disse ter sido seu primeiro dia em zona de conflito.
ganhado uma cara gráfica com o Pedro, coisa que antes
Imediatamente pegamos a lista de convidados, ami-
nunca nenhum deles tivera. E estava lá na lista trazida
gos e parceiros e avisamos para que não viessem para
pelo Gustavo o nome “Picolé, pintinho e pipa”. Agora era
cá, o evento estava adiado. De adiado passou a cance-
rezar para que tudo continuasse tranquilo para poder fil-
lado. Mais uma frustração trazida pela guerra. Passado
mar. Em novembro de 2005, estávamos filmando o Picolé.
um tempo após o “Mina de fé”, fizemos parceria com
Que tinha como locação vielas do 314, rua principal, e
mais duas produtoras, a Cavídeo e a Mundo Novo, em
vielas da pedrinha e da rua 25. Era preciso fazer aquele
que estava Pedro Rossi, figura que me orgulho de ter
filme. Como é deliciosa a sensação do desafio, mas como
ganhado como amigo e das mais adoráveis para se rea-
lhe tira o sono também. Esse eu iria produzir e havia uma
lizar projetos. Foi produzido além de “Neguinho e Kika”
pressão para que não demorasse muito, porque teríamos
e “As cotias do campo de Santana”, o projeto “Sete
que aproveitar o momento de calmaria da guerra. Seria
minutos”. Experimentávamos o digital. E deu certo.
bom estar nas ruas de novo. Seria bom resgatar a voca-
Ao mesmo tempo, o digital não era tão barato assim. Não ção ao qual esse morro sempre serviu: a arte.
para fazer com qualidade. Essa é a grande diferença. A
Traçamos um plano longo de produção no qual a pré-pro-
qualidade. O poder ousar, o ter tempo para solucionar
dução levaria três meses. Todos estavam envolvidos com
questões, isso faz diferença no cinema, como em tudo
outros trabalhos, alguns poderiam desligar-se durante
na vida. Por meio de um projeto para o BNDES, o grupo
as filmagens, outros um pouco antes, mas a produção, a
que já tinha 3 realizadores — eu, Gustavo e Luciano —
direção e seus assistentes começaram cedo no projeto,
agora com filmes premiados, ganhou uma câmera digital
que era ambicioso para as condições que tinha. Seria fil-
com possíbilidade de fazer filmes de extrema qualidade.
mado em seis dias, um deles com a rua principal fechada.
Usada por nós até hoje. Além de uma ilha de avid. As
Eu estava com três meses de gravidez, isso quer dizer
produções cresceram. “O Patinho feio” e “Caixa preta”,
que havíamos começado a produzir o filme junto com o
dois curtas de Ana Okuti, exemplificam uma geração
filho. Trabalhar em família não é fácil. Durante os seis
que cresce com o exercício prático do cinema virando
dias de set, eu me dividia entre a filmagem e a finaliza-
realidade. Veio então o terceiro prêmio de edital para o
ção do programa “Não é o que parece” para o Futura,
Nós do Morro, projeto do Gustavo Melo, que partiu de
212 Meu destino era o Nós do Morro Cinema, uma nova paixão 213

experiência extremamente enriquecedora, em que tive pelo local que estávamos filmando para “garantir” que
contato com pessoas incríveis abordando assuntos estava tudo bem.
cabeludos. São esses presentes que tenho recebido da
— Vocês são do Nós do Morro? (sem esperar respostas).
vida. Também tive sorte e muito cedo entendi que ami- Ganharam um prêmio, estão fazendo um filme. Fizeram
gos e colaboradores são o que há de melhor no mundo. o “Cidade de Deus” também, né?
Nesses seis dias de divisão entre o set e a ilha, conse- — Sim. Estamos fazendo um filme aqui, filmamos até
guimos preparar direitinho toda aquela loucura. Eu fica- sexta-feira, se Deus quiser.
ria todo o primeiro dia, depois abriria o set durante dois — Ele há de querer. Tá tudo certo.

dias, mais um dia inteiro e dois dias abrindo o set e par- Achei bom sermos logo apresentados, porque temos de
tindo para o trabalho. Adorava aqueles dias, porque o estar acima de qualquer desavença que haja, não pode-
set é muito divertido. E o último dia de filmagem era jus- mos ser impedidos de trabalhar. Toda noite surgia uma
tamente o dia também que viajei para a França, para o nova discussão, uma lata a mais, uma diária a mais de
Festival de Amiens. Para mim, sempre foi assim: tudo ao gerador; uma loucura esse negócio de cinema. É muito
mesmo tempo. Às vezes, passava o maior aperto e pouco aparato. Filmamos na rua onde morei e a casa da minha
tempo depois surgia um trabalho. E logo vinha outro, que mãe nos servia de base. Vi nos olhos dos meus vizinhos o
nem sempre dava para conciliar. Os dias de filmagem orgulho de ver acontecer ali uma filmagem, em especial
foram calmos, mas muito tensos para a equipe de produ- quando eu contava a história e eles viam que não havia
ção que, de duas a três vezes ao dia, pegava um mototáxi tráfico no meio. E que eu era a responsável pelo anda-
e dirigia-se até as viaturas da polícia que ficavam de plan- mento daquela loucura.
tão na entrada do Vidigal, no Largo do Santinho e no DPO,
Nós, pessoas comuns, os filhos dos operários, dos moto-
que foi instalado no final do morro. A produção ia lá com o
ristas, das domésticas, das babás, dos camelôs... está-
objetivo de assegurar que as filmagens pudessem acon-
vamos filmando. Isso é incrível! Agora não são somente
tecer e a fim de impedir qualquer incursão da polícia por
os filhos dos banqueiros, dos produtores, dos cineastas
aqueles dias. Tivemos problemas apenas em um dia, que
que vão filmar. Também podemos, cavamos esse direito.
um dos comandantes, talvez para nos apavorar, disse
Talvez meu amor pelo cinema seja ainda mais forte
não reconhecer nenhum valor na solicitação e garantiu
porque tem nele um ato político, de resistência, tenho
que iria fazer a ronda que estava acostumado. Foi pre-
desejo de transformação.
ciso ligar para a delegacia, colocá-lo em contato com o
delegado. Os dois discutiram, e a gente ali esperando. E Depois de seis dias de filmagem, parti para Amiens repre-
a equipe lá na rua, já filmando com mais de oito crianças sentando a produção audiovisual que nascia na perife-
no set. Está cada vez mais difícil garantir esse tipo de ria e que já ganhava seu estilo, sua marca, sua estética.
segurança na cidade. Mas ele entendeu, não passou em Não sei se posso dizer que foi criado um movimento ou
nenhum momento, e deu tudo certo. uma estética própria da periferia já que todo e qualquer
movimento é feito também de suas referências. E de uma
Foram seis dias de paz, o que não impediu que em
busca da identidade, que em tempos de globalização
alguns momentos os soldados do tráfico passassem
torna-se ainda mais difícil.
214 Meu destino era o Nós do Morro Cinema, uma nova paixão 215

Até mesmo dentro do grupo Nós do Morro temos manei- mandei brasa na história. Naquele dia ele ficou do peito
ras muito diferentes de filmar. Partimos dos mesmos para o carrinho ao lado do computador, e com o auxílio
mestres, fomos apresentados às mesmas referências, de um apito feito pelos índios, que imita som de barco,
mas em cada indivíduo detona algo novo. Muito par- e um chocalho vagabundo de plástico, estava ali toda
ticular. Embora muitas vezes tenhamos caracterís- a história. Tinha vindo com facilidade narrativa, confli-
ticas parecidas, como a busca por histórias simples, tos e personagens. Não é todo dia que uma história se
uma necessidade de veracidade e verossimilhança revela para você.
nos personagens e na condução da narrativa. Ainda
Mandei mais essa história, as propostas eram feitas por
assim cada um de nós é muito distinto na sua concep-
e-mail, mas seriam lidas também na sala de aula durante
ção. Na sua vivência. Mas não podemos desprezar que
a oficina. Era um total de quarenta alunos. E surgiram
o cinema passa por uma transformação e, porque não
de duas a três histórias de cada um. Tivemos dois dias
dizer, revolução de suporte, na qual a película, o digi-
de votação para as histórias. No Nós, após uma disputa
tal e o vídeo se misturam a fim de se completarem. É
acirrada, ficou escolhida uma história de um pedreiro
também a estética do cinema possível, o que não quer
que virava santo e trabalhava com realismo fantástico,
dizer o cinema pobre de soluções e expectativas. Minha
e partimos para desenvolver. Quarenta pessoas para
parceria em um projeto com o Cacá Diegues — um dos
desenvolver um roteiro, que experiência louca, mas
diretores do Cinema Novo e que construiu a história do
muito bem conduzida pelo Rafael Dragaud.
cinema neste país — comprova a era da mistura.
Terminado o primeiro roteiro, Cacá anuncia que a histó-
Pacífico estava com quatro meses e eu fui ao set gravar
ria que ele achava conveniente para compor o filme era o
o curta “Sebastião”. Foi importante perceber que era
argumento “Acende a luz”, a tal história que criei em um
possível pensar um plano, acordar de madrugada com
insight. Fiquei superfeliz, e partimos para o roteiro que
uma equipe, correr sincronizado com um stead-cam e
foi desenvolvido da mesma maneira. Em alguns momen-
amamentar. Com o Pacífico ainda bebê, foi realizada no
tos queria morrer. Não é nada fácil ter quarenta pessoas
Nós a oficina de roteiro com o intuito de desenvolver
opinando de forma diferente sobre uma história sua.
curtas para juntos formarem um longa de episódios.
Trabalhei ainda no roteiro até o momento de filmar.
Nascia aí o 5x Favela – Agora por nós mesmos. O Guti
me avisou que Cacá havia ligado e falado sobre o pro- Após o roteiro ser escolhido, confesso ter sentido certo
jeto, montamos uma turma de inscritos na oficina e já ciúme. Para que lado levaria aquela interpretação, qual
começou pegando fogo. Pouco antes de começar tive- seria a tendência do diretor que a dirigiria? Isso tam-
mos uma reunião de grupo, o Guti expunha suas impres- bém tinha ficado bem claro no projeto, não necessaria-
sões sobre o projeto e nos aconselhava a buscar histó- mente o dono do argumento seria o diretor do filme, tão
rias que fugissem da violência, que mostrassem o dia a pouco era obrigado a sair um diretor de cada instituição.
dia. Mandei algumas histórias que tinha na gaveta, mas Luciano Vidigal foi o primeiro a ser convidado para com-
no dia da reunião de ideias a serem votadas, tive uma por o grupo de diretores. Cacá escolheu para ele o roteiro
que me empolgou. Aproveitei o soninho do Pacífico e desenvolvido pelo AfroReggae. Roteiro que necessita de
216 Meu destino era o Nós do Morro Cinema, uma nova paixão 217

muita sensibilidade para ser filmado. É violento e muito


denso, aproximadamente quinze minutos de sofrimento.
O Luciano tem uma experiência muito boa com esse tipo
de roteiro. Ganhou prêmios com o curta “Neguinho e
Kika”, que trabalha uma temática semelhante a que tra-
taria. Desejei-lhe toda a sorte do mundo nessa batalha.
Depois, Cacá me ligou e me convidou para ser diretora
do meu próprio argumento e eu tive de lhe confessar que
já estava muito enciumada com o roteiro. É uma história
muito pessoal. A maneira que joguei nos personagens
nomes e características de meus antigos vizinhos, pes-
soas que fizeram parte do meu crescimento, que fazem
parte da minha história. O processo do filme começou
em janeiro de 2007 e filmei o curta “Acende a luz” em
junho de 2009, quando o projeto completou dois anos
e meio. Sobre esse curta é mais difícil contar detalhes,
porque é tão fresco, o seu processo em minha cabeça é
tão recente, que sinto dificuldade de expor.
O mais importante nessa participação é termos entrada
em uma fatia do cinema que não estávamos inseridos.
Sonhamos com o público que será atingido, porque terá
distribuição para isso. Já que o curta-metragem só
alcança o público de festival. Também foi importante
poder trocar experiências com tanta gente importante
para a história do nosso cinema, o que deixa um gosti-
nho de quero mais, e um desejo de fazer. Todas as con-
versas que tive com Cacá e sua generosidade intelec-
tual. A música que me foi autorizada pelo rei Roberto
Carlos para pôr no filme. Foi, sem dúvida nenhuma, um
processo muito menos solitário que o do “Mina de fé”.
Pude contar com pessoas experientes que me ajuda-
ram, mas na hora do vamos ver, é sempre igual. É você
ali, exposto, tentando não ser devorado e colocando em
emoções sua história.
218 Meu destino era o Nós do Morro Cinema, uma nova paixão 219

Vejo o filme na ilha e cada dia gosto mais dele. Sou bons filmes, sejam comédias, dramas, policiais, terror
assim apaixonada e apegada. Mas vivo as incertezas de ou romance. O importante é contar uma boa história.
quem mais vai gostar. Esse projeto serviu também para Seja eu mesma filmando, os meninos em uma oficina no
unir pessoas que, em condições muito parecidas, vêm interior ou os grandes produtores do cinema. É mesmo
realizando cinema; e o que tem acontecido é que agora difícil! Onde é que eu me meti?
está sendo comum participarmos dos sets uns dos
A verdade é que qualquer atividade cinematográfica só
outros. Isso que dizer que se cinema se faz em turma,
pode ser realizada por meio de leis de incentivo ou editais.
minha turma cresceu e com isso aumenta a minha pos-
É dinheiro público. E devo aqui aproveitar para agradecer
sibilidade de fazer cinema.
ao governo Lula aliado ao mais incrível Ministro da Cul-
Para o “Acende a luz” eu mergulhei na favela. Tento trazer tura Gilberto Gil. Espero que nada mude, apesar de ele ter
para ele a essência da comunidade, dando uma dramati- saído do ministério. Nunca havia tido tanto investimento
cidade pesada, marcada, para correr um pouco do cinema na área do audiovisual. Já estava na hora! O cinema sem-
contido, porque o povo brasileiro em geral não é contido, pre fez a sua parte na reflexão sobre os fatos e as rela-
não cabe na tela do cinema sem exagerar. Ele é expan- ções humanas. É esse o meu cinema. O que me faz sentar
sivo, dramático e alegre e é assim que desejo que seja o na sala escura e viajar. E me entregar a uma história. Dis-
filme. Ainda não sei no que vai dar esse novo projeto, mas cutir como aquelas pessoas se relacionam entre si e com
a cada vez que você filma, nascem muitos outros filmes o mundo em que vivem.
para serem filmados. E eu pretendo continuar filmando.
O Brasil é imenso e seu cinema será sempre uma colcha
Há cinco anos, entramos para o programa Ponto de Cul- de retalhos que fala com e para todos, mas não agra-
tura, do Governo Federal, experiência incrível, mas que dará a gregos e troianos. Essa é a graça também. Porém,
também precisa de ajustes. No início, nos possibilitou muitas vezes, dentro do próprio país os filmes são rejei-
um curso mais específico, ter mais profissionais, mas tados. O “Mina de fé” e agora o “Picolé, pintinho e Pipa”
com muitos problemas burocráticos ainda não conse- foram mais procurados pelos festivais internacionais
guimos nem mesmo usar a última parcela do convênio. do que dentro do próprio país. Há nos estrangeiros uma
Educar, apresentar o cinema para a população. Isso leva imensa curiosidade sobre o espaço da favela. Suas his-
tempo, mas precisamos trabalhar por essa conquista. tórias, sua desorganização. Algumas vezes sou questio-
E para isso fazer filmes. Fui educada por meio de um nada sobre o direito do uso da miséria. Mas essa miséria
cinema hollywoodiano e não devo negá-lo, mas devo ser não é minha. Ela é de todos nós! Então vejo os mesmos
crítica comigo mesma. Foi preciso estudar cinema para direitos entre eu e o Fernando Meirelles ou Cacá Die-
conseguir me aproximar, ter acesso a filmes que real- gues, que sempre gostou de filmar nesse espaço suas
mente tiveram poder de mudar ou influenciar compor- histórias. Faço parte desse universo, o reconheço como
tamentos. Não sou do tipo que afirma que o público não meu, sou à vontade dentro dele e isso me diferencia dos
quer nossas comédias. Todos os amantes de cinema do dois. Mas todos têm direito de fazer a história que bem
mundo estão em especial, neste momento, ávidos por entenderem para um bom filme.
220 Meu destino era o Nós do Morro Cinema, uma nova paixão 221

Existe também um equívoco de intenções na mídia ao qualidade e da resolução dos problemas para cada pro-
dizer que o povo brasileiro não quer mais assistir a esse dução distinta. O nosso público merece e nossa histó-
ou aquele tema. Caramba, fazemos tão pouco cinema ria cinematográfica também. Como participante de um
que não dá para esgotar tema nenhum e é apenas uma grupo de jovens realizadores (não sei até quando vão me
baixa parcela do povo brasileiro que vai ao cinema. Não dar esse título, mas ainda assim o agradeço), persigo no
podemos fazer esse tipo de cálculo. Chegaram aos cine- momento poder realizar mais uns três ou quatro curtas
mas seis filmes de favela e não se pode mais tocar no que estão na gaveta e além de um longa-metragem em
assunto? Que palhaçada! Ou será que é só uma vontade que tenho trabalhado no roteiro desde o ano passado.
de mascarar, de maquiar nossa história? Diante dessas, É uma adaptação da peça “Noites do Vidigal”, que foi
deixo então de me preocupar com a estética, seja ela encenada pelo grupo em 2002.
da fome, da periferia ou que para muitos é sinônimo de
Procuro também uma história simples para fazer uma
sem qualidade, o que atesto ser uma mentira e convido a
experiência. O Gustavo tem uma história muito inte-
todos a assistir a algum filme de produção Nós do Morro,
ressante sobre uma família em decadência; a peça foi
que embora no miolo intelectual do Rio, o Leblon, somos
montada há dois anos e me interessam muito seu tema
periferia. Só aqui tem dessas coisas!
e seu esquema de nunca sair da casa da família. Tam-
Precisamos reconquistar o público de alguma forma. Na bém acredito que possa ser filmado em breve, outro
busca de incorporar uma linguagem nova, os cineastas roteiro que o Gustavo vem desenvolvendo sobre juven-
têm de trabalhar em um esquema de tentativa, mas é tude, uma história de gangues.
preciso acertar de primeira, senão pode ser fatal. É ine-
Preciso conseguir melhorar o ensino na área de cinema
gável que, hoje, o público não está mais disposto a acei-
do Nós do Morro, nem sei por que caiu sobre meus
tar imperfeições técnicas em nome da brilhante ideia
ombros essa tarefa, mas é assim que me sinto. Já que
de um filme. Isso não significa, porém, que a realidade
acredito que quanto mais interessados em cinema, mais
seja maquiada com as cores e luzes que deixam qual-
chances de produzir e mais chances de se ter público
quer céu fotogênico, e nem que todos os filmes persi-
em uma sessão. São essas as questões que me afli-
gam os esquemas narrativos do cinema americano. Cada
gem nos dias de hoje. Questões de realização. Questões
filme pede uma receita, na maioria das vezes, ainda tem
de dinheiro, questões de família, questões de Estado.
de improvisar. Ainda assim, fica cada vez mais difícil
Estarão todas presentes nas minhas histórias se con-
um filme levar gente à sala de cinema, se não tiver um
seguir realizá-las. Às vezes, é só isso que penso. Mas
roteiro enxuto, uma montagem frenética, um efeito aqui
para se manter uma empreendedora cinematográfica,
e ali e personagens bem construídos.
você depende sempre do departamento de milagres. Eu
Para um público mais exigente, é preciso um diretor tenho feito minhas orações religiosamente. Senhor, tra-
extremamente cuidadoso. Infelizmente, mesmo usando zei para nós o set nosso de cada dia!
toda sua criatividade, o cinema nasceu aliado à ciência
e à indústria e não é possível descolar-se delas. Mas é
necessário cada vez mais aproximar-se na busca da
Cap.11
Hoje venci na vida

Hoje v
Hoje venci na vida 227

O tempo que passamos em Maricá foi bom. Estudamos


em uma boa escola. Passeamos. Minha mãe, com mais
liberdade de horário, passou a fazer faxinas e jantares
além do trabalho na Suely. Melhoramos um pouco de
grana. Ela fazia o possível para que não faltasse nada.
Mas sentíamos falta dela. Vir para o Vidigal foi fator
determinante na minha trajetória, já que pude estar
perto de onde acontecia toda essa explosão de força cul-
tural e artística. É uma pena pensar que mesmo vivendo
em um lugar onde o acesso é difícil, para quem está no
interior é ainda mais complicado. Para realizar o sonho
de ir ao cinema é preciso arrumar dinheiro, não só para
Nasci na década de 1970. O morro não era como é hoje. o ingresso, mas também para uma passagem intermu-
Na Rocinha, sem os transportes alternativos, era preciso nicipal. Assim não dá. Nesse caso, se você está no cen-
esperar o 592. Era o único a cruzar a favela. Ele tinha o tro, em especial, entre os bairros nobres, você tem mais
apelido de molenguinha. Era muito velho, de formato chance de se relacionar com pessoas que possam, de
arredondado, daqueles com cara de caminhão. Achava alguma forma, abrir para você as portas da sociedade.
divertido ir na última janela. Ainda tinha muita vegetação Se deseja realizar um projeto, seja ele um filme, um peça
por ali e dava para ver a praia de São Conrado, um paraíso. ou um evento, é preciso que você seja aceito.
Quando você nasce e seus pais não estão vivendo em Durante muito tempo fiquei acostumada com minha
harmonia você passa a viver esperando o dia em que escola, com meu bairro e com meus amigos. Sonhos
eles vão se separar. Toda vez que eles brigavam a minha demais, mas ninguém sabia muito como e aonde ir para
mãe dizia que a gente iria morar na casa da minha avó. realizá-los. Tinha amigas que juramos não nos separar
Eu gostava dessa ideia. Afinal, depois que meus pri- nunca: Luciana Soares, Marcia Francisco, Dayse dos
mos se mudaram da Rocinha, eu pouco tinha com quem Santos e Virgínia. Optamos por uma escola em Copa-
brincar. Passava a semana no trabalho da minha mãe. cabana considerada excelente: Infante Dom Henrique.
Falando sem parar na cabeça dela. Para me manter ocu- Passamos eu, Marcia e Luciana. No mesmo horário,
pada, era comum nas quintas-feiras eu ajudar a guardar mas cada uma numa turma. Naquele ano, de fevereiro
as compras. Repetia o nome dos legumes e verduras e a maio, aconteceram muitas novidades na minha vida.
guardava. O espinafre eu desfolhava para guardá-lo sem Nunca fui uma menina trancada na favela. Gostava de
galhos. Suely, patroa da minha mãe, gosta de cozinhar. E circular na cidade, mas até então só podia fazer isso de
eu ficava ali de ajudante sempre. Era legal. Mas no pró- vez em quando. Agora que estudava em Copacabana,
ximo ano eu já iria para a escola, ficavam muitas ques- era ótimo. Podia estar na rua todo dia. E começamos
tões na minha cabeça. Mas não era eu que decidia minha a nos separar. Foi engraçado, nunca soube o que real-
vida naquele momento. Nem poderia. mente aconteceu. Mas aconteceu.

226
228 Meu destino era o Nós do Morro Hoje venci na vida 229

Na escola, já nas primeiras aulas, tive uma indisposição grupo, nós estávamos mais para um bando de lunáti-
com um professor de química de nome Almir, que me fez cos. Trabalhei duro durante quatro anos, algumas vezes
passar uma tremenda vergonha. Eu, ignorando a química, dormindo duas, três horas por noite, porque precisava
havia entendido uma coisa totalmente errada, e, quando ensaiar e também trabalhar em expediente normal.
ele me perguntou, talvez estivesse conversando, res-
Depois do “Machadiando” nos dar o prêmio de categoria
pondi uma grande tolice e ele me ridicularizou. Senti-me
especial — e durante o processo de ensaios do “Abalou”
muito burra e incapaz do aprendizado desta matéria.
—, começamos a ser chamados para as estreias, tam-
Nunca gostei de ser chamada atenção, talvez daí venha bém para as festas, e a ganhar pequenos papéis na TV.
meu senso de responsabilidade apurado. Era meu pri- Fomos quase todos aceitos numa novela para a Ban-
meiro dia com esse professor e ainda teria um ano pela deirantes, uma produção da TV Plus, que tinha Marcos
frente. Mas, em maio, entramos novamente de greve, e Schechtman como diretor. Fomos de ônibus ao teste que
comemorei meu aniversário de 15 anos, que foi ótimo, era em uma rua no largo da Barra, que não tem acesso
embora debaixo de chuva. Continuei de greve até setem- fácil. Andamos da passarela do largo da Barra, ali pela
bro, quando recomeçaram as aulas. Pagava passagem, antiga rua dos motéis. Fazia um sol de lascar, eu ves-
ainda não havia passe livre para o estudante, e estava tia minha roupa mais nova. Era uma calça bailarina azul
dando um prejuízo tremendo para minha mãe já que de cintinho dourado e uma camiseta creme, e fazia um
aos quinze dias de setembro tinha ido mais à praia e calor infernal. De tanta ansiedade pelo teste, nasceu
ao Shopping Rio Sul do que à escola. Resolvi falar que uma imensa espinha na ponta do meu nariz. Caminhava
não dava para mim, que gostaria de parar de ir à escola me abrigando sob uma sombrinha para não derreter a
e recomeçar no próximo ano. Ela teve um choque. Cho- tonelada de maquiagem que colocara para disfarçá-la.
rou, mas eu a convenci de que não estava abandonando Consegui o papel. Como todo o bando era do Vidigal,
a escola, só não achava justo fazer daquela maneira. teriam de se integrar a nós mais dois atores: Ilda Maria,
Comecei também uma peregrinação para arrumar outra uma moça muito talentosa, que venho acompanhando o
escola. Era uma das condições. Matriculei-me na escola trabalho e vendo sua evolução e perseverança, mas que
André de Maurois na Gávea, mais perto. Dessa vez tinha na época tinha apenas 9 aninhos, e o Dudu Azevedo, que
de estudar. Optei pela manhã e tinha a tarde livre, então, hoje está em vários filmes nacionais além de fazer moci-
me inscrevi em uma aula de dança na escola à tarde. Sou nhos nas novelas das oito. Tornou-se um excelente ator.
um pouco desengonçada, mas era legal. Fizemos uma preparação com o Guti, muitos encon-
tros com o autor, que mudou no capítulo quarenta. No
Tinha amigos em vários lugares. Alguns no Vidigal, outros
decorrer da novela os papéis promissores foram dando
amigos de escola, outros amigos de trabalho. Tinha ami-
lugar para os fundos das cenas. Gravava duas vezes por
gos de viagem. Mas me sentia perdida. Não tinha ami-
semana, mas ao final da novela, mesmo que para nem
gos com os quais pudesse dividir sonhos, expectativas.
aparecer, éramos chamados lá quase todos os dias, e
Até que entrei para o grupo Nós do Morro. Hoje os artis-
acabei por perder o emprego na creche. No início não
tas ganharam popularidade, mas quando entrei para o
230 Meu destino era o Nós do Morro Hoje venci na vida 231

me abalei, tinha o salário da novela, mesmo que meu pai na rua. Isso acontecia quase todo dia. Quando estáva-
tenha me apelidado de atriz-fantasma. Dizia que via a mos nos dois últimos meses de montagem do “Abalou
novela todos os dias, mas não conseguia me ver nunca. — Um musical funk”, saía de casa por volta das 18h e
Estava me sacaneando, mas tinha toda a razão, eu não retornava entre 4h e 6h da matina. Entre um ensaio e
aparecia nunca, nem mesmo as cenas que gravava iam outro, a favela sempre foi território muito inconstante,
ao ar. Um amigo, um dia, conseguiu uma foto inédita, o que dificulta ainda mais o acesso das pessoas à arte
tirada da TV. Eu não só estava no vídeo como estava em e à educação. É um território temido. E o 314, por ser um
primeiro plano. Pude então lavar a alma. A foto ficou tem- lugar de difícil acesso, sempre havia sido o paraíso dos
pos exposta no camarim do teatrinho, como sacanagem. traficantes, que se tornavam cada vez mais armados e,
portanto, mais perigosos.
A novela acabou e com ela a temporada do “Macha-
diando”, que agora fazia apresentações esporádicas. Maria, minha amiga, que havia se formado professora
Junto com a novela também o dinheiro. Ainda havia um com 17 anos, era dessas que nasceu “crâninho” e que,
pouco, me sobrou do fundo de garantia do tempo que claro, deu sorte também. Vem de uma família muito espe-
estive na creche. Mas foi praticamente todo consumido cial, filha de um estofador com uma operária de fábrica,
em uma cobertura de telhado para a minha casa, que na que vira dona de casa para cuidar de seus quatro filhos,
primeira ventania um vizinho teve de subir e amarrar as todos formados, alguns com mais de uma faculdade. Um
telhas que estavam voando. A coisa ficou feia. Eu come- deles Luiz Paulo Corrêa e Castro, que é nosso drama-
cei então a fazer todo tipo de loucura legal por algum turgo, pessoa a quem devo muito do que sei. Maria, que
trocado. Propaganda ao vivo no cinema todo o fim de fazia parte do meu grupo, estava indo morar sozinha, fora
semana. Um mico atrás do outro para ganhar uns troca- sorteada com uma carta de crédito e comprou um apar-
dos. “Mas eu podia tá roubando, podia tá pedindo, mas tamento adorável na subida da ladeira. Na época, com
eu tô trabalhando.” Esse é o tipo de frase que eu acho 20 anos, fui para lá, ocupava o quarto vizinho e ajudava
bem filha da puta. Não se pode explicar o que não tem nas despesas. E minha mãe adorou, porque lá do 314 ela
explicação, porque algumas pessoas têm mais inclina- podia ver minha janela. Sei que se não me esperava, já
ções para umas coisas do que para outras. dormia mais tranquila, e mais tranquila ainda quando via
minha luz acender e apagar. Mas, como todo filho, desde
Sentia-me um pouco deslocada nesse momento. Havia
o dia que descobri isso, só pensava em me mudar de lá.
me separado, passava pouco tempo em casa, fazia
Mas isso não demorou muito. Fui morar com outras duas
pequenos bicos, dava e fazia minhas aulas no Nós, e
amigas, o que barateava ainda mais os custos. Por outro
minhas amigas do 314 quase todas parindo precoce-
lado, as coisas começavam a acontecer. Já era chamada
mente, outras se envolvendo com o tráfico ou namo-
para um trabalho ou outro que me possibilitava às vezes
rando algum bandido. Era um mundo difícil, havia se
pagar o aluguel, às vezes comer. Assim ocorria também
passado uns oitos anos, desde que me mudei para o
com minhas amigas, mas logo a dona da casa pediu o imó-
314, que não parava de crescer. Cada vez que chegava
vel e nós teríamos de nos mudar.
tarde, minha mãe estava passando mal, nervosa comigo
232 Meu destino era o Nós do Morro Hoje venci na vida 233

Voltei para casa da minha mãe. Foi difícil. Havia tomado


gosto pela liberdade e de ter uma casa para mim. É difí-
cil entrar de novo no ritmo da casa dos pais. Mas minha
mãe também já estava em outro ritmo de vida. Quando
eu e minha irmã nos mudamos, é que minha mãe pôde
pensar um pouco mais nela. Isso me agradava. Ao mesmo
tempo, não podia me enfiar na casa dela novamente e,
tão logo que pude, voltei a morar sozinha. E comecei a dar
um curso em uma turma montada pelo Guti no Sindicato
dos Artistas, graças aos meus conhecimentos já adquiri-
dos nas aulas de cinema com a Rosane, sobre assistên-
cia de direção. Também precisava de alguém que sou-
besse usar uma VHS, para ter uma prova prática a ser
realizada ao fim do curso. Uma das professoras do curso,
a Mirian Pérsia, dava aulas de interpretação — tenho tido
sorte nos projetos que venho trabalhando, neles sempre
encontro mestres e na maioria das vezes são os melho-
res —, e eu ficava mais com a parte técnica. A impor-
tância da continuidade, como se portar no set, improvi-
sar sem querer aparecer. E teve um dia que eu e a Mirian
nos juntamos, e eu filmava com essa VHS nas costas um
exercício orientado por ela. Aprendi muito. Ia me virando
aqui e ali e morava agora em uma quitinete, muito, muito
pequena, mas muito agradável. O Vidigal tem janelas que
são tão incríveis, que você esquece todo o resto. Morei
muito tempo nessa casa. Sua janela me ajudava a criar.
Foram anos de muita criação e realização intensa.
Trabalhava no Nós intensamente e acabava de aconte-
cer coisas incríveis. Estava neste espaço envolvida com
milhões de projetos o dia inteiro, iniciamos um estudo,
mas não tínhamos de cara um novo projeto. Era preciso
emplacar uma nova peça, mas a companhia sempre tra-
balhou com tempo muito grande de pesquisa, com base
na improvisação e vivência de situações propostas.
Todas as montagens do Nós do Morro, até então, tinham
234 Meu destino era o Nós do Morro Hoje venci na vida 235

sido bem-sucedidas, desde a época do Padre Leeb, Vivendo dessa companhia que me possibilitava exercitar
ainda com a primeira turma. Poucas pessoas dessa minha arte e criação, viveria quatro meses com um pouco
época ainda permaneciam no grupo, a maioria havia mais de dignidade. Talvez comprasse queijo nas compras
arrumado um emprego, outros já eram chefes de família, desse mês. Mas isso não resolveria a minha vida.
mães solteiras, cuidando da vida adulta.
Nesse mesmo ano, fiz trabalhos esporádicos com figu-
Morava ainda na quitinete, que me custava R$ 185,00 na rino, praticamente todos com a mesma equipe do
camaradagem, porque a D. Leda sempre nos admirou “Proibido brincar”, e fazíamos a criação de todas as
— sabia o que era a dureza da vida de artista e, como montagens de fim de ano. Adoro figurino! Cheguei, por
também sempre fui uma boa moça e paguei todo o resto momentos, a pensar em abandonar todo o resto e a me
direitinho: água, luz, luz de serviço, antena, embora esti- dedicar somente a isso. Sempre fui boa com roupas,
vesse há anos sem TV —, além de gostar que eu morasse desde pequena era uma alegria quando minha mãe dizia
lá. A falta de TV era boa para mim, me obrigava a ler, a que a Suely estava separando coisas no armário. Vinham
escrever, mas para ver um filme dependia de outros. sempre coisas legais. Mas eu mudava uma coisa aqui,
Preferia ficar sem ela, a motivação vinha mesmo da falta encurtava ou desmanchava uma bainha de uma saia,
de grana para comprar uma e por causa de um comércio transformava vestidos. As festas juninas do Vidigal
muito rigoroso com o consumidor sem poder aquisitivo. eram famosas. Todo mundo tinha de estar bem vestido.
Ainda bem que isso mudou. O que não quer dizer que não Todos estariam lá e ainda traziam muita gente de fora.
tenhamos pessoas que não possam comprar uma TV de Todas nós queríamos namorar alguém de fora do Vidi-
14 polegadas na era da TV de plasma. gal, era um sinal de status. Naquele ano, a Xuxa havia
lançado uma bota que amarrava nas pernas, e duas das
Mas R$ 185,00 eu tinha que guardar só para pagar o alu-
minhas amigas tinham ganhado. Meu pai me prometeu,
guel. O que é exatamente essa quantia? Para um jovem
mas acho que a bota era cara demais. Próximo a uma
que começa a sua vida financeira e não tem como recor-
festa junina, perturbei tanto meu pai que ele disse que
rer aos pais é pouco, o que não quer dizer também que eu
se tivesse dinheiro me daria a bota no fim de semana. Já
não tenha recorrido muitas vezes. As primeiras viagens,
tinha passado a semana inteira reformando uma roupa
cursos, qualquer coisa que fosse preciso somar mais do
para usar com a bota no sábado. Era um vestido tipo bata
que eu conseguia fazer por mês em dinheiro. Ainda assim
de grávida que chegou na sacola da Suely. Interessei-me
percebia que minha mãe, por não mais me ter na casa
pela estampa. Tinha visto essa estampa em um filme —
dela, começava a ter uma melhora na qualidade de vida.
um dos poucos que vi no cinema durante minha adoles-
Já não tinha tantos gastos diários. Afinal, você saiu de
cência em um programa para aniversário ou um dia nas
casa, então às vezes é melhor pedir ao Carlos do boteco
férias — chamado “Garotos perdidos”, uma história de
uma quentinha fiado, que você vai ter de pagar a ligar a
vampiros, a mocinha do filme vestia longas saias esvoa-
semana inteira para a mãe e pedir dinheiro da passa-
çantes. Fiz escondido da minha mãe que sempre recla-
gem, por exemplo. Durante esses quatro meses, acumu-
mava que eu estragava a máquina dela, toda vez que a
lei cachê de figurino e cachê de atriz de três espetáculos.
usava. Uma saia de pala e um bustiê que me obrigou a
236 Meu destino era o Nós do Morro Hoje venci na vida 237

destruir uma sacola das Sendas para o reaproveita- Fomos convidados para participar do programa do Cazé
mento de suas alças no suporte que serviria de argola Peçanha, na Rede Globo. A proposta feita ao Guti: eram
para junção das duas bandas do bustiê que amarrava no técnicos artistas, cada um com uma expertise e que
pescoço. Como era junho e muito frio no Vidigal, provi- de vez em quando iam atuar. Fomos eu, Marcelo Mello,
denciei dois pequenos botões pretos grandes nas man- Márcia Francisco, Lucio Andrey, Joanna Costa, André
gas de uma jaqueta preta, porque tinha certeza que iria Santinho, José Mario, Leandra Miranda e Roberta Rodri-
usar. Fiz os últimos remendos à mão, já que no sábado gues. Estávamos há mais de quatro anos juntos, era uma
minha mãe estava em casa. equipe divertida e muito criativa. O Zé Lavigne dirigia o
programa. Aquela engrenagem televisiva era uma novi-
À tarde, fui até a Rocinha como tinha combinado com
dade para nós. O piloto ficou sendo gravado por quase
meu pai. Sei que nesse dia enchi o saco dele. Tentava me
um ano, mudou de formato algumas vezes. Nós tentá-
convencer de esperar até o outro fim de semana e ten-
vamos nos adaptar a tudo. Até hoje tenho cinco linhas
taríamos uma bota no Saara, mas para mim era muito
escritas daquela época e que desejo fazer um curta, “O
importante ir com as botas naquele dia na festa. Ele,
ano em que rimos demais”. E uma brincadeira, porque
como não aguentava mais, me estipulou uma quantia e
gastávamos muito e logo depois tivemos tempos muito
disse que compraria a bota se eu conseguisse alguma
difíceis.“Quem ri demais depois chora.”
com aquele valor... Fomos até o Fashion Mall. Nunca
conseguiria comprar uma bota lá. Saí muito triste, vi que Davam R$ 200,00 nas nossas mãos todo sábado. Uma
nesse dia ele queria me ajudar, por mais que não enten- tentação! Assim que o programa acabou, só foi ao ar qua-
desse a urgência. Convenceu-me a ir numa barraca na tro vezes. Sem muito sucesso. Após o término do pro-
feira do boiadeiro. Com um discurso contra ao preço grama, nos jogamos de cabeça na pesquisa de um novo
caro e por maior acesso, acabei experimentando uma espetáculo. O curso do sindicato passou para o Retiro dos
bota que não era exatamente como a da Xuxa, mas era Artistas, e eu fui dar aulas. No primeiro ano duas vezes
bota, era branca e calçou legal. Teria uma bota diferente. por semana. O que somado aos R$ 150,00, que ganháva-
Ele me deu. Naquela noite desfilei na festa junina com a mos de um fundo da Prefeitura por meio da Secretaria de
roupa mais legal e aquele look havia sido todo preparado Cultura, ia me segurando, e de vez em quando fazia um
por mim. Tenho certeza do dom para lidar com roupas, trabalho ou outro como atriz e se a coisa apertasse, fazia
as horas de observação, enquanto minha avó costu- também produção e produção de elenco. Continuava me
rava. Mas tenho dificuldade de lidar com o ator quando o virando. Os ensaios do “Noites do Vidigal” foram se inten-
mesmo ignora que o figurinista é também um criador, um sificando. O projeto estava sendo avaliado pela Petrobras.
desenhista de movimentos, e que se ele acha que a cam- Trabalhava em vários lugares, namorava pouco, ensaiava
braia é melhor, deixa a cambraia. Esse momento sem- e me dedicava a aprender a cantar. O Guti adora musicais.
pre me estressou, sei que todos somos falíveis e que às O “Noites” caminhava para isso.
vezes o figurinista está totalmente equivocado em sua
Durante o processo do “Noites”, que optei por não tra-
criação, mas devemos respeitar uns aos outros.
balhar em outra coisa que não fosse o espetáculo, foi
um momento tão difícil que costumava — sem saber
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240 Meu destino era o Nós do Morro Hoje venci na vida 241
242 Meu destino era o Nós do Morro Hoje venci na vida 243

em quem colocar a culpa — culpar a casa onde estava Nesse dia ele foi embora e nós comemos mais uma refei-
agora. Dizíamos, eu e a Chuchu, amiga que morava ção de bolinho de taioba. Graças a Deus, sou uma pessoa
comigo: “Precisamos sair desta casa, ela tem um negó- de sorte, embora eu realmente achasse que aquela casa
cio ruim. Puxa a gente pra baixo.” não tinha muito boa energia, mas seu quintal tinha muita
taioba que nos alimentou durante esse tempo.
Claro que não era só a casa. Era tudo! Eram as escolhas.
Nós as fazemos, mas depois temos de arcar com as con- Decidi que tinha de fazer algo. Não podia ficar nem mais
sequências. Estava precisando de uma casa barata. um dia sem dinheiro. Fiz uma promessa a São Judas
Achamos a casa e nos mudamos. Mal nos cabia e, ainda Tadeu, de quem me tornei devota. Prometi ir até a sua
por cima, ela tinha herdado da mãe, que voltava para o gruta, julgando ser um lugar superlonge. E o grau de difi-
Ceará, milhões de caixas, com milhões de roupas e coi- culdade sempre aumenta o valor das dádivas. Quando
sas, que foram empilhadas na sala. Muitas foram vendi- descobri que a gruta de São Judas Tadeu, que ouvia
das em bazar, por um preço muito barato a fim de fazer dizer, era no Cosme Velho, pensei: ele me adotou. E antes
um dinheiro. Aconteceram tantas coisas no processo que cumprisse a promessa, me viu entrar na igreja bem
desta montagem que minha cabeça fica zonza de ten- desesperada. Era uma sexta-feira, prometi que voltaria
tar lembrá-lo. Depois da exigência de exclusividade, se toda sexta-feira por nove semanas.
a direção achou que iam agir racionalmente os que ali
São Judas Tadeu,
estavam, se enganou. Fomos todos emocionais. Não vi Glorioso apóstolo, fiel servo e amigo de Jesus!
ninguém sair fora. Mas vi vários, como eu, largar seus A Igreja vos honra e invoca universalmente como patrono
empregos para dedicar-se ao espetáculo. Como se não Nos casos desesperados, nos negócios sem remédio.
bastasse, durante o processo perdi um bebê, de muito Rogai por mim que estou tão desolado.
pouco tempo, mas que me abalou muito. Como já estava Eu vos imploro:
debilitada e passando por momentos de estresse pro- fazei uso desse particular privilégio que vos foi concedido,
fundo, tive um período muito penoso, mas o sucesso do De trazer visível e imediato auxílio,
espetáculo, após sua estreia, voltou a me animar. Infe- Onde o socorro desapareceu quase por completo.
lizmente, não conseguimos um projeto que pudéssemos Assisti-me nesta grande necessidade,
ganhar para continuar fazendo o espetáculo, uma manu- Para que eu possa receber as consolações
tenção de temporada, e ficou impossível. Tinha de sair e o auxílio do céu
do elenco. Outros também o fizeram. Em todas as minhas necessidades,
atribulações e sofrimentos.
Recebi uma visita do Lucio que naquele momento fazia Alcança-me, São Judas Tadeu, a graça que vos peço
parte da equipe da série para TV Globo, produzida pela para que eu possa louvar a Deus, convosco
O2, “Cidade dos Homens”. Conversamos muito. Ele esteve e com todos os eleitos por toda a eternidade.
afastado porque emendou o “Cidade de Deus” com a pre- Desde já agradeço, bendito São Judas Tadeu
paração das séries. Eu estava desanimada e há muito e tenho certeza da vossa proteção.
tempo longe do mercado trancada na sala de ensaio. Quero sempre honrar-vos
244 Meu destino era o Nós do Morro Hoje venci na vida 245

como meu especial e poderoso patrono. que não desisti de nada, que ninguém caçou meu DRT
Quero ter também a grande alegria de espalhar (registro profissional de ator). Embora com o sindicato
e incentivar a devoção atrasado, ainda sou atriz. Quer dizer, posso não estar
para convosco por toda parte. atriz em alguns momentos, mas ainda sou. Para minha
São Judas Tadeu, sorte, volta e meia aparece um diretor que acredita em
rogai por nós e por todos os que vos honram
mim, e posso então me divertir. Mas a verdade é que
e invocam o vosso auxílio!
desde que fui ao set do “Mina de fé”, meus principais
Na segunda semana de novena, o Lucio me procurou, esforços foram para fazer filmes.
precisariam abrir uma frente na série, uma equipe
Uma semana depois da estreia “Mina de fé”, em noite
extra para um episódio da Kátia Lund. A primeira assis-
especial no Odeon, recebi o telefonema da Carla, da
tente seria a Paola Vieira, uma pessoa com quem tinha
Pagu, que fazia nossa assessoria de imprensa, dizendo
trabalhado como repórter para uns programas na TV
que uma revista do “Jornal do Brasil” queria fazer uma
Zero. Ela ouviu meu nome, se animou e no dia seguinte
matéria comigo. Não me mostrei muito empolgada, ela
eu estava trabalhando. Duraria mais ou menos dois
me deu a maior bronca. Eu me defendi: “tô passando
meses, arrancariam meu coro, trabalharia como um
mal.” Mesmo assim me convenceu a ir à entrevista e ir
cão, mas havia um cachê, que me permitiria mudar de
ao médico depois. Milagrosamente estou bem nessas
casa, já que agora, na minha cabeça, tudo de ruim que
fotos. Depois da entrevista, a promissora cineasta que
estava me acontecendo tinha a ver com a casa, e ainda
despertava espanto, ao revelar sua origem humilde, dei-
poderia fazer umas compras.
tou-se por pelo menos umas sei horas em um banco de
O negócio esteve tão ruim para o meu lado que eu escondia cimento do hospital Municipal Miguel Couto, queimando
da minha mãe. Mas às vezes ia na minha irmã no domingo, de febre, e dormiu algumas vezes sobre a bolsa com
e ela me oferecia almoço. Eu disfarçava que havia aca- medo de ser assaltada. Quando o médico me atendeu, e
bado de comer algo, sabendo que me mandaria levar, e, por sorte peguei um que entendia mesmo de medicina,
então em casa, dividiria com a Chuchu. Amigo é pra essas ele me olhou preocupado, me pediu uma radiografia, e
coisas. Mas agora tudo estava mudando. São Judas Tadeu ali fiquei por mais um tempo. Ao retornar com o exame,
usava sua diplomacia. O cachê do “Cidade dos homens” ele nem conversou: “Não é pneumonia. É tuberculose.”
me serviria pra mudar de casa. Era preciso, não me sentia
Desabei a chorar. Só pensava que ia morrer. Ele muito
bem ali. Assim que mudamos de casa, veio a notícia de que
bem-humorado: “Cabocla. Para de chorar. Ninguém vai
o “Mina de fé” era um dos curtas premiados pela Riofilme.
morrer aqui. Agora vai ter de tomar muito remédio.” Enca-
E foi filmado em janeiro de 2003. Iniciava na minha vida
minhou-me para a Santa Casa de Misericórdia, porque
uma mudança que nem eu poderia calcular.
ele não podia me dar o laudo, não era pneumologista. Mas
A primeira delas foi mergulhar profundamente na vida foi claro. É para estar lá amanhã pela manhã. Como falar
dos textos, da direção, da criação por trás do ator. Todos para a minha mãe que o médico tinha essa suspeita, sus-
me questionavam: “Mas você não está no palco? O que peita não, certeza. Ele deu certeza. Ela ficou quase louca.
houve? Deixou de ser atriz? Desistiu?” Sempre afirmei Fomos cedo para a Santa Casa, que me diagnosticou
246 Meu destino era o Nós do Morro Hoje venci na vida 247

e me encaminhou para o posto. Estava na semana do da refeição. Esse é um dos desafios da medicina a essa
meu aniversário. Que presente, pensava, mas ao mesmo doença: a alimentação dos pacientes.
tempo não consegui, no meio daquele sofrimento todo,
Voltando ao trabalho, tive sorte de conseguir finalizar
pensar que era um presente mesmo, ter descoberto e
o curta antes da doença. E antes da tuberculose, tam-
estar tratando. É uma doença terrível. Não te deixa fazer
bém entrei para um workshop, junto com o Gustavo,
nada, uma fraqueza no corpo. Mas eu reagi bem aos
para desenvolvermos um sitcom para a TV brasileira.
remédios. Ficava tensa cada vez que ia sair um exame de
Era uma produtora americana. Mandamos um texto e
um amigo meu. Não queria ser a culpada de uma epide-
uma pequena apresentação e fomos aceitos. Um dos
mia de tuberculose.
produtores, Scott Wood, havia procurado o Guti porque
Havia pouco tempo que tinha voltado a morar sozinha e tinha interesse em um sitcom com atores negros e sabia
não estava acostumada com a casa vazia. Tinha sem- que estivemos envolvidos com “Cidade de Deus”. Isso
pre um amigo ou outro, mas tive que aconselhá-los a começou a acontecer. O Nós do Morro crescia e ganhava
não me visitarem com frequência. Foi um processo difí- popularidade rápida com a difusão do filme. Ficamos no
cil. Quem passou por essa doença não eram mais os Sheraton da Barra durante duas semanas, conhecemos
românticos do século passado, pois esses não tinham várias pessoas importantes, alguns deles com quem
nenhuma chance, estavam mesmo condenados. Desde construí amizade. Era um grupo talentoso, destaco o
que comecei a tomar os remédios, melhorei bastante, Fabio Danesi, que me deu um de seus livros de contos,
mas os médicos me mantiam em repouso. Eu, a criatura que tem pequenas obras-primas. Cláudio Yoshida, rotei-
chamada trabalho, que ainda por cima trabalhava como rista de “Os doze trabalhos” e “De passagem”, este com
freelancer. Não foi fácil. o ator Silvio Guindane, que é amigo desde que éramos
apenas 15 no Nós e que mais tarde fez parte do elenco
O Nós, mesmo sem eu dar aulas, me manteve no quadro
deste projeto. Conheci também o rapper Macarrão, que
de pagamento dos monitores, e isso pagava meu aluguel.
havia acabado de ser personagem do filme “Fala tu”. Uma
No programa do posto de tratamento da tuberculose,
figura tão especial que me fez gostar de Rap do Macarrão
agradeço a todos, em especial à Denise e à Vera, que me
e de alguns outros também. Rinaldo Teixeira, um mineiro
acompanharam e muitas vezes, com longas conversas,
que virou meu irmão. Agora está com um livro publicado.
levantaram minha autoestima, que cai muito quando a
É letrado na USP, o orgulho da família pobre. O livro foi
gente fica impossibilitada. Tomava uns seis comprimi-
publicado por meio de edital do governo, Literatura para
dos por dia, ia diariamente ao posto pela manhã. Tomava
Todos. Também por seu incentivo, o irmão escreveu um
a primeira dose e levava para casa os outros comprimi-
roteiro para o Revelando os Brasis e realizaram o filme
dos. Recebia vale transporte e uma ajuda para refeição
que chama “Daqui nós não arreda o pé”. Fazia tempo
de uns sete reais por semana. Minha mãezinha e meu pai
que eu não via um documentário tão especial. E sei que
me traziam leite, Sustagen e legumes para a sopa que
por influência minha e do Gustavo, dá aulas a adoles-
passou a ser minha refeição noturna. Havia me desacos-
centes na periferia de São Paulo, e já vejo os seus pupi-
tumado a comer, até mesmo perdido um pouco o prazer
los participando de festivais e entrando na grade. Isso
248 Meu destino era o Nós do Morro Hoje venci na vida 249

me deixa mais feliz que tudo, a multiplicação. Ele ainda


arruma tempo para mandar contos incríveis para os
poucos momentos de reflexão que temos no dia. É bom
saber que temos colaboradores nessa luta. Muito mais
laços afetivos foram feitos.
Permaneci afastada durante o tempo da doença, mas
o trabalho também teve lacunas até setembro, quando
retomei com consentimento médico. Ainda sem muito
esforço e me alimentando de três em três horas, sem
esquecer jamais dos seis comprimidos por dia. Recupe-
rei-me. O programa foi ao ar, não era o melhor programa
da grade, tinha muitos problemas, causados também
pela economia na produção. Eles não encontraram par-
ceiros, mas conseguiram um espaço na grade e resol-
veram bancar, não é fácil para ninguém, nem para os
americanos — os reis das séries e sitcoms para TV. Eles
tinham profissionais muito caros como Deby Allan, que
tinha vindo para o workshop, um espetáculo, e que diri-
giria um dos episódios pilotos. Juntos, nós ganhávamos
experiência, amigos, um tempo sendo pagos para escre-
ver. Isso era o mais comemorado por todos que esta-
vam ali, independentemente de precisar mais ou menos
de grana. Era o ato de estar contratado para escrever.
Quase um sonho. Um sonho.
No tempo que estive doente e sem antena de televisão,
mergulhei nos filmes, nos livros e voltei a escrever muito.
Mantinha a prática do diário e tinha muitos cadernos de
anotações, muitas das ideias que venho desenvolvendo
hoje nasceram nesses meses. Com a carreira bem-suce-
dida do filme, as coisas se refletiam na minha vida pro-
fissional. Comecei a ser chamada para fazer trabalhos
como diretora e assistente de direção. Fiz uma série de
psicologia com a Rosane para o Canal Futura e engravi-
dei. Engravidar é aquilo. Você sabe que ficará afastada
250 Meu destino era o Nós do Morro Hoje venci na vida 251

por um tempo, não tem jeito. Mas estava empregada até mas sinto que, pelo menos por mais duas gerações,
uns cinco meses de gravidez e vieram as férias e depois minha família se quiser ter algum tipo de respaldo finan-
com seis meses, quem vai empregar esta mulher? Não ceiro, o indicado é ter apenas filhos únicos. Vejo também
dá. Dediquei-me então aos cueiros, bordados, a pintura essa tendência em muitos casais da minha geração.
do quarto, que teve de ser improvisado já que no con- Nossos filhos terão de ser irmãos de seus amigos. Temos
jugado em que morava com o Gustavo, agora casados, uma geração inteira de filhos únicos. Financeiramente
a claridade é imensa, era preciso construir uma cabana falando, jamais poderia ter engravidado, mas resolvi
para o menino poder descansar no escurinho. encarar esse desafio assim mesmo.
Dediquei-me também a escrever. Finalizei uns roteiros, Adapto-me a uma vida com novos horários. Uma casa
fiz um argumento cinematográfico para o “Noites do Vidi- que tem que se silenciar por volta das 20h. Pensava ser
gal”, no qual trabalho para roteirizar, ainda hoje, contos, um exagero quando as pessoas brincavam enquanto eu
diários e outros curtas. Um que discuti o vício ligado à estava grávida e me mandavam aproveitar para dormir,
pobreza, o estrago que pode causar, outro que trata da pois nunca mais o faria. Descobri a duras penas que não
maneira com que a criança lida com a morte por meio da tem nada de brincadeira. Hoje o Pacífico está com qua-
perda de um cachorro. Estudava, lia. Foi grávida que tive tro anos e ainda sofro por dormir pouco. Mas em todo
meu primeiro contato com a Heloisa, quem me convidou esse tempo, fiz muitas coisas que me ajudaram e contri-
para escrever este livro. Em uma sala da UFRJ, ela e Ilana buíram para minha formação. Estar sempre estudando,
Strozenberg, davam um curso para a cadeira de comuni- seja em uma turma no Nós, num curso de extensão da
cação, e indicada pela Marina Vieira, recebi um convite faculdade, um curso livre na escola de cinema Darcy
para participar do grupo de alunos de extensão do curso. Ribeiro, uma das primeiras a oferecer ao Nós do Morro
As quintas, então, tinha esse compromisso além de ter de uma parceria em formação cinematográfica, que até
me preparar para a mudança mais radical que eu viveria hoje tem nos servido e ajudado muito; em casa ou em
em toda a minha vida: o nascimento do meu bebê. grupos de estudos. Mas foi isso que me ajudou a traçar o
meu caminho. Venho de uma família que não tinha nada.
Nada mais seria como antes. Assim que fiquei grávida,
Sou a terceira geração dela, que formada tem minha
tive momentos de pânico desses que você imagina que
irmã que, aos 39 anos, deu esse presente a todos nós.
nunca mais vai arrumar emprego, não vai consegui dar
É pedagoga. Com certeza, os bisnetos terão mais sorte.
comida ou trocar fralda. Isso é nada perto de ter de fina-
Mas estamos evoluindo, eu, por exemplo, escrevo o que
lizar uma cena ao mesmo tempo em que lê uma estória
penso porque alguém se interessa em sabê-lo. Isso quer
ou fechar uma planilha na hora em que ele quer ver o
dizer que exercito a arte que acredito. E a isso atribuo
”Homem-Aranha”. Entrei para a vida materna. Foi uma
a sorte de obter colaboradores para as minhas realiza-
escolha e gostei tanto que já teria repetido a dose se
ções. O não estagnar do artista é seu ponto motor, uma
todos os problemas fossem esses. Mas temo financei-
vez parado, a energia não circula.
ramente pela minha família. Apesar de saber o quanto
irmão é importante para a socialização de um indivíduo,
252 Meu destino era o Nós do Morro Hoje venci na vida 253

Um pouco de todas as coisas que contei aqui fizeram já entraram na idade adulta e alguns deles tornaram-se
parte da minha história. Em alguma posso ter exagerado amigos. É especial ver alguém crescer carregando algo
um pouco ou incrementando uma passagem ou outra, que tenha sido plantado por você.
sabe como é cabeça de quem faz cena, está sempre
Vejo meus traços em muitos deles, e também sempre
inventando. Mas são relatos sinceros, ao certo não sei
formei opinião. Atividade que rapidamente lhe dá res-
ao que serve, mas é importante lembrar que todos esses
ponsabilidades. Em uma sala de aula, o principal é expor
acontecimentos construíram a pessoa que sou hoje.
as ferramentas que o jovem vai ter para utilizar em sua
Embora tenha ainda dificuldade de rapidamente dizer
vida e incentivá-lo a ter cautela quando for arriscar. Na
qual é a minha profissão, deveria dizer: atriz, roteirista,
vida de todos isso é fundamental, mas na vida do artista,
diretora, cineasta, professora, produtora, coordenadora
é primordial. Arrisco e não me arrependo. Foi arriscando
do Audiovisual do Nós do Morro.
que cheguei até aqui. O que pode fazer todos se pergun-
Talvez dar aulas tenha sido a atividade que fiz por mais tarem: Onde é aqui?
tempo e com mais frequência. No Nós, o ano de 2009, foi
Uma pessoa que sonhava em mudar o mundo, sonhava em
o primeiro que estive fora das salas de aula e trabalhei
ser artista, sonhava em influenciar opiniões, alguém que
apenas na coordenação do curso, que sobrevive. Leva-
não queria apenas ver a banda passar, mas sempre quis
mos vinte e dois anos para compor uma grade ideal para
estar nela. Sempre quis fazer história. Estou aqui. Venho
a preparação do ator. A área cinematográfica ainda não
com afinco deixando meu pequeno legado ao mundo.
vê a mesma luz, tampouco na formação de técnicos. É
nossa busca primordial nesse momento. O Nós do Morro ainda está longe de ser uma escola de
cinema perfeita, mas caminha para produções cada vez
Claro que temos de formar criadores, mas o perfil do cria-
mais ousadas e pretende crescer ainda mais. Sempre
dor de hoje é o de criador-realizador, e para realizar é pre-
gostei de estar na execução das coisas. Quando pequena
ciso criar suporte, é preciso ter ferramentas para isso. E
era tão ativa que costumava acordar antes de todo
precisamos achá-las. O pobre vai estar sempre correndo
mundo, preparar a mesa do café, comprar pão e colocar à
atrás do prejuízo, principalmente quando se tratam de
mesa as rosquinhas de farinha de trigo — especialidades
oportunidades de estudos. Por isso, a escola informal (os
da minha mãe que fritava de noite para que pela manhã
cursos livres) é cada vez mais procurada, ela, às vezes,
eu misturasse a canela com açúcar. Muitas vezes ia a pé
cria a oportunidade não só de você se descobrir, mas tam-
a quinze minutos de casa comprar o pão. Claro que isso
bém de por meio dela fazer escolhas e se aperfeiçoar.
era também para mostrar o quanto estava feliz por minha
Aprendi muito em sala de aula no Nós. Foram onze anos mãe estar em casa. Também era eu quem acordava meus
dando aulas de interpretação com base no improviso. primos para irem à escola e algumas vezes ainda tinha de
Gosto muito disso! Turmas de idades muito variadas, segurar o ônibus explicando ao motorista que só faltava
mas meu foco principal eram os adolescentes, idade escovar os dentes. Essas atitudes demonstram caracte-
muito difícil e, às vezes, temidas pelo professor, mas que rísticas de uma pessoa que não está a fim de esperar que
eu adoro. Todos os adolescentes que passaram por mim as coisas aconteçam, está a fim de fazê-las acontecer.
254 Meu destino era o Nós do Morro Hoje venci na vida 255

Minha mãe tem orgulho de me ver no jornal, mas quando Não sei muito bem a quem se destina o que escrevi
fico um tempo afastada das manchetes, mesmo para aqui. Quem vai se interessar pela biografia de uma pes-
ela, eu não passo a ser alguém que escolheu um cami- soa comum, que tenta descrever onde chegou estando
nho muito difícil e tortuoso. Mas é claro que ela se preo- ainda no meio do caminho. Mas são esses os pontos
cupa com o futuro de sua filha, que deveria resguardá-la que me fizeram a pessoa que sou hoje. Gosto demais
em algum momento da sua vida e não precisar dela eter- de viver. E quero carregar dessa vida as melhores lem-
namente. Hoje desejo realizar filmes, desejo escrever, branças. Algumas delas estão aqui neste livro. Outras
desejo que meu filho tenha orgulho de mim e leve con- nunca serão contadas.
sigo o legado de que nesse mundo é importante fazer
Já tinha vivido muitos desafios, mas este, dado pela
sua parte escolhendo sempre o caminho do bem. Ainda
Heloisa Buarque, de contar minha história, foi mais que
sonho em ver alguns meninos que cresceram no Vidi-
um desafio. Enquanto escrevo no computador, Pacífico
gal, assim como eu, não cansarem e não desistirem
entra no quarto brincando e tenho de largar tudo e ver
na busca da melhoria de sua qualidade de vida, assim
o que está acontecendo, ou em dias mais complicados,
como a dos seus. Assim também como no caminho para
ele está febril, precisando de cuidados. Essa é uma nova
realização de seus sonhos.
etapa de adaptação, a de se tornar mãe. Já no Nós do
Realizo-me quando vejo alguns deles na faculdade ou Morro há muitas atividades a resolver, projetos a serem
estrelando um bom filme. Porque me corta o coração per- pensados, todos na esperança de ser um novo ano cheio
ceber que o sonho de um menino da favela é ser mototáxi, de trabalho. O “Acende a luz”, um dos curtas do 5x Favela
porque ele acha que é o máximo que pode chegar. Isso me – Agora por nós mesmos, está prestes a estrear. O filme
entristece. No Vidigal, luto para que eles se inscrevam no ficou pronto há quatro meses, em abril de 2010, foi convi-
projeto e tenham boas aulas e possam usá-las para refle- dado para a seleção oficial do Festival de Cannes e ganhou
xões sobre suas vidas, mesmo que esse ou aquele não sete prêmios na Competitiva do Festival de Paulínia.
queiram se tornar artistas. Tenho fé de que sejam cida-
Foi muito especial receber o convite para o livro. Não se
dãos modificados. Atentos e atenciosos ao mundo em que
trata dessa palhaçada de programa de televisão — “Foi
vivem, e que suas revoltas e inquietudes sejam transfor-
um presente”. É especial mesmo porque tive a oportu-
madas em força de vontade e desejo de mudança. Parece
nidade de refletir sobre as coisas que tenho feito. Minha
papo do Profeta Gentileza, mas foi assim que esse cara
trajetória até esse momento. Esse processo me falou
chamado Guti Fraga chegou perto de mim. E fez com que
muito de disciplina. Como na vida esta é a palavra que
eu abraçasse suas ideias, compartilhasse delas, fizesse
deveríamos aprender e catequizar. Não como uma pala-
nascer dessas ideias novas ideias e, assim, fez com que
vra de ordem, mas de consciência. Na vida tudo é disci-
eu tivesse a chance de multiplicá-las também. A minha
plina. Para o corpo, para a mente, o amor, o trabalho, a
escolha é dessa arte: compromissada com o outro, com a
realização dos sonhos. Disciplina a favor da democracia!
busca, com o mundo, com a melhoria para os povos. Sem
esses preceitos de que a arte é morta e nula.
256 Meu destino era o Nós do Morro Hoje venci na vida 257

Também pude refletir em que tenho errado mais. Em


que estou acertando. Onde agora eu quero chegar?
Apontou-me soluções. O que devo colocar no meu pró-
ximo filme? Será bom? Conseguirei de fato me expres-
sar por meio da câmera? Os convidados virão a essa
festa? Terá público nessa sessão? Termino. Termino da
forma que sempre começo: na expectativa. Pareço até
me ver com 5 anos de idade andando na casa, enquanto
minha mãe costurava uma fantasia para que eu fizesse
qualquer coisa que seja e eu falando sem parar! Ela
sempre me dizia:
— Luciana, para de falar. Vai dormir. Se não a fantasia
não vai ficar pronta. Amanhã se fizer o dever direitinho,
for boa menina e comer verduras, vai dar tudo certo!

E a história continua...
P.93 Michael Jackson

Imagens: índice P.101


Capa de LP

Ensaio da peça Chica Boa - Eu, Heldi e Sabrina Rosa

e créditos P.104
foto: Acervo pessoal

Com alunos e amigos em produção de figurino para a Mostra


de Teatro Nós do Morro – Eu, Marcio Lopes, Gorete Bezerra e
minha sobrinha Sofia
foto: Acervo pessoal

P.106-107 Ensaio de “A tempestade” – Robert Pacheco, eu, Pierre


P.20 Festa da Escola Educandário da Misericórdia – Santos, Wendel Barros, Sabrina Rosa, Mary Sheyla de Paula,
Eu, meu pai Luiz, minha mãe Maria e minha irmã Martha Jaqueline Ferreira e Diego Dias
foto: Acervo pessoal foto: Acervo Nós do Morro
P.23 Festa junina – Eu e minha irmã Martha P.124 Ensaio com figurino - Espetáculo “Noites do Vidigal” – José
foto: Acervo pessoal Mario, Cíntia Rosa e Carlos André (Careca)
foto: Acervo Nós do morro
P.24-25 Eu na festa de Ano Novo das revendedoras AVON
foto: Acervo pessoal P.130-131 Em visita ao Pão de Açúcar no primeiro intercâmbio feito com
o Nós do morro (Brasil, Portugal, Alemanha, França e
P.32-33 Ensaio no set do filme “Mina de fé” - Favela do Vidigal – Eu,
Colômbia)
Luciano Vidigal (ator), Manoel Jr.(ator)
foto: Acervo Nós do Morro
foto: Acervo pessoal
P.137 Matéria do jornal O Dia
P.36 Teatro do Vidigal
foto: Acervo Nós do Morro
foto: Acervo Nós do Morro
P.146 Ensaio “Noites do Vidigal” – Eu e D. Maria Elnice (atriz)
P.41 Minha carteira de trabalho
foto: Acervo Nós do morro
foto: Acervo pessoal
P.147 Diretoria Nós do Morro - Zezé Silva, Guti Fraga e Fred
P.48-49 Meu registro de atriz
Pinheiro (acima) e Luiz Paulo Corrêa e Castro e Zezé
foto: Acervo pessoal
Silva (abaixo)
P.54 Festa junina no Vidigal – Eu, João Pacífico (meu filho) foto: Acervo Nós do Morro
e Gustavo Melo (meu marido)
P.156 Em Sintra, primeira viagem ao exterior
Acervo pessoal
foto: Acervo pessoal
P.55 Em cena, desejando boas-vindas no Centro Cultural do
P.161 Equipe e atores do filme “O jeito brasileiro de ser português”
Nós do Morro
– Brás de Pina
foto: Acervo Nós do Morro
foto: Acervo Nós do morro
P.62-63 Aos 15 anos com vovó Nazica e vovô Geraldo, no barraco
P.170-171 Em Clermont-Ferrand para o Festival Internacional de
do 314, Vidigal
Curtas-Metragens, em 2005
foto: Acervo pessoal
foto: Acervo pessoal
P.68-69 Na festa de 2 anos no barraco da rua 4, Rocinha
P.175 João Pacífico feliz para posar em seu primeiro passaporte
foto: Acervo pessoal
foto: Acervo pessoal
P.78-79 Recordação do Jardim de Infância, no Colégio
P.180 Ingresso em Clermont-Ferrand
Cenesista Maricá
foto: Acervo pessoal
foto: Acervo pessoal
P.187 Grávida no Cordão do Bola Preta
foto: Acervo pessoal

P.198-199 Parte do roteiro do curta “Mina de fé”


foto: Acervo pessoal

P.209 Foto para a entrada em Clermont-Ferrand


foto: Acervo pessoal

P.216 Eu e João Pacífico


foto: Acervo pessoal

P.222-223 Eu e Cacá Diegues na filmagem do episódio “Acende a luz”, do


5x Favela – Agora por nós mesmos
foto: Claudia Ferreira

P.232 Primeira comunhão – Eu e Frei Henrique


foto: Acervo pessoal

P.238-239 Foto para divulgação da peça “Machadiando” – Lucio Andrey,


Sabrina Rosa, André Santinho, Mary Sheyla de Paula, Cinta
Rosa, eu, Diego Dias, Pierre Santos e Flávia Frenzel
fotos: Acervo Nós do Morro

P.240 Eu e João Pacífico em Berlim


foto: Acervo pessoal

P.241 Eu na filmagem do episódio “Acende a luz”, do 5x Favela –


Agora por nós mesmos
foto: Claudia Ferreira

P.249 Em cena, na peça “Machadiando”


foto: Acervo Nós do morro

P.257 Eu na praia Croisette, no Festival de Cannes, em 2010


foto: Acervo pessoal

P.262 Em dia de teste de elenco – 5x Favela


– Agora por nós mesmos
foto: Arthur Sherman
Sobre a autora

Luciana Bezerra nasceu, em 1974, no Rio de Janeiro. Em


1992, começou a estudar teatro no grupo Nós do Morro,
que foi fundado em 1986, na favela do Vidigal, pelo dire-
tor e jornalista Guti Fraga. O grupo integra vários jovens
interessados na experiência inovadora da arte cênica e
profissionais da área artística e técnica. Sua experiên-
cia neste grupo foi bem ampla. Luciana participou de
oficinas de montagens como atriz, figurinista, diretora,
escritora e roteirista.
Em 2002, foi premiada pela Riofilme com o roteiro do
curta-metragem “Mina de fé”. Assinou a primeira direção,
em janeiro de 2003, com esse roteiro, que foi premiado
como melhor filme no 37º Festival de Brasília do Cinema
Brasileiro, Festival Curta Cinema, Menção Honrosa
ABDeC no Festival Internacional do Rio de Janeiro, Prê-
mio Porta Curtas no Festival Internacional de Curtas de
São Paulo e o único curta brasileiro a participar da mostra
competitiva do Festival de Curtas de Clermont-Ferrand
(França), no ano de 2005.
Atualmente prepara-se para lançar o filme “Acende a
luz”, episódio do projeto de longa-metragem: 5x Favela
– Agora por nós mesmos, produzido por Cacá Diegues.
Coordena o Núcleo Audiovisual Nós do Morro, que tem
em seu currículo quatro produções de curta-metragem
em película 35mm (“O jeito brasileiro de ser português”,
“Mina de fé”, “Picolé, pintinho e pipa” e “A distração de
Ivan”), além de alguns filmes em suporte digital. Todos
com grande circulação e premiações em festivais den-
tro e fora do Brasil.
Este livro foi composto em Akkurat.
O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m².
Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m².
Impresso pela Prol Gráfica em agosto de 2010.

Todos os recursos foram empenhados para identificar e


obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados.
Qualquer falha nessa obtenção terá ocorrido por total
desinformação ou por erro de identificação do próprio
contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder
os créditos aos verdadeiros titulares.

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