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Revista do Arquivo Público Mineiro Ensaio Revista do Arquivo Público Mineiro 101

À revelia das proibições legais para ingresso no sertão de Minas Gerais,


Famílias dos sertões um processo de ocupação já se processava na região de Borda do Campo
desde os primórdios do século XVIII, acelerando-se com a chegada intensiva
Mônica Ribeiro
de Oliveira da Mantiqueira de imigrantes portugueses ao território a partir de 1740 e com a crise da
extração aurífera.
> Desde o início da ocupação da América abastecimento de gêneros tornaram-se altamente quintos. Dessa forma, a Coroa tornou proibidas certas Mantiqueira encontramos no livro de lançamento de
portuguesa as expectativas de se encontrarem ouro e lucrativos. Esse comércio movimentava as concessões regiões, o que incorporou aos domínios portugueses os escravos de 1715, para o procedimento da capitação
prata, tal como na América espanhola, atormentavam as de sesmarias, valorizava as terras, nas quais podiam chamados sertões do leste (atual Zona da Mata mineira) para os denominados “moradores da Ibitipoca”, a
autoridades portuguesas. A Coroa realizava expedições ser cultivadas roças, criados porcos e vacas além de e da Mantiqueira (atual região das Vertentes). Com presença de 30 proprietários com uma posse total de
regulares com o objetivo de descobrir metais preciosos, importantes rendimentos advindos do controle dos exceção dos titulares das sesmarias doadas ao longo do 149 cativos.6 Esses dados comprovam, já nas primeiras
mas somente um século e meio depois da descoberta, direitos de entradas e travessia de rios. Caminho Novo, voltadas ao abastecimento dos viajantes décadas da extração aurífera, propriedades de diferentes
e diante da conjuntura econômica desfavorável em e à alimentação dos animais, oficialmente, nenhuma dimensões, voltadas não só à extração do ouro de
que se encontrava, Lisboa intensificou o processo de Portanto, a vinculação entre exploração do ouro e os outra pessoa podia se fixar na região. aluvião como também às atividades agropastoris.7
interiorização da América portuguesa na esperança negócios de roças e criação de gado ocorria não apenas
de resolver seus problemas. Nesse sentido, solicitou de forma concomitante, mas complementar, sendo vital À revelia das proibições que se estenderam ao ano Mas é a partir dos meados do século XVIII que a região
empenho dos principais sertanistas paulistas, o para a constituição do projeto da metrópole de ocupação de 1755, confirmando os sertões do “Distrito da foi efetivamente ocupada. Centenas de sesmarias
que mais tarde custou a esses a denúncia de que a e exploração na nova fronteira aberta pelos sertanistas Mantiqueira” como área proibida, encontramos na foram doadas entre as décadas de 1740 a 1770,
exploração do ouro em muito antecedeu a comunicação e descobridores na região das minas. Paralelamente, os área mais alta da região da Borda do Campo um sendo incentivada com isso a abertura de picadas e
da notícia às autoridades.1 Assim, no contexto das novos descobertos provocaram um significativo impacto florescer de pequenos povoados cuja fundação se deu trilhas entre as propriedades e dessas com os principais
bandeiras de ocupação iniciadas por Fernão Dias Paes sobre a concessão régia de mercês. As estratégias em função de alguns descobertos auríferos, como canais de escoamento da produção, por mais que
no território mineiro nas últimas décadas do século XVII, bem-sucedidas dos paulistas logo lhes possibilitaram a também pela alternativa de criação de roças voltadas ao bandos8 fossem publicados para conter a ocupação
o ouro é dado como oficialmente descoberto. condição de conquistadores e de primeiros descobridores abastecimento.4 Eventualmente, poderiam essas lavras ser descontrolada. A motivação das proibições não era outra
e esses passaram a pleitear todo tipo de benefícios: ricas a ponto de possibilitar a fixação dos primeiros grupos senão o controle da cobrança de quintos, mas, caso o
Esses descobertos levaram a uma intensa movimentação sesmarias, postos militares, concessões de contratos e indivíduos que para lá se dirigiram, onde fundariam ouro não fosse encontrado, nada podia ser confiscado,
de pessoas no espaço das minas, o que levou a e títulos de prestígio como a do hábito da Ordem de a primeira capela, organizariam um espaço urbano de o que acabava por relaxar o controle e facilitar uma
um processo de ocupação e urbanização ainda não Cristo, muitas honras militares e até, por parte de sociabilidade configurada na praça e na igreja, criariam ocupação mais ostensiva.9 Em janeiro de 1756, nas
vivenciado na América portuguesa. As atuais cidades alguns, a condição de fidalgos da Casa Real. As mercês freguesias que seriam depois elevadas a vilas com suas notícias enviadas ao governador pelo capitão Manuel
de Mariana, Ouro Preto, São José e São João del-Rei eram distribuídas pela Coroa àqueles que comprovassem respectivas câmaras. Esse foi o processo percorrido pelas Lopes de Oliveira, constavam informações sobre a
foram então fundadas e, no seu entorno, vasta região foi sua reputação e a prestação de bons e fiéis serviços. grandes vilas centrais da exploração aurífera. No entanto, abertura de picadas na Freguesia da Borda do Campo,
ocupada, gerando a formação de numerosos povoados. Sertanistas e descobridores tornaram-se não só aliados no entorno dessas, dezenas de pequenos povoados nos chamados “matos gerais do Rio de Janeiro”. Junto
A corrida do ouro levou muitos sertanistas para a região do projeto de exploração metropolitano, como também foram fundados, caracterizados por baixa demografia, aos demais proprietários, o citado capitão empreendia
e, no seu rastro, indivíduos de todas as condições: ricos mineradores e grandes proprietários de terras. ausência de um espaço político, no qual recaía sobre uma uma política de expansão de terras na região.10 A
ilustres homens do reino, imigrantes pobres do noroeste única igreja matriz o símbolo do domínio metropolitano: autonomia desse potentado era garantida por sua rede
português, baianos, fluminenses e, principalmente, Nessa região, o medo e a desconfiança imperavam não Santana do Garambéu, Ibertioga, São Domingos da de parentes amigos, além de seus escravos armados.
“paulistas de toda ordem”2 só diante da ameaça das tribos indígenas dos coroados, Bocaina, Santa Rita de Ibitipoca, Nossa Senhora de O difícil estabelecimento de uma autoridade régia,
carapós e puris, naturais habitantes de uma terra ainda Ibitipoca, além de outros povoados de importância e contraditoriamente, enfrentava a ação de indivíduos
Nesse contexto foram abertos os sertões gerais da inóspita. Conviviam nela bandos de salteadores que se dimensão diminuta para o reino, representavam outra como esse, mas, por outro lado, servia-se deles para
Mantiqueira, na Comarca do Rio das Mortes. Esses escondiam nas trilhas da mata, esperando oportunidades porta de entrada, adaptação e ascensão social para fazer-se presente em áreas mais distantes.
faziam parte dos “campos gerais”, aqueles contíguos de assaltar os tropeiros que percorriam lentamente os indivíduos e grupos na América portuguesa.5
aos descobertos auríferos, ou seja, estavam inseridos caminhos. No entanto, para as autoridades portuguesas Nos assentos de batismos do povoado de Ibertioga
na longa rota mercantil no entorno do Rio de Janeiro. o temor dos descaminhos do ouro se afigurava como encontramos registros de nascimento de dois dos filhos
Essa rota atraía os interesses tanto de comerciantes, o mais ameaçador. Em março de 1720 foi imposta a A ocupação dos sertões da Mantiqueira de Manuel Lopes de Oliveira. O capitão era originário da
quanto dos governantes, tal como ocorria nas minas primeira ordem régia proibindo a abertura de estradas Freguesia de São Pedro Couto de Pedroso, do Bispado
de aluvião.3 Com o intenso afluxo de pessoas para que permitissem desvios ao registro do Caminho Novo, As proibições de trânsito e fixação de grupos e do Porto, e era casado com a fluminense Ana Maria
os descobertos auríferos, os negócios ligados ao tentando evitar o contrabando e manter a cobrança dos indivíduos eram, portanto, ineficazes. Nos sertões da dos Santos.11 Sua filha Maria Ignácia, nascida em

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Carta de sesmaria obtida por Antônio José Bustamante e Sá em 1742. Acervo Arquivo Público Mineiro. Fundo Seção Colonial –
Secretaria de Governo da Capitania – SC-080 – Registro de sesmarias (1742-1745). Belo Horizonte/MG.
1744, casar-se-ia mais tarde com José Aires Gomes, como a presença de uma população lusa residente, de mercadorias para os mercados mais distantes, em uma conjuntura de expansão de fronteiras e de
sucessor de seu sogro no controle das terras e dos de primeira ou segunda geração, já entranhada no representava uma importante oportunidade tanto para estabelecimento das redes relacionais no novo espaço.16
novos descobertos e que, futuramente, se tornaria uma território. Ademais, a chegada como sesmeiro ou mesmo os chamados “paulistas” como para portugueses. É
importante figura da Inconfidência mineira, condenado posseiro numa área pouco controlada pelas autoridades importante salientar que, simultaneamente ao processo A manutenção de picos de crescimento da população
ao exílio e falecido em Angola. Filhas representavam, metropolitanas afigurava-se como uma excelente formal de doação de sesmarias, havia espaço para o em períodos considerados de crise das possibilidades
acima de tudo, uma oportunidade para realização oportunidade para se iniciar uma carreira no além-mar. intruso, o homem livre pobre disposto a arrendar terras de extração aurífera (1800 e 1820), por um lado,
de boas relações interpessoais. Como padrinho por para a produção agropastoril, ou mesmo um assento corrobora as considerações a respeito da importância
procuração da filha Maria Ignácia, encontramos o Pelo exposto até agora, percebemos que as ordens para sua família com pequena roça de milho e feijão. e vitalidade das atividades voltadas ao abastecimento
contratador de tributos de entrada e negociante de régias proibindo a construção de picadas na região interno, que permaneceram e se intensificaram após a
Vila Rica Domingos Ferreira da Veiga.12 As relações (1720, 1733 e 1750), e mesmo a confirmação do A documentação levantada por nós referenda esse decadência da mineração. Por outro lado, a partir do
consanguíneas e rituais das redes relacionais do “distrito da Mantiqueira” como área proibida (1755), contexto de expansão da fronteira de ocupação na primeiro pico de crescimento da população (1760), que
reduzido grupo de homens ricos da localidade se não surtiram o menor efeito. No mínimo uma dezena de região. Por meio dos assentos de batismos dos povoados pode ser explicado não só pelo crescimento vegetativo,
reproduziam, ultrapassavam as fronteiras geográficas e pequenos povoados foi fundada na região durante esse em questão, constata-se a presença de três picos de como também pela entrada de imigrantes, os dados
reforçavam os privilégios daqueles que se distinguiam período, circundada por uma extensa área de exploração crescimento da população ocorridos nas décadas de indicam um processo de reprodução da população
na América portuguesa. agrícola, pastoril e mineradora. André F. Rodrigues, ao 1760, 1800 e 1820, respectivamente.15 Tivemos local, conformando a segunda e terceira gerações
levantar documentação referente às viagens oficiais e acesso a todos os documentos disponíveis desde o subsequentes. Concomitantemente, revelam uma
Manoel Lopes de Oliveira era um típico representante exploratórias na Mantiqueira realizadas pelas autoridades primeiro assento de batismo encontrado (1702) até o dinâmica populacional que reflete a mobilidade espacial
do grupo de portugueses que emigrou para o alto da portuguesas com objetivo de constatar a situação de último, referente ao ano de 1850. Com base nesses característica de regiões de fronteira.
Borda do Campo nos meados do século XVIII. Nos devassamento das áreas e potencialidade da extração dados, elaboramos o Gráfico 1 (ver p.114), que registra
assentos de batismos relativos àquela região, desde mineral, descreve a surpresa de D. Rodrigo José de esse movimento da população. Quanto às famílias representativas da mais alta
o primeiro registro em 1708 até o último coletado Meneses com a situação encontrada. Diante do quadro, hierarquia local, essas tenderam a desaparecer no
para 1850, constatamos a presença de 524 pais de o governador decidiu repartir legalmente as terras entre Do quadro demográfico encontrado podemos extrair decorrer dos anos. Em outros trabalhos acompanhamos
origem portuguesa declarada e quase 100% deles entre os indivíduos sem título formal ou entre aqueles que um conjunto de deduções consistentes. Esses dados a trajetória de três importantes grupos familiares
1740 e 1770, o que revela ser este o período de pico manifestassem esse interesse. Dessa forma, buscava atestam a afirmação que vimos fazendo ao longo deste que formaram seu patrimônio na região e cujas
da ocupação da região.13 Esse grupo fazia parte do incorporar populações dispersas e inadimplentes, artigo de que, à revelia das proibições legais existentes, segundas e terceiras gerações emigraram para outras
movimento populacional de chegada de portugueses subordinado-as ao pagamento de tributos.14 um processo de ocupação já se processava na região regiões mais prósperas, de fronteiras ainda abertas,
provenientes da região do Minho, noroeste de Portugal, e que esse processo experimentou um perceptível utilizando-se da rede de parentesco consanguíneo
especialmente do arcebispado de Braga e Viana do crescimento com a chegada de centenas de imigrantes e ritual para consolidarem-se enquanto grandes
Castelo (Termos de Barcelos, Guimarães, e suas diversas Os grupos sociais portugueses à região a partir de 1740, alcançando proprietários de terras e escravos.17 O lento decréscimo
pequenas freguesias) e também dos arquipélagos seu primeiro pico em 1760. Em trabalho anterior das lavras auríferas, associado às difíceis condições
dos Açores e Madeira. Apesar do fluxo constante de Citamos até agora a presença marcante dos portugueses havíamos analisado o comportamento socioeconômico naturais (relevo acidentado, baixas temperaturas,
imigrantes portugueses para a região das Minas, o que para o alto da Borda do Campo emigraram, desse grupo e suas estratégias de sobrevivência na vegetação de cerrado nas partes mais altas), além da
número encontrado na Borda do Campo surpreendeu-nos. estimulados pelo livre acesso à terra e lavras de ouro, nova terra. O acesso à propriedade de terras e cativos, dependência das picadas para acesso às estradas de
Certamente foram estimulados pelos fatores próprios ausência de uma intensa fiscalização e controle por os matrimônios realizados, assim como as redes de maior escoamento da produção, dificultava maiores
de dispersão em Portugal e nas ilhas, tais como o parte das autoridades. Paralelamente a esse grupo, amizade, parentesco e compadrio estabelecidas pelos investimentos produtivos. Esses fatores atuaram
empobrecimento e a pressão demográfica vigentes percebe-se a presença de centenas de “nacionais”, indivíduos desse vasto grupo possibilitavam aos recém- conjuntamente como causas de dispersão dos estratos
no noroeste português. Mas também os imigrantes lusos de segunda ou terceira gerações, fluminenses e -chegados as condições necessárias para sua integração. mais altos da hierarquia local, que passaram a emigrar
foram atraídos pelas vastas possibilidades de acesso paulistas provenientes de Parati, Pindamonhangaba A escolha matrimonial se tornava uma importante para outras áreas mais estratégicas à produção e ao
a terras minerais, agricultáveis e propícias à criação, e Taubaté. Tornar-se proprietário de terras na Borda instância de reconstituição das alianças familiares, seu escoamento. Permaneceram na região, ou para lá
disponíveis no centro-sul da América portuguesa, assim do Campo, região próxima às estradas de escoamento gerando o fortalecimento dos laços de identidade, emigraram na segunda metade do século XIX, grupos

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e indivíduos dos estratos médios e baixos, pequenos a lado com outra parda forra, de nome Antonia Teresa uma conjugação de sobrenomes específica, a qual era magistrado habilitava os sucessores a se beneficiarem
e médios proprietários escravistas de sítios e roças. Teles, mãe de cinco filhos do capitão José Fortes de adotada por todos quantos nela nasciam, e não apenas do prestígio de seus ascendentes. Foi esse o caso do
As atividades desses grupos se caracterizavam pela Bustamante e Sá.20 o sucessor. Quanto às mulheres, depois de casadas, neto de Roberto Carr Ribeiro, bacharel Feliciano Carr
produção de alimentos e criação de animais pouco nunca tomavam o sobrenome dos maridos, por não ser Ribeiro, que ascendeu na magistratura invocando a
mercantilizada. Esses dados são compatíveis com o essa uma prática corrente na aristocracia portuguesa.23 condição de magistrados do pai e do avô, o que foi
acesso à propriedade escrava pela população livre, o A trajetória dos Fortes Bustamante e Sá A atribuição dos nomes na família objeto da pesquisa reconhecido, habilitando-o na carreira.25
que pode também ser visualizado no Gráfico 1. As fases observou esse mesmo padrão. Para homens, uma
de crescimento da população livre são acompanhadas Passemos a acompanhar a família Fortes Bustamante pequena variação e conjugação de sobrenomes e, para A sexta filha do juiz de fora Luis Fortes de Bustamante
pelo concomitante crescimento da população escrava, e Sá, com o objetivo de desvelar a trajetória de alguns as mulheres, uma recorrência a algumas variações da e Sá, chamada Francisca Xavier de Bustamante, assim
o que referenda o modelo das propriedades escravistas de seus membros, bem como a ação de indivíduos, ascendência paterna e materna. como sua irmã Rita Luisa Vitória de Bustamante
pequenas e médias voltadas ao abastecimento de outras considerados não isoladamente, mas como partes e Sá, a décima e última dos filhos, casaram-se,
áreas da América portuguesa. de um universo sociocultural próprio de uma época, Luis Fortes de Bustamante e Sá nasceu em Ourém respectivamente, com o sargento-mor Manoel Rodrigues
imersos em relações, interações e interdependências, (Portugal), em 1678, e faleceu em São João del- Pereira e o capitão-mor Manuel Antunes Nogueira.26
Se nos ativermos à questão escrava, o que demandaria capazes de realizar escolhas próprias. Procuramos -Rei, Minas Gerais, em 1741. O juiz de fora era um Deste último casamento originaram-se seis filhos, todos
um esforço incompatível com a proposta deste construir, por meio da busca em inúmeras fontes, magistrado profissional de nomeação real, que tinha importantes proprietários, que fizeram carreira como
artigo, constataremos que os assentos de batismo fragmentos das vidas dessas pessoas, que nos como encargo corrigir a ação dos juízes ordinários e oficiais de ordenança.27 Dos seis filhos homens do juiz
apresentaram outra importante questão. Encontramos permitam fazer inferências analíticas, na tentativa de aumentar o poder do rei.24 Os juízes eram fidalgos de fora, dois tornaram-se padres, de acordo com o
94% dos registros de batismos de crianças cativas e compreender as estratégias individuais e os efeitos letrados, instruídos no Direito Romano, e possuíam costume das famílias aristocráticas.
apenas 6% de batismos de cativos adultos.18 A partir dessas sobre os destinos individuais e o de seus também jurisdição criminal no que se referia a injúrias
desses dados, podemos inferir que a sociedade em grupos de pertencimento.21 Nesse sentido, o estudo e devassas. Essa condição conferia-lhes prestígio e Essa vasta família perpetuou seu prestígio ao longo dos
questão possuía pequena capacidade de inversão do processo histórico no qual esses indivíduos eram significava o início de uma carreira de prestação de anos utilizando-se das várias estratégias de preservação
em cativos, via tráfico atlântico, o que justifica a atores e das redes sociais nas quais se inseriam serviços na administração judiciária que poderia levá-los do nome e do patrimônio familiar como os matrimônios
reduzida ocorrência de batismos de escravos adultos. tornou-se fundamental para entender suas escolhas e à nomeação como desembargadores. endogâmicos, ascensão aos cargos políticos e da
Em contrapartida, era marcada por altos índices de comportamentos em determinadas circunstâncias de magistratura, assim como a extensão das redes
reprodução natural, perceptível pela alta percentagem suas vidas. Apesar de cumprir uma trajetória típica de magistrado, relacionais por meio do parentesco ritual, entre outras.
de crianças batizadas. Famílias escravas formadas por dentro das prerrogativas das Ordenações Filipinas, a
mães e seus filhos ou mesmo famílias nucleares Nesse intento, o fio da meada que seguiremos será carreira de Luis Fortes de Bustamante e Sá não estava
(pai, mãe, filhos) constituíam uma realidade nas áreas Luis Fortes de Bustamante e Sá, juiz de fora da cidade isenta de envolvimento nas redes locais de poder. O Os da Borda do Campo
de pequenas e médias propriedades.19 de São Sebastião da Capitania do Rio de Janeiro, juiz de fora foi agraciado, em 1713, com uma sesmaria
título a ele concedido em 1711.22 Sua trajetória só foi próxima ao Caminho Novo que daria origem, décadas Interessa-nos especialmente aqueles indivíduos que
Consideramos essa região, nas primeiras décadas do possível de ser acompanhada por ser ele um fidalgo, depois, à cidade de Juiz de Fora. Conforme o padrão criaram raízes na Borda do Campo, que ajudaram a
século XVIII, uma porta de entrada de distintos grupos o que assegurou a manutenção do nome de família ao tradicional da época, constituiu família numerosa, desbravar o sertão das Gerais em seu próprio benefício,
sociais que passaram a ocupar diferentes lugares da longo dos anos. Ao analisar as variações dos nomes gerando dez filhos, frutos de seu casamento com Luisa e, como não poderia deixar de ser, reproduziram e
hierarquia social, no espaço dos pequenos povoados de família ao longo dos séculos em Portugal, Nuno Maria Xavier da Fonseca. Procurou traçar estratégias ressignificaram todo o comportamento cultural próprio
circunvizinhos. Esses abrigavam, concomitantemente, G. Monteiro ressalta uma mudança ocorrida a partir de ascensão social e projeção política, principalmente de sua matriz ibérica, transformado por uma série de
a moradia de famílias de status diferenciados. Por do século XVIII, que se estende ao XIX. Entre irmãos através da realização de matrimônios por aliança para práticas adquiridas do novo meio cultural predominante
exemplo, a parda forra Bernarda Ferreira, casada com passou a predominar o mesmo sobrenome de família; três de suas quatro filhas. Assim, sua primeira filha, na América portuguesa. Nossa atenção se concentrará
o índio bastardo Marcos da Silva. O casal teve cinco ou a conjugação dos primeiros sobrenomes, que tendeu Maria Angélica de Sá e Meneses, casou-se com Roberto na trajetória de João Pedro de Bustamante e Sá e,
filhos entre 1765 e 1773, que foram criados em uma a aumentar. Assim, verificou esse autor uma inclinação Carr Ribeiro, proveniente também de uma família principalmente, José Fortes de Bustamante e Sá,
propriedade extremamente rústica. Eles conviviam lado muito clara para que cada casa ficasse associada a de fidalgos magistrados. A endogenia da carreira de moradores do alto da Borda do Campo.

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João Pedro Bustamante e Sá era o nono e último filho quando seu próprio pai recebeu uma sesmaria que eles deveriam ser “naturais do reino, cristãos-velhos, padrinho de conterrâneos seus do Porto e das Ilhas.
homem da família. Nasceu na Borda do Campo por anos depois foi vendida ao seu genro e que também a de limpo sangue, sem raça de mouro, judeu ou gente Envolvia sua extensa família nas redes de compadrio,
volta de 1725 e faleceu em Ibitipoca em 1831. Seu repassou a outros potentados locais. novamente convertida”.33 como sua mãe, irmã e sobrinha. Por mais que os
nome aparece na lista de posseiros da Borda do Campo, indícios nos levem à comprovação de uma trajetória
mas também como sesmeiro na região por volta de Interessante notar que, da extensa família Bustamante José Fortes buscava outras formas de distinção: de potentado rural, através de sua condição de familiar
1758.28 Permaneceu solteiro por toda a sua vida, com e Sá, apenas dois filhos homens permaneceram na cultivava hábitos de Corte. Em seu inventário, seu do Santo Ofício, sesmeiro, com hábitos de Corte e
uma conduta próxima da de um celibatário, tendo região, João Pedro e José. Naquela época, tal como irmão João Pedro Bustamante e Sá, como inventariante, interesses na ampliação de sua rede de relações,
em vista a ausência de qualquer vestígio de relações relatado anteriormente, o alto da serra da Ibitipoca declarou objetos e utensílios de prata e estanho, móveis sobressai a despreocupação com a manutenção de
licenciosas suas. Muito pelo contrário, na documentação estava recebendo centenas de imigrantes portugueses, de qualidade, além de louças da Companhia das Índias, sua linhagem: em todos os assentos percebe-se sua
levantada referente à Irmandade de São Miguel e Almas, além de uma série de paulistas e fluminenses em busca como vidros, tigelas, xícaras, além de garrafas de vinho condição civil como solteiro.
com sede em Barbacena, mas com “irmãos zeladores” de áreas de extração mineral e terras para produção de do Porto. Foram relatados livros, jogos de tabuleiro
nas capelas filiais dos povoados, João Pedro é citado roças. Ocorria então um rápido processo de ocupação, e, no mínimo, oito armas de fogo. Todos objetos que No entanto, nos assentos de batismo, deparamo-nos
como zelador da Piedade da Borda do Campo, por volta a de que José Fortes era participante. Em seu inventário simbolizavam o “viver à lei da nobreza”, mesmo que com três filhas suas nascidas de um relacionamento
de 1771-1772.29 encontramos menção a outras propriedades, além de circundado pela pobreza e rusticidade da maioria dos com a parda forra Antônia Teresa Teles. A primeira
terras minerais. Somando-se a escravaria de suas duas habitantes da localidade Ibertioga, na qual ele residia na quando ele contava 54 anos. A mãe batizou-as como
Cabia ao “irmão zelador” recolher as esmolas dos maiores propriedades, ele possuía um plantel de mais ocasião de sua morte.34 filho de pai incógnito, mas no canto esquerdo dos
fiéis e entregá-las ao tesoureiro, além de dar apoio de 50 cativos.31 registros encontramos a seguinte observação: “José
e comparecer à igreja regularmente a serviço da Por meio da documentação levantada, encontramos o Fortes Bustamante e Sá diz ser sua filha verídica”. Duas
irmandade. Estendia suas redes sociais através do Do clássico processo de nobilitação a que todos os registro de 31 “ingênuos”, ou seja, crianças filhas de dessas suas filhas tiveram como padrinho um casal
compadrio, tanto de escravos seus como das famílias fidalgos e candidatos a fidalgos almejavam, passando escravos, de propriedade de José Fortes sendo levados conterrâneo seu, sendo que a terceira foi apadrinhada
mais abastadas da região, em um comportamento típico da ocupação dos postos de ordenança, obtenção à pia batismal: 20 destes legítimos, com a presença dos por seu irmão, o padre Francisco Bustamante Fortes.
dos homens ricos de sua época. João Pedro exerceria das mercês como familiar do Santo Ofício e Ordem pais, e 11 ilegítimos. Desse total, quase a metade teve No seu inventário constam mais um filho e uma filha
importante papel após 1777, com a morte de seu de Cristo até o exercício de cargos municipais, José como padrinho ou madrinha um cativo de propriedade de sua união com a forra Antônia. Todos os cinco foram
irmão José Fortes de Bustamante e Sá. Sobre este, Fortes adquiriu um título capaz de conferir-lhe a maior de José Fortes. O parentesco ritual entre parceiros do nomeados pelo testamento como herdeiros, ostentando
nossa investigação proporcionou uma série de rastros e distinção a que fizera jus: conseguiu tornar-se Familiar mesmo cativeiro, sob a tutela do senhor, fortalecia as ao menos um sobrenome da linhagem paterna, o
questionamentos. Centraremos nossa atenção nele. do Santo Ofício, em 1748, com 38 anos, ocasião relações internas ao próprio plantel, contribuindo para Bustamante.
em que já se apresentava, segundo a documentação a criação de laços comunitários. José mostra-se, senão
José Fortes Bustamante e Sá nasceu em Ourem, na compulsada, como morador da Comarca do Rio das flexível, aberto a negociações. Paulo, seu escravo, José Fortes escapou da censura das visitações
região central de Portugal, em 1709, e faleceu em Mortes.32 Os “familiares” eram os oficiais leigos do era casado com Ignacia, uma parda forra, em 1759, eclesiásticas, que conduziam as devassas episcopais
Ibitipoca, Minas Gerais, em 1777. Era o primeiro filho Santo Ofício, escolhidos entre as pessoas de boa quando aparecem batizando o primeiro filho. Seis anos na região, apesar de sua relação com a parda Antônia.
homem de Luis Fortes de Bustamante e Sá, nascido reputação e cabedais, residentes tanto em Portugal depois Paulo já aparece nos registros como Paulo da A documentação levantada registra inúmeras dessas
depois de Maria Angélica de Sá e Figueiredo. Ambos quanto na América portuguesa. Antes que qualquer Costa, forro, batizando outros três filhos com a mesma visitações na região, ocorridas em 1730, 1733, 1737,
vieram com a mãe para o Brasil somente depois que cooperação com a Inquisição, esses indivíduos mulher, tendo como padrinho de um dos nascidos 1742, 1757 e 1800. A primeira filha de José teria
seu pai fora nomeado juiz de fora da Capitania do Rio buscavam legitimação na sociedade e preservação de o próprio José e um outro cativo seu.35 A extensão nascido por volta de 1763 e, por ocasião da última
de Janeiro. José Fortes tornou-se proprietário de terras seu status. Entre os pré-requisitos necessários para dos laços de parentesco por meio do compadrio com visitação, José Fortes já era falecido. A quase totalidade
na Borda do Campo em razão da concessão de uma pleitear o cargo de familiar da Inquisição incluíam-se o escravos, forros e lavradores legitimava o poder do dos registros reprimia os crimes de concubinato e,
sesmaria na Ibitipoca, em 1742.30 Essa concessão foi de serem “pessoas de bom procedimento e de confiança senhor, ao estabelecer compromissos e lealdades. provavelmente, sua relação ilegítima poderia ser
estendida a quatro irmãos seus. A família Bustamante e capacidade reconhecida”, que tivessem “fazenda de denunciada. Tal fato aconteceu com o tenente-coronel
e Sá já havia sido beneficiada com sesmarias na Mata que possam viver abastadamente”. Além disso, como os José Fortes realizava um diálogo entre os diferentes José Lopes de Oliveira, tio do capitão Manoel Lopes
mineira, região contígua à Mantiqueira, desde 1711, demais ministros e oficiais do Santo Ofício português, segmentos da sociedade local. Por oito vezes tornou-se de Oliveira, aqui citado inicialmente como um grande

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proprietário de terras na região. José Lopes, em 1730, cunhados. Ao final, descontados os pagamentos aos Considerações finais redes de parentesco ritual. Referimo-nos às relações
provavelmente ainda em sua juventude, foi acusado credores, os bens desapareceram. Seu único irmão de compadrio envolvendo senhores, cativos e forros,
por crime de concubinato, com a escrava Dorothéa e solteiro e inventariante, João Pedro Bustamante e Sá, As trajetórias individuais e de grupo que acompanhamos encontradas nos assentos de batismo de escravos. Esse
com a forra Antonia da Luz em 1733.36 Anos depois, foi destituído dessa condição por não restar nenhum revelam traços do comportamento daqueles que processo contribuiu para ampliar as relações intergrupais
entre 1740 e 1759, ele aparece batizando 12 filhos patrimônio a ser partilhado. estavam à margem das grandes áreas da exploração e estabelecer novos pactos entre os diferentes grupos
seus, fruto do casamento com Bernardina Caetana do de ouro e diamantes, mas de certa forma conectados a atuantes naquele contexto histórico-social.
Sacramento, filha de fidalgos portugueses. Como se Não possuímos bases empíricas para afirmar se Antônia elas pelas vias do abastecimento de alimentos e gado.
pode perceber, as visitações não poupavam os principais e seus filhos foram vítimas de algum arranjo familiar que Também estavam vinculados às redes sociais que se Num segundo momento acompanhamos a trajetória de
da terra, mas José Fortes conseguiu não ser indiciado. solapou os bens dos herdeiros, mas não descartamos constituíram durante o período colonial por meio do uma família de fidalgos, caracterizada por uma série
essa possibilidade. Dívidas contraídas nem sempre parentesco, consanguíneo ou fictício, e às redes de de condutas próprias das elites da época, pautadas
Quanto a Antônia Teresa Teles, que aparece nos possuíam a devida comprovação, bastando a palavra endividamento estendidas não só a Minas, mas também pelo empenho na obtenção de títulos, mercês,
registros como parda, talvez tivesse uma pele mais clara dos envolvidos. Os cinco filhos menores, de 14, 12, 11, às demais áreas do centro-sul da América portuguesa. honras e em carreiras políticas de privilégios, ou seja,
e fosse filha de alguma relação conjugal licenciosa, 9 e 6 anos, vão morar junto à mãe na casa do tio João comportamentos legitimados por um amplo consenso
muito comum no período. Procuramos seus vestígios Pedro. Tentamos encontrar indícios da trajetória das Nosso objetivo inicial foi analisar o processo de social. Centramos, em seguida, nossa atenção em um de
nas fontes, como mãe dos filhos de José Fortes de quatro filhas e do único filho de Antônia. Estes, ainda ocupação e povoamento das áreas consideradas de seus membros, cuja margem de autonomia, traduzida
Bustamante e Sá, suas origens ou mesmo uma carta que tenham merecido o reconhecimento do pai, que sertão em Minas Gerais no século XVIII a partir do em escolhas pessoais e estratégicas, pôde ser analisada
de liberdade. No entanto, até o presente momento, assumiu a importância dos laços de sangue, própria do comportamento de indivíduos pertencentes a variados mais de perto. Mesmo tratando-se de um indivíduo
não encontramos nenhum traço de sua trajetória, nem universo cultural ibérico, herdaram apenas o nome. grupos sociais. Realizamos exaustivo levantamento de relacional, possuidor de status superior no contexto
mesmo consultando o sobrenome “Teles”, adotado dados em fontes diversas e tivemos acesso a uma série daquela ordem social, ele se distinguiu dos demais
por ela, que poderia remeter aos seus antigos donos. Encontramos apenas um assento de batismo da filha de informações originais e importantes para se criar um devido às redes de interações que conseguira estabelecer
Antônia entrou no mundo dos livres com um nome Mafalda Bustamante, terceira de José Fortes, como quadro geral do processo de conquista do centro-sul ao longo de sua vida e às suas escolhas individuais.
e sobrenome, mas não tinha como incorporar o mãe da ingênua Floriana. Mafalda teria se casado da América portuguesa naquele século. Esses dados
Bustamante. Sem dúvida, José Fortes realizou uma aos 16 anos, aproximadamente, cinco anos após nos proporcionaram uma reflexão sobre as formas de
escolha estratégica: não legalizou sua relação, o que a morte de seu pai, com um homem de trajetória hierarquização social nas áreas periféricas às grandes RESUMO | Este artigo analisa o comportamento sociocultural de indi-
víduos e grupos durante o processo de ocupação e povoamento das áreas
seria prejudicial a ele e sua família, já que estaria desconhecida. No registro consta seu nome completo, vilas de exploração mineradora. consideradas de sertão em Minas Gerais no século XVIII. Reflete sobre
vinculando oficialmente o nome de um fidalgo honrado Mafalda Felícia de Bustamante, sem dados de o processo de hierarquização social local que tendia a reiterar práticas
e valores culturais próprios da época. Por outro lado, dá-se a perceber
a uma mestiça. O prejuízo adviria em caso de qualquer parentesco paterno e materno. Ao omitir suas origens, Antes que um modelo distinto, encontramos a reiteração um espaço de autonomia, através do qual se manifestavam as escolhas
individuais e estratégicas. O estudo do processo histórico e das redes nas
tentativa de acesso a um cargo ou a um título, como a teria ela buscado apagar qualquer estigma de cor em de práticas e condutas próprias de uma época, marcada quais os indivíduos se apresentavam tornou-se fundamental para enten-
der os comportamentos em determinadas circunstâncias de suas vidas e
Ordem de Cristo, pois isso significaria ter vasculhada suas origens? São questionamentos como esse que pelo encontro de valores culturais do mundo ibérico, os efeitos destas sobre os destinos individuais e de grupo. Para atender
sua vida e a de seus antepassados e essa informação somos tentados a fazer, sem a menor possibilidade de a essas finalidades estudamos a região da Borda do Campo, na Comarca
transformados e ressignificados pela nova experiência
do Rio das Mortes, e acompanhamos mais de perto a trajetória de alguns
seria considerada um impedimento.37 comprovação, contudo. no mundo colonial. Esse processo foi permeado pela indivíduos da família Fortes de Bustamante e Sá.

escravidão, por práticas clientelares e novas identidades,


ABSTRACT | This paper analyzes the sociocultural behaviour of individuals
Antônia não parecia ser uma simples concubina, na Os vestígios dos Fortes Bustamante e Sá da região da que refletiam as relações entre os estratos dominantes and groups during the process of occupation and settlement of areas of
medida em que teve reconhecidos seus filhos com Borda do Campo praticamente desapareceram. Porém, e grupos sociais distintos, como os forros, agregados, the interior called sertão in Minas Gerais during the eighteenth century.
It reflects on the creation of local social hierarchies that tend to reiterate
José Fortes. No entanto, ela não foi capaz de romper como na América portuguesa e durante os séculos índios, entre outros. cultural practices and values belonging to the period. On the other hand,
it gives us a perception of a autonomous environment, manifest through
essa condição e conseguir um pecúlio que lhe pudesse posteriores a cor era um “lugar social”, provavelmente individual and strategic decision making. The study of the process of
history and of the networks in which individuals present themselves is
trazer conforto no futuro. A ela e sua prole estaria essa parte da família Fortes Bustamante e Sá se Os lugares ocupados pelos diversos grupos não eram fundamental to understanding their behaviour in determined circumstances
reservado um destino mais cruel. No rico inventário integrou ao enorme grupo dos menos abastados, estanques. Havia uma forma de interlocução entre of life and the effect of these on the destinies of the individuals and groups.
To address these last points we studied the region of Borda do Campo in
de bens de José constava também uma série de homens livres pobres, de cor parda, que se espalharam eles, perceptível nas interações que resultaram na the Comarca do Rio das Mortes as we closely followed the trajectories of
some individuals of the family Fortes de Bustamante e Sá.
dívidas, muitas contraídas com suas próprias irmãs e por toda a colônia. constituição de uma vasta clientela, possibilitada pelas [Versão para o inglês de Peter Hargreaves.]

112 | Revista do Arquivo Público Mineiro | Ensaio Mônica Ribeiro de Oliveira | Famílias dos sertões da Mantiqueira | 113
11. Arquivo do Arcebispado de Mariana. Assentos de batismo, livro D10. localização espacial exata e sua atual denominação. Ao que tudo indica, tesco fictício como parte de uma “hierarquia social costumeira”, presente
Notas | a sede da irmandade estava em Nossa Senhora da Borda do Campo, na América portuguesa. FRAGOSO, João. Capitão Manuel Pimenta Sam-
12. ARAÚJO, Luiz Antonio da. Negociantes e contratos de tributos e povoado este que seria, em 1791, elevado à condição de vila, com a paio, senhor do engenho do Rio Grande, neto de conquistadores e compa-
1. Maria Verônica Campos sugere que os paulistas, estimulados a se direitos régios na Bahia setecentista: notas de pesquisa. In: ENCONTRO denominação de Barbacena. dre de João Soares, pardo: notas sobre uma hierarquia social costumeira
lançarem aos descobertos, teriam sido justamente aqueles “acusados de ESTADUAL DE HISTÓRIA – Anpuh-Ba, 4., 2008. Anais... Vitória da (Rio de Janeiro, 1700-1760). In: FRAGOSO, João; GOUVEA, Maria de Fá-
explorar o ouro sem manifesto”. Adriana Romeiro sugere que, bem antes Conquista: Anpuh-Ba, 2008. Disponível em: http://www.uesb.br/ 29. Arquivo do Arcebispado de Mariana. Irmandades, livro D3. tima (Org.). Na trama das redes. Política e negócios no Império português,
dos primeiros relatos oficiais à Coroa portuguesa, os paulistas já esta- anpuhba/anais_eletronicos/Luiz%20Ant%C3%B4nio%20Silva%20 séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 243-294.
vam cientes da presença de ouro abundante nos sertões. CAMPOS, Ma- Araujo.pdf. Acesso em: 12 ago. 2012. 30. Arquivo Público Mineiro. Sessão Colonial, códice 224.
ria Verônica. Governo de mineiros: de como meter as minas numa mo- 36. Arquivo do Arcebispado de Mariana. Devassas da Borda do Campo.
enda e beber-lhe o caldo dourado, 1693 a 1737. Tese (Doutorado em 13. Arquivo do Arcebispado de Mariana e Arquivo Histórico do 31. Arquivo Histórico do IPHAN-São João del-Rei. Inventário post-
História) – Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Arcebispado de Juiz de Fora. Assentos paroquiais de batismo. -mortem, cx. 569. 37. Junia Furtado encontrou semelhante quadro no estudo da vida da parda
de São Paulo, São Paulo, 2002, p. 34-36. ROMEIRO, Adriana. A guerra forra Chica da Silva. FURTADO, Junia F. Chica da Silva e o contratador de
dos emboabas: novas abordagens e interpretações. In: RESENDE, Maria 14. RODRIGUES. Viagens aos sertões proibidos da Mantiqueira..., p. 49. 32. Diligência de Habilitação de José Forte de Bustamonte e Sá. diamantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 57.
Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Org.). As Minas setecentistas. Arquivo da Torre do Tombo. Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral,
Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007. v. 1, p. 532. 15. Arquivo do Arcebispado Mariana e Arquivo Histórico do Arcebispado Habilitações, José, mç. 57, doc. 890. Note-se o erro da documentação
de Juiz de Fora. Assentos paroquiais de batismo. na grafia do Bustamante. Disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt/
2. Magalhães Godinho ressalta que a quantidade de ouro enviada viewer?id=2334108. Acesso em: 25 jul. 2012.
do Brasil para o reino ainda em 1703 era maior do que todo o ouro 16. OLIVEIRA. Indivíduos, famílias e comunidades... Mônica Ribeiro de Oliveira é doutora em História Social
conseguido por Portugal na Mina e na Guiné durante todo o século XVI. 33. KÜHN, Fábio. As redes da distinção: familiares da Inquisição na pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professora do
GODINHO, Vitorino Magalhães. Portugal, as frotas do açúcar e as frotas 17. OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Avô imigrante, pai lavrador, neto América Portuguesa do século XVIII. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 26, Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Juiz
do ouro, 1670-1770. In: Ensaios II. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1968. cafeicultor: análise de trajetórias intergeracionais na América Portuguesa n. 43, p. 177-195, jan./jun. 2010. de Fora (UFJF), tendo como área de especialização História
(séculos XVIII e XIX). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 27. n. 46, jul./ Econômica e Social do século XVIII ao final do século XIX.
3. Francisco Andrade ressalta as intenções dos sertanistas de se criar dez. 2011.
34. Arquivo Histórico do IPHAN-São João del-Rei. Inventário post- É autora de Negócios de família e Exercícios de micro-
gado nos campos gerais, ocupando-os de forma a facilitar a cobrança de -mortem, cx. 569.
18. Arquivo do Arcebispado de Mariana e Arquivo Histórico do -história, este em coautoria com Carla Maria de Carvalho.
quintos, dízimos e contratos. ANDRADE, Francisco. Práticas de lucro.
A invenção das Minas Gerais: empresas, descobrimentos e entradas Arcebispado de Juiz de Fora. Assentos paroquiais de batismo. A pesquisa de que resultou o presente artigo está sendo
35. João Fragoso, ao retomar o tema da escravidão em um de seus traba- conduzida com o apoio do CNPq e da Fapemig.
nos sertões do ouro da América Portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica; lhos, analisa essas relações entre os diferentes mundos através do paren-
Editora PUC Minas, 2008. p. 171. 19. Esse dado encontrado referenda uma série de pesquisas sobre a
presença de famílias escravas fora da plantation. Para mais informações,
4. A Borda do Campo (1703) era o nome de uma fazenda que deu origem consultar: MACHADO, Cacilda. A trama das vontades. Rio de Janeiro:
ao núcleo inicial de povoamento na região da atual cidade de Barbacena. Apicuri, 2008.
GRÁFICO 1 | ASSENTOS DE BATISMOS DOS MORADORES DOS POVOADOS DO ALTO DA BORDA DO CAMPO*
A Freguesia da Borda do Campo foi criada em 1726 e a partir de 1943
ela recebe a denominação de Correia de Almeida. Consultar: BARBOSA, 20. Arquivo do Arcebispado de Mariana e Arquivo Histórico do
Waldemar de Almeida. Dicionário geográfico de Minas Gerais. Belo Arcebispado de Juiz de Fora. Assentos paroquiais de batismo. Número absoluto de batismo de livres e escravos
Horizonte: Itatiaia, 1995.
21. BARTH, Fredrik. Process and form in social life. London: Routledge;
Boston: Kegan Paul, 1981. v. 1. 1000
5. Utilizamos as denominações atuais dos povoados, todos vizinhos e
localizados na zona das Vertentes ou Mantiqueira. 900
22. Carta de mercê do ofício de juiz de fora da cidade de São Sebastião
da Capitania do Rio de Janeiro (Brasil), por três anos, concedida a Luís
6. Arquivo Público Mineiro. Coleção Casa dos Contos, 1012. Dados mais 800
Fortes Bustamante. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Registo Geral
pormenorizados consultar: OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Indivíduos,
de Mercês, Mercês de D. João V, livro 5, f. 14. Disponível em: http://
famílias e comunidades: trajetórias percorridas no tempo e no espaço 700
digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=1880006. Acesso em: 25 jul. 2012.
em Minas Gerais – séculos XVIII e XIX. In: OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de;
ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Exercícios de micro-história. Rio de 600
23. Nas próprias Ordenações Filipinas estava assegurado que tanto pela
Janeiro: EDFGV, 2009.
via das mães quanto pela via dos pais se comunicava a nobreza aos 500
filhos. MONTEIRO, Nuno G. Os nomes de família em Portugal: uma breve
7. Procurados os nomes dos maiores proprietários de cativos encontrados perspectiva histórica. Revista Etnográfica, n. 12, v. 1, p. 45-58, maio
nessa lista, constante de um dicionário de bandeirantes e sertanistas 400
2008. p. 51.
foram detectados quatro sertanistas, reconhecidos como importantes
300
desbravadores dos sertões das gerais. FRANCO, Francisco de Assis C. 24. WELLING, Arno. Direito e Justiça no Brasil Colonial: o Tribunal da Re-
Dicionário de Bandeirantes e sertanistas do Brasil. São Paulo: Edusp; lação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 72 200
Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.
25. WELLING. Direito e Justiça no Brasil Colonial, p. 298. 100
8. O bando era uma proclamação real divulgada à população colonial.
26. Arquivo do Arcebispado de Mariana e Arquivo Histórico do 0
9. Em setembro de 1755 são confirmadas as ordens régias anteriores de Arcebispado de Juiz de Fora. Assentos paroquiais de batismo.

1700 - 1709

1710 - 1719

1720 - 1729

1730 - 1739

1740 - 1749

1750 - 1759

1760 - 1769

1770 - 1779

1780 - 1789

1790 - 1799

1800 - 1809

1810 - 1819

1820 - 1828

1830 - 1839

1840 - 1849
proibição de abertura de picadas. CARRARA, Angelo. Matos proibidos,
Sertões do Leste, Zona da Mata. In: IBGE. Atlas das representações 27. Os oficiais de ordenança faziam parte da estrutura militar de defesa
literárias de regiões brasileiras. Rio de Janeiro: IBGE, 2006. p. 21. do Império português. Essas indicações estavam inseridas em uma lógica
(Coleção de Geografia). clientelar baseada em critérios de amizade, parentesco, fidelidade, honra
e serviço e eram distribuídas entre as pessoas “mais principais” da terra,
10. RODRIGUES, André F. Viagens aos sertões proibidos da Mantiqueira: conhecidas como “homens bons”. Eles permaneciam em suas atividades
Livres Escravos
as observações do governador Dom Rodrigo José de Meneses e a particulares e somente em caso de grave perturbação da ordem eram
ocupação da terra na segunda metade do século XVIII. In: RODRIGUES, chamados a atuar.
André F.; SILVA, Edson; AGUIAR, J. Otávio (Org.). Natureza e cultura nos * Constam todos os registros encontrados nos arquivos das arquidioceses de Mariana e Juiz de Fora. No entanto, encontramos apenas um registro para a década de 1700
domínios de Clio: história, meio ambiente e questões étnicas. Campina 28. As referências às localidades feitas pela documentação de época e dois para a década de 1720. Acreditamos que a partir da década de 1730 até o ano de 1850 a série se encontra completa, com um total de nove mil assentos de batismo.
Grande: EDUFCG, 2012. p. 43. não são uniformes, o que eleva o grau de dificuldade para decifrar a Os povoados pesquisados são: Ribeirão; Cachoeira; Santa Rita de Ibitipoca; Conceição de Ibitipoca; Ibertioga; Santana do Garambéu; São Domingos da Bocaina; Bom Jardim.

114 | Revista do Arquivo Público Mineiro | Ensaio Mônica Ribeiro de Oliveira | Famílias dos sertões da Mantiqueira | 115

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