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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Programa de Pós-graduação em História Social

PELAS MARGENS DO ATLÂNTICO:


Um estudo sobre elites locais e regionais no Brasil a partir das famílias
proprietárias de charqueadas em Pelotas,
Rio Grande do Sul (século XIX)

TESE DE DOUTORADO

Autor: Jonas Moreira Vargas

Orientador: Prof. Dr. João L. R. Fragoso

RESUMO

A presente tese tem como objetivo principal estudar as estratégias sociais e econômicas das mais ricas
famílias dos proprietários das charqueadas de Pelotas, no Rio Grande do Sul, ao longo do século XIX. O
charque (carne-seca) constituiu-se em alimento fundamental na dieta dos escravos das plantations
açucareiras e cafeeiras e das populações pobres das cidades litorâneas do Brasil. Portanto, trata-se da
análise de um grupo de empresários escravistas cuja produção era destinada principalmente ao
abastecimento do mercado interno. Os proprietários das charqueadas, que também tinham nos couros, nos
sebos e nas graxas importantes gêneros de exportação, foram os empresários mais ricos do sul do Brasil.
A tese também estuda os mercados do gado, a expansão dos charqueadores em busca de fazendas de
criação na fronteira rio-grandense e no próprio lado uruguaio, a sua participação nas guerras do Brasil
com as repúblicas platinas e a sua atuação no comércio marítimo de longo curso. Tanto na primeira
metade do oitocentos, quanto na segunda metade do mesmo, um grupo de famílias tendeu a reunir os
principais recursos materiais e imateriais naquele contexto socioeconômico, vindo a aumentar o seu
prestígio e compor, juntamente com outras famílias, a elite regional ou provincial. Esta elite
charqueadora concentrava riqueza, poder político e status social e alguns de seus membros também
alcançaram reconhecimento nacional. Neste sentido, ao dar este salto, estas poucas famílias tinham entre
os seus parentes alguns indivíduos que podiam tornar-se mediadores conectando a esfera de atuação local
com o mundo exterior, seja economicamente, seja politicamente falando. Contudo, os charqueadores
escravistas de Pelotas, reconhecidos na época como a aristocracia do sebo, não conseguiram resistir ao
fim da escravidão, vivendo um período de auge de pouco mais de duas décadas, para sofrer uma
derradeira crise nos anos 1880. Portanto, esta tese busca oferecer um modelo de análise das elites locais e
provinciais que possa incentivar novos estudos regionais e que auxilie a compreender melhor os sistemas
econômico e político no Brasil oitocentista.
SUMÁRIO

LISTA DE ABREVIATURAS .................................................................................... 5

LISTA DE TABELAS................................................................................................. 6

LISTA DE GRÁFICOS .............................................................................................. 8

LISTA DE FIGURAS ................................................................................................. 9

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 10

CAPÍTULO 1 - A INSERÇÃO ECONÔMICA DAS CHARQUEADAS DE


PELOTAS NO MERCADO INTERNO BRASILEIRO (1780-1835) ..................... 30

1.1 - A DIVERSIFICAÇÃO DAS CULTURAS E O REVIGORAMENTO DA


AGRO-EXPORTAÇÃO NO COLONIAL TARDIO ............................................... 35

1.2 - A CRISE DAS OFICINAS DE CARNE-SECA DO NORDESTE E A


ENTRADA DO RIO GRANDE DO SUL NO RAMO DOS NEGÓCIOS................ 46

CAPÍTULO 2 - A FORMAÇÃO DOS COMPLEXOS FABRIS ESCRAVISTAS


EM PELOTAS E NO RIO DA PRATA A PARTIR DAS REDES SOCIAIS E
MERCANTIS ATLÂNTICAS .................................................................................. 59

2.1 - O SEGREDO DAS CARNES: ESPECIALISTAS E ESTRANGEIROS NAS


PRIMEIRAS FÁBRICAS DO EXTREMO SUL DA AMÉRICA ............................ 63

2.2 - A FORMAÇÃO DOS COMPLEXOS FABRIS PLATINOS E PELOTENSE


A PARTIR DAS REDES INTRA-IMPERIAIS E TRANS-IMPERIAIS .................. 72

CAPÍTULO 3 - UMA ALDEIA ESCRAVISTA: A PRIMEIRA GERAÇÃO DE


CHARQUEADORES E A SUA ELITE (1790-1835) ............................................... 89

3.1 - UMA CIDADE NEGRA NO SUL DO BRASIL: TRÁFICO ATLÂNTICO,


REDES MERCANTIS E A ELITE CHARQUEADORA PELOTENSE NAS
PRIMEIRAS DÉCADAS DO OITOCENTOS......................................................... 95

3.2 - UMA ELITE LOCAL NO MUNDO ATLÂNTICO: FAMÍLIAS E REDES


MERCANTIS ENTRE PELOTAS E OS DEMAIS PORTOS DO BRASIL .......... 111

3.3 – CAPITÃES, COMENDADORES E COMPADRES DE PARDOS: A


ORGANIZAÇÃO SOCIAL NO EM TORNO DAS PRIMEIRAS
CHARQUEADAS ................................................................................................. 116

CAPÍTULO 4 - UMA CIDADE ATLÂNTICA: A POPULAÇÃO PELOTENSE,


SUA ESTRATIFICAÇÃO SOCIOECONÔMICA E A IMIGRAÇÃO
ESTRANGEIRA DURANTE O AUGE E A DECADÊNCIA DAS
CHARQUEADAS ESCRAVISTAS (1850-1890) ................................................... 134
4.1 - ESTRUTURA SOCIAL E ECONÔMICA DA SOCIEDADE PELOTENSE
A PARTIR DA ANÁLISE DOS INVENTÁRIOS POST-MORTEM...................... 135

4.2 - UMA CIDADE ATLÂNTICA: PERFIL SOCIO-OCUPACIONAL DE UM


ESPAÇO URBANO REPLETO DE ESTRANGEIROS ........................................ 147

4.3 - OS MUITOS DEGRAUS DA PIRÂMIDE: POR UMA ESTRATIFICAÇÃO


SOCIAL E ECONÔMICA DA POPULAÇÃO PELOTENSE ............................... 158

CAPÍTULO 5 - “A CONFUSÃO QUE, ENTRETANTO, É ORDEM”: AS


UNIDADES PRODUTIVAS, O MUNDO DO TRABALHO NAS
CHARQUEADAS E O TRÁFICO INTERPROVINCIAL DE ESCRAVOS ....... 169

5.1 - POR DENTRO DA CHARQUEADA: AS ETAPAS DE PRODUÇÃO DO


CHARQUE, DOS COUROS E DOS DEMAIS PRODUTOS ................................ 170

5.2 - O PERFIL DOS TRABALHADORES CATIVOS E SUA DISTRIBUIÇÃO


NAS UNIDADES PRODUTIVAS ........................................................................ 179

5.3 - DAS CHARQUEADAS PARA OS CAFEZAIS? O TRÁFICO INTER-


PROVINCIAL E A CONCENTRAÇÃO DE ESCRAVOS NA ELITE
CHARQUEADORA PELOTENSE ....................................................................... 194

CAPÍTULO 6 - SENHOR E PATRÃO: OS CHARQUEADORES, A


ADMINISTRAÇÃO DOS ESCRAVOS E O MUNDO DO TRABALHO NAS
CHARQUEADAS ................................................................................................... 209

6.1 - A CABEÇA DO SENHOR, AS MÃOS DO CAPATAZ: AS


TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO NAS CHARQUEADAS
ESCRAVISTAS NA SEGUNDA METADE DO OITOCENTOS ......................... 211

6.2 - APRENDENDO A SER SENHOR: A ADMINISTRAÇÃO DOS


ESCRAVOS NA PRIMEIRA GERAÇÃO DE CHARQUEADORES ................... 232

CAPÍTULO 7 - OS MERCADOS DO GADO, A EXPANSÃO AGRÁRIA NA


FRONTEIRA E A GUERRA COMO RECURSO ECONÔMICO ...................... 249

7.1 - NA TRILHA DOS LATIFÚNDIOS: A EXPANSÃO AGRÁRIA RUMO


À REGIÃO DA FRONTEIRA COM O URUGUAI .............................................. 253

7.2 - PELAS MALHAS DO PARENTESCO: O MERCADO DO GADO


PARA AS CHARQUEADAS DE PELOTAS ........................................................ 257

7.3 - ENTRE DEPUTADOS E GENERAIS OU DE COMO A GUERRA


TAMBÉM SE CONSTITUIU EM UM RECURSO ECONÔMICO PARA OS
CHARQUEADORES DE PELOTAS .................................................................... 268

7.4 - VESTÍGIOS DE UMA CRISE ANUNCIADA: A TABLADA


PELOTENSE ........................................................................................................ 283
CAPÍTULO 8 - AS CHARQUEADAS, OS MERCADOS ATLÂNTICOS
E OS SEUS INTERMEDIÁRIOS ........................................................................ ... 288

8.1 - EM “BOCAS DESGRACIADAS”: CHARQUEADORES, SALADEIRISTAS


E OS CIRCUÍTOS MERCANTIS ATLÂNTICOS DAS CARNES ....................... 288

8.2 - PELAS “MARGENS” DO CAPITALISMO: OS MERCADOS


ATLÂNTICOS DOS COUROS E DO SAL .......................................................... 306

8.3 - NO RASTRO DOS “BROKERS”: O FUNCIONAMENTO DO


MERCADO EM PELOTAS E OS CHARQUEADORES NO ALTO
COMÉRCIO MARÍTIMO ..................................................................................... 313

CAPÍTULO 9 - OS BARÕES DO CHARQUE: PERFIL E NÍVEIS DE


RIQUEZA, MOBILIDADE SOCIAL INTRA-ELITE E TRANSMISSÃO
DE PATRIMÔNIO ENTRE OS CHARQUEADORES ....................................... 330

9.1 - ALGUNS MUITO RICOS, OUTROS NEM TANTO: HIERARQUIAS


DE RIQUEZA E INVESTIMENTOS ECONÔMICOS ENTRE OS
CHARQUEADORES DE PELOTAS .................................................................... 330

9.2 - NOVILHOS QUE VIRAM DINHEIRO: OS RENDIMENTOS DA


EMPRESA CHARQUEADORA ESCRAVISTA .................................................. 344

9.3 - “O MAIOR LEGADO QUE LHES DEIXO”: A TRANSMISSÃO DE


PATRIMÔNIO ENTRE OS CHARQUEADORES ............................................... 355

9.4 - “ENGOLIDOS SEM PIEDADE”: OS CHARQUEADORES E A


MOBILIDADE SOCIAL INTRA-ELITE .............................................................. 367

CAPÍTULO 10 - “A ARISTOCRACIA DO SEBO”: PODER POLÍTICO,


NOBREZA, EDUCAÇÃO E ESTILO DE VIDA NAS FAMÍLIAS DA
ELITE CHARQUEADORA PELOTENSE ........................................................... 374

10.1 - EDUCAÇÃO E ESTILO DE VIDA ENTRE AS FAMÍLIAS


CHARQUEADORAS DE PELOTAS ................................................................... 376

10.2 – GOVERNANDO A SOCIEDADE: OS CHARQUEADORES NA ELITE


POLÍTICA LOCAL E REGIONAL ...................................................................... 388

10.3 - O IMPÉRIO DOS MEDIADORES: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA


O ESTUDO DA CONSTRUÇÃO DO ESTADO IMPERIAL E DO
FUNCIONAMENTO DO SISTEMA POLÍTICO MONÁRQUICO ...................... 400

CONCLUSÃO ........................................................................................................ 419


ANEXOS ................................................................................................................ 428
FONTES PRIMÁRIAS ........................................................................................... 430
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 433
LISTA DE ABREVIATURAS

ABP – Arquivo do Bispado de Pelotas

ACRJ – Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro

AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul

AHI – Arquivo Histórico do Itamarati

AHU – Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa)

ANRJ – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro

ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa)

APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul

BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

BPP – Biblioteca Pública Pelotense

CV – Coleção Varela

MCSHJC – Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa

MJN – Museu João Nunes (São Gabriel)

5
LISTA DE TABELAS

Tabela 1.1 – População livre e escrava por capitanias (1819) ..................................... 49

Tabela 3.1 – Estatísticas populacionais em Pelotas (1814 – 1858) .............................. 97

Tabela 3.2 - Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em


dezembro de 1833 ...................................................................................................... 98

Tabela 3.3 – Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em


dezembro de 1833 (População dividida por nacionalidade, cor, condição jurídica,
freguesia, distritos e fogos) ........................................................................................ 99

Tabela 3.4 – Comparação da população escrava, razão de africanidade e sexo


de Pelotas com outras regiões de plantations brasileiras (1829-1840). ....................... 103

Tabela 3.5 – Estrutura de posse de escravos em Pelotas a partir dos inventários


post-mortem (1800-1835).......................................................................................... 104

Tabela 4.1 - Distribuição das riquezas inventariadas por faixas de fortuna


(1850-1890) (em libras esterlinas) ............................................................................ 137

Tabela 4.2 – Perfil do patrimônio dos inventariados em Pelotas (1850-1890) (%) .... 140

Tabela 4.3 – Concentração dos rebanhos vacuns nos inventários e posse de


fazendas fora de Pelotas (157) ................................................................................... 144

Tabela 4.4 – Concentração dos plantéis de escravos entre os inventariados


(1850-1885) ............................................................................................................. 146

Tabela 4.5 – Perfil dos patrimônios inventariados por faixas de fortuna em libras
esterlinas (%) ............................................................................................................ 162

Tabela 5.1 – Número de escravos e razão de sexo por período (1831-1885) .............. 190

Tabela 5.2 – Faixa etária e sexo dos escravos dos charqueadores (1831-1885) .......... 191

Tabela 5.3 – Africanidade e sexo nos plantéis dos charqueadores (1831-1885).......... 192

Tabela 5.4 – Africanidade e sexo entre escravos adultos e idosos (1831-1885) .......... 193

Tabela 5.5 – Concentração de riqueza entre os charqueadores de Pelotas a


partir dos inventários post-mortem, em libras esterlinas (%) ...................................... 197

Tabela 5.6 – Escravos negociados por escritura em Pelotas (1850-1884) ................... 199

Tabela 7.1 – Hierarquia de fortunas, rebanhos vacuns, títulos de nobreza e altos


cargos políticos a partir da análise dos inventários de 51 charqueadores –
(1845-1900)/ em libras esterlinas e percentuais (%) .................................................. 267

6
Tabela 8.1 - Gado bovino abatido nas charqueadas e saladeros da América do Sul
(1857-1862) .............................................................................................................. 296

Tabela 9.1 - Análise das fortunas dos charqueadores (em libras esterlinas)
por períodos (359) ..................................................................................................... 331

Tabela 9.2 - Faixas de fortuna em libras esterlinas (1810-1900) ............................... 335

Tabela 9.3 – Composição do patrimônio dos charqueadores com fortunas


acima de 50 mil libras (%) ....................................................................................... 336

Tabela 9.4 – Estimativa média de rendimentos em uma safra com abate de 20 mil
novilhos (década de 1860) ........................................................................................ 352

Tabela 9.5 – Relação entre riqueza, posse de estâncias e longevidade da família


nos negócios com o charque (1810-1900) ................................................................. 361

Tabela 10.1 – Relação entre Riqueza, Nobiliarquia, Alta política e Educação


entre as famílias charqueadoras de Pelotas (1845-1900) - em libras esterlinas .......... 394

7
LISTA DE GRÁFICOS E DIAGRAMAS

Gráfico 3.1 – Vínculos de parentesco entre os 62 charqueadores de Pelotas


(1790-1835) .............................................................................................................. 119

Gráfico 3.2 – Vínculos de parentesco entre os 62 charqueadores de Pelotas com as


classes subalternas a partir dos registros de batismo de livres (1812-1825) ................ 126

Gráfico 4.1 – Distribuição do número de inventários em urbanos e rurais Pelotas


(1850-1890) .............................................................................................................. 138

Gráfico 4.2 – Preço dos escravos entre 15 e 40 anos (1850-1885) – em mil réis ....... 145

Gráfico 5.1 – Preço dos escravos adultos (de 15 a 50 anos) e sadios nas charqueadas
de Pelotas (1831-1885) (em libras esterlinas) ........................................................... 189

Gráfico 6.1 – Processos criminais envolvendo escravos de charqueadores pelotenses


(1830-1888) .............................................................................................................. 224

Gráfico 7.1 – Número de reses abatidas nas charqueadas de Pelotas (1862-1890) …..250

Gráfico 7.2 - Presença de propriedades rurais pertencentes a charqueadores de Pelotas


nos inventários e nos livros de notas (1820-1900) ..................................................... 255

Gráfico 8.1 – Charque exportado pelo Rio Grande do Sul entre 1837 e 1890
(em arrobas) .............................................................................................................. 301

Gráfico 8.2 - Preço da arroba de charque exportado em réis ($) ................................. 294

Gráfico 8.3 – Charque platino e rio-grandense comprados pelo Rio de Janeiro e os


totais exportados pelo Rio Grande do Sul (1850-1886) – (em toneladas) ................... 301

Gráfico 8.4 – Unidades de couro e arrobas de charque exportadas pelo Rio Grande
do Sul (1845-1889) ................................................................................................... 307

Gráfico 8.5 – Preços de couro no porto de Rio Grande (1845-1890) .......................... 308

Diagrama 8.1 – Vínculos de parentesco entre os 12 charqueadores mais


ricos de Pelotas (1850-1900) ..................................................................................... 326

8
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Localização de Pelotas no espaço fronteiriço do cone sul americano


(século XIX) .............................................................................................................. 13

Figura 3.1 – Sesmaria do Monte Bonito e Sesmaria de Pelotas


(início do século XIX) ................................................................................................ 92

Figura 4.1 – Mapa da Província do Rio Grande do Sul (1875) .................................. 141

Figura 7.1 – Regiões alvo dos investimentos realizados pelos charqueadores em


estâncias e campos de criação fora de Pelotas (1810-1900) ....................................... 256

Figura 8.1 – Litoral sul e fronteira fluvial entre Brasil e Uruguai ............................... 291

Figura 11 – Charqueadas em funcionamento no Rio Grande do Sul (1920) ............... 420

9
INTRODUÇÃO

No dia 30 de outubro de 1860, o charqueador Domingos José de Almeida escreveu ao


tenente-coronel Manuel Antunes da Porciúncula lamentando a morte do amigo Antônio Vicente
da Fontoura – chefe do Partido Liberal em Cachoeira, no Rio Grande do Sul. Fontoura havia
sido assassinado durante as eleições gerais daquele mesmo ano, num processo eleitoral que
causou a morte de muitos outros votantes no restante do Brasil. 1 Num tom irônico, Domingos
definia o que havia ocasionado tantos crimes:

Nas províncias do Norte jorrou o sangue com profusão, e nada menos era de esperar-se
com a muito bem pensada reforma eleitoral, que nulificando influências legítimas,
entregou esse tão melindroso assunto à polícia e à Guarda Nacional para criar
caciquinhos locais, dividir e o Governo audaz nomear comissários ad hoc com o
pomposo título de representantes da Nação: tudo corre as mil maravilhas.2

A Lei eleitoral de 1855, também conhecida como a “lei dos círculos”, foi responsável
por implementar o voto distrital, eliminando o antigo sistema de candidatos em lista, o que
acabou favorecendo a eleição de líderes paroquiais em detrimento de indivíduos com influência
política de âmbito mais regional. 3 No entanto, para Domingos, os “caciquinhos locais” que
agora possuíam maiores chances de se elegerem deveriam reservar-se ao seu espaço de atuação
municipal e não se envolver em assuntos reservados às “influências legítimas” da província.
Domingos já havia sido deputado provincial em 1835. Chefe liberal em Pelotas, a leitura de sua
correspondência revela que ele mantinha profundo contato com outros deputados provinciais e
gerais, além dos presidentes de província, demonstrando que era um líder político conhecido e
influente.4 Numa carta escrita a outro amigo, em setembro de 1859, Domingos rememorava o
seu apoio à proclamação da Independência, “que com penosos sacrifícios ajudei a conquistar

1
FREITAS, Bruno C. N. Pedras no Telhado: Política e Sociedade nas eleições distritais de 1860. In: Anais do XXV
Encontro Nacional de História. Fortaleza: Anpuh, 2009.
2
Carta de Domingos J. de Almeida para Manuel Antunes da Porciúncula, 30.10.1860 (AHRS. Anais do Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 3, 1978, CV-751). Grifos meus.
3
De fato, grandes políticos foram derrubados de suas posições de prestígio ao perderem as eleições nos seus
respectivos distritos para líderes locais sem grande expressão. Em 1860, uma nova reforma eleitoral diminuiu o
número de distritos criando círculos eleitorais com três deputados ao invés de apenas um (CARVALHO, José
Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial e Teatro de Sombras: a política Imperial. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 176-180).
4
A coleção de cartas (pertencentes à Coleção Varela) foi publicada pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
e reúne missivas escritas entre as décadas de 1830 e 1860. A grande maioria delas abarca o período da Revolta
Farroupilha (1835-1845), quando Domingos ocupou importantes cargos políticos na República Rio-grandense
(Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 3, 1978).
10
em 1822 para nossa Pátria”.5 Portanto, na lógica de Domingos, quando o Império quisesse
negociar o apoio das elites no sul do país, seja para a realização de algum projeto político e
econômico, seja para combater alguma revolta ou vencer eleições, era a homens como ele que
deveria se dirigir e não às notabilidades de aldeia.

Mulato e filho de moleiros, Domingos era natural de Diamantina, em Minas Gerais.6


Residindo na Corte, partiu para o Rio Grande do Sul com o objetivo de comprar uma tropa de
mulas e vendê-la nas feiras de Sorocaba. Contudo, conforme ele próprio, acabou gostando da
nova terra e decidiu estabelecer-se em Pelotas.7 Comerciante ativo, Domingos logo contraiu
matrimônio com Bernardina Rodrigues Barcellos, moça pertencente a uma das famílias mais
ricas e poderosas de Pelotas e cujos membros possuíam muitas fábricas de charque (carne-
seca). Não demorou muito e o próprio Domingos arranchou-se nas terras de seu sogro e ergueu
a sua própria charqueada. Concentrando comendas honoríficas e patentes de capitão de
ordenanças, os Rodrigues Barcellos, agora seus parentes, lhe ofereciam prestígio social e
político enormes. 8 Na nova ordem imperial, esta família ainda teve 3 deputados provinciais, 1
deputado geral e 2 presidentes de província.

Portanto, a trajetória de Domingos era a de um migrante de modestas posses que, depois


de inserir-se na elite local por meio de um bom casamento e pelos seus negócios, não se via
mais como os outros “caciquinhos locais” que insistiam em querer influir na vida política e
econômica provincial, representando-a na Corte. Usando uma expressão de Carlos Bacellar,
pode-se dizer que Domingos, ao agir desta forma, começava a adquirir “consciência de elite”.9
Contudo, não era de qualquer elite. Era de uma elite que sentia-se como legítima em representar
a província fora dela. Uma elite que ultrapassava a simples visão de mundo localista. Em suma,
era uma elite regional.10 Mas Domingos e seus parentes não estavam sozinhos. Neste sentido,

5
Carta de Domingos para Bernardo Pires. Pelotas 17.09.1859 (Anais do AHRS, v. 3, 1978, CV-673).
6
MARQUES, Letícia R. Domingos José de Almeida e José Mariano de Matos: A questão dos negros e mulatos na
Revolução Farroupilha (1835-1845). Anais do XXVI Encontro Nacional de História. São Paulo, USP, p. 1-15. Na
realidade não existe um consenso entre os autores a respeito da cor da pele de Domingos. Para considerações sobre
a mesma questão e uma posição mais inclinada a considerar que o charqueador era mulato, ver o mencionado texto
de MARQUES, Letícia. Op.cit.
7
Carta de Domingos para o presidente da Província Joaquim Antão Fernandes Leão. Pelotas, 07.12.1859. (Anais
do AHRS. Porto Alegre: Corag, v. 3, 1978, CV-686).
8
MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de
Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Dissertação de Mestrado em
História, UFRGS, 2009.
9
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre senhores de
engenho do oeste paulista (1765-1855). Campinas: Centro de Memória da Unicamp, 1997, p. 177-186.
10
DOLHNIKOFF, Miriam. Elites regionais e a construção do Estado Nacional. In: In: JANCSÓ, István. Brasil: a
construção do Estado e da Nação. São Paulo/ Ijuí: Hucitec/ Unijuí, 2003; VARGAS, Jonas M. Entre a paróquia e
a Corte: os mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul. Santa Maria:
UFSM/Anpuh-RS, 2010.
11
os indivíduos e famílias que compartilhavam de uma postura semelhante viam-se como os mais
capazes em intermediar as relações entre o governo central e a província, incluindo no interior
desta última os inúmeros chefes locais. Contudo, tais negociações eram bastante complexas e
estavam permeadas por uma relação de cooperação e conflito, uma vez que os líderes
provinciais (elite regional) precisavam dos chefes municipais (elites locais) para fortalecer suas
redes sociais e clientelares e vencer as eleições para os seus partidos políticos.11

O sentimento de superioridade compartilhado por Domingos, pelos Rodrigues Barcellos


e outros charqueadores, comerciantes e estancieiros que compunham a elite regional não
decorria apenas da sua posição política e de seu prestígio social. A “consciência de elite”
também era consequência da riqueza alcançada pelos mesmos, entre os quais estavam os
charqueadores pelotenses – objeto de análise principal desta tese. Estes empresários escravistas
foram os proprietários mais ricos do Rio Grande do Sul no século XIX. Concentrando milhares
de cativos e abatendo milhões de bovinos, a cidade de Pelotas destacou-se como o grande
complexo charqueador não apenas da província, como de todo o Império do Brasil (Mapa 1). O
charque e os couros foram os principais produtos da pauta das exportações rio-grandenses
durante quase todo o século XIX. O primeiro deles foi fundamental na alimentação dos
escravos das plantations brasileiras, integrando os mercados do sul com os do sudeste e
nordeste do Brasil, além de incluir menores remessas para Cuba, Estados Unidos e Lisboa. O
segundo foi um artigo demandado em larga escala pelas indústrias europeias e norte-americanas
e conectava o Rio Grande mais fortemente ao mercado internacional.

No Rio Grande do Sul, as primeiras fábricas de charque foram instaladas nos fins do
século XVIII, inserindo-se numa conjuntura econômica muito mais ampla e que caracterizou o
espaço atlântico durante o período colonial tardio.12 A notável ampliação do número de
plantations açucareiras tanto no sudeste e no nordeste brasileiro, quanto no Caribe, provocou a
entrada de centenas de milhares de escravos africanos nas mencionadas plantações criando uma
elevada demanda por alimentos. Neste contexto, não apenas Pelotas como também Montevideu
e Buenos Aires, destacaram-se como os principais núcleos produtores de carne seca e salgada
da América do Sul. 13 Portanto, a formação de tais complexos fabris (Pelotas e Montevideu, nos

11
GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997; VARGAS,
Jonas. Op. cit.
12
Para uma análise da economia rio-grandense neste período ver OSÓRIO, Helen. O império português no sul da
fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007. Uma outra interpretação a
respeito do mesmo período pode ser vista em MENZ, Maximiliano. Entre impérios: formação do Rio Grande na
crise do sistema colonial português (1777-1822). São Paulo: Alameda, 2009.
13
Desde já é importante considerar que na maioria das fontes, “carne-seca”, “charque” e “tasajo” (este último na
região do rio da Prata) são tratados como sinônimos, enquanto a “carne salgada” era um termo destinado para as
12
anos 1780, e Buenos Aires, depois de 1810) fez parte de um mesmo processo onde o tráfico
atlântico, coordenado principalmente pelos comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro, foi
estruturalmente importante.

Mapa 1 – Localização de Pelotas no espaço fronteiriço do cone sul americano


(século XIX)

Fonte: BELL, Stephen. Early industrialization in the South Atlantic: political influences on the charqueadas of
Rio Grande do Sul before 1860. In: Journal of Historical Geography, 19, 4 (1993), p. 400.

É neste sentido que Pelotas inseria-se no tasajo trail atlântico estudado por Andrew
Sluyter.14 Para o autor, esta rota mercantil de charque que ligava o Rio da Prata à Cuba
conectava duas regiões e duas atividades produtivas na qual a escravidão era fundamental,
criando um circuito mercantil lucrativo no qual a mercadoria principal, o tasajo, era fabricado
“por” e “para” trabalhadores cativos. Além disso, Bertie Mandelblatt insistiu para que se deixe
de ver os escravos no mundo atlântico somente como trabalhadores e como mercadorias,

carnes preparadas e conservadas em barris com salmoura – técnica desenvolvida pelos irlandeses e que será
explicitada no capítulo 2.
14
SLUYTER, Andrew. The Hispanic Atlantic’s Tasajo Trail. Latin American Research Review, v. 45, n. 1, 2010,
p. 98-120. Como será visto ao longo desta tese, Pelotas foi o principal polo charqueador da província, o que não
significa que o charque não fosse fabricado em outras localidades do Rio Grande do Sul. Se antes da Guerra dos
Farrapos as charqueadas de Porto Alegre e das margens do Rio Jacuí deviam fabricar pouco mais de 25% ou 30%
do charque rio-grandense, é provável que nos anos 1860 e 1870 Pelotas respondesse por quase 90% do charque
fabricado na província. Para uma análise das outras regiões charqueadoras ver MARQUES, Alvarino da Fontoura.
Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987.
13
passando a pensá-los também como consumidores.15 Seguindo estas premissas, pode-se
perceber a ligação do charque com a manutenção do tráfico atlântico e da escravidão a partir de
uma tripla relação. Ao mesmo tempo em que a mão de obra cativa foi essencial para a
montagem das charqueadas e saladeros no Rio da Prata e em Pelotas (aumentando a demanda
por escravos na região), estas fábricas abasteciam as plantations atlânticas com um alimento
rico em proteínas e de baixo preço. Além disso, o produto também acompanhava as tripulações
dos negreiros que cruzavam o Atlântico garantindo os suprimentos dos escravos no retorno de
suas viagens. Neste sentido, Sluyter afirmou que o tasajo trail ajudou a sustentar os mais
proeminentes fluxos mercantis de açúcar e escravos que definiram a própria compreensão do
mundo atlântico.16

Em Pelotas, as charqueadas foram fruto de investimentos de comerciantes que viram


uma oportunidade de obter lucros com a expansão deste comércio durante o colonial tardio.
Além do mais, a crise da produção de carne-seca no Ceará e no Piauí, ocasionada pelas duras
secas nos anos 1770 e 1790, abria um espaço no mercado para novos investidores, como
demonstrou Helen Osório em trabalho pioneiro.17 Portanto, ao contrário dos comerciantes de
grosso trato estudados por João Fragoso, que investiram sua riqueza em terras e escravos
tornando-se senhores de engenho no agro fluminense 18, o capital aplicado nas charqueadas não
possuía interesses voltados para a busca de prestígio social, mas sim, o lucro oriundo das
atividades mercantis. Nesta conjuntura, Pelotas atraiu comerciantes de diversos lugares e as
inversões de capital nestas fábricas exigiu a entrada de centenas de escravos africanos,
tornando-a uma cidade negra. Como se verá, em 1833, cerca de 51% de sua população era
escrava (mais de 2/3 deles eram africanos), sendo que somente 36,1% dos seus habitantes foram
classificados como brancos.19

Após a década de 1820, quando a experiência com a triticultura açoriana entrou em


declínio, a hegemonia dos pecuaristas e charqueadores consolidou-se de vez. Neste contexto, os
empresários pelotenses constituíram-se nos principais produtores de alimentos do sul do
Império. Segundo João Fragoso, os complexos agropecuários voltados para o abastecimento do
mercado interno, como as charqueadas no Sul, as lavouras de subsistência no Rio de Janeiro e
15
MANDELBLATT, Bertie. A Transatlantic Commodity: Irish Salt Beef in the French Atlantic World. History
Workshop Journal, n. 63, 2007, p. 21.
16
SLUYTER, Andrew. Op. cit., p. 101.
17
OSÓRIO, Helen. Op. cit.
18
FRAGOSO, João L. R.. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 143-177.
19
Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833. Biblioteca Pública de
Pelotas (reproduzido por ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano (1780-1835). Pelotas:
Armazém literário, 1994, p. 98).
14
São Paulo e a produção agropecuária em Minas, formavam um “mosaico de formas de
produção não-capitalistas”, cuja significativa capacidade de acumulação endógena, tornava a
economia destas regiões fundamentais na reprodução das plantations e do próprio sistema
escravista agroexportador. O abastecimento do Rio de Janeiro “implicava a criação de uma
ampla rede intracolonial” na qual o Rio Grande inseria-se e “que vem a negar a ideia de
autarquia da plantation”.20 Além do sudeste, o charque pelotense também abastecia a escravaria
e a população pobre de Pernambuco e Bahia – regiões que, somadas, perfaziam mais da metade
das exportações rio-grandenses ao longo de todo o período.

Portanto, este circuito comercial fez surgir distintas elites mercantis e agrárias nas
diferentes regiões do Brasil. No Rio Grande do Sul, junto aos comerciantes de grosso trato e aos
estancieiros da região da campanha, os charqueadores pelotenses ocuparam o topo da hierarquia
social. 21 No entanto, se comparado ao número de criadores de gado e ao de comerciantes
existentes na província, os charqueadores pelotenses formavam um diminuto grupo. Ao longo
do século XIX, o número de charqueadas a funcionar em Pelotas, não ao mesmo tempo, foi de
43 estabelecimentos.22 Se em 1822, havia 22 charqueadas no município, em 1850, este número
atingia a casa dos 30, em 1873, chegava a 35 e em 1880, 38. As 11 charqueadas de 1900
indicam que o declínio do setor coincidiu com o fim da escravidão e a queda da monarquia –
cujos charqueadores, nesta época uma aristocracia nobilitada e que, como se verá, concentrava
significativo poder político e econômico, também funcionaram como uma espécie de
sustentáculo do Império luso-brasileiro na fronteira sul.

A valorização do estudo das atividades econômicas não exportadoras teve importantes


contribuições nas pesquisas de Maria Yedda Linhares e Ciro Flamarion Cardoso.23 Ao
criticarem a “visão plantacionista” da história brasileira, os autores estimularam uma nova
geração de pesquisadores que se voltaram para a análise das estruturas econômicas internas
daquela sociedade. Seguindo esta linha de orientação, nos anos 1980 e 1990, novos trabalhos
vieram contribuir para um melhor conhecimento da paisagem agrária brasileira, da escravidão,

20
FRAGOSO, João L. R.. Op. cit. 1998, p. 143-177.
21
Sobre os comerciantes ver BERUTE, Gabriel Santos. Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro:
negócios, mercadorias e agentes mercantis (1808-1850). Tese de Doutorado. PPG-História da UFRGS, 2011.
Sobre os estancieiros ver FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária
na fronteira meridional do Brasil. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2010. Para ambos os grupos no período colonial ver
OSÓRIO, Helen. Op. cit.
22
MARQUES, Alvarino da Fontoura. Op. cit., p. 99-102.
23
Ver, por exemplo, LINHARES, Maria Yedda. História do Abastecimento: uma problemática em questão (1530-
1918). Brasília: Binagre, 1979; LINHARES, Maria Yedda. Subsistência e sistemas agrários na Colônia: uma
discussão. In: Estudos Econômicos. N. 13, 1983, p. 745-762; CARDOSO, Ciro F. O trabalho na Colônia. In:
LINHARES, Maria Yedda (Org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 69-88. CARDOSO,
Ciro F. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979.
15
da economia de abastecimento e do próprio mercado interno tanto no século XVIII quanto no
XIX.24 Utilizando-se de uma metodologia serial e assentados sobre vasta gama de fontes
primárias manuscritas, estes estudos inspiravam-se na história regional francesa, que tinha
como expoentes Ernest Labrousse, Pierre Goubert e Emmanuel Le Roy Ladurie, por exemplo.25
Tais estudos demonstraram, entre outros aspectos, a importância das produções destinadas ao
mercado interno, a disseminação da escravidão para muito além da agroexportação, a
diversidade dos grupos sociais existentes em espaços fora das plantations, a existência de uma
elite de comerciantes de grosso trato no Rio de Janeiro e a reiteração de uma hierarquia social
excludente nas mais distintas realidades históricas.

Desde que estas pesquisas tiveram início nos anos 1970, não existe um trabalho que
tenha investigado de maneira mais aprofundada e nos quados de uma história social o papel dos
charqueadores e de suas famílias dentro deste circuito mercantil de acumulação endógena e das
transformações sofridas por esta elite ao longo do oitocentos. Para além dos conhecidos relatos
de viajantes e das histórias da cidade de Pelotas escritas na passagem do século XIX para o XX,
a obra de Fernando Henrique Cardoso, anterior às mencionadas pesquisas indicadas
anteriormente, surgiu como uma primeira incursão mais sistemática ao estudo da sociedade e da
economia da província, apresentando uma atenção especial às charqueadas pelotenses.26 A
principal contribuição do autor foi demonstrar o equívoco das interpretações até então vigentes
sobre a pouca importância da escravidão na sociedade rio-grandense, assim como a ideia de
“democracia racial” que vigoraria nas relações sociais entre senhores e cativos. Inaugurando um
debate acadêmico, sob a inspiração dos relatos de Louis Couty (1881), Cardoso defendeu que as
charqueadas entraram em crise devido à irracionalidade econômica dos charqueadores que
mantiveram o trabalho escravo em seus estabelecimentos enquanto os saladeiristas platinos se

24
Como, por exemplo, FRAGOSO, João. Op. cit.; GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Os convênios da
carestia: crises, organização e investimentos do comércio de subsistência da Corte (1850-1880). Rio de Janeiro:
IFCS/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992; MOTTA, Márcia M. M.. Pelas Bandas d’Além: fronteira fechada e
arrendatários-escravistas em uma região policultora (1800-1888). Niterói: ICHF/UFF, 1989; SAMPAIO, Antônio
C. Jucá. Magé na crise do escravismo: sistema agrário e evolução econômica na produção de alimentos (1850-
1888). Rio de Janeiro: UFF, Dissertação de Mestrado, 1994; CASTRO, Hebe M. da C. Mattos de. A Margem da
História: homens livres pobres e pequena produção na crise do trabalho escravo. Niterói: ICFH/UFF, Dissertação
de Mestrado, 1985; FARIA, Sheila de Castro. Terra e trabalho em Campos dos Goitacazes (1850-1920). Niterói:
ICFH/UFF, Dissertação de Mestrado, 1986.
25
Nos anos 1970, o diálogo com a historiografia francesa também teve importante contribuição na área da
demografia histórica, o que favoreceu um maior conhecimento das estruturas econômicas internas. Ver, por
exemplo, MARCÍLIO, Maria Luíza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850. São Paulo:
Pioneira/USP, 1973. Para um balanço historiográfico ver BACELLAR, Carlos; BASSANEZI, Maria Sílvia;
SCOTT, Ana Sílvia V. Quarenta anos de demografia histórica. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, São
Paulo, v. 22, n. 2, jul./ dez., 2005, p. 339-350.
26
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
16
utilizavam de trabalhadores assalariados. Desta forma, a análise da escravidão nas charqueadas
serviu para sustentar parte de suas teses.

A influência do trabalho de Cardoso entre os historiadores rio-grandenses das décadas


de 1970 e 1980 foi marcante, tendo o sociólogo, por meio de seu livro, pautado os interesses de
pesquisa e o próprio debate nas décadas seguintes. Dialogando com o autor, Berenice Corsetti
deu prosseguimento aos estudos referentes à produção do charque. Utilizando fontes
documentais inovadoras para a época, como os inventários post-mortem, Corsetti buscou
relativizar algumas teses de Cardoso e comprovar outras empiricamente. Sua principal
contribuição foi demonstrar que, ao contrário do que Cardoso defendia, os charqueadores
haviam investido capitais em inovações técnicas e que também realizavam uma divisão do
trabalho escravo no interior das fábricas.27 No entanto, a pesquisa de Corsetti diz mais sobre o
comércio e a produção do charque do que sobre os próprios charqueadores enquanto grupo
social, que interesses os dividiam e que tipo de estratégias sociais os mesmos realizavam diante
da instabilidade econômica que periodicamente afetava o setor.

Contemporânea a Corsetti, a obra de Mário Maestri Filho dialoga menos com Cardoso,
mas mantém a mesma preocupação voltada em demonstrar a significativa importância do
trabalho escravo na economia rio-grandense. Pesquisando principalmente fontes impressas,
Maestri busca investigar os diferentes tipos de resistência escrava e as violências a que os
mesmos estavam sujeitos no trabalho das charqueadas.28 Nos anos 1990, o autor orientou outras
importantes pesquisas que buscaram aprofundar o uso da mão de obra cativa nos mesmos
estabelecimentos. Destes trabalhos, o de Ester Gutierrez foi o que abrangeu interesses mais
amplos. Seguindo métodos e fontes documentais utilizados por Corsetti, a autora reconstituiu o
complexo espacial e a distribuição geográfica das charqueadas, buscando traçar uma história
dos estabelecimentos ao longo do período, assim como da importância da escravidão nos
mesmos.29 Mais recentemente, Denise Ognibeni deu continuidade à pesquisa sobre as
charqueadas, dedicando um espaço para analisar os charqueadores enquanto grupo social,

27
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. Niterói: ICHF/UFF, Dissertação
de Mestrado, 1983.
28
MAESTRI FILHO, Mário José. O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravismo
gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984.
29
GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel,
2001. Na mesma época, ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Pelotas: escravidão e charqueadas (1780-1888). Porto
Alegre, PPGH/PUC-RS, Dissertação de Mestrado, 1995.
17
observando seu cotidiano, o mundo do trabalho e escapando de uma análise exclusiva do
processo de produção e comercialização do charque.30

Portanto, a abordagem oferecida nesta tese a respeito dos charqueadores é um tanto


distinta das mencionadas pesquisas. Mais do que uma análise da escravidão nas charqueadas e
do processo de produção e comércio do charque, objetivei realizar uma história social das
charqueadas, dos charqueadores e de suas famílias ao longo do século XIX, estudando as suas
práticas socioeconômicas, políticas e culturais, além de buscar definir os fatores de
hierarquização no interior do grupo e os critérios de distinção que colocavam um conjunto de
famílias numa posição elevada diante das demais (o que as qualificava para tornarem-se
membros das elites regionais, ultrapassando o espaço local de influência). Para a realização
deste trabalho incorporei novas metodologias e fontes documentais, inserindo Pelotas num
espaço socioeconômico muito mais amplo. Além disso, os problemas de pesquisa que
nortearam esta tese foram outros e dizem mais respeito a uma história das elites que, mesmo
periféricas, fizeram a economia atlântica mover-se ao longo do oitocentos, do que uma análise
autocentrada na sociedade e economia pelotense. A tese também pode ser lida como um
capítulo da história internacional da produção e do comércio das carnes preparadas e a
diversidade de elites proprietárias que podiam se constituir no interior destes sistemas
econômicos atlânticos. Tendo em vista que os grandes estudiosos do tema praticamente não
fazem referência ao complexo charqueador pelotense, esta tese também busca inseri-lo no
interior do mencionado sistema.31

Como parti de problemas de pesquisa distintos dos historiadores que estudaram as


charqueadas em Pelotas, estive longe de me preocupar com o debate a respeito da
“racionalidade x irracionalidade” econômica no uso do trabalho escravo nos estabelecimentos,
uma vez que a lucratividade das empresas escravistas no oitocentos já está mais do que aceita
na historiografia internacional. 32 Neste sentido, não considerei o uso da escravidão africana

30
OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento. Porto Alegre:
PPGH/PUC-RS, Tese de Doutorado, 2005.
31
SLUYTER, Andrew. Op. cit.; MANDELBLATT, Bertie. Op. cit.; RIXSON, Derrick. The history of meat
trading. Nottingham: University Press, 2000; PERREN, Richard. The meat trade in Birtain (1840-1914). London:
Routledge & Kegan Paul, 1978; PERREN, Richard. Taste, Trade and Technology: the development of the
International Meat Industry since 1840. Aldershot: Ashgate, 2006. A exceção é Stephen Bell (BELL, Stephen.
Early industrialization in the South Atlantic: political influences on the charqueadas of Rio Grande do Sul before
1860. In: Journal of Historical Geography, 19, 4 (1993); BELL, Stephen. Innovacón, desarollo y medio local.
Dimenciones sociales y espaciales de la innovación. Revista Scripta Nova. Barcelona. N. 69 (84), 2000. Os autores
uruguaios e argentinos que trataram da história dos saladeiros, analisados ao longo desta tese, também referem-se
ao complexo charqueador pelotense.
32
Para um balanço geral, assim como as contribuições de Robert Fogel e Stanley Engerman, ver GRAHAM,
Richard. Escravidão e desenvolvimento econômico: Brasil e Sul dos Estados Unidos no século XIX. In: Estudos
18
como o pecado original das charqueadas e a sua extinção como uma explicação exclusiva de
sua crise final. Desta forma, esta tese não pretendeu continuar investigando a história das
charqueadas enfatizando-as como estabelecimentos decadentes e arcaicos, fatalmente
condenados a extinção. Ora, mesmo com todos os reveses apontados por Cardoso e outros
historiadores, mesmo com todos os problemas infraestruturais, os charqueadores pertenceram a
elite mais rica, poderosa e prestigiosa do extremo sul da América luso-brasileira e ocuparam o
topo da hierarquia social por agregarem recursos materiais e imateriais valorizados na sua
realidade histórica. Portanto, aquela sociedade deve ser entendida nos seus próprios termos e
não se deve exigir da sua elite um comportamento a-histórico. É importante frisar isto, porque
muitos trabalhos, ao privilegiarem a ideia de uma crise inevitável e de uma fatalidade
anunciada, acabaram permeando as suas conclusões neste sentido, o que resultam em análises
teleológicas onde os charqueadores foram apenas espectadores da ascensão capitalista que
irreversivelmente os fez desaparecer enquanto elite.33

A ausência de uma pesquisa mais aprofundada sobre quem eram e como agiam os
charqueadores pelotenses inviabiliza um entendimento mais complexo dos circuitos mercantis
que vinculavam diferentes regiões do centro-sul do Império, (mas também do mercado
marítimo de cabotagem que conectava o Rio Grande ao nordeste brasileiro), uma vez que não
permite conhecer melhor as elites que se constituíram a partir destas atividades. Penso que
compreender como as hierarquias sociais reproduziam-se nas margens mais “periféricas” do
Império e como as elites afastadas dos centros decisórios desenvolviam estratégias para obter
ganhos dentro deste sistema, auxilia na compreensão do próprio sistema econômico e político
brasileiro no oitocentos. Portanto, esta tese não almeja contribuir somente com o estudo da elite
charqueadora pelotense. Com as questões e hipóteses levantadas ao longo dos capítulos
objetivo oferecer um quadro analítico mais amplo e que estimule um olhar mais atencioso para
outras elites locais e regionais brasileiras, além de buscar entender como elas integravam-se nos
distintos mercados internos e externos que marcaram o período.

Econômicos, n. 13, 1983, p. 223-257. Ver também LIBBY, Douglas. Trabalho escravo e capital estrangeiro no
Brasil: o caso de Morro Velho. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984; MONASTÉRIO, Leonardo. Op. cit.
33
Esta visão é muito comum entre os historiadores que trabalharam com o processo de industrialização e a
consolidação da república no Rio Grande do Sul. Neste sentido, a monarquia aparece como um estágio a ser
superado pela república e a economia escravista como uma etapa a ser ultrapassada pelo capitalismo. Ver, por
exemplo, PESAVENTO, Sandra. República Velha Gaúcha: frigoríficos, charqueadas, criadores. Porto Alegre:
Movimento/IEL, 1980; LAGEMANN, Eugenio. O Banco Pelotense & o Sistema Financeiro Regional. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1985.
19
No Brasil, cada vez mais tem sido aceito o papel das elites regionais no processo de
independência e da formação do Estado imperial brasileiro.34 A partir destes novos estudos já
não é mais possível pensar nas elites regionais como passivas diante do processo de
consolidação do estado monárquico ou como forças centrífugas prontas a impedir o mesmo.
Além disso, as novas pesquisas compartilham, por meio de contribuições distintas, do princípio
da negociação entre o governo central e as elites regionais, da mediação política entre ambos os
níveis de poder e da convergência de interesses entre os diversos proprietários de terra
espalhados pelo Brasil, como fatores importantes no mencionado processo. Neste sentido, parto
da premissa de que as elites regionais também devam ser compreendidas nas suas estruturas
socioeconômicas internas e na sua interação social com os sistemas econômicos e políticos
mais amplos, na qual as suas atividades se inseriam, uma vez que poucas são as pesquisas que
buscam estabelecer um diálogo entre uma abordagem econômica com outra mais política.

É na esteira destas novas pesquisas que a presente tese se insere. A escolha das famílias
charqueadoras deu-se pelo fato das mesmas ocuparem o topo da elite econômica da província.
No entanto, as suas relações sociais e políticas com outros setores da sociedade e as diferentes
esferas de ocupação em que os membros das mesmas estavam inseridos também auxiliavam na
manutenção da sua própria posição na hierarquia social. Daí a importância de investigar que
tipo de relações os charqueadores mantinham com comerciantes, estancieiros e políticos, isto
quando os mesmos não pertenciam as suas famílias. Portanto, o presente estudo oferece uma
análise especial dos charqueadores pelotenses que, assim como o mencionado Domingos José
de Almeida, não se viam mais como simples “caciquinhos locais”, pois sua influência em
termos políticos e econômicos estava um patamar acima destes, os colocando como membros
das elites regionais.

34
Ver, por exemplo, GOUVÊA, Maria de Fátima. Política provincial na formação da monarquia constitucional
brasileira: Rio de Janeiro (1820-1850). Almanack Braziliense, n. 7, mai-2008, p. 119-137; DOLHNIKOFF,
Miriam. O pacto imperial: origens no federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005; MARTINS,
Maria Fernanda V. “A velha arte de governar”: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado
(1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007; GRAHAM, Richard. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit.,
2010; FARINATTI, Luís A. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Das racionalidades da História: o Império do
Brasil em perspectiva teórica. Almanack, n. 4, 2º sem. 2012, p. 53-61; SODRÉ, Elaine L. A disputa pelo monopólio
de uma força (i)legítima: Estado e administração judiciária no Brasil Imperial (Rio Grande do Sul, 1833-1871).
Tese de Doutorado. PUC-RS, 2009; ANDRADE, Marcos F. de. Elites regionais e a formação do Estado Imperial
brasileiro: Minas Gerais - Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008;
RIBEIRO, José Iran. “De tão longe para sustentar a honra nacional”: Estado e Nação nas trajetórias dos
militares do Exército Imperial brasileiro na Guerra dos Farrapos. Tese de Doutorado. PPGHIS-UFRJ, 2009;
KLAFKE, Álvaro. O Império na Província: construção do Estado nacional nas páginas de O Propagador da
Indústria Rio-grandense (1833-1834). Dissertação de mestrado, UFRGS, 2006; MELLO, Evaldo C. de. A outra
independência: o Federalismo Pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Ed. 34, 2004; PIMENTA, João Paulo
G.; SLEMIAN, Andréa. O “nascimento político” do Brasil: as origens do Estado e da nação (1808-1825). Rio de
Janeiro: DP&A, 2003; COSTA, Wilma P.; OLIVEIRA, Cecília H. de S. (Org.). De um império a outro: estudos
sobre a formação do Brasil, séculos XVIII e XIX. São Paulo: FAPESP, 2007.
20
O critério inicial utilizado para a seleção destas famílias foi a riqueza. Contudo,
investigando profundamente a vida das famílias charqueadoras mais afortunadas verificou-se
que as mesmas também concentravam os principais cargos políticos, a maior parte dos títulos
de nobreza e foram as que mais investiram na educação superior de membros do grupo. Neste
sentido, o leitor verificará que tanto na primeira metade do oitocentos, quanto na segunda
metade, um grupo com cerca de 8 a 10 grandes famílias ocupava o topo da hierarquia social
local, apresentando um alto grau de parentesco entre si. Neste sentido, as principais famílias de
charqueadores aqui investigadas ocuparam o topo da hierarquia social pela notável forma como
concentraram os recursos materiais e imateriais não apenas da sociedade em que viveram como
também no interior do próprio grupo de charqueadores.

No que diz respeito ao seu patrimônio econômico, foi possível verificar que estas
principais famílias não se reservavam aos seus negócios na charqueada, destacando-se tanto no
comércio marítimo de longo curso, quanto na criação de gado em grandes estâncias na região
da campanha ou no norte do Uruguai. Além disso, muitas delas também atuaram no
prestamismo local vindo a tornar-se credoras de outros pequenos proprietários. Tal incremento
de atividades econômicas e a diversidade de investimentos assemelhavam-se com as práticas
dos comerciantes de grosso trato estudadas por Fernand Braudel na Europa dos séculos XVI ao
XIX e que caracterizou o perfil daquela elite mercantil. 35 No caso dos charqueadores, o
investimento em grandes estâncias e embarcações marítimas tinha como objetivo aumentar os
seus lucros nos três níveis econômicos no qual o charque estava inserido, ou seja, na criação, na
produção e no comércio. Portanto, os charqueadores mais ricos ao apresentarem uma maior
capacidade de aproximação dos mercados de gado e dos mercados marítimos potencializavam a
sua capacidade de acumular riqueza, diminuíam os riscos advindos destes negócios e
reproduziam a desigualdade de recursos no interior do grupo.

A concentração de poder, riqueza e status social contribuía para que estas famílias
adquirissem uma “consciência de elite” que foi amadurecendo ao longo do oitocentos,
atingindo seu ápice na segunda metade do século. Tal fenômeno social conferia um sentimento
de superioridade às mesmas, o que se refletia no seu estilo de vida, nos casamentos de seus
filhos e na sua política sucessória. A engenharia matrimonial praticada pelas mesmas
combinava uma endogamia envolvendo membros do próprio grupo com uma exogamia que
buscava genros europeus ou de elites de outras províncias. Além disso, uma preocupação com a

35
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
21
educação dos filhos e com os seus matrimônios refletia-se numa política sucessória distinta dos
demais charqueadores de menor fortuna no que diz respeito à transmissão da charqueada e a
escolha dos primogênitos enquanto sucessores da função empresarial do pai. Favorecidos por
uma grande presença de estrangeiros na cidade, os charqueadores também passaram a
compartilhar de uma cultura europeizada e de um estilo de vida mais urbano, onde
demonstraram interesse pelas artes, pelos espaços de sociabilidade e pela caridade. Foi a partir
destes fatores que as mesmas foram vistas pelos seus contemporâneos como uma espécie de
aristocracia da terra, devido a sua posição social e o estilo de vida que levavam no final da
monarquia.

A presente tese norteou-se a partir de distintos referenciais teóricos e metodológicos.


Tratando-se de um estudo sobre elites, inspirei-me nos problemas de pesquisa e nas perguntas
colocadas por alguns historiadores nos seus respectivos trabalhos sobre o tema e, a partir dos
mesmos, busquei a minha própria agenda de investigação e aquilo que mais se adequava ao
contexto no qual a elite charqueadora estava inserida. Os estudos de Lawrence Stone e de Nuno
Monteiro me possibilitaram perceber a importância dos sistemas sucessórios, das práticas
matrimoniais, do estilo de vida e educação, da influência das elites na política, mas,
principalmente, da mobilidade social intra-elite.36 No que diz respeito à sociedade brasileira,
tomei como referência o tratamento metodológico oferecido por Maria Fernanda Martins e
Jonas Vargas em suas respectivas pesquisas, qual seja, a de combinar uma análise quantitativa
no sentido de configurar um perfil social do grupo estudado e das estruturas sociais que
conformavam a sua posição com outro mais qualitativo, focado na análise das redes de relações
sociais entre as elites econômicas e políticas estudadas pelos autores.37

Assim como estes autores, busquei realizar um estudo prosopográfico da elite


charqueadora pelotense. Tendo como modelo as considerações teóricas oferecidas por Stone38,
não me reservei apenas a reunir dados estatísticos e oferecer uma análise quantitativa dos
mesmos. Seguindo a aplicação prática daqueles preceitos realizada pelo autor, busquei

36
STONE, Lawrence. La Crisis de la Aristocracia (1558-1641). Madrid: Alianza Editorial, 1985; MONTEIRO,
Nuno G. Elites e poder: entre o Antigo Regime e o Liberalismo. Lisboa: ICS, 2012; MONTEIRO, Nuno G. O
crespúsculo dos Grandes: a casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1998; MONTEIRO, Nuno. G. Casamento, celibato e reprodução social: a aristocracia
portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Lisboa, Análise Social, v. 28, 1993, p. 921-950; MONTEIRO, Nuno G. 17
th and 18 th century Portuguese Nobilities in the European Context: a historiographical overview. E-JPH, v. 1, n.1,
summer 2003, p. 1-15.
37
MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
38
STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 39, 2011, p. 115-137 [tradução].
Sobre outras considerações teórica e aplicações práticas do método ver também HEINZ, Flávio M. (org.). Por uma
outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
22
compreender os diferentes investimentos realizados por esta elite, que tipo de interesses elas
perseguiam, qual a importância que davam à educação, em que patamar encontravam-se suas
riquezas e níveis de poder, qual o seu estilo de vida e se a mesma apresentou um ethos
próprio.39

Além dos mencionados autores e de suas contribuições no que dizem respeito ao tipo de
questionamentos que se deve fazer quando se estuda as elites das sociedades agrárias e pré-
industriais, encontrei outro ponto de partida teórico e metodológico no programa de pesquisa
oferecido por Edoardo Grendi, nos anos 1970.40 Considerados como os primeiros textos que
inspiraram a experiência historiográfica da microanálise social, os escritos de Grendi
constituíram-se em um ponto de encontro de diferentes contribuições interdisciplinares que
marcaram os anos 1960 e 1970.41 No geral, estas referências vinham opor-se ao funcionalismo e
ao estruturalismo marcante nos estudos das sociedades antigas, assim como a leitura
neoclássica acerca da economia das mesmas sociedades agrárias. Da aproximação com a
antropologia econômica, do diálogo com os estudos mais culturais de E. P. Thompson42, da
releitura da obra de Karl Polanyi43 e das interlocuções com Giovanni Levi acerca do mercado
de terras no Antigo Regime europeu44, além de muitas outras referências, Grendi começou a
formular um programa de pesquisa que via na microanálise das relações sociais um
procedimento teórico e metodológico capaz de auxiliar na resolução dos problemas de pesquisa
que lhe interessavam e superar os rígidos esquemas macro-estruturais em voga na época.45

As contribuições de Grendi iam no sentido de estudar os agregados sociais locais sem


perder de vista o sistema mais amplo no qual os mesmos estavam inseridos. Partindo das
famílias para entender melhor as unidades produtivas camponesas, as comunidades locais e os
sistemas sociais maiores, Grendi defendia uma abordagem que aliasse à demografia histórica
uma análise das relações sociais entre diferentes indivíduos e famílias. Era no nível micro que o

39
STONE, Lawrence. Op. cit., 1985.
40
GRENDI, Edoardo. La micro-analisi: fra antropologia e storia. In: Polanyi: dall’antropologia economica alla
microanalisi storica. Milão: Etas Libri, 1978.
41
Para uma análise dos mesmo ver LIMA FILHO, Henrique Espada. A Micro-história italiana: escalas, indícios e
singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
42
Ver, por exemplo, THOMSPON, E. P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Cia. das Letras, 1998.
43
Ver, por exemplo, POLANYI, Karl. A Grande Transformação. As origens da nossa época. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 1980.
44
LEVI, Giovanni. Economia camponesa e mercado de terra no Piemonte do Antigo Regime. In: OLIVEIRA,
Mônica R. de; ALMEIDA, Carla (Org.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009.
45
LIMA FILHO, Henrique Espada. Op. cit. Conforme o próprio Grendi, outras referências teóricas foram
importantes para os seus escritos, como os modelos generativos propostos por Fredrik Barth, o interacionismo de
Norbert Elias e o método da Network Analisys (GRENDI, Edoardo. Il Cervo e la repubblica: il modello ligure di
antico regime. Torino: Eunaudi, 1993, p. VII). Neste sentido, o estudo das sociedades camponesas realizado por
Eric Wolf e Sidney Mintz também contribuiu bastante para as suas reflexões (GRENDI, Edoardo. Op. cit., 1978).
23
historiador poderia observar os códigos culturais dos sistemas sociais mais amplos buscando
compreender as regularidades que regiam as ações e os comportamentos dos homens nestes
mesmos agregados sociais maiores. Os resultados desta imersão no nível micro deviam ser
comparáveis com outros contextos históricos. Neste sentido, Grendi defendia uma média
generalização das hipóteses de trabalho do historiador. Para ele, as sociedades agrárias e pré-
industriais apresentavam-se como um cenário propenso às experiências microanalíticas e à
generalização dos resultados, pois as sociedades camponesas constituíam-se no grande
fenômeno social geral da história. Portanto, para uma compreensão mais complexa dos
agregados sociais locais, os historiadores deveriam tentar investigar todas as relações sociais
dos agentes envolvidos.46 Foi isto que Levi buscou empregar no seu estudo sobre Santena no
século XVII.47 Esta abordagem holística tinha nítida inspiração no diálogo de Grendi com a
antropologia social. 48

A questão da abordagem holística e do máximo cruzamento de fontes documentais foi


fundamental no desenvolvimento desta tese. Pelotas não era Santena, mas a proposta de
compreender um grupo social a partir das múltiplas relações que ele mantinha em dado
contexto histórico e dos diversos espaços sociais no qual o mesmo estava inserido foi um
estímulo importante. Busquei compreender a elite charqueadora não apenas nas suas relações
com a sociedade local (seja com as elites ou com as classes subalternas), mas também na sua
relação com os sistemas sociais, econômicos e políticos exteriores e no qual os mesmos
estavam inseridos e/ou conectados. Em se tratando de uma abordagem interacional, os campos
da política, da cultura e da economia, por exemplo, foram tratados de forma integrada. Busquei
investigar os charqueadores e suas famílias por todos os lados (tratando dos principais aspectos
sociais), realizando um cerco sempre limitado pelas possibilidades das fontes consultadas.

A preocupação de Grendi com a forma como as comunidades agrárias vinculavam-se


aos mercados mais monetarizados também serviu de estímulo a esta pesquisa.49 E aqui está a
importância do uso do conceito de broker proposto por Grendi no seu diálogo com a
antropologia.50 Conforme Levi, os brokers ou mediadores emergiam dos “grupos locais de
importância”.51 Os mediadores eram pessoas que possuíam características diferenciadas dentro

46
GRENDI, Edoardo. Op. cit., 1978.
47
LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000.
48
LIMA FILHO, Henrique Espada. Op. cit, p. 151-223.
49
GRENDI, Edoardo. Op. cit., 1978.
50
GRENDI, Edoardo. Microanálise e História Social. In: OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de; ALMEIDA, Carla
(Org.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009, p. 27-30.
51
LEVI, Giovanni. Op. cit., p. 51.
24
da sua “aldeia” e que, por conta disto, vinculavam a sua comunidade com o mundo exterior,
defendendo interesses ligados à sua facção, mas que, indiretamente, beneficiavam outras
famílias da localidade. O mediador possuía as chaves de acesso aos poderosos do centro
decisório de um sistema maior e o poder de realizar esta conexão transformava-o num
potentado local e/ou regional. Os mediadores estão presentes em todas as sociedades agrárias e
pré-industriais onde um centro político com fins centralizadores incorpora outras localidades
outrora autônomas ou independentes – as chamadas “periferias” de um sistema. 52

É neste sentido que deve-se atentar para as estruturas internas das localidades e
compreender os fatores que condicionavam as suas hierarquias socioeconômicas, pois era a
partir da concentração dos recursos materiais e imateriais mais valorizados em determinados
contextos que as suas elites emergiam alcançando espaços de atuação mais amplos. Daí a
importância da antropologia econômica e da obra de Witold Kula nas reflexões de Grendi, pois
se cada sistema econômico possuía as suas racionalidades próprias é nos seus pontos de
contato, nas suas intersecções, que a elite-broker (os mediadores) atuava com distinção,
colocando os dois espaços econômicos em contato, intermediando as relações de troca entre
ambos e provocando alterações na visão de mundo e nos valores culturais dos habitantes do
meio agrário. De tudo isto resulta um universo social com uma variedade de elites e hierarquias
sociais locais e regionais que se relacionavam social, política e economicamente umas com as
outras em relações de cooperação e conflito, onde sempre abriam-se canais de mediação
ocupados pelos mais “aptos”.

Neste sentido, as famílias apresentam-se como agentes fundamentais deste trabalho. E


aqui me refiro às famílias extensas formadas por casais nucleares ligados a laços consanguíneos
e espirituais a outros indivíduos e casais não co-residentes.53 A charqueada era uma empresa
familiar e seus proprietários buscavam agir de forma estratégica para manter o patrimônio da
família nas gerações seguintes e encaminhar os demais filhos e filhas na vida adulta. Apesar do
termo “estratégia” oferecer uma racionalidade demasiada aos agentes, como alertou Edoardo

52
Com relação ao uso do conceito de mediador ver IMIZCOZ, José M. Patronos y mediadores. Redes Familiares
en la Monarquia y patronazgo en la aldea: la hegemonia de las elites baztanesas en el siglo XVIII. In: Redes
familiares y patronazgo: aproximación al entramado social del País Vasco y Navarra em el Antiguo Régimen
(siglos XV-XIX). Bilbao: Universidad del País Vasco, 2001; SILVERMAN, Sydel F. Patronage and community-
nation relationships in central Italy. In: SCHMIDT, S. W. (ed.). Friends, Followers and factions: a Reader in
Political Clientelism. Berkeley: University of Califórnia, 1977. As importantes contribuições de Eric Wolf neste
sentido podem ser vistas em FELDMAN-BIANCO, Bela; RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.). Antropologia e poder:
contribuições de Eric R. Wolf. Brasília: Ed. da UnB; São Paulo: Ed. Unicamp, 2003; VARGAS, Jonas. Op. cit.
53
Neste sentido, ver GRAHAM, Richard. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op.
cit., 2010.
25
Grendi54, segui as premissas de Giovanni Levi que buscou despi-lo de significados tão rígidos,
considerando-o e reafirmando-o como um comportamento que, apesar de racional, era limitado
e seletivo.55 Esta racionalidade limitada obedecia, portanto, aos condicionantes estruturais e
conjunturais na qual a família agia e interagia, contribuindo para romper ou reforçar os próprios
traços desta estrutura social. A política sucessória constituiu-se em outro fator de distinção entre
as famílias charqueadoras mais ricas das menos ricas, conformando uma prática de elite que
buscava a reprodução social de sua posição.

Exigir uma definição absolutamente rígida do termo “elite” é no mínimo um


procedimento a-histórico, uma vez que as sociedades ao transformarem-se alteram os seus
padrões de recrutamento e os atributos e recursos necessários para se ocupar o topo de sua
hierarquia social. 56 Desta forma, proponho que os charqueadores não devam ser entendidos
somente como uma categoria socio-ocupacional homogênea, mas sim, a partir das suas relações
sociais em diversos âmbitos para além do econômico. É neste sentido que busco observá-los
assimilando algumas ideias desenvolvidas por Simona Cerutti. Para a autora, devemos tomar
cuidado com as classificações socioprofissionais e com o pressuposto de que os mesmos
“podem ser descritos antes mesmo que seja analisado o tecido das relações que os engendrou”.
Ao invés disso:

Em lugar de considerar evidente o pertencimento dos indivíduos a grupos sociais (e de


analisar as relações entre sujeitos definidos a priori), é preciso inverter a perspectiva
de análise e se interrogar sobre o modo pelo qual as relações criam solidariedades e
alianças, criam, afinal, grupos sociais. Nesse sentido, o importante não é negar a
utilidade de todas as categorias socioprofissionais – exógenas ou contextuais – mas
impregná-las das relações sociais que, hoje como então, contribuem para o seu
nascimento.57

Portanto, numa definição abrangente, pode-se pensar nas elites como grupos formados
por indivíduos e famílias que concentravam os recursos materiais e imateriais mais valorizados

54
GRENDI, Edoardo. Repensar a micro-história? In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da
microanalise. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 253.
55
LEVI, Giovanni. Op. Cit., 2000.
56
Para Martins, “o uso mais genérico dessa noção torna-se particularmente útil para estudos de casos como o
Brasil, diante da indefinição de papéis sociais, naturalmente não no que se refere à hierarquia, mas basicamente
quanto às suas funções”. Este tipo de definição “permite a compreensão do grupo tendo em vista o que seria seu
caráter mais peculiar, ou seja, a pluralidade de atividades e funções a que se dedicam seus membros”, uma vez que
“os indivíduos que alcançavam os altos postos da administração poderiam ser, e muitas vezes o eram,
simultaneamente, políticos, capitalistas, negociantes, proprietários ou intelectuais”. Soma-se a isto, o fato de que a
estrutura social brasileira no Oitocentos acabava vinculando a identidade individual “às relações familiares e às
redes sociais as quais se encontravam associados, o que fazia com que, com freqüência, antes de serem homens
públicos, fossem os representantes dos interesses e negócios dos grupos e famílias que os aproximaram do poder”
(MARTINS, Maria Fernanda Vieira. Op. Cit., p. 5-7).
57
CERUTTI, Simona. Processo e experiência: indivíduos, grupos e identidades em Turim no século XVII. in:
REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanalise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998, p.
182-183.
26
no contexto histórico em que viviam e que, na maioria das sociedades, envolviam critérios de
riqueza, poder e status. Neste sentido, as elites reuniam as melhores condições para negociar e
impor os seus projetos, influindo, desta forma, decisivamente nos rumos da sociedade na qual
ocupavam o topo da hierarquia. Estes mesmos grupos eram legitimamente reconhecidos como
as elites tanto pelos habitantes de seus territórios, quanto pelas elites dos territórios vizinhos e
grandes centros políticos nos quais estavam inseridos. Por fim, as elites deviam apresentar uma
“consciência de elite”, refletida nos seus estilos de vida, nas políticas de sucessão familiar e nas
engenharias matrimoniais. Quanto mais um grupo concentrava estes fatores e quanto mais
pessoas eles eram capazes de incluir no direcionamento dos seus projetos, mais no topo da
hierarquia social os indivíduos e famílias deveriam se encontrar.

As elites regionais geralmente eram compostas por membros da alta burocracia e da


elite política provincial, homens ricos e com atividades econômicas diversas (charqueadores,
estancieiros e negociantes, por exemplo) e alguns profissionais liberais do mundo urbano
(médicos, advogados, engenheiros e alguns jornalistas). Muitas vezes estes indivíduos podiam
ocupar diversas funções em diferentes setores ou pertencerem às mesmas famílias ou grupo de
relações, o que sedimentava ainda mais a sua posição, podendo resultar em uma coesão de
interesses políticos e econômicos. 58 Na presente tese, as famílias charqueadoras mais ricas que
terão um tratamento especial, constituem-se em um dos grupos socioeconômicos que
compunham as elites regionais (no caso aqui analisado, especificamente do Rio Grande do Sul).
Portanto, ao estudá-los de forma mais aprofundada busco demonstrar como um pequeno grupo
da elite pelotense (notadamente as principais famílias charqueadoras) se sobressai socialmente,
realizando um salto qualitativo a um patamar superior na hierarquia social, sem se desprender
das suas bases locais. Neste sentido, espero estar realizando considerações que sirvam para
pensar a atuação dos membros destas elites que, como argumentei anteriormente, não se viam
como a maioria dos demais charqueadores – cuja esfera de influência era mais reduzida.

As elites locais, por sua vez, seriam as autoridades públicas paroquiais (militares,
oficiais da Guarda Nacional, delegados, juízes de paz, padres, vereadores, tabeliães), parte dos
comerciantes, dos médios fazendeiros, entre outros. Portanto, o “poder local” ou “poder
paroquial” dizia respeito a estes indivíduos e famílias. Eles se caracterizariam por apresentarem
uma esfera de influência reduzida ao próprio município ou arredores e dificilmente alguns deles
conseguiam romper esta barreira (ao fazê-lo, podiam ascender à condição de elite regional). A

58
Uma significativa amostragem de uma elite provincial poderia ser obtida na análise coletiva dos indivíduos
nobilitados da mesma. Tal estudo prosopográfico será realizado no capítulo terceiro com o objetivo de conhecer
um pouco mais destas famílias rio-grandenses.
27
maior parte dos charqueadores não conseguia impor projetos ou exercer influência para além de
Pelotas, por exemplo. No entanto, como as escalas provincial e a local possuíam limites um
tanto tênues, as elites regionais também podiam absorver alguns dos mais notáveis membros
das consideradas elites locais, via casamento ou por intermédio dos diferentes vínculos sociais
estabelecidos pelas mesmas.

Sobre estes termos ainda é preciso considerar que ambos estão nitidamente relacionados
à escala de observação do historiador. Geralmente refere-se à elite local na sua relação com a
capital da província. Neste mesmo sentido, a noção de elite regional/provincial (que, como eu
já disse, podia reunir importantes membros da elite local em estágio de ascensão ou que
ocupavam o papel de mediador) é um instrumento de análise que serve para ser utilizado na
relação entre o Rio Grande do Sul (ou de outra província qualquer) e o governo central.
Portanto, estas definições não devem ser vistas de maneira um tanto rígidas. As suas fronteiras
espaciais e seus recortes regionais dependiam muito do poder de influência e da mobilidade dos
indivíduos e de suas redes de relações. Alguns poucos eram capazes de ocupar todos estes
espaços, fazendo parte destas duas elites (ou três se pensarmos na elite nacional/imperial).
Neste sentido, os mediadores ajudavam a tornar as fronteiras regionais e locais mais flexíveis,
unindo sociedades e populações com culturas diversas. Algumas famílias também podiam
distribuir seus membros pelos mesmos espaços, funcionando como um elo de aproximação por
onde circulavam informações e recursos diversos.59

A compreensão dos critérios descritos acima ficará mais evidente ao longo da tese. O
texto está dividido em 10 capítulos. Tendo em vista a abordagem relacional proposta, as
divisões dos mesmos em campos de investigação, como o político, o social, o econômico, o
cultural, entre outros, seria inadequado. Neste sentido, os capítulos são profundamente
interdependentes e a leitura de um, ajuda a explicar os eventos e as análises dos outros.
Contudo, é possível realizar um esforço para delimitar alguns temas específicos. Os três
primeiros capítulos, por exemplo, são homogêneos no que diz respeito à conjuntura histórica: o
colonial tardio e as décadas que antecederam a Revolução Farroupilha, ou seja, o período entre
1780 e 1835. Neles eu busquei compreender quem eram os charqueadores que compuseram a
primeira geração de empresários escravistas de Pelotas, as relações sociais estabelecidas com
outros grupos sociais e a sociedade que os mesmos ajudaram a construir no extremo sul da

59
Antes de passar para descrição dos capítulos, gostaria de comentar outras duas questões. É sabido que, no século
XIX, a região “nordeste” do Brasil era chamada de região “norte”. Para facilitar a narrativa e evitar confusões,
cometi o pecado de utilizar o termo “nordeste” para denominar a mencionada região ao longo do texto. Além
disso, os termos “rio-grandense” e “sul-rio-grandense” dizem respeito aos naturais da província do Rio Grande do
Sul, enquanto o “rio-grandino” referia-se ao nascido na cidade de Rio Grande.
28
América portuguesa. Além disso, analiso a conjuntura econômica que favoreceu a formação do
complexo charqueador escravista pelotense em sintonia com os saladeiros do Rio da Prata.

No quarto capítulo trabalhei intensamente com os inventários post-mortem dos


habitantes de Pelotas e recenseamentos locais para tratar dos níveis de concentração de
patrimônio no município entre os anos de 1850 e 1890. A forte presença de estrangeiros na
cidade e sua integração com a população local também mereceu uma análise mais aprofundada,
demonstrando que Pelotas foi um espaço de grande circulação de pessoas. Os capítulos 5 e 6
tratam tanto da mão de obra escrava utilizada nas charqueadas quanto das maneiras como os
charqueadores administravam a sua escravaria. Temas como as etapas de produção, o tráfico
inter-provincial, o perfil dos plantéis das charqueadas, as condições de trabalho, as
possibilidades de alforria, as tentativas de substituição da mão de obra escrava pela assalariada,
entre outros, são tratados em ambos os capítulos de forma complementar.

Nos capítulos 7 e 8 estudo os mercados do gado e os mercados do charque e dos couros.


No primeiro, analiso como as propriedades na fronteira do Uruguai e no próprio país vizinho
foram fundamentais para o pleno desenvolvimento das charqueadas pelotenses, o que exigia
uma atenção contínua dos charqueadores para as questões diplomáticas e belicosas na fronteira.
No comércio atlântico foi possível perceber que uma realocação dos mercados no meado do
oitocentos foi prejudicial aos interesses dos charqueadores, fazendo-os perder alguns espaços de
consumo para os concorrentes platinos. No capítulo 9 analiso as hierarquias de fortuna não
apenas no interior do grupo dos charqueadores, como comparo sua riqueza com a de outras
elites econômicas no mundo atlântico. A tentativa em investigar os rendimentos da empresa
charqueadora e a análise da mobilidade social intra-elite ao longo do século também tiveram
espaço e demonstram como o mesmo grupo de famílias resistiu aos reveses econômicos da
época drenando o patrimônio dos charqueadores de menor fortuna. No último capítulo tratei de
analisar o estilo de vida das principais famílias charqueadoras, assim como a de outros
membros da elite pelotense, dando espaço à atuação política das mesmas. Neste sentido,
cultura, educação e poder político, no caso desta elite, estavam intimamente conectados.

29
1. A INSERÇÃO ECONÔMICA DAS CHARQUEADAS DE PELOTAS NO
MERCADO INTERNO BRASILEIRO (1780-1835)

A Califórnia e a Austrália são dois casos não previstos no


“Manifesto”: a criação de grandes e novos mercados a partir do nada.
Precisamos rever isso.

Carta de Engels para Marx, 1852

A descoberta do ouro na Califórnia, em 1848, provocou o maior fluxo migratório até


então visto nos Estado Unidos. Se naquele ano a localidade contava com cerca de 10 mil
habitantes, excluindo os nativos, em 1855, esta população havia saltado para mais de 300 mil
pessoas. Tal desenvolvimento populacional fez aumentar a demanda por alimentos, nos quais a
farinha constituiu-se num dos mais procurados. Se em 1850, a Califórnia possuía somente 2
moinhos, em 1860, haviam mais de 90 destas instalações, marcando a década em que ela deixou
de ser importadora de farinha para tornar-se uma das maiores exportadoras americanas do
produto. O rush do ouro também conectou a Califórnia a outros mercados. Nos primeiros anos,
embarcações vindas do Chile, Austrália, China, entre outros países, incrementaram suas
remessas de diversos bens para a região. Somente no ano de 1850, por exemplo, 1.150 navios
aportaram em São Francisco, deixando quase 500 mil toneladas de mercadorias. A agricultura
de alimentos, o comércio marítimo e a urbanização caminhavam juntas e, em 1880, a população
californiana já atingia quase 1 milhão de pessoas, reunindo gente de todas as partes do mundo. 1

Enquanto a população da Califórnia crescia desenfreadamente, o australiano Edward


Hargraves, motivado pelas recentes descobertas de ouro no oeste dos Estados Unidos, retornou
para o seu país, onde suspeitava poder encontrar o metal precioso em regiões cujo solo era
semelhante ao do oeste estadonidense. Seu pressentimento concretizou-se em 1851. O rush do
ouro na Austrália deslocou mão de obra das fazendas de criação de ovelhas para as regiões
mineradoras, dando início ao fim da Pastoral Age – período que marcou o segundo quarto do
século, quando a economia australiana tinha na exportação de lã para a Inglaterra a sua
principal atividade econômica. Com o grande fluxo de imigrantes, antigos pastores passaram a
criar gado bovino que, de início, abastecia a população das novas e cada vez mais populosas

1
RAWLS, James; ORSI, Richard (Org.). A golden state: mining and economic development in gold rush
California. University of California Press, 1999, p. ix; ST. CLAIR, David. The gold rush and the beginnings of
California Industry. In: RAWLS, James; ORSI, Richard. Op. cit., p. 194-197; HOBSBAWM, Eric. A Era do
Capital (1848-1875). São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 97.
30
cidades australianas. Contudo, não demorou muito e, com a ampliação das fazendas e o
estímulo de comerciantes ingleses, a Austrália ingressou de vez no mercado internacional das
carnes, tornando-se uma das grandes abastecedoras da Inglaterra que, na segunda metade do
oitocentos, foi a maior importadora de carnes do mundo.2

As notícias que vinham da Califórnia e da Austrália e os “novos mercados” criados “a


partir do nada” não impressionaram somente Engels. A forma como os relatos do golden rush
eram contados, narrando histórias de pobres que enriqueceram da noite para o dia e do
formigueiro humano erigido em ambas as regiões mineradoras, era capaz de despertar a
curiosidade de todas as pessoas, colocando lugares outrora desprezíveis no centro da
imaginação mundial. Entretanto, fenômenos como estes não foram os primeiros e nem seriam
os últimos a acontecer. No Brasil, no meado do oitocentos, falar em corrida do ouro não era
novidade alguma. Na passagem do século XVII para o XVIII, a descoberta do metal precioso
na região das Minas Gerais havia provocado “importante impacto não só no destino social e
econômico da colônia, mas também na metrópole, na economia do Atlântico Sul e na relação
do mundo luso-brasileiro com outras nações européias”.3

Do primeiro relato do achado de jazidas de ouro, em Rio das Velhas, no ano de 1695,
até as descobertas que se seguiram em diferentes localidades, uma multidão de pessoas
aventurou-se por aquelas paragens enfrentando riscos naturais de todo o tipo, além das tribos
indígenas hostis. 4 Durante o golden rush tupiniquim, a região das Minas Gerais foi desde o
início o principal ponto de atração. Os migrantes “ocorreram de todos os modos de vida, das
mais diversas origens sociais e de todos os tipos de lugar”. Eles vinham das regiões costeiras do
Brasil, do Reino e das ilhas portuguesas. Os sempre presentes aventureiros ingleses, irlandeses,
holandeses e franceses também estiveram presentes. Frades deixaram seus mosteiros no Brasil e
em Portugal e soldados desertaram de suas guarnições costeiras, enquanto negros livres e
cativos (fugidos ou despachados pelos seus próprios senhores), paulistas com seus índios
escravos, comerciantes, agricultores e “pessoas com laivo de nobreza” também tomaram o
mesmo rumo. Em suma, “todos foram infectados pela febre do ouro”.5

2
PERREN, Richard. Taste, Trade and Technology: the development of the International Meat Industry since 1840.
Aldershot: Ashgate, 2006. O mercado mundial das carnes entre 1840 e 1900 será analisado no capítulo 8.
3
RUSSEL-WOOD, A. J. R. O Brasil Colonial: o ciclo do ouro (1690-1750). In: BETHELL, Leslie (Org.). História
da América Latina. São Paulo: EDUSP, v. 3, 1999, p. 474; 521.
4
Conforme Russel-Wood, a atividade dos bandeirantes no devassamento do sertão continuou durante todo o
século. Mas as novas descobertas serviram apenas para confirmar o que a Coroa, em 1754, já havia considerado
como “áreas de mineração”: Minas Gerais, Cuiabá, Goiás, Mato Grosso, São Paulo e as comarcas de Jacobina, Rio
das Contas e Minas Novas de Araçuaí, na Bahia (RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit., p. 471-472).
5
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit, p. 482.
31
Em poucos anos, a população das diversas regiões mineradoras cresceu de forma
impressionante. Os dados são esparsos, mas o aumento do número de cativos oferece uma
estimativa a respeito do mencionado fenômeno. Em 1695, por exemplo, as Minas Gerais
compreendiam alguns “grupos sortidos de bandeirantes, ocasionais fazendeiros de gado, um
punhado de missionários, alguns especuladores e os índios”, mas aparentemente nenhum
escravo de origem africana. No entanto, duas décadas depois, a presença desses cativos na
região saltou de zero para 30 mil. Outro exemplo pode ser dado a partir da descoberta de ouro
em Minas Novas. Passados três anos dos primeiros achados, essa localidade já apresentava uma
população de cerca de 40 mil pessoas, somando brancos e escravos negros.6 Como
consequência desse desenvolvimento econômico, Minas Gerais tornou-se a capitania mais
populosa da América portuguesa, reunindo quase 320 mil habitantes, em 1776.7

Se no início do povoamento minerador os primeiros habitantes ainda importavam quase


tudo o que consumiam, no meado do século XVIII, já era possível vislumbrar uma vigorosa
rede de abastecimento ao seu redor. Na realidade, desde os primeiros anos, sesmarias foram
sendo doadas constituindo-se em importantes áreas de criação e plantação voltadas para o
consumo local.8 Neste circuíto, além da pecuária suína e bovina, também tiveram destaque a
criação de aves, o fábrico do charque e o cultivo da mandioca. 9 No entanto, nesta conjuntura,
uma das maiores beneficiárias foi a cidade do Rio de Janeiro, cuja população saltou de 12 mil
pessoas, em 1710, para quase 30 mil, em 1749. Anos depois, ela foi elevada a sede do governo
colonial (1763) e, na década posterior, recebeu em seu território um Tribunal de Relação
(1774), o que significava uma maior autonomia administrativa e judiciária, além do crescimento
de sua importância política e econômica no interior do Império português.10

A rede mercantil de abastecimento constituída entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro


também viu-se fortalecida pela crescende entrada de escravos em direção à primeira e a
exportação de metais preciosos por meio das numerosas embarcações que saiam do porto
carioca. Este circuíto fez do Rio de Janeiro a principal encruzilhada do Império português,
vendo surgir ali uma importante elite mercantil. Paralelamente ao desenvolvimento da
economia mineira, o investimento em sítios e fazendas com a finalidade de abastecer a

6
Ibid., p. 494-495.
7
ALDEN, Dauril. O período final do Brasil Colônia (1750-1808). In: BETHELL, Leslie. Op. cit., p. 529.
8
CARRARA, Ângelo A. Agricultura e pecuária na capitania de Minas Gerais (1674-1807). Tese de Doutorado.
Rio de Janeiro: UFRJ, 1997; FURTADO, Júnia F. Homens de negócio: a interiorização da Metrópole e do
comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2006, p. 197-216.
9
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit, p. 502.
10
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas
no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 85.
32
crescente população em ambas as capitanias também marcou a conjuntura econômica do Rio de
Janeiro na primeira metade do setecentos, fazendo surgir importantes fortunas em todas as
etapas desta mencionada rede de comércio.11

No entanto, a transformação socioeconômica do período não reservou-se a estas duas


capitanias, atingindo todas as regiões da América portuguesa. A população total da colônia
passou de 300 mil pessoas, em 1700, para quase 3 milhões, em 1800. 12 Contribuíram para isso,
além do crescimento natural, os contínuos fluxos migratórios, como dos africanos trazidos
forçosamente por meio do tráfico e dos portugueses reinóis e das ilhas, atraídos pelas novas
possibilidades econômicas que se abriam. Desnecessário dizer que a demanda por alimentos
acompanhou o crescimento populacional. Neste sentido, conforme A. J. R. Russel-Wood, a
mineração provocou “o desenvolvimento de novos mercados” e:

(…) as minas atuaram como estímulos não só para a agricultura da Bahia, mas também
para a do Rio de Janeiro e de São Paulo. A indústria do gado da Bahia, do Piauí, do
Ceará, de Pernambuco e do Maranhão responderam ao aumento da procura em Minas
Gerais, Goiás e Mato Grosso com o crescimento da produção. Os criadores de gado do
Sul, de Curitiba a São Pedro do Rio Grande, forneceram gado para as minas por
intermédio dos paulistas. O ouro criou, portanto, novos centros de produção e de
consumo, ao mesmo tempo em que estimulou a produtividade das regiões mais
tradicionais de oferta.13

A mencionada vinculação da pecuária sulina com os novos mercados gerados a partir da


descoberta das minas não foi instantânea e não se deu sobre um espaço econômico ausente de
trocas. Antes do boom minerador, as vastas pastagens que compunham a paisagem agrária
daqueles territórios de fronteiras mal definidas já era alvo de muitas incursões, onde os couros
vacuns constituíam-se na mercadoria mais cobiçada. De acordo com Hameister, desde os fins
do século XVII e entrando o XVIII adentro, a extração dos couros e o seu comércio havia se
tornado um verdadeiro “negócio da China”, visto a procura dos mesmos nos mercados coloniais
e europeus. Nesta época, milhares de reses eram abatidas para que lhes fossem retirados os
couros e sebos, com pouco proveito das carnes. Este fenômeno foi responsável por atrair os
ibéricos para o interior do território em busca do gado solto e de fácil captura. Portanto, os
primeiros habitantes daquelas áreas entre Colônia do Sacramento e Laguna eram “coureadores
e changadores” que retiravam do comércio dos couros o seu sustento. Aparentados com os
espanhóis, mantinham com eles negócios de todo o tipo, lícitos e ilícitos, e com os mesmos

11
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Op. cit.
12
Conforme as estatísticas históricas do IBGE, a população total da colônia em 1800 teria sido de 3,6 milhões. No
entanto, segundo Dauril Alden, por volta daquele ano ela não teria atingido os 3 milhões. (IBGE. Estatísticas
históricas do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1990, 2ª. ed., p. 30; ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 536).
13
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit., p. 523.
33
eram capazes tanto de aliar-se quanto de engalfinhar-se em disputas por gado, território e
motivos diversos. Conforme Hameister, suas relações eram de tal forma emaranhadas que é
difícil dizer o que era o Rio Grande e o que era a Banda Oriental naquela época.14

Com o aumento do povoamento nas Minas, a demanda por animais cresceu


enormemente, colocando a fronteira meridional em uma nova etapa de desenvolvimento
econômico. No entanto, “não foi a fome dos mineradores que financiou a consolidação” do
mercado interno da região das minas com o extremo sul, mas sim, “a sua voraz necessidade de
meios de transporte e tração de cargas para os produtos coloniais”. 15 Os cavalos, por exemplo,
lideraram as exportações rio-grandenses desde 1730 até 1770, pelo menos. O gado vacum, por
sua vez, antes sacrificado exclusivamente por conta dos seus couros, também passou a ser
remetido nas tropas que seguiam rumo à Sorocaba e às Minas, por meio da rota terrestre que se
constituía. Paralelamente, os lucros destas transações foram sendo reinvestidos pelos
negociantes e tropeiros que aos poucos estabeleciam criatórios de mulas – animais bastante
valorizados nos mencionados mercados, visto sua grande utilidade no transporte de cargas.
Todos estes negócios renderam significativos ganhos aos principais agentes envolvidos e
estavam por trás da fortuna, prestígio e poder de boa parte das primeiras elites sulinas que
tiveram proeminência na segunda metade do setecentos.16

Portanto, a mencionada conjuntura de incremento populacional e desenvolvimento


econômico foi responsável por conectar o Rio Grande de São Pedro aos mercados coloniais
mais próximos, num lento processo que arrastou-se por quase todo o século XVIII. Se antes da
descoberta das Minas, os couros contituíam-se na principal mercadoria negociada por aquelas
bandas, com o aumento da demanda por animais de carga, uma vigorosa rede de comércio de
animais reunindo criadores e tropeiros começou a tomar forma no centro-sul da Colônia.
Mesmo com a decadência da mineração e a invasão dos espanhóis em Rio Grande (1763-1776),
o comércio de tropas continuou acontecendo, afastando qualquer ideia de que uma crise

14
HAMEISTER, Martha D. Para dar calor à nova povoação: Estudo sobre estratégias sociais e familiares a
partir dos registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado. PPGHIS/UFRJ, 2006, p.
58-71; HAMEISTER, Martha D. O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e
suas mercadorias semoventes (c. 1727 – c. 1763). Dissertação de Mestrado, UFRJ, 2002, p. 244.
15
Idem, 2002, p. 18.
16
HAMEISTER, Martha. Op. cit., 2002, 2006; GIL, Tiago. Coisas do caminho: tropeiros e seus negócios do
Viamão à Sorocaba (1780-1810). Tese de Doutorado, UFRJ, 2009; OSÓRIO, Helen. O império português no sul
da fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007; KUHN, Fábio. Gente da
Fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII. Tese de Doutorado, UFF,
2006.
34
agropecuária no centro-sul da Colônia tivesse ocorrido durante o período.17 Como demonstrou
Tiago Gil, na passagem do século XVIII para o XIX, os negócios envolvendo as tropas de
animais entre os caminhos de Viamão, Curitiba e Sorocaba, ainda mantinham importância. No
entanto, os mesmos estavam se tornando claramente menos rentáveis se comparados aos
galpões de charquear e ao comércio marítimo, pois ambos vinham entrando em uma nova fase
de desenvolvimento nas últimas décadas do setecentos.18

A intensificação da produção do charque, assim como o seu comércio marítimo,


integrou ainda mais o Rio Grande do Sul aos novos mercados que vinham surgindo,
conectando-o ao nordeste do território colonial, ao Caribe, à Europa e à América do Norte, por
exemplo. No entanto, para que a fabricação e o comércio do charque atraísse maiores
investimentos foi preciso que se criasse uma enorme demanda por este produto, o que só foi
possível devido a uma nova conjuntura política e econômica que caracterizou o colonial tardio.
Neste período, houve um grande desenvolvimento tanto na agroexportação, como na produção
e no comércio de gêneros alimentícios, favorecendo um intenso fluxo de escravos para ambos
os setores da economia brasileira, como demonstro a seguir.

1.1 A DIVERSIFICAÇÃO DAS CULTURAS E O REVIGORAMENTO DA AGRO-


EXPORTAÇÃO NO COLONIAL TARDIO

A ideia de que o chamado “ciclo do ouro” nas Minas Gerais havia deslocado braços e
capitais ao ponto de diminuir profundamente a produção agrícola da colônia e de que, com a
posterior crise da mineração, a capitania teria entrado em uma franca decadência econômica já
foi superada há muitos anos pela historiografia. 19 Na segunda metade do setencentos, Minas,
que já possuía uma vigorosa rede de abastecimento interna, teria reorientado mais ainda a sua
economia para o comércio de alimentos, tornando-se a grande fornecedora destes gêneros ao
Rio de Janeiro.20 Portanto, não teria ocorrido uma crise na capitania, como defendeu Celso

17
Conforme Petrone, entre 1750 e 1780, passaram cerca de 5 mil cabeças de gado anualmente no Registro de
Sorocaba. Entre 1780 e 1820, esta média dobrou para 10 mil e no início dos anos 1820, ela já era de quase 30 mil.
PETRONE, Maria Thereza S. O Barão de Iguape. São Paulo, 1976, p. 20-24.
18
GIL, Tiago. Op. cit., p. 354. Segundo Hameister, o advento das charqueadas litorâneas não encerrou o comércio
de tropas para Sorocaba. É demasiado simplista achar que houve um “ciclo” das tropas substituído por um “ciclo”
do charque. Ambos os espaços de troca, um terrestre e o outro marítimo, existiram de forma concomitante,
constituindo-se em circuitos mercantis distintos. (HAMEISTER, Martha. Op. cit., 2002, p. 209).
19
Ver, por exemplo, CARRARA, Ângelo A. Minas e Currais: produção rural e mercado interno em Minas
Gerais, 1674-1807. Juiz de Fora: Ed. da UFJF, 2007; FURTADO, Júnia F. Op. cit.; ALMEIDA, Carla M. C.
Alterações nas unidades produtivas mineiras. Mariana (1750-1780). Dissertação de Mestrado, UFF, 1994.
20
LENHARO, Alcir. As tropas da moderação (o abastecimento da Corte na formação política do Brasil – 1808-
1842). Rio de Janeiro: SMC, 1993; FRAGOSO, João L. R.. Homens de grossa aventura – Acumulação e
hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
35
Furtado.21 Um dos indícios mais fortes do mencionado desenvolvimento econômico foi o fato
de que a população mineira manteve índices de crescimento bastante altos na segunda metade
do século XVIII. Entre 1776 e 1821, por exemplo, ela aumentou 60% (de 319.769 para 514.104
habitantes). A comarca do Rio das Mortes, onde a agropecuária voltada para o abastecimento
interno era o principal setor econômico, houve um crescimento de 82.781 para 213.617 pessoas.
Como resultado deste vigoroso comércio, e tendo em vista que a lavoura de gêneros era
genuinamente escravista, Minas tornou-se a capitania com o maior número de escravos no
início do oitocentos.22

Como mencionei anteriormente, os vínculos mercantis entre o Rio de Janeiro e as Minas


Gerais datavam do início do século XVIII. Desde as primeiras décadas, o Rio tornou-se uma
importante área de abastecimento voltada para aquela região, apresentando, com o tempo, um
“grande dinamismo” na produção de alimentos. Conforme Sampaio, tal atividade foi tão
atrativa que muitos comerciantes passaram a investir no setor. Portanto, neste contexto, é difícil
falar de um “Renascimento Agrícola” como uma conjuntura posterior à crise da mineração,
uma vez que nunca houve um abandono da agricultura e nem mesmo uma decadência da
mesma no Rio de Janeiro. Estudando a economia fluminense entre 1750 e 1790, Pesavento
trouxe importante contribuição ao negar a mencionada ideia de crise ou decadência da
agricultura no período mencionado. O autor reconheceu que houve momentos de recuo das
exportações e do valor dos bens agrícolas negociados, mas o exame das dízimas do açúcar
sugerem que se houve uma conjutura desfavorável, ela não durou muito tempo e deve ter
começado na década de 1770, sem constituir-se numa crise ou decadência.23

Portanto, tendo em vista a inexistência de uma suposta decadência agrícola, o termo


“renascimento” ou “ressurgimento” da agricultura parece ser inadequado para a realidade aqui
analisada, pois o renascer ou o ressurgir, como enfatizou Sampaio, refere-se a algo que teria
desaparecido – o que não foi o caso.24 Neste sentido, preferi utilizar o termo “revigoramento”,
pois, durante o período colonial tardio, ocorreu um visível incremento qualitativo e quantitativo

21
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1998.
22
MARTINS, Roberto Borges. Minas e o tráfico de escravos no século XIX, outra vez. In: SZMRECANYI,
Tamás; LAPA, José Roberto Amaral (Org.). História econômica da Independência e do Império. São Paulo:
Hucitec, 1996, p. 99-130; FRAGOSO, João. Op. cit.
23
PESAVENTO, Fábio. O colonial tardio e a economia do Rio de Janeiro na segunda metade dos Setecentos
(1750-1790). In: Estudos Econômicos, v. 42, n. 3, 2012, p. 581-614.
24
Conforme Sampaio, se houve uma crise no setor açucareiro fluminense na primeira metade do setecentos, esta
foi compensada pelo rápido aumento da agricultura alimentar. “Logo, a recuperação do setor açucareiro na
segunda metade do século XVIII deve ser colocada em perspectiva. A sua expansão não somente não se deu sobre
uma ‘terra arrasada’, como também não representou a retração da produção de alimentos, que, mesmo com a
decadência dos circuítos auríferos, continuou encontrando um importante mercado para seus produtos na nova
capital da colônia” (SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Op. cit., p. 133).
36
das exportações em todas as regiões do Brasil. Em outras palavras, a agricultura de alimentos
continuou sendo praticada, mas ampliou-se de forma notável nas últimas décadas do setecentos.
Nesta mesma época, aumentaram as exportações de diversos produtos e, com os incentivos
políticos do Reino, ocorreu uma importante diversificação da pauta dos produtos cultivados.

Apesar da variedade dos novos cultivos, os principais produtos exportados durante o


colonial tardio foram o açúcar, que já liderava as vendas nos séculos anteriores e continuou
nesta posição até os anos 1830, o café, que ultrapassou o açúcar em valores exportados nesta
mesma década, e o algodão, que teve uma das suas melhores fases exatamente nas décadas aqui
trabalhadas. O algodão e o café como produtos de ponta eram sem dúvida uma novidade.
Durante o mencionado período, os três produtos, guardadas as oscilações de preço e de volume
negociados, foram demandados em grandes quantidades pelo mercado internacional. A Europa
ocidental, que vinha numa fase de acelaração econômica devido aos novos impulsos da
Revolução Industrial, foi a principal compradora dos mesmos. Neste sentido, o cultivo do
algodão, que servia como principal matéria-prima da indústria têxtil britânica, então em
expansão, tornou-se objeto de grande interesse dos comerciantes europeus.25

A Revolução Industrial, que tinha nas fábricas de têxteis o seu carro-chefe, fez aumentar
a demanda do produto estimulando a sua plantação não apenas no Maranhão, como também em
outras localidades do Atlântico. Neste processo, o sul dos Estados Unidos foi o principal
cenário da expansão da lavoura algodoeira. “Embora estivessem em sua infância, as plantations
de algodão dos Estados Unidos elevaram sua produção de 2 milhões de libras-peso para 48
milhões durante a década de 1790”. Tal incremento das exportações deu-se sobre uma notável
estrutura agrário-escravista colocando as plantations norte-americanas numa posição de
destaque da economia internacional. 26 Além disso, a industrialização britânica foi igualmente
favorável aos couros, que também alimentavam os setores artesanais e fabris europeus como
matéria-prima e ainda eram utilizados como correia nos maquinários. Entre 1804 e 1807, em
plena fase de aceleração do processo de montagem das charqueadas pelotenses, os couros foram
responsáveis por 32,6% do total das exportações brasileiras para Portugal, perdendo somente

25
Conforme Hobsbawm, a expansão da indústria algodoeira foi tão forte que acabou dominando os movimentos da
economia britânica. A quantidade de algodão em bruto importada pela Grã-Bretanha aumentou de 11 milhões de
libras (peso) em 1785 para 588 milhões em 1850, enquanto a produção de tecidos saltou de 40 milhões para 2
bilhões de jardas, no mesmo período (HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: Europa (1789-1848). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2009, p. 64).
26
Em 1790, havia 658 mil escravos nos estados do sul, quase o dobro de duas décadas antes. Em 1810, o número
de escravos na mesma região já havia chegado a 1.164.000 cativos, ou seja, continou crescendo no mesmo ritmo e
no mesmo intervalo de tempo (BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no novo mundo: do Barroco
ao Moderno (1492-1800). Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 585-586).
37
para o açúcar.27 Pode-se dizer que os couros provinham de diferentes regiões da Colônia, mas
grande parte deles era produzida no Rio Grande do Sul, onde os rebanhos bovinos abundavam e
a matança acentuou-se ainda mais com a instalação das primeiras charqueadas.

Conforme Helen Osório, os couros rio-grandenses chegavam na Europa por intermédio


do Rio de Janeiro (o maior importador do produto e que sempre perfazia entre 75% e 95% dos
volumes recebidos, depois os reexportando). A Bahia era a segunda maior importadora,
obtendo 10,8% em 1802, 17,8% em 1808 e 22,1%, em 1815 – o seu máximo. De acordo com a
autora, as localidades que compravam charque geralmente importavam couros e estes deviam
completar as cargas dos bergantins e sumacas. 28 No entanto, houve remessas exclusivas para
Portugal em 1803 (8 mil couros para Lisboa e 3 mil para o Porto) e 1805 (4,5 mil para Lisboa) e
para os Estados Unidos, após 1810. Estas variaram entre 4 e 7 mil unidades, mas, de acordo
com Osório, foram esporádicas. Tais remessas de couros tinham como destino Filadélfia,
Boston, Baltimore, Nova Iorque e Salem. Segundo a autora, não é possível saber em que
proporção se dava a reexportação do couro, mas apenas que eles foram o segundo produto na
pauta de exportações do Rio de Janeiro depois do açúcar. Em 1796, o açúcar representava 70%
das exportações cariocas e os couros 9%. Neste ano, o Rio Grande do Sul exportou 137.637
couros. Na passagem do século XVIII para o XIX, houve um notável crescimento da
participação do couro nas exportações para Lisboa. Entre 1796 e 1799, os couros perfaziam
12,1% do total exportado e entre 1804 e 1807, havia atingido 32,6% contra 43,4% do açúcar.
Neste período, o maior volume de couro exportado deu-se em 1814, somando 423.304
unidades.29 Como foi dito, é provável que grande parte deste produto fosse negociado com os
portos ingleses, mas não foi possível saber com precisão os seus diversos destinos. Analisando
as exportações do Brasil para a Inglaterra, entre 1807 e 1821, verificou-se que os couros
chegaram a ultrapassar os 15% dos valores negociados no período, embora mantivessem uma
média que oscilava entre 5% e 12% e, em alguns anos, foi inferior a 2%. Logo após a abertura
dos portos, no ano de 1809, foram remetidas mais de 220 mil libras esterlinas do produto para
os portos ingleses – o maior valor do período.30 O mesmo processo de industrialização europeia

27
ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo
Regime português. Porto: Afrontamente, 1993, p. 42. Nos outros anos, apesar de não ser o segundo produto, eles
sempre ocuparam uma posição privilegiada.
28
Contudo, somente no ano de 1790 o couro teve um valor exportado superior ao do charque. Nos anos
posteriores, até 1820, o charque sempre apresentou maiores valores, chegando a 44% dos totais exportados em
1808 e 63,2%, em 1819. OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 190-195.
29
OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 202-205.
30
ARRUDA, José Jobson. A abertura dos portos e a ruptura do sistema colonial luso-brasileiro. In: COUTO,
Jorge. Rio de Janeiro: capital do Império português (1808-1821). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010 ,
p. 105.
38
que incluiu os couros rio-grandenses no comércio atlântico, incorporou estes mesmos produtos
exportados por Montevidéu e Buenos Aires, como se verá nos capítulos posteriores.

Açúcar e café, por sua vez, formavam uma combinação que vinha se popularizando
entre os consumidores das margens do Atlântico, chegando cada vez mais às mesas das classes
trabalhadoras européias e norte-americana. Ambos os produtos tiveram sua demanda
aumentada não apenas pelo crescimento da população nas grandes cidades, mas também pelo
estímulo dos patrões e autoridades públicas com fins de substituir o consumo de bebidas
alcoólicas – condenadas pela nova ordenação moral que vinha enquadrando os trabalhadores
das fábricas. 31 Outro fator que pesou de forma significativa no aumento das exportações de
ambos os produtos foi a grande revolta escrava na colônia francesa de Santo Domingo, em
1791. A rebelião acabou por tornar-se um movimento de independência que durou cerca de 10
anos. A ilha antilhana, que era a maior produtora mundial de açúcar e café da década de 1780,
foi praticamente eliminada como exportadora destes produtos. Conforme Schwartz, tal
acontecimento favoreceu o surgimento de uma imensa demanda que estimulou não apenas o
setor açucareiro no Brasil, como também em outras áreas do Atlântico, como Cuba, Porto Rico
e Luisiana, “produtores até então relativamente secundários”. 32

Assim sendo, para entender melhor como a expansão das áreas de agro-exportação
brasileiras acabou favorecendo a formação do complexo charqueador escravista pelotense é
necessário examinar o desempenho dos principais produtos exportados na época, além da
relação entre o comércio de abastecimento e a agroexportação no período. Começo pelo
algodão. Ainda que nativo do Brasil e já conhecido pelos indígenas, foi somente em 1760,
quando a Companhia do Maranhão começou a realizar pequenas aquisições, que o mesmo
passou a ser cultivado com propósitos comerciais. Na década de 1770, seu plantio alcançou o
Pará, o Ceará e o Pernambuco, concentrando-se nas terras litorâneas entre os dois últimos. Nos
anos 1780, a cultura do algodão deslocou-se da costa para o sertão, onde expandiu-se para o
interior da Bahia e do Pernambuco, Piauí, Goiás, chegando até Minas Gerais. No entanto, nesta
fase inicial, a expansão algodoeira escravista animou mais os produtores das capitanias do
nordeste, com destaque para o Maranhão, o Ceará e o Pernambuco. Um dos principais motivos

31
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Historia del capitalismo agrario pampeano: La expansión
ganadera hasta 1895. Buenos Aires: Siglo XXI, 2003, p. 146. A “peste da embriaguez” foi um dos grandes
problemas das classes trabalhadoras durante o processo de industrialização e o aumento populacional nas cidades
fabris que marcou as primeiras décadas da Revolução Industrial na Inglaterra. A hostilidade a tal fenômeno social
era compartilhado não apenas pelos patrões como também pelos movimentos trabalhistas ingleses (HOBSBAWM,
Eric. Op. cit., 2009, p. 282-283).
32
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, p . 343.
39
foi o apoio governamental dado aos produtores destas regiões, por meio da formação das
companhias monopolistas, da introdução de escravos africanos, do acesso ao crédito e a
melhores técnicas agrícolas, o que favoreceu o desenvolvimento do setor.33

No entanto, o desenvolvimento algodoeiro também foi estimulado pela alta dos preços
do produto no mercado europeu. A rápida expansão da indústria têxtil, especialmente na
Inglaterra e na França, possibilitada por uma revolução tecnológica sem precedentes, fez
crescer a demanda por fibras de alta qualidade para a fabricação de tecidos finos. Embora a
maior parte do algodão brasileiro fosse de baixa qualidade, parte do cultivo em Pernambuco e
na Paraíba estava entre os melhores do mercado e Portugal os remetia para os seus principais
clientes. A guerra de independência dos Estados Unidos (1776-1783), cujas exportações de
algodão para a Inglaterra correspondiam a 70% do equivalente exportado pelo Brasil, e a
consequente paralização do seu setor algodoeiro, também contribuíram com o aumento das
exportações.34 Entre 1776 e 1807, 55,4% do algodão brasileiro teve como destino a Inglaterra e
31,2% a França. Depois disso, o algodão teve mais duas décadas de florescimento, mas nos
anos 1820 iniciou seu declínio diante da concorrência norte-americana, cuja tecnologia era mais
avançada.35

Apesar do boom algodoeiro que caracterizou o período, foram as regiões de plantations


de açúcar que concentraram as maiores populações escravas e garantiram a liderança das
exportações na maior parte do colonial tardio. Neste período, a expansão da lavoura canavieira
foi notável. Em Campos, o número de engenhos saltou de 56, em 1769, para 104, em 1778, com
um aumento da produção em 235%. Em 1800, já existiam 324 engenhos no norte fluminense,
chegando a 400, em 1810, e 700, em 1828.36 No nordeste, muito antes da Revolução em Santo
Domingo, as plantations açucareiras também já vinham apresentando grandes índices de
crescimento. Em Pernambuco e na Paraíba, os 268 engenhos existentes em 1761 saltaram para
390 em 1777, intervalo de tempo em que as exportações duplicaram. Na Bahia, entre 1759 e
1790, aconteceu um aumento de 170 para 260 engenhos e as exportações aumentaram 54,6%.
Esta ampliação de unidades açucareiras também atingiu o Sergipe, que no final do setecentos já
contava com 140 engenhos.37 A expansão do setor na Bahia teve continuidade na passagem do

33
O arranque inicial foi surpreendente. Entre 1760 e 1771, as exportações de algodão no Maranhão passaram de
651 para 25.473 arrobas. Até a década de 1820, o algodão foi responsável por 73% a 82% das exportações
maranhenses (BARBOSA, Francisco B. da Costa. Relações de produção na agricultura: algodão no Maranhão
(1760 a 1888) e café em São Paulo (1886 a 1929). In: Agricultura em São Paulo, v. 52. N. 2, 2005, p. 18-19).
34
BARBOSA, Francisco. Op. cit., p. 18.
35
ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 569.
36
ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 560; FRAGOSO, João. Op. cit.
37
ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 557-558.
40
século, atingindo outras áreas para além do Recôncavo e, em 1820, já contava com 500
unidades produtivas. Segundo Schwartz, entre 1817 e 1828, foram instalados 110 novos
engenhos e, na década de 1830, entraram em operação mais 220. Mesmo que muitos deles
tenham parado de funcionar, o crescimento foi notável e, em 1836, Bahia e Sergipe juntas
possuíam 603 unidades. No entanto, em Pernambuco o desenvolvimento do setor foi ainda
maior, apresentando cerca de 500 engenhos em 1818 e 712 em 1844. 38

Em São Paulo, a expansão açucareira aconteceu mais tardiamente, tendo se iniciado nos
anos 1780 e ganhado força na década seguinte. Antes disso, a produção paulista era destinada
principalmente para o consumo local, onde servia para a fabricação de melaço, aguardente e
rapadura.39 Com a conjuntura favorável (preços atraentes e a construção do caminho do mar), a
capitania inseriu-se de vez nos mercados internacionais, entrando numa nova fase de
desenvolvimento econômico. A população paulista cresceu 150% entre 1765 e 1808 e, no
período de 1797 a 1826, as suas exportações de açúcar aumentaram mais de 5 vezes. 40 As duas
principais áreas de cultivo eram a costa norte de Santos e o quadrilátero definido pelas vilas de
Sorocaba, Piracicaba, Mogiguaçu e Jundiaí. O açúcar tornou-se o líder das exportações
paulistas até 1850-1851, quando foi ultrapassado pelo café.41

O café, por sua vez, ingressou numa fase de aceleração e expansão agrária na passagem
do século XVIII para o XIX. O produto atingiu níveis de exportação extraordinários a partir dos
anos 1830, quando ultrapassou o açúcar na condição de principal mercadoria exportada pelo
Brasil. Durante este processo de ampliação da lavoura cafeeira, apesar da Bahia também
exportar quantidades consideráveis, o vale do Paraíba (fluminense e paulista) constituiu-se na
principal área produtora. No Rio de Janeiro, teve localidades que cresceram enormemente em
poucos anos, como a freguesia de São Pedro e São Paulo, depois vila de Paraíba do Sul, que em
1789 contava com 292 habitantes e cerca de meio século depois chegou a 14 mil. 42 Em São
Paulo, a lavoura cafeeira começou a se expandir a partir do meado da década de 1810. O
município de Areias, no Vale do Paraíba, foi o principal centro produtor, seguido por Lorena,
Guaratinguetá e Bananal, localidades que foram se desmembrando da primeira. Em 1836, cerca
de 2/3 da produção cafeeira paulista provinha do Vale do Paraíba. Em 1854, a Província

38
SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., p. 343-346; EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança: a indústria
açucareira em Pernambuco (1840-1910). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 147.
39
LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Evolução da Sociedade e Economia escravista de São Paulo, de 1750 a
1850. São Paulo: EDUSP, 2005, p. 55-56.
40
FRAGOSO, João. Op. cit., p. 135.
41
ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 560).
42
FRAGOSO, João. Op. cit., p. 365-366.
41
possuía 2.600 fazendas de café com 54 mil escravos – muito mais que os 10 mil cativos nas
unidades cafeicultoras de 1829.43

Portanto, os resultados da expansão cafeeira no sudeste foram notáveis, tendo a


exportações pelo porto do Rio saltado de 160 arrobas, em 1792, para 318.032 em 1817, 539.000
em 1820, 1.304.450 em 1826, 1.958.925 em 1830 e 3.237.190 em 1835. 44 Como resultado deste
vigoroso processo de ampliação agrícola, a demanda por mão de obra aumentou em índices
nunca antes vistos. Entre 1790 e 1830, entraram mais de 1.500 navios negreiros no porto do Rio
de Janeiro trazendo cerca de 700 mil africanos. Esta cifra, correspondente a somente quatro
décadas, representava 20% do total de escravos importados ao longo de 350 anos de tráfico.45

Na mesma época, a Bahia recebeu 395.138 escravos africanos. Pernambuco, por sua
vez, importou, entre 1790 e 1830, cerca de 242.150 escravos no tráfico atlântico. Conforme
Matthias Assunção, o Maranhão teria recebido, por intermédio da Companhia Geral de
Comércio, 12 mil escravos africanos, entre 1755 e 1778. Contudo, após esta data, devido ao
boom do algodão, teriam entrado mais 100 mil escravos na região, o que tornou-a, em 1819, a
capitania com o maior percentual de cativos com relação a sua população total. 46 Observe-se
que a soma das entradas de escravos nestas três capitanias do nordeste ultrapassa os cerca de
700 mil cativos que teriam desembarcado no porto do Rio, na mesma época.

É necessário afirmar que nem todos os escravos desembarcados nos portos acima
mencionados eram destinados para as regiões de plantations e muitos eram reexportados para
outras capitanias vizinhas. Não tenho dados para estas negociações no nordeste, mas a análise
do mesmo fenômeno no centro-sul ajuda a exemplificar estas transações. Segundo a estimativa
de Fábio Pinheiro, numa amostra de 231.808 escravos redistribuídos pelo porto do Rio entre
1809 e 1830, cerca de 40% dos mesmos tinham como destino Minas Gerais, 36% o Rio de
Janeiro, 15,5% São Paulo e 8,5% o Rio Grande do Sul. 47

Portanto, as dezenas de milhares de africanos que desembarcaram pelo porto do Rio não
abasteceram somente a província fluminense, mas toda a região centro-sul, e não apenas as suas

43
LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Op. cit., p. 84-88.
44
FRAGOSO, João L. R.; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade
agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia (c. 1750 – c. 1840). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001, p. 93.
45
Ibid., p. 95.
46
ASSUNÇÃO, Matthias. A memória do tempo de cativeiro no Maranhão. Revista Tempo, v 15, n 29, 2010, p. 69.
47
PINHEIRO, Fábio. O tráfico atlântico de escravos na formação dos plantéis mineiros, Zona da Mata (c.1809-
c.1830). Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2007, p. 79; PINHEIRO, Fábio. Os condutores de almas africanas:
concentração e famílias no tráfico de escravos para Minas Gerais. C. 1809-C. 1830. In: XIII Anais do XIII
Seminário sobre a Economia Mineira, 2008, p. 2.
42
plantations, mas também as lavouras de gêneros alimentícios, as regiões de criação de gado e as
suas principais vilas e cidades. É importante fazer esta ressalva, pois durante muito tempo se
acreditou que o tráfico atlântico atendia somente às necessidades das plantations coloniais. Nas
últimas décadas, a historiografia brasileira tem demonstrado que as áreas voltadas para o
abastecimento de alimentos concentravam uma grande fatia da mão de obra cativa. Em São
Paulo, por exemplo, 81% dos proprietários de escravos arrolados nas listas de habitantes da
primeira década do oitocentos eram lavradores não ligados à agroexportação. 48 No geral, entre
1798 e 1828, somente 2,5% dos chefes de domicílio paulistas eram senhores de engenho e mais
de 60% deles eram lavradores e/ou criadores que destinavam grande parte da sua produção ao
mercado interno.49

Nesta mesma época, o Paraná (que ainda pertencia ao território paulista) também
constituiu-se numa importante área de pecuária, reunindo pequenos, médios e grandes
criadores, com notável uso de mão de obra cativa.50 Além disso, como as tropas de gado que
seguiam do Rio Grande do Sul para São Paulo precisavam parar ao longo do trajeto para
recuperar o peso perdido, os campos paranaenses tornaram-se importantes espaços de
invernada, gerando lucros aos proprietários da região. Orbitando os campos de criação, havia
centenas de sítios que cultivavam milho, feijão, arroz e trigo, remetendo seus excedentes para
os mercados paulistas e fluminenses.51

A produção rio-grandense será tratada mais adiante, mas não custa lembrar que no
período analisado ela foi a maior produtora de charque da colônia, destacando-se também nas
exportações de trigo.52 Santa Catarina, por sua vez, também apresentou uma importante
pecuária, embora tenha se destacado mais na produção de farinha de mandioca. As entradas
deste produto no porto do Rio, apresentaram um aumento de 307% para o período entre 1799 e
1822. Entre 1799 e 1811, as receitas provenientes das entradas de naus com charque e farinha

48
Os principais gêneros cultivados e comercializados eram o milho, o feijão, o arroz, a farinha de mandioca e o
toucinho. Conforme Luna e Klein, “em 1804, o elevado porcentual de 86% dos agricultores proprietários de
escravos dedicava-se à produção de “alimentos”; tais produtores controlavam 70% dos escravos pertencentes aos
agricultores. Em 1829, aproximadamente três quartos dos proprietários de cativos ocupados na agricultura
declararam esses produtos, e seus escravos compunham cerca da metade da força de trabalho cativa empregada na
agricultura. Nesse mesmo ano, se incluirmos todos os proprietários de escravos, mesmo os que não se dedicavam à
agricultura, os que produziam ‘alimentos’ ainda compunham metade do total de senhores e controlavam 40% dos
escravos” (LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbet. Escravidão africana na produção de alimentos. São Paulo no
século XIX. In: Estudos Econômicos, v. 40, n. 2, 2010, p. 297).
49
FRAGOSO, João. Op. cit., p. 135-137.
50
GUTIÉRREZ, Horácio. Fazendas de gado no Paraná escravista. Topói, v. 5, jul-dez, 2004, p. 102-127.
51
SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001, p. 144-146.
52
Como já demonstraram OSÓRIO, Helen. Op. cit.; SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e sociedade do
Rio Grande do Sul, século XVIII. São Paulo, Editora Nacional, 1984; CORSETTI, Berenice. Estudo da
charqueada escravista gaúcha no século XIX. Dissertação de Mestrado, UFF, 1983.
43
cresceram, respectivamente, 4% e 10% anualmente. 53 O charque e a farinha, como é sabido,
eram componentes básicos da dieta das camadas populares livres e dos escravos.

Todas estas capitanias do centro-sul tinham parte de sua produção destinada ao


abastecimento das suas vilas litorâneas e, em particular, do Rio de Janeiro. A capitania
fluminense, cuja população saltou de 168.849 habitantes, em 1789, para 591.000, em 1830 (um
crescimento de 250%) havia tornado-se um significativo mercado para os gêneros produzidos
pelas outras capitanias do centro-sul. Mesmo antes da vinda da Família Real, em 1808, o Rio já
recebia vultosas remessas de alimentos, tanto por vias terrestres quanto fluviais e marítimas. No
entanto, após a instalação da Corte no Rio de Janeiro e o incremento populacional decorrente da
mesma, a demanda por tais gêneros aumentou mais ainda. 54

O mesmo ocorreu com o tráfico atlântico, que após a abertura dos portos, em 1810, viu
as suas entradas praticamente dobrarem. Entre 1799 e 1821, a população da Corte aumentou em
160% e, em 1830, cerca de 16.807 escravos perfaziam 43% da população urbana. 55 Portanto, o
Rio de Janeiro havia se tornado um mercado com enorme capacidade de consumo de alimentos,
estimulando a produção e o comércio de abastecimento não apenas nos municípios fluminenses,
como também das capitanias vizinhas e até mesmo de outros países. Nesta época, mas
sobretudo no meado do oitocentos, argentinos e uruguaios, também grandes produtores de
charque, disputaram de forma acirrada com os sul-rio-grandenses o mercado consumidor
fluminense, como demonstrarei em capítulos posteriores.

Foi neste contexto envolvendo o crescimento populacional fluminense que Minas Gerais
se consolidou como uma das grandes produtoras de alimentos do centro-sul. Desde os escritos
de Alcir Lenharo, passando por outros importantes historiadores, a imagem de Minas Gerais
como uma economia decadente, no intervalo entre a crise da mineração e a expansão cafeeira,
foi sendo substituída por um outro quadro economicamente mais complexo e dinâmico. 56 As
principais contribuições destes autores foi demonstrar que uma economia não exportadora,
baseada no comércio de alimentos para o mercado interno, tanto no interior de Minas, quanto
para outras localidades, como a Corte, também podia possibilitar uma notável acumulação

53
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Florentino. Op. cit., p. 95-96; 111.
54
LENHARO, Alcir. Op. cit.
55
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Florentino. Op. cit., p. 93-95.
56
MARTINS, Roberto. Op. cit.; ALMEIDA, Carla. Op. cit.; CARRARA, Ângelo. Op. cit.; SLENES, Robert. Os
múltiplos de porcos e diamantes: E economia Escrava de Minas Gerais no século XIX. Estudos Econômicos. São
Paulo. V. 18, n. 3. p. 449- 495. Set.-dez. 1988; PAIVA, Clotilde. População e economias Minas Gerais do século
XIX. Tese doutorado. USP,1996; LIBBY, Douglas. Transformação e Trabalho em uma economia escravista.
Minas Gerais século XIX. São Paulo. Brasiliense: 1988; GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. A princesa do Oeste
e o Mito da decadência de Minas Gerais. São João Del Rei (1831-1888). Editora Annablume. São Paulo. 2002.
44
mercantil que favoreceu o tráfico de escravos para a região, tornando-a a província com o maior
número de cativos no Império.57 Além da cultura do milho, Minas destacou-se bastante pela sua
exportação de toucinho. O incremento de sua economia no colonial tardio possibilitou o
surgimento de uma elite regional ligada ao comércio de abastecimento e que teve importante
proeminência política e econômica ao longo do oitocentos.58

Analisando o comércio de alimentos nas mencionadas capitanias/províncias do centro-


sul e o processo de acumulação que se constituiu no interior deste mercado interno regional,
Fragoso considerou que os mesmos formavam um mosaico de formas não capitalistas de
produção. No centro deste sistema econômico estavam os comerciantes de grosso trato do Rio,
movimentavam tanto a exportação/importação de mercadorias, quanto o comércio de
cabotagem (que envolvia o abastecimento de farinha e charque, por exemplo), além de serem os
principais agentes no tráfico atlântico de escravos. Portanto, se a reprodução social das
plantations dependia da ampliação das áreas de cultivo de gêneros alimentícios, ambas
necessitavam do capital e do crédito assegurado por estes comerciantes, cujas negociações lhes
possibilitavam uma notável acumulação endógena, também realizada na dinâmica do mercado
interno. O período colonial tardio foi o momento onde este sistema encontrou o seu mais
maduro e pleno funcionamento.59

Como foi mencionado, este mosaico também envolvia o Rio Grande do Sul, que, por
conta das remessas de couros e charque e do crescente consumo de bens manufaturados,
constituiu-se num dos maiores parceiros comerciais do Rio de Janeiro. “Somente a soma das
reexportações de tecidos do Rio para o Rio Grande do Sul em 1810, 1811 e 1812
(1:602:984$910 réis) correspondia a 52% de tudo que se importou de Portugal ao longo destes
três anos”. As divisas deste comércio provinham das crescentes quantias de trigo, couros e
charque que o Rio Grande vinha exportando desde os fins do setecentos. Entre 1799 e 1822, por
exemplo, as exportações de charque do Rio Grande para o Rio cresceram 249%.60

Apesar da notável capacidade de acumulação nesta rede de abastecimento no interior de


um mercado interno, ainda restrito e bastante regionalizado, que caracterizou o centro-sul da

57
Uma revisão mais aprofundada da contribuição destes e de outros autores pode ser vista em ANDRADE,
Leandro Braga. A formação econômica de Minas Gerais e a perspectiva regional: encontros e desencontros da
historiografia sobre os séculos XVIII e XIX. Caderno Caminhos da História, v. 6, p. 1-19, 2010.
58
Ver, por exemplo, LENHARO, Alcir. Op. cit.; ANDRADE, Marcos F. de. Elites regionais e formação do
Estado imperial brasileiro: Minas Gerais, Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2007; RESENDE, Edna. Ecos do Liberalismo: ideários e vivências das elites regionais no processo de construção
do Estado Imperial, Barbacena (1831-1840). Tese de Doutorado PPG-História da UFMG, 2008.
59
FRAGOSO, João L. R. Algumas notas sobre a noção de “colonial tardio” no Rio de Janeiro: um ensaio sobre a
economia colonial. Locus - Revista de História, Juiz de Fora, v. 6, n. 10, 2000.
60
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Florentino. Op. cit., p. 95-96.
45
colônia, pesquisas posteriores ao modelo oferecido por Fragoso colocaram o comércio do Rio
Grande do Sul numa posição menos circunscrita ao mercado consumidor fluminense, no que
diz respeito, ao menos, às exportações de charque. Conforme Helen Osório, entre 1802 e 1819,
a Bahia foi a maior compradora do charque sulino, tendo sido ultrapassada pelo Rio em 1820-
1821. No entanto, somadas as exportações para a Bahia e o Pernambuco nestes dois últimos
anos, constata-se que o Rio não foi responsável pela maior parte do charque exportado.
Portanto, neste período os portos do nordeste sempre foram os compradores da maior parte do
charque fabricado no Rio Grande.61

Examinando outros dados estatísticos para as décadas 1820 e 1840, verifiquei que esta
tendência se manteve ao longo do período, ou seja, mesmo com o café ultrapassando o açúcar
na pauta das exportações brasileiras, o charque rio-grandense continuou tendo seu principal
mercado consumidor nas plantations açucareiras do nordeste.62 Tais índices, no entanto, apesar
de demonstrarem uma maior autonomia da economia charqueadora em relação ao Rio de
Janeiro, não desatam o Rio Grande dos mecanismos de acumulação internos e das redes de
abastecimento do centro-sul. Se as exportações de charque não tiveram o Rio como principal
mercado, as remessas de couro foram quase que exclusivamente direcionadas para o sudeste e
as importações rio-grandenses, de manufaturados, mas, principalmente de escravos, tinham na
praça carioca o seu principal centro de fornecimento.63 Portanto, o Rio era e continuou sendo o
principal parceiro comercial do Rio Grande, mas quando se tratava de negócios envolvendo o
charque outras regiões se apresentavam como as principais compradoras do produto. Esta
constatação é de grande importância para a análise da formação e da decadência do complexo
charqueador escravista pelotense, mas, por enquanto, observarei a primeira etapa mencionada.

1.2 - A CRISE DAS OFICINAS DE CARNE-SECA DO NORDESTE E A ENTRADA DO


RIO GRANDE DO SUL NO RAMO DOS NEGÓCIOS

Se as plantations do sudeste eram abastecidas pelos produtores de alimentos que


compunham o mosaico de regiões produtoras descrito acima, suas correspondentes no nordeste
da colônia também pareciam apresentar uma estrutura semelhante. Paralelamente à expansão
das lavouras de cana e dos engenhos de açúcar, regiões inteiras na Província da Bahia e em

61
OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 200.
62
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Fundo Fazenda, m. 482.
63
Como demonstraram OSÓRIO, Helen. Op. cit.; BERUTE, Gabriel S. Dos escravos que partem para os portos
do sul: características do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790- c. 1825. Dissertação de
Mestrado. PPG-História da UFRGS, 2006.
46
Pernambuco, por exemplo, constituíram-se em produtoras de alimentos tanto para as vilas e
cidades próximas, quanto para as grandes unidades escravistas açucareiras.

Na Bahia, por exemplo, no próprio Recôncavo existiam sítios produtores de farinha e


outros gêneros destinados ao consumo dos engenhos, além dos lavradores de cana, que também
dedicavam-se parcialmente aos mesmos. No sul do Recôncavo, tanto as unidades fumageiras
como as cafeeiras também cultivavam gêneros alimentícios, negociando seus excedentes. Em
municípios mais afastados, a lavoura de mandioca tomava proporções ainda maiores,
misturando-se com as plantações de outros produtos em menor escala, como arroz, feijão e
outros legumes. Mas deste leque de mercadorias, a farinha é a que possuía o maior destaque no
comércio de alimentos.64 Em Pernambuco, pesquisas recentes demonstram que as regiões do
agreste e do sertão, de longe as que produziam mais alimentos para o abastecimento dos
engenhos e do litoral, concentravam algo entre 30% e 40% dos escravos da capitania. O sertão
tinha na criação de gado a sua principal atividade econômica e o agreste, por sua vez, além de
destacar-se pelas plantações de algodão, possuía uma importante lavoura de gêneros.65

No entanto, como as formações sócio-econômicas das regiões sudeste e nordeste eram


distintas, a estrutura agrária produtora de alimentos de ambas também acabava se
diferenciando. Conforme Luna e Klein, a expansão açucareira no oeste paulista, por exemplo,
deu-se de forma diversa da que ocorreu no Recôncavo baiano. Em São Paulo, as plantações de
cana não aderiram à pratica da monocultura e suas áreas de plantio eram conjungadas com
espaços reservados à produção de alimentos, como o milho, o arroz, o feijão, além da criação de
porcos. Assim sendo, os proprietários dificilmente deixavam de continuar a dedicar parte de
suas terras, capitais e mão de obra à lavoura de alimentos. O arroz, por exemplo, era geralmente
cultivado em unidades não especializadas e em meio a outras culturas, incluindo o açúcar e o
café. Em 1836, “mais da metade da produção de arroz proveio de unidades agrícolas que
também produziram café e/ou açúcar”. Mesmo fora destas unidades, “o arroz foi
crescentemente um produto cultivado com mão de obra escrava em todas as partes”. Neste
mesmo sentido, o feijão também era plantado em unidades heterogêneas junto com as fazendas
de criação e os engenhos de açúcar. As propriedades açucareiras com mais escravos também
eram as que cultivavam a maior parte do feijão paulista. Portanto, São Paulo integrou-se ao

64
BARICKMAN, Bert. Op. cit., p. 301-303.
65
VERSIANI, Flávio; VERGOLINO, José Raimundo. Riqueza no Agreste e Sertão de Pernambuco (1777-1887).
Estudos econômicos, São Paulo, v. 33, n. 2, abr-jun, 2003, p. 353-393.
47
mercado internacional sem deixar de ser uma grande produtora de alimentos, esboçando uma
estrutura agrária mais equilibrada com relação a isto.66

Em contrapartida, a estrutura agrária e escravista das plantations nordestinas era


distinta. A média nas unidades açucareiras do Recôncavo baiano, por exemplo, era de 65
cativos, mas o tamanho mais comum dos plantéis ficava entre 60 e 100 escravos, e 1/3 deles
pertenciam a propriedades com mais de 100 cativos.67 Em Pernambuco, Eisenberg encontrou
uma média de 55 cativos nos anos 1840 e de 70 em Jaboatão (um dos distritos açucareiros mais
ricos), nos anos 1850. As maiores propriedades também tinham mais de 100 escravos, com
algumas ultrapassando os 300.68 Apesar de também possuírem engenhos com mais de 100
trabalhadores, a média de escravos no Rio e em São Paulo era de 30 cativos, ou seja, menos da
metade das unidades produtivas do nordeste. Além disso, conforme Schwartz, o uso da terra nas
unidades baianas era mais extensivo e os senhores de engenho buscavam reservá-las somente
ao plantio da cana, recusando-se a produzir gêneros alimentícios em sua fazendas. 69 O Rio de
Janeiro, por sua vez, estava mais próximo de São Paulo no que diz respeito ao tamanho dos
plantéis e mais semelhante às unidades açucareiras do nordeste no que diz respeito à produção
de alimentos. De acordo com Fragoso e Florentino, nenhuma das plantations açucareiras
fluminenses com mais de 100 cativos produzia alimentos.70

Tendo em vista que os grandes plantadores paulistas não abriram mão da produção de
gêneros para o abastecimento, pode-se deduzir que as suas áreas reservadas para o plantio da
cana também possuíam dimensões menores. Isto pode ajudar a explicar os ritmos de produção
de ambos os setores agroexportadores. De acordo com Schwartz, a produção açucareira de São
Paulo era minúscula se comparada à nordestina. Em 1808, por exemplo, a Bahia exportou 20
mil caixas de açúcar, Pernambuco 14 mil, o Rio 9 mil e São Paulo apenas 1 mil. 71 O número
levemente superior de engenhos e a maior média de cativos por unidade induz a pensar que as
capitanias do nordeste possuíam uma maior proporção de escravos nas áreas açucareiras do que
as do sudeste.72 Soma-se a isso o fato de que mesmo com o boom do tráfico na década de 1810,
a população cativa do sudeste não superou a do nordeste no período. De acordo com a Tabela
1.1, enquanto o nordeste (incluindo a Bahia) concentrava 51,2% dos escravos, o sudeste detinha

66
LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Op. cit. 2010, p. 312.
67
Idem., 2005, p. 63-67.
68
EISENBERG, Peter. Op. cit., p. 169.
69
SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., 1988.
70
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit.
71
No entanto, o açúcar compunha a metade das exportações paulistas (SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., p. 347).
72
Além disso, no Rio de Janeiro as fazendas de café já estavam se proliferando pelo Vale do Paraíba, atraindo
muitas levas de escravos, inclusive dos engenhos.
48
37,2% dos mesmos. Conforme Fragoso, este perfil demográfico só se alternaria na passagem da
primeira para a segunda metade do século XIX.73

Tabela 1.1 – População livre e escrava por capitanias (1819)

Capitanias Total Livres Escravos

Amazonas 19.350 13.310 6.040


Pará 123.901 90.901 33.000
Maranhão 200.000 66.668 133.332
Piauí 61.226 48.821 12.405
Ceará 201.170 145.731 55.439
Rio G. do Norte 70.921 61.812 9.109
Paraíba 96.448 79.725 16.723
Pernambuco 368.465 270.832 97.633
Alagoas 111.973 42.879 69.094
Sergipe 114.966 88.783 26.213
Bahia 477.912 330.649 147.263
Goiás 63.168 36.368 26.800
Mato Grosso 37.396 23.216 14.180
Minas Gerais 631.885 463.342 168.543
Espírito Santo 72.845 52.573 20.272
Rio de Janeiro (e Corte) 510.000 363.940 146.060
São Paulo 238.323 160.656 77.667
Paraná 59.942 49.751 10.191
Santa Catarina 44.031 34.859 9.172
Rio Grande do Sul 92.180 63.927 28.253

Total 3.596.102 2.488.743 1.107.389


Fonte: IBGE. Estatísticas históricas do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, v. 3, 1987, p. 30

Portanto, o mencionado crescimento populacional que marcou o colonial tardio, assim


como o aumento da entrada de escravos africanos e o desenvolvimento dos setores
agroexportadores, fez crescer enormemente a demanda por gêneros alimentícios. Já fiz
referência de como o Rio de Janeiro estava muito bem abastecido por uma grande e
diversificada rede mercantil. No nordeste, este setor da economia também teve importância
fundamental na sustenção da ampliação das plantations. No entanto, conforme atestam diversos
autores, esta região parece ter sofrido maiores reveses se comparada ao sudeste, tanto no
abastecimento de farinha, quanto no de carnes. Não é necessário realizar um inventário das
crises de abastecimento naquela região. 74 No entanto, uma delas, em particular, é de

73
FRAGOSO, João Luis. O Império escravista e a República dos plantadores: a economia brasileira no século
XIX: mais do que uma plantation escravista exportadora. In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do
Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1990.
74
Ver, para isso, REIS, João José; AGUIAR, Márcia G. D. de. “Carne sem osso e farinha sem caroço”: o motim de
1858 contra a carestia na Bahia. Revista de História, São Paulo, n. 135, 2º sem., 1996, p. 133-160; SOUSA,
Avanete Pereira. Poder local, crises de subsistência e autonomia camarária (Salvador, século XVIII). Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História, São Paulo, 2011, p. 1-10; SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., 1988.
49
fundamental importância para a compreensão do presente objeto de pesquisa, pois abriu um
espaço de consumo notável para o charque sul-rio-grandense.

Até a década de 1780, as unidades açucareiras do nordeste contaram com uma pujante
rede mercantil que as abastecia de carne-seca. Não custa lembrar que este produto constituia-se
na principal proteína na dieta dos escravos e que as unidades açucareiras nordestinas, onde
praticamente não se produzia alimentos e concentravam-se as maiores escravarias da colônia,
formavam um espaço econômico cujo potencial de consumo era notável. Durante todo o século
XVII e as primeiras décadas do XVIII, o abastecimento de carne tanto das vilas litorâneas
quanto dos engenhos de açúcar era realizado quase que exclusivamente por meio do comércio
de tropas que atravessavam o sertão em direção às regiões de consumo, complementando a
produção local. Nesta rota terrestre, Goiás, Piauí, Ceará e o interior da Bahia e de Pernambuco
foram os principais espaços pecuaristas fornecedores de gado.75

No entanto, o transporte de tropas que atravessava o sertão era penoso e, em épocas de


estiagem, o gado chegava muito magro, desagradando os consumidores e trazendo prejuízo aos
criadores. Embora a técnica de salgar as carnes para conservá-las já fosse conhecida e realizada
artesanalmente, por volta da década de 1730, em Aracati (no Ceará) alguns comerciantes
projetaram erguer oficinas de carne-seca às margens fluviais que levavam ao Atlântico. Com o
tempo, a região destacou-se como grande produtora de carne-seca e além do próprio Ceará, as
capitanias do Maranhão e do Rio Grande do Norte tiveram suas “salgadeiras”, mas ambas não
chegaram perto dos montantes exportados pelo Piauí, que tinha na vila de Parnaíba o seu
principal pólo produtor.76 Além de abastecer as capitanias da Bahia e de Pernambuco, a carne-
seca do sertão também era remetida para as Minas Gerais. 77

A proliferação destas fábricas, no início pequenas, mas, na segunda metade do


setencentos, de maiores dimensões e com grande uso de mão de obra cativa, foi um negócio que

75
GIRÃO, Valdelice C. As charqueadas. Revista do Instituto do Ceará, 1996, p. 71-92; ROLIM, Leonardo.
“Tempo das carnes”: no Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na Vila de Santa
Cruz do Aracati (c. 1690 – c. 1802). Dissertação de Mestrado, UFPB, 2012; REGO, Júnia Napoleão do. Dos
sertões aos mares: história do comércio e dos comerciantes de Parnaíba (1700-1950). Tese de Doutorado, UFF,
2010; BARICKMAN, Bert. Op. cit., p. 90.
76
No Ceará, o Vale do Jaguaribe tornou-se o principal núcleo de fabricação de carne-seca, envolvendo as
localidades de Icó, Granja, Sobral, Camocim e Aracati. No Piauí, destacou-se a vila de Parnaíba, como a principal
produtora. Para ela eram encaminhados os numerosos rebanhos da capitania, além de tropas vindas do Maranhão.
No Rio Grande do Norte, Assú e Mossoró também tiveram suas oficinas, mas destacaram-se muito mais como
fornecedoras de sal do que de carne-seca (ROLIM, Leonardo. Op. cit.; GIRÃO, Valdelice. Op. cit.; REGO, Júnia
do. Op. cit). Conforme Rolim, o surgimento das oficinas no sertão não excluiu a permanência do comércio de
tropas para o litoral (ROLIM, Leonardo. Op. cit., p. 68).
77
CARRARA, Ângelo. Op. cit.
50
beneficiou todos os setores econômicos desde a criação dos animais até os consumidores.78
Com o surgimento das oficinas, os fazendeiros não precisavam mais encaminhar seus rebanhos
em custosas viagens que duravam dias e que eram danosas demais para os animais. Além disso,
o ritmo de abate das oficinas garantia a regularidade da demanda e bons preços pagos pelo
gado. Os proprietários das charqueadas, por sua vez, tinham um acesso facilitado tanto aos
rebanhos, quanto às vias fluviais, além de poderem contar com um mercado consumidor
estável. Os comerciantes, dentre os quais estavam muitos dos próprios charqueadores,
garantiam o fornecimento de mão de obra cativa, de sal (vindo, principalmente, do Rio Grande
do Norte) e expandiam seus negócios cada vez mais, levando os carregamentos, inclusive, até o
Rio de Janeiro. Na ponta final da cadeia, os senhores de engenho alimentavam a sua escravaria
com um produto barato, pronto para o consumo e com melhores condições de conservar-se
estocado. Além disso, as populações mais pobres também eram atendidas pelo produto. Estes
complexos charqueadores nordestinos funcionaram bem por cerca de 50 anos, trazendo grande
prosperidade para as suas regiões de produção.79

No entanto, este capítulo da história econômica do nordeste do Brasil teve um final um


tanto trágico. As secas de 1777 e de 1791-92 desfeixaram duros golpes na indústria cearense,
trazendo também, principalmente na segunda delas, a crise até as fábricas do Piauí. A morte de
milhares de cabeças de gado resultou na decadência irreversível do setor, abrindo um espaço no
mercado para um núcleo charqueador que ainda estava no início de seu processo de montagem.
Desde a década de 1780, como demonstrarei a seguir, o Rio Grande do Sul já remetia
significativas quantias de charque para o Rio de Janeiro. No entanto, como o sudeste estava
muito bem abastecido pela mencionada pecuária paulista e paranaense, além do comércio de
toucinho mineiro para o Rio, o charque rio-grandense encontrava muitos concorrentes nesta
região. A desgraça que assolou as propriedades cearenses e piauienses ofereceu um novo
mercado para a remessa do produto, que vinha enfrentando uma baixa de preços na praça
carioca, no final da década de 1780.80

Valdelice Girão considera que não foram somente as secas as responsáveis pela
decadência da indústria de carne-seca cearense. Quando os reveses causados pelas secas foram
78
Conforme Leonardo Rolim, é provável que nas primeiras décadas de funcionamento das oficinas a mão de obra
utilizada fosse a indígena. Com a proibição da escravização do indios, em 1759, e o consequente auge das
exportações de carne-seca, grandes levas de escravos teriam sido remetidas para o Ceará fazendo com que a sua
população ultrapassasse a do Rio Grande do Norte e a da Paraíba, entre as décadas de 1760 e 1770. A mão de obra
escrava era combinada com o uso de trabalhadores livres (ROLIM, Leonardo. Op. cit., p. 129-133).
79
Sobre a ostentação de riqueza dos proprietários ver GIRÃO, Valdelice. Op. cit.; REGO, Júnia do. Op. cit.
80
Além dos baixos preços pagos pelo charque no Rio, os comerciantes rio-grandenses reclamavam do monopólio
praticado pelos cariocas e da precária distribuição na cidade e nos seus subúrbios, fazendo com que o produto se
acumulasse nos armazéns (OSÓRIO, Helen. Op. cit.).
51
superados, um outro processo de expansão agrícola já havia se iniciado naquelas paragens. A
febre do algodão nas terras ao norte da colônia, motivada pelos altos preços alcançados pelo
produto no mercado europeu (eles chegaram a dobrar, entre 1770 e 1800), despertou o
interesse de muitos fazendeiros. Por conta disso, os lucros com o cultivo do algodão passaram a
ser maiores do que os obtidos com o açúcar, fazendo com que muitos plantadores migrassem de
cultura.81 No Ceará, o mesmo teria ocorrido com relação à pecuária, pois o cultivo do algodão
começou a tomar o espaço dos antigos currais. Somado aos altos preços do algodão, tem-se
ainda o fato de que os investimentos nesta lavoura exigiam baixos custos e uma menor mão de
obra se comparados ao açúcar. Além do mais, o algodão convivia muito bem com o plantio de
outros gêneros alimentícios, o que não comprometia em demasia a subsistência local. Com a
expansão das fazendas de algodão e a consequente diminuição das áreas de pastagens, teria
havido uma queda da oferta de gado para o comércio, ao ponto de desestimular novos
investimentos e inviabilizar a recuperação da já arruinada indústria da carne-seca.82

Na década de 1790, diante dos problemas enfrentados pelas oficinas de carne-seca do


Ceará e do Piauí, o charque do Rio Grande do Sul entrou de vez no mercado nordestino. A
produção sulina não sofria com as recorrentes secas, o que se tornava uma vantagem, pois
garantia um abastecimento mais regular. Além disso, a economia rio-grandense passava por
uma expansão notável e continuaria neste ritmo nas primeiras décadas do oitocentos. Portanto,
mesmo recuperando-se dos reveses climáticos, era difícil para a indústria nordestina competir
com o charque sulino, pois este era negociado em vultosas quantidades, com um preço acessível
e era capaz de suprir boa parte da demanda de uma economia açucareira onde o número de
engenhos e escravos vinha em nítido crescimento. Em 1787, quando o Rio Grande do Sul ainda
não exportava charque para o nordeste, suas remessas totalizaram 117 mil arrobas (exclusivas
para o Rio). No entanto, com a entrada do mercado nordestino nas transações, o Rio Grande
ultrapassou as 400 mil arrobas exportadas em 1793 e as 500 mil arrobas em 1797. Na década de
1800, a capitania exportou uma média anual de 820 mil arrobas, das quais mais da metade
tinham como destino os portos do nordeste.83 Conforme Caio Prado Júnior, em sua análise

81
RIBEIRO JR., José Ribeiro. A economia algodoeira em Pernambuco: da Colônia à Independência. Revista
Brasileira de História. São Paulo, set. 1981, p. 235-242. Tal fenômeno fez com que, em Pernambuco, o valor das
exportações algodoeiras chegassem a ultrapassar os altos índices atingidos pelo açúcar (ALDEN, Dauril. Op. cit.,
p. 564-568). A expansão algodoeira em Pernambuco e nas capitanias vizinhas fez aumentar a demanda por carne-
seca. Mas antes disso, teve um efeito perverso, pois braços e terras antes destinados à lavoura de gêneros, entraram
no ciclo do algodão provocando crises alimentares na região (ROLIM, Leonardo. Op. cit., p. 182-183).
82
GIRÃO, Valdelice. Op. cit.; ROLIM, Leonardo. Op. cit., p. 179-180.
83
Conforme Júnia do Rego, na década de 1780, as regiões que concentravam a produção do charque no Ceará
abatiam uma média anual de 50 mil cabeças de gado, enquanto Parnaíba, no Piauí, destinava 40 mil reses para o
mesmo fim (REGO, Júnia do. Op. cit). Um atento observador declarou que o gado na Ilha de Marajó rendia 3
52
sobre a expansão do setor no colonial tardio, “excluído o rush do ouro, não se assistira ainda na
colônia a tamanho desdobramento de atividades”. 84 Além disso, o circuíto mercantil Rio
Grande do Sul – Bahia – Pernambuco era estimulado pelos próprios comerciantes dos portos de
Salvador e Recife, que aproveitavam as embarcações vindas do Sul para carregá-las de açúcar,
fumo, aguardente, escravos e sal, com destino ao Rio Grande 85 – o que provavelmente lhes
forneciam lucros maiores do que os ganhos no comércio com o Ceará e o Piauí, por exemplo.

Portanto, o charque sul-rio-grandense além de preencher um mercado aberto pelas crises


das charqueadas nordestinas, constituía-se numa fonte de grandes lucros aos comerciantes que
realizavam seus negócios pelas margens do Atlântico e aos que investiram seus capitais no setor
produtivo. O alimento havia se tornado uma fonte de proteínas necessária para o abastecimento
dos engenhos e da população pobre de Salvador e Recife e teve no capital mercantil de ambas
as regiões os seus impulsionadores. Pode-se dizer que sem esta rede de abastecimento, que
agora ocorria entre capitanias de um extremo ao outro da América Portuguesa, a continuidade
da expansão das plantations açucareiras do nordeste teria encontrado dificuldades. Mas também
é necessário considerar que foi a ampliação das escravarias durante o processo de montagem
das plantations no colonial tardio que criou as bases fundamentais para que o complexo
charqueador escravista pelotense fosse criado.

Portanto, é importante que se considere que a mencionada ampliação das plantations,


antes e durante o colonial tardio, foi favorecida por fatores políticos e econômicos de ordem
interna e externa e que devem ser vistos de forma conjugada. É certo que esta expansão
respondeu aos estímulos do mercado internacional e que os reveses conjunturais enfrentados
pelos produtores concorrentes tiveram importante papel no seu desenvolvimento. No entanto,
nunca é demais lembrar que se tratava de uma fase B do ciclo de Kondratieff, ou seja, boa parte
do período aqui analisado foi marcada por conjunturas internacionais de baixa de preços.
Portanto, para que os balanços das empresas cafeicultoras e açucareiras fossem favoráveis aos
seus proprietários, o lucro deveria ser mantido na ampliação do volume das mercadorias
exportadas. Tal operação seria viável aumentando as áreas de plantio e o volume de mão de

arrobas de charque (Ofício de Francisco de Souza Coutinho a Martinho de Melo e Castro (Pará, 11.10.1792).
Coleção Carvalho, Seção Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). Contudo, no Rio Grande do Sul ele
podia render de 4 a 4,5 arrobas. Caso cada animal rendesse em média 4 arrobas de carne-seca, o Piauí e o Ceará
juntos teriam fabricado algo entre 350 e 400 mil arrobas anuais de carne-seca. No entanto, parte deste charque
ficava para o consumo local e outra parcela era exportada para o Maranhão, o Pará, o Rio de Janeiro, além de
capitanias menores. Tendo em vista as sempre existentes oscilações, é possível considerar que na passagem do
século XVIII para o XIX, o Rio Grande já era capaz de suprir os montantes exportados pelas oficinas do sertão,
pois remeteu, anualmente, algo entre 400 a 500 mil arrobas para a Bahia e o Pernambuco.
84
PRADO JR., Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1977, p. 103.
85
OSÓRIO, Helen. Op. cit.
53
obra empregada (ou da produção por escravo).86 Esta ampliação, ao mesmo tempo em que era
favorecida pela notável oferta de alimentos, constituía-se num estímulo ao crescimento da
produção destes mesmos gêneros. A reprodução socioeconômica das plantations em áreas de
fronteira dependia do contínuo fluxo de escravos, financiado pelo capital mercantil atlântico, e
do comércio de alimentos, oriundos de unidades produtivas com grande presença de escravos.
Os baixos custos da terra, da mão de obra e dos alimentos possibilitaram esta ampliação.87

Neste sentido, os gastos para o sustento dos escravos constituía-se numa preocupação
central para os proprietários de plantations. Segundo Fragoso, por volta de 1830, cerca de ¼
das despesas dos grandes cafezais do vale do Paraíba do Sul se constituía em gêneros para os
escravos. No século XVIII, nas plantações beneditinas da Bahia, tal índice chegava a 30%. 88
Assim sendo, os senhores de engenho podiam não conhecer as teorias econômicas mais
elementares, mas sabiam muito bem que seus trabalhadores precisavam se alimentar e que a
ampliação de sua empresa dependia de um regular abastecimento a baixos custos. Em 1796, por
exemplo, comerciantes baianos realizaram uma representação à Coroa portuguesa solicitando
que fossem cessados os encargos que o contratador dos tabacos vinha impondo sobre o charque
trazido do Rio Grande do Sul. No documento, eles argumentavam que:

(…) o fomento dado à exportação das carnes do Rio Grande por esta Praça e pelas
mais deste Continente em que se empregam acima de 140 sumacas de muitas mil
arrobas, tem feito baratear pelo seu concurso a subsistência dos pobres escravos. Do
quê resulta a ampliação da cultura do tabaco e açúcar, cujos fazendeiros, animados
pela barateza das carnes, quase único mantimento dos cativos, cada dia se multiplicam
e prosperam, diminuindo-se-lhe os custos da mantensa, que dantes os forçavam a uma
injúria e iniquidade de faltar àqueles desgraçados com o sustento não só abundante,
senão às vezes necessário, servindo tudo para o Régio Erário perceber tão crescidas
vantagens e não menos no Rio Grande, onde além do Dízimo, que se paga do gado em
pé, há o bem sabido tributo do quinto dos couros (…).89

A partir da leitura desta representação fica nítido que o estímulo aos plantadores não
provinha somente dos preços no mercado internacional. A oferta de alimentos baratos (que
viabilizava a montagem dos engenhos e a ampliação das áreas de plantio) era entendida pelos
contemporâneos como um fator primordial para a ampliação, a multiplicação e a prosperidade

86
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit. Em São Paulo, a média dos cativos nas fazendas de café
expandiu-se a partir dos finais da década de 1820 (LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Op. cit., 2005, p. 88).
Este fenômeno deu-se justamente numa época em que os preços do café estavam em baixa. “Há quem afirme que a
queda das cotações externas dos produtos exportados era compensada pela desvalorização cambial, permitindo aos
fazendeiros deter parcela expressiva de moeda nacional. Contudo, mesmo em mil-réis, o café, por exemplo,
registrou uma queda anual de 2% entre 1821 e 1833, e de 1,4% entre este último ano e 1849. O que de fato ocorria
é que a empresa escravista exportadora enfrentava a queda dos preços internacionais pela multiplicação da
produção” (FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 125).
87
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit.
88
FRAGOSO, João. Op. cit., p. 180.
89
AHU-ACL-CU-019, Cx. 4, D. 318 (Projeto Resgate). Grifos meus.
54
– termos utilizados pelos comerciantes –, das unidades açucareiras e da própria economia
colonial. Os fazendeiros e senhores de engenhos animavam-se com a barateza das carnes. Além
disso, se por um lado a representação dos comerciantes baianos foi assinada em uma conjuntura
de aumento da demanda internacional do açúcar, a produção estava sendo ameaçada pela
drástica queda na oferta da carne-seca do nordeste. Ora, foi nesta conjuntura (1791-1805) que
as exportações do charque rio-grandense cresceram quase 250%, substituindo as remessas do
Ceará e Piauí e trazendo ânimo aos produtores. A ampliação das unidades escravistas baianas e
pernambucanas, abastecidas pelo charque pelotense, colocou o Brasil na posição de maior
produtor de açúcar do mundo.

Portanto, concordando com Schwartz, o crescimento das exportações de açúcar “não se


deveu apenas à revolução haitiana e às oportunidades por ela criadas, por mais importante que
tenha sido esse evento”.90 Uma vigorosa rede de abastecimento regional e o contínuo fluxo de
escravos financiado pelo capital residente dos principais portos luso-brasileiros foram
fundamentais neste processo. Além disso, segundo Schwartz, embora o governo de Pombal
tenha realizado melhoramentos econômicos que tiveram um alcance limitado, “as sementes do
futuro foram quase literalmente deitadas pelos administradores pombalinos”. Reformas
educacionais e institucionais realizadas no Reino foram responsáveis pela formação de uma
geração de burocratas comprometidos com àquelas ideias, que incentivavam os mesmos a
buscarem formas de “aperfeiçoar a economia e o relacionamento colonial”. Buscava-se, a partir
do estudo das técnicas produtivas em outras partes do globo, implantar formas mais modernas
de organização das mesmas, além do aceleramento das atividades mercantis e a dinamização da
produção de alimentos. Em certa medida, estes administradores eram “afilhados intelectuais das
reformas pombalinas”.91

Neste sentido, a indústria charqueadora sul-rio-grandense também foi favorecida pelos


incentivos do governo português, mesmo que, às vezes, de forma indireta e mediada por
comerciantes de grosso trato de outros portos da Colônia. Em 1787, por exemplo, a Rainha D.
Maria I concedeu a sua graça a uma embarcação para que trouxesse trigo do Rio Grande de São
Pedro e deixasse, neste lugar, um carregamento de sal, livre de impostos.92 Na representação
citada anteriormente, onde os comerciantes baianos reclamavam das taxas sobre o charque

90
SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., 1988, p. 347-349.
91
Idem, p. 347-349. Sobre as Reformas Pombalinas ver FALCON, Francisco Calazans. Pombal e o Brasil. In:
MATTOSO, José; TENGARRINHA, José. História de Portugal. Bauru/Lisboa: EDUSC/Instituto Camões, 2001,
p. 227-244. Para um impacto na economia fluminense, ver PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a
economia do Rio de Janeiro na segunda metade do Setecentos. Tese de Doutorado, UFF, 2009.
92
AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, Doc. 296 (Projeto Resgate).
55
remetido para Salvador, os mesmos receberam um parecer favorável, beneficiando a produção e
o seu comércio. As queixas contra o estanco do sal e os altos valores do produto e de suas taxas
marcou a década de 1790 e evitou que a produção de charque crescesse mais ainda. As
reclamações foram se sucendendo, mas, no ano de 1805, os ventos do liberalismo econômico
sopraram naquelas terras, quando findou o monopólio do produto. Com esta medida, as
exportações de charque seguiram crescendo e aumentaram mais ainda na década de 1810,
quando a política expansionista na fronteira com região do Prata, colocada em prática pelo Rei
D. João VI, favoreceu os rio-grandenses no comércio das carnes.93

Os estímulos políticos e a necessidade do provimento de carnes que marcou a década de


1790, também induziram outros administradores ilustrados a implantar uma indústria
charqueadora na Ilha de Marajó, ao norte do Pará. Conforme o Governador Capitão-general
Francisco de Souza Coutinho, num relatório escrito em 1792 e enviado para a Coroa, a Ilha
possuía um importante potencial para que fossem criadas, próximas às margens marítimas,
algumas fábricas de carne salgada em barris com o fim de abastecer a população local e
negociar os excedentes com as capitanias próximas, como o Grão-Pará e o Maranhão. O plano
do ilustrado administrador era construir uma fábrica (ou até duas ou três, como ele frisava)
entregue aos cuidados e vigilância de um inspetor, obrigando todos os criadores de gado da Ilha
a remeter anualmente os seus rebanhos para serem vendidos no novo estabelecimento.
“Empregados”, sob a dita inspeção, realizariam as atividades fabris, “arbitrando-se alguma
pequena quantia para a satisfação dos salários”. A carne de salmoura (ou de moura) seria
vendida em barris, como faziam os irlandeses, em substituição da carne seca da região, cujo
péssimo aspecto e estado de preservação era perigoso para o consumo das classes populares,
segundo o Governador. A Coroa facilitaria o acesso ao sal e o fornecimento dos barris. Estes
deveriam ter a marca da fábrica para evitar as falsificações do produto. Com o funcionamento
desta instalação, a fabricação de carne seca realizada pelos fazendeiros ficaria proibida. 94

No papel, tratava-se de um belo projeto, prevendo o uso de mão de obra assalariada, o


controle da produção, o fortalecimento da rede mercantil e uma melhor higiene no fábrico das
carnes, se comparado às artesanais oficinas do interior. No entanto, o documento não traz
evidências de que este projeto tenha vingado. O seu autor apenas menciona que a “feliz
experiência” com as mesmas carnes salgadas realizadas na própria ilha o havia estimulado.

93
Ver, por exemplo, MIRANDA, Márcia E. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime, fiscalidade e
fronteira na Província de São Pedro (1808-1831). São Paulo: Hucitec, 2009. Esta conjuntura política será tratada
nos capítulos seguintes.
94
Ofício de Francisco de Souza Coutinho a Martinho de Melo e Castro (Pará, 11.10.1792). Coleção Carvalho,
Seção Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
56
Portanto, a carne salgada estava sendo fabricada, mas ainda não em uma grande fábrica nas
proporções desejadas por ele. Conforme Siméia Lopes, no comércio entre o Pará e o Marajó, as
carnes de moura ou salgadas aparecem com frequência como um produto negociado, o que
indica que sua fabricação continuou acontecendo no meado do oitocentos. No entanto, a autora
também traz referências sobre as transações envolvendo a carne seca, ou seja, apesar da
avaliação negativa do Governador Coutinho sobre a péssima qualidade da mercadoria, ela
continuou sendo produzida e remetida para o Pará, no século XIX adentro, demonstrando que
os objetivos do Governador não obtiveram um pleno sucesso.95

Portanto, projetos políticos e econômicos para o período não faltaram. Alguns obtiveram
sucesso, mas outros facassaram. Neste sentido, o governo português buscava interferir da forma
que acreditava ser a melhor para o desenvolvimento das diferentes regiões e para o benefício
dos cofres da Coroa, mas barrava em diversos obstáculos. Um dos principais empecilhos dizia
respeito à própria autonomia das elites coloniais que comportavam-se de acordo com os seus
interesses, sempre tentando jogar com as normatizações vindas do Reino. Elas realizavam seus
próprios cálculos a respeito de quais atividades econômicas seriam as mais propícias e a partir
de quais métodos, práticas e escolhas levariam a cabo as mesmas.

Concluindo este capítulo, podería-se pensar que se não fosse a vigorosa base produtiva
de alimentos que caracterizou a estrutura agrária colonial, a ampliação das plantations teria seu
desenvolvimento fortemente comprometido. Soma-se a isto o fato de que a incorporação de
novas terras para culturas de alimentos e criação de gado tinha no crescimento populacional e
no aumento do número de plantations a garantia de sua manutenção e ampliação, mas não o seu
único fim. É neste sentido que o mercado interno e o externo pareciam se complementar, sendo
que a percepção de onde um favorecia a ampliação do outro é bastante complexa e variável. É
certo que o comércio de importação e exportação (incluindo o tráfico atlântico) era mais
rentável que o setor de abastecimento e que aquele, pode-se dizer, era a principal mola do
crescimento econômico alcançado no colonial tardio. Mas isto não torna o segundo um setor
exclusivamente subsidiário, pobre e dependente das flutuações externas, ou seja, sem nenhuma
autonomia econômica. Ele se alimentou do desenvolvimento da agroexportação, que fez
95
LOPES, Siméia Nazaré. O comércio interno no Pará oitocentista: atos, sujeitos sociais e controle entre 1840 e
1855. Dissertação de Mestrado, UFPA, 2002. Talvez a resposta para isto esteje no próprio Relatório do
Governador. Segundo ele, a economia da Ilha era dominada por grandes fazendeiros possuidores de muitos
escravos e que, por conta disto, roubavam o gado dos pequenos criadores e ditavam as normas costumeiras da
região. Logo, a produção da carne seca lhes beneficiava diretamente, pois eles concentravam grande parcela das
terras, do gado vacum e da mão de obra local. Portanto, a suposta criação de uma fábrica que organizasse todo o
processo desde a produção até o seu comércio e tirasse os lucros daqueles grandes fazendeiros lhes representava
uma ameaça e corria um grande risco de não dar certo (Ofício de Francisco de Souza Coutinho a Martinho de Melo
e Castro (Pará, 11.10.1792). Coleção Carvalho, Seção Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
57
surgirem mercados do nada nas mais distantes hinterlands, ao mesmo tempo que literalmente
alimentou este setor. Portanto, ele também possuía flutuações próprias, uma vez que dado o
arranque inicial agroexportador, fosse em tempos de crise no agro, de dificuldades climáticas
ou de desmontes de engenhos, as pessoas precisavam comer e este era o sentido mais elementar
da produção de alimentos. Assim sendo, a grande capacidade dos colonos do interior em montar
fazendas e lavouras de cultivos de gêneros a baixos custos foi fator fundamental para a
ampliação da agroexportação.

A década de 1810, vislumbrava uma grande participação do açúcar e do algodão nas


exportações brasileiras, colocando o nordeste brasileiro como o mais notável eixo econômico
colonial e concentrador de escravos. A comparação de ambos os espaços econômicos
açucareiros (sudeste e nordeste) e das suas redes regionais de abastecimento demonstra um
notável desequilíbrio, pois a produção de alimentos no centro-sul, além de abastecer as suas
próprias plantations, ainda fornecia alimentos para as unidades açucareiras do nordeste, por
intermédio das remessas do charque sul-rio-grandense.96 Portanto, a especialização demasiada
das plantations açucareiras nordestinas, a decadência das charqueadas do sertão e o seu maior
volume de escravos tornaram a região mais dependente das carnes importadas do sul. No
entanto, uma leitura mais complexa, teria que acrescentar à lógica da demanda a contrapartida
da oferta. Neste sentido, poderia se dizer que a economia charqueadora pelotense, para que
continuasse crescendo, passaria a depender da estabilidade e da ampliação do mercado
nordestino. Havia pelo menos duas formas desta dependência ser quebrada. Ou o nordeste
encontrava uma outra fonte de charque ou o Rio Grande buscava outros mercados
consumidores. Nenhuma das duas acabou acontecendo de forma mais efetiva e, na década de
1880, ambos os complexos escravistas (o charqueador pelotense e o açucareiro nordestino)
entraram em uma profunda crise… de mãos dadas.

96
Quase um século antes, acontecia o inverso. A Bahia é quem abastecia as Minas Gerais com significativas
remessas de mercadorias, envolvendo escravos e gado do sertão nordestino (CARRARA, Ângelo. Op. cit.). Antes
do surgimento das charqueadas rio-grandenses, na década de 1770, o nordeste forneceu elevadas cargas de charque
para as tropas militares estacionadas em Sacramento (ROLIM, Leonardo. Op. cit.).
58
2. A FORMAÇÃO DOS COMPLEXOS FABRIS ESCRAVISTAS EM
PELOTAS E NO RIO DA PRATA A PARTIR DAS REDES SOCIAIS E
MERCANTIS ATLÂNTICAS

Deus fez o alimento, o diabo acrescentou o tempero

James Joyce

Muito antes do surgimento das oficinas de carne seca no nordeste brasileiro e das
charqueadas em Pelotas, o comércio atlântico de carnes preparadas já movimentava centenas de
embarcações e viabilizava, por exemplo, o abastecimento das plantations caribenhas e das
tripulações dos navios europeus. A partir de meados do século XVII, a Irlanda destacou-se na
fabricação e no comércio destes gêneros, dominando o mercado atlântico durante boa parte do
século posterior. No amplo circuíto mercantil do qual os comerciantes irlandeses faziam parte,
o porto de Cork tornou-se o principal pólo fabril de carne salgada dos séculos XVII e XVIII,
desenvolvendo o único sistema bancário considerável na Irlanda. Neste tempo, sua população
multiplicou-se várias vezes, tornando a cidade uma das mais cosmopolitas da Europa.1 Uma
análise rápida do funcionamento deste circuíto mercantil, desde a sua formação até a sua
decadência, é de fundamental importância para compreender o surgimento dos complexos
charqueadores no extremo sul da América, tanto em Pelotas, quanto nas margens do Rio da
Prata – em Buenos Aires e Montevidéu.

Região de vastas pastagens, a Irlanda já remetia seus rebanhos vacuns e barris de carne
salgada para a Inglaterra, mesmo antes da montagem das plantations açucareiras no Caribe.
Enquanto o gado era destinado para o abastecimento da população, as carnes preparadas tinham
na Marinha inglesa a sua principal consumidora. Entre 1663 e 1664, por exemplo, a pequena
ilha exportou mais de 76 mil cabeças de gado para a Inglaterra. Contudo, a crescente
importação de bovinos irlandeses, que caracterizou o conturbado período em que Cromwell
esteve no poder, não vinha agradando os pecuaristas do norte da Inglaterra. Organizados, estes
fizeram intensa pressão sobre o Parlamento britânico e conseguiram que o mesmo promulgasse
leis para interromper a entrada do gado irlandês no Reino. Foram os Cattle Acts, sendo o
primeiro de 1663 (que teve um caráter experimental de seis meses) e o segundo de 1667 (que

1
MANDELBLATT, Bertie. A Transatlantic Commodity: Irish Salt Beef in the French Atlantic World. History
Workshop Journal, n. 63, 2007, p. 26.
59
decidiu pela proibição definitiva das importações). Estas medidas provocaram a baixa dos
preços do gado na Irlanda, o que favoreceu o acesso dos pequenos comerciantes no ramo e a
consequente ampliação do número de fábricas de carne salgada em Cork, Belfast e Dublin 2 –
esta última, cidade natal do escritor James Joyce e onde seu pai também foi comerciante.

O desenvolvimento da indústria das carnes salgadas também estimulou a expansão de


outros ramos da economia atlântica. Como a colocação das carnes no mercado necessitava de
uma grande quantitade de barris, a tanoaria irlandesa cresceu conjuntamente, movimentando a
importação de madeiras, tanto do interior da Irlanda, como de outras regiões (as colônias
inglesas no norte da América, por exemplo). Soma-se a isto, o aumento da demanda por sal –
produto indispensável no preparo das carnes – que tinha como principais fornedores a França, a
Espanha e Portugal. Além de utilizado na salmoura da carne bovina, o sal também era
empregado na salga da carne de porco e na conservação da manteiga, outros dois importantes
produtos exportados pelos irlandeses. 3

Com os Cattle Acts, os rebanhos irlandeses, anteriormente exportados para a Inglaterra,


passaram a alimentar a crescente demanda das novas fábricas de carne. Se no meado do XVII o
mercado consumidor das carnes salgadas ainda era relativamente pequeno, nas décadas
seguintes o crescimento das exportações foi notável. Em 1665, o volume das remessas do
produto dobrou com relação à década de 1640. E em 1683, as exportações duplicaram
novamente com relação aos anos 1660. Conforme Thomas Truxes, esta foi a fase de arranque
da indústria de carnes irlandesa e, entre 1660 e 1688, nenhuma outra mercadoria negociada
pelos portos das ilhas britânicas ultrapassou o volume exportado do produto.4 Tal fenômeno
estava diretamente relacionado ao desenvolvimento do comércio atlântico e à fase inicial da
expansão das unidades açucareiras no Caribe, que provocaram o aumento da entrada de
escravos para a região, assim como de colonos, mercadores e membros da burocracia. 5 Além

2
IOMAIRE, Máirtín Mac Con; GALLAGHER, Pádraic Óg. Irish Corned Beef: a Culinary History. Dublin
Institute of Technology, Articles, 2011, p. 7. Seguindo o vocabulário da época, sempre que me referir às “carnes
salgadas” estarei falando das carnes em barris, também chamadas de carnes de moura ou em salmoura. O charque
ou tasajo (como era chamado no Rio da Prata) diz respeito à carne-seca. Esta também era tratada com o uso do sal,
mas tinha na desitratatação e no seu secamento ao sol as suas formas de conservação.
3
Medidas políticas tomadas pelos irlandeses fizeram com que os mesmos pagassem baixos impostos pelo sal
importado (cerca de 10% do que os ingleses pagavam, por exemplo). Os vínculos mercantis entre Irlanda e
Portugal mantiveram-se fortes ao longo do século XIX. As salinas de Setúbal abasteceram não somente a produção
de carne salgada, como também a fabricação da manteiga irlandesa – produto conhecido em todo o Atlântico
(HORTA, José. O comércio do sal português com a Irlanda no século XIX: uma leitura geográfica. In: Anais do I
Seminário internacional sobre o sal português. Porto: IHM da Univ. do Porto, 2005, p. 297-310).
4
TRUXES, Thomas M. Irish-American Trade (1660-1783). Cambridge University Press, 1988, p. 26-27.
5
MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 26. Conforme Robin Blackburn, a “explosão” do comércio colonial foi
possibilitada por um crescimento anterior das importações de escravos pelas ilhas inglesas. Este incremento
totalizou 263.000 escravos negociados, cuja metade foi remetida para Barbados, secundada pela Jamaica e as Ilhas
60
disso, a disponibilidade de grandes extensões de pastagens férteis e próximas das principais
cidades portuárias irlandesas e a existência de uma rede de transportes interna bem
desenvolvida foram fundamentais para baixar os custos da produção da carne salgada.
Conforme Mandelblatt, a razão para o sucesso da carne irlandesa no mercado caribenho era o
seu baixo custo em relação a outras fontes de abastecimento.6

Passada a fase inicial de expansão, as exportações irlandesas continuaram crescendo ao


longo do século XVIII. Na década de 1710, pela primeira vez elas ultrapassaram os 100 mil
barris anuais. Nas décadas de 1720 e 1730, elas atingiram uma média de 140 a 150 mil barris,
vindo a superar os 200 mil barris nos anos 1760, média que se manteve constante até o início da
década de 1780 e que marcou o auge das exportações irlandesas. A principal causa do boom
ocorrido entre 1710 e 1760, foi a ampliação do setor açucareiro francês. 7 Entre 1715 e 1730, a
população total das Antilhas Francesas e da Guiana duplicou alcançando 195.073 pessoas (dos
quais 160.278 eram escravos negros). Uma geração mais tarde, de acordo com dados de Stanley
Engerman, essa população escrava tinha quase dobrado novamente, chegando, em 1750, a
323.433 pessoas, dos quais 281.658 eram escravos.8 Entre 1718 e 1754, as ilhas francesas
ultrapassaram as inglesas como principais compradoras das carnes em diversos anos, reunindo
algo entre 40% e 60% do total das exportações irlandesas. 9 Em termos de volume, as
quantidades importadas pelas antilhas francesas neste período foram de duas a quatro vezes
superiores aos montantes negociados nos anos 1680.10

Outro fator que favoreceu o desenvolvimento econômico da Irlanda neste período foi a
liberdade comercial que os ingleses ofereciam às suas colônias dentro dos portos que

Leeward. “A população negra das Índias Ocidentais inglesas cresceu de 42% do total em 1660 para 81% em 1700”
(BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no novo mundo: do Barroco ao Moderno (1492-1800). Rio
de Janeiro: Record, 2003, p. 325).
6
MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 26.
7
Dentre as ilhas caribenhas francesas, Santo Domingo superava Guadalupe e Martinica como a principal
consumidora das carnes irlandesas. No seu auge, entre 1763 e 1791, a “pérola das Antilhas” produziu mais lucros
do que qualquer outra colônia caribenha, tornando-se a maior produtora de açúcar do mundo. Com uma enorme
população escrava, Santo Domingo possuía um habitante branco para cada dez negros em seu território
(MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 22).
8
MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 36.
9
Além dos navios mercantis, que negociavam escravos, gêneros alimentícios, tabaco, açúcar e uma série de outras
mercadorias, a frota militar também ampliou-se de forma notável. Na França, quando Colbert foi indicado para
supervisionar as colônias, a França possuía somente duas dezenas de embarcações em alto-mar. Mas em 1683, a
Marinha de Guerra francesa já contava com 117 navios de linha, 30 galeões e 80 fragatas corsárias, totalizando
1.200 oficiais e 53.000 marinheiros (BLACKBURN, Robin. Op. cit., p. 354). Ou seja, um notável aumento de
potenciais consumidores de carne em barris.
10
MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 29. Em 1685, Luís XIV decretou um código especial visando
regulamentar a escravidão nas colônias francesas. O Code Noir, como ficou conhecido, mandava que cada escravo
recebesse, além de 1,2 Kg de mandioca, cerca de 900 gramas de carne salgada ou 1,4 Kg de peixe salgado por
semana, o que também contribuiu para a manutenção das importações de carne salgada. BLACKBURN, Robin.
Op. cit., p. 251-253; MANDELBLATT, Bertie. Op. cit.
61
pertenciam ao “primeiro Império Britânico”.11 Como demonstrou Truxes, uma vigorosa rede
mercantil conectava os comerciantes estabelecidos nos portos ingleses e irlandeses com os das
colônias do Caribe e da América do Norte. Em New York, Boston e Philadelphia, por exemplo,
verdadeiras comunidades de comerciantes irlandeses, ligados por vínculos parentais e religiosos
com outros grupos de mercadores estabelecidos em distintos portos, atuavam fortemente nos
negócios transatlânticos.12 Conforme Mandelblatt, qualquer grande comerciante em atividade
no Atlântico daqueles tempos conhecia a fama das carnes irlandesas. 13 Estudando os
negociantes franceses Jean e Pierre Pellet, Fernand Braudel destacou a fortuna adquirida pelos
irmãos numa rede mercantil constituída na primeira metade do setecentos e que alcançou
notável amplitude, envolvendo uma série de comissionistas e “capitães gerentes” de seus
navios. Sobre a atuação de Jean, Braudel escreveu:
A quantidade de suas relações de negócios e de seus negócios é simplesmente
espantosa: ei-lo armador, negociante, financista em certas ocasiões, proprietário
fundiário, produtor e mercador de vinhos, possuidor de rendimentos; ei-lo ligado à
Martinica, a São Domingos, a Caracas, a Cádiz, à Biscaia, a Bayonne, a Toulouse, a
Marselha, a Nantes, a Rouen, a Dieppe, a Londres, a Amsterdam, a Middelburgo, a
Hamburgo, à Irlanda (para comprar carne bovina salgada), à Bretanha (para comprar
tecido) e não digo tudo… E naturalmente aos banqueiros de Paris, de Genebra, de
Rouen.14

Passada a época de ouro da carne salgada irlandesa, outros rivais começaram a tomar os
mercados consumidores do produto. As colônias inglesas na América sempre foram as maiores
concorrentes dos irlandeses e ingressaram no mercado das carnes favorecidas pelos conflitos
políticos internos que afetaram a Irlanda após a Revolução Gloriosa (1688-1689).15 Na década
de 1720, os irlandeses perderam a posição de maiores abastecedores das antilhas inglesas
exatamente para estas colônias (muito embora não tenham deixado de ser os maiores
exportadores de carnes).16 Além da pesca, o trunfo destas colônias era a agricultura,
destacando-se o cultivo do trigo, do arroz, do milho, entre outros.17

11
TRUXES, Thomas. Op. cit.; BLACKBURN, Robin. Op. cit., p. 362.
12
Neste circuíto que envolvia o caribe inglês, as ilhas britânicas e as colônias do norte da América, era muito
comum a prática do comércio triangular, como o circuíto Boston – Cork – Jamaica – Boston. Das colônias
americanas saiam embarcações com madeiras, linhaça e rum para a Irlanda, daonde seguiam para as ilhas
caribenhas com carnes salgadas e manufaturas, direcionando-se posteriormente para Boston com mais melaço e
rum. Além deste comércio, a América do Norte também remetia trigo e farinha diretamente para o caribe inglês.
Na segunda metade do XVIII, estas exportações também atingiram Lisboa, Cadiz e outras partes do Mediterrâneo,
trazendo no retorno manufaturas européias (TUXTER, Thomas. Op. cit., p. 111-117).
13
MANDELBLATT, Bertie. Op. cit.
14
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins
Fontes, 1996, p. 125-127 (grifos meus).
15
Nesta época, Pensilvânia, New York, Virgínia e Maryland passaram a exportar suas carnes para o Caribe,
quebrando assim o monopólio prático dos irlandeses (TRUXES, Thomas. Op. cit., p. 26-7).
16
No meado do século XVIII, estas colônias também começaram a exportar significativas quantias de peixe
salgado para Santo Domingo. No entanto, este mercado jogava com as oscilações e aberturas da política colonial
francesa, sem abrir mão do contínuo contrabando. Santo Domingo importava peixe salgado, legumes e grãos
62
Com o desencadear da Revolução Americana, em 1776, a Irlanda começou a perder os
privilégios que lhe beneficiavam por fazer parte do sistema comercial no interior do Império
Britânico, já que mantinha intensa e lucrativa transação mercantil com os portos da América do
Norte. Por mais que os ingleses tentassem impedir, a jovem nação estadonidense expandiu sua
rede de abastecimento para todo o Caribe e ampliou as suas exportações de alimentos para a
Europa nas décadas que sucederam a sua Independência. 18 A Revolução em Santo Domingo
interrompeu momentaneamente o mercado caribenho francês trazendo prejuízos aos
comerciantes e provocando uma queda nas exportações de carne salgada irlandesa. 19 Em 1800,
a união dos Reinos da Irlanda e da Grã-Bretanha, colocou os primeiros sob a hegemonia do
Parlamento inglês, retirando parte da sua autonomia política e econômica. No início do século
XIX, a Irlanda continuou exportando carne salgada, mas jamais recuperou os índices
setecentistas. Em 1815, por exemplo, as remessas do produto eram quatro vezes inferiores ao
que havia sido negociado na década de 1770, e em 1840, os números não chegavam a 3% do
que o país havia exportado nos anos 1780. 20 A decadência econômica da pequena ilha foi
marcada pela Grande Fome (1845-1849) que ceifou cerca de 1,5 milhões de vidas. Apesar
disso, o “legado” irlandês na economia atlântica havia fincado raízes…

2.1 O SEGREDO DAS CARNES: ESPECIALISTAS E ESTRANGEIROS NAS PRIMEIRAS


FÁBRICAS DO EXTREMO SUL DA AMÉRICA

Conforme Mandelblatt, as fábricas irlandesas combinavam especialização da mão de


obra, baixos salários e técnicas avançadas de processamento, permitindo a mais eficiente
produção de carnes de sua época.21 O resultado disto foi que os irlandeses não legaram apenas
um modelo fabril e mercantil das carnes para o mundo atlântico, como também deixaram um
exemplo de que era possível obter grandes lucros alimentando escravos e marinheiros. As
muitas décadas de exportação de sal para a Irlanda e importação de carne salgada para abastecer

americanos, exportando rum, melaço e outros produtos tropicais (TREUDLEY, Mary. The United States and Santo
Domingo (1789-1866). The Journal of Race Development, v. 7, n. 1, jul., 1916, p. 83-145).
17
BLACKBURN, Robin. Op. cit., p. 559-563.
18
Conforme Gary Walton, o papel abastecedor das colônias no norte da América já era notável mesmo antes da
Independência. Entre os anos 1760 e 1770, elas já exportavam grandes quantias de carnes salgadas (bovina e
suína), milho, farinha e trigo para o Caribe e o Sul da Europa. (WALTON, Gary M. The economic rise of early
America. Cambridge University Press, 1979, p. 81-82; 193).
19
MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 20.
20
IOMAIRE, Máirtín Mac Con; GALLAGHER, Pádraic Óg. Op. cit.
21
Observador perspicaz, o ministro Colbert tentou imitar o sucesso dos fabricantes irlandeses patrocinando a
formação de um complexo fabril de carne salgada na própria França. No entanto, devido às guerras, aos grandes
custos de produção, aos tributos sobre o sal e à concorrência irlandesa, Colbert deu-se por vencido e abriu de vez o
comércio dos portos franceses às carnes irlandesas (MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 25-30).
63
as suas tripulações marítimas aproximou bastante os comerciantes portugueses e espanhóis do
circuíto mercantil intra-europeu do qual os irlandeses faziam parte.22 Os comerciantes ibero-
americanos nunca estiveram indiferentes às rotas atlânticas das carnes. Portanto, durante o
colonial tardio, foi comum comerciantes luso-brasileiros e hispano-platinos interessados nos
negócios com as carnes fazerem referência aos irlandeses.

O modelo de fabricação irlandês constituia-se em preparar as carnes e conservá-las


salgadas em barris de madeira com salmoura.23 Nesta época, este tipo de carne era o produto
preferido para o abastecimento das tripulações navais. Neste sentido, as Coroas ibéricas, que
importavam as mesmas dos irlandeses, pareciam incentivar mais a sua manufatura do que a do
charque, o que motivou comerciantes ibero-americanos a propor o abastecimento das Armadas
lusitanas e espanholas com este tipo de carne. Em 1789, por exemplo, três comerciantes
portugueses requisitaram ao Conselho Ultramarino enviar para o Rio Grande do Sul seus navios
com “o sal necessário para a salga das carnes e dos couros”, argumentando que o território era
muito próprio para “fazer carnes de moura para o serviço da Marinha, e à imitação das da
Irlanda, e tirar o sebo apurado e necessário a usos domésticos”. Contudo, suas propostas eram
ainda mais ousadas e previam remeter para o Rio Grande escravos da costa da África e
Moçambique e réus condenados que tivessem como ofício a tanoaria e a carpintaria (para serem
empregados nas fábricas na manufatura dos barris), estimular a criação de carneiros (para a
produção da lã) e porcos (para a fabricação de toucinho), plantar pinhos e carvalhos, “a
exemplo do que fizeram os ingleses em Filadélfia e Nova York”, e instalar uma fábrica de
solas, para aproveitar os couros das charqueadas, além de outros planos. 24

Com exceção da entrada de cativos africanos para o Rio Grande do Sul, os demais
objetivos não vingaram. A produção de carnes salgadas em barris nesta capitania, embora tenha
rendido seus lucros para alguns fabricantes, nunca atingiu índices semelhantes aos das
exportação de charque. No início dos negócios das charqueadas sulinas não foram raras as
reclamações a respeito da qualidade da carne em barris ali produzida. Em setembro de 1789,
por exemplo, alguns comerciantes reinóis disseram que as carnes salgadas trazidas do Rio

22
Ver, por exemplo, os destinos das exportações de carnes irlandesas ao longo do século XVIII. Por diversos anos,
Espanha e Portugal foram a terceira maior compradora atrás do Caribe inglês e francês que, somados, sempre
ocupavam mais da metade das remessas (TRUXES, Thomas. Op. cit., p. 262-263).
23
Segundo Alfredo Montoya, as carnes cortadas permaneciam numa tina com salmoura por cerca de um mês, para
depois serem colocadas em barris com camadas alternadas de sal (MONTOYA, Alfredo. Historia de los saladeros
argentinos. Buenos Aires: Ed. Raigal, 1956, p. 25-26). Segundo Anibal Barrios Pintos, no Uruguai, cada barril
suportava 4 arrobas (cerca de 60 kg) de carne (PINTOS, Anibal Barrios. Historia de la ganedería en el Uruguay
(1574-1971). Montevidéu: Biblioteca Nacional, 1973, p. 148). Mandelblatt, por sua vez, considerou que cada
barril, na Irlanda do século XVIII, carregava cerca de 90 kg (MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 20).
24
Requerimento de 30.09.1789, AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, Doc. 237 e 238 (Projeto Resgate).
64
Grande por Manoel Pinto da Silva não estavam em perfeito estado e que, em Lisboa, ninguém
as queria comprar. Os mesmos acrescentavam que a culpa não era das carnes e sim dos métodos
usados pelos fabricantes.25 Anos mais tarde, o capitão de um outro navio ordenou que a
tripulação jogasse uma carga inteira de carne salgada em alto mar por ela haver se
deteriorado.26 No início do século XIX, o Governador da Capitania ainda se ressentia do
insucesso das carnes em barris e o Vice-Rei compartilhou com ele os mesmos anseios:

É certo que a primeira amostra da tentativa que se fez das carnes salgadas não
correspondeu aos bons desejos que tanto eu como V. Ex.ª teríamos de ver o feliz êxito
de tão eficazes diligências (…), mas além do que com o tempo e com trabalho que
promete para o futuro grandes lucros é que se [aperfeiçoe] semelhantes fábricas. Penso
que a assistência desses homens que vieram do Reino para instruírem sobre o modo de
fazer as salgas, ter-se-á adquirido outro melhor conhecimento e mais seguro método; e
por [consequência], pôr em giro o comércio das carnes, ainda que por ora, se aplique
toda a que se puder beneficiar para o consumo da Esquadra, enquanto aquele não tem
maior extensão.27

Observe-se que o Conde de Resende não apenas tinha esperanças de abastecer a


Marinha lusitana, como também colocar no mercado o excedente das carnes salgadas
produzidas no Rio Grande. Para que os negócios deslanchassem, os administradores entendiam
que era necessário a presença de fabricantes mais instruídos naquele ramo. A participação de
experts na fabricação das carnes era encarada como algo fundamental para o sucesso tanto nas
charqueadas pelotenses, como entre os saladeros platinos do período. No entanto, quem seriam
estes experts? Numa outra missiva remetida pelos comerciantes portugueses mencionados
anteriormente, os mesmos se obrigavam a: “fazer as carnes de moura à imitação da Irlanda, o
que é facílimo assim que haja Mestre, e ainda sem ele, haverá portugueses que a tem feito no
ardente clima da Nossa América, e que vão à Índia e voltam à Lisboa”.28

De fato, já existiam portugueses fabricando pequenas quantias de carnes em barris no


próprio Rio Grande do Sul e, igualmente, na Ilha de Marajó, como enfatizei no capítulo
anterior. Mas o mais interessante, conforme o trecho grifado acima, é que estes especialistas
portugueses pareciam ser a segunda opção diante dos indivíduos desejáveis para ocupar a
função de “mestre” de salga. Os experts com maior reputação neste ramo de negócios eram os
irlandeses e os ingleses. Em agosto de 1801, o Visconde de Anadia recebeu um ofício relatando
que o comerciante João Rodrigues Pereira de Almeida enviara para Lisboa uma segunda

25
Requerimento de 30.09.1789, AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, Doc. 237 (Projeto Resgate).
26
Carta do Conde de Resende para o Governador da Capitania do RS (20.11.1800) apud MONQUELAT, A. F.;
MARCOLLA, V. Charque, charqueadas e charqueadores no primeiro período (1780-1800). Pelotas, Diário da
Manhã, 23.08.2010.
27
Conde de Resende para o Governador da Capitania do RS apud MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. Op.
cit.
28
Requerimento de 30.09.1789, AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, Doc. 238 (Projeto Resgate).
65
amostra de carnes em barris “o qual encarregou da dita salga, a dois irlandeses que daqui
mandou ir”, com o objetivo de prover o Arsenal Real da Marinha. 29 Pereira de Almeida, que era
um dos mais ricos comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro, havia construído uma fábrica
de salgar carnes no Rio Grande do Sul. Anos antes, ele socilitou instrumentos de trabalho para
os irlandeses João Seechy (mestre), Pedro O’Donnel (salgador) e Diogo Sheehy (curtidor).30
Em 1805, Pereira de Almeida, oferecendo-se para abastecer a Marinha lusa, propôs um contrato
de fornecimento de barris de carne, “cuja salga é feita por mestres irlandeses que ali tem, e
como a de Irlanda da melhor qualidade”. 31 Em 1808, Pereira de Almeida ainda possuía a sua
fábrica de carnes na capitania sul-rio-grandense. Conforme o relato de um contemporâneo sobre
o seu “grande e interessante estabelecimento”, ele possuía “grandes ordenados e despesas”, pois
mandara “vir a sua custa mestres da Irlanda”. 32

Tal exigência não se tratava de uma singularidade luso-brasileira. Entre os hispano-


americanos, a escolha de mestres irlandeses e ingleses para operacionalizarem a produção das
carnes salgadas nos primeiros anos também foi marcante. Além do conhecimento técnico que
possuíam, a preferência da Marinha européia pelas carnes irlandesas os credenciavam para esta
atividade. O saladeirista Francisco de Medina teria sido o primeiro a conseguir realizar tais
técnicas com perfeição, “através da instalação de um laboratório montado no estabelecimento,
dirigido por técnicos irlandeses”.33 O desafio em acertar o ponto correto do preparo das carnes,
seu sabor e a resistência à deterioração era tão difícil que o Vice-Rei Nicolás de Arredondo
comemorou com entusiasmo tal feito.34 O ânimo deve ter tomado conta de muita gente e a
notícia se espalhado rapidamente. Em 1794, entre os pedidos dos fabricantes de Buenos Aires e
Montevidéu a um ministro espanhol para que a indústria saladeril obtivesse êxito, estavam,

29
Requerimento de 07.08.1801, AHU-ACL-CU-019, Cx. 5, Doc. 394 (Projeto Resgate).
30
GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel,
2001, p. 121.
31
Requerimento de 23.10.1805, AHU-ACL-CU-019, Cx. 10, Doc. 605. Pereira de Almeida recebeu parecer
negativo pois o período de 9 anos de contrato foi considerado muito arriscado. Os pareceristas argumentaram que
era possível conseguir carne irlandesa de melhor qualidade por um preço mais em conta. Nesta época, conforme os
pareceritas, além da Irlanda, Portugal também recebia carnes salgadas da “América” e da Dinamarca.
32
MAGALHÃES, Manoel Antônio de. Almanack da Vila de Porto Alegre. In: FREITAS, Décio. O capitalismo
pastoril. Porto Alegre, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980, p. 88. Interessante observar
como um negociante de grosso trato do Rio investiu capitais no sul da América com claros fins de obter lucros
mercantis, ao contrário, por exemplo, de outros comerciantes que tornaram-se senhores de engenho e de grandes
escravarias buscando uma atividade agrária com fins não apenas econômicos, mas, também, motivados por
critérios de status social e poder local (FRAGOSO, João L. R.. Homensde grossa aventura – Acumulação e
hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998).
33
MONQUELAT, A. F. Desfazendo mitos (notas à história do Continente de São Pedro). Pelotas: Ed. Livraria
Mundial, 2012, p. 80.
34
Para Nicolás, Medina “havia descoberto o segredo e as carnes rioplatenses venceram o mito de suas condições
inferiores, pois jamais haviam obtido antes a cor e a consistência das do norte”. O segredo, segundo ele, nada mais
era do que “la salmuera del barril com una corta dosis de sal nitro” (MONQUELAT, A. F. Op. cit., p. 80).
66
primeiramente, “hacer venir de Irlanda de 80 a 100 maestros en salar carnes” e “fundar una
Compañía Marítima que tuviera a su cargo el transporte de los barriles a la península”.35
Quando não era possível trazer irlandeses ou ingleses, os investidores mais exigentes aceitavam
os ibéricos, desde que fossem talentosos nesta atividade. Em 1778, por exemplo, o projeto de
implantação de uma fábrica de carnes salgadas enviado à Coroa espanhola pelo Cabildo de
Buenos Aires solicitava que viessem da Espanha vários toneleros e quatro sujeitos inteligentes
que conhecessem das carnes salgadas.36 Portanto, o know-how trazido por estes indivíduos foi
de extrema importância no início desta fase empresarial. Nos anos 1780, por exemplo, Miguel
Ryan, espanhol de ascendência irlandesa, instalou-se na Banda Oriental trazendo antiga
experiência com salga de carnes no Chile. 37

Portanto, desde os primeiros anos de funcionamento dos saladeros no Rio da Prata, os


ingleses e irlandeses estiveram presentes tanto entre os experts do setor produtivo, quanto nos
setores mais subalternos das fábricas. E, igualmente, desde os anos 1780, os saladeros
exportaram quantidades significativas de carnes em barris. 38 Em 1781, Manuel Melian, um dos
primeiros empresários a instalar-se no Prata, remeteu para Cadiz cerca de 136 barris em dois
navios. Em 1785, o catalão Juan Ros remeteu 202 barris do produto para Cuba.39 Outros
seguiram o mesmo exemplo e Montevidéu continuou atraindo comerciantes e investidores nos
anos 1780. Da primeira geração de saladeiristas orientais destacaram-se o mencionado
Francisco de Medina e também Francisco Maciel. O primeiro deles teria fundado seu
estabelecimento em 1780, mantendo uma produção anual de 8 mil quintais de carne salgada
(cerca de 360 toneladas).40 Quando faleceu, Medina possuía um grande patrimônio, onde se
destacavam uma estância com 25 mil cabeças de gado e 6 embarcações empregadas tanto no
carregamento de sal, quanto na exportação de carnes e couros para a Europa.41 Em 1788,
Maciel (que era assentista de víveres da Real Armada em Montevidéu), estabeleceu uma fábrica

35
MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 29-30.
36
MONTOYA, Alfredo. Op. cit.
37
MONQUELAT, A. F. Senhores da carne: charqueadores, saladeristas y esclavistas. Pelotas: Ed.
Universitária/UFPel, 2010. Contudo, na fase inicial desta indústria, além da mão de obra e da orientação técnica
qualificada também havia outros problemas. Conforme Aníbal Pintos, a ausência de toneleros constituía-se num
obstáculo para a ampliação dos negócios. No fim do século XVIII, só existiam 8 destes especialistas em
Montevidéu e os mesmos não davam conta da demanda por barris. A solução, segundo o autor, foi agregar com
frequência cerca de 5 ou 6 ingleses que haviam chegado no Prata para caçar baleias e que conheciam das técnicas
irlandesas (PINTOS, Anibal B. Op. cit., p. 150).
38
Na realidade, como demonstrou Montoya, estas carnes pareciam estar sendo exportadas desde o século XVII,
mas em quantidades muito pequenas, ainda em caráter experimental e com grandes intervalos de tempo
(MONTOYA, Alfredo. Op. cit.).
39
PINTOS, Anibal B. Op. cit., p. 147-148.
40
CASTELLANOS, Alfredo. Breve historia de la ganadería en el Uruguay. Montevidéu: Banco de Crédito, 1971,
p. 31. Medina teria investido também na pesca da baleia, em 1784.
41
MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 25.
67
de carnes salgadas, tasajo e sebo, tornando-se um dos mais ricos saladeiristas da região. O
sucesso de ambos motivou o estabelecimento de outros empresários. Em 1801, havia cerca de
30 saladeros na parte oriental do Rio da Prata, abatendo anualmente 120 mil reses e
empregando mais de 1.000 trabalhadores – livres e escravos – em suas fábricas.42

Contudo, ao contrário de Montevidéu, a região de Buenos Aires teve seus primeiros


saladeros somente a partir da década de 1810. 43 Uma das explicações para este investimento
tardio pode ser dada pelo fato de que os comerciantes portenhos lucravam muito com as
exportações de couro e prata, os desviando de um maior interesse em investir seus capitais em
fábricas de carne salgada. A independência do Vice-Reinado do Rio da Prata e a consequente
ruptura das rotas mercantis terrestres com a Bolívia e o Peru, cessaram o fluxo de metais para a
região, possibilitando as inversões nas fábricas de carne.44 Além disso, o Movimento de Maio
de 1810 e a Junta governativa que lhe sucedeu favoreceram a indústria com uma série de
medidas. Um grupo de comerciantes e estancieiros que acompanhou o processo de
Independência logrou franquias mercantis e tornou-se líder nos negócios com a carne
buenairense. Entre eles estava Juan Manuel de Rosas, que viria a ser governador da Província
de Buenos Aires. Conforme Horacio Giberti, Rosas não encontrou dificuldades para reunir
outros sócios capitalistas e formar a Rosas, Terrero y Cia., cujo primeiro saladero começou a
funcionar em 1815. A influência que exercia em setores governamentais estratégicos e seus
laços de parentesco o favoreceram bastante neste ramo de atividades.45

Além de Rosas e Dorrego, entre os primeiros saladeristas instalados naquelas terras


estavam os ingleses R. Staples e J. Mac Neil, que ergueram sua fábrica no ano de 1812.
Investindo um grande montante de capital, eles possuíam 60 trabalhadores assalariados, sendo 8
toneleros, 2 carpinteiros e 4 peões trazidos especialmente da Europa. Quase que
instantaneamente ao advento desta fábrica, muitos outros montaram seus saladeros na região,
chegando a 14 estabelecimentos estreitamente vinculados, de agrado ou por força, à firma de
Rosas, que liderava os empreendimentos regionais.46 Anos depois, seu número aumentou. Entre
1822 e 1825 existiam 20 saladeros ao redor de Buenos Aires. 47 Analisando-os conjuntamente
com os saladeiristas de Montevidéu, percebe-se que além de hispano-platinos, que formavam a
42
MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 31.
43
Idem.
44
SOCOLOW, Susan M. Economic Activities of the Porteño Merchants: the Viceregal Period. The Hispanic
American Historical Review, v. 55, n. 1, Feb. 1975, p. 1-24; ROSAL, Miguel A.; SCHMIT, Roberto. Del
Reformismo colonial Borbónico al librecomercio: las exportaciones pecuárias del Río de La Plata (1768-1854).
Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana. N. 20, 2º sem., 1999, p. 69-109.
45
GIBERTI, Horacio. Historia Económica de la ganadería argentina. Buenos Aires: Solar, 1981.
46
GIBERTI, Horacio. Op. cit., p. 84-85. Staples também foi cônsul britânico em Buenos Aires (1812-1818).
47
MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 39.
68
maioria, alguns deles vinham da Espanha e que outra parte significativa era formada por
indivíduos com sobrenomes ingleses e franceses. 48 Isto revela que quando não vinham para
trabalhar como mestres, tanoeiros ou assalariados, os imigrantes europeus arriscavam-se a
montar uma fábrica nas margens do Prata, com capitais parcialmente reunidos no exterior.

Os saladeros platinos fabricavam tanto o charque (chamado pelos mesmos de tasajo)


quando a carne salgada. Contudo, muitas vezes os dados sobre exportação não separavam
ambos os produtos, quando se sabe que grandes remessas de tasajo e carne salgada eram
negociadas numa mesma safra.49 Mas a partir de dados coletados por Alfredo Montoya, sabe-se
que em 1798, 1799 e 1800, Montevidéu exportou 24.100, 16.254 e 27.794 barris de carne,
respectivamente.50 Trata-se de um alto índice de remessas para uma indústria em sua fase
inicial. O Rio Grande do Sul, por exemplo, não chegou nem perto disso. Nos 16 anos entre
1805 a 1820, a capitania sulina exportou 43.499 barris de carne, ou seja, uma média de 2.718
por ano – bem menos que as exportações orientais no final do século XVIII.51

A pouca representatividade do Rio Grande do Sul nos investimentos em carnes em


barris pode ser explicada por dois motivos. Primeiramente, os proprietários e os trabalhadores
ingleses e irlandeses, especialistas ou não, não estiveram muito presentes nas charqueadas de
Pelotas. Não é possível saber se esta relativa ausência foi fruto de seu desinteresse pela região,
se era consequência de uma política luso-brasileira mais restritiva antes da abertura dos portos
(1808) se comparada à Montevidéu ou se os próprios charqueadores pelotenses não os queriam
por perto. Mais adiante, demonstrarei que especialistas estrangeiros não estiveram ausentes nas
charqueadas, mas, sem dúvida, sua maior presença nos saladeros platinos favoreceu a maior
invergadura de investimentos que aqueles países conheceram ao longo do oitocentos.

Contudo, um outro motivo isenta os charqueadores pelotenses do seu desinteresse pelas


carnes em barris. Eles estavam inseridos principalmente em redes mercantis luso-brasileiras,
que facilitavam os seus negócios com regiões de antigo consumo de carne-seca, como os
escravos do nordeste açucareiro, por exemplo. O charque possuía dentro da própria América
portuguesa um vigoroso e promissor mercado consumidor, pronto a gerar bons lucros. Além

48
Anibal Pintos faz referência a vários deles: Stanley Black & Cia, Tomas Tomkinson, Henrique Jones, Pablo
Duplessis, Buther & Martin, Juan Jackson, Hipólito Doinnel, Juan Hall e o Sr. Young, entre outros (PINTOS,
Anibal Barrios. Montevideo: Los Barrios (I). Montevideo: Ed. Nuestra Tierra, 1971).
49
ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit.
50
MONTOYA, Alfredo. Op. cit.
51
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil.
Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978, p. 116-118; 134-141. Em 1808, Antônio de Magalhães disse
que existiam somente duas fábricas no Rio Grande que fabricavam barris de carne salgada, exportando 3 mil deles
por ano (MAGALHÃES, Antônio. Op. cit., p. 88).
69
disso, conforme Andrew Sluyter, o charque tinha algumas vantagens sobre as carnes em barris.
Sua prepação era mais simples, ele ocupava bem menos espaço nos navios, podia ser colocado
em qualquer canto dos porões e não passava por uma rigorosa vistoria, como as carnes salgadas
remetidas para as Armadas.52 Portanto, acredito que as poucas quantidades de carnes em barris
exportadas pelo Rio Grande do Sul também foram resultado de uma escolha dos comerciantes
envolvidos em uma rede mercantil cujo objetivo era abastecer a escravaria das plantations e não
as Armadas europeias (algo que fugia, em parte, dos planos da Coroa lusa). Neste sentido,
apesar das dificuldades em acertar o “ponto” das carnes em barris, as poucas remessas rio-
grandenses não se tratavam apenas da sua incapacidade técnica. Nas palavras de um próprio
charqueador de Pelotas, escritas entre 1817 e 1822, isto fica claro: “a carne salgada em barris é,
sim, toda ela fabricada em Porto Alegre: no Rio Grande [o que incluía Pelotas] não se fabrica
carne em barris, ainda que se podia fabricar quanta se quisesse”. 53

Portanto, no Império português a produção de carne salgada era mais para suprir uma
demanda estimulada pelo Reino, que queria substituir as compras das carnes irlandesas para a
Marinha lusitana, do que um investimento destinado a outros mercados consumidores.54 Não
era comum pensar nas carnes em barris para alimentar os escravos das plantations luso-
brasileiras, por exemplo. Além disso, a produção das carnes salgadas também era estimulada
por autoridades estrangeiras que mantinham contato com os burocratas portugueses. Nos anos
1790, Donald Campbell, oficial britânico encarregado do comando de uma Esquadra na
América, recomendou à Armada portuguesa que empregasse outros métodos para salgar as suas
carnes, pois utilizando meios muito primitivos, elas não estavam sendo satisfatórias no
abastecimento da tripulação lusa. 55 É provável que Campbell preferisse as carnes em barris ao
invés das mantas de charque. Esta também foi a queixa do Governador do Pará, quando buscou
estimular a fabricação de carnes salgadas na Ilha de Marajó, pois estas eram muito mais
higiênicas e saborosas do que as carnes secas que lá se fabricavam e que colocavam em risco a

52
Conforme Sluyter, o produto final tinha várias características vantajosas em relação a outras formas de carne
conservadas. A maior secura do charque com relação à carne salgada reduziu tanto o peso e o volume a menores
custos de transporte. A maior secura também permitiu o carregamento a granel em porões de navios e a
preservação do produto para muitos meses após a sua fabricação, mesmo em climas tropicais (SLUYTER,
Andrew. The Hispanic Atlantic’s Tasajo Trail. Latin American Research Review, v. 45, n. 1, 2010, p. 106).
53
CHAVES, Antônio J. Gonçalves. Op. cit., p. 141. Portanto, toda a carne em barris exportado pelo Rio Grande do
Sul era fabricada pelos estabelecimentos do vale do Jacuí e de Porto Alegre e não pelos de Pelotas.
54
Em 1778, um funcionário da Coroa portuguesa recomendou a produção das “carnes salgadas que devem ser
exportadas a este reino em lugar das que vem da Irlanda”, e o cultivo do linho cânhamo, que substituiria as
importações da Rússia (GUTIERREZ, Ester. Op. cit., 53).
55
XAVIER, Paulo. Salgas de carne. In: Correio do Povo. Porto alegre, edição de 15.03.1974, p. 9.
70
saúde da população consumidora.56 Portanto, nos diferentes “projetos” relativos à fabricação de
carnes no Rio Grande do Sul, o charque acabou vencendo a carne salgada.

No Império espanhol aconteceu algo semelhante. Apesar da significativa produção de


tabaco e açúcar em Cuba, suas plantations, no meado do setecentos, eram bastante prejudicadas
pelo alto preço dos escravos importados e pela restrição dos mercados, visto que a Espanha não
tinha acesso direto ao tráfico atlântico e restringia bastante o comércio de sua colônia
caribenha. Na década de 1780, Cuba possuía “uma classe de aspirantes a proprietários de
plantations ansiosa para imitar o sucesso das colônias açucareiras das outras potências. Tudo o
que precisava era acesso fácil aos escravos e aos mercados”. Em 1787, a livre entrada de
escravos foi permitida pela primeira vez e com a Revolta em Santo Domingo, a ilha espanhola
importou milhares de cativos e multiplicou a sua produção açucareira. Se em 1787 as
exportações atingiram 10 mil toneladas (o dobro da quantidade exportada em 1760), em 1802
este índice saltou para 40 mil toneladas. Na virada do século, mais de mil navios de diversas
bandeiras iam anualmente a Cuba. As autoridades coloniais “deram toda ajuda à expansão das
plantations, ignorando, quando necessário, a legislação ou as instruções da metrópole”.
Comerciantes coloniais, atuando em parceria com norte-americanos, fretavam inúmeras
embarcações. Se antes de 1789, Cuba teria importado 100 mil escravos, entre 1790 e 1821, este
número aumentou para 240 mil cativos africanos. 57

O aumento das exportações de Montevidéu e Buenos Aires também foi estimulado por
uma série de medidas políticas tomadas pelos Bourbons. Em 1776, a Coroa decretou o livre
comércio dos portos espanhóis com Buenos Aires, substituindo o exclusivismo de Cadiz. Em
1777, foi criado o Vice-Reinado do Rio da Prata, oferecendo uma maior autonomia
administrativa à região. Como resultado destas medidas, o comércio portenho dinamizou-se e
uma poderosa classe de negociantes marítimos constituiu-se a partir destas trocas.58 Entretanto,
conforme Montoya, o objetivo inicial dos saladeiristas não era fabricar o tasajo. Por atenderem
os anseios vindos de Madrid, muitos deles queriam produzir as carnes irlandesas para a
Marinha espanhola.59 No entanto, diante do boom açucareiro em Cuba e o crescimento daquele
mercado provocado pela entrada de milhares de escravos, a ampliação da fabricação do tasajo

56
Ofício de Francisco de Souza Coutinho a Martinho de Melo e Castro (Pará, 11.10.1792). Coleção Carvalho,
Seção Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
57
BLACKBURN, Robin. Op. cit., p. 602-604.
58
SOCOLOW, Susan. Op. cit.
59
MONTOYA, Alfredo. Op. cit.
71
foi tentadora e a carne salgada foi lentamente sendo substuída por este (produto mais simples),
cujas remessas se multiplicaram ao longo do oitocentos.60

O comércio de ambos os produtos parecia ser lucrativo. Contudo, o tipo de carne


preparada dependia muito dos interesses e das possibilidades dos fabricantes, da rede mercantil
em que os mesmos estavam inseridos, dos estímulos governamentais, das conjunturas
econômicas, da qualidade da demanda e foi um empreendimento cada vez mais liderado por
particulares que expressavam as capacidades de inversão das elites coloniais neste ramo de
negócios. Um dos motivos pelo qual a produção de carnes salgadas em barris vingou mais entre
os platinos do que entre os rio-grandenses (além do pouco interesse dos charqueadores
pelotenses em fábricar tais produtos) foi a notável presença de técnicos irlandeses e ingleses
entre os saladeros (desde a sua formação) e a influência e conhecimento que os mesmos
detinham no ramo. Além do mais, a população caribenha estava mais acostumada ao consumo
das carnes em barris (por herança das carnes irlandesas) do que a América portuguesa – que já
vinha, em parte, sendo abastecida pela carne-seca nordestina (e cujas técnicas de fabricação já
eram conhecidas pelos colonos e indígenas mesmo antes do setecentos).61 Todo este
intercâmbio de homens e ideias foi favorecido pela conjuntura política e econômica que marcou
o Império espanhol durante o governo dos Bourbons. Esta interação social não deixou de
envolver os luso-brasileiros, notadamente os seus traficantes, conformando um mesmo processo
de desenvolvimento fabril no sul da América, que pode ser lido como um fenômeno construído
pelas redes intra e trans-imperiais, como pretendo demonstrar a seguir.

2.2 A FORMAÇÃO DOS COMPLEXOS FABRIS PLATINOS E PELOTENSE A PARTIR


DAS REDES INTRA-IMPERIAIS E TRANS-IMPERIAIS

Autoridades coloniais ilustradas de um lado, comerciantes, proprietários e investidores


particulares de outro. A conjuntura econômica e política da época favorecia para que as redes
mercantis imperiais, das quais os mesmos faziam parte, se ampliassem durante o colonial
tardio. No entanto, como muitos agentes ligados à política e à economia coloniais circulavam
pelo Atlântico de forma bastante intensa, não é possível pensar na formação dos complexos
fabris platinos e rio-grandenses como um produto da colonização sob a exclusiva direção de
uma só Coroa, seja a espanhola, seja a portuguesa. Todo o processo foi marcado por um notável

60
SLUYTER, Andrew. Op. cit.
61
MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987; ROLIM,
Leonardo. “Tempo das carnes”: no Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na Vila
de Santa Cruz do Aracati (c. 1690 – c. 1802). Dissertação de Mestrado, UFPB, 2012.
72
protagonismo das elites coloniais e por uma intensa negociação destas com as Coroas ibéricas,
além da participação de comerciantes europeus de fala inglesa e francesa, que interagiam
profundamente num emaranhado de relações sociais e econômicas com os mesmos. 62

Estudando os processos de formação de identidades regionais em Montevidéu durante o


colonial tardio, Fabrício Prado deparou-se com diferentes interesses e práticas sociais
compartilhadas pelas suas elites. Os indivíduos pertencentes a este estrato superior estavam
inseridos não apenas em uma ampla rede de relações sociais que envolviam outros agentes
hispano-americanos (redes intra-imperiais), mas como também em redes de relações que os
conectavam com indivíduos e famílias luso-brasileiras e anglo-francesas (redes trans-imperiais).
Conforme Prado, embora o contato entre os indivíduos dos dois impérios ibéricos fosse
restringido, duradouros vínculos familiares e mercantis os uníam. Um dos fatores que
favoreceram a amplitude destas relações foi a permanência de um grande número de
portugueses em Buenos Aires, na Banda Oriental, mas, sobretudo, em Montevidéu, mesmo
após a sua expulsão da Colônia do Sacramento.63

Comparando censos do período colonial tardio, Prado percebeu que Montevidéu era
mais aberta à participação de luso-brasileiros e comerciantes britânicos nos seus negócios do
que Buenos Aires. 64 Portanto, mesmo que esta última cidade apresentasse uma notável presença
de luso-brasileiros em seu território 65, Montevidéu constituiu-se na principal zona de interação
trans-imperial do conesul americano. Uma zona de interação, segundo Prado, era uma região
colonial madura onde as elites eram formadas principalmente por europeus ou os seus
descendentes, e os mesmos interagiam profundamente com agentes de diferentes origens
geográficas e imperiais. Na zona de interação, os indivíduos confrontavam-se com as diferenças
do “outro”, ao mesmo tempo em que compartilhavam dos seus valores, códigos culturais e
visões de mundo. Neste contexto, os estrangeiros ou agentes imperias que se casavam com as
mulheres locais, criavam raízes e estabeleciam-se na região, transmitindo códigos

62
Ver, por exemplo, PRADO, Fabrício. In the shadows of empires: trans-imperial networks and colonial identity
in Bourbon Río de la Plata. Diss. (Ph.D.) - Emory University, 2009; MOUTOUKIAS, Zacarias. Redes Personales
y Autoridad Colonial. Annales. Histoire, Sciences Sociales. Paris, mai-juin, 1992; FRAGOSO, João; BICALHO,
Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa. (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
63
PRADO, Fabrício. Op. cit.
64
Conforme Prado, entre os anos de 1781 e 1786, 74 navios portugueses aportaram em Montevidéu, sendo que 43
destes declararam seu destino para outros portos portugueses no Rio Grande do Sul ou em Santa Catarina no
momento da partida. Entre os capitães que faziam essa rota frequentemente estavam pilotos portugueses
encarregados de navios portugueses e espanhóis (PRADO, Fabrício. Op. cit.).
65
TEJERINA, Marcela. Luso-brasileños en el Buenos Aires Virreinal: trabajo, negocios e intereses en la plaza
naviera y comercial. Bahía Blanca: Ediuns, 2004.
73
comportamentais exteriores, contribuíndo para que os nativos compartilhassem do vocabulário
social imperial. 66

Neste sentido, as redes de interação trans-imperiais teriam moldado o processo de


formação sócioeconômico da Banda Oriental no final do período colonial. 67 Acrescento às
ideias de Prado, a de que as mesmas redes foram fundamentais para a formação do complexo
saladeril platino e favoreceram um maior desenvolvimento das charqueadas pelotenses no
período, tanto por estimular a competição entre ambas as regiões, quanto por propiciar uma
maior troca de informações e experiências por meio dos múltiplos agentes que circulavam pelos
seus portos marítimos. As redes transacionavam favores, informações, influências e
conhecimentos técnicos, num fluxo não apenas da metrópole para a colônia, como também no
seu percurso inverso, além de apresentarem relações tranversais entre as próprias colônias
atlânticas ou destas com comerciantes de outras nacionalidades européias.

Além das condições políticas e econômicas apontadas até aqui, os complexos fabris
platinos e pelotense também compartilhavam de outros fatores estruturais. Primeiramente,
ambos não tinham grandes concorrentes no Atlântico Sul para além deles próprios. A disputa
entre estes dois pólos fabris marcou todo o século XIX, com os pelotenses frequentemente
queixando-se da “desleal” concorrência e da falta de proteção das autoridades políticas luso-
brasileiras. Além disso, tanto na capitania do Rio Grande de São Pedro, quanto no Vice-
Reinado do Prata, as terras, o gado e a mão de obra constituíam-se em mercadorias bastante
acessíveis. Horacio Giberti acrescentou mais outros dois fatores: os mercados consumidores de
tasajo (da época) eram seguros e tinham possibilidade clara de ampliação e, no caso dos
platinos, o sal importado da Patagônia possuía um preço bastante atrativo.68

Não há um dos fatores acima apontados em que os fabricantes luso-brasileiros e os


hispano-platinos não tenham disputado terreno. O mais paradoxal, no entanto, é que os platinos
precisavam dos traficantes luso-brasileiros para incorporar mais mão de obra africana em seus
saladeros e em suas estâncias, o que irritava profundamente os charqueadores e comerciantes
rio-grandenses. 69 Suas reclamações com relação a isto já eram correntes desde os anos 1790.

66
PRADO, Fabrício. Op. cit.
67
Idem.
68
GIBERTI, Horacio. Op. cit., p. 83-84. Giberti estava correto no que diz respeito ao colonial tardio, uma vez
quem na segunda metade do oitocentos, um dos grande problemas dessa indústria foi a ausência de mercados
consumidores para além de Cuba e o Brasil.
69
Esta questão foi tratada por Gabriel Aladren que analisou a forma como as guerras estiveram relacionadas à
escravidão na fronteira aqui estudada (ALADREN, Gabriel. Sem respeitar fé nem tratados: escravidão e Guerra
na formação histórica da fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835). Tese de Doutorado.
PPG-História UFF, 2012).
74
Em outubro de 1796, por exemplo, negociantes rio-grandenses queixaram-se à Coroa que as
carnes de Montevidéu estavam sendo ilegalmente carregadas em grandes quantidades para a
Bahia e Pernambuco – capitaniais que as “recebem e acoitam”. Estas embarcações ao
retornarem cometiam a “transgressão de trazerem avultadas porções de escravos”, o que não
apenas prejudicava a produção rio-grandense, como também aumentava o preço dos escravos
nesta praça.70 Dois anos depois, um número maior de comerciantes, estancieiros e pelo menos
outros 12 charqueadores assinaram um requerimento ainda mais contundente contra o comércio
platino nos portos brasileiros, cujo número de navios empregados nestas transações era,
segundo os mesmos, “escandaloso”. Os assinantes solicitavam:

Que seja expressamente declaradas e ampliadas em seu inteiro vigor as providentes


leis e ordens promulgadas para não haverem neste Brasil comércio com Nações
estrangeiras e que naqueles três portos relatados fique sendo contrabando os gêneros
produtivos desta Capitania acima indicados. Que seja também vedada inteiramente a
Exportação dos escravos para fora destes domínios que tanto dano causam ao Estado e
ao aumento da Agricultura.71

Observa-se que os comerciantes e charqueadores sabiam da importância do charque para


a manutenção das plantations e da agricultura colonial. Suas reivindicações demonstram que o
comércio ilícito era praticamente a norma naquelas paragens. Segundo Fábio Kuhn, o
contrabando de escravos para o Rio da Prata já era significativo desde a primeira metade do
setecentos e tinha na Colônia de Sacramento o seu principal núcleo de atuação. Para o autor,
estas “práticas nos mostram que os conceitos de contrabando e corrupção precisam ser
repensados para as sociedades de Antigo Regime, onde a separação da esfera pública e da
esfera privada era praticamente inexistente”.72 Ainda de acordo com Kuhn:

A própria distinção entre práticas legais e clandestinas parece ser anacrônica, se nós
considerarmos o universo social em relação às representações jurídicas, com suas
regras bem estabelecidas e aceitas. Assim, as práticas (…) podem revelar uma lógica
social global partilhada pelos meios que somente nosso olhar contemporâneo dissocia.
No mundo português setecentista, os contrabandistas seriam empreendedores que
pertenciam ao sistema, com boas conexões com as elites governantes. O comércio
ilegal tolerado era um comércio controlado, permitido pelas mesmas pessoas cujas
funções oficiais pressupunham exatamente combatê-lo.73

Como Kuhn alertou, isto não significa dizer que a Coroa não se importava com a
ilegalidade destas trocas. Como lembra o autor, as tentativas de repressão existiam, mas,

70
Requerimento de 01.10.1796, AHU-ACL-CU-019, Cx. 4, Doc. 317 (Projeto Resgate).
71
Ofício de 24.11.1800, AHU-ACL-CU-019, Cx. 5, Doc. 373 (Projeto Resgate).
72
KÜHN, Fábio. Clandestino e ilegal: o contrabando de escravos na Colônia do Sacramento (1740-1777). In:
XAVIER, Regina (Org.). Escravidão e liberdade: temas, problemas e perspectivas de análise. São Paulo:
Alameda, 2012, p. 179-206.
73
KÜHN, Fábio. Op. cit., p. 195.
75
segundo Ernest Pijning, elas eram direcionadas principalmente contra os excessos.74 Além do
mais, o seu alcance era precário e dependia do empenho das autoridades locais envolvidas e das
suas redes de relações.75 Portanto, deve-se atentar para o grau de tolerância (e do próprio
envolvimento) dos administradores coloniais, pois eram eles, em última instância, que
representavam os interesses da Coroa nas localidades. O grande problema talvez seja a
interpretação que se dá acerca desta relação, uma vez que, em boa parte das vezes, os interesses
das elites locais não eram antagônicos aos do Reino. Conforme Fabrício Prado, as Coroas
espanhola e portuguesa tinham conhecimento deste vultoso comércio ilícito realizado no
Atlântico sul. No entanto, eram estas transações que ajudavam a garantir a manutenção das
sociedades ali constituídas. As economias coloniais naquelas regiões dependiam destas redes
mercantis para se reproduzirem e os próprios agentes envolvidos nestas transações enriqueciam
o seu patrimônio e o da Coroa agindo no interior das mesmas. 76

A prova de como o tráfico ilícito de cativos tinha atingido enormes proporções pode ser
dada na comparação entre o número de escravos entrados no Rio Grande do Sul e no Prata.
Conforme Alex Borucki, pelo menos 70 mil escravos, vindos de portos brasileiros e africanos,
foram desembarcados no Rio da Prata, entre 1777 e 1812. 77 Em contrapartida, conforme os
dados compilados por Gabriel Aladrén (que estão um pouco subestimados, conforme o próprio
autor), o Rio Grande do Sul teria recebido aproximadamente 35 mil escravos entre 1788 e 1833,
ou seja, a metade dos cativos remetidos para o Prata e num espaço de tempo maior.78 Portanto,
mesmo que o problema dos sub-registros apontados por Aladren fosse resolvido, creio ser
possível afirmar que o Rio da Prata recebeu muito mais escravos que o Rio Grande durante o
período em que o tráfico esteve vigente naquela região. Tal comércio era prejudicial aos
charqueadores, pois os altos preços pagos pelos platinos estimulavam os traficantes a
desembarcarem os cativos no porto oriental, ao menos que os rio-grandenses cobrissem a oferta
dos saladeiristas.

74
PIJNING, Ernest. Contrabando, ilegalidade e medidas políticas no Rio de Janeiro do século XVIII. Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 21, n. 42, 2001, p. 397-414. O autor também destacou o contrabando no Rio
da Prata considerando: “a idéia de que o comércio ilegal era imoral e errado era vista com perplexidade. Se o
comércio ilegal era por vezes estimulado pela Coroa portuguesa, como no caso do comércio com o rio da Prata,
como poderia ser considerado imoral?” (PJNING, Ernest. Op. cit., p. 407).
75
Ver, por exemplo, GIL, Tiago Luís. Infiéis Transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio
Grande e do Rio Pardo (1760-1810). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.
76
PRADO, Fabrício. Op. cit.; GIL, Tiago Luís. Op. cit.
77
BORUCKI, Alex. From shipmates to soldiers: emerging black identities in Montevideo, 1770-1850. PhD
Dissertation. Atlanta: Emory University, 2011 apud ALADREN, Gabriel. Op. cit., p. 56.
78
ALADREN, Gabriel. Op. cit., p. 53-55.
76
Os negócios ilícitos com o Rio da Prata eram muito lucrativos para os comerciantes
luso-brasileiros e os mesmos buscavam atender a grande demanda dos hispano-platinos por
mão de obra escrava. Segundo alguns autores, os saladeiristas pareciam preferir mais a mão de
obra cativa do que o trabalhador assalariado. Em 1777, por exemplo, para montar as fábricas
saladeris da região, o Cabildo de Buenos Aires solicitou à Coroa espanhola que facilitasse o
“envío de negros, ya sea de asiento o de cualquier outro modo, porque ya demasiadamente se
nota la falta que hai en estas Províncias de ellos”. De acordo com os requerentes, o trabalho dos
peões livres era repleto de problemas e não correspondia aos custos com salário e manutenção
com os mesmos. Em 1799, o administrador de uma estância na Banda Oriental, aconselhava aos
seus contemporâneos a substituírem os seus peões pelos escravos, porque além dos menores
gastos, num breve tempo o produto do seu trabalho recuperava o valor investido.79

Conforme Borucki, Chagas e Stalla, mesmo com a extinção do tráfico atlântico, em


1812, a entrada de cativos de forma clandestina pelo porto marítimo, pela fronteira terrestre ou
servindo como “colonos”, manteve-se resistente até a década de 1830. A escravidão, por sua
vez, esteve presente nos saladeros uruguaios até os anos 1840, quando a instituição foi
abolida. 80 Compilando uma série de fontes documentais, Monquelat também verificou que os
saladeros orientais utilizavam-se da mão de obra escrava.81 De acordo com Mariana Thompson
Flores, a abolição da escravidão no Rio da Prata trata-se de um processo bastante complexo. Na
realidade, o desrespeito à extinção do tráfico no Rio da Prata, em 1812, e à própria abolição do
cativeiro, em 1813, tornou necessário um outro acordo com os britânicos para o fim do
comércio negreiro, em 1839. A liberdade definitiva dos escravos argentinos só foi decretada
mais tarde, através da Constituição de 1853. No entanto, conforme a autora, algumas cidades só
aceitaram a medida abolicionista em 1860.82

As redes mercantis estabelecidas pelos mesmos com os comerciantes brasileiros


certamente foram um facilitador para a entrada de africanos no Rio da Prata. Como foi

79
MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 17-19.
80
Após a abolição definitiva da escravidão uruguaia (1846), a entrada de escravos brasileiros nas estâncias
orientais como peões contratados continuou a ocorrer de forma constante (BORUCKI, A., CHAGAS, K.,
STALLA, N. Esclavitud y trabajo: Un estudio sobre los afrodescendientes en la frontera uruguaya, 1835-1855.
Montevideo, Ed. Pulmón, 2004, p. 21-23). Tratarei mais deste tema no capítulo 7.
81
MONQUELAT, A. F. Senhores da carne: charqueadores, saladeristas y esclavistas. Pelotas: Ed.
Universitária/UFPel, 2010.
82
THOMPSON FLORES, Mariana Flores da Cunha. Crimes de fronteira: a criminalidade na fronteira meridional
do Brasil (1845-1889). Tese de Doutorado em História, PUCRS, 2012., p.196-202. Portanto, a comparação
clássica realizada por Fernando H. Cardoso entre as charqueadas rio-grandenses escravistas e os saladeros com
mão de obra assalariada deve ser relativizada, servindo principalmente para a segunda metade do século XIX
(CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977).
77
mencionado anteriormente, Francisco Maciel era um dos maiores saladeristas de Montevidéu.
Contudo, suas redes de relações com comerciantes cariocas também lhe colocaram na posição
de um dos maiores traficantes platinos.83 Nesta condição, Maciel deve ter abastecido com mão
de obra africana muitos saladeros, incluindo o de Francisco de Medina – outro rico fabricante
de tasajo. Conforme Monquelat, Medina teria empregado cerca de 200 trabalhadores nas suas
diferentes unidades produtivas, sendo que mais de 100 eram escravos.84 Estudando a produção
do tasajo em Buenos Aires, Andrew Sluyter também teceu as mesmas considerações e
acrescentou que era possível que parte significativa da mão de obra nos saladeros platinos fosse
realizada por escravos, libertos ou descendentes de escravos nascidos livres.85

Portanto, os complexos fabris aqui estudados dificilmente teriam sido montados sem a
existência da escravidão africana. Escrevo isto não apenas pensando no seu uso como mão de
obra, mas numa interpretação mais abrangente. O tráfico atlântico imprimia um triplo fator
sobre a economia das fábricas de carne platinas e pelotenses. Ao mesmo tempo em que traziam
escravos para o sul da América (possibilitando a ampliação da produção) e para as plantations
brasileiras e cubanas (aumentando o número de consumidores), os negreiros necessitavam de
um grande volume de mantimentos para cruzar o Atlântico e lá se manterem por semanas até o
fechamento de todos os negócios com os intermediários africanos. Analisando uma amostra de
50 navios que realizaram este comércio a partir do porto do Rio, entre 1827 e 1830, Manolo
Florentino percebeu que 97% deles carregavam charque. As quantidades eram suficientes para
garantir a alimentação dos africanos na viagem de volta, podendo, cada embarcação, carregar
quase 2 toneladas de carne-seca em seus porões. Um planejado suprimento dos navios era
fundamental no sucesso do empreendimento dos traficantes, podendo reduzir a taxa de
mortalidade e aumentar os lucros dos mesmos.86 Além do mais, pode-se dizer que, depois de
muitas semanas de viagem, os escravos desembarcavam no Brasil já acostumados com uma das
refeições que faria parte de suas vidas, talvez para sempre.

83
PRADO, Fabrício. A carreira transimperial de don Manuel Cipriano de Melo no rio da Prata do século XVIII.
Topói, v. 13, n. 25, jul./dez., 2012, p. 175.
84
MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2010.
85
Conforme Sluyter, em 1810, a população escrava e seus descendentes formavam 1/3 da população de Buenos
Aires (SLUYTER, Andrew. Op. cit., p. 103-105).
86
Em épocas de alta demanda, os navios ancorados nos portos africanos demoravam de 4,5 a 5,5 meses para lotar
os negreiros. O retorno do Congo-Angola para o Rio de Janeiro durava, em média, 68 dias. Tudo deia ser calculado
pelo traficante. Um exemplo concreto pode ser dado no caso do fretamento da nau Arsênia. Ela partiu para
Cabinda e levava para a manutenção da tripulação e dos escravos 8 sacas de feijão, 13 de arroz, 110 de farinha, 130
arrobas de charque, 8 pipas de aguardente e 160 alqueires de sal. Em sua viagem anterior ela havia trazido 272
escravos para o Rio de Janeiro (FLORENTINO, Manolo. Op. cit, p. 122-125; 174).
78
Sluyter chamou de tasajo trail esta rota mercantil de carnes que ligava os portos platinos
à Cuba e que manteve-se forte ao longo de todo o século XIX. Além disso, segundo o autor, ao
mesmo tempo em que os principais consumidores do tasajo platino eram os escravos cubanos, a
mão de obra utilizada na fabricação do produto, pelo menos nas primeiras décadas de seu
funcionamento, também era cativa. Portanto, como já se disse, o tasajo era fabricado “por” e
“para” escravos. Neste sentido, a rede mercantil estabelecida entre o Rio Grande do Sul e os
portos brasileiros do sudeste e do nordeste possuía uma conformação semelhante. O charque
pelotense também era fabricado “por” e “para” escravos, embora não fosse consumido
exclusivamente por estes. Contudo, este comércio não se dava somente no interior de ambas as
rotas intra-imperiais. Enquanto os platinos também exportavam suas carnes para os portos
brasileiros, o Rio Grande do Sul, principalmente na primeira metade do oitocentos, remeteu
porções significativas de charque para Havana. 87 Portanto, esta transversalidade comercial
originada nos finais do setencentos, e viabilizada pelos comerciantes situados no interior das
redes trans-imperiais, tiveram significativa importância no processo de formação dos
complexos fabris. Elas garantiram a entrada de escravos africanos no Rio da Prata e o acesso
aos mercados consumidores trans-imperiais para ambos os produtores.

Muitas vezes, estas interações sociais eram estimuladas pelos próprios administradores
ilustrados que ocuparam os seus cargos durante o colonial tardio. O Vice-Rei Juan José de
Vértiz, por exemplo, “hombre activo y progresista”, logo que assumiu seu cargo, em 1778, fez
chegar ao Cabildo de Buenos Aires uma Dissertación de la Sociedad de Sevilla, sobre el
método, reglas y ventajas de la salazón de carnes. No mesmo ano, o Cabildo fez uma proposta
de instalação de uma fábrica, mas ela era repleta de exigências e a Coroa não a aceitou. O
sucessor de Vértiz no Vice-Reinado, o Marquês de Loreto (1784-1789), voltou a incentivar os
investidores, mas desta vez defendeu que os saladeiristas deviam agir por conta própria e sem
subsídios do Estado. Foi nesta época que os saladeros se desenvolveram em Montevidéu.
Conforme Montoya, “la industria de carnes saladas surgió en el Río de la Plata por la sola
iniciativa de algunos particulares que afrontaron por su cuenta y riesgo todas las dificultades
que ofrecía la empresa”. Mas segundo ele, “justo es reconecer que sus esfuerzos siempre

87
Segundo Helen Osório, os anos de maior pico foram 1814, 1816 e 1818, quando os cubanos receberam 9,7%,
6,5% e 13,1% do volume total exportado pelo Rio Grande do Sul (OSÓRIO, Helen. O império português no sul da
fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007, p. 198). Na década de 1840, este
mesmo índice atingiu, em alguns anos, cerca de 10% (BERUTE, Gabriel Santos. Atividades mercantis do Rio
Grande de São Pedro: negócios, mercadorias e agentes mercantis (1808-1850). Tese de Doutorado. PPG-História
da UFRGS, 2011, p. 73).
79
contaron com la adhesión y estímulo de las autoridades del Virreinato y de los Ministros de la
Corona”.88

As relações de sociabilidade entre fabricantes de carnes, agentes mercantis e autoridades


coloniais podia ocorrer nas principais cidades atlânticas, em salões, clubes, nos campos de
batalha, nos portos marítimos ou nos próprios saladeros. Montevidéu, enquanto zona de
interação destes agentes, também constituiu-se num notável espaço de sociabilidade destas
elites. Cultivando a cultura teatral de Cadiz, Cipriano de Melo, oficial da Coroa espanhola
encarregado de reprimir o contrabando em Montevidéu, fez questão de instalar um teatro na
cidade – ponto certo de circulação de saladeiristas, proprietários e burocratas. Conforme Prado,
Cipriano hospedava em sua casa importantes comerciantes, traficantes e governantes, e lhes
convidava para os seus diversos jantares. Poder político, redes de influência e capital mercantil
andavam juntos. Além disso, alguns dos capitães portugueses que direcionavam seus navios
para Montevidéu eram parceiros de negócios de Cipriano, ironicamente o encarregado em
combater o contrabando. Sua rede envolvia parentes e amigos envolvidos no comércio de
açúcar, tabaco e escravos entre Montevidéu e o Rio de Janeiro, por exemplo.89

As muitas décadas de convivência em uma fronteira não muito definida colocava luso-
brasileiros e hispano-platinos numa relação conflituosa, mas que, dependendo das conjunturas e
dos fatores e recursos que estavam em jogo, podia ser utilizada positivamente. Com relação a
isto é possível oferecer mais exemplos. Conforme o depoimento de um padre, conhecido de
Francisco Maciel, este saladeirista, que já fabricava carnes em barris, decidiu produzir charque
e toucinhos “ao estilo dos portugueses do Brasil”. Para tal intento, em 1786, o saladeirista
“mandou trazer expressamente do Brasil homens inteligentes no ramo”.90 As trocas de
experiências também podiam se dar por intermédio de cartas e anotações diversas. O
saladeirista Francisco de Medina possuía entre os seus bens inventariados diversos livros de
economia e ciências, entre outros, assim como papéis onde constavam cópias de um método
para fazer tasajo, um volume contendo apontamentos sobre a salga de carnes e o
aproveitamento das graxas e sebos, além de uma carta escrita em português por um tal José
Arouche sobre os mesmos métodos fabris. 91 O próprio Medina, no início dos seus

88
Essa negociação com as autoridades rendia medidas políticas importantes, como as Ordens Reais de 10.04.1793
e 20.12.1802, onde as carnes salgadas estiveram livres de todo o direito de introdução, extração e comércio
(MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 17-21).
89
Ao analisar as pessoas que faziam parte da rede de Cipriano, Prado ofereceu um modelo do tipo de relações
estabelecidas pelos saladeiristas platinos, demonstrando que os mesmos podiam apresentar íntimas conexões com
comerciantes luso-brasileiros e autoridades coloniais de prestígio (PRADO, Fabrício. Op. cit., 2012).
90
CASTELLANOS, Alfredo. Op. cit., p. 31-32.
91
MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 24; MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2010.
80
empreendimentos na indústria pesqueira, contou com o auxílio de “arponeros” ingleses e
portugueses.92 Tratam-se de indicações de que salgadores e comerciantes luso-brasileiros
mantinham próximo contato com os saladeros de Montevidéu, ou correspondiam-se com os
seus proprietários, transmitindo conhecimentos técnicos e trazendo outros que poderiam ser
levados para o Rio Grande. Tais conexões revelam a circulação de pessoas em ambos os lados
da fronteira num processo de mútua influência.

Como tenho dito, estas experiências não significavam que as relações entre os grupos
que interagiam tanto na fronteira terrestre quanto nos portos marítimos fossem necessariamente
de cooperação. Em 1801, luso-brasileiros e hispano-americanos engalfinharam-se em uma nova
guerra, desta vez pela conquista das Missões. Não foi o primeiro e nem seria o último conflito
belicoso entre ambos e tal contenda militar não cessou o comércio realizado entre os portos
atlânticos ao sul. Tanto que em 1803, os charqueadores, os estancieiros e os comerciantes rio-
grandeses voltaram a reclamar com o governo central – prática em que eles eram muito
talentosos e que faria escola ao longo do século XIX. O comércio entre Montevidéu e os portos
brasileiros continuava afetando negativamente a economia do Rio Grande e desta vez foi o
próprio Governador da Capitania, Paulo Gama, que reclamou com Lisboa.93

Como se verá em capítulos posteriores, a concorrência entre os charqueadores


pelotenses e os saladeiristas platinos foi corrente ao longo do século XIX e compôs um cenário
de conflitos e disputas que marcaram a vida na fronteira, envolvendo diferentes grupos sociais.
Se durante o período Joanino, os rio-grandeses apoiaram a política expansionista da Corte, com
a ocupação da província Cisplatina (1822-1828), a interação social e econômica com a
campanha oriental e a praça de Montevidéu tornou-se ainda mais notável. Neste processo, os
rio-grandenses começaram a apropriar-se dos vastos campos da Banda Oriental. As
consequências desta tensa relação fronteiriça resultaram em algumas importantes guerras ao
longo do oitocentos e tratarei delas, e da participação dos charqueadores nas mesmas, em
capítulos posteriores. No momento, a questão que interessa é demonstrar a permanência das
relações sociais entre comerciantes e charqueadores de ambos os lados da fronteira, assim como
a transmissão de conhecimentos técnicos entre os mesmos. Aquela fronteira, como muitos
atestaram, não foi somente um espaço de conflitos. Ao lado destes havia relações de
reciprocidades entre os súditos de ambas as coroas, que permaneceu forte após o processo de
independência. Isto se explica pelo simples fato de que as relações familiares, de amizade, de

92
MONQUELAT, A. F. Notas à margem da escravidão. Pelotas: Ed. da UFPel, 2009, p. 80.
93
Ofícios de 25.07.1803 – A.1.01 (Arquivo Histórico do RS).
81
compadrio, ou seja, as relações mais afetivas, conviviam junto com relações de negócios e
alianças militares e políticas, configurando uma complexa interação social característica de uma
sociedade de fronteira.94

Um exemplo destas conexões pode ser dado pelo próprio comportamento de alguns
charqueadores nos meses iniciais da Revolta Farroupilha (1835-1845). Com medo de terem
seus negócios prejudicados, pelo menos 4 charqueadores migraram para Montevidéu levando
seus escravos e capitais, vindo a erguer outros saladeros no país vizinho. Entre os mesmos
estavam Antônio José Gonçalves Chaves e o seu sogro Joaquim José da Cruz Secco. É
interessante notar que sua migração foi facilitada pelo fato dos mesmos pertencerem a uma rede
de mercadores com conexões na Banda Oriental. Chaves chegou em Montevidéu dizendo à
polícia uruguaia que iria morar na casa de Diego Martínez. Talvez este cidadão fosse parente de
Francisco Martínez Nieto. Em 1836, este saladeirista, que provavelmente já conhecia Chaves de
muito antes, alugou os escravos deste para trabalharem em sua fábrica.95

Francisco Nieto possuía certo destaque entre os saladeiristas uruguaios, pois foi ele o
primeiro a utilizar caldeiras a vapor nas graxeiras. A primeira caldeira deste tipo que se tem
notícia foi importada da Inglaterra e chegou em Montevidéu no ano de 1831.96 Não demorou
muito e a ideia foi levada para Pelotas pelo charqueador Domingos José de Almeida (conforme
ele próprio).97 Ora, Almeida era sócio e grande amigo de Chaves e acredito que ambos, assim
como outros charqueadores, estavam muito bem sintonizados com as inovações que
desembarcavam em Buenos Aires e Montevidéu, por meio destas redes de relações sociais e
mercantis em que estavam inseridos. Um exemplo inverso desta troca entre charqueadres e
saladeiristas pode ser dado no saladero de Juan Hall, em Montevidéu. Em 1841, conforme
Anibal Pintos, Hall “incorporó algunos adelantos (…) como se acostumbraba a utilizar en el
Brasil”. Pintos se referia à cancha, espaço com piso liso onde o animal era esfolado e carneado
e cujas extremidades apresentavam um declive para que o sangue escorresse em canaletas até o
rio, e o torno, que estava acoplado ao guindaste utilizado para erguer e transportar o bovino

94
ZABIELLA, Eliane. A presença brasileira no Uruguai e os Tratados de 1851 de Comércio e Navegação, de
Extradição e de Limites. Porto Alegre: PPG-História da UFRGS, Dissertação de Mestrado, 2002; SOUZA, Susana
B. e PRADO, Fabrício. Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e política no século XIX. In: GRIJÓ, Luiz
A.; KUHN, Fábio; GUAZZELLI, César; NEUMANN, Eduardo. Capítulos de história do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: EDUFRGS, 2004; MIRANDA, Márcia Eckert. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime,
fiscalidade e fronteira na Província de São Pedro (1808-1831). São Paulo: Hucitec, 2009; THOMPSON FLORES,
Mariana F. da C.; FARINATTI, Luis A. A fronteira manejada: apontamentos para uma história social da
fronteira meridional do Brasil (século XIX). In: HEINZ, Flávio (Org.). Experiências Nacionais, temas
transversais: subsídios para uma história comparada da América Latina. São Leopoldo: Oikos, 2009, p. 145-177.
95
MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2010; 2012.
96
PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 172.
97
Carta de Domingos para Manoel L. do Nascimento, 15.11.1862. CV – 792, in: Anais do AHRS, v. 3, 1978.
82
abatido e laçado até a cancha.98 De fato, tanto o “guindaste” quanto a “cancha” já existiam em
Pelotas desde a década de 1820, como deixou registrado Nicolau Dreys. 99

Estas trocas devem ter se estreitado mais ainda durante a Guerra dos Farrapos, pois,
como demonstrou César Guazzelli, o porto de Montevidéu foi seguidamente utilizado pelos
rebeldes durante o conflito.100 No meado do século, o número de brasileiros com saladeros no
Uruguai, nas margens fluviais que faziam fronteira com o Rio Grande do Sul, já chegava a mais
de 10 proprietários. Dentre eles estavam Delfino Lorena de Souza, João Jacintho de Mendonça,
Honório Luís da Silva e João Vinhas, entre outros.101 Vinhas, que também possuía uma
charqueada em Pelotas, havia comprado o terreno (onde construiu o seu saladero) de Samuel
Lafone, comerciante inglês nascido em Liverpool, e um dos principais saladeiristas do
Uruguai.102 Lafone trouxe mudanças no que diz respeito à higiene dos estabelecimentos, sendo
imitado por outros empresários. 103 Imigrantes trazendo capitais não foram raros no Rio da
Prata, sendo que os mesmos agiam por meio de uma cadeia de informações que ligava as
colônias às praças mercantis ibéricas. Em 1779, por exemplo, Manuel Melián informou-se de
que a Coroa espanhola procurava abastecer a Real Armada com carnes salgadas fabricadas na
América. Foi até Cadiz, onde reuniu todas as informações sobre o processamento de carnes e
depois embarcou para o Prata com o fim de arriscar-se nos negócios.104 As trajetórias de Lafone
e Melián são elucidativas de como os estrangeiros (muitos deles anglo-franceses) chegavam da
Europa com significativos recursos financeiros, algo que parece não ter ocorrido em Pelotas
com a mesma desenvoltura.105

Portanto, as inovações tecnológicas, a resolução de problemas técnicos e o tão falado


“espírito empreendedor” podiam marcar a trajetória tanto de colonos, quanto de membros da
burocracia imperial ou comerciantes vindos das metrópoles. Tratando-se de um ramo de
negócios relativamente recente e envolvendo um número não muito grande de empresários, os
equívocos e os fracassos devem ter sido muito recorrentes. Contudo, visto a proximidade dos
circuítos mercantis e a inserção nas mesmas redes mercantis, as inovações pareciam ser

98
PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 173.
99
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IEL, 1961, p. 134.
100
GUAZZELLI, César A. B. A República Rio-grandense e a praça de Montevideo (1836-1842). In: HEINZ,
Flávio; HERRLEIN JR., Ronaldo. Histórias regionais do Conesul. Santa Cruz: Edunisc, 2003, p. 147-166.
101
Relação das charqueadas existentes na fronteira do Rio Grande do Sul, s/d. (Coleção de manuscritos. Fundo Rio
Grande do Sul. BN do Rio de Janeiro).
102
MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2012, p. 129.
103
PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 173.
104
PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 147-148.
105
Um outro comerciante revelou em suas memórias que havia chegado no rio da Prata, em 1790, munido de
grandes capitais para investir em saladeros e, segundo ele, baixo a sua direção, teriam surgido 11 estabelecimentos,
entre grandes e pequenos. (BARRIOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 148-149).
83
comumente incorporadas tanto por parceiros de negócios como por concorrentes. Neste sentido,
no interior destas redes de relações, o sucesso de um empreendimento era imitado pelos demais,
enquanto o fracasso devia ser evitado. Daí que, numa realidade agrária, pré-industrial e com
uma diminuta comunidade mercantil e fabirl, além de um contexto de profunda interação entre
os diversos agentes nela envolvidos, as ações individuais tomavam proporções mais decisivas.
Um contemporâneo, em 1794, dizia ter conhecido os catalães Don Miguel Ryan e Don Manuel
Solsona, que tomando o exemplo de sucesso de Francisco Medina, resolveram remeter carnes
para Espanha, “y à imitación de estos van inclinándose algunos otros”. 106 Neste sentido, não se
tratava apenas de um espaço aberto às inovações de caráter econômico, mas igualmente de
transformações de ordem sociocultural.107

Como vem sendo demonstrado, as interações socioeconômicas não se davam somente


entre sul-americanos e ibéricos. Por se tratarem de cidades portuárias, no caso de Buenos Aires
e Montevidéu, ou bastante próximas a um porto marítimo, como Pelotas, o mundo Atlântico
estava ao alcance dos mesmos e os colocavam em contato com um número diverso de agentes
mercantis. Com a abertura dos portos, em 1808, o fluxo de estrangeiros para o porto de Rio
Grande se ampliou. Como notou Gabriel Berute, o comerciante inglês John Luccock, que esteve
em Rio Grande em 1810, deixou anotado o impacto daquela lei, pois os produtos ingleses já
vinham substituindo os portugueses de forma notável, devido aos preços mais atrativos e o
“gosto pela exibição” que vinha crescendo entre as pessoas “pois que as possibilidades que a
riqueza concedia se escoavam por vários canais”. 108

Tratando-se de uma cidade portuária, a população estrangeira de Montevidéu devia ser


bem maior que a de Pelotas. Em 1835, dos 128.371 habitantes do Estado Oriental, 23.404
residiam na capital. Com relação a estes índices, Pintos não computou o total de estrangeiros na
cidade, mas, no país inteiro, havia 25 mil europeus (quase 20% do total) e 4 mil brasileiros.109
No mapa populacional de 1833, Pelotas, cuja população total era de 10.873 habitantes,
apresentava 378 indivíduos classificados como estrangeiros brancos, sendo 185 portugueses, 40
espanhóis, 20 hispano-americanos, 34 franceses, 10 ingleses, 4 norte-americanos, além de
alemães, italianos e indivíduos de outras nacionalidades. Contudo, o percentual de negros
(cativos e libertos) em Pelotas superava muito os de Montevidéu. Enquanto a população “afro-

106
PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 148.
107
BARTH, Fredrik. Process and form in social life. London: Oxford, 1981. Em especial o Capítulo 6.
108
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: Livraria Martins,
1942, p. 122; BERUTE, Gabriel. Op. cit., p. 74.
109
PINTOS, Anibal B. Op. cit.,1971 , p. 169. O percentual da população em Montevidéu (18%) é confirmada por
BORUCKI, A., CHAGAS, K., STALLA, N. Op. cit., p. 7.
84
criolla” da cidade oriental, durante o colonial tardio, alcançou aproximadamente 25% do
total110, em Pelotas, no início dos anos 1830, os 5.623 escravos e os 1.137 libertos somados
ultrapassavam os 62% da população.111 Desnecessário lembrar que se tratava de uma população
considerada fixa e que tais estatísticas não dão conta dos agentes que se locomoviam no
cotidiano de ambas as localidades. Contudo, a partir dos dados enunciados, é possível supor que
enquanto os charqueadores pelotenses estavam mais rodeados de escravos e libertos, os
comerciantes e saladeiristas de Montevidéu, pelo próprio caráter portuário da cidade, tinham
um maior contato com os europeus. Tais características sociais devem ter deixado significativas
marcas socioculturais em ditos grupos de empresários. 112

No entanto, como já mencionei, isto não significa que estrangeiros não tenham buscado
investir nas charqueadas sul-rio-grandenses. Certamente o caso mais ilustrativo envolve o
francês Jean Baptista Roux – provavelmente um dos pioneiros em empregar mão de obra
assalariada nas charqueadas pelotenses. Instalando-se primeiramente em Triunfo, Roux passou
por Porto Alegre, Rio Pardo e Rio Grande até que, em 1846, arrendou a charqueada do
Visconde de Jaguari, em Pelotas. Neste estabelecimento, ele empregou trabalhadores de
diferentes nacionalidades juntamente com 30 escravos alugados, num empreendimento que, em
sociedade com Eugène Salgues, durou pouco mais de cinco anos.113 Décadas mais tarde, a filha
de Roux deixou registrado as lembranças da charqueada do pai:

“Tinha uma casa grande, com jardim, uma quinta com laranjeiras e outras
frutas. Perto um grande terreno, onde matavam os animais, beneficiavam as carnes e
couros, tinha centenas de trabalhadores entre bascos, franceses, espanhóis, argentinos,
correntinos, paraguaios, orientais e africanos. Para morar, tinham cabanas, muitos
tinham família. O trabalho era de quatro horas da manhã ao meio dia. (...). Depois os
homens iam se lavar na beira do rio e se divertiam cada qual a sua maneira. Os bascos
jogavam bola, os argentinos e correntinos cartas, que acabavam as vezes por
disputas”.114
Talvez nenhum charqueador tenha sido tão bem relacionado com estes comerciantes
estrangeiros como Antônio José Gonçalves Chaves. Além das suas próprias relações com

110
BORUCKI, A., CHAGAS, K., STALLA, N. Op. cit., p. 19.
111
Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833. Biblioteca Pública de
Pelotas (reproduzido por ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano (1780-1835). Pelotas:
Armazém literário, 1994, p. 98).
112
Com relação aos charqueadores pelotenses, tais fatores serão analisados no capítulo posterior. Na segunda
metade do século, Pelotas viu esta situação se inverter e um grande número de estrangeiros tomou conta das ruas
da cidade, como demonstro no capítulo 4.
113
OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento. Tese de
Doutorado em História, PUCRS, 2005, p. 115-116. De fato, Roux aparece com frequência nas escrituras públicas
dos cartórios de Pelotas no período (APERS).
114
LEITE, José A. Mazza. “Xarqueadas” de Danúbio Gonçalves: memória de um trabalho através da arte social.
Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2003. A memória parece ter sido escrita no final do século XIX e é
provável que haja um exagero quanto à quantidade de trabalhadores estrangeiros que, certamente, não eram vistos
às “centenas”.
85
Montevidéu, seu filhos circularam o mundo de forma tão diversificada que pareciam estar
inspirados pelo cosmopolitismo do pai. Em 1836, seu filho Tito encontrava-se nos Estados
Unidos, provavelmente em negócios, conforme o próprio relato do irmão. Quase na mesma
época, o primogênito, que administrava a charqueada do pai em Montevidéu, era Vice-Cônsul
brasileiro no Uruguai. Uma das filhas de Chaves casou-se com o comerciante inglês Robert
Barker e outro dos seus filhos formou-se médico, em Paris. Não causa surpresa que Saint-
Hilaire tenha deixado escrito o seguinte trecho sobre o charqueador: “O Sr. Chaves é um
homem culto, sabendo o latim, o francês, com leituras de história natural, conversando muito
bem”, em suma, “um dos homens mais esclarecidos da região”.115 Todo este conhecimento de
Chaves, assim como suas opiniões sobre política e economia, bastante liberais para a época,
foram transpostas para o papel entre os anos de 1817 e 1822, sendo impressos num único
volume.116

A impressão que se fica é que homens como Chaves procuravam manter relações
mercantis e pessoais com indivíduos de visão de mundo e interesses semelhantes e que
pertenciam a um restrito círculo de relações. O sogro de Chaves, Joaquim José da Cruz Secco,
numa das viagens para Montevidéu, foi acompanhado do comerciante francês Júlio Paulet,
proprietário de um brigue no porto de Montevidéu. Secco também possuía livros entre seus
bens inventariados, indicando que mantinha o gosto pelas letras.117 Um dos seus sócios, o
charqueador Domingos José de Almeida, foi o principal mentor intelectual da Revolta
Farroupilha, citando um repertório variado de pensadores e escritores da época nos muitos
artigos que escreveu na imprensa. Talvez o projeto mais ambicioso de ambos tenha sido a
construção do primeiro navio a vapor da região sul. As peças do mesmo foram trazidas dos
Estados Unidos (onde o filho de Chaves residia) e o projeto contou com o apoio do charqueador
José Vieira Vianna e do mercador José Marques Canarim – um súdito da Coroa portuguesa que,
conforme Fernando Osório, era nascido na Kanara, sudoeste da Índia. 118 A demonstração de
mais exempos das relações sociais mantidas pelos charquadores pelotenses com indivíduos de
outras regiões seria demasiado cansativo, mas os mesmos serão mencionados ao longo dos
capítulos.

Portanto, apesar dos irlandeses, franceses e ingleses não estarem tão presentes no
complexo charqueador escravista pelotense, seja como trabalhadores e mestres, seja como

115
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 103.
116
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil.
Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978.
117
Inventário de Thereza Angélica de Sá, n. 126, m. 10, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedoria. 1828 (APERS).
118
OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas. Pelotas: Armazém Literário, v. 1, 1997, p. 68.
86
proprietários, não resta dúvida de que parte significativa dos charqueadores interagiram
bastante com os estrangeiros, sobretudo, no porto de Rio Grande. De ambos os lados da
fronteira – as margens do Atlântico foram cenário de forte interação social entre hispano-
platinos, luso-brasileiros, norte-americanos e europeus de nacionalidades diversas. Diante de tal
cenário, não causa surpresa que se pudesse encontrar num jornal de Montevidéu o seguite
anúncio a respeito de um escravo fugido:

Um negro
Fugiu na tarde de 27 do corrente, de nome João, veste uma jaqueta tecido azul, muito
esfarrapada, calças de cor, muito sujas, é natural do Rio de Janeiro, fala portugês,
espanhol e genovês, lhe falta um pouco de cabelo na parte da frente da cabeça, de cor
muito negra (…) Quem o entregar na rua São Carlos (…) será bem gratificado.119

É possível concluir este capítulo reafirmando que, ao mesmo tempo em que os saladeros
competiam com as charqueadas pelos mercados consumidores e o acesso a certas mercadorias,
a interação social portuária e urbana representava uma substancial troca de culturas e ideias,
alimentada pela crescente circulação de burocratas, mercadores e mestres de salga pelas
margens do Atlântico, entre os muitos portos que compunham a rota desde Buenos Aires até
Recife, passando por Havana, Cadiz, Lisboa e Cork, entre outros. As conexões mercantis
estabelecidas no período colonial no interior das redes intra-imperiais acabaram condicionando
os mercados do tasajo e do charque na primeira metade do século XIX. Enquanto os pelotenses
tinham nos portos brasileiros os principais consumidores do charque, os platinos tinham em
Cuba sua principal compradora. Entretanto, isto não significa que o comércio não tomasse sua
forma transversal. Ainda no período colonial, o Rio Grande do Sul remeteu grandes
quantidades de charque para Cuba, enquanto as exportações platinas para o Rio, a Bahia e o
Pernambuco, sempre constituíram-se numa das grandes dores de cabeça dos charqueadores
pelotenses. Tanto no que diz respeito às exportações de charque, quanto às de carne salgada, a
concorrência platina foi lentamente corroendo o complexo charqueador pelotenses, como
demonstrarei adiante.

Portanto, não creio ser possível compreender a história da formação destes três pólos
fabris de forma separada, visto que eles estavam inseridos numa mesma conjuntura mercantil
atlântica que caracterizou o colonial tardio na América do Sul. Esta conjuntura envolvia um
espetacular aumento do tráfico atlântico de escravos num momento de expansão das plantations
açucareiras e cafeeiras nas Américas. Não fossem estas ligações que caracterizaram o colonial

119
Jornal El Nacional, edição de 30.09.1841 apud MONQUELAT, A. F. Charqueadores, Saladeristas y
Esclavistas. Pelotas: UFPel, 2010, p. 97 (tradução de Monquelat, grifos meus).
87
tardio, dificilmente as charqueadas e os saladeros teriam sido montados com tamanho sucesso
no período. Por outro lado, as redes de relações sociais entre comerciantes e autoridades
administrativas garantiram o abastecimento de escravos, o fornecimento de capitais, o
conhecimento técnico, além de favores políticos e informações preciosas sobre os mercados.
Neste contexto, é difícil destrinchar as malhas de mútua influência entre os dois complexos
fabris escravistas surgidos quase na mesma época. Se por um lado a competição entre hispano-
pltinos e luso-brasileiros fornecia um tempero adicional aos fabricantes de carne, por outro, a
interação cooperativa entre indivíduos pertencentes a impérios distintos também era praticada,
apresentando-se como a outra face da mesma moeda.

Apesar do crescimento do setor cafeeiro ter sido extraordinário no período aqui


analisado, o carro-chefe da economia colonial tardia foi o açúcar e foi a expansão açucareira
que garantiu o aumento da demanda por carnes secas e salgadas tanto no Caribe, quanto no
Atlântico Sul, entre 1650 e 1830. Se na América portuguesa, a produção de charque nordestino
e sulino tinha nas plantations açucareiras a sua principal consumidora, no Prata, Buenos Aires e
Montevidéu também tinham em Cuba, o principal mercado. Portanto, a economia atlântica se
movia neste contraste entre o doce e o salgado, entre o negro e o branco, entre a riqueza de
poucos e a pobreza de muitos. Mesmo que cada localidade pertencente ao mundo atlântico
possuísse as suas singularidades e fosse muito mais complexa que estes mencionados
contrastes, a sociedade escravista que se formou em Pelotas, como demonstro nos capítulos
seguintes, não poderia ser diferente daquele contexto. Portanto, examinar a formação da
sociedade pelotense no início do oitocentos e do complexo charqueador escravista que nela se
erigiu é examinar não apenas as elites que compunham as mais distantes regiões do Império
português, como também do próprio mundo atlântico…

88
3. UMA ALDEIA ESCRAVISTA: A PRIMEIRA GERAÇÃO DE
CHARQUEADORES E A SUA ELITE (1790-1835)

Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia


Leon Tolstoi

Na década de 1780, as oficinas de carne-seca nordestinas ainda não haviam entrado na


crise que desencadearia a sua decadência. Portanto, quando surgiram as primeiras charqueadas
na localidade em que viria a ser Pelotas, os mercados do sudeste e do nordeste da colônia ainda
estavam sendo abastecidos de charque por aquela região. Recentemente, a história de que o
português José Pinto Martins, charqueador em Aracati (no Ceará) teria migrado para o sul da
colônia após a seca de 1777, e instalado em Pelotas a primeira charqueada do local, foi
desconstruída.1 Pouco se conhece da fase inicial de instalação dos galpões de charquear em
Pelotas, mas quando Pinto Martins chegou na capitania sulina, provavelmente na passagem da
década de 1780 para a de 1790, o charque já era fabricado no Rio Grande em larga escala. No
entanto, o papel deste charqueador não deve ser desprezado. Caso não tivesse possuído alguma
importância nos primórdios do complexo charqueador pelotense, dificilmente Pinto Martins
teria sido lembrado como o grande “empreendedor” da localidade no século XVIII. Creio que a
contribuição de Pinto Martins para a história das charqueadas pelotenses não foi ter instalado a
primeira fábrica, mas sim, ter contribuído na abertura dos mercados nordestinos para o produto,
o que fez a produção aumentar em extraordinária escala. Mas vamos por partes.

Afirmei, anteriormente, que o saladeirista Francisco Maciel foi um grande traficante de


escravos em Montevidéu. Para obter sucesso nestes negócios, Maciel deveria possuir relações
muito próximas com os comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro, uma vez que a maior
parte dos escravos entrados no Prata vinha daquele porto. E, de fato, ele as possuía. Conforme
Fabrício Prado, em 1780, Maciel (que era grande parceiro de negócios do administrador de
Montevidéu, o senhor Cipriano de Melo) foi ao Rio de Janeiro “como delegado representando
os interesses dos mercadores de Montevidéu”. Desembarcando na cidade, reuniu-se com
comerciantes e autoridades locais “a fim de adquirir 90 escravos e comprar tabaco, açúcar e
tecidos”. No entanto, segundo Prado:

1
Conforme Vieira Júnior, em 1787, quando o Rio Grande do Sul já exportava grandes quantidades de charque para
o Rio de Janeiro, Pinto Martins ainda residia em Recife (VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. De Família,
Charque e Inquisição se fez a trajetória dos Pinto Martins (1749-1824). In: Revista Anos 90. Porto Alegre, v. 16. N.
30, 2009, p. 187-214.
89
(…) a parte mais importante de sua viagem foi restabelecer a rota de comércio entre o
Rio de Janeiro e o Rio da Prata. Maciel garantiu que navios portugueses seriam bem-
vindos a Montevidéu, especialmente alegando necessidade de aportar para reparos,
sendo esta uma garantia apresentada pelo segundo comandante Cipriano de Melo.
Apesar da estratégia suspeita, o Vice-rei recebeu garantia de don Brás Carneiro Leão,
mercador de “boa reputação e grande crédito” no Rio de Janeiro, dando testemunho da
confiabilidade das autoridades e dos mercadores de Montevidéu e garantindo a
segurança dos navios.2

A viagem de Maciel ao Rio demonstra o quanto eram importantes os acordos prévios e


as combinações com as autoridades luso-brasileiras num mercado atlântico onde o comércio
estava longe de ser livre, muito embora as elites coloniais moviam-se no seu interior com uma
notável autonomia. Neste contexto, figuras como Brás Carneiro Leão potencializavam ainda
mais o seu poder e influência, uma vez que o seu prestígio não decorria somente de sua riqueza,
mas também do número de pessoas que conheciam e dos favores que podiam conceder.
Carneiro Leão, enquanto membro de uma das famílias de comerciantes de grosso trato mais
importantes do Rio, relacionava-se com um grande número de negociantes e traficantes e, por
conta disto, devia ser procurado por vários indivíduos dos diferentes portos do Atlântico sul.3
Um destes indivíduos foi o comerciante rio-grandense Alexandre Inácio da Silveira.
Preocupado com as poucas cargas de sal que eram remetidas para as charqueadas do Rio
Grande, Alexandre recebeu da Coroa o direito de extrair o produto na capitania fluminense e
para isto contou com o apoio de Carneiro Leão, que lhe colocou a disposição os seus escravos.
Os mesmos foram empregados por Alexandre no trabalho das salinas de Cabo Frio, juntamente
com outros cativos e índios da localidade.4

No entanto, as conexões mercantis de Alexandre não estavam restritas ao Rio de


Janeiro. Em 1793, encontrando-se em Lisboa, ele peticionou à Rainha com o objetivo de
embarcar diversas mercadorias para o outro lado do Atlântico, entre as quais 2 mil moios de
sal.5 Em 1795, Alexandre voltava a incomodar a Rainha, desta vez escrevendo de Recife, onde
estava realizando outros negócios envolvendo carne-seca e sal.6 A preocupação com o sal se
dava pelo fato de que ele próprio investia seus capitais na fabricação de carnes em barris e nesta

2
PRADO, Fabrício. A carreira transimperial de don Manuel Cipriano de Melo no rio da Prata do século XVIII.
Topói, v. 13, n. 25, jul./dez., 2012, p. 174.
3
Sobre este grupo de comerciantes, ver FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto:
mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790 -
c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
4
MONQUELAT, A. F. Diário da Manhã. Pelotas, 22 de novembro de 2010.
5
MONQUELAT, A. F. Desfazendo mitos (notas à história do Continente de São Pedro). Pelotas: Ed. Livraria
Mundial, 2012, p. 63-67. Alexandre dizia encontrar-se em Lisboa por quase um ano e meio.
6
Ofício de 14.02.1795. AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, D. 296 (Projeto Resgate).
90
empreitada pareceu trabalhar em parceria com João R. Pereira de Almeida, um dos mais ricos
comerciantes de grosso trato do Rio e que também remetia carnes para Lisboa, como mencionei
no capítulo anterior.7 Em seus requerimentos, era comum Alexandre argumentar no sentido de
querer o melhor para o comércio de todas as capitanias e o desenvolvimento do Reino,
reproduzindo uma retórica imperial provavelmente compartilhada por outras elites coloniais.8

Apesar de ter conseguido alguns pareceres favoráveis aos seus requerimentos, os


entraves e barreiras com relação ao comércio de sal cessaram somente em 1801, quando o
estanco do produto foi extinto.9 Neste processo, Alexandre da Silveira destacou-se como um
dos principais intermediários entre os comerciantes e estancieiros rio-grandenses e as
autoridades imperiais, apresentando-se à Rainha como procurador “de todos os moradores da
Capitania do Rio Grande do Sul”. 10 Mas de onde provinha tal legitimidade? Alexandre era neto
do alferes Antônio de Mendonça Furtado e dona Isabel da Silveira – casal tronco de uma das
famílias mais importantes da capitania no século XVIII. Conforme Martha Hameister, as filhas
de Furtado, oriundas da Ilha do Faial, tinham o “tratamento de Dona desde que chegaram ao
Continente” e “seus maridos não faziam parte do contingente de camponeses de poucas posses
ou de homens de ofício”. As irmãs Silveira, como ficaram conhecidas, “casaram-se dentro do
seleto grupo de detentores de sesmarias de grandes proporções, de grandes rebanhos de gado,
arrematadores de contratos e oficiais da Câmara”.11 Portanto, a parentela de Alexandre formava

7
Ofício de 07.08.1801. AHU-ACL-CU-019, Cx. 5, doc. 394 (Projeto Resgate).
8
Em 1795, comerciantes do Rio Grande pediam para que suas embarcações retornassem da Bahia e Pernambuco
com sal, ao invés de terem de improvisar lastro de areia. Segundo eles, este comércio servia “a todas as capitanias
de Portugal especialmente a de Pernambuco e Rio Grande, que ambas exportam os gêneros que tem de sobras nos
seus países e recebem o que precisam como Pernambuco que agradece as porções de carnes e mais mantimentos
que vão do Rio Grande pela esterilidade em que se acha (…) e pode exportar para o Rio Grande o sal que sobra nas
suas oficinas”. AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, D. 296 (Projeto Resgate).
9
Como o Rio Grande do Sul não produzia sal, a sua importação sempre foi essencial para o funcionamento regular
das charqueadas. Portanto, a montagem do complexo charqueador nos fins do século XVIII e início do século XIX,
dependeu dos fluxos deste produto para o sul da América lusitana e da produção das salinas brasileiras. Como o
consumo do produto cresceu bastante ao longo dos setecentos, em meados do mesmo século, Portugal estabeleceu
uma legislação especial para o comércio de sal no Brasil. Ao mesmo tempo em que visava o aumento da
arrecadação tributária com os contratos de comércio, a legislação proibia a ampliação das salinas de Pernambuco,
Cabo Frio e Rio Grande do Norte. Portanto, entre 1755 e 1801 vigorou o regime de monopólio sobre as transações
envolvendo o sal e seu abastecimento não podia ser feito pelos rio-grandenses através de importações diretas,
tornando-se necessária a sua importação pelos chamados “portos do Estanco”, ou seja, na Bahia, Rio de Janeiro,
Santos ou Recife. Em 1801, a extinção deste monopólio possibilitou a livre comercialização do sal e a ampliação
da produção nas salinas brasileiras. O fim da antiga prática deve ter sido mais um dos fatores que favoreceram o
desenvolvimento do complexo charqueador no período (CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista
gaúcha no século XIX. Niterói: ICHF/UFF, Dissertação de Mestrado, 1983, p. 109-112; 201).
10
Ofício de 09.06.1795. AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, D. 298 (Projeto Resgate).
11
HAMEISTER, Martha. Para dar calor à nova povoação: Estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir
dos registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado. PPGHIS/UFRJ, 2006, p. 163.
91
um poderoso grupo da elite local e ele, assim como outros de seus parentes, constituiu-se num
importante mediador entre a capitania e Lisboa.12

Figura 3.1 – Sesmaria do Monte Bonito e Sesmaria de Pelotas (início do século XIX)

Fonte: GUTIERREZ, Ester. Barro e Sangue: mão de obra, arquitetura


e urbanismo em Pelotas (1777-1888). Pelotas: Universitária, 2004.

Esta família teve papel proeminente na história de Pelotas. O município originou-se em


um território inicialmente formado por 7 sesmarias concedidas a diferentes proprietários. Mas
as fábricas de carne, estabelecidas a partir dos anos 1780, ocupavam principalmente o espaço
geográfico formado por duas destas sesmarias (separadas pelo arroio Pelotas). Uma levava o
nome deste próprio arroio e a outra, chamada Monte Bonito, concentrou o maior número de
charqueadas, tanto nas margens do canal do São Gonçalo, quanto do arroio Pelotas. Ambas as

12
Uma vez que os membros da família atuaram em diferentes atividades econômicas e ocuparam distintos cargos,
ela também foi estudada por outros historiadores que analisaram as elites sul-rio-grandenses no século XVIII. Ver,
por exemplo, KUHN, Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa -
século XVIII. Tese de Doutorado. Niterói: PPG em História da UFF, 2006; COMISSOLI, Adriano. Os “homens
bons” e a Câmara municipal de Porto Alegre (1767-1808). Porto Alegre: Gráfica da UFRGS, 2008; MARQUES,
Rachel dos Santos. Por cima da carne seca: hierarquia e estratégias sociais no Rio Grande do Sul (c. 1750-1820).
Dissertação de Mestrado, UFPR, 2011. Os maridos das irmãs Silveira são comumente referidos pelos mesmos
como o “bando dos cunhados”.
92
sesmarias eram propriedade das irmãs Silveira e Alexandre era filho de uma delas: a dona
Maria Antônia.13

Portanto, não é difícil imaginar de onde se originava o prestígio social de Alexandre


Inácio da Silveira. Ao atuar no interior das rotas mercantis envolvendo carnes em barris,
charque, sal e escravos, Alexandre conheceu um grande número de autoridades administrativas
e negociantes, entre os quais devia estar Pinto Martins, que era comerciante ativo nos portos do
nordeste e residia em Recife. É muito provável que ambos tenham tido seus primeiros contatos
no interior destes circuitos, além de tantos outros comerciantes que também compartilhavam da
longa rota mercantil que se estendia desde Buenos Aires até Recife, sem contar Lisboa e os
portos da África. Um forte indício de que Pinto Martins pertencia a uma destas redes mercantis
atlânticas que tiveram papel direto no desenvolvimento das charqueadas em Pelotas pode ser
visto num requerimento datado de outubro de 1796. O documento foi assinado conjuntamente
por comerciantes baianos e rio-grandenses e os mesmos, proclamando-se os “Fiéis Vassalos de
Vossa Majestade”, argumentavam:

A colônia do Rio Grande, que tem nos seus vastos campos um manancial inexaurível
de riquezas em pães e gados, e porventura de outros gêneros que o tempo, a cultura, o
aumento e a facilidade de meios industriosos descobrirão, jazia inerte e pobre, fazendo
um pequeno e pouco animado comércio de meras permutações. Nós, Senhora, a
tiramos daquele desalento, enviando lá, anualmente, mais de 30 embarcações, além do
dobrado número que vai do Rio de Janeiro e Pernambuco, fazendo algumas duas e três
viagens no ano, e que lhes levam meios de mais cômoda subsistência e de ampliar a
cultura dos campos, onde se veem já os Povos multiplicados, fartos, contentes e
aplicados – com energia indizível a reproduzir as verdadeiras e mais certas riquezas
dos Estados.14

Um dos primeiros a assinar este documento foi exatamente Pinto Martins, revelando que
pertencia à rede mercantil mencionada. O trecho não poderia ser mais eloquente. Os mesmos
comerciantes, sem nenhuma modéstia, afirmavam que eles retiraram a capitania sul-rio-
grandense do marasmo econômico em que se encontrava, substituindo uma época em que ela
vivia de “meras permutações” por outra de prosperidade, onde os povos encontravam-se
“fartos” e “contentes”. A abertura dos mercados consumidores do nordeste da colônia foi a
responsável por esta “nova carreira” ou o “novo comércio”, como os próprios negociantes
argumentavam. E de fato, como demonstrou Helen Osório, as primeiras remessas do charque
rio-grandense para o nordeste ocorreram entre 1789 e 1790, o que respalda as afirmações dos
mesmos. A “conquista” do mercado consumidor nordestino fez as exportações de charque rio-

13
Para uma detalhada descrição das mesmas ver GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um
estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel, 2001.
14
Ofício de 01.10.1796. AHU-ACL-CU-019, Cx. 4, doc. 318.
93
grandense mais do que quadruplicarem entre 1787 e 1797.15 Ou seja, para aqueles que viveram
próximo às margens dos rios Pelotas e São Gonçalo e puderam presenciar este boom, realmente
tratou-se de uma transformação sem precedentes.
Portanto, o feito narrado pelos comerciantes que assinaram o requerimento, e dentre os
quais estava o próprio Pinto Martins, parecia não ser exagero. Este negociante pertencia a uma
importante rede mercantil com agentes estabelecidos em Salvador e Recife e os mesmos,
associados a outros negociantes de Rio Grande e do Rio de Janeiro, projetaram ampliar a
produção do charque rio-grandense para exportá-lo aos portos do nordeste, já que, antes disso,
os mesmos eram remetidos somente para a capitania fluminense. As secas do início da década
de 1790 tornaram este novo comércio ainda mais fundamental, pois fez aumentar bastante a
demanda por carne-seca nos engenhos nordestinos, uma vez que as oficinas do sertão
encontravam-se em grandes dificuldades. Nas palavras dos mesmos comerciantes que
assinaram o requerimento:

Grande parte da costa e sertão do Brasil padece por seis ou sete meses falta de carnes,
não descendo as boiadas pelas chuvas e inundações do inverno ou pelas secas do estio.
Então as carnes curadas são o único alimento dos pobres mesmo das cidades e todo o
ano o são das escravaturas nas ditas povoações, por maior barateza, por indispensável
necessidade dos engenhos, afastados da borda d’água, aos que não chega nenhum
gênero de pescado, geralmente caro onde o há.16

Note-se que as exigências desta demanda acabaram condicionando o tipo de carne


fabricada. Embora Alexandre da Silveira prometesse remeter carnes de moura para a Marinha
reinol, foi o charque que vingou naquelas terras. O certo é que após as secas de 1791-92, Pinto
Martins, que já conhecia as técnicas do charqueamento em Aracati, decidiu migrar de vez para
o Rio Grande onde as possibilidades de instalar uma nova oficina de carne-seca eram bastante
animadoras. Creio que, antes e durante este processo de mudança, Pinto Martins tenha tido
contato com comerciantes do Rio Grande e do Rio, quando ficou sabendo das favoráveis
condições para se fabricar charque no extremo sul da colônia. Em Recife, ele deve ter
conhecido o inventivo Alexandre da Silveira, acostumado a negociar por aquelas bandas, e este
pode ter sido uma das pessoas que convenceram Martins a migrar para o Sul. Sou inclinado a
pensar nisso pelo simples fato de que, após chegar à capitania do Rio Grande, Pinto Martins
arranchou-se exatamente nas terras da família de Alexandre, escolhendo um terreno próximo às

15
OSÓRIO, Helen. O império português no sul da fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto
Alegre: UFRGS, 2007.
16
Ofício de 01.10.1796. AHU-ACL-CU-019, Cx. 4, D. 318 (Projeto Resgate).
94
margens do arroio Pelotas, onde ergueu a sua charqueada, deve ter tido a assistência da família
Silveira e permaneceu ali até o fim de sua vida. 17

Uma leitura atenta do testamento e inventário post-mortem de Pinto Martins, abertos em


1827, oferece um outro suporte para estas afirmações. A prova mais fundamental desta longa
relação entre Pinto Martins e a família Silveira foi que, em seu testamento, o charqueador, que
sempre manteve-se em estado de solteiro, revelou ter tido 3 filhos, sendo que uma das mães, a
parda Antônia, havia sido escrava na Fazenda Pelotas (a principal propriedade da família
Silveira na época), e outra delas, “Francisca crioula forra”, havia sido cativa do charqueador
João Duarte Machado – genro de dona Dorotéia da Silveira, irmã de Alexandre. Estas relações
de Pinto Martins com as mencionadas forras são muito reveladoras da proximidade que ele
possuía com a família Silveira e seus muitos escravos e agregados.

Como atestam diferentes historiadores, a família de Pinto Martins era uma das mais
notáveis na produção e no comércio das carnes no norte e nordeste da colônia. Portanto, sua
migração não resultou em uma ascensão social, pois Martins já era membro das elites da
capitania cearense. 18 Tal posição social pode ter facilitado o seu contato com Alexandre e
legitimado a sua aproximação com os Silveira. Além do mais, Pinto Martins não migrou
sozinho, pois o seu irmão Antônio, que negociava sal no nordeste da colônia, residia com ele na
charqueada. A fonte de prestígio dos irmãos certamente decorria do fato deles conhecerem as
principais rotas mercantis do nordeste da colônia, incluindo os seus principais comerciantes e as
limitações e possibilidades daqueles mercados. O presente capítulo busca analisar esta nova
sociedade surgida nas margens do São Gonçalo e do Pelotas durante a Era de Pinto Martins.

3.1 UMA CIDADE NEGRA NO SUL DO BRASIL: TRÁFICO ATLÂNTICO, REDES


MERCANTIS E A ELITE CHARQUEADORA PELOTENSE NAS PRIMEIRAS DÉCADAS
DO OITOCENTOS

Nos primeiros anos de funcionamento das charqueadas, Pelotas não era nada mais do
que um mero povoado sob a jurisdição da vila de Rio Grande. No entanto, no início do século
XIX, as margens dos rios São Gonçalo e Pelotas já estavam pontilhadas por rústicos galpões de
charquear rodeados de ranchos, estâncias e vendas de beira de estrada. Nas primeiras

17
MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2012, p. 123-125. Conforme o autor, nesta época foi comum os charqueadores
erguerem seus galpões em terrenos de terceiros, arranchando-se em terras de familiares, por exemplo.
18
VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. Op. cit.; ROLIM, Leonardo. “Tempo das carnes”: no Siará Grande:
dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na Vila de Santa Cruz do Aracati (c. 1690 – c. 1802).
Dissertação de Mestrado, UFPB, 2012; OLIVEIRA, Almir L. de. O comércio de carnes secas do Ceará na segunda
metade do século XVIII: as dinâmicas do mercado colonial. In: MOURA, Denise; LOPES, Maria; CARVALHO,
Margarida (Org.). Consumo e abastecimento na história. São Paulo: Alameda, 2011, p. 167-188.
95
estatísticas do início do século XIX, organizadas em 1805, já era possível perceber que aquela
aldeia havia crescido, contribuindo para que a freguesia de Rio Grande, da qual ela fazia parte,
compusesse quase ¼ da população total da capitania.19 Esta freguesia reunia 10.168 habitantes,
dos quais 3.295 eram escravos, 351 eram libertos e 57 eram índios. A população classificada
como branca reunia 3.497 homens e 3.008 mulheres, totalizando 64% das pessoas. 20 Não é
possível saber o percentual de moradores livres e escravos que pertenciam tanto à vila de Rio
Grande quanto ao povoado de Pelotas, mas é muito provável que boa parte daquela escravaria
(ela somava 23,9 % dos cativos de toda a capitania) estivesse trabalhando nas charqueadas.21

Em 1814, tem-se a primeira estimativa tratando exclusivamente da população de Pelotas


– elevada à condição de freguesia dois anos antes e que naquela época ainda era denominada
São Francisco de Paula. Na ocasião, a localidade apresentou 1.226 escravos numa população de
2.419 habitantes, ou seja, 50,7% da população era cativa. A Tabela 3.1 demonstra que, em
menos de 20 anos, este contingente quase quintuplicou atingindo 5.623 escravos – 51,7% dos
recenseados em 1833. Portanto, as décadas de 1810 e 1820 apresentaram uma intensa entrada
de africanos destinados principalmente ao trabalho nas charqueadas. Este fluxo de cativos, não
apenas para Pelotas como também para a capitania, acompanhou os ritmos do tráfico atlântico
no porto do Rio de Janeiro, cuja entrada de navios negreiros acentuou-se bastante entre 1809 e
1825.22 A eclosão da Guerra dos Farrapos (1835-1845) favoreceu a retração deste comércio e a
dispersão das escravarias, colaborando com a diminuição da população cativa no município
charqueador, de forma que a sua população total, em 1858, crescera de forma mais
desacelerada, atingindo 12.893 almas, sendo 37,1% escravos. 23

Uma análise mais pormenorizada do mapa populacional de Pelotas (1833), de longe o


que apresenta os dados mais completos, fornece um bom retrato da sociedade escravista
pelotense antes da Guerra. Em linhas gerais, verifica-se que 36,1% dos habitantes foram
classificados como brancos, sendo provável que entre os mesmos estivessem alguns mulatos e

19
Ofício de 30.09.1806. AHU-ACL-CU-019, Cx. 11, Doc. 669 (Projeto Resgate). A capitania era composta por 14
freguesias. Sua população total era de 41.023 pessoas, das quais 13.800 eram escravos e 2.502 libertos.
20
Os recém-nascidos somavam 556 e os mortos 183. Ambos os grupos não foram contabilizados entre o “Total da
Povoação”.
21
Os escravos estavam divididos em 125 pardos, 94 pardas, 2.280 pretos e 796 pretas. Os libertos em 127 pardos,
131 pardas, 31 pretos e 62 pretas.
22
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio
de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 41-50. No período de expansão do tráfico
(1809-1824), Berute verificou um índice de 95% de africanos importados, sendo 19% ladinos (BERUTE, Gabriel.
Dos escravos que partem para os portos do sul: caracerísticas do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do
Sul, c. 1790- c. 1825. Dissertação de Mestrado, PPG-História da UFRGS, 2006, p. 51).
23
A guerra paralisou a cidade de Pelotas e obrigou muitas famílias a migrarem para Montevidéu, Rio Grande e a
Corte. Além do mais, o fim do tráfico atlântico (1850) contribuiu para a diminuir o crescimento da população
escrava, embora ela tenha continuado aumentando até a década de 1870, como analisarei em capítulo posterior.
96
mestiços que podem ter ascendido socialmente. 24 Cerca de 52% desta população branca residia
na vila, apresentando um significativo índice de urbanidade que discutirei no capítulo posterior,
assim como a presença estrangeira em Pelotas, algo que, em 1833, ainda estava em sua fase
incipiente. O interesse maior neste momento é o percentual cativo das estatísticas. A Tabela 3.2
mostra que dos 5.623 escravos recenseados em Pelotas, 67,4% eram africanos. Este índice era
consequência de anos de tráfico atlântico e do maior poder aquisitivo dos charqueadores se
comparado aos criadores do interior do Rio Grande do Sul. Além disso, outras pesquisas
demonstraram que a Lei de 1831 não foi capaz de inibir o tráfico de africanos para Pelotas.25

Tabela 3.1 – Estatísticas populacionais em Pelotas (1814 – 1858)


Ano Brancos Índios Libertos Escravos Total

1814 712 105 232 1226 2419


1833 3933 180 1137 5623 10873
1858 7753 - 342 4788 12883
Fontes: ASSUMPÇÃO, Jorge E. Pelotas: escravidão e charqueadas (1780-1888). Porto Alegre, PUCRS,
Dissertação de Mestrado, 1995; Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro
de 1833. Biblioteca Pública de Pelotas (reproduzido por ARRIADA, 1994, p. 98); FUNDAÇÃO DE ECONOMIA
E ESTATÍSTICA. De província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul (censos do RS de 1803 a 1950).
Porto Alegre: FEE, 1981.

Com relação às cores da população cativa tem-se 5.169 qualificados como pretos
(somando 92% dos escravos, com 3.744 homens e 1.425 mulheres) e 454 como pardos
(compondo 8% do total, com 186 homens e 268 mulheres). Cruzando estes dados com os da
Tabela 3.3, percebe-se que havia tanto crioulos quanto africanos entre os escravos classificados
como pretos, com um percentual maior dos segundos (78% entre os homens e 60,7% entre as
mulheres). Como não foi discriminada em quais faixas etárias os crioulos e os africanos foram
distribuídos, não é possível verificar a quantidade de africanos em idade adulta. Este dado só é
possível de ser verificado entre os escravos pretos e pardos.

No total, 80% da população escrava possuía entre 11 e 50 anos, sendo que destes, 71,5%
eram homens e 28,5% mulheres (razão de sexo de 256 homens para cada 100 mulheres).
Analisando este mesmo índice somente entre os pretos tem-se 80,7% com uma razão de sexo de
285 e entre os pardos de 70,1% com uma razão de sexo de 153. Observa-se, a partir destes
dados, que o desequilíbrio entre os sexos estava presente tanto entre pardos como entre pretos –
denotando o tráfico tanto de africanos como de crioulos para a região.
24
Exemplos de como esta mobilidade era possível podem ser vistos em GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro:
trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, 1798 – 1850). Rio de Janeiro: Mauad X/
FAPERJ, 2008.
25
PINTO, Natália Garcia. A benção compadre: experiências de parentesco, escravidão e liberdade em Pelotas
(1830-1850). Dissertação de Mestrado. Unisinos, 2012; COUTO, Mateus. A pia e a cruz: a demografia dos
trabalhadores escravizados em Herval e Pelotas (1840-1859). Passo Fundo: Ed. da UPF, 2011.
97
Tabela 3.2 - Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833

Idades Estrangeiros Brasileiros Índios Libertos Escravos Total


Brancos Brancos Pardo Pretos Pardo Pretos
Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres
Até 5 anos 9 8 359 295 10 13 74 90 10 17 30 43 145 151 1254
6 a 10 anos 5 5 270 264 15 16 69 52 19 10 18 25 182 108 1058
11 a 15 anos 15 5 198 234 9 11 50 47 7 11 25 89 221 130 1052
16 a 20 anos 48 2 148 240 7 16 48 57 10 13 22 35 452 235 1333
21 a 25 anos 55 8 108 156 2 10 34 55 4 7 18 16 460 185 1118
26 a 30 anos 56 5 115 128 5 8 28 37 3 16 23 23 587 205 1239
31 a 35 anos 30 7 102 100 1 4 12 22 8 15 12 9 452 101 875
36 a 40 anos 35 8 125 105 2 10 19 22 9 20 15 8 416 111 905
41 a 45 anos 18 4 78 59 4 2 12 15 3 13 7 6 273 57 551
46 a 50 anos 16 2 80 60 7 7 20 8 18 18 5 9 229 58 537
51 a 55 anos 11 5 67 27 2 5 15 15 13 7 6 1 136 35 345
56 a 60 anos 7 2 69 41 2 2 11 7 10 7 1 2 78 17 256
61 a 65 anos 3 - 38 19 - - 8 2 5 2 1 - 37 10 125
66 a 70 anos 2 - 16 12 2 1 1 2 6 2 - 2 21 13 80
71 a 75 anos 3 1 8 2 1 1 2 1 2 - 2 - 18 1 42
76 a 80 anos 2 - 12 6 - - 1 3 - 1 - - 16 2 43
81 a 85 anos - - 7 3 1 - 1 1 3 - 1 - 19 3 39
86 a 90 anos - - - 2 1 1 1 - 4 - - - 2 1 12
91 a 95 anos 1 - - 2 - - 1 - - - - - - 2 6
96 a 100 anos - - - - 2 - - - 1 - - - - - 3
Soma 316 62 1800 1755 73 107 407 436 135 159 186 268 3744 1425 10873

Escravos
Pardos Pardas Crioulos Crioulas Africanos Africanas Total
186 268 819 559 2925 866 5623

Fonte: Biblioteca Pública de Pelotas (reproduzido por ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano. Pelotas: Armazém Literário, 1994, p. 98).

98
Tabela 3.3 – Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833. População dividida por nacionalidade, cor, condição
jurídica, freguesia, distritos e fogos (1833)

População divida pelos fogos e Estrangeiros Brasileiros Índios Libertos Escravos Total
freguesias
N. de Brancos Brancos Pardos Pretos Pardos Pretos
Fogos H M H M H M H M H M H M H M
Freguesia Vila 1º Distrito 257 118 24 386 345 11 10 45 58 11 33 37 76 749 360 2263
de São F. 2º Distrito 366 131 26 514 495 11 26 81 93 35 52 42 34 566 338 2444
de Paula Pelotas 3º Distrito 260 37 7 358 351 9 11 101 107 36 34 40 107 1435 359 2992
Boqueirão 4º Distrito 253 10 1 325 336 15 24 110 105 25 18 34 34 573 229 1839
Buena 5º Distrito 263 20 4 217 228 27 36 70 73 28 22 33 17 421 139 1335

Soma 1.399 316 62 1.800 1.755 73 107 407 436 135 159 186 268 3.744 1.425 10.873

Fonte: Biblioteca Pública de Pelotas (reproduzido por ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano. Pelotas: Armazém Literário, 1994, p. 98).

99
A partir dos mesmos indicadores também é possível observar um maior contingente de
escravos concentrados no 3º distrito de Pelotas, onde a maioria das charqueadas estava
estabelecida.26 Nele, a população escrava de cor preta era muito superior aos demais distritos e
a razão de sexo era de 316 homens para cada 100 mulheres, evidenciando a concentração de
homens cativos e africanos no universo das charqueadas. O rápido crescimento do número de
escravos e sua concentração numa área pequena passou a preocupar alguns proprietários
pelotenses, sobretudo os charqueadores, que eram os principais senhores escravistas. Em maio
de 1832, por exemplo, temendo alguma ação das classes subalternas em geral, a Câmara de
vereadores escreveu ao Presidente da Província alertando-o:

(...) sendo esta Vila pela sua posição sujeita ao geral trânsito do povo de
toda a fronteira, e onde diariamente aparecem pessoas desconhecidas, e malfeitores,
além de ter em seu distrito numerosa escravatura, e que por isso é indispensável à
autoridade encarregada da polícia ter a sua disposição uma força com que possa
contar para diligências rápidas (...).27

Meses depois, os vereadores escreveram novamente para avisar que não permitiriam que
os Guardas Nacionais do município fossem destacados para a fronteira, com o fim de defendê-la
contra os supostos invasores uruguaios. Os motivos de tal receio eram bem claros:

Esta Câmara (...) não pode deixar de levar ao conhecimento de V. Exc.


quanto seria perigosa a marcha dos Guardas Nacionais deste município para a
fronteira na presente crise em que os do Estado vizinho apenas fazendo a guerra entre
si enviam emissários disfarçados para revoltarem a escravatura, com a qual, segundo
notícias verídicas, esporão reforçar suas débeis fileiras, sendo bem constante que o
distrito desta vila tem para mais de quatro mil escravos, quase unidos segundo a
posição das charqueadas, e a única força para os conter são os Guardas Nacionais,
que fazem este distrito respeitável.28

Portanto, como os uruguaios estavam em guerra civil, o maior temor era das investidas
de chefes militares estrangeiros com o fim de recrutar possíveis aliados e soldados entre os
escravos, com a promessa de liberdade. Dois anos depois, por motivos semelhantes, o Juiz de
Paz escreveu ao Presidente reclamando da ida dos Guardas Nacionais para outro município,
quando os mesmos:

(...) podem nesta mesma Vila [Pelotas] fazerem o serviço necessário e


conterem alguma insurreição de escravos que os boatos públicos anunciam ser a
arma favorita de que se pretendem servir os desordeiros do Estado vizinho. Tendo
pois esta mesma Vila e seus subúrbios uma multidão desta escravatura e não havendo

26
ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano. Pelotas: Armazém Literário, 1994.
27
Correspondência da Câmara Municipal de Pelotas, 11.05.1832, m. 103, AHRS.
28
Correspondência da Câmara Municipal de Pelotas, 06.08.1832, m. 103, AHRS.
100
força que os faça conter em seus delírios, pode resultar então desastrosos e
irremediáveis males.29

Para as autoridades pelotenses o fato da numerosa escravaria das charqueadas estar


reunida em estabelecimentos bastante próximos seria um atrativo aos “desordeiros” que
poderiam sublevá-los, levando-os para lutar no país vizinho. Mas um outro episódio trouxe um
novo ingrediente para este clima de insegurança que marcou os primeiros anos da década de
1830. Em 1834, começaram a agir nas imediações do município os negros organizados no
quilombo de Manoel Padeiro. De acordo com Caiuá Al-Alam a atuação dos quilombolas trouxe
grande pavor entre as elites locais, pois mostrara aos mesmos “como suas forças eram
insuficientes na hipótese real de que, um dia, os escravos intentassem uma revolta em massa”. 30

A apreensão dos grandes senhores de escravos também se devia pelo simples fato de que
muitas lideranças do quilombo eram ex-escravos de ricos charqueadores que, mesmo fugidos,
continuavam mantendo contato com seus antigos companheiros de cativeiro, obtendo
informações preciosas sobre o que acontecia na casa dos seus senhores. Tendo sido presos
alguns quilombolas envolvidos no episódio, parte de seus planos foram descobertos, sendo o
mais alarmante o fato de eles planejarem saquear a Câmara municipal, os quartéis de Pelotas e
as charqueadas de alguns senhores em busca de mulheres escravas e mantimentos. Uma das
negras detidas confidenciou a uma cativa de um charqueador que “eles sabiam tudo o que
ocorria, fosse na vila, fosse nas charqueadas”. 31

Longe dali, mas na mesma época, estourava a Revolta dos Malês (1835), encerrando um
ciclo de rebeliões escravas que se iniciara na Bahia, em 1807.32 A rebelião em Salvador chegou
até os ouvidos das autoridades no extremo sul do Império, acentuando ainda mais o medo de
que algo parecido ocorresse em Pelotas. Em fevereiro de 1835, os vereadores escreveram
novamente ao Presidente alertando-o de que mesmo com a repressão aos Malês, “podem ainda
os seus efeitos causar danos irreparáveis, porquanto, sendo esta província ordinariamente o
receptáculo dos escravos de má conduta que doutras províncias do Império vêm a vender,
principalmente depois que a do Maranhão deixou de os receber”. O receio dos vereadores

29
Juizado de Paz de Pelotas, 04.07.1834. Justiça, M. 18, Pelotas, AHRS.
30
AL-ALAM, Caiuá Cardoso. A negra forca da princesa: Polícia, pena de morte e correção em Pelotas (1830-
1857). Pelotas: Sebo Içaria, 2008, p. 53. Sobre o mesmo assunto ver também MOREIRA, Paulo; AL-ALAM,
Caiuá; PINTO, Natália. Os calhambolas do General Manoel Padeiro: práticas quilombolas na Serra dos Tapes
(RS, Pelotas, 1835). São Leopoldo: Oikos, 2013.
31
AL-ALAM, Caiuá Cardoso. Op. cit., p. 52-56.
32
REIS, João José. O levante dos malês: uma interpretação política. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo.
Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 99-122.
101
baseava-se nas informações de que uma “porção de escravos nagôs e haussás” seria remetida da
Bahia para o porto de Rio Grande e:

(...) já é de acreditar que eles sejam dos implicados naquela


insurreição, e os seus donos os subtraindo à vingança das leis, ou queiram ver-
se livres de escravos cujas (...) por vezes têm posto em prática crimes tão
horrorosos; e sendo evidente que se tais escravos vieram, serão vendidos – a
maior parte – para as charqueadas (...), onde contém de 2 a 3 mil cativos quase
em contato uns dos outros pela proximidade em que se acham ditas
charqueadas, receando-se deste modo que eles venham engrossar o número de
desmoralizados (...), e tentarem desordens (...).33

Não há notícias de que tenha ocorrido algo mais sério do que as ameaças do quilombo
de Manuel Padeiro. O fato é que no imaginário social compartilhado por alguns charqueadores
havia um possível perigo de alguma rebelião acontecer, e tal medo parecia se justificar pelo
grande contingente de trabalhadores escravos num espaço territorial bastante diminuto, como já
foi dito.34 Guardadas as devidas proporções, os índices de percentagem de escravos e da
população africana existentes em Pelotas no início da década de 1830 eram bastante próximos
das principais regiões de plantations açucareiras e cafeeiras do Brasil, o que demonstra o
impacto do tráfico atlântico em Pelotas e como a economia charqueadora dependia dele. Na
Tabela 3.4 busquei indicadores semelhantes para as mencionadas regiões de plantations,
privilegiando os períodos aproximados ao ano do censo pelotense de 1833. Como nem todos os
pesquisadores tiveram acesso a estatísticas mais detalhadas e às listas de habitantes, a
comparação tem alguns limites, mas trata-se somente de um exercício analítico.

Os dados elencados podem variar de município para município dentro de uma mesma
província e na mesma região dependendo do ano em que se observa. No entanto, busquei
estatísticas das localidades mais representativas das determinadas regiões e setores econômicos
e as com melhores informações para a comparação. Além disso, o período em recorte não
corresponde ao auge do agro de cada região. Se em Minas, o complexo cafeeiro dava os seus
primeiros passos, em Vassouras ele já começava a entrar no seu período de expansão. O mesmo
serve para o açúcar, que, passado sua época de grande auge, vinha perdendo espaço para o café
no quadro das exportações brasileiras, fenômeno que parece refletir-se nos dados, ao menos
para estes municípios. Talvez estes indicadores ajudem a mostrar que complexos escravistas
mais jovens, como o cafeeiro e o charqueador, necessitavam importar mais mão de obra do que

33
Correspondência da Câmara Municipal de Pelotas, 27.02.1835, m. 103. AHRS.
34
Conforme Jorge E. Assumpção, na mesma época, um outro charqueador alertou a Câmara de que o perigo
propagado por alguns proprietários reserva-se apenas aos escravos minas e que o temor contra aliciadores orientais
era infundado (ASSUMPÇÃO, Jorge E. Op. cit., p. 269). Tratarei mais da administração dos escravos das
charqueadas no capítulo 6.
102
regiões açucareiras mais estabelecidas, como Campos e Iguape, o que ajudaria a explicar o
menor índice de africanos e a menor razão de sexo destes últimos.

Tabela 3.4 – Comparação da população escrava, razão de africanidade e sexo de Pelotas com
outras regiões de plantations brasileiras (1829-1840)35

Ano População Africanos Razão de sexo


escrava (%) (%)
Pelotas (RS) 1833 51,7 67,4 232

Regiões açucareiras

Campos dos 1836 59,2 53,2 166


Goytacazes (RJ) (1790-1831) (1790-1831)
Oeste paulista (SP) 1829 36,0 56,0 189

Iguape (BA) 1835 54,0 53,1 156

Regiões cafeeiras

Vassouras (RJ) 1840 69,5 68,8 231


(década 1820) (1831-40)
Areias (SP) 1829 45,0 73,5 221,8

Paraibúnas (MG) 1833/35 52,5 48,2 229*


(1831-1840)
Fonte: ver nota (37). Os indicadores entre parênteses foram produzidos pelos autores a partir
da análise de inventários post-mortem. Os demais provem das listas de habitantes.
* A autora calculou o índice somente para os escravos maiores de 10 anos

Assim como em todas as regiões do Brasil, boa parte da população cativa de Pelotas
estava concentrada nas mãos de poucos senhores. Contabilizando o número de escravos
arrolados nos inventários post-mortem do município entre 1800 e 1835, verifiquei que os
proprietários com 50 ou mais cativos, apesar de representarem somente 5,4% dos inventariados,
eram donos de 33,6% dos escravos. A partir da Tabela 3.5 também é possível perceber que
mais de 40% dos donos de escravos em Pelotas eram senhores de pequenos plantéis (de 1 a 4

35
Para Vassouras consultei SALLES, Ricardo. E o vale era escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos
no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Os dados de Santana da Paraibuna foram
retirados de OLIVEIRA, Mônica R. de. Negócios de famílias: mercado, terra e poder na formação da cafeicultura
mineira (1780-1870). Bauru/Juiz de Fora: EDUSC/Funalfa, 2005. Para os indicadores de Areal, consultei LUNA,
Francisco Vidal. Areias: posse de escravos e atividades econômicas (1817-1836). Cadernos N. E. H. D, n. 2, 1995;
LUNA, Francisco Vidal. População e atividades econômicas em Areias (1817-1836). Estudos Econômicos, 24(3),
set/dez, 1994, p. 433-463. Iguape era uma “freguesia açucareira tradicional do Recôncavo baiano” localizada na
comarca de Cachoeira. Seus dados foram retirados de BARICKMAN, Bert. E se a casa-grande não fosse tão
grande? Uma freguesia açucareira do Recôncavo Baiano em 1835. Afro-Ásia, n. 29/30, 2003, p. 79-132. Para o
oeste paulista utilizei LUNA, Francisco; KLEIN, Herbert. Evolução da Sociedade e Economia escravista de São
Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: EDUSP, 2005, p. 77. Os números da tabela reúnem dados reunidos pelos
autores nas consideradas “vilas açucareiras”, ou seja, Campinas, Guaratinguetá, Porto Feliz, Itu, Jundiaí, Mogi
Mirim, Pindamonhangaba, São Sebastião e Piracicaba. Para Campos dos Goitacazes utilizei SOARES, Márcio de
S. Presença africana e arranjos matrimoniais entre os escravos em Campos dos Goitacazes (1790-1831). História:
Questões & Debates, Curitiba, n. 52, 2010, p. 75-90.
103
cativos). Portanto, assim como em outras regiões do Brasil, apesar da concentração verificada, a
posse de cativos estava disseminada por todos os setores da sociedade. A inexistência de listas
de habitantes, como as utilizadas pela historiografia paulista e mineira, impede uma análise
mais abrangente. Tendo em vista as semelhanças apontadas entre Pelotas e as demais regiões
(conforme a Tabela 3.4), não vejo motivos para crer que em Pelotas fosse tão diferente.

Tabela 3.5 – Estrutura de posse de escravos em Pelotas a partir dos inventários


post-mortem (1800-1835)

Plantéis Inventários Escravos


N. % N. %
1a4 77 41,1 184 7,4
5 a 19 78 41,7 743 29,6
20 a 49 22 11,8 738 29,4
50 a 99 07 3,8 447 17,8
Mais de 100 03 1,6 397 15,8
Total 187 100,0 2.509 100,0
Fonte: elaborado a partir de PESSI, Bruno (Org.). Documentos
da escravidão: inventários. Porto Alegre: (CORAG), 2010, v. 1-2.

Uma comparação dos índices de concentração de cativos verificados nos inventários


pelotenses com as demais regiões de plantations mencionadas anteriormente torna-se um tanto
problemática visto que as listas de habitantes são capazes de dar conta de uma amplitude de
pequenos proprietários, algo que os inventários post-mortem possibilitam com muito menor
abrangência. Talvez seja por isso que Ricardo Salles tenha se impressionado com o grau de
concentração da escravaria em Vassouras comparando os dados de seus inventários com as
listas de habitantes de Minas e São Paulo. Nas palavras do autor: “Se em São Paulo, em 1829,
os proprietários de 20 ou mais escravos possuíam 46% da escravaria, em Vassouras, eles
detinham 73,3% do total de cativos, sendo que somente os que eram donos de 50 ou mais
escravos detinham 34,5% deles!”. 36 Ora, utilizando o mesmo tipo de fonte que Salles e
separando somente os inventários entre os anos de análise do autor (1821-1835), percebi que os
donos de 50 ou mais escravos em Pelotas também detinham 34,4% dos escravos, ou seja, o
mesmo índice de Vassouras. Provavelmente, caso existissem listas de habitantes para Pelotas e
Vassouras os índices de concentração seriam menores, o que não significa que apresentariam
uma estrutura de posses igual à de Minas e de São Paulo.

Portanto, Pelotas também parece servir como laboratório de análise para se entender as
regiões de grandes plantéis de escravos no Brasil. Seus dados acerca do percentual de cativos
em relação aos homens livres, a razão de sexo e africanidade e os índices de concentração de

36
SALLES, Ricardo. Op. cit., p. 168.
104
escravos são equivalentes ao das regiões de plantations açucareiras e cafeeiras. Isto demonstra
que a sua economia era bastante dependente do tráfico atlântico e ajuda a explicar o apego da
sua elite à escravidão.37 Neste sentido, a posse de cativos pode servir como ponto de partida
para definir a primeira elite charqueadora em Pelotas. Sabe-se que o tamanho do plantel de
escravos no espaço agrário brasileiro do oitocentos estava bastante relacionado com a posição
dos seus proprietários nas hierarquias socioeconômicas locais. 38 Dos 20 maiores escravistas
pelotenses inventariados entre 1800 e 1835 (possuidores de 35 ou mais cativos) pelo menos 15
(75%) eram proprietários de charqueada. Estes 15 charqueadores, apesar de comporem somente
8% de todos os inventariados no período, concentravam 41% dos escravos e apresentaram um
plantel médio de 69 cativos. Dentre os mesmos, José da Costa Santos foi o maior proprietário
com 172 escravos e José Pinto Martins o menor com 35.

Estes 15 inventariados constituíam-se num grupo representativo do total de


charqueadores do período, uma vez que verifiquei a existência de pelo menos 62 indivíduos
exercendo esta atividade em Pelotas, entre 1790 e 1835. 39 Esta primeira geração de
charqueadores era formada por homens naturais de diversos lugares do Império português.
Localizei esta informação para 48 deles (77,5%).40 Destes, 23 eram nascidos na América
portuguesa, 22 em Portugal e Ilhas, 2 na Colônia de Sacramento e 1 na Espanha. Dos luso-
brasileiros, 3 eram mineiros, sendo um de Diamantina e outro de Mariana, 2 eram do Rio de
Janeiro e 1 era de Recife. Os demais eram nascidos na capitania sul-rio-grandense. Entre os
portugueses, a metade era formada por imigrantes vindos do Minho, 3 eram de Lisboa, 2 de
Coimbra e 1 das Ilhas. A predominância dos minhotos num grupo com forte caráter mercantil
foi comum na época, como atestaram outros autores.41 Portanto, eram homens de diferentes

37
Mas seria equivocado considerar que estas regiões explicassem por si só a escravidão no Brasil, uma vez que,
nos últimos anos, demonstrou-se que parte substancial dos cativos estavam concentrados nas mãos de pequenos
produtores e em regiões voltadas para o abastecimento de gêneros. Tratarei mais deste tema nos capítulos 5 e 6.
38
LUNA, Francisco; KLEIN, Herbert. Op. cit., 2005, p. 138.
39
A listagem foi elaborada a partir de uma relação de charqueadores descrita por João Simões Lopes Neto nos
anos 1920 e reproduzida em MARQUES, Alvarino. Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987, p.
99-102. Busquei complementar a lista localizando todos os proprietários que possuíam charqueadas em seus
inventários post-mortem (em Pelotas). Acrescentei outros nomes a partir das contribuições de outros autores, como
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., OSÓRIO, Helen. Op. cit.; ARRIADA, Eduardo. Op. cit. Muitos tiveram seu
patrimônio inventariado somente depois de 1835 e outros não tiveram seus bens inventariados. Incluí neste grupo
de 62 charqueadores aqueles cujas propriedades estavam instaladas para além das margens do São Gonçalo e do
Pelotas, tanto ao norte, na Estância São Lourenço, quanto ao sul, às margens do rio Piratini. Este grupo é pequeno
(inclui cerca de 10% dos proprietários), mas estes charqueadores e seus familiares tiveram importante destaque na
história de Pelotas e uma análise mais completa da elite charqueadora não poderia deixá-los de fora. Uma listagem
completa de todos os charqueadores em Pelotas no século XIX está reproduzida nos “Anexos” desta tese.
40
As informações foram coletadas nos testamentos, em diferentes genealogias e publicações relacionadas à história
de Pelotas, arroladas na bibliografia final.
41
Ver, por exemplo, PEDREIRA, Jorge. Os homens de negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-
1822): diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Tese de Doutorado. UNL: Lisboa, 1995;
105
locais do Império português e um nascido na Espanha. Trata-se de um perfil um tanto distinto
do complexo saladeril platino, uma vez que nenhum estrangeiro de língua inglesa ou francesa
foi proprietário de uma charqueada pelotense no período.42

A diversidade de locais de procedência e as suas respectivas redes de relações para com


agentes fora da capitania foram fundamentais na montagem do complexo charqueador
escravista em Pelotas. A inserção dos charqueadores em tais redes mercantis, como venho
enfatizando desde o capítulo anterior, viabilizava um melhor acesso ao tráfico atlântico, ao
mercado externo, a espaços de poder político e redes de informações e favores, de amplo ou
curto alcance, dependendo dos indivíduos com quem os mesmos vinculavam-se. Neste sentido,
o fato de um complexo fabril escravista ter sido montado por comerciantes de diferentes
localidades é revelador do nível de interação social e de conexão mercantil em que os mesmos
estavam inseridos. Em suma, o complexo charqueador em Pelotas, assim como no Prata, foi
resultado do investimento particular de alguns negociantes imperiais – na definição de João
Fragoso – com capitais financeiros e relacionais suficientes para tal intento.43

Apesar de compartilharem dos valores escravistas, monárquicos e católicos do Império


português, estes primeiros charqueadores traziam conhecimentos, valores culturais e
experiências distintas para o interior da comunidade pelotense. Um exemplo disso pode ser
dado na própria trajetória de José Pinto Martins. Natural do Porto, José era filho de um cavador
de poços pertencente a uma família de lavradores da freguesia de Mexomil. Migrou para o
Ceará, onde, na companhia de outros 3 irmãos, encabeçou os negócios de charque e comércio
em Aracati por muitos anos.44 Nos fins da década de 1780, Pinto Martins encontrava-se como
negociante em Recife, e menos de 10 anos depois, já estava em Pelotas fabricando charque.
Mesmo residindo no sul do Brasil por mais de 30 anos, suas redes de relações pessoais com o
nordeste mantiveram-se vivas. Em seu testamento, Pinto Martins deixou 200$000 para a Ordem
Terceira de Nossa Senhora do Carmo, em Pernambuco, da qual ele fazia parte, pedindo para
que fossem rezadas “missas pelas almas dos falecidos irmãos terceiros da dita ordem”. Isto

ALMEIDA, Carla. Homens ricos, homens bons: Produção e hierarquização social em Minas Colonial: 1750-
1822. Tese de doutorado Niterói. ICHF/UFF. 2001; OSÓRIO, Helen. Op. cit.
42
Alguns poucos estrangeiros de língua inglesa e francesa arrendaram estabelecimentos de charqueada em Pelotas,
principalmente, após a década de 1830, como Jean Batista Roux e Eugene Salgués.
43
FRAGOSO, João. Mercados e negociantes imperiais: um ensaio sobre a economia do Império português
(séculos XVII e XIX). História: Questões & Debates, n. 36, 2002, p. 99-127. Helen Osório percebeu que as
primeiras gerações de comerciantes no Rio Grande eram formadas por mercadores oriundos do Rio Janeiro
(OSÓRIO, Helen. Op. cit.).
44
Para detalhes a respeito da trajetória dos membros da família ver Habilitação de Familiares, maço. 157, doc.
1267. Direção Geral de Arquivos. Torre do Tombo (Lisboa). O primeiro a utilizar tal fonte com propriedade foi
VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. Op. cit.
106
demonstra que, além das relações mercantis com Recife, Pinto Martins continuou mantendo
relações de caráter pessoal e afetivo na mesma cidade, para onde havia recentemente enviado
um brigue carregado de charque, conforme uma conta no seu próprio inventário. 45

Outro caso pode ser dado na trajetória de Domingos José de Almeida. Nascido em
Diamantina, na capitania das Minas Gerais, Domingos encontrava-se realizando negócios na
Corte, quando partiu para o Rio Grande onde planejara comprar uma tropa de mulas. No
entanto, acabou estabelecendo-se na capitania. 46 Anos depois, por meio do matrimônio, inseriu-
se numa das famílias de charqueadores mais poderosas de Pelotas, onde, ele próprio erigiu uma
charqueada próxima à fábrica de seu sogro. De acordo com Carla Menegat, quando Domingos
foi vereador na Câmara de Pelotas usava exemplos da administração municipal em Minas
Gerais para defender suas propostas.47 Outro caso pode ser dado na trajetória do espanhol
Domingos Rodrigues que, uma vez estabelecido em Pelotas, ergueu sua charqueada e alcançou
riqueza e prestígio notáveis. Seus dois filhos, nascidos no Rio Grande do Sul, dividiram-se
entre os negócios no Uruguai e no Rio de Janeiro.

Pelo fato do Rio ser o principal porto da América portuguesa, os olhares e projetos
destes comerciantes e charqueadores rio-grandenses estavam sempre atentos aos seus fluxos
mercantis. 48 Com a vinda da família real, em 1808, e o estabelecimento da Corte na mesma
cidade, esta proeminência tomou proporções políticas e administrativas ainda maiores. Os
comerciantes de grosso trato do Rio atuavam em setores-chave da economia colonial, como a
exportação de açúcar e café, o abastecimento de alimentos e o tráfico atlântico, entre outros. Por
não participar diretamente do comércio com os portos da África e, até 1808, nem com outros
portos do Atlântico norte, os comerciantes-charqueadores tiveram que estabelecer relações
mercantis com agentes externos ao porto sulino. Neste sentido, a formação de circuitos
mercantis eivados de relações sociais e de redes de reciprocidade entre agentes de diferentes
regiões foi comum na época e tornou-se fundamental para o funcionamento do mercado
colonial e do desenvolvimento das próprias elites locais no interior do Império português.49

Pode-se dizer que ao se estabelecerem na extremadura da América portuguesa, os


comerciantes e charqueadores buscavam reproduzir o mesmo comportamento das suas regiões

45
Inventário de José Pinto Martins, n. 354, m. 15, Rio Grande, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1832 (APERS).
46
Carta de Domingos para o presidente da Província Joaquim Antão Fernandes Leão, Pelotas, 07.12.1859. Anais
do AHRS. Porto Alegre: Corag, v. 3, 1978, p. 154.
47
MENEGAT, Carla. Domingos José de Almeida: o Estadista da República Rio-grandense. Curitiba: Instituto
Memória, 2010.
48
OSÓRIO, Helen. Op. cit.
49
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit.
107
de origem, além de investir o capital mercantil na produção, mas sem deixar de desprender-se
das práticas e conexões mercantis externas. No entanto, somente uma minoria conseguia atuar
em ambos os ramos de atividades com sucesso. Uma análise mais profunda das atividades
econômicas realizadas pelos charqueadores desta primeira geração revela uma significativa
presença de alguns deles no alto comércio. Pesquisando os inventários dos 62 charqueadores
atuantes na época, elenquei somente aqueles que tiveram seus bens avaliados antes de 1850,
totalizando 28 documentos. Destes 28, pelo menos 7 possuíam embarcações de longo curso,
como sumacas, bergantins e brigues (alguns em sociedade com outros comerciantes).

Como eu já disse, tratava-se de um grupo pequeno. Contudo, os inventários post-mortem


não são suficientes para dar conta deste tipo de pesquisa, pois, muitas vezes, os charqueadores
faleciam numa idade mais avançada de suas vidas, quando já haviam abandonado as atividades
mercantis, buscando uma condição econômica mais segura – algo comum entre os comerciantes
da época.50 Portanto, é necessário buscar mais vestígios da sua atuação mercantil em outras
fontes. Nas escrituras públicas de compra e venda realizadas em Rio Grande entre 1808 e 1835,
por exemplo, 7 charqueadores aparecem negociando embarcações marítimas (alguns mais de
uma vez e 4 deles não são os mesmos que localizei nos inventários), indicando que atuavam no
comércio marítimo. 51 Rastreando os nomes de todos os charqueadores nos livros de matrículas
da Real Junta de Comércio da Corte, entre 1808 e 1835, também foi possível verificar a
presença de 9 deles entre os matriculados como “negociantes de grosso trato” nas praças
mercantis do Rio Grande do Sul.52

Conforme Gabriel Berute, que pesquisou profundamente o corpo mercantil rio-


grandense na primeira metade do oitocentos, os negociantes de grosso trato da capitania
atuavam em diferentes setores do alto comércio. Analisando as listagens elaboradas pelo autor,
também localizei alguns charqueadores pelotenses entre os membros daquela elite mercantil,
atuando principalmente na importação de sal e de escravos e na exportação de gêneros como o
charque e os couros.53 Com exceção de alguns poucos, a grande maioria dos charqueadores,
caso o quisesse, não possuía cabedais para atuar no tráfico atlântico diretamente com a África.
Portanto, o papel dos rio-grandenses estava reservado à consignação e revenda dos cativos a
50
FRAGOSO, João L. R.. Homens de grossa aventura – Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
51
Livros de notas do 2º Tabelionato de Rio Grande (1808 a 1850) - APERS. Agradeço a Gabriel Berute tanto pela
busca nominal em seu Banco de Dados quanto pelo fornecimento destas informações.
52
Matrícula dos Negociantes de grosso trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Real Junta do Comércio,
Agricultura, Fábricas e Navegação. Códice 170, volumes 1, 2 e 3 (ANRJ). Uma importante relação dos
comerciantes da época também pode ser verificado em MAGALHÃES, Manoel Antônio de. Almanack da Vila de
Porto Alegre. In: FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre, EST, 1980, p. 88.
53
BERUTE, Gabriel. Op. Cit., p. 2011.
108
partir do porto de Rio Grande. Examinando os dados fornecidos por Gabriel Berute foi possível
perceber que pelo menos 24 dos 62 charqueadores envolveram-se nesta rede mercantil
registrando escravos nos livros de siza como compradores e vendedores. No total, estes
indivíduos registraram 286 cativos entre 1812 e 1822.54 Um exemplo desde comércio de
consignação pode ser dado no caso do charqueador Miguel da Cunha Pereira. Conforme Berute,
em janeiro de 1815, ele foi consignatário de duas embarcações vindas do Rio de Janeiro. O
bergantim Águia Volante lhe trouxe 26 escravos, 6.000 tijolos de barro e 2.000 telhas e a
sumaca Boa Fé, 10 escravos e 18.000 tijolos de barro. No mês seguinte, o charqueador José da
Costa Santos foi consignatário da carga da sumaca Estrela, vinda do Rio com 81 escravos, 30
sacas com arroz, 48 sacos de açúcar, 600 alqueires de sal, entre outras mercadorias. 55 Estas duas
transações de cativos não foram registrados nos livros de siza, o que indica que a participação
dos charqueadores como intermediários nesse comércio era muito maior, visto o reduzido
período abarcado pelos mencionados livros e os sub-registros desta fonte.

Além disso, segundo Berute, Miguel da Cunha Pereira também negociou escravos com
o interior da capitania, entre os anos de 1813 e 1819. Portanto, é provável que fizesse parte de
uma rede de atravessadores constituída desde a chegada dos escravos nos portos do Rio, Recife
e Salvador até a sua negociação em Pelotas e nos municípios do interior e que os charqueadores
envolvidos com o comércio marítimo de mercadorias estivessem inseridos no interior destas
mesmas cadeias de relações.56 Além disso, apesar de a maioria ter recebido cativos por meio de
consignações, alguns charqueadores parecem ter trazido escravos nas viagens de retorno dos
seus próprios navios, quando do desembarque de charque nos portos do Rio, Bahia e
Pernambuco. Em 1839, Domingos José de Almeida, por exemplo, teve o seu Brigue Leal
apreendido “por ser encontrado com pretos africanos a bordo para o comércio de escravos”. 57

54
Códice da Fazenda (F-69). Sizas de Escravos. Rio Grande: 1812-1822 (AHRS). Agradeço novamente a Berute
pela busca e transcrição referentes a este Códice. Dos 24 charqueadores, 11 foram registrados como vendedores.
No entanto, conforme Berute, não fica claro se os compradores vieram a ser os proprietários dos cativos ou se os
revenderiam. A hipótese da revenda é bastante plausível, sobretudo nos casos onde se comprava uma grande leva
de escravos, como a realizada pelo charqueador José da Costa Santos que, em 26 de novembro de 1819, registrou
138 cativos no livro de sizas.
55
BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2011, p. 91-92.
56
Sobre o tráfico atlântico e os traficantes no período ver FLORENTINO, Manolo. Op. cit.; RODRIGUES, Jaime.
De costa a costa. Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio deJaneiro (1780-
1860). São Paulo: Cia das Letras, 2005; REIS, João José; GOMES, Flávio; CARVALHO, Marcus. O alufá Rufino:
tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (1822-1853). São Paulo: Cia. das Letras, 2010;
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia das
Letras, 2000; RIBEIRO, Alexandre. A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos, grupo
mercantil (1750-1800). Tese de Doutorado: PPGHIS/UFRJ, 2009; BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2006.
57
MONQUELAT, A. F. Notas à margem da escravidão. Pelotas: Ed. da UFPel, 2009, p. 52.
109
Entre os importadores de sal, além do mencionado José da Costa Santos, foram
localizados na listagem de Berute, Antônio José de Oliveira Castro, Antônio Francisco dos
Anjos e João Simões Lopes.58 Certamente o número devia ser maior, embora não devesse
envolver muitos outros charqueadores além do pequeno grupo citado até aqui. Estes mesmos
comerciantes também deviam estar envolvidos com as exportações de charque e couros, visto
que era comum os mesmos navios que descarregavam sal retornarem com os produtos das
charqueadas. 59 Estas conexões mercantis também podem ser medidas a partir na análise das
procurações passadas em Rio Grande. Pesquisando tais documentos, entre 1811 e 1850, Berute
verificou que, em Rio Grande, foram passadas 7.745 procurações pra 2.181 pessoas diferentes.
Separando somente os outorgantes que eram comerciantes (1.519 procurações ou 17,8% do
grupo) ele constatou que o Rio de Janeiro concentrava 21,2% das mesmas, enquanto Santa
Catarina, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Maranhão somavam 20,6% delas. Portugal foi o
destino de 5,5% das procurações e o Uruguai 0,8% delas. Um dos 10 agentes acionados em
Portugal pelo comerciante Mateus da Cunha Telles foi Manuel Souza Freire & Cia, “um dos
mais importantes negociantes e contratadores de Lisboa”, e que também atuava no tráfico
atlântico com a África e no comércio com Bahia, Pernambuco e Maranhão.60

Cruzando todas estas fontes e listagens mencionadas até aqui, é possível considerar que,
dos 62 charqueadores desta primeira geração, um grupo aproximado de 12 a 15 charqueadores
(19% a 24%, sendo alguns deles aparentados), dependendo dos critérios que se usa, pode ser
analisado de uma forma distinta dos demais, pois tiveram uma relação mais próxima com o
comércio marítimo, seja atuando diretamente nestas atividades por meio de suas embarcações,
seja atuando na exportação e importação consignada a partir do porto de Rio Grande. 61 Mas
nem mesmo este pequeno grupo deve ser visto de forma homogênea. Alguns charqueadores têm
o seu nome mais associado aos negócios marítimos do que outros. Portanto, o comércio de
cabotagem pelas margens do Atlântico sul estava reservado a poucos rio-grandenses –
notadamente a elite econômica na qual comerciantes e charqueadores se destacavam.

58
A listagem dos importadores de sal realizada pelo autor teve como base registros entre 1804-1815 e 1834-1851.
59
SILVEIRA, Josiane Alves da. Rio Grande: portas abertas para as importações de sal no século XIX.
Monografia de conclusão do curso de História da FURG. Rio Grande, 2006. Os dados de exportação de charque e
couro elencados por Berute são posteriores a 1830. Neles aparecem alguns charqueadores, mas os mesmos fogem
do período de análise tratado neste capítulo.
60
BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2011, p. 242-243.
61
Os principais eram Antônio José de Oliveira Castro, Antônio Francisco dos Anjos, Domingos Rodrigues,
Domingos de Castro Antiqueira, Antônio José Gonçalves Chaves, Boaventura Rodrigues Barcellos e os seus
irmãos, José Pinto Martins, Antônio Soares de Paiva, José da Costa Santos, Joaquim José da Cruz Secco, entre
outros.
110
Poucos charqueadores devem ter se aventurado em viagens mais longas. Talvez o
Comendador Antônio José de Oliveira Castro tenha sido o que maior sucesso obteve nestas
empreitadas. Matriculado como negociante de grosso trato na Corte desde 1816, ele foi o único
charqueador que esteve presente em todas as listagens organizadas por Gabriel Berute. Em
1848, por ocasião da morte de sua esposa, o advogado de Castro justificou a demora da
avaliação dos bens do casal: “como é notório, tem a casa do suplicante muitas e diversas
transações, cuja liquidação depende de notícias e informações de vários pontos não só do
Império, mas ainda da Europa, para onde dirige seus navios”. Tendo em vista o volume de
negócios que praticava, não causa surpresa que a avaliação dos seus bens, em 1848, apresentava
o maior patrimônio e plantel de escravos de Pelotas na primeira metade do oitocentos – prova
de que o capital mercantil estruturava e organizava o capital produtivo, ou seja, as bases do
complexo charqueador escravista pelotense.62 Contudo, os benefícios decorrentes desta posição
superior na hierarquia social não eram exclusivamente econômicos, como demonstro a seguir.

3.2 UMA ELITE LOCAL NO MUNDO ATLÂNTICO: FAMÍLIAS E REDES MERCANTIS


ENTRE PELOTAS E OS DEMAIS PORTOS DO BRASIL

O comerciante Mateus da Cunha Teles e o charqueador Antônio José de Oliveira Castro,


respectivamente com 45 e 28 procurações passadas, estavam entre os 10 maiores outorgantes
registrados nos livros de notas de Rio Grande analisados por Berute.63 Os maiores procuradores
de Cunha Telles no Rio eram os irmãos João José da Cunha e Francisco José da Cunha. Este
último, que também era Cavaleiro da Ordem de Cristo, era cunhado de Cunha Telles e por aí já
é possível perceber que no interior destas redes mercantis os laços de parentesco eram notórios,
como muitos autores já indicaram. 64 Tais vínculos parentais funcionavam como facilitadores e
colocavam importantes famílias no centro de circuítos comerciais de longa distância. Neste
sentido, Berute verificou a presença de rio-grandenses que, matriculados como negociantes de

62
Inventário de Francisca A. de Castro, n. 293, m. 21, 1848, Pelotas, 1º Cartório de órfãos e provedoria (APERS).
63
BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2011, p. 239.
64
RODRÍGUEZ, Manuel Bustos. Cádiz en el sistema atlántico: la ciudad, sus comerciantes y la actividad
mercantil (1650-1830). Universidad de Cádiz, 2005, p. 185-230; KICZA, John E. Empresarios coloniales.
Familias y negocios en la ciudad de México durante los Borbones. México, FCE, 1986; SOCOLOW, Susan. Los
mercaderes del Buenos Aires virreinal: familia y comercio. Buenos Aires, Ediciones de la Flor, 1991. SAMPAIO,
Antônio C. Jucá. Famílias e negócios: a formação da comunidade mercantil carioca na primeira metade do
setecentos. In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antônio C. J.; ALMEIDA, Carla (Org.). Conquistadores e
negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, século XVI a XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, p. 225-264; PEDREIRA, Jorge. Op. cit; OSÓRIO, Helen. Op. cit., FRAGOSO, João;
FLORENTINO, Manolo. Op. cit.
111
grosso trato no Rio, remetiam escravos para o Rio Grande do Sul. 65 Um destes agentes foi o
capitão Antônio Soares de Paiva, que também teve uma charqueada, mas destacou-se por ser
“negociante de grosso trato no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, e contratador dos
dízimos das carnes e couros do Rio Grande durante vários anos”. Enviando seus navios para o
Rio e o nordeste, o capitão também teve sociedade na arrematação de contratos com
importantes comerciantes cariocas.66

O prestígio social e a riqueza do capitão Paiva possibilitaram bons casamentos aos seus
filhos. Um deles contraiu matrimônio com uma filha do charqueador Domingos de Castro
Antiqueira. Apesar da esposa de Antiqueira ter falecido em 1829, o inventário dos bens do casal
foi aberto somente em 1840. Segundo o seu advogado: “não pode o suplicante proceder
prontamente nos termos do respectivo inventário, em razão de estar embaraçado com a
liquidação de grandes contas que tinha em diferentes praças do Império, de cujo resultado
dependia a fatura do mesmo inventário”.67 Estes negócios devem ter sido importantes e
certamente estavam na base da fortuna deste charqueador. Em 1852, em seu testamento,
Antiqueira, que agora já assinava como Visconde de Jaguari, mandou rezar mil missas no Rio
de Janeiro “por atenção daquelas pessoas com quem tratei negócios”. 68 Além disso, as
procurações passadas em cartório, no ano de 1832, deixam claro quem eram alguns dos seus
parceiros comerciais no interior da província, no Rio e em Pernambuco. No entanto, um dos
mais importantes estava na Bahia. 69 Natural do Rio Grande, Antônio Pedroso de Albuquerque
estabeleceu-se definitivamente em Salvador por conta da Revolta dos Farrapos. Conforme
Pierre Verger, Albuquerque foi um dos comerciantes mais ricos da Bahia. Atuou no tráfico
atlântico no nordeste e no Rio, tendo sido proprietário de 20 navios. Carregava charque para o
nordeste e não causa surpresa que tenha continuado mantendo relações mercantis com sua terra
natal, onde sua família possuía importante prestígio em Rio Pardo.70

65
BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2006, p. 143.
66
CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do
Globo, 1937, p. 128; OSÓRIO, Helen. Op. cit., 2007, p. 323.
67
Inventário de Maria Joaquina de Castro, n. 74, m. 3, Rio Grande, 1º cartório do cível, 1840 (APERS).
68
Inventário do Visconde de Jaguari, n. 348, m. 25, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedora, 1852 (APERS).
69
Procurações, 1º Tabelionato de Pelotas, Fundo 48, Livro 1, 19v (APERS).
70
VERGER, Pierre. Notícias da Bahia (1850). Salvador: Corrupio, 1981, p. 45; FLORENTINO, Manolo. Op. cit.,
2010, p. 203. O Comendador Antônio Pedroso de Albuquerque diversificou seu capital após o final do tráfico, em
1850, tornando-se “proprietário da fábrica de tecidos Todos os Santos, em Valença, (…) da Companhia de Vapores
Bonfim e Santa Cruz e era um dos diretores da Companhia de Navegação Baiana”. Nesta mesma época, assim
como outros comerciantes, converteu seu capital para a agricultura de exportação: “possuía ainda engenhos em
Itaparica, São Francisco do Conde e Santo Amaro e um total de 560 escravos, conforme seu inventário de 1883”
(VASCONCELLOS, Pedro. Salvador, rainha destronada? (1763-1823). História (São Paulo), v. 30, n. 1, jan/jun,
2011, p. 183-184). Sobre a sua família em Rio Pardo ver LAYTANO, Dante de. Guia histórico de Rio Pardo. Rio
112
Portanto, as margens do Atlântico foram um cenário de intensos fluxos não apenas de
mercadorias, como também de mercadores. Tais movimentos não se davam apenas na direção
do extremo sul, mas, também, no seu sentido oposto. Com relação a isto, Afonso Graça Filho
observou que durante as décadas de 1830 e 1840, o alto comércio de abastecimento na Corte
teve seus principais agentes substituídos por um novo grupo de comerciantes. Segundo o autor,
alguns eram rio-grandenses que migraram para o Rio atraídos por este rentável comércio, como
Militão Máximo de Souza, J. J. Cunha Teles e outros. Como notou Graça Filho, Jean Batiste
Debret teria percebido o início deste processo quando escreveu sobre quem eram estes novos
comerciantes de carne seca na Corte: “todos parentes de correspondentes dos charqueadores”
que “recebem diretamente sua mercadoria nas embarcações que aportam no Rio de Janeiro,
pretexto de que abusam às vezes para aumentar o preço desse gênero quando ocorrem atrasos
nas entregas”.71 O próprio Irineu Evangelista de Souza, posteriormente Visconde de Mauá, foi
um dos jovens rio-grandenses que migraram para a Corte neste período, estabelecendo-se como
caixeiro de João Pereira de Almeida – um dos maiores comerciantes de grosso trato do Rio.

Portanto, tais migrações não representavam uma ruptura com os seus locais de origem.
Comerciantes rio-grandenses que migravam para o Rio ou o nordeste não se desconectavam de
suas redes de relações anteriores e os “forasteiros” que se instalavam em Pelotas pareciam fazer
o mesmo. 72 O pertencimento às redes mercantis nas quais os comerciantes de grosso trato
cariocas estavam inseridos trazia benefícios diversos aos charqueadores, pois, quando bem
manejadas, elas potencializavam a sua posição de elite nas hierarquias sociais locais. Neste
sentido, proponho que as margens do Atlântico sul, sobretudo nas suas cidades portuárias,
sejam vistas também como um espaço de interação social entre negociantes imperiais, repletas
de redes mercantis com conexões as mais diversas, compostas por parentes e parceiros
comerciais 73, e não somente como um espaço de competição entre negociantes de diferentes

Pardo: Prefeitura Municipal de Rio Pardo, 1979. Um dos seus irmãos, Manoel Pedroso de Albuquerque, era
procurador de Antiqueira em Rio Pardo, para onde o charqueador devia remeter escravos e mercadorias diversas.
71
FILHO, Afonso de Alencastro. Os convênios da carestia: crises, organização e investimentos do comércio de
subsistência da Corte (1850-1880). Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992, p. 91; 129.
72
Em 1827, o charqueador José da Costa Santos, natural da freguesia de Santa Rita, na cidade do Rio de Janeiro,
legou em testamento bens para parentes residentes no Rio, mencionando que perdoava a dívida do seu irmão
Serafim para com ele (Inventário de José da Costa Santos, n. 113, m. 9, Pelotas, 1º cartório de órfãos e ausentes,
1827 (APERS)).
73
Neste sentido, conforme Fragoso, “era extremamente difícil para uma casa comercial setecentista manter uma
rede de comércio que envolvesse distantes regiões e diferentes produtos – como era o caso do tráfico atlântico de
escravos – sem o recurso, a relações de reciprocidade que podia, inclusive, chegar a casamentos entre famílias de
sócios. As famílias Velho, Carneiro Leão e Pereira de Almeida – residentes no Rio de Janeiro, majoritárias no
comércio de africanos e nas exportações para Portugal, em princípios do oitocentos – mantinham irmãos, primos
e/ou genros em Lisboa e em outras cidades do além-mar. Ao mesmo tempo, o império aparece como espaço de
circulação de famílias empresariais, a exemplo da experiência dos Loureiro, portugueses com estadias e negócios
no Brasil e na Índia” (FRAGOSO, João. Op. cit., 2002, p. 113-114).
113
praças, onde o papel das mais ricas era apenas subordinar as menos ricas aos desígnios do
acúmulo do capital.

Um exemplo disto pode ser dado na trajetória de Antônio Francisco dos Anjos. Natural
da Colônia de Sacramento, ele deve ter migrado para o Rio Grande após a expulsão dos
portugueses daquela localidade, em 1777. Nos anos 1790, instalado em Pelotas, já é possível
encontrá-lo, juntamente com outros proprietários, realizando requerimentos à Coroa. Com o
tempo, o charqueador tornou-se capitão-mor da localidade. Em 1808, necessitando de um
atestado para ter um requerimento aprovado pela Corte do Rio de Janeiro, Anjos recebeu o
auxílio de um grupo de senhores de grande respeito no Império português:

Nós abaixo assinados, comerciantes desta Praça atestamos, e o juraremos se necessário


for, em como o Capitão Antônio Francisco dos Anjos, morador no Rio Grande, é um
dos principais negociantes daquela Vila, aonde faz umas grandes charqueadas, e faz
navegar um grande número de couros e carnes, não só para esta capital, mas também
para a Bahia e Pernambuco. Rio de Janeiro. [rasurado] de novembro de 1808.
[Assinado] João Gomes Barroso, Amaro Velho da Silva, Elias Antônio Lopes, Manoel
Velho da Silva, Amaro Velho da Silva Sobrinho, Fernando Carneiro Leão, Antônio
Gomes Barroso, Joaquim Antônio Martins.74

Os sobrenomes Carneiro Leão, Gomes Barroso e Velho da Silva eram conhecidos e


respeitados por qualquer comerciante marítimo do Atlântico sul. Tratavam-se de homens
envolvidos no tráfico negreiro e na exportação de açúcar e que estavam inseridos em redes
mercantis de longo alcance.75 Portanto, o capitão-mor Antônio Francisco dos Anjos era
reconhecido como membro da elite local tanto pelos seus pares como pelos grandes
comerciantes do Rio. Ser reconhecido e tratado como o “cacique” de sua aldeia (ou um dos
líderes da mesma) era fundamental para o homem que quisesse ocupar o topo da elite de um
lugar e manter tal posição.76

Contudo, outros proprietários e comerciantes dividiam com o Capitão dos Anjos o posto
de membros da elite local. Em 1815, o visitador D. José da Silva Coutinho considerou que os
homens mais ricos da pequena freguesia eram Domingos de Castro Antiqueira, Domingos
Rodrigues, José Tomas da Silva, Manuel Alves de Moraes, José Pinto Martins, Antônio José
Gonçalves Chaves, Joaquim José da Cruz Secco, Cipriano R. Barcellos e demais irmãos,

74
Seção de Manuscritos. Documentos Biográfios (Antônio Francisco dos Anjos) – BN-RJ.
75
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit.
76
Às vezes estas relações mercantis podiam transformar-se em relações de amizade ou até de compadrio, como no
caso de Manuel Fernandes Vieira, importante comerciante e estancieiro, membro das família Silveira descrita
anteriormente, e que tornou-se compadre de Anacleto Elias da Fonseca, um dos mais importante comerciantes de
grosso trato do Rio de Janeiro (HAMEISTER, Martha. Op. cit., 2006, p. 165-166).
114
Agostinho Nunes e o próprio Antônio Francisco dos Anjos.77 Com exceção de Agostinho, os
demais eram todos charqueadores. Além disso, Domingos Rodrigues, Domingos Antiqueira e
José R. Barcellos estavam entre os cinco mais ricos charqueadores com fortuna inventariada na
primeira metade do XIX, o que confere credibilidade ao relato do Bispo. Todos estes
charqueadores atuavam no comércio marítimo e tinham condições de disputar influência e o
poder local com o Capitão dos Anjos.

O prestígio social do mencionado capitão possibilitou bons casamentos para os seus


filhos. Antônio Rafael dos Anjos casou-se com a filha do capitão João Francisco Vieira Braga,
o pai. O filho homônimo de Vieira Braga, que também foi charqueador durante um período
curto de tempo e veio a tornar-se o Conde de Piratini, casou-se com a filha do capitão
Domingos Rodrigues – o charqueador mais rico do período colonial. 78 Assim como Antiqueira,
Vieira Braga, Antônio Francisco dos Anjos e outros, o capitão Domingos Rodrigues também
mantinha negócios diretamente com outros portos do Brasil. Quando faleceu, em 1819, os
inventariantes esperavam uma embarcação sua retornar de Recife. Nesta ocasião, sua viúva
remeteu procurações para Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, a fim de resolver os trâmites de
seu inventário. Destaque para os procuradores no Rio que eram João Rodrigues Ribas e o
tenente Miguel Ferreira Gomes. 79 O primeiro era o seu próprio filho primogênito que estava
atuando como negociante no Rio, onde investiu no comércio negreiro, conforme a listagem de
traficantes organizada por Florentino. 80 O segundo dispensa comentários. Comerciante de
grosso trato no Rio, Ferreira Gomes concentrou grande parte dos carregamentos de charque
remetidos para o Rio de Janeiro no período.81

Portanto, este pequeno grupo de comerciantes-charqueadores, além de atuar no


comércio marítimo, estava muito bem relacionado com grandes comerciantes de outros portos
brasileiros. O historiador interessado em definir melhor os diferentes estratos e cadeias de
interação social entre o espaço econômico agrário centrado em comunidades locais e os espaços
de poder e comércio mais centrais não pode tratar de forma homogênea as elites de um
município, de uma capitania ou de uma província. Este pequeno grupo de charqueadores que
atuava no comércio marítimo não possuía seu olhar voltado exclusivamente para o âmbito local.
77
MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de
Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Porto Alegre: PPG-História
UFRGS, Dissertação de Mestrado, 2009, p. 64.
78
O filho de um charqueador deixou escrito sobre Pelotas no final do setecentos: “Em toda a região, apenas se
destacava da uniforme chateza o sobrado de Domingos Rodrigues, velha construção de 1784, contemporânea dos
primórdios do distrito” (ARRIADA, Eduardo. Op. cit., p. 94).
79
Inventário de Domingues Rodrigues, n. 32, m. 2, Pelotas, cartório de Órfãos e Provedoria, 1818 (APERS).
80
FLORENTINO, Manolo. Op. cit., 2010, p. 256.
81
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 200.
115
Por estabelecerem conexões com a sociedade exterior e serem reconhecidos como os principais
da localidade tanto por comerciantes quanto por autoridades administrativas externas a sua
aldeia, eles se legitimavam enquanto elite regional e, em termos analíticos, não podem ser
tratados como os demais membros de sua comunidade.

Neste sentido, a inserção dos charqueadores pelotenses em redes mercantis atlânticas foi
fator determinante para colocá-los num patamar superior aos charqueadores que não possuíam
cabedais para tanto.82 Quanto maior a inserção do charqueador naquelas redes de comércio
externo maiores eram as chances dele ocupar o topo da hierarquia do grupo, acumulando maior
fortuna, patentes, comendas e ofícios diversos. Neste sentido, os mesmos reuniam elementos
para tornarem-se brokers – no sentido conferido por Edoardo Grendi ao estudar os mercados
em sociedades agrárias e pré-industriais83 – pois eram os mais capacitados para funcionarem
como conectores (mediadores) entre um espaço econômico de trocas mais agrário e não
monetário e um espaço de trocas mais mercantilizado e vinculado ao comércio internacional.
Contudo, esta posição diferencial não precisava ser reconhecida somente pelos “de fora”. A
legitimidade social era uma necessidade entre os seus próprios pares e suas gentes…

3.3 CAPITÃES, COMENDADORES E COMPADRES DE PARDOS: A ORGANIZAÇÃO


SOCIAL NO EM TORNO DAS CHARQUEADAS

Domingos de Castro Antiqueira nasceu em Viamão, município próximo a Porto Alegre,


no ano de 1763, e estabeleceu-se com uma charqueada nas margens do arroio Pelotas no início
do século XIX. Comerciante ativo e grande escravista, ele apoiou, no período joanino, a
expansão do Império português sobre a Banda Oriental, ajudou a financiar a Guerra da
Cisplatina (1825-1828) e combateu os rebeldes na Revolta dos Farrapos (1835-1845). Por conta
da sua fidelidade aos monarcas luso-brasileiros e do seu comprometimento com a Coroa foi
reconhecido Fidalgo Cavaleiro da Casa de S. M. o Imperador, recebeu a comenda da Imperial
Ordem do Cruzeiro e os títulos de Barão e Visconde de Jaguari. 84 Sua trajetória não teria nada
de incomum se não fosse por um detalhe. A mãe de Antiqueira, Maria de Ávila, era filha de

82
Gabriel Berute já havia notado este fator ao examinar as ligações dos comerciantes do Rio Grande do Sul com a
praça do Rio de Janeiro: “As trajetórias (…) dos demais comerciantes mencionados acima, sugerem que existiram
mecanismos através dos quais ao menos uma parte dos comerciantes estabelecidos no Rio Grande tiveram
condições de reunir o cabedal e as relações necessárias para serem matriculados como negociante de grosso trato.
Provavelmente, a manutenção de negócios com o Rio de Janeiro cumpriu um papel de grande importância para
uma possível ascensão na hierarquia mercantil” (BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2006, p.145).
83
GRENDI, Edoardo. Microanálise e história social. In: OLIVEIRA, Mônica; ALMEIDA, Carla (Org.). Exercícios
de micro-história. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 19-38.
84
CARVALHO, Mário T. Op. cit., p. 127-128.
116
índios de uma tribo charrua, tendo se casado com o paraguaio José de Castro Antiqueira. Seu
avô índio era de Salto, na Banda Oriental. Não bastasse ser um nobre de sangue mestiço,
Antiqueira ainda teve um filho ilegítimo com a parda forra Genoveva.85

Esta íntima relação com algumas famílias pertencentes às classes subalternas daquela
sociedade não impediu Antiqueira e outros de ascenderem socialmente e veicular pelos espaços
mais prestigiosos de Pelotas. Entre os bens do seu patrimônio, avaliados em 1829, verificou-se
grande plantel de escravos, imóveis, prataria, jóias e uma carruagem mandada vir diretamente
de Londres. No seu círculo de parentesco, por meio do matrimônio de seus filhos e netos, a
família Antiqueira uniu-se ao capitão Antônio Soares de Paiva, ao marechal Conde de Porto
Alegre, ao Barão de Butuí e aos Silveira Martins. 86 Além disso, ele também foi compadre do
Conde de Piratini e do próprio capitão Paiva. Quando Saint Hilaire esteve na casa deste, em
1822, deixou anotado: “Vários negociantes do Rio Grande e alguns proprietários da vizinhança,
todos muito bem vestidos, estavam reunidos na casa do coletor-geral”.87

O mencionado círculo de parentes de Antiqueira era somente um dos diferentes núcleos


que formavam a elite sul-rio-grandense da época. Grupos formados por comerciantes,
estancieiros, funcionários da Coroa, oficiais das milícias, vereadores e comendadores, muitos
deles aparentados entre si, eles compunham um cenário típico da América portuguesa. Soma-se
a isto o fato de que o reconhecimento da autonomia política e do papel das elites locais no
governo de seus povos constituía-se num traço marcante do Império português.88 E desta
dinâmica surgiu uma prática de distribuição de mercês régias, comendas honoríficas e
distinções que denotavam a posição social dos seus portadores e que ainda estavam vigentes no
início do oitocentos.89 Dos 62 charqueadores, por exemplo, pelo menos 12 receberam a patente
de capitão, 2 a de tenente e 1 a de coronel – dentre os quais estavam muitos dos mais atuantes

85
Genealogia construída por Luiz Antônio Alves. Para maiores detalhes da sua obra “Memorial Açoriano” (que
totaliza 52 volumes de pesquisa genealógica) ver http://www.fuj.com.br/?a=livro (consultado pela última vez em
30.05.2013). Um catálogo mais sintético pode ser consultado em ALVES, Luiz Antônio. Memorial Açoriano:
Genealogia do Século XVIII – Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS: EST Edições. 2005.
86
CARVALHO, Mário T. Op. cit., p. 127-128. Estas famílias, na segunda metade do século XIX, estiveram entre
as mais poderosas do Rio Grande do Sul, concentrando riqueza e grandes cargos políticos no Senado e em
Gabinetes ministeriais.
87
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 113.
88
Como demonstraram BOXER, Charles R. O Império colonial português. São Paulo: Cia. Das Letras, 2002;
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs). O Antigo Regime nos
Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa. (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001;
MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM Pedro; CUNHA, Mafalda (Org.). Optima Pars: elites ibero-americanas do
Antigo Regime. Lisboa: ICS, 2005.
89
São muitas as pesquisas que evidenciam estas práticas na América portuguesa. Ver, por exemplo, GOMES, José
Eudes. As milícias d’El Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: FGV, 2010; STUMPF,
Roberta G.. Cavaleiro do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações de hábitos das ordens militares nas
Minas setecentistas. Brasília. Tese de Doutorado. PPGHIS/UnB, 2009.
117
no comércio marítimo – e outros 6 possuíam comendas honoríficas, denotando um grande
prestígio social local. 90 Uma vez que a participação nos mercados regionais e as concessões de
crédito eram atividades eivadas por relações pessoais, é possível imaginar, como demonstrou
Tiago Gil, o grau de influência que capitães exerciam em tais operações. 91

Soma-se a isto o fato de que a elite dentro da elite charqueadora estava fortemente
aparentada, formando um núcleo que além dos vínculos sociais com comerciantes de fora da
província também possuía laços de parentesco com os próprios charqueadores. Tal traço, como
diversos autores demonstraram, foi comum nas práticas mercantis do período colonial tardio.92
Dos 62 charqueadores aqui analisados, 36 aparecem como padrinhos dos filhos de outros
charqueadores do mesmo grupo nos registros paroquiais de batismo da paróquia de São
Francisco de Paula (Pelotas), entre 1812 e 1825.93 Somado aos laços de parentesco
matrimoniais (considerei sogros e genros, cunhados e charqueadores cujos filhos e filhas
casaram-se unindo ambas as famílias) e consanguíneos (considerei somente irmãos, pais e
filhos, tios e sobrinhos), a teia de relações parentais apresenta uma nítida concentração (ver
Gráfico 3.1). Portanto, Pelotas já nasceu com uma riqueza, prestígio social e status altamente
concentrados nas mãos de poucas famílias.

No Gráfico 3.1, os pontos marcados em preto são comerciantes-charqueadores


matriculados e/ou proprietários de grandes embarcações marítimas e charqueadores com
comendas e/ou patentes de milícias, podendo um único indivíduo concentrar mais de uma
destas distinções.94 A partir dele, pode-se perceber que este grupo, composto por 26
charqueadores (42% dos 62 proprietários), era fortemente aparentado entre si, concentrando a
maioria dos vínculos representados no gráfico. Os charqueadores sem nenhuma das
mencionadas distinções estavam mais soltos e sem laços parentais com outros charqueadores.
90
Estas informações foram coletadas a partir de uma busca nominal nos registros de batismo e casamento de
Pelotas entre 1812 e 1825, nos inventários post-mortem e na bibliografia consultada.
91
Estudando o comércio de tropas entre Viamão, Curitiba e Sorocaba, Gil considerou: “Em primeiro lugar, deve-se
ter em conta a importância dos oficiais, especialmente os capitães, na economia local, como agentes econômicos
diretos, comandando negócios, criações de animais, lavouras, lavras de minérios, dentre outras atividades que
constituíam a base da economia regional. É certo que era uma economia relativamente pobre, se comparada, por
exemplo, com os negócios desenvolvidos na Praça do Rio de Janeiro na mesma época. Mas eram estes capitães
locais, à exemplo dos capitães e coronéis Carneiro Leão e Gomes Barroso, que comandavam a dinâmica
econômica. No caso da rota das tropas, os capitães eram os senhores daquela pobre economia, como os do Rio de
Janeiro eram de grossa aventura” ( GIL, Tiago Luís. Coisas do caminho: tropeiros e seus negócios do Viamão à
Sorocaba (1780-1810). Tese de Doutorado, UFRJ, 2009, p. 227). Sobre a estrutura de organização das milícias e
tropas militares no Império português ver GOMES, José Eudes. Op. cit.
92
Ver nota 64.
93
Tive acesso aos originais dos Livros de Batismo de Livres e Escravos graças à historiadora Dúnia Nunes que me
disponibilizou-os em formato digital. A análise dos dados não teria sido possível sem o auxílio do historiador
Leandro Oliveira, que trabalhou na transcrição dos mesmos. Agradeço a ambos pela gentileza.
94
No geral, 21 atuavam no comércio marítimo, 15 possuíam patentes de oficiais e 6 detinham comendas. Como
alguns deles acumularam qualificativos, o número total chega a 26.
118
Isto evidencia uma prática endogâmica entre as famílias do topo do grupo, sedimentada por
relações de compadrio e parentesco consanguíneo. Neste sentido, pode-se dizer que a primeira
elite do complexo charqueador escravista pelotense parecia formar uma grande família.

Gráfico 3.1 – Vínculos de parentesco entre os 62 charqueadores de Pelotas (1790-1835)95

Fonte: Livro de batismo de livres, n. 1 (Arquivo do Bispado de Pelotas); Testamentos e


Inventários post-mortem de Pelotas (APERS).

Contudo, estes laços parentais não se davam apenas no sentido horizontal e sua
verticalidade não encontrava somente vínculos para cima. Conforme Carvalho, o charqueador
Domingos Antiqueira, neto de índios, possuía uma chácara na Ilha dos Marinheiros, a qual
denominou “Filantropia”, porque “o produto de sua renda contribuía para o bem estar de grande
número de famílias pobres”. Segundo Alves, estas pessoas pobres poderiam ser descendentes da
tribo a qual pertencia o seu avô.96 Difícil avaliar a validade desta hipótese, mas rastreando a
vida de Antiqueira, descobri, em seu inventário, que ele realmente possuía uma Fazenda
chamada “Filantropia” – localizada na Ilha dos Marinheiros. A busca também revelou que, em

95
As representações das redes foram montadas utilizando o software UCINET versão 6 for Windows. Para a
listagem dos charqueadores com suas respectivas siglas ver Anexo 1.
96
Ver nota 80.
119
1820, ele batizou Leopoldino, filho legítimo do índio Joaquim Lencina com Francisca Antônia
– indicando que as afirmações dos autores podem ter um fundo de veracidade. 97

Esta história abre um espaço para se pensar que, assim como outras elites, os
charqueadores também imprimiam sua autoridade local na busca de uma maior legitimação do
exercício de dominação social sobre as camadas mais pobres da sociedade. Sobretudo na época
das safras, os charqueadores e as classes subalternas em geral conviviam e circulavam por
praticamente os mesmos espaços e seria demasiado simples considerar que a sua aproximação
se pautasse exclusivamente em relações de conflito. Não é demais lembrar que, nesta época,
mais da metade da população era escrava e algo próximo de 1/3 era branca. Neste sentido, é
possível perceber que as charqueadas, segundo relatos de contemporâneos, funcionavam como
aldeias aglutinadoras de diferentes setores da sociedade, reunindo grande população de cor,
entre cativos e libertos. Nas palavras do abolicionista Alberto Coelho da Cunha, as charqueadas
possuíam o seu “agregado próprio”:

Onde quer que um estabelecimento de charqueada existisse, pelos seus arredores


tinha-se formado um agrupamento de ranchos de moradia do pessoal de dependência
do movimento da fábrica e nas suas aproximações, situada a uma volta do caminho, a
vendinha a que se iam suprir dos gêneros de consumo diário (…) Nas aproximações
das charqueadas se foram localizando famílias de trabalhadores, colocando os seus
arranchamentos a feição de aldeolas, agasalho de braços prontos a acudir ao içar da
bandeirola que anunciava a hora da matança. Certa animação alegrava as suas
cercanias, por ser incessante, no tempo das safras, o movimento de gente que, a pé e a
cavalo, ou de carroças e carretas, que entravam e saíam pela porteira da charqueada. 98

As impressões de Cunha, que era filho de um charqueador, demonstram que se nas


entressafras aqueles estabelecimentos já eram rodeados por uma população de dependentes, no
período de abate a quantidade de pessoas a orbitarem as pequenas fábricas aumentava bastante.
Mas além dos escritos de Cunha, outros dois relatos, desta vez de contemporâneos que
estiveram em Pelotas na década de 1810, oferecem uma visão interessante do espaço social em
que os galpões de charquear estavam erguidos. Conforme John Luccock:

Uma grande extensão de terra é ali designada pelo nome de charqueadas, sendo
famosa pela sua produção luxuriante e pelo seu gado numeroso e nédio. Vêem-se
casas disseminadas por ali, muitas delas espaçosas, e algumas com certas pretensões

97
Com este exemplo, reforço o fato de que estou analisando somente um grupo de elite. Os charqueadores
batizaram filhos de um grande número de pessoas de diferentes estratos sociais. Mas foge às pretensões desta
pesquisa tratar de todos estes vínculos. Além do mais, eles também casaram seus filhos com famílias de outros
grupos sociais, como criadores e negociantes. O papel das mulheres no interior destas malhas parentais de
compadrio e matrimônio também merece uma pesquisa específica. Para um exemplo de como tal empreitada pode
render bons frutos ver HAMEISTER, Martha. Op. cit.
98
ARRIADA, Eduardo. Op. cit., p. 91-93.
120
ao luxo; existem capelas anexas a muitas delas e em volta de uma encontra-se tamanho
número de habitações menores que o conjunto bem mereceria o nome de aldeia.99

De acordo com o relato do comerciante inglês, muitas das charqueadas possuíam


capelas anexas e numa delas, que ele diz ter visto, um número de habitações menores a cercava.
A associação entre a charqueada com uma aldeia e o destaque dado para as capelas, no centro
do território das mesmas, também foi realizada por Nicolau Dreys:

À pouca distância da cidade e rodeando-a como um centro, estão as charqueadas do


Rio Grande (…) formando cada uma delas um círculo de população especial, tão vasto
às vezes e encerrando um número tal de brancos, de agregados e de negros de serviço,
que parece, à primeira vista, uma verdadeira aldeia com suas ruas e sua capelinha, cujo
campanário domina em certas charqueadas as diversas moradas dos habitantes. 100

Estes trechos não poderiam ser mais eloquentes e destacam, além do caráter
concentrador em termos populacionais, o fator religioso que o espaço charqueador representava
– visto a centralidade de suas capelas e oratórios, algo que destacarei posteriormente. Este
aglomerado de pessoas que rodeavam as charqueadas, fossem familiares, livres pobres,
agregados ou escravos, também pode ser atestado por outros relatos. Conforme Fernando
Osório, a charqueada que Pinto Martins construiu em Pelotas atraiu grande número de pessoas,
algumas das quais empregaram-se por ali, sendo que outras famílias se instalaram em torno do
estabelecimento.101 Nesta ocasião, o próprio Pinto Martins teria se arranchado nas terras da
família Silveira e não estava sozinho, pois daquele mesmo espaço compartilhavam outras
famílias, além de charqueadores, que margeavam os principais rios de Pelotas. 102 Portanto,
neste cenário inicial que marcou o colonial tardio, muitos charqueadores ergueram seus galpões
de charquear em terrenos de terceiros, dividindo-os com um variado número de pessoas de toda
a cor e condição social. Além disso, quando proprietários, os charqueadores podiam permitir
que outras pessoas se arranchassem em suas terras. Conforme Eduardo Arriada, nos terrenos do
charqueador Antônio Pereira da Cruz, por exemplo, estavam estabelecidos Antônio Ferreira das
Fontes, o preto Bartolomeu Correia, Manuel Domingues, Joaquim Silveira e Souza, Manuel do
Nascimento e Manuel Cordova.103

Foi deste “círculo de população especial”, conforme as palavras de Dreys, que também
reunia os agregados, os libertos, os índios e, principalmente os escravos, que Pinto Martins

99
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: USP, 1975, p. 142.
100
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IEL, 1961, p. 117-118.
101
OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas. Pelotas: Armazém Literário, v. 1, 1997, p. 54-55.
102
MONQUELAT, A. F. Op. cit., p. 124-125.
103
ARRIADA, Eduardo. Op. cit., p. 70. É muito provável que tais relações também reunissem conflitos entre
proprietários e o restante da população que orbitava tais terrenos, mas não tive fôlego para investigá-las de forma
aprofundada.
121
encontrou as mães dos seus herdeiros reconhecidos em testamento. Além dele, que viveu em
estado de solteiro, e Antiqueira, que apesar de ter tido três esposas ao longo da vida, teve filho
com a parda forra Genoveva, o charqueador Ignácio José Bernardes, sócio de Pinto Martins na
charqueada, também teve 3 filhos pardos: José Ignacio Bernardes da Costa, Eugênia Ignacia
dos Prazeres e Ignacia Xavier dos Prazeres. Apesar de não citar o nome da (s) mãe (s), no
mesmo documento o charqueador deixou dois escravos para a parda Domingas Xavier e
mandou descontar os 600$000 que o filho José da Costa gastou na Bahia, sem a sua
autorização, o que pode indicar a sua conexão com os portos do nordeste. O charqueador
também era cirurgião e em seu inventário constam uma série de livros em português e francês,
dos quais falarei em capítulo posterior.104

Estes casos revelam uma abertura, mesmo que ínfima, para a mobilidade social e
geracional de pardos e pretos na sociedade pelotense do período colonial tardio.105 Ao lado do
mulato Domingos José de Almeida e do mestiço de índios Domingos de Castro Antiqueira,
tinha-se, agora, o pardo Liberato Pinto Martins, novo charqueador-herdeiro da comunidade, e
José I. Bernardes da Costa, que herdou a charqueada do pai cirurgião. Ambos eram filhos de
mulheres egressas do cativeiro. Na presente análise, o estudo destas trajetórias torna-se
importante porque ajuda a compreender melhor a heterogeneidade de indivíduos que
compunham a primeira geração de charqueadores. Na segunda metade do oitocentos, por
exemplo, quando a elite charqueadora já estava mais sedimentada social, política e
economicamente, não localizei indivíduos pertencentes às classes subalternas integrando o
mencionado grupo de empresários.

Os casos de charqueadores com filhos ilegítimos talvez não tenham sido raros. O capitão
José Ferreira de Araújo, por exemplo, teve uma exposta batizada em sua casa, filha de pais
incógnitos. Anos depois, o charqueador veio a reconhecer a paternidade da criança. 106 O
charqueador João Duarte Machado, ex-proprietário de uma das mães de um filho de Pinto
Martins, reconheceu em testamento a paternidade de uma “enjeitada” que vivia em sua casa. 107
É bastante provável que outros charqueadores tenham se envolvido e tido filhos com mulheres
pardas, sem que os mesmos tivessem sido reconhecidos em documentos, mas que fossem de
conhecimento dos mais chegados.108 Isto talvez ajude a explicar a indignação do charqueador

104
Inventário de Ignácio J. Bernardes, n. 217, m. 15, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1838 (APERS).
105
Sobre esta questão, ver GUEDES, Roberto. Op. cit., 2008.
106
Livro de batismo de livres, n. 1, 06.11.1818, p. 100v (Arquivo do Bispado de Pelotas).
107
Inventário de João Duarte Machado, n. 123, m. 10, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedora, 1828 (APERS).
108
Até porque não foram localizados muitos testamentos dentro do grupo.
122
Antônio José Gonçalves Chaves com relação a estas “íntimas relações” entre proprietários
brancos e mulheres de cor. Em 1822, ele deixou escrito:

Deve a natureza, no progresso de sua procriação, operar igual número de mulheres e


homens; vêm de Portugal muitos homens e suposto que alguns deles escapam à praça
e queiram casar, devem não achar com quem celebrar núpcias, pois dado o caso que os
brancos em tão pequeno número tenham a sua população em geral quantidade nos dois
sexos, não restam mulheres para os que vêm de fora e daqui se seguem celibatários
escandalosos pelas misturas com a gente de cor; e em prejuízo desta resulta uma
população a mais desprezível e uma desmoralização universal.109

Nas palavras de Chaves, a principal justificativa para a “escandalosa” união entre


portugueses e negras, era o pequeno índice de mulheres reinóis que vinham para o Brasil.
Analisando o Livro de casamentos dos livres de Pelotas entre 1812 e 1825 foi possível verificar
que o charqueador tinha razão. Dos 254 matrimônios registrados no documento havia 46 noivos
portugueses e somente 1 mulher reinol. Das Ilhas eram 18 homens para 2 mulheres. Mais de
80% das noivas eram naturais do Rio Grande do Sul. Portanto, era um mercado matrimonial em
que os imigrantes reinóis, caso desejassem se casar, estavam obrigados a unirem-se às mulheres
da terra. Contudo, devido ao pequeno número de famílias de elite, não havia lugar para todos os
que buscassem um “bom” casamento.110 Desta situação decorria algo semelhante ao que
Florentino e Machado identificaram para a freguesia de Inhaúma, no Rio de Janeiro, ou seja, a
mancebia entre mulheres pardas e negras com portugueses solteiros, como os charqueadores
Pinto Martins e Ignácio Bernardes, por exemplo. 111

Pelotas apresentava índices de ilegitimidade tão altos como em outras regiões do


Brasil. 112 Cerca de 21,5% das crianças batizadas na freguesia, entre 1812 e 1825, eram fruto de
relações não abençoadas pela Igreja Católica. 113 Alguns anos depois, quando da sua visita
paroquial em Pelotas, o Bispo Antônio Vieira da Soledade deixou registrado em livro o que
considerava uma “libertinagem”:

O Reverendo Francisco Florêncio da Rocha, natural da Bahia, idade 43 anos, ordenado


na mesma cidade, em 1802, serviu de pároco encomendado nesta freguesia por 2 anos,
onde se prestou a todos, para o bem e para o mal. Clérigo concubinado com escândalos
dos poucos bons que há nesta freguesia, onde é ordinária a mancebia, e por isso pouco
estranhada, e por muitos que não vivem nela, é todavia disfarçada por certa doutrina

109
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil.
Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978, p. 62.
110
Livro de casamentos n. 1 (Arquivo do Bispado de Pelotas).
111
FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Migrantes portugueses, mestiçagem e alforrias no Rio de
Janeiro imperial. In: FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-
XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 367-388.
112
BRETTEL, Caroline; METCALF, Alida. Costumes familiares em Portugal e no Brasil: paralelos
transatlânticos. População e Família, v. 1, n. 1, 1998, p. 127-152.
113
Livro de batismo de livres, n. 1 (Arquivo do Bispado de Pelotas).
123
de libertinagem que aqui se prega com a liberdade do tempo, muito perniciosa à moral
do Evangelho.114

Além da condenável “mancebia”, os vínculos entre os charqueadores desta primeira


geração e as classes subalternas estreitavam-se mais ainda quando se observa o parentesco
espiritual. Como Pelotas foi elevada à condição de freguesia somente em 1812, até esta data os
oratórios privados espalhados pelas estâncias e charqueadas possuíam grande importância no
exercício dos sacramentos católicos. Antes da instalação da freguesia e da matriz, o visitador
Agostinho Mendes dos Reis anotou a presença de 9 oratórios no povoado de Pelotas. O
prestígio do Capitão-mor Antônio Francisco dos Anjos se destaca novamente, pois destes 9 ele
foi o único proprietário de oratório que teve o seu nome citado, ao invés do nome da fazenda ou
da localidade sede dos mesmos. Possuir um oratório em suas terras era de extrema importância
não apenas no aspecto religioso que tal fenômeno representava, mas também, pelo fato de que o
mesmo devia servir como fonte de influência, poder e status diante da população mais pobre.
Estudando os engenhos de açúcar em Cuba, Fraginals verificou a presença de capelas no
interior das unidades produtivas com os seus respectivos santos padroeiros, denotando a
importância da igreja e das práticas religiosas para a sacarocracia cubana no século XVIII.115

A vida religiosa nas pequenas vilas e freguesias ocupava um espaço central entre as
famílias de elite. Conforme Denise Ognibeni, na década de 1810, os charqueadores, juntamente
com suas esposas, “participavam ativamente nas decisões concernentes aos assuntos religiosos
na nova freguesia, decidindo o local da igreja, patrocinando as obras, realizando procissões com
o santo padroeiro”, além de exercerem cargos e desempenharem papéis de destaque nas
Irmandades e procissões locais. Os padres muitas vezes hospedavam-se nas charqueadas ou
viviam de agregados em algumas propriedades, onde poderiam rezar suas missas nos oratórios
privados dos próprios senhores.116 Por conta disto, na década de 1810, o charqueador José da
Costa Santos, juntamente com sua esposa e suas 4 filhas, solicitaram licença para poder rezar
missa no oratório privado de sua Estância de São Lourenço. O tenente-coronel José Antônio de
Oliveira Guimarães, uma das testemunhas convidadas a depor sobre a idoneidade dos
requerentes, respondeu que o casal vivia “à maneira da nobreza” e que “há na dita Fazenda
114
Visitas Pastorais, Livro VP-21 (1824-1825) - Cúria do Rio de Janeiro.
115
FRAGINALS, Manuel M. O Engenho. São Paulo: Unesp/Hucitec, v. I, 1989, p. 138-139. Schwartz, ao estudar
os engenhos de açúcar do Recôncavo baiano, mencionou que os escravos não iniciavam o trabalho no período da
safra sem antes dos párocos benzerem os estabelecimentos e as máquinas. “Os escravos levavam aquilo tão a sério
quanto os senhores. Recusavam-se a trabalhar se a moenda não fosse abençoada e, durante a cerimônia, muitas
vezes tentavam avançar para receber algumas gotas de água benta no corpo” (SCHWARTZ, Stuart. Segredos
internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Cia. das Letras, 1988, p. 96).
116
OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento. Porto
Alegre: PPGH/PUC-RS, Tese de Doutorado, 2005, p. 86-91.
124
perto de duzentas pessoas que são da família dos impetrantes”. É difícil saber se todos seriam
de fato seus familiares. No entanto, o próprio requerimento oferece uma pista de quem seriam
estas duzentas pessoas. Segundo a vontade do charqueador:

E as missas que nos dias santos e festas de preceitos no dito oratório se celebrarem
poderão ouvir os suplicantes com todos os seus parentes, consanguíneos ou afins,
familiares e criados, que juntamente com eles habitarem nas mesmas casas, como
também seus hóspedes nobres, com declaração que os ditos parentes, familiares e
hóspedes nobres, somente estando presentes à celebração do Santo Sacrifício da Missa
os mencionados impetrantes (…).117

Interessante notar que por duas vezes eles diferenciaram os parentes consanguíneos e
afins dos “familiares”. Além disso, também é considerada a presença dos criados. No total,
Costa Santos possuía 172 escravos espalhados pela sua Fazenda. O testamento do charqueador,
aberto em 1827, ajuda a explicar quem pertencia a este contingente de parentes, familiares e
criados. No documento ele deixa bens para afilhados, compadres, capatazes, agregados, além de
alforriar um grande número de escravos. 118 É provável que além dos indivíduos mencionados
houvesse muitos outros que não mereceram menção especial do falecido, dentre os quais
podiam estar libertos e índios com suas roças e pequenos rebanhos vacuns espalhados pelas
vastas terras do charqueador.119

Portanto, o compadrio, cuja importância era bastante significativa naquela sociedade,


abria espaços para que os charqueadores estabelecessem laços de parentesco espiritual com
setores das classes subalternas. No Gráfico 3.2, todos os pardos, pretos e índios que encontrei
tendo seus filhos batizados por charqueadores, entre 1812 e 1825, foram marcados em cor
cinza. Também incluí entre estes os pardos filhos ilegítimos de charqueadores citados
anteriormente. Uma visão que entendesse que tais vínculos diminuiriam a condição de elite do
charqueador poderia supor que as alianças com tais setores da sociedade estivessem reservadas
aos charqueadores de menor riqueza e prestígio social. Mas não é isso que se verifica. É
exatamente o setor mais notável da elite charqueadora (grifado em preto) que concentra os laços
parentais com os grupos subalternos (grifados em cinza). Tais vínculos poderiam ser usados
pelos mais pobres como forma de inserir-se em uma rede social de forma mais ou menos
estratégica e, assim, adquirir recursos para beneficiar seus parentes e amigos. Estas teias eram
sem dúvida muito mais amplas, pois não contabilizei os compadres e comadres das esposas e

117
Requerimento de oratório privado de José da C. Santos. Série Breve Apostólico. Notação 394. Cúria do RJ.
118
Inventário de José da Costa Santos, n. 113, m. 9, Pelotas, 1º cartório de órfãos e ausentes, 1827 (APERS).
119
Sou inclinado a pensar nisto pelo grande percentual de libertos na população pelotense recenseada em 1833.
Conforme a Tabela 3.3, eles somavam 1.137 indivíduos (10,5% da população total).
125
dos filhos dos charqueadores e nem acresci nesta análise os batismos de escravos. 120 O
compadrio era o lugar possível para a realização de vínculos parentais entre ricos e pobres, uma
vez que, devido à forte endogamia de classe, o matrimônio não estava aberto aos mesmos. 121

Gráfico 3.2 – Vínculos de parentesco entre os 62 charqueadores de Pelotas com as classes


subalternas a partir dos registros de batismo de livres (1812-1825)

Fonte: Livro de batismo de livres, n. 1 (Arquivo do Bispado de Pelotas);


Testamentos e Inventários post-mortem de Pelotas (APERS).

O estudo do compadrio sob uma perspectiva geracional não deve ser excluído da
análise, que também podia envolver a mobilidade social entre compadres de condição inferior.
Quanto a isto, posso oferecer um exemplo recorrendo novamente ao incansável capitão-mor
Antônio Francisco dos Anjos. Em 1815, ele batizou a pequena Benigna, filha de Manuela
Francisca Moreira e Severino Gonçalves, ambos pretos libertos e casados. Em 1821, a mesma
Manuela teve o filho Herculano pardo batizado pelo genro de Francisco dos Anjos, o capitão
João de Souza Mursa. E em 1824, novamente Manuela convidou um filho de Francisco dos
120
Sobre a importância do compadrio nas redes de relações das famílias de elite e do parentesco espiritual com as
classes subalternas ver HAMEISTER, Martha. Op. cit., 2006; FRAGOSO, João. Efigênia Angola, Francisca Muniz
forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII: uma contribuição
metodológica para a história colonial. Topói, v. 11, n. 21, jul/dez, 2010, p. 74-106; FARINATTI, Luís Augusto. Os
escravos do Marechal e seus compadres: hierarquia social, família e compadrio no Brasil (c.1820-c.1855). In:
XAVIER, Regina (Org.). Escravidão e liberdade: temas, problemas e perspectivas de análise. São Paulo:
Alameda, 2012, p. 143-174.
121
Isto não significa que os charqueadores menos ricos e de menor prestígio não possuíssem tais vínculos, pois a
análise centra-se no 1º livro de batismo dos livres entre 1812 e 1825. Uma pesquisa mais abrangente e que
envolvesse os batismos de escravos poderia trazer resultados adicionais, mas não tive fôlego para tanto.
126
Anjos, Antônio Rafael, para batizar outro filho seu, desta vez no oratório da charqueada. Nesta
ocasião, tanto a criança como o seu pai, Zeferino Inácio da Siqueira, foram classificados pelo
padre como “brancos”, enquanto Manuela não teve sua cor mencionada, o que poderia indicar
uma suposta mobilidade social desta preta liberta, ao longo de 10 anos.122 Mas os grandes
trunfos em arrematar compadres e comadres entre as classes subalternas foram o seu outro filho
Domingos e o mencionado genro Mursa. Este era natural do Rio de Janeiro, e batizou duas
crianças pardas e dois índios, todos filhos de casais diferentes. O capitão Domingos dos Anjos,
por sua vez, batizou outras duas crianças pardas, uma filha de índios e também a pequena Ana,
exposta na casa do charqueador José Ferreira da Araújo, que, anos depois, reconheceu-se ser
filha do próprio charqueador.123

Portanto, o capitão-mor Antônio Francisco dos Anjos, um dos homens mais poderosos
daquela pequena aldeia, reconhecido por visitadores e comerciantes de grosso trato do Rio
enquanto tal, também possuía uma notável malha parental composta por índios, pardos e pretos
forros. Na prática, esta diversificada teia de compadres e parentes, onde brancos ricos com
distinção honorífica ou patentes ocupavam uma posição de destaque, podia ser acessada em
momentos de necessidade, tanto no cotidiano quanto em ocasiões especiais, representando um
pedido ou uma retribuição de algo, como, por exemplo, em situações de recrutamento e guerra,
disputas políticas e territoriais, períodos de safra ou para se obter favores dos mais diversos.

As cartas que o charqueador Domingos José de Almeida enviou para a sua esposa nos
anos de 1835 e 1836 são bastante reveladoras da importância desta malha parental na vivência
de suas famílias. Em junho de 1835, quando Domingos foi a Porto Alegre assumir sua vaga de
deputado provincial, escreveu para a esposa mandando “abraços a nossos filhos e saudações a
teus pais, compadre José Félix, teus irmãos, José Pedro, João da Cunha e a todos de casa”.124
Tendo iniciado a Revolta dos Farrapos, três meses depois, ele tomou parte do lado rebelde.
Nesta ocasião, a dona Bernardina, retirando-se para lugar mais seguro com os filhos do casal,
esteve cercada por esta ampla gama de amigos, parentes e compadres, como fica claro nas
cartas. Domingos sempre as terminava recomendando aos mesmos, para quem pedia favores
diversos. Numa carta em que dava instruções de como agir com os escravos, ele recomenda-a
aos “compadres José Félix, Joaquim, João, Chaves, Chastan, Chevalier e David”. 125 Em outras,
faz referências a mais quatro compadres. Rolino, que também era capataz, Cipriano, Rafael e

122
Conforme o sugerido por GUEDES, Roberto. Op. cit., 2008.
123
Livro de batismo de livres, n. 1 (Arquivo do Bispado de Pelotas).
124
Carta de Domingos para Bernardina, 20.06.1835, CV - 174.
125
Carta de Domingos para Bernardina, 14.03.1836, CV - 195.
127
Belchior, além de muitas outras pessoas, às vezes, denominadas como “amigo”.126 Não
surpreende que, em uma carta de Bernardina para Domingos, ela deixara escapar: “a nossa
família é muita grande”. 127

Com muita atenção, este agregado de dependentes e parentes pode ser verificado em
outras fontes. Em 1821, um escravo do charqueador Gonçalves Chaves matou um parceiro de
cativeiro, vindo a fugir para o mato. Uma das testemunhas, o também charqueador Boaventura
R. Barcellos, disse ter oferecido “o seu capataz e sua gente para procurarem e prenderem a dito
matador e que não sendo preso desta ocasião, o fora depois”.128 Em 1828, por ocasião do
inventário do charqueador João Duarte Machado, foi declarado na avaliação dos bens que um
potreiro fazia divisa com um valo que o charqueador Joaquim José de Assumpção “fez com sua
gente no Banhado”.129 No próprio requerimento do charqueador José da Costa Santos, citado
anteriormente, fica claro que as missas rezadas no seu oratório privado poderiam ser assistidas
por ele, sua esposa, suas filhas, “com todos os seus parentes, consanguíneos ou afins, familiares
e criados, que juntamente com eles habitarem nas mesmas casas”, ou seja, a sua gente. Neste
sentido, se por um lado alguns charqueadores temiam uma rebelião escrava naquelas paragens,
outros estabeleceram alianças espirituais com indivíduos das classes subalternas, num
emaranhado de complexas relações e comportamentos sociais que merecem maiores estudos.

Portanto, creio que este agregado populacional que orbitava às charqueadas devia
manter distintos vínculos com esta elite, desde o parentesco espiritual até as relações de
trabalho, de negócios eventuais ou as abastecendo com gêneros alimentícios produzidos em
suas pequenas roças. Esta convivência podia ser mais ou menos harmônica, mas andava lado a
lado com a dependência econômica e certamente combinava-se com a existência de muitos
embates e conflitos no seu cotidiano. Tal estrutura social, mais característica da fase inicial da
montagem das charqueadas, ou seja, do colonial tardio, possuía alguns traços muito
semelhantes com o que João Fragoso verificou nas unidades açucareiras fluminenses dos
séculos XVII e XVIII. Segundo o autor, aquela paisagem agrária, enquanto espaço econômico
de interação social, reunia verdadeiras aldeias coloniais, onde a nobreza da terra disputava o
poder local aliando-se a outras famílias, relacionando-se com um grupo significativo de

126
Cartas de Domingos para Bernardina, 02.10.1835, 05.01.1836, 23.02.1836, CV - 176, 186 e 191.
127
Carta de Bernardina para Domingos, 19.12.1842, CV – 167. Sobre esta família ver também MENEGAT (2010).
O uso de familiares nas unidades produtivas dos charqueadores será analisado de forma mais detalhada nos
capítulos posteriores.
128
Processo crime n. 119, m. 4, Pelotas, 1821, APERS.
129
Inventário de João Duarte Machado, Pelotas, n. 123, m. 10, 1828, Cartório órfãos e provedoria (APERS).
128
dependentes, parentes e agregados de distintas posições sociais. 130 Portanto, olhando para
Pelotas, me parece que aquele pequeno mundinho construído por charqueadores minhotos,
pernambucanos, mineiros, cariocas e rio-grandenses, no final do setecentos, bebia daqueles
parâmetros socioculturais que caracterizaram àquelas aldeias coloniais, embora a presença de
tais traços estivessem em plena transformação e na segunda metade do século XIX, o
mencionado mundinho já havia se desagregado…

***

Tendo em vista o que foi exposto até aqui, creio ser necessário realizar algumas
considerações finais sobre o espaço de atuação dos comerciantes-charqueadores no interior do
sistema mercantil considerado. Foi possível demonstrar que num total de 62 charqueadores
havia um grupo diminuto, composto por 26 indivíduos que, fortemente aparentados, podiam ser
reduzidos a algo entre 10 ou 13 famílias (dependendo dos critérios que se use), que foi capaz de
destacar-se regionalmente, de receber o reconhecimento de sua posição por parte das elites de
fora da região e de manter relações mercantis com comerciantes de outros portos. Entre os seus
membros mais destacados estavam Antônio Francisco dos Anjos, José da Costa Santos,
Domingos Rodrigues, Domingos de Castro Antiqueira, Antônio José de Oliveira Castro, além
das famílias Rodrigues Barcellos, Gonçalves Chaves, Vieira Braga, Cunha, Soares da Silva,
Azevedo e Souza, Soares de Paiva, seus respectivos parentes, entre outros. Eles concentravam
as maiores fortunas inventariadas e as maiores escravarias entre seus bens. Esta elite dentro da
elite não pode ser vista como os demais charqueadores, comerciantes e estancieiros da
capitania/província que não ocupavam com distinção as esferas sociais e econômicas
anteriormente mencionadas. Eles estavam mais bem posicionados no interior das redes
mercantis com o mercado externo e acumularam mais riquezas, comendas, ofícios e patentes de
ordenanças. Além disso, praticaram uma notável endogamia. Neste sentido, a sua posição
superior na hierarquia regional não passava exclusivamente pela acumulação do patrimônio
material, pois também precisava ser reforçada em outros espaços de atuação e distinção para
além da esfera econômica.131

130
FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro
(1600-1750). In: Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa,
séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 33-120.
131
Os mecanismos de reprodução da economia não passavam somente pela lógica do mercado internacional, mas,
também, na exploração econômica das próprias comunidades locais inseridas numa variada gama de atividades e
com uma limitada possibilidade de influência nos rumos da localidade, embora agissem estrategicamente para
melhorarem suas condições de existência.
129
A compreensão das lógicas que estruturavam a formação desta primeira elite de
comerciantes-charqueadores teve importante contribuição na primordial obra de Helen Osório,
que abriu um notável espaço de pesquisa a cerca das elites coloniais no Rio Grande do Sul. No
entanto, comparando as fortunas e atividades dos comerciantes rio-grandenses com os do Rio
de Janeiro, a autora considerou que “o grupo mercantil sediado no Rio Grande do Sul não
abrigou homens de negócio de grosso trato”. Examinando o patrimônio inventariado de ambos
os grupos, Osório considerou que era “incomparável o grau da acumulação mercantil sediada
no Rio de Janeiro em relação ao do extremo Sul”. Portanto, tal posição de “subalternidade” no
interior do sistema mercantil “sublinha a debilidade dos negociantes riograndenses”. 132 Este
quadro interpretativo foi relativizado por Gabriel Berute. Segundo o autor, a afirmação de
Osório deve ser revista no que diz respeito a não existência de comerciantes de grosso trato na
capitania. Os negociantes envolvidos no comércio marítimo de longo curso possuíam uma boa
margem de atuação no interior do sistema mercantil, sendo considerados tanto pelos seus pares
de outras províncias, quanto pela Real Junta de Comércio sediada na Corte como “negociantes
de grosso trato”.133 No que diz respeito à comparação das fortunas é necessário fazer uma outra
ressalva. Com exceção de Brás Carneiro Leão e João Gomes Barroso – cuja riqueza
surpreendeu, inclusive, Jorge Pedreira134 – as demais faixas de fortuna não eram tão
“incomparáveis” com a dos comerciantes-charqueadores mais ricos, pois uma análise do monte-
mor de ambos os grupos não revela fortunas tão distantes como Osório sugeriu.135

132
OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 262; 265; 289; 318.
133
BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2006, p. 145.
134
Sobre a riqueza dos dois negociantes cariocas, inferiores aos mais ricos comerciantes de Lisboa, Pedreira
considerou como sendo “quantias que embora inflacionadas pelo alto nível de preços, eram sem dúvida
impressionantes” (PEDREIRA, Jorge. Op. cit., p. 299-300). No capítulo 9 tratarei mais deste tema.
135
Helen Osório baseou sua afirmação comparando as fortunas de ambos os grupos. “Confrontando
especificamente fortunas de negociantes, vê-se que o maior monte-mor encontrado no extremo sul era de 40.000
libras, enquanto, para o Rio de Janeiro, Fragoso apresenta mais de 20 nomes de negociantes de grosso trato que
ultrapassavam as 50.000 libras” (OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 265). Na realidade, os dados elencados por Fragoso
reúnem 20 fortunas superiores a 50 contos de réis. Sobre estes indicadores, que reúnem as maiores fortunas
mercantis inventariadas entre 1794 e 1846, Fragoso comentou: “a riqueza da elite mercantil (…) que retrata, entre
outras, as fortunas daqueles negociantes listados pelo Conde de Rezende, em geral ultrapassa a cifra de 20 mil
libras, podendo superar 50 mil libras. No intervalo de tempo por nós apreendido, não encontramos nenhuma
fortuna agrário-escravista, sem origem mercantil, que alcançasse a cifra de 50 mil libras, fato que reforça a
preeminência de uma elite de negociantes na hierarquia econômica da sociedade colonial e, portanto, a sua
supremacia econômica sobre a aristocracia escravista” (FRAGOSO, João. Op. cit., p. 315). Dos 29 inventários de
charqueadores que reuni entre 1800 e 1850 (período aproximado ao da tabela formulada por João Fragoso), 15
possuíam fortunas acima de 50 contos de réis, sendo que 2 detinham fortunas acima de 50 mil libras. Dialogando
com a obra de Fragoso, Maria Viveiros Araújo também utilizou a faixa de 50 contos de réis (estipulada pelo autor)
para comparar as fortunas dos comerciantes paulistas com a dos cariocas (ARAÚJO, Maria L. Vieiros. Os
caminhos da riqueza dos paulistanos na primeira metade do oitocentos. São Paulo: Hucitec, 2006, p. 51). Sem
dúvida, os comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro eram os mais ricos da América portuguesa e o perfil de
suas fortunas era mais mercantil do que a dos charqueadores, mas creio que a palavra “incomparável” não é
adequada para definir esta relação. A correção dos números utilizados por Osório não afeta a tese da autora, mas
coloca a elite charqueadora e mercantil rio-grandense em uma posição mais importante no interior da hierarquia
130
Contudo, é preciso deixar bem claro que o fato de existirem comerciantes de grosso
trato no Rio Grande do Sul e de suas fortunas não serem tão desprezíveis assim, não significa
que os comerciantes-charqueadores ocupassem uma posição de igualdade com os comerciantes
cariocas. Muito pelo contrário. Estes últimos dominavam o tráfico atlântico de escravos – uma
das chaves da reprodução da sociedade colonial como um todo – e o seu “raio de atuação”,
conforme Fragoso, era muito mais amplo. Além do mais, seus negócios e investimentos eram
muito mais diversificados.136 Portanto, não apenas os charqueadores e fazendeiros, como todos
os setores sociais que necessitavam da mão de obra cativa, dependiam do comércio negreiro e
das redes de relações em que os traficantes estavam inseridos. Tendo em vista que mais de 100
mil escravos foram remetidos para o Rio Grande do Sul e a região do Prata durante o colonial
tardio e as primeiras décadas após a independência do Brasil, o Rio de Janeiro era simplesmente
a “Meca” das elites escravistas e dos negociantes do extremo sul da América. Conforme Berute,
os atravessadores que agiam no interior do tráfico atlântico revendendo “seus escravos a
prestações ou em troca de mercadorias produzidas pelos compradores” tinham a sua
importância “reconhecida pelas autoridades coloniais e, até mesmo, pelos grandes homens de
negócios”. Como a escravidão também foi estrutural na formação do complexo saladeril no Rio
da Prata, é provável que os atravessadores naquela região possuíssem a mesma importância
enquanto elite colonial hispano-americana.137 Neste sentido, manter uma boa relação com os
comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro era fundamental para o bom andamento dos seus
negócios e os charqueadores sabiam muito bem disso.

Como ensinou Fernand Braudel, no interior dos circuitos comerciais de longa distância,
onde a regra era comprar barato e vender caro, ocorria uma transferência dos lucros mercantis
para as mãos dos negociantes mais bem posicionados.138 No entanto, havia espaços suficientes
para que os distintos grupos mercantis, atuantes em diversas regiões dos mencionados Impérios,
mantivessem seus lucros e ocupassem o topo das suas hierarquias sociais locais e regionais
(com seus respectivos limites de atuação, níveis de grandeza e fortuna) sem que

socioeconômica do Atlântico sul e justifica a necessidade de novas pesquisas sobre elites locais e regionais
brasileiras – algo que esta tese buscou contribuir.
136
E neste sentido, o “incomparável” não estava no valor das fortunas acumuladas, mas sim, nas possibilidades e
capacidade de investimentos. Pelotas no início do oitocentos era uma aldeia se comparada à praça mercantil
carioca e não oferecia muitas opções de inversão além de imóveis urbanos, escravos e terras.
137
Como, por exemplo, o saladeirista oriental Francisco de Medina (PRADO, Fabrício. In the shadows of empires:
trans-imperial networks and colonial identity in Bourbon Río de la Plata. Diss. (Ph.D.) - Emory University, 2009).
Soma-se a isto, o que Helen Osório notou ao estudar a arrematação de contratos no centro-sul da América
portuguesa. Estes estavam acessíveis somente aos negociantes cariocas e constituíam-se em outra importante fonte
de enriquecimento, expressando um nítido privilégio de um corpo mercantil mais estabelecido e com maior acesso
à Corte portuguesa (OSÓRIO, Helen. Op. cit.).
138
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 357.
131
interrompessem os processos de enriquecimento uns dos outros. Basta ver que qualquer grupo
de elite local ou regional concentra em diferentes proporções os recursos materiais, extorquindo
a riqueza de sua comunidade local.

No caso aqui estudado, ser bem relacionado com um comerciante de grosso trato do Rio
podia representar a compra de sal e escravos por um preço e prazos melhores, evitar que suas
contas fossem liquidadas na ocasião de uma safra ruim ou conseguir favores com fretes e
informações preciosas do mundo dos negócios. Agindo desta forma, os grandes comerciantes e
traficantes cariocas, comendadores e capitães assim como o pequeno grupo de comerciantes-
charqueadores analisado, estariam seguindo a boa e velha tradição do Império português, onde
as grandes autoridades políticas reconheciam, mesmo que de forma hierarquizada, a autonomia
e a importância das elites locais e regionais para o funcionamento do mesmo Império. Esta
dinâmica não subverte a hierarquia política e mercantil que vinha se construindo no Brasil
desde 1808, mas apenas complexifica o processo histórico e oferece um grau de negociação e
de protagonismo às elites locais e regionais maior do que vem sendo aceito por parte da
historiografia.

As elites de um determinado lugar, caso fossem hipoteticamente transpostas para outro


espaço, não seriam obrigatoriamente elites, pois os patamares de riqueza, poder e prestígio
social sempre possuem as suas diferenças, ainda mais em territórios tão amplos como o do
Império português e, posteriormente, o do Brasil. Em regiões mais periféricas as condições
materiais para ocupar os estratos superiores da hierarquia social eram menos exigentes, o que
não significa que os seus detentores não tivessem sua posição reconhecida enquanto tal. Ciosas
de sua posição de elite local e regional, elas barganhavam com os grandes centros de poder,
negociando seu apoio e auxiliando a manter a ordem social local sob a garantia de receber mais
mercês e honras que reforçassem a sua posição.139 Isto ajuda a explicar não apenas as alianças
entre os luso-brasileiros e os chefes indígenas, por exemplo, como também o grande prestígio
que líderes locais da fronteira sul possuíam pela capacidade em arregimentar um grande
número de homens armados.140

139
Sobre este fenômeno na América portuguesa, Charles Boxer escreveu: “os grandes proprietários de terras,
fossem senhores de engenho, criadores de gado ou donos de minas de ouro, mostravam-se cada vez mais ávidos de
títulos, honrarias e postos militares, em busca de poder e prestígio”. Neste sentido, “os governadores coloniais
tinham consciência desse fato e muitas vezes lembraram à Coroa que a distribuição judiciosa de postos e títulos
militares era melhor e mais barato meio para assegurar o que, do contrário, somente a lealdade duvidosa dos
poderosos do sertão garantiria” (BOXER, Charles. Op. cit., p. 322).
140
GIL, Tiago L. Infiéis Transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo
(1760-1810). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.
132
Portanto, ao invés de pensar nas elites locais e regionais do período reservadas aos seus
projetos meramente periféricos, proponho, como já enunciei na introdução desta tese, um outro
modelo onde uma pequena parcela das elites locais – uma elite dentro da elite – conseguia
ocupar este espaço exatamente pelo tipo diferencial de relações sociais que mantinha com os
principais centros econômicos e políticos, no caso aqui proposto o Rio de Janeiro, e pelos
recursos materiais e imateriais que concentrava. Ao dar este salto, este estrato social
transformava-se em elite regional, mas sem deixar de desprender-se dos interesses de sua
comunidade, embora, em termos de visão de mundo e poder de influência, ele estivesse muito
acima dela.

133
4. UMA CIDADE ATLÂNTICA: A POPULAÇÃO PELOTENSE, SUA
ESTRATIFICAÇÃO SOCIOECONÔMICA E A IMIGRAÇÃO ESTRANGEIRA
DURANTE O AUGE E A DECADÊNCIA DAS CHARQUEADAS ESCRAVISTAS
(1850-1890)

A nossa melhor colônia é o Brasil,


depois que deixou de ser colônia nossa

Alexandre Herculano

A dona Felisbina Antunes da Silva era esposa do coronel Anibal Antunes Maciel, um
dos homens mais ricos e poderosos da Pelotas oitocentista. Quando ela faleceu, em 1871, o
casal teve seu patrimônio avaliado em 1.893:256$602 réis. Proprietários de 159 escravos,
ambos também possuíam casas na cidade, uma charqueada, 3 embarcações de grande porte e 5
estâncias no Uruguai, onde pastavam mais de 34 mil cabeças de gado, além de outros bens.1 A
fortuna da dona Felisbina Antunes da Silva era 7.898 vezes maior que a fortuna, se é que se
pode chamar assim, de Felisbina Francisca Domingues. Pobre Felisbina. Não bastasse possuir
como único bem uma casinha “em ruínas”, ainda tinha uma dívida de 246$600 réis, o que
comprometia em mais de ¾ o seu pequeno patrimônio. Das diversas jóias que a Felisbina rica
possuía, apenas uma já seria o suficiente para saldar este débito. O anel de ouro com pedras de
brilhantes, por exemplo, equivalia a quase cinco vezes o valor das dívidas da Felisbina pobre.

Para entender melhor o comportamento social da elite charqueadora pelotense é


necessário conhecer a população do município, sobretudo aqueles grupos que orbitavam ao
redor das charqueadas e as pessoas que viviam na cidade – palco de ostentação do luxo e
riqueza das principais famílias da localidade e onde os charqueadores residiam nas épocas de
entressafra. Nessas ocasiões, enquanto sua numerosa escravaria era empregada em diferentes
serviços, os mesmos, juntamente com suas famílias, desfrutuvam dos muitos espaços de lazer
que a cidade oferecia, compartilhando com estrangeiros de diferentes classes sociais a vida
urbana que cada vez mais se disseminava por Pelotas. Neste sentido, tendo em vista a
pluralidade de pessoas e grupos sociais que formavam a população pelotense, uma divisão da
mesma entre ricos e pobres seria tão ingênua quanto uma divisão entre senhores e escravos. A
Pelotas da segunda metade do oitocentos apresentava uma estratificação social com certo nível

1
Inventário de Felisbina da Silva Antunes. N. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime (APERS).
134
de complexidade que não deve ser desprezada. Entre a Felisbina rica e a Felisbina pobre havia
muitas pessoas de diferentes condições sociais e econômicas.

É certo que a economia pelotense era muito mais que um aglomerado de galpões de
charquear. Entretanto, a cidade, enquanto espaço privilegiado das relações sociais de grande
parte dos pelotenses, só tornara-se uma realidade possível por conta das charqueadas erigidas às
margens dos principais rios do município. 2 Boa parte das atividades econômicas locais tinham
significativas relações com as charqueadas, como a criação de gado, a produção de gêneros
agrícolas, o grande e o pequeno comércio, o artesanato e os demais serviços. A economia
charqueadora gerava impostos para o município e a província, alimentava o tráfico de escravos,
fornecia matéria-prima para as fábricas locais (como sebo, graxa, ossos e couros), empregava
um grande número de marinheiros e trabalhadores eventuais e das famílias charqueadoras saíam
os médicos, os advogados, os juízes e os políticos que, simplesmente, conectavam a cidade com
o mundo exterior.

Os anos 1850 a 1890, analisados neste capítulo, marcam um maior desenvolvimento


socioeconômico de Pelotas se comparado aos anos que precederam a Revolta Farroupilha. Este
período abarca não apenas o auge da indústria charqueadora escravista, como também o início
da sua decadência. São entre estas décadas que a sociedade escravista pelotense encontrou a sua
fase mais madura, atingindo um desenvolvimento pleno da economia, e sua elite é alçada à alta
política, recebendo títulos de nobreza, e acumulando uma riqueza nunca antes vista na
localidade. Por volta da década de 1880, as charqueadas completavam um século de existência
e as famílias fundadoras do povoado ainda possuíam os seus descendentes residindo no
município. Portanto, este capítulo busca perceber como os charqueadores se situavam no
interior da complexa pirâmide social que se constituiu neste período, além dos diversos grupos
que ocupavam os muitos degraus desta mesma hierarquia.

4.1 ESTRUTURA SOCIAL E ECONÔMICA DA SOCIEDADE PELOTENSE A PARTIR DA


ANÁLISE DOS INVENTÁRIOS POST-MORTEM

Para obter uma melhor compreensão acerca da distribuição da riqueza na sociedade


pelotense na segunda metade do século XIX, analisei os patrimônios avaliados em todos os
inventários post-mortem, num intervalo de 5 em 5 anos, entre 1850 e 1890. Esta triagem
resultou num corpo documental de 302 processos. Entretanto, muitos não tiveram

2
ARRIADA, E. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano (1780-1835). Pelotas: Armazém literário, 1994.
135
prosseguimento ou não apresentaram a avaliação dos bens de forma completa, restando 256
documentos.3 É sabido que os inventários post-mortem sobre-representam as camadas mais
abastadas da população analisada, pois não oferecem um mesmo tratamento aos mais pobres da
sociedade, cujos bens praticamente não eram passíveis de serem inventariados.
Paradoxalmente, como já evidenciaram João Fragoso e Renato Pitzer, é mais fácil termos
acesso à população escrava da localidade, pois os mesmos eram propriedade dos inventariados
e como tal deviam ser arrolados e avaliados, do que “às camadas mais miseráveis dos homens
livres pobres”. 4

Entretanto, isto não invalida a utilização desta fonte documental para a análise
pretendida. Com ressalvas e cruzando-se com outras fontes documentais ela pode servir para o
estudo dos estratos sociais mais pobres, mas certamente é privilegiada para investigar a elite
econômica de determinada região e os graus de concentração das fortunas. Neste sentido, os
inventários tornam-se uma fonte privilegiada, pelo seu caráter massivo e recorrente. No
primeiro, ele pode revelar a diversidade entre os grupos sociais da região analisada e no
segundo, ele oferece uma visão dinâmica da mesma, com suas mudanças e permanências. 5

A partir da observação dos patrimônios inventariados é possível perceber que a riqueza


estava concentrada nas mãos de poucas pessoas. Os 10 indivíduos mais afortunados, ou 3,9%
dos inventariados, somavam 611.287 £ (libras esterlinas), ou 53,8% do total avaliado.6 Entre
estas pessoas do topo da hierarquia socioeconômica estavam 5 charqueadores, 3 estancieiros e 2
comerciantes. A Tabela 4.1 permite uma visualização mais detalhada desta concentração de
riqueza no município. A base desta pirâmide socioeconômica revela que 73,8% dos
inventariados detinham apenas 9,9% dos bens avaliados. Levando-se em conta que os
inventários sobre-representam as camadas mais ricas da sociedade, conclui-se que a

3
Esta documentação está sob a guarda do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS.
4
FRAGOSO, João; PITZER, Renato Rocha. Barões, homens livres pobres e escravos - notas sobre uma fonte
múltipla. Os Inventários Post-mortem. In: Revista Arrabaldes, n. 2, 1988, p. 37.
5
FRAGOSO, João; PITZER, Renato. Op. cit. A utilização de inventários post-mortem e o seu tratamento
quantitativo já tornou-se um método mais que consolidado na historiografia brasileira. Sobre esta e outras
possibilidades de pesquisa em História Agrária ver, por exemplo, LINHARES, Maria Yedda. História Agrária. In:
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia.
Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 165-184. Também recorro a estas fontes pela inexistência de listas de habitantes
para o Rio Grande do Sul, cujos documentos, desde as pesquisas de Marcílio, têm sido muito importante na
historiografia brasileira (MARCÍLIO, Maria Luíza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850.
São Paulo: Pioneira/USP, 1973).
6
Todos os valores em mil réis foram convertidos para libras esterlinas. Tal método, comum entre os historiadores
que realizam este tipo de análise ao estudar a economia brasileira do período, tem em vista diminuir as oscilações
de valores da moeda brasileira e favorecer uma comparação entre períodos diversos, uma vez que a moeda inglesa
era mais estável. A tabela de conversão utilizada foi a de MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil.
São Paulo: Brasiliense, 1982, Anexos.
136
concentração de riqueza era ainda maior, pois uma ampla gama de pobres e despossuídos não é
contemplada na documentação.

Tabela 4.1 - Distribuição das riquezas inventariadas por faixas de fortuna


(1850-1890) (em libras esterlinas)

Monte-mor Inventários Inventários Fortuna Fortunas


(libras) (N.) (%) (libras) (%)

Acima de 50 mil 5 1,9 421.249 37,1


De 20 a 50 mil 8 3,1 267.225 23,6
De 10 a 20 mil 9 3,5 124.921 11,0
De 5 a 10 mil 18 7,0 123.803 10,8
De 2 a 5 mil 27 10,6 85.969 7,6
De 1 a 2 mil 43 16,8 60.732 5,3
De 500 a 1 mil 39 15,3 28.562 2,6
De 100 a 500 74 28,9 20.784 1,8
Menos de 100 33 12,9 1.966 0,2

Totais 256 100% 1.135.211 100%


Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)

Esta desigualdade na distribuição das riquezas foi um traço característico da sociedade


brasileira desde os tempos coloniais. Analisando inventários post-mortem do Rio de Janeiro,
entre 1790 e 1835, Fragoso e Florentino observaram que o “agro e cidade continuaram a
apresentar o décimo superior de suas populações detendo cerca de 2/3 da riqueza, com os cinco
décimos mais pobres possuindo 4% a 8%”. Os autores verificaram que esta estrutura de
concentração também era observada em outras regiões do Vale do Paraíba. 7 Em Lorena,
município cafeicultor paulista, 16,7% dos inventariados concentravam 89,5% da riqueza local
entre 1830 e 1879.8 Em Alegrete, município sul-rio-grandense que tinha na pecuária a sua
principal base econômica, os 10% mais ricos da década de 1860, concentravam 70% da riqueza.
Entre 1825 e 1865, os 50% mais pobres nunca detiveram mais que 10% das fortunas. 9 Esta
mesma concentração de riqueza pode ser observada em diferentes regiões do Brasil como
Minas Gerais, Bahia e Pará, por exemplo.10

7
FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e
elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001., p. 172; 175-179.
8
MARCONDES, Renato Leite. A Arte de acumular na gestação da economia cafeeira: formas de enriquecimento
no vale do Paraíba paulista durante o século XIX. Tese de Doutorado em Economia. USP, 1998, p. 129-130.
9
FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil
(1825-1865). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010, p. 54.
10
Ver, por exemplo, ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado Imperial
brasileiro: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.;
BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais: Elites, Fortunas e Hierarquias no Grão-Pará (1850-
1870). Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2004; MATTOSO, Kátia de Q. Bahia: Século XIX
(Uma Província no Império). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992; GRAÇA FILHO, Afonso A. A princesa do
Oeste e o mito da decadência de Minas Gerais. São Paulo: Annablume, 2003.
137
Com relação ao perfil do patrimônio dos inventariados, percebe-se que do total de 256
inventários, 149 possuíam imóveis no espaço mais urbano de Pelotas (58,2%) e 142 possuíam
imóveis rurais (55,4%). Refinando estes dados, tem-se que 88 inventários (34,4%) possuíam
exclusivamente imóveis urbanos e 107 (41,7%) somente rurais. A partir destes índices, é
possível considerar que o número de inventariados que residiam na cidade era ligeiramente
maior do que o indicado, pois em muitos documentos não foi possível verificar se os
proprietários de imóveis urbanos e rurais (61 processos) moravam na cidade, mas é provável
que uma parte dos mais ricos o fizesse. A maioria dos charqueadores possuía casas na cidade e
lá residiam em boa parte do ano, como demonstram diversos documentos cartoriais, como
procurações e escrituras públicas, além da sua presença nas listas de qualificação de votantes da
paróquia mais urbanizada do município. 11

Gráfico 4.1 – Distribuição do número de inventários em urbanos e rurais


Pelotas (1850-1890)

25

20

15

10

0
1850 1855 1860 1865 1870 1875 1880 1885 1890

Exclusivamente urbanos Exclusivamente rurais

Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)

A partir do Gráfico 4.1 é possível verificar que, ao longo do período analisado, houve
um aumento dos inventariados que moravam na cidade, o que pode ser um reflexo da crescente
urbanização no município. Neste sentido, é provável que um índice próximo dos 40% ou 50%
de moradores na cidade devesse ser a realidade pelotense entre as décadas de 1850 e 1880.12
Analisando dados compilados pela Câmara Municipal da época, Ester Gutierrez verificou que,

11
Lista de qualificação de votantes de Pelotas, 1865. Fundo Eleições, maço 2, AHRS.
12
Este índice parece ter sido alcançado em décadas anteriores. Em 1822, por exemplo, um memorialista registrou
que 50% dos 3.400 habitantes da freguesia de São Francisco de Paula (primeiro nome de Pelotas antes de tornar-se
cidade) residiam em 217 prédios urbanos (GUTIERREZ, Ester. Barro e Sangue: mão de obra, arquitetura e
urbanismo em Pelotas (1777-1888). Pelotas: Universitária, 2004, p. 145). O percentual da população urbana
certamente oscilou durante o século XIX. Sabe-se que durante a Guerra dos Farrapos (1835-1845) muitos
moradores abandonaram Pelotas. Tendo em vista que a própria cidade foi crescendo e incorporando novos espaços
ao seu redor, que as migrações eram intensas e que os limites entre o rural e o urbano eram bastante tênues, estes
dados devem ser entendidos como indicadores aproximados.
138
em 1880, Pelotas possuía 3.348 domicílios na cidade, sem contar os prédios públicos, as casas
comerciais, as fábricas, os hospitais e as escolas.13 Se cada propriedade possuísse, em média,
algo entre 4 ou 5 moradores, a população residente no espaço urbano poderia ser estimada entre
13 mil e 17 mil pessoas, o que comporia 44% a 55% da população pelotense na época. 14

Tal índice de moradores na cidade era alto para o contexto rio-grandense da época.
Farinatti encontrou 11% de inventários com este perfil para Alegrete, entre 1825 e 1865, e
Osório localizou 26% para toda a capitania, entre 1765 e 1825. 15 É importante repetir que esta
urbanização possuía um caráter incipiente e que os limites entre o urbano e o rural não eram
muito claros.16 Neste sentido, este “urbano” deve ser entendido a partir dos parâmetros da época
e num contexto regional. A vida na cidade era compartilhada por boa parte da população se
comparada aos outros municípios da província e talvez só fosse comparável a Porto Alegre e
Rio Grande. Diante do olhar dos viajantes e cronistas que escreveram sobre a província, a
cidade de Pelotas se destacava diante das outras, chamando a atenção, inclusive, de um membro
da família real que a visitou nos anos 1860. Conforme o Conde D’Eu:

Pelotas aparece aos olhos encantados do viajante como uma bela e próspera cidade.
As suas ruas largas e bem alinhadas, as carruagens que as percorrem (fenômeno único
na província), sobretudo os seus edifícios, quase todos de mais de um andar, com as
suas elegantes fachadas, dão idéia de uma população opulenta. De fato, é Pelotas a
cidade predileta do que chamarei a aristocracia rio-grandense, se é que se pode
empregar a palavra aristocracia falando-se de um país do novo continente. Aqui é que
o estancieiro, o gaúcho cansado de criar bois e matar cavalos no interior da
campanha, vem gozar as onças e os patacões que ajuntou em tal mister. (...) O rápido
desenvolvimento de Pelotas é um fato notável que não encontra análogo na província
e que pressagia a esta cidade um futuro considerável.17

O Conde D’Eu ainda finalizou escrevendo que, ao invés de Porto Alegre, era Pelotas
que deveria ser a capital da província. A ênfase nesta urbanidade não se trata de algo simplório
para os objetivos desta pesquisa. A vida urbana, como demonstrarei posteriormente, teve
fundamental importância nas práticas sociais da elite charqueadora, de como ela se via e de
como gostava de ser vista. No entanto, a Tabela 4.2 demonstra que, apesar da maioria dos
inventários serem urbanos (ou possuírem imóveis exclusivamente urbanos frente aos

13
GUTIERREZ, Ester. Op. cit.
14
Contudo, a média de moradores por habitação parecia ser maior. Os 14.762 habitantes da paróquia de São F. de
Paula, a mais urbana de Pelotas, residia em 1.829 “casas”, o que rusulta numa média de 8 moradores por habitação.
Não me arrisco a considerar estes índices como equivalentes ao espaço da cidade, porque parte dos moradores da
paróquia residiam nos limites rurais da mesma. Mas caso esta média fosse considerada, o percentual de moradores
na cidade ultrapassaria os 60% (Censo geral de 1872. Disponível em: http//www.ibge.gov.br).
15
FARINATTI, Luis Augusto. Op. cit; OSÓRIO, Helen. Op. cit.
16
Ver, por exemplo, ARRIADA, Eduardo. Op. cit.
17
D’EU, Conde. Viagem Militar ao Rio Grande do Sul. São Paulo: USP, 1981, p. 130-131.
139
exclusivamente rurais), o peso dos investimentos em bens agrários era muito maior. Até a
década de 1870, nunca os imóveis rurais, os escravos e os animais formaram menos de 53% do
total dos patrimônios avaliados.18 A diminuição dos seus valores nos anos 1880 e em 1890 era
resultado não apenas do processo de emancipação dos escravos, da sua abolição e da crise das
charqueadas, como também do nítido aumento da urbanização e da valorização dos imóveis
urbanos que mais do que dobraram a sua representatividade no interior dos bens avaliados.
Portanto, a riqueza material do município estava principalmente vinculada às atividades rurais.
Traço distinto podia ser verificado na análise dos inventários post-mortem dos habitantes do
Rio de Janeiro, entre 1797 e 1870. Neste intervalo de tempo, os percentuais em imóveis urbanos
ficaram sempre entre 24% e 38%, as apólices e ações atingiram 13,1% e 18,6% em 1860/70 e
os bens rurais somados aos escravos, em 1870, foram inferiores a 16% – denotando um perfil
muito mais urbano e mercantil do que Pelotas. 19 Portanto, a urbanidade pelotense era
regionalmente considerável, como já argumentei.

Tabela 4.2 – Perfil do patrimônio dos inventariados em Pelotas (1850-1890) (%)


Imóveis Imóveis Dinheiro Dívidas Ações Escravos Animais Jóias Dívidas Total
rurais urbanos ativas Passivas Invent.

1850/55 40,5 11,8 11,6 19,5 0,7 7,9 6,4 0,05 0,8 25
1860/65 30,0 10,5 12,4 9,4 0,4 20,5 9,0 0,3 4,4 41
1870/75 32,4 21,1 6,0 14,4 1,9 10,3 11,1 0,2 2,5 65
1880/85 36,7 22,2 8,6 9,4 6,7 4,5 8,2 0,02 16,6 70
1890 40,3 26,5 7,2 12,1 6,1 - 0,9 0,1 10,2 55
Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)

Tanto os valores em imóveis urbanos, quanto em imóveis rurais estavam concentrados


nas mãos de poucas pessoas. O total dos investimentos em todos os imóveis somava 391.871£
em imóveis rurais (sendo 94.247£ em propriedades no Uruguai) e 203.899£ em urbanos.
Levando-se em conta que dos 256 inventários somente 8 possuíam terras avaliadas no Uruguai,
já é possível perceber, comparando os montantes discriminados, o quão valorizados eram os
campos no país vizinho. Talvez a grande diferença entre os possuidores de imóveis urbanos e

18
Em Alegrete, o percentual destes bens formava mais de 80% dos patrimônios inventariados entre 1831 e 1870
(FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 51). Algumas pesquisas vêm demonstrando que após a Lei de Terras, em 1850,
o preço das mesmas sofreu uma grande valorização, o que acabava por se refletir na composição das fortunas dos
inventariados rio-grandenses. Como, por exemplo, GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra: conflitos e estrutura
agrária na Campanha Rio-grandense Oitocentista. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PPG-História da
UFRGS, 2005. Sobre o mesmo tema ver também CRISTILLINO, Cristiano L. Litígios ao Sul do Império: A Lei de
Terras e a consolidação política da Coroa no Rio Grande do Sul (1850-1880). Tese de Doutorado. Niterói: UFF,
2010.
19
FRAGOSO, João L. R.; MARTINS, Maria F. V. As elites nas últimas décadas da escravidão - as atividades
econômicas dos grandes homens de negócios da Corte e suas relações com a elite política imperial, 1850-1880. In:
FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2003, p. 144
140
rurais é que a maioria dos proprietários urbanos possuía os seus imóveis na cidade de Pelotas,
enquanto um montante significativo dos imóveis rurais inventariados, e dentre eles os de maior
valor, estavam localizados em outros municípios, como demonstro a seguir.

Figura 4.1 – Mapa da Província do Rio Grande do Sul (1875)

Fonte: Adaptado de FELIZARDO, Julia Netto (Org.) Evolução administrativa do Estado do Rio Grande do
Sul, IGRA – Divisão de Geografia e cartografia e Fundação de Economia e Estatística de Província de São
Pedro a Estado do Rio Grande do Sul – Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981.

Inicio pelas propriedades rurais. Apesar de Pelotas também possuir grandes fazendas,
elas não atingiam as dimensões, a quantidade e a qualidade dos pastos das que formavam a
principal zona pecuarista da província. As grandes estâncias de criação da região da campanha,
no oeste e sudoeste do Rio Grande do Sul, formavam o principal espaço econômico da pecuária
rio-grandense e dividiam a paisagem agrária com pequenos e médios proprietários, além dos

141
arrendatários.20 Com pastagens melhores, as terras do norte do Uruguai também eram cobiçadas
por estes grandes proprietários. Dos 256 inventários entre 1850 e 1890, 142 possuíam imóveis
rurais. Destes, 111 tinham estabelecimentos exclusivamente em Pelotas e 14 possuíam imóveis
rurais exclusivamente fora de Pelotas. Além destes, outros 17 detinham terras tanto em Pelotas,
quanto em municípios vizinhos. Destes 17, outros 5 também possuíam campos de criar no
Uruguai. Os 10 maiores investimentos econômicos em propriedades rurais (excluindo as
propriedades localizadas no Uruguai) somavam 199.847 £, de um total de 297.624 £.21 Ou seja,
10 inventários (7% dos 142 inventários com propriedades rurais) detinham 67% dos valores
investidos em imóveis rurais. Trata-se de uma concentração fundiária bastante alta. Entre os 10
inventariantes mencionados, estão 6 charqueadores, 2 filhos de charqueadores e 1 genro de
charqueador. Três deles possuíam propriedades somente em Pelotas e 7 tanto em Pelotas,
quanto em municípios vizinhos. Outros 3 também eram donos de estâncias no Uruguai.

Tratando-se de um município próximo ao litoral da província e com traços mais


urbanizados do que os demais, é necessário matizar melhor esta concentração de imóveis rurais.
Como já mencionei, os 3 distritos rurais de Pelotas possuíam uma paisagem agrária distinta da
região da campanha, prevalecendo os matos das serras dos Tapes e da Buena, além de outras
pequenas e médias propriedades. Mesmo assim, o município possuía estâncias dedicadas à
criação de gado, apesar dos seus campos e pastos não serem tão valorizados como os da
campanha e do norte do Uruguai, por exemplo.22 Daí o fato de que as grandes fortunas rurais
inventariadas incluíam propriedades fora do município e do próprio país, onde as dimensões, os
valores e as qualidades das mesmas eram maiores. Basta uma comparação entre os valores para
se ter uma ideia mais detalhada. Os imóveis rurais localizados em Pelotas estão presentes em
128 inventários e somam 173.610£. Já as propriedades rurais em outros municípios do Rio
Grande do Sul e no Uruguai estão presentes em apenas 27 inventários, mas totalizam
218.261£.23 Embora também possuíssem terras em Pelotas, os mais ricos investiam o seu

20
Como demonstraram GARCIA, Graciela B. Op. cit; FARINATTI, Luís Augusto. Op. cit.; LEIPNITZ , Guinter
T. Entre contratos, direitos e conflitos: arrendamentos e relações de propriedade na transformação da campanha
rio-grandense: Uruguaiana (1847-1910). Dissertação de Mestrado. PPG-História da UFRGS, 2010.
21
Excluí os bens no Uruguai deste cálculo da concentração porque eles apresentam um valor muito alto, o que iria
distorcer os dados.
22
Em 1858, o governo provincial organizou um mapa estatístico reunindo a quantidade total de animais vacuns por
município. Pelotas, que teve somente os gados vacuns do 3º e 4º distrito recenseados, possuía um rebanho total
estimado em 59.600 reses, ficando entre os últimos municípios em quantidade de animais. As localidades com os
maiores rebanhos eram Alegrete com 762.232 reses e Bagé com 531.640 reses (Mapa numérico das estâncias
existentes dos diferentes municípios da província, de que até agora se tem conhecimento oficial, com declaração
dos animais que possuem e criam, por ano, e do número de pessoas empregadas no seu custeio - Fundo
Estatística, maço 02, AHRS). Agradeço a Leandro Fontella pela digitalização deste documento.
23
Caso a comparação levasse em conta o tamanho das propriedades, provavelmente a diferença se manteria, mas
uma grande parcela dos imóveis não possuía as suas dimensões discriminadas, dificultando este tipo de análise.
142
capital em estâncias de dimensões muito maiores e com uma melhor qualidade de pasto
localizadas fora dos limites do município. Eis aqui uma primeira diferenciação entre os que
eram capazes de realizar esta inversão e os que não possuíam capitais para tanto. Tendo em
vista que os imóveis rurais compunham aproximadamente 40% dos patrimônios inventariados e
que junto com os escravos e os animais eles ultrapassavam os 50%, pode-se concluir que os
charqueadores e seus familiares ocupavam uma posição privilegiada nesta hierarquia
econômica, pois estavam entre os maiores proprietários do município.

A mesma concentração encontrada entre os imóveis rurais é verificada entre os urbanos.


Do total de 203.899£ investidas nestes bens, cerca de 91.318£, ou 44,7%, pertenciam a 10
pessoas (4% de todos os inventários). Estes 10 indivíduos possuíam um patrimônio urbano que
somado reunia 75 casas, 44 terrenos, 9 sobrados, 6 armazéns e 5 meias-águas. 24 Neste pequeno
grupo encontram-se 2 charqueadores e 2 genros de charqueadores. Dos 10 charqueadores
presentes no total dos inventários aqui analisados 8 possuíam casas no espaço urbano pelotense.
A cidade era o local onde eles fechavam muitos de seus negócios com comerciantes locais e
estrangeiros, mas também onde recolhiam informações sobre a política e a economia provincial
e nacional e ostentavam sua riqueza andando em carruagens e frequentando o teatro, os clubes e
associações da cidade, como descreverei posteriormente.25

Associados às estâncias de criação, estavam os rebanhos de gado vacum, matéria-prima


fundamental para as charqueadas. Pelotas também possuía grandes criadores, muito embora as
melhores fazendas destes estivessem localizadas fora do município (como já mencionei). Nos
52 inventários cuja quantidade de reses de criar foi arrolada, ou seja, 20,3% dos totais
inventariados, tem-se 103.191 animais. Assim como os outros bens até agora descritos, a
maioria do gado também estava nas mãos de poucas pessoas. A análise da Tabela 4.3
demonstra que 4 indivíduos, ou 7,7% dos criadores de gado vacum, possuíam 50% do total dos
rebanhos inventariados. Aumentando-se o recorte analítico para os 10 maiores criadores,
verifica-se que os mesmos possuíam mais de 90% dos animais. Entre estes 10 inventariados
estavam 5 charqueadores, o que novamente evidencia a variedade de investimento dos mesmos.
Os números também demonstram que os maiores proprietários de gado também eram donos de
estâncias fora do município de Pelotas, incluindo o Uruguai, onde melhores pastos serviam para

24
Esta concentração já vinha de décadas. Em 1822, por exemplo, Gonçalves Chaves estimou os valores das 217
casas da povoação em 342:500$000, destacando que 37 delas correspondiam a 47% deste montante (CHAVES,
Antônio José Gonçalves. Op. cit).
25
Ver, por exemplo, MULLER, Dalila. “Feliz a população que tantas diversões e comodidades goza”: Espaçõs de
sociabilidade em Pelotas (1840-1870). Tese de Doutorado. PPG-História da Unisinos, 2010.
143
engordar o gado. Desnecessário dizer que os pequenos proprietários criavam seus animais em
modestas terras nos distritos rurais do município ou nos campos de terceiros.

Tabela 4.3 – Concentração dos rebanhos vacuns nos inventários e posse de


fazendas fora de Pelotas

Tamanho do Inventários % Reses % Prop. outros Prop. no


rebanho municípios Uruguai
+ de 10.001 reses 4 7,7 51.536 50,0 100,0% 100,0%
5.001 a 10.000 reses 6 11,5 41.402 40,1 66,6% 33,3%
2.001 a 5.000 reses 1 1,9 2.552 2,4 - -
1.001 a 2.000 reses 2 3,9 3.500 3,5 50,0% -
501 a 1.000 reses 2 3,9 1.430 1,3 50,0% -
101 a 500 reses 11 21,1 1.938 1,8 27,2% -
Até 100 reses 26 50,0 833 0,9 15,3% -
Total 52 100% 103.191 100% - -
Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)

A extinção do tráfico atlântico de escravos em 1850 constituiu-se em uma ameaça para


aqueles que dependiam da mão de obra cativa na condução de suas atividades econômicas. A
alta dos preços dos escravos na década de 1860, como outros autores já trataram, foi
consequência da diminuição da oferta de mão de obra escrava e da corrida de comerciantes para
adquirir cativos e revendê-los aos grandes centros agroexportadores do sudeste.26 De acordo
com o Gráfico 4.2, a média dos preços dos escravos masculinos em idade produtiva quase
triplicou entre 1850 e 1865. No primeiro período, eles somavam 570$ e 15 anos depois
chegavam à 1:617$. A queda dos preços se iniciou na década seguinte, chegando a 857$ em
1880 e 400$ em 1885, quando a onda abolicionista já havia libertado a maioria dos escravos em
Pelotas. Nos primeiros 10 anos, homens e mulheres cativas equivaliam-se em preços, mas a
partir da década de 1860, acentuou-se um distanciamento em favor dos homens. A grande
queda do valor destes e a quase aproximação com as mulheres nos últimos dois períodos
indicam que a escravidão estava com seus dias contados.

A diminuição da oferta dos escravos e o aumento do seu preço contribuiu para ampliar a
concentração dos cativos nas mãos de poucos senhores, como demonstra a Tabela 4.4. Dos 201
inventários post-mortem, entre 1850 e 1885, 81 (40%) não possuíam cativos arrolados entre
seus bens, o que reforça ainda mais a mencionada concentração dos mesmos no interior da

26
Como, por exemplo, BERGAD, Laird W. Escravidão e História Econômica: demografia de Minas Gerais, 720-
1888. Bauru: EDUSC, 2004; SLENES, Robert W. The demography and economics of Brazilian slavery: 1850-
1888. Tese de Doutorado, Stanford: Stanford University, 1976; CASTRO, Hebe Mattos de. Ao Sul da História:
lavradores pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987; SCHEFER, Rafael da C. Tráfico
interprovincial e comerciantes de escravos em Desterro (1849-1888). Dissertação de Mestrado. PPG-História da
UFSC, 2006.
144
população. Os 120 restantes somavam 1.304 escravos inventariados. No entanto, 13 deles, ou
10,7 %, detinham 54,5% do total da escravaria. Já os proprietários de 5 ou menos escravos, que
compunham 60% dos inventariados, possuíam apenas 14,6% dos cativos. Entre os 13 maiores
proprietários de escravos estavam 7 charqueadores. Eles eram os únicos a possuírem mais de
100 cativos e formavam a metade dos que detinham entre 51 e 100 cativos. Ainda pode-se
enfatizar que o patrimônio acumulado em vida era diretamente proporcional à posse de
escravos. Destes 13 maiores escravistas pelotenses, 8 estavam entre os 10 mais ricos
inventariados. Numa pesquisa mais aprofundada, Bruno Pessi estudou a posse de escravos em
todos os inventários post-mortem de Pelotas entre 1850 e 1884. Reunindo 1.077 processos, o
autor verificou que 712 deles (66,1%) possuíam cativos arrolados entre seus bens e que 42
(5,9%) eram charqueadores. Estes empresários eram responsáveis pela posse de 2.244 escravos,
ou seja, mais de 1/3 de todos os escravos arrolados nos inventários pelotenses (34,6%).27

Gráfico 4.2 – Preço dos escravos entre 15 e 40 anos (1850-1885) – em mil réis

1800
1600
1400
1200
1000
800
600
400
200
0
1850 1855 1860 1865 1870 1875 1880 1885

Mulheres Homens

Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)

Além disso, os dados apresentados confirmam o que diversos autores identificaram para
outras áreas do Brasil no mesmo período, ou seja, embora houvesse uma nítida concentração de
cativos nas mãos de poucas pessoas, a posse dos mesmos estava disseminada entre vários
setores sociais, incluindo os pequenos proprietários. 28 Entretanto, o fim do tráfico e o aumento
do valor dos cativos ajudou a dificultar o acesso destes ao tráfico inter-provincial e intra-

27
PESSI, Bruno S. Entre o fim do tráfico e a abolição: a manutenção da escravidão em Pelotas, RS, na segunda
metade do século XIX (1850-1884). Dissertação de Mestrado em História, USP, 2012., p. 72.
28
Isto já foi mencionado no capítulo anterior para a primeira metade do século. Para dados relativos às décadas
posteriores à extinção do tráfico atlântico em todo o Brasil ver MARCONDES, Renato L. Desigualdades regionais
brasileiras: comércio marítimo e posse de cativos na década de 1870. Tese de livre-docência. Ribeirão Preto,
USP, 2005.
145
provincial como compradores, reservando-lhes o papel de vendedores. Tal fenômeno trouxe
dificuldades econômicas para parte das famílias mais pobres e, neste processo, os grandes
senhores foram lentamente drenando parte dos escravos dos pequenos. 29 Um dos reflexos deste
processo foi o aumento do número de inventários sem escravos ao longo do período estudado.
Conforme Pessi, os não possuidores de escravos compuseram 6,1% de todos os inventariados
no quinquênio de 1850-1854, 31,6% no de 1865-1869, e 54,8% no de 1880-1884.30

Tabela 4.4 – Concentração dos plantéis de escravos entre os inventariados (1850-1885)


Tamanho do Número de % de Número de % de
plantel inventários inventários escravos escravos

1a2 31 25,8 41 3,1


3a5 41 34,2 150 11,5
6 a 10 18 15,0 138 10,7
16 a 25 17 14,3 263 20,2
26 a 50 7 5,8 223 17,0
51 a 100 4 3,3 271 20,8
Mais de 100 2 1,6 218 16,7
Total 120 100% 1.304 100%
Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)

A concentração de bens também era visível no que diz respeito ao dinheiro em moeda e
às dívidas ativas. A quantia total de dinheiro avaliada nos 256 inventários foi de 101.495£, mas
73,6% deste montante estava nas mãos de somente 10 pessoas (3,9% dos inventariados), sendo
que 3 eram charqueadores e outros 3 eram parentes de outros charqueadores. Com relação às
dívidas ativas, o mesmo foi verificado. O valor total destes bens somados era de 153.089£, mas
62% deles pertenciam a 6 indivíduos, ou 2,3% dos inventariados, dentre os quais havia 2
charqueadores. A metade dos maiores credores também estava presente entre os 10 maiores
possuidores de dinheiro. Portanto, um grupo diminuto parecia concentrar a liquidez na
localidade e na ausência de dinheiro, eles eram capazes de possuir uma fatia considerável do
crédito.31 Tal concentração torna-se ainda mais notável quando se percebe que muitos dos
maiores senhores de escravos e animais também surgem no topo da lista dos mais
endinheirados e dos principais proprietários de imóveis rurais e urbanos. Desnecessário dizer
que os charqueadores e seus parentes eram os que mais se destacavam no interior deste grupo.

29
Ver, por exemplo, VARGAS, Jonas M. Das charqueadas para os cafezais? O tráfico inter-provincial de escravos
envolvendo as charqueadas de Pelotas (RS) entre as décadas de 1850 e 1880. In: XAVIER, Regina L. (Org.).
Escravidão e liberdade: temas, problemas e perspectivas de análise. São Paulo: Alameda, 2012.
30
PESSI, Bruno S. Estrutura da posse e demografia escrava em Pelotas entre 1850 e 1884. In: Anais do V Encontro
Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 14
31
Estes números tornam-se mais importantes ainda numa sociedade com pouca moeda em circulação e cujas
instituições bancárias atendiam uma pequena parte da população.
146
Mas entre eles e os trabalhadores escravos havia uma série de categorias socioeconômicas que
ainda é preciso investigar melhor, como demonstro a seguir.

4.2 UMA CIDADE ATLÂNTICA: PERFIL SOCIO-OCUPACIONAL DE UM ESPAÇO


URBANO REPLETO DE ESTRANGEIROS

Muito já se escreveu sobre a Pelotas do século XIX, mas ainda se sabe pouco sobre a
sua população e como ela estava estratificada em termos sociais e econômicos. As páginas
anteriores evidenciaram uma profunda concentração dos bens materiais nas mãos de uma elite
privilegiada. No entanto, Pelotas era muito mais do que um núcleo charqueador e não estava
polarizada entre os senhores da carne e seus escravos. No final dos anos 1870, o município
possuía quase 30 mil habitantes e a cidade havia se tornado o cenário de um grande número de
profissionais de diferentes áreas, atingindo um notável grau de desenvolvimento econômico e
cultural para os padrões da província. Mas quem eram as pessoas que compartilhavam daquela
época de auge?
Apesar das já conhecidas limitações que envolvem o Censo imperial de 187232, ele é o
documento mais abrangente no que diz respeito ao total da população da época, já que os seus
indicadores não excluem escravos, mulheres, crianças e idosos.33 No entanto, Pelotas constitui-
se num caso diverso da maioria dos municípios rio-grandenses recenseados na época, uma vez
que uma de suas quatro paróquias não teve os seus dados populacionais arrolados. Por conta
disto, e de sub-registros ocorridos no recenseamento, a população escrava do município foi
bastante subestimada.34 Somando as estatísticas das três paróquias recenseadas tem-se um total
de 21.258 habitantes, sendo que a de São Francisco de Paula, com 14.762 almas, era
responsável por mais de 2/3 deste total. Contudo, apesar dos problemas desta fonte, creio que os
dados contidos no censo são bastante favoráveis para o estudo da mencionada paróquia – que
era a que concentrava todos os habitantes da cidade e de seus subúrbios próximos. Como as
estatísticas referentes aos escravos são consideradas as mais imprecisas, analisarei somente a

32
BOTELHO, Tarcísio R. População e nação no Brasil do século XIX. 1998. Tese de Doutorado em História.
USP, 1998; MONASTERIO, Leonardo. O Rio Grande do Sul de 1872: análise setorial da ocupação nos
municípios. In: Anais do II Encontro de Economia Gaúcha. Porto Alegre, 2004, CD-ROM.
33
Censo Geral de 1872 (disponível em: http//www.ibge.gov.br).
34
De acordo com o Censo de 1872, as três paróquias recenseadas somariam 3.590 escravos. No entanto, o registro de
matriculas de escravos para o ano de 1873 marcou 8.141 cativos, ou seja, mais do que o dobro recenseado (VARGAS,
Jonas M. Op. cit.). Não é possível saber o número de escravos na paróquia de N. S. da Conceição do Boqueirão (a que
não foi recenseada em 1872), mas é certo que ela não possuía um contingente tão grande de cativos ao ponto de
completar o restante que faltava para chegar aos mais de 8 mil escravos. O mais provável é que as outras duas
paróquias rurais também tenham apresentado sub-registros.
147
população livre. Isto vai ao encontro dos objetivos deste capítulo, pois é exatamente a
caracterização dos setores intermédios da sociedade pelotense que estou buscando analisar.35

A paróquia de São Francisco de Paula possuía 12.376 habitantes livres, sendo 6.799
homens e 5.577 mulheres. Deste grupo, 9.021 foram classificados como brancos, 1.347 como
pardos, 1.848 como pretos e 160 como caboclos.36 Comparando estes dados com os do
recenseamento realizado no 1º distrito de Pelotas, cerca de 40 anos antes, percebe-se que a sua
paróquia mais urbana alterou significativamente o seu perfil social. Entre 1833 e 1872, a
população total (livre e escrava) residente na localidade mais urbana de Pelotas aumentou de
4.707 para 14.762 pessoas. Se os dados referentes aos escravos estiverem corretos, o número de
cativos teria aumentado de 2.202 para 2.386. No entanto, como a população livre cresceu
bastante, o percentual de escravos teria caído de 46,8% para 16,2%, mas é provável que a queda
tenha sido um pouco menor, visto o já comentado sub-registro de escravos no censo.

No que diz respeito à cor dos seus habitantes, se em 1833 o percentual da população
classificada como branca e residente na vila era de 43,3%, em 1872, conforme o indicado
acima, ela saltou para 72,7%. Apesar do número de escravos ter continuado crescendo no
município de Pelotas até meados da década de 1870, é notável que a população branca
aumentou em taxas maiores. Um dos motivos deste fenômeno, comum em todo o Brasil, foi a
extinção do tráfico atlântico em 1850. No entanto, este branqueamento urbano, ao menos na
cidade de Pelotas, também se explica pela expressiva entrada de imigrantes europeus na urbe.37
O desenvolvimento econômico da região atraiu pessoas de diversas partes da província, de
outras regiões do Império, mas, sobretudo, de outros países. Se em 1833 somente 6,3% dos
moradores da vila foram identificados como estrangeiros, em 1872 a paróquia urbana contava
com 20,4% do total da população formada pelos mesmos. Calculando estes dados somente
entre a população livre, os mesmos índices teriam aumentado de 11,9% para 24,4%.

Em números absolutos, foi um salto de 299 para 3.009 pessoas estrangeiras em menos
de 40 anos e num intervalo de tempo que ainda contou com uma longa guerra civil (ocasião em
que muitas pessoas retiraram-se da localidade). Contudo, destes 3.009 estrangeiros, 361 eram
africanos livres, diminuindo um pouco a presença dos europeus e americanos brancos no espaço

35
A população escrava no mesmo período será tratada no capítulo posterior.
36
Somados os livres com os escravos, a população classificada como preta era de 3.167 e a parda de 2.404.
Entretanto, como o número de escravos da paróquia está sub-representado, é possível que a população de cor na
mesma ultrapassasse os 6.000 habitantes.
37
Embora a população escrava e a população livre de Pelotas tenham crescido entre os anos 1830 e 1870, o
percentual dos cativos em relação ao total caiu bastante. Em 1833, 51% dos habitantes eram cativos, enquanto que,
em 1858, este índice já havia caído para 37,1% e, em 1872, é provável que tenha ficado entre 30% e 33%.
148
urbano. Mesmo assim, para uma pequena cidade como Pelotas, o aumento do número de
estrangeiros em cerca de 9 vezes num intervalo de 4 décadas deve ter resultado num impacto
significativo em sua urbe. Excetuando as regiões de colonização alemã da Província, o
percentual de estrangeiros entre os habitantes livres da cidade de Pelotas só era inferior à Rio
Grande (28,8%) e Itaqui (25,6%) – ambas cidades mercantis, o que explica esta concentração
de estrangeiros. Na cidade do Rio de Janeiro, em 1890, cerca de 30% da população era
estrangeira (70% destes eram portugueses).38 Nesta época, o índice de estrangeiros era bem
menor nas outras capitais de província.39 Mesmo que em proporções populacionais muito
menores, Pelotas parecia-se mais com a Corte – no que diz respeito à grande presença de
estrangeiros na cidade – do que com as principais capitais do Império.

Portanto, por volta do meado do século, do ponto de vista das migrações em escala
global, Pelotas havia se tornado uma das inúmeras localidades das Américas que receberam
europeus em seu território. Conforme René Remond, a emigração de europeus no século XIX
foi um dos “grandes fatos demográficos do mundo”. Entre 1815 e 1914, a população da Europa
cresceu em altos índices, ultrapassando o seu dobro. Em 1800, por exemplo, ela possuía 187
milhões de pessoas e, em 1900, tinha ultrapassado os 400 milhões. As consequências sociais
deste crescimento demográfico associado a momentos de crise econômica e política foram o
pauperismo, o desemprego crônico e a baixa dos salários, levando parte de sua população a
migrar para terras que prometiam uma vida melhor. O grosso da emigração europeia, portanto,
foi constituído principalmente “de camponeses sem terra, de operários sem trabalho e de
burgueses arruinados” e os países que contribuíram mais com este fluxo foram os mais
atingidos pela falta de trabalho e pela miséria. 40

Segundo David Eltis, a partir de 1820, as migrações por todas as partes do mundo
tomaram um perfil cada vez mais voluntário, substituindo a era das migrações forçadas. 41 No
Brasil, ao mesmo tempo em que se intensificava o processo de imigração europeia, sob

38
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 79.
39
Nas paróquias urbanas de São Paulo (Sé, Santa Efigênia e Consolação) este índice era de 11,8% entre os
habitantes livres. Em Recife, era de 6%, em São Luis, no Maranhão, era de 6,8%, em Salvador, era 5,8% e em
Ouro Preto era 3,3% (Censo geral de 1872. Disponível em: http//www.ibge.gov.br).
40
Calcula-se em cerca de 13 milhões o número de europeus que se expatriaram entre 1840 e 1880. A mesma cifra
voltou a emigrar num intervalo de tempo menor (1880 a 1900). A partir de 1900, o índice atingiu 1 milhão de
pessoas por ano dos que partiam somente para os Estados Unidos. No total, não é exagero afirmar que cerca de 60
milhões deixaram a Europa para estabelecer-se em outros continentes além-mar. Mais da metade foi para os
Estados Unidos e cerca de 8 milhões migraram para a América do Sul (REMOND, René. O século XIX (1815-
1914). São Paulo: Cultrix, 1990, p. 197-199).
41
ELTIS, David. Migração e estratégia na História Global. In: FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda
(Org.). Ensaios sobre a escravidão (1). Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 13-35. Eltis reconhece a singularidade
brasileira no que diz respeito ao fluxo voluntário que marcou a colonização portuguesa na América, antes do
século XIX.
149
incentivo das autoridades administrativas, a longa história da entrada de cativos africanos
estava com seus dias contados. Tratavam-se de dois grandes ciclos migratórios distintos (o
primeiro forçado e o segundo voluntário) que caracterizaram a formação do mundo atlântico
entre os séculos XVI e XIX. Pelotas participou de ambos os fluxos migratórios, recebendo um
grande número de africanos na primeira metade do século XIX e um significativo contingente
de europeus não lusófonos em todo o oitocentos, mas, sobretudo, a partir dos anos 1850. Neste
sentido, estudar a imigração para Pelotas é estudar os fluxos migratórios que caracterizaram o
período em diferentes partes do mundo Atlântico, oferecendo um exemplo de como se deu a
interação social entre nativos e estrangeiros numa escala microanalítica.

Para se ter uma maior dimensão desta entrada de estrangeiros em Pelotas seria
necessário saber qual o perfil desta população flutuante que chegava anualmente na cidade,
vindo a estabelecer-se nela ou não. Uma das documentações mais eloquentes com relação à
migração para Pelotas são os passaportes policiais emitidos aos estrangeiros entrados na cidade.
A lista mais completa que localizei com relação aos mesmos reúne todos os que entraram na
cidade ao longo do ano de 1855. Este documento apresenta o nome de 481 pessoas e arrola a
sua nacionalidade, idade, estado civil, profissão e local de procedência. 42 Entretanto, esta fonte
apresenta uma sub-representação do fluxo de pessoas, pois entre os listados não há nenhuma
mulher (apesar de 18,2% dos indivíduos fichados serem casados). Outro problema do
documento é que ele não revela o motivo pelo qual os recém-chegados estavam na cidade, não
sendo possível saber se vinham provisoriamente, se estavam de passagem para outro município
ou se desejavam estabelecer-se em Pelotas. É provável que todos estes, além de outros,
fizessem parte do repertório de motivos do grupo listado.

Analisando os dados do documento, percebe-se que cerca de 59% dos indivíduos


listados eram portugueses. Entre eles é possível verificar um número diversificado de
profissionais. Caixeiros, sapateiros, alfaiates, chapeleiros, mascates, comerciantes,
trabalhadores, barbeiros, marceneiros, carpinteiros, ferreiros, tanoeiros, pedreiros, oleiros, entre
outros. Pelos seus ofícios não é difícil perceber que se tratavam de indivíduos de poucas posses.
A migração de portugueses para o Brasil manteve altos e baixos e foi constante até o século
XX. A facilidade da língua e a presença de parentes nestas terras encorajava a travessia dos
migrantes. Além de Portugal, mais 22 lugares formavam os outros 41%.43 Os franceses são os
segundos mais numerosos (8,5%), seguidos pelos espanhóis (8%), alemães (6,5%), uruguaios

42
Lista de estrangeiros que receberam passaporte policial (1855). Fundo Polícia, Pelotas, Maço 15, AHRS.
43
Para alguns lugares como Espanha e Uruguai são citadas as cidades de onde o listado nasceu e não o país. O
mesmo é percebido para Alemanha e Itália, que ainda não possuíam um estado nacional unificado.
150
(6%) e italianos (5,2%). O restante reunia ingleses, norte-americanos, irlandeses,
dinamarqueses, suíços, suecos, argentinos, paraguaios e austríacos.

Outro item importante é o que se refere à procedência dos indivíduos. A grande maioria
destes estrangeiros (77,5%) vinha de Rio Grande, o que não causa surpresa, pois o porto
marítimo localizava-se nesta cidade. O interessante talvez seja que 22,5% chegava em Pelotas
partindo de outras localidades, o que evidencia que este deslocamento não se dava somente pela
via marítima, mas também pela navegação fluvial e pelas precárias estradas que levavam até o
polo charqueador. Assim, encontram-se entre os locais de procedência o Uruguai (8,5%) e a
Argentina (0,5%), além de estrangeiros vindos da região da campanha (4,2%), da vizinha
Jaguarão (3,8%), de outros municípios próximos como Piratini, Canguçu e Camaquã, e dos
próprios distritos rurais de Pelotas.

Com relação às profissões foram localizados 60 ofícios diversos. O grupo mais


expressivo era formado pelos caixeiros (23%), seguido pelos trabalhadores (12,8%) e
comerciantes (9,3%). Estes números revelam que muitos vinham vender e comprar
mercadorias, além de pagar e cobrar parceiros de negócios ou mandavam seus caixeiros realizar
tais tarefas. Outros vinham buscar trabalhos eventuais podendo então fixar-se na região.
Entretanto, uma boa parte dos estrangeiros exercia ofícios mecânicos e artesanais diversos. A
construção civil, o artesanato com o couro, a madeira ou os metais, as atividades ligadas à
pecuária e à agricultura e ofícios marítimos eram os que mais atraíam. 44 Tais dados convergem
com o informado por Joel Serrão, ou seja, o grosso da emigração portuguesa para o Brasil na
segunda metade do século XIX era formada por pobres trabalhadores rurais e urbanos. 45

A faixa etária dos estrangeiros variava, abarcando crianças de 10 anos até idosos de 63
anos. Cerca de 58,5% dos estrangeiros possuía entre 16 e 30 anos, demonstrando que este fluxo
era majoritariamente de pessoas jovens. O grupo mais representativo era formado pelos
caixeiros portugueses entre 10 e 20 anos, provenientes de Rio Grande. Eles perfaziam 14% dos
listados. Conforme Ana Sílvia Scott, foi comum a vinda de caixeiros para o Brasil integrados a

44
A lista é longa e reunia trabalhadores ligados ao ramo das navegações (armeiro (1), calafate (1), marinheiro (2),
veleiro (2)), aos ofícios artesanais envolvendo couro, madeira, metais e outros materiais (abridor (2), alfaiate (22),
cadeireiro (2), carpinteiro (22), chapeleiro (6), charuteiro (3), correeiro (4), ferreiro (19), marceneiro (13), ourives
(12), afiador (1), curtidor (3), saboneiro (4), penteeiro (1), sapateiro (25), tanoeiro (6)), aos serviços nas
charqueadas ou estâncias (campeiro (3), capataz (1), descarnador (1), graxeiro (2), peão (4)), aos serviços na
lavoura (lavrador (14), roceiro (2), chacareiro (1), serrador (2)), aos ofícios ligados à construção civil (oleiro (2),
pedreiro (6), pintor (1), vitrificador (1)), ao setor de transportes de cargas (carreteiro (9), carretilheiro (1)), às
profissões liberais (cirurgião (1), música (3), violeiro (1), escritor (1)) e à prestação de serviços diversos
(açougueiro (3), aguadeiro (1), barbeiro (4), cozinheiro (6), figurista (1), padeiro (5), taberneiro (1)), entre outros.
45
SERRÃO, Joel. Conspecto histórico da emigração portuguesa. Análise Social, Ano 8, n. 32, 1970, p. 597-617.
151
redes mercantis e de parentesco transatlântica.46 Além disso, os dados da lista de 1855
combinam com o perfil da população estrangeira recenseada em 1872. Descontados os 361
africanos que foram classificados como estrangeiros livres – sem dúvida um número expressivo
– os 2.648 restantes estavam divididos em: 1.495 portugueses, 323 alemães, 256 uruguaios, 201
franceses, 115 espanhóis, 84 italianos e 68 ingleses, apenas para ficar entre os grupos mais
representativos.47 É importante lembrar que estes eram os que residiam no espaço mais urbano
de Pelotas. Os distritos rurais do município também concentravam significativos contingentes
de estrangeiros, sobretudo, europeus.48

Tendo em vista que a imigração que marcou o meado do oitocentos reunia


principalmente jovens e adultos, como demonstram os passaportes policiais de 1855, a presença
estrangeira no seio da população adulta da cidade de Pelotas era ainda maior do que os
percentuais citados anteriormente. De acordo com os dados relativos à paróquia de São
Francisco de Paula em 1872, a população masculina e livre classificada como branca e com
idade entre 11 e 70 anos somava 4.252 pessoas. Ora, se o número de estrangeiros do sexo
masculino era de 2.443 e praticamente todos estavam nesta mesma faixa etária, é provável que
mais da metade dos homens adultos livres residentes no espaço urbano pelotense fosse formada
por estrangeiros! Trazendo ofícios e conhecimentos de outras partes do mundo, estes homens
moviam-se pela cidade contribuindo com serviços cotidianos indispensáveis para a população
local, envolvendo-se com todas as camadas sociais da localidade, além de ocuparem-se de
grande parte da indústria, comércio e artesanato da urbe, como evidencio a seguir.

Através do censo de 1872 pode-se verificar como os habitantes da paróquia de São


Francisco de Paula foram classificados no que diz respeito as suas atividades econômicas. Dos
12.376 habitantes livres da paróquia, 6.063 foram qualificados como “sem profissão”.
Monastério e Zell esclareceram que o alto número destes “sem profissão” deve-se ao fato das

46
SCOTT, Ana Sílvia. As duas faces da imigração portuguesa para o Brasil (décadas de 1820-1930). Anales del
Congreso de Historia Económica de Zaragoza, 2001, p. 3. Ver também ROWLAND, Robert. Velhos e novos
Brasis. In: BETHENCOURT, Francisco. História da Expansão Porguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998.
47
O restante era formado por paraguaios (62), argentinos (16), suíços (9), austríacos (7), gregos (3), dinamarqueses
(2), holandeses (2), norte-americanos (2), suecos (2) e boliviano (1).
48
Em 1858, por exemplo, foi fundada a colônia São Lourenço na zona rural de Pelotas. Um dos motivos da
instalação desta colônia foi a excessiva especialização do município na produção das charqueadas e a ausência de
lavouras que suprissem a demanda alimentícia da crescente população. Um ano após a instalação da colônia, a
mesma possuía 206 habitantes. No entanto, cerca de 10 anos depois, a colônia possuía 1.637 almas divididas em
340 famílias, sendo 1.277 protestantes e 360 católicas. Os mesmos cultivavam trigo, centeio, cevada, milho, feijão
e batatas, destinadas ao consumo das cidades de Rio Grande e Pelotas (CAMARGO, Antônio Eleuthério.
Estatística provincial de 1868, Fundo Estatística, AHRS, p. 93).
152
crianças terem sido incluídas neste grupo.49 No caso de Pelotas, a população com 15 anos ou
menos somava 3.513 habitantes. Talvez uma parte dos indivíduos entre 16 e 20 anos, e que
somavam 1.299 moradores, também tenha sido qualificada no grupo citado por não exercer
funções que se enquadrassem nas outras categorias do censo. Contudo, entre os “sem profissão”
estão 1.136 pessoas casadas ou viúvas, o que indica que eram adultas. Destas, 994 eram
mulheres. Portanto, é possível que muitas delas deviam ser “donas de casa”, o que aos olhos
dos censores poderia fazer parte do grupo “sem profissão”. A parcela restante dos “sem
profissão” parecia incluir os considerados “inválidos”, os muito pobres e uma parte dos que
viviam de suas agências.50

A análise que se segue inclui, portanto, os 6.313 habitantes livres e adultos que
possuíam alguma profissão reconhecida pelo censo (4.435 homens e 1.878 mulheres). As
mulheres pelotenses exerciam um número bem menor de atividades econômicas e profissionais
se comparadas aos homens. As principais ocupações femininas eram a de “serviço doméstico”,
que contava com 882 mulheres, e a de “costureira”, que reunia 668 delas. Portanto, cerca de
82,5% das mulheres livres com profissão foram classificadas como costureiras ou serviços
domésticos. Destas, ¾ eram solteiras. Desconheço se outras atividades foram condensadas na
categoria “costureira” (visto o seu alto índice de 35,5% das mulheres com profissão). É um
contingente enorme de trabalhadoras que permanece invisível esperando por algum estudo
específico. As outras mulheres foram classificadas como capitalistas e proprietárias (91),
comerciantes (70), artistas (34) e professoras (14). A única categoria em que as mulheres
estrangeiras conseguiram superar as brasileiras foi na de “artistas”.

Entre os homens, a categoria “comerciantes, guarda-livros e caixeiros” apresentava


1.255 indivíduos ou 28,3% dos homens livres com profissão. 51 Dos homens deste grupo, 59%
eram estrangeiros. Outro grupo com representação significativa eram os operários das
“produções manuais ou mecânicas” que reunia 1.000 homens. Eram 156 operários em metais,
398 em madeiras, 84 em couros e peles, 36 em chapéus, 5 em mineração e 321 em calçados.
Nestas profissões, 67% dos homens eram estrangeiros. Os artistas reuniam 530 homens livres,
sendo 61% de estrangeiros. Penso que a diferença deste grupo de operários para com os
“artistas” é que aqueles eram assalariados e, portanto, não trabalhavam por conta própria. O

49
MONASTERIO, Leonardo; ZELL, Davi. O Rio Grande do Sul de 1872: análise setorial da ocupação nos
municípios. Anais do II Encontro de Economia Gaúcha. Porto Alegre, 20 e 21 de maio de 2004.
50
Segundo o próprio censo, a paróquia possuía 18 cegos, 14 surdo-mudos, 42 aleijados, 10 dementes e 8 alienados.
51
Este índice converge com o encontrado para o total da categoria “comércio” na lista dos estrangeiros entrados na
cidade de Pelotas em 1855 (28%) e da lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1865 (23%).
153
grupo dos “manufatores e fabricantes” compunha 250 homens. A grande maioria, ou 87,3%
deles, eram estrangeiros. É possível que muitos fossem patrões dos operários citados.

Segundo Osório, entre 1835 e 1912, podia-se contar em torno de 6 mil firmas que
apareceram e giraram na cidade. Em 1910, existiam 188 fábricas, 278 oficinas e 822 casas de
negócio diversas. No entanto, foi a partir dos anos 1870 que as indústrias e companhias fabris
começaram a se proliferaram por Pelotas. Marcos dos Anjos verificou um grande número de
novas fábricas de fumo, de sabão e velas, de cerveja, de chapéus, de curtição e de massas, entre
outras. Das 38 que foram registradas na Junta Comercial, mais de 52% pertenciam a
estrangeiros e 26% possuíam um dos sócios estrangeiro.52 Estes dados vão ao encontro dos
percentuais do Censo de 1872, uma vez que entre os fabricantes, os operários especializados, os
manufatores e os artistas, a maior parte era composta por estrangeiros. Somados aos índices dos
comerciantes, é possível inferir que estas eram as ocupações econômicas mais acessadas pelos
mesmos. Estes estrangeiros eram na sua maioria homens de setores médios e subalternos,
destacando-se socialmente pela sua inventividade e iniciativa nestes setores econômicos. Uma
pequena parte deles chegou a possuir riqueza e prestígio social considerável. 53

Conforme Anjos, que realizou uma rigorosa pesquisa nos periódicos pelotenses da
época, estes estrangeiros, sobretudo os europeus, colaboraram profundamente com a
modernização da cidade de Pelotas. Entre os mesmos, uma série de engenheiros e arquitetos
contribuíram com projetos na área da urbanização, iluminação, redes de esgoto e abastecimento
de água, entre outros. Datam do início dos anos 1870, a formação da Companhia Hidráulica
Pelotense, o início do trânsito de carros de passageiros realizado pela Companhia Ferro Carril e
Cais de Pelotas e a construção da estação férrea. Além disso, um outro grande número de
europeus também formava um contingente que permanecia por algumas temporadas atuando
em diferentes áreas, para depois seguir viagem por outras cidades da América. Na área cultural
e artística, por exemplo, diversas companhias teatrais, pintores e fotógrafos estrangeiros
enchiam as páginas dos jornais da cidade de anúncios e arrebatavam importante clientela.

52
ANJOS, Marcos H. dos. Estrangeiros e modernização: a cidade de Pelotas no último quartel do século XIX.
Dissertação de Mestrado. PUCRS, 1996, p. 62-67. A descrição de algumas indústrias existentes em Pelotas neste
período ajuda a colorir os números apresentados. Conforme Osório, em 1845, o francês Carlos Ruelle fundou a
primeira fábrica de seges e carros, que, em 1865, recebeu a visita do Imperador D. Pedro II. Também em 1845,
João Barcellos fundou uma chapelaria e 3 anos depois, Antônio Lopes dos Santos abriu sua loja de ourivesaria. Em
1855, Diogo Higgins fundou uma oficina para consertar instrumentos musicais. Em 1860, José Gonçalves
estabeleceu uma Latoaria e, em 1864, Frederico Lang fundou uma fábrica de sabão. O autor ainda cita outros
estabelecimentos como olarias, fábricas de anil, de papel, de louças e carnes em conserva (OSÓRIO, Fernando. A
cidade de Pelotas. Pelotas: Armazém Literário, v. 2, p. 141-142).
53
ANJOS, Marcos Hallal dos. Op. cit.
154
Professores de piano, de línguas, de etiquetas e empregados em escolas particulares também
tinham um importante espaço.54

Neste sentido, Pelotas apenas acompanhava uma tendência das principais cidades do
mundo ocidental. Com o maior desenvolvimento do capitalismo, a vida das pessoas foi
gradualmente sendo deslocada para as cidades. No início do século XIX, gigantes como
Londres e Paris possuíam respectivamente 1 milhão e 500 mil habitantes. Contudo, estas eram
dimensões excepcionais para a época, pois, na Europa, somente estas duas cidades
ultrapassavam os 500 mil habitantes. No entanto, cerca de 100 anos depois, em 1913, este
número já havia chegado a 149.55 Esta maior urbanização colaborou com a disseminação do
estilo de vida burguês, a ampliação dos meios de comunicação e transportes, a circulação de
novas ideias sobre ciência e progresso e tudo isso afetou consideravelmente a vida nas grandes
cidades europeias e americanas. Mas apesar deste novo protagonismo das cidades, a grande
maioria da população mundial ainda era rural. Na própria Europa, em 1913, somente 15% dos
europeus moravam em cidades.56 Neste contexto, se Pelotas possuía uma população urbana
importante ao comparar-se com a grande maioria das cidades do Império (chegando a 15 mil
nos anos 1870), diante das grandes capitais ela era uma pequena vila, pois, nesta época, a
cidade do Rio de Janeiro possuía 275 mil habitantes, Salvador 130 mil e Recife mais de 115
mil. Num patamar inferior, apresentavam-se, entre outras, São Paulo com pouco mais de 30 mil
e Porto Alegre com cerca de 25 mil.57

Na medida em que as cidades cresciam juntamente com a sua população, a demanda por
gêneros alimentícios também aumentava. A partir da segunda metade do século, os distritos
rurais de Pelotas foram alvo de intensa especulação e mais de 60 colônias agrícolas foram
fundadas entre os anos 1860 e 1890. As elites possuidoras de terras na Serra dos Tapes foram as
que mais investiram nestes negócios e os charqueadores e seus familiares tiveram um papel de
destaque neste processo. Em 1869, por exemplo, Custódio Gonçalves Belchior, fundou a

54
ANJOS, Marcos Hallal dos. Op. cit., p. 36-37, 84-95, 102-103. Os italianos dominavam o ramo da hotelaria e, na
Santa Casa e em clínicas particulares, vários médicos europeus exerceram a sua profissão. Para uma análise da
imigração italiana em Pelotas ver POMATTI, Angela B. Italianos na cidade de Pelotas: doenças e práticas de
cura (1890-1930). Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2011.
55
REMOND, René. Op. cit., p. 137.
56
REMOND, René. Op. cit., p. 137.
57
Neste sentido, é necessário mencionar que o último quartel do século não marcou somente o início da
modernização e o processo de ampliação da urbanização pelotense. Em São Paulo, conforme Zélia C. de Mello, os
anos 1870 representariam a “segunda fundação” da cidade, quando ela se tornou, segundo contemporâneos da
modernização paulista, a “capital dos fazendeiros” e deu seus primeiros passos para tornar-se a “metrópole do
café” (MELLO, Zélia C. de. Op. cit., p. 84). Estudando os padrões de riqueza em Juiz de Fora na passagem do
século XIX para o XX, Rita Almico percebeu que o mesmo período marcou o impulso modernizador e a
urbanização da localidade, refletida na valorização dos imóveis da cidade – processo viabilizado pelo crescente
comércio e riqueza da cafeicultura da Zona da Mata mineira (ALMICO, Rita. Op. cit.).
155
colônia Santa Silvana e, em 1889, Heleodoro de Azevedo e Souza deu o nome de Santa Eulália
à colônia que criou. Os colonos possuíam origens diversas. Em 1848, a colônia D. Pedro II,
cujo maior acionista era o charqueador Antônio Rafael dos Anjos, era formada por irlandeses e
ingleses. Anos mais tarde, a colônia São Feliciano, teve nos franceses os seus primeiros
imigrantes. A colônia São Lourenço, a mais conhecida de todas, era formada por famílias
germânicas.58

No entanto, uma parte da elite pelotense entendia que a vinda de colonos para o trabalho
agrícola não era suficiente para o desenvolvimento da cidade. Em 1861, um charqueador
escreveu ao presidente da Província, esboçando que desejava também a “vinda de outros
colonos senão científicos, inteligentes, como até com capitais, na certeza de que na Pátria a
adotarem deparariam com meios infalíveis de felicitarem suas proles”. 59 Neste sentido,
conforme Anjos, alguns pelotenses defendiam, por intermédio da imprensa, a ideia de que os
europeus deveriam trazer a sua inteligência para além do trabalho agrícola, exercendo os seus
ofícios e saberes como se estivessem nos seus países de origem. Para isso, era preciso criar
indústrias e oferecer o suporte necessário para que eles executassem as suas atividades. 60 E, de
fato, aproveitando-se deste estímulo local, os estrangeiros passaram a participar cada vez mais
da vida urbana pelotense, onde pareciam sentir-se muito à vontade, visto que não eram poucos:

Determinados meses do ano caracterizavam-se por uma expressiva atuação das


sociedades estrangeiras radicadas em Pelotas, em especial as italianas, francesas e
portuguesas. Nos meses de setembro, os italianos comemoravam a unificação italiana,
nos meses de julho, o dia 14 não passava desapercebido pelos franceses e, no 1º de
dezembro, os portugueses festejavam a restauração monárquica. Os jornais noticiavam
as festividades, que variavam de seletas e íntimas reuniões a grandes desfiles pelas
ruas, com direito a fogos de artifício, batismo de estandartes e calorosos discursos,
onde o orador estrangeiro enaltecia a pátria natal e bendizia o país hospedeiro.61

Portanto, os europeus formavam comunidades reconhecidas localmente, onde seus


costumes, festas e identidades coletivas eram mantidos a partir da organização sociedades
diversas. Conforme Anjos, “as associações de elementos de uma mesma nacionalidade se
materializavam, em especial, através da criação de sociedades beneficentes e de auxílio mútuo,
mas também esportivas, literárias e educacionais”. Nelas, “o estrangeiro, além de labutar por
objetivos concretos, participava da elaboração de uma identidade cultural ímpar”. Neste

58
ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 44-49; 60. Outros investidores seguiram o exemplo, como os herdeiros do
charqueador Domingos de Castro Antiqueira (Colônia São Domingos, 1875), José Bento de Campos (Colônia
Santo Bento, 1899), Manoel Batista Teixeira (Colônia Santa Áurea, 1893), Pedro Nunes Batista (Colônia São
Pedro), Epaminondas Piratinino de Almeida (Colônia Santa Bernardina e Colônia São Domingos).
59
Carta de Domingos José de Almeida ao presidente da Província do Rio Grande do Sul. Pelotas, 04.10.1861.
Anais do Arquivo Histórico do RS, CV-686, p. 154.
60
ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 52-53.
61
Idem, p. 89.
156
sentido, seus laços com sua terra natal jamais eram desfeitos e os acontecimentos políticos do
velho continente eram acompanhados mesmo do outro lado do Atlântico. 62 Não demorou muito,
também surgiram jornais em sua própria língua, como o italiano “Il Venti Setembro”, de Carlos
Cantaluppi, e o alemão “Deutsche Presse”. 63 Isto também ajuda a explicar a grande importância
que os jornalistas pelotenses davam à cultura, economia e política internacional nas primeiras
páginas de seus periódicos. Não é difícil imaginar que a elite pelotense devia compartilhar de
parte destas informações e debates com os estrangeiros mais notáveis nos clubes, bailes, cafés,
jantares e nas praças da cidade.

Se a população de Pelotas e as dimensões de sua cidade eram bem menores que as


demais capitais brasileiras citadas anteriormente, mas a proporção de estrangeiros era maior que
a das mesmas cidades (com exceção do Rio de Janeiro), é provável que, no seu cotidiano, os
pelotenses que circulavam pelas ruas da urbe mantinham um contato muito mais próximo com
os europeus que compartilhavam deste mesmo espaço se comparados com as elites de outras
regiões.64 Além do mais, estabelecendo vínculos afetivos com os pelotenses, muitos
estrangeiros inseriam-se nas famílias locais por meio de matrimônios e laços diversos.65
Contudo, tendo em vista tal proximidade, não se deve descartar a latente possibilidade de
conflitos entre as diferentes comunidades e grupos sociais, visto as distinções étnicas, culturais,
religiosas e econômicas que caracterizavam a sua população. Escapando das pretensões desta
tese, tal fenômeno ainda merece ser melhor estudado.

No entanto, apesar da considerável importância dos estrangeiros na vida social e na sua


economia, algumas atividades estavam mais restritas a sua participação. Os “capitalistas e

62
“Apesar de distantes de seus países de origem, os estrangeiros continuavam ligados a eles por fortes laços de
subordinação, veneração e por afetos familiares. Através das entidades coletivas organizadas, o contato com a
pátria mãe e a atuação frente a episódios de repercussão internacional tornava-se mais fácil, propiciando, àqueles
estrangeiros envolvidos, um reforço positivo no íntimo de suas cidadanias enfraquecidas. Assim, em 1878, a
comunidade francesa compadeceu-se pela morte de Thiers; em 1883, a comunidade alemã da cidade uniu-se na
tentativa de amenizar o sofrimento das vítimas das inundações e do inverno cruel que abalara a Alemanha naqueles
anos; em 1890, os portugueses em Pelotas fizeram subscrições e angariaram fundos para serem remetidos a
Portugal, caso houvesse um conflito com a Inglaterra (questão da Zambesia); e, durante o ano de 1898, a ‘colônia
espanhola’ mobilizou-se na formação de uma ‘Liga Patriótica’ para angariar donativos a serem enviados ao
governo da Espanha, que se encontrava em guerra com os Estados Unidos” (ANJOS, Marcos. Op. cit., p. 90).
63
ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 89; 112.
64
A grande presença de estrangeiros era reconhecida pela própria população. Na edição de 20 de julho de 1884, o
Correio Mercantil de Pelotas iniciava uma matéria sobre as Sociedades de Socorros Mútuos da seguinte forma:
“Em todas as cidades populosas como a nossa, onde avulta o elemento estrangeiro, este deve congregar-se (…)”
(apud ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 89).
65
Os dados do Censo de 1872 contribuem novamente para esta questão. Se entre os brasileiros o número de
mulheres era maior que o de homens, entre os estrangeiros, para cada mulher havia 4 homens. Dos 2.443
estrangeiros do sexo masculino, 935 eram casados, e das 566 mulheres estrangeiras, 187 eram casadas. Portanto
havia um grande número de estrangeiros casados para um pequeno número de mulheres estrangeiras casadas. Estes
dados além de revelarem que os homens migravam muito mais, demonstram que vários deles tendiam a contrair
matrimônio com as mulheres da terra.
157
proprietários” contidos no Censo de 1872 reuniam 97 homens, mas somente 20% eram
estrangeiros. Outro exemplo pode ser dado no grupo dos criadores e lavradores dos subúrbios
da cidade, que somavam 216 pessoas e também apresentavam 80% de brasileiros. Portanto,
ainda era possível vislumbrar um grupo de “estabelecidos” na cidade, notadamente, uma parte
significativa de sua elite. Os estrangeiros, com exceção dos portugueses na primeira metade do
século, praticamente não tiveram acesso ao restrito círculo das fábricas de charque. Cada vez
mais a elite charqueadora fechava-se diante de investidores vindos de fora – algo
completamente distinto do que ocorria no Rio da Prata na mesma época, onde ingleses,
franceses e espanhóis continuavam com entrada franca na indústria da carne, no comércio e na
pecuária, já em moldes capitalistas. 66 Em Pelotas, a única porta aberta aos mesmos era o
matrimônio, visto que alguns ricos charqueadores estabeleceram tais alianças com europeus,
como tratarei num capítulo posterior. Portanto, no final do período aqui estudado, os
estrangeiros ocuparam principalmente os estratos intermédios da sociedade pelotense. Tal
constatação pode indicar que as mencionadas alianças matrimoniais com os charqueadores era
do interesse de ambas as partes, uma vez que inserir-se numa família da elite estabelecida
oferecia um leque de possibilidades aos candidatos a genro estranhos àquela localidade.

Mas ainda é necessário realizar uma última consideração sobre a estratificação social em
Pelotas. Para isso tomarei uso novamente dos inventários post-mortem, acrescendo outras
fontes, como demonstro a seguir.

4.3 OS MUITOS DEGRAUS DA PIRÂMIDE: POR UMA ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL E


ECONÔMICA DA POPULAÇÃO PELOTENSE

Apesar de tratar da maior parte da população, o Censo de 1872 possui um caráter


genérico com relação as suas classificações, por homogeneizar as suas categorias dificultando
uma caracterização das especificidades socio-ocupacionais de cada província e município. Um
exemplo disto pode ser dado com relação à atividade econômica do charqueador. Como na
maioria das outras províncias não existiam charqueadas, o Censo não contempla a categoria
“charqueador” ou “indústria de carnes”, por exemplo. Além disso, como muitos charqueadores
também criavam gado, atuavam no comércio e eram proprietários de vários imóveis, não é
possível saber em que grupo os censores os classificaram. Além disso, uma diversidade de
indivíduos com ofícios característicos das camadas mais pobres da população eram
66
Para uma consideração a cerca desta diferença ver BELL, Stephen. Early industrialization in the South Atlantic:
political influences on the charqueadas of Rio Grande do Sul before 1860. Journal of Historical Geography, n. 19,
1993, p. 399-411. Tratarei disto nos capítulos posteriores.
158
enquadrados em categorias muito genéricas como “profissões manuais e mecânicas” ou
“profissões industriais”, por exemplo. Portanto, o cruzamento dos dados do Censo com os de
outras fontes documentais pode ajudar a enriquecer a presente análise e direcionar os resultados
obtidos para uma proposta de hierarquização socioeconômica.
As listas de qualificação de votantes da paróquia de São Francisco de Paula para os anos
de 1865 e 1880, fornecessem dados importantes para uma aproximação desta diversidade
ocupacional. 67 A análise destes documentos permite verificar qual o perfil socio-ocupacional de
mais da metade dos chefes de família, dos viúvos e dos homens solteiros e maiores de 21 anos
da sede do município, onde muitas das charqueadas faziam limite. 68 O primeiro indicador a ser
destacado é que em 1865 e em 1880, Pelotas apresentou respectivamente 74 e 91 ocupações
econômicas e profissões diversas, o que exemplifica a maior complexidade do documento se
comparado ao Censo. Tratando-se do distrito mais urbano, não causa surpresa que os indivíduos
classificados como comerciantes formavam o grupo de maior representatividade. Em 1865, eles
chegavam a 20,8% e, em 1880, a 23,1% dos votantes.

Analisando mais profundamente as ocupações socio-profissionais da lista de 1865


percebe-se que do total de 718 votantes qualificados, 280 (39%) pertenciam a ocupações
econômicas de setores mais ricos (ou no mínimo intermediários) da saciedade local. Tratavam-
se de comerciantes (150), proprietários (76), criadores (26), charqueadores (14), negociantes
(11) e capitalistas (3). A ausência da discriminação da renda nos impede de confirmar tal
posição para todos os qualificados deste grupo, sobretudo da categoria “comerciante”, que
certamente reunia indivíduos ricos que atuavam comércio de atacado ao lado de varejistas de
pequeno porte. O mesmo serve para os negociantes. Além disso, também não é possível saber o
tamanho dos rebanhos dos criadores. Portanto, o índice de 39% entre os setores mais ricos e
intermédios para ricos deve ser inferior, talvez ficando em torno de 1/4 dos votantes.

Um segundo grupo a ser considerado pode ser chamado de profissão/burocracia e


envolvia os profissionais liberais e empregados públicos. Este é de longe o menor grupo, visto o

67
Lista de qualificação de votantes de Pelotas, 1865 (Fundo Eleições, maço 2, Arquivo Histórico do Rio Grande
do Sul). Lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1880 (Biblioteca Pública Pelotense - transcrição
gentilmente cedida pelo Professor Adhemar Lourenço da Silva).
68
Ambos os documentos oferecem uma amostra significativa dos homens livres maiores de 21 anos e com renda
anual superior a 200$000, ou seja, os qualificáveis. Ao contrário do que se defendeu durante muito tempo, uma
parcela significativa da população masculina participava das eleições imperiais, uma vez que a renda não era um
grande empecilho. De acordo com Richard Graham, 50,6% de todos os homens brasileiros livres maiores de 21
anos votaram nas eleições do início da década de 1870 (GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do
Século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 147). Tendo em vista o grande número de estrangeiros em Pelotas, que
segundo às leis da época só podiam votar caso fossem naturalizados, é provável que os indivíduos arrolados nas
listas de votantes correspondessem a mais da metade da população masculina.
159
alto índice de analfabetismo e a baixa burocratização da sociedade da época. Juntos, eles
reuniam 65 indivíduos, ou seja, 9% dos qualificados como votantes. Merecem destaque os
médicos (8) e os advogados (4) que possuíam um forte prestígio social. Os empregados
públicos somam 27 pessoas, distribuídas em diferentes setores que a lista não discrimina.
Outros grupos importantes são os professores (12) e os militares (5). 69 Um terceiro grupo da
lista que merece menção pertence a estratos médios e baixos da sociedade. Ao todo considerei
373 indivíduos como pertencentes a este grupo, ou seja, 52% do total dos votantes.70 Entre eles
é possível vislumbrar a presença de carpinteiros (37), alfaiates (31), marítimos (22), carreteiros
(19), jornaleiros (19), tropeiros (19), capatazes (8), marceneiros (8), pedreiros (7), lombilheiros
(5), boleeiros (5), pescadores (3), cortadores (3), campeiros (3), entre outros.

Como já foi dito, a lista de votantes de 1880 apresenta o mesmo perfil da anterior,
trazendo somente algumas ocupações profissionais novas, como o surgimento de um repórter,
um redator e dois telegrafistas – indicando que os meios de comunicação haviam atingido um
maior nível de desenvolvimento. Os dois maquinistas presentes nesta lista, por outro lado,
revelam que os meios de transporte haviam entrado na era das ferrovias. Dois gerentes e três
administradores também demonstram uma especialização profissional na condução dos
negócios de indústrias ou empresas. Um dos gerentes qualificados, por exemplo, era Vicente
Lopes dos Santos Filho, cujo pai possuía uma charqueada. A presença de um despachante
também é novidade e talvez sua aparição seja consequência da burocratização do Estado na
segunda metade do século XIX. O fato de haver um cabeleireiro na lista também merece
destaque e indica que as senhoras da elite pelotense estavam demandando não apenas artigos de
luxo, mas também serviços mais sofisticados.

A análise das ocupações econômicas sugere que muitos deles estavam vinculados direta
ou indiretamente ao processo de produção das charqueadas, assim como das atividades ligadas
às mesmas, como a criação de gado e os transportes terrestres e fluviais. Além disso, também

69
Seria um equívoco analítico considerar os membros do grupo profissão/burocracia descolados do grupo das
ocupações econômicas. Uma abordagem que privilegie a investigação das famílias ao invés dos indivíduos,
perceberá que 3 dos 4 advogados mencionados são filhos de charqueadores. O mesmo ocorre para 4 dos 8
médicos. Ou seja, dentro dos setores ocupacionais e profissionais dos extratos médios e ricos da sociedade podia
haver um entrelaçamento parental que caracteriza a própria estratégia das famílias da elite e que podiam reunir
comerciantes, criadores, burocratas, advogados e charqueadores numa mesma parentela. Nos próximos capítulos
esta relação será tratada com maior profundidade.
70
O significado que davam ao exercício do voto não é o mais importante para esta análise, muito embora o
documento tenha sido produzido com fins eleitorais. E é muito provável que a maioria exercesse tal função com
interesse em manterem-se vinculados a uma rede clientelar local, uma vez que era o significado mais imediato que
poderiam dar a tal ato. Para uma análise destas questões ver VARGAS, Jonas M. Entre a paróquia e a Corte: os
mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul. Santa Maria: Ed. da UFSM/Anpuh-
RS, 2010.
160
havia todos os ofícios que dependiam do couro, do sebo, das carnes e dos chifres e que eram
empregados em setores de transporte terrestre, fluvial e marítimo. Neste círculo de profissionais
que podemos verificar na lista de 1880, estão os açougueiros (2), armadores (3), calafates (2),
capatazes (25), fazendeiros (30), criadores (26), lombilheiros (4), correeiros (3), seleiros (3),
chapeleiros (2), curtidores (2), colchoeiro (1), sirgueiros (2), estafeta (1), marinheiros (81),
sapateiros (53), carreteiros (33), tamanqueiros (3), carneadores (2), trançador (1) e graxeiro (1).
Somados aos 29 charqueadores da lista tem-se que 23% dos qualificados exerciam atividades
que deviam manter relações próximas com as charqueadas ou compartilhavam de interesses
econômicos comuns. Mas este índice é bem maior, uma vez que não adicionei os comerciantes
(313), os proprietários (126) e os que viviam de suas agências (128), pois não é possível saber
em que ramo de atividades os mesmos estavam inseridos.

Portanto, através das próprias classificações ocupacionais é possível identificar uma


estratificação social básica, pois algumas delas eram atividades exclusivas de setores mais
abastados e outras de setores subalternos da sociedade. No entanto, buscando matizar melhor os
níveis da estrutura socioeconômica na qual a sociedade pelotense estava hierarquizada, volto a
utilizar os inventários post-mortem analisados anteriormente. Como se pode observar na Tabela
4.5, classifiquei os indivíduos inventariados em 9 faixas de fortuna desde os mais ricos (com
patrimônios superiores a 50.000£) até os mais pobres (com menos de 100£). Buscando uma
análise mais elaborada, agrupei estas faixas em três grupos de riqueza, cujos limites, apesar da
possível distinção, são um pouco fluídos. As faixas A, B e C reúnem as camadas mais ricas
desta hierarquia e compunham 8,5% do total inventariado. A soma dos imóveis rurais, escravos
e animais apresentam respectivamente 62,1%, 60,0% e 48,6% de seus bens, demonstrando que
a riqueza era diretamente proporcional ao perfil agrário do seu patrimônio. Entretanto, nunca é
demais lembrar que boa parte de suas terras e gado não se encontravam em Pelotas, mas sim,
em outros municípios ou até mesmo em outro país, no caso, o Uruguai. Em contrapartida, pelo
fato dos charqueadores estarem em peso neste grupo mais rico, a grande maioria dos escravos
das faixas A, B e C encontrava-se no próprio município. Dos 22 componentes deste grupo,
somente 2 não possuíam imóveis urbanos. Eles eram proprietários de muitos sobrados, casas e
armazéns na cidade, mas o valor conjunto dos mesmos não superava o de seus imóveis rurais,
visto a alta valorização das terras no período. Como muitos eram charqueadores e comerciantes,
o peso do dinheiro e das dívidas ativas em seus patrimônios apresentava-se bastante alto. O
reduzido volume de suas dívidas passivas indica que os mesmos possuíam uma relativa
autonomia econômica na região.

161
Tabela 4.5 – Perfil dos patrimônios inventariados por faixas de fortuna em libras esterlinas (%)71

Fortunas Imóveis Imóveis Dinheiro Dívidas Ações Escravos Animais Embarc./ Dívidas M.U. M.R. Mist. Total
Inventariadas rurais urbanos Ativas carros Passivas % % % Invent.
n %
A + de 50 mil 40,2 8,2 8,1 18,4 0,3 378 9,5 12,4 0,8 0,02 - - 100 5
B De 20 a 50 mil 44,7 18,8 9,0 7,6 2,4 264 8,2 7,1 1,2 4,5 - 12,5 87,5 8
C De 10 a 20 mil 25,6 16,9 14,5 13,2 4,3 116 10,4 12,6 0,5 3,6 11,2 11,2 77,6 9
D De 5 a 10 mil 18,1 30,5 7,3 12,2 5,4 140 11,2 3,8 0,2 13,4 38,8 16,6 38,8 18
E De 2 a 5 mil 40,1 19,5 10,6 12,8 7,4 132 11,1 1,2 1,1 15,4 33,3 29,6 29,6 27
F De 1 a 2 mil 14,6 42,7 7,0 15,0 3,4 100 9,8 1,6 0,5 11,2 53,5 20,9 18,6 43
G De 500 a 1 mil 26,5 34,1 3,8 7,5 - 88 19,0 4,0 - 18,8 28,2 38,5 28,2 39
H De 100 a 500 25,5 33,0 5,7 5,0 - 77 23,3 3,7 1,2 17,4 39,2 37,8 9,4 74
I Menos de 100 39,5 25,3 4,6 7,7 - 01 - 6,6 - 28,6 24,3 48,4 3,1 33

Total 34,5 17,9 8,9 13,5 2,3 1.296 9,9 8,4 0,8 5,6 34,4 41,7 23,8 256
Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)

Embora o interesse principal desta tese seja estudar os charqueadores, não é possível
falar da elite econômica pelotense sem reconhecer que a mesma também era formada por ricos
fazendeiros e comerciantes atacadistas. Estas três atividades podiam ser exercidas por um
mesmo indivíduo, mas, no geral, não o eram. Em 1852, por exemplo, 35 comerciantes de
Pelotas, notadamente a elite mercantil da cidade, remeteram um requerimento para a Corte
exigindo uma fiscalização mais eficaz contra o contrabando na fronteira com o Uruguai. 72
Tratavam-se de importadores e exportadores que também fretavam carretas de mercadorias para
a região da campanha. O grupo, que contava com alguns estrangeiros, possuía somente três
indivíduos que vieram a tornar-se charqueadores anos mais tarde, demonstrando tratar-se de um
grupo mercantil que possuía certa autonomia com relação aos negócios envolvendo a
manufatura dos couros e charque. Com relação aos fazendeiros do município, consultei a
relação dos principais criadores de gado do 3º e do 4º distrito de Pelotas, elaborada pelas
autoridades locais em 1858. Num total de 46 proprietários, somente um era charqueador e
nenhum deles estava na lista dos comerciantes de 1852.73
Portanto, tratavam-se de esferas econômicas cuja maioria dos agentes envolvidos
formavam grupos de atuação distintos, embora interagissem social e economicamente. Mas esta
separação deve ser relativizada. Se ela serve para a maioria dos comerciantes, charqueadores e

71
A sigla M.R. significa proprietários que possuíam imóveis exclusivamente rurais e que, por conta disto,
classifiquei como “moradores rurais”. Neste mesmo sentido, M.U. correspondia aos “moradores urbanos” e Mist.
significa “Mistos”, ou seja, o inventariado possuía casas na cidade e no meio rural. Nem todos os índices de M.R,
M.U e Mistos somam 100% porque alguns inventariados não possuíam nenhum imóvel.
72
Requerimento dos comerciantes de Pelotas. Seção dos Manuscritos. Coleção Rio Grande do Sul (Biblioteca
Nacional do RJ).
73
Anexos dos ofícios de 24.03.1858 e 09.04.1858. Fundo Autoridades municipais, Pelotas, AHRS. É possível
verificar em ambas as listas que havia comerciantes e fazendeiros que eram parentes de charqueadores, algo que
irei tratar melhor nos capítulos posteriores.
162
estancieiros, ela não é suficiente para compreender as atividades econômicas da minoria: a elite
dentro da elite econômica. Os mais ricos comerciantes raramente reservavam-se as suas
atividades mercantis, assim como os maiores fazendeiros não ficavam presos à terra. Portanto, o
topo mais rico desta pirâmide socioeconômica costumava diversificar as suas atividades e
investimentos, lembrando o modelo verificado por Fernand Braudel no interior da hierarquia
mercantil europeia entre os séculos XVI e XIX. 74 Tal modelo também se verifica entre os
charqueadores, uma vez que os mais ricos não se reservavam aos negócios com o charque,
atuando na pecuária, no comércio e no prestamismo, como analisarei nos capítulos posteriores.

Um primeiro exemplo pode ser oferecido por Ambrósio Gabino Crespo. Com fortuna
situada na faixa A e um dos assinantes do requerimento dos comerciantes pelotenses de 1852,
ele pertencia à elite mercantil da cidade. Seu patrimônio, inventariado em 1875, estava
constituído de campos no Uruguai com um vasto rebanho e diversas casas espalhadas por
municípios da campanha, como Bagé, Cangussú, D. Pedrito, Lavras e São Gabriel. Na cidade,
Crespo era proprietário de 8 casas e 4 armazéns. Além disso, também possuía ações e mais de
100 contos de réis em ativos pertencentes a sua casa comercial, além de 320 contos de réis em
dívidas ativas.75 Crespo também era sogro do Dr. João Chaves Campello, que foi deputado
provincial e Presidente da Província.

Entre os fazendeiros mais afortunados, pode-se citar o Comendador João Antônio


Martins. Proprietário de diversas estâncias e casas no Uruguai, de 51 escravos e mais de 14 mil
reses de criar, Martins foi o mais rico inventariado da década de 1850. Contudo, ao contrário
das centenas de estancieiros que habitavam a região da campanha, ele estabeleceu-se na cidade
de Pelotas, onde possuía muitas casas, terrenos e um armazém. Martins também detinha mais
de 170 contos de réis em dívidas ativas e mais de 160 contos em dinheiro, sugerindo que devia
atuar como prestamista e, possivelmente, no comércio. A posse de ações no teatro de Pelotas,
livros e um piano indicam o seu gosto pela vida cultural da cidade – muito mais ativa do que
nos municípios rurais da fronteira oeste, onde ele possuía suas fazendas. O Comendador
investiu na educação dos filhos e um de seus netos foi, sem dúvida, um dos políticos de maior
prestígio do sul do Brasil. Além de deputado geral, Gaspar Silveira Martins foi senador e
conselheiro de Estado. Quando faleceu, em 1901, Gaspar era proprietário de mais de 120 mil

74
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
75
Inventário de Ambrósio Gabino Crespo, n. 84, m. 3, 1875, 1º cartório do cível e crime, Pelotas, APERS.
163
hectares de terra em Bagé, mostrando que a elite política e a elite econômica da província
estavam intimamente conectadas.76

Seguindo na análise da Tabela 4.5, percebe-se que a partir da faixa D até a faixa G, que
reuniam 49.5% dos inventariados, ocorrem algumas alterações na estrutura das fortunas
elencadas. As mais representativas demonstram a ocorrência de uma maior urbanização (nas
faixas D, E e F), acompanhada de uma significativa diminuição dos percentuais em dinheiro e,
em menor medida, das dívidas ativas. Tal urbanização também é acompanhada pela redução do
percentual dos valores investidos em animais. Mas o fator que mais impressiona é o aumento da
representatividade das dívidas passivas com relação aos mais ricos, caracterizando-o como um
grupo mais urbano e endividado. Os inventariados desta faixa também são os com maiores bens
investidos em apólices e ações. Alguns diriam que parte dos indivíduos destas faixas seria
representativa de uma embrionária classe média, mas talvez seja cedo para se enxergar tais
traços naquela sociedade.

Cruzando estes dados com os dos censos e listas de qualificação é possível considerar
que este setor intermediário era formado por profissionais liberais, empregados públicos
diversos, comerciantes e criadores de fortuna mediana, pequenos fabricantes e artesãos, idosos
e viúvas que viviam de rendas, além de trabalhadores diversos. São exemplos deste grupo não
apenas o carpinteiro André Landart, o mercador David Davis, o coronel Francisco Vieira Braga,
o fabricante de chapéus Ricardo Moreira e o negociante de sal Francisco da Costa e Silva, como
também Daniel Olsen, que possuía uma venda no meio da colônia Santa Silvana, Fortunato
Faria, proprietário de uma olaria e Francisco M. Leite, dono de uma fábrica de sabão e velas. A
diversidade dos bens avaliados e as histórias que se pode contar a partir dos próprios
inventários é muito rica.

Comerciantes, artesãos, escravos e trabalhadores diversos, estrangeiros e brasileiros,


deviam dominar o espaço econômico do centro da cidade. O Conde D’Eu impressionou-se com
o comércio de artesanato nas ruas de Pelotas, deixando um depoimento interessante:

É também em Pelotas que, ao pé dos ricaços que estão a descansar, florescem em todo
o seu esplendor as indústrias que alimentam o verdadeiro luxo rio-grandense, o dos
arreios. Essas indústrias, como se sabe, são duas: a dos couros lavrados, cinzelados,
coloridos, bordados de mil maneiras, e a das peças de prata, não menos artisticamente
trabalhadas. As diferentes classes da população estão, porém, bem separadas: em

76
Inventário de João Antônio Martins. N. 317, maço 22, Cartório de órfãos e provedoria de Pelotas, APERS;
CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da
Livraria do Globo, 1937, p. 265; Inventário de Gaspar Silveira Martins. Processo 289, maço 7, Ano 1901, 1º
Cartório do Cível e Crime de Bagé, APERS.
164
certas ruas as residências ricas; noutras, as lojas. Especialmente na rua do Comércio e
na rua S. Miguel se vê uma fila contínua dessas lojas, onde estão expostos estribos,
esporas enormes, peitorais e freios, tudo de prata, ostentando esplendor deslumbrante,
que iguala, não digo já o da Rua do Ouro, de Lisboa, mas até o da “Strada degli
Orefici”, de Gênova.77

Não é raro encontrar os mencionados objetos de prata entre os bens dos inventariados
das faixas de fortuna intermediárias e até nas mais pobres, o que demonstra o amplo consumo
destes artigos. Um exemplo pode ser dado com José da Silva Lisboa, que não possuía
praticamente nenhum bem passível de ser avaliado a não ser seus móveis, entre os quais
estavam 1 bomba de prata, 1 espada, alguns livros e 1 relógio de ouro. Assim como ele, Manoel
Pacheco possuía uma pequena porção de terras na serra da Buena, com 20 cabeças de gado e
outros poucos animais, 2 carretas velhas, 1 enxada, 1 machado, além de 2 bombas e 1 par de
esporas de prata.78 Ambos pertenciam aos setores mais pobres da sociedade, que reuni nas
faixas H e I. Estas faixas compunham 41,8% dos inventariados. Contudo, é importante não
esquecer que os indivíduos pertencentes às mesmas não estavam na pior situação da pirâmide
social, pois abaixo deles havia pessoas miseráveis, cujos bens não eram passíveis de serem
inventariados.

As faixas mais pobres desta pirâmide social estavam ocupadas tanto por artesãos e
trabalhadores, como o pedreiro Sebastião Idiart, o funileiro Antônio Braga e a costureira Ana
Behocaray, quanto por pequenos criadores como George Motz. Uma parte significativa era
formada por pequenos lavradores espalhados pelos distritos rurais do município. Os
sobrenomes estrangeiros reforçam ainda mais o que venho descrevendo até aqui com relação a
sua presença na sociedade pelotense. Eles estavam distribuídos em todas as camadas sociais,
desde pobres lavradores como Pedro Koesgen, que plantava milho e criava porcos na serra dos
Tapes, até médios proprietários como Theodoro Dux e comerciantes bem estabelecidos como
Chistobal de Leon e José Calero.

Apesar do tratamento conjunto dado às duas últimas faixas de fortuna, a faixa I


apresenta características distintas da H, demonstrando que havia limites aos que ocupavam a
base da pirâmide. Primeiro, na faixa I ocorre um retorno no predomínio dos imóveis rurais
sobre os urbanos e uma elevação na importância do valor dos animais. Segundo, ela é

77
D’EU, Conde. Viagem Militar ao Rio Grande do Sul. São Paulo: USP, 1981.
78
Inventário de Ana Maria Pacheco, n. 391, m. 27, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1855, Pelotas, APERS;
Inventário de José Pereira Lisboa, m. 108, 1880, 1º cartório de órfãoes e ausentes, Pelotas, APERS.
165
despossuída de escravos e altamente endividada se comparada à faixa H. 79 Disto conclui-se que
na medida em que as fortunas vão afastando-se do setor intermédio, tanto para cima da
pirâmide quanto para baixo, elas retomam os maiores percentuais do patrimônio investido em
bens rurais, denotando que tanto pobres quanto ricos vinculavam seu patrimônio aos bens
agrários. Pertenciam, por exemplo, a esta última faixa de fortuna o português Manoel
Guilherme que era ferreiro, Manoel Gonçalves que era alfaiate e Custódio Lima, que era patrão
de um iate e deixou como único bem o dinheiro de seu bolso. A Felisbina pobre, de quem falei
quando iniciei este capítulo, também pertencia a este grupo.

Além destas, outras considerações podem ser realizadas com relação à análise dos
inventários. As últimas três faixas (que somam 146 inventários) não apresentam nenhum
investimento em ações ou apólices e, com exceção de 1 inventário na faixa H, não possuíam
embarcações ou carros. Portanto, a composição de suas fortunas era mais simplificada e alguns
bens eram vedados aos mesmos. Nas faixas G e H, os escravos eram bens que pesavam bastante
nos patrimônios dos mesmos, chegando a perfazer quase ¼ dos valores inventariados na
segunda. Os indivíduos destas faixas eram, na sua grande maioria, pequenos proprietários de
escravos, apresentando uma média de 2,6 cativos, sendo que somente um deles possuía mais de
10 escravos. Seus poucos cativos representavam parte fundamental da sua economia doméstica,
podendo alugá-los, por exemplo. Para este grupo, o aumento do preço dos escravos e das terras
e o difícil acesso aos mesmos deve ter sido mais marcante, pois os cativos envelhecidos,
doentes ou falecidos deviam ser substituídos com extrema dificuldade, visto o aumento dos
preços dos mesmos.

Peço ao leitor que retorne à Tabela 4.3 para uma última consideração. A partir dela é
possível verificar que o percentual de dinheiro diminui nas últimas décadas na mesma
proporção em que as dívidas passivas aumentam bastante. Tal fenômeno tem relação direta com
o que foi mencionado anteriormente, visto que foram as camadas sociais menos privilegiadas as
que mais se endividaram. Se os 22 inventários que apresentaram as maiores fortunas
inventariadas (acima de 10.000£) tinham um percentual de dívidas passivas inferior a 3%, os 33
mais pobres (com fortuna inferior a 100£) tinham 28,6% do seu patrimônio comprometido em
dívidas. Somente 1 destes 33 inventariados mais pobres possuía escravos. A grande maioria das
pessoas pertencentes a esta faixa mais pobre concentrou-se exatamente no final do período
analisado, pois 26 dos 33 indivíduos deste grupo foram inventariados em 1880, 1885 e 1890.

79
É bem verdade que 12 inventários são de 1890. Entretanto as outras faixas também possuem inventários desta
data e o número de cativos á bem mais alto. Portanto, a ausência de escravos é mais pela pobreza do que pela
época em que os inventários foram abertos.
166
Portanto, é muito provável que o agravamento as crises nas charqueadas entre os anos 1860 e
1870 e o início de sua decadência nos anos 1880 tenha afetado a economia local, favorecendo o
empobrecimento de muitas famílias de setores médios, colocando-os, anos depois, entre os mais
pobres e endividados. A decadência das charqueadas pode ter afetado muitos dos que
dependiam direta e indiretamente dos bens das mesmas. A diminuição do volume de dinheiro
deve ter diminuído o consumo de muitos artigos, afetando a produção de pequenos alfaiates,
carpinteiros e artesãos em geral, sem contar os setores ligados à pecuária, transporte e
comércio. Com a crise econômica, o fluxo de pessoas endinheiradas na cidade também deve ter
diminuído, prejudicando a economia local e seus negócios. Tal fenômeno deve ter obrigado
muitos a se endividarem. Portanto, a economia das charqueadas foi capaz de gerar grandes
fortunas, mas, com a decadência iniciada nos anos 1880, também trouxe inevitavelmente
grande pobreza, pois cada uma das crises conjunturais era capaz de liquidar, de forma indireta,
a economia dos pequenos, drenando seus escravos e demais recursos econômicos.

Como este é um estudo sobre um grupo de elite tive que resistir à tentação de investigar
mais profundamente a vida dos homens livres pobres, cujas histórias insistiam em aparecer nas
mais variadas fontes. Eram, na sua maioria, trabalhadores que viviam na cidade, colonos
europeus com uma pequena data de terras e um diminuto rebanho e lavradores nacionais e
libertos espalhados pela Serra dos Tapes e em outras localidades rurais do município. Sua mão
de obra era essencialmente familiar, mas eles podiam gabar-se por estar acima de outros mais
miseráveis, que deviam vagar em busca de meios de subsistência ou atividades provisórias na
cidade e nas zonas rurais.

Por mais de duas gerações, algumas famílias da elite pelotense viram a cidade
transformar-se e alterar o seu perfil social diante dos seus próprios olhos. Como foi visto no
capítulo 3, durante o colonial tardio, Pelotas podia ser tratada como uma cidade “negra”, visto a
pequena proporção de habitantes brancos. Passado mais de meio século, sua pretensiosa elite
buscou fazer dela uma cidade “europeia”. Neste duplo movimento, ela jamais deixou de ser
uma cidade atlântica, recebendo um grande número de migrantes forçados e voluntários, das
mais diversas regiões da Europa, da América e da África, desde o início da sua história. Neste
sentido, as transformações ocorridas no mundo atlântico oitocentista podiam ser observadas nas
próprias ruas da cidade, perante uma diversidade de línguas, de cores, de culturas. Era sobre
esta base social extensa e complexa que os charqueadores ocupavam o topo da hierarquia
socioeconômica local. Quando o Conde D’Eu falou dos “ricaços que estavam a descansar” na
cidade diante do comércio que tomava as ruas, era destes empresários que estava falando. Nos

167
anos 1870, os charqueadores, com suas esposas e filhos deviam compor entre 1,5 e 2% da
população total de Pelotas, mas concentravam uma riqueza muito superior.

Contudo, esta elite sofria de uma existência profundamente paradoxal, pois aos olhos de
muitos europeus, Pelotas não representava somente luxo e dinheiro, mas também a barbárie. A
origem de suas fortunas, ou seja, da mencionada riqueza que assegurava o luxo, a educação e o
lazer de suas famílias era fruto de um espetáculo “horrendo”, nas palavras do norte-americano
Herbert Smith. Neste sentido, a escravização de milhares de trabalhadores negros e a matança
desenfreada de milhões de cabeças de gado contrastava com a pretensa civilidade que os
mesmos buscavam demonstrar nos espaços urbanos de sociabilidade. E o cheiro que exalava
dos estabelecimentos e nas margens fluviais causava certa repugnância aos mesmos europeus
que os charqueadores queriam tanto agradar. Para entender melhor esta elite é preciso conhecer
como ela acumulava a sua riqueza, ou seja, é necessário entender o funcionamento das
charqueadas e o espetáculo “horrendo” da matança. Convido o leitor a cerrar as narinas, pois
nas próximas páginas adentraremos no interior destes estabelecimentos…

168
5. “A CONFUSÃO QUE, ENTRETANTO, É ORDEM”: AS UNIDADES
PRODUTIVAS, O MUNDO DO TRABALHO NAS CHARQUEADAS E O
TRÁFICO INTERPROVINCIAL DE ESCRAVOS

Há um não sei o que de revoltante e ao mesmo tempo cativador nestes grandes


matadouros; os trabalhadores negros, semi-nus, escorrendo sangue; os animais
que lutam, os soalhos e sargetas correndo rubros, os feitores estolidos, vigiando
imóveis sessenta mortes por hora, os montes de carne fresca dissorando, o vapor
assobiando das caldeiras, a confusão, que entretanto é ordem: tudo isto
combina-se para formar uma pintura tão peregrina e hórrida quanto pode caber
na imaginação. De toda esta carnificina dimanou a riqueza de Pelotas, uma das
mais prósperas entre as cidades menores do Brasil.

Herbert Smith, naturalista norte-americano, 1882.

Com seu olhar perspicaz, Smith notou que por trás de uma suposta “confusão” aos olhos
do observador comum escondia-se uma verdadeira “ordem” sob a direção do charqueador. Um
aglomerado de instalações com escravos trabalhando desordenadamente não poderia render
lucros tão significativos aos seus senhores.1 Apesar das dificuldades enfrentadas pelos
primeiros charqueadores, ainda no colonial tardio, o nível de organização atingido no último
quartel do século XIX parecia ter se configurado na prática costumeira, depois de décadas de
trabalho no ramo, e sem um maior auxílio de manuais ou de um conhecimento técnico e
científico mais aprimorado. Tratava-se de uma ordem com uma racionalidade própria e que
tinha na organização do trabalhado escravo as suas engrenagens mais profundas. No entanto, ao
menos para os observadores estranhos àquele mundo, ela não era a única ordem possível. A
confusão aos olhos de um estrangeiro decorria do fato de que a mão de obra empregada nas
charqueadas era escrava, ao contrário das demais fábricas na Europa ou em outras partes das
Américas. Neste sentido, os relatos de viajantes e testemunhos da época sempre devem ser
contextualizados e no caso daqueles que deixaram depoimentos sobre a escravidão no Brasil o
perigo parece ser ainda maior. Suas posições, quando à favor ou contra a escravidão no mundo
moderno, geralmente condicionavam as suas opiniões.2

Este capítulo trata do perfil da mão de obra escrava no complexo charqueador pelotense
e de como os cativos estavam distribuídos nas unidades produtivas dos charqueadores. Apesar
do tema já ter sido tratado parcialmente por outros autores, ofereço uma análise mais complexa,
1
Como será tratado no capítulo 9.
2
Ver, por exemplo, SLENES, Robert. Na Senzala uma flor – esperanças e recordações na formação da família
escrava, Brasil, sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
169
a partir de outros critérios metodológicos e da proposição de questões ainda não tratadas com
relação a este tema.3 O presente capítulo é melhor compreendido se lido conjuntamente com o
seguinte. Enquanto este oferece um tratamento mais quantitativo acerca do tema, o posterior
trata mais qualitativamente da administração dos trabalhadores nas charqueadas, as tensões
sociais entre estes e os seus senhores/patrões, assim como as formas de viabilizar a existência
do complexo charqueador escravista por quase um século.

5.1 POR DENTRO DA CHARQUEADA: AS ETAPAS DE PRODUÇÃO DO CHARQUE,


DOS COUROS E DOS DEMAIS PRODUTOS

Os melhores documentos para se compreender o mundo do trabalho nestas fábricas são


os processos-crime envolvendo conflitos no interior das charqueadas, os inventários post-
mortem de charqueadores e os relatos dos contemporâneos que conheceram estas propriedades.
A análise a seguir busca evidenciar o processo de produção do charque e dos couros desde a
chegada dos animais vacuns nas charqueadas até o encaminhamento dos produtos beneficiados
para o porto de Rio Grande, mas sem preocupar-se com os mercados do gado e dos efeitos
produzidos, uma vez que estas etapas serão descritas em capítulos posteriores, pois merecem
uma análise mais específica.

Todas as charqueadas ficavam dispostas nas margens fluviais do município, sendo que
quase 90% delas nas do São Gonçalo e do Pelotas. Se os estabelecimentos concentravam-se
mais próximos aos rios, o restante do terreno da charqueada, sobretudo no núcleo fabril,
estendia-se por mais de um quilômetro em direção ao logradouro público, formando extensas
faixas de terra paralelas umas as outras. Este tipo de disposição espacial caracterizava boa parte
dos estabelecimentos sem que o complexo fabril propriamente dito primasse por uma estrita
homogeneidade. Na década de 1880, por exemplo, Louis Couty disse que não havia um modelo

3
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. Niterói: ICHF/UFF, Dissertação
de Mestrado, 1983; GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço
pelotense. Pelotas: UFPel, 2001; ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Pelotas: escravidão e charqueadas (1780-
1888). Porto Alegre, PPGH/PUC-RS, Dissertação de Mestrado, 1995; MAESTRI, Mário. O escravo no Rio
Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984. Mais recentemente,
alguns trabalhos renovaram os seus olhares para este mesmo objeto. Ver, por exemplo, PESSI, Bruno. O Impacto
do fim do tráfico na escravaria das charqueadas pelotenses (c. 1846 – c. 1874). Monografia de Graduação em
História, UFRGS, 2008; PINTO, Natália Garcia. A benção compadre: experiências de parentesco, escravidão e
liberdade em Pelotas (1830-1850). Dissertação de Mestrado em História, Unisinos, 2012.
170
de organização espacial bem definido para as charqueadas, apesar de a diferença de tamanho
entre as maiores e as menores não ser tão grande.4

A análise dos inventários post-mortem demonstra que uma charqueada podia ser
composta por diversas benfeitorias e possuir inúmeros equipamentos e utensílios no seu espaço
de trabalho, variando de acordo com a riqueza do seu proprietário. Nas primeiras décadas do
século XIX foi comum os encarregados em arrolar os bens separarem as instalações no
momento da avaliação, destacando a barraca de couros, o galpão de charquear, a graxeira, a
mangueira, a senzala, o forno de secar sal, os varais, as caldeiras, entre outros. Com o tempo, e,
sobretudo na segunda metade do oitocentos, estas mesmas instalações passaram a ser avaliadas
unicamente sob a denominação de “um estabelecimento de charqueada” ou “uma charqueada”,
sem discriminar todas as suas benfeitorias. A organização das mesmas, assim como as técnicas
de preparo do produto e dos subprodutos, como sebo, graxa e couros, nem sempre foram
realizadas da mesma forma, mudando ao longo do tempo.5

Apesar de muitos viajantes estrangeiros terem registrado as atividades das charqueadas,


as melhores descrições do processo de produção do charque foram realizadas por três viajantes
estrangeiros. Os franceses Nicolau Dreys (1839) e Louis Couty (1880) e o norte-americano
Herbert Smith (1882) deixaram preciosos relatos sobre o funcionamento das charqueadas
escravistas do oitocentos.6 A distância do primeiro para os outros dois relatos permite uma
comparação das mudanças tecnológicas em mais de 60 anos, uma vez que as anotações de
Dreys referem-se ao período entre 1817 e 1827, quando ele residiu na província.7 Todo o
processo se resumia em poucas etapas: à chegada das tropas de gado na charqueada e sua
permanência na mangueira seguiam-se o seu abate, o transporte do animal para a cancha, a
esfolação, a despostação (esquartejamento), o retalhamento das carnes (charqueamento), o
salgamento das mesmas, o empilhamento das mantas, o seu secamento nos varais e o posterior
transporte via fluvial para o porto de Rio Grande, onde a mercadoria seguia o rumo das
margens do Atlântico. A seguir descreverei minuciosamente todas estas etapas 8, com exceção
da primeira e da última, pois tanto a compra do gado quanto a venda do produto final, como já
mencionei, serão tratadas em capítulos posteriores.

4
COUTY, Louis. A erva-mate e o charque. Pelotas: Seiva, 2000, p. 130.
5
Tal fenômeno já foi evidenciado por CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit.
6
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IEL, 1961; SMITH,
Herbert. Do Rio de Janeiro a Cuiabá, 1922; COUTY, Louis. Op. cit.
7
Outros viajantes deixaram relatos sobre as charqueadas pelotenses e serão devidamente mencionados ao longo
dos capítulos.
8
Uma exposição semelhante foi realizada por CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit.
Contudo, tanto no presente capítulo, quanto no posterior, trago novos elementos de análise.
171
a) O abate

Geralmente no mês de novembro, o hasteamento de uma bandeira vermelha na entrada


da charqueada era um sinal entendido por todos. Potreiros e mangueiras arrebatavam-se de gado
gordo vindo de diversas partes da fronteira. Escravos e trabalhadores livres eram mobilizados
nas muitas etapas de produção. Iates carregados de sal congestionavam as vias fluviais que
levavam até às charqueadas. Comerciantes, caixeiros, peões, tropeiros e gente de todo o tipo
animavam os arredores dos estabelecimentos. Os escravos carneadores afiavam suas facas. Os
capatazes tinham certeza de muito trabalho em frente. Estava aberta a safra. Durante todo o
verão até quase chegar o inverno do outro ano, algo entre 300 e 400 mil cabeças de gado eram
abatidas nas mais de 30 charqueadas que pontilhavam as margens do São Gonçalo e do Pelotas.

Após a fase de engorda, quando as reses pastavam nos vastos campos da região da
campanha rio-grandense ou do norte do Uruguai, as tropas de gado eram levadas por terra até
Pelotas, distante muitas léguas daquelas estâncias. De acordo com Nicolau Dreys, nos anos
1820, havia três formas de se abater os novilhos. Duas delas eram bastante semelhantes e
naquela época já vinham entrando em desuso. É necessário descrevê-las para entender o
significado da inovação trazida pela terceira. Na primeira, os peões montados a cavalo
aproximavam-se do animal recolhido a um curral aberto. Um dos peões posicionava-se diante
do boi e agitava um “poncho colorado”, até que o novilho se sentisse atraído e perseguia-o pelo
campo. Instantaneamente, outro peão disparava com uma lança afiada e comprida cortando-lhe
o jarrete e, depois disso, o mesmo se posicionava estrategicamente para abater a próxima rês.
Assim que o animal ferido e ainda vivo caía, um escravo tomava conta do mesmo para sangrá-
lo. Dreys diz que este método era perigoso, mas era tido como uma aventura entre os peões. Na
segunda forma, um peão a cavalo laçava um novilho no curral. Se o boi corresse sobre o
cavaleiro, este disparava fazendo com que o animal o seguisse para o campo aberto onde outro
peão o abatia (assim como na primeira forma). Mas se o animal resistisse, o peão arrastava-o,
dando início a uma briga entre ambos até que o boi fazia força para se livrar do laço. E era neste
momento que outro peão lhe cortava a articulação das pernas fazendo o animal tombar, para
logo desfechar um golpe fatal. 9

Na opinião de Dreys, estes dois métodos eram muito inseguros para os trabalhadores e
muito cruel com os animais. A terceira forma de abate havia se tornado dominante nas
charqueadas e indicava uma melhor organização desta indústria na época se comparado aos
tempos coloniais. O gado cercado no curral era “impelido na direção de dois corredores

9
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134.
172
separados um do outro por uma espécie de esplanada” que estava erguida a 7 ou 8 palmos do
chão. Quando o boi aparecia num destes corredores estreitos, um peão, de pé sobre a esplanada,
o laçava. A corda usada pelo peão estava atada fora do recinto a uma roda de ferralho (uma
engrenagem, como um torno) manejada por dois escravos. Laçado, o animal era puxado pela
força do torno até encostar a cabeça no cercado onde, do lado de fora, um especialista
(“ordinariamente um capataz”), sobre uma espécie de pedestal, cravava uma faca na nuca do
boi, que logo perdia os seus movimentos.10

Mais de 50 anos depois, as descrições de Herbert Smith e de Louis Couty revelavam


algumas alterações. Quando o gado chegava à charqueada era mantido por muitas horas em
cercados que se chamavam mangueiras. Estas se afunilavam numa das extremidades que se
comunicava com um curral menor chamado mangueira de matança, capaz de conter trinta
cabeças de gado juntamente cercadas. Tendo entrado todo o gado na mangueira de matança, a
mesma era fechada. Até aqui não há muita diferença do descrito por Dreys. Mas de acordo com
Smith, este recinto estava pavimentado com pedras lisas e escorregadias e chapas inclinadas
para a extremidade oposta à entrada. Por fora da cerca, e rodeando-a, havia um passeio de
tabuões por onde os trabalhadores se locomoviam à vontade a uma altura superior a do animal.
Um dos bois aparecia no brete e era logo laçado por um escravo que lhe esperava atento. Este
laço possuía sua extremidade presa a uma junta de bois que movimentavam um guincho e,
mesmo que o animal resistisse, logo vinha a escorregar e deslizava próximo do cercado, onde o
desnucador, um capataz treinado (assim como nos anos 1820), o esperava com um punhal
comprido e muito afiado. A introdução da lâmina no bulbo deixava a rês imobilizada.

Segundo Smith, toda a operação do abate de uma rês levava um minuto e num só dia era
possível abater de 600 a 700 animais, o que não significa que tal capacidade era empregada,
pois se abatia bem menos em um dia de trabalho. Sessenta anos antes, Dreys disse que a
operação de abate poderia levar até dois minutos, mas não mencionou quantos animais podiam
ser abatidos por dia. Dreys também não fez referência à existência de um declive escorregadio,
citado por Smith. É possível que tal dispositivo tenha facilitado o procedimento, economizando
força e tempo de trabalho. Mas tanto o terceiro modo de abate descrito por Dreys quanto a
maneira descrita por Couty e Smith traziam uma nítida racionalização de tempo e mão de obra
se comparada à forma do abate em campo aberto dos fins do setecentos. Tratava-se de uma
reutilização espacial dos terrenos que alterou toda a dinâmica de charquear. Seria esta uma das

10
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 134.
173
inovações trazidas por José Pinto Martins nos fins do século XVIII? Não é possível afirmar,
mas no seu inventário (1827) estava presente tanto a “mangueira” quanto o “guindaste”. 11

b) Da esfolação ao charqueamento

Após a queda de um bovino era necessário retirá-lo do corredor para que a operação
reiniciasse e outro novilho fosse rapidamente abatido. O processo de transporte do boi para a
cancha, ou seja, o espaço externo e contíguo ao local de abate onde as operações seguintes
eram realizadas, foi descrito diferentemente na época de Dreys (década de 1820) e na de Smith
e Couty (década de 1880). Conforme Dreys, após o novilho ter sido abatido, um guindaste,
rodando sobre seu eixo, elevava o animal asfixiado e preso pelo laço para fora do cercado do
curral e o transportava para a cancha.12 Se nos anos 1820 a introdução do guindaste giratório foi
inovadora, nos relatos da década de 1880, ele já não estava mais presente. Smith escreveu que
após o novilho ser abatido, uma porta se abria quase que instantaneamente e o animal, que
ainda urrava e apresentava contrações, caía sobre um carro ou vagão, onde era puxado por
escravos, estando um deles a cavalo.13 Alguns charqueadores, como José Inácio da Cunha e
Tomás José de Campos, apresentaram trilhos instalados no pátio da charqueada, onde o vagão
deslizava carregando os animais abatidos até à cancha. 14

Chegando à cancha diversos escravos eram encarregados de executar as operações


seguintes. A cancha ficava praticamente contígua à mangueira de matança e constituía-se num
espaço circular com um piso de laje lisa e coberto por um telheiro.15 Conforme Gutierrez podia
haver duas canchas, uma de cada lado dos trilhos. Cada cancha comportaria de 20 a 40 animais.
Quando chegava na cancha, o boi era rapidamente derrubado do vagão por dois cativos ou
puxado por uma corda fixada a uma das patas dianteiras, sendo então arrastado por um escravo
a cavalo. Logo que era largado no piso da cancha, os escravos executavam as operações
restantes. De acordo com Gutierrez, algumas vezes as reses apresentavam reflexos muito
marcados, em outras tentavam levantar-se e executavam movimentos desordenados, emitindo
gritos afônicos durante a hemorragia. Ao abrir o pescoço da rês buscava-se enterrar uma faca no
seu coração (que ainda batia) dando início ao processo da sangria. Este era um procedimento
indispensável que retirava do animal cerca de 12 a 13 kg de sangue e caso não fosse executado

11
Inventário de José Pinto Martins, n. 354, m. 15, 1832, 1º cart. órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS).
12
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134.
13
SMITH, Herbert. Op. cit., p. 135-142.
14
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 187-188. Inventário de Virgínia Louzada de Campos, n. 335, m. 23, 1851,
Pelotas, 1º cart. órfãos e provedoria (APERS); Inventário de José Inácio da Cunha, n. 600, m. 38, 1865, 1º cart. de
órfãos e ausentes, Pelotas (APERS).
15
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134.
174
a carne passava a cheirar mal, tomando um aspecto visual nada agradável. Durante esta
operação os cativos ficavam cobertos de sangue e o restante do esfolamento durava poucos
minutos.16 Conforme Dreys, a disposição da cancha e da escoação dos resíduos era tão bem
feita que após as operações quase não se detectava vestígios da matança.17

Esfolado e sem vida, iniciava-se o esquartejamento ou a despostação do animal.


Conforme Couty, a rês fornecia 11 pedaços: o lombo, as duas mantas, o “colchão”, os músculos
anteriores do membro posterior, o “tatu” ou “pato”, os músculos posteriores do mesmo
membro, e as duas paletas (“paleta de dentro” e “paleta de fora”). Para alimentar o pessoal
empregado nas charqueadas e os escravos eram reservadas as costelas. A cabeça, o tronco e as
vísceras eram separadas e colocadas ao redor das canchas, onde outros cativos as recolhiam. O
espaço era rapidamente esvaziado a espera dos próximos animais a serem esquartejados. Toda a
operação da despostação, segundo Couty, durava de cinco a seis minutos.18

Em um ou mais galpões, um grupo de escravos com suas facas devidamente afiadas


esperava as partes do animal para dar início às etapas seguintes. Os pedaços que eram
transportados até ali ficavam suspensos em suportes especiais chamados tendidas, onde era feita
a desossa. Os ossos eram separados e as carnes enviadas para outros escravos. Dava-se início à
charquia, a operação mais delicada de todas. O objetivo era transformar os grandes pedaços de
carne com formatos irregulares em mantas de 1,5 cm de espessura com superfícies de 1,50
metros de largura. Esta operação era realizada por dois experientes escravos, colocados um de
cada lado diante da carne estendida sobre uma barra de madeira. A habilidade dos escravos
carneadores era tão grande que, nos anos 1820, surpreendeu o viajante Friedrich von Weech:

É obra de poucos minutos agarrar o animal, matá-lo, esticá-lo e fracioná-lo e


estamos convencidos de que 60 açougueiros europeus não estão em condições de
competir com 20 peões do Rio Grande do Sul. Tais homens, dedicando-se
somente a este trabalho desde a mais tenra juventude, atingem nele uma prática
tão extraordinária, que podem chegar a enviar ao salgadeiro, num único dia, de 70
a 80 bois.19

Durante a charquia era comum os escravos deixarem o galpão para afiarem suas facas
retornando ao serviço em seguida.20

16
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 187-189.
17
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134.
18
COUTY, Louis. Op. cit., p. 97-112.
19
WEECH, Friedrich Von. A agricultura e o comércio do Brasil no sistema colonial. São Paulo: Martins Fontes,
1992 apud OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e
movimento. Porto Alegre: PPGH/PUC-RS, Tese de Doutorado, 2005, p. 132.
20
CUNHA, Alberto C. da. Um episódio de charqueada. In: MOREIRA, Maria Eunice (Org.). Narradores do
Partenon Literário. Porto Alegre: IEL/CORAG, 2002, p. 41-49.
175
c) Do salgamento ao secamento nos varais

De acordo com Dreys, após a retalhação, levavam-se as mantas de carne para outro
galpão chamado “salgadeiro”, que era um “vasto alpendre guarnecido de todos os lados, até
mesmo no chão, de folhas de butiá”. 21 Assim que as mantas eram entregues, alguns escravos
colocavam as mantas sobre mesas côncavas cheias de sal, onde cativos especializados, os
salgadores, as impregnavam com o produto.22 Depois de salgada, a carne era empilhada no
próprio galpão. Conforme Smith, o empilhamento era realizado em camadas, sendo uma de sal,
outra de carne e assim por diante. As pilhas formavam uma espécie de cúpula de base
quadrangular que diminuía no sentido da altura e chegava a muitos metros. Para comprimir a
base da pilha com fim de torná-la o mais horizontal possível e favorecer o restante do
empilhamento recorria-se a mais ou menos cinco cativos que de pé, em cima das pilhas, e
usando as mãos ou outras ferramentas conseguiam o resultado desejado. Uma pilha formada
com as carnes de 200 bois media aproximadamente 5 metros de comprimento e de largura, com
0,8 metros de altura nas pontas e 1,3 metros no centro. O empilhamento possuía um duplo
efeito de impregnar a carne com o sal e de escorrer os líquidos contidos nela por meio da
própria pressão. Este efeito era aumentado reempilhando-se as mesmas carnes no dia seguinte,
de modo que as camadas de cima, tiradas primeiro, formavam a base da nova pilha. Ao longo
desta operação, o sal derretido e supérfluo que escorria das pilhas caía depositado em
reservatórios inferiores conhecidos como tanques. Nestes recipientes eram colocadas,
posteriormente, as costelas, línguas e outras partes que os proprietários achassem conveniente
conservar na salmoura. Em toda esta operação utilizava-se uma média de 10 kg de sal para cada
animal, podendo a quantidade variar conforme o seu tamanho.23 Uma charqueada que abatesse
20 mil reses numa safra, consumiria 200 toneladas de sal na mesma.

Passados um dia ou dois, se o tempo estivesse suficientemente favorável, as carnes


salgadas eram desempilhadas e transportadas para fora do galpão onde se iniciava a etapa do
secamento. As mantas de carne eram estendidas nos varais – barras de madeira bastante longas
que eram colocadas transversalmente a um metro e meio do solo, aproximadamente. No fim da
tarde, as carnes eram amontoadas em vários pontos dos varais e cobertas com lonas.
Encontrando um tempo com sol este processo levava de 5 a 6 dias. Caso contrário, eram
necessários 15 ou mais dias. Segundo Couty, após o secamento, a carne era colocada em uma

21
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134.
22
COUTY, Louis. Op. cit., p. 105.
23
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 189.
176
pilha definitiva e separada em duas qualidades diferentes. 24 Conforme Dreys, cada boi podia
dar, em média, de 4 a 5 arrobas de charque (60 a 75 Kg). 25

d) O tratamento dos sub-produtos: a graxa, o couro, o sebo e outros

O charque era somente um dos produtos fabricados nas charqueadas. Muito antes dele
ter se tornado mercadoria importante, o couro já ocupava um papel de destaque no circuito
mercantil que envolvia o Rio Grande, as capitanias do Brasil e a Europa. O tratamento do couro
nas charqueadas pelotenses também sofreu alterações ao longo do período analisado. Na
primeira metade do oitocentos estacava-se o couro no chão para o seu secamento, dando-lhe um
declívio para deixar correr as águas. Mas na época de Smith e Couty os couros eram banhados
em tanques de salmoura, como se faziam nas charqueadas platinas. Ao sair da fossa, os couros
eram amplamente polvilhados de sal e dobrados em dois, de maneira que os pelos ficassem para
o lado de fora. Depois eram dispostos, um ao lado dos outros, em camadas de couros alternadas
por camadas espessas de sal. Desta forma eram colocados em barracas especiais, onde
formavam pilhas extensas, retangulares ou quadrangulares, e de pouca elevação, contendo de
10 a 15 camadas expostas umas sobre as outras. Uma vez salgado e empilhado, o couro
conservava-se por longo tempo e estava pronto para ser exportado para a Europa, onde se
estimava muito o produto preparado desta forma, conhecido como couro salgado.26

Mudanças na forma do preparo dos sebos e das graxas também aconteceram. Estes dois
produtos constituíam-se nas partes gordurosas do boi, sendo a graxa uma gordura mais fina e o
sebo a mais grosseira. Sua utilidade era industrial, pois eram empregados na fabricação de
sabão, velas e ceras, embora a graxa, muitas vezes, também fosse utilizada para fins
comestíveis. Na época de Dreys, os ossos, a cabeça e as extremidades do animal eram
colocados numa caldeira fervente, servindo, com os miolos e o tutano, à preparação da graxa,
que era, depois, encerrada na bexiga e nos intestinos grossos, para ser comercializada. Chamo
atenção para este momento do preparo do produto, pois conforme Debret, era a única etapa em
que ele viu mulheres escravas trabalhando no interior das charqueadas. Elas eram as
responsáveis por ensacar estes sub-produtos, atividade que não exigia força.27 Ainda de acordo

24
COUTY, Louis. Op. cit.
25
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 142.
26
COUTY, Louis. Op. cit.
27
DEBRET, Jean-Batiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: USP, T. 1, 1972, p. 243. De fato,
examinando todos os plantéis de escravos dos charqueadores, foi somente na graxeira que encontrei mulheres e
somente num inventário, que será tratado no capítulo 9.
177
com Dreys, as partes mais sebáceas eram socadas na mesma caldeira para comporem uns pães
de sebo grosseiro, que também eram vendidos.

A grande inovação com relação à extração destes produtos foi a instalação das graxeiras
a vapor, verificáveis nos inventários post-mortem a partir das décadas de 1840 e 1850.
Conforme o charqueador Domingos José de Almeida, numa carta a outro empresário, ele teria
incentivado a introdução destas instalações em Pelotas.28 As graxeiras a vapor proporcionavam
um melhor aproveitamento de todas as partes do animal, oferecendo sub-produtos de melhor
qualidade e produzidos em menor tempo. De acordo com Couty, para o preparo da graxa eram
lançados cabeças, encéfalos, estômagos, corações e certas vísceras de 150 a 200 animais. O
cozimento, feito a vapor de pressão, durava de 36 a 50 horas. Ao lado da caldeira, os
proprietários colocavam pipas e barricas prontas para serem cheias. Algumas delas chegavam a
medir 4 ou 5 metros de altura. Na elaboração do sebo, entravam os intestinos e as membranas
envolventes do peritônio. O seu período de cozimento era menor que o da graxa. Este era feito
em cubas menores, de madeira grossa, reforçadas com aros de ferro, as quais tinham uma
abertura lateral na parte de baixo, por onde o sebo escorria. 29

A charqueada ainda aproveitava outros subprodutos do animal. As línguas eram


vendidas a estabelecimentos especiais que as preparavam e colocavam no mercado. Os chifres
também eram exportados para diversos usos artesanais e o sangue, em algumas charqueadas,
era utilizado para se fazer gelatina. Das canelas se extraía o óleo de mocotó, utilizado com
efeitos medicinais. Com a introdução dos vapores na graxeira, os ossos receberam uma
importância que não possuíam. Eles passaram a ser incinerados nas fornalhas que produziam
este vapor e suas cinzas eram exportadas para a Europa, onde serviam como fertilizante.
Portanto, em meados dos oitocentos, o preparo das gorduras e do sebo passou a exigir aparelhos
especiais e dispendiosos, em que se empregava o vapor de alta pressão. Todo este investimento
era justificável, pois segundo Couty, estes sub-produtos representavam para o charqueador a
metade do preço do animal, e ofereciam grandes lucros à charqueada. 30

Todo o processo descrito até aqui provocava certa repugnância entre os viajantes
estrangeiros. Em 1822, Saint-Hilaire deixou registrado: “Apesar de ter cessado, há meses, a
matança nas charqueadas, ainda nos arredores há um forte cheiro de açougue, donde se pode
fazer ideia do que não será esse odor no tempo da matança”. Na época da safra, concluía ele,
“não se pode aproximar das charqueadas sem ser logo coberto pelas moscas. Ao imaginar essa
28
Carta de Domingos para Manoel L. Nascimento, 15.11.1862. CV – 792, in: Anais do AHRS, v. 3, 1978.
29
COUTY, Louis. Op. cit., p. 124-127.
30
COUTY, Louis. Op. cit., p. 121-127; GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 190.
178
multidão de animais decapitados, o sangue a correr em borbotões, a prodigiosa quantidade de
carne exposta nos secadores, vejo que tais lugares devem inspirar contrariedade e pavor”.
Quando passou nas charqueadas do rio Jacuí, próximas de Porto Alegre, Saint Hilaire escreveu:
“Antes de chegarmos, sua situação foi-nos anunciada por nuvens de urubus, que escureciam o
céu”.31 Na mesma época, o visconde de São Leopoldo deixou um registro semelhante: “Seria
útil que se prescrevessem regulamentos coercitivos para a limpeza e asseio das charqueadas,
pois que a demora do sangue, urina e resíduos dos animais, além de ser uma origem de
infecção, torna esses lugares nojentos, e só serve de multiplicar uma praga de moscas e de
daninhos ratos, tão grandes que chegam a intimidar os gatos”.32 Herbert Smith, em 1882,
deixou uma impressão semelhante. Mal chegava ao canal de São Gonçalo e “já os nossos
narizes nos tinham contado outra história, e nuvens de urubus voavam suspeitamente junto a tal
coisa. Era a carne seca ou charque no processo de preparação”.33 Na época, estimou-se que nos
dias de abate cada charqueada largava cerca de 6,5 toneladas de sangue nos rios.

5.2 O PERFIL DOS TRABALHADORES CATIVOS E SUA DISTRIBUIÇÃO NAS


UNIDADES PRODUTIVAS

Parafraseando o comentário que o jesuíta André João Antonil fez com relação aos
engenhos de açúcar nos séculos XVII e XVIII, pode-se dizer que os escravos eram as mãos e os
pés do charqueador. Como foi visto até aqui, sem a existência da escravidão africana e o tráfico
atlântico a montagem do complexo charqueador ficaria fortemente comprometida. Mas qual as
características da escravidão nas charqueadas pelotenses? De início, é necessário investigar
melhor como os mesmos estavam divididos nas unidades produtivas destes proprietários. Para
realizar esta análise e chegar o mais perto possível da distribuição de funções dos mesmos
cativos, selecionei, entre os 45 inventários post-mortem de charqueadores (1831-1885),
somente aqueles em que mais de 80% das ocupações dos escravos foram mencionadas no
inventário, resultando em 17 documentos.34 Analisando tais inventários, proponho uma divisão
em quatro grupos de atividade distintos no qual os escravos podiam estar divididos: a) os
ligados diretamente à produção do charque, trabalhando no interior dos estabelecimentos; b) os

31
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821. São Paulo: USP, 1974.
32
PINHEIRO, José F. Fernandes. Anais da Província de São Pedro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
33
SMITH, Herbert. Op. cit., p. 135-142.
34
No caso dos inventários com plantéis avaliados mais de uma vez (quando os bens do casal eram avaliados na
morte de um cônjuge e, anos depois, o do viúvo) foram mantidos somente aqueles que possuíam informações mais
completas.
179
que eram empregados em atividades acessórias às charqueadas e externas aos estabelecimentos;
c) os artesãos especializados em algum ofício; d) os de serviço doméstico. Esta divisão não era
rígida. É muito provável que em alguns momentos no auge da matança, e conforme as
necessidades do proprietário, os campeiros, marinheiros e artesãos diversos fossem realocados
para as tarefas no interior da charqueada. 35

a) Entre os trabalhadores da charqueada, verificavam-se os carneadores, descarneadores,


charqueadores, tripeiros, salgadores, sebeiros, chimangos, graxeiros e serventes, além dos
aprendizes. Estes escravos eram, sem dúvida, as engrenagens da charqueada. Na maior parte
dos inventários, eles ficavam entre 40% e 65% de todo o plantel do proprietário, atingindo uma
média geral próxima dos 56% (com o mínimo em 36% e o máximo em 90% do plantel de um
charqueador). No interior deste grupo de escravos, os mais numerosos eram os carneadores. Em
alguns plantéis eles compunham a metade dos escravos deste grupo e em outros chegavam a 2/3
do mesmo. Os segundos mais numerosos eram os escravos salgadores e os serventes, seguidos
pelos chimangos e graxeiros. Os serventes aparecem em alguns plantéis como “serventes de
charqueada”. Os menos comuns eram os tripeiros, os descarnadores e os sebeiros.

Observados com atenção, estas sub-ocupações parecem revelar a própria transformação


e especialização no interior das charqueadas. Carneadores e graxeiros aparecem nos inventários
desde a década de 1810. Os serventes, os salgadores e os sebeiros só começam a aparecer a
partir da década de 1820. Os primeiros chimangos discriminados como tal só surgem nos
plantéis da década de 1840. Os escravos mais especializados como os tripeiros surgem somente
nos inventários da década de 1850 e os descarnadores na década de 1860.36 Tal fenômeno não
significa que as atividades executadas pelos tripeiros e descarnadores, por exemplo, não eram
realizadas anteriormente, mas sim, que a intensificação das mudanças de ordem técnica passou
a exigir cada vez mais o treinamento e a especialização de alguns escravos do plantel, ao ponto
de eles serem reconhecidos pelos avaliadores como experts naquele ofício.

Com relação ao treinamento é importante dar destaque aos “aprendizes”. Eles estão
ausentes nos inventários das décadas de 1810 a 1830, começando a aparecer somente na década

35
Também é provável que esta divisão fosse menos rígida entre os menores plantéis, podendo os escravos exercer
mais de uma função ao mesmo tempo. Mas o fato de eles serem avaliados nos inventários com uma especialização
e declararem as mesmas quando informantes ou réus em processos-crime significa que havia um grau de
especialização que precisa ser levado em conta. Uma análise neste sentido foi realizada por Berenice Corsetti e
Ester Gutierrez. Contudo, acrescentei outras considerações e diferentes metodologias de tratamento e exposição
dos dados pesquisados.
36
Uma consideração semelhante foi feita por PESSI, Bruno S. A organização do trabalho escravo nas charqueadas
pelotenses na segunda metade do século XIX. Anais da VIII Mostra de pesquisa do APERS. Porto Alegre:
CORAG, 2010, p. 97-114.
180
de 1840. Os aprendizes de carneador eram os mais numerosos, visto esta ser uma das atividades
mais difíceis de ser executada na charqueada. Os aprendizes de salgador também estavam
presentes nos plantéis e junto deles há os que somente foram definidos como “aprendiz”. Eles
também poderiam ser aprendizes de graxeiro, pois encontrei dois mestres graxeiros, entre os
escravos. Tal fenômeno revela uma preocupação do proprietário em treinar seu plantel para
otimizar a produção, algo que apresentava traços de uma maior racionalização do trabalho.

Sobre isto há outro fator interessante. Os descarnadores, tripeiros, aprendizes e mestres


estão presentes somente nos maiores plantéis, geralmente os acima de 70 escravos, mas,
sobretudo, entre os inventariados com mais de 100 cativos. Seria a riqueza e o número de
escravos pré-condição para uma especialização do plantel? Ou seria o contrário? Charqueadores
com uma visão mais “avançada” de organização do trabalho na charqueada teriam maiores
chances de enriquecer podendo assim ampliar seu plantel? Creio que um fator complementasse
o outro, mas me inclino a pensar que, naquela conjuntura, a fortuna sorriu aos mais
empreendedores – questão que será tratada de forma mais aprofundada no capítulo 9. A seguir,
escolho alguns exemplos para demonstrar tal fenômeno.

Nos inventários das décadas de 1810 a 1840, a maioria dos documentos apresentava
uma precária divisão do trabalho. O plantel menos especializado era o de Domingos Rodrigues
(1818), cujos 42 escravos foram descritos com a ocupação “serviço da casa e da charqueada”. 37
Portanto, não havia uma distinção muito clara sobre as atividades dos cativos. Pode-se
argumentar que foi desleixo do escrivão e dos avaliadores ou que a feitura dos documentos da
época não especificava estas ocupações. Entretanto, estas hipóteses não se verificam nos outros
inventários da mesma época. Em contrapartida, o mais especializado daquele período era o
plantel de José Pinto Martins (1827), aquele que foi visto por muitos como o mito fundador das
charqueadas em Pelotas e que teria inovado na organização fabril do município nos fins do
século XVIII.38 A especialização do seu estabelecimento se comparada aos de sua época é mais
um indício de que seu papel como empreendedor local foi importante.

No entanto, como um divisor de águas, o inventário de Maria Augusta da Fontoura


(1845) destoa dos outros de sua época.39 Ela era esposa do charqueador Joaquim José de
Assumpção. No seu plantel de 125 escravos, o número de aprendizes é muito maior que o dos
outros. Havia 4 aprendizes de carneador e 3 de salgador, além de outros 3 denominados
somente “aprendizes”. Fora da charqueada havia 2 aprendizes de campeiros, 1 de carpinteiro e
37
Inventário de Domingos Rodrigues, n. 32, m. 2, 1818, Pelotas, 1º cart. órfãos e provedoria (APERS).
38
Inventário de José Pinto Martins, n. 354, m. 15, 1832, 1º cart. órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS).
39
Inventário de Maria A. da Fontoura, n. 514, m. 22, 1845, 1º cart. órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS)
181
1 de calafate. Talvez este charqueador possuísse uma visão mais empresarial sobre a forma de
organização do trabalho em sua unidade produtiva e possa ter influenciado os outros a seguirem
o seu padrão. Seu filho homônimo herdou o estabelecimento paterno e tornou-se o Barão de
Jarau. Se o pai apresentou uma fortuna mediana em sua época, o filho foi o charqueador mais
rico de Pelotas na segunda metade do oitocentos. Portanto, a herança de Joaquim para o filho
não foi composta somente por bens materiais, mas também por conhecimentos técnicos e uma
prática de organizar a produção e o trabalho escravo de forma mais especializada, ou seja, uma
herança imaterial que deve ter auxiliado o filho a ampliar a fortuna do pai. 40

b) Um outro grupo de escravos importante era formado por aqueles que realizavam
tarefas acessórias à charqueada, sem ser diretamente ligadas à matança e fabricação do charque
e dos sub-produtos. Algumas delas estavam quase integradas ao estabelecimento. Os mais
importantes eram os campeiros, encarregados de tratar das reses nos potreiros da charqueada
antes do abate, e os marinheiros, que trabalhavam no transporte fluvial e marítimo dos produtos
da charqueada. Muitos campeiros também eram empregados nas estâncias dos charqueadores,
geralmente em outros municípios. No serviço do transporte terrestre havia os carreteiros e
carroceiros. E trabalhando nas chácaras e lavouras dedicadas a abastecer a charqueada de
alimentos havia os tafoneiros, roceiros e lavradores.

Mas nem todos os plantéis possuíam escravos deste grupo. Os marinheiros só estavam
presentes entre os que tinham alguma embarcação e os campeiros eram mais comuns entre os
que possuíam estâncias. O mesmo serve para os roceiros, lavradores e tafoneiros com relação às
lavouras e chácaras. Na maioria dos inventários, os escravos deste grupo perfaziam de 10% a
15% dos plantéis, havendo casos com um mínimo de 2% e outros com um máximo de 32%. A
posse de tais cativos também podia indicar uma importante busca de autossuficiência das
unidades produtivas no que diz respeito ao transporte fluvial e marítimo, ao abastecimento de
alimentos para os cativos e de gado para a charqueada.41 Aníbal Antunes Maciel, por exemplo,
era o charqueador com o maior número de escravos campeiros. Eles totalizavam 20 cativos com
este ofício. Analisando seu inventário, percebe-se que o coronel Aníbal era o dono do maior

40
No entanto, esta especialização, que se intensificou a partir de meados dos oitocentos, não foi linear e evolutiva e
nem envolveu todos os escravos e plantéis. Um plantel com aprendizes e descarnadores também era composto de
escravos sem um ofício definido ou escravos com dois ofícios, como alfaiate/salgador ou carpinteiro/carneador.
Algo até certo ponto compreensível para uma empresa que funcionava somente durante seis a sete meses ao ano.
Portanto, é possível que alguns charqueadores tenham especializado o seu plantel servindo de exemplo para outros,
mas tal fenômeno apresentou um processo gradativo e certamente cheio de percalços.
41
Como se verá no capítulo7, a autossuficiência no abastecimento de gado era impossível de ser alcançada.
182
rebanho entre os charqueadores. Ele possuía mais de 34 mil reses de criar pastando nas suas
estâncias. O mesmo serve para a relação entre o número de marinheiros e o de embarcações.42

Neste grupo também localizei aprendizes de campeiro e de marinheiro. Os aprendizes de


campeiro eram muito jovens, tendo 12 ou 13 anos. 43 Com relação aos marujos, destaco os
“aprendizes de marinheiro de brigue”. E aqui é possível fazer duas considerações. A primeira é
de que, assim como outros ofícios, também havia treinamento para ser marinheiro dentro da
própria charqueada. A segunda é a de que havia uma separação entre os marinheiros de um iate
e os que podiam ultrapassar esta barreira, podendo estar a bordo de um brigue, uma embarcação
de maior porte, utilizada em viagens marítimas de longo curso e que exigia um maior
treinamento. A presença de escravos com o apelido de “capitão” sugere que os mesmos deviam
treinar estes aprendizes.

c) Outro grupo importante no plantel dos charqueadores eram os escravos artesãos ou


com ofícios especializados. Entre eles existiam carpinteiros, alfaiates, sapateiros, pedreiros,
tanoeiros, lombilheiros, marceneiros, oleiros, correeiros e ferreiros. Considerei que as mulheres
costureiras também deveriam fazer parte deste grupo. Eles podiam compor entre 3% e 12% do
plantel, com uma média de 6%. Os carpinteiros eram os mais numerosos, seguidos dos
pedreiros, sapateiros e alfaiates. Este grupo era muito importante nas charqueadas, pois seus
serviços eram utilizados para reformar o próprio estabelecimento e seus equipamentos, visto
que as instalações deviam sofrer uma manutenção anual. Além do mais, como já mencionei,
suas atividades também eram importantes na construção civil e na fabricação de vestimentas
para os escravos. A possibilidade de alugar os seus trabalhos, também os tornava um grupo
importante. Entre os mesmos também verifica-se um número significativo de aprendizes, mas
estes já estavam presentes nos inventários dos fins do século XVIII e início do XIX e não
causam muita surpresa, pois estes ofícios mecânicos sempre foram praticados por escravos,
envolvendo relações entre mestres e aprendizes. Outro fator importante do grupo é que muitos
escravos exerciam este ofício combinado com outro que dizia respeito a alguma tarefa realizada
no interior da charqueada, surgindo cativos discriminados como pedreiro/carneador,
servente/sapateiro, graxeiro/carpinteiro, alfaiate/salgador/ tanoeiro/tripeiro, entre outros.

d) O último grupo reúne os escravos de serviço doméstico ou ligados a atender as


necessidades mais pessoais do charqueador e de sua família. Entre os mesmos encontram-se as

42
Inventário de Felisbina da S. Antunes, n. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime; Inventário de Anibal A.
Maciel, n. 815, m. 48, 1875, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
43
Como será evidenciado a seguir, existiam crianças escravas classificadas como “campeiras” com idades menores
do que os 12 anos.
183
mucamas, lavadeiras, cozinheiras, engomadeiras, copeiros e serviços domésticos. Também
coloquei neste grupo os boleeiros, visto conduzirem seus senhores diariamente pela cidade.
Como pode-se perceber, é neste grupo que as mulheres se faziam mais representadas. As tarefas
realizadas por este grupo também eram essenciais para o senhor, mas a sua quantidade também
devia revelar um maior status social. É possível que algumas das cozinheiras aqui elencadas
trabalhassem nas charqueadas preparando a comida para os demais cativos e que alguns
serventes colocados no primeiro grupo aqui analisado estivessem presentes neste, conforme se
percebe nos inventários. O trânsito de escravos entre as instalações da charqueada e a casa do
senhor devia ser corrente, mesmo quando este morava na cidade. Apesar dos seus plantéis
apresentarem uma razão de sexo muito alta (os homens perfaziam 82% dos escravos) em mais
de 85% deles havia crianças, o que indica a existência de laços familiares, e, portanto, do
contato entre as distintas senzalas (charqueada, estâncias e chácaras) e a casa do senhor, mas
também, possivelmente, das escravas do charqueador com libertos e homens livres pobres.

A observação individualizada de alguns plantéis auxilia a perceber a divisão do trabalho


no interior das unidades produtivas. A análise da escravaria do casal José Antônio Moreira e
Leonídia Gonçalves (o Barão e a Baronesa do Butuí) serve para complexificar esta análise, pois
seus inventários trazem informações não existentes em outros plantéis. 44 A Baronesa faleceu
em 1867 e o Barão em 1877. Em 1867, foram arrolados 132 escravos e, em 1877, 158. No
interior do segundo processo foi anexada a cópia dos registros de matrícula dos escravos do
inventariado, realizadas em 1872/1873, com detalhes sobre a idade, naturalidade, profissão,
estado civil e filiação de 142 cativos. 45 O diferencial da documentação envolvendo o Barão de
Butuí é que o escrivão anotou o local em que moravam e trabalhavam os respectivos escravos,
algo não verificável com tamanhos detalhes para os outros charqueadores. Entretanto, todos
foram matriculados como “serviço de charqueada”. Como no inventário de 1867 os escravos
tiveram suas especialidades discriminadas, cruzei os dois documentos para compreender como
o plantel do casal estava dividido entre as diferentes unidades produtivas do charqueador.

A partir da cópia das matrículas de 1872, o plantel de escravos do Barão de Butuí estava
dividido da seguinte forma: residentes na cidade (27), na charqueada (79), na Serra dos Tapes
(3), na Estância de Poncho Verde, localizada no município de Bagé (18), a bordo da Barca
Pombinha (5), do Patacho Moreira (3), do Iate Santa Rita (4) e do Iate Novo São Jerônimo (3).

44
Inventário do Barão e da Baronesa de Butuí. Pelotas, n. 647, m. 41, 1867/1877, 1º cart. órfãos e provedoria,
Pelotas (APERS).
45
Sobre a legislação que ordenava a feitura dos registros das matrículas dos escravos e as possibilidades de
pesquisa com esta documentação ver SLENES, Robert. O que Rui Barbosa não queimou: Novas Fontes para o
Estudo da Escravidão no Século XIX. Estudos Econômicos, v. 13, n. 1, jan./abr. 1983, pp. 117-149.
184
A partir desta divisão já é possível perceber que 55% do plantel residia na charqueada, 19% na
cidade, onde o Barão possuía dois sobrados e diversas casas e terrenos. Na estância e na chácara
nos Tapes estavam 15% deles e a bordo e alguma embarcação encontravam-se 10%.

Na charqueada havia 68 homens adultos e 2 mulheres adultas, 5 meninos e 4 meninas


menores de 12 anos. As crianças eram filhas das escravas Carlota (2), que não pertencia mais ao
plantel, Regina (4) que trabalhava na charqueada no serviço doméstico, e Agostinha (3), que era
engomadeira e morava na cidade. 46 Das crianças, todas não possuíam ofício, com exceção do
menino Norberto, que com 12 anos já era servente de charqueada e devia estar aprendendo
algum ofício mais especializado. Dos homens adultos, um prestava serviços domésticos e outro
era o cozinheiro da charqueada. O restante foi definido como “servente de charqueada”. Mas
cruzando com os dados do inventário da Baronesa, de 1867, é possível discriminar a sua função
no estabelecimento. Destes 66 escravos, 19 eram carneadores, 11 eram chimangos, 10 eram
salgadores e 2 eram descarnadores. Havia também 1 graxeiro/carpinteiro e 1 chimango/alfaiate.
Para os outros 22 não foi possível definir a especialização. Portanto, como afirmei
anteriormente, a razão de sexo no estabelecimento de charqueada era maior que a do plantel
inteiro do charqueador. Enquanto no primeiro somava-se 97% de homens (contando apenas os
adultos) ou 92% (somando as crianças), no plantel total tinha-se 92% e 87%, respetivamente.

Na estância do Ponche Verde havia 11 homens adultos, 3 mulheres adultas, 3 meninas e


1 menino. Dos 11 homens, 10 eram campeiros e 1 cozinheiro. Entre as mulheres havia 1
costureira, 1 roceira e 1 doméstica. Observe-se que na estância, a diferença dos sexos era menor
(78% entre os adultos), embora ainda fosse alta. Os 3 escravos da Serra dos Tapes eram
roceiros e os 15 escravos nas embarcações, com exceção do cozinheiro José, eram todos
marinheiros. Dos 27 escravos residentes na cidade, havia 18 homens adultos, 5 mulheres
adultas, 3 meninos e 1 menina. Entre os mesmos, estavam 2 escravos alfaiates, 2 carpinteiros, 4
pedreiros, 1 sapateiro, 2 copeiros, 2 cozinheiros, 1 boleeiro, 3 costureiras, 2 engomadeiras, 1
lavadeiro, 2 serventes e 1 campeiro que estava na cidade para ser vendido. É muito provável
que os escravos com ofícios artesanais que viviam na cidade fossem alugados auferindo
significativos lucros ao senhor.

46
Não foi possível saber quem eram os pais das crianças. Sobre os limites do uso de inventários post-mortem para
estudo da família escrava em Pelotas ver PESSI, Bruno S. A família escrava em Pelotas na segunda metade do
século XIX a partir de inventários post-mortem. Anais da IX Mostra de pesquisa do APERS. Porto Alegre:
CORAG, 2010, p. 245-264. Para o estudo da família escrava em Pelotas na primeira metade do século XIX ver
PINTO, Natália. Op. cit. Sobre o uso de fontes paroquiais e o estudo da escravidão em Pelotas ver COUTO,
Mateus de O. A pia e a cruz: a demografia dos trabalhadores escravizados em Herval e Pelotas (1840-1859).
Passo Fundo: UPF, 2011.
185
Portanto, verificam-se crianças na charqueada, na cidade e na estância em Bagé. Creio
tratar-se de três núcleos escravistas distintos, muito embora, como já mencionei, havia trânsito
entre os mesmos. É provável que os pais destas 17 crianças estivessem trabalhando nos mesmos
núcleos, muito embora os filhos da escrava Agostinha, residente na cidade, estivessem na
charqueada. Estes 17 escravos num plantel de 142 significavam que 12% do total do plantel era
renovado com as chamadas “crias de casa”. Analisando somente a charqueada, este valor
mantem-se em 11%. Tratava-se de um índice superior à média total de crianças de 6,9%
apresentada para todas as charqueadas entre os anos 1866 e 1885, que será analisado mais
adiante. Um dos fatores que potencializava a reprodução natural de cativos era a posse de
estâncias, chácaras e a presença de escravas domésticas, uma vez que, como foi demonstrado,
havia somente duas mulheres na charqueada. Portanto, privilegiados eram os escravos que
conseguissem circular para além das charqueadas, para, quem sabe, ir ao encontro de uma das
demais cativas do senhor. O número de mulheres adultas fora da charqueada era 4 vezes
superior ao número de mulheres na charqueada. Contudo, o círculo de relações afetivas dos
escravos não se restringia às senzalas do charqueador, podendo, como demonstrarei no capítulo
posterior, estender-se para fora do cativeiro.

Portanto, a análise do plantel do Barão de Butuí é um bom exemplo de como um


charqueador rico dividia a sua escravaria. É necessário destacar que 85% dos cativos arrolados
nas matrículas eram comprados (como a fonte indica). Com relação aos seus valores (mas sem
levar em conta as idades) os mais caros eram os carneadores, com uma média de 1:420$,
seguidos pelos copeiros (1:400$), cozinheiros (1:400$), campeiros (1:340$), salgadores
(1:100$) e carpinteiros (1:000$). O alto valor dos cozinheiros e copeiros demonstra os gastos de
Butuí com os escravos domésticos, além da sua preocupação em investir na distinção social, o
que denota o comportamento de uma família de elite. É necessário também referendar que
somente 55,6% do plantel concentrava-se na charqueada. Portanto, para atuar com sucesso em
outras atividades econômicas (pecuária e alto comércio) os charqueadores necessitavam de uma
extensa mão de obra. Isto ajuda a compreender porque os plantéis dos 12 charqueadores mais
ricos de Pelotas na segunda metade do oitocentos (aqueles que legaram mais de 50 mil libras e
que serão analisados mais profundamente nos capítulos seguintes) possuíam uma média de
escravos bem acima dos menos ricos (115 cativos contra 56 da média geral). Neste sentido, o
tamanho da escravaria era diretamente proporcional à riqueza acumulada pelo charqueador e a
amplitude de seus investimentos.

186
Analisando o trabalho cativo nas charqueadas, Fernando H. Cardoso formulou a tese da
“economia de desperdício” nestes estabelecimentos. Tal afirmação sustentava-se no fato de que
a safra nas charqueadas durava em torno de 6 a 7 meses (novembro a maio). Inspirado em Louis
Couty, ele afirmou que numa empresa capitalista, com o término da matança, os empregados
seriam dispensados e recontratados na próxima safra, enquanto que nas charqueadas os
senhores eram obrigados a manter o sustento de seus plantéis improdutivos por mais um
semestre.47 Berenice Corsetti e Ester Gutierrez já refutaram esta afirmação, pois havia uma
série de atividades para além das charqueadas, em que os escravos podiam ser empregados.48

Além da charqueada, muitos empresários também possuíam olarias, algo que não era
privilégio dos charqueadores mais ricos. Somavam-se às mesmas as carpintarias, ferrarias,
fábrica de curtumes, de colas ou estaleiros que podiam compor o patrimônio de outros
charqueadores. Nas chácaras e datas de terras de matos (muito mais comuns do que os
estabelecimentos citados acima) o trabalho cativo também era importante. Dali provinha parte
da alimentação dos cativos, mas também a madeira para o forno das graxeiras à vapor e das
olarias. Estudando um importante charqueador da época, Carla Menegat também constatou que
os extensos pomares presentes nas propriedades permitiam que parte da escravaria tivesse seus
serviços direcionados para a produção de alimentos, as olarias, as fábricas de sebo e velas e as
atafonas. Analisando as cartas escritas pelo charqueador, a autora verificou que o empresário
deixava claro aos capatazes a importância da produção de alimentos, recomendando que fosse
muito bem cuidada e que se vigiasse a escravaria. A plantação de mandioca tinha nas suas
terras a dupla função de manter os escravos ocupados e de prover sua alimentação. Ela era um
apêndice importante da charqueada, além de permitir as negociações do excedente. 49

Ainda é necessário realizar uma análise mais aprofundada do perfil dos plantéis dos
charqueadores pelotenses. A análise de 48 inventários post-mortem de charqueadores (entre
1831 e 1885) que, quando faleceram, ainda possuíam seus estabelecimentos, ajuda a definir

47
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
48
CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit.
49
MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de
Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Porto Alegre: PPG-História
UFRGS, Dissertação de Mestrado, 2009, p. 147. Alberto Coelho da Cunha, filho do charqueador José Ignácio da
Cunha, quinta maior fortuna entre estes, escreveu que: “Fazendo concorrência aos modestos agricultores, os
estancieiros e abastados charqueadores se consideravam em dever de também possuírem datas de matos na Serra”.
Cunha refere-se à Serra dos Tapes, que era coberta por uma grande e densa mata, de onde se extraíam as melhores
madeiras. Sobre o aproveitamento daquelas terras, o autor comentou: “A mais extensa cultura de então faziam-na
os charqueadores, quase todos proprietários de datas, que, no intervalo das safras, para continuarem a tirar proveito
do capital, punham a negrada a derrubar matos e a plantar milho e feijão”. Daí entende-se a presença de roceiros,
serradores, marceneiros, lustradores, mas, sobretudo, carpinteiros nos plantéis dos charqueadores (GUTIERREZ,
Ester. Op. cit., p. 123).
187
alguns fatores a este respeito. Os documentos reúnem 2.732 escravos, mas nem todos trazem as
informações de ocupação, idade, naturalidade e preço. No que diz respeito ao sexo dos escravos
tem-se 440 mulheres e 2.290 homens (2 não tiveram a informação identificada), o que resulta
numa alta razão de sexo de 520 homens para cada 100 mulheres. No entanto, este era o índice
referente ao plantel total dos senhores (somando escravos da charqueada com os domésticos,
marinheiros, campeiros, entre outros) e não aos que trabalhavam exclusivamente na
charqueada. Como foi visto anteriormente, o número de homens com relação às mulheres no
trabalho da charqueada era muito maior.

Para analisar o preço dos escravos das charqueadas selecionei somente os escravos
adultos (incluí nesta faixa os cativos entre 15 e 40 anos) e excluí todos aqueles avaliados como
“doentes”, “quebrados” ou com alguma anotação dos avaliadores que fizesse diminuir o seu
valor.50 Também converti os valores anuais para libras esterlinas calculando as médias
quinquenais. 51 A partir do Gráfico 5.1 percebe-se que até 1860 o preço das mulheres
acompanhou o dos homens, para estacionar-se na década de 1860 e sofrer uma queda brusca
após a Lei do Ventre-Livre (1871). Enquanto isto, os preços dos escravos homens mantiveram-
se em ascensão até atingir os 1:600$ em 1861-65, para depois iniciar uma queda. Na década de
1880, quando a escravidão já estava condenada, os valores dos escravos de ambos os sexos
encontravam-se num notável declínio (além disso, neste último período, não havia mulheres
sadias nos inventários com informações do preço e da idade). Os índices também demonstram
que no período em que o tráfico esteve vigente, mesmo que considerado ilegal pela Lei de
1831, os preços dos escravos mantiveram-se relativamente baixos e estáveis.

Para refinar melhor a análise destes dados separei os inventários em três períodos
distintos. O primeiro elenca inventariados antes da Lei Eusébio de Queiroz, o segundo reúne
cativos inventariados durante a fase de grande ascensão dos preços dos escravos adultos nas
charqueadas de Pelotas e o terceiro reúne os inventariados durante a fase da queda dos mesmos
até o fim da escravidão. Analisando a Tabela 5.1 percebe-se que a média de escravos foi
decrescente ao longo de todo o período, enquanto a razão de sexo aumentou, chegando a 850
escravos homens para cada 100 mulheres nos últimos decênios.52 Ester Gutierrez defendeu que

50
Eliminei da análise duas cativas de Inácio Rodrigues Barcellos avaliadas em 1863. Desconheço o motivo, mas os
seus valores em mil réis correspondiam a 1/5 do da grande maioria das mulheres cativas do mesmo período, o que
causaria uma grande distorção na curva “1861-1865” do gráfico.
51
Juntei os anos 1831-35 a 1836-40 porque como o Judiciário esteve paralisado em Pelotas durante a Guerra dos
Farrapos, existem poucos processos para o período.
52
Estabelecendo uma análise de 5 em 5 anos, Bruno Pessi percebeu que entre 1850/54 e 1880/84 a média caiu de
59,5 para 44,3 cativos por charqueador. Contudo, neste meio tempo, elas oscilaram bastante, chegando a 81,2
escravos em 1865/69 e 42,9 escravos em 1870/74 (PESSI, Bruno. Op. cit., 2012, p. 74).
188
não houve redução nos plantéis dos charqueadores ao longo do período, pois a média da década
de 1880 teria sido superior à média de todas as décadas anteriores. 53 No entanto, incorporando
uma quantidade maior de inventários de charqueadores entre 1850 e 1884, Bruno Pessi
demonstrou que, embora os indicadores apresentassem oscilações, houve uma diminuição dos
mesmos.54 De fato, de acordo com os inventários que pesquisei e a ampliação da escala em
longa duração (estabelecendo para isto períodos analíticos de 15 a 20 anos), é possível perceber
que a média dos plantéis dos charqueadores caiu ao longo dos anos. Observando os mesmos
inventários por décadas, percebi que nos anos 1840 a média era de 65 escravos por charqueada.
Na década de 1850, esta média cai bastante, chegando a 51 cativos. Na década de 1860 ela volta
a subir para 59 escravos. Na década de 1870 cai para 55 cativos e entre 1881 e 1885, apresenta
uma média de 42 escravos – a menor de todo o período.

Gráfico 5.1 – Preço dos escravos adultos (de 15 a 40 anos) e sadios nas charqueadas de
Pelotas (1831-1885) (em libras esterlinas)

200
180
160
140
120
100
80
60
40
20
0

Mulheres Homens

Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (1831-1885) (APERS)

Contudo, a queda da média de escravos por plantel precisa ser melhor matizada, pois,
como será visto a seguir, até o meado dos anos 1870 a população cativa em Pelotas manteve-se
em crescimento. No entanto, se os charqueadores estavam sofrendo uma diminuição na média
dos seus plantéis, o maior número de homens escravos em relação às mulheres escravas (em
nítido crescimento) demonstra que enquanto um grupo devia estar comprando novos cativos
homens no tráfico interno um outro grupo não conseguia obter o mesmo sucesso na reposição
dos escravos velhos e doentes. Portanto, não é adequado falar em uma crise geral de braços no

53
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 178.
54
PESSI, Bruno. Op. cit., 2008.
189
setor, mas sim, numa crise que afetou um grupo de charqueadores, mas não afetou outro. 55
Além disso, também é possível verificar que a Lei do Ventre Livre (1871) retirou o interesse
dos charqueadores em repor os seus plantéis com mulheres cativas, colaborando com a maior
diminuição do número de escravas em termos absolutos, se comparadas aos homens.

Tabela 5.1 – Número de escravos e razão de sexo por período (1831-1885)

1831-1850 1851-1865 1866-1885 Total

Inventários 15 19 14 48
Escravos 1.016* 1.022* 694 2.732
Média por inv. 67,7 53,8 49,5 56,9
Homens 830 (81,7%) 839 (82%) 621 (89,4%) 2.290
Mulheres 185 182 73 440
Razão de sexo 448 461 850 520
Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (1831-1885) (APERS)
* Um cativo não teve o sexo identificado

Na Tabela 5.2 separei os cativos em 4 faixas etárias. O foco principal foi definir a
representatividade dos escravos adultos nos plantéis, tendo elencado nesta categoria os escravos
de 15 a 40 anos, como já disse. Decidi separar as crianças em dois grupos, tendo como critério a
primeira idade em que elas foram classificadas com um ofício de trabalho. Como o pequeno
Clemente, de 8 anos, foi arrolado como “campeiro” do charqueador João Simões Lopes escolhi
esta idade como um divisor.56 A Tabela demonstra que a média de escravos adultos entre os
plantéis apresentou uma grande queda, ao mesmo tempo em que a razão de sexo quase dobrou
do primeiro para o segundo período, reforçando o que foi dito acima. O número alto de homens
idosos no primeiro período indica a intensidade do tráfico atlântico na primeira metade do XIX.
Além disso, analisando em conjunto os indicadores de razão de sexo entre os idosos (956 no
primeiro período e 2.476 no último) com a ainda significativa presença de homens adultos entre
1866-1885, pode-se verificar a permanência dos efeitos do tráfico, desta vez juntamente com o
comércio interno, mesmo às vésperas do fim da escravidão. Além disso, o grande aumento da
razão de sexo entre as crianças B no último período indica que as mesmas também estavam
presentes no circuito mercantil interno. Analisando os mesmos dados ainda é possível perceber

55
Mais adiante demonstro que foi exatamente isto o que aconteceu, ou seja, um grupo de charqueadores conseguiu
resistir com algum sucesso ao fim do tráfico atlântico e o aumento do preço dos escravos, às custas de outros
escravistas com menores condições, entre os quais estavam charqueadores arruinados.
56
Pesquisando o perfil dos escravos traficados para o Rio Grande do Sul, Gabriel Berute localizou uma grande
quantidade de crianças e jovens. Para o autor, tal perfil se explica pelo fato de que o ofício de campeiro era
ensinado a escravos bem jovens e que a própria atividade podia ser exercida pelos mesmos, pois não exigia força e
sim destreza com o cavalo (BERUTE, Gabriel Santos. Op. cit., 2006).
190
que no último período os escravos idosos somavam quase a metade do plantel dos senhores,
apresentando, como em outras regiões, um envelhecimento do plantel dos charqueadores.

Tabela 5.2 – Faixa etária e sexo dos escravos dos charqueadores (1831-1885)

1831-1850 1851-1865 1866-1885 Total


Sexo
Adultos M 419 (82,9%) 445 (90,1%) 228 (88,7%) 1.092
De 15 a 40 anos F 86 (17,1%) 49 (9,9%) 29 (11,3%) 164
Média por invent. 33,6 26 18,3 26,1

Razão de Sexo 487 908 786 665

Subtotal 505* (49,7%) 494 (48,4%) 257 (37,1%) 1.256* (45,9%)

Crianças A M 24 21* 12 57
De 1 mês a 7 anos F 21 21 8 50
Crianças B M 28 12 20 60
De 8 a 14 anos F 20 10 8 38
Subtotal 93 (9,1%) 64 (6,2%) 48 (6,9%) 205 (7,4%)

Idosos M 239 231 322 792


Acima de 41 anos F 25 27 13 65
Subtotal 265* (26,2%) 258 (25,3%) 335 (48,2%) 858 (31,4%)

Idade não identificada 153 (15%) 206 (20,1%) 54 (7,8%) 413 (15,1%)

Total 1.016* 1.022* 694 2.732

Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (1831-1885) (APERS)


* Um cativo não teve o sexo identificado

A Tabela 5.3 busca investigar o percentual de africanos nos plantéis dos charqueadores.
Vimos no capítulo 3 que 67,4% dos 5.623 escravos recenseados em Pelotas no ano de 1833
eram africanos, denotando um significativo vínculo da economia local com o tráfico atlântico.
Os dados apresentados confirmam esta tendência nos inventários entre 1831 e 1850, quando
67,8% dos escravos com informações eram africanos. Entre 1851 e 1865, este índice diminui
em 5,6%, vindo a apresentar uma grande queda no último período, como seria de se esperar.
Dos 252 escravos com informações sobre a sua naturalidade entre 1875 e 1885, 101 (40%)
eram africanos. Assim como nas outras tabelas, a razão de sexo também aumenta ao longo de
todo o período atingindo grandes índices entre africanos (4.340) e crioulos (748) nos últimos
anos, parecendo demonstrar que as charqueadas sempre mantiveram-se fortemente vinculadas
primeiro ao tráfico atlântico (até a sua abolição em 1850) e depois ao tráfico interno de escravos
(visto o alto índice de homens adultos nos últimos decênios). Portanto, torna-se ainda mais

191
evidente que o declínio da escravidão foi um dos grandes responsáveis pelas crises sofridas
pelas charqueadas pelotenses.57

Tabela 5.3 – Africanidade e sexo nos plantéis dos charqueadores (1831-1885)

1831-1850 1851-1865 1866-1885 Total

Africanos 314 422 222 958


H 270 M 42 H 386 M 36 H 217 M 5 H 873 M 83
86% 14% 91,5% 8,5% 97,7% 2,3% 91,1% 8,9%

Crioulos 149 256* 263 668


H 99 M 50 H 171 M 84 H 232 M 31 H 502 M 165
66,4% 33,6% 66,8% 33,2% 88,2% 11,8% 75,1% 24,9%

Africanidade 67,8% 62,2% 45,7% 58,9%


Não Identificados 554 (54,5%) 344 (33,6%) 209 (30%) 1.107 (40%)
Totais 1.016 1.022 694 2.732

Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (1831-1885) (APERS)


* Um cativo não teve o sexo identificado

Somando estas informações às da Tabela 5.4, percebe-se que o grande número de


africanos idosos entre 1831 e 1850 confirmam o tráfico para o período de montagem das
charqueadas (1790-1820). A grande permanência de idosos africanos nos anos 1870, também
evidencia que o comércio ilegal de escravos manteve-se forte após a Lei de 1831, como já
mencionei. Além disso, a média de escravos acima dos 50 anos nos maiores plantéis do agro
fluminense (de 1810 a 1830) ficava em torno de 15%58, enquanto em Pelotas, no período (1831-
50), era de 10,5%.59 Tendo em vista a permanência da alta razão de sexo entre os crioulos
adultos no último período, percebe-se novamente como os charqueadores conseguiram manter
plantéis produtivos, mesmo numa época de crise de mão de obra e envelhecimento dos cativos.

A Tabela 5.4 demonstra que a taxa de africanidade entre os adultos despencou do


primeiro e o terceiro período, na mesma medida em que o percentual de homens crioulos
aumentou. Entre os idosos, o aumento do percentual de crioulos e de africanos merece destaque
e a pequena presença de escravas neste grupo revela o forte vínculo das charqueadas com o

57
Como vários autores já haviam indicado, mas que aqui reforço com outros dados o peso deste processo
(MAESTRI, Mário. Op. cit.; CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit.; ASSUMPÇÃO, Jorge
E. Op. cit.; PESSI, Bruno. Op. cit.
58
FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Famílias e mercado: tipologias parentais de acordo ao grau de
afastamento do mercado de cativos (século XIX). Afro-Ásia, n. 24, 2000, p. 56. Para uma análise mais aprofundada
ver FLORENTINO, Manolo; GOÉS, José R. A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico. Rio de
Janeiro (c.1790 – c.1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
59
No já citado Censo de Pelotas de 1833, verifica-se que este mesmo percentual no município era de 7,6%.
192
mercado de escravos. Portanto, os plantéis dos charqueadores foram marcados por um notável
desequilíbrio entre os sexos. Isto também se refletia no número de crianças com 7 anos ou
menos (Tabela 5.2). No primeiro período tem-se 4,4% de crianças neste grupo, índice que foi
de 4,1% e 2,8% nos períodos posteriores. Somando as categorias crianças A e B tem-se,
respetivamente, 9,1%, 6,1% e 6,9%. Tratava-se de um baixo índice que pode ser explicado pelo
pequeno número de mulheres nas senzalas do charqueador. Analisando dados referentes às
plantations de café e açúcar no oitocentos, Florentino e Machado verificaram que unidades com
plena inserção no mercado de escravos apresentaram índices entre 15% e 25% de crianças. 60

Tabela 5.4 – Africanidade e sexo entre escravos adultos e idosos (1831-1885)

1831-1850 1851-1865 1866-1885 Total


Sexo
Africanos adultos M 157 (82,2%) 229 (94,2%) 18 (94,7%) 404
De 15 a 40 anos F 33 (17,2%) 14 (5,8%) 1 (5,3%) 48
Subtotal 191* 243 19 453*
Crioulos adultos M 44 (67,7%) 94 (81,1%) 150 (90,3%) 288
De 15 a 40 anos F 21 (32,3%) 22 (18,9%) 16 (9,7%) 59
Subtotal 65 116 166 347
Africanidade (adultos) 74,6% 67,7% 10,3% 56,6%
Total 256 359 185 800
Africanos idosos M 95 (92,2%) 130 (92,2%) 196 (98%) 421
F 9 (7,8%) 11 (7,8%) 4 (2%) 24
Subtotal 104 141 200 445
Crioulos idosos M 21 (80,7%) 26 (83,8%) 61 (93,8%) 108
F 5 (19,3%) 5 (16,2%) 4 (6,2%) 14
Subtotal 26 31 65 122
Africanidade (idosos) 80% 82,9% 75,4% 78,5%
Total 130 172 265 567

Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (1831-1885) (APERS)

Com relação à razão de sexo, enquanto nos plantéis analisados por Florentino e
Machado os homens ficavam na casa dos 53% (Engenho Novo da Pavuna (1852)) e 59%
(Fazenda Resgate (1872)), em Pelotas a média era de 82% no período. Portanto, se o plantel da
Fazenda Resgate, em Bananal, durante a década de 1860, conseguia reproduzir-se de forma
natural61, o mesmo não pode ser dito para as charqueadas. Neste sentido, estes estabelecimentos

60
FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Op. cit., p. 53.
61
FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Op. cit., p. 57.
193
constituíam-se em unidades fabris com um perfil de mão de obra um tanto distinto das
plantations açucareiras e cafeicultoras. A menor presença de mulheres fez aumentar a sua
dependência para com o mercado de escravos, pois elas apresentavam uma baixa reprodução
natural e certamente um menor índice de famílias conjugais, o que não significa que os cativos
não estivessem imersos em malhas parentais na senzala e mantivessem relações fora dela. Mas
num contexto de fechamento do tráfico atlântico pós-1850, tratava-se de um enorme problema a
ser revolvido por estes empresários. Neste sentido, como os charqueadores fizeram para manter
suas fábricas funcionando num contexto de diminuição do número de cativos nos
estabelecimentos? É o que busco entender nas próximas páginas.

5.3 DAS CHARQUEADAS PARA OS CAFEZAIS? O TRÁFICO INTER-PROVINCIAL E A


CONCENTRAÇÃO DE ESCRAVOS NA ELITE CHARQUEADORA PELOTENSE

A Lei Eusébio de Queiroz (1850) e a Lei do Ventre-livre (1871) representaram uma


ameaça à elite charqueadora que dependia do contínuo fluxo de cativos para manter sua
produção. Enquanto a primeira Lei anunciava que a diminuição da mão de obra nas próximas
décadas seria questão de tempo, a segunda deu a certeza de que este processo se aceleraria cada
vez mais. Como se sabe, nos anos posteriores, a escravidão foi perdendo sua legitimidade,
vindo a definhar completamente nos fins da década de 1880. Até pouco tempo, a maioria dos
estudos sobre o tráfico inter-provincial que marcou as décadas que antecederam a Lei Áurea
(1888) analisaram principalmente as províncias agroexportadoras. Neste mesmo sentido, as
regiões com uma economia mais voltada para o abastecimento do mercado interno eram quase
que exclusivamente vistas como perdedoras de escravos no interior destes circuitos.
Recentemente, novas pesquisas vêm dedicando-se a investigar mais profundamente estas
regiões, onde plantéis bem menores compunham o patrimônio das elites locais. 62 No caso do
Rio Grande do Sul, a visão que destaca somente a perda de escravos ganhou força com o estudo
de Robert Conrad. De acordo com o autor, a província foi de longe a que mais perdeu cativos
na década de 1870.63

62
Ver, por exemplo, FLAUSINO, Camila Carolina. Negócios da Escravidão: tráfico interno de escravos em
Mariana, 1850-1886. PPG em História da UFJF, 2006 (Dissertação de Mestrado); SCHEFFER, Rafael da C.
Tráfico inter-provincial e comerciantes de escravos em Desterro, 1849-1888. Dissertação de mestrado, UFSC,
2006; ARAÚJO, Thiago L. de. Escravidão, fronteira e liberdade: políticas de domínio, trabalho e luta em um
contexto produtivo agropecuário (vila de Cruz Alta, província do Rio Grande do Sul, 1834-1884). Dissertação de
mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 2008 (Dissertação de Mestrado).
63
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil, 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978, p. 351.
194
A obra de Conrad acabou tornando-se referência fundamental sobre o tema e induziu os
historiadores a interpretarem outros dados estatísticos à luz de suas contribuições. Amparando-
se no censo geral de 1872, muitos encontraram estatísticas bastante contundentes para sustentar
a suposta perda de escravos no Rio Grande do Sul, ainda na década de 1860. Em 1872, a
população cativa recenseada na província foi de 67.791 escravos. Já os indicadores de 1863
apresentavam 77.419 cativos, ou seja, num intervalo de 9 anos, o Rio Grande do Sul teria
subtraído quase 10 mil escravos – mais de mil por ano.64 O mesmo vale para a população cativa
de Pelotas. Se em 1858 o município possuía 4.788 escravos, no censo de 1872 apresentava uma
população cativa de 3.575, ou seja, 1.213 a menos.

Seguindo estas estatísticas, pesquisadores que se dedicaram ao estudo das charqueadas


de Pelotas, de longe as unidades produtivas com os maiores plantéis de escravos da província,
acabaram concluindo que a sua economia teria sido duramente afetada por esta precoce perda
de cativos. Berenice Corsetti, por exemplo, considerou que “a partir de 1850, a questão da mão
de obra para as charqueadas gaúchas deve ser examinada dentro de um contexto que passou a
configurar a conhecida ‘crise de braços’”. Desde então, o Rio Grande do Sul teria começado a
perder cativos para o sudeste, o que “se constituiu em elemento expressivo no processo de
desarticulação” da economia charqueadora pelotense.65 Duas décadas depois, Leonardo
Monastério defendeu que a “realocação” da mão de obra do Rio Grande do Sul para o sudeste
cafeeiro foi uma das principais causas da decadência das charqueadas em Pelotas. 66

No entanto, o número de escravos contidos no censo geral de 1872 estava longe de


corresponder à realidade. Num artigo clássico, Robert Slenes apontou que a população cativa
sul-rio-grandense foi bastante subestimada. 67 Analisando dados extraídos dos registros de
matrículas dos cativos, anexos aos Relatórios da Diretoria Geral de Estatística do Império,
Slenes verificou que, em 1873, o Rio Grande do Sul possuía 83.370 escravos e não os 67.791
arrolados no censo. Portanto, até este ano, o número de cativos na província teria aumentado e
não diminuído, como se acreditava.68 O mesmo vale para Pelotas. Analisando os relatórios da

64
Ver Censo geral de 1872 (disponível em: http//www.ibge.gov.br). Relatório do Presidente da Província do Rio
Grande do Sul Espiridião Eloy de Barros Pimentel, 1864, p. 46.
65
CORSETTI (1983, p. 142-144). Esta tese da “crise de braços” na economia rio-grandense (na década de 1860)
recebeu uma importante crítica de ARAUJO, Thiago. Op. cit.
66
MONASTÉRIO, Leonardo. A decadência das charqueadas gaúchas no século XIX: uma nova explicação. In:
Anais do VIII Encontro Nacional de Economia Política. Florianópolis: SEP, 2003.
67
SLENES, Robert. Op. cit., 1983.
68
Obviamente que uma afirmação sobre o aumento ou a diminuição de escravos entre 1863 e 1873 depende da real
população cativa para o primeiro marco temporal. Mas mesmo que as estatísticas de 1863 possam estar
subestimadas, os dados da matrícula de 1873 ajudam a refutar qualquer idéia acerca da suposta crise de braços.
Neste sentido, ver ARAÚJO, Thiago L. de. Novos dados sobre a escravidão na Província de São Pedro. In: Anais
do V Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011; MATHEUS,
195
DGE – os mesmos estudados por Slenes – verifiquei que, em 1873, Pelotas possuía 8.141
escravos e não 3.575, como o censo de 1872 apontava. 69

Portanto, a grande queda das estatísticas referentes à população cativa rio-grandense foi
posterior a 1873. Na província inteira, entre 1874 e 1884, esta população diminuiu em 15.302
escravos.70 É neste período que se intensificou a saída de cativos para o sudeste cafeeiro.
Segundo Slenes, a segunda metade da década de 1870 marcou o auge das transferências de
cativos para os cafezais do sudeste. Entre 1877 e 1879, de 17% a 25% dos escravos
comercializados em Campinas provinham do Rio Grande do Sul. Para o autor, “o declínio da
produção escravista de charque”, na década de 1870, teria estimulado o fluxo de cativos para a
região.71 De fato, em 1876, Pelotas contava com 7.556 escravos e, em 1884, possuía 5.918.72
Portanto, a diminuição teria se iniciado em 1874, mas se intensificado entre 1877 e 1884.
Contudo, tal afirmação de que houve uma relação direta entre a crise das charqueadas e a saída
de cativos precisa ser verificada empiricamente. Para tanto, é necessário analisar qual foi a
proporção de cativos alforriados e falecidos entre 1874 e 1884 e se as charqueadas de Pelotas
perderam tantos escravos para o tráfico inter-provincial.

Primeiramente, deve-se atentar para um processo ocorrido ao longo do século XIX e que
apresentou uma crescente concentração de riquezas e de escravos entre os charqueadores de
Pelotas. De acordo com a Tabela 5.5, onde elenco somente inventários de charqueadores, é
possível verificar que as maiores fortunas localizadas entre os mesmos situam-se exatamente no
período da mencionada “crise” das charqueadas (a partir da década de 1870, quando as
exportações sofrem diminuições pontuais). As riquezas acima de 100 mil libras só começam a
aparecer nos inventários deste período. No entanto, este enriquecimento foi acompanhado pelo
aumento da desigualdade da distribuição das fortunas, denotando uma maior concentração das
mesmas nas mãos de alguns charqueadores em índices superiores aos das décadas anteriores.

Marcelo. Escravidão, pecuária e liberdade: o Livro de classificação de escravos (Alegrete, década de 1870).
História Unisinos, n. 17, Jan./Abr. 2013, p. 24-36.
69
Relatório da Diretoria Geral de Estatística apresentado ao Ministério do Império pelo Conselheiro Manoel
Francisco Correa. Rio de Janeiro: Tipografia Franco-Americana, 1874, p. 187. Este relatório e os citados doravante
estão disponíveis no site: http://memoria.nemesis.org.br. (Consultados em 10.06.2011).
70
CONRAD, Robert. Op. cit., p. 217.
71
SLENES, Robert. Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio
de Janeiro, 1850-1888. In: COSTA, Iraci (org.) Brasil: história econômica e demográfica. São Paulo: Instituto de
Pesquisas Econômicas, USP, 1986, p. 133.
72
Relatório da Diretoria Geral de Estatística apresentado ao Ministério do Império pelo Conselheiro Manoel
Francisco Corrêa. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1878, p. 142; LONER, Beatriz. 1887: A Revolta que
oficialmente não houve ou de como abolicionistas se tornaram zeladores da ordem escravocrata. In: História em
Revista, Pelotas, v. 3, 1997, p. 30.
196
Ainda de acordo com a Tabela 5.5, entre 1871 e 1885, 13,3% dos inventários
concentravam 56,6% da riqueza. No período posterior, 25% dos inventariados detinham 74,5%
dos bens. Entre 1871 e 1885, o limbo desta pirâmide econômica compunha 33,2% dos
charqueadores que detinham somente 3,3% da riqueza e no último período 37,5% deles
somavam apenas 2,8% dos montantes. Portanto, tais patrimônios foram acumulados também
em detrimento da ruína econômica de outras famílias charqueadoras. É bem verdade que antes
de 1870 já havia uma desigualdade na distribuição das riquezas, mas os índices de concentração
dos últimos dois períodos e a diferença entre os que ocupavam o topo da hierarquia econômica
e os que estavam na base tornaram-se muito maiores. Tanto entre 1846 e 1855, quanto entre
1856 e 1870, a fortuna do charqueador mais rico era 16 vezes maior que a do charqueador mais
pobre. No entanto, entre 1871 e 1885, o montante do mais rico era 64 vezes maior que o do
mais pobre, e no último período esta diferença atingiu 87 vezes.73

Tabela 5.5 – Concentração de riqueza entre os charqueadores de Pelotas a partir dos


inventários post-mortem, em libras esterlinas (%)

Até 5.000 5.000 a 10.000 10.000 a 20.000

Inventários Riqueza Inventários Riqueza Inventários Riqueza

1815-1845 16,6 4,1 33,3 18,9 33,3 30,7


1846-1855 14,2 2,4 21,4 5,9 14,2 9,9
1856-1870 - - 26,6 7,5 20,0 11,5
1871-1885 26,6 1,9 6,6 1,4 20,0 5,9
1886-1900 25,0 1,3 12,5 1,5 12,5 3,2

20.000 a 50.000 50.000 a 100.000 Mais de 100.000 Totais

Inventários Riqueza Inventários Riqueza Inventários Riqueza Inv. Riq.

1815-1845 16,6 46,2 - - - - 06 82.208


1846-1855 28,5 28,2 21,4 53,4 - - 14 341.410
1856-1870 40,0 39,5 13,3 41,0 - - 15 432.839
1871-1885 20,0 15,8 13,3 18,2 13,3 56,6 15 652.451
1886-1900 12,5 6,1 12,5 13,4 25,0 74,5 08 490.229

Totais 58 2.004.137
Fonte: Inventários post-mortem dos charqueadores de Pelotas (APERS)

A concentração de renda, que se acentuou na década de 1870, veio acompanhada de


uma concentração de cativos e de um aumento da distância entre os maiores plantéis e os
menores plantéis inventariados. Dividindo os inventários entre 1846 e 1885 em períodos de 10
anos, é possível verificar que no primeiro (1846-1855) 14% dos inventários possuíam 30% dos
escravos, mas no terceiro (1865-1875), 16% dos inventários detinham 49% dos escravos. No
decênio seguinte, 2 charqueadores (28% dos inventariados) possuía 60% dos escravos. Mas se
73
Tratarei mais das fortunas dos charqueadores no capítulo 9.
197
um diminuto topo conseguiu manter plantéis superiores a 150 cativos em todas as décadas, na
parte de baixo desta pirâmide percebe-se que o número de charqueadores com plantéis menores
que 25 escravos aumentou ao longo do tempo. De 1846 a 1870, somente 2 inventariados
apresentaram este índice. Mas entre 1871 e 1885, 6 proprietários possuíam um plantel nesta
faixa – considerada pequena para os padrões das charqueadas. Portanto, a desigualdade entre o
maior escravista e o menor escravista aumentou muito durante as décadas. Enquanto na
primeira faixa o proprietário de cativos possuía 3,1 vezes o plantel do último, na última faixa o
plantel do maior era 19,8 vezes maior que o do último.

Portanto, o topo da elite charqueadora resistiu muito mais aos problemas relativos à mão
de obra, o que não ocorreu com outros charqueadores menos afortunados. Esta concentração de
riqueza ajudou a condicionar quem vendeu e quem comprou escravos após a extinção do tráfico
atlântico. No entanto, isto não significa dizer que estes charqueadores da base da pirâmide
perderam seus cativos para o sudeste cafeicultor. Conforme mencionei anteriormente, até 1874,
a população cativa da província apresentou índices crescentes. Portanto, foi após esta data que
as estatísticas apontam uma queda do número de escravos e um aumento da saída de cativos
rio-grandenses para o sudeste.

A partir de agora analisarei as escrituras públicas de compra e venda de escravos e as


procurações de venda de cativos realizadas no município de Pelotas. O primeiro corpo
documental engloba o período de 1850 a 1884, e reúne os negócios efetuados diretamente entre
ambas as partes envolvidas.74 O segundo grupo de fontes debruça-se sobre as vendas realizadas
por procuração, reunidas exclusivamente nos Livros de Procurações, e elencam o período entre
1874 e 1880. São nestes documentos que o tráfico inter-provincial se torna mais nítido.75
Observando esta fonte é possível perceber que boa parte dos procuradores encarregados de
vender os escravos era de fora de Pelotas.76 Antes de começar a análise é necessário dizer que
não descarto o fato de que negociações não registradas em cartório deviam ocorrer. Até a
década de 1860, as escrituras de compra e venda de escravos não eram obrigatórias e isto deve

74
Livros de Transmissões e notas, Registros Diversos e Registros Ordinários do 1º, 2º e 3º Tabelionatos de Pelotas,
Fundo 48, APERS.
75
Sobre este tipo de transações ver também SLENES, Robert. Op. cit., 1976, p. 155-158.
76
Livros de Procurações do 1º, 2º e 3º Tabelionatos de Pelotas e 3º e 4º Distrito de Pelotas, Fundo 48, APERS.
Também existe um número diminuto de procurações deste tipo nos livros de Registros Ordinários, na década de
1860, mas não os incluí na presente análise por privilegiar o período de maior saída de cativos. Além do mais, os
livros específicos de procurações iniciam-se exatamente no ano de 1874 e se estendem até o período republicano.
No entanto, não localizei nenhuma venda por procuração a partir de 1881, daí o marco temporal final de 1880. Tal
fenômeno explica-se pelo fato de que entre 1879 e 1880, as Assembléias Legislativas de São Paulo e Minas Gerais
votaram impostos de 1:000$ a 2:000$ por cada escravo entrado nas suas províncias (BAKOS, Margareth. RS:
Escravidão & Abolição. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1982, p. 67). Tal medida diminuía muito os lucros obtidos
no tráfico, inibindo-o.
198
ser levado em conta. Entretanto, foi na década de 1870, que a população cativa de Pelotas
começou a diminuir. Mesmo com a impossibilidade de trabalhar com os sub-registros e as
lacunas documentais, creio que as escrituras públicas e as procurações aqui analisadas fornecem
uma base aproximada do volume de escravos que Pelotas perdeu para o tráfico inter-
provincial. 77

As escrituras públicas de compra e venda de escravos em Pelotas, entre 1850 e 1884,


reúnem 50 transações envolvendo 334 cativos (Tabela 5.6). A maior negociação envolveu 56
escravos numa única escritura, quando além dos cativos, o charqueador Cipriano Rodrigues
Barcellos e o seu genro e sócio Domingos Pinto Mascarenhas também venderam o seu
estabelecimento com todos os pertences, potreiros e o iate Benjamim para Cândido Antônio
Barcellos.78 Mas 29 escrituras, ou 58% das mesmas, envolviam somente um escravo,
perfazendo a maioria das escrituras. No entanto, reunidas elas englobavam somente 8,6% dos
cativos negociados.

Tabela 5.6 – Escravos negociados por escritura em Pelotas (1850-1884)

Escravos Escrituras Escravos


por escritura
1 29 58,0% 29 8,6%
2 9 18,0% 18 5,3%
3 1 2,0% 3 0,9%
4 1 2,0% 4 1,2%
De 10 a 20 4 8,0% 61 18,2%
De 21 a 30 2 4,0% 54 16,2%
De 31 a 40 2 4,0% 67 20,3%
De 41 a 50 1 2,0% 42 12,5%
De 51 a 60 1 2,0% 56 16,8%

Total 50 100% 334 100%


Fonte: Livros de Transmissões e notas, Registros Diversos e Registros
Ordinários do 1º, 2º e 3º Tabelionatos de Pelotas, Fundo 48, APERS.

Analisando estes mesmos documentos para outros municípios do Rio Grande do Sul,
Rafael Scheffer trouxe números importantes sobre o comércio interno na província e que
possibilitam algumas comparações. Se entre 1850 e 1884, Pelotas teve 334 cativos negociados,
Porto Alegre, entre 1854 e 1884, teve 1739 escravos transacionados. Para o mesmo período,

77
Ao contrário do Rio de Janeiro e de São Paulo, por exemplo, no Rio Grande do Sul não vigorou uma taxa fixa
para a cobrança das meias-sisas – imposto de transmissão de escravos. O valor cobrado era de 6% sobre as
transações. A ausência de uma taxa fixa nos impossibilita calcular o número de escravos negociados por município
a partir do total arrecadado nas coletorias, como fez Slenes para o Rio de Janeiro (SLENES, Robert. Op. cit., 1986,
p. 121-124).
78
Transmissões e Notas, Pelotas, 1º Tabelionato, Fundo 48, Livro 9, APERS, p. 105.
199
Rio Grande teve 487, Cruz Alta 549 e Alegrete 139 cativos comercializados. 79 A partir destes
dados percebe-se que os índices da capital são muito altos se comparados aos outros
municípios. Analisando os dados dos Relatórios da DGE percebe-se que Porto Alegre está entre
os municípios que mais perderam cativos na década de 1870, enquanto Pelotas posiciona-se
entre os que menos perderam. 80 Portanto, se os escravistas de Porto Alegre estiveram mais
vulneráveis ao comércio interno, os de Pelotas conseguiram resistir mais a tais transações, seja
para fora do município, seja para fora da Província.

No entanto, as escrituras públicas não trazem muitas informações a respeito dos


compradores e vendedores de escravos. Mas como venho pesquisando há anos a população e as
elites de Pelotas e possuo uma base de dados com centenas de nomes de habitantes (composta
por diferentes fontes pesquisadas), consegui determinar ao menos os que são estabelecidos no
município. Das 50 escrituras relacionadas, pelo menos 25 (50%) possuíam compradores que
residiam no próprio município. Entretanto, estas 25 pessoas compraram 303 escravos, ou seja,
90,7% do total. Portanto, a grande maioria dos escravos negociados nas escrituras permaneceu
no município e não foi enviada para o sudeste do Brasil. Dos outros 9,3% de cativos que foram
vendidos para proprietários que creio serem de fora do município, nenhum pertencia a um
charqueador. Portanto, de acordo com este corpo documental, nenhum dos escravos vendidos
para fora de Pelotas (e da Província) fazia parte do plantel de alguma charqueada. Dos 31
escravos vendidos para fora de Pelotas, 17 eram homens e 14 mulheres. Além do mais, 20 deles
foram negociados após 1874.

Contudo, isto não significa que os charqueadores não vendessem seus escravos. Das 50
escrituras, 19 apresentaram estes proprietários envolvidos como compradores e 11 como
vendedores, sendo que destas vendas, 10 foram para charqueadores. O total de escravos
negociados entre dois charqueadores ou entre um charqueador e um familiar próximo são de
279 cativos, ou seja, 83,5% dos escravos negociados pertenciam aos charqueadores e, portanto,
foram transferidos de um proprietário para outro. Tal índice revela uma enorme concentração
nestas transações, mas também que alguns destes empresários vinham sentindo as dificuldades
financeiras do período, tendo que repassar parte do seu patrimônio para outros concorrentes.
Portanto, estas transações revelam que a grande maioria destes escravos continuou a
permanecer no município. Cruzando estes dados com os verificados anteriormente sobre a

79
SCHEFFER, Rafael da Cunha. Comércio de escravos no Rio Grande do Sul (1850-1888): transferências intra e
interprovinciais, perfis de cativos negociados e comerciantes em cinco municípios gaúchos. In: Anais do V
Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 2.
80
Relatório de 1878. Op. cit., p. 142.
200
concentração de renda e de cativos, é possível perceber que os charqueadores compradores
eram exatamente os mais ricos do grupo inventariado ou os seus próprios filhos. Juntos, José
Antônio Moreira, João Simões Lopes, Antônio José da Silva Maia, Dr. Antônio José Gonçalves
Chaves, Aníbal Antunes Maciel, Antônio José de Oliveira Castro, Possidônio Mâncio Cunha e
Cândido Antônio Barcellos, compraram 58,6% de todos os escravos negociados no período ou
70,3% dos escravos negociados somente entre charqueadores. Portanto, os charqueadores mais
pobres tiveram sua escravaria drenada pelos charqueadores mais ricos. Estas transações foram
intensas nas três primeiras décadas e tenderam a cair na última, pois 105 cativos foram
vendidos nos anos 1850, 90 nos anos 1860, 96 na década de 1870 e 43 na de 1880.

Além do mais, é provável que muitas outras transações comerciais entre os


charqueadores envolvendo escravos foram realizadas sem que tenham sido registradas nos
livros de notas dos tabelionatos. Um exemplo pode ser dado no processo de liquidação da
charqueada da Viúva Vianna & Filho, entre 1864-1866. Dos 38 escravos leiloados, 15 foram
comprados por charqueadores, dentre os quais estavam aqueles pertencentes ao grupo dos mais
ricos, como José Antônio Moreira (o Barão de Butuí), Felisberto Inácio da Cunha (o Barão de
Corrientes) e Joaquim da Silva Tavares (o Barão de Santa Tecla). 81 Nenhuma destas compras
foi registrada em cartório e, portanto, elas não estão contabilizadas no cálculo realizado acima.
Os charqueadores deviam estar sempre atentos aos leilões dos falidos, pois se tratava de uma
grande oportunidade de levantar mais mão de obra para suas fábricas.

Como mencionei anteriormente, para obter uma visão mais privilegiada do tráfico inter-
provincial é necessário analisar as procurações de venda de escravos assinadas em Pelotas para
outras localidades. A partir da leitura das mesmas, localizei 382 escravos sendo negociados por
procuração entre 1874 e 1880.82 Trata-se de um número muito grande de cativos negociados
num curto espaço de tempo e que supera de longe as transações realizadas nas escrituras
públicas analisadas anteriormente. Pouco mais de 90% das procurações analisadas negociam
somente um escravo. As demais envolvem mães com filhos menores ou no máximo dois
escravos. Além do mais, os anos iniciais apresentaram um fluxo de vendas maior que os finais,
demonstrando que no fim da década de 1870 a inserção de Pelotas no tráfico interno vinha se
enfraquecendo.83

81
Processo de Liquidação de Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
82
Na realidade localizei 403 cativos sendo negociados. Entretanto, 21 deles tratavam-se dos mesmos escravos
sendo vendidos outra vez pelo mesmo senhor, o que indica que a primeira transação havia fracassado.
83
Como se pode verificar: em 1874 (42 cativos vendidos), em 1875 (115), em 1876 (116), em 1877 (41), em 1878
(33), em 1879 (31), em 1880 (4). A partir das procurações que pesquisei em Pelotas foi possível localizar 169
indivíduos ou firmas diferentes envolvidas neste comércio. Destes, 104 (61,5%) negociaram somente 1 escravo e
201
Nem todos os negócios analisados envolviam a saída de escravos de Pelotas para o
exterior da província. Dos 382 escravos negociados por procuração, 83 (21,7%) não pertenciam
a senhores de Pelotas. Tratavam-se, na verdade, de proprietários de municípios vizinhos que
foram até Pelotas para venderem seus escravos ou enviaram procuradores para tal fim. 84 Esta
simples informação revela que Pelotas, como núcleo urbano e comercial de destaque na
Província, também era um pólo que reunia muitos compradores de cativos. Portanto, ao invés
de somente adentrarem o interior da província procurando escravos para comprar, creio que os
traficantes também permaneciam em Pelotas e Rio Grande a espera dos mesmos.85

Portanto, como 83 dos 382 escravos pertenciam a senhores de outros municípios,


somente 299 eram de proprietários de Pelotas. Mas ainda é necessário fazer outra ressalva.
Destes 299 escravos, 47 foram vendidos por procuração para municípios da própria província,
ou seja, não entraram no circuito do tráfico inter-provincial. Destes 47 escravos, 18 eram de
distritos rurais de Pelotas e foram vendidos na própria cidade. 86 Trata-se de uma outra
modalidade de comércio que poderia ser chamada de intra-municipal e que transferia mão de
obra de pequenos senhores de áreas rurais para outros mais bem capitalizados. Infelizmente não
é possível saber quais proprietários em Pelotas foram os compradores destes escravos, pois o
documento traz apenas o nome do procurador, autorizando-o a vendê-lo pelo maior preço
possível. Mas como vimos que um grupo de charqueadores drenou boa parte dos cativos
comercializados pelas escrituras públicas é possível que alguns deles possam ter comprado
estes escravos também.

Portanto, dos 382 escravos negociados, 252 (66%) pertenciam a proprietários pelotenses
e foram remetidos por procuração para o sudeste do Brasil. 87 Como estou interessado no tráfico
inter-provincial e na participação do plantel dos charqueadores no mesmo, analisarei somente

não voltaram a aparecer nos registros. Mas no topo deste grupo, 5 comerciantes concentraram 47% dos escravos
transacionados. Só a firma Bastos, Souza & Cia negociou 96 dos 382 cativos ou 25,1% do total. Em seguida,
aparecem Angelino Soveral com 29 escravos negociados, João José Ribeiro Guimarães com 21 cativos, Leivas,
Saraiva & Cia com 20 e Duarte Souza & Cia com 16.
84
Os mais destacados eram Canguçu (22), Piratini (17), Caçapava (7) e Jaguarão (5).
85
Destes 83 escravos que pertenciam a senhores de fora de Pelotas, somente 14 tiveram procurações assinadas para
serem vendidos exclusivamente em Pelotas. Portanto, a maioria era destinada para outros mercados, sobretudo no
sudeste do Império. Destes 83 cativos, 66 tiveram procurações passadas para serem vendidos no sudeste. Estas
podiam aparecer como procurações passadas para o Rio de Janeiro (15 casos) ou “qualquer parte do Império” (51
casos). Cruzando o nome dos agentes envolvidos neste comércio, creio que os escravos encaminhados para “todo o
Império” também eram enviados para o Rio e daí para os cafezais do sudeste. Tal definição devia ser necessária
para não causar empecilho nos casos dos escravos serem vendidos em São Paulo com a mesma procuração.
86
Destes 47 escravos, 6 foram vendidos para Rio Grande, 5 para Porto Alegre, 3 para Alegrete, 2 para Santa
Vitória do Palmar, 1 para Santa Maria, 1 para Bagé, 1 para Canguçu e o restante tiveram procurações para serem
vendidos em qualquer parte da província. Algumas destas transações são realizadas entre parentes.
87
Destas 252 procurações, 249 foram assinadas para o Rio ou Império, 2 para São Paulo ou Rio e 1
exclusivamente para Minas Gerais. Como já mencionei, as procurações enviadas para o Império também
envolviam comerciantes estabelecidos no Rio.
202
este grupo de cativos. É somente nele que encontrei charqueadores vendendo escravos. Destes
252 cativos, 92 eram mulheres e 160 eram homens. Portanto, as mulheres também compuseram
de forma significativa o grupo de escravos remetidos para o sudeste, pois totalizaram 36,5% dos
cativos vendidos. As idades destes escravos vão desde crianças de poucos anos negociadas
juntamente com suas mães até adultos de 52 anos. Separando somente os escravos entre 15 e 40
anos temos 69 mulheres (75% das negociadas) e 120 homens (75% dos negociados).

Quanto à naturalidade dos escravos, verifica-se que somente 10 não apresentaram tais
informações. Do restante, 218 (90%) haviam nascido no Rio Grande do Sul, mas também
existiam crioulos provenientes de outras províncias, como Bahia (6), Pernambuco (4), Mato
Grosso (1), São Paulo (1), Maranhão (1), Minas Gerais (1), Paraná (1) e Santa Catarina (1). Do
grupo total de escravos negociados, somente 7 eram africanos, ou seja, 2,7%. Trata-se de um
índice bastante pequeno para uma localidade onde a presença de africanos nos inventários após
1850 alcançou uma média de 31,8%.88 As fontes não revelam se havia uma preferência dos
comerciantes por escravos crioulos e se os mesmos seriam mais fáceis de serem vendidos aos
cafeicultores, mas outras pesquisas podem contribuir com este ponto.89

O fato é que a análise da naturalidade dos cativos revela que alguns deles, como o
carneador João Baiano, migraram forçosamente para outra região pela segunda vez,
vivenciando uma realidade sócio-econômica e cultural distinta. É possível que João tivesse
trabalhado cortando cana ou plantando fumo na Bahia ou até mesmo em um engenho de açúcar
de algum proprietário empobrecido. Chegando em Pelotas, foi empregado na charqueada de
Junius Brutus de Almeida, onde teve que aprender o ofício de carneador e adaptar-se ao
rigoroso inverno da região. Em 1875, o destino lhe reservara outra viagem sem volta. Desta
vez, João Baiano foi vendido para comerciantes cariocas para provavelmente servir como mão
de obra em alguma fazenda de café, em São Paulo.

Quanto às profissões dos mesmos 252 escravos, 81 não apresentaram informações ou


não possuíam ofícios. 90 Entre os homens, havia 37 campeiros, de longe o grupo mais
representativo. Também merecem destaque os cozinheiros (11), os copeiros (10), os roceiros

88
PESSI, Bruno S. Estrutura da posse e demografia escrava em Pelotas entre 1850 e 1884. In: Anais do V Encontro
Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 14
89
Estudando o tráfico interno em Mariana, Camila Flausino localizou 10,9% de africanos sendo negociados na
década de 1860 e 9,3% na década de 1870 (FLAUSINO, Camila. Op. cit., p. 80). Mas estas transações não
envolviam regiões não-cafeicultoras para regiões cafeicultoras, como a totalidade das transações de Pelotas, por
exemplo.
90
Dos que não tiveram a ocupação declarada no documento, 37 eram maiores de 14 anos, 22 tinham 14 anos ou
menos e 6 não tiveram a idade revelada. Dos que foram classificados como “sem ofício”, 13 possuíam 14 anos ou
menos e 3 eram maiores de 14 anos.
203
(8), os serventes (6), os marinheiros (5), os serviçais domésticos (5) e os carpinteiros (4). Entre
as mulheres, as cozinheiras eram as mais vendidas, somando 20 cativas. As mesmas eram
seguidas pelas serviçais domésticas (16), as costureiras (8), as lavadeiras (8), as mucamas (3) e
as engomadeiras (2). É possível verificar que, apesar do número significativo de campeiros,
uma boa parte dos escravos exercia atividades mais vinculadas aos serviços domésticos.

A partir das profissões elencadas acima já é possível extrair conclusões sobre a pouca
participação das charqueadas no tráfico inter-provincial. Para matizar melhor estas informações,
separei todos os senhores dos 252 escravos vendidos em dois grupos: os charqueadores e os
não-charqueadores. Do total de escravos, somente 29 (ou 11,5%) pertenciam ao grupo dos
charqueadores, que reunia 19 proprietários. O empresário que mais vendeu cativos para o
sudeste foi Junius Brutus de Almeida, que remeteu 6 escravos. José Antônio Moreira Júnior
vendeu 3, e mesmo assim foram cativos herdados do seu avô. Outros 3 charqueadores
venderam 2 escravos cada. O restante perdeu somente um escravo para os cafezais do sudeste.

Arrolando o sexo e a profissão dos escravos vendidos, a participação do plantel das


charqueadas no tráfico torna-se ainda mais irrisória. Dos 29 escravos negociados, 4 eram
mulheres, sendo uma doméstica, uma cozinheira e outras duas sem ocupação declarada.
Portanto, não estavam vinculadas diretamente ao rude serviço das charqueadas. Sobram,
portanto, 25 homens. Para 7 deles não foi declarada a ocupação. Do restante, havia 4 campeiros,
4 marinheiros, 3 copeiros, 3 carneadores, 2 cozinheiros, 1 cangueiro, 1 calafate e 1 carpinteiro.
Não é possível saber se os escravos campeiros estavam exercendo seus ofícios nas charqueadas
ou nas estâncias dos seus senhores localizadas em outros municípios.

Apesar da importância de todos os escravos arrolados, é necessário dizer que havia


somente 3 carneadores, ofício diretamente vinculado ao trabalho no interior das charqueadas,
entre os cativos vendidos para o sudeste. A venda de cozinheiros, copeiros e domésticas talvez
revele que alguns charqueadores preferiam abrir mão de uma vida senhorial rodeada por
serviçais, a ter que diminuir a mão de obra especializada em suas fábricas. Portanto, dos 252
escravos que Pelotas perdeu para o tráfico inter-provincial entre 1874 e 1880, somente 29
pertenciam a charqueadores e destes só 3 eram carneadores. Pode-se somar a estes os campeiros
e marinheiros, economicamente importantes, mas que prestavam serviços principalmente fora
dos galpões de charquear. Estes 11 cativos perfaziam 4,3% dos escravos que Pelotas perdeu
para o tráfico inter-provincial e representam 0,07% dos 15.448 cativos que a província inteira
perdeu por óbitos, alforrias e tráfico interno, entre 1874 e 1884.

204
Se as charqueadas participaram do tráfico inter-provincial de escravos, certamente não
foram como vendedoras, mas sim como compradoras de cativos. Investigando os dados
referentes à naturalidade dos escravos nos inventários de charqueadores abertos após 1872, é
possível verificar uma significativa parcela de cativos nascidos no nordeste brasileiro nos
plantéis das charqueadas.91 Dentre os 142 escravos do plantel do Barão de Butuí, 18 (12,6%)
eram naturais do nordeste. Tratava-se de 16 cativos baianos, 1 sergipano e 1 cearense. Do
plantel de 120 escravos do coronel Aníbal Antunes Maciel, 7 (6%) eram “nordestinos”, sendo 4
baianos e 3 pernambucanos. Mas não eram somente os charqueadores ricos que participavam
ativamente deste tráfico. No plantel de um charqueador como Domingos Soares Barbosa, que
apresentou uma fortuna mediana de 9 mil libras, este índice foi de 19,5%. Dos seus 83 escravos,
9 eram cearenses, 3 baianos, 3 pernambucanos e 1 paraibano. Portanto, quase 1/5 do seu plantel
havia sido comprado de senhores do nordeste.92 Esta entrada de cativos de outras províncias
para o Rio Grande do Sul também foi verificada por Rafael Scheffer. Ao analisar as escrituras
de notas em Rio Grande, o autor verificou que 25% dos escravos negociados vinham de outras
províncias, sendo o Rio de Janeiro o principal fornecedor de cativos com 13,7%, seguido por
Pernambuco, Santa Catarina e a Bahia. 93 Uma carta enviada pelo comerciante baiano Antônio
Vieira da Silva ao comerciante e charqueador de Pelotas, Manoel das Neves Lobos, ilustra bem
este fluxo de cativos do nordeste para o Rio Grande do Sul:

Bahia, 15 de junho de 1861. Amigo e Sr. Nesta ocasião, segue a nossa Barca
Henriqueta a sua consignação e lastro de sal do Assú e também com alguma carga a
frete levando também 22 escravos para V. Mce. os vender pelo melhor preço que
puder, bem entendido dos preços que vão marcados da lei para cima, sendo que V.
Mce. os não possa vender pelos preços marcados V. Mce. me avisará logo no primeiro
vapor para eu dar as minhas ordens para fazer seguir para o Rio de Janeiro (…).94

Tendo em conta o grande fluxo de navios que retornavam do nordeste para o Rio
Grande do Sul (nos anos 1870, mais de 80% do charque era remetido para Salvador e Recife),
não é difícil concluir que ao invés de perder escravos para os cafezais, como se defendeu, os
charqueadores foram responsáveis, mesmo que em menor medida, pela baixa dos cativos do

91
Como é sabido, deste ano em diante as cópias das matrículas dos escravos deviam ser obrigatoriamente anexadas
aos inventários. Estes documentos trazem informações importantes sobre as profissões, naturalidade, filiação dos
cativos, entre outros. Conforme informado na introdução desta tese, uso o termo “nordeste” para facilitar a
compreensão do leitor, uma vez que o mais adequado para a época, em se tratando daquela região, era chamá-la de
“norte” do país.
92
Inventário do Barão e da Baronesa de Butuí. N. 647, m. 41, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas,
1867/1877 (APERS); Inventário de Aníbal Antunes Maciel, N. 815, m. 48, 1º cartório de órfãos e provedoria,
Pelotas, 1875 (APERS); Inventário de Domingos Soares Barbosa. N. 943, m. 54, 1º cartório de órfãos e
provedoria, Pelotas, 1881 (APERS).
93
SCHEFFER, Rafael. Op. cit., p. 16.
94
Processo de Liquidação de Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
205
nordeste, o que de certa forma inverte as explicações clássicas sobre a relação da mão de obra
escrava, a crise nas charqueadas e sua inserção no tráfico interno. Na década de 1870, Pelotas
ainda era uma grande compradora de cativos. Em 1876, por exemplo, 217 escravos haviam
entrado no município 95, ou seja, muito mais do que os 116 vendidos por procuração para os
cafezais do sudeste naquele mesmo ano. Analisando também a segunda metade da década de
1870, Rafael Scheffer verificou que 29,6% das procurações para venda de escravos passadas
em Alegrete, município rio-grandense da fronteira oeste, autorizavam a negociação dos mesmos
em Pelotas.96 Tal fluxo que tinha como destino Pelotas deve ter se repetido em outros
municípios do interior do Rio Grande do Sul, pois Pelotas foi a localidade da província que
apresentou o maior êxito em retardar a perda de cativos durante o auge do tráfico inter-
provincial. Comparando os dados da população escrava no Rio Grande do Sul entre 1859 e
1884, percebe-se que Pelotas foi um dos dois municípios que não tiveram sua população cativa
diminuída neste intervalo de tempo. 97 Além do mais, em 1884, Pelotas constituía-se no
município com o maior número de escravos na Província, lugar que havia sido ocupado por
Porto Alegre na década precedente.98 Portanto, além de estender seus braços para o exterior da
província, comprando cativos do nordeste, um pequeno grupo de charqueadores parecia estar
drenando parte da escravaria dos municípios vizinhos e da própria população pelotense.99 Isto
tudo ajuda a explicar a permanência da alta razão de sexo entre os plantéis dos charqueadores
dos anos 1860 ao ano 1880.

Não é possível saber a quantidade de escravos vendidos e comprados em Pelotas, cujas


transações não foram registradas em cartório. Mas creio que as compras devem ter compensado
as vendas, pois, conforme os dados que apresentarei agora, os números de escravos vendidos
por Pelotas que analisei até aqui são próximos do que de fato o município teria perdido no
período. Somando as vendas por procurações com as vendas por escrituras, é possível verificar
que Pelotas perdeu 272 escravos entre 1874 e 1884. Estes números podem ser testados
comparando a população cativa de Pelotas entre 1873 e 1884. Se em 1873 Pelotas teve 8.141

95
Relatório da DGE. Op. cit., 1878, p. 142.
96
SCHEFFER, Rafael. Op. cit., p. 6.
97
BAKOS, MArgareth. Op. cit., p. 22-23. O outro município foi Santa Maria.
98
Relatório da DGE. Op. cit., 1878, p. 142.
99
Este fenômeno não é uma peculiaridade sul-rio-grandense. Em outras províncias, grandes proprietários de terra
conseguiram ter mais sucesso em manter os seus plantéis, em detrimento dos médios e pequenos proprietários.
Mas como já mencionei, em Pelotas nem todos conseguiram participar deste mercado como compradores, pois as
crises que afetaram o setor desde a década de 1850 derrubaram muitas famílias charqueadoras, como será tratado
em capítulos posteriores. Richard Graham e Erivaldo Neves, por exemplo, demonstraram esta tendência para a
Bahia (GRAHAM, Richard. “Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil”.
Afro-Ásia, n. 27, 2002, p. 121-160; NEVES, Erivaldo Fagundes. Sampauleiros traficantes: comércio de escravos
do alto sertão da Bahia para o Oeste cafeeiro paulista. In: Afro-Ásia, n. 24, 2000).
206
escravos matriculados e em 1884 contava com 5.918, significa que sofreu uma diminuição de
2.223 cativos no período. Esta diminuição foi resultado dos óbitos, das alforrias e das vendas
para fora da Província. Entre 1874 e 1884, conforme Beatriz Loner, foram arrolados 1.175
óbitos de escravos em Pelotas. 100 Com relação às manumissões, Jorge Euzébio Assumpção
localizou 893 escravos sendo libertados em Pelotas, entre 1874 e 1883. 101 Portanto, somando-se
os óbitos, as alforrias e os escravos negociados, tem-se 2.340 cativos. É um número que supera
os 2.223 cativos mencionados acima, mas apresenta uma margem de erro totalmente aceitável,
uma vez que os censos e estatísticas da época não primavam por uma exatidão. A diferença
também pode ter sido consequência da entrada de cativos em Pelotas que não foram registradas
em cartório. Portanto, estas cifras revelam que as alforrias e os óbitos foram os grandes
responsáveis pela diminuição do número de cativos no município perfazendo 38% e 50% das
perdas no período.102

Assim sendo, não houve uma crise nas charqueadas capaz de provocar um grande
deslocamento dos seus escravos para o sudeste e nem a suposta perda dos escravos das
charqueadas para os cafezais estava na raiz da crise final das charqueadas, como alguns autores
defenderam. Amparado na mencionada tese de Berenice Corsetti, Robert Slenes argumentou
neste sentido ao perceber que entre 1877 e 1879 cerca de 17% a 25% dos escravos
comercializados em Campinas provinham do Rio Grande do Sul. 103 Entretanto, foi exatamente
entre os anos de 1877 e 1879 que a economia charqueadora apresentou um rápido salto
econômico. Além das exportações de charque e dos preços do produto terem aumentado em tal
conjuntura (ver os Gráficos 8.1 e 8.2 no capítulo 8), a safra de 1877/1878 apresentou um
enorme incremento em termos de abate. Se em 1877, foram abatidos 307.837 novilhos, no ano
posterior este índice alcançou os 414.147, ou seja, o maior entre 1875 e 1890 (ver o Gráfico 7.1
no capítulo 7). Portanto, é difícil pensar que os anos entre 1877 e 1879 possam ter sido
desanimadores tanto para os criadores de gado (visto que o número de novilhos remetidos da
região da campanha para Pelotas aumentou bastante) quanto para os charqueadores ao ponto de
configurarem uma crise que os levasse a vender seus escravos para os cafezais do sudeste.

Portanto, o aumento do fluxo de escravos rio-grandenses para o sudeste na década de


1870 realmente existiu, mas não significa que sua saída tenha sido consequência de uma
suposta crise nas charqueadas, uma vez que regiões inteiras que não apresentavam conexões

100
LONER, Beatriz. Op. cit., p. 30.
101
ASSUMPÇÃO, Jorge E. Op. cit., p. 290.
102
É muito provável que tal afirmação também sirva para todo o Rio Grande do Sul, diminuindo o impacto do
tráfico interno na escravaria provincial – defendido por Robert Conrad.
103
SLENES, Robert. Op. cit., 1986, p. 133.
207
com o comércio de gado para Pelotas foram grandes perdedoras de cativos no período.104 O Rio
Grande do Sul, nesta época, era muito mais do que um gigante campo destinado a engordar e
abater bovinos. A economia provincial entre as décadas de 1850 e 1880 apresentou uma
significativa produção de alimentos agrícolas que, além de abastecer o mercado interno na
província e fora dela, não dependia das pulsações da economia charqueadora.105 Portanto, não é
possível relacionar diretamente as substanciais saídas de escravos da província com a crise das
charqueadas pelotenses sem verificar quais eram as regiões e os senhores que estavam perdendo
cativos e quais os escravos do seu plantel estavam sendo vendidos.106 O processo que marcou as
décadas finais da monarquia apresentou uma nítida drenagem de mão de obra dos ricos
charqueadores para com os pequenos e médios. Em se tratando de um estudo sobre elites, é
possível considerar que estes charqueadores mais ricos compunham um importante setor da
elite regional que conseguiu impor-se sobre os demais concorrentes tanto no meio mercantil
quanto no meio agrário. Concentrando riqueza e mão de obra, este charqueadores conseguiram
resistir às crises que afetaram o setor entre as décadas de 1850 e 1880 e que serão tratadas nos
capítulos posteriores. Contudo, numa conjuntura em que os plantéis se renovavam
continuamente e na qual o número de mulheres era bastante pequeno, como os charqueadores
administravam seus escravos? Tratarei disto no capítulo posterior.

104
Como, por exemplo, os municípios de Porto Alegre e São Leopoldo, que estão entre os que mais perderam
escravos para o tráfico (Relatório da DGE. Op. cit., 1878, p. 142). Passo Fundo, Cachoeira do Sul e Triunfo, por
exemplo, também sofreram uma enorme perda entre 1859 e 1884 (BAKOS, Margareth. Op. cit., p. 22-23).
105
Sobre a produção agrícola na Província ver ZARTH, Paulo A. História Agrária do Planalto Gaúcho. Ijuí:
Editora da UNIJUÍ, 1997; ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora
Globo, 1969; FARINATTI, Luis A. Sobre as Cinzas da Mata Virgem: os lavradores nacionais na província do
Rio Grande do Sul (Santa Maria: 1845-1880). Dissertação de Mestrado. PPGH-PUCRS, 1999. Sobre como as
exportações rio-grandenses de farinha, feijão e milho haviam se intensificado nas décadas de 1850 e 1860,
chegando inclusive, em alguns anos, a superar Minas Gerais no abastecimento da Corte, ver GRAÇA FILHO,
Afonso de A. Os convênios da carestia: crises, organização e investimentos do comércio de subsistência da Corte
(1850-1880). Rio de Janeiro: UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992, p. 33-34. Para uma análise da importância da
produção agrícola rio-grandense na época ver SOARES, Sebastião Ferreira. Notas estatísticas sobre a produção
agrícola e carestia dos gêneros alimentícios no Império do Brasil. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1977.
106
Camila Flausino chegou a conclusões interessantes ao estudar o tráfico interno em Mariana. Contrariando uma
historiografia tradicional que insistia na perda de cativos das regiões auríferas após a crise mineradora, a autora
demonstrou que as transações de escravos foram, sobretudo, intra-municipais. Cerca de 61% dos cativos vendidos
entre 1850 e 1886 permaneceram em Mariana. A tese de que os municípios cafeicultores drenaram os escravos das
regiões auríferas também foi relativizada, pois somente 6,9% dos negociados tiveram como destino os cafezais
(FLAUSINO, Camila. Op. cit., p. 111-116).
208
6. SENHOR E PATRÃO: OS CHARQUEADORES, A ADMINISTRAÇÃO
DOS ESCRAVOS E O MUNDO DO TRABALHO NAS CHARQUEADAS

I ain’t gonna work on Maggie’s farm no more


No, I ain’t gonna work on Maggie’s farm no more
Well, I wake in the morning
Fold my hands and pray for rain
I got a head full of ideas
That are drivin’ me insane
It’s a shame the way she makes me scrub the floor
I ain’t gonna work on Maggie’s farm no more

Bob Dylan - Maggie’s Farm (1965)

Em janeiro de 1886, o presidente da Província do Rio Grande do Sul escrevia ao


Ministro do Império solicitando o seguinte:

Joaquim da Silva Tavares, irmão do Barão de Itaqui e do Dr. Francisco da Silva


Tavares, libertou, no mesmo município de Pelotas e em igualdade de condições, 68
cativos, tornando-se merecedor de que o Governo Imperial, em remuneração de tão
assinalado serviço à humanidade, conceda-lhe o título de Barão de Pirahy ou de Santa
Tecla. Para que V. Ex. se digne de apreciar a importância daquele ato de abnegação,
informo, ainda, a V. Ex. que, em consequência dele, as charqueadas daquele cidadão
acham-se hoje abandonadas, porque muitos dos libertos sob condição de prestação de
serviços têm deixado de cumprir a obrigação do respectivo contrato.1

No meado dos anos 1880, tanto o Império quanto a economia charqueadora e a


escravidão – um casamento que havia dado certo por mais de 60 anos – agonizavam
nitidamente. Os Silva Tavares, que já haviam defendido a monarquia com toda a sua força em
1835, contribuíram com o Império em todas as guerras que marcaram o período, vindo a sofrer
as consequências da mencionada decadência das charqueadas. Anos antes, quem poderia
imaginar que no seio de família tão poderosa, nem os seus ex-escravos os respeitariam,
quebrando os contratos de trabalho firmados com seus ex-senhores? O título de Barão de Santa
Tecla foi o seu prêmio de consolação. O estatuto nobiliárquico como compensação econômica
estava distante do que um dia havia sido. Conforme José Murilo de Carvalho os títulos de
nobreza apresentaram um forte boom nos anos 1870 e 1880 como uma espécie de indenização

1
Ofício do Presidente da Província para o Ministro do Império, 02.01.1886, SPE-IJJ9 (Arquivo Nacional do Rio
de Janeiro).
209
por perdas materiais relativas ao fim da escravidão.2 E no caso dos charqueadores que viveram
naqueles tempos finais da monarquia o que não faltaram foram perdas...

Como será visto nos próximos capítulos, as décadas de 1850 e 1870 foram marcadas por
grandes flutuações dos preços dos couros e do charque, por crises de superprodução, perda de
mercados consumidores para os concorrentes platinos e o aumento dos preços do gado. Por
conta disto, um grande número de charqueadores faliu. No terreno legal, a Lei Eusébio de
Queiroz (1850) os obrigou a recorrer ao mercado inter e intra-provincial para abastecer
continuamente os seus plantéis pagando preços cada vez mais elevados. A Lei do Ventre Livre
(1871), que, entre outras questões, regulamentou as manumissões e ofereceu maiores garantias
jurídicas aos escravos contra os seus senhores, trouxe a certeza de que a presença da mão de
obra cativa nos estabelecimentos não duraria mais muito tempo. Se os charqueadores pelotenses
conseguiram resistir às investidas dos comerciantes de escravos prontos para levarem seus
trabalhadores para os cafezais do sudeste do Brasil, eles não encontraram uma solução
definitiva que possibilitasse uma transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado nas
charqueadas. Neste capítulo exercito algumas reflexões a este respeito.

Neste sentido, a história do Barão de Santa Tecla e de sua escravaria está inserida num
contexto maior que caracterizou o mundo das charqueadas na segunda metade do século e que
tem relação não apenas com as expectativas de futuro dos senhores, como também, com as
expectativas de futuro dos próprios escravos (dentro e fora do cativeiro), pois entendo que estes
processos podem ser melhor compreendidos quando analisados conjuntamente. Assim sendo, as
tentativas para escapar da crise de braços que se anunciava afetaram, mesmo que
desigualmente, a vida dos senhores e dos seus escravos.3

Entretanto, algumas das reflexões realizadas neste capítulo talvez não se encaixem
perfeitamente para a grande maioria dos senhores de escravos do Brasil. Hoje, já se tem como

2
CARVALHO, José M. de. A Construção da Ordem: a elite política imperial e Teatro de Sombras: a política
Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 320-322.
3
Embora já se tenha escrito bastante sobre a escravidão em Pelotas, uma análise mais aprofundada a respeito deste
processo não foi realizada. Ver, por exemplo, CARDOSO, Fernando H. Capitalismo e escravidão no Brasil
meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977;
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. Niterói: ICHF/UFF, Dissertação
de Mestrado, 1983; MAESTRI FILHO, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do
escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984; GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um
estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel, 2001; ASSUMPÇÃO, Jorge E. Pelotas: escravidão e
charqueadas (1780-1888). Porto Alegre, PPGH/PUC-RS, Dissertação de Mestrado, 1995; MONASTÉRIO,
Leonardo M. FHC errou? A economia da escravidão no Brasil meridional. In: História e Economia Revista
Interdisciplinar da Brazilian Business School. São Paulo: Terra Comunicação Editorial, v.1, n. 1, 2005, p. 13-28;
PESSI, Bruno S. A organização do trabalho escravo nas charqueadas pelotenses na segunda metade do século XIX.
Anais da VIII Mostra de pesquisa do APERS. Porto Alegre: CORAG, 2010, p. 97-114.
210
algo amplamente aceito, um dos aspectos que caracterizava a escravidão era a preponderância
dos pequenos proprietários de cativos. Além disso, o tipo de trabalho executado nas
charqueadas e a sua alta razão de sexo as tornam mais exceção do que regra. Portanto, o leitor
pode se perguntar: qual a representatividade da presente análise? Respondo que qualquer estudo
das relações entre senhores e escravos é representativa da história desta instituição que marcou
praticamente todas as sociedades do mundo ocidental.4 Quando se aceita a heterogeneidade e a
diversidade de tais sociedades, percebe-se a necessidade de se estudar cada vez mais este
mosaico de formações socioeconômicas surgidas nos quadros do escravismo moderno.5 Isto não
significa que não existam pontos comuns nas mais diferentes sociedades escravistas. De início,
afirmo que um dos principais aspectos (e talvez um dos principais interesses no presente
estudo) é o fator econômico da relação social entre senhores e escravos. Nas charqueadas de
Pelotas, a exploração do trabalho cativo tomou proporções notáveis. Mas, uma vez que estamos
lidando com seres humanos, deve-se pensar que cada senzala possuía os seus caprichos e cada
senhor possuía as suas formas de punir os desobedientes e premiar os bem comportados. Em
relações que alternavam estabilidade e conflito 6, busco contribuir com a compreensão da
maneira na qual o charqueador se comportava enquanto senhor de escravos e enquanto patrão
de uma empresa que visava obter lucros no mercado.7

6.1 A CABEÇA DO SENHOR, AS MÃOS DO CAPATAZ: AS TRANSFORMAÇÕES NO


MUNDO DO TRABALHO NAS CHARQUEADAS ESCRAVISTAS NA SEGUNDA
METADE DO OITOCENTOS

A partir da década de 1840, as graxeiras a vapor importadas da Europa, um novo


equipamento que necessitava de operadores com maior treinamento, foram adotadas por muitos
charqueadores pelotenses. Além de ampliar a quantidade produzida de graxa e sebo, o novo

4
PATTERSON, Orlando. Escravidão e morte social: um estudo comparativo. São Paulo: EDUSP, 2011.
5
BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no novo mundo: do Barroco ao Moderno (1492-1800). Rio
de Janeiro: Record, 2003.
6
Algo também amplamente aceito pela historiografia brasileira desde os anos 1980. Ver, por exemplo, o clássico
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Cia. das Letras, 1999.
7
Alguns charqueadores também eram absenteístas se pensarmos naqueles que detinham estâncias a dezenas e até
centenas de quilômetros de Pelotas. Mas como esta pesquisa não trata das relações de trabalho nas estâncias, darei
maior atenção ao mundo das charqueadas. Com relação ao trabalho cativo nas estâncias ver OSÓRIO, Helen.
Escravos da Fronteira: trabalho e produção no Rio Grande do Sul, 1765-1825. In: Anales de la XIX Jornada de
História Económica. AAHE, S. M. de los Andes, CD-ROM, 2003; FARINATTI, Luis A. Confins Meridionais:
famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865). Santa Maria: UFSM, 2010; ARAÚJO,
Thiago L. de. Escravidão, fronteira e liberdade: políticas de domínio, trabalho e luta em um contexto produtivo
agropecuário (vila de Cruz Alta, província do Rio Grande do Sul, 1834-1884). Dissertação de Mestrado em
História, UFRGS, 2008; MATHEUS, Marcelo S. Fronteiras da liberdade: escravidão, hierarquia social e alforria
no extremo sul do Império do Brasil. São Leopoldo: Oikos/Unisinos, 2012.
211
maquinário oferecia um melhor aproveitamento das vísceras e outras partes dos novilhos e
acelerava o seu processo de fabricação. Tal mudança tecnológica, mesmo que limitada,
evidencia algo que outros historiadores já trataram, ou seja, os charqueadores não se
mantiveram inertes com relação às instalações de suas fábricas, mas investiram em inovações
que buscavam aumentar a produtividade e os ganhos da empresa. 8 Estas inversões, na realidade,
faziam parte de um processo muito mais amplo e que envolvia transformações de ordem
econômica e sociocultural. Como resultado da Lei Eusébio de Queiroz (1850) e do processo de
expansão do capitalismo e dos investimentos britânicos no Brasil, a segunda metade do
oitocentos foi marcada por muitos debates a respeito do uso da mão de obra escrava e livre nas
lavouras brasileiras9, pela introdução de mudanças pontuais em equipamentos e técnicas para
desenvolver melhor a produção em diversos setores econômicos 10 e inversões em outras áreas,
como as altas finanças e as sociedades comerciais, demonstrando um espaço aberto para
debates e investimentos de capitais, antes presos ao tráfico atlântico, por exemplo.11

Entre os ricos proprietários, o trabalho livre e escravo, as inovações tecnológicas e o


aumento da produção eram temas tratados conjuntamente e as alterações num destes aspectos
podia afetar e exigir mudanças nos outros. Com relação às charqueadas pelotenses, é sabido
que, apesar das raras exceções, elas nunca abriram mão do uso da mão de obra escrava. Assim

8
CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit.
9
Ver, por exemplo, EISENBERG, Peter. A mentalidade dos fazendeiros no Congresso Agrícola de 1878. In:
LAPA, José R. Amaral (Org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 167-194.
10
Para uma análise das mudanças nos engenhos de açúcar e os investimentos em sua modernização ver
EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco (1840-1910). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977. Na Companhia mineradora de Morro Velho, em São João del Rei, Douglas Libby
demonstrou o impacto das máquinas de estilhaçar pedras e da dinamite na economia mineradora (LIBBY, Douglas.
Trabalho escravo e capital estrangeiro no Brasil: o caso de Morro Velho. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984, p. 115;
121). Na pecuária, a introdução de raças bovinas e ovinas estrangeiras trouxe um aumento nos rendimentos da
carne por animal e marcou o cenário de inovações do cone sul americano (BARSKY, Osvaldo;
DJENDEREDJIAN, Julio. Historia del capitalismo agrario pampeano. La expansión ganadera hasta 1895.
Buenos Aires: Universidad de Belgrano/Siglo XXI; GARCIA, Graciela. Terra, trabalho e propriedade: a
Estrutura agrária da campanha rio-grandense nas décadas finais do período imperial (1870-1890). Tese de
Doutorado em História: UFF, 2010, p. 78). Para as charqueadas, Corsetti já realizou um inventário a respeito das
principais inovações técnicas do período (as mesmas que descrevi no capítulo anterior) (CORSETTI, 1983, p. 152-
177). Uma análise do mesmo na indústria algodoeira pode ser vista em CANABRAVA, Alice. O algodão em São
Paulo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984. Na cafeicultura, tanto para as inovações quanto para a ausência delas, ver
STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990;
FRAGOSO, João. Sistemas agrários em Paraíba do Sul: um estudo de relações não-capitalistas de produção
(1850-1920). Dissertação de mestrado em História, UFRJ, 1983.
11
Ver, por exemplo, GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da
Sociedade Bancária Mauá, MacGregor e Cia (1854-1866). São Paulo: USP. Tese de Doutorado, 1997;
GRAHAM, Richard. Grã-Bretanha e o início da modernização no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1973;
FRAGOSO, João L. R.; MARTINS, Maria F. V. As elites nas últimas décadas da escravidão - as atividades
econômicas dos grandes homens de negócios da Corte e suas relações com a elite política imperial, 1850-1880. In:
FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2003, p. 143-164. Tratarei da forma como os charqueadores se comportaram com relação a estas novas
oportunidades de investimento no capítulo 9.
212
sendo, as inovações tecnológicas e a racionalização da produção tiveram que ser realizadas
dentro dos quadros de uma empresa escravista, o que não poderia deixar de afetar o mundo do
trabalho nas charqueadas, provocando algumas alterações na sua organização e tendo que se
adaptar a outras. Tais transformações envolveram pelo menos três aspectos durante a segunda
metade do oitocentos: o uso da mão de obra livre assalariada em alguns setores dos
estabelecimentos, os incentivos monetários aos cativos como estímulo ao aumento da produção
e a tentativa de uma maior racionalização da produção para compensar a queda da média dos
plantéis nas charqueadas.

Foi na trilha da inovação trazida pelas graxeiras que os assalariados entraram para
dentro dos estabelecimentos da charqueada e se disseminaram pelas fábricas. Em 1862, por
exemplo, quando os deputados provinciais rio-grandenses discutiam aspectos relativos aos
mercados consumidores do charque, às outras formas de conservação das carnes e ao trabalho
escravo, o charqueador Manoel Lourenço do Nascimento, representante de Pelotas, respondeu
ao deputado Felipe Neri:

Não questiono que o braço escravo seja um mal, e é por isso que os charqueadores
tratam de removê-lo, tanto que se o nobre Deputado fosse hoje a um desses
estabelecimentos, veria que já as graxeiras, a salga de couro e outros trabalhos são
feitos por braços livres. Antigamente, em qualquer daqueles estabelecimentos, não se
via homens livres além do capataz e algum patrão de iate (…).12

Conforme Nascimento, podia-se verificar o uso de trabalhadores livres em diferentes


espaços da charqueada. Na liquidação da empresa da firma Viúva Vianna & Filhos, por
exemplo, foi possível verificar a cobrança de salários por dois capatazes, um rondador, o patrão
do iate e os peões da charqueada.13 Algumas charqueadas também possuíam guarda-livros e
outras, além destes, podiam apresentar um administrador – uma espécie de gerente de produção
(que podia ser um parente do charqueador) mas que talvez só veio a aparecer nas últimas
décadas. 14 Contudo, com relação aos trabalhadores de menor prestígio, o assalariamento era
algo bastante precário. Analisando o trabalho livre nas charqueada, Denise Ognibeni afirmou
que o pagamento destes trabalhadores era “protelado conforme a vontade do patrão”.15 De fato,

12
Neri defendia que o uso do trabalho escravo era um dos fatores da crise pela qual as charqueadas vinham
passando. Ver discursos dos dias 02.10.1862 e 04.11.1862 (PICCOLO, Helga. Coletânea de Discursos
parlamentares da Assembléia Legislativa Provincial. Porto Alegre: ALRS, v. 1, 1998). Na realidade, como
demonstrarei nos capítulos posteriores, um dos grandes motivos da crise dos anos 1860 foi a superprodução de
charque que fez baixar os preços do produto. Tanto no Rio Grande do Sul, como em Montevidéu e Buenos Aires, a
década foi marcada pela busca de novos mercados para além das plantations de Cuba e do Brasil.
13
Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
14
Ver, por exemplo, processo-crime n. 1176, m. 32, Tribunal do Júri, Pelotas, 1881 (APERS).
15
OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento. Porto Alegre:
PPGH/PUC-RS, Tese de Doutorado, 2005, p. 117.
213
na liquidação da firma mencionada acima, o patrão do iate cobrou salários referentes aos
últimos 20 anos de trabalho. Suas anotações revelavam que ele era pago eventualmente e que o
charqueador se utilizava tanto de dinheiro quanto de mercadorias e bens diversos para
remunerá-lo. Com os totais que recebeu ao final do processo judicial, o trabalhador comprou
um escravo marinheiro da massa falida dos charqueadores (talvez seu companheiro de trabalho
durante anos) e deve ter dado um importante salto em termos de mobilidade social, podendo
fazer fretes por sua conta.16

Portanto, o trabalho assalariado na charqueada constituía-se numa relação social e


econômica muito complexa, pois ao mesmo tempo em que ele se sustentava nos vínculos de
dependência dos empregados para com o patrão, também devia estimular os trabalhadores a
buscarem relações de trabalho melhores em outras charqueadas ou ramo de atividades. E isto
talvez fosse muito comum, pois, conforme Louis Couty, um dos motivos pelos quais os
charqueadores preferiam utilizar escravos ao invés de assalariados livres era a inconstância e
sazonalidade destes últimos. Para os charqueadores, os escravos seriam menos difíceis de
controlar.17 Uma vez que a inconstância do trabalho livre era uma das grandes queixas dos
charqueadores, cabia ao empresário criar mecanismos para manter aqueles trabalhadores por
perto e em tempo disponível na safra.18 A análise de alguns processos criminais nos quais os
mesmos eram testemunhas permitiu verificar que muitos destes trabalhadores moravam na
própria charqueada, em quartos exclusivos para os mesmos e tinham alimentos fornecidos pelo
próprio charqueador, que provavelmente eram descontados dos seus salários. 19 De acordo com
Ognibeni, aos empregados “restava manter uma relação de maior dependência usufruindo como
pagamento, de seu local de moradia este, em alguns casos, associado a outros suprimentos
como alimentação e terras para roçar”.20 Nos saladeros platinos, os patrões também utilizavam
a alimentação como parte do pagamento dos trabalhadores. Couty diz que além dos
vencimentos, cada operário recebia de 3 a 4 quilos de carne por dia de trabalho.

16
Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
17
COUTY, Louis. A Erva mate e o Charque. Pelotas: Seiva, 2000 [1880].
18
O problema da inconstância dos trabalhadores livres nos saladeros e charqueadas e nas estâncias da campanha e
da região platina não foi incomum. Ver, por exemplo, MONTOYA, Alfredo. Historia de los saladeros argentinos.
Buenos Aires: Ed. Raigal, 1956, p. 17-19; MONSMA, Karl. Esclavos y trabajadores libres en las estancias del
siglo XIX. Un estudio comparativo de Rio Grande do Sul y Buenos Aires. In: REGUERA, Andrea; HARRES,
Marluza. (Org.). De la región a la nación. Formas históricas en la construcción del Estado: identidad y
representación. Brasil y Argentina en perspectiva comparada (ss. XIX y XX). Tandil: Universidad Nacional del
Centro de la Provincia de Buenos Aires, 2012, p. 83-120; FARINATTI, Luís A. Op. cit.
19
Processo-crime n. 1194, m. 33, Apelação crime, Pelotas, 1882, APERS; Inventário de José P. Sá Peixoto, n. 276,
m. 19, 1847, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
20
OGNIBENI, Denise. Op. cit., p. 117.
214
Soma-se a isto o fato de que os trabalhadores não estavam descolados do mundo rural
do qual as charqueadas também faziam parte. Sua sazonalidade era motivada por uma vida
social e econômica que devia vinculá-los a outras pessoas de fora da charqueada, sobretudo
seus familiares. Neste sentido, os trabalhadores também possuíam as suas estratégias de
sobrevivência na qual o trabalho na charqueada podia ser somente uma das atividades
realizadas pelos mesmos. 21 Nas firmas mineradoras inglesas instaladas em São João del Rei,
por exemplo, os britânicos encontraram grande dificuldade em lidar com a sazonalidade dos
trabalhadores. Após os feriados e dias santos, muitos não iam trabalhar, fazendo o mesmo nas
épocas de colheitas – o que demonstra seu vínculo familiar com outros setores produtivos e que
o trabalho nas minas era encarado como uma atividade entre outras possíveis. Ou seja, os
patrões tinham que negociar com os trabalhadores livres para garantir sua permanência nas
fábricas. Conforme Libby, este era o principal fator pelo qual os ingleses preferiam a mão de
obra escrava nas minas, pois o controle sobre os mesmos era maior22 (mesmo argumento dos
charqueadores, na visão de Couty). Neste sentido, os trabalhadores assalariados tanto em Minas
quanto em Pelotas não devem ser vistos como operários clássicos. E isto funcionava igualmente
em Montevideu. Conforme Barran e Nahum, o saladeiro era uma empresa rural, com técnicas
de trabalho mais rústicas, realizadas por peões acostumados com a vida campeira. Foi somente
com a chegada dos frigoríficos que o complexo fabril das carnes tornou-se um verdadeiro
espaço de trabalho característico de operários urbanos. 23

Portanto, a dependência pessoal foi fator marcante nas relações de trabalho livre nas
charqueadas e parecia ser um mecanismo utilizado pelos charqueadores para poder contar com
estes trabalhadores eventuais por perto. Mas esta relação devia ser bastante tensa para aqueles
que não se enquadravam na lógica empregada pelo patrão. O próprio Couty, que era um crítico
da escravidão e estimulava o assalariamento do trabalho nas charqueadas, lamentava que “as
condições dessa transformação” do trabalho cativo ao trabalho livre seriam “bem complicadas”,
recomendando aos charqueadores: “será preciso também, e eu insisto neste ponto que poderia
parecer acessório, romper com hábitos seculares e não querer submeter operários livres e
responsáveis (…) à vigilância perpétua e aos procedimentos de direção que são necessários com
os escravos”.24 Indignado, Couty parecia sugerir que os charqueadores tratavam alguns dos seus

21
Um caso semelhante envolvendo os peões de estância no Rio Grande pode ser visto em FARINATTI, Luís A.
Op. cit.
22
LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 100-102.
23
BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo:
Ediciones de la Banda Oriental, 1967, p. 101.
24
COUTY, Louis. Op. cit., 2000, p. 153.
215
assalariados como se fossem escravos. Um caso ocorrido em 1881, um ano depois da obra de
Couty, confirma sua afirmação. Num dos interrogatórios relativos ao crime de um escravo na
charqueada de Paulino T. da Costa Leite, o charqueador testemunhou afirmando que o graxeiro
João César de Castro, que ele havia demitido, apareceu em sua casa “dizendo que estava pobre,
sem recursos, desempregado no meio da safra e com família para sustentar”. O graxeiro, que
morava numa peça alugada pelo capataz, reclamou ao charqueador “que vivia num inferno,
porque o capataz até com carne lhe faltava para o seu sustento”.25

Numa sociedade onde as classes subalternas também eram ciosas dos espaços de
autonomia que conseguiam adquirir, morar na charqueada e ser alimentado por um capataz era
quase viver em condições semelhantes a dos próprios escravos, e isto devia incomodar muito os
trabalhadores livres que viviam na charqueada. Neste sentido, é possível compreender a
instabilidade da mão de obra assalariada também a partir do não pagamento corrente dos
salários e do mau tratamento que os mesmos recebiam. Talvez seja este um dos motivos pelo
qual as experiências de trabalho com os mesmos tenham fracassado. Entrevistando um
charqueador, Couty disse que as tentativas de contratarem carneadores assalariados na
charqueada não obtinham o sucesso desejado. Além disso, conforme o autor, a combinação de
homens livres e escravos no espaço de trabalho provocava inúmeros inconvenientes. Conforme
Couty, os charqueadores também não confiavam a operação das graxeiras a vapor aos escravos,
contratando trabalhadores livres para o mesmo serviço.26 Num contrato estabelecido entre os
irmãos Barcellos e Antônio J. de Oliveira Leitão, em 1861, os mesmos estipulavam que o
trabalho na extração dos sebos e graxas deveria ser realizado por um “graxeiro branco”.27
Observe-se que, mais do que a condição jurídica, o contrato estabelecia a cor do graxeiro,
indicando que o ofício deveria ser exercido por homens livres sem raízes no cativeiro, dando a
entender que os charqueadores não confiavam nos escravos e libertos para exercerem certos
tipos de atividade na charqueada.

Tal comportamento era muito diverso da postura dos empresários ingleses em São João
del Rey, por exemplo. De acordo com Libby, os escravos das minas trabalhavam como
maquinistas, eram promovidos para setores de supervisão e operadores de máquinas de

25
O charqueador disse que mandara seu filho “despedi-lo para não ter empregados que em vez de viverem no
trabalho da charqueada se ausentavam preterindo obrigações”. O patrão teria lhe dito que “de fome não havia de
morrer, que continuaria a dar-lhe vencimentos até que encontrasse emprego” e que talvez ele mesmo o empregasse
na sua chácara ou na fábrica de cola, mas na charqueada não mais (Processo-crime n. 1194, m. 33, Apelação crime,
Pelotas, 1882, APERS).
26
COUTY, Louis. Op. cit., 2000, p. 149-152.
27
Contrato de Sociedade entre os irmãos Luís, Eleutério e Boaventura Teixeira Barcellos e Antônio José de
Oliveira Leitão, Códice JC-20, Fundo Junta Comercial, AHRS.
216
estilhaçar, entre outros. As promoções incluíam as próprias mulheres cativas. 28 Segundo o
autor, tratava-se de um gerenciamento que oferecia certa confiança à capacidade do trabalho
técnico dos escravos. Além disso, os britânicos colocavam lado a lado o trabalho livre e o
cativo em praticamente todas as suas unidades de produção, algo que os charqueadores
preferiam não realizar. E a experiência não deve ter sido “traumática” nem para os escravos e
nem para os britânicos, uma vez que os escravos alforriados voltavam a trabalhar na empresa
como assalariados e a Companhia mineradora foi uma das empresas mais lucrativas do
Império.29 Confiando-se nos depoimentos dos charqueadores dados a Couty é possível verificar
que isto não ocorria em Pelotas, ou seja, os libertos dificilmente voltavam a trabalhar nas
charqueadas dos seus ex-senhores.30 Portanto, se ingleses e pelotenses concordavam a respeito
do emprego dos escravos para superar os problemas da inconstância do trabalho livre, suas
posições com respeito às capacidades dos cativos e dos libertos eram distintas.

Mas os escravos alforriados não retornavam para as charqueadas como assalariados


porque não queriam ou porque os charqueadores não possuíam interesse? Esta é uma pergunta
complexa e que talvez tenha uma resposta positiva para ambas as opções. Mas para começar a
refletir sobre a mesma é preciso iniciar a análise de duas questões fundamentais no período e
que vinham alterando o mundo do trabalho nas charqueadas: a racionalização do trabalho e os
pagamentos de prêmios por produtividade. Como mencionei anteriormente, para contornar a
diminuição do número de escravos nas fábricas e aumentar a produção diante das baixas de
preços do charque, outras soluções foram tentadas pelos charqueadores. Uma primeira
transformação dizia respeito ao próprio aproveitamento do espaço de trabalho e da divisão dos
escravos em tarefas diversas, otimizando o tempo e, mesmo que com muitos limites,
racionalizando a produção. Como afirmei no capítulo anterior, se os carneadores e graxeiros
apareciam nos inventários desde a década de 1810, os salgadores e os sebeiros só começam a
aparecer a partir da década de 1820. Os primeiros chimangos discriminados como tal só surgem
nos plantéis da década de 1840. E os escravos mais especializados como os tripeiros e os
descarnadores surgem somente nos inventários da década de 1850 e 1860, respectivamente.

28
De todos os inventários de charqueadores consultados encontrei mulheres escravas trabalhando como graxeiras
em somente um deles (Inventário de João S. Lopes, m. 366, m. 26, 1853, Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas).
29
LIBBY, Douglas. Op.cit., p. 31-35; 103.
30
Não localizei documentos que divergissem da informação de Couty. De qualquer forma, esta questão ainda está
em aberto, esperando novas pesquisas.
217
Nos dias de matança a jornada de trabalho começava por volta da meia-noite e estendia-
se até o meio-dia, com pelo menos uma parada no meio do turno.31 As tarefas eram realizadas
sob a máxima capacidade de divisão de trabalho para os padrões das charqueadas32 e os
escravos as realizavam organizados em turmas, sob o ritmo das canções entonadas pelos
mesmos.33 Neste processo, os escravos faziam “marcas” especiais nos couros e nas mantas de
charque. 34 E para quê se usavam tais marcas? Por um outro motivo que envolvia uma alteração
ainda mais importante no processo produtivo. Junto destas mudanças, os charqueadores
também criaram um sistema de gratificação monetária ao número de novilhos carneados além
da cota diária. Conforme Couty, que entrevistou um charqueador a respeito, o sistema teve uma
boa resposta por parte dos escravos. O controle da produção realizava-se na contagem do
número de pares de orelhas que o carneador retirava das reses preparadas por ele, entregando as
mesmas ao capataz no final da jornada. Segundo Couty, os charqueadores costumavam pagar
entre $30 e $35 réis por cada novilho preparado a mais e, por conta deste estímulo, o ritmo de
trabalho dos cativos tornara-se intenso. A média de novilhos antes preparados era de 6 a 8
animais por carneador. Depois do novo dispositivo ela saltou para 12 a 14 animais. 35

Conforme Couty, “vê-se que o escravo pode fazer verdadeiras economias. Alguns
escravos do Sr. da Costa, onde este excelente uso é antigo, já puderam libertar-se”.36 Este novo
sistema podia render mais de 2$ por dia de abate. Contabilizando 20 dias de matança no mês,

31
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 211. Detalhes minuciosos da jornada de trabalho nas charqueadas de Pelotas
foram descritas por Alberto Coelho da Cunha em seu conto “Um episódio de charqueada”, publicado em 1872 na
Revista do Partenon Literário de Porto Alegre. Cunha era filho de um rico charqueador e aderiu ao movimento
abolicionista na década de 1870 (CUNHA, Alberto C. da. Um episódio de charqueada. In: MOREIRA, Maria
Eunice (Org.). Narradores do Partenon Literário. Porto Alegre: IEL/CORAG, 2002, p. 41-49).
32
Conforme Libby, para os padrões da época a divisão de trabalho nas fábricas era um procedimento que fazia
toda a diferença na produção. “Ela é típica de empreendimentos capitalistas do século passado, cujos níveis
tecnológicos não eram muito elevados, mas que conseguiam aumentar a produtividade pela organização racional
da força de trabalho” (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 111). Couty nunca disse que não havia divisão de trabalho nas
charqueadas pelotenses. O que o observador francês afirmou foi que, numa comparação com a divisão do trabalho
nos saladeros platinos, as charqueadas apresentavam uma organização muito incipiente e desordenada nos dias em
que não havia matança. Nestas ocasiões os escravos realizavam tarefas diversas (carregar e descarregar os iates,
por exemplo, exigia um dia inteiro de trabalho) onde eram mobilizados conjuntamente, sem divisão de tarefas
(COUTY, Louis. Op. cit.).
33
Alberto Cunha narrou que o escravo Felipe Maranhão, carneador idoso, já não usava sua afiada faca “como
ontem acompanhada de uma canção alegre” (CUNHA, Alberto C. Op. cit., p. 43). Em março de 1853, o escravo
Nicolau, marinheiro do charqueador Joaquim José de Assumpção, foi castigado por não cantar enquanto içava as
cordas do navio (Processo-crime n. 32, 1853, Tribunal do Júri, Pelotas, APERS).
34
COUTY, Louis. Op. cit., p. 149-150.
35
COUTY, Louis. Op. cit., p. 149-150. O pagamento de prêmios aos escravos também foi estipulado no contrato
de sociedade em uma charqueada mencionado anteriormente (Contrato de Sociedade entre Boaventura Teixeira
Barcellos e Antônio José de Oliveira Leitão, Códice JC-20, Fundo Jundo Comercial, AHRS).
36
COUTY, Louis. Op. cit., p. 150). Em julho de 1879, em meio a uma investigação de uma quadrilha que roubava
charque dos varais dos estabelecimentos, a polícia prendeu os suspeitos e requisitou que os charqueadores
enviassem seus escravos até a delegacia para reconhecerem as suas mantas de charque. E, de fato, os carneadores
as reconheceram devido às marcas que realizavam nas mesmas (Jornal do Comércio de Pelotas de 02.07.1879 e
03.07.1879 (Biblioteca Pública Pelotense)).
218
um cativo acumularia 280$ numa safra – isto sem contar outros ganhos com diferentes
atividades que ele poderia exercer. 37 Portanto, a relação entre o aumento do ritmo de trabalho
com a compra da liberdade era totalmente factível. 38 Mas o dinheiro ganho não servia apenas
para juntar pecúlio. É provável que estes carneadores fossem procurados para ajudar outros
escravos e acabavam se tornando figuras importantes dentro do plantel de uma charqueador.
Contudo, como resultado deste mesmo processo, um grupo de trabalhadores acabava se vendo
em desvantagem. Como notou Alberto da Cunha, os escravos mais velhos, por exemplo, não
conseguiam acompanhar o ritmo acelerado dos mais jovens. 39 Além disso, a grande capacidade
de acumular pecúlio por parte dos carneadores provocou a inflação dos preços pagos pelas
cartas de alforria nas senzalas dos charqueadores. Os valores pagos pelas mesmas, entre os anos
1860 e 1870, estavam entre os mais altos de todo o Rio Grande do Sul. Em 1868, por exemplo,
o carneador Firmino Mina pagou 3:000$ por sua liberdade – cifra muito acima do verificável
em outros municípios da província.40 Com esta quantia, o seu ex-senhor podia comprar de dois
a três escravos no mercado local. Exemplos como este justificavam mais ainda a permanência
da escravidão como uma instituição economicamente rentável para o charqueador, numa
complexa relação compartilhada por senhores e escravos. Por outro lado, o aumento do valor
pago pelas alforrias poderia dificultar o acesso à liberdade para aqueles que não possuíam
condições de acúmulo semelhante aos carneadores mais produtivos ou que não pertencessem ao
círculo de relações dos mesmos. 41

Contudo, nem todos os escravos estavam dispostos a pagar tamanhas quantias ou utilizar
o seu dinheiro somente com a finalidade de se alforriar. A partir das conversas que teve com os

37
Douglas Libby diz que um escravo trabalhador nas minas de São João del Rey podia receber anualmente em
horas-extras até 10% do seu próprio valor (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 99). Tendo em vista que a média mais
alta dos cativos adultos inventariados nas charqueadas de Pelotas foi de 1:500$, percebe-se que o potencial de
acúmulo de pecúlio na charqueada poderia ser bem maior.
38
Neste sentido, os ingleses instalados em Minas perceberam que a ideia de liberdade era tão estimulante no
universo do trabalho cativo que a Companhia mineradora implementou um programa de concessão de alforrias.
Entre 1861 e 1866, por exemplo, 97 escravos foram libertos por meio do mesmo. Contudo, muitos deles
retornavam para o trabalho das minas (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 103).
39
CUNHA, Alberto C. da. Op. cit.
40
Assim como ele, muitos outros cativos de charqueada pagaram valores superiores a 2:000$, cifra menos comum
de se encontrar em outros municípios da província se comparados a Pelotas. O preço de 3:000$ foi o mais alto que
localizei ao pesquisar as alforrias pagas em todos os municípios do Rio Grande do Sul durante o século XIX. Esta
busca só foi possível por conta da publicação das mesmas cartas de liberdade organizadas pelo Arquivo Público do
Rio Grande do Sul. Escravos dos charqueadores Honório Luís da Silva e Manoel Francisco Moreira, e dos
comerciantes de charque Domingos Félix da Costa e família Cardia, também pagaram o valor de 3:000$. Fora
estes, somente um outro senhor recebeu uma quantia igual por ter libertado seu cativo (ARQUIVO PÚBLICO DO
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Documentos da escravidão catálogo seletivo de cartas de liberdade
acervo dos tabelionatos do interior do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, CORAG, v. I e II, 2006).
41
Como se verá a seguir, os carneadores ajudavam outros cativos a se libertarem. Por este motivo, penso que os
valores pagos por outros escravos para se alforriarem tenderiam a aumentar, pois os charqueadores deviam saber
que os carneadores ajudavam alguns de seus companheiros de cativeiro.
219
charqueadores, Couty declarou: “É preciso confessar que, na maioria das vezes, [os
carneadores] fazem de seus ganhos outros usos, pois eles pouco desejam uma liberdade
comprada por trabalho ou privações”. 42 Além disso, penso que eles podiam continuar
trabalhando mais um tempo na charqueada para conseguir melhores condições e preparar-se
para uma condição mais segura em sua vida pós-cativeiro, tanto para si, quanto para seus
familiares. Tratava-se de uma estratégia muito bem traçada e que podia ser potencializada caso
o escravo contasse com outros parentes em situação semelhante ou pessoas que ele tinha
interesse em ajudar.43 Um caso envolvendo um escravo de Joaquim da Silva Tavares
exemplifica bem esta situação. Em novembro de 1861, o preto mina Joaquim, carneador, 28
anos, assassinou a preta liberta Juliana com uma facada, dentro da casa da mesma. Perguntado
do motivo pelo qual cometeu o crime, o réu respondeu: “que vivendo com uma preta Juliana, a
quem ele havia forrado, e recebendo dela ingratidões, apaixonou-se a ponto de a assassinar em
novembro do ano passado, e que hoje está arrependido de cometer esse crime”. 44

Esse não foi o único crime envolvendo carneadores apaixonados por forras e cativas que
viviam distante das charqueadas. Em dezembro de 1868, por exemplo, o preto mina José, 50
anos, escravo marinheiro do charqueador José Antônio Moreira, matou Sofia alegando ter
emprestado mais de 1:000$ para ela se alforriar, mas a vítima teria usado o dinheiro para
libertar um outro escravo com qual vivia.45 Em março de 1871, o cativo Joaquim Angola, 40
anos, cozinheiro e carneador, matou com uma facada um outro preto que estava na casa da preta
Martha, com quem Joaquim “tinha relações”. 46 O número de casos envolvendo carneadores,
salgadores e outros escravos com pretas cativas e forras que viviam na cidade ou na Serra dos
Tapes devia ser muito maior, visto que foram poucos os que perderam a cabeça por ciúmes,
vindo a deixar seus vestígios em processos criminais.

Como o número de mulheres era cada vez menor nas senzalas do charqueador (ver
capítulo 5), ficava difícil para os escravos constituir família ou relacionar-se com outras
escravas dentro do seu próprio plantel ou no dos vizinhos. Neste sentido, é provável que muitos
carneadores insistissem com seus senhores para poderem ter a oportunidade de eventualmente
sair ao encontro de outras pessoas do seu interesse. O charqueador podia, inclusive, negociar tal
autonomia aos escravos mais produtivos durante a jornada semanal, por exemplo. No mesmo
processo criminal mencionado acima é interessante notar que o escravo Joaquim havia recebido

42
COUTY, Louis. Op. cit., p. 150.
43
Ver, por exemplo, MATHEUS, Marcelo S. Op. cit.
44
Processo-crime n. 587, Tribunal do Júri, Pelotas, 1861 (APERS).
45
Processo-crime n. 264, Tribunal do Júri, Pelotas, 1869 (APERS).
46
Processo-crime n. 925, Tribunal do Júri, Pelotas, 1871 (APERS).
220
um recado da preta Martha dizendo que a mesma o esperava em sua casa. Era uma quarta-feira.
Contudo, ele mandou respondê-la que neste dia não poderia e que ela esperasse mais 4 dias. Ou
seja, o escravo marcou o seu encontro para um domingo, sabedor de que era a sua folga e, de
fato, cumpriu o prometido à Martha. Portanto, Joaquim conhecia os seus limites e suas
obrigações para com o charqueador, mesmo porque os mesmos deviam ter sido fixados a partir
de uma negociação entre ele e o seu senhor.47 Neste sentido, é provável que um grupo de
carneadores atingisse uma notável importância dentro da senzala podendo negociar em
melhores condições com os senhores e capatazes.48

Além disso, alguns cativos também estavam em melhores condições de fazer uma boa
leitura do contexto em que se encontravam. A cautela dos escravos carneadores em migrar
instantaneamente para a vida de liberto era ainda mais compreensível no caso de os mesmos
observarem com atenção a forma como alguns trabalhadores assalariados viviam suas vidas
fora da charqueada. A situação dos operários livres das indústrias da carne não era muito digna
nem em Pelotas e nem em outros países. Nos saladeros platinos, por exemplo, Barran e Nahum
afirmaram que a situação dos trabalhadores tendeu a piorar ao longo do século XIX, por conta
das crises enfrentadas pelo setor e da mão de obra mais abundante. Um traço constante era “el
empleo de niños que sólo se encuentra en las formas primeras de la acumulación capitalista”
junto com demais operários que enfrentavam “las grandes jornadas de dieciséis, dieciocho y
aún más horas, señalan el máximo grado de tensión de las fuerzas del trabajador”. Em suma,
tratava-se de “una brutal plusvalía, que sólo la industria europea en los albores de la revolución
industrial presenció”. 49

Analisando os horários de trabalho dos escravos na Companhia mineradora Morro


Velho, em São João, Libby percebeu que na primeira metade do século, elas totalizavam 12
horas diárias, com duas equipes se intercalando nos trabalhos. Contudo, depois que a imprensa
inglesa começou a pressionar a companhia britânica instalada no Brasil, as jornadas diminuíram
para 8 horas, com três equipes se dividindo nas tarefas. Conforme Libby, “pelo menos
teoricamente, o regime de horários em Morro Velho poderia ser comparado muito
favoravelmente com os horários vigentes na indústria britânica do mesmo período”. 50 O próprio
Couty, que defendia o assalariamento do operário platino em detrimento da escravidão em
Pelotas, descreveu a situação difícil enfrentada pelos trabalhadores dos saladeros. De acordo

47
Processo-crime n. 925, Tribunal do Júri, Pelotas, 1871 (APERS).
48
Com relação a isto ver MATHEUS, Marcelo S. Op. cit.
49
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 101.
50
LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 124. Para um retrato contemporâneo das condições de vida dos operários ingleses
ver ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.
221
com ele, o saladeirista possuía vantagem sobre o charqueador, porque em situações de baixa ele
“pode, mesmo, fechar seu saladeiro e estará seguro de encontrar, quando ele reabrir, operários
em quantidade suficiente. Esses operários devem aproveitar, como o saladeirista, anos
favoráveis e grandes abates para se prevenir contra o desemprego: eles lutam individualmente
por sua vida”.51

Nos Estados Unidos, a situação dos operários da indústria da carne também era
lastimável, tornando-se mundialmente conhecida através do romance The Jungle (1906), de
Upton Sinclair. O livro atacava as condições de fabricação das carnes e dos trabalhadores nos
frigoríficos de Philipp Armour, o Barão das carnes de Chicago. Liderando diversas greves nos
anos 1880, os operários exigiam uma jornada de trabalho de 8 horas e o direito de sindicalizar-
se, mas eram seguidamente reprimidos de forma violenta por milícias formadas pelos próprios
empresários do setor.52 Conforme James Green, enquanto trabalhadores norte-americanos (com
uma família de 5 membros) recebiam um salário básico de 15,40 dólares por semana, os
trabalhadores dos frigoríficos venciam 9,50 dólares. Convertendo para mil réis, no ano de 1885,
este valor equivalia a quase 24$, o que daria cerca de 100$ mensais e 1:200$ anuais. 53 Em
Montevideu, os saladeiristas pagavam aos seus carneadores, em cada safra, algo entre 1:000$ e
1:600$, dependendo do valor das diárias.54 Era mais de 3 vezes o salário de um peão de
charqueada.55 Contudo, qualquer comparação mais aprofundada com o trabalho nas
charqueadas deve envolver os custos de vida com alimentação e moradia de um trabalhador em
Chicago, Montevidéu e Pelotas, algo que esta pesquisa não pretendeu realizar. 56

51
COUTY, Louis. Op. cit., p. 146.
52
GREEN, James. Death in the Haymarket: a story of Chicago, the first labor movement and the bombing that
divided gilded age America. New York: Pantheon Books, p. 103-104; 158-160.
53
Para a conversão utilizei MOURA FILHO, Heitor P. Taxas Cambiais do Mil-Réis. Exchange rates of the mil-
reis (1795-1913). MPRA Paper N. 5210. Disponível em <http://mpra.ub.uni-muenchen.de/5210/>, 2006.
54
Conforme Couty, os carneadores recebiam de 25 a 40 francos por dia. Tendo em vista a taxa de câmbio
calculada por Couty e a estimativa de que estes trabalhadores carneavam 25 dias por mês, o vencimento em 5
meses podia rondar entre 1:000$ e 1:600$, como foi dito (COUTY, Louis. Op. cit., p. 143).
55
A partir do processo de Liquidação da firma Viúva Vianna & Filhos foi possível verificar alguns trabalhadores
livres cobrando seus salários referentes à safra que se encerrava. A partir dos mesmos, é possível calcular os
respectivos vencimentos anuais para o capataz (1:536$), o patrão do iate (480$), o graxeiro (384$), o camarada do
iate (320$), o peão da casa (340$) e o rondador (337$). Os empresários não utilizaram carneadores livres. Mas
como os graxeiros exerciam um serviço bastante especializado é provável que um carneador não recebesse mais do
que isto. Os serviços de um escravo carneador, estipulados na mesma fonte, eram calculados em 30$ mensais
(Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º c. do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
56
Ao comparar o salário dos trabalhadores livres brasileiros com o dos europeus na Companhia mineradora de São
João del Rey, Libby chegou aos mesmos índices, ou seja, os europeus recebiam 3,4 vezes o salário dos brasileiros,
exercendo as mesmas funções. Nos anos 1860, o salário dos broqueiros brasileiros era de 37$500 por mês (pouco
mais que o de um peão de charqueada ou do valor do trabalho de um escravo de charqueada na mesma época, que
ficavam em 30$) (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 104-105). Portanto, o trabalho assalariado exercido por um
brasileiro em comparação com um estrangeiro era muito desvalorizado tanto em Pelotas quanto em São Joao.
222
Portanto, não há como refletir sobre os projetos individuais e coletivos dos trabalhadores
livres e escravos empregados em setores fabris no século XIX e não pensar em suas condições
de trabalho e de vida. Neste sentido, ao ponderarem sobre a sua condição após o cativeiro,
realizando cálculos sociais (como qualquer trabalhador o faz) acerca das suas condições e o que
poderia estar em jogo em cada uma de suas escolhas, os carneadores eram muito mais
inteligentes do que Couty poderia supor. Talvez até mesmo um ex-companheiro de cativeiro
que tenha se alforriado e caído em condições de precariedade podia lhe servir como exemplo.
Neste sentido, alguns escravos possuíam uma noção muito clara do contexto em que se
encontravam e deviam buscar gerenciar os seus recursos de uma forma que sua vida de liberto
não fosse pior que a sua vida de cativo.57

A afirmação feita por Couty de que dificilmente os escravos alforriados retornavam para
trabalhar nas charqueadas pode ser interpretada de várias formas. A primeira delas é que muitos
deles conseguiam uma nova vida na qual não precisavam mais se sujeitar a um serviço
reconhecidamente muito desgastante. A segunda é a de que, mesmo em situação de miséria,
eles não desejavam retornar para a administração do seu ex-senhor. E a terceira é que seus
próprios ex-senhores não desejavam contar com o seu trabalho nas fábricas, visto a
“inconveniência” de misturar livres e cativos na matança. Obviamente que estas escolhas
variavam de senhor para senhor e de escravo para escravo, visto que muitos libertos deviam
continuar mantendo relações com a família senhorial, como outras pesquisas atestam. 58

Portanto, a política de incentivos monetários implantada pelos charqueadores, nos casos


de sucesso, tornava o investimento em escravos ainda mais rentável. Contudo, o aumento da
produção talvez tenha ultrapassado os limites suportáveis por muito cativos, gerando certas
tensões nas relações de trabalho nas charqueadas. Uma das formas que encontrei para testar
minha hipótese foi a análise dos processos criminais envolvendo escravos de charqueadores.
Tendo em vista que o número de charqueadas manteve-se constante entre as décadas de 1830 e
1870 e que a média dos plantéis de cativos por charqueada diminuiu, o aumento do número de
crimes durante o mesmo período merece ser levado em conta.59 Uma análise qualitativa dos
conflitos envolvendo capatazes e as brigas dentro das charqueadas pode revelar uma possível
57
MATHEUS, Marcelo S. Op. cit.
58
Ver, por exemplo, MATHEUS, Marcelo. Op. cit.
59
Não descarto a hipótese de que os processos criminais também aumentaram devido a ampliação do aparato
judicial e a maior interferência da esfera estatal nas relações de trabalho nas charqueadas. Contudo, uma alteração
mais profunda na estrutura judicial pelotense só ocorreu em 1875, quando ela foi elevada à comarca. Antes disso,
os feitos eram julgados em Rio Grande. O baixo índice de crimes nas primeiras décadas talvez indique que alguns
conflitos fossem resolvidos no nível da unidade produtiva, sem muita interferência de poderes externos. As
charqueadas ficaram quase que inativas entre 1836 e 1841 e isto certamente também afetou os índices. De qualquer
forma, trata-se apenas de um indicador que merece pesquisas futuras.
223
tensão entre feitores (sob à orientação do charqueador para que aumentassem a produção) e
escravos (que procuravam imprimir o seu próprio ritmo ao trabalho).60 Disto resultavam
inúmeros conflitos cujo desfecho mais grave era a morte ou do capataz ou dos escravos. 61

Gráfico 6.1 – Processos criminais envolvendo escravos de charqueadores pelotenses (1830-1888)

Fonte: Construído a partir de PESSI, Bruno; SILVA, Graziela (Org.). Documentos da


escravidão: processos crime: o escravo como vítima ou réu. Porto Alegre: CORAG,
2010.

Em julho de 1856, o escravo Inácio, 27 anos e trabalhador de charqueada, assassinou o


capataz de José Antônio Moreira após uma briga com o dito empregado. 62 Em setembro de
1864, o preto mina Matheus, roceiro, 45 anos, matou o capataz Francisco J. de Campos a
facadas, depois de uma discussão na charqueada de Antônio José de Azevedo Machado. 63 Em
dezembro de 1873, o capataz João P. Villar, depois de desferir “bordoadas” e castigar o escravo
Feliciano, 22 anos e servente de charqueada de Joaquim J. de Assumpção, foi assassinado pelo
mesmo cativo que usava uma faca. 64 Numa madrugada de janeiro de 1880, o escravo Faustino,
de 18 anos de idade e alugado ao charqueador Domingos S. Barbosa, por conta de desavenças
com o capataz Antônio de O. Graça, o matou com algumas cacetadas na cabeça. O capataz
havia dito que lhe colocaria nos ferros, o que motivou o cativo a planejar a sua morte.65

Acompanhando com atenção as queixas dos escravos, é possível verificar que os


motivos dos conflitos entre capatazes e escravos decorriam dos excessivos castigos aplicados

60
Para uma análise neste sentido ver SILVA, Róger Costa da. Criminalidade e escravidão, Pelotas, segunda
metade do século XIX. In: Anais do 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre:
UFRGS, 2011, p. 1-18.
61
Para um apanhado geral destes conflitos, questões relativas às fugas e a resistência escrava nas charqueadas de
Pelotas ver ASSUMPÇÃO, Jorge E. Op. cit.
62
Processo-crime n. 788, Tribunal do Júri, Pelotas, 1856 (APERS).
63
Processo-crime n. 668, Tribunal do Júri, Pelotas, 1864 (APERS).
64
Processo-crime n. 965, Tribunal do Júri, Pelotas, 1873 (APERS).
65
Processo-crime n. 1.147, Tribunal do Júri, Pelotas, 1880 (APERS).
224
não apenas para corrigir a sua má conduta como também as falhas decorrentes de seus serviços
na charqueada. Em janeiro de 1879, por exemplo, o escravo Antônio, 40 anos, cozinheiro e
carneador, foi castigado pelo capataz por não conseguir cortar os couros que preparava da
maneira correta, os estragando.66 Em janeiro de 1873, Feliciano matou o capataz por ele o haver
“mandado trepar para cima de uma pilha de carne verde para trabalhar e ele réu lhe dissera não
poder fazê-lo por ter os pés e as mãos ardidas do sal”. 67 O escravo Matheus, citado acima,
também revoltou-se com o capataz pois não queria trabalhar “no valo” que cercava o terreno da
charqueada, alegando estar com os pés rachados.68 O aumento dos ritmos de produção e a
pressa dos escravos em aumentar suas tarefas foi capaz de provocar um infeliz acidente na
charqueada de Manoel Jacintho Lopes. Eram cerca de 4 horas da madrugada quando Manoel,
34 anos, baiano, ao retornar correndo com um grande pedaço de carne para o galpão de
charquear, esbarrou no cativo Joaquim, ferindo-o mortalmente com sua faca. Os demais
carneadores e trabalhadores assalariados confirmaram a versão do réu, alegando que o local de
trabalho estava muito pouco iluminado (a matança era realizada de madrugada sob as luzes de
seis lampiões, sendo que no galpão de charqueada havia somente 2 deles) o que favoreceu o
acidente. Manoel foi absolvido.69

Como foi dito, as queixas contra os excessos de castigos também eram comuns. 70 Talvez
eles estivessem excedendo o nível outrora suportado pelos escravos. Por estarem convivendo
com trabalhadores livres no interior das charqueadas, recebendo dinheiro como pagamento por
seus serviços e vendo alguns parceiros de cativeiro se libertando é provável que os mesmos já
não aceitassem mais o tratamento que lhes era conferido anteriormente. Talvez esta fosse uma
das “inconveniências” reclamadas pelos charqueadores em misturar escravos e assalariados nos
galpões de charquear.71 Os cativos estavam sujeitos a medidas disciplinares que não envolviam
os assalariados, como dormir sob uma senzala trancada e ter seus espaços de autonomia
restringidos pelo senhor. Neste sentido, ao não serem castigados (e caso o fossem, não devia ser
na mesma proporção) os assalariados deviam oferecer exemplos de conduta que podiam ser
internalizados pelos escravos mais zelosos de sua posição na senzala.

66
Processo-crime n. 1.135, Tribunal do Júri, Pelotas, 1879 (APERS).
67
Processo-crime n. 965, Tribunal do Júri, Pelotas, 1873 (APERS).
68
Processo-crime n. 668, Tribunal do Júri, Pelotas, 1864 (APERS).
69
Processo-crime n. 926, Tribunal do Júri, Pelotas, 1871 (APERS).
70
Neste sentido, ver também SILVA, Róger da Costa. Op. cit.
71
COUTY, Louis. Op. cit.
225
A análise dos processos criminais também revela que as charqueadas estavam longe de
se constituírem em “penitenciárias”, como declarou Nicolau Dreys. 72 A mobilidade com que
alguns escravos do serviço das charqueadas circulavam pela cidade era algo notável. 73 Além
daqueles carneadores que saíam ao encontro de libertas com quem mantinham relações afetivas,
encontram-se vários crimes e conflitos praticados por escravos dos charqueadores enquanto
andavam pela cidade, como o preto Joaquim, assassinado a machadadas por não pagar uma
dívida de jogo que contraiu na cidade ou o escravo Porfírio que matou seu companheiro de
cativeiro no caminho da Serra dos Tapes, porque desconfiou que o mesmo o estava roubando.74
O pardo João, em 1855, após cometer um crime em Pelotas, foi até Porto Alegre (distante mais
de 250 Km) pedir proteção ao seu senhor moço, que, na ocasião, era deputado provincial. 75 E,
em 1882, apenas para dar mais um exemplo, o carneador Ulisses, depois de sua jornada de
trabalho, foi dar um passeio na cidade onde consumiu bebida alcoólica em algum bolicho e
depois foi até uma loja comprar ceroulas, ocasião em que foi acusado de furto.76

Entretanto, esta margem de locomoção não devia estar acessível a todos e alguns
escravos, aos olhos do senhor, deviam possuir mais direitos do que outros. Como foi dito
anteriormente, é possível que os carneadores e outros escravos tivessem mais privilégios. Não
surpreende que os casos de crime envolvendo relacionamentos passionais com libertas
envolviam carneadores e marinheiros. Estes últimos deviam conhecer um grande número de
pessoas fora da charqueada. Além disso, por conta de sua circulação e da leitura que faziam do
meio social no qual viviam, alguns escravos também conseguiam tecer uma rede de alianças
mais ampla, envolvendo forros e homens livres, vindo a utilizá-las em caso de necessidade. Em
1879, o escravo carneador Antônio, com medo de ser castigo novamente pelo capataz de sua
charqueada, foi ao encontro de outros charqueadores para procurar “apadrinhar-se”. E, de fato,
o carneador foi protegido e escapou, momentaneamente, de ser castigado na charqueada de seu

72
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IEL, 1961. Esta
constação já havia sido realizada por Caiuá Al Alam ao estudar a escravidão e criminalidade em Pelotas na
primeira metade do século XIX (AL-ALAM, Caiuá Cardoso. A negra forca da princesa: Polícia, pena de morte e
correção em Pelotas (1830-1857). Pelotas: Sebo Icária/ Edição do autor, 2008, p. 53).
73
Na realidade, isto foi uma constante na vida dos escravos de diversas regiões, pois faz anos que a historiografia
brasileira vem demonstrando a mobilidade dos cativos tanto nas cidades quanto nos meios rurais. Ver, por
exemplo, MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982; REIS, João José.
Domingos Sodré – um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo:
Cia das Letras, 2008; CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1990; MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os
significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
74
Processo-crime n. 623, Tribunal do Juri, Pelotas, 1862 (APERS).
75
Processo-crime n. 463, Tribunal do Juri, Pelotas, 1855 (APERS).
76
Processo-crime n. 1.200, Tribunal do Juri, Pelotas, 1882 (APERS).
226
senhor.77 Outros escravos, aliados a pequenos mercadores, roubavam charque e couros,
revendendo-os na cidade – empreitada que rendia certos ganhos econômicos, mas também
podia resultar em problemas com a polícia. 78

O fato é que cada charqueada possuía um número muito grande de escravos para que o
senhor os tratasse de forma igual e tivesse um controle rígido sobre os mesmos. Nesta última
tarefa ele devia ser auxiliado pelo capataz, mas não era fácil encontrar trabalhadores de
confiança para tal função. Com o objetivo de acelerar a produção, impor disciplina aos escravos
e não desapontar o charqueador, os capatazes viam-se diante de uma situação bastante delicada,
pois a insatisfação dos cativos e a revolta de alguns deles tinham neles os alvos mais imediatos.
E tendo em vista o aumento do número de mortes e ataques aos capatazes mencionados
anteriormente é certo que estes trabalhadores sabiam da sua condição e do perigo que corriam
quando se excediam nos castigos. Um caso muito interessante ocorrido em janeiro de 1873
pode servir como exemplo. Após o assassinato do capataz Villar, na charqueada de Joaquim J.
de Assumpção, todos os escravos manifestaram que o seu administrador os tratava mal, o que
motivou o crime. Para confirmar as informações dos cativos, as autoridades judiciais mandaram
perguntar sobre a conduta de Villar nos demais lugares em que ele trabalhou. Em maio do
mesmo ano, foram consultados três charqueadores que deram as seguintes respostas:

“Em resposta à carta que V. Sª me dirigiu tenho a responder ao primeiro quesito que
João Paredes Villar durante o tempo em que foi capataz de minha charqueada era
ríspido com os escravos e que muitas vezes tive de contê-lo nos castigos que fazia. É
esta a resposta que tenho a dar a V. S.ª podendo fazer dela o uso que quiser” (João
Maria Chaves).
“Em resposta à carta supra de V. S.ª tenho a dizer-lhe que é verdade que o falecido
João Paredes Villar, há 18 anos, mais ou menos, esteve como capataz na minha
charqueada, e que durante o tempo em que esteve como empregado mostrou sempre
um gênio rigorosíssimo e até bárbaro para com os escravos, castigando-os as vezes tão
imoderadamente que via-me na necessidade de intervir, afim de evitar uma desgraça.
Pode V. S.ª fazer desta o que lhe convier” (José Bento de Campos).
“Respondendo a carta de V. S.ª, quanto ao primeiro quesito declaro que esteve na
administração da charqueada nos anos de 1861 a 1867, quanto ao segundo quesito
declaro que João Paredes Villar é um homem que tinha a mania de dar bordoadas
imoderadamente por simples gosto nos escravos, ao ponto de ter eu por muitas vezes
de sujeitá-lo obrigando-o a reprimir seu gênio extraordinariamente ríspido; na verdade
era nesse sentido um louco. É esta a resposta que tenho a dar-lhe fazend V. S.ª dele o
uso que lhe convier (Major José Quirino Candiota).79

Os depoimentos convergiam com os relatos de testemunhas e escravos no processo. Se


por um lado os senhores demonstravam um senso de proteção que os escravos podiam recorrer,

77
Processo-crime n. 1.135, Tribunal do Juri, Pelotas, 1879 (APERS).
78
Processo-crime n. 255, Vara cível e crime, Pelotas, 1876 (APERS).
79
Processo-crime n. 965, Tribunal do Júri, Pelotas, 1873 (APERS).
227
por outro, mesmo achando Villar um louco, o Major Candiota o deixou trabalhando por 6 anos
em sua charqueada. Como demonstrarei adiante, é certo que alguns charqueadores
condenassem os exageros de seus capatazes, até porque não desejavam perder seus escravos por
tamanho descontrole e deixar a senzala em desarmonia, mas, ao que parece, alguns não se
opunham em tolerar feitores rígidos por algum tempo, desde que sua escravaria não lhes
dessem problemas. Em suma, senhores, capatazes e escravos apresentavam uma relação
triangular extremamente complexa. Conforme Eugene Genovese, estudioso da escravidão nas
plantations algodoeiras do sul dos Estados Unidos, os cativos habilmente tentavam jogar o
senhor contra os capatazes e muitas vezes o conseguiam. 80 Os capatazes, em resposta, deviam
jurar vingança aos mesmos. Contudo, é importante que se diga que em outros processos
criminais houve capatazes cuja conduta foi considerada boa pelos cativos.81 Neste sentido, se os
charqueadores e os capatazes classificavam os escravos em desobedientes e obedientes, os
cativos também possuíam suas formas de classificar senhores e capatazes.82

Neste contexto de aumento da criminalidade nas charqueadas, o ano de 1881 tornou-se


um marco, pois foi a primeira e única vez em que um senhor foi interrogado como um dos réus
no processo. Os irmãos Costa Leite, proprietários da charqueada, não pertenciam a uma família
tradicional no ramo dos negócios. Eram comerciantes portugueses que decidiram investir nas
charqueadas por volta dos anos 1860 e que, talvez, não tivessem muito jeito e nem experiência
no tratamento com os cativos, visto o excesso desmedido dos castigos que os levaram à Justiça
pela morte de um escravo. O caso tomou as páginas da imprensa local e o charqueador, furioso,
demitiu três dos seus empregados que o haviam denunciado à polícia.83 No calor do movimento
abolicionista que vinha se fortalecendo, o episódio tomou proporções nacionais. Em 1881, o
próprio Joaquim Nabuco manifestou-se sobre o caso. A Gazeta da Tarde do Rio de Janeiro
registrava em sua capa um discurso inteiro do deputado abolicionista onde se podia ler num
trecho: “No extremo sul as mesmas atrocidades dos charqueadores da fronteira, matando em

80
GENOVESE, Eugene D. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988, p. 33-41.
81
Ver, por exemplo, Processo-crime n. 1.147, Tribunal do Júri, Pelotas, 1880 (APERS).
82
Conforme Genovese, “os escravos tiravam proveito desses conflitos para facilitar as coisas para si, e até mesmo
alguns duros senhores de vez em quando intervinham em favor deles (…). Os senhores demitiam os
administradores por diversos motivos. Despediam os que tratavam os escravos com excessiva leniência ou, com
muito mais frequência, os que demonstravam em relação a eles dureza excessiva (…). Havia limites, que os
escravos conheciam, pois eles mesmos os haviam ajudado a fixar, além dos quais normalmente um administrador
não ousava ir (…). Alguns senhores acusavam seus administradores de se comportarem com demasiada
familiaridade, mas essa acusação poderia significar muitas coisas, desde deitar-se com as negras até se preocupar
demais com o bem-estar dos escravos” (GENOVESE, Eugene. Op. cit., p. 34-43).
83
Processo-crime n. 1194, m. 33, Apelação crime, Pelotas, 1882, APERS.
228
surras os míseros escravos, como acaba recentemente de praticar um potentado em Pelotas”.84
Nos anos 1880, alguns motins de escravos agitaram Pelotas e na mesma época os
charqueadores começaram a libertar seus cativos em grandes levas, lhes impondo contratos com
cláusulas de trabalho – prática cada vez mais comum naquele contexto e que precisa ser melhor
estudado por outros pesquisadores.85

Portanto, no início dos anos 1880, o fim da escravidão era uma realidade já esperada por
todos, mas os charqueadores não tiveram tanta habilidade para conduzir o processo de transição
do trabalho cativo para o trabalho livre. A partir dos relatos de Couty, e das fontes pesquisadas
e analisadas neste e no capítulo anterior, é possível considerar que os charqueadores
continuaram utilizando a mão de obra cativa nas suas fábricas por três motivos principais. O
primeiro deles é que tal investimento era economicamente rentável. Por volta dos anos 1860 e
1870, um trabalhador assalariado exigia 360$ anuais por serviços de charqueada (e, mesmo que
se argumente que os peões não trabalhassem os 12 meses do ano, foi este o valor que a firma
Viúva Vianna & Filhos teve que pagar aos mesmos). O valor do trabalho de um escravo, na
mesma época, era calculado em 30$ mensais, ou seja, não havia muita diferença com relação ao
custo do trabalho de ambos. Entretanto, o charqueador gastava uma média de 50$ anuais por
escravo com as despesas básicas e mais o valor investido em sua compra. 86 O preço de 1:500$
foi a média dos cativos homens adultos inventariados no meado da década de 1860 (estou
escolhendo o valor mais alto de todo o período). Calculando este investimento inicial de 1:500$
somados aos 250$ relativos a 5 anos de sustento, posso dizer que, com o trabalho do escravo, o
senhor amortizava o investimento inicial e mais as despesas básicas em 5 anos (360$ x 5 anos =
1:800$). Contudo, o retorno do capital investido na compra do escravo podia ser maior ou
menor de acordo com o preço pago pelo mesmo. Em 1866, por exemplo, no leilão dos escravos
da massa falida da Vianna & Filhos, 16 dos 31 escravos arrematados foram comprados por
charqueadores (14 eram homens). Eles pagaram preços muito variados, desde 610$ até 1:750$,
com uma média de 1:230$.87

84
Gazeta da Tarde. 12.05.1881 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
85
Para uma análise das tensões entre charqueadores e escravos nos anos 1880 ver LONER, Beatriz. 1887: A
Revolta que oficialmente não houve ou de como abolicionistas se tornaram zeladores da ordem escravocrata. In:
História em Revista, Pelotas, v. 3, 1997.
86
A média de 50$ foi declarada pelos relatórios da Companhia mineradora inglesa estudada por Libby e coincidem
com o que calculei para as charqueadas pelotenses, como será tratado no capítulo 9 (LIBBY, Douglas. Op. cit., p.
104). Estes cálculos podem ser refeitos no que diz respeito aos trabalhadores livres das charqueadas, pois não foi
possível saber se o charqueador fornecia alimentos aos mesmos, o que aumentaria os gastos com o trabalho
assalariado e justificaria mais ainda o uso dos cativos dentro da lógica dos rendimentos da empresa.
87
Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
229
Portanto, o investimento dos charqueadores em escravos, entre os anos 1850 e 1870,
pareceu-me economicamente racional, ainda mais nos casos em que os carneadores livres
cobravam salários maiores do que o calculado anteriormente e os escravos eram comprados por
preços menores. Se o escravo trabalhasse para o charqueador por cerca de 4 ou 5 anos – algo
bastante plausível e que constituía-se numa média de tempo de serviço que os charqueadores
costumavam exigir nas cartas de alforria com contratos de trabalho realizados nos anos 1880 –
o investimento era viável, ainda mais nos casos em que se pagasse menos de 1:500$ por
escravo. Contudo, se forem levados em conta outros dois fatores alegados pelos charqueadores,
a utilização dos cativos torna-se ainda mais compreensível. Segundo Couty, o Sr. Costa lhe
confidenciou que a transição do trabalho escravo para o trabalho livre envolvia muitos fatores.
O charqueador tinha plena consciência de que continuar utilizando escravos nas charqueadas
não era uma boa solução se fossem pensar na conjuntura emancipacionista da época, mas ele
dizia que os charqueadores viam-se obrigados a utilizá-los porque os trabalhadores livres eram
muito inconstantes e que não havia colonos europeus disponíveis para substituir todos os
cativos de uma charqueada.88

Contudo, entre os charqueadores não havia um consenso sobre o que ser feito. Couty
alegava que o trabalho dos colonos alemães não era adequado e que os charqueadores não
queriam trazer trabalhadores do Prata. Outros empresários achavam que a utilização dos
escravos ainda estava de bom tamanho e apenas alguns poucos eram mais favoráveis em
investir capitais para financiar a vinda de colonos da Europa. De fato, como os libertos e os
trabalhadores livres da região haviam sido descartados pelos charqueadores de um suposto
processo de transição, a saída, para alguns, seria o incentivo à vinda de colonos europeus ou
trabalhadores da região do Prata. Este, por exemplo, foi um modelo adotado tanto pelos
cafeicultores paulistas quanto pelos saladeiristas platinos.89 Contudo, os charqueadores

88
COUTY, Louis. Op. cit., p. 150-153.
89
Ver, por exemplo, COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo:
UNESP, 1999, p. 195-232; HALL, Michael; STOLCKE, Verena. A introdução do trabalho livre nas fazendas de
café em São Paulo. In: Revista Brasileira de História, n. 6, set., 1983; EISENBERG, Peter. Op. cit., 1980.
Conforme Couty, “no Rio da Prata, não somente são estrangeiros que instalaram a maioria dos saladeros, mas são
também estrangeiros – franceses, italianos, espanhóis – que preparam a carne-seca; e as equipes de operários
contam, sobretudo, com um grande número de bascos franceses e espanhóis. Foram também bascos que se tentou,
há alguns anos, trazer a Pelotas; a tentativa teve resultados muito incompletos e há muito tempo que não mais
permanece nas charqueadas um só dos operários contratados” (COUTY, Louis. Op. cit., p. 152). Barran e Nahum
confirmam a enorme presença de operários europeus nos saladeiros (BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op.
cit., p. 100). Uma visão mais a longo prazo compartilhada por todos os charqueadores talvez os tivessem
condicionado a buscar outras alternativas. Mas isto jamais ocorreu. E aqui tendo a concordar com Bell. A maior
presença de estrangeiros entre os saladeros não apenas motivava os mesmos a trazerem operários europeus para o
Prata como também mobilizavam mais capitais em tais empreitadas (BELL, Stephen. Early industrialization in the
South Atlantic: political influences on the charqueadas of Rio Grande do Sul before 1860. In: Journal of Historical
Geography, 19, 4, 1993, p. 399-411.
230
pelotenses pareciam não ter nenhum espírito associativo neste sentido. Em 1862, na Assembleia
Legislativa, um charqueador discursou dizendo ser contra as associações porque isto traria a
política para dentro dos negócios e ele não via com bons olhos estas disputas partidárias.90
Enquanto os saladeiristas platinos conseguiam entrar em consenso para resolver seus
problemas91, os charqueadores não tiveram o mesmo sucesso. Além disso, não há notícias de
que eles tenham enviado representantes para os Congressos Agrícolas ocorridos em Recife e no
Rio de Janeiro (1878) e, nem mesmo em nível provincial, os mesmos pareceram organizar algo
do tipo para discutir o problema da mão de obra. 92

Dentro da perspectiva de uma elite escravista que via-se numa conjuntura desfavorável
com relação à oferta de braços, creio que os charqueadores acertaram em implantar um sistema
de incentivos monetários relacionados à produção escrava. Com isso, eles compensaram a perda
de mão de obra após o fim do tráfico e criaram uma expectativa bastante real de liberdade para
aqueles que ampliassem as suas tarefas diárias. Mas insistindo em tal medida sem promover os
cativos para o assalariamento pleno e melhorar as condições de vida dos trabalhadores livres,
tal medida era mais uma sobrevida para a charqueada escravista do que uma solução para o
setor. Contudo, até mesmo neste simples dispositivo havia empresários que não o aprovavam.
Conforme Couty, alguns charqueadores achavam que os prêmios pagos eram uma despesa
adicional e que na pressa de realizarem suas tarefas os escravos preparavam um produto final
com qualidade inferior. Mas Couty diz que esta era a opinião de um “conhecido” charqueador.
Acredito que talvez fosse um velho charqueador pelotense e, neste sentido, os empresários mais
novos, como o Sr. Costa, deviam ter que encarar o choque de gerações que marcou os anos
1870 e 1880, tendo que convencer os velhos escravistas de que uma mudança era necessária.
Mesmo não tendo sido sua única causa, o fim da escravidão marcou um declínio irrecuperável
para a indústria charqueadora pelotense.

Portanto, não se pode dizer que não havia saída para o complexo charqueador escravista
pelotense. No que diz respeito à mão de obra pode-se inclusive supor que os escravos estavam
internalizando a relação direta entre produtividade e retribuição monetária. Neste sentido, é
possível que eles estivessem se adaptando mais facilmente ao novo mundo capitalista que seria

90
Ver discursos dos dias 02.10.1862 e 04.11.1862 (PICCOLO, Helga. Op. cit.).
91
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
92
Conforme o cálculo realizado por José Murilo de Carvalho, não havia representantes do Rio Grande do Sul no
Congresso do Rio de Janeiro (CARVALHO, José Murilo de. Introdução. In: Congresso agrícola do Rio de Janeiro
(1878). Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, Edição fac-similar, 1988, p. v-ix). Eisenberg também não
menciona a presença de representantes rio-grandenses (EISENBERG, Peter. Op. cit., 1980). Para uma análise do
comportamento dos deputados provinciais do Rio Grande do Sul a respeito da mão de obra escrava e do processo
emancipacionista ver BAKOS, Margaret. RS: escravismo & abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
231
instalado nas charqueadas e frigoríficos no século XX do que os próprios charqueadores.
Portanto, parafraseando Marcelo Matheus, “pode-se dizer que Fernando H. Cardoso acertou
errando”.93 Como afirmou Cardoso, no final dos anos 1870, os charqueadores pareciam não ter
se libertado totalmente da sua visão de mundo senhorial. 94 Contudo, em nossa opinião, o
problema não foi a utilização dos cativos em si, como defendeu o autor.95 Atualmente já está
mais do que aceito que o trabalho escravo era economicamente rentável não somente em
Pelotas como também nos cafezais do sudeste, nas minas de São João, nas fazendas de algodão
dos Estados Unidos e em diversas outras sociedades, por exemplo.96 O problema talvez tenha
sido a descrença por parte dos charqueadores de que os libertos poderiam ser agentes da
mencionada transição, a desvalorização das condições de vida dos trabalhadores livres
assalariados, a incapacidade de associação para patrocinar a entrada de trabalhadores colonos e
o pensamento a curto prazo com relação aos seus investimentos econômicos no período.

6.2 APRENDENDO A SER SENHOR: A ADMINISTRAÇÃO DOS ESCRAVOS NA


PRIMEIRA GERAÇÃO DE CHARQUEADORES

Para compreender melhor o que os charqueadores pensavam sobre a administração dos


seus escravos seria necessário ultrapassar este espaço intermediado pelo capataz, assim como os
testemunhos dos processos crimes, nos quais as atitudes do charqueador aparecem somente
através de depoimentos de terceiros ou dos “filtros” característicos das fontes policiais.97 Nas
próximas páginas busco examinar alguns vestígios deste mosaico de formas de administração
escrava a partir dos próprios escritos de alguns charqueadores ou ex-charqueadores, além do
cruzamento com outras fontes documentais.

Começo pelo charqueador Antônio José Gonçalves Chaves. Natural da comarca de


Chaves, em Portugal, estima-se que ele tenha nascido por volta de 1790 e chegado ao Brasil,
em 1805, vindo a estabelecer-se no porto de Rio Grande, onde trabalhou inicialmente como
caixeiro. Desembarcando num momento favorável para os negócios do charque e dos couros
com o Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, Chaves aparentou-se por meio do matrimônio e do
compadrio com uma das principais famílias da terra, vindo a tornar-se um dos comerciantes-

93
MATHEUS, Marcelo S. Op. cit.
94
CARDOSO, Fernando H. Op. cit.
95
A postura de Cardoso deveu-se muito ao fato de ele ter aceito as ideias de Couty acriticamente sem pensar que o
viajante francês esteve em Pelotas no início da década de 1880. Nesta época, a escravidão realmente já estava
condenada, o que certamente influiu no seu relato e na comparação com os saladeros platinos.
96
GRAHAM, Richard. Escravidão e desenvolvimento econômico: Brasil e Sul dos Estados Unidos no século XIX.
In: Estudos Econômicos, n. 13, Jan./Abr., 1983, p. 223-257.
97
CHALHOUB, Sidney. Op. cit.
232
charqueadores mais respeitados da região. O enriquecimento levou-o à política. Em 1828, ele
ocupou uma cadeira no conselho administrativo da Província, em 1832, foi eleito vereador em
Pelotas e, em 1835, tornou-se deputado provincial. 98

Chaves era tido pelos seus contemporâneos como um sujeito bastante inventivo. O seu
projeto mais ambicioso foi a construção do primeiro navio a vapor da região sul, chamado
“Liberal”. A embarcação navegou por águas do atlântico no início da década de 1830. Suas
peças foram trazidas dos Estados Unidos, país para qual se exportava couros secos e se
importava trigo. Os couros salgados eram enviados principalmente para a Inglaterra e a França,
onde constituíam matéria-prima fundamental para as indústrias daquele país. Este comércio foi
tão rotineiro que, no caso de Chaves, as relações mercantis acabaram sendo extrapoladas para a
vida familiar, pois uma das suas filhas casou-se com um comerciante inglês chamado Robert
Barker e outro filho foi enviado para estudar Medicina, em Paris.

Portanto, estas trocas mercantis também favoreciam a circulação de idéias, vindas tanto
da Europa, quanto dos Estados Unidos e dos portos vizinhos do Prata. Quando Saint-Hilaire
esteve hospedado na casa de Chaves, notou tudo isto: “O Sr. Chaves é um homem culto,
sabendo o latim, o francês, com leituras de história natural, conversando muito bem”, em suma,
“um dos homens mais esclarecidos da região”. 99 Todo este conhecimento de Chaves, assim
como suas opiniões sobre política e economia, foi transposto para o papel entre os anos de 1817
e 1822, sendo impresso num único volume. Seu livro estava dividido em cinco memórias,
sendo a terceira dedicada exclusivamente à escravidão. Nesta, Chaves buscou defender a
extinção do comércio de escravos para o Brasil sob a luz das novas ideias da economia política.
Para ele a escravidão era um mal tanto para a economia do Brasil, quanto para o
desenvolvimento político do Estado.100

Naquela época, a condenação da escravidão e do tráfico no Brasil também foram


defendidas por outros letrados luso-brasileiros e portugueses, como João Severiano Maciel da
Costa (1821) e José Bonifácio de Andrada e Silva (1823). Mas ao contrário de Bonifácio e
outros anti-escravistas, Chaves era proprietário de muitos escravos o que torna curiosa a sua
posição. Talvez seja por isso que a solução proposta por ele foi uma transição lenta. Para não
provocar uma crise econômica, Chaves defendeu que o tráfico fosse extinto em 18 meses, mas

98
Dados biográficos sobre Chaves podem ser obtidos em FRANCO, Sérgio da Costa. Livro e seu autor. In:
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil. Porto
Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978, p. 15-18.
99
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 103.
100
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 53-77.
233
que só fossem considerados libertos os filhos dos cativos nascidos a partir de então (mas apenas
quando completassem 25 anos). Chaves argumentou que a abolição total só seria possível
quando a “nossa força física” exceder a “raça preta”. Uma de suas preocupações era que o
Brasil virasse outro São Domingos, algo manifesto por outras elites senhoriais da época.101

A visão de mundo de Chaves e o tipo de negócios que ele possuía certamente


influenciavam na forma como ele administrava a sua escravaria. Chaves faleceu em
Montevidéu, no ano de 1837, para onde migrou com sua família e escravos após a eclosão da
Guerra dos Farrapos, em 1835. Tendo aderido o lado rebelde, Chaves preferiu retirar-se do país
para tentar seguir com seus negócios, desta vez no país vizinho. Estabelecido em Montevidéu,
Chaves alugou 30 de seus escravos para um saladeirista uruguaio chamada Francisco Nieto.
Terminado o contrato, os escravos não quiseram mais retornar para a fábrica de Chaves,
preferindo servir ao senhor uruguaio. Pressionado pelos escravos, em outubro de 1837, Nieto
comunicou ao alcaide ordinário de Montevidéu:

Havendo contratado em meu Saladeiro, pelo tempo de cinco meses, trinta escravos do
Sr. Chaves, estes infelizes adquiriram por mim um certo carinho, talvez consequência
dos bons tratos que lhes dispensei e, ao devolvê-los a seu Amo ao final deste tempo,
alguns deles me suplicaram que os comprasse; porém, crendo que eles não pudessem
ser vendidos, me neguei às suas reiteradas e comoventes solicitações. Sem mais, Sr.
Alcaide, se passou desde então; no entanto, não há uma única semana na qual alguns
deles não venham à minha casa, movidos pelo mesmo intento; acrescente-se a isto,
todavia, as crueldades de que eram vítimas em seus sofrimentos, não somente pelos
castigos que devem infligir-lhes, como também pelo incessante trabalho; e
contrariando a disposição de nossas leis, não têm eles um momento próprio, nem
mesmo o Domingo – diziam alguns, acrescentando que à noite, os encerravam à
chave, o que se há provado pelas circunstâncias de suas fugas; e, para dar a última mão
a este quadro, asseguraram que seu Senhor os obriga a se converterem em verdugos de
seus próprios irmãos, seus companheiros de desgraça, açoitando-se reciprocamente
quando lhes cabia o castigo, até o enterro; pois que, nos últimos dias, deram
quatrocentos açoites em um companheiro, deixando-o por morto.102

Nieto informava ainda que pediu às autoridades que encontrassem um meio legal de
obrigar Chaves a alforriar os escravos. Neste ínterim, Chaves veio a falecer num naufrágio. 103 O
processo não teve desfecho e não se sabe do destino dos escravos, sendo possível que muitos
permaneceram com os herdeiros de Chaves. Também não há como saber se Nieto estava
exagerando nas denúncias. No entanto, a partir de outros indícios que tratarei a seguir, creio que

101
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 72-73). Para uma análise sobre a retórica do perigo do
haitianismo entre as elites brasileiras da época ver MARQUESE, Rafael; PARRON, Tâmis. Revolta Escrava e
política da escravidão: Brasil e Cuba, 1791-1825. Revista de Índias, v. LXXI, n. 251, 2011m p. 20-52.
102
MONQUELAT, A. F. Charqueadores, Saladeristas y Esclavistas. Pelotas: UFPel, 2010, p. 32-33.
103
MONQUELAT, A. F. Op. cit., p. 32-33. Não foi a única vez que um charqueador pelotense, emigrado em
Montevidéu, deu problemas às autoridades uruguaias por conta de seus excessos no tratamento dos cativos. Em
1837, José P. de Sá Peixoto espancou um escravo de sua charqueada até a morte, fazendo com que cerca de 9 de
seus cativos fossem denunciá-lo para a polícia local (MONQUELAT, A. F. Op. cit., 38-39).
234
Chaves era para eles um mau senhor, ao contrário de Nieto. A partir de um acontecimento
ocorrido em 1821, na charqueada que Chaves possuía em Pelotas, é possível crer que não havia
invenção em nada do que Nieto relatou.

Em outubro de 1821, o escravo Chico campista, que trabalhava na charqueada de


Chaves, foi condenado à prisão por ter assassinado com uma facada o capataz do
estabelecimento. As justificativas do réu, confirmadas pelas testemunhas, eram de que o
capataz lhe havia xingado, pois o charque estendido por ele estava tocando as pontas no chão.
Chico argumentou que o varal era muito baixo e não tinha como evitar isto. O capataz lhe bateu
com o chicote e Chico revidou com uma faca. O réu também mencionou os excessos do capataz
e que ele teve que estender as mantas de charque sozinho, quando o certo seria trabalhar em
dupla com outro escravo. Mas a principal queixa do réu foi de que tudo isto aconteceu num dia
de domingo, ou seja, no dia de descanso, nas palavras do escravo, ou no dia “de guarda em
honra de Deus pela Igreja e pela Lei” de acordo com o advogado de defesa. 104

A partir deste caso é possível verificar algumas reclamações que lembram muito as dos
escravos de Chaves no Uruguai. O excesso de trabalho imposto aos escravos, a execução de
tarefas aos domingos, os castigos exagerados, a proibição das saídas noturnas, ou seja, uma
rígida disciplina combinada com uma exploração da mão de obra acima do suportável pelos
cativos. Isto fica evidente no juízo que os mesmos fizeram ao escolherem Nieto como um bom
senhor, dentro dos critérios que os próprios escravos possuíam. A forma como Chaves
governava sua escravaria extrapolou a senzala, tornando-se pública. De acordo com Saint-
Hilaire, “ele e sua mulher só falam a seus escravos com extrema severidade, e estes parecem
tremer diante dos seus patrões”.105

Se Saint-Hilaire exagerou em suas colocações, outras fontes permitem supor que este
exagero não foi desmedido. Nas Memórias redigidas por Chaves, ele mesmo expõe a sua visão
sobre os escravos, fornecendo pistas sobre a gestão escravista que ele realizava. Sobre a
possibilidade de casamento e constituição de família entre os cativos, Chaves foi claro: “O
senhor não quer que o escravo case porque o incomoda com isso e acontece também não ter
fundos para comprar-lhe mulher, ao mesmo tempo que é inconciliável casá-lo fora de casa”. O
casamento, para Chaves, seria uma forma de atingir a “procriação tardia”, mas a mesma não era
economicamente vantajosa. Em sua opinião, os grandes fazendeiros conseguiam escravos
robustos por preço baixo e, portanto, não investiam da procriação, pois não “vale (segundo a

104
Processo-crime, n. 174, m. 07, Ano 1824, Tribunal do Júri, Porto Alegre, APERS.
105
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 119.
235
frase de muitos) a pena de cuidar de crianças”. Taxativo, Chaves conclui: “É certamente
claríssimo que a procriação desta classe [escrava] é em si mesma inoperável” e “se chegam a
consentir alguns casais, não prestam às ditas crianças os necessários socorros, pelo que morrem
à míngua”. 106 Sobre o tratamento das crianças, cabe aqui citar algo que chamou a atenção de
Saint Hilaire quanto esteve na casa de Chaves:

Há sempre na sala um negrinho de dez a doze anos, que permanece de pé, pronto a ir
chamar os outros escravos, a oferecer um copo de água e a prestar pequenos serviços
caseiros. Não conheço criatura mais infeliz do que esta criança. Não se assenta, nunca
sorri, jamais se diverte, passa a vida tristemente apoiado à parede e é, frequentemente,
martirizado pelos filhos do patrão.107

Sobre isto, Chaves esclareceu: “Um menino é desde seus primeiros dias acostumado a
horrorosos castigos feitos aos escravos (com que se encaminha à ferocidade) e palavras pouco
edificantes das suas famílias para com seus domésticos”. 108 Portanto, as opiniões que Chaves
possuía sobre os escravos convergiam com as afirmações de Saint Hilaire e as declarações do
saladeirista Nieto. Ainda sobre o tratamento dos cativos, Chaves afirmou com ênfase não
apenas a sua posição, mas, na opinião dele, a dos luso-brasileiros em geral: “nós tratamos mal
os escravos”, pois eles são nossos “inimigos internos” ou “inimigos domésticos”. Para Chaves,
a excessiva presença destes na população brasileira, algo que segundo ele chegava a ¾ do total,
era uma grave ameaça. Chaves complementou seu raciocínio dizendo “que enquanto não
melhorarmos em proporção de forças físicas, não podem nossas leis outorgar-lhes as
beneficências que sua desgraçada condição tão imperiosamente reclama”. Só quando a classe
livre ultrapassar a classe escrava em número de habitantes “que as leis podem conceder todos
os bens até concluir a sua emancipação”. Para comprovar suas ideias, ele cita o caso da Bahia
que “na imprudência de consentir entre si tão extraordinário número de escravos” vem
constituindo-se num grande foco de revoltas. Daí a necessidade de cessar com o tráfico, pois só
assim, dizia Chaves, “escaparemos ao iminente risco da desastrosa e tremenda catástrofe dos
franceses na Ilha de São Domingos”. 109

O que fica mais claro nos escritos de Chaves é que ele constituía-se em mais um entre os
muitos membros das elites escravistas no Brasil oitocentista atraídos pelas teses da economia

106
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 61. A ampla produção sobre a família escrava no Brasil
demonstra que Chaves estava completamente equivocado no que diz respeito aos demais senhores de grandes
plantéis. Ver, por exemplo, os clássicos FLORENTINO, Manolo; GOÉS, José R. A paz nas senzalas: famílias
escravas e tráfico atlântico. Rio de Janeiro (c.1790 – c.1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997;
SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil.
Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
107
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 119-120.
108
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 66.
109
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 62-63; 66; 71.
236
política. Adaptando as mesmas às singularidades brasileiras, ele buscou aplicá-las em seus
estabelecimentos combinando-as com uma rigorosa disciplina. Mas a tarefa era difícil. Na
opinião de Chaves, o emprego de uma racionalidade econômica por meio do uso do trabalho
escravo não era possível. Citando uma frase de Adam Smith, ele afirmava: “o escravo – diz um
economista – consome o mais que pode e trabalha o menos que pode”. Por sua “indigência
corporal e espiritual”, o escravo “jamais pode ter faculdades para dirigir bem o trabalho de que
é encarregado”. Seguindo esta lógica, creio que Chaves também devesse considerar que os
cativos não poderiam ter roças próprias, pois seriam incapazes de gerir as mesmas de forma
autônoma. Ainda sobre esta questão, Chaves afirmou: “Nada pode cooperar mais eficazmente
para os trabalhos produtivos de uma nação do que a subdivisão do mesmo trabalho” e, portanto,
o Brasil estava em condições desvantajosas, pois não poderia haver subdivisão do trabalho no
uso de mão de obra escrava. Por tudo isso, afirmava Chaves: “mais vale um casal de gente livre
do que mil negros cativos”.110

Em suas Memórias, o recurso narrativo de Chaves tendia, em muitos parágrafos, a


converter as suas opiniões individuais para as opiniões de todos os luso-brasileiros, onde o
“nós” torna-se o sujeito escritor da obra. Mesmo que suas opiniões fossem aceitas por outros
escravistas, algumas delas não eram. Muitos senhores deviam compartilhar do perigo do
haitianismo, mas nem por isso desejavam a extinção total do tráfico e da escravidão. Outros,
como Bonifácio, eram anti-escravistas, mas não achavam que a melhor solução fosse direcionar
o governo dos escravos com uma rigorosa disciplina, castigos excessivos e alta vigilância.
Como notou Guedes, Bonifácio projetava, com a extinção do tráfico, que os escravos servissem
aos seus senhores “com fidelidade e amor” e “de inimigos se tornariam amigos e clientes”. Para
Bonifácio, “a situação mais deliciosa” seria ver um senhor viver sem medo entre seus escravos,
como se pertencesse a uma mesma família. 111 Analisando os escritos de Bonifácio, Guedes
percebeu que para o autor “o casamento entre escravos e suas economias próprias – suas
terrinhas, suas caças e suas pescas – eram de fundamental importância e transformariam
escravos em amigos e clientes, evitando um São Domingo abaixo da linha do Equador”. 112

Para evitar o perigoso São Domingo, Chaves e Bonifácio concordavam na extinção do


tráfico. No entanto, o primeiro não desejava uma vivência em harmonia entre senhores e

110
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 60-61; 69.
111
SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Representando à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império
do Brasil sobre a escravatura. In: Obra política de José Bonifácio. Brasília: Senado Federal, 1973, p. 94-97.
112
GUEDES, Roberto. Autonomia escrava e (des) governo senhorial na cidade do Rio de Janeiro da primeira
metade do século XIX. In: FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos
XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 247.
237
escravos, não via com bons olhos a família escrava e não permitia grandes espaços de
autonomia ao cativeiro. Entre tratar bem dos cativos para aproveitar melhor sua força de
trabalho ou explorá-los economicamente sem conter os exageros, Chaves aproximou-se mais do
segundo comportamento, impondo ritmos de trabalho excessivos aos seus escravos, sob
rigorosa disciplina e castigos em demasia.

Mas nem todos agiam desta forma. João Francisco Vieira Braga parece ter buscado
seguir um outro modelo de administração dos cativos. Filho de um rico comerciante, Vieira
Braga nasceu em Piratini-RS (1793), cresceu entre estancieiros e desde cedo acostumou-se com
o ambiente belicoso da fronteira. Na vida adulta dedicou-se ao comércio no porto de Rio
Grande e também possuiu uma charqueada, tendo, nas décadas de 1810 e 1820, fechado vários
contratos com o Estado, vendendo provisões para os exércitos estacionados na região, de onde
alavancou a sua riqueza. Neste ínterim, Vieira Braga comprou a Estância da Música, em
Piratini, quase fronteira com o Uruguai. No início da década de 1830, ele já não possuía mais a
sua charqueada, mas, além dos seus negócios, gastava boa parte do seu tempo administrando as
propriedades de sua mãe. Como permanecia residindo em Rio Grande, cerca de 150 km distante
da propriedade que comprara, Vieira Braga remetia instruções ao seu capataz de como deveria
administrar o estabelecimento. São estas instruções, escritas em 1832, que utilizarei para
analisar a forma como este senhor governava a sua escravaria. 113

Vieira Braga empregava seus escravos em praticamente todos os serviços da


propriedade, tanto na pecuária e na agricultura, quanto no conserto e na construção de
benfeitorias. Os escravos também eram emprestados ao afilhado e ao cunhado, além de serem
encaminhados aos postos da estância para auxiliarem na guarda e no plantio de alimentos para
sua subsistência. De acordo com Guilhermino César, para alimentar o posteiro 114, sua família e
o escravo também haveria quatro vacas. Neste sentido, Vieira Braga era bastante diligente. Uma
das medidas mais importantes para ele era fazer plantar bastante milho, feijão, abóbora,
hortaliça e algum trigo, “para que haja tudo de fartura, a fim de poupar-se as muitas
carneações”.115 E sobre a alimentação dos cativos, ele ordenava: “a comida para os escravos

113
“Instruções para o Sr. João Fernandes da Silva, capataz da Estância da Música, escritas por João Francisco
Vieira Braga, 20.07.1832”. In: CÉSAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a Estância da Música:
Administração de um latifúndio rio-grandense em 1832. Porto Alegre/ Caxias do Sul: EST/IEL, 1978. Os dados
biográficos sobre Vieira Braga foram reunidos na mesma publicação.
114
Os postos eram localizados nos limites da estância e estavam providos de casas de moradia, mangueiras e outras
benfeitorias, onde o proprietário colocava um “posteiro” para lhe reparar o gado e as benfeitorias (CÉSAR,
Guilhermino. Op. cit., p. 39).
115
Os escravos também eram empregados no plantio de outros ramos. Uma das ordens de Vieira Braga dizia:
“Plantar-se também muitos pessegueiros, alamos, vimes e salsos, para que venha a haver lenha com fartura, e
aumentar-se o arvoredo de Espinhos na quinta” (Instruções ao capataz..., p. 40).
238
deverá ser feita por um deles, para que cada um [não] se veja na necessidade de ir fazer, do que
resultaria perda de serviço, e andarem mal comidos”. Para complementar a dieta e estimular os
escravos a produzirem, ele permitia que os mesmos possuíssem roças próprias e criassem
animais: “Os escravos podem plantar e criar galinhas tendo milho para as sustentar”. 116

Observa-se, portanto, um cuidado com a alimentação dos escravos e o incentivo para


que plantassem. O mesmo comportamento era tomado com relação às vestimentas dos cativos.
Em uma das ordens, Braga escreveu: “A roupa que se der aos escravos será lançada em assento
para saber-se, e deverá um deles lavar a roupa de todos para que andem limpos, assim como as
chergas dos arreios serão lavadas todas as vezes que se possa para que não venham a maltratar
os cavalos”. Em outra ordem, o senhor detalhou melhor como deveriam ser distribuídas outras
vestimentas, demonstrando uma diferenciação para com as crianças e roupas especiais para
alguns escravos: “Dará uma muda de roupa de algodão a cada um dos escravos que lá estão,
advertindo que as três mudas dos mais pequenos que vão para os moleques Claudino, Evaristo e
Moisés, e vão também 4 ponches para serem dados aos negros Domingos Pernambuco, José
Bolieiro, Manoel Aguiar e Matheus campeiro, sendo o deste forrado de baeta”. 117 Observa-se,
portanto, que entre os escravos que receberam ponches está um boleeiro, que devia ter mais
contato pessoal com Vieira Braga, e que Matheus recebia um ponche reforçado de baeta,
certamente para protegê-lo mais do frio e da chuva. De todos os campeiros ele foi o único que
recebeu tal distinção. Analisando o mesmo documento, Guilhermino César se perguntou: “Não
seria uma prova de apreço dada ao melhor tropeiro da estância?”. Creio que sim.

Outra preocupação de Vieira Braga dizia respeito à saúde física e espiritual dos cativos.
Sobre o primeiro, ele recomendou ao capataz “prestar todo o bom tratamento aos escravos e
muito especialmente nas ocasiões em que estejam doentes”. Para isto, disse que o seu afilhado
iria entregá-lo um papel de como se fazer alguns remédios. Com relação ao segundo, Vieira
Braga mandou que ele fizesse “os negros rezarem o terço todas as noites e ensinar a doutrina
aos que a não souberem”. Por fim, ele concedia certas “regalias” aos cativos, mas sempre
pensando em economizar as rendas da estância: “Dar mensalmente aos escravos três palmos de
fumo em quanto o houver no rolo que deixei, pois não se deve comprar pelo alto preço que se
vende. Em dias de muito frio e chuva também se lhes dará um ponche de água quente com
aguardente e açúcar”.118

116
Instruções ao capataz..., p. 42-43.
117
Instruções ao capataz..., p. 46.
118
Instruções ao capataz..., p. 43-46.
239
As Instruções constituem-se num documento com características diferentes, por
exemplo, dos conhecidos Manuais escravistas. Sua intenção não era “educar” os senhores a
realizarem uma boa gestão administrativa do plantel. Nesse sentido, as Instruções revelam mais
uma preocupação da prática cotidiana do que com uma teoria do governo dos escravos, por
exemplo. 119 A análise de outros dois documentos envolvendo a escravaria de Vieira Braga pode
ajudar a compreender melhor a forma como ele governava os seus cativos. No inventário de sua
mãe, e no qual ele era o testamenteiro e inventariante, fica nítida a gestão que ele exercia sobre
os negócios da família.120 Na avaliação do patrimônio, ocorrido em 1847, foram arrolados 136
escravos – o terceiro maior plantel inventariado em Pelotas entre 1800 e 1850. O que deve ser
destacado de início é o grande equilíbrio entre homens e mulheres se comparado aos plantéis
dos grandes escravistas estudados no capítulo anterior. Os 19 inventários (14 de charqueadores
e 5 de estancieiros) que detinham plantéis com 50 cativos ou mais somavam 1.612 escravos,
sendo 1.234 homens. Estes números evidenciam uma razão de sexo de 327 homens para cada
100 mulheres. Este índice elevado de Pelotas deve-se ao caráter fabril das charqueadas, onde os
proprietários adquiriam cativos quase que exclusivamente para os trabalhos nos galpões de
charquear, como já foi dito. Ao se analisar somente os plantéis dos 14 charqueadores do grupo
mencionado, a razão de sexo aumenta de 327 para 403.121

Contudo, o plantel administrado por Vieira Braga, onde figuravam 70 homens e 66


mulheres, possuía uma razão de sexo de 106, revelando um grande equilíbrio comparável a
algumas plantations escravistas após o fim do tráfico atlântico. O inventário felizmente
apresenta uma minúcia na descrição da filiação de todos os cativos. Analisando o rol é possível
perceber que 64 dos 136 escravos eram filhos de cativas do mesmo plantel, ou seja, 47% dos
mesmos. Trata-se de um alto índice de reprodução natural no interior da própria escravaria que,
ao longo do tempo, possibilitou Vieira Braga dobrar o seu plantel somente com “as crias da
casa”. A relação apresenta 28 mães diferentes. Florinda Rosa foi a que deu mais filhos cativos
ao senhor, somando 7 rebentos. Rosa Catarina teve 6, Rosa Antônia e Simpliciana tiveram 5
filhos cada uma, Ana, Rosa, Eva e Rosa Camundá tiveram 3 filhos cada, Eleutéria, Felizarda,
Justina, Lucrecia e Mandú tiveram 2 filhos cada, e outras 14 cativas tiveram somente 1 filho.

119
Para uma análise destes manuais ver MARQUESE, Rafael de B. Feitores do corpo, missionários da mente:
Senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas (1660-1860). São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
120
Inventário de Maria Angélica Barbosa, n. 286, m. 20, Ano 1847, Pelotas, 1º Cartório de órfãos e provedoria –
APERS. Trabalhando com as dezenas de cartas trocadas entre Vieira Braga e seus familiares, Karl Monsma
considerou o mesmo (MONSMA, Karl. Repensando a escolha racional e a teoria da agência: fazendeiros de gado e
capatazes no século XIX. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 43, 2000, p. 83-113).
121
Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS).
240
Conforme Manolo Florentino, os inventários não são as melhores fontes para localizar
as famílias escravas122, mas cruzando o número de homens com o de mulheres adultas verifica-
se um nítido equilíbrio entre os sexos. Entre os homens, tem-se 36 adultos com 18 anos ou mais
(sendo 23 africanos) e com uma média de idade de 41,5 anos. Entre as mulheres, verifica-se 34
adultas com 16 anos ou mais (sendo 14 africanas) e uma média de idade de 33,9 anos. Com 15
anos ou menos, verificou-se 35 escravos (média de 7,4 anos), sendo que somente 2 meninos de
12 anos não eram filhos de escravas do plantel. Portanto, acredito que existiam muitos casais
nas senzalas administradas por Vieira Braga e que, além da vontade dos cativos em formarem
estas famílias, também devia haver um incentivo e empenho por parte do senhor para tal fim,
podendo o mesmo comprar algumas escravas visando o equilíbrio de sexo na senzala. 123

Um dos incentivos à formação de famílias e à reprodução natural no interior do plantel


podia ser a concessão da liberdade às cativas que oferecessem mais rebentos ao seu senhor.
Neste sentido, examinando as cartas de alforria passadas por Braga foi possível perceber que a
escrava Florinda Rosa foi liberta após pagar 600$000 ao seu senhor, sendo que 250$000 foram
pagos pela mãe da cativa, a preta forra Rosa Camundá (ex-escrava da família Vieira Braga) e o
restante pelos irmãos de Vieira Braga. 124 Destaco esta carta, pois Florinda Rosa foi a campeã
em fornecer rebentos para a família, tendo tido 7 filhos como já mencionei. Mas a preta forra
Rosa Camundá não pararia por aí. Cerca de seis anos depois pagou 1:100$000 a Vieira Braga
pela liberdade de seu filho Manoel. O senhor aceitou a oferta, “com a condição, porém, de viver
sempre em companhia de sua mãe, para fazer-lhe todo o serviço que ela precise, tratando-a com
toda a caridade que requer a sua avançada idade, e se assim o não fizer ficará de nenhum efeito
esta carta”.125 Rosa havia dado 3 filhos ao plantel do senhor e, por intermédio da mencionada
Florinda, outros 7 netos. Florinda foi a única escrava libertada em cartório por Vieira Braga no
período, o que reforça a ideia de recompensa pelos escravos dados ao seu senhor.

Além do mais, é possível que Rosa Camundá e Florinda, assim como o campeiro
Matheus, fossem especiais aos olhos da família Vieira Braga, o que lhe fez aceitar a oferta da
preta forra. Com relação a esta hierarquia no interior da senzala, ainda é possível fazer outra
referência a partir do inventário. Dos 136 escravos elencados, somente um cativo foi libertado
no testamento passado pela falecida mãe de Vieira Braga. Era a escrava Clara, de cor parda e de
122
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de
Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 55.
123
Para uma análise da família escrava em Pelotas e, em particular, deste mesmo plantel ver PINTO, Natália
Garcia. A benção compadre: experiências de parentesco, escravidão e liberdade em Pelotas (1830-1850).
Dissertação de Mestrado. Unisinos, 2012.
124
Livro de Registros Diversos, 2º Tabelionato, Pelotas, 1852, Livro 4, p. 12v.
125
Livro de Registros Diversos, 2º Tabelionato, Pelotas, 1852, Livro 5, p. 32v.
241
35 anos. Das 66 mulheres, Clara foi uma das duas únicas cativas descritas como de “serviço
doméstico”. Portanto, Clara havia recebido a liberdade de sua senhora provavelmente por
serviços prestados ao longo de sua vida e por estar presente em sua casa, muito próxima,
cuidando-a. O mais interessante é que a outra escrava de “serviço doméstico” era a filha de
Clara, aliás, a única filha da cativa, chamada Arminda, parda, de 17 anos. Penso que isto
demonstre que o serviço doméstico realizado por Clara sustentava-se numa relação de plena
confiança da senhora para com a cativa, confiança e lealdade que estava sendo passada para a
filha da cativa por meio de sua própria mãe.

Com tudo o que foi descrito sobre a forma como Vieira Braga governava seus cativos e
os de sua mãe é possível verificar uma administração bastante diversa da analisada no caso de
Chaves. Enquanto este charqueador não oferecia um bom tratamento aos seus escravos adultos
e crianças, exagerava nos castigos, cerceava sua autonomia, inviabilizando a formação de
famílias, Vieira Braga permitia aos seus escravos possuírem roças próprias e criarem animais,
dedicava grande importância à alimentação, às vestimentas e ao cuidado da saúde dos escravos.
Além disso, ele também encorajou a formação de famílias e estimulou a hierarquia entre os
cativos, premiando-os com distinções no uso de roupas, com cartas de alforrias e com
ocupações distintas, como a de escrava doméstica. Uma outra notável medida foi encaminhar os
cativos na prática da religião católica, buscando consolidar a harmonia na senzala. Além de
estar cumprindo as suas obrigações para com a legislação eclesiástica.126

Um outro bom exemplo envolve o charqueador José da Costa Santos. Nascido no Rio de
Janeiro, ele estabeleceu-se com sua charqueada em Pelotas, na Fazenda São Lourenço,
localizada mais ao norte do município. Numa carta escrita por ele ao amigo Vieira Braga (o
mesmo proprietário analisado acima), Santos relatou um episódio ocorrido em sua charqueada.
O seu capataz, crendo que um dos escravos havia roubado três bexigas de graxa do
estabelecimento, o espancou tão violentamente que o mesmo veio a morrer dias depois.
Indignado, Costa Santos escreveu: “foi forte crueldade dar em um escravo velho por valor de 3
bexigas de graxa que não eram suas e sim minhas e depois não mandar tratar deste infeliz que
tanto trabalhou para esta casa (…) e tendo morrido 12 escravos nesta casa não tenho sentido

126
Conforme as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, “os pais, mestres, amos e senhores” tinham o
dever de “ensinar ou fazer ensinar a doutrina cristã aos filhos, discípulos, criados e escravos”. Ver: VIDE,
Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, 2007, Livro 1,
Título 2 (II), pp. 2-3. Com relação a este aspecto ver também GENOVESE, Eugene. Op. cit.; HAMEISTER,
Martha D. Para dar calor à nova povoação: estudo sobre estratégias familiares a partir dos registros batismais da
Vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado em História, UFRJ, 2006.
242
como este pelo triste modo com que fez este maldito dar fim a seus dias”. 127 A partir da leitura
do seu testamento, escrito 5 anos depois, fica evidente que o charqueador estava sendo sincero:

Determino que se digam duas capelas de missas pela alma de meu Pai, duas capelas
pelas de meus irmãos e irmãs, duas capelas pelas do Purgatório, uma capela pelas dos
meus escravos falecidos, uma capela pelas de todos os cativos, uma por tenção de
minha mãe e uma por tenção de meus escravos vivos (…) Deixo libertos desde o dia
do meu falecimento os meus escravos Domingos Velho, João Romão, Joaquim das
Ovelhas, Francisco Monjolo e sua mulher, Antônio casado com a preta Joana, e
Antônio Velho, marinheiro. Desde o dia em que ficar desempenhada a minha fazenda
do que atualmente deve, ficarão forros os escravos seguintes: o pardo Isidoro Santana,
Anastácio e sua mulher, Maria Caffe, Antônio Campeiro, o pardo Agostinho: além
destes ficarão forros mais dez escravos dos mais velhos da fazenda.128

Portanto, no juízo dos escravos, Costa Santos devia ser um senhor muito melhor do que
Chaves. A preocupação dele com a vida religiosa dos cativos, algo que Vieira Braga também
compartilhava, merece ser destacada. No capítulo 3, mencionei que o mesmo Costa Santos
requisitou às autoridades religiosas do Rio o direito de possuir um oratório privado em sua
propriedade. O desejo do charqueador era de que pudessem ouvir as missas, além de sua esposa
e suas filhas, “os seus parentes, consanguíneos ou afins, familiares e criados, que juntamente
com eles habitarem nas mesmas casas, como também seus hóspedes nobres, com declaração
que os ditos parentes, familiares e hóspedes nobres, somente estando presentes à celebração do
Santo Sacrifício da Missa os mencionados impetrantes”.129 Certamente, o oratório serviria para
casar seus escravos e batizar os seus filhos. Estudando os plantéis de escravos em Pelotas, entre
1830 e 1850, Natália Pinto verificou a importância dos sacramentos católicos na vida dos
escravos e senhores. Dentre as contribuições de sua pesquisa, menciono o papel do batismo e
do compadrio entre os cativos dos charqueadores, cuja autora analisou de forma mais
aprofundada. Selecionando o plantel de dois grandes charqueadores do período, os
comendadores João Simões Lopes e Boaventura Rodrigues Barcellos, Pinto percebeu como
alguns escravos constituíam-se em padrinhos e madrinhas de prestígio, concentrando um
grande número de afilhados.130

O crioulo José, por exemplo, batizou 12 africanos adultos e uma criança crioula, filha
legítima de um casal de africanos. Conforme Pinto, ele era o escravo mais antigo da senzala de
Simões Lopes. “Quiçá ele fosse elemento importante no processo de socialização dos escravos

127
José da Costa Santos a João F. Vieira Braga, 05.08.1822, BRG, Lata 25 apud MONSMA, Karl. Escravidão nas
estâncias do Rio Grande do Sul: estratégias de dominação e de resistência. In: Anais do V Encontro Escravidão e
Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 4.
128
Inventário de José da Costa Santos, n. 113, m. 9, Pelotas, 1º cartório de órfãos e ausentes, 1827 (APERS).
129
Requerimento de oratório privado de José da Costa Santos. Série Breve Apostólico. Notação 394. Cúria do Rio
de Janeiro.
130
PINTO, Natália. Op. cit.
243
adultos recém-chegados na propriedade, ensinando-lhes os ditames e as normas do rotineiro
trabalho nas charqueadas”. Além disso, ele deveria ser um “importante conector entre o mundo
dos escravos e o mundo senhorial, podendo apaziguar os possíveis conflitos e tensões existentes
dentro da comunidade escrava”, negociando “por direitos ou costumes que, possivelmente
trouxessem mais ‘sossego’ ao mundo senzalesco”.131 Segundo a autora, “os escravos também
procuravam estreitar laços de compadrio com pessoas livres, e algumas dessas eram familiares
de seus proprietários”. No caso de Boaventura Barcellos, dois de seus escravos foram batizados
por um casal de filhos seus. Neste sentido:

A decisão de tornar-se um compadre ou comadre de um familiar do senhor, livre,


escravo ou forro, poderia ser barganhada em um campo de sucesso ou de fracassos.
Tudo dependia da margem negociada entre as forças envolvidas nesse jogo. Ou
melhor, ressaltamos que não deveria ser apenas uma escolha dos escravos o
apadrinhamento com o senhor. Deveria ser uma distinção feita pelo senhor e, ao
mesmo tempo, um indicativo do reconhecimento que o senhor tinha da importância
daqueles cativos no pleno funcionamento da senzala.132

De acordo com Pinto, “os escravos ao escolherem um círculo de relações se


hierarquizavam”, pois “os laços que ligavam alguns escravos, excluíam outros, marcando ainda
mais uma hierarquia entre eles”. Portanto, os escravos que concentravam um grande número de
afilhados entre os cativos africanos “poderiam ter sido um elo no processo de socialização na
comunidade escrava via o ritual do batismo” ao mesmo tempo em que os cativos que tornavam-
se compadres de homens livres, forros e parentes próximos do senhor podiam servir como
mediadores de conflitos entre a casa senhorial e a senzala.133

Observando as práticas de Simões Lopes e Boaventura Barcellos com relação ao


batismo de seus escravos, observa-se um outro mecanismo que, embora não se resumisse a isto,
contribuía com o processo de administração dos seus cativos. Se houvesse a possibilidade de
vislumbrar a forma como outros charqueadores governavam a sua numerosa escravaria nas
charqueadas certamente apareceriam outras características a serem destacadas, mas por mais
que eu tenha pesquisado não foi possível identificar mais vestígios. O fato é que elas variavam
de senhor para senhor. Contudo, em praticamente todas elas é provável que se encontrasse certa
dose de paternalismo combinada com uma rigorosa disciplina, sendo que a dose de um ou de

131
Neste sentido, Pinto também analisou o papel da preta mina Delfina, madrinha-rainha no interior do plantel do
charqueador Boaventura Barcellos. “Pensando, principalmente no caso do apadrinhamento feito pela africana
Delfina, com seus parceiros étnicos, talvez indique que ela fosse uma conexão ou uma ponte de ligação, capaz de
unir em torno de si os africanos recém-chegados, organizando as relações e a convivência social dentro da senzala,
talvez reproduzindo padrões culturais em comum com o novo grupo de parceiros inseridos na comunidade escrava,
e evitando dissabores e rusgas no mundo da senzala do comendador Boaventura” (PINTO, 2012, p. 127-128).
132
PINTO, Natália. Op. cit., p. 131-134.
133
PINTO, Natália. Op. cit., p. 131-134.
244
outro era construída na relação dos charqueadores com os escravos. Conforme Carlos
Engemann “tanto a comunidade modelava o senhor, quanto o senhor definia a comunidade,
ainda que o fizessem em graus e intensidades diferentes”. 134

Estudando as teorias de gestão escravista entre os séculos XVII e XIX, Rafael Marquese
dedicou um espaço importante ao Manual do agricultor brasileiro, cuja primeira edição, escrita
por Carlos Taunay, datava de 1839.135 Neste sentido, é possível verificar nos escritos de Taunay
elementos característicos tanto da forma como Chaves administrava a sua escravaria, quanto da
forma como Costa Santos e Vieira Braga o faziam, e que deviam ser comuns a outros senhores
de grandes plantéis espalhados pelo Brasil. As semelhanças com Chaves se iniciam na não
aceitação do que Rafael Marquese chamou de “tese do bem positivo”, ou seja, a ideia de que a
instituição escravista era essencialmente benéfica para os africanos. Para Taunay, o cativeiro
representava uma “violação do direito natural”. Mas mesmo assim, ele defendia a escravidão,
devido a sua importância econômica para o Império. Embora Chaves não defendesse a
escravidão de forma tão nítida, ambos eram contrários a uma abolição abrupta, pois a mesma
poderia acarretar num novo São Domingos. Outro ponto de contato entre ambos era a
consideração da inferioridade racial do negro. Este era como um adolescente branco, incapaz de
atingir uma maturidade necessária para seu auto-governo.136

Concordando com Adam Smith, como Chaves já o fizera, Taunay considerava que os
negros eram inimigos de toda ocupação regular e trabalho. Para que os objetivos do senhor
fossem alcançados era necessário sujeitar os escravos a uma rigorosa disciplina e mostrar-lhes o
castigo inevitável. “Coação e medo, portanto, conformavam o eixo da administração dos
escravos no entender de Taunay, pois só assim seria possível forcejar os cativos a cumprirem as
determinações laborais do senhor”. Daí Taunay defender uma “vigilância de todos os
momentos”, uma “disciplina semelhante à militar” e “feitores que não o percam de vista um só
minuto”. O meio de se obter a coação e se interiorizar o medo seria a aplicação dos castigos à
vista de toda a escravatura, com a finalidade de ensinar e intimidar os demais negros. Mas
fazendo uma ressalva que se distanciava de Chaves, ele defendia que o excesso de castigo e sua
repetição embrutecia o cativo ao invés de corrigi-lo. Portanto, o senhor deveria ser justo e os
castigos deveriam ser moderados e variados de acordo com a culpa. 137

134
ENGEMANN, Carlos. De laços e de nós. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 149.
135
MARQUESE, Rafael. Op. cit.
136
MARQUESE, Rafael. Paternalismo e governo dos escravos nas sociedades escravistas oitocentistas: Brasil,
Cuba e Estados Unidos. In: FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão. Belo
Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2003, p. 123-124.
137
MARQUESE, Rafael. Op. cit., 2003, p. 124-125.
245
Conforme Marquese, Taunay reconhecia que o nível de tensão na propriedade se
elevaria a patamares alarmantes caso o senhor fundamentasse seu governo somente na coação e
no medo. Como o cativo era visto como um homem-criança, daí a necessidade de conjugar a
disciplina com o paternalismo e a orientação católica. E é neste ponto que Taunay começa a se
afastar de Chaves e se aproximar de Vieira Braga. Segundo Taunay, um dos principais fatores
para evitar a tensão nas senzalas era “inculcar nos negros a doutrina do catolicismo romano”.
Esta era a melhor forma para conservar a obediência ao senhor, boa ordem e subordinação. O
objetivo da direção religiosa e moral dos escravos era deixá-los parecidos com as propriedades
inacianas do século XVIII.138 Demonstrei anteriormente que Vieira Braga também insistia em
incutir o catolicismo entre os escravos, ao contrário de Chaves, que não guardava nem os
domingos aos cativos.

Outra recomendação de Taunay era premiar escravos de boa conduta e os diligentes em


suas tarefas. O deslocamento dos mesmos para a função de feitores inferiores seria uma das
medidas possíveis. A promoção seria evidenciada por insígnias de pequena monta, tais como
vestimentas ou bonés mais brilhantes. Taunay também era partidário dos métodos de
administração escravista empregados pelos jesuítas. Daí a importância que ele dava às famílias
escravas. A proteção às grávidas, o cuidado com as crianças, a não obrigatoriedade do
casamento religioso foram alguns destes traços.139 Ora, Vieira Braga também investiu em
distinções no interior da escravaria, alimentando a hierarquia entre os cativos, e deu
importância notável às famílias escravas. Em suma, Taunay delineou um conjunto de regras
básicas que cuidavam da alimentação, das vestimentas, da habitação, do trabalho diário, dos
castigos, da direção religiosa e moral e das relações entre negros e negras. Ele também advogou
a elevação da quantidade e qualidade de vestimentas e alimentos fornecidos aos cativos e a
melhoria do estado sanitário da moradia escrava.

Para Taunay, saber dosar o paternalismo com a disciplina era a chave da gestão
escravista. A obrigação do catolicismo dominical seria compensada com a liberdade para a
realização dos seus folguedos africanos após o jantar. Nesta ocasião, o senhor deveria atribuir a
cachaça entre os cativos, pois a comunicação dos escravos com as tavernas de beira de estrada
deveria ser rigorosamente proibida, sob pena de severos castigos. Como demonstrei
anteriormente, Vieira Braga também distribuía fumo e ponche com aguardente aos seus
escravos e os cativos que andassem embriagados à noite também deveriam ser punidos. Outro

138
Idem, p. 125.
139
Idem, p. 125-126.
246
ponto de convergência entre o Manual de Taunay e a administração de Vieira Braga diz
respeito à concessão de alforrias para as escravas que contribuíssem com o aumento do plantel
de seu senhor. Taunay aconselhava que as cativas que dessem ao senhor 6 filhos ou mais
deveriam ser libertadas tanto por terem fornecido um grande número de rebentos ao seu senhor,
como para servirem de exemplo às outras companheiras de cativeiro.

Além disso, Vieira Braga demonstrou ser muito diligente com as finanças da estância e
não poupar esforços para defender sua propriedade. Nas instruções ao seu capataz, ele ordenou
não permitir em hipótese alguma que alguém se arranchasse nos campos dele ou tentasse medir
suas terras sem seu consentimento. Com relações aos animais, se alguém lhe roubasse algum
gado era para chamar o filho do Sr. Garcez para “fazer-se tudo o mais que for necessário contra
o ladrão”.140 Portanto, os escritos de Taunay convergiam bastante com as práticas de Vieira
Braga, mesmo porque ele também imprimia certa disciplina aos seus cativos, como as
entrelinhas das fontes que examinei indicam. Neste sentido, o “Manual do Agricultor”, redigido
no final da década de 1830, reproduzia práticas de administração escrava mais antigas e que
deviam ser compartilhadas por grandes senhores em diferentes partes do Brasil (inclusive os
cafeicultores que Taunay conheceu). E acredito que foi a partir da observação destas práticas,
muitas delas certamente costumeiras e realizadas desde o período colonial, que Taunay,
agregando novas ideias características do século XIX, escreveu o seu manual.

Para finalizar o capítulo, gostaria de colocar uma outra questão. Havia uma forma mais
correta de se administrar uma grande escravaria? Seguindo padrões distintos de administração
dos escravos, tanto Vieira Braga, quanto Chaves e Costa Santos atingiram o topo da elite
econômica em Pelotas, revelando que era possível se obter sucesso tratando seus escravos de
formas distintas. No entanto, como explicar tamanha diferença entre os dois modelos de
administração dos escravos? Para além das individualidades dos seus senhores, creio ser
possível buscar elementos de outra ordem. O primeiro a ser apontado era a localidade das
propriedades de Chaves, Costa Santos e Vieira Braga. Enquanto a estância deste estava
localizada há muitos quilômetros do litoral, afastada de outras escravarias, e a charqueada de
Costa Santos também ficava numa grande estância no norte do município de Pelotas, a
charqueada de Chaves estava cravada no núcleo fabril do município, cercada por outras fábricas
que concentravam centenas de escravos.141

140
Instruções ao capataz..., p. 42-43.
141
E isto ajuda a compreender o temor de alguns senhores desta lcalidade com relação a uma revolta escrava no
início dos anos 1830 (ver capítulo 3).
247
Uma outra questão talvez mais importante era a atividade econômica em que os
escravos estavam empregados. A historiografia rio-grandense é enfática em afirmar que o
trabalho nas charqueadas era mais duro do que nas estâncias de criação. Mesmo que se possa
relativizar tal afirmação, creio que o tipo de atividade ajudasse a condicionar a forma do
governo dos escravos, mas não acredito numa determinação dada a priori. Talvez alguns
escravos fossem mais bem tratados na charqueada de José da Costa Santos do que na estância
de algum grande criador, por exemplo. Portanto, outros fatores também influíam sobre este
fenômeno. De acordo com Saint-Hilaire: “Já tenho declarado que nesta capitania os negros são
tratados com brandura e que os brancos com eles se familiarizam mais do que noutros lugares.
Isto é verdadeiro para os escravos das estâncias, que são poucos, mas não o é para os das
charqueadas que, sendo em grande número e cheios de vícios trazidos da capital, devem ser
tratados com mais rigor”.142 Talvez Saint-Hilaire se referisse aos africanos ou aos escravos
ladinos chegados de outras províncias, sobretudo da “capital” (Rio de Janeiro).143 Conforme
Libby, as Companhias mineradoras inglesas também não gostavam de comprar os escravos
vindos do Rio, preferindo os de Minas Gerais.144

Na avaliação de Saint Hilaire, o tamanho do plantel e a origem dos escravos influíam na


forma que os mesmos eram tratados, algo que tendo a concordar. Como demonstraram algumas
pesquisas, na paisagem agrária do Brasil, os grandes plantéis acima de 50 escravos,
compunham a minoria das propriedades. 145 Creio que tudo isto influía nos tipos de políticas de
dominação senhorial. Somam-se a isto os escravos urbanos, que gozavam de outro tipo de
autonomia e estavam sujeitos a outras formas de disciplina e controle. Para Guedes, nas
cidades, as roças próprias e os casamentos “eram realidades intangíveis para a grande maioria
dos escravos, o que inviabilizava qualquer política de domínio fundada sobre estas bases”.146
Portanto, as formas de administração da escravaria de Vieira Braga e Chaves eram somente
duas entre as possíveis e é importante considerar que os estudos sobre as relações entre
senhores e escravos na sociedade brasileira ainda merecem mais análises, tratando-se de um
problema de pesquisa aberto a muitas investidas.

142
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 114.
143
E de fato, pela alta razão de sexo e o elevado índice de africanidade, as charqueadas deveriam estar mais
conectadas ao tráfico atlântico do que as estâncias da fronteira.
144
LIBBY, Douglas. Op. cit.
145
MARCONDES, Renato Leite. Desigualdades regionais brasileiras: comércio marítimo e posse de cativos na
década de 1870. Tese de livre-docência. Ribeirão Preto, USP, 2005.
146
GUEDES, Roberto. Op. cit.
248
7. OS MERCADOS DO GADO, A EXPANSÃO AGRÁRIA NA
FRONTEIRA E A GUERRA COMO RECURSO ECONÔMICO

Na paz, prepara-te para a guerra. Na guerra, prepara-te para a paz


Sun Tzu

Toda a charqueada necessitava de muitas tropas de novilhos para tocar seus negócios,
mas nem todo o charqueador era um grande criador de gado. Com raras exceções, por maior
que fosse o rebanho de um charqueador, ele não era capaz de suprir nem 5% do número total de
reses abatidas em seu estabelecimento durante uma safra. Conforme Farinatti, a taxa de
reprodução anual do rebanho de um estancieiro da região da campanha devia chegar a 20%.
Mas como somente os machos eram vendidos para o abate nas charqueadas, cerca de 10% do
total das reses eram negociadas anualmente.1 O charqueador de Pelotas com o maior número de
cabeças de gado entre os seus bens possuía mais de 34 mil reses. Portanto, ele poderia abater
anualmente em sua charqueada cerca de 3.400 reses de seu próprio rebanho. Como um grande
charqueador abatia algo entre 20 e 25 mil novilhos numa safra2, ele podia compor de 13 a 17%
da matéria-prima animal a partir do custeio de suas próprias estâncias no Uruguai. Mas tal
situação foi única. Tendo em vista que o segundo charqueador com o maior rebanho
inventariado detinha 13 mil reses e a grande maioria dos mesmos ou não possuía animais de
criar ou era dono de pequenos rebanhos, como demonstrarei a seguir, pode-se concluir que mais
de 95% do gado abatido nas charqueadas era comprado de estancieiros e tropeiros de outras
regiões.3 Portanto, não se pode falar em autoabastecimento de novilhos para nenhum destes
empresários. Todos os charqueadores dependiam totalmente dos mercados de gado.

No entanto, havia um problema. Os rebanhos da província não eram suficientes para


manter os altos níveis de abate das charqueadas pelotenses. Na década de 1860, eles alcançaram
uma média de quase 400 mil reses por ano. Como notou Alvarino Marques, “Pelotas estava
abatendo mais gado que o produzido em toda a região sul do Rio Grande”. Portanto, como a
indústria charqueadora pelotense se mantinha? “A diferença era coberta pela introdução – para
não dizer contrabando – de gado uruguaio, em número aproximado de 100 mil reses por ano”. 4
Não existem dados precisos sobre este comércio e muito menos sobre o contrabando, mas, em

1
FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil
(1825-1865). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010, p. 148.
2
Correio Mercantil. Edição de 20.07.1875 (Biblioteca Pública de Pelotas).
3
Tratarei do tamanho dos rebanhos dos charqueadores a seguir.
4
MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987, p. 92.
249
1864, o Presidente da Província declarou que o Rio Grande do Sul absorveu mais de 130 mil
reses do país vizinho.5 Portanto, tendo em vista estes números, fica evidente que o gado
uruguaio foi indispensável na manutenção dos altos índices de abate das charqueadas pelotenses
(Gráfico 7.1). É provável que sem as tropas vindas de Cerro Largo e Tacuarembó a economia
charqueadora não teria se desenvolvido da mesma forma, podendo estagnar-se muito cedo.

Gráfico 7.1 – Número de reses abatidas nas charqueadas de Pelotas (1862-1890)

500.000
450.000
400.000
350.000
300.000
250.000
200.000
150.000
100.000
50.000
0

Fonte: PIMENTEL, Fortunato. Charqueadas e frigoríficos: aspectos gerais da indústria


pastoril do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria Continental, s/d.

A análise do gráfico também possibilita perceber que apesar da leve diminuição (sempre
oscilante) dos ritmos de abate na década de 1870, é somente nos anos 1880 que a indústria
charqueadora viu-se numa profunda crise. Este problema será tratado ao longo deste capítulo e
do posterior. No momento interessa compreender melhor as relações dos ritmos de abate com o
mercado de gados. De acordo com o mapa numérico das estâncias da Província e animais que
possuem, contabilizados em 1858, o Rio Grande do Sul tinha cerca de 3,5 milhões de cabeças
de gado vacum distribuídas em 15 municípios. No entanto, este número era bem maior, visto
que nestes locais alguns distritos não tiveram seus rebanhos recenseados e outros 11 municípios
nem sequer remeteram as suas estatísticas para a Presidência da Província. Entre estes últimos,
havia importantes regiões de criação de gado como Uruguaiana, Caçapava, São Gabriel e Cruz
Alta, por exemplo.6 Portanto, não seria exagero considerar que havia mais de 5 milhões de reses
pastando nos campos da província. Apesar da taxa de reprodução dos rebanhos ser considerada

5
Relatório Presidente da Província do Rio Grande do Sul, Espiridião Eloy de Barros, de 1864, p. 60.
6
Mapa numérico das estâncias… Fundo Estatística, maço 02, AHRS.
250
de 20% pela maioria dos especialistas, o número de animais que criam por ano realizado pelos
recenseadores foi calculado em 15%, o que resulta em 7,5% machos. Portanto, numa população
bovina de 5 milhões de reses, algo entre 375 e 500 mil novilhos estariam disponíveis para
serem negociados anualmente, dependendo da taxa de reprodução que se aceite.

Mas antes que se conclua qualquer questão a respeito destes dados, outros três
importantes fatores devem ser considerados. Primeiramente, conforme Alvarino Marques, foi
somente a partir da década de 1870 que os rebanhos da região norte do Rio Grande do Sul
começaram a ser remetidos para Pelotas. Antes disso, apenas os municípios ao sul do rio Ibicuí,
na região da campanha, e da região central da província, estavam inseridos no espaço
econômico pecuarista que abastecia as charqueadas pelotenses. Em segundo lugar, Pelotas não
era o único polo charqueador do sul da província. Os municípios de Jaguarão e Rio Grande
também recebiam grandes levas de gado. Em 1854 e 1855, por exemplo, as 9 charqueadas
existentes em Jaguarão abateram respectivamente 35.163 e 41.697 reses e as 7 fábricas em Rio
Grande abateram 15.100 e 14.000, nos mesmos anos.7

Terceiro, nem todo o gado criado no Rio Grande do Sul era remetido para as
charqueadas. No ano de 1874, por exemplo, a população pelotense teve 11.538 reses destinadas
para o seu próprio consumo. Na década de 1880, Pelotas e Rio Grande juntas consumiram
anualmente cerca de 30 mil reses. 8 Ora, os habitantes livres de ambas as cidades perfaziam
cerca de 10% da população provincial (realizando o mesmo cálculo com os escravos, o índice
era quase o mesmo). Se a taxa de consumo de carne bovina entre os habitantes dos demais
municípios da província acompanhava os mesmos ritmos destas duas localidades, seria possível
considerar que, na década de 1870, cerca de 200 mil reses foram abatidas anualmente para o
abastecimento da população provincial. Isto daria um consumo per capita de carne bovina em
torno de 90 a 100 kg por ano (calculando-se que uma rês poderia render 180 a 210 kg de carne
com osso).9 Trata-se de uma estimativa bastante plausível. Em 1861, o Uruguai inteiro, cuja
população aproximava-se da do Rio Grande do Sul, consumiu 293 mil reses. 10 Buenos Aires,
por exemplo, apresentou um índice de consumo per capita de 100 a 120 kg, na mesma década.
Com uma população 10 vezes maior que Pelotas, a capital argentina, em 1867, recebeu 468.909

7
MARQUES, Alvarino. Op. cit., p. 123; Ofício de 24.03.1856. Autoridades Municipais de Rio Grande, maço 215-
A. AHRS. A transcrição dos dados de Rio Grande foram gentilmente cedidos por Vinícius Oliveira.
8
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 100.
9
COUTY, Louis. A Erva mate e o Charque. Pelotas: Seiva, 2000 [1882], p. 119. Barran e Nahum dizem que em
Montevideu, na segunda metade do oitocentos, cada bovino podia render 161 kg de carne, osso e gorduras
(BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo:
Ediciones de la Banda Oriental, 1967, p. 162).
10
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 124.
251
ovinos e 578.000 vacuns para alimentação de seus moradores.11 Portanto, mesmo que o Rio
Grande do Sul consumisse menos de 200 mil reses anuais para o abastecimento das cidades, tais
números não podiam ser desconsiderados pelos administradores e charqueadores, pois era um
gado perdido na safra pelotense.12

Neste sentido, a dependência das charqueadas de Pelotas para com o gado criado no
Uruguai era um fator estrutural na economia regional, dependendo da entrada de tropas que
podiam somar mais de 100 mil reses por safra.13 O leitor pode não ter muita dimensão do que
significava este grande contingente de bovinos negociados anualmente nas charqueadas.
Apenas para uma comparação, em 1854 a província de São Paulo inteira possuía 532 fazendas
de criação com 35 mil cabeças de gado.14 No Paraná, por sua vez, havia quase 65 mil reses, em
1825.15 Isto demonstra que os saques, contrabandos e arreadas, cada vez mais comuns na
fronteira, não envolviam interesses econômicos de pouca monta. As dezenas de milhares de
bovinos roubados e contrabandeados traziam vultosos prejuízos aos proprietários, ajudando a
compreender a gravidade dos conflitos que se sucederam na fronteira e porque os estancieiros
incomodavam tanto o Império com tais assuntos. Alguns deles, como José Luís Martins,
declararam ter sofrido um saque de 40 mil reses de seus campos, ou seja, teriam perdido
rebanhos equivalentes aos totais de uma província brasileira!16

Devido à abundância de rebanhos gordos e estâncias com boas pastagens, os


charqueadores de Pelotas possuíam um interesse direto no espaço agrário da região da
campanha e do norte do Uruguai. Neste sentido, é necessário investigar a importância destas
propriedades (tanto brasileiras quanto uruguaias) na constituição do patrimônio material dos
charqueadores de Pelotas e que consequências políticas e econômicas este interesse
desencadeou. A preocupação destes empresários escravistas pode ser simplificada em três
11
Entre 1867 e 1876, Buenos Aires e os arredores receberam mais de 3 milhões de reses para alimentação.
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Historia del capitalismo agrario pampeano. La expansión
ganadera hasta 1895. Buenos Aires: Universidad de Belgrano/Siglo XXI, p. 347-357.
12
Em Buenos Aires, por exemplo, os primeiros saladeiristas enfrentaram muitos problemas com as autoridades
administrativas e a população portenha, pois desviavam grande parte do gado destinado à alimentação dos
habitantes, provocando a carestia no abastecimento (GIBERTI, Horacio. Historia Económica de la ganadería
argentina. Buenos Aires: Solar, 1981). Buenos Aires, nos anos 1820, abatia quase 75 mil reses anualmente para
abastecer somente o seu espaço urbano. O consumo de carne vacum percapita na cidade, no fim do século XVIII,
era de 193 kg por ano (GARAVAGLIA, Juan C. De la carne al cuero: los mercados para los productos pecuarios
(Buenos Aires y su campaña, 1700-1825). Anuario del IEHS. Tandil, n. 9, 1994, p. 61-95).
13
Barran e Nahum afirmam que o Brasil recebia 250 mil reses por ano, durante os anos 1860, mas não é possível
saber se estes animais foram todos remetidos para o Rio Grande do Sul (BARRAN; NAHUM, 1967, p. 124).
14
LUNA, Francisco; KLEIN, Herbet. Escravidão africana na produção de alimentos. São Paulo no século XIX. In:
Estudos Econômicos, v. 40, n. 2, 2010, p. 297, p. 315.
15
GUTIERREZ, Horácio. Fazendas de gado no Paraná escravista, Revista Topói, 2004, p. 110. Comparando tais
números com os do Rio Grande do Sul, o autor considerou que “a produção e o número de fazendas paranaenses
tornava-se uma ninharia”.
16
Ofício de 1849. Avisos do Ministério de Estrangeiros. B1-027 (AHRS).
252
pontos: a) manter o contínuo fluxo de tropas de gado do território uruguaio para as charqueadas
pelotenses; b) defender o que entendiam como seu direito de propriedade no território uruguaio
(o que incluía terras, escravos e rebanhos); c) garantir a sua proeminência diante das crescentes
exportações dos saladeros platinos para os mercados atlânticos. A livre concorrência esteve
longe de servir como suporte exclusivo nesta disputa, sendo a guerra, a diplomacia e a ação
parlamentar os mecanismos de caráter fundamental para garantir o desenvolvimento econômico
do complexo charqueador-escravista pelotense. Neste sentido, política, guerra, mercado de
gados e terras e comércio de charque estavam tão intimamente ligados que é difícil definir onde
um influenciava o outro, como demonstro nas páginas a seguir.

7.1 NA TRILHA DOS LATIFÚNDIOS: A EXPANSÃO AGRÁRIA RUMO À REGIÃO DA


FRONTEIRA COM O URUGUAI

O avanço rio-grandese em direção às propriedades uruguaias remontava ao início do


século, quando o projeto expansionista luso-brasileiro foi posto em prática a partir de
intervenções militares no referido território. Estas investidas, associadas ao conflituoso
processo de separação da Banda Oriental com a Coroa Espanhola, entre outros fatores,
acabaram por favorecer a anexação da região ao Império do Brasil, sob a denominação de
província Cisplatina.17 A partir deste período e até o meado do século, o norte daquela região
passou a ser gradualmente povoado por grandes levas de famílias luso-brasileiras que se
estabeleciam com estâncias de criação, o que favoreceu o desenvolvimento do complexo
charqueador em Pelotas. Estima-se que, somente durante a ocupação da Cisplatina, mais de 2
milhões de reses foram levadas do Uruguai para o Rio Grande do Sul.18 Desnecessário dizer
que o mesmo processo trouxe inúmeros prejuízos para a indústria saladeril oriental.

Durante o período da ocupação brasileira na Cisplatina, centenas de estancieiros


migraram para o território vizinho, tornando-se proprietários na região fronteiriça. No entanto,
de acordo com Eliane Zabiella, o avanço brasileiro sobre as terras uruguaias durante a Guerra

17
Para uma análise dos projetos que se sucederam ao processo de independência no Uruguai e também na sua
relação com o Império luso-brasileiro ver FREGA, Ana; ISLAS, Ariadna (Org.). Nuevas miradas en torno al
artiguismo. Montevidéu: Dpto. de Publicaciones de la FHCE, 2001; OSÓRIO, Helen. A revolução artiguista e o
Rio Grande do Sul: alguns entrelaçamentos. In: Cadernos do CHDD. Brasília, Ano 6, 2007, p. 3-32; MIRANDA,
Márcia Eckert. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime, fiscalidade e fronteira na Província de São
Pedro (1808-1831). São Paulo: Editora Hucitec, 2009.
18
MARQUES, Alvarino. Op. cit., p. 55. Acompanhando os dados compilados por Marques é possível ver o
impacto desta entrada de animais na paisagem agrária rio-grandense. Se em 1787, a capitania contava com 651.619
reses em seus campos de criação, e em 1811 ela possuía cerca de 1.298 milhões, em 1822, por exemplo, este índice
havia mais que triplicado, chegando a 5 milhões.
253
Grande (1838-1851)19 foi maior que em qualquer outra época. Ao longo do mencionado
conflito, o preço das propriedades declinou, custando 0,60 centésimos de peso por hectare, o
que animou os compradores. Somadas às buscas de gado na época da Cisplatina, este avanço do
capital rio-grandense sobre as terras orientais arruinou a antiga classe latifundiária uruguaia ao
quase destruir a pecuária e a sua indústria saladeril. Em 1850, os brasileiros possuíam 428
estâncias no norte do Uruguai, do qual eram conhecidas as dimensões e o número de cabeças de
gado para 191 delas. Estas terras ocupavam uma superfície de 693 léguas quadradas com
914.000 cabeças de gado vacum. Zabiella estima, a partir de alguns cálculos e considerações, a
possibilidade de que cerca de 2 milhões de reses tenham existido ao mesmo tempo em todas
aquelas 428 estâncias pertencentes aos rio-grandenses. 20

A expansão agrária e a migração de rio-grandenses para aqueles campos


impressionavam pela sua velocidade e pelo contingente de pessoas. Em 1845, na Câmara dos
deputados, o representante da Bahia, o Sr. Silva Ferraz, declarou:

Vejo senhores, que teneis uma idéia muito equivocada do poder e dos recursos do
Império. Vós creeis que ali na linha ou divisa material do Jaguarão vão encontrar um
povo completamente distinto do que se chama Império do Brasil, mas é preciso que
saibais que felizmente não é assim. Ao passar ao outro lado do Jaguarão, senhores, o
traje, o idioma, os costumes, as moedas, os pesos, as medidas, tudo, até a outra banda
do rio Negro, tudo, tudo, senhores, até a terra, é brasileira.21

Examinando diversos documentos nos arquivos uruguaios, Zabiella verificou que, de


fato, os brasileiros ocupavam cargos tanto na Justiça quanto na administração local, como
Simão de Brum da Silveira, que foi Tenente Alcaide em Olimar (1836). Esta presença era tão
marcante que, na segunda metade do XIX, as autoridades uruguaias ordenaram que os
documentos oficiais produzidos no interior do país fossem escritos somente em língua
espanhola e não mais em português. Nas listas de habitantes, a participação de brasileiros, com
seus agregados e escravos, também era notável e, na época das eleições, havia candidatos tanto
orientais quanto rio-grandenses disputando os votos da população.22 Portanto, não havia
nenhum exagero no discurso do deputado baiano. Em 1860, os brasileiros representavam 11%
da população total do Uruguai23 e ocupavam cerca de 30% do território deste país. Neste

19
A Guerra Grande (1838-1851) foi um conflito iniciado no Uruguai entre os partidários de Manuel Oribe e
Fructuoso Rivera e que, depois da queda do primeiro, tomou proporções transnacionais, envolvendo caudilhos das
províncias argentinas e autoridades políticas e militares platinas e brasileiras, encerrando-se com a intervenção do
Império brasileiro na região, em 1851.
20
ZABIELLA, Eliane. A presença brasileira no Uruguai e os Tratados de 1851 de Comércio e Navegação, de
Extradição e de Limites. Dissertação de Mestrado em História, UFRGS, 2002, p. 23-25.
21
ZABIELLA, Eliane. Op. cit. p. 25.
22
ZABIELLA, Eliane. Op. cit., p. 25-27.
23
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. Niterói: ICHF/UFF,
Dissertação de Mestrado, 1983, p. 55.
254
sentido, pode-se dizer que, em meados do século, aquela região era praticamente um apêndice
econômico e social dos estancieiros rio-grandenses.24

Mas se o avanço luso-brasileiro sobre as estâncias uruguaias e da região da campanha


sul-rio-grandense havia se iniciado durante o colonial tardio, os charqueadores pelotenses
começaram a investir seus capitais nestas regiões de forma mais incisiva somente após este
período. O Gráfico 7.2 representa as transações de compra e venda registradas nas escrituras
públicas nos tabelionatos de Pelotas (entre 1832 e 1890) e as propriedades rurais avaliadas nos
inventários post-mortem dos charqueadores (entre 1820 e 1900).25 De acordo com o gráfico, o
auge dos investimentos nas duas regiões mencionadas ocorreu entre as décadas de 1850 e 1870.
Somando as referências de propriedade no Uruguai e na campanha rio-grandense encontradas
nos inventários post-mortem e nas escrituras públicas temos que cerca de 82,5% das mesmas
concentram-se nestas três décadas. É provável que as estâncias inventariadas na década de 1850
tenham sido compradas anteriormente, como indica o aumento das escrituras nos anos 1840.26

Gráfico 7.2 - Presença de propriedades rurais pertencentes a charqueadores de Pelotas nos


inventários e nos livros de notas (1820-1900)

30
25
20
15
10
5
0
1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890

Escrituras Inventários

Fonte: Livros de notas do 1º, 2º e 3º Tabelionato de Pelotas (1832-1890) e


Inventários post-mortem de Pelotas (APERS).

Os investimentos em imóveis rurais tinham uma região-alvo certa (Figura 7.1). Cerca de
2/3 das 106 referências encontradas e indicadas no Gráfico 1 (31 em inventários e 75 em
escrituras públicas) concentraram-se em quatro regiões localizadas exatamente na fronteira

24
SOUZA, Susana B. e PRADO, Fabrício. Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e política no século XIX.
In: GRIJÓ, Luiz A.; KUHN, Fábio; GUAZZELLI, César A. B.; NEUMANN, Eduardo. Capítulos de história do
Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDUFRGS, 2004.
25
Livros de notas do 1º, 2º e 3º Tabelionato de Pelotas (1832-1890) e Inventários de Pelotas (APERS).
26
Também é possível que outras compras tenham sido registradas nos cartórios dos respectivos municípios ou até
no país vizinho, mas não tive fôlego para realizar esta busca. No entanto, o cruzamento com os inventários post-
mortem ajudaram a sanar, em parte, este problema.
255
divisória entre os dois países: em Tacuarembó (27), Cerro Largo (15), Bagé (14) e Jaguarão
(14). No Uruguai, além dos Departamentos de Tacuarembó e Cerro Largo, também encontrei
referências em Salto (4), Paysandu (2), Montevidéu (2), Durazno (1) e outras duas com a
localização imprecisa. Percebe-se aqui que exatamente 50% das referências em inventários
post-mortem e escrituras públicas somadas tratavam-se de investimentos em propriedades rurais
no Uruguai. Ou seja, as terras do país vizinho concentraram os interesses diretos dos
charqueadores pelotenses que realizaram altos investimentos de capital nos mesmos.

Figura 7.1 – Mapa das regiões-alvo dos investimentos realizados pelos charqueadores em estâncias
e campos de criação fora de Pelotas (1810-1900)

Fonte: Inventários post-mortem de Pelotas, 1832-1900 (APERS). Escrituras públicas de compra venda,
1º, 2º, e o 3º Tabelionatos de Pelotas, 1832-1890 (APERS). Os círculos representam referências de
estâncias e campos tanto nos inventários quanto nas escrituras públicas. Os círculos pequenos
correspondem a 1 referência e os círculos grandes representam 10 referências.

Os charqueadores pelotenses sempre estiveram atentos a este processo de expansão


agrária rumo à fronteira sudoeste. Devido aos bons pastos e a relativa proximidade com Pelotas
(se comparadas a outras regiões) as estâncias dos municípios e departamentos acima
256
mencionados eram bastante cobiçadas. Em 1863, por exemplo, o coronel Tomás José de
Campos, charqueador pelotense, comprou de José Rodrigues Candiota 13 e ½ sortes de campo
em Cerro Largo pagando o valor de 54:000$ de réis. A maior compra de uma estância no
Uruguai foi feita por Antônio José de Oliveira Leitão, que foi sócio dos irmãos Barcellos em
uma charqueada entre os anos 1850 e 1860. Em 1859, Leitão comprou um campo em
Tacuarembó e pagou o valor de 135:000$ de réis pela propriedade rural. Contudo, os maiores
valores investidos em estâncias se deram em propriedades do lado brasileiro da fronteira. Em
1868, por exemplo, Possidônio Mâncio Cunha comprou a Estância Paraíso, localizada em
Jaguarão, pagando 190:134$160 a Jacintho Antônio Lopes. E em 1866, José Antônio Moreira,
um dos charqueadores mais ricos de seu tempo, realizou a maior transação em terras aqui
analisada comprando a Estância do Ponche Verde, em Bagé, pelo valor de 256:000$ de réis. 27

Portanto, em meados do oitocentos, a campanha oriental havia se tornado um imenso


campo de engorda de gado para as charqueadas pelotenses e a criação extensiva fazia com que
os estancieiros rio-grandenses se expandissem cada vez mais para o interior do território
uruguaio. A partir da década de 1840, e tendo o seu auge nos anos 1850/1860, os charqueadores
seguiram esta mesma tendência de inversões de capital. Contudo, se a quantidade de gado
contida nas estâncias de um charqueador não cobria nem 5% do necessário para os trabalhos de
uma safra, porque estes empresários investiam grandes montantes de capital em uma estância
na fronteira sujeita a todo tipo de saques e ataques? Porque optavam em tornarem-se grandes
criadores de gado, vindo a arcar com gastos com peões, capatazes e escravos em seus campos
se o retorno em termos de novilhos por safra era ínfimo? O estudo dos mercados de gado e seus
mecanismos internos ajuda a entender a racionalidade deste empreendimento.

7.2 PELAS MALHAS DO PARENTESCO: O MERCADO DO GADO PARA AS


CHARQUEADAS DE PELOTAS

Pode-se imaginar que a comercialização de animais vacuns durante a época das safras
das charqueadas tornava a região da campanha sul-rio-grandense um espaço de intenso tráfego
de tropas de gado. Os novilhos abatidos nas charqueadas pelotenses provinham não apenas das
estâncias rio-grandenses, como também das uruguaias, e podiam possuir três distintas origens:
as tropas de desconhecidos que chegavam até Pelotas por intermédio de agentes e negociantes

27
Livros de notas do 1º, 2º e 3º Tabelionato de Pelotas (1832-1890) – APERS. Como notou Stephen Bell, algumas
desta transações faziam parte de cobranças de dívidas de grandes fazendeiros para com os charqueadores, o que
não significa que não se constituíssem em altas inversões de capital. BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a
brazilian ranching system, 1850-1928. Stanford: Stanford University Press, 1998.
257
que as vendiam aos charqueadores; as tropas de criadores mais conhecidos que já possuíam
negócios pré-acordados com os charqueadores (que lhes adiantava dinheiro) e as tropas levadas
até o mercado/feira de gados de Pelotas (a tablada), onde eram compradas pelos próprios
charqueadores sem a presença de tantos intermediários.

Uma vez que a tablada parece ter se constituído em importante espaço de compra e
venda de gados somente nos anos 1870, analisarei ela por último. Antes disso, comumente os
charqueadores adiantavam dinheiro aos seus agentes que partiam para o interior da província ou
cruzavam a fronteira para comprar tropas de gado dos grandes estancieiros, trazendo as mesmas
para as charqueadas durante a época das safras. Mas o contrário também ocorria. Grandes
estancieiros podiam ter parentes e agentes envolvidos com a formação de tropas para remete-las
à Pelotas, tornando este mercado repleto de intermediários. Um processo judicial traz ricos
detalhes sobre estas transações. Em dezembro de 1874, os charqueadores Gonçalves & Lúcio,
por intermédio de um agente, Francisco S. da R. Formiga, compraram uma tropa de novilhos do
capitão Pedro Luís Osório, estancieiro em Bagé. Tendo fechado o negócio, Osório ordenou que
seu capataz, José R. de Almeida, acompanhasse o agente até a sua invernada no Candiotinha “a
fim de entregar àquele Formiga as reses gordas da propriedade do autor e que ele apartasse e
quisesse comprar, a preço de trinta e dois mil réis cada novilho”. Formiga escolheu 115 reses e
o capataz levou-os até Pelotas. Segundo o estancieiro, “não querendo sofrer o risco de perda do
dinheiro conduzido pelo capataz”, disse aos charqueadores que “aceitava uma ordem contra
estes por toda a importância da compra do gado para ser paga na cidade de Pelotas e que neste
sentido escreveu particularmente” aos mesmos. Recebendo a ordem, os charqueadores
negaram-se a pagar, atitude que fez Osório entrar na Justiça contra ambos. 28

Mas a história era muito mais complexa. A partir da leitura das muitas cartas anexadas
ao processo verifica-se que Formiga não era “mandatário” dos charqueadores. Como tropeiro,
ele comprava gados para revender nas charqueadas oferecendo-os a mais de um charqueador.
Tendo fechado um negócio com alguns criadores, ele escreveu para Gonçalves & Lúcio
oferecendo as tropas. Os charqueadores não quiseram. Formiga voltou a insistir, “dizendo que
não queria passar por conversador perante os fazendeiros, pois já tinha os gados tratados e
contava conduzi-los” para as charqueadas. Gonçalves & Lúcio aceitaram, mas exigiram que as
tropas deveriam ser “de gado bem gordo”, “por preço nunca mais de 32$000 cada um novilho”
e que se viessem em tais condições “lhe pagariam a comissão que é de praxe”. Os
charqueadores complementaram: “como é também de praxe fornecer adiantamento de quantias

28
Ordinária de Pedro Osório contra Gonçalves & Lúcio, 1177, m. 42, 1º cartório do cível, Pelotas, 1875 (APERS).
258
por conta das tropas”, mas “receando remetê-las pela diligência, autorizaram a Formiga a sacar
contra eles (…) por intermédio de Manoel Soares da Silva de Bagé, ao qual também pediu que
auxiliasse Formiga nos saques, a fim de que a tropa saísse maior, e que esses saques seriam
religiosamente pagos”. Mas o tropeiro não teria cumprido o trato, trazendo novilhos magros
para a charqueada. Formiga ainda pediu aos charqueadores que cobrissem as despesas do seu
capataz e dos seus peões (que ele chamava de “minha gente”) e numa carta escrita por ele aos
mesmos charqueadores disse que se a sua comissão não fosse de 4$000 por cabeça de gado, ele
poderia levar a tropa para outro charqueador.29

Não foi raro localizar contendas judiciais semelhantes a esta. Em janeiro de 1854, por
exemplo, João Vinhas cobrou a senhora Adriana de Carvalho o valor de 1:634$463 referente ao
dinheiro que lhe entregou para ser pago em gados.30 Em junho de 1857, o mesmo Vinhas,
juntamente com o charqueador José Antônio Moreira, acionou a Justiça para cobrar o valor de
16:000$ referente aos adiantamentos que deram a Joaquim Manoel Teixeira para que lhes
comprassem tropas de gado no Uruguai, o que o réu não fez. 31 Charqueadores e comerciantes
seguidamente associavam-se para comprar tropas ou abater reses em estabelecimentos de
terceiros. Estas parcerias não eram registradas em cartório e apenas são possíveis de se perceber
nas entrelinhas de processos judiciais e recibos anexos em inventários. Tais parcerias e
sociedades tinham prazos curtos, sendo dissolvidas em uma ou duas safras, podendo ser
restabelecidas em outras. O motivo das mesmas era reunir o capital necessário num
empreendimento momentâneo, além de diminuir os prejuízos num negócio mal sucedido com
tropeiros e estancieiros. É provável que muitas das dívidas ativas encontradas em inventários
post-mortem de charqueadores também fosse fruto de negócios envolvendo gado com agentes e
criadores, mas não é possível saber com precisão, visto que a origem das dívidas dificilmente
eram discriminadas.

O que se pode perceber na leitura destes e de outros processos judiciais é que os


negócios envolvendo compra e venda de tropas eram cheios de riscos, como os próprios
charqueadores Gonçalves & Lúcio afirmaram. Primeiramente, porque em última instância, estes
empresários dependiam da boa fé dos negociantes e da competência dos agentes. Portanto, estes
deveriam ser homens de sua confiança e de boa reputação no mercado. Segundo, a qualidade do
gado trazido nem sempre era garantida e às vezes não era por culpa do agente, pois, embora a

29
Ordinária de Pedro Osório contra Gonçalves & Lúcio, 1177, m. 42, 1º cartório do cível, Pelotas, 1875 (APERS).
30
Ordinária de João Vinhas contra Adriana de Carvalho, 1011, m. 36, 1º cartório do cível, Pelotas, 1854 (APERS).
31
Ação Ordinária de João Vinhas e José A. Moreira contra Joaquim M. Teixeira, n. 1028, m. 36A, 1º cartório do
cível, Pelotas, 1857 (APERS).
259
lógica de mercado sugerisse que os melhores rebanhos ficassem com quem pagasse mais, na
prática, os criadores que recebiam adiantamentos tinham compromissos com os charqueadores
credores ou seus agentes e, como demonstrarei a seguir, outros vínculos de dependência
acabavam afetando as transações. E terceiro, os negociantes e criadores podiam trocar de
parceiros comerciais ano a ano, tornando o processo de abastecimento de gado ainda mais
instável. Numa ação judicial estudada por Farinatti foi possível verificar que o estancieiro
Manoel José de Carvalho remetia seus gados tanto para Montevidéu, quanto para Pelotas e
Triunfo, ou seja, ele diversificava as suas transações e devia direcioná-las ao sabor dos valores
pagos em cada praça ou das vantagens garantidas por cada charqueador. No caso de Carvalho, o
charqueador pelotense Manoel Batista Teixeira lhe adiantava quantias em dinheiro,
condicionando o criador de gado a comprometer-se com ele na safra seguinte.32

A solução para contornar estes problemas seria diminuir os riscos e tornar todo o
processo o mais seguro possível. Uma safra que se iniciasse com problemas no abastecimento
de gado dificilmente gerava bons lucros. Na cabeça dos charqueadores a melhor forma de
resolver este problema era colocar os seus próprios parentes para tomarem conta destes
negócios. Durante a safra, o charqueador permanecia muito tempo ocupado no trabalho da
charqueada, no fretamento de seus iates e na cidade fechando negócios, para realizar longas
viagens até a região da campanha com o fim de escolher os melhores animais. Neste sentido, é
muito comum encontrar irmãos, sogros, filhos ou genros de charqueadores estabelecidos com
estâncias na fronteira, as vezes administrando as próprias terras do charqueador, as vezes com
seus próprios estabelecimentos pecuários.33 Em dezembro de 1845, o capitão João Jacintho de
Mendonça, charqueador em Pelotas, escreveu uma longa carta ao compadre que administrava a
sua estância no Uruguai. É necessário ler os seus principais trechos, pois eles sintetizam todo o
processo mencionado:

O portador desta é o capataz de campo da charqueada Don Meceno, que segue a essa
com João Benguela e João para ser capataz da tropa que Vossa Mercê deverá fazer na
Estância apartando tourada velha, novilhos e vacas para que seja de mil reses para
cima. Eu quero de pronto aliviar o campo, e não é possível que tive só gado meu
deixando o alheio, por isso deveria Vossa Mercê entender-se com os vizinhos para que
venha todo o gado que houver deles a quem pagarei e aparte todas as marcas que
houverem nos rodeios conhecidos e desconhecidos fazendo uma relação de todas de
que deve deixar nota no Livro da Estância para eu depois justar contas com os donos, e
dos vizinhos que não tiverem encontro [dará] o dinheiro pelas pessoas a quem eles
encarregarem (…). Vossa Mercê justará pelo preço que os mais compram e quando aí

32
FARINATTI, Luís A. Op. cit.
33
Tal fenômeno também ocorreu em outros espaços geo-econômicos do Brasil, como, por exemplo, a presença de
lavradores de cana ao redor dos engenhos de propriedades de seus parentes. Ver, por exemplo, FRAGOSO, João.
Efigênia Angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro,
século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Topói, v. 11, n. 21, 2010, p. 74-106.
260
mesmo queiram o dinheiro, aqui o mandará buscar, e se o quiserem no Rio Grande ou
em Pelotas, também lá o mandarei dar (…). Mande-me a conta do gado que aí houver
de Agapito para eu poder lhe pagar o dinheiro do gado que veio nesta tropa lho mandei
por José Antônio a Agapito e outros de quem ele foi Procurador, e até de Joaquim das
Pedras que tem de medir o arrendamento do campo.

Mantendo o compadre e outros parentes no coração das grandes estâncias da fronteira, o


capitão Mendonça substituía a “perigosa” cadeia de intermediários por uma pessoa mais
próxima e de sua inteira confiança, encarregando-o de tratar com os vizinhos em seu nome,
podendo sacar contra ele nas praças de Pelotas e Rio Grande. Portanto, o dinheiro e as redes de
relações sociais que se constituíam a partir da permanência de seus parentes naquela
propriedade eram o seu diferencial perante outros charqueadores que não realizavam o mesmo
investimento. Pouco adiantava ao charqueador ter o capital para investir nas tropas se não
possuísse boas relações sociais com grandes estancieiros. Na realidade, se não tivesse o
segundo, talvez não adquirisse tanta riqueza. O compadre, administrando suas gentes e escravos
mencionados na carta, era o encarregado não apenas de comprar os melhores rebanhos entre os
vizinhos, mas de conseguir a mão de obra necessária durante a safra inteira:

A gente que leva o Meceno e a que aí houver podem em quatro ou cinco dias domar
porção de potros ainda que inteiros para os rodeios e fazer depois o serviço da
marcação que deve continuar logo que saia a tropa com a gente da Estância e a mais
que Vossa Mercê juntar e for precisa, assim como os posteiros e todos os vizinhos que
queiram vender seus novilhos e vacas de seus campos.

Rigoroso em suas contas, o charqueador alertava o compadre para que tivesse o mesmo
cuidado:

O seu gado, do Mendonça, e finado José Thomas deverão daí sair registrados e
contados assim como todo o mais gado que vier. José Antônio diz que tinha contado a
tropa no dia da chegada que era de setecentos e oitenta e quatro, destas faltam três
reses não sei se ele se enganou ou se elas fugiram do pastoreio. Não deixe Vossa
Mercê de contar aí a tropa que o mesmo farei eu aqui. (…) Sobre marcação, Vossa
Mercê fará o que lhe parecer justo assim como a de meus filhos, pois se eu me
pretendesse regular pelas marcações que faria de cinco mil e trezentas reses, mais de
trinta mil reses deveria eu ter na Estância.

Interessante observar que em seus campos pastavam não apenas os animais do


charqueador, como os do seu compadre, dos seus filhos e outros parentes, incluindo até o de seu
finado sogro, capitão José Tomaz, que também era charqueador.34 Num último trecho da
missiva, o capitão Mendonça diz que já estava preparando outro capataz para seguir para a
estância nos próximos dias, evidenciando um processo que devia se repetir várias vezes ao
longo de cada safra:

34
Sobre esta utilização familiar das pastagens e estâncias na região da campanha ver FARINATTI, Luís A. Op. cit.
261
Eu por estes dez dias pretendo mandar outro capataz para fazer outra tropa na Estância
e nos vizinhos e muito lhe recomendo a brevidade desta tropa que vai conduzir o
Meceno para aprontar o carregamento para o iate do Viralolo que em breve espero
com a Florinda e talvez suas filhas a acompanhem terá Vossa Mercê o prazer de as ver
aqui (…) Junto tem carta de suas filhas que estão boas (…) De seu compadre e amigo
João Jacintho de Mendonça.35

A leitura da carta indica que as filhas do administrador estavam na charqueada com a


dona Florinda, esposa do charqueador. Provavelmente, ela era madrinha das meninas. O
entrelaçamento das relações familiares com as econômicas era evidente. O compadre criava
seus animais nos próprios campos do charqueador, oferecendo em troca seus trabalhos e sua
lealdade. A partir dos trechos fica nítido que Mendonça conseguia montar muitas tropas de
gado gordo não apenas pelo capital que possuía, mas também porque estava muito bem
representado e estabelecido no Uruguai. Sua estância servia como base para arregimentar
trabalhadores, estabelecer alianças e conceder favores para a população local. Tratava-se de um
uso político da terra, para além do uso econômico. Mas o charqueador sabia que devia pagar um
preço baixo, mas justo, pelo gado dos seus vizinhos, tanto que recomendou ao compadre que
verificasse o quanto estava se pagando na localidade. E com relação a isto, ele foi sincero com
o seu próprio compadre: “Não sou de parecer que Vossa Mercê venda o seu gado sem desfrutá-
lo bem, porque tudo tem seu preço, mas se houver de insistir de o vender a outro eu ficarei com
ele porque não quero barulho no campo”. Se o próprio compadre vendesse o seu gado para
outro charqueador, o que os vizinhos pensariam? Poderiam tomá-lo como exemplo. Por
depender dos serviços do compadre, o charqueador cobriria qualquer oferta ao gado do mesmo.
Mas somente a ele, pois o charqueador precisava da sua confiança, numa relação pessoal
reiterada ano a ano. E esta era a forma como este mercado se comportava em sua base, ou seja,
na formação das tropas. Relações de dependência confundiam-se com relações de mercado,
num espaço de trocas bastante pessoalizado.

A leitura do inventário post-mortem do capitão João Jacintho de Mendonça também


ajuda a elucidar estas relações familiares. Proprietário de duas charqueadas e pai de 11 filhos,
sendo 7 mulheres, João possuía 3 genros que investiram nos negócios com charqueadas:
Manoel Francisco Moreira, Ismael Ferreira e Heleodoro de Azevedo e Souza Filho. A análise
de suas dívidas ativas e passivas demonstram significativas transações econômicas no interior
da parentela. Ao arrendar a charqueada do falecido sogro, o genro Manuel, por exemplo,
desembolsou a metade do valor pago “por igual arrendamento” realizado por outro indivíduo
35
Carta de João Jacintho de Mendonça a João Teodoro Ferreira de Souza. Livro de Registros Ordinários n. 4,
Tabelionato de Pelotas (APERS).
262
sem ligações com a família, revelando um nítido favorecimento ao genro. O filho Francisco era
proprietário da invernada dos Molhes, onde parte do gado do pai se encontrava na engorda. O
uso conjunto de escravos alugados e o empréstimo de dinheiro de uns aos outros também
pareceu ser corrente. O genro Dr. Ovídio Trigo Loureiro conservava consigo as notas de uma
dívida de um comerciante uruguaio para com o seu sogro.36

Outro exemplo de como as relações de parentesco estruturavam a atuação dos


charqueadores nos mercados do gado na fronteira pode ser dado pela carta que o Comendador
Heleodoro de Azevedo e Souza, do Cerro Largo, no Uruguai, remeteu ao charqueador
Boaventura Rodrigues Barcellos, em 1855. Na mesma, ele relata os negócios que fez nos
últimos meses, comprando-lhe gado no Uruguai e em Bagé, de onde remeteu tropas para o
charqueador. Encerrando a carta, Heleodoro escreve: “Recomendo-me saudoso à comadre
Silvana, meu afilhado e sobrinhos e a Vossa Mercê em particular por quem jamais deixarei de
firmar-me por seu compadre amigo”.37

Quando se observa o processo de abastecimento de gado em outras empresas


charqueadoras, casos semelhantes se evidenciam. O Visconde da Graça, por exemplo, tinha no
seu filho Catão Lopes, estancieiro em Uruguaiana, um importante ajudante e fornecedor de
gado. Catão era incumbido pelo pai de comprar tropas de gado e remetê-las para a charqueada.
“A tarefa era eivada de dificuldades, motivo pelo qual se tornara privilégio de grandes
conhecedores”. Erros de cálculos podiam causar avultados prejuízos, pois, como não se usava
balança, “o preço do boi, tendo por base o peso presumível, era calculado a olho”. 38 A família
do charqueador José Rodrigues Barcellos também apresentou transações comerciais como
estas. Carla Menegat demonstrou que esta família possuía parentes estancieiros no Uruguai, de
onde enviavam gado para as suas charqueadas mantendo a produção e o comércio de maneira
conjunta.39 Poupo o leitor de outros exemplos, mas charqueadores como Felisberto Inácio da
Cunha, Anibal Antunes Maciel, José Antônio Moreira e Jacinto Antônio Lopes, entre outros,
também apresentavam este mesmo modelo de atuação no mercado de gado. Eram proprietários

36
Inventário de João Jacintho de Mendonça. Processo n. 41, maço n.1, Ano 1862, 2º Cartório do Cível de Pelotas
(APERS). Este entrelaçamento entre parentesco e negócios, comum às sociedades agrárias e pré-industriais,
possuía raízes socioculturais antigas entre as elites da região. Ver, por exemplo, HAMEISTER, Martha D. Para
dar calor à nova povoação: Estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da vila
do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado. PPGHIS/UFRJ, 2006; GIL, Tiago Luís. Coisas do caminho:
tropeiros e seus negócios do Viamão à Sorocaba (1780-1810). Tese de Doutorado, UFRJ, 2009.
37
Carte de Heleodoro de A. Souza para Boaventura R. Barcello. Fazenda do Palheiro, 06.01.1855. Registros
Diversos de Pelotas, Livro n. 5, Pelotas (APERS).
38
REVERBEL, Carlos. Um Capitão da Guarda Nacional. Caxias/Poa: UCS/ Martins Livreiro, 1981, p. 19.
39
MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de
Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Porto Alegre: PPG-História
UFRGS, Dissertação de Mestrado, 2009.
263
de fazendas na fronteira onde estabeleciam-se como grandes compradores de tropas por
intermédio de filhos, irmão, compadres ou genros.

Se os charqueadores buscavam colocar seus parentes e agentes de confiança em setores


estratégicos da economia pecuário-charqueadora, as famílias de grandes criadores da campanha
pareciam fazer o mesmo. Estudando os Assis Brasil, de São Gabriel, Tassiana Saccol percebeu
que entre os irmãos fazendeiros, Antônio era o encarregado de montar tropas para vender nas
charqueadas de Pelotas.40 Em Alegrete, um dos irmãos Ribeiro de Almeida também parecia
estabelecer negócios neste mesmo sentido. O major Antônio Mâncio Ribeiro chegou a migrar
para Pelotas onde estabeleceu-se como comerciante e fazendeiro e veio a casar dois filhos com
os herdeiros do charqueador Joaquim Guilherme da Costa.41 Conforme Farinatti, os ricos
estancieiros da fronteira também atuavam no comério de tropas e no prestamismo e realizavam
tais empreendimentos em parceria com outros membros da família. 42

Portanto, é possível perceber que alguns grandes estancieiros arrematavam os novilhos


dos pequenos produtores, formavam uma tropa e vendiam ao agente do charqueador ou para um
determinado tropeiro, vindo a lucrar como criador e como negociante, visto que deveriam
colocar uma taxa sobre o valor dos gados comprados de terceiros. Neste sentido, este mercado
acabava se concentrando nas mãos de poucos grupos de agentes, atravessadores, criadores e
negociantes, pois montar uma tropa e enviá-la para Pelotas exigia custos que somente poucos
podiam financiar. Conforme Alvarino Marques, o deslocamento para as charqueadas envolvia
um grande número de trabalhadores e mobilizava uma série de recursos necessários para a
longa viagem, pois cada tropa trazia de 10 a 12 homens, para a sua condução e cuidado, e cada
homem trazia, para sua montaria e reserva, de 5 a 8 cavalos. Além disso, o estancieiro tinha que
garantir comida e hospedagem aos mesmos. É possível que os charqueadores também pagassem
parte destes custos, conforme os tratos estabelecidos.

Neste processo de formação das tropas, além dos agregados e pequenos criadores, até
mesmo os escravos campeiros podiam colocar suas poucas reses no mercado. Pesquisando a
escravidão na pecuária da campanha rio-grandense, Marcelo Matheus localizou um recibo de
venda de uma tropa de gados no inventário post-mortem de um estancieiro.43 O documento lista

40
SACCOL, Tassiana P. Um propagandista da República: Política, letras e família na trajetória de Joaquim
Francisco de Assis Brasil (década de 1880). Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2013, p. 63.
41
FARINATTI, Luís A. Op. cit.; VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as
estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul. Santa Maria: Ed. da UFSM/Anpuh-RS, 2010.
42
FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 59-68.
43
O comprador das tropas era o capitão Antônio de Castro Antiqueira, filho do charqueador Domingos de Castro
Antiqueira, o visconde de Jaguari. Este havia falecido em 1852, quando já não fabricava mais charque, arrendando
264
10 criadores que colocaram seus animais para formar a tropa. Entre os mesmos estavam os
escravos Domingos e Manoel Mulato, com 8 e 5 animais respectivamente, a “afilhada” do
senhor, que colocou 3 novilhos, e outros parentes. Cada um deles possuía a sua própria marca
de gado registrada no documento.44 Além de comporem a maior parte dos proprietários da
região da campanha45, a participação de agregados, médios e pequenos criadores era
fundamental na formação das tropas de gado. Pesquisando o mesmo mercado de gado em
Buenos Aires durante o colonial tardio, Juan C. Garavaglia notou que a maior parte dos
rebanhos que chegavam nos 3 grandes currais da capital pertenciam aos menores criadores que
vendiam suas tropas aos introductores, estes sim os que remetiam-nas para os curraleros.46
Tanto charqueadores como saladeiristas dependiam de todo e qualquer gado (de boa qualidade,
obviamente), fosse de grandes invernadores, fosse de criadores pobres. Conforme Montoya, por
exemplo, entre os credores arrolados no inventário post-mortem do saladeirista Francisco de
Medina, estava “el pueblo de índios de Yapeyú” que cobravam 10.074 pesos referentes a
12.895 cabeças de gado que venderam ao empresário.47

Portanto, num mercado extremamente inseguro, repleto de oportunistas e criadores


arruinados, os charqueadores precisavam diminuir os riscos para manter os ganhos no final da
safra. Aqueles mais bem estabelecidos na região da campanha, com bons sócios e agentes
qualificados possuíam melhores condições de comprar tropas de gado gordo para suas fábricas
do que os demais. Os menos preparados ou com menores recursos acabavam ficando com
novilhos magros, tendo que os abater na falta de outros. Tratava-se de um processo interessante
onde o capital econômico era convertido em capital relacional, visto que o bom gerenciamento
de uma grande estância favorecia a ampliação da clientela na fronteira, para ser reconvertido em
lucros, uma vez que a mesma clientela diminuía os riscos no processo de abastecimento de gado
e aumentava as chances de compra das melhores tropas da campanha. Neste sentido, fica
evidente que o charqueador não utilizava a sua estância no autoabastecimento de gado, pois,
raríssimas vezes os seus novilhos compunham mais de 5% do que ele abatia numa safra, como
já mencionei. Mesmo contando com as crias de parentes e agregados que se utilizavam de suas
terras, a maior parte do gado que ele abatia na charqueada era de outros criadores, muitos deles

a sua fábrica. É provável que Antônio tenha ajudado o pai na aquisição de tropas e continuava neste ramo de
negócios nutrindo-se da rede mercantil e creditício legada pelo Visconde.
44
MATHEUS, Marcelo S. Fronteiras da liberdade: escravidão, hierarquia social e alforria no extremo sul do
Império do Brasil. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2012. A possibilidade de escravos campeiros criarem
seus pequenos rebanhos e juntar seu pecúlio com a venda dos mesmos já foi atestada por outros autores.
45
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha Rio-grandense
Oitocentista. Dissertação de Mestrado em História, UFRGS, 2005; FARINATTI (2010).
46
GARAVAGLIA, Juan C. Op. cit., p. 81-85.
47
MONTOYA, Alfredo. Historia de los saladeros argentinos. Buenos Aires: Ed. Raigal, 1956, p. 26-27.
265
seus vizinhos ou proprietários nos mesmos distritos onde suas terras estavam distribuídas. No
caso aqui estudado, a estância parecia funcionar como uma base estratégica do charqueador e
de seus agentes fornecedores de gado.

Mas a estância representava mais do que isso. Ser estancieiro no Rio Grande do Sul,
possuir campos que fugiam de vista, muitos escravos a cavalo e animais em milhares, era sinal
de prestígio social, visto a inserção dos grandes proprietários em outros espaços de poder e
notabilidade. Além disso, os grandes estancieiros geralmente eram grandes senhores de
escravos (para os padrões da região)48 e, por conta do seu poder nas localidades, eles
simplesmente influíam de forma determinante no processo eleitoral de seus distritos rurais. No
Rio Grande do Sul, o poder político na fronteira e o poder militar andavam juntos. Mas se nem
todo o grande estancieiro era um militar, praticamente todos possuíam parentes militares ou
oficiais da Guarda Nacional. Isto lhes conferia outro grande poder: o de influir no recrutamento
e na vida das pessoas pobres, controlar o contrabando e a passagem de gado na fronteira, entre
outros. Aqueles mais bem posicionados conheciam muitas pessoas, batizavam filhos de oficiais,
arrumavam cavalos e soldados para as guerras e distribuíam favores diversos. Portanto, ser
proprietário de uma grande estância potencializava os mesmos a concentrarem os mencionados
recursos materiais e imateriais nas mãos de sua família.49

Neste sentido, é possível verificar um outro fator de diferenciação social, política e


econômica entre os próprios charqueadores. Nem todos tinham condições de comprar uma
estância numa região distante (menos ainda no país vizinho), arcando com todos os gastos e
prejuízos que as mesmas podiam apresentar. Portanto, manter-se no topo da elite charqueadora
constituía-se num procedimento bastante dispendioso. Analisando os inventários post-mortem
de todos os charqueadores para qual esta fonte foi localizada é possível verificar que somente
uma pequena parcela teve condições de investir em tais bens. De 78 inventários post-mortem de
charqueadores pelotenses abertos entre 1810 e 1900, somente 11 possuíam estâncias no
Uruguai e 16 na região da campanha rio-grandense (sendo que 1 inventariado apresentava
estâncias em ambas). Tratava-se de um grupo privilegiado de 26 charqueadores (33%) que
estavam ou entre os mais ricos do grupo ou entre os de fortuna intermediária. 50

No outro extremo, os charqueadores menos ricos ou de fortuna mais modesta possuíam


somente a sua charqueada em Pelotas e, em alguns casos, alguns terrenos, datas de matos ou

48
FARINATTI, Luís A. Op. cit.
49
A melhor pesquisa a cerca do papel do estancieiro naquela sociedade é o de FARINATTI, Luís A. Op. cit.. Para
o seu papel na política local e regional ver VARGAS, Jonas Moreira. Op. cit.
50
Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS).
266
chácaras no município. Portanto, nem todos eram grandes criadores de gado. Dos 78 inventários
de charqueadores, somente 13 (16,6%) possuíam rebanhos superiores a 2.000 cabeças de gado,
o que, conforme Farinatti, os qualificariam entre os grandes estancieiros na fronteira.51 Dos 12
charqueadores inventariados com fortunas acima de 50 mil libras, 9 eram proprietários de
grandes rebanhos. Joaquim J. de Assumpção possuía 3.000 reses de criar, Felisberto I. da
Cunha 4.330, José R. Barcellos tinha mais de 4.600, João S. Lopes mais de 7.000, João S.
Lopes Filho mais de 8.500, José I. da Cunha era dono de 11.400 reses, Joaquim da S. Tavares
tinha mais de 8.700 e José A. Moreira possuía 13.000 reses em seus campos. Mas o maior
criador do grupo foi o coronel Anibal Antunes Maciel, que tinha mais de 34.000 cabeças de
gado pastando em suas estâncias no Uruguai, como já mencionei. De acordo com Farinatti, que
estudou Alegrete entre 1825 e 1865 (uma das regiões que concentrava os maiores criadores de
gado do Rio Grande do Sul), os proprietários de rebanhos superiores a 5.000 reses compunham
o topo da hierarquia social local. 52 Neste sentido, estes charqueadores possuíam um número de
reses que poderia competir tranquilamente com os principais estancieiros da fronteira.

Tabela 7.1 – Hierarquia de fortunas, rebanhos vacuns, títulos de nobreza e altos


cargos políticos a partir da análise dos inventários de 51 charqueadores –
(1845-1900)/ em libras esterlinas e percentuais (%)

Faixas de Inventários Estâncias no Estâncias na Rebanhos Título de Alta


fortunas Uruguai campanha do superiores a nobreza política
RS 2.000 reses
Mais de 100 mil 4 (7,8) 50,0 100,0 100,0 100,0 100,0

De 50 a 100 mil 8 (15,7) 50,0 75,00 62,5 62,5 37,5

De 20 a 50 mil 13 (25,6) 23,1 7,7 7,7 15,4 23,1

De 10 a 20 mil 9 (17,6) 0 0 0 0 0

Menos de 10 mil 17 (33,3) 0 11,7 0 0 0

Fonte: CARVALHO, Mário T. de. Nobiliário Sul-rio-grandense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do
Globo, 1937; Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS); Livros de Notas do 1º, 2º e 3º Tabelionatos
de Pelotas (APERS); VARGAS, Jonas M. Op. cit.

Desnecessário dizer que os mais ricos entre estes charqueadores também eram grandes
escravistas e, juntamente com suas famílias, concentravam importante poder político e prestígio
social não somente em Pelotas, como fora do município. De acordo com a Tabela 7.1 pode-se
verificar que as famílias de charqueadores mais ricas também concentravam, por meio de seus
parentes próximos, uma alta notabilidade social (medido, neste caso, somente com o título de
nobreza) e um alto poder político (ministros de Estado, senadores e deputados gerais). E boa

51
Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS); Farinatti, Luís A. Op. cit.
52
FARINATTI, Luís A. Op. cit.
267
parte destas famílias eram proprietárias de grandes estâncias na região da campanha ou no
Uruguai, além de possuírem grandes rebanhos. A tendência à concentração de riqueza
fundiária, distinções sociais e poder político no interior do grupo é evidente. As duas últimas
faixas de fortuna (50,9% dos charqueadores inventariados) praticamente não tiveram acesso ao
recursos concentrados pelos de cima. 53

Portanto, a inversão de capitais em grandes fazendas de criação de gado era um


investimento cuja racionalidade não se pautava exclusivamente por interesses econômicos,
embora este se constituísse no principal fator. Tendo em vista a natureza dos mercados de gado
na fronteira, a posse de estâncias garantia um melhor acesso aos rebanhos dos vizinhos, ao
mesmo tempo que fornecia um grande poder e prestígio social às famílias latifundiárias. E do
quê interessava ter poder e prestígio social para um rico empresário escravista no meado do
oitocentos? Se os charqueadores forem tratados como típicos homo economicus agindo no
interior do mercado sempre em busca de maximizar seus ganhos perde-se parte importante da
forma como os mesmos acumularam tamanha riqueza, pois sua capacidade em tornar-se elite e
manter-se no topo desta hierarquia social também estava assentada na sua capacidade em
mobilizar homens, impor seus projetos aos demais e ter a sua importância enquanto elite
regional reconhecida pelo governo central, como demonstro a seguir.

7.3 ENTRE DEPUTADOS E GENERAIS OU DE COMO A GUERRA TAMBÉM SE


CONSTITUIU EM UM RECURSO ECONÔMICO PARA OS CHARQUEADORES DE
PELOTAS

A política expansionista levada a cabo pelo Brasil na fronteira sul sempre teve a
resistência de grande parcela da população uruguaia. O resultado inevitável desta relação,
herdada desde os tempos de D. João VI, traduziu-se em inúmeros conflitos entre proprietários
rio-grandenses e uruguaios, além das autoridades militares e policiais de ambos os lados da
fronteira. Tais contendas tiveram um grande impulso com a independência da República
Oriental do Uruguai (em 1828), conquistada através de uma guerra contra o Brasil. 54 As
reclamações dos rio-grandenses traduziam-se nas queixas contra a desapropriação de suas terras

53
O perfil do patrimônio dos 12 mais ricos será tratado num outro capítulo.
54
Existem muitas pesquisas sobre as relações entre o Brasil e a região do Prata na primeira metade do século. Ver,
por exemplo, ALADREN, Gabriel. Sem respeitar fé nem tratados: escravidão e Guerra na formação histórica da
fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835). Tese de Doutorado. PPG-História UFF, 2012;
DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002; BANDEIRA. L. A. Moniz. O expansionismo brasileiro e aformação dos Estados na Bacia do Prata:
Argentina, Uruguai e Paraguai, da colonização à Guerra da Tríplice Aliança. Brasília: UnB, 1998; ZABIELLA,
Eliane. Op. cit.; SOUZA, Susana B.; PRADO, Fabrício. Op. cit.; MIRANDA, Márcia E. Op. cit.
268
e da captura do seu gado. Durante a guerra civil uruguaia (1838-1851), o confisco destes
mesmos bens para servirem ao exército oriental acentuou-se em proporções maiores. Um dos
grandes motivos destes sequestros de bens foi a tentativa de recuperação econômica, liderada
pelo presidente uruguaio Manoel Oribe, líder do Partido Blanco.

Importante lembrar que o Uruguai havia abolido a escravidão em 12 de dezembro de


1842 e que, em 1846, uma outra lei ratificou a medida anti-escravista. Nesta época, os rio-
grandenses que haviam migrado para Montevidéu durante a Guerra dos Farrapos e se
estabelecido naquela cidade com seus saladeros ensaiaram o seu retorno para o Rio Grande do
Sul, protegendo seu patrimônio e, principalmente, os seus escravos da nova lei. Chaves Filho e
João Vinhas, por exemplo, foram atacados pela imprensa uruguaia, pois haviam tido alguns de
seus escravos sorteados para serem vendidos ao Exército oriental, mas, antes que tal negócio se
concretizasse, embarcaram os mesmos para Pelotas juntamente com todos os seus outros
cativos. Atitude idêntica foi tomada pelo charqueador Cipriano Rodrigues Barcellos que, na
noite anterior à assinatura do decreto abolicionista, embarcou seus 53 escravos para Pelotas,
provocando a ira de alguns jornalistas orientais. 55

Em abril de 1848, com o objetivo de fortalecer economicamente os saladeiristas e


pecuaristas uruguaios, Oribe proibiu a passagem de tropas de gado para o Rio Grande do Sul e
encarregou as milícias fronteiriças de enquadrar como contrabandistas os transgressores.56 A
decisão política de Oribe provocou uma diminuição das exportações de charque no Rio Grande
do Sul, trazendo grande prejuízo aos estancieiros e charqueadores pelotenses. A quantidade de
charque exportado na safra de 1848 só foi recuperada cerca de 20 anos depois. 57 Por conta da
queda das exportações e dos contínuos prejuízos econômicos, charqueadores, comerciantes e
estancieiros rio-grandenses começaram a pressionar o Governo Imperial por medidas que
garantissem a segurança das suas propriedades no Uruguai. Tais pedidos muitas vezes não eram
atendidos ou ficavam na promessa de uma resolução diplomática, pois, algumas vezes,
membros do governo alegavam que os conflitos diziam respeito às facções caudilhescas e,
portanto, deviam ser resolvidos pelos mesmos na esfera do privado.58

Em 1849, Oribe deu um novo golpe nas ambições dos charqueadores brasileiros,
ordenando que os escravos que trabalhassem nos seus saladeros em São Servando (no lado
uruguaio da fronteira) fossem retirados da região caso contrário seriam considerados libertos. A
55
MONQUELAT, A. F. Senhores da carne: charqueadores, saladeristas y esclavistas. Pelotas: Ed.
Universitária/UFPel, 2010, p. 119-123; 151.
56
SOUZA, Susana B.; PRADO, Fabrício. Op. cit.
57
Como analiso de forma mais aprofundada no capítulo posterior.
58
Avisos do Ministério de Estrangeiros - B.1.027 (AHRS).
269
determinação provocou o retorno de “quatrocentos escravos” para Pelotas e Jaguarão.59 Num
documento desta época (talvez de 1851) foram listadas 10 saladeros (pertencentes a brasileiros)
localizadas no lado uruguaio, próximas à fronteira, nas imediações de São Servando, Taquary,
Arvedonda, Cebolatti e Olimar. Numa delas abatia-se anualmente de 12 a 15 mil reses, ou seja,
seu número era significativo e suficiente para desviar muitas tropas de gado dos saladeros de
Montevidéu.60 Portanto, com esta medida Oribe buscava beneficiar os saladeros da capital,
retirando praticamente à força os charqueadores brasileiros estabelecidos naquela região.

Enquanto os saques e agressões atingiam os proprietários brasileiros de menor


notabilidade o clima de insatisfação mantinha-se controlado. Contudo, quando importantes
famílias da elite rio-grandense foram atacadas, como os Silveira Martins, os Ferreira Bicca, os
Rodrigues Ribas e os Araújo Ribeiro, as retaliações tomaram proporções irreversíveis. 61 A
demora dos dirigentes da Corte em resolver estas contendas acabou estimulando os estancieiros
a resolverem sozinhos aquelas questões. As mencionadas famílias começaram a apoiar as ações
armadas na fronteira, onde estancieiros lideravam um bando de capangas saqueando os campos
uruguaios. Estas ações ficaram conhecidas como califórnias e o seu principal líder foi o
estancieiro rio-grandense Francisco José de Abreu, o Barão de Jacuí. Ele tomou a iniciativa
após os saques promovidos contra as propriedades da família de sua mulher, os Araújo Ribeiro.
As califórnias aterrorizaram o lado uruguaio da fronteira entre os anos de 1849 e 1851,
transformando Jacuí no grande inimigo dos estancieiros orientais. 62 Numa de suas investidas,
ele trouxe para o Rio Grande tropas de gado que somavam mais de 6.000 reses – o suficiente
para suprir 25% do gado abatido numa grande charqueada pelotense ao longo de uma safra.63

Diante desses acontecimentos, o aumento das pressões políticas e a ameaça de uma


guerra privada de bandos armados rio-grandenses contra os caudilhos orientais agravou ainda
mais as divergências entre os governos do Brasil e do Uruguai. A mobilização de deputados e
senadores rio-grandenses revigorou-se e os mesmos passaram a requisitar não apenas uma
maior proteção por parte do Império, seja militarmente, seja por meio de acordos diplomáticos
com os orientais, como também uma guerra, como último recurso. Em 1851, deputados rio-
grandenses como Pedro Rodrigues Fernandes Chaves e Joaquim José Afonso Alves, exerceram

59
Rio de Janeiro, 5 de maio de 1849. Avisos do Ministério de Estrangeiros - B.1.027 (AHRS).
60
Documento que lista os charqueadores na fronteira com o Uruguai, s/d. (Coleção de manuscritos, Coleção Rio
Grande do Sul, BN-RJ).
61
Rio de Janeiro, 7 e 21 de julho, 14 de agosto de 1850. Avisos do Ministério de Estrangeiros - B.1-027 (AHRS).
62
PALERMO, Eduardo. Vecindad, frontera y esclavitud en el norte uruguayo y sur de Brasil. In: Memorias del
Simposio La Ruta del Esclavo en el Río de la Plata: su historia y sus consecuencias. Montevideu, 2003, p.91-114;
SOUZA, Susana B.; PRADO, Fabrício. Op. cit.
63
Rio de Janeiro, 03.09.1849 e 03.10.1849. Avisos do Ministério de Estrangeiros - B.1-027 (AHRS).
270
forte pressão para que uma guerra fosse realizada na fronteira. 64 Tratavam-se de políticos
extremamente bem relacionados com as cúpulas de poder regional e central. Afonso Alves era o
principal advogado de Pelotas. Além de ser aparentado com charqueadores, comerciantes e
estancieiros, era importante membro da elite local, tendo sido vereador, juiz municipal, diretor
do Asilo de órfãos e da Loja maçônica União e Concórdia. Reconhecido como um dos grandes
representantes de Pelotas na Assembléia Legislativa e na Câmara dos deputados, no Rio de
Janeiro, Alves era continuamente aclamado pelo Jornal O Brado do Sul, de propriedade do
charqueador Domingos José de Almeida, pelo seu interesse na defesa dos negócios da região. 65

Pedro Chaves pertencia a uma família de comerciantes e fazendeiros do Rio Grande do


Sul. Havia estudado Direito em Coimbra, vindo a formar-se em São Paulo. Seguiu carreira na
magistratura e, posteriormente, tornou-se Presidente da Província da Paraíba e desembargador
na Relação de Pernambuco. Também teve carreira diplomática na Argentina e nos Estados
Unidos. Mas Chaves também era conhecido pelo seu temperamento explosivo. Conservador
ferrenho, perseguiu os Farrapos em 1835, tornando-se odiado pelos liberais. Em 1851, sentindo-
se atingido pelas agressões dos uruguaios aos brasileiros, Chaves não mobilizou-se somente na
Câmara dos deputados, onde exigia a guerra contra os “castelhanos”, mas também, a partir de
intermediários no Rio de Janeiro, mandou vir um carregamento de rifles para o sul do Brasil,
que foram transportados para a fronteira por meio de carretas. Deputado geral durante vários
anos, candidatou-se ao Senado em 1853. Incluído na lista tríplice como um dos mais votados,
conta-se que o Imperador não iria escolhê-lo para o cargo, preferindo o Barão de Porto Alegre.
Entretanto, “notícias alarmantes de última hora, vindas do Sul, e ameaçadoras de movimento
armado, no caso de ser preterido pela Coroa o popularíssimo chefe, determinaram a
reconsideração do caso, e fizeram recair a escolha imperial sobre o nome de Pedro Chaves”. 66
A sua participação na compra de armas não me faz duvidar de tal fato.

Por conta da sua feroz defesa do Império do Brasil e da propriedade de seus súditos, o
“nobre” senador recebeu o título de Barão de Quaraí, em 1855. A honraria também deve ter
sido favorecida pela rede de relações na qual Chaves estava inserido na Corte, na qual estavam
Nabuco de Araújo e o Marquês de Abrantes, por exemplo. 67 Conforme Maria Fernanda

64
BANDEIRA, L. A. Muniz. Op. cit., p. 69.
65
O Brado do Sul (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). Ver, por exemplo, as edições dos dias 20 e 31 de
dezembro de 1859.
66
NOGUEIRA, Almeida. A Academia de São Paulo: tradições e reminiscências. São Paulo: Saraiva, 1977, 2.a ed.,
volume 1, p. 141-142.
67
“Algum tempo, era em sua casa e na do marquês de Abrantes, que mais se reunia a sociedade mundana, amiga
de festas, do Rio de Janeiro. A liberdade era menor na suntuosa residência do marquês pelo tom formalista e
europeu do anfitrião e pela maior freqüência da roda diplomática; mas a companhia era a mesma, e a convivência
271
Martins, frequentavam seguidamente o Salão de Abrantes, o Marquês de Olinda, Silva
Paranhos, Tamandaré, Cotegipe, Zacharias, Ferraz, Sapucaí, Saraiva, Boa Vista, José de
Alencar, Torres Homem, Caxias e Mauá, entre muitos outros.68 Deve ser destas reuniões que
Pedro Chaves conheceu o Barão de Nova Friburgo, um dos cafeicultores mais ricos do Rio,
vindo a casar sua filha com o filho do mesmo. A inserção de Pedro Chaves no círculo dos
grandes da Corte era acompanhada pelo seu irmão, o Dr. Antônio Rodrigues Fernandes Braga –
Desembargador na Relação do Rio e senador do Império. Por meio do matrimônio de seu filho,
Braga uniu-se à família de Militão Máximo de Souza, o Visconde de Andaraí, rico banqueiro
carioca, sócio do Barão de Mauá e de outros capitalistas da Corte.69

Braga e Chaves eram primos do Conde de Piratini, que, por sua vez, era cunhado de
João Rodrigues Ribas. Este grupo era bastante articulado com outros políticos que vinham
pressionando o governo por conta das desordens no Uruguai. José de Araújo Ribeiro,
Diplomata brasileiro na França, e filho de um charqueador do vale do Jacuí, no Rio Grande,
também aliou-se aos mencionados políticos, pois sua família havia sido atacada no Uruguai.70
Ribeiro era primo do mencionado Comendador João Ribas e, estando em Paris, ajudava a
cuidar dos dois filhos deste, que estudavam na capital francesa. O tutor dos meninos era o Dr.
Sebastião Ribeiro (filho do Marechal Bento Manoel Ribeiro) que, graças ao apoio dado ao
Império na Guerra dos Farrapos, conseguiu um emprego na Legação Brasileira. Sebastião era
amigo de Pedro Chaves, de quem havia sido colega na Faculdade de Direito de São Paulo, e
residia com Pio Ângelo da Silva, que estudava Medicina em Paris. Pio era irmão de Honório da
Silva, dono de uma charqueada e uma estância no Uruguai. Nas cartas que Sebastião e Araújo
Ribeiro enviavam para o Comendador Ribas, desenha-se uma rede de relações que envolvia o
próprio Desembargador Braga, mencionado acima, além de grandes comerciantes. Numa delas,

de Abrantes e de Nabuco foi diária, durante muitos anos. Formavam o centro dessa agradável sociedade, comum às
duas casas, além dos chamados leões do Norte, Monte Alegre, Pedro Chaves (Quaraim), Dantas, Pinto Lima,
Sinimbu, e outros amigos íntimos de Nabuco , como Madureira, Pedro Muniz, José Caetano de Andrade Pinto, o
dr. Araújo, atual barão do Catete, com quem casará depois a marquesa de Abrantes”. (NABUCO, Joaquim. Um
estadista no Império. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, v. II. p. 1108).
68
MARTINS, Maria Fernanda. A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de
Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.
69
GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária
Mauá, MacGregor e Cia (1854-1866). São Paulo: USP. Tese de Doutorado, 1997.
70
Filho de charqueadores e proprietário no vale do Jacuí, Araújo Ribeiro formou-se em Direito pela Universidade
de Coimbra, em 1823, e logo que regressou ao Brasil deu início a uma carreira diplomática notável, tendo
pertencido às legações brasileiras na Itália, França, Estados Unidos, Inglaterra e Portugal. Depois de sua demissão
da presidência da província, em 1837, voltou a exercer funções diplomáticas e em 1849, logo que retornou de
Paris, foi eleito senador pelo Rio Grande do Sul. Residiu boa parte de sua vida na Corte, onde gozava de enorme
reputação e vivia cercado de intelectuais e políticos. Araújo Ribeiro também era sócio do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e ao longo da vida ainda foi agraciado com o título de Visconde de Rio Grande.
272
Sebastião mostra sua preocupação com a questão platina e o desejo de que os países do Prata
continuassem em guerra:

Estou sabendo com prazer que os Plenipotenciários inglês e francês no Rio da Prata
não conseguiram pacificar aquelas Repúblicas: bem haja esse malogro, porque a paz
daqueles países, nas atuais disposições de Rosas para com o Brasil, seria a guerra para
nós, e demasiadamente temos nós sofrido para que não nos aquebrante e inquiete a
perspectiva de uma nova guerra.71

Mas diante dos crescentes distúrbios na fronteira a guerra tornou-se inevitável. A


insistência parlamentar e diplomática e a articulação das redes de relações políticas surtiu
efeito. Desejando acabar com os conflitos na fronteira e deter o ímpeto expansionista Juan
Manuel de Rosas, aliado dos blancos e com interesses sobre o território paraguaio, o governo
imperial atendeu as reclamações dos rio-grandenses e decidiu intervir militarmente na região.
De acordo com Francisco Doratioto, o fortalecimento de Rosas era visto pelo Brasil como uma
ameaça à independência do Paraguai e do Uruguai e a existência de ambos os estados era uma
garantia de que os rios platinos não seriam nacionalizados por Buenos Aires, ameaçando a livre
navegação. Conforme o autor, era comum o Brasil acabar apoiando aquelas facções mais
propensas a adotar uma política que defendesse a livre navegação dos rios e do comércio
exterior. Daí provinha a aliança brasileira com os colorados no Uruguai, adversários de Oribe, e
com o entrerriano Justo José de Urquiza, caudilho entrerriano que oferecia sérios entraves ao
projeto Rosista. No início da década de 1850, os interesses do Império acabaram convergindo
com o dos estancieiros rio-grandenses, pois ambos queriam destituir os blancos do poder.72

Caxias foi convocado para comandar o Exército brasileiro e colocou na liderança das
suas divisões os oficiais Bento Manoel Ribeiro, David Canabarro e Manuel Marques e Souza.
Os três eram grandes proprietários de gado, de terras e de escravos na fronteira. Além disso,
Marques e Souza era casado com uma neta do Visconde de Jaguari, um dos charqueadores mais
ricos de Pelotas. Eles constituíam-se em genuínos representantes da elite regional no período.
Sua capacidade de articulação política, mobilização de soldados e a liderança pessoal que
exerciam na província os colocavam entre os mais aptos a mediar as relações do Rio Grande
com o governo central. Inteligente, Caxias sabia que precisa negociar com os mesmos e deve
ter escrito a vários proprietários como eles para que o ajudassem na formação das tropas
militares que invadiriam o Uruguai. Um dos seus destinatários foi o charqueador Domingos

71
Carta de Sebastião R. de Almeida para Comendador João Ribas. Paris, 02.09.1847 (Correspondência do
Comando Superior da Guarda Nacional de Rio Grande. Maço 36, AHRS).
72
DORATIOTO, F. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
273
José de Almeida. Orgulhoso da tarefa que havia recebido, Domingos escreveu a outros amigos
para que fizessem o mesmo:

Compatriota e amigo, S. Exª o Sr. Conde de Caxias, Presidente da Província e


Comandante em chefe do Exército, me incumbiu da honrosa comissão de convidar aos
meus antigos companheiro de trabalhos para coadjuva-lo no afanoso empenho em que
se acha de vingar os ultrajes que nossos compatriotas estabelecidos no Estado Oriental
têm recebido das autoridades dele, de reclamar pronta indenização dos bens que lhes
hão extorquido e de prefixar definitivamente os limites do Império com o referido
Estado; e considerando eu a V. Mcê, possuindo ainda o patriotismo que desenvolveu e
tanto se distinguiu quando oficial do Exército da extinta República Rio-grandense, o
conjuro para sem perda de tempo, com a gente que puder reunir, apresentar-se àquele
digno general, nosso sincero amigo (…).73

Ao final da carta, o charqueador anexou uma lista intitulada: “Relação das pessoas que
convidei para engrossarem as fileiras do Exército, a entrar em operações no Estado Oriental”.
No total eram 64 indivíduos e, conforme o charqueador, havia gente de todo o tipo. O mais
interessante é que ao lado de cada nome há informações a respeito da conduta e das
“qualidades” dos convocados. Alguns tinham problemas com bebida, enquanto outros eram
descritos como valentes e aptos para reunir cavalos. O major Jeremias foi avaliado como
“terrível” e o capitão Januário Borges, homem de ordens de Antônio de Souza Netto (ex-
general republicano), “exercendo influência no distrito de sua residência, empregado no
Exército chamará outros a ele”. Entre os mesmos estavam os filhos de Bento Gonçalves da
Silva, o chefe farrapo de 1835, e alguns familiares de charqueadores de Pelotas, como
Boaventura T. Barcellos e os irmãos Soares da Silva. O último da lista era o próprio filho do
charqueador, o Sargento Luís Felipe de Almeida, que Domingos pediu para ser colocado sob a
proteção do próprio Caxias, “tratando-o como pupilo seu”, “daonde talvez volte um Coronel”. 74

Juntamente com os indivíduos citados anteriormente, os oficiais que Caxias colocou


para liderar o Exército e os seus principais apoiadores eram representativos da classe dos
proprietários mais ricos da província. Superando as desavenças político-partidárias, eles tiveram
um papel importante na pressão exercida sobre o Império do Brasil para a intervenção militar
em Montevideu, no ano de 1851. Importante lembrar que vários deles eram ex-farroupilhas, o
que converge com o que Wilma Perez Costa já apontara, ou seja, a incapacidade do governo

73
Carta de Domingos J. de Almeida a José Mariano de Mattos. In. Anais do AHRS, v. 3. CV-664.
74
Carta de Domingos J. de Almeida a José Mariano de Mattos. In. Anais do AHRS, v. 3. CV 664 – CV 663.
Domingos escreveu a Mariano de Mattos dizendo que tendo Caxias à frente do Exército “ninguém fica em casa”.
Carta de 17.06.1851. In: Anais do AHRS, v. 3. CV 662.
274
central em impor o seu projeto imperial sobre o Prata sem recorrer aos estancieiros do sul do
Brasil, muitos deles ex-rebeldes.75

Com a vitória brasileira na Guerra contra Rosas e Oribe (1851-1852), charqueadores e


estancieiros foram amplamente beneficiados. Os tratados impostos pelo Império aos derrotados
possibilitaram aos rio-grandenses continuarem explorando economicamente as estâncias
uruguaias, levando consigo os seus escravos campeiros que, devido à abolição no país vizinho,
entravam como peões contratados.76 Os tratados apresentavam várias cláusulas, sendo que a
proibição do confisco de terras, a tarifa de 25% sobre o charque uruguaio (tasajo) importado
pelos portos brasileiros e a livre passagem do gado uruguaio para o território rio-grandense
foram as mais comemoradas pelos estancieiros rio-grandenses e charqueadores pelotenses.77

Com este favorecimento político à indústria charqueadora rio-grandense, a retomada da


economia pelotense foi notável, ao contrário dos concorrentes orientais. Dos 37 saladeros que
existiam no Uruguai em 1842, somente 3 ou 4 continuaram funcionando normalmente no início
dos anos 1850. Além disso, a falta de bovinos, decorrente da longa guerra civil oriental, era um
dos principais fatores da crise uruguaia. As mais de 6 milhões de cabeças de gado existentes no
país em 1843 caíram para pouco menos de 1.900.000, dos quais 1/3 permanecia em estado
selvagem. 78 Depois dos tratados, as vendas de charque uruguaio despencaram de 618.926
arrobas para 126.062 arrobas, em 1854-55.79 Ou seja, neste curto período as charqueadas
pelotenses enfrentaram uma baixa concorrência. A escassez do charque no mercado brasileiro
fez os preços do produto aumentarem bastante, favorecendo os pelotenses.80

No entanto, nem a vitória na Guerra e nem a assinatura dos Tratados de 1851 foram
suficientes para dar fim aos conflitos na fronteira. Com o término da campanha militar,
juntamente com o confisco de gado, a violência armada e o bandoleirismo que dominava ambas
as campanhas, outros problemas passaram a receber destaque nas centenas de correspondências
trocadas entre as autoridades administrativas e diplomáticas de ambos os países. O
recrutamento forçado nos dois lados da fronteira, a fuga de cativos para o Estado Oriental (onde
eram considerados livres) e o sequestro de negros livres para serem escravizados no Brasil,

75
COSTA, Wilma Perez. A Espada de Dâmocles: o Exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império. São
Paulo: HUCITEC, 1996.
76
DORATIOTO, Francisco. Op. cit.; PALERMO, Eduardo. Secuestros y trafico de esclavos en la frontera
uruguaya: estúdio de casos posteriores a 1850. Revista Tema Livre, n. 13, 2007; BORUCKI, A., CHAGAS, K.,
STALLA, N. Esclavitud y trabajo: Un estudio sobre los afrodescendientes en la frontera uruguaya, 1835-1855.
Montevideo, Ed. Pulmón, 2004.
77
ZABIELLA, Eliane. Op. cit.
78
BANDEIRA, L. Muniz. Op. cit., p. 74-75.
79
ZABIELLA, Eliane. Op. cit., , p. 54.
80
Os dados de exportação e os preços serão tratados no capítulo posterior.
275
entre outros, cada vez mais recheavam as páginas dos jornais, relatórios oficiais e cartas
trocadas entre as autoridades. 81 Portanto, a mencionada conjuntura não representou um período
de paz na fronteira.

Em fevereiro de 1854, por exemplo, o charqueador Manoel F. Moreira entregou 500


onças de ouro a um agente comissionado para que lhe comprasse gado no Uruguai. Tendo feito
a compra de 260 novilhos, o mencionado empregado foi atacado quando retornava para o Rio
Grande do Sul, sendo “preso e conservado em estacas” pelo General Fructuoso Rivera. O
charqueador reclamou um prejuízo de 15:000$ de réis nos seus negócios. 82 Outros casos de
saques a comerciantes de gado foram denunciados na mesma época. Mas em abril de 1856, o
charqueador pelotense Honório Luís da Silva foi atacado por outro motivo. As autoridades
uruguaias denunciavam-no de estar praticando contrabando na fronteira. Verdade ou não, o fato
é que além de sua lancha, Honório também teve as suas mercadorias e os seus escravos
“domésticos” apreendidos. Estes estavam acompanhados dos “remeiros” do charqueador.83

A questão envolvendo os escravos fugidos para os países platinos esteve entre as


principais reclamações de ambos os lados da fronteira.84 E os charqueadores não estiveram
indiferentes a este problema. Entre os proprietários que tiveram escravos fugidos para as
regiões do Prata, numa listagem elaborada em 1850, localizei 8 charqueadores, que somavam
31 cativos. Não se tratava de um número tão grande, visto o enorme contingente de escravos
concentrados nas fábricas pelotenses. Mas era o suficiente para alertar os demais empresários,
visto que entre estes charqueadores estavam homens ricos e influentes como Joaquim José de
Assumpção, João Simões Lopes e o Visconde de Jaguari. 85 Além disso, como foi visto, muitos
charqueadores possuíam estâncias no Uruguai e, é provável que, a exemplo do charqueador
João Jacintho de Mendonça, também utilizassem escravos (como peões contratados) para o
trabalho em seus campos.86

Se por um lado os uruguaios eram atacados por capturar e recrutar os peões negros
contratados dos estancieiros rio-grandenses na região (na realidade, seus escravos), os
brasileiros também eram acusados de escravizar negros livres no Uruguai, vindo a remetê-los

81
Ver, por exemplo, a correspondência do Governo do Rio Grande do Sul com a Secretaria do Ministério dos
Negócios Estrangeiros entre 1852 e 1863 (Arquivo Histórico do Itamarati) e os códices B.1.027 até o B.1.032, do
fundo Avisos do Ministério de Estrangeiros (AHRS).
82
Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 1854. Avisos do Ministério de Estrangeiros (B.1-028). AHRS.
83
Rio de Janeiro, 23 de dezembro de 1854. Avisos do Ministério de Estrangeiros (B.1-028). AHRS.
84
Ver, por exemplo, os Avisos do Ministério de Estrangeiros (B.1-027 ao B.1-032 (AHRS)).
85
Relação e descrição dos Escravos (por proprietários) fugidos para Entre Rios, Corrientes, Estado Oriental,
República do Paraguai e outras províncias brasileiras. Estatística. Documentação Avulsa. Maço 1. AHRGS.
86
BORUCKI, Alex; STALLA, Natalia; CHAGAS, Karla. Op. cit.
276
para o Brasil. 87 Em junho de 1862, por exemplo, o negro Moisés conseguiu a liberdade após sua
mãe denunciar às autoridades policiais de Pelotas que ele era nascido livre e havia sido raptado
no Estado Oriental, sendo vendido como escravo no Rio Grande do Sul. O responsável pela
captura de Moisés no Estado Oriental foi o charqueador Wenceslau José Gomes. Conforme o
delegado, o comprador, Honório Luís da Silva, teria suspeitado da “origem viciosa de
semelhante escravidão” e colaborou com a polícia devolvendo Moisés às autoridades.88
Honório também era charqueador em Pelotas.

Se as perseguições e violências continuavam afetando as propriedades de rio-grandenses


na fronteira, em 1857 o governo uruguaio conseguiu desfechar um grande golpe na
concorrência pelotense. Defendendo a recuperação de sua indústria, o Uruguai exerceu forte
pressão diplomática para que alguns pontos do Tratado fossem reformados. Em setembro de
1857 um tratado de modificação liberava de impostos o charque e demais produtos platinos
entrados no Brasil por via marítima. 89 Com esta medida, as exportações do charque rio-
grandense despencaram na safra de 1858. E se não bastasse, naqueles mesmos anos, a província
exportou mais gado para o Estado Oriental do que recebeu. A redução do número de tropas
vindas do Uruguai, do charque exportado e do seu preço no mercado eram os termômetros da
economia pelotense e ela vinha mal em todos estes aspectos.90 Uma das explicações para tal
fenômeno econômico foi a retomada das exportações uruguaias e argentinas que fizeram os
preços do produto baixarem novamente. 91 A grande quantidade de charque produzido no
período provocou uma crise de super-produção no setor.92 Os charqueadores começaram a
exigir o aumento dos impostos sobre o charque platino para evitar a concorrência considerada
desleal. Segundo o parecer da Seção de Estrangeiros do Conselho de Estado, o governo
imperial até poderia lançar mão de taxas “proibitivas” sobre o charque oriental, mas:

87
Nos últimos anos, muitas pesquisas vem se dedicando a investigar as relações escravistas na região da fronteira
rio-grandense e uruguaia, assim como as fugas, a reescravização e os contratos de peonagem. Ver, por exemplo,
BORUCKI, Alex; STALLA, Natalia; CHAGAS, Karla. Op. cit.; PALERMO, Eduardo. Op. cit.; GRINBERG,
Keila. Escravidão e relações diplomáticas Brasil e Uruguai, século XIX. In: Anais do 4º Encontro Escravidão e
Liberdade no Brasil Meridional. Curitiba, 2009, p. 1-9; LIMA, Rafael Peter de. “A nefanda pirataria de carne
humana”: escravizações ilegais e relações políticas na fronteira do Brasil meridional (1851-1868). PPG-História
UFGRS, Dissertação de Mestrado, 2010; CARATTI, Jonattas. O solo da liberdade: as trajetórias de preta
Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos de processo abolicionista uruguaio (1842-
1862). São Leopoldo: UNISINOS, Dissertação de Mestrado, 2010; ARAÚJO, Thiago L. de. A escravidão entre a
guerra e a abolição: o impacto das fugas e os pedidos de extradição de escravos nas fronteiras platinas (década de
1840). Anais do VI Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil meridional, 2013.
88
“Autuação do ofício do Vice Consul da República Oriental para indagações a respeito do preto Moisés”.
Processo n. 608, m. 14, Tribunal do Júri, Rio Grande, Caixa 314 (APERS).
89
ZABIELLA, Eliane. Op. cit., p. 60-61.
90
Os mercados importadores e as flutuações do preço do produto serão tratados no capítulo posterior.
91
Tratarei destes dados no capítulo seguinte.
92
Jornal O Constitucional, 07.09.1862 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro); BARRAN, Jose P.; NAHUM,
Benjamin. Op. cit.. p. 118-130).
277
A seção (…) entende que seria esse um remédio, se bem que favorável aos produtores
da província do Rio Grande do Sul, contudo, prejudicial ao resto da população, atenta
à carestia sempre crescente dos gêneros alimentícios. O charque é alimento geral,
preferido pelas muitas excelentes qualidades que tem, por toda a nossa população
menos abastada, muito principalmente nos lugares onde não se corta carne verde.
Constitui a alimentação diária e quase exclusiva de famílias inteiras e da escravatura
das nossas fazendas, pelo que pode ser considerado como matéria-prima para a nossa
única produção, que é a da lavoura, e que já luta contra tantas dificuldades! (…) Não é
justo que os [produtores] das províncias do Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e
outras paguem mais caro o charque com que mantêm os braços que empregam, para
que, livres da concorrência, colham maiores benefícios os do Rio Grande do Sul.93

O recado estava dado. De fato, o charque era consumido por grande parte da população
pobre das grandes cidades costeiras e, tendo em vista a carestia de alimentos que afetou a
população urbana do Rio nos anos 1850 (até o Imperador criticou os monopolistas cariocas pelo
excessivo preço do charque na Corte), era necessário abrir o mercado aos concorrentes
platinos.94 Contudo, por trás desta preocupação também estava claro que os grandes
proprietários de escravos queriam reduzir os custos de suas plantations, criando uma verdadeira
polêmica ao redor do assunto, uma vez que até os conselheiros de Estado, agora envolvidos,
deixavam isto bem claro.

Esta postura do governo central, que 10 anos antes já havia encarado uma guerra por
conta dos conflitos envolvendo proprietários rio-grandenses no Uruguai, desagradou muito aos
pecuaristas da província sulina. Sem dúvida, o charqueador mais exaltado deste período foi
Domingos José de Almeida. Ele já havia participado de forma marcante da Revolta dos
Farrapos (1835-1845), tornando-se ministro da Fazenda da República Rio-grandense, e depois
ajudou Caxias a arregimentar soldados para a intervenção brasileira no Uruguai, em 1851.
Desta vez, Domingos criou o jornal “O Brado do Sul” (em 1859), onde frequentemente atacava
a política do Governo Imperial para com a economia rio-grandense. No editorial do dia 29 de
março daquele ano, ele fazia um apelo aos deputados gerais rio-grandenses para defender a
causa da província na Corte e afirmava que a indústria do charque havia se animado nas épocas
de guerra no Prata, “dando grandes lucros aos charqueadores e influindo beneficamente sobre
todo o giro do nosso comércio”. Em seguida: “Hoje, porém, tendo o governo provavelmente
tomado a decisão de aniquilar de uma vez o Rio Grande, sufocando a par do seu comércio,
morto pelo contrabando, também a sua indústria”. Para Domingos, ao não taxar o charque
platino, percebia-se “quão pouco o governo conosco se importa e conta”. E ao final do longo
editorial ele ameaçava: “ Sem medidas tais é inevitável a completa ruína de nossa indústria e
93
O Conselho de Estado e a política externa do Império: Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros (1858-
1862). Rio de Janeiro: CHDD, 2005, p. 281-282.
94
GRAÇA FILHO, Afonso de A. Os convênios da carestia: crises, organização e investimentos do comércio de
subsistência da Corte (1850-1880). Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992.
278
sucumbindo na mesma ocasião o nosso comércio ao contrabando, o que restará à pobre
província do Rio Grande do Sul? A miséria e a fome (já o dissemos) são a revolta”.95

Além do periódico, a leitura da correspondência do charqueador revela que ele mantinha


contato com muitos oficiais militares e da Guarda Nacional, como Manoel Luís Osório e David
Canabarro, além de estancieiros com reconhecido prestígio na fronteira como Antônio de Souza
Netto. Em carta de outubro de 1862, o charqueador reclamou para este: “General, o aspecto
moral, financeiro e político de nosso país parte em pedaços o coração de quem o ama”. 96 Os
destinatários de Domingos eram muitos, mas os deputados Félix da Cunha, Barão de Mauá,
Affonso Alves e Manoel Lourenço merecem destaque por se tratarem de intermediários
políticos do charqueador tanto em Porto Alegre quanto na Corte. Eram deputados que ele
ajudou a eleger pedindo votos a fazendeiros e comerciantes, como revela uma carta que
escreveu ao General Canabarro.97 Contudo, o comportamento exaltado de Domingos era a
exceção e não a regra entre os charqueadores. Estes, sem dúvida anivamavam-se com as guerras
nos países vizinhos, pois as mesmas prejudicavam a indústria concorrente. Muitos deles haviam
apoiado as campanhas de 1825-1828 e 1851-52, mas, no geral, não nutriam tamanha revolta
contra o Império. Isto devia deixar Domingos bastante desapontado, ao ponto de reclamar para
um amigo dos “oligarcas de Pelotas”.98

Entre 1861 e 1862, o revigoramento econômico uruguaio teve outro importante impulso,
quando Bernardo Berro, chefe político blanco, declarou o fim do prazo legal do Tratado de
comércio que permitia o trânsito de gado uruguaio para o Rio Grande do Sul e, além disso,
instituiu uma lei que proibia contratos com peões negros por mais de 6 anos. Por tais motivos,
os primeiros anos da década de 1860 trouxeram uma nova crise para as charqueadas pelotenses,
seguida de uma grande quebra entre os charqueadores – que será analisado posteriormente.
Entre 1861 e 1864, a onda de perseguições aos brasileiros residentes no norte do Uruguai
acentuou-se bastante. Em 1863, o próprio irmão do General Netto teve sua estância no Uruguai
atacada. Em 1864, o ex-farroupilha David Canabarro, que era homem de confiança do Império,
já começava a desobedecer as ordens vindas da Corte, protegendo os bandos armados de
Venâncio Flores em suas terras na fronteira. 99

95
Jornal O Brado do Sul, Pelotas, 29.03.1859 (BN-RJ).
96
Carta de Domingos J. de Almeida para Antônio de S. Netto. Anais do HRS, v. 3, CV-788. Além disso, os
próprios filhos de Domingos lidavam diretamente com estes chefes, como por exemplo, nas cartas em que
menciona os encontros do jovem Epaminondas com Osório e de Junius Brutus com o próprio General Neto, em
Montevideu.
97
Carta de Domingos J. de Almeida para David Canabarro, Pelotas, 06.09.1862. Anais do HRS, v. 3, CV-731.
98
Num capítulo posterior tratarei da divisão política que reinava entre os charqueadores.
99
Avisos do Ministério de Estrangeiros, AHRS, B.1.0.32.
279
O clima de descontentamento e a falta de habilidade de alguns diplomatas e estadistas
em lidar com estas questões condicionou um novo rearranjo das alianças políticas na fronteira.
Como resposta às medidas do governo de Berro contra os rio-grandenses residentes no Uruguai,
o líder colorado Venâncio Flores reuniu facilmente o apoio dos estancieiros rio-grandenses e
tomou uso dos mesmos para defender os interesses de sua facção política no Uruguai. Tratava-
se de uma aliança com interesses mútuos e ao Império era interessante enfraquecer os blancos.
Um conflito militar era questão de tempo, mas era preciso insuflar os ânimos dos dirigentes
políticos do País. 100 Na Corte, Felipe Nery, deputado pelo Rio Grande do Sul e autodeclarado
representante do General Netto, disparou diversos discursos incitando a invasão ao território
uruguaio.101 Na mesma época, outros dois deputados gerais rio-grandenses, Gaspar Silveira
Martins e Félix da Cunha, juntaram-se ao brigadeiro Manoel Luís Osório e, na Corte, foram
reclamar do mesmo. Na cúpula do poder imperial, eles tinham como aliados os deputados José
Bonifácio e Francisco Brusque (rio-grandense, ex-ministro da Guerra e também pertencente a
uma família de charqueadores), e os deputados Francisco Otaviano e Martinho Campos, como o
próprio Felix da Cunha declarou em uma missiva de julho de 1864 ao General David
Canabarro.102 Este, na sua estância na fronteira, acompanhava tudo numa intensa circulação de
cartas que tinha nos charqueadores Domingos Almeida e Manoel Lourenço do Nascimento
(este também deputado provincial) alguns de seus informantes. Portanto, este grupo de políticos
e proprietários exerceu constante pressão política nos bastidores da Corte ao longo dos meses
que antecederam à intervenção militar do Exército Brasileiro no Uruguai em 1864.

Conforme César Guazzelli, decidido a acabar com as tropelias dos blancos de uma vez
por todas, o General Netto (que já contava com centenas de homens armados na fronteira
prontos para atender as suas ordens), foi até o Rio de Janeiro fazendo-se porta-voz dos “direitos
de 40 mil brasileiros” residentes na Banda Oriental e numa audiência com líderes políticos da
Corte, os colocou num verdadeiro impasse. Se o Exército não invadisse Montevidéu, os
próprios rio-grandenses o fariam por sua conta, ameaçou o General. Motivado por outras
questões de ordem política e diplomática, o Império decidiu atender às reclamações dos
proprietários rio-grandenses evitando uma nova guerra civil no sul do País. 103 Em abril de 1864,

100
DORATIOTO, Francisco. Op. cit.
101
CARNEIRO, Newton Luis Garcia. A identidade inacabada: o regionalismo político no Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 159.
102
Carta de Félix da Cunha para Canabarro. Rio de Janeiro, 26.07.1864. AHRS, CV-3438.
103
GUAZZELLI, Cesar Augusto B. A Guerra do Paraguai e suas implicações na história e na sociedade da Bacia
do Prata. In: Anais do I Encontro de História Brasil-Paraguai. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia,
2002, p.299-351. Para uma visão mais voltada às relações políticas entre os Estados platinos e aos aspectos
econômicos ver DORATIOTO, Francisco. Op. cit; BETHELL, Leslie. O Imperialismo britânico e a Guerra do
Paraguai. Estudos Avançados, n. 9, v. 24, 1995, p. 269-285.
280
os diplomatas brasileiros exigiram que Atanásio Aguirre, o novo presidente Blanco, punisse as
autoridades responsáveis por perseguir os rio-grandenses, caso contrário o Brasil seria obrigado
a interferir militarmente. O Paraguai, defendendo a aliança feita com os blancos, protestou
contra a ameaça brasileira. Executando o que havia prometido, em setembro, as tropas imperiais
cruzaram a fronteira com o Uruguai. Dois meses depois, Solano Lopez respondeu mandando
aprisionar o vapor brasileiro Marquês de Olinda, vindo a invadir o Mato Grosso em dezembro.

As guerras envolvendo os países platinos sempre foram benéficas à indústria pelotense,


pois traziam prejuízo aos saladeros. Durante à Guerra da Cisplatina (1825-1828), por exemplo,
os charqueadores pelotenses, juntamente com comerciantes e estancieiros rio-grandenses,
emprestaram vultosas quantias ao Estado, com o fim de financiar a Guerra. 104 Em 1851, como
demonstrei, eles também apoiaram a intervenção militar em Montevidéu com capitais e
homens. Em 1864, seu posicionamento não foi diferente. Mas a campanha militar tomou
proporções que ninguém esperava. Os rio-grandenses não queriam nada além da deposição do
governo blanco, a segurança de suas propriedades e indenizações aos mesmos. Como a vitória
brasileira na Guerra contra Oribe e Rosas, em 1852, havia trazido benefícios imediatos aos
proprietários de terra e charqueadores rio-grandenses, criou-se uma expectativa de que uma
nova intervenção militar iria cessar com os conflitos na fronteira e revigorar a economia rio-
grandense.105 Um panfleto intitulado “Revista da Praça Comercial de Pelotas, 31 de outubro de
1864”, que localizei entre os papéis de um negociante estabelecido em São Gabriel, na
campanha rio-grandense, queixava-se da falta de gado em Pelotas, mas previa dias melhores:

GADOS – Não tivemos entradas, porém consta que no futuro mês de Novembro
entrarão muitas tropas. Complicada à situação política do Estado Oriental com a
passagem do Exército Brasileiro, é de supor que ali não possam trabalhar as
charqueadas, a que dará muita animação a este ramo de nossa indústria.106

E, de fato, os profetas acertaram. O desencadear da Guerra propiciou o maior boom da


história das charqueadas pelotenses. A safra de 1867/68 abateu quase 500 mil reses e atingiu o
grande pico das exportações de charque. É bem verdade que esta safra também foi favorecida
pela epidemia de cólera no rio da Prata e pela Revolução Florista (1863-1865) no Uruguai

104
MIRANDA, Márcia E. Op. cit., p. 301-304.
105
A aliança entre Flores e os estancieiros rio-grandenses estendeu-se ao Governo Imperial e à República
Argentina, sob a liderança de Bartolomé Mitre. Concomitantemente, Berro buscou criar um novo equilíbrio de
forças no Prata, estabelecendo um eixo Montevidéu-Assunção e uma possível associação com as províncias
dissidentes da Argentina, principalmente Entre Rios e Corrientes. Era de conhecimento de todos que o entrerriano
Urquiza mantinha estreitas relações com Solano Lopez. Apostando nestas possíveis alianças, Berro enviou um
emissário para negociar o apoio do Paraguai no caso de um enfrentamento militar. Apesar do acordo não ter sido
oficialmente firmado, o presidente paraguaio demonstrou-se interessado na aproximação com o partido Blanco e
uma possível utilização de Montevidéu como porto comercial.
106
Arquivo particular de Porfírio Metello, Museu João Nunes (São Gabriel).
281
(guerra civil na qual os colorados, apoiados pelos rio-grandenses, tiraram os blancos do poder),
que devastou os campos do país vizinho, prejudicando a sua economia.107 Alguns comerciantes
e charqueadores emprestaram significativas quantias ao Império para financiar a campanha
militar, libertaram alguns de seus escravos para servirem ao Exército e ajudaram a mobilizar
soldados em Pelotas. São exemplos deste protagonismo, os proprietários João da Silva Tavares,
Felisberto Inácio da Cunha, João Simões Lopes Filho e José Antônio Moreira. Todos eles
receberam títulos de nobreza, como gratificação pelos seus serviços prestados à Coroa. 108 Além
disso, muitos charqueadores devem ter lucrado economicamente, pois as tropas militares
também eram abastecidas com charque.109 Mas a campanha no Paraguai também ofereceu
ganhos não apenas aos charqueadores como também a comerciantes, banqueiros e criadores de
gado. O Barão de Mauá, que sempre lucrou com o imperialismo brasileiro no Uruguai, possuía
uma agência bancária em meio ao acampamento aliado. Além disso, o seu parente José Cardoso
de Salles arrematou vários contratos de abastecimento de víveres para o Exército. 110

O fim da Guerra trouxe uma enxurrada de títulos de nobreza aos rio-grandenses. As


principais famílias de charqueadores estabeleceram alianças parentais com oficiais militares e
milicianos que lutaram na Guerra, isto quando já não os tinham entre os seus próprios parentes
próximos, como os Silva Tavares e os Antunes Maciel. O visconde da Graça e o barão de
Corrientes foram ainda mais longe e eles próprios tornaram-se Coronéis, ocupando o Comando
Superior da Guarda Nacional de Pelotas nos anos 1870/1880. Tratava-se de algo bastante
interessante considerando-se que os charquedores formavam uma pequena elite cujo ethos
primava pela civilidade e os bons costumes da vida urbana, onde patrocinavam as artes e
compatilhavam de uma cultura europeizada, como tratarei adiante. Paradoxalmente, era uma
elite grata aos generais que lhe proporcionaram vultosos lucros durante a Guerra. Guerra que
mobilizou um enorme contingente de soldados, ceifou milhares de vidas e trouxe uma dívida ao
Império, da qual ele nunca se recuperou. A gratidão para com os generais era material e
simbólica. Logo que o conflito acabou, o charqueador Moreira emprestou dinheiro para que o
General Osório reabilitasse os negócios de sua estância e, pelo que se verifica em seu
inventário, ele nunca deve ter pago.111 Não surpreende que entre os móveis da casa do visconde

107
BARRAN, José P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
108
CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do
Globo, 1937. Ver Barão de Butuí, Barão de Correntes, Visconde da Graça e Visconde de Serro Alegre.
109
FIGUEIRA, Divalde G. Soldados e negociantes na Guerra do Paraguai. São Paulo: Humanitas/USP, 2001.
110
FIGUEIRA, Divalde. Op. cit.; VARGAS, Jonas Moreira. O Rio Grande do sul e a Guerra do Paraguai. In:
GRIJÓ, Luiz Alberto; NEUMANN, Eduardo (Org.). O continente em armas: uma história da guerra no sul do
Brasil. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010, p. 123-152.
111
Inventário do Barão de Butuí. Pelotas. Cartório de órfãos e provedoria, 1877, APERS.
282
da Graça estava um busto do Duque de Caxias, e que outro charqueador, o Sr. Joaquim R. da
Silva, possuía um retrato à óleo do General Venâncio Flores como decoração em sua sala.112

Contudo, alguns dos charqueadores mais ricos de Pelotas não precisaram recorrer aos
mencionados “souvenirs” para terem em sua própria casa a presença daqueles “heróis”. José
Antônio Moreira e Joaquim José de Assumpção (Barões de Butuí e do Jarau) casaram suas
filhas com os filhos do General Osório (depois da Guerra, o Marquês do Herval) tornando as
reuniões de família um verdadeiro encontro de nobres. A família Osório ainda “arrematou”
outra herdeira de charqueadores para um de seus filhos, quando o casou com uma Antunes
Maciel, família que também aparentou-se aos Moreira, por meio dos casamentos. Tendo em
vista que Jarau era cunhado do Visconde da Graça, temos aqui os 4 charqueadores mais ricos de
Pelotas praticando uma apreciável endogamia sob à bênção não apenas do sacerdócio local,
como também dos generais, dos contrabandistas de gado e do próprio Imperador...

7.4 VESTÍGIOS DE UMA CRISE ANUNCIADA: A TABLADA PELOTENSE

Para fechar este capítulo retorno ao mercado de gados, mas, desta vez, analisando a
tablada – a feira de gados que acontecia durante toda a safra dentro do próprio município de
Pelotas, num raio de 2 Km das charqueadas.113 As melhores descrições sobre a tablada foram
feitas por Louis Couty (1880), Herbert Smith (1882) e o Coronel Zeferino da Costa (cujas
memórias foram escritas no início do século XX). Tais escritos oferecem uma descrição sobre a
dinâmica do comércio do gado da tablada – que, nas palavras de Smith, era um descampado
extenso e quase liso, onde de dezembro a maio se vendiam as tropas de gado que chegavam a
Pelotas.114 É provável que a tablada não tenha funcionado sempre da mesma forma e que, após
a Guerra do Paraguai, a sua importância tenha aumentado para os charqueadores. Couty
mencionou que houve uma época em que os charqueadores confiavam mais no sistema de
tropeiros e agentes (aquele que analisei no início deste capítulo), mas que, no início dos anos
1880, a tablada já havia se tornado o principal mercado de gados para os charqueadores.115

O coronel Zeferino Costa pertencia a uma família de corretores de gado em Pelotas e


viveu durante anos nas proximidades da tablada. Rememorando as últimas décadas do século

112
Inventário Visconde da Graça, n. 1.254, m. 69, 1893, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS);
Inventário do Visconde da Graça; Jornal do Comércio de Pelotas, 02.07.1881 (BPP).
113
COUTY, Louis. Op. cit., p. 135.
114
SMITH, Herbert. Do Rio de Janeiro à Cuiabá. São Paulo: Melhoramento, 1922. As memórias do Coronel
Zeferino foram reproduzidas por PIMENTEL, Fortunato. Charqueadas e frigoríficos: aspectos gerais da indústria
pastoril do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria Continental, s/d, p. 110-120.
115
COUTY, Louis. Op. cit., p. 136.
283
XIX, ele escreveu: “Era a tablada a feira mais interessante que já vi. Ali reuniam-se,
diariamente, todos os charqueadores. Ali, desfilava a pecuária inteira do Rio Grande”. A feira
iniciava-se às 7 horas e encerrava-se às 12 horas, quando os animais eram recolhidos ao
pastoreio por peões conhecidos da própria localidade. Durante as negociações, “dez, vinte,
trinta tropas ali se aglomeravam, em reduzido espaço. Cada uma delas era rodeada e vigiada
pela peonada que a conduzia da estância para evitar o ‘entrevero’”. Conforme o Coronel, havia
tropeiros de toda a parte: “Que diversidade de gente. Uns, vinham das Missões, de São Luiz,
São Borja, de Cima da Serra, do Alto Uruguai, com 35 e mais dias de viagem; outros, do Estado
Oriental; muitos de Cachoeira e Rio Pardo; e não poucos da fronteira”. 116

As memórias do Coronel devem fazer referência ao final da década de 1870 e início dos
anos 1880, pois ele menciona os escravos que os charqueadores levavam até o leilão e a
presença de rebanhos vindos do norte da Província. Ora, Alvarino Marques diz que os rebanhos
desta região só integraram-se ao mercado pelotense a partir dos anos 1870 e 1880. 117 É possível
que a compra do gado da região norte da província buscasse sanar a diminuição dos rebanhos
vindos do Uruguai. Conforme Barran e Nahum, a Guerra Civil no Uruguai entre 1870 e 1872
foi ainda mais prejudicial à economia do país do que a Revolução Florista (1863-1865), sendo
que, desta vez, exterminou boa parte dos rebanhos orientais. 118 Soma-se a isto o fato de que o
Rio Grande do Sul já não contava mais com os antigos tratados de comércio totalmente
favoráveis a extração do gado uruguaio. Neste sentido, é provável que uma saída para os
charqueadores foi tentar comprar os rebanhos do norte da província para compensar a
diminuição do gado vindo do Uruguai.

Sobre o funcionamento da tablada o Coronel também deixou registrado: “No dia da


entrada de tropas na tablada, os tropeiros gaúchos envergavam os seus melhores trajes e
encilhavam os seus mais lindos ‘pingos’. Era o desfile da competição dos melhores e mais
gordos gados, dos mais belos e invejados corcéis de cola atada e tosados a cagotilho”. 119 Era a
tentativa de valorizar os seus rebanhos em comparação aos dos concorrentes. Sobre o ambiente
da feira de gado, Smith escreveu: “Rudes gaúchos, vestidos com a habitual camisa de chita,
ceroulas ou bombachas e ponchos riscados, galopam em todas as direções, conservando os
animais nos lugares e impedindo que se misturem as tropas”.120

116
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 111.
117
MARQUES, Alvarino. Op. cit.
118
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
119
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 110-120.
120
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. p. 112.
284
Expostos os animais, iniciavam-se as negociações. Intermediando as transações entre os
estancieiros e os charqueadores estavam os comissários de gado. Estes iniciavam a sua
atividade diária oferecendo os novilhos e recolhendo as ofertas. Antigos e conhecidos
comissários de gado possuíam seus escritórios cheios de negociantes e tropeiros, “onde o
chimarrão, os comentários, as peripécias da longa viagem, os chistes – corriam a roda”.121 Um
dos mais antigos comissários de gado foi um francês, conhecido como Senhor Debise, que
anunciava e vendia as suas tropas em leilão sempre gritando: ‘Can-can, petite et grand tout
ensemble, quem dá mais?’ Conforme o Coronel Zeferino, o francês era original, pois como não
conhecia o peso, a qualidade, o valor dos gados que vendia, punha-os em leilão à maior oferta.
No entanto, o modo de negociar dos outros vendedores diferia, pois era menos “público”. Eles
“abriam o preço para cada tropa e recebiam, em reserva, as ofertas, entregando-a àquele que
melhor pagava”. 122 É interessante esta afirmação do Coronel Zeferino, pois negociando em
segredo, era possível que outros fatores influíssem na transação, tornando este mercado menos
impessoal do que poderia parecer, e possivelmente eivado de relações sociais diversas.

Conforme Smith, os charqueadores supervisionavam todas as negociações. Moviam-se


“rapidamente aqui e ali em belos cavalos, examinando as várias tropas, calculando-lhes o valor
com rapidez e precisão admiráveis, fechando os negócios às pressas com estancieiros e peões”.
Esta “tarefa era eivada de dificuldades, motivo pelo qual se tornara privilégio de grandes
conhecedores”. Erros de cálculos podiam causar avultados prejuízos, pois, como não se usava
balança, “o preço do boi, tendo por base o peso presumível, era calculado a olho”. 123
Charqueadores ricos rivalizavam entre si oferecendo cada um o preço que mais agradasse aos
vendedores. Sobre isto Smith afirmou: “O mercado é sempre ativo, porque a concorrência é
muito forte entre os vinte ou trinta charqueadores; em geral as boiadas inteiras estão vendidas
pouco tempo depois de chegadas” e “imediatamente levam-nas para uma das charqueadas junto
ao rio”.124 Com relação ao comportamento dos charqueadores durante as negociações, o
Coronel Zeferino complementou:

Os charqueadores, nos seus luxuosos carros, puxados por belíssimas e custosas


parelhas, vinham chegando à feira, ostentando a riqueza de suas equipagens. Chegados
ao local, montavam nos seus cavalos trazidos à reata pelos seus escravos, e

121
A partir dos anúncios dos jornais é possível verificar a presença de comissários oferecendo seus serviços aos
charqueadores. Em dezembro de 1890, o Diário Popular publicava o seguinte anúncio: “Tablada: Joaquim
Monteiro & Companhia – Encarregam-se da venda da tropa, na tablada, por comissão módica. Escritório à rua
General Netto, n. 39”. O mesmo anúncio foi feito por outros dois indivíduos, J. J. da Silva Braga e Boaventura S.
Barcellos (Jornal Diário Popular, 14 de dezembro de 1890. Anexo ao Inventário de Cipriano José Gomes. N. 158,
m. 5, 2º Cartório do Cível, 1890, Pelotas (APERS)).
122
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 110-120.
123
REVERBEL, Carlos. Um Capitão da Guarda Nacional. Caxias/Poa: UCS/ Martins Livreiro, 1981, p. 19.
124
SMITH, Herbert. Op. cit., p. 72.
285
apressavam-se em recorrer as tropas à venda, inspecionando-as, avaliando, calculando
o seu rendimento e perquirindo aos condutores: ‘Quantos dias de marcha? Quantas
disparadas? Vinham rondadas? Quantas encerras?’ E assim balançavam o que elas
poderiam produzir. Terminada a inspeção, começavam as vendas.125

Quando se fechava um negócio entre o charqueador e os vendedores ouvia-se a frase: “É


minha a tropa, mande entregar na charqueada”. Vendiam-se os gados a prazos que variavam de
45 a 90 dias. “No dia seguinte ao da entrega, o charqueador mandava levar ao corretor o
documento comprobatório da transação”, que era um vale assinado pelo mesmo, com data e
selos reconhecidos. Conforme o Coronel Zeferino, este documento “era disputado pelos bancos
e capitalistas para ser descontado aos juros de 3 e 4%”. Os vales poderiam ser sacados em
Pelotas (no Banco da Província ou no “Banco Inglês”), ou com os senhores Faustino Trápaga,
Antônio H. Nogueira, Barão Alves da Conceição, Martin Bidart, José Maria Moreira (filho de
charqueador) e os charqueadores e capitalistas Barão do Jarau e Barão do Arroio Grande.

A cada ano, entre novembro/dezembro e maio/junho, época da safra, as negociações na


tablada eram retomadas e a cidade via-se novamente povoada por um enorme número de
pessoas. De acordo com Smith os animais comprados na tablada representavam um valor total
de cerca de 22 mil contos de réis que iam para o bolso dos estancieiros a cada ano. Estes
homens estabeleciam-se alguns dias na cidade “a comprar fornecimento para o ano seguinte,
antes de voltarem para suas remotas habitações”. Os tropeiros e peões de diversas procedências
e com o pagamento em mãos aglomeravam-se nas lojas e tavernas. Smith verificou que parte do
dinheiro pago pelos charqueadores aos estancieiros nas transações envolvendo as reses, acabava
retornando ao próprio comércio pelotense. E concluiu: “Há muitos grandes armazéns na
campanha que dependem dos de Pelotas, mas todos, direta ou indiretamente, assentam na
indústria pastoril e nas charqueadas”.126

De acordo com o Coronel Zeferino, as casas comerciais da cidade atraíam muita gente
na época da safra. “Pelotas enchia-se diariamente de uma população exótica que cada dia se
renovava e espalhava pelos hotéis São Pedro, Americano, Bonfiglio. As caravanas tinham
hospedagem (pernoite) gratuita nas lojas de fazendas, onde sustiam [sic] das suas necessidades
(...)”. Na cidade, ferreiros e ourives lucravam bastante. “As ‘comitivas’ ascendiam a 300
homens diariamente e espalhavam a mãos cheias o dinheiro ganho nas tropeadas”. O salário era
de 5$000 diários para os peões e 8$000 para os capatazes. Uns dos artigos mais procurados
eram as facas recamadas de ouro e de prata, os rebenques, estribos, esporas prateados e um

125
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 110-120.
126
SMITH, Herbert. Op. cit., p. 73.
286
sem-número de artefatos “que a vaidade dos gaúchos se comprazia em ostentar” e que serviriam
como distinção social ao retornarem para seus locais de origem. “À noite o encontro era no
‘Curral das Éguas’, espécie de ‘Cabaret’, existente no Hotel São Pedro”. 127

O princípio básico da tablada era distinto do procedimento de compra de gados descrito


anteriormente. A instituição da tablada parecia buscar imprimir uma lógica mais
impessoal/pública às transações, pois havia espaço para a livre barganha e até os leilões. Ela
beneficiava a grande maioria dos charqueadores que não possuíam condições materiais de
manter uma grande estância na região da campanha ou no Uruguai e, com isto, fechar melhores
negócios com os tropeiros daquelas bandas. Mas, em contrapartida, ela os colocava na
obrigação de competir com os grandes charqueadores pela compra dos gados na tablada. Mas
esta mudança no comércio do gado representava um fenômeno econômico e social ainda maior.
Ela simbolizava o poder do charqueador sobre o estancieiro da região da campanha. Isto
chamou muito a atenção de Couty, pois nem no Uruguai e nem na Argentina ele presenciou
algo assim. 128 Ao invés de depender de uma cadeia de intermediários negociando com o seu
próprio dinheiro em lugar incerto, na tablada o charqueador tinha o próprio mercado dentro de
sua cidade. Ele podia ver o gado, tocá-lo, barganhar com os tropeiros, ou seja, realizar a compra
diretamente com o vendedor. A tablada simplesmente tirava das mãos do estancieiro da
fronteira o poder de fechar pessoalmente os negócios e transferia o mesmo para o charqueador.
Além disso, de acordo com as narrativas deixadas por Couty, Smith e o Coronel Zeferino, é
possível perceber que a tablada não funcionava somente como local de negócios. Ela também
possibilitava o encontro de famílias e amigos, os acordos políticos, as alianças matrimoniais e
era praticamente um palco para a ostentação do status social dos mais ricos. Como ensinou
Edoardo Grendi, em sociedades agrárias e pré-industriais, os mercados tinham uma função que
ultrapassava o sentido econômico.129

Paradoxalmente, o auge da tablada coincidiu com o início da decadência das


charqueadas escravistas. Se os empresários trouxeram a feira de gado para o seu “quintal”, os
mesmos vinham perdendo gradualmente a mão de obra de suas fábricas. Se os mais ricos
podiam controlar mais ou menos o mercado do gado, tanto na fronteira como na tablada, pouco
podiam fazer com relação aos mercados atlânticos. É por estas margens que iremos navegar
agora…

127
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 114.
128
COUTY, Louis. Op. cit., p. 135-137.
129
GRENDI, Edoardo. Polanyi: Dall’antropologia allá microanalisi storica. Milano: Etas Libri, 1978.
287
8. AS CHARQUEADAS, OS MERCADOS ATLÂNTICOS E OS SEUS
INTERMEDIÁRIOS

Não é com seus pés que as mercadorias vão ao mercado, nem se


trocam por decisão própria. Temos, portanto, de procurar seus
responsáveis, seus donos.

Karl Marx (O Capital, Livro I, Capítulo II)

Como afirmou Marx, as mercadorias não iam com seus próprios pés ao mercado. Para
que um pedaço de charque chegasse até o prato de um escravo num engenho de açúcar em
Cuba ou no Recôncavo Baiano e para que uma peça de couro cruzasse o Atlântico até encontrar
as mãos de um operário nas fábricas britânicas uma cadeia de intermediários precisava ser
acionada. Um charqueador podia saber da situação favorável ou desfavorável dos diferentes
mercados marítimos tanto pelo contato com os diversos comerciantes e corretores estabelecidos
no porto, quanto pelas sessões mercantis dos jornais rio-grandinos e pelotenses. Mais do que eu
poderia imaginar, diariamente estes periódicos alertavam sobre as conjunturas econômicas
externas, as cotações do câmbio, informes sobre preços, os valores dos fretes, a quantidade e a
qualidade dos produtos existentes nos armazéns das principais cidades envolvidas no comércio
dos produtos pecuários, além de notícias políticas de diversos países. 1 O presente capítulo trata
das rotas mercantis em que o charque, os couros e o sal estiveram envolvidos após o término da
Revolta dos Farrapos (1835-1845) e dos agentes inseridos no interior destos mesmos circuitos.

8.1 EM BOCAS DESGRACIADAS: CHARQUEADORES, SALADEIRISTAS E OS


CIRCUÍTOS MERCANTIS ATLÂNTICOS DAS CARNES
É comum vincular a economia das charqueadas rio-grandenses ao abastecimento do
mercado interno, sobretudo, das plantations escravistas. Contudo, os couros secos e salgados
tinham um destino diverso, conectando o complexo fabril pelotense ao mercado internacional.
Em ambos os circuitos mercantis, o Rio Grande do Sul dividiu o espaço econômico de trocas
com os produtos fabricados na região do Prata. Tal relação foi muito competitiva no que diz
respeito ao charque, mas apresentou pouca concorrência no comércio dos couros, uma vez que
este constituía-se em um mercado mais amplo, cobrindo a oferta dos três complexos fabris.

1
Ver, por exemplo, os exemplares do Jornal do Comércio de Pelotas. No ano de 1875, por exemplo, podia-se ler
sobre as quantidades de charque e seus preços no porto de Salvador (6 de janeiro), transações em câmbio
realizadas sobre Londres e negócios com papéis bancários e mercado do tasajo no Rio da Prata (9 de janeiro),
notícias sobre o fim da safra em Montevidéu (7 de julho), carregamentos e estoques de couros nos portos de
Liverpool e Londres (14 de setembro), entre muitos outros (Jornal do Comércio, Biblioteca Pública Pelotense).
288
Neste contexto, jogando com as flutuações mercantis e de preços de ambos os produtos, muitos
charqueadores puderam resistir aos reveses conjunturais que afetavam as trocas de ambas as
mercadorias. O sal, por sua vez, era comprado tanto no mercado brasileiro como no mercado
internacional. Começarei a análise pelo comércio do charque, incluindo os indicadores
mercantis referentes aos couros e ao sal na medida em que a trama se desenvolve.

Conforme tratado no capítulo primeiro, desde que o Rio Grande do Sul começou a
exportar charque para o nordeste brasileiro, na década de 1790, até pelo menos os anos 1840,
aquela região foi a maior compradora do produto, com a região sudeste, por intermédio do Rio
de Janeiro, consumindo quase sempre menos da metade.2 Com quantias menores, Havana e
Lisboa também compareceram entre os portos receptores de charque, sendo que o mercado da
primeira costumava abrir-se quando o Prata se encontrava em guerra.3 A Revolta dos Farrapos
desmantelou a indústria pelotense que voltou a produzir charque em alta escala somente na
década de 1840. No gráfico 8.1 é possível verificar as flutuações das exportações de charque
entre 1837 e 1889. Observe-se que no início dos anos 1840 os índices apresentam um alto
crescimento, apresentando um nítido decréscimo, a partir de 1848. Foi exatamente por conta
dos prejuízos nestes últimos anos que charqueadores e estancieiros se mobilizaram pela
intervenção do Exército brasileiro em Montevideu, o que acabou ocorrendo em 1851.

Gráfico 8.1 – Charque exportado pelo Rio Grande do Sul entre 1837 e 1890 (em arrobas)

3.500.000
3.000.000
2.500.000
2.000.000
1.500.000
1.000.000
500.000
0
1839

1847

1855

1863

1871

1879

1887
1837

1841
1843
1845

1849
1851
1853

1857
1859
1861

1865
1867
1869

1873
1875
1877

1881
1883
1885

1889

Arrobas exportadas

Fonte: Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922, p. 246-247;
Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande do Sul (1846-1860).

2
Salvo o ano de 1828, como foi demonstrado no capítulo 1 (AHRS, Fundo Fazenda, m. 482). É possível que em
outros anos o mesmo tenha ocorrido, mas em linhas gerais, como já analisei, as exportações para o nordeste foram
predominantes em quase todas as épocas.
3
LEITMAN, Spencer. Raízes sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 98.
289
No entanto, é preciso fazer uma ressalva. O volume de charque rio-grandense exportado
no período que antecedeu a Guerra de 1851-52 foi menor do que o indicado no gráfico. Em
1849, num manifesto remetido pelos vereadores de Pelotas à Assembleia Geral do Império fica
bastante claro que parte significativa daqueles montantes constituía-se em charque uruguaio que
era remetido até o porto rio-grandino pela fronteira de Jaguarão. Conforme os mesmos:

Para mais agravar essa posição ruinosa, a autoridade que dirige os negócios do
Estado Oriental proibiu a exportação de seus gados para esta, consentindo que nele, à
margem direita do Jaguarão, se estabelecessem charqueadas sob pretexto de facilitar
aos brasileiros um mercado para as vendas de seus gados; e prevendo que esta medida
acarretaria em represália a subida de direitos, como gênero estrangeiro, permitiu que o
espólio do gado ali morto beneficiado fosse deste lado para figurar em nossas
alfândegas como gêneros de manipulação nacional e iludir o nosso fisco.
Escárnio atroz nem a menos foi percebido; imensas charqueadas como por encanto ali
se montaram, parte das nossas deixaram de trabalhar e mais de dois mil peões, que se
empregavam na extração de gados daquela para esta parte, ficaram sem meios de
subsistência.
Para destruir este mal sinistro alcance pensa a Câmara que deveis propor uma
Lei que obrigue ao pagamento de 25% os gêneros provenientes do boi manipulado à
direita do Jaguarão, como no sal para ali exportado pelo Brasil. Este artigo porém,
como matéria-prima para as charqueadas desta Província, deve nela ser introduzido
sem ônus algum, e diminuir-se o direito que pagam a carne, graxa e sebo que dela se
exportar diretamente para portos estrangeiros.
Além da destruição de nossas charqueadas com o estabelecimento daquelas no
ponto que se indicou, outro mal ainda maior enxerga a Câmara no avultado número de
brasileiros que tem de ali procurar trabalho, relacionar-se e estabelecer-se e mais tarde
introduzirem por toda a extensão da linha divisória, vindas de Montevideu, as
mercancias que ora recebemos do Rio, Bahia e Pernambuco por ficarem mais baratas
em razão do menor direito que exibem na Alfândega daquela praça. Pelo exposto
vereis, Srs. Deputados, que a questão de estabelecimentos tais na margem direita do
Jaguarão não ataca somente conveniências comerciais desta e de outras províncias do
Brasil, mas sim mui seriamente a política e integridade do Império4

O lado uruguaio da fronteira, como os próprios vereadores mencionaram, havia sido


dominado por charqueadores brasileiros, uruguaios e europeus que se estabeleceram próximos
das vias fluviais que desembocavam na Lagoa Mirim, na margem direita do Jaguarão, distante
poucos quilômetros de Pelotas e Rio Grande (ver Figura 8.1). Portanto, uma quantia
significativa daquele charque exportado parece não ter sido fabricada em Pelotas. Conforme
Barran e Nahum, na safra anterior à assinatura dos tratados de 1851, foram remetidas 618.926
arrobas pela fronteira fluvial (a terça parte do que foi exportado pela província naquele mesmo
ano).5 Tais carregamentos chegavam ao porto rio-grandino sendo exportados como charque
brasileiro, deixando assim de pagar a tarifa de 25% sobre o tasajo importado nos portos do
4
Ofício de 24.10.1849, CV 659, Anais do AHRS, v. 3, 1978. A Câmara era presidida pelo Dr. Joaquim José
Afonso Alves, o mesmo deputado geral que se destacou nas sessões da Assembléia Geral em 1851, solicitando a
intervenção militar em Montevideu. Também eram vereadores os charqueadores Domingos José de Almeida,
Manoel Lourenço do Nascimento e José Inácio da Cunha.
5
BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo:
Ediciones de la Banda Oriental, 1967, p. 50.
290
Brasil. A partir de um documento datado provavelmente de 1850 ou 1851, foi possível ter uma
ideia de quantos saladeros ocupavam aquelas margens fluviais e que incomodavam tanto os
charqueadores pelotenses. Nele são listados 16 saladeros no lado oriental da mencionada
fronteira. A firma anglo-francesa Paulet & Williams, por exemplo, abatia 16 a 20 mil reses
anualmente, a do espanhol Francisco Traeba, 12 a 16 mil e a de Silva & Co de 12 a 15 mil, sem
contar as outras. O número de bovinos que elas consumiam significava um grande desvio de
tropas de gado que poderiam ser levadas até as charqueadas pelotenses, por exemplo. 6

Figura 8.1 – Litoral sul e fronteira fluvial entre Brasil e Uruguai

Fonte: BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching sistem,


1850-1928. Stanford: Stanford University Press, 1998, p. 66.

6
Listagem das charqueadas na fronteira com o Uruguai, s/d. (Coleção de manuscritos, Coleção Rio Grande do Sul,
BN-RJ). Além disso, segundo Rosal e Schmit, entre 1846 e 1848, Buenos Aires remeteu couros e lãs para o porto
de Rio Grande. O motivo foi o fechamento de seu porto por tropas anglo-francesas. O mesmo já havia ocorrido em
1830, quando os ingleses também bloquearam o porto buenairense (ROSAL, Miguel A.; SCHMIT, Roberto. Del
reformismo colonial borbónico al librecomercio: las exportaciones pecuarias del Río de la Plata (1768-1854).
Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana. 3ª serie, n. 20, 2º sem. 1999, p. 95-96).
291
Neste sentido, o surgimento destes saladeros na fronteira uruguaia aprofundou ainda
mais a situação estabelecida desde 1846, quando o chefe político uruguaio Manoel Oribe havia
proibido o envio de tropas de gado do seu país para o Rio Grande do Sul. O resultado disto tudo
se reflete na visível queda do Gráfico 8.1 e, como já foi dito, provocou grande insatisfação entre
os proprietários rio-grandenses. A reclamação dos charqueadores ganhou apoio do Presidente
da Província que buscou mediar a negociação com a Corte. Em julho de 1850, Pimenta Bueno
escreveu ao Ministro da Fazenda esclarecendo a situação: “Em minha opinião a questão seria
simples se esta Província estivesse povoada de gados, mas ela está exausta e em quando assim
continuar não poderá de modo algum competir com o Estado Oriental”. O presidente temia que
a cobrança de altas taxas sobre o charque remetido pela fronteira fosse incentivar os saladeros a
se instalarem na região uruguaia do Buceo levando para mais longe ainda os gados e os
negócios que vinham beneficiando economicamente o lado brasileiro do Jaguarão.7

Interessante notar como o presidente Pimenta Bueno buscava mediar os interesses


regionais com os do Império. Ele encerrava a missiva propondo uma “módica taxa” de 6%
sobre os produtos entrados na fronteira com o Jaguarão (couros e charque) para não desagradar
nenhum dos lados. Assim, os charqueadores de Pelotas seriam atendidos parcialmente, os
saladeros não seriam forçados a abandonar a fronteira do Jaguarão e a arrecadação da Fazenda
aumentaria. Além do mais, conforme Pimenta Bueno, este charque uruguaio carregado pelo
Jaguarão até o porto de Rio Grande interessava ao Império, pois barateava o preço do produto
nas províncias consumidoras.8 Para tal avaliação, o Presidente certamente devia contar com o
auxílio de líderes políticos regionais (sempre orbitando o Palácio provincial em busca de
favores), já que Pimenta Bueno era de fora da Província e provavelmente jamais tenha colocado
os pés naquela “perigosa” fronteira com o Jaguarão.

Como demonstrei no capítulo anterior, estas tentativas de resolver a situação pela


diplomacia fracassaram e a intervenção militar em Montevideu veio a resolver
momentaneamente as reclamações dos rio-grandenses, pois possibilitou, por meio dos tratados
assinados após o término do conflito, o livre acesso dos charqueadores pelotenses aos rebanhos
criados no Uruguai. Além disso, uma das cláusulas mais polêmicas do Tratado foi o exclusivo
7
“V. Exa verá nos mapas juntos o grande movimento de iates que navegam entre o Jaguarão e o porto de Rio
Grande, e consequentemente o avultado frete, comissões e direitos que os proprietários brasileiros e os cofres
públicos recolhem. Se estabelecem-se impostos pesados sobre os produtos do gado provenientes do Estado
Oriental fora de temer o inconveniente de mudarem-se as charqueadas para o Buceo e outros pontos e privarem-se
os iates, negociantes e cofres públicos de semelhantes vantagens, sem por isso se diminuísse a concorrência
estrangeira por que o Rio Grande não tem gados” (Carta do Presidente da Provincia do Rio Grande do Sul ao
Ministro da Fazenda, Porto Alegre, 26.07.1850 – Coleção Rio G. do Sul – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
8
Carta do Presidente da Provincia do Rio Grande do Sul ao Ministro da Fazenda, Porto Alegre, 26.07.1850 –
Coleção Rio G. do Sul – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
292
direito à navegação na lagoa Mirim e no rio Jaguarão reservado aos brasileiros. Os uruguaios
não poderiam nem sequer possuir uma canoa ou qualquer outro tipo de embarcação em suas
margens, ainda que fosse para transportar enfermos.9 Como os tratados não colocaram impostos
sobre o tasajo que entrava pela fronteira do Jaguarão até o porto de Rio Grande, esta foi uma
saída encontrada pelos rio-grandenses para poder policiar a fronteira. Era uma demonstração de
força e influência política dos charqueadores e do imperialismo brasileiro na região. Tal medida
parece ter enfraquecido os mencionados saladeros da fronteira, pois as suas remessas de tasajo
para o porto rio-grandino caíram bastante entre 1851 e 1855.10

Por conta do grande número de rebanhos dizimados durante a Guerra Grande e dos
tratados assinados com o Brasil, os saladeros de Montevideu também foram imediatamente
afetados. Como foi visto no capítulo anterior, dos 37 saladeros que existiam no Uruguai em
1842, somente 3 ou 4 continuaram funcionando normalmente no início dos anos 1850.11 Sem a
concorrência uruguaia, os preços do produto aumentaram e este foi um dos grandes benefícios
trazidos pela guerra. Conforme o gráfico 8.2, pode-se observar que os preços foram favoráveis
até a safra de 1858, quando a arroba atingiu uma média de 4$609 réis no porto de Rio Grande.
Este período também foi marcado por vultosos carregamentos de charque para o Rio de Janeiro,
superando a concorrência do tasajo no mercado do sudeste. Conforme Afonso Graça Filho, nos
anos 1850, o Rio Grande do Sul constituiu-se na principal província fornecedora de alimentos
para a população carioca. Entre os gêneros rio-grandenses mais consumidos destacavam-se o
milho, a farinha, o feijão e o charque. Em contrapartida, sem o tasajo uruguaio nos armazéns da
Corte e com os preços do produto em alta, a população pobre do Rio foi prejudicada pela crise
de carestia de alimentos que afetou a cidade em 1854.12 O fato é que para os charqueadores
pelotenses lucrassem conforme os seus desejos, todos os demais tinham que sair perdendo.

Mas a euforia em Pelotas durou pouco. No início dos anos 1850, a economia argentina
encontrava-se em melhor situação que a uruguaia, pois as guerras não foram tão nocivas aos
portenhos daquele ramo de negócios. Conforme Rosal e Schmit, a década de 1850 apresentou

9
ZABIELLA, Eliane. A presença brasileira no Uruguai e os Tratados de 1851 de Comércio e Navegação, de
Extradição e de Limites. Dissertação de Mestrado, UFRGS, 2002, p. 40.
10
Conforme as reclamações de Andrés Lamas, representante diplomático da República Oriental na Corte, os rio-
grandenses estabeleciam uma série de empecilhos na fronteira, exigindo o transbordo de todo o tasajo para
embarcações brasileiras e dificultando a sua passagem. As 618.926 arrobas remetidas na safra de 1850/51 caíram
para 126.062 na de 1854/55. BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 50.
11
Conforme a mesma fonte (sem data) citada anteriormente, a maioria das charqueadas daquele período estavam
desativadas. Por conta disto, a safra rio-grandense de 1852-1853 apresentou um aumento nas exportações para logo
declinar. Contudo, este declínio deve ser relativizado, pois agora já não se tinha mais o charque uruguaio entrando
pela Lagoa Mirim como nas quantidades anteriores, o que indica que os totais exportados após 1851
correspondiam totalmente ao que o Rio Grande do Sul realmente produzia por ano.
12
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 58-60.
293
altos índices de exportação de tasajo em Buenos Aires. Somados os 5 anos entre 1850 e 1854, a
cidade exportou mais de 100 mil toneladas, chegando perto das mais de 125 mil toneladas
exportadas pelo Rio Grande do Sul no mesmo período.13 Na segunda metade da década de
1850, os orientais conseguiram recuperar a sua indústria, atingindo altos índices de abate. A
revisão dos tratados comerciais entre Brasil e Uruguai, realizada em 1857, foi uma das grandes
estimuladoras desta retomada. Nesta ocasião, o charque uruguaio deixou de pagar as altas taxas
de importação no Brasil e voltou a ser comprado em grande escala pelos comerciantes cariocas.
Além da insistente diplomacia oriental, a medida também foi favorecida pelas crises de
abastecimento que a cidade do Rio de Janeiro vinha passando desde o ano de 1854.14 Portanto,
com a recuperação da indústria saladeril platina e a pacificação dos seus territórios, ficou difícil
para os pelotenses concorrerem com a expansão daquele setor. A brusca queda das exportações
de charque rio-grandense na safra de 1857-58 e o declínio dos preços do produto após aquele
mesmo ano foram vistas como sintomas de uma nova crise. Apenas para lembrar o leitor, datam
do final da década de 1850 as manifestações de descontentamento e revolta do charqueador
Domingos José de Almeida através do jornal que ele havia fundado.

Gráfico 8.2 - Preço da arroba de charque exportado em réis ($)

6.000

5.000

4.000

3.000

2.000

1.000

Fonte: Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922, p.
246-247; Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande do Sul (1846-1860).

13
ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit., p. 86.
14
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit. Por conta disto, a taxa de importação já havia sido diminuída em 1854-55 de
25% para 11%. A medida também favorecia o charque argentino e em particular Justo Jose de Urquiza, antigo
aliado do Império na Guerra de 1851/52, cujo próprio saladero em Entre Rios vinha abatendo cerca de 40 mil reses
anualmente, enriquecendo o caudilho (BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 49; 91-93). Na mesma
época, a Bahia foi palco de uma semelhante crise por conta do excessivo preço da carne, que havia dobrado entre
1854 e 1858. (REIS, João José; AGUIAR, Márcia G. D. de. “Carne sem osso e farinha sem caroço”: o motim de
1858 contra a carestia na Bahia. Revista de História, São Paulo, n. 135, 2º sem., 1996, p. 133-160).
294
No final dos anos 1850, além de Buenos Aires e Montevideu, a província de Entre Rios
também juntou-se ao grupo das grandes produtoras de carnes do sul da América. 15 Contudo,
quanto maior o número dos concorrentes e do produto fabricado, no interior de um sistema
econômico cuja demanda era pouco elástica, mais baixos ficavam os preços do charque no
mercado atlântico. Nesta nova conjuntura, o Atlântico Sul se viu tomado por levas e mais levas
de charque que excediam em muito a demanda dos mercados consumidores. 16 A tabela 8.1
demonstra este aumento. Não demorou muito e os produtores platinos diagnosticaram o
problema como uma crise de superprodução.17 Tal fenômeno fez despencar os preços do
produto, como pode se notar no gráfico 8.2. Por conta disto, em 1861, o governo brasileiro
reabilitou as taxas de importação sobre o tasajo, mas o estrago já estava feito. A década foi
marcada por intensos debates e tentativas tecnico-científicas para elaborar melhores formas de
aproveitamento da carne bovina, da sua conservação e a busca de mercados alternativos ao
Brasil e Cuba. 18 O Uruguai pacificado contava com mais de 8 milhões de reses nos seus
campos. Era tanto gado que os saladeros e os consumidores não davam conta. Numa reunião de
setembro de 1862, o Clube Nacional do Uruguai, formado por estancieiros, saladeiristas e
comerciantes, manifestou-se com relação a esta questão buscando traçar estratégias de ação
coletiva. Para os seus líderes, a crise tinha “uma única origem” que era a do tasajo possuir
somente dois “mercados consumidores”. Argumentando que o seu produto possuía qualidade
reconhecida tanto no Brasil como em Cuba, os mesmos apostavam que era necessário mirar a
Europa, onde o Reino Unido seria o principal mercado, porque, “há alguns invernos, a
Inglaterra e suas dependências asiáticas têm começado a sentir um terrível carestia e falta de
gêneros alimentícios”.19

Dos países europeus, a Inglaterra constituía-se num dos maiores consumidores de carne
bovina, sendo abastecida, durante séculos, por rebanhos vindos de todas as partes do

15
Para uma localização da mesma, ver o Mapa 1 na introdução desta tese.
16
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 118-130.
17
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 118-130. Jornal O Constitucional. Rio de Janeiro,
07.09.1862 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
18
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Historia del capitalismo agrario pampeano. La expansión
ganadera hasta 1895. Buenos Aires: Universidad de Belgrano/Siglo XXI, 2003. Interessante notar que a amplitude
do comércio internacional ao longo século XIX vai tornando o mercado das carnes cada vez mais mundial ao
contrário dos séculos anteriores.
19
Os autores referiam-se à Índia, que no meado do século teve milhões de vidas ceifadas pela grande fome que
assolou Bengala. Eles sabiam que a reexportação inglesa do tasajo para a Ásia seria difícil, pois “obstão a isso de
um modo quiçá invencível as crenças religiosas daqueles povos”. Mas, de acordo com eles, como a Inglaterra
deveria prover com seus alimentos aqueles mercados em face daquela “calamidade” abrir-se-ia um espaço de
consumo na Ilha britânica. Por conta disto, era preciso ensaiar alguns envios de suas carnes para os portos
britânicos (Jornal O Constitucional. Rio de Janeiro, 07.09.1862 (BN-RJ)).
295
continente.20 Nesta época, o consumo anual per capita de carne bovina na Inglaterra era de 50
kg.21 Tratava-se de uma cifra inferior a dos habitantes do sul da América (em Buenos Aires era
de 100 Kg a 120 Kg, por exemplo), mas em termos europeus era suficiente para despertar o
interesse de grandes exportadores como Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia, que, a
partir de Londres, podiam estender sua oferta aos países vizinhos da Europa Ocidental. 22
Contudo, este não era o único motivo pelo qual a Inglaterra havia se tornado uma alternativa
aos produtores do cone sul americano. A presença de comerciantes ingleses nos três portos
marítimos da região, devido ao circuíto mercantil dos couros salgados e gorduras com a
indústria britânica, constituía-se num estímulo adicional. Além do mais, nesta mesma época, os
próprios ingleses incentivavam os charqueadores e os saladeros a aprimorar as técnicas de
fabricação e a qualidade das carnes para ampliar o seu mercado. 23

Tabela 8.1 - Gado bovino abatido nas charqueadas e saladeros


da América do Sul (1857-1862)

1857-58 1858-59 1859-60 1860-61 1861-62


Uruguai 168.100 243.300 272.000 293.000 505.000
Buenos Aires 324.800 531.300 360.000 290.000 279.000
Entre Rios (ARG) 53.500 144.300 265.000 237.000 204.000
Rio G. do Sul 190.000 280.000 360.000 360.000 362.000
Totais 736.400 1.198.900 1.257.000 1.180.000 1.350.000

Fonte: PINTOS, Anibal Barrios. Historia de la ganedería en el Uruguay (1574-1971). Montevidéu:


Biblioteca Nacional, 1973, p. 193.

Por conta disto, na década de 1860, várias tentativas de remessas de carnes foram
realizadas por charqueadores e saladeiristas, mas as mesmas fracassaram. A fabricação das
carnes em barris, que ressuscitava o fantasma irlandês dos tempos coloniais, também foi
retomada, mas não se obteve sucesso. A frustração para com os mercados do Atlântico norte foi
acentuada por três importantes fatores. Primeiramente, as barreiras protecionistas de alguns
países tornaram-se um grande empecilho. Os Estados Unidos, que importavam o charque
pelotense em pequenas quantias e o tasajo em proporções maiores, elevou as taxas de

20
Em 1869, por exemplo, a Holanda exportou 289 mil carneiros e 62 mil gados bovinos para a Inglaterra, seguido
da Alemanha, com 265 mil e 83 mil dos mesmos gados, e a Bélgica, com 140 mil e 13 mil (BARSKY, Osvaldo;
DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 372). Para uma análise mais completa ver PERREN, Richard. The meat
trade in Birtain (1840-1914). London: Routledge & Kegan Paul, 1978.
21
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 357.
22
PERREN, Richard. Taste, Trade and Technology: the development of the International Meat Industry since
1840. Aldershot: Ashgate, 2006.
23
BELL, Stephen. Innovación, desarollo y medio local. Dimenciones sociales y espaciales de la innovación.
Revista Scripta Nova. Barcelona. N. 69 (84), 2000.
296
importação do produto em 1867, decretando o declínio das vendas nos seus portos.24 Além
disso, outros países europeus, como Portugal, utilizavam uma política protecionista bastante
rígida com relação a sua indústria alimentícia. 25 Em segundo lugar, os portos britânicos haviam
se tornado palco de um grupo de comerciantes norte-americanos que abastecia o proletariado
inglês com uma carne de porco salgada e bastante gordurosa (o toucinho brasileiro).26 Estes
negociantes influíram de forma negativa para a entrada do tasajo no mercado inglês. 27

Mas o terceiro fator foi o mais importante de todos. Os britânicos recusavam-se a


consumir o tasajo ou o charque, pois duvidavam da qualidade dos mesmos e identificavam-no
como comida de escravos. Escrevendo da representação britânica em Buenos Aires em 1866,
Francis C. Ford, embora reconhecesse o valor nutritivo do tasajo, dizia-se decepcionado com a
sua aparência. Segundo Bell, numa observação carregada do racismo característico da época,
ele declarou: “Deve ser admitido que a carcaça humana prosperará neste alimento, como podem
testemunhar as figuras robustas dos machos e as formas arredondadas da porção feminina da
população coloured do Brasil”. Para o autor, este comentário demonstra que o problema de
abrir os mercados europeus para o charque não tinha relação somente com à aparência do
alimento, mas também, “pela sua associação com a escravidão”. Outro súdito britânico, o Sr.
Richard Seymour, “chegou a conclusão, na década de 1860, que as pessoas pretas que
trabalham nas plantações eram o único grupo capaz de comer o charque”.28

Por conta de tudo isto, em 1864, a Inglaterra tomou a decisão mais radical dos mercados
consumidores analisados, proibindo a importação de tasajo, pois duvidava da qualidade dos
mesmos.29 Os muitos anos de consumo de carnes de boa qualidade aumentaram a exigência do
gosto dos ingleses não apenas das classes mais abastadas da sociedade, como também, do seu
proletariado urbano. Conforme Barran e Nahum, os operários ingleses e os mineradores
espanhóis se recusavam a consumir o produto, evidenciando uma aversão dos trabalhadores
livres a algo que pudesse associá-los à escravidão.30 Em Cuba, nos anos 1840, a divisão do
consumo era evidente. Os contratos de fornecimento para os trabalhadores ferroviários

24
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 347-348. Em 1828, por exemplo, o Rio Grande do
Sul exportou quase 10 mil arrobas de charque para Boston, nos Estados Unidos, e em 1850 foram remetidas mais
de 2 mil arrobas para o mesmo país (Mapa estatístico comercial, Fundo Fazenda, m. 482 e 489, AHRS; Relatório
do Presidente da Província de 26.09.1855).
25
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
26
BELL, Stephen. Op. cit., 2000.
27
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
28
BELL, Stephen. Op. cit., 2000.
29
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 347-348.
30
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
297
estipulavam que se desse carne fresca ao brancos e charque aos negros. 31 No Brasil, o charque
era alimento básico na dieta dos escravos e das classes mais pobres, mas não encontrei nada
próximo de uma aversão ao consumo do produto por parte das camadas mais ricas. O mais
curioso disto tudo é que a alimentação do operariado europeu era bastante pobre e em termos de
quantidades calóricas e a dieta equilibrada era inferior a de qualquer escravo nas Américas,
sendo, inclusive, motivo de ironias de charqueadores e saladeiristas. 32

A aversão do operariado inglês possuía fortes fatores culturais absorvidos das elites
britânicas, pois as declarações das autoridades inglesas, algumas de caráter até mesmo racista,
deixavam claro a divisão social do consumo de carnes pela qual o mundo Atlântico estava
sendo dividido.33 Neste sentido, como o mercado europeu fechava as suas portas ao charque
sul-americano e os Estados Unidos, além de autossuficientes no abastecimento de carnes ainda
eram um forte concorrente no Atlântico Norte, saladeiristas e charqueadores foram impelidos a
disputarem um maior espaço nos seus próprios mercados tradicionais: Brasil e Cuba. Tendo em
vista que o charque platino era mais saboroso, tinha melhor aparência e conseguia ser vendido
mais barato em muitos mercados, e como os comerciantes de Buenos Aires e Montevideu
estavam inseridos em redes mercantis hispânicas e anglo-francesas mais amplas, este produto
foi eliminando lentamente o charque pelotense dos mercados concorrenciais. Conforme
Stephen Bell, ao longo da década de 1850, os produtores platinos “empurraram” os rio-
grandenses para fora do mercado cubano. 34 O comércio das carnes em Havana era controlado
por monopolistas cubanos35 e tendo em vista a tradicional ligação entre a região do Prata e a
ilha caribenha, era difícil para os brasileiros imporem-se naquele mercado.

Mas o pesadelo dos pelotenses estava apenas começando. Analisando os dados


compilados por Graça Filho, verifiquei que uma década depois o mesmo fenômeno descrito

31
FRAGINALS, Manuel Moreno. O Engenho. São Paulo: Unesp/Hucitec, v. II, 1989, p. 78-79. Sobre esta divisão
social e racial do consumo de carne em Cuba ver também (TORRE, Celia P. La alimentación en Cuba en el siglo
XVIII. Revista de Humanidades, ITESM, Monterrey, n. 19, 2005, 101-116).
32
BARRAN, Jose P.; NAHUM. Benjamin. Op. cit., p. 112-113. Conforme Stephen Bell, os políticos rio-
grandenses debateram bastante sobre a possibilidade das charqueadas lucrarem com os habitantes pobres das
grandes cidades da Europa. Havia muita especulação sobre as péssimas condições de vida dos trabalhadores das
suas fábricas. “Um dos deputados mais otimistas descreveu uma grande fábrica de velas e sabão em Pelotas que
fervia patas de gado para [extrair] seus óleos. Esta fábrica enlatou o resíduo ‘cujo odor nem o olfato do nobre
deputado, nem o meu poderiam tolerar’. Duas colheres desta geléia, com uma bolacha em uma tigela fizeram o
almoço de um trabalhador inglês”. De acordo com Bell, “tal era a fome na primeira nação industrial que até mesmo
este produto era usado como comida” (BELL, Stephen. Op. cit., 2000).
33
Por conta disto, os produtores argentinos empenharam-se cada vez mais para alcançar a exigência do paladar
britânico, atingindo este nível somente no final do século XIX, como tratarei adiante.
34
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching system, 1850-1928. Stanford: Stanford University
Press, 1998, p. 78.
35
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
298
acima aconteceu no Rio de Janeiro.36 De acordo com o Gráfico 8.3 percebe-se que, a partir dos
anos 1860, a praça carioca deixou de ser a principal compradora do charque rio-grandense e
muito embora permanecesse consumindo grande quantidade do produto, a representatividade
nos totais exportados pelo Rio Grande caiu bastante. Costuma-se vincular a produção do
charque aos cafezais do sudeste. Contudo, durante toda a década de 1860, o Rio comprou de
35% a 25% das exportações totais do produto, vindo a somar de 20% a 10% nas décadas
posteriores – índices muito baixos se comparados ao meado do século. Portanto, é interessante
perceber que o apogeu da produção e do comércio do charque aconteceu exatamente na década
de 1860 e teve como mercado impulsionador o nordeste agrário e não os cafezais do sudeste.

A análise da queda das vendas do charque pelotense para a praça do Rio não deve levar
a conclusões precipitadas a respeito de uma suposta mudança na dieta alimentar das camadas
mais pobres da cidade do Rio de Janeiro e dos escravos das plantations do sudeste.37 De acordo
com Graça Filho, o charque continuou sendo comprado em enorme quantidade e compunha
49,4% do valor dos comestíveis importados pelo Rio de Janeiro em 1863-64 e 64% em 1869-
70.38 Entretanto, seus maiores carregamentos não provinham mais do Rio Grande, mas sim da
região do Prata. O Gráfico 8.3 demonstra que nos anos 1860, os comerciantes cariocas
passaram a investir mais no tasajo vindo de Montevidéu e Buenos Aires para onde enviavam
remessas de açúcar, café e outros produtos. Portanto, a década de 1860 foi fatal para os
produtores pelotenses, pois eles foram alijados do seu mercado consumidor mais próximo.
Mesmo que a região sudeste não superasse a região nordeste no consumo de charque, o Rio de
Janeiro sempre foi o principal parceiro comercial do Rio Grande. A perda deste mercado para
os rivais argentinos e uruguaios não deve ter representado apenas um impacto econômico para
os pelotenses, mas também um impacto simbólico, pois a Corte era muito mais do que um
centro comprador de charque. O Gráfico 8.3 demonstra que por volta dos anos 1870 esta

36
“O movimento ascensional das exportações gaúchas de 1850 a 1868, só foi conturbado pela seca, praga de
carrapatos e o rigoroso inverno de 1857, bem como pela crise comercial de 1864. No ano de 1869, a produção se
restringe à metade, mantendo-se em torno desse patamar com ligeiras alternâncias até 1880. Na cidade do Rio de
Janeiro, os carregamentos vindos do sul reduziram-se progressivamente de 1859 a 1880, proporcionalmente ao
aumento das chegadas da carne-seca rio-platense. A queda na produção e o contrabando limitaram-na à
insignificante porcentagem de 5,6% e 6%, nos anos de 1878 e 1880” (GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 64-65).
37
Conforme Carlos Valencia, entre 1840 e 1860, a dupla charque/farinha de mandioca perfazia 60% dos gastos das
famílias pobres do Rio, em sua dieta alimentar (VALENCIA, Carlos Eduardo. Costos de los alimentos y renta de
los trabajadores libres en Río de Janeiro (Brasil) y Richmond (Virginia, EUA) en la primera mitad del siglo XIX.
In: Anales Simposio da CLADHE. México: Facultad de Economía, UNAM, 2011, p. 13).
38
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 45.
299
situação já havia se tornado irreversível. Somente uma nova grande guerra que afetasse a
economia platina poderia alterar aquele quadro, mas ela nunca veio. 39

A partir do mesmo Gráfico 8.3 começo a analisar a conjuntura do mercado das carnes no
último quartel do século XIX. É possível perceber que grande parte do charque exportado pelo
Rio Grande do Sul neste período foi remetido para outros mercados que não o Rio. Ora, estes
mercados eram a Bahia e Pernambuco que agora tornavam-se mais fundamentais ainda para a
economia charqueadora pelotense. Compilando dados estatísticos do período, Renato
Marcondes verificou que, entre os anos de 1869 e 1872, cerca de 80% do charque
comercializado pelo Rio Grande do Sul desembarcava nos portos de Recife e Salvador,
enquanto o Rio compunha somente cerca de 10% dos valores exportados.40 Na safra de 1874-
75, 83,7% do charque exportado teve como destino Bahia (44,5%) e Pernambuco (39,2%).41

Este processo de deslocamento dos mercados também pode ser compreendido por outros
fatores de ordem não econômica. A Guerra dos 10 anos em Cuba (1868-1878) fez diminuir as
importações de tasajo em Havana de 17 mil toneladas para 11 mil, prejudicando muito os
saladeiristas. 42 Com os obstáculos oferecidos por aquele mercado, os comerciantes platinos
foram obrigados a desviar as suas remessas para o Rio, onde se pagava bem pelo produto. E
aqui cabe uma outra interpretação para tornar todo o fenômeno descrito anteriormente ainda
mais complexo. Entre os anos 1860 e 1880, o charque rio-grandense sempre apresentou um
preço inferior ao tasajo no mercado carioca. É possível que os pelotenses e comerciantes de Rio
Grande não tenham sido apenas empurrados para fora do mercado carioca contra a sua vontade,
mas sim, que tivessem decidido buscar preços melhores para o charque no mercado nordestino.
Dados de 1870 mostram que, em Salvador, seu preço era levemente superior ao do tasajo –
situação que deve ter se acentuado após a epidemia de febre amarela no rio da Prata (1871-72)

39
No capítulo anterior argumentei que a intervenção militar no Uruguai, em 1864, e todas as suas implicações
trouxeram grandes benefícios aos charqueadores de Pelotas. Contudo, também colaborou para isso a epidemia de
cólera morbus (1867/68) que exigiu o fechamento de parte dos saladeros argentinos (BARSKY, Osvaldo;
DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 345).
40
Nesta época, os rio-grandenses foram os maiores compradores de aguardente e açúcar vindos do nordeste. Os
preços pagos pelo açúcar, aguardente e algodão no Rio Grande eram os mais altos do Brasil. Em contrapartida, a
província onde se pagava mais caro pelo charque era São Paulo: 301 réis/kg contra 274 réis/kg na média nacional.
Os preços médios nacionais do açúcar, da aguardente e do algodão em réis eram 321/kg, 226/litro, 699/kg. No Rio
Grande, se pagava respectivamente 642/kg, 300/litro, 1.314/kg. Nota-se que com exceção da aguardente, os outros
dois produtos se pagava quase o dobro, o que devia ser rentável para os comerciantes do nordeste (MARCONDES,
Renato. Op. cit.).
41
Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 06.12.1875 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). Além disso, Salvador, por
exemplo, abastecia Aracajú e Maceió, além do litoral baiano (Ilhéus e Caravelas) e dos sertões, onde o produto era
levado pelos tropeiros e caixeiros viajantes (CHAVES, Cleide. De um porto ao outro: a Bahia e o Prata
(1850-1889). Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBA, 2001, p. 62-66).
42
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 254.
300
que obrigou a praça de Salvador a proibir a importação do tasajo.43 Para os rio-grandenses
tratava-se de uma manobra arriscada (e que já havia sido realizada com sucesso nos anos 1790,
como descrevi no primeiro capítulo), pois deslocava grande parte do comércio do charque para
praticamente um único mercado consumidor. Neste contexto, os fretes para Pernambuco
podiam chegar a custar quase o dobro do valor cobrado pelas cargas remetidas até o Rio. Como
demonstrarei no capítulo seguinte, esta nova fase favoreceu o enriquecimento de muitos
charqueadores pelotenses, mas também trouxe a ruína de outros tantos.44

Gráfico 8.3 – Charque platino e rio-grandense comprados pelo Rio de Janeiro e os totais
exportados pelo Rio Grande do Sul (1850-1886) – (em toneladas)

50.000.000
45.000.000
40.000.000
35.000.000
30.000.000
25.000.000
20.000.000
15.000.000
10.000.000
5.000.000
0

Total de toneladas de charque exportadas pelo RS


Charque rio-grandense comprado pelo RJ
Charque platino comprado pelo RJ

Fonte: Anuário Estatístico do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro (1876-1892) – BN-RJ; GRAÇA
FILHO, Afonso. Op. cit., p. 238; Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande do Sul (1848-
1862); Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922.

Além disso, pelo Gráfico 8.3 também é possível perceber que, a partir dos finais dos
anos 1860, as exportações de charque uruguaio e argentino exclusivas para o Rio (sem contar as
remessas que os mesmos faziam para o nordeste brasileiro e para Cuba, por exemplo) já eram
capazes de superar os totais exportados pelo Rio Grande do Sul, demonstrando a força da
indústria saladeril platina e confirmando as queixas de Andrés Lamas de que os pelotenses
sozinhos não tinham condições de abastecer o mercado brasileiro. É bem verdade que se
tratavam de três complexos fabris (agora Entre Rios juntava-se ao grupo platino) competindo

43
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 345; CHAVES, Cleide. Op. cit., p. 57-64.
44
Chaves diz que após 1888, o comércio de charque platino perdeu mercado para as carnes do sertão que
chegavam mais baratas por conta do desenvolvimento das estradas de ferro e rodagem no interior baiano. Estas
carnes vinham de Feira de Santana, Jacobina e alto São Francisco (CHAVES, Cleide. Op. cit., p. 88-90).
301
contra apenas um (além disso, argentinos e uruguaios disputavam o mercado brasileiro entre si,
unindo-se, às vezes, para exigir a diminuição das tarifas alfandegárias brasileiras). Mas no
último quartel do oitocentos, por exemplo, a Argentina sozinha já fabricava mais tasajo que o
Rio Grande do Sul. Analisando os indicadores compilados por Barsky e Djenderedjian percebe-
se que nos anos 1850 as exportações de tasajo pelo porto de Buenos Aires atingiram uma média
anual de 20 mil toneladas. Na década de 1860, quando as remessas oscilaram muito, atingiu-se
uma média aproximada de 25 mil toneladas. Nos anos 1870, ela foi de 35 mil toneladas, nos
anos 1880, onde também encontrara altos e baixos, o tasajo obteve uma média anual próxima
das 30 mil toneladas, e nos anos 1890, quando pela primeira vez ultrapassou 50 mil toneladas, a
média manteve-se acima das 40 mil toneladas, o dobro do que Rio Grande exportava.45

Como já foi dito, entre 1867 e 1878, Cuba recebeu algo entre 11 e 17 mil toneladas de
46
tasajo. A falta de pesquisas tratando do comércio de charque para o nordeste brasileiro
inviabiliza o conhecimento do total de tasajo importado pela região. Mas conforme Cleide
Chaves as quantias de carne platina descarregadas em Salvador eram bastante significativas,
uma vez que o charque pelotense não era capaz de suprir a demanda total da Bahia que revendia
as carnes para Alagoas e Sergipe.47 Tendo em vista que Montevidéu exportou anualmente, em
média, algo entre 30 e 40 mil ao longo dos anos 1870 e 188048 (média superior ao Rio Grande
do Sul nos anos 1860), pode-se considerar que o volume global de charque e tasajo negociado
nos principais portos consumidores do Atlântico (entre os anos 1860 e 1880) deve ter se
mantido na casa das 80 e 85 mil toneladas, ultrapassando as 100 mil em alguns anos.49

Sem dúvida era muito charque, mas ele estava longe de suprir a demanda mundial por
carnes, uma vez que o produto não era bem aceito pelos consumidores da maioria das cidades
europeias. Aceitando as opiniões inglesas como se fossem quase uma doutrina, articulistas
argentinos passaram a condenar a fabricação do tasajo pela forma como era preparado e a sua
45
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 340-341. Nos anos 1850 (com média anual de 22 mil
toneladas) e 1860 (com 30 mil) o Rio Grande do Sul manteve-se na frente dos argentinos. Mas nos anos 1870 (com
26 mil) e 1880 (com 21 mil) foi ultrapassado. Nestas últimas décadas, os argentinos exibiam um vigor econômico
impressionante, pois, como demonstrarei adiante, já exportavam outros tipos de carnes para o exterior, enquanto
Pelotas dependia cada vez mais do charque remetido exclusivamente para o nordeste brasileiro. Sobre o dinamismo
da economia argentina na passagem do século XIX para o XX, assim como os investimentos ingleses no país, ver
LENZ, Maria Heloisa. Crescimento econômico e crise na Argentina de 1870 a 1930: a Belle Époque. Porto
Alegre: UFRGS/FEE, 2004.
46
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 254.
47
CHAVES, Cleide. Op. cit.
48
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 641.
49
Na realidade, o volume negociado foi muito maior, pois não se está computando a carne seca e salgada
produzida por Estados Unidos, Venezuela e México, por exemplo. Na década de 1880, os Estado Unidos haviam
capturado o mercado cubano dos platinos, obrigando-os a deslocar mais ainda as suas vendas para o Brasil, o que
também ajuda a explicar a decadência final das charqueadas escravistas em Pelotas (MILLOT, Bertino M. Historia
Económica del Uruguay (1860 – 1910). Montevideo, Tomo II, 1996, p. 152-153).
302
qualidade final. Já na década de 1850, Martin de Moussy dizia que o tasajo só havia prosperado
graças “a classe desgraçada” que o consumia e que problemas de capital, mão de obra e da
qualidade do gado eram os grandes empecilhos para o crescimento da indústria argentina. Em
1867, sob influência da recente abolição da escravidão nos Estados Unidos, um articulista
escreveu: “la tendencia de época y para lo que com sobrada justicia se trabaja en el mundo
civilizado, es abolir la esclavatura; esse día no lejano, el tasajo no valdrá nada pues faltaran
bocas desgraciadas a quien imponerlo como alimento”.50 Por conta disto, o processo de
abolição da escravidão em toda a América passou a ser visto por muitos saladeiristas como algo
ameaçador. Sendo o tasajo dependente dos mercados escravistas, em que situação ficariam
aqueles que os fabricavam diante de um mundo onde a liberdade individual vinha tomando
força? Como poderiam empresários de visão tão “empreendedora” e ciosos de tais posições
depender da escravização de homens para manter os seus negócios? Conforme Barsky e
Djenderedjian, os saladeiristas temiam esta vinculação do tasajo com a escravidão, pois os
libertos, em melhores condições de vida, poderiam rejeitar o produto.

Hoje sabe-se que isto não aconteceu. O charque continuou a ser fabricado em larga
escala e até aumentou a sua produção ao longo das primeiras décadas do século XX. E isto
porque a vinculação do produto com a escravidão havia se tornado o efeito aparente de um
problema muito mais profundo. Como notaram Barran e Nahum, a divisão social do consumo
alimentar na segunda metade do oitocentos não era de ordem jurídica, mas sim, de ordem
social. Homens cativos e homens livres pobres em geral (brancos ou negros) compartilhavam
de uma infra-alimentação tão grande que a abolição do escravismo não representou ruptura
nenhuma no que diz respeito a este aspecto. O charque, enquanto fonte importante de protéinas,
ajudava a combater aquele problema. Isto não significa dizer que a indústria saladeril e
charqueadora não dependia do consumo dos escravos. O primeiro capítulo desta tese foi todo
dedicado a comprovar esta dependência e de como o tráfico atlântico foi fundamental no
processo de montagem dos complexos fabris no cone sul americano. Mas se a escravidão
africana criou as condições de arranque para o surgimento destas fábricas, o processo de
abolição nos Estados Unidos, em Cuba e no Brasil não foi capaz de eliminar o consumo do
produto. O hábito de alimentar-se com carne-seca, charque ou tasajo foi absorvido por distintas
culturas em várias regiões. Conforme o historiador cubano Manuel Fraginals “o charque com

50
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 347.
303
batata-doce tornou-se o ‘prato nacional’” em seu país.51 Para Barran e Nahum foi a expansão
dos frigorícos e a democratização das geladeiras, um processo lento e que estendeu-se por todo
o século XX, que eliminou o charque da mesa das populações menos abastadas.52

Contudo, o pesadelo de que a abolição geral da escravidão negra pudesse provocar o fim
da indústria saladeril argentina serviu para estimular novas saídas e investimentos de capital no
setor. Era preciso aproveitar a grande abundância de gado vacum em seus campos. Entre 1862 e
1866, por exemplo, se abateu 8,3 milhões de bovinos, mas os saladeros e o consumo interno
absorveram somente 40% de toda carne, ou seja, era tanto animal vacum disponível que se
voltou a abatê-los somente para extrair os couros, desfazendo-se das carnes. Era necessário
encontrar uma saída econômica para a superprodução de carne, uma vez que ela estava
baixando o preço dos rebanhos e arruinando os estancieiros argentinos e uruguaios. Portanto,
passou-se a duvidar do tasajo como o tipo de alimento a ser exportado. Em 1868 e 1872,
autoridades administrativas ofereceram prêmios para quem descobrisse um novo sistema de
conservação das carnes. Nos anos 1860, o sistema de extrato de carne, transformado por meio
de um processo químico e vendido em enlatados, foi tentado tanto no Rio Grande quanto no
Prata.53 Sempre atentos aos mercados atlânticos e às inovações tecnológicas do período, alguns
empresários, como o Barão de Mauá, também buscaram participar deste processo.54

Contudo, foi somente a partir dos anos 1870 que verdadeiras soluções foram alcançadas,
com destaque para os produtores platinos. Nesta época, as remessas de gado em pé se tornaram
um negócio viável e os avanços científicos possibilitaram a introdução de raças bovinas que
forneciam mais carne.55 Na Argentina, em 1885, o gado crioulo não atingia 60 kg de tasajo por
animal, enquanto em 1899, as novas raças já possibilitavam extrair quase 100 kg do produto por
rês abatida. Além do mais, as novas raças cresciam mais rápido que as crioulas. Contudo, o
principal destino deste gado não era os saladeros, mas sim o mercado europeu e o

51
FRAGINALS, Manuel. Op. cit., p. 78. Analisando a Literatura ficcional cubana, Sluyter verificou que o tasajo
persiste como um elemento fundamental daquela cultura, bem como um traço de sua memória social (SLUYTER,
Andrew. The Hispanic Atlantic’s Tasajo Trail. Latin American Research Review, v. 45, n. 1, 2010, p.103).
52
BARRAN, Jose P.; NAHUN, Benjamin. Op. cit.
53
Os deputados rio-grandenses debateram tais questões intensamente na Assembléia Provincial. Ver, por exemplo,
as sessões de 02.10.1862, 04.11.1862 e 21.04.1863, na qual se discutiram o oferecimento de prêmios para quem
descobrisse novos métodos de conservação, os problemas dos mercados consumidores e a tentativa em retomar a
fabricação das carnes em barris (PICCOLO, Helga. Coletânea de Discursos parlamentares da Assembléia
Legislativa Provincial. Porto Alegre: ALRS, v. 1, 1998).
54
Segundo Caldeira, Mauá publicou anúncios em jornais europeus prometendo prêmios em dinheiro a quem
inventasse um método de conservação para evitar a deterioração das carnes (CALDEIRA, Jorge. Mauá:
Empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 18).
55
Em 1869, a Argentina isentou de impostos a exportação de gado em pé, o que durou até 1888, tamanha era a
abundância de rebanhos (BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit. p. 342).
304
abastecimento de Buenos Aires.56 Apesar das primeiras experiências com navios capazes de
carregar carnes congeladas terem sido realizadas nos anos 1870, foi somente nas décadas
posteriores que a remessas atingiram quantidades significativas, sendo, primeiramente, as
carnes de ovelha (década de 1880) e depois as carnes bovinas (década de 1890).57

Com o aumento do número de habitantes e a melhor condição de vida dos trabalhadores


britânicos, a grande demanda por carne garantia a entrada de mais investidores no ramo. 58
Contudo, nos anos 1880, a entrada dos Estados Unidos naquela mercado diminuiu as chances
dos demais concorrentes. O norte-americanos, que haviam instalado um complexo sistema de
transportes de carnes refrigeradas por meio dos vagões de trens no interior do seu país,
implantaram tal método nos navios, conquistando de vez o exigente paladar britânico. A carne
refrigerada era mais apetitosa que a carne congelada. Dos anos 1890 até a década de 1910, eles
dominaram estes negócios relegando aos fabricantes platinos o papel de fornecedores das
carnes de segunda linha, destinadas às classes mais pobres.59 Foi durante esta época que
Chicago tornou-se o grande centro de abatedouros da América do Norte, matando quase 2
milhões de reses anualmente e atraindo trabalhadores de todos os lugares. Entre 1850 e 1900
sua população saltou de 5 mil habitantes para 1,7 milhões. 60 Na virada do século, três das suas
grandes companhias controlavam o comércio de carne refrigerada para a Europa: a Armour &
Co., a Swift & Co. e a Morris & Co.61 Contra estes barões da carne não havia a mínima
possibilidade de competir…

56
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 344-364.
57
Em 1899, o valor das exportações de gado em pé ainda era 3,2 vezes maior do que a de carne congelada. Mas
este transporte estava se tornando muito caro. Um bovino transportado por 25 a 30 dias perdia cerca de 150 kg na
travessia. Além disso, era muito custoso transportá-los vivos. Cada animal enviado em pé para a Europa
representava uma carga de 2 toneladas, somando o seu peso com o que ele deveria comer em um mês. Cerca de 1/3
do rebanho morria na viagem. Apesar de tudo, o negócio era muito rentável, pois enquanto um animal custava uma
onça de ouro para ser carregado, ele era vendido por 6 ou 8 onças de ouro na Europa (BARSKY, Osvaldo;
DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 374-75).
58
Sobre as melhorias nas condições de vida dos trabalhadores ver HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital (1848-
1875). São Paulo: Paz e Terra, 2000. Conforme Perren, o consumo de carne per capita na Inglaterra aumentou em
50% entre as décadas de 1840 e 1890 (PERREN, Richard. Op. cit., 1978, p. 3).
59
Um dos motivos pelo qual os norte-americanos dominaram o mercado de carnes refrigeradas foi a maior
proximidade com a Europa, pois, pela tecnologia da época, ainda não era possível levar as cargas refrigeradas do
Rio da Prata até a Inglaterra. Somente o congelamento proporcionava tais viagens. Foi preciso esperar mais 20
anos para que as técnicas de refrigeração fossem aproveitadas pelos produtores platinos.
60
ZUCCONI, Guido. A cidade do século XIX. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 17.
61
PERREN, Richard. The north american beef and cattle trade with Great Britain (1870-1914). The Economic
History Review, New series, v. 24, n. 3, 1971, p. 435-441.
305
8.2 PELAS “MARGENS” DO CAPITALISMO: OS MERCADOS ATLÂNTICOS DOS
COUROS E DO SAL

Apesar das considerações a respeito dos mercados do charque e do tasajo, é necessário


fazer uma importante ressalva. Se para o Rio Grande do Sul o charque foi responsável por algo
entre 30% e 40% das suas exportações entre os anos de 1860 e 1870, nos países do Rio da Prata
ele não ultrapassou nem os 10% dos valores negociados para o exterior. Na primeira metade do
século XIX, por exemplo, os couros vacuns sempre lideraram as exportações no porto de
Buenos Aires. Em 1822, 1842 e 1851, eles perfizeram 64,9%, 63,7% e 61,2% dos valores
negociados, sendo os seguintes lugares ocupados, respectivamente, pelo tasajo (9,6%), pelas lãs
(11%) e pelo sebo (11,8%). De acordo com Rosal e Schmit, somando os portos de Buenos
Aires e Montevidéu, o Rio da Prata exportou 800 mil couros nas vésperas da Revolução de
1810, atingiu mais de 1 milhão nas décadas de 1820 e 1830, para ultrapassar os 2 milhões no
meado do século, ou seja, cerca de 3 vezes mais que o Rio Grande do Sul exportou neste último
período.62 Outra mercadoria que colocava os platinos em vantagem era a lã. Na segunda metade
do século, este produto alcançou os couros em importância e, mesmo que o volume de tasajo
negociado tenha aumentado, o seu percentual entre os valores exportados pelo porto de Buenos
Aires diminuiu mais ainda, mantendo uma média entre 3% e 6% – realidade muito distinta do
Rio Grande do Sul, cuja economia era muito mais dependente das exportações de charque.63

Portanto, as exportações dos couros (e das lãs, no caso dos países platinos) foram
fundamentais para o desenvolvimento de ambos os espaços econômicos. No processo de
industrialização na qual Inglaterra, França, Estados Unidos e algumas nações europeias tiveram
papel proeminente ao longo do oitocentos, a demanda por peles de animais em geral foi uma
constante e o cone sul americano integrou-se ao mercado internacional como fornecedor destes
produtos. Esta estrutura econômica foi um fator fundamental para a compreensão das
capacidades e das limitações das economias platinas e pelotense no período. A pecuária
argentina e uruguaia era muito mais dinâmica e ligava-se a distintos mercados se comparada à

62
ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit., 1999, p. 78-91. Como foi visto no primeiro capítulo, os couros
foram responsáveis por conectar o Rio Grande do Sul, por meio do porto do Rio de Janeiro, ao comércio
internacional. Os dados de exportação do produto são escassos, mas pode-se dizer que nos anos 1810, o Rio
Grande produzia a metade do Rio da Prata.
63
ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit., p. 89-91; BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit.,
p. 344. Na segunda metade do século a indústria platina manteve altos índices de exportações, acrescendo as
vultosas remessas de lã no mercado internacional, algo que o Rio Grande do Sul não conseguiu realizar com
sucesso semelhante (SABATO, Hilda. Capitalismo y ganadería en Buenos Aires: la fiebre del lanar (1850-1890).
Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1989). As charqueadas pelotenses não abatiam ovinos e a lã nunca chegou
a 4% dos valores exportados na segunda metade do século XIX.
306
rio-grandense que, além de depender de um único mercado consumidor de charque nos anos
1870, possuía um rol inferior de produtos negociáveis.

Neste sentido, os couros cumpriam um papel fundamental nas exportações rio-


grandenses, pois o seu mercado parecia apresentar uma demanda mais elástica. No entanto,
como tratava-se de um artigo voltado principalmente para o exterior, o mesmo estava mais
vulnerável às crises que porventura afetassem as indústrias das regiões consumidoras. A partir
do Gráfico 8.4 é possível acompanhar os seus ritmos de exportação comparados aos do charque.
As curvas demonstram que em momentos de queda das exportações do charque os couros
podiam garantir um maior ganho na economia provincial. 64 Pode-se observar que de 1849 até
1858, as exportações despencaram, apesar do pequeno salto de 1855. Trata-se de um período
em que os preços do couro também estiveram em baixa (Gráfico 8.5), assim como os do
charque. Foi uma época de grande dificuldade para os charqueadores pelotenses e que também
deve ter afetado os criadores de gado. Contrariando a década de 1850, a posterior foi de nítida
retomada das exportações do produto, apresentando um estacionar na década de 1870 e uma
explosão das vendas na década de 1880. Como os mercados consumidores de charque e couros
não eram os mesmos, o charqueador podia compensar as perdas de um ramo acessando o outro.

Gráfico 8.4 – Unidades de couro e arrobas de charque exportadas pelo


Rio Grande do Sul (1845-1889)

3.500.000

3.000.000

2.500.000

2.000.000

1.500.000

1.000.000

500.000

0
1853

1865

1879
1845
1847
1849
1851

1855
1857
1859
1861
1863

1867
1869
1871
1873
1875
1877

1881
1883
1885
1887
1889

Couros (em unidades) Charque (em arrobas)

Fonte: Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande do Sul (1848-1862);


Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922.

64
As curvas dos totais de couros exportados não são totalmente equivalentes às do charque porque nem todo o
couro era proveniente de animais abatidos nas charqueadas. O gado destinado ao consumo local também tinha seu
couro vendido para fora da província, por exemplo.
307
Com relação aos destinos das exportações dos couros, não existem dados muitos
completos nem no Rio Grande do Sul, e, de acordo com Rosal e Schmit, nem para as remessas
platinas. Conforme os autores argentinos, os maiores compradores foram, em ordem de
importância, Inglaterra, Estados Unidos, com França e Espanha disputando o terceiro lugar. O
maior vínculo mercantil com o Reino Unido, predominante em quase todo o período, também
se devia pelo fato dos britânicos serem os grandes parceiros comerciais de Buenos Aires.
Contudo, esta posição foi ameaçada somente no meado do oitocentos, quando os Estados
Unidos atingiram um grande nível de industrialização e a lã começou a se tornar o grande
produto na pauta das exportações argentinas. No período entre 1849 e 1854, os Estados Unidos
ultrapassaram a Inglaterra pela primeira vez. Na década de 1850, os americanos foram os
maiores compradores de lã, seguidos de Inglaterra e França.65

Gráfico 8.5 – Preços de couro no porto de Rio Grande (1845-1890) (mil réis/unidade)

10
9
8
7
6
5
4
3
2
1
0
1847

1861

1877
1845

1849
1851
1853
1855
1857
1859

1863
1865
1867
1869
1871
1873
1875

1879
1881
1883
1885
1887
1889

Fonte: Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande do Sul (1848-1862);


Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922.

No Rio Grande do Sul, os destinos das exportações de couro foram praticamente os


mesmos. Utilizando as pesquisas de Daniel Torres e Josiane Silveira, foi possível verificar estes
indicadores nas décadas de 1840 e 1850. 66 Conforme os dados coletados por Torres, para o ano
de 1847, os couros secos e salgados tinham como principais mercados os Estados Unidos, a

65
ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit., 1999, p. 89-95.
66
TORRES, Daniel de Quadro. Rio Grande – Pelotas: produção, comércio, redes mercantis e interesses
econômicos em meados do século XIX. Monografia de conclusão do Curso de História. FURG, 2004; SILVEIRA,
Josiane Alves da. Rio Grande: portas abertas para as importações de sal no século XIX. Monografia de
conclusão do curso de História da FURG. Rio Grande, 2006.
308
Inglaterra, as cidades hanseáticas, a França e Portugal, além de outros com menor importância.
Estes produtos, assim como as canelas e os chifres, eram processados nas indústrias
estrangeiras, com destaque para as têxteis. Mas examinando mais detalhadamente estes dados
observam-se duas rotas distintas dependendo do couro que se negociava. A Inglaterra
importava 77% dos couros salgados, mas somente 3% dos couros secos, ocupando a quinta
posição neste produto. Já os norte-americanos eram o quarto maior importador de couro
salgado, reunindo 3% das importações, mas eram os líderes no comércio de couros secos, com
58%.67 Esta diferença, apesar de não ter sido analisada por Rosal e Schmit, também se
verificava nas exportações platinas. Conforme Nahum e Barran, os ingleses preferiam os couros
salgados, algo que envolvia as preferências das respectivas indústrias compradoras, o tipo de
uso do couro e do produto que se fabricava.68

Analisando os totais de carregamentos e seus destinos para o ano de 1854, é possível


matizar melhor estes circuitos. Dos 209 carregamentos contendo couros secos, 28% foram
remetidos para portos brasileiros, com destaque para Pernambuco que teve como porto destino
86% dos totais nacionais. Entre os portos internacionais, mantém-se a tendência de 1847, ou
seja, os Estados Unidos eram os maiores receptores do couro seco, compondo 89 carregamentos
ou 60% das exportações para o estrangeiro. Neste circuito, mereceram destaque New York
(com 43 carregamentos), seguida de longe por Salem, Baltimore, Filadélfia, New Orleans,
Richmond e Boston. Analisando o comércio dos couros salgados percebe-se que a mesma
tendência de 1847 também permanece em 1854, ou seja, a liderança inglesa. Dos 130
carregamentos de couros salgados somente 1 foi para um porto brasileiro, ao contrário dos
couros secos. Os portos ingleses receberam 60% dos carregamentos totais, com destaque para
Cork e Falmouth que concentraram 92% dos destinos ingleses, seguido por Liverpool,
Plymouth e Quenstown.69

Os fabricantes que se utilizavam do couro, assim como as suas indústrias, possuíam


caraterísticas bastante variadas, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos. Além dos
comerciantes importadores e dos atravessadores, havia uma série de outros produtores que
beneficiavam o couro de forma mais ou menos artesanal e sem uma mecanização plena. Eles se
distribuíam pelos seus respectivos países em pequenas oficinas de curtumes e fábricas

67
TORRES, Daniel. Op. cit., p. 50-52. Com relação aos chifres, para a fabricação de objetos e de pentes diversos,
inclusive dos usados nos teares, a Inglaterra importava 645.703 unidades, ou 58% do total, secundada pelos
Estados Unidos com 19%.
68
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
69
A lista dos demais portos, apesar de receber poucos carregamentos, é ampla e contém: Malta, Marselha, Porto,
Bremem, Cádiz, Filadélfia, Gotemburgo, Málaga, Bergen, Hamburgo, Constantinopla, entre outros.
309
especializadas em determinados tipos de produtos. Na Inglaterra, por exemplo, os fabricantes
de Yorkshire eram especializados em elaborar um couro pesado que servia para as correias das
máquinas das grandes fábricas. Estes proprietários devolviam para o mercado uma série de
produtos como sapatos, bolsas, luvas, selas, além de outros, de diferentes tipos e tamanhos. Na
Inglaterra, os principais polos destas fábricas e oficinas eram as cidades de Leeds, Liverpool e
Londres. Conforme Church, no meado do oitocentos, o deslocamento de muitos fabricantes
londrinos e de outras cidades para os arredores de Liverpool (atraídos pelos benefícios daquele
porto) favoreceu um maior crescimento deste ramo de atividades, aumentando a demanda por
peles. Nesta época os couros sul-americanos foram amplamente importados, sendo que, entre
1870-74 e 1890-94, o volume das entradas nos portos ingleses aumentou quase 5 vezes. 70 Tal
incremento de atividades fez surgirem notáveis cidades industriais como Walsall – a 8 km de
Birmingham – especializada na produção de selas.71

Assim como na Inglaterra, os circuitos mercantis dos couros nos Estados Unidos eram
controlados por poderosos grupos de negociantes estabelecidos nos portos norte-americanos
que revendiam os mesmos aos curtidores e fabricantes espalhados pelo país. Entretanto, os
principais polos fabris encontravam-se no litoral atlântico. As cidades de Massachusetts, por
exemplo, reuniam a maior parte das fábricas de sapatos do país, juntamente com New York,
New Jersey, Lynn, entre outras.72 Conforme Ellsworth, os sapatos e botas consumiam ¾ do
couro norte-americano.73 Nos anos 1860, a indústria calçadista chegava a outras cidades do
interior como Rochester, Cincinnati, Detroit, Chicago, St. Louis e Milwaukee, por exemplo.74
Com o crescimento populacional e a expansão das estradas de ferro, os sapatos e demais
produtos de couro fabricados pelas cidades da costa leste foram acompanhando a nova demanda
e abastecendo os consumidores do meio-oeste. Tal fenômeno provocou a lenta substituição dos
pequenos fabricantes, artesãos e sapateiros do interior do país e as pequenas oficinas de
curtumes do litoral por indústrias cada vez maiores, cujo maquinário, tecnologia e número de
trabalhadores eram maiores.75 Portanto, a elasticidade do mercado consumidor dos couros tinha
relação direta com o grande aumento populacional e a crescente urbanização das grandes

70
CHURCH, R. A. The British Leather Industry and Foreign Competition (1870-1914). The Economic History
Review, New Series, v. 24, n. 4, 1971, p. 543-570.
71
GLASSON, Michael. Walsall Leather Industry: the world’s saddlers. Oxford: Marston Book, 2013.
72
MULLIGAN JR., William. Mechanization and work in the american shoe industry: Lynn, Massachusetts, 1852-
1883. The Journal of Economic History, v. 41, n. 1, Mar. 1981, p. 59-63.
73
ELLSWORTH, Lucius F. Craft to national industry in the nineteenth century: a case study of the transformation
of the New York State tanning industry. The Journal of Economic History, v. 32, n. 1, Mar. 1972, p. 399-402.
74
ROOVER JR., E. M. The location of the shoe industry in the United States. The Quarterly Journal of
Economics, v. 47, n. 2 (Feb. 1933), p. 254-276.
75
MULLIGAN JR., William. Op. cit.; ELLSWORTH, Lucius. Op. cit.
310
cidades norte-americanas, francesas e inglesas e tornou-se um dos grandes trunfos das
charqueadas e saladeros platinos para resistir às crises que afetavam o consumo do charque.

Mas os couros exportados pelo Rio da Prata para a Europa também possuíam uma
importante parceira capaz de abrir muitos mercados no Velho Mundo. Como já foi dito, a lã
também foi um grande trunfo das economias platinas no período. Apesar da criação de ovelhas
nos campos da região ser antiga, foi somente com a importação de carneiros merinos (processo
conhecido como a merinização) que iniciou-se a expansão da produção lanígera. Além disso, a
alta dos preços da lã atraiu muitos investidores estrangeiros. A lã argentina e uruguaia
preenchia perfeitamente a demanda por fios na fase de aceleração industrial no Atlântico norte
e, aos poucos, passou a disputar o mercado inglês com as peles negociadas no interior da
Europa. Neste contexto, a Guerra da Criméia (1853-1856) e a Guerra Civil Americana (1861-
1865) constituíram-se em importantes impulsionadores da expansão lanígera no Prata. A
primeira provocou a escassez de peles, pois Rússia e Turquia, envolvidas no conflito, eram as
maiores produtoras mundiais de lãs. A segunda diminuiu as remessas de algodão para os portos
britânicos, estimulando o uso das lãs nas fábricas. A febre del lanar, como ficou conhecida,
trouxe muitos investimentos de capitais para a região platina, estimulou a vinda de estrangeiros,
mostrou que a mistura de raças era benéfica para o desenvolvimento da pecuária e incorporou a
fabricação do charque de carne ovina, trazendo grandes lucros aos saladeros. 76 Por conta disto a
criação de ovinos, que na década de 1830 era realizada em pequenas propriedades e com uso do
trabalho familiar, passou a despertar o interesse de grandes estancieiros. Ela foi um dos
motivadores do avanço sobre as terras indígenas no Pampa (1867-1890) que incorporou 40
milhões de hectares de campos para a criação de gado bovino e ovino. Como resultado disto, o
rebanho de ovelhas quadruplicou entre 1856 e 1876, chegando a 60 milhões de animais. Em
1895, o seu estoque já atingia quase 75 milhões. 77

Antes de concluir esta parte, é necessário fazer algumas considerações breves sobre o
comércio de sal. Não foi possível localizar séries de preços e quantidades de sal importadas
pelo Rio Grande do Sul na segunda metade do século XIX. Mas ao analisar os carregamentos
desta mercadoria para a província, Silveira ajudou a preencher parte destas lacunas para a
primeira metade do século. Observando os indicadores pesquisados pela autora, verifica-se que
os meses de janeiro e fevereiro eram os que recebiam os maiores números de carregamentos de

76
SABATO, Hilda. Op. cit. Para os dados referentes ao grande salto das exportações de lã ver REBER, Vera.
British Mercantile Houses in Buenos Aires (1810-1880). Cambridge, Massachusetts and London: Harvard
University Press, 1979, p. 26.
77
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 304-321; 355.
311
sal, ou seja, exatamente na época da safra nas charqueadas. No período mencionado, o sal era o
artigo mais importado pela província, superando de longe o açúcar e a farinha, por exemplo.
Em contrapartida, os meses de agosto e setembro eram os de menor entrada do produto no Rio
Grande do Sul. De acordo com Silveira, o sal também era o único artigo em que eram remetidas
embarcações carregadas exclusivamente com o produto.78

Os dados publicados nos periódicos da época não apresentam o volume de sal


importado, mas somente a procedência e o número de carregamentos. Analisando os índices de
1850 e 1854 percebe-se que 49,8% dos carregamentos provinham de portos estrangeiros.
Tratava-se de uma realidade diversa da apontada por Gonçalves Chaves para os anos entre 1816
e 1822, quando o volume de sal nacional superava o sal estrangeiro.79 Acredito que uma
explicação para esta mudança deve-se ao fato de que os comerciantes ingleses haviam
desbancado os brasileiros no comércio dos couros nesta mesma época. Um exame das
principais firmas mercantis envolvidas no comércio dos couros e do sal (que realizo a seguir)
revela que muitos dos negociantes que retornavam para a Europa com os couros salgados eram
os mesmos que traziam grandes carregamentos de sal dos fornecedores estrangeiros.

Entre os portos estrangeiros que forneciam sal para o Rio Grande, Lisboa obteve
destaque perfazendo entre 32 e 34% dos carregamentos estrangeiros, seguida de perto por
Cádiz, com 28% a 30%. O porto nacional que mais remeteu carregamentos de sal foi o Rio de
Janeiro, oscilando entre 55% e 65% dos totais nacionais enviados em 1850 e 1854, seguido por
Bahia e Pernambuco que juntas somaram de 25% a 28%. No geral, o Rio de Janeiro foi o porto
que mais remeteu embarcações com sal para o Rio Grande do Sul, somando de 31,5% dos totais
no período. Entretanto, como afirmou Silveira, é provável que os comerciantes da praça carioca
estivessem reexportando sal proveniente de outras regiões. 80 O sal produzido no nordeste, cujas
salinas constituíam importante atividade econômica, também era reexportado por Pernambuco e
Bahia. É necessário referendar que as embarcações vindas do Rio não eram exclusivas de sal,
pois o Rio Grande do Sul recebia muitas outras mercadorias deste porto. Conforme Silveira, os
carregamentos exclusivos de sal nunca provinham do Rio e da Bahia, podendo ser de Assú (Rio
Grande do Norte), Pernambuco, Cabo Frio, Setúbal, Porto, Lisboa, Cádiz, Buenos Aires,
Patagônia e Cabo Verde. A presença de portos franceses, como Marselha, e norte-americanos,

78
SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 26-32.
79
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil.
Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978.
80
SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 35.
312
como Salém, foi mínima. 81 Embora o sal nacional também fosse remetido para Rio Grande, o
sal preferido pelos charqueadores sempre foi o estrangeiro, sobretudo o de Cádiz. Os
charqueadores “consideravam-no o único válido para a fabricação de charque e desprezavam o
produto nacional” que começou a ganhar uma fatia no mercado “à medida que se
desenvolveram as salinas do Rio Grande do Norte e, depois, as de Cabo Frio”. 82

8.3 NO RASTRO DOS BROKERS: O FUNCIONAMENTO DO MERCADO EM PELOTAS E


OS CHARQUEADORES NO ALTO COMÉRCIO MARÍTIMO

Como se fosse algo estrutural no interior das redes mercantis que vinculavam aquelas
sociedades atlânticas, em cada porto um grupo de comerciantes parecia destacar-se controlando
a maioria dos carregamentos de charque e de couros. Em 1858 e 1864, por exemplo, os 3
maiores importadores de charque no Rio de Janeiro concentraram, aproximadamente, 30,86% e
30,53% do total dos carregamentos de carne seca. Nos últimos decênios do século XIX, em
1885, 1887 e 1900, as 3 primeiras casas mercantis controlaram 53,78%, 47,63% e 54,40% das
mesmas. Contabilizando as 10 primeiras firmas, Graça Filho detectou que em 1858 elas
reuniam 66,5% e em 1885, 83,5%, chegando a 99,7% das transações em 1900.83 O mesmo
autor acrescentou que a acumulação originada no comércio de abastecimento pelas 10 firmas
foi o ponto de partida de algumas das maiores riquezas do Rio de Janeiro. A projeção social
destes comerciantes pode ser verificada “pelos títulos nobiliárquicos, pelos cargos de direção e
presidência de bancos e companhias, pelo número de navios e ações que possuíam”. O papel da
família no gerenciamento dos negócios também foi marcante. Juan Frias, Militão Máximo de
Souza e Miguel d’Avellar, que estavam entre os 11 primeiros importadores de charque de 1864,
viram seus descendentes continuarem seus negócios até o fim do Império. 84

A mesma concentração deste comércio de abastecimento nas mãos de poucos homens


pode ser verificada na Bahia, onde se destacaram Antônio Pedroso de Albuquerque, Antônio
Ferreira Pontes e Joaquim Pereira Marinho. Na segunda metade do século, Marinho foi o maior
importador de charque de Salvador.85 Em 1887, seus bens foram avaliados em 392.680 libras
esterlinas (uma fortuna que o colocava entre os homens mais ricos do Brasil). Seus negócios
81
Idem, p. 34-37.
82
MARQUES, Alvarino. Op. cit., p. 84.
83
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 91.
84
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 161-162.
85
Na primeira metade do século, Joaquim Marinho acumulou o tráfico de escravos com o comércio de charque
“utilizando esta mercadoria na implementação das transações comerciais com a costa africana”. Entre 1830 e 1850,
ele também traficou escravos para Montevidéu. Cleide Chaves encontrou muitas embarcações de Marinho sendo
dirigidas para a América do Sul, entre 1850 e 1875. Elas carregavam cachaça, açúcar, tabaco e sal para o Rio da
Prata (CHAVES, Cleide. Op. cit., 2001, 68-73).
313
com o charque eram tão expressivos que, entre os baianos, ele era conhecido como o “carne-
seca”. Em seu inventário, Cristiana Ximenes localizou 227 imóveis apenas em Salvador, a
maioria oriunda da execução de hipotecas. 86 Segundo Graça Filho, a forma como os
comerciantes atacadistas de charque agiam neste circuito era “odiosa” aos olhos dos próprios
contemporâneos. Sua sede de lucro fazia com que os mesmos elevassem ainda mais o seu valor
no mercado ao deixá-lo estocado por meses em seus depósitos.87 Ao calcular o preço do boi no
período, Sebastião Soares escreveu que o charque atingia um valor “espantoso” na praça
carioca. A alta dos preços dos alimentos e a reação popular contra os mesmos foi tão marcante
que até o Imperador buscou intervir através das Falas do Trono.88

No Rio Grande do Sul, Gabriel Berute verificou que 7 comerciantes (14,5%)


concentraram 35,9% dos carregamentos de charque entre 1834 e 1851.89 Entre os mesmos
estava o charqueador Antônio José de Oliveira Castro, uma das 12 maiores fortunas entre os
empresários de Pelotas. Em 1854, 5 comerciantes (27,7%) reuniam 45% dos carregamentos de
charque indicados por Josiane Silveira para aquele ano. 90 O balanço da safra 1874/75,
apresentou 157 embarcações carregando mais de 23 mil toneladas de charque. No total, foram
arrolados 22 comerciantes “carregadores” distintos, além de um grupo incluído entre os
“diversos”. Os 5 principais exportadores controlavam 50% das remessas (85% delas tinham
como destino o nordeste, sendo 46 carregamentos para a Bahia e 21 para Pernambuco). 91

Com relação aos comerciantes envolvidos no comércio dos couros se verifica algo
semelhante. Em 1847, os maiores exportadores de couros salgados eram Carruthers Sousa &
Cia. (88.602), Holland Davies & Cia. (81.863), Bradshaw Wenklyn & Cia. (64.074), Proudfoot
Muir & Moffat (44.498) e Hugentobler & Douley (32.178). Em 1854, alguns nomes se repetiam
e, ao invés das quantidades de couros exportadas, os periódicos indicavam o número de
carregamentos. Entre os primeiro encontravam-se Hugentobler & Cia (36), Marcos Pradel &
Cia (27), Lind & Cia (23), Proudfoot Muir & Moffat (8) e Claussen & Bertran (6). Comparando
as transações envolvendo couros secos e salgados é possível verificar que havia uma

86
XIMENES, Cristiana. Joaquim Pereira Marinho: perfil de um contrabandista de escravos na Bahia (1828-
1887). Dissertação de Mestrado em História. UFBA, 1999, p. 95-96.
87
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 67. Graça Filho mostrou que os negociantes da praça carioca lucravam
muito com o comércio do produto. Em 1859, por exemplo, o valor de exportação do charque em Rio Grande era de
105 réis/Kg, mas no Rio ele era revendido no atacado por 276 réis/Kg, esboçando um lucro de 162% sobre o preço
na compra.
88
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 69.
89
BERUTE, Gabriel Santos. Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro: negócios, mercadorias e agentes
mercantis (1808-1850). Tese de Doutorado. PPG-História da UFRGS, 2011, p. 84.
90
SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 53.
91
Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 06.12.1875 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
314
especialização na negociação de cada produto, pois somente um destes 5 maiores exportadores
de couros salgados também estava entre os maiores negociantes de couros secos. Em 1847, por
exemplo, os maiores exportadores desta mercadoria eram Hugentobler & Douley (177.800),
Claussen & Cia. (103.804), E. H. Folmar (31.446), Marcos Pradel (17.671) e Thomaz Messiter
(14.908). Em 1854, os maiores carregamentos de couros secos estavam nas mãos de
Hugentobler & Cia (54), Bento & Irmãos (23), Claussen & Bertran (20), Lind & Cia (9),
Marcos Pradel & Cia (8). Portanto, verifica-se que alguns deles conseguiram permanecer por
mais anos entre os maiores exportadores, além de concentrar grande quantidade de remessas.92

A partir destes dados se observa que, ao contrário do comércio do charque, as


exportações de couros no meado do século eram dominadas por firmas estrangeiras
estabelecidas em Rio Grande. Contudo, conforme Helen Osório e Gabriel Berute esta não era
uma realidade encontrada antes da década de 1840, por exemplo. Segundo Berute, foi a partir
dos anos 1850, que os comerciantes estrangeiros, principalmente os ingleses, firmaram-se de
vez como os principais agentes mercantis envolvidos na exportação dos couros. 93 Portanto,
antes desta “invasão” britânica, a exportação dos couros era intermediada por luso-brasileiros
estabelecidos em Rio Grande e no Rio de Janeiro. As estatísticas para o ano de 1847, expostas
acima, sugerem que na década de 1840 os ingleses já se encontravam na condução deste
comércio e que o meado do século deve ter sido decisivo na sua fixação como monopolistas.
Conforme Renato Marcondes foi exatamente nesta época que se iniciou uma transformação nas
relações mercantis da província, pois o comércio do Rio Grande com as praças estrangeiras
passou a ser realizado cada vez mais sem a intermediação do Rio de Janeiro.94 Observe-se que
esta virada ocorria justamente na época em que o tráfico atlântico era extinto, o que certamente
vinha a enfraquecer parte dos comerciantes de grosso trato cariocas. Portanto, no meado do
século, os ingleses retiraram os brasileiros do mercado dos couros da mesma forma como os
rio-grandenses foram “empurrados” para fora dos mercados de charque pelos platinos. Tal
fenômeno deve ter possibilitado um grande lucro para as muitas casas exportadoras estrangeiras
instaladas na cidade portuária de Rio Grande, assim como daqueles comerciantes que
conseguiram inserir-se nestes negócios atlânticos.

92
SILVEIRA, Josiane. Op. cit.; TORRES, Daniel. Op. cit., p. 40-41. Conforme Daniel Torres, estes
comerciantes residiam na cidade de Rio Grande e deviam ter sócios na Europa e nos Estados Unidos.
93
BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2011.
94
MARCONDES, Renato. O mercado brasileiro do século XIX: uma visão por meio do comércio de cabotagem.
In: Anais do VIII Congresso Brasileiro de História Econômica (ABPHE). Campinas: CDROM, 2009, p.153-154.
315
Mas a “invasão” britânica tinha motivos de força maior. 95 A expansão inglesa sobre os
mercados dos couros convergiu com o maior crescimento da economia britânica visto até então.
Nunca as exportações inglesas aumentaram tão rapidamente quanto nos primeiros sete anos da
década de 1850. Para onde se olhava, a “grande expansão” era notável. Da descoberta do ouro
na Califórnia, em 1848, até a metade da década de 1850, a disponibilidade mundial do metal
aumentou de seis a sete vezes, fazendo multiplicar os meios de pagamento e encorajar a
expansão do crédito. As indústrias se proliferavam por toda a Europa e “os lucros
aparentemente à espera de produtores, comerciantes e, acima de tudo investidores
apresentavam-se quase que irresistíveis”. Esta expansão sofreu um recuo em 1857, para retornar
na década de 1860 com toda a força, até a grande depressão de 1873.96

O comércio internacional também atingiu altos índices no período. As exportações e


importações brasileiras tiveram seus valores triplicados entre 1845 e 1865.97 As exportações
britânicas para a América do Sul, por exemplo, saltaram de 6 milhões de libras, em 1848, para
25 milhões, em 1872.98 Nessas transações, o Brasil foi o maior parceiro comercial dos ingleses
e o capital britânico fluiu aceleradamente para a economia brasileira. 99 As embarcações que
chegavam com têxteis e mercadorias diversas retornavam abarrotadas de café, açúcar e couros,
entre outros produtos. Apesar da grande expansão da indústria têxtil inglesa ter acontecido nas
primeiras décadas do oitocentos, ela continuou a crescer nesta época e expandiu-se para outros
países. 100 Com todo este crescimento, a Bolsa de valores do Rio viu-se em completa euforia e
foi alvo de muitas especulações gerando grandes fortunas e grandes bancarrotas.101 Basta dizer
que esta foi a “Era” do Barão de Mauá, o que dispensa maiores explicações.

Aliás, Mauá também esteve diretamente associado à “invasão” britânica no porto de Rio
Grande, por meio da Carruthers, Souza & Cia, maior exportadora de couros salgados, em 1847.
Esta firma também aparece entre as exportadoras de sal e de couros secos, revelando certa

95
De acordo com os estudos de Carlos Gabriel Guimarães, a presença dos britânicos no comércio brasileiro
remontava ao início do século, desde a Abertura dos portos, em 1808. Portanto, o fenômeno aqui descrito era muito
mais complexo e se ancorava numa consolidada tradição de relações mercantis entre ingleses e brasileiros muito
bem tratada pelo autor. Para uma análise destas relações políticas, sociais e econômicas que os mesmos
estabeleceram com as elites mercantis e políticas na Corte ver GUIMARÃES, Carlos Gabriel. A presença inglesa
nas finanças e no comércio no Brasil Imperial. São Paulo: Alameda, 2012.
96
HOBSBAWM, Eric. Op. cit., p. 55-77.
97
GOULARTI FILHO, Alcides. Abertura da navegação de cabotagem brasileira no século XIX. Ensaios FEE, v.
32, n. 2, nov. 2011, p, p. 414.
98
HOBSBAWM, Eric. Op. cit., 2000, p. 82.
99
PLATT, D. C. M. Latin America and British Trade (1806-1914). London: T. & A. C. Ltd., 1972, p. 316-321;
GRAHAM, Richard. Grã-Bretanha e o início da modernização no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1973.
100
Para um interessante quadro geral deste período, tanto na indústria europeia quanto na sua relação com as
Américas, ver CANABRAVA, Alice. O algodão em São Paulo (1861-1875). São Paulo: T. A. Queiroz, 1984.
101
LEVY, Maria Bárbara. A indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades anônimas. Rio de Janeiro:
UFRJ, 1994, p. 54-55.
316
diversidade de investimentos. O empresário brasileiro também foi pecuarista no Uruguai, onde
acumulou mais de 160 mil hectares, 16 mil reses e 100 mil ovelhas. 102 Além disso, instalou uma
filial de seu banco em Pelotas e Rio Grande e apareceu comprando seis escravos de um
pelotense, em 1855, indício de que estivesse atuando, por meio de seus sócios, no tráfico inter-
provincial. 103 Como é sabido, Mauá era rio-grandense e tais atividades revelam que ele jamais
perdeu seus vínculos com a região, onde possuía os seus agentes. Além disso, entre 1853 e
1873, ele foi deputado geral pela mesma província, representando-a na Corte e, na mesma
época, casou seu filho com a filha de José Luís Cardoso de Sales, o Barão de Irapuá, que em
algumas notas biográficas consta como tendo sido estancieiro no Rio Grande do Sul. 104

Analisando as listagens elaboradas por Silveira e Torres foi possível observar que Mauá
também participava do comércio de sal. 105 A firma Carruthers Souza & Cia, cujo um dos sócios
era Mauá, apresentou 3 carregamentos em 1850. Neste ano e no de 1854 verificou-se as
seguintes firmas (com seus respectivos carregamentos): Lind & Cia (29), Hugentobler & Cia
(28), Eufrásio Lopes de Araújo (27), Proudfoot Muir & Moffat (15) e Paiva & Vianna (14).
Analisando os carregamentos de Paiva & Vianna, Silveira verificou que os mesmos estavam
mais associados ao comércio de cabotagem, recebendo sal da Bahia, Pernambuco e Rio, sendo
que seus navios também traziam açúcar, aguardente, cal e outros gêneros. Somente Pernambuco
enviou cargas exclusivas de sal para o Rio Grande. Entretanto, analisando somente os
carregamentos da firma inglesa Hugentobler & Cia, foi possível verificar que somente dois
vinham de portos do Brasil: Paranaguá e Pernambuco. Mais da metade dos carregamentos
provinham de Cádiz e Cabo Verde e eram na sua maioria exclusivas do produto.106

Portanto, é possível perceber que havia uma divisão dos mercados atlânticos, ficando o
transatlântico nas mãos dos comerciantes estrangeiros (principalmente os ingleses e norte-
americanos) e o de cabotagem com os luso-brasileiros (sendo boa parte formada por rio-
grandenses). Alguns dos importadores de sal nacional também estavam entre os maiores
exportadores de charque, como Lobo & Barbosa, J. M. da Costa Sol, Porfírio Ferreira Nunes &
Cia., Cascão & Irmãos, Cruz Guimarães & Cia. e José Ribeiro de Farias Guimarães. O
comércio de cabotagem era a especialidade destes negociantes e ele era controlado por
brasileiros. Alguns deles se arriscavam nas exportações de couro para os mercados do Atlântico

102
MARQUES, Alvarino da F. A Economia do Charque. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1992, p. 58-59.
103
Inventário de José Antunes da Porciúncula. 1º Cartório de órfãos e ausentes, Pelotas, 1855 (APERS).
104
Para uma análise mais completa sobre a atuação de Mauá na política e na economia brasileira ver
GUIMARÃES, Carlos G. Op. cit., 2012.
105
No capítulo posterior, demonstro que sua presença na economia charqueadora foi ainda mais marcante.
106
SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 40.
317
norte, mas pareciam não obter muito sucesso. Comparando as firmas exportadoras de couros
secos com as de charque, por exemplo, Silveira percebe que 10 nomes se repetiam, mas os
negociantes de charque ocupavam posições inferiores entre os exportadores de couro.107

Uma análise rápida dos negociantes envolvidos nas diferentes rotas comerciais
demonstrou que a atuação nestes mercados estava concentrada nas mãos de determinados
grupos de agentes. Alguns, como o Visconde de Mauá, Militão Máximo de Souza, Joaquim
Pereira Marinho e John Proudfoot108, atuando em diversos ramos de negócios, tinham o seu
nome conhecido em praticamente todos os portos. Outros, que tinham como única função
carregar os produtos do trapiche da charqueada até o porto de Rio Grande, permanecem no
anonimato. No mundo rural que orbitava as charqueadas, e onde estes muitos trabalhadores
negociavam com os mencionados estabelecimentos, reinavam relações de troca permeadas por
relações pessoais, seja do charqueador com tropeiros e criadores, no que diz respeito ao
mercado do gado, seja do mesmo com os patrões de iate, marinheiros e carregadores, no trato
fluvial dos produtos de sua fábrica. No comércio atlântico, por sua vez, os principais agentes
eram as grandes firmas e companhias mercantis, sob a gerência de negociantes brasileiros e
estrangeiros que movimentavam significativas quantias de capital e mercadorias. Eram os
negociantes de grosso trato do qual Braudel dedicou muitas páginas em o Jogo das Trocas.109

Portanto, tratavam-se de espaços econômicos um tanto distintos. No primeiro, o poder


de influência do charqueador podia se fazer sentir pelos demais agentes. Ele podia forçar os
preços do gado para baixo e repassar seus prejuízos aos criadores, podia comprar uma estância
e agir diretamente no mercado por meio de seus parentes, agentes e agregados, em suma, ele
tinha maior conhecimento e controle sobre as etapas do comércio. Este era o seu mundo e ali
ele podia diminuir as inseguranças presentes ao longo de todo o processo. Mas saindo dali, as
operações mercantis teimavam em escapar à sua influência. No porto de Rio Grande ele tinha
que lidar com corretores, mercadores de diferentes línguas, falando em taxas de câmbio e

107
SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 55.
108
John Proudfoot era natural de Glasgow, na Escócia, e partiu para Buenos Aires em 1835, onde atuou alguns
anos no comércio. Anos depois, migrou para o Rio Grande, vindo a estabelecer-se com sua firma mercantil.
“Agricultor, comerciante e industrialista era o proprietário do mais elegante vapor que circulava nos rios e na lagoa
dos Patos – o Guaíba – construído em Clyde. Além de outros barcos de menor calado para os rios de menor
vazão”. Ele foi um dos fundadores da Praça do Comércio de Rio Grande, em 1844. Sem filhos, deixou sua fortuna
para um sobrinho, após falecer em Lisboa, em 1875 (MACEDO, Francisco R. Os ingleses no Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: A Nação, 1975, p. 34; 58; 61). Segundo David Platt, John Proudfoot fez fortuna em Montevidéu não
apenas no comércio, como também emprestando dinheiro a altos juros (PLATT, D. C. M. Op. cit., p. 48).
109
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins
Fontes, 1996. No Brasil, um corpo mercantil com atuação semelhante pode ser analisado em FRAGOSO, João.
Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
318
sistemas de pesos e medidas distintos. Ele se relacionava com homens que dominavam o
idioma mercantil atlântico e que circulavam por um espaço de trocas internacional no qual a
força do charqueador era muito pequena, mas que não funcionava sem as suas carnes e os seus
couros. Em suma, o Atlântico não era a fronteira com o Uruguai e o charqueador não podia
estabelecer-se em todos os portos como fazia com os seus parentes nas suas estâncias.

Um episódio acontecido em Pelotas, no ano de 1848, evidencia a importância de se


compreender esta relação entre os charqueadores de Pelotas e as rotas mercantis atlânticas,
tanto no comércio de cabotagem, quanto no comércio exterior. Neste ano, comerciantes
estrangeiros requisitaram que os couros fossem pesados no porto de Rio Grande ou em São José
do Norte e não em Pelotas, nas charqueadas. Caso contrário, os mesmos ameaçavam não
comprá-los. Na imprensa local foi publicado o seguinte manifesto:

Aos vendedores de couros – Os abaixo assinados negociantes desta praça, principais


compradores de couros salgados em Pelotas, tem combinado entre si, que d’ora em
diante não comprarão mais couros salgados, se não com a condição de serem postos,
ou no Norte ou no Sul, para aí serem reconhecidos, pesados e recebidos nos seus
respectivos armazéns ou a bordo dos navios. Rio Grande, 1º de janeiro de 1848. –
Holland Davies & Cia – Carruthers Souza e Cia. – Lind & Cia. – Hugles Irmãos &
Cia. – Cesar Brue. Por Hugentobler & Douley, J. G. Vallentim. – Marcos Pradel &
Cia. – Law Irmãos & Cia. – W. F. Wigg. – Proudfort Muir & Moffat.110

É interessante perceber que muitos comerciantes que assinaram o manifesto também


estavam entre os principais exportadores de couros e importadores de sal enunciados
anteriormente. Merecem destaque as firmas Proudfoot Muir & Cia, Hugentobler & Cia e
Carruthers Souza & Cia. Apesar da força destes comerciantes atlânticos, dias depois de terem
publicado seu manifesto, os charqueadores de Pelotas ofereceram uma resposta aos mesmos,
deixando claro que os “vendedores de couro” eram eles e seus sócios:

Aos compradores de couros salgados: Constando os charqueadores abaixo assinados,


que os compradores de couros salgados, quase todos residentes na cidade de Rio
Grande, tem combinado não comprar couros desta cidade, senão com a expressa
condição de serem pesados naquela cidade; e sendo esta nimiamente injusta, porque
vai contra um uso de há muito tempo estabelecido, e que tem sua origem na prática
constante e geralmente adotada de serem as mercadorias vendidas à porta dos que
possuem, e gravemente lesiva dos interesses dos abaixo assinados, porque os sujeita ao
risco e despesas da viagem até aquela cidade e os põem na necessidade de não
poderem por si fiscalizar o peso dos couros, e resolver quaisquer dúvidas que possam
aparecer na ocasião do recebimento; tem tão bem os abaixo assinados unanimemente
resolvido não vender um só couro, em quanto os referidos compradores não desistirem
desta sua injusta pretensão, à qual nenhum direito tem, por que, tendo eles necessidade
de ter aqui agentes encarregados das compras, o que é sem contradição o mais
importante no negócio, à essas pessoas podem confiar o peso e a verificação da
qualidade do gênero, ficando assim guardada perfeita reciprocidade entre os
compradores e vendedores. É porque em comércio a prática serve de regra invariável,

110
O Rio-grandense, n. 264, 04.01.1848, p. 3 apud TORRES, Daniel. Op. cit., p. 31.
319
os abaixo assinados lembram aos compradores que eles aqui recebem em suas
charqueadas, sem nenhuma oposição e sujeitando-se aos riscos da viagem, o sal, que
aliás é gênero de muita quebra, e quase todo comprado à eles compradores de couros
pela medida feita à bordo dos navios ou nos armazéns da cidade de Rio Grande.111

Antes de tudo, tratava-se de uma audácia que meros fabricantes escravistas quisessem
impor suas práticas mercantis aos britânicos. A resposta dada pelos charqueadores revela, em
suas entrelinhas, aspectos da relação mercantil entre os mesmos e os comerciantes do porto.
Primeiro, fica claro que não há nenhuma regulamentação legal sobre onde os couros deveriam
ser examinados e pesados. Os charqueadores defendiam uma prática tradicional, “há muito
tempo estabelecida”, de que os couros deviam ser pesados e examinados em Pelotas,
provavelmente nas suas próprias charqueadas, para depois serem encaminhados ao porto.
Desconheço o que levou os comerciantes estrangeiros a reclamarem de tal procedimento. É
provável que alguns charqueadores estivessem vendendo aos agentes dos negociantes
estrangeiros os seus piores couros ao preço dos melhores, o que desagradava os ingleses no
momento em que os mesmos eram embarcados ou chegavam na Europa. Os britânicos pareciam
querer imprimir um método mais “racional” na aquisição dos produtos – talvez fruto de uma
prática realizada em seus locais de origem. O fato é que parecia haver uma certa tensão entre
ambos os grupos, oriunda da diversidade de práticas mercantis e culturais tanto locais quanto
internacionais. Neste sentido, a região portuária assemelhava-se a uma região de fronteira, no
sentido de que possibilitava o contato de diferentes culturas atlânticas.

Penso que na própria resposta dos charqueadores um dos “mecanismos” fundamentais


das transações mercantis fica evidente. Eram os “agentes encarregados das compras” que
residiam em Pelotas ou em Rio Grande que funcionavam como facilitadores nos negócios entre
ambas as partes. Para os charqueadores, eles eram “os mais importantes do negócio”. Estes
agentes deviam possuir a confiança de ambas as partes e diminuir a distância cultural e de
interesses que havia entre os mesmos. Investigando os cafezais no sudeste, Kuniochi analisou a
figura do comissário, agente que realizava esta mediação naquele universo. Para a autora, “as
relações entre comissários e fazendeiros estendiam-se além dos interesses monetários, pois
estavam embasadas em convivência anterior de amizade, parentesco e compadrio”. Portanto,
elas também estavam sedimentadas em relações de confiança pessoal, necessária “para
justificar o papel exercido pelo intermediário: ele punha em contato dois universos – o mundo

111
O Rio-grandense, n. 266, 11.01.1848, p. 4, apud TORRES, Daniel. Op. cit., p. 32). Grifos meus.
320
tradicional – vivido pelo fazendeiro de café – com a lógica mercantil, objetiva e racional – dos
grandes negociantes que integravam redes internacionais de comércio”. 112

Portanto, para que este comércio “funcionasse”, os charqueadores e os comerciantes


estrangeiros tinham que recorrer a agentes intermediários. Num dos livros do Corretor Geral do
porto de Rio Grande foi possível verificar um contrato firmado pelo comerciante John
Proudfoot que revela como se davam estes negócios:

Por ordem de John Proudfoot & Cia [comprador], negociante desta praça, comprou a
H. Fraeb [vendedor], negociante desta praça, 6.500 couros salgados de novilho
pesados de charqueada de Pelotas da matança do mês de fevereiro próximo passado e
do presente mês de março. Da matança do mês de fevereiro entregarão-se aqueles
couros que sobrarem das compras que o vendedor tem efetuado nas diferentes
charqueadas de Pelotas. O restante para completar a quantidade acima mencionada de
6.500 couros entregarão-se das primeiras matanças das charqueadas de Pelotas com
que o vendedor tem contratos para o presente mês. Os couros serão recebidos pelo
reconhecedor do vendedor logo que estiverem prontos para serem embarcados nas
charqueadas, mas a fatura se fará segundo o peso determinado na entrega em São José
do Norte com o aumento de 3%. O trabalho de pesar os couros terá lugar ou no
trapiche dos compradores ou a bordo dos iates de Pelotas, barcada por barcada, em
São José do Norte, assistindo ao peso um empregado do vendedor e outros dos
compradores. Será admitido só couro que tem o peso de 58 libras pra cima. O preço
dos couros da matança de fevereiro é 178 réis por cada 459 gramas (…) O frete das
charqueadas, imposto municipal e direitos da barra de Pelotas são por conta dos
compradores. O vendedor entregará também aos compradores os chifres de novilho
correspondentes ao número dos couros ao preço das charqueadas com as despesas de
costume. O pagamento se fará da maneira seguinte. Vinte contos de réis nestes 2 ou 3
dias. Vinte contos de réis em 8 dias depois. Vinte contos de réis em 14 dias. Quinze
contos de réis em 21 dias depois do primeiro pagamento, o restante logo que se tiver
completado a entrega dos couros. O vendedor e os compradores obrigam-se de guardar
segredo absoluto a respeito deste contrato.113

Observa-se que H. Fraeb era o negociante encarregado de comprar o couro nas


charqueadas e para isto possuía os seus próprios agentes. No porto, Proudfoot também possuía
os seus agentes para acompanhar a pesagem e o carregamento dos couros. Portanto, os
charqueadores, ao menos neste contrato, não se envolviam com a pesagem e nem precisavam
carregar os couros até o porto marítimo. Os fretes e impostos eram pagos pelo próprio
comprador britânico. Portanto, na queda de braços ocorrida em 1848, os ingleses parecem ter
vencido ao impor que os couros fossem pesados na Alfândega de São José do Norte (próxima
ao porto de Rio Grande) e não nas charqueadas, mas ao mesmo tempo os charqueadores
também saíram ganhando, pois os britânicos se comprometiam a pagar os fretes e impostos – o
que abatia consideravelmente os custos do empresário escravista. As parcelas acertadas entre os
contratados indicam que era um negócio que envolvia um grande montante de capital para os

112
KUNIOCHI, Marcia N. A intermediação mercantil e bancária na fronteira meridional do Brasil. In: História e
Economia. São Paulo, v. 1, n. 1, 2005, p. 67-86.
113
Contrato de 04.03.1878, Códice JC-53, Fundo Junta Comercial, AHRS.
321
padrões regionais, ultrapassando os 75 contos de réis pagos em menos de um mês e por apenas
6.500 couros (o Rio Grande exportava mais de 1 milhão de couros na época). Provavelmente H.
Fraeb adiantava a real quantia ao charqueador revendendo os 6.500 couros a J. Proudfoot com a
sua taxa de lucro e comissões. A operação também envolvia a troca de libras esterlinas por mil
réis na casa comercial do Corretor Geral.

Como em qualquer circuito mercantil, as transações entre os agentes envolvidos também


apresentavam conflitos de interesses. Para a sorte dos historiadores, quando as regras
contratuais eram quebradas e uma das partes buscava resolver a contenda no Judiciário, os
motivos de tais conflitos acabavam tornando-se documentos cartoriais que, hoje, auxiliam na
compreensão daquelas relações de troca. Um exemplo disso pode ser dado no processo que a
firma John Proudfoot & Cia moveu contra Joaquim Guilherme da Costa – seu agente comercial.
Costa, que também era charqueador, devia 5:744$090 referentes a transações envolvendo sal,
couros e chifres que realizou em nome dos britânicos com charqueadores pelotenses. Buscando
reverter a situação, o réu argumentou que os estrangeiros é que lhe deviam por comissões não
pagas. Numa carta remetida por Proudfoot para o seu gerente, Sr. Crawford, percebe-se que
Costa recebia 2% de comissão pelos couros comprados. 114 Numa outra missiva, Proudfoot
deixou claro o seu desapontamento para com o comportamento do agente pelotense:

Amigos e Srs. Recebi seu favor do 1º de julho em que me diz que o Sr. Joaquim
Guilherme da Costa lhes tem apresentado uma conta de comissões de cobranças e
vendas de sal, desde a extinta firma (…). Fico inteirado igualmente do que há passado
entre o Sr. Joaquim Guilherme e vossas mercês em uma entrevista pessoal, e que
resultou em ele pedir que me nomeasse árbitro para decidir se a conta era justa ou não.
Não é muito agradável ser nomeado juiz em sua mesma causa, porém como ele deseja
saber minha opinião, direi sem entrar em discussões e razões que não tem direito de
fazer tais cargas, e que a conta não é justa. Sinto que as relações que temos tido por
tanto tempo com o Sr. Joaquim Guilherme tenham um fim desagradável.115

Conforme Proudfoot, Costa estava cobrando uma comissão indevida e sem recibos
válidos. Não satisfeito, o comerciante escocês escreveu à outra grande firma exportadora de
couros, a Claussen & Bertran, perguntando se Costa lhes cobrava as comissões que exigia no
tempo em que serviu de agente para os mesmos (1854-1855). Os comerciantes responderam
que não. Costa perdeu a causa em primeira e em segunda instância. Não é possível saber qual
das partes estava com a razão, mas o fato é que Costa vinha ganhando muito dinheiro sendo
comissário dos exportadores estrangeiros. Em 1856, por exemplo, junto com outros dois sócios,

114
Numa fatura anexa ao processo fica claro que ele passava nas charqueadas, comprava os couros e encarregava
diferentes iates (seus ou de terceiros) de levá-los até o porto de Rio Grande.
115
Carta de John Proudfoot para Sr. Crawford. Glasgow, 08.08.1859. Anexa ao processo de Apelação n. 90, m. 8-
B, cartório cível e crime, Pelotas, 1860 (APERS). Tradução da carta realizada pelos oficiais tradutores.
322
ele comprou 3 barcas a vapor, pagando 48:000$, e criou a Companhia União de Vapores, em
Pelotas.116 Um ano depois do processo judicial em que enfrentou Proudfoot, Costa comprou
outra charqueada por 26:900$000.117 Ao falecer, Costa possuía 77 escravos e deixou um monte-
mor com mais de 287 contos de réis. 118

Nos autos de falência de Pedro I. Fernandes, agente do comerciante inglês Sinclair


Robinson & Cia., transações do mesmo tipo ficam evidentes. Numa carta escrita pelo falido à
Viúva Claussen & Cia, firma arrendatária de uma charqueada em Pelotas, dizia o agente:

“Chegando ontem de fora, vim encontrar suas cartas de 21 e 25 do corrente que ora
respondo. Acabando de carregar o navio de Sinclair Robinson & Cia (…) que por estes
dias ficará concluído, então lhes farei aviso respeito ao seu carregamento, de que
fazem já o aviso provisório. Entretanto, estou mandando recolher cinzas que estão
espalhadas em diversas charqueadas”.

Conforme Ester Gutierrez, as cinzas, ou os restos calcinados dos ossos, resultavam em


adubo e eram vendidos para a Europa.119 Fernandes carregou o navio com 250 toneladas do
produto e pelo que expôs na carta vários charqueadores fabricavam cinzas para o mercado
internacional. Numa outra missiva, um mês depois, Fernandes dizia que não havia recebido
dinheiro e que estava enfrentando problemas nos seus negócios. Num telegrama para a Viúva
Claussen & Cia dizia: “Não fretem navio por ora até que eu lhes faça aviso. Tem havido
contrariedades independente da minha vontade”. Nas falidas contas de sua casa comercial, cujo
título se iniciava como “Balanço de 1873”, Fernandes possuía vários credores, entre os quais
alguns ricos charqueadores, além de comerciantes brasileiros e estrangeiros. 120 A crise
internacional de 1873 parecia ter feito mais uma vítima nos trópicos.

Diante dos muitos reveses dos mercados atlânticos, da ação feroz dos monopolistas e do
poder dos comerciantes estrangeiros, além de outros fatores, chegou a hora de perguntar: como
os charqueadores de Pelotas agiam no interior deste sistema mercantil atlântico tão complexo?
O que se podia fazer para diminuir a insegurança presente em tais circuitos de troca? Como foi
visto no capítulo 3 desta tese, a forma como os charqueadores intervinham neste comércio
marítimo ajudou a definir a sua posição na hierarquia econômica regional durante o colonial
tardio. Passado meio século, esta mesma lógica se manteve. Portanto, os charqueadores que
também atuavam no comércio marítimo, ou seja, aqueles que, para além da relação comercial

116
Escritura de 20.08.1856, 1º Tabelionato de Pelotas, Livro 8 (APERS).
117
Escritura de 23.10.1860, 1º Tabelionato de Pelotas, Livro 9 (APERS).
118
Inventário de Joaquim Guilherme da Costa, n. 599, m. 38, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1865
(APERS).
119
GUTIERREZ, Ester. Negros, charqueadas e olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel,
2001, p. 190.
120
Liquidações, processo n. 2.584, m. 75, 1875, 1º volume, 2º cartório cível e crime, Pelotas (APERS).
323
que mantinham no porto de Rio Grande, acabavam encurtando a distância geográfica e
temporal entre o mundo rural da charqueada e o mundo atlântico, continuavam no topo da
hierarquia econômica regional.

Realizando esta conexão entre os distintos espaços econômicos, estes comerciantes-


charqueadores, juntamente com seus agentes e os agentes dos comerciantes ingleses,
apresentavam-se como brokers ou mediadores de umas das partes daquele sistema. Visitando a
obra de Karl Polanyi e estudando os mercados em sociedades agrárias e pré-industriais,
Edoardo Grendi ofereceu a ferramenta teórica do broker para analisar o funcionamento e a
integração dos mesmos. Em história econômica, este era um conceito emprestado da
Antropologia e que buscava compreender a forma como os mercados internacionais se
relacionavam com os mercados locais. Neste sentido, o broker seria “um mediador entre a
comunidade e a sociedade mais ampla”. Por isso, Grendi também os chamou de “elite-broker”,
isto é, no interior de um dado espaço econômico agrário eles seriam “uma elite de negociantes
locais” que funcionariam como “intermediários com a sociedade mais ampla”. 121 Estes
mediadores dominavam os comportamentos e especificidades mercantis de ambos os espaços
econômicos, conheciam pessoas diversas e os mercados atlânticos conectavam-se com os
mercados locais a partir da sua atuação. Era como se os mesmos dominassem os distintos
idiomas mercantis em ambos os espaços socioeconômicos de interação comercial, nutrindo,
desta relação, ganhos econômicos notáveis, ajudando também a conectar ambas as sociedades
com relação aos seus diferentes aspectos socioculturais.

Neste sentido, o mecanismo empregado pelos charqueadores era o mesmo utilizado no


mercado de gados: atuar diretamente no mercado atlântico ou por intermédio dos seus parentes
e agentes mais próximos. E se no mercado de gados os mais ricos (que também estavam
estabelecidos com grandes estâncias na fronteira) atingiam certa proeminência e acumulavam
um capital relacional que era reconvertido em lucros, no comércio marítimo o protocolo era o
mesmo. Dos 12 charqueadores mais ricos de Pelotas (aqueles mesmos que analisei no capítulo
anterior e que possuíam uma fortuna acima de 50 mil libras esterlinas), 9 apresentaram
embarcações nos seus inventários, que somadas, chegaram a um total de 31. Contudo, somente
3 destes charqueadores possuíam navios de grande tonelagem em seus inventários (Barão de
Butuí, Anibal Maciel e Antônio José de Oliveira Castro), sendo que os outros eram
proprietários de iates – barcos menores que serviam para levar as mercadorias até o porto de

121
GRENDI, Edoardo. Microanálise e História Social. In: OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de; ALMEIDA, Carla
(Org.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009, p. 27-30.
324
Rio Grande. No entanto, como os inventários retratam a composição das fortunas dos mesmos
na fase idosa de suas vidas, o cruzamento com outras fontes documentais, como as escrituras
públicas e os registros de matrículas e embarcações da Junta Comercial do Rio Grande, revela
que a maioria destes charqueadores havia participado do comércio marítimo em outros tempos,
abandonando-o depois de uma certa idade. Na década de 1860, o Visconde da Graça, o Dr.
Chaves Filho e Felisberto Cunha, por exemplo, apareceram registrando um patacho, um brigue
e uma barca americana na mencionada Junta. O campeão de registros foi Moreira, com pelo
menos quatro embarcações de grande porte registradas. 122 Além dos registros de embarcação,
por meio da análise de outras fontes sabe-se que José Rodrigues Barcellos e João Simões Lopes
foram comerciantes de grosso trato matriculados na Real Junta do Comércio da Corte, atuando
no mercado atlântico, e que Antônio José da Silva Maia também havia atuado no comércio
marítimo remetendo seus navios com charque para a Bahia e Pernambuco.123

Outra forte evidência da íntima relação destes charqueadores mais ricos com o comércio
de longo curso pode ser atestada na lista dos presidentes da Associação Comercial de Pelotas.
Criada em 1873, ela foi continuamente dirigida por charqueadores.124 Este foi o caso de
Possidônio Mâncio Cunha, João Maria Chaves, Lúcio Lopes dos Santos, Paulino Costa Leite,
Joaquim Rodrigues da Silva, Joaquim da Silva Tavares e Joaquim José de Assunção. É
importante destacar que destes 7 presidentes, 2 estão entre os 12 charqueadores mais ricos e 3
deles eram sócios de outros charqueadores do mesmo grupo (sendo que 2 também eram irmãos
dos mesmos). Esta concentração fica mais evidente quando se constata que muitos dos 12
inventariados tinham estreitos vínculos familiares entre si. Os Chaves e os Barcellos eram
aparentados, Simões Lopes era pai do Visconde da Graça e sogro do Barão de Jarau, Tavares e
Maciel eram primos, o Barão de Corrientes era filho de José Inácio da Cunha e Butuí era genro
do Comendador Castro (ver Diagrama 8.1). Estes dados por si só revelam que a direção da
Associação, que reunia os industriais e comerciantes atacadistas da cidade, estava nas mãos de
poucas famílias que também ocupavam o topo da elite charqueadora.

122
Registro de matrículas de comerciantes e embarcações da Junta Comercial do Rio Grande. Fundo Junta
Comercial, Códices 17 a 27, AHRS. Talvez uma das explicações para tal volume de navios registrados por Moreira
seja o fato de o seu sogro, o também charqueador Comendador Castro, possuir um estaleiro onde construía as
embarcações.
123
Matrícula dos Negociantes de grosso trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Real Junta do Comércio,
Agricultura, Fábricas e Navegação. Códice 170 (volumes 1, 2 e 3); Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Jornal O
Globo. Rio de Janeiro, 06.12.1875 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
124
Correspondência da Associação Comercial de Pelotas. Fundo Junta Comercial, maço 3, Arquivo Histórico do
Rio Grande do Sul.
325
Diagrama 8.1 – Vínculos de parentesco entre os 12 charqueadores mais ricos de Pelotas (1850-1900)129

Antônio J. Francisca
Isabel D. da João S. Joaquim J. Maria A. Baronesa Barão de
Oliveira Alexandrina
Fontoura Lopes Assumpção Fontoura de S. Tecla Santa Tecla
Castro

Leocádia
Tavares Baronesa Barão de
Visconde Viscondessa Baronesa Barão de Antônio R. de Butuí Butuí
da Graça da Graça de Jarau Jarau Assumpção
Augusto
Assunção
Anibal A. Leopoldo Cândida Francisca
Leocádia Maciel A. Maciel Moreira Moreira
Melo

Irmãos
Eliseu A. Leopoldina
Moreira
Maciel Rosa
Zeferina José I. da José M.
G. Cunha Cunha Chaves

José R. Boaventura Silvana


Barcellos R. Barcellos Azevedo Antônio J.
Teresa Felisberto Barão de G. Chaves
Cunha Braga Correntes Filho

Irmãos
Antônio J. Maria L. João M.
Arminda Alfredo
Silva Maia Barcellos Chaves
S. Lopes Braga

Primos Casamento Pais e filhos Compadres 12 Charqueadores mais ricos

129
Por falta de espaço o diagrama não elenca todos os filhos dos casais ilustrados, mas somente aqueles que proporcionaram uma conexão com as demais famílias do grupo.
326
Dos 22 exportadores de charque que enviaram carregamentos para Bahia, Pernambuco
e Rio de Janeiro na safra de 1874/75, 9 eram charqueadores. Antônio José da Silva Maia e
José Antônio Moreira são os que remeteram mais embarcações com charque
(respectivamente, 14 e 6 navios). Ambos estão entre os 12 charqueadores mais ricos. João
Simões Lopes, que remeteu somente uma embarcação para Pernambuco, também era um dos
mais ricos. Dos demais, não foram localizados inventários ou os mesmos não tiveram sua
avaliação concluída. Contudo, é provável que também fossem empresários de notável
fortuna.130 Ao remeterem seus navios para o nordeste, os mesmos retornavam com
mercadorias que deviam auferir significativos lucros. Em janeiro de 1875, por exemplo, a
barca Pombinha, do Barão de Butuí, retornou da Bahia com 133 barricas de açúcar, 700
barricas de cal e 177 volumes de piaçabas. 131

Entre estes charqueadores mais ricos havia empresários com práticas e conhecimentos
mercantis bastante amplos, aprendidos em outros portos marítimos enquanto jovens e sob a
supervisão distante dos seus pais, charqueadores como eles. O barão de Corrientes, por
exemplo, havia sido negociante na Corte, o visconde da Graça em Salvador e o Dr. Gonçalves
Chaves em Montevidéu. Além do mais, os charqueadores também podiam ter filhos e genros
atuando no comércio, o que potencializava suas conexões com o mercado atlântico. O
charqueador João Vinhas, por exemplo, possuía um genro negociante em Salvador e outro no
Rio de Janeiro. Além disso, seu filho estava estabelecido em Rio Grande como comerciante.
Numa carta escrita por ele ao seu pai é possível perceber a importância de tais conexões:

“Meu Pai e Senhor. Recebi suas estimadas cartas de 8 e 10 do presente e


respondo, como chegou o Iate Ventura fiz ver ao Senhor Frias que era o mesmo
que levava o sal que lhe tinha comprado e que logo que descarregou viria receber
o sal como tenciono e o Iate Princesa que eu havia fretado para levar o sal de
Cadiz, visto sua carta segue já ao norte receber 800 alqueires de sal de Cabo
Verde comprado ao Senhor Claussen a preço de $640 que é da mesma casa de
Felipe Sausby que Vossa Mercê diz-me ter-lhe a $650, a pressa de despachar o
Iate não dá lugar a ser-lhe mais extenso o que o farei pela primeira ocasião (…)

130
Junius Brutus de Almeida, por exemplo, que era genro do mencionado Simões Lopes, nos anos 1880 investiu
400 contos de réis reformando sua charqueada, importando máquinas e contratando técnicos italianos e 40
operários especializados de Montevidéu para fabricar charque a partir do “sistema platino” (CORSETTI,
Berenice. Op. cit., p. 175-176). Honório Luís da Silva, por sua vez, possuía uma estância no Uruguai com mais
de 10 mil reses, mas seu inventário não teve prosseguimento (Inventário de Honório L. da Silva, n. 111, m. 6, 2º
cartório de órfãos e ausentes, Pelotas, 1880 (APERS).
131
Jornal do Comércio de Pelotas (05.01.1875) – BPP. Na mesma época, o charqueador Anibal Antunes Maciel
(também entre os mais ricos do grupo) também atuava no comércio marítimo. Conforme o seu advogado, no
processo de inventário do casal, os mesmos possuíam “navios (…) os quais por comportarem alto calado não
podem entrar na Barra do arroio São Gonçalo e chegar a esta cidade, [mas somente em] Rio Grande, onde
costumam estar ditos navios a receber cargas para conduzí-las às províncias do Rio de Janeiro, Bahia e
Pernambuco” (Inventário de Felisbina da Silva Antunes. N. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime
(APERS)).
327
As cartas que Vossa Mercê remeteu para F. Silva Flores e Paiva & Viana foram
entregues. De seu filho obrigado e criado Boaventura da Silva Vinhas”.132

Portanto, mantendo parentes bem posicionados em distintos locais deste amplo


sistema econômico, os charqueadores poderiam obter informações seguras sobre os preços do
sal e quais comerciantes pagavam melhor por suas mercadorias, por exemplo. Exemplos
semelhantes envolvendo estes tipos de parentesco não faltam e podem ser dados na trajetória
dos comerciantes Antônio Teixeira de Magalhães (genro de José Rodrigues Barcellos),
Joaquim Rasgado (genro de José Inácio da Cunha), Manoel de Freitas Ramos (genro do
Visconde da Graça) e o Barão de Arroio Grande (genro do coronel Anibal Maciel). 133 Todos
estes mencionados sogros estavam entre os 12 mais ricos inventariados, o que ajuda a explicar
sua trajetória de sucesso econômico. É certo que estas alianças matrimoniais eram resultado
de negócios que ligavam sogros e genros muito antes dos casamentos e que se fortaleciam
mais ainda após o estabelecimento do parentesco matrimonial. Folhando o Correio Mercantil
de Pelotas, de dezembro de 1876, encontrei um convite à sociedade pelotense para o
casamento da filha do charqueador e “abastado capitalista” Felisberto José Gonçalves Braga
com Eufrásio Lopes de Araújo Filho – herdeiro do “Guarda-roupa da Casa Imperial” Eufrásio
Lopes de Araújo.134 Araújo era o segundo maior importador de sal da década de 1850 e
também figurava entre os maiores exportadores de charque no porto de Rio Grande. E Braga
era primo do barão de Corrientes, um dos 12 charqueadores mais ricos de Pelotas.

Portanto, assim como na primeira geração de charqueadores, na segunda metade do


oitocentos as famílias mais bem sucedidas neste ramo de negócios também atuavam no
comércio marítimo de longo curso. E falar em “famílias” é mais adequado do que considerá-
los atuando individualmente, pois, segundo Braudel, “temos de imaginar esses grupos de
mercadores com seus parentes, amigos, criados, seus correspondentes, contabilistas,
escriturários”, ou seja, eles dificilmente agiam sozinhos. Os charqueadores envolvidos no
comércio marítimo também estavam entre os mais ricos de Pelotas. Portanto, os mesmos
132
Carta de Boaventura Vinhas para João Vinhas. Rio Grande, março de 1848. Anexo à Ação Ordinária de
Claussen & Cia contra João Guerino Vinhas, n. 998, m. 35A, 1º cartório do civel, Pelotas, 1851 (APERS).
133
A atração de genros comerciantes para o interior da família foi algo muito comum entre os charqueadores. Às
vezes esta atuação mercantil se expandia para outros portos. Manoel Soares da Silva, por exemplo, também
casou sua filha com o mencionado Antônio José da Silva Maia, quando ele era ainda comerciante. Manoel ainda
possuía genros comerciantes em Rio Grande, centro mercantil e porto marítimo da região, e outro em Salvador.
O mesmo Maia, enquanto charqueador, possuía um filho estabelecido com casa de comércio em Recife. O
charqueador Jacintho Lopes também possuía genros comerciantes, sendo que um possuía seus negócios em Rio
Grande e outros dois no Rio de Janeiro.
134
Correio Mercantil, 6 de dezembro de 1876. Anexo ao inventário de Severiana Herculana Barcellos, N. 829,
m. 29, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1875.
328
empresários com fortunas superiores a 50 mil libras que possuíam grandes estâncias na
fronteira, também eram grandes negociantes. Sua posição no topo da hierarquia econômica
decorria de uma atuação eficaz nos mercados do gado, do charque e do sal. Portanto, a elite
econômica da província nas últimas décadas da monarquia continuava sendo formada por
comerciantes-charqueadores, exatamente como Helen Osório identificou para o período
colonial tardio 135, o que denotava uma significativa permanência das estruturais
socioeconômicas da província.

Concluindo, pode-se dizer que atuando pessoalmente no porto de Rio Grande ou por
meio de seus filhos, irmãos ou genros, o charqueador podia ter uma relação diferenciada com
os mercadores atlânticos e ser favorecido por conta disto. Ele podia fechar melhores contratos
de fretamento, reservar os melhores carregamentos de sal para a sua charqueada e ter
informações preciosas que nem os jornais conseguiam noticiar. E agindo diretamente neste
comércio, como um pequeno grupo conseguiu, ele lucrava enquanto produtor de
couros/charque e comerciante de longo curso, uma vez que seus navios retornavam
abarrotados de açúcar, aguardente e outras mercadorias. Isto diferenciava os charqueadores
mais ricos dos menos ricos. No entanto, em que patamar estava essa tão propalada riqueza?
Após viajar por Pelotas, Wolfhang Harnisch deixou o seguinte relato sobre esta elite local: “A
riqueza que traziam era fantástica (...) Esses milionários pelotenses bem poderiam ter vivido
no Rio ou em Nice e ainda em Paris; poderiam ter concorrido com os fidalgos russos no luxo
e na dissipação de Monte Carlo”.136

Mas seria verdade?

135
OSÓRIO, Helen. Op. cit.
136
HARNISCH, Wolfhang. O Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1952, p. 85.
329
9. OS BARÕES DO CHARQUE: PERFIL E NÍVEIS DE RIQUEZA,
MOBILIDADE SOCIAL INTRA-ELITE E TRANSMISSÃO DE
PATRIMÔNIO

Que pena que a primogenitura destrua a seleção natural

Charles Darwin

Joaquim José de Assumpção foi o empresário do charque mais rico de Pelotas no século
XIX. Filho de um charqueador e comerciante homônimo, Assumpção também fez fortuna
atuando como capitalista e banqueiro, tendo sido presidente da Companhia de Gás e da
Companhia de Seguros Pelotense. Influente no alto comércio da cidade, também foi o primeiro
presidente da Associação Comercial de Pelotas, em 1873. Quando a sua esposa faleceu, em
1895, o patrimônio do casal foi avaliado em 6.152:393$500 réis. Grande parte dele (74%)
estava composta por apólices da dívida pública do Brasil, investidas no Rio de Janeiro, metade
rendendo 4% e a outra 5% ao ano.1 Segundo Fernando Osório, Assumpção (então Barão de
Jarau) teria acumulado a maior fortuna do Rio Grande do Sul no século XIX.2 Apesar dos
sucessos financeiros alcançados por este empresário, o seu patamar de riqueza não foi atingido
pela grande maioria dos proprietários de charqueada em Pelotas. Nas páginas seguintes
desenvolvo melhor o fenômeno da concentração das fortunas e o perfil do patrimônio dos mais
ricos para buscar compreender quais os fatores favoreceram o enriquecimento de alguns em
detrimento da ruína econômica de outros.

9.1 ALGUNS MUITO RICOS, OUTROS NEM TANTO: HIERARQUIAS DE RIQUEZA E


INVESTIMENTOS ECONÔMICOS ENTRE OS CHARQUEADORES DE PELOTAS

Os inventários post-mortem constituem-se em uma fonte documental privilegiada para o


estudo do patrimônio acumulado pelas elites econômicas. Num universo de mais de 120
charqueadores que identifiquei em diferentes fontes documentais ao longo do século XIX,
localizei 75 inventários (alguns avaliando por mais de uma vez o patrimônio do mesmo
charqueador por ocasião da morte das suas cônjuges) cujos proprietários ainda possuíam o
estabelecimento de charqueada entre os seus bens, já que alguns charqueadores eram somente
arrendatários, outros já não se dedicavam mais aos negócios do charque e uns não tiveram seus

1
Inventário da Baronesa do Jarau, n. 187, m. 6, 1895 , 2º cartório do cível, Pelotas (APERS).
2
OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas. Pelotas: Armazém Literário, vol. 2, 1997, p. 97-100.

330
bens avaliados completamente. Para facilitar a comparação das fortunas inventariadas ao longo
do século XIX, converti todos os valores avaliados dos mil réis para as libras esterlinas, pois,
como é sabido, a moeda inglesa apresentava-se mais estável e tal método reduz as grandes
oscilações do real ao longo do tempo. 3

Tabela 9.1 - Análise das fortunas dos charqueadores (em libras esterlinas) por períodos
N.º Soma dos Média por Mediana Maior Razão da maior
Inventários Montantes inventário fortuna para a menor
fortuna
1810-1825 06 99.782 16.630 12.236 40.256 11

1826-1835 08 42.192 5.574 5.001 12.297 11

1836-1855 19 448.581 23.609 15.629 66.124 16

1856-1870 16 442.026 27.626 19.398 99.023 16

1871-1885 15 688.761 45.917 20.944 189.563 59

1886-1900 07 510.752 72.964 29.937 254.811 89

Total 71 2.232.094 31.887 15.285 254.811 229


Fonte: Inventários post-mortem. Cartórios de Pelotas (APERS)

Analisando a Tabela 9.1, percebe-se que nos dois primeiros períodos (1810-1835) as
fortunas acumuladas pela primeira geração de charqueadores de Pelotas não foram tão altas se
comparadas às inventariadas após 1855.4 Muitos fatores influíram para tal fenômeno.
Primeiramente é necessário considerar que os preços dos escravos, das fazendas de criação e
das próprias fábricas não apresentavam os valores que vieram a possuir após a década de 1850,
pois aquela era uma conjuntura de fronteira agrária aberta, de mão de obra acessível via tráfico
atlântico e de pouca sofisticação nos utensílios e benfeitorias das charqueadas. 5 As primeiras
fábricas, construídas na passagem do século XVIII pra o XIX eram bens de pouca valia,
equivalentes ao preço de 4 escravos. 6 Elas reuniam instalações rudimentares e estavam longe de
compor as partes mais valorizadas do patrimônio inventariado.7

3
Para a conversão dos valores em mil réis para libras esterlinas utilizei as Médias anuais das taxas de câmbio do
Ipeadata, no item séries históricas, disponível em http://www.ipeadata.gov.br/. (acesso em 30 agosto de 2012).
4
É necessário considerar que entre 1836 e 1845, tem-se somente três inventários post-mortem, visto que os
serviços judiciais na cidade praticamente paralisaram durante a Guerra dos Farrapos, além da população ter se
dispersado bastante.
5
O preço dos escravos e das terras também tiveram seu valor aumentado, justamente após o ano de 1850, com a
Lei de extinção do tráfico atlântico e a Lei de Terras como verifiquei nos capítulos anteriores.
6
OSÓRIO, Helen. O império português no sul da fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre:
UFRGS, 2007, p. 310. Além disso, os negócios do ramo, no colonial tardio, ainda eram considerados por muitos
como investimentos de risco. No período de 1810 a 1835, por exemplo, deixei de contabilizar 3 inventários, por
apresentarem um passivo superior ao ativo, ou seja, eram de proprietários que tiveram vários problemas com os
331
Além disso, os charqueadores da primeira geração enfrentaram muitas dificuldades por
terem sido os “desbravadores” neste ramo de negócios. Na passagem do século XVIII para o
XIX e por mais algumas décadas, tanto o acesso ao crédito como os capitais disponíveis para o
financiamento da montagem do complexo charqueador eram demasiado escassos. Portanto,
como já foi enfatizado no capítulo 3, as charqueadas dependiam do capital mercantil das
transações de outras mercadorias com o Rio de Janeiro para serem montadas e mantidas. Esta
geração também penou ao buscar saídas econômicas e novos mercados para os produtos das
charqueadas em conjunturas desfavoráveis. Assim foi na década de 1790, quando eles levaram
o charque até os portos do nordeste, e em 1809, quando encontraram em Havana um importante
espaço consumidor do produto. Neste período inicial, o mesmo problema foi encontrado com
relação à importação do sal e aos monopólios impostos por Lisboa sobre o mesmo.8

Sendo comerciantes que decidiram investir nestes negócios, os mesmos tiveram que
comprar grande parte do seu plantel de escravos recorrendo ao tráfico atlântico, enquanto
muitos dos ricos charqueadores das gerações posteriores tiveram a vantagem de contar com
plantéis herdados do pai ou do sogro (já treinados no trabalho), assim como os conhecimentos
práticos do ramo, desenvolvidos e transmitidos pelos que os antecederam, como tratarei
adiante. Portanto, como não havia um modelo fabril anterior, a primeira geração teve que
“aprender” a administrar sua escravaria, cujo índice de africanos (de diversas procedências) era
bastante alto e, em alguns casos, ultrapassava os 80% do plantel inventariado, muito superior à
segunda metade do século. Ainda com relação à mão de obra, os charqueadores do primeiro
período possuíam um número de escravos inferior às gerações posteriores. Enquanto a sua
média de cativos por proprietário foi de 51,6, nos dois períodos posteriores ela atingiu os
índices de 66,4 e 68,5 escravos, respectivamente. Tais números podem indicar que a capacidade
de abate e produção na maioria das primeiras fábricas era mais limitada do que as suas
sucessoras no ramo, refletindo-se nos seus patrimônios. 9

seus negócios e cujo patrimônio não era suficiente para saldar as suas dívidas. Caso semelhante só voltou a ocorrer
num inventário de 1890, quando o complexo-charqueador escravista já havia definhado.
7
Nos anos 1780, as oficinas de carne seca no Aracati, segundo um vereador da vila, eram “umas casas ou edifícios
insignificantes em forma de telheiros formados de paus e telha vã que em pouco tempo se podem mudar e contruir
denovo com os mesmos paus e telha”. ROLIM, Leonardo. “Tempo das carnes” no Siará Grande: dinâmica social,
produção e comércio de carnes secas na Vila de Santa Cruz do Aracati (c. 1690 – c. 1802). Dissertação de
Mestrado, UFPB, 2012, p. 144.
8
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. Niterói: ICHF/UFF, Dissertação
de Mestrado, 1983, p. 108-115.
9
Foi dessa grande ampliação do comércio do charque, dos couros e demais produtos da pecuária que as vultosas
fortunas dos charqueadores da segunda metade do oitocentos começaram a ser acumuladas. Um último indicador
pode ser dado analisando-se as importações de sal. Entre 1816 e 1822, por exemplo, foi importada uma média
anual de 103.073 alqueires do produto, enquanto que, somente no 1º trimestre de 1854, importou-se 196.671
332
A Tabela 9.1 demonstra que além da ampliação das capacidades de acumular riquezas
ter aumentado na segunda metade do século, os mais ricos nas últimas décadas do oitocentos
eram mais afortunados se comparados aos menos ricos de sua mesma época, ou seja, a riqueza
tornou-se maior e mais concentrada. Se entre 1810 e 1835, os mais ricos tinham um patrimônio
11 vezes superior ao dos menos ricos, entre 1871-1885, este índice foi de 59 vezes e no último
período ele atingiu 89 vezes. São índices de concentração extremamente altos, uma vez que
trato aqui somente de membros da elite econômica, ou seja, não comparo a riqueza dos
charqueadores com a dos mais despossuídos da sociedade pelotense, o que levaria esta
diferença a valores astronômicos.

A ampliação das fortunas inventariadas que caracterizaram os últimos três períodos


analisados foi favorecida por causas que conjugam fatores externos e internos e dos quais já
tratei nos capítulos 7 e 8. Nos anos 1850, os charqueadores foram beneficiados com a entrada
de gado gordo e barato vindo da região da campanha e do Uruguai, por conta dos tratados
assinados em 1851, e puderam contar com o aumento dos preços dos seus produtos na mesma
época. No mercado externo, os couros eram cada vez mais demandados pela indústria europeia
e norte-americana e seus preços também apresentaram índices positivos no mesmo período.
Além do mais, a expansão agrária para a fronteira empregada pelos charqueadores era um
reflexo desta acumulação que propiciava maiores inversões de capital em grandes estâncias,
que retornavam em novilhos com melhores preços. Neste sentido, é possível considerar que as
transformações de ordem mais global na economia interna e externa, estavam refletindo-se na
capacidade de ampliação das fortunas dos próprios charqueadores.

A animação na economia europeia no período teve sua correspondente no Brasil. As


décadas de 1850 e 1860 também foram marcadas por grandes investimentos de capitais
nacionais e estrangeiros em setores estratégicos da economia brasileira. Os altos valores antes
investidos no tráfico atlântico de escravos (estes compunham, na segunda metade da década de
1840, 1/3 do total das importações brasileiras), após a Lei Eusébio de Queiroz, foram
deslocados para outras atividades produtivas.10 Isto significava dizer que um montante
considerável de capitais passou a ser aplicado em investimentos financeiros, sociedades
comerciais e industriais, companhias de seguro e navegação, estradas de ferro, projetos de
colonização, expansão agrícola e obras públicas, gerando muitas opções de investimentos aos

alqueires do mesmo. O sal era produto fundamental para a fabricação do charque e tais índices revelam que a
produção e o comércio envolvendo as charqueadas haviam entrado em níveis muito altos se comparado com as
primeiras décadas do oitocentos (BERUTE, Gabriel. Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro: negócios,
mercadorias e agentes mercantis (1808-1850). Tese de Doutorado. PPG-História da UFRGS, 2011, p. 67).
10
SCHULZ, John. A crise financeira da Abolição. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 36.
333
donos do dinheiro.11 A produção de alimentos voltada para o mercado interno também ampliou-
se e refletiu-se no comércio de cabotagem, que saltou de 255.866 toneladas transportadas, em
1846, para 1.912.313 toneladas, em 1869. 12 Com todo este crescimento, a Bolsa de valores do
Rio viu-se em completa euforia e foi alvo de muitas especulações gerando grandes fortunas e
grandes bancarrotas.13

Conforme o estudado no capítulo anterior, o período entre o final da Guerra dos


Farrapos (1835-1845) e a Guerra do Paraguai (1864-1870) foi de reajuste dos mercados
atlânticos do qual o charque e os couros faziam parte. Antes disso, os comerciantes do Rio
controlavam o tráfico de escravos, o comércio dos couros com o mercado internacional e
lucravam bastante nas transações com os charqueadores.14 Contudo, com a Lei Eusébio de
Queiroz e a “invasão” britânica nos mercados do couro, os comerciantes cariocas perderam um
pouco do seu espaço de influência na economia charqueadora, vindo o charque a ser cada vez
mais deslocado para os mercados do nordeste. Esta realocação dos mercados trouxe grandes
lucros para os charqueadores que conseguiram inserir-se no comércio atlântico – notadamente
um pequeno grupo – mas foi prejudicial aos demais, como demonstro mais adiante.

Portanto, os ganhos e a acumulação de riqueza não estava disponível para todos os


charqueadores. Os anos 1850 e 1860 foram economicamente favoráveis para que somente um
grupo de empresários ampliasse os seus negócios, acumulando grandes montantes de capital,
escravos e bens imóveis. A Tabela 9.2 apresenta 12 fortunas superiores a 50 mil libras
esterlinas ocupando o alto da hierarquia econômica do grupo. Elas totalizavam 21,7% dos
inventários, mas concentravam 63,5% de toda a riqueza. No topo, os 4 mais ricos (que tiveram
um patrimônio superior a 100 mil libras) concentravam mais de 40% da riqueza do grupo.
Pode-se argumentar que o período de comparação (1810-1900) é demasiado amplo, além de
reunir os charqueadores da primeira geração (que estavam em desvantagem no que diz respeito
às possibilidades de acumulação de riqueza) com os dos períodos finais (notadamente em

11
Algumas boas análises desta conjuntura podem ser vistas em LEVY, Maria Bárbara. A indústria do Rio de
Janeiro através de suas sociedades anônimas. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994; PAULA, João Antônio de. O processo
econômico. In: CARVALHO, José Murilo de (Org.). História do Brasil Nação: a construção nacional (1830-
1889). Rio de Janeiro: Objetiva, v. 2, 2012, p. 179-224.
12
GOULARTI FILHO, Alcides. Abertura da navegação de cabotagem brasileira no século XIX. Ensaios FEE, v.
32, n. 2, nov. 2011, p. 415.
13
LEVY, Maria B. Op. cit., p. 54-55. Para uma análise dos investimentos em ações num âmbito nacional ver
FRAGOSO, João L. R.; MARTINS, Maria F. V. As elites nas últimas décadas da escravidão - as atividades
econômicas dos grandes homens de negócios da Corte e suas relações com a elite política imperial, 1850-1880. In:
FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2003, p. 143-164.
14
FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro
(1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998; OSÓRIO, Helen. Op. cit.
334
melhores condições de amealhar fortuna). Mas eliminando os inventários abertos antes de 1850
e refazendo os cálculos percebi que o nível de concentração mantém-se igualmente alto, pois os
11charqueadores com fortunas acima de 50 mil libras passam agora a concentrar 72% da
riqueza no período.

Tabela 9.2 - Faixas de fortuna em libras esterlinas (1810-1900)*


Faixas de fortuna Inventários Fortunas
A Superior a 100 mil 4 7,2 760.856 40,7
B De 50 a 100 mil 8 14,5 425.493 22,8
C De 25 a 50 mil 9 16,4 317.714 17,0
D De 10 a 25 mil 13 23,6 238.138 12,7
E De 5 a 10 mil 13 23,6 96.288 5,2
F Até 5 mil 8 14,7 29.944 1,6

Fonte: Inventários post-mortem. Cartórios de Pelotas (APERS).


*A Tabela totaliza 55 inventários porque, no caso dos patrimônios de charqueadores
cujos bens foram avaliados duas ou mais vezes em épocas distintas (a primeira ou
segunda vez, quando da morte de sua esposa), foram excluídos os de menor monte-
mor.

Como o objetivo maior desta tese é analisar as famílias da elite local que se projetaram
para um patamar diferencial no sentido político e socioeconômico, tornando-se elite regional, e
que, por este motivo, vieram a influir nos rumos do Império escravista, destaco na Tabela 9.3 as
12 maiores fortunas inventariadas. Como já foi dito, o mais rico destes empresários foi Joaquim
José de Assumpção, o Barão de Jarau. Dos charqueadores inventariados ele é o único que não
possuía mais a charqueada, tendo escapado da crise geral que afetou o setor nos anos 1880,
invertendo seus capitais em outras áreas. Banqueiro conhecido em toda a província, em 1895,
74% de seus bens eram compostos em apólices da dívida pública. Portanto, chegando à velhice
numa época de crises (como, por exemplo, o Encilhamento (1890-1891) e a Revolução
Federalista no Rio Grande do Sul (1893-1895)), o Barão preferiu investimentos mais seguros.

Tal postura se assemelhava a de alguns grandes cafeicultores estudados por João


Fragoso e Ana Lugão Rios. A partir dos anos 1860, o Comendador Manoel Vallim, o Barão de
Nova Friburgo e o Barão de Itapeninga, entre alguns outros, deixaram de comprar escravos e
terras, passando a inverter os vultosos lucros de seus cafezais em apólices da dívida pública.
Conforme os autores, tratava-se de uma saída precavida contra o esperado fim da escravidão,
mas que rendia bem menos que os negócios com o café. As opções de investimentos não eram
amplas, pois “o mercado de ações no país era muito precário”. Em 1860, a chamada “Lei dos
Entraves” restringiu as possibilidades de associação de capitais no Brasil, até que, em 1882,
uma nova lei favoreceu tais empreendimentos. Neste período intermediário, restringiu-se “a
335
possibilidade de companhias e de ampliação do mercado acionário”. E para ajudar, após a crise
de 1857, “houve uma restrição ainda maior do sistema bancário” como “parte da política anti-
inflacionária”.15 Neste sentido, um perfil de investimentos semelhantes aos dos fazendeiros-
capitalistas mencionados pode ser verificado nas inversões do Barão de Jarau, muito embora ele
tenha se envolvido no alto comércio, no prestamismo e aplicação de capitais em companhias
(10% do seu patrimônio), antes de optar pelas mencionadas apólices.

Tabela 9.3 – Composição do patrimônio dos charqueadores com fortunas acima de 50 mil libras (%)16
Charqueadores Monte- Monte-mor Ano A B C D E F G H
mor (mil réis)
Nº %
(libras)
Joaquim J. de Assumpção 254.811 6.152:393$500 1895 9,8 2,4 - - - 1,8 1,4 84,6 -
(Barão de Jarau)
Aníbal Antunes 189.563 1.893:256$602 1871 51,8 1,1 159 9,0 10,8 7,5 21,8 - 5,5
Maciel (Coronel)
José Antônio Moreira 173.162 1.829:905$407 1877 15,7 5,8 158 2,7 41,0 14,0 9,5 6,5 2,9
(Barão de Butuí)
João Simões Lopes Filho 143.320 2.894:415$540 1893 24,7 9,7 - - 23,2 1,2 5,2 34,0 0,2
(Visconde da Graça)
José Inácio da Cunha 78.035 749:137$798 1865 49,5 1,6 116 21,3 2,9 7,6 11,4 0,1 2,5

Antônio J. de Oliveira 66.124 634:797$351 1848 15,0 17,0 175 13,3 35,8 7,5 0,6 - 7,5
Castro (Comendador)
José Rodrigues Barcellos 65.409 546:030$572 1850 53,2 14,6 82 6,9 19,7 - 5,7 - -
(Comendador)
Antônio José da Silva 63.482 736:155$500 1884 11,3 37,0 74 - 29,3 9,8 0,1 11,7 0,4
Maia
João Simões Lopes 58.444 472:976$160 1853 15,3 4,1 81 14,1 11,2 27,0 14,5 2,4 1,6
(Comendador)
Joaquim da Silva Tavares 56.808 1.435:164$080 1900 58,7 8,9 - - - 6,5 23,7 1,7 -
(Barão de S. Tecla)
Antônio J. Gonçalves 52.132 500:467$360 1872 14,9 12,6 27 4,5 0,1 33,5 * 23,2 *
Chaves Filho (Doutor)
Felisberto Inácio da Cunha 51.183 500:163$173 1877 43,0 9,2 75 16,6 10,2 - 12,7 2,6 1,7
(Barão de Correntes)
Fonte: Inventários post-mortem. Cartórios de Pelotas (APERS)
A – Imóveis rurais; B – Imóveis urbanos; C – Escravos; D – Dívidas ativas; E – Dinheiro; F – Gado vacum; G – Ações e apólices;
H – Embarcações; * Possuía estes bens em sua firma, mas ficaram com o seu sócio.

Mas um perfil de investimentos diverso foi o do seu cunhado, o charqueador João


Simões Lopes Filho. Atuando no alto comércio e na banca local, ele emprestou grandes
quantias ao Estado, reabilitou a Companhia Hidráulica Pelotense com um investimento de 300
contos de réis, colocou outros 750 contos na Companhia de Iluminação Pública de Porto
Alegre, Pelotas e Rio Grande, além de ter sido um dos líderes na iniciativa da abertura da barra
e canalização do rio São Gonçalo, da Companhia de bondes e da estrada de ferro Rio Grande a

15
FRAGOSO, João e RIOS, Ana Lugão. Um empresário no oitocentos. In: CASTRO, Hebe; SCHNOOR, Eduardo
(Org.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 199-202; 208-210. Ver também
LEVY, Maria B. Op. cit.; Ver, também, FRAGOSO, João. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.
16
Para os charqueadores Felisberto Inácio da Cunha, Anibal Antunes Maciel, Antônio José de Oliveira Castro e
Joaquim José de Assumpção foram consultados os inventários dos bens dos seus respectivos casais, na ocasião do
falecimento de suas esposas que foram, na ordem, Silvana Belchior da Cunha, Felisbina Antunes da Silva,
Francisca Aleandrina de Castro e Cândida Clara de Assumpção.
336
Bagé, entre outros empreendimentos regionais. Por tudo isso foi agraciado com o título de
visconde da Graça.17 A diferença com relação ao seu cunhado foi que ele tinha somente 2% de
seus bens em apólices e 32% em ações de Companhias, revelando que o visconde interessava-
se por investimentos que, por conta dos riscos, buscavam maiores lucros no mercado. 18 Neste
sentido, não há exagero em considerar que Graça, pelo tipo de inversões realizadas, foi um
empresário escravista que, abandonando lentamente os negócios com o charque, inverteu seus
capitais em outros setores, colaborando com a disseminação de práticas mais capitalistas no sul
do Brasil. Analisando o balanço das safras das charqueadas nos anos 1870, é possível perceber
que tanto Graça quanto Jarau já não se dedicavam tanto à produção de charque, como os demais
charqueadores do grupo, pois eles estavam entre os que menos abatiam reses em seus
estabelecimentos.19 Embora outros ricos charqueadores tenham aplicado alguma quantia em
ações (Castro e Barcellos foram os únicos que não o fizeram) seus investimentos não se
comparavam aos de Graça.

A partir da Tabela 9.3 também é possível verificar que o perfil da riqueza dos
inventariados não era homogêneo, pois uns investiam mais em alguns bens do que outros. É
sabido que a maior parte dos charqueadores residia na cidade ou tinha ali residências em que
passavam algumas temporadas. No caso dos mais ricos, todos os 12 inventariados possuíam
imóveis urbanos e pelo menos 7 deles eram proprietários de sobrados na cidade. A maioria
detinha menos de 15% do patrimônio investidos nestes bens. No grupo temos casos como os de
Simões Lopes e José da Cunha que possuíam somente duas casas até o de Maia que era
proprietário de 49 imóveis na cidade. Quando faleceu, este charqueador já havia se retirado dos
negócios e arrendava o seu estabelecimento. O alto número de imóveis urbanos e o
arrendamento da charqueada indica que, no fim da vida, Maia buscou viver como um rentista, o
que não significa que ele estivesse alheio aos negócios, uma vez que seus filhos e genros
seguiram abatendo reses em sua fábrica. 20

Apesar de todos possuírem imóveis rurais (estâncias, chácaras, terrenos e charqueada)


um grupo detinha um peso muito maior aplicado nestes bens. Maciel, Felisberto, Tavares,
Barcellos e Cunha não possuíam menos de 43% de seu patrimônio investido neles. Dos 12
inventariados, 3 possuíam estâncias no Uruguai e somente Castro e Chaves não tinham campos
de criação em municípios fora de Pelotas. Portanto, como já foi tratado no capítulo 7, os

17
OSÓRIO, Fernando. Op. cit., p. 97-100.
18
Inventário Visconde da Graça, n. 1.254, m. 69, 1893, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
19
Jornal do Comércio de Pelotas (12.07.1877) e Correio Mercantil de Pelotas (03.07.1879) (BPP).
20
Inventário de Antônio J. da S. Maia, n. 995, m. 25, 1884, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
337
charqueadores mais ricos também eram grandes criadores de gado (com rebanhos acima de 2
mil reses de criar) e buscavam os melhores campos em municípios vizinhos e na região da
campanha, algo que os charqueadores de fortunas médias e pequenas conseguiam muito pouco.

Com relação à mão de obra escrava é possível verificar que todos aqueles que tiveram
seus bens inventariados antes da Abolição da escravidão (1888) possuíam cativos, como não
poderia ser diferente. Também é possível perceber que o tamanho da riqueza era proporcional
ao tamanho do plantel. Excluindo a escravaria de Gonçalves Chaves, que teve somente parte
dos cativos arrolados, pois o restante ficou com seus sócios, a média deste grupo era de 115
escravos, ou seja, quase o dobro da média geral de todos os charqueadores da época. Apesar
disso, em somente um dos casos o percentual dos escravos foi superior a 20% da fortuna
inventariada. 21 Somado ao valor do estabelecimento da charqueada, eles compuseram mais de
25% dos bens do charqueador em somente dois casos. Entre os charqueadores menos
afortunados, o percentual dos escravos e da charqueada no perfil do patrimônio tendia a ser
maior, revelando que eles tinham menos investimentos em outros ramos de atividades, o que os
tornava mais vulneráveis em conjunturas econômicas adversas. 22 É importante ressaltar que não
ser um grande pecuarista e não atuar no comércio do charque não inviabilizava as atividades
econômicas de um charqueador. No entanto, aqueles que se restringiam somente às atividades
de charquear tinham seus ganhos diminuídos, pois os tornava mais dependentes dos grandes
comerciantes marítimos e dos vendedores de tropas.

Quando se observa o montante composto por armazéns, embarcações, ações, dinheiro e


dívidas ativas é possível perceber que boa parte do grupo possuía um perfil mais mercantil do
que um perfil rural, no que diz respeito aos seus investimentos. Em 5 dos 12 inventários, os três
últimos bens somaram de 33% a 55% dos investimentos. No capítulo anterior, demonstrei como
este grupo dos mais ricos também esteve intimamente ligado ao comércio marítimo de longo
curso, reunindo charqueadores que presidiram a Associação Comercial pelotense, e que
possuíam grandes embarcações, atuando também na consignação mercantil e realizando muitos
carregamentos de charque no porto de Rio Grande.

21
No inventário de Antônio José da Silva Maia constavam apenas os serviços dos 55 escravos que ele havia
libertado sob cláusula de contrato de trabalho. Coloquei 74 cativos na Tabela porque este era o número de escravos
que ele possuía em 1869, quando arrendou sua charqueada para um comerciante (Escritura de 16.09.1869, Livro de
Notas n. 12, 1º Tabelionato de Pelotas, APERS). Em ambos os casos não foi possível saber o preço dos escravos.
22
Este percentual tende a aumentar conforme vai se descendo para as fortunas intermédias e pequenas. Cipriano
Joaquim Rodrigues Barcellos, Custódio Gonçalves Belchior e Inácio Rodrigues Barcellos, por exemplo, tinham
respectivamente 74%, 54% e 84% do seu patrimônio investidos na charqueada e nos escravos (Inventário de
Cipriano J. R. Barcellos, n. 2, m. 1, 1870, 2º cartório de órfãos e ausentes, Pelotas; Inventário de Silvana Claudina
Belchior, n. 727, m. 44, 1870, 1º. Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas; Inventário de Inácio Rodrigues
Barcellos, n. 554, m. 36, 1863, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS)).
338
Portanto, apesar dos patrimônios analisados não apresentarem uma homogeneidade no
que diz respeito a sua composição, há algo que os colocava em situação de semelhança. Eles
não se especializaram num único ramo deste sistema econômico e buscaram diversificar o
máximo possível os seus investimentos. Neste sentido, o seu enriquecimento também foi
resultado da alta capacidade em diversificar os seus negócios e evitar a especialização ou na
produção, ou no comércio ou na criação. Apesar de alguns terem se esforçado para conseguir
um maior sucesso no abastecimento de gado, outros dedicaram-se mais ao comércio marítimo,
enquanto outros na atuação como banqueiros ou investidores capitalistas. Tal capacidade de
investimentos foi muito pequena entre os charqueadores de fortunas menores e intermediárias,
pois, como foi mostrado nos capítulos anteriores, somente uma minoria conseguiu atuar no
comércio de longo curso e possuir grandes estâncias de criação fora de Pelotas. Esta
diversificação era, ao mesmo tempo, um privilégio dos mais ricos e a causa de suas riquezas.
De acordo com Braudel, analisando a hierarquia do mundo dos negócios entre os séculos XV e
XIX, era somente na base e no seu intermédio que os participantes do mundo dos negócios se
especializavam em um ramo, pois na medida em que a economia de mercado encontrava o seu
progresso, ela afetava toda a sociedade mercantil, intensificando a divisão social do trabalho.
Esta “fragmentação das funções” se manifestava primeiro nos estratos inferiores: “os ofícios, os
lojistas, os mascates, se especializavam”. Mas o mesmo não ocorria no alto da pirâmide, visto
que, “até o século XIX, o negociante de altos voos jamais se limitou, por assim dizer, a uma
única atividade”. Era “negociante, sem dúvida, mas nunca num único ramo”, e também era,
“segundo as ocasiões, armador, segurador, prestamista, financista, banqueiro ou até empresário
industrial ou agrícola”.23

Assim sendo, em que patamar de riqueza estavam as fortunas dos mais ricos? Apenas
para lembrar o leitor, Wolfhang Harnisch, visitando Pelotas já no século XX, disse que a
riqueza da elite da cidade, entre os quais estavam os charqueadores, era “fantástica” e que
“esses milionários pelotenses bem poderiam ter vivido no Rio ou em Nice e ainda em Paris;
poderiam ter concorrido com os fidalgos russos no luxo e na dissipação de Monte Carlo”.24 Ora,
perante as fortunas dos grandes magnatas franceses, ingleses e norte-americanos, a maioria dos
charqueadores podia ser considerada como um mero mascate. Na primeira metade do século,
por exemplo, o banqueiro inglês Nathan Rotschild já possuía um patrimônio avaliado em 5

23
BRAUDEL, Fernand. A Dinâmica do Capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 40.
24
HARNISCH, Wolfhang. O Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1952, p. 85.
339
milhões de libras esterlinas.25 Décadas mais tarde, com a grande expansão do capitalismo, os
milionários banqueiros londrinos eram ainda mais numerosos. Entre os mesmos, Youssef
Cassis encontrou 125 fortunas superiores a 300 mil libras (entre 1890 e 1914), sendo que 30
delas superavam o milhão de libras.26 Ampliando o foco de análise para outros ricaços ingleses
além dos banqueiros, William Rubinstein listou dezenas de milionários para o século XIX e
início do XX, como os Duques de Devonshire e Sutherland com 1,86 e 1,37 milhão de libras
respectivamente, e o Barão de Stern e Richard Thornton com 3,54 e 2,8 milhões, entre outros.27
A burguesia francesa também possuía os seus milionários. Em Paris, no início do século XX,
Adeline Daumard encontrou 9 fortunas entre 10 e 50 milhões de francos, 1 com 89 milhões de
francos (mais de 3 milhões de libras) e duas na ordem de 250 milhões de francos, patrimônios
que, segundo a autora, equivaliam aos de Alphonse e Gustave de Rotschild.28 Em 1877, o
homem mais rico dos Estados Unidos, o empresário Cornelius Vanderbilt, possuía uma fortuna
de mais de 100 milhões de dólares (19,6 milhões de libras). 29

O exagero de Harnisch deve ter sido motivado pelos esforços dos charqueadores em
demonstrar o excessivo luxo, o apreço pela cultura, as letras e os hábitos europeizados de sua
elite, como enfatizarei no capítulo seguinte. Neste sentido, com exceção de Mauá e alguns
outros poucos industriais e banqueiros do qual pouco se sabe (e que merecem ser mais bem
pesquisados), as demais elites econômicas brasileiras também possuíam fortunas muito
inferiores às dos magnatas europeus e norte-americanos. Portanto, no século XIX, a riqueza dos
charqueadores estava mais próxima das elites proprietárias brasileiras e é com eles que esta
comparação se torna mais adequada. Conforme Stephen Bell, um rico charqueador tinha capital
suficiente para comprar uma fazenda de café, por exemplo. 30 Apesar de terem existido
propriedades de valores bem menores, escolhi uma das fazendas de café do Barão de Entre Rios
como parâmetro. A Fazenda Penedo, localizada em Paraíba do Sul, valia 260 contos de réis, nos

25
PEDREIRA, Jorge M. Os homens de negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822):
diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Tese de Doutorado. Universidade Nova de Lisboa,
FCSH, 1995, p. 303.
26
CASSIS, Youssef. City Bankers (1890-1914). London: Cambridge University Press, 1994, p. 198.
27
RUBINSTEIN, William. Wealth, Elites and the Class Structure of Modern Britain. Past & Present, n. 76, Aug.
1977, p. 99-126.
28
DAUMARD, Adeline. Hierarquia e Riqueza na sociedade burguesa. São Paulo: Perspectiva, 1985, p. 228;
DAUMARD, Adeline. Les fortunes françaises au XIX siècle. Enquête sur la répartition et la composition des
capitaux privés à Paris, Lyon, Lille, Bourdeaux et Toulouse d’après l’enregistrement des declarations de
succession. Paris, Mouton, 1973.
29
HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital (1848-1875). São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 206. Para a conversão em
libras utilizei MOURA FILHO, Heitor P. Taxas Cambiais do Mil-Réis. Exchange rates of the mil-reis (1795-
1913). MPRA Paper N. 5210. Disponível em <http://mpra.ub.uni-muenchen.de/5210/>, 2006.
30
BELL, S. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching system, 1850-1928. Stanford University Press, 1998, p. 73.
340
anos 1860.31 Tratava-se de um valor bastante alto, mas acessível para os charqueadores mais
ricos e até mesmo para alguns de fortuna intermédia. O mesmo valia para um grande engenho
de açúcar em Pernambuco. Conforme Peter Eisenberg, os maiores engenhos no final do
oitocentos chegavam a custar 200 contos.32

Portanto, em uma escala de comparação com as elites econômicas brasileiras, os


patamares se alteram. O panorama geral, me parece, apresentava grandes fortunas no topo,
distribuídas pelo Brasil, secundadas por médios patrimônios. Um primeiro exemplo pode ser
dado no município cafeeiro de Lorena – no vale do Paraíba paulista. Estudando a localidade,
Renato Marcondes encontrou como o maior patrimônio a fortuna de Joaquim J. Moreira Lima
(400 mil libras), mas o segundo mais rico possuía pouco mais de 60 mil libras. 33 Na Bahia,
Katia Mattoso verificou que mais de 85% dos inventariados possuíam bens avaliados com
menos de 50:000$.34 Contudo, no topo havia a grande fortuna de Joaquim P. Marinho, o
comerciante de charque tratado no capítulo anterior, que deixou 4.245:193$277 em 1887, ou
seja, mais de 390 mil libras.35 Entre os comerciantes importadores de charque pesquisados por
Afonso Graça Filho, o mais rico era o Visconde de São Salvador de Matosinhos, com fortuna
de 217.143 libras, enquanto a segunda riqueza era de Jose Miguel Frias, com 66.224 libras.36

No setor cafeeiro estas concentrações também eram comuns. Em Juiz de Fora, as 6


maiores fortunas superiores a 1.000:000$ concentravam mais de 20% da soma dos patrimônios
de 486 inventários pesquisados entre 1889 e 1914. Neste contexto, a maior fortuna foi do
industrial Bernardo Mascarenhas, avaliada em 128.383 libras esterlinas, em 1889. A fazendeira
de café Carolina Assis de Campos, com 118 mil libras em 1913, foi a segunda fortuna.37 Entre
os cafeicultores do sudeste também se destacaram as fortunas do Barão de Nova Friburgo, com
774.425 libras, em 1872, e a do Comendador Manoel de Aguiar Valim com 271.667 libras, em
1878. Selecionando as 10 maiores fortunas de São Paulo no último quartel do século, tem-se a
liderança do Marquês de Três Rios, fazendeiro de café em Campinas e Rio Claro, banqueiro e

31
FRAGOSO, João L. R. Sistemas agrários em Paraíba do Sul: um estudo de relações não-capitalistas de
produção (1850-1920). Rio de Janeiro: Departamento de História, UFRJ, Dissertação de mestrado, 1983, p. 98.
32
EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco (1840-1910). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977.
33
MARCONDES, Renato. A Arte de acumular na gestação da economia cafeeira: formas de enriquecimento no
vale do Paraíba paulista durante o século XIX. Tese de Doutorado em Economia. USP, 1998, p. 130.
34
MATTOSO, K. Bahia: Século XIX, Uma Província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 613.
35
XIMENES, Cristiana. Joaquim Pereira Marinho: perfil de um contrabandista de escravos na Bahia
(1828-1887). Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBA, 1999, p. 96.
36
GRAÇA FILHO, Afonso de A. Os convênios da carestia: crises, organização e investimentos do comércio de
subsistência da Corte (1850-1880). Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992, p. 258; 272.
37
ALMICO, Rita. Fortunas em movimento: um estudo sobre as transformações ocorridas na riqueza pessoal em
Juiz de Fora 1870/1914. Dissertação de Mestrado. UNICAMP, 2001, p. 104.
341
industrial, com uma fortuna de 896 mil libras, em 1893, seguido pelo Barão de Itapetininga,
com 715.780 libras, em 1877. Os demais possuíam menos de 300 mil libras, com destaque para
Fidelis Nepomuceno Prates e Antônio A. Monteiro de Barros – ambos com pouco mais de 250
mil libras. Conforme Zélia C. de Mello, a maioria destas fortunas tinha origens familiares
ligadas à lavoura açucareira e cafeeira, mas ao final do oitocentos eram extremamente
diversificadas em ações de companhias, indústrias e bancos. 38

Portanto, nos grandes centros de desenvolvimento econômico, notadamente aqueles que


atraíam mais inversões de capital e que concentravam mais indústrias e instituições bancárias, a
quantidade de homens ricos tendia a aumentar – ficando a Corte imperial, certamente, no
topo.39 É neste espaço de investimentos que os patrimônios de grandes industriais e banqueiros,
por exemplo, confundiam a riqueza pessoal com o patrimônio de suas empresas, sociedades e
companhias em que eram acionistas majoritários. O melhor exemplo disso era o visconde de
Mauá, cujos investimentos competiam com os magnatas europeus. Sua fortuna pessoal foi
estimada em 10 mil contos de réis, em 1865, ou seja, mais de 1 milhão de libras esterlinas, mas
talvez seus vários investimentos movimentassem um capital muito maior. Os ativos totais da
Mauá & Cia. nesta mesma época, por exemplo, eram de 115 mil contos de réis (cerca de 12
milhões de libras ou 60 milhões de dólares). 40

Se pudesse ser estabelecida uma hierarquia entre estas fortunas, Mauá ocuparia o topo.
Num patamar abaixo estariam ricaços como os Barões de Nova Friburgo, de Itapetininga, o
Marquês de Três Rios, o Conde de Ipanema, além de outros proprietários, banqueiros e
comerciantes com fortunas superiores a 500 mil libras. Abaixo deles seriam colocados
empresários com fortunas acima de 100 mil libras, ou seja, o Comendador Vallim, Joaquim
Marinho, o Visconde de São J. de Matosinhos, Moreira Lima, Bernardo Mascarenhas,
industriais, fazendeiros, comerciantes e banqueiros de algumas capitais de província, alguns
senhores de engenho baianos e pernambucanos e cafeicultores da Zona da Mata mineira e do
oeste paulista, além dos charqueadores mais ricos de Pelotas, como o Barão de Jarau, o Barão
de Butuí, o Visconde da Graça e o coronel Anibal Antunes Maciel.

38
MELLO, Zélia C. Metamorfose da Riqueza, São Paulo, 1845-1895. São Paulo: Hucitec, 1985, p. 131-147; 164.
39
Neste sentido, também devo incluir aqui a fortuna de um dos grandes financistas do período, o Conde de
Ipanema, que teve seus bens avaliados no ano de 1880 em mais 610 mil libras. Para uma análise deste círculo das
altas finanças no Império ver FRAGOSO, João.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.
40
CALDEIRA, Jorge. Mauá: Empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 428, 439. É
possível que os cálculos do autor contenham certos exageros, o que não elimina o fato de Mauá ser o homem mas
rico do Brasil no período. Para uma análise mais aprofundada da atuação bancária de Mauá ver GUIMARÃES,
Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária Mauá,
MacGregor e Cia (1854-1866). São Paulo: USP. Tese de Doutorado, 1997.
342
Observe-se que se tratavam de setores ligados às altas finanças, às companhias e
indústrias, ao comércio marítimo e à agricultura de exportação. É provável que fora destes
espaços de investimento dificilmente se poderia alcançar as 100 mil libras esterlinas em
patrimônios (com a possível exceção dos grandes latifúndios). Em São João del Rei, por
exemplo, onde predominava a pecuária conjugada com o comércio de abastecimento da Corte e
vilas mais próximas, Afonso Graça Filho não encontrou fortunas superiores a 60 mil libras. 41 O
mesmo vale para Alegrete, município da região da campanha sul-rio-grandense, cuja pecuária
bovina era o centro da economia.42 Contudo, seja em Alegrete ou em São João del Rei, seja em
Pelotas ou em São Paulo, passando por Juiz de Fora, Bahia e Rio, os ocupantes do topo da
hierarquia econômica pareciam sempre diversificar os seus negócios. E no meio rural, ainda
acontecia um outro fenômeno bastante importante. Os fazendeiros mais ricos (senhores de
engenho, criadores de gado, cafeicultores) também atuavam como atravessadores (como se
fossem brokers entre o mercado local e o exterior) comprando a produção dos produtores
menores (por meio de seus agentes) e revendendo-as a comerciantes mais bem estabelecidos.
Por conta disto, também podiam ser chamados de fazendeiros-capitalistas. 43 Fornecendo crédito
e extraindo o excedente dos pequenos produtores, eles ampliavam sua riqueza, num modelo de
atuação local muito semelhante com o que os charqueadores mais ricos faziam com relação aos
menos ricos, o que estabelecia o capital mercantil sempre acima dos distintos setores
econômicos – no gerenciando do capital produtivo.

Não existem muitas pesquisas sistemáticas dedicadas à análise comparativa das fortunas
em termos regionais. Embora este não seja o objetivo desta tese, busquei somente realizar
algumas considerações para situar a riqueza dos charqueadores num contexto mais abrangente.
Na realidade, a grande maioria dos cafeicultores, comerciantes, senhores de engenho,
fazendeiros, criadores de gado e charqueadores, por exemplo, não era formada por homens com
riqueza superior as 25 mil libras esterlinas. Neste sentido, em cada região ou localidade sempre
havia potentados e negociantes com grandes fortunas (cada um com o seu equivalente local) e
matizar a imbricação destas elites econômicas com outros espaços de atuação como a política e
a burocracia, e sua intersecção com espaços de status social, como as letras e a nobreza titulada,

41
GRAÇA FILHO, Afonso de A. A Princesa do oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del Rei
(1831-1888). São Paulo: Anna Blume, 2002.
42
FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do
Brasil (1825-1865). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010, p. 60.
43
FARIA, Sheila de Castro. Fortuna e família em Bananal no século XIX. In: CASTRO, Hebe; SCHNOOR,
Eduardo (Org.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 70-71; FRAGOSO,
João; RIOS, Ana Lugão. Op. cit., p. 207-209; EISENBERG, Peter. Op. cit., p. 90-93; FARINATTI, Luís A. Op.
cit., p. 61-66.
343
ainda permanece uma tarefa a ser realizada. Uma das formas de estudar os níveis e acumulação
de riqueza é compreender os rendimentos das atividades econômicas das elites. A seguir, busco
estimar os ganhos de uma empresa charqueadora escravista.

9.2 NOVILHOS QUE VIRAM DINHEIRO: OS RENDIMENTOS DA EMPRESA


CHARQUEADORA ESCRAVISTA

Não foi possível localizar a contabilidade completa de uma charqueada escravista. De


acordo com Farinatti, “poucos são os livros contábeis propriamente ditos com que se pode
contar para o estudo das “empresas” rurais daqueles períodos”. As explicações do autor para tal
ausência são de que “a maioria daquelas fazendas, sítios, chácaras, estâncias não mantinha
mesmo uma escrituração contábil regular, além disso, muitos dos registros que existiram não se
conservaram”.44 Se para os estancieiros a prática regular de escriturar as suas contas talvez não
fosse comum, entre os charqueadores, que exerciam uma atividade muito mais mercantil que
aqueles, existem evidências de que, no meado do século XIX, esta prática devia ser executada
na maioria das charqueadas. Nos processos judiciais de cobrança de dívidas é muito comum os
juízes mandarem analisar os livros das firmas envolvidas nos autos. Em 1866, por exemplo, na
Liquidação da empresa Viúva Vianna & Filhos, os oficiais de justiça recolheram do escritório
da charqueada 3 livros borradores, dois livros correntes, 1 diário e nove maços de diversos
papéis, sendo um deles de contas de salários e outros com cartas entre 1854 e 1865. No
escritório também havia 3 escrivaninhas e 30 livros de literatura.45

Na ausência de tais documentos, como os encontrados por Stuart Schwartz para os


engenhos de açúcar no Recôncavo baiano46, a reconstituição exata das despesas e lucros de uma
charqueada tornam-se muito difíceis de serem afirmadas com precisão. Para realizar uma breve
estimativa deve-se perguntar, primeiramente, quais os investimentos iniciais deveriam ser feitos
por um indivíduo caso quisesse dedicar-se a este ramo de negócios. Até agora foi possível
verificar que poucos charqueadores detinham grandes estâncias na fronteira e embarcações de
comércio marítimo. Tais inversões ofereciam ao charqueador melhores condições de acesso a

44
FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 100.
45
Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
Entretanto, por uma falta de sorte de minha parte, nem neste processo e nem nos outros as contas da charqueada
foram descritas de forma completa. Os examinadores dos livros apenas avaliavam a veracidade das escriturações,
se havia irregularidades e se as mesmas eram feitas “na lógica mercantil”, como afirmou um oficial. O mesmo
serve para os inventários, onde eram anexados recibos e fragmentos de contas de uma safra, mas nunca uma conta
completa.
46
SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo:
Companhia das Letras, 1999, p. 97-98.
344
setores chaves da economia, mas seria equivocado considerar que os mesmos fossem
imprescindíveis para o exercício das atividades de charquear. Portanto, um iniciante para
começar no ramo dos negócios devia possuir, antes de tudo, a sua charqueada e os seus
escravos e são estes investimentos que deve-se atentar. Realizarei somente algumas
considerações para as décadas de 1850 e 1860, que é onde tenho mais informações, fazendo as
ressalvas necessárias ao longo da exposição.

Pela heterogeneidade das benfeitorias que podiam compor uma unidade produtiva e a
qualidade e tamanho dos estabelecimentos, o valor da charqueada é o mais problemático para se
estabelecer os custos iniciais. Entre os anos de 1850 e 1860, é possível encontrar charqueadas
valendo menos de 20:000$, enquanto a de José Inácio da Cunha valia 110:000$. Isto dificulta
estabelecer um percentual médio dos escravos e da charqueada no patrimônio total de um
charqueador, como Stephen Bell buscou realizar. 47 Além disso, não havia um consenso no que
pertencia e o que não pertencia à charqueada. Foi comum nos inventários anteriores aos anos
1860, os oficiais avaliarem benfeitoria por benfeitoria, ficando difícil definir o que era
imprescindível para o funcionamento da fábrica.

É somente a partir das décadas de 1850/1860 que começam a ficar mais comuns os
avaliadores substituirem o grande número de benfeitorias descritas por somente algumas delas,
ficando subentendido que o terreno, as senzalas, as barracas de couros, as casas dos
empregados, o moinho do sal, o trapiche, entre outros, estavam reunidos numa única unidade
denominada “estabelecimento de charqueada”. No inventário de Joaquim G. da Costa, por
exemplo, a fábrica foi descrita como: “Um estabelecimento de charqueada completo com casa
de sobrado e diversas outras casas térreas, galpões e todas as demais benfeitorias edificado num
terreno situado na margem do Arroio Pelotas”.48 Portanto, não se elencava mais o rol de
benfeitorias e utensílios. Contudo, observe-se que a moradia do charqueador é incluída no
espaço que se entendia pertencer a charqueada. Isto dificulta a análise, porque um sobrado ao

47
BELL, Stephen. Op. cit., p. 72-73. Examinando poucos inventários, Bell considerou que os escravos perfaziam
70% dos investimentos da charqueada. Por azar, o inventário escolhido pelo autor, o do Comendador João Simões
Lopes, foi um dos quais a charqueada apresentou um dos menores valores na época – apenas 15:000$. Analisando
apenas os inventários dos anos 1860, e somando o valor da charqueada ao dos escravos, foi possível verificar 4
patrimônios onde os escravos apresentaram um percentual inferior ao valor da charqueada. Foram os casos de João
Jacintho de Mendonça (45,8%), Inácio Rodrigues Barcellos (34%), Silvana Claudina Belchior (43,2%) e Cipriano
J. R. Barcellos (36,6%). Tais cálculos são muito complexos, pois dependem tanto das condições da charqueada
quanto dos escravos, além da época em que os mesmos foram avaliados. Mesmo assim, por motivos que
explicitarei adiante, tendo a concordar com Bell, pois na maioria das vezes os escravos eram bens mais valiosos do
que a charqueada, ainda mais após a extinção do tráfico atlântico.
48
Inventário de Joaquim G. da Costa, n. 599, m. 38, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1865 (APERS).
345
lado da fábrica era mais um investimento em conforto e um símbolo de status do que algo
indispensável para um investidor que quisesse dar início aos negócios com o charque.

Portanto, decidi investigar as escrituras públicas de compra e venda de imóveis para


verificar o quanto um indivíduo estava disposto a pagar para tornar-se um charqueador no
meado do século. Não foram localizadas tantas escrituras. Na realidade, no meado do
oitocentos, poucos compraram uma charqueada completa e com todos os seus escravos prontos
para trabalhar. Nos anos 1860, somente Cândido Antônio Barcellos o fez. Ele pagou 166:400$
por uma charqueada com todos os seus pertences, 2 potreiros, 1 iate e 56 escravos. Os escravos
(49 homens e 7 mulheres) foram avaliados em 78:400$.49 Por uma grande coincidência o
número de 56 escravos foi exatamente a média de cativos nos inventários dos charqueadores
entre 1850 e 1870. O valor pago por ele pela charqueada foi próximo dos 70:000$. Era um
preço um pouco acima dos 55:000$ – valor médio das charqueadas avaliadas nos inventários da
década de 1860. Portanto, esta inversão de capital de Cândido Barcellos pode nos servir como
ponto de partida na tentativa de estabelecer os rendimentos médios de uma charqueada.

De acordo com o visconde de São Leopoldo, um charqueador recuperava o seus


investimentos iniciais em 6 ou 8 safras. 50 Isto significa que os rendimentos da charqueada de
Cândido Barcellos teriam que estar numa ordem aproximada de 20:000$ a 25:000$ anuais.
Analisando dezenas de processos judiciais e inventários encontrei, para a mesma época,
somente dois depoimentos a respeito dos lucros da charqueada durante uma safra. A charqueada
da Viúva Vianna & Filhos, com 41 escravos, rendeu pouco mais de 49:000$ em 1864, quando
ela buscou dinheiro para pagar seus credores. 51 Em 1862, José Duarte Souza, genro do
charqueador João Vinhas, disse que a charqueada do seu sogro (que nesta época possuía 46
escravos) rendia anualmente cerca de 50:000$. 52 Portanto, para a mesma época, seguindo os
relatos dos próprios contemporâneos, os lucros poderiam chegar ao dobro. A partir dos
fragmentos garimpados em diversas fontes vou tentar oferecer uma estimativa destes
rendimentos. Contudo, insisto com o leitor que, na ausência de livros contábeis, minha
abordagem não buscou em momento algum uma exatidão. Neste sentido, por falta de
documentação, a análise que se segue é passível de erros. Portanto, trata-se de uma experiência
analítica com fins a estimular outros pesquisadores a colaborarem com este tema que entendo

49
Escritura de compra e venda de 01.12.1862, 1º Tabelionato de Pelotas, Livro de Notas n. 9 (APERS).
50
BELL, Stephen. Op. cit., 1998, p. 73.
51
Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º c. do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
52
Inventário de Mathilde da S. Vinhas, n. 567, m. 36, 1862, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
Tratam-se de valores bastante altos e que no caso do segundo depoente, que tinha interesse direto no inventário,
poderia estar super-estimado.
346
ser de grande importância para a história econômica do Brasil, qual seja, a compreensão dos
rendimentos de uma empresa escravista no oitocentos.

Os preços do gado oscilaram bastante durante o período e tenderam a aumentar a partir


dos anos 1870.53 Mas para as décadas de 1850 e 1860, os novilhos vendidos para as
charqueadas deviam valer entre 12$ e 18$. Farinatti, por exemplo, verificou que em 1851 e
1852 um grande estancieiro de Alegrete vendeu seus novilhos por valores entre 14$ a 17$. Na
mesma época, o charqueador João Simões Lopes teve os novilhos de sua estância avaliados em
16$. Em 1862, os novilhos que João Jacintho de Mendonça possuía em sua Estância no Uruguai
foram avaliados em 12$. Portanto, parece que as crias no Uruguai eram mais baratas e comprá-
las podia render maiores lucros ao charqueador. Mas numa escritura pública de 1868 encontrei
novilhos uruguaios sendo vendidos em Pelotas por 18$.54 Portanto, para o cálculo que se segue
optei por uma média de 16$ pelo preço de um novilho abatido numa charqueada pelotense no
meado dos anos 1860.

Com relação ao sal, em 1882, Louis Couty mencionou que a quantidade do produto
utilizado para salgar cada bovino abatido nas charqueadas oscilava entre 8 kg e 10 kg. 55 Ester
Gutierrez, por sua vez, considerou que eram utilizados de 10 kg a 12 kg de sal no mesmo
processo.56 Novamente optei pela média de 10 kg. Tendo em vista que o preço do alqueire de
sal (13,8 kg) oscilou sempre em torno de 1$000, é possível estimar que cada rês consumia
aproximadamente $725 em sal. 57 A respeito dos gastos com mão de obra assalariada utilizei o
mesmo processo de Liquidação da firma Viúva Vianna & Filhos. Nele foram localizados alguns
trabalhadores livres cobrando seus salários referentes à safra que se encerrava. A partir dos
mesmos, é possível calcular os respectivos vencimentos anuais para o capataz (1:536$), o
patrão do iate (480$), o graxeiro (384$), o camarada do iate (320$), o peão da casa (340$) e o

53
Como indicam as cotações correntes nos periódicos de Pelotas. Ver, por exemplo, Jornal do Comércio de Pelotas
em 01.07.1877 (BPP). Em Alegrete, os preços do gado amentaram 31% da década de 1870 para a de 1880
(GARCIA, Graciela. Terra, trabalho e propriedade: a Estrutura agrária da campanha rio-grandense nas décadas
finais do período imperial (1870-1890). Tese de Doutorado, PPGH-UFF, 2010, p. 77).
54
FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 142. Inventário de João Simões Lopes, m. 366, m. 26, 1853, 1º cartório de
órfãos e provedoria, Pelotas; Inventário de João J. Mendonça, n. 41, m. 1, 1862, 2º cart. do cível, Pelotas (APERS);
Escritura de 11.05.1868, Livro de notas n. 11, 1º Tebelionato, Pelotas (APERS).
55
COUTY, Louis. A Erva mate e o Charque. Pelotas: Seiva, 2000 [1882].
56
GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel,
2001, p. 189.
57
Inventário de Thereza S. de Oliveira. N. 310, m. 21, 1849, Pelotas, 1º Cartório de órfãos e provedoria - APERS;
Inventário de Aníbal A. Maciel. N. 815, m. 48, 1875, Pelotas, 1º Cartório de órfãos e provedoria - APERS. Nestes
e em outros documentos, tanto na década de 1840 quanto na de 1870, 1 alqueire de sal valia 1$000.
347
rondador (337$). Somados eles custavam, por ano, 3:397$ ao charqueador. Arredondei para
4:000$, vistos os possíveis prêmios dados aos escravos carneadores.58

Os gastos de manutenção com os escravos também são difíceis de calcular.


Basicamente, eles envolviam roupas, cuidados médicos, mas, principalmente, a alimentação. É
provável que os escravos das charqueadas consumissem mais carne bovina que o de outras
unidades produtivas e a preços menores que o de outros mercados, sendo boa parte do dinheiro
destinado à compra de outros produtos. Em janeiro de 1865, por exemplo, o administrador da
charqueada dos Vianna comprou 15 sacos de farinha e 1 saco de feijão para alimentar um
plantel de aproximadamente 40 escravos e gastou 66$, o que em um ano somariam 792$. Num
plantel de 56 escravos, isto equivaleria a 1:108$800. O cálculo do consumo de carne em outra
charqueada pode ajudar nesta questão. Entre setembro e dezembro de 1847, o charqueador José
de Sá Peixoto gastou 47$180 com carnes para seus escravos (comprando o produto quase todos
os dias), além de 3 varas de fumo (1$200) e 2 botijas de aguardente ($600) para os mesmos,
somando 48$980. Num ano, estes gastos somariam 195$920. Mas Sá Peixoto tinha apenas 21
escravos.59 O proporcional em gastos num plantel de 56 escravos seria 522$453 por ano apenas
em carne, fumo e aguardente. Somados aos gastos com farinha e feijão apontados no outro
processo tem-se 1:631$253 por ano.60 A alimentação certamente era completada com as
plantações das chácaras do proprietário, além da produção de alguns escravos.

Com relação aos cuidados médicos, os Vianna possuíam um convênio com o Dr. João
Campello, no qual pagavam 384$ anuais por atendimentos “a sua família e escravos do seu
estabelecimento de charqueada”. O plano não devia cobrir cirurgias, pois, entre 1863 e 1864, o
médico cobrou um adicional de 320$ para amputar as duas pernas de um escravo, 200$ pela
operação na bexiga de outro cativo e 50$ pela costura abdominal de um escravo ferido. No
total, o charqueador gastou 1:338$000 em 1863-1864, o que resulta numa média de 669$ por

58
Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º c. do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
59
Inventário de José P. Sá Peixoto, n. 276, m. 19, 1847, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
60
Devia ser difícil precisar comprar carne exclusivamente para os escravos, pois as partes dos próprios novilhos
que chegavam para as charqueadas podiam servir para alimentá-los, sem causar grandes prejuízos ao charqueador.
Em 1882, por exemplo, Couty disse que as costelas dos bovinos eram destinados à alimentação dos escravos. Mas
quando fosse necessário comprar o produto, o mesmo não devia custar tão caro. Em abril de 1865, quando a
charqueada dos Vianna não estava mais abatendo, o administrador dos escravos comprou 150 costelas de gado
durante um mês, pagando somente 6$ (custo que em um ano seria de 72$). (Liquidação da Viúva Vianna &
Filhos). Um engenho cubano com 260 escravos consumia 2,5 reses por semana (FRAGINALS, Manuel M. O
Engenho. São Paulo: Hucitec, v. II, 1989, p. 79). Portanto, uma charqueada com 52 escravos (20% do plantel
indicado em Cuba) consumiria ½ novilho por semana, o que daria 24 bovinos por ano. Ao preço de 16$ o novilho,
isto custaria 384$000. Portanto, quando os senhores precisavam comprar carne no mercado local, o preço das
mesmas custavam muito pouco diante do volume de capital movimentado em uma safra na charqueadas.
348
ano.61 Como o convênio incluía os cuidados médicos dos escravos considerei o valor integral
como os custos médicos na senzala. Somando os gastos médicos com a alimentação tem-se
2:300$253 por ano. Os gastos com as roupas são os mais difíceis de estimar, mas também
deviam ser os mais baratos, visto o baixo preço dos tecidos e a presença de escravas costureiras
nos plantéis.62 Estudando os relatórios oficiais de uma companhia mineradora de São João del
Rei, Douglas Libby encontrou uma média entre 58$ e 59$ de gastos gerais com cada escravo
nos anos 1860.63 Para fins de estimativa, por falta de indicações mais seguras e para fechar um
cálculo que resulte numa média aproximada à localizada por Libby, eu acresceria 700$ de
gastos com roupas e despesas eventuais para um plantel médio entre 50 e 55 escravos. Somados
aos cálculos anteriores, isto totaliza um custo anual aproximado de 3:000$ com os escravos,
resultando numa média entre 55$ e 60$ de gastos com cada escravo por ano, ou seja, quantia
muito aproximada da encontrada por Libby.

Também calculei em mais de 4:000$ os gastos com barricas e pipas vazias para colocar
o sebo e a graxa, equivalentes ao produto de uma charqueada que abatesse 20 mil novilhos. 64
Com relação aos impostos, também foi possível fazer estimativas verossímeis. Como o preço
do sal já trazia consigo os seus encargos e, como foi visto no capítulo anterior, os impostos
municipais dos couros e seus fretes eram pagos pelos estrangeiros, não incluo tais valores.
Contudo, os charqueadores deviam pagar os impostos por profissões, por gado abatido no
município e os direitos de exportação do charque. O primeiro era de 265$ por empresário, o
segundo, no caso aqui proposto de uma safra com 20 mil novilhos abatidos, custava 425$ ao
charqueador e o terceiro calculei em cerca 6:658$.65 É certo que existiam outros gastos
adicionais, como reformar uma benfeitoria, por exemplo. Mas não os incluo pelo simples fato
61
Liquidação da Viúva Vianna & Filhos (APERS).
62
Mesmo os relatórios da companhia mineradora inglesa estudada por Libby não revelam os gastos com roupas.
Mas visto a fábrica possuir um departamento de costura, o autor considerou que as vestimentas dos cativos deviam
estar incluídas nos gastos com mantimentos gerais (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 98).
63
LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 98.
64
Este cálculo foi realizado da seguinte forma. Em 1876, 1 pipa com capacidade para 462 Kg de graxa e 1 barrica
para 100 kg de sebo coado podiam ser compradas no mercado por 7$000 e $800 réis, respectivamente. Tendo em
vista que uma rês rendia, em média, 10 kg de graxa e 7 kg de sebo, uma safra que abatesse 20 mil novilhos exigiria
a compra de 432 pipas e 1.400 barricas, resultando em gastos de 4:144$. Os números foram retirados das contas do
Inventário de Ismael Soares de Leivas, n. 972, m. 55, 1º cart. órfãos e provedoria, 1882, Pelotas (APERS) e de
COUTY, Louis. Op. cit., p. 125-127.
65
Calculei os valores dos direitos de exportação no ano de 1863 a partir de uma regra de três simples. Se naquele
ano foram abatidas 326.272 reses nas charqueadas e os impostos de exportação somaram 108:615$240, o charque
equivalente a 20 mil novilhos abatidos pagaria os direitos de 6:658$ (para os direitos pagos e o gado abatido nas
charqueadas ver Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922, p. 246-247;
PIMENTEL, Fortunato. Charqueadas e frigoríficos: aspectos gerais da indústria pastoril do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: Livraria Continental, s/d.). Não fica claro se quem pagava os direitos de exportação era o
charqueador ou o comerciante que revendia suas mercadorias no porto. De qualquer forma incluí na conta do
charqueador, pois os maiores valores, como os fretes marítimos, pareciam ser pagos pelo comerciante carregador,
como enfatizo a seguir.
349
de que também não estou incluindo os ganhos do charqueador com os aluguéis de escravos.
Entre fevereiro e março de 1865, os Vianna receberam 560$ referentes ao aluguel de seus
escravos para dois charqueadores.66 A quantidade de cativos não é especificada. Mas como, nos
anos 1860, os serviços de um cativo das charqueadas valiam 30$ mensais, é provável que
tivessem sido alugados 9 ou 10 escravos por 2 meses.67

Por fim, entre os ganhos do charqueador acrescento 5:665$ pelos fretes de um iate
durante uma safra. Incluí este valor porque Cândido Barcellos, quando adquiriu a sua
charqueada, comprou-a com um iate.68 O ganho médio do charqueador com os produtos da
charqueada pode ser estimado a partir da conta entre Antônio José da Silva Maia e João Batista
Balbé, em 1866. Segundo Maia, que remetia gado para ser abatido na charqueada de Balbé, o
rendimento de um novilho (que ele não especifica nem o peso e nem o valor) naquele ano era
de 2$ por arroba de charque (sendo que uma rês dava, em média, 4,5 arrobas do produto ou
quase 70 kg), 5$ por arroba de sebo, 4$ por arroba de graxa, 4$ a unidade do couro e 6$ o cento
de chifres. 69 Conforme foi visto no capítulo anterior, várias charqueadas produziam cinzas para
o mercado, então resolvi incluí-las nos cálculos de rendimentos, a partir das estimativas de
Louis Couty. 70 Maia, além de charqueador era comerciante e fretava embarcações no porto de
Rio Grande. Nos anos 1870, uma embarcação mandada para a Bahia ou Pernambuco cobrava
$350 a $400 por arroba de charque carregado.71 Em 1874-1875, um navio carregava em média
146,5 toneladas de charque, o que resultaria num frete de mais de 3:900$ até Pernambuco.72
Contudo, a partir da análise dos contratos de fretamento, creio que era o comerciante do porto
que pagava os fretes ao proprietário do navio e não os charqueadores. É provável que ele
calculasse seus lucros sobre o frete pago, mas não foi possível encontrar tais documentos e,
neste aspecto, torna-se necessário novas pesquisas.73

66
Liquidação da Viúva Vianna & Filhos (APERS).
67
Inventário de Mathilde da S. Vinhas, n. 567, m. 36, 1862, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
68
Como todo médio ou grande charqueador possuía o seu iate, ele não precisava pagar os fretes até o porto de Rio
Grande. Contudo, tinha que arcar com os salários do patrão do iate, seu camarada e a manutenção do mesmo. A
segunda opção era mais rentável do que pagar fretes, pois a maior parte dos charqueadores tinha um iate. Um bom
iate podia ser comprado nos anos 1860 por 2:000$. Os salários de um patrão de iate com seu camarada custavam
800$ anuais. De acordo com Duarte de Souza, os fretes dos dois iates da charqueada de Vinhas rendiam mais de
6:400$ por ano (ver nota anterior). Portanto, percebe-se que em uma safra o valor pago pelo iate era amortizado e
ainda rendia lucros. Um fragmento das contas dos fretes do iate da charqueada dos Vianna demonstra que somente
em janeiro de 1865, ele rendeu 944$060 (Liquidação da Viúva Vianna & Filhos (APERS).
69
Processo de Liquidação de João B. Balbé, n. 2.570, m. 74, 1866, 2º cart. cível e crime, Pelotas (APERS).
70
Conforme Couty, a tonelada de cinzas valia aproximadamente 100 francos (33$333) (COUTY, 2001, p. 123).
71
Contrato de fretamento n. 1240, 12.03.1878 (JC-53, Fundo Junta Comercial, AHRS).
72
Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 06.12.1875 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
73
Contratos de fretamento da Corretoria Geral de Rio Grande (Ver, por exemplo, JC-53 e JC-55, Fundo Junta
Comercial, AHRS). Isto fica evidente nas centenas de contratos de fretamento dos anos 1860 e 1870. Eram poucos
350
Tendo sido feitas as devidas considerações, é possível verificar, a partir da Tabela 9.4,
que a charqueada poderia apresentar um rendimento de 9,4% numa safra dos anos 1860.
Lembro que não incluí as entradas referentes aos aluguéis dos escravos. No entanto, posso ter
subestimado alguns gastos, o que compensaria a não inclusão daqueles dados. Mas, como já
disse, trata-se de uma estimativa cujo grau de erros e acertos só pode ser testado com livros
contábeis originais. Assim como em outras empresas da época, estes rendimentos eram maiores
em algumas safras e menores em outras, variando de acordo com os preços dos produtos.74
Tudo isto podia fazer os valores saltarem de 9,4% para quase 15% ou cairem para 3% ou
menos, podendo resultar em sérios prejuízos ao empresário. E estas oscilações foram muito
comuns, pois os preços variavam numa mesma safra e na mesma semana. Portanto, um
charqueador que havia lucrado muito numa safra não caía em desgraça caso sofresse um
prejuízo na safra seguinte (desde que ele não fosse tão grande). Mas no geral, o charqueador
com déficits excessivos sucumbia diante das oscilações. Como ensinou Witold Kula, estudando
os rendimentos dos senhorios feudais polonenses, em qualquer sociedade a conta da empresa
precisava estar equilibrada.75

O rendimento de 9,4% é apenas uma estimativa de um charqueador que possuía como


unidade produtiva somente a sua charqueada. Este foi o caso da maioria dos charqueadores
pelotenses. Caso o mesmo possuísse uma olaria, podia aumentar os ganhos, visto o barro ter um
preço simplório, isto quando era comprado. 76 Ao fabricar os tijolos, construir casas para

os charqueadores que apareciam pagando fretes aos comerciantes e proprietários de navios. Somente os
charqueadores ricos atuavam neste ramo. Acredito que eles compravam o charque dos médios e pequenos, que
deixavam de arcar com os fretes marítimos, mas como o comerciante devia colocar sua taxa de lucro sobre o
produto, forçando os preços do charque para baixo, devia dar no mesmo. Além disso, os comerciantes lucravam
com o retorno dos seus navios que traziam açúcar, aguardente e sal na viagem de volta. Como foi visto no capítulo
anterior, eram os comerciantes ingleses que pagavam os fretes dos couros.
74
Caso o novilho apresentasse um preço médio de 17$, por exemplo, os custos aumentariam em 20:000$,
reduzindo os rendimentos para menos de 15 contos. Se o novilho custasse 18$ em média, o charqueador teria altos
prejuízos na safra, mas se comprasse os novilhos uruguaios dos campos do Capitão Mendonça, avaliados em 12$,
o rendimento seria altíssimo (80:000$ a mais). O preço pago pelos produtos também faziam os rendimentos
oscilarem. Caso o charque aumentasse o preço da arroba de 2$ para 2$200, os ganhos aumentavam 18:000$ no
cálculo final. E se os couros acompanhassem o aumento do charque e saltassem de 4$000 para 4$500, os mesmos
ultrapassavam os 50 contos no final da safra (ou seja, valores próximos do que os Vinhas e os Vianna declararam
em 1862 e 1864, como foi dito acima).
75
KULA, Witold. Da Tipologia dos Sistemas Econômicos. In: FOURASTIÉ, J. (Org.). Economia. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 1979, p. 75-140.
76
É possível que as olarias dos charqueadores abastecessem de tijolos boa parte da região, intensificando a sua
produção durante a entressafra das charqueadas. Tratava-se de um negócio muito lucrativo, pois como a população
crescia desenfreadamente, o número de casas a serem construídas acompanhava tais necessidades. Além disso, a
vizinha Rio Grande também crescia a índices impressionantes. Em 1835, por exemplo, a superfície desta cidade
era de 36 hectares, em 1860, atingiu 75 hectares, mas em 1878 chegou a 458 hectares – um salto muito grande para
pouco tempo. Tendo em vista que, em 1868, Rio Grande possuía apenas 5 olarias (enquanto Pelotas detinha 28) é
provável que parte dos charqueadores suprissem uma parte considerável da construção civil da localidade. Nenhum
outro município da Província possuía mais fábricas de tijolos do que Pelotas (ALVES, Francisco das Neves. A
Cidade de Rio Grande. Rio Grande: FURG, 1997, p. 48; Mapa demonstrativo das Fábricas e Produtos de alguns
351
revendê-las ou alugá-las ou alugar os próprios escravos para a construção civil, eles podiam
potencializar sua economia sem muitos gastos. Comprar terrenos baratos, erigir casas sobre os
mesmos e depois vendê-las podia auferir significativos lucros. Analisando a atuação econômica
da família Rodrigues Barcellos, Carla Menegat pode observar que o charqueador José era um
“verdadeiro especulador imobiliário”. Ele e sua esposa negociaram 40 imóveis entre 1832 e
1871. Quando faleceu, sua olaria havia sido repassada ao filho José Maria. Apenas para lembrar
o leitor, José Rodrigues Barcellos também estava entre os 12 mais ricos de Pelotas. 77

Tabela 9.4 – Estimativa média de rendimentos de uma charqueada em uma safra com abate de 20
mil novilhos (década de 1860)78

Custos em uma safra Produto estimado em uma safra

Gado 320:000$ Charque 180:000$


Sal 14:490$ Couros 80:000$
Salários 4:000$ Sebo 60:000$
Barricas e pipas 4:144$ Graxa 50:000$
Manutenção escravos 3:000$ Chifres 2:400$
Impostos 7:348$ Cinzas 8:300$
Frete (Iate) 5:665$

Custos totais 352:982$ Produto total 386:365$

Rendimentos na safra 33:383$

No geral, os historiadores não costumam distinguir os rendimentos dos pequenos,


médios e grandes produtores. Certamente que os ganhos apontados na Tabela 9.4 podiam ser
maiores no caso dos charqueadores mais ricos, com estâncias no Uruguai e na campanha e com
embarcações de longo curso. Eles podiam lucrar carregando o charque dos concorrentes nos
seus navios e retornando suas embarcações com açúcar, aguardente e sal. Os investimentos em
grandes estâncias retornariam em novilhos com um preço mais barato, além dos mesmos
poderem arrendar os seus campos. Além disso, eles podiam contar com outros ganhos,
alugando suas casas e escravos e emprestando dinheiro na cidade. É impossível saber que
rendimentos os grande charqueadores obtinham nisso tudo, mas creio que, nas boas safras,
devessem ser maiores que os 9,4% indicados, os deixando mais bem preparados para os
períodos de safras ruins.

municípios desta província e de suas riquezas naturais. In: Quadro Estatístico e Geográfico do Rio Grande do Sul,
1868. Códice E-1 (AHRS)).
77
MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de
Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Porto Alegre: PPG-História
UFRGS, Dissertação de Mestrado, 2009.
78
As fontes utilizadas para a composição da tabela estão descritas minuciosamente nas páginas anteriores.
352
No Rio da Prata, um grande saladero com uma variada gama de investimentos podia
render o dobro. Analisando as contas da enorme fábrica de Justo J. de Urquiza, em Entre Rios,
verificou-se que, numa fase de auge, os seus lucros atingiram os 20% na década de 1850.79
Contudo, de acordo com Barran e Nahum, um saladero uruguaio numa época crítica (1862)
podia render até 8% de lucros sobre as despesas na mesma safra.80 O fato é que sem os livros
contábeis de uma média e de uma grande charqueada em Pelotas fica difícil fazer uma
afirmação precisa. Prefiro arriscar que os ganhos ficavam entre 7% e 9% – algo bastante
plausível se comparado a outras empresas da época. Tais rendimentos eram levemente
superiores a outros investimentos na pecuária. Conforme Juan C. Garavaglia, as estâncias de
criação de gado em Buenos Aires obtinham um lucro médio de 1% a 8% no início do anos
1850.81 Taxa semelhante foi encontrada por Luís A. Farinatti na mesma época. Estudando a
criação de gado em Alegrete, o autor percebeu que os grandes estancieiros podiam obter ganhos
entre 3% e 7% por safra.82 Observe-se que se tratam de comparações entre empresas escravistas
e não escravistas e que ambas não apresentavam diferenças significativas.83

Na agricultura os rendimentos podiam ser maiores, mas também oscilavam bastante.


Conforme Fragoso e Florentino, o retorno líquido de uma plantation podia chegar a um
máximo de 12% ao ano, girando em média entre 5% e 10%.84 No Recôncavo baiano, Schwartz
estimou em 6,4% a taxa de retorno sobre o capital de um engenho, no final do século XVIII,
sendo que, nas Antilhas inglesas, algo entre 5% era considerado razoável e 10% excelente.85
Contudo, as conjunturas de alta podiam oferecer ganhos ainda maiores. Conforme Alden, o
cultivo do algodão no Maranhão colonial podia oferecer rendimentos de até 50% nos momentos
de alta dos preços.86 Para as décadas de 1870/1880, um observador declarou que os rendimentos

79
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Historia del capitalismo agrario pampeano. La expansión
ganadera hasta 1895. Buenos Aires: Universidad de Belgrano/Siglo XXI, p. 339.
80
BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo:
Ediciones de la Banda Oriental, 1967, p. 128-129.
81
GARAVAGLIA, Juan C. Patrones de inversión y ‘elite económica dominante’: los empresarios rurales en la
pampa bonaerense a mediados del siglo XIX. In: GELMAN, Jorge; GARAVAGLIA, J. C.; ZEBERIO, Blanca.
Expansión Capitalista y transformaciones regionales: Relaciones sociales y empresas agrarias en la Argentina del
siglo XIX. Buenos Aires: La Colmena, 1999, p. 130-131.
82
FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 142-145.
83
No que diz respeito à criação de gados isto parece evidente. Mas com relação aos saladeros e as charqueadas o
correto seria comparar os lucros de Urquiza com os de um grande charqueador pelotense com muitas inversões de
capital, o que não foi possível estimar. Na comparação com os saladeros uruguaios não há muita diferença entre os
valores, mas este é um problema de pesquisa que ainda está em aberto e merece novos estudos.
84
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e
elite mercantil em uma economia colonial tardia (c. 1750 – c. 1840). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001,
p. 230-231.
85
SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., p. 202-205.
86
ALDEN, Dauril. O período final do Brasil Colônia (1750-1808). In: In: BETHELL, Leslie (Org.). História da
América Latina. São Paulo: EDUSP, v. 3, 1999, p. 568.
353
médios de 9 grandes fazendas de café no sudeste chegavam a 17%.87 Em Pernambuco,
Eisenberg verificou que os engenhos tradicionais dos anos 1870 não atingiam 9% em lucros. 88

É provável que em Pelotas algumas conjunturas fossem mais favoráveis, atraindo


investidores de peso. Em 1869, em pleno auge das exportações de charque, encontrei um
negociante firmando um contrato de arrendamento de uma charqueada em que pagaria 30:000$
anuais. Tratava-se de um estabelecimento completo, com todas as benfeitorias, 74 escravos e 2
iates e o contrato era válido por 8 anos.89 Ora, se o arrendamento estava custando este preço, é
provável que os rendimentos da charqueada no período certamente eram superiores aos 30
contos, como estimei na Tabela 9.4. Caso contrário, não valeria a pena arrendá-la. O mais
interessante é que este foi o maior valor pago por um arrendamento de charqueada que
encontrei, por conta do proprietário alugar os escravos junto com o estabelecimento. Nos
arrendamentos onde os escravos não faziam parte do contrato, as quantias pagas anualmente
ficavam entre 4:000$ e 5:000$. Portanto, no contrato de 1869, o trabalho dos escravos valia
cerca de 85% do usufruto da charqueada enquanto o estebelecimento ficava em torno de 15%.
Este cálculo redime a estimativa de Bell mencionada anteriormente, que, como eu já disse,
concordo plenamente.

Auferindo um ganho de 33:383$ na safra hipotética da Tabela 9.4, é possível considerar


que, caso fosse o capital investido por Cândido Barcellos, o charqueador recuperia 20,1% do
mesmo em uma safra. Seguindo os ritmos de abate apontados, o investidor amortizaria o capital
invertido na fábrica e nos escravos em 5 safras. Mas como 20 mil reses abatidas anualmente era
um número acima da média, é provável que ele recupera-se o capital inicial em 6 ou 7 safras, ou
seja, praticamente a mesma taxa estimada pelo visconde de São Leopoldo, em 1842. Entretanto,
neste cálculo, se os rendimentos anuais obtidos devem estar próximos do que de fato um
charqueador podia obter, os custos iniciais podem estar muito superestimados. No geral, os
charqueadores construíam a sua própria charqueada e, quando as compravam, pagavam valores
menores do que o pago por Cândido Barcellos no mercado. Como os valores dos galpões não
eram muito altos, o capital investido nas benfeitorias era rapidamente recuperado. Neste
sentido, os verdadeiros gastos iniciais eram realizados na compra de escravos, cada vez mais
caros na segunda metade do século.

Portanto, se o charqueador tivesse a sorte de ter herdado um estabelecimento completo e


uma escravaria treinada, que tipo de ganhos isto implicaria? É o que pretendo analisar a seguir.
87
MARCONDES, Renato. Op. cit., p. 150.
88
EISENBERG, Peter. Op. cit., p. 67; 92.
89
Escritura de 16.09.1869, Livro de Notas n. 12, 1º Tabelionato de Pelotas (APERS).
354
9.3 “O MAIOR LEGADO QUE LHES DEIXO”: A TRANSMISSÃO DE PATRIMÔNIO
ENTRE OS CHARQUEADORES

A fortuna acumulada por um charqueador também dependia de outros fatores que não
somente os seus próprios investimentos individuais e o gerenciamento de seu patrimônio.
Sendo a charqueada uma empresa de caráter familiar e que envolvia parentes em outras áreas de
atuação conjugadas ao estabelecimento, como a pecuária e o comércio, é necessário entender
alguns outros fatores no interior da família que favoreciam a economia interna da unidade
produtiva. Os negócios dos filhos e genros, por exemplo, podiam trazer maiores lucros e
estabilidade para as finanças da empresa charqueadora, assim como a forma na qual o
proprietário administrava o seu patrimônio e encaminhava os seus herdeiros na fase adulta
também era fator importante no sucesso da geração seguinte. Neste sentido, a política
sucessória era algo complexo e que envolvia arranjos matrimoniais, antecipações de herança,
investimentos em educação, empréstimos com juros inferiores aos de mercado, entre outros
fatores. Contudo, estas questões, por si só, mereceriam um estudo específico, algo que esta tese
não pretendeu realizar. 90

Neste capítulo pretendo avaliar qual o peso do papel da família na formação e no


sucesso destes empresários escravistas, como os mesmos legavam a charqueada ao filho
“escolhido” como herdeiro e em que situação ficavam os filhos “preteridos” no processo de
sucessão. Para realizar esta análise reuni todas as propriedades de charqueada em Pelotas ao
longo do século XIX e rastreei os seus proprietários ao longo do tempo. Para tal empreitada
pesquisei em diversas fontes. O ponto de partida foi uma listagem elaborada em 1925 por João
Simões Lopes Neto – neto e sobrinho de ricos charqueadores. No seu trabalho, o autor

90
Os estudos sobre a reprodução social agrária, as políticas sucessórias e a transmissão de patrimônio possuem
uma larga tradição nas ciências humanas. Para análises pioneiras ver THOMPSON, E. P.; GOODY, Jack;
THIRSK, J. Family and Inheritance: Rural Society in Western Europe (1200-1800). New York/Londres: Past and
Present Publications/Cambridge University Press, 1978.; LADURIE, Emmanuel Le Roy. Système de la coutume:
structures familiales et coutume d’héritage en France au XVI siècle. Annales ESC, 27 (4-5), p. 825-846;
BOURDIEU, Pierre. A terra e as estratégias matrimoniais. In: BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Rio de
Janeiro: Vozes, 2009, p. 244-265. Para uma profunda revisão historiográfica sobre o tema ver PEDROZA,
Manoela. Estratégias de reprodução social de famílias senhoriais cariocas e minhotas (1750-1850). Análise Social,
v. XLV, 194, 2010, p. 141-163. Para estudos no universo luso-brasileiro entre os séculos XVI e XIX ver
MONTEIRO, Nuno G. O crespúsculo dos Grandes: a casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-
1832). Lisboa: Imprensa Nacional/Csa da Moeda, 1998; DURÃES, Margarida. Estratégias de sobrevivência
econômica nas famílias camponesas minhotas: os padrões hereditários (séc. XVIII-XIX). In: Anais do XIV
Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú (MG), 2004, p. 1-24; BACELLAR,
Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre senhores de engenho do oeste
paulista (1765-1855). Campinas: Centro de Memória da Unicamp, 1997; COSTA, Dora. Formação de famílias
proprietárias e redistribuição de riqueza em áreas de fronteira: Campinas, São Paulo, 1795-1850. In: História
Econômica & História de Empresas. Vol. VII, n. 2, jul-dez, 2004, p. 7-35; FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em
Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (Sudeste, século XVIII). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998;
PEDROZA, Manoela. Engenhocas da Moral: um estudo sobre uma dinâmica agrária tradicional. Tese de
Doutorado em Ciências Sociais, Unicamp, 2008.
355
descreveu a distribuição geográfica das charqueadas que existiram em Pelotas na época,
somando 43 estabelecimentos.91

Estas fábricas não funcionaram ao mesmo tempo, pois algumas foram montadas e outras
desativadas em épocas diferentes. Para cada uma das 43 charqueadas elencadas, Lopes Neto
buscou destacar o primeiro proprietário e para quem a mesma foi sendo transmitida sem
esclarecer muito bem se a mesma foi vendida, entregue por endividamento ou legada por
herança, e em que data ocorreu a transferência. O ponto forte da “relação” é exatamente mapear
e situar as propriedades ao longo das margens do arroio Pelotas e do rio São Gonçalo, uma vez
que a listagem dos proprietários apresenta algumas lacunas que busquei preencher com outras
fontes documentais, como os inventários post-mortem, as genealogias de famílias de
charqueadores, as listas de qualificação de votantes e da Guarda Nacional e as escrituras
públicas de compra e venda. 92

Dos 43 estabelecimentos arrolados por Lopes Neto, tive que eliminar 3, pois em dois
deles o autor não deixou claro quem eram seus proprietários e no outro a charqueada foi
demolida ainda na década de 1830. No entanto, acrescentei outros dois estabelecimentos que
Lopes Neto não arrolou, pois eles estavam localizados fora do círculo principal das
charqueadas, próximas às margens fluviais do São Gonçalo e do Pelotas. Destas 42
charqueadas, reuni informações mais seguras para 32 delas, ou seja, 76% dos estabelecimentos.
As demais parecem não ter encontrado sucessores entre os filhos ou foram destruídas ou seus
proprietários não deixaram muitos vestígios na documentação.

Ao contrário dos estancieiros que podiam ter seu patrimônio fundiário fracionado entre
os filhos, os herdeiros de um charqueador não tinham como dividir a fábrica de charque em
partes, pois o fracionamento da escravaria e das instalações da empresa tornava a continuação
dos negócios inviável. Portanto, as charqueadas eram bens “indivisíveis” (como um engenho de
açúcar, por exemplo) e exigiam um planejamento especial por parte dos proprietários para que a

91
Esta fonte foi publicada na Revista do 1º Centenário de Pelotas intitulada “Notícia sobre a fundação das
charqueadas” e está reproduzida em MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque. Porto
Alegre: Edigal, 1987, p. 99-102.
92
Como, por exemplo, a Lista de qualificação de votantes de Pelotas (Fundo Eleições, maço 2, AHRS) e a Lista de
qualificação da Guarda Nacional (Fundo Conselho de Qualificação da Guarda Nacional, maço 77, AHRS). Um
manifesto assinado em 1848 pelos charqueadores pelotenses reclamando da pesagem do couro apresenta três
indivíduos que não aparecem na listagem de Simões Lopes Neto. O manifesto foi publicado no Jornal O Rio-
Grandense, n. 266, 11.01.1848, p. 4. e foi reproduzido por TORRES, Daniel de Quadro. Rio Grande – Pelotas:
produção, comércio, redes mercantis e interesses econômicos em meados do século XIX. Monografia de conclusão
do Curso de História. FURG, 2004, p. 32. Lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1880 (Biblioteca Pública
Pelotense – transcrição gentilmente cedida pelo Professor Adhemar Lourenço da Silva (UFPel)).
356
empresa não se fragmentasse em gerações posteriores.93 Neste sentido, a política sucessória
deveria envolver um longo processo de “transmissão” e “aprendizagem” dentro da própria
família enquanto o pai ainda estava vivo. Tal processo consistia em investir o papel de sucessor
da charqueada a um dos filhos homens. Em poucos casos este espaço foi preenchido por um
genro do charqueador. Naturalmente, alguns charqueadores venderam a sua propriedade
durante a vida. Nos casos em que não encontraram pessoas na família que o sucedessem, as
viúvas e/ou os herdeiros foram obrigados a arrendarem ou negociarem o estabelecimento.

Os 32 estabelecimentos selecionados pertenceram a diferentes proprietários ao longo do


século XIX. Em 23 deles encontrei os charqueadores transmitindo a administração da
propriedade a algum parente próximo, ou seja, em 72% destes estabelecimentos um
charqueador encontrou, em algum momento, um sucessor na família para seguir nos negócios
com o charque. Em 15 destes 23 estabelecimentos (quase 2/3) o sucessor foi um filho do
charqueador.94 Ao mesmo tempo em que o índice de 72% revela um papel importante da
família no gerenciamento dos negócios, ele também demonstra que cerca de 28% das
propriedades pertenceram a charqueadores que não conseguiram dar prosseguimento à empresa
na geração posterior, tendo que revendê-la, ou cujos herdeiros dedicaram-se a outros negócios.
Tal fenômeno abria um espaço considerável para que indivíduos com o capital necessário
(geralmente comerciantes ou ricos estancieiros) investissem na compra de um estabelecimento
de charquear, adentrando ao pequeno círculo desta elite. Isto fica mais evidente quando se
percebe que menos da metade dos charqueadores teve em seu filho um sucessor nos negócios.
Tendo em vista os grandes lucros que a empresa oferecia na época, creio não ser possível
considerar que este fenômeno tenha explicações de ordem econômica, ou seja, que os herdeiros
estivessem procurando uma atividade mais rentável do que o charque. Creio que o abandono da
família nos negócios com o charque era fruto das muitas crises pela qual passou o setor – tema
que será retomado adiante.

Para refinar esta análise decidi agrupar os empresários em 3 gerações distintas. Na


primeira conjuntura “A” (anos 1820 e início da década de 1830) chegaram a existir ao mesmo
tempo cerca de 35 charqueadas; na conjuntura “B” (década de 1850) havia 38 estabelecimentos;
e no último período “C” (final dos anos 1870 e início dos 1880) também funcionaram 38

93
Ao contrário dos charqueadores, os senhores de engenho já mereceram muitos trabalhos a respeito da análise do
processo de transmissão de herança. Ver, por exemplo, BACELLAR, Carlos. Op. cit.; COSTA, Dora Isabel Op.
cit.; FARIA, Sheila de Castro. Op. cit; PEDROZA, Manoela. Op. cit., 2008. Todos estes estudos serviram de
referencial teórico e metodológico para esta pesquisa.
94
Em 4 destes estabelecimentos o “sucessor” nos negócios foi o genro, em 2 deles foram os netos, em 1 o cunhado
e em outro o afilhado.
357
charqueadas.95 Portanto, motivado pela expansão econômica que caracterizou o meado do
século, o número de estabelecimentos atingiu o seu auge nos anos 1850 e 1860, mantendo-se
estável até o início da década de 1880, para depois decair. Ainda com relação às três
conjunturas, é necessário considerar que a Guerra dos Farrapos (1835-1845) marca um
importante divisor entre os períodos A e B, e as diferentes crises que afetaram as charqueadas
nas décadas de 1860 a 1870 significaram um importante obstáculo para as famílias que atuaram
neste negócio entre os períodos B e C.96

Analisando as 3 gerações e levando em conta os reveses econômicos mencionados é


possível observar que a taxa de renovação das famílias proprietárias de charqueadas em Pelotas
foi bastante considerável e que o número de novos investidores ocupou um percentual mais
significativo ainda. Dos 29 charqueadores que estavam na ativa no período B, 12 também eram
charqueadores no período A e 5 eram filhos de pais charqueadores no período A. Portanto, 17
(58%) charqueadores pertenciam a famílias proprietárias do primeiro período. Por outro lado,
42% deles encontraram espaço para tornar-se proprietários sem possuir vínculos familiares com
os charqueadores locais. Alguns destes “novos” charqueadores do período B eram comerciantes
ou estancieiros que decidiram investir nos negócios, sendo que parte deles acabavam casando-
se com filhas dos charqueadores cujas famílias eram “estabelecidas”, vindo a se inserir no
interior de uma rede parental mais ampla, que envolvia crédito e acesso ao mundo da política
local.

Dos 29 charqueadores do período B, somente 4 ainda estavam na ativa no período C e


outros 12 possuíam parentes próximos no mesmo. 97 Portanto, de 1850 para 1880, 16
charqueadores (55%) tiveram seus bens nas mãos da mesma família. É um índice muito
aproximado do apontado acima. Superando todos estes reveses e permanecendo do período A
até o C, ou seja, por mais de 60 anos neste ramo de negócios, tem-se 13 famílias (proprietárias
de 14 charqueadas), ou seja, 43,8% dos 32 estabelecimentos selecionados para esta análise.
Algumas delas estão entre as 12 famílias mais ricas desta elite (aquelas que apresentaram
fortunas inventariadas superiores a 50 mil libras), como os Gonçalves Chaves, os Silva Maia, os
Moreira, os Assumpção, os Simões Lopes, os Rodrigues Barcellos e os Oliveira Castro. É
possível considerar que a história destas 13 famílias se confundia com a história de seus
estabelecimentos e que as mesmas concentraram em suas mãos uma parcela considerável das

95
Como já foi dito, nem todas as charqueadas existentes nestas épocas fazem parte da análise.
96
Para uma análise dos charqueadores pertencentes a cada período ver Anexos da tese.
97
Entre os mesmos, 7 estavam nas mãos dos filhos, 2 dos genros, 1 dos netos, 1 do irmão e 1 do cunhado. Como
um destes charqueadores possuía dois estabelecimentos e ambos ficaram com os netos, o número de charqueadores
é 16, mas o número de charqueadas 17.
358
charqueadas analisadas, vedando o acesso das mesmas a outras famílias. Para fins analíticos,
denominei estas famílias que conseguiram passar por guerras e grandes crises econômicas e
permanecer nos negócios com o charque entre os anos 1820 e 1880 de famílias longevas.98
Tornar-se genro de um charqueador poderia ser uma das formas de ingressar na elite
charqueadora. Contudo, entre as famílias longevas o genro conseguiu herdar o papel de
charqueador somente em 2 delas, pois os filhos foram os sucessores preferenciais do interior
das mesmas. Tendo em vista que das 32 charqueadas analisadas aqui apenas 15 apresentaram
sucessão de pai para filho, pode-se dizer que as famílias longevas foram as mais representativas
em praticar com sucesso uma política sucessória de pai para filho, pois reuniam 11 das 15
charqueadas (74,3%) em que tal tipo de transmissão foi realizada.

Este padrão de transmissão da charqueada para um dos filhos não deve ser visto como
uma obviedade nas relações familiares. Estudando os engenhos de Campos dos Goytacazes
(Rio de Janeiro) no século XVIII, Sheila Faria verificou um sistema sucessório matrilinear, ou
seja, o engenho era transmitido para um dos genros por intermédio de uma das filhas. No caso
estudado por Faria, o genro português e comerciante foi o típico herdeiro e sucessor nos
negócios da localidade. No entanto, estudando diferentes sistemas sucessórios e dando ênfase
aos engenhos de açúcar do oeste paulista, Carlos Bacellar considerou que havia padrões
diferenciados no processo sucessório dos mesmos. Neste mesmo sentido, Dora Costa
identificou um padrão diferente do localizado por Faria. Estudando o oeste paulista na
passagem do século XVIII para o XIX, ela verificou que o padrão hegemônico era o patrilinear,
embora houvesse espaço para os genros herdeiros.99 O padrão localizado nas charqueadas
pelotenses era semelhante ao encontrado por Costa.

Dos 14 charqueadores (15 charqueadas) que tiverem nos seus filhos o sucessor nos
negócios com a charqueada, 12 tiveram nos primogênitos os herdeiros preferenciais. Para um
deles o sucessor foi o segundo mais velho e para outro não consegui identificar se o filho
herdeiro era o mais velho. Portanto, em mais de 90% dos casos onde houve a transmissão da
administração da charqueada para o filho, o mesmo era o primogênito, sendo os secundogênitos
não incluídos neste processo de transmissão informal. Ora, estamos diante de uma distinção
notável nas políticas sucessórias realizadas por um grupo de famílias se comparada às demais.

98
Obviamente que o “longeva” diz respeito à história das famílias proprietárias nas charqueadas em Pelotas, uma
vez que, em outras realidades históricas, o período de 60 ou 70 anos não representava uma grande permanência no
tempo. Ver, por exemplo, MONTEIRO, Nuno. Op. cit.; BECKETT, J. V. The Aristocracy in England 1660-1914.
Londres, 1986; MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma parábola genealógica no Pernambuco
colonial. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
99
FARIA, Sheila de C. Op. cit; BACELLAR, Carlos. Op. cit., p. 15; COSTA, Dora. Op. cit.
359
Se as famílias longevas concentraram as sucessões da charqueada de pai para filho e se nestas
sucessões predominaram as transmissões para os primogênitos, podemos concluir que a longa
permanência destas famílias nos negócios com o charque estava diretamente relacionada ao tipo
de política sucessória realizada. A transmissão da charqueada para um filho-sucessor parecia
garantir uma transição mais estável e que assegurava às gerações seguintes uma maior
permanência neste ramo de negócios. Mas pode-se ir mais adiante. Se grande parte das famílias
longevas também estavam entre as famílias mais ricas da segunda metade do século, é possível
verificar o quanto uma política sucessória envolvendo o primogênito podia condicionar a
trajetória e a possibilidade de ganhos econômicos das gerações posteriores.

Apesar de todas as mudanças socioculturais ocorridas na sociedade brasileira do


oitocentos, firmando um maior individualismo entre os homens livres e a igualdade nos
sistemas de herança100, alguns charqueadores, notadamente aqueles que vieram a apresentar as
maiores fortunas da segunda metade do oitocentos, pareciam favorecer os primogênitos varões,
concentrando a propriedade mais importante da família nas mãos do filho “escolhido”. Tendo
em vista os indicadores da Tabela 9.5, pode-se concluir que os níveis de riqueza eram
diretamente proporcionais à estabilidade das famílias nos ramos dos negócios e no tipo de
política sucessória realizada. Com isto é possível afirmar que a riqueza herdada e a
primogenitura não garantiam um sucesso absoluto, mas ajudavam a ampliar as possibilidades
de enriquecimento dos charqueadores que se encontrassem nesta posição na segunda metade do
século XIX.

O charqueador mais rico de Pelotas pode contar com um triplo fator de favorecimento
na sua trajetória. O Barão de Jarau era: a) filho de charqueador; b) genro de charqueador, com
poucos cunhados; c) tinha poucos irmãos. O primeiro e o segundo fator dispensam comentários.
Jarau foi beneficiado em duas partilhas de patrimônios consideráveis e na segunda delas,
possuía somente 3 cunhados com quem dividir os bens de seu sogro. Além disso, o fato de
possuir somente um irmão e uma irmã permitiu ao mesmo ficar com boa parte do patrimônio do
pai – que além de charqueador, era comerciante marítimo. Não encontrei nenhum caso igual ao
dele. Mas outros dois dos mais ricos charqueadores de Pelotas chegaram perto disso. O
Visconde da Graça, por exemplo, era filho de charqueador e também tinha poucos irmãos (3),
mas não teve a sorte de tornar-se genro de um rico charqueador como Jarau. O Barão de Butuí,
por sua vez, apesar de não ser filho de charqueadores, casou-se com a única herdeira de

100
NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote. Mulheres, Famílias e Mudança Social no Brasil (1600-1900).
São Paulo: Cia. das Letras, 2000, em especial o capítulo 3.
360
Antônio José de Oliveira Castro – um dos 12 charqueadores mais ricos do grupo aqui estudado
– herdando parte da fortuna do sogro na primeira partilha do casal, em 1848. Estes três casos
(mas principalmente o do Barão do Jarau), lembram a forma como o Comendador Manoel
Vallim começou a acumular a sua grande fortuna de cafeicultor em São Paulo. Herdando
grandes patrimônios agrários do pai e do sogro, Vallim os administrou com competência, vindo
a tornar-se uma das maiores fortunas do Brasil no oitocentos. Zélia C. de Mello também
mencionou que as grandes fortunas de São Paulo no fim do oitocentos tinham origens
familiares vinculadas ao café e ao açúcar.101 Sendo assim, o peso da riqueza familiar na
constituição das fortunas das mencionadas elites na segunda metade do oitocentos era notável.

Tabela 9.5 – Relação entre riqueza, posse de estâncias e longevidade da família


nos negócios com o charque (1810-1900)

Faixa de Fortuna Famílias Estâncias fora


(em libras) Longevas de Pelotas

Mais de 100 mil 75% 100%


De 50 a 100 mil 57% 75%
De 20 a 50 mil 42% 38%
De 10 a 20 mil 20% -
Menos de 10 mil 4% 14%
Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS);
Escrituras Públicas de compra e venda do 1º, 2º e 3º Tabelionato de
Pelotas (APERS).

Portanto, a ironia de Charles Darwin a respeito da aristocracia inglesa, e que serviu de


epígrafe neste capítulo, cabia perfeitamente ao universo pelotense aqui analisado. O
primogênito de um charqueador já nascia com notáveis condições de superar os concorrentes
nos negócios e tal fenômeno colocava os adversários em situação desfavorável. No seu
testamento, uma das primeiras coisas que o charqueador Domingos de Castro Antiqueira, neto
de índios e sem raízes familiares no grosso comércio, deixou escrito foi: “Declaro que todos os
bens que possuo foram adquiridos pelo meu trabalho”. 102 Neste sentido, como demonstrou
Adeline Daumard, riqueza adquirida e riqueza herdada pareciam tensionar-se num mundo onde
o individualismo empresarial cada vez mais buscava se desprender das amarras institucionais e
tradicionais que insistiam em detê-lo, muito embora a burguesia europeia também
compartilhasse de notáveis emaranhados parentais e suas empresas contassem com um
gerenciamento de caráter familiar. 103

101
FRAGOSO, João; RIOS, Ana Lugão. Op. cit.; MELLO, Zélia C. de. Op. cit.
102
Inventário do Visconde de Jaguari, n. 348, m. 25, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedora, 1852 (APERS).
103
DAUMARD, Adeline. Os burgueses e a burguesia na França. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Em especial o
capítulo 3.
361
Não possuo elementos documentais para defender esta hipótese, mas era como se as
práticas de sucessão das famílias longevas fossem inspiradas nas políticas sucessórias
características das casas nobres portuguesas do Antigo Regime, assegurando ao filho mais
velho o nome do pai e a própria charqueada – um bem indivisível –, mas sem deixar de agregar
os demais filhos ao patrimônio legado.104 Na origem de algumas destas famílias longevas
estavam charqueadores portugueses da primeira geração do colonial tardio, como José Antônio
Moreira, João Simões Lopes, Joaquim José de Assumpção, João Vinhas, Manoel Batista
Teixeira e Antônio José Gonçalves Chaves. Nestes casos, os filhos que herdaram a
administração da sua charqueada eram seus primogênitos e seus homônimos. Para tornar esta
análise ainda mais interessante, é necessário afirmar que das 13 famílias longevas apontadas, 9
estavam ligadas entre si por meio de matrimônios estabelecidos entre filhos e filhas, denotando
uma apreciável endogamia.105

A Tabela 9.5 também demonstra que a presença de grandes estâncias nos patrimônios
era diretamente proporcional não apenas ao acúmulo de fortunas, como já foi dito no capítulo 7,
como também à estabilidade da política sucessória. É provável que na maioria dos casos, para
que o sucessor da charqueada reunisse os escravos e a fábrica sem o prejuízo dos demais irmãos
e irmãs, o pai devia ter que possuir um patrimônio significativo para garantir uma sucessão
mais estável. Sendo as estâncias e os animais uns dos bens de maior valor no monte-mor dos
charqueadores, é possível perceber que a terra, além da nítida função econômica, e de fonte de
poder e status, também parecia funcionar como fator de estabilidade na condução da política
sucessória. Aliada aos imóveis urbanos e ao dinheiro, as terras (e aqui incluo os pequenos
campos e as chácaras dentro da própria Pelotas) garantiam uma sucessão mais tranquila para as
gerações seguintes.106 Tendo em vista que as charqueadas funcionavam sob uma perspectiva de
atuação familiar, pois irmãos e genros ocupados em unidades produtivas distintas tinham nela
um fator de alocação de seus rebanhos e capitais, o pai garantia uma reprodução social das
mesmas práticas envolvendo todos os herdeiros, muito embora o filho-charqueador pudesse
auferir os melhores rendimentos, além de encarnar o nome e o prestigio do pai no mercado.

Charqueadores que não possuíam tantos bens podiam passar por um processo de
transmissão de patrimônio mais dificultoso. Um exemplo disso pode ser dado na charqueada de
Inácio Rodrigues Barcellos. Com uma fortuna pequena para os padrões dos charqueadores, os

104
MONTEIRO, Nuno. Op. cit.
105
Acerca deste tema inspirei-me no tratamento dado por MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Op. cit.
106
Não quero com isto dizer que o charqueador comprasse a estância pensando neste dispositivo. Mas em alguns
casos, estas propriedades facilitavam a igualdade na distribuição da herança.
362
seus herdeiros tiveram que contornar o sistema igualitário de herança no Brasil. Neste contexto,
a família devia elaborar estratégias de sucessão dos bens que fossem aceitas entre seus
membros e não prejudicassem em demasia uns com relação aos outros. 107 Uma das formas de
realizar este projeto era o charqueador legar em sua terça testamentária uma parte dos bens para
o filho-sócio, favorecendo-o na partilha. E foi exatamente o que Inácio Barcellos fez. Contudo,
como a sua fortuna não era suficiente para encaminhar todos os herdeiros, Barcellos dividiu a
sua terça aos três filhos mais velhos que acabaram se tornando sócios na charqueada até a
década de 1880.108

Para além dos dados estatísticos, é possível verificar em outros documentos o


encaminhamento da administração da charqueada de pais para filhos. João Vinhas, por
exemplo, foi proprietário de dois estabelecimentos, sendo que um deles estava instalado no
Uruguai. Na propriedade localizada em Pelotas, ele possuía sociedade com o filho primogênito.
No seu testamento, Vinhas ainda esclarecia que o genro deveria ser gratificado por serviços
prestados na sua outra charqueada localizada no Uruguai. Como o falecimento do pai, Vinhas
Filho tornou-se proprietário da charqueada e, posteriormente, a mesma foi passada ao seu irmão
caçula Pedro.109 Este mesmo tipo de iniciação do filho enquanto sócio e herdeiro preferencial
pode ser verificado nos inventários de outros charqueadores como José Inácio da Cunha, Tomás
José de Campos e Boaventura Rodrigues Barcellos, por exemplo. 110

Nas listas de qualificação de votantes também é possível verificar isto. Em 1865,


Heleodoro de Azevedo e Souza, 60 anos, e seu filho homônimo, 35 anos, foram classificados
como “charqueadores”. Como possuíam somente um estabelecimento, pai e filho deviam
administrar conjuntamente a fábrica da família. Na mesma lista, caso idêntico foi o de José
Inácio da Cunha e Possidônio Mâncio Cunha, pai e filho. 111 Em 1880, ano em que Antônio José
da Silva Maia era proprietário de uma charqueada em Pelotas, seu filho Bernardino da Silva
Maia foi qualificado como “administrador”. Na leitura dos inventários de membros da família
Maia, fica evidente que os filhos e genros auxiliavam no gerenciamento da empresa. 112 No

107
Para maiores detalhes sobre os sistemas de herança no Brasil Império e as estratégias sucessórias para contornar
estas relações ver COSTA, Dora. Op. cit.
108
Inventário de Inácio R. Barcellos. N. 554, m. 36, 1863, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
109
Inventário de João Guerino Vinhas. N. 383, maço 26, Cartório de órfãos e provedoria, ano 1854, Pelotas,
APERS. p. 13v. Listagem de Simões Lopes Neto.
110
Inventários de José Ignácio da Cunha. N. 600, m. 38, 1865, 1º cartório de ófãos e provedoria, Pelotas (APERS),
Tomás José de Campos. N. 1004, m. 47, 1º cartório de órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS) e Boaventura R.
Barcellos. N. 409, m. 28, 1856, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
111
Lista de Qualificação de votantes de Pelotas, 1865, m. 2, Fundo Eleições (AHRS).
112
Lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1880 (Biblioteca Pública Pelotense – transcrição gentilmente
cedida pelo Professor Adhemar Lourenço da Silva (UFPel)).
363
mesmo ano, Vicente Lopes dos Santos Filho aparece como “gerente” na lista de votante e no
mesmo documento o seu pai era charqueador, revelando que esta família também apresentava
este tipo de negócios.113

Neste sentido, os charqueadores que vislumbravam a continuidade dos seus negócios


com seus herdeiros buscavam orientar os filhos para uma direção planejada. Em 1870, o
charqueador Tomás Jose de Campos deixou claro em seu testamento que os filhos Virgínio e
Tomás o auxiliavam no estabelecimento, mas que o primeiro era seu sócio e que a direção dos
negócios devia ficar a cargo dele. A orientação paterna e a tentativa de manter a família unida
nos negócios ficam claras em outro trecho do testamento, quando o pai pede para que “não haja
entre meus herdeiros a menor questão judicial; de que não representem o papel de corvos a
espicaçar a carniça a quem mais aproveita”. E complementava: “Quisera que me fizessem o
bem de sempre se auxiliarem como irmãos, e darem o bom exemplo de mutuamente se amarem,
seja este o maior legado que lhes deixo”.114

Creio que na maioria dos casos o irmão-charqueador devia buscar uma maior harmonia
com os familiares, pois a mesma podia lhe facilitar nos negócios. Quando este possuía um
capital suficiente ou o apoio do restante da família (que lhe permitia as negociações com prazos
e valores privilegiados) ele podia comprar as partes herdadas pelos irmãos na charqueada e os
escravos tornando-se o único proprietário da mesma. Dora Costa utilizou o termo “irmão
concentrador” para analisar estes casos. Foi o que fizeram João S. Lopes Filho e Antônio J.
Gonçalves Chaves, por exemplo. Este seguiu administrando a charqueada do pai junto com
outros de seus irmãos.115 Firmas formadas por irmãos e cunhados não eram raras, mas a grande
maioria dos inventários post-mortem que pesquisei revela que as charqueadas possuíam
somente um proprietário, apesar de serem gerenciadas com a participação de familiares.

As vantagens de se ter um pai charqueador eram nítidas. Sendo realizada no interior da


família, esta transmissão da charqueada não envolvia apenas os bens materiais, mas também os
conhecimentos administrativos, o prestígio social, a rede de créditos, o governo da escravaria,
entre outros fatores importantes no gerenciamento dos negócios. Sendo assim, esta ocupação
envolvia um conjunto de “saberes”, ou seja, de conhecimentos específicos herdados e que eram
aprendidos desde a juventude, quando o filho já acompanhava o pai na administração dos bens.

113
Inventário de Antônio José da Silva Maia. N. 995, m. 57, 1884, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas
(APERS). Lista de Qualificação de votantes de Pelotas (1880).
114
Inventário de Tomás José de Campos. N. 1004, m. 47, 1º cartório de órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS).
115
Livro de Transmissões e Notas. 2º Tabelionato, Pelotas, Livro 4, p. 73v. Inventários de Antônio José Gonçalves
Chaves. N. 754, m. 45, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1872, Pelotas (APERS).
364
Tal aprendizado envolvia o conhecimento das redes mercantis, tanto para comprar gado e sal,
quanto para conseguir mão de obra por um preço favorável. Portanto, o filho charqueador já
iniciava os seus negócios imerso em um mundo de privilégios inacessíveis aos não-iniciados.
Sob a supervisão do pai, ele compartilhava das redes de relações do mesmo, podendo garantir
melhores acordos com arrendatários, capatazes e trabalhadores eventuais, além de herdar
prestígio social e político – importantes nas negociações e na busca de crédito na praça, assim
como favores de diferentes tipos. Portanto, creio não ser coincidência que 7 das 9 famílias de
charqueadores mais ricas de Pelotas também estão entre as famílias que denominei longevas, ou
seja, aquelas que conseguiram manter-se nos negócios desde a década de 1830 (e muitas delas
antes disto) até os anos 1880.116

No entanto, a escolha do filho-charqueador devia ser uma tarefa eivada de dificuldades,


pois exigia acordos e devia buscar não desagradar os outros filhos, como já mencionei.
Algumas vezes os planos fracassavam. Em 1890, José Bento de Campos, em seu testamento,
deixou claro o seu descontentamento, pois o filho homônimo que ele colocou como
administrador da charqueada vinha retirando quantias superiores a que tinha direito, e o pai
assumiu que isto desfavorecia os seus outros filhos. 117 Os casos conflituosos dificultavam a
partilha dos bens e exigiam maiores gastos do irmão-charqueador, além de provocar brigas no
interior da família, quebrando as relações econômicas e de favores estabelecidas no seu
interior.118 Na falência da charqueada da família Vieira Vianna, o motivo da quebra, segundo a
viúva, deu-se pela má administração do filho Manoel.119 E em 1862, os herdeiros do
charqueador João Vinhas entraram em conflito pelo usufruto da charqueada. Um dos motivos
da contenda foi a acusação de que o filho administrador não soube estimar os reais valores do
arrendamento da charqueada e dos fretes dos iates. 120

116
Entre os estancieiros estudos por Farinatti, ocorria algo semelhante: “Tanto no caso do desempenho da pecuária
quanto no que tange à ocupação de cargos militares, o fato dos filhos homens seguirem os passos do pai era
francamente facilitado pela existência de um patrimônio previamente construído pela atuação paterna. Tal
patrimônio era composto por estâncias, gado, escravos, relações comerciais, crédito e informações, no caso da
pecuária e negócios, e por cargos e relações sociais, no caso dos postos militares. (...) os filhos de grandes
estancieiros tinham facilidade no início de suas trajetórias como pecuaristas, uma vez que muitos deles recebiam
gado e escravos como adiantamento de herança, podiam criar seu primeiro rebanho nas terras de seus pais, sem
necessitar pagar qualquer forma de arrendamento e contavam com o crédito que seus pais já haviam conquistado
no mercado” (FARINATTI, Luis. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do
Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPG em História Social do IFCS-UFRJ, 2007, p. 224).
117
Inventário de José Bento de Campos. N. 1165, m. 65, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
118
Ver, por exemplo, os inventários de João Guerino Vinhas. N. 383, maço 26, Cartório de órfãos e provedoria,
ano 1854, Pelotas (APERS); Jacintho Antônio Lopes. N. 1028, m. 58, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1885,
Pelotas (APERS); Inventário de Felisbina da S. Antunes. N. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime (APERS).
119
Liquidação da Viúva Vianna & Filhos (APERS).
120
Inventário de Mathilde da S. Vinhas, n. 567, m. 36, 1862, 1º cart. de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
365
O esforço financeiro do irmão-concentrador e a intromissão de genros e parentes
diversos na administração do novo proprietário permite considerar que ser o herdeiro da
charqueada não deve ser encarado simplesmente como um privilégio. Dependendo dos casos,
ser investido como o sucessor paterno ou tornar-se o genro-proprietário também podia ser um
ônus. O primogênito investido do papel empresarial poderia ter (e muitas vezes tinha)
responsabilidades econômicas e familiares muito maiores do que a de um irmão burocrata ou
advogado, por exemplo. Além da charqueada com sua numerosa escravaria, ele devia estar
atento à economia da estância de criação de gado, as suas embarcações, seus armazéns, imóveis
urbanos, chácaras e, em alguns casos, a olaria. Além do mais, a concentração dos recursos
econômicos fazia com que o irmão-charqueador fosse o mais procurado pelos irmãos nas horas
de dificuldade financeira, tendo que ocupar o papel antes pertencente ao pai. A corrente
presença de parentes entre as dívidas ativas de um charqueador serve como exemplo disso.

Para o bom andamento da empresa, é provável que o irmão-charqueador contasse com o


apoio dos demais parentes, uma vez que a charqueada podia suprir a necessidade econômica
dos irmãos e genros criadores de gado, comerciantes e estudantes, por exemplo. Estes eram
alguns dos possíveis espaços reservados aos filhos “preteridos”. Herdar a ocupação de
charqueador do pai, portanto, era uma das escolhas possíveis dentro do encaminhamento dos
filhos na vida adulta. Escolha esta que não dependia exclusivamente do pai, mas que devia ser
planejada e decidida em família. Neste sentido, é necessário considerar a existência de uma
estratégia familiar não apenas no sentido econômico, mas também no social e no político.121
Filhos, irmãos, compadres, genros, atuando no comércio, na criação de gados, na advocacia ou
na política podiam manter uma relação próxima com a economia da charqueada, tendo nela e
nas estâncias do charqueador, os seus centros gravitacionais.

Mas nem esta organização familiar e nem os altos rendimentos auferidos por uma
empresa charqueadora foram suficientes para assegurar a reprodução social de todas as
famílias. As crises que afetaram o setor, notadamente entre as décadas de 1850 e 1870,
eliminaram muitos charqueadores deste ramo de negócios. Para finalizar este capítulo farei

121
Apesar do termo “estratégia” oferecer uma racionalidade demasiada aos agentes, como alertou Edoardo Grendi,
sigo as premissas de Giovanni Levi que buscou despi-lo de significados tão rígidos, considerando-o e reafirmando-
o como um comportamento que, apesar de racional, era limitado e seletivo. Esta racionalidade limitada obedecia,
portanto, aos condicionantes estruturais e conjunturais na qual a família agia e interagia, contribuindo para romper
ou reforçar os próprios traços desta estrutura social (GRENDI, Edoardo. Repensar a micro-história? In: REVEL,
Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanalise. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 253; LEVI,
Giovanni. A Herança Imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000).
366
algumas considerações tanto sobre as famílias que denominei longevas quanto aquelas que não
resistiram às mencionadas crises.

9.4 “ENGOLIDOS SEM PIEDADE”: OS CHARQUEADORES E A MOBILIDADE SOCIAL


INTRA-ELITE

Como mencionei no capítulo 3, quando o visitador D. José da Silva Coutinho esteve em


Pelotas no ano de 1815, ele considerou que os homens mais ricos da pequena freguesia eram os
charqueadores Domingos de Castro Antiqueira, Domingos Rodrigues, Antônio Francisco dos
Anjos, José Tomas da Silva, Manuel Alves de Moraes, José Pinto Martins, Antônio José
Gonçalves Chaves, Joaquim José da Cruz Secco, Cipriano R. Barcellos e demais irmãos.122 Se o
mesmo clérigo regressasse a Pelotas na década de 1870 e procurasse pelos mais ricos
charqueadores não encontraria mais nenhum membro destas famílias, com exceção do filho de
Gonçalves Chaves. Selecionando os empresários inventariados com maior fortuna entre 1810 e
1835, não se verifica nenhum filho ou neto dos mesmos entre os charqueadores de maior
riqueza nos anos 1860 a 1890. Isto não significa que os parentes ancestrais dos charqueadores
mais ricos destas últimas décadas já não estivessem atuando neste ramo de negócios durante o
colonial tardio. Alguns deles estavam lá. Contudo, eles não estavam entre os de maior fortuna.

Portanto, ao longo de mais de meio século, houve uma troca de famílias no topo da elite
charqueadora pelotense. Como ensinou Lawrence Stone, as elites não devem ser vistas como
um grupo de pessoas cuja posição ocupada possuísse um caráter rígido. Elas não estavam
“congeladas” em seus postos, uma vez que ocupavam um lugar social onde a mobilidade era
algo presente e que para se manter em tal espaço privilegiado era necessário empregar diversas
estratégias que assegurassem a reprodução social de sua posição. 123 Famílias como os
Rodrigues Barcellos, que entre as décadas de 1820 e 1840, possuíam um importante prestígio
político regional e chegaram a possuir 7 charqueadas na região, ao final da monarquia detinham
somente um estabelecimento e o mesmo estava entre os mais pobres da localidade. 124 Em
contrapartida, Antônio José da Silva Maia, que entre 1830 e 1840, era um mero comerciante
local, acabou herdando a charqueada do sogro e construiu um dos mais ricos patrimônios da
década de 1870 e 1880, legando grande fortuna aos filhos. 125 Além dele, outros charqueadores
como José Inácio da Cunha e Anibal Antunes Maciel, por exemplo, não estavam envolvidos
nestes negócios antes da década de 1840, comprando, posteriormente, as suas charqueadas.
122
MENEGAT, Carla. Op. cit., p. 64.
123
STONE, Lawrence. La Crisis de la Aristocracia (1558-1641). Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 37-43.
124
Inventário de Boaventura T. Barcellos. N. 157, m. 5, 1º cart. de órfãos e provedoria, 1890, Pelotas (APERS).
125
Inventário de Manoel Soares da Silva, n. 318, m. 22, 1850, cart. de órfães e provedoria, Pelotas (APERS).
Inventário de Antônio José da S. Maia. N. 995, m. 57, 1884, 1º cart. de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
367
Tendo em vista que os negócios com o charque e os couros eram os mais lucrativos na
província, não é plausível considerar que o desaparecimento de algumas famílias deste ramo
dos negócios tenha ocorrido pelo fato de as mesmas encontrarem outra atividade mais rentável,
como já argumentei. Também não estavam elas invertendo seus capitais para outra área de
investimentos que oferecessem maior prestígio social, pois os charqueadores também
concentravam grande poder político e status social no final da monarquia. Tratava-se mais de
um processo de empobrecimento. Portanto, é necessário buscar os motivos que favoreceram a
ascensão de um grupo de charqueadores ao topo da elite em detrimento dos outros.

Como já foi dito, a conjuntura econômica das décadas de 1850 e 1860 não foi marcada
apenas por um grande crescimento econômico, mas, também, por grandes reveses conjunturais.
A crise de superprodução na década de 1860 fez baixar os preços do charque, sendo exigido dos
empresários que quisessem manter os lucros, aumentar a produção e buscar outros mercados
para diminuir os seus prejuízos. Mas isto não foi possível de ser realizado de forma plena. O
fim do tráfico e o aumento do preço da mão de obra cativa vedou o aumento da produção para
muitos. O fim dos tratados com o Uruguai (1851-1861) que franqueavam os rebanhos orientais
a baixos preços também trouxe dificuldades no abastecimento de gado. O seu preço aumentou
bastante nas décadas de 1870 e 1880, o que deve ter contribuído para diminuir bastante os
rendimentos da charqueada. Além disso, ao invés de ampliar os mercados consumidores, os rio-
grandenses perderam Cuba e o Rio de Janeiro para os platinos. Somado a isso, a crise mundial
de 1857 favoreceu a diminuição das exportações de couro, que só voltaram a ultrapassar a casa
do milhão de unidades no final da Guerra Civil Americana (1861-1865).

Portanto, a saída para estas crises não era simples, pois a manutenção dos lucros exigia,
entre outros fatores, a busca de novos mercados e da incorporação de mais mão de obra cativa.
Para o primeiro, a solução possível foi deslocar as exportações cada vez mais para o nordeste
do país. Entretanto, os fretes para Recife, embora fossem 50% mais caros, podiam custar o
dobro dos valores até o Rio de Janeiro o que diminuía os ganhos dos charqueadores, mas
possibilitava lucros para aqueles que estavam inseridos no comércio marítimo carregando o
charque dos demais produtores. Soma-se a isto o fato de que as plantations açucareiras de
Pernambuco e da Bahia não passavam pela sua melhor fase e os escravos da região estavam
sendo lentamente vendidos para os cafezais do sudeste do Brasil. 126 Para piorar, os
charqueadores mais ricos ainda estavam drenando as escravarias dos falidos. Portanto, somente

126
EISENBERG, Peter. Op. cit.; CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil - 1850-1888. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
368
os charqueadores com maiores recursos puderam tirar melhor proveito dos momentos
favoráveis que marcaram o período, podendo repassar o prejuízo das conjunturas difíceis para
os menos ricos, além dos pecuaristas da região da campanha.

A incapacidade de incorporar escravos jovens em seus plantéis, pagar os seus credores e


ingressar de forma mais competitiva na fase de reajuste dos mercados atlânticos que marcou as
décadas de 1850 e 1860 foi fatal para um grupo de charqueadores. Se para o analista
interessado numa análise mais macroeconômica duas ou três safras negativas podem não
representar muita coisa, para estes charqueadores arruinados elas foram determinantes. Na
Corte, a crise que afetou o setor no início dos anos 1860 foi noticiada com certo alarde por um
correspondente da província:

Faliu o negociante desta praça Jacintho Antônio Lopes, com fazenda de criação
de gados e charqueada nos Canudos: o seu ativo em rigor produzirá 800:000$ e o seu
passivo sobe a 1.400:000$. Diz-se que antes de lhe abrirem a falência, vendera 60
escravos e um iate, e hipotecou as fazendas por 320:000$; se é assim, preparou um
bom canudo para os credores.
Em Pelotas também convocara os credores o charqueador Heleodoro de
Azevedo e Souza, apresentando um ativo de 600:000$ e um passivo de 516:000$ que
vencia prêmio de 1%. Três ou quatro dos credores maiores decidiram o negócio,
tomando conta da estância do Ponche Verde por 258:000$, e pela qual só oferecem
144:000$, e concedendo-lhe uma moratória de um a quatro anos sem prêmios. O maior
credor é José Antônio Moreira com 130:000$. Bravo… bravíssimo (…).
O charqueador José Bento de Campos endoideceu em 29 de agosto em
consequência dos prejuízos que sofreu; e procedendo-se o balanço de sua casa, achou-
se um ativo de 90:000$ a realizar e um passivo de 160:000$!!
Barcellos & Mascarenhas também convocaram os credores apresentando um
ativo de 270:000$ e um passivo de 180:000$; a estes os credores tomaram conta dos
bens para liquidarem, visto que não soube elevar fantasticamente o seu débito, como é
moda.
Domingos Soares Barbosa teve necessidade de balancear sua casa, pela
impertinência de dois meninos, seus credores porém sairão-se logrados na tentativa e
harmonizaram-se com o devedor.
Basta de quebras (…).127

O desespero tomou conta de parte dos empresários do charque que viram suas fortunas
ruírem em poucos anos. Entre os principais credores estavam os charqueadores mais abastados,
como o citado José Antônio Moreira (Barão de Butuí) e ricos comerciantes de diferentes praças.
Como já mencionei, Moreira possuía diversas embarcações de grande porte. Nesta época, ele
devia transportar o charque de muitos dos falidos. Além de lucrar com este negócio, nas épocas
de baixa ele podia transferir os seus prejuízos para os mesmos, voltando a lhes emprestar
dinheiro nas safras seguintes, dando início ao mesmo círculo que lhe possibilitava grande
acumulação de capital. A análise das escrituras públicas revela que os charqueadores mais ricos
realizaram diversos empréstimos a outros comerciantes, fazendeiros e charqueadores desde

127
O Constitucional, Rio de Janeiro, 25.10.1862, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (grifos meus).
369
quantias pequenas, passando por médias e vultosas montas, como no caso que envolveu o Barão
de Jarau, em julho de 1883. Juntamente com seu irmão e mais dois banqueiros locais, o Barão
executou uma hipoteca contra o charqueador Pedro Lobo Vinhas, no valor de 331 contos de
réis, o suficiente para eliminá-lo (como eliminou) do ramo dos negócios.

Duas décadas antes da ruína de Vinhas, o Comendador Heleodoro de A. e Souza,


praticamente falido, escriturou uma hipoteca aos seus credores, no valor de 501:169$005. Os
credores disseram que entrariam em acordo com o charqueador e sua família para não reduzi-
los “a completa ruína” e diminuíram a dívida à quase a metade deste valor, para ser paga em 4
anos. As garantias foram a sua estância, em Bagé, sua charqueada com 124 escravos, iates e
terrenos. Entre o rol de credores não surpreende a presença dos mencionados charqueadores
Moreira e Jarau, sendo que Heleodoro devia ao primeiro mais de 100:000$ e ao segundo (junto
com o seu irmão) mais de 67:000$. Além disso, outros conhecidos capitalistas também queriam
a sua fatia do bolo, entre os quais estavam o Conde de Piratini e João R. Saraiva – sócio e
correspondente de Mauá em Pelotas.128 O Comendador Heleodoro, sem dúvida um dos mais
ricos charqueadores entre os anos 1830 e 1850, nunca mais se reergueu de tamanha quebra.

Por falar em Mauá, o seu Banco esteve presente na cobrança de dívidas e liquidação de
outras charqueadas. Em novembro de 1862, juntamente com outros charqueadores, ele assinou
escritura de dívida com hipoteca contra José Bento de Campos, em mais de 50 contos. No
mesmo mês de 1864, foi a vez dos charqueadores Manoel Francisco Moreira (genro e herdeiro
da fábrica de João J. de Mendonça) e Vicente Lopes dos Santos assinarem escrituras de dívidas
com hipoteca (102 contos e 70 contos de réis, respectivamente). Como garantia, eles
ofereceram à Mauá & Cia as sua charqueadas com seus escravos (51 o primeiro e 31 o
segundo). Manoel Moreira nunca mais apareceu neste ramo de atividades e Lopes quitou sua
dívida em 1869, mas parece ter seguido cambaleante nos negócios até os anos 1880. No mesmo
ano, Mauá tomou para ele a dívida que o charqueador Domingos Barbosa possuía com Simão
da Porciúncula no valor de 139:000$. A maioria destes negócios era executada por João
Rodrigues Saraiva, procurador de Mauá em Pelotas, e que numa ocasião também foi procurador
de John Proudfoot, demonstrando a relação de Mauá com os ingleses. 129

Foi comum, nas cobranças executadas por Saraiva, os charqueadores mais ricos de
Pelotas aparecerem juntamente como credores, demonstrando que eles também foram os
principais algozes dos empresários endividados. Em 1863, Pedro Nunes Batista viu-se
128
Escritura de 22.09.1862, Livro de Notas n. 9 do 1º Tabelionato de Pelotas (APERS).
129
Escrituras de 28.11.1861, 21.11.1862 e 10.03.1864, Livro de Notas n. 9 do 1º Tabelionato de Pelotas (APERS);
Escritura de 28.04.1864, Livro de Notas n. 9 do 2º Tabelionato de Pelotas (APERS).
370
endividado em cerca de 100 contos com João Simões Lopes Filho (que viria a ser o Visconde
da Graça). Em 1868, quando João R. Barcellos foi arrendar sua charqueada, o escrivão anotou
que a mesma encontrava-se a hipotecada a Joaquim José de Assumpção (futuro Barão de
Jarau). Em 1862, Domingos Barbosa assinou hipoteca no valor de 394:696$ com diversos
credores, entre os quais alguns charqueadores dos mais ricos. Um ano depois, a Barcellos e
Mascarenhas teve seus bens no valor de 151:843$900 hipotecados com os mesmos. 130

Portanto, os Azevedo e Souza, os Jacintho de Mendonça e os Rodrigues Barcellos, que


estavam entre as mais prestigiosas famílias charqueadoras da primeira metade do século, não
resistiram aos novos ventos que sopraram naquelas paragens, vendo suas fortunas diminuírem
profundamente. Assumindo o topo desta hierarquia intra-elite, charqueadores como os Barões
de Jarau e Butuí, o Visconde da Graça, entre outros do grupo dos 12 mais ricos, lhes drenavam
os recursos lentamente (além dos escravos, como demonstrei no capítulo 5). A execução de
hipotecas somadas aos empréstimos não registrados em cartório (os declarados nos inventários
post-mortem, por exemplo), favorecia o aumento do capital dos credores, assim como o da
escravaria de suas charqueadas e do seu patrimônio fundiário.

Contudo seria um equívoco enxergar estas novas famílias como desenraizadas no local.
Butuí, Jarau e Graça pertenciam a terceira e quarta geração da prestigiosa família Silveira –
tratada no capítulo 3 da tese. Os dois primeiros eram filhos de comerciantes portugueses que
migraram para Pelotas casando-se um com uma neta e o outro com uma bisneta de uma das
irmãs Silveira. O terceiro era ele próprio comerciante vindo do Porto, contraindo igualmente
matrimônio com uma das mencionadas bisnetas. Muito embora pertencessem a uma família de
notáveis comerciantes e fazendeiros que compunham a elite rio-grandense no último quarto do
setecentos, de acordo com os relatos de contemporâneos e a documentação pesquisada, os pais
de Jarau e Graça não estavam entre os principais charqueadores da localidade nas primeiras
décadas do século XIX. Portanto, a presença dos seus herdeiros entre a principal elite
charqueadora entre os anos 1860 e 1880 tratava-se de uma importante mobilidade social intra-
elite – no que diz respeito a este grupo de empresários.

Portanto, contraindo dívidas ou envolvendo-se em empreendimentos arriscados em


épocas de euforia, um grupo de charqueadores perdeu parte de sua mão de obra, dinheiro,
estâncias, além dos seus próprios estabelecimentos fabris, para capitalistas, banqueiros e
charqueadores locais mais bem preparados para enfrentar o período de crises. Neste sentido, os
130
Escrituras de 22.07.1863 e 24.12.1863, Livro de Notas n. 9 do 2º Tabelionato de Pelotas; Escritura de
18.11.1868, Livro de Notas n.11 do 1º Tabelionato de Pelotas; Escritura de 26.12.1862, Livro de Notas n.8 do 2º
Tabelionato de Pelotas (APERS).
371
períodos de instabilidade política e econômica eram propícios para testar o sucesso das
estratégias das elites econômicas. Como ensinou Braudel, tratando dos comerciantes de longo
curso no século XVIII:

Um fator de sorte para o principiante é iniciar em bom tempo econômico. Mas isso
não garante o sucesso. A conjuntura mercantil é instável. Quando vira para bom
tempo, geralmente entram em campo pequenos empresários ingênuos. A maré, o vento
são favoráveis: ei-los confiantes, um pouco fanfarrões. O mau tempo que vem a seguir
os surpreende, engole-os sem piedade. Só os mais hábeis ou os mais afortunados ou
aqueles que tinham reservas no início escapam a tal massacre de inocentes. […] O
grande mercador é aquele que, justamente, atravessa sem acidentes a má conjuntura.
Se o consegue, é claro, porque tem trunfos na mão e sabe servir-se deles; ou, se tudo
corre mal, é porque tem meios de se eclipsar, de se pôr a salvo como convém.131

Portanto, se o período foi favorável ao enriquecimento de alguns, ele também contribuiu


para a falência de outros. A época que viu o enriquecimento do Barão de Mauá também viu a
sua própria quebra (na década de 1870), demonstrando que ninguém estava imune aos riscos.
Os períodos de recuperação e de alta das exportações que marcaram os anos 1850 a 1870, não
eram suficientes para salvar aqueles que já haviam entrado em ruína econômica, pelos prejuízos
de uma ou mais safras. Contudo, estes mesmos períodos de alta voltavam a encher os bolsos
dos que já estavam muito ricos.

Para finalizar este capítulo, gostaria de fazer mais uma consideração. É muito difícil
identificar alguns traços da personalidade empresarial destes indivíduos e mais difícil ainda
detectar a transmissão desta herança imaterial aos seus filhos. Mas tenho para mim, como
hipótese, que boa parte dos mais ricos charqueadores do final do oitocentos tiveram no
comportamento dos seus próprios pais charqueadores um modelo de atuação nos mundo dos
negócios. O Visconde da Graça e o Barão do Jarau, por exemplo, que souberam ler a conjuntura
desfavorável dos anos 1870 antes de todos e inverteram seus capitais para outras áreas,
pareciam ter na própria casa dois mestres na iniciativa empresarial local. Seus pais também
atuavam no comércio marítimo e o pai do primeiro, nos anos 1850, possuía ações no Banco do
Brasil (numa época em que quase nenhum charqueador investia nisto). Além disso, o pai de
Jarau, como foi afirmado no capítulo 5, não apenas foi o primeiro a apresentar escravos
aprendizes em seu plantel, como também um número muito grande dos mesmos. 132 O
inventário do pai de Graça apresentou dois vestígios interessantes. Ele foi o charqueador que
teve a criança escrava mais jovem com uma profissão definida (o menino Clemente, de 8 anos,
campeiro) e um dos dois únicos empresários que teve mulheres escravas trabalhando no interior

131
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 338 (grifos meus).
132
Inventário de Maria A. da Fontoura, n. 514, m. 22, 1845, 1º cart. órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS).
372
das charqueadas. 133 Ter crianças trabalhando nas fábricas de carnes, mas principalmente
mulheres, constituía-se num traço de comportamento empresarial que parecia colocar os seus
proprietários em semelhança com os industriais capitalistas ingleses. 134

Outros dois exemplos podem ser dados pelos irmãos Gonçalves Chaves e o proprietário
Junius Brutus de Almeida (que infelizmente não teve seus bens inventariados no período, mas
que com certeza devia estar entre os mais ricos).135 Já escrevi a respeito do pai dos primeiros, o
charqueador Antônio José Gonçalves Chaves, citado por Saint Hilaire por ser um homem
ilustrado e empreendedor em seu tempo. Juntamente com o pai de Domingos José de Almeida
(o responsável pela primeira graxeira a vapor em Pelotas) eles realizaram diversos projetos,
sendo que um deles constituiu-se na fabricação da primeira barca a vapor da província,
construída com peças importadas do Estados Unidos, onde o filho de Chaves residia (como foi
tratado no capítulo 2). Um dos filhos de Chaves também apresentou muitas ações no Banco do
Brasil na década de 1850 e o outro, que também era doutor, estava entre os 12 mais ricos
charqueadores da segunda metade do século. Além disso, Domingos foi o outro charqueador
que colocou mulheres cativas no trabalho das fábricas.

Penso que estes traços são muito mais do que coincidências. Parte destas famílias
charqueadoras possuíam uma visão de mundo e um modo de se comportar social e
economicamente distinto das demais famílias que não estavam entre as mais ricas. Até mesmo a
sua política sucessória que investia no esforço de colocar o filho primogênito como um novo
charqueador na geração seguinte era distinta e teve maior sucesso. Atuando no interior de
mercados bastante instáveis, concentrando o conhecimento dos segredos do mundo dos
negócios e favorecendo a transmissão das redes de relações de pais para filhos eles atingiram
um sucesso inalcançável aos demais concorrentes. Neste sentido, estas principais famílias não
podem ser comparadas com as demais. Elas apresentavam-se de maneira muito mais distinta do
que a dos outros charqueadores, ultrapassando o simples espaço de atuação das elites locais,
vindo a ocupar o topo da hierarquia social regional. No capítulo a seguir demonstrarei que esta
concentração de recursos materiais e imateriais também envolvia outros espaços da vida social
colocando estas poucas famílias entre as mais destacadas da elite regional e com condições de
mediar de maneira notável as relações entre a província e a Corte, colocando-as numa posição
de buscar influir direta e indiretamente (com outras elites regionais) nos rumos do Império.

133
Inventários de João Simões Lopes, n. 366, m.26, 1853, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
134
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p 100-101.
135
Almeida também atuava no comércio marítimo. Como foi visto no capítulo 8, nos anos 1880 ele investiu cerca
de 400 contos de réis na reforma de sua charqueada.
373
10. “A ARISTOCRACIA DO SEBO”: PODER POLÍTICO, NOBREZA,
EDUCAÇÃO E ESTILO DE VIDA NAS FAMÍLIAS DA ELITE
CHARQUEADORA PELOTENSE

Pelotas aparece aos olhos encantados do viajante como uma bela e


próspera cidade. As suas ruas largas e bem alinhadas, as carruagens
que as percorrem (fenômeno único na província), sobretudo os seus
edifícios, quase todos de mais de um andar, com as suas elegantes
fachadas, dão idéia de uma população opulenta. De fato, é Pelotas a
cidade predileta do que chamarei a aristocracia rio-grandense, se é que
se pode empregar a palavra aristocracia falando-se de um país do novo
continente.
Conde D’Eu (1866)

A reflexão do Conde D’Eu era certeira. Conhecedor da aristocracia europeia, ele sabia
que o termo não era muito adequado ao Brasil do final da monarquia. No entanto, o estilo de
vida das famílias pelotenses que ele conheceu, a sua riqueza se comparada ao restante da
população da cidade, o poder político que aquela minoria exercia sobre a mesma e o status
social de que gozavam, lembravam, em alguns aspectos, as famílias da elite do velho mundo. E
aqui está um traço marcante entre as elites da época. Elas possuíam a capacidade de
reconhecerem suas equivalentes em outras sociedades, compreenderem os signos de distinção e
as hierarquias de poder que as cercavam. Neste sentido, o Conde D’Eu, um membro da família
real imperial e genro do monarca, era capaz de reconhecer as aristocracias da terra de acordo
com parâmetros europeus e brasileiros. E em Pelotas, quem era ela? A aristocracia do sebo foi
um apelido pejorativo colocado pelos comerciantes rio-grandinos que rivalizavam com os
charqueadores em nivel regional e que entraram em conflito direto com os mesmos nos anos
1870 por conta da instalação da Alfândega em Pelotas.1

Contudo, não se tratava de uma apelido sem nenhum motivo e os rio-grandinos


pareciam querer atingir um dos traços mais zelados pela elite charqueadora da época. A análise
dos periódicos pelotenses e do relato de contemporâneos deixa claro que os charqueadores,
juntamente com outras famílias de ricos proprietários e comerciantes, viam-se desta forma e a
sociedade pelotense assim os tratava, utilizando-se do termo. Na cobertura de um baile em
Pelotas nos anos 1850, por exemplo, podia-se ler num dos jornais locais: “250 senhoras, entre
as quais, sobressaía avultado número das peregrinas belezas de Pelotas, aumentavam o brilho e

1
MAGALHÃES, Mário Osório. Opulência e cultura na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: um estudo
sobre a história de Pelotas (1860-1890). Pelotas: UFPel, 1993, p. 124; 162. Outro motivo era a disputa sobre qual
deveria ser o ponto de partida para a estrada de ferro até Bagé.
374
a magnificência da casa” e “a aristocracia da terra era representada por muitos dos seus mais
respeitáveis ornamentos, e era sem conta a porção de cavalheiros que atopetava todos os
espaços do edifício”. 2 Num outro grande baile, em 1885, os jornais diziam que o mesmo havia
sido frequentado “desde a alta nobreza até o simples burguês”. 3 No início do século XX, o
advogado Fernando Osório, genro de charqueadores, definiu a filha de um rico charqueador
como “uma das mais notáveis figuras da sociedade aristocrática pelotense”.4 Os periódicos
costumavam os tratar como a “primeira sociedade” e “as nossas famílias”. Tais distinções
possuíam resultados práticos notáveis. As associações de bailes da cidade, por exemplo,
dividiam-se em três: a aristocrática, a comercial e a plebéia, sendo que rígidos estatutos
mantinham o caráter elitista da primeira. 5

O leitor mais atento já deve desconfiar que as famílias mais ricas tratadas até aqui
constituíam-se na elite que concentrava poder político, status social e riqueza. Além do mais, os
títulos de nobreza e os casamentos entre seus filhos e filhas davam um toque a mais para este
grupo de elite. Portanto, esta suposta “pretensão aristocrática” – termo que Sheila Faria utilizou
para tratar do estilo de vida dos Barões do café no sudeste – dizia respeito a elas e outros grupos
da elite local. 6 Estudar os espaços de lazer e as práticas socioculturais desta elite é muito mais
do que realizar um simples inventário dos seus espaços de sociabilidade e dos seus membros
que mais se destacaram naquela conjuntura de prosperidade. 7 A educação superior, o estilo de
vida luxuoso e a imitação de hábitos europeus, nas letras, nas artes e nas maneiras de
sociabilizar conferiam grande prestígio social às famílias do topo da hierarquia. Tais
investimentos possibilitavam melhores casamentos para os filhos e filhas, melhor acesso em
outros espaços de poder e oferecia todas as condições para que os membros mais preparados da
família se tornassem mediadores políticos, ou seja, a atuação coletiva reproduzia a própria
desigualdade de recursos que as colocavam numa posição social superior. Portanto, tratava-se
de um comportamento social igualmente capaz de elevar algumas famílias à condição de elite
regional, ultrapassando o espaço de atuação dos meros “caciquinhos locais”.
2
Diário do Rio Grande, 03.04.1851 apud MÜLLER, Dalila. “Feliz a população que tantas diversões e
comodidades goza”: espaços de sociabilidade em Pelotas (1840-1870). Tese de Doutorado em História, Unisinos,
2010, p. 66.
3
A Discussão, 03.02.1885 apud MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 143.
4
OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas. Pelotas: Armazém Literário, v. 2, 1997, p. 123.
5
MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 69; 72; MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 143.
6
FARIA, Sheila de C. Barões do café. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário de Brasil Império. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002, p. 78-79. Ver também SCHNOOR, Eduardo. Das casas de morada às casas de vivenda. In:
MATTOS, H.; SCHNOOR, E. (Org.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p.
31-62.
7
Conforme Dalila Müller, “as elites pelotenses distinguiram-se do conjunto da população, não só pela sua riqueza
e atividade econômica, mas pelo seu comportamento social, pelo seu modo de vida específico e reconhecível”
(MÜLLER, Dalila. Op. cit., p .21).
375
10.1 EDUCAÇÃO E ESTILO DE VIDA ENTRE AS FAMÍLIAS CHARQUEADORAS DE
PELOTAS

Em Abril de 1852, a polícia de Alegrete desbaratou uma quadrilha que realizava


contrabando de mercadorias de Pelotas para toda a fronteira com o Uruguai. Uma das
testemunhas do processo instaurado contra os comerciantes era o charqueador Manoel
Lourenço do Nascimento. Conforme o seu depoimento, a última vez em que ele havia remetido
mercadorias por meio de um dos réus, enviara um piano para o coronel José Antônio Martins –
rico estancieiro com terras em Alegrete e no Estado Oriental. 8 Não devia ser a primeira vez que
o charqueador-comerciante remetia pianos para os confins da província e nem devia ser ele o
único a realizar tal negócio. Pelotas já havia se tornado a “cidade predileta” da aristocracia rio-
grandense, como afirmou o Conde D’Eu, e agora distribuía, por meio de sua elite, os artigos de
luxo que encantavam os fazendeiros do interior quando os mesmos iam até a cidade fechar
negócios com os chaqueadores.

Conforme Magalhães, a vida cultural pelotense apresentou um grande desenvolvimento


entre as décadas de 1860 e 1880. A riqueza material atingida pelas elites pelotenses e a
diversidade das atividades de lazer e culturais possuíam uma relação direta, uma vez que, nas
entressafras das charqueadas, os seus proprietários gastavam seus ganhos na cidade,
patrocinando as artes e tornando-a seu palco de ostentação.9 De fato, como foi visto no capítulo
anterior, este período coincidiu exatamente com a grande expansão das fortunas dos
charqueadores, cujas famílias mais ricas tiveram um papel de destaque neste novo cenário. Suas
vidas deslocaram-se cada vez mais para a cidade, confirmando o que Faria afirmou analisando
principalmente o sudeste e o nordeste do Brasil. Para a autora “foi de meados do século XIX em
diante que se operaram as mudanças mais significativas nos espaços urbanos e nas
sociabilidades”. Com relação a estas transformações:

A próspera Europa, moderna e industrial – inglesa primeiro, depois, francesa –,


firmou-se como exemplo a ser seguido e manancial de novos produtos e hábitos. O
acesso a certas mercadorias estrangeiras passou a denotar prestígio social. Mudaram-se
hábitos e costumes. A expansão urbana, no Império, foi significativa, principalmente
no Rio de Janeiro, sede do governo, mas inúmeras outras cidades, principalmente as
portuárias, ampliaram-se por conta do incremento do comércio externo. A
remodelação das residências sofreu influência europeia (…). Reproduziram (…)
algumas tendências, como a construção de sobrados ou palacetes nas zonas urbanas, e
a adoção de uma nova sociabilidade, traduzida no ato de receber e de festejar.10

8
Processo-crime n. 2.729, m. 78, Autos de apreensão de contrabando, Cartório do Cível e Crime, Alegrete, 1852
(APERS). Agradeço a Marcelo Matheus pela indicação deste documento.
9
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit.
10
FARIA, Sheila de Castro. Sobrado. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário de Brasil Império. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002, p. 678.
376
Neste sentido, tratava-se de um longo processo que marcou todo o oitocentos e que, no
nordeste, Evaldo Cabral de Mello denominou-o como “o fim das casas-grandes”. 11 A referência
clara a Gilberto Freyre tem em vista o que este próprio autor buscou delinear em seu clássico
Sobrados e Mucambos, qual seja, a da decadência do patriarcalismo rural frente ao processo de
modernização e urbanidade que marcou a história brasileira ao longo do oitocentos mas que só
veio a se concretizar no século XX e que tinha nos sobrados urbanos um de seus símbolos. 12
Paralelo a este processo e acompanhando uma tendência que iria marcar a vida de algumas
elites proprietárias brasileiras no século XIX, os charqueadores pelotenses cada vez mais
deslocaram a sua vida do meio rural (nas charqueadas) para os seus sobrados no centro da
cidade. 13 Neste contexto, as famílias mais ricas de Pelotas começaram a compartilhar de um
estilo de vida que as distinguia bastante das demais classes sociais da urbe e que se assemelhava
com a dos grandes fazendeiros de café e senhores de engenho, por exemplo.

Estudando as formas de morar e os recheios da casa da elite cafeicultora do sudeste por


meio da análise dos inventários post-mortem da família do comendador Manoel Valim,
Eduardo Schnoor considerou que os novos hábitos e costumes que marcaram a segunda metade
do século não buscavam necessariamente legitimar uma nova ordem escravista, mas sim, “um
ideal aristocrático de modernidade”.14 A semelhança com o padrão de vida dos charqueadores
pode ser notada analisando o mobiliário que os mesmos reuniam no interior dos seus
sobrados.15 A análise do patrimônio inventariado dos charqueadores mais ricos revela a
presença de móveis e certo luxo que denotam o mesmo estilo de vida encontrado por Schnoor
entre os fazendeiros de café e que o autor considerou “aristocrático” e “moderno” para os
padrões da época. Dentre as muitas peças do mobiliário do barão e da baronesa de Butuí, por
exemplo, destacavam-se 1 mobília de mogno com 14 cadeiras de encosto, 4 de braços, 4
aparadores e 1 mesa redonda, 1 mobília de jacarandá com 18 cadeiras, 4 aparadores e 1 mesa
redonda, 2 dúzias de cadeiras de jacarandá de palhinha, 1 aparelho de porcelana, além do piano,
das cômodas, dos guarda-roupas, entre muitos outros móveis. O coronel Anibal Maciel e sua
esposa possuíam 1 mobília francesa de mogno, 3 camas francesas, 1 mobília de jacarandá, 4
lavatórios em pedra mármore, 1 aparelho de porcelana azul com frizo dourado para jantar, 1

11
MELLO, Evaldo Cabral de. O fim das Casas-grandes. In: ALENCASTRO, Luís Felipe de. História da Vida
privada no Brasil. São Paulo: Cia. Das Letras, v. II, 1997.
12
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Rio
de Janeiro: Record, 2000.
13
Conforme Magalhães, os charqueadores foram aos poucos deslocando residência para a cidade, “construindo
sobrados de arquiteutra europeia” (MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 95-96).
14
SCHNOOR, Eduardo. Op. cit., p. 38-39.
15
O mesmo pode se dizer da elite paulistana estudada por ARAÚJO, Maria L. Viveiros. Os interiores domésticos
após a expansão da economia exportadora paulista. Anais do Museu Paulista, n. 12, jan./dez. 2004, p. 129-160.
377
aparelho de porcelana para chá, entre outros. O barão de Corrientes também apresentou os
mesmos móveis em mogno, tampos de mármore, piano, além de outros móveis. 16

A observação dos demais inventários dão a impressão de que se tratava de um conjunto


básico de móveis que compunham o espaço interno dos lares destas famílias da elite local,
como móveis importados, objetos de prata e de ouro, jóias pessoais e os onipresentes pianos. O
alto montante em que estes artigos foram avaliados nos inventários dos charqueadores revelam
o tamanho dos gastos reservados ao luxo e requinte dos seus lares. Os valores do aparelho de
prata para chá e café (1:436$) e dos 2 faqueiros de prata de 24 talheres (2:142$) do casal dos
barões de Butuí eram as peças mais caras do seu mobiliário. Somando todos os objetos de ouro,
prata e jóias que o casal possuía tinha-se mais de 4:660$. Era um valor que sozinho superava
46% do monte-mor dos 163 inventários post-mortem dos habitantes de Pelotas para os anos de
1875, 1880, 1885 e 1890.

Com relação aos pianos, que já faziam parte da casa das famílias de elite na primeira
metade do século, é importante considerar que os mesmos se disseminaram de uma forma
notável pela população pelotense, sendo encontrado inclusive em patrimônios de famílias de
fortuna mediana. Os anúncios de jornal dão uma ideia deste fenômeno. Era corrente as casas
comerciais anunciarem a chegada de novas músicas em partituras, os anúncios de professores
de piano oferecendo os seus serviços, além do conserto, afinação, aluguel e venda dos mesmos
intrumentos. Em leilões, a presença dos pianos também não era rara. Em julho de 1877, por
exemplo, o filho do charqueador Manuel Rodrigues Valladares anunciava a sua mudança em
definitivo para a Corte, leiloando seu piano e estantes para livros.17 Pela quantidade, os
anúncios de novos títulos recebidos pelas livrarias rivalizavam juntamente com os relacionados
aos pianos.18 Apesar dos inventários post-mortem muitas vezes não arrolarem a biblioteca dos
seus proprietários, eles podiam indicar as estantes para livros, mas no geral não o faziam. 19

Se o gosto pela leitura talvez não ocupasse grande parte da vida da maioria dos
charqueadores, certamente o era pelos seus filhos, esposas e genros doutores que frequentavam

16
Inventário do Barão de Butuí, n. 647, m. 41, 1867/1877, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS);
Inventário de Felisbina da Silva Antunes. N. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime (APERS); Inventário de
Silvana Belchior da Cunha, n. 870, m. 50, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1877 (APERS).
17
Jornal do Comércio de Pelotas (1, 10, 11 e 12 de janeiro de 1875; 1 e 26 de julho de 1877; 5 de setembro de
1879 (Biblioteca Pública Pelotense). Havia famílias de charqueadores que possuíam dois pianos, como os Vianna e
os Antunes Maciel (Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível,
Pelotas, 1865 (APERS).
18
Jornal do Comércio de Pelotas, 26 de julho de 1877 (BPP).
19
SACCOL, Tassiana Parcianello. Um propagandista da República: Política, letras e família na trajetória de
Joaquim Francisco de Assis Brasil (década de 1880). Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2013. Entre
os charqueadores, como se verá a seguir, o rol de livros foi mais comum nas primeiras décadas do século.
378
seus casarões. Conforme Magalhães, se os charqueadores possuíam uma série de atividades
relativas aos seus negócios e que os mantinham ocupados, seus filhos “puderam se dedicar
largamente aos estudos, às letras, às ciências e às artes (…) e, dentro das letras, à recitação de
discursos e à metrificação de versos, compostos, sobretudo e respectivamente, para exaltar as
virtudes da cultura clássica e cortejar damas um tanto reservadas e muito requintadas”.20 Não
possuo dados referentes aos formados em Medicina e Engenharia, mas na província, Pelotas
despontava como um dos grandes focos de famílias que enviavam seus filhos para estudar
Direito em São Paulo, ficando atrás somente de Porto Alegre. 21 Dos 22 pelotenses formados
entre 1832 e 1889, 18 eram filhos ou netos de charqueadores. Sem contar os bacharéis
formados em Recife e os médicos formados na Corte e em Salvador, também houve pelo menos
um advogado formado em Montevidéu e outros diplomados que estudaram em Paris. Por
intermédio de filhos educados fora da província, as elites pelotenses, com destaque para os
charqueadores, inseriam-se no interior de importantes redes de relações sociais e políticas.

A vida acadêmica era prescedida dos estudos com os melhores professores particulares
da cidade. Enquanto alguns filhos eram direcionados para a profissão das leis ou da medicina,
outros acompanhavam o pai na administração das charqueadas. A diversão dos rapazes
consistia nos banhos de rio no Santa Bárbara, nas aulas de ginástica, esgrima e dança no
colégio, nas regatas no São Gonçalo, nos exercícios de equitação no Jockey Club, além de
atividades teatrais com outros rapazes e moças no interior dos sobrados. As meninas, por sua
vez, “quando saíam, era geralmente em direção aos saraus familiares, ao teatro e às igrejas”.
Em casa, dedicavam-se aos “trabalhos de agulha, bordado e culinária, com os jogos de víspora,
com aulas de pintura e música”, além da “leitura de algum romance amoroso”. 22 A vida das
esposas dos charqueadores não devia ser muito diferente. Além de cuidar dos filhos, governar a
casa e ocupar-se com alguns assuntos relativos à comunidade local, seus divertimentos
envolviam a leitura e os lazeres ao lado da família.23

O espaço doméstico e familiar dos charqueadores era periodicamente compartilhado


com outras famílias da elite local ou de ilustres visitantes vindos de fora da cidade. As festas,
saraus e bailes oferecidos em sua própria casa constituiu-se num dos principais momentos de

20
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 122.
21
Reunindo 113 bacharéis em direito rio-grandenses formados na Faculdade de São Paulo, Vargas constatou que
26 eram de Porto Alegre e 22 de Pelotas (VARGAS, Jonas. Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as
estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul. Santa Maria: UFSM/Anpuh-RS, 2010).
22
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 148.
23
Um dos recibos anexos ao processo de liquidação da firma Viúva Vianna & Filhos demonstra que a dona
Rosaura, uma das proprietárias da charqueada, havia comprado Os Miseráveis de Vitor Hugo. Além disso, no
escritório de sua charqueada havia uma estante com livros diversos.
379
sociabilidade destas elites. Como demonstrou Magalhães, algumas vezes estes eventos eram
comentados na imprensa local. Em fevereiro de 1875, por exemplo, o charqueador Junius
Brutus de Almeida abriu sua casa aos amigos para um baile de carnaval “que imensamente
animado e concorrido prolongou-se até a madrugada” com a presença de clubes carnavalescos e
bandas de música. Para estas ocasiões, uma casa comercial francesa anunciava a chegada de
“500 cabeleiras à Luís XV recebidas de Paris no último vapor”. Em junho do mesmo ano, foi a
vez do charqueador Pedro Lobo Vinhas oferecer um grande baile em sua casa como
“complemento à festa de São Pedro da Beneficiência Portuguesa”. Geralmente os jornalistas
buscavam agradar os charqueadores elogiando a sua família e a boa recepção dos mesmos.
Sobre uma festa na casa do comendador Antônio Mâncio Ribeiro, sogro do charqueador
Domingos Guilherme da Costa, podia-se ler o seguinte: “sendo saudado com uma serenata na
Praça por três bandas de música e mais de mil pessoas, retribuiu a gentileza convidando alguns
dos participantes para a sua casa”. Ali podia-se ver “uma esplêndida mesa, onde a riqueza” e “o
luxo deslumbravam” e na sala principal, reuniam-se algumas das “senhoras de nossa primeira
sociedade”. 24

Além das rotineiras visitas de amigos e parentes, as festividades constituíam-se em


momentos nos quais os charqueadores e a sua família podiam demonstrar as suas melhores
qualidades não apenas artísticas e intelectuais, como as de bons anfitriões, algo que lhes
conferia grande prestígio nas rodas da primeira sociedade, como gostavam de se definir. Uma
boa recepção exigia um grande número de criados e serviçais domésticos, o que ajuda a
compreender certos anúncios nos jornais relativos à contratação de cozinheiros estrangeiros
aptos a trabalharem em casas de famílias, por exemplo.25 Os mesmos deviam somar-se aos
copeiros e demais escravos da casa do senhor, arrolados em seus inventários.26 Conforme
Schnoor, este era um traço do estilo de vida aristocrático que vinha se apresentando no mundo
senhorial oitocentista e também indicavam o status social das famílias proprietárias.27

Mas as festas e bailes não se reservavam aos encontros particulares nas casas dos seus
proprietários. De acordo com Dalila Müller, entre os anos 1850 e 1860, Pelotas possuía muitas
sociedades recreativas e culturais, sendo 8 delas de dança. Estas sociedades eram classificadas
pela própria imprensa como “aristocráticas”, “comerciais” e “plebéias”, sendo a primeira,

24
Correio mercantil 8 de junho de 1875 apud MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 143-144.
25
Jornal do Comércio de Pelotas, 12 de dezembro de 1877 e 1 de julho de 1879 (BPP).
26
Como foi visto no capítulo 5, 27 dos 142 escravos do Barão de Butuí residiam na cidade, alguns junto ao
sobrado do senhor ou em outras casas do mesmo, sendo que, entre os mesmos, havia 2 copeiros, 2 cozinheiros, 1
boleeiro, 3 costureiras, 2 engomadeiras, 1 lavadeiro e 2 serventes.
27
SCHNOOR, Eduardo. Op. cit.
380
obviamente, reservada às famílias da elite local. As sociedades possuíam estatutos redigidos
pelos seus diretores e os bailes tinham seu protocolo previamente planejado, com rigorosa
etiqueta, horários do chá, do café e das danças, tempo dos intervalos, entre outros aspectos.28
Estas ocasiões eram propícias para o experimento de novidades culinárias, como o sorvete,
chegado de Paris nos anos 1860, mas que só se difundiria pelo Brasil na década de 1890. As
famílias frequentadoras acompanhavam a cobertura dos bailes nos jornais, onde se podia ler
comentários sobre os vestidos das mulheres, a decoração, o serviço de copa e os
homenageados.29 Neste sentido, elas seguiam o modelo das sociedades de baile da Corte que se
disseminaram pelo Brasil no meado do século XIX, o que devia agradar os visitantes ilustres.30
Em fevereiro de 1885, por exemplo, o prédio da Câmara Municipal foi local de um dos bailes
mais importantes que a cidade havia presenciado, com a presença da Princesa Isabel e do Conde
d’Eu, que haviam permanecido em Pelotas por 3 semanas. Na ocasião, enquanto o charqueador
Heleodoro de A. E Souza Filho dançou uma quadrilha com a Princesa, a filha do charqueador
Anibal Antunes Maciel foi o par do Conde. 31 Em outras festividades, os charqueadores podiam
interagir com autoridades estrangeiras como no baile de julho de 1877, quando os oficiais da
canhoneira inglesa Beacon foram homenageados.32

Pelotas também possuía outras opções de lazer e a análise dos jornais demonstram que
os charqueadores e os seus familiares estavam diretamente ligados ao gerenciamento de clubes,
associações e companhias diversas. Os domingos no Jockey Club eram um ponto de encontro
certo e as corridas eram “concorridíssimas”. 33 Alguns de seus diretores e secretários eram
charqueadores, como Joaquim Rodrigues da Silva, Joaquim José de Assumpção, Antônio de
Azevedo Machado Filho e João Maria Chaves, por exemplo. 34 Além do Cassino, frequentado
pelas elites locais, outra diversão inaugurada nos anos 1870 foi o “Rink” de patinação. Em
agosto de 1879, os jornais já anunciavam a chegada de “mais patins americanos em grandes
quantidades”.35 Conforme Müller, os banquetes nos hóteis e os encontros nos clubes para a

28
MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 66; 69-73; 99. Além dos rígidos estatutos, o “público indesejado” podia ser vetado
pela diretoria, que exigia pessoas de boa conduta pública. Conforme Müller, aqueles que não podiam entrar nos
bailes ficavam nas janelas espiando e alguns manifestavam-se com obscenidades. A Sociedade Harmonia
Pelotense colocou cortinas nas janelas para evitar a aglomeração de pessoas ao redor do salão. Nos teatros, hotéis,
praças e ruas, a circulação dos “não iguais” era mais livre (MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 92-94).
29
MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 100-102.
30
PINHO, Wanderley. Salões e Damas do Segundo Reinado. São Paulo: Livraria Martins, 1959.
31
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 147.
32
Jornal do Comércio de Pelotas, 1 de julho de 1877 (BPP).
33
Jornal do Comércio de Pelotas, 1 de julho de 1879 (BPP).
34
Jornal do Comércio de Pelotas, 3, 5 e 12 de julho de 1877 ; 1 de julho de 1879 (BPP).
35
Jornal do Comércio de Pelotas, 14 de agosto de 1879 (BPP); MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 157.
381
prática de jogos lícitos também eram propagandeados nos jornais da cidade. 36 Portanto, quando
não estavam ocupados com seus muitos negócios, os charqueadores acompanhavam sua família
ao teatro e aos bailes, frequentavam os clubes com os amigos, as corridas no Jockey e os
leilões. Em casa não faltavam jornais para os mesmos ocuparem-se da conjuntura política e
econômica e de curiosidades. 37 Alguns ainda tinham na caça um hobby eventual e nas suas
chácaras um retiro da vida da cidade e da charqueada.38

Como os artistas não possuíam uma segurança mais profissional para exercerem as suas
atividades, geralmente as elites pelotenses, entre as quais estavam muitos charqueadores,
acolhiam seus projetos e realizações.39 Neste sentido, ao mesmo tempo em que recebiam
pintores, poetas, escultores, professores e músicos em suas casas e sob a sua proteção, os
charqueadores ofereciam um espaço de convivência para que seus filhos e filhas se sentissem
atraídos pelos mesmos caminhos da arte. Conforme Cândida Rocha, os concertistas eram
recebidos nas casas dos ricos e muitas vezes ensinavam suas filhas a tocarem piano, harpa e a
cantar.40 Não demorou muito e do seio destas mesmas famílias surgiram importantes artistas
com renome regional e até internacional. Alice Ramos, que descendia das famílias Silveira
Martins e Antunes Maciel, apresentou-se várias vezes no Teatro 7 de Abril e tinha em Chopin,
Mozart e Schumann seus compositores favoritos. Maria Francisca da Costa Silva, neta do
coronel Anibal Antunes Maciel, também teve destaque neste meio artístico. Acostumada ao
protagonismo nos saraus e salões da pequena Pelotas, também apresentou-se na Corte, onde
cantou para o Imperador acompanhada do maestro Carlos Gomes. Maria Francisca foi uma das
senhoras da elite rio-grandense que esteve no último Baile da Ilha Fiscal, em 1889. Contudo,
Zola Amaro foi a mais famosa de todas. Neta do Visconde da Graça, tornou-se uma grande
cantora de ópera, tendo se apresentado nas principais cidades da América e da Europa ao lado
de grandes tenores e sob a regência dos principais maestros da época. A inserção dos familiares
dos charqueadores neste espaço artístico e cultural permaneceu forte nas primeiras décadas do
século XX. Em 1918, por exemplo, estavam entre os líderes da fundação e presidência do 1º
36
MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 25-26.
37
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 249. Conforme o autor, a partir de 1860, “sete jornais devem ser
destacados pela influência que tiveram e pela extensão de tempo em que circularam”: Diário de Pelotas (1868-
1889), Jornal do Comércio (1870-1882), Correio Mercantil (1875-1915), Onze de Junho (1877-1889), O Cabrion
(1879-1889), A Discussão (1881-1888), A Pátria (1886-1891).
38
O Cel. Anibal Maciel possuía um piano na cidade e outro na sua chácara, indicando que esta última também
devia ser um espaço importante de lazer. O mesmo possuía entre seus bens uma arma de caça (Inventário de
Anibal A. Maciel, n. 815, m. 48, cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1875 (APERS). Em 27 de julho de 1875,
o Jornal do Comércio encontra-se um leilão de uma espingarda de caça com máquina para fazer cartuchos e na
edição de 1 de julho de 1879 uma loja anunciava vender diferentes armas e pistolas modernas (BPP).
39
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit.
40
ROCHA, Candida Madruga da. Um século de música erudita em Pelotas (alguns aspectos: 1827-1927).
Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 1979.
382
Conservatório de Música de Pelotas, os senhores Dr. Francisco Simões Lopes, Francisco
Gomes da Costa, Alfredo da Silva Tavares e Francisco Moreira, revelando que estes
sobrenomes eram quase que onipresentes em todos os espaços sociais da cidade. 41

Outro lugar reservado à manifestação artística foi o Teatro 7 de Abril – um dos


principais patrimônios da cidade no século XIX e projetado com forte investimento dos
charqueadores da primeira geração. Inaugurado em dezembro de 1833, a construção do mesmo
– obra arquitetônica do engenheiro Eduardo Von Kretschmar e inspirado nos teatros europeus –
, foi inspecionada e custeada pelo charqueador José Vieira Vianna e certamente apoiada por
outros.42 Conforme Magalhães, o teatro era frequentado principalmente por comerciantes e
fazendeiros, com destaque para os charqueadores. Na lista geral do sócios de camarotes e
cadeiras de 1833 a 1834 percebe-se que “a maioria dos 61 camarotes e das 233 cadeiras do
teatro era locada por charqueadores, entre os quais havia um barão (futuro visconde), três
comendadores, três futuros barões e outro futuro visconde”. 43 Na segunda metade do século
XIX, foi frequente a propaganda das companhias estrangeiras e nacionais a se apresentarem no
mesmo. Em janeiro de 1875, podia-se encontrar anúncios da Ótica Eduardo Jeanneret vendendo
óculos, pince-nez de ouro e binóculos para teatro.44 A análise dos inventários post-mortem dos
charqueadores revela que muitos possuíam ações do teatro entre seus bens. O Barão do Butuí
possuía 8 camarotes e 26 cadeiras no Teatro. O Barão de Corrientes, por sua vez, era
proprietário de 29 ações de camarote e 52 ações de cadeiras no mesmo. O usufruto deste espaço
por parte de suas famílias parece ter sido grande e o charqueador Francisco Antunes Gomes da
Costa (Barão de Arroio Grande e genro do coronel Anibal), talvez mais entusiasmado que os
demais, também escreveu suas peças para serem encenadas no mesmo.45

41
ROCHA, Candida. Op. cit., p. 95-99; 123-134. Nos anos 1880, Epaminondas de Almeida, filho do charqueador
Domingos J. de Almeida, foi Presidente da Filarmônica Pelotense (Jornal de Comércio, 05.07.1880 (BPP)).
42
LONER, Beatriz; GILL, Lorena; MAGALHÃES, Mário O. Dicionário de História de Pelotas. Pelotas: UFPel,
2010, p. 244. Apenas para lembrar, Vianna foi sócio de Domingos e de Chaves na Barca a Vapor chamada
“Liberal”. Importante observar que além do navio, o nome do próprio teatro (a data da Abdicação de Pedro I)
apresentava o posicionamento liberal deste trio de charqueadores. Neste aspecto, como se verá a seguir, eles se
constituíam numa minoria na cidade.
43
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 154. Na mesma época, Arsene Isabelle deixou registrado: “São
Francisco de Paula é uma encantadora cidadezinha que não conta mais de uns dez anos de existência, e que,
entretanto, já rivaliza com Porto Alegre pela atividade de seus habitantes, a importância de suas transações
comerciais e o grande número de edifícios que se constroem diariamente (…). Há um teatro muito bonito,
realmente elegante e cômodo. Existia apenas uma tipografia, no ano passado, mas circulam vários jornais políticos.
A população já se elevava de sete a oito mil habitantes” (ISABELLE, Arsene. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio
Grande do Sul. Brasília: Senado, 2006, p. 259).
44
Jornal do Comércio, 3 de janeiro de 1875 (BPP).
45
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit.; Inventário do Barão de Butuí, n. 647, m. 41, 1867/1877, 1º cart. órfãos e
provedoria, Pelotas (APERS); Inventário de Silvana Belchior da Cunha, n. 870, m. 50, 1º Cartório de órfãos e
provedoria, Pelotas, 1877 (APERS).
383
Neste mesmo sentido, este grupo de charqueadores não demorou a contratar pintores
europeus para retratarem a si mesmo e a seus familiares. 46 Conforme Magalhães, foi comum os
membros da elite pelotense solicitarem os serviços destes artistas e alguns deles tiveram certo
renome na localidade. Mariza Souza e Neiva Bohns analisaram como o prestigiado pintor
Frederico Trebbi retratou os familiares dos charqueadores Barão de Butuí e Barão do Jarau, por
exemplo. 47 Conforme Magalhães, as pinturas e retratos à óleo haviam virado moda e era
conveniente que os cidadãos mais respeitáveis se fizessem retratar não apenas a si mesmos
como também a seus ancestrais e parentes próximos. 48 Em janeiro de 1875, um anúncio de
jornal estimulava a prática: “O retrato é hoje uma necessidade por todos reconhecida. O filho
não pode negar-se a fazer retratar os seus pais, porque nada pode trazer-lhe a memória uma
recordação mais agradável do que a imagem daqueles a quem deve amor e gratidão”. 49

Neste sentido, não foi incomum encontrar quadros entre os bens inventariados dos
charqueadores de maior fortuna. O coronel Anibal Maciel e sua esposa possuíam entre seus
bens “vários quadros com retratos” e outros três “representando navios”. O Barão de
Corrientes, além dos móveis de mogno e seu piano, possuía 11 quadros decorando o interior do
seu sobrado na cidade. Acolhendo estes artistas, os charqueadores também proporcionavam um
espaço de aprendizagem para suas filhas e netas. Nas exposições de arte locais era possível
apreciar o talento das moças e as técnicas que as mesmas haviam aprendido com seus
professores europeus. Entre as pintoras que expunham seus trabalhos é possível verificar que
pertenciam às famílias dos principais charqueadores da cidade, dos seus parentes e de outros
membros da elite local, como as alunas Maria Francisca da Costa, Ambrosina Campello,
Belarmina Sá de Araújo, Leocádia Tavares, Maria Marques de Souza e Alice Cunha, por
exemplo. 50 Além disso, alguns destes ricos charqueadores também contrataram arquitetos
italianos para projetarem os seus casarões na cidade, como Felisberto Braga, Francisco e
Leopoldo Antunes Maciel. 51

No campo das letras, a presença das principais famílias charqueadoras não foi diferente.
Pelotas possuía algumas livrarias, além de clubes de leitura e saraus que animavam a população
e incentivavam a existência de um pequeno círculo de escritores e poetas. Isto também foi
46
Conforme Magalhães, os charqueadores possuíam agentes comerciais em diferentes locais e pediam para eles
remeterem artigos de luxo pelos navios que descarregavam charque (MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 137).
47
SOUZA, Mariza; BOHNS, Neiva. Pinturas de retratos de Frederico Trebbi: um patrimônio cultural em risco. In:
Seminário de História da Arte – Centro de Artes. Pelotas: UFPel, v. 1, n. 1, 2011.
48
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 207-209.
49
Jornal do Comércio, 14 de janeiro de 1875 (BPP).
50
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 192; 209-213.
51
ANJOS, Marcos H. dos. Estrangeiros e modernização: a cidade de Pelotas no último quartel do século XIX.
Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 1996, p. 75-76.
384
patrocinado pelos charqueadores. O Visconde da Graça, por exemplo, “doou o primeiro prédio
para que se instalasse, em 1875, a Biblioteca Pública Pelotense”. Filhos e parentes de
chaqueadores além de outras pessoas pertencentes a elite local seguidamente doavam livros a
mesma.52 Fidel Echenique, um dos livreiros mais conhecidos da cidade, era genro do
charqueador Barão de Corrientes. Estes empresários tendiam a abrir as portas de sua casa aos
literatos e poetas locais, muitos deles amigos de seus filhos e filhas. Lobo da Costa, um dos
principais poetas da cidade, frequentava o sobrado do abastado charqueador João Mendes de
Arruda, onde mantinha estreita amizade com seus filhos.53 Os dois grandes escritores pelotenses
da época, Alberto Coelho da Cunha e João Simões Lopes Neto, formados neste pequeno círculo
literário, eram, respectivamente, filho e neto de ricos charqueadores.

Há pelo menos dois indícios de que uma parte dos charqueadores buscou investir na
elevação educacional da sociedade pelotense, mesmo que de forma distinta. Nos anos 1840,
João F. Vieira Braga remeteu ao Império uma proposta de abertura de um colégio interno para
300 alunos (meninos e meninas) com apoio local e sob o investimento de capitais, no qual ele
calculava uma receita de 60:000$ anuais. Portanto, seria uma escola particular. Segundo Vieira
Braga, “são de transcendente utilidade para muitos pais de família, que aspiram a dar a seus
filhos uma educação ilustrada e completa (…) que importa boa parte da civilização que o país
tanto necessita”. O projeto parece não ter vingado.54 Uma proposta mais inclusiva foi liderada
por Domingos José de Almeida em 1862, na qual ele escreveu para diversos deputados
provinciais e solicitou o apoio de outros charqueadores (eram 11 cópias da requisição).
Domingos propunha a abertura de uma escola para meninas no 2º distrito do municipio. Uma
cláusula interessante do seu requerimento dizia: “a criação de uma cadeira de primeiras letras
(…) obrigando-se os signatários a preencherem a aula com o número de meninas pobres na lei
marcado para funcionar caso a ela não concorram as jovens que abundam na freguesia”,
sobretudo “na serra dos Tapes próximas à pequena povoação de Boa Vista onde convém
instalar escolas de ambos os sexos para fomentarem o progresso dela”. 55 É provável que
membros da elite local com comportamento semelhante ao de Domingos fossem muito mais
exceção do que regra. Contudo, estas propostas de criação de escolas em Pelotas parecem ter
dado algum fruto. Comparando o número de habitantes alfabetizados na província, Tassiana

52
Os jornais às vezes divulgavam os títulos dos livros doados, sendo que alguns eram escritos em língua inglesa.
Em 1879, o presidente da Biblioteca era Saturnino Arruda, filho do charqueador João Mendes de Arruda. Em
agosto de 1879, um gabinete de leitura da cidade anunciava que os livros dos sócios podiam ficar com os mesmos
por 15 dias (Jornal do Comércio de Pelotas, 9 e 14 de agosto e 5 de setembro de 1879 (BPP)).
53
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p.132; 277.
54
João Francisco Vieira Braga, Documentos Biográficos, Coleção Manuscritos (Biblioteca Nacional do RJ).
55
Anais do AHRS, Carta de Domingos Almeida para José Bento de Campos, 11.07.1862, CV-785, v. 3.
385
Saccol percebeu que Pelotas era o município que possuía o maior índice, ultrapassando os 33%
entre a população livre (a média total da província era 24%).56 Neste sentido, a sua maior
população urbana se comparada ao interior deve ter favorecido a inclusão de mais pessoas nas
escolas. 57

Conforme o projeto do mesmo Domingos, seria preferível que o professor e a professora


da nova escola fossem casados, pois “mutuamente se distrairão da solidão e insipidez da
localidade e se socorrem nas enfermidades e trabalhos da vida”. 58 Segundo Magalhães, os
professores sempre pediam “proteção” ao seus serviços e os espetáculos teatrais anunciavam-se
quase sempre “em benefício” do ator ou do executante.59 Portanto, ser um “protetor” das artes e
da educação parecia reforçar a posição de elite das famílias charqueadoras mais ricas. Neste
sentido, uma outra prática igualmente importante era a caridade e a filantropia. Estudando a
Santa Casa de Pelotas, Cláudia Tomachewski percebeu a forte presença dos charqueadores na
direção da instituição. Fundada no início do Segundo Reinado, ela assumiu diversas atividades
de assistência, mantendo um hospital (1848), no qual eram recebidos os expostos (crianças
abandonadas) e os enfermos. Conforme a autora, a Santa Casa também monopolizava os
enterros e o transporte para o cemitério e mantinha capelas para rezar missas pelas almas dos
irmãos e dos benfeitores. Como os irmãos e dirigentes pertenciam às elites da cidade, as
mesmas podiam controlar de perto o cuidado aos mais pobres. 60 Para Magalhães, a caridade
exercida por estes “beneméritos” e “filântropos” constituíasse numa exigência “decorrente de
sua formação moral e religiosa”. 61 Entre os provedores da Santa Casa foi possível verificar
tanto charqueadores (José Rodrigues Barcellos, Domingos de Castro Antiqueira, José Inácio da
Cunha, Antônio José de Oliveira Castro e Possidônio Mâncio Cunha), quanto seus parentes
próximos (Amaro J. Ávila da Silveira, Domingos Rodrigues Ribas e João Francisco Vieira
Braga). A ocupação de tais cargos além de ampliar as suas redes de relações sociais na cidade,
aumentava imensamente o seu prestígio social. 62

Ainda é importante argumentar que este gosto pela novidade e pela cultura europeia
também foi motivado pela migração de estrangeiros que marcou a segunda metade do
oitocentos e que tratei de forma mais aprofundada no capítulo 4. Segundo Marcos dos Anjos, a
56
SACCOL, Tassiana. Op. cit., p. 38-39.
57
Em 1883, também foi instalada a Imperial Escola de Medicina Veterinária com forte incentivo da família
Antunes Maciel – episófio que tratarei adiante.
58
Anais do AHRS, Carta de Domingos Almeida para José Bento de Campos, 11.07.1862. CV-785, v. 3.
59
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 201-203.
60
TOMASCHEWSKI, Cláudia. Caridade e filantropia na distribuição da assistência: a Irmandade da Santa Casa
de Misericórdia de Pelotas – RS (1847-1922). Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2007.
61
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 201-203.
62
TOMASCHEWSKI, Cláudia. Op. cit., p. 104
386
alta presença de estrangeiros em todos os setores da população pelotense, na área educacional,
nos meios artísticos e profissionais diversos, influenciou a transformação dos valores vigentes e
as próprias concepções de vida da elite local. 63 Esta interação social ajudou a favorecer a
pretensa europeização dos costumes entre as elites pelotenses. Conforme César e Cerqueira,
para alguns setores da elite local esta europeização nada mais era do que uma forma de superar
o estereótipo rural, de rusticidade e escravismo que poderiam ser expostos diante do olhar
estrangeiro.64 De acordo com Magalhães, a civilidade e urbanidade também contribuiram para
que a elite local de Pelotas respirasse um culto exagerado às letras. E a este mesmo culto “pode-
se creditar uma das fortes manifestações do bairrismo pelotense”. 65 Eles se viam diferentes dos
demais habitantes do interior da província criando uma tradição de superioridade de suas elites
em comparação com a de outros municípios. Tal comportamento provocou reações adversas
como a do viajante W. Haernisch que declarou o seguinte sobre Pelotas e sua elite: “a
aristocracia que nela se fundou foi exclusivista. Ser pelotense vale para o mesmo pelotense
como uma especialidade; sua terra, ou melhor, sua cidade, é o centro de todo o seu ser”.66

Diante deste exclusivismo, o mercado matrimomial visado pelas poucas famílias


charqueadoras ricas tornava-se cada vez mais exigente. As alianças endogâmicas no interior da
elite rio-grandense já não eram mais suficientes, pois as mesmas famílias passaram a buscar
casamentos com elites de outras províncias e até mesmo genros do estrangeiro, denotando que
Pelotas estava ficando pequena para as suas pretensões. Na primeira metade do oitocentos, o
casamento do comerciante inglês Robert Barker com uma filha do charqueador Gonçalves
Chaves já anunciava esta tendência. Entre os Simões Lopes, por exemplo, o comendador João
S. Lopes casou o seu filho Ildefonso com a filha de Joaquim de Castro Souza Medronho,
coronel no município cafeicultor de Bananal (SP). A filha de Ildefonso casou-se com o filho
dos Viscondes da Penha. Na mesma família, um dos filhos do Visconde da Graça casou-se com
a filha de Juan Saez de La Mazza, nobre capitalista espanhol pertencente à família do Conde de
La Mazza. Os Antunes Maciel tiveram uma das mulheres da família casada com o comerciante
inglês João Diogo Hartley e outra com o político cearense José Júlio Alburque Barros, o Barão
de Sobral. 67 Entre os Silva Tavares, o Dr. Francisco contraiu matrimônio com a filha de uma

63
ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 61.
64
CERQUEIRA, Fábio; CÉSAR, Temístocles. Os periódicos do final do século XIX e do início do século XX e o
quotidiano de Pelotas. In: História em Revista, UFPel, n. 1, 1994.
65
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 263.
66
HARNISCH, Wolfhang. O Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1952, p. 85.
67
No século XX, os Antunes Maciel projetaram-se para o Rio de Janeiro, onde o filho do Dr. Francisco Antunes
Maciel tornou-se presidente do Banco do Brasil e uma de suas filhas casou-se com o Senador Valdomiro
Magalhães e a outra com o Deputado Federal Moreira Brandão (CARVALHO, Mário T. de. Nobiliário Sul-rio-
grandense. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1937, p. 43). Uma bela análise desta família no período republicano, quando
387
família paulista. A neta do Barão de Jarau, filha do Dr. Joaquim Assumpção, por sua vez,
casou-se com a D. Haydée Bordagorri. O Barão de Correntes teve dois genros de famílias
espanholas, o proprietário Ramon Trapaga e o capitão Guilherme Echenique, além de de uma
filha que foi morar com o marido no Rio de Janeiro.68 Portanto, a diversificada engenharia de
matrimônios foi somente mais um traço desta elite da elite.

As festas, os saraus e os bailes nas casas dos charqueadores e nas associações e clubes
aos quais os mesmos frequentavam constituíam-se no cenário perfeito para a ostentação não
apenas das jóias, das carruagens, da criadagem e do seu vestuário, sempre na moda, como das
boas maneiras, hábitos e cultura letrada dos membros de suas famílias, incluindo genros de
outras partes do Brasil e até da Europa. A suposta prática do mecenato e a promoção do
progresso e da educação não era compartilhada por todos, mas, principalmente, por algumas das
mesmas famílias dos charqueadores mais ricos que venho analisando nesta tese, ou seja, os
Simões Lopes, os Antunes Maciel, os Moreira, os Tavares, os Cunha, entre outros. Portanto,
ocupando posições distintas nos espaços filantrópicos, educacionais, artísticos e, como se verá
adiante, políticos, esta elite da elite reforçava a sua dominação social sobre os demais
legitimando-se, por meio de uma relação extremamente complexa, como os mais aptos a
governarem a sua sociedade e a representá-la em outros espaços de poder.

10.2 – GOVERNANDO A SOCIEDADE: OS CHARQUEADORES NA ELITE


POLÍTICA LOCAL E REGIONAL

Desde que a Câmara de Pelotas foi criada em 1832 e a Assembléia Legislativa


Provincial teve as suas primeiras eleições em 1835, os charqueadores sempre estiveram
presentes entre os mandatários. No que diz respeito à esferas de poder municipal, diversos
estudos vêm demonstrando que outros cargos reservados aos potentados locais e seus clientes
possuíam extrema importância na vida política local e eram alvo de intensas disputas entre as
facções políticas paroquiais. Os juízes de paz, mesmo perdendo poderes após o chamado
Regresso Conservador, continuaram influindo na formação das mesas eleitorais e seu cargo era

parte dela já havia migrado para o Rio, pode ser visto em PAULA, Débora Clasen de. “Da mãe e amiga Amélia”:
cartas de uma baronesa para sua filha (Rio de Janeiro - Pelotas, na virada do século XX). Dissertação de
Mestrado em História, Unisinos, 2008.
68
CARVALHO, Mário T. Op. cit., p. 68; 79; 133. Possuir genros europeus podia favorecer um maior acesso às
comunidades estrangeiras que residiam na cidade (ver Capítulo 4), possibilitando alianças e favores. Não se deve
esquecer que o alto comércio pelotense e rio-grandino estava repleto de estrangeiros que tinham acesso a artigos de
luxo, ao sal de melhor qualidade, aos mercados dos couros, além de preciosas informações do mundo dos
negócios. Além disso, numa sociedade onde a cultura europeia era tida como superior e oferecia certo prestígio
social aos que dela compartilhassem com distinção, transitar por estes círculos, receber homenagens em clubes e
associações e ocupar lugares de honra entre os mesmos, seja em espetáculos teatrais de companhias estrangeiras,
seja em festejos cívicos, podia render um status considerável naquela pequena cidade.
388
bastante disputado nas eleições locais. Os delegados e subdelegados de polícia e os inspetores
de quarteirão eram igualmente importantes pelos mesmos motivos, além de também serem
utilizados para perseguir os adversários políticos. 69

Um patamar acima na hierarquia de poder estavam os magistrados formados e os


oficiais comandantes da Guarda Nacional. Como Pelotas tornou-se comarca somente em 1875,
até esta data o juiz municipal era o chefe do Judiciário local (depois da mencionada data os
juízes de direito passaram a concentrar os trabalhos judiciais). A Guarda Nacional, que vem
merecendo muitos estudos, era um espaço de atuação bastante importante, pois, além de
auxiliar no policiamento e na manutenção da ordem social, em épocas de guerra ela compunha
parte significativa dos contingentes militares. 70 Contudo, tanto a Guarda como o Judiciário local
acabavam se envolvendo nos conflitos locais, pois eram espaços de poder disputados pelas
elites, uma vez que possuíam um importante potencial para perseguir os inimigos políticos.
Além disso, o oficialato da Guarda era uma excelente maneira de se formar uma clientela e
arregimentar aliados, pois o recrutamento forçado era utilizado como ameaça constante e
pertencer à facção dos comandantes ou membros da junta de qualificação era uma forma de se
diminuir estes riscos.71

Os charqueadores e seus familiares estavam presentes em todas estas esferas de poder


local e conforme os cargos aumentavam de importância, as famílias que os concentravam
também constituíam-se nas mais ricas e “distintas”. O comando da Guarda Nacional, por
exemplo, esteve nas mãos de João da Silva Tavares (visconde de Serro Alegre), o Comendador
João Rodrigues Ribas, o Visconde da Graça e o Barão de Corrientes. Também não seria
exagero considerar que os seus filhos e genros bacharéis controlavam o juizado municipal e de
órfãos. Os doutores Joaquim Augusto de Assumpção, Ildefonso Simões Lopes, Ovídio Trigo
Loureiro, Amaro J. Ávila da Silveira, Joaquim J. Afonso Alves, entre outros (todos filhos,
genros ou parentes de charqueadores ricos), ocuparam o cargo por muitos anos. Quando da
ausência de juízes togados, algo muito comum no meado do oitocentos 72, os próprios

69
Ver, por exemplo, GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ,
1997; AL-ALAM, Caiuá. Palácio das misérias: Populares, delegados e carcereiros em Pelotas (1869-1889). Tese
de Doutorado em História, PUCRS, 2013; VARGAS, Jonas M. Op. cit., 2010.
70
RIBEIRO, José Iran. Quando o Serviço os Chamava: milicianos e guardas nacionais no Rio Grande do Sul
(1825-1845). Santa Maria: Editora da UFSM, 2005; FERTIG, André Atila. Clientelismo político em tempos
belicosos: a Guarda Nacional da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul na defesa do Império do Brasil
(1850-1873). Santa Maria: Ed. da UFSM, 2010; MÜGGE, Miquéias. Prontos a contribuir: guardas nacionais,
hierarquias sociais e cidadania (Rio Grande do Sul - século XIX). São Leopoldo: Oikos, 2012.
71
Como demonstrou VARGAS, Jonas M. Op. cit., 2010.
72
SODRÉ, Elaine L. V. A disputa pelo monopólio de uma força (i)legítima: Estado e administração judiciária no
Brasil Imperial (Rio Grande do Sul, 1833-1871). Tese de Doutorado. PPG-História da PUC-RS, 2009; BIEBER,
389
charqueadores assumiam o cargo, como José Inácio da Cunha e José Antônio Moreira, por
exemplo. 73 O Judiciário local era quase um negócio entre famílias e quando os réus, muitos
deles escravos e homens livres pobres, eram levados ao Tribunal do Júri, lá estavam os
charqueadores, seus parentes e outros membros da elite local para decidirem se os mesmos
eram culpados ou inocentes.74 Tendo em conta que o juizado de paz e as delegacias de polícia
eram ocupadas pelos mesmos indivíduos ou membros de suas fações políticas locais 75 pode-se
considerar que Pelotas, uma localidade litorânea e mais urbanizada, se constituía numa
realidade não muito distinta de outras regiões do Brasil, demonstrando que o alcance da
centralização implementada pela Reforma Judiciária de 1841 possuía sérios limites, como
outras pesquisas já demonstraram. 76

Na Câmara municipal, a presença destas famílias também foi notável. Dos 89 indivíduos
que ocuparam o cargo de vereador em Pelotas entre os anos de 1832 e 1889 77, 29 (32,6%) eram
charqueadores e 28 (31,4%) eram parentes próximos dos mesmos, ou seja, filhos, irmãos,
cunhados e genros. Reunindo somente os 14 presidentes da Câmara (o mais próximo do que
poderia ser identificado como um prefeito na época), 28,5% deles eram charqueadores e 42,8%
eram seus parentes próximos. Portanto, cerca de 2/3 da edilidade pelotense recebia influência
direta das famílias charqueadoras. Pode-se argumentar que a Câmara estava longe de se
constituir no espaço de poder local que havia sido no período colonial. Contudo, o cargo era
bastante disputado pelas elites locais e a Câmara era o palco de grandes conflitos por contratos,
recursos financeiros e influência política em assuntos importantes, tratados, inclusive, no
parlamento provincial.

Judy. O sertão mineiro como espaço político (1831-1850). Revista Mosaico, v. 1, n. 1, jan./ jun., 2008, p. 74-86;
NEQUETE, Lenine. O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência: I. Império. Brasília: STF, 2000.
73
Ver, por exemplo, Livro de notas n. 5, 2º tabelionato de Pelotas (APERS).
74
O exame das dezenas de processo-crime trabalhados no capítulo 6 me permitem fazer esta afirmação.
75
Para Pelotas ver, por exemplo, AL-ALAM, Caiuá. Op. cit., 2013.
76
SODRÉ, Elaine. Op. cit.; GRAHAM, Richard. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010; FLORY, Thomas. El
juez de paz y el jurado en el Brasil imperial, 1808-1871. México: Fondo de cultura economica, 1986. Com isto não
quero dizer que não existiam embates entre as autoridades nomeadas pelo governo central e os potentados locais,
como diversos documentos demonstram. Os conflitos resultavam hora na vitória de um lado, hora na de outro. No
entanto, muitas vezes quando um juiz de direito imprimia uma derrota a um fazendeiro ele também podia estar
aliado aos adversários deste. Não foi raro localizar o envolvimento dos juízes de direito com as facções locais,
assim como os oficiais do Exército, os empregados da Alfândega, os promotores públicos, entre outros
funcionários nomeados pelo governo central (Ver, por exemplo, SODRÉ, Elaine. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op.
cit., 2010; FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul
do Brasil (1825-1865). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010. As relações de poder no nível local apresentavam uma
variedade de casos numa complexa relação de negociação e conflito que vem sendo muito bem estudada e
problematizada por alguns historiadores. Ver, por exemplo, VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem:
violência, criminalidade e administração da justiça: Minas Gerais – século 19. São Paulo: EDUSC,
2004; DANTAS, Mônica D. Para além do mandonismo: Estado, poder pessoal e homens livres pobres no Império
do Brasil. In: SOUZA, Laura. M. e; FURTADO, Júnia F.; BICALHO, Maria. F. (Org.). O governo dos povos. São
Paulo: Alameda Editorial, 2009, p. 335-354.
77
A listagem pode ser encontrada em OSÓRIO, Fernando. Op. cit., v. 1.
390
Ultrapassando o espaço local de influência, muitos pelotenses ocuparam uma cadeira na
Assembleia Legislativa. Analisando as listagens de deputados provinciais entre 1835 e 1889, foi
possível verificar a presença de pelo menos 37 parlamentares que eram charqueadores ou
parentes de charqueadores. O exercício de tal cargo os colocava em privilegiadas condições
para captar recursos para Pelotas, desenvolvendo a região, mas, ao mesmo tempo, respondendo
as demandas de suas clientelas e eleitores. Como alguns autores demonstraram, as assembléias
provinciais eram o palco de acirrados debates e disputas por verbas e influência política.78 Na
mesma esfera regional estavam os presidentes de província que, na maioria das vezes, se
constituíam em indivíduos nomeados pelo governo central e sem raízes com os locais onde
exerciam seus cargos. No Rio Grande do Sul, entre 1845 e 1889, dos 55 indivíduos que
assumiram a presidência da província como titulares nomeados ou como vice-presidentes 22
(40%) eram rio-grandenses. Destes, 7 eram charqueadores ou seus parentes próximos. As
famílias Jacintho de Mendonça, Silva Tavares, Antunes Maciel, Rodrigues Barcellos e Simões
Lopes foram as que concentravam tais cargos. Além de administrarem a província, os
presidentes possuíam um papel fundamental no período eleitoral, pois eram capazes de remover
oficiais da Guarda Nacional e autoridadees policiais e administrativas locais, alterando as
configurações faccionais de cada região vindo a favorecer o partido do governo. Mas tais
medidas davam-se geralmente em sintonia com os seus correligionários em nível local, uma vez
que, constituindo-se em elementos exógenos àquela sociedade, os presidentes precisavam
barganhar com os membros das elites locais e regionais que pertenciam ao seu partido. 79

Na alta política parlamentar (deputados gerais e senadores) o número de charqueadores


e seus familiares também foi importante, principalmente entre os primeiros. As mesmas
famílias citadas acima concentravam estes mandatos, além de Fernando Osório e Antônio Seve
Navarro, genros de charqueadores. Entre os senadores, pode-se destacar Gaspar Silveira
Martins (afilhado do charqueador Heleodoro de Azevedo e Souza e cujos pais e um cunhado
comerciante residiam em Pelotas) e o general Manoel Luís Osório (que, conforme foi visto no
capítulo 7, casou seus filhos com familiares dos Barões do Jarau, Butuí e os Antunes Maciel). O
auge da elite charqueadora em termos de poder político nacional ocorreu quando Francisco
Antunes Maciel, ele próprio advogado e charqueador, tornou-se ministro do Império do
Gabinete Liberal de 1883. Tratava-se de uma pasta extremamente poderosa e que fornecia ao

78
GOUVÊA, Maria de Fátima. O Império das Províncias: Rio de Janeiro (1822-1889). Civilização Brasileira: Rio
de Janeiro, 2008; DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit. A listagem dos deputados rio-grandenses pode ser verificada
em AITA, Carmen; AXT, Gunter. Parlamentares gaúchos nas Cortes de Lisboa aos nossos dias (1821-1996).
Porto Alegre: Assembléias Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 1996.
79
VARGAS, Jonas. Op. cit. 2010.
391
seu portador, por exemplo, o direito de intervir na nomeação dos Executivos provinciais. Na
época, Maciel não apenas nomeou o seu parente Barão de Sobral para a presidência do Rio
Grande do Sul, como influiu para que sua família recebesse mais 3 títulos de nobreza. Logo que
ocupou a pasta, o seu primo Francisco Antunes Gomes da Costa recebeu o título de Barão do
Arroio Grande (1884), o seu irmão Leopoldo Antunes Maciel tornou-se o 2º Barão de São Luís
(1884) e outro parente, Aníbal Antunes Maciel, foi titulado Barão de Três Serros (1884).

No Antigo Regime europeu, uma das funções da nobreza era encarregar-se do governo
da sociedade, traço que parece ter permanecido significativo em diversos países ao longo do
século XIX.80 Mas a nobreza titulada brasileira, ao contrário da europeia, havia surgido em
meio a uma sociedade cujo o arranjo intitucional possuía um forte caráter liberal. A nobreza
tupiniquim não se ligava à pureza de sangue, à longevidade imemorial dos seus troncos
familiares, ela não era hereditária e não conferia grandes privilégios legais aos seus portadores,
por exemplo. Suas únicas semelhanças com a nobreza de Antigo Regime diziam respeito ao
fato de que os títulos eram mercês reais oferecidas como retribuição aos serviços prestados à
Coroa, denotando a defesa da monarquia por parte dos agraciados, e que a importância dos
mesmo coincidia com a hierarquia política do Império, ou seja, os membros da alta nobreza e os
da alta política se confundiam. 81 Como verifiquei em outro estudo, a ostentação de títulos de
nobreza representava a confirmação de um estreito vínculo com os grandes espaços de poder
político, além de servir como uma amostra das famílias mais ricas da província e daquelas que
se identificavam e eram identificadas com o projeto político imperial. Além disso, os títulos
lhes conferiam certo status social que as diferenciava das demais famílias do extremo sul do
País. Pode-se dizer ainda que a Corte, ao congratulá-los, os reconheciam como membros das
elites provinciais, possibilitando, através dos mesmos, uma melhor interlocução entre o governo

80
A bibliografia sobre o tema é ampla. Para uma análise inicial ver LUKOWSKI, Jerzy. The european nobility in
the Eighteenth Century. London: Palgrave Macmillan, 2003; LIEVEN, Dominic. The aristocracy in Europe, 1815-
1914. London: Macmillan, 1992; SCOTT, Hamish. The European Nobilities in the seventeenth and eighteenth
centuries. London: Palgrave Macmillan, 2007; MONTEIRO, Nuno G. O crespúsculo dos Grandes: a casa e o
patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998; Les
Noblesses européennes aux XIXe siècle. Actes du colloque organisé par l'Ecole française de Rome et le Centro
per gli studi di politica estera e opinione pubblica de l'Université de Milan en collaboration avec la Casa de
Velázquez (Madrid) [et al.]. Roma, 21-23 novembre 1985.
81
Como demonstrou Carvalho, se o título de barão reservava-se principalmente às nobrezas provinciais, os
Viscondes, Marqueses e Condes eram títulos que se confundiam com os membros da elite política imperial
(CARVALHO, José M. de. A Construção da Ordem: a elite política imperial e Teatro de Sombras: a política
Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 258-259). Maria Fernanda Martins também verificou uma
profunda imbricação entre os nobilitados e os membros do Conselho de Estado (MARTINS, Maria Fernanda V.
“A velha arte de governar”: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 2007).
392
central e as regiões onde concentravam sua base social e econômica, oferecendo-lhes, em
conseqüência disto, um acesso mais facilitado ao mundo da alta política. 82

No Rio Grande do Sul, provavelmente de forma mais acentuada do que nas outras
províncias, a maioria dos títulos foi concedida como retribuição aos serviços militares dos seus
súditos. A nobreza rio-grandense possuía um perfil fortemente ligado ao campo de batalha,
envolvendo também estancieiros civis que haviam lutado em uma ou mais guerras. Cerca de
65% dos 58 rio-grandenses que receberam títulos de nobreza no Segundo Reinado eram ou
oficiais da Guarda Nacional ou do Exército. Pelo menos 22 deles participaram da Revolução
Farroupilha, sendo 19 do lado legalista. 83 Mas no caso dos charqueadores, os títulos de nobreza
recebidos pelos mesmos eram mais uma retribuição ao dispêndio de seu patrimônio do que
qualquer outra coisa. Apesar de patrocinar financeiramente a guerra e insuflar os movimentos
nos bastidores (ver capítulo 7) os charqueadores não foram grandes guerreiros. Portanto, como
os títulos nobiliárquicos dos mesmos também constituíram-se em uma compensação pelo
patrimônio gasto com o Império e a libertação de escravos em grande quantidades não
surpreende que as famílias charqueadoras mais ricas concentraram tais honrarias, como pode
ser percebido na Tabela 10.1.

Na mencionada Tabela, ainda se percebe a estreita relação entre riqueza e investimento


em educação superior e de ambas com a conquista de cargos na alta política (senadores,
deputados gerais, ministros de Estado), denotando uma grande concentração de recursos
materiais e imateriais nas mãos de poucas famílias do grupo. Estes dados podem causar a
impressão de uma certa homogeneidade de interesses políticos entre os 12 inventariados mais
ricos, que totalizavam 9 famílias. No entanto, tal visão pode ser perigosa. Se a população
pelotense estava politicamente dividida entre conservadores e liberais (muito embora os
partidos fossem recheados de facções e nos anos 1850 e 1860 estas subdivisões tomaram um
caráter bastante complexo com a entrada da Liga, da Contra-liga e, posteriormente, dos
progressistas no cenário político regional) não é dificil supor que as disputas pelos cargos locais
e pelo direito de intervir nos rumos da sociedade local e provincial dividia os charqueadores em
diferentes facções. Muitas vezes os conflitos, sobretudo nas épocas de eleição, tomavam um
caráter de extrema violência. Homens que frequentavam o Teatro Sete de Abril, pagavam os
professores europeus mais caros para educar seus filhos e filhas, viviam em bailes e saraus ao

82
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
83
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010. Ver capítulo 3.
393
som de Mozart, Chopin e Schumann, não tinham o maior constrangimento em ordenar, por
meio de seus capangas, as perseguições mais agressivas aos seus inimigos políticos.84

Tabela 10.1 – Relação entre Riqueza, Nobiliarquia, Alta política e Educação entre as famílias
charqueadoras de Pelotas (1845-1900) – em libras esterlinas 85

Faixas de N. Títulos de Cargos na Diplomas de


fortuna Inventários Nobreza Alta política curso superior
Acima de 100 mil 4 7 títulos 8 cargos 11 diplomas
100 % dos invent. 100% dos invent. 100% dos invent.
De 50 a 100 mil 8 7 títulos 5 cargos 6 diplomas
71% dos invent. 49% dos inventa. 71% dos invent.
De 20 a 50 mil 13 2 títulos 5 cargos 7 diplomas
15% dos invent. 38% dos invent. 30% dos invent.
De 10 a 20 mil 9 1 título - 2 diplomas
11% invent. 22% invent.
Menos de 10 mil 17 - - -

Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas; FRANCO, Sérgio da Costa. Gaúchos na
Academia de Direito de São Paulo no século XIX in: Revista Justiça & História. Porto Alegre:
CEMJUG, 2001, pp. 107-129; CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto
Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1937; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.

Uma seqüência de telegramas dos chefes políticos de Pelotas com o Presidente da


Província, em 1878, revela toda a violência empregada nas épocas de eleições. Primeiramente,
o médico e deputado João Campello alertava: “Conflito na Igreja. Dr. Barcellos e Dr.
Mendonça mandaram capangas assassinar os nossos amigos da mesa. Dr. Arruda ferido
levemente, muitos de nossos amigos feridos. A urna foi salva, está guardada em caixa forte.
Peço providencias à Vª Excª contra os mandatários do atentado de hoje”.86 No mesmo dia, o
Dr. França Mascarenhas, genro do general Osório, informava: “Triunfo liberal, conservadores
completamente derrotados na urna, provocaram conflito a mão armada. Comandante do
destacamento seriamente ferido, quatro praças feridos e uma morta e alguns cidadãos feridos. A
ordem quase estabelecida”. 87 A guerra continuava, a tensão tomava conta de todos e Campello
telegrafava novamente:

Os assassinos de ontem acoitaram-se em casa do Dr. Barcellos, onde há preparada


resistência armada. A eleição continua regular. Temos 300 votos de vantagem. No 2º
distrito fizemos 3/3. No 3º distrito ganhamos com 20 votos. Morreu um policial no
conflito de ontem. O Comandante Cordeiro ferido gravemente pelos capangas de
Barcellos. Escapei de 6 tiros e de uma punhalada. Havia ordem de me assassinarem. O
Arruda recebeu uma bala no ventre, que felizmente não penetrou por ter encontrado

84
VARGAS, Jonas. Op. Cit., 2010.
85
Para a construção desta tabela foram considerados como familiares os pais, filhos, irmãos, genros e sogros.
86
Telegrama de 06.08.1878, Pelotas, Fundo Eleições, maço 2, AHRS.
87
Telegrama de 06.08.1878, Pelotas, Fundo Eleições, maço 2, AHRS.
394
uma moeda no bolso do colete. Há mais 6 liberais feridos levemente. Estou doente de
tanto gritar.88

O tal Arruda citado na missiva era o advogado e deputado provincial Saturnino


Epaminondas de Arruda – claramente um dos principais contendores. Estes telegramas
demonstram que os grandes políticos da elite estavam diretamente envolvidos com os conflitos
paroquiais, brigando corpo a corpo com capangas e policiais. O citado Dr. Barcelos era na
realidade o médico Miguel Rodrigues Barcelos, também Barão de Itapitocaí. A riqueza de seu
pai e de sua extensa família fez com que o mesmo fosse agraciado com as Comendas das
Imperiais Ordens de Cristo e da Rosa e da Real Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila
Viçosa de Portugal. Além disso, ele também era Cavaleiro da Real Ordem da Águia Vermelha
da Alemanha e Cavaleiro da Real Ordem da Coroa da Itália. 89 Mas todos estes títulos eram
esquecidos quando os cargos políticos estavam em jogo e o Doutor Miguel brigava sem o maior
constrangimento entre os capangas e policiais. 90 Tanto Barcellos, quanto Mendonça e Arruda
eram filhos de charqueadores.

A prática política, sobretudo no âmbito local e regional, tinha nas famílias as suas
unidades de ação mais elementares e as mesmas sustentavam seu poder incorporando vasta
clientela e um número grande de capangas. 91 Um exemplo disso pode ser verificado por meio
da família do mencionado deputado Arruda – importante liderança do Partido Liberal em
Pelotas. Numa noite de sábado de abril de 1873, um grupo de escravos e homens livres, todos a
cavalo, causou certo tumulto nas ruas de Pelotas. Tendo a polícia tentado reprimir os mesmos,
um dos membros do grupo, um pardo paraguaio chamado Candido Simplício, gritou aos
demais: “A la carga muchachos!”. Conforme testemunhas, eles gritavam “vivas à liberdade” –
saudação comum aos liberais. Fugindo do enfrentamento com a polícia, alguns escravos foram
acoitar-se nas terras do major João Mendes de Arruda e outros na de seu genro. O interrogatório
revelou que todos eles, inclusive os paraguaios, eram trabalhadores da charqueada do próprio
Major. Os escravos haviam encontrado Simplício e outros homens na frente da casa do
conselheiro Francisco de Araújo Brusque, um dos chefes do Partido Liberal em Pelotas e que já
havia sido Ministro da Guerra, em 1864.92 Portanto, o grupo devia compor parte dos capangas
da facção liberal pelotense, algo muito comum na vida política paroquial.93 O major Arruda era

88
Telegrama de 07.08.1878, Pelotas, Fundo Eleições, maço 2, AHRS.
89
CARVALHO, Mario Teixeira de. Op. cit., p. 121.
90
Em setembro de 1859, no dia das eleições em Pelotas, o Dr. Miguel foi acusado de manter um votante na Santa
Casa como se estivesse ainda doente. (O Brado do Sul, Pelotas, 14.09.1859, Biblioteca Nacional do RJ).
91
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
92
Processo-crime n. 995, m. 25, 1874, Tribunal do Juri, Pelotas (APERS).
93
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
395
charqueador e residia em seu estabelecimento no Fragata, possuindo também um sobrado no
centro da cidade, onde seu filho João Maria, oficial do Exército, morava. O advogado e
deputado Saturnino de Arruda, mencionado acima, era o membro da família capaz de conectá-
la com grandes centros políticos, como Porto Alegre e a própria Corte, pois mantinha intensa
correspondência com Fernando Osório, filho do General Osório, quando ambos (pai e filho)
eram respectivamente deputado e senador pelo Rio Grande do Sul, residindo no Rio. Ou seja, as
facções conectavam indivíduos desde a paróquia até a Corte.94

Portanto, pode se verificar que os membros da família possuíam atividades políticas


distintas. Na base, ou melhor, nas localidades (no nível municipal, distrital ou paroquial), a
política era dirigida por grandes proprietários de terras e de escravos, ricos comerciantes e, no
caso de Pelotas, os charqueadores, além de outros grupos com notável proeminência local,
algumas vezes aparentados dos mesmos. Suas clientelas reuniam famílias e indivíduos que
dividiam-se em facções que se digladiavam na luta por cargos e na eleição dos candidatos de
seus chefes. A luta envolvia pequenos líderes locais e capangas e, no caso da família Arruda,
até mesmo os seus escravos. Geralmente, estes grupos buscavam colocar indivíduos influentes
em cargos-chave como os de delegado de polícia, juiz de paz e o oficialiato da Guarda
Nacional. Eram eles que decidiam as eleições e “sujavam” as mãos para que as maiorias
parlamentares, tanto nas Assembléias Provinciais quanto nas Gerais, fossem conquistadas para
os seus respectivos partidos. Em suma, este era um espaço de ação reservado principalmente às
elites locais e suas clientelas.95

Se os conflitos no nível municipal eram protagonizados, sobretudo, pelas suas elites


locais, no nível provincial/regional, alguns indivíduos cujas famílias possuíam grande poder
local acabavam se sobressaindo mais do que outros. Por possuírem um diploma de curso
superior e dominarem uma linguagem política mais sofisticada, alguns locomoviam-se com
distinção entre o meio rural e as grandes cidades, funcionando como conectores entre os dois
mundos. Eram, na realidade, os brokers e aqui os chamo de mediadores políticos. A
convivência com membros de outras elites políticas e a vida no parlamento e na imprensa os
tornavam mais conhecidos e capazes de negociarem interesses locais e regionais com os
grandes centros de poder político e administrativo, ou seja, as capitais de província e, alguns
poucos, a própria Corte.

94
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
95
Sobre clientelas ver GRAHAM, Richard. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.
396
Portanto, ultrapassando o espaço regional e locomovendo-se com certa distinção no
mundo da alta política surgia um grupo bastante pequeno de indivíduos, porém muito influente
e poderoso em termos políticos. E digo indivíduos porque, neste espaço, eles já não podiam
mais carregar consigo as suas famílias na função de mediação. Quanto mais complexa era a
tarefa do broker mais individual ela se tornava, muito embora a sua rede de relações fosse
utilizada como trunfo nas negociações que o mesmo realizava.96 Mas é preciso ter cuidado, pois
por trás de cada estadista ou grande politico e lider regional escondiam-se interesses de
diferentes ordens, nas quais eles não conseguiam se desprender. Somente os senadores e
conselheiros de Estado, cujos cargos eram vitalícios, podiam gozar de uma maior autonomia
com relação a esta pressão vinda dos paroquianos, mas ela jamais deixava de existir. Portanto,
os seus familiares, amigos e “protetores” possuíam papel importante na sua trajetória e sua
dívida para com os mesmos e outros membros das elites regionais era grande. Neste sentido, a
razão de estado e a razão clientelística não se excluíam. A mão que governava e assinava
decretos preocupando-se com questões de ordem nacional era a mesma que mandava nomear
parentes e aliados políticos nos cargos pedidos pelos parentes e amigos.97 E se hoje esta prática
possui um caráter antagônico aos interesses públicos, naqueles tempos, mesmo que nos
discursos ou em elaborações filosóficas ela pudesse ser condenada, era por meio destes
mecanismos que o Estado era capaz de atingir certos espaços e fazer-se impor em outros.98

Portanto, os mediadores políticos agiam por intermédio tanto dos espaços institucionais
abertos aos mesmos (sendo que os mais comuns eram as Assembléias provinciais e a
Assembléia Geral) quanto pelas vias informais de atuação. Numa sociedade agrária com meios
de comunicação e transportes bastante precários, seu papel era fundamental na viabilização do
sistema político do Brasil Império e na captação de recursos materiais para suas províncias.
Negociando com as autoridade centrais e defendendo interesses de ordem regional e local eles
também buscavam sustentar a posição de suas famílias e facções enquanto elite provincial.
Neste processo, aqueles mediadores políticos de maior prestígio e com uma trajetória de maior
sucesso nestas práticas, ascendiam ao Senado, a algum ministério e até mesmo ao Conselho de
Estado.

96
SILVERMAN, Sydel. Patronage and community-nation relationships in central Italy. In: SCHMIDT, S. W.
(ed.). Friends, Followers and factions: a Reader in Political Clientelism. Berkeley: University of Califórnia, 1977,
p. 293-304.
97
CARVALHO, José Murilo. Rui Barbosa e a Razão Clientelista. Dados, v. 43, n. 1, Rio de Janeiro, 2000.
98
URICOECHEA, Fernando. O minotauro imperial: a burocratização do estado patrimonial brasileiro do século
XIX. São Paulo: Difel, 1978; GRAHAM, Richard. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.
397
Tendo em vista o alto retorno em termos de recursos materiais e imateriais que a
ocupação destes cargos podia trazer aos seus portadores, não surpreende que a disputa pelos
mesmos fosse bastante acirrada. As clivagens existentes entre os mesmos grupos decorriam de
posturas ideológicas distintas, das tradições familiares e das próprias redes de compromissos
que caracterizavam o universo político oitocentista. Neste sentido, as famílias charqueadoras
mais ricas estavam divididas não apenas entre conservadores e liberais, como também em
facções dentro dos próprios partidos. Os Antunes Maciel, importantes chefes liberais, ficaram
ao lado de Silveira Martins na cisão que marcou o partido no final dos anos 1870, sendo que, os
Almeida e os Arruda acompanharam a família do General Osório. Importante notar que os
Osório e os Antunes Maciel eram aparentados, o que não significava que não pudessem romper
politicamente. Os Gonçalves Chaves e os Cunha também eram liberais. Entre os conservadores,
o Barão do Jarau e o Visconde da Graça eram chefes locais do partido, mas sofriam oposição
dos Rodrigues Barcellos, por exemplo, que também eram conservadores, assim como os
Mendonça e os Azevedo e Souza.99

Os partidos e suas facções internas disputavam a legitimidade das conquistas políticas


alcançadas pelos seus mediadores. Na polêmica questão da mesa de Rendas de Pelotas, nos
anos 1870, os liberais fizeram questão de propagandear o papel de Silveira Martins no projeto,
além da conquista da tarifa especial e das estradas de ferro na província. 100 Quando os
comerciantes rio-grandinos conseguiram reverter a situação ao seu favor, extinguindo a
alfândega pelotense, o Visconde da Graça, rival político de Martins, viu uma ocasião para
intervir na questão, no que foi aclamado pelos conservadores pelotenses. 101 Um outro exemplo
da atuação política dos mediadores diz respeito à criação, em 1883, da Imperial Escola de
Veterinária e Agricultura em Pelotas. Na ocasião, a localidade entrou para o seleto cenário de

99
Sobre as cisões que marcaram o período ver PICCOLO, Helga. A Política Rio-Grandense no II Império (1868-
1882). Porto Alegre: UFRGS, 1974; CARNEIRO, Newton G. A identidade inacabada: o regionalismo políticos no
Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
100
Jornal do Comércio de Pelotas, 19.06.1981 (BPP).
101
Numa de suas viagens à Corte, o visconde da Graça demorou-se por 3 meses no Rio, onde foi recebido pelo
visconde de Rio Branco. Desta viagem, resultou um Diário que foi consultado pelo escritor Carlos Diniz.
Conforme o mesmo, “ao chegar à casa em que se hospedava, João Simões Lopes [o visconde da Graça] encontra
uma carta de Rio Branco, que veio a ser transcrita no Diário, nos seguintes termos: ‘A S. Excia. Sr. Barão da
Graça cumprimenta o Visconde do Rio Branco, e comunica que estará esta tarde às suas ordens, em casa, às 6 e
½ horas, desejando vê-lo…’. Adiante, registra o manuscrito do viajante: ‘À hora indicada, parti a carro e fui ter à
porta de S. Excia... O encontro de todo (direi mesmo conferência) com aquele hábil homem de Estado foi-me tão
agradável, quanto honroso e delicado o acolhimento que me fez’. A conversa, relatada minuciosamente no Diário,
girou sobre a estratégia das obras ferroviárias no sul do país e de fortificações nas zonas fronteiriças, para colocar o
Brasil em posição de resistir vantajosamente à cavalaria dos argentinos, sua arma principal, ‘se porventura o
orgulho ofendido destes senhores, pelo papel secundário que representaram na última guerra, e naufrágio de sua
diplomacia no Paraguai, quiser desforrar-se pelas armas’. E adentrou na política, a incursionar sobre os destinos
do Partido Conservador da província” (DINIZ, Carlos Sica. João Simões Lopes Neto: uma biografia. Porto Alegre:
AGE, 2003, p. 31).
398
cidades com Escolas e Academias imperiais. Foi uma conquista do advogado e charqueador
Francisco Antunes Maciel quando o mesmo assumiu o cargo de Ministro do Império naquele
mesmo ano.102

Para conseguir manter a sua posição privilegiada, o mediador tinha que se legitimar a
partir dos recursos e benefícios que conseguia captar para as suas regiões de origem. E os
eleitores pelotenses, dentre os quais haviam muitos charqueadores, estavam sempre atentos com
relação a isto, pois muitos deles ajudavam a financiar as campanhas eleitorais103 e gastavam seu
tempo indicando as candidaturas para outros charqueadores e fazendeiros. Seu poder não deve
ser desprezado, pois eles eram capazes de acabar com as carreiras de políticos jovens e até
mesmo de homens experiente e poderosos. Em 1860, por exemplo, o jovem deputado Félix da
Cunha elegeu-se com o apoio de Osório e outros estancieiros e charqueadores. Tendo assumido
a cadeira na Câmara dos deputados, ele deixou de responder as muitas cartas dos mesmos
proprietários que o elegeram. Descontentes, estes escreveram para Osório reclamando do
representante e não voltaram mais a elegê-lo.104 Em 1873, nem mesmo o Visconde de Mauá
resistiu a pressão política do eleitorado. Acostumado a receber o apoio dos charqueadores
pelotenses105, nesta época ele desagradou os líderes liberais rio-grandenses (por aproximar-se
demais do Gabinete Rio Branco) e os charqueadores (por apoiar a Lei do Ventre Livre). Silveira
Martins reuniu oposição ferrenha a Mauá e convocou o eleitorado da província para decidir-se
entre ambos. O banqueiro foi derrotado e teve que abandonar o mandato.106

Na Corte, os estadistas mais bem preparados sabiam muito bem com quem podiam
contar tanto em Pelotas quanto em outras localidade do Rio Grande do Sul, por meio de uma
cadeia de intermediários e dos próprios mediadores rio-grandenses que orbitavam o parlamento
geral. Em 1872, o próprio Visconde de Rio Branco, chefe do Gabinete conservador que

102
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 238-241. Anos depois, o governo central retirou parte dos investimentos
prometidos e a Escola passou para a administração municipal, tendo sua primeira turma de formando em 1895.
Como demonstrei em outra pesquisa, o mesmo ocorria quando Osório era aclamado pela imprensa e pelos eleitores
pelas conquistas políticas que conseguia.
103
Em janeiro de 1861, o charqueador Domingos José de Almeida, liberal, escreveu ao charqueador Joaquim José
de Assumpção, conservador, indagando: “Não querendo nutrir a mais leve suspeita contra a moralidade de alguém,
(…) lhe rogo o obséquio de dizer-me se o ouro derramado com tanta profusão para as eleições últimas fora
fornecido pelo Governo ou por quem” (Anais do AHRS, Carta de Domingos J. de Almeida para J. J. de
Assumpção, 19.01.1861. CV-759).
104
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
105
Em setembro de 1860, por exemplo, Domingos escreveu para o estancieiro e oficial da Guarda Nacional David
Canabarro pedindo votos para Mauá: “Reiterando meu pedido para que V. S. com seus numerosos amigos se
empenhem na reeleição do Barão de Mauá de Deputado à Assembléia Geral Legislativa pelo 3º círculo [além de]
meu parente e amigo o Dr. Joaquim José Afonso Alves, que na criação do grande mercado e do excelente asilo
para as órfãs desgraçadas desta cidade (…) há demonstrado ter compreendido as necessidades da Província (…)”
(Anais do AHRS, Carta de Domingos Almeida para David Canabarro, 06.09.1860, v. 3, CV-731).
106
DORATIOTO, Francisco. General Osório. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
399
permaneceu por 4 anos no poder, escreveu para o Visconde da Graça pedindo que o irmão deste
charqueador, o Dr. Ildefonso, se candidata-se à Câmara. Rio Branco também pediu para que
Graça escrevesse a outros estancieiros solicitando o mesmo.107 Isto demonstra o respaldo e o
prestígio que Graça possuía na Corte e ajuda a entender a segurança com que o mesmo se
movia naqueles espaços de poder. Um outro exemplo pode ser dado na missiva que Silveira
Martins enviou a Osório em 1865. “Aqui me acho em Pelotas (…) falta aqui V. Ex. para ditar a
lei, mas na sua falta cada um vai fazendo o que pode. Fui ao Rio; falei com os nossos amigos, e
a grande conveniência é mandar liberais à Câmara; eu conto quase infalível o meu triunfo, mas
V. Ex. sabe que nesses negócios não há certeza”.108 Este trecho evidencia que, preocupado com
sua a carreira, o jovem Gaspar foi até a Corte buscar informar-se sobre a conjuntura política e
as possibilidades de se eleger. Além disso, ele reconhecia que Osório era quem colocava ordem
no Partido Liberal de Pelotas.

As clivagens faccionais muitas vezes oscilavam e os inimigos de ontem podiam ser os


melhores amigos de amanhã. O mais certo em se tratando da elite charqueadora pelotense é que
os mesmos eram monarquistas convictos. Ao contrário de outras elites brasileiras que aderiram
ao republicanismo, como os cafeicultores paulistas e muitas famílias de estancieiros do Rio
Grande do Sul, por exemplo 109, a listagem dos membros do clube republicano de Pelotas, que
até 1889 contava com 96 membros, possuía somente um charqueador.110 Defendendo a
escravidão e a monarquia, mantendo a ordem social local, ajudando a financiar as guerras na
qual o Brasil participou e as eleições que garantiam as maiorias parlamentares dos gabinetes
que apoiavam, eles podiam se considerar um sustentáculo do Império e da escravidão na
fronteira sul.

10.3 O IMPÉRIO DOS MEDIADORES: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O ESTUDO DA


CONSTRUÇÃO DO ESTADO IMPERIAL E DO FUNCIONAMENTO DO SISTEMA
POLÍTICO MONÁRQUICO

Depois de tudo o que foi visto ao longo dos capítulos encerro esta tese tecendo algumas
considerações acerca da atuação da elite charqueadora e do papel das elites regionais no
processo de formação do Estado Imperial. Apesar da notável disseminação da cultura europeia
em Pelotas na segunda metade do século XIX, é necessário analisar as primeiras décadas do
oitocentos, pois traços daquela difusão já eram visíveis naquela época e é possível considerar

107
Carta de João S. Lopes. Pelotas, 23.06.1872. Arquivo do Barão de São Borja. Lata 450, pasta 9, carta 6 – IHGB.
108
Carta de Silveira Martins a Manoel Osório, 09.09.1865. OSÓRIO, Fernando. Op. cit. 2000, v. 1, p. 137.
109
SACCOL, Tassiana. Op. cit.
110
OSÓRIO, Fernando. Op. cit., v. 1, p. 189-191.
400
que a elite da elite charqueadora analisada anteriormente era herdeira dos atos e modelos de
ação da primeira geração de charqueadores.

Uma das muitas maneiras de se medir o grau de desenvolvimento social e cultural de


uma localidade no Brasil oitocentista pode ser alcançada na análise dos relatos dos próprios
estrangeiros que, vindos de países por onde a Revolução Industrial e a Francesa já havia afetado
os costumes e padrões de vida das elites, ofereceram as suas impressões. Mesmo que repleto de
preconceitos e vícios trazidos dos seus lugares de origem, o seu olhar pode servir como um
termômetro da “civilidade” que os mesmos procuravam na América, ou seja, em que espaços
urbanos eles sentiam-se mais à vontade, fazendo-os lembrar do seu cotidiano na Europa. Para
começar, pode-se dar um bom exemplo através do mercenário alemão Carl Seidler, que esteve
em Pelotas no ano de 1827. Segundo Magalhães, Seidler se entusiasmara com o grande
contingente de europeus que encontrou na localidade, considerando “que certamente por
influência do seu dinheiro e de sua cultura” contribuíam para que houvesse ali “mais civilização
e mais gosto pela vida social do que nas outras regiões”. Seidler gostou muito das mulheres
espanholas, “que tocam piano, falam francês, dançam bem e permitem até um galanteio de um
cavalheiro, em determinadas circunstâncias”. 111

Como notou Magalhães, referências semelhantes foram comuns mesmo antes de Pelotas
tornar-se vila. O bispo Coutinho, visitador da freguesia em 1815, observou na igreja “um
grande concurso de homens e mulheres, vestidos com riqueza e luxo”. Um ano depois, o conde
português Francisco d’Azeredo, após passar com seu batalhão por Pelotas, deixou registrado a
“abundância” e os “bons costumes”, destacando que “a ociosidade é partilhada por todos os
brancos”.112 Saint-Hilaire, por sua vez, considerou que “não se vê em São Francisco de Paula
uma palhoça sequer e tudo aqui anuncia abastança”. 113 Provavelmente, este estilo de vida era
compartilhado por outras famílias de elite no Rio Grande do Sul. Em Pelotas, os comerciantes-
charqueadores estudados nos capítulos 2 e 3 eram os que mais se destacavam nos relatos dos
viajantes.114 Além da considerável fortuna para a época, sua conexão com o universo mercantil

111
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 138-139. Após marchar pelo interior do Rio Grande do Sul durante dias,
Seidler esboçou todo o seu contentamento ao avistar novamente Pelotas: “Em poucas horas alcancei o meu
objetivo; a bela cidadezinha estava diante de mim, como um faisão dourado na bandeira de prata do rei. Diante da
casa dum negociante inglês conhecido apeei e, poucos minutos depois, do balcão da casa avistei de coração
contente o lugar onde outrora vivera dias felizes” (SEIDLER, Carl. Dez anos no Brasil. São Paulo: Livraria
Martins, 1976, p. 199).
112
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit.
113
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 130.
114
Saint-Hilaire, por exemplo, destacou Antônio Francisco dos Anjos, Antônio Soares de Paiva, Mateus da Cunha
Teles e Antônio José Gonçalves Chaves (SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit.).
401
marítimo os colocavam a par das diversas inovações provenientes da Europa, assim como dos
seus artigos de luxo.

Conforme Magalhães, os charqueadores que possuíam agentes mercantis espalhados


pelos portos marítimos para os quais os couros e o charque eram remetidos mandavam trazer
artigos de luxo e novidades nas viagens de volta.115 Analisando os inventários post-mortem dos
mesmos e pesquisando suas vidas isto fica bastante perceptível. Domingos de Castro
Antiqueira, que era um típico comerciante-charqueador com conexões marítimas diversas,
possuía, entre seus muitos bens, “uma sege nova de quatro cavalos vinda de Londres com seus
pertences e arreios, freios, fivelas de prata, e mesmo com vários enfeites”. 116 No interior do seu
sobrado, o luxo dos móveis fica evidente na prataria que ele e sua esposa ostentavam e que
devia ser utilizada na recepção de visitantes de prestígio. Um deles foi o Imperador D. Pedro II,
que esteve em Pelotas no ano de 1846, hospedando-se em sua casa. Antiqueira já era conhecido
da Família Real, pois havia recebido o título de Barão de Jaguari por ocasião de seu empenho
financeiro na Guerra da Cisplatina (1825-1828). Depois desta visita, D. Pedro II o fez
Visconde.117 Antiqueira, neto de índios, foi o primeiro charqueador-barão de Pelotas e, assim
como a conduta de defensor ferrenho na monarquia, o seu estilo de vida deve ter servido de
modelo para outros que tenham almejado atingir este mesmo status. Foi por conta de homens
como Antiqueira que Nicolau Dreys deixou registrado sobre Pelotas:

Eles quiseram que o lugar prosperasse, e o lugar prosperou; cada um deles tem ali sua
casa urbana; e quando, nos domingos e dias santos, a população das charqueadas
ajunta-se na cidade para assistir ao serviço divino (...) é difícil fazer-se ideia do ar de
vida e de opulência que respira então a cidade de Pelotas. (...): a par do carro popular,
tosca testemunha da antiga indústria local, anda o ligeiro carrinho de construção
europeia, como também entre os cavalos arreados de prata, luxo especial dos homens
do país, aparecem ginetes ricamente ajaezados com selins bordados por mãos inglesas
e montados por senhoras que não cedem em elegância e boas maneiras às mais
graciosas parisienses.118

Analisando os inventários de outros charqueadores da época é possível verificar um


mobiliário que apresentava certo luxo e que confirma a impreensão dos viajantes. Além de
objetos de ouro e de prata, jóias, pianos, relógios e móveis de jacarandá, um ponto a ser
destacado era a valorização que alguns deles davam às letras, algo verificável por meio da
presença de livros em alguns inventários. Um charqueador como João Nunes Batista (que
possuía seu estabelecimento na Estância do Pavão, ou seja, muito longe da cidade) possuía, em

115
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 137.
116
Inventário de Maria Joaquina de Castro, n. 74, m. 3, Rio Grande, 1º cartório do cível, 1840 (APERS). Ele
também possuía uma outra sege para dois cavalos e um “carrinho de bom gosto”.
117
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 98.
118
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IEL, 1961.
402
1827, além dos talheres de prata, aparelhos de chá, cama de jacarandá e quadros decorando a
sala de sua casa, uma estante para livros na qual podia se ver 37 volumes escritos em francês e
2 de direito mercantil. A biblioteca do charqueador Ignácio José Bernardes era mais variada e
nela podia se encontrar dezenas de exemplares, com destaque para os livros de Medicina, os
religiosos, dicionários e exemplares diversos em francês e também em espanhol. Entre os
mesmos havia uma “História do Império da Rússia” e um “Vida de Bonaparte”. O charqueador
Joaquim José da Cruz Secco, que teve os bens de seu casal inventariados em 1828, também
apresentou muita prataria, móveis importados, aparelhos de chá, um piano forte e 77 chícaras e
10 dúzias de pratos da Índia. Entre os seus livros havia uma “História de Portugal”, uma
“História Sagrada” e uma “Recriação Filosófica”. 119

Secco foi sogro de Antônio José Gonçalves Chaves e talvez nenhum charqueador tenha
o excedido em conhecimento e cultura. Como já foi dito anteriormente, Saint Hilaire
impressionou-se com o mesmo considerando-o “um homem culto, sabendo o latim, o francês,
com leituras de história natural, conversando muito bem”, em suma, “um dos homens mais
esclarecidos da região”.120 Leitor de Adam Smith, Chaves expôs todas as suas ideias sobre
política e economia num livro que escreveu entre os anos 1817 e 1822.121 O principal sócio de
chaves também era bastante instruído. O charqueador Domingos de Almeida, quando ministro
da República Rio-grandense, possuía um gabinete de leitura com mais de 800 livros. 122 Numa
das cartas escritas para a sua esposa na época da Guerra, Domingos pediu que ela lhe enviasse
os livros “Economia Política”, “Contrato Social”, “Beccaria ou Tratado de Delitos e Penas” e as
obras de Telinho Elípio. 123 O investimento na educação dos filhos também foi algo que os
charqueadores da primeira geração, notadamente a elite dentro da elite, já praticava. Tanto
Secco, quanto Chaves e Domingos enviaram seus filhos para estudar Direito em São Paulo.

Contudo, é importante que se diga que tudo isto foi possível por apresentar uma
conjuntura favorecida pelos acontecimentos do ano de 1808. A vinda da Família Real para o
Brasil e a instalação da Corte dentro da própria América portuguesa tornou o Rio de Janeiro um

119
Inventário de João Nunes Batista, n. 75, m. 1, 1823, cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS);
Inventário de Inácio José Bernardes, n. 217, m. 15, 1838, cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS) ;
Inventário de Teresa Angélica de Sá, n. 126, m. 10, cartório de órfãos e proveroria, Pelotas, 1828 (APERS).
120
SAINT-HILAIRE O. Op. cit., p. 103.
121
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil.
Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978, p. 53-77.
122
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 128.
123
Anais do AHRS, carta de 16.10.1835, CV-178, v. II, 1978. Sua liderança como propagandista da revolução via
imprensa foi marcante (MENEGAT, Carla. Op. cit.).
403
centro especial de representação política e difusão cultural. 124 Principal parceiro comercial do
Rio Grande do Sul, não é difícil perceber que sua influência política, econômica e cultural se
fez presente entre as elites da província desde essa época. 125 No entanto, este não foi o único
fenômeno que favoreceu o desenvolvimento sociocultural das cidades litorâneas da época. A
abertura dos portos às nações estrangeiras, evento ocorrido naquele mesmo ano de 1808,
proporcionou a entrada de muitos negociantes europeus e norte-americanos no espaço portuário
e urbano das mesmas cidades. Por conta disto não somente as mercadorias, como as pessoas, as
ideias, os novos gostos e as distintas visões de mundo foram lentamente influindo na vida dos
colonos que habitavam tais espaços urbanos. 126

No caso do Rio Grande do Sul, a interação sociocultural também se dava com


Montevidéu, cuja presença de comerciantes estrangeiros diversos, com seus costumes e hábitos
europeus, já eram bem fortes. Como observou Fabrício Prado, em 1810, a capital da Banda
Oriental já possuía o seu teatro servindo de espaço de sociabilidade à elite local, composta de
burocratas e comerciantes que realizavam negócios com Rio Grande e o Rio de Janeiro, por
exemplo. 127 Como enfatizei no capítulo 2, as trocas comerciais e culturais entre ambos os
espaços econômicos eram bastante significativas. 128 Além disso, a circulação de comerciantes e
burocratas possibilitavam tais trocas de uma forma que nenhuma localidade litorânea estava
isolada das modas de sua época, sendo influenciada tanto pelo Rio de Janeiro e por Lisboa,
como por outros países que agora mantinham contato mais direto com as mais diversas
capitanias brasileiras.129

124
Ver, por exemplo, MALERBA, Jurandir. A Corte no Exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da
Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000; ARAÚJO, Maria L. Vieiros. Os caminhos
da riqueza dos paulistanos na primeira metade do oitocentos. São Paulo: Hucitec, 2006.
125
Ver, por exemplo, COMISSOLLI, Adriano. A serviço de Sua Majestade: administração, elite e poderes no
extremo meridional brasileiro (1808 c. – 1831 c.). Tese de Doutorado em História, PPGHIS-UFRJ, 2011.
126
O comerciante inglês John Luccock, que esteve em Rio Grande em 1810, deixou anotado o impacto da abertura
dos portos, pois os produtos ingleses já vinham substituindo os portugueses de forma notável, devido aos preços
mais atrativos e o “gosto pela exibição” que vinha crescendo entre as pessoas “pois que as possibilidades que a
riqueza concedia se escoavam por vários canais” (LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes
meridionais do Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1942, p. 122). MALERBA, Jurandir. Op. cit.; COUTO, Jorge.
Rio de Janeiro: capital do Império português (1808-1821). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
127
PRADO, Fabrício. In the shadows of empires: trans-imperial networks and colonial identity in Bourbon Río de
la Plata. Diss. (Ph.D.) - Emory University, 2009.
128
MIRANDA, Márcia E. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime, fiscalidade e fronteira na Província
de São Pedro (1808-1831). São Paulo: Hucitec, 2009. Nos anos 1820, quando J. B. Debret pintou um casal de
charqueadores, ele deixou registrado: “Pode-se reconhecer na vestimenta do cavaleiro o manto espanhol adotado
pelo rico habitante do Rio Grande, cujas terras confinam com o território de Montevidéu. Os estribos de madeira
enfeitados de prata, bem como o resto do arreio do seu cavalo, são, ao contrário, de formas portuguesas importadas
no Brasil” (DEBRET, Jean-Batiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: USP, v. 1, 1972, p. 332).
129
PRADO, Fabrício. Op. cit.; COMISSOLI, Adriano. Op. cit.
404
Portanto, ao pensarmos numa colônia em movimento é possível considerar que a
América portuguesa constituía-se num território na qual havia uma profunda interação entre
comerciantes e burocratas com as elites coloniais nas suas próprias capitanias e de umas com as
outras.130 Isto ajuda a relativizar uma ideia de que a Corte estabelecida no Rio de Janeiro em
1808 concentrava uma espécie de poder civilizador que foi lentamente sendo distribuído às
demais regiões da América luso-brasileira que sofriam de um isolamento cultural
intransponível. Considerando o piano como um símbolo deste modelo de civilização, Luís
Felipe de Alencastro afirmou que, em meados do século XIX, o mesmo só havia entrado em
poucos sobrados do Rio de Janeiro, de Recife e Salvador, sendo praticamente desconhecido nas
outras partes do Império.131

Ora, pesquisas recentes demonstram que este instrumento musical já podia ser
encontrado em muitas casas distantes destas três cidades e bem antes do meado do oitocentos.
Pesquisando São Paulo, por exemplo, Maria Viveiros de Araújo localizou não apenas
bibliotecas com muitos livros, como pianos entre os bens inventariados da elite paulista entre
1800 e 1850.132 No Rio Grande do Sul, Adriano Comissoli identificou os mesmos itens entre as
elites administrativas e políticas da região nas primeiras décadas do oitocentos. O autor
demonstrou como a presença dos pianos eram “indicativos da busca por refinamento aliado a
um entretenimento de alta sociedade”. Além disso, “a recorrência dos aparelhos de louça para
chá indicam igualmente a disseminação de hábitos considerados refinados numa sociedade que
se complexificava e cuja elite dialogava com os pares de outras praças”. Neste sentido, “os
tempos em que a sociedade sul rio-grandense era classificada de ‘rústica e agreste’ haviam sido
ultrapassados pela elite oitocentista”.133

O simples fato dos primeiros pianos terem chegado à pequena Desterro – capital de
Santa Catarina134 – já no início do século XIX, fazem supor que em outras cidades litorâneas

130
FARIA, Sheila. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (Sudeste, século XVIII). Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; OSÓRIO, Helen. O império português no sul da fronteira: estancieiros,
lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007; GIL, Tiago Luís. Coisas do caminho: tropeiros e seus
negócios do Viamão à Sorocaba (1780-1810). Tese de Doutorado, UFRJ, 2009; VIEIRA JÚNIOR, Antônio
Otaviano. De Família, Charque e Inquisição se fez a trajetória dos Pinto Martins (1749-1824). In: Revista Anos 90.
Porto Alegre, v. 16. N. 30, dez, 2009, p. 187-214.
131
ALENCASTRO, Luís Felipe de. História da vida privada e ordem privada no Império. In: ALENCASTRO, L.
F. (ed.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, v. 2, 1997, p. 45.
132
ARAÚJO, Maria L. Viveiros. Op. cit., 2006. É importante que se diga que os inventários retratam o patrimônio
dos indivídos em determinada época de sua vida e não são suficientes para dar conta da posse dos pianos, livros e
demais artigos que uma pessoa tinha contato ao longo de toda a sua vida.
133
COMISSOLI, Adriano. A serviço de sua maestade: administração, elite e poderes no extremo meridional
brasileiro (c.1808 - c.1831). Tese de Doutorado em História. PPGHIS-UFRJ, 2011, p. 227.
134
HOLLER, Marcos T.; SANTOLIN, Roberta F. O piano em Desterro no século XIX. In: D.A. Pesquisa.
Florianópolis: UDESC, v. 3, 2009, p. 1-8.
405
mais ricas e com elites mais bem estabelecidas não apenas o acesso aos pianos como a outros
artigos importados, assim como livros e novas ideias estivessem sendo acessadas por
intermédio de comerciantes, burocratas e estrangeiros de diferentes países que os conectavam
com o mundo exterior. Nas suas memórias, o magistrado Albino Barbosa de Oliveira deixou
escrito a respeito de sua permanência no Maranhão (onde serviu como juiz de direito na década
de 1840), a existência de um teatro e dos bailes e soirées que frequentava na casa de muitas
famílias de elite, onde conheceu as filhas da Dona Lourença Leal, sendo que uma delas “tocava
muito bem piano, o que era grande recurso para mim, ávido de distrações”. 135

Com relação aos pianos, teatros e bailes, os próprios viajantes deixaram relatos
importantes. Em Porto Alegre, no início da década de 1820, Saint-Hilaire mencionou: “São
freqüentes as reuniões nas residências para saraus, e algumas senhoras tocam, com maestria, o
violão e o piano, instrumento este desconhecido no interior, por causa das dificuldades de seu
transporte”. Mas se no interior das províncias os pianos podiam demorar para chegar, nas
cidades litorâneos ele pareceu ser do usufruto de muitas famílias das elites. No sul do Brasil, a
interação social com os hispano-americanos e estrangeiros devia estimular mais ainda o gosto
por artigos de luxo, pianos e o contato com visões de mundo distintas. Em Buenos Aires, por
exemplo, Arsene Isabelle deixou escrito no início dos anos 1830: “É preciso que a família seja
muito pobre para não ter o seu piano. As buenairenses como as montevideanas têm a mesma
inclinação das italianas pela música mas não se dão ao trabalho de estudar a música escrita
(falando de um modo geral)”.136 Passando por Pelotas, nos anos 1820, Carl Seidler recomendou
aos viajantes que “tocassem algum instrumento, sobretudo o piano, mesmo que pouco, pois que
o piano se encontrava em todas as boas casas da freguesia de São Francisco de Paula”, antigo
nome da cidade de Pelotas.137

Portanto, a Corte foi um importante espaço gravitacional de diversos projetos políticos e


interações culturais, mas seria um equívoco pensar nela como monopólio de transmissão e
formulação de tais projetos e de difusão cultural. Assim como Lisboa não havia concentrado
toda a vida política e cultural dos súditos do Império português, a Corte do Rio de Janeiro não
apresentou tal característica. Um problema deste tipo de interpretação é que ela desconsidera
completamente as trocas regionais (Belém, São Luís, Recife, Salvador entre si, com Lisboa e as
cidades do interior; Porto Alegre, Pelotas, Montevidéu, Buenos Aires, entre si e com suas

135
OLIVEIRA, Albino J. B. Memórias de um magistrado do Império. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1943, p. 165.
136
ISABELLE, Arsene. Op. cit., p. 128-129.
137
NOGUEIRA, Isabel; SOUSA, Márcio. Saraus. In: LONER, Beatriz; GILL, Lorena; MAGALHÃES, Mário. Op.
cit., p. 230-231. Conforme Müller, o desenvolvimento dos espaços de sociabilidade em Pelotas tiveram influência
da Corte, da França, da Inglaterra, de Buenos Aires e de Montevideu (MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 23-24).
406
respectivas hinterlands, por exemplo), mas, principalmente, as interações diretas dos seus
habitantes com os estrangeiros que cada vez mais circulavam pelas cidades brasileiras, além da
histórica relação política e administrativa das mesmas com Lisboa e Coimbra, por intermédio
dos burocratas e bacharéis. Os filhos estudantes, como já foi dito, eram importantes
intermediários neste sentido, assim como os genros comerciantes. Como demonstrou José
Murilo de Carvalho, a influência de Coimbra foi notável entre as elites políticas luso-brasileiras
tanto no período colonial quanto nas primeiras décadas do Império. 138 Além de contribuir com a
ilustração dos filhos das elites coloniais os bacharéis introduziam novos costumes, hábitos,
vocabulário político e visões de mundo vindos da Europa.

Um exemplo envolvendo a região de Pelotas na passagem do século XVIII para o XIX


pode ser dado na análise da família do alferes Felix da Costa Furtado de Mendonça. Natural do
Rio de Janeiro, o militar casou-se em 1773 com Ana Josefa Pereira (natural da Colônia do
Sacramento) estabelecendo-se em Pelotas, onde tornou-se proprietário de uma grande estância. O
casal teve três filhos homens e todos estudaram em Coimbra. Enquanto Hipólito José da Costa
Pereira, o mais conhecido deles, seguiu carreira científica, diplomática e jornalística, Felício J. da
Costa Pereira tornou-se padre (e primeiro vigário de Pelotas) e José Saturnino da Costa Pereira
seguiu carreira militar, vindo a ser deputado brasileiro nas Cortes de Lisboa, ministro da Guerra no
Regresso, em 1837, e senador do Império do Brasil (1828-1852). Portanto, enquanto os dois irmãos
foram agentes diretos na alta política imperial, influindo na independência do Brasil e no processo
de construção do Estado brasileiro, o outro atuou localmente, sedimentando o poder local da
família junto às grandes propriedades da mesma. Unindo-se à facção encabeçada pelo Capitão-
mor Antônio Francisco dos Anjos (charqueador analisado no capítulo 3), o Padre Felício teve
papel importante na negociação com a Corte para que São Francisco de Paula fosse elevada à
condição de freguesia, apoiando a construção da igreja nas terras do Capitão dos Anjos.
Enquanto este era muito bem relacionado com os comerciantes de grosso trato do Rio de
Janeiro, o Padre Felício tinha nas autoridades religiosas e políticas da Corte, dentre os quais o
seu irmão José, os seus grandes trunfos.139

Portanto, estes exemplos podem ser multiplicados caso se estude o perfil regional dos
estudantes brasileiros formados em Coimbra. Analisando uma listagem que reunia 1.242 alunos
matriculados entre 1772 e 1872, Carvalho observou que 26,8% eram provenientes do Rio de
Janeiro, 25,9% da Bahia, 13,6% de Minas Gerais, 11,5% de Pernambuco, 8,7% do Maranhão e

138
CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., 2003.
139
Sobre esta família, ver GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço
pelotense. Pelotas: UFPel, 2001.
407
3,7% era o índice idêntico alcançado por Pará e São Paulo.140 Neste sentido, é difícil pensar que
famílias com elites muito bem constituídas e com conexões familiares em outros pontos do
Império português também não compartilhassem de signos de cultura do mundo europeu por
intermédio de alguns parentes próximos que circulavam por aqueles espaços, estabelecendo
contatos comerciais e alianças matrimoniais com outras elites.141 Esta talvez tenha se
constituído numa das heranças da cultura política do Império português e que os estadistas da
jovem nação independente trataram de reproduzir. 142 A circulação de magistrados, burocratas e
presidentes de província e a criação de somente duas academias de Direito (em São Paulo e
Olinda/Recife) obrigavam os filhos das elites regionais, assim como o membros das elites
políticas e administrativas do Império, a circularem por todo o território nacional favorecendo
um sentimento de pertencimento a uma unidade política maior.143

Esta constatação é de grande importância para a compreensão tanto do processo de


Independência quanto da construção do Estado Imperial, uma vez que, se o arranjo institucional
apresentou grandes rupturas e o vocabulário político sofreu alterações significativas entre 1808
e 1841, por exemplo, boa parte das famílias e dos agentes envolvidos nos mesmos processos
históricos continuaram influindo na vida política brasileira. Conforme Katia Mattoso, dos 28
baianos que exerceram o cargo vitalício de senador entre 1826 e 1889, 21 (75%) eram
magistrados, sendo que 15 haviam estudado em Coimbra e “pertenciam ao pessoal
administrativo e político do Antigo Regime”. Eles haviam “servido ao Estado português,
sobretudo como magistrados e, em seguida, a Dom Pedro I, que os brasileiros sempre
consideraram como um monarca português”. Após 1822, “a maior parte deles integrou o círculo
dos altos funcionários que assumiram responsabilidades ministeriais no novo Estado”.144
Estudando os conselheiros de Estado, Maria Fernanda Martins percebeu algo semelhante, ou

140
CARVALHO, José Murilo. Op. cit., p. 73.
141
Sobre esta mobilidade e diversidade de espaços nas quais os membros das famílias de elite regionais
circulavam, ver, por exemplo, BACELLAR, Carlos. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre
senhores de engenho do oeste paulista (1765-1855). Campinas: Centro de Memória da Unicamp, 1997;
ALMEIDA, Carla M. C. de. Uma nobreza da terra com projeto imperial: Maximiliano de Oliveira Leite e seus
aparentados. In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla; SAMPAIO, Antônio C. J. Conquistadores e negociantes:
Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007, p. 121-193; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.; COMISSOLI, Adriano. Op. cit.
142
CARVALHO, José Murilo. Op. cit.; Sobre a cultura política do Antigo Regime ver BICALHO, Maria
Fernanda. Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do
Antigo Regime. Almanack Braziliense, n. 2, nov. 2005, p. 21-34.
143
SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: a Suprema Corte da Bahia e seus juízes. São
Paulo: Perspectiva, 1979; MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM Pedro; CUNHA, Mafalda (Org.). Optima Pars: elites
ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: ICS, 2005; CARVALHO, José Murilo. Op. cit.
144
MATTOSO, Kátia de Q. Bahia: Século XIX (Uma Província no Império). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992,
p. 281. Conforme José Murilo de Carvalho, os magistrados formados em Coimbra, enquanto membros da elite
política imperial, constituíram-se em agentes que possibilitaram um processo de transição sem grandes rupturas
para o período pós-independência (CARVALHO, José M. Op. cit.).
408
seja, os homens que ocuparam tal cargo formavam uma elite política com profundas raízes nas
famílias conquistadoras estabelecidas no poder desde os tempos coloniais. 145 No Rio Grande do
Sul, Adriano Comissoli percebeu que os representantes políticos da Província nos primeiros
anos após a Independência eram os mesmos agentes administrativos do período joanino. Tal
permanência, mesmo num contexto de transformações institucionais importantes e que
estabeleceram um arranjo institucional de ordem liberal, favoreceu a identificação daquela elite
com o governo do Rio de Janeiro e a oposição da maioria dos mesmos à Revolta de 1835.
Conforme Comissoli, eles “deviam muito à velha relação com o centro e sabiam que dele
dependia em larga escala seu reconhecimento como a camada superior da sociedade”.146

Da circulação de ideias e do papel marcante das elites coloniais e locais no interior dos
impérios marítimos americanos e, posteriormente, dos novos estados independentes, derivava
um cenário extremamente rico em projetos políticos (tanto regionais como nacionais e
transnacionais) e que marcou o processo de independência das colônias americanas e as
primeiras décadas que se sucederam aos mesmos acontecimentos.147 Além disso, a
historiografia nacional e internacional tem aceito amplamente o papel das elites coloniais no
governo dos seus povos e a existência de nobrezas locais nos territórios americanos.148 No caso
do sul do Brasil, os comerciantes e charqueadores tiveram papel proeminente neste processo.149
Desde o início do século XIX muitos deles atuaram em sintonia com o projeto joanino para com
a região platina apoiando as guerras na fronteira e dispensando seus recursos para o
financiamento das mesmas. As requisições de comendas honoríficas fornecem diversas
informações a respeito disto. No início do século XIX, foi possível verificar que o sargento-mor
de ordenanças Matheus da Cunha Telles fez o pedido de uma comenda, tendo sido informado

145
MARTINS, Maria Fernanda. Os tempos da mudança: elites, poder e redes familiares no Brasil, séculos XVIII e
XIX. In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla & SAMPAIO, Antônio C. J. Op. cit., p. 403-435. Neste sentido, ver
também FRAGOSO, João. “Elites econômicas” em finais do século XVIII: mercado e política no centro-sul da
América Lusa. Notas de uma pesquisa. In: JANCSÓ, István (Org.). Independência: História e Historiografia. São
Paulo: Hucitec, 2005, p. 849-880.
146
COMISSOLI, Adriano. Op. cit., p. 361. Sobre as rupturas institucionais do período, assim como a relação das
elites rio-grandenses com o governo central ver MIRANDA, Márcia E. Op. cit.
147
Esta tese não se propõe a examiná-as. Importantes contribuições sobre a temática podem ser vistas em
JANCSÓ, István. Op. cit.; JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico (ou apontamentos
para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos G. Viagem Incompleta: a
experiência brasileira (1500-2000).. São Paulo: Ed. SENAC, 2000; DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial:
origens no federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005.
148
Ver também MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda S. Op. cit.; FRAGOSO, João;
SAMPAIO, Antônio C. J. (Org.). Monarquia pluricontinental e agovernança da terra no ultramar atlântico luso:
séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012; GREENE, Jack. Negociated Authorities: essays in colonial
political and constitutional history. Charlottesville: University Press of Virginia, 1994; RUSSEL-WOOD, A. J. R.
Centros e periferias no mundo luso-brasileiro. Revista Brasileira de História, v. 18, n. 36, 1998; STUMPF,
Roberta G. Cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações de hábitos das ordens militares
nas minas setecentistas. Brasília: Tese de doutorado, PPPGHIS - UNB, 2009; PRADO, Fabrício. Op. cit.
149
Para uma análise conjuntural deste período ver MIRANDA, Márcia E. Op. cit.
409
sobre o mesmo que na Guerra de 1801, “sendo proprietário de embarcações franqueou gêneros
para a esquadra subtil que defendia o porto. Na de 1810 a 1812, aumentou as suas ofertas e
dádivas economizando a Real Fazenda somas avultadas”. Nas campanhas militares sequentes
“abriu os seus cofres de tal maneira que estagnou o seu comércio, pois tem assistido e pago
todas as letras sacadas sobre ele pelo General Lecor” para soldos e cavalos, “constando ter
despendido mais de cem contos de réis”. 150 Num longo documento, o capitão de cavalaria José
Vieira da Cunha, também charqueador, foi referenciado como tento auxiliado com cavalos,
homens e dinheiro nas guerras, conduzindo prisioneiros espanhóis, colocando suas “gentes e
bois” da charqueada e das fazendas em diversos trabalhos e fardando os soldados.151

Portanto, não bastava apenas sustentar a presença da monarquia escravista na


fronteira. 152 Os charqueadores desejavam o reconhecimento da Corte conferido pela concessão
das comendas e títulos honoríficos. Assim sendo, as guerras e o dinheiro empregado nas
mesmas foram boas formas de multiplicar o recebimento destas honrarias. Conforme Saint-
Hilaire, que deixou um relato a respeito dos rio-grandenses que atuavam no comércio marítimo
nesta época e como os mesmos esforçavam-se para obter tais comendas, “fora do Rio de
Janeiro, não vi, em parte alguma, um número tão grande de homens condecorados; isso nada
mais é do que uma das provas da riqueza do lugar”. 153 Entretanto, o apoio dos charqueadores às
campanhas militares ainda marcaria boa parte do oitocentos. Nos anos 1820, as tropas de gado
vindas do Estado Oriental, então província da Cisplatina, já haviam se tornado estruturalmente
fundamentais para a manutenção dos ritmos de abate da indústria charqueadora pelotense. Daí
que o desencadear da Guerra da Cisplatina (1825-1828) despertava o interesse direto dos
charqueadores. Não causa surpresa que os mesmos forneceram altos montantes de dinheiro para
financiar a campanha militar. Numa listagem elaborada por Márcia E. Miranda, pude verificar
que, até 1827, os charqueadores pelotenses doaram em “subscrições voluntárias” quase 170
contos de réis (e isto sem contar os muitos outros proprietários e negociantes listados por
freguesia). Os campeões em doações foram Domingos Antiqueira com 40 contos e os irmãos
Barcellos, que juntos contribuíram com quase 50 contos.154

150
Relação dos comerciantes e grandes proprietários residentes na Vila do Rio Grande que pretendem
condecorações, s/d. Coleção Rio Grande do Sul, Manuscritos (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). No mesmo
documento, o Sargento-mor José Rodrigues Barcellos, també charqueador, foi descrito como um “dos maiores
proprietários da fronteira do Rio Grande” e de boa conduta quando no comando dos oficiais militares.
151
Requerimento de Alexandre Vieira da Cunha de 09.10.1808, C608-17, Documentos Biográficos, BN-RJ.
152
Ver também ALADREN, Gabriel. Sem respeitar fé nem tratados: escravidão e Guerra na formação histórica
da fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835). Tese de Doutorado. PPG-UFF, 2012.
153
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 96. O viajante referia-se à comenda da Ordem de Cristo.
154
MIRANDA, Márcia E. Op cit., p. 302-304.
410
Conforme o mesmo documento, os valores doados pelos charqueadores eram muito
maiores que os dos indivíduos de outras localidades da província. Com o fim de obter a Ordem
Imperial do Cruzeiro, João Francisco Vieira Braga fez um extenso rol dos serviços prestados à
Coroa e que demonstram o destino deste dinheiro. Dizia ele que doou 12:600$ para a sustenção
da Independência e a Guerra contra Buenos Aires, 10:800$ para o estabelecimento da Colônia
de Suíços, 189:415$547 no abastecimento de gêneros comestíveis ao Exército Imperial, “sem
que daí resultasse o menor interesse pecuniário e sim da Nação”, entre muitas outras coisas que
fez. Um dos argumentos de Vieira Braga para ser agraciado com as comendas e títulos (que de
fato recebeu, vindo a tornar-se Conde de Piratini) era a continuidade dos serviços prestados
pelo seu pai (homônimo), que, segundo ele, havia sido comerciante de grosso trato em Rio
Grande. Num dos atestados fornecidos pelo Oficial Manoel Marques de Souza acerca dos
serviços deste podia se ler:

Atesto que o Capitão da 2ª Companhia da Vila do Rio Grande João Francisco Vieira
Braga tem sido um vassalo fiel a sua magestade e útil ao Estado, em todas as ocasiões
de urgência se tem prestado de boa vontade, como aconteceu na guerra de 1801,
aprontando e entregando por empréstimo 8 mil cruzados para o pagamento das tropas,
oferecendo gratuitamente os seus iates para o serviço da fortificação e igualmente 30
cavalos para o da fronteira, 1 barril de pólvora, 1 bandeira para o reduto da vila e 100$
para o fardamento das tropas (…). Tem igualmente servido com distinção os cargos da
República (…) sempre se distinguiu fazendo demonstrações e festividades públicas
que bem mostravam a sua fidelidade, entre estas tem em primeiro lugar as que fez em
atenção a feliz restauração de Pernambuco. Enfim, tem sido um cidadão útil,
manejando um grosso comércio e ao mesmo tempo bem digno Pai de família assaz
numerosa, mas não lhe tem faltado com a educação e princípios de Religião em que
bem se distingue (…) Acampamento do Chuí, 20 de agosto de 1818.155

Grosso comércio, guerra contra os espanhóis, fidelidade ao monarca e ao catolicismo. O


Capitão Vieira Braga, enquanto membro da elite local, internalizava e reproduzia os pilares que
sustentavam a presença do Império marítimo português na América (juntamente com a
escravidão africana), educando seus filhos nesta cartilha e auxiliando no governo dos povos.
Além disso, ao fazer “demonstrações” e “festividades públicas” em Pelotas e Rio Grande, como
a comemoração da restauração pernambucana em 1817, Vieira Braga contribuía para
disseminar um sentimento de pertencimento a uma entidade política e territorial que
ultrapassava a sua capitania, envolvendo outros súditos reais na América portuguesa e que, a
partir de 1808, tinha na Corte do Rio de Janeiro a sua sede. A evocação de uma ideia de
continuidade familiar e apoio fiel aos monarcas luso-brasileiros realizada pelo Vieira Braga
Filho devia compor o ideário de famílias de elite que colocaram-se ao lado da Corte do Rio de
Janeiro antes de 1822 e seguiam defendendo o novo Império construído na América.

155
Requerimento de João Francisco Vieira Braga de16.01.1840, Documentos Biográficos, BN-RJ.
411
Neste ínterim, a grande derrota na Cisplatina gerou certa frustração entre os empresários
escravistas e as insatisfações de ordem política e econômica que marcaram os anos 1830
estiveram entre os principais motivos da Revolta dos Farrapos, em 1835. 156 O movimento foi
liderado principalmente pelos estancieiros e alguns poucos charqueadores. Mas isto não foi
suficiente para colocar todos ao lado dos rebeldes. Ao contrário do que se pensou durante muito
tempo, a Guerra dos Farrapos esteve longe de se constituir num conflito na qual uma província
inteira lutou contra o governo central. A maior parte dos comerciantes marítimos e dos
charqueadores, assim como muitos estancieiros, colocaram-se na defesa da legalidade. O
charqueador Domingos de Castro Antiqueira (Barão de Jaguari) apoiou os legalistas fornecendo
duas peças de artilharia munidas dos necessários pertences – armamento que possuía em sua
estância. Enquanto isto, o seu parente Manoel Marques de Souza, futuro Conde de Porto
Alegre, organizava as tropas.157 Em março de 1836, os imperiais buscaram mais 2 artilharias
das 9 que se encontravam localizadas numa das charqueadas dos irmãos Rodrigues Barcellos. 158
O estancieiro e charqueador João da Silva Tavares, descrito pelo próprio presidente da
província como o “campeão da legalidade” defendeu ferozmente a monarquia junto com o seu
primo e também charqueador Anibal Antunes Maciel. O charqueador Alexandre Vieira da
Cunha, juntamente com seus parentes, recrutou aliados para combater os farrapos. Em
Jaguarão, o charqueador João Antônio Lopes também forneceu ajuda. Em Rio Grande, os
comerciantes José dos Santos Magano e Porfírio Ferreira Nunes despenderam muito dinheiro,
forneceram armamentos e franquearam suas embarcações para reforçar a resistência legalista. 159

Um daqueles que mais empenhou-se na defesa da monarquia foi novamente o ex-


charqueador e então comerciante Vieira Braga Filho. Na longa exposição mencionada
anteriormente, ele também declarou que no início da Guerra:

Influiu quanto em si estava para que a Câmara Municipal da cidade de Pelotas se


reunisse e declarasse contra a sedição de 20 de setembro de 1835 e no meio de todos
os perigos e dificuldades distribuiu proclamações em sentidos de ordem e defesa do

156
As altas taxas sobre o sal importado no Rio Grande do Sul, a falta de uma política protecionista que tributasse
as carnes platinas desembarcadas no Rio de Janeiro e nos portos do nordeste, as secas que assolaram a região da
campanha na década de 1830, a cheia do São Gonçalo de 1834, entre outros aspectos, geraram perdas econômicas
importantes aos estancieiros e charqueadores. Três meses antes da Revolta Farroupilha, um charqueador escreveu
para outro colega queixando-se da “maldita safra” (Carta de Heleodoro Souza para Boaventura Barcellos. Livro
Registros Diversos n. 5, Pelotas, APERS). Os descontentamentos de ordem política eram diversos. Importantes
líderes militares como Bento Gonçalves da Silva e Bento Manoel Ribeiro estavam insatisfeitos por terem perdido
seus postos de comando da fronteira. Os rio-grandenses também queixavam-se da pequena representação na
Câmara dos Deputados (tinham 3 representates) e da oposição realizada pelo Presidente da Província da época
(LEITMAN, Spencer. Raízes socioeconômicas da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro: Graal, 1979).
157
MOREIRA, Ângelo. Pelotas na tarca do tempo. Pelotas: s/ed., v. III, p. 65; 69.
158
MOREIRA, Ângelo. Op. cit., p. 146.
159
MOREIRA, Ângelo. Op. cit., p. 30; 37; 43, 66; José dos S. Magano, Documentos Biográficos, Coleção
Manuscritos (Biblioteca Nacional do RJ).
412
Trono Imperial, gravemente ameaçado pelos revolucionários, contra os quais reuniu
gente armada, prontificou peças de artilharia e fez todos os esforços a seu alcance, até
que, obrigado pelas circuntâncias, emigrou para esta Corte, desamparando todos os
seus bens, que tem sido destruídos, avaliando os danos causados pelos rebeldes em
mais de 80:000$ de réis.160

Os proprietários, charqueadores e comerciantes pelotenses e rio-grandinos do lado


legalista eram tantos que o farroupilha Domingos J. de Almeida acusou ser Pelotas uma “digna
colônia de retrógrados”.161 A família de sua esposa, os Rodrigues Barcellos, ou mantiveram-se
neutros ou do lado legalista, tendo alguns retirado-se para o Rio. Quando os farrapos tomaram
Pelotas, muitos charqueadores também migraram para a Corte ou outras localidades, como
Montevideu, mas a resistência legalista manteve-se espalhada pela província. A cidade
portuária de Rio Grande, que concentrava os comerciantes de grosso trato rio-grandenses e foi o
baluarte do conservadorismo regional, nunca foi tomada pelos rebeldes, obrigando-os a tomar o
porto de Laguna, em Santa Catarina, para obter uma saída para o mar. 162

Neste sentido, quando o Exército imperial, sob o comando de Caxias, contou com maior
contingente no Rio Grande do Sul163, ele veio juntar-se aos legalistas que já estavam resistindo
aos farroupilhas durante anos. Portanto, se os legalistas não os tivessem apoiado e sustentado a
monarquia, dificilmente a guerra teria o desfecho apresentado no final, com os rebeldes
visivelmente derrotados.164 Nas demais províncias revoltosas do período, o papel das suas
respectivas elites proprietárias foi fundamental para a contenção dos movimentos sediciosos de
caráter mais popular. Na Bahia, no Pará, no Maranhão e em outras regiões, por exemplo, o
Império pode contar com as mesmas na manutenção da ordem e na repressão das revoltas.165

160
Requerimento de João Francisco Vieira Braga de16.01.1840, Documentos Biográficos, BN-RJ.
161
MOREIRA, Ângelo. Op. cit., p. 15. Numa carta de 15.10.1835, Bento Gonçalves da Silva escreveu para o chefe
político uruguaio Manoel Oribe comunicando que Pelotas era a cidade rio-grandense onde se concentrava “um
punhado de facciosos capitaneados pelo sanguinário Silva Tavares” (Idem, p. 83-84).
162
Os farrapos também utilizaram o porto de Montevideu (GUAZZELLI, César A. B. A República Rio-grandense
e a praça de Montevideo (1836-1842). In: HEINZ, Flávio; HERRLEIN JR., Ronaldo. Histórias regionais do
Conesul. Santa Cruz: Edunisc, 2003, p. 147-166).
163
Isto aconteceu somente na década de 1840, após a pacificação das outras revoltas regenciais (RIBEIRO, José
Iran. “De tão longe para sustentar a honra nacional”: Estado e Nação nas trajetórias dos militares do Exército
Imperial brasileiro na Guerra dos Farrapos. Tese de Doutorado. PPGHIS-UFRJ, 2009).
164
A vitória na Farroupilha contou com este tipo de ação e negociação, muito bem demonstrada por José Iran
Ribeiro, que, aliás, percebeu como o governo central negociava de forma diferente conforme os interesses, a
posição e a situação das elites regionais. Isto se dava exatamente pelo fato de que a vida política, os arranjos
familiares, as hierarquias sociais regionais, os recursos materiais e imateriais concentrados, eram distintos em todas
as províncias do Império.
165
Na Bahia, por exemplo, verdadeiras mílicias armadas e mantidas por grandes proprietários e senhores de
engenhos do Recôncavo ajudaram a garantir não apenas a Independência (1822-1823) como a violenta repressão
aos revoltosos da Sabinada (1837-1838) (SOUZA, Paulo Cesar. A Sabinada: a revolta separatista da Bahia
(1837). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 61-63).
413
Esta convergência de interesses entre o governo central e grande parte das elites
regionais foi facilitada pela continuidade das mesmas famílias nos espaços de poder locais e
provinciais numa relação de apoio à monarquia brasileira que vinha ocorrendo desde a época da
Independência. Conforme João Paulo Pimenta e Andréa Slemian o processo de Independência
no norte e nordeste do país encontrou importante resistência de alguns setores da sociedade e se
não fossem as muitas guerras com o apoio de parte importante das respectivas elites regionais o
projeto não teria se consolidado.166 Nas décadas posteriores, os novos arranjos institucionais
não se deram no sentido de afastar as mesmas elites regionais da influência política e do poder
econômico que elas mantinham, mas ao contrário. Elas foram trazidas para dentro do sistema
político monárquico primeiramente nos Conselhos Administrativos e, principalmente, nas
Assembléias legislativas provinciais, um espaço de reforço do seu poder regional, criado com o
Ato Adicional de 1834. Antes disso, uma parte delas, reunindo notadamente os indivíduos mais
influentes, já havia sido eleita para participar das Cortes de Lisboa e das Assembléias Gerais
dos primeiros anos do parlamento brasileiro.167

Ao que salve as diferenças regionais e a diversidade de projetos políticos, parte dos seus
interesses convergiam com os do Império. A manutenção da monarquia, da escravidão, da
unidade territorial e da ordem social local também fazia parte da agenda política da maioria
que, por intermédio dos espaços de mediação política abertos após a Independência, vinha
participando do governo da nação, exercendo um papel bastante importante no processo de
consolidação do Estado Imperial.168 Portanto, neste aspecto compartilho das ideias propostas
por outros historiadores no sentido de que o Império do Brasil resultou mais de uma negociação

166
“Valendo-se de extrema violência, o projeto de independência e unidade do Império do Brasil superava o seu
primeiro grande desafio. As guerras em torno de adesão, apesar de contarem com a decisiva participação do Rio de
Janeiro na contratação de exércitos mercenários estrangeiros e na organização de forças locais, mostraram como
aquele projeto conhecia, desde os últimos meses de 1822, significativo alargamento em sua área de influência e
aceitação para além das províncias do Centro-Sul. Afinal, os conflitos todos se deram em razão de falta e consenso
nas demais províncias, decorrente de uma pluralidade de posições de grupos políticos, entre as quais aqueles
favoráveis à independência se mostraram, mesmo no Norte-Nordeste, suficientemente consistentes para levar a
uma guerra. Em outras palavras, para que o uso da força pudesse ter eficácia na Bahia, no Maranhão e no Pará, era
necessário que a ideia do Império do Brasil tivesse considerável respaldo de grupos sociais”. (PIMENTA, João
Paulo G.; SLEMIAN, Andréa. O “nascimento político” do Brasil: as origens do Estado e da nação (1808-1825).
Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 93-94).
167
Para uma análise deste processo ver DOLHNIKOFF. Miriam. Op. cit.; GOUVÊA, Maria de Fátima. Política
provincial na formação da monarquia constitucional brasileira: Rio de Janeiro (1820-1850). Almanack Braziliense.
São Paulo, n. 7, mai-2008, p. 119-137.
168
Conforme Dolhnikoff, “tanto a elite paulista como as das demais províncias demonstraram disposição para
aderir ao Estado sediado no Rio de Janeiro, desde que encontrassem nele espaço satisfatório para a defesa de seus
interesses” (DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit., p. 54).
414
do governo central (por meio de sua elite política) com as elites regionais, do que uma
imposição de um projeto de um grupo minoritário contra as forças centrífugas provinciais. 169

Nos últimos anos, uma série de pesquisas vem constribuindo neste mesmo sentido.
Realizando recortes regionais distintos, utilizando-se de um leque diverso de fontes
documentais, contando com um grande número de novos trabalhos que permitam conhecer
melhor a complexidade da história brasileira e das especificidades provinciais no período, estes
historiadores colaboraram para que se construa um novo quadro sociopolítico acerca deste
tema. 170 Apesar de alguns pontos aparentemente discordantes e do uso de matrizes teóricas
distintas, estas pesquisas convergem em muitos aspectos. Primeiramente, a maioria dos
trabalhos não se reserva mais à análise exclusiva dos discursos oficiais, dos anais parlamentares
ou das biografias dos grande estadistas para compreender o mencionado processo histórico.
Além destes documentos, estes historiadores debrussaram-se sobre conjuntos de
correspondência, genealogias, inventários post-mortem, processos judiciais, periódicos e uma
série de outras fontes manuscritas. Em suma, eles devassaram os arquivos buscando analisar a
rica vida política do lado de fora do palácio real e do parlamento geral.

Um outro ponto comum entre estas novas pesquisas é que já não é mais possível pensar
nas elites regionais (reunindo nesta categoria principalmente os comerciantes, proprietários,
bacharéis e políticos mais notáveis de cada província) como passivas diante do processo de
consolidação do estado monárquico imperial ou como forças centrífugas prontas a
obstacularizar o mesmo. Além disso, como já foi dito, os autores compartilham do princípio da
negociação entre governo central e as elites regionais, da mediação política e da convergência
de interesses entre os diversos proprietários de terra espalhados pelo Brasil, como fator
importante na afirmação do Estado imperial brasileiro e na superação das suas divergências

169
DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit.; DANTAS, Mônica D. Partidos, liberalismo e poder pessoal: a política no
Império do Brasil. Almanack Braziliense. São Paulo, n. 10, Nov. 2009, p. 40-47. Numa linha semelhante ver
MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit., 2005. Recentemente, ver MARTINS, Maria Fernanda. Das racionalidades da
História: o Império do Brasil em perspectiva teórica. Almanack, n. 4, 2º sem. 2012, p. 53-61.
170
MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.; DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit.; GRAHAM, Richard. Op. cit;
GOUVÊA, Maria de Fátima. Op. cit.; COMISSOLI, Adriano. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010; RIBEIRO,
José Iran. Op. cit.; FARINATTI, Luís A. Op. cit.; SODRÉ, Elaine. Op. cit.; ANDRADE, Marcos F. de. Elites
regionais e a formação do Estado Imperial brasileiro: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio
de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008; ARAÚJO, Dilton de Oliveira. O tutu da Bahia (Transição conservadora e
formação da nação, 1838-1850). Tese de Doutorado em História, UFBA, 2006; RESENDE, Edna M. Ecos do
Liberalismo: ideários e vivências das elites regionais no processo de construção do Estado Imperial, Barbacena
(1831-1840). Tese de Doutorado, UFMG, 2008; KLAFKE, Álvaro. O Império na Província: construção do Estado
nacional nas páginas de O Propagador da Indústria Rio-grandense (1833-1834). Dissertação de mestrado,
UFRGS, 2006; MELLO, Evaldo C. de. A outra independência: o Federalismo Pernambucano de 1817 a 1824. São
Paulo: Ed. 34, 2004. Ver também as coletâneas de textos organizados por JANCSÓ, Istvan. Op. cit.; COSTA,
Wilma P.; OLIVEIRA, Cecília H. de S. (Org.). De um império a outro: estudos sobre a formação do Brasil,
séculos XVIII e XIX. São Paulo: FAPESP, 2007.
415
políticas internas. Numa avaliação dos estudos brasileiros sobre o oitocentos e o impacto das
pesquisas de uma nova geração de historiadores, Carvalho teceu importante consideração que
certamente é válida para estes novos estudos:

A melhor distribuição geográfica dos cursos de pós-graduação levou à maior


nacionalização da pesquisa histórica. A nacionalização permitiu não apenas a
multiplicação de bons estudos regionais, como também a de estudos nacionais sob
perspetcivas menos marcadas pelo centro político e econômico do país. A segunda
característica tem a ver com o tempo. A geração que a antecedeu foi muito marcada
pela luta ideológica, exacerbada durante os governos militares. Divergências de
abordagens eram rapidamente transpostas para o campo político-ideológico, com
prejuízo do diálogo acadêmico e talvez mesmo da qualidade dos trabalhos. A nova
geração formou-se em ambiente menos tenso e menos polarizado, beneficiando-se de
maior liberdade de debate, de melhores condições de escolha, tanto de temas como de
abordagens, e de ambiente intelectual mais produtivo.171

Além disso, tomando uso de facilitadores tecnológicos não disponíveis às gerações de


historiadores dos anos 1970 e 1980, atualmente é possivel acessar dissertações e teses
acadêmicas dos mais distantes pós-graduações do Brasil e fontes documentais digitalizadas, o
que vem favorecendo um conhecimento mais abrangente, dinâmico e complexo dos processos
históricos aqui analisados, sem cair no que Carvalho denominou de “perspectivas marcadas
pelo centro político e econômico do país”.

No entanto, o caminho aberto por importantes trabalhos que seguiram esta mesma
perspectiva nos anos 1970 e 1980, como os do próprio José Murilo de Carvalho e Ilmar R. de
Mattos, ainda oferecem importantes referenciais e problemas de pesquisa que continuam atuais.
A importância da expansão cafeeira e sua ligação com a política imperial, por exemplo, foi
evidente. Um grupo de políticos fortemente aparentado com cafeicultores do Vale do Paraíba
fluminense e traficantes de escravos realmente encontrava-se em situação privilegiada para
exercer grande influência política.172 No entanto, estas novas pesquisas oferecem um novo
quadro interpretativo no qual é difícil pensar que este grupo estivesse em condições de impor
um projeto formulado exclusivamente pela fração conservadora de sua classe. O mais provável,
diante das muitas contribuições historiográficas dos últimos anos, é que a construção do Estado
Imperial brasileiro foi fruto de um projeto negociado e que envolvia fatores socioeconômicos,

171
CARVALHO, José Murilo. Apresentação. In: SALLES, Ricardo; GRINBERG, Keila. O Brasil Imperial (1870-
1889). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. III, 2009, p. 9.
172
Neste sentido, refiro-me especialmente à clássica tese de MATTOS, Ilmar R. de. O Tempo Saquarema: a
formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 1990. Para considerações que divergem de alguns pontos
centrais da pesquisa do autor, ver DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit. 2012.;
GRAHAM, Richard. Construindo uma nação no Brasil do século XIX. In: Revista Diálogos. Maringá: DHI/ UEM,
v. 5, n. 1, 2001; NEEDELL, Jeffrey. Formação dos partidos brasileiros: questões de ideologia, rótulos partidários,
lideranças e prática política (1831-1888). In: Almanack Braziliense. São Paulo, n. 10, Nov. 2009, p. 54-63.
416
culturais e políticos compartilhados por outras elites regionais brasileiras. 173 Penso que foi desta
convergência de ideias que o resultado final, o Império do Brasil, tomou força e tornou-se
viável. Estadistas habilidosos e inteligentes, os membros da elite política imperial sabiam muito
bem com quem contar nas diferentes regiões, onde muitos deles haviam atuado como
presidentes de província ou como magistrados, por exemplo. E na impossibilidade de as
conhecerem pessoalmente, possuíam contatos diversos envolvendo desde indivíduos que
conheciam do seu tempo de estudantes em Coimbra ou nas academias do Império, deputados
gerais e senadores que conviviam com os mesmos na Corte, além dos seus parentes.174 Em
suma, o governo central não possuía um “poder infra-estrutural”175 capaz de realizar uma
imposição de um projeto contra supostas forças centrífugas provinciais sem negociar com as
elites regionais e contar com as mesmas para sufocar as revoltas locais, manter a ordem social e
a unidade territorial.

Espero ter demonstrado ao longo dos capítulos que os charqueadores pelotenses,


enquanto parte da elite local, e as principais famílias que compunham o grupo, enquanto parte
da elite regional, foram agentes ativos do mencionado processo histórico. Ao tomá-los como
objeto de análise, a presente tese escolheu um grupo de elite específico. Mas a análise poderia
ter caído sobre os estancieiros rio-grandenses, os senhores de engenhos nordestinos e do
sudeste, os grandes proprietários de terra de outras regiões do Brasil ou os comerciantes de
grosso trato das diferentes províncias e grandes cidades da época, por exemplo. É certo que os
seus respectivos graus de influência e poder de negociação, a concentração de recursos
materiais e imateriais, os índices de investimento na educação superior, o número de pessoas
que eles conseguiam inserir sob a orientação dos seus projetos, entre outros aspectos, fossem
distintos. Também é provável que em algumas regiões as elites tenham sofrido uma maior
ruptura com relação às suas congêneres coloniais. Além disso, alguns grupos possuíam mais
importância e um maior poder de influência no interior do sistema político monárquico do que

173
Muitos membros das famílias das elites regionais concordavam com os projetos políticos do governo central e
os defendiam muito antes do Regresso Conservador, como os charqueadores pelotenses que lutaram ferozmente
contra os farroupilhas em 1835, por exemplo. Com relação a isto, ver também KLAFKE, Álvaro. Op. cit.
174
É importante afirmar a importância do Parlamento na governabilidade do Estado Imperial. Quando se observa o
tamanho das bancadas regionais verifica-se o quão fundamental era este tipo de negociação. Bahia, Pernambuco e
Minas (que conheceu uma expansão cafeeira significativa somente na segunda metade do século XIX) somadas
concentravam quase a metade das cadeiras do Senado e da Câmara, além de possuírem grande número de ministros
de Estado. A Bahia sozinha, por exemplo, reuniu 25% dos ministros durante todo o período monárquico
(MATTOSO, Kátia. Op. cit.). Nenhum projeto se concretizava sem o apoio dos políticos destas províncias.
175
MANN, Michael. O poder autônomo do Estado: suas origens, mecanismos e resultados. In: HALL, John (Org.).
Os Estados na História. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 163-204.
417
outros.176 No entanto, isto não elimina o seu papel do interior do mesmo processo. Em cada
localidade e cada região, grupos de indivíduos e famílias ocupavam o topo da hierarquia social
e disputavam os canais de mediação disponíveis encontrando-se dispostos a defender seus
interesses e negociar com os diferentes espaços de poder.177

Neste sentido, creio que um dos grandes motivos pelo qual o Império do Brasil foi
viabilizado referia-se ao fato de não afrontar questões caras aos grupos mais ricos e poderosos
que compunham as elites regionais como a monarquia e a escravidão e, mesmo com as
reformas centralizadoras que caracterizaram o Regresso e que tiveram alcance prático
discutível, não ameaçou a permanência das mesmas famílias ricas no topo das hierarquias
socioeconômicas regionais. 178 Com isto não quero dizer que não ocorreram importantes
rupturas de ordem institucional e que novos grupos e famílias de elite não se apresentaram no
novo cenário. É necessário que novos estudos continuem iluminando estas questões,
contribuindo com o conhecimento deste tema. Contudo, o processo de ruptura do Brasil
enquanto colônia portuguesa para uma nação independente e a formação do Estado Imperial foi
facilitado porque contou com uma importante dose de permanência das estruturas sociais (que
continuamente reproduziam uma hierarquia social excludente179), como também notaram Ilmar
de Mattos e José Murilo de Carvalho. 180

176
Numa comparação entre as elites políticas da Bahia, do Ceará e do Rio Grande do Sul, Vargas constatou que
cada uma delas reunia singularidades socioeconômicas e político-culturais que influíram no recrutamento de suas
respectivas elites políticas ao longo do período monárquico (VARGAS, Jonas M. “Um império de cruzes, togas e
espadas”: notas comparativas sobre as elites políticas do Rio Grande do Sul, do Ceará e da Bahia no período
monárquico. In: HEINZ, Flávio M. (Org.). Poder, instituições e elites: 7 ensaios de comparação e história. São
Leopoldo: Oikos, 2012, p. 115-144).
177
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
178
Além disse, como demonstrou Dolhnikoff, o Regresso não foi capaz de eliminar importantes instituições
criadas durante o “Avanço Liberal”, como as Assembléias Legislativas Provinciais e a Guarda Nacional
(DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit.). Sobre as Assembléias ver também GOUVÊA, Maria de Fátima. Op. cit.
179
FRAGOSO, João L. R.. Homensde grossa aventura – Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
180
MATTOS, Ilmar R. Op. cit.; CARVALHO, José M. Op. cit., 2003.
418
CONCLUSÃO

No início da década de 1820, existiam 22 charqueadas em Pelotas. Em 1854, este


número havia chegado a 37 estabelecimentos e, em 1878, ele manteve-se praticamente o
mesmo, atingindo 38 fábricas. O fato do número de charqueadas ter caído para 11 em 1900 e
para apenas 5 em 1920 é bastante elucidativo da crise que afetou o setor nos anos 1880 e ajuda
a evidenciar algumas questões que esta tese se propôs a analisar. Uma explicação para esta
diminuição de estabelecimentos poderia argumentar que o charque já não vinha sendo mais um
bom negócio, provocando a transferência de capitais para outros ramos de atividade. Mas não
foi isto que Márcia Volkmer e Sandra Pesavento perceberam ao estudar as charqueadas rio-
grandenses na Primeira República. Assim como no Uruguai, o charque continuou como um dos
principais produtos na pauta das exportações do Rio Grande do Sul nas primeiras décadas do
século XX, fazendo a riqueza de muitos investidores e grandes proprietários. 1 No entanto, nesta
época, Pelotas já havia perdido a primazia de grande centro charqueador da província.

Neste sentido, a passagem do século XIX para o século XX teria visto uma transferência
de investimentos nos negócios do ramo das carnes de Pelotas para outras regiões do Rio Grande
do Sul, sobretudo, para a fronteira sudoeste/oeste. Em 1908, por exemplo, Pelotas reunia apenas
31% dos estabelecimentos do Estado. Em 1920, a situação era ainda mais adversa. Das 31
charqueadas existentes no Rio Grande do Sul, somente 5 (16%) estavam em Pelotas, que agora
já não era mais o principal município charqueador, perdendo para Bagé, que tinha 6 fábricas
(Mapa 11). Isto destoava totalmente dos anos 1870, quando Pelotas certamente era responsável
por algo entre 80% e 90% do charque exportado pelo porto de Rio Grande. Além do mais, no
século XX, a presença do capital estrangeiro alcançava um nível que nunca havia sido atingido
no oitocentos. Das 31 fábricas arroladas em 1920, pelo menos 11 eram de propriedade de
europeus, uruguaios ou norte-americanos. Além disso, assim como no Rio da Prata, na trilha
destes novos investidores chegaram os primeiros frigoríficos na região, com destaque para as
companhias Armour e Swift.2

A substituição do antigo polo charqueador pelotense pela região da campanha, na


fronteira sudoeste, indica que a nova elite charqueadora republicana já não era mais formada

1
VOLKMER, Márcia S. “Onde começa ou termina o território pátrio”: os estrategistas da fronteira –
empresários uruguaios, política e a indústria do charque no extremo oeste do Rio Grande do Sul (Quaraí, 1893-
1928). Dissertação de mestrado em História, Unisinos, 2007; PESAVENTO, Sandra. República Velha Gaúcha:
frigoríficos, charqueadas, criadores. Porto Alegre: Movimento/IEL, 1980. Para o Uruguai ver SEOANE, Pedro.
La industria de las carnes en el Uruguay. Montevideo: Tip. Industrial, Castelnuovo & Berchesi, 1926.
2
PESAVENTO, Sandra. Op. Cit.
419
pelas mesmas elites pelotenses que lideraram os negócios com o charque no oitocentos. No
mencionado processo de transição, não há nem rastro daquelas famílias charqueadoras
pelotenses que gozaram de uma distinção “aristocrática” e ocuparam o topo da hierarquia
regional entre os anos 1860/1880. 3 Nos anos 1910 e 1920, por exemplo, não se observa mais os
Simões Lopes, os Assumpção, os Moreira, os Antunes Maciel, os Silva Tavares, os Gonçalves
Chaves, os Rodrigues Barcellos, os Cunha entre os novos empresários do charque. Isto não
significa que estas famílias deixaram de ser elite, mas sim, que elas migraram de investimentos
num momento crítico e que foi responsável por derrubar grande parte dos charqueadores
pelotenses. Rastreando os herdeiros destas principais famílias, é possível perceber que alguns
dos mesmos se ocuparam de outras atividades econômicas não menos rentáveis.

Mapa 11 – Charqueadas em funcionamento no Rio Grande do Sul (1920)

Fonte: Adaptado pelo autor do original em VOLKMER, Márcia. Op. cit, p. 50.

Os filhos do charqueador Antônio J. da Silva Maia, por exemplo, seguiram no comércio


de atacado e os Silva Tavares na criação de gado. Francisco Antunes Gomes da Costa, o Barão
de Arroio Grande (genro do coronel Anibal Antunes Maciel), abandonou os negócios com o
charque e tornou-se um rico banqueiro em Pelotas. Juntamente com o coronel Alberto Rosa

3
Em Pelotas havia uma charqueada de propriedade da firma Moreira & Filhos. Não foi possível saber se ela
pertencia aos herdeiros de José Antônio Moreira, o barão de Butuí (PESAVENTO, Sandra. Op. cit., p. 170). Em
caso positivo, trataria-se de uma exceção.
420
(também charqueador) e o Dr. Joaquim Augusto e Assumpção, filho do barão de Jarau, Costa
foi um dos incorporadores do Banco Pelotense, criado em 1906, e que teve importante papel no
desenvolvimento da economia regional durante a Primeira República. 4 Além deles, outros
membros de famílias charqueadoras, como José Júlio Albuquerque Barros, Pedro Luís Osório e
Lúcio Lopes dos Santos Sobrinho, também compuseram o corpo de diretores do Banco.

O coronel Alfredo G. Moreira, filho do barão de Butuí, foi o primeiro presidente da


União dos criadores do Rio Grande do Sul (1912). Na mesma década, ele pertenceu ao conselho
fiscal da Cia Frigorífica Rio-grandense que tinha como Diretores a Dickinson & Cia e Emílio
Guilayn (diretor do Banco da Província entre 1911 e 1914, sócio-fundador da casa bancária
“Emílio Guilayn”, de Bagé, e da firma de representação comercial “Buxton & Guilayn”, que
também era a administradora das usinas elétricas de Pelotas, Bagé e Santa Maria). No conselho
fiscal, ao lado de Moreira, também estava Antônio Augusto de Assumpção 5, membro da família
do barão do Jarau – charqueador mais rico de Pelotas, falecido em 1898. Possidônio M. Cunha
Filho, herdeiro do charqueador homônimo e sobrinho do também charqueador Barão de
Corrientes, foi advogado e capitalista em Porto Alegre. Cunha Filho também destacou-se como
grande acionista da Companhia Carris, tendo integrado, entre as décadas de 1900 e 1910, as
diretorias da Companhia Força e Luz Porto-Alegrense, da Companhia Telefônica Rio-
grandense, da Companhia Predial e Agrícola, da Companhia de Seguros de Vida e Previdência
do Sul, da Companhia Fiação e Tecidos de P. Alegre e do Banco Comercial Franco-Brasileiro.

Quando se analisa a trajetória política de alguns deles, percebe-se que os mesmos


continuaram influindo, por meio do Estado, no setor agrário, agora capitalista, aliado ao capital
financeiro. Além do mais, estas mesmas famílias que ajudaram a sustentar a monarquia, ao
longo do oitocentos, foram extremamente hábeis em aderir ao republicanismo logo após o 15 de
novembro. E isto ajuda a explicar como alcançaram importantes cargos de companhias e
funções estatais no governo republicano de Borges de Medeiros, por exemplo. Alfredo Moreira,
Epaminondas de Almeida, Saturnino Arruda, entre outros, obtiveram sucesso na política
estadual. Contudo, alguns alçaram voos mais altos, como o banqueiro Joaquim Augusto de
Assumpção, mencionado acima, que tornou-se Senador da República. Na alta política também é
possível destacar o Dr. Ildefonso Simões Lopes e o Dr. Francisco Antunes Maciel Júnior. O
primeiro deles era filho do visconde da Graça e o segundo neto do barão de Butuí e filho do
charqueador homônimo que também foi Ministro do Império, em 1883.

4
LAGEMANN, Eugenio. O Banco Pelotense & o Sistema Financeiro Regional. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1985, p. 85-93.
5
PESAVENTO, Sandra. Op. cit., p. 123.
421
Maciel Júnior e Simões Lopes tiveram papel importante na elite gaúcha que subiu ao
poder político nacional acompanhando Getúlio Vargas em 1930. O primeiro foi Secretário da
Fazenda do Rio Grande do Sul logo após a Revolução e, depois, Ministro da Justiça, entre 1932
e 1934. Entre 1934 e 1937, foi diretor da Carteira de Redescontos do Banco do Brasil. Quando
Vargas retornou ao poder em 1953, lá estava ele como Diretor do BNDE. O segundo foi
deputado federal por três legislaturas, Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio (1919-
1922), presidente da Sociedade Nacional de Agricultura (1926 a 1943), criador da
Confederação Rural Brasileira (1928) e Diretor do Banco do Brasil (1930-1943). Portanto, para
algumas das principais famílias charqueadoras do oitocentos é possível considerar que elas
ultrapassaram de vez o espaço regional de atuação política e atingiram o seu auge na elite
política nacional. Contudo, isto só veio a ocorrer numa época em que Pelotas já não era mais o
núcleo charqueador do Rio Grande do Sul e suas famílias já haviam abandonado estes negócios.

Nunca é demais lembrar que o visconde da Graça foi um dos pioneiros da mudança em
termos do perfil de investimentos apresentado pela elite empresarial do período republicano.
Nos anos 1870, quando ele começou a inverter os capitais da charqueada em ações de
companhias (como foi visto no capítulo 9) parecia estar antecipando em nível regional (e
agindo em sintonia com o que se fazia no centro do país) o que passou a ocorrer de maneira
mais intensa somente no século XX. Esta inversão socioeconômica reproduzia uma
metamorfose que já havia ocorrido no Rio de Janeiro entre os anos 1840 e 1870, quando
descendentes de famílias de comerciantes de grosso trato e de grandes fazendeiros fluminenses
foram, aos poucos, se tornando a elite financeira do país, sediada na Corte, costurando íntimas
alianças com a elite política imperial. 6 Portanto, tanto em termos políticos como em termos
econômicos, alguns membros das principais famílias continuaram atuando com importante
influência no nível regional e agora nacional.

Apesar da riqueza das mencionadas trajetórias no século XX, esta tese não pretendeu
estudar a metamorfose dos membros das famílias charqueadoras em empresários capitalistas. O
objetivo principal foi analisar apenas as famílias da elite charqueadora-escravista que ocuparam
o topo da hierarquia local e regional no oitocentos. Trata-se de uma geração de charqueadores
escravistas que não foi capaz de reverter uma situação de crise econômica que varreu muitos
empresários daquele ramo de negócios e que afetou o setor de forma mais drástica na década de
1880. Repito, esta derradeira crise no complexo charqueador escravista-pelotense não foi capaz
de eliminar as principais famílias da sua posição de elite regional, mas ela foi fatal em deixar

6
FRAGOSO, João L. R.; MARTINS, Maria F. V. Op. cit, p. 143-164.
422
apenas na memória dos pelotenses uma época em que elite econômica regional e elite
charqueadora se confundiam com algumas de suas famílias. Tal época constituiu-se num ciclo
cujo auge durou somente algumas décadas – entre os anos 1850 e 1880. Portanto, assim como
aquelas principais famílias charqueadoras da primeira geração (no colonial tardio) que não
conseguiram resistir à Guerra dos Farrapos e as crises dos anos 1850 e 1860, estas principais
famílias charqueadoras nos anos 1870 e 1880, também tiveram que abandonar este ramo de
negócios na virada do século e, até mesmo, antes dela.

Isto abriu espaço para um terceiro grupo de empresários entrar em cena e deslocar seus
capitais para fora de Pelotas. O interessante é que os investimentos destes novos empresários do
charque no século XX já indicam algumas das limitações da geração escravista oitocentista.
Como foi mencionado, entre os novos charqueadores a presença de estrangeiros é mais
marcante. Numa fase mais desenvolvida do capitalismo no Brasil, eles começaram investindo
nas charqueadas e nos frigoríficos da região, revelando um antigo problema do setor: a falta de
instituições financeiras e de capitais disponíveis. 7 O abate de 100 mil reses por safra alcançado
pela charqueada São Carlos, localizada em Uruguaiana, indica o grande incremento de capitais
e mão de obra assalariada nesta nova era, uma vez que as grandes charqueadas escravistas dos
anos 1870 abatiam somente 20 mil reses em média. Além disso, a aproximação destes novos
estabelecimentos das vias férreas que levavam até o porto de Montevideu também indica que os
antigos charqueadores escravistas foram incapazes de resolver de forma satisfatória o problema
da barra do porto de Rio Grande e que a capital uruguaia foi uma saída neste sentido.

Outro problema claro é que não havia uma oferta de gado suficiente para garantir bons
níveis de abate anual de quase 40 charqueadas nos finais dos anos 1870. E tal problema ficou
mais dramático com o fim das guerras civis no Uruguai na mesma época, quando a sua
indústria pode recuperar-se, passando a consumir cada vez mais gado em suas fábricas, o que
restringia o abastecimento das charqueadas em Pelotas. A saída foi recorrer para os rebanhos do
norte do Rio Grande do Sul. Mas a distância destes para Pelotas era muito grande e prejudicava
o comércio de tropas. Isto ajuda a entender porque foram surgindo cada vez mais charqueadas
geograficamente mais próximas destas áreas de criação, como São Borja, Itaqui, Caxias, Santa
Maria, Passo Fundo e Júlio de Castilhos, por exemplo. Como observou Louis Couty, se Pelotas
tivesse menos charqueadas (talvez a metade), os seus proprietários poderiam ter conseguido
manter bons rendimentos em conjunturas adversas, podendo inclusive ter maior segurança para

7
Nesta época, firmas uruguaias instalaram-se no Rio Grande, assim como inglesas e norte-americanas. Para um
estudo de caso ver VOLKMER, Márcia. Op. cit.
423
realizar uma transição mais segura para o trabalho assalariado.8 A concorrência entre os
próprios charqueadores parece ter se acentuado, tendo os mais ricos e bem preparados drenado
os recursos dos menores.

Outro motivo ainda mais nítido pelo qual este processo de substituição das famílias no
grupo charqueador ocorreu foi que as principais famílias do ramo não conseguiram garantir de
forma satisfatória uma transição do uso da mão de obra escrava para o trabalho assalariado.
Além disso, estas principais famílias também não encontraram um mercado consumidor
alternativo ao do nordeste brasileiro, sofrendo grandes prejuízos por conta deste exclusivismo,
já que associavam-se a um espaço econômico que vinha enfrentando profundas crises por conta
do mercado internacional do açúcar. Portanto, as principais famílias estudadas nos últimos
capítulos foram a última elite charqueadora pelotense com grande importância regional, uma
vez que, na Primeira República, os sucessores no ramo parecem não ter atingido a mesma
notabilidade política e econômica se comparados aos seus correspondentes da época escravista.
Não existem muitos estudos sobre as novas elites no período, mas o certo é que a elite
econômica do Rio Grande do Sul, por volta dos anos 1920, já havia entrado em sua fase
industrial-financeira, ou seja, era uma elite mais capitalista, colocando os charqueadores para
um segundo escalão na hierarquia socioeconômica regional, muito embora os seus negócios
continuassem bastante diversificados.

Invisível num olhar mais macro-analítico, a Pelotas oitocentista surge ao observador


como um laboratório de análise da sociedade mais ampla, cujo ritmo de transformações
socioeconômicos se acelerava. Mesmo entrando em cena pelas margens do Atlântico, a análise
da vida econômica, política, social e cultural daquela pequena localidade no extremo sul da
América tem muito a nos dizer sobre a própria economia atlântica, os mercados internos e o
surgimento de elites locais e regionais nestas mesmas áreas que estiveram sob o domínio
europeu e, posteriormente, foram incorporadas por diferentes estados nacionais independentes.
As principais famílias charqueadoras do período escravista foram capazes de criar um mundo
próprio e fizeram da cidade de Pelotas o seu palco particular. Neste cenário, o acesso às artes, à
educação superior e à liderança política coube a elas e algumas outras famílias da elite local.

Pelotas, assim como diversas cidades atlânticas, foi lugar de uma série de fenômenos
sociais gerais que afetaram o mundo ocidental na mesma época. Sua população sentiu os
impactos de tais transformações e teve que adaptar-se ao aceleramento e fim do tráfico atlântico
de escravos, aos diversos fluxos migratórios, ao processo de avanço de um Estado nacional

8
COUTY, Louis. A Erva mate e o Charque. Pelotas: Seiva, 2000 [1882].
424
recém constituído e que ainda aprendia a lidar com questões de ordem política e econômica, aos
problemas de abastecimento e moradia de uma população crescente, às flutuações do mercado
internacional, às novas correntes de ideias que vinham a alterar a visão de mundo de muitos
homens, entre outros fenômenos característicos da época. Juntamente com outros proprietários
rio-grandenses, os charqueadores tiveram que buscar saídas para estes e outros problemas que
surgiam e neste sentido também foram agentes ativos na condução do processo histórico.

É bem verdade que a elite pelotense também era formada por comerciantes atacadistas e
outros proprietários. Mas quando se analisa quem controlava os principais cargos políticos, os
títulos de nobreza e os diplomas de bacharéis, verifica-se que os charqueadores formavam o
grupo mais proeminente. A concentração de poder, riqueza e status foi um fator que contribuiu
para que estas famílias adquirissem uma “consciência de elite”. Tal fenômeno social conferia
um sentimento de superioridade às mesmas, o que se refletia no seu estilo de vida, nos
casamentos de seus filhos e na sua política sucessória. Além disso, estes homens de negócios
também atuavam no prestamismo local, no comércio de grosso trato, na criação de animais, na
fabricação do charque, ou seja, estavam quase onipresentes nestas atividades econômicas. Além
disso, uma profunda endogamia combinada com uma engenharia matrimonial que estabelecia
alianças com genros de outras províncias e até de outros países, demonstravam o seu prestígio
social local e regional. Pelo estilo de vida que levavam, pela importância dada a educação dos
filhos, pelos baronatos e a notabilidade política com que conduziam os negócios da urbe, eram
tidos pelos seus próprios pares como a “aristocracia da terra”.

Ocupando o topo da hierarquia social regional, este pequeno grupo de famílias


charqueadoras, quase que cristalizado naquela posição durante um dado momento histórico, foi
capaz de concentrar, juntamente com outras famílias proprietárias, grande parte dos recursos
materiais e imateriais mais significativos daquela sociedade e reger, quase que sem oposição
alguma, a direção que a mesma devia tomar. Portanto, o seu grau de influência já não se
reservava mais à Pelotas, estendendo-se à província e confluindo com os interesses de outras
regiões do Brasil e da própria elite política nacional. Neste sentido, é possível considerar que
elas colaboraram com a sustentação da monarquia liberal e escravista no sul do Império. Mas
esta relação nunca foi totalmente harmoniosa e nem a sua elite era homogênea. Se ela não
conseguiu impor uma política protecionista ao charque para conter a concorrência platina, foi
capaz de insuflar o Império para envolver-se em três guerras, na qual ela ajudou a bancar
financeiramente e que lhe deram uma sobrevida naquele ramo de negócios.

425
Na parte inferior da pirâmide social, um grupo significativo de despossuídos, escravos e
homens livres pobres compunha bem mais da metade da população e interagia diariamente com
charqueadores e demais proprietários, embora os espaços de cada um e a distinção social entre
ambas as classes sempre fora bastante clara. No mundo do trabalho, os escravos eram as mãos e
os pés do charqueador. Seu apego aos mesmos foi algo tão forte que pode-se dizer que o último
capítulo da história destas elites, enquanto charqueadoras, coincidiu com o fim da escravidão no
Brasil. O trabalho escravo nas charqueadas foi marcado por uma complexa relação que
alternava estabilidade e conflito e que tomou ares ainda mais complexos na segunda metade do
século, quando os assalariados livres passaram a dividir o espaço de trabalho com os cativos,
mesmo que em menor número. Nesta relação, escravos e senhores elaboravam estratégias
diárias para defender seus interesses. Tendo que lidar com o fim do tráfico atlântico, a Lei do
Ventre Livre, as frequentes alforrias, o aumento do preço dos escravos, o crescimento do
número de conflitos entre trabalhadores e capatazes, os charqueadores pelotenses acabaram não
resistindo aos novos tempos. O episódio envolvendo os insubordinados ex-escravos (libertos
sob cláusula de contrato de trabalho) da charqueada do barão de Santa Tecla revelava o quão
difícil seria a nova era para os mesmos senhores que não conseguissem adaptar-se.

Uma outra leitura deve atentar para o fato de que se estas principais famílias não
conseguiram reverter a situação na qual as mesmas encontraram-se diante das crises que
afetaram as charqueadas nos anos 1880, elas foram muito hábeis em garantir uma nova vida
distante deste ramo de negócios. Não há uma metáfora mais clara em afirmar que elas pularam
do barco antes do naufrágio. Alguns membros destas famílias literalmente abandonaram
Pelotas. No capítulo 4 demonstrei como a população pelotense foi ficando mais pobre ao longo
do período monárquico, em contraste com uma riqueza ainda mais concentrada nas mãos dos
grandes empresários. Neste sentido, a manutenção daquelas famílias no topo da pirâmide esteve
sempre pautada por uma lógica de reprodução de uma hierarquia social excludente. Ao
drenarem as escravarias dos charqueadores de menores posses, por exemplo, assim como o seu
patrimônio por meio de vultosos empréstimos com hipotecas, estas famílias mais ricas também
conseguiram resistir melhor às crises que afetaram o setor entre as décadas de 1850 e 1870,
repassando seus prejuízo para outros setores da população.

Talvez isto deixe um pouco mais claro que esta elite pareceu não possuir um projeto de
sociedade num sentido mais abrangente, como as elites europeias da época. No caso de Pelotas,
as charqueadas trouxeram riqueza material e cultural, mas para quem? Projetos de
desenvolvimento agrícola e inclusão de outros setores sociais na economia para além dos

426
latifúndios e empresas escravistas só seriam forjados e levados a cabo de forma mais incisiva
no século XX. Neste sentido, é sintomático que a Primeira República foi um ponto de inflexão
do que viria a se tornar a economia e a sociedade rio-grandense na segunda metade do século
XX. O conhecido empobrecimento da metade sul do Estado – onde os latifúndios e as estâncias
de criação concentravam os investimentos principais – contrastava com o desenvolvimento
urbano, agrícola e empresarial da metade norte, região de colonização e imigração europeia
mais recente e que contou com importantes subsídios do Estado Republicano.

A concorrência platina sempre representou um fantasma para os charqueadores


pelotenses. Com uma produção mais diversificada, os saladeiros argentinos e uruguaios sempre
apresentaram uma organização econômica mais competitiva. Mais abertos aos capitais e
investidores estrangeiros, incentivando a entrada de trabalhadores imigrantes nas suas fábricas,
organizando-se em associações com maior eficácia e praticamente controlando a política
econômica de suas Repúblicas, eles foram capazes de tomar o mercado consumidor do sudeste
brasileiro e garantir uma entrada mais firme no mercado mundial das carnes, sobretudo, na
virada do século XIX. Um outro motivo desta superioridade foi atestado pelo próprio Couty.
Pela qualidade do gado platino e pelas técnicas empregadas, o tasajo era mais saboroso e
possuía uma aparência melhor que a do charque pelotense. Isto ajudava a garantir seu espaço no
mercado, numa época em que o gosto e a exigência dos consumidores vinham ganhando
bastante importância na Europa.

Neste sentido, num nível mais global, os charqueadores também foram vítimas do
próprio avanço da ciência e do desenvolvimento social que vinha marcando o período. As
melhorias nas condições de vida da classe trabalhadora europeia, um maior cuidado com a
qualidade das carnes como forma de evitar doenças, as lutas dos operários dos setores das
carnes por melhores salários e condições, o fim do trabalho escravo nas Américas, eram sinais
que o mundo que os charqueadores ajudaram a criar estava começando a ruir. As principais
famílias da aristocracia do sebo conseguiram escapar da crise oitocentista, mas, para isso,
tiveram que abandonar as charqueadas – estabelecimentos fabris que, depois da Revolución del
Frío, viram-se condenados à extinção. Como afirmaram Barran e Nahum, o processo de
desaparecimento do tasajo e do charque da mesa das populações mais pobres foi se acelerando
de acordo com o desenvolvimento de um outro processo: a democratização das geladeiras.9 Mas
esta já é uma outra história…

9
BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo:
Ediciones de la Banda Oriental, 1967.
427
Anexo 1 – Listagem geral dos charqueadores e arrendatários de Pelotas com as respectivas siglas utilizadas nos Gráficos 3.1 e 3.2 e os períodos de
atuação nos negócios com o charque (A, B e C) utilizados no capítulo 9

Nome Sigla Nome Sigla Nome Sigla

Albino da Silva Fagundes (B) Domingos Guilherme da Costa (B, C) João Batista de Figueiredo Mascarenhas JBFM
Alexandre Vieira da Cunha AVC Domingos José de Almeida DJA João Cardoso da Silva JCS
Alfredo Augusto Braga (C) Domingos Pinto França Mascarenhas (B) João Duarte Machado JDM
Alfredo Gonçalves Moreira (C) Domingos Rodrigues DR João Francisco Gonçalves (C)
Anibal Antunes Maciel (B) Domingos Soares Barbosa (B, C) João Francisco Vieira Braga JFVB
Antônio Francisco dos Anjos AFA Eleutério Rodrigues Barcellos (B, C) João Guerino Vinhas JGV
Antonio José da Silva Maia (B, C) Evaristo Ferreira Nunes (C) João Jacintho de Mendonça JJM
Antônio José de Azevedo Machado AJAM Felisberto Ignácio da Cunha (Barão de Correntes) (B, C) João José Teixeira Guimarães JJTG
Antonio José de A. Machado Filho (B, C) Felisberto José Gonçalves Braga (B, C) João Maria Chaves (B, C)
Antônio José de Oliveira Castro AJOC Francisco A. Antunes Maciel (C) João Maria da Fontoura JMF
Antônio José de Oliveira Leitão (B) Francisco Alves Ribas (C) João Mendes de Arruda (B, C)
Antônio José Gonçalves Chaves AJGC Francisco A. G. da Costa (Barão de Arroio Grande) (C) João Nunes Batista JNF
Antônio José Gonçalves Chaves Filho (B) Francisco de Paula Ferreira FPF João Simões Lopes JSL
Antônio Machado Vianna AMV Francisco Fagundes de Oliveira (C) João Simões Lopes Fº (Visconde da Graça) (B, C)
Antônio Pereira da Cruz APC Francisco Teixeira Guimarães FTG João Theodosio Gonçalves (C)
Antônio Rafael dos Anjos ARA Francisco Xavier de Faria FXF João Vinhas Filho (B)
Antônio Soares de Paiva ASP Gabriel Gonçalves da Silva (C) Joaquim Antônio Chaves (B)
Ataliba Borges Ribeiro da Costa (C) Heleodoro de Azevedo e Souza HAS Joaquim da S. Tavares (Barão de S Tecla) (B, C)
Balthazar Gomes Vianna BGV Heleodoro de Azevedo e Souza Filho (B, C) Joaquim Guilherme da Costa (B)
Bernardino Bráulio Almeida (B, C) Honório Luis da Silva (B, C) Joaquim José da Cruz Secco JJCS
Bernardino Rodrigues Barcellos BERB Ignácio José Bernardes IJB Joaquim José de Assumpção JJA
Boaventura da Silva Barcellos (B) Inácio José de Oliveira Guimarães IJOG Joaquim J. de Assumpção (Barão dE Jarau) (B, C)
Boaventura Ignacio Barcellos (B) Inácio Rodrigues Barcellos IRB Joaquim Manoel Teixeira
Boaventura Rodrigues Barcellos BORB Ismael da Silva Ferreira (B) Joaquim Rasgado (Tenente-Coronel) (B, C)
Boaventura Teixeira Barcellos (B, C) Ismael Soares Leivas (C) Joaquim Rodrigues da Silva (B, C)
Cândido Antônio Barcellos (B) Jacinto Antonio Lopes (B, C) José Antônio da Silva Neves JASN
Cipriano Joaquim Rodrigues Barcellos (B) Jerônimo de Freitas Ramos (B) José Antônio Moreira (Barão de Butuí) JAM
Custódio Gonçalves Belchior (B) Jerônimo José Coelho (B) José Antônio Moreira Filho (C)
Custódio José dos Santos Moreira CJM João Alves de Bittencourt JAB José Bento de Campos (B, C)
Domingos de Castro Antiqueira (Visconde de Jaguari) DCA João Antônio Netto (B) José Bento de Campos Filho (C)

428
José da Costa Santos JCS Leopoldo Antunes Maciel (Dr.) (C) Manoel Soares da Silva MSS
José da Rosa Neves JRN Lúcio Lopes dos Santos (B, C) Manoel Soeiro Daltro (B)
José Ferreira de Araújo JFA Luís Pereira da Silva LPS Manuel Nunes Batista (B)
José Ferreira Gonçalves Ferrugem JFGF Luis Teixeira Barcellos (B, C) Miguel da Cunha Pereira MCP
José Gonçalves da Silva Calheca JGSC Luiz de Azevedo e Souza LAS Paulino Teixeira da Costa Leite (B, C)
José Gonçalves Lopes (B, C) Manoel Alves de Moraes MAM Pedro Lobo Vinhas (B, C)
José Ignacio Bernardes JIB Manoel Alves Vianna (B) Pedro Nunes Batista (B, C)
José Ignácio da Cunha (B) Manoel Batista Teixeira MBT Porfirio Honorio da Silva (B)
José Joaquim Gonçalves JJG Manoel Batista Teixeira Filho (B) Possidonio Mancio da Cunha (B, C)
José Maria Moreira (C) Manoel Bento da Fontoura MBF Simão Soares da Silva SSS
José Pereira de Sá Peixoto JPSP Manoel Bernardino Soares (B) Teodósio Pereira Jacome TPJ
José Pinto Martins JPM Manoel de Sá Araújo (B) Thomaz José de Campos (B)
José Rodrigues Barcellos JRB Manoel Francisco Moreira (B) Vicente Lopes dos Santos (B, C)
José Rodrigues da Silva Candiota (B) Manoel José de Oliveira Guimarães MJOG Virginio José de Campos (C)
José Tomaz da Silva JTS Manoel José Rodrigues Valladares MJRV Wenceslau José Gomes (B)
José Vieira da Cunha JVC Manoel Lourenço do Nascimento (B)
José Vieira Vianna JVV Manoel Pedro de Toledo (B)
Junius Brutus Cassius de Almeida (B, C) Manoel Raphael Vieira da Cunha (B, C)

A periodização é a seguinte: período A (1790-1830), B (década de 1850) e C (fim da década de 1870 e anos 1880). Todos os charqueadores com siglas pertencem ao
período A, sendo que alguns mantiveram-se nos negócios até o período B. Os períodos B-C significam que o charqueador atuou entre as décadas de 1850 e início dos
anos 1880.

Fontes: O ponto de partida para a elaboração desta listagem foi a relação de charqueadores pelotenses elaborada por João Simões Lopes Neto, em 1925, e publicada por
MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987, p. 99-102. Pelo fato dessa listagem estar incompleta, cruzei a mesma com
outras fontes documentais. Primeiramente, rastreei em todos os inventários post-mortem de Pelotas a presença de charqueadas entre os bens dos inventariados, assim como as
transações públicas envolvendo as mesmas nos Livros de Notas dos Tabelionatos de Pelotas (APERS). Também cruzei estes dados com a Lista de qualificação de votantes de
Pelotas, 1865 (Fundo Eleições, maço 2, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul), a Lista de qualificação da Guarda Nacional, 1873 (Fundo Conselho de Qualificação da
Guarda Nacional, maço 77, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul) e a Lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1880 (Biblioteca Pública Pelotense – transcrição
gentilmente cedida pelo Professor Adhemar Lourenço da Silva (UFPel)). Outra fonte utilizada foi um Manifesto assinado em 1848 pelos charqueadores pelotenses para que os
comerciantes rio-grandinos trouxessem os couros para serem pesados em Pelotas (Jornal O Rio-Grandense, n. 266, 11.01.1848, p. 4 apud TORRES, Daniel de Quadro. Rio
Grande – Pelotas: produção, comércio, redes mercantis e interesses econômicos em meados do século XIX. Monografia de conclusão do Curso de História. FURG, p.
32). A bibliografia sobre o tema também foi consultada para compor o grupo, como, por exemplo, os livros de Ester Gutierrez, Eduardo Arriada e Helen Osório. É muito
provável que alguns nomes tenham me escapado, visto a amplitude das pessoas que se dedicaram a tais negócios e visto os poucos vestígios deixados pelos mesmos nas
fontes. Contudo, os principais empresários do charque no período estão contemplados no trabalho.

429
FONTES PRIMÁRIAS

Arquivo Histórico Ultramarino

Documentos Avulsos: Rio Grande do Sul (Projeto Resgate).

Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Habilitação de Familiares, maço 157.

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Processos de Falência e Liquidação, 1º e 2º cartório do cível, Pelotas.

Processos-crime, Tribunal do Júri, Pelotas, 1881.

Livros de Notas do 1º, 2º e 3º Tabelionato de Pelotas (1832-1890).

Ações ordinárias, 1º cartório do cível, Pelotas.

Registros Diversos de Pelotas, Diversos livros, Pelotas.

Procurações do 1º, 2º e 3º Tabelionatos de Pelotas e 3º e 4º Distrito de Pelotas.

Apelações cíveis, Cartório cível e crime, Pelotas.

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul

CAMARGO, Antônio Eleuthério. Estatística provincial de 1868. Fundo Estatística.

Fundo Polícia (maço 15)

Fundo Eleições (maços 2 e 3)

Fundo Autoridades municipais, Seção “Pelotas”.

Fundo Autoridades Municipais, Seção “Rio Grande”, maço 215-A.

Fundo Junta Comercial Códices JC-17 ao JC- 27, JC-53, JC-55.

Avisos do Ministério de Estrangeiros. Códices B.1.027 até o B.1.032.

Correspondência do Comando Superior da Guarda Nacional de Rio Grande. Maço 36.

Fundo Estatística. Documentação Avulsa. Maço 1 e 2.

Fundo Fazenda, m. 482.

430
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

Seção Manuscritos (Coleção Rio Grande do Sul e Documentos Biográficos)

Seção Periódicos (Jornal O Globo (1875), O Brado do Sul (1859), O Constitucional (1862), Gazeta da
Tarde (1881)).

Arquivo Nacional do Rio de Janeiro

Matrícula dos Negociantes de grosso trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Real Junta do Comércio,
Agricultura, Fábricas e Navegação. Códice 170 (volumes 1, 2 e 3).

Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros apresentado à Assembléia Geral Legislativa na 3ª.
Sessão da 8ª. Legislatura pelo respectivo ministro e secretário de Estado Paulino José Soares de Souza –
Anexo A (1850).

Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro

Requerimento de oratório privado de José da Costa Santos. Série Breve Apostólico. Notação 394.

Biblioteca Pública Pelotense

Lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1880 (transcrição gentilmente cedida pelo Professor
Adhemar Lourenço da Silva).

Jornal do Comércio (1877-1881) e Correio Mercantil (1874-1878)

Museu João Nunes – São Gabriel

Arquivo particular de Porfírio Metello (Correspondências)

Fontes primárias e secundárias consultadas em endereços eletrônicos

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Relatório da Diretoria Geral de Estatística Ano de 1874 a 1878. Disponíveis no site:


http://memoria.nemesis.org.br. (Consultados em 10.06.2011).

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