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ESCOLA DE FORMAÇÃO DA

INSURGÊNCIA
Regional Ceará

7,8 e 9 de dezembro de 2018

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Escola de Formação da Insurgência – Regional do Ceará
7, 8 e 9 de dezembro de 2018

Programação
Dia 7/12
18h30 – Crise do capital, avanço conservador e os desafios da esquerda
Mesa: Afrânio Castelo, Fábio Sobral, Anna Karina, Maya Sousa

Dia 8/12
9h – Brasil hoje: crises, ameaças e resistências
Mesa: Cecília Feitoza, Pedro Júnior, Helena Vieira, Antônio

12h – Almoço

14h às 17h – Globalização capitalista, imperialismos, caos geopolítico e suas


implicações
Mesa: Helena Martins e Alexandre Costa

17h - intervalo

18h30 - Oficina “Introdução à História das Internacionais”


Mesa: Afrânio Castelo

21h – Jantar + cultural

Dia 9/12
9 às 12h - O Fascismo na História
Mesa: Nilo Sérgio e Ana Vládia

12h - Almoço

13h30 às 16h30 - Caminhos da reorganização da Esquerda


Mesa: Renato, Hugo e Helena

17h – Encerramento

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Globalização capitalista, imperialismos,
caos geopolítico e suas implicações
Conteúdo
1. Uma nova galáxia imperialista
2. Instabilidade geopolítica crônica
3. Globalização e crise de governabilidade
4. Os novos (proto-)imperialismos
5. Novas forças de extremas direitas, novos fascismos
6. Regimes autoritários, demanda de democracia e solidariedade
7. Expansão capitalista e crise climática
8. Um mundo permanentemente em guerras
9. Os limites das superpotências
10. Internacionalismo contra campismo
11. Crises humanitárias
12. Uma guerra de classe global

A generalização das políticas neoliberais, que primeiro foram postas em


prática a partir dos anos 1970 em países como Chile, Grã-Bretanha e Estados
Unidos – e se estenderam inclusive aos países do Leste europeu – se acelerou de
forma brutal depois da implosão da URSS e da desintegração do bloco soviético no
início dos anos 1990. A mundialização capitalista está em pleno auge e tem dado
origem a um novo modo de dominação internacional com múltiplas e profundas
implicações.
Contudo, a ordem neoliberal está inconclusa e desembocou em uma
situação internacional de caos crônico. A primeira crise financeira relacionada com
a globalização remonta a 1997-1998, tendo novo impulso em 2007-2008. A crise
de superprodução capitalista é profunda. A relação de forças geopolítica não é
estável. Alguns imperialismos tradicionais continuam em declive, enquanto se
consolidam novos poderes capitalistas e aumentam as rivalidades geopolíticas. Em
vários países e regiões a violência universal das receitas neoliberais têm dado lugar
à decomposição do tecido social, a agudas crises de regime e, evidentemente, a
levantes populares; todavia, também a perigosos processos contra revolucionários.
Muitos povos já estão pagando um preço alto por uma crise ecológica global –
devido, mas não só, ao aquecimento do climaque não deixa de se agravar.
Contamos já com uma experiência da globalização capitalista e de suas
consequências que nos permite atualizar as análises precedentes e abordar novos
temas. As “teses” que seguem não pretendem ser exaustivas ou apresentar
conclusões definitivas. O objetivo principal é alimentar um processo internacional
de reflexão coletiva. Baseados, no geral, em argumentos compartilhados, tratam de
aprofundar o debate sobre as implicações dos mesmos. Com este objetivo e com

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risco de simplificar demasiadamente as complexas realidades, estas teses “filtram”
as evoluções atuais, geralmente incompletas, com o fim de destacar o que aparece
como novo.

1. Uma nova galáxia imperialista


Uma primeira observação: a situação atual é bastante diferente daquela que
prevalecia no início do século XX ou durante as décadas compreendidas entre 1950
e 1980. Pontuamos alguns elementos:
• Uma profunda mudança e uma diversificação da situação dos
imperialismos tradicionais: Estados Unidos como “superpotência”; o fracasso da
constituição de um imperialismo europeu integrado; “Redução” do imperialismo
francês e britânico; imperialismos militares “sem dentes” (sobretudo Alemanha,
mas também Espanha em relação com a América Latina); um imperialismo japonês
continuamente subordinado (dispõe de um exército importante, mas não possui
nem arma nuclear nem porta-aviões); crise de desintegração social em alguns
países ocidentais (Grécia) pertencentes historicamente à esfera imperialista…
• A consolidação dos novos proto-imperialismos: China, que agora se
perfila como a segunda potência mundial, e Rússia, que tem conseguido impor seus
interesses no cenário da guerra Síria.
• Importantes modificações na divisão internacional do trabalho, com a
“financeirização” da economia, a desindustrialização de vários países ocidentais,
em particular europeus, o recentramento da produção mundial de mercadorias,
fundamentalmente na Ásia, mas sem esquecer que Estados Unidos, Alemanha e
Japão continuam sendo as potências industriais mais importantes.
• Um desenvolvimento desigual de cada imperialismo, forte em algumas
áreas, mas débil em outras. Em consequência, a hierarquia dos Estados
imperialistas é mais complexa de estabelecer do que foi no passado. Obviamente,
os Estados Unidos se mantêm no primeiro lugar e é o único que pode declarar ser o
mais poderoso em quase todas as áreas; embora, registre uma perda de peso
relativo em termos econômicos, uma redução de orçamento militar, e ressinta os
limites de seu poder global.
A caracterização das novas potências não é a única pergunta que se coloca.
Também necessitamos avaliar melhor a mudança de status dos imperialismos
tradicionais e da ordem imperialista em conjunto. É necessário reconsiderar noções
clássicas como “centro” e “periferia”, “norte” e “sul” à luz da crescente
diversificação interna em cada um dos diferentes conjuntos geopolíticos.

2.Instabilidade geopolítica crônica


Segunda observação, a globalização capitalista não deu a luz ao
estabelecimento de uma “nova ordem” internacional, mas sim o contrário.
Existe um bloco imperialista dominante que podemos qualificar como
“bloco atlântico” – porque se estrutura em torno do elo América do Norte/União

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Europeia – se damos a este termo um sentido geoestratégico e não geográfico. Com
efeito, este elo integra a Austrália, Nova Zelândia e Japão. É um bloco
hierarquizado sob a hegemonia estadunidense. A OTAN constitui seu braço armado
privilegiado, permanente. Desdobramentos na fronteira europeia com a “zona” de
controle russo mostram, na medida em que esta fronteira voltou a se tornar zona de
conflitos, que sua função inicial não perdeu atualidade.
A OTAN tem tentado atuar mais no leste, sem grande êxito. A crise no
Oriente Médio mostra que a Organização não é um marco operativo que pode
impor sua lei não importa onde. As tensões com seu pilar regional, a Turquia, são
fortes. Tem sido necessário estabelecer alianças com geometria variável em função
de cada teatro de operações com regimes opostos entre si, como Arábia Saudita e
Iran. A entrada militar de seus membros europeus é marginal. Essa situação
alimentou os ataques de Donald Trump a ela no início de seu mandato.
Assistimos a um recrudescimento da competição interimperialista. Recém
chegada à arena geopolítica, a China exige estar entre os grandes. Rússia se
converteu em um fator inevitável na sua zona de influência ampliada (Síria). O
governo japonês está tratando de reduzir sua dependência militar dos EUA para se
livrar das cláusulas pacifistas da Constituição japonesa. No plano econômico, a
competição se agudiza, a liberdade de circulação outorgada aos capitais permite
aos “sub-imperialismos” entrar na disputa longe de sua esfera regional. No âmbito
ideológico, as classes dominantes enfrentam uma crise de legitimidade e, com
frequência, importantes crises institucionais – perdem o controle dos processos
eleitorais, inclusive em países chave como os Estados Unidos (eleição de Trump)
ou no Reino Unido (Brexit). A situação de guerra é permanente. A crise ecológica
global faz sentir já fortemente seus efeitos. Em diversas partes do mundo, o tecido
social se rasga. As catástrofes humanitárias e os deslocamentos forçados das
populações alcançam um nível sem precedente desde a Segunda Guerra mundial.
Os povos pagam um preço exorbitante pela imposição dessa nova ordem neoliberal.
A atual crise crônica tem múltiplas causas.
Os Estados imperialistas desempenham sempre o papel de assegurar as
condições favoráveis para a acumulação do capital. Contudo, o capital
mundializado opera de forma mais independente que no passado frente a eles. Essa
dissociação contribuiu para permeabilizar as antigas zonas de influência quase
exclusivas dos imperialismos tradicionais (salvo, quem sabe, em grande medida na
América Latina). A enorme mobilidade do capital tem efeitos devastadores sobre o
equilíbrio das sociedades, o que mina as possibilidades da ação estabilizadora dos
Estados.
A globalização capitalista, a financeirização, a crescente internacionalização
das cadeias de produção, também reduzem a capacidade dos Estados na hora de
implementar políticas econômicas.
• Nestes últimos anos, o nível de financeirização, sem precedentes, o
desenvolvimento do chamado capital “fictício” inerente ao capitalismo moderno,

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adquiriu proporções consideráveis, Sem que se tenha rompido o vínculo, conduz a
um grau superior de distanciamento dos processos produtivos, enquanto o vínculo
entre o credor e o devedor inicial afrouxa. A financeirização tem sido o suporte do
crescimento capitalista, seu superdesenvolvimento, porém, acentua suas
contradições.
• De frente com o futuro, o sistema da dívida atua tanto no Norte como no
Sul. Constitui um elemento chave da ditadura exercida pelo capital sobre as
sociedades e desempenha um papel diretamente político, como confirma o caso da
Grécia, para impor a manutenção da ordem neoliberal. Juntamente com os tratados
de livre-câmbio, bloqueia a implementação de políticas alternativas para sair da
crise por parte dos governos.
• Assistimos a uma verdadeira “guerra de moedas” (divisas). Este é um
aspecto dos conflitos interimperialistas: o recurso a uma moeda para definir zonas
de controle.
• As alianças geopolíticas que no passado se “fixavam” em função do
conflito Leste-Oeste, por uma parte, e do conflito sino-soviético, por outra; se
tornaram mais fluídas e inseguras, sobretudo na Ásia do Sul. Alguns regimes latino
americanos tentaram durante um tempo afrouxar as rédeas impostas por
Washington.
• As rivalidades interimperialistas alimentam uma nova espiral na corrida
armamentista, que vai desde a construção de novos porta-aviões até a
“modernização” do armamento nuclear por parte de países como os Estados
Unidos e a França que desejam tornar operativo e politicamente aceitável no marco
dos conflitos localizados. O desenvolvimento do “escudo antimísseis” por parte
dos Estados Unidos acentua ainda mais esta espiral, como ilustra a crise coreana.
• A erupção das revoluções na região árabe e, depois, da contrarrevolução
contribuíram para a criação de uma situação sem controle em uma ampla zona que
se estende desde o Oriente Médio até o Sahel (e além).
• Com a implosão da URSS, em um primeiro momento, a burguesia e os
estados imperialistas (tradicionais) tiveram uma atitude muito conquistadora:
penetração nos mercados orientais, intervenção no Afeganistão (2001) e Iraque
(2003)… Logo estancaram militarmente e chegou a crise financeira. A emergência
de novas potências, as revoluções da região árabe…, tudo leva a uma perda de
iniciativa e controle geopolítico: hoje em dia Washington atua mais por reação às
emergências do que com a intenção de impor sua ordem.
Nesse contexto, o papel das potências regionais ganha importância: Turquia,
Irã, Arábia Saudita, Israel, Egito, Argélia… África do Sul, Brasil, Índia, Coreia do
Sul… Embora em uma posição subordinada no sistema de dominação mundial sob
a hegemonia estadunidense, estas potências jogam também seu próprio jogo, além
de serem gendarmes regionais (como o Brasil no Haiti).
A partir da evolução da situação internacional, uma das perguntas que se
coloca é sobre que relação existe entre o ponto de inflexão de 1989 (do

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imperialismo conquistador) e o que se concretizou em mediados da década de 2000
(da instabilidade geopolítica).
Deste ponto de vista, as crises financeiras de 1997-1998 e de 2007-2008
constituíram um ponto de inflexão real. Atualizando as contradições inerentes à
globalização capitalista, tiveram consequências importantes tanto no terreno
político (deslegitimação do sistema de dominação), como social (muito brutais nos
países diretamente afetados) e estruturais (sobretudo, com a explosão das dívidas).
E constituíram o pano de fundo dos grandes movimentos democráticos que
emergiram alguns anos mais tarde (a ocupação das praças), mas também das
evoluções abertamente reacionárias e antidemocráticas alimentadas pelo medo das
“classes médias” (por exemplo, na Tailândia).
Junto com a crise ecológica e os deslocamentos massivos de populações, a
instabilidade estrutural da ordem mundial cria novas formas de pobreza (ver
sobretudo as Filipinas) que obrigam as organizações progressistas a sustentar
políticas adaptadas.

3. Globalização e crise de governabilidade


As burguesias imperialistas quiseram tirar vantagem do colapso do bloco
soviético e da abertura da China ao capitalismo objetivando criar mercados globais
com regras uniformes, o que lhes permitiu dispor do seu capital à vontade. As
consequências da globalização capitalista foram muito profundas, incrementadas,
além disso, por uma evolução que, em sua euforia, estas burguesias imperialistas
não quiseram prever.
Este projeto consistiu em:
• Privar as instituições eleitas (parlamentos, governos …) da capacidade
para tomar decisões estratégicas e fazê-las incorporar na legislação medidas
definidas em outras partes: na OMC, nos tratados internacionais de livre comércio
etc. Portanto, golpeia-se a democracia burguesa clássica – o que no plano
ideológico se expressa pela referência à “governabilidade” no lugar da democracia.
• Transformar em ilegal, em nome do direito preeminente da “competição”,
os “métodos adequados” da dominação burguesa, frutos da história específica dos
países e regiões (compromisso histórico de tipo europeu, o populismo latino
americano, o dirigismo estatal de tipo asiático, e muitos tipos de clientelismo
redistributivo …). Porque todos estabelecem relações moduladas com o mercado
mundial e, por conseguinte, obstaculizam o livre desenvolvimento do capital
imperialista.
• Subordinar o direito comum ao direito das empresas, às quais os Estados
têm que garantir os benefícios previstos em seus investimentos, em detrimento do
direito da gente à saúde, ao meio ambiente saudável e a uma vida não precária.
Este constitui um dos maiores traços da nova geração de tratados de livre-câmbio
que completam o dispositivo constituído pelas grandes instituições internacionais
como a OMC, o FMI e o Banco Mundial.

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• Uma espiral sem fim de destruição dos direitos sociais. As burguesias
imperialistas tradicionais têm percebido a debilidade e a crise do movimento
trabalhista no chamado “centro”. Em nome da “competitividade” no mercado
mundial, aproveitam a oportunidade para levar a cabo uma ofensiva sistemática
orientada a destruir os direitos coletivos que foram conquistados, em particular,
durante o período posterior à Segunda Guerra Mundial. Não pretendem impor um
novo “contrato social” que lhes seja mais favorável, querem, sim, acabar com esse
tipo de acordo para monopolizar todos os setores potencialmente rentáveis que
haviam escapado, como os que pertencem aos serviços públicos: a saúde, a
educação, os sistemas de pensão, o transporte etc.
• Modificar o papel desempenhado pelos Estados e a relação entre o capital
imperialista e o território. Com algumas poucas exceções, os governos já não são
mais os copilotos de projetos industriais de grande escala ou do desenvolvimento
da infraestrutura social (educação, saúde). Apesar de seguirem apoiando em todo o
mundo a “suas” empresas transnacionais, ao final (dado seu poder e
internacionalização) estas não se sentem dependentes de seu país de origem como
o fizeram no passado: a relação é mais “assimétrica” que nunca; o papel, sempre
essencial, do Estado está se contraindo: deve contribuir para o estabelecimento das
normas que permitam universalizar a mobilidade do capital e a abertura de todo o
setor público aos apetites do capital, o que contribui para a destruição dos direitos
sociais e para manter a população na linha.
• Desta forma, estamos tratando com dois sistemas hierárquicos que estão
estruturando as relações de dominação no mundo: a hierarquia dos Estados
imperialistas, já compleja por si, como já vimos (ponto 1), e as hierarquias dos
grandes fluxos de capital que abarcam o planeta em forma de redes. Esses dois
sistemas já não se superpõem, apesar de que os Estados estão a serviço dos
segundos.
• A globalização capitalista representa uma nova forma de dominação de
classe: mundial, inacabada e estruturalmente instável. Na realidade, isto conduz à
geração de crise de legitimidade e de ingovernabilidade em muitos países e em
regiões inteiras, levando a um estado de crise permanente. Os supostos centros de
regulação a nível mundial (a OMC, o Conselho de Segurança da ONU …) não são
capazes de cumprir sua função com eficácia.
Uma classe não pode governar uma sociedade de forma permanente sem
mediações e compromissos sociais, sem fontes de legitimidade, seja sua origem
histórica, democrática, social, revolucionária… Em nome da liberdade de
circulação de capitais, as burguesias imperialistas estão liquidando séculos de
“experiência” neste campo, ao mesmo tempo em que a agressividade das políticas
neoliberais está destruindo o tecido social em um número crescente de países. O
fato de que em um país ocidental como a Grécia, grande parte da população se
encontre privada do acesso à atenção sanitária e aos serviços de saúde, diz muito
sobre a linha intransigente da burguesia europeia.

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No tempo dos impérios era necessário assegurar a estabilidade das
possessões coloniais e, durante a Guerra Fria, também (ainda que em menor
medida) as zonas de influência. Digamos que hoje em dia, dada a mobilidade e a
financeirização, isso depende do tempo e do lugar… Desse modo, sob os golpes da
globalização, regiões inteiras podem entrar em crise crônica. A aplicação dos
ditados neoliberais por parte de regimes ditatoriais decadentes provocou levantes
populares no mundo árabe e grandes mobilizações na África; crises de regime
abertas e respostas contrarrevolucionárias violentas, o que conduz a uma aguda
instabilidade.
A particularidade do capitalismo globalizado é que parece se acomodar à
crise como se fosse de uma situação permanente: a crise se consubstancia com o
normal funcionamento do novo sistema global de dominação. Se é assim, devemos
mudar radicalmente nossa visão das “crises” como um momento especial entre
largos períodos de “normalidade” – e não terminamos de avaliar nem de sofrer suas
consequências.

4. Os novos (proto-)imperialismos
As burguesias imperialistas tradicionais pensaram que depois de 1991 iam
penetrar no mercado dos antigos países chamados “socialistas” até o ponto de
subordiná-los de forma natural; inclusive chegaram a questionar a razão de ser da
OTAN em relação à Rússia. Esta hipótese não era absurda, como foi demonstrado
pela situação da China no princípio da década de 2000 e pelas condições em que
aderiu à OMC (muito favoráveis ao capital internacional). As coisas, porém,
transcorreram de outra maneira e aparentemente os poderes estabelecidos não
levaram a sério esta situação no primeiro momento.
Na China, foi constituída uma nova burguesia no interior do país e por
dentro do regime; fundamentalmente através do “aburguesamento” da burocracia,
que se transformou em uma classe proprietária por meio de mecanismos que agora
conhecemos bem. Portanto, a burguesia se reconstituiu de forma independente (o
legado da revolução maoista) e não como uma burguesia subordinada
organicamente desde o princípio ao imperialismo. Portanto, a China se transformou
em uma potência capitalista e, além disso, é membro permanente do Conselho de
Segurança das Nações Unidas com direito a veto (o que também é válido para
Rússia), apesar de que sua formação social, herança de uma história muito
específica, continue sendo original.
Podemos definir a China como um novo imperialismo? É evidente que é
necessário esclarecer o que entendemos por este termo no contexto mundial atual
(que constitui um dos objetivos deste texto). Desde que a China se transformou na
segunda potência mundial, parece cada vez mais difícil negar-lhe esse status,
independentemente da fragilidade do regime atual e de sua economia.
A Rússia segue sendo economicamente dependente das exportações de bens
primários (entre eles, o petróleo, que representa dois terços dos mesmos). Seu peso

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internacional tem muito a ver tanto com a dimensão de seu arsenal nuclear
(equilíbrio global de forças) como com a eficácia de sua capacidade militar
(Crimeia, Síria).
Os BRICS têm atuado de forma conjunta no âmbito do mercado mundial.
Sem muito êxito. Os países que conformam este frágil “bloco” não jogam todos no
mesmo nível. Provavelmente o Brasil, a Índia e a África do Sul poderiam ser
descritos como sub-imperialismos – uma ideia que remonta à década de 1970 – e
gendarmes regionais, mas com uma diferença significativa em relação ao passado:
beneficiam-se de uma liberdade para exportar capitais muito superior (ver o
“grande jogo” que se abriu na África, com a competição entre os Estados Unidos,
Canadá, Grã-Bretanha, França, Índia, Brasil, África do Sul, China, Qatar, Turquia,
Nigéria, Angola…).

Três conclusões
1. Volta a emergir a competição entre poderes capitalistas; em especial com
a consolidação da China na Ásia oriental e além, mas também da Rússia no Leste
Europeu e Oriente Médio. Tratam-se de conflitos entre potências capitalistas,
embora qualitativamente diferentes aos do período anterior.
2. Mais geral, em relação com a livre circulação de capitais, as burguesias
(inclusive as subordinadas) e as empresas transnacionais do “Sul” podem utilizar
as normas concebidas a partir de 1991 pelas burguesias imperialistas tradicionais
para si mesmas, sobretudo em termos de investimento, tornando mais complexa
que no passado a competição no mercado global. Em relação ao fluxo de
mercadorias, a competição entre trabalhadores e trabalhadoras, sem limites,
continua sendo impulsionada fundamentalmente pelas empresas dos centros
imperialistas tradicionais, e são eles, e não as empresas dos países produtores, os
que controlam o acesso aos mercados de consumo dos países desenvolvidos; no
entanto, atualmente isto é menos certo para China e inclusive para a Índia e o
Brasil.
3. Não só há uma crise de legitimidade das classes dominantes como
também uma crise ideológica. Esta se manifesta na amplitude da crise institucional,
quando os “maus” candidatos se impõem contra o establishment (Trump nos EUA),
quando as próprias eleições perdem toda credibilidade aos olhos de setores
crescentes da população. Sem ter como responder, crescentemente se apela para o
“dividir para vencer”, utilizando do racismo, da islamofobia, do antissemitismo, da
xenofobia e da estigmatização, trate-se de coreanos no Japão, de xiitas, sunitas ou
cristãos nos países mulçumanos etc. O combate antirracista, antixenófobo constitui,
mais que nunca, um elemento de resistência fundamental em escala internacional.
O mesmo ocorre com o resto de discriminações (sexistas, sociais…)

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5. Novas forças de extrema direita, novos fascismos
Uma das primeiras consequências do fenomenal poder desestabilizador da
globalização capitalista é o igualmente espetacular auge das novas forças de
extrema direita e novos fascismos com uma base (potencial) de massas. Alguns
tomam formas relativamente tradicionais (neonazis) como o Amanhecer Dourado
na Grécia, o NDP alemão e o Jobbik húngaro. Outros se aninham em novas
correntes xenófobas e retornos à identidade nacional. Sua progressão é
particularmente acentuada em uma série de países europeus (não é o caso na
Espanha e Portugal): o PVV holandês, o National Front francesa, a Liga Norte na
Itália, a FPÖ na Áustria, os “True Finns” (Verdadeiros Finlandeses), o UKIP
britânico… Todos eles se beneficiam de uma tripla crise: social, institucional e
identitária. Seu programa econômico varia, mas compartilham o discurso
violentamente anti-imigração e um racismo islamófobo. Assim, na Holanda, Geert
Wilders chega até a exigir o fechamento de todas as mesquitas.
Outras extremas direitas emergem sob a forma de fundamentalismos
religiosos, como é o caso em todas as “grandes” religiões (cristãos, budistas,
hindus, muçulmanos…), ou de fundamentalismo “nacional-religioso” (o sionismo
de direita)… Estas correntes representam hoje uma ameaça considerável em países
como Índia, Sri Lanka e Israel.
Têm sido capazes de influir na política de governos tão importantes como o
dos Estados Unidos (com Bush, agora com Trump). Na França, o candidato
presidencial François Fillon, candidato do principal partido da direita, conta com o
apoio dos setores católicos mais reacionários. O evangelismo radical cristão faz
estragos na América latina e na África. Dessa forma, o mundo muçulmano não tem
o monopólio neste âmbito, mas adquiriu uma dimensão internacional particular,
com os movimentos “transfronteriços”, como o Estado Islámico, a Al Qaeda e os
talibãs; redes que se conectam mais ou menos formalmente desde o Marrocos até a
Indonésia e inclusive no sul das Filipinas.
No geral, temos que analisar mais a fundo os novos movimentos de extrema
direita, sejam religiosos ou não: não são meras réplicas do passado, expressam, sim,
o tempo atual. É importante defini-los politicamente para compreender o papel que
desempenham (recordar que, não faz muito tempo, uma parte significativa da
esquerda radical internacional via no islamismo fundamental a expressão de um
anti-imperialismo “objetivamente” progressista, ainda que ideologicamente
reacionário). Esta análise também é necessária para combater interpretações
“essencialistas” tipo “choque de civilizações”.
Estes movimentos, sendo correntes de extrema direita e
contrarrevolucionários, têm contribuído para pôr fim à dinâmica das revoluções
populares nascidas da “primavera árabe”. Não têm o monopólio da violência
extrema (veja o regime de Assad!), nem da “barbárie” (a ordem imperialista é
“bárbara”). Contudo, exercem sobre a sociedade um controle e um terror que parte

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“de baixo”, que em muitos casos lembra os fascismos do período entreguerras,
antes de chegarem ao poder.
Como todo termo político, o fascismo é utilizado em excesso ou
interpretado de forma diferente. Todavia, nossas próprias organizações estão
discutindo esta questão – como evoluem os movimentos nacionalistas e
fundamentalistas de extrema direita?, o que se pode definir neles como fascista ou
não? – em países como Paquistão (o movimento Talibã) ou na Índia (RSS), além
do Estado Islâmico. “Teofascismo” poderia ser um termo genérico utilizado para
esse tipo de correntes que inclui a todas as religiões.
Sejam quais forem os adjetivos mais apropriados para descrever os novos
movimentos de extrema direita, seu crescente poder coloca para a nossa geração de
ativistas problemas políticos com os quais não havíamos nos deparado no período
anterior; o da resistência “antifascista” em grande escala. Temos que trabalhar
nisso, e para fazê-lo temos que compartilhar as análises e as experiências nacionais
e regionais.
Mais globalmente, a renovação da direita radical fortalece um impulso
reacionário perigoso que, em particular, tem como objetivo pôr questão os direitos
fundamentais das mulheres e das comunidades LGTBI, frequentemente apoiando-
se nas igrejas institucionais em matéria de aborto (na Espanha – onde um projeto
de lei reacionária que propunha abolir o direito ao aborto foi derrotado -, na Itália,
na Polônia, na Nicarágua…) sobre o papel da família (advogando por um retorno a
uma visão muito conservadora do papel da mulher…) e inclusive desencadeando
uma verdadeira caça às bruxas contra os homosexuais (Irã, os países africanos em
que as correntes evangélicas são poderosas ….) ou os transexuais. Por conseguinte,
a reação está atacando frontalmente o direito à livre determinação das mulheres e
dos indivíduos (o reconhecimento da diversidade de orientação sexual), direitos
conquistados depois de muitas lutas.

6. Regimes autoritários, demanda por democracia e solidariedade


Este ascenso da direita reacionária é favorecido pela ideologia da segurança
nacional defendida hoje pelos governos burgueses em nome da luta contra o
terrorismo e a imigração “ilegal”. Em troca, esses governos utilizam o medo
alimentado desse modo para endurecer o Estado penal, para estabelecer regimes
cada vez mais policiais e fazer passar medidas liberticidas: agora mesmo
populações inteiras são tratadas como “suspeitas” e sujeitas a vigilância.
Inclusive nos países com uma larga tradição democrático-burguesa,
assistimos a uma verdadeira mudança de regime. São adotadas leis de guerra civil
disfarçadas de antiterrorismo. Desenvolve-se sistemas de vigilância de massas.
Dota-se o exército de poderes policiais (França) ou se militariza a polícia. São
introduzidas medidas de exceção no direito comum. O poder Executivo amplia sua
autoridade às expensas do poder Judiciário..

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A progressiva generalização dos estados de exceção contribui para a
negação da humanidade de grupos sociais inteiros: minorias, migrantes… O
recurso sistemático ao “crime” de blasfêmia, de lesa-majestade, de atentado à
identidade ou à segurança nacional contribui com isso. O insidioso retorno à
política de desumanização (que gerou os genocídios de antigamente) não é só um
sinal de tendências reacionárias, mas também contrarrevolucionárias.
A globalização capitalista provocou as crises das chamadas democracias
institucionais e do parlamentarismo burguês (onde existem). Ante esta perda de
legitimidade, a tendência dominante é o estabelecimento – súbito ou insidioso de
regimes autoritários não sujeitos à soberania popular (como exceção que confirma
a regra, as antigas ditaduras militares podem todavia ter que ceder ou compartilhar
uma parte do poder, como na Birmânia). Nega-se aos povos o simples direito de
decidir sobre os tratados e regulamentos aprovados por seus governos.
O imperativo democrático -“Democracia real já!” adquire por si uma
dimensão mais subversiva, mais imediata do que geralmente teve no passado, que
permite dotar-lhe de um conteúdo alternativo, popular. Do mesmo modo, a
universalidade das políticas neoliberais e a mercantilização dos ”comuns” que lhe
acompanha, tornam possível a convergência de formas de resistência social, como
se vê no movimento pela justiça global. As consequências da mudança climática,
que já se fazem sentir, também, oferecem um novo campo de convergências
potencialmente anticapitalistas.
Todavia, os efeitos duradouros das derrotas do movimento trabalhista e da
hegemonia ideológica neoliberal, a perda de credibilidade da alternativa socialista,
contrastam com estas tendências positivas. Em uma perspectiva a mais longo prazo,
é difícil situar o êxito, às vezes considerável, dos movimentos de protesto
(ocupação de praças públicas, a desobediência civil …). Neste contexto, a
gravidade das opressões pode fortalecer a resistência baseada em uma identidade
“atomizada”, na qual uma comunidade oprimida permanece indiferente à sorte
reservada a outras pessoas oprimidas (como no caso do “homo-nacionalismo”). O
caráter religioso adotado por muitos conflitos também contribui para divisão da
gente explorada e oprimida.
A ordem neoliberal só pode impôr-se se tiver êxito na destruição das velhas
solidariedades e em suocar a aparição de novas solidariedades. Por muito
necessária que consideremos que seja, não podemos esperar que a solidariedade se
desenvolva de forma “natural” como resposta à crise, nem o internacionalismo ante
o capital globalizado. Neste campo se deve fazer um esforço concertado e
sistemático.

7. Expansão capitalista e crise climática


A reintegração do “bloco” sino-soviético no mercado mundial deu lugar a
uma enorme expansão da zona geográfica em que domina o capital, o que constitui
a base do otimismo das burguesias imperialistas. Também é a base para uma

13
aceleração dramática da crise ecológica mundial em vários terrenos. Chegamos a
um ponto em que a redução das emissões de gases de efeito estufa deve começar,
sem mais demora, nos principais países emissores do Sul e não só do Norte.
Neste contexto, a solução da “dívida ecológica” do Sul não deve favorecer o
desenvolvimento capitalista mundial e beneficiar a empresas transnacionais
Japonesas-Ocidentais implantadas no Sul ou as corporações transnacionais do Sul
(do tipo da agroindústria brasileira). Isso não fará mais que gerar cada vez mais
crises sociais e ambientais.
É certo que a solidariedade “Norte-Sul” é necessária sempre; por exemplo,
na defesa das vítimas do caos climático. Contudo, e mais que nunca, o que do
ponto de vista das classes trabalhadoras está na agenda das relações “Norte-Sul” é
uma luta comum “antissistema”: quer dizer, uma luta comum para uma alternativa
anticapitalista e uma concepção alternativa de desenvolvimento tanto no “Norte”
como no “Sul” (a heterogeneidade do “Norte” e “Sur” é tal que estes conceitos
podem ser enganosos).
O ponto de partida é a luta socioambiental para “mudar o sistema, não o
clima”; sua base é composta pelos movimentos sociais e não só pelas coalizões
específicas em torno do clima. Portanto, devemos trabalhar para articular ambos.
Se não “ecologizarmos” a luta social (seguindo o exemplo do que já se pode fazer
em lutas camponesas e urbanas), a expansão numérica de mobilizações sobre “o
clima” ficará na superfície das coisas.
A organização das vítimas do caos climático, sua defesa e o apoio a sua
auto-organização é um elemento básico da luta ecológica.
Já estão claras as consequências dos sistemas de energia baseados em
combustíveis fósseis. Assim como os efeitos do aumento da temperatura em escala
global: as geleiras estão diminuindo e os níveis oceânicos aumentando, as zonas
desérticas se expandem, a água está ficando escassa, a agricultura se vê ameaçada e
os fenômenos climáticos extremos se tornando mais frequentes. Os efeitos do
supertufão Haiyan, nas Filipinas, sobrepuseram o nível de alerta previsto para o
mesmo. O futuro que se anunciava já é uma realidade. As consequências
desestabilizadoras dele se estenderam além das regiões diretamente afetadas e
deram lugar a tensões em cadeia (ver as tensões entre Bangladesh e a Índia pela
questão dos migrantes refugiados, ou os conflitos interestatais em torno do controle
das reservas aquíferas).
Os cientistas estão de acordo que um aumento de 2° Centígrados comparado
com os níveis préindustriais desataria consequências climáticas que uma vez postas
em marcha seriam impossíveis de deter. Com isto na mente, existe uma quantidade
de problemas importantes que permanecem sem solução.
O derretimento das geleiras e das calotas polares ameaça com um aumento
catastrófico nos níveis oceânicos, ameaçando as aglomerações costeiras no mundo,
as comunidades insulares e os países e regiões de baixa altitude (Bangladesh…). O

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vasto polo glacial da Antártida Ocidental mostra sinais de desestabilização e o
derretimento de sua geleira poderia aumentar o nível oceânico até 7 metros
Como alimentar a crescente população mundial do planeta sem aumentar a
agricultura industrial (agroindústria) e o uso cada vez maior de pesticidas e
herbicidas nos alimentos geneticamente modificados que destroem a biosfera? A
questão chave é a soberania alimentar. Isto daria às pessoas os direitos e os meios
para definir seus próprios sistemas alimentares. Seria dar o controle aos que
produzem, distribuem e consomem alimentos em vez de às corporações e às
instituições do mercado que dominam o sistema alimentar mundial. Isto
significaria o fim da apropriação de terras e requer uma ampla redistribuição da
terra para pô-la nas mãos de quem produz os alimentos.
O aspecto mais destruidor da crise meio ambiental talvez seja o impacto que
está tendo na biodiversidade: o que se denomina “a sexta extinção” como cada vez
mais é conhecida. Um incremento de 3° Centígrados na média global da
temperatura, significaria que a metade das espécies – plantas e animais – estariam
condenadas. A quarta parte de todos os mamíferos estão em risco. A acidificação
dos oceanos tem feito com que os recifes de coral, assim como os organismos cuja
estrutura óssea depende da calcificação, vão morrendo. O porvir da nossa espécie
não pode se separar dessa crise da biodiversidade.

8. Um mundo permanentemente em guerras


Entramos com tudo em um mundo permanentemente em guerras (no plural).
Cada guerra deve ser analisada em suas especificidades, enfrentamos situações
bastante complexas, como atualmente no Oriente Médio, onde em um único marco
de operações (Iraque-Síria) existem conflitos entrelaçados com características
específicas (Curdistão sírio, a região de Alepo etc.).
Esta situação de guerra permanente não afeta somente os conflitos
internacionais. Também caracteriza a situação interna em países da África, da
América Latina e o México.
As guerras estão aqui para ficar, com muitas faces. Temos que olhar
novamente como elas têm sido conduzidas, inclusive as dos movimentos de
resistência popular, com o objetivo de compreender melhor as condições da luta, a
realidade da situação, os requisitos concretos de solidariedade… Para isto, cada
guerra deve ser analisada em suas especificidades. De fato, confrontamo-nos com
situações muito complexas, como as atuais no Oriente Médio, onde, no marco de
um palco de operações único (Iraque-Síria) se misturam conflitos com
características diferentes, específicas, até o ponto de gerar tensões e contradições
entre as forças progressistas.
Entretanto, devemos conservar uma bússola nesta geopolítica tão complexa:
a independência de classe contra o imperialismo, contra o militarismo, contra o
fascismo e contra o surgimento de movimentos identitários “anti-solidários”

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(racistas, islamófobicos e antissemitas, xenófobos, casteístas, fundamentalistas,
homofóbicos, misóginos e machistas…).

9. Os limites da superpotência
O ordenamento comum das regras do capitalismo global não impede que
alguns países sejam mais iguais que outros; os Estados Unidos tomam a liberdade
de fazer coisas que não permite a outros. Joga com o dólar para “exportar” seu
“direito” a processos judiciais, controla a maior parte das tecnologias mais
avançadas e tem a sua disposição um poder militar sem igual. Seu Estado segue
mantendo funções soberanas globais que outros já não têm ou não são capazes de
ter.
Os Estados Unidos seguem sendo a única superpotência no mundo. No
entanto, perdem todas as guerras que têm participado: desde o Afeganistão até a
Somália. A culpa se funda talvez na globalização neoliberal, que lhe proíbe
consolidar socialmente (em aliança com as elites locais) seus ganhos militares
temporários. Esta é, provavelmente, também uma consequência da privatização dos
exércitos, das empresas de mercenários que cumprem um papel crescente e
igualmente dos grupos armados “não oficiais” a serviço de interesses particulares
(grandes empresas, grandes famílias…).
Também ocorre que esse poder, por muito “superior” que seja, não tem os
meios para intervir em todas as direções em condições de instabilidade estrutural
generalizada. Requereria imperialismos secundários capazes de apoiá-lo. França e
Grã-Bretanha, no momento, só dispõe de capacidades muito limitadas; Japão ainda
tem que romper a resistência cívica a sua remilitarização completa. O Brexit dá um
golpe de misericórdia na constituição de um imperialismo europeu unificado
enquanto o Reino Unido dirige um dos únicos dois exércitos operativos de
envergadura da União Europeia, (além de uma das principais redes diplomáticas e
financeiras e uma das principais economias).
A eleição de Donald Trump e suas declarações unilateralistas colocam de
forma mais grave um problema que vem de longe: em que medida se mantém a
garantia do “escudo estratégico” que assegurava os Estados Unidos? A resposta é
clara: em uma medida incerta. Os falcões da direita japonesa tiram suas conclusões.
O que será da Europa ocidental? A Alemanha imperialista está sob pressão. Pode
continuar beneficiando-se da sua posição econômica dominante sem assumir suas
responsabilidades militares? A crise da UE, a pressão russa e a posição de
Washington colocam objetivamente o problema do rearmamento alemão, enquanto
que neste país (como no Japão), entre a população, a hostilidade ao militarismo é
profunda.
Quem diz guerra deve dizer também movimento antiguerra. Como as
guerras são muito diferentes umas das outras, a construção da sinergia de
movimentos antiguerra não é muito simples. O modo como ativistas na Europa
(ocidental) colocam esta pergunta parece pessimista, uma consequência de como o

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“campismo” tem roído e deixado impotentes as principais campanhas conduzidas
neste campo. Existem, porém, movimentos contra a guerra, em particular na Ásia e
na Eurásia; a superação das fronteiras herdadas da época dos blocos se dará,
sobretudo, em torno desta questão.

10. Internacionalismo contra “Campismo”


Já não existe um grande poder (categoria à qual não pertence Cuba) “não-
capitalista” ou “anticapitalista”. Temos que tirar todas as consequências disso.
No passado, sem necessidade de nos alinharmos com a diplomacia de
Pequim, defendíamos a República Popular da China (e a dinâmica da revolução)
contra a aliança imperialista Japão-Estados Unidos; nesse sentido estávamos em
seu campo (a seu lado). Opusemo-nos à OTAN, apesar do que pensávamos do
regime stalinista; contudo não estávamos “no seu campo” porque isso no limitava
nossa luta contra a burocracia stalinista. Estávamos simplesmente atuando em um
mundo onde não havia uma articulação das linhas de conflito:
revoluções/contrarrevoluções, blocos sino-soviéticos leste/oeste. Este já não é
ocaso hoje em dia.
A lógica “Campista” sempre levou ao abandono das vítimas (as que se
encontram no lado equivocado) em nome da luta contra o “inimigo principal”. Isto
é ainda mais certo hoje do que no passado, já que conduz a se alinhar no campo de
um poder capitalista (Rússia, China) ou, pelo contrário, no campo ocidental quando
Moscou e Pequim são vistos como a principal ameaça. Desta maneira se fomenta o
nacionalismo agressivo e se santificam as fronteiras herdadas da era de “blocos”,
justo quando o que temos que fazer é precisamente borrá-las.
O campismo também pode conduzir a ajudar na Síria o regime assassino de
Assad e a intervenção russa, ou a coalizão sob a hegemonia estadunidense,
incluindo, em particular a Arábia Saudita. Inclusive diante do martírio de Alepo,
uma parte da esquerda radical internacional continuou olhando para o outro lado
com o objetivo de não romper com sua tradição campista. Outras correntes se
contentam em condenar a intervenção imperialista no Iraque e Síria (o que, sem
dúvida, se tem que fazer), mas sem dizer o que está fazendo o Estado Islâmico e
sem chamar à resistência contra ele.
Esse tipo de posição torna impossível apresentar claramente o conjunto de
tarefas de solidariedade. Não é suficiente lembrar a responsabilidade histórica do
imperialismo, desde a intervenção em 2003 e os objetivos não-declarados da
intervención atual, para denunciar o próprio imperialismo. É necessário pensar nas
tarefas concretas de solidariedade do ponto de vista das necessidades (motivos
humanitários, políticos e materiais) das populações que são vítimas e dos
movimentos em luta. Isto não pode ser feito sem atacar o regime de Assad e os
movimentos fundamentalistas contrarrevolucionários.
Dizemos o mesmo em relação aos conflitos na fronteira que divide
atualmente o Leste europeu: como no caso da Ucrânia, nossa orientação tem sido a

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de combater, em todos os países europeus – estejam dentro ou fora da UE – a favor
de outra Europa baseada na livre associação dos povos soberanos contra todas as
relações de dominação (nacionais, sociais); o que para nós significa o socialismo.

11. Crises humanitárias


As políticas neoliberais, a guerra, o caos climático, as convulsões
econômicas, rupturas sociais, exacerbação da violência, os pogroms, o colapso dos
sistemas de proteção social, as epidemias devastadoras, as mulheres reduzidas à
escravidão, as crianças mártires, as migrações forçadas… O capitalismo triunfante,
desenfreado, está dando a luz a um mundo onde as crise humanitárias se
multiplicam.
A decomposição da ordem social afeta diretamente o Estado em países
como o Paquistão. Fundamentalmente no México, a decomposição do capitalismo
não conduziu à emergência de um novo fascismo, mas transformou os grupos
criminosos marginalizados, que atuam clandestinamente como verdadeiros grupos
de poder associados à classe política dominante e ao capital financeiro
internacional. Estendem suas redes ao resto da América Latina e aos Estados
Unidos. Além do tráfico de drogas, estão envolvidos em sequestros e tráfico de
mulheres. Controlam amplas zonas do território e dispõem de uma base social. A
denominada guerra contra a droga, os conflitos entre as diferentes facções
criminosas e os “danos colaterais” tem provocado mais mortos que a guerra no
Iraque. Sua existência facilita a acumulação capitalista por desapropriação
expulsando milhares de camponeses e povos autóctones de suas terras em
benefício de sociedades transnacionais vinculadas fundamentalmente ao
extrativismo. Isto justifica a militarização do país e a criminalização do protesto
social. Ainda que em si mesmo não apresentem um perfil político, essas facções
favorecem o processo de acumulação do capital e promovem uma cultura misógina,
sexista, homofóbica e xenófoba. Podem se tornar um terreno fértil para a formação
de grupos paramilitares a serviço das oligarquias.
No lugar de ser reforçado diante da urgência, o direito humanitário tem sido
pisoteado pelos Estados. A União Europeia nem sequer aparenta respeitar o direito
internacional no que diz respeito ao acolhimento dos refugiados e refugiadas. O vil
acordo negociado com a Turquia é um exemplo disto. O mesmo ocorre em
Rohinga, no Sudeste da Ásia.
Às vezes essa violência sem limites é levada sem dissimulação. Já não se
nega a hiperviolência; organiza-se o espetáculo, como faz o Estado Islâmico. O
feminicídio em países como a Argentina ou México adquire formas extremas:
corpos empalados, queimados… nada a fazer inveja às violências “tradicionais”,
aos “crimes de honra” (rebeldes à ordem patriarcal enterradas vivas…)
Desde Georges W. Bush e os atentados de 11 de setembro em 2001, um
número crescente de governos negam inclusive a humanidade do inimigo. Com
efeito, em nome do combate do Bem contra o Mal, a “guerra humanitária” se

18
emancipou do direito humanitário e do direito de guerra: o inimigo “absoluto” não
tem direito a nenhum direito; não postos nos grupos fundamentalistas ou no
“buraco negro” de Guantânamo e nas prisões secretas da CIA.
É preciso fazer frente a esta barbárie moderna com a ampliação do campo
de ação internacionalista. As esquerdas militantes e os movimentos sociais em
particular, devem velar pelo desenvolvimento da solidariedade “povo a povo”, “de
movimento social a movimento social” com as vítimas da crise humanitária.
Depois de um período no qual o próprio conceito de internacionalismo foi
menosprezado com frequência, a onda global da justiça, agora com a multiplicação
das “ocupações” de praças públicas ou distritos, lhe restauraram em toda sua
importância. Agora é necessário que esse internacionalismo ressuscitado encontre
formas de ação mais permanentes em todos os âmbitos de protesto. O qual não
ocorrerá de forma espontÂnea. De fato, em numerosos países podemos constatar
um enfraquecimento da consciência solidária e de sua colocação em prática.

12. Uma guerra de classe global


O capitalismo global desenvolve uma guerra de classe global.
É difícil prever a evolução a médio prazo da situação internacional,
sobretudo no plano econômico. Ameaça uma nova crise financeira sem que se
saiba o que lhe fará detonar e as suas implicações. Terão as inovações tecnológicas
vinculadas à informática um efeito significativo sobre a produtividade do trabalho?
Nos encontramos em um período de estagnação prolongada? Pode haver setores
significativos da burguesia que optem por um novo protecionismo? Pode a
mudança climática impôr limites absolutos ao capitalismo? A crise capitalista atual
tem por causa fundamental a queda tendencial da taxa de lucro (como as crises
clássicas) ou é necessário ter em conta sobretudo outros fatores (a governança da
globalização, o impacto da crise ecológica…)?
No momento, o que está claro é que a precarização do emprego e das
condições de vida, o esgarçamento do tecido social, vai continuar se dando na
maioria dos países. Se não crescem as solidariedades para lhes fazer frente com
força, aumentarão as opressões. Os estragos da crise ecológica vão se ampliar. A
instabilidade geopolítica vai se agravar ainda mais; o ascenso da tensão na Ásia
Oriental é uma boa amostra disso. Os conflitos pelo controle dos recursos naturais,
dos mercados e das vias de comunicação vão se multiplicar.
A primeira consequência da eleição de Donald Trump é o incremento de
todas essas tendências. Pior ainda: estamos a ponto de atravessar novos umbrais de
perigo. A aceleração da corrida armamentista (construção de porta-aviões..) é um
dos sintomas mais temíveis. Adquire inclusive uma dimensão nuclear. Países como
Estados Unidos ou França tratam de tornar politicamente possível o uso “tático”
dessa arma de destruição massiva. Neste momento frente, ao agravamento da crise
coreana e ao lançamento no sul de uma base de mísseis de interceptação Thaad dos
EUA, a China se põe a reforçar seu arsenal e lançar submarinos estratégicos nos

19
oceanos. A construção de muros e o fechamento de fronteiras se generalizam, com
tudo o que isso implica de diabolização e de maltrato à gente “estrangeira”; mas a
demagogia contra as pessoas imigradas não pode esconder a violência dos ataques
dirigidos contra a população trabalhadora em seu conjunto. A alternativa histórica
“socialismo ou barbárie” adquire hoje em dia todo seu sentido.
Através de sua própria violência, as ofensivas da reação podem provocar em
resposta mobilizações democráticas massivas, como nos EUA com a eleição de
Trump ou na Argentina frente à extrema violência infligida às mulheres e até no
plano internacional. Assim, a jornada do 8 de março de 2017 adquiriu um
significado espetacular e totalmente inabitual. Porém, esses ataques também
podem infligir derrotas importantes aos movimentos sociais combativos,
trabalhistas e camponeses, como no Paquistão. A análise das dinâmicas das
resistências populares é a matéria do segundo texto que se apresenta para a
discussão no próximo Congresso Mundial; e o das condições para a construção dos
partidos militantes, o terceiro.

Comitê Internacional – IV Internacional

Tradução: Bruno Marinoni

20
Capitalismo tardío y neoliberalismo: una
perspectiva de la actual fase de la onda
larga del desarrollo capitalista
El mundo se hunde en la segunda Gran Depresión de su historia moderna.
La crisis financiera provocada por las hipotecas subprime desencadenó una
recesión global en 2009 y una nueva recesión comienza en Europa en 2012. A
través de este proceso, está en curso una recomposición sustancial del régimen
social de acumulación.
Aunque el concepto de crisis es sin duda ambiguo, suelen asociársele tres
significados: una crisis periódica, una crisis de regulación y una crisis sistémica. El
período actual puede ser descrito como una crisis de regulación, pero también
como una crisis sistémica. Este artículo pretende abordar la actual fase de la onda
larga del capitalismo tardío.

El tiempo largo del capital


El concepto de crisis de regulación ha sido discutido desde hace tiempo
como parte de una visión de un capitalismo tendente al equilibrio y auto
estructurante. Por el contrario, partimos de la concepción propuesta por Dockès y
Rosier (1), es decir, la de un “orden productivo” neoliberal, teniendo en cuenta que
el capitalismo redefine periódicamente su modo de funcionamiento para hacer
frente a sus contradicciones. De hecho, el capitalismo se basa en un mecanismo
social de explotación y acumulación del capital, pero su modo de funcionamiento
evoluciona con el tiempo.
Esta visión era el punto de partida de la teoría de Kondratiev de los ciclos
largos de la coyuntura (2), como se le llamó en su época o, más tarde, las ondas
largas del desarrollo capitalista. El concepto de “ciclo” sugiere la idea equivocada
de automatismo y repetición que es incompatible con la evidencia histórica.
León Trotsky, adversario de Kondratiev, compartió su punto de vista de
entender la acumulación económica como un proceso ondulatorio. En un artículo
publicado en 1923 escribió: “Observamos en la historia que los ciclos homogéneos
están agrupados en series. Épocas enteras de desarrollo capitalista suceden cuando
un cierto número de ciclos están caracterizados por auges agudos sucesivos y crisis
débiles y de corta vida. Como resultado obtenemos un fuerte movimiento
ascendente de la curva básica del desarrollo capitalista. Tendremos épocas de
estancamiento cuando esta curva, aunque pasando a través de oscilaciones cíclicas
parciales, permanece aproximadamente en el mismo nivel durante décadas. Y,
finalmente, durante ciertos períodos históricos la curva básica, aunque pasando
como siempre a través de oscilaciones cíclicas, se inclina hacía abajo en su

21
conjunto, señalando el declive de las fuerzas productivas” (3). El esquema que se
reproduce ilustra su visión de estos ciclos.

Gráfico 1
La curva del desarrollo capitalista según L. Trotsky

22
El estudio de estos períodos largos del capitalismo atrajo la atención de muy
distintos investigadores, como Joseph Schumpeter, Ragnar Frish y Jan Tinbergen, y
fue abordado por Ernest Mandel (4), Richard Goodwin y Christopher Freeman,
entre otros (5). Para estos investigadores, la distinción entre las fases de auge y de
receso es crucial, sin que exista mecanismo que pueda asegurar la transición de un
período dominado por la recesión a un nuevo período de auge.
Por lo tanto, no hay simetría alguna entre ambos puntos de inflexión:
porque son los factores económicos los dominantes en el agotamiento de un largo
período de expansión, mientras que son necesarios otros factores para la
recuperación después de un largo período de depresión. Freeman y sus
colaboradores han insistido en la importancia del marco socio-institucional como la
clave para comprender el desajuste entre el paradigma tecno-económico existente y
las condiciones sociales necesarias para su desarrollo, y Ernest Mandel consideraba
las relaciones políticas y sociales como parte de los factores determinantes de la
nueva onda. Para Mandel, los factores económicos endógenos eran decisivos en el
agotamiento de la fase de auge y los factores políticos exógenos para el
surgimiento de un nuevo ascenso después de décadas de descenso.
De acuerdo con este punto de vista, la evolución del capitalismo de
posguerra puede ser descrito como dos ondas. La primera, desde el final de la
Segunda Guerra Mundial hasta la crisis de la década de 1970, con el punto de
inflexión a comienzos de la década de 1980. Se le ha llamado los Treinta Años
Dorados, o la época del fordismo. Su coherencia fue sin duda diferente a la de la
segunda onda del siguiente período, a partir de la década de 1980 hasta la
actualidad, la época del neoliberalismo.
Cada una de estas épocas pueden ser descritas de acuerdo a cuatro
dimensiones principales: el régimen de acumulación, el paradigma tecnológico, la
regulación social y la división internacional del trabajo.
1) El régimen de acumulación describe cómo la producción y la realización
se combinan. Desde el punto de vista de la producción, el crecimiento y por tanto
la acumulación, son tan intensos como lo permite el crecimiento de la
productividad. Desde el punto de vista de la realización, o el consumo de masas es
posible dado el nivel de los salarios o la distribución desigual de la riqueza bloquea
el crecimiento de la demanda. En consecuencia, la noción de régimen de
acumulación también se refiere a las reglas del juego, en relación con la estructura
de la propia clase dominante, es decir, las relaciones entre los capitales y empresas
industriales y financieros, o entre accionistas y gerentes.
2) El paradigma tecnológico o técnico-económico describe las relaciones
entre el modo de producción y la tecnología existente: en cada período hay
disponible para su difusión en la economía una constelación de innovaciones,
siguiendo el ejemplo de una nueva y determinante rama productiva, como el
automóvil en el pasado o la información y comunicaciones después. Sin embargo,
la disponibilidad de esas innovaciones tecnológicas no es suficiente, y el desajuste

23
entre este paradigma y el marco de regulación social puede bloquear el proceso de
acumulación.
Concentrémonos primero en las posibilidades de difusión de las
innovaciones más importantes. Como enseña la historia, su efecto demostración
fue tan poderoso en el caso del torno de hilar de agua de Arkwright que algunos de
sus rivales y competidores intentaron destruir físicamente su equipo. A pesar de
esta hostilidad, el éxito y la muy alta rentabilidad de sus hilanderías de Cromford y
sus otras fábricas alentaron a numerosos imitadores a invertir en fábricas de hilado
de algodón, especialmente después de que expirasen sus disputadas patentes.
Algunas de las primeras inversiones en canales, como el canal Worsley-Manchester,
obtuvieron grandes ganancias. En una escala mucho mayor, el Concurso de
Rainhill entre diversos locomotoras de vapor, seguido por el éxito de la rentable
explotación del ferrocarril Liverpool-Manchester provocó un enorme auge de las
inversiones en ferrocarriles y, de hecho, una gran burbuja financiera a consecuencia
de la excitación causada por las estimaciones, a menudo exageradas de los
beneficios potenciales que se obtendrían. Promotores del ferrocarril, como George
Hudson en Gran Bretaña y los Vanderbilt en los Estados Unidos, hicieron también
enormes beneficios especulando y manipulando los mercados financieros. Los
beneficios de Carnegie, Krupp y Ford son un ejemplo de las enormes cantidades de
dinero que pudieron ser acumuladas por el éxito de la iniciativa empresarial
innovadora. Los beneficios de IBM y Microsoft o Apple son impresionantes y se
han convertido en las empresas más rentables del mundo. El abanico de
innovaciones, productos y procesos generados por la revolución industrial de la
información y las comunicaciones ha creado nuevas formas de inversión,
acumulación y realización.
Una característica distintiva recurrente de las ondas largas es que en cada
caso, aunque cada una de las innovaciones era única y muy diferente, surgió un
conjunto de innovaciones que ofrecía la posibilidad clara de inmensos beneficios,
sobre la base de una superioridad tecnológica indiscutible en relación a los modos
de producción previos. Todo el tiempo se producen pequeñas mejoras
incrementales, por supuesto, pero las innovaciones, que estaban en el corazón
mismo de cada onda que hemos analizado, posibilitaban cambios muy notables de
productividad y rentabilidad. Sin embargo, estas innovaciones tan rentables no
fueron hechos aislados, sino parte de una constelación de productos, procesos e
innovaciones organizativas relacionados entre sí. A veces se trataba de un nuevo
proceso, que generaba la mayor parte de los beneficios extraordinarios, otras de
una serie de nuevos productos, cuando no sobre todo de cambios organizativos,
como en el caso de la cadena de montaje de Ford o de Internet, pero en todos los
casos hubo cambios interdependientes, tanto técnica como económicamente. La
onda Kondrátiev generada después del final de la Gran Depresión y la Segunda
Guerra Mundial fue la edad del petróleo, los automóviles, la motorización y la
producción en masa, gracias al impulso de innovaciones radicales, pero también de

24
grandes cambios sociales. La naturaleza de la regulación social es crucial para el
modo de desarrollo del capitalismo moderno.
3) La regulación social implica la determinación de los salarios, la
organización del trabajo, el derecho laboral y la normativa de la acción social del
Estado en relación a la seguridad social, los servicios públicos y otras partes del
salario indirecto. Se trata de un componente importante de la construcción del
orden social y la creación de legitimidad, pero la regulación social tiende a no
acompasarse, durante los períodos de contracción, con los requisitos de
acumulación del capital, que requiere de grandes transformaciones en la
distribución social del valor.
De hecho, durante los periodos de desaceleración de la onda larga, las crisis
de ajuste se generan por la falta de correspondencia entre las potencialidades del
nuevo paradigma tecnoeconómico y el marco de regulación social, es decir, las
condiciones de trabajo y salario, la educación profesional y otras normas sociales,
los contratos, las tradiciones y la cultura social.
En algunos casos, la historia muestra que el impulso expansivo de lo nuevo
puede ser tan grande que lanza hacia arriba la producción industrial agregada y / o
el PIB a pesar de una crisis estructural de adaptación y altos niveles de desempleo
estructural. Ese fue aparentemente el caso de Gran Bretaña en las décadas de 1830
y 1840 y en los Estados Unidos en las décadas de 1880 y 1920. Por otro lado, el
crecimiento impetuoso de las industrias del automóvil y el petróleo en la década de
1920 no fue suficiente para superar las tendencias depresivas en los EE.UU. y la
economía mundial en la década de 1930, agravadas por graves crisis políticas,
conflictos internacionales y crisis monetarias. La posibilidad de una segunda gran
depresión contemporánea evoca este ejemplo.
En cualquier caso, los altos niveles de desempleo estructural recurrentes son
siempre una manifestación de las crisis de ajuste en cada onda larga. Las
estadísticas para el siglo XIX son muy pobres, pero hay fuertes evidencias de
desempleo muy graves en las décadas de 1830 y 1840 en Gran Bretaña, y hubo
también paro generalizado en la mayoría de los países industrializados en la década
de 1880, especialmente en aquellos donde el uso de maquinaria era más avanzado.
Hay, por supuesto, abundante evidencia estadística del enorme desempleo
estructural en las décadas de 1920 y 1930 y de nuevo en las de 1980 y 1990 hasta
la actualidad, con el desempleo alcanzando niveles inimaginables. Incluso durante
el boom de la década de 1920 en los Estados Unidos, hubo sectores que sufrieron
graves problemas de adaptación, como el carbón, los ferrocarriles y la construcción
naval. En Alemania y Gran Bretaña le ocurrió a la industria pesada en general, pero
sobre todo a la siderurgia y los astilleros, que atravesaron largos y problemáticos
periodos de ajuste estructural. En la década de 1980, el automóvil, el petróleo, las
materias sintéticas y, de nuevo, la siderurgia estuvieron entre las muchas industrias
que experimentaron graves problemas de adaptación.

25
Obviamente, los grandes cambios como la mecanización, la electrificación,
la motorización, y la informatización han acarreado una serie de conflictos con
cada crisis sucesiva de ajuste estructural. La profundidad de las contradicciones
sociales, que pueden verse agravadas durante una crisis estructural, se manifiesta
no con menor claridad por los conflictos laborales que engendran.
4) Por último, la división internacional del trabajo corresponde a la
organización de la economía mundial y define la inserción de cada país en el
mercado mundial, así como sus relaciones con otras economías. Implica diferentes
problemas, como quién extrae materias primas, quién produce bienes industriales y
los servicios más sofisticados, quién domina los canales de comunicación y las
tecnologías de la información. Pero también implica dinero y los mercados de
divisas, a saber, cual es la moneda de reserva mundial y el control de los flujos de
inversión y financieros internacionales. Todo ello define una jerarquía de poderes
de acuerdo con las relaciones económicas, militares y políticas.
Los cambios en el régimen de regulación, ya sea a nivel nacional o
internacional, pueden plantear conflictos políticos e ideológicos fundamentales,
internos e internacionales. Así ocurrió con los conflictos sobre las Leyes del Maíz
en las décadas de 1830 y 1840 en Gran Bretaña y más tarde sobre la Reforma
Arancelaria en Gran Bretaña a finales del siglo XIX y comienzos del XX. Los
problemas de protección arancelaria también tuvieron efectos profundos en los
Estados Unidos, Alemania y Japón, en pleno proceso de industrialización y
adaptación tecnológica. En general suelen surgir fuertes tensiones en las relaciones
internacionales cuando se considera que intereses nacionales esenciales están en
juego o existen fricciones comerciales, como ilustra la carrera armamentística
naval anglo-alemana antes de 1914, así como en la aparición hoy en día de la
política neo-mercantilista del gobierno alemán en el marco de la Unión Europea.
La Tabla 1 resume nuestra visión de las transformaciones

Tabla 1: Fordismo y Neoliberalismo

26
Las curvas del capitalismo contemporáneo
En lo que sigue recurrimos a un método que podría denominarse
“espectográfico”, que consiste en definir los períodos largos a través de una serie
de indicadores (6) a partir de los que deducimos un indicador sintético como una
media aritmética simple. Este indicador sigue de cerca el de la tasa de ganancias
(gráfico 1).
Hasta mediados de la década de 1980, este indicador es plano, lo que
demuestra el poder regulador del régimen. Sin embargo, la tasa de ganancias
desciende (7) desde 1967 en los EE.UU., y luego en todas las grandes economías
capitalistas a partir de las recesiones generales de 1974-1975 y 1980-1982. Este fue
el punto de inflexión de la década de 1980, con el restablecimiento de la tasa de
ganancias, a pesar de las grandes fluctuaciones que corresponden a las recesiones
de 1991-1993 y 2000-2002.
Con esta restauración de la tasa de ganancia, el indicador sintético muestra
una importante recuperación y un crecimiento casi exponencial, que pone de
relieve la aparición de grandes transformaciones de la estructura del capitalismo.

Gráfico 2
Indicador sintético y tasa de ganancias

Antes de discutir los componentes de este indicador sintético, vamos a


examinar la evolución de la productividad, ya que es una característica esencial de
la dinámica del capitalismo: como el gráfico indica, durante el período fordista, la
productividad y la tasa de ganancias sigue la misma trayectoria, ya que la

27
productividad es la raíz de la ganancia. El agotamiento de las ganancias de
productividad es la causa de la decadencia de un orden productivo y, en concreto,
de la crisis del fordismo.

Gráfico 3
Tasa de crecimiento per capita del PIB (1960-2008)

Una segunda conclusión es que el crecimiento de la tasa de ganancias se


restablece desde los inicios del periodo neoliberal, a pesar de las modestas
ganancias de productividad en comparación con las del período fordista. Esto
simplemente indica que la generación de beneficios encontró otras formas y
herramientas.
Una tercera conclusión es el “efecto boomerang” de la globalización: el
crecimiento de la productividad disminuye en los EE.UU. y Europa, pero se
dispara en las economías emergentes, que son ahora los centros de la dinámica del
capitalismo.

Repartición del valor y la realización


El punto de partida para comprender este hecho es la distribución entre las
rentas del trabajo y el capital. Teniendo en cuenta que las ganancias de
productividad no son comparables a las del período fordista, la herramienta
esencial para mantener la tasa de beneficio es la reducción de la proporción de las
rentas de trabajo, es decir, aumentar la tasa de explotación. Esto es lo que sucede
desde 1980, como demuestra el gráfico 3.

28
Gráfico 4
Distribución de rentas

Pero si este es el modo de restablecer la tasa de ganancia nos volvemos a


enfrentar al problema tradicional de la realización: ¿quién comprará los productos
si la demanda se comprime a través de la disminución relativa de los salarios? Esta
es también, sin duda, una pregunta típicamente keynesiana, pero que,
evidentemente, no se limita al keynesianismo: la contradicción entre demanda y
realización es una característica esencial del modo de producción capitalista. Para
el capitalismo neoliberal, la respuesta ha sido la deuda, el aumento del consumo a
través del crédito, como se muestra en el Gráfico 4.
El crecimiento de los ingresos financieros (el indicador del mercado de
valores en el Gráfico 4) corresponde al aumento de la desigualdad (véase también
el Gráfico 4). Estas curvas siguen el mismo camino.

La economía mundial
La segunda raíz del modelo neoliberal es el crecimiento del crédito y la
deuda de muchas economías, incluida la de los EE.UU. Entre 1980 y 2002, el PIB
de los EE.UU. representaba alrededor del 21% del PIB mundial. Se redujo al 19%
en 2007, en beneficio de las economías emergentes. El modelo de los EE.UU. se ha
basado en un sobre-consumo interno, generador de un creciente déficit externo. La
tasa de ahorro de los hogares tendía a cero. Lo muestra el Gráfico 5 y la
comparación entre el déficit y el sobre-consumo es muy expresiva. Por lo tanto, la

29
necesidad de capital para financiar el déficit de los EE.UU. se convirtió en un
factor importante de dificultades internacionales, por lo menos lo que Larry
Summers llamó el "equilibrio de terror financiero”.

Gráfico 5
Configuración de la economía mundial

En este marco, las finanzas han jugado un papel crucial para la


reproducción del modelo neoliberal de las últimas tres décadas. En efecto, el papel
de las finanzas consistía en permitir la transferencia de valor y capital y dar
coherencia al modelo. Pero sus contradicciones crecieron, aunque no fue el déficit
público de los EE.UU., sino la crisis de las hipotecas subprime la que hizo estallar
la crisis financiera: lo que provocó la explosión del “capital ficticio”, como lo
llamó Marx, teniendo en cuenta que los títulos financieros son en realidad derechos
a futuro sobre la distribución de plusvalía. La crisis es por tanto inevitable cuando
se devalúan esos derechos, ya que su dimensión no guarda proporción con la
plusvalía que se genera efectivamente en la economía. Como consecuencia, no se
trata de una simple crisis financiera, sino una crisis sistémica del orden neoliberal.
Además, como el modelo neoliberal se desarrolló generando una montaña
de deudas, esta devaluación crea una nueva tensión. Como se salva a los bancos
con inyecciones masivas de liquidez la nacionalización de la deuda privada, los
planes de austeridad exigen que la gente pague por las pérdidas potenciales del
sector financiero. La austeridad es violencia aplicada para imponer los derechos de
apropiación sobre la plusvalía futura a la que el Capital se niega a renunciar.

30
Sin embargo, esto implica un bloqueo del sistema teniendo en cuenta su
coherencia inestable. Tres contradicciones demuestran esa inestabilidad.
La primera es distributiva: la tasa marginal, es decir, la parte de los
beneficios en valor añadido, ha vuelto a alcanzar en los EE. UU. su punto máximo
anterior a la crisis y en Europa su recuperación está en marcha. Esto ha sido
posible gracias a las ganancias de productividad y, esencialmente, por la
congelación de los salarios. Sin embargo, la represión del consumo implica una
recuperación sin empleo. Razón por la que se dibuja una nueva recesión en el
horizonte, amenazando la tasa de ganancia una vez más.
La segunda es la globalización: un reciente informe de NN.UU. afirma que
"la recuperación mundial ha sido frenada por las economías desarrolladas” (8). En
efecto, son las economías emergentes las que impulsan la dinámica del capitalismo,
como muestra el Gráfico 6. Durante las últimas dos décadas (1991-2011) la
producción industrial aumentó un 24% en los países avanzados. En el mismo
período, el crecimiento de los países emergentes fue de 2,4 veces superior y su
participación en las exportaciones mundiales es ahora el 51%. No hay precedente
en la historia del capitalismo y esto implica nuevas contradicciones y cambios
importantes.

Gráfico 6
Economías emergentes

31
Finalmente, la política presupuestaria: la corrección de los déficits
requiere una reducción del gasto público que genera nuevas presiones recesivas y
contracciones adicionales de la demanda. Esta contradicción se acentúa por la
crisis de la deuda soberana. El rechazo, por el gobierno alemán, de la propuesta de
mutualizar las deudas públicas a través de la emisión de eurobonos y una
intervención monetaria decisiva del Banco Central Europeo como prestamista de
último recurso, demuestra que la Unión Europea no está preparada para resolver
sus problemas institucionales y atreverse a proteger la financiación de la deuda
pública de los mercados especulativos. Por lo tanto, el euro sigue bajo amenaza y
las bancarrotas son todavía posibles.
Estas contradicciones resaltan que la “regulación caótica” es parte de la
dificultad para redirigir la regulación social de forma que contribuya a la
recuperación en el sentido de una nueva onda de crecimiento y acumulación.
Nuestra conclusión, por lo que se refiere a la teoría de las ondas largas del
desarrollo capitalista, es que vivimos en medio de las escaramuzas de un
importante cambio social que imponen las luchas neoliberales. La convergencia de
la crisis de la deuda, las importantes restricciones presupuestarias y la contracción
de la demanda, con la amenaza de una nueva recesión en Europa, los cambios en el
derecho laboral que rige el mercado de trabajo, la reducción de los salarios y las
pensiones, constituye un marco explosivo. Se trata de una crisis sistémica, no sólo
por su dinámica interna, sino también por lo que está en juego con las estrategias
dominantes.
Durante los treinta años posteriores a la Segunda Guerra Mundial, la
regulación del capitalismo se sustentó en el crecimiento masivo del consumo a
través del aumento de los salarios. Posteriormente, en las tres décadas de
capitalismo desregulado de molde neoliberal, la demanda fue impulsada por la
deuda. Hoy en día, ni mediante los salarios ni de la deuda: la demanda se reduce.
El capitalismo, en el período de transición entre dos ondas largas Kondratiev, es,
por lo tanto, radical: la única esperanza de futuro que ofrece a la mayoría de la
población es la regresión social.

Enero de 2012

Notas:
(1) Dockès, Pierre y Rosier, Bernard (1983), Rythmes économiques. Crise et
changement social, une perspective historique, Paris: La Découverte/Maspéro
(2) Kondratiev, N.D. (1992), Les Grandes Cycles de la Cojoncture, Paris:
Economica, editado por Louis Fontvieille; (1998), The Works of Nikolai D.
Kondratiev, editado por Samuels y Natalia Makasheva, Londres: Pickering and
Chatto; (1979) Los ciclos económicos largos, editado por Manuel P. Izquierdo,
Madrid: Akal

32
(3) Trotsky, León (1979), “La curva del desarrollo capitalista”, en Los
ciclos económicos largos, O.C. Madrid: Akal, p.89
(4) Mandel, Ernest (1985), “Partially Independent Variables and Internal
Logic in Classical Marxist Economic Analysis”, Social Sciences Information 14(3),
http://gesd.free.fr/mandel85.pdf ; (1995), Long Waves of Capitalist Development.A
Marxist Interpretation, London: Verso; (1986) Las ondas largas del desarrollo
capitalista. La interpretación marxista, Madrid: Siglo XXI de España Editores
(5) Para una visión de conjunto ver Louçã, Francisco (1999), “Ernest
Mandel and the Pulsation of History” in Achcar, Gilbert (Ed.), The Legacy of
Ernest Mandel, London: Verso, http://digamo.free.fr/loucapul.pdf; Freeman, C. and
Louçã, F. (2002), As Time Goes By – From the Industrial Revolution to the
Information Revolution, Oxford: Oxford University Press.
(6) Las definiciones precisas se dan en el anexo. Todas las series están
estandarizados y las variables se reducen hacia el centro, es decir, cada valor se
toma como la desviación de la media y se divide por la desviación estándar.
(7) La tasa de ganancias se calcula para las cuatro principales economías
típicamente capitalistas: Estados Unidos, Alemania, Francia y el Reino Unido
(véase el anexo).
(8) ONU (2011), World Economic Situation and Prospects 2011,
http://tinyurl.com/wesp11

Michel Husson es un reconocido economista marxista francés, veterano


militante del socialismo revolucionario, trabaja en el IRES (Institut d’Etudes
Economiques et Sociales, ligado a los sindicatos). Francisco Louça es diputado
del Bloque da Esquerda portugués, y su principal dirigente. Economista marxista
de merecida reputación científica internacional, es actualmente profesor de la
Universidad de Lisboa, en donde dirige la Unidad de estudios sobre la complejidad
en la economía.
Traducción para www.sinpermiso.info: Gustavo Buster
Fonte: http://hussonet.free.fr/loulou12.pdf

Anexo Fuentes estadísticas


*Ameco, Base de datos de la Comisión Europea,
http://tinyurl.com/AMECO11 *Angus Maddison, Statistics on World Population,
GDP and Per Capita GDP, 2008, http://gesd.free.fr/amaddi.xls *Consumo/Salarios:
relación de consumo privado/salarios, EE UU + UE-15. Fuente: Ameco,
http://tinyurl.com/AMECO11 *Deuda EE UU: deuda de las familias EE UU.
Fuente : Reserva Federal, Flujo de fondos, http://tinyurl.com/FlowFund
*Globalización financiera: proporción de la balanza de capitales en relación con el
PIB mundial. Fuente: Bichler, Shimshon and Nitzan, Jonathan (2010), Imperialism
and Financialism. A Story of a Nexus, September, http://bnarchives.yorku.ca/294/
*Desigualdades: parte del 1% más rico (8 países). Fuente: Atkinson, Anthony,

33
Piketty, Thomas and Saez, Emmanuel, Top Incomes In The Long Run Of History,
NBER Working Paper 15408, October 2009, http://gesd.free.fr/aps2009.xls
*Sobreconsumo EE UU: tendencia al consumo de las familias. Fuente: Bureau of
Economic Analysis Proporción de los beneficios: Proporción de los beneficios en
el valor añadido (4 países: EE UU, Alemania, Francia, Gran Bretaña). Fuente:
Ameco, http://tinyurl.com/AMECO11 *Tasa de beneficios: media de 4 países (EE
UU, Alemania, Francia, Gran Bretaña). Fuente: Husson, Michel (2010), “The
debate on the rate of profit”, International ViewPoint n°426, July,
http://hussonet.free.fr/debaproe.pdf *Mercado de valores: Dow Jones deflacionado
por el precio implícito del PIB de EE UU, http://www.djaverages.com/ *Indicador
sintético: medía aritmética de otros indicadores. *Déficit de EE UU: déficit de la
balanza comercial como % del PIB. Fuente: Bureau of Economic Analysis

34
Uberização do trabalho: subsunção real da
viração
O Uber evidencia a tendência de transformação do trabalhador em
microempreendedor e em trabalhador amador produtivo. Ludmila Costhek Abílio

1. Entre salões e apps


Em outubro de 2016, o governo de Michel Temer sancionou uma lei que
passou desapercebida nos embates sobre as terceirizações. A lei “Salão parceiro –
profissional parceiro” desobriga proprietários de salões de beleza a reconhecerem o
vínculo empregatício de manicures, depiladora(e)s, cabelereira(o)s, barbeiros,
maquiadora(e)s e esteticistas. O estabelecimento torna-se responsável por prover a
infraestrutura necessária – os demais trabalhadores seguem sendo reconhecidos
como funcionários – para que suas “parceiras” e “parceiros”, agora legalmente
autônomos, realizem seu trabalho. Assim, aquela manicure que trabalha oito horas
por dia ou mais, seis vezes por semana, para o mesmo salão, poderá ser uma
prestadora de serviços.
Talvez por referir-se ao trabalho tipicamente feminino, aparentemente
irrelevante e socialmente invisível, a lei foi recebida mais como perfumaria do que
como a abertura legal da porteira para a uberização do trabalho no Brasil[1]. A
uberização, tal como será tratada aqui, refere-se a um novo estágio da exploração
do trabalho, que traz mudanças qualitativas ao estatuto do trabalhador, à
configuração das empresas, assim como às formas de controle, gerenciamento e
expropriação do trabalho. Trata-se de um novo passo nas terceirizações, que,
entretanto, ao mesmo tempo que se complementa também pode concorrer com o
modelo anterior das redes de subcontratações compostas pelos mais diversos tipos
de empresas. A uberização consolida a passagem do estatuto de trabalhador para o
de um nanoempresário-de-si permanentemente disponível ao trabalho; retira-lhe
garantias mínimas ao mesmo tempo que mantém sua subordinação; ainda, se
apropria, de modo administrado e produtivo, de uma perda de formas publicamente
estabelecidas e reguladas do trabalho. Entretanto, essa apropriação e subordinação
podem operar sob novas lógicas. Podemos entender a uberização como um futuro
possível para empresas em geral, que se tornam responsáveis por prover a
infraestrutura para que seus “parceiros” executem seu trabalho; não é difícil
imaginar que hospitais, universidades, empresas dos mais diversos ramos adotem
esse modelo, utilizando-se do trabalho de seus “colaboradores just-in-time” de
acordo com sua necessidade[2]. Este parece ser um futuro provável e generalizável
para o mundo do trabalho. Mas, se olharmos para o presente da economia digital,
com seus motoristas Uber, motofretistas Loggi, trabalhadores executores de tarefas
da Amazon Mechanical Turk, já podemos ver o modelo funcionando em ato, assim

35
como compreender que não se trata apenas de eliminação de vínculo empregatício:
a empresa Uber deu visibilidade a um novo passo na subsunção real do trabalho,
que atravessa o mercado de trabalho em uma dimensão global, envolvendo
atualmente milhões de trabalhadores pelo mundo e que tem possibilidades de
generalizar-se pelas relações de trabalho em diversos setores.
A uberização, portanto, não surge com o universo da economia digital: suas
bases estão em formação há décadas no mundo do trabalho, mas hoje se
materializam nesse campo. As atuais empresas promotoras da uberização – aqui
serão tratadas como empresas-aplicativo– desenvolvem mecanismos de
transferência de riscos e custos não mais para outras empresas a elas subordinadas,
mas para uma multidão de trabalhadores autônomos engajados e disponíveis para o
trabalho. Na prática, tal transferência é gerenciada por softwares e plataformas
online de propriedade dessas empresas, os quais conectam usuários trabalhadores a
usuários consumidores e ditam e administram as regras (incluídos aí custos e
ganhos) dessa conexão.
O fato é que as empresas-aplicativo têm pouca materialidade, mas altíssima
visibilidade. A empresa Uber tem tamanha atuação pelo mundo que torna hoje
cabível utilizarmos o termo em questão. A fonte da fetichizada “força da marca”
neste caso se refere à multidão de trabalhadores e consumidores que a empresa
consegue mobilizar pelo mundo (apenas na cidade de São Paulo, sabe-se que os
motoristas já são mais numerosos que os taxistas. Ultrapassam os 50 mil;
entretanto, a empresa não divulga seus dados). A atuação do Uber tocou em
questões centrais do desenvolvimento capitalista, como a mobilidade urbana e as
legislações em torno da economia digital. Tornou-se tema de campanhas e debates
eleitorais, no terreno arenoso da permeabilidade entre empresas e Estado, que
envolve interesses dos consumidores-eleitores, conflitos dos trabalhadores e
embates de titãs sobre o tal “livre” mercado. Porém, mais do que isso, o Uber
tornou evidente tendências mundiais do mercado de trabalho, que envolvem não só
a transformação do trabalhador em microempreendedor, mas também do
trabalhador em trabalhador amador[3] produtivo, questão que desenvolvo ao longo
da análise.
As empresas-aplicativo firmam-se no mercado como mediadoras entre
consumidores e trabalhadores-microempreendedores, provendo a infraestrutura
necessária – ainda que virtual – para que esse encontro aconteça. Para tanto, assim
como a proprietária que receberá a comissão pelo trabalho da manicure, o Uber
recebe uma porcentagem (de 25%) por atuar como mediador entre a multidão de
consumidores-poupadores e a multidão de motoristas amadores. Obviamente, sua
atuação é muito mais complexa que isso. Assim como a “parceira” manicure não
está em relação de igualdade com o proprietário ou a proprietária do salão para
definir seus ganhos, a intensidade de seu trabalho, a extensão de sua jornada, o
trabalhador uberizado também tem seu trabalho subsumido. Entretanto, as formas
de controle, gerenciamento, vigilância e expropriação de seu trabalho são ao

36
mesmo tempo evidentes e pouco tangíveis: afinal, o estatuto do motorista é de um
trabalhador autônomo, a empresa não é sua contratante, ele não é um empregado,
mas um cadastrado que trabalha de acordo com suas próprias determinações; ao
mesmo tempo, o que gerencia seu trabalho é um software instalado num
smartphone: mesmo definindo as regras do jogo, a empresa aparece mais como
uma marca do que de fato como uma empresa. Mas o discurso sobre a “parceria”
entre empresas-aplicativo e trabalhadores, assim como a imaterialidade destas,
rapidamente se esfumaçam quando trabalhadores uberizados se apropriam de seu
poder enquanto multidão e estabelecem formas coletivas de resistência e de
negociação. Nesse momento as formas de controle, expropriação e opressão ficam
explícitas.
Já estão em ato novas formas de organização política, que envolvem a
criação de sindicatos de aplicativos, greves e manifestações de trabalhadores
uberizados. Em 2016 ocorreu uma série de manifestações, greves, processos
judiciais, formação de sindicatos de trabalhadores de aplicativos pelo mundo.
Motoristas Uber americanos (atualmente mais de 400 mil) juntaram-se a
enfermeiras, trabalhadores do setor hoteleiro, entre outros, na campanha “Fight for
US$15”, que demandava o pagamento mínimo de quinze dólares por hora de
trabalho. Na Califórnia, a empresa Uber optou por pagar US$100 milhões em
acordo com dezenas de milhares de trabalhadores (não há dados claros sobre esse
número) que acionaram coletivamente a justiça, requerendo reconhecimento legal
do vínculo empregatício com a empresa. O acordo evitou que o processo fosse a
julgamento (ver aqui e aqui). No final do ano, a justiça inglesa determinou que a
Uber reconhecesse o vínculo empregatício com seus motoristas; o processo ainda
está em andamento.
Os motoboys que trabalham para o aplicativo Loggi também organizaram,
sob coordenação do SindimotoSP, manifestação que interrompeu faixas da
Marginal Pinheiros e da Av. Rebouças, contra a nova forma de remuneração por
entrega implementada pela empresa, que em realidade aumenta sua porcentagem
de ganhos sobre o trabalho dos motofretistas. Os ciclistas-entregadores da empresa
Foodora organizaram as primeiras greves de trabalhadores por aplicativos na Itália,
as quais evidenciaram novas formas de punição (como o desligamento do
aplicativo de lideranças), assim como de apoio (as manifestações começaram a
contar com a adesão de usuários consumidores). Motociclistas do aplicativo
Deliveroo, após sete dias de greve, conseguiram impedir mudanças que
rebaixariam o valor de sua hora de trabalho. Também foram criados em 2016 o
Sindicato dos Motoristas de Aplicativo de São Paulo, a Associação dos Motoristas
Autônomos por Aplicativos e Sindicato dos Motoristas de Transporte Privado
Individual de Passageiros do Estado do Pernambuco. No início de 2017, a Uber
acionou a justiça da Califórnia, tentando impedir a formação de sindicatos.

37
2. O trabalhador-perfil e o consumidor-vigilante
Basicamente, a empresa Uber promove a conexão entre uma multidão de
motoristas amadores pagos e uma multidão de usuários em busca de tarifas
reduzidas em relação aos táxis; em algumas cidades se estabelece como uma opção
economicamente acessível, menos degradante e mais veloz que o transporte
público. Entrando de forma totalmente predatória e com poucas regulamentações,
rapidamente a empresa reconfigura o mercado privado da mobilidade urbana. Tem
uma estratégia agressiva de entrada nos mercados locais; em muitas cidades o Uber
é ilegal, mas segue operando normalmente. Para tanto, conta com uma multidão de
usuários e recruta – na passiva (melhor seria, conta com a adesão permanente de) –
uma multidão de motoristas amadores, que encontram nessa atividade uma forma
de geração de renda.
O Uber, assim como outras empresas que operam com a mesma lógica,
estabelece regras, critérios de avaliação, métodos de vigilância sobre o trabalhador
e seu trabalho, ao mesmo tempo que se exime de responsabilidades e de exigências
que poderiam configurar um vínculo empregatício. Consumo, avaliação, coleta de
dados e vigilância são elementos inseparáveis. Em realidade, o controle sobre o
trabalho é transferido para a multidão de consumidores, que avaliam os
profissionais a cada serviço demandado. Essa avaliação fica visível para cada
usuário que for acessar o serviço com aquele trabalhador. A certificação sobre o
trabalho vem agora da esfera do consumo, por meio dessa espécie de gerente
coletivo que fiscaliza permanentemente o trabalhador. A multidão vigilante, na
forma multidão, é então quem garante de forma dispersa a certificação sobre o
trabalho. A confiança, elemento chave para que o consumidor entregue seus bens e
documentos nas mãos do motoboy, para que adentre o carro de um desconhecido
que será seu motorista (e que, diferentemente do taxista, não passou por um
processo de certificação publicamente regulamentada), é então garantida pela
atividade dessa multidão vigilante, que se engaja e também confia no seu papel
certificador. Assim o trabalhador uberizado se sabe permanentemente vigiado e
avaliado. Essa nova forma de controle tem se mostrado eficaz na manutenção de
sua produtividade, na sua adequação aos procedimentos – informalmente
estabelecidos – que envolvem sua ocupação. Ao adequar-se o trabalhador trabalha
para si e para a empresa, para si e para o cultivo da marca, que em realidade
depende inteiramente da atuação dispersa desse exército de motoristas.
A realização do trabalho conta com a disposição do trabalhador em aceitar a
tarefa oferecida – o que quer dizer um permanente gerenciamento de sua própria
produtividade –, mas essa aceitação requer vencer a concorrência entre os
motoristas disponíveis. A avaliação da multidão de consumidores fornece os
elementos para o ranqueamento dos trabalhadores. Este opera como um critério na
determinação – programada, automatizada – de quais trabalhadores terão mais
acesso a quais corridas.

38
Trabalhadores e consumidores tornam-se perfis virtuais, números de um
cadastro. A atividade de ambos é material e tangível, é ela a fonte que alimenta o
controle sobre o trabalho, sua organização e distribuição no tempo e no espaço, que,
no entanto, são programados e executados pelos softwares e seus algoritmos.
Ser um trabalhador-perfil em um cadastro da multidão significa na prática
ser um trabalhador por conta própria, que assume os riscos e custos de seu trabalho,
que define sua própria jornada, que decide sobre sua dedicação ao trabalho e,
também, que cria estratégias para lidar com uma concorrência de dimensões
gigantescas que paira permanentemente sobre sua cabeça[4].
A uberização, portanto, consolida a passagem do trabalhador para o
microempreendedor. Essa consolidação envolve novas lógicas que contam, por um
lado, com a terceirização da execução do controle sobre o trabalho das empresas
para um multidão de consumidores vigilantes; e, por outro lado, com o
engajamento da multidão de trabalhadores com relação à sua própria produtividade,
além da total transferência de custos e riscos da empresa para seus “parceiros”.

3. Mais um passo na flexibilização do trabalho


De saída, o termo flexibilização só tem sentido crítico se o compreendermos
como mudanças contemporâneas do processo de trabalho ligadas à relação entre
Estado, capital e trabalho; à relação entre inovações tecnológicas, políticas dos
Estados nacionais na promoção dos fluxos financeiros e de investimento, aumento
do desemprego e de novas formas de exploração que também envolvem mudanças
subjetivas do trabalhador. Refere-se à relação entre a mobilidade do capital e a do
trabalho em nível global. A flexibilização também pode ser compreendida mais
simplesmente como as formas contemporâneas de eliminação de direitos
associados ao trabalho e, ainda mais do que isso, da transferência de riscos, custos
e trabalho não pago para os trabalhadores. Essa transferência envolve a extensão
do tempo de trabalho, assim como sua intensificação, em formas mais ou menos
reconhecíveis.
Nas últimas décadas ficou claro que também era possível transferir o
gerenciamento do trabalho para o próprio trabalhador – é óbvio que um
gerenciamento subordinado, costurado pelas ameaças da concorrência e do
desemprego. O fato é que a passagem do relógio de ponto para o relógio de pulso
mostrou-se extremamente eficaz na intensificação do trabalho e na extensão do
tempo de trabalho. Hoje a jornada de oito horas parece uma lembrança distante
para trabalhadores das mais diversas qualificações e remunerações[5].
O cerne da flexibilização em realidade está nesse movimento que transfere
para o trabalhador a administração de seu trabalho, dos custos e dos riscos, sem
com isso perder o controle sobre sua produção. David Harvey ao tratar da
organização na dispersão, João Bernardo[6] ao demonstrar que terceirizar a
produção não significa perder o controle sobre a mesma são autores que deixam
evidente que a dispersão do trabalho não significou perda de controle do capital ou

39
qualquer tipo de democratização no processo de trabalho. Pelo contrário, o que
vimos nestas décadas é a enorme centralização do capital acompanhada por novas
formas de intensificação do trabalho, extensão do tempo de trabalho e transferência
de riscos e custos para os trabalhadores, em formas cada vez mais difíceis de
mapear.
A uberização complementa-se com as terceirizações ao mesmo tempo que
concorre com elas. Complementa-se na medida em que é mais um passo na
transferência de custos e responsabilidades sobre a produção. Mas é também uma
forma de eliminação de empresas terceirizadas que não conseguirão bancar a
concorrência com as empresas-aplicativo. É o que vemos no segmento dos
motoboys, hoje legalmente reconhecidos como motofretistas. Nos anos 1980, o
motoboy era diretamente contratado pela empresa, até mesmo a moto era de
propriedade da contratante e não do trabalhador. A partir dos anos 1990 empresas
terceirizadas de entregas espraiam-se pelo mercado. Hoje são mais de 900 mil
motoboys no Brasil, na cidade de São Paulo provavelmente mais de 200 mil. Esse
imenso exército de motoqueiros – que dão suas vidas e pernas cotidianamente para
garantir a circulação de bens de consumo e de documentos – foi se expandindo
juntamente com a terceirização de seu trabalho. A extensão do crédito para os mais
pobres permite a aquisição financiada da moto; os celulares tornam-se instrumento
de trabalho popular, o que reconfigura toda a logística e o ritmo de trabalho desses
profissionais; a baixa qualificação exigida e a remuneração mais alta que outras
ocupações de mesmo nível são elementos que contribuem para a consolidação e o
espraiamento das empresas terceirizadas e de uma ampla oferta de vagas para
motoboys. Ao mesmo tempo, o crescimento do contingente de trabalhadores e das
empresas contratantes também está relacionado ao desenvolvimento de São Paulo
como metrópole colapsada na questão da mobilidade urbana e simultaneamente
centro da valorização financeira e fundiária.
Nesse universo bem consolidado de empresas terceirizadas e seu enorme
exército de trabalhadores, adentram os aplicativos de motofrete. Estão há menos de
cinco anos no mercado, não há dados precisos, mas já contam com a adesão de
dezenas de milhares de motofretistas em São Paulo. Para ser um entregador da
Loggi o motoboy torna-se um microempreendor MEI[7] e tem de estar
regulamentado como motofretista[8]. Os fundadores da Loggi entraram no
mercado criando um nicho que não existia até então. Assim como o Uber, o
aplicativo Loggi conecta consumidores e motoristas (neste caso, motofretistas);
define o valor da entrega, retendo uma comissão de 20% por essa mediação;
automatizou a logística, desenvolvendo um software que geolocaliza os
motofretistas disponíveis e os consumidores. O consumidor faz um pedido, a
plataforma online torna o pedido visível para os motofretistas mais próximos do
ponto de partida, quem aceitar primeiro leva. Motofretistas são mapeados antes e
também ao longo da entrega. O consumidor tem acesso aos dados do motofretista –
nome, foto, avaliação de outros consumidores – e pode acompanhar online seu

40
deslocamento: a vigilância opera como um mecanismo central para a confiança do
consumidor. Para o motoboy, os aplicativos podem ser o meio de livrar-se da
exploração da empresa terceirizada (que em geral abocanha 40% do valor da
entrega realizada) e tornar-se um trabalhador por conta própria, o que, por
enquanto, pode proporcionar-lhe rendimentos maiores. Trabalhar por conta própria
requer abrir mão de direitos (caso o motoqueiro seja formalizado) e enfrentar a
relação permanente entre concorrência e rendimentos: quanto mais trabalhadores
aderirem aos aplicativos, menor será a possibilidade de ganho e provavelmente
maior será o tempo de trabalho[9].
Ainda, é possível a articulação e uma retroalimentação entre uberização e
terceirização clássica. Para muitos, hoje o aplicativo e as terceirizadas se
combinam: o motofretista preenche com entregas ofertadas no aplicativo os poros
de não-trabalho na sua jornada para as terceirizadas – uma estratégia que requer o
saber-fazer de sua própria logística.

4. O admirável mundo do e-marketplace


Para compreendermos a uberização temos de enfrentar os termos já muito
familiares ao mercado, mas pouco apropriados pelas armas da crítica (para onde
mirar?). A economia digital hoje é o novo campo da flexibilização do trabalho,
enquanto um campo virtual que conecta a atividade de consumidores,
trabalhadores e empresas, sob formas menos reconhecíveis e localizáveis.
Atualmente, olhando apenas para o Brasil, motoristas, motofretistas,
caminhoneiros, esteticistas, operários da construção civil, trabalhadores do setor de
limpeza, babás, assim como advogados, médicos, professores, entre outros, contam
com aplicativos que possibilitam a uberização de seu trabalho. O mercado de
trabalho em geral agora é permeado por um espaço virtual de compra e venda de
trabalho, conhecido como e-marketplace. Trata-se de um universo virtual
extremamente propício para a transformação de trabalhadores em
microemprendedores, assim como de trabalhadores em trabalhadores amadores.
Como me explica o diretor de uma empresa-aplicativo de motofrete em São Paulo,
o “e-marketplace é um lugar onde pessoas se encontram para fazer compras.
Somos um lugar onde pessoas que procuram motofrete encontram motofretistas.”
O e-marketplace tornou-se um universo extremamente profícuo e lucrativo,
fomentado pelas chamadas startups, que são novos modelos de empresa. Loggi,
Uber, Google, Facebook são exemplos de startups que deram certo. Startup nomeia
a combinação contemporânea entre inovação, empreendedorismo e um amplo
mercado de fundos de investimento (os chamados investidores-anjo). São pequenas
empresas de alto potencial lucrativo; a inovação aqui se refere ao desenvolvimento
tecnológico, mas também à possibilidade de criarem novos modelos de negócios.
Segundo a revista Exame, “uma startup é um grupo de pessoas à procura de um
modelo de negócios repetível e escalável, trabalhando em condições de extrema
incerteza”. As startups dão uma espécie de materialidade ao espírito empreendedor

41
do capitalista contemporâneo e a um novo formato de futuras corporações: a
empresa Uber é o exemplo de startup bem sucedida; como narra seu site, foi criada
em 2008, quando dois amigos iluminados, andando nas ruas de Paris, se deram
conta de que a dificuldade para conseguir um táxi era em realidade um belo nicho
de mercado. Lançada no mercado em 2010, a empresa hoje atua em 540 cidades
pelo mundo. Em 2016 seu valor de mercado era de mais de 64 bilhões de dólares.
Livrar-se dos custos do trabalho mantendo os ganhos e controle sobre a produção:
as startups que se firmam como empresas-aplicativo – tal como as compreendo
aqui – concretizam o auge do modelo da empresa enxuta, com um número ínfimo
de empregados e milhares de empreendedores conectados, de consumidores
engajados, de trabalhadores amadores. São fundamentais na consolidação do e-
marketplace; mas, se aparecem como mediadoras entre oferta e demanda (tais
como a Amazon; o site de sebos Estante Virtual; os aplicativos móveis para táxis,
como Easytaxi; sites de vendas de roupa online, como Dafiti), em realidade parte
dessas empresas promove uma imensa reorganização do mundo do trabalho,
estabelecendo novos nichos para diversas ocupações, novas formas de controle
sobre o trabalho, novas experiências do consumo.

5. Crowdsourcing: a multidão produtiva de trabalhadores amadores


A multidão como um bom negócio. Em 2008, o jornalista Jeff Howe cunhou
o termo crowdsourcing[10]. O outsourcingteria chegado ao seu novo estágio, a
crowd constituía-se como a nova fonte das terceirizações. Navegando na
celebração da economia compartilhada, o autor em realidade desvendava a enorme
transferência de trabalho das empresas para os usuários navegantes do ciberespaço.
O debate é longo e complexo. O que somos nós, usuários do Facebook? A cada
post, um cent, não para nós, é claro. O que torna a empresa uma das de maior valor
de mercado no mundo senão a participação de seus usuários? O que faz do Youtube
o Youtube senão a produção e uploads e visualizações permanente de seus usuários?
Seria essa atividade trabalho? Mas não é preciso enveredar por esse caminho
complexo das atividades criativas de consumidores que se traduzem magicamente
em lucro para empresas. Atualmente, a transferência de trabalho na forma trabalho
está explícita em diversos sites que contam com a adesão da multidão de usuários-
trabalhadores. No início dos anos 2000, a NASA criou o projeto Clickworkers e
com ele descobriu que não precisava ter trabalhadores contratados para identificar
elementos como crateras nas fotos de Marte: após testar a multidão, comprovou
que esta era tão eficiente e muito mais rápida no cumprimento da tarefa, realizada
gratuitamente como forma de “colaboração para o futuro”. O site Innocentive hoje
congrega cientistas uberizados com corporações como Procter & Gamble,
Johnson’s & Johnson’s. Estas perceberam que seus departamentos de pesquisa e
desenvolvimento podem se estender aos laboratórios improvisados de profissionais
em busca de complemento de renda ou apenas motivados pelos “desafios”
lançados no site. As soluções propostas pelos usuários podem ser patenteadas pelas

42
empresas, a contrapartida para o usuário selecionado são as premiações em
dinheiro.
O crowdsourcing só é possível se o trabalhador for o trabalhador amador.
O que vamos nos deparando é com uma perda – apropriada de forma lucrativa – do
lastro do trabalho. A multidão de trabalhadores realiza trabalho sem a forma
socialmente estabelecida do trabalho, em atividades que podem transitar entre o
lazer, a criatividade, o consumo e também o complemento de renda. Trata-se de
uma ausência da forma concreta do trabalho, o que significa a plena flexibilidade e
maleabilidade de uma atividade que, entretanto, se realiza como trabalho
(estaríamos vendo o que Francisco de Oliveira, há 14 anos, denominou de a
plenitude do trabalho abstrato[11]?). O motorista Uber não é um motorista
profissional, como o taxista. O resolutor de enigmas do Innocentive pode até ser
um empregado de algum departamento de Pesquisa e Desenvolvimento, mas
enquanto usuário, é um cientista amador. Não há local de trabalho definido, não há
vínculos, não há dedicação requerida, não há seleção, contrato ou demissão (ainda
que, como vimos, a concorrência opera permanentemente, de forma difusa e
ilocalizável). Digamos que, na contemporaneidade, todo trabalhador é um
potencial trabalhador amador. Assim como o motofretista combina seu trabalho na
terceirizada com o do aplicativo, assim como o engenheiro pejotizado passa seus
dias entre o computador e a direção do carro Uber, trabalhadores dos mais diversos
perfis socioeconômicos engajam-se em atividades que não têm um estatuto
profissional definível, mas que podem ser fonte de rendimento, de redução de
custos, ou mesmo do exercício de sua criatividade.

6. Da viração para a Gig economy


Voltando para os salões de beleza, o trabalho tipicamente feminino oferece-
nos as raízes da flexibilização do trabalho que atravessa o mercado de cima a baixo.
A indistinção entre o que é e o que não é tempo de trabalho, a fusão entre esfera
profissional e esfera privada e a impossibilidade de mediações publicamente
instituídas na regulação do trabalho, a indefinção quanto ao que é e o que não é
trabalho são alguns dos elementos que costuram a vida das mulheres. No mais
precário trabalho da costureira em domicílio, da empregada doméstica, da dona de
casa podemos encontrar elementos que hoje tecem a exploração do trabalho de
forma generalizada[12]. Olhando para uma ocupação tipicamente feminina, foi
possível reconhecer tendências em curso no mercado de trabalho que hoje
desembocam na forma visível da uberização. As revendedoras de cosméticos, só
para a empresa Natura, hoje são mais de um 1,4 milhão de mulheres no Brasil.
Com os mais diversos perfis socioeconômicos, diaristas, secretárias, professoras,
donas de casa, entre tantas outras, combinam sua profissão, ou a ausência dela,
com as revendas. As revendas têm uma capilaridade impressionante com a vida
pessoal e com outras ocupações. Vender ao longo da jornada de trabalho na escola,
no escritório, vender nas festas de família, promover oficinas de maquiagem nas

43
férias, distribuir produtos na repartição pública: o que a pesquisa evidenciou foi
uma plena adesão a um trabalho sem forma trabalho, e é justamente essa falta de
formas que possibilita sua permeabilidade com outras atividades.
A empresa transfere para a multidão de trabalhadoras uma série de riscos e
custos, e conta com uma dimensão não contabilizável e não paga do trabalho
dessas mulheres. O espaço da casa, o ambiente de trabalho, o investimento em
produtos para uso próprio como meio de venda, as relações pessoais funcionam
como vetores para venda e também para a promoção da marca. Mas o que mais nos
interessa aqui é perceber a atual adesão de 1,4 milhão de mulheres, somente no
Brasil, somente para uma empresa, ao trabalho amador. O trabalho sem forma
trabalho, sem estatuto de trabalho, que opera como um meio de complemento de
renda, como um exercício de uma identidade profissional indefinida, como
facilitador para o consumo. Do lado da empresa, o trabalho amador informal está
muito bem amarrado, traduz-se em informação, em uma fábrica que tem sua
produção pautada pelo ritmo das vendas desse exército gigantesco.
O motorista Uber tem com seu trabalho uma relação muito parecida com a
da revendedora Natura: um complemento de renda advindo de uma atividade que
não confere um estatuto profissional, um bico, um trabalho amador, que utiliza o
próprio carro, a destreza do motorista, suas estratégias pessoais e sua
disponibilidade para o trabalho.
Olhando para esses trabalhadores, vemos em ato a viração, tema atual e ao
mesmo tempo constitutivo do mercado de trabalho brasileiro desde sua formação.
A viração – e remeto-me ao uso que Vera Telles fazia do termo já no início dos
anos 2000[13] – é pouco tratada nos estudos do trabalho brasileiros, inclusive na
produção e análise de dados sobre emprego/desemprego; entretanto é constitutiva
da vida e da sobrevivência dos trabalhadores de baixa qualificação e rendimento. O
“viver por um fio”[14] das periferias brasileiras significa um constante agarrar-se
às oportunidades, que em termos técnicos se traduz na alta rotatividade do mercado
de trabalho brasileiro, no trânsito permanente entre trabalho formal e informal
(como demonstra Adalberto Cardoso[15]), na combinação de bicos, programas
sociais, atividades ilícitas e empregos (ver pesquisas do viver na periferia, em
especial os coordenados por Gabriel Feltran, Vera Telles e Cibele Rizek[16]). A
trajetória profissional dos motoboys entrevistados deixa isso evidente. Hoje
motoboy-celetista e entregador de pizza, amanhã motofretista-MEI, ontem
montador em fábrica de sapatos, manobrista, pizzaiolo, feirante, funileiro,
funcionário de lava-rápido. Motogirl hoje, antes diarista, copeira, coordenadora de
clínica para viciados em drogas. Motofretista, serralheiro, repositor de mercadorias;
confeiteiro e também ajudante de pedreiro. Proprietário de loja de bebidas,
trabalhador na roça, funcionário do Banco do Brasil e hoje motofretista autônomo.
Motoboy hoje, antes faxineiro, porteiro e cobrador de ônibus. Este é o movimento
com que grande parte dos brasileiros tecem o mundo do trabalho.

44
Mas a viração agora já tem nome internacional e globalizado, seguimos na
vanguarda do atraso: a gig economy[17] nomeia hoje o mercado movido por essa
imensidão de trabalhadores que aderem ao trabalho instável, sem identidade
definida, que transitam entre ser bicos ou atividades para as quais nem sabemos
bem nomear. A plataforma online da empresa Airbnb, por exemplo, hoje conta com
a adesão de milhares de usuários que disponibilizam seus domicílios para aluguel
instantâneo e passageiro; atuando como microempreendedores amadores, tornam-
se uma espécie de administradores de suas próprias casas. A gig economy é feita de
serviços remunerados, que mal têm a forma trabalho, que contam com o
engajamento do trabalhador-usuário, com seu próprio gerenciamento e definição de
suas estratégias pessoais. A gig economy dá nome a uma multidão de trabalhadores
just-in-time (como já vislumbrava Francisco de Oliveira no início dos anos 2000 ou
Naomi Klein ao mapear o caminho das marcas até os trabalhadores)[18], que
aderem de forma instável e sempre transitória, como meio de sobrevivência e por
outras motivações subjetivas que precisam ser mais bem compreendidas, às mais
diversas ocupações e atividades. Entretanto, essas atividades estão subsumidas, sob
formas de controle e expropriação ao mesmo tempo evidentes e pouco localizáveis.
A chamada descartabilidade social também é produtiva. Ao menos por enquanto.

Notas
[1] Quando da sanção, o presidente do SEBRAE, Guilherme Afif Domingos,
adiantou: “o setor de beleza será o modelo para a terceirização em todos os
setores”.
[2] O Contrato Zero Hora já abrange 3% da força de trabalho no Reino
Unido, mais de 900 mil trabalhadores, e cresce exponencialmente a partir de 2012.
O contrato regulamenta a condição de trabalhador just-in-time, possibilitando às
empresas a utilização da mão de obra de acordo com sua necessidade, a custos e
encargos reduzidos.
[3] Para discussão sobre o trabalhador amador: Dujarier, M. Le travail du
consommateur. Paris, La Découverte, 2009. Abílio, L.C. Sem maquiagem: o
trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo : Boitempo,
2014.
[4] Fazendo o cálculo custo-benefício, centenas de motoristas Uber
concluíram que custos com o desgaste do carro, entre outros, são maiores na
realização de pequenas corridas. Uma das saídas encontradas foi buscar as corridas
mais longas a partir do aeroporto de Guarulhos. Essa decisão se traduziu na
formação de bolsões de estacionamento, nos quais formam-se gigantescas filas de
espera pelo próximo trabalho. O motorista pode passar horas (12 horas, como diz a
notícia) esperando por um chamado vindo do aeroporto – o qual ele tem de aceitar
sem saber seu destino nem o valor a ser ganho. Motoristas passam o dia jogando
baralho e dominó, e em torno deles já se formou uma rede de trabalhadores
informais fornecedores de marmitas, bebidas, banheiros químicos.

45
[5] Na pesquisa que realizei com motofretistas ficou claro que a maioria dos
entrevistados tem uma jornada de 14 horas por dia ou mais sobre a moto, em meio
ao trânsito de São Paulo.
[6] Harvey, D. A condição pos-moderna: uma pesquisa sobre as origens da
mudança cultural. São Paulo : Loyola, 1992. Bernardo, J. Democracia totalitária:
teoria e prática da empresa soberana. São Paulo: Cortez, 2004.
[7] No Brasil a uberização é ainda potencializada por uma nova figura
jurídica, criada no governo Dilma, do Microempreendedor Individual (MEI). A
princípio estabeleceu-se como um meio para a formalização de trabalhadores
informais de baixa renda, que então se tornam pessoas jurídicas, podendo emitir
nota fiscal, sem terem as responsabilidades jurídicas de uma empresa. O MEI não
pode faturar mais de 60 mil reais por ano e contribui para a Previdência Social,
tendo acesso a benefícios sociais tais como auxilio maternidade, auxílio doença e
aposentadoria. A figura do MEI tornou-se ao mesmo tempo instrumento
governamental para a redução da taxa do trabalho informal no Brasil e veículo
extremamente eficaz da pejotização dos trabalhadores de baixa qualificação e
rendimento.
[8] Em 2009 o governo Lula reconheceu e regulamentou a profissão de
motofretista e mototaxista. As prefeituras encarregam-se das regulamentações
locais. Em São Paulo a regulamentação foi o mote de diversas manifestações em
que centenas de motofretistas bloquearam vias principais da cidade com seu
instrumento de trabalho. A regulamentação envolve uma série de custos para os
motoboys. Até hoje, apesar de estar implementada na cidade de São Paulo, não é
fiscalizada, permanecendo opcional para o trabalhador. As empresas-aplicativo de
motofrete cadastram apenas profissionais regularizados. Para elas a
regulamentação é extremamente propícia, na medida em que certifica o trabalhador
autônomo, operando como uma forma de burocratização da relação de confiança
que é fundamental para que o consumidor contrate o serviço. Assim sendo, os
motoboys que trabalham com aplicativos são motofretistas-MEI.
[9] A entrada dos aplicativos e o crescimento da adesão de motoristas
amadores vêm fazendo com que a jornada de trabalho tanto destes motoristas como
dos taxistas aumente de forma brutal.
[10] Howe, Jeff. Crowdsourcing: How the power of the crowd is driving the
future of business. Nova York, Rondon House, 2008.
[11] Oliveira, F. Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco. São Paulo:
Boitempo, 2003.
[12] Ver seções “O flex é feminino” e “O sistema de vendas diretas e a
exploração do trabalho tipicamente feminino” em Abílio, L.C. Sem maquiagem..,
cit.
[13] Telles, V. Mutações do trabalho e experiência urbana. Tempo social,
n.18, v.1, 2006, p. 173-95.

46
[14] Castel, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário.
Petrópolis: Vozes, 1998.
[15] Cardoso, A. Ensaios de sociologia do mercado de trabalho brasileiro.
Rio de Janeiro: FGV, 2013.
[16] CABANES, R.; GEORGES, I.; RIZEK, C. & TELLES, V (orgs.).
Saídas de emergência: Ganhar/perder a vida na periferia de São Paulo. São Paulo:
Boitempo, 2011; FELTRAN, G. O valor dos pobres. Cadernos CRH, Salvador, v.27,
n.72, p. 495-512, Dez. 2014; TELLES, V. S.; CABANES, R. (Orgs.). Nas Tramas
da Cidade – trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial
Humanitas, 2006.
[17] Gig economy é o termo que hoje nomeia a sobrevivência por meio de
bicos, contratos de trabalho temporário, atividades como a do Uber. O termo dá a
dimensão da globalização da viração (ver aqui e aqui).
[18] Oliveira, F. Passagem na neblina. In: Stédile, J., Genoíno, J. (orgs.)
Classes sociais em mudança e luta pelo socialismo. São Paulo: Perseu Abramo,
2000. Klein, N. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. São Paulo:
Record, 2002.

Fonte: http://passapalavra.info/2017/02/110685/

47
Resenha

Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo,
socialismo, de Claudio Katz
Pedro Wilson Oliveira da Costa Júnior
Universidade Estadual do Ceará, Itapipoca pejota9@gmail.com

KATZ, Claudio. Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo.


Tradução Maria Almeida. 1a ed. São Paulo: Expressão Popular: Perseu Abramo,
2016, 473 p.

A vigência do neoliberalismo não pode ser explicada por seus êxitos


econômicos, pois ocasionou crises mais severas que as precedentes e com
vertiginosa explosão da desigualdade; também provocou novas ondas migratórias,
acelerada degradação ambiental e desgaste generalizado dos sistemas políticos. Os
abalos globais da crise econômica de 2008 impactaram a supremacia estadunidense
e desestabilizaram a União Europeia, mas foram insuficientes para ameaçar o
poder financeiro, que vetou qualquer tentativa de reintrodução de regulamentações
sobre suas operações, principalmente ao lucro especulativo. A tendência
conservadora prevalecente no globo desde os governos Thatcher e Reagan nos anos
1980, foi antecipada nas ditaduras do Cone Sul, na década anterior, com destaque
para o Chile sob Pinochet. No entanto, foi também a América Latina o centro de
sublevações sociais que refrearam tal ofensiva, resultando em experiências
fecundas e contraditórias, influenciando outras regiões e estimulando atualizações
do pensamento crítico. Tais questões e outros temas contemporâneos, bem como as
inflexões teóricas implicadas nessa dinâmica, são examinados no livro
Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo 1 , de Claudio Katz (2016).
Autor de extensa produção acerca de temas relacionados à História Econômica e
América Latina, o economista argentino, Doutor em Geografia e professor
pesquisador da Universidade de Buenos Aires e do Conselho Nacional de Ciência e
Tecnologia da Argentina, assinala que na última década ressurgiram questões que
outrora apaixonaram pensadores latino-americanos, tais como subdesenvolvimento,
integração continental e movimentos sociais. De início, analisa-se o cenário latino-
americano destacando os efeitos da reinserção da região no mercado global
ocupando o papel de exportadora de produtos primários. Com destaque para a
mudança de perfil das classes dominantes locais. A velha oligarquia converteu-se

1
Editado e publicado pela Expressão Popular/Fundação Perseu Abramo, Neoliberalismo, desarrollismo,
socialismo integra a coleção Estudios Latinoamericanos do selo editorial Batalla de Ideas, vinculado ao
Centro de Estudios para el Cambio Social (CECS), da Argentina.

48
num empresariado moderno do agrobusiness, que opera negócios rurais
empregando padrões capitalistas de acumulação intensiva 2 . O autor também
sublinha o ingresso de“montadoras” transnacionais, sobretudo setor têxtil e
eletrônica, na América Central. A mão de obra barata, submetida à disciplina
esgotante, constitui o principal insumo desse tipo de produção.
A globalização financeira confluiu com os ajustes econômicos e com a
reforma do Estado, impactando fortemente a região, a ponto de causar
significativas rebeliões populares entre 1999 e 2005, decisivas para alterar as
relações de força e desgastaro programa neoliberal. Esse processo fez emergir
alguns governos de caráter progressista, sintonizados em diferentes escalas com as
demandas populares. O autor discorre também sobre os três blocos existentes na
região – Aliança do Pacífico, MERCOSUL e ALBA – e examina o tipo de relações
de força estabelecidas na América Latina, e de que modo as lutas sociais
interferiram na presente configuração política.
A segunda parte do livro é dedicada ao neoliberalismo. Emergindo num
cenário de esgotamento do crescimento keynesiano do pós-guerra e retomando
teses do pensamento econômico neoclássico, consistiu numa ofensiva do capital
sobre o trabalho para recompor a taxa de lucro. Reestruturou o mundo da produção,
do consumo e das finanças acentuando a competição global por aumentos de
produtividade desvinculados do salário, o que generalizou a precarização do
trabalho. No plano político, desmantelou empresas públicas, aboliu
regulamentações do Estado sobre a economia e solapou políticas de redistribuição
de renda. A ideologia neoliberal estimulou certo fascínio ao tratamento da
economia como umsistema mecânico, amparada sobretudo nos postulados da
vertente austríaca da teoria neoclássica e seu “darwinismo social competitivo”. Na
América Latina, arrebatou setores dominantes retomando mitos aristocráticos e
colonialistas, como o papel “civilizatório” do colonizador. Segundo Katz, o
fracasso das correntes democrático-radicais nas guerras de Independência teria
favorecido a consolidação de preconceitos eurocentristas, que posteriormente se
amalgamaram às teorias positivistas da modernização (KATZ, 2016, p. 98).
O autor argentino recorda que, em décadas de administrações neoliberais,
jamais se alcançara as metas de eficácia e os êxitos econômicos apregoados. A
abertura comercial e os ajustes fiscais desintegraram a indústria latino-americana e
deterioraram a renda da população. Todas as economias tornaram-se vulneráveis ao
desenfreado fluxo de capitais externos e à flutuação internacional do preço das
matérias-primas. Em nenhum momento consumou-se a propagandeada distribuição
do bem-estar dos ricos ao conjunto da população, no máximo alguns ciclos
passageiros de ampliação do consumo das classes médias. A crise da Argentina, em

2
A consolidação da agromineração contrasta com o declínio industrial, o peso do setor secundário no
PIB das economias latino-americanas encolheu de 12,7% para 6,4% entre 1970 e 2006 (KATZ, 2016. p.
22).

49
2001, ilustraria os resultados mais perversos dessa vulnerabilidade: crise financeira,
quebra fiscal, fuga de capitais e colapso cambiário monetário.
Katz refuta teóricos latino-americanos do neoliberalismo, tais como Carlos
Alberto Montaner, Martin Krause e Hernando de Soto, sobretudo à exagerada
idealização destes ao “individualismo empresarial”, apontando no trabalho
informal um exemplo de racionalidade mercantil e de competitividade sem
qualquer apoio do Estado, uma “ressurreição da iniciativa privada”. A exaltação às
condições precárias do trabalhador informal, conforme Katz, consistiria em
sintomática confissão de fracasso do neoliberalismo e de sua flexibilização
trabalhista, um sistema destruidor de empregos (KATZ, 2016, p. 102). Na
sequência, Katz rebate uma versão complementar do neoliberalismo, o “social-
liberalismo”. Identificado principalmente nas experiências de governo do New
Labour de Tony Blair e dos socialistas espanhóis liderados por Felipe Gonzalez, a
chamada “terceira via” combina elementos do keynesianismo pós-guerra e do
reformismo social-democrata, com uma visão conformista acerca da extinção da
era industrial e da obsolescência da luta de classes. Katz expõe a evolução do
pensamento de três autores latino-americanos. Oriundos do marxismo, tornaram-se
notórios representantes do social-liberalismo: Fernando Henrique Cardoso, Jorge
Castañeda e Juan José Sebreli.
A terceira parte concentra-se no neodesenvolvimentismo, modelo que
propõe incorporar maior regulamentação estatal ao capitalismo neoliberal para
estabilizar seu funcionamento, retomando a ideia de crescimento mediante um
processo de catch up, que copia tecnologias avançadas de outras economias.
Políticas estatais atuariam para diminuir o abismo tecnológico perante outras
regiões. O autor questiona a possibilidade de a América Latina imitar o modelo
asiático de industrialização, meta dos neodesenvolvimentistas. São analisadas com
destaque políticas adotadas por Argentina e Brasil, nações que recentemente
vivenciaram ciclos ascendentes, mas se encontram envoltas em contradições
relacionadas ao estímulo da demanda sem a remoção de obstáculos estruturais ao
desenvolvimento. No caso brasileiro, entre outros aspectos, o autor critica a
associação do aumento do consumo com uma suposta expansão da classe média,
pois a persistência de 30 milhões de pobres confronta tal assertiva. Katz também
comenta uma variante “social-desenvolvimentista”, ancorada na perspectiva de
edificar um capitalismo de Estado e redistributivo a partir de um
desenvolvimentismo democrático-popular, propõe substituir o empresariado pelos
governantes na direção do processo; elege o consumo como principal meio de
redistribuição de renda e de desenvolvimento do mercado interno, com vistas à
geração de um círculo virtuoso de crescimento com inclusão social. Tal concepção
está próxima às correntes mais radicais do keynesianismo e, apesar de
extremamente crítica ao comportamento da burguesia nacional, permanece na
contradição em como “promover um sistema para os capitalistas sem presença dos
principais envolvidos.” (KATZ, 2016, p. 239).

50
As batalhas contra o extrativismo, os questionamentos à ideia de
desenvolvimento e as leituras críticas da modernidade finalizam a seção com as
perspectivas “pós-desenvolvimentistas”. O autor pondera caracterizações dos
governos latino-americanos sob o ângulo exclusivamente ambientalista e indaga o
alcance efetivo das iniciativas locais e a compatibilidade das políticas de
desenvolvimento econômico com a noção de “bem viver”.
Na parte quatro, dedicada ao Socialismo, é conferido ao colapso da URSS o
elemento decisivo da nova ofensiva conservadora visando à restauração de
mecanismos clássicos da exploração do trabalho. Entretanto, nesse mesmo
contexto, reaparece na América Latina o ideário socialista, a partir do que Katz
denomina de “quatro projetos de futuro”: Venezuela e o socialismo do século XXI;
Bolívia e o socialismo comunitário; Cuba e sua renovação socialista; e a ALBA3,
com sua formulação continental de socialismo. O autor problematiza a possível
convergência dos ideais de igualdade social com as metas de unidade regional e
quais os pontos de encontro entre uma difusa desaprovação ao capitalismo e os
combates por uma “Segunda Independência” da América Latina.
A Venezuela apresenta uma configuração composta por um modelo
econômico social-desenvolvimentista, um governo nacionalista radical e uma
proposta de socialismo para este século. Katz ampara-se nas experiências do Chile
de Allende e da Nicarágua Sandinista para analisar os impasses do país diante da
crescente desestabilização que sucedeu o falecimento de Chávez, bem como os
dilemas entre radicalização ou congelamento do processo bolivariano. No caso da
Bolívia, embora apresente traços semelhantes aos da Venezuela, possui
repercussões distintas. A questão mais inquietante ao autor é a viabilidade da
proposta de um socialismo comunitário neste período de capitalismo globalizado.
Também são debatidas as reformas econômicas de Cuba, sobretudo se elas
ameaçam ou renovam a meta igualitária. Ademais, analisam-se as iniciativas
cooperativas, a expansão mercantil e a remodelação estatal em curso. Acerca da
ALBA, é sublinhada sua instabilidade perante as dinâmicas nacionais.
Por fim, a China é apontada como essencial para as alianças que esses
países demandam diante do imperialismo estadunidense, mas não constitui um
parceiro a ser copiado (KATZ, 2016, p. 377). A transfiguração chinesa ao
capitalismo se deu a partir dos anos 1990, com privatizações de empresas estatais e
com seus antigos diretores forjando uma nova classe capitalista. O crescimento de
multimilionários contrasta com a espoliação dos produtores agrários e com a
precarização das relações de trabalho.
O livro finaliza com a conjuntura global recente e os principais
desequilíbrios do capitalismo contemporâneo, com destaque à crise financeira de
2008. A crise teve início nos EUA, mas se propagou pelo restante das economias

3
Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América – Tratado de Comércio dos Povos (do espanhol
Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América – Tratado de Comercio de los Pueblos).

51
desenvolvidas e acabou minimamente refreada no país de origem. A autoridade dos
EUA no comércio e nas finanças explica tal fenômeno. A prevalência do dólar
como “refúgio predileto dos capitalistas nos momentos críticos” (KATZ, 2016, p.
387), representando 62% das reservas e 85% das transações globais, e sem
nenhuma outra divisa ameaçando substituir seu posto, outorga aos EUA a tarefa de
definir o ritmo e as características dos ajustes no sistema financeiro internacional.
Em suma, o poder concentrado em torno de Wall Street e do FED explica como os
EUA foram capazes de exportar uma crise gestada em seu território. Além do mais,
a capacidade militar de quem possui 40% do gasto bélico global, distribuído por
cerca de oitocentas bases militares em 130 países justificam os EUA como tutor da
ordem capitalista. Não possuem a mesma capacidade de ação unilateral, mas ainda
exercem posição de comando no “imperialismo coletivo”.
A multipolaridade política modificou as relações de força, mas não reverteu
a ordem global. A expectativa da consolidação de um polo antiliberal assentada na
evolução da China, Rússia ou dos BRICS4 desconsidera o intenso vínculo desses
modelos com a globalização neoliberal e a aplicação de políticas internas
conservadoras. Não existem sinais de que as classes dirigentes chinesas aspirem
tomar o lugar de direção dos EUA. Alguns analistas projetam conflitos quando o
gigante asiático obtiver uma moeda internacional conversível, mas por ora é mais
plausível a continuidade da codependência entre os dois países. A China necessita
do mercado estadunidense para lançar seus excedentes e os EUA carecem do
financiamento chinês para resgatar sua economia dos desequilíbrios financeiros. A
exemplo do auxílio chinês ao dólar e ao euro, decisivo para impedir o agravamento
da recessão de 2009. O ressurgimento da Rússia no cenário internacional é
explicado por Katz pela reorganização de sua enorme estrutura bélica, que não foi
acompanhada da reconstrução da estrutura industrial soviética, mantendo-a
dependente das exportações de gás e petróleo.
Katz refuta certas “teorias da convergência” que apregoam que a economia
está regulada por meros fluxos de capitais excedentes em direção dos países
empobrecidos. O avanço da globalização não é sinônimo de sincronização do ciclo
econômico, as transnacionais compensam as perdas de um mercado com o
incremento de outro mais próspero. O crescimento baixo dos EUA, Europa e Japão
conjugasse com a crescente ascensão da China e de economias intermediárias. Esse
cenário é compreendido por Katz como uma coexistência de modalidades
diferenciadas do neoliberalismo, “abatido pelas finanças no centro e baseado no
produtivismo no Oriente” (KATZ, 2016, p. 450). Katz ressalta o desastre ecológico,

4
A sigla BRICS – referente à reunião das economias “emergentes” de Brasil, Rússia, Índia, China e
África do Sul – foi difundida por um operador de ações da Goldman Sachs com o intuito de destacar as
oportunidades de investimento naqueles países. Tais agrupamentos derivam de visões financeiras de
curto prazo, conforme destaca o autor ao assinalar o distanciamento de financistas do BRICS em
direção aos MINT (México, Indonésia, Nigéria e Turquia), novos candidatos a receber capitais
especulativos (KATZ, 2016, p. 420).

52
que persiste na mesma intensidade em ciclos de recessão ou de prosperidade. As
crises econômicas inibem o crescimento sem modificar o elevadíssimo consumo
energético, concentrado nos países mais ricos. A emissão de gases contaminantes
na atmosfera é superior a qualquer outro período; em 2010, dezoito países
registraram as temperaturas mais altas da história. A resistência dos capitalistas à
reconversão global do sistema energético para outro baseado em fontes renováveis
ameaça a continuidade do gênero humano, consistindo numa das mais graves
consequências das relações de força da atualidade. Com efeito, a desigualdade
alcançara níveis jamais vistos e a pobreza atinge inclusive economias avançadas, a
exemplo da Europa, atada em um círculo vicioso de quebras bancárias e déficit
fiscal. No restante do globo, as convulsões sucedem de modo “desigual e
combinado”. Na África, está em curso um processo de acumulação primitiva
devido às alterações de códigos de mineração e petróleo de alguns países,
enriquecendo burguesias locais e empresas estrangeiras que depredam territórios e
comunidades. Na Ásia, 51% da população mundial afetada pela miséria extrema
encontra-se no Sul desse continente e 15%, no Leste, de acordo com o último
PNUD. Muitas transnacionais estão atraídas pelas novas fontes de mão de obra
barata. No Oriente Médio, registra-se um recorde de desemprego ea redução de
gastos sociais e de subsídios aos alimentos geram explosões de revoltas. Em todas
as partes, registra-se o protagonismo de uma juventude trabalhadora, precarizada e
desempregada que dá o tom das novas batalhas em âmbito global. Em suma, “o
neoliberalismo desgastou os diques que atenuavam os desequilíbrios do
capitalismo”55 e o sistema opera com um grau de instabilidade muito superior ao
passado (KATZ, 2016, p. 456).
O livro de Claudio Katz, além de instigante convite à reflexão sobre a
contemporaneidade, atualiza a relevância do debate teórico. Consiste num arsenal
imprescindível ao bom combate de ideias, principalmente em oposição aos
propagandistas do “fim das ideologias”. O avanço e persistência do atual modelo
devem-se ao “retrocesso social, político e ideológico que impuseram aos
trabalhadores” (KATZ, 2016, p. 468), acarretando o refluxo de suas lutas.
Conforme o autor, a despolitização é um pilar da perpetuação da hegemonia das
classes dominantes e “renovar a disputa de ideias é o melhor antídoto a essa
tendência. Permite reavivar o pensamento crítico e contribui para visualizar o
projeto de emancipação que as maiorias populares necessitam.” (KATZ, 2016, p.
15).

5
O autor argentino realça o dramático agravamento da fome, cerca de 1,2 bilhões depessoas passam
fome no planeta e 2,5 bilhões subsistem em condições de pobreza. Desde 2003, registra-se um ciclo
ascendente nos preços dos alimentos, o índice de preços da FAO ultrapassou seu máximo histórico em
dezembro de 2010. Com destaque à influência da carestia alimentar nas sublevações árabes, “uma
intifada do pão” (KATZ, 2016, p. 435).

53
Dicionário do Pensamento Marxista
Verbetes

INTERNACIONALISMO
O internacionalismo teve importância fundamental para o pensamento e a
atividade de Marx e Engels, que deram uma base de classe (o internacionalismo
proletário) à ideia da fraternidade humana proclamada pela Revolução Francesa.
Engels, em 1845, publicou um artigo em The Northern Star, intitulado “The
Festival of Nations in London” (“O Festival das Nações em Londres”), no qual
contrastava “a fraternização das nações, tal como está hoje sendo posta em prática
em toda parte pelo partido proletário extremista”, com “o velho egoísmo nacional
instintivo e com o cosmopolitismo hipócrita privativista e egoísta do livre
comércio”. Enquanto a burguesia de cada país possui seus interesses próprios
específicos, “os proletários de todos os países têm um único e mesmo interesse, o
único e mesmo inimigo, e a única e mesma luta”. Marx e Engels achavam que esse
interesse comum estava não apenas na cooperação através das fronteiras em defesa
dos interesses imediatos de classe, mas também no projeto de provocar “uma
grande revolução social (que) se apropriará destas realizações da época burguesa –
o mercado mundial e as modernas forças de produção -, sujeitando-as ao controle
comum dos povos mais adiantados”, conforme escreveu Marx em “The Future
Results of British Rule in India” (“Os resultados futuros do domínio britânico na
Índia”), artigo publicado no New York Daily Tribune de 8 de agosto de 1853.
Quando Marx e Engels ingressaram na Liga dos Comunistas em 1847, o
antigo lema da organização, “Todos os Homens São Irmãos”, foi modificado para
“Proletários de Todos os Países, Uni-vos!”. Ao especificar o que distinguia os
comunistas, na segunda parte do Manifesto comunista, colocaram em primeiro
lugar o fato de que “nas lutas nacionais dos proletários dos diferentes países, os
comunistas põem em primeiro plano e fazem prevalecer os interesses comuns de
todo o proletariado, independentemente de qualquer nacionalidade”. Ao mesmo
tempo, reconheceram que “no princípio, a luta do proletariado com a burguesia tem
o caráter de uma luta nacional, não em sua essência, mas em sua forma. É claro
que o proletariado de cada país deve primeiramente ajustar as contas com sua
própria burguesia” (Manifesto comunista, 1). Marx e Engels enfatizaram que “não
há absolutamente qualquer contradição no fato do partido internacionalista dos
trabalhadores lutar pelo estabelecimento da nação polonesa”, no artigo em favor da
Polônia que publicaram em Der Volkstaat de 24 de março de 1875 (o grifo é do
original). Ao lutar pela independência da Irlanda, Marx a via como um estímulo à
revolução social na Inglaterra, como se pode ver na carta que escreveu a S. Meyer
e A. Vogt, de 9 de abril de 1870.

54
Se a Primeira Internacional foi constituída “para servir como meio
centralizado de comunicação e cooperação entre as associações de trabalhadores
existentes nos diferentes países”, conforme Marx registrou nos Estatutos Gerais da
Associação Internacional dos Trabalhadores, cujo anteprojeto preparou, ele e
Engels nem sempre a consideraram essencial para o internacionalismo. Engels
escreveu em 1885, em sua “Contribuição à história da Liga dos Comunistas”, que a
Primeira Internacional se havia transformado “num peso” para o movimento
internacional, que “o simples sentimento de solidariedade baseado na compreensão
da identidade de posição de classe basta para criar e manter unido”. As
expectativas de Engels eram demasiado otimistas, mas o problema não foi
resolvido com a constituição da Segunda Internacional, que, com a deflagração da
Primeira Guerra Mundial em 1914, desmoronou em meio a uma onda de
nacionalismo.
A partir de 1914, Lenin insistiu em que os internacionalistas deveriam
trabalhar pela “conversão da atual guerra imperialista em guerra civil” (Lenin,
1914b, p.34). Também argumentou em favor da autodeterminação das nações
oprimidas pela Rússia czarista (e por outros países), “não porque tenhamos
sonhado em dividir o país economicamente, ou porque alimentemos o ideal dos
Estados pequenos, mas, pelo contrário, porque desejamos grandes Estados e uma
maior unidade, até mesmo uma fusão de nações, só que a partir de uma base
realmente democrática, realmente internacionalista, que é inconcebível sem a
liberdade de separação” (1915b, p.413-4; o grifo é do original). Durante e depois
da guerra, Lenin conferiu ênfase cada vez maior à necessidade de “uma união entre
os proletários revolucionários dos países capitalistas adiantados e as massas
revolucionárias dos países onde não há, ou quase não há, um proletariado, isto é, as
massas oprimidas dos países coloniais e orientais” contra o imperialismo (Lenin,
1920e, p.232). E insistiu em que “o internacionalismo proletário exige, primeiro,
que os interesses da luta proletária em qualquer país sejam subordinados aos
interesses dessa luta em escala mundial, e segundo, que uma nação que está
conseguindo a vitória sobre a burguesia deva ser capaz de e esteja disposta a fazer
os maiores sacrifícios nacionais pela derrubada do capital internacional” (Lenin,
1920f, p. 148).
Lenin e os bolcheviques esperavam que a Revolução Russa de outubro de
1917 fosse a precursora de uma revolução socialista internacional. O isolamento
dos revolucionários russos levou à substituição, sob regime de Stalin, de grande
parte do internacionalismo do período de Lenin por elementos do egoísmo nacional.
Tais desvios não desapareceram depois da Segunda Guerra Mundial, quando o
isolamento terminou, mas, como reconhece uma declaração do governo soviético
de 30 de outubro de 1956, houve “violações e erros que subestimaram o princípio
de igualdade de direitos nas relações entre Estados socialistas” (Soviet News, 31 de
outubro de 1956). A partir de então, a assistência mútua (particularmente
importante para países como Cuba, Vietnã e Angola) e as tentativas de integração

55
dos “sistemas socialistas do mundo” foram acompanhadas de um reaparecimento
do nacionalismo e de conflitos (que levaram, em casos extremos, à guerra e à
intervenção militar apresentada como “assistência internacionalista contra a
contrarrevolução”) entre alguns desses Estados. Tais fatos constituem hoje o mais
sério desafio para os marxistas que vinham tradicionalmente admitindo que “na
medida em que o antagonismo entre as classes dentro da nação diminua, a
hostilidade de uma nação para com outra acabará” (Manifesto comunista, II). Tais
fatos têm igualmente contribuído para a tensão nas relações entre os partidos
comunistas que ainda consideram, como na década de 1930, “a atitude para com a
União Soviética a pedra de toque do internacionalismo”, e os partidos
eurocomunistas como o italiano (PCI), que criticam publicamente a URSS e
proclamam “um novo internacionalismo (...) sem laços particulares ou
privilegiados com ninguém” (“Resolução da Liderança do PCI de 29 de dezembro
de 1981”, in E. Berlinguer, 1982, p.28). (Ver também EUROCOMUNISMO;
INTERNACIONAIS; NAÇÃO E NACIONALISMO.)

Bibliografia: Berlinguer, Enrico, After Poland: Towards a New


Internationalism, 1982 · Deutscher, Isaac, Marxism in Our Time, 1964 (1972) •
Dutt, Rajani Palme, The Internationale, 1964 • Johnstone, Monty et al., “Conflicts
between Socialist Countries”, 1979 · Klugmann, James, “Lenin's Approach to the
Question of Nationalism and Internationalism”, 1970. Lenin, V.I., Questions of
National Policy and Proletarian Internationalism, 1970 • Miliband, Ralph,
“Military Intervention and Socialist Internationalism”, 1980 o The World Socialist
System and Anti-Communism, 1972 · Zagladin, V.V. (org.), The World Communist
Movement, 1973 • Ver também a bibliografia do artigo INTERNACIONAIS.

INTERNACIONAIS
A Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876) a Primeira
Internacional – foi uma federação internacional das organizações da classe
trabalhadora de vários países da Europa Central e Ocidental, onde o movimento
operário estava renascendo, na década de 1860, após as derrotas de 1848-1849.
Embora tenha sido fundada pelos esforços espontâneos dos trabalhadores de
Londres e Paris, que manifestavam sua solidariedade com o levante nacional
polonês de 1863, Marx (de 1864 a 1872) e Engels (de 1870 a 1872) iriam
desempenhar o papel chave em sua liderança.
Marx reconheceu, de imediato, que “estavam em causa ‘poderes' reais”, mas
que “levaria tempo para que o movimento renascido permitisse a velha ousadia da
palavra”. (Carta de Marx a Engels, 4 de novembro de 1864) que tinha
caracterizado a organização dirigente internacional de menor amplitude, a Liga dos
Comunistas, liderada por ele e Engels entre 1847 e 1852. Por isso, Marx redigiu e
conseguiu a aprovação de um Manifesto de lançamento e de Estatutos concebidos
de modo a proporcionar as bases para a cooperação tanto com os líderes liberais

56
dos sindicatos ingleses como com os adeptos de Proudhon, Mazzini e Lassalle, na
França, na Itália e na Alemanha. A associação admitia tanto membros individuais
como organizações locais e nacionais; seu Conselho Geral, eleito em seus
congressos (normalmente) anuais, teve sede em Londres até 1872.
Nos primeiros anos da Internacional, Marx, que redigia quase todos os
documentos distribuídos pelo Conselho Geral, restringiu-se “aos pontos que
permitiam acordo imediato e ação combinada pelos trabalhadores” (Carta de Marx
a Kugelmann, 9 de outubro de 1866). Essas atividades incluíam medidas contra a
exportação de “fura-greves”, protestos contra os maus tratos infringidos aos
prisioneiros fenianos irlandeses e a luta contra a guerra. Com o desenvolvimento
da Internacional, Marx conseguiu assegurar a adoção de reivindicações de caráter
cada vez mais socialista. Assim, em 1868, apesar de uma oposição proudhonista
decrescente, a Internacional, que se iniciara sem qualquer compromisso específico
com a propriedade pública, declarou-se a favor da propriedade coletiva das minas,
ferrovias, terras aráveis, florestas e comunicações.
A COMUNA DE PARIS de 1871 representou um momento decisivo da
história da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). Engels chegou a
descrever a revolução da primavera de Paris como “sem sombra de dúvida o filho
intelectual da Internacional, embora esta não houvesse movido um dedo sequer
para levá-la a efeito” (Carta de Engels a Sorge, 12-17 de setembro de 1874). Os
partidários franceses da Internacional, principalmente os adeptos de Proudhon,
desempenharam um papel importante na Comuna, e o Conselho Geral organizou
uma campanha de solidariedade internacional. Marx garantiu o endosso de sua
justificação histórica apaixonada da Comuna, A guerra civil na França, pela
maioria do Conselho Geral, em cujo nome foi publicada como um comunicado. A
experiência da Comuna, bem como o desenvolvimento da luta pelo direito de voto
da classe operária, levaram Marx e Engels a atribuírem grande ênfase à
necessidade de formas efetivas de ação política. Em setembro de 1871, por
iniciativa de ambos, a AIT, na Conferência de Londres, manifestou-se oficialmente,
pela primeira vez, em favor da “constituição da classe operária num partido
político” (ver PARTIDO). Esse objetivo foi incorporado em novo artigo estatutário,
elaborado por Marx e aprovado no Congresso de Haia da Internacional em 1872,
que também especificou que “a conquista do poder político torna-se o grande dever
do proletariado”.
Essas posições sofreram firme oposição de BAKUNIN e de seus partidários
na Internacional que, a partir de uma premissa anarquista (ver ANARQUISMO),
argumentavam a favor da abstenção da política. A Aliança Internacional para a
Democracia Socialista, de Bakunin, tinha requerido ingresso na AIT em 1868.
Apesar de seu desagrado pelo programa da Aliança, Marx apoiou no ano seguinte a
admissão de suas seções na Internacional, com base no princípio de que esta
deveria “deixar cada seção estruturar livremente seu próprio programa teórico”
(Documents of the First International, vol.3, p.273-7, 310-1). O conflito entre os

57
partidários de Marx e de Bakunin, que tiveram sua escalada na Internacional entre
1869 a 1872, teve como centro justamente a questão de como a AIT devia ser
organizada Bakunin atacava o “autoritarismo” do Conselho Geral, ao mesmo
tempo que procurava colocar a Internacional sob a tutela de uma sociedadnte
organizada e controlada por ele.
Defrontando-se externamente com a repressão política e, internamente, com
a divisão provocada pelos seguidores de Bakunin, Marx e Engels defenderam um
aumento de poderes do Conselho Geral. Bakunin ganhou apoio contra essa medida
na Suíça, na Itália, na Espanha e na Bélgica, conseguindo também a adesão de uma
parte substancial dos associados ingleses.
O Congresso de Haia de 1872 reuniu 65 delegados de 13 países europeus,
da Austrália e dos Estados Unidos, um número maior do que em qualquer
congresso anterior. E nele foram concedidos maiores poderes ao Conselho Geral.
Bakunin e seu camarada, Guillaume, foram expulsos por tentarem organizar uma
sociedade secreta dentro da Internacional, tendo havido também uma acusação,
mais controvertida, de fraude contra Bakunin. O congresso aprovou ainda, por
estreita maioria, uma proposta de Marx e Engels e dos partidários destes para
mudar a sede do Conselho Geral para Nova York. Um motivo significativo para
essa proposta pode ter sido o temor de que, em Londres, o Conselho pudesse cair
sob o controle dos emigrados blanquistas franceses (ver BLANQUISMO), com os
quais Marx e Engels se haviam aliado para derrotar Bakunin. Essa mudança, porém,
marcaria efetivamente o fim da Internacional, dissolvida numa conferência na
Filadélfia em 1876. Uma Internacional “antiautoritária”, que tentou usar manto da
AIT, desfrutou de algum êxito inicial, mas viu-se inapelavelmente cindida por volta
de 1877 e realizou seu derradeiro congresso, puramente anarquista, em 1881.
Nos anos seguintes, assistiu-se a um importante crescimento dos partidos
nacionais de trabalhadores, a maior parte dos quais de caráter mais ou menos
marxista, que a Internacional havia, especialmente em 1871-1872, se empenhado
bastante em promover. Marx, até sua morte em 1883, e Engels, mesmo às vésperas
do congresso de criação da Segunda Internacional, haviam-se oposto à tentativa
“de criar organizações internacionais que são, no presente, tão impossíveis como
inúteis” (Carta de Engels a Laura Lafargue, 28 de junho de 1889).
Subsequentemente, contudo, Engels daria à Internacional significativo apoio e
orientação.
A Segunda Internacional (1889-1914) foi efetivamente fundada no
Congresso Internacional de Trabalhadores, organizado pelos marxistas em Paris no
mês de julho de 1889. A exemplo da Primeira Internacional, tinha sua base
essencialmente no movimento dos trabalhadores europeu, mas foi muito mais
ampla do que a sua antecessora. Em grande parte dominada pela Social-
Democracia alemã, os partidos que lhe eram filiados tinham conseguido – ou
estavam em vias de conseguir – uma base de massas. Por volta de 1904, esses
partidos participavam de eleições em 21 países, tinham conquistado mais de 6,6

58
milhões de votos e 261 cadeiras parlamentares. Em 1914, contavam com quatro
milhões de membros e com 12 milhões de votos nas eleições parlamentares. A
Segunda Internacional foi, essencialmente, uma federação livre de partidos e
sindicatos. Em 1900, o Bureau Socialista Internacional, com função mais técnica e
coordenadora do que diretiva, foi estabelecido em Bruxelas, tendo Camille
Huysmans como seu secretário de tempo integral. Na maior parte dos partidos
filiados, com a exceção destacada do Partido Trabalhista Britânico (admitido em
1908), o marxismo era a ideologia predominante, embora outras tendências e
influências também estivessem presentes, entre as quais os anarquistas, que, depois
de derrotados na questão da luta política nos congressos de 1893 e de 1896, foram
excluídos da Internacional. Os dois teóricos que, após a morte de Engels em 1895,
mais contribuíram para o caráter do marxismo oficial da Segunda Internacional
foram KAUTSKY PLEKHANOV.
A Internacional realizava seus congressos de dois em dois ou, no máximo,
de quatro em quatro anos, para decidir sobre as ações comuns e para debater
questões de política. Entre as primeiras, estava a convocação para organizar, a
partir de 1890, manifestações em todos os países nos dias 1o de maio, em apoio à
jornada de trabalho de oito horas. Lutas entre tendências da direita, esquerda e
centro, que tinham origem inicialmente no interior dos partidos nacionais,
transferiram-se para a arena da Internacional. O Congresso de Paris de 1900
debateu agudamente a questão do “millerandismo”: se era permissível participar de
um governo burguês, como o socialista francês Millerand tinha feito, como
ministro, no ano anterior. Finalmente, uma resolução de compromisso, elaborada
por Kautsky, foi aprovada, permitindo esse tipo de participação como “um
expediente temporário ...em casos excepcionais, se sancionada pelo partido” (apud
Braunthal, 1966, vol.1, p.272-3). O congresso seguinte, reunido em Amsterdã em
1904, foi instado a dar aprovação internacional e validação à resolução que
condenara as ideias revisionistas de BERNSTEIN, aprovada pelo congresso Social-
Democrata alemão, em Dresden, no ano anterior. Isso provocou um grande e
marcante debate sobre estratégia, no qual o líder social-democrata alemão Bebel
defendeu seu partido das acusações, do líder socialista francês Jaurès, de que a
rigidez doutrinária dos socialdemocratas alemães era responsável por um
assustador contraste entre o crescimento de seu eleitorado e sua incapacidade de
mudar o regime autocrático do Kaiser. O congresso apoiou a resolução de Dresden
por 25 votos contra 5, com 12 abstenções, mas os revisionistas permaneceram na
Internacional e no partido alemão, impregnando a ambos com as suas ideias (ver
REVISIONISMO).
Uma outra questão importante e controvertida foi o colonialismo, já
condenado unanimemente pelo congresso da Internacional de 1900, na época da
Guerra dos Bôeres. Contudo, a maioria da comissão colonial do Congresso de
Stuttgart argumentou, sete anos depois, que “não se devia rejeitar todas as políticas
coloniais em quaisquer circunstâncias; por exemplo, aquelas que, sob um regime

59
socialista, poderiam servir a um propósito civilizador” (apud Braunthal, 1966,
p.318). Após aceso debate, esse ponto de vista foi rejeitado por 127 votos contra
108, e aprovada uma resolução condenando as “políticas coloniais capitalistas (que)
devem, por sua natureza, dar lugar à servidão, trabalhos forçados e o extermínio
dos povos nativos” (apud Braunthal, 1966, p.319).
A luta contra a guerra sempre foi essencial para a Internacional e, desde a
fundação desta, refletira-se nas resoluções de seus congressos. Ela dominou o
Congresso de Stuttgart em 1907, realizado quando as nuvens tempestuosas da
guerra avolumavam-se sobre a Europa. A resolução final ali aprovada
unanimemente – a despeito de sérias divergências no debates – incluía uma
emenda apresentada por Lenin, Rosa Luxemburg e Martov, cujo texto, após instar
pela realização de “todo o esforço possível para impedir a deflagração da guerra”,
prosseguia: “se, apesar disso, a guerra for deflagrada, é dever deles (dos
movimentos operários) intervir em favor de seu mais rápido término, empregando
toda a sua força para utilizar a crise econômica e política criada pela guerra para
levantar as massas e, desse modo, acelerar a derrubada do domínio da classe
capitalista” (apud Braunthal, 1966, p.363). Essa posição foi reafirmada nos dois
congressos seguintes. O de Basileia em 1912, o último antes da guerra, tornou-se
uma grande e comovente manifestação pela paz. E concitava – também por
unanimidade – à ação revolucionária, caso houvesse a guerra. A eclosão da
Primeira Guerra Mundial, dois anos depois, provou que a unanimidade em torno de
tais palavras “havia sido apenas um fino verniz cobrindo um nacionalismo
profundamente enraizado” (Deutscher, 1972, p.102). Os principais partidos da
Segunda Internacional deram seu apoio à guerra travada por seus respectivos
governos e com isso provocaram o colapso ignominioso da Internacional. Foi a
culminação de todo um período de expansão capitalista e de integração nacional do
movimento operário.
Somente os partidos russo, sérvio e húngaro – justamente com pequenos
grupos dentro de outros partidos – permaneceram fiéis aos princípios
repetidamente enaltecidos pela Internacional. Algumas tentativas sem sucesso
foram feitas durante a guerra, particularmente por partidos de países neutros, para
reviver a Segunda Internacional, cujo Bureau Internacional se transferira para a
Holanda. Em 1919, porém, numa conferência em Berna, foi reconstituída uma
pálida versão da antiga Segunda Internacional (a “Internacional de Berna”), que
realizou seu primeiro congresso em Genebra, no ano seguinte, contando com a
representação de 17 países. Em 1921, os socialistas de esquerda de dez partidos,
inclusive o Partido Social-Democrata Independente Alemão (USPD), o Partido
Social Democrata Austríaco (SPO) e o ILP inglês, reuniram-se em Viena para
constituir a União Internacional de Trabalhadores dos Partidos Socialistas (“União
de Viena”), apelidada de “Segunda e Meia Internacional”. Esta associação
considerava-se como o primeiro passo para uma Internacional ampla e, em 1923,
num congresso realizado em Hamburgo, uniu-se à Segunda Internacional revivida

60
para formar a Internacional Trabalhista e Socialista, que deixou de funcionar em
1940. Foi substituída em 1951 pela atual Internacional Socialista, que é uma
associação livre dos principais partidos socialistas e social-democráticos em todo o
mundo, com sede em Londres.
A Terceira Internacional (1919-1943) Com a desintegração da Segunda
Internacional, ao eclodir a Primeira Guerra Mundial, Lenin escreveu, em novembro
de 1914: “A Segunda Internacional está morta, vencida pelo oportunismo... Viva a
Terceira Internacional...” (Lenin, 1914a, p.40). Essa Terceira Internacional –
também chamada de Internacional Comunista ou Comintern – foi fundada em
Moscou em março de 1919 por iniciativa dos bolcheviques, após a vitória da
Revolução de Outubro na Rússia e numa época de grande agitação revolucionária
na Europa Central. Falando em seu Primeiro Congresso, Lenin expressou o estado
de espírito e as esperanças então dominantes quando declarou que “a fundação de
uma república soviética internacional está a caminho”. Definiu o “reconhecimento
da ditadura do proletariado e do poder soviético em lugar da democracia burguesa”
como “os princípios fundamentais da Terceira Internacional”. Uma “União
Mundial das Repúblicas Socialistas Soviéticas” (apud Degras, 1971, vol.2, p.465)
permaneceria como seu objetivo oficial ao longo de toda a sua existência, embora
passasse a segundo plano após 1935. Em seu Segundo Congresso, reunido em
Moscou em julho-agosto de 1920, havia delegados de partidos e organizações de
41 países, e delegados observadores, entre outros, do Partido Socialista Francês e
do Partido Social-Democrata Independente Alemão, que, em seus respectivos
congressos, antes do fim daquele ano, decidiriam, por maioria, filiar-se ao
Comintern. Preocupado com a ameaça de diluição da nova Internacional pelos
instáveis elementos social-democratas, o congresso estabeleceu 21 Condições de
filiação draconianas. Todos os partidos que desejavam essa filiação tinham de
“afastar os reformistas e centristas de todas as posições de responsabilidade no
movimento operário”, e combinar o trabalho legal com o ilegal, inclusive a
propaganda sistemática no exército. Definindo a época como de “aguda guerra
civil”, o Comintern exigia “disciplina férrea” e o maior grau possível de
centralização, nacionalmente pela direção dos partidos e internacionalmente pelo
executivo do Comintern cujas decisões tinham força de lei entre os congressos
(Degras, 1971, vol.1, p.166-72).
Em seus Estatutos, o Comintern declarava que “rompia de uma vez por
todas com as tradições da Segunda Internacional, para a qual somente existiam
povos de pele branca”: sua missão era congregar e libertar trabalhadores de todas
as cores. O Segundo Congresso aprovou as Teses sobre a questão nacional e
colonial, elaboradas por Lenin, que enfatizavam a necessidade de uma aliança anti-
imperialista dos movimentos de libertação nacional e colonial com a Rússia
Soviética e os movimentos operários que combatiam o capitalismo (Degras, 1971,
vol.1, p.138-44). O texto de Lenin, Esquerdismo, doença infantil do comunismo,
escrito em 1920, buscava combater as tendências “esquerdistas” no Comintern e

61
discutia questões como a participação comunista nas eleições parlamentares e o seu
trabalho dentro dos sindicatos reacionários. Foram essas as questões que Lenin
enfrentou no Terceiro Congresso do Comitern em 1921, quando percebeu que a
onda revolucionária tinha regredido, que os partidos comunistas fora da Rússia
representavam uma minoria da classe operária e que as táticas revolucionárias
ofensivas anteriores, moldadas essencialmente na experiência russa, já não eram
adequadas ao Ocidente. O congresso convocou uma frente única dos partidos da
classe operária, nacional e internacionalmente, para lutar pelas necessidades
imediatas dos trabalhadores. Em consequência disso, uma conferência dos
dirigentes do Comintern, da Segunda Internacional e da União de Viena, foi
realizada em Berlim, em 1922, mas não se conseguiu chegar a um acordo.
Após o fracasso da esperada revolução alemã, em outubro de 1923, o
Comintern reconheceu que se iniciara um período de relativa estabilização
capitalista. Durante os anos seguintes, as lutas internas do partido soviético
refletiram-se no Comintern. Depois de muitas batalhas amargas, a oposição
trotskista à política stalinista de “socialismo num só país”, ao Comitê de Unidade
Sindical Anglo-Russo e à estratégia e táticas a serem seguidas na revolução chinesa
de 1925-1927 foi derrotada, e Trotski foi expulso da direção executiva do
Comintern em setembro de 1927. O Sexto Congresso do Comintern, em 1928,
aprovou um programa amplo, em grande parte elaborado por Bukharin. Esse
congresso igualmente inaugurou o “terceiro período” do Comintern, no qual a
socialdemocracia foi denunciada como “social-fascismo” e propostas para uma
frente única com os seus líderes foram rejeitadas. Em 1931 a direção do Comintern
anunciou ser necessário não mais traçar uma linha “entre fascismo e democracia
burguesa e entre a forma parlamentar da ditadura da burguesia e a sua forma
fascista declarada” (apud Sobolev et al., 1971, p.313). Os efeitos desastrosos dessa
política, sobretudo na Alemanha, conduziram a uma revisão da estratégia do
Comintern. Em março de 1933, após o estabelecimento da ditadura nazista, a
direção do Comintern recomendou publicamente, aos partidos filiados, a
aproximação com os comitês centrais dos partidos social-democratas com
propostas para uma ação conjunta contra o fascismo. Isso levou à ação unida entre
comunistas e socialistas na França. O sétimo, e último, congresso do Comintern em
1935, em que estavam representados mais de três milhões de comunistas (785 mil
em países capitalistas), através de 65 partidos, manifestou-se vigorosamente em
favor de uma frente única dos partidos da classe operária e sua ampliação numa
Frente Popular para conter o avanço fascista. Em sua principal intervenção,
Dimitrov enfatizou que a escolha era, agora, não entre a ditadura do proletariado e
a democracia burguesa, mas entre a democracia burguesa e a ditadura burguesa
aberta e terrorista, representada pelo fascismo. A nova estratégia do Comintern
ajudou a inspirar as Frentes Populares na França e na Espanha. Mobilizou o apoio
internacional para a luta da República Espanhola contra o fascismo, como também

62
para as propostas do governo soviético de uma frente de paz entre a URSS e as
democracias burguesas ocidentais para fazer face à agressão fascista.
O Comintern, que foi sempre dominado pelo Partido Comunista Soviético,
deu total apoio aos expurgos stalinistas da década de 1930, nos quais pereceram
alguns de seus mais destacados membros e que levaram à dissolução do Partido
Comunista Polonês em 1938 sob acusações forjadas. Depois do pacto de não
agressão germano-soviético de agosto de 1939, o Comintern reviu sua estratégia
baseada na diferenciação entre as democracias burguesas ocidentais e os Estados
fascistas. De 1939 a 1941, condenou a guerra como injusta, reacionária e
imperialista, de ambas as partes. Após o ataque alemão à União Soviética em junho
de 1941, deu seu incondicional apoio à União Soviética e a seus aliados ocidentais
na luta contra as potências do Eixo. O Comintern foi dissolvido em junho de 1943
por proposta de seu Presidium, com o argumento de que as condições diferentes
sob as quais o movimento comunista internacional tinha agora de operar tornavam
sua direção impossível por um centro internacional. A dissolução do Comintern
teve igualmente a finalidade de tranquilizar os aliados ocidentais de Stalin (Claudín,
1970).
A Quarta Internacional foi fundada em 1938 por iniciativa de Trotski e de
pequenos grupos de seus partidários (ver TROTSKISMO), em oposição à Segunda
e à Terceira Internacionais, que sempre acusou de “contra revolucionárias”.
Permaneceu restrita e sempre esteve muito sujeita a sérias cisões. (Ver também
INTERNACIONALISMO.)

Bibliografia: Braunthal, Julius 1961-1971, Geschichte der Internationale;


History of the Internacional, vols. 1 e 2 (1966-1980) • Claudín, Fernando, La
crisis del movimiento comunista, 1970; La crise du mouvement comuniste: du
Komintern au Kominform (1972); The Communist movement: from Comintern to
Cominform (1975) • Cole, G.D.H., A History of Socialist Thought, vols. 2-5, 1954-
60 • Collins, Henry & Chimen Abramsky, Karl Marx and the Britisn Labour
Movement: Years of the First International, 1965 • Degras, Jane (org.), The
Communist International 1919-1943: Documents, vols. 1-3, 1956-1965 (1971) •
Deutscher, Isaac, “On Internationals and Internationalism”, in Isaac Deutscher,
Marxism of Our Time, 1964 (1972) • Documents of the First International, vols. 1-
5, 1963-1968 • Documents of the Fourth International: the Formative Years (1933-
1940), 1973 · Dutt, R.P., The Internationale, 1964 • Frank, Pierre, La Quatrième
Internationale, 1969 · Haupt, Georges, Le congrès manqué: l'Internationale à la
veille de la Première Guerre Mondiale , 1965 · Humbert-Droz, Jules, L'origine de
l'Internationale Communiste: de Zimmerwald à Moscou, 1968 · Joll, James, The
Second International, 1889-1914, 1955 (1975) • Kriegel, Annie, Les
Internationales ouvrières: 1864-1943, 1964 · La question chinoise dans
l’Internationale Communiste: textes, 1976 • Les quatre congrès de l'Internationale
communisce, 1934 (1972) · Marcou, Lilly, L'Internationale après Scaline,

63
1979 · Pirker, Theo (org.), Komintern und Faschismus, 1920-1940: Dokumente zur
Geschichte und Theorie des Faschismus, 1965 · Ragionieri, Ernesto, Il marxismo e
l'Internazionale, 1968 • Réberioux, Madeleine (org.), La Il Internationale et
l'Orient, 1967 · Rubel, Maximilien, “La Charte de la Première Internationale:
essai sur le marxisme dans l'AII”, 1965. Sobolev, A.I. et al, Outline of the
Communist International, 1971 • Trotski, L.D., La IIle Internationale après Lénine,
1969 • Ver também a bibliografia do artigo INTERNACIONALISMO.

TROTSKISMO
Como toda escola de pensamento importante o trotskismo tem sido objeto
de interpretações diversas, que puseram em evidência diferentes aspectos seus, em
diferentes circunstâncias históricas. A pedra fundamental do trotskismo foi, e
continua sendo, a tese da revolução permanente, formulada originalmente por
Marx, que Trotski reformulou em 1906, aplicando-a à Rússia, e voltou a
desenvolver em 1928. Trotski via a transição para o socialismo como uma série de
transformações sociais, políticas e econômicas, ligadas entre si e interdependentes,
que ocorrem em vários níveis e em diversas estruturas sociais – feudal,
subdesenvolvida, pré-industrial e capitalista e em diferentes conjunturas históricas.
Esse “desenvolvimento desigual e combinado” seria motivado pelas circunstâncias
e pela sua própria dinâmica, a partir de sua fase burguesa antifeudal, até sua fase
socialista anticapitalista. Nesse processo, transcenderia as fronteiras geográficas
fixadas pelo homem e passaria de sua fase nacional a uma fase internacional, no
rumo da criação de uma sociedade sem classes e sem Estado em escala global.
Embora a revolução deva começar em bases nacionais (podendo inclusive
condenar o Estado revolucionário a um período de isolamento), isso constituirá
inevitavelmente apenas o primeiro ato do drama seguido de um outro ato
representado em outro lugar da arena internacional. O internacionalismo, que é o
segundo aspecto da permanência da revolução, constitui assim uma característica
indelével do trotskismo. Essa teoria entrou violentamente em choque, no seu país
de origem, com a teoria do socialismo em um só país de Stalin, que, para o
trotskismo, é uma contradição nos termos, e foi proibida como a maior das heresias
em todas as partes do mundo em que predominava o modelo soviético de
socialismo. Permaneceu viva, porém, fora dessa área, e embora tivesse de enfrentar
o crescimento do nacionalismo, que lhe é intrinsecamente hostil, tornou-se um
importante componente do renascimento de uma consciência socialista,
particularmente a partir da década de 1960.
A Quarta Internacional (ver INTERNACIONAIS), organizada por Trotski
em 1938, não se revelou um instrumento eficaz de promoção da revolução, mas
desempenhou significativo papel como estímulo para um debate mundial sobre os
princípios básicos do trotskismo e para a criação de numerosos grupos trotskistas
que buscavam uma estratégia revolucionária correta para o momento presente. O
impasse na LUTA DE CLASSES no Ocidente adiantado e o despertar da

64
consciência nacional e social entre os povos da Ásia e da África pode ser
interpretado como uma confirmação da permanência da revolução. Os movimentos
de libertação nos países “atrasados” fizeram ressurgir o problema de quem deve ser
considerado o principal e decisivo agente da revolução: o proletariado industrial,
tal como postulam o marxismo clássico e o trotskismo, ou o campesinato que,
como se viu na China em 1948-1949, levou a revolução do campo para a cidade
(ver MAO TSE-TUNG).
O estabelecimento de uma sociedade socialista sem classes não pode de
acordo com o trotskismo, ocorrer senão por meio de um rompimento
revolucionário com a ordem existente. O trotskismo rejeita o progressivo caminho
parlamentar dos votos como ilusório; em sua concepção, as classes exploradas não
serão capazes de tomar o poder sem uma luta contra as classes proprietárias, que
defenderão a sua dominação econômica. A vitória do proletariado nessa luta de
classes terá de ser, segundo o esquema trotskista, protegida pela criação de uma
“ditadura do proletariado”. Esse conceito, que, com a experiência dos regimes
totalitários (ver TOTALITARISMO), adquiriu proporções exageradas, permitindo-
se excessos repulsivos, representava para Trotski (como para Marx e Engels) não
uma forma de governo, mas o domínio social e político de uma classe. Assim,
Trotski descreveu as democracias parlamentares do Ocidente como ditaduras
burguesas, isto é, como regimes que asseguravam a dominação das classes
proprietárias.
A DITADURA DO PROLETARIADO será imposta por meio da tomada do
poder pelo partido político do proletariado, ao qual Trotski atribuía o papel de
liderança na revolução. Desde o início, porém, Trotski advertiu que esse partido
devia acautelar-se para não substituir o proletariado ou para não subjugá-lo uma
vez realizada a sua tarefa. Sob a ditadura do proletariado, a democracia proletária
será assegurada pelo controle efetivo do governo pelos sovietes (ver CONSELHOS)
constituídos de representantes de partidos soviéticos legais, livremente eleitos por
todos. Os partidos soviéticos, que podem incluir elementos pró-burgueses, são os
que respeitam a constituição do Estado dos trabalhadores, baseada na organização
socialista da produção e da distribuição, e não procuraram derrubá-lo pela força.
Além disso, a soberania do proletariado será preservada por meio do controle e da
gestão da indústria pelos trabalhadores nos locais de produção, através de
comissões de fábricas. Essa associação dos produtores será completada pela
associação dos consumidores, que controlarão a distribuição e a fixação dos preços
dos bens de consumo.
A concepção de Trotski sobre o partido revolucionário não foi sempre
consistente e variou em diferentes períodos históricos. Entre os trotskistas de hoje,
alguns grupos subscrevem integralmente as críticas feitas por ele, em sua juventude
(antes de 1917), aos rígidos princípios centralistas de Lenin e consideram o partido
como uma organização ampla e flexível. Outros, embora sem rejeitar totalmente o
centralismo leninista, dão maior ênfase à forma democrática do partido, apoiando-

65
se nos escritos de Trotski posteriores a 1923, que correspondem a sua luta contra a
ditadura burocrática do partido soviético stalinizado. Outros ainda, uma minoria,
aceitam rigorosamente o centralismo e reportam-se à fase mais centralista de
Trotski (1917 a 1923).
O princípio do socialismo pluralista e a crença na necessidade do controle
pelos trabalhadores é comum à maior parte dos grupos que se dizem fiéis ao
trotskismo, o mesmo acontecendo com a recusa em considerar a União Soviética
como uma sociedade socialista. Esses grupos dividem-se, porém, quanto à sua
definição do que existe na União Soviética. Duas correntes principais destacam-se:
a que afirma ser a União Soviética ainda um Estado dos trabalhadores, embora –
como disse Trotski – tenha sofrido um processo de degeneração; e os que
sustentam que nada resta de um Estado dos trabalhadores naquele país e que seu
regime é o de capitalismo de Estado. Uma terceira corrente, menor, considera o
bloco soviético como uma formação de um novo tipo, sui generis. Essas
concepções teóricas determinam, em grande parte, o caráter da oposição trotskista
à União Soviética. A questão postula-se da seguinte maneira: eliminará a União
Soviética os seus vestígios de stalinismo e entrará no caminho para o socialismo
por meio de reformas graduais feitas pela cúpula política, sob pressão das bases, ou
será preciso um movimento violento das bases para realizar aquilo que Lenin,
Trotski e os bolcheviques pretendiam em 1917? Há também diferença de opiniões
quanto ao grau e às formas de pressão – econômica, política e moral – que podem e
devem ser exercidas pelos governos do Ocidente e pela opinião pública ocidental
sobre o governo soviético de modo a promover uma democratização da sociedade
soviética. Isso tem influência sobre a avaliação das relações entre os dois blocos de
poder internacionais e, consequentemente, sobre as atividades políticas dos que
representam hoje o trotskismo.
O trotskismo tem suas raízes no marxismo clássico e, como este, enfrenta
um problema básico: a discrepância entre a visão de um avanço histórico
revolucionário e o curso real da luta de classes. Sempre que esta se intensifica e as
classes dominantes se sentem ameaçadas pelo espectro da revolução, um dos
nomes que dão a esse espectro é trotskismo e procuram então exorcizá-lo. Na
União Soviética e em sua esfera de influência, bem como na China, esse fantasma
ainda é mantido na defensiva.

Bibliografia: Cliff, Tony, State capitalism in Russia, 1974 · Deutscher, Isaac,


The Prophet Armed, Trotsky 1879-1921, 1954 [Trotski: o profeta armado, 1968] o
The Prophet Unarmed, Trotsky 1921-1929, 1959 (Trotski: o profeta desarmado,
1968] O The Prophet Outcast, Trotsky 1930-1940, 1963 [Trotski: o profeta banido,
1968] O Marxism in our time, 1971 • Documents of the Fourth International,
1973 · Frank, Pierre, La Quatrième Internationale, 1969 · Löwy, Michel, The
Politics of Combined and Uneven Development, 1981 • Mandel, Ernest,

66
Revolutionary Marxism Today, 1979. Ver igualmente a bibliografia do artigo
TROTSKI.

Sugestões de leitura:

Para a História da Liga dos Comunistas / Friedrich Engels


https://www.marxists.org/portugues/marx/1885/10/08.htm

As Pretensas Cisões na Internacional / Karl Marx e Friedrich Engels


https://www.marxists.org/portugues/marx/1872/cisoes/cap01.htm

O Oportunismo e a Falência da II Internacional / V. I. Lenin


https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/01/falencia.htm

Estalinismo e Bolchevismo - Sobre as Raízes Históricas e Teóricas da IV


Internacional / Leon Trotsky
https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1937/08/29.htm

Trotskismos / Daniel Bensaïd


https://www.marxists.org/portugues/bensaid/2002/trotskismos/index.htm

Trotskism / Alex Callinicos


http://www.marxists.de/trotism/callinicos/index.htm

67
Conjuntura Nacional
Recorte: juventude e educação
I – Os homens [e mulheres] presentes, o tempo presente, a vida presente.
O Brasil se localiza geopoliticamente como um país do mundo sul e capitalista
periférico. A ditadura civil-militar que controlou o país por 21 anos durante a Guerra
Fria entre as potências capitalista e soviética foi o método imperialista estadunidense
para manter estáticas as reformas (no sentido político e social) de base no Brasil. O
momento coloca o país em estrito alinhamento a políticas internacionais americanas, de
desenvolvimento econômico e social, sob justificativa de enfrentamento à suposta
“ameaça” comunista no país, que o poderia “transformar não em uma Cuba, mas em
uma China no quintal americano”.
O instrumento do regime para controle do modelo e função da educação
brasileira foi o chamado MEC-USAid – Ministério da Educação-United States Agency
for International Development (U.S.-Aid – a ajuda americana, como ficou conhecido)
que estabeleceu as diretrizes americanas para o desenvolvimento da educação,
prioritariamente universitária no Brasil. O panorama educacional público no país se
equiparava ao privado, no que se refere ao ensino básico, sendo o superior privado
irrelevante em termos quantitativos, contudo a oferta não contemplava a demanda
brasileira, e o programa solucionava o problema sem grande incremento monetário
expandindo vagas e diminuindo qualidade, formando não mais numa lógica de
aprendizado e crítica, mesmo superficial e de método, mas de reprodução do
conhecimento pura e simples, aumentando o tecnicismo no ensino básico com noções
políticas enviesadas pelo regime vigente. Disciplinas escolares como OSPB – Ordem
Social e Política Brasileira, cumpriram o papel de disciplina e formação enviesada para
manutenção do regime, apresentado como sistema.
A luta estudantil que responde a essa série de acordos torna-se uma das
motivações ao maior fechamento do regime, com a edição do Ato Institucional nº 5 no
mesmo emblemático ano de implementação do USAid, 1968. Os acordos, iniciados em
1964, “tinham o objetivo de implantar o modelo norte americano nas universidades
brasileiras através de uma profunda reforma universitária. Segundo estudiosos, pelo
acordo MEC/USAID, o ensino superior exerceria um papel estratégico porque caberia a
ele forjar o novo quadro técnico que desse conta do novo projeto econômico brasileiro,
alinhado com a política norte-americana. Além disso, visava a contratação de
assessores americanos para auxiliar nas reformas da educação pública, em todos os
níveis de ensino.”

Educa Brasil
A implantação da reprodução do ensino americano ao Brasil trouxeram
irremediável atraso na reflexão nacional de memória, justiça e verdade que urgiam ao

68
fim da ditadura, e que até hoje urgem. Iniciaram também um processo de avanço
tecnicista sobre a formação universitária, colocando a ferramenta do ensino superior a
serviço da formação de uma burocracia nacional, cada vez mais apta a gerir
tecnicamente o aparelho estatal, e cada vez menos um instrumento “superior” de
reflexão sobre o mundo em que se vive.
Na redemocratização, vence nas urnas da democracia burguesa de baixa
intensidade o projeto neoliberal, apesar dos avanços conquistados na constituinte
cidadã. O projeto de Tancredo Neves (construído pelo mesmo PMBD de Sarney, que
concretizou-se presidente), Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso
caminham no sentido do desmonte e privatização. Se a ditadura concretiza a regressão
qualitativa do ensino básico e superior, paralelo a alguma ampliação quantitativa do
acesso, o neoliberalismo da década 1990 implementa uma lógica de fomento à
iniciativa privada no setor, que passa a construir espaço de crescimento quantitativo
nesse período.
Os governos petistas, de Lula e Dilma, fortificam o processo através do
fortalecimento das políticas neoliberais e da ampliação de vagas conforme a cartilha do
Banco Mundial, no documento “Achieving World Class Education in Brazil: The Next
Agenda” (Chegando a uma educação de nível mundial no Brasil – a próxima agenda),
indicava ao país a lógica da ampliação de vagas, prioritariamente em instituições
privadas de ensino, através de estímulos internacionais e nacionais, ao mesmo tempo
em que ampliava e reduzia qualitativamente o ensino público, focado em seu nível
superior. O método, editado pelo decreto nº 6.096, denominou-se REUNI – Programa
de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, programa
que ampliou as vagas sem correspondência equivalente de verbas para manutenção da
qualidade no ensino superior público. A consequência do projeto foi a ampliação de
vagas, como esperado, e consequentes greves (2012, mais notadamente) pela efetivação
das promessas estruturais da reforma. Nosso campo político defendia duas propostas
em resposta ao REUNI. O programa defendido pelo agrupamento advindo do PSTU em
alguma medida, e pelo próprio PSTU, do nosso estão bloco de forças da esquerda
revolucionária, avaliava o REUNI como o desmonte declarado, haja vista a agenda
indicada pelo Banco Mundial, e animava a insígnia “Fora REUNI de Lula [e Dilma, a
tempo correspondente]” e uma proposta mais mediada, embora minoritária, animava
insígnias adequadas à conjuntura local, balizadas pela defesa de uma gestão dos
recursos pela universidade, o que garantiria expansão (criação de novos campi,
desmembramento e criação de novas universidades, ampliação de vagas) equilibrada à
avaliação da verba que estava colocada e manutenção da qualidade do ensino
universitário.
A era petista anima também a criação de novas vagas no ensino superior
privado, através de grandes programas como o ProUni e Fies, que, segundo estudo do
ANDES-SN (Associação Nacional das/dos Docentes do Ensino Superior – Sindicato
Nacional), para cada vaga custeada pelos programas, duas poderiam ser abertas em uma
Universidade Pública. A esse passo, o Brasil alimentou a lucratividade de
multinacionais do ensino, ensejando instituições como a Kroton-Anhanguera, hoje uma
das maiores do mundo, crescerem e solidificarem-se no país. Enquanto possibilita

69
grandes lucros à iniciativa privada, o país se exime da responsabilidade prioritária com
a educação pública, quando já no segundo governo Dilma pesados cortes incidem nas
Universidades e acarretam fortes greves, furadas pela UNE.
A UNE – União Nacional das e dos Estudantes, combativa desde 1937,
passando pelo funcionamento na ilegalidade e enfrentamento ao neoliberalismo da
redemocratização, esteve na luta por uma universidade mais forte, autônoma e polo da
resistência brasileira a ataques contra o direito de estudantes e trabalhadores. No
período de colaboração/conciliação de classes, a UNE passa a atuar como fio condutor
do governo federal, se ausentando das greves e manifestações que atacassem
diretamente o governo central ou seus estados aliados, prática que permanece vigente
na direção da entidade, composta pelo PCdoB, na UJS como seu organismo de
juventude, e pelo arco de juventudes do PT, além da intervenção de juventude da
Consulta Popular, o Levante Popular da Juventude, de tamanho expressivo e força que
detém atualmente a vice-presidência da entidade. O momento atual coloca a UNE de
volta à luta em oposição ao governo central, para enfrentar com ampla unidade os
retrocessos que se apresentam no governo fascista, tanto na perspectiva da educação,
quanto, mais amplamente, nos campos econômicos, políticos e culturais.
O futuro governo Bolsonaro coloca em xeque a universidade em duas vias: a
primeira ameaça a estrutura como centro de ensino de potencial emancipador,
ganhando voz fortes ameaças de privatização, cobrança de mensalidades e precarização
por corte de verba de manutenção até folha de funcionários públicos federais. A lei da
terceirização, sancionada por Dilma, que dá margem à terceirização de todo o
funcionalismo universitário, de motoristas a professores, tem indícios de aplicação,
estando já editado ofício da equipe de transição Temer-Bolsonaro vetando abertura de
novos concursos públicos em Institutos Federais. O ataque ao funcionamento da
universidade se dá então como política privatizante, ensejando precarização que
justifique as medidas de ameaça ao ensino já proferidas pelo presidente eleito.
Em segundo plano, mas de igual relevância, Bolsonaro ataca a liberdade de
cátedra e de manifestação (princípios constitucionais), amparado em um poder
judiciário corrompido e ameaçado pela sombra militar que paira sob o futuro governo,
tanto em cargos “de confiança” delegados à categoria quanto em ameaças diretas do
poder militar, como no caso da ameaça ao tribunal que julgou o ex-presidente Lula,
preso político do golpe midiático-institucional que derrubou Dilma Rousseff. Durante o
período eleitoral, enquanto o Tribunal Superior Eleitoral fechou os olhos a denúncias de
caixa dois eleitoral e de massiva divulgação das chamadas Fake News, o tribunal
empreendeu verdadeira cruzada contra as manifestações em defesa da democracia e da
liberdade de cátedra empreendidas pelas Universidades por todo o país. Listagens
confiáveis atestam mais de 40 invasões a IES para reprimir manifestações “contra o
fascismo e por democracia”, com ações sistemáticas completamente atípicas a um
estado democrático de direito, onde os agentes invadem sem identificar-se, sem dirigir-
se ao responsável pela administração da instituição e perscrutam salas de aula em busca
de supostas atividades “partidárias”, interrompendo aulas e causando confusão.

70
Fascismo e educação brasileira
O fascismo, para Trotsky (revisto por Mandel), é, antes de tudo, uma aposta
do sistema dominante. Para o quartista revisitado, o fascismo é possível apenas em
momentos de crise estrutural capitalista de idade madura, a exemplo de 1929-1933,
onde o capital, em nome da ampliação das taxas de lucratividade, precisa de uma
força regressiva além da natural em uma democracia burguesa de baixa intensidade,
que implica forte centralização do poder do estado e avanço burguês na disputa
desse instrumento.
“Nas condições do imperialismo e do movimento obreiro contemporâneo,
historicamente desenvolvido, a dominação política da burguesia exerce-se mais
vantajosamente – é dizer, com os custos mais reduzidos – através da democracia
parlamentar burguesa que oferece, entre outros, a dupla vantagem de neutralizar
periodicamente as contradições explosivas da sociedade por algumas reformas
sociais, e de fazer participar, diretamente ou indiretamente, no exercício do poder
político, um setor importante da classe burguesa (através dos partidos burgueses,
dos jornais, das universidades, das organizações patronais, das administrações
municipais e regionais, das cimeiras do aparelho de Estado, do sistema do Banco
Central). Esta forma de dominação da grande burguesia – de modo algum a única,
do ponto de vista histórico – é, no entanto, determinada por um equilíbrio muito
instável das relações de poder económicas e sociais. Se esse equilíbrio vem a ser
destruído pelo desenvolvimento objetivo, apenas restará à grande burguesia uma
saída: tentar, ao preço da renúncia ao exercício direto do poder político, estabelecer
uma forma superior de centralização do poder executivo para a realização dos seus
interesses históricos. Historicamente, o fascismo é portanto ao mesmo tempo a
realização e a negação das tendências inerentes ao capital monopolista [...]:
realização, porque o fascismo afinal de contas preencheu essa função; negação,
porque [...] não podia preencher essa função senão por uma expropriação política
profunda da burguesia.” (MANDEL, 1974)
Caracteriza-se então o fascismo como uma aposta burguesa. Surge como
resultado da crise e da descrença com um modelo democrático, seja da República
de Weimar à democracia questionada no governo Dilma pelas Jornadas de Junho.
Oferece a realização das tendências do capitalismo (acesso a bens de consumo,
desenvolvimento comercial, igualdade formal) e de seus contornos axiológicos
correspondentes (um suposto retorno ao momento em que preponderaram valores
como “família”, “Deus” e “costumes tradicionais”) através da negação de um
status que já concretizava em várias medidas as tendências reais do capitalismo,
canalizando para si a insatisfação com corrupção política, crescimento da
desigualdade, desaquecimento da economia, ou “tudo isso que está aí”. Busca
portanto totalizar para si as insatisfações com um modelo, e propor a realização do
modelo ideal, que nada mais é do que a apresentação em nova roupagem, e esta
muito mais autoritária, desigual e hermética do ponto de vista de democracia e
participação, do que já se apresentava.

71
O fascismo concretiza-se como aposta burguesa a partir da produção de uma
insatisfação que ele mesmo não é capaz de responder, por ser uma negação além da
realização, e que potencialmente pode apresentar-se como resposta a ruptura
revolucionária.
No país, nunca houve a mentalidade da possibilidade da tomada do poder de
modo tão intenso. Não raro falam os eleitores de Bolsonaro: “se não prestar, a
gente tira”, “botamos Dilma e tiramos, podemos tirar Bolsonaro”, expressões que
implicam em consciência da classe do seu poder de ação. O papel da esquerda para
que a burguesia perca a aposta é o entendimento e canalização para a luta da
insatisfação das camadas oprimidas e a direção revolucionária do movimento que
daí se engendre, em termos pelos quais nos orienta a teoria marxista.
A primeira estratégia do movimento contrarrevolucionário na política, para
manter-se no poder, é criar suas condições de hegemonia (no caso, eleitoralmente
conquistada pela análise da realidade e a negação formulada por Trotsky, mas que
precisa ser socialmente conquistada enquanto poder constituído) reduzindo a força
de atores potencialmente revolucionários. Nesse sentido, constitui-se a reabilitação
da direita, impulsionada pela negação absoluta da era PT, da qual parte dessa
mesma direita fez parte durante grande período, e a desmoralização da “esquerda”,
a partir da demonização do PT, como corrupta, imoral, pedófila e vil. Passa por
esse aspecto também a intenção de criminalização dos atores sociais, ampliando a
Lei Antiterror sancionada por Dilma para abarcar movimentos sociais, dando o
status de inimigo público (essencial ao fascismo e sua realização) ao MTST e MST.
Outro importante polo de resistência ao regresso é o Movimento Estudantil, já
ameaçado de autoritarismo na definição da administração das universidades
(indicadas pelo poder central) e ameaças diretas do presidente eleito a Centros
Acadêmicos e à organização de estudantes, genericamente.

Quem tem direito à educação?


Propor-se a debater esse tema implica colocar o perfil do estudante e as
limitações estruturais a esse direito, que perpassa em diferentes medidas os níveis
básico e superior. Constrói-se o debate em três grandes eixos:

1. Guerra às drogas: territorialização e necropolítica


Já é evidente, embora pouco central ao movimento antiproibicionista no
modelo que hoje se organiza, que a territorialização crescente, e muito evidente em
estados como Ceará e Rio de Janeiro, o peso que tem a territorialização à evasão
escolar e ao acesso a aparelhos de cultura. A localização desses aparelhos, mesmo
quando em bairros vizinhos, se foram conquistados por facção ou milícia inimiga a
que domina o bairro de origem do estudante precarizado, se torna um veto dos que
se estabelecem em tempos de guerra. A frequentação é controlada ou proibida, e de
quaisquer dos métodos surge a evasão de estudantes (e jovens, em geral) desses

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aparelhos de educação e cultura, limitando o direito a essas estruturas e vetando a
educação como direito de toda e todo brasileiro.
Um complemento a esta provocação pode-se encontrar na “necropolítica”,
termo cunhado pelo cientista político e historiador camaronês Achille Mbembe
para se referir ao modo como os governos fazem a gestão da vidas cujo extermínio
condiciona a existência daquele modelo social. Refere-se a regimes de segregação
social como África do Sul e Palestina, mas pode ser aplicado também a como se
vive hoje em diversas periferias brasileiras onde o elemento da territorialização
imprime lógica semelhante. As palavras do filósofo e psiquiatra Franz Fanon
exemplificam a necropolítica ao trazerem “a cidade do povo colonizado [...] é um
lugar de má fama, povoado por homens de má reputação. Lá eles nascem, pouco
importa onde ou como, morrem lá, não importa onde ou como”. Sentido também
produzido pelos órgãos do Estado do Ceará, como a SSPDS (Secretaria de
Segurança Pública e Desenvolvimento Social do Estado do Ceará), ao colocar no
relatório que divulga índices recordes de homicídios no estado, “autorizações” a
essas mortes pelo lugar em que habitam, os direitos a que tem acesso, e um suposto
“envolvimento” como sentença de morte.
A materialização da necropolítica, além dos cadáveres negros produzidos
pela guerra, produz um grupo social que precisa evadir-se de um direito social, a
educação, que estrutura direitos políticos, como democracia e justiça social,
funcionando a lógica da guerra como mais um mecanismo de controle social dos
subalternos, da “cidade do povo colonizado” de Fanon, alçando a localização
geográfica como um dos principais contemporâneos marcadores sociais da
diferença no Brasil.

2. Opressões estruturais ao capitalismo: machismo, racismo, lesbo, homo, bi


e transfobias.
As opressões não cumprem papel menos central, embora cativo a
organização do capitalismo, por isso estruturais, e veta mulheres, negritude e
LGBTs do direito à educação há muitos ciclos do modo de produção capitalista. A
cultura machista dos lares, aliada a cultura do estupro socialmente aplicada e a
cultura da família ideal burguesa, da mulher submissa, mãe e cuidadora do lar, veta
às mulheres esse direito como o racismo estrutural e a necropolítica vetam ao povo
negro esse direito fundamental.
O povo negro, que sofre ainda hoje vedações sociais consequentes ao
período da escravização colonial, e que partilha com a branquitude, em
intensidades diferentes, os efeitos da guerra às drogas, teme contra si a
identificação social as características do inimigo público, que se fortalecem com o
fascismo, tanto para o racismo institucional, quanto para a lógica da guerra. O
extermínio do povo negro tem avançado, bem como se fortalecido no imaginário
social a imagem do jovem negro como o “marginal” (o que é, por estar à margem
dos direitos aos quais deveria ter acesso) e “bandido”, “traficante” ou “envolvido”.

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As LGBTI+, que historicamente sofrem na dinâmica de opressão no local
de ensino que vai da organização escolar (administração e diferenciadores que
balizam o ensino) à LGBTIfobia que parte de outros estudantes, colocando esses
sujeitos como polo de resistência nesses espaços, agora enfrenta um processo de
criminalização social que implica castigos físicos e ideológicos. Na perspectiva
ideológica, o último período marca as LGBTI+ como “inimigas públicas” e
responsáveis por denúncias falsas como “kit gay”, querer transformar as crianças
em travestis e transexuais na escola, e da suposta distribuição de mamadeiras com
formato de pênis em creches pelo país. Coloca-se para o imaginário social os
objetivos do movimento como a destruição da família, a corrupção das crianças e a
derrubada dos costumes burgueses, distanciando tanto quanto possível a associação
entre o movimento e a luta por igualdade de direitos, como saúde, constituição de
família, educação e cultura) com as pessoas cis e heterossexuais. No plano físico,
se mulheres e negritude podem ter, a primeira vista e em termos simplistas, tanto
votado em Haddad quanto em Bolsonaro, o empoderamento de apresentar-se como
LGBTI+ já marca, para nossos potenciais agressores, uma demarcação política. Ao
contrário das mulheres, cuja ofensa ao sistema é sua organização para a luta
feminista, e da negritude, criminalizada a defesa do povo como “querer salvar
bandidos”, apresentar-se como LGBTI+ já traduz em si a ofensa ao que o fascismo
deseja agredir. O veto a direitos como a educação traduz-se a partir daí, e desse
modo tende a intensificar-se.

3. Garantia de direitos
No plano dos direitos, dois determinam em especial o acesso à educação.
O primeiro deles, o direito à cidade. A localização geográfica na cidade
determina a qualidade do ensino da escola que se frequenta e a possibilidade que
essa escola oferece de formação no seu ciclo e ingresso no ciclo universitário. O
acesso à moradia e serviços do Estado como saneamento e saúde balizam o
formato de escola que atende a esse público. O capital marginaliza os subalternos
que já não tem acesso a direitos para que acessem os mesmos cada vez menos, ou
com cada vez menor qualidade ou maior tecnicismo (vide escolas técnicas).
Então vem o direito à moradia, integrante do direito à cidade, mas particular
no aspecto de que a própria estrutura escolar barra quem não tem acesso à moradia
de frequentar o ensino. Normas como fardamento, cor de tênis ou de calça são uma
limitante econômica do acesso a esse direito e que barra de imediato sujeitos que
não tem, no modelo vigente, acesso a esse consumo.
Nessa perspectiva, localizam-se os principais atores da resistência da
educação para o próximo período. Esses setores, subalternizados pelas condições
estruturantes do sistema e do regime, protagonizam as lutas contra o modelo que se
estabelece. Nessa perspectiva, é acertado pautar em perspectiva autoorganizada das
juventudes, a aproximação pelas lutas por viés anticapitalista de mulheres,
negritude e LGBTI+ nas escolas e universidades, já que esses setores, além de

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serem os sujeitos mais atacados no seu direito à educação no período, também por
isso sentem mais fortemente as contradições do tempo e a necessidade de
organizar-se para a luta social.

***

Diante de todas estas provocações, quem está hoje em IES brasileiras?


Segundo o Inep, e considerando as avaliações sobre nosso modelo de educação,
tem-se os universitários distribuídos majoritariamente em universidades privadas
(87,9%) e apenas 12,1% em IES públicas. Em números absolutos, o Estado
Brasileiro se responsabiliza por 296 instituições e a iniciativa privada por 2.152
instituições. A IES pública oferta apenas 7,6% das vagas disponíveis no ensino
superior, mas representa ainda 24,7% das matrículas, entre presencial e EaD.
Em novembro de 2017, vem a público a nova cartilha do Grupo Banco
Mundial para educação brasileira, apresentando em “Um Ajuste Justo: análise da
eficiência e equidade do gasto público no Brasil” uma avaliação para gestão
eficiente (nome higienizado de ajuste fiscal e austeridade no direcionamento) de
recursos e gastos do Estado brasileiro. Nela, o Grupo ativa o Brasil como um país
no rumo certo.
O congelamento dos gastos públicos (que será mantido por Bolsonaro) é
positivamente avaliado no documento. Efetivado pela edição da EC 95, a emenda
congela o investimento primário do estado (folhas de pagamento, ministérios como
saúde, educação, ciência e tecnologia) à ajuste da inflação acumulada nos últimos
12 meses, sem considerar demandas sociais próprias de cada estado e cortando na
carne de quem utiliza os serviços ou é parte do funcionalismo custeado por esse
investimento. Uma das medidas trazida no documento é equacionar o professor (e
seu salário) com um dos centrais problemas do financiamento da educação,
revitalizando mais um inimigo interno a ser combatido nessa esfera. Essa medida
amplia a abertura de vagas em EaD, para compensar evasão e corte necessário para
manter a as IES funcionando, apesar do teto, e que contribui para frear o
movimento social, dificilmente articulável em usuários do ensino à distância, e
referenciado o peso de mobilização necessário para revogar uma emenda à
Constituição.
Considerando o teto, somado a crescimento econômico (variável que inclui
como fator a situação social do país, desconsiderado na emenda) e crescimento de
receitas (quem paga a conta da crise?), em 10 anos os primeiros resultados
benéficos do ajuste apareceriam, indicando o início efetivo do processo de
estabilização da dívida pública.
A luta social e estudantil deve esperar de Bolsonaro uma educação
tecnicista e moral. Não está dado que remonte a estratégias similares à OSPB, mas
um ensino progressista de temas como gênero e artes está dado ao desmonte. No
ensino básico a manutenção de disciplinas e grade recheadas de matérias técnicas é

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o mais possível, paralelo ao desmonte de disciplinas potencialmente críticas, como
filosofia, sociologia e história. Nas IES, espera-se uma submissão à lógica
produtivista, com avanço de métodos privatizantes, como cobrança de
mensalidades, PPP para financiamento de pesquisas, que tendem a se voltar apenas
a demandas de mercado.
Na segunda quinzena de novembro, o presidente eleito anuncia, por
indicação de Olavo de Carvalho e mediação com a bancada evangélica, o nome de
Ricardo Vélez Rodríguez para a pasta da Educação, que pode ser fundida com a
pasta da Cultura e de atribuições ainda incertas.
Ricardo Vélez Rodríguez é professor emérito da Escola de Comando e
Estado Maior do Exército, escritor de mais de uma dezena de livros, entre eles
títulos como “A Grande Mentira – Lula e o patrimonialismo petista”, cuja sinopse
anuncia:
"O PT conseguiu potencializar as raízes da violência, que já estavam
presentes na formação patrimonialista do nosso Estado e que se reforçaram com o
narcotráfico, mediante a disseminação ao longo dos últimos treze anos, de uma
perniciosa ideologia que já vinha inspirando a ação política do Partido dos
Trabalhadores: a 'revolução cultural gramsciana'".
O colombiano naturalizado brasileiro não tem experiência com gestão
pública da educação em nenhuma esfera, e num cargo de tanto poder teremos um
anticomunista assumido. Rodríguez, alinhado ideologicamente ao presidente eleito,
defende suas bandeiras de ataque a liberdade de cátedra, como o Escola Sem
Partido, que pode instituir uma verdadeira polícia ideológica nas escolas brasileiras,
além de profundas dificuldades de consolidação de um modelo nacional de
educação, podendo introduzir na educação à distância desde o ensino básico
(proposta de campanha de Bolsonaro) mediações confessionais ou que sequer
tangenciem um ensino consolidado como científico. A bancada evangélica o
aplaude como um nome na educação que irá “dar autonomia à educação da
família”.
O Brasil apenas muito recentemente atingiu a universalização do acesso ao
ensino fundamental, e ainda enfrenta contradições inclusive geracionais na
formulação do ensino, haja vista que a atual geração é a primeira a ter pleno acesso.
O recuo que se apresenta com o nome de Rodríguez é da apresentação de um
ensino cada vez menos emancipador e voltado cada vez mais apenas a obtenção de
um diploma qualificante a um cargo. Ponderadas as indefinições sobre os limites
jurisdicionais do ministério, o nome representa grave ameaça ao ensino básico, em
especial, tendendo a atuar com revisionismo sobre temas como a ditadura civil-
militar, estudos de gênero e teorias que possam ir de encontro a dogmas religiosos.
O ensino superior ainda está sob competência indefinida para o futuro
governo, podendo ser mantido na pasta da Educação, ou realocado para a pasta de
Ciência e Tecnologia. Ponderado o atraso colocado com o nome de Rodríguez na
pasta de educação, o astronauta Marcos Pontes na pasta de C&T, caso responsável

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pela administração do Ensino Superior, tende a provocar uma educação ainda mais
mercadológica. A Universidade se funda em um tripé composto por Ensino,
Pesquisa e Extensão, enquanto a pasta de C&T aborda sua competência em dois
princípios: Pesquisa e Inovação. Atentar para essas nuances colocam o porquê do
presidente eleito haver apresentado essa mudança como primeira palavra: a
Universidade (e sua produção de conhecimento) a serviço unicamente do Mercado.
Paralelo a isso, tende-se a condução de um desmonte das ciências humanas, que
tem sua produção de conhecimento pouco adaptável a Inovações de mercado, e
através de métodos já em curso, tem apontada como rumo forte sucateamento no
próximo governo.

Tem saída?
Urge pautar, antes de tudo, a necessidade do ensino público, gratuito e de
qualidade, seguido à liberdade de cátedra e de organização estudantil, foco das
resistências ao futuro governo Bolsonaro. Aliado a isso, e de um modo, para dizer
o mínimo, inesperado, a UNE volta a ser combativa, com uma direção aliada de
hora e de programa mínimo na defesa da educação como direito.
Uma perspectiva socialista da educação para o próximo período é pautá-la
de forma intransigente como um direito de todas e todos, e a defesa e
complementação pelo movimento de seu papel emancipador. Dialogar com o
reformismo, que vê a ampliação do acesso à Universidade como medida
aplacadora da classe, que também vê o instrumento como modo de ascensão
salarial. O programa mínimo para a educação deve se balizar pelas insígnias de
defesa da universidade pública, bem como por políticas de assistência e
permanência, andando paralelamente aos acontecimentos na universidade como
potencializadora da capacidade emancipadora da educação, ligada a cada área, a
cada curso que se abra ou se mantenha no país, de modo a construir uma
resistência qualificada e forjada em um método que não suplante o programa, mas
o complemente diante das condições materiais objetivas e subjetivas do tempo
presente.

Texto do camarada Antonio Sousa, escrito para compor o caderno de textos


da Escola de Formação da Insurgência-CE, organização sessão brasileira da IV
Internacional, e tendência interna do PSOL. Compartilhamento restrito a membros
da organização e formações.

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