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PENSAR COM

CONCEITOS
John Wilson

Tradução
WALDÉA BARCELLOS

1,12

Martins Fontes
São Paulo 2001

PAIILISTA W41P

1 .
7r10

Eno o,i,,,10
M~KING iVITH CONCEPTS pe, P,,,s Spulko,
-f 1111 Ullil 11sU, ~fC-Illbl id,,, 1. 1963.
C~RII-~Vh1 C C~1i1~, 19,3.
C~Pp~e111 C 201. LA,,í. FIlItIsEdrIolo Lul,
Só- P1111, pll- - 1.11 diçã~.

12 edição
fiaffio d, 2001

W.d.,ii.
io ............................................................
; . . . . . . . . . . . . . . . VII

IVAWÉA BARCELLOS
L A atividade da aizálise ...............................................
1
ReWâ. d.
1 . o qtie é a análise conceitual? ................................ 1
R,M.
2. Dificuldades e métodos de análise ........................ .16
M,i, LW--, Frw
h.. Pica,~o Buno a)Dificieldades de temperamento ......................... 16
P,W.Çá. ~i~.
Ge~1,1.AI,,s b)Técnicas de análise ...........................................
22
Ngia.0-1F.1.lita.
c)Ai-madillias na lingiiagenz ................................. 38
So,di. 3 Edi,,joi
d)Estilo .................................................................
44
3. Observações complementares ................................ 48
1-1~~ d, Cublo,,j. . po idi.ç~,o (Cli,~ a) Uni títltlo para as técii icas ................................ 48
(CU—r~ Bradiliro do Li~ro, SP, B~d1) 52
b) 0 qiie é inn conceito? .......................................

VV111.. 1928 J.b. ~


PI~1U e-- 1 J.h. WiII.. : É.deça. MIdé.
Sã- P-1-1-: M.11m1 F.nie~, 200 1. – (Fe..eol.$ )
IL Exetizplos de aizéílise ..................................................
59
TiM. -ligi--I: ni.M., ith
ISBN 85-336-M12-8 1. Crítica de trechos escritos ...................................... 59
1. A~2m1 (SI~1~). 2. C.~e,ii., 1. TÇ,.1.. 11. Séje. a)A "República " de Platão ..................................
60
01.2541 b) Um diálogo modei-iio ........................................
68
— CDD-121.4
fadiees Poro c)Passagens mais citrtas ...................................... 75
J.Andliseconeci,à:F,jose tio 121.4
2. Como responder a perguntas sobre conceitos ....... 91
Todos os direitos desta ediÇão Pura a lingu, Portugu esa ese,ados à
a)'A piiiiição deve ter carátei- de i-epi-esália? " ... 93
Livl-ri. Matins Fontes Editora Ltda. b) 'Astrologia é ciência? " .................................... 109
Rna Cans,11,eim Rmalho. 3301340 01325-000 São Pauto SP Baii
TeL (11) 239.3677 Far (11) 3105.6867
e-mail: info@maitinsfontes.coni.br http://"i~.mariinsfotil es. voli .br
III. A filosofia e a aiiálise .. 123
IV Prática eijz aiz álise ...................... 139 Pre-jacio
1. Textos para criticar ................. ...................... 141
2. Perguntas para responder ....... ...................... 164

Este não é um livro sobre o "raciocínio preciso" ou o


"pensamento claro". Sei que há obras sobre estes assuntos,
algumas muito úteis (como Thinking to Soine Pitrpose [Pen-
sando com objetividade] de Susan Stebbing), que ajudam o
leitor a tomar consciência de seus preconceitos e de sua ir-
racionalidade, com discussões e exemplos dos perigos da
parcialidade, dos sofismas, dos argumentos irrelevantes, do
vício de não verificar os fatos. São livros, porém, de utili-
dade limitada, urna vez que os métodos pelos quais se ensina
matéria tão ampla e mal definida como o "raciocínio preci-
so" são quase sempre ecléticos e heterogêneos. Sem dúvida,
tornam o leitor mais consciente da importância da razão e
da linguagem, mas não lhe oferecem uma técrúca coerente de
pensamento, que ele próprio possa aplicar num campo mais
amplo.
Tal técnica, contudo, existe; foi criada há cerca de trin-
ta anos e tem conseguido avanços consideráveis, apesar de
prejudicada pela excessiva subordinação a certas escolas da
filosofia modema. Pode-se dizer, inclusive, que a técnica a que
nos referimos provocou, discretamente, uma "revolução" no
modo como abordamos certas questões.
Chamei esta técnica de análise de conceitos porque foi
projetada especificamente para enfrentar e esclarecer conceitos.
Além disto, a análise de conceitos oferece método especia-
viii PENSAR COM CONCEITOS ix
PREFÁCIO

lizado e adequado de ensino, de modo que se pode aprender Mais que isto, para ser franco, sinto que muitos dos adul~
a aplicar a técnica para responder a muitas das mais impor- tos que se preocupam com "grandes questões" — religião,
-tantes e interessantes questões que tém sido propostas. política, moral, estudos sociais, ciência ou, sirnplesmente,
Compreender os conceitos é necessário, também, em rnui- relacionamentos pessoais — fariahi melhor se dedicassern
tos outros contextos. Para acompanhar as aulas dos cursos pre- menos tempo à aceitação sem críticas das idéias dos outros
paratórios para o vestibular, os alunos têm de ter compreen- e mais tempo para aprender a analisar conceitos. A análise
dido claramente os conceitos básicos específicos de cada ma- conceitual dá estrutura e objetividade ao pensamento, que,
téria; e é erro supor que este tipo de compreensão se "infiltre" sem ela, estaria condenado a vagar sem rumo e ind ' efinida-
automaticamente na cabeça dos alunos. mente pelos meandros do intelecto e da cultura.
A análise conceitual é muito útil também, evidentemen- 0 livro está dividido em quatro partes. No Capítulo 1,
te, para a educação em sentido mais amplo; e é importan- procuro explicar quais são as técnicas pertinentes e como
tíssima também, é claro, para . estimular e tornar mais eficazes podem ser acionadas de modo efetivo. É importante qiie o
a comunicação e a compreensão entre adultos. prirneiro capítulo esteja bem lido e bem compreendido,
' Todos concordam quanto à importância dos objetivos da antes de passar adiante. Nos Capítulos II e IV, respectivamen-
análise conceitual. 0 que nem todos entendem é que (1) a aná- te, aplico as técnicas a conceitos específicos e ofereço alguns
lise conceitual é, de pleno direito,.um "saber" especializa- exemplos ao leitor, como exercício. A aplicação das técni-
do, com técnicas próprias; (2) que sem essas técnicas não cas nesses dois capítulos é feita em dois contextos:
se podem abordar questões gerais — e, de fato, nerlhuma das (i) a crítica conceitual de passagens escritas por tercei-
perguntas que envolvam conceitos abstratos —, senão de modo ros; e
confuso e ineficaz; e (3) que as técnicas, neste caso, podem (ii) resposta a perguntas sobre conceitos.
ser ensinadas e facilmente aprendidas. 0 Capítulo 111 inclui comentários gerais sobre filoso-
Este, portanto, em primeiro lugar, não é um livro para ser fia e análise, para os que desejam avançar no estudo da ma-
lido nas horas vagas, para algo que os meus alunos de ensino téria. Os comentários estão dispostos numa ordem que, para
médio têm o horrendo hábito de chamar de "cultura geral". É muitos, vai do mais fácil para o mais dificil. É mais fácil
um ffi-ro "de trabalho"; em certo sentido, é um "manual", um começar com um trecho escrito por terceiros, porque a novi-
livro didático. dade do assunto estimula a pensar: há uma passagem de
Tenho ensinado estas técnicas, eu mesmo, há alguns texto "palpável" e não nos sentimos totalmente perdidos.
anos, a alunos do ensino médio, com algum sucesso (além Não é muito dificil passar desta etapa para o contexto de uma
de algumas dificuldades e algum tédio); mas não tenho dú- pergunia específica: a existência de uma pergunta (como no
vidas de que obtive resultados 1 melhores do que obteria com caso de um trecho escrito "palpável", embora em menor
as "aulas expositivas", quase sempre muito vagas, que pode- grau) dá ao pensaniento uma cefta forma. A partir daí pode-
ria ter dado e que, quase sempre, dão a impressão de não ter mos passar à tarefa mais dificil de pensar em abstràto sobre
nem objetivo nem método claros, seja para os alunos seja conceitos. Neste estágio, é preciso pensar nos modos como
para os professores que se preocupam com estudos especia- o conceito é usado, sem qualquer ajuda, seja de um texto
lizados, em ambiente extremamente competitivo. escrito por alguérn, seja de uma determinada pergunta.
x PENSAR Com CONCEITOS
L A atividade da análise
Em certo sentido, este livro foi especificamente proje-
tado para atender às necessidades de um grande número de
alunos do ensino médio, que têm de enfrentar o importan-
tís .simo exame vestibular para ter acesso à universidade e
especialmente, para os candidatos a cursos das áreas de "estu-
dos gerais" ou "estudos sociais", nas quais a maior parte dos
exames implica conhecimentos de natureza lógica ou con-
ceitual. Em todos estes exames há, invariavelmente (e cor-
retamente), questões que envolvem a análise de conceitos; e
muitas delas exigem também a crítica conceitual de trechos
fornecidos. 1. 0 que é a análise conceitual?
A mesma abordagem serve também para um adulto não-
estudante que queira conhecer a fundo as técnicas "de pen- Este livro foi projetado para ensinar o leitor a usar cer-
sat`; e, ainda, para os alunos que não estejam às portas de tas técnicas e conhecimentos práticos. Teremos andado me-
algum exame impor -tante. Em todos estes casos, a matéria é tade do caminho, se o leitor conseguir ter uma idéia clara
séria e tem de ser abordada com método. sobre quais, exatamente, são essas técnicas e esses conhe-
cimentos e para que servern. Por isso, para começar, 1 teremos
de dedicar um bom tempo a este ponto.
AGRADECIMENTOS Não é fácil aprender a técnica de resolver equações de
segundo grau, ou escrever prosa em latim ou traduzir do
Gostaria de expressar minha gratidão às muitas pessoas alemão para o inglês; mas nestes casos temos, pelo menos,
que me ajudaram com críticas e troca de idéias, em espe- a vantagem de saber exatamente o que é que se espera de
cial ao Sr. e à Sra. C. H. Ricu. — nós — em outras palavras, o que temos de fazer—, mesmo que,
muitas vezes, não o façamos muito bem. Essas técnicas
e muitas outras têm sido classificadas, há muito tempo, sob
NOTA títulos diferentes: são o que as escolas chamam de "maté-
ri-,is" — matemática, latim, alemão e outras. Muitas vezes,
Não foi fácil encontrar treclios adcqttados parii coincil- para encontrar as respostas corretas para perguntas dessas
tar no Capítulo IL Para simplificar as questões para os alu- matérias, basta consultar um dicionário, uma gramática ou
nos que trabalharão com esses textos, omiti, em alguns casos, um determinado compêndio.
palavras e expressões do texto original do autor; em nenhum . Nenhum destes recursos existe no caso das técnicas que
caso, acrescentei palavras de minha autoria. Procurei asse- se estudam neste livro, em parte porque aqui se estudam
gurar-me de que as omissões não implicassem distorção ou técnicas novas: faz apenas vinte, trinta anos que nos tomamos
deturpaçào dos argumentos originais. plenarnente conscientes delas. Mas também, e principalmen-
J. B. W.
2 PENSAR COM CONCEITOS
A.,1 TIVIDADE DA ANÁLISE 3
te, pela própria natureza das técnicas e do objetivo -eral
para que servem. (i)Uma baleia é capaz de afundar um transatlântico de
Como são estas técnicas? Não são como as "matérias - 15.000 toneladas?
- como latim ou matemática —, que têm normas precisas e (ii)Baleia é peixe?
bem definidas e nas quais as respostas são indiscutivelmen- Podemos descrever a primeirá como uma pergunta so-
te certas ou erradas; são, antes, como certas habilidades bre fatos. Para responder a ela, só temos de descobrir os fatos
específicas — como saber nadar bem ou saber jogar fiitebol. relevantes, seja pela experiência pessoal, seja pela obtençãd
Mas, acima de tudo, são como certos conhecimentos práti- de informações confiáveis de outras pessoas. Podemos ter
cos gerais, largamente aplicáveis, como aqueles a que nos de reunir os fatos e equacionar o problema; assim, podemos
referimos quando dizemos que alguém é "excelente mari- conseguir responder à pergunta — sem termos visto, de fato,
nheiro-, ~lue fulano tem bom "golpe de vista" ou que bel- uma baleia afundar um navio, e sem qualquer informação
trano tem "excelente capacidade de expressão". Essas habi- confiável de que ela seja capaz de fazê-lo — se, por exem-
lidades gerais são úteis num grande número de atividades plo, conhecermos o peso e a velocidade das baleias, a espes-
diferentes. Assim, ser bom marinheiro é útil para quem ve- sura dos cascos de navios ete. Mas, mesmo nesse caso, não
leja, para manobrar um barco salva-vidas, para salvar pcssoas estaríamos fora da esfera dos fatos. Para responder à pergun-
de um naufrágio. Ter bom golpe de vista é grande vantagem ta, precisamos apenas de conhecimento sobre o rnundo e
em todos os jogos de bola. E a capacidade de se expressar sobre al gaumas das coisas que existem no mundo.
bem por meio de palavras ajuda na redação de ensaios, car-tas Mas a segunda pergunta não é deste tipo. Mesmo que
e relatórios, e é importante para que outras pessoas enten- conhecêssemos todos os fatos relevantes sobre baleias e pei-
dam nossos desejos, sentirnentos e carências. Embora essas xes, teríamos dúvidas, ainda assim, sobre corno responder.
habilidades se manifestem em várias atividades diferentes, Por exernplo, poderíamos saber que as baleias amamentam
pode-se ver qud em todas elas atua o mesmo conjunto de os filhotes, como os mamíferos, e que nadam, como os pei-
habilidades. Mais um exemplo: apesar de passarmos muito xes, além de uma boa quantidade de fatos a SCLi respeito; ainda
teinpo em contato com outras pessoas em mtiitas cirCLins- assim, continuaríamos indecisos, por não sabermos se bri
tâncias diferentes — em casa, na escola, no exército, na fá- leia é peixe ou não. Para tentar responder, ainda teríamos
brica, em férias —, sempre sabemos distinguir um talento ott de fazer outra pergunta: "Será que a baleia (sendo o que é)
habilidade especial a que chamamos "ser capaz de se rela- pertence à categoria 'peixe' ou não?"
cionar bem com outras pessoas". Sabemos, até, que esta ha- É importante observar que essa não é uma pergunta se-
bilidade pode ser cultivada; mas também vemos, imediata- melhante à da baleia e o transatlàntico; é uma pergunta de
mente, que aprender este tipo de habilidade tem de ser muito oittro tipo. Pois as técnicas de que vamos falar foram pro-
diferente de aprender latim ou matemática. jetadas para responder a perguntas deste oittro tipo (do tipo
Um modo mais fácil de perceber a natureza dessas téc- (H), acirna), que indicarei pelo nome geral de perglintas s-0-
nicas é exanúnar o tipo de pergunta que elas nos ajudam a res- bre conceito s. Assim, no exemplo, o termo "pie—ixe—não repre-
ponder. Consideremos, para começar, estas questões: senta apenas os peixes "de verdade", que nadam de um lado
para o outro, no oceano; o termo também representa uma
PENSAR COjVf CoiVCEITOS A A TIVIDADE DAANÁLISE 5
idéia, um conceito de peixe – o que o termo designa na nos- direito de ter uma opinião do que o Ministério da Agricul -
sa líri,aua. Poderemos perceber melhor esse aspecto se repe- tura e da Pesca. Um dos pontos de vista é melhor para cer-
tirrnos a mesma pergunta sob diversas formas. Poderemos per- tas finalidades; o outro, para outras.
guntar "A baleia está incluída no conceito de peixe, como Poderemos ver esses pontos com maior clareza e nos
normalmente o usamos?" —0 conceito de peixe normalmente aprofundar neles se examinarinos outro par de exemplos. Con-
inclui seres como as baleias?" Ou, ainda: "0 que normalmen- sideremos as perguntas:
te significamos, quando usamos o termo "peixe", abrange (i)Um hidroavião consegue pousar em mar encapelado?
as baleias, ou não?" (ii)Hidroavião é barco ou avião?
Reformular a pergunta, de um modo que possa parecer Mais uma vez, podemos ver que a primeira é uma per-
desnecessário e excessivamente meticuloso, é útil para cha- gunta direta sobre fatos, enquanto a segunda é uma questão
mar a atenção sobre um ponto: a pergunta refere-se ao sig- mais complexa, sobre conceitos. Para responder à primeira,
ni-ficado. 0 que queremos saber ~ e oque normalmente desig- precisamos de observação e experiência pessoal ou indire-
-
iíamõs pelo termo "peixe"; como se verifica se algo é peixe ta. Para responder à segunda, precisamos considerar os con-
ou não é; o que se conta como peixe. ceitos de barco e de avião, e ver em que categoria inclui-se
Há outra coisa qtie se pode observar– e qiic pode pare- o hidroavião. E, novamente, podemos ver que não hí respos-
cer curiosa – em perguntas do tipo (ii): a resposta depende ta que seja correta em todas as circunstâncias. No caso de
do que se queira dizer com a pala v- ra "peixe". É e,rro imagi- alguém que esteja interessado, digamos, em espaço para pou-
nar que "peixe" fenha um e apenas um significado. Um bió- sar num rio ou em nâo perturbar os ninhos de aves marinhas,
logo profissional oú um especialista em peixes provavelmen- o hidroavião será considerado barco. Por outro lado, para
te dirá que a bal eia
. não é peixe ou que "na realidade" não algtiém que esteja pensando em bombardeios aéreos ou no
é peixe; porque, na classificação dos biólogos, os peixes es- conforto de viagens rápidas, o hidroavião seria considerado
tão em um grupo e os mamíferos em outro; mamíferos, por- avião. É erro dizer que o hidroavião é "realmente" tim barco
tanto, não são peixes; o conceito de peixe excliii os mami- ou "realmente" um avião. Uma vez que saibamos o que um
feros. Mas alguém que trabalhe no Ministério da Agricul- hidroavião, de fato, é –uma s- ez que al,guém, tenha descrito
tura e da Pesca (que lide com baleias e com todos os demais todas as caracteristicas do hidroavião –, considerá-lo barco
seres que vivem no mar) não dará muita atenção à classifi- ou avião é questão de circunstâncias específicas.
cação dos biólogos; usará uma classificação própria, pela qual No entanto, embora se trate de uma pergunta sobre con-
as baleias incluem-se no conceito peixe. 0 homem comum, ceito e não sobre um simplesfato, a decisão _que tomarmos
a menos que por acaso conheça um pouco de biologia, pro- sobre como úsar nossos conceitos fará uma grande diferen-
vavelmente também chamará a baleia de peixe. Portanto, o ç-a- nossas cisoes _pQQerão ser cnteriosqs ou não-- Por exem-
fato de chamannos a baleia de peixe ou não depen— de`-exclu- plo, se perguntarmos a úm funcionlário do escritório de uma
empresa de transporte aéreo se há um avião que possa nos
guntaj~~~er que um ponto . de vista é me- levar a Nova York antes da terça-feira, e ele disser "não",
lhor do que o outro – que o biólogo, po r exemplo, tem mai s ficaremos irritados, com muita razão, ao desdobrir que, embo-
PENSAR COM CONCEITOS A A TIIIIDADE DA AXÁLISE

ra não haja nenhum avião convencional, há, sim, um hidroa- pergunta diante de uma comissão que tenha o poder de dis-
vião. E ainda - continuaríaÉlos iriitados se abordássemos o tribuir grandes somas de dinheiro para a pesquisa científi-
funcionário e lhe-disséssemos: "Olhe, você não me deu a in- ca. Se a comissão perguntasse: "A psicologia é realmente
formação correta: havia um hidroavião que partia bem na ciência, ou está mais perto da astrologia, da bola de cristal
hora em que eu queria viajar. Por que você não me falou e da feitiçaria?" Neste caso, teríamos de decidir: ou incluiiía-
dele?", e o funcionário respon desse: "Bem, não falei por- 15 mos a psícologia na categoria "ciência~' ou na categoria "astro-
Para nos , o funcioná logia-e-feitiçaria". E fosse qual fosse a nossa decisão, ela
1

que hidroavião não é avião; é barco".


'
rio foi pouco inteligente ao ap. Éic ar os conceitos de barco e teria um efeito muito considerável sobre os eventos poste-
de avião. A questã o, aqui, é que as palavras existem para ser- riores. Poderíamos resolver chamá-la de ciência, ou não cha-
vir aos propósitos e aos desejos humanos, e devem ser usadas má-Ia de ciência; ou poderíamos p'referir inventar uma ter-
~ de modo a servi-los bem, efícientemente. 0 funcionário não ceira categoria e, por exemplo, classificar a psicologia como
\
~res22Rdj eu bem porque não percebeu o contexto geral e o
.,
em princípio, uma ciéncia.", ou como "ciência em poten-
Rbie.tivo aã nõssa—co-ns~uitã.—~—sõ--'q-u-e-*náthos sáS~r s~ hãvia cial". Neste caso, seria muito importánte ter total clareza a
transporte rápido, que nos levasse a Nova York: à luz desse respeito dos conceitos: não se poderia nem começar a fazer
contexto e desse objetivo, ofuncionário dà empresa aérea uma escolha sensata sem, antes, analisar e compreender o
deveria incluir os hidroaviões na cateÉoria dos aviões. Este significado de "ciênci&' ou de "ciência em potencial". 0 que,
funcionário dar-se-ia muito bem na capitania dos portos, evidentemente, é mais dificil do ~ue entender* os conceitos
onde todos se preocupam com bóias e espaço para atraca- de avião e de bap-co.
ção e onde, portanto, os hidroaviões têm de ser vistos como Antes, poréii), de passar para as questões mais complexas
barcos; mas nào ajuda nada numa empresa aérea. sobre conceitos, com as quais nossas técnicas trabalham,
Esse é um exemplo inuito simples, para mostrar o que temos de tentar estabelecer cóm rriaior clareza o que inos in-
é uma pergunta sobre conceitos, em seus eleiiientos básicos teressa, precisamente, quando analisamos conceitos. Sabe-
essenciaís, mas não basta para mostrar a enorme importân- mos que não nos interessa descobrir fatos novos. Também
cia prática deste tipo de pergunta. Nem sempre os funcio- é importante perceber
-
que não estamos interessados em va-
nários de linhas aéreas são tão bobos. Mas suponhamos que lores ou juízos m orais, nem no que esteja realmente certo
fizéssemos outra pergunta sobre conceitos: "A psicologia é ou errado, ou seja, bom ou mau.
ciência?" Para começar, pesquisaríamos os fatos a respeito Consideremos três perguntas:
da psicologia e, talvez, acabássemos por concordar que a psi- (i)É.provável que o comunism o. se espalhe pelo mundo?
cologia tem aspectos em comum com ciências como a fisi- (ii)o comun ismo é um sistema desejável de governo9
ca e a química, além de características que são totalmente (iii)0 comunismo é c91opatível com a democracia?
diferentes. Assim, dizer que a psicologia é ciência ou que A primeira é uma pergunta sobre fatos. Pode aconte-
não é passa a ser questão de escolha. Posta nestes termos, Í
cer de não termos capacidade para dar uma resposta defi-
pode parecer que a escolha'seja puramente acadêmica. Mas nitiva, cuj6 acerto possamos provar, porque a pergunta (i)
suponhamos que sejamos obrigados a responder à mesma pede uma previsão do futuro. Mas 1 as únicas evidências
8 A A TIVIDADE DA ANÁLISE 9
PENSAR COU CONCEITOS

relevantes para a resposta são fatos sobre o comunismo e inocência do réu - responder "Ali, bem, depende do que
fatos sobre o miindo. A resposta pode ser duvidosa, mas você queira dizer com 'culpado'; é questão de palavras e de-
não pelo fato de termos qualquer dúvida sobre o valor do finições".
comunismo ou sobre o conceito de comunismo. Será duvi- Já dissemos acima que perguntas.sobre conceitos têm
dosa, sim, por não termos certeza da direção que tomarão a ver com o significado; rnas isto, apesar de também ser
os fatos - ou, quem. sabe, apenas porque precisemos de verdade, não é muito adequado. Suporlhamos que a pergun-
mais fatos. ta "Hidroavião é barco?" esteja relacionada ab significado
A segunda pergunta, por outro lado, pede que atribua- da palavra barco. A suposição soa um pouco estranha por-
mos algum tipo de valor ao comunismo: pergunta-nos se ele que sabemos rnuito bem o que significa a palavra barco;
é bom ou mau, sábio ou não, se está certo ou errado, se, em não é uma palavra fora do comum ou excepcional; mas di-
termos políticos, é desejável ou indesejável. A segunda per- ganios que nosso problema fosse a palavra àssintótico- ou a
gunta, portanto, é questão de juízo de valor. palavra polimorfo. Se soubermos francês ou alemão, pode-
Mas a terceira pergunta é questão de conceito. Temos mos traduzir as palavras para os dois idiomas, sem dificul-
de considerar se o conceito de comunismo "cabe" ou "não dade. 0 mesmo vale para palavras mais complexas como ciên-
càbe" no conceito de democracia. Mais uma vez, no fim, a cia, comunismo e democracia, dentre outras.
resposta pode acabar "virando" questão de escolha: é pro- Em certo sentido, sabemos bastante bem o que sianifi-
vável que parte dos conceitos se encaixe bem e parte se cam estas palavras; e, se não soubéssemos, sempre podería-
encaixe mal ou não se encaixe. Não teria sentido propor mos consultar um dicionário. Mais um exemplo: suponha
'
uma pergunta sobre conceitos se a resposta fosse óbvia: é que alguém diga "Aquele é um bom livro", e nós lhe per-
tolice perguntar "A tirania é compatível com a democra- guntemos "0 que você quer dizer com 'um bom livro'?".
cia?" porque todos sabemos que tirania e democracia são É uma pergunta perfeitamente razoável e é também ques-
conceitos diametralmente opostos. tão de conceito, porque o que queremos saber é o que a
.Com o tle, ent-ç-i(2,_ç~stamos realmente. lidando ao-ana-_ pessoa inclui na categoria "um bom livro". (É como se
UI-~ar conceitos, se não estamos lidando com fatos ou valo- alguém dissesse "0 cornunisrno é perfeitainente democrá-
res? Em certo sentido, é verdade_que, neste caso, estamos tico", e lhe perguntássemos "0 que você quer dizer com
lidando apenas com palavras---palavras como barco, cien- 'democrático'?") Nern assim alguém poderia dizer que esti-
éí-a—djni—ocr
— acia_ cou~ tras. Mas- a, resposta-é enganosa por- véssemos perguntando pelo significado da palavra "bom".
"BorrV' é um termo muito comum, qtie usarnos corretamen-
que impjiça-que-estejainos-lidando-com algo-que não-te — m
nenhuina importância real ou prática. E nós yjmos, nos casos te todos os dias; significa, aproximadamcnte, o que é "digno
dõ Tãneionáriodã li-n-hã-ãé--rea e da comissão de b'olsas -para de ser elogiado", ou "digno de aprovaçâo" ou "desejável". To-
dos sabemos. Mesmo sabendo, contudo, ainda perguntamos:
pesquisa científica, qlLe_q_irugoo_çorno -decidimos fixar-nos-
"0 que você quer dizer com 'um bom livro'?" t
sos conceitos (ou usar nossas palavras, como queiram) é
ito imporiante. De pouco adiantaria - se fôssemos jur~ 0 melhor modo de abordqr este ponto é dizer que,
ÚW a
perguntas sobre conceitos, não estamos interessados no sig-
dos ãum julgamento e tivéssemos de decidir pela culpa ou
ri

10 PENSAR COM COjVCEITOS A A TIVIDADE DA AiVÁLISE

nificado de uma palavra. As palavras não têm só um signi- te evoluída e razoavelmente precisa, e a prova visa a testar
Já—
cadoNa reafi-d~~de, e'm certo sentido, elasliãõ têm ãgsõ- nosso conhecimento da éiência e não, de modo algum, nos-
lutamente nenhum sií-Cl adoíl~ír~17in- se-co;--s-6 significam na sa capacidade para analisar conceitos. Mas se nos pergun-
rij~dida em que as .pessoasas--usam -d-e vários . mod-es.—O me- tassem "0 que é trabalhe?" numa prova de redação do exa-
; . me vestibular, nossa abordagem teria de ser totalmente dife-
lhortilos
efe
. é dizer que_o_q,ue nos interessa sao os lisos possi ve i s e
das palavras. E por isto que de nada adiarita procurar rente. Teríamos de começar a pensar sobre o conceito de
no aicionario o signlilcacio cie caGa palavra: não ajuda em trabalho como é tisado no dia-a-dia, não como o usa a ciên-
nada.'Quando perguntamos "0 que você quer dizer com" um cia da mecânica. E não há definição de "trabalho" para usar
boin livro'?':, o que estamos realmente dizendo é "0 que é no dia-a-dia. Teríamos de registrar os vários usos da palavra,
um bom livro para võcê?" ou "Quais são seus critérios para os diferentes significados -queelã -— tem emcontexcos—dife-
dizer que um livro é bom?". ne-ntes-e -ã -s-sim
—põr -diãnt~.- Teríamo~-de ãíiãlisãr o conceito.
Às vezes, agimos com-o se - só tivéssemos - de descobrir — lecer alg umas coi-
ÃUe'ãqui, -nos o c- upãmos --em -est-ab--e—
o "verdadeiro" significado de tima palavra - "democracia-, sas,corn as quais as perguntas sobre conceitos iião estão
"barco" ou "ciência" - para que a resposta à nossa pergun, relacionadas; e isto é importante porqtie há_llema~t~ão
ta ficasse óbvia. Infelizmente, não é tão simples. Basta pen- permanente-Utratar tais perguntas cbmo outro tipo de per-
sar um momento para ver qtie palavras como "democracia" gunta - em parte porque a noção de `pergt~ttgs sobre co-n~
e "ciência" - e também a palavra "barco" - não têm "sig- ceitos" e as técnicas vara trabalha~_Com elas são--bastonf
nificados verdadeiros"; os usos e as aplicações é que são di- recentes; e em parte porque é _precLso irLiiita pLaÍtiq_a para
ferentes. Nossa tarefia é analisar os conceitos e mapear.seus apreender-c-compreender~-a-fundo-a-natureza das questões
usos e aplicações. dé conceito. —
D9 mesmo m-odo, não devemos cometer o erro de pen- Perguntar sobre conceitos não é, portanto, perguntar
sa~_que res pand~r a perguntas sqbre conceátoséiqu estão-de sobre fatos. As questoes d -e-cõn-ceitõ-n-a -o--s-ao~rgunta
_pe - Sso-
"definir os- termos que alguém usa" e que deveriamos co- 15fájúlzÕs'U~vIor; nem sao pergii_ntas_ que tenham a ver,com
-meçar-Foi'~ ua definição de-"cie~n'cia", "democracia" ete. Só os sigiiificados das palavras ou com as definições das pala-
se pergunta "o que é" alguma coisa quando não se conhece vras. Então o ,que são 9.—
...

a definição das palavras que se ouvem.'Ou talvez se possa Tudo o que dissemos até agora é que elas têm a ver com
dizer que as palavras não têm definições, só têm usos. os usos— d as avras
p~al e co-m-os crit-rí- n ' ijs— pelõs
. ad JsMas tudo isto ainda áre-
Algurnas palavras, é cláro, têm, sim, definições precisas: quais os usos sao iJe— termin-
em geometria e mecânica, por exemplo, as palavras "triân- de muito vago e e p~ec~iso prqRtrrar melhor respósta. Tomemos
gulo", "linha reta", 11 ponto", "força", "massa" e "trabalho" 611tr6 - 9—ria-po de perguntas:
são muito precisamente definidas. Se, na prova de mecánica, (i) Vocês têm, na Rússia, a liberdade de votar como qui-
nos perguntarem "0 que é trabalho?", saberemos que teremos serem?
de iepetir a definição que consta do livro de mecânica.* Mas (ii) A liberdade de votar como se quiser é algo positivo?
isto é assim porque a mecânica é uma ciência extremamen- (iii) Será que algum dos nossos atos é realmente livre?
12 PENSAR COM CONCEITOS A ATIVIDADE DA ANÁLISE 13

E mais outro grupo: (ou o bom tempo) do dia seguinte" não sejam noções difi-
(i) Os gregos consideravam certo manter as mulheres ceis ou misteriosas em termos lógicos, as noções de "livre"
em posição inferior à dos homens? * "certo", sim, são logicamente misteriosas. ,
(H) Você considera certo manter as mulheres em posi- Quando enfrentamos perguntas desse tipo, começamos
ção inferior à dos homens? * ter um vislumbre do que seja um mistério lógico. E há
(iii) Pode al,guém estar certo sobre o que é corto? outros: "Como sabemos que toda a nossa experiência não é
Agora sabemos o suficiente para identificar a primei- só sonho. ou alucinação?", "Todos os homens são iguais?",
ra pergunta de cada grupo como questão sobre fatos; a se- "Todos os nossos atos são predeterminados?", "0 que é a
gunda, como questão sobre valores; e a terceira, como ques- verdade?", "A beleza existe?", "A fé e a razão são opostos?",
tão sobre conceitos. No entanto, as mesrnas palavras são "Deus existe?". 0 mais curioso é que todas estas perguntas
usadas nas três perguntas de cada grupo: "livre/liberdade" estão construídas com palavras que nos são muito familia-
no primeiro; e "certo" no segundo. Mas, na primeira e na res: "sonho", "igual", "verdade", "beleza", "fé", "razão" e
segunda pergunta de cada grupo, parte-se do pressuposto de "Deus". Algumas podem incluir palavras que fazem lem-
que sabemos muito bem o que significara "livre" e "certo" brar o jargão dos filósofos, como, por exemplo, "predeter-
— como, de fato, em certo sentido, sabemos. Nas perguntas minado"; mas, em geral, só incluem palavras comuns na
(i) e, (H) não há nenhum problema lógico, nenhum proble- fala diária. Mas, mesmo assim, as perguntas acima dão-nos,
ma de significado oli liso; mas há problemas deste tipo na de algum modo, uma impressão de esti-anheza. Não são per-
terceira pergunta, nos dois grupos. guntas como as que normalmente fazemos, no dia-a-dia.
Observe-se que, se não estivéssemos alerta para tim certo Ou, pelo menos, são perguntas que só fazemos quando esta-
tipo de problema, facilmente deixaríamos de perceber qtie mos naquele estado de espírito que nos leva a conversar so-
os problemas, neste caso, são problemas lógicos. Não há nada bre o que, de modo geral, chamamos de temas "abstratos". As
naforma da pergunta que nos informe que estamos diante pessoas raramente se propõem questões como, por exemplo:
de uma pergunta sobre conceitos. A forma gramatical de "Será que sempre ajo livremente? Ou estou sempre domi-
— Pode alguém estar certo sobre o que é certo?" é semelhan- nado por algum tipo de compulsão?" ou, digamds: "Vai ver..
te à forma de "Pode algum ato hitmano realmente destruir a vida é só urn sonho". Sim, perguntas como "Deus exis-
o mundo?", que é uma questão sobre fatos, que envolve co- te?" são mais freqüentes e não parecem especialmente es-
nhecimentos sobre fissão nuclear, bombas atômicas etc. Do tranhas. Mas pode-se ver que esta pergunta é significativa-
mesmo modo, a pergunta: "Pode alguém estar certo sobre mente diferente de outras perguntas que, à primeira vista,
o que é certo?" é parecida com "Pode alguém estar certo parecem iguais a ela; por exemplo: "Existe vida em outros
sobre se choverá ou não amanhã?", que é uma pergunta so- planetas?" ou "Existem unicómios?", que sào perguntas so-
bre condições meteorológicas, não sobre conceitos. bre fatos. 0 conceito de Deus é um conceito niisterioso, embo-
É muito importante perceber o quanto pode ser enga- ra todos usemos, todos os dias, a palavra "Deus".
nosa a aparência da pergunta; e isto significa que temos de ter Este tipo de pergunta nos convida a levar a sério con-
em mente que, embora "a destruição do mundo" e "a chuva ceitos aos quais, até o momento, havíamos dado pouca aten-
w

14 PEiVSA R COM COjVCEITOS A ATIVIDADE DA ANÁLISE 15

ção. É como se alguém no s pedisse_q~le nos t_quiã~~ernos * que queremos dizer quando afirmamos, em gacometria, qtie
conscientes de palavras que, até então, usávamos sern pen- * linha AB é igual à linha CD ou que duas equipes jogam
s~r- - não -que,-necessariaméíífe-.ã~s-tivéssem-õs ~isádo—íricor- com o mesmo número de jogadores. Mas, quanto a todos os
rLtCm— ente~as usamos, sim, sem prestar-atenção a elas, qtiase homens serem iguais, como entender esta frase?" ' Temos a
~em vê-- s. Ia' impressão de uma bola de barbante que tem de ser desemba-
_':__U~ processo é bastante semelhante à psicanálise ou aos raçada com cuidado; ou de que temos de *classificar uma enor-
exames de consciência e confissões praticados pelos reli- me pilha de objetos; ou de que temos de mapear uma gran-
giosos. Em todos estes casos, somos convidados .a agir mais de área de terr~a
conscienteniente, a encarar mais objetivamente os nossos atos Talvez esta última comparação nos ajude a avançar um
e a refletir sobre eles. Até aquele momento, nos contenta- pouco. Fazer um mapa de uma região, como aprender a . lidar
mos em agin--a pãrtfF-destas perguntas, passamos a ter de com conceitos~ é essencialmente um processo no qual nos
tomar consciência do significado dos nossos atos. Do mes- conscientizamos do ambiente normal em que s -ivemos. Usa-
momodo,q1~ ~d o li~amos com . perguntas-sobre conceitos, mos a região por algum ternpo, no sentido de qite passamos
~ornos—"convidados'~ a-tomar consciência do significado das por ela e aprendemos a nos orientar por ali. ivías não somos
~ossas-palayLas. objetivamente conscierites da região, como teremos de- ser se
Mas, uma vez iniciado o processo, logo vem a fr -ustração. quisermos fazer um mapa. Conhecemos o caminho de uma
Algiíém nos pergunta "0 que é o tempo?"; e, como "tempo" cidade para outra, e podemos saber que algumas partes da
é uma palavra que usamos todog os dias, respondemos, des- região são montanhosas, outras cobertas de bosques, e as-
preocupados: "0 tempo? Bem, o tempo é o que passa quan- sim por diante. Mas não conseguimos fazer um esboço no
do uma coisa acontcce depois da outra. Para saber que horas papel, por menos preciso que seja, porque não conhecemos
são, há os relógios. E também pode-se usar o sol. Fala-se a região do ipiodo específico conio é preciso conhecê-la
que o tempo está passando 0 tempo e como tim rio...
... pap-a niapeá-la.
mas logo percebemos que não conseguimos explicar o con- Do mesmo modo, trabalhamos com palavras a vida in-
ceito cóm clareza. teira, usanios palavras com sucesso para nos comtinicar coiii
-As perguntas sobre conceitos parecem estranhas por- nossos semelhantes; iiias nem por isto nos conscientizaiiios
dos significados das palavras.
sq
qtie não sabemos como r~sponder a elas. "Todos os homens
s ãao
-uais?"
i, Como alguém pode responder a esta pergunta? A conscientização não é um processo simples; não é
Por onde se começa? 0 que seria considerado uma respos- tão simples', por exemplo, quanto aprender uma matéria que
ta 'adequada? A: pérgunta inteira é um mistério. "Igziais? lida com fatos concretos, como a fisica; ou uma matéria em
0 'que você quer dizer com 'iguais'? Iguais a quê? Iguais que as regras são estritas, como a matemática. Conscienti-
em quê? Qual a intenção de quem diz que todos os homens zar-se é mais parecido corn aprendér um j ogo.
sao guais, ou que nao sao. à 9 Em que circunstâncias interessa- Para ser bom em qualquerjogo, é-preciso perceber cla-
Çrnia au' alguém diz er que sim? Ou dizer que não? E que conse- ramente "o que está em jogo" - qual é óiobj~etivo dó-jogo,
quencias práticas teria cada urna destas respostas? Sabemos corno sé--gãnhã oque ~conítapontos e é precis omuita—prá--'
16 PENSíIR COM CONCEITOS A A TR7DADE DAANÁLISE 17

tica. Mas ouvir o técnico também ajuda muito, pois sempre (1) Urna das selisações mais preocupantes que podem
há regras, preceitos e princípios úteis. Mas os conselhos do se abater sobre as pessoas quando começarn a usar -essas
técnico não serão úteis, se não forem aceitos corn a mesma técnicas é a sensação de estarem irremediavelrnente pei-di-
intenção com que são oferecidos. Um conselho útil no tênis, das. Alguns temperamentos, mais do que outros, gostam
por exemplo, é "Mantenha o braço bem estendido, e não _~fá- c tudo seja expresso de modo claro e organizado, sob titu-
dobre muito o cotovelo". Mas há ocasiões -junto à rede, por los separados, corno os ditados que anotamos nas aulas, de
exemplo - em que este conselho deve ser ignorado. 0 trei- história do curso fundamental; ou como, digamos, armamos
nador não pode fazer uma lista completa de todas as exce- uma -equaçao em álgebra ou um teorerna em geometria. Já
ções porque niuito depende do jogador como indivíduo, do vimos o suficiente para perceber que nossas técnicas nào se
adversário, das condições da quadra. 0 jogador que esteja prestam a este tratamento. Ningitéiri-pade dizer-~~Sobre-o_
sendo treinado não deve nem ignorar o conselho nem levá-lo ,íwnceito de ciênciaL is_p~ritoihá os sei s segiluites;j~~~
excessivamente a sério e aplicá-lo sempre; e não deve pen- que vocês os tenham anotado-e--decorado, saberão tudo o
sar que se o seguir sciilpre j ogará necessariamente tim boiii qiíe-há a aprender". Quem quer que pen~é em dizer-ist já—
tênis. Deve aprender a considerar simultaneamente os con- èstá muíto dísta— . nié_da-verdade~
selhos e a prátUc~íU(~-jogx~_eM-si;-tem de transitar-semp e e~ii —Toda essa- históría~ é múito mais complexa, Acontece
tre o conselho e a _~Ç
situ ~aseal da-qLiadra, de um para outro. com freqüência de pessoas que têm as idéias muito "arru-
So assifn o jogador- tiraiá-Q-má?çimQ- poveito= dQs-treinose— madinhas" ficareni com a impressão, ao final de uma d -is-
dos conselhos. eussão sobre conceitos, de que ninguém chegou a nenhuma
conclusão: "eles não chegaraiii a lugar nenhum"; ninguém
apresentou a resposta
2. Dificuldades e iiiétodos de análise —(2)-Por -õutro l-a-do, há os que têm a sensação de que as
perguntas sobre conceitos podem ser resolvidas muito mais
a) Diftcííldatles de tejizperaiiieizto facilmente do que de fato odorre. Pode acontecer de pes-
soas inteligentes rnas excessivamente impacientes terem a
Mesmo sob o risco de parecer arrogantes, temos de sa- irnpressão, durante urna discussão, de qúe "eles estão 'pro-
lientar, desde já, alguns obstáculos ou resistências psicológi- curando pêlo em ovo'! É óbvio que o tal conceito sigliifica
cas ao uso das nossas técnicas. Estes obstáculos são ao mesmo simplesmente isto ou aquilo. Não há a menor necessiãade
tempo os mais dificeis de superar e os mais dificeis de des- de tantos detalhes!" Como veremos, a ríciueza do uso e do
crever ou explicar. Não é intenção deste livro investigá-los
- significado da maioria~dos— c on-ce-i-to-s inte-ressantes é tal que
em detalhe; mas, como são de grande importáncia para a seria perfeitamente possíveLexaminar-o mesmo conceito.pQr
prática das técnicas, pode ser útil que o leitor os tenha diante semanas a fio e ainda termiais a aprender.
dos olhos, como um lembrete - apesar de serein freqüente- - ---- - (3) óufra- -s e- nsação que às vezes acornete aqueles que
mente óbvios e apesar de, em certo sentido, serem bem co- se acostumarn com facilidade às técnicas pode ser descrita
nhecidos do leitor. como urna curiosa comptllsqo em analisar tudo. Não é rnuito
w

PENSA R COM COjVCEITOS .4 A TIvIDADE DA ANÁLISE 19

diferente do desejo de tudo interpretar à ILiz da psicanálise, que de que o que dissermos haverá de nos levar a alguma con-
às vezes acomete pessoas qtie se dão bem com a teoria psi- elLisão. Pode ser que leve e pode ser que não: mas se não dis-
canalítica oü que freqüentam círculos de psicanalistas. A aní- sermos alguma coisa, não teremos nem por onde começar. Urna
lise transforma-se em vício, de tal modo que as pessoas se das coisas mais importantes a ctiltivar, portanto, é a fluên-
flagram na ânsia de analisar não só conceitos como ciêizcia, cia, entendida como a capacidade para apresentar idéias e
liberdade, democracia e outros, mas também conceitos per- enunciados, livremente e de bom grado. E o bloqueio men-
feitamente comuns, como nzesa e cavalo. Sem dúvida, num tal que nos impede de ser fitientes é, pela rnesma razão, tima
certo sentido, vale a pena analisar todos os conceitos, até os das coisas mais importantes a evitar.
mais ~implà. E temos de admitir que algumas palavras que (5)Em contraste com essa atitude, há uma espécie de
parecem simples - como "todo", "se" ou "é" - estão entre fluência superficial que mais irnpede do que auxilia o fitixo
as mais importantes para quem estuda - lógica informal. No - ~o— pen samen-tõ, põrqtte o obsctirece'com uma' enxurrada de
entanto, pelo menos na prática, o melhor é isolar alguns con- palavras. Há pessoas que não se dão bem com o tipo de deba-
ceitos,que merecerão atenção especial e deixar de lado os te que nossa matéria exige, mas que adorarn fazer longos
restantes; para isto, é essencial u.m senso de proporção. discursos ou manifestar as opiniões mais prolixas. Solicitadas
(4) Em seguida, há a incapacidade ou a falta de dispo- a fazer o rnapa de tima parte da cidáde, estas pessoas mar-
siçao para convqr aLou.de ~ater, seja consi-o mesmo, seja em cham com'confiança e rapidez pelas ruas que supõem ser
discussões amplas. Na maioria das disctissões, tanto sobre con- as principais, sern ver as transversais e sem dtividar de que
ceitoscomo sobre outros assuntos, quase sempre há pessoas as "sLias" rtias sejam mesino as principais. Este método é
que permanecem caladas; pessoas qtie, dé certo modo, têm cansativo e pouco prodLitivo, com escassos restiltados. A
a sensação de que não podem dizer nada. Talvez tenham medo fluência, neste sentido, é rnais típica dos discursos políticos
de fazer "papel de bobo"; rhas expor se ao risco de fazer e da publicidade do que da análise de conceitos.
"papel de bobo" é um dos principais reqttisitos para apren- —(6) inaí-
_FE ~,-e -i l~~1 a difictild ,,i'ãe mais freqüente
ment a
der seja o que for: sem tentar (e, portanto, sem alguns fra- de todas, há o clesej~ de dar lições_cle rnoral.-Há palavras
cassos), ninguém'alcança o sticesso. que servem como estímulos emocionais para muitas pes-
Isto também se aplica ao que se pode chamar de debate soas porque, além do tiso que se faz delas na fiala comtim,
interior, ou seja, pensar consigo mesmo, eiii silêiicio o tt eni trazem também implicações dd valor. Assim, para recorrer
voz alta. Uma boa parte do perisanienlo con~trutivo é seme- a exemplos óbvios, as palavras coniunisnio e democracia
lhante a um debate interior ou Le~onstrução-de-uma-diaJáti- têrn um valor negativo e tim valor positivo, respecti .vamen-
ca: você concentra-se nurria idéia, depois pensa em outra te, para grande parte das pessoas no mtindo ocidental; pode-se
~déia pa~~~imeira, pondera as duas.idéias, com- dizer que uma das palavras tem chifres e que a outra tem uma
para-as; sendo o caso, talvez pense numa terceira idéia, e auréola. Num exemplo mais sutil, a palavra ciência pode
assim por diante~_', denotar, para alguém, avanço e progresso, futuro melhor,
Especialmente no caso ' de perguntas sobre conceitos, é_ abordagem mais sen'sata e prática etc.; e, para outra pessoa,
muito importante dizer~algo, como uma espécie de garantia a rnesma palavra pode sugerir os horrores da guerra atômi-
20 PENSAR COM COjVCEITOS A ATIVIDADE D.4 ANÁLISE 21

ca, a dCSUrnanidadc das máquinas ott atitiides Calculistas, tentar (como um jogador que preferisse não tocar na bola e
frias e insensíveis etc. De fato, são poucos os conceito que, se fosse obrigado a fazê-lo, a passasse imediatamente
não abordamos de modo até certo ponto subjetivo e precon- para outro jo,gador).
ceituoso. Conseqüentemente, há uma tentaÇão permanente Por trás da idéia de "analisar conceitos" está, portanto,
de—
— us ar e manipular estes conceitos como armas, em vez de o talento ainda mais abrangente para "conversar" ou para
na 1 i-~á--1-6-s como
_ ~
tema de estudofasta considerar a quan-

comunicar-se"; e para fazer uso desta habilidade temos, aci-
tidade
- de tempo que foi gasta para dizer algo de positivo ou ma de tudo, de aprender a reconbecer cada jogo específico
negativo sobre o comunismo, em comparação com o tempo que esteja em andamento e aprender a participar dele. As-
dedicado a apreiider alguma coisa sobre a natiireza do con- sim, quem cede ao desejo de dar lições de moral, não con-
ceito de Comunismo~ segue conversar a respeito de conceitos e só sabe fazer pre-
leções com eles, não está, no fundo, participando do jogo: o
Poderíamos alongar consideravelmente esta lista, mas que faz é uma espécie de trapaça. Do mesmo modo, quem
talvez seja mais útil appntar um fator presente em todas as insiste em analisar cada um dos conceitos a que se refira
nossas dificuldades: Lodas elas _sãos-essencialmentefalhas um enunciado está jogando, por assim dizer, com exagero
da conzitiziccição. A análise de conceitos é uma forma muito (como o jogador de futebol que insista em fazer firulas
sofisticada de comunicação. São poucas as re-g-ras fi-xas, s-e diante do gol, em vez de chutar forte e direto). A comunica-.
é qti e há-algu-ma.-E.pre.cisamos aprender a avançar, como já ção envolve, portanto, reconhecer o jogo específico e entrar
vimos,- do mesmo modo domo aprendemos um jogo ou como nele plenamente.
aprendemos a nos relacionar com as pessoas, ou sej . a,jogan- Há quem pense que a análise de conceitos seja um jogo
do e nos relacionando - em outras palavras, tanto ela-p a- dif leil de reconhecer e praticar. Na minha opinião, é um jo-
ticg do-jogQ-e 02 relacj'onamento quanto elo aprendizado go dificil de reconhecer, mas muito fácil de praticar: por isto
das nornias._Por assim dizer. é Dreciso ter fé no mer- nos dedicamos, até aqui, ao esforço de explicar exatamente
'gulhar-nele, alerta e atentamente, mas sem excessiva ansie- de que tipo de jogo se trata. Sob este aspecto, também, apren-
dade~. Temos áe estar interessados - ter vontade~-de alcançar - der o nosso jogo é como aprender a nadar. 0 mais dificil é
o sucesso, mas nao pódemos estar preocupados; temos de
aprender a "sentir" a ágtia - em última análise, chegar à per-
estar controlados, mas não podemos estar inibidos. Algiins cepção intci-ior clo fato de qtie a água realinente stistenta o
pcczini por uiii lado C IlãO SC CIIVOIVCÉII 0 suficiente; acreditalil
corpo. Consegiiido isto udo inuda~ — e iiadar passa -a parecer
que a história pode seu facilmente resolvida, ou que basta- ~acil. E-co~no se ocorresse uma espécie de estalo na nossa
rá um de*seus discursos para quetodos "aprendam" todas
cabeça e v~ de repente, o que de fato "estava-em-iogo".
as respostas. Assim,. estão longe da situação real: falam
Do mesmc) rnodo, ao aprçnder a analisar conceitos~ vq-
sozinhos e não conseguem se comunicar, não partidipam um jogo novo - oJ2g~q_de -ver
corretamente do jogo (como uin jogador de futebol que- não ,cê é convidado a-participar d.e
as~ palavras a partir de um novo ân-14lo, -a -espécie de
_xIm
passe a bola para ninguém). Outros são excessivamente an-
11virada~1.mental- Depois de alguns esforços, você entende-
siosos e preocLipados: sentindo-se perdidos e incapazes. de _h-
enfrentar a situação, mantêm-se calados e optam por nem rá tudo! Em alguns casos, nem é preciso muito trabalho. a

22 PENSAR CO211 COjVCEITOS AA TIVIDADE DAANÁLISF 23

gente que tem natLiral facilidade ppira-aprender a nadar, assim pergunta sobre conceitos apresentada em forma ptira. É pos-
como há gente que precisa de mais tempo para ganhar a con- sível, mas improvável, que alguém nos faça tima pergunta
nçanecessária.—E1 ós melhore-~~á~fadSr~c~fi~èíã- s-e~mpre s a- o
_~ia— como "Qual é a natureza ló,gica do conceito de punição?"
aqueles que mais rapidamente aprenderam a nadar. Quase sempre o que se encontra são perguntas mais confu-
As pessoas, naturalmente, têm temperamentos diferen- sas e complexas, como, por exemplo: "Devem-se punir as
tes. E meu principal objetivo nesta parte do livro é chamar a pessoas internadas em hospitais psiquiátricos?" Nesse caso,
atenção para os tipos de dificuldades pelas quais todos pas- a pergunta, por assim dizer, nos convida a participar de diver-
.
sam, ou seja, as dificuldades vivenciadas no aprendizado je sos j ogos diferentes. Para responder plenamente à pergunta,
um novo jógo, no aprendizado de como se comunicar de uma é necessário: (i) analisar o conceito de punição; (ii) ter al-
nova forma. É por esse motivo que falei tanto na análise de gum conhecimento concreto do tipo de pessoa que realmen-
conceitos como um jogo: não que a questão não seja séria te está internada nesses hospitais; e (iii) expressar algum
e importante, rrias porque, por. ser sernelhante a um jogo,a tipo de opinião moral sobre se tais pessoas devem ou não
análise de conceitos não é como decorar alguns fatos, como receber punição. Em outras palavras, esta é uma pergunta
esf6r~ ã~--sé* pará sã s zir as pes- mista, que envolve não só a análise conceitual, nias também
~caa~ p-iara que v-otem em voce, atividades cuias dif i_culdádi—es considerações sobre fatos e sobre juízos de valor. Para exa-
sào muit~_difie— rentes. C-m - isso em mente, e com a ~j-ud— acie rninar otitros exemplos, tomemos primeiro a per,gunta: "A li-
ilm pouco d~_p~e spi-cácia e de consciência de nós mesmos, po- berdade é importante para um indivíduo em sociedade?"
dercinos descobrir qtie, depois que se começar a tentar ana- Aqtii temos tima pergLinta para a qtial se exiQe tanto tima
lisar conceitos, ficará muito mais fácil evitar os erros que a atiz'tlise conccitual quanto LIIII jtiízo de valor. Precisaiiios
maioria de nós comete; erros ue, a E (i) analisar o conceito de liberdade e (ii) expressar uma opi-
iam de-fáto-os-seres-humanos e j ogar conscientemente o nião sobre a importância e o valor do conceito. Outra per-
gunta: "0 progresso é inevitável no século XX?" Nesse
caso, estão envolvidas análise conceitiial e considerações
sobre fatos. Precisamos levar em conta o conceito de pro-
b) Técpzicas de análise gresso (e talvez também o conceito de inevitabilidade), para
então examinar os fatos relacionados ao século XX que
1
Para começar, há algumas considerações gerais que são consideramos relevantes.
quaáe sempre úteis e que de 'vemos nos lembrar de aplicar Não faz parte do nosso objetivo considerar o modo
sempre que nos depararmos com qualquer pergunta que pa- como se devem responder a questões sobre juízos de valor
reça envolver a análise conceitual. ou sobre fatos. Mas é claro que fião responderemos muito
bem a nenhuma pergunta (e tampouco, seguramente, às per-
(1) Como isolarperginitas sobre conceitos guntas sobre conceitos) se não fizermos uma distinção
.
Devemos começar por isolar as perguntas sobre con- mtiito nítida entre os tipos lógicos de indagação que podem
ceitos das outras perguntas. Só raramente encontra-se uma estar o~ultos dentro do que parece ser uma única pergunta.
24 PENSAR CO.NI CONCEITOS A A TIVIDADE DA ANÁLISE 25
Há apenas um ponto de interrogação, mas diversas pergtin- 'democracia' a este conjunto de critérios" (entre os quais,
tas. E não poderemos fazerjustiça a nenhuma delas enquan- digamos, insistir em equilibrar o orçamento do país pelo
to não tivennos tratado cada uma individualmente. Num dos voto popular, em vez de pela decisão de especialistas reco-
exeniplos citados, é óbvio que não poderernos nem começar nhecidos, para que o país seja considerado democrático), "en-
a dizer quem deve ser punido enquanto não souberrnos com tão, nesse sentido de 'democracia', a democracia não é muito
clareza o que é a punição. Sem saber isto, não teremos cer- satisfatória como método de governar, porque favorece a
teza (num sentido perfeitamente literal) do que estamos fa- instabilidade. Mas se, para que o país seja considerado de-
lando. Temos de entender a liberdade antes de poder expres- mocrático, você exigir que o governo seja eleito só algumas
sar qualquer opinião inteligente sobre a importância da li- vezes, de tempos em tempos, pelo voto popular, então sim,
x
berdáde. E temos de entender o progresso para poder saber o método de governo me parecerá bastante satisfatório."
se é inevitável. Devemos, portanto, isolar as questões so- Esse é um dos motivos pelos quais, como já vimos, é
bre conceitos e tomá-las como prioritárias. importante (1) isolar de outras considerações as perguntas
sobre conceitos e (2) tratar delas em primeiro lugar. Porque
(2) "Respostas cei-tas " considerações relacionadas aos fatos e à moral não podem
Intimamente associada a esse procedimento está a ques- absolutamente ser aplicadas com pertinência enquanto não
tão, já apresentada, de que as perguntas sobre conceitos ra- tivermos estabelecido exatamente a qlie elas se apiicam.
ramente têm solução simples e bem definida. A esta altura, Quando a pergunta "mista" apresenta a forma geral "Será
já estamos acostumados à frase introdutória: "Depende do que x (um conceito) é y (bom, mau, inevitável no século XX
que você quer dizer colTi que tem conseqüências importan-
......
etc.)?", a resposta, às vezes, tem de vir na seguinte fon -nula-
tes para as respostas às perguntas "nlistas" descritas ante- ção: "Se com (uma palavra A) você quer dizer abe, sirn,
riormente. Em poLicas palavras: o efeito que a frase introdu- porqiie Mas se com (a mesma palavra A) você quer dizer
...

tória provoca é que a pergunta niista, inteira, não tem "res- def então não, porque como os exemplos com pi-ogres-
......

posta certa". Assim, não precisamos entrar ntima análise de- so e democracia já mostraram.
talhada para perceber que poderíamos muito bem responder Por outro lado, assim como já vimos que não se deve
à pergunta "mista": "0 progresso é inevitável no século XX?" pensar em iini significado para cada palavra, tampouco
dizendo: "Bem, se você entende que 'progresso' significa se deve supor que a maioria dos conceitos seja totalmente
tais e tais coisas (dados certos fatos), sim, o progresso é ine~ fluido e que cada um tenha apenas os limites que mais nos
vitável. No entanto, se você entender que 'progresso' sig- agradem.
nifica outras tais e tais coisas, não, o progresso não é iné- Sabemos, de qualquer conceito, que ele ocupa úma área
vitável." Ou, para dar mais um exemplo, se alguém nos per- que pode ser localizada e mapeada por aproximação, mes-
guntasse "A democracia é iim método satisfatório de gover- mo que as fronteiras nunca sejam muito precisas. Logo,
no?", poderiamos começar por uma relação de inúmeros mesmo que tenhamos dúvidas sobre se baleias, polvos, es-
usos ou critérios para usar o conceito de democracia, e en- trelas-do-mar, lagostas e ostras "'caberr~' no território do con-
tão dizer algo como "Bem, se você quiser atrelar a palavra ceito de peixe, sabemos pelo menos que, na m .aioria das cir-
L-A

26 PENSAR COIII COIVCEITOS A ATIVIDADE DA AA`AISE 27

cunstâncias, arenques, solhas, linguados, trutas e outros se guém é Lim "verdadeiro ami,ao"; e quando dizemos qtie tima
incluem, sem dúvida, nesta classificação. Mais que isto, há jogada na mesa de bilhar "foi vctdadeira~`. Não é dificil ver
uma razão (ou conjunto de razões) pela qual (ott pelas qtie o primeiro uso é o mais próximo ao ceme do conceito.
quais) temos dúvidas no caso de baleias, polvos, Ia.-Ostas, mas As"coisas" que são verdadeiras empriniciro liígap - são as afir-
não temos dúvidas quanto aos arenques, solhas, lin-uados, mações e as crenças. E, dado que se pode falar de "verdadci-
trLitas: isto acontece porque o conceito de peixe não é sim- ro amigo-, de 'jogada verdadeira" ou de "rorte verdadeiro",
plesmenté um conceito arbitrárid, formulado sem nenhtima é razoável afirmar que estes usos sálo extensões ou alterações
finalidade. Os seres humanos consideram necessário ter dos usos básicos; o mesmo acontece quando se diz que o
uma palavra para descrever seres que satisfaçam certas con- vento "sussurra" entre as árvores: usamos o verbo "sussurrae'
dições - ter a capacidade de viver no mar; ser vivos, em vez niim sentido que é como uma extensão do seu uso normal,
de pedras ou conchas; saber nadar (ao contrário das anêmo- tima metáfora emprestada do seu uso normal, em que o verbo
nas-do-mar) e assim por diante. Claro qtie estes critérios são aplica-se a pessoas. Com a prática, aprendemos a distinguir
vagos, até certo ponto. Consideram, por exemplo, a apat-ên- os usos básicos e centrais de um conceito e a isolá-los dos
cia da criatura? Para ser "peixe" é preciso ter nadadeiras e usos derivados ou limítrofes. É esse tipo de sensibilidade que
corpo flexível? Se for assim, teremos de excluir as lagostas faz toda a diferença entre uma análise útil e bem-sucedida e
e os polvos. Mas e as águas-vivas, que não têm nadadeiras, Ltmq tentativa canhestra de analisar o conceito pelo simples re-
mas têm corpos flexíveis e que, além do mais, em inglês, são aistro dos seus vários usos, sem qiialqtler distinção entre eles.
chamadas de 'jellyjzsh"?' Com esse tipo de raciocínio, pro-
curamos descobrir quais das conclições são importantes ou Aesta alttira, jzi podemos ver a utilidade de otitras téc-
essenciais, e quais não são. nicas específicas de análise.
Portanto, não devemos pensar nem que podemos dizer
definitivamente o que uma palavra "realmente significa", ncm (3) Casos-niodelo
que podemos escolher o que ela significa apenas porqtte é Um dos bons modos de começar, sobretudo qiiando nos
conveniente a nós ou a alguma outra pessoa. Em outras sentimos totalmente perdidos no território de um conceito,
palavras: algumas instâncias do conceito - algtins casos em é selecionar um caso-modelo, ou seja, uma ocorrência que
qtie a palavra é usada - estão mais próximas do cerne do con- nos pareça, sem dúvida alguma, exemplar; tim caso daqticles
ceito do que outras. Por exemplo, vamos supor que estamos em que se peiisa "Bem, se isso não é um bom exemplo de x ...

examinando o conceito de verdade. Poderíamos pensar em nada mais será".


trés exemplos de uso da palavra "verdadeiro(a)": quanáo di- Quanto ao conceito de pitnição, pode-se pensar no caso
zemos que uma afirmação ou crença é "verdadeira"; quando de alguém que desrespeitoti intencionalmente tima norma
dizemos qtie "um homem é bom e verdadeiro" ou que al- importantc e, por isso, foi castigado por ordem das autori-

1. As águas-vivas (ielljfisli) têm incluída no seu nome em inglês a palavm 2. A expressão em inglés significa que a bola de bilhar "seguia a trajetória
físH (peixe). (N. da T.) prevista". (N. da T.)
28 PENSAR CO,11 CONCEITOS A A TIVIDADE DA ANÁLISE 29

(4) Conti-a-exeniplos
dades. Digarnos, um menino que tenha quebrado de propó-
Pode-se chegar ao mesmo objetivo pelo método opos-
sito uma janela da escola e que o diretor tenha submetido a
to, isto é, considerando os casos em que se possa dizer:
castigos corporais. Aí está, sem dúvida, um caso exemplar
"Bem, seja lá o que for tal conceito, isto eu sei que não é
de punição. Podemos então examinar as caracteristicas do
Suponhamos que estivéssemos preocupados com o concei-
caso para ver quais são as características essenciais, em de- to de justiça: escolheriamos casos nos quais não houvesse
corrência das quais podemos usar — e usamos —, para desig- dúvida de que alguém foi tratado de modo injusto. Pen-
nar o conceito, a palavra "punição". Pode-se discutir se o semos, por exemplo, numa pessoa inocente, mas condenada
que mais importa é o fato de o aluno ter desrespeitado uma à inorte por um crime que não cometeu. Ou imaginemos que
norma, ou o fato de ele tê-la desrespeitado intencionalmen- duas pessoas cometam o . mesmo crime, nas mesmas cir-
te; de as autoridades terem assumido o caso; de o "castigo" cunstâncias, e uma seja punida e a outra absolvida. Estes
ter sido doloroso; ou se, afinal, o que mais importa é uma sao exemplos clássicos de injustiça: nós então os examina-
certa combinação dessas hipóteses. rnos para ver por que são exemplos clássicos. No segundo
Em seguida, poderíamos tomar outros casos-modelo — exernplo, em que a lei trata duas pessoas de modo diferen-
digamos, alguém que rouba e é "punido" por força de sen- te, a impressão é que a característica essencial é a desigual-
tença proferida por um juiz, num tribunal — e procurar ver dade da injustiça. 0 caso é "injusto" porque as pessoas não
se todas as características que percebernos no primeiro caso são tratadas da mesmaforma?
dstão presentes tanibém no segundo. Se nào estiverem, po- Num outro contra-exemplo, suponhamos que duas pes~
de-se começar a pensar na idéia de que as características soas cometam assassinato, mas em circunstâncias diferentes.
ausentes não são essenciais. Pois, se fossem, elas talvez' Smith, um homem rico porém ganancioso, mata sua vítima
estivessem presentes em todos os casos-modelo. Isto para só para ganhar um pouco mais de dinheiro. Brown, um ho-
dizer que podemos restringir o campo de nossa pesqtiisa eiu mem generoso, que ama a mulher, a encontra na cama com
busca das características essenciais... mediante a elimina- outro. 0 homem zomba dele. Brown perde a cabeça e o mata.
ção das características não essenciais. Nos dois casos trata-se de assassinato, mas seria injusto coii-
denar Smith à morte e condenar Brown a'apenas dez anos
de cadeia? N-ão, não seria. Mas... por que não, se o crime é
o mesmo e as punições são diferentes? Que outras circuns-
3. Talvez, mas não nceessariamente. Há alguns conceitos que tém mesmo tâncias temos de levar em conta antes de considerar um caso
caracteristicas essenciais. Assim, duvido que considerássemos que um objeto é "justo" oti "injusto"? Será que é Smith que merece punição
uma caixa se ele não pudesse conter coisas. Existem, porém, conceitos que não maior do que Brown? Seria útil examinar mais alguns con-
possuem características emenciais nesse sentido, embom possann aprwcntw tmços
tipicos. Desse modo, é tipico quc as vacas tenham chifres, e que os jogos sejam tra-exemplos para, do mesmo rnodo, aprender com eles.
atividades que podem envolver duas ou mais pessoas. No entanto, essas não São
camcteristicas essenciais, já que pode existir uma vaca mmha ou um jogo de pa-
ciência. Em outms palavms, alguns conceitos referem-se a coisas que podem não
(5) Casos afins
ter um único traço em contara, mas que estão associadas por um conjunto de tmços São,raros os casos em que se consegue analisar um con-
camcterísticos, mas não essenciais. Com esses, portanto, temos de nos contentar ceito sem considerar tambérn outros conceitos afins, seme-
com traços típicos, em vez dos emenciais.
w

30 PENSAR CO,11 CONCEIrOS A A TIVIDADE DA ANÁLISE 31


À

lhantes ou qtte, de algum modo, estejam profundamente li- o que dizer de alguém como Macbeth, na peça de Shakes-
gados a ele. É, portanto, evidente que não poderíamos pen- peare, que agiti com perversidade e sofreu por isto? Pode-se
sar sobre a prinição e a justiça, ao examinar casos-modelo dizer que ele "atraiu para si a própria punição"? Ou há aqui
e contra-exemplos, como acabamos de fazer, sem nos depa- metáfora? E o que dizer das brincadeiras com prendas nas
rarmos com o conceito de merecimento, que é, de fato, uma festas de Natal, quando alguém não consegue resolver um
característica essencial dos conceitos de punição e justiça, enigma e tem de "pagar Lima prenda" (lamber sabão oti en-
que lhe sào afins. Assim como nào se pode entender uma fiar o rosto ntim prato de farinha)' As prendas são punições
peça de máquina sem ter um conhecimento pelo menos su- de verdade ou são uma espécie de versào brincalhona, uma
perficial de como a peça se encaixa em outras peças e de encenação do castigo? 0 objetivo, em todos esses casos, é
como funciona o conjunto, também é dificil compreender clucidar a natureza do conceito por meio da repetida expo-
um conceito sem ver como ele se "encaixa" na rede ou na sição a circunstâncias diferentes que se situam na periferia
constelaçào de conceitos da qual faz parte. Seria preciso, do conceito - e que poderíamos chamar de casos estranhos
portanto, ver em quais circunstâncias concordaríamos com ou esqltisitos. Ao perceber o que os torna estranhos ou es-
a idéia de que uma pessoa "mereci&' ser tratada de certo quisitos, identificamos os motivos pelos quais os casos ver-
modo e em quais circunstâncias diríamos que, pelo contrá- dadeiros não são nem estranhos nem esqtiisitos e, portanto,
rio, ela "não merecia- aquele tratamento. (Poderíamos fazer o que faz com que sejam casos ~erdadeiros - e qtte são, de
o mesmo com o aspecto positivo do conceito de mereci- fato, os critérios fundamentais do conceito.
mento.) Quase sempre, ao termos mais clareza quanto aos
critérios de aplicação do conceito afim (merecimento), ve- (7) Casos inventados
mos mais claramente também ó conceito original (punição Às vezes é necessário inventar casos que, na prática,
ou justiça). estão totalmente fora da nossa experiência normal, sim-
plesmente porqtte ela não oferece quantidade suficiente de
(6) Casos linzíti-ofes exemplos diferentes para esclarecer o conceito. Há, sim,
Também é útil analisar exatamente aqueles casos dos iiiiiitos casos qiie podeinos iisar para investigar o coiicei-
quais izão temos certeza, e ver o que diríamos a respeito to de "punição". No entanto, se estivéssemos investigando
deles. Suponhamos que uma criança toque num fio elétrico, o conceito de "homem", descobriríamos que é dificil mui-
que já lhe disseram ser pengoso, e leve um choque. 0 choque tos exemplos diferentes, porque no mundo em que vive-
é uma "punição"? Há características comuns entre este caso mos raramente hesitamos qtianto a chamar al,go de homem
c os èww-inodelo de punição, mas talvez não sejam sufi- ou não. Na prática, é fácil distinQLiir efitre homens e má-
cientes. Vejamos, então, qual é a característica importante que qiiinas, macacos, legumes ete. Porém, se quisermos des-
está faltando. Será o fato de, no caso do choque, não haver cobrir os critérios essenciais para identificar um homem,
nenhumapessoa que aplique a punição? E, no caso do pugi- teremos de comparar vários casos que, necessariamente,
lista, de quem se diz que foi "muito castigado", a palavra "cas- serão imaginários, mais próximos da ficção científica que
tigo" está sendo usada a sério ou em sentido metafórico? E da vida real. Imaginemos, portanto, que descobrimos cria-
A A TIVIDADE DA ANÁLISE 33
32 PENSAR COM CONCEITOS
veis por seus atos?" Um bom modo de começar a captar o
turas que vivem a centenas de quilômetros abaixo da super- conceito de responsabilidade é escolher um caso prático.
ficie da Terra, mais ou menos parecidas com seres humanos Queni diria a ftase: "Esse homem não é responsável pelos
e providas de inteligência, mas que não tivessem emoções, seus atos"? Talvez o advogado de defesa de um assassino,
não produzissem arte nem fizessem piadas. Será que as con- num tribunal; e ele a diriapoi-qiíe lhe interessaria impedir que
sideraríamos seres humanos? seu cliente fosse punido; estas palavras seriam ditas depois
Ou suponhamos que as tais criaturas se comportassem de já estar claro que o homem havia cometido o crime, mas
exatamente como homens, com as emoções humanas e tudo ainda houvesse (na opiniâo do advogado) possibilidade de o
o mais, mas tivessem duas cabeças? Ou, então, imaginemos júri declará-lo louco ou irresponsável. No caso de esta defe-
que conseguíssemos construir ou criar um ser que fosse, di- sa prevalecer, o homem não seria mais tratado como crimino-
gamos, mais inteligente do que um pigmeu pouquíssimo so perverso e passaria a ser visto como um pobre doente. A
desenvolvido e que risse, chorasse, às vezes demonstrasse conclusão sugere que a responsabilidade acompanha a culpa,
raiva, em outras ocasiões fizesse piadas e assim por dian- a imputabilidade e outros conceitos relacionados.
te? Esse ser seria um homem ou nós o desqualificaríamos
pelo simples fato de o termos construído ou de o termos (9) Ansiedade szibiacente
criado por meios artificiais? É claro que, em casos tão fan- Intimamenté associada à importância de examinar o con-
tasiosos, podemos ficar em dúvida quanto a como classifi- texto social de uma pergunta ou afirmação está a importân-
car as criaturas; iiias o exercício de iiiiaginação é útil taiii- cia de levar ciii consideração a disposição de espírito ou os
bém para compreendermos nossa experiência real: a análi- sentimentos da pessoa "que faia", em cada caso. Perguntas
se de conceitos é, na essência, um processo imaginativo; é, filosóficas ou sobre conceitos surgem, quase sempre, em
sem dúvida, mais arte que ciência. decorrência de alguma ansiedade subjacente. Certas carac-
terísticas da vida parecem ameaçar, de algum modo, o que
(8) Contexto social sempre pensamos e, por isto, causam insegurança. Por exem-
Dado que a linguagem não é usada no vazio, temos de plo, a pergunta "Será que alguém é livre?" pode estar sendo
cuidar para não pensar e falar como se as perguntas sobre feita porque muitas pessoas têm a sensação'de que a psico-
logia moderna, com as descobertas sobre as causas do com-
conceitos gerais só aparecessem em questões de exames.
portamento humano, começa a ameaçar nossa liberdade.
Na realidade, elas surgem a todo o momento, na vida real,
Nestas circunstâncias, as pessoas perguntam "Será que titdo
sob a pressão de circunstâncias particLilares. A natureza des-
o que fazemos não é determinado por algum fator psico-
sas circunstâncias é muito importante para compreender os
lógico, na nossa própria mente?" ou "Será que realmente
conceitos.
chegamos a ser livres?". Neste caso, a ansiedade subjacente
Assim, em cada afirmação que ouvimos, temos de ima- nasce da sensação deque, se no passado nos sentíamos no
ginar qztem poderia té-la feito, poi- qite a faria, qiíando seria
controle dos nossos atos, agora já ninguém tem tanta certeza.
mais natural que tal pessoa, por tal razão, fizesse tal afirma- E é útil perceber isto, porque a noção de contróle é impor-
tiva, e assim por diante. Poderíamos nos defrontar, entre tante para compreender o conceito de liberdade.
outras, com a pergunta: "Será que.as pessoas são responsá-
34 PENSAR COM CONCEITOS AA TIVIDADE DAANÁLISE 35

(1 0) Resliltados pi-áticos A partir daí, teiiios uma chance de procurar imaginar


As questões sobre conécitos são quase seiilpre desnor- de modo mais rizo,~'tvel o real interesse de qtiem perguntou.
teantes, porque não se pode garantir que tenham respostas É possível, por exemplo, que quem perguntou tenha desco-
11 berto que algumas das coisas que considerava reais são, de
certas" ou "erradas"; e pode acontecer de alguém qtierer
saber se algçima destas perguntas tem algum objetivo oti sig- fato, ilusórias. É coiiio no cxeiiiplo do item (8), acima, eiii
nificado. De fato, porque são perguntas, elas omo que "exi- qtie a pessoa descobre que o ato qtie imaginava ser um ato
gem" algum tipo de resposta. E, na medida em e * que as pes- livre é, no Rindo, um ato compulsivo e, por este motivo, mer-
soas tenham tido alguma intenção ao fazê-las, as perguntas gulha numa preoctipação mais geral quanto à liberdade de
têm algum tipo de objetivo ou significado. Muitas vezes, todos os atos.
porém, só nos resta tentar adivinhar o objetivo e o signifi- Em conseqüência de perguntas desse tipo, somos leva-
cado. E um dos modos pelos quais podemos arriscar palpites dos a refletir sobre conceitos muito comuns (liberdade, rea-
mais inteligentes, em vez de palpites completamente alea- lidade etc.), para recuperar nossa segurança e resolver as
tórios, é ver os resultados práticos, na vida diária, de uma res- dúvidas. Se começamos por uma reflexão sensata e racional
posta "sirW' e de uma resposta "n-,~Lo". Por exemplo, supo- dos resultados práticos de responder a estas perguntas com
nhamos que alguém pergunte "Como podemos saber que não um "sim" ou tim "não", podemos ver quais os conceitos que
é tudo ilusão?" ou "Será que tudo na vida não é só sonho?". realmente preocupam a pessoa que formulou a pergunta.
Parece que nossa resposta, seja qual for, não terá efeitos na
prática. Imaginemos que respondêssemos que tudo é ilusão; (1 1) Conseqiiências jza linguagein
que a vida é sonho. E daí? Em que esta resposta afetaria nosso Como as palavras são sempre ambíguas e como nem
comportamento? Que diferença real provocaria nos nossos sempre é possível dizer qual é o significado de uma pala-
atos? Claro que a resposta nem afetaria nem faria qualquer vra, pode acontecer de, muitas vezes, acabarmos na situa-
diferença, o que sugere que a pergunta (embora possa ter ção descrita acima, no itern (2) (pá,gina 25): aquela situação
algum objetivo ou sentido) não expressa muito claramente na qual temos d.e dizer "Bem, se com tal termo você quer
a dúvida ou a preocupação subjacentes que há na mente de dizer abe, a resposta é tal; mas se você estiver querendo dizer
quem perguntou. Em outras palavras, houve alguma falha -YYZ, então a resposta é outra".
grave na linguagem em que a pergunta foi formulada, uma De fato, porérn, podemos avançar um potico mais:
vez que se sabe que a resposta sempre implica alguma dife- mesmo qtiando as palavras são tão vagas que não se pode
rença prática em toda e qualquer pergunta verdadeira ou dizer que tenham um significado prihcipal, ainda assim
útil. Portanto — dado que os conceitos de ihtsão e sonho só pode-se dizer que é mais racional ou mais útil adotar alguns
fazem sentido em contraste com os conceitos opostos de significados, em vez de outros. A palavra "democracia - tem
realidade ou de vida de olhos abertos —, vé-se neste exem- pouquíssimo significado central; o máximo que se pode di-
plo que não se sabe qual o pignificado (se é que há ai algum zer é que, nesta palavra, o significado tem a ver com a idéia
significado) que pode estar associado à frase "tiído é sonho" de qtie o povo exerce algum controle sobre o governo; não
ou "tiido é ilusão". Seria como dizer que todo dinheiro é falso. se pode dizer muito mais. Há vários casos aos quais é pos-
36 PEX54 R COM CONCEITOS A ATIVIDADE D.4 ANÁLISE 37
sível aplicar a palavra "democracia": a Atenas do século V é atribuir-lhe o significado y; deste modo, poderemos usar
a.C,, os Estados Unidos do século passado, a Grã-Bretanha • palavra x com rendimento máximo".
deste século ou, mesmo, as "democracias populares" por
trás da cortina de ferro. Em todos estes casos, o povo exer- As técnicas ficarão mais claras quando as aplicarmos
ce algum controle, o que dá a estes países o direito de serem • exemplos de análise; e vou referir-me a elas especifica-
considerados "democráticos". mente quando examinarmos al,guns exemplos. Por enquan-
No entanto, é evidente que, já que a palavra —dentocra- to, vale salientar que nem todas as técnicas são igualmente
úteis em todos os casos. Pode acontecer, ao analisarmos um 2
cia" tem alguma utilidade na nossa língua, é interessante
que ela tenha a maiór utilidade possível, Nestes termos, é conceito, de descobrirmos que não interessa rnuito exami-
útil que haja uma palavra para contrapor a "totalitário" — nar o contexto social, os resultados práticos ou a ansiedade
uma palavra que descreva um Estado no qual as pessoas subjacente — que podem ser óbvios, descabidos ou as duas
possam opor-se às autoridades, sem muitas proibições. Daí coisas. Se, por exemplo, estivermos investigando um con-
qtle pode ser útil restringir o uso da palavra "democracia" de ceito acadêmico ou abstrato, como o conceito de infinito,
modo a excluir a União Soviética (supondo-se que a União em matemática, ou de subjuntivo, na gramática, pode acon-
Soviética seja "totalitária - e repressora, nesse sentido), mas tecer de as considerações sociais não serem pertinentes.
Claro que sempre se pode dizer que clucidar esses con-
sem excluir a Grã-Bretanha. Sem esta "solução" — e nada,
de fato, nos obriga a isto — só nos restaria inventar uma ceitos ajudaria a matemática e a gramática, o que por sua
vez beneficiaria nosso sistema educacional, o que por sua vez
palavra para contrapor a "totalitário". Do mesmo modo, po-
faria progredir nossa sociedade, mas não sào aspectos ime-
deríamos dizer que em nenhuma nação o povo realmente
diatamente pertinentes.
exerce sitficiente controle sobre o governo para que a nação
Em comparação, pode-se admitir que o significado da
seja considerada verdadeiramente democrática. Nesse caso, palavra "bom" não seja tão fácil de clucidar quanto o sig-
porém, o significado da palavra "democracia" ficará tão li- nificado da palavra "peixe"; mas no caso de "bom" não pre-
mitado e tão restrito que a palavra deixará de ser útil — por- cisanamos de muitos casos-modelo, casos limítrofes e outros,
que não haverá nem um país que se possa classificar como do conceito de bondade, para termos uma ídéia bastante
"democrático". A palavra -democracia" estará banida do nos- clara do conceito. 0 mais importante, neste caso, é consi-
so vocabulário prático. derar os usos da palavra "bom", pelas pessoas que vivem
É assim que temos de examinar "as conseqüencias na numa sociedade; pois é uma palavra comum, e seu verda-
linguagem" quando escolhemos significados para as pala- deiro significado não é regido por nerlhum conjunto muito
vras ou delimitamos áreas para conceitos: os melhores crité- complexo de regras Éormais (como.acontece no caso do
rios sào os mais Úteis para o conceito. Entào, quando tiver- conceito de "infinito", em matemática). Neste caso, os con-
mos analisado o conceito e observado toda (ou quase toda) textos sociais nos quais é usada a palavra, os resultados prá- È;.
a grande riqueza de suas muitas ocorrências possíveis (mas ticos de usá-la de certo modo, e as ansiedades subjacentes
só depois disto), poderemos dizer: "Dentre todos estes pos- a respeito de valores e ideais absolutos são, ao mesmo tempo,
síveis significados da palavra x, o mais razoável e mais útil complexos e importantes.
v

Na prática, o procediiiiento mais adequado, no início, Exatamente do mesmo modo como a psicanálise visa
é aplicar as técnicas na ordem indicada. Começa-se por a nos liberar da dominação ou do fascínio que nossas pró-
observar casos-modelo, contra-exemplos, casos associados, prias emoções e sentimentos exercem sobre nós, e dos quais
casos limítrofes e, se necessário, casos inventados. Depois somos inconscientes, assini também a análise de conceitos
de trabalhar algum tempo com essas linhas de pensamento, nos ensina a evitar as armadilhas da linguagem — que só são
as verdadeiras normas que 'regem a aplicação do conceito tão perigosas porque não são conscientes.
aparecem, razoavelmente "visíveis". Depois, então, pode-se
examinar 6 contexto social, a ansiedade subjacente (se hou- (1) Crença em objetos abstratos
ver), os resultados práticos e as conseqüéncias na lingua- Essa é tima armadilha primária, mas muito dificil de
gem. Como vimos, nem todos estes critérios serão igualmen- evitar. Parece estar enraizada no nosso modo de pensar e,
te úteis em todos os casos, mas sempre valerá a pena aplicar portanto, na nossa língua. Temos a tendência a pensar como
todo o procedimento e ver se a técnica pode, de fato, levar se os substantivos abstratos — especialmente aqueles que
a alguma conclusão útil. Com um born tempo de prática, estão associados a sentimentos fortes, como a "justiça", o
adquire-se uma certa sensibilidade para os conceitos, o que "amor", a "verdade" ete. — fossem nomes de objetos abstra-
nos ajuda a fazer o melhor usó. das técnicas pertinentès. tos ou ideais; COMO SC CM ala.LIM lugar existissem, no céit,
se nào na terra, coisas chamadas "justiça", "amor" e "ver~
dade". A partir daí, passamos a acreditar que a análise de
c) Arinadilhas na liíigitagetir conceitos, em vez de ser o que descrevemos, é, realmen-
te, algum tipo de caça ao tesouro na qual procuramos en-
É sabido que, ao debater, quando lemos, quando escre- contrar algum vislumbre desses objetos abstratos. E nos fla-
vemos ou ao fazer qualquer tipo de declaração, nós nos cons- gramos falando como se "0 que é, a justiça?" fosse tima
cientizamos de cer-tas armadilhas no uso da linguagem.- pergunta como "Qual é a capital do Japão?" — em vez de
Algumas das armadilhas mais óbvias são de conhecimento ser um pedido inconsciente de que se analise o conceito
geral e podem ser classificadas sob o titulo abrangente de de justiça. A maioria de nós (e aqLii exeltio certos filóso-
"pensar com clareza": como evitar sofismas, como reco- fos) não se sente tentada a dizer que há iima coisa abstra-
nhecer preconceitos, dentre outras. Para nossos objetivos, ta chamada "triângulo", "simetria" ou "cor vermelha";. mas,
no entanto, é mais importante chamar a atenção para algu- especialmente no que diz respeito a conceitos morais,
mas armadilhas mais sutis... cedemos inuito facilmente à mesma tentação. Uma re,gra
Caímos nestas armadilhas por uma razão geral: porque prática boa, embora bastante restritiva, pelo menos quan-
somos dominados e fascinados pela linguagem. Em vez de do se está começando, é usar o menor número possível de
usarmos a linguagem, nós sorçios, num sentido muito real, substantivos abstratos: exaininar os iisos daspalavi -as "jus-
usados por ela. Permitimos que as palavras conduzam nosso to", "verdadeiro" etc. em vez de procurar pela "justiça"
pensamento, em vez de nós mesrnos o conduzirmos, de modo ou pela "verdade". A~ crença em objetos abstratos faz parte
crítico e consciente. de uma tentação universal de tratar as palavras como coisas,
AATIVIDADE DAANÁLISE 41
40 PENSAR COAI CONCEITOS

em vez de encará-las simplesmente como signos ou símbo- existir?" só pode ser respondida de modo adequado se,
los coiivencionais (que é o que são). antes de responder, percebermos que a palavra "organizada",
como as palavras "planejada" e "projetada", normalmente
(2)Confusão entrefato e valor
implica a existência de uma pessoa "que organizou", "que
Já observamos (item 1, página 23) que existe o que se
planejori" ou —que projetou". É claro que se pode falar, sem
pode chamar de perguntas "mistas": ou seja, perguntas que precisão mas ainda corretamente, que algo é bem organiza~
do, bem planejado ou bem projetado, sem considerar irnplí-
exigem tanto uma análise conceitual quanto um juízo de
valor, como "Será que as pessoas internadas em instituições cita alguma pessoa. É possível que, ao nos assonibrarrnos
com as maravilhas da natureza, estejamos concordando que
psiquiátricas devem ser punidas?". Mas, assim como per-
a natureza seja "bem organizada", neste sentido. Não faz
guntas e enunciados, também, no mesmo sentido, há pala-
vras "mistas". Algumas palavras ("borW', "deveria", "certo"), muita diferença o sentido que adotemos: é evidente que no
primeiro sentido conclui-se necessariamente pela existência
em certos casos, podem ser apenas expressão de valor, com
a única função de aprovar, cofidenar, elogiar, culpar etc. de alguém "que organizou" (e que você pode chamar de
Outras palavras ("honestidade", "roubo", "nobre", "justo") Deus, se quiser), porque a existência deste "alguém" é parte
de um dos significados da palavra. Mas, neste caso, queremos
transmitem as dtias coisas — um sentido concreto e uma
saber se a natureza é mesmo bem organizada nesse sentido,
implicação de valor. E ainda há outras palavras ("natural",
"normal", "maduro") em qiie tim dos sentidos tem só um ou seja, se temos de pressupor a existência de Deus. 0 que
mostra que não ganliamos nada, não saímos do rnesmo lugar.
significado concreto, e outro sentido, da mesma palavra,
tem também implicação de valor. Assim, "bom" significa
(4)Taiitologia
"a ser aprovado" ou "elogiável"; "roubo" significa "tomar
Ao defender suas opiniões, as pessoas com freqüência
ilegalmente bem que pertença a outro niais a implicação de
tentam tornar rnais seguro o que dizem, reduzindo suas sen-
que a prática do roubo é condenável"; e "normal" significa
tenças a tautologias, isto é, reduzindo-as a sentenças que
"o qtie a maioria faz` í ou "o que a maioria faz iiiais a implica-
sao necessariamente verdadeiras porque quem as emite
ção de o que a maioria faz merece aprovação". É facílimo
as define como verdadeiras. Imaginemos que temos de res-
inserir inconscientemente uma implicação de valor num enun-
ponder à pergunta "Há vilões em todas as tragédias de
ciado. E, embora os juízos de valor, se forem necessários,
Shakespeare?". Poderíamos começar pensando em Iago, de
sejam perfeitamente aceitáveis, é preciso que saibamos cla-
Otelo; em Edmund, de Rei Lear, dentre outros, e formar a
ramente o ponto exato em que os introduzimos no enunciado.
1 opinião de que a resposta correta é "sim". Se alguém dis-
ser, então, "Ali, mas e Júlio César, ouAntõnio e Cleópatra?~',
...

(3)Implicações ocitltas
poderemos nos sentir tentados a salvaguardar nossa opinião,
Algumas palavras são círculos viciosos muito sutis. Em
tornando-a tautológica. Há dois modos de fazer isto. Pode-
outras palavras, carregam implicações que não podem ser acei-
remos dizer: "Ora, essas não são tragédias de verdade"; ou,
tas se quisennos acertar a resposta da pergunta. Assim, a per-
então: "Bem, Marco Antônio em Jítlio César e Cleópatra em
gunta "Se a natureza é bem organizada, Deus não tem de
LA

42 PENSAR COM CONCEITOS A A TIVIDADE DA ANÁLISE 43

Antônio e Cleópatra, no fundo, são vilões". Neste caso, te- pelo menos, da expressão "ter uma mensagem política", para
ríamos outra base para as nossas afirmações - outros crité- obter uma lista mais longa de romances do que em (i).
rios para excluir as duas peças do conceito de "tragédia" ou Assim, poderíamos incluir Tlze Masters [Os mestres] de
para incluir as duas personagens no conceito de "vilão". Mas C. P. Snow, porquc, ao descrever a eleição do diretor de uma
(pelo menos nesse caso) é difícil acreditar qtie as coisas faculdade, ele nos faz compreender profundamente os mé-
sejam mesmo como parecem: se há tragédia neste mundo ... todos "políticos" (num sentido obviamente mais amplo de
é Júlio César! Cleópatra e Marco Antônio não são vilões "político"). E também poderíamos dizer que um romance
no sentido em que o são Iago e Edmund. Falamos, muito com personagens do alto empresariado, que descreva a imo-
provavelmente, só porque queriamos proteger nossa opinião. ralidade, a ganância etc., tem uma mensagem anticapitalis-
Mas este ~ipo de reação não faz sentido, já que tudo o que fa e também é, nesse sentido, um romance "político".
estamos dizendo, de fato, é "Para mim, só há tragédia se Mas se dissermos (iii) qtle os romances de Jane Austen,
houver vilão" ou então "Se eu disser que uma peça é tragé- R G. Wodehouse e Iris Murdoch, além dos contos de Hans
dia, tenho de insistir que haja nela pelo menos um vilão". Andersen, A. A. Milne e Lewis Carroll, têm mensagem po-
É trapaça. Mas, mais importante, é urna trapaça que não lítica, o uso da palavra "político" fcii tão ampliado que, na
interessa a ninguém. prática, a palavra já não funciona porque perdeu todo o sig-
É muito fácil responder a perguntas, do jeito que qui- nificado.
sermos, se formos os "donos - das palavras e lhes atribiiir-
mos os significados que nos derem "na telha". (6) Tensaniento iiiágico
Finalmente, há uma quantidade enorme de erros, ainda
(5) E.Ytensão do signiJicado não rnencionados nos parágrafos anteriores, que, de tantos que
Não há leis contra ampliar o significado normal das são, nào podem ser todos listados,.e qiie (como já foi dito)
palavras, só é perigoso. Mas nós, mais uma vez, somos ten- cometemos porqLid, basicamente, somos dominados ou fas-
tados a fazê-lo para "protegee' al.= de nossos pontos de cinados por uma forma de linguagem. Quando cometemos
vista específicos. Ampliar o sentido das palavras, porém, estes erros, estamos, quase sempre (em geral, inconscien-
vira risco de vida quando ampliamos tanto o significado de temente), pensando de modo infantil ou primitivo, como se
tima palavra qtie ela deixa de ter qualquer utilidade. Por exem- acreditássemos mais em mágica do que nas coisas que obser-
plo, suponhamos que alguém nos pergunte "Será que todos vamos ou aprendemos pela razão. A crença em objetos abs-
os romances têm uma mensagem- política?". Há, pelo me- tratos (mencionada em (1)) é só um exemplo deste tipo de
nos, três modos de responder. Talvez o mais racional (i) seja erro, mas há outros. Por exemplo, na sentença "a grávida-
manter os pés no chão e reconhecer que, normalmente, só de fez a pedra cai?', o perigo não está só na possibilidade
usamos a palavra "político" para alguns poucos rornances: de acreditarmos numa coisa ou força abstrata chamada
entre outros, Admirável niiindo novo de Huxley, 1984 e A "gravidade" (quando o que observamos, de fato, são vários
revolztção dos bichos, de Orwell, por exemplo. Mas podería- objetos qtie têm comportamento regular); o peri.-O está tam-
mos optar por (ii) ampliar o significado de "político" ou, bém na possibilidade de levarmos muito a séri o. a palavra
44 PENSAR COM CONCEITOS íl A 27VIDADE DAANÁLISE 45
"fez". A pedra não foi forçada a cair. Ela simplesmente caiu, perfeitamente lúcidos e completos na cabeça, mostram-se
como acontece com pedras e outros objetos que estejam confusos e fragmentados. quando se pensa em escrevê-los.
próximos de um corpo que contenha enorme quantidade de 0 processo de expressar nossos pensamentos — mais uma
matéria. Quando dizemos que os objetos "obedecem" às "leis" vez, sobretudo nesta atividade — auxilia os próprios pensa-
da natureza, estamos falando de um processo mágico: fala- mentos e serve como uma espécie de filtro ou de regulador.
mos corno se a nawreza e os objetos naturais fossem pes- Por isso, é utilíssimo captar o tipo de estilo, o modo de ex-
soas, ou como se dentro dos objetos vivessem homenzinhos pressão que se adapta melhor à análise de conceitos, se não
que tivessem vontade própria. Essa tendência à magia, pro- por outras razões, pelo menos porque, com a imitação e a
fundamente arraigada no nosso pensamento, causou proble- prática do estilo adequado, a análise torna-se mais fácil e
mas intermináveis, nos primórdios da ciência. E ainda nos mais eficaz.
atrapalha hoje, quando temos de enfrentar problemas liga- No que concerne às qualidades literárias do estilo, há
1

dos às pessoas — dentre outros, problemas de moralidade e pouco o que dizer. 0 único critério importante é que o estilo
de psicologia. tem de ser (ou parecer) de profissionaL Isto, é claro, impli-
ca um estilo claro e direto, sem sinuosidades, nem obscuro
nem descabido; implica ser econômico nas palavras, mas
tl) Estilo nunca avarento a ponto de o leitor fic ar em dúvida quanto
aos significados. E, naturalmente, implica tirar proveito dos
0 estilo no qual expressamos nossas análises de con- parágrafos, da pontuação e de outros recursos. Este aspec-
ceitos, ou nossas respostas a perguntas sobre conceitos, é to é particularmente importante quando se redige uma aná-
de enorme importância. No caso destas perguntas, não se lise conceitual, porque os recursos gramaticais, como a pon-
trata apenas de sabei- qual estilo de linguagem oral ou es- tuação, existem para garantir a clareza lógica dos textos; e.
crita é mais agradável; trata-se, sim, de encontrar o estilo a clareza é a razão de ser de nossa atividade. Evite as fra-
que melhor combine corn o assiinto. E nesta atividade, mais ses retóricas, as frases "de efeito", os ditos espirituosos, as
do que em qualquer outra, quem errar na escolha do estilo citações (a menos que sejam realmente pertiAentes e eluci-
prejudica o próprio desempenho. É totalmente impossivel, dativas) e outros recursos literários semelhantes. Mas use,
por exemplo, pôr em palavras uma análise clara e sensata sempre que for o caso, todo e qualquer recurso que ajude a
de um conceito e, ao mesmo ternpo, falar em estilo grandi- esclarecer o conteúdo lógico das sentenças. As analogias, por
loqüente, rebuscado ou espirittioso. exemplo, qtiasc sempre ajudam a esclarecer conteúdos lógi-
Por outro lado, é importante — mesmo que não se esteja cos específicos. Por outro lado, a linguagem altissonante é pe-
em prova — esci-evei- a análise, do modo mais coerente e de- rigosa Ç'frases floreadas", metáforas poéticas e semelhantes).
finitivo que seja poss ' ível. Enquanto a análise não estiver es- Talvez a qtialidade mais importante à qual deveríãmos
crita — ou, pelo rnenos, enquanto não nos sentirmos plenamen- aspirar ao escrever sobre conceitos, mesmo informalmente,
te preparados para escrevê-la — não perceberemos os pon- fosse a honestidade. Quem deliberadamente e em benefício
tos fracos e as lacunas. Pensamentos e idéias, que parecem próprio procura obscurecer.= idéia, ou quem se conten-
ri,

46 PEN&IR COM COiVCEITOS íl A TIVIDADE DA ANÁLISE 47

ta com uma conclusão que sabe muito bem não ser derivada que se diz — senipre tentando harmonizar nossas intenções
do que foi dito, está condenado desde o início. Mas há for- e sentimentos, de um lado e nossos atos ou palavras, de outro.
mas involuntárias e mais sutis de desonestidade, que são mais É um processo dificil, mas imensamente gratificante.
dificeis de detectar e corrigir. Nas próximas subdivisões deste livro, darei exemplos
de análise conceitual: exemplos de como criticar passagens
,Deve-se sempre perguntar, antes de começar a escre-
ver, ou ao acabar de compor um texto: "É isto o que eu escritas por outras pessoas; do diálogo interior e informal
quero dizer?", "É isto mesmo que eu quero dizer?" ou "0 que cada um de nós tem de manter consigo mesmo, no ínti-
mo; algumas respostas-"modelo" para perguntas sobre con-
que eu disse é mesmo verdade?" Como a análise é essen-
ceitos; algumas observações a respeito da lógica de certos
cialmente úma atividade dialética, nenhuma sentença pode
conceitos interessantes, e outras coisas.
ser pqrfeita e coinpleta; e, nesse sentido, nenhuma senten- Quero salientar com muita ênfase que o leitor não deve
i
ça chega a ser totalmente satisfatória. Mas podemos, aos considerar "ideal" nem o estilo nem o coriteúdo desses tex-
poucos, ir ganhando controle cada vez maior sobre a verdade, tos, eiii nenhLiin sentido. 0 mais importante não é qtie você
mediante um esforço contínuo para nos conscientizarmos concorde ou discorde do que é dito; nem importa que as res-
da imperfeição de nossas frases — dos pontos que têm de ser postas-"modelo" sejam modelo oti não. (Em pelo menos um
destacados, das exceções que têm de ser marcadas, dos ar- sentido, é óbvio qçte elas não podem ser "iiiodelo", já qtte
gumentos que poderiam desestabilizá-las totalmente e assim não há limites para o que se pode dizer acerca da maioria
por diante. dos conceitos, alguns dos quais se situam na raiz de proble-
Este' provavelmente, é o verdadeiro motivo pelo qual mas filosóficos enormemente complexos.)
se devem evitar frases empoladas ou tortuosas: porque, nes Se o leitor discordar das minhas idéias e fundamentar
tes casos, a linguagem "esconde" o ponto que o autor quer seu dcsacordo com provas próprias; se descobrir superficia-
provar — para o leitor e para o próprio autor. lidad es e falhas lógicas; ou mesmo se considerar que há er-
0 mérito dc um estilo direto e claro não é só a facili- ros sistçmáticos e radicais, tanto melhor. 0 que realmente
dade de leitura; é, principalmente, o fato de que facilita a importa é o método geral de abordagem.
detecção de erros e, portanto, a correção. Há aqui uma forte Na análise de conceitos não há "resposta perfleita — ; o
a nalogia en tre o comportamento para com outras pessoas e que há é uma série de esboços lógicos mais beni-sucedi(los
o modo de escrever. Se somos honestos e diretos ao tra- ou menos bem-sucedidos. Ter isto em mente é duplamente
tar com os outros, conquistamos não só a vantagem de os útil: inipede que você se ponha a batalhar, arrogantemente,
oútros saberem o que pensamos deles mas, tarnbém, a van~, em busca do itnpossível; e, além disto, talvez o estimule a
tagem maio r de sabermos o que pensamos deles. Ou seja, crug seu próprio esboço lógico e a ofetecer sua valiosa con-
conhecemos melhor os nossos verdadeiros sentimentos, tnbuição: Um filósofo que ache q~e não tenha absolutamen-
porque nào os encobrimos com atitudes teatrais, artific iais te mais nada a dizer a respeito de um tema, ou desesperou
e desonestas ou com o esforço para parecerinos muito inte- antes da hora ou é preguiçoso. E um filósofo que acredite
ligentes. Ser honesto significa ser direto, claro, franco e, ao ter dado a última palavra sobre qualquer coisa, tem de reco-
mesmo tempo, ser sempre consciente do que se faz ou do meçar a pensar.
48 PENSAR COAI CONCEITOS A A 77VIDADE Díl ANÁLISE 49
3. Obsei-vações complementares menos precisas — lógica informal até que seria um bom tí-
tulo, mas, à primeira vista, não é muito compreensível.
Há dois tópicos relevantes para este capítulo e para Outras pessoas, ante a expressão "pensamento lógico",
todo o livro; e ambos são bastante complicados. Mas, como talvez entendam que se trate de outro modo de dizer "pen-
creio que não sejam essenciais para compreender o livro, samento direto" ou "pensamento claro". E aí está um tema
sugiro que o leitor os ignore agora e volte a eles mais tarde. sobre o qual se escrevem livros, embora talvez nào seja uma
Inseri-os aqui porque são especialmente relevantes para este "matéria" tão claramente definida quanto a lógica formal.
capítulo. Nestes livros, recomenda-se que se evitem os preconceitos,
que não se perca a calma, que se procurem as falhas de to-
dos os argumentos, que se verifiquem os fatos, que não se
a) Uiii títíilo para as técizicas desvie a atenção do assunto etc. Mas traduzir "pensamento
lógico" por "pensamento clai-o" poderia mascarar o fato de
Pode ser útil ao leitor que as técnicas que estamos exa- que "lógico" significa muito rnais do que apenas "razoável"
minando tenham nome; e pensar sobre que nome lhes dar ou "claro". Como já vimos, há técnicas novas e específicas
pode nos ajudar a entender as próprias técnicas. Em outras para trabalhar com as palavras, os significados, a verifica-
palavras: embora não seja fácil "batizae' nossas técnicas, ção, os conceitos e os critérios — técnicas que é razoável
podemos tirar alguma vantagem das dificuldades e perce- chamar de "técnicas de lógica" em vez de simplesmente de
ber alguns aspectos em que nossas técnicas se assemelham "técnicas de raciocínio". Portanto, nem "lógica formal", nem
a "matérias", e outros em que são diferentes delas. "claro" nos dão idéia satisfatória do que chamamos de "pen-
Chamar as técnicas de "pensamento lógico" seria ins- samento lógico".
trtitivo por um lado, mas enganoso por outro. Claro que Também poderiamos nos sentir tentados a descrever o
as técnicas têm a ver com o pensamento — como a maioria que nossas técnicas fazem igual ao que, na essência, faz a
das técnicas mentais; e claro que têm a ver com pensar "corn filosofia. Mas o conceito de filosofia também é enigmáti-
lógica". Mas o conceito de lógica ou de logicisnio é um da- co e, atualmente, tem sido objeto de muito qubstionamen-
queles conceitos de que falamos acima — um conceito enig- to. E seria enganoso, neste contexto, porque abrange mtiito
mático, cuja geografia ainda não foi mapeada com precisão. mais do que nossas técnicas. Para citar apenas uma ativida-
Por exemplo, alguém poderia supor que "com lógica" de, a filosofia inclui conselhos gerais sobre como viver a
tenha algo a ver com o que geralmente chamamos de "lógi- vida (como os que um "guia, filósofo e amigo" nos pode-
ca formal". A lógica formal, sim, é uma "matéria", defini- ria dar); e isto não está: incluído na nossa tarefa. Sem dúvi-
da originalmente por Aristóteles, que estuda as normas e da, nossas técnicas são muito usadas, e com muita eficácia,
procedimentos dos argumentos formais, do tipo "Todos os por filósofos modernos, especialmente na Inglaterra e nos
homens são mortais; Sócrates é homem; logo, Sócrates é Estados Unidos. Temos boas razões para acreditar que elas
mortal". 0 assunto é importante, mas não é o nosso assun- sejam importantes para a filosofia, em todos os sentidos da
to. Nossas técnicas são muito mais frouxas, mais informais, palavra. E também temos boas razões para crer que todos
v

50 PENSAR COM CONCEITOS AATIVIDADE DA ANÁLISE 51

os que queiram estudar filosofia devam começar por estu- sidades, nas duas ou três últimas décadas — não se interes-
dar nossas técnicas. Mas descrever as técnicas, resumida- saram muito em difundi-Ias; e em parte porqLie muitos re-
mente, como "filosofia elementar" seria querer ganhar tim sistem, em termos psicológicos, a aprender as técnicas e a
injusto monopólio do conceito de filosofia. levá-las a sério.
Poderíamos examinar e rejeitar muitos outros nomes e Estas conclusões podem parecer pouco úteis e desesti~
títulos. 0 que dizer de "Análise de conceitos gerais-? Seria mulantes, mas espero que sirvam pelo menos como adver-
uma descrição bastante justa; mas, como muitas descriçóes tência para qtie ninguéni tente incorporar as técnicas a outras
toleravelmente exatas, esta também dá poucas indicações "matérias" com as quais esteja mais familiarizado; fingir,
quanto ao ~eu objeto: para ser exata, acaba sendo incom- por exemplo, qiie se trata "simplesmente de definir os ter-
preensível. Ou "Como usar as palavras"? Mais uma vez, o mos usados" ou "apenas da lucidez de pensamento". Há
título descreve razoavelmente o assunto mas só em iini
...
uma eterna tentação de agir assim, mas é preciso re§istir.
sentido. 0 mesmo título caberia, com igual acerto, a um Como a maioria das técnicas que servem realmente para al-
livro de gramática da língua inglesa; a um livro dedicado a gum fim, as nossas, no fundo, têm de ser vistas como elas
. mesmas; assim como tim jogo que pode ser semelhante a
ampliar o vocabulário dos alunos; e, ainda, a um livro que
ensinasse a debater e falarem público. Nem "0 significado outro, mas que nttnca será corretamente jogado a menos que
das palavras" serviria: parece títitlo de livro sobre afixos e seja aceito coin todas aS SLias características próprias e por
sufixos em lingua estrangeira e o processo gramatical de seus próprios méritos.
derivação de palavras - um livro que ensinaria, por exem- As técniens das quais estamos, tratando derivam, con-
plo, que kaiser, xá e czap- são, todas elas, palavras deriva- tudo, sem dúvida, da filosofia que vem sendo praticada em
das do latim Caesai- (César). . Oxford, Cambridge e outros locais áa Inglaterra e nos Es-
A verdade é que não há descrição destás técnicas que tados Unidos, há cerca de trinta anos. Há quem as descreva
seja, ao mesmo tempo, sucinta, precisa e compreensível. corretamente (embora, mais uma vez, de modo incompreen-
Ou se escolhe tima expressão precisa, rnas incompreensí- sívcl para os leigos) coiiio fi losqfici-lipigiiísticci ou análise
vel para os leigos (análise lógica ou análise de conceitos ge- lingüística. As técnicas discutidas neste livro podem ser
rais), ou uma expressão aparentemente compreensível mas tomadas como versões emprestadas, diluídas, desenvolvidas,
1 enganosa (pensar coni clareza ou o iíso daspalavras). avançadas, simplificadas, excessivamente simplificadas, ou
A confusão existe, em parte, porque a prática das nos- o que se queira dizer, quando comparadas com as técnicas
sas técnicas não é muito difundida, pelo menos no plano da filosofia lingüística, o que, na prática, não faz diferen-
consciente, embora haja quem diga que, mesmo no uso do ça. Mas a inforrnação pode ser útil àqueles que desejarem
dia-a-dia, os conceitos ocultam muitas tensões inconscien- situar nossas técnicas em algum tipo de cenário lógico ou
tes. Há vários motivos: isto acontece, em parte, porque a histórico. A atividade que rnais se aproxima da nossa é a fi-
aplicação das técnicas (ou, pelo menos, sua aplicação cons- losofia lingüística. Para quem se interessar por aprofundar,
ciente) é bastante recente; em parte porque as pessoas que a questão, talvez sejam úteis os comentários do capítulo
se utilizam delas - professores e alunos de algumas univer- final deste livro.
A A TIVIDíIDE DA A NÁLISE 53
52 PEjVSAR COM COiVCEITOS
tiça entre os romanos da antigüidade; e também podemos
b) 0 qiíe é iiiii coliceito? falar do seit (do leitor) conceito de justiça, do meu concei-
to, ou do conceito dejustiça de Cícero, tào freqüentemente
Neste capítulo, falei como se as questões de conceito e como dizemos: "A idéia que ele tem da justiça é x". Em
as q. uestões de significado fossem idênticas. Afirmei que a nenhum caso, devemos imaginar que "o" conceito de um
pergunta "Baleia é peixe?" é uma pergunta sobre o conceito objeto seja uma entidade separada e autônoma.'
de peixe e disse também que se trata de uma pergunta sobre Agora, pensemos um pouco sobre como chegamos a
o significado da palavra "peixe". Também comentei, quase forrnar conceitos. Os seres humanos, desde muito cedo, apren-
indiscriminadamente, a "nossa idéia de peixe", como usar dem a agrupar certas caracteristicas da sua experiência e a
a palavra "peixe", dentre outras idéias. Estava, de fato, mais usar certas palavras para descrever tais grupos. Tendd pri-
preocupado em ser inteligível do que em ser preciso. E a meiro classificado sua experiência sensorial em séries de
distinção que mais me interessava esclarecer era a distinção objetos ou entidades separadas, a criança começa a discri-
entre perguntas sobre conceitos e sobre significados, de um minar entre um tipo de objeto e outro. Ela pode, por exem-
lado, e as demais perguntas de outro (sobre fatos, sobre opi- plo, querer formar um grupo com todos os objetos grandes
niqo moral etc.). de tampo plano. Assim que faz isto, a criança começa a for-
No processo, porém, tive, inevitavelmente, de passar por mar um conceito. Neste caso, seu conceito pode ser apro-
cima da distinção entre conceitos e significado. E, como isto ximadamente semelhante ao conceito que um adulto tem
pode ter preocupado alguns leitores, sinto-me no dever de co- dos objetos que chamamos de "mesa". No entanto, a crian-
mentar a diferença que há entre aquelas palavras. Tudo quan- ça pode cometer erros. Se simplesmente agrupar tudo que
to eu diga, conrudo, tem de ser tomado como tentativa: aqui tiver tampo plano, acabará incluindo no grupo tambérh o
nos defrontamos com problemas filosóficos muito dificeis. que chamamos pianos e bandejas. Há dois modos pelos
Creio que a prinicira coisa a dizer é que, assim como quais é possível corrigir os erros: (1) a criança pode acabar
nqo há — rigorosamente falando — nada que se possa chamar percebendo que só alguns dos objetos de tampo plano são
de "o" sigizifí'caclo de Lima palavra, tampouco existe algo usados para servir alimentos e reduzirá os limites do con-
que se possa chamar de "o" conceito de um objeto. Quando ceito, de acordo com sua observação; ou (2) a criança pode
falamos — ntima espécie de linguagem taquigráfica — sobre aprender, com os adultos, o uso da palavra "mesa". 0 apren-
"o" significado de uma palavra, nos referimos aos elemen- dizado da palavra "mesa" também pode acontecer de dois
tos significativos que aparecem nos numerosos e variados modos: (1) a criança aprende por tentativa e erro; aponta
usoà da palavra e que a tornam compreensível; a uma "área
do inapa" sobre a qual concordam todos os usuários da pa-
lavra. Do mesmo modo, quando falamos sobre "o" con- 1. Wittgenstein compam a noção de semelhanças familiares. Membros di-
ferentes da mesma familia podem ser parecidos, a ponto de se poder falar mcio-
ceito de um objeto, nos referimos, quase sempre, abrevia- nalmente de "unua semelhança familiar", mesmo que não haja, na família, um
damente, a todos os diferentes conceitos daquele objeto tmço específLco em comum. É claro que toda a familia pode ter um "nariz de
Halisburg% mas quase sempre há apenas um ar geml de parccença nada que se

que os indivíduos tenham, na medida em que todos coin- possa indicar especificamente.
cidam. Portanto, podemos falar sobre "o" conceito de jus-
v
54 PE.VSAR CO,11 CONCEITOS A ATIVIDADEDAANÁLISE 55

para o piano e diz "mesa"; algtim adLilto corrige: "Não. Isso mo para me comunicar; diria "Quero um cachorro cle . hoiiiei7i",
aínão é mesa. 'Mesa'é isto aqiti" (e aponta para uma mesa). "Gosto de garotas anij2iadcis" ou "Os contos de faátasmas
Ou (2), se a criança já sabe falar e entende bem o que ouve, de M. R. James nos asstistain qltaiido iizeizos espei-ai?zos",
al,aum adulto pode usaroutras palavras para explicar-lhe o mas nenhuma destas palavras e expressões che,garia sequer
que é uma mesa. Uma explicação possível seria: Wesa é o perto de es,aotar todos os traços que eu teria de descrever.
lugar onde a gente come." Assim também, alguérn que não É possível, até, que nào haja palavra que corresponda a to-
soubesse o que é um tigre, que nào tivesse formado nenhum dos os traços, embora, sem dúvida, em princípio, sempre se
conceito d e tigre, teria dois modos de aprender: alguém o possa inventar palavras e ensiná-las a outras pessoas.
levaria ao zooló,gico, apontaria cada animal na jaula dos Isto também mostra que se pode ter um conceito sem
tigres e diria: "Este é um tigre, e aquele e mais aquele - em ter imagem ou quadro mental de alguma coisa. Para muitas
cada uma das demais jaulas do zoológico. Esse alguém tam- pessoas, tudo parece mais fácil se elas conseguem formar
bém diria: "Mas aqztele animal não é tigre, nem aqltele, uma imagem clara: e é possível que, quando crianças, alguns
nem aqzíele outro." Este seria um método muito trabalhoso de nós tenhamos começado a formar conceitos a partir da
e incerto; e se lhe dissessem que não eram tigres alguns ani- capacidade de visualizar objetos, Ynesmo no caso de obje-
mais que ele facilmente poderia confundir com tigres Oa- tos que não estivessem diretamente frente aos nossos olhos.
guares, leopardos, gatos malhados etc.), é possível que, no Mas, embora eu possa visLializar (e talvez visualize) meu
fim da lição, já tivesse uma boa idéia do que é um tigre. 0 tipo especial de cachorro ou de garota, é improvável que
outro método só poderia ser usado se a pessoa tivesse sufi- visualize também a tal qualidade especial que percebo em
ciente compreensão das palavras para entender um enuncia- certas histórias de fantasmas. E mesmo assim, apesar de ttido,

1 do como: "Os ti-res são quadrúpedes selvagens de quatro


patas, muito parecidos com o gato doméstico, mas maiores,
com listras e caudas longas' 11
Já se pode começar a ver qtie conceito o significado
é possível qtie a tal qualidade esteja, em certo sentido, mui-
to clara na minha cabeça. Eu poderia ter iima alta sensibi-
lidade àqucla qualidade e muita certeza quanto a uma his-
tória específica ter oii não aquela qiialidacle. Na realidade,
estão intimamente vinculados. Freqüentemente, o processo é evidente qtie conceitos dejustiça~, assim coino otitros con-
de formar um conceito de um objeto e o processo de apren- ceitos abstratos, não têm de se'r assóciados a qualquer tipo
der o significado de uma palavra que descreve o objeto de imagem. Quando penso em justiça, ou quando algiiém
parecem ser os mesmos. Na realidade, não s-,-io. É perfeita- pronLincia a palavra -justiça- dentro do meu campo auditi-
,

mente possível ter um conceito de algo sem ter palavra que vo, posso, de fato, criar uma imagem posso, por exemplo,
o descreva — mesmo uma palavra inventada pela pessoa que visualizar a estátua que há em frente do Tribunal de Justiça,
tenha o conceito. Posso tèr uma idéia muito clara do tipo de com uma espada numa das mãos e uma balança na outra.
cachorro que quero comprar, do tipo de garota que consi- Outra pessoa talvez visualizasse um juiz de peruca branca;
dero atraente, ou do tipo de atmosfera que considero típi- outra, um policial; e assim por diante. Todas estas, porém,
ca de histórias de fantasmas, sem ter uma palavra específica são associações acidentais, embora às vezes aconteça de rios
que designe estes conceitos. Eu poderia me esforçar ao máxi- agarrarmos a elas a ponto de prejudicar a clareza do nosso
56 PENSAR COM CONCEITOS A ATIVIDADE DA ANiiLISE 57

pensamento e do que dizemos. É possível, por exemplo, que A partir de agora, portanto, quando falarmos, neste li-
uma criança pequena derive o seu conceito de árvore exclu- vro, de expressões como "o conceito de justiça", para depois
sivamente de um único imenso carvalho do quintal da sua passarmos a examinar diferentes usos da palavra "justiça",
casa. E, se ela rnantiver por muito ternpo uma idéia tão es- já poderemos perceber que procurar uma justificativa para os
treita, poderemos dizer que seu conceito de árvore é muito usos da palavra "justiça" é, de fato, analisar o conceito de
limitado. E se ela usar a palavra "árvore" para se referir justiça. Por um lado, há uma série de situações na vida real
exclusivamente ao seit carvalho, diremos que ela, no fundo, (meninos que são castigados, juízes que proferem senten-
não entendeu o significado da palavra "árvore". No entan- ças e assim por diante); por outro lado, há uma palavra —
to, o simples fato de ela visualizar a imagem daquela ár-vore "justiçW'— que é usada de vários modos. Recorrendo a estas
especial enqiianto usava a palavra poderia ser puramente duas fontes, cada um de nós forrna um conceito de justiça;
pcidental; não coniprovaria nem a limitação do seu concei- analisar esse conceito consiste em apresentar a nós mesmos
to de árvore nem que ela tivesse um conceito devidamente usos diferentes da palavra, em.dificrentes contextos da vida
forrnado, como otitras pessoas. real. Assim, de certo modo, revivemos o momento em que
Como já observamos, o uso que fazemos de uma pala- formarnos o conceito: apresentamos a nós mesmos situa-
vra e a compreens ' ão que temos dela estão intimamente rela- çoes reais, repetidamente, pela imaginação, e refletimos
cionados ao coiiceito que temos de um objeto. Formamos sobre a adequação do uso da palavra "justiça" em relação
conceitos à medida que aprendemos os usos das palavras, àquelas situações.
e pode-se ver quais os conceitos que temos formados, ao Finalrnente, se quisermos responder à pergunta "0 que
examinar o que entendemos por determinadas palavras. Em é um conceito?", teremos de admitir que nossa resposta in-
outros termos: o uso e o entendimento da linguagem ser- clua um certo grau de arbitrariedade. 0 único aspecto que
vem, ao mesmo tempo, como guias para a formação de con- nos interessa, nesse contexto, é o que poderíamos chamar de
ceitos e como testes de conceitos já formados. Portanto, aspecto lógico dos conceitos — suas limitações e aplicações,
poderíamos dizer, sem erro, que os limites lógicos de iim que podem ser analisadas do ponto de vista lingüístico.
conceito podem ser iguais aos limites da faixa de significação É verdade, no entanto, que sempre se poderia dizer que
de urna palavra determinada. Por exemplo, os lirnites do um conceito, como a palavra é normalmente usada em por-
conceito que um homem tem da justiça são iguais aos limi- tuguês, pode ser encarado seja em termos psicológicos, seja
tes dentro dos quais ele usa e compreende a palavra 'Justi- em termos lógicos. Poderíamos, afinal de contas, estar inte-
ça". 0 que não quer dizer que o conceito e o significado ressados no tipo de imagens que uma pessoa tenha, se tiver
sejam idênticos, mas, sim, que são, por assim dizer, parale- alguma; ver até que ponto suas imagens são nítidas ou se
los um ao outro, ou que cobrem a rnesma área lóaica. En- o conceito de justiça de determinado homem é alimenta-
quanto estivermos interessados apenas na abrangência lógi- do com força emociorial ou com força moral. Todos esses
ca de um conceito, o rnelhor guia possível é a abrangência pontos poderiam surgir razoavelmente, em respósta a uma
lógica da palavra à qual o conceito esteja normalmente as- pergunta como "Qual é o seu conceito de 'alemães'?". Eu,
sociado. por exemplo, poderia responder: "Louros, i-nalvados, com

58 PENSAR COM CO.\ CEITOS

uniformes da Gestapo e chicotes; desagradavelmente efi- IL Exeiízplos tle aizálise


cientes e trabalhadores". Seria tima resposta perfeitamente
justa, embora de modo algum correspondesse ao uso que
faço e ao entendimento que tenho da palavra "alemães -. Se-
ria possível que eu entendesse e usasse a palavra exatamente,
em termos ló,gicos, como a entendem e usam outras pessoas
que tenham menos preconceitos que eu contra os alemães.
Isto tem alguma importância para nossas finalidades, já que
muito freqüentemente as pessoas conferem seriedade lógi-
ca a conotações que sâo psicológicas e ácidentais - exata-
mente como eu poderia permitir que o meu preconceito
conceittial influísse no uso que faço da linguagem quando 1. Crítica de trechos escritos
falo de alemães, recusando-me a sequer considerar a possi-
bilidade de que alemães agradáveis sejam... alemães. En- Um dos melhores modos de ganhar prática na análise
tretanto, como este livro não trata basicamente desse tipo de conceitos é verificar seu bom oti mau uso no disciir-
de preconceito conceitual, não precisamos nos preocupar so de outras pessoas. Neste capítulo, apresentarenios alguns
muito com esse aspecto. Basta-nos lembrar que é dificil tra- trechos aos quais se pode aplicar o tipo especial de crítica
çar uma linha clara de demarcação entre as características conceitual que examinamos até aqui. E vale repetir, mais
lógicas de um conceito e suas conotações psicológicas; e uma vez, que a crítica dos conceitos não é uma questão de
podemos prosseguir com nossa tarefa de investigar as ca- lógica formal, nem qualquer simples questão de "pensar
racterísticas lógicas. direito". Por um lado, só mtiito raramente conseguimos con-
vencer os autores, sem relutância, de um exemplo clássi-
co de argumentação capciosa do tipo encontrado em ma-
nuais de lógica. Por outro lado, não basta afirmar qtie tais
passagcns são apenas "confusas" ou "obscuras"; que o autor
"não definiu seus termos"; ou que "tem preconceitos". 0 qiie
acontece nessas passagens é que os conceitos são tratados
de modo incorreto; ou, para ser mais preciso, são tratados sem
a preocupação de alcançar máxima clareza e sem conscien-
tização.
Portanto, o que é necessário é uma crítica conceitual.
E deve-se esperar que os métodos de análise examinados no
Capítulo 1 sejam também úteis aqui. Em vez de simples-
mente nos deixarmos levar por aquilo que o autor escreve,
ou em vez de rejeitar a passagem inteira, sem maior aten-
60 PENSAR COM CONCEITOS EXEMPLOS DE ANÁLISE 61

ção, temos de mer,gulhar por baixo das palavras, até o modo governantes definem con-io "certo" para seus súditos o que
como os conceitos são tratados. Precisamos de suficiente interessa a eles, governantes. E, se alguém desresp ,eita as
ernpatia com o autor para perceber exatamente o que está leis dos governantes, será punido como "malfeitor". E o que
acontecendo com os conceitos. Só muito raramente os auto- quero dizer quando afirmo que o "certo" é a mesma coisa
res escrevem ou dizem tolices absolutas; e quase sempre há em todos os Estados, ou seja, o interesse da classe domi-
alguma plausibilidade no que dizem. Por outro lado, é pre- nante estabelecida. E esta classe dominante é o elemento
ciso rnanter um nível suficiente de vigilância crítica para mais forte do Estado. Logo, se raciocinarnos corretamente,
reagir rapidamente, cada vez que virmos que os conceitos vemos que o "certo" é sempre o mesmo: o interesse dos
estão sendo distorcidos. mais fortes.
Examinaremos, em primeiro lugar, duas passagens mais — E os que estão no poder nos diversos Estados são
longas, de diálogos: uma do século IV a.C. e a outra do sé- infalíveis ou não?
culo XX; e, depois, trechos mais curtos de vários autores. — É claro que pode acontecer de cometerem erros — res-
Nos dois casos, meus comentários serão lógicos, mas bas- pondeu ele.
tante informais. — Portanto, quando criam leis, eles podem fazê-las
bem-feitas ou malfeitas.
— Creio que sim.
a) A "República "(te Platõo — E, se legislarem bem, farão leis que lhes interessem;
e, se legislarem mal, farão leis que não lhes interessem. É
Temos aqui a tradução de parte do Livro 1 da Repiíbli- o que entendo.
ca. Excluí alguns trechos porque apenas retardavam a discus- — Concordo.
são. Sócrates narra o diálogo, em primeira pessoa. Nesta pas- — Mas os súditos têm de cumprir as leis que os gover-
sagem, portanto, "eW' significa Sócrates. Seu interlocutor, nantes fizerem, pois é este o modo correto de agir.
Trasímaco, fala primeiro. — Isto mesmo.
"— Escute, então — disse ele. — Eu defino a justiça ou o — Então, de acordo com sua argumentação,o modo cor-
direito como aquilo que é do interesse dos mais fortes. reto de agir é fazer não apenas o que interesse aos mais for-
— Você tem de explicar mais claramente o que quer di- tes, mas também o contrário.
zer — respondi. — 0 que você está querendo dizer? — perguntou ele.
— Pois bem, você sabe que alguns estados são tiranias, — Nós não concordamos que, quando os governantes
alguns democracias, alguns aristocracias? E que em cada ordenam a seus súditos que façam algo, eles às vezes erram
cidade o poder está nas mãos da classe dominante? quanto ao seu melhor interesse? E que, mesmo assim, o
— Sei. certo é o súdito fazer o que o govemante ordenar?
— Cada classe dominante faz leis no seu próprio inte- — Creio que sim.
resse: uma democracia faz leis democráticas; uma tirania, — Logo, você deve reconhecer que é certo fazer coisas
leis tirânicas; e assim por diante. E, ao fazer essas leis, os que não são do intep-esse dos governantes (que são os mais
v

62 63
PENSAR CO351 CONCEITOS EXEMPLOS DE ANÁLISE

fortes). Isto é: quando os governantes equivocadamente de- comum, se possa dizer que o médico e o governante erram,
rem ordens que os prejudiquem, pelo que você diz, o certo como acabei de dizer agora mesmo. Para ser bem preciso,
é que os súditos cumpram tais ordens. Pois decerto, meu deve-se dizer que o governante, na medida eni qtie for gover-
caro Trasímaco, conclui-se que, nessas circunstãncias, o nante, não erra e, portanto, sempre promula.a leis que garan-
certo é fazer o contrário do que você afirma ser certo, posto tem o melhor para ele e que seus súditos têm de cumprir. E
que os mais fracos receberam ordens para fazer o que é con- assim, como eu disse no inicio, o 'certo' significa o inte-
trário ao interesse dos mais fortes. resse dos mais fortes."
— Uma concltisão suficientemente clara — exclamou
Polemareo. Comentário
— Sem dúvida — interrompeu Clitofonte —, se aceitar- (a)Trasímaco começa dizendo "Eu deftiio a justiça ou
mos sua palavra. o direito como Ele está propondo uma definição da pala-
......

— Não se trata da minha palavra — retrucou Polemareo. vra ou, pelo menos, diz que está. Mas será que é isto o que
— 0 próprio Trasímaco admite que, às vezes, os governan- está fazendo? Se for, está terrivelmente equivocado. Definição
tes dão ordens que lhes são prejudiciais e que é certo que é uma palavra ou expressão lingüisti camente equivalente ao
os súditos lhes obedeçam. que está sendo definido - uma tradução, por assim dizer, de
— Mas — contrapôs Clitofonte — o que Trasímaco quis uma palavra por outras. (Assim, triângido = "figura de três
dizer com "interesse dos mais fortes" é o que os mais for- lados em duas dimensões"; cachorfinho = "fi'lhote de cão";
tes acreditam que seja do seu interesse. É isto o que o súdi- ou cachorrinho = "cão que ainda não cresceu". Sempre que
to deve fazer, e é isto o que a definição significava. se pode usar uma expressão, tem-se de poder usar a outra.)
— Bem, não foi isso o que ele disse — respondeu Po- Examinemos agora a "definição" de Trasímaco. Será que
lemarco. alguém poderia imaginar, a sério, que "o interesse dos mais
— Não faz diferença, Polemarco — disse eu. — Se este fortes- seja lingüisticaniente eqztivalente a "certo"? É óbvio
era o significado do que Trasímaco disse, vamos aceitá-lo. qtie não. Para começar: se fossem expressões lingüistica-
Diga-me, Trasimaco: era este o significado do que você de- mente equivalentes, não poderíamos * dizer "Tal atitude é do
finiu como "certo"? Que "certo" é o que parece mais inte- interesse da classe dominante, mas acho que não é certa~';
ressante aos mais fortes, quer seja, quer não seja? mas podemos e dizemos, a todo instante. "Certo", portanto,
— Claro que não — respondeu ele. — Você acha que eu não significa o que diz Trasímaco.
chamaria de "mais forte" alguém que erra, justamente quan- (b)Mas dntão o que ele está fazendo? Talvez esteja
...

do está errando? apenas dizendo que as classes dominantes fazem as leis, e


— Pensei — disse eu — que isto fosse o que você queria que sempre são leis que as beneficiam. Se é isto, está ape-
dizer. nas afirmando um fato: teríamos, naturalmente, de recorrer
. — Porque você discute com muita malícia, Sócrates. 0 a um historiador ou a um sociólogo para que nos disses-
artesão ou o cientista nunca erram, nem o governante erra se se a afirmação de Trasímaco é verdadeira. Pode aconte-
enquanto governa, embora seja verdade que, na linguagem cer, até, cle ser muito verdadeira e muito irnportante. Mas...
EXEXIPLOS DE ANIILISE 65
64 PENSAR COM CONCEITOS

até que ponto este aspecto sociológico tem algo a ver com aos interesses da escola". É óbvio que "bom" não signifi-
o significado de "certo"? ca isto, embora "um bom menino" possa significar um
(c) Talvez ele esteja tentando dizer: "0 que a maioria menino que sirva aos interesses da escola. Parece estranho.
das pessoas chama de 'certo' é, no fundo, o que as classes (e) Agora tem-se a impressão de que, na parte final de
dominantes ordenam" ou, com maior precisão: "Se as clas- usamos o verbo "significae' de dois modos diferentes.
ses dominantes ordenarem isto ou aquilo, os atos e compor- Suponhanios que estivéssemos querendo dizer `Una bom
tamentos que resultarem desta ordem corresponderão ao menino', de fato e na prática, significa realmente 'um meni-
que a maioria das pessoas considerará 'ccrto'." A idéia aqui no que serve aos interesses da escola` e depois "'Bom' sig-
é que, se quisermos saber quais as atitudes que, de fato, são nifica 'que serve aos interesses da escola`. A primeira frase
consideradas "certas", ou se quisermos saber o qiie as torna é evidentemente verdadeira; a segunda, falsa. Demonstram-se
11
certas", teremos de examinar as atitudes e comportamentos assim os dois modos diferentes de usar o verbo "significae':
(i)"significar" como "lingüisticamente equivalente a";
que sejam do interesse das classes dominantes, porque "ati-
(ii)"significar" como "identificável na prática com~'.
tudes certas" coincidem com "atitudes que interessam às
classes dominantes". E coincidem, é claro, pela muito boa Para ver mais facilmente os dois usos, imaginernos'um
razào de que as classes dominantes fazem leis e estabele- general que diga "Precisamos de algo mais poderoso do que
cem códigos de moral que favorecem seus interesses; e é as armas convencionais", e outro general que responda "Isso
significa a bomba atômica". "Significa", aqui, está sendo
por força destas leis e códigos que as pessoas consideram
as coisas "certas" ou "não-certas". usado no sentido (ii) que acabamos de mencionar. Ninguém
(a) Se a questão sociológica de Trasímaco em (b) for imaginará que as expressões "a bomba atômica" e "algo
verdadeira, será que (c) também é verdade? Façamos um mais poderoso do que arinas convencionais" sejam lingüis-
paralelo. Pode-se perguntar "0 que é um 'bom menino' na ticamente equivalentes.
escola?" e respoiider "Bem, 'bom menino' é aquele que (f) Em todo caso, como vimos no Capítulo 1 (pági~
na 40), palavras de sentido moral de aplicação geral, tais
satisfaz as exigências do estabelecimento educacional:
que não cria problemas, que cumpre suas tarefas atenta e como "born" e "certo", são usadas, em primèiro lugar, para
cuidadosamente, que, provavelmente, se destaca nos jogos aprovar ou elogiar; e, portanto, não podem ser lingüistica-
mente equivalentes a nenhuma expressão factual, concreta,
e em outras atividades, quc é obediente, e assim por diante.
como "os interesses dos mais fortes". Embora as atitudes
Em outras palavras, o tipo de menino que serve aos inte-
resses da escola ou das classes dominantes (os diretores)". de fato que as pessoas na prática chamam de "boas" ou
Isto é o mesmo que admitir (b): que a instituição decreta "certas" possam ser de um certo tipo, não podemos atrelar
normas no seu próprio interesse; (c): que quando as pes- o uso de "born~' ou "certo" apenas àquele tipo de atitude.
soas falam de "um bom rnenino" (como, por exemplo, num Sempre,podenios dizer: "Bem, apesar de servir aos interes-
boletim escolar), referem-se, quase sempre, ao tipo de me- ses da instituição e, portanto, poder ser chamado de 'bom
nino que serve aos interesses da escola. Mas ninguém menino', acho que, no fundo, ele não é um bom menino";
ou "Mesmo que a maioria das pessoas considere tal coisa
disse, até aqui (veja (a)), que "bom" significa "que serve
66 PENSAR COM CONCEITOS EXEMPLOS DE AiVÁLISE 67

,
certa', para mim é errada-. Portanto, deveríamos pensar proprietários da escola, com as autoridades da educação, com
bem antes de admitir (c). Se Trasímaco diz: "0 que as pes- os pais, entre outros. Agora, o que será um "bom compor-
soas chamam geralmente de 'certo' é, na prática, idêntico tamento", considerada a nova regra? . Se adotarmos a linha
ao interesse das classes don-iinantes", então (se estivesse cor- de pensamento de Trasímaco, diremos que, quando criou a
reto quanto aos fatos) poderíamos concordar. Mas não admi- norma, o diretor mão estava agindo como diretor; de tal modo
tiríamos que "certo" sigjiifíqiíe isto; não, pelo menos, sem que o menino bem comportado descumpriria a nova regra,
examinar meticulosamente como o verbo "significar" está que nào era, realmente, do interesse do diretor. Outra opção
sendo usado aqui. seria dizer que o menino bem comportado, como de costu-
(g) Como a questão sociológica (a questão de os códi- me, obedeceria às normas, inclusive à nova regra.
gos morais e das leis, por força das quais as pessoas con- (h)É válida a constatação sociológica geral de que o
sideram "certas" algumas atitudes, serem criados para aten- comportamento que a maioria considera bom (ou "certo",
der aos interesses das classes dominantes) é afetada pelo ou "justo") é, quase sempre, o comportamento que mais
que diz Sócrates? Trasímaco pode escolher entre aceitar a interessa às autoridades. Às vezes, as autoridades não são os
sugestão de Clitofonte e rejeitá-la. Ele pode dizer: melhores avaliadores dos próprios interesses, mas, neste caso,
(i) "certo" é o que as autoridades dizem que é certo, adotar ou não a sugestão de Clitofonte é assunto para outra
mesmo que às vezes digam coisas que nao são do interesse discussão. Seja como for, a constatação continua válida.
delas; ou (i)A última fala de Trasímaco parece estranha. A ten-
(H) "certo" é o que realmente é do interesse das auto- tação, neste caso, é dizer "Se Trasímaco admite que 'na lin-
ridades, não importa o que digam. guagem comum' é possível dizer que o médico ou o gover-
Trasímaco parece adotar a primeira hipótese, mas, de nante errou", por que não se satisfaz com isto 9 Por que
fato, adota a segunda. Pois, se acrescentarmos a (i) al.-O como entra naquele estranho contorcionismo conceitual, e diz que
"e as autoridades sempre dizem aquilo que serve aos seus ,o governante, na medida em qtle for governante, não erra'?"
próprios interesses ~se não for assim, mão as considerare- No entanto, seria errado pensar que Trasíniaco fala desse
mos autoridades)", a primeira hipótese transforma-se, de fato, modo só porque está procurando evitar as críticas de Só-
na segunda. Imagine o direior de uma escola, que faça as erates; não se pode partir do pressuposto de que Trasímaco
regras. Neste caso, a expressão "bern comportado" passa a seja tolo; e, se adotasse a sugestão de Clitofonte, também
significar (num sentido de "significar") "obediente às nor- estaria evitando as críticas. Ele, portanto, deve ter concei-
mas do diretor"; e, se acrescentarmos que o diretor cria nor- tos diferentes dos nossos. Para Trasímaço, aparentemente,
mas no seu próprio interesse, podemos dizer que *a conduta a arte e a ciência vêm em primeiro lugar e o artista e o cien-
que é dita."bem-comportada" iesume-se, afinal de contas, tista, ern segundo; para nós, é o contrário. Acreditamos, an-
à conduta que interessa ao diretor. Suponhamos, porém, que tes de mais nada, no médico; e depois, se pressionados, con-
o diretor beba demais e crie alguma norma absurda, como, cordaremos que há algum tipo de habilidade ou cabacida-
por exemplo, a de que todos os meninos terão de namorar de ou conhecimento que os médicos usam, bem ou mal.
pelo menos uma das meninas da região, por semestre. Isto Trasímaco acredita, em primeiro lugar, num conhecimento
.não é do seu interesse, porque causará problemas com os especializado chamado "curar pessoas". E "médico" é con-
68 PENSAR COM CONCEITOS EXEMPLOS DE ANÁLISE 69
ceitualmente definido (pelo menos em termos estritos) RUSSELL (7). Bem, por que um tipo de objeto parece ser
exclusivameiite em termos deste conhecimento especializado. amarelo e outro, azul? Posso dar-lhe uma resposta apro-
Em outras palavras, "médico" é alguém que se dedica a ximada, graças aos fisicos. E, quanto ao motivo pelo
11
curar pessoas". Nestes termos, estritamente definidos, o ho- qual considero que algo é boni e outra coisa é nefasta,
mem não é "médico" quando não está curando pessoas. Por- é provável que exista uma resposta da mesma natureza,
tanto, não é médico quando comete erros na medicina ou mas ela ainda não foi pesquisada com o mesmo afinco
quando está em férias. Claro que temos aqui uma constela- e eu não poderia lhe dar essa resposta.
ção de conceitos bem diferentes dos nossos. COPLESTON (8). Bem, vejamos o comportamento do coman-
dante de Belsen.' Parece-lhe indesejável e perver~o, e a
mim também. Já, para Adolf Hitler, supomos que pare-
b) Utiz diétlogo iizoderizo cesse bom e conveniente. Creio que você teria de dizer
que para Hitler era bom e para você, nefasto.
A seguir, um diálogo entre Bertrand Russell e o padre RUSSELL (9). Não, eu não iria tão longe. Quero dizer, acho
S. C. Copleston, S.J. 0 debate cornpleto foi transmitido pela que as pessoas podem cometer erros, nesse e em outros
BBC e tratava da existência de Deus. Apresentoaqui um aspectos. Se você tiver icterícia, verá amarelo tudo que
trecho em que se discutem a moralidade e os juízos de valor. não é amarelo. Estará cometendo um erro.
COPLESTON (10). É, os erros acontecem, mas será que a pes-
soa pode cometer um erro se for simplesmente uma
RUSSFLL (1). Sinto que algiimas coisas são boas e otitras são
questão de referêricia a um sentimento ou emoção? Hitler,
más. Gosto das que são boas, das que considero boas; e é claro, seria a única pessoa capaz de julgar o que agra-
detesto as qiie considero más.
daria às suas emoções.
COPLESTON (2). É, mas qual é sua justificativa para distinguir
RUSSELL (11). Seria perfeitamente correto dizer que o pro-
entre o que é bom e o que é mau? Ou como você enca- cedimento agradava às suas cinoçóes, mas pode-se dizer
ra a distinção entre cles? várias coisas sobre isto, dentre outras, que, se esse tipo
RUSSELL (3). Não tenho nenhuma justificativa, como tam-
de atitude exerce esse tipo de fascínio sob~c as emoçoes
bém não tcnho jttstificativa para distingiiir entre o aziil de Hitler, então ele afeta minhas emoções de modo
e o amarelo. Qçtal é minha justificativa para distinguir totalmente diferente.
entre o azul e o amarelo? Eu vejo que são diferentes. COPLESTON (12). Concordo. Mas entào não existe, na sua
COPLESTON (4). Bem, essa é umajustificativa excelente, devo opinião, nenhum critério objetivo além do sentimento,
admitir. Você distingue o azul do amarelo pela visão. E para condenarffios a conduta do comandante
' de Belsen?
com que faculdade você distingue o bom do mau? RUSSELL (13). Nenhum critério além dos que existem para
RUSSELL (5). Com meus sentimentos. " o daltônico que se encontra exatamente no mesmo esta-
COPLESTON (6). Com seus sentimentos. Bem, era isso o que
eu estava perguntando. Você acha que o bern e o mal
1. Beisen foi um campo de concentração na Guena Mundial de 1939 a
dizem respeito simplesmente aos sentimentos? 1945, onde o comandante e outros cometeram muims atrocidades.
70 PENSAR COM CONCEITOS EXEMPLOS DFANÁLISE 71

do. Por que condenamos intelectualmente o daltônico? Conientários


Não será porqiie ele pertence à minoria? (a) A passa,gem trata da justificativa de juízos morais.
COPLESTON (14). Eu diria que o condenamos porque ao dal- No entanto, ela não parece avançar miiito: o pedido de' tima
tônico falta algo que pertence normalmente à natLireza justificativa que Copleston faz no início (2) é repetido no
humana. final (20); e a resposta ori,ginal de Russell (3) também é
RUSSELL (15). É, mas não diríamos a mesma coisa se ele repetida no final (21). É possível que as respostas de Russell
pertencesse à maioria. tenham sido totalmente claras e satisfatórias e que Coples-
COPLESTON (16). Logo, você diria que não há nenhum crité- ton simplesmente não tenha entendido sua posição, mas não
rio , além do sentimento que perinita distinguir entre o é muito provável. E também é improvável que as respostas
comportamento do comandante de Belsen e o compor- de Russell tenham sido totalmente imprecisas e insatisfató-
tamento, digamos, do arcebispo de Cantuária. rias. É quase certo que o diálo,go não tenha che,gado a nenhu-
RUSSELL (17). A sensação é tim pouco simplificada demais. ma conclusão. E, como parece avançar em círculos, talvez
É preciso levar em consideração os efeitos dos atos e os ala.o não tenha ftlncionado bem com ele.
sentimentos despertados por esses efeitos... Pode-se mui- (b) Podemos começar por eliminar algumas imperti-
to bem dizer que os efeitos dos atos do cornandante de nencias:
Belsen foram dolorosos e desa,aradáveis. (i) Em 7, Russell não está dando nenhumajzistificativct
COPLESTON (18) . Concordo que foram, sem dúvida, muito
para suas opiniões morais. Está apenas sugerindo que'pode
dolorosos e desagradáveis a todas as pessoas no campo.
haver uma explicaçiío científica (presumivelmente, uma
RUSSELL (19). É, mas não só às pessoas no campo. Também
explicação psicológica) para elas, exatamente como existe
às pessoas de fora que observavam esses atos.
uma explicação para o motivo pelo qual os objetos parecem
COPLESTON (20). É, é bem verdade, no plano da imaginação.
ser amarelos e azuis.
Mas essa é minha questão. Eu não aprovo aqueles atos
e sei que você também não os aprova, rnas nao vejo que (ii) Em 4-6, Copleston apresenta a idéia de umafaciil-
motivos você tem para não aprová-los porque, afinal de dade com o auxílio da qual Russell faz juízos ou distingue
contas, para o próprio cornandante de Belsen, esses atos entre o qtie é bom e o que é rnau. A implicação de 4 Ç'Bem,
eram agradáveis. essa é uma jiistificativa excelente") e de 6 ("Bem, era isto
RUSSELL (2 1). É, mas veja bem, não preciso de nenhiim mo- o que eu estava perguntando") é que perguntar qual a facul-
tivo a mais nesse caso do que preciso no caso da percep- clade tisada eqLiivale a peraLintar que jUStifiCatiVa pode ser
ção de cor. Existem pessoas que acharn que tudo é ama- dada — ou pode ter uma associação importante com essa
relo, pcssoas que sofrem de icterícia, e eu nào concor- pergunta. Mas isto não está clarç). Pode-se usar uma facul-
do com elas. Não posso provar que as coisas não são dade para colher evidências, mas as evidências é que são a
amarelas. Não há nenhuma prova. Mas a maioria concor- jtistificativa, não o mero tiso da faculdade. Deste modo, se-
da comigo que elas não são amarelas; e a maioria con- ria possível iisar nossa faculdade da audição e com ela
corda comigo que o comandante de Belsen estava come- obter uma impressão de que ocorreu algum tipo de ruído.
tendo erros. Mas a justificativa para acreditar nisto seria a própr -ia impres-
72 PENSAR COM CONCEITOS EXEAIPLOS DE ANÁLISE 73

são, as impressões dos oiitros, o que ficou registrado num oti seja, como insinua Copleston em 14, porque os daltôni-
gravador, e assim por diante. Seja como for, é necessói-io cos são mesmo deficientes, em certo sentido — afinal, eles
que haja iiina faculdade para que as pessoas distingam entre não conseguem distinguir cores que muitas outras pessoas
as coisas? Mediante que faculdade distinguimos entre o ver- distinguern facilmente. E isto pode ser facilmente verifica-
dadeiro e o falso, o feliz e o infeliz, a dor e o prazer, o belo do: por exemplo, o daltônico não consegue distinguir entre
e o feio, e assim por diante? Poderíamos responder (como as luzes de "Pare" e "Siga" nos sinais de trânsito. Nesse sen-
Russeli): "Por meio dos nossos sentimentos", mas de que tido, os daltônicos continuariam a ser deficientes, mesmo
serve esta resposta? Este não parece ser um conselho útil. que fossem maioria.
E talvez tenha sido uma sorte que, no diálogo, tenha sido (e) Russell, entretanto, parece estar confuso a respeito
rapidamente abandonado. disto. Em 9, ele fala de "cometer erros" a respeito de cores,
(c) Ora, mas será que a analogia que Russell faz entre o que não faz sentido se ele diz, adiante (21), que "não há
os juízos morais e a percepção de cores realmente funcio- nenhuma prova" quanto às cores. Também parece confuso
111 na? É bem possível que não, já que as palavras pelas quais quanto aos juízos morais. É como se dissesse, por um lado,
atribuímos valores não funcionam do mesino modo que as que os juízos morais não precisam de justificativa (as pes-
palavras descritivas (Capitulo 1, página 40). De fato, é pos- soas simplesmente têm a sensação de que algo é bom ou
sível provar (ao contrário do que diz Russell em 2 1) que al- mau e ponto final) e afimiasse, por outro lado, que se podem
guns objetos são amarelos e outros são azuis. Quando dizemos cometer erros em questões de juízo moral (9, 2 1). Mais para
que algo é amarelo, estamos afirmando fatos que podem ser o final da passagem, ele parece claramente ansioso para nao
lui verificados por métodos reconliecidos. Poderíamos, por dizer que não há como demonstrar que os atos do coman-
exemplo, pergiintar a várias outras pessoas se o objeto era dante de Belsen são maus; mas também não deixa claro
amarelo oti não. F, como último recurso, poderíamos medir como se poderia demonstrar que são maus. E poderia ex-
as ondas de luz emitidas pelo objeto. Mas o adjetivo "bom" plicitar (21) que a maioria das pessoas, como ele mesmo,
não funciona assim. Como "bom" é basicamente usado para também teve a impressão de que os atos eram nocivos, o
elogiar — de modo algum para afirmar fatos —, é certo que que não prova coisa alguma. Como Russell dlz, não há ne-
não podemos provar que algo é bom do mesmo modo que po- nhuma prova nessa linhà de raciocínio. No entanto, se não
demos provar qtie algo é amarelo. De fato, é possível que há absolutamente nenhuma prova, não faz sentido falar em
não consigamos "provaf', de rnodo algum, que algo é bom "cometer erros".
(embora, evidentemente, tudo dependa do que considere- (1) Russell, poderia ter defendido coerentemente uma
mos como pi-ova). , posição — a posição de que, ao fazer um juízo moral, a pes-
(c~ Portanto, Russell está errado (13, 15 e 2 1) ao suge- soa está simplesmente expressando um sentimento. Essa
rir que se trate de mera questão de opinião dizermos que posição poderia ser enunciada em termos aproximados se
algo é amarelo ou azul. Em resposta a 13, nós tomamos o disséssemos que "Isto é borW' significa simplesmente "Gos-
.daltônico como deficiente, não só porque os daltônicos sejam to disto". Não é muito plausível, mas superá a dificuldade
minoria, mas porque são, de fato, cegos para algumas cores; associada ao comandante de Belsen. Pois se . "Isto é bom"
v,

74 PENSAR C'Olkf ColvcrlTos F.VI--AIPLOS DEAMÁLISE 75

só significar "Gosto disto", na realidade não há nenhuma pressuposto de que toda a história de juízos morais fosse
discordância entre Russell e o comandante. 0 comaridante suscetível de comprovação, justificativa, e assim por diaiite.
está somente dizendo "Gosto de fazer esse tipo de coisa - e E Russell não demonstrou que é este o caso.
Rtissell está respondendo "Pois eu não gosto". Se os dois lados (h) No entanto, a ilogicidade e as incoerências da posi-
estão apenas expressando seus sentimentos, não há nenhum ção de Russell são significativas porque, pelo menos, apon-
motivo para discordância. Isto resolveria a questão a respeito tam para um dilema autêntico. Por um lado, não vemos co-
da justificativa: ninguém precisará justificar juízos morais se mo podemos falar racionalmente em "comprovação" e "jus-
eles puderem ser traduzidos por "Gosto disto", "Viva aquilo!", tificativa" em temas de moral, já que as palavras das quais
"Abaixo fulano de tal!", e assim por diante. nos servimos para atribuir valor não descrevem fatos. Por
(g) Copleston tem toda a razão de insinuar (20) que os outro lado, não queremos dizer que a história toda é só
esforços de Russell no sentido de justificar sua crença, em uma questão de gosto. Em outras palavras: queremos poder
(17) e (19), são em vão. Russell poderia ter adotado a provar que os atos do comandante de Belsen são maus. Não
linha oposta à que acabamos de mencionar em W e ter sus- nos contentamos em dizer apenas "Não gostamos do seu
tentado que alguns sentimentos morais são justificáveis, modo de agi?'. Mas também percebemos as dificuldades ló-
por exemplo, como sugere em (17) e (19), por meio de uma gicas quanto ao modo de provar este tipo de asserção. A
verificação de se a rnaioria considerava algum ato desagra- solução talvez esteja em formular uma noçào diferente de,
dável. Ele poderia ter dito de saída: "'Bom' significa 'o que
,,
prova" ou de "justificativa", que possa ser aplicada a juí-
a maioria considera agradável` ou alao semelhante. Nesse zos morais e a discussões morais, embora não se aplíque a
caso, naturalmente, seria possível provar qual das coisas é discussões sobre fatos. (Este é um dos problemas mais
"bom" . (ou "boa"): bastaria descobrir o que a maioria das sérios — talvez o mais sério de todos — na modema filoso-
pessoas considera agradável (que é uma questão de fatos fia moral.)
concretos), e prorito. Seria então possível falar em provas,
em cometer erros, em justificativas, e assim por diante. No
entanto, Russell recusa-se a fazer isto — ou, pelo menos, a c) Passageizs titais etirtas
fazê-lo de modo coerente. Quando faz afirmações como
(17) "É preciso levar em consideração os efeitos dos atos..." (1) C. S. Lewis, "0 comportamento cristão -
e (19) "Também a pessoas de fora que observassem esses Alguns de nós, pessoas que parecem ser bastante agra-
atos", ele parece estar riiudando de idéia. Se não . se cogita dáveis, podem, na realidade, ter tirado tão pouco proveito
de justificativa ou prova, por que seria "preciso" formar nos- de bons traços hereditários e de uma boa criação que, de fato,
sos juízos morais mediante o exame dos efeitos dos atos? somos piores que os que consideramos desumanos. Podemos
Ou por qtie deveriamos interessar-nos pelo sentimento de ter certeza de como teríamos . nos comportado se tivésse-
quem está de fora? Dizer isto só faria sentido se pudésse mos carregado nos ombros a disposição psicológica, a cria-
mos apresentar alguma razão pela qual as pessoas devessenz ção falha e, depois, o poder de, digamos, Himinler? É por
a,gir daquele modo, o que só faria sentido se partíssemos do isto que se ensina aos cristãos que não julguem. 0 que se
76 PENSíI R COiVI CONCEITOS EXEMPLOSDEARÁLISE 77

vê é apenas o resultado que as escolhas de um homem mol- diante. Não classificamos estes aspeCtOS na mesma catego-
dam em sua matéria-prima. E Deus não julga, de modo ria de outros aspectos — o saldo bancário de alguém ou a
algum, pela matéria-prima, mas por aquilo que o homem casa em que mora. Estamos preparados para dizer qúe o
fez dela ou com ela. A maior parte da estrutura psicoló- homem tein saldo bancário e casa própria, mas da inteligên-
gica do homem é, provavelmente, devida ao seu corpo. Quan- cia e de atributos semelhantes dizemos quefazenz pai-te do
do o corpo morrer, tudo se soltará dele e será desnudado o homem. De fato, inteligência e atributos semelhantes são,
verdadeiro homem central, aquilo que ele escolheu fazer, exatamente, os aspectos que se unem para compor o que
que fez — melhor ou pior — a partir da matéria-prima. Todos significamos com as palavras "homem" ou "pessoa".
os aspectos agradáveis que imaginávamos serem nossos, (c) Se, acompanhando o pensamento de Lewis, não acei-
mas que, de fato, deviam-se a uma boa digestão, soltar-se-ão tarmos que inteligência e atributos semelhantes sejam con-
de nós. Todos os aspectos insuportáveis, que eram devi- siderados parte de um homem (ou parte "de verdade"), só
dos a complexos ou a uma saúde fraca, soltar-se-ão dos ou- nos restará "aquilo que o homem escolheu". Já desqualifi-
camos tudo o que resulta da hereditariedade e do ambienté
tros. E então, pela primeira vez, veremos todos como real-
e não importa em que proporção consideremos que façam
mente foram. parte de uma pessoa, sempre comporão uma boa parte dela.
De tal moclo que os traços restantes (a vontade? a alma?)
COIneniários parecerão bastante tênues. De fato, seria concebível aplicar
(a) Temos aqui um quadro dos seres humanos não como a palavra a
"homem" "urna
coisa
capaz escolher"?
de Não
se fossem compostos, essencialmente, dos fatores hereditá- importa que caracteristica do homem seja, será apenas uma
rios, do aiiibiente ou da posição qiie têiii iia vida, mas como característica. E, a menos que revisemos radicalmente o
seres que podem fazer escolhas morais, Quando os fatores conceito de "homem", esta tal única característica não será
hereditários e tudo o mais "se soltarem" deles, nós os vere- suficiente para que chamemos um ser de "homem".
mos como "realmente foram". Pessoas que "parecem bas- (d) Com efeito, toda a idéia de dizer que o que parece
tante agradáveis" podem ser "de fato piores" do que, por ser partes de um homem na realidade não é — ou seja,
exemplo, Himmler. 0 "verdadeiro homem central" é "aqui- todo o quadro apresentado por Lewis —, pare~e tão dificil
lo que escolheu ser". de conceber que chegamos a nos perguntar se o quadro de
(b) 0 mais surpreendente é que, embora este quadro Lewis faz sentido. Haverá, de fato, uma parte do homem
possa corresponder àquilo em que alguns de nós acredita- que possamos descrever como "uma coisa que escolhe", uma
mos (ou dizemos acreditar), o quadro não está, de modo parte totalmente isolada de qualquer aspecto relacionado à
algum, em harmonia com o modo como normalmente fala- sua hereditariedade e ao seu ambiente? Será que podemos
inos. Geralmeiite, consideramos como parte de um homem isolar tal parte, em termos lógicos? Deveríamos pedir tem-
características que se podem revelar como enormemente po para fazer uma investigação meticulosa antes de concor-
influenciadas, se não totalmente determinadas, pela heredi- dar com esse quadro.
tariedade e pelo ambiente: a inteligência, o temperamento (e) Além disto, caso aceitássemos o quadro, teríamos
agradável, a aparência fisica, o senso de humor, e assim por de corrigir uma boa parte da nossa linguagem. No momen-
78 PENS, IR COA1 CONCEITOS EXEMPLOS DEANÁLISF 79

to atual, não faz sentido algum dizer que pessoas agradá- na vida em que qticremos dizer (nãQ importa que palavras
veis podem "realmente" ser piores do que Himmler, porque usemos): "Tal pessoa iijio está sU, "iião está em solidão"
não há significado algum que possa ser associado à palavra oti "não está isolada". E por que não deveríamos dizer isto
realinente, a menos qtic, antes, tenhamos aceitado todo o com as palavras qtie acabamos de usar?
quadro. Esta é uma das muitas passa,gens nas quais, apesar (b) É presumível que Huxley tonha cedido à tentação

de as palavras usadas serem muito comuns na língua que de estender tanto o conceito de "estar só-, porque qtieria
falamos e serem perfeitamente compreensíveis, somos "coli- transmitir uma determinada idéia. E que idéia seria esta?
vidados" — mais, somos quase "obrigados" — a aceitar uma Talvez a idéia de que não conscauimos comunicar nossas
imagem totalmente nova do mundo e a encarar tim modo experiências "senão mediante síi -nbolos e em segunda mão".
totalmente novo de usar os conceitos. Ou, talvez, que não podemos, ntinca, "reunir.. as proprias
experiências", ou seja, que não podemos jamais ter a mes-
(2) Aldoits Hiccley, 'As portas da percepção ma experiência que outra pessoa. Examinemos uma a uma
Vivemos jtintos, interagimos e reagimos uns aos outros; estas possibilidades.
mas sempre, e em todas as circunstâncias, estamos sós. Os (i) Dizer qiie não podemos transmitir nossas experiên-
mártires entram na arena de mãos dadas, mas são crucifi- cias "a não ser mediante símbolos" é estranho porqtie, no
cados sozinhos. Abraçados, os amantes tentam desespera- contexto, implica a possibilidade lógica de haver comuni-
damente fundir seus êxtases isolados numa única transcen- cação sem símbolos, mas que não existe na vida humana,
dência do eu; em vão. Por sua própria natureza, todo corpo tal como ela é. Mas poderia existir? Sem dúvida, todas as
encamado está fadado a sofrer e a ter prazer em solidão. formas de comunicação envolvem símbolos ou sinais arti-
Sensações, sentimentos, percepções profundas, fantasias — ficiais (as palavras de uma língiia, os ggestos, o códiao Morse
tudo é pessoal e incomtinicável, a não ser por símbolos e ete.). É isso o que significa "comunicação". Dizer que não
em segunda mão. Podemos reunir informações sobre expe- podemos jamais nos comunicar a não ser "em segunda
riências, mas nunca as próprias experiências. mão" é estranho, e pelo mesmo motivo. Conio seria uni
caso de conitinicação em primeira mão? Toda comuniciçã,)
Comentários é "em segunda mão", no sentido inquestionável de que
(a) "Vivemos juntos, mas estamos sempre sós" é um envolve a mediação dos símbolos.
paradoxo. A impressão (Capítulo 1, página 42) que se tem (ii) Não é preoctipante dizer que não podemos ter "a
e que os limites do conceito estão sendo, de algum modo, mesma experiência" que outra pessoa? Isto é evidentemen-
estendidos além da conta. Se estamos sempre sós, podemos te verdade, em certo sentido: Smith não pode ter a dor de
atribuir algum sentido à noção de estar na companhia de cabeça de Brown (embora, é claro, possamos, em outro sen-
alguém, ou de compartilhar alguma coi sa com alguém? Será tido, ter "urna dor de cabeça igual" ou o mesmo tipo de dor
que Huxley, alguma vez, se permitiria dizer "Fulano de Tal de cabeça que Brown). Mas dizer que Smith não pode ter a
não está sozinho"? Afinal, aí está uma frase que todos pro- dor de cabeça de Brown não é expressar um lamentável fato
ferimos com grande freqüência. Em outras palavras, há casos da natureza, que poderia ser diferente: é expressar Lima ver-
91
80 PENSíIR COM CONCEITOS EXEMPLOS DE ANÁLISE

dade da lógica. Smith não pode ter a dor de cabeça de Brown Comentários
porque, se Smith tivesse uma dor de cabeça, ela não seria (a)As duas primeiras frases sugerem opiniões diferen-
de modo algum a de Brown, mas a de Smith. Seria abstir- tes. Uma coisa é falar de "validade", "convicções" e 'Justi-
do dizer que Smith estava com a dor de cabeça de Brown. ficativa"; outra é falar de coisas que têm uma "função co-
mo parte essencial da nossa natureza~'. A primeira indica
É como levar ao pé da letra a expressão "Se eu fosse você".
que estamos avaliando crenças, para ver se existem evidên-
É óbvio que eu não posso realmente ser você - não faz sen-
cias que asjustifzqiteni, e assim por diante. A segunda suge-
tido; embora, é claro, eu possa pôr-me no seu lugar, parti- re que estamos examinando faculdades humanas ou padrões
lhar seus sentimentos, sentir-me solidário a você, e assitii de coniportamento, e refletindo'sobre como funcionam, se
por diante. são úteis ou "essenciais", se são engrenagens importantes
A implicação de ttido isto é que Huxley está lamentando,
na máquina humana. A última frase parece apoiar o segun-
não a ocorrência de ala.o que de fato ocorre mas poderia não do tipo de discurso, em vez do primeiro: devemos conside-
ocorrer, mas, sim, de algo que é uma necessidade lógica. rar não a validade das crenças humanas, mas o valor das
Enquanto atribuirmos sentido às distinções feitas por pala- faculdades humanas das quais somos dotados.
vras como "eu", "você", "Smith", "Brown" etc., é conse- (b)Suponhamos que comecemos por falar do pr -imeiro
qüência necessária qtie tenhamos de pensar nestas pessoas modo: isto parece mais natural se estivermos preocupados
e nas suas experiências como distintas, não como idênticas. com "certas convicções intimas", já que podemos presumir
Podemos, naturalmente, imaginar situações que dariam que uma "convicção" é uma crença de que algo seja algo.
maior peso a expressões como -comunicação" ou "compar- Quando lidamos com convicções ou crenças, nosso interes-
tilhamento de experiências" - por exemplo, a telepatia. Mas se primordial é saber se são verdadeiras. E para saber se
isto não altera a questão principal. uma convicção é verdadeira não interessa saber se ela é útil,
tranqüilizadora ou "essencial", nem se pode ser aceita com
(3) Sir Ai-thtir Edelington, 'A natiti-eza do mundo fisico " gratidão; a única coisa que interessa, neste caso, é saber se
Creio que não deveríamos negar validade a certas con- a tal convicção é razoável, se é "válida" ou "justificável",
vicções intimas, que parecem paralelas à confiança cega na se há evidência suficiente a seu favor.
razão que está na base da matemática; a um sentido inato (c)Algumas crenças são justificáveis, outras não.
da adequação das coisas que está na base da ciência do mundo Eddington parece considerar que a matemática, como siste-
fisico; e a um irresistível sentido de incongruência que está ma de crenças, não éjustificável — que ela depende de "cega
na base da justificativa do humor. Ou, talvez, não seja tanto confiança na razão"; e acredita que a ciência depende de
11 um sentido inato da adequação das coisas". Sem nos a'pro-
uma questão de afirmar a validade de tais convicçoes quanto
de reconhecer sua função como parte essencial da nossa fundarmos muito nos fundamentos lógicos da matemática e
natureza. Não defendemos a validade de ver beleza numa da ciência, vê-se facilmente que esta idéia parece estranha.
paisagem natural; aceitamos com gratidão o fato de que so- Se as crenças da matemática e da ciência não são válidas,
mos dotados da capacidade para vê-Ia deste modo. o que é válido? Muitas destas crenças são, sem dúvida algu-
ma, modelos do que seja uma crença racional.
82 PENSAR COM CONCEITOS EXEÁTI`LOS DE ANÁLISE 83

(a) Quanto ao htiníor, porém, não se aplica este tipo de principal — a tentativa de usar evidências parajustificar cren-
conversa; porque o liumor não envolve nenlium sistema de ças — e acabe ima gainando que "convicções íntimas — pos-
crenças . Seria portanto fora de propósito, em termos lógi sam, eni qitalqzier sentido da expressão, ser "aceitas com
cos, falar em "evidênci,-t", "v-,tlidade", "justificativa —, e assim gratidão" como parte das faculdades humanas de qtie todos
somos dotados. De fato, entretanto, pode-se ter a impressão
por diante.
de que algtins sentimentos aliados a algumas crenças sejam
(e) Se passarmos para o segundo tipo de argumento, ele
parte básica das nossas naturezas, apesar cie não baver nié-
agora nos parece incorreto porqtie ilão é assim qtic avalia-
todo que os justifiqiie. 0 sentimento e a crença religiosa
mos usualmente as "convicções" ou os conjuntos de cren-
ças -como os da matemática e da ciência — falar de coisas podem, é claro, ser deste tipo, como também podem sê-lo
que têm uma "função como parte essencial da nossa natu- o sentimento e a crença de que se pertence a uma "raça
reza- é que está mais próximo do nosso modo de avaliar dominante", a qual, por este motivo, tem o direito de assas-
coisas como o humon Em outras palavras, para justificar o sinar e persegitir pessoas das "raças inferiores".
humor, diríamos que ele é agradável ou útil, em termos psi-
cológicos; mas, parajustificar crenças, diríamos que são ver- (4) D. H. Laivrence, "Eclgai - Allan Poe —
É fácil ver por que cada homem mata aquilo que ama.
dadeiras.
(1) Examinemos agora a última frase. Se "ver beleza Conhecer um ser vivo é matá-lo. É preciso matar para co-
numa paisagem natural" envolve nutrir uma crença (por nhecer satisfatoriamente. Por esse motivo, a consciência
exemplo, o tipo de crença que se expressa ern entinciados desejosa, o ESPíRITO, é um vampiro. Ter-se-ia de ser siifi-
como "Aquela paisagem é linda"), então precisamos do pri- cientemente inteligente e interessado para saber miiito so-
meiro modelo de argumento — o disctirso sobre a validade, bre qualquer pessoa com quem se tivesse contato próximo.
a evidência, a justificativa, e assim por diante. Mas se "ver Sobre ela. Ou sobre ele. Mas tentar conhecer qualquer ser
vivo é tentar sugar-lhe a vida. 0 homem dcseja tão horri-
beleza numa paisagem natural — não envolver uma ci-ença,
mas apenas tim sentimento (por exemplo, o sentimento ex- velmente dominar com sita niente o segredo da vida e da
presso em "Puxa! Adoro olhar para aquela paisagem!"), individualidade. É como a análise de protoplasma. Só se
então (como no caso do humor), não precisamos nos preo- pode analisar protoplasma inorto e conhecer seuscompo-
cupár com a verdade. Se é qtie temos de nos preocupar com nentes. É um processo de morte. Deixemos o CONHECIMEN-
alguma coisa, é só com saber se o sentirnento é agradável To para o mundo da matéria, da força e da função, ciuc este
nada tem a ver com o ser.
ou útil.
(g) Finalmente, podemos amarrar nossas conclusões
com as "convicções íntimas" mencionadas no início. Se Comentários
Eddington quiser sigàificar apenas "sentimentos", pode-se (a) É óbvio que algo de muito estranho acontece aqui
com a palavra "conhecer". Diz-se normalmente "Conheço
aceitar o que se lê nes- te trecho. Mas é dificil não desconfiar,
porém, de que o autor comece por significar "crenças" e este- o Smith muito bem" sem nenhuma implicação, em termos
ja interessado emjustificá-las, mas depois suprima o ponto lógicos ou concretos, de "matar" Smith ou de "tentar sugar-
84 PENSAR COM COiVCEITOS EXEMPLOSDEANÁLISE 85

lhe a vida". Presume-se que Lawrence tivesse consciência à luz do texto que lemos. Talvez pudéssemos dar um palpi-
deste uso comum, mas quisesse transmitir alguma idéia que te — ao acaso — de que Lawrence está ansioso para criar um
envolvia uiii tiso "distorcido" da palavra coiiheciiizento. Em contraste entre uma abordagem intelecttial, analítica ou de
outras palavras, a distorção é tão radical que pode ser pro- exploração das pessoas ("conhecê-las") e outras formas de
posital. 0 que o autor está tentando provar? abordagem — arná-las, ter contato fisico com elas, aceitá-las,
(h) Lziwrcilcc traça unia (listinção cilire (i) coiillccer comunicar-se com elas, e assim por diante. A distorção pode
fatos sobre Smith e (ii) conhecer Smith. De acordo com levar a erro, mas por trás dela pode haver uma questão váli-
Lawrence, (i) é fácil, mas (ii) é "vampirismo", um processo da e importante.
de tentar "dominar" Smith com nossa mente. É um método
ruim de abordar Smith, porque "nada tem a ver com o ser". (5) Herbert Blitterjield, "Cristianismo e História "
Este não é, obviamente, o método de abordagem que se adota Devo confessar que se, na atividade normal do ensino,
norinalmente quando dizemos "Eu conheço Sinith" ou "Você pedisse aos alunos o que teria de chamar cuidadosamente
corlhece bem LondresT'. de "explicação histórica" da vitória do cristianismo no antigo
(c) Há um sentido pelo qual, ao "tentar conhecer Lon- Império Romano, estaria admitindo que não poderia haver
dres", estamos tentando "dominá-la" com nossas mentes. É dúvida quanto ao campo no qual o problema deveria ser
de presumir que Lawrence não faça objeção a isto. Mas examinado, absolutamente nenhuma dúvida de que eu tinha
pode-se pensar também num sentido pelo qual alguém po- em mente uma pergunta sobre "como" o cristianismo teve
deria usar a mente para "dominar" uma pessoa. Por exem- sucesso, não a pergunta mais fundamental sobre "por que"
plo, no caso de um paciente de psiquiatria, quando alguém isto ocorreu. Como historiador técnico, não deveria satisfa-
se intromete demais "onde não foi chamado" porque está zer-me com a resposta de que o cristianismo triunfou ape-
interessado em dominar outra pessoa ou quer interferir na nas porque estava certo e era verdadeiro, nem porque sim-
vida dela e, por assim dizer, "alimentar-se" do outro em plesmente Deus decretou sua vitória. Lembro-me de ter par-
beneficio próprio. Pode-se pensar, por exemplo, no caso de ticipado de um exame oral em Oxford, há mais de dez anos,
uma mãe superpossessiva: neste caso há um sentido em que quando ficamos total e permanentemente desnofteados com
se poderia dizer que a mãe tenta "conhece?' demais o filho, um candidato que atribuía tudo à direta intromissão do
"dominá-lo" com sua mente. Todo-Poderoso e, portanto, dava-se por dispensado de discu-
(d) Pode-se então distinguir (i) casos de conhecimento tir quaisquer agentes intermediários.
de pessoas aos quais nada se pode objetar e (ii) casos de
conhecimen to de pessoas que envolvam dominação, posses- Comentái-ios
sividade ou "canibalismo". Lawrence chama (i) de "conhe- (a) 0 fundamento geral deste trecho é que certos tipos
cer coisas a respeite" de pessoas e (ii) simplesmente de "co- de discussão (sobre o que é verdadeiro ou certo, ou sobre a
nhecei` pessoas". Por que Lawrence quer distorcer e mono- vontade de Deus) são inadequados para uma "explicação
polizar a palavra "conhecer" em (ii), para servir aos seus histórica". 0 candidato, qud presumivelmente respondeu a
próprios objetivos? Não é uma pergunta fácil de responder todas as perguntas do exame oral com frases como "Bem,
v

86 PEiVS-IR COA ,1 COxCriTos EVEMPLOS DE ANÁLISE 87


foi a vontade de Deus - , deixou os exami nadores "total e pudesse ser tomada como dita pai-a exulicai: Respostas desse
perffianentemente desnorteados". Até aqui tudo é imediata- tipo sao inúteis para a ciência, a história, ou qualquer outra
mente compreensível. niatéria da qual se espere que dê explicações.
(b) Por outro lado, há no texto algumas qualificações (H) Logo, não se trata apenas de as razões não serem
estranhas. Butterfield tem o cuidado de dizer que "como his- suficientemente completas, mas do fato de que não são nem
toriador técnico" não ficaria satisfeito com a resposta de que realmente razões nem explicações, de modo al.-Um. Como ra-
o cristianismo triunfou simplestiiente por ser verdadeiro ou zões, seja neste contexto, seja em qualquer outro contexto
certo, ou simplesmente porque Deus decretou a vitória. As de explanação, elas estão totalmente deslocadas.
implicações sào que é somente como historiador técnico que (d) Butterfield parece não se ter dado conta disto por-
ele -não ficaria satisfeito; que como historiador técnico ele que, antes, disse que tinha "em mente a pergunta sobre 'como'
nào teria nenhuma objeção, em princípio, às razões ofere- o cristianismo teve sucesso, não a pergunta mais fundamen-
cidas, mas que as consideraria insatisfatórias porque inade- tal sobre 'por que' teve sucesso". Que estranho modo de fa-
quadas (talvez por nio serem suficientemente completas?); lar! Claro que, nas provas, ele propõe perguntas como "Poi-
e que siniplesinente dar essas razões é insatisfatório porque qlte o cristianismo triunfou?". Seria esquisito perguntar
há outras razões que também teriam de scr dadas. Ejii outras "Coj?io o cristianismo triiiíifoti?". É claro qttc "por que- pode
palavras, as objeções de Butterfield parecem ser duas: pedir uma explicação. De fato, se tivéssemos de traçar algu-
(i) as razões são insatisfatórias como resposta à pergun- ma distinção, poderíamos muito bem* dizer que "por que"
ta 'Tor que o cristianismo triunfou?" se a pergltntafoi- en- pede uma explicação, ao passo que "como" pede apenas
carada como pet-gztnta de "história técnica "; uma desci-ição. (Basta comparar "Por que o papel de tor-
(H) as razões são insatisfatórias não tanto porque este- nassol tem o comportamento que tem?" com "Como o papel
jam totalmente deslocadas — em poucas palavras, por serem de tornassol comporta-se em meio ácido?".) 0 que é, por-
o tipo errado de razões —, mas porque nâo são suficiente- tanto, a curiosa distinção que Butterfield faz?
mente completas. (e) Mais uma vez, não podemos saber com certeza sem
1
. (c) Se tivermos razào ao extrair tais implicações — e examinar outros escritos de Butterfield. No entanto, p ode-
se ver de qtie modo uma resposta do tipo "Porque Deus quis
temos de admitir que a passagem não é longa o suficiente
assim" poderia ser uma resposta a "Por que o cristianismo
para termos certeza delas —, há algo estranho aqui. Po-
triunfou?" se usássemos a expressaopoi- qiie num certo sen-
deríamos dizer, sem dúvida, a respeito das objeções acima:
tido, para significar: "Para atender a qual finalidade?", "Para
. Í (i) "Porque Deus quis" é uma resposta insatisfatória à
atender aos objetivos de quem?" ou 'Tor vontade de quem?".
pergurita "Por que o cristianismo triunfou?" em qiíalqiter
(Como se eu perguntasse "Por que você se sentou?" e você
sentido da pergunta, ou em qualquer sentido que pos Í samos respondesse "Porque quis, porque estava cansado de ficar em
conceber; é insatisfatória porque não explica nada. Exata-
pé".) É perfeitamente correto fazer este tipo de pergunta
mente como, se perguntássemos 'Tor que o Mar Vermelho (embora possa acontecer de ela nào ter resposta), desde que
se abriu?" e nos respondessem "Porque Deus assim o quis" se tenha clareza quanto ao sentido exato que estejamos atri-
ou "Foi um milagre", não nos teriam dito coisa alguma que buindo a "por que".
88 PENS, IR COM CONCEITOS ,,VE,IfPLOS DEANÁLISE 89

(6) John MIson, "Razão e Moi-al " das duas alternativas. Os milagres não são simplesinente
Pela expressão "milagre" podemos significar algo que, "acontecimentos muito intrigantes e de dificil compreensão — ;
na prática, os seres humanos jarnais serão capazes de expli- mas tampouco o satisfaria a afirmação de que os milagres
car (por assim dizer, porque é dificil demais para eles); ou são "inexplicáveis por definição". Examinemos, separada-
podemos significar que não pode ser explicado logicamen- mente, cada um destes casos:
te; qtie, por definição, é inexplicável. Os que crêem na inex- (i) Por que os milagres não são apenas acontecimentos
plicabilidade essencial dos seres humanos enfrentam uma desconcertantes? Porque há pelo menos dois tipos de "acon-
ambigüidade semelhante. Os motivos para a incerteza são tecimento desconcertante": (1) os acontecimentos descon-
bastante óbvios, já que, se os crentes se aferrarem ao pri- certantes que não são enz princípio desconcertantes (por
meiro sentido, desvalorizarão os milagres, que ficarão redu- exemplo, o fato de que o cérebro produz um certo tipo de
zidos a fenômenos que são muito, muito dificeis de entender. ritmo quando uma pessoa está dormindo — que é apenas
Neste seiltido, os milagres poderão, no máximo, ser —mis- muito dificil de explicar); e (2) os acontecirrientos descon-
teriosos", mas em nenlium outro sentido importante — por- certantes que, de algum modo, são totalmente desconcei--
que, evidenternente, sempre poderemos imaginar circuns- tantes por serem produto de uma inteligência superior
tâncias qtle nos habilitem a entender um milagre ou um ato (Deus) que, em princípio, não podemos entender (digamos,
humano; e, incIusive, sem grande difiCLlldade. por exemplo, a abertura do Mar Vermelho).
(ii) Por que não queremos aceitar a expressão "inexpli-
Conieiztáj-ios cável por definição" sem melhor exame? Bem, num senti-
(a) Nesse texto Wilson está tentando construir um dile- do podemos concordar que os atos divinos são "por definição"
ma para prender os que acreditam em milagres. 0 dilema é inexplicáveis — por definição do que queiramos significar
aproximadarnente o seguinte: ou (i) os acontecimentos de- com a palavra "Deus" ou com a expressão "ser humano",
nominados "milagres" são apenas acontecimentos muito uma vez que se poderia definir a palavra "Deus" como iiin ser
intrigantes e de dificil compreensão (caso em que nào pre- cidos atos não são de niodo algienz conipreensíveis aos "se-
cisamos nos preocupar porque pode acontecer de consegLiir- res hiinianos ". Mas isto provoca uma impressgo muito dife-
mos compreendê-los no futuro) OLI (2) então "milagre" sig- rente da que se provoca ao dizer simplesmente que milagres
nifica "acontecimento inexplicável" ou —algo que ninguém são "inexplicáveis por definição". Se se disser apenas isto,
poderá explicar jamais, em nenhuma circunstância" (caso a implicação é que tais atos não fazem absolutamente ne-
em que parece precipitado afirmar que haja milagres, por- nhum sentido, ao passo que o que acabamos de dizer suge-
que quem garante que ninguém, jamais, os explicará?). Tudo re que eles fazem sentido para Deus, embora não o façam
isto parece muito bem colocado, mas quem realmente acre- para nós.
ditar em milagres ficará com uma vaga sensação de ter sido (c) Um exemplo esclarecerá este ponto. Imaginemos
enganado. Será que há aí, de fato, algum dilema? formigas num formigueiro e suponhamos que elas tenham
(b) Alguém que acredite em milagres pode negar que algum tipo de inteligência rudimentar. E, às vezes, os seres
sua posição esteja expressa, com justeza, por qltalqitei- uma humanos fazem coisas que afetam as formigas: derramam
90 PENSAR COM CONCEITOS E,VE,I,[PLOS DE ANÁLISE 91

água fervente sobre elas, salvam-nas de serem devoradas (e) Tudo * isso, até aqiii, demonstra o peri,go de tentar
por outras formigas ou viram o formigueiro de modo que elirninar todos os adversários com um só golpe. Pode haver
ele esteja sempre voltado para o sol. Agora, poderíamos di- pessoas cuja crença em milagres não dependa totalmente de
zer que as formigas não podem, em princípio (ou seja, por- crerem em um Deus que esteja fora do alcance do entendi-
que são formigas), captar a explicação destes "milagres". mento humano e que interfira no mundo de modos que
Não há dúvidas de que sejam, de fato, acontecimentos des- sejam em princípio incompreensíveis — para estas pessoas,
norteantes, mas são desnorteantes numa ordem superior à os argumentos de Wilson teriam peso. Mas para as pessoas
de outros acontecimentos também desnorteantes, como a cuja crença em milagres dependa exclusivamente de crerem
invasão por outro exército de formigas, a rebelião de al- antes em um Deus inalcançável pela razão humana, os argu-
gumas formigas escravas ou o súbito desmoronamento de rnentos de Wilson são inadequados. Em outras palavras, a
parte do formigueiro. Será justo dizer que os "núlagres" feitos crença eni milagres é parte essencial de uma metafisica reli-
pelos humanos são "inexplicáveis por definição"? A posi- giosa específica e não pode ser totalmente destrLiída sem
que se considere toda a metafisica.
ção lógida não está clara. Em outras palavras: é necessário
um maior exame para fazer justiça ao caso de quem acre-
ciita em milagres.
2. Conio respondei- a perguntas sobre conceitos
(cí) Por isto algüns dos comentários de Wilson são en-
ganosos. Por exemplo: "(só) neste sentido (porque podem
Neste tipo específico de análise conccitual; é essencial
ser muito dificeis de compreender), os milagres poderão, no adotar o método correto de procedimento, porqtie você quer
máximo, ser 'misteriosos', mas em nenhum outro sentido ter em mãos, ao final, um ensaio formal e completo, em vez
importante". É que há, como o demonstra o exemplo acima, de apenas alguns comentários lógicos isolados, informal-
pelo menos mais um outro sentido importante: os atos hti- mente expressos. Portanto, custe o que ctistar, não comece
manos serão desconcertantes para as formigas no importan- a escrever sem pensar, para não se meter num emaranhado
te sentido de que são atos hiimanos. E, por serem humanos, terrível e para evitar que seu segundo parágrafo contradiga
produzem um desnorteamento totalmente diferente e de ordem o primeiro.
superior. Também é enganosa a afirmação de que "eviden- Resista, custe o que custar, à tentação de pensar que você
temente, sempre poderemos imaginar circunstâncias que tem tanto a dizer sobre uma questão de conceito quanto qual-
nos habilitem a entender um milagre ou um ato humano; e, quer outra pessoa e que, por isto, quanto mais cedo corneçar,
inclusive, sem grande dificuldade", porque ignora o mesmo melhor. Ceder a esta tentação leva à imprudência, aliás, tam-
aspecto.As formigas poderiam, sim, conceber uma expli- bém no caso de responder a outro tipo de perguntas, mesmo
cação para algum acontecimento desnoi -teante normal (por que você conheça claramente os pontos a serem abordados.
exemplo, um súbito desmoronamento no formigueiro), mas Nas perguntas sobre conceitos, porém, tal atittide é fatal por-
não, não poderiam conceber uma explicação, por exemplo, que, quando corneç~anos a responder, sequer sabemos quais
para a água fervente que humanos joguem, de repente, so- são os pontos relevantes. Nas perguntas sobre conceitos não
bre o formigueiro. há "rnoldura" na qual se possa construir a resposta.
92 PENSAR CO jXI CONCEITOS EXENIPLOS DE ANÁLISE 93

Para estabelecer uma moldura deste tipo é preciso atin- (6) Escreva o ensaio ponto por ponto (e, na medida do
gir uma situação (antes de começar a escrever), na qual haja possível, interligue os vários pontos).
alguns poiitos a serem elaborados em ordem, que levem a al- (7) Finalmente, releia o que tiver escrito e exclua co-
gum tipo de conclusâo e à resposta mais definida possí- mentários obviamente indefensáveis ou extravagantes (e cor-
vel. Para fazer isto, recomendo o seguinte procedimento — rija todos e quaisquer erros de estilo, desvios da gramática
que pode parecer pouco elegante; que tem etapas que, com da norrna culta, pontuação, excesso de jargão da especiali-
alguma prática, poderão ser ignoradas; mas qtie, no início, dade etc.). _
vale a pena adotar do primeiro ao último passo, sem deixar Como todo conjunto de instruções, este tarnbém pare-
de lado nenhurna etapa: cerá dolorosamente lento. Imagine que você tenha de apren-
(1) Aja como se recomenda no Capítulo 1, página 22: der a nadar "por regras": "Ponha a mão direita na água, à
isole a questão (ou as questões) sobre conceitos do restan- frente da cabeça. Mantenha os dedos unidos e puxe a mão
te da pergunta (anote os conceitos a serem analisados). de volta, para perto do corpo, até onde puder, corno se o braço
(2) Aplique as técnicas das páginas 27-38 (casos- fosse um remo. Ah! E não esqueça de respirar!". À primei-
modelo, contra-exemplos etc.) a cada conceito e veja que ra vista, qualquer pessoa teria se afogado antes de curnprir
luz lançam sobre a questão (ou questões). Anote por escri- todas essas instruções. Mas, de qualquer modo, seguir as
to, resumidamente, os pontos que pareçam especialmente regras sempre é um jeito de começar...
significantes. No nosso caso, as regras servirão, de início, para mos-
(3) À luz da etapa anterior, desenvolva um "diálogo" trar-lhe o que fez de errado, quando tiver de fato escrito uni
mental, interior, a propósito do conceito. Proponha-se per- ensaio, de modo que você então poderá voltar e dedicar aten-
guntas a você mesmo (ou mesma) e responda a elas. Se achar ção especial a alguma das etapas que incoiiscienternente
interessante, ou oportuno, invente novos casos. Se quiser, tenha deixado de completar.
volte à aplicação das técnicas na última etapa do procedimen- Examinaremos agora duas perguntas e tentaremos res-
to. Esta "conversa" informal com você mesmo (ou mesma) ponder a elas, etapa a etapa, conforme o procedirnento expos-
é um dos elementos mais importantes no procedimento. Neste to. Farei referências freqüentes às considerações gerais de
diálogo, observe os pontos que levam a becos sem saída e análise rnencionadas no capítulo anterior (páginás 22-7), às
os que parecem levar a algtim lugar. Ao final, você deverá técnicas específicas (páginas 27~38) e às armadilhas da lin-
ter na cabeça, devidamente esclarecido, o esboço básico do guagem (páginas 38-44). Será útil ao leitor consultar cada
conceito. uma destas seções, quandá mencionadas.
(4) Yolte à própria pergunta. Este passo pode ajudá-lo
(ou ajudá-la) a enfatizar mais claramente os pontos mais
relevantes, ou a eliminar aspectos que nâo estejam direta- a) IA píiíiição deve ter caráter de represália?"
mente relacionados à pergunta.
(5) À luz do seu diálogo informal e da pergunta, rela- Etapa I
cione por escrito os argumentos a serem desenvolvidos e a Observamos, primeiro, que há dois conceitos obscuros:
conclusão à qual vai chegar. punição" e -represália" e qtic, portanto, exigern análise. Em
,,
94 E.VE,11PLOS DE ANÁLISE 95
PENS. IR COM COiVCEITOS

segundo lugar, percebemos que a pqrgunta construída com é agradável ou desagradável? Ou a dúvida estará no fato de
a locução "deve ter" implica que podemos ser chamado's a o tratamento parecer ter pouca ligação com o crime come-
fazer um juízo de valor. Conseqüentementc, temos de adiar tido? Neste caso não há, sem dúvida, "represália~', de modo
o juízo de valor, até tenuos analisado os conceitos. algtim: ai gguém cometeu, digamos, um ássassinato torpe e não
está tendo de pagar pelo crime.
Etapa 11 Precisamos de um caso mais claramente diferente do
Aplicamos agora algumas das técnicas de análise: que ocorre normalmente nos tribunais britânicos.
(a)Um caso-modelo de punição seria o de um menino (e)Portanto, inventemos um caso (talvez absurdo na
que quebrasse propositalmente uma janela e recebesse cas- prática) no qual o homem receba um tratamento extrema-
tigo corporal aplicado pelo diretor da escola. Este seria tam- mente agradável — por exemplo, longas férias remuneradas,
bém um caso-modelo de represália. corn garotas atraentes para cuidar dele e champanhe de graça.,
(b)Um contra-exemplo de punição seria um caso em Isto não é, certamente, nem "punição" nem "represália".
que o menino fosse castigado sem ter feito nada de errado. Mesmo que esse tratamento fosse ordenado por um juiz~
Evidentemente, este não é um caso de represália. Por que num tribunal oficial, como tratamento adequado para o crime
não? Porque o tratamento que o menino recebeii não lhe foi cometido, nem assim concordaríamos em chamá-lo de "pu-
aplicado por represália — ele não está tendo de pagai- por nição". A razão de não concordarmás deve ser a de que. em
algo que tenha feito, já que não fez coisa alguma que exi- pnncipio, este tratamento não é adequado como "puniçào":
gisse represália. é agradável,
. não detestável. Chamariamos a este tratamen-
11
to "inj usto ou "parcial", nem tanto em relação ao homem
(c)Como caso afirn, poderíamos considerar se o trata-
mento foi "justo" ou "imparcial". Nos dois casos mencio- julgado, mas em comparação com o tipo de tratamento dado
nados, o menino "merecia" ser tratado como foi? Diríamos a outros criminosos. Neste caso, o acusado comportou-se ,
que sim no primeiro caso e que não no segundo. 0 primei- mal e foi recompensado; os otitros acusados comportam-se mal
ro tratamento foi "justo" e "iinparcial"; o segtindo poderia • são ptinidos. Toda a situação é "injLlSt,-t": as recoi -npensas
ser chamado de "injusto" e "parcial". • os castigos, nesta sociedade, não são corretamente distri-
(a) Como caso limítrofe, poderíamos tomar o caso de buídos. (Observe-se que o conceito de "recompensa" acom-
alguém que houvesse éometido um crime, mas, em vez de ser panba de perto o conceito de punição.)
enforcado ou encarcerado, tivesse sido condenado pelo (f) Ao examinar o contexto social, podemos ver como
juiz.a ser intemado em um asilo de loucos. A expressão é o desenvolvimento da psicologia modema (entre outras coi-
estranha ou esquisita. Será que "condenado" é realmente a sas) pode sugerir que devemos rever nossas opiniões sobre
palavra certa? E se ele quisesse ir para o asilo? Afinal, "asilo" como tratar criminosos em geral. Até o momento, a maio-
nonnalinente significa um abrigo, urn refúgio, um luaar agra- ria das sociedades, na rnaioria dos períodos históricos, con-
dável. Ir para um asilo seria uma "punição"? Quando hesi- tentou-se em tratar os criminosos de acordo com uma sirn-
tamos' sem saber que nome dar a algo, onde, exatamente, ples lei de represália estilo "olho por olho, dente por dente".
está nóssa dúvida? Estará em não sabermos se ir para o asilo Podemos, no entanto, nos preocupar quanto a tal procedi-
96 PEASAR COM CONCEITOS ,,VE,VfPLOS DE ANÁLISE 97

iiiento ser satisfatório ou não. Talvez a punição devesse tail-iento que considerarnos desejável (ao invés de pensar-
tambétii reformar o crimiiioso — e, decerto, deveria desen- rnos no tipo de punição)? Com esta mudança, ganharíainos
corajar criminosos em potencial. Daí surgiu a discussão so- rnaior liberdade para decidir sobre o tratamento, uma vez
bre punição "reformatória" e punição "dissuasiva". A per- que o conceito de punição parece nos atrelar a um tipo espe-
gunta "A punição deve ter caráter de represália?" represen- cífico de tratarnento, ou seja, ao trataniento desagradável.
ta esta preocupação social. Estamos preocupados em saber Se respondêssernos à pergunta corn um "não", aparen-
como encaixar outros objetivos (os objetivos da recupera- ternente estaríamos nos contradizendo — isto no caso ' de a
ção do criminoso e da intimidação de criminosos em poten- pun ição irnplicar logicarnente a represália —, o que seria um
cial), ou, mesmo, em saber se precisamos, mesmo, manter inau começo para qualquer tipo de investigação da vida social.
a noção de represália. Mas — voltando ao uso das técnicas Tudo parece indicar qtic, para finalidades sociais, é
(a)-(e), como acabamos de aplicá-las — tem-se a i mpressao preciso, antes, ter clara cornpreensão do que signijtcam as
de que todos os casos de punição são também, logicamen- palavras "punição" e "represália~' e, em seguida, propor uma
te, casos de represália. Pode-se, logicamente, ter uma puni- pergunta mais neutra, como, por exemplo: "Como devernos
ção sem represália? (Devemos nos lembrar de que este ponto tratar os criminosos?"
terá de ser retomado mais adiante.) (i)Seja qual for a idéia que tenharnos dos conceitos de
(g)A pergunta acima talvez sugira uma ansiedade sub- ,,
punição" e "represáliW', temos de buscar a máxima clareza
jacente na qual se baseia a pergunta. Se a punição nada ti- de lingua-em. Aparenternente, "punição" e os terrnos afins
vesse de represália — o que talvez signifique nada ter de desa- designam~noções bastante distintas e, provavelmente, bas-
gradável — o que seria da lei e da ordem? É claro que temos tante úteis, Ternos apenas de esclarecer o significado nor-
de submeter os criininosos a coisas desagradáveis; sem isto, rnal destas palavras; não ternos de sugerir nem novos senti-
o que iinpediria as pessoas de cometerem crimes? 0 que dos nern outras interpretações. Parece que estabelecemos
traz de volta a idéia da punição como fator de intimidação. que punição e represália envolvern necessariamente "trata-
Seria possivel preservar o fator de intimidação sem preser- mento desagradável". Talvez envolvam também outros as-
var, ao mesmo tempo, a noção de represália? Devemos vol- pectos, que teremos de investigar rnais a fundo, antes de nos
tar também a este ponto. indagar se temos rnesmo de revisar drasticarnente nossos
(h)Quais seriam os resLiltados práticos de responder conceitos.
"sim" ou "não" à pergunta? Se respondermos "sim", parece
que estaremos nos comprometendo co.m a idéia de impor Etapa .111
tratamento desagradável a todos que cometam crime, porque Comecemos agora nosso diálogo interior. Retomemos,
pitnição, represália e ti-atamento desagradável parecem estar primeiro, os pontos de qtie tratamos iia etapa anterior. Pode-
logicamente ligados. No entanto, isto só vale se insistirmos ríamos ter logicarnente urna punição sem represálias? E po-
ern proferir sentenças piinitivas. 0 que aconteceria se tirás- deriamos preservar o fator de coibição sem preservar a noção
de represália? "Represáli&' parece envolver a idéia de
"qui-
semos a palavraplinição do contexto da criminalidade e pas-
sássemos a pensar exclusivamente sobre qual o tipo de tra- tação de uma dívida": alguém — o diretor da escola ou o juiz
98 PENSAR Com CONCEITOS EXE11pL OS DE A MÁLISE 99

— fez com que o menino que quebroLi a jariela e o homem dos em fazê-lo pagar pelo mal que praticou. Acreditamos
que cometeu o crime pagassem pelo qtie fizeram; em outras qtte o melhor para você é ser internado num asilo", com esta
palavras, fez com que "quitassem suas dívidas". 0 que suge- sentença, ele não o estará punindo: estará simplesmente
. re que tenha de haver alguém que deliberadamente aplique tratando do homem. Assim também, em (e) — no caso inven-
a punição; sem esta interferéncia, a punição não é "puni- tado —, o criminoso que recebe longas férias remunçradas
ção" no sentido que nos interessa aqui. não está sendo punido porque o tratamento que recebe não
. Verifiquemos este ponto com um caso. Stiponhamos qtie é desagradável. É claro que podei-íanzos chamar os dois
um criminoso saia impune, no que diz respeito à lei, mas casos de plinição, se insistíssemos em que qualquer decisão
seja espancado pelos parentes da vítima, depois dc encerra- tomada por juiz, a respeito do criminoso, fosse considera-
Qo o julgamento. Isto é "punição"? Nào. A melhor palavra, da "punição", mas isto seria ampliar excessivamente o sig-
neste caso, seria vingança. Para que haja "punição", tem de nificado da palavra (página 42).
ser aplicada por uma autoridade devidamente constituída. Portanto, parece que "punição como represália" diz duas
Tem de ser resultado de ato humano? Irnaginernos qtie o vezes a mesma coisa: toda punição tem, logicamente, de ser
mesmo criminoso, que acaba de ser liberado Pelo juiz, seja "como represália".
atropelado por acaso, na rua. Isto é punição? Claro que não. E o qtie dizer de "punição dissuasiva" e "punição refor-
Poderiamos, num estadb religioso de espírito (se tivéssemo s matória"? São expressões éontraditóriás? Mão necessaria-
esse tipo de religião), dizer que "Detis o puniu", mas seria mente, porqLie a puniç-ão pode ter aspectos dissuasivos e
forçado, na linha de reflexão que estamos constrLiindo. reformatórios, além de satisfazer ao princípio de represália.
Este exernplo mostra que a punição não é apenas ques- Porém, haverá casos em qiie o melhor tratamento para dis-
tão de,alguém receber um tratamento desagradável depois suadir e/ou reformar não satisfará necessariamente o prin-
de ter feito algo condenável, mas de alauém reéeber trata- cípio da represália e, nestes casos, não podemos lo ggica-
mento desagradável por ter feito algo condenável. E a ex- mente chamar o tratamento de "punição". Portanto, se algurn
pressão "por ter feito" manifesta aqui a idéia de ação deli- dia quisermos tratar assim os criminosos, teremos de aban-
berada, praticada porutin ser humano expressamente auto- donar a noção de punição. Estamos preparados para fazer
rizado a praticá-la. isto? Bem, depende de insistirmos ou não em manter a idéia
Tudo, agora, começa a parecer mais promissor. "Puni- de represália. Para algumas pessoas, parece positivo exigir
ção" é urn conceito que traz uma implicaçqo oculta (pági- represália em todos os casos de transgressão. Para outras,
na 40): a implicação de "tratamento desagradável poralgu- parece desnecessário. É uma questãó de debate moral, em-
ma ação condenável, para 'quitação de dívida' ou como bora não esteja claro que objetivos úteis serão beneficiados
represália". Voltemos agora a examinar a etapa anterior. 0 se insistirmos eni manter a idéia de represália em todos os
exemplo em (d), no qual o criminoso é internado num asilo, casos. A maioria dos nossos objetivos está adequadamente
pode não ser exemplo de punição. Se o juiz estiver dizen- representada pela noção de dissuasão e de recuperação —
do, de fato: "Nós não o estamos tratando como criminoso, essas incluem nossa preocupaçâo geral com a sociedade e
mas como doente mental. Por isso, não estamos interessa- com o criminoso, como indivíduo.
100 PENS4R C011 CONCEITOS EXEMPLOSDEANÁLISE 101

Talvez, porém, isto já esteja fora do alcance da pergiin- de que a punição lo ggicamente implica a represália. Podería-
ta. A pergunta "0 tratamento que damos aos criminosos deve rnos enumerar nossos pontos do seguinte modo:
ter caráter de represália?" é bem diferente. Poderíamos deci- (a)"Represália", em linguagem comum, significa "for-
dir, em relação a esta segunda pergLinta, que o princípio da çar alguém a sofrer pelo que fez". É semelhante a "retalia-
represália funciona muito bem como norma geral, simples- ção". Falamos de "cobrar em represália", recorrendo a uma
mente por envolver o tratamento desagradável e pelo fato de rnetáfora aparentemente derivada da cobrança de dívidas.
o tratamento desagradável ter um bom efeito dissuasivo (e Uma espécie de "olho por olho, dente por dente".
talvez também um bom efeito reformatório) sobre as pessoas. (b)0 que vale como punição? Aqui tomamos os casos
Mas essa é uma questão referente a fatos sociológicos, e para do diáloa.o interior, da última etapa: os casos do criminoso
responder a ela precisaríamos de estatísticas, não de palpites. que recebe tratamento agradável e do criminoso que é atro-
É possível que o tratamento com represália funcione bem pelado por um ônibus. Em nenhum destes dois casos, se fa-
para certos tipos de crimes, mas não para outros, ou, para ser laria de "punição", na linguagem corrente — o que só se ex-
mais preciso, para certos tipos de criminosos, mas nào para plica porque faltam, nos dois casos, traços essenciais do
outros. Pode ser que valha a pena dizer tudo isto, mas não conceito: (i) tratamento desagradável; (ii) tratamento desa-
devemos nos afastar deiiiais da pergunta original. gradável poi- ter (o criminoso) feito algo, ou en~ represália
a algLiiiia ação condenável; e (iii) trataniento desagradável
Eteipa IV que deve ser aplicado por alguém devidctiizeizte alitorizado
Ao exaininar a pergunta mais Lima vez, percebemos que a agir assim. Poderiamos ampliar e ilustrar esta conclusão
agora parece estranho perguntar "A punição deve ter cará- com outros exemplos que utilizamos quando aplicávamos
ter de represália?". Em termos lógicos, ela teni de ter. 0 que as técnicas na Etapa II; digamos, o menino que quebrou a
precisamos fazer, portanto, para que nossa resposta seja a janela, ou o criminoso que foi intemado num asilo. Como to-
mais eficaz possível, é provar este ponto lógico, antes de dos eles preenchem os critérios, a punição logicamente im-
mais nada, e, então, esboçar outras possíveis linhas de abor- plica a represália.
dagem para enfrentar as questões que podem estar subja- (c)Portanto, a pergunta "A punição deve ter caráter de
centes à pergunta, questões como "Nosso tratainento para represália?" é estranha em termos lógicos, porque, na nossa
criminosos deveria ter o caráter de represália?" ou —Nossa língua, punição é represália. Poderíamos reformular a per-
punição deveria ter apenas o caráter de represália?". Não pre- gunta para "0 tratamento que damos aos criminosos deve
cisamos nos aprofundar nessas linhas de raciocinio, já que ter caráter de represália?" ou . "A punição deve ter exclusi-
essas não foram as perguntas que nos pediram que respon- vamente caráter de represália?". É isto o que preocupava
dêssemos. Mas talvez valha a pena trabalhar um pouco nelas. quem formulou a pergunta original? Erri caso positivo,
podemos apresentar algumas idéias.
Etapa V (d)Ao examinar "A punição deve ter exclusivamente o
Procuremos agora o modo mais rápido e convincente caráter de represália?", poderíamos com razão considerá-la
de provar os pontos lógicos — e, em primeiro lugar, o ponto uma pergunta boba. Qualquer um desejaria que os crimino-
102 PENSAR COM CONCEITOS EXEMPLOS DEANÁLISE 103
sos fossem punidos para, se possível, coibir iiovos criines condenável-, o que seria percla cle teinpo. 0 idionia que fla-
ou criminosos em potencial, que a punição recuperasse cri- lamos funciona perfeitamente nesta área, desde que nos man-
minosos em atividade ou que, de algum outro modo possí- tenhamos conscientes dos significados das palavras qtie
vel, a pLiniç-,-io beneficiasse a sociedade. É óbvio qiie a res- tisamos.
posta é "Não: a punição pode e deve ter outros usos". Toda esta discussão, resumida eiii notas, teria a segLiin-
(e) Ante "A punição deve ter exclusivamente caráter de te forma:
represália?% poderíamos dizer (i) Significado da palavra represália (do uso normal
. (i) A represália exclusivamente pela represália não pa- em nosso idioma).
rece favorecer qualquer ponto relevante. (ii) Significado da palavra punição (três critérios ou
1 (ii) É mais do que provável que o desejo da represália traços de significado: casos para ilustrá-los).
seja irracional e, embora satisfaça a irnpulsos presentes na (iii) Logo, a punição implica represália. Portanto, etii
sociedade e na mente do indivíduo, a represália não leva a termos lógicos, a pergunta é estranha.
nenhum resultado especialmente desejável. (iv) Reinterpretações da pergunta: (1) " ... exclusiva-
(iii) Por outro lado, a represália pode ser bastante posi- mente o caráter de represália?" - pergunta tola. (2) " ... tra-
tiva como um princípio prático na sociedade. E, como prifi- tamento de criminosos ... T'. Finalidade da represália? Moti-
cípio prático, ela pode serjustificada porque leva a alcançar vos para isto? útil como princípio prático? PergLinta qtie
objetivos desejáveis, como a coibição de crimes e a recupera- trate de fatos exige pesqLiisa maior. (3) Necessidade de uma
ção dos criminosos. Mas esta é uma questão relativa a fatos pergunta neutra, qtie não envolva conceitos como o de "pu-
sociológicos; para responder a ela seria necessário pesqui- nição", se estivermos preocupados com a sociedade. (4) In-
sarmos muito mais. teressa alterar o significado de palavras da língua de todos
(1) Qualquer que fosse a intenção fundamental de quem os dias? Pergunta sem sentido.
perguntou, seria melhor que fizesse uma pergunta mais neu-
tra, como "De que modo deveríamos tratar nossos crimino- Etapa VI
sos?" para, assim, evitar as implicações lógicas de palavras Devemos acora tentar organizar essas idéias na forma
como "punição - e "represália". Com a palavra "punição" a de um breve ensaio. Naturalmente seria possível escrever
discussão entra num círculo vicioso, já que pitnição tem sobre o assLinto em quase qualquer extensão. Para um exem-
necessariamente caráter de ' represália. plo prático, partirei do pressuposto de um prazo de cerca de
(g) Pode-se interpretar o significado da pergtinta (pá- quarenta mintitos, incluídas as etapas preliminares e a reda-
nas 36-7 ) como "É útil e conveniente airelar, na linguagem, ção em si. Quanto destes quarenta minutos você vai gastar
a palavrapitnição à palavra represália?"A pergunta é estra- nas etapas preliminares e quanto vai gastar escrevendo é em
nha. De fato, pztniçiio está mesmo atrelada a i-epresália, e parte uma qtiestão de gosto; mas, como já dissemos antes,
muito firmemente. Se a desatrelássemos, teriamos de inven~ o melhor é cobrir meticulosamente o terreno preliminar e
tar outra palavra que significasse "tratarnento desagradável só começar a escrever depois de saber quase exatarnente o
aplicado (por alguém com autoridade para tal) por um ato que vai dizer. Isto significa que o tempo real para escre-
104
PENSA R COM CONCEITOS E.VE.IIPLOS DE ANALISE 105

ver será de cerca de vinte minutos; embora, no caso de o ou atingido por um raio, nós não chamaríamos estes even-
traballio de preparação ser fácil, possa-se completá-lo mais tos de "punição" - a não ser, talvez, em virtude de al,guma
rapidamente e ampliar para trinta minutos o tempo reserva- crença metafisica mediante a qual pudéssemos dizer que
do para redigir o texto. Isto, porém, é essencialmente uma "Deus o casti,aou". Em terceiro lugar, o tratamento deve ser
questão de prática e de tentativa e erro: pessoas diferentes imposto por uma autoridade devidamente constituída. Pode-
podem estabelecer regras diferentes. rnos recorrer a mais um caso, no qual um criminoso seja
Ensaio: 'A piínição devei-ia tei- o carátei- de represá- considerado tecnicamente culpado de um crime, mas se-
lia? " Antes de fazer um jtiízo de valor de que A deve ser B, ja intemado num asilo de loucos ern vez de ser encarcerado.
temos de ter certeza, primeiro, de que temos plena consciên- Isto é punição? Provavelmente diríamos que não, porque
cia dos seiitidos e usos das palavras A e B. Com o conceito não saberíamos ao certo se se aplicaria ao caso qualquer um
de represália, a dificuldade é pequena. Repz-eséília significa dos dois critérios meiicionados anteriormente. Não está
"ser obrigado a pagar por algo que se tenha feito" ou "acerto claro (i) se ir para um asilo de loucos (para esse homem
de contas". Falamos de — exigir em represália" exatamente específico) é desagradável oxi não, nem (ii) se esta senten-
como falamos de exigir o pagamento por Lima dívida. Vê-se ça lhe foi iinpostapoi- seu crime.
um criminoso, que comete um roubo oii Lim assassinato Estes critérios - e em especial o segundo - parecem
como alguém que "tem uma divida a pagar". A sociedade demonstrar que a noção de represália é parte integrante do
conceito de punição. Mais resumidamente, piiizição impli-
exia.e que ele pague ou sofra represálias e o faz passar al-
ca necessária e lo,-icamente represália; não fosse assim,
gum tempo preso ou o executa. Embora haja problemas prá-
não seria punição, mas algum outro tipo de tratamento. Por
ticos acerca do quanto possa ser exigido "em represália" ou isto, a pergunta é curiosa em termos lógicos: parece fazer
de que tipo de represália (se é que algum) possa ser exigido, pouco sentido perguntar se a puniçào deve ter o caráter de
não há nenhum problema lógico sério quanto à natureza do represália dado que, em termos lógicos, a punição necessa-,
conceito. riamente tem um traço de represália. Aquela pergunta, con-
Já a noção de punição é mais complexa. Vê-se que é tudo, pode ser um modo deselegante de expressar outras per-
preciso três condições para que um tratamento conte como guntas mais interessantes. A mesma pergunta poderia ser
, punição. Em primeiro lugar, o tratamento deve ser desagra- reformulada para "A punição deve ter exclusivamente o ca-
dável. Se um criminoso cometeu um homicídio torpe e in- ráter de represália?", ou talvez (num estilo mais drástico,
tencional e foi sentenciado a longas férias remuneradas, nós mas mais útil) "0 tratamento que damos aos criminosos
não descreveríamos essa decisão como punição, mesmo que deveria ter o caráter de represália?".
tivesse sido ordenada por uma autoridade legal devidamen- . A primeira das perguntas rcformuladas não leva alugar
te constituída. Em segundo lugar, o tratamento desagradá- algurn, pois poucas pessoas desejariam que a punição só aten-
vel deve ser imposto deliberadamente por uma pessoa, pela desse à exigência de servir "como represtilia~'. Quase todos
trans,aressào ou em i-elação à transgressão cometida pelo desejariam que uma punição intimidasse criminosos poten-
criminoso. Assim, se um criminoso fosse absolvido por um ciais, recuperasse crinúnosos em atividade, e que, em geral,
tribunal, mas pouco depois fosse atropelado por um ônibus exercesse um efeito benéfico ou -curativo" sobre a sociedade.
106
PEjVSAR COM CONCEITOS EXEMPLOS DEA.N~4LISE 107
Já a segunda questão abre um campo muito amplo. Em (a)Começamos o primeiro parágrafo com a expressão
primeiro lugar, não está absolutamente claro quais os resul- "Antes de fazer um juízo de valo?', mas não satisfizemos a
tados benéficos obtidos por meio da represália como um implicação de que faríamos niesmo o tal juízo de valor. Te-
fim em si mesma. Pode-se defender, como principio moral, mos de dizer alguma coisa a respeito. 0 melhor ILigar é o
que os cidadãos pemiciosos devam ser forçados a sofrer, terceiro parágrafo.
mas esta é uma idéia que dificilmente poderia ser defendi- Em vez de dizer "Por isto, a pergunta é curiosa em ter-
da. Em segtindo lugar, tim desejo de impor represálias pare- mos lógicos: parece fazer pouco sentido perguntar se a puni-
ce suspeito em terinos psicológicos e éticos e dificilmente ção deve ter caráter de represália, dado que, em tennos lógi-
estaria em harmonia com os credos e as visões de mundo cos, a punição necessariamente tem um traço de represália",
pregadas (embora raramente praticadas) pelas civilizações digamos: "É dificil entender o qtie se quer saber ao perguntar,
mais modernas. Talvez se possa defender a represália coino se a pLiiiiç ,-io deve ter caráter de repres-ália, Lima vez que, eni
um princípio prático em sociedade, com base no fato de que termos lógicos, ela necessariamente tèn2 um traço de represá-
o tratamento pela represália, de fato e na prática, atende a lia. Daí que é impossível, como demos a entender no iní-
outras finalidadcs — por exemplo, aos objetivos de coibir e cio, apresentar qualquerjuízo de valor a esse respeito";
recupera .r. Mas esta é uma questão relativa a fatos socioló-
(b)No segundo parágrafo, a terceira frase fornece uma
aicos e, para responder a ela adequadamente, precisamos de
razao para a segunda; ou seja, espera-se que nosso exemplo
estatística, não de palpites.
Se estamos socialmente interessados no tratamento dado
sirva para provar o critério de desagrado (em outras pala-
vras, o critério pelo qual se identificam as punições desa-
a criminoÉos e transgressores em geral, seria mais prudente
gradáveis). Para quc isto fique absolutamente claro; talvez
formular urna pergunta que não nos envolvesse em conceitos
complexos — alguma pergunta mais simples, como "De que seja melhor começar a terceira frase com "Pois, se um cri-
rnodo deveríamos tratar os criminosos?". Usar a palavraplini- minoso ......

ção é prejulgar a questão, pois piinição, como virnos, especi- (c)No meio do segundo parágrafo, onde falamos da
fica um certo tipo de tratamento. Em teoria, seria possível idéia de que "Deus o casti,-ou", será que ela foi expressa
alterar o significado da palavra plinição, de modo a desatre- com suficiente clareza? Nós mesrnos a entendemos com
lá-lo da noção de represália. Talvez devêssemos tê-lo tomado clareza? 0 melhor, neste caso, é escolher: ou desenvolvemos
sinônimo de "tratamento". Mas parece haver pouco sentido e elaboramos este ponto, ou o eliminamos. Talvez devamos
em tentar uma revisão lingüística dessa ordem. Uma vez que escrever apenas " normalmente, não chamaríamos esse
...

estejamos conscientes das implicações da palavra pitnição, é acontecimento de punição em nenhum sentido literal", e
provável que prefiramos debater nossos problemas sociais em terminar a frase aí.
linguagem diferente e menos carregada. (d)No quarto parágrafo, primeira frase: "poucas pes-
soas não desejariam~' é desnecessáriamente complicado.
Etapa VII Reescreva como "praticamente todos gostariam".
Agora voltemos a examinar esse ensaio, já que reserva- (e) No meio do quarto parágrafo, dizemos "Pode-se de-
mos um certó tempo para correções. Observemos o seguinte: fender, como princípio moral, que os cidadãos pemiQiosos
108 PENSAR CO.11 CONCEITOS EXEMPLOS DE ANÁLISE 109
devam ser forçaclos a sofrer, mas esta é uma idéia que difi- aproftindem toda a questão, para além da comprovação su-
cilmente poderia ser defendida". Será que é mesrno assirn? cinta e árida do fato de que "punição" está logicamente atre-
É o que queremos dizer? Na realidade, poderíamos defen- lada a "represália". Melhor seria, para a discussão, que nos
der várias idéias, inclusive a que se menciona mais adiante, demorássemos mais para provar este ponto; salientássemos
no mesmo parágrafo: de que se trata de um bom princípio outros aspectos de interesse lógico a respeito do conceito;
prático. Seria melhor acrescentar aqui algo semelhante a " ... e que consumíssemos menos tempo para responder a pergun-
(ser defendida) como tini fim em si mesma" ou "... defen- tas de cunho sociológico que, em sentido estrito, ninguém
dida como desejávcl por si mesiiia". pergttiitoti. No entanto, dcsde que tC1111a111OS coiisciência de
(f) No final do quarto parágrafo, onde dizernos "Mas que tenios cle fazerjustiça à pergunta original, podemos dizer
esta é uma questão relativa a fatos sociológicos", foilios que qualquer outro aspecto que queiramos cobrir será ques-
excessivamente diretos. 0 melhor será dizer al-o semelhan- tão de opinião — talvez, mesmo, questão de gosto.
te a "Mas essa visão, se qtiisermos avaliá-la adequadamente,
exige um conhecimento sociológico muito rnaior do qtie o
qtie temos no momento. Pode parecer plausível, mas não faz b) 'Astrologia é ciêizciaP"
muito sentido ceder a palpites no contexto atual".
Etapa I
(g) No início do quinto paráarafo, consideramos sim-
Observamos (página 23) que esta é uma pergunta mis-
ples a pergunta "De que modo devernos tratar os crimino-
ta, que envolve conhecimento sobre a natureza da astrologia
sos?". Esta não é, certamente, urna pergunta simples, não,
e alguma compreensão do conceito de ciência, e decidimos
pelo menos em qualquer de seus sentidos rnais evidentes. enfrentar primeiro a questão do conceito.
Deveríamos eliminar o adjetivo simples, ou explicar que nos
referimos a "simples em termos lógicos (porque não inclui Etapa II
conceitos dificeis nem palavras de alta carga emocional)". (a) Um caso-modelo de ciência talvez séja a astrono-
Ao examinar as etapas nesse procedimento, procurei mia, embora obviamente haja muitos outros. HRveria alguma
avançar o mais lentamente possível. 0 leitor terá a impres- vantagem em escolher a astronomia, porque há muito em
são — e acho que deve, mesmo, ter esta irnpressão — de que comum entre astrologia e astronomia (ambas tém por obje-
muitos pontos poderiam ter sido deixados de lado, de que ou- to as estrelas e os planetas).
tros pontos mereceriam ser mais bem discutidos e de que, pro- (b) Poderíamos também inventar um contra-exemplo
vavelmente, faltaram pontos importantes. É claro que se po- que tivesse a ver com estrelas. Imáginemos que alguém pin r
deria escrever muito mais para complementar a parte final tasse um quadro impressionista em que aparecessem estrelas
do ensaio — que trata da reformulação das perguntas —, já ou escrevesse um poema a respeito delas. Nenhuma des-
que ali se abre todo o campo da reforma criminal, dentre tas atividades pode ser considerada ciência: são considera-
outros campos; mas não creio que tais assuntos estejam es- das arte. Em certo sentido, como a astronomia, o quadro e
tritamente incluídos nos terrnos de referência propostos pela o poema também têm a ver com estrelas, mas a abordagem
pergunta, embora acrescentern alguns pontos de interesse e é feita de,ângulo diferente, ou tem objetivo diferente.

110 PENSAR CO.11 CONCEITOS EXEMPL OS DE ANÁLISE 111

(e) Que conceitos estão relacionados à ciência? Talvez experiências c hipóteses terem, de fato, algum valor. Portanto,
a noção de conhecimento; mas neste caso a relação nào é talvez a previsão seja o critério mais importante.' Mas talvez
muito íntimá, porque há muitos tipos de conhecimento que os experimentos e as hipóteses também tenham importância.
nao sao científicos. Podemos saber latim, matemática, saber (e) Inventemos, então, tim caso em que haja previsões
nadar, conhecer o nome do priiiieiro-miilistro em 1888, e adiniráveis, mas sem a paraflernáHa científica. SLIponliamos
assim por diante. 0 que dizerdo conhecimentá da nature- que eu olhe numa bola de cristal e preveja com exatidão o
za? Este está mais perto da ciência, mas aiiida não o sufi- vencedor do Derby, todos os anos. Partamos do pressuposto
ciente. Pode-se dizer que grandes pintores paisagistas como de que eu não tenlia idéia de como consigo tal resultado e de
Wordsworth ou Constable, e lavradores e camponeses, todos que não faça qualquer tipo de experiências: eu apenas olho
estes "'conheciam a natureza", mas nada sabiam sobi-c a na- a bola e digo quem vai vencer. Isto é ciência? Claro que não.
tureza, não a conheciam como a conhecem os cientistas. Ti- Por que não? Talvez porque eu trabalhe sem equipamento,
nham conhecimentos concretos, mas não eram capazes de além da minha bola de cristal, e não faça experiências. Su-
formular leis e hipóteses e nunca fizeram experiências. Po- ponhamos então que eu compre uma grande quantidade de
de-se dizer que estes sào alguns dos critérios para que algo equipamentos; que cerque minha bola de cristal com fios e
seja ciencia. tubos; que de vez em quando derrame líquidos de cores
(A Que outras atividades estão . bem próximas da ciên-
diferentes ern provetas, e assim por diante Será qúe isso aju-
cia, além da astrologia? Examinemos, por exemplo, a psico- daria? Não, não ajudaria. Diríamos que eu disfarcei a coisa
logia. Ora, os psicólogos de fato têm conhecimentos sobre toda para parecei- científica, mas que, no fundo, tudo con-
os seres humanos.'Eles sem dúvida formulam leis e hipóte- tintiou exatamente como antes.
ses e, sim, fazem muitas experiências. Mesmo assim, ainda Para começar, eu nào chego às minhas previsões por
nào sabemos ao certo se a psicologia é ciência. Por que não? um processo de raciocínio e obser-vação. 0 equipamento e
Talvez porque achemos que os psicólogos nem sempre nos as pseudo-experiências não estavam de fato viizcztlados às
minhas previsões. Portanto, parece quejá temos mais alguns
dizem a verdade. Mas nem os fisicos nem os astrônomos
...

critérios: (i) a atividade tem de nos dizer mais do que o qw~


dizem sempre a verdade. Não há ramo da ciência que nunca
tenha cometido erros.
Será que nâo temos certeza quanto ao caráter científi- 1 1. Não creio que possamos contar a capacidade de
previsão como um crité-
co da psicologia porque, às vezes, temos a impressão de que rio essencial. A botànica e a anatomia, por exemplo, são geralmente consideradas
ciéncias; mas sua principal função consiste cm . classificar, mais do que em fazer
os . psicólogos não nos dizem nada que já não saibamos? previsões. No entanto, a capacidade de fazer previsões é muito importante.
Talvez achemos que o que eles dizem ou é tolice ou é óbvio. Mesmo o trabalho de classiFicação resulta, muitas vezes, num aumento do poder
Experimentemos outro caso limítrofe: a meteorologia ou de fazer previsõcs, pois os itens classificados são reunidos em gmpos, de acordo
com cmcterísticas importantes que têm em comum, e a maior cowcientLação quan.
previsão do tempo. Será ciência? Ser ciência ou não, neste to a estas características aperfeiçoa nossa capacidade para prever o comportamen-
caso, parece depender de os meteorologistas terem capaci- - to futuro dos itens classificados. De fato, não haveria nenhum sentido ou FLnali-
dade — pelo menos nenhuma finalidade científica — em ciassif'icar as coisas, se a
dade para faze'r previsões do tempo que sejam mais acerta- ciassiFicação não nos ajudasse a entender o funcionamento dos seres ciassif-ica-
das do que as de uma pessoa cornum e de todas as suas dos e daí (inevitavelmente) aperfeiçoasse nossos poderes de previsão.
113
112 PENSAR COM CONCEITOS EXEMPLOS DE ANÁLISE

já sabemos; (ii) tem de fazer isto, não por palpite, inspiração (h)Os resultados práticos de responder "sim" ou "não"
divina ou seja lá o que for, mas por meio da observação, da a esta pergunta são bastante óbvios. Se considerarmos a
experimentação, da verificação de hipóteses, por experiên- astrolo ggia uma ciência, poderemos esperar que se escrevam
cias, e assim por diante. A ciência não é simplesmente conhe- livros didáticos "de astrologia" e que a astrologia seja ensi~
cimento: ela é conhecimento que o homem comum não pode nada nas escolas e universidades. Haveria catedráticos de
produzir soziiilio, e é Liin conhecimento organizado de modo astrologia e a Royal Society aceitaria astrólogos como mem-
específico e complexo, destinado a produzir resLiltados. bros. Aqui venios o aspecto prático que a pergunta visa a
W Esta pergunta poderia aparecer ntim contexto social se, esclarecer. 0 que nos interessa é saber se a astrologia é ou
digamos, estivéssemos cogitando a possibilidade de ensinar mistificação ou perfeitamente respeitável. Se for mistifica-
astrologia na escola ou na universidade. "É ciência?" signi- ção ou, mesmo, se não tiver nada de importante a oferecer,
ficaria "Vale a pena ensiná-la?". Sabemos que vale a pena não vamos querer perder dinheiro com ela. Mas isto tam-
ensinar ciência pelo menos por um bom motivo: porque a bém depende de a astrologia poder fornecer conhecimento
ciência é útil. Com a ciência, podemos melhorar nosso padrão genuíno.
de vida, defender-nos de agressões, mandar o homem ao (i)Se concluinnos que a astrologia satisfaz a alguns dos
espaço ete. Será que a astrologia produzirá resultados úteis? critérios, rnas não a outros, poderemos querer chamá-la de
Isto depehde obviamente de a ciência produzir conhecimen- ciência, mesmo que isto signifique estender o conceito um
to que não pudéssemos obter por outros meios, como men- pouco além dos seus limites normais. Deveríamos fazer isto
cionado em (e). somente se, após uma reflexão cuidadosa, considerássemos
(g) Existe alguma ansiedade oculta aqui? Não estare- que a astrologia satisfaz — ou que talvez possa em princípio
mos talvez preocupados com o fato de a astrologia poder satisfazer — os critérios mais importantes. (Assim, podería-
ser uma ciência sem que o saibamos? Que podemos estar rnos dizer, embora seja arriscado, que a psicologia deve ser
descartando o assunto com excessiva facilidade? Mas, neste considerada ciência, porque em principio pode satisfazer a
caso, o que temos de fazer é testar para ver se ela prodLiz todos os critérios, mesmo que no presente momento não os
conhecimento genuino e que não possa ser obtido de outro satisfaça.) Por outro lado, se ela não satisfizer à nenhum dos
modo. Ou será que estamos com a preocupação oposta — a critérios, ou se satisfizer somente aos menos importantes,
de que estejamos sendo tentados, só porque a palavra ter-
não teremos nenhuma razão para estender o conceito de
mina em %ogia~', a aceitá-la como ciência, mas, ao mesmo ciência, de modo a inclui-Ia.
tempo, queremos manter no nivel mais alto possivel as qua-
lificações para que algo seja considerado "ciência"? Quere- Etapa 111. 0 dióloao interior
Para começar, vamos dar mais uma olhada nos critérios
mos proteger zelosamente o conceito e não correr o risco
para que algo seja ciência, porque as idéias que temos sobre
de contaminar ciências "verdadeiras" com psetidociências?
Isso também depende de a astrologia passar nos testes con- este ponto ainda não estão perfeitamente claras. Primeiro, a
siderados relevantes para que determinado "stber" seja consi- atividade típica deve ter alguns poderes de previsâo superio-
derado "ciência" ou de satisfazer os critérios. res à capacidade do homem comum. Qualquer um pode pre-
114 115
PENSAR CO.11 COiVCEITOS EVEVPLOS =ANÁLISE

ver chuva depois de ver no céu nuvens de tempestade; mas, vação constante, mas seni teorizai- qiiaiito às ecizisas, che-
para que a meteorologia seja ciência, ela terá de poder pre- gamos a unia posição na qual podemos prever com preci-
ver chuva num momento em que o homem comum ainda são que planetas estarão em que parte do céti, em certas
nem pense em chuva. (Mas e se, ocasionalmente, a meteo- ocasiões. AI está algo que o homem comLim não conse-
rologia fizer previsões corretas em momentos em que o ho- guiria calcular sozinho: mas será ciência? Poderíamos pen-
mem comum ainda não consiga prever coisa alguma? Não sar também em al,guém que passasse muito tempo obser-
basta: poderia acertar por puro acaso. Para aceitá-la como vando o comportamento dos pássaros no jardim ' de modo
ciência, teríamos de ter certeza, pelo menos, de que a me- que pudesse fazer previsóes quanto ao seu comportamento
.
teorologia não acerta só po r acaso. Portanto, precisamos que outros não poderiam fazer. Será ciência? Poderíamos
de previ~ões corretas e razoavelmente consistentes, vale di- preferir dizer que estas são observações preflininares à ciên-
zer, previsões nas quais o número de erros não esteja muito cia. Mas estes, obviamente, são casos limítrofes; e, de fato,
perto do número de acertos.) não fomos precisos ao dizer que, nestes casos, não houve
Em segundo lugar, a previsão deve resultar de alguma nenhinn elemento de explicação e nenhiinia. "teorização
técnica organizada. É necessário que haja equipamento com- sobre as causas". Pois o observador de estrelas diria coisas
plexo? Na realidade, não. Pode-se praticar a astronomia com como "Vênus vai aparecer no horizonté dentro de uma hora
bastante S.Ucesso recorrendo apenas aos olhos e ao racioci- poi-cliie sempre aparece nesta época do ano, desde que não
nio. Mas não é isto, exatamente, o que faz o vidente da
... ocorram tais e tais condições, ......E o observador de pássa-
bola de cristal, em (e)? Absolutamente, mão. Porqtie o viden- ros diria coisas como "Bem aquele chapim vai entrar no
te não observa nada antes de fazer seus cálculos e verificar buraco do coqueiro, porqlie quando há neve no chão os cha-
suas teorias, como faz quem observa os movimentos dos pIa- pins entram em buracos de coqueiro, a menos que encon-
netas e depois desenvolve teorias sobre eles. Portanto, é trem insetos que possam comer e assim por dia ,nte.
.....

preciso que haja algum tipo de técnica, de observação, Talvez estas sentenças sejam diferentes das sentenças da
de raciocinio, de experimentação etc. Não se trata apenas de ciência "verdadeira", na qual as razões não se expressam só
que o cientista possa fazer previsões; trata-se também de que em termos do que aconteceu no passado; mas a diferença
suas previsões sejam firmemente fundamentadas em obser- não é radical; não podemos, portanto, usar o critério da expli-
vações e teorias. Porque só assim poderemos explicar por cação ou da formulação de teorias para criar uma nítida
qtte, digamos, haverá um eclipse ou por que o papel de tor- linha divisória entre a ciência e a observação inteligente.
nassol se tornará vermelho. E quanto à astrologia? A qtiestão, aqui, é mais de fatos
A idéia da explicação é um critério necessário? Inven- concretos do que de conceitos. Sabemos que os astrólogos
temos um caso em que todos os outros critérios sejam satis- empenharn-se (ou parecem empenhar-se) em fazer previ-
feitos, exceto a explicação. Tomemos o exemplo da astro- sões com base numa stiposta conexão entre as posições dos
nomia elementar que já uáamos. Observamos (por meio de astros e a vida humana. Espera-se que pessoas nascidas sob
telescópios e outros equipamentos complexos) as estrelas e a influência de um certo signo do Zodíaco tenham um certo
os planetas, e notamos que eles se movem em certas órbi- temperamento. Quando o planeta A está em conjunção com
tas regulares ao longo de deterTninados períodos. Pela obser- o planeta B, diz-se que a época é favorável para o amor, a
117
116 PENSAR COM CONCEITOS EXEMPLOSDEANÁLISE

guerra, os negócios. Não há dúvidas de que a astrologia "faia" Um último comentário: os "saberes" não sào conside-
como se fosse ciência. Para os astrólogos, a astrolo,gia é rados ciências a menos que sejam adequadamente científi-
capaz de fazer previsões em casos em que o homem comum cos. Se algum dia a astrologia houvesse sido ciência, a esta
não conseguiria, mediante técnicas aperfeiçoadas (conheci- altura, provavelmente, ela já estaria comprovadamente re-
mento especializado do que significam os movimentos dos conhecida (embora não necessariamente: basta pensar na
astros, a criação de horóscopos etc.), com sucesso razoavel- percepção extra-sensorial, cujo estudo, hoje, apenas come-
mente consistente. ça a ser feito de modo científico). Ninguém haveria de que-
Será que a astrolo,gia confirma tudo isto? Não sabe- rer que se começasse a ensiná-la nas escolas e universida-
mos, porque não se sabe se ela foi algum dia submetida a des, na vaga esperança de que, quando afinal forem feitos
algum teste crucial. Teria sido preciso projetar experimentos todos os testes, se comprove o "caráter científico" da per-
controlados, nos quais se solicitassem as mesmas previsões cepção extra-sensorial. É claro que se pode dizer que "Pode
a grupos de astrólogos e a grupos de pessoas comuns, todos haver algo digno de estudo na percepção extra-sensorial "....

informados dos mesmos fatos e com a mesma capacida- rnas isto não significa grande coisa. Pode havef algo digno
de intelectual média (com a única diferença de que os as- de estudo na cristalomancia, na feitiçaria, no espiritismo, na
trólogos contariam com seu "conhecimento especializado"). alquimia, na clarividência, na cartomancia, o que nào nos
As previsões têm de ser definidas e verificáveis; se nào o dá a menor razão para considerar estas atividades como
forem, não haverá como testar sua correção. (De pouco ser- "ciência em potencial", sequer por um instante; continuam
virão ~'previsões" como "Se você estiver com algum dinhei- a ser mistificação. Seres racionais só acreditam no que ve-
ro hoje, provavelmente gastará parte dele".) Para que a 1
nha apoiado em boas evidências.
astrologia fosse considerada ciência, os astrólo,gos teriam
de demonstrar (i) qtie fizeram mais previsões corretas e
Etapa IV
com maior regularidade do que as pessoas comuns; e (ii)
Após mais um exame da pergunta, vemos que ela nào
que as fizeram graças a seu "conhecimento especializado",
e não apenas por clarividência. Mesmo neste caso, ainda se apresenta qualquer outra dificuldade. Pedem-nos simples-
poderia pensar que seria ciência apenas no mesmo sentido mente que digamos se a astrologia se encaixa t~o conceito
(amplo) em que o observador de astros e o observador de de ciência. Poderíamos reformular a pergunta: "Seria sen-
pássaros dos exeniplos mencionados "fazem ciência". Os sato considerar ciência a astrologia?", mas de pouco adianta-
astrólogos teriam de dizer: "Bem, não sabemos por que moti- ria; no máximo, estaríamos explicitamente reconhecendo que
vo, mas acontece que, quarido Marte está ascendente e em se trata de queátão conceitual.
conjunção com Vênus, a ocasião é boa para que oficiais do
exército se casem". Em outras palavras, o volume de expli- Etapa V
cação e de teorias formuladas sobre as causas pode ser insu- Devemos agora tentar passar para o papel, do modo mais
ficiente para que a astrologia seja considerada ciência; ela sucinto possível, em ordem coerente, os vários pontos lóei-
pode estar simplesmente no estágio preliminar de observa- cos que estabelecemos.
ção geral. (a) 0 conceito de ciência clistingue-se da mistificação.
EXEMPLOS DE. I-V4LISE
118 PENSAR COM CONCEITOS 119
por um lado, e do conhecimelito comum que tem o homem nem de um ponto de vista ló,gico, iiein de tiiii ponto de vista
médio, por outro lado. socioló,gico, considerá-la ciência.
(b) Ciência é um conjunto de conhecimentos factuais e Na forma de anotações, teríamos:
de teorias sobre os fenômerios da natureza; em termos lógi- (i)A ciência é diferente (1) da mistificação, (2) da arte,
cos, é diferente da arte, da adivinhaçào, da apreciaçào esté- apreciação estética etc. e (3) do conhecimento comum de
tica etc. amadores.
(c) Os critérios para que um dado "saber" seja reconhe- (ii)A ciência é Lini conjttnto de fatos e teori'as a respei-
cido como ciência parecem ser: to da natureza.
(i) a capacidade para fazer previsões com sucesso ra- (iii)Critérios: (1) previsões consistentes e acertadas;
zoavelmente regular, em áreas de conhecimento nas quais o (2) previsões que derivem de observações, teorias ete., pelo
homem comum não consiga fazê-las; menos até certo ponto.
(ii)as previsões devem ser firmemente fundamentadas (iv)Distinção entre a ciência "verdadeira - e o estágio
num conjunto de observação, teorias e talvez também no re- preliminar de observação.
curso a experimentos e a equipamentos complexos, de tal mo- (v)A astrologia alega que satisfaz a estes critérios, mas
do que se possa ver que derivain deste conjunto. isto não foi provado. É preciso testar.
Talvez pudéssemos expressar esses dois pontos dizen- (vi)Enqiianto não passar pelos testes, é precipitado
do que a ciência é um conjunto sofisticado de conhecimen- -iceitar a astroloaia como ciência.
tos ott Lim iiiétodo altantente organizaclo para obter conlic-
cijnento.
ficipci VI. 0 etisaio completo
(d) Embora a previsão acertada — como em (i) — talvez 0 que é uma ciência? Sabemos quc, dentre otitras, a as-
seja o critério mais importante, a necessidade de explicar e tronomia, a ílsica e a química são ciências, ao passo qiie a
de formular teorias, como em (H), é um critério mais amplo.
poesia, a piiitiira e a natação mão são. A partir daí vemos que
Poderíamos traçar uma distinção entre os estágios prelimi-
nares da ciência (ou talvez anteriores à ciência) e a ciência urna ciência, pelo menos, deve interessar-se pela descober-
I'verdadeira~'. Os casos da astronomia de amadores e da obser- ta e enunciação dc fiatos sobre o mtlndo natural (em con-
vação de pássaros encaixam-se aqui. traste com a criação de obras de arte oti com o aprendizado
(e) A astrologia alega, no mínimo, que satisfaz a estes de técnicas). Mas esta não pode scr tima condição suficien-
critérios, com base numa suposta conexão entre os astros e te para a ciência: a alqtiimia e a qtiiromancia, por Liin lado,
a vida humana. e o conhecimento vulgar do mundo natural ao alcance do
(1) Estas alegações não foram comprovadas. Para com- leigo comum, por outro, nào se qçiálificam como ciência,
prová-las, precisaríamos de certos testes e experimentos, muito embora pareçam voltados para descobrir e entinciar
meticulosamente projetados para garantir que os dois crité- fatos. Os critérios da ci*ência são mais rigorosos.
rios sejam satisfeitos. 0 primeiro critério é que a atividade deve permitir qile
(g) Parece improvável que a astroloaia possa satisfazê-los, se façam previsóes, com um nível de acerto razoavelmente
posto que até hoje não o fez. Portanto, não seria sensato, regtilar, que o homem comum provido de conhecimentos
120 PENSAR COM COjVCEITOS EXEMPLOS DEANÁLISE 121

comuns não consi,ga fazer. Assim, o homem comum pode dos com mais acerto do que alguém que não se dedique à
ser capaz de prever que vai chover se vir no céu uma nuvem culinária. Nestes casos, não há qualquer mistificação, como
de tempestade, mas só um meteorologista especializado pode no caso de quem lê a sorte. No entanto, não há nestas pre-
prever chuva sem que haja sinais tão óbvios. Todo o con- visões teoria suficiente, nem explicações suficientes, nem as
jtinto de observações, Ilipótcscs, experiiileiitos, leis, teorias catisas foram suficientemente investigadas. A atividade não
e o equipamento complexo e sofisticado do que chamamos é altamente organizada nem sofisticada o suficiente para ser
de - ciência" mostra um nível de organizaçào do conheci- considerada ciência.
mento muito superior ao conhecimeiito de senso comum. E A astrologia alega que é ciência, ou seja, alega que nao
é em virtude disto que são possíveis as previsões mais sofis- é arte, técnica, nem simplesmente uma boa diversão; susten~
ticadas - como de tini eclipse oii dC Llma reação atômica. ta que os acontecimentos da vida humana podem ser pre-
Esse critério, no entanto, iião é essencial, e é também vistos por meio do exame dos astros e planetas. Infelizmente,
insiificiente. Podemos imaginar um vidente ou alguém que até agora a astrologia não provou que satisfaz a qtialquer dos
constanteinente tivesse "palpites" confiáveis e qiie fizesse dois critérios. Não sabemos nem se os astrólogos podem de
previsões com índice elevado e constante de acerto; o que fato fazer previsões com precisão constante e com maior
fizessem ainda não se poderia considerar ciência. A mera acerto do que o homern comum, nem se suas previsões (se
posse de equipamentos complexos e de uma técnica sofis- forem acertadas) derivam da."técnica" da astrologia. Teríamos
ticada não basta para corrigir essa falha. Um adivinho pode- de realizar testes rigorosos, comparando grupos de controle
ria, por exemplo, usar bolas de cristal, LIM COMPICXO SiStC- de astrólogos com outros grupos de não-astrólogos, e tam-
ma de Meitar as cartas" para interpretá-las e assim por dian- bém investigar a ligação entre as previsões astrológicas e a
teoria astrológica, para sustentar qualquer tipo de defesa da
te, e tambéni fazer previsões acertadas, e, ainda assim, não
preencheria as condições para ser um cientista. A técnica astrologia. E parece improvável, dada a antigüidade desta
sofisticada tem de ser vista como a base da qual emanam as pseudociência, que haja defesa convincente, já que houve
previsões: a técnica e as previsões têm de estar racional- tempo suficiente para que os astrólogos provassem suas ale-
inente ligadas. Nosso segundo critério, portanto, é que, se gações. É claro que pode "haver algo digno d e estudo" na
'
astrologia, que pode, com o tempo, passar a merecer estu-
Lima ciência tratar de previsóes, estas terão de derivar de um
conjunto altamente organizado dc observ-,içqo, experimen- do científico, como está acontecendo agora com os fenô-
taÇão, teoria etc. menos da percepção extra-sensorial. Por enquanto, porém,
Este segundo critério é bastante ailiplo, e podemos ima- parece não fazer sentido que se estendam os limites do con-
ginar casos nos quais se poderiam fazer previsões com um ceito de ciência de modo a incluir a astrologia.
SLICCSSO espantoso, mas cuja base teórica fosse tão frá,gií
que hesitaríamos em chamar esses casos de ciência. Al- Etapa VII. Coi-j-eçoes.
guém que passe muito tempo olhando os astros, ou obser- (a) No terceiro paráarafo, o ponto principal nào está bem
vando o comportamento de pássaros, pode prever com mais esclarecido. Antes da última
o frase do parágrafo, depois de
acerto do que o homem comum - assim como um cozinhei- "têm de estar racionalmente ligadas", deveríamos dizer algo
ro pode prever o comportamento de certos sólidos e líqui- como "0 vidente de sucesso não sabe por qtte seus palpi-

7,~
122 PERS-1R CO.11 CONCEITOS

tes dão certo e o equipámentó que possui não o ajuda quanto


a isto".
III. A filosofia e a análise
(b)No mesmo parágrafo, "a base da qual emanam as
previsões" não está bem expresso; melhor será "a base na qual
as previsões se fundamentam", ou algo semelhante.
(c) No quarto parágrafo, a questão da imprecisão do cri-
tério não é apresentada de modo iinediato e direto. Subs-
tituir a primeira frase por "Este segundo critério é bastante
IJ impreciso. Que nível de organização esse conjunto de
observaÇões [etc.] precisa ter? Podemos imaginar casos ......

(d)No quinto parágrafo, o que está implícito na primei-


ra frase é qite, ao mencionar "urna arte, tima técnica oti sim- Enibora este seja basi=nente um livro didático escri-
plesmente uma boa diversão", exaurimos as possibilidades de to com um objetivo específ.co, dissemos no Prefácio que
todas as atividades não-científ icas. Mas o caso da matemáti- ele deveria ser útil às pessoas comung no curso normal das
ca, por exemplo, demonstra que as coisas não se passam bem suas vidas — ou seja, que Dão se destinaria apenas a qyem
assim. Devemos dizer "uma disciplina acadêmica reconheci- tenha de enfrentar um exame vestibular ou de final de curso,
..A damente independente, uma arte, uma técnica, simplesmente ou que tenha de fazer um etirso de filosofia. Não é uma
boa diversão ou qualquer outra atividade semelhante". Pode esperança hipócrita, mas poâ- parecer va, porqtie o abismo
não ser a melhor emenda possível, mas servo. entre a filosofia e a vida coínum é enorme, de dimensões
(e)Na segunda frase do quinto parágrafo, a astrologia apavorantes. Conseqüentemente, creio que será útil dizer
reivindica a definição de ciência; nos termos em que foi posta, algo a respeito de como as iécnicas exemplificadas neste
a reivindicação não é clara. Deve-se mudar para "A astro- livro inserem-se na filosofia. e de como a filosofia pode
logia afirma que é ciência e alega, para prová-lo, que os inserir-se na vida comum.
É claro que o tema é inienso, e nãc; posso fazer-lhe justi-
acontecimentos na vida humana podem ser previstos com
sticesso constante e notável por meio de um estiido especia- ça. Mas espero demonstrar, pelo menos, que a pcssoa comum
tem boas razoes para ser mais otimista quanto à importân-
lizado e experiente dos astros e planetas".
cia da filosofia: mais, pelo iiienos, do quc alguns filósofos
(f) No final do qtiinto parágrafo, realmente transmiti-
a teriham levado a crer.
mos a idéia de que talvez haja "algo digno de estudo nela"?
Tudo gira em tomo da filosofia. Uma opinião, talvez
Se houver fempo, o melhor será criar um novo parágrafo
ainda a mais popular, é a de que a filosofia trata direta e
depois de " para que os astrólogos a comprovassem" e que
~:J imediatamente de um estilo de vida e da verdade sobre a
...

começasse com "Não se trata necessariamente de descartar realidade. Tern a ver com o que as pessoas sao, com o que
a astrologia como pura mistificação. Pode haver nela algo fazem e sentem, com seu comportamento, suas emoções,
—À digno de estudo..." e, a partir daí, talvez se consi-a desen- suas crenças e juízos morais. Deste ponto de vista, a filo-
volver melhor o restante do parágrafo. sofia de um homem é uma espécie de mistura de seus moti-
~o.
124 PENSAR COM CONCEITOS .4 FILOSOFIA E AANÁLISE

vos, seu comportamento e seus valores. Assim, pode-se pro- 0 segundo ponto de vista, ainda seguido hoje — se Pão
curar o prazer, çonsiderar o prazer bom e ser rotulado de preconizado — pelos modernos filósofos da lingua.gem do
hedonista ou de utilitarista. Ou pode-se dar ouvidos aos eixo Oxford-Cambridge, é uma reação violenta e radical ao
ditames da consciência, agir a partir de tim sentido do dever primeiro. Por este segundo ponto de vista, o filósofo não tem
e ser rotulado de kantiano (ou kantiana) ou de intLiicionis- absolutamente qualquer vínculo diz-eto com estilos de vida.
ta. Estas são as filosofias de cada um. motivações, comportamentos ou valores. Ele é um analisU
A filosofia como um todo, de acordo com tal teoria, da linguagem, que se dedica à verificação e ao significado dis
sobrevive de descrever em linhas gerais várias filosofias e enunciados, bem como ao uso lógico das palavras. 0 fàõ-
de tentar julgar entre elas. Platão nos pintará um tipo de sofo não está interessado no que as pessoas pensam sobr-I
vida; Aristóteles, outro; Bertrand Russell, um terceiro. Filó- a vida (muito menos em como escolhem comportar-se): sõ
sofos diferentes criticarão diferentes estilos de vida. 0 indi- lhe interessam as palavras com as quais as pessoas expr—
víduo lê os filósofos e faz sua escolha sozinho. Esta talvez sam seus pensamentos. Enunciados a respeito de Deus iém
ainda seja a visão mais comurn da filosofia. Algumas pes- significado? A noção de verdade é aplicável a juízos morai~'
soas declaram-se "a favor da lógica"; outras, "a favor das 0 que significamos com a afirmação de que um homem agle
emoções"; uns acreditam no dever; outros, na felicidade; uns, livremente? Essas são questões de natureza lingüística, que
no misticismo; outros, em fatos concretos. giram em torno do emprego de palavras como "significa-
A objeção a esta visão geral é que, aqui, o filósofo é
do-, "verdade", "liberdade", dentre outras.
pouco mais que uma espécie de gerente de galeria de arte na
É evidente que tal radicalismo dispôe de muitos argu-
qual se exibem quadros de diferentes estilos de vida, que ali mentos em sua defesa. Há alguns milhares de anos, os homlrs
ficam expostos à luz, são criticados, avaliados e, finalmen-
vêm discutindo a questão de Deus, do certo e do errado. u'o
te, comprados. 0 filósofo cuida de expô-los, explicá-los, ava-
verdadeiro e do falso, da beleza, intuição, liberdade, e asçim
liá-los, e assim por diante. As pessoas compram o que lhes
por diante. Pode-se dizer — porque provavelmente é s-erb--
interessa. Parece que não há lugar, de fato, para uma ava-
liação i-acional, que não há critério pelo qual um "quadro" de — que, num sentido importante, os homens não sabiam do
que estavam falando, na medida em que nenhum dos con-
possa serjulgado melhor do que outro. Há várias opções al-
ternativas: pode-se comprar um Epicuro ou uma obra da ceitos que usavam em suas filosofias jamais foi submetido
escola estóica de pintura; um Bentham ou um Kant; um D. a rigoroso exame analítico. É óbvio que não faz muito sen-
H. Lawrence ou um Arcebispo de Cantuária. 0 debate a res- tido discutir o que é certo e o que é errado, a menos que sai-
peito de que quadro comprar torna-se vago e sem senti- bamos o que se quer significar pelas palavras "certo'~ C
do. 0 processo pode ser divertido e promover a tolerância "errado". E o mesmo vale para todas as perguntas.
mútua, mas de modo algum satisfaz a forte exicência de Além disso, é uma ilusão perigosa supor que coDheça-
verdade, a necessidade de saber com a maior exat lidão pos- mos, em todos os sentidos, os significados das pala-v=,.
sível o que é verdade e o que não é, e o desejo de ter algum Podemos empregá-las corretamente, mas não temos pleiia 1
método ou instrumento eficaz parajulgar, recursos que sem- consciência de como funcionam em termos lógicos, na lin-
pre existiram, no século XX ou em qualquer outro momento. gua. E não ter consciência disto pode nos levar a foimular
126 PE.VSAR COM CONCEITOS A FILOSOFIA EAANÁLISE

perguntas eqiiivocadas e até niesmo, em alguns casos, sem conceitLial é diferente. É como se disséssemos - com-
sentido. tas vezes se faz - "Ele fala outra língua-, tisando a frast
No entanto, como um programa completo para a filo- nun-i sentido rnetafórico, ou "Não adianta. Nós não falamos
sofia, este é insuficiente. É insuficiente, em primeiro lugar, a rnesrna língua~'. Aqui, de tim modo significativo e inte-
porque a linguagem não é uma atividade abstrata, mas uma ressante, estamos anipliando a noção de linguagem para que
forma de vida. As pessoas zisajjz a lín-ua e a lin-uagem; e, ela cubra rntiito mais do qtie os símbolos pronunciados das
mais do que i sto, a língua - e a linguagem são cooisas mui- palavras; referimo-nos a todo urn rnodelo de pensamento,
to mais íntimas,' muito maisparte integi*citite das pessoas do às categorias, conceitos e modos de pensar que estão sub-
qtie supõem a maioria dos filósofos da filosofia linqüís- jacentes ao estilo de vida do homeni de quem falamos e, tam-
tica. A linguagem de um homem é apeizas ian siiztoiizã do bérn, às palavras reais que ele diz.
seu equipamento conceitual, assim como seus padrões neu- De tódos os seres que conhecenios, somente o homei-n
róticos de comportamento são apenas sintomas do seu esta- foi capaz de criar e rnanter a noção de significado, o que é
do psíquico interior. A expressão "equipamento conceitual" o mesmo que dizer que "o homern tern experiências", ntim
abrange muito,mais do que a linguagem, embora a análise sentido diferente daquele ern qtie podemos dizer, se quiser-
da linguagem seja um modo - e um bom modo - de inves- mos, que os animais ou os objetos inanimados têm expe-
tigar o equipamento conceitual. riências. Cães são espancados, rosas sofrem com fungos,
Para descobrir a postura de um homem diante do mtin- lagos são drenados e morros são arrasados, mas essas ocor-
do e torná-lo consciente desta postura para que ele possa rências não signJicani nada para stias -v ítimas": simples-
modificá-la, um bom método consiste em ver como ele fala rnente acontecein a elas. As vítimas agem e recebern a ação
e torná-lo consciente da sua linguagem. de outros fatores sobre elas: neste sentido -
rnas só neste
Contudo, as palavras representam somente uma parte do sentido -, pode-se dizer qiie tenham experiências. No caso
equipamento com o qual as pessoas encaram a vida. Quando dos homens, porém, poder dizer "Ontem passei por uma
dizemos, por exemplo: "Ele encara a vida de urn modo dife- experiência aterradora" é, em si rnesmo, ter o poder da ex-
rente do meu", não estamos querendo dizer nenz (como ale- periência consciente: é ter o poder de ser consciente do que
gam os defensores do primeiro ponto de vista, acima) que nos acontece e do que fazemos, de nos lembrarmos da expe-
o outro tenha um estilo de vida diferente do meu, que nos- riencia, dar-lhe norne e descrevê-la, refletir sobre ela e in-
sos padrões de comportamento, motivações e valores sejam terpretá-la. 0 homem tem, dentro dos limites definidos pela
diferentes, nem (de acordo com o segundo ponto de vista) sua própria natureza, a liberdade de atribuir qualquer força
que o outro apenas faz enunciados de tipos diferentes dos ou peso que qticira às suas experiências: a liberdade de lhes
que eu faço, que usa a linguagem de modo diverso. conferir significado.
inteipreta-
1 É claro que ambas estas visões podem ser verdadeiras, Se der-mos ao conceito de significado ou de
e é provável que o sejam. Mesmo assim, não é o que signi- çjt'o um sentido rnais amplo, verei -nos que ele se insere ern
ficamos quando dizemos que "Ele encara a vida de um modo todas as atividades ou ocorrências das quais temos cons-
diferente". 0 que queremós dizer é que o seu equipamento ciência a qualquer iristante. C omo filósofos, ternos uma ten-
128 PENSAR COM COiVCEITOS A FILOSOFIA E.4 A NÁLISE 129

dência niaior a destacar os casos nos quais temos plena cons- na sociedade; à música, à literatura e às artes; à ciência, à
ciência de dar e compreender o significado, como, por exem- matemática, à filosofia e a todas as outras disciplinas que a
plo, nos símbolos artificialmente criados da matemática ou, humanidade criou. Esta estrutura é nosso equipamento con-
em menor grau, nas palavras. No entanto, decidimos tomar ceitual.
banlio de sol, admirar um mar azul e cintilante, fazer amor, Não é fácil descrever o equipamento conceitual, desen-
ler um romance, pedir um vinho específico, comprar um volver o significado da expressão. Podem-se usar muitas
carro específico ou até mesmo fumar mais urn cigarro, e metáforas, cada uma delas tão boa ou tão inadequada quan-
nossas escolhas são obviamente governadas pelo peso ou to qualquer outra, para dar rima idéia geral do que estamos
força que os acontecimentos têm em nossa niente. E isto, falando. Em qualquer período específico da sua vida, cada
em certo sentido, quer dizer que nossas escolhas são deter- homem encara a si mesmo e ao mundo, mediante a postura
minadas pela nossa própria interpretação ou avaliação que adote, mediante uma certa atitude ern relação a si mes-
delas. 0 sol, o mar, o namoro — tudo! — tem alguin signifi- mo e ao mundo. Assim, o homem pode acovardar-se, per-
cado para nós. E os conflitos surgem sobretudo nos relacio- manecer de pé, levantar queixo e punhos, esperar passiva-
namentos pessoais, porque coisas diferentes têm significa- mente que o destino o alcance, e assim por diante. Ou pode-
dos diferentes para pessoas diferentes. mos dizer que ele encara as coisas com um certo jogo de
Sem a menor dúvida, muitas das "nossas" interpreta- ferramentas: os instrumentos incisivos e diretos da fisica;
ções, ciu certo sentido, nos são impostas. Crescemos num as sondas e sondagens menos informativas mas mais pro-
mundo no qual, em nome da sobrevivência, somos forçados fundas da psicanálise, dentre outros recursos. Ou ainda po-
a atribuir certo peso à alimentação, ao calor, a objetos fisi- demos dizer que ele vê a vida através de lentes diferentes:
cos e a rnuitas outras coisas. E, com isto, criamos e aceita- lentes rosadas, lentes escuras de pessimismo, ou óculos re-
mos — sem criticá-la — uma estrutura de interpretação que, sistentes e protetores de esquiador ou de piloto de motoci-
CM SLia maior parte, permanece conosco pelo resto das nos- cletas. Ainda podemos dizer que ele fala várias línguas e
sas vidas, como acontecimentos da mais tenra infância que que as entende: a língua da moralidade estrita e autoritária;
inconscientemente influenciam as atividades conscientes da a mais delicada mas mais indefinida do liberal;'o vocabu-
nossa vida de adulto, porque nos impõem certas interpreta- lário bem definido do cientista natural; ou a língua simbólica
ções e avaliações. Algumas podem ser aceitáveis e benéfi- e carregada de emoção do poeta ou do crente religioso. Ou
cas, como o desejo pelo alimento. Outras podem ser inacei- ainda podemos dizer, finalmente, que ele sabejogar um certo
táveis e cansativas, como o medo de gatos ou de água cor- número de jogos na vida: o jogo de trabalhar com colegas,
rente. Mais tarde, adquirimos, de modo inais ou mcnos o jogo de atuar em produções musicais ou drariráticas, o
consciente, uma estrutura de atitudes e valores referentes a jogo do amor.
todos os aspectos da vida humana com que possamos depa- Destas metáforas, talvez a mais produtiva seja a do jogo.
rar, referentes a homens, rnulheres, crianças e todos os papéis Quase todo comportamento humano, e todo e qualquer com-
que possam representar (pais, innãs, amantes etc); ao dinhei- portamento que aspire a ser racional em qualquer sentido,
ró e aos bens materiais; à natureza; ao nosso próprio papel é artificial. Consciente ou inconscientemente, as pessoas
130. A FILOSOFI-4 EAANÁLISE 131
PENSA R COM CONCEITO.~

obedecem ou tentam obedecer a certas normas; podem ser cias da religiào (como os da poesia ou da música) formam
normas de procedimento, como num tribunal; normas de uni jogo que requer habilidade, prática e esttido, para ser
convenção, como nos relacionamentos pessoais informais; bem jogado.
normas de raciocínio, como na ló,aica ou no estudo de algu- Numa comparação grosseira, pode-se dizer qtte "o
ma disciplina específica; normas de comportamento, em objeto" da filosofia é conseguir qxie as pessoas se conscien-
suas vidas morais; normas da língua, na comunicação nor- tizem das regras destes jogos. Pois, a menos que tenham
mal, e assim por diante. De modo mais sutil, mas ainda den- consciência das regras, jamais conseguirão jogar melhor,
tro dos limites da analogia, as pessoas seguem certos prin- nem serão capazes de identificar outros jogos que queiàm
cípios nos seus relacionamentos pessoais mais proflindos e aprender a joaar, nem poderão escolher, dentre os jogos
quand~ têm contato com as artes. Aprender a ter tima boa antigos, os que desejam continuar a jo ggar e os que querem
convivência com os outros e (num nível menos óbvio, mas abandonar.
ainda verdadeiro) aprender a amar alguém ou a ser amigo Com certos jogos, cuja lógica é bastante simples, a
íntimo de alguém é aproximadamente como aprender um filosofia já se saiu bem. As regras ou princípios de acordo
jogo, assim como aprender a exercer a advocacia ou a tocar com os quais fazemos ciência, matemática ou lógica for-
piano é como aprender um jogo. Numa descrição bastante
mal já estão estabelecidos com bastante clareza. E é em
útil, pode-se . dizer de pessoas que fracassaram, num sentido
parte por isto que estes estudos prosperaram. Há jogos bem
ott noutro, que fracassaram porfalta de habilidade. Há quem mais dificeis, como, por exemplo, decidir sobre problemas
à
nao goste de música (a menos que seja incapaz de distin-
morais ou sobre problemas de relacionamentos pessoais.
guir notas musicais) porque a aborda de tim modo inade-
Como avaliar obras de arte? Como decidir ter uma religião
quado. São pessoas que não "sabem ouvir". Delinqüentes
juvenis sirnplesmente não sabem "jogar - a modalidacle de ou não e qual abraçar?
Em todos esses casos, a função do filósofo não é (como
jogo da vida da qual façam parte das normas'o direito cri-
sustenta o primeiro ponto de vista) simplesmente apresen-
minal e civil do pafs. Nações novas, que experimentam a
democracia pela primeira vez, fracassam, quase sempre, por- tar uma visão moral, uma visão sobre os relacionamentos
que lhes falta sensibilidade para os proceclimentos ciemo- pcssoais, unia teoria da estética ou da religião, e comparar
cráticos: há pressupostos tácitos que temos de observar, se a "stia" com outras opiniões, deixando que o indivíduo es-
-C
não quisermos o colapso dos debates parlamentares. Estas colha por si mesmo (afinal, a partir de que critérios ele teria
são as regras de um jogo que alguns dos participantes não de escolher?), nem a fanção da filosofia é (como afirma o
entendem. segundo pontó de vista) sirnplesmente analisar a linguagem
Um último exemplo, de um campo que está mais ob- da moral, da estética e da religião, já que a simples análise
viamente ligado à concepção que temos atualmente de filo- não esclarece as regras do jogo, em profundidade suficien-
sofia: pessoas que rejeitam totalmente a religião b fazem te. Cabe ao filósofo, como sua principal função, esclarecer
porque, por assim dizer,,não conseguem "localizar-se" na o modo como, de fiato, os jogos são jogados; esclarecer o
paisagem conceitual da religião. Os conceitos. e experien- qiie é resolver uma questão moral; o qite é ter uma religião;
132 PFAS. IR COA/ CO.N'C"I-'ITos ,1 FILOSOFIA EA A NÁLISE 133
o qite é amar alguém ou ser amigo de alguém, até que estes
Trata-se aqui de algo que pode ser submetido a debate
jogos sejam tão claros para nós quanto são, hoje, o qlte é racional, no qual poderemos nos tomar mais conscientes dos
fazer ciência e o qzie é fazer matemática. nossos próprios conceitos, da nossa própria língua, de como
Que tipo de processo é este esclarecimento? Usando o representarnos o mundo para, a partir daí, aprender a trans-
exemplo da ciência, poderíamos ter a irnpressão de que é de formá-los.
fatO muitO simples esclarecei- o jogo da ciência. Afinal de Todos nós ignoramos em grande parte, os princípios
contas, todos estamos familiarizados, hoje em dia, com a conceituais pelos quais funcionamos.
' Neste século, temos
técnica-padrão de usar nossos sentidos para observar, com uma compreensão razoavelmente firme do mundo da expe-
a formulação de hipóteses, a realizaçào de experirnentos riência dos sentidos e nos sentimos à vontade em relaçào
cruciais, a elaboração de teorias e leis e as previsões que se à ciência. Mas, no que diz respeito à moral, à religião, à
fazem a partir delas. No entanto, de fato e de acordo com a literatura e às artes — e, acima de tudo, aos relacionamen-
história, a humanidade demorou até o Renascimento para tos pessoais —, sentimo-nos perdidos e atordoados (a menos
ter idéia clara sobre o jogo "da ciência". Foi longo e árduo que já estejamos tão cegos a ponto de acreditar que não
.0 processo de passar de uma visão de mundo pela qual a haja o que ver).
natureza era mágica e misteriosa para outra visão pela qual Nenhum dos dois pontos de vista que critiquei acima
a natureza era essencialmente explicávél e previsível. os cuida de modo adequado nem da cegueira nem do atordoa-
homens, aos poucos, foram superando uma crença no mundo mento. De nada adianta repetir que devemos nos esforçar
mágico e conquistaram o poder de ver a natureza como uma mais, nos comportar melhor ou ter estilos de vida mais sen-
coleção de coisas, objetos despersonalizados que podiam satos. E tampouco adianta dizer que temos de exami nar
ser pesados, medidos, analisados. Este tipo de transição po- meticulosamente nossa linguagem e que temos de ser cada *
de ser visto sob vários aspectos. vez mais atentos à lógica das palavras. Porque nossas difi-
Psicólogos que estudam o inconsciente, como 0. Man- culdades não nascem do fato de não sermos suficientemen-
nonil, oferecerain uma explicaçào clara da natureza psico- te bons ou virtuosos, nem de não sermos suficientemente
lógica daquela transiçâo (o homem precisa sentir-se seguro inteligentes. Nossas dificuldades nascem de tr~s sentirmos
para livrar-se do desejo de povoar a natureza com duendes, perdidos, soltos, às tontas, procurando aprender os vários
forças mágicas, fantasmas, espíritos ete.). Mas, além deste jogos da vida.
aspecto, há naquela transição um importante aspecto con- É o tipo de sensação que muitos temos no momento de
ceitzíal e é este, precisamente, o objeto da filosofia. pisar na pista de dança sem saber dançar: não se sabe como
Não se trata, sirnplesmente, de como nos sentimos quan- começar.
to ao mundo e quanto a nós mesmos; é questão de ein qzte A filosofia é, portanto, esclarecimento do nzétodo, de
termos concebemos 0 nIUndo e a nós mesmos. como se jogam todos os jogos. Os filósofos já estào cons-
ciciitizados disto, o qçie sc pode ver no modo como lidam com
certos problemas metafisicos: "Algum dos nóssos atos é real-
1. Prospero andCaliban, de autoria de 0. Mannuni (Methuen). mente livre?" ou "Podemos chegar a ter certeza de algtima
w

A FILOSOFIA EAANÁLISE 135


134 PENSA R COM CO VCEITOS

os filósofos da filosofia lingüística preferem deixar à espe-


coisa?" Ante perguntas como estas, o mais dificil é saber
ra, no corredor — por exemplo, a escola existencialista ou a
como começar a responder a elas. São perguntas que nos des-
escola dos teóloaos metafisicos alemães.
norteiam: não temos à mão nenhum método para abordá-las.
Também há grupos que obviamente deveriam associar-
Na vida, contudo, há centenas de perguntas que são
se à filosofia, mas que os apavorantes ensaios que prodLizi-
'Irrictafisicas - , neste sentido, ou seja, centenas de per g-untas
mos praticamente afastaram para- sempre de nós. Os dois
que surgem porque tentamos participar de jogos cujas re~
exemplos mais óbvios são, em primeiro lugar, o grupo dos
gras não conhecemos com clareza. As questões metafisi-
psicanalistas e, em segundo, o pessoal da critica literária de
cas clássicas — questões sobre o livre-arbítrio, a realidade, a
verdade e outras — sempre formaram uma pequena arena Cambridge.
Por estes motivos, o filósofo deve familiarizar-se e ser
intelect'ual na qual lutam os professores da academia. En-
solidário com todos os principais campos que se relacionem
quanto isto, nas praças, nas ruas, nos lares, nas danceterias,
diretamente com os conceitos humanos, todos os estudos e
há gente "comum" igualmente desnorteada com aspectos
formas de criação que possam ensinar, influenciar ou afe-
das suas vidas; desnorteada de um modo que pede uma edu-
tar, de qualquer outro modo, o nosso equipamento concei-
cação voltada para a consciencia de si mesmo, para a per-
tual. Candidatos óbvios a tema de estLido são a literatLira
cepçào de como cada um, de fato, encara o mundo e a si
(em especial, o romance e o teatro), a música, a psicolo,gia,
mesmo, para uma reformulação do seu equipamento con-
as ciencias sociais e a história. Todos estes têm influência
ceitual. A esta educação chamo edticação para a filosofia.
direta — e, para a maioria das pessoas, influência muito mais
Seria preciso uma reflexão muito mais cuidadosa para
eficaz que a filosofia — sobre o nosso equipamento concei-
investigar as formas que a filosofia, neste sentido, adotará
tual, sobre nossa postura diante da vida,1 sobre o tipo de lente
no futuro. Mas não há dúvida de que, mesmo que a filo-
que usamos, sobre as técnicas de jogo s que joQamos, as fer-
sofia se fragmente em vários departamentos destinados a
esclarecer e abordar jogos diferentes, ela ainda assim se ramentas que utilizamos, as imagens . que forrnamos.
manterá mais coerente do que, por exemplo, as ciências risi- Pode-se pensar até qtie os f -ilósofos "de academia" tenham
cometido o erro evidente de supor que só as disciplinas qtie
cas. Pois há vínculos muito fortes entre nossa psicologia
produzam proposições verdadeiras tenham aiguma relação
profunda, nosso comportamento, nossos estilos de vida, nosso
com a verdade. Porque é claro que, no sentido normal de
equipamento conceitual, nossas crenças mais autènticas e a
"verdad(-,", a música, a pintura, o teatro e até mesmo os ro-
língua na qual nos expressamos. E dificilmente se imagina
mances não enunciam nada de verdad * eiro; mas nem por isto
que um filósofo cónipetente admita a ignorância em qual-
quer departamento. Por esse motivo, a formação de filóso- se deve concluir que não tenhatiz coisa algiuna a ver coni a
fos meramente corno analistas da linguagem é absurdamen- verdade.
A música, a pintura, o teatro e os romances podem,
te inadequada; e ninguém se deve surpreender com o surgi~
indiretamente, gerar enunciados factualmente verdadeiros,
mento de "contra-sintomas", na forma de pensadores que
rnediante um processo complexo — que ninguérn ainda estu-
não dão a mínima importância para a análise da linguagem,
dou a fundo — e que consiste, em termos muito gerais, em
mas abrem a porta para experiências e "jogos-de-vida" que
136 PENSAR COM COjVCEITOS .4 FILOSOFI.4 E A ANÁLISE 137

nos proporcionar certas experiências que afetam nossos sen- de conscientizaçào cada vez maior das regras, talvez seja
timentos e emoções de um certo modo e que por isto nos impossível avaliar ou fazer qualquer mudança racional deli-
perturbam e nos esclarecem, de tal modo que, pelo conhe- berada na nossa vida. Claro que se pode mudar e que se pode
cimento daquelas experiências, podemos mudar as imagens viver sem filosofia, assim como é possivel viver sem o senso
que temos do mundo e os nossos conceitos, até acabar por c omum ou sem qualquer dos cinco sentidos ou sem vários
criar asserções ou concordar com asserções que, antes, nada deles. Mas não se consegue nem mudar nem viver com a
si,anificavam para nós. mesma eficácia.
Embora as artes não afirmem fatos, aiiida assim nos Carecemos desesperadamente de uma técnica para en-
ensinam — e ensinam racionalmente. É este tipo de ensi- frentar os problemas da mudança e da vida. E, com a filoso-
no racional que a filosofia tem de incluir no seu ambiente. fia, mesmo sem pesquisar muito mais, talvez se possa, pela
Dado que o debate racional se faz ein palavi-as, a parte primeira vez, estabelecer esta técnica, numa base firme.
essencial e básica da "caixa de ferramentas" do filósofo Pelo menos, reconhecemos os campos de atividade en-
será, é claro, lingüística. Mas haverá outras ferramentas: em volvidos — a literatura, as artes, a ciência social, dentre outras
vez de apenas ser capaz de analisar enunciados, o filósofo — e podemos começar a pensar sobre os métodos de cada
aprenderá a relacioná-los às visões gerais do mundo e ao um desses campos e sobre os modos como influenciam os
equipamento conceitual total dos indivíduos. problemas da vida. Talvez vivamos para ver os filósofos
1
Esse processo da filosofia é, evidentemente, ele mesmo, aanharem, de fato, o próprio sustento.
um jogo, e um jogo especialmente dificil de jogar. É como A análise de conceitos surge, portanto, apenas como
se a filosofia tivesse de mudar-se para o andar de cima, para uma ferramenta no equipamento do filósofo, mas uma fer-
observar as pessoas que, no térreo, eiiipeiiliam-se, coni su- rainciita nitiito necessária por ser um ótimo modo de gerar
cesso maior ou menor, em seus vários jogos, para depois conscientização. Uma coisa, pelo menos, todos sempre po-
avaIiá-las e criticar suas normas. Ou como se ganhássemos demos fazer: sempre podemos perguntar "0 que significa
de presente de Natal uma coleção de jogos... sem as instru- isto?-. Mas se o filósofo se contentar com o que se pode cha-
ções e as regras de como devessem ser jogados. Teríamos mar de análise estritamente lógica, seu aumeríto de cons-
de descobrir quais eram os jogos, como deveriam ser joga- cieruização, embora útil, não será tão profundo quanto pode-
dos e se valeria a pena jogá-los. ria ser. Porque o significado vai mais fundo que o hábito e
Para fazer tudo isto, as exigêíicias são pesadas e rigo- o uso. 0 sianificado está na base de todo o equipamento con-
rosíssimas: é preciso que haja absoluto rigor lógico para ceitual do homem, o qual, por sua vez, está enraizado na sua
que o jogo da filosofia tenha um objetivo e não seja sim- personalidade e nas experiências passadas. Por esta razão,
ples galeria em que se exibam diferentes conceitos; também temos, para mapear, muito mais do que uma paisagem pura-
é preciso que a compreensão tenha amplitude máxima, para mente verbal; talvez como alguém que realmente quisesse
que nos comuniquemos com todos os jogos que existem. entender a geografia de um país e que tivesse de mergulhar
A irnportância da filosofia, por -tanto, é evidente, em qual- abaixo da superficie para entender também a geologia da pai-
quer nivel da vida e em qualquer contexto: sem o processo sa-em — a natureza do subsolo, a história dos estratos rocho-
10~_

138 .1
PENSARCOJICONCEITOS

sos, e assim por diante. Claro qtie geoarafia e geologia são IV Prática eiii análise
disciplinas muito diferentes. E é claro que, no mínimo em
nome da simplicidade, temos de considerar a filosofia como
disciplina diferente da psicologia, da história, da sociologia
.etc. Mas até isto pode ser ilusório. Estaremos nos enganando
se supusermos que estes estudos "de humanidades" tenham
objetos totalmente separados e isolados; melhor dizer que
há problemas humanos que podem e devem ser abordados
seja em termos filosóficos, seja em termos psicológicos,
sociológicos, etc.
Preei samos, para trabalhar, de numa equipe harmonio-
'
sa de especialistas, que sejam especialistas em métodos es- Este é um capítulo relativamente curto. Não propon ho
pecíficos de abordagem, não de vários especialistas isolados, uma quantidade muito grande de textos para serem critica- '
cada um trabalhando no seu próprio escritório e laboratório. dos, nem muitas questões sobre conceitos a serein respon-
Numa abordagem deste tipo, creio que seria possível didas. Em primeiro lu-ar, porque, na medida em que o livro
tornar os métodos da filosofia tão reais e importantes para for tisado no ensino médio e por alunos que vão enfrentar
a pessoa comiim quanto, digamos, os métodos da aritméti- exames, os professores haverão de estar interessados prin-
ca elementar, da leitura ou da escrita. 0 peri- o, é claro, é que cipalmente no tipo específico de prova geral pela qual os
a tinião mais íntima de tantas disciplinas variadas resulte em alunos terão de passar. E é claro que, apesar de todas as pro-
que nenhLlma delas seja praticada com o rigor e a proftindi- vas incluírem questões sobre conceitos, há muitos tipos de
dade necessários. Pode acontecer de acabarmos niima espé- exames. É natural que os professores qtleiram discutir tex-
cie de sopa otimista e liberal de disciplinas vagamente CLII- tos de exames anteriores, publicados pelas universidades e
turais, que de algLIM modo estejam relacionadas — nias não cie faculdades, e desejem que os alunos se concentrem no tipo
modo mitito rigoroso ou direto — aos probleinas hitmanos. de textos e perguntas neles incluídas. Em segundo lugar, se
Este é um dos motivos. pelos qiiais creio que se deva este livro cair em mãos dc qtiem não esteja preocupado com
começar por apreiider a análise de conceitos — qtie é Liiiia exames, pode acontecer de se interessar mais por um campo
disciplina muito exigente, quando corretamente praticada. do pensamento do que por outros. Assim, haverá quem se
Mas também espero que se perceba que, se for associada a interesse pela reli,gião; outros, pela política; outros, pela moral,
otitras ferramentas, todos poderemos atingir resLiltados su- e assirfi por diante. Estes interesses específicos são impor-
periores às nossas atuais expectativas. tantes porqtie são um incentivo a rnais para a análise de con-
ceitos. É provável que alguém que se interesse seriamente
pela religião faça mais justiça aos conceitos desenvolvidos
nos textos que tratem de religião do que aos conceitos que
apareçam nos textos em que se trate de outros assuntos~ Em
terceiro lugar, embora este seja, em certo sentido, um livro
140 PENSAR COM CONCEITOS PRÁTICA EM ANÁLISE 141
didático, não quero dar a nin,guém a impressão de que, de- trabalhar, por si mesmo, para alcançar maior grau de cons-
pois de ter analisado os exemplos apresentados como exer- cientização e de conipreensão lógica.
cício prático, o leitor esteja plenamente equipado para lidar
com todas as outras situações nas quais a análise é indis-
pensável; que o leitor, por assim dizer, esteja perfeitamente 1. Textos para criticar'
vacinado contra a ambigüidade, o pensamento confuso ou
a falta de percepção lógica. Uma parte necessária da forma- (1) Cardeal Newnzan, 'Apologia Pi-o Vita Siía "
ção em análise consiste em ser capaz de reconhecer passa- Dado que, por força de orações, alcançam-se benefícios,
gens e perguntas nas quais a análise seja necessária, o que salvamentos acontecem, resultados inesperados são obti-
é bem diferente de ser capaz de analisar um texto determi- dos, doenças curadas, tempestades acalmadas, pestes afas-
nado ou de responder a uma determinada pergunta. Embora tadas, a fome eliminada, sentenças impostas, não há neces-
nenhum livro sozinho possa ensinar isto, todos os livros de- sidade de analisar as causas, sejam elas naturais, sejam so-
vem preocupar-se em não ijnpedir que se veja, imediatamen- brenaturais, às quais se devem os fatos. Os fatos podem, ou
te, a importância de saber reconhecer os trechos e as per- não, num ou noutro caso, obedecer às leis da natureza ou
guntas que tenham de ser analisadas. superá-las, e podem fazê-lo de modo explícito ou amb - íguo,
0 que o leitor deveria adquirir por meio dos nossos exem- mas o senso comum da humanidade sempre os tomará por
plos práticos, portanto, é, basicamente, uma sensação de milagrosos. Pois, pelo termo "milagre", não importa qual
confiança: a sensação de que passa a ter Llnia compreensão seja a definição formal, o que se quer indicar popularmen-
mais firme sobre o tipo de processo que é a análise de con- te é um acontecirnento que infunde na mente a presença
ceitos. Em nenhum caso — por maior que seja o número de imediata do governante moral do mundo. Ele pode às vezes
exemplos que tenha de estudar — o leitor deve se convencer atuar por meio da natureza, às vezes além dela ou contra
de que cobriu todos os casos concebíveis em que a análise ela. Mas aqueles que admitem a realidade destas interferên-
é necessária. Cada texto e cada questão de conceito é diferen- cias facilmente admitem também seu caráter estritamente
te dos demais. Procurei escolher perguntas de vários cam- milagroso, se as circunstâncias do caso o exigirem. Quando
pos e textos de autores de várias idades, vários interesses e um bispo com seu rebanho ora noite e dia contra um here-
vários estilos, para mostrar um pouco da diversidade de ge e, finalmente, implora a Deus que o leve embora, e quan-
contextos dos quais pode participar a análise conceitual. No do o herege é de fato eliminado, quase no instante do seu
entanto, o processo de ganhar maior competência em aná- triunfo, e com uma morte terrivelmente significativa, erri de-
lise nunca termina e cabe ao leitor, inevitavelmente, a maior corrência da sua semelhança coin morte registrada na Santa
parte do trabalho (c om a ajuda de alguém que o oriente, se Escritura, não será perda de tempo perguntar se uma ocor-
for possível) ao ler a literatura que lhe interesse, ouvir rádio, rência dessas está à alturada definiçâo de milagre?
apanhar o jornal de manhã, discutir com seus amigos ou re-
fletir sozinho.
1. Em alguns dos textos citados adiante, os autores não falam em seus pró-
A importância da análise conceitual como instrumento prios nomes, mas apresentam as opiniões dc penonagens de romances ou diálo-
educacional está, principalmente, em obrigar o indivíduo a gos. Isso se aplica aos números (3), (9), (17) e (20).
ti
142 PENSAR COM COIVCEITOS PRÁTICA Ebf ANÁLISE 143

(2) Bai-bara PVoottozi, "Social Science and Social Pathology — Não estou dizendo que isto sejajusto. Não estou dizendo que
[Ciência social epatologia social] (citaizdo Eliot Slater.- "The seja isto que devamos preferir. Mas tenho certeza de que esta
MeNagliten Rieles and Modern Coticepis of Respoiisibility " é a lei do mundo ern que vivemos. Em todo o reino da natu-
[As regras de McNaghten e conceitos modei-jzos de responsa- reza, cada espécie existe apenas para ser o meio de stisten-
bilidade]) tação da vida de outra espécie. Em todos os planos, os supe-
Por seu apoio à doutrina inflexível de qtie "Nenhuma riores alin-ientam-se dos inferiores. Em toda parte, o bom é
teoria de medicina mental poderia ser desenvolvida sem a parasita do mau. E, assim como na natureza, o mesmoocor-
hipótese prática do deterministrio", Slater efetivamente se dis- re ria sociedade humana. Estudem história com irnparciali-
sociou de todos aqueles cujas idéias examinamos até agora. dade, leiam-na sob luz forte, e verão que nunca houve uma
Para ele, o "'livre-arbitrio', no qual se baseiam tanto a lei grande civilização que não tivesse como base a iniqüidade.
quanto a religião, prova ser uma idéia estéril. Se tentarmos Aqueles que têm olhos para ver sempre admitiram, e sern-
inseri-Ia na nossa análise de causação, ela apenas introduzirá pre admitirão, que a maior civilização da Europa foi a da
um elemento do desconhecido". Além do mais, asserções sobre Grécia. E, naquela civilização, um aspecto que não foi mera-
a responsabilidade moral de outras pessoas são, de fato, ape- rnente acessório, mas condição essencial, foi a escravidão.
nas asserções sobre o próprio estado mental de quem fala. Eliminem a escravidão, e terão eliffiinado Péricles, Fídias,
Quando "damos opiniões sobre a responsabilidade dos outros, Sófocles, Platão.
estamos realmente relatando nossos próprios estados men-
tais. Talvez estejamos fazendo pouco mais do que nos iden- (4y George W Hartinann, "EditeationalPsychology " [Psico-
tificar com o criminoso e nos perguntar se podèríamos ou logia edltcacional]
nào ser culpados do seu crime. Se então acharmos que só A associação de maturidade sexual e imatLiridade ocupa-
poderíamos ter feito aquilo se estivéssemos loucos, pode~ cional, que se estende por uma década de vigorosa vida ju-
remos dar um tipo de resposta. Se tivermos a sensação de venil, quase está projetada de modo a violar os preceitos
que poderiamos ter cometido aquele ato, mas só se repri- mais fundamentais da higiene mental. 0 casarnento preco-
míssemos tudo o que houvesse de melhor em nós, daremos ce é a solução que parece melhor preservar todos os valores
outro tipo de resposta. A responsabilidade, vale salientar, tem sociais e biológicos envolvidos, mas somente alguns feli-
mesmo algum significado em termos subjetivos, em nossos zardos parecem ter acesso a éssa solução preferencial. Os re-
juízos, acerca dos nossos próprios atos. É só quando aplica- cursos anticoncepcionais são agora universalmente com-
mos o conceito aos atos de terceiros que ele não resiste." preendidos; e sem dúvida estimularam uniões temporárias
e experimentais, cuja utilidade ainda é incerta. A promis-
(3) G. Lowes Dickinson, 'A Moáel-n Symposiztm " [Uni ban- cuidade deliberada, em qualquer dos sexos, é anonnal, pelo
qitete moderno] menos no sentido estatístico, e geralmente indica alguni obs-
Depreende-se disso que meu ideal de sociedade é o ideal táculo na personalidade que impede a verdadeira felicida-
aristocrático. Pois uma classe de cavalheiros pressupõe classes de. 0 homossexualisrno é um enigma clínico em si mesmo,
de trabalhadores a sustentá-la. E estes, a partir deste ponto mas também um exemplo da necessidade de tolerância na
de vista ideal, devem ser considerados apenas como meios. avaliàção de muitos dos modos inferiores de ajuste sexual
144 PENSA R COM COiVCEITOS PRÁTIC.4 EM ANÁLISE 145

nos quais os indivíduos se encaixam quando seu desenvol- (6) JValter dela ilfat-e, "Love "[0 amor]
vimento emocional normal é prejudicado. Psicólogos não Do significado atribuído à palavra "amoe', em todas as
têm nenhum direito a pi-iori de insistir que casamentos mo- suas variações — amor ao lar, à pátria, aos filhos, a idéias e
noQâmicos para toda a vida são os únicos casamentos felizes ideais —, dependeu grande parte da genialidade, do caráter e
que se possam conceber, mas, em comparação com as alter- da condição ética inglesa e, não em menor grau, a coiicep-
nativas geralmente praticadas, eles vêm nitidamente em pri- ção da feminilidade. As teorias freudianas estreitaram e de-
meiro lugar. Nestas circunstâncias, parece simplesmciite turparam esse significado ao concentrar a atenção ern ape-
correto que nosso programa educacional volte-se para a mis- nas um dos seus elementos. 0 mesmo aconteceu com nos-
são de levar ao maior sucesso possível esta forma de orga- sos sonhos. Fantásticos ou aparentemente vazios, nítidos,
nização familiar, por meio da criação, no início da vida, de intensos, esclarecedores ou comoventes, iião importa qual
atitudes e controles favoráveis a tal resultado. seja a relação que tenham com as horas que vivemos acor-
dados, nossos sonhos são um tipo de experiência. Em de-
(5) S. Frelid, — Ofuturo de itina iliísão — corrência da imposição de uma interpretação arbitrária sobre
Devem-se agora mencionar duas tentativas de fugir ao eles — e nenhuma interpretação pode realmente ser refuta-
problema, que transmitem, as duas, a impressão de um esfor- da — foram sacrificados não apenas ao sexo, por cujas rami-
ço desesperado. Uma, autoritária por natureza, é antiga; a ficações de qualquer modo não somos responsáveis, mas a
outra é sutil e moderna. A primeira é o Credo qtiia absiii-- uma concepção degradada do sexo. Deste modo, Swifl, com
dum do antigo patriarca da Igreja, que sugeriria que as dou- seus Yahoos, difamou e degradou a natureza humana. Nada
trinas religiosas estão fora da jurisdiçào da razâo. Estão aci- está a salvo ante esta gárra secreta, decidida a tudo revirar
ma da razão. Sua verdade precisaria ser sentida no íntimo. e revelar. E, sem dúvida, não estão a salvo a literatura e os
Não seria necessário compreendê-las. Este credo, entretan- ião nos importamos ao ouvir" (diz C. S.
poernas de amor. "N
to. só interessa como confissão voluntária. Como decreto,
Lewis em seu ensaio A psicanálise e a ci-ítica literária)
ele não tem nenhum poder de coação. Terei de acreditar em "que, quando apreciamos a descrição que Milton fez do
todos os absurdos? E se não for obrigado, por que apenas Paraíso, algum interesse sexual latente está,'de fato, e em
neste? Não há apelação além da razão. E, se a verdade das associaçao com milhares de outros aspectos, presente no
doutrinas religiosas for dependente de uma experiência inte-
nosso inconsciente. Discordamos é de quem diz 'Você no
rior que a corrobore, o que será daquele grande número de
pessoas que não têm essa rara experiência? Pode-se esperar fiendo sabe por que está gostando dissoV ou 'É claro que
que todos os homens usem o dom da razão que possuem, mas você percebe o que está por trás disso?"'
não se pode impor uma obrigação que se aplique a todos,
com base em algo que só exista para alguns. Que importân- (7) John Locke, "Ensaio sobre o entendimento humano"
cia pode ter para outras pessoas o fato de você, a partir de Portanto, se sabemos que existe algum ser real e que
urn estado de êxtase que o comoveu profundamente, ter con- uma não-entidade não pode produzir nenhum ser real,,aí está
quistado uma convicção inabalável na real veracidade das uma demonstração evidente de que, desde sempre, algo exis-
doutrinas da religião? tiu, já que o que não existiu desdesempre teve um início,
146 PENSAR COM COjVCEITOS PRÁTICA EMA,\ É. W- 147
e o que teve tim início deve ser produzido por algLima outra anos, ipcnas 1 1111 IIOIIICM CM LIM iiiilhão pudesse agir com
coisa. Em seguida, é evidente que aquilo que recebeu sua liberdade, OLI %oia. como quisesse, é evidente que um único
existência e seu início de outra coisa também deve ter rece- ato livre de tal homern, que violasse as leis que regem as açoes
bido tudo o que está no seu. ser, e que pertence ao seu ser, humanas, desimiria a possibilidade da existência de quais-
de alguma outra coisa. Todos os poderes de que dispõe devem
quer leis, parzi toda a humanidade. Se houver uma única lei
ser derivados da mesma fonte e dela recebidos. Portanto, que goveme w~ ;, (()s dos homens, o livre-arbítrio não pode
esta fonte eterna de todo ser deve também ser a fonte e existir, pois o n, liítrio do homem seria sujeito a tal lei. 0
modelo de todo poder. Àssim, esse ser eterno deve ser tam- problema é Iluo, eticarando-se o homem como stijeito de
bém o mais poderoso. Mais uma vez, um homem descobre observaçao, iiiiçi iiilporta de que ponto de vista — teológico,
em si -mesmo percepção e conhecimento. Demos, então, histórico, étict, x u filosófico — descobrimos uma lei geral
mais um passo adiante. E, agora,,temos certeza de que exis- de necessidado :'i (jual o homem (como tudo o que existe)
te não só algum ser, mas algum ser sapiente, inteligente, no está sujeito. 1 " 11 éiii, encarando-o de dentro de nós mesmos,
mundo. Houve, então, uma época em que não existia nenhum como aquilo ti , ' tliic temos consciência, sentimo-nos livres.
ser sapiente e em que o conhecimento começou a existir. Esta conscieni i ; , é iima fonte de autoconhecimento totalmen-
Ou então também houve um ser sapiente desde sempre. Se te separada e Ilidependente da razào. Pela razão, o honiem,
for dito que houve uma época em que nenhum ser dispunha se observa, ni;,.; só pela consciência ele se conhece. Além
de conhecimento, em que aquele ser eterno era carente de da consciência 1 1 , ) eu, nenhuma observação ou aplicação da
todo entendimento, eu contesto que, nesse caso, era impos~ razão é concebi ve l .
sível que um dia chegasse a ter existido qualquer conhecimen-.
to — por ser tão impossível que coisas carentes de conheci-. (9) Cílai-les ~1 '1 111(iipis, "Sliadoivs ofEcstasy" [Sombras de
mento e que operassem às cegas, sem nenhuma percepção, êxtasel
produzissem um ser sapiente, quanto é impossível que um Ele via 0 Jiriciccto e a razão lógica do homem não mais
triângulo torne seus três ângulos maiores do que dois ângu- como algo sei , ilo e necessário mas, sim, como urna estrei-
los reto§. ta ponte de pj- :j i;, %obre um imenso precipício; e em volta de
cuja entrada, ~ 111 a e protegida, acumulavam-se ntivens de pre-
(8) Tolstoi, —Guerra e paz - senças maligji:íà; e iradas. Muitas vezes, confundindo as
A presença do problema do livre-arbítrio do homem, causas e muitw~ vezes julgando equivocadamente os efeitos
embora não expressa, é percebida em cadá etapa da histó- de todas as se 11W-ncias mortais, esta capacidade de corihe-
ria. Todos os historiadores sérios involuntariamente enfren- cer causa e cí't;lfíl ainda assim se lhe apresentava como a úl-
taram esta questão. Todas as contradições e obscuridades da tima estabilidWk, do homem. Ele sabia que ela, sempre se
história, bem como a falsa trilha pela qual a ciência histó- aproximando I;, verdade, não poderia nunca ser a verdade,
rica seguiu, são devidas excltisivamente à falta de uma solu- pois nada podi~v r a verdade, enquanto não se tomar um com
ção para esta questão. Se o arbítrio de cada homem fosse livre, seu objetc); e e~i~i tiniào não é dado ao intelecto alcançar sem
ou seja, se cada homem pudesse agir como quisesse, a his- perder sua Pr~'jVàa nattireza. No entanto, na sua reflexão di-
tória seria uma série de acidentes desconexos. Se, em mil vina e abstrat~i !,, mundo, seu espelho desapaixonado da lei
148 PEX5AR COilf CONCEITOS PRATICA EM ANÁLISE 149

sagrada que govemava o mundo, não em experimentos, êxta- perturbado pelas palavras "realidade" e "existência". Em
ses ou palpites, a suprema perfeição da mortalidade girava. sua Filosofia da ciêticiafisica, ele não consegue encontrar
Ele a saudava como seu filho e servo; e dedicava-se novamen- nenhum uso ou significado para a palavra "existência" — a
te a ela, pelo que lhe restasse da vida, orando para que ela vol- menos, admite ele, que se considere que a palavra signifi-
tasse à luz da sua assombrosa integridade sobre ele e o prote- que "aquilo que está presente no pensamento de Deus". Este,
gesse da auto-ilusão, da ganância, da infidelidade e do medo. acredita ele, não é o significado geralmente atribuído à pa-
"Se A é igual a B", dizia ele, "e B é igual a C, então A é igLial lavra. Mas é, com efeito, o significado preciso, e o único
a C. OLitras coisas podeili ser vcrdade. Pelo qtie sei, clzis sigiiificado dado a ela pelo teólogo.
podem ser diferentes ao mesmo tempo; mas pelo menos isto
é verdade." (1 1) Matthew Ariiold, "The Fiínction of Criticisin " [Afunção
cla ct-ítical
(10)Doi-othySayei-s, "Unpopitlaropin iolls "[0,piniões il;zpo- A força e o direito são os governantes deste mundo; a
píticii-es] força, enquanto o direito não estiver pronto. Aforça cizqtian-
Ou retomemos o caso da palavra "realidade". Nenhuma to o direito não estiver pronto. E, enquanto o direito não
palavrá provoca tantas disciissões mal conduzidas. Estamos, estiver pronto, a força, a ordem vigente das coisas, é justi-
agora, emergindo de um período em qué as pessoas se sen- ficada, é o governante legítimo. No entanto, o direito é algq
tiarn inclinadas a iisá-la como se nada fosse real, a menos moral, e pressupõe um reconhecimento intei -ior, um livre
consentimento da vontade. Não estaremos prontos para o di-
qiie pudesse ser medido. E alguns materialistas antiquados
ainda a usam assim. No entanto, se examinarmos o que está reito — o direito, no que nos diz respeito, não está pi*onto
por trás dos significados dicionarizados — como "aquilo que — enquanto não tivermos atingido o sentido de vê-lo e de
querê-lo. 0 modo pelo qual para nós ele poderá mudar e
tem existência objetiva" — e por trás da sua história filosó-
transformar a força, a ordem vigente das coisas, para tor-
fica em busca da derivação da palavra, descobriremos que
nar-se, por sua vez, o legítimo govemante do rnundo, depen-
"realidade" significa "a coisa pensada". A realidade é um
derá do modo como nós o encararmos e o desejarmos quan-
conceito; e um objeto real é aquele que corresponde ao con-
do chegar nossa hora. Portanto, que outras pessoas fascina-
ceito. Na conversa normal, ainda usamos assim a palavra.
Quando dizemos "essas pérolas não são 'verdadeiras' 2", não das pelo seu direito recentemente discernido tentem impô-
estamos querendo dizer que não podem ser medidas. Que- lo a nós como n osso e, com violência, queiram substituir
nossa força pelo seu direito é um ato de tirania, ao qual se
remos dizer que a medida da sua composição não correspon-
deve opor resistência. Este ato reduz a nada a segunda parte
de ao conceito de "pérola"; que, consideradas como péro-
da nossa máxirna: força enquanto o direito não estiver pron-
las, elas são apenas aparência. São concretas, sim, mas não
sâo "verdadeiras". Como pérolas, de fato, elas não possuem to. Foi este o grande erro da Revolução Francesa. E seu mo-
vimento de idéias, ao abandonar a esfera intelectual, per-
nenhuma existência objetiva. 0 professor Eddington é rnuito
correu com efeito uma trajetória prodigiosa e memorável,
mas não produziu nenhum fruto inteléctual semelhante aos
2. Em português, o equivalente ao tcmo cm pauta — "real" — referente a
pêrolas seria "verdadeiras". (N. da T.)
do movimento de idéias do Renascimento.
1 151
150 PENSAR COM COjVCEITOS PP4TICA EMA.N`AISE

(1 2) Dorothea Krook, "Dirce Traditions ofMoi-al Thought Toda a filosofia do comunismo é decididamente contrária
[Ti-ês tradições do pensamento moral/ à fé. É uma filosofia de causação; e seus se,guidores dedi-
0 empirista acredita que os fatos observados do com- cam-se ao estudo de catisas materiais e à produção de efei-
portamento moral dos homens gerarão generalizações ou tos materiais.- A isto, o Sr. Hamilton Fyfe respondeu: "0
"princípios" não só descritivos, mas também prescritivos; Dr. Ernest Barker limita de modo indevido o significado de
e esta é a crença que determina (e para ele justifica) seti 'fé' quando diz que 'toda a filosofia do comunismo é con-
método de investigação. Mas a crença é totalmente iliisó- trária à W, e define 'fé' como 'crença no invisível'. Os
ria. A transição vital, daquilo que é para aquilo que deveria cornunistas têm fé na natureza humana, fé em qtie o áireito
ser, nào pode jamais ser efetuada pelo método de mera ca- triunfará sobre a força (embora não deixem o direito desar-
talogação, classificação e análise do comportarnento obser- mado), fé em que a justiça e o companheirismo surgirão a
vado de homens. Pois o conhecimento daquilo que é nunca partir do tumulto de luta e competição egoísta e implacá-
produzirá um conhecimento daquilo que deveria ser, enqtian- vel, fé em que a igualdade de opor-tunidades na vida propi-
to "aquilo que C referir-se apenas ao concreto e não der qual- ciará melhores resultados do qtie as distinções sociais cruéis
quer atenção ao possível. Ele somente poderá fazê-lo qtiando e imerecidas do nosso sistenia atual." Em primeiro lugar, o
a noção de "aquilo que é" estiver relacionada a alguma visão Dr. Barker distingue entre "um sèntido real da palavra~' e,
de possibilidade humana, distinta da mera concretude hu- presumivelmente, um sentido irreal. Esta distinção é decer-
mana. Pois os homens "deveriam see' aquilo que "em ter- to desprovida de significado, ou revela ser uma flagrante
mos ideais" são capazes de sen Este é o único significado manipulação em prol de algum "sentido da palavra" que seja
correto da palavra "deveriam" nesse contexto. E isto, neces- adequado à sua própria argumentação. Em se g-undo lu,gar, o
sariamente, pressupõe algum ideal de homem, alguma:vi- Sr. Fyfe, ao chamar a atenção para a definição de "fé" do
são da possibilidade humana distinta da sua concretude. Lo- Dr. Barker, protesta quanto ao seu significado ser indevida-
'
go, segundo esta análise, o erripírista, que se orgulha de ser mente limitado se ela for definida como "crença no invisível",
livre de quaisquer preconceitos acerca da possibilidade hti- mas logo passa a sustentar que os comunistas têm fé naqui-
mana, que em suas investigações sobre a moral alega não lo que eu, pelo menos, suporia também ser "o invisível".
estar prejudicado por nenhum ideal de possibilidade huma-
na, por nenhuma visão daquilo que os homens poderiam (14) T S. Eliot, "Religion and Literatiii -c — [Religião e lite-
ser em contraste com o que são, está totalmente iludido. ratural
S implesmente não é verdade que obras de ficção, prosa
(1 , 3) Stisan Stebbffig, "Diffiking to Some Pitipose " [Pensando ou verso, ou seja, obras que descrevam atos, pensamentos,
con2.objetividadel palavras e paixões de seres humanos imaginários, arnpliem
0 Dr. Ernest Barkerjevanta a questào: "Mas o comu- diretamente nosso conhecimento da vida. 0 conhecimento
nismo, em qualquer sentído real da palavra, é uma fé?" E direto da vida é o conhecimento direto de nós mesmos; é
responde: "A fé exige alguma afirrnação de crença em algo nosso conhecimento de como as pessoas se comportam em
apreendido porém invisível. É um empreendimento de cora- geral, na medida em que aquela parte da vida da qual nós
gem espiritual, que abandona o nível prosaico e alça vôo. mesmos participamos nos forneça material para generaliza-
152 PENSAR COM CONCEITOS PRÁTICA EMANÁLISE 153

ções. 0 conhecimento da vida obtido mediante a ficção só devem ser tratados como desequilibrados. No entanto, os
é possível por meio de outro estágio de autoconsciência. Quer que têm visões e os que ouvem revelações nem sempre são
dizer, ele só pode áer um conhecimento do conhecimento que criminosos. As inspirações, intuições, conclusões desenvol-
otitras pcssoas têin da vicia, inas não um conliccimeiito da vidas no inconsciente dos gênios assumem às vezes a forma
vida em si. Enquanto estivermos absortos nos acontecimen- de ilusões semelhantes. Sócrates, Lutero, Swedenborg, Blake
tos de qualquer romance, do mesmo modo que nos deixamos tinham visões e ouviam vozes, exatamente como São Fran-
cisco de Assis e Saiita Joana d'Arc. Se a imaginação de
absorver pelo que acontece diante dos nossos olhos, estare-
Newton tivesse sido provida do mesrno tipo de dramatici-
mos adquirindo tanio a falsidade quanto a verdade. No en-
dade vivaz, ele poderia ter visto o espírito de Pitágoras en-
tanto, quando somos suficientemente evoluídos para dizer:
trar no pomar e explicar por que as maçãs estavam caindo.
"Esta é a visão da vida de alguém que foi um bom obser-
Uma ilusão semelhante não teria invalidado nem a teoria da
vador dentro dos seus limites, Dickens, Thackeray, George
gravidade nem a sanidade geral de Newton. Além do mais,
Eliot ou Balzac; mas ele a encarava de um modo diferente o rnétodo visionário de fazer a descoberta não teria sido
do meu, porque era uma outra pessoa. Até selecionou aspec- nem um pouco rnais milagroso do que o método normal.
tos bastante diferentes para observar, ou os mesmos aspec- Verifica-se a sanidade, não pela normalidade do método,
tos numa ordem de importância diferente, porque era uma mas pela racionalidade da co nelusão.
pessoa diferente. Logo, aquilo que estou vendo é o mundo
como é visto por uma mente específica" —, neste caso, esta-
(1 6) Sinione Weil, — The Xcecifor Raots " [Á necessidade de
remos em condições de ganhar algo a partir da leitura de raízes]
ficção. Estaremos aprendendo algo sobre a vida, direto da- A noção de obrigações vem antes da noção de direitos,
queles autores, exatamcnte como aprendemos direto a partir que é subordinada e proporcional à primeira. Um direito
da leitura de obras de História. No entanto, aqueles autores não é efetivo ern si mesmo, mas apenas em relação à obri-
somente nos estão ajudando de verdade quando pudermos gação à qual corresponde. 0 efetivo exercício de um direito
ver e levar em conta as diferenças que têm em relação a nós. não brota do indivíduo que o possui, mas de Qutros homens
que consideram dever a ele alguma obrigação. 0 reconhe-
(15) Bernard Sliaw, M-efiácio a "Saint Joan " [Santa Joana cimento de uma obrigação confere-lhe efetividade. Uma
d'Arc] obrigação que não seja reconhecida por ninguém não perde
Os manicômios judiciários são ocupados em grande nada da plena força da sua existência. Um direito que não
parte por assassinos que obedeceram ao comando de vozes. seja reconhecido por ninguém não tem muito valor. Não faz
Assim, urna mulher pode ouvir vozes que lhe digam para de- sentido dizer que os homens têm, de um lado, áireitos e, do
golar o marido e estrangular o filho enquanto dormem, e outro, obrigações. Estas palavras apenas expressam diferen-
ela pode se sentir obrigada a fazer o que lhe for ordenado. ças de ponto de vista. 0 verdadeiro relacionamento entre as
Por uma superstição médico-jurídica, nossos tribunais julgam duas noções é sernelhante ao que existe entre sujeito e obje-
quc criiniiiosos cujas texitações se apresentcm sob a fornia to . uni li oiiicm, considerado ciii isolamento, só tein deveres,
de ilusões deste tipo não são responsáveis por seus atos e entre os quais estão certos deveres para consigo inesmo.
qw

154 PENSAR COM CONCEITOS PR4TICA EMANÁLISE 155


Outros homens, vistos a partir da perspectiva dele, só têm felicidade ou desgraça humana assume a forma de ação. 0
direitos. Ele, por sua vez, tem direitos, quando encarado a objetivo em mente é um certo tipo de atividade, não uma
partir do ponto de vista de outros homens que reconhecem qualidade. 0 Caráter nos confere qualidades, mas é nos
ter obrigações para com ele. Um homem que estivesse só nossos atos - no qtie fazemos -, que somos felizes ou não.
no universo não teria absolutamente nenhum direito, mas Portanto, numa peça, ninguém atua de modo a representar
obrigações. as Persorta,gens; as peças incluem as Personagens para que
possa haver a ação. De modo que é a ação nela existente,
(1 7) Plíiíão, 'Apologia de Sóci-ates " quer dizer, sua Fábula ou seu Enredo, que é o objetivo final
Deverfamos refletir que há muita razão para ter espe- da tragédia. E a finalidade é em tudo o aspecto mais impor-
ranças,de um bom restiltado, também por outros motivos. tante. Além disso, a tragédia é impossível sem a ação, mas
A morte é uma de duas coisas. Ou ela é uma aniquilação, e pode existir tragédia sem o Caráter das Personaaens. Susten-
os mortos não têm nenhtima consciência de nada. Ou, como tamos portanto que o fundamento essencial, a vida e a alma,
nos dizem, ela é realmènte uma mudança - uma migração por assim dizer, da tragédia é o Enredo. E que as Perso-
da alma deste lugar para outro. Agora, se não existe nenhu-
nagens vêm em segundo lugar. Compare-se a analo.gia com
ma consciência mas apenas um sono sem sonhos, a morte
a pintura, na qtial as cores mais belas dispostas sem nenhu-
deve ser um proveito maravilhoso. Suponho que, se disses-
nii orcleiii não provocam o nicsmo prazer que iii-n siniples
sem a algtiém que escolliesse a noite em que dormiu tão
esboço de um retrato em preto e branco.
profundamente a ponto de nem sonhar, que a comparasse
com todas as outras noites e dias da sua vida, e que entào
lhe pedissem que dissesse, depois de refletir bem, quantos (19) Santo Agostinho, "Confissões"
dias e noites mais felizes e melhores do que aquela havia Quando, portanto, desejei alguma coisa, ou nào a dese-
passado ao longo da vida - bem, acho que o próprio Grande jei, sempre tive grande certeza de ter sido eu e nenhuma
Rei, quanto mais qualquer pessoa comum, concluiria que outra pessoa que desejoti ou não desejou o fato; e cheguei
aqueles dias e noites seriam fáceis de contar em compara- mesmo a observar qtie a raiz e a causa do meu pecado nisto
ção com o resto. Se a morte for assim, então, eu a conside- residiam. Mas qualquer coisa que eu fizesse involuntaria-
ro um lucro; porqtte, se a encararmos assirn, toda a eterni- mente, eu via que era objeto dela em vez de sujeito e con-
dade poderá ser vista como nada mais do que uma única siderava que aquilo não era um erro, mas um casti,go. E logo
noite. Se, pelo contrário, a morte for uma remoção daqui para admitia - qtiando me lembrava de que Tu és justo - que eu
algum outro lugar, e se o que nos dizem for verdade, que não era punido injustamente. Mas ent-ão voltava a dizer:
todos os mortos estão lá, que bênção maior dd que essa "Quero me fez? Não foi Deus, Que não só é Bom, mas é a
poderia haver, senhores? própria Bondade? Como então chego eu a desejar aquilo
que é mau e a nâo desejar aquilo que é bom, motivo pelo
(18)Aristóteles, -Poética - qual acabo sendo punido com justiça? Quem pôs'em mim
A tragédia é em sua essência uma imitação, não de pes- tal poder e enxertou no meti caule esse ramo de amargor, se
soas, mas da ação e da vida, da felicidade e da desgraça. Toda eu fui totalmente criado por meu Deus, duleissimo? Se o
PRÁTICA EMANÁLISE 157
156 PENSAR COM CONCEITOS

demônio for o autor disto, de onde se origina este mesmo requisito é que aquilo que se sabe seja verdadeiro; mas isto
demônio? E se ele mesmo, por sua própria vontade perver- não é suficiente. Neiu mesmo se acrescentarmos a condi-
sa, de um bom anjo passou a demônio, de onde se originou ção ulterior de que se tenha absoluta certeza daquilo que se
a vontade de ser mau, se ele tinha sido feito anjo totalmen- sabe. Pois é possível ter absoluta certeza de algo que seja
na realidade verdadeiro, mas mesmo assim não saber o que
te bom, por aquele Criador boníssimo?" Com estas cogita-
ções, eu voltava a me deprimir. é. As circunstâncias poderii ser tais que não se tenha o direito
à certeza. Por exemplo, uma pessoa supersticiosa, que sem
querer tivesse passado por baixo de uma escada, poderia
(20)LaivrenceDurre11, "Clea"
estar convencida de estar a ponto de sofrer alguma desgraça
Al,go a mais, exatamente com o mesmo nível de fascí-
em conseqüência disto. E poderia de fato ter razão. Mas não
nio: eu também percebia que amante e amado, observador seria correto dizer que ela soubesse que isto ia mesmo ocor-
e observado lançam um campo, um em volta do outro. ÇA
rer. Chegou a tal crença por meio de um processo de racio-
percepção tem a forma de um abraço — o veneno entra com cínio que não seria confiável em termos gerais. Portanto,
o abraço", como escreve Pursewarden.) Eles, então, inferem embora sua previsão se realizasse, não se tratava de um caso
as propriedades do seu amor, avaliando-o a partir do seu de conhecimento. Mais uma vez, se alguém estivesse ple-
estreito campo de visão, com suas imensas margens de des- namente convencido de uma proposição matemática por meio
conhecido ("a refração"), e passam, então, a relacioná-lo a de uma prova que se pudesse demonstrar inválida, sem maio-
uma concepçào generalizada de algo constante nas suas qua- res evidências, não se poderia dizer que conhecesse a pro-
lidades e universal na sua operação. Como foi valiosa esta posição, muito embora ela fosse verdadeira.
lição, tanto para a arte quanto para a vida! Ern tudo o que
tinha escrito, eu apenas vinha confirmando o poder de uma (22) Cyril Coniiolly, "Eneiizies ofPwinise " 11nimigos da Pro-
imagem que tinha criado sem querer com o nzero ato de ver inissão]
Justine. Nào havia nenhuma questão de verdadeiro ou falso. De fato não existe nada que se possa chamar de escri-
Ninfa? Deusa? Vampiro? É, ela era tudo isto, e nada disto. ta sem estilo. 0 estilo não é uma forma de escrita; ele é urn
Eça, como toda mulher, tudo o que a mente de um homem relacionamento: a relação que existe na arte~ entre a forma
(e definamos "homem" como um poeta em perpétua conspi- e o conteúdo. Todo escritor tem uma certa capacidade para
ração contra si mesmo) — que a mente do homem desejasse pensar e sentir; e tal capacidade nunca é exatamente igual
imaginar. Ela estava ali para sempre, e nunca tinha existido! à de nenhuma outra pessoa. É uma capacidade que pode ser
apreciada; e, para sua avaliação, há certos termos. Falamos
(2 1) A. J Ayet; "Tlie Pi-obleiii ofKnowledge " [0 pi-oblema do da integridade de um escritor, do seu talento ou dos seus
coizheciniento] poderes, querendo falar da força mental à sua disposição.
As respostas que encontramos para as perguntas que No entanto, ao tirar proveito destes recursos, o escritor é guia-
estivemos examinando até agora ainda não nos deixaram do por mais uma consideração: quanto ao seu tema. Seria
em posição que nos peniúta dar explicação completa do que possível dizer que o estilo de um escritor é condicionado
significa saber que algo realmente é o caso. 0 primeiro pré- por sua concepção do leitor; e que ela varia conforme ele
158 PPÁ TIC~I EM ANÁLISE
159
PENSAR COM CONCEITOS

esteja escrevendo para si mesmo, para seus amigos, seus tes e p e lo sucesso material tornaram-se as fontes das suas
mestres ou seu Deus, para uma elite instrLiída, para uma normas e dos seus juízos de valor.
classe inferior necessitada de instrLiçào oti para um júri hos-
til. 0 estilo é, portanto, a relaçào entre o que o escritor quer (24) K, R. Popper, '51 Iniséria do historicisnio "
dizer — seu tema — e ele mesmo ou os poderes de que dis- Em forte oposição ao naturalismo metodológico no
ponha: entre a forma do seu tema e o conteúdo do seu talen- campo da sociologia, o historicismo ale.p que al g-uns dos
to. 0 estilo manifesta-se na linguagem. 0 vocabulário de um métodos característicos da fisica não podem ser aplicados
escritor é sua moeda, mas é papel-moeda, e seu valor de- às ciências sociais, em decorrência das profundas diferen-
pende das reservas mentais e emocionais que o sustentem. ças entre a sociologia e a fisica. As leis físicas, ou "leis da
0 perfeito uso da linguagem é aquele no qual cada palavra natureza", diz o historicismo, são válidas em toda parte e
transmite o significado que se pretendia que transmitisse, em qualquer momento, pois o mundo fisico é governado por
nada a menos e nada a mais. um sistema de unifonnidades fisicas invariáveis ao longo do
espaço e do tempo. As leis sociológicas, porém, ou as leis
(23) Erich Fromin, "Man for Hiniself" [0 homem por si da vida social, diferem em locais e períodos diferentes. Em-
mesmo] bora o historicismo admita a existència de grande quantidade
A crise humana contemporânea ICVOLi . a um retrocesso de condições sociais típicas ctija reaularidade de recorrên-
em relaçào às idéias e es peranças do Ilçiminismo, sob os cia pode ser observada, ele neo.a que as regularidades detec-
auspícios das qtiais tivera início nosso progresso econômi- táveis na vida social tenham o caráter das regularidades imu-
co e político. A própria noção de pro,gresso é considerada táveis do mundo físico. Pois elas dependern da história bem
uma ilusão infantil e o que se prega em seu lugar é o "rea- como de diferenças na cultura. Dependem de uma sititação
lismo", um novo termo para designar a total falta de fé na histót-ica específica. Logo, por exemplo, não se deveria falar,
humanidade. A dúvida crescente quanto à autonomia e à sem maior particularização, das leis da economia, mas, sim,
razão humana gerou tim estado de conftisão moral no qital das Icis da economia feudal, ou do início da era industrial,
o homem permanece sem a orientaçào seja da revelação e assim por diante, sempre fazendo menção ao período his-
divina, seja da razão. 0 resultado é a aceitação de uma posi- tórico no qual se supõe que as leis em pauta estivesse imem
ção relativista que propõe que os juízos de valor e as nor- vigor.
mas éticas são exclusivamente questão de gosto ou de pre-
ferência arbitrária e que não se pode fazer nenhuma asser- (25) C. R Snoit~ "Tlle Tivo Cztltzíi-es and the Scientific Revo-
ção,objetivarriente válida neste terreno. Entretanto, como o littion " [As dtias czíltiti -as e a revolução científica]
horriem não pode viver sem valores e non-nas, o relativismo Participei mtiitas vezes de reuniões de pessoas que, pe-
torna-o presa fácil para sistemas de valores irracionais. Ele los padrões da cultura tradicional, são consideradas alta-
volta a uma posição que a civilização grega, o Cristianismo, rnente instruídas e que, com prazer considerável, expressavam
o Renascimento e o Iluminismo do século XVIII já tinham sua incredulidade ante a ianorância dos cientistas. Uma
superado. As exigências do Estado, o entusiasmo pelas qua~ vez ou duas senti-rne atingido pela provocação e perguntei
lidades mágicas de líderes poderosos, por máquinas poten- ao grupo quantos deles poder-iam descrever a Segunda Lei
160 PENSIIR COm CO3vcEiTos PP-ÁTICA DJANÁLISE 161

da Termodinâmica. A reação foi fria; foi também negativa. entanto, antes de expressar nossa indignaçâo moral diante
E no entanto eu estava fazendo uma pergunta equivalente, de Platão, ou de usar esta passagem como único fundamen-
em termos científicos, a "Você leu alguma obra de Shakes- to para a acusação extrema de que ele defenderia a "propa-
peare?". Agora acredito que, se tivesse feito uma pergunta ganda mentirosa", poderíamos também fazer uma pàusa
ainda rnais simples — como, por exemplo, "o que você quer para refletir que Platão (como de costume) estava lidando
dizer com massa ou aceleração?", que é o equivalente cien- com um problema fundamental da teoria social. Depois de
tífico de "Você sabe ler?", não mais do que uma ern cada Marx, Nietzsche, Sorel e Freud, seria ingenuidade negar qtle
dez pessoas de alto nivel de instrução saberia responder. ficções ou mitos desempenharam e continuam a desempe-
Vê-se, portanto, que a enorme estrutura da fisica moderna nhar um papel crucial na política. Logo, não é hábil, para
vai subindo e que a maioria das pessoas mais inteligentes dizer o mínimo, distorcer a evidência de que Platão conhe-
do mundo ocidental sabem tanto "de fisica contemporânea" cia este fato, para transformá-la na acusação de que ele
quanto seus antepassados do período neolítico.
defendia a "propaganda mentirosa" — ainda mais se o voca-
bulário politico do próprio crítico não conseguir dis, pensar
(26)Arthin-Koestlei; "NeilherLotlisnoi - Robot"[Nen71ótits,
nem robô] mitos disfarçados. Pois, de acordo com o Sr. Popper, os va-
lores morais absolutos que escolhemos como objetivos para
E por que devem o Mestre e seus discípulos escrever
livros e mais livros para explicar que o Zen não pode ser ex- a boa sociedade são "decisões" ou "convenções", que nào
plicado, que ele está "literalmente para além do pensamento, são justificáveis racionalmente e que invariavelmente con-
fora dos limites do pensamento mais refinado e sutil" que têm "um certo elemento de arbitrariedade". Ora, se a liber-
ele, em suma, não pode ser posto em palavras? Sabemos dade e a igualdade forem escolhidas como valores morais
que não é só a experiência mística que oferece um desafio absolutos, não com base em motivos racionais, mas por um
à verbalização. Existe toda uma gama de intuições, impres- ato da vontade, ou da fé, que seja indiscutivelmente arbitrá-
sões verbais, sensações corpóreas, que também se recusam rio, não terão eles o status lógico de mitos políticos?
a ser convertidas em moeda verbal. Pintores pintam, baila-
rinos dançam, músicos fazem niúsica, em vez de explicar (28) W H. Auden, "The Fallen City " [A cidade caída]
qtte estão praticando não-pensamento em suas não-mentes. Na melhor das hipóteses, o homem público é aquele qtie
A impossibilidade de articular algo em palavras não é mo- dedica a vida a algum objetivo público, política, ciência,
nopólio do Zen, mas o Zen é a única escola que criou uma indústria, arte etc. A finalidade está fora dele mesmo, mas
filosofia a partir deste ponto, cujos expoentes explodem em a escolha da finalidade é deterrninada pelos talentos parti-
verborragia para provar sua constipação mental. culares dos quais a natureza o dotou, e a prova de sua esco-
lha ter sido acertada é o sucesso material. Dedicar a vida a
(27) Hans Meyerhoff, "Plato among Friends and Eneiiiies um fim para o qual não se possui talento é loucura, a lou-
[Platão entre amigos e inimigos] cura de um Dom Quixote. Em . termos estritos, ele não dese-
Podemos rejeitar o tipo específico de ficção invocado ja a fama para si mesmo, mas deseja realizar algo que mere-
por Platão, ou o objetivo ao qual ele serve na República. No ça fama. Como seu objetivo é público, ou seja, está situado
162 PEIVSIIIR colil COIVCEITOS PP4TICA EMANÁLISE 163

na esfera pública — casar com a mulher da própria escollia nhá-las." 0 ictióloa.o descarta a objeção com desdém. "Qual-
ou ser um bom pai são objetivos pessoais, não públicos — a quer coisa que minha rede não possa apanhar estará, por
vida pessoal e suas satisfações são, para o homem público, isto rnesmo, fora do campo do conhecimento ictioló,-ico e
de importância secundária e, caso entrem em conflito com não fará parte do reino dos peixes, que foi definido como
sua vocação, devem ser sacrificadas. 0 homem público, na o tema do conhecimento ictiológico. Em suma, o que minha
melhor das hipóteses, sabe que as outras pessoas existem, e rede não puder apanhar não é peixe."
deseja que existam — um estadista não tem nenhum desejo
de estabelecer a justiça entre mesas e cadeiras —, mas, se for (30) Geoffrey Goi-cr, "0 marqitês de Sade "
necessário para a realização dos seus objetivos tratar certas Como homem, Sade é importante por sua qualidade de
pessoas como se fossem objetos, então, seja de modo insen- paradigma. A não ser por sua franqueza e pelo fácil acesso
sível, seja com remorsos, é isto o que ele fará. aos seus desejos inconscientes mais proãindos, não há ne-
nhum motivo para considerá-lo excepcional. Apesar dos es-
(29)SirArthurEddington, 'A filosofia da ciência fisica — forços dos psicanalistas, ainda sabemos pouquíssimo a res-
Suponharnos que um ictiálogo esteja explorando a vida peito dos rnotivos que tomam a criação artística tão imperio-
no oceano. Ele lança uma rede ao mar e recolhe uma varie- sa para algumas pessoas. Com sua reducionista abordagem
dade de peixes. Ao avaliar a pesca, ele adota o procedimento histórica ao desenvolvimento humano, a psicanálise tem a
habitual de um cientista para classificar o que a rede lhe nios- tendência a ver a criação artística como stiblimação bem-
tra. Clie,ga a duas generalizações: sucedida de desejos infantis reprirnidos, de natureza sexual
(1) Nenhuma criattira marinha tem menos de 5 em de oti para-sexual, e provavelmente explicaria o fracasso de
comprimento. Sade como dramaturgo atribuindo-o ao fato de que suas re-
(2) Todas as criaturas marinhas têm guelras. pressões não seriam suficientemente fortes, de que ele seria
As dtias são verdadeiras no qtie diz respeito ao material "desinibido" demais. No entanto, otitra interpretação pare-
que apanhou na rede, e ele supõe inicialmente que perma- ce-me possível. Parcee possível que o misterioso impulso
necerão válidas, não importa quantas vezes repita a expe- para a criatividade seja muito primitivo em alguns indiví-
riência. Na aplicação desta analogia, o material apanhado na duos e que, quando esse impulso é frustrado — pela inca-
rede simboliza o conjunto de conhecimento que constitui a pacidade técnica ou pela indiferença do público —, ocorre
ciência fisica, e a rede, o equipamento sensorial e intelec- uma "reversão" para um sadomasoquismo mais direto, em
tual que usamos para obter tal conhecimento. Lançar a rede vez do oposto, ou seja, o sadomasoquismo é um substituto
corresponde à observação, pois o conhecimento que n -ao da criatividade, em vez de ser a criatividade uma sublimação
tiver sido ou não puder ser obtido pela observação não é de desejos infantis. Se Mussolini tivesse sido um dramatur-
admitido no terreno da ciência fisica. Um observador pode go de sucesso, ou se Hitler tivesse sido um grande arquite-
apresentar a objeção de que a primeira generalização está er- to, a história deste século poderia ter sido muito diferente.
rada. "Há muitas criaturas marinhas com menos de 5 em de
comprimento; só que sua rede não está adaptada para apa-
164 PEiVSAR COM COiVCEITOS PRÁTICA EM ANÁLISE 165

2. Perguntas para responder (23) Todos os romances têm finalidade moral?


(24) Se meus atos fos'sem todos previsiveis, poderiam
(1) Até que ponto a educação é uma questão política? serlivres?
(2) Existe algo que se possa chamar de lei internacio- (25) Em que sentido, se houver algum, a música nos
nal, no mundo atual? "diz" alguma coisa?
(3) A distinção entre clássico e romântica é uma ferra- (26) "A propriedade é roubo." Comente.
menta útil para a crítica literária? (27) A existência de Deus poderia um dia ser compro-
(4) "0 objetivo primordial do pintor é representar seus vada?
próprios sentimentos na tela. " Comente. (28) "0 Ministro da Fazenda foi responsável pelo co-
(5) Qual é o "assunto" da matemática? lapso econôrnico' " "A fadiga do metal foi responsável pelo
(6) Poderia um dia existir uma ciência da natureza acidente do avião." 0 termo "responsável" está sendo usado
humana?
no mesmo sentido nas duas frases?
(7) Em que sentido, se houver al,gum, poderíamos falar
(29) Em que aspectos as leis da natureza diferem da lei
de vei-dade poética propriamente dita?
moral?
(8) A coerência de cada Estado depende de uma mora-
(30) "Não há drama naturalista' — Comente.
lidade comum?
(3 1) Qual é a diferença entre educação e doutrinação?
(9) "Se DeLls não existe, tudo é permitido." Comente.
(32) "A Alemanha é uma nação menos adulta do que a
(10) 0 coiiiunismo é uma religião?
Grã-Bretanha- " Qual poderia ser o significado desta frase?
(11) Há algum outro tipo de explicação além da expli-
cação científica? (33) Pode-se censLirar alguma literatura apenas pela obs-
(12) Seria possível algum dia construir Lim robô igual cenidade?
ao homem em todos os aspectos? (34) Até que ponto a imaginação faz parte do trabalho
(13) Os animais pensam? do historiador?
(14) A Inglaterra era tima democracia antes de as mu- (35) Com base em que motivos gerais — se houver —
lheres poderem votar? deveria o Estado reprimir a liberdade do ináividuo?
(15) Há valores absolutos? Como poderiam ser estabe- (36) Podemos chegar a ter cer-teza absoluta de que o
lecidos? que vemos não é ilusão?
(16) 0 historiador algum dia será capaz de fazer previ- (37) —Nada há de mais certo que a s. verdades da geome-
sões precisas? tria." Comente.
(17) "Todos os homens nascem iguais." Comente. (38) Que dificuldades lógicas impedem a tradução de
(18) Há mérito em fazer o que gostamos de fazer? uma língua para outra?
(19) "Penso; logo existo. " Este é um bom argumento? (39) Até que ponto o conceito de moralidade se apli-
(20) Pode ser certo fazer algo imoral? caria a um homem numa ilha deserta?
(21) 0 que é urn Estado totalitário? (40) É possível distínguir entrefornia e conteúdo em
(22) "A beleza só existe aos olhos do dono." Comente. poesia?
166 PFVS1II? COM CONCEITOS

(41) Elétrons existem no mesmo seiitido em que inesa


existe?
(42) "Cadburys significa bom chocolate." 0 que "si,a-
nifica" significa nesta frase?
(43) Até que ponto o progresso da ciência depende da
intuição?
(44) "0 latim treina a mente." Que evidências se podem
apresentar a favor ou contra esta afirrnação?
(45) Uma teoria científica pode ser verificável em ter-
mos conclusivos?
(46) Você classificaria o primeiro capítulo do Gênese
como "fato" ou "ficção"?
(47) É possível distinguir com precisão uma invenção
de uma. descoberta?
(48) "A virtude é sua própria recompensa." Comente.
(49) "Não podámos nunca ter consciência da mente in-
consciente, já que por definição ela é inconsciente." É ver-
dade?
(50) Existe algo que se possa chamar de "aprender a pen-
sar", sem referência a nenhum campo de estudo específico?

J,

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