Le principe sécurité. Paris: Éditions Gallimard, 2012, 286 pp.
Leandro Siqueira Doutorando em Ciências Sociais na PUC-SP, Brasil. Pesquisador no Nu-Sol e no Projeto Ecopolítica. Contato: ladps@uol.com.br.
Segurança se tem ou se busca forma clássica da guerra para emergir
como algo que pode ser garantido, ou na forma de “estados de violência”. ainda, que depende de continuidade. Desta vez, Gros toma a segurança Em seu novo livro, Le principe em dimensões mais amplas, ao sécurité, o filósofo francês Frédéric traçar um percurso que examina Gros enfrenta o tema da segurança, suas transformações desde as práticas tão presente na nossa atualidade, éticas da antiguidade até as suas mostrando como ela se afirma formulações mais contemporâneas enquanto um dispositivo, ou um impregnadas pela racionalidade “princípio” como se refere no título neoliberal. da obra, que insiste em tornar tudo Gros volta novamente com Michel seu objeto. Foucault, não porque ele seja um A obra pode ser lida como um “reconhecido especialista” no autor, desdobramento de seu livro anterior, tendo sido responsável pela edição Estados de violência – Ensaio sobre de alguns cursos ministrados por o fim da guerra, no qual também Foucault no Collège de France. abordou a segurança, enfocando-a do Como em outros livros que publicou, ponto de vista das relações entre amplia diversas pistas sugeridas os Estados, no plano internacional, outrora por Foucault, e mostra com o objetivo de descrever as como a perspectiva genealógica transformações contemporâneas do possibilita abandonar a mesmice conflito violento que ultrapassou a das produções acadêmicas. Em Le
ecopolítica, 5: jan-abr, 2013
Segurança, catástrofe e o mesmo, 157-168 157
principe sécurité, recupera materiais de reconfiguração, reativação, tensão históricos, literários, filosóficos, interna e, até mesmo, de contradição. sociológicos e seleciona informações sobre algumas novas tecnologias que A segurança da alma e da utopia vão compor as diferentes extensões Segurança se tem ou se busca. A da segurança na atualidade. Gros alma e a utopia, na perspectiva de neste recente escrito faz referência Frédéric Gros, abrem duas dimensões também a Gilles Deleuze ao se para se investigar a segurança. ater sobre o complicado trabalho de Gros retorna à antiguidade para descrever e analisar o funcionamento mostrar como, a partir do século da segurança no tempo presente, III, a segurança constituiu um foyers justamente quando ela passa a incluir de sens que a vincula à serenidade dispositivos de controle e securitizar da alma. Para gregos e romanos, a os fluxos na sociedade de controle. tranquilidade, a quietude e a confiança O livro estrutura-se em quatro são disposições subjetivas do sábio capítulos, dedicados cada um a uma e que independem de condições dimensão ou, como denomina o autor, exteriores. A sabedoria ensina a ter a a um foyers de sens (em português, alma serena para enfrentar os acasos “núcleos de sentido”). Em perspectiva e os infortúnios da vida, que nunca histórica, a segurança produziu cessarão de existir. diferentes matizes que constituíram É na filosofia helênica e latina quatro diferentes foyers de sens: a que, de diferentes maneiras, se serenidade do sábio da antiguidade, configuraram exercícios espirituais o milenarismo medieval, o Estado para se conquistar a ataraxia garantidor na Idade Moderna e as (segurança), ou sua versão romana, técnicas contemporâneas de gestão a securitas. Gros retoma exemplos dos fluxos. Esta divisão dos capítulos no estoicismo, no epicurismo e no não compartimentaliza cada dimensão ceticismo de exercícios que visavam da segurança em épocas cronológicas, atingir a tranquilidade total do restritas ou sucessivas, pois, segundo espírito, preparando o discípulo para Gros, uma vez “acesos”, estes quatro que nenhum risco ou perigo externo foyers de sens continuam ativos, pudessem afetar sua quietude interior. em relação uns com os outros, na Para os estoicos, tanto a ataraxia dinamicidade que envolve movimentos (Epíteto) quanto a securitas (Sêneca),
ecopolítica, 5: jan-abr, 2013
Segurança, catástrofe e o mesmo, 157-168 158
resultavam da maestria de si. O Gros não vinculará o foyers de sens sábio estoico permanece firme e à previsível segurança prometida sem vacilar, seguindo uma ética de pela Igreja Católica, preterindo-a por treinamento para a segurança. Os um movimento específico que se epicuristas chegavam à ataraxia via desenvolveu dentro dela durante a o prazer, mas não os interessavam Idade Média: o milenarismo cristão. qualquer prazer. Segundo Epicuro, O milenarismo é a crença de que o prazer que possibilita fazer a a humanidade, antes da chegada do passagem para a segurança não está Juízo Final, viveria cerca de mil ligado à excitação, mas à plenitude. anos de pax et securitas, graças à No pensamento cético, a ataraxia restauração da inocência primordial aparece no momento da renúncia à do mundo. Esta doutrina, formulada busca pela verdade e de suspensão por vários autores e padres no do julgamento, o que permite atingir tempo em que as comunidades um estágio de desprendimento. cristãs viviam intensas perseguições, Procuravam, sobretudo, a segurança pregava o fim da história quando o superior de em nada acreditar. próprio Cristo reinaria sobre todo os Neste primeiro foyer de sens, povos, trazendo harmonia, felicidade a segurança está sempre ligada a e justiça, sem diferenças entre ricos uma prática de si voltada para a e pobres, até a derradeira batalha conquista de uma serenidade interior entre o bem e o mal. capaz de enfrentar as adversidades Para descrever esta dimensão da da vida. Segurança, para gregos e segurança baseada em uma utopia romanos, portanto, é algo que se escatológica, o autor investiga escritos tem, na alma, e o que vem de fora religiosos e historiográficos, desde não deve ameaçá-la. o século III até à Renascença, para Por diversos motivos, a segurança descrever estes movimentos que fizeram do sábio será mais uma heresia para da segurança a busca de “uma situação o cristianismo. Dentre eles, está o objetiva caracterizada pela ausência fato de, no pensamento cristão, a de ameaças e o desaparecimento segurança jamais passar pela afirmação definitivo de perigos” (p. 52). Na do eu, mas, ao contrário, pelo seu visão milenarista, a segurança deixa abandono a Deus. Por isso, não de ser algo subjetivo para tornar-se surpreende que, no segundo capítulo, uma materialização objetiva.
ecopolítica, 5: jan-abr, 2013
Segurança, catástrofe e o mesmo, 157-168 159
Apesar de oficialmente condenado paralelos às cruzadas, que buscavam pela Igreja Católica, o milenarismo recuperar Jerusalém, a cidade que no teve importantes efeitos políticos e imaginário medieval figurava como o sociais. Ele alimentou utopias que lugar da segurança eterna. Lideradas buscavam a unificação da Europa por eremitas fanáticos, ascetas nas mãos de apenas um monarca iluminados ou pequenos inocentes, as e a realização da promessa de um cruzadas dos pobres reuniram massas mundo sem ameaças. Inspirados em de mendicantes, pastores, sem-terras escritos bizantinos do século IV que e crianças. profetizavam chegada do Imperador O milenarismo também impulsionou, dos Últimos Dias, alguns textos do século XIII ao XV, a proliferação medievais anunciavam a volta de um de pequenas comunidades e seitas “rei perdido”, um Carolus redivivus que buscavam precipitar a Jerusalém (um Carlos ressuscitado), que reuniria celeste sobre o próprio mundo. Gros a humanidade na cristandade para dedica várias páginas neste capítulo inaugurar o tão sonhado período de para traçar como as ideias milenaristas bonanças, felicidade e paz eternas. de Joaquim de Flore influenciaram A busca pela realização destas alas radicais dos franciscanos a utopias de segurança eterna também promoverem diversas revoltas de esteve presente em diversos conduta no interior da Igreja. Alguns movimentos sociais, políticos e leigos, como Gérard Segarelli e Amaury religiosos que, durante a Idade de Bène, se apoiarão sobre os ideais Média, foram responsáveis pela de pobreza, liberdade e regeneração aglutinação de grandes massas e para fundar seitas marcadas por um inclusive por inúmeras insurreições caráter fortemente transgressor que se e revoltas. Aqui, Gros certamente opunha à obediência, à autoridade, à seguiu algumas pistas do que Foucault hierarquia e à riqueza da Igreja. denominou “revoltas de conduta”, O milenarismo ainda provocou o no curso Segurança, Território e surgimento de movimentos revoltosos, População, esboçadas anteriormente dos séculos XIV ao XVI, que buscaram em Em defesa da sociedade e depois no comunitarismo dos bens a segurança retomadas em A coragem de verdade. obtida por meio de uma igualdade A crença milenarista animou perfeita de condições, tal como teria movimentos espontâneos e inquietos, existido no Estado Original, antes
ecopolítica, 5: jan-abr, 2013
Segurança, catástrofe e o mesmo, 157-168 160
do pecado. Fazem parte do chamado continuidade. Os dois últimos foyers “milênio igualitário”: o movimento de sens apresentados por Gros revelam dos padres pobres na Inglaterra, dimensões em que a segurança torna- liderado por John Ball, que defendia se uma garantia oferecida pelo Estado o massacre de burgueses, exploradores moderno e, posteriormente, uma e cléricos corruptos; os hussitas, prática de acompanhamento voltada que radicalizando as ideias de Jan para se assegurar a continuidade de Hus, fundaram na Boêmia do século fluxos diversos. XV comunidades onde não havia Está em foco, no terceiro capítulo, casamento, propriedade, hierarquia; o grande deslocamento ocorrido na Thomas Müntzer e sua Associação noção de segurança, por meio do qual da Vontade Divina na Alemanha da opera-se uma síntese completa entre virada do século XV que incitavam segurança e Estado. Este deslocamento os miseráveis a acabar com o Sacro criou a possibilidade de emergência Império Romano-germânico; e, por de uma situação inusitada, na qual a fim, as comunidades anabatistas, segurança passa a ser, simultaneamente, formadas em torno de Jean de uma realidade objetiva e subjetiva a Leyde, também na Alemanha, que ser garantida pelo Estado. A segurança recusavam toda forma de autoridade definida a partir da existência do e propriedade. Estado será encarnada objetivamente Para Gros, este foyer de sens por três figuras pública: o juiz, o ativado pelo milenarismo medieval soldado e o policial. E produzirá uma igualitário, ressurgiu no século XX dimensão subjetiva que corresponde à quando o comunismo retomou a criação do cidadão, cuja tranquilidade utópica busca de uma “segurança na repousa na proteção dada pelos direitos igualdade”, a partir de “esquemas fundamentais. secularizados e recodificados nos É com a elaboração da filosofia termos da lógica dialética e do política dos contratualistas que o Estado materialismo histórico” (p. 80). moderno se firma como o único meio autêntico para garantir a segurança, A segurança da garantia e da tornando-se ao mesmo tempo sujeito continuidade e objetivo dela. Gros optou por ler os Além de se ter e se buscar, filósofos do contrato, dentre os quais segurança é algo que se dá e exige além de Hobbes, Locke e Rousseau,
ecopolítica, 5: jan-abr, 2013
Segurança, catástrofe e o mesmo, 157-168 161
incluiu Spinoza, a partir de elementos defesa da propriedade (proteger as que lhes são comuns, principalmente fronteiras contra os inimigos); a razão a centralidade que a segurança de Estado recoloca uma relação de ocupa em suas construções teóricas. igualdade entre os Estados, na medida Segundo o autor, eles fundamentaram em que todos são reconhecidos como a segurança jurídica, baseada sob unidade política, e, por fim, a balança dois pilares: a lei e o juiz. Esta de equilíbrio permite a instauração concepção jurídica segue a fórmula de alianças e solidariedades que bastante conhecida: basta obediência, garantem a coexistência de potências, da parte dos cidadãos, e leis públicas Estados médios e pequenos na e uma justiça independente, da parte configuração westifaliana europeia. do Estado, para que se abandone o No entanto, a Guerra Fria, com a estado apolítico (estado de natureza), oposição do mundo em dois blocos, com seu caos e sua dita anarquia, foi responsável pelo surgimento de para se chegar às sociedades políticas, novas doutrinas, noções e estratégias cuja finalidade é a segurança dos de segurança. Com o conceito de indivíduos. Este Estado securitário, diz segurança coletiva, o plano das Gros, será o fiador do desenvolvimento relações internacionais também foi das potências políticas e sociais fortemente impactado pela tentativa do indivíduo, tidas como direitos de transposição do que se constituiu fundamentais, expressos na garantia como “segurança” para os indivíduos da liberdade, da propriedade, da e, a partir dele, Gros examina as igualdade e da solidariedade. ambições e os limites do direito entre Foi a partir de transposições e os Estados e o direito de guerra. deslocamentos da noção de segurança Para finalizar a dimensão da síntese jurídica do indivíduo para o plano completa entre Estado e segurança, das relações internacionais que um o filósofo problematiza a figura do jogo conceitual definiu a denominada policial e a segurança policial. Neste segurança nacional ou exterior. Nesta momento, ele aponta como o Estado segurança militar, que diz respeito securitizante pode vir a tornar-se à figura do soldado, o direito de um Estado de Exceção e, no limite, guerra equivale à liberdade (é livre um “Estado totalitário”. De forma aquele que pode declarar guerra); o elucidativa, apresenta a polícia a partir interesse de Estado volta-se para a de suas estratégias de funcionamento
ecopolítica, 5: jan-abr, 2013
Segurança, catástrofe e o mesmo, 157-168 162
e é nisto que reside a perspicácia de ambos apoiem-se sobre a segurança sua análise. Ele destaca, incialmente, policial, no totalitarismo emerge uma duas grandes funções da polícia: a versão radical da polícia política que polícia geral, da força pública que não funciona apenas para manter é responsável pela conservação dos o Estado, mas para “realizar um bens e das pessoas combatendo movimento” (p. 160). e prevenindo o crime, e a polícia Foucault, no curso Nascimento política destina à manutenção da da Biopolítica, apontava que o ordem pública relacionada a impedir nazismo podia ser caracterizado mais toda tentativa de desestabilização dos por promover um “definhamento” poderes constituídos. Se a primeira, do Estado, do que por aumentar com seu caráter moralizador, protege indefinidamente o poder estatal. Neste a sociedade dos criminosos tidos sentido, Gros destaca ser ambígua como “anormais”, a segunda, com a expressão “Estado totalitário”, sua finalidade política, defende o na medida em que a organização Estado da subversão, protegendo-o de totalitária da sociedade tende a excluir inimigos e de sublevações. A história algo como o Estado que, tomado em está repleta de episódios que em nome seu sentido clássico, reenvia à ideia da segurança do Estado, colocou-se de estabilidade, de uma disposição em segundo plano a garantia dos estável. O regime totalitário “está direitos do indivíduo e primou-se pela para além do Estado” (p.161) e volta- preservação do próprio Estado, ou se para a mobilização que duplica seja, momentos em que a segurança as instâncias da estrutura estatal policial suplanta a segurança jurídica. tradicional (organizações paralelas É o que Schmitt, Benjamin e, mais ligadas ao partido e ao movimento), recentemente, Agamben denominam de as quais se tornam os reais centros Estado de Exceção, no qual a ordem de decisão. Nele, segundo Gros, o deixa de ser instaurada pela justiça e que interessa é o movimento, sendo pela garantia dos direitos fundamentais que as polícias totalitárias, tais como para apoiar-se exclusivamente sobre a a Gestapo (na Alemanha nazista), a polícia, que faz valer a sua própria lei. Stasi (na antiga Alemanha Oriental), a Entretanto, para Gros, não se Securitate (na Romênia de Ceausescu), deve confundir Estado de Exceção a GPU, NKVD até chegar à KGB com regime totalitário, pois embora (na antiga União Soviética), cumprem
ecopolítica, 5: jan-abr, 2013
Segurança, catástrofe e o mesmo, 157-168 163
a função estratégica de intensificar de elementos nocivos (p.173). Tanto a participação neste movimento, a biossegurança como as demais verificar a contribuição de cada um seguranças dos fluxos relacionam-se a para o triunfo de uma ideologia, de novos enunciados, técnicas e práticas uma forma social revolucionária, de contemporâneas como câmeras de uma nova humanidade (p. 162). vigilância, chips de identificação por A segurança policial ainda rádio frequência, biometria, GPS, etc. compreende uma última polícia, O termo que desde o final de inspiração urbana, identificada dos anos 1990 surge para fazer anteriormente por Foucault, e que referência à defesa da biodiversidade se destina ao controle e a regulação ou às estratégias adotadas para se das circulações das mercadorias, das evitar ataques biológicos, tem um pessoas, dos ares... Enfim, uma polícia uso preciso na abordagem do autor: que se volta para a gerência da vida e biossegurança diz respeito ao conjunto das populações como processo fluido de dispositivos de proteção, controle tornado objeto da segurança. É a e regulação do indivíduo tomado sob partir deste outro sentido de polícia, o aspecto de sua finitude biológica. que Gros descreve o último foyer de A construção teórica do conceito sens que diz respeito à segurança em de segurança humana, que hoje nossa contemporaneidade. é reivindicada como a principal O autor encara a atualidade para alternativa à doutrina realista da investigar esta nova acepção em segurança dos Estados, permite que a segurança é algo atrelado ao observar como a biossegurança se acompanhamento de fluxos. Dentre os propõe a securitizar o núcleo vital do recentes campos que se tornaram objeto indivíduo, segundo a expressão de da segurança (segurança sanitária, Amartya Sen, frente ao grande feixe de segurança energética, segurança ameaças que vão do desconhecimento informática, segurança afetiva, etc.), de identidades culturais até a miséria, Gros privilegia a biossegurança para passando pela repressão política analisar esta nova dimensão em que e os problemas ecológicos. Esta a segurança volta-se para acompanhar securitização visa efetivar-se pela fluxos materiais, a fim de se evitar proteção deste núcleo vital, cujo fluxo interrupções brutais ou então visa a de vida deve ser assegurado para que seleção do acesso para o bloqueio possa se desenvolver. Ela atua sobre
ecopolítica, 5: jan-abr, 2013
Segurança, catástrofe e o mesmo, 157-168 164
o mais elementar do homem, o seu está onde). Para completar, bancos substrato biológico, a urgência do digitais (quem faz o que) cruzam corpo que sofre, para deter o que inumeráveis arquivos de dados fragiliza a vida. Via o conceito de cotidianos e ordinários, formando segurança humana, Gros analisa que a assim uma memória indestrutível e biossegurança redefine a noção clássica apartada de homens e coisas, possível de soberania: no plano internacional, de ser acessada a qualquer momento. a responsabilidade de proteger passa a Com a produção de duplos digitais legitimar “intervenções” nos Estados de tudo, a segurança exige fluidez, considerados incapazes de proteger seleção e transparência, tendo no suas populações vulneráveis, e, no rastreamento sua tática. Nos fluxos plano individual, o cidadão portador identifica-se, localiza-se e obtém-se de direitos fundamentais sai de cena trajetórias: a segurança desloca-se do para ser substituído pela vítima frágil confinamento para o rastreamento. a ser protegida: “O respeito cede A regulação, a última das lugar à compaixão” (p.193). características da segurança dos Não há acompanhamento dos fluxos destacada por Gros, emerge da fluxos, sem controle. É no pensamento constatação de que a vida e a população, de Gilles Deleuze que Gros se apoia enquanto dados biológicos, não podem para examinar a segunda característica ser conduzidas, mas apenas reguladas. da biossegurança. Antes de tudo, Baseado nas análises de Foucault alerta, não se tratar mais da vigilância sobre os dispositivos de segurança e disciplinar, pois na biossegurança a a governamentalidade (neo)liberal, o securitização dos fluxos se dá de autor discute a utopia de autoregularão forma mais democrática, participativa securitizante dos governos neoliberais e compartilhada a cargo de uma que investem na expansão da forma “comunidade de voyeurs”. mercado para acionar mecanismos de A biossegurança pressupõe poder que prescindem da necessidade tecnologias (câmeras de vigilância, de subjugação, do consentimento chips, GPS, bancos de dados digitais, e da normalização para se obter celulares inteligentes, pesquisas na obediência. São mecanismos de poder internet e biometria) que permitam de que funcionam mais pelo ordenamento forma rápida e automática identificar do meio, do ambiente e do fluxo, (quem é quem) e localizar (quem sobre realidades ou naturalidades.
ecopolítica, 5: jan-abr, 2013
Segurança, catástrofe e o mesmo, 157-168 165
A organização do meio determina o autor, na contemporaneidade todos reações dos indivíduos e isto é o que se tornam ativos financeiros, suportes interessa à regulação. para a especulação, submetidos a Os liberais pregavam que a não intermináveis processos de avaliação interferência humana é a mais que não visam definir preços, mas eficaz das seguranças. Hoje, este antecipar curvas de valorização. “No pensamento ganha ainda mais força endividamento – no sentido em que com o neoliberalismo que faz do se fala do endividamento das famílias mercado livre e da concorrência os e mesmo dos Estados – o presente grandes produtores de verdades, e, confina o futuro. Ele só se mantém consequentemente, de segurança. às custa da sua obstrução. Se eu Esta crença dogmática em uma posso viver hoje (me abrigar, me segurança imanente à autorregulação equipar e ter lazeres) é hipotecando não se aplica obviamente apenas às o futuro” (p. 236). mercadorias, mas invade o campo da O futuro, se não for completamente justiça, da educação, da saúde e a “delapidado” no hoje, exigirá, segundo própria existência do humano. Gros, mais dispositivos securitários Dentre os efeitos desastrosos do para corrigir os efeitos colaterais dos dogma da infalibilidade do mercado, mercados supostamente autorregulados. Gros cita o crescimento exponencial Diante da explosão da miséria e dos das desigualdades sociais e a destruição endividados, o autor avalia que só dos recursos naturais e inclui neste resta aos regimes neoliberais tornarem- rol de efeitos o que denomina de se Estados policiais. Catástrofe? A actionnarisation de l’existance1. Para pergunta é do próprio Gros. Após este esforço genealógico, ele ensaia definir a segurança na 1 Optou-se por manter a expressão uti- lizada por Gros na língua original, pois atualidade: é “permanecer à beira do o termo “actionnarisation” não existe desastre” (p. 237). Não há para onde em francês. O neologismo “actionna- risation” pode ser compreendido como correr, pois a catástrofe insiste. Se a ação de transformar algo em ações ficar, ela não desiste. Segurança e financeiras. No mercado financeiro, uti- liza-se a expressão “abertura de capi- tal” para se referir à operação em que expressão para designar uma operação uma empresa transforma seus ativos em em que a própria existência é transfor- ações a serem negociadas em bolsas de mada em um ativo financeiro, o pro- valores. Portanto, o autor emprega a cesso de “abertura de capital” da vida.
ecopolítica, 5: jan-abr, 2013
Segurança, catástrofe e o mesmo, 157-168 166
catástrofe são o mesmo: “é quando como se observou no Iraque e, tudo continua como antes” (p. 238). mais recentemente, na Líbia. No seu limite, as estratégias humanitárias da Segurança e ecopolítica biossegurança talvez nem necessitem O recente livro de Gros não mais de Estados soberanos: apenas traz segurança. Ao contrário, uma simples autoridade política provoca inquietações que conversam legítima, como defende Mary Kaldor, com o estudo da ecopolítica. Os dê conta de restabelecer a ordem em deslocamentos promovidos pela territórios devastados pela guerra ou noção de segurança humana, tanto no pela miséria (p. 188). âmbito individual com a suplantação Sob esta perspectiva, torna-se mais dos direitos fundamentais, quanto enfática a preocupação de Gros com no das relações internacionais, na o futuro, na qual arrisca prever que qual desdobra-se no conceito de do neoliberalismo emerjam Estados “responsabilidade de proteger”, policiais voltados para a contenção tiveram como efeito a emergência das desigualdades e a proliferação de uma “comunidade global das dos miseráveis, enquanto o mercado vítimas”. Para Gros, a condição de se ocupe dos endividados, suportes vítima sofredora é o que passa a para os fluxos de especulação. ser o nexo que cria vínculos sociais, Os miseráveis, por sua vez, serão que cria a comunidade (p.193). Mais alvos de mais e mais dispositivos um importante deslocamento: com a securitários enquanto comunidades biossegurança, a comunidade funda- frágeis que demandam por “proteção” se no humanitário e não mais na (leia-se, intervenções). É importante humanidade. notar como está lógica empregada Talvez possamos evidenciar no contexto internacional, na qual neste novo nexo que reorganiza a a segurança militar acopla-se à sociedade uma das estratégias que a segurança policial, também possui ecopolítica apoia-se para criar novas suas versões nacionais: “as selvas institucionalizações baseadas agora urbanas são as novas colônias que na “comunidade vulnerável”, que se seria necessário se reconquistar, os tornou uma espécie de “substrato delinquentes, os novos insurgentes biológico da população” passível de que trazem a necessidade de se sofrer as mais diversas intervenções infiltrar e neutralizar, as periferias,
ecopolítica, 5: jan-abr, 2013
Segurança, catástrofe e o mesmo, 157-168 167
os territórios que se deve pacificar” homens eles mesmos. Trata-se da (p. 230). Embora não mencione, esta nova utopia da era da segurança afirmação nos remete diretamente digital, na qual os fluxos circularão para o caso das favelas do Rio de sem entraves, harmoniosamente. Janeiro: intervenções para pacificar Como se pode notar, as análises de comunidades vulneráveis. Gros sobre a biossegurança convergem Paralelamente ao crescimento para algo que interessa ao estudo da das comunidade de vulneráveis ecopolítica: o caráter transterritorial miseráveis e endividados, aumentam que as estratégias securitárias as comunidades de voyeurs que assumem na contemporaneidade. democraticamente participarão Elas não se restringem a territórios, do acompanhamento do fluxo como ocorria com a biopolítica, informático da internet, no qual tendo doravante como alvo político ações quotidianas e sem importância o corpo do planeta e seus fluxos de adquirem uma exposição planetária coisas (que incluem o humano). e a possibilidade securitária de Embora venham mais catástrofes – rastreamento a qualquer momento. certas para Gros devido à irreversível “Controla-se para se proteger e degradação do meio ambiente protege-se para se controlar”, diz. – e venham mais dispositivos de Além da internet, outros dispositivos segurança, os mitos de uma “sociedade como GPS, chips de rádio frequência, reflexiva” e de uma “modernidade leitores de dados dispostos por toda esclarecida”, impotentes perante o a superfície do planeta insinuam dogma da segurança do mercado, uma recodificação do milenarismo não conseguirão frear a pilhagem em termos técnicos: a segurança está sem limites do planeta. Ao contrário, na regulação automática das relações contribuirão para que o mesmo entre homens e coisas e entre os permaneça.