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Guiné?1
ROY WAGNER
tradução: IRACEMA DULLEY
revisão técnica: ARIEL ROLIM E OLIVIA JANEQUINE
“social”, dos aspectos coletivos e morais da vida muito secular e pragmática ao problema origi-
humana, que é fácil usá-los como fundamento nal de Durkheim. E foi Radcliffe-Brown quem
para o determinismo social ou acusar Durkheim escolheu o domínio da jurisprudência – com
de “reificar” a sociedade – transformá-la em suas distinções refinadas e suas esmeradas ad-
“coisa”. Suas conquistas serviram de base para judicações de “direitos” – como modelo para
uma ciência da integração social cujo foco é a pensar as coletividades morais da sociedade. É
maneira pela qual as associações humanas e a claro que as sociedades tribais do tipo estudado
própria sociedade, a mais “permanente” das as- por Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard, Fortes,
sociações, se unem e o que as mantém juntas. Gluckman e outros antropólogos sociais não
Essa preocupação com a “integração” foi a rocha tinham política no sentido que atribuímos ao
sobre a qual a antropologia social se erigiu. termo, nem tampouco tinham leis, embora
Na esteira de Durkheim, o “problema” da muitas delas possuíssem tribunais e entrassem
sociedade foi assumido e desenvolvido por em litígios. Ademais, a ênfase nos “direitos” le-
duas tradições nacionais distintas. Na França, vou naturalmente a uma consideração dos di-
em torno do periódico L’Année Sociologique, os reitos de herança e a uma preocupação com a
colaboradores e alunos de Durkheim criaram “propriedade”, embora a propriedade em ques-
um seminário teórico. Muito desse trabalho, tão fosse, na maior parte dos casos, valorizada
especialmente o do sobrinho de Durkheim, precisamente porque era passível de ser trocada
Marcel Mauss, preparou o terreno para o pos- por pessoas, o que quase nunca ocorre com a
terior estruturalismo de Lévi-Strauss. Mas foi propriedade em nossa sociedade.
na Inglaterra – e onde quer que a influência A antropologia social evoluiu gradativa-
de A. R. Radcliffe-Brown se tenha feito sentir mente para uma espécie de jogo de fingimento
no exterior – que a teoria da descendência teve heurístico: conceitos com ampla base de acei-
seus primeiros e mais expressivos sucessos. tação e compreensão na sociedade ocidental
Esses sucessos foram genericamente chama- – tais como “política”, “lei”, “direitos” e “pro-
dos de funcionalismo (embora o próprio Radcli- priedade” – foram aplicados aos usos coletivos
ffe-Brown tenha evitado esse rótulo), e ele dos povos tribais com uma espécie de “como
forneceu o núcleo teórico para a antropologia se” implícito. Contanto que os participantes do
social clássica que se desenvolveu na Inglaterra jogo mantivessem o “como se” em mente, seu
nas décadas de 1930, 1940 e 1950. O funciona- uso dos conceitos ocidentais para traduzir os
lismo se assentava na noção de que não importa costumes nativos para o tipo de coerência ra-
o quão estranhas ou peculiares fossem as prá- cional e legal que esperamos de nossas próprias
ticas e “instituições” de um povo, e a despeito instituições era aceito, ainda que ele colocasse
de como vieram a ser dessa forma, a questão os sujeitos nativos nos improváveis papéis de
importante era como funcionavam. Ademais, advogados e juízes de peruca e transformasse
embora houvesse inúmeras maneiras pelas quais sua existência coletiva em uma cômica paródia
elas pudessem funcionar ou não, havia sempre do Banco da Inglaterra.
uma função mais ou menos central, a de man- No entanto, o jogo não poderia acontecer
ter a sociedade unida – e os antropólogos sociais no vácuo. Tratava-se antes de mais nada de an-
sempre insistiram que se tratava de uma ques- tropologia descritiva, e era necessário avir-se
tão “política” ou “político-jural”. com os costumes do povo descrito. Ora, é disso
A suposição “político-jural” foi a contribui- que tratam todos os problemas e conceitos da
ção de uma tendência britânica de pensamento antropologia social. Se os Bantu meridionais,
os Nuer ou os Talensi não tinham leis propria- gos clássicos de Radcliffe-Brown, reeditados em
mente ditas, então usos coletivos análogos te- Estrutura e função na sociedade primitiva. Eles
riam de ser encontrados para substituí-las. Na tratam do direito de um jovem bantu meridio-
verdade, estabeleciam-se analogias com as re- nal de “furtar” comida e bens que pertencem a
gularidades (ou, como uma geração posterior seu tio materno, geralmente membro de outro
as chamaria, “normas”) que regem as relações grupo de descendência, e das peculiares relações
de parentesco, e o jogo se tornava um jogo de de “jocosidade” e “evitação” encontradas entre
transformar o parentesco em jurisprudência e muitos povos tribais, nas quais os participan-
economia corporativa – o estudo dos “sistemas tes se envolvem numa troça que parece violar
de descendência” e das “instituições” formadas a relação ou na evitação que aparentemente a
nas sociedades tribais pela descendência dos di- nega. Radcliffe-Brown escolheu interpretar to-
reitos e da propriedade. A antropologia social dos esses fenômenos em termos do que chamou
tornou-se a ciência dos grupos de descendên- de “aliança ou associação”. Em vista das tensões
cia, e os grupos de descendência e sua consti- resultantes de interesses divergentes dos dife-
tuição tornaram-se questões cruciais para dar rentes grupos que casavam entre si, inclusive
conta da função nuclear de integração e manu- demandas conflitantes a respeito de uma única
tenção da coesão da sociedade. Quanto maior pessoa ou de expectativas desta, essas práticas
a ênfase com que os pesquisadores insistiam na inexplicavelmente “antagônicas” serviam para
importância das definições, da racionalidade e manter a ordem e a solidariedade social (“in-
de suas próprias concepções de direito e pro- tegrar a sociedade”) quando nada mais podia
priedade, mais os grupos se tornavam substan- fazê-lo. Nas palavras de Radcliffe-Brown:
ciais e claramente definidos. Eles se tornavam,
em resumo, muito mais parecidos com os gru- A aliança pelo respeito extremo, pela evitação
pos conscientemente organizados, planejados e parcial ou completa, evita esse conflito mas con-
estruturados da sociedade ocidental – a despei- serva as partes unidas. A aliança pela jocosida-
to da completa falta de evidências de que os de2 faz a mesma coisa, mas de modo diferente.
nativos realmente os pensassem daquele modo. (1973, p. 131)
Os “grupos” eram uma função do nosso enten-
dimento do que as pessoas estavam fazendo, e O caráter aparentemente anti-social do
não do que elas mesmas faziam das coisas. “furto” ou das relações de jocosidade e evitação
A ciência dos grupos de descendência sub- poderia, assim, ser explicado pela necessidade
meteu-se ao mais rigoroso teste ao lidar com de integrar os próprios grupos (aliá-los) em um
os modos como os usos nativos não correspon- todo social mais amplo. Qualquer evidência no
diam a suas expectativas teóricas. Havia casos sentido de que o uso do parentesco não tinha o
em que o uso do parentesco contradizia paten- efeito de promover a solidariedade entre os gru-
temente as expectativas do modelo institucional pos poderia ser explicada como formadora da
da sociedade. Nas sociedades tribais que a an- solidariedade como um todo através da aliança.
tropologia social escolheu como objeto de estu- A ciência dos grupos de descendência se de-
do, casos como esses não eram nem incomuns, fendia contra as exceções etnográficas partindo
nem triviais. O refinamento da chamada “teo- do princípio de que a própria sociedade era,
ria da descendência” foi realizado por meio do ela mesma, apenas um grupo de descendência
esforço contínuo para lidar com contradições maior e melhor, com suas próprias leis e modos
desse tipo. O início disto fica evidente nos arti- de operação. Não era preciso deixar de acreditar
mais importante. A solidariedade passou a ser Se essa ênfase na contradição e no “nem lá,
explicada por meio do antagonismo, em vez de nem cá” reduziu a ciência dos grupos de des-
ser definida em contraposição a ele, e a socie- cendência a uma espécie de absurdo em re-
dade acabou por ser entendida nos termos de lação a sua posição anterior, o interesse pelos
uma anti-sociedade. símbolos e pela conceitualização nativa teve
A teoria dos “rituais de rebelião” de Glu- um efeito semelhante sobre o jogo heurístico
ckman, que se refletia em muitos aspectos da de compreender os usos nativos como se fos-
vida social africana, representou mais um pas- sem instituições ocidentais. Podemos concluir
so nessa direção. Gluckman insistia em que que a antropologia social foi instigada a se con-
a dramatização pública institucionalizada de verter no seu oposto pelas exigências de lidar
uma rebelião jocosa contra o governante, reali- com seu objeto de estudo. Mas a essa altura seu
zada com regularidade em algumas sociedades oposto (no que diz respeito a suas principais
africanas, servia para reforçar a posição desse ênfases) já havia surgido na forma do “estru-
governante. Ao estabelecer um tipo de “falsa turalismo” lévi-straussiano e havia entabulado
negação” da autoridade dele, uma espécie de um debate contínuo e bastante bem-sucedido
relação de jocosidade política coletiva, e então com a teoria da descendência, sob a orientação
superar a negação, a ordem social se convertia de Edmund Leach e Rodney Needham.
no que era ao fracassar em se converter no seu O estruturalismo de Claude Lévi-Strauss é
oposto. A importância dessa teoria reside em o “oposto” da antropologia social tradicional
seu emprego da contradição como base para a radcliffe-browniana: voltou-se para as oposi-
explicação. Embora firmemente comprometi- ções e contradições no interior da ordem social
da com a integração funcional da sociedade, – com o propósito de resolvê-las como parte de
ela assinala um deslocamento radical no centro sua explicação –, e não para suas regularidades
teórico da antropologia social. legais e harmonias integradas. A obra de Lévi-
Com isso, abriu-se o caminho para uma -Strauss emergiu de uma tradição diferente de
antropologia social voltada em grande medida antropologia, fundada pelos alunos e seguido-
para o domínio do ritual e do “nem lá, nem res de Durkheim na França, que haviam de-
cá”3. Foi este o rumo tomado por dois antropó- senvolvido um corpus teórico sobre a sociedade
logos sociais modernos: Mary Douglas e Victor em conformidade com as linhas conceitualistas
Turner. Em seu livro Pureza e perigo, Douglas da obra do próprio Durkheim, e não com a
ressaltou a posição central das situações con- orientação legalista e materialista da antropo-
traditórias ou paradoxais na sociedade humana logia social britânica. Eles escreveram sobre os
e relacionou-as à noção de poluição. Turner, temas da “classificação primitiva”, da organiza-
na esteira de Gluckman, concentrou-se no ção dualista, dos conceitos de eu e sociedade e
processo ritual e na importância da transição das formas de troca de dádivas. Talvez a mais
(liminaridade) entre estados sociais e rituais. conhecida dessas obras seja o brilhante Ensaio
Embora o social conserve sua proeminência na sobre a dádiva de Marcel Mauss, livro que,
obra de ambos, o crescente apoio dos autores como o próprio Mauss, exerceu grande influ-
no contraditório remete a outra divergência ência sobre Lévi-Strauss.
importante: em lugar da integração funcional, É na troca de dádivas, ou reciprocidade,
suas explicações recorrem cada vez mais ao sig- que o estruturalismo começa. Ou, antes, é
nificado e à conceitualização como expressos onde o funcionalismo acaba para os estrutu-
nos símbolos. ralistas, pois a reciprocidade entre indivídu-
descobrir essa ordem no interior dos próprios em mente os “grupos corporados” rígidos, em-
dados, postulando a existência de grupos de píricos e materiais dos antropólogos sociais,
descendência auto-evidentes e similares, mas as gradações sociais inclusivas, flexíveis e de
gradualmente assumiu a posição de que os base genealógica de um sistema de linhagens
problemas básicos eram de cunho conceitual e segmentares, ou os constructos totalmente
interpretativo. Em outras palavras, assim como conceituais dos estruturalistas? Antes de tudo,
o estruturalismo, passou a reconhecer a impor- deveríamos tentar responder à questão crucial:
tância de construir modelos do “sistema nativo” por que, afinal, precisamos explicar as estrutu-
e averiguá-los como um modo de explicação. ras sociais por meio dos grupos?
Esse procedimento implica observar algo e Vivemos em uma cultura na qual fundar,
então descrevê-lo de forma sistêmica, ou arqui- integrar, tornar-se membro e participar de gru-
tetar um sistema e então demonstrar que ele pos é uma questão intencional e importante.
“está lá”, ou se parece bastante com o que “está As constituições de nossas nações baseiam-se
lá”. Na prática, geralmente inclui um pouco em uma noção de “contrato social”, um ato
de ambos. Em qualquer dos casos, contudo, ou evento consciente de alguma espécie que
envolve a invenção e a projeção de uma “or- deu início à existência da sociedade. Os ci-
dem” por parte do antropólogo, que é função dadãos são membros desses colossais “grupos
de seu processo de entendimento. Assim, se de descendência”. Os que não são “nascidos”
escolhermos desafiar esse modo sistêmico de neles ou no interior dos seus territórios clâni-
explicação, podemos perguntar se os grupos de cos precisam ser “naturalizados”, assim como
descendência e a parafernália da ordem social as crianças podem ser adotadas legalmente por
a eles associada existem de fato independente- pais de criação. Uma sociedade que enfatiza o
mente da necessidade do antropólogo de expli- dever do cidadão de votar e manter-se vigilante
car as coisas nesses termos. Existe algo sobre a aos interesses de seu país sem dúvida insiste na
sociedade tribal que requer sua decomposição participação consciente. E ao tornar consciente
em grupos? Ou a noção de “grupos” é uma des- a pertença e a participação na sociedade, essa
crição vaga e inadequada de algo que poderia forma social particular também a torna proble-
ser mais bem representado de outra forma? mática. Os problemas de recrutamento, parti-
cipação e corporativismo (economia) são nossos
problemas, mas nós os levamos conosco quan-
Desafiando a suposição do “como se” do visitamos outras culturas, junto com nossa
escova de dentes e nossos romances favoritos.
Nosso primeiro passo ao tentar responder Nações, sociedades e grupos são a forma ou
a essas questões deve envolver uma avaliação manifestação social da confiança na ordem, na
franca do que buscamos. Afinal, se abordarmos organização e na coerência que perpassa toda
a questão com a intenção explícita de encon- nossa abordagem de um fazer e compreender
trar grupos ou com uma suposição irrefletida coletivo como um pressuposto inconteste. A
de que grupos, de um tipo ou de outro, são sugestão de que nossas ideias sobre ordem,
essenciais para a vida e a cultura humana, en- organização e coerência podem estar abertas
tão nada nos impedirá de encontrá-los. Ora, a uma revisão crítica ou, no plano social, de
se nosso objetivo for uma avaliação franca, de- que os grupos podem não ser a questão mais
vemos ter clareza sobre o que queremos dizer importante, é tomada por muitos como uma
ou esperamos encontrar com grupos. Temos traição a nossa ética social e acadêmica. Mas
tudo que estamos fazendo é desafiar o “como relevância particular para aquela situação, e po-
se” da antropologia sistêmica, a atitude dos dem nos revelar ainda mais. Temos inúmeras
antropólogos sociais britânicos e dos estrutu- maneiras de definir grupos – com base na resi-
ralistas franceses, que diz: “Vamos supor que dência, genealogia, política, economia, e assim
os nativos são como nós para que possamos por diante –, assim como temos muitos tipos
entendê-los”. E estamos desafiando essa supo- de definições para grupos – inclusive os men-
sição para evitar uma perspectiva antropológica cionados acima e os constructos marginais ou
que inadvertidamente faz com que nossas pró- negativos (“grupos” que não são grupos) deno-
prias suposições culturais se tornem parte “da minados “parentela”, “quase-grupos” e “redes”
forma como as coisas são”, da forma como toda –, mas praticamente não dispomos de nenhu-
a humanidade pensa e age. ma alternativa inteiramente satisfatória para
Os antropólogos têm uma responsabilidade o conceito de coletividade grupal. Pior ainda,
ética ao lidar com outros povos e mundos con- não contamos com nenhum conjunto de cri-
ceituais com base na igualdade e mutualidade. térios para determinar quando um conceito
Quando um antropólogo resume a vida e a como este é aplicável e quando não é.
imaginação de seus sujeitos de pesquisa em um Como a noção de grupo é nossa, o proble-
“sistema” determinista que ele mesmo arquite- ma de encontrar critérios como esses cabe a
ta, capturando os pendores e inclinações destes nós. Visto que no âmago de nossa noção (e de
no interior das necessidades das economias, nossos motivos para encontrar grupos) encon-
ecologias e lógicas próprias ao antropólogo, tra-se um foco coletivo deliberado, um sentido
ele afirma a prioridade do seu modo de cria- de participação e consciência comuns, nossos
tividade sobre o deles. Substitui a forma como critérios devem enfatizar esse fator. Outras for-
os “nativos” fazem suas coletividades pelo seu mas de agrupar as pessoas – com base em suas
próprio fazer (“heurístico”) dos grupos, ordens, semelhanças compartilhadas, sejam elas espe-
organizações e lógicas. E é esse modo “nativo” cificidades de residência comum ou contígua,
de fazer a sociedade, e não suas curiosas seme- cooperação ou envolvimento econômico ou
lhanças com nossas noções de grupos, econo- ecológico, genealogia ou comportamento polí-
mia ou coerência, que move nosso interesse tico – podem facilmente se tornar dispositivos
aqui. O entendimento dessa criatividade per se para criar grupos a partir de pessoas que, elas
é a única alternativa ética e teórica aos esforços mesmas, nunca o fariam dessa forma (ou, tal-
paternalistas que “civilizariam” os outros povos vez, não o fariam de forma alguma). Um povo
ao transformar os remanescentes de seus esfor- possui grupos na medida em que, e segundo
ços criativos em grupos, gramáticas, lógicas e a forma como, concebe tais coisas; caso con-
economias hipotéticas. trário, o antropólogo simplesmente “possui” as
Ao perguntar se existem grupos sociais nas pessoas ao impor sua ideia de “grupos” a elas.
terras altas da Nova Guiné, não estou preocu- Como, então, os povos das terras altas da
pado com quais tipos de “grupos” melhor des- Nova Guiné criam sua socialidade? Quais são
crevem os arranjos comunais locais, mas com a os “fatos”, tais como os nativos os fazem? Eles
forma como as pessoas se criam socialmente lá. têm a “sociedade como problema” e uma so-
As respostas a essa questão poderão ajudar-nos lução sistêmica para ela, ou seus problemas
a dizer se os “modelos” do grupo corporado, são concebidos de forma totalmente diferente,
do sistema de linhagens segmentares, ou da relacionando-se apenas indiretamente ao agru-
unidade conceitual “estrutural” têm qualquer pamento social? Podemos aprender a compre-
ender ou simular sua criação dos “fatos” sociais versa com ele, descobrimos que nasceu num
sem transformá-los em peões4 do nosso próprio local chamado Waramaru. Então sua irmã se
jogo? Uma maneira de tentar responder a essas casou em Peria, um amplo complexo de casas e
questões é considerar um povo específico de roçados cerca de 1,5 km ao norte de onde está-
tantos pontos de vista quantos forem possíveis, vamos; e ele se mudou para cá, para Baianabo,
com certa ingenuidade, especialmente no que “para ficar perto dela”.
concerne a grupos e sistemas, da forma como A impressão é de que estávamos nos depa-
um pesquisador de campo poderia abordá-los. rando com uma daquelas situações geralmen-
Consideremos dessa maneira os Daribi, povo te conhecidas na antropologia social como um
do leste das terras altas da Nova Guiné entre os “caso especial”, mas na verdade esse tipo de his-
quais fiz pesquisa de campo. tória pessoal é comum entre os Daribi. Pergun-
tamos aos outros homens sobre suas “pessoas
de casa” e locais de nascimento e descobrimos
A socialidade daribi que eles são “Weriai” ou “Kurube”, nascidos em
Waramaru. Onde vivem os outros Weriai? Des-
Se pudéssemos voltar no tempo e visitar cobrimos que alguns vivem em uma casa bem
Baianabo, o local onde vivi durante grande par- próxima, muitos outros vivem em Waramaru,
te de meu primeiro período de campo (1963- com o “povo de Noru” ou o “povo de Sogo”, e
1965), por volta de 1950, dez anos antes de muitos outros vivem com um povo chamado
o povo daribi ser “pacificado” pelo governo, lá “Nekapo”. Acabamos por descobrir que Wara-
encontraríamos roçados e um pequeno povoa- maru fica a um bom dia de intensa caminhada
do. Talvez vocês não reconhecessem os roçados a oeste, com muitos outros povos no meio, e
como tais, pois eles seriam do tipo “coivara” que o povo de Nekapo vive a talvez meio dia de
ou “corte-e-queima”, com troncos de árvores caminhada para além desse ponto. Se os Weriai
mortas e sem folhas ainda eretos ou jazendo são de fato “pessoas de casa”, eles certamente
onde haviam caído, cobertos pela folhagem de estão espalhados por uma considerável nesga
batata-doce (a base da alimentação). Ao redor de paisagem; e se alguns vivem com os Peria,
haveria áreas de “floresta secundária”: antigos outros com os Sogo ou Nekapo, também pa-
roçados em vários estágios de recrescimento da recem estar bem distribuídos. É isto um “gru-
floresta, e talvez também clareiras que vão sen- po”, uma “tribo”, um “clã não localizado”? O
do abertas para novos roçados. Ao redor disso que quer que possa ser, o que significa Kurube?
tudo, sobre um amplo planalto vulcânico cerca Será talvez um outro nome para Weriai? Mas
de mil metros acima do mar, encontra-se uma antes de pegarmos nossos exemplares de Notes
floresta tropical madura, repleta de árvores de and Queries in Anthropology, o guia padrão do
tronco branco ou cinza com 1,50 m a 1,80 m pesquisador de campo em situações como essa,
de diâmetro na base. para buscarmos uma definição adequada, deve-
Aqui vivem cerca de quatro ou cinco ho- ríamos nos lembrar de que estamos deliberada-
mens adultos com suas famílias. O mais velho mente tentando não jogar o jogo “heurístico”
é um homem baixo, com cabelo embranque- de chamar socialidades desconhecidas de “gru-
cendo, de nome Buruhwą5. Perguntamos-lhe pos” para aliviar nosso senso explicativo. Uma
quem são suas “pessoas de casa” (uma expressão definição padrão, centrada nos grupos, simples-
local); ele hesita, murmurando “as pessoas de mente não será suficiente, ao menos até que
minha casa”, e então diz: “Weriai”. Em con- tenhamos aprendido mais sobre essas pessoas.
Termos gerais como “pessoas de casa” e ter- agrupam as pessoas apenas na medida em que
mos específicos como Weriai, Kurube e Noru as separam ou distinguem com base em algum
fazem parte dos vastos meios sempre em ex- critério, e não podemos deduzir das distinções
pansão de que os Daribi se valem para estabele- conceituais uma correspondência real entre os
cer distinções sociais. Os últimos são chamados termos e os grupos de pessoas distintos e cons-
bidi wai, “ancestrais homens”, e caracteristi- cientemente percebidos.
camente se baseiam nos nomes de ancestrais Os termos são nomes, não são as coisas no-
genealógicos, embora este nem sempre seja o meadas. Eles diferenciam ao dizer: “Estes são os
caso. É quase certo que Sogo, Weriai e Kurube do rio; aqueles são os da montanha”, ou “Estes
são nomes de ancestrais reais (“Kurube” desen- são provenientes de Weriai; aqueles, de Daie”, e
volveu-se a partir de Kuru, que se diz ser outro são significativos não por causa da forma como
nome do homem chamado “Weriai”); Noru e descrevem algo, mas por causa da forma como
Nekapo provavelmente não o são. Mama’ Di’be o contrastam com os outros. Em sua brilhan-
e Huzhuku Di’be (Di’be “claro” e “escuro”, res- te análise do “totemismo”, Lévi-Strauss conclui
pectivamente) distinguem o povo Di’be, que que “Não são as semelhanças, mas as diferenças que
vive próximo ao rio “claro”, dos que vivem no se assemelham” (1975). Assim, embora Weriai
sopé da montanha “escura”. signifique “cegado” em daribi e Daie signifique
Se estivéssemos absolutamente empenhados “estar completamente cozido”, nenhum dos dois
em “encontrar” grupos, não haveria problema tem significado literal; trata-se apenas de nomes,
algum em supor que essas descrições são descri- e nessa condição o conteúdo de um diferencia
ções ou definições de grupos concretos, defini- de forma tão efetiva quanto o do outro.
dos e empiricamente existentes. O fato de que Como nomes usados para estabelecer dis-
alguns deles incluem outros poderia ser tomado tinções, esses termos são muito flexíveis. “Para”,
como evidência da existência de um “sistema por exemplo, é uma contração de pariga (“caixa
de linhagens segmentares” – diz-se que os We- torácica”) e às vezes é usado como apelido que
riai, Daie, Sizi e outros são Para, provenientes indica preguiça (“Ele é chamado de ‘costelas’
de certos filhos de um homem chamado Para, porque passa o dia todo deitado sobre elas”).
que os Kurube eram Weriai que viviam com os Seja por este motivo ou por algum outro, es-
Sogo, que os Noruai eram Weriai que viviam tabeleceu-se uma associação entre o nome e
com os Nekapo, e assim por diante. Isso resul- um homem que teria supostamente origina-
ta em um arranjo hierárquico de grupos que se do diversas linhagens de substância paterna,
tornam progressivamente mais inclusivos com um bidi wai comum. O nome pode ser usado
base em cálculo genealógico e padronizados para distinguir todas essas linhagens de outros
em níveis aos quais correspondem rótulos, de complexos como Noru ou Di’be, para distin-
modo que os Para podem ser considerados uma guir algumas delas de partes da última (em
fratria, os Weriai um clã, os Kurube um subclã. Waramaru, Weriai chamava o povo de Sogo de
A ordem hierárquica necessária a um mo- “Noru”), ou para distinguir algumas das linha-
delo desse tipo certamente está lá, implícita no gens de Para de outras. Frequentemente se refe-
fato de que se pode considerar que os termos re como “Para” àqueles que se autodenominam
se incluem, excluem ou contrastam uns com Sizi, Warai, Ogwanoma ou Siabe em contra-
os outros. Contudo, seria prudente considerar posição aos Weriai, por exemplo, ou aos Daie,
as distinções a partir de seu valor nominal, ape- embora os últimos sejam, sob outros aspectos,
nas como distinções e não como grupos. Elas tão Para quanto eles mesmos.
Há bons motivos por trás dessas aparentes As coisas que nós imaginamos como “grupos”
irregularidades. Por um lado, os Daribi tendem assumem uma qualidade contínua e pratica-
a usar termos os mais amplos e menos espe- mente invisível, como nossa noção de “tempo”,
cíficos possíveis na maioria das situações. Por que igualmente tentamos eliciar e impelir por
outro lado, os Sizi, Warai e Ogwanoma fica- meio das distinções e dos contrastes arbitrários
ram para trás em Boromaru, lar tradicional dos de nossos relógios e calendários7.
Para, ao passo que as outras linhagens se mu- A eliciação de coletividades sociais por
daram para longe. Mas a despeito disso, dificil- meios indiretos é mais do que um mero dis-
mente se pode dizer que os Para representam positivo retórico entre os Daribi; trata-se de
um grupo, pois é impossível, dada a abrangên- um estilo ou modo criativo que perpassa toda
cia do uso do termo, determinar qual das apli- a gama de suas atividades. Um homem que
cações é a “correta”. Para é um nome, não um tenha sido ofendido, por exemplo, frequente-
grupo; é uma forma de distinguir, de incluir e mente se enfurece e grita, dando vazão a sua
excluir; é, pois, meramente um dispositivo para raiva deliberadamente até o limite – e se ele
estabelecer fronteiras. provocar um oponente para que este lhe res-
Um dispositivo desse tipo pode ser usado ponda com fúria, tanto melhor. Ele está ten-
de forma muito flexível, estabelecendo ora esta tando eliciar uma resposta coletiva em forma
distinção, ora aquela, sem nunca se vincular a de conciliação, negociadores da paz que farão
um elemento particular ou a um “domínio” com que se entendam, apesar da injúria sofri-
delimitado de definição. Esse uso “amplo” ou da, em prol do interesse geral (e para pôr fim à
“hiperbólico” dos termos pode ser mais bem terrível algazarra!).
exemplificado na distinção daribi das cores. Os nomes simplesmente delineiam um
Quando se mostra aos Daribi um objeto ver- modo de criatividade cujo aspecto mais sério,
de, azul ou marrom escuro, eles o identificam ao menos em termos nativos, é o da troca de
como huzhuku; quando se lhes mostra algo que riquezas. Essa troca, por sua vez, deriva de um
chamaríamos de vermelho, escarlate, carme- outro uso do contraste e da distinção para eli-
sim, ou mesmo marrom claro, eles designam o ciar relações sociais – nesse caso, a distinção e o
objeto como mama’; nosso amarelo ou amare- contraste mais básicos: entre homens e mulhe-
lo-esverdeado são sewa’ para eles. Contudo, ao res. Os homens enfatizam sua “masculinidade”
falarem do fruto do pandano, cujas variedades em oposição às mulheres, que em troca afirmam
vão em geral do escarlate ao rosa antigo, embo- sua “feminilidade”, cada qual recebendo do ou-
ra uma delas seja amarelo-mostarda, eles se re- tro uma “resposta” e um aspecto complementar
ferirão ao primeiro como huzhuku e ao último de seu todo social. As mulheres são valorizadas
como mama´! As qualidades contrastantes dos por suas habilidades produtivas e reprodutivas,
termos (escuro/claro) revelam-se mais signifi- pela capacidade de realizar trabalho femini-
cativas nesse contexto do que os valores mais no e ter filhos, criatividade à qual os homens
específicos (de “cor”). respondem assumindo o controle sobre ela. O
Quais são os efeitos sociais desse tipo de controle é obtido pela negociação de “trocas”
uso? Estabelecer fronteiras criando contrastes de mulheres (bem como de sua progenitura,
tem o efeito de eliciar6 grupos como um tipo de seus “produtos”) por produtos e implementos
contexto geral para a expressão de alguém, alu- da criatividade masculina – os machados usa-
dindo a eles indiretamente, e não os organizan- dos no roçado, a carne (inclusive porcos), que
do ou participando deles de forma consciente. se acredita aumentar o líquido espermático, e as
conchas de madrepérola, que criam a imagem forma, todos também têm be’ bidi (“pessoas de
masculina assertiva. Na verdade, essas trocas casa”), principalmente o marido ou os paren-
constituem uma “substituição” da criatividade tes paternos, que realizam a compensação. Essa
masculina por seu correlato feminino. distinção, somada à troca diferenciante por
Toda aquisição legítima de uma mulher meio da qual é realizada, é em si a questão mais
e – como todos os seres humanos nascem da importante da vida social daribi. Num sentido
criatividade feminina – toda aquisição de uma importante, ela é a vida social daribi, pois suas
pessoa ocorre necessariamente por meio desse consequências e implicações são respeitadas a
tipo de troca. Consequentemente, todo Daribi despeito de outros fatores e circunstâncias. Os
possui pagebidi (“pessoas no fundamento”) que be’ bidi têm sempre de ser mantidos distintos
têm direito a receber riquezas masculinas em dos pagebidi, de modo que mesmo se pessoas
troca de sua proteção ou afiliação. Os pagebidi intimamente relacionadas decidissem se casar
incluem os irmãos e outros parentes próximos (como às vezes decidem), seus parentes – mes-
de uma mulher, bem como os parentes mater- mo que todos vivam na mesma casa (como às
nos próximos de um homem ou de uma jovem vezes vivem) – teriam de se subdividir nessas
solteira. Deve-se “pagar por” todas as pessoas duas categorias para a ocasião. Ademais, nesse
dessa forma, e todo ato de troca estabelece um ou em qualquer outro caso, os be’ bidi são ter-
contraste entre o masculino e o feminino. minantemente proibidos de partilhar qualquer
Assim, toda troca na qual uma mulher ou porção da carne dada aos outros pelos pagebidi.
criança é “adquirida” por um homem corres- Os próprios Daribi dizem que se casam com
ponde a um ato de diferenciação, uma separa- as irmãs e filhas daqueles para os quais “dão”
ção da mulher de seus parentes ou da criança carne, e não podem se casar entre aqueles com
(e às vezes do adolescente) de seus parentes os quais “comem” (ou “compartilham”) carne.
maternos, realizada por meio da concessão de Assim, a distinção explícita que se estabelece
riquezas masculinas. E assim como todos têm em qualquer troca é entre os que compartilham
pagebidi, que devem ser recompensados dessa carne ou outras riquezas e os que trocam carne
ou riquezas. Cada ato ou distinção desse tipo base na sobreposição de restrições ao compar-
estabelece uma fronteira. Mas como o foco se tilhamento, nodos de pessoas surgem em vários
volta para a própria distinção, essa fronteira é, graus de inclusividade informal que denominei
na verdade, mais significativa do que as coisas zibi, clã e comunidade (Wagner, 1967). (Como
que ela diferencia. Pode acontecer, por exem- se acredita que os fluidos reprodutivos mas-
plo, de algumas pessoas que anteriormente se culinos são aumentados e se acumulam pelo
identificavam umas com as outras desejarem consumo de carne, um pai e seus filhos são au-
casar entre si; isso será tolerado, embora pos- tomaticamente “compartilhadores de carne”.)
sa não ser coerente com as relações anteriores, Contudo, isso não estabelece, de modo algum,
desde que uma diferenciação adequada e bem de- uma hierarquia rígida, uma organização para a
finida seja estabelecida entre elas. partilha e troca adequada de carne. Um clã é
Assim como no caso dos nomes, o conte- composto por zibi constitutivos, que tendem
údo específico (definitivo ou descritivo) das todos a cooperar na partilha e falar de sua asso-
coisas referidas (as “unidades” sociais, as cate- ciação mútua dessa forma, mas não é incomum
gorias be’ bidi e pagebidi) permanece implícito: que seus membros se casem entre si e, portanto,
o que se explicita é a distinção que as separa ou “troquem”. Uma comunidade é composta por
diferencia. Portanto, assim como se pode dizer clãs que, na maioria das vezes, casaram, e por-
que os nomes “eliciam” coletividades sociais no tanto trocaram, entre si; contudo, eles se refe-
ato de distingui-las, pode-se considerar que as rem a sua associação como “partilha de carne”.
trocas que atribuem direitos sobre uma mulher A coerência nem sempre é mantida de um “ní-
ou criança eliciam casos específicos de be’ bidi e vel” nodal para outro; portanto, qualquer ten-
pagebidi. Em virtude das restrições que necessa- tativa de compor o todo como um “sistema” ou
riamente acompanham trocas desse tipo, toda “ordem” estará invariavelmente comprometida.
troca criará, assim, suas próprias circunstâncias Assim, zibi, clã e comunidade não são
sociais. Mesmo que não se “parta” dos grupos, grupos no sentido de construções delibera-
uma vez que estes nunca são deliberadamen- damente organizadas ou ideologicamente
te organizados, mas tão-somente eliciados por regulamentadas. Termos como “clã” e “comu-
meio do uso de nomes, o resultado final são nidade” podem ser formas úteis de se referir a
sempre punhados específicos de pessoas como esses agrupamentos associativos, contanto que
be’ bidi e pagebidi. Trata-se de uma “socieda- tenhamos em mente que esses termos geral-
de automática”, que de repente se manifesta mente denotam associações bastante “não in-
de forma concreta onde quer que as distinções tencionais” e não tentemos transformá-los em
corretas sejam feitas. O que podemos desejar representações de nossas próprias corporações
chamar de socialidade “permanente” existe e organismos conscientemente sócio-políticos.
como um contexto associativo que emana de Eles são a socialidade e a relação humana sem
uma ocasião ad hoc desse tipo para outra. distinções inerentes, e é por isso que as pesso-
Com exceção das restrições correntes relati- as precisam elas mesmas estabelecer distinções,
vas à partilha ou não das contínuas dádivas de embora, é claro, também eliciem a socialidade
carne que se seguem ao casamento e ao nasci- no ato de estabelecê-las. Nesse aspecto, são o
mento das crianças, os quais tendem a “conge- oposto de nossas formas ocidentais, em que as
lar” as distinções e categorias, os agrupamentos pessoas formam grupos por meio da participa-
não são mais completamente coerentes entre si ção deliberada e, assim, eliciam distinções de
do que aqueles eliciados pela nomeação. Com “classe” e “nacionalidade”.
Nas sociedades tribais, é um tanto quanto fossem muitas) e ignorando quaisquer contra-
sem sentido perguntar-se onde estão os grupos dições com as quais não conseguissem lidar,
em si, pois eles nunca se materializam de fato. pois se contentavam em deixar que as frontei-
O que vemos na forma de uma aldeia ou agru- ras do grupo tomassem conta de si mesmas.
pamento comunal é apenas uma aproximação Em todo caso, as pessoas, que até então viviam
bastante semelhante, uma representação ad hoc em casas comunais de um ou dois andares (que
de uma abstração, que “dará conta” da situa- abrigavam de duas a sessenta pessoas) disper-
ção. A socialidade é algo que “se torna”, não sas entre os locais alternantes de seus roçados,
que “se tornou”, e sua eliciação se assemelha ao eram obrigadas a abandonar o padrão tradi-
conceito de “deficit spending”8: as pessoas tra- cional e instalar-se em aldeias nucleadas. (Esse
çam fronteiras, impelem e eliciam, e as relações conceito era completamente novo para os Da-
tomam conta de si mesmas. ribi, que ainda usam a palavra be’, “casa”, para
se referirem a esses complexos.) Uma reorgani-
zação em aldeias desse tipo é característica da
Efeitos do contato com o Ocidente política e do controle administrativo em toda
a Papua-Nova Guiné. Várias motivações para
Quando os homens brancos chegaram a Ka- isso já foram apontadas: diz-se que facilita a or-
rimui pela primeira vez, sentiram-se fortemente ganização das pessoas para o censo, por exem-
impelidos a descobrir grupos. Eles eram admi- plo, e que é mais salubre do que os arranjos
nistradores que se deparavam com a tarefa de aborígines. Mas na verdade ele apresenta uma
construir uma interface entre as “instituições” vantagem predominante, que põe fim à ambi-
dos nativos e as suas próprias com o propósito guidade mais relevante do ponto de vista desses
de decompor uma coleção de nomes e povoa- outsiders: torna os “grupos” visíveis para pessoas
dos distribuindo-os em grupos que pudessem
servir como os elementos finais (locais) de uma
cadeia política de comando. Eles eram herdei-
ros de uma tradição “colonial” autoconsciente,
e muitos deles haviam frequentado cursos de
“ciência dos grupos de descendência” como
parte de seu treinamento. Em suma, sabiam
qual supostamente deveria ser a configuração
da sociedade nativa. E eles também recebiam
instruções explícitas sobre como lidar com os
grupos: em cada (dito) grupo local, um líder, ou
Tultul, era designado, e cada Tultul era encarre-
gado de manter o “livro da aldeia”, no qual se
registravam os dados do censo. Ao se depararem
com um desnorteante caos de terras de família
dispersas e nomes sobrepostos, reagiam da úni-
ca forma que sabiam – criavam grupos.
Para tanto, eles podem ter solicitado a ajuda Fig 3 - Be’bidi: Povo twa em sua sigibe’, casa comunal de dois
das próprias pessoas, agrupando todas as que andares (1963). Os homens vivem no andar superior e as mulhe-
eram identificadas pelo mesmo nome (se não res, no inferior.
que simplesmente não conseguem conceber a rios dos que haviam se assentado recentemente
socialidade humana de nenhuma outra forma. em um local chamado Suguai, haviam se uni-
A maior parte das aldeias em Karimui foi do ao povo de Buruhwą em uma única casa
formada em 1961-1962 (Russell et al., 1971, p. comunal de dois andares em Baianabo. Vários
83), embora alguns desgarrados ainda vivessem outros Weriai de Nekapo haviam se mudado
de acordo com o padrão tradicional até 1969. para casas semelhantes numa extensão de terra
No final de 1963, quando cheguei pela primeira adjacente chamada Sonianedu.
vez a Karimui, as aldeias eram parte caracterís- Pouco tempo depois, os Weriai foram ins-
tica da paisagem local; os nativos de fato viviam tados pelo governo (fortemente premidos por
nesses núcleos, a despeito de quem os tivesse uma missão fundamentalista) a construir filei-
feito. Mas seria este um motivo suficiente para ras de moradias para famílias nucleares em esti-
considerá-los grupos? A resposta a esta questão lo ocidental, ou “casas enfileiradas”. Estas foram
não é fácil, e uma boa resposta requer que apre- abandonadas em 1966 porque traziam aborre-
ciemos as evidências. Consideremos de perto o cimentos e colocavam a saúde em risco, mas as
reassentamento do povo Weriai de Buruhwą. pessoas nunca voltaram à ocupação altamente
Os oficiais de patrulha que encontraram os concentrada em casas comunais que predomi-
Weriai em meados da década de 1950 prova- nava antes do contato com o Ocidente. Assim,
velmente ficaram desnorteados com a disper- a “aldeia”, tal como surgiu em 1968, assumiu
são dessas pessoas. De modo a endireitar as a forma de uma fileira esforçada de casas, com
coisas – e acidentalmente aumentar o potencial “núcleos” de concentração perceptíveis, disper-
de mão de obra local – solicitaram que todos sas por quase um quilômetro ao longo de um
os Weriai mudassem para Baianabo. (A medi- caminho desimpedido conhecido localmente
da não foi tão extrema quanto pode parecer; como a “estrada do grande carro do governo”
os Kurube alegaram que estavam “se dirigindo (Fig. 4.5). Os nós ou povoados (designados de
lentamente” para Baianabo de qualquer modo, A a D na Fig. 4.5) provavelmente representam
e esse tipo de “movimento em câmera lenta” pessoas que compartilhariam a mesma casa co-
era, de fato, bastante característico desses mo- munal em condições pré-contato.
vimentos demográficos.) Por volta de 1960, As próprias pessoas não possuem termos
todos os Weriai de Waramaru, bem como vá- gerais para esses povoados. Embora possam
se referir a eles como be’, essa palavra é mais
frequentemente usada em conexão com as ca-
sas propriamente ditas e seu uso é, portanto,
ambíguo. Ademais, embora as pessoas com
frequência se refiram ao povoado A como be’
Kilibali, a B como be’ Noruai e a C ou D (ou a
ambos) como be’ Kurube, qualquer um desses
nomes pode ser usado em referência à aldeia ou
ao complexo como um todo. Por vezes o termo
Weriai é aplicado a todo o complexo, mas isso
raramente ocorre no interior da própria aldeia.
Fig 4 - Vista de Kurube (povoado C) em 1964. Embora as “casas É mais comum que não se faça referência algu-
enfileiradas” estejam se deteriorando, a grama foi cortada e a es- ma ao complexo como um todo. Em seu inte-
trada escavada para esperar a visita do Oficial de Patrulha. rior, termos como Kilibali, Noruai e Kurube
podem ser usados para traçar distinções, em- se diferenciar: os membros de cada um deles
bora eles caracteristicamente não deem conta chamam seu próprio povoado de “Kurube” e
do fluxo reduzido, mas perceptível, de pesso- improvisam um nome para o outro na hora
as que transitam de um povoado a outro. De Uma vista de olhos sobre a real distribuição
fato, os povoados C e D, formados pela divisão das casas (Fig. 6) mostra que os próprios nodos
de um povoado maior a partir de 1966, ainda não são muito definidos. Em primeiro lugar, vá-
não encontraram meios verbais efetivos para rias pessoas que, de outro modo, poderiam viver
em A e B passam a maior parte de seu tempo em de eliciação indireta, ela assume uma aparência
casas menores localizadas em seus roçados. Mas, distinta a cada mudança de perspectiva do ob-
mesmo no mapa, verifica-se a curiosa anomalia servador. Examinamos o traçado real das casas
da casa marcada com um “X”. Ela parece estar concretas e descobrimos que ele é apenas va-
situada exatamente no meio, entre C e D. Existe gamente representativo do “agrupamento”. Se
um bom motivo para isso. Dos dois homens que escolhermos diferenciar os povoados com base
moram nela com suas famílias, um tem uma re- nas distinções nativas usuais (Tabela 1), desco-
lação próxima com as pessoas de D, mas obteve brimos que cerca de 80% dos residentes podem
sua mulher roubando-a do homem mais pode- ser atribuídos à be’ Weriai – cerca de 40% para
roso de D. Se falarmos em “grupos” definidos, Noruai e 40% para Kurube (sem considerar o
fica difícil decidir qual afiliação atribuir a essas fato de que os últimos na verdade compreen-
pessoas, mas felizmente, para eles ao menos, o dem dois nodos, ou be’). Mas se, ao invés disso,
problema nunca se coloca. realizamos uma investigação da ancestralidade
Esses povoados “aculturados” não são gru- paterna dos chefes masculinos das unidades
pos mais literal e deliberadamente constituídos residenciais (lembrando que eles são “automa-
do que os povoados mais dispersos que existiam ticamente” partilhadores de carne com seus des-
antes do controle do governo. Eles se misturam cendentes e, portanto, com seus próprios pais),
como uma socialidade contínua que parece cla- encontramos uma situação bastante distinta
mar pelas distinções que efetivamente a eliciam. (Tabela 4.2). Nesse aspecto, apenas cerca de me-
Trata-se de uma socialidade adaptada à maneira tade das pessoas são be’ bidi Weriai, e Noruai e
como os nativos lidam com ela (que é, de fato, Kurube perfazem, cada um, cerca de 25% do
uma forma de criá-la), a qual surgirá em qualquer total, ao passo que a maior parte do restante não
lugar ou momento em que as pessoas escolherem é nem mesmo identificada como Para.
lidar com ela assim. Se essa forma particular de
socialidade parece de alguma forma adaptada à Tabela 1 - Identidades coletivas em Baianabo-Sonianedu
noção de sociedade do homem branco, isso ocor- (1968) com base no local de residência
re apenas porque as pessoas elas mesmas foram
fortemente coagidas a causar essa impressão. Elas Termos de Número de Porcentagem
referência pessoas do total
também têm o hábito de vestir roupas de estilo
Kilibali
ocidental, o que começou em parte porque outsi-
povoado A 33 14,1
ders desejavam que se vestissem como ocidentais. em casas no roçado 13 5,6
Isso não quer dizer, contudo, que elas usem suas Total 46 19,7
roupas da forma como os ocidentais o fazem, Weriai
que as tratem como os ocidentais as tratam, ou Noruai
que pensem sobre elas como eles pensam. povoado B 83 35,4
Entretanto, se considerarmos as pessoas de em casas no roçado 13 5,6
Total 96 41,0
uma certa forma, ignorando ou não enxergando
Kurube
as diferenças significativas, elas parecerão oci- povoado C 42 17,8
dentais. Analogamente, se considerarmos sua povoado D 37 15,8
vida social de uma certa forma, veremos essas casa X 13 5,6
“aldeias”, grupos, corporações ou sistemas jurais. Total 92 39,2
Não obstante, porque a socialidade nativa não Total 188 80,2
resulta de “agrupamento”, mas é antes produto Total geral 234 99,9
traduzido de
WAGNER, Roy. “Are There Social Groups in the New Guinea Highlands?” In:
LEAF, Murray. Frontiers of Anthropology. Nova York: Cincinnati: Toronto: Londres:
Melbourne: D. Van Nostrand Company. 1974. pp. 95-122.
Recebida em 14/06/2010
Aceita para publicação em 14/06/2010