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Resumo
Abstract
Em 1964, ano em que João Goulart foi deposto e assumiu o General Castello
Branco através do Golpe Militar, foi lançado o curta-metragem Brasília, planejamento
urbano, de Fernando Coni Campos. O filme é um documentário expositivo1 que mostra
imagens da nova capital guiadas por uma narração over baseada num relatório
elaborado por Lúcio Costa, o urbanista que, junto com o arquiteto Oscar Niemeyer,
formulou o planejamento urbano da cidade. Numa entrevista concedida ao periódico O
Pasquim, o cineasta baiano conta que este curta foi o seu primeiro filme, realizado após
ter trabalhado no escritório de Lúcio Costa e, na época, havia a intenção do Instituto
Nacional de Cinema de fazer um filme sobre a capital, pois “sempre que se falava em
Brasília, falava-se em arquitetura” (CAMPOS, 1974). Apesar do início da sua trajetória
ser marcado por esse primeiro filme oficial bastante “quadrado”, o cineasta dirigiria
mais tarde uma obra como Viagem ao fim do mundo (1968), lançado em pleno ano do
AI-5 durante a intensificação da repressão no governo Médici; trata-se de um longa
1
Segundo Bill Nichols (2005), o modo expositivo é caracterizado pelo predomínio da voz de Deus no
filme, assim chamada por ser onisciente e descorporalizada, que fala diretamente ao espectador e
apresenta imagens meramente ilustrativas, numa montagem encadeada segundo as evidências a serem
mostradas para embasar a lógica argumentativa.
bastante alegórico e ensaístico, com inflexões acerca dos regimes autoritários ao redor
do mundo a partir da montagem de imagens de arquivo. No entanto, a obra foi
injustiçada pela crítica cinematográfica, como afirmou o próprio Jean-Claude Bernardet
(2011), que atribui o esquecimento do filme ao seu teor religioso, num tempo em que a
crítica e os cineastas estavam contaminados pela visão da religião como “ópio do povo”.
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As sinfonias urbanas foram um gênero profícuo nos anos 20 do século passado, com filmes como O
homem com a câmera (1929), de Dziga Vertov, Chuva (1929), de Joris Ivens, Berlim, sinfonia da
metrópole (1927), de Walter Ruttman, entre outros. Esses filmes apresentavam uma montagem
fragmentária de planos da metrópole sob o ritmo das sinfonias, caracterizados pelo virtuosismo plástico e
pelo lirismo das imagens e sons que transmitiam a experiência urbana acelerada nas grandes cidades.
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O desenho de Brasília tem o formato de um avião, e os componentes da concepção urbanística da capital
seriam segundo Lúcio Costa (2012): o eixo monumental, constituído pela Praça dos Três Poderes, a
estrutura da plataforma rodoviária, e a Esplanada dos Ministérios, e levaria, segundo ele, o nome de
monumental não pela ostentação, mas pela consciência de seus significados; o eixo rodoviário-
residencial, onde o tráfego de veículos se separa do tráfego de pedestres, e as superquadras seriam as
unidades de vizinhança, com parques, lojas de bairro, etc. As superquadras foram imaginadas por Lúcio
Costa como resistência à massificação, e ele acreditava que a morada do homem comum haveria de ser o
monumento do seu tempo.
não obteria o certificado e poderia haver consequências mais graves” (BERNARDET,
2001). Então, o diretor depositou uma cópia na Cinemateca do Museu de Arte do Rio de
Janeiro. Além disso, o curta-metragem havia sido financiado pela fabricante de
máquinas de datilografar Olivetti, e encomendado de acordo com a total liberdade do
diretor, mas foi rejeitado pela empresa e também por Niemeyer, por apontar a
irrealidade da utopia modernista ao ser colocada em prática no contexto do
subdesenvolvimento. O filme trazia comentários sobre as demissões em massa da
Universidade de Brasília (UnB) durante a ditadura militar, e refletia, a partir das
promessas não-cumpridas da utopia do modernismo arquitetônico, sobre o fracasso do
cinema moderno ao não alcançar as massas em prol das mudanças sociais. No filme, o
Plano Piloto está para os moradores das cidades-satélites assim como o cinema novo
está para os espectadores das classes menos abastadas.
Guy Debord elabora um cinema que usa vários princípios situacionistas, a exemplo
de Sobre a passagem de algumas pessoas através de uma unidade de tempo bastante
curto (1959), em que, como sugere o título, alguns personagens colocam em prática a
deriva e a psicogeografia, além de filmes como Uivos para Sade (1952), A sociedade do
espetáculo (1973) e Crítica da separação (1961). Ele usou uma ampla variedade de
imagens de arquivo em seus filmes, a exemplo de filmes hollywoodianos, filmes de
propaganda soviéticos, planos de revistas em quadrinhos, fotos de revistas de moda e
publicidade.
N’A sociedade do espetáculo, Debord afirma que a história sempre existiu, mas
não sob a forma da história, pois a apropriação do tempo se inicia a partir da sociedade
de classes. Os proprietários do tempo detém o conhecimento, e “a história sobrevém,
pois, perante os homens como um fator estranho, como aquilo que eles não quiseram e
do qual se julgavam abrigados” (DEBORD, 1991 p.105). Eles construíram uma
memória impessoal vinculada ao poder administrativo, pois “os escritos são o
pensamento do Estado; os arquivos, a sua memória” (NOVALIS apud DEBORD, 1991
p.107). Para Debord, aqueles que detém a propriedade privada da história, a mais valia
temporal (o nosso tempo é dominado pelo trabalho e o tempo da história é dominado
pelas grandes narrativas), eles inventam a história sob a proteção do mito e ao modo da
ilusão.
E é contra esses mitos e essas ilusões que atua o desvio. No “anti-filme” Crítica da
separação, o narrador afirma, sobre a decupagem de um fotograma de um filme
histórico hollywoodiano, que “as aventuras que nos apresentam fazem parte da massa
de lendas transmitidas pelo cinema ou outras formas, são parte de toda a farsa
espetacular da história”.
Brasília, planejamento urbano traz imagens aéreas enquanto a voz over apresenta
didaticamente o eixo monumental através de uma plena correspondência entre imagens
e palavras: “Praça dos Três poderes, Esplanada dos Ministérios, este é o eixo
monumental, nele localizou-se a parte administrativa da nova capital”. Esses
enquadramentos dão a ver a cidade como uma maquete disposta ao olhar de um
observador onisciente e onividente “desencarnado” na voz do narrador. Nisto reside o
pacto entre forma fílmica e o discurso utópico e urbanístico, que cria a cidade como
sujeito anônimo e abstrato submetido a um olhar totalizante e ao controle, ou, nas
palavras de Michel de Certeau, “ser apenas este ponto que vê, eis a ficção do saber”
(1998, p.170).
Superquadra é um quadrilátero de 240 por 240 metros, rodeado por uma área
arborizada de 20 metros de largura. Dentro das superquadras, os blocos
residenciais podem dispor-se da maneira mais variada, obedecendo, porém, a
dois princípios gerais: gabarito máximo de seis pavimentos, mais piloti e
separação do tráfego de pedestres.
3- Filme-desvio
Longe desse bulício estão os cemitérios situados dos dois lados do eixo
rodoviário. Essa localização evita os cortejos através da travessia do centro
urbano. Terão chão de grama e serão convenientemente arborizados, com
sepulturas rasas e lápides singelas, à maneira inglesa. Tudo desprovido de
qualquer ostentação.
Não por acaso, Brasília, contradições de uma cidade nova termina com imagens
da Praça dos Três Poderes, e o narrador afirma que “é preciso mudar esta realidade, para
que no rosto do povo se descubra o quanto uma cidade pode ser bela”, seguindo-se
imagens dos operários numa obra em construção. Como afirma Agamben, “e o rosto é o
único lugar da comunidade, a única cidade possível” (1996, p.74), pois o rosto é a
revelação da própria linguagem, é o sujeito exposto que é unicamente abertura e
comunicabilidade, encontrando-se aí o sentido político do rosto, pois “a exposição é o
lugar da política” (AGAMBEN, 1996 p.74). Para Agamben, a desidentificação das
qualidades do sujeito no rosto visto como um fora devém pura comunicabilidade.
Assim, nesse filme-desvio, a crítica da linguagem espetacular e da verdade oficial se dá
de modo concomitante a uma busca por uma linguagem e uma comunicação a ser
recuperada em prol da transformação do mundo. A obra onde os operários trabalham e a
obra de arte são aproximadas metaforicamente, e o filme mostra que é necessário
construir outro mundo não a partir dos intelectuais, como propunha a utopia modernista
e também o cinema novo, mas sim do próprio povo. Em Brasília, contradições de uma
cidade nova, o rosto é o tópus da utopia, é a manifestação do devir.
Como afirma João Emiliano (2006) acerca da aproximação entre o desvio de
Debord e o devir segundo Kierkegaard, Debord almejava a constituição de um comum
através da linguagem que decorre da construção e destruição de sentidos sem cessar
num devir histórico.
Segundo Kierkegaard, o passado não pode ser refeito, mas nem por isso ele é
necessário: ele não é mais necessário nem mesmo do que o possível. Necessidade é a
unidade entre possibilidade e realidade, o que implica uma distinção do ser, mas não da
essência (o que diferencia possibilidade e realidade é que a primeira é não-ser e a
segunda é o ser). É preciso lembrar que o passado deveio através da mudança em
liberdade. O passado não se torna necessário por causa de uma concepção, e “toda
concepção do passado que pretende tê-lo compreendido a fundo ao construí-lo, não faz
senão ludibriar-se profundamente” (KIERKEGAARD, 2008 p.114). Além disso, o
passado não é mais necessário do que o futuro, o que implica dizer também que o futuro
pertence à liberdade. Para Kierkegaard, o histórico não é o passado, mas “consiste em
que ele veio a ser (para o contemporâneo), consiste em que ele foi um presente por ter
vindo a ser (para o póstero)” (2008, p.126). O fato histórico mantém-se em aberto, pois
“aquele fato é tão pouco necessário enquanto futuro como enquanto passado”
(KIERKEGAARD, 2008 p.127).
5- Referências bibliográficas
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Torino, 1996, p. 74-80. Trad. Murilo Duarte Costa.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. 3°
edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
CHAUÍ, Marilena. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.
CHION, Michel. El sonido – música, cine, literatura. Buenos Aires: Ediciónes Paidós Iberica, 1999.
DEBORD, Guy e WOLMAN, Gil. Modes d’emploi du détournement. Les lèvres nues, Bruxelas, n.8,
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EMILIANO, João Fortaleza de Aquino. Kierkegaard e Debord: o devir, a ambiguidade e o desvio. In:
Memória e consciência histórica. Fortaleza: EdUECE, 2006 (Coleção Argentum Nostrum).
P.161-180.
JACQUES, Paola Berenstein. Apresentação. In: JACQUES, Paola Berenstein (org.). Apologias da
deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. – Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
KIERKEGAARD, Sören. Migalhas filosóficas: ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. 2°ed. –
Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
HOLSTON, John. A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo – Companhia
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