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Pele de Cristal
Helena Damasceno
– 2008 –
Pele de Cristal 3
Capa:
Concepção: Helena Damasceno
Design: Yuri Yamamoto
Revisão Ortográfica e Gramatical: Érica Azevedo
Revisão Final: Helena Damasceno
Diagramação: Wagner Moreira
Edição: Pouchain Ramos
1ª Edição
4 Helena Damasceno
“Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu
Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil
Minha experiência maior seria ser o outro dos outros:
e o outro dos outros era eu”.
Clarice Lispector
Pele de Cristal 5
Dedico esse livro
Pele de Cristal 7
8 Helena Damasceno
Agradeço
Pele de Cristal 9
10 Helena Damasceno
Sumário
Apresentação ............................................................................................ 13
Prefácio ...................................................................................................... 15
Introdução ................................................................................................. 17
A primeira carta ........................................................................................ 22
Capítulo I - Coragem pra falar ............................................................... 29
Capítulo II - Amarelinha pra pular ........................................................ 37
Capítulo III - Braile de calçada .............................................................. 43
Capítulo IV - Braços abertos quebrando o silêncio............................ 50
Capítulo V - Força de horizonte ............................................................ 58
Capítulo VI - Dona do dom ................................................................... 63
Capítulo VII - A mensagem da água ..................................................... 73
Capítulo VIII - Da gangorra das crises ................................................ 79
Capítulo IX - Hóspede do tempo.......................................................... 89
Capítulo X - Da beleza submersa ........................................................103
Capítulo XI - O que onda no mar .......................................................110
Capítulo XII - Mãos ao assalto da pantera sem cor..........................119
Capítulo XIII - Máscaras de azeviche .................................................126
Capítulo XIV - Suor de vidro...............................................................131
Capítulo XV - Diário de chão ..............................................................142
Capítulo XVI - O cale-se ......................................................................147
Capítulo XVII - Inverno .......................................................................154
Capítulo XVIII - Sobre o tempo: 1978 - 1985 ..................................161
Capítulo XIX - Do apego ao universo do cativeiro interior, as marcas
desse caminho.........................................................................................167
Capítulo XX - Percorrendo o caminho de amor, uma outra etapa ........ 174
Capítulo XXI - Meus sinais ..................................................................177
Capítulo XXII - O tratamento de adultos que foram vítimas de vio-
lência sexual quando crianças ...............................................................182
Capítulo XXIII – Comentários do Blog Pele de Cristal .................. 188
Pele de Cristal 11
12 Helena Damasceno
Apresentação
Pele de Cristal 13
uma teia de afetos e da construção de outros patamares de direitos, de outros luga-
res de sujeitos.
Estamos enredadas, eu, você e muitos outros e outras nessa tarefa de fazer
valer a vida de tantas crianças e adolescentes que ainda gaguejam e apenas tateiam
oportunidades sólidas de crescimento e reconhecimento. Estar aqui “escrevinhan-
do” esse texto de apresentação muito me honra e me alegra. Isso significa dizer que,
de algum modo, pessoas como eu e você, obstinadas pela vida, embora delicadas,
envoltas em peles de cristal, não se deixam calar, não resumem suas existências entre
quatro paredes. Somos do mundo, do mundo em carne viva. Do mundo que dói e
encanta. E é isso que esse livro de Helena provoca, uma dor e uma vontade de nun-
ca mais calar, de fazer mover todos os sentidos, e velejar no oceano (...) do reencantamento
com a própria oportunidade que é a vida.
Glória Diógenes
Fortaleza, junho de 2008
14 Helena Damasceno
Prefácio
Lindo texto, forte texto, doce texto...
Poucos seriam os adjetivos para traduzir a beleza e importância desse livro e o
quanto ele toca na alma das pessoas que têm o privilégio de serem conduzidas por
Helena pelos caminhos melodiosos das suas palavras, que explodem incansavelmente.
Algumas vezes encantando e hipnotizando como as luzes, sons e cores dos fogos de
artifícios; outras vezes nos rasgando a alma como uma lança, um punhal que escancara
a verdade, expõe a carne, obrigando-nos a ver o que teimamos não enxergar.
Nestes últimos nove anos tenho convivido, a partir da minha inserção profis-
sional2, com situações de abuso sexual e lidado cotidianamente com os desafios que
essa questão lança diariamente sobre nós. Lembro-me particularmente das dificul-
dades iniciais, do esforço em construir um saber, em encontrar bibliografia na época
sobre o tema, em ir aos poucos montando esse quebra-cabeça.
Pele de Cristal não apenas socializa o conhecimento, o que por si só já seria
extremamente importante, mas Helena nos pega pela mão e nos faz acompanhar o
seu processo de elaboração simbólica diante do sofrimento, se propõe a socializar o
amor, as suas feridas, a sua historia, suas fraquezas, e essa atitude destaca-se como
extremamente bonita, importante e única. As marcas da violência sexual não se en-
cerram nas páginas de um livro teórico e este livro traz uma abordagem diferente
e complementar à bibliografia teórica.
Li atentamente Pele de Cristal e posso afirmar que foi um dos textos mais
profundos, fortes, honestos, ácidos e paradoxalmente mais lindos que já li, amplian-
do de forma decisiva a minha visão e entendimento sobre o assunto e sem dúvida
tornando-me uma profissional e pessoa melhor. Esses quase 10 anos de trabalho na
área me ensinaram que grande parte da nossa conduta profissional começa primei-
ramente com a nossa atitude individual como pessoa, com os nossos preconceitos
e valores, e também nessa perspectiva esse livro dá uma valiosa contribuição. É
impossível não ser afetado por ele.
À mercê da relevância do tema e do texto, da extrema sensibilidade com que
o assunto foi abordado, esse livro com certeza será de suma importância tanto na
formação de profissionais, oportunizando a potencialização do seu entendimento
acerca da dinâmica do abuso sexual, oferecendo outro olhar acerca da temática, con-
duzindo o leitor a percorrer a construção de caminhos resilientes, bem como poderá
auxiliar pessoas que como ela, vivenciaram a experiência da violência sexual, mos-
trando que é possível trilhar um caminho de superação e resiliência, reafirmando
o humano como aquele capaz de superar adversidades e situações potencialmente
traumáticas e rompendo com a noção na qual o sujeito se vê aprisionado a um ciclo
sem saída.
2 Inicialmente atendendo clinicamente crianças e adolescentes em situação de abuso sexual e atualmente
coordenando o setor psicossocial do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente da Bahia (Cedeca) e
capacitando profissionais da área para esse atendimento especializado.
Pele de Cristal 15
O abuso sexual é um verdadeiro campo minado para todas as pessoas envol-
vidas, sejam as que sofreram abuso, as famílias, as que abusaram e os profissionais
envolvidos no tratamento e no cuidado. É grande o silêncio que cerca essa questão,
onde existe a reticência e o medo das crianças em falar, e a surdez e o medo dos
adultos e da sociedade, em escutá-las. Tais fatos permanecem dissimulados devido ao
silêncio que os cerca, sendo muito difícil formar uma idéia exata da amplitude desse
problema, por outro motivo não fosse a coragem de algumas vítimas em falar.
O relato de Helena deixa muito claro o que os livros tentam traduzir, de que
a criança abusada é sacrificada aos interesses de um outro, deixando evidente que
o trauma sofrido não se resume ao contato sexual propriamente dito e que muito
mais graves são as sevícias afetivas, a violência psicológica, o aniquilamento da auto-
estima que essas situações impõem. Helena enfrentou as próprias barreiras, estava
presa aos laços de ódio e apatia que a imobilizava, e como ela mesma diz, deixou
parir a dor, deixou fluir a energia que movimenta a vida, olhar pra ela de frente, de
cabeça erguida e ver que há outras possibilidades, descobrindo que “A dor não é
nossa única fonte de vida”. Helena nos ensina que as vítimas de violência sexual
habituam-se a sofrer e sentir dor, porque essa é a realidade que conhecem e que a
comodidade de já conhecer aquele movimento de culpabilização, aquela realidade
de sofrimento, acaba impedindo-as de gerar força e movimento, de deixar de lado a
comodidade imperativa pra saltar num abismo que não se conhece.
E Helena fez isso com uma coragem e força absurdas, abrindo a porta da sua
alma com delicadeza, presenteando a todos nós com uma oportunidade única de
compreender através de uma lente especial a sua trajetória, de ter acesso ao universo
subjetivo de quem passou pela experiência da violência sexual e por que não dizer
também, de receber o amor e positividade que ela irradia. Esse livro se apresenta
como uma esperança e, acima de tudo, reforça uma proposta ética que impulsiona
a ação e o engajamento.
É importante salientar que Helena nos traz o início da sua caminhada e que os
novos passos dessa caminhada acontecerão dentro de uma dinâmica ativa, ao longo
do ciclo normal da vida que ainda prossegue. A lição que o livro nos deixa, indepen-
dente das nossas histórias particulares de vida, é a possibilidade da construção de
novos caminhos e a necessidade de abandonar atitudes acomodadas e negativas, de
enfrentar com doçura e coragem as novas exigências, buscando a poesia nos deta-
lhes, explorando com toda a intensidade e entrega os acontecimentos e desafios que
se faz presente diante de nós, dia após dia.
Desejo sorte para Helena, para este trabalho e que ela continue trilhando
seu caminho, irradiando amor e a transparência dos cristais. Ler esse texto é sentir
cheiro de flor.
Karin Koshima
Salvador, fevereiro de 2007.
16 Helena Damasceno
Introdução
Durante muito tempo desejei que tudo que vivi fosse fruto de mera ficção,
mas não é, nunca foi. E nunca tinha pensado em escrever minha história, nunca.
Durante as sessões de psicoterapia recebia uma sugestão: “escreve sobre isso que
você tá falando Helena, vai ajudar tanta gente”. Eu ria, não entendia como uma história de
tanta dor pudesse ajudar alguém e, claro, tinha certeza de que a minha fala era um
conjunto de besteiras que mais ninguém, salvo minha psicóloga, devia ouvir.
Navegava pela Internet certo dia ruminando meus sentimentos, pensando na
sugestão recebida, quando decidi, quase que por intuição, criar o Blog Pele de Cristal.
Escrevi inicialmente um pequeno texto, sem pretensões outras. Depois de um mês,
escrevi outro e não parei por três meses. No início mal sabia o que estava fazendo,
escrevia tão somente seguindo o processo psicoterápico e a minha intuição, deixava
acender uma luz dentro do meu quarto de dor; e fazia isso inicialmente sem noção
alguma de que um livro se materializava ali, diante da tela do meu computador.
Logo na primeira semana, recebi alguns contatos que me parabenizavam pelos
capítulos do meu livro. Assustei-me e neguei, evidentemente, que estava escrevendo
um. Mas, com o tempo, percebi não só que Pele de Cristal tinha essa autonomia,
quase como uma “vida independente de mim”; como também fui naturalizando
meu processo, fui deixando minha criança machucada vir à tona e passei a cuidar das
minhas feridas com mais amor e respeito, aceitando assim, com coragem e delica-
deza, o livro Pele de Cristal.
Sacralizei minha dor num altar escuro de culpa, vergonha e medo por toda
a vida e decidi, nesse meu processo de cicatriz, expurgar todo esse peso e ser livre
e feliz, sem culpas ou medos. Quando comecei meu caminho sabia que tinha de
enfrentar um adversário poderoso: a culpa. Mesmo assim segui em frente porque já
sabia do passado, já o tinha vivido, e conhecia muito bem como era ficar enterrada
na revitimização dos medos e do vazio sem fim.
O que queria a partir dali era o contrário desse passado ruim, queria expe-
rimentar o que era bom, exercitar a delicadeza que havia em mim e degustar o
presente num prato cheio de vida, uma vida integral e mais leve; queria deixar que
as feridas cicatrizassem e viver o tempo de cada processo sem maiores dores e an-
siedades, enfrentar meus medos e todas as conseqüências da violência sexual que
sofri de cabeça erguida, com os pés no chão do presente de meus passos, não mais
num passado de dor e peso.
Assumi que é possível isso, e se assumir internamente é dar um passo signifi-
cativo, é movimentar-se nesse quarto pessoal de dor tão denso e tão cheio de pó. Nesse
processo de cicatriz, tenho enfrentado com dignidade toda a dor da minha história.
Juntar minhas pecinhas não é tão fácil assim, mas traz o significado da leveza e da
vitória, materializa essa leveza na minha vida e me torna leve e feliz.
O primeiro passo veio de um lugar que é conhecido pela frieza e pré-dis-
Pele de Cristal 17
posição aos golpes e afins: a Internet. Busquei ajuda no site de relacionamento
Orkut depois de sucessivas crises depressivas ao longo da vida e de terapias
quebradas, porque, interrompidas, não somavam sucesso efetivo. Havia escrito
uma carta muito dura e, depois de mais ou menos um mês tomando fôlego,
espiando e lendo os relatos nas comunidades, identificando-me com a maioria,
criei coragem e decidi publicar parte dessa carta numa das comunidades rela-
cionadas às vítimas de violência sexual na infância, naquele mesmo site. Postei
com foto e perfil identificados, nada de anonimato.
Naquele momento queria ajuda, buscava quase que minha última tentativa ali;
gritava socorro enquanto a dor me rasgava o resto de alma que ainda tinha, pois me
via sem vida, quase como um zumbi andarilho e solitário. E recebi de volta muito
afeto, respeito e dignidade das pessoas que entenderam e atenderam meu SOS. A
partir dali dei um passo mais quando conheci pessoas que tinham passado pela
mesma experiência de violência que eu. Pouco tempo depois estávamos já de mãos
dadas, numa relação de luz, apoio e incentivo, quase como um grupo de auto-ajuda
no espaço virtual. Não sabia como me faria bem conhecer alguém igual a mim e a
relação de amizade e afeto com as “meninas das comus”3 , como costumo carinho-
samente chamá-las, me foi peça fundamental para optar pela vida, para chegar até
aqui, nesse espaço de cristal, caminhando tão leve, segura e tranqüila.
Alguns dias depois desse momento inicial, passei a fazer psicoterapia com
uma profissional que me facilita, com doçura e ética, esse processo de reconstrução,
libertação e cura. Começamos a caminhar em seguida, já em psicoterapia, e sempre
acessando com seriedade, comprometimento e paciência meu quarto de dor, pusemo-
nos a mexer no baú da vitimização, do medo e da culpa. Foi duro... Nunca disse que
tem sido fácil esse enfrentamento, mas friso a importância da psicoterapia nesse
processo de amor e reconstrução.
Minha psicóloga sempre acessou com muita delicadeza minhas feridas, abrin-
do junto comigo, e, sem nenhum movimento brusco, minhas janelas para que eu
mesma percebesse quanta luz havia em mim. Destaco que deve existir, sempre e em
primeiro plano, um comprometimento interno, um movimento de seriedade e amor
por si mesma nessa ação de cuidar do eu, relativizando a paciência e a serenidade
para abrirmos nossas portas internas. Depois veio outra etapa: a de mexer nas fe-
ridas abertas e enfrentar mais intimamente meus fantasmas para me preparar para
outros processos; um deles, o livro. Sabia que muita poeira havia ainda debaixo do
meu tapete, muitas arestas ainda a compreender e a ressignificar nessa caminhada,
mas segui de cabeça erguida.
Divido minha história em três momentos para facilitar a apresentação e com-
preensão de todos que irão ler as páginas que se seguem a essas linhas. Tecnica-
mente chamo o primeiro momento de exercício direto da violência ou violência
ativa; o segundo de violência indireta e o terceiro de ressignificação. Cada etapa
3 Citação de referência às pessoas que participam das comunidades do site de relacionamento Orkut sob
a temática da violência sexual.
18 Helena Damasceno
sugere uma época específica, emocionalmente falando. O primeiro momento faz
referência aos primeiros anos de abuso sexual e todo o seu período de instalação ini-
cial. Vai do final dos anos 70 até meados dos anos 90, quando saio de casa e assumo
as conseqüências da violência duramente. O segundo momento arrasta-se a partir
deste e segue até 2005, quando começo a trilhar este caminho de ressignificação
através da psicoterapia, do blog e do livro.
Vários passados se encontram ao longo do livro. Não há uma ordem exata-
mente clara nos textos, uma ordem cronológica literária por assim dizer, mas há,
entretanto, uma cronologia emocional, a catarse de uma sincronia de fatos, épocas,
dados e datas que formam e exemplificam a teia incestogênica da família que me
desagregou o espaço do lar e o espaço interno durante algum tempo. É claro que
essa divisão é percebida apenas subjetivamente, pois todo esse livro é o resultado de
um processo psicoterápico específico e, esse relógio interior está sob tutela e ordem
da emoção. Portanto, esse link técnico, quase pedagógico, dá espaço ao longo do
livro Pele de Cristal à subjetividade e a uma intensa meditação interior. Há também
que se evidenciar, uma forte evolução no texto, de delicadeza ascendente no sentido
de superação e resiliência.
Segui quase o mesmo formato do blog, de postagens diárias, continuando a
linkar os textos entre si, salvo por algumas alterações imprescindíveis e determinan-
tes. Cada capítulo inicia com a idéia final do anterior para que a energia circulante
nos textos esteja equilibrada sempre. A primeira carta, que deu início a todo esse
movimento, abre o livro para que se evidencie meu ponto inicial; de onde saí cami-
nhando até os primeiros passos com a psicoterapia, o Blog e agora o livro. Fiz de-
pois uma releitura das publicações no Blog, juntei alguns textos, aprofundei outros,
outros mais excluí e dei uma identidade mais coesa e necessária ao livro.
Há ainda um capítulo interativo, uma construção coletiva que traz alguns dos
comentários que, ou recebi por e-mail, ou que foram publicados no Blog. Capítu-
lo esse que pelo qual, tenho um carinho especial. Denota toda a subjetividade da
partilha do Blog Pele de Cristal, o que ele trouxe e deixou em mim e nas “meninas
das comus”. É um capítulo de profundidade e entrega, de muita troca e pedidos de
ajuda, de sinceridade acima de tudo e de afetividade sempre.
Algumas participações muito especiais me foram presenteadas durante a or-
ganização deste livro. Glória Diógenes que nos presenteia com seu encantamento
pessoal e experiência profissional apresentando Pele de Cristal anunciando uma teia
de esperança e vida. Karin Koshima com a força do prefácio corrobora com sua ale-
gria pessoal e competência imprescindíveis. Débora Machado faz o mesmo trazendo
ao livro uma questão quase esquecida na bibliografia teórica: o tratamento de adultos
que foram vítimas de violência sexual quando crianças. Contribuições únicas e espe-
cialíssimas e que só abrilhantam com sua beleza e qualidade o objetivo deste livro.
Enfim, o universo de Pele de Cristal é forte e intenso, entretanto, cabe ao lei-
tor definir sua forma de interação com a história. Caso queira comece pelo fim, ou
quem sabe pelo meio, mas lembre-se de retornar ao início, pois toda essa história tem
Pele de Cristal 19
motivo na dor, e faz-se necessário que ela seja velada e posteriormente ressignificada
e reinterpretada.
É imprescindível notar quantas roupas vesti, quantos personagens vivi até
chegar a experienciar a verdadeira Helena, o Ser integral e livre a que caminho em
sua direção hoje. Mas nada foi perdido, nenhum descrédito ao que vivi. Meu mundo
é bem maior do que imaginava aos 13 anos e será mais ainda quando maturar-me à
melhor idade, ao melhor de mim.
Pele de Cristal é, portanto, o resultado do meu processo psicoterapêutico ini-
cial e de minha trajetória de luta pelo exercício de viver com dignidade, retirando o
peso da vitimização e da culpabilização das minhas costas e da minha alma. É, desta
feita, o início da minha caminhada de ressignificação e cicatrização, o resultado da
minha determinação e força pessoal e por que não dizer, da minha insistência em
viver.
Presenteio-vos com uma intensa e ácida, no entanto, linda viagem interior...
Bom passeio e seja muito bem vindo, ou bem vinda, ao meu cantinho...
Abra a porta, pode entrar...
Que Pele de Cristal lhe traga a mesma luz que me acendeu a vida!
Namastê!
Helena Damasceno
Fortaleza, dezembro de 2006.
20 Helena Damasceno
Sobre o tempo de dor e medo...
4 - O TDAH - Déficit de Atenção é uma condição de base orgânica, que tem por principais características
dificuldades em manter o foco da atenção, controle da impulsividade e a agitação - que é a hiperatividade. É
também chamado de DDA, THDA, TDAHI, entre outras siglas.
Fonte: http://www.dda-deficitdeatencao.com.br/
22 Helena Damasceno
rou isso de mim por muitos anos... Meu tio é um canalha, me usou e, sem saber,
acabou com a minha vida!
Apanhei muito quando criança; tive uma criação muito rígida. Não sei dan-
çar, acho meu corpo horroroso. Gente, eu até fedo! Sai um odor fétido de mim, por
mais que passe perfume, ou tome banho...
Não sei por que decidi escrever isso tudo... Talvez esperando que alguém me
diga que isso não é loucura, que também sente algo parecido. Ah! Morro de medo
de enlouquecer!
Quando era adolescente, contei pra uma professora de literatura, adorava
ela, achava que ela ia me ajudar! Ela disse que eu tinha que falar pra minha família
essas coisas. Uns dias depois, aconteceu de novo e contei novamente pra ela. Sabe o
que ela disse? “Ele estava armado? Te ameaçou? Ah! Então você gosta!”.
Me senti a pior das mulheres, mais imunda que nunca...
Ninguém nunca acreditou em mim, não quando eu precisava de ajuda!
Tinha vergonha de ir a uma delegacia, ia estragar a “harmonia” do meu lar.
Eu nunca tive um lar, aquilo era um inferno!
Saí pro mundo, gritei de muitas maneiras a minha dor, bebi, fiz inimizades,
me meti em fofocas, deixei o mundo pisar em mim. Mas aí dei o troco! Me transfor-
mei num poço de agressividade. Ninguém podia chegar perto de mim. Fiz trabalhos
voluntários pra desafiar a morte! Saía no meio da noite e voltava pra casa sempre
bêbada, a pé, esperando alguém pra me matar, ou me violentar.
A culpa me consumia...
Por dentro estava morta, não havia ninguém dentro de mim.
Briguei com Deus, seriamente. Abandonei-o várias vezes...
Contei outras vezes pra outras pessoas, mas elas só tiveram pena...
Fui noiva ainda adolescente, gostava da companhia dele. Passamos anos noi-
vos e nunca transamos. Na minha cabeça, ele me respeitava demais. Depois de um
tempo, terminei o noivado. A família dele me odeia até hoje, me chamam de “a
louca”. Doeu muito ouvir isso quase dez anos depois do fim de um relacionamento
pelo qual, na verdade, só queria fugir da vida infernal que tinha, fugir dos meus
pesadelos, e ele parecia ser a “chave do paraíso!”.
Meu paraíso se perdeu em algum lugar da minha história...
Ainda me sinto meio morta...
Lá em casa as pessoas sempre fingiram nada saber! Todos sabiam, agiam
como se fosse algo invisível, tão invisível que me tornei assim até pra mim mesma!
Minha mãe, meu pai, minhas tias, todos sabiam o que ele queria quando me chama-
va pro quarto dele ou pra qualquer outro lugar, aquele imundo!
Tenho nojo de bigodes, de cheiro de homem, de suor de homem! Tenho
nojo até de abraçar os homens que são meus amigos...
Tudo sempre foi muito ruim, muito difícil...
Minha família era daquele tipo: “Somos felizes lá fora, aqui dentro somos
um segredo, um disfarce”. Apanhava muito, por qualquer motivo. Pudera, tinha
Pele de Cristal 23
duas mães me disputando! Mãe e filha disputavam uma coisinha de pele e osso; meu
Deus, eu só tinha pele e osso! Fico imaginando como alguém pode ser tão doente
pra sentir prazer com uma criança!
Ele vendeu minha infância, minha inocência pro diabo! Perdi o melhor da
infância, da minha vida. Eu era um fantasma, tinha morrido pro mundo, estava mor-
ta por dentro e por fora. Eu não fui uma criança feliz. Vim pra droga desse mundo
pra servir de chacota pros titios alegres, palhaços. A mim pouco importa se eles
tinham tido uma vida difícil e escassa de bens materiais ou carinho dos pais...
EU NÃO ERA E NÃO SOU A RESPOSTA ÀS FRUSTRAÇÕES DE
NINGUÉM, DE NENHUM DELES!
Era uma criança que com 12, 13 anos teve pavor quando menstruou pela
primeira vez. Aquela criança pensava que ele a tinha ferido, pensava estar com uma
hemorragia, ou sei lá o quê!
Não entendi a cara de “feliz” da minha mãe biológica me entregando o ab-
sorvente, toda sorridente, pela porta do banheiro entreaberta. Nem sabia o que era
aquele sangue, e agora vinha aquele troço pra usar... E ela nem pra cuidar de mim,
pra me dizer que aquele sangue não era dele, não era de uma ferida aberta na véspera
que sangrava ali.
Fui uma criança que aos 15 anos ganhou de presente um estupro no jardim
de casa. As pessoas passando e aquela mão, aquela coisa me violentando, me usando
como se eu fosse uma caneta, um bombom, um nada.
Ele me chamava dizendo que uma amiga dele dos Estados Unidos tinha
mandado de presente pra mim uma cartela de adesivos da Pantera Cor de Rosa.
Adorava aquele desenho, era a isca que ele precisava. Eu ia, mas ele nunca me dava
a cartela, ficava só na promessa...
Queria ser professora, igual a ele. Minha mãe também queria que eu fosse
professora. Odiei por muitos anos essa profissão. Aquele palhaço me fez odiar mui-
ta coisa, e ainda faz.
Uma vez todo mundo lá de casa saiu. Papai e mamãe também, foram ao
supermercado. Estava sozinha em casa, um prato cheio; eu e meu bichinho de es-
timação à época.
Quando ele chegou entrei em pânico! Foi a primeira vez que aconteceu
numa cama. Ele me ameaçava, dizia palavras podres, ruins demais pra uma criança
ouvir. Aquele bigode imundo em mim, eu pedindo pra ele parar, mas não, não havia
nenhum movimento de arrependimento ou de dúvida. Ele estava determinado, e
me usou.
Chorava copiosa e mumificadamente. E não há como traduzir aqui a totalidade
dessa dor, porque não há palavras que a descrevam simplesmente, ou que objetivem
a profunda subjetividade desse momento. Meu animalzinho gritava no chão, de-
sesperado, parecia que ele ouvia meus gritos mudos e apavorados e gritava no meu
lugar. E o fazia certamente porque minha voz, muda e miúda, não conseguia dizer
nada, nenhuma gota de grito.
24 Helena Damasceno
Não tinha forças, me sentia um lixo absoluto! Naquele momento percebia
claramente que aquilo era um erro, mas nada podia fazer, ele era o filho perfeito da
mamãe: honesto, trabalhador. E ainda por cima dizia pra todo mundo que eu era a
sobrinha predileta dele. Ninguém ia acreditar em mim, iam dizer que era mais uma
das minhas mentiras, das minhas astúcias.
Aquele homem perguntava se fazia àquilo com outros, dizia que era gostosa.
Sentia um nojo descomunal, uma vontade agigantada de morrer! Mas não tinha
coragem nem pra me matar, nem pra isso servia! Era fraca até pra isso!
Quando ele terminou, levantou e saiu. Fiquei no quarto um tempo, quietinha,
chorando em silêncio. Minha alma sangrava gritante e muda, num carrossel confuso
demais pra minha cabecinha. Minhas pernas pesavam tanto que nem conseguia sair
do lugar. Fui pro banheiro quando a mamãe chegou. Fiquei lá por muito tempo.
Depois ela ficou reclamando do tempo que eu já estava no banheiro, batia
na porta e me mandava sair, dizia que estava gastando muita água; perguntava o
porquê da demora. Eu que chorava baixinho no chão, debaixo do chuveiro, fiquei
com ainda mais nojo de mim. Como ela podia não perceber nada?
Ele foi dormir, eu imunda, não consegui dormir bem, fiz xixi na rede e levei
uma surra na manhã seguinte por isso. Nada nunca foi fácil pra mim...
Mais ou menos nessa época, uma tia me conseguiu a prova do teste de sele-
ção de uma boa e tradicional escola católica. Todas as respostas certinhas. Bastava
que eu decorasse, apenas isso. Passei dias estudando, decorando a tal prova, fazendo
e refazendo as questões. Enfim o dia chegou, e zerei a prova, não acertei nenhuma
resposta. Na véspera, aconteceu de novo.
Não quero ter culpa, mas é difícil, difícil mesmo!
Minha tia deu um escândalo! Disse que eu era vagabunda, que nunca seria
alguém na vida, que ela tinha se esforçado tanto pra conseguir a prova, e nem pra
decorar eu servia.
Na verdade, ouvia isso seguidamente todos os dias depois de ter feito algo
errado. Quando derrubava algo, ou pegava o troco errado, quando queria dormir até
mais tarde no sábado, ou quando queria ouvir música – sempre gostei de música –,
quando não queria ajudar meu maravilhoso tio em algumas de suas tarefas, sempre
ouvia isso, mas naquele dia foi diferente.
Não entendia de verdade o que tinha acontecido. Tinha feito a prova tal
qual o modelo que a minha tia arranjou. Nunca entendi o que houve. Não sei o que
aconteceu com a minha cabeça. Era uma criança inteligente, mas a família em que
nasci dizia que eu era “astuciosa”. Na verdade, eu só queria fugir dali...
Todos os dias a família toda, todos os tios, tias, netos, todo mundo almoçava
na casa de mamãe, era um inferno pra mim! Depois da sesta do almoço todos senta-
vam no corredor e começavam a falar de esporte, violência, da vida dos outros; até
que entrava a mais nova bobagem da coisinha aqui. “Mas não tem jeito mesmo, essa daí
não vai ser nada mesmo. Te ajeita menina, vê se toma jeito, a vida não é uma brincadeira não”.
Eu sabia bem disso...
Pele de Cristal 25
A mesma tia que me arranjou a prova do colégio me obrigou a estudar lá
mesmo assim, por meio de uma bolsa de estudos. Só precisava estudar, criar vergo-
nha na cara. Mas meu tio não me deixava em paz. Ele me fazia ameaças e eu tinha
muito medo dele.
Reprovei na escola de maneira deplorável. Antes era uma boa aluna, com
notas regulares. Será que ninguém percebia que havia acontecido algo errado comi-
go? Que nada! O umbigo deles era mais importante! Minha família no lugar de me
apoiar, ria de mim porque era a “estranha”.
Sempre tive dificuldades em fazer amizades. Na escola eu preferia ser a pa-
lhaça, mas daí a dizer que eram meus amigos... Estava longe! Não conversava com
ninguém, não me revelava. Então comecei a escrever poesias, passei a ficar muito
tempo sozinha estudando, ouvindo música, lendo revistas, livros de literatura ou
ouvindo música clássica, blues, MPB, etc. Assumia a identidade de um ser estranho
a eles, diferente deles, com atitudes estranhas.
Isolava-me do mundo pra sobreviver, não confiava em ninguém. Na verdade
sabia pouca coisa da vida além das paredes da minha casa. E o que sabia, era tão
assustador e ruim, que preferia me esconder do mundo.
Quando tinha mais ou menos uns 14 anos, arranjei meu primeiro namorado,
ele era lindo! Mas não era apaixonada por ele. O que gostava mesmo era da compa-
nhia dele, me sentia segura do lado dele. Nada além disso aconteceu, nenhum con-
tato sexual. Tinha medo, afinal de contas, vivia um inferno. Sem motivos aparentes,
mamãe embargou nosso namoro. Penso hoje que ela teve medo de que revelasse
nosso “segredinho” para ele.
Meu tio enfim arranjou uma namorada séria e decidiu casar. Fui ao casa-
mento obrigada, mas sabe que nunca consegui me lembrar onde estava na hora da
foto, como voltei pra casa, o que disse ou fiz na igreja? Tomei um porre! Foi um
escândalo daqueles, mas pensei que, enfim, meu pesadelo tinha acabado. Qual nada!
Ele continuou a me infernizar. Aos 19 anos saí de casa definitivamente e depois de
algumas idas e vindas temporárias, nunca mais voltei.
Mamãe nunca entendeu o porquê de preferir morar na rua, ou em um lugar
que não era meu de verdade, dormir de favor na casa de amigos, ou ser humilhada
na casa dos outros, “passar necessidades” (como ela dizia), a dormir numa cama
quentinha e comer na hora certinha, na minha casa, com minha família. Queria
morrer, me punir pra sempre porque nunca falei nada, nunca gritei, porque deixei
acontecer.
Uma vez mamãe me perguntou por que não gostava dele. Papai olhou forte
pra mim esperando a resposta, mamãe encheu os olhos d’água e disse: “diga minha
filha, ele mexeu com você?” Calei. Nada disse, fiquei em silêncio, muda como ficava
nas horas em que ele me agredia o corpo, matando minha alma.
Perdi pra sempre a minha chance, eu sei. Mas me veio à cabeça aquele trecho
do Evangelho que diz assim: “É necessário que exista o escândalo, mas ai daquele
pelo qual a mão for motivo de escândalo”. Pode parecer besteira, mas se eu não
26 Helena Damasceno
tivesse pensado isso, eu teria dito, quem sabe... Mas me calei e me culpo até hoje
por isso.
Não sei o que será de mim, se um dia vou conseguir ser forte, segura, se vou
conseguir enfrentar minha dor de frente...
Sei que dói muito! E não sei o que fazer...
Mexer nisso tudo, em qualquer uma dessas coisas, me enche de dor. Uma dor
tão grande que não sei se consigo superá-la ou senti-la.
Ainda quero morrer, ainda estou meio morta, mas também quero viver, tam-
bém estou viva na outra metade de mim e que pede ajuda agora.
A confusão dentro de mim me impede de ir à faculdade, por exemplo, parece
que todos são melhores do que eu, ou parece que se eles souberem do meu passado,
irão fazer igual à minha professora de literatura: “Ah! Você gosta!” E não gosto,
nunca gostei, eu sofro. Ou então vão dizer que isso tudo é besteira minha, ou pior:
vão dizer que é mentira.
Socorroooooooooooooooooooooooooooooooooooooo!!!!
Tem muitas coisas mais que eu quero falar, mas por agora é só.
Pele de Cristal 27
Sobre o tempo de recomeçar...
30 Helena Damasceno
maus tratos, etc. Nesse processo, a criança se percebe com os olhos da família, que
tem com ela uma relação de transferência perversa. Em casos de famílias negligen-
tes a criança se percebe de modo pejorativo e inferior, assume uma imagem distor-
cida sempre relacionada à baixa auto-estima, ao desvalor e ao medo, ao pudor e à
vergonha. Daí pronto, posto esse cenário, a porta está aberta para o Abuso Sexual
Intrafamiliar. O agressor não bate à porta sem ter certeza de que está amparado pelo
silêncio e conivência da família.
A criança sempre dá sinais de que há algo de errado em sua sociabilidade
familiar, mas em geral, como os laços de verdade e confiabilidade desta convivência
estão fragilizados, o silêncio é um grande opressor da criança bem como uma forma
de controle para que se mantenha essa violência coadjuvante.
Em alguns casos, quando o abuso se torna evidente demais no cotidiano
dessa infância roubada, algumas famílias conseguem intervir assertivamente para
interromper o ciclo incestogênico e alternam o foco da violência, transformando
sua atenção em situações nas quais a criança será ouvida e cuidada, acolhida em suas
necessidades e Direitos Fundamentais. Nesses casos, que não são maioria, diga-se
de passagem, as crianças conseguem o apoio de algumas pessoas e, enfim, fecha-se
esse ciclo, abrindo-se um novo para ela e os demais envolvidos: como recomeçar
e superar a violência sofrida.
Mas quando a criança não tem apoio de ninguém? Quando ela sofre essa
violência em segredo e sem buscar ajuda por medo ou vergonha, assumindo todas
as responsabilidades dessa violência para si; o que acontece? Sem conseguir se ex-
pressar ou esboçar a reação que a sociedade espera (fácil e cômodo cobrar postura
de quem tem o corpo e alma invadidos e devidamente minados todos os dias um
pouco mais, até que a criança se torna uma presa fácil e sem reação), quando a sua
infância já foi devidamente roubada, quando seus sonhos pueris foram todos se-
qüestrados... O que acontece com essa vida 10, 15, 20 anos depois dessa violência?
A única resposta que tenho é a minha, é a minha estrada e o meu caminho
até aqui. Mais de 20 anos depois do abuso, dos estupros, da negligência e bullyng
sofridos, ainda estou a montar meu quebra-cabeça e a tentar aprender o caminho
do amor próprio para me libertar de uma culpa que não tenho e nunca tive, e desse
peso que é você ter sofrido Violência Sexual. Fui abusada sexualmente por um tio
durante grande parte da minha infância, mais ou menos a partir dos 5, 6 anos e por
toda a adolescência, até, aproximadamente, os 19, 20 anos.
A maior parte da minha vida, aquela que deveria ter sido de descobertas do-
ces e saudáveis, me foi um tornado destruidor, uma inundação de medos, violências,
dores e sofrimento. Esse período de adolescer significados e significantes saudáveis,
é de fundamental importância para o empoderamento adulto. Ali, eu deveria ensaiar
sobre as coisas da dignidade, dos valores que me sustentariam toda a vida. Mas não...
Aprendi que a dor e o sofrimento me seriam companheiras nefastas por muito ainda.
Quando tudo ao meu redor era medo e escuridão, o tempo me fez perceber
que tudo seria pior. O ponto alto desse horror veio com a menstruação. Compreendi
Pele de Cristal 31
os perigos de uma realidade mensalmente assustadora: o pesadelo real da gravidez.
Recordo de situações do mais profundo desespero quando de atrasos menstruais,
sempre o pavor de uma gravidez não planejada e mais que isso, profundamente
indesejada. Ninguém a me orientar sobre a vida de adulta na qual estava sendo violen-
tamente despejada. Muito medo me habitava, muitos nós atando meu caminho de
menina ainda, mas que enlutada pela condição de vítima de violência sexual.
Recalquei essa história por quase toda a minha vida. As conseqüências da
violência me dominavam totalmente, me impedindo de viver integralmente, bem
e feliz. Vergonha, medo, insegurança, ódio, revolta, culpa, baixa auto-estima, idéias
suicidas, problemas escolares, dificuldades de relacionamento, transtornos de ali-
mentação, desvalorização, depressão, etc; conseqüências muitas e que me levariam à
força até as mais variadas formas de culpabilização e revitimizações.
É claro que sabia que tinha sido abusada, mas negava o fato, interna e exter-
namente, porque negar me dava a possibilidade de não ter que mexer em nada disso,
porque doía demais falar sobre isso. Quando falamos sobre a violência admitimos
a dor, admitimos também que tudo aconteceu de verdade e que todo aquele horror
é real, foi real. Dá pra entender? Quando negamos a história não se torna real pra
nós, mesmo sabendo que aconteceu, quando aconteceu, como e onde aconteceu,
recalcamos e evitamos acessar qualquer coisa que nos diga sobre violência sexual.
A gente nega, e nega muito até a dor ser mais forte e sair gritando, explodin-
do tudo que encontra pela frente, derrubando amizades, relacionamentos, trabalhos,
nossa saúde física e mental, nossa vida, enfim.
A violência sexual nunca vem sozinha, vem sempre acompanhada de outras
violências e alicerçada pelo cotidiano enfermo. A criança cresce envolvida numa
teia perversa e de mão única, de inversão de papéis injusta e criminosa e quando do
adolescer, absorve essa identidade vitimada, assumindo todo o peso e responsabi-
lidades sobre o abuso sexual sofrido, fato que acarreta muitos danos à vida adulta.
A violência sexual não é relação saudável, não é sedução natural entre enamorados
emocionalmente iguais. Aqui se fala da relação que se constitui pelo abuso de poder
de um alguém mais forte biopsico-emocionalmente, em detrimento de um outro em
condição oposta, porém, da mesma ordem biopsico-emocional. Em outras palavras,
estamos falando aqui de uma relação entre uma criança e um adulto, estamos falan-
do de violência sexual.
A título de clarificar para aqueles que, por ventura, desconheçam a nomen-
clatura técnica, deixo posto o conceito de violência sexual de Azevedo e Guerra6.
De qualquer forma, nunca é demasiado debater e elucidar questões inerentes a este
fenômeno cotidiano, quase habitual numa cultura adulto e falocêntrica como a nos-
sa. A violência tem cara, cor, gênero e endereços conhecidos. As escritoras discor-
rem acertadamente sobre a questão, trazendo à tona esse universo obscuro de medo
e violência.
32 Helena Damasceno
“É todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual cujo agressor
esteja em estado de desenvolvimento psicossexual mais avançado que a vítima, tendo por
intenção estimulá-la sexualmente ou utilizá-la para obter satisfação sexual. Se caracteriza
como uma relação bilateral para atender a satisfação unilateral, onde não há consentimen-
to da vítima, ainda que esta seja coagida física, emocional ou psicologicamente. Compreen-
de desde atos libidinosos até estupro”.
Quando nasci, com oito dias, minha mãe biológica me deu pra mãe dela, a
minha avó. Eu nunca tive uma avó. Tive uma mãe em Dose Dupla, com poder duplo:
a força da avó, com a autoridade da mãe. Mas atenção: minha mãe biológica sempre
esteve presente; não pensem que ela andou ausente e que somente anos mais tarde
apareceu uma vizinha metida e linguaruda e finalmente descobri que tinha outra mãe.
Nada disso, de modo algum! Sempre soube e sempre tive uma mãe biológica e uma
mãe em dose dupla, as duas presentes, participando concomitantes da minha educa-
ção e disputando minha atenção, determinando minha vida e meus passos.
Fui uma daquelas crianças sem muitos direitos, sem exercitar vontade pró-
pria, ou me manifestar muito. Não podia escolher roupa, estilo de corte de cabelo,
muito menos, quais amigos poderia ter. Tudo tinha que estar dentro dos padrões da
família, tradicional e correta, sem muita heterogeneidade fora do clã cotidiano.
Quando o abuso ficou evidente demais pra esconder pros vizinhos e estra-
nhos, ou mesmo para os poucos que coabitavam o cotidiano da família em que nasci
(mesmo sem parentesco direto), de imediato alguém tratava de me esconder à estra-
nheza social. Afugentados foram todos que intrusos: colegas de escola, amiguinhos
da rua, pais dos amiguinhos, professores, enfim, qualquer pessoa a quem eu pudesse
confiar aquele segredo.
No início a criança não sabe o que acontece com ela. Ela não tem noção de
que o Abuso Sexual é uma invasão na perspectiva mais ampla e determinante da
palavra. Ela “pensa”, ela acredita que aquilo é uma forma de carinho, compreende
a violência como manifestação natural de afeto. A violência aqui se confunde com
a ludicidade da criança, com as defesas próprias da infância das quais o adulto pe-
dófilo se utiliza para justificar suas ações. É aí que ele transfere a responsabilidade
da violência porque atesta que a criança não o rejeitou, e esse crime aparentemente
silencioso, a olhos menos atentos, segue rasgando corpo, alma e sonhos definitiva
e silenciosamente.
A criança não tem um valor moral determinado. O que determina esse peso
moral, os valores que ela carregará durante toda a vida é o conjunto de valores que a
família e sua dinâmica familiar lhe apresentam. São os exemplos que ela verá desde
cedo, íntima e diretamente, no seio de seu lar que lhe formarão o conjunto de valo-
res morais e éticos que estruturará sua psique, sua estrutura emocional e social. No
caso de uma rotina incestuosa, jogo perverso e unilateral junto à criança, a família
permite e omite- se desde as primeiras carícias invasivas até as gradativas que culmi-
nam no abuso sexual físico em si.
Pele de Cristal 33
Aqui vale ressaltar que Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes é
algo mais profundo e complexo do que o senso comum compreende. Ela não se dá
somente nos casos em que ocorre a penetração; esse é o mais alto grau de violência
imposta à pessoa. Há uma dinâmica subjetiva, quase silenciosa e que compõe a
rotina perversa e unilateral da violência sexual. Quando a violência chega aí, nesse
grau de invasão, a criança já foi envolvida numa trama maquiavélica e cotidiana, já
teve seu corpo e sua alma investigada minuciosamente pelo horror da invasão sexual
diária e vil. Aí, nesse espaço de dor, a criança já teve seu corpo, sua auto-estima e seus
sonhos monitorados e roubados pelo agressor. Ou você acha que Violência Sexual
com penetração não tem antecedentes?
Ressalto que o agressor, em avassaladora maioria, não é aquele indivíduo que
faz o tipo machão, que grita e esbraveja, ameaçando a vítima com revólveres, facas
ou outros instrumentos intimidantes. A sua presença em si, já é uma ameaça real
e desagregadora. O agressor é uma pessoa em quem a vítima confia e que detém
poder sobre ela, é por assim dizer, um grande sedutor, educado e gentil, que seduz a
vítima pela confiança desde a primeira energia sexualizada, os primeiros olhares, até
que, paulatinamente, ele se sinta seguro para graduar a violência e envolver a criança
num aparente carinho de tio, pai, amigo, padrasto, irmão, professor, vizinho, etc. Ou
seja, de homem carinhoso e honesto, sempre acima de qualquer suspeita.
A capa não faz o livro. É preciso que se diga que uma criança jamais aventa
situações de violência sexual sem veracidade. Mesmo aquelas em que o juízo moral
e o senso comum questionam, pode-se até dizer, em supostas situações, que se pode
até inventar uma situação onde haja exercício de violência sexual. Entretanto, ne-
nhuma criança, por mais criativa que seja, não cria e ou fala com desenvoltura sobre
as sensações de uma relação sexual. Somente a vivência capta tais sensações.
É preciso que se diga que desde o primeiro toque a criança já tem sua alma
sobrepujada e devidamente controlada. A ameaça verbal vem somente depois, com
frases cheias de assédio: “se você falar pra sua mãe, ela não vai acreditar em você, vai dizer que
a culpa é sua, que você não presta, que foi você quem quis e se insinuou, você é uma safada mesmo,
todo mundo sabe disso, e não adianta fugir, se tentar eu te mato”. E pasmem os mais céticos
e frios: nós acreditamos mesmo no que eles dizem. E sabe por quê? Porque eles são
pessoas em que confiamos, são homens em quem acreditamos afetivamente e que
exercem poder sobre nós, inquestionavelmente. Eles são os adultos. Nós somos as
crianças vazias, sem “querer”, como prega o cotidiano (criança não tem querer, não
tem vontade própria), eles que sabem das verdades do mundo simplesmente porque
são adultos.
Ora, nossa sociedade é adultocêntrica. Somente a partir de 1990 surgiu uma
Lei para dizer, no frigir dos ovos, algo simples e objetivo: crianças são sujeitos de
direitos, são seres humanos em formação. Vivemos num país onde é necessário que
haja uma Lei para efetivar que uma criança tenha diretos e que seja reconhecida en-
quanto um Ser de Direitos Constitucionais, Sociais e Humanos. Infelizmente, a Lei
do Estatuto da Criança e do Adolescente não desconstruiu o muro de silêncio da tradi-
34 Helena Damasceno
ção adultocêntrica. Ser reconhecido enquanto um Ser de Direitos ainda está muito
no âmbito do papel, bem distante ainda da realidade de muitas crianças vítimas das
mais variadas violências, inclusive a sexual.
Em geral ainda reconhecemos a criança socialmente tal qual um adulto em
miniatura, potencialmente uma transferência de nossas frustrações e medos. E to-
dos os dias um número incontável de crianças e adolescentes sofrem todo tipo de
descasos, negligências, maus tratos e violências. Meninas e meninos têm seu corpo
invadido constantemente. Saem de casa uns, outros tentam sobreviver a essa vio-
lência com as ferramentas das quais dispõem, retroalimentando o jogo de silêncio
absurdo, assumindo culpas que não são suas, enquanto seus agressores têm a impu-
nidade garantida ou por leis ultrapassadas e discriminatórias, ou por essa tradição
adulto e falocêntrica.
Comigo não foi diferente...
Minha história é cheia dessas marcas, de muitos altos e baixos e tentativas
falidas de suicídio – se não as declaradamente, aquelas planejadas e devidamente
arquitetadas, trazia marcas de um suicídio lento, de morte moral, e de amor próprio
–, de muita dor e culpa acumuladas, medos, ansiedades, distúrbios de aprendizagem
e alimentação, e de muitos distúrbios da felicidade, longe do estado de Ser Integral
e saudável, feliz.
Acreditei, assim como todas as pessoas que sofreram violência sexual, que a
culpa era minha porque eu o seduzi, que tinha uma marca na testa a qual me iden-
tificava sempre, e era exatamente por isso que acreditava que todos os homens do
mundo queriam abusar sexual e emocionalmente de mim, pois sabiam que eu era
fácil, que eu era um lixo.
Numa sociedade hipócrita como a nossa, na qual estamos todas e todos sub-
mersos na mediocridade coletiva da mais valia humana, aparentemente, o melhor
que se tem a fazer é deixar-se levar pela mesmice da impunidade medíocre, pelo
peso da culpa que não nos pertence de fato, mas que acabamos por assumir e, a
partir daí, seguimos numa cadeia pejorativa e densa corrompendo-nos nos vícios, na
auto-sabotagem, no medo e nos acúmulos de vergonha e inseguranças amplificadas
e alicerçadas pela transferência de responsabilidades.
Sempre acreditei que não merecia ser feliz, que não era nada e que nunca
seria alguém na vida. Reproduzi a vida inteira o que ouvi daquele que me tinha a
confiança porque era adulto e tio e a cada abuso, a cada incursão invasiva no meu
corpo e na minha alma, mumificava minha autonomia e liberdade. Soma-se a isso
um cabedal de comandos que recebi da família em que nasci. “Você nunca vai ser
nada, não serve pra nada, tu é astuciosa demais, é desastrada demais, não leva jeito pra nada, só
sabe fazer besteira menina, te ajeita”. Uma coleção variada de insultos deliberadamente
injustos e que são parte mantenedora da violência sexual característica das famílias
incestogênicas.
Sabe por que eles fazem isso? Porque precisam nos prender às situações de
inferioridade, detrimento e medo para que possam calar nossa voz e atirar nossa
Pele de Cristal 35
auto-estima no ralo da vergonha e da culpa. Eles precisam retirar a culpa das costas
deles e depositar na nossa. Mas calma! Tudo isso faz parte de um padrão negativo
que você pode inverter! Você pode e tem o direito de quebrar esse padrão. Você tem
o direito de sair desse chão porque merece ser feliz, porque todas nós merecemos
ser felizes!
A felicidade não é uma condição impossível, faz-se necessário romper a cre-
dibilidade que demos ao agressor e à falsa imagem que fazemos de nós mesmas.
Nós não somos pessoas feias ou más, sem valor ou sem escrúpulos. Nós não temos
culpa. Não acabamos com a paz de ninguém, não seduzimos ninguém! Não somos
fracas, nem inúteis. Somos capazes, somos luz! Nada é impossível quando entramos
em contato com a alegoria interna de nossa caverna7...
A gente pode e a gente vai!
36 Helena Damasceno
Capítulo II
38 Helena Damasceno
horríveis como qualquer uma de vocês e sinto a dor de ter sido machucada, a dor
das tardes de violência. Mas hoje essa dor assume um significado outro: o de me
mobilizar, não mais de me paralisar, de me desestruturar e me deixar em crises que
duravam 365 dias por ano, ou quase isso.
O que tenho aprendido é que a crise vai passar certamente, que ela é neces-
sária ainda para que eu ressignifique meus caminhos e meu quarto pessoal. Mas ela não
me anula, não é absoluta e tirana dentro de mim! Hoje sei disso. Antes pensava que
a crise era permanente e que seria para todo o sempre! A crise é necessária porque é
a sua dor gritando, é o seu instinto de conservação pedindo ajuda, pedindo socorro,
é a sua lagarta esperando para transformar-se numa borboleta linda!
A gente não agüenta mais sentir dor, é verdade. Algumas vezes planejamos
desistir de tudo, não é mesmo? Exatamente por isso, o apoio psicoterapêutico é
fundamental. Um bom psicólogo, uma boa psicóloga vai auxiliá-la nesse processo,
porque sozinhas nos perdemos; mas acredite: é você que vai sentir a dor quando
ela vier. E você se tornará mais madura e mais liberta para superar a dor e ser feliz
quando perceber que as escolhas são suas.
Você pode não compreender isso agora e se quiser me xingue! Muitas vezes, gritei
com uma antiga psicóloga porque sentia a maior dor do mundo e ela dizia assim: “Calma,
isso vai passar”. Ai meu Deus! Eu tinha vontade de enforcar aquela mulher! Quem ela pen-
sava que era pra saber o que eu estava sentindo? A minha dor existia, não era um exagero
bobo, era a maior dor do mundo. Como ia passar simples assim? Num passe de mágica,
é? E como ela podia saber? Ela não morava dentro de mim!
Ei, a dor é a maior do mundo mesmo, é insuportável mesmo! Ficamos sem
ar, com aquele nó na garganta, sem chão, as pernas doem, o corpo dói, vem a ver-
gonha e a culpa, o medo de que todo mundo saiba e a trate com desdém. Aquele
choro inexplicável em pleno shopping que te engasga e aumenta a dor enquanto
todas as pessoas olham-na estranho e inquiridoras; e você, claro, tem certeza que
estão julgando-a. É tudo isso mesmo! Mas é necessário que eu diga que é somente
através do enfrentamento de seus fantasmas, que essa sensação de pânico e terror
que guardamos dentro de nós pode passar, é somente no embate verdadeiro e afe-
tivo com nosso quarto de dor, com tudo isso que dói e agride nossa vida, que vamos
amadurecer e transformar as feridas em cicatrizes.
E tem uma coisa mais: lembrar do que aconteceu não é acontecer de novo!
Já aconteceu, então não vai doer mais do que já doeu. E é verdade mesmo: isso vai
passar! Agora é a hora em que você me xinga, ou ri.
No meu processo, fiz terapia algumas vezes. Compreendo que o apoio psi-
coterápico é fundamental no caminho de acolhimento e enfrentamento dessa dor e
da superação dela, em qualquer caso. A família em que nasci acreditava que terapia
é coisa pra doido ou desocupado. Eles tinham muito receio de que quebrasse o có-
digo perverso de silêncio, tinham verdadeiro pavor que falasse pra alguém. Óbvio,
né? Nessas situações, há um acordo construído no cotidiano que garante o silêncio
e a transferência da culpa para a vítima.
Pele de Cristal 39
Portanto, ouça com atenção: a culpa não é sua! É muito importante que você
diga isso pra você um número incontável de vezes por dia. Quando bebo água falo
isso, quando assisto à TV, vejo um filme, ou uma cena de novela qualquer repito isso,
quando respiro digo isso. Estou envolta num jogo perverso de anos! Fui inserida
nesse jogo, não me inseri. A criança vítima de violência sexual é inserida nesse jogo,
saiba disso. Então vá para o espelho do banheiro e diga pra você mesma: Eu não
tenho culpa! Uma hora dessas, seu cérebro recebe esse comando sem encaminhá-lo
para alguma gaveta protetora, ou sua pele pára de rejeitar essa verdade e você passa
a perceber que é possível sim!
É um processo e não há uma velocidade determinada, um prazo fixado em
nenhum código internacional, qualquer que seja ele. O tempo é seu, o movimento é
seu, é individual. Não há regras ou fórmulas mágicas. Vá pro espelho, ou pra onde
você quiser, mas volte pra você!
Estou voltando pra casa agora, mas passei por muitas fases, quase todas
autodestrutivas e sabotadoras. Vivia como se quisesse beber o mundo num único
gole. Uma sede incontrolável, interminável e dormente fez com que engolisse a vida
exageradamente. Fiz tudo que a família em que nasci esperava que fizesse: entreguei-
me à bebida, às farras, à desordem, ao medo e à culpa. Tentei de todas as formas não
decepcioná-los em suas expectativas de me tornar o fracasso previsto e evidente.
Fazia tipo o tempo todo, como se estivesse num palco o tempo inteiro. Nun-
ca era eu... Ora era a Francisca Helena, uma menina simbolicamente retraída, desajei-
tada e fugidia, insegura e maltrapilha, que caminhava com lençóis sujos mendigando
o afeto alheio. Ora era a Kaena, uma personagem irresponsável, inconseqüente e
dependente de comida, bebida e sexo, viciada em mentiras e culpabilizações.
A compulsão foi uma porta que abri bastante. Saía pelo mundo bebendo
durante dias, muitos dias. Ia para uma farra e retornava depois de uns 15 dias ainda
bêbada, suja, sem dinheiro, sem pudor, sem alma. Pulava de casa em casa, de “ami-
go” em “amigo”, aqui e ali, onde dava, onde me davam pouso ficava. Vivi assim,
desesperadamente, porque a dor que sentia era muito, muito maior que eu. Ainda
me sentia aquela criança de cinco anos sendo abusada, uma menina assustada e
indefesa. Então, gritava com o mundo e o tratava mal antes que me fizessem isso.
Só esperava desconfianças, descrédito, ameaças e arrogância. Não acreditava que
alguém podia me ajudar, ou me amar, nem eu mesma.
Passei muitos anos pra “saber” de fato o que havia acontecido na minha
infância. Bloqueei muitos fatos, muitas lembranças, tinha medo. Passei anos sem
querer tocar no assunto, sentia uma dor enorme, vivia em crises de depressão, mas
não queria mexer nas feridas, nem pensava nisso!
Hoje, em psicoterapia, algumas recordações têm voltado com força. Mas já
tenho uma estrutura melhor, mais sólida e a psicoterapia me é fundamental e indis-
pensável nesse processo. Tenho pequenos flashes, pequenos trechos “descolados”
um dos outros que me vêm à mente sem uma ordem cronológica clara, e embora
aparentemente desconexos, cada um têm um sentido único na ressignificação da
40 Helena Damasceno
minha história.
Minha história começou como muitas. Mudam os personagens, mas o pano
de fundo é o mesmo: a intenção sexual invasiva, o abuso sexual. Então, facilmente
identificamos os mesmos sinais entre as vítimas: carinhos invasivos, uma mão que
atravessa o corpo com rispidez, as brincadeiras no colo do titio (ou papai, priminho,
seja quem for), passeios, presentinhos, etc. No meu caso, o grau de violência foi
aumentando à medida que fui crescendo. Ele foi se sentindo mais seguro ao longo
do tempo para aprofundar sua incursão perversa pela minha alma e corpo.
Por defesa própria, “engavetamos” a dor numa espécie de porão, de quarto de
dor. Mas o fato é que sempre sentimos a dor evidente, e de quando em vez vivemos
aquelas crises insuportáveis e duras, sempre muito duras. A crise é a dor em super-
lativo, é a criança que sofreu toda a violência pedindo socorro, berrando em nossos
ouvidos, do adulto cego e impassível, um pedido de ajuda, gritando praquilo acabar.
Muitas vezes neguei esse pedido, minha voz interior me ensurdecia, mas
preferia não dar ouvidos. A vida toda que seja dito. Não foi por um período alterna-
tivo de tempo, foi até aqui, um momento atrás, quando ainda não estava pronta pra
mexer naquele quarto de dor. O que fazia geralmente era sair pelo mundo e encher a
cara, ou transar com quem fosse, não importava se tinha conhecido há dez minutos
ou meia hora. Meu eu sagrado, meu corpo já havia sido invadido, portanto, eu não
estaria perdendo nada me revitimizando em relacionamentos doentios, uma espécie
de reedição da violência sexual sofrida tempos antes. Eu não tinha nenhum contato
com meu amor próprio, nenhum respeito por mim.
A dor nos faz lembrar de tudo, não é mesmo? Cheiros, pele, gosto, toques,
odor, nojo, a violência toda! Por isso é tão difícil falar sobre ela, ou “senti-la” no-
vamente, mesmo em psicoterapia, ou através das catarses necessárias à cicatrização
interna. Parece que é mais fácil fugir... Fugir das crises, encher a cara, usar drogas,
pensar em suicídio, comer, fumar, cheirar, ficar anestesiada. Parece que é melhor
isso que enfrentar, mas só parece!
Enfrentar as lembranças é estar no comando, é guiar sua própria vida
e redescobrir o caminho para o amor próprio.
Demorei longos anos para perceber que aquela “crise existencial”, típica da
adolescência, no meu caso, não era nada disso. Não havia uma crise, simplesmente,
solta no ar da inquietude momentânea do adolescer. Havia na minha vida um histórico
de violência, abandono, negligência, cumplicidade e omissão. Não tenho certeza se co-
meçou aos cinco, seis anos anos, talvez tenha começado antes até, não sei. Mas sei que
“terminou” quando decidi sair do juízo de valor e do domínio físico do meu algoz. As
aspas são para denotar que a violência física findou com minha ação ao sair de casa,
mas as conseqüências dos anos de dolo permaneceram ao longo da vida.
Sofri muito até aqui, passei por muitos obstáculos. Mas, foi a minha manei-
ra, eu repito, sair de casa foi a minha maneira de lidar, de sobreviver a tudo e estar
aqui hoje, contando isso para vocês. Não estou aqui para aconselhar ninguém. Conto
apenas minha história sob o prisma da delicadeza, do contato com o amor próprio e
Pele de Cristal 41
respeito, e digo que é possível superar todas as angústias, marcas e asperezas deixadas
pelo abuso sexual. Estou escrevendo minha história para, quem sabe, auxiliar alguém
que passa ou passou por algo semelhante, a acreditar nas próprias forças, na própria
coragem. Mas as ferramentas que você vai usar fazem parte do seu caminho, da sua es-
trada, e saiba que elas já moram em você. Toque-as no seu tempo de amor e cicatriz.
Quando percebi o que acontecia comigo, lá pelos meus 10 anos, minha pri-
meira reação foi vergonha. Do meu corpo, da minha alma, de qualquer coisa que
lembrasse a mim mesma. Passei a ter nojo de mim, queria morrer, precisava morrer!
Na verdade, emocionalmente eu já estava morta, não havia vácuo de expectativas
outras em mim.
Muitas vezes pensei comigo mesma se valia a pena viver. Só sentia dor, vivia
em crise 24 horas por dia, não conseguia me sentir bem em nenhum lugar, nem na
companhia de ninguém. Era uma mulher sozinha na multidão. Hoje reavalio meus
passos e sensações, e respondo pra mim mesma que sim, vale muito a pena viver;
vale estar aqui, acolher minha menina ferida, enfrentar tudo e dar a volta por cima!
Quando pensei em escrever minha história, minha trajetória até aqui, sabia que
sentiria medo, que lembraria dos odores, da cor da pele, do olhar doentio dele. Não
sabia se conseguiria ajudar alguém, nem mesmo a mim. Mas tem sido bom expurgar,
exorcizar essas sensações e sair caminhando, seguindo meu próprio sol, meu brilho!
Cada dia é um dia de pequenas e generosas conquistas. Não quero mais me esconder,
por isso minha Pele é de Cristal. É transparente, é de verdade. Levanto minha mão, mi-
nha história com delicadeza e coragem, e estendo-a como um feixe de afeto a espreitar
cada uma de vocês. Sou como o cristal que ao quebrar-se, permite-se ser esculpido
novamente pela mão do artista que transforma a peça em outra jóia.
É bem verdade que não é fácil, que enfrentamos no caminho um universo
de dificuldades construídas algumas vezes por outras pessoas e alimentadas por nós,
ou o contrário, construídas por nós mesmas, pelo nosso medo de ir em frente. E é
natural que tenhamos medo, nós somos de carne e osso. O medo faz parte da natu-
ralidade das coisas de viver, não é uma fotografia tirada pela violência sexual. É claro
que, dada nossa exposição ao abuso sexual, somos mais propensas a desconfiar e a
desacreditar das coisas de estar vivo. Mas é possível superar tudo isso!
Quando você perguntar se vale a pena viver, diga que sim! Vale por você!
Volte para o espelho do banheiro e veja seu rosto. Ele é seu e nada vai mudar
isso! Esse corpo é seu, é sua casa nessa oportunidade que é a experiência humana.
Dispa-se do peso para seguir viagem mais leve. Repita a frase: eu não tenho culpa!
Olhe novamente para o seu rosto, não tenha medo. Você não é mais aquela criança
que um dia, morrendo de medo, foi brincar com a pessoa errada e foi machucada.
Acostume-se: não se pode separar do pássaro a asa!
Era na minha cabeça que estava a vergonha e a culpa, não no meu corpo.
Queria ser como borboletas que vivem num para sempre de 25 minutos... Mas sou
Helena que plana num vôo de um milhão de minutos, num para sempre até o fim,
até sempre! E orgulho-me do meu vôo.
42 Helena Damasceno
Capítulo III
“Tenho pressa...
a lenha cinzou na fogueira branca...
a vida passou deixando flores cor de dor
a chuva se aposentou
o peso da água passou...
Minha alma se alimentou
da mais turbulenta canção...
Quero ser asa pra poder ser chão!”
Braile de calçada
Era na minha cabeça que estava a vergonha e a culpa, não no meu corpo.
Queria ser como borboletas que vivem num pra sempre de 25 minutos... Mas sou
Helena que plana num vôo de um milhão de minutos, num para sempre até o fim,
até sempre! E orgulho-me do meu vôo.
Foram muitas as estradas para chegar até aqui, pra começar a me dizer que
sou uma pessoa boa, para redescobrir os caminhos da alegria, do reencantamento de
mim. E quantos passos foram dados! Muitas calçadas sujas, muita dor e mágoas acu-
muladas, muito álcool, muitas mentiras para me desvalorizar, muito medo e frio.
Teve uma vez que cheguei num estágio de desvalorização tamanha que eu
mesma tive uma pena enorme de mim, e pena é um sentimento deplorável. Na
verdade, precisava pouco para que me auto-infligisse pena, mas aquela era uma cena
de degradação total, não precisaria muito para alimentar-me dela. Estava toda arru-
mada, muito bem vestida. Era a inauguração de um barzinho e fui com uma turma
enorme. Só andava em bandos, era mais fácil não ser ninguém quando estava em
multidão. Já estava bebendo nem sei há quantos dias, mas não consegui evitar uma
garrafa de vinho de 5 litros. Não agüentei, estava completamente embriagada. Com
vergonha de mim mesma, olhei ao redor e fiz aquela pergunta: “que que eu tô fazendo
aqui”? Saí de fininho porque queria chorar, sair correndo, gritar, queria explodir!
Ainda não me admitira enquanto vítima de violência sexual.
Saí do bar e fui andar sozinha, pela rua. Tinha uns 20 anos, não morava mais
na casa de mamãe, não tinha emprego, vivia de favores e na casa de amigos de farra,
amigos de bar. Passei tanto tempo fora que notaram minha ausência. Começaram
a me procurar, mas sem sucesso. Ninguém sabia que eu estava dormindo no chão,
numa calçada algumas ruas acima do bar. Quando acordei, foi com “alguém”, algu-
ma coisa sussurrando no meu ouvido: “Acorda”! De sobressalto, olhei ao meu redor.
Tinha um homem vindo na minha direção, saí correndo assustada. Nunca disse
onde havia estado naqueles minutos de ausência, tive vergonha de contar o que
tinha acontecido. Mas sabia que era um prato cheio. Uma mulher sozinha e bêbada
dormindo no meio da rua. Fui salva por um anjo talvez, não vou teorizar sobre isso.
O fato é que estava em perigo, porque tinha me colocado naquela situação. Sentia-
me tão culpada que acreditava merecer sofrer a todo custo!
Fazia questão de aventuras como essa porque precisava correr riscos de
morte, mas o que procurava na verdade era matar a dor, não a mim verdadeiramen-
te, mas àquele sofrimento todo, entretanto, não tinha essa compreensão, confundia
isso com me matar e saía por aí, expondo-me às mais variadas formas de vacilação e
flagelo. Mas sabe, a verdade é que quando tinha uma chance de morrer, uma opor-
tunidade exata me agarrava com tanta força à vida que chegava a me assustar com
tamanha vontade de viver!
Estava cega na minha dor, só havia ela, nada mais. Precisava ser castigada
por ter sido uma “menina má”. Queria perder tudo que cria ter, porque na minha
44 Helena Damasceno
cabeça não merecia nada de bom.
Quando ele me via seus olhos pareciam me falar da sujeira toda, de todo
o desejo clandestino dele, de todas as formas, as mais vis e torpes, as quais ele me
usaria. Algumas vezes me sentia investigada, quase como um rato de laboratório.
Era como se eu fosse a cobaia pras experiências dele, como se eu não fosse a úni-
ca, mas aquela em que ele testava suas formas de exploração e acinte. Bastava esse
olhar pra me arremessar nos esconderijos desse exercício de dor. Tudo que vinha
dele pra mim era nojo. E eu, acabei sendo o maior dos ascos. A obra mais suja que
ele conseguira criar.
Anos muitos permaneci em inalterado estado de dormência, uma garota
vestida de medo e sombras. Eu havia me deixado transformar numa coisa, na tris-
teza personificada. Se os olhos dele me arrepiavam de pavor, os meus flagravam a
degradação que me habitava. Sem brilho, sem vida, sem nada.
A primeira vez em que entrei num consultório de uma psicóloga disse assim:
“preciso de ajuda”! Sempre me disponibilizei a cuidar das minhas feridas, sabia que
precisa fazer alguma coisa por mim, havia um comprometimento meu, só que não
estava preparada para fazer esse caminho antes. Tudo era muito doloroso pra mim e
quando começava a doer, saía correndo das terapias e afins, fugia de qualquer ajuda.
Na verdade fugia de mim mesma, porque quando se entra em contato com seu quarto
pessoal pra mexer nas suas feridas, você também mantém contato com sua sabedoria
interna e a maturidade é um movimento inevitável, retirando algumas cristalizações
densas e pejorativas desse espaço de poder momentâneo, deslocando esse poder para
o que lhe cabe de fato: o reencantamento pessoal e a descoberta do seu mundo.
Desconhecia outra forma de viver, portanto, se eu só sabia viver assim, so-
frendo e chorando, me revitimizando e me culpabilizando sempre; cuidar de mim
seria permitir-me ver oportunidades outras além destas, e isso, de alguma forma,
àquele momento significaria me abandonar no caminho. Entendia, erroneamente,
que meu estado de vítima me garantiria eternamente a segurança de ser cuidada, de
receber atenção e carinho sempre que expusesse algo do meu grande sofrimento.
Passei anos agarrada à idéia da vingança como única forma de fazer justiça. Vivi a
cristalização da idéia fixa de ser a coitadinha de vidro, frágil, fraca e desprotegida e que,
a qualquer momento, de tão quebradiça, pode estilhaçar-se e morrer.
Quando papai morreu, vejam só, culpei-me pela morte dele. Mas que loucu-
ra! Como eu podia ter culpa pela morte de alguém? Quão exagerado era o exercício
de culpabilizações o qual me aviltava! Estava ficando cada vez mais exigente e ca-
prichada quando das revitimizações, ao passo que, até mesmo sobre a dinâmica da
vida, eu deveria ter alguma culpa. Quanto à morte física de papai decidi me punir
e, assim feito, entrei em longa e forte depressão. Não me permitia ouvir música,
rir, sair com amigos, não me dava o direito de estar bem, ou de ser feliz, de ter al-
gum êxito porque eu havia matado meu pai. Nenhuma simbologia Freudiana nisso,
apenas o sofrimento da punição, hábito da violência sexual anos antes. E precisava
sofrer...
Pele de Cristal 45
Algum tempo depois, todos ao meu redor passaram a se incomodar com
meu sofrimento sem fim, e alguns amigos me instigaram a buscar ajuda. Mas que
fique claro que, em nenhum momento, rastreava a possibilidade de me assumir
enquanto vítima de violência sexual. Fui cuidar especificamente da depressão pela
morte física de papai. Entretanto, a psicoterapia trilhou caminhos outros e me levou
a perceber e admitir a violência sexual. Foi a primeira vez que admiti tudo e passei a
“ter consciência” dos motivos pelos quais sofria tanto. Passei algum tempo com essa
psicóloga, mas não concluí esse processo; não estava pronta.
Nas primeiras vezes que ia só chorava, não dizia palavra que fosse voz. Fi-
quei assim durante meses até conseguir começar a falar. Inicialmente não sabia de
fato porque estava ali, pagando aquele mulher pra me ver chorar. Mas sabia que
precisava dela, que precisava daquele espaço. Ali eu poderia ser eu mesma, estava
segura. Quando comecei a falar, me escondia nas justificativas evasivas e afirmava
sempre ter tido “problemas de família”, que ninguém gostava de mim, coisas típicas
daqueles “papos de adolescente”. Depois de uns meses fui encaminhada pra um
psiquiatra porque precisava de medicação. Não conseguia reagir, vivia sob a lógica
da depressão.
Depois de um tempo acompanhada conjuntamente pelo psiquiatra e pela
psicóloga, larguei os dois e caí na roda da vitimização de novo. Novamente era mais
fácil ser vítima, isso é fato, mas é necessário que se diga que há também o fato de
que eu não estava pronta para viver todo o processo de cura e reconstrução de hoje.
Ainda doía demais e não me permitia perceber nenhuma possibilidade outra além
da dor e do sofrimento.
Já tive muita vergonha de mim, muita mesmo! E isso só fazia aumentar a
culpa, porque não havia nada que explicasse o porquê de todas as coisas que fazia,
minhas atitudes “meio loucas” e irresponsáveis, minhas crises de choro, a agressi-
vidade gratuita, ou minha atitude de largar um bom emprego. No fundo, bem lá no
fundo, na minha verdade pessoal, sabia o porquê e chorava, sofria. Quer saber se tenho
vergonha? Não mais! Estou na fase de jogar fora tudo que não me serve para a fe-
licidade, para a leveza interior. Mas nem sempre foi assim. A todo e qualquer custo
me machuquei severamente até os meus 28 anos. De lá pra cá tenho conseguido
firmar os pés no chão, no desejo de superar toda a dor e de demover a injustificada
culpa que acumulei tantos anos.
Fui um joguete nas mãos do tio-agressor que sempre, e até hoje, é visto
como um bom homem. Honesto, justo, que paga seus impostos, lava, passa, cozi-
nha e cuida do filho, divide as tarefas com a esposa. Um homem acima de qualquer
suspeita. Eles são sempre assim mesmo, faz parte do perfil do agressor sexual essa
falsa identidade que os protege do juízo de valor da sociedade. Esse é um papel
que eles têm que impor nesse jogo. A violência sexual é um jogo perverso e não há
nenhuma leveza nele.
Sentimo-nos mal porque admitimos uma culpa que não nos pertence de
fato, nem de direito. Quando somos vítimas de violência sexual perdemos a fé em
46 Helena Damasceno
nós mesmas; julgamo-nos culpadas pelo silêncio, ou por não reagirmos tal qual o
senso comum espera e, desta forma, admitimo-nos fracas e culpadas. A minha cabe-
ça também pensava assim e me julgava sempre. Mas sabe por que acreditava nisso?
Porque fui programada pra isso, para elaborar meus pensamentos assim, e também
porque não conhecia outra forma de viver.
Essa lógica de que você pode se defender gritando, ou que pode correr,
fugir, revidar, devolver a violência ferindo ou punindo “dente por dente” a agressão
sofrida, pertence ao senso comum. Só quem sentiu na pele a experiência da violên-
cia sexual sabe o que significa estar vítima, como ficamos, e o que sentimos. Mais
ninguém pode dizer verdadeiramente como é ter a alma assassinada todos os dias,
até que o vazio lhe determina a morte mental e psíquica, porque a subjetividade da
alma é particular e individual.
A culpa é o alicerce central desse jogo. É ela que nos mantém aprisionada
nesse castelo solitário de dor, mas não precisamos desse sofrimento que nos macula
a sociabilidade e a dinâmica da vida. Precisamos buscar, no próprio caminho, o
encontro com o amor próprio e o perdão para com nossa criança machucada. Ge-
ralmente ocorre que buscamos esse amor fora de nós, ou em situações que nos ge-
rem sensações de insegurança, vergonha, ansiedade e medo, ou em relacionamentos
repetitivos e de co-dependência, nos quais seguimos um padrão de peso e desvalia,
sempre em segundo plano porque acreditamos que o outro é mais importante.
Dentro de nós tem uma garotinha assustada, então porque abandoná-la?
Porque não tomá-la nos braços e niná-la como fazemos com nossos “outros”, os
namorados, maridos, companheiros, amigos, etc? Precisamos mesmo desse peso
todo para viver? Saiba que você é a pessoa mais importante da sua vida! A sua fe-
licidade, os passos que você vai trilhar são seus, mais ninguém poderá vivê-los por
você! Nem sua psicóloga, ou sua mãe, seu namorado ou qualquer outra pessoa, mas
apenas e somente você! Você merece ser feliz porque é forte, é boa e maravilhosa! É
claro que você pode levar alguns anos ou a vida toda pra perceber isso! Aquiete seu
coração, porque cada pessoa tem seu próprio movimento, seu próprio tempo.
Nesse processo, tenho buscado fundamentalmente a minha leveza. Até ten-
tei fazer isso outras vezes, mas sempre esbarrei no meu medo e na minha postu-
ra rígida e vitimizada. Na verdade eu nunca percebi (ou acreditei) que essa leveza
estivesse dentro de mim, mas está! Ver para crer? Às vezes basta crer para que se
personalize em nossas vidas o objeto de pensamento idealizado.
Desconhecia meu próprio ser; a mim, enquanto Ser Integral, filha de Deus
ou de uma Inteligência Suprema, assim você queira, não vou teorizar sobre isso,
mas eu, um ser com virtudes e vícios como qualquer outro, mas que desconhecia sua
força e caminho. Era como se em cada situação de desvalia que me envolvia, preci-
sasse provar pra mim que não prestava mesmo. A cada copo de cerveja ou cachaça,
a cada cigarro, a cada mesa de bar, precisasse me provar quão deplorável e suja eu
era. Pensamentos que tinham origem na culpa que sentia, mas que alimentava com
minha atitude pálida. Mas pensamento não é rígido, ele se constrói e se modifica de
Pele de Cristal 47
acordo com nossos desejos.
Quais são os seus objetos de pensamento? Você sabe? Pensamento tem vida,
quer você acredite ou não! Você conhece a si mesma? Você está aí, quer acredite ou
não! Desconhecemos nosso próprio potencial e nos privamos da doce companhia
de alguém especial, nós mesmas, em plenitude de Ser e de crescimento porque a
nossa história tem uma marca gigantesca de dor. E isso é verdade, não estou di-
zendo o contrário, negando ou diminuindo a realidade dessa dor. Mas o fato é que
retroalimentamos os padrões quando do abuso sexual e o replicamos, a posteriori, e
sempre, nas relações de co-dependência vividas depois; superlativamos as sensações
de desvalia e dolo porque essa é a vida que conhecemos, é a forma que conhecemos
e a identificamos como nosso saber viver.
Você já pensou realmente como seria viver sem todas as sensações, toda a
dor? Você acha isso possível, de verdade? Ah, muito difícil fazer, fácil falar! Não re-
conhecemos de pronto esse prisma, porque não é fácil superar mesmo! Temos que
nos disponibilizar a mexer naquele baú empoeirado, largado num quarto escuro de dor
da nossa alma. Mesmo que de quando em vez, entremos em contato com esse quarto
pessoal, a dor é tamanha que nos assustamos e corremos quase que imediatamente.
Mas é acolhendo sua criança ferida e enfrentando esse quarto de dor que caminhare-
mos, que daremos O passo.
E é ainda mais difícil porque, apesar de toda a dor e de todas as conseqüên-
cias e traumas, pernas falsas, muletas e do nosso desejo de superação, essa situação
de dolo e peso nos aquece de alguma forma. É a ressonância secundária que nos
esconde dos enfrentamentos do mundo. E por mais estranho que possa parecer,
isso nos é cômodo! Não estou dizendo que você e eu não superamos essa situação
porque somos fracas ou porque gostamos de sofrer, nada disso! Estou dizendo que
estar nessa situação é a realidade que conhecemos, nos habituamos a ela e, como
tudo na vida, enfrentar o novo assusta, emudece e relutamos, enfim. A maioria das
pessoas vive com medo e assustada com as mudanças, que são inevitáveis, diga-se de
passagem. É natural temer o novo, claro! Mudar dói, mexe com as nossas estruturas.
Por isso achamos tão difícil, tão doloroso mexer no nosso “mundinho” de falsa se-
gurança para que possamos abrir, cabeça, alma e a vida para as mudanças!
Fácil falar, difícil fazer não é? Difícil sim, impossível não! Requer disponibi-
lidade, comprometimento interior, muita força de vontade e paciência. E não diga
que você não tem nada disso, que essas características estão longe da sua vida ou de
você! Se você está lendo esse livro agora, é porque você quer e busca ajuda. Você crê
que é possível, lá no fundo, no seu quarto pessoal! Se você está aqui é porque acredita
que há uma possibilidade. E lhe digo: há não somente uma possibilidade, como
também a concretude dela! Não é um sonho impossível, uma utopia humanitária ou
altruísta! É real! Estou conseguindo, estou fazendo esse caminho, e não sou especial,
ou diferente de você, somos iguais.
Mas quando submersas na dor, precisamos dessa falsa segurança, desse ga-
nho secundário que nos alimenta e condena a permanecer num estágio de sofrimen-
48 Helena Damasceno
to, como se estivéssemos ainda sob o julgo do agressor, no momento direto da vio-
lência. Mas não estamos, nem somos indefesas! Estivemos indefesas, por instantes
apenas. Estar não significa ser. E você pode mudar esse padrão de medo e culpa
sim! Busque sua Caixa de Pandora e abra-a com carinho e cuidado. Há feridas aber-
tas? Busque quem pode ajudar a tratá-las. Há algum medo de não conseguir, algum
medo do fracasso? Ouça sua voz interior, sinta-a... Você sabe aquela que lhe fez vir
aqui, ler tudo isso, acompanhar a história e trajetória dessa mulher sobrevivente de
violência sexual na infância, e que quase deixou que a dor destruísse a própria vida.
Mas estou aqui, não é mesmo, e sou igual a você, certo?
Não é impossível remover nossas montanhas internas petrificadas de dor. A
cicatriz desejada virá, entretanto, haverá a lembrança, sempre seremos sobreviventes
de violência sexual. Mas isso será apenas um eco, uma lembrança remota que diag-
nostica a cicatrização. A lembrança sempre existirá, mas como uma cicatriz que não
nos derruba nem enfraquece, tal como outras feridas de infância que nos marcaram
as pernas ou joelhos. Brincar era bom, mas de quando em vez caíamos, certamente
sentíamos dor, não é mesmo? Mas deixávamos de brincar? Que nada! Íamos de
novo ao encontro da brincadeira até aprendermos a não cair. A maturidade vem
com a flexibilidade da prática. Não mudamos. Essa força, essa determinação está
dentro de nós, com a mesma vontade daquela época!
Pensava que tinha deixado naquela calçada meu amor próprio, meu valor, as-
sim como pensei que deixai minha alma naquelas paredes geladas e brancas da casa
de mamãe. Mas o que sou e quem sou está a minha espera, com alegria e delicadeza
ao fim desse caminho que é a experiência humana.
Nunca acreditei que tivesse direito à felicidade, mas cá estou a buscá-la...
Consulte seu Delfos, solte sua águia, não deixe que Píton acomode sua alma na
inquietude da falsa segurança. Busque seu Apolo e siga à batalha inevitável consigo
mesma. Seus sonhos, valores, dores, seus medos mais obscuros, enfim, questione-se
e caminha.
Disponha-se a uma faxina interior, veja o que a ajuda a ser feliz e o que a
impede. Destrói seu cemitério particular de zumbis e alça vôo sereno e paciente; cons-
truindo seus castelos de areia, certamente, na praia de sua felicidade, e segue viagem
rumo ao seu templo interno. Somente você pode entrar no seu quarto pessoal, retirar
a poeira ou acomodá-la o mais confortavelmente possível. Torna-te quem tu és!
Pele de Cristal 49
Capítulo IV
Pele de Cristal 51
limpá-lo, mudar as coisas de lugar, abrir as janelas, deixar a luz passar. Somente eu
poderia abrir e ou botar os meus cadeados.
Certa época, passei a morar na casa de pessoas que tinha conhecido numa
farra. Não pagava aluguel, não trabalhava, mas a minha companhia simpática e o
meu violão pagavam a hospedagem. É claro que ia e vinha em casas outras; nunca
estive numa única morada. Ficava dias sem conseguir parar de beber, fumar ou
tocar nos bares da vida. Ninguém notava, mas era tão infeliz que a felicidade alheia
me inspirava um desejo confuso de querer algo impossível. Vivia me metendo em
confusões, arrumava uma a cada 15 dias. Difícil não ser vítima, não estar presa às
menores manifestações de rancor e desdém alheio. Acontece que teve um furto na
casa de uma dessas minhas companhias de farra, e é claro, fui a maior suspeita.
É óbvio que nunca furtei nada, mas penso que minha conduta vulnerável e
inconstante permitiu tal questionamento, e embora tenha dito um milhão de vezes
que não furtara nada, não acreditaram em mim. Passei anos ruminando o rancor do
descrédito, me alimentando desse fato como justificativa para manter internamen-
te outras tantas culpas: “eu não presto mesmo, não sirvo pra nada, ninguém gosta de mim,
ninguém acredita em mim, eu não sirvo nem pra ser amiga de ninguém!”. Era absolutamente
necessário que me mantivesse em cativeiro a qualquer custo. Então me permitia
situações, relações como essa, em que me desvalorizava porque era não tratada com
respeito. Aliás, diga-se de passagem, nem eu me respeitava, como poderia pedir o
mesmo dos outros?
Fui e voltei muitas vezes na casa da minha mãe biológica, muitas vezes ao
longo dos anos. Acredito que fazia isso para chocá-la, pra ver se ela me explicava
por que me abandonou ou não impediu o abuso, porque ela não estava lá pra me
defender, porque deixou que tudo aquilo acontecesse. Já falei que num caso de Abu-
so Sexual Intrafamiliar a família toda é envolvida e incestuosa. Toda ela contribui de
alguma forma, permitindo ou se omitindo à questão do abuso sofrido pela criança
ou adolescente. Assim forma-se o muro de silêncio, o pacto vil de silêncio.
No álbum de fotografias da família em que nasci, minhas fotos eram sempre
as mais escuras, em menor quantidade, as menos expressivas quando de felicidade
exposta. Uma menina magrela e desajeitada que tinha medo de tudo e todos era
sempre fotografada diante da omissão dessa família que, escolheu o caminho da
mudez ante a desacomodação de sua superficialidade. Sempre fui pessimista, nunca
acreditei que poderia fazer alguma coisa que prestasse. Minha cabeça sonhava mui-
to, sonhava alto, acreditava que o inferno do abuso sexual teria um fim, que alguém
naquela casa perceberia e, mesmo que não revelasse aos gritos aquele segredo vil,
ficaria do meu lado, me acolheria. Ilusão que, aos poucos, desisti de alimentar. Can-
sada, mais tarde optei pelo silêncio, tristeza, revolta e medo.
Nunca consegui terminar nada! Péssima em processos, sempre sofri com
eles. Uma ansiedade terrível, um medo de ir em frente e dar errado ou pior: medo
de dar certo, medo de ser um sucesso em qualquer coisa. Sempre tive mais medo
do que podia ser bom. Essa era uma realidade que, por mais que eu desejasse, fugia
52 Helena Damasceno
desesperada, como se fosse a pior coisa do mundo viver feliz e bem. Fui treinada
a acreditar no lado ruim das coisas; na injustiça, no medo, a acreditar que nada me
salvaria. A verdade é que sempre me afastei de pessoas e coisas que pudessem me
ajudar de alguma forma, porque sempre tive medo de ser feliz!
A culpa... de novo essa palavra tão “poderosa” pra nós! Mas poder muda de
lugar. Só tem poder o que damos poder. Levei mais de 20 anos pra entender essa
possibilidade. Hoje curto meu processo sem maiores sofrimentos ou angústias. Claro
que dói ainda, não digo o contrário, mas esse processo tem me trazido uma energia tão
boa, a segurança de que é possível superar! E isso me move, me traz um oxigênio de
forças minhas surpreendentes e móveis. Dá ansiedade, é claro. Mas é até uma ansieda-
de boa, saber que se está caminhando para a superação seguindo uma estrada coerente
com sua saúde mental, física, psicológica, emocional e espiritual. Traz um otimismo
renovador saber que ao final desse processo, dessa estrada de refazimento, você estará
madura e feliz, livre enfim! É nisso que acredito hoje: na minha felicidade.
Quando percorri todas aquelas estradas escuras, mesmo sem perceber, vivi
o paradoxo de um processo de sobrevida e recuperação. Mesmo superlativando a
vitimização e a culpa, sem dar nenhuma credibilidade à minha própria recuperação,
não parei, segui em frente e busquei ajuda em muitos lugares. A maioria de forma
errada é claro, pois não tinha estrutura para elaborar toda essa história antes. Mas o
fato é sempre busquei apoio.
Por muitos anos ficava triste quando acordava ainda viva, ainda aqui e do
mesmo jeito que dormira, com tudo igual, a mesma vidinha de sempre, o mesmo
caos. Mas a verdade é que nunca desejei morrer. Como já disse antes: desejava matar
a dor e confundia essa idéia com a falsa compensação da morte física.
Mas não se iluda: o que aconteceu já aconteceu! Acolher e enfrentar a sua
realidade de violência sexual não a tornará menor ou fraca. Esse caminho não é
revitimizar, é superar. E vale a pena mesmo falar, desenhar, escrever, gritar, chorar,
compor, criar, correr, fazer psicoterapia porque tudo isso converge no processo de
cura. É sim um processo doloroso, mas também e, principalmente, generoso e de
sabor inconfundível, afinal, caminha-se para si mesmo. E o tempo é nada quando se
encontra a si mesmo! Quando você sentir o gostinho da própria liberdade, do seu
caminho de resiliência abrindo-se à cura interior, sua vontade será a de ir em frente
sempre, sem parar, acolhendo e enfrentando cada momento vivido em catarse, cada
crise e cada medo porque você sente e sabe que isso vai passar, e que está caminhan-
do, saindo do lugar de dor para o lugar de amor próprio e perdão.
O abuso sexual deixa muitas marcas e elas passam muito tempo entrando
em seus poros, alma e vida. Não pense que em alguns meses tudo vai acabar, que
basta fazer psicoterapia, duas vezes por mês, e depois de três ou quatro meses tudo
vai passar. Saiba que não há milagres! Não há uma fórmula mágica de um bolo da
felicidade! É necessário dedicação, força de vontade, paciência e fé em si mesma! É
necessário tempo, muito trabalho e dedicação pessoais, um compromisso interno
e por você.
Pele de Cristal 53
Na hora em que percebi que apenas eu poderia abrir meus braços e mudar
alguma coisa, me assustei tal qual criança medrosa, fugidia. Mas minha vida tocou
num único e preciso momento o cristal límpido e doce da liberdade, ainda em pedra
bruta é verdade, mas de visível teor livre, e me permiti ser feliz desta vez. Não me
fechei à felicidade. Escolhi a mim nesse processo de luz e sigo caminhando com
delicadeza e paciência, sem pressa... sei que chegarei.
Quando abri meus braços tive vontade de não fechá-los nunca mais. De
quando em vez fecho-os para dar passagem à minha criança interior, minha Le-
lezinha linda, a menininha meiga de vestidinho no balanço no jardim. Busco hoje
conhecer cada pedacinho meu com a energia da delicadeza e da doçura. E mais que
isso, busco amar cada um desses pedacinhos. São meus, fazem parte de mim, ajuda-
ram a construir o que sou e reconhecer o que há dentro de mim foi uma de minhas
maiores conquistas! Se roubaram nossos sonhos e nossa infância, não fizeram o
mesmo com nossa essência. O que somos está bem guardado, quietinho dentro de
nós, esperando pela acolhida de nosso perdão. Basta que nos dispusamos a acessar
esse caminho de ressignificação. E nada é mais delicioso que descobrir a si mesmo.
Vê que a hora de cuidar de ti é hoje, não no passado ou num dia outro depois de
amanhã. O amanhã é agora.
Durante o meu tempo de cuidar de mim, tenho aprendido coisas signifi-
cativas sobre o que nossos olhos vêem, quais coisas deixamos em foco principal,
quais deixamos passar e como facilitamos o processo de viver e ver as coisas. Tenho
percebido ao longo da minha caminhada que retroalimentamos vários padrões de
vitimização. Acreditamos totalmente numa fraqueza nossa (suposta tão somente,
acredite), numa vulnerabilidade absoluta. Mas não somos impotentes, muito menos
fracas. Por isso é tão importante a psicoterapia nesse caminho de ressignificação.
Importante e essencial para o acolhimento de nosso quarto pessoal, para que seja faci-
litada a conexão entre nosso caminho de dor e a cicatrização deste através do amor
e do perdão para conosco.
Cotidianamente repito para mim comandos de otimismo, reivindico a pró-
atividade de algumas frases aparentemente soltas, mas que juntas, contribuem sig-
nificativamente para o meu processo de cura. Abro e fecho o ciclo de frases com
a mesma idéia central: eu não tenho culpa. É um passo decisivo e libertador en-
frentar a culpa, os medos e todas as desordens internas acumuladas nesse processo
de transferência de responsabilidades para tentar modificar esse padrão. E decidir
enfrentá-lo é já uma grande vitória. No começo era mesmo muito estranho dizer
tudo isso pra mim, enfrentar meu olhar descrente e desdenhoso no espelho e repe-
tir essas palavras, assumir internamente o entendimento delas. Mas envio-me esses
comandos voluntariamente, repito-os esurdecedoramente para que meu cérebro
perceba que há outras portas para abrir e outras conexões para fazer.
Busco nesse exercício abstrair o medo e os temores provenientes da jornada.
Vivo a experiência humana e o medo faz parte da nossa natureza. É uma estrada
afinal e há vento, sede e frio. Mas a mim é mais latente a beleza da paisagem e o calor
54 Helena Damasceno
da jornada que a ansiedade da chegada.
Sei exatamente quais os passos dei, quais as estradas as quais andei abrupta
e duramente e preciso da minha coragem, da minha fortaleza e delicadeza para ser
feliz e inteira. E assim como eu, você também tem essa fortaleza dentro de si, dentro
do mesmo quarto pessoal em que guardas o medo e a culpa. Repito que é possível
trilhar outras possibilidades além da dor, que é possível ser feliz.
Quando estou sozinha, me observo nesse processo, sinto como se fosse ain-
da metade menina, metade mulher. Minha Lelezinha ainda tem medo e sente dor, é
natural. Foram anos de violência conjunta e abandono. A natureza não dá saltos e,
busco o equilíbrio e a serenidade acima de qualquer coisa. Assim posso seguir com
tranqüilidade, confiança e segurança. O mais evidente pra mim é que tudo de que
preciso para superar minha dor está dentro de mim, e ter percebido isso é o meu
grande passo! Tomar consciência de si é o primeiro trajeto a ser seguido. A coragem
e o medo se fundem, contrabalanceando-se, brincado nessa alegoria de equilíbrio.
Mas como é um processo, é natural que se tenha medo. Mas a força do medo não é
maior que a coragem, a vontade e a certeza de chegar à reta final.
Passei a me preocupar com tudo que absorvo, quais os alimentos que ingiro
voluntariamente. Não apenas a comida que conhecemos mais comumente (carne,
arroz, feijão, macarrão, etc.), mas o alimento emocional, espiritual e psicológico. O
que alimento para manter a culpa, os medos, a vergonha? Pôr essa comida pra den-
tro significa dar guarida a um padrão de comportamento pesado, repleto de valores
e significados que conspiram a rotina de dor e medo que conhecemos. E quando se
refere a abuso sexual, sofremos muito porque nos punimos cotidianamente.
Comer, esse verbo transitivo que pede a contrapartida do alimento, constrói
nossa capa protetora que retroalimenta o medo, as culpas, angústias, fobias, a vergo-
nha, estagnação e todo o peso que nos imobiliza.
Disse antes que o abuso sexual deixa marcas visíveis e palpáveis e que elas
passam muito tempo penetrando nossos poros, alma e vida. Já que nos culpamos
pelo abuso sofrido, nos percebemos burras, fracas, medrosas, magras demais ou
feias demais, dentuças, quadradas, nojentas, inferiores, quase um “monstrinho” am-
bulante não é mesmo? Precisamos fugir da imagem à época da violência a qualquer
custo, e para tanto, nos submetemos a qualquer espaço de sofrimento. Nesse jogo
perverso e abusivo desenvolvemos uma série de capas protetoras, coisas que nos
dão uma falsa sensação de segurança.
Incorremos no erro de “matar” o que somos, ser diferentes do que éramos
quando do abuso para afastar, tanto nosso agressor, quanto outros possíveis, pois já
que o seduzimos, se fomos capazes de atraí-lo, é bem possível que possamos fazê-lo
outras vezes com outras pessoas. Então comemos muito ou comemos pouco, nos
deixamos relapsas, sem cuidar do nosso corpo, engordamos demais ou emagrece-
mos demais, deixamo-nos sem vaidade, sem saúde, sem zelo. Ficamos out, fora mui-
to tempo! Na tentativa de fugir da dor e escapar do sofrimento, seguimos caminhos
inversos ao processo de cura nos afastando de nós mesmas e nos impondo uma
Pele de Cristal 55
série de punições, mas fazemos isso sem clareza de consciência, é claro! É a culpa
que nos acorrenta e nos priva do direito da felicidade, causa primeira da nossa estada
nesse plano, nesse espaço de convivência que é a vida.
Tornei-me uma criança desleixada ao extremo. Mal tomava banho, não me
limpava direito, não escovava os dentes, nem me cuidava de nenhum modo, espe-
rando assim, que o tio-agressor tivesse por mim o mesmo nojo que eu. A maioria
das crianças, especialmente as meninas por conta da questão de gênero, apreendem
desde cedo uma cultura da feminilidade, uma vaidade que zela e as prepara para a
vida adulta. É como se elas fossem aos poucos aprendendo a cuidar de si e depois
da casa, a fazer “coisas de menina”, a vestir seus papéis sociais. Mas eu não queria
fazer nada dessas “coisas de menina”, queria sumir daquela casa, daquela família.
Ninguém me ouvia...
Lavar os cabelos pra mim era um tormento, precisavam estar sempre em desa-
linho, assanhados e feios. Tomar banho seria uma atitude extremosa, só o fazia quan-
do a “coisa estava feia”. Lavar minhas calcinhas, manter ouvidos, unhas e pés limpos
e cuidados eram algo irrelevante, nada interessante pra mim. Precisava me manter
suja pra que ele não me desejasse. Ajudar minha mãe a arrumar a casa então era um
tormento! Sentia como se ela me preparasse para ele, pro agressor que me impunha
àquele inferno todo dia. Pra que aprender a cozinhar, varrer casa, lavar, passar?
Eram constantes as discussões e ofensas porque minha roupa era sempre
suja, porque cheirava mal, tinha feridas nas pernas e não cuidava, não tomava banho,
nem me vestia feito menina comportada. Meu corpo era apenas uma imagem de como
me sentia por dentro. Se eu pudesse, vestia a mesma calcinha um número incontável
de vezes, até que apanhava e era obrigada a um asseio monitorado, pois se fosse ao
banheiro sozinha passava sabonete nos braços e pescoço, fingindo o asseio. Nin-
guém parecia perceber, mas eu estava morta.
Mas o pior estaria por vir. Comecei a descontar na comida toda a mágoa e
peso da dor sufocante. É claro que esperava ficar feia, precisava ficar horrorosa. Mas
novamente digo que essa ferramenta é inconsciente. Ninguém planeja sofrer, ficar
feia e suja. É no peso da culpa que alicerçamos essa engrenagem. Engordei 28 kg,
sem perceber, ao longo dos últimos anos, numa ação violenta e compulsiva, destrui-
dora. E não percebi mesmo que engordei tanto. Algumas vezes, encontrava uns ami-
gos antigos e a primeira coisa que acontecia era um susto generalizado. Fitavam-me
com aquele olhar de espanto, como podia aquele peso todo em tão pouco tempo?
Inevitáveis as “brincadeiras” de mau gosto. A situação piorava pra mim,
sentia-me mais envergonhada ainda e isso acabava fazendo com que eu comesse
mais e mais, muito mais! Eu me sabotava o tempo todo, me entregava totalmente
ao medo e a vergonha e precisava o tempo inteiro ser aprovada em testes doentios
e cada vez mais autodestruidores. Mas nem percebia que aquilo me fazia tanto mal,
era como uma droga que vicia e que você não consegue largar.
O que queria mesmo era me esconder do mundo e encontrei esse refúgio
na comida. Precisava engordar porque necessitava parecer feia, velha e gorda, para
56 Helena Damasceno
que ninguém se aproximasse. Era absolutamente necessário estar bem longe daque-
la imagem à época do abuso. O tio-agressor me fazia “elogios”, dizia sandices no
meu ouvido e dialogava sozinho num carrossel doentio e imaginário, porém num
pesadelo bem real pra mim. Então aquela imagem que o atraía precisava morrer, e
foi o que fiz, inevitavelmente.
Quando meus “amigos” me encontravam e me chamavam de gorda, ficava
triste sim, aquilo me incomodava muito, mas lá no fundo, bem lá no fundo, me sen-
tia segura. Acreditava (erradamente) que não era mais aquela menininha abusada,
que estava a salvo. Que nada! Eu era ainda a mesma menininha assustada, falsa-
mente protegida por uma capa de gordura que a aquecia. Uma série de compulsões
somou-se a essa depois, mas a verdade é que nunca me senti protegida de fato. Sem-
pre estava à espera de um ataque, sempre vivi na defesa. Quando punha a cabeça no
travesseiro, sentia um medo avassalador de que ele me encontrasse. Ninguém sabia
onde eu morava, mas ainda assim, sentia medo de, de novo, ser abusada por ele.
Ainda me sentia a mesma menina indefesa, gorda ou não. Essa era a verdade. Agora
que fachada! A gente se culpa, se enche de comida ou de remédios, de medos ou de
qualquer coisa que destrua aquela imagem antiga de menina abusada e machucada,
e nos acorrenta ainda mais a esse novelo de auto-sabotagens e sofrimentos. Isso não
nos liberta, aprisiona!
Mas e quanto ao alimento que não é produzido nas lavouras e digerido nas
refeições em casa, nos self-services, lanchonetes ou barzinhos? Em que palavras, sen-
timentos e sensações estarão os focos do nosso olhar? Que peso e que valor damos
às coisas à nossa volta e, que contribuem todas, inevitavelmente, para a nossa ali-
mentação por assim dizer?
Quando nos envolvemos em relacionamentos doentios que se repetem ao lon-
go dos anos, nos quais nos projetamos sempre em segundo plano, e em detrimento
próprio, ou em situações de mendicância ao amor do outro; onde nossa felicidade é
e está sempre nesse outro; alimentamo-nos mal, comemos muito colesterol ruim, bus-
cando fora de nós o que, na verdade, está dentro. Isso só nos mostra que ainda nos
sentimos aquela menininha assustada, com medo da mão invasiva, do suor invasivo e
que precisa ser protegida do mundo que quer abusar dela de novo e sempre.
Quando não percebemos nossas qualidades em detrimento à culpa e ao
medo, apontamo-nos um caminho de sombras onde, de quando em vez, podemos
até notar alguma luz, mas sempre debaixo de algo que é maior que nós. Mas não
há situação essa que não possamos ultrapassar e não há nenhum igual, nenhum ser
humano maior ou melhor que nós. Estamos todos no mesmo barco, na mesma
dinâmica da vida.
Veja quais alimentos consome cotidianamente. Perceba se eles nutrem somen-
te e necessariamente o que você precisa para ser feliz, para estar inteira na sua cami-
nhada. Na sua asa, só cabe o que podes levar em vôo seguro. Lembre-se que a força do
medo não é maior que a coragem, a vontade e a certeza de chegar à reta final.
Pele de Cristal 57
Capítulo V
“Mudei... fui embora de mim.
Saí em desalinho, em desajuste,
em constante amparo e convexo.
Cumpri minha bênção diária...
Saí pelo meio dos ventos
desafiando tempestades e folhas de nácar
Nunca mais serei ferida
Agora sou casca”!
Força de horizonte
Na sua asa, só cabe o que podes levar em vôo seguro. Lembre-se que a força
do medo não é maior que a coragem, a vontade e a certeza de chegar à reta final.
Sempre me achei fraca, uma menininha boba e sem graça, sem sal, sem be-
leza, sem nada! Fazia coisas estúpidas e pedia licença pro mundo pra qualquer coisa:
“ôôô dá licença eu respirar, posso passar por aqui, posso ser sua amiga, eu sei que não tenho culpa,
mas me desculpa mesmo assim viu?”. Exagero? Nenhum!
Todas as minhas atitudes e posturas, tudo o que fazia, onde quer que estives-
se, no trabalho, em casa, vivendo relacionamentos de amizade ou afetivos outros,
em apresentações em barzinhos fosse o que fosse, onde fosse, lá estava eu com um
enfeitado pedido de desculpas bem amarelo no rosto. Sempre tive uma vergonha
gigantesca de mim, de quem era ou viria a ser, de tudo que havia em mim.
Escondia-me atrás de tipos ou personagens. Numa fase estava palhaça de-
mais, rindo e tirando sarro da cara de todo mundo, geralmente com um bom reper-
tório de piadas (hahaha) bem desagradáveis e acorrentadas a um humor sarcástico e
de mau gosto, numa volúvel e superficial simpatia. Antes atacar do que o contrário,
sempre a melhor defesa - minha transparente capa de proteção!
Outras vezes era indiferente demais, quando estava nas minhas fases intros-
pectivas. Mal falava, não saía de casa ou atendia telefones, nem ia a barzinhos, nada
enfim! Outras era a chatice em pessoa, melhor dizendo: em fardo. Resmungava o
tempo todo, reclamando da vida, dos preços altos, das feridas que ainda sangravam
abertas dentro de mim, mas que ninguém via, ou cuidava, de tudo enfim!
Resumindo: ou me achavam simpática demais, ou grossa demais, chata de-
mais, quieta demais, algo sempre demais! Blá blá blá.! Daí pra frente não parou
mais! Sempre tinha um modelo, novo ou não, mas sempre tirava um fake da minha
cachola mágica e protetora. Expunha-me ao julgamento alheio, me esquecera que, a
bem da verdade, eu é que tinha que achar alguma coisa sobre mim mesma.
Não sabia quem era a mulher que via diante do espelho nos últimos anos.
Quem era essa desconhecida que se aventurava comigo num eterno pique esconde
com suas virtudes, belezas, erros e vícios? Eu estava mesmo disposta a conhecê-la?
Como eu poderia conhecer essa mulher se justificava sua existência como um erro?
Nascer tinha sido uma fatalidade, pois, afinal de contas, tinha nascido pra que? Pra
ser infeliz? Pra ser um brinquedo sexual comprado numa sexshop ruim?
Via-me sem perspectivas. Não permitia que ninguém, nem mesmo eu, ti-
vesse o prazer de me conhecer de verdade, de me ver de verdade. Disfarçava senti-
mentos, sensações, vestia variados papéis na busca de negar quem era de fato e de
essência. Minha fortaleza parecia estar no horizonte de uma praia qualquer, bem
longe de mim. Sempre fora de mim, não é mesmo? Meu foco, minha maneira de ver
as coisas, estava habituado a essa lógica limitada.
O nosso olho vê apenas o que está no foco central da íris. Ele não percebe o
que está para além dele, então isso “se perde”. Nossa visão fica limitada pelo padrão
Pele de Cristal 59
que seguimos mental e cotidianamente. Por isso o conceito sistêmico vem avan-
çando espaços e ampliando consciências. O Ser é e faz parte de muitos sistemas ao
longo de sua vida. Família, escola, comunidade, todos os espaços de convivência o
alimentam e convergem para o tudo que ele é. Aumentar o foco da sua vida dentro
de um sistema, amplia o conhecimento de si e das coisas ao redor, abre o leque de
possibilidades. Você pode ir muito além da íris, ver bem mais do que aquilo que ora
se apresenta à sua lógica espacial, palpável.
O que quero dizer é que nos acostumamos com a rigidez de nossas centra-
lizações e podemos mudar de foco, ampliá-lo. Experimente exercitar isso com pe-
quenas coisas do dia-a-dia. Amplie sua visão, sua forma de ver e perceber as coisas,
pessoas, possibilidades, sonhos, dores, medos, culpas... Até a dor quando olhamos
para ela, se o fizermos do chão ela parecerá maior.
Todo movimento é dado a partir de um pequeno desejo, de um conjunto
desses desejos unidos em prol de. Cada um na sua velocidade, no seu tempo. É
importante perceber a cristalização do que focamos, mas existem degraus: da per-
cepção aos questionamentos, à mudança de alimentação emocional. Faxinar nosso
quarto pessoal demanda tempo, paciência e amor.
Como não sabia disso, ia à praia e me sentava à beira mar, passava horas ali,
olhando profundamente pro mar, praquela linha enorme e imaginária. Secava-o
numa sede interminável por mim, buscava a solução pros meus problemas e luta-
va pelo fim da minha dor, mas esquecia que era dentro de mim que estava minha
força, não naquele horizonte algumas vezes personificado em relações amorosas
patológicas, numa extensão clara da culpa e da vergonha que sentia, ou em compul-
sões e somatizações sem fim. Essa metáfora do horizonte me assegurava o foco de
justificativas para me manter segura. Esse era o padrão de medo e culpa que repetia
mental e fisicamente num cansativo carrossel de dolo e inocência, vivendo eventuais
altos e baixos.
Superar a dor do abuso em si é como olhar pro horizonte: parece que é
impossível chegar lá, não é mesmo? Mas nosso horizonte interno não se constitui
de uma linha imaginária ou lapso óptico. Somos fruto de nossas experiências e
acumulamo-las em nosso quarto pessoal, inevitavelmente. Chegar ao horizonte inter-
no é fazer o caminho de amor por si mesma conhecendo suas fronteiras, assumindo
a posse de sua essência e vida com coragem e delicadeza. Superar é um passo dado
todos os dias quando você acorda e decide viver, por aquele dia que seja. Viver é
uma experiência ímpar, delicada como semear, acolher e colher um roseiral. É um
plantio diário e efetivamente afetivo para que nossa rosa floresça no tempo certo.
Espinho e flor...
Mas houve época em que minha cabeça só pensava em fracasso, não conse-
guia imaginar nenhuma possibilidade além da dor. Queria sim superar, até esquecer
o que tinha acontecido, mas não estava preparada para o enfrentamento com a dor.
Não podia e nem queria superá-la. Então negava tudo que tinha me acontecido e
continuava vivendo anestesiada. Mas tem uma coisa: a violência sexual que aconte-
60 Helena Damasceno
ceu comigo e com você é real, aconteceu sim! Nada vai mudar isso! Sei que quando
negamos, isolamos esse pedaço doloroso da nossa vida num quarto ermo, bem
distante da nossa rotina. É como se isso deixasse de existir, como se nunca tivesse
acontecido nada daquilo, não é mesmo? Mas esse quarto pessoal acumula poeira e de
quando em vez, essa poeira vem à tona lembrar que existe dor e que precisamos
de luz e dedicação para sair dali, do chão da dor, para que possamos transformar e
ressignificar essa experiência dolorosa em amadurecimento e libertação. Continuo
dizendo que não é fácil, continuo dizendo que é possível, que é real. Lembre-se que
enfrentar as lembranças é estar no comando, é guiar sua própria vida e redescobrir
a si própria.
Quando era criança queria ser astronauta, parapsicóloga, médica, freira, de-
senhista de cartoons, cantora, escritora, queria tocar violão e ser artista. Na verdade,
queria ser primavera além do inverno que se estabelecera na minha casa, na minha
alma. Sonhava em ser livre... Na verdade, era livre somente no pensamento. Dentro
da minha cabeça ninguém podia entrar, me invadir e ou monitorar minha essência.
Criava estórias na minha imaginação onde a heroína sempre era corajosa, forte, sem
papas na língua, simpática, linda, meiga e doce. A heroína era eu, o que queria ser, ou
vir a ser. Nessa brincadeira de “faz de conta” – só faz de conta, porque na verdade
o que sonhava era assumir a mulher que era –, nessa brincadeira infantil, consegui
preservar o que há de melhor em mim. A verdade é que aquela mulher forte, bonita
e corajosa, que conseguiu manter sua essência alegre e guerreira foi absolvida ali,
nos canteiros imaginários de minha infância.
Porém sempre fui considerada uma criança estranha, cheia de tiques e des-
tabanada. Na verdade haviam transformado minha imagem totalmente. Gaguejava
quando nervosa, não me expressava direito, vivia doente, tímida demais, anti-social,
magrela demais, desengonçada – vivia derrubando as coisas e quebrando tudo, não
tinha vaidade, era feia. Quase nada ficava inteiro na minha mão. Se ganhava um pre-
sente o perdia, quebrava ou desaparecia. Tinha medo só de pensar no que ouviria da
família quando eles soubessem de “mais uma das minhas”.
Meus peixes morriam de fome, meus gatos eram jogados fora porque nunca
cuidava deles direito, meus cachorros cheiravam mal porque não os banhava, meus
pezinhos de feijão nem chegavam a florescer. Tudo meu era perdido ou aos peda-
ços. Não conseguia cuidar de nada porque não me ensinaram a fazer isso. Pra cuidar
de algo teria de ter sido habituada a essa prática.
A família em que nasci tratou de fechar os olhos para a violência sexual que
eu sofria. Hoje, não os vejo, mal sei deles. De quando em vez entro em contato com
minha mãe biológica e a visito esporadicamente. Nunca conversei com eles sobre o
abuso, nunca rasguei o verbo digamos assim. Sempre tive medo de ser tratada como
louca, mentirosa ou sem vergonha, de ouvir que eu o provoquei e o seduzi.
Quando a fala da criança ameaça quebrar o muro de silêncio, a família se
organiza quase que instintivamente para desmoralizá-la, devastado-a de dor e pres-
sionando-a com a imposição do silêncio. É um mito quebrado dizer que a família
Pele de Cristal 61
é um espaço seguro, no qual a criança está segura. O lar e o espaço da família são
também ambiente onde a criança não está a salvo. É preciso desnaturalizar essa
idéia e admitir a possibilidade dessas laços estarem fragilizados. Somente depois
disso poderemos transvalorar sobre tais relações.
Quando acreditamos que somos sujas e culpadas, estamos reproduzindo os
padrões da revitimização. Não fique pensando sobre os motivos e porquês dessa
violência. Trate de cuidar de você, do seu espaço de conquistas pessoais, da ação de
quebrar esse ciclo de dor, medo e culpa. Mude o foco do seu olhar, amplie-o. Mudar
faz parte da vida. Mudamos o tempo inteiro, mesmo sem perceber. Não receie, você
não é mais aquela criança assustada e ferida. Você está viva, aproveite a oportunida-
de de viver a experiência humana. Não viemos pra cá para sofrer ou pagar dívidas.
Viemos apreender harmonia, equilíbrio, amor, respeito e solidariedade. Aproveite as
coisas de estar viva e planeje do que você precisa para viver.
Quando caminhamos, até os passos dados se olharmos, são inevitavelmente
uma permuta de equilíbrio, de passado e presente, de futuro. Andar é fruto do dese-
quilíbrio aparente entre um passo e outro, é mudar a tempo real, perceber o instante
em que saímos do lugar. Saia do lugar.
O que você quer para sua vida?
Tudo que você quer ser está dentro de você!
62 Helena Damasceno
Capítulo VI
64 Helena Damasceno
Quando nos dispomos a mexer no nosso quarto de segurança (falsa segurança)
estamos indo de encontro a esse vulcão. Pode-se até tentar evitar esse encontro com
o crescimento e a maturidade, temos livre arbítrio pra isso, é claro, mas é como por
a pedra na boca do vulcão. Estamos vivos e em constante e inevitável movimento.
Mais dia menos dia, entraremos em erupção, botando pra fora tudo que estava apa-
rentemente guardado.
Algumas vezes quando estamos em crise, sentindo a dor em estado ininter-
rupto e com toda a sua força, nos deixamos levar pelo grau exagerado da violência
que tudo arrasta. Esquecemos de notar que esse caos é momentâneo e aparente.
É mudança simplesmente e toda ela traz dor porque retiramos a poeira do lugar,
retiramos as coisas do seu espaço de segurança (falsa segurança); e o aparente estado de
constipação traz amadurecimento quando percebido sob a ótica da transformação
e da maturidade.
A crise é o vulcão em movimento de erupção, arrastado pela dança da mu-
dança. Não somos seres estáticos, a vida é um dom em movimento. Li uma vez que
o tempo é como uma criança que quanto mais damos atenção, mais ele se mostra.
Assim são as ansiedades, angústias e os temores da transformação. Se as cercamos
de atenção, mais elas ganham força e poder na nossa vida. O tempo é um dom que
temos ao nosso dispor para enfeitar a vida de tudo que cabe em nosso coração.
Disponibilize-se às mudanças, abra seu coração ao convívio com você mes-
ma, ouça o que sua voz interior tem a dizer, grite se for o caso, saia a correr, respire
fortemente, rasgue uns cadernos velhos, dispa-se de falsos pudores, enfrente-se!
Dói mesmo, não negue isso. Admitir que dói, admitir o que aconteceu não é sinal
de fraqueza, mas sim de coragem! A dor faz parte de você e negá-la traz angústia e
ansiedade no processo de cura que fica mais longe de ti. Mas não se acostume à idéia
da dor, não se permita o vício do sofrimento. Não negue nada em seu processo,
todo ele é válido e, aos poucos, você perceberá que muitos sentimentos são naturais
a qualquer situação.
Algumas vezes pensamos que ser vítima de violência sexual nos marca de
uma maneira diferente, mas não somos diferentes, somos iguais a qualquer pessoa
que passa por uma situação de dificuldade. É claro que especificamente a violência
sexual, deixa marcas absurdamente violentas, mas não precisamos eternizar o mo-
mento em que estivemos indefesas. A mania de sofrer é que prende e contamina.
Portanto, abra seu ser às mudanças, saia do lugar...
Sentir medo, frio, fome, coragem, fé, descrença, tédio, amor, faz parte das
coisas de estar viva. Portanto, cada passo que você dá é somatório no seu caminho, é
a vida que se apresenta para ser vivida integralmente. A violência sofrida não é fruto
da sua negligência ou da sua culpa. Não precisamos carregar o fardo pesado dessa
culpa até sempre e com a mesma perspectiva de vitimização. Não precisamos de
rótulos depreciativos. É natural subir e descer porque estamos em constante estado
de aprendizado, estamos em estado de crescimento. E tudo nesse caminho de viver
é válido porque é soma no resultado você.
Pele de Cristal 65
Escolha o que você quer da rosa... Seu perfume e beleza ou os espinhos?
Mas lembre-se que os espinhos fazem parte da rosa sem ladrar-lhe a beleza e a sen-
sibilidade. E todas as rosas têm espinhos inevitavelmente. Mas sua forma e beleza
são tão evidentes que a nos é muito maior o desejo de ver a beleza da rosa que os
espinhos. Podíamos nos perceber rosa todos os dias, educando os nossos filhos tal
como as flores que precisam de cuidado e dedicação, apesar dos espinhos. Ah, e
cada rosa é individual com sua beleza especificamente individual.
Insisto que a violência sexual intrafamiliar é um ardil construído no coti-
diano. A criança tem suas defesas mutiladas todos os dias até que se torne presa
fácil ao abuso sexual e nem reaja mais. Ela não ousa, não reage, não pensa, e morre
ali, um pouco mais todos os dias até que se finde esse processo e se inicie o de dar
passagem à recuperação. Anos a fio podem separar esses momentos. No meu caso,
pra ser bem específica, 20 anos.
Quando me vi sozinha, totalmente presa e dominada pela família e pelo tio
agressor, com os abusos e as humilhações ocorrendo num grau de violência grada-
tiva e cada vez mais freqüente, me senti desamparada e sem forças. Mas precisava
sair dali, daquela situação. E saí. Para a família em que nasci foi muita audácia sair de
casa sem eira nem beira, mas precisava sair do julgo da violência sexual. Não tinha
trabalho, era uma menina medrosa e cheia de tabus, fobias e inseguranças; não tinha
amigos que pudessem me dar uma guarida imediata e a partir dali, tinha que decidir
sozinha, escolher sozinha como viver de acordo com meus passos. Ninguém me
havia ensinado a viver, haviam me doutrinado da maneira errada. E eu estava agora à
mercê da escola da vida que me conduziria até aqui a um custo bem alto, mas repito
que foi minha única alternativa de sobrevivência.
Foi difícil sim, mas saí com a mamãe chorando atrás de mim, me pedindo
pra não fazer aquilo, me fazendo promessas que sabia que não deixariam de ser isso,
promessas. Seguia na frente dela andando de um lado pro outro, sem olhar pra trás
ou pra ela. Ia catando algumas roupas num choro compulsivo e interminável. Mas
não podia morrer por ela e ficar naquela casa significaria morrer. Nunca consegui
dizer pra ela qual verdadeiro motivo me levou a sair de casa; me sentia culpada
demais e se falasse qualquer coisa, pensava que ela deixaria de me amar, porque o
tio-agressor me disse isso por muitos anos. E acreditei em todas as mentiras que ele
disse! Passei a vida toda justificando minha existência como um erro da Divindade
porque acreditei em tudo que ele me disse. Hoje sei que ele precisava manter seu
segredo e dinamitou minha auto-estima pra isso.
Fui pro mundo qual passarinho que cai do bico da mãe. Cai machucado,
busca cuidado, mas tem de seguir a jornada sozinho. O passarinho machucado não
confia em ninguém, ele tem medo de quem tem 32 dentes. Vez outra, o passarinho
cria coragem e vem cantar vôo fora da casa de proteção dele. Ele sabe que precisa
de ajuda, que precisa aprender a voar e vem brincar, mas tem medo do mundo e se
esconde de novo.
Relacionar-se com o mundo é quase um tormento pra quem foi vítima de
66 Helena Damasceno
abuso sexual! Ora, pois, se nós confiamos num homem que nos enganou de forma
torpe e vil, como confiar no resto das pessoas se quando fizemos, fomos enganadas
e abusadas? Como saber o que é verdade e quem a diz? Tudo é muito confuso pra
nós. Por isso insisto na importância da psicoterapia como ferramenta fundamen-
tal no processo de cura. A psicoterapia toca no centro da dor e nos auxilia nesse
caminho rumo ao autoconhecimento, facilitando junto conosco essa jornada de
superação, maturidade e liberdade. Enquanto casulos preparamo-nos à beleza para
alçar outros vôos. Enquanto borboletas voamos buscando as rosas, as flores com
espinhos e beleza evidentes e em equilíbrio.
O caminho é buscar ajuda, não desistir nunca de você, fazer o percurso da
sua história de vida libertando-se da vergonha e da culpa. Não precisamos negar ou
fugir do passado, nos esconder feito ladras. Eles, os agressores, é que precisam de
esconderijos. É um engano pensar que negar o abuso nos liberta de fato. É a pedra
na boca do vulcão, e nossa boca fala mesmo que em silêncio! Não somos culpadas,
não seduzimos ninguém, não cometemos nenhum crime! Quando aceitamos a cul-
pa, negamos a nós mesmas, o direito de ressignificar todo o sofrimento, toda a dor,
negamo-nos à possibilidade do auto-cuidado e do aprendizado do amor próprio.
Chego hoje aqui, nesse espaço de resiliência e liberdade com sensibilidade
ao olhar pra trás e ver que sou uma bela mulher caminhando com dignidade para
tornar-se o que é verdadeiramente: um ser sem amarras, sem entraves, com simpli-
cidade. Cada um de nós tem um tempo, uma velocidade para habituar-se às coisas
de estar vivo. Não há fórmulas mágicas! Aponto apenas o caminho do autoperdão,
da libertação da culpa e dos medos para sermos livres e felizes porque esse é um
caminho de amor e não de medo.
Durante mais de 20 anos acreditei cegamente que não merecia e nem podia
ser feliz. Dizia-me muito grata pela educação que tinha recebido. Enganava-me o
tempo inteiro, dizia pra mim mesma e pros outros que tinha recebido tudo do bom
e do melhor, que a família em que nasci havia tido muito zelo e esmero para co-
migo, que mal discutíamos e que éramos uma família unida e feliz, quase perfeita.
Negava o abuso em todos os detalhes possíveis. Como minha família é incestuosa e
negligente, dizer o contrário traria alento e esquecimento à minha história de abuso
sexual intrafamiliar e de todas as suas conseqüências.
Contava estórias onde minha mãe era louca por mim! Dizia que ela me ama-
va tanto, que nos dias que fazia frio, ela esquentava minha água ao acordar e que
quando saía do banho, meu café já estava posto. Sempre quis uma família de pro-
paganda de margarina. Conhecia muitas pessoas que tinham uma família mais ou
menos tranqüila, não podia ser diferente de ninguém, então negava meu histórico
de abuso e violência e ficava com a fama de louca e irresponsável. Assumi esse
papel porque me sentia em débito com eles, a gratidão filial que confundia com
justificativas banhadas de culpas. Por muitos anos deixei de fazer o que gosto, deixei
de saber quem de fato sou e de correr atrás dos meus sonhos, nem acreditava neles.
Vivi nessa fantasia de família de propaganda de margarina até confundir realidade e
Pele de Cristal 67
mentira. Menti tanto pra mim que houve um momento em que não sabia mais nada
de mim, era uma completa estranha.
Vivi relacionamentos doentios, nos quais me submetia sempre, (em segundo
lugar, em segundo plano) andava sem cuidados para comigo, sem buscar equilíbrio
em nada. Nos grupos em que andei, fui acusada de roubo, de mentirosa, me envolvi
em fofocas, discussões e atritos, mas dependia desse ciclo vicioso e desvairado. Pra
sobreviver trocava minha música por alguns trocados, por comida ou por um bom
lugar pra dormir mesmo. Era minha forma de me relacionar com as pessoas e co-
migo: eu sempre em desvantagem e co-dependente. Não estava pronta para viver
equilibradamente porque não sentia o equilíbrio dentro de mim e o buscava nas
coisas mais torpes, traía a mim mesma fazendo isso.
Fui e voltei muitas vezes na casa de minha mãe biológica. Ela sempre vinha
com a cobrança de que eu fosse a “filha perfeita” que eu nunca conseguira ser, e me
sentia então, a pior das criaturas, incapaz de gerenciar a própria vida! Eram muitas
as acusações e discussões sobre “o que eu estava fazendo da minha vida”. E não
conseguia falar nada, tinha medo de tudo, de que ela nunca mais quisesse sequer
saber de mim ou me ver de novo. Algumas vezes estamos tão dentro desse ciclo
de dor e culpa que não percebemos que é isso um jogo, uma troca cruel de valores
incoerentes com o equilíbrio da vida, com as coisas de sermos e estarmos humanos
em dignidade e integridade maior.
Entrei pra universidade e, apesar de não ser o curso que queria, a família
ficou toda orgulhosa, tinham, afinal de contas, um troféu meu para exibir, algo
que sinalizasse que todo o investimento feito em mim havia valido a pena. Nunca
terminei esse curso. Ele representa todo esse período de dor. Era como se quando
entrasse por aqueles corredores, bebesse de novo toda a desvalia que absorvi a vida
inteira, como se aquele orgulho da minha mãe me ferisse mortalmente. Hoje repen-
so muitas coisas, inclusive minha profissionalização. Mas estou tranqüila quanto às
prioridades de hoje, mais leves e saudáveis. Do passado nada quero além do apren-
dizado e da cicatriz.
Considero minha trajetória sem maiores dores e danos, sem esse pesar de
ter tido culpa do abuso e de todas as conseqüências dele. Fui vítima de violência
sexual, sim, e isso não me diminui em nada! Busco nesse processo chegar ao auto-
conhecimento e amor próprio. Libertar-me da culpa e dos medos é mais que uma
possibilidade, é realidade que se aproxima em constante alegria.
Quando criança brincava fazendo bolinhas de sabão. Li um livro anos depois
descrevendo o amor como a estrutura de uma bolha de sabão. Esse desconhecido
amor por mim, composição doce eternizada nas brincadeiras e sonhos de infância,
volta aos poucos para seu lugar de afeto e de direito. Saber quem sou e assumir
minha identidade sem medos, culpas ou vergonhas, sem me sabotar e me punir
pelo passado é um passo que já foi dado, é estrada que se abre doce à minha frente.
Outras pessoas já traçaram essa estrada, não sou a única. Conheço gente que sabe,
assim como eu e você, a cor do fundo do poço. Mas saiu dele vitoriosamente, veste
68 Helena Damasceno
hoje outras cores pintando a vida com outra poesia, outra tela além da dor pesada
e injusta que carregamos. Mesmo que seja difícil enxergá-la, a felicidade é o destino
de todo ser que vive a jornada humana. Perceba-a nas pequenas coisas doces da sua
vida, em sua essência.
Dentro de você existem pólos de felicidade que se unem em prol da obra
de sua vida, amenizando os momentos de dor e ressignificando-os quando neces-
sário. Sintonize-se, abra seus espaços a esse caminho. Se seu coração está cheio de
dor, mágoas, medos e culpas, seu pensamento será organizado dessa forma, sem
ver possibilidade de mudar de foco, de sintonia. Mude o foco de seus sentimentos,
sintonize-se no afeto e no equilíbrio interior e do que está ao redor, na bioética
essencial da vida. Busque encontrar a fonte da mudança na magia da simplicidade
das coisas de estar vivo.
A maioria das vezes foi difícil me deixar crescer, porque precisava pra isso
deixar vir à tona todas as minhas feridas, acolhê-las e tratá-las com amor e respeito.
E não sabia se conseguiria. Abandonei muitas vezes coisas que eram importantes
pra mim. A universidade foi uma delas. Me contorcia de culpa depois, me punindo
porque não devia ter feito isso, o que só aumentava a sensação de vítima impotente
e culpada. Abandonava as coisas como se estivesse abandonando meu próprio sofri-
mento ou a mim mesma, só que não compreendia que fazendo isso só aumentariam
minhas preocupações e problemas. Além disso, vivia com muito medo, quase como
um pânico ou uma fobia social. Não confiava em nada nem em ninguém, então
como me relacionar? Ir pra aula significava me relacionar com as pessoas e eu não
sabia se estava preparada pra isso.
Mas um belo dia pensei em enfrentar meus fantasmas; e lá estava eu pedindo
formalmente para retornar à Universidade. Qual não foi minha surpresa ao receber
meu pedido foi deferido. Voltei empolgadíssima e segui bem, ia às aulas apesar de
tudo. Até que afundei numa das maiores crises depressivas da minha vida, crise
esta que se arrastou longa e dolorosamente. Deixei de ouvir música, tocar violão,
abandonei novamente a Universidade e passava os dias comendo compulsivamente
e chorando. Quando tinha uma oportunidade enchia a cara, bebia toda a dor pra que
ela se afogasse. Mas quem se afogava na violência do sofrimento era eu, estava per-
dendo a minha vida. De quebra estava numa situação financeira complicada e não
conseguia um trabalho extra pra melhorar a renda. Pensei mais uma vez em desistir
de tudo e me entregar ao cansaço, talvez morresse. Era mais fácil fugir.
No meio da crise escrevi um dos textos mais duros sobre minha história
de abuso. Despejei no papel toda a intensidade da dor que carregava e todo o peso
que guardara por anos a fio. Esse texto é o mesmo que abre esse livro, a primeira
carta. Não tinha forças sequer para pedir ajuda, só chorava, só sofria. Dias inteiros
sem uma aparente explicação “concreta” pra dar aos mais próximos. Por que tan-
to sofrimento? Por que eu não conseguia terminar nada na vida? O que afinal de
contas me maltratava tanto? Escondia-me da vida e afundava junto com a dor que
se tornara grande, um monstro me digerindo sem dó. Tinha abandonado a terapia,
Pele de Cristal 69
não tinha dinheiro e nem interesse real em voltar a fazer. Pela primeira vez me vi
sem saída alguma.
Nunca tinha encontrado alguém que tivesse sofrido violência sexual na in-
fância. Certo dia recebi um convite para o site de relacionamentos Orkut, e confesso
que achei aquilo uma grande bobagem, sem nenhuma rapidez ou praticidade, como
eu poderia aderir àquilo? Mas o fiz, e, aos poucos, fui percebendo uma cumplicidade
peculiar nas gavetas orkutianas, as chamadas comunidades. Passei a buscar o assunto
violência sexual e, ao encontrar, um milagre interno me aconteceu: encontrei pes-
soas como eu. Li alguns textos antes de entrar na primeira comunidade. Mostrei a
cara e publiquei minha dor com parte daquela carta que escrevi tão dolorosamente.
A essa altura já havia feito terapia três vezes sem sucesso algum e sem conseguir
percorrer o trajeto até o final. Não estava nem disposta e nem preparada ao enfren-
tamento de todas as conseqüências do abuso sexual. Mas ali, naquele cantinho azul,
desde o início, recebi todo o apoio possível e, de imediato, fiz contatos e amizades
que me questionaram toda a estrutura em que montara a minha vida vitimizada.
O milagre da vida estava ali me mostrando que outras pessoas haviam passa-
do pela mesma experiência, que eu não era a única e que todas elas, apesar dos pro-
cessos distintos, não haviam desistido de viver. Percebi que é possível estender uma
mão sem acorrentar almas. Ali, naquele espaço de exposição, descobri e re-conheci
que é possível confiar, estabelecer laços fraternos e de trocas afetivas responsáveis,
simples como ver o mar. O abuso não matou minha essência, minha identidade.
Tudo estava morno, quieto dentro de mim, me aguardando para navegar no oceano
interno de minha maturidade. Minha caminhada começou no instante em que me
abri para essas amizades trocando experiências afins num intercâmbio de forças,
afeto, respeito, humildade e paciência; reaprendendo a confiar nas pessoas e na vida.
Nunca disse isso pra minhas irmãs de alma, mas a presença de cada uma, foi e é
imprescindível nesse meu processo de cura.
O fato de a Internet ser um lugar de fakes e insegurança, onde a mente hu-
mana em desalinho com a ordem excelsa, a utiliza erradamente e espalha crimes, fez
com que eu acreditasse que a extensão desse braço de desafeto e medo me acharia
inclusive ali. Isso só seria a comprovação de que é mesmo impossível confiar no ser
humano. O tempo fez-me ver que há possibilidades muitas quando abrimo-nos às
oportunidades de coração e alma em sintonia com o Bem na perspectiva de superar
os traumas sem medos, de cara limpa. O milagre da vida invadiu o espaço ciberné-
tico e me trouxe esperanças no espaço real.
O milagre foi acreditar que nada ocorre ao acaso, que a folha da vida sopra
em meu rosto porque mereço ser feliz. O milagre foi crer... Na simplicidade das
relações, nas possibilidades que se abrem a todo instante, na capacidade que tenho
de estar no comando, respeitando-me e reconhecendo-me, aprendendo a me amar
e a crer que é possível superar, libertando-me das culpas, do medo, e do amparo da
ansiedade e da vergonha. Não preciso sentir vergonha pelo que me que aconteceu
porque não tenho culpa, porque não errei! Não preciso ter vergonha dos caminhos
70 Helena Damasceno
que trilhei... Se demorei, cheguei no tempo exato de encontrar vocês aqui. E não
perdi tempo algum pra chegar aqui, ganhei vivências... Duras, sim, é verdade, entre-
tanto, todas são parte do que me transformou em Helena.
Pergunte-se até quanta carga pode carregar, quanto de dor você acha que ain-
da cabe dentro de você. Onde você pensa que vai com esse peso? Como você pensa
conquistar a leveza, a superação dos medos e conseqüências do abuso? Por que es-
tivemos indefesas uma, duas ou mais vezes você acredita ser assim e ser sempre? A
violência sexual deixa marcas profundas e que carregamos mui dolorosamente por
toda uma vida. Podemos explodir violentamente se não cuidarmos de nós a conten-
to, se nossa atenção não estiver voltada para nós numa prudente busca pela leveza
dos dias a serem vividos, pela nossa libertação e maturidade. Não é justo conosco
seguirmos carregando o peso da culpa, da responsabilidade do abuso sofrido.
Sei que algumas vezes é difícil, que dói tanto, nos angustia tanto que nem se
gritássemos até perder o rubor da voz, conseguiríamos melhorar. Dias havia em que
minhas forças não me moviam do lugar, passava semanas sem comer, sem tomar
banho e sem sair de casa, num desleixo total comigo. Quando ia às ruas, o pavor de
encontrá-lo era tamanho que me tomava de sobressalto a cada esquina, com qual-
quer coisa. Parecia uma menina assustada e perdida procurando abrigo e proteção.
Em meados da década de 90, quase no inicio dos anos 2000, passei a dormir
na universidade. Mesmo sem assistir as aulas, ia pra lá, gostava de permanecer em
lugares públicos, me sentia segura assim. Era lá que fazia meu asseio diário (ou quase
isso), dormia, lia, estudava, comia e tentava esquecer das tantas dores acumuladas.
Buscava esse lugar de apoio nos sítios mais distantes do “lar” que havia tido. Certa
vez na universidade, encontrei um amigo que me estirou a mão sem jamais pedir
nada em troca. Ele me levou à sua casa, me deu guarida, comida, arranjei trabalho,
a família dele meio que me adotou e eles me ajudaram bastante. Mas nunca tinha
tido uma família estável, não sabia o que fazer com uma e muito menos como lidar
com essa situação.
Tive comportamentos irresponsáveis e opostos. Uma hora era doce e amiga,
noutros momentos nem aparecia e me distanciava do cotidiano da casa. Resultado:
perdi meu amigo e saí de lá, sem nenhuma explicação coerente, aparentemente ló-
gica. Fiz isso a vida toda, tinha oportunidades e as jogava fora porque precisa me
punir e sofrer muito pelo que aconteceu. Saí da casa daquela família para morar
numa caixa de quatro paredes azuis e pequenas, sozinha, sem comida, sem amigos e
diante dum silêncio que se igualava à minha alma cheia de dor.
Vivia submersa numa dor infernal que me absorvia a vida. Eu era uma mu-
lher de sorrisos fabricados na cerveja, nas farras e na fome de relacionamentos
vazios. Apaixonava-me a cada três meses, num carrossel tumultuado de paixões
doentias e relações afins. Quando a relação ficava monótona ou não agüentavam
meu feixe de desilusões, logo me encantava com outro relacionamento, outra muleta
e fugia.
Distanciei-me de tudo e de todas as possibilidades boas porque merecia o
Pele de Cristal 71
pior da vida. A culpa era avassaladora e me consumia numa compulsão superlativa.
Quando algo me lembrava do abuso, da família em que nasci, ou dele, minha cabeça
ficava tonta, cheia de mágoas e de muito ódio, mas também de muitos medos e
culpas. Até as paredes da casa da mamãe me faziam mal...
O que posso dizer é a culpa de ter sofrido abuso sexual não é sua. Não há
uma marca na sua testa, ou algo que o valha. O que ocorre é que nos punimos pelo
abuso sofrido em primeira instância então, entramos num ciclo vicioso de medos,
culpas, vergonha, compulsões, vícios, etc. Arriscamo-nos em relações doentias nas
quais precisamos viver o ruim, seguir o padrão negativo de desvalor que assumimos
quando do abuso. Na nossa cabeça, esperamos sempre o pior porque merecemos
viver esse pior. O agressor sexual se aproxima de alguém que ele supõe indefesa e
vulnerável, ele percebe que estamos assim. Mas repito que estar vulnerável, estar
indefesa não é ser indefesa ou ser vulnerável. Estar não é ser.
O processo de libertação, na minha modesta contribuição, começa quando
se quebra o silêncio. Falar sobre é um bom caminho. O apoio psicoterápico, uma
amizade virtual saudável, ou mesmo de outro espaço onde você se sinta segura e
acolhida, quem sabe conversar com um amigo real; tudo isso converge para o pro-
cesso de cura. Mas para caminhar você precisa sair do lugar não é mesmo? Um pé
depois o outro. Não é a coisa mais fácil do mundo, nunca disse isso, mas é absoluta-
mente possível libertar-se a partir do enfrentamento de seus fantasmas e dores e da
sabedoria interior, do conhecimento de si mesma.
Passei por diversas fases, vários estágios até aqui. Desde a negação total do
abuso até a revolta, da dormência à anestesia da culpa, da vingança ao ódio desme-
dido. Não estou nesse estágio de ódio colossal, não mais. Estou mais preocupada
comigo, deixei de esperar atitudes que não virão, reconhecimentos que não chega-
rão. Cansei de esperar por algo que não depende de mim.
Cuidar de mim e reaprender o caminho para o amor num processo de liber-
tação, sem medo de mim e do que sou é o que importa. Libertar-me da culpa é um
todo dia que vivo devagar, sem pressa de chegar. Sei que chegarei, sei que tomarei
o doce de viver e sorverei, madura e serena, meus próprios caminhos sem dor ou
culpas indesejáveis.
Apenas sorrio e lhe desejo vir.
72 Helena Damasceno
Capítulo VII
“O trem partiu, deixou-me só
Sou um compartimento vazio e cheio...
Muitas gavetas, muitos espelhos...”
A mensagem da água
Libertar-me da culpa é um todo dia que vivo devagar, sem pressa de chegar.
Sei que chegarei, sei que tomarei o doce de viver e sorverei, madura e serena, meus
próprios caminhos sem dor ou culpas indesejáveis. Apenas sorrio e lhe desejo vir.
O cotidiano de amor é meio que uma tela do que oferecemos ao outro e a
nós mesmos. O que externalizamos é a nossa paisagem interior personificada em
sentimentos, ações, palavras, em movimento, enfim. Por isso, tão importante cuidar
do jardim pessoal para que as sementes a frutificar sejam leves e sadias. O pensamento
é uma idéia que se materializa de diversas formas, inclusive através de palavras que,
aliás, têm um poder gigantesco, nem imaginamos o quanto! Pensamento é energia
que se move rapidamente a partir da sensação ou sentimento. O momento em que
o criamos mentalmente é fundamental porque é nele que construiremos as pontes
e conexões necessárias para a materialização da idéia-pensamento. O pensamento
cria vida desde o momento em que o idealizamos ainda na mente e, mesmo que não
o externalizemos, ele já tem vida própria e se conecta à nossa paisagem interna e às
nossas emoções, sensações, e ou padrões neurais e anímicos. Ou seja, o pensamento
se liga ao que for necessário para que se possa materializar dentro e fora de nós. Seu
desejo é uma ordem!
Nossa mente não faz nenhuma distinção entre o que assistimos fisicamente,
com os olhos do corpo, e o que avistamos mentalmente, com os olhos criativos
do pensamento. O que imaginamos, para o cérebro, para a mente, é algo tão real e
palpável quanto possível seja. Aquela idéia de ver para crer se inverte. Para o cérebro
o que vale mesmo é crer para ver. Só enxergamos e validamos o que habita nossa
paisagem interna e que retroalimentamos em conexões estabelecidas a partir das
idéias-pensamentos construídas nas emoções que nutrimos cotidianamente.
De que alimentamos nossos pensamentos? O que ingerimos que nos man-
tém conectadas ao desgaste, ao desvalor e às situações de sofrimento, vivendo pas-
sivamente a vida, presas a cristalizações negativas e inalteradas ao longo do tempo,
como se não pudéssemos reconstruir, reconectar nosso espaço interno a outras
fontes e conexões, mais equilibradas e atreladas ao amor, ao auto-perdão, ao equilí-
brio e à maturidade?
O que nos mantém vivos ininterruptamente a cada dia de nossa jornada
humana é a idéia da razão, da elaboração de pensamentos através da cognição; por
isso somos humanos e vivemos essa experiência fantástica da vida: porque temos
o poder de alterar e moldar a realidade conforme nossa inspiração, sonhos, anseios
e pensamentos. Quando cremos na legitimidade da culpa da violência sexual como
peso único de nossa existência, assim o será, pois, desenvolvemos uma série de co-
nexões que tornam possível essa realidade dentro de nossa mente e fora de nós.
Água é vetor de energia em todos os espaços, transporta correntes elétricas
de impulsos e intenções levando o elemento a ser depositado em seu destino, seja
o bom e o belo ou o contrário. Assisti a um documentário sobre física quântica e vi
74 Helena Damasceno
uma experiência muito interessante acerca da força da intervenção do pensamento
sobre água. Esse documentário, chamado Quem Somos Nós?, facilita esse entendi-
mento através de uma abordagem simples e interessante. Ocorre que ele demonstra
um experimento científico onde é proposto que um pouco de água seja fotografada
antes e depois de uma intercessão científica; sua imagem é ampliada um número de
vezes que a torne possível ser percebida a olho nu durante esse episódio. Algumas
palavras e frases são “ditadas” para a água durante o ensaio fotográfico. Na verdade,
a água é submetida a alguns indicativos de amor, ódio, saúde, alegria, perdão, etc.
O efeito da palavra amor se assemelha a um caleidoscópio de cristais em
harmonia numa dança elétrica de movimento e luz, resultando numa bela imagem a
ser contemplada. A frase “eu te odeio e vou matar você” tem um efeito tão desordenado
e em tamanho desequilíbrio que sua imagem não nos traz boas sensações. O mal
estar e sobressalto que sentimos ao visualizar a imagem fotografada é fato. Ou seja,
a mesma água adquiriu formas distintas para adaptar-se a diferentes comandos de
idéias-pensamentos. O desejo, a intenção modificou e movimentou as molécu-
las, a imagem da água e nossas percepções sobre ela.
Tudo é quântico ecoando vida nos elementos fundamentais da realidade hu-
mana. O ser humano é um transmissor natural de correntes elétricas preenchidas
de inspiração, sonhos, anseios e pensamentos; e deposita esses elementos em seu
cotidiano, na sua vida. Em média, 70% do corpo humano é composto de água,
portanto, se podemos fazer isso à água, simplesmente a partir da idéia-pensamento
jorrada, descarregada nela, o que seremos capazes de fazer a nós mesmos, com o
nosso corpo físico e mental? Recebemos a energia do pensamento ou da palavra
oferecida (mesmo que não dita) em sua essência, bem como de todas as benesses e
ou malefícios gerados pela energia de contemplação ou transtornos gerados.
Insisto na força que depositamos nas palavras, no superlativo poder que
damos à dor que sentimos, que é real é claro, mas a empoderamos enquanto “nossa
senhora absoluta das dores eternas”, permitindo-lhe a posse e propriedade de nossos
espaços de viver, de todas as nossas decisões e atitudes, de nossa forma de nos rela-
cionarmos com a vida, outras pessoas e conosco.
O que o seu olho vê é realmente o que você deseja? O que você quer pra
dentro da sua cabeça? Libertar-se significa conhecer a si próprio, tomar conta de
seus espaços de sociabilidade e das coisas de estar vivo. É estar no comando e ressigni-
ficar seus pensamentos, fazendo novas conexões, religando-se ao amor e ao auto-
perdão. Você conseguirá sim... Dói, mas não doerá mais do que já doeu. A dor que
você carrega dentro de si não será maior se você resolver enfrentá-la com paciência,
comprometimento pessoal e determinação.
Faça psicoterapia, observe seus pensamentos, perceba de que você se ali-
menta, decida se seus pensamentos continuarão comendo o peso e a dor, ou se você
fará uma reeducação alimentar, levando uma vida mais sadia e leve. Siga em frente,
não tenha medo da água que existe em você, liberte-se dos medos e da culpa bem
devagar, sem pressa de chegar, ou de não chegar. Você vai chegar. Transforme sua
Pele de Cristal 75
forma de ver o mundo e as coisas, mude sua forma de olhar você! Acarinhe-se, a si
e a seus passos, às suas possibilidades. Você não consegue vê-las? Olhe com calma,
mude o foco de atenção, amplie sua consciência.
E eu que nunca acreditei nas possibilidades boas da vida, que nunca acreditei
que seria capaz de superar, nem mesmo quando procurava a terapia ou alguma ou-
tra forma de ajuda, estou aqui, refazendo meu caminho com amor e coragem. Não
acreditava antes porque tinha um pensamento cristalizado na minha cabeça e que
guiava minha vida: “eu mereço sofrer”! Demorei muitos anos pra começar a pensar
na possibilidade de sair do chão. Vivia cabisbaixa, sempre chorando e implorando
que me tivessem pena porque era a “coitadinha”, a que mais sofria e que merecia
isso.
Pena não é um sentimento leve de receber ou sentir. Pena vem sempre com
o peso da imobilidade, do amortecimento da apatia densa que a tudo faz mal e
corrompe. Acreditava que se meu sofrimento acabasse, acabaria a pena e também
a relação que havia construído em torno de mim, de co-dependência eterna. Eu
era a primeira a ter pena, implorava e ordenava que o mundo me visse como uma
pessoa suja, irresponsável e coitada. Montei um julgamento interno e eu mesma me
sentenciei culpada. Tinha tanta culpa, tanta raiva por ter-me “permitido” o abuso se-
xual, que não me reconhecia em nenhuma foto antiga. Aliás, tenho poucos registros
fotográficos porque me detestava, odiava aquela criança fraca. Nunca me reconheci
naquela menina triste das fotos de infância...
A verdade é que tinha raiva dela, tinha nojo culpava- a o tempo todo pelo
“seu” silêncio e impassibilidade diante do abuso. Repetia sempre as perguntas frias e
insensíveis de algumas pessoas que encontrei ao longo da vida: “porque você não gritou?
Porque não disse nada pra sua mãe?” Cobrava da minha Lelezinha uma decisão que ela
nunca teve estrutura emocional ou psicológica para assumir. Esqueci que àquela
época era tão somente uma criança enfrentando a autoridade de um mundo adulto
e falocêntrico, da realidade da violência sexual.
Minha culpa e meu tormento só aumentavam...
Quando papai morreu, estava tendo certa estabilidade. Estava namorando,
tinha um emprego e moradia fixa, até tentava refazer os laços com minha mãe bio-
lógica, ia a casa dela com mais freqüência e menos embriagada. Engraçado, pra não
dizer irônico, era quando ela dizia assim: “vê se tu te sustenta nesse emprego... ta tudo muito
difícil, quem tem o seu que segure... vê se não faz besteira...”. Acho que minha mãe biológica
sempre esperou o pior de mim, como se já tivesse uma frase pronta para as horas em
que apareceria para ela evidenciando-lhe todo o meu fracasso, apresentando mais
uma coisa que tinha tentado fazer, mas que não tinha dado certo. Sempre foi muito
difícil nossa convivência, parecíamos mais duas concorrentes. Nunca entendi o por-
quê, e não espero mais por essa resposta. O que sei é que uma criança não começa
uma competição com quem quer que seja. Cuido por agora do que está dentro de
mim e do que depende de mim. Não espero mais pelo que não posso responder.
Culpei-me pela morte de papai e abandonei o emprego, entrei numa fase
76 Helena Damasceno
de depressão profunda e pela primeira vez precisei de medicação. Deixei de tocar
em barzinhos, terminei meu relacionamento, e algumas vezes saía pelas ruas desba-
ratinada à procura de fé, perguntava pras pessoas o que era fé e como eu poderia
encontrá-la ou cultivá-la. Nunca obtive respostas satisfatórias, claro! Estavam em
mim todas as respostas. O que queria mesmo era apertar um botão e fazer a dor
passar, ou quem sabe comprar uma vida novinha em folha no supermercado mais
próximo.
A cada dia minha cabeça tentava elaborar com precisão milimétrica a profu-
são de informações negativas que gerava a meu respeito e os inúmeros comandos
de culpa, vergonha e medo. Nada me demovia da culpabilidade do mundo. Carrega-
va-o nas costas num processo de punição e vitimização intenso e violento. Tudo que
acontecia de errado, de alguma forma, a culpa era minha e a assumia violentamente.
Mas algumas perdas são necessárias... Quais? Perder o medo do enfrentamento da
dor, perder o trunfo que a culpa mantém sobre nossas vidas .
A relação que mantinha com as pessoas do meu círculo emocional eram
sempre desajustadas e de co-dependência, viciadas nessa proposta vitimada da qual
já estava dependente. Sentia um peso que chegava a me sufocar, vivia em constante
desequilíbrio e desenvolvia algumas doenças, até certo ponto, resultado de soma-
tizações emocionais. Andava curvada, sempre carregada por essa terceira perna
de dor e culpa, me arrastando dia após dia e cheia de autocomiseração, seguia meu
padrão de vitimização; sempre na defensiva, sem me envolver profundamente com
ninguém porque não havia confiança, e sem me deixar levar quando havia essa
possibilidade; punia-me em demasia, evitando o que a vida pudesse me oferecer de
bom.
Meus pensamentos coordenaram minha vida até aqui de modo carregado
e em desalinho. E agora o fazem novamente, mas demito esse padrão de medo,
sofrimento e solidão. Eu sei quais passos dei para estar aqui, sei por quantas e quais
ruas andei; sei quantas vezes engoli lágrimas e quantas vezes roguei aos céus que
me tirassem aquela dor. Esqueci que somente eu poderia entrar no meu quarto de
proteção, tirar algo do lugar ou jogar fora simplesmente. Somente eu posso enfrentar
esse processo, com a ajuda da psicoterapia, é claro, mas somente eu posso mexer
no meu quarto de dor.
Não digo que os perdoei, ainda não. Mas não penso mais neles com o peso
da raiva ou da vingança absolutas. Digo apenas que por agora não carrego gotas
de ódio desmedido. Deles, a vida se encarregará da maturidade e responsabilização
pessoal. Repito que não há fórmulas mágicas. Cada um de nós seguirá em seu pro-
cesso de cura com seus próprios pés e ferramentas. Cuido de mim, por assim dizer,
caminhando mais leve, tirando meus pés da lama das conseqüências do abuso e de
tudo que sofri.
O meu primeiro passo foi acreditar em mim enquanto Ser capaz de modi-
ficar minha própria vida, foi me dispor a trilhar o caminho do amor próprio e do
auto-perdão. Banhar-me nas águas do amor, sorver a alegria da sabedoria interior
Pele de Cristal 77
e sentir orgulho de mim mesma é caminho de alegria e folguedo. Celebro a vida
todos os dias com a leveza do sorriso e da certeza da cura. Viver é uma experiência
fantástica e permanecer nesse espaço de aprendizagem, podendo apreender conhe-
cimento, sabedoria, maturidade e felicidade é chegar ao final da estrada livre, um Ser
claro, amplo, de liberdade consciente e feliz.
Caminho com meus próprios pés, os dois, um passo depois o outro, sem
pressa de chegar, curtindo cada etapa do caminho, saboreando cada vivência, cada
momento de superação. A gente se supera quando decide quebrar o muro de
silêncio e medo, quando acreditamos em nós mesmos e abrimo-nos às demais
possibilidades da vida. Superar é um todo dia, tal o sol que nasce incansável numa
dança harmônica de cotidiano e luz.
Não podemos mudar o passado, mas podemos nos cobrir com vestes mais
leves e doces como o amor próprio e o autoconhecimento, e menos levianas que
a culpa e o medo. Podemos trazer ao presente a possibilidade da esperança e da
cura.
78 Helena Damasceno
Capítulo VIII
80 Helena Damasceno
Houve outro momento em que estava bebendo num bar quando acabou o
dinheiro, não havia mais nenhuma possibilidade de continuar com a farra. Como
tocava violão, troquei o pagamento da conta pelos meus serviços musicais. Deu
certo, seguimos a beber a noite toda, mas a ressaca moral no dia seguinte só aumen-
tou a vergonha e me assumia cada vez mais como uma mulher estranha, grosseira e
esquisita, me sentia um peso!
Fiz trocas cegas nessas gangorras de dor. Troquei sexo por bebida, noites
de violão por cigarro, gargalhadas falsas disfarçadas de amor e amizade por noites
em pousadas regadas a muito sexo, drogas e rock’n roll. Nunca usei nenhuma droga
ilícita, salvo quando beijava alguma boca usuária. Mas era dependente da dor, preci-
sava dela pra ficar dormente e fingir que nada havia acontecido. E droga é algo que
gera dependência, torpor e sofrimento retroalimentando seus fantasmas, culpas e
temores. Então me drogava das relações que encontrava.
Algumas vezes quando me deixava levar demais pela culpa e me envolvia em
relações doentias e de co-dependência, chorava me sentindo suja e feia, me sentia
indigna de viver, sentia vergonha demais! Entre um processo terapêutico e outro ao
longo de mais de 10 anos, perdi as contas de quantas vezes pensei em tirar minha
vida porque não era boa o suficiente para merecê-la, tinha nojo de mim. Então lar-
gava a terapia porque não acreditava que aquilo pudesse ajudar; mas a verdade era
que eu tinha medo de entrar no meu quarto pessoal e mexer no meu cemitério par-
ticular de zumbis, tinha medo de demiti-los e ficar sozinha. Sempre que começava
a mexer nas minhas feridas doía tanto que não me achava capaz de suportar a dor,
de enfrentá-la e superar tudo. Sentia-me fraca demais. Esqueci de mim todos esses
anos. Por isso tão importante e significativo esse auto cuidado, esse contato com
meu espaço pessoal, o redescobrir do meu jardim de amor e auto-perdão.
Quando falo que cuido de mim, me dedico a tratar de cada ferida aberta,
nenhuma ainda de todo cicatrizada, é claro, ainda dolorida, mas em processo de.
Quando falo que cheguei até aqui buscando não semear mais vergonha, medos e
culpas é que venho aprendendo a saborear esse caminho com mais alegria e ânimo,
porque eu mereço ser feliz e porque não tenho culpa. Tenho aprendido que sim, fui
machucada, mas nem por isso preciso machucar a quem quer que seja, nem mesmo
a mim! Crescer é um processo doloroso de enfrentamento com o que se tem medo,
com o que nos desagrada. Mas é um processo rico pela maturidade e pelas possibili-
dades de Ser, pela liberdade de consciência que advém desse movimento de crescer,
de sair do lugar.
As pessoas que nos agrediram e nos abandonaram não são merecedoras do
nosso sofrimento. Não precisamos nos esconder de ninguém porque não temos
culpa pelo que nos aconteceu! Não digo pra sair por aí, publicando sua história a
esmo, nada disso! Digo tão somente para sairmos do casulo da vergonha alçando
vôo pela vida plena, darmo-nos uma oportunidade! Temos a vida pela frente, não
nos envergonhemos dela ou de nós! Repito que é possível caminhar para a cura,
que se libertar é uma realidade do enfrentamento com seu quarto de dor, realizado
Pele de Cristal 81
todos os dias numa caminhada de amor e delicadeza; assim queiras. A esse processo
chamo viver e ele te fará seguir nessa estrada de cura e maturidade.
Cuide de você, do seu espaço de conquistas pessoais, cuide de quebrar esse
ciclo de dor, esse padrão negativo que nos acorrenta ao medo e à culpa. Lembre-se
de que é ela a base desse jogo díspar, que nos mantém aprisionada nesse castelo
solitário de dor. Não precisamos de culpa alguma! Temos alternativas. Não precisa-
mos sentir medo ou vergonha! Não é uma dor eterna. Viver é uma oportunidade em
movimento. A vida é um rico e intenso processo de se tornar!
Assim como você em algum momento, eu não também tinha a menor idéia
de que era possível superar todas as conseqüências da violência sexual. Quando eu
tinha 10 anos a incursão do abuso já acontecia há pelo menos 5 e eu já demonstrava
alguns sinais de que algo de errado acontecia comigo. Tinha caído de rendimen-
to na escola drasticamente, havia muitas dificuldades visíveis de aprendizagem, era
uma criança que evitava se socializar com as demais, já tinha tentado fugir de casa;
evitava falar e me relacionava com dificuldade com as pessoas, era arisca e andava
cabisbaixa, carregava o peso do mundo nas costas. Era claro que nesse cenário havia
algo fora do lugar.
Apanhei muito da minha mãe biológica porque ela me chamava de preguiço-
sa, repetia sempre que eu não queria ser alguém na vida. Ela não sabia a que inferno
era submetida ali, bem debaixo do seu nariz? Quanto mais ela me batia, mais me
fechava no meu casulo de proteção, num espaço onde somente eu pudesse entrar e
sonhar em segurança, onde quem sabe, houvesse uma saída daquela situação.
Detesto tabuada de 7, 8 e 9, nunca aprendi. Apanhei muito na cabeça pra de-
corá-la e, quanto mais apanhava menos aprendia, chorava mais e compulsivamente,
num soluço que marcava muito mais a minha alma que ao meu corpo. Não impor-
tava os puxões de cabelo que levava ou os impropérios que ouvia. Não conseguia
aprender porque minhas prioridades, minhas preocupações não eram as de uma
criança comum. Precisa descobrir fórmulas de escapar e ou sobreviver à violência
sexual. As fórmulas matemáticas eram insignificantes pra mim.
Desenvolvi uma técnica associativa de aprendizagem muito particular. Fazia
combinações de coisas, fatos e cores, desenvolvia estímulos para que meu cérebro
pudesse adolescer seus talentos cognitivos. Só assim aprendi a ler, escrever e a tomar
parte das coisas técnicas da vida.
A família em que nasci tem a peculiaridade de ser matriarcal, com a figura
masculina supostamente ausente no papel do homem, mas com suas funções sendo
executadas pela figura feminina. Eu tinha 4 referências filiais, mas nenhuma identi-
dade filial. A minha cabeça era um emaranhado de confusões explodindo a cada 2
ou 3 dias num intercâmbio de papéis avassalador e indigesto. Cada pai e mãe tinha
a sua função específica, por assim dizer. Um pagava a escola, outro me escondia as
chupetas e me paparicava, um era o coibidor, enquanto outro tinha o trabalho de me
ensinar as tarefas, outro mais me escondia das surras de um deles, e por aí vai. Esses
papéis se intercalavam e se complementavam cotidianamente, ininterruptamente.
82 Helena Damasceno
Era como se eu tivesse saído de dois espermatozóides e dois ovários ao mesmo
tempo. Agora imaginem a confusão na minha cabeça: soma-se a isso um quadro
de bullyng, assédio moral e violência sexual. Tinha que ser uma criança “estranha”
mesmo!
Vivia doente porque me sentia segura dentro do hospital. Lá dentro nin-
guém podia abusar de mim, então passava uma semana internada, depois duas em
casa sob cuidados e orientação médica, em seguida voltava ao hospital e ficava nesse
movimento incessantemente. Não tomava banho, não cuidava dos dentes, sorria
pouco, mal penteava o cabelo, não brincava na rua porque não tinha amiguinhos. E
eu só estudava e entrava cada vez mais no meu mundo, talvez achasse um espaço em
que de fato eu me sentisse segura.
Comecei a pensar porque tinha nascido, pra sofrer? Nunca acreditei nisso!
Era atribuir um valor humano demais a um Deus que sempre me foi amoroso e
amigo. Falando de Deus, minha inocência infantil é de uma delicadeza que sempre
me surpreende! Quando criança acreditava que Deus era um homem. Como toda
criança eu era louca por balas e doces e saía escondido para comprá-los na mercearia
da esquina. Minha mãe biológica brigava comigo por conta das cáries, dos vermes,
dessas coisas de adoecer. Ela me dizia que se eu comesse escondido, Deus, que era
muito amigo dela e que sabia de tudo que acontecia, ia me ver e contaria pra ela.
Como tinha certeza de que Deus era um homem, pra enganar a Ele e à minha mãe,
lá ia eu comer doce escondido no banheiro, porque homem não acompanhava a
menina no banheiro, então meu segredo estaria seguro. Foi quando rompi pela 1ª
vez meus laços com esse deus humano. Havia um homem na minha vida que não só
entrava no banheiro comigo, como abusava de mim da maneira mais violenta e abo-
minável possível. Fiquei sem referência de fé por muitos anos, desde a mais terna
infância até a juventude quando reencontrei Deus mais amoroso e menos humano.
Mas a imagem lúdica e pueril da criança que acredita na simplicidade do respeito en-
tre os seres é tamanha, que me emociona e acompanha até hoje, basta recordar pra
sentir a emoção. Exercitava a imaginação doce e ingênua da infância como forma
de preservar-me do espaço frio de alguns adultos, especialmente da família em que
nasci com suas características peculiares.
Acreditar no respeito e na igualdade entre os seres me fez comer doce escon-
dido e também me fez chegar até aqui, para que eu pudesse crer na oportunidade
humana enquanto casa de aprendizado e amor, não como espaço de medo e torpor.
Recuperar minha história é também reaprender a amar minhas pecinhas internas, os
pedaços de mim que se somaram nessa trajetória me transformando na mulher que
sou. É também olhar para trás e não me envergonhar dos passos idos, ou sentir pena
do caminho trilhado. O que foi passou, já foi, nada vai mudar isso.
O que fica da experiência do tempo é o aprendizado da maturidade.
Quando saí do alcance da família em que nasci, rompendo aquele ciclo de
violência vivida na conivência do cotidiano, escapei do alcance da mão do abuso
diretamente, mas suas conseqüências e o padrões de co-dependência permaneceram
Pele de Cristal 83
grudados na minha trajetória até quase agora, um tempo atrás, quando decidi por
mim e percebi que era necessário me desligar dessa tomada enferrujada e fria. O ato
de se desligar dessa tomada de dor é algo que precisamos fazer freqüentemente, sem
medo de ir, lutando só por hoje e por agora, e o fazemos quando decidimos por nós,
quando lutamos para viver sem o peso da culpa, do medo e da vergonha do abuso.
Para viver nossas próprias vidas precisamos sentir nossas emoções sem car-
gas de vergonha e culpa, precisamos do encontro e enfrentamento com nosso quar-
to de dor, com nossos zumbis de plantão até que nos desliguemos desse objeto de
peso e dor. Não somos doentes, não somos alvo a vida inteira de abusos outros e
co-dependência.
“O segredo não é correr atrás das borboletas! É cuidar do seu jardim, para
que elas venham até você8”!
Era uma criança que não dava muitos motivos de orgulho para a família em
que nasci; nem de longe lhes era a menina dos olhos. O fato é que os desagradava. Para
piorar a situação vivia doente e tinha muitas verrugas e feridas no corpo. Avisava o
tempo inteiro que minha alma estava ferida, estava marcada...
A criança que sofreu abuso sexual não percebe que é vítima de um jogo
sexual perverso no qual o adulto pedófilo a envolve no cotidiano, seduzindo-a com
falsos carinhos e presentes mantendo seu silêncio; primeiro por meio desses arti-
fícios e, em seguida, com ameaças e afirmações falsas sobre a identidade dela e da
responsabilidade do abuso, numa transferência clara de responsabilidades e papéis.
Abuso Sexual não acontece apenas quando ocorre penetração vaginal ou
anal. Acontece quando a criança é invadida em suas vivências, em seu corpo infan-
til e na delicadeza de seus sonhos por esse jogo perverso e unilateral do adulto. A
criança não tem responsabilidade alguma sobre essa intervenção violenta, não há
espaços para exceções.
Algumas vezes a criança manifesta uma precocidade ou curiosidade sexual
que não procede com sua idade emocional e ou cronológica. Caso ocorra de ela
“acelerar” seu desenvolvimento sexual mostrando-se em brincadeiras sexualizadas
com outras crianças ou até mesmo outros adultos, isso denota tão somente o fato
de que ela já teve sua sexualidade e afetividade invadidas, seu corpo e seu espaço
interno já estão bagunçados, vigiados e monitorados.
Sem saber como lidar com isso, a criança tende a desorganizar seu espaço
externo de convivência de acordo com as ferramentas e comandos os quais rece-
beu ao longo de sua pequena caminhada. Algumas quebram coisas, ou não param
quietas, incomodam os adultos, chamam sua atenção como podem. Mas não há
regras. Nenhum ser humano pode ser mapeado, há apenas apontamentos, sinais
que podem indicar um estado de dor latente, comportamentos que podem indicar
uma violência, ou não.
Minha vida foi um redemoinho de dor, um muro de lamentações onde des-
carregava na raiva, de tudo e de todos, a culpa que sentia. Sempre me perguntei o
8 Mário Quintana
84 Helena Damasceno
porquê de tanta dor e violência na minha vida, ficava repetindo aquela história de
que “isso só acontece comigo”. Implorava pena e mendigava afeto. Sempre achei que
tinha uma marca na testa ou um imã, algo que avisasse a todos que eu era alvo fácil
para outras formas de abuso.
Eu achava que tinha perdido muito tempo na vida, que não tinha termina-
do a faculdade, não tinha emprego fixo e ou concursado, não tinha casa própria,
enquanto que metade dos meus amigos de infância já estava casada e com uma
vida ótima. Ou tinham passado em algum concurso, ou tinham um emprego fixo e
estável, ou então tinham um bom relacionamento com a família, enfim, a vida deles
era sempre melhor e mais equilibrada que a minha. Mas a grama do vizinho não é
mesmo mais verde que a nossa!
Tinha uma corda me enforcando o pescoço a vida inteira. Carregava a culpa
de ter seduzido o tio-agressor, de ter abandonado a família, de não ter sido a filha
ideal, de não ter feito o curso superior que tanto orgulharia minha mãe. Enfim,
sempre tinha uma culpa jovem, e quando não, dava um jeito de arrumar uma novi-
nha em folha, ou então alimentava as antigas.
Por isso tão importante percebermos de que nos alimentamos, o que deixa-
mos dentro de nós e que efeito tem esses alimentos na nossa vida. Quando a gente
acha que não vale a pena investir em psicoterapia, nesse processo de enfrentamento
com a dor, estamos deixando parte de nós no caminho da vida, estamos admitindo
uma culpa que não nos pertence e carregamos esse fardo pesado durante anos, até
quase nosso esgotamento físico, emocional e mental.
Muitas de nós somatizam a dor transformando em doença física o que nunca
nos pertenceu: a responsabilidade do abuso. Compulsões alimentares de toda or-
dem, distúrbios do sono, fobias em geral, patologias de ordem psicológica e mental,
relações de co-dependência, sintomatologias físicas de qualquer espécie, etc, fazem
parte da rotina de muitas de nós, vítimas de violência sexual, dando-nos a falsa idéia
de vida em desalinho e confirmando essa mesma falsa idéia de marca na testa, de vítima
eterna.
A corda que me sufocou o pescoço durante anos não está mais tão apertada
assim, vem perdendo força nesse meu processo de cura, desde o momento em que
decidi crer na minha própria força e determinação. Percebi que a minha vida é mais
importante e não há dor alguma que possa me imobilizar para sempre. Somos mais
fortes e delicadas do que podemos ver. Reconhecemo-nos ainda pelos olhos do
agressor, nos vemos ainda com os olhos do desdém e da violência, da culpa que nos
alimenta e nos pune severamente. Sei que é um processo difícil e que muitas vezes
sentirei dor, mas sei que sairei das crises mais madura e fortalecida.
Cuidar de você e do seu espaço interno é um processo legítimo, não se cul-
pabilize pelo que não lhe pertence, não compre culpas e ou responsabilidades que
invariavelmente não lhe cabem. Assuma apenas as conseqüências das suas escolhas
de hoje, por agora. A sua dor é legítima, não há fita métrica para medi-la. Dor é dor,
violência é violência e, em qualquer situação, nada a justifica!
Pele de Cristal 85
Nunca disse que seria fácil, não existem fórmulas mágicas! Aponto tão so-
mente o caminho do amor e do auto-perdão para sairmos da inércia que a dor nos
impõe, para que vejamos as possibilidades que a vida nos apresenta; porque o cami-
nho do amor traz leveza e o caminho da culpa e do medo traz escuridão.
A psicoterapia tem sido fundamental nesse meu processo, e não importa a
sua idade, profissão, ou credo: nada interfere no resultado. O que importa na ver-
dade é o seu foco em você mesma, no auto-perdão e no cuidar de si mesma. O seu
foco na cura contribui para a libertação da culpa e das coisas do medo. Lembra que
o que foi conjuga passado, algo que não se pode mudar. Mas podemos modificar
a importância e o peso desse passado na nossa vida, a partir do momento em que
nos despedimos dele sem maiores dores. Quando mudamos e saímos do lugar da
mesmice e da vitimização, fazemos com que o ciclo da vida pegue passagem rumo
a outros espaços de convivência.
Viver é um movimento de troca entre as energias que se comprimem e as
que se espaçam. Perceba-se num movimento circular de vida, de energias que se
acumulam e saem de você, cristalizando seus pensamentos e idéias, dores, sensa-
ções, sentimentos, etc. Tudo cola em você feito casca. Se forem coisas boas, elas
far-te-ão leve, se ruins sentirás o peso. Quando estivermos cansadas e sem fôlego,
acreditando em perspectivas de culpa e medo, lembremo-nos que o mar nos dá uma
lição simples de movimento e vida: ele vai e vem, num indo e vindo infinito, trocan-
do energias com a natureza e conosco numa dança lúdica de viver.
Foram muitos os altos e baixos em minha vida e os perseguia alucinadamen-
te, meio que à força, deixando a vida me levar e me arrastar num vai e vem zonzo.
Andava como que um fantasma sem esperança alguma de viver sem aquele peso
todo.
Fiz terapia outras vezes e a cada vez que um processo terapêutico se apro-
ximava das feridas que o abuso deixou, fugia desesperadamente. Fugi muitas vezes
desse enfrentamento porque tinha medo da dor, tinha medo de não ser capaz de
suportá-la e morrer por causa dela, morrer de dor num exagero simbólico e real.
Ainda morava na casa da mamãe quando criei coragem e decidi contar pra
uma professora de literatura de quem eu gostava muito. Admirava aquela mulher,
queria ser professora de literatura só por causa dela. Ela era o modelo de gente que eu
queria ser. Achava que ela poderia me entender, me ajudar, quem sabe. Sentia-me
segura, embora tivesse muita vergonha e medo do julgamento dela, mas como ela
era um ícone, não hesitei. Num primeiro momento, ela me apoiou e me acolheu, me
estimulou a fazer uma denúncia, esbravejou dizendo que aquilo era intolerável, que
eu precisava ir numa delegacia. Ora, há 20 anos, quem ousaria entrar numa delegacia
para contar para um homem, que na minha casa, havia outro homem que abusava
sexualmente de mim e que eu não dizia nada? Como fazer isso numa época na qual
não existia nenhum sistema de garantia de direitos? Calei, engoli a seco sua revolta
e sugestões, disse que ia pensar e passei a ignorá-la na escola. Não queria que ela me
obrigasse a fazer aquilo, tinha medo, vergonha, pavor!
86 Helena Damasceno
Mas a violência partilhava do meu cotidiano de modo ardil, tentava escapu-
lir em vão do abuso que sempre era mais veloz e sagaz que a minha adolescência
infantil. Já era submetida àquela época à rotina da agressão e da cumplicidade da
negligência e minha professora esqueceu-se disso, ou não sabia. Na verdade ela mal
se esforçou para querer saber um pouco sobre o que se é ser vítima de violência se-
xual. Ela passou a me ver cabisbaixa e chorosa pelos cantos da escola e me chamou
pra conversar. Perguntou-me o que havia e eu lhe disse, vergonhosamente, que tinha
acontecido novamente, ele havia abusado novamente de mim. Rispidamente ela me
questionou se ele tinha usado alguma arma ou coisa parecida. Disse que não. Ela
perdeu a educação, a solidariedade e a paciência rasgando-me uma frase que jamais
consegui esquecer: “ah minha filha, então você gosta, faça-me o favor”!
Ela não sabia que uma pessoa vítima de violência sexual na infância é víti-
ma no cotidiano e que desde muito cedo ela é presa àquele padrão de sofrimento,
controle e dolo. Ela não sabia que ficamos amarradas por laços traçados a partir da
falsa idéia de culpa, vergonha e medo das ameaças verbais e da violência física. Ela
não sabia que uma pessoa vítima de violência sexual na infância não tem identidade
formada na imagem de si a partir da educação saudável e da vivência de experiências
igualmente saudáveis.
A criança vítima de violência sexual se vê a partir dos olhos da família inces-
togênica e dos olhos do agressor que a vê como indefesa, frágil, pequena e sem va-
lor. É exatamente assim que nos vemos durante a vida: indefesas, frágeis, pequenas
e sem valor. Mas repito que estivemos indefesas, não somos. Estar não é ser!
A criança vítima de violência sexual perde o sentido de organização espa-
cial e temporal, fica perplexa e tomada pelo assalto da violência que seqüestra seus
sonhos, sua saúde e infância. Ficamos perdidas nesse espaço de dor e culpa, visi-
velmente deslocadas de nosso centro de auto-estima e amor. Por isso tão difícil
conviver com a insegurança, os pesadelos, medos, fobias, compulsões, depressões,
somatizações, com a auto-piedade e as relações de co-dependência. Essa é a lingua-
gem que conhecemos porque fomos levadas a ela, essa é a vida que (re) conhecemos
e que sabemos viver porque estamos sufocadas na dor e na culpa do que não nos
pertence de fato. Por isso nos vemos tão distantes da superação e não cremos nela.
Essa idéia de que não é possível viver sem essa dor é uma ilusão que está
cristalizada na nossa vida e guardada dentro das feridas que o abuso sexual nos
deixou. Mas não se iluda: para superá-las você terá que quebrar o pacto de silêncio
com sua falsa segurança e comodidade. Enfrentar as conseqüências da violência sexual
não vai doer mais do que já doeu porque o abuso já passou. O que você sente são
as conseqüências dele, a dor da violência. E mexer nas feridas não vai doer mais que
a vivência da violência no momento em que acontecia. Falar sobre o que aconteceu
ou fazer psicoterapia, escrever, pintar, gritar essa dor, seja qual for a ferramenta que
você utilizar, nada disso é vivê-la de novo.
As coisas me eram mais importantes que os sentimentos e ou as pessoas. A
dor me era a fonte mais fiel em que bebia minha vida e mesmo quando já estava
Pele de Cristal 87
fora da casa da mamãe, não me era possível ser inteira comigo ou viver uma relação
saudável.
Assustava-me com qualquer coisa, tinha pesadelos à noite, não conseguia
dormir, me alimentava mal, bebia desesperadamente, fumava pra esquecer o mundo,
usava máscaras de alegria mostrando pros outros que eu era feliz, mas na verdade,
não queria que ninguém se aproximasse de mim ou se metesse na minha vida. Tinha
medo de sofrer, de envolver-me e depois perder, sempre perdia tudo! Sentia-me
inferior em tudo, sempre um peso, sempre um fardo. Tinha medo de dormir e ser
abusada novamente. Andava nas ruas com aversão de encontrar o tio-agressor nos
rostos alheios, ou no dele próprio.
Na verdade essa sensação de medo, os pesadelos sempre violentos e que me
colocavam em situações de desvalor e demérito, as máscaras que usava para afastar
de mim qualquer pessoa que quisesse entrar no meu quarto de proteção tudo isso era na
verdade, um sistema de defesa que criei internamente, uma resposta inconsciente da
insegurança que sentia quando de possíveis sociabilidades. Para quebrar esse padrão
e interromper seu campo de ação foi necessário falar. Falar é estabelecer confiança
consigo mesma e descobrir um caminho de acesso à sua criança machucada.
Não tenho ilusões acerca do enfrentamento e da libertação para que cami-
nho. Sei que se faz necessário mexer nas feridas para que eu possa pôr o remédio
devido, para que eu me liberte de todas as conseqüências da violência do abuso.
Isso demanda tempo, coragem e dedicação, e não há fórmulas mágicas pra isso, a
natureza não dá saltos! Leva-se tempo cuidando do jardim interno.
Ando hoje curtindo cada momento, vibrando a cada pequena conquista,
descobrindo a mim mesma com afetividade e doçura, tomando posse da minha pró-
pria vida sem me preocupar com o tempo que passou, sem comprar novas culpas,
ou novos medos. Fiz o que sabia como faço agora!
O abuso sexual tem conseqüências funestas e deixa muitas sombras e es-
treitamentos muitos espantando os caminhos de leveza. Passamos por vários está-
gios: negação, culpa, medo, desequilíbrios emocionais, psicológicos e físicos, fobias,
vazio, fugas; até que estejamos prontas para cuidar desse espaço com delicadeza e
paciência.
Cuide de você, preocupe-se com suas feridas internas, trate-as com o pró-
prio amor e redescubra esse caminho de ternura e cicatriz com suas próprias ferra-
mentas. Procure ajuda. O apoio terapêutico é fundamental. Busque um caminho de
amor para consigo, não o peso do contrário.
O que importa nessa ciranda de silêncio e verbo é você!
88 Helena Damasceno
Capítulo IX
90 Helena Damasceno
mas ele foi minha primeira possibilidade concreta de me libertar daquele pesadelo
todo. Apesar de gostar dele, sei que nossa relação não foi muito legal, eu não o
amava o suficiente para me casar, mas não via outra forma de sair daquela situação.
Apesar disso não casei com ele, na verdade, nunca passamos da fase da ami-
zade, se é que me faço compreender. Tinha medo de que ele me machucasse. Trans-
feri para ele o pavor da relação de violência que vivia. Novamente calava e sofria, em
silêncio seguia com meus medos e culpas. Sentia vergonha da família dele, da minha
família e de tudo que podíamos ter vivido juntos. Terminei o relacionamento sem
maiores explicações e nunca mais o vi.
Sempre foi mais fácil ser vítima. Eu havia sido programada tal o elefantinho
que tem um barbante amarrado ao pé. Os circos faziam isso para condicioná-lo ao
medo e a dor nas tentativas frustradas de tentar fugir. Por mais que ele tentasse se
soltar não conseguiria, o barbante era sempre atado à sua patinha causando-lhe dor
imediata e, ao longo do tempo, ele desistia de soltar-se, não conseguiria mesmo. Fica,
então, aquele elefante enorme preso a um pequeno barbante, que lhe lembra das dores
antigas. Ele está condicionado à dor que lhe feria a perna, nem tenta mais fugir.
É o mesmo que acontece conosco. Fomos programadas a acreditar que a
culpa é nossa, que não vamos sobreviver sem esse peso, sem essa dor, que somos
podres e incapazes, quase imprestáveis! Paramos de acreditar e de nos movimentar
porque “dói a perna machucada”. Não existem cicatrizes ainda, somente cascas
que rasgam vez outra e se abrem, deixando a ferida aberta, o sangue escapar, a dor
passar.
Durante minhas crises, violentas crises, saía pelas madrugadas à procura da
anestesia do álcool, não importava o horário. Acreditava que tinha um imã, ou uma
frase na minha testa escrita assim: disponível, abuse e use. Na minha cabeça culpada
todos os homens do mundo me viam como um brinquedo sexual, uma espécie de
depósito de esperma. Bom, eu pensava assim. E algumas vezes buscava estar em
situações que me levassem a ocupações de abuso e submissão como essa, apenas
para comprovar tais argumentos e justificar minha revitimização.
Às vezes ia a boates ou barzinhos e recebia contatos para sexo em grupo,
sexo selvagem, sexo sado, sexo pago, sexo virtual, sexo fácil, sexo, sexo, sexo! Numa
dessas noites de oportunidades sexuais volúveis, sempre regadas pelo álcool e frieza
fugaz, um carro passou a me acompanhar, lentamente. Percebi seu movimento, mas
estava tão embriagada que nem me importei. Sequer respondia às suas investidas ini-
ciais. Assobios, buzinas leves, depois insistentes, acenos aparentemente despojados,
a insistência na conversação. De sobressalto o convite em meio a risadas e baforadas
de cigarro. “Só quero conversar, depois te deixo em casa”.
Aquele desconhecido garantia que me levaria pra casa, sem segundas inten-
ções. Vencida pela persistência, parei. Minha cabeça dizia tudo e dizia nada. Sentia-
me tão usada, tão inquestionavelmente nada que entrei no carro dele sem ques-
tionar. Desenvolto e simpático, durante todo o trajeto ele puxava assunto, sempre
solícito e educado. Inicialmente ele cumpria sua promessa e me levava pra casa sem
Pele de Cristal 91
tentar alterar o caminho. Seguia minhas orientações à risca quando, de repente, ele
pára o carro numa rua erma e me propôs sexo ali, em plena madrugada. Um homem
que eu nunca tinha visto e que nunca mais veria. Tive medo dele, de um estupro,
ou de outras violências. Permiti, mumificada pela desvalorização, pela revitimização
automática.
Bêbada, deixei aquele homem fazer o que queria comigo, chorava por dentro
me perguntando até quando isso ia continuar acontecendo. Mas não era capaz de
resistir, medrosa sempre cedia. Acostumara-me com as imposições do sofrimento,
com as investidas da escravidão e da subserviência. Meu lamento era tentar pagar a
conta da vida pra nunca mais lembrar do abuso sexual. Eu era um imenso elefante
amarrado ao barbante da culpa e do medo.
Já na porta da casa da minha mãe biológica, desci do carro e chorei até solu-
çar, até acordá-la. Foi uma confusão daquelas! Ela me perguntou quando eu ia tomar
jeito. Às vezes, nessas horas de crise, tinha vontade de vomitar tudo pra ela, simples
assim, gritar sem parar até a voz sumir da garganta. Mas tinha muito medo dela.
Medo de ela me abandonar pra sempre e de nunca mais encontrar uma mãe. Pen-
sava que ela ainda poderia me amar se eu calasse, se tentasse me esforçar pra tentar
ser a filha que ela queria. Quando a dor me tomava de sobressalto e me arrebentava
a alma e o corpo explodindo feito dinamite verbal, tinha vontade de deflagrar uma
guerra, de gritar a esmo, de dizer-lhe quão “perfeita” era a minha vida, queria ironi-
zar tudo, mas não conseguia, não tinha forças. Sempre achei que ela nunca acredita-
ria em mim já que ela sempre me viu como uma menina louca e irresponsável e que
nunca seria alguém na vida.
Demorou duas décadas para que percebesse o jogo sexual perverso o qual
estava inserida. Pouco falo com minha mãe biológica salvo raras exceções. Precisei
me afastar dela e de toda aquela família para sobreviver e permanecer lúcida. Eles
me faziam mal, me feriam sem nem saber...
Hoje dona de mim e de minhas elaborações individuais, sigo hóspede do
tempo acarinhando minha alma e minhas feridas, curando-me aos poucos do fardo
do medo, da culpa e da vergonha desse passado doloroso. Tiro lentamente o peso
das minhas costas, devagar, no meu tempo e velocidade individuais, respeitando o
meu tempo de amor por mim. Não espero mais pela aprovação, pelo amor da mi-
nha mãe biológica. Se ela não me quis, eu me quero! Não acredito mais nas palavras
insanas daquele homem quando do abuso... Sou mais livre, sou mais eu!
Eu cá com meus botões de carne e osso decido o que entra na minha alma,
purifico meu corpo que merece o melhor porque é minha morada nessa experiência
humana, porque sou um Ser em construção, porque sou Helena, única e bela, pronta
para os meus sonhos pueris, para reencontrar o amor e a liberdade.
O tempo... Ah o tempo! O tempo nos dá a dimensão exata dos passos que já
caminhamos, faz leituras da nossa vida e de tudo que somos e queremos ainda ser.
As feridas que carrego são marcas profundas que cicatrizarão e que levarei
para sempre comigo. É o modo que percebo essas feridas, em processo de cicatriz,
92 Helena Damasceno
que será diferente de agora e de antes. Como diz Clarice Pinkola Esthés no livro
Mulheres que Correm com os Lobos, “embora haja cicatrizes inúmeras, é bom lem-
brar que, em termos de resistência à tração e capacidade de absorver pressão, uma
cicatriz é mais forte do que a pele”.
Sempre acreditei que não merecia o amor de ninguém, nem mesmo o meu,
porque adulta, acreditava nunca ter sido amada, acreditava que havia tido uma infân-
cia totalmente infeliz e que não tinha recebido afeto de ninguém. Só se discorre da
linguagem que conhecida interna e anteriormente. Mas estrelas há, maiores e mais
significativas nesse palco além das máscaras de dor que me esculpiram o corpo por
anos e que agreguei valor superlativo.
Lembrei que papai brincava comigo, que me contava histórias reais, de per-
sonagens reais. Sem perceber, papai me ensinava a lutar, me ensinava a acreditar
em mim mesma e nos meus sonhos, independente das circunstâncias que se apre-
sentassem na minha vida. Papai, o avó que me acolheu em seu coração como filha,
era o meu herói de papel, que mesmo sem impedir as violências que sofri, me
mostrou um caminho de sobreviver a elas. Lá na casa de mamãe as relações eram
sempre muito superficiais, as aparências precisavam ser mantidas a qualquer custo e
o silêncio era um preço alto, mas pago por trocas injustas e inversão de papéis. Pra
mim papai também sofria nas mãos das brincadeiras que eram criadas a partir dos
lapsos de memória e esquecimentos dele. E eu sofria com ele. Ficava pra morrer,
enlouquecia de raiva e comprava brigas por ele, que retribuía o carinho me fazendo
afagos no cabelo e montando meu balanço na goiabeira do quintal.
Tenho redimensionado esse pai, tenho descoberto que ele me ensinou a
acreditar na força dos sonhos, no respeito para com os outros. E embora papai
não tenha conseguido evitar ou parar o abuso, ele me deu amor, me balançou no
jardim, me contou suas histórias de luta e compartilhou seus sonhos. O herói não
me salvou, mas o pai afetivo me apontou o caminho do amor para ultrapassar as
adversidades da vida.
A criança que fui, que acreditava na alegria da vida, na ludicidade das brinca-
deiras ao vento, daquele balançador no quintal, me esculpiu de retidão de caráter, de
integridade. Fui sim uma menina abusada por um homem que pôs na lama a con-
fiança que depositei nele. Mas papai me foi o companheiro dos pequenos festejos
cotidianos. Papai foi um ramo de alegria que coloriu minha infância me permitindo
acreditar (mesmo que inconsciente) na minha própria capacidade de superação e
resiliência. Detalhe apagado do meu tempo de adolescer e juventude que a dor do
abuso e suas conseqüências danosas pregoaram em mim. O conjunto de violências
que sofri me impediu de ver outras coisas da vida, o outro lado da moeda que havia
na minha história.
A cada abuso ocorrido trancava- me mais no meu quarto de dor, punia- me
mais e profundamente, escondendo de mim e do mundo, minha beleza e possibili-
dades que tinha de Ser, de crescer enquanto vivência humana. Ficava horas no ba-
nheiro me lavando e me sentindo imunda. Depois do exercício direto de violência,
Pele de Cristal 93
sentia-me tão suja que precisava, a qualquer custo, limpar minha mente e meu corpo.
É difícil explicar com palavras, mas posso afirmar que nenhum produto de higiene
podia me limpar a alma. Não haviam medicamentos que me tratassem das feridas
abertas e em estado de septicemia bio-psíquica. Depois de tentar me limpar, de
jogar fora aquela sujeira toda, passava dias sem tomar banho ou escovar os dentes.
Precisava evitar que ele se aproximasse novamente e repetisse o abuso. Por isso a
escassa higienização. Posso afirmar, entretanto, que a sujeira externa era um retrato
mal fadado de como estava por dentro.
Usei chupeta até os doze anos, fazia xixi na rede ou na cama quase todas
as noites. Tinha pesadelos constantes e violentos em que era estuprada por muitos
homens animalizados das maneiras mais violentas e torpes, embora vivesse o pesa-
delo real da violência sexual cotidianamente. Quando via aquele homem bastava seu
olhar para me paralisar e me assombrar. Pelo olhar dele já sabia se seria estuprada,
se demoraria, ou seria em casa, ou n’algum outro lugar. Apavorava-me... Ele me ha-
via dinamitado todas as forças e me dominava totalmente. Mas meu herói de papel
estava lá pra me acarinhar, para me acolher depois da violência. Se ele não chegava
antes, tinha seu carinho depois, tinha o afago de suas mãos na minha face e a pre-
sença do seu amor a me marcar para sempre.
Como já era bem “grandinha”, mamãe escondia minha chupeta para ver se
parava de usar. Lá estava papai de novo. De noite ele chegava de mansinho na minha
rede, não para invadir meu espaço, mas para me beijar a face e por na minha boca a
segurança da chupeta; só assim conseguia dormir.
Pode ser que esteja sendo condescendente demais, você pode dizer isso. O
fato é que estou redescobrindo o amor paterno, o amor primeiro e que me é impor-
tante. Eu tinha uma idéia maluca de que não conhecia o amor, então não poderia
amar. Mas conheci sim! O amor discreto, mas sempre presente e eficaz. O amor de
papai me trouxe doçura nesses dias de tormento. Papai não me salvou do abuso, é
fato. Mas me apontou um caminho de resistência e fé na minha própria força. Só é
seu aquilo que você dá e papai me deu o exemplo de sua força e carinho, me ensinou
o caminho da resiliência pelo auto-amor, pelo autoconhecimento e dignidade.
Alguma coisa há para que minha criança ainda seja mantida de forma lúdica
aqui, dentro de mim. É a ternura da infância apesar da dor. A ternura e a leveza estão
sendo lapidadas pela minha mobilidade nesse processo de cura e reconstrução.
Encontro-me emotiva demais, comemorando cada pequena conquista, cada
detalhe nesse meu processo de libertação e cura definitivas. Aproximo-me dos 33 anos
muito diferente de como estava aos 32. Ali, naquele momento de 32 anos, estava cru-
cificada na dor; não queria ver ninguém, desejava me esconder do mundo todo; dos
meus amigos e das pessoas que convivia em outros espaços de sociabilidade. Esperava
enfiar a cabeça num buraco e quem sabe, seria engolida, desaparecesse.
Via-me como um fardo pesado e incômodo, era carente profissional 24 ho-
ras por dia; contrabandeava minhas forças e exportava qualquer alegria que ousasse
se aproximar para um lugar bem longe do meu alcance. Lembrava-me do meu pas-
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sado ruim, de tudo que aconteceu e sentia muita vergonha, muito medo, muita cul-
pa. Passava dias chorando por nada, me via sozinha e abandonada. Passeava numa
tarde de um dia qualquer e do nada, senti a essência do “perfume” dele. Na frente de
todo mundo comecei a chorar, a me descabelar, saí em disparada, sem dizer palavra
alguma, morta de vergonha! Sempre foi duro conviver com os fantasmas da violên-
cia sexual. Alimentava-os com minha rotina vitimizada e mania de sofrer. Eu tinha o
meu cemitério particular de zumbis.
Sempre me senti um imenso fracasso, a pior das mulheres, a que mais sofria.
Sempre estive totalmente envolvida na teia da culpa e da vergonha, não via nada de
bom na minha vida, não tinha orgulho de nada em mim! Tudo que tivesse feito para
mim era motivo de pena e desajuste. Sentia-me uma grande mentira! Escondia dos
meus amigos mais próximos a dor e o peso que carregava, dizia estar bem e que
tinha apenas uma forte depressão ocasionada pelo estresse no trabalho, ou algo as-
sim. Carregava o peso e a vergonha de ter sido abusada sexualmente. Não me sentia
à vontade com a vida, nem com ninguém. Mas nunca foi fácil explicar o que sentia.
A violência ainda me ensurdecia.
Era um tormento viver naquela casa, e ninguém parecia perceber minhas
angústias e sofrimento. Quando ele vinha (o tio-agressor), meu coração disparava de
medo, de pavor, de culpa. Aquele homem discorria frases inteiras sozinho quando
do abuso e chegava aos diálogos mais insanos quando encolerizado pela posse da
minha alma e do meu corpo. Houve época em que as perseguições tornaram-se mais
violentas e freqüentes e foi nesse momento que percebi que se não saísse daquela
casa morreria de qualquer jeito, de uma forma ou de outra: se não por suicídio dire-
to, o seria de outras maneiras, pois já me sentia morrer aos poucos todos os dias.
Quando ele casou dei graças! Enfim, meu pesadelo tinha acabado. Tomei um
porre tão grande na sua festa de casamento que nunca (até hoje) consegui lembrar
onde estava, o que fiz, ou como cheguei à casa de mamãe. Não há em minhas me-
mórias nenhum registro fotográfico dessa noite. Mas o fato é que tinha certeza de
que estava livre, que ele sairia da casa de mamãe e pronto, nada mais me aconteceria,
meu pesadelo teria fim. Triste engano. Ele não se afastou de mim sequer um mês e
meu tormento teve continuidade gradativamente mais violenta.
Não discuto se é alguma psicopatologia, falha de caráter, as duas coisas jun-
tas, algo mais ou qualquer outro fator. O fato é que o agressor tem sempre respon-
sabilidade sobre a vítima, nunca o contrário, nada justifica a violência sexual.
Esquecemos disso e saímos comprando culpas, pesos e vaias por toda a vida.
Mas somos maiores que o abuso, não somos apenas ele. O uso das palavras aqui não
é mera questão de semântica. Há poder e força, intenções e sentimentos deposita-
dos nas palavras ditas e silenciadas; assimilamos cada significado e os adequamos a
vitimização e falsa responsabilidade da violência. Emanamos o tempo inteiro cada
pensamento e cada idéia-pensamento, seja qual for, cristalizando as sensações de
dor, medo, vergonha ou até mesmo alegria, força, superação e resiliência. Sentimen-
tos e percepções complexas e em completude às nossas vidas e que construímos
Pele de Cristal 95
constantemente. Nada é estático dentro de nós.
Romper o silêncio e o medo de seguir adiante correspondendo às nossas
expectativas de superação ou nosso anseio de liberdade, é caminho a ser traçado
inevitavelmente. Faz-se necessária essa intervenção interna para que possamos sair
do lugar, para que possamos superar as crises e conseqüências da violência sexual.
O que me conduz ao caminho da cura é a vontade de viver a experiência
humana com dignidade, ultrapassando os percalços como uma guerreira em batalha,
mas com a delicadeza do nascedouro das flores. Não é fácil de fato, nunca disse
isso, mas acreditar na cristalização do impossível é deixar-se presidir pela rigidez e,
na verdade, impossível é uma linha imaginária criada pela energia dos pensamentos
densos, alicerçados na culpa e medos que sentimos e retroalimentamos.
No dia do meu aniversário, data ressignificada por minha vontade de viver,
estarei comemorando mais um ciclo de libertação. Passos muitos hei de dar, é claro,
mas certamente o caminho que me fez chegar aqui é hoje acolhida e morada do
amor e autoconhecimento que já moram em mim.
Quando falamos sobre a violência sexual que sofremos externalizamos o
que dói, botamos pra fora o dolo e o peso e expurgamos a poeira do nosso quarto
de dor. E esse é o momento de abrirmo-nos ao processo psicoterápico de cura e
reconstrução, de ferimento aberto e a ser tratado. Ao romper o ciclo de dor e silêncio
do qual muramos nossa casa interna, elaboramos os fatos e podemos observá-los sob
outros ângulos e possibilidades, daí passamos a perceber e admitir outras portas
além das que nos levam sempre ao sofrimento e à dor.
Pretendo me conhecer mais e melhor dando- me sempre a oportunidade do
afeto e do respeito próprio, amando-me a cada dia um pouco mais, oportunizando-
me a felicidade e a liberdade real. Onda no mar sou eu em processo de libertação
e cura. A festa é estender minhas mãos livremente e caminhar buscando viver com
maturidade, equilíbrio e afeto. A festa é seguir caminhando de pé, com dignida-
de apesar da dor que ainda é ferida, mas que será cicatriz ao final da estrada.
Durante muitos anos fechei-me no meu aniversário com vergonha e dores físi-
cas e emocionais insuportáveis. Sentia-me imunda, indigna. No dia em que fiz 15 anos,
fui estuprada no jardim da casa de mamãe. Ele se sentia tão seguro que não havia im-
pedimento algum, nem mesmo o movimento das pessoas quase à nossa frente na cal-
çada. Era um dia como outro qualquer. Mamãe queria comemorar com uma daquelas
festas onde a família apresenta a debutante à sociedade, mas eu não queria nada disso,
nenhum alarde. Nem festa, nem bolo, nada! Pra mim seria ridículo, afinal de contas, ia
comemorar o que mesmo? Ninguém nunca entendeu porque não quis um baile, bolo
chique, festa em clube, missa, docinho, salgados fritos, refrigerante e champanhe. Se
me perguntassem que presente gostaria de ganhar... Ah, se ousassem saber!
Queria paz, queria viver sem ter um homem me procurando toda semana,
quase todo dia, invadindo meu corpo. De longe, senti o perfume dele me procuran-
do com o olhar. Sua presença me sufocava, mas como a casa estava cheia de gente,
fiquei tranqüila. O olhar dele exprimia, no entanto, meu passaporte só de ida para a
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“ilha do terror” e eu nem imaginava o que ocorreria logo em seguida. Cego em sua
obsessão ele nada via, não se importava com as conseqüências e assim, fui compe-
lida a ir até o jardim, quase arrastada pela mão do seu desejo vil. A possibilidade de
ser apanhado não o inibia, ao contrário. Parecia-lhe uma aventura, um desafio que
levava sua adrenalina aos sorrisos, mas a mim, aquela ameaça transtornava, estava
apavorada. Talvez pela simbologia da data, quem sabe pelo atrevimento e violência
dele, mas até então, nunca havia me sentido tão drasticamente suja, tão podre.
Fui ao banheiro e chorei em silêncio. Desejei morrer, mais que isso, tentei
matar-me. Ao sair do banheiro estava revoltada, saí arrumando confusão, discutindo
com quem estivesse pela frente. Dizia que qualquer coisa seria melhor que aquela
vida e aquele inferno, que seria melhor a morte a ter nascido naquela casa, com
aquelas pessoas, que ninguém se importava comigo. Ninguém entendeu nada. Levei
uma surra, chorei aos berros, solucei e dormi. De madrugada fui até o pequeno
bar que papai mantinha e me embriaguei com uma garrafa de uísque. Misturei com
alguns analgésicos e esperei a morte chegar. Acabei dormindo por sobre a garrafa
vazia. Vencida pelo medo do flagrante, ainda de madrugada acordei e fui ao banhei-
ro tentar limpar meu corpo e lavar minha alma. Ninguém soube o que aconteceu na-
quela noite. Enrolei a garrafa numas roupas sujas minhas e depois as depositei numa
sacola velha. Joguei fora depois, não queria ver nunca mais aquelas roupas, aquele
vidro vazio de álcool, repleto de luto e tristeza. De uma forma simbólica, quando
jogava a garrafa e as roupas fora, fazia meu enterro, velava minha angústia e morte
simbólica. Rezei uma ave-maria, um pai nosso e fui pra casa, de volta ao inferno.
Quando meu aniversário se aproximava me escondia dos amigos tentando
evitar uma comemoração desagradável. Um deles, certa vez, caiu num domingo
e comecei a beber logo na sexta. Quando cheguei à casa de minha mãe biológica,
ainda bêbada e suja, ela me mandou voltar pra onde estava. Nem pestanejei, voltei e
continuei bebendo por mais uma semana. Era mais fácil assumir a culpa que enfren-
tar a violência, era mais fácil viver anestesiada.
Explodia de dor, tremia de medo, ficava sem força nas pernas, lembrava dos
odores, das mãos dele, do seu suor, dos gestos e movimentos dele e me sentia fraca,
uma mulher vazia e sem vontade de viver e que, aliás, nem merecia viver.
É necessário que saibamos que a violência sexual não vem sozinha, vem
acompanhada de outras violências que são suporte de manutenção e apoio para que
o agressor aja confiante de sua impunidade, minimizando a ação de defesa da vítima,
garantindo o muro de silêncio que assegura o segredo da violência e seqüestrando
sua auto-estima e sua saúde. Ao contrário do que algum desavisado possa dizer, o
abuso sexual não acontece quando o agressor está impulsionado pela bebida que o
impede do domínio pleno da razão.
Estatisticamente a maioria dos casos não ocorre através da imposição de
armas físicas, não somos tomadas à força e de sobressalto porque já somos a presa
dinamitada e construída ao longo do caminho para a violência sexual. Não estou
dizendo que a violência sexual não é uma violência física, longe disso. Apenas a
Pele de Cristal 97
título de esclarecimento, digo que não são freqüentes (estatisticamente, eu repito)
os estímulos de violência física tais como surras e tapas, por exemplo, ou ameaças e
coerções através de revólveres, ou outras armas.
A violência sexual intrafamiliar é uma violência armada de sedução e con-
quista cotidiana, de seqüestro habitual da vítima sutil e subjetivo, da imposição de
um em detrimento do outro. É claro que as estatísticas não cobrem totalmente a
verdade, existe a violência sexual acompanhada por ameaças à integridade física da
pessoa. No meu caso, nunca tive uma arma apontada para a cabeça ou algo afim
porque não havia necessidade. Já estava dominada pelas violências simbólicas im-
postas pelo dia-a-dia, pela dinâmica cotidiana da violência.
O perfil mais comum do agressor sexual é o de um homem acima de qualquer
suspeita. Educado, de bom convívio social, simpático e sedutor, que tem a confiança
plena da vítima e que convive com ela, direta ou indiretamente, cotidianamente. Ele
faz parte de suas relações de convívio e proximidade. Pode ser um primo, tio, pai ou
padrasto, ou mesmo um vizinho ou professor, quem sabe um amigo da família, um
irmão, ou até mesmo padres e pastores. Também não estão excluídas as mulheres
dessa lista. É que estatisticamente elas não edificam o perfil comum de agressores
sexuais, mas há casos onde mulheres assumem o papel de agressoras sexuais.
Mas o que é interessante pontuar é que aquele estereótipo machão, grosso
e mal educado está distante da realidade da maioria de nós. Casos com esse perfil
não são maioria, mas merecem a mesma atenção e especificidades legais e psicote-
rápicas.
Não há como se medir uma invasão sexual. Não há fita métrica para a dor.
Dói, invade e fim. Não há portas abertas para exceções, discussões de perfis ou
teses. Enquanto discutimos especificidades e detalhes acerca da violência sexual, a
vítima precisa de cuidados e apoio psicoterápico e legal. Invasão sexual é violência,
em qualquer circunstância.
Sofri muitos anos em silêncio, marchando triste e dolorosamente sob a dire-
ção de minha dor permanecendo acorrentada ao padrão de culpa, medo e vergonha
até cansar das gangorras de crise, dos tantos altos e baixos. Não suportava mais esse
inferno de nunca estar bem, de nunca ser firme e saber dizer não, de não me deixar
usar nas relações do meu dia-a-dia. Chefes, amigos de mesa de bar e de farras sem
felicidade, professores, a família. Em tudo reafirmava a violência punindo-me seve-
ramente e revitimizando-me, afinal de contas, merecia sofrer e perder sempre.
Palavras entram na cabeça inicialmente pelos ouvidos e em seguida o co-
ração acolhe seus zumbidos. Depois disso entram na rotina de nossa alma e fica
mais complicado acreditar em expressões contrárias às primeiras. Minhas primeiras
palavras foram ditas sob o julgo da falsidade e da violência. Enfiaram n’alma minha
a faca seca da dor e minha estrutura interna ficou sustentada por esse artífice, foi
desenvolvida nesse cenário, inicialmente. Tenho então, ressignificado minhas expe-
riências até aqui. Vê-las sob a ótica da leveza e não mais da violência amiúde.
Em 2003 fui assistir a um filme sobre uma serial killer que havia sido abusada
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sexualmente durante sua infância e foi prostituída em seguida, fato este que desen-
cadeou um processo lesivo para ela e para os que passaram por sua vida. Assisti-lo
me explodiu, acabou comigo! A história verídica entrou tão forte dentro da minha
cabeça que fiquei três dias chorando sem parar, sem comer, sem fazer nada. Só so-
fria. Fui trabalhar aos prantos, não conseguia conter o choro, era mais forte que eu.
Pensava no que havia me diferenciado dela.
Sempre quando voltava a sentir dor, tudo era mais forte que eu. A cada dia
as crises eram mais fortes e mais difíceis de superar e nem pensava em sair dessa
gangorra de dor, do chão frio e áspero que me consumava. Que linha tênue é essa que
me prendia à sanidade e me mantinha viva e lúcida? Ficava me perguntando quando
tudo isso ia acabar, me sentia presa a um inferno de recordações tristes, pesadas e
cíclicas. Dar a volta por cima era algo impossível pra mim.
Tenho aprendido muitas coisas nesse novo caminho de amor e autoconhe-
cimento. Tenho aprendido a tocar minha essência e a oferecer-me amor, a partilhar
esse amor por mim. Quando decidimos quebrar o ciclo de dor enfrentando a situação
de cara limpa e peito aberto, decidimos por nós, optamos pela nossa vida e por tudo
de bom que temos, somos e ainda seremos.
Ressignifiquei meu aniversário porque renasço todo ano para a minha vida e
pra ter novas oportunidades de refazimento a caminho da elaboração da minha his-
tória. Não vou poder apagar nada do me aconteceu, é verdade. Mas tenho encontra-
do a dignidade que preciso para permanecer de pé, para me sentir limpa novamente,
um ser humano em constante movimento e crescimento.
Crescer é sair do campo de ação do agressor, é deixar de ser vítima para ser
sobrevivente, é galgar outros degraus além da dor e da culpa. Sem maiores punições,
sem vergonha de olhar para trás. Sigo passo a passo na estrada guiada pela essência
pueril, fonte criadora de amor e leveza. Fui machucada sim, mas apenas ao meu
corpo a dor atingiu. Minha essência jamais foi afetada, continua aqui, veloz e sagaz
a me espreitar os caminhos pela vida.
Estão dentro de nós as ferramentas que precisamos para ultrapassar todo
o peso da violência sexual. Sei que é difícil perceber isso, levei mais de 20 anos
para vislumbrar alguma possibilidade além do sofrimento. Hiperfocamos a dor e as
conseqüências da violência sexual sofrida, e quando imersas no exercício das crises,
nossa visão turva nos impede de ver outras arestas, outras probabilidades. Seguimos
a vida empoderando a culpa, o medo, o muro de silêncio, o peso, a vergonha e a res-
ponsabilidade do abuso sexual. Há um acordo construído no cotidiano que garante
o silêncio e a transferência de culpa para a vítima. Mas poder muda de lugar. Só tem
poder o que damos poder.
Sempre enfatizo que cada pessoa tem seu tempo e sua velocidade de cami-
nho. Não se torture, não busque comprar novas culpas ou alimentar as antigas. Você
merece ser feliz! Você pode ser feliz! Mas saiba que enfrentar suas lembranças é pas-
so decisivo de afeto e libertação, não de peso e culpa para consigo e sua trajetória.
Houve um tempo em que via dentro de mim apenas um pequeno David que
Pele de Cristal 99
lutava sem muitas chances contra um Golias gigante, sempre forte, sempre vence-
dor. Eu me enxergava através das lentes da dor, potencializava o peso do abuso e
vivia constantemente com os dentes trincados de ódio, de raiva. Sempre me senti
abandonada demais, uma fera ferida com um vulcão aberto por dentro e explodindo
a cada dois dias, espalhando aquela dor gigantesca pra quem quer que convivesse
comigo.
Mesmo fora da casa de mamãe seguia o padrão da violência, quando da
época de violências conjuntas e do abuso sexual, me sentindo abusada constante
e diariamente. Sempre achei que se mexesse nesse quarto de dor veria tão somente
coisas ruins como o medo e a solidão, veria uma menina fraca e suja, ou seja, minhas
expectativas eram sempre as piores. Era uma sensação tão forte que acreditava que
viveria uma crise eterna, a grande crise e que jamais conseguiria sair dela. Quando
decidi pelo enfrentamento da dor e de meus fantasmas particulares, percebi que ha-
via duas forças opostas meio que coordenando meus passos e minhas percepções
sobre o mundo e as coisas de estar viva. Mas percebi fazendo esse caminho, que
no comando estou eu! Não duas forças opostas, não mais um Davi e um Golias,
simbologia válida para falar que dentro de mim moram dois gigantes numa arena
lúdica, numa batalha heróica em processo de cura.
Dois gigantes, não mais dois oponentes desiguais, não mais duas forças
opostas, um gigante esmagando seu opositor devidamente fraco e menor. Custou
muito para que pesasse na minha balança pessoal com mais equilíbrio e delicadeza
a força dessas duas metáforas: Davi e Golias. Mas só consegui perceber isso a partir
do momento em que decidi por mim, pela minha vida, pela minha libertação. Quan-
do acreditei na possibilidade de viver sem a dor, quando aceitei ousar e experimentar
um movimento de desejar viver livremente e acreditei que podia enfrentar a dor
retirando de mim todo o medo, culpa e vergonha, passei a me conhecer melhor e
mais profundamente.
Elaborar a dor da violência sexual e as conseqüências dela nesse processo de
cura, de enfrentamento direto e em psicoterapia, é redimensionar-se nesse caminho
de reconstrução, libertação e cicatriz, é ver-se verdadeiramente pela primeira vez. O
seu espelho diante de si, seus gigantes revisitados e reconstruídos, você descobrindo
as cores e as dimensões do seu quarto pessoal. A batalha de agora, de crescimento e
libertação, suplanta o duelo de titãs do qual sempre saía derrotada pelo meu próprio
medo, pela culpa que nunca me pertenceu e pela vergonha que me enfraquecia a
alma machucada.
No começo foi difícil, mas ao longo desse processo admiti que o enfren-
tamento de meus fantasmas particulares é algo que, além de necessário, é passível de
materialização nesse caminho de ressignificação do eu. Particularmente, essa foi uma de
minhas grandes conquistas e, certamente, me foi um primeiro passo de amor diante
de mim mesma. Admitir que me libertar é um processo de autoconhecimento e
amor, que esse processo é uma equação de luz a me guiar ante a leveza e a serenida-
de que sempre desejei e que sempre moraram em mim, mostrou-me o quanto sou
10 Um otherkin é basicamente uma pessoa que não consegue se adaptar às características de sua espécie
e se sente deslocado no meio da sociedade. Não existe tradução literal dessa palavra para português, mas
a melhor definição seria “de outra família” ou “de outra espécie”.
Fonte: http://www.newagepunk.com/tranzine/15/otherkin.html
15 FERENCZI, Sándor (1992) “A Adaptação da Família à Criança” in: Obras Completas; Vol IV; São Paulo,
SP; Ed. Martins Fontes; 1927.
16 Compulsão à repetição é um mecanismo pelo qual a pessoa se coloca em situações similares às ex-
periências traumáticas vividas numa tentativa inconsciente de encontrar uma solução de alívio e seguir
sua vida.
18 Enurese e enurese noturna: emissão involuntária de urina quando esta ocorre depois da idade em que
o controle da bexiga tenha sido supostamente adquirido, por volta dos 3/4 anos de idade.
• Você não tem idéia de como está ajudando,maravilhoso seu jeito de escre-
ver, de transmitir. Obrigada, estava precisando ler minha historia através de quem
sabe se expressar. Gostaria de manter contato.
• Lelê, estou na fase das culpas, me lembrando do passado por ser uma
data que me marcou muito. E me sinto culpada por muita coisa. Por não ter amado
sempre a XXXXX. Por ter desejado a morte dela, por não ser uma boa mãe pra ela.
• Que lindo Lê!! Ainda não estou nesse estágio, mas seu depoimento faz
com que eu veja muitas coisas, muitas coisas até então inexplicáveis para mim. Sen-
timentos perdidos, confusos, que já não sou mais capaz de descobrir sozinha. Mas
não desisti não e vou até o fim. Até o fim ou início de tudo? Provavelmente, o início
de tudo, de uma nova vida, de uma nova pessoa. Desta vez, sem medos, sem mis-
térios, sem medo de sorrir, de ser feliz... Estou orgulhosa de você e te admiro cada
vez mais minha amiga-irmã d’alma.
• Oi meu amorzinho! Nossa seu blog tá fantástico e fiquei tão feliz de ver
que você tá chegando lá, tá vencendo. Lembro das primeiras vezes que falávamos, de
algumas crises que você enfrentou com a gente antes de ter prós na net, e nossa, te
admiro, por toda essa forca, por essa coragem. Você não sabe o orgulho que tenho
de você! Tudo isso que acabei de ler são puras verdades. E sim tudo isso é difícil,
mas como você disse, não é impossível. E isso é sempre bom repetir, cada segundo
cada dia, e gostei da historia do passarinho... que o passarinho não pode se separar
da asa. Ao mesmo tempo fiquei triste em saber que você passou por tudo isso, não
conhecia sua historia por completo, mas te admiro ainda mais por saber que você
venceu cada vício desses e hoje tá ai, espantando cada “fantasma” daí de dentro.
Parabéns meu amorzinho, a única coisa q posso dizer q e estou tremendamente feliz
por estar te vendo assim, e também morrendo de saudades dos nossos longos papos
no MSN. Espero que você consiga entrar um dia... Te amoooo irmanguxa, te amo
demais da conta... Ps: esse seu blog ta maravilhoso e com certeza, ajudando muitas
pessoas, encontrando em uma delas eu mesma... beijinhos!!!
• É incrível o jeito que você escreve, sempre como se tivesse falando comi-
go. Sempre me achei a mulher mais nojenta do mundo. Nunca me dei valor algum.
Me sinto como uma mulher da vida. Mas ler o que você escreve me da esperança de
tudo mudar. Venho todo dia ler o que você escreve, é sempre muito bom mesmo.
• Nossa, Lelê. O que você disse é verdade. E essa semana vou conhecer
o mar, e vou poder olhar pra esse horizonte diferente. E já vou olhar com novos
olhos. A dor existe e ainda está presente. Mas ela já é conhecida e a gente já esta
aprendendo a lidar com ela.
• Vim pela primeira vez no seu blog, fiquei curioso porque tava numa comu-
nidade e vi as pessoas falando que era bom. Não acreditei em nada, achava que era
impossível alguém superar, até te mandei um e-mail sem nem ler o blog. Hoje criei
coragem, tô sozinho em casa, sofrendo e chorando muito. Me sinto um peso pra
minha família e meus amigos, tenho medo de tudo até de sair na rua e alguém me
perguntar às horas. Mas li sua história e parei nesse pedaço que diz que a gente tem
• Parece que escreveu para mim. Hoje parece que não nasci para ser feliz e
para dar felicidade às pessoas, hoje, agora, é assim que estou me sentindo. Não sei
se um dia serei capaz de ser feliz. Obrigada Lelê, por tudo o que tem feito, por esse
blog e por tudo que é.
• Gosto de saber como você está melhorando, que passos deu para começar.
Tenho feito algumas perguntas, pensado muito nisso: se você conseguiu, eu também
consigo. Tenho medo de não conseguir, mas sempre que venho aqui me encho de
coragem.
• Lelê, também estou sobrevivendo a cada dia. a cada luta com o gigante.
Enfrentei um nessa semana mas sinto que ele já esta se desequilibrando e vai cair. E
outro gigante vai vir mas com o tempo vou crescendo e ficando mais forte também.
E logo vai parecer que o gigante não é tão grande assim como eu pensava. Eu que
era pequena. Porque na verdade, é a nossa visão de criança de que o outro e grande
que muitas vezes nos derruba. Mas agora, vamos crescendo e espero não ser uma
gigante que amedronte ninguém mas que leve amor e segurança pras pessoas. Segu-
rança que ainda não tenho mas que espero ainda alcançar. Te amo muito. beijos
• Fico cheia de vontade de chegar onde você tá Lelê, você me deu esperança
de mudar de vida, de melhorar, quem sabe até de me amar. Não pare de escrever,
me sinto como se tivesse andando com você, e fico feliz por que me sinto sua amiga,
fico cheia de vida. Ler você me deu vontade de viver. Obrigada lê.
• Muito difícil não sentir nada quando venho aqui. Hoje não me cortei, você
tocou bem dentro da minha ferida. Tive tanta raiva de mim ontem porque tive medo
e me machuquei. Mas hoje consegui evitar. Lelê eu queria te conhecer pra poder di-
zer que você tá mudando a minha vida, você ta me mostrando que posso melhorar.
Você acha que eu vou conseguir? Às vezes tenho muito medo.
• Sei o que é uma gravidez assim, de menina e de menino. Isso sempre vai
me acompanhar, mesmo amando demais eles. Tenho muito cuidado e o melhor é
ser acompanhado por tanta gente legal que me ensina a cuidar deles. E o meu amor
por eles tem superado tudo, mas entendo o seu medo. E ainda tenho ele comigo.
• Lelê, como sempre, fala pra mim também. Quando você diz: “Algumas
pessoas às vezes se afastam de nós, por medo, por incapacidade de nos curar, ou
por falta de tato mesmo.” Senti isso forte comigo. E por isso, muitas vezes tenho
medo de ser amada. Saber que nem todos são assim mas vocês tem me ensinado que
posso ser amada, mesmo com as quedas que levo. Obrigada por ser uma das pessoas
que tem me ensinado isso. Te amo. Beijos.
• Lelê linda, suas palavras são tão intensas e tão fortes que muitas vezes leio
por cima, assim meio sem querer ler, sem querer entender. Mas outro dia volto e
leio. E este texto, em especial, foi um bálsamo nas minhas feridas. Hoje dei mais um
passo, e é grande coisa sabe por quê? Porque é o meu passo.
• Você tem me mostrado uma vida nova, um caminho novo Lê. A cada dia
acredito um pouquinho mais na vida, e você sabe como isso é quase impossível. Mas
a sua estória me faz mudar de idéia. Comecei a fazer terapia essa semana, pela 1ª
vez, ainda tenho muito medo, mas consegui sair de casa e chegar ao consultório do
psiquiatra. Chorei a sessão toda, não disse uma única palavra, só meu nome. Mas me
senti tão bem, acho que tudo vai melhorar agora. Obrigada por me mostrar que dá
certo se a gente acreditar e eu acredito Lê muito mais em você do que em mim. Sei
que uma hora isso também vai mudar, que vou acreditar mais em mim que em você,
mas até lá, a sua estória é a ponte que eu preciso atravessar para viver. Obrigada por
existir e por fazer da sua estória um estimulo pra mulheres como eu. Você é um
exemplo pra mim.
• Impressionante tua história, tua coragem e determinação, saiba que está
sendo uma lição de vida para todas as pessoas que sofreram algum tipo de violência
e não conseguem livrar-se dos fantasmas do passado, tomara a Deus que um dia os
seres humanos deixem para trás toda a sorte de barbáries e que possamos viver em
amor pleno. Felizes daqueles que perdoaram seus algozes, que creio eu, sofrem o
pior dos martírios, a dor da consciência, um forte abraço!
• Que coisa linda Lelê! Cada vez que venho aqui me encho de energia e de
vontade de viver! Você é fabulosa, escreve com uma intensidade, ensina a gente a
vencer os limites. Com você tenho aprendido a sonhar. Leio seu blog e vejo as cenas
que você passou na minha cabeça, sinto raiva dos que te fizeram mal, mas fico feliz
porque você venceu todos eles e está aqui hoje, escrevendo e estimulando pessoas
como eu a viver e a ser feliz. Você é mesmo tudo de bom!
• Uma das coisas mais fortes que você escreveu. Lelê você é linda, cheia de
coragem e riqueza. Deus te fez para encher de esperança mulheres como eu, tristes
e sozinhas. Quero tanto chegar onde você tá, sabe, enfrentando tudo, acreditando
na vida, mas dói muito e choro, me corto, como feito uma maluca e fico com medo.
• Hoje Lelê você foi fundo, tão fundo que nem sei onde foi parar, não sei
explicar de que forma me atinge, mas sei que hoje chorei tão sofrido, chorei igual a
criança que eu era, me perguntando todos os porquês daquele horror todo, porque a
família não via ou fingia não ver, e porque ninguém me salvou???? Hoje chorei e estou
chorando as dores, elas estão saindo e saindo com elas a doença que ma mata aos pou-
cos. É o choro de pôr pra fora da dor que saí. Hoje tomarei outros rumos, hoje darei
novos passos e depois que acabar de chorar tudo o que eu mereço chorar vou fazer
uma oração pela Lelê e agradecer muito pelo bem que ela me faz. Amiga, obrigada.
• Queria dizer que você tem mudado a minha vida. Tenho pensado muito
sobre tudo que aconteceu, sobre a vergonha de me olhar no espelho e me sentir
velha e gorda, suja e feia. Você diz que isso é um reflexo do abuso, que a gente quer
fugir daquilo que a gente era quando aconteceu. Lê é verdade, pelo menos comigo.
Eu era uma menininha tão linda, tão meiga! Hoje sou uma pessoa horrorosa e sem
vontade de viver. Deixei que ele roubasse minha auto-estima. Como eu faço pra vol-
tar a viver Lê? Como você começou a querer mudar tudo isso? Sabe você diz coisas
fantásticas, muito sutis, pela primeira vez não me sinto obrigada a mudar. Você me
faz refletir por que escreve com carinho.
• Hoje olhei uma foto minha, aquelas de identidade sabe? “Tira a maquia-
gem, tira o cabelo da testa”. Arghhhhh! Ficamos horrendas com cara de matem os
fotógrafos!!! Olhei, olhei e... me achei bonita, achei a pele bonita, o formato dos
olhos, a boca, mas eu olhei tantas e tantas vezes, e tantas, e tantas vezes falei para
os outros: “nem veja to horrorosa”. Aliás, eu dizia isso de todas as minhas fotos.
Mas hoje eu olhei e vi que diferença está no meu jeito de olhar, hoje eu vi que algo
mudou. Lelê, você faz parte disso, do meu novo olhar... É o meu caminho de mãos
dadas com você. Um beijo minha doce amiga.
• Lelê, não consigo ver nada disso, não consigo me olhar no espelho, ter paz
de espírito. Pra onde olho vejo o rosto daquele bandido. Bandido né? Porque bandi-
do é quem comete um crime e o que ele fez comigo foi um crime. Odeio os homens,
detesto! Não comigo ter amizade com nenhum, não consigo respeitar nenhum, pra
mim todos são uma caralhudos, uns Filhos da puta. Desculpe, escrever isso aqui,
nesse teu espaço tão bonito. Mas não suporto mais viver com o pesadelo desse crime.
Eu me odeio também. Sou uma mulher de merda que não consegue ser feliz. Eu rezo
por você Lelê para que você não pare de escrever e de ter essa coragem que você tem.
Mesmo sem conseguir ser como você, o que você escreve me ajuda, me alivia. Sabe
queria ser como você. Você é um exemplo de garra, de coragem. Deus te abençoe.
• Oi Lelê linda da estrela!! Ai Lelê, teu texto me deu uma angustia da não
compreensão, do não ser ouvida do ser apenas sintomas. Quero ser gente, hoje não
consigo ser menos emocional porque estou muito chocada com o caso da XXX,
mas suas palavras arrancam de mim todos os sentimentos que não consigo expres-
sar sozinha. Obrigada minha linda, por acalmar meu coração
• Faz tempo que não visitava seu blog. Vim hoje e tive muitas surpresas.
Você é poetisa também! Que coisa linda Lelê! Você sempre me deu muita força,
mesmo a gente morando tão longe. Hoje estou tentando fazer coisas diferentes: eu
me separei de um marido que me espancava muito, tô fazendo terapia de novo e
não me recuso mais a tomar os remédios que preciso pra controlar minha depressão
e minha ansiedade. Você tem um papel muito grande na minha vida. Pela primeira
vez alguém que tinha passado pela mesma violência que eu, me falava de superação.
Eu confesso que no início você pra mim era uma fraude, eu achava que você queria
chamar atenção. Mas depois eu percebi o quanto você é uma pessoa de aço e de ver-
dade também. Você é igual a mim Lelê. Você tem medo e é forte, enfrenta tudo isso
com a cara e a coragem. Você sente as mesmas coisas que eu porque você não é uma
invenção Lelê. Você é de verdade. Uma vez você me tocou tão forte que passei dias
sem entrar na Internet. Mas hoje eu venho aqui te agradecer e te dizer que você é
uma mulher linda, assim como eu. Você que me ensinou isso: a ser forte, a acreditar.
Obrigada Lelê. Deus te abençoe.
• Sem palavras pra descrever o que senti lendo este post. Lágrimas escorrem
minha face, um dia vou descobrir como é ser EU MESMA, ver que você já se des-
cobriu é mais que um incentivo pra procurar minha verdadeira identidade perdida
em algum lugar. Beijos e que Deus te abençoe sempre. Saudades.
• Oi, Lelê. Quero que você saiba que to com você nessa sua luta, mesmo
não sendo lá tão experiente como você, eu quero pelo menos tá do seu lado sempre.
Você diz coisas que as vezes ainda não entendo mas eu sei a dor que você passou,
pois também sinto ela. Mas o que importa é que um dia ainda vamos ser felizes e
livres. Te amo muito. Beijos.
• Oi Lelê :) Nem sei se você lembra d mim, mas eu sempre lembro de você
e das suas palavras. É tão difícil reconhecer q a gente é forte, porque eu sei que sou
forte, mas eu sei também q sou fraca diante de muita coisa na minha vida. Acredito
q a maturidade me trará mais equilíbrio, porque eu preciso muito.
• Fiz uma pesquisa sobre pele de cristal e achei isso: Quem sonha com uma pele
limpa e uma expressão mais suave, mas tem pavor do desconforto provocado pelo peeling químico,
agora tem uma alternativa - de mesmo efeito: peeling de cristal. Aí fiquei pensando no pele de
cristal da Lelê. Tem o mesmo significado, mas pra alma. Uma alternativa mais suave
pra ter uma pele da alma limpa. Sem o desconforto da quimica. É um tratamento
que fala da delicadeza da Lelê. Uma pessoa forte e frágil ao mesmo tempo. Sabe o
que isso significa pra mim? Que existe esperança...
Pode parecer confuso a muitos, mas sei que pra nós é tudo muito claro hoje.
Já foi escuro e estamos encontrando a saída do tunel. E é tão lindo ver o dia claro, o
sol, o céu tão azul. Lembro do outro blog da Lelê que tinha um riozinho. Acho que
era uma cachoeirinha, Sei que falava da agua e a gente sempre falava do que a agua
representava pra gente. Muitas vezes, eu não entendia algumas palavras do texto
mas o barulhinho da agua caindo, me fazia entender os seus sentimentos que eram
tão parecidos com o que eu sentia. E aí veio o pele de cristal. Lembro do primeiro
layout. Eu não gostei pois tinha muito vermelho, era muito forte. Não parecia com
o novo momento da Lelê. Falei com ela que pra mim, o pele de cristal falava mais
de transparencia e suavidade. Apesar de ser tão menina, ela me ouviu, eu acho. Quer
dizer, não sei se ela mudou porque eu falei isso mas ela mudou pra um rosa mais
claro, mais translúcido. Achei lindo e amei cada coisa que ela escreveu lá. De novo
teve algumas coisas que não entendi, algumas palavras que tive que olhar no dicio-
nário mas que foram aprendizado pra mim. Mas a essência do que ela escrevia, me
fazia ver a delicadeza e a transparencia de quem abria a sua alma pra gente. E pelo
que eu sentia, ela abria sua alma tambem pra ela mesma. E fomos testemunha da sua
mudança. Como ela tem sido da minha.
Agora vem a nova etapa. O blog virando livro. E as mudanças da Lelê não
param. Ela tá estudando pra ser psicologa e ajudar tanta gente. E continua cantora
e vai ser escritora. Tantas Lelê numa só. Mas que na essencia é o que ela é mesmo.
Uma pessoa especial, que nasceu pra brilhar nesse mundo, pra levar luz pra tanta
gente.
Prefeitura de
Fortaleza