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O IMPULSO BÍBLICO NO CONCÍLIO:

A BÍBLIA NA IGREJA DEPOIS DA DEI VERBUM

Cássio Murilo Dias da Silva1

Resumo
O presente artigo lembra a importância da Constituição Dogmática Dei Ver-
bum para mudanças profundas na vida da Igreja católica, depois de 40 anos
do Concílio Vaticano II. O autor apresenta o contexto, elaboração e discussão
quanto à relação entre Revelação, Tradição e Escritura, o lugar e uso da Bí-
blia nas celebrações, os métodos exegéticos para interpretá-la, de modo es-
pecial, a evolução do estudo e uso da Bíblia no Brasil.

Palavras-chave: Dei Verbum, Revelação, Tradição, Escritura, métodos exegé-


ticos.

Abstract
This paper deals with the Dogmatic Constitution Dei Verbum concerning the
changes in the Catholic Church forty years after the end of the second Vatican
Council. The author shows the context, the elaboration and the discussion re-
lated to Revelation, Tradition and Scripture and the importance of the holy Bi-
ble in the divine cult. The author presents also the exegetic methods in order
to interpret the Bible and specially the evolution of the study and use of the Bi-
ble in Brazil.

Key words: Dei Verbum, Revelation, Tradition, Scripture, exegetic methods.

1
Doutor em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Pro-
fessor na PUC – Campinas e padre da Diocese de Jundiaí/SP.

Rev. Trim. Porto Alegre v. 36 Nº 151 Mar. 2006 p. 025-053


A rigor, o conteúdo da seguinte exposição não é uma no-
vidade. E por qual razão deveria sê-lo?
A importância de se retomar o tema não está em dizer
coisas novas, a cada vez, e sim em manter viva, nas gerações
mais antigas (jovens e adultos do início dos anos 1960, educados
em outro modelo de Igreja), a memória do que representou a
Constituição Dogmática sobre a Divina Revelação, ao mesmo
tempo que se faz com que as novas gerações de católicos (nasci-
dos e crescidos no período pós-conciliar) compreendam a revira-
volta que o acontecimento mesmo do Concílio Vaticano II, seus
documentos e, em modo mais específico, a Dei Verbum, provo-
caram na vida da Igreja Católica.
Com poucas variantes, artigos e conferências sobre a im-
portância da Dei Verbum recordam dados que descrevem o con-
texto eclesial em que foi convocado o Vaticano II, as questões
candentes acerca do uso e da interpretação da Sagrada Escritura,
antes e durante o Concílio, a dificuldade em se chegar a um con-
senso acerca do texto da Constituição, os pontos fortes e os limi-
tes da redação final, a recepção do documento e, enfim, os frutos
que a Dei Verbum imediatamente começou a produzir, e que
continuam a se desdobrar2.
Nas páginas a seguir, tentarei expor de modo didático es-
ses mesmos aspectos, que não podem faltar a uma exposição –
artigo, entrevista ou conferência – sobre a Bíblia na Igreja depois
da Dei Verbum. No entanto, é minha pretensão enfatizar vínculos
que, não obstante sejam já conhecidos, por vezes passam desper-
cebidos ou que já foram esquecidos.
2
Vejam-se, por exemplo, as várias conferências do recentíssimo Congresso
Internacional “A Sagrada Escritura na vida da Igreja - 40º aniversário da Dei
Verbum”, realizado em Roma, no período de 14 a 18 de setembro de 2005. A
principal documentação desse Congresso (conferências, mensagens, artigos
adicionais e outras informações), com tradução em vários idiomas, está dispo-
nível na Internet: http://www.deiverbum2005.org.

26
Minha exposição seguirá, portanto, o seguinte esquema:

I. “Constituição dogmática” – breve discussão dessa qualifica-


ção.
II. Algumas observações prévias – a pré-história da DV e a e-
laboração do texto atual.
III. A Dei Verbum: Bíblia ou Revelação? – alguns fatores que
exigiram e influenciaram um documento conciliar sobre a Revelação
Divina.
IV. As respostas da Dei Verbum – como os seis capítulos da
DV respondem aos problemas que a exigiram.
V. Na prática, a Bíblia na Igreja depois da Dei Verbum – re-
cepção e repercussões da DV na pastoral, na teologia e na exegese ca-
tólicas.
VI. Os métodos exegéticos e o documento “A Interpretação da
Bíblia na Igreja” – como a Igreja Católica lê a Bíblia depois da DV.
VII. A Bíblia no Brasil depois da Dei Verbum – frutos da DV
em terras tupiniquins.
VIII. À guisa de conclusão: os próximos 40 anos... e mais além
– desafios ainda em aberto e outros que podem surgir.

I. “Constituição dogmática”

Ao início desta exposição, é necessário que consideremos


brevemente a nomenclatura conciliar. Em modo específico, o tí-
tulo “Constituição Dogmática”.
No Concílio Vaticano II, foram quatro os documentos
chamados “constituição”, dos quais dois receberam o atributo
“dogmática”:

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Data de
Documento
promulgação
Sacrosanctum
Constituição sobre
Concilium 4/12/1963
a Sagrada Liturgia
(SC)
Lumen Genti- Constituição dogmática sobre
21/11/1964
um (LG) a Igreja
Dei Verbum Constituição dogmática sobre
18/11/1965
(DV) a Revelação Divina
Gaudium et Constituição pastoral sobre
7/12/1965
Spes (GS) a Igreja no mundo de hoje

No vocabulário eclesiástico, o termo “constituição” é re-


servado para textos que expõem e discutem verdades doutriná-
rias. O atributo “dogmática” eleva a “constituição” ao mais alto
grau de importância: esse tipo de documento expõe uma doutrina
que tem valor normativo para a fé da Igreja. Em outras palavras,
uma “constituição dogmática” apresenta a doutrina da Igreja
concernente a determinada questão, uma doutrina que os católi-
cos devem aceitar como autêntica e não-questionável em seus
pontos fundamentais.
Com efeito, o proêmio da DV afirma que o Concílio Vati-
cano II “pretende propor a genuína doutrina acerca da Revelação
Divina e da sua transmissão”.

II. Algumas observações prévias

Embora não seja possível discorrer detalhadamente sobre


a história do documento, é necessário recordar alguns pontos:
1) O esquema preparatório ao documento conciliar sobre
a Divina Revelação entrou em discussão logo na primeira sessão,
em 1962, com o título Constitutio de fontibus Revelationis. Mas
o esquema apresentado provocou uma reação negativa em vários
Padres conciliares. O primeiro a manifestar-se foi o cardeal fran-

28
cês Achille Liénart, de Lille. Ele expressou a opinião de muitos
Padres conciliares com uma frase que ficou famosa: “Hoc sche-
ma mihi non placet” (Esse esquema não me agrada). A tensão
entre os que aceitavam o esquema e os que o rejeitavam fez sur-
gir um impasse e João XXIII teve de intervir com autoridade pa-
pal (o que provocou admiração positiva nos observadores e teó-
logos não-católicos). O Pontífice constituiu uma comissão espe-
cial para redigir um novo esquema.
O impasse no Concílio deve ser compreendido à luz dos
problemas históricos concernentes à interpretação da Sagrada
Escritura, já desde o tempo da Reforma, na primeira metade do
século XVI3.
2) Paralelo a esse ambiente de tensão, e talvez para torná-
lo ainda mais delicado, diversos ventos, que sopravam dentro e
fora da Igreja, exigiam uma posição de abertura por parte da I-
greja. Com efeito, a renovação do Concílio não surgiu do nada,
mas foi impulsionada pelos movimentos de renovação que o pre-
cederam, particularmente o movimento bíblico e o movimento li-
túrgico (intimamente ligados), e também o movimento ecumêni-
co.
3) O atual documento foi um dos últimos a serem apro-
vados no Concílio. Foi discutido em todos os períodos em que os
Padres conciliares estiveram reunidos. Após longas e calorosas
discussões, e após nada menos que cinco esquemas4, finalmente
o texto atual foi aprovado. Tal aprovação, porém, só foi possível,
porque ambas as tendências, progressista e conservadora, fize-
ram várias concessões em diversos pontos do documento. Após
uma longa e tensa trajetória, na quarta sessão do Concílio, em
1965, o atual esquema foi finalmente votado, reemendado, e a-

3
Uma exposição sumária dos problemas históricos, que constituem o pano de
fundo da Dei Verbum, encontra-se em W. KASPER, Dei Verbum, 2-5.
4
Para um estudo comparativo dos esquemas, cf. os vários quadros sinóticos
de S. LYONNET, Bíblia.

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provado por 2.344 votos favoráveis, contra apenas seis desfavo-
ráveis, no dia 18 de novembro.
Não obstante ser o mais breve dos documentos, foi o mais
longamente discutido: o documento sobre a Revelação foi assun-
to de onze Congregações Gerais e provocou 174 discursos. A ú-
nica outra Constituição dogmática do Vaticano II, a LG, é cinco
vezes mais longa que a DV; no entanto, em termos relativos, a
LG, exigiu muito menos trabalho e discussão.
Quando a DV finalmente foi aprovada, a maioria dos do-
cumentos conciliares já tinham sido promulgados. Dos 16 docu-
mentos do Vaticano II, somente cinco são posteriores à DV. Em-
bora as afirmações da DV encontrem eco em todos os documen-
tos conciliares, muitos pontos dos documentos precedentes pode-
riam ter sido diferentes, se a DV, em sua forma atual, tivesse sido
aprovada logo no início do Concílio.

III. A Dei Verbum: Bíblia ou Revelação?

Antes ainda de falarmos sobre a interpretação da Bíblia


na Igreja Católica após a DV, convém dar atenção ao subtítulo da
DV: “Constituição dogmática sobre a Revelação Divina”, e não
“Constituição dogmática sobre a Sagrada Escritura”, o que seria
muito redutivo. Com efeito, a Sagrada Escritura deve ser inter-
pretada como um canal privilegiado da Revelação.
Para compreendermos a importância desse fato, é neces-
sário voltar mais uma vez à época do Concílio e perguntar quais
eram os problemas que então permaneciam abertos e provoca-
vam fortes discussões. Eram basicamente três:
1) A relação Revelação - Tradição - Escritura. Esse era
um tema que “esquentava” o diálogo entre protestantes e católi-
cos. Tratava-se de saber se a Tradição tinha igual autoridade à da
Escritura para transmitir a Revelação. No fundo estava o pro-
blema do dogma, isto é: pode a Igreja fundamentar seus dogmas,
não somente na Escritura, mas também na Tradição?

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Trento havia deixado o problema aberto. No momento de
definir onde se encontram as verdades relevadas, em vez de
“partim in libris scriptis et partim in sine scripto traditionibus”,
os Padres conciliares tridentinos optaram por “in libris scriptis et
sine scripto traditionibus”. Não um “partim - partim”, mas “et -
et”. O problema reapareceu no Vaticano II, com o peso de uma
discussão que foi se agravando ao longo dos séculos.
2) A aplicação do método histórico-crítico à leitura da
Sagrada Escritura. Trata-se, na verdade, de colocar em discus-
são outro problema igualmente intrincado da teologia fundamen-
tal: a relação Revelação - inspiração. O que é uma coisa, o que é
outra, há diferença entre elas e como interagem. A pedra de to-
que desse problema é a inerrância dos livros bíblicos. Já desde o
iluminismo, e depois com o modernismo, tudo havia sido colo-
cado em discussão. A Encíclica Divino afflante Spiritu, de 1943,
havia reconhecido a validade dos gêneros literários, mas a ques-
tão principal continuava aberta.
3) O uso e a leitura da Sagrada Escritura. Havia já mais
de 50 anos, o movimento bíblico, aliado ao movimento litúrgico,
colocava os leigos católicos em uma relação de familiaridade
com os textos sagrados, pois incentivava o uso da Bíblia como
fonte de oração e de inspiração para a vida.
Em resumo, três fatores influenciaram a DV:
1) Uma nova compreensão do fenômeno da Tradição;
2) A aplicação do método histórico-crítico à interpretação
da Sagrada Escritura;
3) O movimento bíblico.

IV. As respostas da Dei Verbum

O esquema da DV reflete em modo bastante fiel a se-


qüência dos problemas acima elencados:

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Problema Capítulos da DV
A relação Revelação - Tradição - Escritura I-II
O método histórico-crítico e a
III
relação Revelação - inspiração
O uso e a leitura da Sagrada Escritura IV-VI

1) A relação Revelação - Tradição - Escritura —


capítulos I-II
Em primeiro lugar, a DV adotou um novo conceito de
Revelação. Não mais o “depósito de verdades”, mas o ato comu-
nicativo de Deus, como expresso no n. 2: “Aprouve a Deus, na
sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer
o mistério da sua vontade [...]. Com efeito, em virtude dessa Re-
velação, Deus invisível ... fala aos homens como amigos e con-
versa com eles, para os convidar e admitir à comunhão com ele”.
Fica assim definido que o objetivo final da Revelação não
é apresentar verdades dogmáticas, mas estabelecer a comunica-
ção e a comunhão entre Deus e os homens. Esse conceito de Re-
velação provocou um efeito positivo e rompeu muitas barreiras.
Mas só ele não bastava, era necessário também redefinir “Tradi-
ção”. DV 8 adota também nesse caso um conceito mais amplo do
que o normalmente usado antes: a Igreja, na sua doutrina, vida e
culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que
ela é e tudo quanto acredita.
E no n. 9 estabelece com clareza a distinção, mas também
o vínculo inquebrantável, entre Tradição e Sagrada Escritura: A
sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura estão intima-
mente unidas e compenetradas entre si. Com efeito, derivando
ambas da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e
tendem ao mesmo fim.

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Os Padres conciliares definem a Sagrada Escritura como
“a palavra de Deus posta por escrito” e Tradição como aquela
que transmite “a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e
pelo Espírito Santo aos Apóstolos”. São, portanto, dois momen-
tos inseparáveis da mesma Revelação, sob a ação do mesmo Es-
pírito. Dito de outro modo, no n. 10: A sagrada Tradição e a Sa-
grada Escritura constituem um só depósito sagrado da palavra de
Deus, confiado à Igreja.
Essas afirmações, que hoje parecem tão evidentes e nada
polêmicas, representaram um passo de valor incalculável para a
discussão, e o fato de elas terem entrado para o documento so-
mente na última redação indica como havia ainda muita resistên-
cia à mudança de perspectiva.
2) O método histórico-crítico e a relação Revelação -
inspiração — capítulo III
O fato de adotar um novo conceito de Revelação exigiu
também que se recolocasse em uma nova perspectiva a relação
entre Revelação e inspiração e, por conseguinte, que se adotasse
um novo conceito de inerrância.
Revelação e inspiração: Já desde o período patrístico, a
inspiração fora explicada por meio de analogias: ditado, instru-
mento, autor e obra. A princípio, essas eram apenas comparações
para representar de modo figurado o dado da inspiração; com o
passar dos séculos, porém, foram assumidas como categorias
teológicas no debate sobre a relação Revelação - inspiração.
A DV evitou aquelas analogias e limitou-se a afirmar que
Deus serviu-se de homens “na posse de suas faculdades e capa-
cidades”: ele agiu “neles e por meio deles” (DV 11), para falar
“por meio dos homens e à maneira humana” (DV 12).
O capítulo III da DV estabelece, ainda, de que modo sutil,
a distinção entre o conteúdo revelado e a linguagem em que tal
conteúdo é transmitido. Embora a terminologia não apareça na
DV, se traduzido em categorias tomistas, pode-se falar de matéria
e forma. A Revelação equivale à matéria, isto é, o conteúdo que

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Deus deseja comunicar aos seres humanos; a inspiração equivale
à forma, isto é, ao modo como os autores humanos puseram por
escrito o dado revelado.
Novo conceito de inerrância: Já desde os tempos do ilu-
minismo, no século XVIII, o problema da verdade da Bíblia é
tema de calorosos debates teológicos, a ponto de a problemática
da inerrância condicionar, no século XIX, a inteira história da re-
flexão católica sobre a inspiração. Isso permite compreender uma
diferença fundamental entre Trento e Vaticano I. O Concílio de
Trento, no contexto da Reforma, teve de dar uma resposta so-
mente ao problema do cânon bíblico; diferentemente, o Vaticano
I teve de lidar com a crise da confiança nas verdades bíblicas,
desencadeada pelo iluminismo.
O Vaticano I rejeitou a tese da simples identificação ins-
piração - inerrância: os livros da Bíblia são considerados sacros e
canônicos por vários motivos, e “não somente porque contêm a
própria Revelação sem erros” (DS 3006). Mas devemos observar
atentamente o pano de fundo da problemática do Vaticano I: o
Concílio urgia por falar da “infalibilidade” papal. Infalibilidade e
inerrância são dois conceitos muito próximos, embora com ca-
racterísticas próprias:

Infalibilidade Inerrância
- Magistério (papa) - Sagrada Escritura
- Questões de fé e de moral - Sem nenhum tipo de limitação
- Conceito aberto, pois aplicado - Conceito fechado, pois aplicado
também aos futuros ensinamen- somente aos textos do cânon bíbli-
tos co

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A afirmação dessa ilimitada inerrância da Escritura tem
suas raízes no confronto com as afirmações das diversas ciências
(arqueologia, história, física, etc.): “Quem tem razão: a Bíblia ou
o dado científico?” Desde o final do século XIX, isto é, desde
Leão XIII, o Magistério não deixou de abordar o problema. No
momento da redação final da DV, ele se repropôs, com toda sua
força: “Aquilo que a Bíblia diz é verdade... mas, o que é que a
Bíblia quer dizer?” Não se trata somente de saber as intenções do
autor, mas também, e muito mais, de conhecer as diversas for-
mas de dizer. Não entra em jogo somente o conteúdo, mas o pró-
prio modo de dizer pode ser verdadeiro ou falso.
Lentamente tornou-se unânime a opinião de que a real
questão é a diferença entre a mentalidade médio-oriental e a oci-
dental: o homem semita e o homem ocidental têm conceitos de
verdade bem distintos. Enquanto, no Ocidente, “verdade é a ade-
quação da mente à coisa ou ao fato” (adaequatio mentis ad rem),
no Antigo Oriente Próximo, a verdade é a coisa ou o fato junta-
mente com sua interpretação, com seu significado. Aplicado à
Bíblia, é-nos fácil compreender que a Escritura não se interessa
tanto pelos acontecimentos em si mesmos, como realmente se
deram, mas sim, e principalmente, com a importância de tais fa-
tos na história do povo de Deus. Por isso, já a Divino afflante
Spiritu, de Pio XII (1943), sancionara que as formas de dizer do
Antigo Oriente Próximo não podem ser avaliadas com os crité-
rios do Ocidente moderno.
O primeiro esquema preparatório ao que se tornaria a DV
falava de uma inerrância irrestrita, tanto para questões religiosas,
quanto para questões profanas. Mas as reações contrárias a essa
postura foram pesadas, e o texto final, no n. 11, saiu com uma
circunlocução para “apaziguar” os dois lados: “(...) os livros da
Escritura ensinam firmemente, fielmente e sem erros a verdade
que Deus, em vista da nossa salvação, quis que fosse consignada
nas sagradas Letras”.

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Já durante os debates para a aprovação do texto final da
DV, foi oficialmente declarado que o complemento “em vista da
nossa salvação” não deveria ter caráter limitativo da inerrância,
mas somente caráter declarativo, isto é, definir qual a finalidade
e a orientação da Escritura e da sua verdade. Não obstante tal de-
claração, o texto final da DV exprime o conceito de que a finali-
dade da Escritura não é ser um livro de conhecimentos científi-
cos, e sim o anúncio e a realização da salvação. Em outras pala-
vras, a Bíblia existe “para a nossa salvação”; ou melhor, a Bíblia
transmite sem erros, não verdades científicas, mas sim verdades
de salvação.
Esse novo conceito de inerrância possibilitou superar a
rejeição dos métodos exegético-científicos. Uma vez definido
que a inerrância bíblica refere-se, não a todo tipo de verdade, e
sim à verdade da salvação (DV 11), o n. 12 pode afirmar: “Para
descobrir a intenção dos hagiógrafos, devem ter-se em conta, en-
tre outras coisas, também os ‘gêneros literários’. Com efeito, a
verdade é proposta e expressa de maneiras diversas nos textos
que são de vários modos históricos, ou proféticos, ou poéticos ou
nos demais gêneros de dizer”.
Em outras palavras, a DV reconhece os princípios funda-
mentais do método histórico-crítico e a necessidade de aplicar tal
método ao estudo da Escritura. A DV insistiu apenas em que o
uso do método histórico-crítico fosse feito em comunhão com a
Igreja (DV 12).
Esse foi um passo de imenso valor para a exegese católi-
ca e pôs fim a infindáveis e inúteis discussões sobre o assunto,
discussões que, desde o início do século XX, consumiam boa
parte dos estudiosos católicos.
3) O uso e a leitura da Sagrada Escritura — capítulos
IV-VI
Antes de definir a importância e a centralidade da Sagra-
da Escritura na vida da Igreja (c. VI), dois capítulos intermediá-
rios recordam que a Igreja considera tanto o Antigo Testamento

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(c. IV) quanto o Novo (c. V) como palavra de Deus escrita na
linguagem humana.
A DV não só reafirma a continuidade do Antigo Testa-
mento no Novo, mas reafirma também o valor e a atualidade do
Antigo por si mesmo.
Uma vez reafirmados esses pontos, a DV passa ao derra-
deiro problema. Enquanto os dois primeiros eram fundamental-
mente teóricos, isto é, concernentes à especulação teológica e
exegética (embora qualquer definição nesses campos tenha, sem
dúvida, reflexos na vida da Igreja), o terceiro problema é emi-
nentemente prático: o uso e a leitura da Bíblia na Igreja.
Um breve percurso histórico pode nos ajudar a compre-
endê-lo mais claramente.
Desde meados do século XV, já antes da Reforma protes-
tante, havia restrições parciais e locais para a publicação e a lei-
tura da Bíblia, seja em latim, seja em vernáculo. Com a Reforma
protestante, essas restrições parciais deixam lugar para uma res-
trição universal. Em 1559, sob Paulo IV, e depois, em 1564, sob
Pio IV, a Congregação do Índice promulga o Index Librorum
Prohibitorum e veda também que, sem uma licença especial, se
pudessem imprimir e possuir Bíblias em vernáculo. Não se tratou
de uma proibição absoluta do contato individual com a Escritura,
mas restringiu-se o uso da Bíblia só para quem sabia latim. Em-
bora não faltasse por completo o contato do povo com a Escritu-
ra, só em 1757 foi novamente autorizada a edição da Bíblia em
vernáculo, desde que aprovada pelas autoridades competentes e
provida de notas.
Desde 1893, porém, começaram a soprar ventos de mu-
dança: três Encíclicas — Providentissimus Deus, de Leão XIII
(1893); Spiritus Paraclitus, de Bento XV (1914); e Divino af-
flante Spiritu, de Pio XII (1943) — e o código de Direito Canô-
nico, de 1917, dão novo impulso aos estudos bíblicos, à leitura
cotidiana e à divulgação da Escritura. Não obstante, quando se
iniciou o Vaticano II, prevalecia ainda o ambiente de cautela, e

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ainda durante a redação da atual DV houve vozes que pediam
que o documento exprimisse reservas quanto ao livre acesso dos
leigos à Bíblia.
A “cautela” quanto ao acesso direto do povo à Escritura,
o “convite a não ler”, tinha uma preocupação válida: o perigo de
uma interpretação errônea levar a erros doutrinais. Apesar dessas
vozes conservadoras, a DV refletiu uma nova atitude.
É interessante notar que em todos os parágrafos do capí-
tulo VI da DV aparecem expressões de tipo determinativo, refe-
ridas aos diversos modos de contato com a Escritura:

é preciso que a pregação eclesiástica seja


n 21
(oportet) alimentada e dirigida pela Sagrada Escritura
é preciso que os fiéis tenham acesso
n 22
(oportet) aberto à Sagrada Escritura
que exegetas e estudiosos trabalhem
é preciso para que o maior número de ministros da
n 23
(oportet) palavra de Deus possa oferecer o alimento
das Escrituras ao povo
Seja o estudo das Sagradas Escrituras
n 24
(sit) a alma da Sagrada Teologia
que todos os clérigos, diáconos e catequistas
é necessário
n 25 se apeguem às Escrituras, por meio da
(necesse est)
contínua leitura sacra e do diligente estudo
compete aos bispos orientar os fiéis no uso
n 25
(competit) correto da Escritura
sejam as traduções providas de notas
n 25
(sint) necessárias e suficientes
edições da Sagrada Escritura com
sejam feitas
n 25 convenientes anotações,
(conficiantur)
para uso também dos não-cristãos
Procurem os pastores de almas e os cristãos em geral
n 25
(curent) difundir tais edições com zelo e prudência

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Essas determinações da DV refletem o caráter eminente-
mente pastoral do capítulo VI. Pode-se identificar um duplo mo-
vimento, um ad intra e outro ad extra. Naquilo que poderia cha-
mar-se de movimento ad intra, isto é, voltado para o interior da
própria Igreja, incentiva-se:
a) Que os textos bíblicos sejam usados como principal
fonte e assunto da pregação (n. 21). Desse modo, a Sagrada Es-
critura é colocada acima das histórias dos santos, da doutrinação
e das recomendações devocionais e morais.
b) Que os ministros da palavra e todos os leigos leiam
continuamente a Escritura, no estudo e na oração (nn. 22.24.25).
c) Que sejam feitas traduções dos textos originais, isto é,
hebraico e grego (n. 22). A Vulgata, que até então era hegemôni-
ca, não é descartada, mas a DV reconhece a superioridade dos
textos originais.
O movimento ad extra, isto é, voltado para o exterior da
Igreja católica, direciona-se aos outros fiéis em Cristo e aos ju-
deus.
a) Que haja traduções dos originais, em colaboração com
as outras denominações cristãs, para que possam ser usadas por
todos os cristãos e também pelos não-cristãos (nn. 22.25). Essa
proposta é de grande importância para o diálogo ecumênico,
principalmente nas áreas de missão.
b) Ao afirmar a necessidade da tradução dos originais (n.
22), e já antes, ao asseverar a importância imutável das Escritu-
ras judaicas e a unidade entre Antigo e Novo Testamentos (c.
IV), a DV reconhece claramente o papel indelével do povo judeu,
como primeiro receptor e transmissor da Revelação divina.

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V. Na prática, a Bíblia na Igreja depois da Dei Ver-
bum

Os frutos das determinações teológicas e pastorais da DV


não se fizeram esperar e, em grande parte, aconteceram em sim-
biose com a renovação da liturgia.
No tocante à pastoral e, com ela, à espiritualidade dos fi-
éis católicos:
Tradução da Bíblia: Encontram-se traduções católicas em
quase todos os países e em todas as principais línguas do mundo.
Há ainda muitas línguas tribais sem uma tradução (completa ou
parcial) da Bíblia, mas isso se deve a dois fatores: (a) a falta de
tradutores nativos capacitados; (b) a dificuldade lingüística, dado
que nas línguas tribais faltam conceitos e termos para uma tradu-
ção adequada.
Homilia: A reforma litúrgica colocou em segundo plano a
devoção aos santos. O calendário litúrgico, que antes do Concílio
era muitas vezes interrompido por memórias e festas, passou ofe-
recer aos fiéis – no ciclo de três anos para os domingos, e no ci-
clo de dois para os dias da semana – a leitura dos textos bíblicos
fundamentais. Igualmente, a organização das leituras dominicais,
com a primeira leitura sempre combinada ao evangelho. Isso tu-
do motivou a mudança na pregação nas celebrações eucarísticas:
não mais os bons exemplos dos santos, e sim o conteúdo das lei-
turas proclamadas.
Celebrações da palavra: Nas comunidades sem presbíte-
ro, ou naquelas em que a presença dele não é possível todo do-
mingo, o povo se reúne ao redor da Palavra de Deus. Com ou
sem a distribuição das espécies eucarísticas, a meditação acerca
da Sagrada Escritura constitui o alicerce para a comunhão e a vi-
da da comunidade.
Catequese: Sem abandonar o aspecto doutrinal, a cate-
quese, nos seus mais diversos âmbitos (primeira comunhão,
crisma, de adultos, etc.), passou a discorrer sobre a história da

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salvação, não mais baseada nas “histórias sagradas”, mas sim di-
retamente no texto bíblico. Os catequizandos de primeira comu-
nhão e crisma, por exemplo, são incentivados a ter e a ler a Bí-
blia.
Leitura orante: A Bíblia torna-se o grande livro de ora-
ção. A chamada lectio divina oferece um método de fundo para a
meditação pessoal e também comunitária. Os passos básicos são:
leitura, meditação, oração, contemplação; outros podem ser a-
crescentados: partilha, compromisso, ação.
Grupos bíblicos: Diversos outros tipos de encontro se
realizam ao redor da Bíblia: grupos de rua, círculos bíblicos, no-
venas. Em todos esses grupos, a Sagrada Escritura é a razão do
encontro.
Cursos bíblicos: O renovado interesse pela leitura da Sa-
grada Escritura trouxe consigo a necessidade de um estudo mais
sistemático sobre diversos pontos do universo bíblico: a história
e a cultura dos povos da Bíblia (não só de Israel, mas também
dos outros povos circunstantes), os aspectos literários e teológi-
cos do texto, e ainda as línguas bíblicas. Multiplicaram-se os
cursos introdutórios para os agentes de pastoral e grupos especí-
ficos; multiplicaram-se também os cursos de teologia para leigos,
nos quais uma boa carga horária é dedicada às matérias bíblicas.

Quanto à teologia e à exegese:


Bíblia, alma da teologia: A formação teológica dos pasto-
res é um claro exemplo de como um documento conciliar exerce
influência sobre outro. A Presbyterorum Ordinis é posterior à
DV, e em vários números deixa transparecer o que as determina-
ções da DV representam para a formação e a missão dos presbíte-
ros. Por exemplo, o capítulo II da PO define o sacerdote como
“ministro da palavra”, antes de “ministro dos sacramentos”.
E quanto aos estudos, PO 19 insiste em que “a ciência do minis-
tro sagrado (...) antes de tudo é haurida na leitura e na meditação
da Sagrada Escritura e alimentada com o estudo dos Santos Pa-

41
dres e dos demais documentos da Tradição”. Nas faculdades de
teologia, seja nos cursos destinados à formação dos seminaristas,
seja nos cursos para leigos, como já dito, uma carga horária con-
siderável é reservada à Sagrada Escritura.
Uso dos textos originais: O uso do texto original como
base das traduções e dos estudos (teologia e exegese) representa
um enorme passo para o diálogo ecumênico, em contraste com
Trento e Vaticano I. DV 22 possibilita que se quebre o isolamen-
to “bíblico” da Igreja: da Igreja católica em relação às outras de-
nominações cristãs; e da Igreja católica latina em relação às Igre-
jas orientais (católicas e não-católicas).
Métodos exegéticos: O número 12 da DV reflete a aceita-
ção dos princípios fundamentais do método histórico-crítico e,
por conseguinte, o reconhecimento de que o trabalho exegético-
científico é salutar e necessário para a correta interpretação da
Sagrada Escritura. Antes do Concílio, diversos professores e e-
xegetas católicos tiveram problemas com a ortodoxia e chegaram
a ser suspensos do ensinamento. O novo conceito de “inerrância”
abriu as portas para que não só fosse ensinada a exegese científi-
ca nas Universidades católicas, mas também que os leigos tives-
sem acesso aos resultados dessa pesquisa. É de se notar que a e-
xegese católica, por longos anos oficialmente impedida de lançar
mão dos métodos científicos, em pouco tempo depois da DV co-
locou-se na vanguarda da interpretação bíblica.
Cumpre ainda assinalar dois documentos da Pontifícia
Comissão Bíblica, que fazem eco à DV:

a) A Interpretação da Bíblia na Igreja, de 1993, sobre a


validade, os méritos e os limites dos métodos exegéticos.
b) O Povo judeu e as suas sagradas escrituras na Bíblia
cristã, de 2001, sobre a relação entre os dois Testamentos, o An-
tigo e o Novo.

42
VI. Os métodos exegéticos e o documento A Interpre-
tação da Bíblia na Igreja

Em 1993, em comemoração a duas Encíclicas papais so-


bre a interpretação bíblica – centenário da Providentissimus
Deus, de Leão XIII; cinqüentenário da Divino afflante Spiritu, de
Pio XII – a Pontifícia Comissão Bíblica lançou o documento A
Interpretação da Bíblia na Igreja (IBI). Trata-se até agora do ú-
nico documento do Magistério eclesiástico sobre a interpretação
bíblica após a DV. Por isso, uma apresentação do impulso bíblico
no (e após o) Concílio Vaticano II ficaria incompleta, caso não
se falasse desse outro documento.
O objetivo do IBI é “indicar os caminhos que convém
tomar para chegar a uma interpretação da Bíblia que seja tão fiel
quanto possível a seu caráter ao mesmo tempo humano e divi-
no”5. Para alcançar o escopo que se propõe, o IBI:
a) faz uma breve descrição e análise dos diversos méto-
dos e abordagens (c. I);
b) examina algumas questões de hermenêutica (c. II);
c) propõe uma reflexão sobre as dimensões característi-
cas da interpretação católica da Bíblia (c. III);
d) considera o lugar da interpretação da Bíblia na vida e
na teologia da Igreja (c. IV).
Para a presente exposição, basta ler o esquema do capítu-
lo I: “Métodos e abordagens para a Interpretação”:

5
PONTIFÍCIA, Interpretação, 35-36.

43
A. Método histórico-crítico
1. análise retórica
Novos métodos de
B. 2. análise narrativa
análise literária:
3. análise semiótica
1. tradição canônica
Abordagens baseadas
C. 2. tradição judaica
na tradição:
3. história da recepção do texto
1. abordagem sociológica
2. abordagem da antropologia
Abordagens por meio
D. cultural
das ciências humanas:
3. abordagens psicológicas e
psicanalíticas
Abordagens 1. abordagem da libertação
E.
contextuais: 2. abordagem feminista
F. Leitura fundamentalista

De todos esses métodos e abordagens, o IBI efetivamente


condena somente a leitura fundamentalista. Todos os outros mé-
todos ou abordagens descritos são considerados válidos para a
interpretação da Sagrada Escritura, desde que respeitados os li-
mites a eles próprios inerentes6.
Em 2000, foi defendida em Roma uma tese doutoral inti-
tulada “Princípios Católicos para interpretar a Escritura”7. Nessa
tese, o autor define e analisa vinte princípios de interpretação
contidos no IBI. Tais princípios são agrupados segundo os vários
aspectos do estudo e do uso da Sagrada Escritura na Igreja. Em
modo esquemático:

6
Uma apresentação mais detalhada dos princípios de vários desses métodos e
abordagens, com exemplos, encontra-se em meu Metodologia.
7
P.S. WILLIAMSON, Principles.

44
Seis aspectos Vinte princípios de interpretação

O princípio fun-
I. dante da interpre- 1) A palavra de Deus em palavra humana
tação católica

Relação entre exegese católica e “ciên-


2)
“Linguagem hu- cia”
mana”: Exegese 3) Relação entre exegese católica e história
II.
católica e conhe- 4) O uso das análises filológica e literária
cimento humano A contribuição da hermenêutica filosófi-
5)
ca
6) A hermenêutica da fé
7) O papel da comunidade de fé
Interpretação à luz da tradição bíblica,
8)
da unidade da Escritura e do Cânon
“Palavra de
Interpretação do Antigo Testamento à luz
III. Deus”: Exegese 9)
do mistério pascal
católica e fé cristã
Interpretação à luz da tradição viva da
10)
Igreja
O objetivo da interpretação: expor a
11)
mensagem religiosa da Escritura
12) O sentido literal
O significado
IV. da Escritura 13) O sentido espiritual, tipologia
inspirada 14) O sentido mais completo (sensus plenior)
15) O uso do método histórico-crítico
Métodos e
V.
abordagens 16) A pluralidade de métodos e abordagens
A tarefa do exegeta e as relações da
17)
exegese com outras disciplinas teológicas
A interpretação na
VI. 18) Atualização
prática
19) Inculturação
20) O uso da Bíblia na Igreja

45
Deve-se notar que esses princípios não servem somente
para exegetas e teólogos, mas também para pregadores, catequis-
tas, ministros da palavra e para todos os cristãos que querem en-
trar em intimidade com a Palavra de Deus na Sagrada Escritura,
e que assumem a missão de anunciar a todos os seres humanos
“a verdade que Deus, para a nossa salvação, quis que fosse con-
signada nas sagradas Letras” (DV 11).

VII. A Bíblia no Brasil depois da Dei Verbum

O estudo e a divulgação da Bíblia no Brasil começam nos


anos imediatamente precedentes ao Concílio, e com a DV ga-
nham grande impulso. As várias realizações, na pastoral, na área
acadêmica e no campo editorial, demonstram grande vitalidade e
criatividade. Dada a índole de nossa Igreja, não houve dificulda-
des na integração da reflexão teológica com as exigências pasto-
rais.
Quero destacar três aspectos ou realidades da renovação
bíblica trazida ou incentivada pela DV. Limitar-me-ei aos dados
cronológicos essenciais. Pode-se falar de três “ondas”8, mas é
necessário lembrar que, embora não tenham surgido simultane-
amente, ao longo do tempo se sobrepuseram e, sob vários aspec-
tos, operam em simbiose.

A “Liga de Estudos Bíblicos - LEB”9:


Antes ainda do Concílio, em 1946, foi programada a
“Primeira Semana Bíblica Nacional”, realizada no ano seguinte,
sob as bênçãos e o incentivo de Pio XII. Dessa semana de estu-
dos participaram cerca de 40 biblistas de todo o Brasil. Boa parte
deles eram formados em Roma, no Pontifício Instituto Bíblico.

8
Devo a nomenclatura e o esquema das idéias a seguir ao Prof. Irineu José
Rabuske, da PUC de Porto Alegre - RS.
9
J.E.M. TERRA, Tradução.

46
As resoluções dessa Semana Bíblica foram:
a) instituição do “Domingo da Bíblia”, no último do-
mingo de setembro, data mais próxima da festa litúrgica de S. Je-
rônimo (30 de setembro);
b) incentivo à publicação da literatura bíblica nacional;
c) fundação da “Liga de Estudos Bíblicos - LEB”;
d) tradução literal da Bíblia para a língua portuguesa.
Todas essas iniciativas foram bem-recebidas pela Santa
Sé e, no Brasil, não tardaram a dar seus frutos. Com o Concílio
(e a DV), tudo isso teve um grande incentivo, como se nota no
desenvolvimento posterior:
a) O “Domingo da Bíblia” passou a fazer parte do calen-
dário litúrgico nacional. Dado seu sucesso também junto ao po-
vo, na 10ª Semana Bíblica Nacional, realizada em 1974, decidiu-
se transformar o “Domingo da Bíblia” no “Mês da Bíblia”, ao
longo de todo o mês de setembro.
b) São lançadas no mercado várias produções nacionais:
periódicos, introduções aos livros bíblicos e também comentários
mais aprofundados. Além disso, são traduzidos muitos livros de
renomados estudiosos internacionais. Gradativamente, as produ-
ções nacionais vão assumindo a tendência a uma apresentação
didática do conteúdo, para satisfazer as várias exigências da pas-
toral: catequese, grupos de estudo, liturgia, etc.
c) A LEB passou a encontrar-se regularmente e a desen-
volver uma série de atividades ligadas à divulgação da Bíblia: ar-
tigos, conferências, semanas de estudos. Com o advento do Con-
cílio, a LEB não se extinguiu; mas o novo impulso promovido
pela DV impôs tal progressão geométrica ao trabalho bíblico, que
a LEB parece não ter tido condições de acompanhar as exigên-
cias, não só acadêmicas, mas principalmente pastorais, que tal
progressão impôs. A LEB ainda sobrevive, e seu valor na história
dos estudos bíblicos no Brasil é impagável. Não obstante, já não
tem mais o mesmo peso que teve no período pré-conciliar, e qua-
se não se fala mais nela.

47
d) Surgiram as primeiras traduções católicas da Bíblia no
Brasil. A própria LEB publicou a sua. Gradativamente, cada edi-
tora católica lançou no mercado a “sua” tradução da Bíblia,
quando não mais de uma. Atendendo às determinações da DV,
essas traduções são providas de introduções e notas explicativas.
Enquanto algumas traduções se perpetuaram (e continuam sendo
reeditadas, embora já superadas), outras tiveram vida curta. Seria
interessante analisar e comparar com alguma profundidade essas
publicações. Permito-me aqui somente uma observação de cará-
ter geral. A multiplicidade de traduções no Brasil tem um aspec-
to positivo e outro negativo. O aspecto positivo é permitir ao lei-
tor comum, que não lê em grego e em hebraico, comparar as vá-
rias possibilidades de compreender e traduzir um texto. A pres-
cindir da efetiva dificuldade econômica, para se adquirir todas as
traduções disponíveis no mercado, o aspecto negativo, inerente
ao positivo, é a falta de uniformidade nas publicações que usam
textos bíblicos: cada editora tende a usar a “sua” tradução. Além
disso, os textos litúrgicos, que se baseiam na Vulgata, não cor-
respondem a nenhuma das traduções dos originais hebraico e
grego. A recente tradução da Bíblia da CNBB, na tentativa de
minimizar o problema, constitui mais uma entre as várias edições
da Bíblia no Brasil, e já demonstrou que não conseguirá impor-
se.
Os círculos bíblicos e o “Centro de Estudos Bíblicos -
CEBI”:
A situação política e social do Brasil, já desde as vésperas
do Concílio Vaticano II, criou condições para que a leitura da
Sagrada Escritura se tornasse elemento catalisador das esperan-
ças e promotor de uma nova forma de ser Igreja.
Desde o início dos anos 1960, cresceu o trabalho de cons-
cientização política no meio dos pobres. Parte da Igreja perma-
neceu resistente, enquanto outra parte engajou-se de diversos
modos na busca de uma sociedade mais justa. Nesse contexto de
conflito social, e com o apoio da eclesiologia da Lumen Gentium,

48
surgiram as Comunidades Eclesiais de Base. Dentro e fora delas,
multiplicaram-se grupos de reflexão bíblica e, de modo mais es-
pecífico, os círculos bíblicos. Neles, amadureceu a chamada “lei-
tura popular da Bíblia”, inspirada no método ver - julgar - agir,
usado pelos grupos da Ação Católica.
À medida que o governo militar se tornava mais pesado e
repressor, era inevitável que, nos círculos bíblicos, as pessoas
empobrecidas delineassem uma analogia entre sua própria situa-
ção de sofrimento e a situação do povo de Deus, em várias cir-
cunstâncias descritas na Bíblia.
Em 20 de julho de 1979, foi fundado oficialmente o Cen-
tro de Estudos Bíblicos, o CEBI. Trata-se de uma associação e-
cumênica que se tornou a instância de reflexão sistemática da lei-
tura popular da Bíblia10: por meio de subsídios em grande quan-
tidade e variedade, o CEBI assumiu a tarefa, não só de divulgar a
leitura popular da Bíblia, mas também de dar a tal leitura funda-
mentos e autoridade. Sem dúvida, o grande nome da leitura po-
pular da Bíblia no Brasil é o do frei Carlos Mesters, um dos fun-
dadores do CEBI. Carlos Mesters sistematizou e popularizou o
triângulo hermenêutico — realidade - Bíblia - comunidade —
como o método da leitura popular11.
Atualmente, “o CEBI está organizado em 25 Estados bra-
sileiros. Através de 174 Sub-Regiões/Núcleos, se faz presente
em mais de 600 cidades, atingindo diretamente cerca de 80 mil
lideranças populares. Convém ressaltar que mais de 90% das ati-
vidades do CEBI são assumidas por equipes voluntárias”12.

10
Para fotos dos fundadores, cf. na Internet: http://www.cebi.org.br/historia.php.
11
Uma exposição sobre a metodologia da leitura popular e um breve histórico do CE-
BI encontram-se também na Internet:
http://www.cebi.org.br/artigos_metodologia.php?menu=y
12
Dados oficiais do CEBI, disponíveis na Internet:
http://www.cebi.org.br/caminhada.php

49
A terceira “onda”: os novos mestres e doutores:
Embora sempre houvesse no Brasil um bom contingente
de professores de Sagrada Escritura formados na Europa, é natu-
ral que a nova geração de biblistas, que cursaram mestrado e
doutorado após a DV, por alguma razão se destacasse da geração
anterior.
Nos anos 1980, surgem ou são impulsionados os estudos
bíblicos em nível mais profundo no Brasil. Em forma não-
vinculada a um regular currículo acadêmico de uma faculdade de
teologia, são realizadas semanas de estudos, assim como cursos
mais prolongados e sistemáticos. Merece, porém, destaque o im-
pulso dado às faculdades de teologia, para a instituição de cursos
acadêmicos de especialização teológica, com concentração na
área de Bíblia.
Além disso, deve-se observar o considerável crescimento
da produção de artigos, revistas e livros em nível científico.
O dado mais recente é o Primeiro Congresso Nacional de
Biblistas, em Goiânia, em setembro de 2004, no qual foi fundada
a Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica: uma entidade ecu-
mênica, formada, não só por exegetas, mas também por teólogos,
sociólogos, professores de línguas bíblicas, e aberta a todos os
intelectuais que, de alguma maneira, podem colaborar com o es-
tudo da Sagrada Escritura.

VIII. À guisa de conclusão: os próximos 40 anos... e


mais além

No Congresso Internacional sobre a DV, realizado em


Roma , um dos conferencistas14 ofereceu algumas propostas pa-
13

ra o futuro, pois assume como premissa o fato de que transcorre-


ram apenas os primeiros 40 anos do Concílio Vaticano II e, por-

13
Cf. nota 1 desta exposição.
14
J. ONAIYEKAN, From Dei Verbum, 6-10.

50
tanto, da DV. Em sua opinião, em vez de lamentarmos o quanto
ainda há por fazer, devemos dar graças a Deus pelo muito que já
foi realizado em um prazo tão curto. Simultaneamente, porém,
devemos olhar para o futuro e assumir alguns desafios:
Consolidar e aprofundar as conquistas. À medida que no
tempo nos distanciamos do fim do Concílio, devemos estar aler-
tas contra o perigo da acomodação e à tentação de voltar a um
modelo de Igreja anterior ao Vaticano II, como reação aos exces-
sos.
Vigiar para que haja sempre equilíbrio. A DV deixou
clara a relação entre Sagrada Escritura, Tradição e Magistério.
Por isso, é necessário evitar a exacerbação da importância da Es-
critura, em detrimento dos outros dois pilares da fé da Igreja. Tal
exagero provocaria o fundamentalismo, enquanto o equilíbrio e-
vita controvérsias inúteis.
Exegese científica para todos. É necessário que a Igreja
crie condições para que, nos países mais pobres, os exegetas pos-
sam desenvolver e divulgar suas pesquisas; igualmente, que as
faculdades de teologia ofereçam cursos em nível mais aprofun-
dado, não só aos clérigos e religiosos, mas a todos, principalmen-
te aos cientistas de outras áreas do conhecimento.
Amplo acesso à Sagrada Escritura. Em geral, as tradu-
ções protestantes custam menos que as católicas. As boas tradu-
ções católicas da Bíblia, com numerosas notas e largas introdu-
ções, são muito caras; as mais baratas, em geral, são as mais fra-
cas em termos de tradução. Um projeto de fraternidade mundial
poderia promover o barateamento das boas traduções já existen-
tes, além de criar condições para que a Bíblia fosse traduzida pa-
ra as línguas para as quais ainda não foi feita uma versão dos tex-
tos sagrados.
O desafio das novas tecnologias. Trará grande fruto o fa-
to de disponibilizar boas traduções e bons comentários nos meios
de comunicação de massa (televisão, rádio, Internet). Será i-
gualmente importante transmitir cursos de introdução aos livros

51
bíblicos, bem como outras informações que ajudem os leitores
hodiernos a compreender o mundo da Bíblia. E ainda, a mesma
solidariedade que promoveria o barateamento das traduções, po-
deria oferecer também bons programas bíblicos para computa-
dor.
Convocação de um Sínodo ordinário sobre a Sagrada
Escritura. Esse Sínodo discutiria questões decorrentes, princi-
palmente, do capítulo VI da DV.
A essas sugestões podemos ainda acrescentar outra:
Investir em uma melhor formação teológica e bíblica dos
seminaristas. O nível intelectual dos sacerdotes baixou muito nos
últimos anos. Torna-se cada vez mais necessário que os bispos
não se contentem com uma formação que vise suprir somente as
prementes necessidades pastorais de suas dioceses, mas conside-
rem vital que os futuros pregadores da Palavra de Deus sejam
mais bem formados.
Em resumo, trata-se, não somente de divulgar a Bíblia
como livro e torná-la sempre mais acessível a todos, mas tam-
bém de ajudar os homens e as mulheres a compreender em modo
equilibrado “a verdade que Deus, para a nossa salvação, quis que
fosse consignada nas sagradas Letras” (DV 11).

Referências

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bum sobre la divina revelación. Madrid, 1969 (BAC).
CITRINI, T. Scrittura, in ROSSANO, P.; RAVASI, G. & GIRLANDA,
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ETTL, C., The Rediscovery of the Word of God: The Second Vatican
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RATZINGER, J. The Dogmatic Constitution on Divine Revelation: A
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(Na página oficial do referido Congresso sobre a DV, encontra-se a
versão digital em inglês de uma parte do artigo escrito pelo então jo-
vem teólogo J. Ratzinger, no volume 13 do Lexikon für Theologie und
Kirche, Freiburg i. Br., 1967).
SÁNCHEZ CARO, J.M. & CAMPOS SANTIAGO, J. Ed. 30 Años de
la “Dei Verbum”. Estell, 1996 (todo o volume 11 da revista Reseña
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WILLIAMSON, P.S. Catholic Principles for Interpreting Scripture.
Roma 2001 (Subsidia Biblica).

53

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