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Vidas Medicalizadas:
por uma Genealogia
das Resistências à
Farmacologização
Medicalized Lives: for a Genealogy of
Resistances to Pharmaceuticalization

Vidas Medicalizadas: por una Genealogía


de las Resistencias a la Farmacologización

Dolores Galindo
Universidade Federal de Mato Grosso

Flávia Cristina Silveira Lemos


Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” UNESP

Henrique de Oliveira Lee


Universidade Federal de Mato Grosso

Renata Vilela Rodrigues


Universidade Federal de Mato Grosso

http://dx.doi.org/10.1590 /1982-370001492013
Artigo

PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2014, 34(4), 821-834


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PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO, Dolores Galindo, Flávia Cristina Silveira Lemos, Henrique de Oliveira Lee & Renata Vilela Rodrigues
2014, 34(4), 821-834

Resumo: Este artigo visa a colocar em debate, em formato de ensaio teórico, a temática da me-
dicalização e da farmacologização da existência. Discute-se a multiplicidade de acontecimentos
que sustentam a medicalização e o campo de lutas no qual tais situações ocorrem e se
materializam em um dispositivo de farmacologização subjetivante. Recupera-se, para tanto,
aspectos da obra de Rodrigo Souza Leão que problematizam dimensões dos modos de
subjetivação atuais urdidos na economia política da indústria farmacêutica e que instauram
práticas de liberdade. Ao final do artigo, conclui-se que a difusão da medicalização e da farma-
cologização da vida é uma prática muito disseminada e, portanto, as resistências endereçadas
às mesmas precisam ser ampliadas e articuladas cada vez mais com vistas a produzir efeitos na
sociedade atual, de maneira a abrir brechas que façam ressoar práticas não medicalizantes em
um campo de tensão de forças. Propomos que a genealogia das resistências à medicalização
das existências deve ser articulada à composição de arquivos não conformistas capazes de
evidenciar que, apesar da força da farmacologização na configuração das nossas subjetivações,
práticas de liberdade continuam a ser urdidas em seus interstícios.
Palavras-chave: Medicalização. Farmacologização. Resistências. Escrita.

Abstract: This paper aims at setting into discussion, in a theoretical essay format, the topic of
medicalization and pharmaceuticalization of existence. It discusses the multiplicity of events
that support medicalization and the field of struggles in which such situations take place and are
materialized into a subjectivizing pharmaceuticalization device. Thus, some features of Rodrigo
Souza Leão’s work are retrieved which argue on the dimensions of current subjectivizing
manners hatched out in the pharmaceutical industry economic policy and that set freedom
practices. One concludes, by the end of the paper, that diffusion of medicalization and pharma-
ceuticalization of life is a widespread practice and, therefore, resistances targeting them need to
be increasingly expanded and articulated aiming at producing effects in current society to open
gaps that reverberate non medicalizing practices in a tension field of forces. We propose that
genealogy of resistances to medicalization of existences should be articulated with the
composition of non-conformist files capable of evidencing that, in spite of the pharmaceuticalization
power in setting up our subjectifications, freedom practices continue to be plotted in their
interstices.
Keywords: Medicalization. Pharmaceuticalization. Resistances. Writing.

Resumen: Este artículo visa colocar en debate, en formato de ensayo teórico, la temática de la
medicalización y de la farmacologización de la existencia. Se discute la multiplicidad de acon-
tecimientos que sustentan la medicalización y el campo de luchas en el cual tales situaciones
ocurren y se materializan en un dispositivo de farmacologización subjetivante. Se recuperan,
para tanto, aspectos de la obra de Rodrigo Souza Leão que problematizan dimensiones de los
modos de subjetivación actuales urdidos en la economía política de la industria farmacéutica y
que instauran prácticas de libertad. Al final del artículo, se concluye que la difusión de la medi-
calización y de la farmacologización de la vida es una práctica muy diseminada y, por tanto, las
resistencias dirigidas a las mismas precisan ser ampliadas y articuladas cada vez más con vistas a
producir efectos en la sociedad actual de manera a abrir brechas que hagan resonar prácticas
no medicalizantes en un campo de tensión de fuerzas. Proponemos que la genealogía de las re-
sistencias a la medicalización de las existencias debe ser articulada a la composición de archivos

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no conformistas capaces de evidenciar que, a pesar de la fuerza de la farmacologización en la


configuración de nuestras subjetivaciones, prácticas de libertad continúan siendo urdidas en sus
intersticios.
Palabras-clave: Medicalización. Farmacologización. Resistencias. Escrita.

Este artigo visa trazer uma problematização emergem nas tramas que engendram o dis-
dos processos de medicalização a partir de positivo de farmacologização e não do seu
uma analítica foucaultiana, colocando em exterior, o segundo movimento deste texto
xeque a farmacologização das existências consiste em evidenciar, sem pretensão de
como um campo de lutas, na sociedade exaustividade, algumas linhas de fuga ao
contemporânea. Por meio da escrita, e inse- dispositivo medicalizante que se fazem pre-
rindo-se nas linhas que formam os procedi- sentes na obra de Rodrigo Souza Leão,
mentos de saber-poder da medicalização, o escritor cuja biografia foi marcada por inter-
texto em pauta opera a crítica a estes e nações, eletrochoques e ingestão de altas
aponta para a literatura, em especial, para a doses de psicotrópicos prescritos. Diagnosti-
obra de Rodrigo Souza Leão, como um ope- cado como esquizofrênico, Rodrigo Souza
rador de rupturas – pequenos desvios – no Leão resistiu ativamente ao enquadramento
dispositivo de farmacologização da vida que do seu trabalho como expressão de uma pa-
restringe práticas de liberdade. tologia e manteve uma intensa participação
na vida literária brasileira. Do seu apartamento,
A partir do legado deixado por Foucault de onde quase nunca saía, condição que o
(1999a, 1999b), sabe-se que a analítica dos incomodava conforme é relatado em sua
acontecimentos como genealogia é uma ma- página pessoal, colaborava com revistas di-
neira de fazer traçar as relações de força, as gitais, telefonava para outros escritores, man-
disputas e a multiplicidade de práticas hete- tinha uma página eletrônica e lançava livros,
rogêneas em jogo. Não há uma raiz ou vários deles em edições virtuais. As interna-
tronco comum a encontrar como origem de ções, o diagnóstico, os medicamentos foram
algo e também não há o fim da lança, como integrados à escrita do autor como matéria
apogeu de um desenrolar de fatos, contínuos poética e esta é trazida ao plano do nosso
e encadeados causalmente, ou seja, sem te- texto como expressão de uma prática de li-
leologia e fins a decifrar. Em decorrência, a berdade que o controle por ondulações quí-
genealogia das práticas de resistência à far- micas não logrou homogeneizar.
macologização das existências passa por uma
analítica dos mecanismos e estratégias nor- A questão sobre a produção de liberdades
malizadoras de governo e disciplinarização se coloca não apenas para o processo de
dos corpos, bem como dos mecanismos e farmacologização, mas, antes, para o esta-
forças contemporâneas constituídas pelas belecimento de uma formação hegemônica,
ciências modernas que concorrem para a uma vasta rede de articulação de elementos
expansão da medicalização expressa em um que se condicionam e se legitimam mutua-
crescente consumo de fármacos no Brasil, mente. Uma rede que estabelece uma cum-
sendo este o primeiro movimento conceitual plicidade tácita entre certa visão da doença
e político do presente texto. mental, certo modo de produção e uma
visão do que seja a ordem pública. A obra
Entendendo que as práticas de resistência à de Rodrigo Souza Leão, aparentemente soli-
homogeneização dos modos de subjetivação tária e desengajada das grandes lutas coletivas

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ligadas diretamente às políticas de saúde disciplinares que visam a formar alinhamentos


mental, constitui uma escrita de resistência políticos como obediência e assujeitamento
e de cumplicidade que é possível apenas acrítico. Corpos vigiados e punidos integram
aos desviantes, aos infames, aos “sujeitados”. uma sociedade da vigilância, panóptica e
que opera por alinhamento político.

A Indústria farmacêutica e o O poder disciplinar se generaliza a partir do


campo de lutas político- século XVII, como prática de controle meti-
culoso dos corpos para torná-los úteis e
econômicas em rede com as dóceis, produtivos e governados por meca-
relações disciplinares de poder nismos de vigilância, de gestão do tempo e
do espaço, pela sanção normalizadora e
A concentração de capital das indústrias far- pelo exame. Simultaneamente à emergência
macêuticas e a expansão dos diagnósticos da Revolução Francesa e do aparecimento
de síndromes em saúde vêm ampliando ex- das Luzes, apareceram as disciplinas, ou
ponencialmente o número de enquadra- seja, liberdade e disciplina nasceram juntas
mentos diagnósticos e de processos de me- e balizam uma e outra, no campo da política
dicalização dos mínimos desvios sociais frente como guerra prolongada por outros meios
às normas. De acordo com o Boletim de (Foucault, 1999a).
Farmacoepidemiologia da Agência de Vigi-
lância Sanitária (Anvisa), publicado no segundo Depois de quinze anos da chamada Reforma
semestre de 2011, 44% dos remédios ven- Psiquiátrica brasileira e dos efeitos de outras
didos nas farmácias e drogarias são para o tantas transformações, nos cenários de pro-
objetivo de, supostamente, tratar os quadros moção e cuidado em saúde, os usuários en-
produzidos como transtornos mentais e de contram nas consideradas novas modalidades
comportamento. A pesquisa aponta que, em de tratamentos em serviços substitutivos uma
2010, foram vendidas cerca de 10 milhões diversidade de caminhos para a sua reinserção
de caixas do medicamento Clonazepan, o na comunidade e para a convivência social
que representou um gasto em torno de R$ em meio aberto (Bezerra, 2009). São formas
92,4 milhões apenas com esse medicamento, sutis de governo dos corpos e da vida, que
entre os brasileiros (Anvisa, 2011). Esse con- tendem a ganhar mais evidência do que a
sumo exacerbado de psicofármacos é um modalidade de segregação da disciplina blo-
indicativo não apenas de uma tendência queio do corpo. Discordar se tornou sintoma
global de aumento dos gastos com medica- de um transtorno, aprender em ritmos dife-
mentos, mas também um analisador da im- renciados ou ainda estar desatento e ques-
portância que as substâncias psicoativas ad- tionar grupos passou a ser considerado sinal
quiriram nas sociedades contemporâneas. de anormalidade, com explicações da história
de vida de cada um, ou seja, liberalismo
Foucault (1979) nos deixou relevante legado, como racionalidade política e como estilo
ao assinalar que a produção e a incitação de vida.
das relações de poder, como exercício e di-
nâmica de forças móveis, forjam saber e en- As mutações trazidas pelos movimentos de
gendram corpos saudáveis, ágeis, capazes, Luta Antimanicomial, de Reforma Psiquiátrica,
normalizados, obedientes politicamente, de interrogação das normas fixas e suposta-
adestrados para o trabalho e para a educação mente naturais de viver, das relações de gê-
disciplinar. Corpos úteis e dóceis são efeitos nero e de configuração familiar, acrescidas
de procedimentos de controle por práticas da ampliação e reconfiguração das práticas

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clínicas e da oferta de uma rede pública e pelas sociedades de controle. As táticas dis-
privada de atendimentos psicológicos e mé- ciplinares de vigilância e controle em meio
dicos, abriram novas possibilidades de esta- aberto são mais rentáveis que as do controle
belecimento de laços para os usuários de fechado, sendo a farmacologização um dos
saúde mental e seus familiares (Castel, 1987). vetores que aceleram o controle biomédico
Ao mesmo tempo, a cooptação das forças a distância: o medicamento é subjetivante e
de luta como mercadoria e como instrumental não apenas um conjunto de propriedades
a ser consumido – contudo, esvaziado da químicas delimitáveis.
política – tem sido uma prática muito co-
mum. Os medicamentos agem conformando modos
de ser e instaurando certa sensação de nor-
Foucault (1999a) assinala os usos do tempo malidade medicalizada, na qual a expressão
como mecanismo disciplinar e a objetivação do sofrimento (de qualquer origem e forma)
dos corpos pela velocidade na política e no não se torna objeto de reflexão ou busca de
cálculo econômico. O tempo como economia construção de outras formas de ser, mas de
política e o controle da resistência operam um “bloqueio químico” das emoções, que
pelo regramento da vida no relógio e na ca- pode ser combinado com técnicas discipli-
pitalização dos segundos e dos resultados nares da clínica psiquiátrica e psicológica ar-
que obtemos neles, em termos de utilidade ticuladas à medicalização, no campo das
e de docilidade política. O ritmo de resposta tecnologias de gestão de riscos, segundo evi-
deve estar na rapidez e lentidão necessárias denciam os estudos de Castel (1987) a
para que os que usurpam o tempo de luta respeito da psicologização da sociedade. Os
possam usá-lo como mercadoria a ser co- psicofármacos passaram a definir as condições
mercializada e trocada como moeda de de saúde e, em alguns casos, silenciá-las
favor, em jogos de interesse. com uma somatória de técnicas de normali-
zação das condutas. É nesse sentido que a
Em políticas mais atuais de saúde mental, a intervenção farmacológica como tecnologia
dispensação de psicofármacos vem sendo, de controle procura limitar, modificar, regular,
frequentemente, utilizada para amenizar o isolar e eliminar comportamentos desviantes,
denominado sofrimento psíquico, visando a por meio dos recursos biotecnológicos e em
produzir sujeitos dóceis e úteis. A farmacologia nome de uma saúde normalizada (Brzozowski
dispõe do corpo como objeto e alvo de & Caponi, 2010).
poder a ser domesticado e adestrado, ao
qual se pode modelar por treinos e tentar Com a primazia da medicalização do sofri-
fazer obedecer e responder aos estímulos e mento, fluoxetinas, sertralinas, diazepams,
exercícios, com vistas a torná-lo hábil para alprazolams se tornam uma espécie de magia,
multiplicar-lhe as forças. Para uma variedade com rituais estranhamente milagrosos que
de especialistas, os tratamentos medicamen- “tratam” os sofrimentos psíquicos (Ignácio &
tosos podem melhorar ou estabilizar perfor- Nardi, 2007). Os sofrimentos são objetivados
mances variadas e promover apropriações como psíquicos e bioquímicos, ao mesmo
de oportunidades com certa regularidade tempo, quando não apenas genéticos, com-
disciplinar e biopolítica, ou seja, com controle portamentais, hormonais e de desníveis de
da minúcia e da totalidade dos atos do neurotransmissores. Assim, são individuali-
corpo e da vida, concomitantemente, em zados e pensados como tendências sinto-
espaços abertos e fechados ou, sobretudo, máticas. Na perspectiva da modulação neu-
no fluxo entre ambos, conforme demandado roquímica, a vida e os corpos estão sendo

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amplamente farmacologizados, produzindo mente designados de salvação da saúde


indivíduos que demandam a medicação como valor de mercado e de disputa liberal,
como terapêutica associada às técnicas de em um capitalismo neoliberal de concorrên-
controle disciplinar, em geral, de aprendiza- cia (Foucault, 2008).
gem comportamental. Em Os anormais, Fou-
cault (2002) ressalta que a biografia dos des- O autor antevia que a Medicina aumentaria
viantes e dos chamados indivíduos de sucesso seu prestígio na aliança com os Estados Mo-
passou a ser usada para realização de um dernos, mas que não ficaria reduzida a ele
controle normalizador dos corpos, em que como racionalidade governamental, conforme
qualquer afastamento de modelos idealizados acompanhamos na mobilização das empresas
como normais se tornou enquadrado em farmacêuticas como tecnologias de medica-
psicodiagnósticos médico-psicológicos pro- lização, o que traz consigo uma forte presença
dutores de carimbos de doença e medicali- das pressões mercadológicas e a colocação
zação da subversão política. em cena de formas de subjetivação pautadas
por princípios ativos das substâncias prescritas.
A Medicina, desde o século XIX, penetrou na Os dispositivos de farmacologização operam
sociedade atuando na constituição de um nos corpos como estratégias de controle le-
olhar que produz a doença como transtorno, gitimadas política e socialmente, por estarem
articuladamente ao campo das decisões polí- acopladas aos modos de subjetivação (Ignácio
ticas de saúde, baseadas em um intenso pro- & Nardi, 2007; Lopes, 2004).
cesso de medicalização. Foucault (1979) su-
blinhou que a Medicina Social foi se tornando Foucault (2004), ao tratar da ordem do dis-
mais higienista do que terapêutica, porque curso, salienta que uma disciplina e seu ob-
tem objetivado mais organizar e fazer funcionar jeto, suas técnicas e seus conceitos, lugares
a ordem social do que cuidar de alguém que institucionais, sistemas de difusão e socieda-
apresenta um mal-estar e demanda um espaço des formam um dispositivo de poder e de
de problematização de si. Nos seus desen- saber. Alerta seus leitores a respeito de que
volvimentos contemporâneos, ao controle so- o dispositivo é um efeito de forças heterogê-
cial médico é adicionado o consumismo dos neas as quais constituem uma ordem do dis-
dispositivos farmacológicos. curso, e que este é um efeito de paradoxo,
já que o princípio arqueológico da dispersão,
Foucault (1979) já apontava que a inserção da rarefação, da desdisciplinarização dos sa-
do Estado no campo da Saúde socializou beres e da insurreição dos saberes, na ge-
não só a Medicina, como também o corpo, nealogia, põe em xeque a suposta unidade
que passa a ser visto como uma realidade que muitos desejam atribuir a um campo de
biopolítica. Saúde e Medicina transforma- práticas. O status de fala e do lugar de poder
ram-se em estratégias de economia, gastos em que se fala e em que se prescreve com
são destinados a uma série de medidas sani- legitimidade está ligado a um conjunto de
tárias. Ainda que a promoção de saúde seja práticas relacionadas e distintas, que foram
alvo central do Estado, não se trata das con- arbitrariamente interligadas. Tais procedi-
sequências da falta de saúde, mas dos custos mentos não são naturais e, no caso da Me-
relacionados à saúde-doença. Acompanha- dicina, estão vinculados aos agentes institu-
mos a ampliação do que Foucault (1979) no- cionais e técnicos, aos temas e lugares em
meou de higiene da cidade e dos trabalha- que se autoriza alguém a falar de e a indicar
dores, na sociedade, em uma combinação práticas, aos mecanismos de controle social
de práticas vizinhas de governamentalidade dos meios médicos tecnológicos, especial-
do Estado pelos mecanismos pastorais igual- mente dos medicamentos e das cirurgias.

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Atentando para a crescente expansão da (Fluoxetina), em 1988, desencadeou maior


medicalização na vida das pessoas, por meio interesse e respeito sobre os psicofármacos
da inserção na prática e nos discursos coti- e os considerados bons resultados em seu
dianos sobre fármacos, Lopes (2004) explicita uso no tratamento de supostas doenças men-
que, paralelamente à medicalização, desen- tais. Outros fármacos apareceram e mais
volve-se atualmente o processo de farmaco- pesquisas fortaleceram a ideia de que os
logização em consequência da crescente ex- transtornos psíquicos são doenças com etio-
pansão da medicalização na vida das pessoas. logia biológica, explicadas por alterações
Farmacologização é um acontecimento em químicas e tratadas quimicamente (Bogochvol,
que os medicamentos são dominantes nas 1995 citado por Perecy & Oliveira, 2010). A
opções terapêuticas, ou seja, a gestão do instrumentalização da psicofarmacologia
corpo e da saúde tornou-se problema far- como tratamento foi promovida sob a égide
macológico e não mais médico. Expectativas da Psiquiatria estadunidense, particularmente
de cura e/ou alívio recaem sobre os medica- pela popularização das últimas edições
mentos. Para Lopes (2007), o recurso aos dos Diagnostic and Statistical Manual of
fármacos constitui a primeira opção das pes- Mental Disorders (DSM) e da International
soas na gestão da vida e das problemáticas Classification of Diseases (CID). Nesses ma-
que são fabricadas no decorrer do lidar coti- nuais que regem a prática clínica, o sintoma
diano com os inesperados, trágicos e frustra- é a própria doença ou, mais propriamente,
ções que possam ocorrer. o chamado transtorno mental, apoiando-se
em um substrato supostamente evidente e
Assim, silencia-se uma série de demandas inquestionável.
em jogo por meio da medicalização e da
farmacologização da existência. Os efeitos Produz-se um jogo de capturas nas prescri-
de iatrogenia são diversos, inúmeros proble- ções dos manuais médicos, nutricionais,
mas colaterais advindos do uso indiscriminado psicológicos e educativos direcionados a
dos medicamentos e da lógica que os sustenta. melhorar a saúde e mantê-la, aumentar a
Desse modo, é fundamental criar redes de longevidade e não adoecer, continuar vigo-
resistência e de crítica política a essas práticas. rosos e jovens. Ora, Foucault (2008) enfatiza
que o mercado da vida se baseia na constru-
Nosopolítica, biopolítica ção desta como um valor a ampliar e a zelar,
e gestão da vida na a gerir e a intensificar politicamente por um
conjunto de governamentalidades e pasto-
medicalização e na rais administrativas, médicas, psicológicas,
farmacologização das pedagógicas, demográficas, estatísticas, geo-
existências gráficas, econômicas, sociais e culturais. O
mesmo se estende à produção de uma
Está em jogo uma nosopolítica, como nos suposta necessidade de articulação de vários
indicou Foucault (1979), em concomitância saberes, visando a formar uma rede de cui-
com a polícia disciplinar das condutas admi- dado densa, diversificada e dita efetiva na
nistradas pelos saberes e poderes da norma oferta, promoção e tratamento em saúde
e do exame, que nos recomendam prescrições (Staub & Hoch, 2012).
de bem-estar, em todo um amplo espectro
de incitações de um suposto viver saudável, Ao analisar o neoliberalismo, Foucault (2008)
produtivo, dócil e de disposição, a extrair aponta como a sociedade civil e Estado estão
cada vez mais potência do corpo e de suas interligados e formam composições múltiplas,
capacidades. O surgimento do Prozac® híbridas - racionalidades que resultam de

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jogos permanentes e que não configuram por manuais, não fazem mais que reproduzir
entidades unitárias. No âmbito das governa- sub-repticiamente uma definição tautológica,
mentalidades neoliberais, a preconização do na qual a doença mental é definida por
tratamento farmacológico é uma das conse- força de sua transgressão da ordem pública
quências da privatização do sofrimento, do hegemônica.
seu emudecimento, da sua transformação
em um conjunto de sintomas que implica O dispositivo de farmacologização arrastado
em prescrições de tratamentos bioquímicos, por uma noção de ciência baseada em “evi-
psicológicos os mais variados, de exercícios dências” ocasiona um crescente esforço de
físicos e relacionais, de dietas e estéticas classificação e catalogação das formas de
corporais normalizantes, em um intenso mer- vida e suas variações, por meio de referentes
cado da saúde. universais. Esses universais assumem uma
conotação normativa no interior das práticas
É um mercado que se apoia na defesa de disciplinares e de governo e uma variação
que o sofrimento e a dor provocam prejuízos deixa de ser uma mera variação, para se
e diminuem os prazeres, impedem oportu- tornar um déficit ou um exagero, em relação
nidades, forjam danos e custam caro para o a um parâmetro implícito de normalidade.
indivíduo, para sua família, para a sociedade São universais que, configurados como sín-
e para o Estado, em termos econômicos, so- dromes e sintomas, permitem uma margem
ciais e securitários. São farmacologizadas in- de imprecisão suficiente para que seja posta
cessantemente novas esferas da vida e seg- em ação a normalização traduzida nos diag-
mentos da população, tendo em vista a ma- nósticos diferenciais realizados sob o olhar
nutenção da ordem entre as pessoas consi- da clínica psiquiátrica.
deradas perigosas e o aumento da capacidade
laboral ou cognitiva entre aquelas julgadas A noção de doença mental, que veio a subs-
potencialmente úteis. Não se faz mais do tituir a imprecisa impressão da noção de
que reproduzir sub-repticiamente uma defi- loucura, data do século XIX, resultando da
nição tautológica, na qual doença mental é aliança entre a materialidade da doença/sin-
conceituada por força de sua transgressão toma e da imaterialidade do domínio que
da ordem pública hegemônica. passa a constituir a dimensão mental. Em A
História da Loucura, acompanhamos como
O entrecruzamento da Química e da Medi- a doença mental obscurece e carrega consigo
cina, ciências que dão base à Farmacologia, uma rede heterogênea de práticas de controle,
ocorreu bem antes do surgimento desta forjando, também, um modo de subjetivação
última como campo de saber determinado, voltada ao espaço interior (Foucault, 1978).
havendo emergido das preocupações com a Ora, com a entrada em cena do dispositivo
qualidade do ar nas cidades (Foucault, 1977). de farmacologização, há um esmaecimento
Tal cumplicidade atinge seu grau máximo do espaço interior, conduzindo a novas
de determinação na noção de “evidência”, formas de subjetivação nas quais a química,
constituindo hoje o fundamento do prag- o cérebro e as neurociências – impulsionados
matismo terapêutico. Por isso, as categorias pelas empresas farmacêuticas – adquirem
com as quais definimos a doença mental, proeminência, criando selves neuroquímicos
que aparenta ser positivamente conceituada (Rose, 2007).

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A escrita de Souza Leão, quebrar a falsa simetria entre os dois


termos. (Revel, 2006, pp. 22-23)
uma literatura de resistência
à farmacologização O escritor Rodrigo Souza Leão, nascido em
1965 no Rio de Janeiro, teve uma vida atra-
Foucault (1970) constata que a escrita literária vessada por internações psiquiátricas, ele-
posicionada como saber não conceitual, sem trochoques, ingestão de fármacos adminis-
qualificação, fragmentado e sem pretensão à trados em altas doses e pelo isolamento du-
verdade compõe um plano de experiência rante longos períodos no interior do seu
para resistências que em outras tramas não apartamento. Veio a falecer na última das
são possíveis. A experiência literária ao ser suas internações, aos dois dias de julho de
tolerada, ou simplesmente ignorada, pelas 2009, constando do atestado de óbito a
tramas de saber-poder medicalizantes, constitui morte por complicações cardíacas. Apesar
um plano de experimentação e de resistências das internações e dos longos períodos de
que materializa práticas de liberdade. isolamento, o artista manteve contato com
outros escritores, colaborações em revistas
É no interstício entre a resistência tornada eletrônicas, sendo um importante articulador
possível e sua não pretensão à verdade que a cultural. Dedicou-se intensamente à atividade
escrita literária de Rodrigo Souza Leão é literária, publicando dez livros: 25 Tábuas; No
capaz daquilo que poderíamos chamar de Litoral do Tempo; Síndrome; Impressões sob
práticas de liberdade. Não se trata, obviamente, Pressão Alta. Na Vesícula do Rock. Miragens
de uma liberdade desmedida e ilimitada, mas Póstumas; Meu Primeiro Livro que é o Se-
de uma transformação possível e sutil, uma gundo; Uma temporada nas Têmporas; O
pequena fuga ao discurso monolítico e apa- Bem e o Mal Divinos; Suorpicious Mind e
rentemente incontornável do poder psiquiátrico Omar. Seus poemas foram publicados nas
na medicalização das existências. revistas Coyote, Et Cetera, Poesia Sempre, El
Piez Naufrago, Oroboro. Manteve, ainda,
Nesse ponto, vale o alerta de Revel (2006) um blog intitulado LowCura no qual, durante
quanto à opção de Foucault, a partir da dé- cerca de três anos, publicou textos literários
cada de 1970, pela noção de resistência, ao entremeados à narração de incidentes coti-
invés de transgressão, para referir às práticas dianos e familiares.
de liberdades que operam no interior das
relações de poder que, também, delas se Entre diversos aspectos presentes na escrita
nutrem: de Rodrigo de Souza Leão, interessa-nos,
para os fins da discussão proposta neste
É preciso prestar atenção ao termo “trans- artigo, um recorte, certa parte de sua obra
gressão”, porque Foucault, que o toma
provavelmente de Bataille no início dos que tem em comum o fato de encenar uma
anos 1960, o abandona rapidamente – dissolução do vocabulário técnico totalizante
precisamente porque a relação entre o li- da medicalização psiquiátrica. O artista faz
mite e a transgressão do limite parece fe-
das marcas dos remédios que lhe são prescritos
char-se num círculo dialético. A partir dos
anos 1970, Foucault fala em revanche de e dos estados que lhe provocam os trata-
“resistência”, ele afirma que a resistência, mentos psiquiátricos invasivos, como os ele-
como prática da liberdade, se dá no trochoques, uma força de resistência que –
próprio interior das relações de poder (e
tramada com ironia, dor e festividade –
não fora do mesmo), e que, inversamente,
as relações de poder se nutrem da liberdade produz modos de relação com os fármacos
das pessoas, ele consegue, apesar de tudo, que recusam a ação subjetivante da medi-

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calização assentada na universalização da nho da rotina das receitas, das prescrições


experiência sob a insígnia diagnóstica e a fi- das bulas, das diferenças sociais nas drogas
nalidade curativa da anestesia. Por isso, afir- que ingerimos:
mamos que, mesmo ingerindo medicamentos,
prozac lexotam tomava
mesmo sofrendo eletrochoques, Rodrigo
isac piportil no haldol
Souza Leão, por meio da escrita literária, risperdal para riquinho
opera pequenos desvios nas finalidades es- gardenal para doido total
tratégicas do dispositivo de farmacologização assim amplictil polenta
assim foi o meu carnaval
das existências, desvios que podem ser im-
novalgina no pintinho
perceptíveis quando consideradas as alianças mertiolate corpo inteiro
biopolíticas que o engendram. pijama sem bolinhas
e um céu que poderia
Em Todos os cachorros são azuis, Rodrigo esconder qualquer estrela
a bula dos alquimistas
Souza Leão elabora uma narrativa híbrida os enfermeiros comemoram
de um paciente psiquiátrico que faz oscilar injetando morfina em ratos
as vozes da narração de primeira para terceira ratos que são sem ser cobaias
loucos sem camisa ao sol
pessoa, em que o narrador parece se dirigir
sob o sol muito haldol
ao seu duplo e a outras alteridades imaginárias, pipas no vento de haldoperidona
entre elas Rimbaud e Baudelaire. Em mo- galáxias cheias de endorfina
mento algum, o autor efetiva um pacto de dentro de mim toda a química
se vicia sem a si viciar.
leitura autobiográfico, nenhuma identidade
(Leão, 2001, p. 44)
entre Rodrigo e o narrador é afirmada, o
leitor é apenas convidado a um jogo no qual A escrita de Rodrigo Souza Leão traça uma
o autobiográfico se deixa entrever por certas resistência imprecisa e, quiçá, tão paradoxal
imagens que possuem ressonância na biografia como aquela que Foucault (1977) encontra
do autor, como o delírio de ter engolido um nos peregrinos que vão a Lurdes à procura de
chip. A narrativa de Todos os cachorros são milagres, uma resistência ao controle médico
azuis pode ser um fragmento de uma das in- autoritário dos seus corpos e vidas - o sujeitado
ternações de Rodrigo, mas pode ser também se insurge. No limite, é possível ler a obra de
a narrativa de qualquer paciente psiquiátrico. Leão como uma resistência à normalização
da vida modulada pelos psicofármacos. Em
Nos poemas do livro Janelas Deitadas (sín- nenhum momento se trata de uma apologia
drome), cuja temática central versa sobre do sofrimento, mas, certamente, de uma con-
as internações e os diferentes fármacos vivência com o trágico, na qual a arte de es-
que ingere como tratamento para o diag- crever está intimamente próxima da sua origem.
nóstico de esquizofrenia, os nomes dos Isto é, desse ruído inquietante que no fundo
medicamentos deixam de ser marcas re- da linguagem anuncia, logo que acre um
gistradas das corporações farmacêuticas e pouco o ouvido, aquilo contra o que se res-
se tornam nomes próprios, ícones de es- guarda e ao mesmo tempo a quem nos ende-
tados mentais, marcam carnavais, formam reçamos (Foucault, 1963, p. 52).
galáxias. São medicamentos, igualmente,
mas não apenas. São armas poéticas de Heloísa Buarque de Hollanda, crítica literária,
desobediência em um corpo atravessado ao buscar pistas para prefaciar o então re-
por dispositivos que visam a controlar qui- cém-lançado livro Nunca se injete tudo,
micamente, mas que redundam, em criação escrito por Rodrigo Leão, relatava a estranheza
e, em certo sentido, também em testemu- de que, mesmo tendo diante de si de um

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jornalista diplomado, poeta e artista este Vale destacar que a literatura se articula a outras
persistia a ser rotulado como esquizofrênico. modalidades de resistência à farmacologização
Partilhamos o estranhamento diante da da vida. Importantes ferramentas de crítica à
insígnia “esquizofrenia” atribuída como diag- medicalização vêm sendo organizadas em
nóstico e que obscurece a densidade poética movimentos sociais e por entidades, com des-
do artista. Fazemos nossas as palavras de taque para o Fórum sobre Medicalização da
Nietzsche (2000), no seu acerto de contas Educação e da Sociedade. Criado em 2010, o
com a dívida aos antigos, e situamos as ques- fórum articula entidades, acadêmicos, movi-
tões que o poeta coloca à farmacologização, mentos sociais, grupos de pesquisa, pessoas
no terreno impreciso e não diagnosticável físicas, usuários, das políticas públicas variadas e
do “dizer-sim à vida”. de seus familiares, conselhos profissionais, asso-
ciações e sindicatos. Esse fórum vem realizando
Concluindo provisoriamente debates e também tem participado de audiên-
cias públicas, feito pesquisas; organizando
A partir da analítica do acontecimento far- seminários e acompanhado a tramitação de
macologização e dos insumos sobre a obra projetos de lei municipais, estaduais e nacionais
de Rodrigo Souza Leão como prática de que versam sobre os temas das lutas que estão
resistência à farmacologização das existên- em jogo; é responsável por publicações, entre-
cias, situamos este texto enquanto vistas e pela difusão de saberes em diversas
emaranhado de linhas e de táticas móveis mídias que mostram como medicalização é um
prestes a formar agenciamentos com outros dispositivo vasto, articulado e descontínuo
textos e com outras estratégias estéticas e (Souza & Oliveira, 2013).
políticas. A composição de resistências
impõe um exercício ético infindo e uma luta Apesar das resistências, e nutrindo-se delas, as
política que pode até recuar em algum forças dos dispositivos de medicalização e farma-
momento, porém, sem desistência é instado cologizaçao são recompostas e novos desafios e
a permanecer nos entremeios e a ocupar impasses surgem por meio de contrapoderes.
espaços, de maneira que, no seu próprio tra- Essa dinâmica requer um movimento ininter-
jeto (mesmo o de aparente recuo), são rupto de problematização ético, estético e
forjadas as ferramentas de crítica e de ruptu- político que opere com alianças e estratégias em
ras com as práticas instituídas. um campo tenso e complexo da sociedade
atual. Isso passa por uma genealogia das resistên-
As insurgências não cessam de fazer vibrar e cias que expõe a fragilidade do dispositivo de
de metamorfosear-se como um camaleão farmacologização das existências cada vez mais
que se protege ao se metamorfosear, medicalizadas e, também, pela composição de
logrando fugir pelas bordas ao se agenciar de arquivos de práticas não conformistas de resis-
outros modos e a produzir passagens para tência à medicalização das existências. Arquivos
operar novos planos de composição. Vemos urdidos em um trabalho de pesquisa genealó-
na escrita de Rodrigo Souza Leão, uma prá- gico e capazes de acenar para práticas de
tica de liberdade que teve lugar, justamente, liberdade que não estão no exterior da medica-
por operar no plano da experiência literária lização, mas nas suas dobras, reentrâncias,
que, ao longo do século XX, passou a ser interstícios. Certamente, a escrita de Rodrigo
considerado inofensivo e facilmente captável Souza Leão e a literatura como experiência
pelas malhas diagnósticas e terapêuticas fazem parte desse arquivo a constituir e cujas
medicalizantes. fontes estão dispersas.

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Dolores Galindo
Doutora em Psicologia Social pela Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – SP.
Brasil. E-mail: dolorescristinagomesgalindo@gmail.com

Flávia Cristina Silveira Lemos


Doutora em História Cultural pela Universidade Estadual de São Paulo, São Paulo – SP.
Brasil. E-mail: flaviacslemos@gmail.com

Henrique de Oliveira Lee


Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Ho-
rizonte – Brasil. Docente da Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá – Brasil.
E-mail: holiveiralee@gmail.com

Renata Vilela Rodrigues


Mestranda do Programa de Pós-graduação Estudos de Cultura Contemporânea pela
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá – Brasil.

Endereço para envio de correspondência:

Universidade Federal de Mato Grosso, Departamento de Psicologia. Fernando Corrêa


da Costa, 2367. Boa Esperança. CEP: 78060900 - Cuiabá, MT – Brasil.

Recebido 26/03/2013, 1ª Reformulação: 10/11/2013, Aprovado 12/12/2013.

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