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EDITORA UNIVERSITÁRIA
Diretor
JOSÉ LUIZ DA SILVA
Vice-diretor
JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO
Supervisor de editoração
ALMIR CORREIA DE VASCONCELLOS JUNIOR
CONSELHO EDITORIAL
DA UNIVERSIDADE DA UFPB
Editora Universitária
João Pessoa
2010
Capa
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Direito
Editoração eletrônica
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Direito
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Foi feito depósito legal
Anual
Conselho Editorial
Profª. Drª. Paula Viturro (Universidade de Buenos Aires)
Profª. Drª. Berenice Bento (UFRN)
Prof. Dr. Eduardo Ramalho Rabenhorst (UFPB)
Profª. Drª. Samantha Buglione (Universidade do Vale do Itajaí)
Profª. Drª. Renata Rolim (UFPB)
Profª. Drª. Loreley Garcia (UFPB)
11
Editorial
É com enorme satisfação que apresentamos o número
inaugural da Revista Gênero & Direito, veículo de divulgação do
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito (NEPGED),
mantido pelo Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal
da Paraíba.
Criar uma revista acadêmica no momento em que as
próprias agências de fomento estão a discutir novos critérios de
classificação e de atribuição de conceitos aos periódicos já
existentes, é com certeza um enorme desafio. Entretanto, não havia
como fugir ao repto, visto que o NEPGED, conforme viemos a
descobrir logo após a sua criação, no ano de 2008, é o primeiro
núcleo de estudos e pesquisas sobre gênero e direito do Brasil
diretamente vinculado a um Centro de Ciências Jurídicas. Daí a
importância de elaboração de um canal de comunicação próprio,
provavelmente também pioneiro do ponto de vista de seu conteúdo.
Desde a sua fundação, o NEPGED não tem economizado
esforços para atender aos seus principais objetivos, sobretudo no
que concerne à realização de pesquisas e estudos, sempre a partir
de uma perspectiva interdisciplinar, em torno das abordagens
feministas do direito e da justiça, dos direitos humanos das
mulheres e dos grupos sexualmente discriminados, bem como das
complexas relações entre gênero, sexo e direito.
Visando cumprir as metas traçadas, estamos realizando
diversos cursos, oficinas e colóquios dos quais participam
importantes investigadores do Brasil e do exterior, e promovendo,
no âmbito da própria Universidade Federal da Paraíba, um
instigante diálogo com outros grupos de pesquisa que atuam na
área de gênero, especialmente o Grupo de Estudo de Gênero e
Sexualidade (Grupo Pandora) do Centro de Ciências Humanas e
Sociais. Esse frutífero intercâmbio, interno e externo, tem ensejado
uma rica troca de experiências e a produção de um material teórico
12
diversificado, que irá subsidiar o conteúdo de nossa revista,
somado, é claro, aos textos de autores especialmente convidados.
Estamos particularmente felizes com o lançamento deste
primeiro número de Gênero & Direito. E gostaríamos de agradecer
aos que tornaram possível a realização deste projeto. Afinal, o
caminho entre a ideia e sua realização foi árduo, e dificilmente ele
poderia ter sido trilhado sem o apoio de algumas pessoas e
instituições. Em primeiro lugar, somos gratos a Secretaria Especial
de Políticas Públicas Para as Mulheres, da Presidência da
República, que financiou a própria criação do NEPGED e o número
inaugural de sua revista através de Edital específico. Agradecemos
também ao Programa de Pós-graduação em Ciências Jurídicas da
UFPB por ter acolhido o NEPGED em suas linhas de pesquisa.
Temos também um débito muito particular para com a Professora
Paula Viturro, da Universidade de Buenos Aires, não apenas por ter
estimulado, com seu inigualável entusiasmo sobre o tema, a criação
deste periódico, mas principalmente por ter se empenhado
pessoalmente no contato com os autores e na sugestão de textos.
Agradecemos ainda a Valéria Fernandes Pereira, a mais
nova integrante do grupo. Sem a sua habilidade e disposição no
trato técnico dos textos, esta revista simplesmente não existiria. Da
mesma forma, devemos um agradecimento especial a Renata Rolim
pelo seu empenho junto à comissão editorial de Gênero & Direito.
Por fim, gostaríamos de agradecer aos que
incansavelmente formam o coração do nosso grupo: Danielle
Marinho Brasil, Gilmara Joane Macedo de Medeiros, Raquel Peixoto
do Amaral Camargo e Mateus Celino. Além de eficientes, eles
transformam as atividades do NEPGED, inclusive as mais tediosas,
em motivo de profunda alegria.
Eduardo Ramalho Rabenhorst
Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero
e Direito da UFPB
13
Sumário
“OCUPAR, RESISTIR E PRODUZIR”: REFLEXÕES ACERCA DA
PARTICIPAÇÃO DO MOVIMENTO FEMINISTA NAS INDÚSTRIAS
CULTURAIS EM PERNAMBUCO
Ana Maria da Conceição Veloso e Edgard Rebouça.........................................11
FEMINISMO E DIREITO
Eduardo Ramalho Rabenhorst........................................................................109
14
Artigos
“OCUPAR, RESISTIR E PRODUZIR”1:
REFLEXÕES ACERCA DA PARTICIPAÇÃO DO
MOVIMENTO FEMINISTA NAS INDÚSTRIAS
CULTURAIS EM PERNAMBUCO
* *
Ana Maria da Conceição Veloso e Edgard Rebouças
1
Máxima amplamente usada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra
(MST) durante os levantes em torno da ocupação de propriedades (latifúndios)
consideradas improdutivas pelos trabalhadores rurais.
*
Jornalista, mestre em comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), professora do curso de Jornalismo da Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP), doutoranda em comunicação do PPGCOM da
Universidade Federal de Pernambuco/UFPE, sob orientação do professor Dr.
Edgard Rebouças, e colaboradora da ONG Feminista Centro das Mulheres do
Cabo, localizada em Pernambuco, Brasil. E-mail: velosoanam@gmail.com.
*
Professor da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:
edreboucas.br@gmail.com.
15
Pernambuco. It resorts to the contributions of Political Economy
of the Communication and of feminism, schools that converse
with each other and that problematize the economical, material
and symbolical logics that underpin the media, also analysing the
power relations that implicate the women‘s underrepresentation
on that arena. In that ways, it discusses the resistance position
and the activism of the feminists from Pernambuco in the
communication.
Key words: Woman. Cultural industries. Participation.
Democratization. Pernambuco.
2
Trata-se de uma organização internacional que promove a comunicação como
fator de transformação social. A WACC realiza um projeto global de
monitoramento da mídia desde 1995, onde mapeia a representação de mulheres
e homens na imprensa do mundo inteiro. É o maior estudo sobre gênero no
noticiário de rádio, televisão e jornal já realizado.
3
As reportagens brasileiras entraram no estudo através de uma parceria da
WACC com a Universidade Metodista de São Paulo e a Rede Mulher de
Educação/SP.
16
do sexo feminino (25%) do que nas que foram elaboradas
por homens (20%).
A série de monitoramentos da WACC, desenvolvida
entre 1995 e 2005, revela que nem a propagada evolução
das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC‘s),
com a promessa de integração de todos/as na ―aldeia
global‖, nem a apropriação de técnicas de produção pelas
mulheres, nem as contestações feministas acerca da
posição das mulheres na mídia implicaram em uma
mudança significativa com relação às coberturas da
imprensa nos últimos anos. A presença das mulheres nas
reportagens aumentou três pontos percentuais na década.
Até em assuntos como a violência doméstica
praticada contra a população feminina, por exemplo, a voz
dos homens é a que prevalece: eles foram entrevistados
em 64% dos casos ao redor do globo. O levantamento
desvenda que 83% das fontes especializadas consultadas
pelas matérias que compuseram o corpus do estudo eram
do sexo masculino. Demonstra, ainda, que apenas 10%
das notícias mundiais evidenciam as mulheres como o
centro do acontecimento.
Um comparativo entre os dados colhidos pela
WACC e a participação das mulheres entre os/as
receptores/as dos produtos das mídias no Brasil demonstra
uma aparente contradição nesse processo, uma vez que
as brasileiras compõem uma fatia majoritária das
audiências da televisão (53%), do rádio (53%), das revistas
(55%) e representam 49% dos leitores de jornais no país4.
Entretanto, essa situação difere quando analisamos a
participação delas como produtoras de conteúdo e fontes
4
Informações do Grupo de Mídia de São Paulo. Perfil dos consumidores dos
meios: TV, Rádio Revista e Jornal. Mídia Dados, 1999.
17
de informação nas indústrias culturais. Portanto, o estudo
acerca desse fenômeno não pode ocorrer dissociado de
uma análise acurada da histórica posição de
subalternidade imposta socialmente às mulheres. Ao
refletir sobre os dados da pesquisa, resgatamos a
perspectiva de Eric George5:
5
GEORGE, Eric. Elementos de reflexão sobre a dimensão sociologia do ponto de
vista da economia política da comunicação e da teoria das indústrias culturais.
Revista de economia política de las tecnologias de la información y
comunicaçión, v.7, n. 5, may.-aug, 2005. Disponível
em:<http://www2.eptic.com.br/arquivos/Revistas/VII,n.2,2005/EricGeorge.pdf>.
Acesso em: 25 mar. 2008.
6
Informação do Grupo de Mídia do Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.midiarj.org.br/templates/grupodemidia2005/noticia/noticia.asp?cod_c
anal=21&cod_noticia=5827>. Acesso em: 24 set. 2008.
18
denunciam a reprodução do patriarcado7 e do machismo
nas redações de rádios, televisões, jornais e portais.
Revelam, ainda, que a cobertura da mídia, ainda
majoritariamente comandada por homens, em alguns
casos, implica na representação de estereótipos negativos
sobre as mulheres, imputando-lhes papéis sociais
depreciativos.
Para além de atuar junto às mídias independentes,
o movimento reconheceu que a inserção de propostas
voltadas a democratizar a comunicação deveria ser uma
prioridade na ação das ativistas nas conferências da
mulher realizadas no Brasil. Dessa forma, os relatórios
finais desses encontros transformaram-se, assim como em
Pequim/1995, quando ocorreu a primeira Conferência
Internacional da Mulher, em estratégias de resistência
diante da baixa participação feminina nesse lócus de
poder. A Plataforma Política Feminista8 apresenta
recomendações expressas nesse sentido.
7
Aqui, entendido como um sistema cultural e social de valores que reproduz a
dominação masculina sobre as mulheres.
8
Documento elaborado com as propostas apresentadas e discutidas por mais de
cinco mil mulheres e referendadas na I Conferência de Mulheres Brasileiras,
realizada pelo movimento feminista, em 2002, em Brasília, que reuniu cerca de
duas mil mulheres.
19
mulheres, que vêm tendo sua imagem
constantemente desrespeitada pela
9
mídia .
9
PLATAFORMA POLÍTICA FEMINISTA. Comissão Organizadora da Conferência
Nacional de Mulheres Brasileiras. Brasília, 2002, p. 53. Cf. art. 236.
20
conteúdos não-sexistas e não-
discriminatórios. É importante considerar
que há um número cada vez mais
expressivo de mulheres nas carreiras de
comunicação, ciências da computação e
informação, o mesmo não ocorrendo nos
postos de decisão nos sistema de mídia
brasileira. É fundamental que homens e
mulheres em postos de direção
incorporem perspectivas de respeito à
diversidade no cotidiano de seus
trabalhos, assegurando a produção de
conteúdos não-sexistas, não-racistas e
não-discriminatórios.
21
produção e veiculação de conteúdos nos campos do
audiovisual.
Notamos que as recomendações contidas no
documento lançam críticas aos sistemas econômicos e
políticos que exacerbam as desigualdades de gênero. Mas,
como ampliar a participação das mulheres em um país
onde menos de 10 grupos econômicos controlam os meios
de comunicação? Como o Estado deve atuar nesse
processo?
22
Uma análise mais aprofundada das
organizações dos media e da
comunicação é necessária para
estabelecer os mecanismos precisos da
propriedade e do controle corporativo,
mas, também para examinar as
tendências da comercialização,
integração e diversificação. Esta análise
observa, por vezes, estes
desenvolvimentos à luz de questões
como a criatividade cultural, a
diversidade a equidade, o acesso e os
ideais democráticos. (WASCO IN
SOUZA, 2006, p. 43).
23
O cenário brasileiro, reeditado em escala mundial,
contrasta com a defesa de que todas as pessoas têm
direito à comunicação. Um direito que não está restrito ao
acesso à informação. Vai além: trata da possibilidade de
qualquer cidadão (ã) produzir e divulgar conteúdos por
qualquer veículo, livre de fronteiras e de interdições
políticas ou econômicas. Essa vertente defende que a
comunicação não pode ser tratada como mercadoria e que
a liberdade de expressão não pode justificar a violação de
outros direitos humanos, nem ferir princípios éticos, como
enuncia Ignácio Ramonet (2003):
10
Mesmo sendo considerado um marco, o artigo 19 da Declaração tem sofrido
críticas de ativistas que, apesar de compreenderem que a liberdade de
24
documento recomenda a abertura de canais para que toda
a sociedade possa produzir informação e atuar no controle
social do que é exibido pela mídia.
Aportando nesse campo de batalha, as militantes
feministas entenderam que o desafio não consiste
unicamente na qualificação técnica das militantes nas
tecnologias da informação e comunicação, nem do
aprimoramento do discurso de suas porta-vozes para
incidir na esfera pública aberta pelos meios de
comunicação de massa. Elas denunciam a reprodução do
patriarcado e do machismo nas redações de rádios,
televisões, jornais e portais. Revelam que a cobertura da
mídia majoritariamente produzida por homens11, em alguns
casos, implica na representação de estereótipos negativos
sobre as mulheres, imputando-lhes papéis sociais
depreciativos, o que reflete a forte presença do patriarcado
em nossa sociedade, como Betânia Ávila (2001, p. 32.33)
põe em relevo:
25
contextos sociais e históricos. Portanto
ahistóricos (...) Reconhecer a existência
desse sistema de dominação, e fazer
conhecer os mecanismos de sua
reprodução em qualquer medida que
isso ainda aconteça é uma importante
contribuição do feminismo para a
democratização da vida social. Não levar
em conta a questão do patriarcado
coloca, por outro lado, um limite na
concepção e nas estratégias de luta por
igualdade.
26
compreender e analisar a ação das mulheres na mídia em
meio à interação entre o capitalismo e o patriarcado:
27
culturalmente determinadas, y sólo se
podrá encontrar la solución mediante la
introducción de cambios a largo plazo.
Sin embargo, los medios de
comunicación social disponen hasta
cierto punto de la facultad de estimular o
de retrasar tales cambios. (UNESCO,
1988, p.330-331).
28
tais relações. A Economia Política da
Comunicação desafia, principalmente,
o desenvolvimento dos media e da
comunicação, que debilita o
desenvolvimento de sociedades
equitativas e democráticas.
29
Mulher. Produzido pela ONG feminista Centro das
Mulheres do Cabo, desde 1997, o programa é veiculado
pelos 90,7 MHz da Farol FM, localizada em Catende, na
Zona da Mata Sul do Estado, atinge 70 municípios de
Pernambuco, Paraíba e Alagoas e tem 200 mil ouvintes
por exibição. A iniciativa é, ainda, reproduzida por
emissoras comunitárias no Cabo de Santo Agostinho,
tendo uma versão ao vivo, diariamente, pelos 98,5 MHz da
rádio Calheta FM.
Além disso, estão produzindo vt‘s e documentários
para televisão e rádio, campanhas publicitárias e
organizando projetos voltados a habilitar as mulheres para
dominar técnicas de produção das mídias e atuar de modo
crítico no cyberativismo, compreendido como uma tática
política e não como única possibilidade de democratizar a
comunicação. Sobre tal questão, Dominique Wolton (2006,
p. 84) chama atenção:
30
lembrar que transmitir não é comunicar.
A sociedade da informação é a fantasia
da sociedade em rede.
12
Organização que desenvolve projetos nas áreas de comunicação e direitos
humanos, inclusive para emissoras de rádio e televisão.
13
O Fórum de Mulheres de Pernambuco (FMPE) é uma articulação feminista
composta por 87 entidades que retratam a pluralidade do movimento de
mulheres no Estado.
31
proposta foi classificada, em 2009, pelo Ministério da
Cultura, como uma iniciativa de mídia livre no Brasil. Com
essa estratégia, o FMPE estimula as mulheres a alimentar
sites, blogs, boletins eletrônicos, programas de rádio, de
televisão e mídias radicais. Propicia, ainda, a comunicação
delas por meio de uma rede eletrônica denominada ―infos‖
e organiza suas militantes para a conquista de espaços
para divulgação das suas causas nas indústrias culturais.
32
educativa (96,7 MHz), emissora que tem sua programação
distribuída para toda a Região Metropolitana do Recife.
Em âmbito nacional, o movimento tem a criação do
portal Mídia Livre Feminista14 e a incorporação de
militantes de todo o país na Articulação Mulher e Mídia,
antes organizada apenas em São Paulo. As duas
articulações reúnem cerca de 150 ativistas brasileiras que
participaram do seminário nacional o Controle Social da
Imagem da Mulher na Mídia15, realizado em São Paulo, em
março de 2009. O evento recomendou a inserção das
feministas nas discussões acerca das concessões públicas
para rádio e televisão e a presença das mulheres nas
mobilizações em torno da realização da I Conferência
Nacional de Comunicação16 como principais estratégias
políticas em 2009.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
14
Que pode ser acessado pelo http://midiafeminista.ning.com/
15
A síntese dos debates do evento está em:
http://www.mulheremidia.org.br/site/apresentacao/
16
A I Conferência deverá acontecer entre 01 e 04 de dezembro, em Brasília, e
será precedida por versões do evento nos Estados e municípios brasileiros.
33
Se ha tendido a considerar y analizar de
manera aislada y fragmentaria el tema
de Mujeres y Media, como si tanto el
analisis de esta relación como la
respuesta y la formulación de
proposiciones encaminadas a modificarla
pudieran desarrolarse sin tomar en
consideración la totalidad social, es decir
el conjunto del sistema social en que
dicha relación encuentra sus
características y su dinámica proprias. La
necesidad de subrayar la articulación con
la totalidad social nos lleva, antes de
abordar el tema, a intentar definir de
manera general, y a muy grandes
rasgos, el papel que desempeña las
industrias culturales y el aparato de
comunicación y de cultura de masas con
el cual se vinculan en la sociedad, y, por
añadidura, a recordar muy someramente
el lugar y la función de la mujer en esta
misma sociedad.
34
de produção do conhecimento e de acessar mídias radicais
alternativas17 de modo a abalar a sólida estrutura do
patriarcado.
Compreendemos que é cada vez mais importante a
realização de pesquisas com a intenção de lançar pistas
para respostas a questões como: (1) Qual a relação entre
a sub-representação e as dimensões simbólicas, materiais
e econômicas que permeiam as lógicas de produção e
consumo das indústrias culturais? (2) Quais as estratégias
de produção de conteúdos das feministas em curso nas
mídias radicais? (3) Como os conteúdos produzidos pelas
feministas modificam a prática profissional de homens e
mulheres nas redações de rádio e televisão?
Portanto, para além de diagnosticar a ausência das
mulheres como sujeito coletivo nesse campo, é preciso
que os estudos sobre as práticas comunicativas adotadas
pelo movimento feminista busquem perceber a
reconfiguração do sentido e do espaço das mulheres nas
audiências em um mercado marcado pela difusão de
informações produzidas por poucas fontes. Nesse sentido,
é imprescindível investigar o lugar social ocupado pelos/as
consumidores/as dos bens simbólicos e adotar, como uma
das bases fundamentais para as análises, questões que
exponham o impacto da apropriação radical da
comunicação por sujeitos coletivos, entendida como
estratégia de incidência política na esfera pública.
Tomando a ocupação da mídia pelas ativistas
pernambucanas como um fenômeno, observamos uma
tática política ancorada em uma comunicação posicionada
17
Aqui entendidas como forma de resistir e ter voz diante do poderio dos
gigantes da comunicação mundial.
35
para conquistar a simpatia e adesão da opinião pública
para causas como enfrentamento à violência contra a
mulher, livre vivência dos direitos reprodutivos e sexuais,
igualdade de oportunidades e salários no mercado,
denúncia do sexismo na mídia, entre outras. Nesse
sentido, a pluralidade de vozes das feministas organizadas
salta aos olhos durante passeatas, manifestações de rua e
debates nas universidades. Invade a mídia durante a
cobertura dos atos públicos e reverbera os
posicionamentos do movimento nos diversos espaços
apropriados pelas ativistas. É perceptível a utilização de
slogans e outras ferramentas de contato direto e visual
com a população.
A política feminista em Pernambuco, articulada de
modo radical e lançando mão da comunicação, traz novas
atrizes para o diálogo com a sociedade. Elas entram na
disputa, através do discurso, por uma posição de fala
reconhecida quer seja na interlocução com o Estado, quer
nos embates oportunizados pelo rádio, pela televisão,
pelos jornais e pelos sites da internet. Dessa forma,
notamos que o feminismo concluiu que a desnaturalização
nas relações desiguais de poder entre homens e mulheres,
que permeiam o acesso e a permanência delas no status
de sujeito político nessa esfera pública, também decorre da
capacidade do próprio movimento em habilitar suas
militantes para ―ocupar, resistir e produzir‖ no campo das
indústrias culturais.
36
REFERÊNCIAS
37
RIORDAN,Ellen. The woman Warrior: A feminist political economic analysis of
crouching Tiger hidden dragon. In: ROSS, Karen and BYERLY, Carolin M.
Women and media. International perspectives. USA: Blackwell Publisshing, p.81-
103, 2004.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Perseu
Abramo, 2004.
UNESCO. Un solo mundo, voces múltiples: comunicación e información en
nuestro tiempo. 2 ed. Barcelona, Espanha, 1988.
WASCO. Estudando a Economia Política dos Media e da Informação. In: SOUZA,
Helena (org), Comunicação, Economia e Poder. Portugal:Porto, p. 29-53, 2006.
WOLTON, Dominique. É preciso salvar a comunicação. São Paulo: Paulus, 2006.
38
A RESPOSTA LEGISLATIVA À VIOLÊNCIA
CONTRA AS MULHERES NO BRASIL18
*
Leila Linhares Barsted
Abstract: This article points out the effort from the social
movements and women‘s organizations on the proposition of
laws that complete feminine citizenship, overcoming traditional
discrimination and moving forward in the conquest of new rights,
mainly undertaken since the country‘s redemocratization process.
That effort meant a continuous exchange with the State,
particularly with the legislative. It points out, also, the participation
of the feminists in the making of the Federal Constitution 1988,
the role of the international legislative production, established on
Conventions, Treaties, Action Plans and Declarations, ratified by
18
Esse texto, agora atualizado, foi originalmente publicado com o titulo O
Avanço Legislativo no enfrentamento da violência contra as mulheres, in
Leocádio, Elcylene e Libardoni, Marlene - O Desafio de construir Redes de
Atenção às Mulheres em situação de violência, AGENDE, Brasília.2006, pág.
66:89.
*
Advogada, Coordenadora Executiva da Ong CEPIA, Membro do Comitê de
Especialistas da OEA para acompanhar a implementação da Convenção de
Belém do Pará – MESECVI, Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros –
IAB, Rio de Janeiro, Brasil. barsted@cepia.org.br
39
the Brazilian State, as well as the changes on the Brazilian
criminal law occurred in the last decade, particularly with the
entry into force of the Maria da Penha Act.
A ESPERANÇA
40
complexa a compreensão da nossa sociedade e do próprio
Estado brasileiro e suas instituições. Em tese, políticas
públicas implicam a geração de um conjunto de medidas
que pressupõem certa permanência, coerência e
articulação dos distintos poderes e esferas de governo.
Tais condições implicam, principalmente, vontade política e
pressão social. Por outro lado, sua operacionalização
esbarra em inúmeros obstáculos, incluindo as
descontinuidades administrativas que transformam as
políticas públicas de Estado em políticas públicas de
governo19.
Os movimentos de mulheres compreenderam que
um elemento fundamental na demanda por políticas
públicas sociais é a sua formalização legislativa,
declarando direitos e criando a obrigação do Estado de
garanti-los e implementá-los. Nesse sentido, a
compreensão da importância do processo legislativo levou
o movimento feminista no Brasil, desde sua constituição na
década de 1970, a desenvolver sua capacidade de
estabelecer diálogo com o Poder Legislativo, e também
com o Poder Executivo, na propositura de leis que
completassem a cidadania feminina tolhida, legalmente,
em grande parte, pelas disposições do Código Civil de
1916 (Barsted e Garcez, 1999).20
Com a descompressão política e, em seguida, com
o processo de redemocratização do País, as mulheres
como atores sociais ampliaram sua interlocução com o
Estado, em especial com o Poder Executivo, mas
continuaram a privilegiar a relação com o Poder
19
Ver a esse respeito, BARSTED, Leila Linhares (1994).
20
Cf. BARSTED, Leila Linhares; GARCEZ, Elizabeth (1999).
41
Legislativo, especialmente no processo constituinte, por
meio do importante apoio e incentivo do recém-criado
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher21.
21
A esse respeito ver PITANGUY, Jacqueline (1990).
22
Exceção à manutenção da limitação de direitos trabalhistas às trabalhadoras
domésticas.
42
ofensa à dignidade humana e instaram os Estados-Partes
a assumirem compromissos voltados para a sua
eliminação.
Em 1992, a Assembléia Geral das Nações Unidas
aprovou a Resolução n. 19 sobre a violência contra a
mulher que, expressamente, dispõe que a definição de
discriminação contra a mulher, prevista no artigo 1º da
Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher, incluiu a violência baseada
no sexo, isto é, aquela ―violência dirigida contra a mulher
porque é mulher ou que a afeta de forma
desproporcional‖23. Nesse sentido, estabelece que essa
Convenção aplica-se à violência perpetrada por agentes
públicos ou privados.
Ainda em 1993, em resposta às denúncias dos
movimentos de mulheres em todo o mundo, a Assembléia
Geral das Nações Unidas aprovou, por meio da Resolução
48/104, a Declaração sobre a Eliminação da Violência
contra as Mulheres, que se constitui em um marco na
doutrina jurídica internacional.
Em 1994, essa Declaração subsidiou, com seus
princípios e orientações, a elaboração, pela Organização
dos Estados Americanos, da Convenção Para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres
(Convenção de Belém do Pará), único instrumento
internacional voltado para tratar a violência de gênero,
assinada naquele mesmo ano pelo Estado Brasileiro e que,
ratificando a Declaração de Viena, definiu a violência
contra as mulheres como qualquer ação ou conduta
baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento
23
Nações Unidas (1992).
43
físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito
público como no privado24. Essa Convenção da OEA
reconhece que
24
OEA. www.oas.org/36AG/portuguese/doc_Res/2162.doc
25
OEA - www.oas.org/36AG/portuguese/doc_Res/2162.doc.
26
Nações Unidas, Comité para la Eliminación de la Discriminación contra la
Mujer, Recomendación General 19, Violencia contra las Mujeres (1992).
www.un.org/womenwatch/daw/cedaw Em 1999, foi adotado o Protocolo Opcional
à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
44
reforçada pela Resolução n. 19 da ONU, como toda
distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que
tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o
reconhecimento, gozo ou exercício, pela mulher,
independentemente de seu estado civil, com base na
igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e
liberdades fundamentais no campo político, econômico,
social, cultural e civil ou em qualquer outro campo
45
de medidas capazes de erradicar essas violações de
direitos humanos nos espaços público e privado, através
de políticas públicas que comportem, inclusive,
mecanismos capazes de dar visibilidade e mensurar os
avanços verificados.
Reconhecendo a persistência da violência contra as
mulheres e meninas, as Conferências Internacionais da
década de 1990, incluindo a Conferência de Direitos
Humanos, realizada em Viena, em 1993, a População e
Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, a IV
Conferência Mundial da Mulher, realizada em Pequim, em
1995, transmitiram, em suas Declarações e Planos de
Ação, a preocupação com a segurança das mulheres e a
necessidade de os Estados-Partes da ONU inserirem em
suas agendas nacionais a eqüidade de gênero e de
raça/etnia, bem como políticas voltadas para a
problemática da violência contra as mulheres e meninas.
Nesses Planos de Ação, por influência dos movimentos
internacionais de mulheres, a inclusão do tema da
violência deu visibilidade às suas conseqüências para a
saúde sexual e reprodutiva, bem como ao seu efeito de
aprofundar a discriminação contra as mulheres. Nessas
Conferências, os Estados-Partes assumiram o
compromisso de envidar esforços para a eliminação dessa
violência praticada por agentes públicos e privados.
Em dezembro de 1997, a Assembléia das Nações
Unidas adotou a Resolução 52/86, conclamando os
Estados-Partes a revisarem suas leis e práticas nas
esferas criminal e social, de forma a atender melhor às
necessidades das mulheres e lhes assegurar tratamento
justo no sistema de justiça. Essa Resolução inclui um
Anexo sobre Modelos de Estratégias e Medidas Práticas
46
sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres no
Campo da Prevenção de Crimes e da Justiça Criminal.
Em grande medida, por força da Constituição
Federal Brasileira de 1988 e dos Tratados e Convenções
internacionais ratificados pelo Estado Brasileiro, toda a
parte sobre o direito de família do Código Civil de 1916 foi
revogada. Em 2002, o novo Código Civil recepcionou a
Constituição Federal, igualando homens e mulheres em
direitos e obrigações.
No que se refere à violência, a Constituição de
1988, adiantando-se à Convenção de Belém do Pará,
incluiu o parágrafo 8o ao artigo 226, que trata da família.
Esse parágrafo, escrito por orientação do movimento de
mulheres, garante que: ―O Estado assegurará a assistência
à família na pessoa de cada um dos que a integram,
criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de
suas relações‖.
No Brasil, até 2004, não havia na legislação penal
previsão de crime de violência doméstica. O Código Penal,
de 1940, considerava tão-somente, em seu artigo 61, como
circunstâncias agravantes da pena o fato de o crime ter
sido cometido contra ascendente, descendente, irmãos ou
cônjuges (inciso II, letra e); com abuso de autoridade ou
prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou
de hospitalidade (inciso II, letra f) e contra criança, velho,
enfermo ou mulher grávida (inciso II, letra h). Na parte
referente aos crimes contra os costumes28, onde estão
tipificados os crimes sexuais, incluindo o estupro (art.
28
Ver, adiante, as modificações introduzidas nesse capítulo do Código Penal
pela Lei 11.106/2005.
47
213)29, o Código determinava, no artigo 226, inciso II, que
a pena é aumentada de quarta parte: ―se o agente é
ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão, tutor ou curador,
preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro
tipo que tem autoridade sobre ela‖. Em 1989 e em 1990,
diversas constituições estaduais e leis orgânicas
municipais incluíram dentre seus dispositivos preceitos que
repudiam a violência contra as mulheres, em especial a
violência doméstica e que prevêem a criação de serviços
de proteção a mulheres vítimas de violência.
Na década de 1990, importantes alterações
legislativas deram seguimento ao texto constitucional em
relação à igualdade de homens e mulheres na vida pública
e na vida privada.
Em 1994, o Estado brasileiro, por meio do Decreto
Legislativo 26, de 23/6/1994, retirou as reservas à
Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher, ratificando-a plenamente.
Nesse mesmo ano, o Decreto Legislativo 107, de 1/9/1995,
aprovou o texto da Convenção Interamericana Para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as mulheres
(Convenção de Belém do Pará), tornando-a igualmente lei
interna.
Ainda em 1994, a Lei 8.930, de 6/9/1994, incluiu o
estupro entre os crimes hediondos, considerados
inafiançáveis.
A Lei 9.029, de 13/4/1995, passou a considerar
crime a exigência de atestado de esterilização e de teste
de gravidez para efeitos de admissão ou permanência em
emprego. A Lei 9.046, de 18/6/1995, determinou que os
29
Ver a recente modificação, em agosto de 2009, do Código Penal em relação
aos chamados ―crimes contra os costumes‖.
48
estabelecimentos penais destinados às mulheres fossem
dotados de berçários, onde as condenadas pudessem
amamentar seus filhos, conforme já garantido pela
Constituição Federal.
A Lei 9.318, de 5/12/1996, alterou o artigo 61 do
Código Penal, que trata das circunstâncias agravantes de
um crime, acrescentando à alínea h a expressão ―mulher
grávida‖. Ainda em 1996, a Lei 9.281 revogou o parágrafo
único relativo aos artigos 213 e 214 do Código Penal
(estupro e atentado violento ao pudor), aumentando as
penas para esses delitos.
A Lei 9.520, de 27/11/1997, revogou dispositivos
processuais penais que impediam que a mulher casada
exercesse o direito de queixa criminal sem o
consentimento do marido. Também em 1997, por meio da
Lei 9.455, a violência psicológica foi tipificada dentre os
crimes de tortura. Essa Lei considera tortura, dentre outras
formas de ação, ―submeter alguém, sob sua guarda, poder
ou autoridade, com emprego de violência ou grave
ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma
de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter
preventivo‖. A pena é aumentada, se o crime for cometido
contra criança, gestante, deficiente e adolescente; por
agente público; ou mediante seqüestro.
Em 3 de dezembro de 1998, por meio do Decreto
Legislativo 89, o Congresso Nacional aprovou a solicitação
de reconhecimento da competência obrigatória da Corte
Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos
relativos à interpretação ou aplicação da Convenção
Americana de Direitos Humanos.
Ainda em 1998, o Ministério da Saúde elaborou a
Norma Técnica para Prevenção e Tratamento dos
49
Agravantes Resultantes da Violência Sexual contra
Mulheres e Adolescentes, que também regulamenta o
artigo 128, inciso II, do Código Penal, que trata do aborto
legal (gravidez resultante de estupro).
Em 1999, pela Lei 9.807, vítimas de violência e
testemunhas ameaçadas, homens e mulheres, passaram a
ter proteção e auxílio legais. Também em 1999, com a
Portaria do Ministro da Justiça, foi criado um Comitê
Técnico ―[…] para elaborar projeto de lei com o objetivo de
ampliar os mecanismos de defesa e proteção dos que
constituem o núcleo familiar e rever a legislações civil e
penal, visando expurgar as discriminações que, por
ventura, ainda nelas se encontrem‖30.
A Lei 10.224, de maio de 2001, alterou o Código
Penal para dispor sobre o assédio sexual. Definiu como
crime (art.216-A) constranger alguém com intuito de obter
vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o
agente da sua condição de superior hierárquico ou
ascendência inerente ao exercício de emprego, cargo ou
função.
Em novembro de 2003, a Lei 10.778 estabeleceu a
notificação compulsória, em todo o território nacional, no
caso de violência contra as mulheres que forem atendidas
nos serviços de saúde, públicos ou privados. Essa Lei
adotou a definição de violência contra as mulheres contida
na Convenção de Belém do Pará. Em seu artigo 3º,
declara que a notificação compulsória tem caráter sigiloso,
obrigando, nesse sentido, as autoridades sanitárias que a
tenham recebido.
30
Ver www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS66E64764PTBRIE
50
A partir de 2004, a Lei 10.886 reconheceu o tipo
penal ―violência doméstica‖, alterando a redação do artigo
129 do Código Penal, que trata da lesão corporal, para
incluir os parágrafos 9º e 10º com a seguinte redação:
31
Esses parágrafos referem-se às diferentes conseqüências da lesão corporal,
desde a que causa incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30
dias (parágrafo 1) até aquelas seguidas de morte (parágrafo 3).
51
expressão discriminatória. Da mesma forma, o adultério,
culturalmente utilizado como argumento contra as
mulheres32, deixou de ser considerado como crime, tendo
sido revogado o artigo 240 do Código Penal.
Essa Lei introduziu outras alterações no Código
Penal. Assim, o artigo 128 do Código, que trata do
seqüestro e do cárcere privado, teve ampliados os incisos
do seu parágrafo 1º, que trata da punição mais grave para
esses crimes. Foi alterada a redação do artigo 215, que
trata da posse sexual mediante fraude, e a do artigo 216,
que trata do atentado ao pudor mediante fraude, retirando-
se o qualificativo de ―honesta‖ na caracterização da vítima
mulher.
A nova redação do artigo 226 do Código Penal, que
trata de situações que aumentam a pena, passa a incluir
outros agentes, tais como madrasta, tio, cônjuge,
companheiro, não previstos até então. Por essa nova
redação fica definitivamente caracterizada a situação de
estupro marital ou cometido por companheiro.
O artigo 231, que tratava do tráfico de mulheres,
mudou sua redação para tratar do tráfico internacional de
pessoas, podendo, portanto, ter como vítimas homens e
mulheres. Além disso, o Código foi acrescido do artigo
231-A, que trata do tráfico interno de pessoas, compondo o
Capítulo V do Título I do Código Penal, que, denominado,
originalmente, Dos Crimes contra os Costumes, foi
transformado em Do Lenocínio e do Tráfico de Pessoas.
As importantes alterações introduzidas no Código
Penal não incluíram, no entanto, a descriminalização do
aborto ou mesmo a ampliação dos permissivos legais para
32
A esse respeito ver Hermann, Jacqueline; Barsted, Leila Linhares (1995).
52
a interrupção voluntária da gravidez, além dos elencados
no artigo 128, II, do Código Penal, apesar de o Estado
brasileiro ter assinado os Planos de Ação das
Conferências realizadas no Cairo, em 1994, e em Pequim,
em 1995, que recomendaram, para países que ainda
punem a prática do aborto, o abrandamento da
punibilidade, por considerar a interrupção voluntária da
gravidez como um problema de saúde pública.
33
Ver SPM - VI Relatório Nacional Brasileiro - CEDAW/ONU, Secretaria Especial
de Políticas para as Mulheres, Brasília, 2008. Esta publicação contém
documentos sobre o processo de avaliação do VI Relatório Periódico do Brasil
ao Comitê da Convenção pela Eliminação de todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres — CEDAW/Organizações das Nações Unidas - ONU.
Período 2001-2005.
53
de relações domésticas e familiares – as lesões corporais
e as ameaças.
Pela Lei 9.099/95 foram instituídos os Juizados
Criminais para julgar delitos considerados de menor
potencial ofensivo tendo como critério para tal definição a
pena máxima não superior a dois anos. Por essa lei, o
crime de lesão corporal de natureza leve, tipificado no
Código Penal, no artigo 129 caput, e o crime de ameaça,
previsto no artigo 147, passaram a ser considerados
crimes de menor poder ofensivo34. Esses delitos perderam
também o caráter de crimes de ação pública (qualquer
pessoa pode denunciar) e foram transformados em crimes
de ação pública condicionada à representação da vítima.
Isto significa que a ação penal só tem início a partir de
denúncia da própria vítima contra o acusado. Além disso,
pela Lei 9.099/95, as Delegacias de Polícia preenchiam
somente o Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO),
mas não realizavam, necessariamente, o inquérito policial,
e a mesma Lei 9.099/95 prevê a possibilidade de uma
conciliação entre vítima e agressor que, se realizada, põe
fim ao procedimento judicial. O autor dos crimes de pena
não superior a dois anos não perde a sua condição de
primário, e é proibida a sua identificação criminal.
De modo geral, teoricamente, a Lei 9.099/95
apresenta uma solução rápida para o conflito, permitindo a
sua composição sem a interferência punitiva do Estado, e
reforça a possibilidade de aplicação de penas alternativas
à prisão. Para muitos, representa um avanço em termos do
34
As lesões corporais e as ameaças contra as mulheres, provocadas por
pessoas de sua intimidade, em especial por cônjuge ou companheiro,
representam mais de 70% dos feitos recebidos pelos Juizados Criminais.
54
Direito Penal, considerando-se as partes como tendo o
mesmo poder para aceitar ou não a conciliação.
No entanto, levando-se em consideração a
natureza do conflito e a relação de poder presente nos
casos de violência doméstica, essa Lei acabava por
estimular a desistência das mulheres em processar seus
maridos ou companheiros agressores e, com isso,
estimulava, também, a idéia de impunidade presente nos
costumes e na prática que leva os homens a agredirem as
mulheres. Após dez anos da aprovação dessa Lei,
constatou-se que cerca de 70% dos casos que chegavam
aos Juizados Especiais Criminais envolviam situações de
violência doméstica contra as mulheres. Do conjunto
desses casos, a grande maioria terminava em
―conciliação‖, sem que o Ministério Público ou o Juiz deles
tomassem conhecimento e sem que as mulheres
encontrassem uma resposta qualificada do poder público à
violência sofrida.
Assim, em 2006, com a sanção Presidencial à Lei
11.340 (Lei Maria da Penha), que trata especificamente da
violência doméstica e familiar contra a mulher, inaugurou-
se um importante avanço legislativo e que cria uma política
nacional de enfrentamento a essa forma de violência. É de
grande importância conhecer o processo de elaboração
dessa Lei, fruto de um processo democrático e que, por
isso mesmo, deve ser analisada como um caso exemplar
bem-sucedido de articulação política entre a sociedade
civil/movimento de mulheres e os Poderes constituídos –
Executivo e Legislativo.
55
Esse processo, iniciado em fins de 2001,
formalizou-se em 200235 quando uma articulação feminista
de operadoras do direito36 constituiu-se especificamente
para contribuir com o debate sobre a violência doméstica
contra as mulheres com uma visão crítica do quanto a Lei
9.099/95 vinha contribuindo para a impunidade dos crimes
de lesão corporal e de ameaça, tipos penais mais
comumente praticados contra as mulheres. Ao longo do
primeiro semestre de 2002, essa articulação que,
posteriormente, passou a ser denominada de Consórcio de
ONGs, realizou uma série de reuniões para aprofundar a
reflexão sobre as respostas legais necessárias ao quadro
de alta impunidade existente no Brasil. Esse grupo avaliou
a aplicação e os efeitos da Lei 9.099/95 sobre a violência
cometida contra as mulheres no âmbito doméstico a partir
das experiências de diversos grupos feministas, analisou
os diversos projetos de lei em tramitação no Congresso
Nacional, bem como a legislação de outros países latino-
americanos sobre essa matéria, a fim de buscar uma
resposta legislativa adequada a tal problemática em nosso
país.
Algumas das conclusões desse grupo de trabalho
foram: a) rejeitar a Lei 9.099/95 no que se refere à
35
Ver a esse respeito a publicação CARTA DA CEPIA, CEPIA, Rio de Janeiro,
2002 no site www.cepia.org.br .
36
Essa articulação, sob a forma de um Consórcio, foi formada por operadoras do
direito das ONGs: Cepia, Cfemea, Agende, Advocaci,Cladem/Ipê e Themis: as
advogadas feministas Leila Linhares Barsted, Leilah Borges da Costa, Elizabeth
Garcez, Carmen Campos, Rubia Abs da Cruz, Silvia Pimentel, Juliana Belloque,
Valéria Pandjiarjian, Leticia Massula, Iáris Cortez, Myllena Matos, Rosana
Alcântara, alem de contribuições da Defensora Pública Rosane Lavigne e da
Procuradora Ela Wiecko de Castilho. Nessa fase, destacam-se as contribuições
dos advogados Adilson Barbosa e Salo de Carvalho e de outras pesquisadoras
dentre as quais Simone Diniz e Wania Pasinato.
Destaque deve ser dado às contribuições dos advogados Alexandre Camara e
Humberto Dalla, do Rio de Janeiro conforme destacamos na nota n. 24.
56
violência doméstica contra as mulheres, dado que esta não
é uma violência, é considerada uma violação de direitos
humanos e não delito de ―menor potencial ofensivo‖; b)
elaborar um anteprojeto de lei sobre violência doméstica
contra as mulheres que incorporasse a preocupação com
as vítimas, incluindo em uma nova lei medidas de
prevenção e de proteção; c) debater esse anteprojeto
como o movimento de mulheres, com parlamentares e
membros da magistratura, dentre outros atores sociais.
A partir de então, esse grupo, ampliado com a
participação de outras instituições e operadoras do
direito37, desenvolveu esforços e articulações para
aprimorar esse anteprojeto, adequando-o à sistemática
técnico-legislativa do direito brasileiro e refinando sua
conceituação em coerência com os instrumentos nacionais
e internacionais de proteção aos direitos humanos,
especialmente a Convenção para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de
Belém do Pará), aprovada em 1994 pela Assembléia Geral
da Organização dos Estados Americanos e ratificada pelo
Estado Brasileiro em 1995.
A proposta legislativa elaborada pelo Consórcio
ampliado propunha, dentre outras medidas, a criação de
uma Política Nacional de combate à violência contra a
mulher; a conceituação da violência doméstica contra a
mulher com base na Convenção de Belém do Pará,
incluindo a violência patrimonial e moral; a introdução de
37
Esse grupo atuou em contínua articulação com a então Deputada Federal
Jandira Feghali (PcdoB-RJ), que teve papel decisivo na elaboração e
apresentação do Substitutivo ao PL 4559/04 e na articulação com a SPM,
consolidando o texto integral aprovado na Camara e no Senado e sancionado
pelo Presidente da República.
57
medidas de proteção para as vítimas; a criação de um
juízo único com competência cível e criminal através de
Varas Especializadas; a garantia de assistência jurídica
gratuita para as mulheres; a não-aplicação da lei 9099/95
nos casos de violência doméstica contra as mulheres.
Essa proposta foi entregue, ainda em 2003, à Bancada
Feminina no Congresso Nacional e à Secretaria Especial
de Políticas para as Mulheres.
Com base nesses subsídios do Consórcio e
debates com outro setores, em 25 de novembro de 2004, a
SPM enviou o Projeto de Lei para a Câmara dos
Deputados – PL 4959/04 – mantendo, no entanto, a
competência da Lei 9.099/95 nos casos de violência
doméstica contra a mulher, mas sinalizando, também, ao
consórcio de ONGs que as discussões e a negociação dos
pontos divergentes poderiam ser feitas no âmbito do
Legislativo.
O Consórcio reconheceu o mérito da SPM de
encaminhar ao Congresso Nacional uma lei específica
sobre violência doméstica contra as mulheres e considerou
que o PL 4959/04 em muito incorporou as propostas do
seu anteprojeto, particularmente, no que se refere aos
princípios, aos conceitos e às medidas protetivas previstos
na Convenção de Belém do Pará, além de outras
inovações e medidas (cautelares) por ele sugeridas.
Entretanto, em que pese o esforço da SPM, o Consórcio
entendeu que o PL 4959/04 não traduzia as preocupações
relativas à necessidade de criação de um juízo único (cível
e criminal).
Na Comissão de Seguridade Social e da Família da
Câmara do Deputados, o PL 4559/04 teve como relatora a
Deputada Jandira Feghali, que apresentou um Substitutivo
58
para retirar a violência doméstica do âmbito da Lei
9.099/95, a partir do diálogo com o consórcio de ONGs
feministas, com a colaboração de conceituados
processualistas, com o apoio da Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres38 e, especialmente com os
subsídios das audiências públicas realizadas para debater
esse PL nas Assembléias Legislativas do Rio Grande do
Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande
do Norte (em conjunto com Paraíba e Ceará) e Espírito
Santo, quando ouviu as contribuições de distintos
segmentos dos movimentos de mulheres e de mulheres
vítimas de violência doméstica e familiar39.
Esse Substitutivo ao PL 4559/04, que contou com
integral apoio da SPM, foi aprovado nas Comissões de
Seguridade e Família, Finanças e Tributação e
Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) e, finalmente, no
Plenário da Câmara dos Deputados. No Senado Federal,
sob o PLC37/2006, o Projeto de Lei teve como Relatora a
Senadora Lúcia Vânia, que endossou e aperfeiçoou seu
texto. Prosseguindo com as articulações no Senado, o PLC
37/06 tramitou em regime de urgência e foi aprovado em
Plenário em agosto de 2006.
Sancionado pelo Presidente da República, em
solenidade no Palácio do Planalto, em 5 de setembro de
38
Dentre esses processualistas destacam-se o Dr. Alexandre Freitas Câmara,
professor de Processo Civil da Emerj – Escola da Magistratura do Estado do Rio
de Janeiro, e o doutor Humberto Dalla, professor da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro e integrante do Ministério Público desse estado que forneceram
importantes subsídios doutrinários, normativos e jurisprudenciais ao Substitutivo
do PL 4959/04, participando de inúmeras reuniões com as advogados do
consórcio e com a Autora do Substitutivo. Desde 2008, o Dr. Alexandre Câmara é
Desembargador junto ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
39
Muitas das organizações feministas do consórcio de ONGs e a Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres apoiaram e estiveram presentes nesse
amplo debate nacional e endossaram o Substitutivo proposto pela Relatora.
59
2006, a Lei 11.340 (Lei Maria da Penha) cumpre com os
anseios das mulheres brasileiras por uma legislação que
reconheça a gravidade da violência doméstica e familiar
que as acomete. Responde com notável precisão às
recomendações dos Comitês da ONU e da OEA ao Estado
Brasileiro.
Importante fator para a sanção dessa Lei foi a luta
incessante de Maria da Penha Fernandes, vítima de duas
tentativas de homicídio praticadas por seu marido, impune
por mais de 15 anos e podendo se beneficiar do instituto
da prescrição. Maria da Penha contou com o apoio de
organizações de defesa dos direitos humanos que levaram
seu caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
da OEA. Essa Comissão considerou que houve omissão
do Estado nesse caso e condenou o Estado Brasileiro a
promover a perseguição penal contra o agressor, elaborar
lei de enfrentamento à violência contra a mulher e
indenizar Maria da Penha Fernandes..
A nova Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) define
em seu texto não apenas o que é violência doméstica e
familiar contra as mulheres, mas, também, as linhas de
uma política de prevenção e atenção ao enfrentamento
dessa violência, articulando ações governamentais da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e
de ações não-governamentais, através da integração
operacional do Poder Judiciário, Ministério Público e
Defensoria Pública com as áreas da segurança pública,
assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação.
Com essa perspectiva, a assistência à mulher em situação
de violência deverá ser prestada de forma articulada e
conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei
Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de
60
Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, dentre
outras normas e políticas públicas de proteção.
Com a preocupação de garantir a concretude da
Lei, o art. 39 prevê que a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios, no limite de suas competências e
nos termos das respectivas leis de diretrizes
orçamentárias, poderão estabelecer dotações
orçamentárias específicas, em cada exercício financeiro,
para a implementação das medidas estabelecidas nessa
Lei, dentre as quais a criação de um conjunto de serviços
necessários ao atendimento a mulheres em situação de
violência doméstica e familiar.
Além de definir as linhas de uma política de
prevenção e atenção no enfrentamento dessa violência, a
Lei Maria da Penha afastou em definitivo a aplicação da
Lei 9.099/95; criou um mecanismo judicial específico – os
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra as
Mulheres – com competência cível e criminal; inovou com
uma série de medidas protetivas de urgência para as
vítimas de violência doméstica; fortaleceu a manutenção e
criação de serviços, reforçou a atuação das Delegacias de
Atendimento à Mulher e, principalmente, deixou
definitivamente claro que a violência doméstica e familiar
contra a mulher não é um crime de menor potencial
ofensivo e sim uma violação de direitos humanos.
Compatibiliza, portanto, o direito brasileiro com os
princípios, fundamentos e recomendações da legislação
internacional, especialmente da Convenção para a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher, da ONU, e a Convenção de Belém do Pará para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, da
OEA.
61
Conforme já destacado, a aprovação da Lei Maria
da Penha é um caso exemplar bem-sucedido de
articulação política entre a sociedade civil/movimento de
mulheres e os Poderes constituídos – Executivo e
Legislativo. Faz-se necessário, agora, o envolvimento do
Poder Judiciário para o sucesso da implementação da Lei
11.340/06, tendo em vista que, no Brasil, a visão sistêmica
no campo jurídico articula as leis ordinárias com a
Constituição Federal e com os instrumentos jurídicos
internacionais de proteção aos direitos humanos fundados
no irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana.
Reconhecendo, assim, os importantes e
recentes avanços legislativos, há que se verificar a eficácia
prática e simbólica dessa legislação na vida das mulheres
e no imaginário social. Esse é um novo desafio para as
mulheres brasileiras e para todos aqueles que defendem
os direitos humanos.
REFERÊNCIAS
62
FEMINISMO ISLAMICO: NOTAS PARA UM
DEBATE
*
César Augusto Baldi
*
Mestre em Direito pela ULBRA/RS. Doutorando em Direitos Humanos e
Desenvolvimento pela Universidad Pablo Olavide/Espanha, organizador do livro
Direitos humanos na sociedade cosmopolita, Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
40
SANTOS, Boaventura de Sousa, MENESES, Maria Paula G. & NUNES, João
Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone da ciência: a diversidade
epistemológica do mundo. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Semear
outras soluções; os caminhos da biodiversidade e dos conheicmentos rivais.
Porto: Afrontamento, 2004, p. 82-83.
63
entre os movimentos de direitos humanos, para desocultar
ou revelar sofrimentos que passam como ―necessários‖,
mas que ferem outras noções de direitos humanos?
A versão hegemônica de direitos humanos tem
assentado nos pilares de liberdade, igualdade e
fraternidade, uma visão profundamente vincada nos
marcos decimonônicos da Revolução Francesa e
caudatária de uma visão de progresso (de que a teoria das
três gerações sucessivas de direitos é apenas uma de
suas manifestações). Apesar de sua defesa da
universalidade e da interdependência entre as distintas
dimensões de direitos, continua a dar maior ênfase àquela
que destaca direitos civis e políticos, em detrimento dos
culturais, econômicos e sociais e mesmo de dimensões
transgeracionais. É o caso, por exemplo, das questões
envolvendo o terror ou, mesmo de movimentos sociais
reivindicatórios como o feminismo.
Se é verdade que a teoria também canônica do
feminismo fala em duas vagas/ondas, uma do ―feminismo
da igualdade‖ e outra do ―feminismo da diversidade‖, o fato
é que as questões de raça, etnia colocaram novos desafios
para pensar as lutas envolvendo ―justiça de gênero‖. Eram
brancas ocidentais sendo questionadas por ―chicanas‖,
―mulheres do Terceiro Mundo‖ ou por teorias pós-coloniais.
Mas até que ponto as teorias pós-coloniais teriam sido
―descolonizadas‖?
A discussão envolvendo justiça de gênero com
mulheres asiáticas, em especial islâmicas e budistas, toca
em outras questões: existem outras noções do que
significa ―humano/a‖ no mundo, competindo com as
concepções que o feminismo defende? O feminismo
64
poderia aprender com movimentos não-liberais? Do que se
trata, pois, é da observação de que se o feminismo quer
ser um movimento vibrante e com uma tradição mais larga,
deveria, diz Saba Mahmood, ―expandir seus horizontes
para a consideração de projetos, aspirações e desejos que
não reproduzem seus pressupostos e telos – mas que os
desafiam‖41.
O que tem sido denominado – com todas as
divergências possíveis, internas e externas - de ―feminismo
islâmico‖ tem colocado em questão muitos pressupostos
do feminismo ―internacional‖ e de suas lutas, mas,
fundamentalmente, os seus pressupostos seculares.
O secularismo tem sido visto como um processo de
progressiva ―privatização‖ de determinadas questões -
família, religião - delimitando-se um espaço público e
cívico. Neste, contudo, a religião não estava incluída,
porque o seu destino é resignar-se ao ―espaço privado‖.
Ocorre que o próprio feminismo já colocara, na agenda,
seja pela violência doméstica, seja pelo patriarcalismo, a
politização da esfera privada, um espaço político que foi
ampliado com os movimentos de gays, lésbicas,
transgêneros e todas as teorias ―queer‖. O
questionamento, contudo, tinha o limite da presunção de
que lutas somente poderiam ser secularizadas.
Decorrência disto é que o ―espaço privado‖ foi sempre
infenso à ―civilidade‖ e à discussão dos direitos humanos:
―a estabilização da religião foi o correlato da
41
MAHMOOD, Saba. In: SHAIKH, Nermeen. The present as history; critical
perspectives on global power. New Delhi: Stanza, 2008, p. 165.
65
estabilização, por via da religião, das opressões e dos
medos do espaço privado.‖ 42
Salman Sayyid43 salienta, por exemplo, que não
se mantêm quaisquer dos três alegados benefícios do
secularismo: a) epistemológicos, porque ―sem secularismo
não há progresso científico‖; b) cívicos, porque necessário
para assegurar a paz e a harmonia social; c) democráticos,
porque a ―eliminação de Deus permite que o espaço do
poder seja esvaziado‖ e, portanto, a ―soberania popular
parecia excluir qualquer lugar para idéia de soberania de
Deus‖. No primeiro campo: a) a ausência de igreja
organizada, no Islã44, torna difícil a demarcação clara
entre autoridade da religião e da ciência; b) a centralidade
do Divino, por sua vez, torna impossível que narrativas
humanas e divinas ocupem o mesmo espaço ontológico.
No segundo campo, porque: a) inexiste qualquer conflito,
na história islâmica, similar ao longo período de guerras
religiosas internas da Cristandade; b) o secularismo, nas
42
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os direitos humanos na zona de contato
entre globalizações rivais. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Pará, n. 64,
jan./fev., 2007, p. 331.
43
SAYYID, S. Contemporary politics of secularism. In: LEVEY, Geoffrey Brahm &
MODOOD, Tariq. Secularism, religion and multicultural citizenship. Cambridge:
Cambridge University, 2009, p. 186-199.
44
Adota-se, aqui, a sugestão de AbdoolKarim Vakil, no sentido da utilização da
expressão Islã ( no Brasil) e Islão ( em Portugal): ― o Islão é uma das poucas
religiões que se auto-denominou: as outras vieram a assumir como suas
designações com que foram rotuladas por opositores ou por elementos externos.
O Islão tem o seu próprio nome, isto é, tem o nome que se deu a si próprio: Islam
(...) Islamismo é uma forma de alienação porque representa uma maneira de
designar esta religião com um termo que lhe é externo, que lhe é imposto por
conveniência lingüística de equivalência com as outras religiões: judaísmo,
cristianismo, hinduísmo, budismo, etc. ― VAKIL, AbdoolKarim. O Islão em
contextos minoritários: comunitarismo, cidadania e diálogo intra e inter-religioso.
In: Fórum Eugénio de Almeida, 22 e 23 de outubro de 2003, Évora, p. 17. Texto
gentilmente cedido pelo autor.
66
sociedades islamíticas45, significou, muitas vezes, ―des-
islamização‖; c) a escala de violência nos países islâmicos
de cunho secular não permite associar secularismo e paz
cívica; d) inexiste justificativa para considerar a religião
mais perigosa (―por que deveriam as paixões religiosas ser
consideradas mais violentas que outras paixões?‖) que a
utilização de ―história‖, ―ciência‖ ou ―razão‖ no seu lugar.
No campo democrático, a alegada vantagem ignora
múltiplas formas de soberania popular, que não passam
pelo léxico ocidental. O secularismo, no seu entender, tem
uma história própria na tradição ocidental, sendo, portanto,
uma narrativa ―provincial‖ européia, de forma que a
introdução da divisão religioso/secular em outras
historiografias favorece a ―confirmação da supremacia do
Ocidente‖.
Maldonado-Torres46, por sua vez, apresentando
outras genealogias do processo europeu de secularização,
demonstra os acordos provisórios, as rearticulações entre
os dois pólos e, mesmo reformulações, que, contudo,
mantêm inquestionada a hegemonia ―epistêmica
ocidental‖. Para ele, a primeira modernidade, baseada na
religião, daria lugar à segunda, fundada na noção de
civilidade (e seu racismo correlato), de tal forma que o
45
Sayyid utiliza a expressão ―Islamicato‖, proposta por Marshall Hodgson, que
não diz respeito somente à dimensão religiosa ( presente em ―islâmica‖), mas à
específica cultura compartilhada por muçulmanos e não-muçulmanos na
sociedade e civilização que o autor denomina ―Islamdom‖. Para a questão do
Islamicato, vide: BURKE III, Edmund. Conclusión: Islamic history as World
history- Marshall G. S. Hodgson and The Venture of Islam. In: HODGSON,
Marshall G. S. Rethinking world history: essays on Europe, Islam, and World
History. Cambridge: Cambridge University, 1993, p. 314-319.
46
MALDONADO-TORRES, Nelson. Secularism and religion in the
modern/colonial world-system: from secular postcoloniality to post secular
transmodernity. In: MORAÑA, Mabel, DUSSEL, Enrique & JÁUREGUI, Carlos A.
(ed). Coloniality at large: Latin America and the postcolonial debate. Durham:
Duke University, 2008, p. 360-380.
67
discurso secularista se torna necessário para manter os
grupos populares sob controle, por meio de uma clara
distinção de espaço cívico e público ou privado, de forma a
legitimar a colonização: os ―outros coloniais eram
concebidos como primitivos vivendo em estágios onde a
religião e a tradição dominavam os costumes e formas de
vida‖, uma forma de manter subjugados sob os ―auspícios
de razão e civilização‖.
O confronto Europa cristã/Europa moderna secular
é, em realidade, ―um evento intraimperial‖: a oposição à
religião não se dá porque esta é imperial, mas sim porque
não é suficientemente imperial. O espaço público,
portanto, vai-se ―purificando‖ de tudo que é não-nacional,
não-civilizado, convertendo-se em espaço central (e, pois,
―sagrado‖), ao passo que o espaço privado se localiza
onde estão ―os colonizados e as subjetividades
racializadas‖. Deste ponto de vista, a religião se torna a
forma mais eficiente de subalternização de conhecimentos
e de povos (a religião cristã é mais moderna e completa,
Islã é uma religião violenta, budismo é místico, os povos
coloniais vivem em estágios civilizacionais onde dominam
a religião e a tradição, etc). Ficam mantidas as fronteiras
moderno/não-moderno, ocidental/não-ocidental. O religioso
só existe em função do seu ―outro‖, o secular (e em
posição subalterna).
Daí porque Saba Mahmood47 e Talal Asad48
assentem a ―normatividade‖ do secularismo: ele não se
47
MAHMOOD, Saba. Secularism, Hermeneutics, and Empire: the politics of
Islamic Reformation. Public Culture, (18): 2, 2006, p. 328
48
ASAD, Talal. IN: SHAIKH, Nermeen. The present as history; critical
perspectives on global power. New Delhi: Stanza, 2008, p. 217, 211, 210.
68
destina tanto à separação Estado e religião, nem em
garantir a liberdade religiosa, mas na forma de
subjetividade que a cultura secular autoriza, as formas
religiosas que resgata, e a forma peculiar de história e
tradição histórica que receita. Este ―aspecto normativo‖ é
que faz diferentes também as percepções na Inglaterra,
nos Estados Unidos, na França, na Turquia: em realidade,
a dimensão religiosa não é indiferente ao Estado, pois é
ele quem determina, pela visão secular, ―como‖ e ―quando‖
a afiliação religiosa pode e deve ser expressa na vida
pública (daí a questão do véu, das festividades religiosas,
das datas da Pátria, etc).
Que defendem as distintas versões de ―feminismo
islâmico‖? As atitudes plurais têm um norte no sentido que
buscam, dentro de um referencial islamicamente centrado,
verificar potencialidades emancipatórias no discurso e na
prática, em relação às mulheres. As feministas seculares
tendem a atribuir somente sentidos patriarcais ao Islã e,
pois, a rechaçar qualquer outra possibilidade que não seja
fundada em pressupostos de direitos humanos (sendo
contrário a estes, o Islã deve ser descartado ―in totum‖).
Como destaca Ratna Kapur 49, para o contexto
multirreligioso do Sudeste Asiático, ―o problema com uma
posição secular formal é que nunca interage com o
domínio religioso‖, não abordando as formas pelas quais a
religião estabelece mediações com os direitos das
mulheres, nem como se define como parte integral de suas
vidas diárias, obrigando-as, ao final, a eleger entre os
49
KAPUR, Ratna. Desafiando al sujeto liberal: Ley y justicia de género en el Asia
meridional. Disponível em : <http://www.idrc.ca/es/ev-111815-201-1-
DO_TOPIC.html>. Acesso em: 14 set. 2009.
69
―direitos de igualdade de gênero‖ e os ―direitos à liberdade
de religião.‖
Ao contrário, Amina Wadud50, nos EUA, sustenta a
necessidade de ―jihad de gênero‖, a luta para estabelecer
justiça de gênero no pensamento e na práxis muçulmana,
erradicando todas as formas, públicas ou privadas, de
injustiça para a ―inteira humanidade da mulher‖, em nome
do Islã, mas também para não-muçulmanos e não-
heterossexuais muçulmanos. Uma flexibilização da leitura
corânica, portanto, que seja consistente com a ética e os
imperativos deste, mas que retire da luta contra o racismo
e etnocentrismo ―forças para uma efetiva unidade que
possa superar os obstáculos para o empoderamento‖.51
Asma Barlas52, de origem paquistanesa, sustenta
que seria incongruente que as mulheres sejam iguais aos
homens perante Deus, mas desiguais perante os homens.
A leitura que faz das ―suras‖ do Corão dá conta de que a
justiça consiste em nunca fazer ―zulm‖ (―transgredir) para
os seres humanos: como o patriarcado transgride os
direitos das mulheres, o Corão não pode endossar tais
conceitos. Não existe, para ela, qualquer representação de
Deus como pai ou masculino (aliás, nos 99 nomes de
Allah, alguns são masculinos e outros femininos), Deus
50
WADUD, Amina. Inside the gender jihad: women’s reform in Islam. Oxford:
Oneworld, 2006; WADUD, Amina. Qur‘an and woman: rereading sacred text from
a woman‘s perspective. New York: Oxford University Press, 1999, p.15-29 e 62-
94.
51
WADUD, Amina. American muslim identity: race and ethnicity in progressive
muslim. In: SAFI, Omar. Progressive muslims. Oxford: Oneworld, 2003, p. 270-
285, em especial p. 278 e 283
52
BARLAS, Asma. Towards a theory of gender equality in muslim societies. CSID
Annual Conference, Washington, May 29 2004. Disponível em:
<http://www.ithaca.edu/faculty/abarlas/talks/20040529_CSID.pdf>. Acesso em: 14
set. 2009.
70
criou homem e mulher a partir de mesma alma (―nafs‖) e
há explícita proibição de qualquer sacralização da figura
paterna e do seu poder53. Se Deus não é Pai no céu nem
em sentido literal nem simbólico, os pais ―não podem
representar seu domínio na terra como réplica de um
patriarcado divino‖, nem tomar literalmente a idéia de que o
―homem‖ é feito à imagem de Deus e que Deus é
―masculino‖54. Recentemente, tem destacado a
necessidade de: a) ―globalizar a igualdade‖, o que significa
a ―assegurar a igualdade para as mulheres islâmicas
indiferentemente do lugar onde vivem; b) ―desprovincializar
o feminismo‖ ; c) repensar as conexões entre ―jihad‖ e
empoderamento de direitos. Para ela, a insistência de que
a leitura do Corão revela sempre uma ―voz patriarcal‖ e
que as leituras ―feministas‖ privilegiam ―poucos versos‖ que
tratam de igualdade de gênero é, em realidade, uma forma
de ―fundamentalismo secular‖ 55.
Inexiste, no seu entender, razão para insistir que
homem e mulher deveriam continuar relacionados como se
estivessem vivendo na sociedade tribal árabe do século
VII: seria o mesmo que esperar que as pessoas
continuassem agindo como proprietários de escravos
mesmo depois de abolida a escravidão. ―Se já não
consideram os versos corânicos relacionados com a
escravidão moral ou legalmente normativos, porque
53
BARLAS, Asma. Believing women in Islam: unreading patriarcal interpretations
of the Qu’ran. Austin: University of Texas, 2002, especialmente p. 129-202.
54
BARLAS, Asma. One Father, Three Dysfunctional Offspring: on the
‗problematic‘ aspects of Monotheism. Palestra proferida no Snowstar Institute for
Religion, Toronto, Canada, June 4, 2006. Disponível em :
<http://www.asmabarlas.com/TALKS/One_Father_Toronto.pdf>.Acesso em: 14
set. 2009.
55
BARLAS, Asma. Re-understanding Islam: a double critique. (Spinoza Lectures)
Amsterdam: Van Gorcum, 2008, p. 25-26.
71
deveriam ser considerados aqueles relacionados com o
patriarcado do século VII como eternos?‖ Isto, para ela,
não significa que o Corão não é um produto de seu tempo,
mas exatamente o contrário: ―desde que a escritura é para
todas as épocas, deve também abranger uma variedade
de formações e possibilidades históricas, incluídas aquelas
postas pelo presente e pelo futuro, e não somente aquelas
do passado‖56.
A autora questiona, ademais, se os problemas de
direito islâmico ou mesmo as tensões entre as várias
fontes religiosas irão desaparecer em eventual Estado
secular: a questão, segundo sustenta, diz mais sobre as
formas que são definidos conhecimento religioso e
metodologia. Não será, necessariamente, um Estado
secular que assegurará o princípio do constitucionalismo e
o regime de direitos humanos: por exemplo, o Estado
francês usou o constitucionalismo, ―na forma de ‗laicité‘,
para negar às mulheres islâmicas, o direito de usar o véu
em espaços públicos.‖ E a ―laicité‖ pode ser uma forma
específica e militante de secularismo, mas o secularismo é,
ele mesmo, uma forma de política (nenhum Estado secular
está acima ou além da política). Para ela, é intrigante que
muitos muçulmanos estejam tentando ―alinhar Islã e
secularismo‖, exatamente quando muitos europeus ―estão
engajados em debates sobre pós-secularismo‖. Em
realidade, ―poderíamos aprender uns com os outros se
estamos na mesma mesa‖ 57.
56
BARLAS, Asma. The Qur‘an , Shari‘a, and Women‘s rights. Re-imagining the
Shari‘a: theory, practice, and Muslim Pluralism. University of Warwick,
Veneza/Itália, 14 setembro de 2009. Disponível em:
<http://www.asmabarlas.com/TALKS/2009_venice.pdf>. Acesso em: 14 set.
2009.
57
Idem, ibidem.
72
Sa‘diyya Shaikh58, na África do Sul, a partir de
fontes ―sufis‖ e do ―background‖ africano do ―ubuntu‖
(interdependência), vai reler os ―hadiths‖, um corpo de
ensinamentos, ditos e relatos da vida de Maomé, a partir
de uma antropologia que salienta elementos de um Islã
como religião ―sex-positive‖, que afirma o valor espiritual da
sexualidade. Procura desocultar a ideologia de gênero que
opera nos textos de direito islâmico, analisa as tensões e
oferece possibilidades alternativas de leitura interna, dentro
de um princípio de ―hermenêutica de suspeição‖, que seja
alerta às inclinações patriarcais, explícitas ou implícitas.
Consultando a jurisprudência clássica, mostra, por
exemplo, que o verso que supostamente autoriza o marido
a bater na esposa, era interpretado, na época medieval,
com a finalidade de limitar violações físicas da mulher.
Questionando o monopólio da produção da interpretação
(―tafsir‖) nas elites escolarizadas, propõe que o mundo do
texto corânico é uma ―arena de engajados, dinâmicos e
polissêmicos encontros‖, um verdadeiro ―tafsir da práxis‖,
que emerge ―das experiências da dor, marginalidade e
opressão, realidades a que o próprio Corão constante e
conscientemente procura dirigir-se‖59.
Kecia Ali60, nos Estados Unidos, vai defender uma
nova jurisprudência do casamento, que coloque em
58
SHAIKH, Sa‘diyya. Veiling, Secularism and Islamism: gender construction in
France and Iran. Journal for the study of Religion, volume 20, number I, 2007, p.
111-127; SHAIKH, Sa‘diyya. Exegetical violence: Nushuz in Quranic Gender
ideology. Journal for Islamic Studies, 17: 49-73, 1997.
59
SHAIKH, Sa‘diyya. A tafsir of práxis: gender, marital violence, and resistance in
a south african muslim community. In: SHAIKH, Sa‘diyya & MAGUIRE, Daniel C.
Violence against women in contemporary world religions. Cleveland: Pilgrim
Press, 2007, p. 66-89
60
ALI, Kecia. Sexual ethics & Islam: feminist reflections on Qur’an, hadith, and
jurisprudence. Oxford: Oneworld, 2006.
73
primeiro plano a mútua proteção entre homens e mulheres
(sura 9:71), antes que a manutenção pelo homem (sura
4:34) ou que tenha foco na cooperação e harmonia dos
esposos na declaração corânica de que são ―vestimentas‖
um do outro (sura 2: 187).
Heba Ezzat61, no Egito, vai destacar a oportunidade
de construir uma modernidade islâmica própria, sinalizar a
necessidade de estudar os ―limites sociológicos e
filosóficos do discurso feminista ocidental‖ e as vinculações
do capitalismo com a visão secular e propor um
―secularismo islamicamente democrático‖, que abrace uma
―pacífica luta por uma civil jihad contra a pobreza e a
discriminação‖. Segundo ela, ―secularismo‖ não é
meramente a separação entre estado e igreja, mas
basicamente uma visão que começa por marginalizar Deus
e algumas vezes anuncia sua morte, colocando o homem
no centro do universo como seu ―logos‖, e, assim, tentar
contextualizar feminismo e entender sua arqueologia é
muito mais estabelecer suas ligações com a história da
secularização da mente e das ciências européias62. Num
diálogo de culturas, é possível aprender com o Ocidente:
―nós devemos nos abrir a novas idéias, mas nós não temos
que repetir os mesmos erros, caindo nas mesmas
armadilhas que poderiam ser previstas quando o projeto
iluminista iniciou. Nós temos uma oportunidade de ouro
de construirmos nossa própria modernidade, e ver,
cuidadosamente, onde as coisas estavam erradas‖63.
61
EZZAT, Heba Raouf & ABDALA, Ahmed Mohammed. Towards an islamically
democratic secularism. In: AMIRAUX, Valérie et allii. Faith and secularism.
London: British Council, 2004, p. 50.
62
EZZAT, Heba Raouf. Political Reflections on the question of equality. In: Islam
& Equalty. New York: Lawyers Committee for Human Rights, 1999, p. 176-177.
63
Idem, op. cit, p. 181-182.
74
Tampouco as questões ético-jurídicas de
portadores de HIV e das teorias ―queer‖ têm passado
despercebidas. Ghazala Anwar64, de origem paquistanesa,
vivendo na Nova Zelândia, vai propor uma ― Samadiyyah
Shariah‖(―Samad‖ é um dos atributos de Deus: único,
incomparável e inigualável), que salientando a
complementaridade entre homem e mulher, para além da
heterossexualidade, vai mostrar outras formas de
dignidade do humano (as ações são julgadas por Deus de
acordo com as intenções, não havendo diferenciação entre
heterossexuais ou homossexuais) e propor leituras
interessantes para proibição de violações sexuais.
Scott Kugle,65 por sua vez, propõe uma ―queer
jihad‖, a partir do reconhecimento da radical idéia de
diversidade na religião, segundo a qual Allah teria muitos
profetas, falando em distintas línguas, levando
ensinamentos éticos para diferentes nações, com diversos
ritos, práticas e normas legais, tem como corolário a
aceitação da diversidade dos agrupamentos tribais, étnicos
e nacionais: ―nós criamos vocês em diferentes nações e
tribos de forma que se conheçam uns aos outros e
reconheçam que o mais honrado dentre vocês é o mais
temente a Deus‖ (sura 49:13). A celebração da igualdade
de homens e mulheres, porque ausente a criação de Eva a
partir da costela de Adão, reitera a diversidade da natureza
64
ANWAR, Ghazala. Elements f a Samadiyyag Shariah. In: ELLISON, Marvin &
PLASKOW, Judith ( ed). Heterosexism in contemporary world religion; problem
and prospect. Cleveland: Pilgrim Press, 2007, p. 69-98.
65
KUGLE, Scott Siraj al-Haqq. Sexuality , diversity and ethics in agenda of
progressive muslim. In: SAFI, Omar. Progressive muslims. Oxford: Oneworld,
2003, p. 190-234; KUGLE, Scott. Queer Jihad: a view form South Africa.
Disponível em: <http://www.isim.nl/files/Review_16/Review_16-14.pdf>. Acesso
em: 14 set. 2009.
75
humana (―dentre os vários sinais de Allah está a criação
dos céus e da terra e a diferenciação de línguas e a
variedade de cores (alwan) - sura 30:22). Segundo ele, os
islâmicos ―progressistas‖ tem focado nos campos da
organização política, propriedade e normas de gênero: ―por
que parar aqui? Por que não continuar a estender este
desafiante foco de justiça para as esferas mais íntimas
de nossas vidas sexuais, de forma a pensar de forma
mais clara como as nossas vidas eróticas se cruzam
com as nossas vidas espirituais?‖
A defesa de uma ―teologia da compaixão‖, as
experiências com a ―troupe‖ musical e dramática dos
Nobles na fronteira Afeganistão-Paquistão trabalhando
com os medos da pandemia de AIDS na Ásia66, as
disputas judiciais - muitas vezes vitoriosas - da ONG
―Sisters in Islam‖ na Malásia67, a formação do movimento
―Musawah‖ (para o qual ―não há justiça sem igualdade‖)68,
a discussão no direito islâmico se as portas do ―ijtihad‖
(interpretação ―independente‖, não imitativa) estão abertas
ou não69, são algumas pequenas demonstrações de que a
vitalidade do questionamento de gênero, raça,
sexualidade, religião e secularismo, no âmbito islâmico, é
66
ESACK, Farid & CHIDDY, Sarah. Islam and Aids; between scorn, pity and
justice. Oxford: Oneworld, 2009.
67
ANWAR, Zainah. La organización Sisters in Islam y los derechos de la mujer en
Malásia. In: La emergencia del feminismo islámico. Barcelona: Oozebap, 2008, p.
211-227, onde destacam a dificuldade da luta pelo fato de não falarem árabe,
não terem estudado em universidades consagradas como a egípcia de Al-Azhar
e debaterem temas religiosos.
68
Disponível em: <http://www.musawah.org>.
69
HALAQ, Wael B. Was the gate of ijtihad closed? Disponível em:
http://lawcourses.haifa.ac.il/muslim_law/index/main/syllabus/files/Hallaq.pdf ;
BONATE, Liazzat K. O debate sobre o ‗encerramento do ijtithad‘ e a sua crítica.
In: SANTOS, Boaventura de Sousa & MENESES, Paula. Epistemologias do Sul.
Coimbra: Almedina/CES, 2009, p. 243-260.
76
muito mais vibrante e intensa que a idéia orientalista de
uma cultura fixa, rígida, imutável e nada questionadora70.
Tudo isto vem colocar algumas questões
importantes.
Primeiro, o monopólio da produção do discurso
islâmico deixa de ser masculino, havendo, ainda,
ampliação das fontes de direito utilizadas (neste sentido,
para Sa‘diyya Shaikh, a interpretação sequer se reduz às
elites escolarizadas).
Segundo, o projeto secular é questionado, tanto
em suas virtudes, quanto em suas limitações,
demonstrando que, em determinadas hipóteses, ele é
limitador de versões de direitos humanos ou sequer é o
meio mais adequado para tanto.
Terceiro, procura-se uma legitimação interna do
próprio discurso, a partir de epistemologias, cosmologias,
tradições e recursos islâmicos e não meramente
ocidentais. É o reconhecimento, para o campo dos direitos
das mulheres, daquela intuição de Abdullahi An-na‘im: ―por
que não posso, como muçulmano, citar Ibn Rush, que
disse e escreveu as mesmas coisas centenas de anos
antes de Kant?‖ 71
Quarto, coloca a necessidade de traduções a
serem realizadas entre as feministas seculares e as
70
BALDI, César Augusto. What you get is (not) what you see: para uma
epistemologia não-colonial do Islã e dos direitos das mulheres. Disponível em:
<http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao015/Cesar_Baldi.htm>.
Acesso em: 14 set. 2009.
71
AN-NA‘IM, Abdullahi. Muslim must realize that there is nothing magical about
the concept of human rights. IN: NOOR, Farish. New voices of Islam.
Netherlands: ISIM, 2002, p. 11. Disponível em:
<http://www.isim.nl/files/paper_noor.pdf>. Acesso em: 14 set. 2009.
77
islâmicas, procurando e verificando as incompletudes e
virtualidades de cada discurso. Ou seja, o reconhecimento
da diversidade das práticas sociais eficazes e libertadoras
(a ―artesania das práticas‖), que se dá ―a partir da
interpelação cruzada dos limites e das possibilidades de
cada um dos saberes em presença‖72.
Na cosmologia ―aimará‖, acredita-se na inversão
total de uma era em que certa ordem (―pacha‖) volta ou
regressa (―kutik‖), para originar uma ordem distinta, uma
forma de ―retorno ou regresso de tempos novos‖, que se
chama ―pachakutik‖. A ―descoberta‖ das Américas teria
sido um destes momentos, pelo lado trágico: não somente
dos indígenas, mas também pela expulsão dos mouros na
Ibéria. O ressurgimento de Abya Yala (o nome dado à atual
América) e os questionamentos do feminismo islâmico
talvez estejam a indicar que é chegado o momento de
buscar um novo ―pachakutik‖ para os direitos humanos.
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72
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venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. In: SANTOS, Boaventura de
Sousa & MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra:
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78
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80
OLHAR, VER, REPARAR: UMA ANÁLISE DO
CARÁTER INCLUSIVO DOS PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS A PARTIR DO
RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL
ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO
*
Raphael Peixoto de Paula Marques
*
Bacharel em Direito pela UNIPE (PB). Especialista em Direito Constitucional
Contemporâneo pela Universidade de Brasília (UnB). Mestrando em Direito,
Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do grupo de
pesquisa ―Sociedade, Tempo e Direito‖ (UnB). Procurador Federal. E-mail:
raphapeixoto@gmail.com.
81
judicial and administrative decisions, either through the
interpretation of human rights treaties ratified by Brazil.
INTRODUÇÃO
73
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004, p. 241.
82
Por muito tempo, a orientação sexual era tematizada não
como diferença a ser reconhecida pelo Direito, mas como
imposição valorativa de uma maioria heterossexual. O
preconceito e a exclusão eram ditados por uma espécie de
cegueira que estabelecia e institucionalizava um tipo de
invisibilidade social e jurídica.74
O debate em torno do direito à não ser discriminado
pela orientação sexual alcançou, inclusive, à Assembléia
Constituinte de 1987-1988. Segundo José Afonso da Silva,
tentou-se introduzir, no processo constituinte, uma norma
que vedasse a discriminação dos homossexuais,
83
Doenças, declarando que ―a homossexualidade não
constitui doença, nem distúrbio e nem perversão‖. O
mesmo já tinha sido feito pelo Conselho Federal de
Medicina já no ano de 1985. O Conselho Federal de
Psicologia, por sua vez, editou em 1999 uma resolução
determinando aos profissionais da área que não
exercessem ―ação que favoreça a patologização de
comportamentos ou práticas homoeróticas‖.76
Não obstante essa mudança gradual de
mentalidade, o que restou assentado no texto do art. 226,
§3º, da Constituição Federal de 1988, foi que ―é
reconhecida a união estável entre o homem e a mulher
como entidade familiar‖.
Como ler essa disposição constitucional? Como
conciliar uma interpretação literal, que caminharia para
uma exclusão da união estável entre pessoas do mesmo
sexo, com o direito à liberdade e à igualdade previstos no
art. 5º da Constituição brasileira? Qual o conceito de
família implícito no art. 226? Afinal, o que uma constituição
constitui? Há vedação expressa na legislação
infraconstitucional? Como a questão é vista do ponto de
vista internacional, isto é, a partir dos tratados de direitos
humanos ratificados pelo Brasil? Essas são algumas
indagações que devemos responder antes de se
posicionar sobre o tema.77
76
RESOLUÇÃO CFP N° 001/99, de 22 de março de 1999 - ―Estabelece normas
de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual.
77
Gostaria de esclarecer que o presente texto concentra-se na análise da
possibilidade da união estável homoafetiva. Todavia, tal fato não inviabiliza a
defesa, também, da possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo,
pois, como lembra Nancy Fraser, ―o que não seria justificado, ao contrário, é uma
abordagem como o Pacs francês ou a lei da união civil no estado de Vermont,
nos Estados Unidos, que estabelece um segundo status legal, paralelo, de
parceria doméstica, que não consegue conferir todos os benefícios simbólicos ou
84
O QUE UMA CONSTITUIÇÃO CONSTITUI?
85
principiológica de Constituição.80 Uma Constituição não é
uma apólice de seguros ou um contrato de arrendamento
mercantil, mas um documento que constitui uma
comunidade fundada sobre princípios que se alicerçam
sobre o reconhecimento recíproco da igualdade e liberdade
de todos e de cada um de seus membros.81 Como bem
ensina Menelick de Carvalho Netto,
80
DWORKIN, Ronald. O drama constitucional. In: Domínio da vida: aborto,
eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 165-206.
81
CARVALHO NETTO, Menelick de. Uma reflexão acerca dos direitos
fundamentais do portador de sofrimento ou transtorno mental em conflito com a
lei como expressão da dinâmica complexa dos princípios em uma comunidade
constitucional – os influxos e as repercussões constitucionais da Lei nº 10.216,
de 06 de abril de 2001. Revista virtual de filosofia jurídica e teoria constitucional.
Salvador, nº01, mar./maio, 2007.
86
não importando todas essas
82
diferenças‖.
82
CARVALHO NETTO, Menelick de. Uma reflexão acerca dos direitos
fundamentais do portador de sofrimento ou transtorno mental em conflito com a
lei como expressão da dinâmica complexa dos princípios em uma comunidade
constitucional – os influxos e as repercussões constitucionais da Lei nº 10.216,
de 06 de abril de 2001. Revista virtual de filosofia jurídica e teoria constitucional.
Salvador, nº01, mar./maio, 2007.
83
DWORKIN, Ronald. O que diz a Constituição. In: O direito da liberdade: a
leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006,
pp. 124; DWORKIN, Ronald. Unenumerated rights: whether and how Roe should
be overruled, The University of Chicago Law Review, n. 59, 1992.
87
no ―direito à saúde‖? Todos esses casos foram decididos
pelo Supremo Tribunal Federal e demonstram que em
nenhum deles o resultado decorre da semântica das
palavras, mas de uma prática interpretativa orientada por
princípios que atualizam e perenizam o sistema, sempre
aberto e incompleto, dos direitos constitucionais. Nesse
sentido, ―os direitos fundamentais somente podem
pretender-se permanentes precisamente porque
somos capazes de relê-los de uma perspectiva sempre
e cada vez mais inclusiva‖.84
Partindo dessa premissa, por que negar a
possibilidade jurídica da união estável entre pessoas do
mesmo sexo, se a própria Constituição, que é por natureza
um documento dinâmico e sempre inconcluso, não o faz
expressamente? Aqui, levo em conta que
84
COSTA, Alexandre Bernardino; CARVALHO NETTO, Menelick de. Razões
para comemorarmos os vinte anos da Constituição. C&D – Observatório da
Constituição e Democracia. Brasília, nº 20, março de 2008, p. 03.
88
Constituição, apenas explicita o
patamar alcançado por nossa
comunidade de princípios no mais fiel
cumprimento da Constituição,
comprovando o sucesso vivo e pulsante
85
do que ela constituiu‖.
85
CARVALHO NETTO, Menelick de. Uma reflexão acerca dos direitos
fundamentais do portador de sofrimento ou transtorno mental em conflito com a
lei como expressão da dinâmica complexa dos princípios em uma comunidade
constitucional – os influxos e as repercussões constitucionais da Lei nº 10.216,
de 06 de abril de 2001. Revista virtual de filosofia jurídica e teoria constitucional.
Salvador, nº01, mar./maio, 2007
86
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 404. Como afirma Menelick de
Carvalho Netto e Judith Karine, ―o §2º do art. 5º é um exemplo disso: igualdade e
liberdade são um processo aberto. Mesmo quem hoje não é percebido como
titular de direito, amanhã pode passar a ser, por decisão judicial, por prática
legislativa, por política pública do executivo, etc. E somente há liberdade para
refazer a forma interpretativa do art. 5º porque, na verdade, este conteúdo
sempre esteve lá. O que há, portanto, não é alteração, mas cumprimento‖
(KARINE, Judith; CARVALHO NETTO, Menelick. Trabalho infanto-juvenil e
interpretação constitucional. C&D – Observatório da Constituição e Democracia.
Brasília, nº 25, agosto e setembro de 2008, p. 03).
89
internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte.
87
Como registra Michel Rosenfeld, ―pelo menos no que toca às constituições
escritas a identidade constitucional é necessariamente problemática em termos
da relação da Constituição com ela mesma. Um texto constitucional escrito é
inexoravelmente incompleto e sujeito a múltiplas interpretações plausíveis‖
(ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2003, p.18).
88
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito, Política e Filosofia:
contribuições para uma teoria discursiva da constituição democrática no marco
do patriotismo constitucional. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2007, p. 75-76;
Em sentido semelhante, cf. CHRISTENSEN, Ralph. ―Introdução‖. In: MÜLLER,
Friedrich. Quem é o povo: a questão fundamental da democracia. São Paulo:
Max Limonad, 2000, p. 42; ZAGREBELSKY, Gustavo. Historia y constitución.
Madrid: Trotta, 2005, p. 86; 91; ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito
constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 18-19; HABERMAS,
Jürgen. O Estado Democrático de Direito – Uma amarração paradoxal de
princípios contraditórios? In: Era das transições. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro: 2003, p. 153-173; RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade
humana e moralidade democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 40-41; 45-
49.
90
Todas as gerações posteriores
enfrentarão a tarefa de atualizar a
substância normativa inesgotável do
sistema de direitos estatuído no
documento da constituição. [...] O ato da
fundação da constituição é sentido como
um corte na história nacional, e isso não
é resultado de um mero acaso, pois,
através dele, se fundamentou novo tipo
de prática com significado para a história
mundial. E o sentido performativo desta
prática destinada a produzir uma
comunidade política de cidadãos livres e
iguais, que se determinam a si mesmos,
foi apenas enunciado no teor da
constituição. Ele continua dependente de
uma explicação reiterada, no decorrer
das posteriores aplicações,
interpretações e complementações
das normas constitucionais. […] Sob
essa premissa, qualquer ato fundador
abre a possibilidade de um processo
ulterior de tentativas que a si mesmo
se corrige e que permite explorar cada
vez melhor as fontes do sistema dos
89
direitos.
89
HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – Uma amarração
paradoxal de princípios contraditórios? In: Era das transições. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro: 2003, p. 164. Conforme Rosenfeld, ―para se estabelecer a
identidade constitucional através dos tempos é necessário fabricar a tessitura de
um entrelaçamento do passado dos constituintes com o próprio presente e ainda
com o futuro das gerações vindouras‖. No entanto, ―dado que a intenção dos
constituintes sempre poderá ser apreendida em diversos níveis de abstração,
sempre haverá a possibilidade de a identidade constitucional ser reinterpretada e
reconstruída‖ (ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2003, p.18).
91
Sem embargo de tudo o que foi dito, pode-se
questionar: diante dessa abertura e generalidade, então,
vale tudo? Quais são os limites que a Constituição impõe
ao intérprete no desenvolvimento do catálogo de direitos
fundamentais? Como insiste Dworkin, devemos ―deixar de
lado a infrutífera busca por restrições mecânicas ou
semânticas e buscar as verdadeiras restrições no único
lugar onde de fato poderão ser encontradas: em bons
argumentos‖.90 Por outro lado, é óbvio que uma leitura
principiológica da Constituição não fornecerá uma fórmula
ou método para garantir que todos os aplicadores e
intérpretes do Direito cheguem à mesma resposta em
processos constitucionais complexos, inéditos ou
importantes. Ao contrário, e de acordo com o que afirma
Dworkin, devemos aceitar o fato de que sempre se
discordará, às vezes profundamente, acerca das
exigências da igualdade de consideração e da idéia de
liberdade. Devemos insistir, portanto, em um princípio geral
de genuíno poder: a idéia, inerente ao conceito de direito
em si, de que quaisquer que sejam seus pontos de vista
sobre os direitos fundamentais e sobre o papel da
Constituição, os juízes, os administradores e os
aplicadores do Direito em geral, também devem aceitar
uma restrição independente e superior, que decorre da
idéia de integridade, nas decisões que tomam.91 Quais
são as dimensões dessa exigência de integridade?
90
DWORKIN, Ronald. O que diz a Constituição. In: O direito da liberdade: a
leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006,
p. 131.
91
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes: 2003.
Sobre essa exigência, vale registrar que ―nem mesmo a mais escrupulosa
atenção à integridade, por parte de todos os juízes de todos os tribunais, irá
produzir sentenças judiciais uniformes, assegurar decisões que você aprovou ou
92
A integridade no direito tem várias
dimensões. Em primeiro lugar, insiste em
que a decisão judicial [assim como a
decisão administrativa] deve ser uma
questão de princípio, não de
conciliação, estratégia ou acordo político.
[...] Em segundo lugar, [...] a integridade
se afirma verticalmente: ao afirmar que
uma determinada liberdade é
fundamental, o juiz [assim como o
administrador ou aplicador do Direito]
deve mostrar que sua afirmação é
compatível com princípios embutidos em
precedentes do Supremo Tribunal e com
as estruturas principais de nossa
disposição constitucional. Em terceiro
lugar, a integridade se afirma
horizontalmente: um juiz [ou mesmo a
Administração Pública] que adota um
princípio em um caso deve atribuir-lhe
importância integral nos outros casos
que decide ou endossa, e mesmo em
esferas do direito aparentemente não
92
análogas.
protegê-lo daquelas que odeia. Nada poderá fazer tal coisa. O ponto central da
integridade é o princípio, não a uniformidade: somos governados não por uma
lista ad hoc de regras detalhadas, mas sim por um ideal, razão pela qual a
controvérsia se encontra no cerne de nossa história. Não obstante, a disciplina
da integridade é formidável‖. (DWORKIN, Ronald. O drama constitucional. In:
Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p. 203-205).
92
DWORKIN, Ronald. O drama constitucional. In: Domínio da vida: aborto,
eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 204.
93
estável entre pessoas do mesmo sexo é compatível com o
princípio da igualdade constitucional e protegida pelo
direito à privacidade, além de estar amparada pelos
precedentes do Supremo Tribunal Federal sobre,
especialmente, o princípio da dignidade humana e pelas
demais decisões administrativas no âmbito da
Administração Pública Federal.
93
Como bem lembra Michel Rosenfeld, em uma sociedade completamente
homogênea o constitucionalismo seria supérfluo (ROSENFELD, Michel. Modern
constitutionalism as interplay between identity and diversity. In: ROSENFELD,
94
constitutiva da sociedade contemporânea – e inclusive, da
própria idéia de igualdade94 – e, por isso, não pode
expurgar de seu interior os projetos minoritários de vida
boa que conformam esse mesmo pluralismo.95 Logo, é
preciso reconhecer que a assertiva de que todos são
iguais, encontrada em grande número de Declarações de
Direitos, Tratados ou Constituições, ―não pode ser lida
como uma proposição de fato, mas sim uma reivindicação
de natureza moral‖.96
Sendo assim, conclui-se que a igualdade não é
mais que um ideal inalcançável, na medida em que, não
sendo de fato todas as pessoas ―iguais‖, o seu conteúdo é
construído a partir de uma tensão permanente entre
identidade e diferença. Nesse contexto, o que
ordinariamente se inclui sob o âmbito da igualdade
constitucional são certas proibições contra a desigualdade,
ou mais precisamente contra algumas desigualdades.
Segundo Michel Rosenfeld, a luta pela igualdade se dá a
partir de um processo dialético de três diferentes etapas,
95
que marcaram a progressão lógica da desigualdade ao
ideal de igualdade constitucional: a) diferença como
desigualdade; b) igualdade como identidade; e c)
igualdade como diferença. 97
97
; ROSENFELD, Michel. Equality and the Dialectic between Identity and
Difference. In: SHABANI, Omid A. Payrow (ed.). Multiculturalism and Law: A
Critical Debate. Cardiff: University of Wales Press, 2006.
98
ROSENFELD, Michel. Hacia una reconstrucción de la igualdad constitucional.
In: CARBONELL, Miguel (org.). El principio constitucional de la igualdad. México:
Comisión Nacional de los Derechos Humanos, 2003, p. 69-103.
96
como identidade e da igualdade como diferença.99 No que
toca à possibilidade de reconhecimento da união estável
entre pessoas do mesmo sexo, qual seria o modelo mais
adequado? Suprimir as diferenças (heterossexual x
homossexual) a partir da idéia de igualdade como
identidade? Ou evidenciá-las, a partir da igualdade como
diferença? Já que não se trata, aqui, de um problema
relacionado, pelo menos diretamente, a questões de
redistribuição, mas sim de reconhecimento100, certamente
a aplicação do modelo de igualdade que faz justiça para o
caso é a de igualdade como identidade, já que a utilização,
aqui, de um raciocínio metafórico101 possibilita que se
99
Para uma melhor compreensão desse desenvolvimento lógico, pode-se dar o
exemplo das mulheres: no primeiro estágio, a diferença de sexo servia como
pretexto para a desigualdade das mulheres diante dos homens; no segundo
estágio, as mulheres puderam reclamar igualdade de direitos baseadas na
afirmação de que homens e mulheres eram seres humanos merecedores da
mesma dignidade humana. Esse estágio, no entanto, cobrou um preço alto, na
medida em que apagou as diferenças particulares entre os sexos (como a
gravidez, por exemplo), fazendo com que houvesse, na prática, uma nova
desigualdade; por fim, no último estágio, a igualdade entre homens e mulheres
só é alcançada se se reconhece, na própria lei, as diferenças existentes (a
licença-maternidade maior do que a licença-paternidade, por exemplo).
100
―Ao terem sua sexualidade desacreditada, os homossexuais estão sujeitos à
vergonha, molestação, discriminação e violência, enquanto lhes são negados
direitos legais e proteção igual – todas negações fundamentais de
reconhecimento. Gays e lésbicas também sofrem injustiças econômicas sérias;
podem ser sumariamente despedidos de trabalho assalariado e têm benefícios
de previdência social baseados na família negados. Mas longe de estarem
arraigados na estrutura econômica, esses danos derivam de uma estrutura
cultural-valorativa injusta. Consequetemente, o remédio para essa injustiça é
reconhecimento e não distribuição‖ (FRASER, Nancy. Da redistribuição ao
reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: SOUZA, Jessé
(org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática
contemporânea. Brasília: Ed. UnB, 2001, p. 257-258). No mesmo sentido, cf.
LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito ao reconhecimento para gays e
lésbicas. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, ano 2, número 2,
2005, p. 65-95.
101
Para uma análise do papel da metáfora no discurso constitucional, cf.
ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2003, p. 61-67.
97
alcance um nível de abstração no qual, pelo menos para
efeito de questões vinculadas aos usuais direitos de
família, não sejam reconhecidas diferenças juridicamente
relevantes entre as duas situações factualmente diversas.
Como ressalta Rosenfeld,
102
ROSENFELD, Michel. Hacia una reconstrucción de la igualdad constitucional.
In: CARBONELL, Miguel (org.). El principio constitucional de la igualdad. México:
Comisión Nacional de los Derechos Humanos, 2003, p. 69-103.
98
Desta forma, ao se suprimir as diferenças de
orientação sexual, descortina-se outra possibilidade de
proteção constitucional da união estável entre pessoas do
mesmo sexo: o direito à intimidade e à privacidade, que no
caso da nossa Constituição foi expressamente previsto. Ao
afirmar que a diferença em questão não é relevante para o
reconhecimento da união estável, desloca-se a questão da
orientação sexual para o âmbito da intimidade e
privacidade de cada pessoa, de sorte a proteger tanto a
sua auto-determinação (autonomia), quanto a sua auto-
realização (identidade), garantindo, assim, a cada indivíduo
o direito de adotar suas próprias concepções éticas, ou
seja, o direito de escolher o seu próprio modo de vida. 103
A partir disso, compreender o parágrafo terceiro do
artigo 226 da CF/88 como um elenco taxativo é ler a
Constituição contra a própria Constituição. Pois, como
afirma Flávia Piovesan, excluir a possibilidade da união
estável entre pessoas do mesmo sexo a partir do art. 226
―limita os direitos estabelecidos no art. 5º, do mesmo
103
COHEN, Jean L. Democracy, difference and the right to privacy. In:
BENHABIB, Seyla (ed.). Democracy and difference: contesting the boundaries of
the political. Princeton: Princeton University Press, 1996, p. 201-202. Esse
aspecto é, inclusive, uma das dimensões do princípio da dignidade humana.
Segundo Ronald Dworkin, ―o segundo princípio da dignidade humana que
mencionei, insiste que cada um de nós tem a responsabilidade pessoal na
condução de sua própria vida, o que inclui a responsabilidade de tomar e
executar decisões finais sobre o que seria uma vida boa para seguir. Não
devemos nos subordinar à vontade de outros seres humanos ao tomar tais
decisões; não devemos aceitar o direito de ninguém a nos forçar a aceitar uma
perspectiva de sucesso que, a não ser pela coerção, nós não escolheríamos. [...]
O princípio da responsabilidade pessoal autoriza o Estado a nos forçar a viver de
acordo com decisões coletivas de princípio moral, mas o proíbe de ditar
convicções éticas [...]‖ (DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here?
Principles for a new political debate. Princeton: Princeton University Press, 2006,
p. 17; 21).
99
diploma legal, ameaçando o direito à capacidade de
autodeterminação no exercício da sexualidade‖.104 Como
criticamente ressalta Dworkin, ―uma interpretação da
Declaração de Direitos que afirme que um princípio moral
contido num artigo é efetivamente rejeitado por outro artigo
não é um exemplo de flexibilidade pragmática, mas de
hipocrisia‖.105
Por outro lado, enxergar o art. 226 como a
instituição de um rol meramente exemplificativo das
possibilidades de entidade familiar é, justamente por força
do caráter principiológico e constitutivo da Constituição,
uma exigência de um direito civil constitucionalizado106 e
de um conceito de família totalmente repersonalizado. 107
Conforme observa Paulo Luiz Netto Lobo,
104
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad,
1998.
105
DWORKIN, Ronald. O que diz a Constituição. In: O direito da liberdade: a
leitura moral da Constituiçao norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006,
p. 129.
106
MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um direito civil constitucional.
Direito, Estado e Sociedade: Revista do Departamento de Direito da PUC-Rio, n.
1, jul./dez. 1991; PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito
civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; TEPEDINO, Gustavo.
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Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; LOBO, Paulo Luiz Netto.
Constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa, v. 141,
1999.
107
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Revista
Brasileira de Direito de Família, n.24, 2004; TEPEDINO, Gustavo. Novas Formas
de Entidades Familiares: efeitos do casamento e da família não fundada no
matrimônio. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
100
assim entendidas as que preencham
os requisitos de afetividade,
estabilidade e ostensibilidade, estão
constitucionalmente protegidas, como
tipos próprios, tutelando-se os efeitos
jurídicos pelo direito de família e jamais
pelo direito das obrigações, cuja
incidência degrada sua dignidade e das
108
pessoas que as integram.
108
LOBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares constitucionalizadas: para além
do numerus clausus. Revista Brasileira de Direito de Família, n. 12, 2002.
109
MEDEIROS, Jorge Luiz Ribeiro de. Estado Democrático de Direito, igualdade
e inclusão: a constitucionalidade do casamento homossexual. Dissertação de
mestrado apresentada na Faculdade de Direito da UnB, 2007; BARROSO, Luis
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Direito Civil. Ano 1, v. 1, jan/mar., 2000; SARMENTO, Daniel. Casamento e união
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101
MOVIMENTOS INTERNACIONAIS PELO FIM DA
CEGUEIRA: O DIREITO À LIVRE ORIENTAÇÃO
SEXUAL NO ÂMBITO DA ONU E DA OEA
ARTIGO 26
Todas as pessoas são iguais perante a
lei e têm direito, sem discriminação
alguma, a igual proteção da lei. A este
respeito, a lei deverá proibir qualquer
forma de discriminação e garantir a
todas as pessoas proteção igual e eficaz
110
RE 349703 e RE 466343. O julgamento foi realizado na data de 03.12.2008.
111
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Memorial em prol de uma nova
mentalidade quanto à proteção dos direitos humanos nos planos internacional e
nacional. Boletim da Sociedade brasileira de direito internacional, Brasília, n. 113-
118, 1998. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional
internacional. São Paulo: Saraiva, 2007.
112
Cf. o Decreto Federal nº 592/1992 e o Decreto Federal nº 678/1992.
102
contra qualquer discriminação por motivo
de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou de outra natureza,
origem nacional ou social, situação
econômica, nascimento ou qualquer
outra situação.
ARTIGO 24
Igualdade Perante a Lei
Todas as pessoas são iguais perante a
lei. Por conseguinte, têm direito, sem
discriminação, a igual proteção da lei.
ARTIGO 29
Normas de Interpretação
Nenhuma disposição desta Convenção
pode ser interpretada no sentido de:
a) permitir a qualquer dos Estados
Partes, grupos ou pessoas, suprimir o
gozo e exercício dos direitos e liberdades
reconhecidos na Convenção ou limitá-los
em maior medida do que a nela prevista;
b) limitar o gozo e exercício de qualquer
direito ou liberdade que possam ser
reconhecidos de acordo com as leis de
qualquer dos Estados Partes ou de
acordo com outra convenção em que
seja parte um dos referidos Estados;
c) Excluir outros direitos e garantias
que são inerentes ao ser humano ou
que decorrem da forma democrática
representativa de governo; e
d) excluir ou limitar o efeito que possam
produzir a Declaração Americana dos
103
Direitos e Deveres do Homem e outros
atos internacionais da mesma natureza.
113
Importante registrar que a Corte Européia de Direitos Humanos – não
obstante o fato de o Brasil não estar sujeito à sua jurisdição – possui um vasto
conjunto de decisões garantindo o direito à livre orientação sexual e
estabelecendo a proibição de discriminação em razão de tal fato: Dudgeon v.
United Kingdom (1981); Norris v. Ireland (1991); Modinos v. Cyprus (1993);
Salgueiro da Silva Mouta v. Portugal (1999); Smith and Grady v. United Kingdom
(1999); Goodwin v. United Kingdom (2002); Van Kuck v. Germany (2003); Karner
v. Austria (2003); L. and V. v. Austria (2003).
104
os Direitos da Criança e o Grupo de Trabalho da ONU
sobre Detenção Arbitrária.114
Sem prejuízo da força de tais decisões, pode-se
constatar uma permanente movimentação no sentido de se
reconhecer textualmente a proteção à livre orientação
sexual. Aqui, vale citar a iniciativa do Brasil em 2003, na
59ª sessão do Comitê de Direitos Humanos da ONU, ao
introduzir uma ―proposta de resolução sobre a orientação
sexual e os direitos humanos‖. Em outra ocasião – um
evento em Nova Yorque em novembro de 2007 –, o Brasil
deu suporte para que a ONU adotasse uma Carta Global
(Princípios de Yogyakarta) sobre o direito à livre orientação
sexual e à identidade de gênero.115 Mais recentemente, em
dezembro de 2008, o Conselho de Direitos Humanos da
ONU editou uma resolução, assinada pelo Brasil, no intuito
de combater a criminalização da homossexualidade.116
Iniciativa semelhante foi feita pela delegação
brasileira na Organização dos Estados Americanos (OEA)
114
Cf. Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Comentário
Geral nº 15, E/C.12/2002/11, 20 de Janeiro de 2002, parágrafo13; Comentário
Geral nº 14, E/C.12/2000/4, 11 de agosto de 2000, parágrafo18. Comitê sobre os
Direitos das Crianças, Comentário Geral nº 4, CRC/GC/2003/4, 1º de julho de
2003, parágrafo 6; Comentário Geral nº 3, CRC/GC/2003/3, 17 de Março de
2003, parágrafo 8. Relatórios do Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária,
E/CN.4/2004/3, 15 de dezembro de 2003, parágrafo 73; E/CN.4/2003/8, 16 de
dezembro de 2002, parágrafos 68-69 e 76. Opiniões adotadas Grupo de Trabalho
sobre Detenção Arbitrária nº 7/2002, Egito, E/CN.4/2003/8/Add.1, 24 de janeiro
de 2003. Veja, igualmente, o Estudo sobre a garantia de não-discriminação
prevista no artigo 2º, parágrafo 2º, do Pacto Internacional sobre os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, Working Paper preparado por Emmanuel
Decaux, E/CN.4/Sub.2/2004/24, 18 de julho de 2004, parágrafo 22.
115
HUMAN RIGHTS WATCH, UN: Support Global Gay Rights Charter,
05.11.2007. Disponível em
<http://hrw.org/english/docs/2007/11/05/global17251.htm>.
116
Vide:
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/12/081219_gay_onu.sh
tml>.
105
em 2008. Ao contrário da tentativa realizada na ONU, a
proposta brasileira na OEA obteve sucesso e, em 03 de
junho, foi aprovada, por consenso de 34 países
americanos, a Resolução AG/RES-2435(XXXVIII-O/08)
"Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de
Gênero‖. No referido documento, ficou resolvido o
seguinte:
2. Encarregar a Comissão de
Assuntos Jurídicos e Políticos (CAJP)
de incluir em sua agenda, antes do
Trigésimo Nono Período Ordinário de
Sessões da Assembléia Geral, o
tema "Direitos humanos, orientação
sexual e identidade de gênero".
3. Solicitar ao Conselho Permanente
que informe a Assembléia Geral, em
seu Trigésimo Nono Período
Ordinário de Sessões, sobre o
cumprimento desta resolução, que
será executada de acordo com os
recursos alocados no orçamento-
programa da Organização e outros
recursos.
106
de entidade familiar protegida constitucionalmente. Ainda
mais diante de inúmeras decisões judiciais, de diversos
tratados ratificados pelo Brasil e da conduta da
Administração Pública Federal em diversas decisões
administrativas, políticas públicas e manifestações jurídicas
(AGU).
107
the mongrel, the mulato, the half-breed,
the half dead; in short, those who cross
over, pass over, or go through the
117
confines of the normal.
117
ANZALDÚA, Glória. Borderlands/La frontera: the new mestiza. São Francisco:
Aunt Lute Books, 1999, p. 25.
118
ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2003, p. 64.
108
É nesse sentido que os direitos fundamentais
pressupõem a exigência moral, universal e abstrata do
reconhecimento dos princípios da igualdade e da
liberdade. O constitucionalismo moderno requer a diluição
da unidade e homogeneidade típicas das sociedades
tradicionais, pois somente numa sociedade complexa onde
figure a distinção entre direito, moral e ética é que pode
aflorar o pluralismo que lhe é inerente.
Voltando à obra de Saramago, mais
especificamente no final de Ensaio sobre a Cegueira, um
dos personagens do livro indica – logo após o término da
terrível experiência de não enxergar nada – a possível
causa de toda aquela repentina deficiência visual. Para ele,
―penso que não cegámos, penso que estamos cegos,
Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem‖.119 Esse é
o risco paradoxal que corremos o tempo todo: de ser um
cego que enxerga; de conseguir olhar o mundo, mas não
ver as injustiças cometidas.
Contra esse perigo permanente, faz-se obrigatório
perceber que a Constituição, ao constituir uma comunidade
de princípios, deve estar sempre aberta a novas
inclusões, isto é, a novas formas de olhar as injustiças
cometidas pela humanidade, de forma a conseguir repará-
las. Pois, como diz um dos personagens de Saramago, ―o
pior cego é aquele que não quer ver‖.120
119
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004, p. 310.
120
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004, p. 283.
109
REFERÊNCIAS
110
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112
FEMINISMO E DIREITO
*
Eduardo Ramalho Rabenhorst
INTRODUÇÃO
*
Diretor e Professor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da
Paraíba. Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
da mesma instituição.
113
pesquisa na área, como bem mostrou pesquisa recente121.
É bem verdade que não são poucas as organizações e
entidades que trabalham com o tema dos direitos das
mulheres em nosso país, e realizam intervenções
feministas na prática, porém no que concerne ao interesse
pela reflexão teórica feminista sobre o direito propriamente
dita, a carência é quase que absoluta.
Ora, o que poderia justificar tal desinteresse por
uma perspectiva de análise, julgada, até mesmo pelos
seus críticos mais severos, como uma das mais
importantes entre aquelas produzidas na segunda metade
do século XX? É bem verdade que os chamados gender
studies parecem formar uma espécie de ―clube fechado‖,
supostamente constituído por pesquisadoras altamente
especializadas, que trabalham com categorias e temas
próprios, publicam em língua inglesa, e discutem apenas
entre si. Porém, no entendimento de muitas feministas, o
que realmente explica a desconfiança dos estudos
jurídicos em relação à teoria feminista é o fato de que
neles ainda perdura uma representação do direito como
técnica de controle social neutra, universal e abstrata,
quando, na verdade, o direito já representa — por
distorção, uso ou definição — um ponto de vista
previamente sexualizado122. Daí porque, como
oportunamente sublinham os editores de um periódico
francês dedicado ao tema, aos olhos dos juristas a
abordagem feminista parece ensejar mais ―uma teoria
121
BUGLIONE, Samantha. Um laboratório tipicamente brasileiro: Gênero e
Direito no Brasil. Texto inédito elaborado para a Fundação Ford. 2008, p. 10.
122
OLSEN, Frances. El sexo del derecho, In: RUIZ, Alicia E. C. (Compil.).
Identidad femenina y discurso jurídico. Buenos Aires: Bilos, 2000, p. 14.
114
contra o direito do que propriamente uma teoria no
direito‖123 .
De fato, o feminismo, nas suas mais variadas
versões, das quais trataremos mais adiante, sempre se
posicionou de forma crítica em relação ao direito. Além de
suspeitar da estabilidade abstrata das categorias jurídicas,
o que fez com que este movimento guardasse proximidade
com a chamada ―teoria crítica‖, a perspectiva feminista
propôs uma aproximação radical dos temas e problemas
tratados no âmbito da reflexão teórica sobre o direito, em
especial daqueles atinentes aos campos da teoria da
justiça e dos direitos humanos. No âmago desta
abordagem, encontra-se a desconfiança de que o direito
instauraria e manteria, com maiores ou menores sutilezas,
um sistema de dominação que subjugaria e inferiorizaria as
mulheres e os grupos com sexualidade dissidente em
relação aos padrões tradicionais.
Importa observar, no entanto, que nem todas as
perspectivas feministas são tão céticas em relação ao
direito. Para Patrícia Williams124, por exemplo, a linguagem
dos direitos desempenha um papel fundamental no
processo de emancipação dos sujeitos subalternos. Com
efeito, para quem nunca teve sua dignidade reconhecida
ou dela foi despojado, poder ver-se como sujeito de
direitos é uma aquisição fundamental que só pode ser
123
REVILLARD, Anne. LEMPEN, Karine. ―A la récherche d´une analyse féministe
du droit dans les écrits francophones‖. Nouvelles Questions Féministes, vol 28,
n. 2, 2008, p. 6.
124
WILLIAMS, Patrícia. ―La douloureuse servitude des mots: conte à deux voix‖.
In: COLLIN, F e DEUTSCHER, P. Repenser le politique. Paris: Campagne
Première, 2004, p. 37
115
desprezada por aqueles que estão confortavelmente
abancados na formalidade do mundo jurídico.
É preciso, portanto, compreender bem o significado
do feminismo como abordagem crítica do direito. E para
tanto, cumpre entender o próprio percurso histórico e
conceitual do feminismo e a grande variedade de teses
construídas por este movimento social acerca do direito.
Tal é o escopo principal deste breve texto, cuja estrutura é
bastante incipiente. Iniciaremos com um breve relato da
trajetória histórica do feminismo, destacando a crítica
epistemológica e social como elemento transversal. Em
seguida, apresentaremos os principais posicionamentos
feministas em relação à teoria do direito. Por fim,
destacaremos alguns temas específicos que se
sobressaem dentro desta análise.
116
três ―vagas‖ 125. A primeira delas vai da Revolução
Francesa até o final da Primeira Grande Guerra. É o
chamado ―feminismo igualitário‖, liberal ou marxista, que se
preocupa fundamentalmente em identificar as causas da
discriminação das mulheres e em reivindicar igualdade
entre elas e os homens, sobretudo no plano dos direitos
civis e políticos. A segunda vaga, por seu turno, refere-se
ao ressurgimento do movimento feminista na década de
1960 e o desenvolvimento de uma postura ―radical‖ que
identifica a ―raiz‖ da dominação masculina na estrutura do
patriarcado. Por fim, a partir da década de 1990, emergem
as posturas teóricas ditas ―pós-feministas‖ que denunciam
o fato de que o próprio discurso feminista estaria dominado
por um ponto de vista ocidental, branco e heterossexual,
que deixaria de lado os interesses e desejos de muitas
mulheres, como também de outros grupos subalternos.
Para Louise Toupin126, em torno de três questões
fundamentais é que se articulariam os grandes momentos
da trajetória feminista: Qual é causa da posição
subordinada das mulheres? Em quais lugares ou espaços
tal posição se expressa? Que estratégias podem ser
empregadas para superar esta situação de subordinação?
Entende o feminismo igualitário do tipo liberal que a
causa da subordinação feminina estaria assentada nos
preconceitos e estereótipos acerca das mulheres, e o
125
Muitas feministas discordam desta abordagem, pois ela pode ensejar alguns
equívocos quanto ao surgimento do feminismo e à própria unidade deste
movimento. Para uma crítica desta narrativa em três ―ondas‖ vide, por exemplo,
AMOROS, Célia (1997). Tiempo de feminismo. Sobre feminismo, proyecto
ilustrado y postmodernidad. Madrid: Cátedra, 1997, p. 4
126
TOUPIN, Louise. ―Les courants de La pensée féministe‖. 1998. Disponível em:
<http://classiques.uqac.ca/contemporains/toupin_louise/courants_pensee_féminis
te/courants_pensee.htm>. Acesso em: 20 out. 2009.
117
espaço maior de manifestação desta dominação seria a
própria vida pública. No caso da cultura ocidental, desde a
Antiguidade a imagem da mulher é a de um ser inferior por
natureza, condenado ao espaço doméstico. Para
Aristóteles, por exemplo, as mulheres carecem da
racionalidade exigida para o exercício da política. Da
mesma forma, Kant defendeu que as mulheres não seriam
capazes de operar com uma moral calcada no dever ou em
princípios formais e abstratos. Contra estas idéias, o
feminismo igualitário liberal advoga que o sexo natural não
é o que define as capacidades de cada um. São o
processo de socialização e a educação que determinam a
hierarquia entre os indivíduos. Daí que a estratégia de
reversão da situação de subordinação das mulheres seria
a supressão de leis discriminatórias que impediriam o
acesso das mulheres ao espaço público e a elaboração de
uma prática educativa não sexista.
O feminismo igualitário do tipo marxista, por sua
vez, entende que a causa da subordinação feminina adviria
da própria organização econômica, e seu lugar de
expressão, portanto, seria a economia e o mundo do
trabalho. Por conseguinte, o caminho para a libertação das
mulheres estaria na abolição da propriedade privada e na
transformação da divisão sexual do trabalho. O feminismo
marxista, no entanto, como oportunamente assinalou
Christine Delphy127, foi levado a contradições
incontornáveis ligadas à própria dificuldade de
reconhecimento, por parte do marxismo dito ―ortodoxo‖, do
trabalho doméstico como efetivo trabalho, como também
da divisão dos sexos como fato não natural.
127
DELPHY, Christine . L’ennemi principal, II. Penser le genre, Paris, Syllepse,
2001, p. 45.
118
Na década de 1960, o movimento feminista
ressurge, contestando essas duas grandes perspectivas
igualitárias que acabamos de mencionar. Doravante, não é
a igualdade, mas a diferença que se converte no mote
principal do discurso feminista. As mulheres são distintas
dos homens, seja por razões políticas, seja em decorrência
de sua própria ―natureza‖. No primeiro caso, temos o
feminismo dito ―radical‖, corrente que estima ser a causa
última da dominação masculina sobre as mulheres o
patriarcado, concebido ao mesmo tempo como o um
sistema de pensamento e uma prática social de afirmação
do poder dos homens contra as mulheres, que se expressa
principalmente sobre o corpo delas. Para o feminismo
radical, portanto, a superação do patriarcado passa pela
construção de uma cultura feminina, pela luta contra as
manifestações estéticas e éticas deste poder masculino e,
no entender de alguns prismas mais radicais, pela própria
separação dos homens128.
A segunda forma do feminismo da diferença,
também chamado de feminismo da ―feminilidade‖, acredita
que a mulheres manifestariam um sentido diferente do self,
mais aberto, atento e solicito em relação aos outros,
derivado da própria experiência de seus corpos e da
maternidade. Esta segunda forma de expressão do
feminismo da diferença ensejou reivindicações de uma
forma especificamente feminina de tratamento dos
128
DESCARRIES, Francine. ―Théories feminists: essai de typologie‖.
Questionnements et pratiques de recherches féministes. Montréal: Les
Presses de l'Université du Québec, 1990, p. 54.
119
problemas morais comumente conhecida como ―ética do
cuidado‖129 .
Por se configurarem como posturas de denúncia e
de combate contra a organização das relações de sexo e a
posição/condição subordinada que as mulheres ocupam na
vasta maioria das sociedades, os diversos tipos de
feminismo são, por definição, práticas teóricas críticas.
Porém, no entender de Nancy Fraser130 uma perspectiva
feminista apenas pode ser vista como efetivamente ―crítica‖
sob duas condições: (1) a partir da idoneidade com que ela
teoriza a situação e o ponto de vista daquele movimento
social; (2) desde que ela realmente sirva para a
autoclarificar as lutas e desejos das mulheres. Dessa
forma, nem toda postura feminista seria crítica, da mesma
forma que nem toda teoria crítica atenderia realmente aos
interesses das mulheres. Uma teoria crítica nos
parâmetros habermasianos, por exemplo, apresenta
problemas, na medida em que não parece capaz de levar
em consideração os obstáculos de acesso à esfera pública
impostos às mulheres, tanto no sentido da participação no
espaço dos debates, quanto no plano da ocupação dos
mesmos.
Uma teoria feminista crítica deve proporcionar uma
sinergia entre crítica social e crítica epistemológica. Como
tal, ela deve, em primeiro lugar, questionar os próprios
parâmetros sob os quais tradicionalmente se assentou o
conhecimento científico. Com efeito, não seria este
saturado de perspectivas e valores androcêntricos? Não
129
GILLIGAN, Carol. Uma voz diferente. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,
1984, p. 55.
130
BENHABIB, Seyla e CORNELL, Drucilla. Feminismo como crítica da
Modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, s/d, p. 67.
120
estaria a ciência a serviço dos interesses masculinos? Não
são perguntas simples. Que as mulheres foram — e de
algum modo continuam a ser — excluídas do processo de
produção do conhecimento não há como se contestar 131.
Que muitas teorias científicas surgiram para justificar uma
ideologia ou estrutura de poder masculina (ou
heterossexual) também não parece ser difícil de provar132.
Resta saber, porém, se a teoria científica está condenada
a permanecer assim e, caso a resposta venha a ser
positiva, se existe um ponto de vista feminino sobre o
conhecimento científico capaz de oferecer uma alternativa
ao modelo tradicional.
A resposta ao questionamento acima dependerá do
tipo de perspectiva feminista acerca da ciência com a qual
estamos lidando. Segundo Harding133 são três as principais
orientações feministas sobre o conhecimento científico: o
empiricismo feminista (feminist empiricism), as teorias do
ponto de vista feminino (feminist stand-point) e o feminismo
pós-moderno (feminist postmodernism). O empirismo
feminista não questiona os valores tradicionais da ciência,
mas busca eliminar as discriminações sexistas presentes
na prática científica. O chamado ponto de vista feminino,
por seu turno, reivindica a existência de uma perspectiva
especificamente feminina sobre o conhecimento, fruto da
experiência singular das mulheres, que deveria ser levada
em conta pela prática científica. Reconhecendo que esta
131
HARDING, Sandra. Ciência y feminismo. Madrid: Ediciones Morata, 1996, p.
34.
132
GERGEN, Mary McCanney. O pensamento feminista e a estrutura do
conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos: Edunb, 1993, p. 89.
133
HARDING, Sandra. Ciência y feminismo. Madrid: Ediciones Morata, 1996, p.
56.
121
experiência é plural — vez que as mulheres concretas não
se deixam subsumir a uma única categoria, mas elas são
brancas, negras, lésbicas, operárias, imigrantes etc. — não
haveria um único prisma feminino sobre a ciência, mas
uma multiplicidade deles. Por fim, o feminismo pós-
moderno questiona de maneira radical os valores sobre os
quais se fundamenta a noção tradicional de ciência. Não
obstante todas as diferenças, os três prismas compartilham
da mesma opinião quanto à necessidade de superação da
cesura positivista entre conhecimento e valor, e reclamam
um novo entendimento sobre a noção de objetividade
científica. No mais, todos advogam a não separação entre
teoria científica e práxis política.
Para Christine Delphy134, toda teoria é produto de
circunstâncias históricas, seja ela consciente disso ou não.
Porém, que ela tenha consciência deste fato faz toda a
diferença, pois uma teoria que ignora sua dependência das
circunstâncias históricas termina por reforçar o mito da
neutralidade e passa a servir à opressão social. Esta
perspectiva de um ―saber situado‖ é, pois, fundamental
para o feminismo, vez que o que caracteriza tal abordagem
é exatamente a reinserção do histórico e do político, isto é,
das relações de poder, naquilo que foi concebido como
fora da história e da política, e, por conseguinte, como
alheio à ciência: os papéis sexuais, a organização familiar,
as tarefas domésticas, a sexualidade, o corpo etc135.
Na verdade, o que está em jogo nesta discussão
sobre a objetividade não é tanto o rigor exigido da ciência
134
DELPHY, Christine. L’ennemi principal, II. Penser le genre, Paris, Syllepse,
2001, p. 22.
135
DORLIN, Elsa. Sexe, genre et sexualités. Paris: PUF, 2008, p. 10.
122
(algo que só pode ser garantido pelos próprios métodos
qualitativos ou quantitativos empregados), mas sim a
própria delimitação entre os saberes majoritários e os
saberes minoritários, estes últimos concebidos como
formas de conhecimento menos ―empoderadas‖136. Trata-
se, finalmente, de determinar o que conta e o que não
conta como conhecimento científico. Os saberes
majoritários, portanto, expressam sempre a posição
daqueles que dominam, e isso é o que vem a ser
considerado como ciência. O conhecimento científico, logo,
não tem nada de neutro. Necessariamente situado no
âmbito de uma relação de poder, ele já é a expressão de
um ponto de vista. Daí a elaboração por parte de
Harding137 do conceito de ―objetividade forte‖ no sentido de
que a verdadeira objetividade exige que os cientistas
sejam conscientes de sua posição histórica e socialmente
situada. Donde também a reivindicação, por parte desta
autora, de que a ciência deveria assemelhar-se à
democracia, reconhecendo e acolhendo a diversidade de
perspectivas, notadamente aquelas que são
marginalizadas ou excluídas.
Uma análise semelhante da objetividade científica
foi feita por Donna Haraway138. Partindo de uma diferença
entre o ―eles‖ e o ―nós‖, os primeiros concebidos como
cientistas brancos abancados nos laboratórios de
pesquisa, esta autora se recusa a estabelecer a separação
136
GUILLAUMIN, Colette. Sexe, Race et Pratique du pouvoir. L´idée de nature.
Paris: Éditions côté-femmes, 1992, p. 38.
137
HARDING, Sandra. Ciência y feminismo. Madrid: Ediciones Morata, 1996
apud DORLIN, Elsa. Sexe, genre et sexualités. Paris: PUF, 2008, p. 28.
138
HARAWAY, Donna. Manifeste cyborg et autres essais. Paris: Exils Éditeur,
2007, p. 67.
123
entre sujeito e objeto exigida pelos cânones habituais, e
reivindica que este último seja reconhecido como algo
capaz de agir. No mais, lembra Haraway, se ―teoria‖, em
sentido etimológico significa visão, importa lembrar que
não podemos observar senão o que somos capazes de
ver, e isso sempre a partir do lugar social e político que
ocupamos ou podemos ocupar.
139
LACEY, Nicola. ―Feminist Legal Theory and the Rights of Women‖, In: KNOP,
Karen. Gender and Human Rights. Oxford University Press, 2004, p. 46.
140
SMART, Carol. ―The Woman of Legal Discourse‖, Social and Legal Studies,
1, 1992, p.29- 44.
141
OLSEN, Frances. El sexo del derecho, In: RUIZ, Alicia E. C. (Compil.).
Identidad femenina y discurso jurídico. Buenos Aires: Editorial Bilos, 2000, p.
14.
124
focos principais de suas preocupações a luta contra a tese
da inferioridade feminina, a busca de uma igualdade formal
entre os sexos e a extensão da cidadania às mulheres.
Para estas feministas, o direito, apesar de discriminar as
mulheres, direta ou indiretamente, não é, por vocação,
masculino. Ele o é apenas por distorção, podendo assim
ser reformado de modo a tornar-se objetivo, racional e
imparcial. As teorias feministas que abraçaram esta
representação do direito foram atacadas praticamente nos
mesmos pontos nos quais o liberalismo político como um
todo costuma ser criticado: individualismo excessivo,
concepção negativa da liberdade e ponto de vista formal
sobre a igualdade, entre outros. Mas também sofreram
duras críticas por não perceberem que ―o pessoal é
político‖, isto é, que a distinção entre esfera privada e
esfera pública, propugnada pelo pensamento liberal,
legitima o confinamento das mulheres no espaço
doméstico e torna a família imune a uma reflexão em
termos de justiça142 .
A segunda forma feminista de pensar o direito
acredita que este é intrinsecamente masculino. Em outros
termos, o compromisso que o direito mantém com a
dominação masculina (e heterossexual) não seria
contingencial ou episódico, mas faria parte da própria
natureza do jurídico. Daí que as mulheres não podem
confiar no direito e menos ainda no Estado, instância
instauradora e mantenedora desta estrutura legal
opressiva. Por trás da aparente neutralidade das
categorias jurídicas esconde-se uma adesão prévia ao
modelo patriarcal. O sujeito de direito abstrato propugnado
142
OKIN, Susan . ―Gênero, o público e o privado‖. Estudos Feministas,
Florianópolis, 16(2), maio-ago. 2008, p. 27.
125
pela teoria tradicional do direito, por exemplo,
simplesmente não existe. Como escreve Anna Loretoni143,
―de maneira nenhuma assexuado, neutro, sem cor e
pertencimento social, o indivíduo moderno resulta, nas
sociedades ocidentais, rigidamente determinado: possui as
características definidas pelos grupos dominantes‖.
A terceira posição feminista sobre o jurídico
concebe o direito como sexuado. Conforme observa C.
Smart, se no primeiro momento o feminismo buscou um
direito para além do gênero, e no segundo, um direito para
os dois gêneros, neste terceiro momento, por sua vez, ele
está mais interessado em compreender o modo como o
gênero opera no direito e ajuda a construí-lo. Donde a
percepção de que o direito é uma ―tecnologia do gênero‖.
Nesta nova etapa, interessa também às feministas
incorporar uma abordagem racial e crítica das heranças e
permanências do colonialismo, que reconhece a
diversidade de experiência das mulheres concretas144 .
O feminismo, portanto, nas suas variadas
formas de expressão, sempre desenvolveu uma postura
profundamente questionadora em relação ao direito. E o
alvo principal deste questionamento foi principalmente o
formalismo jurídico e sua representação do direito como
um sistema completo, coerente, unívoco, elaborado por um
legislador racional e aplicado por um juiz neutro e
imparcial. Concordam as feministas que esta visão estaria
ancorada em uma teoria política liberal, seja fortemente
criticável (feministas radicais), seja jamais realizada por
143
LORETONI, Anna. ―Estado de direito e diferença de gênero‖, In: COSTA,
Pietro e ZOLO, Danilo. O Estado de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.
493.
144
DORLIN, Elsa. Sexe, genre et sexualités. Paris: PUF, 2008, p. 16.
126
completo (feministas liberais). Esta teoria política liberal,
que oferece sustentação ao formalismo jurídico, parte de
uma concepção ―neutral‖ do Estado, idealizado
conceitualmente como espectador racional que trata
indivíduos autônomos e racionais a partir de um mesmo
princípio de igual consideração e respeito. Ora, como
vimos, as feministas, mesmo as liberais, discordam desta
representação do direito e denunciam o papel que este
último cumpre na criação e manutenção de modalidades
de opressão. Dessa forma, ao contrário do que sustenta o
formalismo jurídico, o direito é indeterminado, inconsistente
e ambíguo em relação às questões de gênero, como
podem mostrar diversos exemplos colhidos na realidade de
variados países, inclusive os supostamente mais
desenvolvidos (leis discriminatórias, interpretações
sexistas, categorias doutrinais fundadas em estereótipos
etc.).
Mesmo apresentando pontos em comum, as
feministas não estão completamente de acordo quanto à
função do direito. Como foi dito no início deste texto,
muitas autoras estimam que na crítica do campo jurídico,
importa não jogar fora o bebê junto com a água do banho.
Como observa Patrícia Williams145, a configuração de
direitos permite dar voz àqueles que sempre foram
silenciados e excluídos do espaço público. Não se pode
esquecer que a emancipação dos grupos que ainda hoje
vivem em uma situação de opressão e de sulbaternidade,
tem como condição prévia o reconhecimento jurídico de
145
WILLIAMS, Patrícia. ―La douloureuse servitude des mots: conte à deux voix‖.
In: COLLIN, F e DEUTSCHER, P. Repenser le politique. Paris: Campagne
Première, 2004, p. 28.
127
suas próprias existências enquanto pessoas. Neste
sentido, uma teoria crítica do direito muito radical tende a
esquecer que a relação com a lei é definida pela
percepção que cada sujeito tem de seu próprio poder. Daí
que, acredita Willians, aos desfavorecidos interessa muito
o formal imposto pela gramática dos direitos.
128
outras coisas. Mas a desconstrução da separação
público/privado não diz respeito apenas à intervenção
feminista na prática. Ela também permite a elaboração de
uma crítica radical à filosofia política moderna em sua
versão contratualista. Com efeito, para algumas feministas
dedicadas ao tema, em especial Carole Pateman, as
teorias do contrato social, mesmo aquelas
contemporâneas como é o caso da teoria da justiça de J.
Rawls, são construídas a partir de um prisma que concebe
as mulheres como naturalmente inadequadas para a
participação política. Invariavelmente, os contratantes são
―chefes de família‖ masculinos, que falam e argumentam
enquanto sujeitos racionais e objetivos, ignorando que a
saída deles para a esfera pública dialógica pressupõe um
contrato sexual prévio que trai os princípios liberais de
autonomia e de igual oportunidade147.
A crítica à separação público/privado tem enorme
relevância para o direito. Afinal, tal separação aparece
como uma espécie de pano de fundo jamais explicitado de
muitas das categorias legais e doutrinais do direito. No
mais, ela permite compreender o desinteresse das teorias
da justiça sobre a família como núcleo primário de
agregação e convivência, como também das relações de
poder. Neste sentido, no discurso jurídico dominante a
família é vista como natural e legítima, devendo ser
preservada das intervenções estatais148.
147
PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p.
12.
148
FACCHI, Alessandra. ―Il pensiero feminista sullo diritto: um percorso da Carol
Gilligan a Tove Sthang Dhal‖. In: ZANETTI, G. Filosofia del diritto
contemporanei. Milano: Cortina, 1999, p. 89.
129
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
130
LACEY, Nicola (2004). ―Feminist Legal Theory and the Rights of Women‖, In:
KNOP, Karen. Gender and Human Rights. Oxford University Press.
LORETONI, Anna (2006). ―Estado de direito e diferença de gênero‖, In: COSTA,
Pietro e ZOLO, Danilo. O Estado de direito. São Paulo: Martins Fontes.
MACKINNON, C. (1998). Hacia una teoria feminista del Estado. Madrid: Cátedra.
MILLET, Kate (1974). Política Sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
OKIN, Susan (2008). ―Gênero, o público e o privado‖. Estudos Feministas,
Florianópolis, 16(2), maio-ago. 2008.
OLSEN, Frances (2000). El sexo del derecho, In: RUIZ, Alicia E. C. (Compil.).
Identidad femenina y discurso jurídico. Buenos Aires: Editorial Bilos.
PATEMAN, Carole (1993). O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
REVILLARD, Anne. LEMPEN, Karine (2008). ―A la récherche d´une analyse
féministe du droit dans les écrits francophones‖. Nouvelles Questions Féministes,
vol 28, n. 2.
SMART, Carol (1992). ―The Woman of Legal Discourse‖, Social and Legal
Studies, 1, pp.29- 44.
TOUPIN, Louise (1998). ―Les courants de La pensée féministe‖. Disponível em:
<http://classiques.uqac.ca/contemporains/toupin_louise/courants_pensee_féminis
te/courants_pensee.htm>. Acesso em: 20 out. 2009.
WILLIAMS, Patrícia (2004). ―La douloureuse servitude des mots: conte à deux
voix‖. In: COLLIN, F e DEUTSCHER, P. Repenser le politique. Paris: Campagne
Première.
131
132
TIPIFICACIÓN DEL FEMICIDIO / FEMINICIDIO:
OTRA VÍA HACIA EL ABANDONO DE LA
NEUTRALIDAD DE GÉNERO EN EL DERECHO
PENAL FRENTE A LA VIOLENCIA CONTRA LAS
MUJERES
*
Patsilí Toledo Vásquez
*
Abogada, investigadora invitada del Departamento de Ciencias Penales de la
Facultad de Derecho de la Universidad de Chile. Realiza su investigación
doctoral en el Departamento de Ciencia Política y Derecho Público de la
Universidad Autónoma de Barcelona, donde también integra el Grupo de
Investigación Antígona.
133
de Costa Rica149 y Guatemala150, las primeras en un
proceso de debate político y legislativo que también se
lleva adelante en otros países latinoamericanos151. Estas
152
nuevas leyes brindan reconocimiento jurídico expreso
a un fenómeno de alcance global que ha comenzado
a ser nombrado y visibilizado como tal desde hace más
de una década, desarrollándose en esta región como uno
de los temas más interesantes y complejos en el plano
teórico y político sobre violencia contra las mujeres en la
actualidad.
A través de estas nuevas leyes se introduce con
más fuerza la visión jurídico penal a la reflexión y discusión
en torno a esta forma extrema de violencia contra
las mujeres, hasta ahora fundamentalmente
desarrollada desde aproximaciones sociológicas y
antropológicas. Sin embargo, desde la perspectiva
penal, estas nuevas tipificaciones en Latinoamérica
no se encuentran al margen de una tendencia ya
marcada por legislaciones penales europeas –sueca y
española, en particular- que en los últimos años, de igual
forma, abordan la violencia contra las mujeres a través de
normas que abandonan expresamente el paradigma de la
149
Ley para la Penalización de la Violencia contra la Mujer. Ley N.° 8589.
Publicada en La Gaceta el 30 de mayo de 2007.
150
Ley contra el Femicidio y otras formas de Violencia contra la Mujer. Decreto N°
22-2008 del Congreso de la República de Guatemala, publicado en el Diario de
Centro América el 7 de mayo de 2008.
151
Existen proyectos de ley o iniciativas legislativas en este sentido en
Chile, Paraguay, México y las Entidades Federativas mexicanas de Chihuahua
y Sinaloa.
152
El único antecedente lo constituye la Ley General de Acceso de las
Mujeres a una Vida Libre de Violencia, de México (publicada en el Diario
Oficial de la Federación el 1 de febrero de 2007), que alude expresamente a la
violencia feminicida, concepto a partir del cual se articulan diversas
medidas de prevención y de protección de las mujeres.
134
neutralidad de las leyes penales. Desde esta perspectiva,
es posible entender la tipificación del femicidio no sólo
como la penalización de un fenómeno de relevancia
global, sino también como la cristalización más clara de
una tendencia penal que se desarrolla desde hace más
de una década y que se extiende más allá de las
fronteras de los países latinoamericanos.
153
Caputi, Jane y Russell, Diana. Femicide: Speaking the Unspeakable.
Ms. Magazine, Septiembre/Octubre, 1990. Una versión más amplia
es publicada dos años más tarde: Radford, Jill y Russell, Diana. Femicide:
The Politics of Woman Killing. New York, Twayne Publishers, 1992.
135
no se reconocen suficientemente los derechos
reproductivos de las mujeres, los suicidios de mujeres en
contextos de violencia de género, las muertes de mujeres
como consecuencia de intervenciones quirúrgicas
innecesarias basadas en consideraciones de género –
como cirugías plásticas e histerectomías – o de la
mutilación genital, o como consecuencia de la transmisión
del VIH por parte de sus parejas íntimas154. Desde esta
perspectiva, también la práctica del aborto selectivo de
fetos femeninos en países como India y China, es
considerada una forma de femicidio, en atención a su
sustrato sexista o misógino.
De esta forma, con el advenimiento de la
expresión femicidio se hacen visibles y se nombran de
una manera específica un amplio conjunto de
muertes de mujeres que, hasta entonces, engrosaban
indeterminadamente las estadísticas criminales y
sanitarias. Así, se transforma en una valiosa herramienta
para la investigación y acción política feminista, dando un
nuevo impulso a investigaciones y estudios en diversos
países155, así como a un desarrollo teórico que busca
154
Considerando la menor autodeterminación sexual de las mujeres al respecto
y su mayor vulnerabilidad a la violencia sexual. Russell, Diana. AIDS as
Mass Femicide: Focus on South Africa. En: Russell, D. y Harmes, R.
Femicide in Global Perspective. New York, Teachers College Press, 2001.
155
Entre otros, en Latinoamérica: Carcedo, Ana y Sagot, Montserrat, Femicidio
en Costa Rica. 1990-1999, San José (2000); Monárrez, Julia. La cultura del
feminicidio en Ciudad Juárez, 1993-1999 (2000); Red Chilena contra la
Violencia Doméstica y Sexual y Corporación La Morada, Femicidio en Chile
(2004); Instituto Interamericano de Derechos Humanos (IIDH) y Consejo
Centroamericano de Procuradores de Derechos Humanos (CCPDH), I
Informe Regional: Situación y análisis del femicidio en la región
centroamericana (2006); Comité de América Latina y el Caribe para la Defensa
de los Derechos de la Mujer (CLADEM), Feminicidio. Monitoreo sobre
femicidio/feminicidio en Bolivia, Ecuador, Paraguay, Perú y República
Dominicana (2008); Instituto Interamericano de Derechos Humanos (IIDH).
136
describir de la manera más adecuada los diversos
fenómenos que abarca este nuevo concepto.
137
reconocimiento se cristaliza únicamente a nivel de
declaraciones, en el contexto interamericano se transforma
en normativa internacional vinculante, a través de la
adopción de la Convención Interamericana para Prevenir,
Sancionar y Erradicar la Violencia contra las Mujeres o
Convención de Belém do Pará, en 1994158.
La Convención se transforma en la base jurídica
que permite insertar la recepción del concepto femicidio en
esta región dentro en un proceso jurídico y político
centrado en las obligaciones de los Estados frente a las
diversas manifestaciones de la violencia contra las
mujeres159. Ello permite la introducción de este nuevo
concepto como una herramienta útil para evaluar la acción
de los Estados y exigir la adopción de las medidas
adecuadas para hacer frente a los más extremos casos de
violencia contra las mujeres, en cualquier ámbito en que
ésta se produzca160.
En el plano conceptual, en Latinoamérica, la
categoría original de femicide posee dos vertientes de
traducción: como femicidio en algunos países y como
138
feminicidio en otros, existiendo además un cierto grado de
controversia a nivel teórico sobre el uso de uno u otro
concepto161. Ello, sumado a la variedad de casos que se
califican como femicidio/feminicidio en los diversos
estudios e investigaciones de campo162, genera un
escenario conceptual -previo a las tipificaciones
penalesparticularmente complejo en la región.
La introducción de la palabra feminicidio
corresponde a la académica y política mexicana Marcela
Lagarde, quien acuña esta noción para aludir a formas de
violencia extrema que pueden conllevar la muerte de las
mujeres163 caracterizadas tanto por la misoginia en que se
originan, como por la tolerancia - expresa o tácita - del
Estado e instituciones frente a estas conductas. Desde
esta perspectiva se releva el papel del Estado y sus
instituciones en la preservación y reproducción de la
161
Si bien este aspecto de la discusión sobrepasa el tema que se desarrolla en
este artículo, diversas investigaciones confirman esta controversia. Ver, por
ejemplo: Comité de América Latina y el Caribe para la Defensa de los Derechos
de la Mujer (CLADEM), Feminicidio. Monitoreo sobre femicidio/feminicidio em
Bolivia, Ecuador, Paraguay, Perú y República Dominicana, Lima, 2008, p. 10.
162
En la mayor parte de los países, uno de los focos de atención en las
investigaciones se encuentra en el llamado femicidio íntimo o de pareja íntima
(Op. Cit. 8), mientras otros abarcan tipologías más detalladas para incluir también
crímenes cometidos por desconocidos, como los paradigmáticos casos de la
frontera norte de México.
163
―El feminicidio está conformado por el conjunto de hechos violentos misóginos
contra las mujeres que implican la violación de sus derechos humanos, atentan
contra su seguridad y ponen en riesgo su vida. Culmina en la muerte violenta de
algunas mujeres. Hay infinidad de sobrevivientes. Se consuma porque las
autoridades omisas, negligentes o coludidas con agresores ejercen sobre las
mujeres violencia institucional al obstaculizar su acceso a la justicia y con ello
contribuyen a la impunidad. El feminicidio conlleva la ruptura del estado de
derecho ya que el Estado es incapaz de garantizar la vida de las mujeres, de
actuar con legalidad y hacerla respetar, de procurar justicia, y prevenir y erradicar
la violencia que lo ocasiona. El feminicidio es un crimen de Estado.‖ Informe de la
Comisión Especial para Conocer y Dar seguimiento a las Investigaciones
relacionadas con los Feminicidios en la República Mexicana y a la Procuración
de Justicia Vinculada, Cámara de Diputados del H. Congreso de la Unión – LIX
Legislatura. Violencia Feminicida en la República Mexicana, 2006, p. 49.
139
sociedad patriarcal, en cuyas bases se encuentra la
violencia contra las mujeres, en todas sus manifestaciones.
Este planteamiento, además, coincide con un desarrollo
jurídico en la región - recogido en la Convención de Belém
do Pará - en que se reconoce la responsabilidad estatal en
la violación de los derechos humanos más allá de los actos
en que interviene directamente un agente del Estado, sino
también en aquellos en que se cuenta con la aquiescencia,
beneplácito o mera pasividad del mismo164, como ocurre en
muchos casos de violencia contra las mujeres.
Con énfasis en estos elementos - misoginia y
tolerancia del Estado - el concepto comienza a ser
ampliamente utilizado por el movimiento de mujeres
mexicano especialmente en la denuncia a nivel nacional e
internacional, de numerosos crímenes contra mujeres en la
frontera norte del país, conocidos globalmente como los
emblemáticos casos de Ciudad Juárez, en Chihuahua,
caracterizados tanto por su extrema crueldad como la
impunidad en que permanecen. En Guatemala también ha
sido adoptada la expresión feminicidio por parte del
movimiento de mujeres, para enfatizar la responsabilidad
del Estado y sus instituciones en la impunidad de crímenes
que –a pesar de estar insertos en un contexto generalizado
de grave violencia e impunidad165 - poseen una naturaleza
164
Al respecto, ver: OEA - Comisión Interamericana de Derechos Humanos.
Acceso a la Justicia para las Mujeres Víctimas de Violencia en las Américas.
OEA/Ser.L/V/II. Doc. 68. 20 enero 2007.
165
Maldonado, Alba Estela. El feminicidio en Guatemala. En: Tipificación del
Femicidio en Chile. Un debate abierto. Red Chilena contra la Violencia Doméstica
y Sexual (En prensa). De acuerdo a Maldonado, Guatemala continúa marcada
por las consecuencias de un largo y cruento conflicto armado, que implico la
virtual desaparición del Estado, sumadas a un débil proceso de paz aún no
consolidado. Entre los años 2004 y 2008 han muerto más de 25 mil personas de
forma violenta, de ellas más de 2.500 eran mujeres. El promedio de muertes
140
sexual y muestran una particular brutalidad, basada
precisamente en el género. Asimismo, la reacción de
instituciones del Estado frente a ellos166 reviste
características particulares que revelan también el
componente sexista que posee la impunidad en estos
casos.
Consecuencia de la visibilidad y denuncia a nivel
global de estos casos, en muchos países, la expresión
feminicidio suele ser relacionada únicamente con los
masivos y crueles homicidios de mujeres en la frontera
norte de México y otros países centroamericanos. Recoge
esta visión, por ejemplo, el reciente pronunciamiento del
Parlamento Europeo en torno al feminicidio en América
Central y México167 en que se alude específicamente a
estos complejos crímenes caracterizados normalmente por
el secuestro, violación, tortura y muerte de mujeres,
141
probablemente vinculados con formas de criminalidad
organizada y favorecidos por una elevada impunidad168.
Sin embargo, como se ha señalado, las
expresiones femicidio y feminicidio poseen, en cuanto
categoría analítica, un contenido mucho más amplio que
aquellos crímenes. Y si bien la mayor parte de los estudios
al respecto excluyen tanto los casos en que no se produce
la muerte de las mujeres – a diferencia del planteamiento
inicial de Lagarde sobre el feminicidio - como aquellos en
que no exista un delito de homicidio – incluidos en la
formulación amplia de Russell -, se incluye en estas figuras
todo homicidio de mujeres cometido por razones de
género, tanto en la esfera privada como pública. En este
sentido, la mayor parte de los estudios e investigaciones
en diversos países se enfocan únicamente en un cierto tipo
de femicidio/feminicidio – especialmente el llamado
femicidio íntimo o de pareja íntima, en estudios
anglosajones y países latinoamericanos como Chile y
Costa Rica - o bien desarrollan amplias tipologías dentro
de las categorías femicidio o feminicidio, para precisar los
casos que serán objeto de investigación.
Por ello, surge en los últimos años en países
latinoamericanos - y en particular en México -, la necesidad
de diferenciar dentro de la categoría feminicidio los
diversos crímenes que se comprenden en ella, a fin de
168
Resulta interesante constatar, sin embargo, que la expresión que ha
alcanzado, hasta ahora,
configuración penal en la región, es la de femicidio y no la de feminicidio. Esto
resulta particularmente relevante en relación a Guatemala, país en el cual se
había dado un uso más generalizado a la segunda. Ello denota que la
configuración conceptual del feminicidio, con énfasis en la responsabilidad que -
directa o indirectamente - cabe al Estado en estos crímenes, se transforma
eventualmente en uma importante dificultad política para lograr su tipificación
como tal por parte de los propios Estados.
142
poder determinar más adecuadamente sus características,
prevalencia, así como las características de la reacción de
los órganos de justicia frente a ellos169.
Esto ha sido especialmente planteado a partir de
la necesidad de analizar particularmente los feminicidios
idiosincráticos de Chihuahua y Ciudad Juárez170, que
revisten una gravedad y complejidad específicas tanto en
lo criminal como en lo policial y judicial – si se les compara
con los femicidios o feminicidios íntimos que ocurren en el
resto de México y el mundo171 - y que exigen, por tanto, la
adopción de medidas igualmente específicas para su
adecuada prevención y sanción.
Así entonces, actualmente el debate sobre el
femicidio/feminicidio pasa a una nueva fase, en que lo
conceptual también se ve influido por la discusión en torno
a la efectividad de las medidas para enfrentarlo,
considerando las particularidades que reviste en diversos
contextos y zonas geográficas. En este punto, la utilización
del Derecho penal sustantivo y la introducción de normas
específicas destinadas a sancionar esta grave forma de
criminalidad, se transforma en otro de los ejes en torno al
cual se articulan nuevas reflexiones, en cuanto a las
169
En esta perspectiva se encuentra el último informe del Observatorio
Ciudadano del Feminicidio en México, que desarrolla una tipología que distingue
entre feminicidio íntimo, familiar íntimo, infantil, sexual sistémico y por
ocupaciones estigmatizadas. Ver: Observatorio Ciudadano Nacional del
Feminicidio. Uma mirada al feminicidio en México. 2007-2008. México, 2008.
170
También denominados femicidios sexuales sistémicos, por Julia Monárrez y
otras autoras que toman su tipología del feminicidio. Ver: Monárrez, Julia. Las
diversas representaciones del feminicidio y los asesinatos de mujeres en Ciudad
Juárez, 1993-2005. Capítulo 7, en Sistema Socioeconómico y Georeferencial
sobre la Violencia de Género en Ciudad Juárez. Análisis de la Violencia de
Género en Ciudad Juárez, Chihuahua: propuestas para su prevención. México,
2006.
171
Segato, Rita. Qué es un feminicidio. Notas para un debate emergente. Serie
Antropología. Brasilia, 2006.
143
posibilidades que ofrece para sancionar crímenes género-
específicos y dar cuenta a la vez de las diversas
características que presentan en razón de los contextos en
que se cometen.
Las primeras iniciativas de tipificación del
femicidio o feminicidio en países latinoamericanos
coinciden con diversas etapas en la discusión política y
teórica sobre estos conceptos. La primera de estas
iniciativas es presentada en México precisamente por
Marcela Lagarde, cuya calidad de parlamentaria resulta
fundamental en el tránsito de la noción de feminicidio, a la
esfera jurídica.
Aunque esta iniciativa permanece sin ser
aprobada172, marca el comienzo de una tendencia
legislativa en otros países de la región, que ha
transformado a Costa Rica y Guatemala en los primeros
países en incluir el delito de femicidio entre sus normas
penales.
2. EL FEMINICIDIO/FEMICIDIO Y SU CONFIGURACIÓN
PENAL
172
La iniciativa de la Diputada Lagarde fue presentada a tramitación legislativa en
diciembre de 2004, y permanece actualmente en trámite en el Senado del
Congreso de la Unión.
144
ordenamientos jurídicos las primeras normas género-
específicas, destinadas a sancionar la violencia contra las
mujeres en cuanto tal, nombrándola y distinguiéndola de
cualquier otra, incluso otras formas de violencia que
puedan ocurrir en los mismos ámbitos, pero contra otros
sujetos.
En efecto, hasta la actualidad, en la mayor parte
de las legislaciones - tanto civiles como penalesla violencia
contra las mujeres se ha abordado a partir de dos grandes
restricciones: la primera, en cuanto normalmente se limitan
a la violencia que ocurre en la esfera doméstica o privada
y, la segunda, en cuanto esta protección se otorga en
términos neutros en cuanto a género, a fin de no vulnerar
el principio de no discriminación. De esta manera, la
protección consecuente se enfoca, en el plano simbólico y
normativo, no en las mujeres -aunque sean éstas las
principales víctimas de la violencia doméstica, intrafamiliar
o en la pareja- sino en ciertas relaciones o vínculos que se
estiman merecedores de una protección especial por parte
de la ley, pues son parte o pueden serlo, de relaciones de
familia.
Si bien la tipificación del femicidio o feminicidio,
potencialmente, podría romper con ambas restricciones, su
énfasis se encuentra en la segunda. En efecto, si
consideramos que tanto la ley costarricense como el
proyecto chileno restringen este delito únicamente a la
esfera de las relaciones íntimas o de pareja, entonces es
posible reconocer que el impacto fundamental de estas
nuevas legislaciones se encuentra en cuanto representan
la renuncia a la neutralidad de género en tipos penales
relativos a la violencia contra las mujeres.
145
En relación a la penalización de la violencia contra
las mujeres, parte del feminismo y movimientos de mujeres
ha demandado la protección específica de las mujeres,
planteando un conflicto con parte importante de la doctrina
penal, que se ha visto reflejado permanentemente en la
discusión sobre la tipificación del femicidio o feminicidio.
Existen, en este sentido, dos principales
173
cuestionamientos . En primer lugar, en cuanto estas
iniciativas conllevarían una discriminación - en contra de
los hombres - inaceptable desde una perspectiva
constitucional, al sancionar más ravemente el homicidio de
una mujer que el de un hombre, concurriendo
aparentemente las mismas circunstancias - por ejemplo, la
existencia de una relación de pareja-, lo que supondría en
definitiva, dar más valor a la vida humana femenina que a
la masculina. Este es, como vemos, un aspecto
fuertemente centrado en la penalidad que se impondría a
la conducta, en relación a otras similares cometidas contra
hombres.
El segundo cuestionamiento alude a que estas
figuras género-específicas, al suponer un sujeto activo
masculino, importan una vulneración al principio de
culpabilidad, al transformar la condición de hombre en una
presunción de culpabilidad o de mayor culpabilidad en
173
Existen variados puntos de controversia planteados tanto desde la dogmática
penal como desde sectores del feminismo en torno a la tipificación del femicidio o
feminicidio, aspectos que no pueden ser abordados en esta ponencia. De
manera ejemplar, son particularmente relevantes las discusiones en torno a la
tipificación del feminicidio como crimen de lesa humanidad, la forma en que se
reconoce la responsabilidad del Estado en ellos, así como cuestiones relativas a
la forma en que estas figuras deben incorporarse a la legislación penal, entre
otras.
146
estos delitos174. El femicidio/feminicidio constituiría, de esta
manera, un ejemplo de Derecho penal de autor, contrario
al Derecho penal del acto, en cuanto la sanción se fundaría
no en la sola realización de una conducta prohibida, sino
también en la identidad de la persona que incurre en ella.
Se trata de una crítica que advierte el riesgo, en estas
disposiciones, de graves retrocesos para el Derecho penal,
en que se volvería a leyes penales autoritarias que se
suponían superadas por el garantismo y el respeto a los
derechos humanos de las personas frente al sistema
penal175. Este segundo aspecto, se enfoca en la autoría
aunque, indirectamente, también alude a la cuestión de las
penas, como veremos.
Ahora bien, estos cuestionamientos también han
afectado a otros modelos legislativos comparados, que de
una manera similar al femicidio o feminicidio, han optado
por normas penales género-específicas para sancionar la
violencia contra las mujeres. En este sentido, resultan
particularmente interesantes - y previos a la tipificación del
femicidio - las disposiciones que contiene el Código Penal
sueco desde 1998, y español desde 2004.
174
La posibilidad de autoría femenina es un punto no resuelto ni en la teoría ni
expresamente a nivel penal en la mayor parte de los modelos que abordan el
femicidio u otras formas de violencia contra la mujer. A nivel teórico, Diana
Russell ha reconocido la posibilidad de comisión de femicidio por otras mujeres,
si bien con frecuencia actuarían como agentes del patriarcado, pero el tema
sigue sin ser resuelto en la mayor parte de los estudios. En los tipos penales
género-específicos adoptados hasta ahora, el tema logra salvarse en la medida
que las sanciones que se imponen son iguales a las que corresponden a las
conductas cometidas por mujeres contra hombres (o contra otras mujeres).
175
En este sentido, se advierte también que la neutralidad de género ha sido una
de las demandas emblemáticas formuladas desde el feminismo al Derecho penal.
Así, históricamente ha sido uno de los argumentos utilizados para la erradicación
de los tipos penales que únicamente afectaban a las mujeres, como por ejemplo,
para eliminar el delito de adulterio, que sólo podía ser cometido por las mujeres
casadas.
147
El primero en incorporar disposiciones penales
género-específicas fue el código sueco, a través de la
figura de grave violación de la integridad de la mujer176. En
este caso, se trata de una normativa que sanciona
separadamente la violencia contra las mujeres en
relaciones de pareja (heterosexuales) pero sin alterar la
penalización, que será idéntica para cualquier otro caso de
violencia ejercida dentro de relaciones de pareja.
Con ello, se salvan los dos cuestionamientos
penales ya expuestos, puesto que no hay una penalización
mayor de la violencia contra las mujeres, y se sancionan
con la misma pena tanto los actos de violencia que
cometan en relaciones cercanas o íntimas tanto dirigidas
contra mujeres como contra hombres, aunque posean
denominaciones distintas. A través de esta alternativa se
privilegia entonces, el efecto simbólico de la ley penal,
simplemente haciendo visible – en una disposición penal
específica - la particular violencia que afecta a las mujeres
en estas relaciones, a la vez que facilita la producción de
información estadística desagregada y el seguimiento de la
acción del aparato de justicia y de la jurisprudencia frente a
esta forma de violencia contra las mujeres. Se trata, en
definitiva, de un abandono formal de la neutralidad de
176
En la Sección 4 a del Capítulo 4 del Código Penal sueco se señala: ―Una
persona que cometa alguno de los actos criminales definidos en los Capítulos 3
(Delitos Contra la vida y la Salud), 4 (Delitos contra la Libertad y la Paz) o 6
(Delitos Sexuales) en contra de otra persona que tenga, o haya tenido, una
relación cercana con el perpetrador y si el acto forma parte o es un elemento de
una violación sistemática de la integridad de esa persona y constituye un severo
daño psicológico para su autoestima, será sentenciada por grave violación de la
integridad a presidio por no menos de seis meses y hasta un máximo de 6 años.
Si los hechos descritos en el primer párrafo son cometidos por un hombre contra
una mujer con quien está, o ha estado casado o con quien está, o ha estado
conviviendo bajo circunstancias comparables con el matrimonio, será
sentenciado por grave violación de la integridad de la mujer, al mismo castigo
(Ley 1998:393)
148
género en los tipos penales, con una serie de efectos
positivos para la lucha contra la violencia contra las
mujeres, pero en un modelo que en definitiva asigna al
sustrato sexista de esta violencia una relevancia que
únicamente justifica la introducción de una disposición
formalmente separada.
El modelo español da un paso más allá, al
introducir en 2004177 una agravación en diversos delitos,
cuando sean cometidos (por un hombre178) contra la
―esposa, o mujer que esté o haya estado ligada a él por
una análoga relación de afectividad aun sin convivencia‖ 179.
En este caso, la agravación de la pena -con respecto a la
misma conducta cometida contra un hombre - ha dado
lugar a amplias controversias en el ámbito constitucional y
penal español en los últimos años, si bien parcialmente
resueltas por la primera sentencia del Tribunal
Constitucional que ha ratificado la constitucionalidad de
estas normas180.
El Tribunal justifica la mayor penalidad de estas
conductas precisamente en la discriminación estructural
que subyace a estos hechos de violencia - generalizados y
de graves consecuenciascuando están dirigidos contra las
mujeres. De esta manera, la normativa española supone
una abandono sustancial de la neutralidad de género de
estos tipos penales, en cuanto además de la determinación
del sujeto pasivo, se asigna una penalización mayor a
177
A través de la Ley Orgánica de Medidas de Protección Integral contra la
Violencia de Género. Ley Orgánica 1/2004 de 28 de diciembre.
178
Si bien este aspecto no aparece claramente definido en la ley, y el Tribunal
Constitucional en su Sentencia 59/2008, de 14 de mayo de 2008, mantiene la
indeterminación sobre la eventual autoria femenina.
179
En los delitos de lesiones agravadas (Art. 148), malos tratos (Art. 153),
amenazas de un mal no constitutivo de delito (Art. 171) y coacciones (Art. 172).
180
STC 59/2008, de 14 de mayo.
149
conductas que se estiman más graves, precisamente
atendida la base de discriminación contra las mujeres en
que estas conductas tienen lugar.
Al considerar estos antecedentes, podemos incluir
la tipificación del femicidio en países latinoamericanos
también en esta línea de producción legislativa, en que se
abandonan expresamente las disposiciones neutras en
cuanto a género, para adoptar nuevas formulaciones que
nombran y abordan en forma específica la violencia contra
las mujeres. Esta tendencia cuenta además, en
Latinoamérica, con el respaldo del Mecanismo de
Seguimiento de la Implementación de la Convención de
Belém do Pará, que recientemente ha recomendado a los
Estados evitar la adopción de normas neutras181 para
enfrentar la violencia contra las mujeres, ya que importan
la posibilidad de que puedan utilizarse, eventualmente, en
contra de mujeres víctimas de violência que atacan o dan
muerte a sus agresores182.
Sin embargo, en el caso de las leyes
guatemalteca y costarricense, si bien se trata de normas
género-específicas, sus consecuencias penales parecen
acercarse más al modelo sueco que al español. En efecto,
la ley costarricense sanciona como femicidio el dar muerte
a una mujer con quien el autor tenga una relación de
matrimonio o unión de hecho, con las mismas penas que
181
Mecanismo de Seguimiento de la Implementación de la Convención
Interamericana para Prevenir, Sancionar y Erradicar la violencia contra la Mujer
(MESECVI). Informe Hemisférico. Adoptado en la Segunda Conferencia de
Estados Partes, celebrada en Caracas, Venezuela, del 9 al 10 de julio de 2008.
Recomendación N.º 5.
182
En este sentido, por ejemplo, las leyes que sancionan el parricidio u homicidio
calificado por parentesco u otros vínculos, presentes en diversas legislaciones
latinoamericanas.
150
se imponen por el delito de parricidio – que incluye el dar
muerte al cónyuge, concubina o
concubinario183 -. De esta forma, a pesar de
tratarse de una normativa género-específica, se mantienen
los efectos neutros a través de disposiciones como el
parricidio – que tienden a sereliminados en gran parte de
las legislaciones penales-, con lo cual este nuevo crimen
se sancionará con las mismas penas a las que se
impondrían a las mujeres que cometen el delito de
parricidio en contra de su cónyuge o conviviente agresor.
En esta situación se encuentra también, por ejemplo, el
actual proyecto de ley que busca la tipificación del
femicidio en Chile184, en que este delito se configura como
una forma específica de parricidio.
El caso de la ley guatemalteca es más complejo,
ya que incluye una multiplicidad de hipótesis de femicidio,
que pueden cometerse tanto en el ámbito público como
privado o íntimo. Si consideramos esta última esfera, sin
embargo, el efecto tiende a ser el mismo que en el caso
costarricense: se sanciona el femicidio con la misma pena
que el Código Penal guatemalteco contempla para el
parricidio. Por otro lado, dentro de las hipótesis de
femicidio fuera de las relaciones íntimas, la pena equivale
a la de homicidio calificado, al cual también podrían
reconducirse varias de las hipótesis comisivas de esta
figura.
183
Sólo existe una diferencia: en el femicidio, toda relación de concubinato queda
incluida, mientras en el parricidio se exige un tiempo de cohabitación de dos años
y la existencia de hijos en común. Este aspecto es el único en que existe una
mayor amplitud en la normativa que tipifica el femicidio.
184
Proyecto de Ley que Modifica el Código Penal y el Decreto Ley N° 321, de
1925, para sancionar el ‗femicidio‘, y aumentar las penas aplicables a este delito.
Boletín Nº 4937-18, refundido con Boletín N° 5308-18.
151
Teniendo en consideración, entonces, la
normativa criminal común aplicable a estas conductas, los
efectos penales de la tipificación del femicidio en estos
países pueden considerarse cercanos a los de la normativa
sueca de 1998, o lo que hemos llamado, un abandono
formal de la neutralidad de género en materia penal. Si
bien ello ya trae una serie de consecuencias favorables
para el desafío que importa la erradicación de la violencia
contra las mujeres, no necesariamente se trata de una
formulación que se condice con las reflexiones y
planteamientos teóricos que han dado lugar al surgimiento
de la categoría femicidio/feminicidio.
3. CONCLUSIONES
152
Desde la perspectiva penal, estas medidas
género-específicas suelen ser objetadas especialmente en
cuanto puedan suponer una penalización diferenciada de
conductas, con respecto a las que puedan cometerse
contra hombres, o suponer una autoría únicamente
masculina. Sin embargo, como hemos señalado, la mayor
parte de estos modelos legislativos introducen únicamente
una diferencia formal, al identificar la calidad de mujer que
debe tener la víctima del delito específico, pero
manteniendo la misma penalidad que en los casos en que
la víctima sea un hombre. Esta construcción resuelve - o
más bien elude - las principales críticas que pueden
formularse a estos modelos legislativos desde la
perspectiva constitucional y penal: el riesgo de vulneración
al principio de no discriminación y al de culpabilidad.
Sin embargo, si bien este tipo de soluciones
legislativas pueden ser admisibles respecto de delitos de
menor gravedad que constituyen violencia contra las
mujeres, la situación es distinta cuando se trata de la
penalización de fenómenos tan graves como el femicidio o
feminicidio. Es en este punto donde surge una de las
principales diferencias y potencialidades de las figuras de
femicidio o feminicidio, si se las compara con los modelos
sueco y español. Mientras la mayor parte de las
legislaciones sobre violencia contra las mujeres - incluidas
la sueca y española- abordan particularmente conductas
que -desde la perspectiva penal- se consideran de menor
gravedad - malos tratos físicos o psicológicos que no
constituyan otro delito más grave-, las leyes que tipifican el
femicidio hacen exactamente lo contrario: su objetivo es
sancionar los delitos más graves que pueden cometerse
como formas de violencia contra las mujeres.
153
Esto marca una diferencia sustancial entre estas
figuras, no sólo a nivel de estrategias jurídicas de
reconocimiento de la gravedad de la violencia contra las
mujeres, sino especialmente en cuanto aquí no tienen
aplicación gran parte de los argumentos que se han
utilizado para cuestionar las figuras menos graves de
violencia contra las mujeres. Frente al femicidio no puede
argumentarse que existe una huida al Derecho penal o que
la vía penal no es la solución adecuada frente a la violencia
contra las mujeres o que las penas pueden traer
consecuencias más dañosas para las propias víctimas. El
femicidio se ubica, al igual que el homicidio, dentro de los
crímenes más graves que contempla el ordenamiento
jurídico, y por tanto, la pena debe corresponder a la
gravedad que se reconozca a esta conducta, sin que
quepan ya cuestionamientos sobre la idoneidad de la
respuesta penal frente a este tipo de conflicto social. El
femicidio marca, de esta manera, un punto límite, en que
las medidas preventivas de la violencia contra las mujeres
ya no tienen lugar posible -en relación a esa víctima, al
menos- y por tanto, es una figura que posibilita un análisis
penal más estricto.
Si consideramos, además, que la principal crítica
a las figuras género-específicas que establecen penas
diferenciadas en España – o abandono sustancial de la
neutralidad penal - radica precisamente en que ellas
asuman un contenido de discriminación de género en toda
conducta de violencia, incluso la más leve, que pueda
cometer un hombre contra una mujer en una relación de
154
pareja185, entonces podemos reconocer que esta situación
también es radicalmente diferente cuando se trata del
femicidio o feminicidio. En estos casos, el contenido de
discriminación de género es inherente y evidente en las
conductas y sus características, y precisamente de ello há
dado cuenta el amplio desarrollo de estas categorías
analíticas en el campo sociológico y antropológico.
La categoría teórica de femicidio ha surgido para
evidenciar un elemento adicional, invisible hasta entonces,
y común a un gran número de crímenes de mujeres: que
son cometidos por razones de género, por sexismo, por el
hecho de que esas mujeres son mujeres en sociedades
que las discriminan estructuralmente. Si bien estos
elementos pueden controvertirse respecto de conductas
menos graves o matizarse con consideraciones extra-
penales que recomienden el uso de otro tipo de medidas,
cuando se trata de asesinatos u homicidios de mujeres,
casos que se encuentran al extremo de la violencia y de la
discriminación por género de las mujeres, entonces es
dable exigir al sistema penal, y al Derecho penal
sustantivo, que reconozca este elemento adicional en la
tipificación de estas figuras: más allá de la denominación
del delito, se trata de reconocer la mayor gravedad dada
por la concurrencia de elementos que importan la lesión a
bienes o intereses jurídicos adicionales a la sola vida de
las mujeres. A partir de este enfoque, es posible sostener
que si bien esta figura posee la potencialidad de ajustarse
en el plano penal a lo que ha sido denominado
185
Gayo, J. L. Elementos de derecho penal de autor en la Ley sobre Medidas de
Protección Integral contra la Violencia de Género. La Ley Penal. Revista de
Derecho Penal, Procesal y Penitenciario. Núm. 19 Año II, septiembre 2005. p. 98
– 110.
155
teóricamente como femicidio, en las tipificaciones
existentes aún no ha ocurrido del todo. Las figuras hasta
ahora introducidas en las legislaciones penales
costarricense y guatemalteca, en que persisten tipos
penales de parricídio con una sanción idéntica al femicidio,
traen como consecuencia una neutralización de los efectos
penales de estas nuevas normas, al no reconocer en forma
clara que existe aquí un elemento que confiere adicional
gravedad a estas conductas.
De esta manera, podemos decir que la
complejidad de lo que ha venido denominándose como
femicidio o feminicidio en el ámbito de las ciencias sociales
en los últimos años, si bien comienza a recogerse en
ciertas normas penales – con las limitaciones propias de
esta rama jurídica - aún no logra ser incorporado en toda
su potencialidad. Si bien es efectivo que la mayor parte de
los conceptos sociológicos o antropológicos no pueden
trasladarse a la arena penal sin experimentar importantes
transformaciones y eventuales reducciones -
especialmente en base a las exigências de legalidad y
precisión en los tipos penales -, igualmente existen
elementos típicamente penales - como la pena - que
pueden dar cuenta de los elementos adicionales que estas
elaboraciones contemplan.
Desde una perspectiva penal estricta, un elemento
de gravedad adicional debe importar una sanción
proporcionalmente más grave, de otro modo, se vulnera
también el principio de proporcionalidad de las penas. No
es posible sostener que una conducta es más grave que
otras, y sancionarla con una pena equivalente a otras
conductas menos graves, sin entrar en una evidente
contradicción. No es posible sancionar de la misma
156
manera a un hombre que mata a su esposa después de
años de maltrato, que a la mujer que lo mata, después de
años de sufrirlo. Si ello ocurre a pesar de tipificarse
específicamente el femicidio, es que efectivamente no
basta con que estos crímenes se denominen de una
manera particular, si la mayor gravedad del femicidio frente
al homicidio - o parricidio -, no se reconoce
adecuadamente en cada uno de los elementos de estas
nuevas figuras penales.
REFERENCIAS
157
Juárez. Análisis de la Violencia de Género en Ciudad Juárez, Chihuahua:
propuestas para su prevención. México, 2006.
Segato, Rita. Qué es un feminicidio. Notas para un debate emergente. Serie
Antropología. Brasilia, 2006.
Decreto Ley N° 321, de 1925. Boletín Nº 4937-18, refundido con Boletín N° 5308-
18.
Gayo, J. L. Elementos de derecho penal de autor en la Ley sobre Medidas de
Protección Integral contra la Violencia de Género. La Ley Penal. Revista de
Derecho Penal, Procesal y Penitenciario. Núm. 19 Año II, septiembre 2005. p. 98
– 110.
158
E n s a i os
DIREITOS DAS MINORIAS: CIDADANIA
UNIVERSAL OU PRIVILÉGIO?
*
Loreley Garcia
*
Professora Associada II DCS/UFPB, PPGS e Prodema. Vice-coordenadora do
Laboratório de Estudos Ambientais.
159
Democracia significa limitação do poder, inclusive do poder
do Estado. Touraine cita os clássicos da política: Locke,
Rousseau e Tocqueville, para reforçar a idéia de que a
democracia não se resume a um mero apelo por uma
igualdade de direitos abstrata, mas significa o combate a
desigualdade a partir do acesso às decisões públicas.
No Estado Moderno a política tratar da ação do
poder sobre a sociedade e não mais da criação da
comunidade política, a politéia aristotélica. Para Touraine
(1996), manter a liberdade idealizada pelos antigos e seu
conceito democracia na Modernidade, destrói a idéia de
liberdade a serviço das liberdades sociais. A formação do
Estado no mundo contemporâneo se dá com o surgimento
da categoria do social. Sendo a sociedade entendida como
o conjunto das relações sociais de conflito e de
cooperação. Uma sociedade é democrática quanto maior
for o número de atores que participam das decisões que
vão gerir seus destinos.
Touraine não acredita ser possível a alocação da
esfera política sobre a social. È Hannah Arendt (1981)
quem opõe o mundo econômico/social à esfera do político
/liberdade, como se uma esfera atuasse contaminando a
outra. Para o autor, a idéia dos direitos sociais fortalece os
direitos humanos.
Em Arendt, o indivíduo é um ser político e um ser
social, vive com o Outro, já que necessita de companhia,
afeição e amor, ou cooperação. "Um ser interdependente
material e social, assim como ontologicamente". As
dimensões humanas pública e social são diferentes em
ordem de existência: 1- o ser como público pode criar o
espaço público e, como ser social, não pode. 2- como ser
público pode juntar-se a outro e falar formalmente, como
160
ser social fala com a parte interna. O respeito mútuo regula
o espaço público, o decoro e a compostura; já no espaço
social é o sentimento, a proximidade e a intimidade que
regulam as relações.
Assim como a emoção, a interdependência
econômica reduz o espaço entre os seres que se unem,
não pelo interesse, mas por uma necessidade comum. Sua
qualidade de ser público precisa do espaço público para
desenvolver o senso de realidade e identidade, como ser
social vê no espaço público um obstáculo a realização de
seus desejos individuais.
O mundo está intimamente relacionado ao local da
não-aparência. Os indivíduos não podem desempenhar um
papel sempre, precisam de tempo para se ocultar da crítica
dos pares; precisam de espaço público e privado, da
família e amigos. Em Arendt, a confusão entre o político e
o social tende a explicar a vida política em termos sociais e
questiona como o social, ou a interdependência material
entre os seres, pode ser facilitada através da criação de
condições o desenrolar da cooperação social. Aqueles que
confundem a esfera do social com a do político, são
incapazes de apreciar o indivíduo enquanto um ser público,
não questionam a necessidade do espaço público, nem
como a comunidade se organiza e provê no interior do
espaço da aparência.
A orientação socializante da tradição da filosofia
política obscurece a dimensão política da existência
humana, reduzindo a comunidade política à sociedade civil
com mando político. Uma filosofia política satisfatória não
pode se desenvolver sem que haja clara distinção entre as
dimensões públicas e sociais da existência humana e suas
conseqüentes implicações, reforça Parek (1981). Além
161
disto, estamos acostumados a ver a política inserida nos
domínios da sociologia, sendo um aspecto da sociedade
que tentamos explicar a partir de categorias sociológicas.
Assim, todo o sistema político se resume a um subsistema
do social entendido como função social e efetiva dos
compromissos definidos pelos membros de uma classe ou
posição social.
Hannah Arendt refuta essa visão e pensa para além
da sociedade, a vida política seria um cosmos com auto-
movimento do qual somos parte. Essa mudança de ênfase
sugere a superação da idéia de indivíduo como célula do
corpo social, confronta o sociologismo na defesa da
liberdade humana, anti determinista e sem submissão ao
destino social (Canovan,1974).
Em verdade, Arendt não opõe, mas separa as
esferas na tentativa de resgatar o mundo do político e
analisá-lo a partir de categorias políticas. Para ela, não
satisfaz analisar o político a partir da ótica do social e do
econômico, já que o político tem suas próprias categorias.
Touraine concorda que só existe democracia
quando existe espaço político que proteja os direitos dos
cidadãos contra o Estado; quando a distancia que separa
Estado da vida privada é reconhecida e garantida pelas
leis e instituições; quando o Estado e a sociedade civil se
ligam através da representatividade de seus dirigentes.
A democracia tem três dimensões: respeito aos
direitos fundamentais, cidadania e representatividade.
Paralelamente, podemos pensar em três tipos de
democracia: aquela centrada nos direitos fundamentais
(Inglaterra), outra com base na cidadania e na constituição
(EUA) e, uma terceira forma que fortalece a
representatividade contra a oligarquia (França). A
162
democracia não se define pela separação dos poderes,
mas pela natureza dos elementos que se colocam entre a
sociedade civil, a sociedade política e o Estado, o espaço
público onde atores sociais orientam os representantes no
Estado. Assim, a interdependência entre todos esses
elementos, constitui a democracia.
Outro aspecto essencial seria o pluralismo,
considerando que a sociedade civil é, em si mesma, plural.
A vida política é dominada pela pluralidade de grupos
sociais e não pela unidade do Estado. Em Touraine, a
democracia no mundo moderno deve estar além da mera
representação, cidadania e direitos que não bastam para a
democracia. Os direitos fundamentais dão garantias legais,
ocorre a intervenção do Estado para proteger os mais
fracos. Cada vez mais, a ação democrática baseia-se na
associação que protege o povo contra o poder e permite
que tenha o controle sobre a própria existência. O poder do
Estado está limitado pelos direitos fundamentais, cujos
principais adversários são os regimes totalitários – no qual
o Estado define os direitos- e os regimes autoritários
quando os direitos existem, mas são desrespeitados.
Para Touraine o efetivo exercício da democracia se
dá quando ocorre a superação da dicotomia entre
interesses da esfera social e a político, após a instauração
do sufrágio universal (1848), na França; e quando as
instituições políticas acolhem as demandas sociais contra
os interesses dominantes. A democracia, nesta
perspectiva, deveria suas bases ao movimento operário e
á ruptura com o Iluminismo para criação de uma sociedade
aberta com pluralismo de valores.
A democracia de bases sociais pressupõe a
correspondência entre a demanda social, ou categorias
163
sociais e os partidos políticos. O autor coloca que onde as
classes e conflitos eram palpáveis, como na Inglaterra, a
democracia foi estável e o regime social-democrata
fortalece a democracia entre os partidos operário e
burguês. Já nos locais onde o Estado atuou como agente
modernizador, mantendo a hierarquia social e econômica,
a democracia foi fraca, como o caso da América Latina. No
mundo globalizado, as comunidades encontram-se
esfaceladas, uma nova sociedade não surgiria através do
contrato, mas da modernização destas sociedades.
Para haver representatividade, é imperioso que as
categorias sociais sejam capazes de se organizar de forma
autônoma no plano social, fora da vida política. Seria
função dos sindicatos, partidos trabalhista ou socialista
formam os elos entre a vida social e a política. Atuam de
modo indireto as associações, os grupos, a imprensa,
orientando na escolha política, formação de partidos, etc.
Em Touraine, a crise de representação política é
responsável pelo enfraquecimento da participação. A
sociedade agora é multifacetada, não se restringe apenas
ao interesse de empregados e empregadores. Na
sociedade de consumo e comunicação de massas, com
mobilidade social, migração, multiculturalismo,
ambientalismo, feminismo e uma série de demandas
transclassistas, os partidos não dependem das relações
entre as classes sociais, mas representam demandas que
lhes confere o caráter de estuário de lutas sociais e
projetos de vida coletiva.
Antigamente o partido detinha o monopólio do
sentido da ação coletiva, a expressão da consciência da
classe em si, quando a polarização entre proletários e
burgueses atingia a fase aguda. Na transmutação das
164
demandas para a reivindicação da liberdade, da defesa do
meio ambiente, contra a comercialização da vida, o ator
passa a ser responsável pela constituição de um sentido
para a ação.
O partido que incorpora a consciência de uma
classe impede a democracia, define ele mesmo o sentido
da ação, colocando os atores como meros receptores da
ação social que fica subordinada a intervenção política.
Enquanto em Hannah Arendt, a violência é o oposto
da política, em Touraine a violência é o oposto da
democracia e do movimento social. Ambos concordam que
a violência é um fenômeno que está à margem do político,
ou melhor, que circunda o sistema político. Numa época de
novas liberdades e demandas, a democracia só se
defenderá se aumentar a capacidade de reduzir injustiças
e violência que não é socialmente neutra.
O papel da democracia é opor um princípio de
igualdade às desigualdades sociais, já que a ordem política
é diferente da ordem social. Touraine se opõe a visão dos
defensores dos direitos das minorias que não estão
interessadas na conquista de igualdade política, pois na
sociedade permanecem desiguais, mas querem direitos
específicos para minimizar a diferenciação que persiste na
vida extra-política.
O sistema político coloca-se entre o Estado e a
sociedade civil, ao se inclinar para o primeiro, ocorre o
autoritarismo, se para o segundo há democracia. Não há
democracia sem pluralismo e eleições, ambos rejeitados
nos regimes autoritários sob a justificativa que o povo é
imaturo ou de que há ameaças internacionais. A
democracia não se separa das instituições representativas
dos interesses sociais.
165
Os laços que existem entre atores sociais e agentes
políticos estariam afrouxados por dois motivos, segundo
Touraine, de um lado as demandas sociais apresentam-se
confusas e desagregadas, de outro, o governo está
dominado por questões internas. Para a democracia se
desenvolver é necessário que haja uma ligação entre
atores sociais e agentes políticos; a garantia da
representatividade social dos governados, associada à
limitação dos poderes e a consciência da cidadania.
Portanto, a realização plena da democracia não se dá
como vitória de um campo social ou político, ou de uma
classe social. Ou o conjunto da sociedade é democrático,
ou não há a vitória.
A democracia, entendida como a busca da
liberdade, apóia-se na responsabilidade dos cidadãos. É
da responsabilidade sobre os atos políticos que nasce a
representatividade ou a livre escolha. Os cidadãos devem
reconhecer seus interesses nos atos do governo ou este
será estranho à sociedade e artificial.
Para Touraine só existe cidadania na medida que
há consciência de filiação, referindo-se ao Estado nacional.
O papel da filiação é propiciar direitos, garantias e respeito
às diferenças, alem de proteger o indivíduo da dominação.
Nos EUA e na Inglaterra, a filiação à comunidade nacional
está associada à criação das instituições livres e ao
espírito democrático.
O espírito democrático encontra ar rarefeito nos países que
não construíram uma unidade nacional e onde a
identificação com coletividades particulares é mais forte
que com a nação. Novamente o particular assume o
caráter de privado e a comunidade se confunde com a
antítese da nação.
166
As minorias, para Touraine devem ser reconhecidas
numa sociedade democrática desde que aceitam a maioria
e não se deixem absorver pela afirmação e defesa da
identidade. Esse tratamento dispensado à minoria carece
de espírito democrático, impor um comportamento,
circunscrever seu limite de ação é diferente de submeter
direitos específicos aos universais. Touraine exalta o
reconhecimento da diversidade o tempo todo, mas o
diverso deve permanecer submisso ao universal. Como
sobreviveria uma minoria que não lutasse pela defesa da
identidade? Mas o que fazer quando ocorre choque entre
os direitos fundamentais e os direitos costumeiros da
minoria? Qual é a prioridade: o direito do membro da
minoria ou do cidadão? A sociedade tem como tarefa
garantir o direito universal do cidadão, acrescido dos
direitos específicos da minoria. Por exemplo, se um ritual
de mutilação faz parte do costume de uma comunidade e o
indivíduo se recusa a submeter-se a ele, quem tem mais
direito a comunidade ou o indivíduo respaldado no direito
do cidadão? Na sociedade democrática o indivíduo
manifesta seu desejo e decide, mas tem garantida a
possibilidade de vir a mutila-se desde que seja responsável
por si mesmo. Ocorre que as comunidades nem sempre se
pautam pela atitude democrática ou atuam a partir do
desejo do membro que muitas vezes sequer atingiu a
responsabilidade civil. Como garantir a democracia neste
contexto?
Touraine critica o multiculturalismo radical e o discurso
politically correct que, segundo ele, destrói a filiação à
sociedade política e à nação. Será que não há chance de
se filiar a uma comunidade e a uma nação? O interesse da
comunidade seria tão maior que eliminaria compromissos
167
com a nação? Que dizer dos inúmeros grupos étnicos
comprometidos com a nação em múltiplas esferas da vida
social?
A preocupação de Touraine revela uma visão
europocêntrica, típica de sociedades imperialistas e
racistas, com dificuldade para absorver a idéia de que no
mundo globalizado as sociedades serão multiétnicas, o
próprio conceito de nação terá de ser revisto e ampliado
para englobar aqueles que constituem os cidadãos de
segunda classe: os estrangeiros vistos como imagem do
atraso, da barbárie, do passado do Ocidente, o não-
moderno.
A democracia seria incompatível com a rejeição da
maioria, assim como a contracultura e a sociedade
alternativa que recusam a sociedade, não seriam
democráticas. Em Touraine, o multiculturalismo rejeita as
formas de cidadania porque a democracia, apesar de se
apoiar no conflito social, é incompatível com a crítica
radical. A diversidade limitada pelo direito da maioria seria
diferente da crítica radical.
A representatividade exige que as demandas
sociais sejam representáveis, aceitas as regras políticas e
decisões da maioria. Há demandas que superam o limite
do sistema político, ou por não serem negociáveis, ou
queiram acabar com a ordem institucional.
Um movimento social deve ter preceitos gerais e
apelar para interesses particulares. Movimento social e
democracia são indissociáveis, só existe movimento social
se a ação tem objetivos sociais. Movimento social é
particular, mas não é privado. O movimento social não se
confunde com a luta de classes, ele liberta um ator social,
mas não cria a sociedade ideal.
168
No cenário das novas exigências políticas, Touraine
vê dois tipos de riscos para a democracia: a redução da
sociedade política e da sociedade civil a um Estado de
mercado onde haja abdicação da cidadania em nome do
consumo de massas, e o Estado se resuma a socorrer os
excluídos e garantir a segurança. E, em segundo lugar a
sociedade poderia fecha-se sobre si mesma, transformar-
se em comunidade, criando um Estado comunitário cujo
modelo poderia ser uma pseudo-república fundamentalista.
Em ambos os casos, a democracia desaparece.
Restaria somente o refúgio das associações
voluntárias humanistas, de direitos de minorias e
oprimidos, para sobrevivência da ação democrática.
Também nos regimes autoritários essas associações, e
algumas vezes o poder judiciário, permitiu a continuidade
de alguma forma de democracia em momentos sombrios.
Nos regimes totalitários, nem isto foi possível.
A democracia atual não apresenta imagem nítida de
si mesma, foi reduzida a abertura de mercados ou
tolerância cultural. Sem que se formule e construa o
multiculturalismo, sem que haja ampla participação na
recomposição do mundo, polarizado entre interesses do
mercado global e das identidades fechadas, a democracia
perecerá. Tudo que associa diferença a comunicação,
discussão, compreensão e respeito pelo outro contribui
para construir uma cultura democrática. O que ameaça a
democracia são os valores, normas e práticas comuns, o
diferencialismo e o individualismo extremos. Não contribui
para a democratização da sociedade e degrada o
movimento social em lobbies.
Democracia não pode ser só defensiva. "Entre o
diferencialismo comunitário e o liberalismo político
169
indiferente, desigualdade e exclusão, a cultura democrática
é o meio de recompor o mundo, encoraja a integração das
culturas"(1996,p.269).
Para Lasch (1995) a democracia funciona quando
homens e mulheres fazem coisas para si mesmos, com
ajuda de redes de interação e sem depender do Estado.
Comunidades autônomas e não indivíduos são as
unidades básicas da sociedade democrática. É o declínio
dessas comunidades, mais que tudo, que coloca em
questão o futuro da democracia (1995, p.16).
Segundo o autor, estamos confusos quanto ao
significado de democracia por termos nos afastado dos
princípios que serviram de base a fundação do país. Os
slogans atuais- diversidade, solidariedade, poder, direitos
sugerem a crença na superação das profundas diferenças
da sociedade americana através da boa vontade (moral) e
da sensatez (razão). No século XIX, aqueles que se
preocupavam com a democracia acreditavam que ela se
baseava na ampla distribuição da propriedade. Riqueza e
pobreza em excesso seriam fatais para a democracia.
Temiam que as massas e a classe trabalhadora,
degradada, servil e indignada, carecesse de qualidades
mentais e caráter essenciais a cidadania democrática. Os
hábitos democráticos como a autoconfiança,
responsabilidade e iniciativa seriam adquiridos na atividade
administrativa e gerencial. E não na subserviência em que
a classe trabalhadora estava colocada.
As minorias estariam fora desta visão de
democracia. O efeito que a ausência de vida política teve
sobre as minorias foi torná-las descrentes da visão de
mundo dominante, na qual a democracia aparece como um
valor universal. Na sua reformulação, a democracia pode
170
vir a esbarrar na visão dominada, forjada pelas minorias,
como alternativa aos valores dominantes. Talvez a
intolerância, a mesma que o Ocidente teve para com os
estrangeiros e as classes desprivilegiadas, se apresente
como obstáculo à democracia. Presas a uma ideologia
própria que não discute com o adversário, mas os
dispensa como eurocêntricos, racistas, sexistas e
homofóbicos, as minorias podem recusar a democracia
como valor universal priorizando outras modalidades de
ação política, inclusive o terror. Para Lasch, devemos
reconhecer o direito das minorias, não pelo que
conquistaram, mas pelo que sofreram no passado. Pois foi
a partir das conquistas que as minorias sairam do
anonimato e do espaço privado para penetrar na cena
política, criando a oportunidade de representar a si e seus
interesses.
Lasch adverte para o perigo da diversidade tornar-
se o oposto do que parece, resultando na legitimação de
um novo dogmatismo onde minorias rivais entrincheiram-
se por trás de crenças impermeáveis à discussão racional.
Sua decepção com o papel político das minorias
transparece na frase "Tornam-nos uma nação de
minorias". O que equivale dizer: a negação da nação.
DIREITOS PARTICULARES
171
simbólica da noção de direitos. São esses os conflitos que
constituem a especificidade das sociedades democráticas
modernas.
Para Young (1989) o ideal de cidadania universal
conduz ao momento emancipatório da vida política
moderna. Desde que a burguesia desafiou os privilégios da
aristocracia e os movimentos sociais clamaram por
direitos políticos iguais para mulheres, judeus,
trabalhadores e negros, outros grupos pressionam para
terem o status da cidadania. A moderna teoria política
declara igual valor moral para todos; os movimentos
sociais dos oprimidos levaram isto a sério, exigiram a
inclusão de todas as pessoas na cidadania plena sob a
idêntica proteção da lei.
O pensamento político moderno afirma a
universalidade da cidadania no sentido da cidadania para
todos, uma cidadania que transcende particularidades e
diferenças. Seja qual for a diferença social ou grupal entre
cidadãos, desigualdade em riqueza, status e poder nas
atividades cotidianas da sociedade civil, a cidadania
confere a todos o status de pares na esfera pública. O
ideal de cidadania universal porta, no mínimo, dois
sentidos: a) universalidade é definida como geral em
oposição ao particular, b) a universalidade das leis e regras
que dizem respeito a todos, e são aplicadas a todos da
mesma maneira. As leis e as regras seriam cegas as
diferenças grupais e individuais.
De acordo com a autora, nas sociedades
capitalistas liberais, alguns grupos ainda são tratados
como cidadãos de segunda classe. Movimentos sociais de
grupos excluídos ou oprimidos perguntam por que a
172
extensão de direitos iguais da cidadania não conduziu a
justiça social e a igualdade?
O elo entre a concepção de cidadania para todos e os
outros dois significados de cidadania: ter uma vida em
comum e ser tratado do mesmo modo é um elo
problemático. Os movimentos sociais contemporâneos
enfraqueceram essa ligação manifestando orgulho pela
diferença e salientando a condição grupal contra os ideais
de assimilação. Questionam o significado da justiça e o
reforço da lei e da política para que haja tratamento igual
para todos os grupos. Neste desafio encontra-se o embrião
do conceito de cidadania diferenciada como o caminho
para realizar a inclusão e a participação de todos na
cidadania plena.
Existe uma tensão entre a universalidade da
cidadania e os significados da universalidade como
generalidade e como tratamento igual. O ideal de que a
cidadania expresse ou crie uma vontade geral que
transcenda as diferenças particulares de filiação grupal,
situação e interesse; na prática, exclui os grupos não
capazes de adotar a idéia de cidadania expressando a
vontade geral, reforçando a homogeneidade dos cidadãos.
Onde há diferenças de capacidade, cultura, valores e
estilos de comportamento entre grupos, há privilégio de
alguns grupos, isto faz com que a estrita aderência ao
princípio de equidade perpetue a opressão e a
desvantagem. A inclusão e participação de cada um nas
instituições sociais e políticas requer a articulação de
direitos especiais que atendam as diferenças dos grupos
em condições de opressão e desvantagem (Young, 1995).
Transcender as diferenças implica homogeneizar os
cidadãos. A exclusão de grupos da idéia universalista que
173
incorpora a vontade geral é mais sutil, mas ainda
prevalece. A tradição republicana assenta-se na tensão
com o a teoria do contrato individualista de Hobbes e
Locke. Enquanto o individualismo liberal vê o Estado como
instrumento necessário para mediar conflitos e regular a
ação, no qual os indivíduos têm liberdade para perseguir
seus interesses privados; a tradição republicana coloca a
autonomia e a liberdade na real atividade pública da
cidadania. A participação na discussão pública e nas
decisões coletivas, permite ao cidadão transcender seus
interesses privados ( idion) para adotar um ponto de vista
geral em nome do bem público. Cidadania é uma
expressão da universalidade da vida humana; é o reino da
racionalidade como oposição ao reino do heteronomismo
da necessidade, interesse ou desejo privados.
Entender a cidadania como universal, oposta ao
particular; coloca o comum como oposto ao diferenciado,
sem implicar na extensão da cidadania plena a todos os
grupos. Alguns republicanos quando afirmam o valor
universal da cidadania para a humanidade, excluem certos
grupos incapazes de adotar um ponto de vista geral ou,
porque na inclusão se dispersaria ou dividiria o público.
Young reafirma a posição de Lasch (1995), com respeito
ao conceito de democracia excludente para determinados
grupos da sociedade, supostamente menos habilitados ao
convívio democrático. O ideal de bem comum, como
vontade geral, uma vida pública partilhada leva a pressões
para que haja uma cidadania homogênea.
Young coloca que os primeiros republicanos
americanos eram explícitos sobre a necessidade de
homogeneizar a cidadania, temerosos de que as
diferenças grupais solapassem compromissos com o
174
interesse geral. A presença de negros, mexicanos,
chineses no território era uma ameaça que só a
assimilação, a exterminação ou a desumanização iria
impedir. Aponta para o fato de que Jefferson identificava o
povo negro e o vermelho com a natureza selvagem e a
paixão, mesma lógica que operou na Europa com relação
a vários grupos e com todos os povos autóctones da
América.
Mas, a exclusão republicana não é acidental, é
conseqüência direta da dicotomia entre público e privado,
no qual o público é definido como o reino da generalidade
onde todas as particularidades se calam; e o privado como
o particular, o reino da afetividade, afiliação, necessidade
do mundo corpóreo. A dicotomia persiste na inclusão dos
excluídos da cidadania: mulheres, trabalhadores, judeus,
asiáticos, negros, índios e chicanos, impondo uma
homogeneidade que suprime diferenças grupais na esfera
pública, mas na prática força os grupos excluídos a serem
avaliados a partir de normas derivadas e definidas pelos
grupos privilegiados.
Young destaca o fato de que o mundo burguês
instituiu, arbitrariamente, uma divisão moral de trabalho
entre a razão e sentimento, identificando o masculino com
razão e o feminino com sentimento, desejo e necessidades
corporais. O reino público, das virtudes e cidadania
aparece como independente, local da razão
desapaixonada; já a esfera privada, onde a família ocupa o
lugar da emoção, onde sentimento e necessidades
corporais devem estar confinados.
A autora apóia-se em Benjamin Barber (Strong
Democracy,1984), argumentando sobre a necessidade de
salvaguardar o espaço público e democrático da exclusão
175
de grupos. Sem o temor da disruptura da generalidade e
racionalidade do público pela contaminação com o desejo
e necessidades corpóreas, o autor retém a concepção do
público cívico definido pela generalidade e oposto a
afinidade grupal, interesses e necessidades particulares.
Elabora uma distinção clara entre a esfera pública da
cidadania, a atividade cívica e a esfera privada das
identidades particulares, afiliação, papéis e interesses.
Aqui, a cidadania não esgota as identidades sociais do
povo. A busca do interesse particular e a pressão das
reivindicações de grupos particulares têm espaço no
interior da estrutura comunal e na visão comum
estabelecida pela esfera pública. Permanece a oposição
entre a esfera pública do interesse geral e a esfera privada
do interesse particular e da afiliação.
Barber reconhece a necessidade da maioria regrar
os procedimentos e salvaguardar os direitos das minorias
e, ao mesmo tempo, declara que a democracia forte
lamenta toda divisão, pois a existência da maioria já é sinal
de que o mutualismo falhou. Uma comunidade de cidadãos
origina-se do que há em comum entre seus membros
constituintes, isto transcende a esfera da necessidade e
desejos individuais para conceber um nós num corpo
comum, cuja existência depende da ordenação comum do
desejo individual em uma perspectiva de futuro partilhada
com todos.
Na tentativa de realizar o ideal de cidadania
universal, coloca-se a concretização pública generalizada
em oposição a particularidade, o comum anteposto a
diferença, e tende a excluir ou pôr em desvantagem certos
grupos com o status formal de cidadãos idênticos. A idéia
de público como universal e a identificação de
176
particularidade com privado faz da homogeneidade um
requisito da participação pública. Exercendo sua cidadania,
todo cidadão deve assumir o mesmo ponto de vista geral e
ser imparcial, transcendendo todo interesse, perspectiva e
experiência particulares. Ocorre que tal imparcialidade é
um mito.
As pessoas consideram os assuntos públicos
influenciadas por sua posição e percepção das relações
sociais. Portanto, os diferentes grupos sociais têm
diferentes necessidades, culturas, histórias, experiências e
percepções das relações sociais que, certamente, vão
influenciar a interpretação do significado e conseqüências
dos propósitos que constituem sua racionalidade política.
As diferenças na interpretação política não são apenas o
resultado de diferenças ou interesses conflitantes, mas
advém do fato de que os grupos têm interpretações
distintas mesmo quando buscam promover justiça social e
não apenas seus próprios fins. Numa sociedade onde há
grupos privilegiados e outros oprimidos, insistir que alguém
deva abdicar das afiliações e experiências particulares e
adotar um ponto de vista geral, só reforça os privilégios,
pois o interesse e a perspectiva dos privilegiados tende a
dominar o público, unificado, marginalizando ou
silenciando outros grupos.
Para Barber (apud Young, p.256), a
responsabilidade cidadã transcende afiliações particulares,
compromissos e necessidades. A esfera pública não pode
funcionar quando seus membros estão ocupados apenas
com interesses particulares. Percebemos uma confusa
identificação entre importante entre pluralidade e
privatização. O processo e o resultado do interesse grupal
têm lugar no espaço privado, não sendo discutido ou
177
revelado no fórum que envolve a todos aqueles
potencialmente afetados pelas decisões.
O privado, no sentido da barganha em beneficio de
ganhos privados é diferente da pluralidade, com sentido de
diferentes experiências, filiações e compromissos que
operam em qualquer grande sociedade. É possível uma
pessoa manter uma identidade grupal e ser influenciada
pela percepção dos eventos sociais derivada da
experiência grupal específica e, ainda assim, possuir
espírito público e estar aberta a ouvir reivindicações dos
outros sem se ocupar exclusivamente de seus ganhos. É
possível e necessário que as pessoas tomem distancia
crítica de seus desejos imediatos para discutir o propósito
público. Para isto, não é necessário o abandono da
afiliação particular, da experiência e local social (ibid,
pp.257/8).
Para politizar a vida pública não se deve objetivar a
criação de uma esfera pública unificada, na qual os
cidadãos abdicam de suas afiliações grupais, histórias e
necessidades para discutir o interesse geral ou bem
comum. Essa unidade suprime, sem eliminar as
diferenças, tende a excluir as perspectivas do público. Ao
invés da cidadania universal, pautada na generalidade, a
cidadania da Nova Era ( no dizer de Barber) deve ser
grupalmente diferenciada, o público heterogêneo e as
diferenças publicamente reconhecidas como irredutíveis:
uma pessoa vendo de uma perspectiva ou história, nunca
pode entender completamente e adotar o ponto de vista
daqueles que vêem de outra perspectiva e história.
Existe um paradoxo na democracia quando o poder
social ou econômico torna alguns mais iguais que os
outros. A solução seria institucionalizar a diferença real e
178
reconhecer a representação dos grupos oprimidos. O
conceito de grupo social torna-se politicamente importante
devido às organizações e movimentos sociais mobilizarem-
se entorno dos grupos e, não mais exclusivamente das
classes sociais.
Há que se distinguir o grupo social de outras
coletividades de pessoas. Um grupo social envolve
afinidade do indivíduo com outras pessoas com as quais
se identifica e é identificado pelos os outros. As definições
de grupo nada têm a ver com rótulos e estereótipos. O que
define um negro nos EUA como grupo social não é
primariamente sua cor de pele, mas o identificam com um
status social, um background cultural e uma história
comum produzida pelo status social e uma auto-
identificação que define o grupo como tal.
O espaço público democrático deve fornecer
mecanismos de efetiva representação e reconhecimento
das vozes e perspectivas dos grupos oprimidos e em
desvantagem que o constituem. Representação grupal
implica a existência de mecanismos institucionais de apoio
às atividades de auto-organização para análise de como
uma política social os afeta.
Não existe, exceto na esfera do ideal, a perspectiva
geral que todos possam adotar e a partir da qual todas as
experiências e perspectivas sejam entendidas e
consideradas. Os grupos fazem a sociedade das
diferenças. Quem poderia reivindicar que fala no interesse
geral? Não há grupo que possa falar pelo outro ou por
todos.
Um segundo aspecto da cidadania está em tensão
entre a meta da plena inclusão e a participação dos grupos
179
nas instituições políticas participando da formulação das
leis e políticas públicas.
Os movimentos sociais que buscam a inclusão e
participação dos grupos oprimidos e em desvantagem se
encontram frente a um dilema de diferenças. Por um lado,
devem continuar a negar a diferença essencial entre
homens e mulheres, brancos e negros, ou pessoas
inabilitadas corporalmente, usada como justificativa para
excluí-los das oportunidades, instituições ou status. Por
outro lado, afirmam a existência de grupos baseados nas
diferenças específicas e aplicam do princípio estreito de
igual tratamento, especialmente na competição por
posições, mesmo porque a competição coloca estes
grupos em desvantagem. Se a lei é cega para diferenças
grupais, a sociedade não é, alguns grupos permanecem
rotulados como desviantes, como um Outro.
Os privilégios permitem que os grupos dominantes afirmem
suas experiências e perspectivas sobre fatos sociais como
se fossem imparciais e objetivas. Onde alguns grupos são
privilegiados e outros oprimidos, a formulação da lei, da
política e das regras das instituições tendem a ser
tendenciosas em favor do grupo privilegiado, porque sua
experiência particular implicitamente estabelece a norma.
Movimentos políticos dos grupos oprimidos
atribuem um significado positivo para a diferença grupal,
reclamam sua identidade como grupo e rejeitam
estereótipos e rótulos que os marcam como inumano ou
inferior. São movimentos sociais que engajam a diferença
no terreno de luta política, ao invés de permitir que a
diferença seja usada para justificar a exclusão e a
subordinação.
180
A universalidade tem múltiplos sentidos. Os
políticos modernos promovem e universalidade da
cidadania no sentido de inclusão e participação de todos
na vida pública e no processo democrático. A realização da
cidadania universal genuína é impedida pela convicção
comum de que ao exercitarem a cidadania as pessoas
adotam um ponto de vista universal e abandonam a
percepção que deriva de sua experiência particular e de
sua posição social. A inclusão plena e a participação de
todos na lei e na vida pública é impedida também pela
formulação de leis e regras em termos universais que se
aplicam a todos os cidadãos, desiguais em si, do mesmo
modo.
Young (1995) destaca aspectos dos direitos das
minorias no contexto da democracia universal vigente nas
sociedades capitalistas liberais. Friedman (1989) analisa
os grupos minoritários a partir da comunidade, na
atualidade tipicamente urbana. A comunidade contribui
para a formação da auto-identidade, a amizade, daria o
insight crucial da natureza social ao moderno self. Para a
autora, é possível conciliar a noção comunitária de self
com as aspirações emancipatórias, em especial nas
mulheres. Amizade e comunidade resultam da escolha,
atuação do eu volitivo que anseia partilhar coisas,
sentimentos, valores ou interesses. O pressuposto básico
da amizade é o respeito mútuo e a afeição. A amizade
compõe tribos, cujo padrão comportamental é desviante da
sociedade envolvente e pode gerar intolerância. A amizade
agrega, facilita a disruptura e dá condições para a
mudança social.
181
O movimento feminista inicia-se como amizade
entre mulheres que desafiavam convenções instaurando
uma desordem criativa.
As relações nas comunidades urbanas nascem da
eleição e não de regras ou laços biológicos não
voluntários. As associações são parte da modernidade
urbana, vicejam como forma de resistir à massificação e
invertem o processo, promovendo uma desmassificação
que garante a existência da auto-identidade. A comunidade
é o lugar onde o desejo e o interesse específico aparecem,
onde aparência e essência podem coincidir.
O mundo urbano como expressão da indústria e da
burocracia teria fragmentou a comunidade real, instaurou a
alienação, a atomização, o anonimato da sociedade de
massas na qual as relações significativas foram
pulverizadas, quando não suprimidas. No mundo urbano, a
comunidade local perde importância. Mas, o urbano
também gera seus contrários. Além de produzir o lonely
crowd, a metrópole adéqua o comportamento dos seus
habitantes.
Para Friedman, na comunidade de lugar, o centro
está na teia f-v-e-i (família, vizinho, escola, igreja), na
cidade é superado. A cidade, ao se configurar como
espaço de poder masculino, fornece às mulheres
educação, informação, trabalho e agrega-as em grupos,
podendo configurar uma sisterhood. É na cidade que a
mulher transcende o papel que lhe foi atribuído na
comunidade de origem, as relações são eleitas e superam
a teia f-v-e-i.
A cidade é lugar do sentimento de estranheza
(Verfremdung) mas, para Friedman, nela há o
envolvimento entre as várias sub-culturas colocadas em
182
fricção. As relações sociais urbanas seriam culturalmente
especializadas, aqui se reforçam a expressão de grupos de
valores, minorias e a demanda por direitos.
As relações urbanas e a rede social não significam
a perda da comunidade, mas o incremento de outra ordem
comunal diferente da ordem f-v-e-i. As comunidades de
escolha tecem laços mais apertados e pontuam lugares
mais profundos do indivíduo, funcionam como lugar onde o
ser aparecer. Delas se extrai a proximidade e o
aconchego perdido da comunidade original.
A comunidade de escolha promove a reconstituição
de um sujeito formatado na comunidade f-v-e-i, realoca os
elementos constituintes da identidade pessoal. Os
membros não partilham uma história pessoal, mas dividem
entre si valores, interesses, sonhos, formas de ver e viver o
mundo. Partilham o ato de experimentar do mundo de uma
maneira singular.
Segundo Friedman, o self moderno estaria em busca da
comunidade para estimular e desenvolver a identidade,
obter um auto-entendimento mais adequado que o herdado
na comunidade original. A comunidade de escolha ajuda
na definição o nós, resgata o que existe em nós mesmos,
sendo diferente da comunidade que determina o que
somos a despeito de nossos desejos. Oprimidos e
discordantes da sociedade buscam espaço na comunidade
de opção, alimento da alma.
Tal como Friedman, Maffesoli (1987) associa tribo-
comunidade ao mundo urbano e à Pós-Modernidade. A
tribo sugere um processo de desindividualização em curso
para superar a sociedade de massas criada na
Modernidade. O autor discute a idéia de desmassificação.
183
Nela coexistem massas e tribos na transição da
Modernidade para a Pós Modernidade.
As tribos são mutáveis, instáveis e passíveis de
interpenetração. A tribo resulta de outra sociabilidade, uma
estrutura complexa orgânica: pessoas substituem
indivíduos e papéis substituem funções. A tribo sucede a
comunidade emocional e a sociabilidade fundantes e
desemboca na proxêmia e no policulturalismo.
A substituição do indivíduo pela pessoa tem
conseqüências profundas porque altera os pressupostos
da Filosofia Moderna, supera a separação entre Sujeito e
Objeto, uma vez que uma pessoa existe sempre em
relação a outra (Maffesoli,1987). A megalópole seria o
caldo de cultura onde fervilham grupos numa ambiência
emocional, uniformizando e conformando grupos. A
tendência à orientalização denota empatia com o outro
distante. Há uma superação da identidade binária e tudo
se reveste de um caráter trans ou meta. O social
racionalizado é substituído pela socialidade empática, o
feelling descreve as relações pessoais.
Maffesoli cita Weber, ao descrever a Gemeinde,
comunidade emocional efêmera e mutável, local sem
organização ou estrutura, apartado das instituições.
Estamos ante uma paisagem onde se partilham emoções
e comunalização aberta, onde há múltiplos grupos com
sólidos laços sociais. O emocional encontra-se entre a
permanência e a instabilidade.
Emoção e sensibilidade surgem da mescla da
objetividade com a subjetividade. O que caracteriza a
estética do sentimento não é a experiência individual
interior, mas a abertura para o outro - estendendo no
máximo essa noção de Outro, conferindo uma conotação
184
local e de proxêmia, na qual se desenha o destino comum.
Há um liame entre a aura estética e a experiência ética.
Na comunidade emocional há conformidade com as
leis do meio, o ethos do grupo evolui, há identificação que
reforça o que é comum a todos. Para Maffesoli, a privacy
teria sido invadida pelo holismo, a política pelo sentimento
e a solidariedade formata a comunidade, que efetiva a
pulsão no ato de estar junto e não num projeto futuro
(1987, p.105). A comunidade existe como território
partilhado onde há uma ética de proximidade. A
comunidade esgota sua energia no ato de fundação, seu
momento instituinte, e se mantém pela repetição ritual. O
ideal comunitário pode contaminar o imaginário coletivo, a
sensibilidade, e engendrar, a partir da estética, uma
relação ética. Trata-se de um resgate arendetiano, que
afirma ser função da política tornar o mundo mais belo.
Em Maffesoli, o ethos da Gemeinschaft pontua o
devir do Ocidente, o cimento vem da ética que faz com que
grupos diferenciados constituam um todo social. O
costume determinaria a maneira de estar com o outro.
Para Simmel, ele funciona como um código genético.
Associado à ética e estética, o costume caracteriza a
cotidianeidade do grupo, fica como um resíduo, o não dito
que fundamenta o ato de estar junto. Segundo Maffesoli, a
cotidianeidade foge à dominação da racionalidade
instrumental, favorece liberdades relativas.
A sensibilidade coletiva está fora da lógica da
dominação, da Zweckrationalität , gera novos valores, cria
elos de amizade em redes, relações múltiplas que ocorrem
no jogo da proxêmia, gera a ajuda mútua. Haveria uma
relação íntima entre proxêmia e solidariedade.
185
A sociedade se defende do Estado e do Mercado através
das redes de solidariedade para além do conflito, ao
contrário da relação sociedade/Estado ou
sociedade/mercado que sustentam a face conflituosa.
A ajuda mútua inscreve-se numa perspectiva
orgânica, nela os elementos, por sinergia, fortificam a vida
social. Para Maffesoli é a resposta inconsciente do querer
estar junto; do sentimento de força comum atuando no
espaço da convivencialidade, sugerindo um encaminhar ao
outro, no rumo da alteridade.
O estar junto promove a saída de si mesmo
cimentando o tribalismo, gerado doxa, crenças, opiniões
comuns e memória coletiva. Há um conhecimento que
integra a dimensão sensível, com raízes no costume, na
relação tribo e tecnologia: a palavra informatizada, as
redes sociais, a cultura tradicional revestidas pelos meios
de comunicação que têm na oralidade um vetor essencial.
A mídia, em Maffesoli, cumpre o papel do sermão no
medievo, da diatribe na Antigüidade e do discurso político
na Era Moderna. A mídia leva a floresta distante ao olhar,
leva o refugiado africano à sala de estar do Ocidente e cria
vínculos de reconhecimento de um nós. Mas, a mídia pode
causar o oposto, um sentimento de estranheza que anula
proximidades e impede o reconhecimento nesse outro.
Após o desencantamento ( Entzauberung) do
mundo, percebido por Weber, assiste-se ao
reencantamento em que massas se difractam em tribos e
as tribos se agregam em massas. O reencantamento tem
como cimento a emoção ou sensibilidade vividas em
comum (ibid,p.126). O declínio atinge as grandes
instituições, os partidos ou as classes com um papel
186
histórico. O que desponta é a comunidade assentada no
real proxêmico.
A marca da Modernidade é a lógica econômica que
privilegia o político, a atomização individual e não integra o
imaginário coletivo. O pequeno grupo, ao ressurgir,
restaura a eficácia simbólica, compõe uma rede com
sólidos fios, reencanta, concatena grupos com
intencionalidades estilhaçadas. A rede é sólida e tem o
cimento na partilha, na ajuda mútua e na solidariedade
desinteressada, dela nascem os valores alternativos.
A valorização do grupo, para Maffesoli, desconstrói
o individualismo. Na modernidade houve uma multiplicação
de relações sociais e esvaziamento de conteúdo delas. A
Pós-Modernidade traz um recolhimento no grupo e
aprofundamento de relações em seu interior. A
cumplicidade é elemento de resistência, as práticas
silenciosas tecem o laço social, numa solidariedade
imperiosa que não envolve determinação racional. Quanto
mais se avança mascarado, mais se fortalece o laço
comunitário. Vive-se entre o tribalismo e a massificação.
Faz e desfaz cotidianamente a identidade. A autonomia
foge do indivíduo e toma lugar no grupo. A cada momento
fundador a energia vital se concentra na criação de novas
formas comunitárias em arranjos de regras de
solidariedade.
Os grupos repercutem sobre o conjunto do social
portando seus valores alternativos. Isso significa que os
valores que engendram têm amplitude e não se restringem
à partilha entre pares, contaminam a sociedade. Seja na
generalização do bonezinho rastafari, no gosto pelo sushi,
na roupa indiana, na música oriental, na ikebana, nas
práticas de do-in e acunpuntura. Na Pós-Modernidade o
187
clã predomina com sua solidariedade orgânica que
acentua o todo. A modernidade buscava a unidade; a Pós-
Modernidade busca o paradoxo, o estilhaçamento, o
dilaceramento, o contraditório na pluralidade. A socialidade
pós-moderna resgata valores arcaicos, entre eles a
comunidade que impacta o imaginário.
Retomamos Touraine para discutir as minorias nas
esferas do Estado, mercado global e comunidade local.
Nunca houve uma correspondência total entre eles, da
junção sociedade local e Estado central nasceu a
sociedade nacional integrada e homogênea. Se houvesse
essa correspondência- Estado, sociedade e cultura, a
minoria seria destruída. A separação entre mercado e
cultura pode tanto reforçar a democracia quanto destruí-la,
se fragmentar a sociedade nacional, reduzida no mercado
ou submetida a homogeneização do Estado. O caráter
plural da sociedade precisa ser mantido neste tripé, para
haver representação do conjunto dos interesses.
Os inimigos da democracia são a obsessão pela
identidade nacional, étnica ou religiosa, quanto a regulação
pelo consumo. De um lado, somos conduzidos a um novo
totalitarismo, de outro há colonização do planeta pelo
mercado. A manutenção da democracia conta com atores
sociais que lutam pelas liberdades políticas, a luta pela
cidadania. Cidadania é condição da democracia, cuja base
é a separação entre sociedade civil e sociedade política. A
cidadania implica na combinação da lei única com
interesses diversos, um espaço político que não se reduz
ao Estado, nem ao mercado.
Para Touraine a democracia é o fiel da balança que
oscila entre o Estado-unidade e a sociedade civil-
pluralidade, quando pende para um lado, a relação se
188
desequilibra. Sempre em construção, de caráter
processual a democracia é constantemente vivificada pela
vontade do cidadão agir na vida pública. Do exercício da
democracia nasce a consciência coletiva que confere
poder a identidades coletivas. Um sistema democrático
limita o poder do Estado, em nome dos direitos
fundamentais e da representatividade dos atores. A
democracia é mediadora das demandas para que
cheguem ao Estado. Liberta de um lado e integra de outro.
O que define uma democracia não são os
procedimentos, são as relações que os indivíduos têm com
o poder. A meta é atingir a igualdade da sociedade política
dos direitos e oportunidades para opôr a desigualdade que
vem da sociedade civil. A sociedade de massas,
atomizada, individualista, em seu isolamento atrofia a
sociedade política e é nela que se rearticulam as
comunidades. Os atores já não se definem por objetivos
econômicos e relações sociais, mas por herança cultural e
grupos de filiação. As comunidades reformam-se em cima
das ruínas da sociedade e da ordem política (Touraine,
1996, p.183).
Mas a democracia não sobrevive com a recusa da
sociedade de massas. Fragmentar a sociedade de massas
num conjunto de comunidades ciosas por suas
identidades, seitas que recusam a norma social, inviabiliza
a democracia. Manter a democracia neste contexto requer
que se ultrapasse o nível imediato do consumo para atingir
as relações de poder. Porque é na luta contra o poder que
a democracia se configura. De um lado a sociedade de
massas cria ambiente propicio `a democracia pela
homogeneização da sociedade, de outro retira do espaço
público o indivíduo.
189
O problema de Touraine está em equacionar o
reconhecimento da diferença entre um e outro, ao mesmo
tempo que mantém a unidade da lei e a racionalidade
cientifica e técnica. Ocorre que o trânsito entre uma e outra
pode ser extremamente demorado.
190
precisam conviver sem se contrapor, de um lado a lógica
objetiva do mercado, do Estado; de outro a lógica subjetiva
da identidade.
O fim do século assistirá a lutas de libertação de
populações fechadas em si sem que haja oposição a uma
vontade central, como foi o caso das revoluções, para isto
é necessário um regime que balize as tensões sociais
entre os grupos (ibid,p.239). O Estado mantém a função de
decidir e, os agentes políticos de garantir a redistribuição
para minimizar desigualdades.
REFERÊNCIAS
191
______________________. "Democracia Política e Desenvolvimento
econômico‖. In: Desenvolvimento, Cooperação Internacional e as ONGs, 1993,
{sn}
WALZER, Michael. 1992. "The civil society argument". In: C. Mouffe (Org)
Dimensions of radical democracy. Londres, Verso.
YOUNG, Iris Marion. "Polity and Group Difference: A Critique of the Ideal of
Universal Citizenship". In: Ethics, The University of Chicago Press, 1989.
192
Normas para submissão
Título do artigo/ensaio
Descritivos, porém concisos (em português)
Resumo/Abstract/Resumen
De cunho informativo deve conter de 100 a 500 caracteres, sem contar
com os espaços. (em português e inglês/espanhol).
Autor(es)
Os nome(s) do(s) autor(es) deve(m) estar acompanhado(s) de breve
currículo com no máximo três qualificações na área de atuação ou do
conhecimento do artigo.
Palavras-chave/Keywords/palabras-clave
Até cinco palavras-chaves separadas entre si por ponto e finalizadas
também por ponto. (em português e Inglês).
Corpo do texto
Utilizar recuo de 1cm para parágrafo, recuo de 4cm para citações e
espaço entre linhas simples. Número máximo de páginas 15.
Citações
Para citações que ocupam até três linhas, são inseridas dentro do
próprio parágrafo entre aspas duplas. As aspas simples indicam citação
no interior da citação.
As citações diretas no texto com mais de três linhas devem ser
destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda com letra menor
que a do texto utilizado e sem aspas e sem itálico no caso de
acrescentar grifo nas citações especificar como: (grifo nosso) ou (grifo
do autor)
Notas de Referências
As referências devem seguir o modelo abaixo para as notas de rodapé e
Referências finais obedecendo inclusive a pontuação e o grifo.
Exemplos:
a) Livros: SOBRENOME, Nome. Título da obra. Local de publicação:
Editora, data. Ex.: CORRÊA, Roberto. A rede urbana. São Paulo: Ática,
1989.
193
regional. In: SOUZA, Álvaro (Org). Paisagem território região: em busca
da identidade. Cascavel: EDUNIOESTE, 2000. p.133-136.
Observação:
As referências são alinhadas justificadas, com espaçamento entrelinhas
simples, separando as obras por espaçamento simples. O recurso
tipográfico é o negrito para destacar o elemento título. Nas referências
da última página do artigo quando ocorrer de ter o nome do autor
referenciado várias vezes, substitui-se por um traço e ponto (equivale a
seis espaços).
Ex: ______. Gabriela cravo e canela. São Paulo: Martins, 1958.
Notas de Rodapé
Para todos os tipos de notas em artigos científicos adotamos o sistema
numérico. Para ensaios adotamos o autor-data.
Quando se tratar da primeira citação de uma obra, deve ser sua
referência completa.
Exemplo:
Para Moraes1 a supremacia das normas constitucionais no ordenamento
[...].
___________________
1
SOBRENOME, Nome. Obra. 13. ed. Local: Editora, ano. p. 20-23.
As subseqüentes citações dessa mesma obra podem aparecer de forma
abreviada, utilizando-se das expressões: Idem, Ibidem, opus citatum, a
saber:
194
página sucessivas vezes. Para evitar a repetição, substitui-se o nome do
autor e da obra por ibidem ou ibid.
Exemplo:
_________________
3
LAMPRECHT, 1962, p. 20.
4
Ibid., p. 36.
195