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sexualidade humana
A short observation about the study of human
sexuality
Nélson Vitiello
Ginecologista. Doutor em Medicina pela Universidade de São Paulo
(USP).
Unitermos: sexualidade, história do sexo, sexo normal
Unterms: sexuality, sex history, normal sex
Segundo Gênesis (1:27), "E criou Deus o Homem à sua imagem: fê-lo à imagem de
Deus, e criou-os macho e fêmea". Aliás, em hebraico, os nomes que o Homem e a
Mulher receberam foi "Ish e "Ishsha", talvez até para lembrar a semelhança entre
ambos.
O curioso desse evento é que na tradição bíblica mais antiga que conhecemos, a
tradição javista (aproximadamente 950 a.C.), não existe nenhum desprezo pela
natureza sexual do homem. De fato, a leitura do "Gênesis" permite a interpretação
de estar a sexualidade ali exposta apenas como mais um aspecto da vida, nem
inferiorizado nem enaltecido em relação a qualquer outro. Assim, a exegese mais
isenta apresenta como motivação divina para a criação da mulher apenas a
atenuação da angústia da solidão vital do homem. A interpretação patrística da
Bíblia, porém, que há tantos séculos vem influenciando nossa cultura, considera o
sexo como um mal necessário, admissível apenas por ser indispensável à
reprodução da espécie. Inaugurou-se, partir dessa interpretação, a confusão entre
sexualidade e genitalidade, que perdura até nossos dias.
Considerando tudo isso, podemos dizer que pela vertente cultural judaica cristã
herdamos uma visão extremamente repressora da sexualidade, mais
acentuadamente marcada, como sempre, para o contingente feminino.
Assim, como se vê, nossas raízes culturais estão impregnadas de uma visão
distorcida da sexualidade, onde a prática da repressão é o comportamento usual,
ao menos para as mulheres, quando não também para os homens. Em outras
palavras, em nossa cultura, ao menos até bem recentemente, o machismo reinou
impunemente.
Embora nossa civilização tenha, nos últimos séculos, vivido alguns momentos de
maior liberalidade, essa visão distorcida da sexualidade foi a tônica principal,
mantida durante todos esses séculos em que ela vem se cristalizando. Diga-se de
passagem que, mesmo em seus momentos de mais liberdade, o exercício pleno da
sexualidade sempre foi apanágio das pessoas adultas, que vêem com maus olhos a
sexualidade dos adolescentes, ridicularizam as manifestações sexuais da terceira
idade e negam - ao menos negaram até a poucas décadas - a sexualidade na
infância. De fato, foi necessário que surgisse um Freud, no apagar das luzes do
século XIX, para que "descobríssemos" que a sexualidade existe e se manifesta,
ainda que de formas diferentes, durante toda a duração da vida humana.
Devemos muito, nesse sentido, a homens como Henry Havelock Hellis (1859-1939)
e Sigmund Freud (1856-1939), que nos deram o embasamento científico para o
estudo das manifestações da sexualidade. Hellis, na Inglaterra, ainda como um
ranço do puritanismo vitoriano, sofreu severa censura e mesmo coação legal, tendo
sido proibido de publicar seus trabalhos. Freud, em Viena, teve suas idéias
fortemente rejeitadas pela comunidade médica e científica de então.
Desses, talvez a figura mais citada e menos conhecida seja a de Alfred C. Kinsey,
nascido em 1894 e formado em Engenharia Mecânica (1914) e em Biologia (1920).
Reconhecido como cientista (com doutorado em ento-mologia) e acatado professor
universitário, pelas características de conservadorismo e respeitabilidade, foi
chamado em 1937, pela Universidade de Indiana, para criar e lecionar um novo
curso, sobre sexualidade e casamento. Interessando-se cada vez mais por um
assunto que em princípio parecia estar tão fora de sua área de conhecimento,
Kinsey iniciou uma série de pesquisas sobre o comportamento sexual dos norte-
americanos, que culminou com a publicação de obra absolutamente revolucionária
para a época, o livro "Sexual Behavior in the Human Male", seguido alguns anos
depois pelo "Sexual Behavior in the Human Female", que revolucionaram a até
então aparentemente conservadora sociedade norte-americana. Kinsey morreu aos
62 anos, em 1956.
Ainda que seja este apenas um despretencioso e breve apanhado sobre a história
do conhecimento da sexualidade humana, não pode nele faltar ao menos a menção
de alguns dos mais importantes nomes, sem cuja contribuição nossos
conhecimentos estariam ainda mais defasados. Assim, parece-nos importante que
se citem, pela relevância, os nomes de Kegel e de Masters.
Graças aos estudos, quase sempre encarados de início com incompreensão e falta
de créditos, embora reconheçamos que existe ainda muito a ser estudado, já temos
ao menos esboçadas nos dias atuais as linhas mestras do conhecimento sobre as
tão ricas e multifacetadas expressões da sexualidade humana.
O mesmo se diga para casamentos inter-raciais. Há cem anos seria visto como algo
completamente fora da norma, por exemplo, a união entre um homem branco com
parceira mulata ou negra, que hoje vem sendo encarados com mais naturalidade.
Embora tenham havido historicamente inúmeros exemplos dessas uniões, sempre
foram elas levadas na clandestinidade e entendidas como algo de errado.
Mesmo em considerando-se que em outros períodos históricos isso não tenha sido
assim, podemos dizer que em nossa cultura cristã ocidental até bem poucos anos o
homoerotismo foi visto como uma perversão e até mesmo como uma doença. Ainda
que entre os círculos mais cultos tal visão não mais seja vigente, não se pode negar
que a sociedade como um todo mesmo hoje vê nele muito de sujo, de indigno ou,
em outras palavras, "anormal".
Quanto aos aspectos sociais do exercício da sexualidade, o normal é aquilo que foi
esboçado linhas atrás, ou seja, a prática heterossexual por casais com as
características descritas. O que foge a essas normas é denominado de "desvio"
(como a gerontofilia e a homossexualidade, por exemplo), "parafilia" (como o
sadoma-so-quismo) ou até mesmo de "perversão" (a necrofilia, por exemplo),
embora essa nomenclatura ainda não seja bem universalizada, havendo os que
denominam de "desvio" o que outros chamam de "parafilia", e vice-versa.
É no componente psicológico do exercício da sexualidade, no entanto, que, em
nosso ver, existem mais dificuldades em conceituar-se o normal. Na verdade, para
saber se nossa sexualidade está sendo normalmente exercida, deve-se responder a
indagação sobre se é ela satisfatória. Estou contente com minha sexualidade?
Exerço-a prazerosamente? Estou satisfeito com a frequência e com a maneira em
que a exerço? Minha parceira (ou meu parceiro), por quem tenho afeto e a quem
me é importante satisfazer, está feliz com esses parâmetros? A isso, a essa
satisfação com o exercício da própria sexualidade, costuma-se denominar de
"adequação sexual". Quando essa adequação não existe, ou seja, quando está
insatisfeito com a prática da sexualidade, denomina-se a isso de "inadequação
sexual", que em última análise é o objetivo de todas as correntes de terapia sexual,
quer as de fundo orgânico, quer as de fundamentação psicológica.