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EDITORIAL .............................................................................................................................................................................. 2
SUMÁRIO
CORRESPONDÊNCIA
COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE As opiniões publicadas em artigos
Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho assinados são de inteira
responsabilidade de seus autores,
Rua do Giz (28 de Julho), 205/221 – Praia Grande CEP 65.075–680 – São Luís – Maranhão
não comprometendo a CMF.
Fone: : (0xx98) 3218-9924
2 Boletim 38 / agosto 2007
O CUXÁ1
Zelinda Machado de Castro e Lima2
Dentre os muitos pratos da variada esculentos L.). Estudo do Sr. Francisco Nunes Pereira, sobre os costumes e
cozinha do Maranhão, avulta com me- Tenreiro, citado por Cascudo, informa práticas da Casa das Minas, o mais anti-
recido relevo, o cuxá, tornado já um sím- que da América, e principalmente via go culto afro-brasileiro de São Luis, ex-
bolo da hospitalidade maranhense. Brasil, recebeu a ilha de São Tomé, no plica:
golfo da Guiné, a pimenta malagueta
O QUE É: A vinagreira, conhecida noutras áreas pela
(Capsicum frutescens), mandioca (Ma-
Uma espécie de bobó (esparregado)3 denominação popular de azedinha, é bas-
nihot esculenta), abacate (Persea ame-
de folhas de vinagreira, engrossado com tante apreciada e consumida, quer – após
ricana), ananás (Anona muricata), pa- cozimento – misturada ao arroz, quer iso-
Farinha de Mandioca, Gergelim e Ca- paia (Carica papaya), anona4 (Anona
marão Seco. ladamente; sua determinação científica é
Glabra), sape-sape5 (Anona muricata), Hibiscus sardarifera L., pertencendo à
Vinagreira: Arbusto da família das
cacau ( Theobroma cacao ), cajueiro família das Malváceas. Paul Lê Cointe
Malváceas, originário da África Orien-
(Anacardium occidentalis), tomates e aponta essa planta com o nome de azeda-
tal Tropical (Hibiscus Sabdariffa L.) qua-
se sempre com cerca de 2 m, folhas den- batata andina. Daí ser difícil estabele- da-Guiné. No entanto, tão apreciada como
cer com certeza a origem da vinagreira. é, não pode ser consumida em certa fase
tadas, flores sésseis, axilares, róseas ou
Mesmo porque a África conhecia o do ano. E, note-se, ela entra no preparo
púrpuras, bastante disseminado nos pa-
bobó, o esparregado de folhas diversas. do famoso prato chamado ARROZ-DE-
íses tropicais e subtropicais. Também CUXÁ, orgulho da culinária maranhense
conhecido como caruru-azedo, em ou- Na África Oriental faz-se o esparregado (PEREIRA, 1979, p. 153)
tros países seus frutos são empregados com folhas de abóbora, mandioca, feijão,
no fabrico de geléias e doces. batata, gimboa (uma espécie de bredo, Gergelim: Planta anual, o gergelim
Amaranthus Linn.,) mulembo ou kixara- ou zerzelim é uma planta anual da fa-
nana (Curchorus olitorius Linn) e na mília das Pedaliáceas, cientificamente
Guiné usam folhas de cito, boabá (Adau- chamada Sesamo indicum L., segundo
sionia digitata), e os fulas do Gabu utili- os botânicos. Tem raízes em forma de
zam as ervas bagitx, denominando-o fole- nabo, caule ereto, cilíndrico, de mais de
rê. Comumente não fervem as folhas e
1 m de altura.
sim esmagam-nas no pilão, obtendo uma
massa verde, como mingau espesso. Quan-
do há sal, temperam com sal, pimenta,
esta preparada e posta quando o esparre-
gado está quase pronto.
Verduras à venda no
Mercado Central de São Luís
1 Texto encaminhado pela CMF ao IPHAN, em 03/06/05, com pedido de registro do cuxá como patrimônio cultural imaterial brasileiro. Fotos de Margareth Figueiredo.
2 Zelinda Machado de Castro e Lima é pesquisadora e estudiosa da Cultura Popular, e autora de “Pecados da Gula, comeres e beberes da gente do Maranhão”.
3 Esparregado. Esparregar: Guisar ervas, cozendo-as bem, e depois de picadas, e espremidas, se tempera com molhos etc.
4 Araticum.
5 Idem.
4 Boletim 38 / agosto 2007
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ro Alípio de Miranda Ribeiro. pão da terra em sua legitimidade funci- secos e enlatados. São muito procurados
A carne do peixe-pedra é delicada e sabo- onal”, unanimemente louvada por cro- os camarões do Maranhão. Entre nós são
rosa como a da pescadinha. nistas e visitantes, de Nóbrega e Anchi- classificados, conforme o tamanho, em
O prato “que acontece”, conforme expres- camarão-lagosta, camarão comum e ca-
eta, de Abbeville e Devreux a Marcgra-
são do acadêmico Odylo Costa Filho, não
ve a Thevet. Nem seria por outro motivo marão-piticaia, o menor. O camarão
pode ser comido, entretanto, pela gente
da Casa das Minas, durante o mês de que o botânico austríaco João Emanuel constitui, com o peixe frito e o cuxá, o
maio, por motivos seguramente ligados ao Pohl classificou-a como utilíssima. trio de ouro da culinária maranhense.
culto dos voduns mina-jejes. Entre a farinha e o beiju desenvol- O arroz completa o prato típico – o
O óleo que se extrai das sementes da plan- veu-se o que se poderia chamar de com- arroz de cuxá. Do árabe Ar-ruzz, é grão
ta gergelim dá ao peixe frito um sabor que plexo da mandioca, pois se a primeira produzido pela gramínea de igual nome,
não se pode obter mesmo com os melho- representa o pão da terra, complemen- nativa da África, Índia e Indochina. Na
res azeites de Portugal e Espanha. América havia o arroz vermelho, em es-
to indispensável de todas as comidas, o
Produto da indústria doméstica da gente tado silvestre, e no Maranhão, esse ar-
maranhense, já não é, porém, encontrado outro fornece a matéria prima das bebi-
das, além de garantir a sobrevivência nas roz vermelho, ou de Veneza, segundo Je-
facilmente nos mercados de São Luís. rônimo Viveiros, alimentício e saboroso,
A João Cariolla Tierno devo a revelação longas jornadas de guerra, ou servir de
embora miúdo e quebradiço, foi de uso
de que, além de quatro ou cinco nomes oferenda generosa aos amigos de paz.
corrente por mais de um século. No en-
mais que lhe dão, o gergelim tem o de Outras modalidades, porém, apresenta
“alegria” e o de “sésamo” (PEREIRA, 1979, tanto, não agradou ao europeu, substitu-
a mandioca, como os mingaus e pirões,
p. 153-154). ído, enfim, pelo arroz branco, também
que seria desnecessário expor aqui, por
chamado arroz de Carolina. Tão apreci-
Do árabe jurgulan, é natural da Ín- enfadonho. Repitamos, apenas, para
ado era o arroz vermelho que foi preciso
dia, conhecido desde remota antiguida- encerrar o assunto, o ditado popular: proibir seu cultivo por meio de pregão
de, bastante disseminado pelo mundo e Com mulher e pirão, faz-se a função. público, ameaçando de cadeia, multa e
cultivado, principalmente, nos países in- trabalhos os que ousassem desobedecer.
tertropicais da Ásia, África e América.
É planta de 1 m de altura, ereta, robusta,
Provavelmente foi trazida da África pe-
folhas de ápice prolongado em ponta, e
los portugueses. Sesamum orientale, suas flores em espiguetas muito compridas; o
sementes pequenas, ovóides e achatadas, fruto é cariopse coriáceo. Espécie de ex-
brancas, amareladas ou escuras, segun- traordinária importância econômica, vem
do as variedades, comestíveis e medici- sendo cultivada há cerca de 5.000 anos.
nais, são usadas torradas, em pães, doces No Brasil sua cultura foi iniciada em me-
e salgados, e é o gergelim, que os árabes ados do século XVII, em Iguape, São Pau-
chama Simsim e os africanos Beni, que lo, e no séc. XVIII no Maranhão, registra
a Enciclopédia Mérito.
dá o sabor característico ao cuxá.
Mandioca: Daniel de La Touche, fun- Venda da camarão seco Feitas estas considerações, passemos
dador da cidade de São Luís, encontrou, ao cuxá. Para Câmara Cascudo é acepi-
provou e aprovou a mandioca e a farinha Camarão: Pequeno animal artrópo- pe tradicional do Maranhão e a quem o
de pau dos índios Tupinambás. E Jerôni- de, crustáceo da ordem dos Decápodes, ilustre folclorista Domingos Vieira Filho
mo de Albuquerque, que o expulsou do marinhos ou de água doce, da subordem forneceu uma receita para o preparo do
Maranhão, escreveu: “Somos homens que dos Macrurus e da família dos Peneíde- prato. Jacques Raimundo, em O Ele-
um punhado de farinha e um pedaço de os. Os camarões de água salgada brasi- mento Afro-negro na Língua Portugue-
cobra, quando as há, nos sustentam.” D. leiros são de três espécies: camarão-rosa, sa, assevera ser cuxá vocábulo da Guiné
José de Souza Coutinho, em 1797, reite- camarão-branco e camarão-de-areia, ou Superior. Matthias Röring Assunção
rava ao governador D. Antônio Fernando de sete-barbas. Os primeiros atingem o acha que o cuxá é
de Noronha a recomendação do Rei para comprimento de até 20 centímetros, sen-
que fosse facilitada e incentivada a cul- um possível legado mandinga, como su-
do os últimos bem menores, de apenas 7 geriu Antônio Carreira. Kutxá designa,
tura da mandioca, cuja farinha era já ou 8 cm. Um dos pescados de maior nesse idioma, o quiabo-de-Angola ou vi-
conhecida e apreciada em Portugal. importância comercial, consumido em nagreira (Hibiscus sabdariffa, Lin.), cujas
Planta leitosa da família das Eufor- grandes quantidades, frescos e salpresos, folhas verdes são usadas para um prato
biáceas, originária da América do Sul “de sabor acidulado, muito apreciado por
(Manihot utilíssima Pohl), cujas grossas quase todos os povos da Guiné. (Carreira,
raízes tuberosas, ricas em amido, têm As Companhias Pombalinas).
emprego na alimentação. Há duas espé- COMO SE FAZ:
cies de mandioca: mandioca amarga e A receita que, a seguir oferecemos, é
mandioca doce (macaxeira, aipim). Câ- de uma emérita quituteira, D. Aniceta,
mara Cascudo, em História da Alimen- de saudosa memória, tal qual nos trans-
tação no Brasil, denomina-a “A Rainha mitiu à viva voz:
do Brasil”, tão importante seu papel na
6 maços de vinagreira
alimentação do indígena, do português ½ kg de camarão seco (descascado)
colonizador e do escravo africano, “ali- ¼ kg de farinha seca
mento regular, obrigatório, indispensá- ¼ kg de gergelim
vel aos nativos e europeus recém-vindos, Detalhes do camarão seco
2 dentes de alho
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7 Baseado em justificativa antropológica elaborada em 11/2005 para o pedido de registro co cuxá como bem cultural brasileiro, apresentado ao IPHAN, pela CMF.
8 Dra. em Antropologia; membro da CMF.
9 Informação da pesquisadora Zelinda Lima.
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ARTE OU ARTESANATO? do cultural e a leitura que o autor quer passar dual, ele é sempre tomado pelo coletivo em fun-
de sua obra. ção das significações e ressignificações que são
Pensar o artesanato como uma produção ar- Diferentemente da produção industrial ca- estabelecidas pela dinâmica da cultura.
tística significa pensá-lo a partir de matrizes te- racterizada pela estandardização, serialização, Nesta transmutação produtiva, o que era
óricas diferentes das tradicionais que, ao longo desidentificação e desumanização, a produção autêntico – inspiração, duração material e tes-
dos séculos, separaram a arte do artesanato artesanal é ainda hoje uma criação pessoal, ca- temunho histórico do objeto-, esforço concen-
como dois campos diferentes do saber: um for- racterizada pela repetição elaborada do mesmo trado de um momento único e intransferível,
mal e outro informal. Deste modo, a ultrapassa- produto que funciona como fonte de inspira- torna-se vulgar pela funcionalização e pelo ano-
gem teórica que proponho permite repor o diá- ção contínua e incessante. Deste ponto de vis- nimato, torna-se mais um no consumo da expe-
logo a partir de critérios mínimos que possam ta, enquanto a reprodução industrial desclassi- riência genérica da vida. É isso que torna a re-
responder ao questionamento principal deste fica o produto por retirar-lhe a aura que o confi- petição meticulosa do artesanato, ao mesmo
debate e que interessa a todos os presentes: o gura como único e específico dentro de um tempo, a sua morte momentânea e a sua vida
artesanato é arte? Se é arte, de que ela é com- universo maior de objetos tornando-o sem me- recomeçada pelo esforço renovado de recupe-
posta? Como se caracteriza? O que a diferencia mória, a reprodução artesanal garante a auten- ração da aura perdida ou mesmo do afeto des-
das outras artes? ticidade do objeto desde que a cópia seja uma prendido, já que segundo a artesã Marliete Ro-
Podemos inicialmente começar por dizer reelaboração permanente do original com vista drigues da Silva do Alto do Mouro (PE), área de
que o artesanato é uma arte utilitária, com um à sua perfeição. produção do Mestre Vitalino:
caráter funcional ritualístico ou não, um saber- Isto significa que a criação artesanal envol-
“No começo, inclusive, quando eu fazia uma
fazer que, através da elaboração meticulosa- ve integralmente as duas dimensões da cultura
cena, eu não conseguia vender, porque ficava
mente repetida, pretende chegar à perfeição (a material e a simbólica) porque a sua estética com pena. Não queria entregar para as pesso-
estética manual da forma e do conteúdo. Por funcionalista reflete de algum modo o processo as que compravam, porque eu tenho muito
isso, o artesão é um criador coletivo que soma artístico que a gerou e o caráter devocional que carinho pelas coisas que faço e fico com pena
ao seu processo de criação, tanto a sua inspira- a sustentou como fonte de inspiração. Assim, de ver meu trabalho indo embora. Mas isto
ção artística, fonte de sua capacidade de per- por exemplo, uma imagem de São Francisco de também tem um lado bom, que é ver nossa
cepção do mundo, quanto à experiência cotidi- Assis ou um pandeirão do boi de zabumba jun- peça sendo levada e guardada por pessoas que
também gostam das coisas que a gente faz.
ana adquirida através da tradição, isto é, do sa- tam, no mesmo olhar, o uso e a devoção, isto é,
Por isto, também não tenho interesse em fa-
ber passado através dos tempos e sempre (re) a função e a fruição. Nestes dois objetos, o sa- zer as peças em grande quantidade para as
atualizado pela prática do fazer repetido. ber do artista se confunde com o fazer do arte- lojas, porque minha produção é toda feita com
Sendo assim, o artesão vale pela sua eficá- são e, deste modo, por mais que o pandeirão amor para ser conservada”.
cia no trabalho, vale pela dedicação com que seja semelhante a tantos outros modelos que
elabora sempre e sempre a sua obra, numa re- circulam na cultura, sempre há algum vestígio É nesta busca incessante entre o mesmo e o
petição metódica cuja criação permite não so- da criação única e específica que o gerou, seja diferente que o artesanato mantém-se no mun-
mente o aprofundamento da técnica, mas o seu pela curtição diferenciada do couro, seja pela do criativo do folclore de onde retira a sua pere-
aprimoramento até chegar ao que chamamos emoção do artesão no momento da produção, nidade, credibilidade e sustentação e onde se
de savoir-faire específico, distinto. Por sua vez, seja pelo processo com que esse objeto chega nutre de inspiração sagrada e, no mundo da
o artista vale pelo seu poder de renovação e ao público. cultura popular, por onde circula como parte de
invenção, já que trabalha o tempo todo sob a O artesão vale pela sua capacidade de pro- um processo mais amplo de trocas simbólicas
pressão da genialidade e da criatividade, em duzir não somente o objeto, mas as técnicas com as outras áreas artísticas, com outros obje-
função da exigência de uma estética simbólica que permitem a produção, num processo per- tos que fazem parte do mundo da cultura. Com
do novo, do inédito, do autêntico, do único e manente de superação de dificuldades. A cada o folclore, o artesanato sustenta uma relação de
indivisível capaz de ultrapassar tempos, espa- vez que um objeto é reproduzido artesanalmen- continuidade da tradição no tempo pretérito/
ços, escolas, tendências e modelos. te todo o processo de criação recomeça num presente, gerando através da transmissão do
Neste caso, o artesão tem mais liberdade no ciclo interminável de vida e de morte que exige conhecimento artesanal uma memória lúdica,
seu processo de criação porque trabalha ao mes- um permanente esquecimento/naturalização permanente, uma espécie de fio de Ariadne que
mo tempo com a experimentação e com a expe- do saber-fazer, mas, ao mesmo tempo, uma aten- mantém viva a história dos seus produtores e
riência, isto é, com o mesmo e com o diferente, ção constante para que a técnica e os proble- dos seus objetos. Com a cultura popular, o arte-
capaz de suportar portanto todas as possibili- mas que a envolvem sejam solucionados para
sanato legitima o seu papel de produtor, a partir
dades criativas, enquanto o artista trabalha com melhorar as condições de trabalho (produção,
da lógica de consumo e de circulação de obje-
o bom senso, o racional a partir de uma linha de comercialização e circulação).
tos no mundo globalizado.
raciocínio que pressupõe uma leitura das con- Isto quer dizer que o processo de criação é
dições de produção e do mercado. Nesta mes- também um processo de aperfeiçoamento, cujo Com o folclore, o artesanato pereniza-se
ma lógica, o artesão trabalha com as regras do planejamento depende das circunstâncias do como fonte permanente de conhecimento e ins-
senso comum, com o que é plausível, verossí- momento que podem ser sazonais ou não, dos piração. Com a cultura popular, amplia-se para
mil, ou seja, com uma espécie de virtude co- custos de produção, da sua função ritualística, fazer-se visível, volúvel, mutável e circunstan-
mum que junta a todos no mesmo gosto e na dos materiais utilizados, da capacidade de re- cial. Sendo arte e técnica ao mesmo tempo, ul-
mesma estética para além e para aquém do mer- cepção dos objetos na cultura e também da ma- trapassa antigas rivalidades com outros conhe-
cado. Ao contrário, o artista elabora a sua obra a leabilidade com que esses objetos são refuncio- cimentos e mantêm-se vivo e cada dia mais di-
partir de uma estética própria e de um gosto nalizados na vida cotidiana. Portanto, por mais nâmico como parte do patrimônio material da
individual que leva em consideração o merca- que o processo de criação artesanal seja indivi- humanidade.
CONTINUAÇÃO
O resultado desses artifícios consiste na de propor um crescente interacionismo en- sibilitando a emergência de memórias diver-
própria transgressão aos bens patrimoniais, tre estes e os turistas que visitam a região. sificadas, nas quais se possam arrolar varia-
com a substituição de seu significado histó- das leituras e interpretações dos bens cultu-
Para as cidades preservadas, faz-se necessário
rico e cultural, e de um crescente processo que a comunidade se (re) aproprie de seus va- rais, passíveis de serem amalgamadas à ativi-
de cenarização do Patrimônio Cultural. Tra- lores culturais, preparando-os para conforma- dade turística.
ta-se, na visão de Motta (2000), de um mode- rem à oferta turística. O conhecimento da Entendemos que a comunidade local deve
lo globalizado de intervenção e tratamento história, o entendimento do significado dos participar do processo de amalgamação dos
lugares e a sua correta interpretação contribu- recursos culturais para o turismo, contribuir
do patrimônio urbano, no qual os projetos em para a garantia da preservação do lugar (...)
urbanísticos seguem a perspectiva de mer- para a disseminação de sua memória e para a
Se o turismo sobrepuser-se à cultura local e
cado de consumo serializado, como nos exem- fizer com que esta cultura se descaracterize, revitalização dos espaços urbanos testemu-
plificam a ressemantização empreendida nos ele fará por extinguir a própria razão de ser nhos de sua história. Nesse âmbito a cidade
bairros Pelourinho e Recife Antigo nos es- naquele lugar. (SIMÃO, 2006.p.97). será vista “como construção histórico-cultu-
ral, como patrimônio de seus moradores,
tados de Bahia e Pernambuco,
como espaço de memória” (MENESES, 2004,
respectivamente.(BARBOSA, 2001). Partindo-se desse princípio, Murta (1995)
p.86), e, por conseguinte, de identidade.
O processo de revitalização desses sítios salienta que a emergência de um novo dire-
urbanos para o Turismo ocasionou uma per- cionamento para o uso racional do Patrimô-
da dos laços afetivos e dos referenciais sim- nio resulta de um processo de interpreta- REFERÊNCIAS
bólicos entre a comunidade local e os ambi- ção, o qual consiste em “adicionar valor à
BARBOSA, Yacrim. O despertar do Tu-
entes requalificados. No que concerne ao experiência de um lugar por meio da provi-
rismo: um olhar crítico sobre os não-luga-
imperativo de inserir a comunidade nos me- são de informações e representações que
res. São Paulo: Aleph, 2001.
canismos de gerenciamento dos bens patri- realcem sua história e suas características
BARRETO, Margarita. Turismo e legado
moniais, a desterritorialização cultural inci- culturais e ambientais”, ou seja, maximizar
cultural: as possibilidades do planejamen-
de-se nas práticas de preservação impetra- as potencialidades do meio-ambiente natu-
to. São Paulo: Papirus, 2000.
das ao patrimônio edificado pelos residen- ral e cultural, através de uma metodologia
BAUDRILLARD, Jean A sociedade de
tes. O convívio com as novas paisagens ur- que identifique os atrativos e sua importân-
consumo. Rio de Janeiro: ed. Elfos, 1995.
banas provoca um estranhamento e o não cia, estabeleça relações entre os fatos histó-
reconhecimento destes espaços enquanto ricos que os circunscrevem e a sociedade
CAMARGO, Haroldo Leitão. Patrimônio
referenciais de memória e identidade para atual, bem como forneça aos visitantes uma
Histórico e Cultural. São Paulo: Aleph,
comunidade local experiência particular, agregando valor às ca-
2002.
racterísticas e peculiaridades da cultura, me-
CHOAY, Françoise. Alegoria do Patrimô-
INTERPRETANDO MEMÓRIAS NA diante uma proposta didático-pedagógica
nio. São Paulo: UNESP, 2001.
que permita o estabelecimento de um vín-
CONSTRUÇÃO DOS ATRATIVOS TURÍSTICOS FREIRE, Doia; PEREIRA, Lígia Leite.
culo estreito entre o Patrimônio e os mora-
História Oral, Memória e Turismo Cul-
A partir disso, as ações direcionadas para dores, e conseqüentemente entre este e os
tural. In: MURTA, Stela Maris. Interpre-
a viabilização técnica e financeira do Patri- turistas.
tação do Patrimônio para um turismo sus-
mônio Cultural, notadamente o que corres- Isso pode se exeqüível através de técnicas
tentado: um guia. Belo Horizonte: Terri-
ponde aos monumentos arquitetônicos ou diversificadas, tais como trilhas interpretati-
tório Brasilis, 1995.
edificados, devem abranger uma nova con- vas naturais e ambientais, site museus, ence-
LE GOFF, Jacques. História e Memória.
ceptualização dos bens culturais, a qual se nações com guias locais, e outras tecnologias, Campinas: Unicamp, 1996.
refere à necessidade de inseri-los dentro da na busca pela valorização e diferenciação dos LOPES, Tânia. Fragmentando os rotei-
dinâmica própria de uma sociedade. Para recursos que compõem a oferta turística lo- ros turísticos sobre Ouro Preto. In: JÚ-
Barreto (2000), o processo de ressemantiza- cal. Embora recebendo críticas de diversos NIOR, Álvaro Banducci; BARRETO,
ção, atrelado à mecanismos de conservação setores da sociedade civil, no que se refere ao Margarita (orgs). Turismo e Identidade
e revitalização, surge como alternativa viá- caráter de mercantilização dos fatos históri- Local: uma visão antropológica. São Pau-
vel, pois permite que a comunidade local re- cos em prol do Turismo, fenômeno denomi- lo: papirus, 2001.
conheça a importância do Patrimônio His- nado de “industrialização do passado” (URRY, MENESES, José Newton Coelho. His-
tórico no qual está inserida, e ainda, possibi- 1996), essa iniciativas podem contribuir o tória e Turismo Cultural. Belo Horizon-
lita o seu reaproveitamento para finalidades resgate da identidade sócio-cultural por par- te: Autêntica, 2004.
turísticas e recreacionais. te da população. Nesse sentido, Barreto (2000, MOTTA, Lia. A apropriação do patrimô-
Exemplos significativos podem ser elen- p. 47) nos assegura que: nio urbano: do estético estilístico nacio-
cados de regiões que por meio da revitaliza- nal ao consumo visual global. In:
A recuperação da memória coletiva, mesmo
ção, tornaram-se importantes centros cul- que seja para reproduzir a cultura local para os ARANTES, Antônio A. (Org). O Espaço
turais, de lazer e entretenimento, reabilita- turistas, leva, numa etapa posterior, inexora- da diferença. São Paulo: Papirus, 2000.
dos tanto por parte da população local, quan- velmente, à recuperação da cor local, e num p.256-287.
to por parte da demanda turística. Porém, ciclo de retroalimentação, a uma procura por PELEGRINNI FILHO, Américo (org).
para que a revitalização de áreas urbanas e recuperar cada vez mais esse passado. Ecologia Cultura e Turismo. São Paulo:
naturais se traduza em benefícios para as Além de proporcionar a valorização dos Papirus, 1997.
comunidades residentes e flutuantes, faz-se atrativos naturais e culturais pelos membros SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preser-
mister a existência de planos e programas de uma coletividade, a interpretação ambi- vação do Patrimônio Cultural em cida-
voltados para a valorização da memória e da ental propicia a sustentabilidade financei- des. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
identidade locais, situando-os dentro de uma ro-econômica das populações locais, decor- URRY, John. O olhar do turista: lazer e
perspectiva que promova uma nova concep- rente do processo de visitação, além de inse- viagens nas sociedades contemporâneas.
ção dos bens culturais para a sociedade, além rir as reminiscências dos grupos sociais, pos- São Paulo: EDUSC, 1996.
Boletim 38 / agosto 2007 11
O arroz, alimento de ricos e pobres, ao seu amigo Jovino Costa, que o convi- No Rio Grande do Norte
esteve desde cedo presente na mesa bra- dara a ir saboreá-lo em sua casa (ver Jerimum e violão,
Em Goiás moça bonita
sileira, sob diversas formas. É o que re- ANEXO). Mais recentemente, Zeca Ba- E rapaz sem coração.
gistra Carlos de Lima, afirmando que o leiro e Chico César, na música Pedra de
que se fala de Recife, aplica-se ao Ma- Responsa, referem-se a ele: “Quando fui Não são apenas os autores de reno-
ranhão e ao Brasil: na ilha maravilha / fui tratado como um me que falam do arroz. Ele está nas
paxá / me deram arroz de cuxá / água quadrinhas como a que segue:
Com respeito à alimentação, podemos dizer
que os ricos comiam perus, galinhas, frutas, o gelada da bilha / cozido de jurará / ala- Preto que vendes aí?
famoso queijo-do-reino, passas, biscoitos, sal, vantu na quadrilha” (cf. NAVARRO, É arroz do Maranhão,
manteiga, bacalhau, presunto e carnes impor- 2004, p.41). Que Sinhá mandou vender
tadas, bebiam vinhos, café, chá, licores, etc.; Mota (1991, p. 393) registra a seguin- Na casa do Salomão. ( LIMA, Z, v.2, 1998, p.
os pobres farinha de mandioca, fubá de arroz 76)
e de milho, feijão preto, toucinho, carne sal- te estrofe, que data dos primórdios da
gada; cachaça e chibé, além de largo uso de República, em que enunciam-se as es- Câmara Cascudo (2004, p. 858) re-
batatas-doces, goiabas, ananases, melancias, pecialidades dos Estados da Federação gistra:
laranjas (FREYRE apud LIMA, C de, 1998, brasileira;
p.340). O sr. Assis Iglesias ouviu em Caxias, Mara-
S.Paulo para café, nhão, fevereiro de 1919, o cego Raimundo
Leão de Sales entoando a cantiga original, e
12 Especialista em Lingüística, professora do Departamento de Letras da UFMA e pesquisadora do Atlas Lingüístico do Maranhão - ALIMA.
12 Boletim 38 / agosto 2007
CONTINUAÇÃO
Alguns pratos de arroz têm designa- Outros pratos são servidos com acom- O uso medicinal do arroz não é mui-
ções curiosas, como é o caso do “maria- panhamento à base de arroz, como é o to corrente no Maranhão, entretanto,
zabé” ou “maria-isabel”, prato de carne caso do Amalá – comida feita com quia- Zelinda Lima (1998, p.115) registra:
cozida com arroz; do “arroz –de-puta”, bos (caruru), carne de peito de boi ou
Dieta de criança enferma: água-de-arroz.
ou “arroz-de-puta-pobre”, uma espécie rabada, com pirão de farinha de arroz Para hemorragia: água-de-arroz adoçada.
de arroz de carreteiro feito com lingüi- ou de mandioca; do Anguzô – esparre- É boa também para os intestinos.
ça no lugar do charque tradicional (cf. gado de ervas, semelhante ao caruru, que Para a pele: pó da última lavagem do arroz.
se come com angu de arroz; do Badofe Para engasgo; comer arroz ‘pegado’ (quei-
FISCHER, 2000, p. 36); do “arroz –de- mado).
– prato da cozinha afro-brasileira, uma
viúva – prato da culinária baiana, à base
espécie de massa comestível à base de Obrigatório na mesa do brasileiro,
de arroz com sal e leite de coco. O Dici-
taioba que se come com arroz de deixou marcas, também, no folclore, e
onário Aurélio traz esta citação: ‘Após o haussá;do Mindim – prato regional do não apenas no Brasil, manifestando-se,
ofício, voltava a imagem em procissão Piauí, que consta de arroz com costelas sobretudo, no uso de frases feitas e ex-
para a nossa casa, onde era servida lau- de porco (cf. LIMA, C., 1999). pressões populares, nas crendices e su-
ta mesa de doces, cuscuz, arroz-doce, Muitos outros pratos regionais e tra- perstições.
arroz-de-viúva, aipim com manteiga, dicionais são compostos com a lexia ar- Muito conhecido é o hábito de lan-
bolos , queijos e café com leite’ Itagipe, roz. Entre eles, destaca-se: o arroz cai- çar arroz sobre os noivos, na saída da igre-
Hermano Requião” (apud NAVARRO, pira – prato da região sudeste, de arroz ja. Representa esse gesto um voto de pro-
2004, p.41). Em outros estados é conhe- e frango; o arroz com banana – prato da digalidade e fartura para a vida a dois,
cido como arroz-de-leite. região do Rio de Janeiro que consiste em sem problemas financeiros, mas também
São freqüentes os pratos e bebidas banana-da-terra cozida na panela de para a fertilidade do casal, a ser aben-
com nomes cuja sonoridade denuncia arroz; o arroz com suã – encontrado em çoado com muitos filhos. É também em
sua origem africana, como é o caso de.; São Paulo, Mato Grosso e Goiás, consis- razão da associação com a riqueza e a
te em arroz com uma parte específica fertilidade que “ao dinheiro se chama por
Afurá – bolo de arroz fermentado. Ser- do porco; o arroz de haussá – arroz cozi- vezes, na gíria bem imaginosa, arroz (gri-
ve-se com água açucarada, na qual se dis- do com água e sal, como um purê; o ar- fo da autora), arame, tinta, massa, ca-
solve, formando uma bebida refrescan- roz de piqui – tradicional em Goiás; o bedal, milho, painço, bago, metal, etc.”
te, apreciada na África e, igualmente, arroz-de-carreteiro – típico da região sul, (AMARAL, 1950, p. 91)
pela população baiana de outrora. com carne-de-sol ou carne-seca; o arroz As expressões mais freqüentes com-
Aluá – ou aruá é uma bebida fermentada em panela de pedra – de Minas Gerais postas com a palavra arroz são utiliza-
da casca do abacaxi ou do milho cozido e que, depois de cozido, como o nome in-
das em relação direta com a sua presen-
açúcar. Pode ser preparado com arroz e dica, em panela de pedra, leva cubos de
ça à mesa de todos, em todos os momen-
adoçado, também, com rapadura. queijo fresco; o baião-de-dois – tradicio-
tos. Assim, levantou-se o seu registro em
Maniquera – aguardente extraída da nal no Ceará e que consiste em arroz e
diversos dicionários regionais:
mandioca chamada maniocaba, cujo cal- feijão cozidos juntos.
do, tirado da massa, é cozido com arroz. Também são designadas como espé-
- Arroz de casca – diz-se de uma pes-
Mocororó – bebida do sumo do caju com cies de arroz outras plantas como o “ar-
soa que se susceptibiliza por qualquer
quatro dias de fermentação ao ar livre, roz-bravo”, uma gramínea de folhas pla-
coisa. Abon. ‘Não compre um substi-
no Ceará. No Maranhão, é bebida feita nas e ásperas e “arroz –do-mato” também
tuto. Cá não sou arroz de casca’. Ar-
com mandioca ou arroz. conhecido como capim rabo de macaco
thur Azevedo, ‘Carapuças’, 17. (VI-
Acaçá – prato da cozinha afro-brasileira, (cf. SERAINE, 1959, p. 25).
EIRA FILHO, 1958, p. 13)
é um bolo de massa fina de milho ou fubá São freqüentes os registros do apeli-
- Arroz doce de pagode – indivíduo que
de arroz. Depois de pronto, enrola-se, em do de papa-arroz, designando os mara-
nhenses. Os maranhenses dão esse nome não perde festa. (MOTA, 1991, p.349)
porções, em folhas de bananeira.
a um passarinho, comum nas regiões ar- - Acabar-se como arroz doce em pago-
Xiró – caldo de arroz temperado com sal.
Cuscuz – prato de mouros e árabes, tam- rozeiras. Em Sertão alegre, Leonardo de (adverte-se a quem se mete em em-
bém preparado com outros cereais (cf. Mota (MOTA, 2002, p. 172) afirma: “O presas arriscadas. (MOTA, 1991, p. 431)
LIMA, C., 1999). piauiense chama o maranhense de papa- - Arroz-de-festa – a sobremesa conhe-
Mungunzá – milho cozido com leite de arroz. Este, em represália, chama o piau- cida por nós como arroz-doce era cha-
vaca ou de coco. Com fubá de arroz, cra- iense de capa-garrote e, sobretudo de mada de ‘arroz-de-festa’ em Portugal,
vo, canela, açúcar, sal, manteiga, engros- espiga”. Outro registro interessante, do onde nas famílias ricas o doce era pre-
sado, faz-se o mungunzá de colher e tor- mesmo livro, pode explicar a designa- sença obrigatória em dias de festa.
nando-o ainda mais denso, mungunzá de ção de arroz escoteiro, muito comum no Depois a expressão passou a ser usa-
cortar (cf. CÂMARA CASCUDO, 2004, Maranhão, para o arroz simples, comi- da para definir uma pessoa que não
p.843). do sem acompanhamento. No capítulo falta em nenhum evento social. (DU-
A respeito do Mocororó, Câmara Cas- Linguagem popular, Mota (2002, p.227) ARTE, 2003, p.169)
cudo (2004, p.832), comentando o aluá registra: “Na água e no sal – escoteiro; - Arroz-doce-de-pagode – pessoa in-
ou aruá afirma: “Jacques Raimundo cita exclusivamente. Exs.: Os soldados se falível nas festas. Sempre visível em
o mocororó do Maranhão como equiva- queixam de que só comem feijão na água qualquer solenidade, havendo dança
lente mas Domingos Vieira Filho diz ser e no sal. Trabalhei e no fim do mês ele e comidas. ‘Foi arroz-doce de quan-
‘uma espécie de mingau feito à base de me deu cinco mil réis na água e no sal to pagode de truz se fez pelo sertão
arroz’”. por todo o meu serviço.” do Tietê’ Valdomiro Silveira, Os Ca-
Boletim 38 / agosto 2007 13
CONTINUAÇÃO
boclos, 133, S.Paulo, 1920). Gulodi- - dar o arroz – dar o correctivo Acredita-se ainda que “faz mal comer
ce indispensável e preferida ao pala- - cantigas de arroz pardo – Ora arroz com casca, cria pedra na vesícula”
dar português, fidalgo e plebeu, e adeus!; mentiras. ( SIMÕES, 1993, (LIMA, C., 1999, p.173), que “não se bate
brasileiro desde o séc. XVI. O Vea- p.86; 155; 213) com a colher na panela de arroz ou de
dor de dona Luísa de Gusmão, Rai- - Prato de arroz-doce – Ostentação. canjica, porque queimará inevitavelmen-
nha de Portugal, esposa d´El-Rei Ser prato de arroz-doce – chamar te”, que “inchar as bochechas, quando o
D.João IV, na sua folha de pagamen- atenção, querer sobressair-se. ( LIMA, arroz estiver fervendo, fa-lo-á crescer” e
to tinha: ‘e de arros doce que tem 1998, p. 62) que “a grávida ajuda a crescer a massa
por dia a rasão de duzentos reis’. O - arrozais de Pendotiba – coisa ine- de bolos, arroz, cozidos com verduras,
Prato de Arroz-Doce é o romance xistente, imaginária ou falsa. Quan- mas não deve assar coisa nenhuma, res-
histórico de A. A. Teixeira de Vascon- do Nilo Peçanha, que foi Presidente seca ou incha sem tomar tempero”
celos, referente à revolução do Por- da República, como sucessor de (LIMA, C., 1999, p.182).
to, 1846, publicado em 1862. Na His- Afonso Pena, voltou a governar, após Na literatura popular, registra-se a
tória da Alimentação no Brasil (2.ed. a passagem pelo Catete, a arruinada presença do arroz em duas parlendas que
Itatiaia—Edusp, 1983), registei a bi- terra fluminense, procurou fazer um têm como objetivo a memorização dos
ografia do Arroz-Doce, e como se di- empréstimo externo, dando como números:
vulgou em Portugal, trazido para o garantia a produção agrícola do Es-
Brasil na época do povoamento, e ain- Um, dois: camarão com arroz;
tado do Rio. Viriato Corrêa, num jor- Três, quatro: feijão no prato;
da constituindo a sobremesa famili- nal carioca, atribuiu-lhe um expedi- Cinco, seis; olha o freguês;
ar. ‘Cheiroso como um tabuleiro de ente, para enganar os representantes Sete, oito: olha o biscoito;
arroz-doce!’ Pagode é reunião jubilo- dos banqueiros da City, vindos da In- Nove, dez; traz os pastéis
sa. O ‘arroz-Doce-de-Pagode’ será ou:
glaterra. Numa viagem de trem, Nilo Um, dois – feijão com arroz,
uma ‘permanente’ nessas ocasiões, ca- Peçanha lhes teria mostrado o capin- Três, quatro – arroz no prato,
racterizando o indivíduo de teimosa zal bravio de Pendotiba, dizendo: Cinco, seis – o ovo indez,
freqüência (- “Nem arroz! – Nenhu- ‘Vêem os senhores? Só a produção Sete, oito – café com biscoito,
ma resposta. Ouvir sem redargüir. destes arrozais daria para garantir o
Nove, dez – lave seus pés. (LIMA, Z, v.2, 1998,
Não dar importância. ‘Sô coronele p. 84)
empréstimo...’ A maliciosa anedota
Canaro ralhô cô ieu, mas porém ieu Também se registra uma quadrinha,
perseguiu aquele político até o fim
nem arroiz’, diz em Canudos, 1950,
da vida e foi acolhida por seu recen- quando se faz, à mesa, o ‘capitão’ de arroz, ou
o matuto Lalau ao pintor Funchal
te biógrafo, Brígido Tinoco, em ‘ A pirão, isto é, a porção amassada com os dedos
Garcia ( Do Litoral ao Sertão, Bibli-
vida de Nilo Peçanha’, onde se lê, à para ser levada à boca, recita-se:
oteca do Exército editora, Rio de Ja- Rei, capitão,
página 86: ‘Pelo bem do Brasil não tre-
neiro, 1965.) Não será arroz, que não soldado, ladrão,
pidava em mentir. Diante de comissão
dá sentido, mas arriós, bolinha, pe- menino, menina,
estrangeira, em visita à baixada flumi- macaco Simão” (LIMA, Z, v.2, 1998, p.87).
lourinho de pedra usado no jogo qui-
nense, transformou subitamente, en-
nhentista do alguergue, para ponto A riqueza do folclore arrozeiro está
vergonhado com a pergunta indiscre-
no tabuleiro marcado. ‘Nem arriós’, presente também em cantigas, de que
sem reação `a jogada do adversário,
ta, os extensos campos de capim-jara-
guá, de Pendotiba, em luxuriantes plan- se tem notícia por terem sido referidas
ausência de parada, sem retorquir, por algumas das pessoas entrevistadas
indiferença, abandono, pouco-caso. tações de arroz [...]’ (MAGALHÃES
JÚNIOR, 1974, p. 32) nos municípios maranhenses em que o
Calado por resposta. (CÂMARA Atlas Lingüístico do Maranhão – Proje-
CASCUDO, 1986, p.200) - ARROZ
[...] de festa. Pessoa que está presen- to ALiMA realiza pesquisas sobre a lín-
- Dar o arroz – Dar o correctivo (SI- gua falada no Maranhão, e ainda por pes-
MÕES, 1993, p. 213). te a todas comemorações ou eventos
importantes; pessoa que comparece quisadores, mas das quais ainda não foi
- Arroz – homem que anda com mui- possível obter nenhum registro.
tas mulheres mas não namora nenhu- a qualquer tipo de recepção seja ou
ma. ‘Igual a arroz, só serve pra não convidada.
[...] doce de função. Pessoa que com- REFERÊNCIAS
acompanhar’.(GADELHA, 2000, p. 21)
- Arroz doce – pessoa que está em parece a todas as festas. (PUGLIE-
AMARAL, Vasco Botelho do. Mistérios
toda festa ou em todo lugar, que está SI, 1981, p.11)
e maravilhas da língua portuguesa. Porto:
em todas. (LARIÚ, 1991, s/p.) Livraria Simões Lopes, 1950.
- Arroz-doce – vulgar, presente em No âmbito das crendices populares, CÂMARA CASCUDO, Luís da. Locu-
todas as festas: prato de arroz-doce. diz-se que “arroz quente posto na nuca ções tradicionais do Brasil: coisas que o
(LIMA, Z, v.2, 1998, p.54) da criança gaga, num instante solta a povo diz. Belo Horizonte: Itatiaia; São
- Papa-arroz – o natural do Maranhão. língua” (Jangada Brasil, 2005, p.2) Paulo: Edusp, 1986.
(CÂMARA CASCUDO, 2004, p.867) E ainda: “Durante a gravidez mulher _________. História da alimentação no
- arroz com pernas - piolho não deve comer resto de arroz que ficou Brasil. São Paulo: Global, 2004.
- arrroz – pancada; piolho; dinheiro grudado na panela – o pegado – senão a DUARTE, Marcelo. O guia dos curiosos.
- arroz fingido – acção sexual não con- placenta fica presa no útero, sem sair, São Paulo: Panda, 2003.
sumada após o parto. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holan-
- arroz queimado – aquilo que suce- Arroz jogado no chão é sinal de far- da. Novo dicionário da língua portugue-
de muitas vezes tura!” (LIMA, Z, v.2, 1998, p.29). sa. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1975.
14 Boletim 38 / agosto 2007
CONTINUAÇÃO
MIGRAÇÃO RELIGIOSA DO
PENTECOSTALISMO PARA A UMBANDA14
Paulo Sérgio Pilar Araújo15
INTRODUÇÃO em visitas e participações de trabalhos de mesa com visões e outros fenômenos, ele e sua famí-
(similares às sessões de mesa branca do karde- lia buscaram de pronto a igreja. Provavelmente
Neste trabalho nos ocupamos da passagem cismo, mas nas quais se manifestam além dos ele teve que se afastar da família quando saiu
de ex-evangélicos para as religiões afro-brasilei- desencarnados, entidades caboclas, índios, pre- de casa, convidado para ser cantador, tendo
ras, especificamente das igrejas pentecostais e to-velhos etc.) e com entrevistas formais do pe- talvez que se afastar também da congregação
neopentecostais para a umbanda, buscando en- ríodo de 06 a 12 de fevereiro de 2002. na qual participava como membro. Seu Fran-
tender os motivos da mudança de religião e o Como pré-requisitos para a escolha das pes- cisco não especificou como foi a sua vivência
posicionamento do indivíduo diante de sua atual soas entrevistadas utilizamos alguns pontos do durante esse período, disse-nos, entretanto, que
situação religiosa e da antiga. Tal fenômeno nos mesmo roteiro que os alunos dos cursos de Ge- já aos vinte anos era dirigente de uma congre-
chama a atenção por serem as igrejas evangéli- ografia e História da UEMA usaram para um gação da Igreja Cristã Evangélica na cidade de
cas as grandes opositoras das manifestações trabalho de campo da disciplina de Antropolo- Rosário/MA. Assim ele relata como foi a sua
afro-brasileiras e por ser crença geral de que gia, coordenados pela então professora Mundi- saída da igreja:
apenas praticantes de religiões afro-brasileiras carmo Ferretti: o tempo de permanência na igre-
se convertem ao pentecostalismo, daí uma das ja evangélica (se a pessoa teve tempo suficiente “Depois de ter apanhado que nem cachorro,
os irmãos (os encantados) me mostraram que
expressões muito comuns em terreiros de mina para se “edificar” nas doutrinas da igreja), bem
não ia adiantar continuar no meio daquele
e umbanda quando algum filho-de-santo deixa como o papel desempenhado por ela na antiga
bando de hipócritas, que andam com a Bíblia
o terreiro: “virou crente”. Procuramos entender, denominação (se chegou a ser dirigente, diáco- debaixo do braço e não seguem nada do que ta
ainda, o fator mais comum ou justificável para a no, líder de mocidade etc.); o período de transi- ali. Eles sabiam que eu trabalhava (na magia) e
iniciação de ex-evangélicos como pais e mães e ção da igreja para o terreiro; e a permanência continuava indo pra igreja, até que eu vi: ou
filhos-de-santo. por parte do indivíduo na nova fé. eram um ou outro”. (Entrevista – 06/02/
Achamos necessário fazer uma pequena 2002?).
distinção na terminologia utilizada: transição, CONSIDERAÇÕES SOBRE A PASSAGEM
migração e mudança religiosas. Após algumas DE PENTECOSTAIS PARA A UMBANDA Seu Francisco afirma que a sua saída da
considerações, concluímos ser mais adequado igreja não foi brusca, passou um tempo se con-
usar o termo trânsito religioso quando há a par- Foto acervo de Mundicarmo Ferretti gregando e trabalhando com os encantados
ticipação, ou seja, a “transitação” de indivíduos meio às escondidas antes de decidir-se definiti-
entre duas ou mais denominações religiosas di- vamente.
ferentes, sendo que ele se autodenomina de Esse momento de transição acontece como
uma só, o que não o impede de participar de um reconhecimento de terreno ou uma manei-
outra também. Talvez este termo seja o mais ra de não ser desprezado ou discriminado pelos
apropriado para o caso dos evangélicos que fre- antigos “irmãos” de congregação, o que aconte-
qüentam várias denominações, os transeuntes ce cedo ou tarde. Sabemos que deve ser muito
que não se fixam por muito tempo numa deter- difícil para um ex-pentecostal, mesmo estando
minada denominação religiosa. Prandi16 citado muito tempo fora da igreja, aceitar de imediato
por Karla Santos (2002), afirma não ser preciso tudo aquilo que durante o seu tempo de igreja
sair da religião de origem para provar da mu- era condenado euforicamente como coisa do
dança religiosa. Já o termo migração seria quan- demônio. Já na conversão de umbandistas ao
do os indivíduos abandonam a sua última de- pentecostalismo existe uma espontaneidade
nominação devido a algum desconforto ou em maior, o indivíduo diz aceitar a Jesus como seu
busca de melhoras não encontradas na primei- salvador, a igreja ora por ele e com a sua confis-
ra, fixando-se na segunda alternativa. Mudan- são pública passa a ser um novo membro da co-
ça é um termo mais ambíguo, podendo ser en- munidade (geralmente, na maioria das igrejas
tendido como a mudança da religião em si, na evangélicas, o batismo em água é a “oficializa-
sua dinâmica social ou a mudança de adeptos
ção” da pessoa como membro, tendo um peque-
de uma para a outra.
no período de acompanhamento no qual é cha-
Tal análise visa contemplar um fenômeno
mado de novo convertido). Nas religiões afro-bra-
difícil de ocorrer ou detectar, mas não inexis-
sileiras, a pessoa após identificada como médium
tente entre os praticantes de duas das princi-
deve passar por um longo período de iniciação,
pais religiões populares no Brasil (FRY & Entrevista com Seu Francisco
HOWE, 1975), servindo de subsídio para uma dependendo do grau de mediunidade.
análise posterior mais detalhada. O motivo apontado por Fry e Howe (1975,
A partir da história de vida do Sr. Francisco O caso do seu Francisco é um dos mais ob- p. 75) para a conversão de uma pessoa ao pen-
Sousa ou seu Francisco como é mais conheci- servados na história da maioria dos pais-de-san- tecostalismo ou à umbanda seria a aflição:
do, da cidade de Codó (cerca de 300km de São to que já foram evangélicos. Descobrindo-se Enquanto as agências seculares (médico, advo-
Luís), nos propomos a analisar tal fenômeno. médiuns, a primeira reação é a não aceitação, gados etc.) tratam de sintomas específicos, as
Como apoio, utilizaremos também outras en- depois a tentativa de fuga, e como vimos, as religiosas pretendem oferecer soluções para
trevistas com pais e mães-de-santo sobre o as- igrejas pentecostais ou evangélicas surgem todas as aflições em geral. Entre as respostas
sunto. como a melhor saída para essa situação. religiosas, a umbanda e o pentecostalismo se
Boa parte das informações a que tivemos De início o seu Francisco nos contou que opõem às demais no seu modo de recrutamen-
acesso foi adquirida em conversas informais, desde os primeiros sinais de sua mediunidade, to, que é feito geralmente através da aflição.
14 Retoma trabalho apresentado no 10º Congresso Brasileiro de Folclore (São Luís-MA, 2002) e relatório de pesquisa apoiada pelo PIBIC-FAPEMA e orientada pela professora
Mundicarmo Ferretti.
15 Licenciado em Letras; aluno do Mestrado em Linguística da USP.
16 PRANDI, Reginaldo. Religião, Biografia e Conversão:escolhas religiosas e mudanças de religião. Rio de Janeiro:1999.
16 Boletim 38 / agosto 2007
CONTINUAÇÃO
AS RELIGIÕES ANTIGA
E ATUAL
Altar do salão de Seu Francisco
Para o seu Francisco, os seus
Geralmente os umbandistas que a pessoa pertence a esta reli-
vinte anos na igreja foram uma pro-
ex-pentecostais não gostam de fa- gião e não àquela. REFERÊNCIAS
va à qual ele teve que passar, feita
lar da igreja. Sempre falam que É de se esperar que à medida
por seus guias:
sofreram algum tipo de discrimina- que a umbanda vai se comportan- FRY, Peter Henry; HOWE, Gary
ção por parte dos antigos irmãos. do e desenvolvendo uma postura Nigel. Duas Respostas à Afli-
Agora tô satisfeito e enquanto
Isso é devido à organização pente- mais cristã, fica mais fácil obser-
vida Deus me der eu vou conti- ção: Umbanda e Pentecostalis-
costal ser mais policiada, cada varmos um movimento migratório
nuar trabalhando com os irmãos
entre adeptos dela e outras religi- mo. Debate e Crítica. N. 06, jul.
(os encantados). (Entrevista em adepto exercendo o papel de vigia
ões de forte caráter mítico. Entre- 1975. p. 75-94.
06/02/2002). do seu irmão (ROLIM, 1987), sen-
tanto não sabemos até onde irá KARDEC, Allan. O livro dos
do que o desviar-se da fé é quase
parar essa guerra entre pentecos- Espíritos. (trad. Guillon Ribei-
Quase todos os umbandistas que uma traição. Já na umbanda,
constituída principalmente por gru- tais e umbandistas (guerra decla- ro) – 6 ed. de bolso. Rio de Ja-
que passaram por igrejas evangéli- rada pelos pentecostais?). Consta- neiro: Federação Espírita Brasi-
cas vêem de forma semelhante o pos pequenos, a repercussão não
é tão grande ou escandalosa se um tando ainda que, mesmo assim, o leira, 2001.
seu tempo de igreja. Porém para os grau de semelhança entre ambas
filhos-de-santo se converte ao pen- PRANDI, Reginaldo. Religião
líderes pentecostais essas pessoas tem aumentado, como podemos
tecostalismo, pois todos sabem que Paga, Conversão e Serviço. Ver.
não “nasceram de novo” ou não “re- observar em algumas reuniões da
mais cedo ou mais tarde ele vai ter Novos Estudos: CEBRAP. N.
sistiram ao diabo”, entre outras ex- Igreja Universal do Reino de Deus:
que voltar para os seus guias. 45, JUL. 1996, P. 65-77.
plicações do “fracasso” dos seus ex- sessões de descarrego, quebra de ROLIM, Francisco Cartaxo. O
adeptos. maldição, oração em roupa ou per-
Existem outros casos difíceis de CONCLUSÃO que é Pentecostalismo . São
tence de pessoas para livrar do mal,
detectar de umbandistas converti- Paulo: Brasiliense, 1987.
etc., assim como sessões em tem-
dos, mas que continuam pratican- A mediunidade foi o fator mais plos de umbanda nos quais o pai- SANTOS, K. G. V. Umbanda e
do suas obrigações às escondidas, comum indicado pelos umbandis- de-santo canta “hinos” doutrinári- Pentecostalismo: alternativas
como já visto no caso de seu Fran- tas ex-pentecostais como a causa os da umbanda, faz preces e dá religiosas populares no Mara-
cisco. Muitos deles tem medo de de aderirem à umbanda, e há testemunhos, à moda de um tem- nhão. 2002. 100f. Monografia
mostrarem-se fracassados para particularidades, por exemplo, plo evangélico, como o observado (Conclusão de Curso de Ciên-
seus “irmãos” de igreja e temem ser nem todos os médiuns terão que na Tenda São Sebastião do pai-de- cias Sociais) - Universidade Fe-
descobertos e sofrer discrimina- fazer cabeça (serem iniciados), de- santo Sebastião do Coroado. deral do Maranhão. São Luís.
ções. Num artigo ainda inédito de pendendo do grau de mediunida- A migração de pentecostais VALLE. Edênio. Conversão: da
Mundicarmo Ferretti, ela nos fala de da pessoa, de acordo com seu para terreiros umbandistas é um noção teórica ao instrumento de
como os encantados de filhos-de- Francisco, seguindo claramente a fenômeno que aos poucos deixa pesquisa. Disponível em
santo que ficam entre o templo e o doutrina kardecista encontrada no de ser exceção e vai se tornando <http://www.pucsp.br/rever/
terreiro encaram essa situação ao Livro dos Espíritos (KARDEC, mais comum, mesmo indo contra rv2/e-valle.htm> Acesso em 12
dizerem: “ele (o filho-de-santo) é Alan, 2001). A mediunidade assim o senso de que só “macumbeiro vira
que é crente, não sou eu”. de maio de 2002.
é vista como um sinal de Deus, de crente”.
Boletim 38 / agosto 2007 17
No universo das religiões afro-brasileiras em Fatores como o tamanho da população negra pela polícia. Uma situação que os estudiosos
cada terreiro o culto aos orixás, voduns, cabo- em relação à de brancos e de índios, a influên- afirmam (Maria do Rosário C. dos Santos e
clos e encantados se expressa em rituais peculi- cia de determinadas etnias, a repressão ao cul- Manoel dos S. Neto, 1989) que obrigou os cura-
ares. Os terreiros representam a variedade do to, as condições urbanas e outros, fizeram com dores a desenvolverem mecanismos que lhes
culto de matriz africana no Brasil que por outro que os cultos apresentassem características re- permitissem continuar com os cultos às suas
gionais próprias, sendo alguns conhecidos em entidades de cura e com o passar do tempo,
lado, tem em comum, práticas religiosas muito
uma região e desconhecidos em outras. Assim, tornou-se uma prática comum em alguns terrei-
festivas.
variações regionais do rito jeje-nagô podem ser
O estudo dos rituais religiosos, já foi objeto ros de mina do Maranhão.
encontradas em todo o Brasil, como no can-
de estudo de pesquisadores na busca de com- Segundo o estudioso e pai-de-santo Jorge
domblé na Bahia, no batuque no Rio Grande
preender as práticas sociais humanas. Podemos do Sul e no Xangô de Pernambuco.
Itaci de Oliveira (1989, p.36), “em face à grande
observar a clássica perspectiva de Durkheim influência de mina, no rito do Pajé. É que hoje
(2003, p. 337) quando este estudioso afirma que No Maranhão, esta religião é mais conheci- estes mesmos caboclos dançam nos tambores
os rituais religiosos expõem antagonismos e rom- da como tambor de mina e os terreiros realizam Nagôs, em pé de igualdade com os Orixás africa-
pimentos por que: “há dois sistemas de estados rituais derivados dos desdobramentos históricos nos”. Na concepção da mãe-de-santo Elzita do
de consciência que estão orientados e orientam e contextuais da inserção do negro escravo, que Terreiro Fé em Deus, no ritual da cura, a dan-
nossa conduta para dois pólos contrários”. Nesse segundo e estudo de Sérgio Ferretti (1996) e Vag- çante recebe muitas entidades porque: “a cura é
sentido, a afirmação de Durkheim classifica a ner da Silva (1994), possuem particularidades ´linha´. Ela vem do rio, ela vem do astro, ela vem
porque se referem ao culto do vodun na Casa do mar também, mas ela é mais´linha´. ´Linha´
conduta social em ações ordenadas a determina-
das Minas, terreiro considerado o mais antigo da porque entra um e sai outro. É uma ´linha´ 18 ”. E
dos espaços e ocasiões, em um mundo bipolar
cidade de São Luis. Mas, segundo Mundicarmo acrescentou que: “a mina não gosta da cura, eu
de coisas sagradas e coisas profanas. No entan-
Ferretti (2001, p. 59, 60), “apesar da hegemonia faço aqui as duas coisas, porque eu tenho parte
to, esta perspectiva não orienta a análise dos ritu-
da mina... Os terreiros de mina de São Luis, da cura”. Nas palavras de dona Elzita: “se o cura-
ais afro-brasileiros, nos quais observamos que as
embora influenciados pela Casa das Minas-Jeje dor disser: eu vou curar em tal lugar, ele vai”, no
representações religiosas e a linguagem ritual são
e pela Casa de Nagô, alguns apresentam muitas tambor (de mina) não se faz isso por causa do
práticas estreitamente integradas ao cotidiano assentamento19 ”. No entanto, ela também nos
características estranhas a elas... muitos deles
dos adeptos do culto e faz parte da vida de cada falou que realiza esse ritual em seu terreiro em
tem linha de mina e de cura ou pajelança”. É
um. Isso porque nessas religiões prevalece o es- homenagem à princesa Troirinha20 , a sua “pa-
precisamente sobre o ritual da cura ou pajelança
pírito religioso e a visão sagrada do universo dos troa” porque tem a ver com o início da sua vida
realizada no Terreiro Fé em Deus, no bairro Sa-
adeptos do culto, quando estes afirmam que “fo- religiosa e com certo número de suas filhas-de-
cavem, que gostaríamos de refletir sobre a reli-
ram escolhidos” pelas entidades que “recebem” santo que possuem mediunidade para as enti-
gião do tambor de mina no Maranhão.
e se consideram portadores de uma missão. dades da linha de cura. E também para o cabo-
A cura é um sistema de crenças, no qual, se
Assim, quem já observou os rituais afro-bra- clo Pedrinho21 uma entidade que é recebida
observa a representação simbólica de muitas
sileiros nos terreiros de São Luis, concorda que em seu terreiro. (Entrevista em 21/06/06).
entidades encantadas em diversos lugares da
se trata de uma manifestação religiosa extrema- Quando é realizado o ritual da Cura no Ter-
natureza que são recebidas, uma de cada vez,
mente complexa, na qual a tradição dá ênfase reiro Fé em Deus, a brincante recebe a entida-
(Mundicarmo Ferretti, 2000) por uma única
aos deuses de origem, privilegiando o culto aos de curadora chefe da linha, do lado de fora do
pessoa em transe, durante várias horas. Em es-
orixás e voduns, herança que os adeptos preser- barracão quando esta recebe das mãos de sua
tudo sobre o tema, Vagner da Silva afirma que
varam através dos séculos pela via da transmis- se trata: “de uma religião de caráter essencial- assistência, o penacho, o maracá e a purifica-
são oral e da observação direta dos rituais que mente mágico-curativa, baseada no culto dos ção com o incenso (Mundicarmo Ferretti, 2000).
somados as influências nativas e européias, pro- mestres, entidades sobrenaturais que se mani- A entidade, através da brincante, vem fazer a
cessou-se em numerosas formas e expressões re- festam como espíritos de índios (caboclos), de abertura do ritual e anunciar ao público presen-
ligiosas. Em estudo, sobre o tema Vagner da Silva animais ou de antigos chefes prestigiados do te, através de cânticos, que vai trazer a sua linha.
(1994, p. 82,83), observa que há diversas denomi- culto” SILVA, 1994, p. 88). No entanto, no pas- Além da entidade chefe da linha que é a “anfi-
nações para o culto afro no Brasil porque: sado essa prática religiosa foi muito perseguida triã” da festa e a primeira a comparecer ao ritual,
“o assentamento é o fundamento e isso é coisa de segredo, são coisas ocultas e o que a gente pode saber é o que está do lado de fora, mas do lado de dentro não. Então,
você só pode ter um terreiro de mina quando você tem suas filhas-de-santo, porque você não pode abrir o tambor sozinha. É preciso mais ou menos umas cinco pessoas,
várias dançantes pra fazer aquela roda. Mesmo que eu abra o Imbarabô, a dançante logo tem que cantar. O tambor sempre começa com o Imbarabô, mas não em todos os
terreiros. Existem outros que abrem de outra forma, logo tem o Candomblé, tem a Umbanda, tem a mina Nagô que, é a daqui, então é com o Imbarabô e se cantam várias
doutrinas, durante quase uma hora e só depois disso vira para as entidades. Na cura, não é assim. O curador, ele cura em qualquer lugar, mas no tambor (de mina), não.
Ele tem que ter um lugar. É outro chefe de um terreiro que vem assentar a pessoa que vai abrir um terreiro”. (Entrevista em 12/08/06).
20 Entidade chefe da linha de cura e patroa de dona Elzita, também participa da mina como rainha Doralice.
21 Mensageiro do Rei Surrupira, chefe de Maria Auxiliadora, filha-de-santo de dona Elzita.
18 Boletim 38 / agosto 2007
CONTINUAÇÃO
observa-se através dos cânticos muitas linhas de Rôxa, é que possuem entidades chefes de “cor- ritual de cura, o momento do brinquedo é um
entidades que também participam, se manifes- rente ou linha”22 de cura e realizam esses ritu- dos mais esperados porque no segundo dia, esta
tam e incorporam na brincante por alguns mo- ais no terreiro, em épocas diferentes. entidade oferece uma festa de tambor de criou-
mentos para cantar, dançar e depois ir embora, Há diferenças, entre os dois rituais de cura la em homenagem a São Benedito.
para que outras entidades compareçam. realizados no Terreiro Fé em Deus, muito em- A presença do tambor de crioula na cura da
A entidade, quando incorporada, conta a sua bora, podemos dizer que tenham o mesmo sen- entidade Pedrinho acontece porque segundo
história em forma de cântico ou doutrina e geral- tido, o de receber em um terreiro de mina, ou- dona Roxa, quem o recebe no Terreiro Fé em
mente faz referência a lugares e qualidades que tras categorias de entidades para realizar traba- Deus, “O tambor de crioula vem pelo santo dele,
supostamente representam a sua origem. Logo lhos de curar doenças, abrir caminhos, descar- que é São Benedito, então, geralmente, todo o
todos os presentes ouvem em silêncio e em se- rego e também, de certa forma, divertir-se. O invisível que pertence pra linha pra São Bene-
guida repetem o cântico ao som dos instrumen- ritual da cura evidencia alguns aspectos peculi- dito, a festa, é tambor de crioula”. (Entrevista
tos utilizados para acompanhar os cânticos, en- ares de algumas entidades que também são ho- em 19/10/06). No dia 22 de Outubro de 2006,
quanto a entidade, incorporada na brincante que menageadas no tambor de mina naquele terrei- quando os brincantes chegaram ao terreiro, não
está em transe, dança no meio do barracão. ro e consiste em duas representações de um demorou muito para começar a festa. A parelha
No Terreiro Fé em Deus, os instrumentos mesmo fenômeno religioso. O estudo de Mun- de tambor foi colocada ao fundo do barracão e
que são utilizados no ritual são: três tambores, dicarmo Ferretti sobre o tema mostra que: logo se formou uma roda de dançantes e Pedri-
sendo, dois pequenos que são tocados, na mai- nho em dona Rôxa começou a dançar no meio
oria das vezes, por adolescentes e até por crian- Embora na Cura não se costume entrar em da roda enquanto segurava a imagem de São
ças que ficam sentadas em uma cadeira com os transe com divindades africanas e, normalmen- Benedito, que depois foi repassada para as ou-
instrumentos apoiados entre os joelhos e um te, não se cante ali para voduns e orixás, algu- tras brincantes. Durante todo o dia o grupo do
outro, bem maior, chamado de tambor da mata, mas entidades recebidas na Mina, como di- Tambor de Crioula animou a festa da entidade
que é suspenso por um cavalete de madeira, vindades africanas, podem ser invocadas na Pedrinho que falou: “Eu estou feliz”!
disposto na posição inclinada e geralmente é abertura e no encerramento do ritual, quando
No Terreiro Fé em Deus, o momento “brin-
tocado por um adulto experiente. O público realizados em terreiro de Mina, e fala-se que
quedo” da Cura da princesa Troirinha, que tem
participa acompanhando os cânticos, tocando são às vezes, recebidas por pajé durante a Cura.
na boneca a sua representação, assim como o
matracas, batendo palmas e pandeiros. (FERRETTI, M., 2000, p. 228)
Tambor de Crioula, que o caboclo Pedrinho ofere-
O barracão é preparado de acordo com a Desse modo, os dois rituais possuem algu- ce a São Benedito, são momentos em que pode-
entidade chefe da linha que vem comandar o mas características semelhantes, porque essas mos refletir a respeito do que Durkheim (2003, p.
ritual e geralmente é adornado com muitos ba- entidades curadoras que também são recebi- 412), denominou de “mentalidade ritual” porque:
lões. Para a princesa Troirinha, a cor utilizada é das nos toques de mina, realizam dois dias de “se propõem unicamente redespertar certas idéias
o verde e para o caboclo Pedrinho é o amarelo. cura, com a passagem de muitas entidades em e certos sentimentos, ligar o presente ao passado, o
Essas cores, entre outros elementos, represen- transe curtos, entre outros elementos, como os indivíduo à coletividade”. As diferenças entre a re-
tam a origem ou domínio da entidade, isto é, o objetos que a brincante utiliza, durante o ritual. presentação desses dois rituais de cura realizados
elemento da natureza ao qual ela pertence, ge- O que se faz peculiar a cada ritual é o brinque- no Terreiro Fé em Deus, expressam as representa-
ralmente enfatizadas também na decoração do ções dos seus agentes em relação às entidades prin-
do que ocorre no segundo dia do ritual.
altar que é enfeitado com flores, santos católi- cesa Troirinha e o caboclo Pedrinho. Configuram
No brinquedo realizado na cura da entidade
cos, velas acesas e objetos que a brincante uti- ainda, as diversas formas de expressão da fé desses
princesa Troirinha, ela reúne o maior número
liza durante o ritual. agentes e refletem também as características des-
possível de meninas de aparentemente 10 anos
No decorrer do ritual, fica disponível no al- sas entidades no cotidiano de dona Elzita e dona
de idade para fazer uma roda e brincar de bone-
tar o azeite de dendê, os cigarros feitos artesa- Roxa, nas suas relações com o grupo do terreiro e
ca. Ela se põe no meio da roda e começa a passar
nalmente pelas pessoas da casa, três copos, um no cumprimento das suas obrigações religiosas, ou
a boneca para cada menina. Segundo dona Elzi-
contendo água, outro álcool e o terceiro vinho, seja, o espírito religioso se materializa em festa de
ta: “foi aos dez anos que dona Troirinha se mani- tambor de crioula e na roda de boneca em um
que são utilizados por algumas entidades que festou na minha cabeça”. Parece-nos que o brin-
comparecem ao ritual para atender as pessoas terreiro de tambor de mina.
quedo na cura da princesa Troirinha rememora
com problemas de saúde. Um pequeno punhal, esse fato e de certa forma é uma homenagem à REFERÊNCIAS
colocado ao lado dos copos, que também é uti- criança que a entidade escolheu, no caso, a dona
lizado nos trabalhos das entidades. Ainda não Elzita, para poder vir a este mundo e romper os DURHKEIM. E. As Formas elementares da vida
presenciamos nos rituais que assistimos no Ter- limites da encantaria, que pode ser uma criança, religiosa. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003.
reiro Fé em Deus, o uso do punhal, mas este é FERRETTI, Mundicarmo. Desceu na Guma.
um homem... A verdade é que, como observou
São Luis: EDUFMA, 2000.
um dos objetos que as entidades utilizam para Durkheim (2003, p. 21), “também os deuses tem ————. Terecô, a linha de Codó. In: PRAN-
resolver determinadas situações (Mundicarmo necessidades dos homens: sem as oferendas e DI, Reginaldo (Organizador). Encantaria brasi-
Ferretti, 2000) ou problemas que as pessoas os sacrifícios, eles morreriam”. O brinquedo, na leira – O Livro dos Mestres, Caboclos e Encanta-
buscam resolver com as entidades da cura. cura da princesa Troirinha, pode suscitar muitas dos. Rio de Janeiro: Pallas, 2001, p.59-73.OLI-
No Terreiro Fé em Deus esse ritual é reali- reflexões. Inspira certa áurea de formalidade - VEIRA, Jorge Itaci. Orixás e Voduns no Terreiro
zado duas vezes por ano, naquela irmandade, mesmo brincando de boneca com as crianças, a de Mina. São Luis: VCR Produções e Publicida-
como o grupo se autodenomina. No mês de entidade mantém uma postura contida e discre- de Ltda, 1989.
Maio, nos dias 21 e 22, o ritual da cura é realiza- ta, diferentemente do brinquedo na cura da en- SILVA, Vagner G. Candomblé e Umbanda: ca-
do para homenagear a entidade princesa Troiri- tidade Pedrinho que é uma longa festa. minhos da devoção brasileira. São Paulo: Selo
nha, que é chefe da linha de cura na cabeça da A entidade Pedrinho é o caboclo que vem Negro, 1994.
mãe Elzita. Por sua vez, no mês de Outubro, na crôa ou cabeça de dona Rôxa e, apesar dele SANTOS, Maria do Rosário C. e SANTOS
nos dias 21 e 22, o ritual é para a linha do cabo- descer nos toques de mina, ele nos disse que na NETO, Manoel dos. Boboromina: Terreiros de
São Luis uma interpretação sócio-cultural. São
clo Pedrinho, que vem na cabeça de sua filha- verdade “é mesmo um curador”. Segundo ele, o
Luís: SECMA/SIOGE, 1989.
de-santo Rôxa. Há no terreiro, algumas pessoas seu ritual de cura no Terreiro Fé em Deus foi
ENTREVISTAS
com mediunidade, que também participam do uma “permissão dos donos da casa”, a princesa
(com dona Elzita e Maria Auxiliadora, no Terrei-
ritual recebendo entidades da linha de cura, Troirinha e o caboclo Surupirinha, o mensagei-
ro Fé em Deus).
mas somente dona Elzita e a sua filha-de-santo, ro do terreiro que tem “status” de dono. No seu
22 Segundo dona Elzita nos informou, quando perguntamos a ela sobre esta forma de classificar essas manifestações religiosas em linha e corrente:
“A linha de cura passa de parte da linha que vem do astral para o mar. A linha da cura é porque sai um entra outro. Ai vem do mar, vem da mata, vem do rio, vem
da maré. E corrente é porque tudo que vem do astro é corrente, corrente astral, mas nem todo mundo pertence, cada um é de uma maneira. Eu sou dessa maneira,
mas têm outros que não, nós não somos iguais”. (Em 05/02/07).
A partir das informações de dona Elzita, podemos inferir que linha se refere a uma categoria de entidade mais gerais ou comuns, que vem de todo lugar, e corrente se
reporta a uma determinada categoria de entidade. Será que pode ser considerada de nível mais alto dentro dos cultos e que, quando ela diz que “corrente é tudo que vem
do astro”, está se dizendo que vem do céu, que é sagrado, puro e está em outro plano, hierarquicamente superior?
Boletim 38 / agosto 2007 19
JANELA DO TEMPO
CONTINUAÇÃO
Jusaral. E ellas exhibem tudo Arriba siriba arriba, tigos, descorados, com chape- Oh! Lua cheia qui alumeia o
aquillo por pabulagem, so- Quero vê minha Yayá. letas de metal azinhavrado, má,
A noite é bella pra quem
mente para azer propaganda *** um arsenal emfim de de ve- sabe amá,
dos nomes seus preferidos e La vem um boi de cambu- lharias, para fazer alarde nes- Adeus morena que eu já vou-
deixar com agua na bocca, a lhada com os seus figurantes. sa noite de musicatas en- me embora,
gentalha invejosa da visinhan- Os enfeites prateados desta- cantadoras, em que se sente a Adeus, adeus, minha na-
ça, cujos parentes faltos de cam-se á luz dos faróes. Bri- alma da patria vibrar atravez morada,
recurso, não poderam prepa- “Terrô da Ilha” vae se arritirá.
lham as lantejoilas, as franjas das nossas cantigas folk-loricas.
rar-se para figurar ao lado dos douradas. Cabôclos reaes ves- Emquanto o boi dança no
companheiros, no folguêdo E longe, perdida nas bre-
tidos de pennas, tomam a di- terreiro a criançada no alpen-
desse anno. nhas, escuta-se a cantoria de
anteira do desfile pitoresco, dre tóca bichinhas de estra-
*** um outro bumba que segue
estrondando o pé rachado de los e brinca descuidada o Pa-
Noite de S. João. rumo differente:
areia quente, no chão plaina- dre Cura, o Peixinho de Mu-
Ardem as fogueiras aver- do a soquête. O amo, o pri- quem. Moças e rapazes sal- Cabôco cummerciá,
melhadas nos arraiaes. meiro rapaz, pai Francisco, tam a fogueira, dizendo com Vae dipressa no Ariá,
Foguetões estouram prô mãe Catharina, ou doutores, volupia no olhar: P’ra chegá e vortá,
lado das baixadas e dos ala- os vaqueiros e o resto do cor- Levá esta carta,
gadiços. E’ o signal de come- dão, carnavalescamente ves- S. Pedro, S. Paulo, Para aquelle cantadô,
ço da fuzarca de dona Chi- tidos, cantam toádas, interes- S. Felippe, S. Thiago Mais que elle mande a repós-
Todos os santos da côrte do ta,
quinha Major. O mastro já santes e saudosas de seu ri-
céu, Pelo memo portadô.
está plantado em frente de mance campeiro. E’ “Não Servirão de testemunhas,
uma palhoça enfeitada de Intica”, o boi mais afamado Como seu Fulano é minha A festa de S. João, é uma
ariry, rebocada de tabatinga, do lugarejo: sympathia. das mais lindas reliquias do
cheia de luz e atopetada de
sincretismo religioso afro-lu-
mulheres barafundeiras. Não Intica já chegou, Nas casas grandes, onde se
Não Intica qué brincá, sitano, transplantada para o
No altar illuminado, re- aboletam pessôas que foram
Morena chega á jinélla, Brasil pelos primeiros povoa-
pousa o santo da devoção. da capital, na maior intimi-
Vem vê boi balanciá. dores vindos de alem-mar.
Dá-se inicio á ladainha dade da familia maranhense
cantada com musica do com- Nessas noites concorridas
Este anno se ajuntemo, ainda apegada os usos e cos-
positor popular maranhense, P’ra fazê bella união, tumes de outr’ora, faz-se a de junho, de minha terra na-
Pedro do Rosario. Não Intica, é resorvido, sorte de S. João. E’ ôvo que- tal, noites cheias de musica,
Todos dois já são ermão. brado no copo d’agua. A faca cantares e poesia, sob o ple-
Santa, Dona Mundica mandou me nilunio dos tropicos, é que a
virgem que passada na fo-
Santa Maria, pedi, alma simples do matuto vibra
Não Intica, gueira de palha benta de Do-
Santa Dei Genitrix, de emoção.
Pr’eu levá boi, móde ella oiá, mingo de Ramos e cravada no
Santa Virgo Virginum,
Passa bahia, não tenho ca- tronco da bananeira, ao ser No dia seguinte ao raiar do
Mater,
Mater Christe... nôa, retirada deste, trará na lami- sol, a ilha de S. Luiz, mostra-
Ai meu Deus ! na, segundo a crendice inge- se mais formosa ainda no rei-
Quem me déra eu sabê nadá.
E o côro: nua do brasileiro nortista, as nado das suas clorophilas,
*** iniciaes ou o nome por intei- com a pompa atica e estesi-
Ora pró nóóó... bis... A patuleia anda sem direc- ro, do futuro espôso daquella ante dos seus pindoramas so-
ção, vinda dos recantos lon- que praticou a operação. A berbos.
Mais e mais cresce o rumo ginquos da ilha: do Turú, da pimenteira do quintal, em que E nesse dealbar de ma-
nas estradas. Gritos e vivas es- Inhaúma, do Cumbique e de a menina casadoira, de olhos nhãs pantheistas, ella se en-
poucam no ar. tantos outros lugares distan- vendados vae tirar o sortilegio, feita de gemas de luz colorin-
Festeiros barulhentos an- tes. E se tresmalha pelos ca- sob o commentario malicioso do os arvoredos. E expõe ao
dam em busca de batuca- das velhas e zumbaias das forasteiro, habitos invetera-
minhos e enviézos em que a
gés, esgoelando-se ao som companheiras: se apanhar dos, typos do meio ambien-
algidez do luar desdobra a
dos instrumentos de corda e uma pimenta madura, casar- te, os mais interessantes; sce-
alchimia maravilhosa do seu
percussão: se-á com um ancião narigudo, narios bucolicos, dentro de
manto de luz.
feio e ranzinza; si uma verde, um mundo botanico, supera-
Pára p’ra beber, Para essas festas desenter- terá por marido, um rapaz for- bundante de bellezas sump-
Paroára ! ram-se dos bahús de lata, pa- te, bonito e endinheirado. tuarias, sempre e sempre re-
Ora pára p’ra beber, letós curtos, sapatos janambú-
Paroára ! Ao terminar a demorada re- novadas aos olhos dos filhos
ras de elastico e bico arrebi- presentação, o boi se retira para queridos que amam o regio-
Valei-me Nossa Senhora, tado, ressequidos, besuntados dar lugar a um outro que já nalismo e cultuam as tradi-
S. José de Arribamá, á ultima hora, com azeite de vem perto, matraqueando, ções populares maranhenses,
Quem me dé tomem apanha, peixe-boi. De cima dos giráos onde repousam as revivescen-
afim de evitar as brigas perigo-
Qui outro reméido não á.
e do alto das tacaniças, são sas tão usuaes nesses encontros. cias totemicas do negro Ban-
Arriba siriba arriba, retirados das copas de jornal O amo canta a despedida tú, e as energias ingenitas da
Cajueiro, cajuá poeirento, guarda-chuvas an- saudosa: raça Tupinambá.
Boletim 38 / agosto 2007 21
CULINÁRIA MARANHENSE:
RECEITAS TRADICIONAIS Mundicarmo Ferretti
CUXÁ DE DONA CONSTÂNCIA 10 a 20 maços de cheiro ver- Preparação Fazer o arroz branco apro-
(Porção para 12 pessoas)25 de Cozinhar a vinagreira, es- veitando a água que cozinhou
Ingredientes ½ kg de cebola correr, reservando a água do a vinagreira. Quando come-
250 gramas de gergelim ½ kg de tomate cozimento para fazer o arroz, çar a secar, juntar o camarão
250 gramas de farinha seca 250 gr de pimentão e bater numa tábua com a com o gergelim, misturar e
mimosa (fina) pimenta de cheiro faca ou no liquidificador. adicionar a vinagreira batida.
250 gramas de camarão seco 1 pimenta murici Refogar o toucinho com os Abafar e servir quente.
2 maços de vinagreira Preparação temperos, misturar o arroz e
temperos: cebola, tomate, Cozinhar o jongome com o camarão, acrescentar parte Gengibirra (Nizeth
óleo e sal a gosto a vinagreira, escorrer, bater da água do cozimento da vi- Medeiros)28
Preparo da farinha numa tábua com a faca ou no nagreira completando com 1 kg de gengibre; 2 litros
Lave bem o gergelim e tor- liquidificador com parte da outra a água do arroz, para de água; açúcar a gosto.
re. Soque no pilão juntamen- água do cozimento, reservan- Coloque o gengibre de
não ficar muito azedo, com-
te com a metade do camarão do a água restante. Torrar o molho por um período de três
pletar o sal, caso necessário,
seco. Misture com a farinha gergelim com cuidado para dias, para facilitar a remoção
pois o camarão é salgado, jun-
seca mimosa e o resto do ca- não ficar muito escuro, socar da pele, que deve ser feita
tar o batido de vinagreira e
marão. no pilão ou passar no liquidi-
abafar. raspando-se com uma faca.
Preparo do cuxá ficador com a farinha e o ca-
Cortar em pedaços para ba-
marão comprado á descasca-
Tire as folhas da vinagrei- “Arroz de cuxá” ou batipu- ter no liquidificador com um
do. Cortar os temperos bem
ra do talo e cozinhe-as com ru (Admée Duailibe)27 pouco de água. Depois de
miudinho, bater ligeiramen-
água pura. Retire do fogo, Ingredientes batida, esprema para separar
te no liquidificador com um
escorra a água, que não deve 1 Kg de arroz branco o suco do bagaço com o auxí-
pouco da água da vinagreira,
ser jogada fora. Use uma faca 10 maços de vinagreira lio de uma peneira. Junte o
a pimenta de cheiro e uma
para bater a vinagreira sobre 500 gr de camarão seco (des- restante de água e o açúcar.
pitada de sal. Botar na pane-
uma tábua. Refogue a vina- cascado) Caso fique forte (ardor) colo-
la, juntar o batido de vinagrai-
greira com a cebola, tomate, ra e jongome, a farinha com 250 gr de gergelim que mais água. Sirva bem ge-
um pouco de óleo e sal a gos- o camarão e o gergelim, par- 1 cebola grande picadinha lada.
to. Junte água pura e um pou- te da água da vinagreira, do- 1 tomate picado
co da água que cozinhou a vi- sando a primeira para o cuxá 1 pimentão picado Mocororó ou Macururu
nagreira. Vá juntando aos não ficar muito azedo, outra (Zelinda Lima)29
2 maços de cheiro verde
poucos a farinha até formar água. Experimentar o sal, jun- Semear, com antecedên-
4 dentes de alho socados
uma papa rala (ao esfriar en- tar a pimenta murici machu- cia, 1 ou 2 punhados de arroz
com sal
grossa). Molhe um pouco a cada sem semente e o cama- em casca e aguardar a germi-
Modo de fazer
farinha antes de misturar, rão inteiro descascado, um nação. Quando germinado,
Tirar os talos da vinagrei-
para não embolar. Deixe para pouco de massa de tomate e preparar, à parte, um mingau
ra e colocar em uma panela
colocar o sal no final devido de óleo. Não deixar cozinhar bem grosso de fubá de arroz
com água para cozinhar. Tor-
ao camarão seco. muito para não amargar e e deixar esfriar. Tomar então
rar o gergelim e socar em um
nem parar de mexer para não as sementes germinadas, la-
O CUXÁ DO RESTAURANTE pilão ou passar no liquidifica-
ficar preto. var, cuidadosamente, os bro-
TÍPICO “A DIQUINHA”26 dor. Reservar
tos, pisá-los em um pilãozinho
Ingredientes “Arroz de Cuxá” (batipuru) Lavar o camarão em vári-
de madeira, coando o sumo
50 maços de vinagreira da Diquinha as águas, temperar com cebo-
resultante, que é vertido no
150 gr de farinha seca (bem Ingredientes la, tomate, pimentão, cheiro boião no qual já se encontra
fina) 15 a 20 maços de vinagreira verde e alho socado com sal. o mingau. Por ao abrigo da luz
250 gr de gergelim 1/2kg de arroz Refogar bem e reservar. e do calor e aguardar a fer-
½ kg de camarão seco já des- camarão seco descascado Escorrer a vinagreira, que mentação que, em geral, dura
cascado toucinho cortado bem miudi- deve estar cozida, aproveitan- 48 horas. Está pronta a bebi-
250 gr de camarão seco com nho do a água para fazer o arroz, da, já adoçada pelo açúcar
casca temperos (cebola, tomate, passar no liquidificador com nascente da fermentação do
3 maços de jongome (só para alho, pimentão, cheiro verde um pouco de água em que foi amido e ligeiramente alcoó-
ajudar a ligar) picados) cozida e reservar. lica.
Aranha faz referencia ao mocorroró em Memória de Velhos, v. II (p. 177), como bebida gelada, adorável, vendida por mulheres pretas que passavam nas ruas gritando:
“mocororó, mocororó!”.
22 Boletim 38 / agosto 2007
NOTÍCIAS
Roza Maria dos Santos30
O
Religiões – uma visão histórica das principais tradições religiosas
centenário do nascimento de Augusto Aranha foi come
do mundo. Em seu sexto número - GRANDES RELIGÕES - morado com uma celebração eucarística realizada no dia
CULTOS AFROS: A Sagração do Sincretismo - tem como con- 11/08, na Capela da Irmandade de Bom Jesus dos Navegantes, insti-
sultor Vagner Gonçalves da Silva e textos assinados por Sérgio tuição a que se dedicou por 70 anos. A comemoração, que foi orga-
Ferretti, Mundicarmo Ferretti e Norton F. Corrêa (professores nizada por sua filha e sucessora, Nizeth Medeiros - professora da
da UFMA), Luiz Assunção, Roberto Motta, Rita Amaral, Ari UFMA e membro da Comissão Maranhense de Folclore -, reuniu
Pedro Oro, Alejandro Frigerio, Padre Clóvis Cabral e vários pelo grande numero de amigos que conviveram com ele em diversos mo-
próprio Vagner. mentos dos seus quase 93 anos de vida.
24 Boletim 38 / agosto 2007
Perfil Popular
Raimunda Menezes de Aguiar – Diquinha30
Josimar M. Silva31
www.culturapopular.ma.gov.br