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ALMA DE PÁSSARO
(c) 2001, Margarida Rebelo Pinto e Oficina do Livro - Sociedade
Editorial, Lda. Rua Castilho, 209, 1° dto. 1070-051 Lisboa Tel. 21384
48 29, Fax. 21386 57 11 E-mail: editorial@oficinadolivro.pt
Título: Alma de pássaro Autor: Margarida Rebelo Pinto Revisão: Henrique
Tavares e Castro Composição: Oficina do Livro em caracteres Aldine 401,
corpo 11 Capa: João Figueiredo Fotografia: Augusto Brázio Impressão e
acabamento: Guide, Artes Gráficas, Lda. (Portugal)
2' edição: Janeiro, 2002 - 5000 exemplares
ISBN 972-8579-55-1 Depósito Legal n.° 181698/02
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- Não são cuecas, são slips -precisa a Teresa. - E o Nuno também usava,
e nessa altura achavas muito sexy, lembras-te? - Usava? Tem piada, não
me lembro...
A Teresa, como sempre, acertou em cheio. Desta vez, a Ana ficou sem
resposta. Estão, mais uma vez, as duas a falar da minha vida, como se
eu não estivesse presente. Um dia tenho que acabar com isto.
- Mas tu, afinal, foste ou não para a cama com ele?
- Não. Quer dizer, acho que não. Pelo menos, não me lembro.
Se estivéssemos num torneio de golfe a Ana corria perigo de vida.
- Fecha a boca, miúda. Senão, ainda te entra uma mosca, ou uma bola de
golfe, ou outra coisa qualquer.
- Eu não acredito nisto! Tu estás completamente doida? E se foste para
a cama com ele e não te lembras? E se ele não usou camisinha?
- Não fui, parva, estava só a gozar contigo - e, fazendo uma pausa para
acentuar mais a coisa. - Não fui, mas ainda vou a tempo. - E fazes
muito bem - remata a Teresa.
A Ana olha-a de lado.
- Tu andas esquisita... O que é que se passa? - Nada.
- E o Vasco, como está?
- Bem, obrigada: a fingir que trabalha com o pai. Bom, pelo menos
continua limpo, já lá vão quase quatro meses.
- Ainda bem.
A Teresa pisca-me o olho, a dizer coitadinha, é uma tapada, não faz a
mínima ideia do que se passa.
- E o trabalho no banco, como vai? - pergunto com um sorriso malicioso.
- Melhor que nunca - responde a Teresa.
- Tu não podes entrar nessa espiral de loucura - diz a Ana, que não
consegue fechar a boca, depois de lhe ter contado a minha noite com o
Kiko.
- Pois não, mas apetece-me.
- Por que é que lhe estás a dizer isso? - pergunta a Teresa. - Porque
acho um absurdo e só a pode pôr ainda pior.
A Teresa respira fundo. Eu sei que ela se irrita com a atitude sempre
politicamente correcta da Ana perante tudo, mas, desde que anda a viver
a aventura da vida dela com o Rambo da administração, ainda tem menos
paciência.
- Pois. O inominável pôs-se a andar, e ela tinha que ficar feita monja
à espera de quê? Do príncipe encantado? E, entretanto, não pode viver a
vida dela?
- Eu não disse isso, só disse que esta história com o tal Kiko não tem
pés nem cabeça.
- Como é que sabes? Nem sequer o conheces - respondo. - Nem preciso. Um
puto que usa cuecas pretas!
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- Não sei o que é que vocês têm. Ultimamente andam um bocado parvas.
E levanta-se, com aquele ar digno e sofrido que as grávidas gostam de
assumir desde o primeiro dia em que sabem que estão à espera de bebé.
- Coitada da Ana. Devias-lhe contar do legionário.
- Para quê? Para me chatear até à morte? Não, é melhor assim. Ainda
tinha um desmancho com o susto.
É tão bruta, esta Teresa.
- Não sejas estúpida, com essas coisas não se brinca. - Tens razão.
Ouve lá, e o Truta? Vai ao forno, ou quê?
- Não faço ideia. Ele tem-me ligado, mas o Filipe também. Por isso,
ando um bocado dividida. A culpa é tua, com aquela máxima de quando uma
mulher não ama um homem, etc, etc.
- Pois. Agora, deu-te para as apostas múltiplas.
- Não é isso. É que não sei muito bem o que fazer. Já saí outra vez com
o Filipe, e sinto-me lindamente, mas falta ali estímulo, percebes?
- Falta estímulo porque também não lhe dás hipótese. E, como ele deve
ser do tipo cauteloso, anda a estudar o problema. Mas eu acho-o muito
melhor do que a Truta Salmonada.
- Porquê?
- Porque te pode trazer algo de novo.
Fico a pensar na resposta. Era a última que estava à espera de ouvir. A
Teresa podia ter dito: porque ele é mais velho, mais maduro, e talvez
saiba melhor o que quer; porque ele é inteligente
e bem educado, e já passou por uma separação; porque um tipo que vive
com as três filhas só pode ser boa pessoa; porque ele não usa slips
pretos. Mas esta resposta deixou-me perplexa.
- E o que é que pode ser novo?
- Alguém que te proteja, em vez de seres tu a meter toda a gente
debaixo da tua asa. Alguém que te dê conforto e atenção,
em vez de chatices e dores de cabeça. Alguém por quem não sintas uma
paixão doida e avassaladora que te acabe com as defesas. Uma relação
que tu controles.
- E qual é a piada disso? - Experimenta e verás. Claro. É o que a
Teresa está a viver com o Rambo dela.
- Bem, adorei vê-las, mas tenho que voltar para a editora, senão o Nuno
mata-me - digo, levantando-me do sofá, onde a Ana acabou de servir o
café, ao mesmo tempo que bebo de uma vez todo o conteúdo -da chávena. A
Teresa também tem que voltar para o banco, por isso, saímos as duas de
casa da Ana.
- Aquele bacalhau no forno estava demais, não estava? - pergunto à
Teresa, que vem com a mão na barriga.
- Estava, mas tenho que emagrecer. Senão, não aguento as investidas.
- Do Rambo? - Pois.
E desatamos as duas a rir que nem umas parvas. É bom estar viva. Antes
de entrar no carro, a Teresa agarra-me pelo braço e fixa o olhar dela
no meu.
- Ouve... Tu estás mesmo melhor, não estás? - Claro!
- E aquele idiota, continua a chatear-te com mails?
Ele não é idiota, nem os mais dele alguma vez me chatearam, mas não
vale a pena explicar isso à Teresa. Não vale a pena explicar às pessoas
o que elas não querem perceber.
- Não. Assunto arrumado.
- Ainda bem. Mas olha que, quando ele voltar, ainda corres perigo. Eu
sei que ainda gostas dele.
- Eu também sei, mas já aprendi a viver com isso. Não te preocupes.
- E sabes quando volta?
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- Não faço ideia nenhuma, nem quero saber.
- Óptimo, era isso mesmo que eu queria ouvir. Não é verdade, mas não
faz mal.
De repente, dá-me um abraço com força e fica alguns segundos assim,
quieta, encostada a mim.
- Achas que também se treina o coração? - pergunto, com uma voz
estranha que não parece minha.
- Tudo se treina, minha querida. Tudo se treina, até o coração.
E entra no carro, acelera a fundo e desaparece na esquina. Lembro-me da
Teresa com dez anos a chegar ao colégio, depois de ter faltado uma
semana com um ar impassível, como se nada fosse. Corriam pelos
corredores os boatos mais mórbidos acerca da morte do pai dela: que se
tinha atirado de um sexto andar, que se tinha enforcado com uma
gravata, que a mãe o tinha encontrado morto, degolado. Mas só muito
mais tarde soubemos a verdade. Tinha-se suicidado com um tiro de
pistola na cabeça à frente da Teresa. Foi ela que me contou no décimo
ano, com o mesmo à vontade com que me estava a descrever as férias que
passara com a mãe e o padrasto, em Itália. Depois da morte do pai, o
Vasco e a droga pareciam-lhe coisas simples de enfrentar, ou então,
pior do que isso, habituou-se a viver em sofrimento e o Vasco foi só um
meio para poder continuar a viver dessa maneira. Mas não. Ela sempre
gostou dele e provavelmente, como quando se gosta a sério, talvez nunca
deixe de gostar. O Rambo é uma diversão pura, como ir ao cinema ou à
Feira Popular, no Verão, voar na roda gigante, empanturrar o desejo de
farturas com cheiro a canela e sabor a açúcar.
Tudo se treina e a verdade é que, nas últimas semanas, tenho feito tudo
para esquecer o Miguel. Para meu grande espanto, até tenho conseguido.
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Ela não me podia ter escrito aquilo. Simplesmente não podia. Quem é que
ela pensa que é? Só porque já sofreu, acha que sabe tudo? Atrasado
emocional! Sim, posso ser um atrasado emocional, mas não chateio
ninguém, nem cobro a ninguém o meu amor. Ela sabia, sempre soube que a
minha relação com ela era imprevisível. Sempre lhe disse que, um dia,
pegava nas minhas coisas e me ia embora: sou um nómada afectivo, é a
minha natureza. Quem não quiser lidar com isso que se afaste. Dei-lhe
tudo, muito mais do que a qualquer outra mulher, amei-a e sempre a
respeitei. Ela foi a pessoa mais importante da minha vida, e aprendi
tanto com ela que acho que vou demorar alguns anos a digerir tudo. Mas
por que é que ela há-de querer estragar tudo com insultos e agressões?
Por que é que não aprendeu ainda a aceitar a vida de braços abertos e a
perceber que só se anda para a frente com mudanças e rupturas, mesmo
que isso doa e custe, e seja difícil? A vida é isto: uma mudança
permanente e inesperada. Crescer também passa por aceitar aquilo a que
os indianos
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chamam dukkha, a insatisfação perante a impermanência na vida, e isto
passa por aceitar tudo, na vida e na morte, da vida e da morte. Mas
não. A Inês, do alto da sua pretensa sabedoria é insegura. Por isso,
tem que classificar e ordenar tudo na cabeça dela, e todos aqueles que
não seguirem o mesmo caminho são desertores. Não posso nem quero cingir
a minha vida a um só modo de a viver. Ela sempre soube isso e o nosso
amor nunca foi posto em causa. Para quê agora estragar tudo?
Talvez já ande a viajar há tempo demais, mas não quero voltar ao
atelier do Frederico nem à vida que deixei; senão esta viagem não
serviu para nada, a não ser para adiar decisões que não quero tomar.
Talvez alugar uma casa pequena e procurar trabalho noutro atelier mais
pequeno, não sei ainda bem.
O Oriente fascina-me e cansa-me ao mesmo tempo. Sinto-me bem aqui
porque estou longe do mundo mas nas últimas semanas um vazio ainda
maior e mais pesado foi-me tomando os dias. Não sei bem quando, nem
exactamente com quê, mas o olhar deixou de se prender nas coisas, como
se tudo o que já vi me chegasse. Agora, preciso de pisar outra vez uma
terra cujo cheiro não estranhe, de olhar para as pessoas e lhes
reconhecer feições ocidentais, de comer um bife do lombo com ovo a
cavalo e saborear um pudim flã. Coisas sem a mínima importância, às
quais só agora dou valor, como poder ir a uma caixa multibanco e
levantar dinheiro, deitar-me numa cama acabada de fazer, resgatar
cheiros e objectos, poder tomar duche todos os dias, ler os meus livros
e ouvir os meus discos, sem ter que os trocar com os outros viajantes.
Estou cansado de ler em inglês, de lavar as mesmas t-shirts vezes sem
conta e de ouvir sempre os mesmos CD's no meu walkman. Mas, ao mesmo
tempo, acho que me podia habituar a esta vida. O desprendimento traz-me
uma paz que não consigo alcançar quando me fixo. Por isso, não sei o
que vou fazer, embora no fundo saiba muito bem que tenho de voltar. Só
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que agora tudo ficou mais difuso. A Inês se calhar arranjou alguém - e
se o fez, fez muito bem. Quem sou eu para a julgar, se fui eu que a
deixei? A Carolina deve ter crescido muito nestes meses. Duvido que
ainda se lembre de mim. De certeza que a Inês, com a típica fúria
feminina, fez desaparecer todos os meus sinais, fotografias ou
quaisquer objectos que a fizessem lembrar da minha frágil e remota
presença. Ou talvez não, talvez ainda me reconheça e se for ao colégio
vê-la como fiz antes de me vir embora, talvez ainda possa sentir outra
vez o calor da sua cara encostada à minha, o cheiro a bebé, o toque
suave dos caracóis enrolados nos meus dedos... os miúdos têm este
efeito devastador e quase perverso, amolecem-nos o coração para sempre,
mesmo quando não são nossos filhos.
Não volto a ter uma namorada com filhos, a não ser que tenha a certeza
que vou viver alguns anos com ela. E, como a única certeza que tenho na
vida é que nunca poderei dar certe zas de nada a ninguém, é bom que
aprenda esta lição e não me esqueça. Sei que é uma das razões que dão
tanta mágoa aos mails da Inês, leio-o nas entrelinhas e acho que ela
pode ter alguma razão, mas estou farto de lhe pedir desculpa e de me
justificar por ter feito aquilo que achava que devia fazer. ,Mas,
quando me apaixonei por ela e pela miúda ao mesmo tempo, nem pensei no
futuro. Não sabia, não queria, nem podia pensar. Com 25 anos só se
pensa em viver, usufruir de tudo e viver até ao limite. O futuro é o
tempo de um verbo que se aprendeu na escola; o passado é sempre
conjugado no pretérito perfeito, não há imperativo nem condicional. A
vida corre no presente, sem planos nem projectos a longo prazo.
Irrita-me a conversa da idade que a Inês recorrentemente tem nos mails,
como se as pessoas não pudessem escolher se envelhecem ou não. Quando a
conheci, vi nela uma frescura de miúda como se o tempo não lhe tivesse
passado por cima, e foi
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uma das coisas que mais me encantou nela. Mas, se calhar, era fachada,
pode não ter passado de um esforço para se pôr à minha altura, com medo
de me perder. Não sei o que é ter medo de perder alguém, as pessoas
nunca perdem as outras, podem é perder-se delas, como a Inês e eu nos
perdemos. Mas guardo-a para sempre como a melhor coisa que me
aconteceu. Quem me dera que ela soubesse fazer o mesmo. Apetece-me
voltar a vê-la, apertá-la outra vez nos braços, sentir-lhe o hálito
fresco e o cheiro inconfundível, deitá-la na cama e amá-la com
paciência e cuidado, como sempre fiz, devagar, e depressa, e devagar
outra vez, até que o corpo se liberte em espasmos infinitos, quase
celestiais.
Dormi com algumas mulheres durante estes meses. Primeiro com a chata do
Algarve; depois, com uma inglesa; depois, com duas norueguesas, numa
noite de loucos em Nova Deli; mais uma mexicana que andava à procura do
Dalai Lama, e ainda uma sul-americana que era relações públicas do
hotel onde estou, aqui em Goa. Mas esses corpos, sempre apetecíveis até
ao momento em que as levava para a cama, tornavam-se inertes, quase
inanimados, depois de estar com elas, e um vazio estranho invadia-me a
pele. Talvez tenha estado demasiado tempo com uma mulher que amei e me
tenha habituado a um padrão de entendimento muito alto. Ou então,
aquilo que inevitavelmente se apodera de nós, e que alguns teimam em
chamar amor, tenha feito de mim uma pessoa melhor e, por isso mesmo, um
amante melhor. Sempre gostei de comer gajas, e quem não gosta é
paneleiro, mas demorei algum tempo a perceber a diferença abissal entre
estar na cama com uma mulher que se ama ou dormir com qualquer outra.
Não tem a ver com prazer, mas com o estar, ou o ser. Com a Inês, eu era
eu mesmo, alguém que sempre escondi de mim e dos outros e que a Inês
soube como ninguém tocar. Com as outras mulheres, sou apenas um homem,
sinto-me mais
um tipo qualquer e quero que elas sejam mais um número a acrescentar à
minha lista. Prefiro não criar laços, nem fomentar confusões: entra no
jogo quem quer, e abandono-o sempre que me apetece.
Mas estou há demasiado tempo sozinho. Escolhi a solidão como caminho, e
um cansaço que desconheço vai-se apoderando aos poucos de mim. Apetece-
me voltar, e, por isso, um dia
destes, ligo ao Rodrigo e troco o meu bilhete. Talvez fique em casa
dele por uns tempos, até encontrar outra casa. Podia ficar com a
Mariana, que ficou com a minha: mas isso não, não quero voltar atrás,
aos mesmos cheiros e lugares. Não quero voltar atrás em nada, nem no
meu amor pela Inês. Tudo na vida tem o seu tempo, e o meu agora é
outro: é novo, é desconhecido, é estranho. Mas é o meu, o que eu quero
e que tenho que viver.
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A miúda chega dez minutos antes do Filipe bater à porta, tem uma cara
redonda, muito simpática, fala com um tom de voz pausado e a Carolina,
que gosta logo dela, vem-me dizer à so capa: ó Mãe, ela é muito mais
simpática do que a Célia. Eu volto a pensar que se calhar a Teresa tem
razão: devia arranjar uma interna, assim já não tinha que andar sempre
a recorrer a baby-sitters. Mas a ideia de ter uma pessoa estranha em
casa vinte e quatro horas por dia faz-me confusão. Explico-lhe o ritual
do sono da Carolina - uma história com a luz acesa, ou uma canção com a
luz apagada, antes de adormecer, e a Lena vai dizendo que sim com a
cabeça, ouvindo-me com educada paciência, como se nunca tivesse feito
aquele trabalho na vida, ela que é baby-sitter desde os 16 anos e está
a acabar Economia.
Pouco depois, o Filipe toca à porta, e convido-o para subir porque ele
quer ver outra vez a Carolina, o que não acho nem bem nem mal. Mas
quando ela lhe pergunta pelas filhas, e ele lhe fala delas com o olhar
iluminado, fico logo arrependida de o ter
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deixado ver a miúda, não vá ela começar a construir castelos na linda
cabecinha loira povoada de caracóis.
Saímos rapidamente e o Filipe, com aquela boa educação que não se vê
mas que se sente, abre-me a porta do carro enquanto me vai falando do
chefe do restaurante onde vamos, com quem ele joga golfe de quinze em
quinze dias, quando não está com as miúdas. No carro, o ambiente
tranquilo é acentuado por uma pianada que não conheço e sobre a qual
levo logo uma ensaboadela: O quê? Tu não conheces o Bill Evans? Parece
impossível! Em meia dúzia de quilómetros, fico a saber que o pianista
americano foi o precursor do Keith Jarrett e de outros génios do jazz;
quando chego ao restaurante e me sento à mesa, olho para o Filipe e
acho-o mesmo giro no seu estilo discreto e bem comportado de Super Pai.
Talvez a Teresa tenha razão, talvez ele me possa trazer algo de novo,
uma segurança qualquer que eu não conheço. Mesmo que fiquemos só bons
amigos, que diabo, nem todos os tipos que se aproximam de mim têm que
pertencer à categoria de pretensos-candidatos-a-qualquer-coisa-do-tipo-
namorados, como dizia o Duarte, outro dia.
- A partir de agora, só vou ligar ao que tu me contas sobre esses tipos
quando me falares de um sobre o qual não digas: o pretenso, o talvez
futuro, o candidato a, um que está convencido que.
O Duarte tem razão. Tenho que acabar com estas parvoíces. Escusava era
de ter ido para a cama com o Kiko. Ele ligou-me e queria ver-me. Eu
andava a escapulir-me desde a noite em que apanhei a bebedeira, mas ele
foi ligando, insinuando-se, com o à vontade que só se tem naquela
idade, uma espécie de inconsciência que dá segurança e legitimidade a
tudo o que nos passa pela cabeça fazer, e eu deixei-me ir. Quando me
telefonou na terça-feira passada a dizer que estava à porta, não
resisti. Ficámos no sofá, horas e horas, a conversar. Ele agarrou-me, e
eu
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pensei: por que não? E como na minha cabeça não ouvi nenhum grilo
falante a dizer-me para não ir e nesse dia não tinha falado com a Ana -
se ela me tivesse ligado a relembrar porque é que, segundo ela, o Kiko
é um disparate ainda maior que o Miguel, mas não ligou - acabei por
ceder. Não sei se foi bom ou mau. Pareceu-me bom, fisicamente, mas mau,
emocionalmente. Talvez o Kiko tenha sentido o mesmo, porque não durou
muito tempo, nem teve nada de arrebatador, mas acho que, mesmo assim, o
balanço foi positivo: pelo menos, voltei a sentir algum peso em cima do
meu corpo, e isso emprestou-me de alguma forma uma sensação de
libertação. O sexo pode ser a melhor sensação do mundo, ou a mais
estranha: encher-nos ou esvaziar-nos, tornar-nos em seres invencíveis
ou totalmente vulneráveis. O problema é quando se consegue juntar sexo
e amor: o padrão torna-se tão alto que é muito difícil, quase
impossível lá voltar. Quando acabou, e o Kiko se levantou da cama, tive
vontade de chorar. Só me lembrava do Miguel, deitado ali ao lado, das
curvas do corpo dele e das orelhas que cheiravam a alfazema, do seu
olhar terno que se perdia no meu, no depois do depois, onde havia tudo:
paz, libertação, beleza, amor, quase perfeição. O Kiko voltou com um
sorriso enfiado, passou-me a mão pela cara, deitou-se ao meu lado, e
sussurrou:
- Estás farta de sofrer, não estás, querida?
E aquele querida comoveu-me, mas engoli a emoção e desactivei o
mecanismo das lágrimas, com um esforço de concentração notável.
Tudo se treina na vida, minha querida. Tudo se treina, até o coração e
ficámos ali, os dois, a tentar preencher o vazio inevitável de dois
corpos que ainda não cultivaram os laços da intimidade. - Não podes ser
tão densa, Inês. Pensa menos na vida. Vais ver que é muito mais fácil
viver.
No dia seguinte o Kiko ligou, mas pedi-lhe tempo, ainda
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não percebi se quero ou não que ele entre na minha vida. O medo voltou
outra vez e instalou-se numa cadeira, aos pés da minha cama. Olha para
mim todas as noites, antes de me deixar adormecer, e diz, com voz de
mulher:
não vais cometer os mesmo erros, pois não?
e lembro-me que li num sítio qualquer uma definição de demência como a
repetição dos mesmos erros à espera de resultados diferentes, e enterro
a cara na almofada. Mas o Senhor Medo, que veste um fato azul escuro e
é velho, careca, e tem voz de mulher, chama-me parva, avestruz, burra,
e diz-me para ter cuidado. Um dia destes, tenho que mandá-lo mesmo
embora. Mas por agora, é bom que ande por ali a vaguear no meu quarto e
no meu espírito, para não levantar os pés do chão e desatar a voar como
um pássaro, como o Miguel fez com a vida dele.
O Filipe também tem medo. Diz que o medo é um bicho invisível que se
instala depois da separação, sempre indissociável de uma sensação de
falhanço por não se ter conseguido aguentar as coisas. E eu pergunto-
lhe quem é que consegue, e ele responde-me com um sorriso triste, o que
nos faz voltar às trivialidades e ao Sushi. O Kiko tinha razão quando
me dizia para não ser tão densa, e quando vamos pedir a segunda dose, o
meu telemóvel toca e é o Kiko a perguntar onde estou, e se pode vir ter
comigo. Faço sinal ao Filipe para me levantar da mesa e saio do
restaurante. Isto é de uma falta de educação indesculpável, penso eu,
enquanto estou cá fora a dizer ao Kiko que vim jantar com um amigo e
que, hoje, vai ser impossível.
- Como queiras - responde, com secura. - Desculpa ter ligado, não te
volto a incomodar. - E desliga, furioso. Regresso à mesa e desfaço-me
em desculpas, mas o Filipe ri-se, e comenta que é impossível que eu não
tenha meia dúzia de tipos a telefonarem-me para isto e aquilo, e, como
não faz perguntas sobre a minha vida, omito o Kiko, as duas noites com o
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Kiko, e o medo que tenho de estar a deixar entrar outro Miguel na minha
vida.
- O pior do medo é que, quando se instala, demora imenso tempo a
desaparecer outra vez - continua o Filipe.
- Acho que o pior é habituarmo-nos à tristeza. Eu fiquei muito mais
fechada, mais egoísta, tenho menos paciência para os problemas dos
outros. Há dias em que não me apetece ver nem sequer falar com ninguém,
a não ser com a Carolina, claro.
O Filipe conta como as filhas foram importantes na separação - foi ela
que saiu de casa - e como se apoiou nelas.
- Hoje, nem imagino o que é viver sem as ter quase todos os dias por
perto. Passei a encher a minha vida com elas, e o lado perverso disto é
que, cada vez que me interesso por uma mulher, acabo por ter muito
pouco tempo para ela, porque as miúdas estão sempre à frente.
- E assim, estás protegido. As tuas filhas são uma espécie de escudo.
- Claro. Mas quando te habituas a viver na concha, quem é que te tira
de lá?
- Nada. A não ser uma coisa. - O quê?
- Um grande amor.
- Talvez. Mas essa visão é muito romântica para o meu gosto.
- Então, experimenta imaginar a tua vida todos os dias ao lado de uma
pessoa por quem não sintas mesmo amor - argumento, ligeiramente
inflamada. - Não há tolerância possível. Ou adoras viver com uma pessoa
ou rapidamente não a podes nem ver.
- Mas eu nem falo de viver com alguém. Isso, hoje em dia, para mim,
está fora de questão. Falo em sentir alguma coisa profundamente por
alguém. Eu posso sentir atracção, entendi
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mento, tesão, vontade de estar com essa pessoa, mas isso é amor?
- Não. O amor é a soma de tudo isso, mas é ainda outra coisa diferente,
que está acima disso, acima de qualquer parâmetro ou definição. Uma
coisa qualquer que não sei o que é, mas quando sinto, tenho a certeza
que é aquilo mesmo.
- E já sentiste, não já? - Claro!
- Com o teu marido?
- Não. Com o-meu último namorado. - Oh!...
O Filipe fica sem saber o que dizer. Não devia estar à espera de uma
resposta tão sincera. Mas saiu-me, não houve nada que a evitasse. Nem
eu queria.
- Mas viveste muito tempo com ele?
- Um ano... um bocadinho menos de um ano. - E porque é que se separaram?
- Porque ele foi crescer.
O Filipe não responde. Devia estar à espera que lhe desse uma
explicação longa, repleta de pormenores que, provavelmente, não lhe
interessavam nada, mas não. Desta vez fui su cinta, cirúrgica, diria
mesmo brilhante. O Miguel foi crescer, é a grande resposta.
já em casa, depois de uma despedida morna e quase cerimoniosa do Filipe
- ou era eu que estava meio desligada, e não o pus à vontade, ou,
então, o jantar não foi como ele estava à es pera e quis-se ir embora
-, e depois de ter pago à Leria, ligo para o Kiko, que tem o telemóvel
desligado. E agora? O que vai ser a minha vida? Será que não consigo
estar quieta?
Talvez consiga, no dia em que olhar para a cara do Miguel e conseguir
ler na minha cabeça, escrito a néon a acender e a apagar a poderosa
palavra: ACABOU.
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Quando já estou de camisa de noite, pronta para me enfiar na cama,
alguém toca à campainha. Sobressaltada, pergunto pelo intercomunicador
quem é.
- Sou eu, o Filipe. Posso subir um bocadinho?
Claro que podes, Filipe. Se há alguém que me dá suficiente paz e
segurança para poder subir à minha casa, às duas da manhã, és tu.
-já me ia deitar... mas vá lá, sobe.
Abro-lhe a porta devagar e entra quase a medo, olhando discretamente
para as minhas pernas - uso sempre camisas de noite curtas, o Miguel
adorava e, além disso, detesto sentir coi sas enroladas às pernas
quando estou a dormir - e senta-se na sala. Vou ao quarto buscar um
roupão e preparo dois Jamesons. O Filipe tira o casaco e senta-se no
sofá. Pega numa almofada e pede-me que me sente ao lado dele. Depois,
larga a almofada e agarra uma das minhas mãos, e fica ali, muito
quieto, a olhar para mim.
Devia dizer qualquer coisa, perguntar-lhe o que está a fazer, por
exemplo, porque é que me está a agarrar a mão, mas prefiro ficar
calada, a saborear a temperatura da mão dele por cima da minha. É bom...
- Então? Já ias dormir, não era?
- Sim, tenho algum sono, mas não muito.
Quero que ele perceba que fez bem em voltar atrás. Quero que ele
perceba que me sinto bem ao pé dele.
- Gosto mesmo de estar contigo, sabias?
A mão dele aperta a minha com mais força, e o olhar adoça
-se.
- Eu também. Por isso é que voltei. - Fizeste bem.
- Ouve... eu sei que nem eu, nem tu, estamos preparados para o que quer
que seja, e que o que se passou nas nossas vidas
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deixou algumas marcas e fechou algumas portas... mas eu gosto mesmo de
estar contigo... e acho que estou a sentir-me tão bem que é uma
estupidez não aproveitar isto... mesmo que eu não saiba o que isto é,
percebes?
Estás a ser sincero, ou já não vais para a cama com alguém há muito
tempo?
- Onde é que queres chegar?
- Quero chegar aqui, ao pé de ti, poder telefonar-te sempre que me
apetecer e estarmos juntos com frequência. Quero, de alguma forma,
trazer. qualquer coisa de novo à tua vida, porque já me estás a trazer
à minha... não sei bem o que é, mas sei que é bom e, por isso...
E agora? Deixo-me ir ou conto-lhe a verdade? O Filipe parece adivinhar
o que me passa pela cabeça, porque se debruça sobre mim e dá-me um
beijo suave, lento, delicioso. Mas eu tenho que lhe dizer duas ou três
coisas, senão isto não me vai correr bem. Por isso, afasto-me um pouco
para trás - não muito, para ele perceber que só quero falar, que não o
estou a rejeitar, e digo:
- Ouve... Eu sinto o mesmo... e tu já percebeste que gosto de estar
contigo e, quanto mais estou, mais gosto, mas eu ainda estou
completamente apanhada pelo meu ex-namorado, e mesmo que me envolva
contigo, se ele entrar por aquela porta um dia destes, e disser que
quer voltar, tu eclipsas-te à velocidade da luz, percebes? E não te
quero fazer isso, acho que não é justo.
- Mas eu não me importo. Eu sei os riscos que corro, já sou crescido. A
sério, não me importo.
Bolas, já tinha saudades de alguém que me agarrasse assim.
185
Lisboa nunca tem luz a mais nem parece demasiado bela, sempre que se
sobrevoa depois de uma longa ausência. Há um calor próprio em cada
cidade, e Lisboa tem uma temperatura es pecial, morna, doce,
acolhedora. Sinto a pulsação a acelerar enquanto o piloto, numa
acrobacia turística, faz um arco sobre a cidade para mostrar aos
turistas as colinas - dizem que são sete, mas conto sempre mais - que
tanto encantaram Ulisses. Como estará a minha Penélope? De cá de cima,
vejo o prédio dela, e, de repente, é como se ela estivesse aqui
sentada, na cadeira número 7 B, de mão dada comigo, a rir-se. Oiço-lhe
a voz de miúda, e conto mentalmente os dentes brancos e certos da boca.
Fecho os olhos e sinto-lhe o cheiro da pele. Bolas!, ainda não aterrei
e já estou a pensar nela. Quando chegar lá abaixo, como é que vai ser?
Só disse ao Rodrigo que chegava hoje. Espero que ele esteja no
aeroporto à minha espera, pedi-lhe para não dizer nada ao resto das
pessoas, quero um regresso calmo e tranquilo, em tudo diferente ao da
minha partida,, por isso também não disse à Inês.
186
Tenho tanto medo de lhe fazer ainda mais mal, agora que regressei e
ainda a desejo, mas não quero voltar a andar com ela, o melhor é ela
pensar que ainda estou em viagem. Ficamos os dois mais protegidos. É
isso mesmo. Olha que boa ideia. Se eu não disser a ninguém próximo dela
que voltei, como é que pode saber? Lisboa é uma aldeia, mas, se não
andar pelos sítios do costume, pode ser que ninguém dê por mim. Só se
me encontrar por acaso no cinema. Mas tenho saudades dela. Tenho
saudades do corpo dela, das pernas, da boca, tenho saudades de a comer,
bolas. Mesmo nestas-últimas semanas, em que o calor e o cansaço de
andar há tanto tempo a viajar me baixaram a libido, nunca deixei de
pensar nela e, agora, que estou a voltar, o desejo acordou outra vez.
Mas, é melhor, não. Não lhe posso fazer mal outra vez. Nunca quis
magoá-la, e foi isto... Só espero que ela tenha arranjado um namorado
porreiro, que goste mesmo dela e lhe dê tudo o que eu não sei, não
posso ou, simplesmente, não quero dar. E se ela tiver mesmo arranjado
alguém? Não é dificil, ela tem tudo para ser a namorada ideal. Para
quem quer ter namorada, claro.
Tenho que procurar trabalho, estou a ficar sem dinheiro e não me
apetece ir outra vez para casa do meu pai. Agora, fico em casa do
Rodrigo e, depois, logo procuro um apartamento para alugar. Mas,
primeiro, tenho que arranjar trabalho num atelier qualquer. E não quero
ligar ao Frederico, senão ele diz à Inês que voltei. Já sei, ligo ao
pai do Pedro, que é engenheiro civil, pode ser que ele me arranje
alguma coisa. Qualquer coisa que me dê horários e disciplina, estou
farto de ser escravo da minha própria liberdade. Mesmo que seja a
ganhar pouco, estou-me nas tintas. Estou-me nas tintas para o dinheiro,
desde que dê para comprar livros e discos, para jantar fora e ir para
os copos, tanto me faz.
O Rodrigo está um bocado emocionado, há quase três meses
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que não me vê, mas lá em casa já nos esquecemos todos de chorar - deve
ter sido quando éramos miúdos, e a minha mãe se foi embora - e por isso
abraça-me e dá-me pancadas desajeitadas nas costas, enquanto diz:
- Então, meu? Afinal não te converteste ao budismo? Estás mais magro,
pá!
E eu também estou um bocado emocionado, mas engulo em seco e desato a
contar coisas da viagem, para distrair o coração. É estranho:
parecervque o tempo que estive fora me passou ao lado, que ainda hoje
de manhã estava aqui, a sair do táxi, com as mesmas malas, depois de
ter viajado com a cabeça encostada ao vidro, a olhar para o reflexo
esbatido dos candeeiros pela luz branca da madrugada. Não houve salvas
de canhão, nem lenços acenando aos barcos, nem as costas da mão num
movimento de vírgula a limpar as lágrimas. Afinal, as despedidas acabam
por ser sempre mais silenciosas: um táxi a atravessar Lisboa, numa
madrugada quase fria, luzes amarelas dos candeeiros públicos, sacos de
plástico empurrados pelo vento e uma ausência de pessoas que serve de
atenuante a qualquer crime de fuga. Naquele dia, não houve testemunhas.
Sou muito melhor a apanhar aviões do que a levantar o braço à entrada
do aeroporto para me despedir. Ou talvez finja melhor.
Quando cheguei a Nova Deli, arrependi-me de não ter dito à Inês para ir
ao aeroporto, mas não podia vê-la. Se a visse, seria tudo muito mais
difícil. Mas, com o tempo, fiquei mais triste com a minha atitude. A
verdade é que a distância parece um bisturi. Recorta o essencial, que a
proximidade costuma vulgarizar. E a Inês foi essencial na minha vida, é
ainda essencial, mesmo que não queira ou não possa voltar a andar com
ela. É fundamental que um dia talvez daqui a algumas semanas, quando
voltar a sentir que este é o meu país, e que é aqui que pertenço, fale
com ela e lhe explique que a cobardia tem mais poder que a sin
ceridade, que o medo, nos homens, é um cancro porque só se sente quando
já dói, e só dói quando os estragos estão feitos e são irreversíveis.
Mas agora quero parar, que é uma coisa que nunca aprendi a fazer. Deve
ser por isso que não acerto o passo com o pulso, nem o tempo com o modo.
O Rodrigo está nervoso, preocupado e mostra-se agitado com o meu
regresso. Diz que o meu pai se entristeceu com a minha ausência, que
viu a Inês ao longe num centro comercial com a Carolina e um tipo mais
velho, mas como esta parte da conversa não me interessa nada, pergunto
como é que está o grupo todo, quando é que o coração de manteiga se
casa, e se ele tem atacado muito na noite com o Pedro. A caminho de
casa dele, peço para fazer um pequeno desvio e passamos à porta de casa
da Inês. É domingo, são duas da tarde e não vejo a carrinha na rua. Não
deve estar em casa, embora as janelas estejam abertas. Apetece-me mesmo
vê-la, mas torço os dedos para conter a impaciência e o Rodrigo ri-se e
aponta para um prédio mais alto, do outro lado da rua, um pouco mais à
frente, duas janelas onde se diz: Aluga-se. Peço-lhe para parar, e
escrevo na minha agenda electrónica o número de telefone. Se for uma
casa pequena e sossegada, alugo-a aqui mesmo.
- Foste-te embora sem te despedires e agora vais alugar um andar mesmo
ao pé de casa dela? Ou ainda gostas dela, ou então és completamente
doido.
- Sou completamente doido.
- Então, por que é que não ligas já?
-já te esqueceste que, quando uma pessoa vai viajar para sítios como a
índia e o Nepal, não leva telemóvel?
- Então liga do meu.
Não queria que isto fosse tão rápido mas, como gosto de ser organizado,
ligo mesmo e uma senhora com uma voz humilde
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atende-me, diz que posso ver a casa ainda hoje e, quando lhe digo que
estou no bairro, responde.
- Venha, venha. Bata na porteira, que eu vou lá e mostro-lhe o
apartamento. Mas, olhe que é pequeno...
- Não faz mal. Está arranjado, não está? - Pronto a habitar.
- Então, estou aí daqui a meia hora.
E desligo. O Rodrigo pergunta por que é que não vamos já, mas preciso
de entrar num café tipicamente português - daqueles que antes da viagem
detestava e que, agora, me resgatam o sabor de Lisboa, com cadeiras de
fórmica, balcões transparentes atulhados de bolos com creme e
empregados com ar fora de moda - sentar-me, fumar um cigarro e beber
uma bica a escaldar.
- Então, conta lá? Valeu a pena?
- Claro. Mas é mesmo outro mundo. Foi óptimo, vi imensas coisas e
conheci pessoas com piada, diferentes desta gente cá. - E conheceste
gajas giras? Comeste algumas gajas boas? - Claro.
- Cabrão! - Pois sou.
E ficamos os dois calados, a olhar para o fumo dos cigarros que se
confunde com o que sai das chávenas de café. Nunca nos habituámos a
conversar de coisas sérias, da mesmo forma que nos esquecemos de
chorar, quando éramos miúdos. Mas o Rodrigo é feito de outra massa,
pensa menos nas coisas do que eu e por isso é um tipo muito mais feliz
e muito mais saudável. Nunca percebeu porque é que acabei com a Inês.
- Se tens uma namorada podre de boa que te adora, de quem gostas e com
quem te dás tão bem em tudo, porque é que acabaste? - perguntou-me,
atónito, quando lhe contei.
- Não sei - respondi, na altura. E agora, três meses depois, continuo
sem saber. Mas é que não sei mesmo.
- Sabes o que é que eu acho? - começa o Rodrigo, depois de terminar o
café. Vem aí uma teoria qualquer que não me apetece ouvir, mas ainda
agora cheguei, por isso tenho que mostrar alguma boa vontade. - Eu acho
que esta viagem não te serviu para nada.
- Porquê?
- Porque te foste embora à procura de qualquer coisa, e voltaste com as
mãos a abanar.
- Pode ser.
- E isso não te chateia? - Nada. Porquê?
- Tá bem, tu é que sabes. O importante é que voltaste, estás porreiro e
não entraste para nenhuma seita budista maluca. - Os budistas não
fodem, meu. Achas que eu aguentava uma merda dessas? Além disso sempre
fui ateu, nunca tive a menor propensão para ter fé no que quer que
fosse. Achas que era aos vinte e cinco que me dava uma pancada dessas?
- Sei lá. A distância pode fazer muita merda à cabeça de um gajo.
Não lhe vou responder que nunca me fui embora, que quando se viaja, não
se deixa o lugar de partida. Eu pensava que sim, mas aprendi que não,
ao menos isso eu aprendi.
- E agora? O que é que vais fazer? - Agora vou ver a casa.
- Está bem, não me referia a isso. Referia-me à tua vida. - Vou
arranjar trabalho, o que é que queres que faça?
Eu sei que me ia perguntar pela Inês, mas olhei para ele de tal forma
que decidiu ficar calado, e ainda bem.
- Entrem, se faz favor - diz a porteira do prédio, abrindo a porta do
apartamento. Um hall pequeno, quadrado, uma sala pequena, quadrada, um
quarto ainda mais pequeno, também quadrado, uma casa de banho pequena,
arranjada de novo com
- 191
pastilha azul clara, ainda e também quadrada, e uma cozinha espaçosa e
com boa luz. A sala tem duas janelas corridas até ao chão e dá para uma
varanda pequena e simpática. O quarto também e afinal tem a mesma área.
Só me parece mais pequeno porque uma das paredes é ligeiramente em
curva. Gosto da casa, a simetria traz-me uma vaga sensação de ordem,
como se fosse disso que eu agora precisasse. E, se calhar, preciso
mesmo. Não posso pôr cá muita coisa, o que é óptimo, porque trago o que
tenho de casa do meu pai e, assim, não gasto dinheiro.
- Quanto é a renda?
- É noventa e cinco mil escudos. Com um mês de caução. - Então já está.
Fico com a casa.
A porteira nem acredita. Deve ter posto o anúncio há pouco tempo, não
estava à espera de alugar o apartamento tão depressa. - Mas o senhor
tem a certeza?
- Tenho. E quem é o senhorio?
- É uma senhora que foi viver para o estrangeiro. Mas tem cá um
advogado que é procurador, e o senhor trata tudo com ele. - Está bem.
Então, dê-me o número de telefone do advogado e não mostre a casa a
mais ninguém, eu fico com ela.
A porteira sai para ir a casa dela buscar o telefone do advogado, e o
Rodrigo olha para mim como se me fosse enfiar dentro de uma camisa de
forças.
- Tu és mesmo doido.
- Porquê? Porque aluguei uma casa em cinco minutos? - Sim, ainda agora
chegaste. Podias ver outras.
- Ouve, a renda está barata, a casa está impecável e o sítio é óptimo.
Não me queres lá em casa a dormir na sala, e a ver as gajas que tu
comes a passarem do quarto para a casa de banho à minha frente, pois
não? É que eu nem me importo. Para elas é que pode ser chato...
- Tens razão, isto é capaz de ser uma boa casa para ti.
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E é mesmo. Está nova, está livre, está limpa e vai-me dar a sensação de
ter uma casa. E é muito melhor que o meu apartamento anterior, onde
pagava mais dez contos.
- E posso entrar, quando?
- Assim que tiver o contrato assinado. Aqui tem o número do senhor
doutor - diz a porteira, estendendo-me um papel onde números enormes se
encavalitam - se quiser ficar mais um bocadinho a ver a casa...
Vou à cozinha que já tem esquentador, fogão e frigorífico. Óptimo. Vejo
as tomadas na sala e no quarto, verifico o contador, o estado das
janelas, se há rachas nas paredes ou no tecto e um quarto de hora
depois, saímos. Assim é que eu gosto. Mal cheguei e já tenho casa.
Todos os malandros têm sorte, como costumava dizer a Inês.
- E agora?
- Bem, agora vamos ver o pai e a Lina, não é?
- Lá terá que ser - responde o Rodrigo, que é como eu, tem pouca
paciência para reencontros familiares.
Quem disse que a vida é um eterno regresso a casa? À medida que a
cidade se vai desenhando com familiaridade perante os meus olhos, vou-
me sentindo mais perto de qualquer coisa, mas ainda não sei se é ou não
de mim. Dá trabalho viver. Dá mesmo muito trabalho.
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- O que se passa?
O Filipe prima pela discrição, mas a minha cara não engana ninguém.
Estou completamente a leste.
- Nada, estou só cansada e com trabalho a mais na editora. - E não anda
por aí nenhum fantasma a sair do armário? - Não. Só que, hoje, chateei-
me com um amigo meu, e fiquei irritada.
- Deixa lá. Se for mesmo teu amigo, isso passa. Amigos não se julgam,
mesmo que se zanguem, não é?
É, é, Filipe. Não queres ser antes meu amigo, em vez de andarmos aqui a
fingir que temos uma coisa qualquer parecida com uma relação?
- Pois não. Mas ele não era meu amigo, eu é que era amiga dele.
Lanço-lhe o isco, mas o Filipe não morde. Decide ignorar o que eu disse
e enceta uma conversação longa e animada sobre as próximas férias que
está a planear com as filhas. Observo-o aten
205
tamente. Ele não é o meu tipo de homem. O que é que estou aqui a fazer?
Será que o medo de ficar sozinha me está a paralisar, de tal forma que
aceito uma relação que sei que não tem amor, só pelo pânico da solidão?
Ou será que estou com ele porque controlo o que sinto e por isso sei
que, assim, estou defendida e não me vou magoar? E se eu pusesse a mão
na consciência e ouvisse o meu coração? Não, isso era muito frustrante:
podia correr o risco de ouvir batidas sincopadas, a dizer Mi-guel-Mi-
guel-Miguel... que seca. E a sinceridade, às vezes, magoa tanto as
pessoas, que o melhor é ficar calada, e ver o que é que isto dá.
- Hoje, não estás cá. O melhor é ir andando - diz o Filipe, fazendo-me
uma festa na cabeça, como se eu fosse uma das filhas dele. Que bom,
sabe mesmo bem...
- Desculpa.
- Não faz mal. Também tenho dias assim, mas não sou tão sincero como
tu, e disfarço. Mas fazes bem em não disfarçar. Se eu fosse mesmo
sincera, não ias gostar, mas deixa lá. Há coisas mais importantes que a
sinceridade.
- Mesmo que quisesse, não conseguia. - Ainda bem. Gosto de ti assim.
- Mas achas que gostas mesmo de mim? Quer dizer, o suficiente para
andarmos juntos?
- Não sei. Nem tu. Por isso é que estamos no mesmo barco, não é? - e
abraça-me com cuidado -, mas gosto muito de estar contigo e isso,
agora, chega-me. Se também te chegar, então está tudo bem, não está?
O Kiko tinha razão. Isto é mesmo a ilusão de uma vida normal. - E se o
fantasma voltar a aparecer? - pergunto-lhe, em tom de quase desafio.
- Logo se vê.
- Não sei porquê, mas acho que ele deve andar por aí. - Sabes, sabes.
Tu queres que ele apareça.
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quero. Que estúpida, estou a tentar enganar quem?
- Mas, enquanto ele não aparecer, vamos andando, não é? Enquanto houver
estrada prá andar a gente vai continuar, a gente não vai parar...
Jorge Palma, que bom. O Miguel ofereceu-me o disco, e eu ofereci um ao
Filipe. Daí a cantoria agora. Está a mostrar que aprendeu a lição.
- Tens razão. Enquanto houver estrada prá andar, está tudo bem.
- Então, até amanhã, minha confusa da Silva. Vou desaparecer da tua
vida - remata, a sorrir, com cara de miúdo.
- Vocês são todos uns Houdinis. - Eu gosto é da parte das correntes.
Malandro. Já me está a excitar.
- Vá, vai-te lá embora, senão isto hoje ainda acaba mal. - Porquê? Por
causa das correntes?
Ainda hesito em pedir-lhe que fique, antevejo uma óptima noite de sexo,
mas, e depois? Sexo não é tudo. Bem, quando há amor, é quase tudo, mas
quando não há, nem é assim tanto. É bom, mas dispensável. Prefiro
adiar, para um dia em que esteja menos aérea.
- Amanhã falamos.
E despedimo-nos com um beijo óptimo, daqueles que dá vontade de gravar
na memória e saborear de vez em quando. Vou-me deitar, mas não consigo
adormecer. Não sei porquê, mas sinto-me sobressaltada, como se me fosse
acontecer alguma coisa que não faço a mínima ideia do que é, mas que é
de certeza importante. A minha intuição não me deixa descansada. Será
que o Miguel está a voltar? Às vezes, sinto-me tão ligada a ele que é
como se o visse a andar, a comer, a adormecer, a ler, tipo espelho da
madrasta da Branca de Neve. É um amor visceral, que vem mesmo cá do
fundo. Há muito tempo que passou para debaixo
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da pele, já não tem nada de cutâneo. Ou, então, é uma obsessão estúpida
e, como sou teimosa e obstinada, resolvi agarrar-me a isto, para não
ter que enfrentar o que é a realidade sem o amor que tenho por ele.
Habituei-me viver assim e fiquei fechada na minha própria prisão. Cada
escravo carrega a chave da sua própria liberdade. Será que é mesmo
assim? Ou há existências estupidamente condenadas a sofrer? Não pode
ser, tenho que ser dona da minha própria vida, e, se não controlo o que
sinto, meto o coração no congelador, arrumo os assuntos amorosos por
uns tempos e dou paz e sossego à minha vida. Mas se o Miguel
voltasse... ah, se ele voltasse! Enchia a casa de flores, enchia-me de
luz e de força, enchia o peito de ar e a cabeça de ideias e projectos.
Se o Miguel voltasse, voltava a encher a minha vida, mesmo que fosse só
por uma semana, uns dias, uma noite apenas... se o Miguel voltasse,
sentia-me outra vez viva, e isso já era tudo, mesmo sabendo que, depois
da partida dele, nada será como dantes, mesmo sabendo que não faço
parte das escolhas dele, mesmo sabendo que o Miguel tem alma de pássaro
e nunca se há-de fixar em ninguém, e que, por isso, não lhe posso
confiar o meu coração. Mesmo sabendo tudo, eu voltava a estar com ele,
a sentir o peso do corpo dele em cima do meu, a saborear-lhe a boca, as
orelhas, os dedos, o sexo, voltava a viver noites brancas e iluminadas,
horas e horas a fio fixada no olhar dele, onde sempre vi o mundo
inteiro, a sentir-lhe a cabeça a descansar no meu peito. Os homens são
como os deuses: nascem e morrem nos braços de uma mulher, e eu dava
tudo para o voltar a sentir por perto, recuperar o cheiro e acordar os
sentidos com a voz, a pele e o toque da suas mãos.... o amor deve ser
isto mesmo. Já não me lembro do mal que ele me fez, da forma cobarde e
infantil como se foi embora. O Miguel voltava e eu abria-lhe a porta
com o mesmo sorriso das noites em que ele chegava tarde, me empurrava
contra a parede e me começava a amar ali mesmo, antes
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de me trazer para a cama. Estou a antecipar o prazer e, a cada instante
que passa, sinto que ele pode voltar, que ele vai voltar e que talvez,
então, eu feche um ciclo da minha vida e aprenda a guardar a doçura de
um amor que tive que aprender a perder. Amar deve ser isto: deixar
partir aqueles que amamos, porque, se os amamos, já os temos para
sempre connosco. Amar talvez seja a melhor forma de ter alguém, e ter
alguém talvez seja a pior forma de amar. Nunca deixarei de amar a minha
mãe, cada ano que passa sobre a sua morte sinto que a amo mais e que
está mais perto de mim, como se o seu espírito, aos poucos, tivesse
descido à terra e entrado para o meu corpo.
Vejo-me ao espelho e sou cada vez mais ela, nos gestos, na voz, nos
silêncios, nos gestos das mãos, no olhar, na cabeça e no coração. Eu
soube guardar a minha mãe porque a amava, porque nunca deixei de a
amar, nunca a esqueci, nunca me zanguei com ela por ter morrido, mesmo
nos meses a seguir à sua morte, em que chorava todas as noites com
saudades e ela me aparecia nos sonhos. Depois, com o tempo - que não
apaga nada, mas suaviza tudo -, fui aprendendo a lidar com a realidade,
e percebi que ela estava presente, que o corpo é só um artefacto para
andarmos por cá, o espírito vive acima de tudo, e a minha mãe está
comigo para sempre. Como talvez o Miguel esteja, ou talvez não. Mas o
tempo há-de me mostrar o que ainda não sei, e, por isso, vou esperar e
aceitar, aceitar e esperar, e conjugar todos os dias estes verbos. The
best things come for those who wait.
No dia seguinte, a Carolina acorda-me outra vez aos beijinhos e pede-me
para irmos tomar o pequeno-almoço à pastelaria. É raro pedir-me, está
habituada a tomá-lo em casa, é viciada em corn flakes, mas apetece-lhe
um croissant com fiambre e um leite com chocolate. Como estou exausta e
me fazia bem um galão, aceito a ideia. O cotomiço fica tão contente que
se veste sozinha, e quase morro a rir de a ver com os ganchos tortos na
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cabeça, muito coquette, e as alças da saia mal cruzadas nas costas.
Devia haver um spray mágico para se pôr nos miúdos e eles não
crescerem. Ficavam para sempre pequeninos, a achar que o mundo é um
sítio bestial, onde pais, mães, tios e primos, são todos bons, e uma
tarde bem passada são três voltas no comboio fantasma e duas bolas de
algodão doce. Está extraordinária, com uma camisola de gola alta cor de
rosa às riscas e umas meias até ao joelho. É mesmo gira, a minha filha.
Entramos no café e refastelamo-nos cada uma com o seu croissant e é,
então, que acontece uma daquelas cenas que só tinha visto nos filmes. O
MIGUEL ENTRA NA PASTELARIA. O MIGUEL EM CARNE E OSSO, DESPENTEADO E COM
CARA DE SONO. ÀS NOVE E MEIA DA MANHÃ, ENCOSTADO AO BALCÃO A PEDIR UM
CAFÉ. E não sou só eu a vê-lo.
- Mãe! Mãe! É o Miguel! É o Miguel!
A Carolina desata aos gritos, salta da cadeira como se fosse um míssil
e corre para o balcão. O Miguel vira-se, fica ao mesmo tempo espantado
e emocionado de a ver, pega-lhe ao colo e abraçam-se. O Miguel tem os
olhos fechados e encosta a cara ao cabelo dela, balançando-a
ligeiramente e, quando abre os olhos, OLHA PARA MIM. Devia-me levantar,
mas não sinto as pernas, as mãos tremem tanto que largo o copo do galão
e o Miguel vem devagar até à mesa, debruça-se sobre mim e dá-me um
beijo na cara, ainda com a miúda ao colo.
- Olá...
- Olá... - parece-me que tenho o queixo a tremer. Ou talvez não, talvez
seja só a voz. - Não fazia ideia que já cá estavas.... - Voltei há uma
semana... Ela está linda!....
- E porque é que não ligaste?
- Eu ia ligar.. . Claro que te ia ligar, mas tenho tido imensa coisa
que fazer, e....
-e estavas com medo que eu te desligasse o telefone? - Mais ou menos.
Não, acho que não.
- Mas eu não desligava... - Eu sei, querida.
Querida. Ele chamou-me QUERIDA.
- Estou tão contente por vos ter encontrado.... - Também eu.
E, feita estúpida, começo a chorar.
- Ó Mãe, porque é que está a chorar?
- Porque estou contente, querida. Quando fores grande, eu explico-te.
De repente, o tempo pára, o Miguel fica a olhar para mim e parece que
passaram mil dias. À nossa volta, o barulho esbate-se. É como se
tivéssemos entrado noutra dimensão.
- Oh... Não fiques assim....
- Deixa estar, são os nervos, isto passa - relativizo, afogando as
lágrimas na ponta dos dedos, até conseguir secar os olhos. Por fim,
regresso à realidade e pergunto-lhe se quer passar lá por casa hoje à
noite. O Miguel responde imediatamente que sim, como se já estivesse à
espera do meu convite. Olho para o relógio, são quase dez horas, estou
mais uma vez atrasada. Conversámos muito pouco, o suficiente para me
dizer que alugou uma casa e que vai voltar a trabalhar num atelier, mas
que ainda não ligou ao Frederico. Estou tão atordoada que todas as
palavras me parecem inúteis. Precisava de estar pelo menos meia hora
abraçada a ele para isto normalizar, e, agora, tenho que ir levar a
miúda, e depois ao aeroporto buscar a escritora chilena que chega hoje.
Depois, tenho que ir almoçar com ela e com mais sete ou oito
jornalistas. Não posso parar o tempo e ficar com ele. Por isso,
despedimo-nos com um abraço longo e enorme, já fora da pastelaria, e
combinamos que ele vai ter comigo às nove.
- 211
Assim que chego à editora, penso em ligar à Ana para ela ficar com a
Carolina mas, depois, decido falar com a Teresa, que sempre foi mais
cúmplice e compreensiva. De certeza que, por uma noite, não se vai
importar de ficar lá com a miúda.
Conto-lhe tudo e peço-lhe para ela não dizer nada, e ela responde
também não valia a pena. Por isso, combinamos que lhe deixo a miúda às
oito. Se ela não estiver, a Maria abre-me a porta e, no dia seguinte,
ela mesma leva a miúda ao colégio, para eu poder estar mais à vontade.
Acontece tudo muito depressa, olho à volta e vejo as cores saturadas,
doem-me os olhos e sinto-me longe, as vozes das pessoas chegam
distorcidas aos meus ouvidos, estou mergulhada numa espécie de hipnose,
e quando a chilena chega, sinto o espanhol enferrujado, passo o almoço
com os jornalistas totalmente absorta. O Nuno percebe que se passa
alguma coisa mas não faz perguntas, e quando chega o fim do dia e vou
buscar a Carolina e a deixo em casa da Teresa depois de inventar que
tenho um jantar de trabalho, regresso a casa, tomo um chá de limão e
meto-me num banho de imersão.
Deus ouviu as minhas preces. Deus ou qualquer outra entidade divina. O
Miguel está aí a chegar, o Miguel voltou para Portugal. O Miguel está
outra vez perto, o Miguel, se calhar, ainda gosta de mim. Quando olho
para o relógio, são oito e meia e o meu telemóvel toca a música da
Missão Impossível. É como se o tempo nunca tivesse passado, e ele
sempre tivesse feito parte dos meus dias. E fez, só que não estava cá.
O corpo dele não estava cá. O espírito dele esteve sempre bem perto,
dentro do meu coração.
- Olá... Estou só meia hora atrasado, mas já vou para aí, está bem?
Meia hora. O que é meia hora, em dias, noites, semanas, meses de
espera? A espera é o tempo de deixar crescer aquilo que há-de ser.
Podias demorar mais uma hora ou duas, Miguel, para
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mim era o mesmo. O mundo vai parar de qualquer maneira quando tu
chegares, e me agarrares, e eu voltar a sentir-te outra vez dentro de
mim, porque estiveste sempre aqui. Já não lhe tenho raiva, nem ódio, a
tristeza foi-se embora, sinto-me cheia outra vez, como um balão de
feira, como se tivesse cinco anos e me oferecessem três voltas no
comboio fantasma e dois novelos de algodão doce. Esperei muito tempo
por este momento e, agora, que tudo está prestes a acontecer, agradeço-
lhe esta meia hora de levitação, de delírio, de alegria, de medo, de
paixão. Agradeço-lhe o tempo que me faz esperar e que me vai fazer amá-
lo ainda melhor. O prazer tem memória. Por isso, visto-me lentamente,
uma saia leve e uma camisa de botões para, depois, ser mais fácil de
tirar. A minha pele está quente e a boca seca. Seco o cabelo com afinco
e primor até ficar liso como o de uma gueixa, é isso mesmo que sou. Vou
abrir a porta a alguém que já ma fechou na cara, mas não me importo.
Quero o Miguel, quero vivê-lo e respirá-lo em todos os instantes que a
vida me deixar.
Oiço o estalar metálico do elevador a chegar. Logo a seguir, o instante
preciso em que a porta se abre, inundando o patamar de luz indirecta.
Ele sai rapidamente, dá dois passos largos, já vi rado para a minha
porta, que abro no segundo em que acho que é o certo. E agora, no
momento eterno e irrepetível que sempre antecede os nossos reencontros,
só mais um passo nos separa. Mas já não oiço nada, as suas mãos, a sua
boca, tudo o que ele é, está aqui, junto do meu corpo e em cima dele,
por todo o lado, inundando-me de êxtase, prazer e, de uma forma
qualquer, de amor. O Miguel está aqui, o Miguel, o meu Miguel. Repito,
baixinho, acertando o ritmo das sílabas com o pulsar do meu coração.
Mi-guel, Mi-guel.
Miguel. É engraçado como amamos o nome daqueles que amamos.
213
25
São dez da manhã quando acordo, depois de ter dormido menos de três
horas. Do lado direito da cama o Miguel dorme de barriga para baixo, o
cabelo despenteado e fico algum tempo muito quieta a observá-lo. Está
mais magro e com uma expressão triste, a expressão de "homeless puppie"
que sempre teve a dormir. Um ou dois vincos que nunca lhe tinha visto
na cara ficaram como marca da viagem. Percebo agora que se deve ter
sentido muito sozinho durante bastante tempo, mas ainda nenhum de nós
sabe se isso o suavizou ou o tornou mais agressivo, e aumentou ainda
mais o fosso entre ele e o mundo. Agora, não faço perguntas, nem quero
saber o que vai acontecer amanhã. O mundo são 18 metros quadrados, este
quarto iluminado pelos fios de luz que as frestas das persianas deixam
passar, o Miguel e eu juntos outra vez, mesmo que a nossa relação seja
uma equação impossível e que ele não consiga ficar ao meu lado. As
relações vivem-se como se podem, e não como se querem. Talvez o Miguel
se tenha ido embora porque era isso que queria, mas
agora que voltou e não sabe bem porquê, nem para quê, talvez também
ainda demore algum tempo e viaje dentro dele, até descobrir o que,
durante a viagem, não encontrou.
Ontem, entre e durante o amor, disse-me Hoje voltei por ti, mas não
para ti e eu respondi-lhe eu sei, só as mulheres é que fazem isso pelos
homens, mas não me importo. Tê-lo outra vez nos meus braços, agora, é
tudo. E amanhã, logo se vê.
Falámos muito, de tudo e durante muitas horas, como se o tempo que
temos pela frente não chegasse para todas as coisas que temos para
contar, numa avidez ainda mais violenta que acompa nha as primeiras
vezes em que se anuncia a paixão. E o Miguel disse-me coisas
importantes. Reconheceu que era um atrasado emocional, enquanto que eu
- e nunca me vou esquecer daquele olhar iluminado, quando repetiu o que
me dizia quando éramos namorados, há coisas que nunca se podem
esquecer, sob pena de enlouquecermos - estava tão perto da perfeição.
Explicou-me que é muito mais fácil dar do que receber, que, enquanto
viajava e absorvia tudo a uma velocidade astronómica, se apercebeu de
que há coisas e pessoas para serem consumidas, e outras para serem
cultivadas. Que a distância não é ausência, que eu tinha estado por lá
sempre, mais ou menos latente num canto qualquer escondido do coração,
e que tinha sofrido com a ideia de nos ter feito mal, a mim e à
Carolina. Há momentos na vida que valem por uma eternidade, momentos em
que sentimos que os deuses descem à terra através do nosso corpo e
respiram o mundo pela nossa pele, nos deixam para sempre um legado de
amor e de paixão, mesmo que o amor seja uma coisa e a vida outra. Não
há palavras que cheguem para descrever a plenitude de um amor perfeito,
eterno e intemporal. E, por um dia que seja, não quero regressar ao
mundo normal, onde as pessoas correm de um lado para o outro, vão ao
supermercado e pagam impostos. Por um dia apenas, quero ficar aqui com
ele, viver os meus sonhos. Não falámos do presente
215
nem do futuro. O passado ainda nos pesa, ainda que de formas
diferentes. Estamos os dois virados para ele, nem um nem outro reuniu
ainda forças e armas para se libertar de tudo. Há ainda destroços por
limpar. E o medo que se instalou aos pés da cama, hoje de manhã, voltou
a perguntar-me o que é que eu estava a fazer, e fiquei sem saber o que
lhe responder.
Imagino o número de chamadas não atendidas no telemóvel desligado desde
as sete da tarde, e os recados da Teresa, do Nuno - a perguntar se não
vou hoje de manhã - do Filipe - meu Deus, esqueci-me mesmo que o Filipe
existia, que estranho! -, da Ana, a quem esta hora a Teresa já contou o
que se passa. E, de repente, sinto-me cansada, exausta, com vontade de
fugir com o Miguel e me esconder do mundo. Mas sei que isso é
impossível, que tenho a chilena à espera na editora e contratos para
assinar, que, antes das seis, tenho que ir buscar a Carolina, trazê-la
para casa, fazer-lhe o jantar e dar-lhe banho, ler-lhe um ou dois
parágrafos da Menina do Mar e adormecê-la nos meus braços, arrumar a
cozinha e ler um bocado, procurar um filme na televisão ou pôr a
conversa em dia por telefone.
É isso que é a minha vida, e não o Miguel, deitado na minha cama, às
dez e meia da manhã, a estender-me os braços como uma criança e a
pedir-me que lhe traga leite com Ovomaltine e torradas com geleia.
Acordo-o com beijos por toda a cara, damos um abraço imenso e um
bocadinho triste, e saio de casa com a sensação de que peso menos dez
quilos e rejuvenesci 15 anos. És tu, és tu, sempre vieste, enfim! Oiço
de novo o riso dos teus passos... E agora? Sei que a sombra é
inseparável da luz e a queda do voo, mas só quero voar mais um
bocadinho antes de cair, poder olhar o mundo de cima e levitar, como o
Miguel me ensinou, sem nunca perder a capacidade para improvisar uma
aterragem, ainda que mal calculada. Se o Miguel veio para ficar ou não,
isso agora não me inte
216
ressa. O que é importante é que está comigo, e estamos bem. E tudo o
resto, a razão, a sensatez, o que pensa a Ana ou o Teresa, o que sinto
pelo Filipe ou qualquer outro pormenor da minha existência, não são
nada perante isto. É para viver momentos como este que vale a pena
estar vivo.
Quando chego à editora, quase às onze e meia, a Alice olha-me de lado,
espantada com a minha cara e o meu atraso, mas não lhe dou confiança, e
passo-lhe logo mais de cinco chamadas para me fazer. O Nuno foi passear
a chilena e por isso fico sossegada na minha sala -a trabalhar. Agora,
só falta ligar o telemóvel, mas ainda não me apetece enfrentar o mundo.
Por isso deixo-o a dormir mais um par de horas.
A Teresa liga para a editora a reclamar o telemóvel desligado, e
pergunta-me como foi.
- Foi muito bom. Mesmo muito bom. - E agora? -
- Não sei. Mas não quero pensar, quero saborear, não te importas???
Mas a Teresa percebe. A Teresa sabe que nunca deixei de gostar dele,
que, mal ou bem, ele faz parte da minha vida, que a presença dele é
importante para o meu equilíbrio. Por isso, en colhe os ombros à minha
total falta de juízo e deseja-me boa sorte.
- Sabes que isto não quer dizer que ele voltou para andar contigo, não
sabes?
- Sei.
- E sabes que, apesar de terem passado uma noite óptima, isso não mudou
nada, não sabes?
- Sei.
- E tens consciência de que ele é um miúdo lunático e pretensioso, um
egoísta que só pensa nele, não tens?
- Tenho.
- 217
- Então, adeus, que estou a pregar um sermão aos peixes. Não é, minha
pequena sereia?
E desliga. Pequena sereia. Como na história que estou a ler à Carolina,
que fala de um rapaz que ia todos os dias, ao fim da tarde, brincar com
uma Menina do Mar. Apaixonaram-se, e ele tentou fugir com ela dentro de
um balde, mas os polvos apanharam-no e quase o sufocaram. Quando
acordou, a Menina desapareceu e todos os dias ele ia à praia à procura
dela, até que uma gaivota lhe levou uma poção que lhe permitia ir ao
fundo do mar, à procura dela. Então, o rapaz mergulhou e atravessou os
oceanos nas barbatanas de um golfinho, viajou sessenta dias e sessenta
noites até chegar a uma ilha onde voltou a encontrar a Menina e os seus
amigos, o polvo, o carangueijo e o peixe. E o rapaz ficou lá para
sempre com ela e, segundo o Rei dos Mares, desde que ele chegou, a
Menina nunca dançara tão bem.
Já li esta história vezes sem conta à Carolina, e ela diz sempre que
quer ser a Menina do Mar. Por isso, quando vai à praia, nada como um
peixe, e eu acho, embora ela nunca me tenha contado, que cada vez que
sai da água, olha para as pernas para ver se elas se transformaram, ou
não, numa cauda de sereia. Outro dia, quando íamos a passear com o
Filipe de carro pela Marginal - a tal ilusão de uma vida normal -, a
Carolina apontou para o farol do Bugio, e perguntou: Ó mãe, se tirarmos
o pipo, esta água vai-se toda embora? O Filipe e eu rimos,
enternecidos, mas a Carolina continuou a divagar, disse que se a água
se fosse embora, ela ia ficar amiga de todas as Meninas do Mar que
estivessem no fundo.
Eu também sou esta Menina do Mar, também choro e danço mal quando tenho
saudades de quem gosto, mas não houve nenhum Rei dos Mares que mandasse
vir o meu rapaz, nem o rapaz que se apaixonou por mim largou o seu
mundo para vir para a minha ilha. O meu rapaz tem um mundo só dele, e
vou
aprender, duma vez por todas, a respeitar isso. Talvez já tenha
aprendido a querer cada vez menos dos outros, mas cada vez melhor. E
talvez agora, que deixei de lhe pedir o que quer que fosse, ele me
comece a dar o que sempre desejei. Mas tenho que esperar alguma coisa
dele, porque é quando já não esperamos nada das pessoas que elas morrem
no nosso coração, e eu quero o Miguel vivo para sempre no meu coração,
mesmo que nem sempre possa estar perto dele.
Às duas e meia, depois de ter almoçado com o Nuno e a chilena e de ter
tomado um café duplo - a falta de sono está agora a dar sinal - a Alice
passa-me uma chamada do Miguel.
- Então, está com o telemóvel desligado? - Estou.
- É que não lhe conseguia falar. Ainda estou aqui em casa. Não se
importa, pois não?
- Se pudesse, estava aí contigo, meu querido. Fica o tempo que quiseres.
- Não posso. Vou sair agora. Tenho uma entrevista, às quatro, para o
gabinete do pai do Rui. Era só para lhe dar um beijinho, e dizer-lhe
que foi tão bom... É sempre bom estar consigo.
Quase lhe pergunto se quer jantar, e ele quase fala nisso, mas
contenho-me. Está ainda tudo muito fresco, muito recente, o melhor é
não forçar nada. O melhor é ligar o telemóvel e preparar-me para
enfrentar o mundo. Tenho uma mensagem da Teresa, a perguntar como é que
está a ser, anterior ao telefonema dela para a editora. Uma mensagem do
Filipe, a saber de mim e a dizer que liga mais tarde.,-Outra mensagem
do Filipe, espantado porque não lhe respondi e não consegue falar
comigo. Uma mensagem escrita do Miguel, de hoje de manhã, a falar de
nós, a escorrer mel e doçura e uma mensagem do Nuno, a dizer que foi
passear a chilena pela Baixa.
219
Apago todas, excepto a do Miguel, e fico a olhar para o ar e a pensar a
quem é que ligo primeiro, porque não me apetece falar com ninguém.
Ponho um disco de jazz no meu leitor de CD's portátil e abro um
manuscrito novo que chegou, recomendado pelo Nuno.
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26
Sexta-feira de manhã. Há três dias que o Miguel não aparece, mas vai
ligando, duas, três vezes por dia, e vai-me contando o que anda a
fazer, indeciso entre ir trabalhar para o atelier que dá apoio ao
gabinete do pai do Rui, voltar a trabalhar com o Frederico, ou fazer um
atelier pequeno, com mais dois amigos. Quase inconscientemente,
recomendo-lhe o do Frederico, porque ali sei que está protegido e o
deixam trabalhar a sério. O Miguel ri-se, chama-me mãe-galinha e diz
que talvez apareça no fim-de-semana. Com o Miguel, é sempre assim. Se
ele fosse um animal, era um gato, arisco, orgulhoso, misterioso,
independente. E, se fosse uma palavra, era talvez. Mas eu já entrei no
jogo, não pergunto nem insisto. Se vier vem, se não aparecer,
paciência. Nestes três dias, tive tempo para descer à terra e falar com
o Filipe. Mesmo assim, foi mais fácil do que estava à espera. Deve ser
da idade, mas, com o tempo, as pessoas já não sofrem de forma tão
absoluta a perda de alguém de quem gostam. Quando lhe disse que o
fantasma afinal tinha voltado, encolheu
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os ombros, respondeu que já estava à espera, agradeceu o facto de ter
sido frontal com o assunto, e combinámos nunca deixar de ser amigos. No
fundo, sempre fomos muito mais amigos que amantes ou namorados, e tudo
fica bem quando acaba bem.
A Teresa foi jantar lá a casa, na quarta-feira, e perguntou-me que raio
de relação eu tinha com o Miguel. Mas, agora, percebo que o Miguel
tinha razão, quando me pedia para não falar de nós às outras pessoas. É
que parece incompreensível aos olhos dos outros que eu seja feliz assim.
- Ele leva-te ao cinema? Ao teatro? A jantar fora? Ele leva a tua filha
ao circo e faz-te companhia?
- Não.
- Queres continuar a viver sozinha e apanhar migalhas de um puto que se
está a preparar para vir cá uma vez por semana a casa, molhar o bico e
no resto do tempo fazer a vida dele?
- Quero.
- Então, tu é que sabes. Olha que eu sempre fui um bocado masoquista,
com a merda da história do meu pai e esta vida do Vasco, mas tu andas-
me a bater aos pontos.
Pode ser. Mas, agora, prefiro viver assim, e esperar que o que o Miguel
quer, ou sente, se vá desenhando, primeiro, a lápis, como ele faz nas
plantas, com o medo do desconhecido, depois,
a tinta da china, quando já tem a certeza daquilo que quer fazer. Quero
que vá ele gerindo a relação, porque ele é mesmo assim, e como nunca
tive razões para não confiar nele, e o adoro, jogo o jogo que ele quer,
porque é o único que posso jogar.
-As relações vivem-se como se podem, e não como se querem, respondi-
lhe. E a Teresa, que vive assim há anos com o Vasco, não rebateu e foi-
se embora, com aquele ar triste das pessoas que já aprenderam a
encolher os ombros à vida.
Hoje, apetece-me sair mais cedo, ir buscar a Carolina, pegar no meu
Peugeot azul escuro e ir passear até à praia com a minha
222
menina do Mar. São quatro e meia, quando me preparo para sair e a Alice
entra no meu gabinete, pede-me para falar comigo e fecha a porta com ar
misterioso.
- Posso entrar? - Claro.
- Posso-me sentar?
Ó diabo, aqui há gato. A Alice cheia de cerimónias. O que será?
- O que se passa?
- É que eu preciso de lhe contar uma coisa.. . - O que foi?
- Este tal Miguel Soares... Quem tem ligado para si... - Sim... O que é
que tem?
- A Inês desculpe, eu estar-me a meter na sua vida, e perguntar-lhe
isto, assim, de forma tão directa: mas, por acaso... a Inês anda com
ele?
- Porquê? Conheces o Miguel de algum lado?
A Alice está nervosíssima, com a cara contorcida e as mãos em grande
tensão, presas uma à outra como se tivessem cola, e já passou por três
tons de amarelo e quatro de verde, está completamente atrapalhada, e eu
não estou a perceber nada.
- É que... bem... parece-me, pareceu-me pela voz que ele é o mesmo tipo
que eu conheci no Algarve, há uns meses, quando estava cá de férias,
e...
- E, o quê?
- Eu... quer dizer... eu tive um caso com ele... foi uma coisa um
bocado estúpida, e...
- E...
Estou estupefacta com tudo o que estou a a ouvir. Aliás, estou tão
estupefacta que nem quero acreditar. Por isso, vou sair do meu próprio
corpo como dizem que fazem as almas dos mor tos e vou assistir de
camarote a este pequeno, mas decisivo epi-
223
sódio de telenovela mexicana que a vida me reservou... Afinal, não é só
a Teresa que vive momentos de telenovela de terceira categoria. Agora,
também me toca a mim.
- Eu não sabia que ele tinha namorada... Disse-me que ia fazer uma
viagem grande, daí a uns dias, e perguntou-me se... se queria ir com
ele... Eu tinha que voltar para Londres, mas já es tava farta do
trabalho lá... e... estava um bocado perdida... A Inês sabe como são
estas coisas....
- ... e foste para a índia com ele. -Isso.
Isso. Isso é das melhores respostas que já ouvi. Ainda é melhor que
mais ou menos. Isso é mesmo muito bom. Só que o Miguel, nessa altura,
ANDAVA COMIGO. E esta CABRA foi com ele para a índia. FOI COM ELE. COM
ELE. Se estivesse no meu perfeito juízo, partia-lhe a cara a ela e a
ele, mas, como já me pus fora de mim e me sinto mais ou menos um
detective a trabalhar a soldo por uma causa alheia, mantenho o sangue
frio e continuo a conversa.
- Então, e depois?
- E depois... aquilo correu muito mal. Nós nem nos conhecíamos bem, ele
tem um feitio insuportável, mal cheguei lá, arrependi-me logo, voltei
uns dias depois para Londres, mas já tinha faltado, e fui despedida...
E depois é que vim para Portugal... Conheci o Duarte e ele falou-me
aqui da editora, e... e vocês contrataram-me.
Sabias que ele tinha uma namorada? Foste para a cama com ele, antes de
irem para a índia, minha porca? Passam-me pela cabeça estas e mais
setenta perguntas, mas enterro as unhas na palma das mãos e concentro
toda a minha fúria na pele esticada dos nós dos dedos, e penso dois
segundos antes de perguntar: - E quando vieste cá, sabias que eu tinha
sido namorada dele?
224
- Não. Juro que não sabia, Inês. Por favor, acredite em mim. Foi uma
coincidência infeliz.
Não há coincidências, minha parva. Não sabes que não há coincidências?
Que nada acontece por acaso?
- Pois foi. E então, porque é que só agora é que estás a contar isto
tudo?
- Porque quando ele telefonou, há umas semanas, fiquei a pensar se era
o mesmo Miguel, e achei que era impossível. Mas, hoje, quando ouvi a
voz dele outra vez, tive a certeza. Por isso, liguei ao Duarte,
perguntei.... se a Inês tinha tido um namorado Miguel, que tinha ido
para a índia... E o Duarte confirmou tudo.
Ok. A minha assistente, uma miúda que eu até achava porreira, foi a
gaja que foi com o MEU namorado para a índia. Isto é muito bom. Eu
tinha que viver para isto me acontecer. A sério. Isto é do melhor que
já vi,
- E ele nunca te falou de mim?
- Quer dizer... ele falava... falava de uma namorada mais velha, que
tinha uma filha que ele adorava, disse-me que tinha sido a única mulher
de quem ele tinha gostado.... mas nunca disse o seu nome, ou se disse
não me lembro.
- Pois.
- Mas, quando eu entrei para cá, percebi que a Inês estava em baixo,
até pensei que a Inês e o Nuno tivessem alguma coisa... sei lá, às
vezes, nestas empresas pequenas, os sócios têm
a ver um com o outro mais do que uma relação de trabalho.... Desculpe
dizer-lhe isto, assim, mas foi mesmo o que eu pensei. Só que depois
percebi que a Inês estava a ressacar de um desgosto por causa de um
tipo qualquer, e sabe como é, ouve-se um bocado de uma conversa aqui,
outro bocado ali... e soma-se dois mais dois...
E fica calada, especada a olhar para mim. Depois, esconde as
225
mãos debaixo das coxas e começa a balançar o corpo para trás e para a
frente. Não sei o que pensar, o que dizer, o que sentir, não sei nada,
nem quero saber. De repente, a cadeira onde a Alice está sentada
levanta-se pelo ar com a força da minha fúria e começa a rodopiar muito
depressa. A Alice está lá em cima, amarrada, aos gritos, completamente
em pânico: Páre! Páre! E, então, eu lanço-lhe um raio malvado da ponta
das minhas unhas, e a cadeira parte o vidro e vai-se espetar, num voo
de grande efeito plástico, contra uma das torres dos prédios em frente.
- A Inês está-se a sentir bem? - pergunta, com um ar completamente
enfiado. Afinal, não voou pela janela, nem se partiu toda contra o
prédio em frente. Continua sentada e inteira, era só eu a delirar.
- Sim... mais ou menos. Queres-me contar mais alguma coisa?
- Não... queria só dizer-lhe que lamento imenso esta situação... e que
espero que este azar não ponha em causa o meu trabalho na editora. É
que gosto mesmo de cá estar e estou muito empenhada, por isso...
- Por isso, nem tens que te preocupar - corto, com aspereza - vá, vai
lá à tua vida, depois falamos melhor.
A Alice sai como se fosse para o corredor da morte e eu fico ali,
colada à cadeira, a tentar organizar os meus homenzinhos, que é como a
Carolina chama aos neurónios, mas sinto-me exausta, como se tivesse
escalado o Everest num dia, ou atravessado a nado o lago Vitória. Dói-
me tudo, pernas, braços, cabeça e coração. Doem-me os olhos e os
ouvidos. Agora, adormecia durante seis meses, era tão bom... Punha a
Carolina em casa de alguém e desaparecia. Ou, então, apanhava um avião
a jacto e ia ao céu falar com a minha mãe. Outro dia, a Carolina
perguntou se também havia viagens de férias para o céu. Queria conhecer
a avó, que só vê nas fotografias, mas que ama como eu amo, porque os
226
filhos são mesmo assim: uma continuação de nós até crescerem. Por isso,
eu acho que, às vezes, ela chora com saudades da minha mãe e do Miguel,
só porque eu choro, como agora, completamente confusa com o que a Alice
me contou.
O Miguel não me podia ter feito isto. Nunca, desta maneira. Não me
podia ter mentido desta forma, ou, pelo menos, ocultado a verdade. Não
lhe perdoo. Isto, não lhe posso perdoar. Não pode ser o mesmo Miguel
que dormiu na minha casa, com quem fiz amor daquela maneira. Não pode
ser. ISTO NÃO ME PODE ESTAR A ACONTECER.
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28
As mulheres são mesmo o bicho mais estranho do mundo. Um dia, está tudo
bem e, no dia seguinte, dá-lhes um ataque de estupidez e ficam
transtornadas. Eu sabia que era um erro voltar a ver a Inês, mas há
quem aprenda com os erros e quem os aproveite para criar hábitos. A
Inês não foi um erro. Pelo contrário, tudo o que vivi com ela e que ela
me deixou, ajudou a tornar-me numa pessoa melhor. E em muito mais
coisas do que eu próprio pensava que era possível. Mas não devia ter lá
ido, nem devia ter lá ficado a dormir com ela. Para quê, se sei
perfeitamente que não vou voltar a andar com ela, e depois de tudo o
que ela passou por causa de eu ter acabado? Mas eu não podia resistir,
era impossível. Aprendi, desde muito cedo, a resistir tanto ao que me
pode fazer mal como fazer bem. Se calhar, é por isso que nunca me
apaixonei a sério por ninguém, e, para mim, as mulheres sempre foram de
consumo rápido e fácil. Quando se treina o corpo e o espírito a não
criar laços, é muito mais fácil viver. Ascende-se a uma espécie de
levitação, onde ninguém nos
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toca, e vemos o mundo por cima. A Inês é o oposto de mim. Voa alto,
sonha com tudo e imagina cenários impossíveis e, depois, quando cai,
fica totalmente destruída. Não se sabe proteger, nunca soube, e faz-me
impressão a forma desprotegida como se entrega à vida. Porque merda é
que tem o telefone desligado desde ontem? Já lhe tentei ligar mais de
cinco vezes, mas não deixei recado. Para quê? Se ela quiser, que me
ligue.
Não sei o que hei-de fazer. Gostei de falar com o pai do Rui e o
atelier tem bom ambiente, mas gostava muito mais da equipa e dos
projectos do Frederico. Com que cara é que apareço lá, agora, depois de
tudo o que aconteceu? Ainda por cima, ele e a Ana estiveram de certeza
com a Inês, estes meses, a ouvi-la queixar-se de mim, como se nunca a
tivesse amado, nunca me tivesse entregue a ela, e nunca a tivesse
tratado bem. É injusto. Eu dei-lhe tudo o que na altura, podia dar, mas
queria ter a minha vida só para mim, não me podia agarrar a alguém tão
cedo. Se calhar, é esse o meu problema: conheci a mulher da minha vida
cedo demais, mas paciência. Não preciso de amor, não preciso de nada
nem de ninguém, a não ser do meu irmão, dos meus amigos. Laços sem nós,
gratuitos, que nada me impeça de viver como quero e de fazer o que me
apetece.
Mas não percebo o que aconteceu, quero falar com ela, ouvir a voz dela,
perceber como se sente, o que é que se passa. Passo por casa dela ao
fim da tarde e não está ninguém, nem o Peugeot novo está à porta.
Talvez já tenha ido para o Alentejo com o casal maravilha. Que
enjoo!... Ainda por cima, agora com uma criancinha a caminho, ninguém
tem paciência para tanta felicidade.
Ligo ao Duarte e combinamos ir jantar e beber um copo. É um tipo
porreiro, pelo menos não toma partido. No fundo, é um tipo como eu. Tem
bom coração, mas só faz o que lhe apetece.
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Encontramo-nos às nove e vamos a uma tasca do Bairro Alto, daquelas
onde uma dose dá para três, abrimos uma garrafa de vinho e falamos de
futebol, e claro, de gajas. Da minha amiga Mariana, a quem ele acha uma
piada do caraças, das miúdas com ar de empregadas de centro comercial
que estão a jantar na mesa ao lado da nossa, e claro, da Inês.
- Tu sabes que ela ficou na merda quando te foste embora, não sabes? -
pergunta o Duarte.
- Sei. Mas não penses que tenho remorsos, ou uma merda dessas. Eu nunca
lhe prometi nada.
- Mas ela adorava-te.
- E eu também era doido por ela. Só que, olha, não deu mais.
- E agora?
- Agora, não sei. Mas não vou voltar. - E já lhe disseste?
- Porquê? Achas que ela não sabe?
- Acho que não. Sobretudo se continuas a ir para a cama com ela.
Foda-se. Ela não sabia estar calada? - Foi o que ela te disse?
- Não foi preciso ela dizer-me. Mas ouve, meu, eu não tenho nada a ver
com isso, percebes? Só que ela é das minhas melhores amigas e é chato
vê-la na merda.
- Pois claro, pá, tens razão.
- Eu gramava à brava arranjar uma miúda a sério. Isto de andar a comer
gajas também, às tantas, cansa um bocado.
- A mim, não me cansa nada.
- Mas uma namorada é outra coisa. - Pois é.
Ficamos um bocado calados. Mulheres. São mesmo o bicho mais estranho do
mundo.
- Eu acho é que tu lhe devias contar a história da Alice. - Qual
história da Alice?
- Que foste com ela para a índia.
- Mas como é que tu sabes essa merda?
- Veio-me parar aos braços, quando voltou. - Quando voltou de onde?
- Da índia, pá. Depois de ter estado contigo. - Não é possível!!!
- Pois não. Mas é verdade.
- Ouve, tu sabes como são as gajas, inventam merdas e têm a mania de
romancear a realidade. Eu não fui com ela para a índia. Ela é que se
pendurou, e, ao fim de dois dias, já nem a podia ver, essa gaja é uma
chata.
- Pois é. Mas é boa como o milho. - Puta de vida!
- Podes crer.
- Esta merda não pode ser verdade! Mas conheces a gaja, de onde?
- Ora, de onde é que há-de ser? Da noite, como às outras todas!
- Claro. Mas andaste com ela?
- `Tás parvo? Demos umas voltinhas!
Mas o que é que ela tem a ver com a Inês? - Nada...
E começa-se a rir, com cara de coelho estúpido. Este gajo está-me a
gozar.
- Porque é que te estás a rir, cabrão?
- Porque a Alice é assistente da Inês na editora. - Não!
- Sim!
Foda-se. Estas merdas não me podem acontecer. Isto não é possível.
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- E, a esta hora, a Inês já deve saber....
Ok. Isto vai de mal a pior, mas se calhar eu até mereço esta merda. Se
calhar sou mesmo um filho da puta e vou-me lixar à força toda.
- Porquê?
- Porque me ligou a perguntar se eu conhecia um tal de Miguel Soares,
que ligava para a Inês, e percebeu que era o mesmo com quem tinha ido
para a índia.
- E porque é que lhe há de ter contado?
- Eu não sei se contou, ou não, mas a Inês é chefe dela e ela já se
lixou uma vez por tua causa.
- Calma aí, eu não tirei a menina do trabalho dela em Londres. Ela é
que se baldou para ir comigo. Se foi despedida, o problema é dela!
- Seja como for, sabes como são as mulheres, têm aquela mania da merda
da frontalidade.
Pronto, estou fodido. Agora é que estou mesmo fodido. Se a outra puta
contou à Inês, ela nunca mais olha para a minha cara e acabou-se tudo.
TUDO. MERDA, MERDA, MERDA. E agora? Agora aguento-me à bronca. Não era
a Inês que dizia que eu tinha uma capacidade de abstracção tal que
aguentava tudo? Isto não é o fim do mundo.
- Pode não ter contado.
- Pois pode. Mas tu podias ter-lhe contado. Assim, poupavas-te a esta
merda.
- Mas para que é que eu lhe ia contar? Tu não sabes como é? Quando uma
gaja não tem importância nenhuma, um gajo conta aos amigos, não conta à
namorada. Só ia servir para ela ficar ainda mais furiosa comigo, e já
lhe fiz mal suficiente, merda, merda, merda.
- Mas se, por acaso, a Alice já lhe contou, então é que ela se chateia
mesmo contigo.
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Pois é. Que merda! Porra, dói-me a cabeça. O copo de vinho que está à
minha frente começa a dançar sozinho.
- Estás bem, pá?
- Estou, claro que estou, meu. Esta merda também não é o fim do mundo.
- Pois não. E é como diz o Manuel João Vieira - e começa a cantar, com
o ritmo e a entoação certas - se bates com a carola / na parede, por
uma mulher / não partas mais a tola / mata a sede com outra qualquer...
Porra, este cabrão tem piada, mas não estou com vontade nenhuma de rir.
E se a Inês a esta hora já sabe da merda da Alice? Se calhar é por isso
que tem o telefone desligado. E agora? O que é que eu faço? O QUE É QUE
EU FAÇO?
- E o que é que eu faço, meu?
- Nada. Falas com ela. Ou, então, se ela não quiser falar contigo,
esperas que ela acalme e depois falam os dois. Mas não estejas com esse
ar de pânico, também não mataste ninguém.
- Não estou nada com ar de pânico, pá. Gostava é que esta merda não
tivesse sido assim. Agora, ela vai pensar que eu a enganei e, quando
lhe explicar que me estava cagando para a outra, vai achar que sou um
pulha.
- Pois vai. Mas depois passa-lhe. Sabes como é a Inês, tem um coração
do tamanho do mundo e, além disso, adora-te.
- Merda.
- Podes crer. Não me apetecia estar na tua pele. - Nem a mim..
Já sei. Escrevo-lhe um mail. As palavras escritas são mais sérias, mais
sinceras, mais certas e ouvem-se melhor. Ela está habituada a falar
comigo por palavras escritas. Conto-lhe como tudo aconteceu, explico-
lhe como me sinto, e que nunca lhe quis fazer mal, que a guardo comigo
para sempre, que, se pudesse, dava-lhe tudo o que ela quer e merece,
mas não posso porque
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não sei. Porque não é isso que eu quero, porque sou feito de outra
matéria, e só sei viver avulso, por mim e para mim. Mas que isso não
quer dizer que não a tenha amado, que, de certa forma, não a ame ainda.
Nunca desejei tanto uma mulher, nunca me senti tão amado e protegido,
nunca dei e recebi tanto, nunca vivi um amor assim. Talvez a Inês seja
mesmo a mulher da minha vida, mas não posso abdicar da minha vida para
ficar com ela, e ela tem que perceber isso. Ela merece mais e melhor,
merece um tipo que seja dedicado, o que eu não sou, que tenha espírito
de família, que eu não tenho, que lhe dê segurança, uma casa, um
projecto de vida, talvez mais um filho.
Agora que penso nisto tudo, tenho tantas coisas para lhe dizer que nem
sei por onde começar. Talvez comece pelo fim, pelo prazer enorme que é
estar com ela, esta ansiedade quase in controlável que antecede os
nossos reencontros, de a ter, de a agarrar, de ficar horas e horas na
cama com ela, a descansar encostado ao peito dela, a ouvir as batidas
dos nossos corações até se encontrarem no mesmo tempo e modo. Como eu
gostava de poder ver crescer a Carolina e dar-lhe beijos todos os dias!
Como ela me encheu a vida e o coração, e me mostrou uma forma
completamente nova de ser e de estar, me emprestou uma luz que não
conhecia, como ela sempre foi a mais querida e mais linda, a melhor
pessoa que conheci, apesar dos seus medos, das suas tristezas e das
suas infantilidades. Como o seu nome, escrito nos vidros do comboio,
quando atravessava a terra à procura de mim próprio, me fazia companhia
e me guiava como uma bússola, como sonhava com ela e a desejava e
tantas vezes a via, sem saber, em outros corpos com quem apenas trocava
fluidos e desespero, ainda e sempre à procura de mim, dela, não sei já
bem de quê. De como ela me ensinou a conhecer-me melhor, a ouvir-me
melhor, a procurar em mim os defeitos em vez das qualidades. Do legado
imenso de doçura e paixão que ela me emprestou para
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sempre. Do seu olhar de menina pequenina, das suas mãos claras, do
tamanho das minhas, da sua pele com cheiro a bebé, igual à da Carolina,
da sua cara mimada quando dormia ao meu lado, do seu jeito especial
para falar comigo e me suavizar o coração. De como eu gostava, daqui a
uns anos, que nos voltássemos a encontrar, de ter um filho com ela e
dar-lhe o que agora não posso, não quero, ou não sei.
- Estás cá, Miguel? Sentes-te bem?
- Claro que me sinto bem, meu. Estava só a pensar aqui numas merdas.
- Queres sobremesa? - Não, só um café.
- E onde é que vamos? - Acho que não vou. - Então?
- Tenho que ir para casa.
- Para casa? Numa sexta-feira à noite, em que isto deve estar cheio de
material novo?
- Não estou numa de saque. Não me apetece ver gajas.
- Bem, como queiras. Mas eu, vou prá guerra, que a noite é um depósito.
- E tu estás a precisar de mudar o óleo, não é?
- Podes crer. Há coisas fundamentais para a saúde de um tipo, e mandar
uma trancada é uma delas.
- Então, pede a conta. E boa caçada, meu.
- Olha... Não entres em stress por causa daquela merda da Inês. Fala
com ela, vais ver que vocês se vão conseguir entender. - Isto é uma
merda, Duarte. Eu gosto mesmo dela, percebes? Eu gosto dela como
pessoa, a última coisa que queria era magoá-la.
- Mas já magoaste. Olha, eu amanhã vou ao Alentejo almoçar com ela e
com a Ana e o Frederico.
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- Então tu sabes onde é que ela está e não me dizias nada? - Pensei que
soubesses, mas isso agora também não é importante. Deixa estar. Eu
amanhã falo com ela e tento perceber o que é que se passa. Mas tem
calma, meu. Ela vai ter que te ouvir e vais resolver isso.
Gajas. Fodem-nos mesmo a vida. Mesmo quando gostamos delas e elas de
nós, dá sempre merda. Estou mesmo chateado com isto tudo. Nunca contei
à Inês a história da Alice, fui co barde e estúpido. Omiti-lhe uma
coisa que não tem importância nenhuma e, agora, passo por mentiroso e
filho da puta. Mas ela vai perceber. Ela é inteligente, ela TEM que
perceber que isto não interferiu em nada do que eu senti ou sinto por
ela. Eu só gosto mesmo dela, bolas. Só soube gostar, ao longo da vida,
de meia dúzia de pessoas, mas a Inês é uma delas, está à frente de
todas as outras mulheres, é uma referência obrigatória na minha vida e
eu só lhe quero bem, só lhe quero fazer bem.
A caminho de casa, páro numa loja de conveniênciá e compro uma
embalagem de cervejas, algumas revistas e um maço de cigarros. Espera-
me uma noite longa, e quero que não fique nada por dizer. Quero que ela
perceba tudo, mesmo que não aceite. Mesmo que nunca mais me fale, quero
que me oiça. As palavras estão do meu lado. E o tempo, também. Abro o
computador e demoro alguns minutos antes de mergulhar no teclado. Vai-
me doer escrever esta carta, mas a tristeza de a saber a sofrer por
minha causa já me está a destruir. Não posso, não quero, não vou deixar
que, por uma merda destas, eu a perca como pessoa. A Inês está acima de
tudo isto, está acima de tudo.
Lisboa, meia-noite e um quarto Minha querida Inês...
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Digitalização de:
Carla Maria Ferreira dos Mártires
2002-08-21