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Jerimum com Jabá

Por Adila Trubat

Eu conheci Joana D’arc em 19...deixa para lá. Foi em um curso pré-vestibular muito ruim,
que faliu no meio do ano. Ela era baixinha, rosto redondo, dentes tortos e sorriso fácil. Filha de
uma típica família, com uma mãe forte, pai batalhador da Rede Ferroviária e mais quatro irmãs.

Ficamos amigas de cara. Éramos suas pessoas muito diferentes: eu muito séria e tímida,
ela expansiva e mais relaxada. Até hoje eu não sei direito como ela conseguia ser tão tranquila
naqueles tempos de alta pressão. Estávamos escolhendo carreira, ansiosas e com medo pela
nova vida de universitárias, enfrentando as maiores incertezas do futuro. Ela era supervaidosa,
e andava sempre de unhas feitas e cabelos bem arrumados. Uma baixinha de um metro e meio
que parecia maior, graças à personalidade forte e feminina. Eu, alta e com uma necessidade
igualmente grande de desaparecer. Ela era uma otimista frente as adversidades, eu até hoje sou
uma realista cruel.

Como dizem que dois polos opostos se atraem, nós fomos atraídas a uma amizade
eterna.

Quando o curso faliu, decidimos estudar por nossa conta. Eram horas intermináveis de
história e geografia, que ela conhecia muito bem. Eu sempre adorei e tive facilidade com física
e química. O resto era intercalado, conforme o tempo e a disposição. Afinal, a semana fatídica
chegou. Fizemos provas intermináveis num calor sufocante de fim de ano. Ela prestou vestibular
para comunicação social e eu para biologia na mesma universidade. Mas advinha? Nunca nos
encontramos lá. Eu em um prédio, ela em outro. Ela cursava de manhã e eu no horário integral.
Fazíamos coisas que só os jovens têm capacidade física para fazer. Era correr de uma do para o
outro entre aulas, biblioteca, laboratórios e estágios. O que eu mais admirava nela era a
capacidade de sorrir sempre e muito fácil.

Mesmo com essa loucura toda, havia um ponto pacífico entra a gente: eu ia para o fogão
e fazia jerimum com jabá para a gente comer e rir. Assim, nem tudo eram estudos e correria.
Haviam aquele tempo de descascar a abóbora, cortar em pedações pequenos, desfiar a carne
cortada bem fininha. O perfume da carne refogada no alho e óleo era uma preparação do
paladar para o que viria depois. A abóbora cozida só no vapor da carne ficava firme e saborosa.
Para arrematar vinha a pimenta do reino moída na hora, a cebola rem rodelas finíssimas e o
cheiro verde bem picadinho. Confesso que o tempo de preparação do prato era esticado para a
gente poder fumar, tomar uma cervejinha e contar piadas. Uma vez pronto e servido, reinava o
silêncio reverente para a degustação do prato. Nunca soube se o tempero estava bom ou se a
fome temperava melhor que eu.

Finalmente nos formamos. E aí a vida cobra mais responsabilidades. Estávamos


namorando “sério”, trabalhávamos, e preparávamos nosso futuro. O tempo e a vida nos
afastaram. Quando nos encontrávamos a conversa continuava exatamente de onde tinha
parado no encontro anterior. No fim do papo sempre aparecia a frase “Vamos fazer jerimum
com jabá?” Mas nunca marcamos uma data específica para fazer isso. Joana estava sempre na
batalha, realizando um trabalho difícil física e emocionalmente. Isso mostrava a sua capacidade
de resiliência

Entre uma promessa e outra, eu me casei. Tempos depois ela foi morar com um cara.
Eu comecei a trabalhar no serviço público. Ela levou um monte de crianças em situação de rua
para Brasília na época da elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ela amava essas
crianças. Tinha um jeitinho só dela de chegar naqueles meninos ariscos. Em quinze minutos ela
era capaz de fazer parte da turma. Enquanto isso, eu estava mergulhada na pedagogia, didática
e práticas de ensino.

Eu tive um casal de filhos, ela teve um casal de filhos.

E o tempo e a vida foram nos afastando cada vez mais. Agora eram as crianças indo e
vindo das escolas, as casas e os trabalhos. Um dia ela me disse que tinha se separado e voltado
para a casa da mãe com os filhos. Para ela foi duro acreditar que o marido a traia. Foi mais duro
aceitar os filhos irem visitar o pai no Espírito Santo. Duro ficar sem as crianças. Eu brincava
dizendo que ela tirava férias da ninhada.

Assim se passaram décadas nas coisas da vida. Mas o jerimum com jabá nunca saiu das
nossas lembranças e dos nossos desejos de repetir o tempo gasto na cozinha.

Um dia, eu a encontrei dentro do ônibus. Eu estava em trânsito entre um emprego e


outro, e ela estava chegado do médico. Perguntei o que ela tinha, sorrindo ela me disse que só
não estava se sentindo muito bem nos últimos tempos. Não estranhei porque estávamos
chegando nos quarenta, quando o corpo vai perdendo perceptivelmente o vigor. Além disso,
achei melhor respeitar a privacidade dela. Se ela quisesse me contar mais detalhes, teria
contado. Além disso, o sorriso e força do olhar estavam lá.

Vida que segue.


Seis meses depois, fui procurada por uma das irmãs dela no meu trabalho. Ela me pediu
para acompanhá-la ao hospital para visitar Joana. Tudo bem, mas o que ela tem? Câncer. Por
profissão, sei que é uma doença séria, mas que tem cura em muitos casos. Sei que muitas
sobrevivem, algumas quase sem cicatrizes, mas todas com a vida completamente mudada.
Apeguei-me aos bons pensamentos, e me preparei para dar uma força marcando o nosso
jerimum com jabá, nem que o mundo acabe depois.

Combinei com a Tereza e fomos na viagem mais silenciosa do mundo. Entendi que a
família fica doente com a paciente. Existem muitas crenças e superstições que cercam a doença.
Conheci pessoas que nunca falaram a palavra câncer por medo de contrair a doença só com o
som da palavra. Já me perguntaram se era contagioso, se a portadora apodrece, se tem cura.

Essas crenças populares acabam atrapalhando a vida da doente e da família. As


perguntas vão esgotando os envolvidos, que já estão estressados. Assim, eu fui com a Tereza,
respeitando o espaço de dor dela, e procurando mostrar que estava à disposição para o que a
família precisasse. Guiada por ela, chegamos a uma enfermaria pequena. No fundo, a minha
amiga deitada em uma cama, aparentemente dormindo. A visão dela naquela cama foi como
uma punhalada no peito. Minha amiga estava consumida. Seu corpo visivelmente cansado,
estava muito magro, o rosto cavado e o cabelo desgrenhado. Nada naquele corpo lembrava a
energia e a força daquela mulher pequena. Aquele foi um segundo em que nossas vidas inteiras
passaram pela minha cabeça. Onde ela foi parar?

Em choque eu sentei na cabeceira da cama, esperando Joana acordar. Alguns minutos


depois, ela abriu os olhos e me disse “Olha o que a vida fez comigo”. Engoli o choro e disse a ela
que aquilo era uma etapa. Era para ela lembrar do jerimum com jabá. Ela sorriu e apagou. Tereza
me disse que ela estava assim há dias, acordando e apagando. Só aí fui saber da real gravidade
do caso. Então, eu prometi levar meu marido para uma visita próxima. Ela sorriu e disse que sim,
com aquele mesmo sorriso fácil.

Em um dos momentos de lucidez, Joana pediu para Tereza me buscar. Ela não queria
me preocupar com a doença dela, por isso eu fiquei sem saber, mas aquele era o momento para
dizer um “até logo”. O caso dela era terminal. Aquele hospital a recebeu apenas para cuidados
paliativos.

Ela morreu no dia seguinte. Segundo Tereza, ela só queria se despedir de mim.

No funeral, eu soube que todas as irmãs tinham detectado e retirado nódulos. Joana
também tinha nódulos, todavia foi postergando em nome da sua missão com as crianças de rua.
Quando finalmente a situação ficou insustentável, o câncer já havia se espalhado pelo corpo.
Pulmões, rins, cérebro e fígado estavam cheios de nódulos, era inoperável. Não tinha
tratamento.

Já era tarde.

Não vou culpa-la por chegar a esse ponto. Somos uma geração de mulheres maravilha,
supercompetentes em tudo. Somos trabalhadoras eficientes, donas de casa dedicadas, mães
vigilantes e amantes ardorosas. Tanta coisa deixa pouco espaço para sermos pessoas com
fragilidades. Imersas nas nossas loucuras, não nos tocamos, não nos vigiamos, não nos cuidamos
como merecemos.

Joana me ensinou a me perceber e a me dar um tempo. Ela me ensinou a me ver todos


os dias como uma pessoa que merece ser cuidada, e não apenas cuidar.

Os filhos de Joana saíram da escola, da casa dos avós e foram morar com o pai, em um
lugar estranho, as irmãs ficaram sem Jojô, os amigos ficaram sem aquele sorriso fácil e lindo. Eu
e Joana ficamos sem nosso jerimum com jabá. Nunca mais o fiz.

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