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O REGRESSO DO NADA
Autor
KURT MAHR
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Dois terranos penetram no Universo Invisível
— e conseguem regressar...
***
O choque passou.
— O que há por perto? — perguntou Rous.
Lloyd sacudiu a cabeça.
— Nada — respondeu lacônico. — Absolutamente nada.
Rous levantou-se e espremeu-se no assento do motorista.
— Neste caso tentaremos ir adiante com esta geringonça.
Experimentou cautelosamente alguns botões, pedais e alavancas que havia no
painel, no chão e na chapa que separava o capuz do motor da cabine dos passageiros.
O motor começou a trabalhar ruidosamente. Sentiu-se um cheiro de gasolina... de
verdadeira gasolina!
Rous soltou o freio e acelerou. O ônibus deu um tremendo salto para a frente e o
motor morreu. Rous experimentou outra marcha e desta vez teve mais sorte. Com um
zumbido alto o veículo saiu lentamente pela estrada. Não conseguindo encontrar as outras
marchas na primeira tentativa, Rous teve muitas vezes que parar.
Finalmente conseguiu. O ônibus aproximou-se da cidade a uma velocidade de cerca
de cinqüenta quilômetros por hora.
Marcel Rous teve tempo para pensar num plano. A estrada estava completamente
deserta; não havia necessidade de prestar atenção ao tráfego. Fellmer Lloyd voltara à
letargia habitual; procurava “ouvir” eventuais modelos de vibrações cerebrais.
“O que vamos fazer em Fillinan?”, indagou-se mentalmente Rous. “Queremos
descobrir a pista do inimigo desconhecido. Temos motivo para acreditar que em Fillinan
isso será mais fácil que em qualquer das aldeias que já atravessamos? Não temos. Até
agora só conseguimos um ligeiro indício. Os desconhecidos que operam aqui
evidentemente não são nossos inimigos, pois por enquanto não nos fizeram nada; talvez
estivessem combatendo apenas os habitantes de Mirsal III e de Mirsal II, que pareciam
ameaçados do mesmo destino. Os invisíveis devem ter seus agentes neste mundo. E quem
quer encontrar um agente deve dirigir-se à capital.”
Lloyd deu sinal de vida.
— Estou captando uma porção de modelos de vibrações cerebrais — resmungou. —
Até parece um formigueiro humano.
— De onde vêm?
— Da frente.
Rous acenou com a cabeça.
— É lá que fica a cidade — disse. — Quer dizer que seus habitantes ainda não
desapareceram.
Lloyd parecia não se interessar pelas palavras de Rous. Continuava a concentrar-se.
— Não existe nenhum modelo realmente desconhecido — disse depois de algum
tempo.
— Qual é a porcentagem que o senhor consegue identificar? — perguntou Rous.
— Mais ou menos um entre mil — respondeu Lloyd. — Numa quantidade dessas,
isto se torna difícil, especialmente quando a distância é grande.
Rous fez um gesto.
— Pelo que sabemos, Fillinan tem mais de três milhões de habitantes. Quer dizer
que, se houvesse três mil desconhecidos, o senhor ainda os reconheceria. Não acredito
que sejam tantos.
Lloyd resmungou:
— Neste caso teremos de esperar até chegarmos mais perto.
Voltou a inclinar-se para a frente e apoiar a cabeça nas mãos.
Dali a alguns minutos, Rous freou. Encostou o ônibus do lado direito da estrada.
— Vamos descer aqui — disse.
— Por quê? — perguntou Rosita.
— A cidade fica a cinco quilômetros no máximo. Daqui já se vêem as luzes. Não
gostaria que alguém me perguntasse como me apoderei do ônibus e o que foi feito dos
passageiros.
Desceram. Lloyd trazia uma pasta embaixo do braço.
A caminhada para Fillinan não foi nada agradável. Uma tempestade uivava em torno
dos três andarilhos solitários, trazendo um frio cortante. A poeira cinzenta ardia na pele.
Mantinham a cabeça abaixada, para melhor se protegerem.
Felizmente não se encontraram com ninguém. A estrada larga que, num ambiente
terrano, estaria repleta de veículos de toda espécie, mostrava-se completamente deserta.
Quando as primeiras casas da cidade surgiram à sua frente, o dia estava
amanhecendo. A tempestade amainara, mas o céu continuava encoberto. Mirsal, a estrela-
mãe do sistema, não estava aparecendo.
As casas pareciam mortas. Eram hexagonais, como as que já haviam visto. Nas
janelas não observaram nenhuma luminosidade.
Subitamente Lloyd estacou.
— Há três ou quatro homens à nossa frente — disse. — Estão perto, a
aproximadamente duzentos metros de distância.
— Só quatro? — perguntou Rous em tom de espanto. — E nas casas?
— Não há ninguém; estão vazias.
Rous refletiu um pouco.
“Não há dúvida de que a cidade está habitada. Apenas as primeiras casas estão
vazias. Por quê? Porque evacuaram esta área a fim de vigiar melhor a saída, seu idiota.
Os quatro homens cuja presença foi constatada por Lloyd pertencem a um destacamento
militar!”
— Pegue a arma psíquica! — ordenou, dirigindo-se a Lloyd. — Não temos outra
alternativa senão ir em frente.
Lloyd confirmou com um gesto, retirou a arma do bolso.
Prosseguiram na sua caminhada. Rosita ia na retaguarda.
A primeira coisa vista por Rous em meio ao crepúsculo foi o cano de dez
centímetros de diâmetro de uma arma, montada num jardim, à esquerda da rua.
Rous sabia se tratar de um tipo de lança-chamas. Em Mirsal II, a técnica das armas
de fogo estava menos desenvolvida do que estivera na Terra, num estágio equivalente da
evolução. Um fuzil de Mirsal não merecia mais confiança do que uma arma de carregar
pela boca do tipo usado na mais remota antigüidade terrena, e era tão difícil de manejar
quanto esta. Em compensação, os lança-chamas mirsalenses eram verdadeiras maravilhas
da técnica. Os modelos maiores tinham um alcance de até dez quilômetros, com uma
abertura mínima do feixe de chamas e uma geração de calor que chegava a atingir mais
de mil watts por centímetro quadrado.
Rous fez como se não tivesse visto o lança-chamas. Não se sentia muito à vontade,
pois conhecia muito pouco a respeito da mentalidade dos mirsalenses. Não sabia se não
achariam preferível atirar em vez de fazer perguntas, especialmente agora que deviam
estar espantados com o desaparecimento dos habitantes.
Mas suas preocupações revelaram-se infundadas. Das moitas que havia no jardim,
logo atrás do lança-chamas, saiu um homenzinho moreno que agitou os braços.
— Pare! — gritou o outro.
Rous parou.
— Cuidado! — disse em voz baixa, dirigindo-se a Lloyd.
Lloyd confirmou com um gesto.
O homenzinho atravessou a rua. Rous viu que trazia na mão uma versão reduzida do
lança-chamas. Esforçou-se para dar uma expressão de espanto ao rosto.
— O que houve? — perguntou. — Por que mandam a gente parar?
O homenzinho não disse nada até aproximar-se a cinco metros de Rous e de seus
companheiros.
— De onde vêm? — perguntou em tom desconfiado.
Rous apontou com o polegar por cima do ombro.
— De lá.
— Não quero subterfúgios! Quero saber de onde vêm.
— De Wollaston — respondeu Rous.
Wollaston era uma ilha de tamanho regular, que ficava no oceano central. Seus
habitantes, que formavam uma raça diferente e semicivilizada, tinham em média meio
palmo mais que os outros mirsalenses.
— De Wollaston? — disse o guarda em tom de espanto. — Vieram a pé?
— Não. Viemos de avião até Resaz, e de lá viajamos de ônibus até Keyloghal.
Depois disso viemos a pé.
— Os documentos!
Rous fez como se nem soubesse o que vem a ser um documento. O guarda virou a
cabeça e gritou em direção às moitas do jardim:
— Ei! Venham cá. Peguei três pássaros muito interessantes.
Rous olhou para Lloyd, mas este sacudiu a cabeça. Ainda não havia acionado o
projetor mental. O guarda agira por iniciativa própria ao chamar seus companheiros.
Pequenos como ele e vestidos com roupas verde-escuras, que lhes serviam de uniforme,
três homens saíram das moitas.
— Dizem que são de Wollaston — disse o primeiro dos guardas em tom de escárnio.
— E não têm documentos.
— Eram estes que nós esperávamos! — exclamou um dos outros. — Se os
revistarmos, deveremos encontrar uma porção de coisas interessantes.
Rous percebeu um movimento suave atrás de si. Era Lloyd que estava entrando em
posição. A situação era favorável. Durante a ligeira palestra, as atenções do guarda mais
próximo estavam desviadas de sua pessoa.
Rous ouviu o zumbido fino da arma psíquica. Viu o guarda virar-se apressadamente
e fitar Lloyd com uma expressão de perplexidade. Lloyd saiu de trás de Rous. Segurava o
projetor mental na direita.
— Larguem as armas! — ordenou com a voz tranqüila.
Os outros três guardas, que já se encontravam bem próximos, pararam e
obedeceram. Tiraram os pequenos lança-chamas dos cintos e os deixaram cair. O guarda,
que surgira primeiro, também não ofereceu a menor resistência.
— Coloquem-se em fila! — prosseguiu Lloyd.
Esta ordem também foi cumprida sem a menor resistência. Os quatro homens
fitavam Lloyd como se este acabasse de descer dos céus num carro de fogo.
— Por que estão aqui? — perguntou Lloyd. — Vamos logo! Você aí: responda.
Apontou para um dos guardas.
— Coisas estranhas estão acontecendo — respondeu com a voz indiferente. — Os
homens estão desaparecendo, regiões inteiras vêm sendo despovoadas. Um inimigo
poderoso e invisível lançou um ataque contra nós. Precisamos encontrar-lhe a pista.
Precisamos revistar todas as pessoas vindas das áreas despovoadas. Só assim poderemos
descobrir o inimigo.
“A conclusão é bem plausível”, pensou Rous. “Quem viesse das áreas despovoadas
só poderia ser um inimigo, a não ser que a situação se complicasse pela presença de três
agentes de uma potência neutra.”
— Acreditam que somos inimigos?
— Acreditamos.
— Acontece que não somos. Entendeu?
— Compreendemos: vocês não são inimigos.
— Muito bem — disse Lloyd. — Quanto em dinheiro você tem?
O soldado começou a revistar os bolsos.
— Dezesseis unidades e alguns trocados.
— Passe para cá.
O soldado aproximou-se e colocou o dinheiro na mão de Lloyd. Os outros
receberam a mesma ordem e, uma vez cumprida esta, constatou-se que Lloyd havia
recolhido perto de cem unidades.
— Vocês se esquecerão do que acaba de acontecer — concluiu. — Dez minutos
depois que eu tiver saído daqui não se lembrarão de mais nada. Hoje de manhã não
aconteceu coisa alguma. Entendido? Ninguém veio pela estrada que vai de Resaz para
Fillinan.
Os quatro repetiram estas ordens.
— Voltem aos seus postos.
Também esta ordem foi cumprida. Lloyd desligou a arma psíquica e voltou a enfiá-
la no bolso. Os efeitos pós-hipnóticos durariam o tempo indicado: dez minutos.
— Vamos embora! — cochichou Rous. — Dentro de dez minutos, deveremos estar
fora do alcance de suas vistas.
Correram um pedaço. A estrada descrevia uma curva, que os escondia dos olhares
dos guardas hipnotizados.
Dois quilômetros depois, surgiram outros guardas. Mas Rous e seus companheiros
passaram, e nem sequer as sentinelas os mandaram parar.
Logo depois começou o torvelinho da metrópole.
— Vamos alojar-nos num hotel — decidiu Rous. — O dinheiro que temos dá para
um dia. Depois teremos de arranjar mais.
— O que vamos fazer no hotel? — perguntou Rosita.
— Antes de mais nada, vamos dormir. Estou muito cansado.
— Hum — fez Rosita. — Já tem algum plano para depois de acordarmos?
Rous fez uma careta.
— Que menina curiosa! Para dizer a verdade, não tenho nenhum plano. Não tenho a
menor idéia de como poderemos agir. Receio que tenhamos de aguardar os
acontecimentos.
Perguntaram a um transeunte se havia um hotel nas proximidades. O homem deu a
informação solicitada, mas não ocultou seu espanto. Rous ficou sabendo que há três dias
fora promulgada uma proibição absoluta de viajar, válida para todo o continente. Só
quem dispusesse de licença especial poderia viajar. O informante contentou-se com a
explicação de que os três homens vinham da ilha de Wollaston.
O hotel que o mirsalense lhes havia indicado ficava bem perto. Foram a pé. Os
transeuntes paravam e fitavam-nos. Rous não se sentia nem um pouco à vontade. Rosita
mantinha os olhos abaixados; nem uma única vez levantou a cabeça.
Já Lloyd parecia não se impressionar nem um pouco com o que estava acontecendo.
Murmurava constantemente, fazia gestos afirmativos ou negativos e, ao que tudo
indicava, estava tão ocupado com a palestra que mantinha consigo mesmo que nem se
deu conta da curiosidade dos mirsalenses.
Subitamente parou.
— Caramba! — disse.
— O que houve? — perguntou Rous.
— Qualquer pessoa precisa de licença especial para viajar — disse Lloyd em tom
pensativo. — Quer dizer que os passageiros de nosso ônibus devem ter sido pessoas
muito importantes, não é mesmo?
Rous acenou com a cabeça.
— E daí?
— Veja onde estão estacionados os automóveis.
Rous olhou em torno. Já constatara que em Mirsal II costumavam trafegar pelo lado
esquerdo, motivo por que se estacionava do mesmo lado. Mas não deu maior importância
ao fato.
— Estacionaram do lado esquerdo — respondeu. — E daí?
— Acontece que o senhor estacionou o ônibus do lado direito. Está lembrado?
— Sim; será que há algum inconveniente nisso?
— Não se esqueça de que venho de Nova Iorque, tenente; diretamente de Nova
Iorque. Se lá um ônibus com gente importante se perde, e posteriormente a polícia
encontra estacionado na contramão, tirarão disso algumas conclusões. É possível que a
polícia daqui seja tão inteligente quanto a de Nova Iorque. Ainda acontece que há três
dias se acha em estado de alarma. E, finalmente: mesmo que os policiais do primeiro
posto pelo qual passamos não se lembrem de mais nada, os do segundo saberão dizer de
que direção viemos.
Rous tornou-se pensativo.
— Talvez tenha razão, Lloyd — admitiu. — De qualquer maneira, a esta hora só nos
resta esperar para vermos se a polícia de Fillinan realmente é inteligente.
Prosseguiram na sua caminhada.
O grande hall do hotel estava vazio. Não havia ninguém na recepção. Mas havia
uma campainha. Depois que Rous comprimira o botão várias vezes, um velhinho surgiu e
ficou bastante espantado quando Rous lhe disse que queria três quartos. O homenzinho
pediu documentos e a licença especial, mas o projetor mental de Lloyd logo fez com que
mudasse de idéia. Não houve maiores problemas; os três foram alojados no segundo
pavimento do edifício em que funcionava o hotel.
Já que Lloyd teve de fazer uso do projetor mental, os aposentos foram escolhidos
por Rous segundo um critério utilitário. Havia portas que os ligavam, de maneira que
ninguém teria necessidade de sair para o corredor se quisesse falar com o vizinho.
Rous instalou-se no chão, depois de estender o colchão e os cobertores existentes na
cama, que era muito pequena para ele.
Dali a alguns minutos adormeceu.
3
***
Era estranho que, de tarde, os mirsalenses pareciam estar menos curiosos que de
manhã. Pouca gente virou a cabeça para olhá-los. Provavelmente a notícia da chegada de
três pessoas vindas de Wollaston já correra pela cidade.
Rous e seus companheiros pegaram o metrô e foram ao centro da cidade.
A rua mais luxuosa de Fillinan era a Alameda dos Reis. Tinha cem metros de largura
e cortava a cidade de norte a sul. Naquelas semanas, a título experimental e em certos
trechos, geralmente de um quilômetro de extensão, haviam sido instalados os guias de
microondas. Estes dispensavam o trabalho dos motoristas. Não era de admirar que, nos
trechos experimentais, o público se comprimisse junto ao meio-fio, a fim de contemplar
os veículos-teste da polícia, cujos motoristas mantinham as mãos ostensivamente
entrelaçadas atrás da cabeça, provando que realmente não estavam interferindo na direção
do veículo. Face ao interesse que os mirsalenses estavam dedicando ao espetáculo, quase
ninguém deu atenção a Rous e seus companheiros.
As casas dessa rua eram grandes; ao que parecia, não se economizara em sua
construção. Eram hexagonais como as outras casas de Mirsal II, e estavam rodeadas de
jardins.
Havia edifícios tão altos como os velhos arranha-céus nova-iorquinos. Geralmente
os pavimentos térreos estavam ocupados com lojas, e os andares de cima com escritórios
e residências. Se não fossem as placas com letras estranhas, poder-se-ia pensar que se
tratava de uma cidade do planeta Terra, construída por algum arquiteto dotado de maior
criatividade.
Rous, Rosita e Lloyd passeavam tranqüilamente por essa rua. O mutante mantinha a
pasta sob o braço, que nem um estudante que se esforça para não perder seu material de
escola.
Falavam muito pouco. O perigo de que alguém os escutasse não poderia ser
desprezado.
Depois de terem caminhado cerca de um quilômetro do lugar em que haviam saído,
Lloyd estacou subitamente e olhou para trás.
— Um momento! — disse em voz baixa. — Alguma coisa está acontecendo.
Rous e Rosita também pararam. Lloyd olhou rua abaixo; não viu nada além do
torvelinho normal do tráfego.
— O que houve? — perguntou Rous.
Lloyd fez um gesto impaciente.
— São os desconhecidos! — disse apressadamente. — Estão bem perto. Eu os sinto.
Rous sentiu um calafrio. Os mirsalenses continuavam amontoados junto ao meio-
fio, contemplando o espetáculo dos carros-teste da polícia.
— É agora! — gritou Lloyd baixinho. — Estão chegando.
Contorceu o rosto, como se estivesse sentindo dores. Com um movimento
automático, abriu a pasta e retirou um dos pequenos geradores de campo defensivo que
costumavam ser instalados nos trajes especiais de procedência arcônida e, em versão
bastante aumentada, nas naves espaciais.
Rous não sabia o que pretendia fazer com o aparelho. Rosita soltou um grito
estridente e apontou para a frente.
— Olhe...!
Na direção em que Rosita estava apontando, Rous viu que mais adiante o ar parecia
tremeluzir em toda a largura da rua. Notou que, atrás da cortina de ar tremeluzente, não
havia mais gente nas calçadas. E os carros, que pouco antes ainda se deslocavam em boa
ordem, passaram a correr em todas as direções, subiam nas calçadas, batiam nos edifícios
e colidiam uns com os outros...
A cortina parecia aproximar-se cada vez mais. O panorama era enlouquecedor: os
homens desapareciam das calçadas, e os veículos desgovernados pareciam empenhados
num jogo maluco.
Amontoados junto à rua, os mirsalenses tiveram sua atenção despertada para o
fenômeno. A ampla rua subia suavemente para o norte, oferecendo ampla visibilidade.
Todos viram com os próprios olhos que uma cortina, que tornava invisíveis os homens e
fazia os veículos comportarem-se loucamente, descia progressivamente pela avenida.
Dali a alguns segundos, começou o pânico. A multidão uivava, gritava, empurrava,
enquanto se punha em movimento, procurando afastar-se do terrificante e do
incompreensível que se aproximava deles.
Rous, Lloyd e Rosita afastaram-se. De um jardim, contemplaram a corrida dos
fugitivos e fitaram a “parede” tremeluzente que descia pela rua.
Parecia deslocar-se cada vez mais depressa.
Subitamente Lloyd despertou de seu torpor.
— Segure um deles! — gritou para Rous.
Rous não sabia o que queria dizer. Lloyd apontou para os mirsalenses que fugiam.
— Segure um deles! — gritou. — Rápido; não temos tempo a perder!
Rous pegou ao acaso um dos fugitivos. O homem resistiu desesperadamente, mas o
tenente era muito mais forte que ele.
A “parede” estava se aproximando.
O mirsalense pendia frouxamente na mão firme de Rous. Fitou os três terranos com
os olhos arregalados, gemeu e não disse uma única palavra.
— Vamos colocá-lo no meio! — disse Lloyd.
Rous compreendeu o que o companheiro pretendia fazer. Havia ativado o gerador do
campo defensivo.
E a “parede” chegou...
Rous sentiu um ligeiro formigamento e teve a impressão de que uma brisa passava
por ele. Posteriormente, quando rememorasse o fenômeno, não saberia dizer se a
sensação fora provocada pela parede ou por sua fantasia.
Por uma fração de segundo o barulho que enchia a rua cessou.
Rous, Lloyd e Rosita estavam de mãos dadas, formando um círculo em cujo centro
fora colocado o mirsalense.
O barulho voltou. Rous olhou rua abaixo e viu que os fugitivos eram atingidos pelo
fenômeno invisível, e desapareciam. Agora a velocidade da “parede” parecia ser dez
vezes maior. Precipitava-se rua abaixo e a varria. Dali a alguns segundos, não se via mais
nenhum mirsalense.
Nenhum indivíduo além daquele em torno do qual Rous e seus companheiros
haviam formado um círculo protetor!
O homem tremia, arregalava os olhos e não foi capaz de dizer uma palavra. Olhava
rua acima e rua abaixo, respirava violentamente e começou a soluçar quando
compreendeu a extensão da catástrofe.
Rous examinou-o e perguntou-se mentalmente:
“Será que este indivíduo nos poderia ser útil?”
Fora um objeto de experiência muito útil. A esta hora já sabia que um mirsalense
cercado por três terranos e protegido por um potente campo defensivo pode ser salvo do
desaparecimento.
Rous colocou a mão no ombro do homem e lhe disse em tom amável.
— Vá para casa e dê-se por satisfeito por ainda estar vivo.
O homem obedeceu sem dizer uma única palavra. Saiu aos tropeções, sem olhar
para trás.
Rous retomou o ritmo de sua atividade.
— Vamos embora! Precisamos descobrir se nesta cidade existe alguém que tenha
escapado à desgraça.
Lloyd colocou o gerador na pasta e dirigiu-se à entrada de metrô mais próxima.
— Não se iluda! — gritou Rous atrás dele. — O metrô não está funcionando mais.
Já imaginou o que deve ter acontecido com os trens quando de repente ficaram sem
maquinistas?
Rosita teve uma idéia melhor. Alguns dos automóveis que se encontravam na rua no
momento da catástrofe continuavam intactos. Escolheu o veículo mais potente.
— Venham! — gritou. — Acho que ele nos será bastante útil.
Pouco antes de chegar ao automóvel, Rous viu alguma coisa no chão. Era azul,
emitia um brilho suave e tinha o formato aproximado de um pente sem dentes. Rous não
sabia para que aquele objeto já poderia ter servido. Seguindo uma inspiração
momentânea, colocou-o no bolso.
Rosita percebeu.
— O que quer com isso? — perguntou.
Rous deu de ombros.
— Analisar. Ficou bem embaixo da “parede”. Talvez apresente alguns vestígios...
Sentou-se à direção do carro. Depois de ter conduzido o ônibus, não tinha a menor
dificuldade de movimentar o automóvel e manobrá-lo cuidadosamente por entre os
numerosos obstáculos que havia na rua.
No primeiro cruzamento dobrou para a direita. A rua lateral era estreita em
comparação com a Alameda dos Reis, muito embora tivesse seus quarenta metros de
largura. Tal qual a outra, estava vazia.
Rous procurou lembrar-se do lugar em que ficava o hotel. Uma vez que havia vindo
de metrô, não tivera oportunidade de rememorar o itinerário. Mas conhecia a direção e
tinha certeza de encontrar o caminho pelas ruas totalmente vazias.
Quando Lloyd se sobressaltou, deviam ter viajado uns trinta minutos.
— Há gente pela frente — disse apressadamente. — São muitos. Ao que parece, o
desastre não atingiu toda a cidade.
Rous estreitou os olhos.
— Nesse caso devemos ter cuidado. Pensarão que qualquer pessoa vinda da área
central da cidade é um inimigo.
O hotel ficava na periferia da cidade, distando ao menos quinze quilômetros da
Alameda dos Reis. Rous levou uma hora e meia para percorrer esses quinze quilômetros,
uma vez que não conhecia a cidade.
Finalmente chegou a uma rua que lhe parecia conhecida. Rosita lembrou-se de uma
espécie de joalheria diante da qual parara de tarde, e Lloyd já sabia que caminho tomar
para chegar ao hotel.
Rous dobrou a esquina e por pouco não bate no veículo vermelho que estava
atravessado na rua.
Lloyd já afirmara que os impulsos captados vinham de bem perto. No carro estavam
sentados cerca de vinte policiais com as armas levantadas, e de cada lado da rua havia
dois policiais.
Rous parou; não teve outra alternativa.
— Cuidado, Lloyd! — cochichou.
Três policiais saltaram do carro vermelho e aproximaram-se do automóvel. Rous
baixou o vidro do lado direito.
— De onde vieram? — perguntou um dos policiais.
— Dos subúrbios do leste — respondeu Rous.
— Atravessaram a cidade?
— Atravessamos.
— Como estão as coisas por lá?
Rous fez um gesto de pavor; nem precisou esforçar-se muito.
— Tudo vazio; todo mundo desapareceu!
— Conseguiu ver para onde desapareceram?
— Não; não presenciamos o fenômeno. Viemos pela ponte de Finnestal. Do lado de
lá estava tudo em ordem, mas do lado de cá...
— Está bem — disse o policial. — Pode prosseguir. Passe pela calçada.
Rous agradeceu, dobrou para a esquerda e contornou o veículo vermelho.
— Acaba de cometer um erro — disse Rosita em tom tranqüilo.
— Qual foi?
— Não se despediu.
— O quê?
— Agradeceu, mas não se despediu. Não se esqueça de que entre os mirsalenses os
cumprimentos desempenham um papel muito importante.
— Caramba! — resmungou Rous. — Talvez não tenham notado.
— Ele notou — respondeu Rosita. — Vi pelo rosto. Acho que a permissão para
prosseguir representa um simples estratagema. Acho que teremos problemas.
Rous não disse mais nada.
Dali a alguns minutos, parou à frente do hotel.
Por ali as ruas também estavam vazias. Pelo que dizia Lloyd, os impulsos que o
mesmo vinha captando procediam do sudoeste. Provavelmente essa parte da cidade era a
única que escapara à desgraça.
O hotel estava ainda mais vazio que antes. Até mesmo o velhinho havia
desaparecido. Rous tocou a campainha algumas vezes e, como não aparecesse ninguém,
ele mesmo foi pegar as chaves dos seus quartos.
O elevador não funcionava. A catástrofe fizera desaparecer também os operadores
das usinas de energia. Não havia eletricidade.
Subiram pelas escadas. Não diziam; uma única palavra. Tinham muito em que
pensar.
Não se separaram. Foram todos ao quarto de Rous. Antes que este abrisse ai porta,
Lloyd lhe fez um sinal de advertência e apontou para a porta. Rous ergueu as
sobrancelhas, refletiu por um instante e acenou com a cabeça. Apontou para a pasta de
Lloyd. Este pegou o projetor mental.
Depois entraram.
Ao primeiro relance de olhos parecia que nada tinha mudado. Mas assim que Rosita
fechou a porta atrás de si, surgiram rostos atrás das poltronas, das cadeiras e das mesas.
Eram rostos de policiais. Ergueram-se de vez e via-se que mantinham apontados os
lança-chamas portáteis.
Rous reconheceu um dos policiais. Era Flaring.
O comissário saiu de seu esconderijo. Com uma expressão de escárnio no rosto,
disse:
— Pensamos que os senhores pudessem contar-nos alguma coisa sobre a última
catástrofe; foi por isso que viemos.
***
Na Drusus foi registrado outro fading dos sinais emitidos pelos transmissores
embutidos no corpo dos três agentes. Tal qual o primeiro, não durou mais que três
segundos. Depois os sinais voltaram a ser recebidos normalmente.
Já o emissor que se encontrava a bordo da Gazela não sofreu a menor perturbação.
Rhodan supôs que seus agentes tivessem entrado em contato com o inimigo pela
segunda vez. O fato de que depois do primeiro contato Rous não transmitiu qualquer
aviso levava à conclusão de que o incidente não se revestira de maior importância.
Restava saber se desta vez o caso seria o mesmo.
***
Lloyd e Rosita já se haviam retirado para seus quartos. Rous redigiu um relatório
codificado sobre o que vira em Mirsal, relato este que pretendia transmitir à Drusus.
Aludia às negociações realizadas com Flaring. O tenente pediu também o consentimento
de Rhodan para a ação que pretendia realizar.
Depois de pronto, o relatório, formado por cerca de três mil palavras, estava
resumido a uma série de pequeninos buracos abertos numa placa de plástico que poderia
ser escondida na mão de uma pessoa.
Rous saiu à procura de Lloyd, que trazia o microcomunicador na pasta.
Atravessou o quarto de Rosita, que estava de pé, olhando pela janela. Ela não se
virou à entrada de Rous, mas este ouviu-a dizer:
— Há um silêncio terrível por aí!
Rous foi à janela e colocou-se a seu lado. Não se via nada, nem mesmo a fachada
dos prédios que ficavam do lado oposto da rua.
Cerca de um milhão e meio de pessoas haviam sido vitimadas pelo segundo ataque
do inimigo invisível. Este número fora indicado por Flaring.
“Um milhão e meio de pessoas desapareceram de uma hora para outra da superfície
deste mundo. Por quê? Qual será a finalidade disso?”, pensou o tenente.
Rous fervia de raiva ao pensar na desgraça.
— Espere! — disse. — Nós os agarraremos.
Rosita não respondeu. Rous saiu da janela e dirigiu-se à porta do quarto de Lloyd.
Quando entrou, viu-se envolvido por uma luz forte. Rous viu-se ofuscado, mas logo
constatou que a claridade iluminava o quarto de Lloyd quase por igual e parecia vir de
todas as direções. Parecia que tinha vindo de um quarto às escuras e entrado num outro
que recebia a luz do sol por um grande número de janelas.
Rosita também percebeu quando a luminosidade penetrou pela porta.
Lloyd trabalhava em meio à claridade; ao que parecia, estava muito ocupado.
— O que é isso? — exclamou Rous. — O que andou fazendo?
Lloyd parou.
— Por enquanto não sei — respondeu um tanto contrariado. — Andei mexendo um
pouco nisto, e de repente apareceu a luz.
— Andou mexendo em quê?
— No gerador do campo defensivo. Rous sentiu-se perplexo. Na pasta de Lloyd
havia uma porção de objetos capazes de produzir luz. A iluminação de emergência da
qual Rous se valera para confeccionar a chapa de plástico com o relatório destinado à
Drusus também provinha dessa pasta. Mas de todos os objetos que Lloyd carregava, o
gerador de campo defensivo era aquele do qual menos se esperava que pudesse ser usado
como fonte de luz.
Rous e Rosita entraram e fecharam a porta atrás de si. Rous sentou-se numa
poltrona.
— Explique! — pediu a Lloyd.
Lloyd passou a mão pela testa, como se tivesse necessidade de refletir.
— Deve estar lembrado de como salvamos aquele mirsalense na Alameda dos Reis
— principiou. — Bem, desmontei o gerador para verificar se o campo defensivo poderia
ser reforçado; para isso talvez se pudesse ligar o aparelho a uma fonte externa de energia.
Como sabe, em princípio isso é possível. Só resta saber que volume de energia o pequeno
aparelho pode absorver e utilizar.
— E depois? — perguntou Rous.
Lloyd deu de ombros.
— Depois não sei mais nada. Retirei algumas células e as liguei de forma diferente.
Subitamente o quarto se iluminou. Não faço a menor idéia sobre a causa do fenômeno.
Rous levantou-se de um salto.
— Onde está?
Lloyd apontou para a mesa.
Rous aproximou-se cautelosamente do pequeno gerador. Não era maior que um
maço de cigarros. Lloyd havia retirado a tampa e mexera no complicado mecanismo com
uma pinça de soldar.
Lloyd era técnico. Além da sua extraordinária capacidade parapsicológica, possuía
conhecimentos quase completos sobre todos os problemas eletrônicos e gravitomecânicos
que devem ser considerados na construção de geradores de campos defensivos e numa
série de outros aparelhos.
Neste ponto o tenente não ficava nada a dever a Lloyd. Na Academia realizara
cursos de Eletrônica e Gravitomecânica.
Era versado no assunto e, ao primeiro relance de olhos, percebeu quais haviam sido
as modificações que o mutante introduzira no pequenino mecanismo.
Examinou as soldas novas e repassou em sua mente os circuitos modificados.
Repetiu a experiência e chegou ao mesmo resultado.
Lloyd estava parado atrás dele, olhando por cima de seu ombro.
— O senhor sabe o que acaba de fazer? — perguntou Rous.
Lloyd fez que sim.
— Ao que parece, apenas modifiquei o formato do campo defensivo.
— Exatamente. O gerador produz um campo defensivo esférico, de raio variável e
limitado. E agora...
— Agora é apenas um campo anular — completou Lloyd.
— Isso mesmo. Um campo anular, cuja situação ainda não conhecemos.
Prosseguiu na experiência. Ao que parecia, estava encontrando o que procurava.
Pediu a pinça de soldar, fez algumas modificações, regulou o botão que havia na parte da
frente do aparelho e olhou várias vezes em torno.
— Procuro localizar o campo — explicou. — Agora tem a forma de anel, não de
esfera; acontece que não sabemos onde fica esse anel.
Continuou a trabalhar. De repente, Rosita, que também se encontrava no quarto,
soltou um grito de surpresa.
— Olhem! Ali, na janela...
Rous levantou a cabeça.
Junto à janela surgira uma mancha circular de luminosidade branco-azulada. Para
além do círculo reinava uma escuridão completa. A luz que penetrava no quarto provinha
exclusivamente dali.
— É estranho — murmurou Rous.
— Pensei que fosse um campo anular — disse Lloyd. — Acontece que isso não é
um anel, mas um círculo.
Rous sacudiu a cabeça.
— Tolice. O que o senhor está vendo não é o campo, mas uma luz pura e simples. O
campo é invisível. Estende-se em torno desse círculo de luz.
Rosita estava curiosa.
— De onde vem a luz?
— Bem que eu gostaria de saber — respondeu o mutante.
Por alguns minutos Rous fitou atentamente a mancha circular de luz. Subitamente
estremeceu, como se acabasse de lembrar-se de algo importante, e pôs-se a trabalhar que
nem um louco.
Lloyd e Rosita viram a mancha de luz diminuir; enquanto isso, a luz aumentava de
intensidade e a iluminação já não era tão uniforme em todos os cantos do aposento.
Depois de algum tempo, o círculo, que de início medira uns setenta centímetros de
diâmetro, se transformou num ponto de luminosidade muito concentrado.
Enquanto Rous continuava a trabalhar, o ponto voltou a estender-se. Rous percebeu
a alteração e continuou a girar botões, fazer ligações e soldar peças até que o ponto
voltasse a surgir sobre a vidraça.
Depois disso levantou-se.
— Aí está! — disse. — Sabe o que é isso?
Apontou para o ponto luminoso.
Lloyd sacudiu a cabeça.
— É claro que eu também não sei — confessou Rous. — Mas tenho uma hipótese.
Suponho que nosso campo circular desempenha por assim dizer as funções de lente.
Concentra em seu foco os raios de luz emitidos por um objeto muito distante.
Lloyd olhou-o sem compreender nada.
— Que luz é esta? De onde vem?
Rous cocou a cabeça.
— Aí que está o grande mistério. No momento em que desligo o gerador, a luz
desaparece. Logo, não está em nosso espaço.
— Essa conversa é muito metafísica — resmungou Lloyd em tom irreverente. —
Em que espaço poderia estar?
Entusiasmado com sua descoberta, Rous deu-lhe uma pancadinha amistosa.
— Não se esqueça de que nunca conseguimos ver os desconhecidos quando os
mesmos se lançaram ao ataque! — exclamou. — Eram invisíveis. Se o senhor acha que a
explicação baseada nos dois espaços diferentes, em que nós e os estranhos existimos, é
complicada demais, basta imaginar que descobrimos um meio de destruir a invisibilidade
desses seres.
“A realidade é a seguinte: o campo anular, com suas funções de lente, produz uma
instabilidade na estrutura de nosso espaço. Essa instabilidade estabelece uma ponte entre
dois contínuos: a luz pode passar de um ao outro.”
Lloyd fez um gesto afirmativo.
— Muito bem. Acho que estou compreendendo. E daí?
Rous apontou para o ponto luminoso.
— O que estamos vendo é uma imagem. Uma imagem de qualquer objeto que se
encontra naquele outro espaço. Se pegarmos uma lupa para ampliá-la, poderemos ver o
objeto.
— Pois bem; vamos pegar uma lupa.
Rous fez um gesto negativo.
— Uma lupa seria apenas outra lente. Se a primeira lente é formada por um campo
defensivo anular, a outra deverá ter as mesmas características. Tudo que temos de fazer é
dissociar o círculo produzido pelo gerador em duas partes, a fim de que o mesmo produza
dois campos anulares. Um deles servirá de objetiva, outro como projetor.
Olhou para trás.
— Ali temos uma grande parede branca. Se tivermos sorte, poderemos projetar-lhe a
imagem.
Lloyd compreendera. Os dois começaram a trabalhar febrilmente no gerador. Rosita
contemplava-os com os olhos curiosos, mas sem o menor conhecimento da matéria. Não
sabia o que dizer de tudo isso.
— Sempre pensei — começou — que uma lente fosse feita de vidro. Será que não
é?
Rous soltou uma risada.
— Geralmente são — disse. — Mas há cem anos os microscópios eletrônicos já
tinham lentes feitas de campos elétricos ou magnéticos. Por isso um campo defensivo
pode perfeitamente servir de lente.
— Está bem — disse Rosita. — Não entendo nada disso. Estou curiosa para ver o
feitiço que sairá daí.
Face à atividade extraordinária de Lloyd e Rous só demorou meia hora até que um
segundo círculo surgisse no meio do quarto. Mal se destacava da claridade ali reinante, e
era maior do que o primeiro fora em qualquer momento. Rosita chamou a atenção dos
dois homens sobre o fato.
— Muito bem! — exclamou Rous. — Esta é a ocular. Agora vamos girar até que...
Interrompeu-se em meio à frase, refletiu um pouco e bateu com a mão contra a testa.
— Que idiota que eu sou. Com uma ocular não se pode produzir uma imagem real.
Para projetar precisamos de uma terceira lente. E o gerador não conseguirá formá-la.
Portanto, devemos partir para a observação direta.
Colocou-se de tal maneira que o círculo que pairava no meio do quarto ficava entre
ele e a janela.
— Apenas vejo claridade — disse um tanto decepcionado. — Gire o potenciômetro,
Lloyd.
Lloyd começou a girar o pequeno botão. Rous olhava intensamente para o círculo
luminoso.
— Pare! — gritou de repente. — Marque a posição, Lloyd!
Lloyd fez um pequeno arranhão na placa fronteiriça do aparelho, a fim de marcar a
posição do potenciômetro. Rous fez mais alguns pedidos:
— Rosita, traga alguns panos e pendure-os sobre minha cabeça. A luz espalhada
pelo quarto atrapalha minhas observações.
Rosita trouxe os panos.
Com a cabeça envolta nos mesmos, de tal maneira que apenas o círculo luminoso
ficava à vista, Rous olhava fixamente para a frente, sem dizer uma palavra.
Só dali a uns dez ou quinze minutos, recuou e os deixou cair.
— Dê uma olhada — disse, dirigindo-se a Lloyd. — Não há dúvida de que é uma
imagem; mas não faço a menor idéia do que seja.
Rosita não conseguiu dominar mais a curiosidade e perguntou:
— O que é que a gente vê?
Lloyd descreveu o quadro:
— Vê-se uma superfície ampla e plana. Nessa superfície estão espalhados ao acaso
vários objetos escuros. A imagem é colorida. Mas, ao que parece, as cores não são muito
numerosas. Os objetos escuros... bem, talvez sejam máquinas; não sei.
— Alguma coisa se move? — perguntou Rosita.
— Não. Está tudo parado. A imagem dá a impressão de fotografia. Não vejo
nenhum... um momento, o que é isso? — calou-se por um instante e prosseguiu em tom
exaltado: — Agora houve um movimento. A imagem se moveu em conjunto. Parece que
alguém a aumentou. Os objetos escuros tornaram-se maiores; realmente são máquinas.
Nesse instante, as observações do mutante foram interrompidas sem a menor
contemplação. Rosita não conseguiu dominar a curiosidade: arrancou os panos que
também lhe envolviam a cabeça, empurrou-o para o lado e colocou-se à frente do círculo.
Rous e Lloyd deixaram-na à vontade. Por alguns minutos Rosita manteve-se imóvel
e em silêncio, contemplando a imagem. Depois recuou e disse:
— Vejo que é uma planície que parece ter sido pavimentada de ladrilhos. Há ainda
sombras que talvez sejam máquinas. As imagens não estão nítidas. Não vejo nisso nada
de extraordinário.
— Ah, é? — disse Rous com uma risada. — Não acha nada de extraordinário? Sabe
o que acaba de ver?
— Não — respondeu Rosita.
— Pois eu vou explicar. A senhora viu um mirsalense ser salvo pela influência de
nosso gerador de campo defensivo. Por isso há de concordar em que esse campo exerce
certos efeitos sobre o inimigo, seja ele quem for. Ainda não sabemos que efeito é esse.
Esse mesmo campo defensivo, uma vez reduzido a uma forma adequada, cria certa
instabilidade na estrutura espacial, e com isso uma ponte pela qual a luz pode passar do
contínuo temporal do inimigo para o nosso.
Rosita começou a compreender. Fitou Rous com os olhos muito arregalados.
— Não venha me dizer que...
Rous acenou tranqüilamente com a cabeça.
— É isso mesmo que eu quero dizer. O mundo do inimigo é diferente do nosso.
Encontra-se num outro contínuo, do qual vem lançando seus ataques. O que estamos
vendo neste círculo não passa de um recorte pouco nítido do invisível.
***
Haviam dado o primeiro relance de olhos. Depois de longas semanas de luta contra
o inimigo, conseguiram pela primeira vez lançar um olhar para o outro espaço, em que
vivia esse inimigo.
Isso apenas serviu para fortalecer-lhes a confiança. Mesmo os fenômenos
complicados e desenrolados durante a reprodução da imagem por meio do gerador de
campo defensivo não faziam com que se tornasse possível saber onde poderia ser
encontrado o objeto que viam reproduzido no círculo luminoso. Não havia como localizá-
lo, e não se sabia se valeria a pena localizar alguma coisa que, por assim dizer, se achava
em outro universo.
Nem sequer havia a menor indicação que permitisse uma conclusão sobre se aquilo
que haviam observado realmente era um quadro estático, algo imóvel, ou se no outro
espaço o fenômeno tempo sofria uma modificação que não lhes permitia notar os
movimentos.
Rous acreditou que os súbitos deslocamentos do quadro, observados por várias
vezes depois da primeira constatação de Lloyd — inclusive em sentido inverso, ou seja,
no afastamento — não fossem um fenômeno real. Em sua opinião, tratava-se apenas de
oscilações no gerador de campo defensivo.
Rous tentou transportar através do círculo luminoso um objeto para o espaço
inimigo — um maço de cigarros, por exemplo. A tentativa foi um fracasso total. O maço
de cigarros caiu ao solo do outro lado do círculo. Os dois campos anulares formavam um
sistema de lentes de certa potência, mas não constituíam nenhum meio de transporte.
Além disso, Rous não ficou satisfeito com o grau de nitidez da imagem. Calculava
que as máquinas vistas através do círculo luminoso, como produtos de uma tecnologia
estranha que eram, talvez fossem objetos indecifráveis. Se conseguisse uma imagem mais
nítida, talvez poderia reconhecer certas funções das máquinas. Talvez estas fossem as
armas que o inimigo usava para lançar seus ataques cruéis contra Mirsal.
Todas as tentativas de obter uma imagem mais nítida resultaram em fracasso.
Deviam dar-se por satisfeitos de terem obtido uma imagem, qualquer que fosse ela, por
um meio tão estranho.
Depois de ter prosseguido nas observações por algumas horas, Rous desligou o
gerador. Dali a meia hora, voltou a ligá-lo e sentiu-se aliviado. Ficou satisfeito ao
constatar que o ponto e o círculo luminoso voltaram a surgir no mesmo lugar, e que
através do círculo observado o quadro outra vez fazia-se presente.
A imagem podia ser reproduzida; era o que importava.
— Daqui por diante teremos que dispensar o campo defensivo — disse Rous. —
Precisamos do gerador para outro fim, mais importante.
***
Na manhã do dia seguinte, bem cedo, apareceu Flaring. Trouxe boas notícias.
— Expus o assunto aos meus superiores — disse, depois de ter cumprimentado os
três terranos um por um. — Fico satisfeito em poder anunciar que confiam plenamente
nos senhores. Sentimo-nos gratos pela colaboração que nos oferecem e estamos dispostos
a facilitar-lhes o trabalho na medida do possível. É bem verdade que gostaríamos de saber
se têm algum plano bem objetivo.
— Queremos agarrar esses caras invisíveis — disse Rous com o rosto zangado.
Flaring sorriu.
— As intenções são boas — disse. — Mas será que já estão próximos disto?
— Não — suspirou Rous. — Um momento.
Tirou do bolso o estranho objeto de plástico que no dia anterior havia encontrado na
Alameda dos Reis e estendeu-o em direção a Flaring. Explicou onde havia encontrado o
objeto e disse:
— Gostaria que isto fosse analisado. Seus químicos devem saber de que é feito, ou
melhor, de que deveria ser feito. O que desejo saber é se esta peça de plástico sofreu
alguma modificação após o ataque do inimigo.
Flaring segurou cautelosamente o objeto.
— Providenciarei quanto antes. Tem mais alguma ordem?
Rous franziu a testa.
— Não temos nenhuma ordem. Ficaremos muito satisfeitos se pudermos formular
alguns pedidos.
Flaring sentiu-se bastante lisonjeado.
— É isso mesmo — prosseguiu Rous antes que Flaring tivesse tempo de dizer
qualquer coisa. — Gostaríamos de examinar num mapa as áreas atacadas pelo inimigo.
Queremos saber onde ficam.
Flaring levantou a mão direita.
— Muito bem. Arranjarei imediatamente os mapas.
Despediu-se e saiu.
Rous aproveitou o tempo para completar o relatório que deixara de enviar na noite
anterior, face às novidades importantes que haviam surgido. Apenas alguns furos a mais
foram feitos na chapa de plástico. Depois introduziu-a no microcomunicador.
Praticamente no mesmo instante os aparelhos da Drusus, que se encontrava a trinta
milhões de quilômetros, captaram o interessante relato.
Mal Rous havia terminado o trabalho, Flaring voltou a aparecer.
— A análise ainda não foi concluída — disse, depois de ter cumprimentado os
terranos. — Trouxe os mapas.
Espalhou-os sobre a mesa. O primeiro mostrava toda a província que se estendia de
Resaz para Fillinan, e mais algumas centenas de quilômetros de ambos os lados. A área
despovoada pelo ataque do inimigo invisível havia sido uma parte assinalada de vermelho
e outra em negro.
Rous estacou ao constatar o estranho formato da parte circulada de negro.
— Tem certeza de que as informações desta anotação são corretas?
Flaring levantou a mão.
— Tenho certeza absoluta. Por certo pode imaginar que fazemos tudo para obter
informações fidedignas.
— Está certo. O que acha desse formato?
O círculo vermelho descrevia aproximadamente o formato de uma calçadeira que
tivesse sido aquecida e esticada o mais possível. Os contornos estranhos apresentavam
duas “orelhas” ovais bem abertas no leste e no oeste, e entre as mesmas havia uma parte
irregular e mais fina. Na “orelha” oriental havia uma falha elíptica, correspondente a uma
área que não fora atingida pela desgraça.
Flaring dobrou o dedo, em sinal de que não tinha nada a dizer.
— Já quebramos a cabeça sobre isso — disse. — De início pensamos que o inimigo
estivesse interessado em fazer desaparecer o maior número possível de pessoas. Acontece
que justamente neste local — apontou para a falha da parte oriental — fica Kelleyhan,
uma cidade de cerca de trezentos mil habitantes. A população de toda a área restante é
setenta por cento menor que à de Kelleyhan.
— Quer dizer que a área não é das mais densamente povoadas?
— De forma alguma. A área industrial de Russom, situada ao norte, tem duzentos e
cinqüenta habitantes por quilômetro quadrado. E aqui, entre Resaz e Fillinan, existem
apenas vinte habitantes por quilômetro quadrado.
Rous passou a examinar o segundo mapa, que mostrava em escala maior os
arredores de Fillinan, numa extensão de duzentos quilômetros. Soube então que a
desgraça ocorrida no dia anterior não ficara restrita à área urbana de Fillinan, mas se
estendia para o norte e o leste, numa extensão de cento e cinqüenta quilômetros. Apenas
os subúrbios do lado sudoeste de Fillinan haviam escapado ao desastre. Era bem verdade
que esta era a área mais densamente povoada. Assim, um milhão e meio de habitantes
haviam dali desaparecido.
Do lado leste e norte da cidade vinha uma série de rios, dos quais o Finnestal era o
maior. Em parte, a área era pantanosa. Flaring contou que em séculos passados haviam
tentado drená-la. Mas ultimamente tinham desistido desse intento, para transformar a área
num gigantesco parque natural. Fora da cidade de Fillinan só viviam umas cem pessoas.
Nesse mapa, a área atacada pelo inimigo apresentava o formato de um retângulo
irregular. Havia quatro falhas de tamanho variável, que foram poupadas pelos inimigos.
Rous perguntou como fora possível determinar com tamanha exatidão os limites da
área, uma vez que se tratava de regiões pouco povoadas.
— O senhor ainda não soube? — perguntou Flaring em tom de espanto. — Não só
os homens desapareceram, mas também os animais. Nas áreas atingidas pelo invisível
não existe sequer uma larva de inseto. Toda a vida orgânica desapareceu, com exceção
apenas, o que é de estranhar, das plantas.
Rous acenou com a cabeça; parecia pensativo. Lloyd, que se encontrava a seu lado,
fitava o mapa.
— Não parece absurdo? — perguntou em voz baixa.
Rous deu de ombros.
— Talvez o inimigo nem esteja interessado em fazer desaparecer muitas pessoas.
Quem sabe se seu objetivo não é outro? Por enquanto não sabemos — concluiu.
Naquele momento entrou um ordenança, para informar Flaring de que a análise do
pente de plástico que Rous entregara para ser examinado já estava concluída.
— Foi muito rápido — elogiou Rous. — Deixe-me ver.
O ordenança entregou-lhe o relatório da análise. Rous pôs-se a ler. Flaring também
leu. Constatou-se que a composição química e a estrutura molecular daquela peça de
plástico não sofreram a menor alteração. Nada havia acontecido com o objeto.
— Um momento — pediu Flaring. — Aqui embaixo ainda há uma observação. —
Sabe o que vem a ser uma análise etária?
— Sei. Procuraram determinar a idade do objeto. Qual foi o método?
— Qualquer matéria orgânica contém certa quantidade de isótopos radiativos. São
isótopos do sexto elemento...
— Do carbono! — interrompeu-o Rous apressadamente.
— Fizeram uma análise do C14 — disse Lloyd em inglês, dirigindo-se a Rosita.
Depois virou-se para Flaring e perguntou:
— Qual foi o resultado?
— Do isótopo mencionado sobra apenas uma pequena fração da concentração
primitiva. Em compensação o elemento subseqüente foi aumentado na mesma
proporção...
— Um momento! — pediu Rous. — Há quanto tempo este tipo de plástico é
fabricado em Mirsal?
Flaring refletiu.
— Há cerca de quarenta anos, acredito.
Rous tornava-se cada vez mais nervoso.
Caminhou de um lado para outro, de cabeça baixa, e murmurou em inglês:
— Numa matéria plástica cristalina a substituição do C 14 é praticamente impossível.
Acontece que a parte desse isótopo que pode desaparecer dentro de quarenta anos é
insignificante. Provavelmente a idade de quarenta anos nem poderia ser determinada por
meio desse método. Aquilo que sucedeu com o C 14 deve ter acontecido no espaço de
tempo durante o qual a “parede” tremeluzente passou pelo objeto.
Parou à frente de Flaring.
— Até aqui tudo entendido — constatou. — Qual foi a idade que se constatou?
Flaring olhou para o bilhete trazido pelo ordenança. Uma expressão de
incredulidade surgiu em seu rosto.
— Cerca de vinte mil anos — respondeu com a voz insegura.
Rous ergueu as sobrancelhas.
— Será que os métodos de análise usados neste planeta são fidedignos?
Flaring dobrou o indicador direito.
— Justamente este método foi experimentado numa série de amostras cuja idade
exata era conhecida. Não acredito que tenha havido um erro.
Rous virou-se para Rosita e Lloyd.
— Dali se conclui — disse, falando em mirsalês, para que Flaring também o
pudesse compreender — que nos instantes em que a “parede” passou pela Alameda dos
Reis, vinte mil anos passaram por esta peça de plástico.
5
Era um aspecto surpreendente, mas em última análise não passava de mais um elo
da corrente que, no seu todo, significaria a solução do mistério que cercava o inimigo
invisível.
Flaring não sabia o que fazer com aquilo.
Pouco entendia das coisas misteriosas que havia no Universo. Sua raça mal
começara a conquistar o espaço nas imediações de seu mundo.
Rous esforçou-se para tranqüilizar Flaring. Procurou explicar que a peça de plástico
de vinte mil anos poderia perfeitamente ter adquirido essa idade de forma “normal”.
— Nesse caso — objetou Flaring — toda a matéria que se encontrava na área de
ataque do inimigo deveria ter envelhecido na mesma proporção.
Rous balançou a mão.
— Não se pode afirmar isto. Por que teria envelhecido na mesma proporção? Não há
dúvida de que tudo envelheceu, mas por enquanto nada podemos dizer sobre a proporção
do envelhecimento.
— Pois bem — concordou Flaring. — Digamos que a casa na qual nos encontramos
tenha envelhecido em mil anos, em vez de vinte mil. Não acha que apesar disso já deveria
ter ruído?
— Não senhor! O senhor está confundindo as coisas: o envelhecimento do material,
provocado por uma solicitação ininterrupta, com o envelhecimento representado pela
simples passagem do tempo. Nos vinte mil anos que se passaram sobre esta peça de
plástico, a mesma não esteve submetida a qualquer tipo de solicitação. Pelo que se lê
aqui, sua estrutura é exatamente a mesma de antes. E a mesma coisa aconteceu com o
outro material. Não se preocupe: os edifícios de Fillinan não vão ruir em série. Mas o
senhor me deu uma idéia.
— Que idéia foi essa? — perguntou Flaring.
— Mande seus homens procurarem nas áreas atingidas amostras de peças cuja idade
possa ser determinada por meio de uma análise. Preciso do maior número possível de
amostras, recolhidas nos pontos mais diversos. Quero registrar neste mapa qual foi o
envelhecimento que o ataque produziu em cada ponto. Será que pode começar logo?
Flaring concordou.
***
Alguns dias se passaram sem que em Mirsal se registrasse outro ataque do invisível.
Enquanto isso os homens de Flaring recolheram, nas áreas atingidas, peças de plástico, de
madeira e de outro material, que foram analisadas imediatamente.
O quarto de Rous transformou-se numa espécie de quartel-general. Depois de
catalogadas, todas as informações foram registradas ponto por ponto nos mapas.
Depois de obtidos os resultados de cem análises; Rous percebeu como seria o
quadro final. Os pontos correspondentes à mesma idade formavam uma linha paralela ao
limite exterior da área de ataque. A idade aumentava, à medida que se avançava de fora
para dentro. O conjunto tinha o aspecto de um mapa marítimo em que as profundidades
estivessem registradas por meio de linhas. Porém, nas linhas desenhadas por Rous estava
anotada uma idade, não uma profundidade. Os objetos recolhidos na periferia da área de
ataque praticamente não haviam sofrido qualquer envelhecimento. Já no centro da área o
envelhecimento era de muitos séculos. Num ponto situado a oeste de Fillinan, onde fora
realizado o primeiro ataque, o enfraquecimento molecular era de 50 mil anos. Na área
urbana de Fillinan, alvo do segundo ataque, atingiu a 33 mil anos.
Havia um fato estranho. No centro da área situada a oeste de Fillinan, entre esta
cidade e Resaz, havia uma espécie de ilha; a idade das peças recolhidas na mesma foi
avaliada em cerca de oitenta a cem mil anos. De início Rous acreditou se tratar de um
erro de análise, mas Lloyd acabou achando a solução.
— Está lembrado dos passageiros do ônibus no qual viemos? Na verdade, houve
dois ataques nessa área: um de manhã, quando estávamos chegando a Keyloghal, e outro
na noite seguinte, quando estávamos viajando naquele ônibus. Dali se conclui que as
peças recolhidas passaram por dois processos de envelhecimento. E as respectivas idades
se somam. É por isso que os números são tão elevados.
A explicação era plausível. No mapa via-se que o ataque, durante o qual os
passageiros do ônibus haviam desaparecido, só se estendera a uma área de menos de três
quilômetros quadrados.
Depois que Rous havia desenhado em seus mapas um número de linhas que lhe
permitia obter uma visão de conjunto, Flaring foi avisado de que seus homens poderiam
suspender o trabalho de coleta.
“Por enquanto não podemos fazer mais nada”, pensou Rous de forma conclusiva.
***
***
***
Trinta minutos depois dessa palestra a sala de rádio constatou que as duas frentes de
ataque do inimigo, vindas do sudoeste e do norte, haviam aumentado a velocidade.
Dos cem mil mirsalenses que Flaring havia preparado para a evacuação, cinqüenta
mil já tinham sido embarcados.
Os mirsalenses mantinham-se calmos. Estavam amedrontados com o tamanho das
naves e tinham medo do que lhes aconteceria caso não se movessem com suficiente
rapidez.
***
Pouco antes das dezessete horas, tempo de bordo, as duas frentes de ataque
atingiram a cidade. Naquele momento, Rhodan encontrava-se na sala de comando da
Drusus. Os aparelhos registraram a súbita solicitação dos campos defensivos, provocada
pelo impacto sofrido pelos mesmos. Dali a poucos segundos, ouviu-se a voz nervosa e
amedrontada de Talamon pelo telecomunicador:
— Os geradores queimarão se não decolarmos imediatamente.
Rhodan viu-lhe o rosto dominado pelo pânico na pequena tela do telecomunicador.
— Os campos agüentarão — respondeu com a voz fria. — Aquilo que acabamos de
ver acontece duas vezes por hora quando nos encontramos no espaço. Controle seus
nervos e cuide para que o embarque se processe em ordem. A hora da decolagem será
determinada por mim.
O rosto amedrontado de Talamon desapareceu. Rhodan voltou a dedicar sua atenção
aos instrumentos de registro.
Constantemente chegavam informações sobre o prosseguimento da evacuação. A
Drusus estava inteiramente lotada; mas na Arc-Koor ainda havia lugar para muita gente.
Rhodan suspirou aliviado.
Dali a alguns minutos, os campos atingidos sofreram outro impacto, muito mais
violento que o primeiro. Por alguns segundos os geradores quase falharam sob a violência
do ataque.
Mas aqueles segundos se passaram e o que ficou para trás foi somente o medo de
Talamon, que neste meio tempo já se transformara em histeria.
— Leve os homens para bordo! — gritou Rhodan em tom grosseiro. — E aguarde
minhas ordens para decolar. Não acredito que o Grande Império tenha enviado um
calhambeque, cujos campos defensivos falhem ao primeiro susto.
A ironia indisfarçada produziu seus efeitos. Dali em diante Talamon ficou quieto.
***
Rous, Rosita e Lloyd, que dominavam a língua dos mirsalenses, ajudaram Flaring
nas operações de embarque. Pouco depois que o segundo ataque fizera os geradores
trabalhar ao máximo de sua capacidade, levaram para bordo da Drusus o que restava dos
sessenta mil mirsalenses que deveriam ser abrigados na mesma.
— Pronto; isso está liquidado — murmurou Flaring.
— Ainda bem; entre — pediu Rous. — Acho que partiremos a qualquer momento.
Flaring fitou-o com uma expressão de espanto.
— Eu? — sacudiu a cabeça. — Prefiro ficar aqui. Meu lugar é junto àquela gente
que está esperando seu fim.
Rous assustou-se.
— Não seja idiota, Flaring. O senhor não pode fazer nada por eles. Assim que tudo
tenha passado, voltaremos. O senhor ainda terá muita coisa a fazer.
Flaring levantou o braço e baixou-o lentamente, num gesto de negação.
— Não; ficarei — respondeu. — Talvez ainda estejamos vivos quando o ataque
terminar; talvez não...
Rous viu que estava falando sério e sentiu que quaisquer palavras que visassem
demovê-lo dessa resolução seriam inúteis. Apesar disso insistiu:
— Da segunda vez que nos encontramos eu lhe disse que o senhor é um homem
honesto, Flaring. Garanto-lhe que não nos esqueceremos de Mirsal. Voltaremos com
armas melhores. E então...
Nesse instante, a voz de Rhodan saiu da comporta de carga, que se encontrava
aberta:
— Todos os tripulantes a bordo. Decolagem de urgência, dentro de quatro minutos.
Todos os tripulantes a bordo.
Rous estremeceu. Se Rhodan marcava uma decolagem para dentro de quatro
minutos, a situação devia ser mais que crítica.
A rampa começou a deslocar-se em direção ao corpo da nave. Rous, que se
encontrava junto a Flaring e próximo da mesma, saltou.
— Venha conosco! — gritou para Flaring.
Mas Flaring voltou a baixar o braço. Fez uma mesura para cada um dos três agentes,
voltou-se e, andando de cabeça erguida, dirigiu-se para a cidade.
Era um homenzinho valente que caminhava para a destruição.
***
É bem verdade que a rápida concordância foi uma surpresa até mesmo para Perry
Rhodan.
Começou a desconfiar. A rapidez da resposta permitia duas conclusões diferentes. O
regente de Árcon realmente poderia estar numa situação gravíssima face à atuação do
inimigo invisível; ou então estaria realizando um jogo falso, a fim de dominar o mais
poderoso dos seus concorrentes.
A Drusus foi colocada em estado de alarma antes que entrasse em transição, quando
se encontrava a apenas cem unidades astronômicas de Mirsal. Rhodan avisou a Arc-Koor
de que acabara de receber permissão de ingresso em Árcon.
***
Perry mandou que a Drusus se aproximasse o mais possível — ou seja, pouco mais
de quinhentos metros do envoltório da outra nave — e fez com que as duas naves se
aproximassem nessa formação do anel exterior de fortificações. Rhodan teve a impressão
de que, se o regente pretendesse capturá-lo, desistiria de seu intento assim que percebesse
que teria de perder a mais potente de suas naves. A Arc-Koor seria o penhor da segurança
pessoal de Rhodan.
O primeiro anel de fortificações foi atravessado sem o menor incidente. Mantendo
sempre a menor distância possível, as duas naves avançaram velozmente em direção ao
centro do sistema.
Árcon estava situado no grupo estelar M-13 e era formado por três planetas que
gravitavam em torno da estrela central numa órbita idêntica. Essa disposição fora criada
artificialmente. Originariamente só havia um planeta nessa órbita, que era Árcon I. Com
o desenvolvimento progressivo, o planeta natal dos arcônidas tornou-se muito pequeno.
Sua tecnologia permitiu-lhes movimentar outros planetas do sistema e colocá-los na
mesma órbita de Árcon I.
Cada um dos três mundos preenchia uma função específica. Árcon I era o mundo
residencial dos arcônidas; consistia num maravilhoso jardim artificial. Árcon II, um
planeta bem maior, ficara reservado ao comércio e à indústria privada. E Árcon III era o
mundo da frota espacial e do computador-regente.
Com a precisão extrema de que era dotada sua supertecnologia, os arcônidas fizeram
com que o sistema de três planetas fosse estável. A matemática arcônida sabia tão bem
quanto a terrana que isso só seria possível por meio de uma disposição especial dos três
planetas. Juntamente com o astro central os três mundos formavam três triângulos
eqüiláteros, cujo vértice era formado pelo sol de Árcon. Nesse sistema fora criada, por
meios artificiais, uma constelação quase idêntica àquela que existe há bilhões de anos no
sistema solar terrano, e é formada por Júpiter com seus dois grupos de satélites, os
troianos.
As duas naves dirigiram-se a esse sistema tríplice. Seu destino era Árcon III, o
planeta guerreiro, no qual o computador-regente tinha sua sede.
Rhodan não desperdiçara tempo. Passara aquelas horas numa espécie de diálogo
com o computador positrônico de bordo, a fim de descobrir qual seria o procedimento
provável do regente durante as negociações.
Teve prazer em usar uma máquina contra a outra.
Ao ser consultado, Rhodan deu ordem de pousar. As duas naves desceram lado a
lado pela atmosfera límpida, em que não se via nenhuma nuvem. Pousaram no planeta
bélico, a menos de dois quilômetros da linha na qual a parede reluzente da gigantesca
abóbada energética se erguia contra o céu branco-azulado.
A nave de Perry Rhodan continuou de prontidão. Sabia que o regente tinha o
costume de fazer suas visitas esperarem algum tempo. Enquanto isso todas as posições de
combate ficaram guarnecidas, e a sala de rádio acompanhava as palestras travadas nas
proximidades.
Uma hora passou.
Depois de uma hora e meia, a Drusus recebeu um chamado. A tela do
telecomunicador que ficava acima do painel de Rhodan iluminou-se. Uma vez ligada a
transmissão da imagem, o rosto de um oficial surgiu na tela.
— Bem-vindo em Árcon — disse o arcônida com a voz entediada. — Meu nome é
Drenn. O regente pede que o senhor compareça à sua presença.
Rhodan confirmou com um gesto.
— Para mim será uma honra — respondeu. — Como farei para chegar até ele?
— Eu o acompanharei — disse Drenn.
— Está bem; poderia passar por aqui?
Drenn concordou e suspendeu a palestra.
Rhodan transmitiu as últimas instruções.
***
Drenn parecia ser uma espécie de oficial de relações públicas, encarregado dos
contatos entre o regente e o mundo exterior. Quando seu planador se aproximou da
parede reluzente, esta se tornou transparente, deixando passar o veículo.
Além da barreira energética estendia-se um terreno liso, coberto por uma camada de
plástico. Bem ao longe Rhodan viu uma construção sem janelas, de formato cúbico.
— O que é isso? — perguntou, dirigindo-se a Drenn.
— É o edifício da recepção — respondeu o arcônida. — Toda pessoa que tem a
honra de falar pessoalmente com o regente é recebida ali.
Visto de perto, o cubo com suas paredes negras e brilhantes transmitia uma
impressão sombria e imponente. Em nenhuma das paredes Rhodan descobriu qualquer
saliência ou entrada.
Mas Drenn prosseguiu em direção ao edifício, sem reduzir a velocidade. No
momento exato, uma abertura de cerca de quatro metros de altura e igual largura surgiu
na parede, permitindo que o veículo entrasse no interior iluminado do edifício.
Drenn pousou o planador e desligou o motor.
— Desça e caminhe para a frente! — pediu, dirigindo-se a Rhodan.
Rhodan obedeceu.
Olhou em torno. O interior do cubo era formado de uma única sala, que estava
inteiramente vazia. Havia apenas a luminosidade brilhante e ofuscante que parecia
emanar de cada centímetro cúbico do ar puro e límpido.
Depois de ter dado vinte passos, olhou para trás. Não se surpreendeu ao notar que
Drenn havia desaparecido.
Rhodan prosseguiu. Quando havia chegado aproximadamente ao centro do recinto
cúbico, uma voz potente soou das alturas.
— Pare, Rhodan!
Perry Rhodan obedeceu sem olhar para trás.
Se o computador-regente estivesse em condições de assimilar impressões óticas, e
se, além disso, soubesse interpretar a mímica humana, se espantaria. Ficaria assustado
com a má impressão que o estranho cumprimento causara em Rhodan.
Perry sorriu. Acreditou que conhecia as idéias que os construtores daquelas
instalações deveriam ter quando deram ao cérebro positrônico a possibilidade de dirigir-
se dessa forma aos visitantes.
“Parece a voz de um deus irado”, pensou.
Alguém que não fosse dotado de tanta autoconfiança como Rhodan teria caído de
joelho diante do timbre dessa voz.
“Os arcônidas bem que eram inteligentes! Ao montarem essa instalação, haviam
considerado a mentalidade de todos os habitantes da Galáxia... com exceção da nossa,
dos terranos...”, voltou a refletir.
— Estou parado — respondeu Rhodan.
Teve certeza de que havia um microfone que transmitiria sua resposta, proferida em
arcônida, ao regente.
— Sou o senhor da Galáxia! — voltou a ressoar a voz. — Por algum tempo você
conseguiu privar-me daquilo que de direito me pertence. Estou disposto a perdoar seu
erro, desde que você confesse que agiu injustamente.
Rhodan prestou atenção à voz. Parecia diferente; seu timbre era menos mecânico,
mais pessoal do que seria de esperar de uma máquina. Ao que tudo indicava, os arcônidas
sabiam transmitir uma nota humana aos instrumentos mecânicos.
Quanto ao mais, fez de conta que não sabia de que o regente estava falando.
— Não compreendo o que você diz — respondeu.
— Estou aludindo ao seu mundo natal, Rhodan — explicou o regente. — Todos os
mundos me prestam submissão, e o seu deve proceder da mesma forma. Até agora você
tem resistido. Veio para declarar que está disposto a submeter-se?
— Não — respondeu Rhodan. — Não vim para isso.
— Conquistarei o direito que não me for concedido voluntariamente.
— Você não tem nenhum direito de assenhorear-se de meu mundo.
— O que vem a ser o direito? Sou o mais forte, e direito é aquilo que eu achar
conveniente.
— Pois você deixará de achá-lo conveniente quando resolver recorrer à violência.
— Por que não? Em comparação com o Grande Império, seu mundo não passa de
uma partícula de pó.
Rhodan riu.
— Talvez você acredite no que está dizendo; mas, se resolver tirar a prova, sairá
decepcionado. Meu mundo é mais poderoso que o velho Árcon.
— Isso é impossível!
— Não. Não se esqueça de que não conhece minha raça, e que quase sessenta anos
se passaram desde que estivemos em contato pela última vez. E em sessenta anos minha
raça fez mais que as outras raças em trezentos.
— O que são sessenta anos? Para um ser como eu, o tempo não representa nada.
Sou imortal, e para mim um lapso de tempo sempre é igual ao outro; pouco importa a
designação que os mortais usem para o mesmo. Quer dizer que se recusa a submeter-se?
Rhodan esquivou-se. Subitamente teve uma idéia que lhe pareceu tão plausível que
estacou.
— Quero fazer-lhe uma proposta — respondeu. — Vamos iniciar nosso contato com
um diálogo sobre o inimigo comum. Depois poderemos falar sobre meu mundo. Sempre
se deve começar pelo mais importante.
Ao que parecia, o regente não percebeu a recriminação. Hesitou um pouco e
respondeu:
— Concordo. Relate o que conseguiu saber.
Rhodan contou exatamente aquilo que preparara horas antes a bordo da Drusus.
Transmitiu as impressões gerais que seus três agentes haviam colhido em Mirsal II.
Limitou-se a relatar o que havia acontecido, com exceção da tentativa bem sucedida de
penetrar no mundo do inimigo, realizada por Rous, e de tudo que se relacionava com as
dimensões temporais dos dois universos.
O regente não soube o que fazer com aqueles dados mínimos.
— É só isso? — perguntou. — Essas informações não nos fornecem qualquer meio
de agir contra o inimigo.
— Mesmo que fosse só isto — disse Rhodan em tom de escárnio — não nos
deveríamos esquecer de que quem descobriu esses fatos fomos nós, e não os seus
comandados, que se esconderam atrás das paredes de sua nave.
Rhodan sabia que seria impossível ofender o regente, mas talvez seria conveniente
que na memória dele ficasse armazenado o fato de ser a raça dos terranos mais ativa e
arrojada que a dos arcônidas e a dos saltadores.
— Quer dizer que não é tudo? — perguntou o regente.
— Não. Reunimos muitos dados, e queríamos pedir-lhe que os interpretasse. Não
dispomos de meios para isso.
— Concordo — respondeu o regente. — Instruirei Drenn a recolher as informações
e apresentá-las a mim.
— Eu as entregarei a Drenn — confirmou Rhodan. — Quer dizer que por enquanto
a palestra está concluída?
— Está. Pode retirar-se. Drenn o levará de volta à sua nave.
A viagem até a Drusus durou apenas alguns minutos, mas o tempo foi suficiente
para que Rhodan resumisse suas impressões.
Sentia-se decepcionado. Imaginara que aquele que governava o Império — mesmo
que fosse apenas uma máquina — seria uma coisa poderosa e impressionante. O que
encontrara? Algo que procurava os efeitos dramáticos, que procurava causar impressão
por meio de exigências grosseiras e inexeqüíveis e dispensava um tratamento prepotente
e arrogante aos visitantes.
Seria este o coração do grande Império Arcônida?
***
Drenn já estava a par do que deveria fazer. Cabia-lhe receber as informações que
haviam sido coletadas. Rhodan entregou-lhe as mesmas na sala de comando, depois que,
conforme fora combinado, se submetera a um teste psicológico.
Drenn recebeu o maço enorme de anotações e fitas perfuradas, saiu da nave, pegou
seu planador e voltou à abóbada energética que abrigava o regente. Rhodan viu-o
desaparecer atrás da parede reluzente. Dali a menos de uma hora, Drenn voltou a
aparecer. O simples fato de ter pedido permissão para entrar na nave e subir à sala de
comando provava que as suposições de Rhodan foram corretas: Drenn viera para buscá-
lo.
— O regente solicita outra entrevista com o senhor — principiou Drenn.
Rhodan fez um gesto de recusa.
— O regente superestima minha capacidade de ficar de pé — respondeu com a voz
tranqüila. — Faz trinta horas que não vejo uma cama. Acho que bastará entrar em contato
comigo pelo telecomunicador. Poderei poupar-me à canseira de mais uma viagem.
O rosto de Drenn ficou pálido como cera.
— Não... não posso fazer uma coisa dessas — gaguejou.
Rhodan fez um gesto reconfortador.
— É claro que pode. A iniciativa não é sua. Explique ao regente que me sinto tão
cansado que não posso deixar a nave a esta hora. Poderá comunicar-se comigo aqui
mesmo ou aguardar até que tenha dormido.
Drenn ficou com a boca escancarada e os olhos arregalados. Levou algum tempo
para balbuciar:
— Darei o recado. Mas a responsabilidade será sua.
— Naturalmente — respondeu Rhodan. — Pode retirar-se; não se preocupe.
Drenn saiu aos tropeções. Depois de algum tempo, Rhodan viu-o entrar no veículo
planador e sair pela terceira vez em direção à abóbada energética.
Não demorou que a tela do telecomunicador se acendesse. Rhodan ativou a recepção
e o rosto de Drenn surgiu. Continuava assustado e incrédulo.
— Pois não!
— Estou autorizado a ligá-lo com o regente — disse Drenn. — Está pronto?
— Estou pronto, Drenn.
***
A palestra durou nada menos que uma hora. E Perry Rhodan saiu vencedor.
Obteve o comando de setenta e cinco por cento da frota de guerra dos arcônidas.
Além disso, o regente lhe garantiu que nenhuma das naves colocadas à sua disposição
seria equipada com robôs. Dali em diante Árcon III seria uma base independente para a
frota que operaria sob o comando de Perry Rhodan, e continuaria a sê-lo enquanto o
administrador do Império Solar o precisasse.
Além disso, teria à sua disposição uma série de bases espalhadas por toda a Galáxia.
Os respectivos comandantes receberam instruções superiores para obedecer às ordens de
Perry Rhodan.
— Daí se conclui — disse Rhodan, dirigindo-se a Baldur Sikermann, o imediato da
Drusus — que por muito tempo o regente nem pensa em molestar a Terra. A partir de
hoje, setenta e cinco por cento da frota arcônida estão submetidos ao meu comando. Uma
vez que em nenhuma dessas naves poderá ser montado um robô, os respectivos
comandantes não manterão contato direto com o regente e obedecerão exclusivamente às
minhas ordens. Se quiser, até poderei ocupar Árcon.
Sikermann foi despertando do torpor.
— Ele lhe deu tudo isso em troca de nada?
— Não. A máquina precisa de meu auxílio, pois não sabe como defender-se do
inimigo.
— Ainda não sabe? Pois nós lhe demos todas as informações.
— Essas informações não lhe serviram de nada.
— Por quê?
Rhodan sentou-se.
— A primeira palestra que mantive com o regente foi gravada em fita — respondeu.
— Ouça a parte mais importante.
Rhodan tirou do bolso um pequeno aparelho, colocou-o sobre a mesa de
instrumentos e ligou. Depois de procurar um pouco, encontrou o lugar correspondente ao
trecho a que acabara de referir-se. Sikermann ouviu a voz de Rhodan:
— ...não se esqueça de que não conhece minha raça, e que quase sessenta anos se
passaram desde que estivemos em contato pela última vez. E em sessenta anos minha
raça fez mais que as outras raças em trezentos.
Depois ouviu-se a resposta do regente:
— O que são sessenta anos? Para um ser como eu, o tempo não representa nada.
Sou imortal, e para mim um lapso de tempo sempre é igual ao outro; pouco importa a
designação que os mortais usem para o mesmo.
Rhodan desligou. Sikermann fitou-o como quem não compreendia nada.
— Não compreendo — murmurou.
— Pois já deveria ter compreendido. Ao que parece, o ponto básico das informações
que conseguimos reunir sobre o invisível é a diversidade das dimensões temporais
reinantes nos dois universos.
“A máquina está em condições de medir segundos, minutos ou horas, e de registrar
um lapso de muitos e muitos anos. Sabe calcular com o tempo, como com quaisquer
outros dados numéricos. Mas no momento em que se deve jogar com dimensões
temporais diversas, sua compreensão, ou seja, a compreensão do imortal, falha por
completo.
“Em resumo, as informações que lhe fornecemos não lhe servem para nada. Torna-
se necessário que lhe seja acrescentado um novo setor, capaz de calcular com várias
dimensões temporais, ou então dependerá inteiramente de nós. É que entre os cientistas
arcônidas haverá muito poucos que estarão dispostos a afastar-se das suas telas de
imagens fictícias para dedicar-se a esse problema.”
Sikermann respirou profundamente.
— Quer dizer que estamos...
— Quer dizer que estamos fora de perigo — disse Rhodan. — E não é só isto; pode-
se dizer que somos os donos do mundo. Os desconhecidos devem representar uma
ameaça muito séria para o regente, pois do contrário nunca teria concordado em fazer
tamanhas concessões.
***
A Drusus permaneceu por alguns dias em Árcon III. A submissão de grande parte da
frota arcônida às ordens de Rhodan trazia uma série de problemas administrativos, cuja
solução exigia algum tempo.
Durante esse tempo Rhodan manteve uma série de palestras com o regente, que
passou a usar um tom muito mais amistoso. Basta dizer que Rhodan obteve autorização
para deixar os cem mil mirsalenses evacuados em Árcon I até que os mesmos pudessem
regressar ao seu mundo de origem.
Foi a primeira vez na história que o planeta residencial dos arcônidas passou a
abrigar seres estranhos.
Quanto à frota arcônida, Rhodan tivera suas dúvidas. Pensou que os respectivos
comandantes talvez relutassem em submeter-se às suas ordens. Mas teve de constatar que
não soubera avaliar corretamente a mentalidade dos arcônidas. De um lado, face às
próprias características de sua raça, eram tão indolentes que dificilmente seriam capazes
de sentir qualquer emoção; além disso, ao que tudo indicava, preferiam ser comandados
por um homem estranho do que por uma máquina.
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