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aulo Markun: Boa noite! O terceiro programa da série do Roda Viva na Festa
Literária Internacional de Parati apresenta, hoje, a entrevista de um escritor que
tem a vida e a obra centrada num dos piores dramas vividos no mundo atual: o
conflito entre árabes e israelenses. Ele participou de duas guerras como
soldado de Israel. Depois tornou-se um militante pacifista e produziu uma obra
literária que o transformou no mais importante escritor de língua hebraica,
traduzido praticamente em todo o mundo. O Roda Viva entrevista hoje o
ativista político e escritor israelense Amós Oz, o principal nome da literatura
atual de Israel e um dos destaques da Festa Literária Internacional de Parati.
Ele recebeu, na semana passada, o prêmio espanhol Príncipe de Astúrias de
letras 2007 pela sua obra em defesa da paz e de denúncia contra o fanatismo.
ORoda Viva começa em instantes.
[intervalo]
Paulo Markun: O senhor, num certo trecho desse livro, o senhor diz que, às
vezes os fatos comprometem a verdade. Eu queria que o senhor explicasse
melhor essa frase.
Norma Couri: O senhor diz que, para a confecção da paz, alguns elementos
são necessários e são elementos que os políticos não costumam usar. Por
exemplo, o senhor já citou os Beatles [banda de rock formada com quatro
integrantes: John Lennon (guitarra e vocal), Paul McCartney (baixo e vocal),
George Harrison (guitarra e vocal) e Ringo Starr (bateria e vocal) em Liverpool,
Inglaterra, na década de 1960. Fez muito sucesso e é referência musical no
mundo todo até hoje]: “O que está faltando no mundo é amor”. E outra vez o
senhor citou as armas que os escritores usam: a literatura. Então, primeiro,
nunca vai se chegar à paz com encontros, acordos, apertos de mão, decretos,
divisão de território? E [de] que material estranho é feita a paz? Tão estranho,
que há cinqüenta e oito anos ninguém sabe o que é paz naquela parte do
mundo. Será que só lêem [William] Shakespeare [(1564-1616) romancista
inglês. Seus poemas, contos e peças são frequentemente readaptados às
situações cotidianas atuais, em especial as tragédias, que são bastante
conhecidas. Por exemplo, Romeu e Julieta, Hamlet e Otelo] lá. Acaba tudo em
tragédia?
Amós Oz: Eu disse várias vezes que o conflito entre judeus israelenses e
árabes palestinos é uma tragédia. É um conflito entre o certo e o certo.
Tragédias se resolvem de duas maneiras. Há a maneira shakespeariana de
resolver uma tragédia. Ao final de uma tragédia de Shakespeare, o palco está
coberto de cadáveres, mas a justiça prevalece. E há também a maneira
tchecoviana de resolver uma tragéia. Ao final de uma tragédia de Tchecov
[(1860-1904) escritor russo. Depois de se formar em medicina, passou a
escrever contos e peças teatrais de grande aceitação do público. Criou o
gênero literário conhecido como conto moderno: história com grande emoção e
enredos curtos. É autor de Tio Vânia, Ivanov, As três irmãs e O jardim das
cerejeiras,peças que não deixam de ser encenadas com grande sucesso],
todos estão decepcionados, desiludidos, amargos, de coração partido,
melancólicos, mas vivos. Eu e meus colegas do movimento de paz em Israel
queremos uma solução tchecoviana e não shakespeariana. O que significa
uma concessão, não uma lua-de-mel. Não queremos amor. Nunca acreditei no
lema “faça amor, não faça a guerra”. Porque o contrário de guerra não é amor,
o contrário de guerra é paz. Não é preciso haver amor entre os inimigos para
que haja paz, para que eles parem de atirar e matar e vivam como vizinhos. Só
precisamos de paz, não necessariamente de amor. Com relação aos
palestinos, meu lema é “faça a paz, não faça amor”.
Helio Goldsztejn: Como é ser minoria dentro da sua própria pátria, para o
senhor que vive lá antes dela ser pátria? Como é ser minoria dentro do seu
país?
Amós Oz: Você pergunta como é ser minoria no meu país, mas não sei como
seria de outra forma. Nunca fui maioria, não posso comparar, sempre fui
minoria. Mas talvez você se interesse em saber que fui criado numa família
militar, direitista e extremista. Quando eu era criança, era a minoria. A direita
era minoria. Eu me tornei esquerdista a tempo de continuar sendo minoria,
quando a esquerda se tornou minoria. Sempre fui minoria, não sei como é ser
maioria.
Noemi Jaffe: No livro De amor e trevas, o senhor diz que o seu sonho, quando
era menino, era se tornar um kibutz, um frequentador do kibutz, um habitante
do kibutz bronzeado, bonito, corajoso. Até por causa disso o senhor mudou o
seu nome para coragem. O senhor acha que atingiu esse objetivo, conseguiu
se tornar um homem bronzeado e corajoso ou ainda tem alguma coisa do
menino pálido e doente dentro do senhor?
Amós Oz: Quando tinha 14 anos, eu me rebelei contra o mundo do meu pai.
Decidi ser tudo que ele não era, e não ser tudo que ele era. Ele era de direita,
eu me voltei para a esquerda. Ele era intelectual, eu fui dirigir tratores. Ele
morava na cidade, eu fui viver num kibutz. Ele era baixinho, eu decidi ser alto.
Não deu muito certo, mas eu tentei. Claro que, agora, aos 68 anos, sei que
qualquer rebelião percorre meio círculo. Ainda me sento numa sala cheia de
livros como meu pai e escrevo livros, que era o que meu pai esperava de mim.
Sei que ele está rindo, em seu túmulo, da minha rebelião e da minha revolução.
Amós Oz: Minha rebelião nasceu, acima de tudo, por causa da morte da minha
mãe. Quando eu tinha 12 anos, ela se matou e eu percebi que havia alguma
coisa muito errada no mundo. Não só na minha família, mas no mundo. Eu me
rebelei contra o clima sufocante da minha família. Foi uma rebelião contra os
livros. Porque cresci num mundo cercado de livros, minha paisagem eram os
livros. Eu saía pouco. Era perigoso um garoto judeu em Jerusalém sair pelas
ruas, porque havia tiroteios. Então, minhas colinas, meu rio, meu prado, minhas
paisagens eram os livros da biblioteca. Esse era o meu mundo e eu queria
passar do mundo dos livros para o mundo real. Foi essa a minha rebelião.
Amós Oz: Acho que são caminhos diferentes. Sobre minha mesa, tenho duas
canetas, porque escrevo à mão, não escrevo no computador. Tenho uma
caneta preta e uma azul. Uma delas é para escrever artigos e dizer ao governo
para ir para o inferno. O governo lê os artigos, mas não vai para o inferno por
alguma razão. [risos] A outra é para escrever histórias. Não misturo as duas.
Quando tenho uma mensagem clara, “faça isto, não faça aquilo”, escrevo um
artigo, não uma história. Contar histórias é bem diferente. É uma coisa muito
profunda e primitiva. Contar histórias é como sonhar, é como fazer amor, é
como o sexo, é como o alimento. É uma coisa essencial na minha vida. Não
misturo as duas coisas. Não escrevo histórias para dizer ao governo o que
fazer. Isso eu faço nos artigos.
Amós Oz: Ser judeu é discutir. Ser judeu é discordar. Ser judeu é não estar de
acordo. Não é só discutir entre si, mas inclusive discutir com Deus. Israel é
uma nação com 7,5 milhões de cidadãos, 7,5 milhões de primeiros-ministros,
7,5 milhões de profetas, 7,5 milhões de messias e Cristos. Cada um com sua
fórmula pessoal para a salvação instantânea. Todos falam o tempo todo.
Ninguém jamais escuta. Eu às vezes escuto, é assim que ganho a vida:
escutando. Mas veja que, em Israel, qualquer fila de ônibus, um grupo de
pessoas totalmente estranhas... qualquer fila de ônibus torna-se um seminário
a céu aberto, com estranhos discutindo política, história, moral, metafísica e
religião. Os participantes desses seminários de rua, enquanto vão discordando
entre si com questões políticas e metafísicas, vão abrindo caminho até o
começo da fila. Ser judeu é isso.
Amós Oz: Tenho uma... Desculpe. Tenho uma deficiência física, não sei dizer
as palavras “sem comentários”. Como posso ser político?
Amós Oz: Agora temos três presidentes. Um afastado por assédio sexual e
estupros; um presidente eleito, ainda não em exercício, e um presidente em
exercício. Israel é o único país com três presidentes no momento. Claro que
acho que esse escândalo sexual é o símbolo da normalização de Israel. Israel
está se tornando um país como qualquer outro. Com isso, os judeus voltam à
família das nações, ficam sendo iguais a todos os outros. O presidente será
preso e o país seguirá seu curso.
Paulo Markun: Como é que o senhor imagina que se reproduz essa, digamos,
filosofia, essa cultura de guerra, de conflito que existe no Oriente Médio?
Gerações e mais gerações se sucedem ali e continuam numa disputa insolúvel.
A gente vê a Europa, por exemplo, que já teve a Guerra dos Cem Anos, hoje
unificada apesar de todos os problemas de imigrações. Mas, no Oriente Médio,
a gente não enxerga isso. O que é que faz essa permanência da cultura da
guerra?
Amós Oz: Vou dar duas respostas a essa pergunta. Primeira resposta: não
acredito na tese da guerra das civilizações. O islã contra o resto do mundo.
Isso não é verdade. A verdadeira batalha é entre os fanáticos e os outros.
Fanáticos são muçulmanos, judeus, cristãos, radicais de extrema esquerda,
radicais de extrema direita. Eles estão em todo lugar. Na verdade, há um pouco
de fanático em todo ser humano. A batalha no Oriente Médio não é entre
judeus e árabes, mas entre fanáticos e os outros. Agora, a segunda resposta.
Todos sabem a resposta para o conflito entre Palestina e Israel. Todos sabem.
A resposta é a divisão, uma solução de dois Estados. Israel ao lado da
Palestina, como vizinhos. É um país pequeno, do tamanho do Uruguai, muito
pequeno mesmo. Mas terá de ser dividido em dois países ainda menores.
Como numa casa com duas famílias que não conseguem viver juntas, é
preciso dividir a casa em dois apartamentos, Israel ao lado da Palestina. A
cultura do ódio e da hostilidade vai demorar muitos anos para acabar. Mas
sempre acreditei que, primeiro, precisamos da paz, para depois mudar as
emoções. É uma suposição muito sentimentalista achar que primeiro mudamos
as emoções, fazemos com que todos se amem, para depois chegar à paz.
Não. Primeiro um acordo, depois a mudança de emoções.
Paulo Markun: Vamos fazer um rápido intervalo e voltamos num instante com
o Roda Viva, direto da Festa Literária Internacional de Parati. A gente volta em
instantes.
[intervalo]
Paulo Markun: O Roda Viva entrevista hoje o escritor israelense Amós Oz.
Como o programa está sendo gravado, ele não permite a participação do
telespectador. Eu queria perguntar para o senhor o seguinte: no seu livro De
amor e trevas, o senhor menciona que tudo que escreve, afinal das contas, é
autobiográfico. E também menciona, num outro trecho, que o senhor é uma
espécie de radar ou imã, que captura histórias e se apropria das histórias dos
outros. Eu queria saber: entre uma coisa e outra – ser autobiográfico e essa
captura permanente de histórias alheias–, que espaço sobra para a imaginação
e qual é o papel dela?
Amós Oz: Minha imaginação faz parte da minha autobiografia. Minha fantasia
faz parte da minha vida e é uma parte muito importante. Meus sonhos fazem
parte da minha vida, meus encontros com outras pessoas fazem parte da
minha vida. Quando me sento num ônibus e ouço uma conversa entre dois
completos estranhos, a conversa deles se torna parte da minha vida. Se eles
falarem de uma terceira pessoa que não está no ônibus, esse estranho
também passará a fazer parte da minha vida. Gostaria que a palavra
“autobiográfica” fosse entendida em seu sentido mais amplo, não apenas
coisas registradas no meu currículo, mas tudo que já vi, já ouvi, já sonhei ou
fantasiei.
Paulo Markun: O senhor acha que isso tem a ver com o fato da sua infância
ser de um menino solitário, que se trancava às vezes no quarto, no banheiro e
imaginava batalhas fantásticas com pastas de dente e outros objetos?
Amós Oz: Sim, eu era uma criança que fantasiava. Sou filho único, não tive
irmãos nem irmãs e, como eu disse, eu ficava quase sempre fechado em casa,
não nas ruas, nos campos ou no parque. Então, boa parte do mundo tinha de
sair da minha cabeça. Inventei para mim mesmo o mundo, histórias, galáxias,
jornadas, viagens, mais tarde, casos de amor. Sou um homem de fantasias.
Ainda hoje, se você me prender, ficarei infeliz, mas não entediado. Terei coisas
suficientes na cabeça para me manter ocupado por anos.
Marcelino Freire: Esse livro, um dos mais recentes lançamentos aqui no
Brasil, E a história começa, em que você aponta dez brilhantes inícios de
clássicos da literatura universal. Eu gostaria que você comentasse esse livro e
também dissesse como você trabalha o começo das suas histórias. O Gabriel
García Márquez sempre diz que ele passa mais tempo para escolher a primeira
frase, o primeiro parágrafo de um livro, do que o livro inteiro. Eu gostaria de
saber também como é a sua escolha... o seu conflito diante dessa primeira
frase.
Amós Oz: Bem, começar uma nova história, um novo romance é como
começar um relacionamento com alguém completamente estranho. É como dar
uma cantada em alguém num restaurante. Você precisa dizer alguma coisa
sem parecer um idiota, sem fazer papel de idiota. Você precisa de uma frase
divertida, que chame atenção, ou seja, engraçada. Uma frase misteriosa, uma
coisa que chame a atenção sem ser agressiva. É exatamente o que acontece
quando sinto atração por uma mulher bonita num café ou num restaurante e
quero abordar essa mulher. Comigo é bem parecido com o começo de um
romance.
Paulo Markun: Agora, então, nesse sentido, o melhor começo, não sei, talvez
seja o “era uma vez”. O “era uma vez” posiciona as coisas como se elas
efetivamente tivessem acontecido e, portanto, transporta o leitor para aquela
realidade fantástica como se ela fosse real. O senhor concorda?
Amós Oz: De fato, uma das minhas novelas, aqueles contos mais longos,
começa com “Era uma vez”.
Amós Oz: Sim, me incomoda, mas passei a ser filosófico nesse sentido. Se eu
escrever um conto sobre um pai, uma mãe, uma filha e dinheiro trocado, os
críticos e os leitores dirão que o pai é o governo, a mãe representa os
palestinos, a filha é o conflito e o dinheiro é a economia ruim. Sei que será
assim. Não posso fazer nada.
Amós Oz: Há 20 anos moro numa pequena cidade no deserto, chamada Arad,
no sul de Israel, cercada pelo deserto. O deserto começa a 5 minutos a pé da
minha casa. Todas as manhãs acordo cedo, às 5h, tomo uma xícara de café,
vou ao deserto, fico 30, 45 minutos e caminho em silêncio, sozinho... no
deserto por 45 minutos. Então, volto, tomo outro café e me sento à minha
mesa. O deserto me ajuda a ver as coisas em perspectiva. Ele me ajuda a
descobrir o que é importante e o que não é importante. Quando ligo o rádio
depois de voltar do deserto, eu ligo o rádio e escuto os políticos usando as
palavras “nunca”, “para sempre” ou “por toda a eternidade”. Sei que as pedras
do deserto estão rindo deles, dos políticos com a “eternidade”, o “nunca” e
o “para sempre”. Assim, para mim, o deserto é uma experiência de humildade
e uma profunda inspiração. Além disso, o deserto me dá uma certa idéia sobre
a relação entre a vida e a morte. Ele me lembra como a morte está próxima da
vida.
Amós Oz: Bem, nunca criei uma nação, fiz parte do processo de uma nação já
criada. Mas faço parte da criação de uma nova língua antiga. O hebraico é uma
das línguas mais antigas do mundo, é a língua dos profetas, a língua de Jesus.
Mas ela ficou morta por 17 séculos, morta como o latim ou o grego. Talvez
fosse uma Bela Adormecida. Nos últimos 100 anos, o hebraico renasceu de
maneira vigorosa e me sinto orgulhoso, feliz, contentíssimo por fazer parte
desse renascimento da língua, inventando novas palavras e novas formas, mas
também reciclando palavras e formas antigas, formas literárias e gramaticais.
Para mim, trabalhar com a língua hebraica é uma experiência erótica, que me
agrada muito.
Amós Oz: Quero que o leitor confie nele mesmo, não em mim. Eu disse que
começar um conto é como começar um relacionamento. Se um estranho se
aproximar de você num café e disser que você é a mulher mais linda do
mundo, não confie nele. Confie em você e nos seus instintos. Talvez ele seja
um bom homem querendo um relacionamento, mas confie em você, não nele.
Amós Oz: Esse é o começo do livro Meu Michel, que é a confissão de uma
jovem, escrita em primeira pessoa. Tenho de me defender e dizer que escrevi
esse livro aos 24 anos e achava que sabia tudo sobre as mulheres. Tive a
ousadia de escrever um romance inteiro sob o ponto de vista feminino. Hoje eu
não ousaria fazer isso, escrever um romance sob o ponto de vista feminino.
Mas, aos 24 anos, eu pensava saber tudo. Agora, a resposta da sua pergunta.
Sim, os mortos são muito importantes para mim. Não só para mim, mas para
você, para todos. Na verdade, costumamos convidar os mortos aos nossos
lares e dizemos a eles: “Sentem-se, tomem um café. Vamos
conversar.” Deveríamos fazer isso. É bom convidar os mortos, não para morar
conosco: não quero morar com os mortos. Depois do café e da conversa, eu
digo: “Vão embora. Voltem no mês que vem ou daqui a dois meses. Venham
tomar um café de tempos em tempos.” Essa é minha relação com os mortos.
Eu os convido para tomar café e conversar. Quero apresentar a eles minha
mulher e meus filhos, que eles não conheceram. Quero apresentá-los, quero
tomar café com eles e conversar. Mas, depois, que eles voltem aos seus
túmulos.
Luís Krausz: O que significou para a sua geração de escritores trazer à tona
temas que a geração anterior deixou de lado e considerou até um tabu como
os judeus da diáspora, os árabes, o holocausto...
Amós Oz: Foi uma libertação. Para a minha geração houve um sentido de
libertação literária, porque pudemos derrubar tabus de muitas gerações
anteriores. Mas me permita fazer uma correção: os gigantes das gerações
anteriores também derrubaram os tabus. Não somos – meus colegas e eu – os
primeiros a fazer isso. Os gigantes das gerações anteriores, escritores
como Agnon e Yizhar derrubaram os tabus e escreveram sobre tudo. Mas com
a minha geração, isso ficou comum. Todos podiam escrever sobre qualquer
coisa. Houve ampla liberdade, às vezes usando termos bem sacrílegos.
Norma Couri: Uma vez o senhor disso que o Arafat não era o Abbas [(1936)
presidente da Palestina desde janeiro de 2005. Depois do primeiro conflito
contra Israel, ainda em 1948, passou a ser um refugiado palestino. Foi um dos
fundadores, junto com Yasser Arafat, da organização Fatah, momento no qual
adota o nome de guerra Abu Mazen. Em 1968 se integra à Organização para a
Libertação da Palestina (OLP) e, a partir da década de 1970, começa a se
aproximar dos grupos pacifistas israelenses. Em março de 2003 se torna o
primeiro ministro da Palestina, vindo a ser presidente em 2007] e que o senhor
não era a Jane Fonda [(1937) atriz americana. Famosa pela sua posição
política, beleza e talento artístico. Tanto ela como sua família já premiados com
o Oscar. Além disso, ela atuou nos anos 1970 pela causa feminina e contra a
Guerra do Vietnã]. E, na verdade, nenhum dos três era o que era. Eu quero
saber, hoje, o que é o Abbas, o presidente da autoridade Palestina, o que é a
Jane Fonda e o que é o senhor?
Amós Oz: Para começar, não sou Jane Fonda. Olhe para mim. Não sou Jane
Fonda mesmo, sinto muito. Seria ótimo ser Jane Fonda, mas não sou. Acho
que Mahmoud Abbas é o líder pragmático dos palestinos, mais pragmático.
Acho que ele é um sócio da paz e será um desperdício o governo israelense
não fazer negócios com Mahmoud Abbas. Não estou dizendo que o adoro e o
idolatro. Nunca adorei o sr. Arafat, ele foi um péssimo líder para os palestinos,
um líder desastroso para os palestinos, mas também tivemos nossos próprios
líderes desastrosos. Houve líderes desastrosos dos dois lados por muitos anos.
Este é um momento interessante, porque Israel tem um governo pragmático e
o Fatah, na Cisjordânia, também tem um governo pragmático. É uma boa
oportunidade para tentar um acordo pragmático entre os pragmáticos dos dois
lados.
Paulo Markun: Nós vamos fazer mais um rápido intervalo e voltamos daqui a
instantes com o Roda Viva, apresentando a entrevista com o escritor
israelense Amós Oz, na série especial sobre a Festa Internacional Literária de
Parati. A gente volta já, já.
[intervalo]
Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva e a série especial gravada
na Festa Internacional Literária de Parati. No programa de hoje entrevistamos o
escritor israelense Amós Oz. Autor de uma vasta obra que traz a marca de sua
ação política em defesa da paz, em especial entre árabes e israelenses. Nós
estávamos falando, no bloco anterior, sobre a questão autobiográfica, o papel
da memória etc. Mas nós vivemos num mundo em que a curiosidade da mídia
principalmente e, por tabela, do público – eu não sei onde começa uma coisa,
se é o público que empurra a mídia pra frente ou é o contrário – é absurda, é
imensa. De tal maneira, que até mesmo os escritores, que são figuras que
tinham, teoricamente, no passado, a sua torre de marfim, hoje são objetos de
curiosidade. Os programas... os reality shows são grandes sucessos de público
e audiência no mundo inteiro. Eu pergunto se essa excessiva curiosidade, se
essa obsessão pelo detalhe, se essa invasão da vida particular não reduz o
espaço da imaginação e da literatura?
Amós Oz: Como posso reclamar se o meu trabalho literário também é uma
invasão do espaço privado e também é baseado na curiosidade? Há uma
relação misteriosa entre literatura e fofoca. A fofoca é o parente vulgar da
literatura, ambas são parentes. Não se cumprimentam na rua, mas são primas
a fofoca e a literatura. Não reclamo da curiosidade, é uma qualidade humana.
Acho que é uma boa qualidade. A curiosidade é importante moralmente. Ela
tem um valor moral. Se formos curiosos sobre outra pessoa, provavelmente
não nos tornaremos fanáticos. Se formos curiosos para entender a vida de
outra pessoa, podemos imaginar a vida dessa outra pessoa e imaginar a vida
de outras pessoas é um imperativo moral, a meu ver. Claro que há diferenças
entre literatura e fofoca. A fofoca traz sempre descobertas triviais e conclusões
triviais, enquanto a boa literatura traz conclusões e idéias novas. Mas a
curiosidade é comum e graças a Deus ela existe. Gosto de gente curiosa e eu
mesmo sou curioso.
Hélio Goldsztejn: Agora, eles não foram eleitos? Eles não subiram pelo voto
popular?
Amós Oz: Não vamos esquecer que apenas 32% dos eleitores palestinos
votaram no Hamas e 68% votaram contra. Apenas graças a um sistema
eleitoral muito complicado, o Hamas conseguiu a maioria no parlamento
palestino, mas nunca foi a maioria na população palestina.
Amós Oz: É uma pergunta pessoal e íntima, mas vou dizer uma coisa...
Amós Oz: Um dos personagens de uma história que escrevi há muitos anos
sentava-se em um café de Jerusalém com um velho homem e iniciava uma
conversa com ele. Ele acabava descobrindo que o velho é Deus em pessoa.
Em Jerusalém, de vez em quando, isso acontece. Ele pergunta ao velho: “Qual
é a verdadeira religião? É o judaísmo, o cristianismo, o islamismo? Que tipo de
cristianismo?”. E Deus responde: “Para dizer a verdade, não sou religioso e
não tenho nenhum interesse em religião”. Essa é minha resposta para você.
Paulo Markun: Mas isso coloca uma outra questão, que é o fato da tradução,
quer dizer, o senhor escreve em hebraico e eu, que ignoro a língua, não tenho
a menor idéia do som daquilo que o senhor escreve, do ritmo das palavras,
salvo pelo serviço de tradutores. E isso acontece em muitos países do mundo
onde o senhor é publicado. Primeiro, como o senhor recebe o som das
palavras quando as ouve de textos de tradução de seus livros? E, em segundo
lugar, como o senhor encara essa histórica batalha entre autores e tradutores?
Norma Couri: O senhor falou para o Hélio que Israel dá eletricidade e comida
de graça para Gaza e recebe, de graça também, bombas e ataques. Mas o
mundo continua anti-semita. E cada vez mais. Eu pergunto se o problema não
são os amigos que vocês têm. Porque o maior amigo de Israel é os Estados
Unidos. E a política do Bush não é admirada em nenhuma parte do mundo
mais. Não está na hora de mudar de amigos?
Amós Oz: Israel adoraria mudar de amigos. É muito difícil para Israel encontrar
amigos. A maioria dos países prefere a amizade do mundo árabe. O mundo
árabe e o mundo muçulmano são imensos, Israel é muito pequeno. Quando as
pessoas podem escolher, preferem a amizade dos árabes e muçulmanos à
amizade de Israel. Não gosto da amizade de Israel com os EUA. Sobretudo
sob a administração de Bush. Todo mundo sabe que Bush não é meu herói.
Acho que ele já não é o herói de ninguém. Mas Israel tem poucas opções na
escolha dos amigos. Sei que para muita gente no mundo, que tem sentimentos
anti-EUA muito fortes, Israel é o Bebê de Rosemary [1968. Dirigido por Roman
Polansky], o filho do diabo, o que é uma infelicidade para Israel, sei disso.
Marcelino Freire: O senhor falou uma vez, “eu não perdoei minha mãe por ter
me abandonado, meu pai por ter deixado que ela se matasse e a mim por não
ter sido um bom menino”. Como está o senhor hoje, diante desses conflitos?
Amós Oz: Perdoei meus pais, perdoei os dois totalmente. Quando cheguei aos
60 anos, descobri que a raiva tinha passado e, em vez de raiva, veio à
curiosidade, a empatia, alguma ironia e muita compaixão. Escrevi De amor e
trevas, meu romance autobiográfico no espírito de compaixão, curiosidade,
ironia e empatia. Hoje, vejo meus pais como se fossem meus filhos e eu, como
pai deles. É isso que sinto em relação a eles.
Flávio Moura: O senhor morou mais de trinta anos num kibutz. Como foi
começar a fazer sucesso como escritor dentro da estrutura de um kibutz? O
que muda na comunidade?
Amós Oz: Sim, ainda sou socialdemocrata. Ainda acredito no socialismo sem
coação e, de preferência, sem um governo central forte. Acredito no socialismo
descentralizado, pequenos grupos ou células socialistas voluntárias operando
como grandes famílias – o que é o kibutz, uma grande família–. Cem famílias,
200 famílias trabalhando como uma família só. Ainda acredito que essa é uma
alternativa interessante e atraente à vida que a maioria de nós tem. Porque, no
mundo em que vivo, vejo pessoas trabalhando mais do que deveriam para
ganhar mais do que realmente precisam a fim de comprar coisas que não
querem com o objetivo de impressionar gente de que elas, na verdade, nem
gostam. É uma realidade absurda que não me agrada em nada. Prefiro a
realidade do kibutz.
Norma Couri: O senhor acha que esse princípio socialista está irrecuperável
em Israel? Porque nesse livro, De amor e trevas, o senhor fala da nostalgia,
das intenções dos primeiros judeus em Israel. O sonho continua lá?
Amós Oz: Os sonhos sempre estão vivos. Mas é claro que novos sonhos vão
empurrando os velhos. A cada nova chegada de imigrantes a Israel, eles vêm
com sonhos diferentes, com relações diferentes de amor e ódio com os velhos
países. Meus pais, por exemplo, que chegaram da Europa nos anos 1930,
eram europeus que amavam a Europa. A tragédia foi terem sido europeus
numa época em que ninguém mais na Europa era europeu. Todos eram
patriotas búlgaros, espanhóis ou noruegueses. Os judeus eram europeus, eram
poliglotas, conheciam várias línguas, amavam todas as culturas da Europa,
amavam a herança, amavam as diversas histórias e, acima de tudo, a música.
A Europa nunca os amou. Eles foram expulsos da Europa de maneira violenta
e foi uma sorte, porque, se a Europa não tivesse expulsado meus pais nos
anos 1930, ela os teria matado nos anos 1940. Eles chegaram a Jerusalém
com um sonho da Europa e com uma relação de amor e ódio para com a
Europa. Esse sonho continua vivo, está vivo em mim. Herdei esse sonho dos
meus pais.
[intervalo]
Amós Oz: Temos de lembrar que a literatura começou como uma tradição oral.
Muito antes da invenção da escrita, os contadores de histórias sentavam-se ao
redor da fogueira à noite, cercados pelos membros da tribo, e contavam
histórias. Mais tarde, em bares e estalagens na Europa e em outros lugares, as
pessoas também sentavam-se à noite. Lá fora, havia a tempestade e os
ventos, mas, lá dentro, alguém estava contando histórias. Os festivais literários
revivem a tradição original da literatura de antes da invenção da escrita, como
uma tradição oral.
Paulo Markun: O senhor acha que vivemos num mundo que é realmente
globalizado? Quer dizer, há essa discussão sobre a globalização da cultura e a
globalização da economia. A globalização cultural é boa?
Amós Oz: A literatura não pode ser global. A boa literatura sempre será local,
paroquial e provinciana. Quanto mais local, mais universal ela será. Universal,
não global. São dois conceitos bem diferentes. A literatura provinciana pode ser
universal. A literatura global não serve para nada. Os romances internacionais
sobre hotéis e aeroportos internacionais, que as pessoas compram em hotéis e
aeroportos internacionais, lêem em hotéis e aeroportos internacionais e deixam
na bancada de hotéis e aeroportos internacionais. Essa é a literatura global. A
literatura local pode se tornar universal.
Amós Oz: Ouvi falar dele. Li uma obra dele, ele não é meu herói literário.
Amós Oz: É difícil ser profeta vindo da terra dos profetas. A concorrência é
grande no setor de profecias. Por isso faço profecias sobre o passado, não
sobre o futuro. Mas posso prever uma coisa. Acho que daqui a 50 anos haverá
um Estado palestino ao lado de Israel. E esse Estado existirá na Cisjordânia e
em Gaza em paz com Israel. Não com amor, mas em paz. Haverá uma capital
palestina no leste de Jerusalém e uma capital israelense no oeste de
Jerusalém. Haverá uma embaixada israelense na Palestina e uma embaixada
palestina em Israel, uma bem perto da outra. Porque uma ficará no leste de
Jerusalém e outra no oeste de Jerusalém. Quanto tempo vai demorar? Não sei
dizer, mas todos sabem que essa solução é inevitável e todos sabem que essa
solução deve se materializar um dia.
Amós Oz: Ainda escrevo poesia, mas não publico. Minha única tentativa em
poesia que foi publicada é um livro híbrido chamado O mesmo mar, que foi
traduzido em português. É uma combinação de prosa e poesia. Esse eu
publiquei, mas fora isso não. Minha poesia, escrevo-a para mim mesmo. Deixo-
a na mesa e não tenho motivação para publicá-la.
Marcelino Freire: O que chama mais atenção, uma boa forma ou a forma, a
linguagem? O que é que vem primeiro, assim... adianta ter uma boa história?
Ou você busca mais a forma?
Amós: É como perguntar o que me atrai primeiro quando vejo uma mulher
bonita. É tudo. É a forma, a personalidade, o estilo, a elegância, o sorriso, a
fala. É tudo. Não posso separar. Quando leio o primeiro parágrafo de um
romance, quase sempre, após esse parágrafo, sei se é bom ou ruim. Faço uma
idéia. Esse primeiro parágrafo já tem forma, estilo, linguagem, conteúdo e tudo
mais.
Paulo Markun: Uma pergunta de curiosidade, já que o senhor admite que a
curiosidade... a fofoca é parente próxima da literatura. Qual é a sua rotina de
trabalho? Como é que o senhor escreve? Quantas horas por dia? Onde? De
que modo?
Amós Oz: Como eu disse, acordo muito cedo. Após minha caminhada no
deserto, sento-me à minha mesa. Por volta das 6h, já estou trabalhando. Para
mim, o melhor horário para trabalhar é de manhã. Trabalho a manhã inteira, às
vezes escrevo só uma frase, mas trabalho a manhã toda. Então, faço uma
sesta e, à tarde, destruo o que escrevi de manhã. Essa é a minha rotina.
Amós Oz: Costumo ser muito monógamo. Trabalho uma obra de cada vez.
Não consigo escrever duas obras ao mesmo tempo. E, quando trabalho numa
obra, ou escrevo ou desisto. Sim, na minha história, houve mais abortos que
nascimentos. Essa é a minha história. Há muita coisa que comecei e nunca
terminei. Mas, quando trabalho numa obra, não faço outra coisa. Às vezes,
passo a manhã sentado, esperando. Por muitos anos, eu me senti culpado por
ficar sentado sem produzir, sobretudo quando eu vivi no kibutz, onde todos
faziam a ordenha e outras coisas, enquanto eu escrevia uma frase e jogava
fora. Eu tinha vergonha de ir comer. Então, desenvolvi a mentalidade de um
lojista. Eu dizia a mim mesmo “meu trabalho é abrir a loja às 6 da manhã,
sentar-me e esperar clientes. Se eu tiver clientes, será um bom dia. Se não os
tiver, mesmo assim estarei trabalhando.”
Amós Oz: Normalmente há uma breve sesta entre elas. De manhã, fico
sozinho no meu escritório: nada de telefone, conexões ou seres humanos. Só
eu e meus personagens. À tarde e à noite às vezes faço outros trabalhos,
escrevo ensaios ou artigos, faço discursos, compareço à noite diante do
público. A sesta divide minha vida entre a vida privada.
Flávio Moura: Foi mencionado que o senhor tem livros traduzidos em muitos
idiomas, mas pouquíssimos foram traduzidos para o árabe. O senhor não
gostaria de ter um eleitorado maior?
Amós Oz: Eu adoraria que meus livros fossem lidos por árabes em língua
árabe. Dois livros meus foram publicados em países árabes, um no Egito e um
na Jordânia. De amor e trevas está sendo traduzido para o árabe. Vou contar
uma história sobre essa tradução para o árabe, que é muito comovente. Há
dois anos, um rapaz árabe estava correndo em Jerusalém, um estudante de 23
anos, e ele foi baleado na cabeça e morto por terroristas árabes que acharam
que ele fosse judeu. Eles o mataram. A família dele, que é rica, decidiu
subsidiar a tradução de De amor e trevas em memória desse rapaz e para
aumentar o entendimento entre judeus e árabes. O livro será traduzido para o
árabe, subsidiado por uma família árabe.
Noemi Jaffe: A descrição do seu encontro com a sua mulher Lili, no livro De
amor e trevas, é uma das coisas mais emocionantes que eu já li nesse sentido
do encontro amoroso. Ao mesmo tempo, em vários outros livros seus - Não
diga noite ou Caixa preta-, existe um grande desencontro amoroso. O encontro
amoroso é ou não é possível? Na sua vida parece que é. Na vida dos seus
personagens parece que é mais difícil. Ele é possível ou não?
Paulo Markun: Senhor Amós, o nosso tempo está acabando e eu queria fazer
uma última pergunta. A pergunta não é minha. Ela foi proposta pela Noemi
Jaffe que, ao longo da entrevista, não a fez. Então, eu vou fazê-la com todo o
respeito, que ela queria saber qual é o seu parentesco com o Mágico de Oz?
Amós Oz: Para mim, a literatura é tão essencial quanto comer, sonhar, fazer
sexo e respirar. Não dá para viver sem ela. É uma das coisas fundamentais e
essenciais na minha vida. Preciso dela para sobreviver.