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Para o João Pedro, o Tomás João
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«Foi o meu coração que me fez realizar todas as coisas e (foi ele) que me guiou,
Foi, para mim, um excelente instrutor,
Não descurei as suas incitações,
Receando desviar-me da sua orientação (...)
É verdadeiro o que se diz:
“O deus é o que está em todo o corpo,
é ele (que) guia para o bom caminho”».
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8
NOTA PRÉVIA 15
INTRODUÇÃO
1. O coração do faraó 96
2. O coração do criador 104
3. O coração e a criação do mundo 108
9
Capítulo IV: O coração e a iniciação 129
10
Capítulo III: O coração e o julgamento dos mortos 219
1. Caracterização 281
2. Utilização 287
3. Epigrafia e iconografia 288
4. Materiais 289
5. Conotações religiosas do escaravelho do coração 291
11
2. Caracterização 302
3. Materiais 316
4. Iconografia 323
5. Epigrafia 328
6. Análise comparativa dos amuletos do coração 330
7. Conotações religiosas do amuleto cordiforme 335
CONCLUSÃO
12
EXCURSO
BIBLIOGRAFIA
APÊNDICES
13
XII. As representações da psicostasia cxliii
XIII. Caracterização dos amuletos do coração clxxxi
XIV. As representações do amuleto cordiforme ccix
XV. O criptograma de Athribis ccxlv
XVI. Os termos lev e levav no Pentateuco ccxlix
ANEXOS
Anexo I.
Anexo II. Escaravelhos do coração
Anexo III. Amuletos do coração
Anexo IV. Amuletos do coração: aplicações e representações
Anexo V. Representações do coração
14
NOTA PRÉVIA
15
A tese que aqui apresento, reunindo a pesquisa que intensivamente realizei ao
longo dos últimos cinco anos, só foi possível graças à confluência de um conjunto de
apoios que se afiguraram decisivos para a prossecução do meu trabalho.
É justo começar por agradecer ao Instituto das Ciências da Saúde – Norte, na
pessoa do seu Director, o Professor Doutor Jorge Brandão Proença, pelo apoio
institucional e pelas condições de trabalho únicas que me foram concedidas ao longo
destes últimos anos. Sem elas teria sido totalmente impossível ter empreendido esta
«viagem» (tão exigente em recursos pessoais e materiais), razão pela qual esta tese
representa, antes de mais nada, o empenho estratégico do Instituto das Ciências da
Saúde em assegurar a valorização e diferenciação científica dos seus professores. Uma
palavra de reconhecimento também é devida aos directores das licenciaturas de
Medicina Dentária e de Psicologia Clínica, o Professor Doutor Joaquim Moreira e a
Professora Doutora Maria Emília Areias, respectivamente, por terem sempre apoiado as
minhas deslocações de estudo, apesar dos constrangimentos organizacionais daí
resultantes. Uma referência de apreço também deve ser dirigida aos colegas e alunos
desta instituição que, graças ao agradável ambiente de trabalho, me proporcionaram a
tranquilidade tão necessária durante o longo e árduo período de pesquisa.
Outro contributo decisivo para a realização da tese e ao qual fico
penhoradamente grato, foi o apoio proporcionado pela Dra. Helena Abreu cujo interesse
pelas minhas pesquisas constituiu sempre um encorajamento para o meu trabalho. Sem
o seu incondicional e generoso apoio à minha deslocação a Paris, teria sido impossível
realizar a exaustiva recolha de informação que empreendemos no Museu do Louvre e na
Bibliothèque François Champollion. Também aqui é merecida uma nota de
reconhecimento à Genoveva e ao Arthur pela amizade e diligente acompanhamento
proporcionado durante a laboriosa estada em Paris.
Expresso também os meus sinceros agradecimentos à equipa de conservadores
do Museu do Louvre, em especial a Madame Sylvie Guichard e a Madame Patricia
Rigault que orientaram as minhas pesquisas no Museu, tornando o tempo em que esta
decorreu numa empolgante e entusiasta aventura de descoberta. Devo também uma
palavra de apreço a Monsieur Jacques Brechon, responsável pela Bibliothèque François
Champollion du Collège de France, pelas facilidades concedidas na consulta e
reprodução das obras aí conservadas.
Um contributo de peso foi também o proporcionado pela Dra. Cláudia Monte
Farias que, a partir do Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, me facultou a
16
preciosa informação relacionada com os amuletos cordiformes e, generosamente, me
auxiliou enviando-me alguma da bibliografia que, no nosso país, é tão difícil de
conseguir. Igualmente generosa e expedita foi a ajuda concedida pelo conservador Dr.
Nigel Strudwick, do Museu Britânico, facultando-me todos os esclarecimentos
solicitados em relação aos objectos conservados neste grande Museu. Um
agradecimento especial é também devido ao Dr. Mahmoud Ibrahim que me orientou
durante as longas e extenuantes consultas aos labirínticos registos do Museu Egípcio do
Cairo.
Uma palavra de reconhecimento também é dirigida à equipa arqueológica checa
de Abusir, chefiada pelo Doutor Ladislav Bares, e à Doutora Viviane Gae Callender,
que me facultaram o acesso aos relatórios arqueológicos respeitantes aos amuletos
encontrados no túmulo de Iufaá.
Também de salientar foi o apoio concedido, durante a minha estada em Roma,
pelo Monsenhor Agostinho Borges, do Instituto Português em Roma, que nos brindou
com a sua amável hospitalidade durante a laboriosa permanência de estudo no Pontificio
Istituto Biblico. Também aqui se revelou decisiva a compreensão do director da
prestigiada biblioteca desta instituição, o Padre James Dugan, que facilitou o acesso e a
reprodução das obras que aí consultei.
Também em Portugal contámos com apoios importantes, nomeadamente, no
mosteiro de Singeverga, que abriu as portas da sua rica biblioteca ao meu trabalho,
presenteando-me ainda com a sua tradicional hospitalidade. Um agradecimento especial
é devido ao Museu de História Natural, ao seu director, o Professor Doutor Jorge Eiras,
e à Dra. Maria José Cunha, entusiasta e empenhada conservadora das antiguidades
egípcias aí conservadas. O estudo das peças «cardíacas» desta colecção foi decisivo
para enriquecer o nosso estudo. Também ao Museu da Farmácia e ao seu director, o Dr.
João Neto, é devida uma palavra de reconhecimento pelo seu caloroso acolhimento
durante o trabalho efectuado no Museu.
Uma colaboração essencial e preciosa foi também a da Dra. Kerstin Offmeister
que, com o seu generoso apoio, me facultou a tradução de textos redigidos em alemão,
possibilitando assim o estudo de importantes e basilares obras. Também significativo
foi o apoio proporcionado pelo Professor Doutor José Carvalho, docente de Hebraico da
Universidade Católica do Porto, por nos ter recebido no seu curso semestral. Uma nota
especial para o Dr. Daniel Rodrigues que muitas vezes me apoiou na tradução de
documentos essenciais para o meu trabalho. Um agradecimento também se impõe ao
17
Dr. Vitor Santos, que me cedeu a sua excelente colecção fotográfica dos monumentos
do Egipto, a qual utilizei na documentação colocada nos anexos de figuras. Pela
amizade e apoio diligente, uma palavra de agradecimento também à Dra. Susana Vieira,
à Dra. Eva Mónica, à Dra. Lurdes Pereira e à Dra. Ana Cardoso.
Uma importante nota de reconhecimento pela amizade e apoio do Professor
Doutor José das Candeias Sales que, para além de ter lido e enriquecido com o seu
contributo crítico uma boa parte da tese, me facultou sempre o aconselhamento
perspicaz para superar as habituais dificuldades do investigador.
Naturalmente contraí uma dívida impossível de saldar com os meus pais, a
minha irmã e o meu cunhado e, especialmente, o João Pedro, o Tomás João e o Daniel
Miguel, que se habituaram, ao longo deste tempo, às minhas prolongadas e
intermináveis ausências. Apesar da distância, foram sempre uma referência e uma luz
calorosa que acalentou os longos dias de trabalho.
Finalmente resta-me ainda a difícil tarefa de traduzir por palavras o meu
reconhecimento aos meus orientadores, os quais terei a sorte de recordar com uma
intensa admiração e a quem estarei sempre grato por terem transformado esta etapa da
minha vida académica num período de intensa aprendizagem e descoberta. O meu
agradecimento vai, em primeiro lugar, para o Professor Doutor Geraldo José Amadeu
Coelho Dias, o primeiro orientador do meu trabalho e que, por razões que se prendem
com a sua aposentação, teve de se retirar da orientação desta investigação. Para além da
sua erudição e sólida formação, presenteou-me com um entusiasmo pelo saber que
constituirá sempre para mim uma poderosa inspiração. Pelas razões apontadas, o
Professor Doutor António Baptista Lopes recebeu a delicada empresa de levar a bom
porto um trabalho já numa fase muito adiantada de acabamento. Revelando uma
sabedoria, altruísmo e uma dedicação invulgares, manifestou uma disponibilidade total
para me apoiar e contribuiu, apesar do pouco tempo que teve para me orientar, com
muitas e perspicazes sugestões que enriqueceram o meu trabalho. Uma nota de
agradecimento é igualmente devida ao Senhor Director do Departamento de História da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o Professor Doutor Jorge Alves que, em
face das dificuldades suscitadas pela mudança de orientador, tudo fez para que a
transição pudesse decorrer de modo equilibrado e consertado. Finalmente, o meu
agradecimento profundo ao meu mestre de sempre, o Professor Doutor Luís Manuel de
Araújo, com quem comecei, há muitos anos atrás, a dar os primeiros passos na escrita
hieroglífica e que se entregou «com toda a alma e todo o coração» à orientação da
18
minha pesquisa. A sua erudição e o seu rigor é o modelo e a bitola, difíceis de alcançar,
que inspiram o meu trabalho. Também a ele devo a possibilidade de ter acedido a
referências bibliográficas preciosas para enriquecer a minha argumentação. A todos
aqui fica o meu perene obrigado por me terem presenteado o seu saber e a sua preciosa
amizade,
19
Em L. ARAÚJO, Erotismo, p. 12
20
INTRODUÇÃO
21
22
1. A antropologia egípcia: oportunidades e obstáculos
1
Exemplar neste tipo de abordagem é a obra de H. FRANKFORT, Kingship of the Gods: A study of
Ancient Near Eastern Religion as the integration of society and nature, University of Chicago Press,
Chicago, Londres, 1978.
2
Esta problemática é abordada em B. KEMP, El Antiguo Egipto: Anatomia de una civilization, Crítica,
Barcelona, 1996. Uma perspectiva sociológica da história egípcia é apresentada em B. TRIGGER, B.
KEMP, D. O´CONNOR e A. LLOYD, Ancient Egypt: A social history, Cambridge University Press,
Cambridge, 2001.
23
antropológicas do antigo Egipto podem proporcionar informação valiosa para o
desenvolvimento das teorias culturais,3 nomeadamente no que diz respeito às
representações da natureza humana. Para além de serem decisivas para enquadrar o
comportamento ritual, social e político do homem antigo, as representações da natureza
humana dão-nos frequentemente pistas sobre os mecanismos psíquicos reguladores do
equilíbrio mental e social valorizados numa determinada cultura. O estudo das
representações do homem transporta-nos, portanto, para um mundo novo de
experiências e para outros horizontes de compreensão do ser humano que se afiguram
decisivos para o estudo da cultura e da sua influência no comportamento.
O nosso trabalho posiciona-se, deste modo, numa situação de charneira entre a
egiptologia e a antropologia, importando métodos e objectivos de ambas as disciplinas.
Da egiptologia retemos a preocupação pelo conteúdo, pelo que recorreremos a um corpo
documental próprio que será examinado detalhadamente. Textos, objectos e
representações artísticas serão estudados de modo a extrair as crenças relacionadas com
o nosso objecto de estudo. Por outro lado, da antropologia recebemos o interesse pelo
contexto, o que nos levará a procurar cruzar entre si as informações recolhidas nas
fontes e a relacioná-las com fenómenos culturais ou sociais mais amplos. O estudo da
antropologia faraónica poderá assim dar o seu contributo para a compreensão do
comportamento humano como um todo.4 Deste modo, não pretendemos apenas
conhecer melhor a civilização egípcia, mas também reconstituir um quadro de
compreensão da consciência humana que ainda hoje se pode afigurar interpelador ao
homem contemporâneo.
É com esta matriz que nos propomos abordar uma das noções nucleares da
representação da natureza humana no antigo Egipto: o coração. Descrito
simultaneamente como órgão da vida física e como metáfora da vida mental, o coração
transporta-nos directamente para o núcleo das representações culturais que orientavam e
regulavam o comportamento no antigo Egipto, proporcionando, da forma mais directa
que é actualmente possível, penetrar na compreensão que o homem egípcio fazia de si
mesmo. Mais do que uma noção anatómica, o coração constituía, no antigo Egipto, o
símbolo da própria consciência e será como tal que, ao longo do nosso trabalho, o
iremos estudar. Assim definido, o nosso objecto de trabalho não pode ser estudado
3
Esta perspectiva é defendida em K. WEEKS, Egyptology and the Social Sciences, p. 21.
4
Ver B. TRIGGER, «Egypt and the comparative study of early civilizations», em K. Weeks (Ed.),
Egyptology and the Social Sciences, p. 30.
24
parcelarmente, como em geral tem sido feito nos estudos dedicados a esta noção. Pelo
contrário, procederemos a uma articulação dos dados disponíveis na literatura e na arte
do antigo Egipto. Através do cruzamento das representações escritas e icónicas,
procuraremos reconstituir a simbólica do coração com o intuito último de caracterizar a
representação da consciência no antigo Egipto. O estudo do coração irá, deste modo,
ajudar-nos a identificar algumas das primeiras representações acerca dos processos
mentais alguma vez formuladas pelo homem.
2. O estado da questão
O interesse pela noção do coração é quase tão antigo como a própria egiptologia.
Na base desta atenção estavam os abundantes achados funerários cuja temática se
relacionava com esta noção, como os escaravelhos do coração encontrados nas múmias
e as vinhetas da psicostasia que ilustravam os «Livros dos Mortos». Reflexo deste
interesse encontra-se logo na monumental e pioneira obra La Description de l´Égypte,
onde se documentaram e registaram inúmeros artigos de temática «cardíaca». 5
Ao longo de todo o século XIX foram publicados trabalhos que descreviam os
artefactos funerários e ensaiavam as primeiras explicações sobre o seu sentido mágico.
Ao nível da filologia, Samuel Birch publicou, em meados do século XIX, importantes
contributos acerca da terminologia «cardíaca» que ainda hoje se afiguram úteis para
compreender a dificuldade que estes termos colocaram à sua correcta leitura. 6 Já no
início do século XX a atenção dos especialistas concentrou-se na exploração das fontes
documentais escritas. A maturidade e a segurança conquistadas na decifração da escrita
hieroglífica, a par da grande quantidade de documentos publicados, permitia uma tal
pesquisa. Pioneiro nesta área foi o estudo de Alexandre Piankoff que, no início da
década de trinta do século XX, apresentou o primeiro estudo sistemático da noção de
coração, baseando-se para tal numa importante compilação de textos hieroglíficos. 7 O
5
Ver amuletos cordiformes em Description de l´Égypte, p. 554, nº 50, p. 555, nº 10. Escaravelhos do
coração podem ser encontrados em Idem, p. 550, nº 8 e nº 11. Muitas são as representações de vinhetas da
psicostasia oriundas do «Livro dos Mortos», como em Idem, p. 241 ou pp. 250-251.
6
Ver S. BIRCH, «On formulas relating to the heart», ZÄS 4 (1866), pp. 89-92; Idem, «On formulas
relating to the heart», ZÄS 5 (1867), pp 16-17; Idem, «On formulas of three royal coffins», ZÄS 7
(1869), pp. 49-53; Idem, «On formulas relating to the heart», ZÄS 8 (1870), pp 30-34.
7
A. PIANKOFF, Le «Coeur» dans les Textes Égyptiens depuis l´Ancien jusqu´à la fin du Nouvel Empire,
Librairie Orientaliste Paul Geuthner, Paris, 1930. Este interessante e selecto estudo constituiu a tese de
25
autor dava assim início a um conjunto de estudos que, nas décadas seguintes,
procuraram definir e pormenorizar as subtilezas que esta noção antropológica adquiriu
na expressão literária. Seguindo esta linha de investigação filológica, Adrian de Buck
publicou vários artigos que procuravam definir alguns aspectos da «psicologia» egípcia
e revelou um interesse particular pelos capítulos do «Livro dos Mortos» de temática
cardíaca.8
Helmutt Brunner recorreu também à literatura para recolher e inventariar
expressões «cardíacas» oriundas da escrita hieroglífica. Vários artigos, compilando o
essencial da sua pesquisa nesta área, constituíram, durante muito tempo, um material de
síntese que caracterizava o papel do coração nas suas múltiplas vertentes.9
Foi, no entanto, Jan Assmann quem, nos anos oitenta, verdadeiramente teceu
uma primeira teoria de conjunto que explicava o desenvolvimento da noção do coração
ao longo da civilização egípcia, definindo três grandes fases ao longo das quais o
coração se guiava por diferentes entidades.10 Nós próprios, na nossa dissertação de
mestrado, apresentámos um modelo que propunha a caracterização do coração em três
estádios.11
No que diz respeito ao estudo das noções anatómicas do coração foram múltiplas
as tentativas para compreender o significado preciso dos termos ib e hati nos textos
médicos. Gustave Lefebvre apresentou, neste âmbito, propostas que permaneceriam
uma referência importante para a compreensão dos termos «cardíacos» no contexto
médico.12 Thierry Bardinet deu, nesta área, um contributo decisivo para lançar luz numa
questão que, não poucas vezes, antes e depois deste trabalho, tem sido alvo de aceso
debate.13
Evidentemente, uma noção tão importante e central como a do coração tem
originado um grande caudal bibliográfico. No entanto, e no essencial, a maior parte dos
doutoramento de Alexandre Piankoff e apresenta uma abundante documentação textual que consiste em
textos hieroglíficos.
8
A. DE BUCK, «Een groep dodenboekspreuken betreffende het hart», JEOL 9 (1944), pp. 9-24. Também
Idem, «Un chapitre de Psychologie Egyptienne», em Chronique d´Égypte, 41, Musées Royaux d´Art et
d´Histoire, Bruxelas, 1946, pp. 17-24.
9
H. BRUNNER, «Herz», em Wolfgang Helck e Wolfhart Westendorf (ed.), Lexikon der Ägyptologie, II,
cols 1158-1168; H. BRUNNER, Das hörende Herz. Kleine Schriften zur religions und Geitesgeschichte
Ägyptens, Orbis Biblicus et Orientalis, 80, Göttingen, Friburgo, 1988.
10
Em J. ASSMANN, «Zur Geschichte des Herzens im alten Ägypten», em Idem (ed.) Die Erfindung des
inneren Menschen: Studien zur reliogiösen Anthropologie, pp. 81-113.
11
Ver R. SOUSA, O Coração e o Homem no antigo Egipto:contributo para a compreensão de uma
“psicologia” antiga , Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1998 (tese policopiada).
12
G. LEFEBVRE, Tableau des Parties du Corps Humain mentionées par les Égyptiens, IFAO, Cairo,
1952.
13
T. BARDINET, Les papyrus médicaux de l´Égypte pharaonique, Fayard, Paris, 1995.
26
trabalhos que têm sido publicados constituem revisões ou actualizações sobre o tema,
não apresentando verdadeiras inovações metodológicas ou novas perspectivas sobre a
questão.
O estudo do ba, do ka, do akh, só para enumerar alguns dos principais elementos
constituintes da natureza humana, trouxeram importantes esclarecimentos sobre a
relação do coração com estas dimensões. Estudos exemplares pela sua abordagem
rigorosa são os de Gertie Englund14 e Louis Zakbar,15 que se debruçaram sobre o akh e
o ba, respectivamente. Os dois autores centraram-se sobre as referências textuais destes
termos procurando, através do estudo do contexto de utilização, identificar o seu
significado. No entanto, tanto um como o outro relegaram para segundo plano as
representações destas dimensões humanas na arte, referindo-se a estas fontes
documentais apenas de forma sumária. Esta tem sido, no nosso entender, outra das
dificuldades que se têm colocado aos estudiosos da antropologia egípcia. Mesmo
focalizando o estudo num objecto bem definido, num elemento antropológico em
particular, a abundância de referências textuais e iconográficas impõe um tratamento
parcelar das fontes, conduzindo, necessariamente, a conclusões parciais e incompletas.
No que diz respeito à noção do coração, um estudo integrado confluindo os
dados de cariz textual com os dados provenientes das abundantes representações do
coração na arte egípcia permanece ainda por empreender. Na verdade, um estudo das
representações «artísticas» do coração nunca foi realizado. As investigações em torno
deste tema têm incidido sobre aspectos particulares da representação do coração. Ao
contrário dos escaravelhos do coração, que têm merecido um estudo sistemático há
várias décadas, os amuletos do coração nunca foram alvo de uma pesquisa monográfica,
pelo que, até o momento, os conhecimentos existentes sobre estes objectos são
insuficientes para ter uma ideia precisa sobre o seu simbolismo e a sua evolução. A
aparente simplicidade destes objectos esconde uma notável diversidade de formas, o que
se tem pautado por uma compreensão muito deficitária deste importante objecto, um
dos amuletos mais importantes do antigo Egipto.
No entanto, apesar de nunca ter sido publicada uma monografia sobre o amuleto
do coração, inúmeros têm sido os contributos que, ao longo do tempo, foram realizados
pelos estudiosos dos amuletos egípcios que, num contexto mais alargado de pesquisa,
14
G. ENGLUND, Akh - une notion religeuse dans l´Égypte pharaonique, Boreas 11, Uppsala Studies in
Ancient Mediterranean and Near Eastern Civilizations, Acta Universitatis Upsaliensis,Uppsala, 1978.
15
L. ZABKAR, A study of the Ba concept in Egyptian texts, SAOC (34), 1968.
27
têm dedicado alguma atenção aos amuletos «cardíacos». Neste âmbito, as obras de
temática generalista são tão abundantes que apenas apresentaremos aquelas que mais se
destacaram, ou pelo seu pioneirismo ou pelo seu aporte científico.
Auguste Mariette está entre os primeiros autores a procurar identificar o
significado dos amuletos de temática cardíaca que a arqueologia punha a descoberto em
grandes quantidades. Em The Mummy, publicada pela primeira vez em 1893,16 Wallis
Budge apresenta uma das primeiras sínteses sobre o equipamento funerário das múmias,
dedicando uma atenção especial aos vários tipos de amuletos que podem ser
encontrados neste contexto arqueológico. Neste enquadramento o autor não tece mais
do que algumas considerações sumárias sobre os amuletos do coração.
Na sua obra sobre os amuletos do antigo Egipto, Flinders Petrie classifica estes
amuletos entre os que representam partes do corpo (designados por homopoeic, ou seja,
amuletos cuja forma evoca a de seres vivos ou de partes do seu corpo cujas
características mágicas se procurava canalizar em benefício do indivíduo). A grande
diversidade de formas utilizadas nos amuletos do coração não escapou ao espírito
analítico de Flinders Petrie que procurou definir a primeira tipologia destes amuletos a
qual será oportunamente apresentada e comentada.17
Apesar de não apresentar qualquer contributo interpretativo, o monumental
trabalho de Georges Reisner patente no Catalogue Géneral des Antiquités Égyptiénnes
du Musée du Caire é decisivo pela documentação dos materiais inventariados, mas
evidencia uma descrição sucinta da maior parte dos objectos.18 Apesar do grande
número de amuletos descritos, a ausência de informação arqueológica e visual que
contextualize e ilustre estes objectos constitui uma grande lacuna para o seu estudo.
Outra abordagem decisiva foi elaborada por Claudia Müller-Winkler, numa obra
exclusivamente dedicada aos amuletos egípcios.19 Apesar da vastidão do tema, a autora
dedica um breve capítulo ao amuleto do coração onde, no entanto, evidencia um rigor
metodológico exemplar, elaborando uma terminologia específica imprescindível para a
descrição morfológica destes objectos. As variações estilísticas na forma e nas
representações patentes nos amuletos do coração também são analisadas, muito embora
16
W. BUDGE, The Mummy: A Handbook of Egyptian Funerary Archaeology, Biblo & Tanen, Nova
Iorque, 1964 (2ª edição).
17
F. PETRIE, Amulets, Aris & Phillips, Ltd., Warminster, Wiltshire, 1914.
18
G. REISNER, Amulets, Catalogue Géneral des Antiquités Égyptiénnes du Musée du Caire, Imprimerie
de l´Institut Français d´Archéologie Orientale, 2. vols., Cairo, 1907-1958.
19
C. MÜLLER-WINKLER, Die Agyptischen Objekt-Amulette, Orbis Biblicus et Orientalis, Series
Archaeologica, 5, Friburgo, 1987.
28
a amostra em estudo não se mostre expressiva da grande diversidade formal dos
amuletos do coração. A autora procura ainda definir os materiais utilizados e a
incidência temporal dos mesmos.
Também Carol Andrews, na sua obra inteiramente dedicada aos amuletos do
antigo Egipto, traça uma breve caracterização dos amuletos do coração.20 Para além do
tratamento fugaz que dedica aos amuletos cordiformes, a autora adopta critérios de
classificação um tanto estreitos, excluindo objectos que, apesar de possuírem uma
configuração atípica, também são habitualmente considerados como amuletos do
coração.
No que diz respeito ao escaravelho do coração, a principal obra de referência
continua a ser a de Michel Malaise.21 O autor aprofundou o simbolismo deste tipo de
objectos, inventariando inscrições e símbolos aí encontrados e procurou estabelecer uma
evolução dos usos associados a estes objectos.
Em Portugal, Luís Manuel de Araújo apresentou as primeiras versões do
capítulo 30 B patentes nos escaravelhos do coração conservados no Museu de História
Natural da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e no Museu Nacional de
Soares dos Reis, ambos sediados no Porto.22
Acerca das representações do amuleto cordiforme, Michel Malaise apresentou,
num interessante artigo, contextos gerais de utilização destes amuletos. Embora pouco
exaustivo, o texto constitui o único inventário deste tipo de representações até hoje
publicado.23 Ao nível das vinhetas da psicostasia o estudo de Christine Seeber continua
a ser a principal obra de referência.24 O estudo das restantes vinhetas dos capítulos
«cardíacos» permanece ainda por empreender.
20
C. ANDREWS, Amulets of Ancient Egypt, Londres, 1994.
21
M. MALAISE, Les Scarabées de coeur dans l´Égypte Ancienne, Monographies Reine Élizabeth,
Bruxelles, 1978.
22
L. ARAÚJO, «Um escaravelho do coração numa colecção privada portuguesa», Museu 9 (2000), pp. 7-
27. O escaravelho do coração do Museu Nacional de Soares dos Reis encontra-se exposto, em situação de
depósito, no Museu Romântico do Porto (Quinta da Macieirinha).
23
M. MALAISE, «La signification des pendentifs cordiformes dans l´art égyptien», Cd´É 50 (1975), pp.
105-135.
24
C. SEEBER, Untersuchungen zur Darstellung des Totengerichts im Alten Ägypten, Munique-Berlim,
1976.
29
3. Objectivos e metodologia de estudo
25
Idem, pp. 10-12.
30
«cardíacos» evocavam. Deste modo, através de uma detalhada recolha bibliográfica
centrada nas fontes literárias, procuraremos reunir um conjunto significativo de
informações que nos permitam reconstituir o imaginário associado aos símbolos
«cardíacos» detectados na arte.
Ao nível das fontes escritas, o enorme manancial documental obriga-nos a
utilizar uma selecção restrita de textos. Mais do que inventariar expressões usadas na
escrita hieroglífica ou sistematizar o seu uso, tarefas há muito empreendidas na
egiptologia, a nossa análise do material textual tem como objectivo caracterizar a
função do coração nas várias dimensões da vida humana e associá-la aos principais
fenómenos que marcaram a civilização egípcia. Tendo em conta o trabalho já
empreendido no campo filológico e o extenso caudal de reflexão crítica que actualmente
possuímos a seu respeito, podemos empreender passos mais abrangentes na
interpretação dos mesmos. O estudo das fontes foi feito recorrendo às compilações
clássicas da literatura egípcia, como a de Miriam Lichtheim,26 bem como a uma vasta
panóplia de traduções de textos que pode ser consultada na bibliografia.27 Dada a
vastidão do trabalho que o estudo exaustivo de cada gama de textos implicaria, optámos
por trabalhar apenas sobre alguns textos de cada género literário. Estes documentos, que
traduzimos a partir das versões em inglês, francês, ou mesmo da versão hieroglífica
(como foi o caso da Teologia Menfita ou do Conto dos Dois Irmãos) são apresentados
em apêndices.
Constituindo valiosos testemunhos da reflexão acerca da conduta e do seu valor
moral, os textos sapienciais foram por nós abordados com o intuito de identificar
modelos implícitos sobre a conduta e sobre o papel do coração na vida humana. As
inscrições autobiográficas são também relevantes para o nosso trabalho pois apresentam
os aspectos que, em cada época, eram encarados como os elementos mais definidores da
identidade constituindo um valioso corpo documental sobre a evolução do pensamento
antropológico no antigo Egipto. Por entre o enorme manancial de textos religiosos
disponíveis, procurámos obter a documentação necessária para identificar o papel do
coração na relação do indivíduo com deus, bem como caracterizar a especulação
26
M. LICHTHEIM, Ancient Egyptian Literature, 3 vol., University of California Press, Berkeley, Los
Angeles, Londres, 1973-1976-1980. Outra fonte importante de textos de teor sapiencial é assinada pela
mesma autora. Ver Idem, Maat in Egyptian Autobiographies and related studies, Orbis Biblicus et
Orientalis -120, University Press e Vandenheck & Ruprecht, Friburg, Göttinger, 1992.
27
Embora, na maior parte dos casos, tenhamos optado por apresentar a versão portuguesa de traduções
feitas por outros autores, pontualmente, sempre que se afigure relevante para a discussão em causa,
especificamos os termos egípcios utilizados no texto determinados graças à consulta directa das versões
hieroglíficas.
31
teológica em torno do coração do criador. Também as narrativas do antigo Egipto
fornecem um material textual importante para o nosso estudo.28
Distinguindo as composições funerárias dos restantes textos egípcios,
procurámos identificar a especificidade da função do coração na morte. Para além
destas fontes escritas passaremos em revista as representações «artísticas» do antigo
Egipto, de modo a constituir um inventário o mais completo possível de representações
funerárias de temática «cardíaca»: desde as vinhetas do «Livro dos Mortos», a objectos
rituais ou mesmo representações de carácter críptico. Todas estas representações serão
estudadas de modo a caracterizar o simbolismo associado às representações do coração
no Além. A nossa interpretação acerca da religião funerária egípcia é, neste capítulo,
largamente tributária da reflexão de Jan Assmann cujas obras inigualáveis em
profundidade e em alcance interpretativo se têm afirmado como um manancial
inspirador no estudo das crenças e práticas funerárias.29
No domínio do estudo dos amuletos «cardíacos» daremos uma atenção especial
aos amuletos do coração, que nunca foram alvo de um estudo aprofundado. Rever a
terminologia e os componentes morfológicos do amuleto do coração é a primeira tarefa
a impor-se neste domínio. Elaborar uma tipologia o mais exaustiva possível é o passo
seguinte. Na sua posse, a primeira que conhecemos que dá conta da diversidade formal
destes objectos, procurámos estudar um conjunto de objectos suficientemente alargado
de modo a conhecer melhor a sua evolução e o seu repertório simbólico. De modo a
definir o enquadramento simbólico destes amuletos, procederemos ao estudo das
representações do amuleto do coração na arte egípcia. Visamos desta forma dar
continuidade ao estudo de Michel Malaise, ampliando muito significativamente o leque
de representações estudadas. Com o estudo das representações dos amuletos
28
De facto, talvez não seja exagerado dizer que o objecto das narrativas egípcias era a própria vida já que
o seu propósito é o de relatar uma experiência de vida. As primeiras narrativas egípcias têm uma
afinidade muito estreita com as autobiografias, constituindo uma extensão e desenvolvimento destas
inscrições que inicialmente apenas contemplavam algumas indicações relativas ao percurso profissional
do defunto. Ver J. ASSMANN, The Mind of Egypt, p. 138. Gradualmente estas inscrições foram-se
enriquecendo com considerações de ordem ética e moral até desaguarem em autênticas composições
narrativas que, de acordo com a opinião formulada por Jean Leclant, começaram por ser redigidas nos
túmulos. Narrativas como as de Sinuhé derivam, deste modo, de um tipo de textos onde a exaltação do
percurso biográfico do «herói» possui o objectivo de valorizar o seu carácter moral. Apesar das evidentes
diferenças entre as narrativas e as inscrições autobiográficas, ambos os tipos de composição estão
profundamente ligados entre si e constituem o prolongamento natural um do outro. A evolução comum
destes textos deve ser sempre considerada para compreender o carácter ético das narrativas egípcias. O
perigo de não incluir as autobiografias no estudo da literatura egípcia tem como consequência necessária
a incompleta caracterização das narrativas.
29
Especialmente importante é a obra Idem, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, Éditions du Rocher,
Monaco, 2003.
32
cordiformes, procuraremos encontrar dados que permitam dar mais indicações sobre o
enquadramento temporal destes objectos e o contexto social ou religioso que
enquadrava o seu uso. Neste âmbito, as representações tumulares e divinas poderão
contribuir com importantes esclarecimentos para elucidar sobre o valor simbólico do
amuleto.
Não fizemos um estudo detalhado desses característicos objectos designados de
escaravelhos do coração. Trata-se de uma categoria de objectos bem estudada com
contributos de peso como o de Michel Malaise. Neste caso limitámo-nos a recolher
exemplares que ilustrassem as características formais do objecto e a sua variabilidade.
Deste modo, no que toca aos escaravelhos do coração, o presente estudo consistirá
praticamente numa revisão bibliográfica. Apesar disso, a confrontação com os dados
obtidos entre os amuletos cordiformes permitirá trazer um novo aporte interpretativo
relativamente ao valor simbólico do escaravelho do coração.
As colecções estudadas
33
Metrpolitan Museum of Art, dos quais apenas incluímos no nosso catálogo aqueles que
apresentavam características suficientemente originais para enriquecerem a nossa
análise.
No caso da grandiosa colecção do Museu Egípcio do Cairo, incluímos na nossa
pesquisa todos os objectos expostos nas instalações do museu. A informação relativa
aos objectos expostos foi obtida a partir da consulta de três registos distintos: o Journal
d´Entrée, o Special Register e o Catalogue Géneral des Antiquités Égyptiénnes du
Musée du Caire. Cada um destes registos é arquivado num local diferente do museu e
classifica o mesmo objecto com um número distinto, razão pela qual apresentamos, nas
fichas dos objectos do Museu Egípcio do Cairo, três números distintos antecedidos da
respectiva abreviatura (JE, SR e CG). É importante ainda salvaguardar que a recolha do
material conservado no Museu Egípcio do Cairo seria, actualmente, muito difícil,
devido às grandes mudanças que o museu atravessa. Efectivamente das várias vezes em
que aí trabalhámos, em Agosto de 2000, Setembro de 2003, Maio de 2004 e Abril de
2006, constatámos o desaparecimento de objectos que felizmente já havíamos estudado.
A construção de novos museus por todo o Egipto, em especial o Grande Museu Egípcio
(com a consequente transferência de uma boa parte da colecção para estes novos
espaços museológicos) e a cedência de objectos para exposições temporárias tem
transformado completamente a composição da exposição permanente. Desta forma,
algumas das peças recolhidas neste estudo, já não se encontram nas instalações do
Museu.
A par da informação recolhida no registo dos museus mencionados
considerámos muito útil alargar a «amostra» de modo a incluir objectos e
representações descritos na bibliografia egiptológica. Deste modo, provenientes de
catálogos de museus e de colecções de antiguidades, reunimos artefactos cujas
particularidades poderiam ser úteis para ampliar a informação disponível sobre o tema.
Por outro lado, a consulta de registos arqueológicos diversos permitiu reunir informação
relativa a amuletos e monumentos que assim aparecem bem caracterizados quanto ao
seu contexto arqueológico original, o que dificilmente é descrito nos registos
museológicos. O estudo dos amuletos cordiformes foi, deste modo, empreendido sobre
aproximadamente quatro centenas de objectos, constituindo a base das nossas
conclusões (no entanto, o número total de amuletos estudados, mas não descritos em
anexo, ascende a quase setecentos). Pensamos deste modo reunir um número
34
suficientemente expressivo de objectos que nos permita caracterizar os amuletos do
coração, conhecer o seu desenvolvimento no tempo e identificar a sua simbologia.
Conseguimos ainda complementar a «amostra» de objectos estudados com a
inclusão de objectos provenientes de colecções diversas, algumas das quais pudemos
visitar pessoalmente, mas sem um carácter sistemático, como foi o caso da colecção do
Museu de Elefantina (Assuão), do Museu de Antiguidades da Biblioteca de Alexandria,
o Museu Nacional (Alexandria), o Museu Britânico, em Londres, ou o Museu Egípcio
de Turim.30
Pela extensão do achado e pela profusão de temas relacionados com o coração,
os ataúdes provenientes do túmulo colectivo de sacerdotes de Amon, de Bab el-Gassus,
mereceram uma atenção especial da nossa parte. Infelizmente tivemos de delimitar o
estudo aos ataúdes conservados e expostos no Museu Egípcio do Cairo. O Museu do
Louvre, embora tenha ataúdes datados da XXI dinastia, não possui nenhum oriundo da
sepultura colectiva de Bab el-Gassus. Dos 153 enterramentos registados por Georges
Daressy, uma grande quantidade de ataúdes foi enviada para o exterior do Egipto
resultando na pulverização deste material arqueológico por todo o mundo, incluindo
Portugal que recebeu cinco destas antiguidades actualmente conservadas na Sociedade
de Geografia, em Lisboa.31
Outra fonte importante do nosso estudo é a informação proveniente da descrição
de monumentos. A decoração de templos ou de túmulos fornece um apoio precioso
sobre o contexto cultual, religioso e até social que envolve a utilização do amuleto
cordiforme. Complementámos a nossa análise in loco de pinturas murais e relevos com
as descrições bibliográficas dos túmulos tebanos. Embora tivéssemos estudado, através
de visitas e de consultas bibliográficas, os túmulos de Sakara, tal pesquisa não se
revelou frutífera, em parte devido ao facto de grande parte dos seus monumentos mais
expressivos ser do Império Antigo, uma época em que o amuleto cordiforme não é um
motivo iconográfico frequente.
30
Com muita pena nossa, a investigação que desejávamos que fosse sistemática e metodicamente
conduzida sobre a colecção do Museu Egípcio de Turim foi cancelada devido à ausência de uma resposta
ao nosso pedido para aí empreender o nosso estudo. Também nas nossas duas visitas ao Museu, em
Fevereiro de 2003 e Setembro de 2004, nos foi impossibilitado o contacto com os conservadores,
revelando um modelo de funcionamento pouco dignificante, o que infelizmente também se detecta no
descuido com o qual certas antiguidades são «conservadas».
31
A. NIWINSKY, Catalogue Général des Antiquités Égyptiennes du Musée du Caire, Nº 6001-6029: The
Second Find of Deir el-Bahri (Coffins), Supreme Council of Antiquities of Egypt, Institut of
Archaeology of the Warsaw University & Polish Centre of Mediterrean Archaeology in Cairo, Cairo,
1999.
35
Devido às boas condições do respectivo arquivo museológico, no Museu do
Louvre procedemos ainda a um estudo exaustivo da extensa colecção de papiros
funerários aí conservados, o que permitiu inventariar um conjunto bastante significativo
de representações cardíacas no «Livro dos Mortos». Neste âmbito, considerando toda a
documentação bibliográfica e museológica, compilámos 75 vinhetas «cardíacas» e 140
vinhetas da psicostasia. Todos estes materiais são reproduzidos e descritos em anexo.32
O desafio colocado pela enorme riqueza documental, quase inesgotável, é
tremendo. A mole de testemunhos de temática «cardíaca» patente numa enorme
variedade de contextos de representação, já para não falar da sua dispersão física em
museus de todo o planeta, torna totalmente impossível um estudo exaustivo. Deste
modo, procurámos simplesmente inventariar a maior quantidade e variedade possível de
ocorrências, cientes que novos e importantes contributos poderão ainda aparecer. Ainda
assim estamos conscientes que empreendemos uma extensa recolha de objectos e de
representações «cardíacas», decisivas para dar segurança às interpretações que
sugerimos no nosso estudo.
Plano de trabalho
32
A qualidade das fotografias reunida nos anexos é muito desigual e, por vezes, é mesmo de qualidade
bastante inferior. A extensão da amostra constitui a principal justificação para o facto de não nos termos
conseguido munir de uma documentação fotográfica tecnicamente irrepreensível. Para além de muito
dispendioso, o recurso a documentação fotográfica de qualidade seria, em muitos casos, muito moroso e
impossível de conseguir de modo atempado para a conclusão desta investigação. Ainda assim a exclusão
de material documental, precioso para a nossa pesquisa, pela sua falta de qualidade podia conduzir-nos a
lacunas mais sérias.
36
neste contexto, não podíamos deixar de ter em conta o contributo dos textos
cosmogónicos para compreender o papel do coração na criação do mundo. No quarto
capítulo, o estudo do Conto dos Dois Irmãos constitui o ponto de partida para
compreender o papel do coração na iniciação. Recorrendo aos dados actualmente
disponíveis procuramos reconstituir as principais etapas do processo de iniciação.
Na II parte do nosso trabalho, dividida em quatro capítulos, abordamos as
representações do coração no imaginário da morte. No primeiro capítulo pretendemos
contextualizar o coração nas crenças funerárias de inspiração solar. No segundo capítulo
procedemos à contextualização das crenças relacionadas com o coração no quadro do
mito de Osíris. No capítulo terceiro indagamos acerca do papel do coração no
julgamento dos mortos e o seu impacto sobre a vida terrena. Terminamos esta secção do
nosso trabalho com um capítulo dedicado à caracterização dualista do coração nas
crenças do Além.
A III parte do trabalho apresenta quatro capítulos. Procedemos, no primeiro
capítulo, à caracterização do escaravelho do coração. O segundo capítulo é dedicado ao
estudo dos amuletos do coração, reunindo e interpretando os dados obtidos na nossa
recolha. No terceiro capítulo estudamos as aplicações do amuleto cordiforme em
objectos de adorno pessoal, utilitários ou rituais. Por fim, terminamos a III parte com
um capítulo dedicado ao enquadramento simbólico do amuleto cordiforme e à
caracterização dualista das representações dos amuletos «cardíacos».
Após a conclusão segue-se um excurso que assinala alguns pontos salientes da
caracterização do coração no judaísmo e no cristianismo. O intuito desta breve
abordagem à literatura bíblica tem como objectivo traçar as linhas gerais de um quadro
cultural distinto de modo a criar um contraste com as representações estudadas no
antigo Egipto. Evidentemente, uma vez que se tratam de aspectos exteriores ao nosso
estudo, o tratamento que apresentamos destas questões é muito sumário e tem como
intuito apenas identificar aspectos mais salientes que revelam uma certa convergência
ou um contraste com a caracterização do coração no antigo Egipto.
Nos apêndices que encerram este volume são apresentados textos de temática
«cardíaca» que, na sua maior parte, foram por nós traduzidos a partir de versões
francesas ou inglesas. Acrescentamos ainda um pequeno léxico de expressões
hieroglíficas relacionadas com os termos «cardíacos». Incluímos também nesta secção
vários estudos de ordem técnica ou demonstrativa que, por serem demasiado detalhados,
não apresentámos no texto principal (é o caso do estudo feito acerca das vinhetas da
37
psicostasia, dos amuletos do coração, das representações do amuleto cordiforme e do
estudo dos termos «cardíacos» no Pentateuco).
Por outro lado, remetemos para os anexos as informações relacionadas com a
documentação de objectos ou representações «artísticas». O anexo I destina-se a apoiar
a argumentação desenvolvida ao longo da I parte do nosso trabalho, pelo que não possui
um tema específico. O anexo II apresenta dados pertinentes relacionados com os
escaravelhos do coração. O anexo III reúne a informação obtida acerca dos amuletos
cordiformes. Neste anexo os amuletos são apresentados por categorias de objectos
seguindo uma determinada ordem. Em primeiro lugar apresentamos os amuletos que,
numa determinada categoria, não apresentam motivos decorativos. Seguem-se os
amuletos com artérias laterais em botão, de tipo hieroglífico, com artérias laterais
pontiagudas e oblongas. Finalmente, apresentamos os amuletos com motivos
decorativos mais complexos como imagens ou textos. O anexo IV apresenta a
documentação relativa às representações do amuleto cordiforme. Finalmente o anexo V
oferece alguma da muita documentação existente acerca dos vários temas «cardíacos»
na arte, onde incluímos as vinhetas do «Livro dos Mortos». Sempre que possível
colocamos os números de catálogo das peças descritas em cada «ficha». Acrescentamos
uma referência bibliográfica sumária respeitante à peça documentada.
38
I PARTE
39
40
Na primeira parte do nosso trabalho iremos concentrar a nossa atenção sobre as
representações do coração relacionadas com a vida terrena. O nosso principal objectivo
consiste em caracterizar esta noção antropológica a partir das fontes literárias
disponíveis. Começando por delimitar o sentido dos termos «cardíacos» e a sua
utilização na escrita hieroglífica, procuramos caracterizar a função e o papel do coração
nas várias dimensões da vida, desde o plano físico ao plano espiritual. Neste âmbito,
dedicaremos uma atenção particular à responsabilidade do coração na integração
cósmica do indivíduo e na sua transformação espiritual.
unilíteros H3ty.
O termo ib ( ib) era outra das palavras mais usadas para designar o coração.
O signo ib apresenta, desde os tempos tinitas, todos os seus traços distintivos: duas ou
mais artérias laterais e o topo achatado, bem demarcado do corpo através de um
33
Ver R. FAULKNER, Dictionnary of Middle Egyptian, p. 162.
34
Em S. BIRCH, «On formulas relating to the heart», ZÄS 4 (1866), p. 89.
41
rebordo.35 Nos exemplares mais elaborados de escrita, o corpo do coração apresenta os
típicos motivos em forma de crescente e de montículo.36 Foi no hieróglifo ib que os
artistas se inspiraram para elaborar o amuleto cordiforme que estudaremos na terceira
parte do nosso trabalho. O facto de, na maior parte das ocorrências, ser redigido apenas
com a bilítera ib, a qual era também utilizada, sem valor fonético, como determinativo
do termo hati, dificultou durante muito tempo a sua identificação. Efectivamente
Samuel Birch ignorou a leitura fonética do hieróglifo, transliterando-o sempre como se
tratasse do termo H3ty. Auguste Mariette e Le Page Renouf foram dos primeiros sábios
a reconhecerem, no signo F34 da lista de Gardiner, a bilítera ib. Na argumentação usada
por Le Page Renouf em defesa desta tese, o autor sublinhava que a utilização
emparelhada dos termos ib e hati em certos capítulos do «Livro dos Mortos» não podia
deixar de ser entendida como o uso de termos distintos. Já nesta etapa recuada, o autor
reconhecia que o coração ib constituía uma realidade mais ampla e abstracta que o
coração hati, o qual se referia ao órgão físico.37 Embora o uso dos dois termos ib e hati
tenha sido corrente até ao Império Novo, a partir da Época Baixa detecta-se uma
prevalência do termo hati e um desaparecimento gradual da palavra ib até ao seu
completo abandono. Testemunhando este fenómeno, o copta conservou o termo hati
mas ignora qualquer outro termo relativo ao coração.38
35
Nas primeiras representações detecta-se o uso de oito artérias. Ver B. ZISKIND, B. HALIOUA, «La
conception du cœur dans l´ Égypte ancienne», Médicine/Sciences 2004, pp. 367-373.
36
Ver anexo V 1.1.
37
Em LE PAGE RENOUF, «Miscellania III», ZÄS 8 (1868), p. 8.
38
Em certas situações o autor identifica, no ib, o «heart-sack containing the heart (haty) properly so
called». Ibidem. Outros termos menos correntes eram usados para designar o coração. O termo aq, em
geral usado no sentido de «centro» também podia designar algumas partes do coração, como as veias ou
as válvulas. O termo deriva da palavra aq, «andar» e é com certeza alusivo ao batimento do coração.
42
Capítulo I. Do corpo à consciência
As palavras ib e hati têm, nos papiros médicos, uma utilização muito distinta.39
A literatura médica descreve o coração hati como constituindo o músculo cardíaco,40 a
«víscera do coração» como, por vezes, é traduzido.41 Uma das principais funções do
coração hati era, nos textos médicos, a de assegurar a circulação do sangue.
Se a definição anatómica do termo hati não levanta problemas, o mesmo não se
passa com o coração ib. Esta dificuldade reflecte-se, desde logo, na proliferação de
explicações distintas e difusas que têm sido apresentadas ao longo do tempo. Tendo em
conta os argumentos apresentados e a aceitação que a hipótese de Thierry Bardinet tem
merecido, optaremos, no nosso estudo pela interpretação do autor acerca do coração ib.
Para este autor, o coração ib,42 seria constituído por um conjunto muito alargado de
«órgãos»43 compreendendo todas as estruturas anatómicas situadas dentro da cavidade
ventro-torácica, à excepção do coração hati.44
Embora tivesse uma realidade abrangente, o coração ib parecia «materializar-se»
no estômago, ra-ib (r-ib, lit. «a entrada do coração ib»). A proximidade entre o coração
ib e o estômago não se reflecte apenas na terminologia. Em certas passagens dos papiros
39
Em T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l´Égypte, p. 68.
40
A identificação do coração hati com o músculo cardíaco foi sempre notada pelos estudiosos. Já
Piankoff alertava para esta associação entre o termo e o órgão físico. Ver A. PIANKOFF, Le Coeur, p.
18. Também Walker chama a atenção para o facto em, J. WALKER, Anatomical Studies, p. 152. A
mesma ideia foi defendida por G. LEFEBVRE, Tableau des Parties du Corps Humain, §34
41
Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 18. As palavras «músculo» e «víscera» não devem aqui ser tomadas
como fazendo parte integrante do que poderia ser uma definição egípcia desta componente muito
particular do corpo. A noção de «músculo» não existia no antigo Egipto. Da mesma forma, a ideia de
«víscera» como órgão possuidor de propriedades específicas parece ser ausente.
42
Bardinet fala em «interior ib» para reforçar a ideia que não se trata verdadeiramente do órgão cardíaco
mas sim do interior do corpo. No nosso texto, para manter o dualismo vocabular das designações egípcias
optaremos pela expressão «coração ib». Ver T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l´Égypte, p. 103.
43
Cf. R. FAULKNER, A concise dictionary of Middle Egyptian, p. 200. Para os médicos do Egipto, as
vísceras não eram órgãos com funções individualizadas sendo simplesmente considerados como regiões
particulares do coração ib.
44
O primeiro autor a confirmar esta definição dos termos ib e hati nos papiros médicos foi Thierry
Bardinet. Até aí a compreensão da questão permaneceu obscurecida e deu origem a definições bizarras e
estranhas. Lefebvre, por exemplo, considerava que ra ib, o estômago, pressupunha que os egípcios
admitiam a existência de um canal de ligação entre o coração e o estômago. Walker, por outro lado,
traduziu a expressão por «gruta do coração» e considerou que o termo ib aludia não a uma realidade
anatómica mas sim ao complexo anímico (ver J. WALKER, Anatomical Terminology, pp. 128-129.) O
contributo de Bardinet veio finalmente iluminar a questão. A expressão ra ib pode finalmente ser
compreendida como a «abertura do ib», entendido não como o órgão cardíaco, mas sim como o interior
do corpo. Nesta perspectiva, o estômago é efectivamente a «boca» ou a «entrada» para o interior do
corpo. Walker, no entanto, assevera que «claims that the ib is an intra-abdominal entity, that is located in
the epigastrium and that it is identical with the stomach all appear to be erroneous». Em Idem, p. 184.
43
médicos, ambos se apresentam totalmente identificados o que se reflecte na
caracterização do coração ib como o centro da alimentação e da bebida.45 Veja-se, para
dar um exemplo, o caso em que é recomendada uma bebida para acalmar as
perturbações do coração ib:
(Tudo isto) será misturado numa massa homogénea e ingerido pelo homem que tiver problemas no
coração ib, de modo a que ele o possa beber.46
O coração hati está no seu lugar com o sangue (...) É uma inflamação do coração hati. Por causa
disso o seu coração ib está desgastado. O seu apetite é pequeno. Ele escolhe o seu alimento. 48
45
Esta «confusão» também se detecta em textos religiosos. Por exemplo, numa estela da XX dinastia
pertencente a um indivíduo denominado Suti, refere-se que «Osíris e Ísis dão pão para o meu corpo e
água para o meu coração ib». Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 16. A proximidade entre o estômago e o
coração também se detecta na língua grega. Stoma, significa «boca» e a entrada para o estômago é
conhecida como cardia. Em J. NUNN, Ancient Egyptian Medicine, p. 54.
46
Papiro Ebers, 41, 13-15. A versão portuguesa baseia-se na tradução francesa proposta em T.
BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l´Égypte, p. 257.
47
Bardinet considera que o coração hati era «o centro do ib», o local onde os poderes do coração ib se
exprimiam com mais intensidade. Em Idem, p. 70. Na nossa perspectiva, no entanto, seria de esperar que
o local onde o coração ib se manifestava com mais intensidade fosse o estômago. A perspectiva de Long
parece mais próxima da nossa. O autor reconhece que o coração ib governava o ventre, ao passo que o
coração hati reinava sobre o peito (Ver B. LONG, «Le ib et le hati dans les textes médicaux de l´Égypte
ancienne», Hommages à François Daumas, II, p. 486). Embora esta repartição nos pareça excessiva,
parece-nos correcto manter uma repartição dualista entre os dois termos e não fundir uma entidade na
outra, como sugere a caracterização de Bardinet.
48
Papiro Ebers, 101, 5-8, A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 16.
49
Em T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l´Égypte, pp. 81.
44
profunda complementaridade entre estes dois elementos. O coração hati era a central
energética do corpo, a fonte de energia e da força motriz que sustentava o
funcionamento do corpo. O aspecto activo e dinâmico conferia-lhe um carácter
«masculino». O coração ib anatomicamente indefinido, tinha um funcionamento passivo
e receptivo, que se podia ilustrar no funcionamento do estômago, a área privilegiada do
coração ib e o que melhor expressava o seu carácter «feminino».
Os «órgãos» do coração ib
50
Esta terminologia não derivava de uma análise fisiológica propriamente dita, mas sim da prática de
certos ofícios (os talhantes, por exemplo) a qual motivou a elaboração de um vocabulário «técnico»
apropriado. Ibid., p. 36. Por essa razão, a funcionalidade identificada não tem que ser necessariamente
fisiológica podendo simplesmente decorrer da sua utilidade para o ofício em questão.
51
Na medicina egípcia, o sopro de vida era um elemento cósmico que penetrava no organismo pelo lado
direito do corpo, enquanto que o sopro de morte entrava no corpo pela sua metade esquerda: «Há quatro
canais para as duas orelhas. Dois canais para o ombro esquerdo e dois canais para o ombro direito. O
sopro da vida entra na orelha direita. O sopro da morte entra na orelha esquerda.» Papiro Ebers: Em A.
DE BUCK, «Egyptische Philologie, Een Groep Dodenboekspeuken Betreffende het hart», JEOL 9
(1933), p. 11. Esta crença estava na base de uma prática mágica muito difundida, sobretudo no Egipto
tardio, que consistia em usar no dedo anelar esquerdo um anel apotropaico que impedia as entidades
hostis, associadas ao sopro de morte, de penetrarem no organismo. Esta prática estava tão arreigada que o
uso de um tal objecto era recomendado até depois de morto (estado que aparentemente não inspiraria
maiores cuidados no que diz respeito à «saúde»!). Num papiro muito tardio, um texto descrevendo o
ritual de mumificação ainda recomendava o uso de um anel no dedo anelar esquerdo. Ver L. TROY,
«Creating a god: the mumification ritual», BACE 4 (1993), p. 73. A origem desta prática parece estar
relacionada com os sintomas do angor pectoris, no enfarte do miocárdio, que levava a estabelecer um
laço entre o coração e o braço esquerdo que se estende até ao dedo anelar. Este sintoma reforçava a ideia
que o sopro de morte entrava pelo lado esquerdo, podendo mesmo resultar numa morte repentina. A
unção do anelar esquerdo e o uso de anéis mantinha os demónios de Sekhmet, a deusa que governava as
45
transportar os elementos «aéreos» que eram inspirados pelo nariz. Este sopro,
claramente distinto dos anteriores, chegava primeiro aos pulmões e depois ao coração
hati e era, em seguida, espalhado por todos os condutores do corpo.52
Embora fizessem parte do coração ib, estes condutores estavam ligados ao
coração hati e convergiam para este centro nevrálgico.53 Do coração hati partia, em
direcção à cabeça, um condutor largo, a traqueia, que se dividia ao nível do nariz. Na
direcção inversa, os mesmos condutores prosseguiam para o ânus, onde se voltavam a
reunir. Deste modo, todos os condutores tinham de passar forçosamente pelo coração e
nenhuma relação entre as partes do corpo ligadas pelos condutores met era possível sem
esta passagem obrigatória.54 Na verdade, era o coração hati que, através do seu
movimento, dotava o coração ib com o impulso vital. A pulsação era o reflexo dessa
ligação e era considerada, pelos médicos egípcios, como a «fala» do coração que,
através dos condutores met, se repercutia por todo o corpo.55
Depois dos condutores met, o principal órgão do coração ib era o estômago, ra-
ib. A posição privilegiada do estômago em relação ao coração ib, levava a que, por
vezes, este se identificasse totalmente com o estômago.56 Assim, os próprios papiros
médicos utilizam este termo para falar do estômago: «o coração ib recebe o alimento»57
pulsões cardíacas, à distância. Em S. AUFRÉRE, «Cœur, l´annulaire gauche, Sekhmet et les maladies
cardiaques», RdÉ 36 (1985), pp. 21-34.
52
Em A. DE BUCK, «Egyptische Philologie, Een Groep Dodenboekspeuken Betreffende het hart», JEOL
9 (1933), p.12.
53
«O sistema de circulação do homem no qual se produzem todas as doenças. No que diz respeito à
cabeça, existem nela 22 canais; eles guiam o ar ao seu coração hati e são eles que levam o ar a todos os
membros do corpo»Papiro de Berlim nº 163 C. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 15.
54
Devido à importância da sua função, os condutores met tinham uma importância particular na literatura
religiosa, sobretudo de índole funerária, pois eram estes condutores que faziam circular os líquidos e os
fluídos que garantiam a reanimação do defunto. Em T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l´Égypte,
p. 67. A rigidez dos condutores met era um dos principais indícios de doença e podia-se dever à velhice
ou mesmo à morte. É por essa razão que a devolução simbólica dos fluídos, operada durante a
mumificação, era encarada como uma reanimação já que conferia de novo flexibilidade a estes elementos
que entretanto haviam ressequido.
55
Já nessa época, o médico egípcio colocava a mão sobre certos condutores met para examinar o estado
do coração hati, antecipando assim uma das mais basilares intervenções médicas dos nossos dias. Em H.
BRUNNER, «Herz», em Lexikon der Ägyptologie, II, col. 1158. Para avaliar a posição do coração o
médico examinava a pulsação em diferentes locais do corpo: «Quanto a isso, todo o médico, todo o
sacerdote ueb de Sekhmet, todo o sa (...) que coloca as mãos, os dedos, quer seja na cabeça, na nuca, nas
mãos na sede do coração ib, nas pernas, é o seu coração hati que se procura examinar, dado que os
condutores met do homem existem em cada lugar do seu corpo e está comprovado que ele (o coração
hati) fala diante dos condutores met pertencentes a cada lugar do corpo.» Papiro Ebers, 99, 1-5. Em T.
BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l´Égypte, p. 85.
56
Idem, p. 72. Para Walker, esta expressão corresponde ao interior do corpo e considera errónea a
correspondência entre a expressão e o estômago. Já vimos, no entanto, que esta suposição se baseava
numa interpretação pouco segura dos termos ib e hati.
57
M. STRACMANS «Les termes ib et hati considerés sous l´angle métaphorique dans la langue de
l´Ancien Empire», Bd´É 32 (1961), p. 74.
46
e se o coração ib sofrer perturbações «pode daí resultar um refluxo à boca»58. A
permutabilidade entre estes termos não se ficava por aqui. Em certos casos, é a
designação ra-ib que é usada para abarcar todo o coração ib.59 A relação entre o
estômago e o coração ib também transparece na literatura. Uma frase da Autobiografia
de Nebnetjeru revela uma interessante representação acerca da relação entre o estômago
e o coração ib:
O coração ib de um homem é o seu próprio deus e o meu coração ib contentou-se com o que eu
fiz enquanto ele estava no interior do meu corpo62
58
T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l´Égypte, p. 72.
59
Ibidem. Para Walker, no entanto, a designação ra-ib corresponde ao tórax. Ver J. WALKER,
Anatomical Terminology, p. 271.
60
Em Idem, p. 130. Certos textos religiosos, apresentam listas anatómicas onde se associam as partes do
corpo a divindades. Neste tipo de documentos, o coração hati é identificado com Bastet, Nehebkau, os
Dois Poderosos, Khepri, Horakhti, Ptah ou Atum. O coração ib surge ocasionalmente associado a
Horakhti, Ptah e Khentikheti. Ver Idem, pp. 283-341.
61
Em G. LEFEBVRE, Tableau des Parties du Corps Humain, § 39. Esta alusão ao estômago como um
cofre estendia-se possivelmente a todo o interior do corpo como o demonstra a utilização da mesma
expressão a propósito da caixa torácica. Ver Idem, § 24.
62
Em T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l´Égypte, p. 74, nota 2.
47
O nome de Duamutef, a divindade que é mais frequentemente associada ao vaso
de vísceras que acolhe o estômago, tem um significado interessante: «Aquele que louva
a sua mãe» e poderá mesmo evocar aquela que seria a principal função do estômago: a
de constituir a antecâmara de uma entidade mais vasta, à qual estaria ligado de forma
privilegiada. Esta entidade mais vasta, o coração ib, seria, nesta perspectiva, a evocação
de uma divindade feminina.63
Quanto aos pulmões, é fundamental começar por sublinhar que, onde
actualmente se distingue entre traqueia e pulmões, o médico egípcio via uma única
entidade anatómica, o sema (smA), composto pelo tubo traqueal e pelos pulmões.64 Os
pulmões, propriamente ditos, apesar do seu volume, eram considerados apenas dois
apêndices deste tubo, constituindo, antes de mais, reservatórios de sangue. Estes
«apêndices» eram designados pelo termo ufá (wfA).65 A função evocada pelo termo
sema estava certamente conotada com a função «unificadora» do tubo traqueal que foi
transposto para a escrita hieroglífica sob a forma do hieróglifo F36, que significa
«unir», e que inspirou o conhecido motivo iconográfico do sema-taui.
A divindade tutelar do complexo anatómico formado pelos pulmões e pela
traqueia era Hapi, o deus com cabeça de babuíno. O seu nome, (Hpy), significa «O que
pertence à corrente». O termo hep significa «corrente» e é utilizado também para
designar a deslocação da água no leito do rio. Neste caso, a designação parece reportar-
se ao fluxo de ar no tubo traqueal que, à semelhança da água do rio, o percorre em
função de ciclos ritmados. A associação ao deus babuíno pode também estar relacionada
com a conotação simbólica deste animal aos ciclos da lua reflectidos nos movimentos
respiratórios de inspiração e expiração.
Imseti, com cabeça humana, era o regente do fígado. O seu nome deriva
justamente da palavra fígado, miset (mist)66 e a iconografia representa-o com uma tez
amarelada característica das figuras femininas.67 Reconhecer-se-lhe-iam as propriedades
63
A associação do coração ib à mãe divina é uma constante dos textos funerários, facto que poderá se
relacionar com o nome de Duamutef e a sua associação ao estômago.
64
Em L. ARAÚJO, Estudos sobre Erotismo, p. 176. A unidade que os egípcios atribuíam ao conjunto de
órgãos composto pela traqueia e pulmões devia-se ao forte enraizamento das suas noções anatómicas nas
práticas dos talhantes. Ao puxar a traqueia, os pulmões também eram removidos por arrasto o que deve
ter sido entendido como uma unidade anatómica. Em J. WALKER, Anatomical Terminology, p. 195. A
designação do pulmão em si, ufá, é relativamente tardia
65
Em Idem, p. 187. Até ao Império Novo, o termo sema parece ter sido o termo mais usado, sendo após
esta época, gradualmente substituído pela designação de ufá. Era o sema que introduzia o ar no coração
ib. T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l´Égypte, p. 93.
66
Em L. ARAÚJO, Estudos sobre Erotismo, p. 176.
67
Em Idem, «Imseti», em Idem (dir.), Dicionário do Antigo Egipto, p. 446.
48
que hoje se atribuem a este órgão? Os documentos que possuímos não nos permitem
retirar conclusões seguras a esse respeito.
Por fim, o intestino, kab (qAb),68 era tutelado pelo deus Kebehsenuef, (QbH
snw.f), o deus com cabeça de falcão. O seu nome significa «Aquele que faz libações aos
seus irmãos» ou «Aquele que refresca/revitaliza os seus irmãos» o que alude certamente
à principal função da componente anatómica que tutelava: a de dotar de vida e alimento
os restantes órgãos. Note-se, porém, que não era apenas o intestino a ser colocado no
vaso protegido por Khebehsenuef, mas sim um conjunto anatómico denominado
mechet. Este termo não designa apenas os intestinos, mas sim «o que resta do khet» e
correspondia, na verdade, a tudo o que sobrava na mesa do embalsamador depois da
remoção dos órgãos anteriormente referidos. Este amplo conjunto de tecidos, dominado,
sem dúvida pelos intestinos, englobava a maior parte dos condutores met.
Quanto ao seu coração hati está no seu lugar (st.f). Ele não sobe nem desce, por isso permanece
70
estável.
68
Em Idem, Estudos sobre Erotismo, p. 176.
69
Em A. DE BUCK, «Egyptische Philologie, Een Groep Dodenboekspeuken Betreffende het hart», JEOL
9 (1933), p. 11.
70
Papiro Ebers, 101, 15-18. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 15.
71
Em Idem, p. 83.
49
Ele não pode responder.72
72
Pap. do jogo de tabuleiro, Idem, p. 27
73
Veja-se o seguinte exemplo alusivo às saudades causadas pela distância da cidade natal: «O meu
coração fugiu, escapou-se para os lugares que conhece, viajou para montante para ver Mênfis, enquanto
eu fiquei e espero pelo meu coração para que ele me traga novas de Mênfis. Nenhuma tarefa executada
pelas minhas mãos é bem sucedida. O meu coração saiu do seu lugar.Vem até mim, Ptah, e leva-me para
Mênfis. Deixa-me ver-te como desejo. Eu estou desperto, mas o meu coração dorme». Versão portuguesa
a partir da tradução inglesa em J. ASSMANN, The Search for God, p. 22.
74
J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 169.
75
Percebe-se assim o valor que a alegria, a «dilatação do coração» desempenhava na espiritualidade
egípcia pois traduzia, em pleno, o exercício da função conectiva do coração. Já a tristeza ou a depressão
prefigurava a morte e desligava o homem do seu mundo.
50
do coração ib e hati que se construiu a representação egípcia da mente humana. Tal
transferência resultou de uma categoria central do pensamento egípcio: o animismo. A
crença segundo a qual todos os objectos do mundo físico estavam dotados de «alma»,
levou naturalmente a reconhecer nos órgãos do corpo um poder que transcendia o plano
corporal. Constituindo a força motriz do corpo, o coração hati foi elevado a centro
volitivo e intelectual, ao passo que o coração ib, tido como o interior do corpo, tornou-
se a expressão da interioridade do homem e da sua vida interior. Tal como no plano
corporal, no plano mental, o coração ib era uma entidade difusa e difícil de delimitar,
enquanto que o coração hati era o elemento «activo». As concepções relacionadas com
a consciência nasceram a partir da transferência para o plano mental, do próprio
funcionamento do corpo.76
76
Esta unidade detecta-se, por exemplo, na possibilidade de sobrevirem perturbações de ordem
intelectual, na sequência de alterações do coração ib: «Quanto à possibilidade do coração ib perder a
memória, isso é por causa de um sopro (...) quando este entra na traqueia-pulmões o coração ib fica
lesionado.» T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l´Égypte, p. 110. «Quanto ao facto do coração ib
do homem estar afogado, é que o seu coração ib se torna esquecido como alguém que pensa noutra
coisa», Papiro Ebers: Ibid., p. 113.
77
Esta caracterização implícita da noção de coração foi feita a partir de um amplo conjunto de expressões
inventariadas no Apêndice XI.
78
H. BRUNNER, «Das Herz im ägyptischen Glauben», em Das hörende Herz, p. 14. «Aquele cujo
coração está fatigado» constitui precisamente um epíteto fúnebre de Osíris, evocando o seu estado
letárgico, inerente à morte. Ver Apêndice XI, p. cv.
79
Idem, «Herz», em Lexikon der Ägyptologie, II, col. 1161.
51
coração como um órgão concreto continuou a ser utilizada para descrever os estados
anímicos e emocionais. Uma vez mais, somos confrontados com a grande continuidade
entre o plano material e o espiritual.
80
A. DE BUCK, «Een groep dodenboekspreuken betreffende het hart», JEOL 9 (1944), p. 12. Ver
Apêndice XI, p. cxiv.
81
A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 33.
82
Uenamon, o protagonista de uma atribulada narrativa, era um funcionário do templo de Amon em
Tebas que se encontrava na Síria para comprar madeira de cedro. Não tendo reunido bens suficientes para
cumprir a sua missão, senta-se à beira-mar, sem vislumbrar uma maneira de regressar à sua pátria.
Tomando conhecimento do seu desespero, o senhor de Biblos manda-lhe, então, uma bailarina para a sua
tenda, advertindo-a com estas palavras: «Canta para ele e faz com que o seu coração não fique com
pensamentos sombrios». Em Idem, «Das Herz im ägyptischen Glauben», em Das hörende Herz, p. 14.
Para a Desventura de Uenamon ver A. GARDINER, Egypt of the Pharaos, pp. 306-312. Também em L.
ARAÚJO, O Clero do deus Amon, pp. 255-263.
83
H. BRUNNER, «Herz», em Lexikon der Ägyptologie, II, col. 1160. Por vezes, quando a situação do
Egipto reflectia um estado de profunda desordem social, a sociedade inteira manifestava, nos seus
corações, os sentimentos de tristeza e de desânimo, mostrando que a perturbação da ordem maética
arrastava todos para a tristeza. Nas Admonições de Ipu-uer, encontramos um interessante testemunho
desta ligação. Neste texto, vemos que, graças ao coração, tanto os animais como os homens, sábios ou
servos, participavam da mesma infelicidade que afectava o Egipto. De facto, os corações do gado choram
e os servos encontram-se em estado de abatimento. A. DE BUCK, «Een groep dodenboekspreuken
betreffende het hart», JEOL 9 (1944), p. 13. A morte do rei era um destes eventos cósmicos que
afectavam todo o povo como um todo. Na Aventura de Sinuhé, quando o rei Amenemhat I morre, o
narrador descreve assim o impacto desta notícia junto dos cortesãos: «A corte estava no silêncio, os
corações na tristeza». Em G. LEFEBVRE, Romans et contes égyptiennes de l´époque pharaonique, Paris,
1988, p. 5.
52
violência e o mal. Assim, nas Admonições de Ipu-uer, o sábio lamenta que o criador não
tivesse destruído aqueles em que «o fogo está nos corações», ou seja, os pecadores, logo
na primeira geração:
O fogo está nos seus corações! Se ao menos (o deus) se tivesse apercebido da sua natureza logo
84
na primeira geração!
84
Ipu-uer: M. LICHTHEIM, AEL, I, 160.
85
F. DAUMAS, «Hathor», em Lexikon der Ägyptologie, II, col. 1029.
86
Idem, col. 1026.
87
Ver Apêndice XI, p. xci.
53
O coração como sede da inteligência
88
H. BRUNNER, «Das Herz im ägyptischen Glauben», em Das hörende Herz, p. 9.
89
Idem, «Herz», em Lexikon der Ägyptologie, II, col. 1162.
90
Ibidem.
91
H. BRUNNER, «Herz», em Lexikon der Ägyptologie, II, col. 1162.
92
Ainda hoje as muitas línguas ocidentais reflectem esta ideia. Assim, no francês memorizar diz-se savoir
par coeur, no inglês learn by heart e no próprio português, «decorar» deriva da palavra latina referente ao
coração, e que acabou por originar a expressão «saber de cor», que mais não é do que «saber pelo
coração».
93
A. DE BUCK, «Een groep dodenboekspreuken betreffende het hart», JEOL 9 (1944), p. 14.
94
A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 46.
95
Para compreender a importância da memória é preciso sublinhar que sem ela a vida no Além ficaria
comprometida, pois a identidade se dissolveria.
96
Inst. Ptahhotep: Ibidem.
54
«Colocar no coração»97 é talvez a expressão que melhor traduz a ligação entre a
compreensão e o comportamento. Quando se recomendava para «colocar deus no seu
coração», não se estava apenas a recomendar que se pensasse na divindade, mas
também que se realizasse na vida prática os seus ensinamentos. A expressão remetia,
portanto, para um sentimento forte capaz de registar indelevelmente a informação
memorizada e a traduzi-la no comportamento quotidiano.
97
Ver Apêndice XI, p. xcv.
98
H.BRUNNER, «Das Herz im ägyptischen Glauben», em Das hörende Herz, p. 18.
99
A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 30.
100
«E tu comes aquilo onde colocaste o teu coração.» Pir., § 807. Em R. FAULKNER, Ancient Egyptian
Pyramid Texts, p. 145. «Aquele que age de acordo com o que está no seu coração», A. PIANKOFF, Le
Coeur, p. 30.
101
A. GARDINER, Egyptian Grammar, p. 304.
102
A. DE BUCK, «Een groep Dodenboekspreuken betreffende het hart», JEOL 9 (1944), p. 12. Ver
Apêndice XI, p. cxviii
103
Ibidem.
104
Idem, p. 15.
55
racionalidade e a emoção, manifestando uma clara união entre o pensamento, o desejo, a
emoção e o próprio corpo.
As tuas palavras apaziguam o meu coração ib e o meu coração hati inclina-se a aceitá-las.105
Ele tem (...) o coração determinado (mti HAti), discurso excelente, amado pelos corações (mr ibw)
de todos.106
105
Instrução de Ani, 58. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 33.
106
Inscrição da XXVI dinastia. Em S. HODJADH e O. BERLEV, The Egyptian Reliefs and Stelae, p.
174.
107
Idem., p. 90.
108
Ibidem.
109
H. BRUNNER, «Das Herz im ägyptischen Glauben», em Das hörende Herz., p. 17. Ver também A.
DE BUCK, «Een groep dodenboekspreuken betreffende het hart», JEOL 9 (1944), p. 17. Um conselho
pessimista recomendava: «Não preenchas o teu coração com um irmão», alertando para os perigos de se
confiar em alguém. O amigo, por seu turno, era apelidado «o grande (senhor) no meu coração», ao passo
que a bem-amada era «a irmã que está no teu coração». Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 40.
56
outro lado, «lavar o coração» correspondia à satisfação de um desejo, o qual podia
associar-se directamente ao estômago (comer ou beber bem) ou assumir uma conotação
mais abstracta (construir um monumento aos antepassados, por exemplo).110 Estas
metáforas mostram bem que as funções afectivas e volitivas do coração se inscreviam
na concepção do coração como um vaso. Estas crenças também se reflectem na escrita
criptográfica: o signo W10 da lista de Gardiner, representando um vaso, está entre os
mais utilizados para redigir o termo «coração».111 A associação do coração ib ao vaso,
para além de partir de uma realidade anatómica inspirada no estômago, imprimia a esta
dimensão da consciência um carácter passivo e feminino. Como vimos, na
caracterização anatómica do termo, era esta dimensão que mais associada estava ao
sopro de vida, ao deus interior que animava o corpo e ao próprio cosmos, na medida em
que constituía uma ligação viva à mãe divina, Nut, cujo símbolo era precisamente o
vaso.
O coração hati, que no vocabulário anatómico estava associado à víscera do
coração, parece perfilar-se como a dimensão intelectiva da consciência. Relembremos
que hati (HAti) significa, «o que está ao comando», o que sugere uma ligação mais forte
às funções cognitivas e intelectuais do coração, as quais «comandam» a vida do
indivíduo.112 O próprio signo hieroglífico utilizado, a parte dianteira do leão (F4),
apresenta fortes conotações neste sentido. Este animal, com fortes conotações solares,
simboliza a defesa contra os inimigos da luz, razão pela qual a vigilância era um dos
seus principais atributos.113
O vaso e o leão, associados ao estômago e à víscera do coração,
respectivamente, constituíam, deste modo, duas imagens que simbolizavam os dois
aspectos complementares do coração: a emoção e o discernimento. Também é curioso
que, através da dualidade entre o coração ib e o coração hati, se estabelecesse uma
associação à água e ao sol, decorrente de um enquadramento religioso que exploraremos
posteriormente. Os dois termos, oriundos do vocabulário anatómico, imprimiam, deste
modo, um sentido dualista, rico em metáforas, que permitia explorar a vida consciente
como uma totalidade dinâmica. Isso não significa, no entanto, como é frequente
afirmar-se, que os Egípcios atribuíam ao estômago ou ao músculo cardíaco a função
110
Ibidem.
111
Ver anexo V 1.8.
112
F. DAUMAS, «Hathor», Lexikon der Ägyptologie, II, col. 1029.
113
Sobre o simbolismo do leão na arte e na escrita hieroglífica ver R. WILKINSON, Reading Egyptian
Art, p. 69.
57
emotiva ou intelectiva. Este tipo de raciocínio etiológico é estranho ao Egipto. O que
está na base da atribuição de funções anímicas aos órgãos é a própria visão animista do
pensamento egípcio que concede à natureza uma «alma», um poder de vida. Nesta
perspectiva, também os órgãos tinham uma «alma». Desta forma, pela sua importância
na manutenção da vida, o estômago e o músculo cardíaco tornaram-se os símbolos da
consciência pessoal. A dualidade anatómica constituía o ponto de partida para uma
caracterização mais ampla do coração como a sede da consciência pessoal.
O dualismo da noção de coração é tão arreigado que se fez sentir até em jogos
crípticos. Étienne Drioton, no seu estudo sobre este tipo de inscrições, identificou um
uso inusitado e invulgar deste processo para redigir o termo ib através de um naco de
carne (os signos F51 e N3 da lista de Gardiner, que habitualmente significam «carne»,
iuf, iwf) e de um obelisco (o signo O25 que se lê benben, bn-bn). A associação destes
signos conduz, por acrofonia, à leitura final de ib.114 A escolha destes símbolos fez-se,
não só pelo jogo linguístico, mas também pelas afinidades simbólicas entre signos que
aparentemente não teriam nenhuma ligação entre si. A associação do coração aos signos
da carne, iuf, e do obelisco, benben, é particularmente interessante uma vez que traduz a
união entre os dois aspectos do deus sol. Com efeito, o cadáver do deus Atum é
designado pelo termo iwf, que evoca a manifestação inerte do deus no mundo inferior.
Já o signo benben simboliza o aspecto luminoso do sol. Através da escrita criptográfica
veiculava-se, deste modo, uma mensagem religiosa de grande alcance: o coração tinha
uma faceta ctónica, corpórea, e mortal e outra luminosa, «espiritual» e solar.
114
É. DRIOTON, «Maximes morales sur des scarabées égyptiens», Hommages à Waldemar Deonna, p.
201. Ver anexo V. 1.8.
58
Capítulo II. O coração e a integração cósmica
115
M. LICHTHEIM, Maat in Egyptian Autobiographies, p. 11.
116
«Sua majestade tornou-me administrador de Nekhen, pois o seu coração estava cheio comigo, muito
mais do que com qualquer outro seu servo. (...) Eu era excelente no coração de sua majestade (...) O seu
coração estava satisfeito comigo.» Autobiografia de Uni, versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, I, p.
18. Versão hieroglífica em P. TRESSON, L´Inscription d´Ouni, Col. Bibliothèque d´Étude, VIII, IFAO,
Cairo, 1919. É bem ilustrativo que ao longo da Autobiografia de Uni o hieróglifo ib seja usado
maioritariamente nas expressões her ib, «no coração de» (uma preposição comum na escrita hieroglífica)
e meh ib Hem ef, «encher o coração de Sua Majestade». Como refere Strackmans, o coração ib parece,
nestes textos, identificar-se com o estômago. Ver M. STRACKMANS, «Les termes ib et HAty considérés
sous l´angle métaphorique dans la langue de l´Ancien Empire», pp. 125-132. Para a expressão «encher o
coração», ver Apêndice XI, p. cxi.
117
Sobre a expressão «satisfazer o coração», ver Apêndice XI, p. cxx.
59
necessidades físicas.118 Usar esta expressão era, deste modo, um importante sinal de
distinção social, uma vez que pressupunha uma grande intimidade com o rei.119
No Primeiro Período Intermediário, verificou-se um notável desenvolvimento
das inscrições autobiográficas e com ele as virtudes pessoais começaram a ser
enumeradas ao longo do percurso biográfico. Acompanhando estas mudanças, o coração
parece ter adquirido um peso mais decisivo na fraseologia convencional destes textos.
Na estela do tesoureiro Teti,120 o dignitário, referindo-se a si mesmo, proclamava:
O seu servo, que tem o afecto (do rei) (...), um magistrado cujo coração é grande, que conhece o
desejo do seu senhor, o que está à dianteira dos grandes do palácio (...) que contenta o coração de Hórus
com o que ele deseja, íntimo do seu senhor (...) Eu fui um verdadeiro íntimo do rei, um funcionário de
grande coração e bom temperamento.121
118
A expressão era muito usada para designar a saciedade decorrente da satisfação das necessidades
fisiológicas. Deste modo «Beber à satisfação do coração», significa «beber até à saciedade» (Swr r Htp.w-
ib). Em É. DRIOTON, «Maximes morales sur des scarabées égyptiens», p. 198.
119
Esta intenção também é bem visível no caso do funcionário do pequeno rei Pepi que, para contentar o
seu soberano, pediu: «Traz contigo o pigmeu (...) para que este execute as danças do deus, para satisfazer
o coração do rei Neferkaré que viva eternamente!» Autobiografia de Herkhuf: Versão inglesa em M.
LICHTHEIM, AEL, I, p. 27. Dar o pigmeu à criança era um meio para conquistar o seu mais profundo
reconhecimento, pois a «satisfação do coração» traduzia-se numa profunda satisfação e a certeza de boas
recompensas materiais.
120
Teti exerceu as suas funções sob os dinastas tebanos Antef II (2125-2112 a. C.) e Antef III (2112-2063
a. C.).
121
Estela do tesoureiro Teti. Versão inglesa em Idem, pp. 90-92.
122
Sobre a expressão «coração grande», ver Apêndice XI, p. xcviii.
60
situação relacionava-se com o facto de tanta degradação condenar à solidão o homem
sábio.123 Nos textos que descrevem este tempo, este problema foi resolvido reforçando a
função do coração como companheiro. No mundo devastado pela cupidez, o homem
virava-se para si mesmo e estabelecia um diálogo com o seu próprio coração escapando
assim à morte que advinha com o isolamento. Este diálogo interior com a única e
derradeira fonte de ordem e de sabedoria constituiu, deste modo, um subterfúgio para
evidenciar o valor do coração na vida do homem, uma vez que, mesmo nos tempos mais
difíceis, ele se afigurava como o único consolo e o pilar que continuava a assegurar a
integração cósmica do indivíduo:
123
Lembremo-nos que, no antigo Egipto, a solidão constituía a manifestação da morte no plano social e
evidenciava a falência da conectividade social.
124
As Lamentações de Khakhepereseneb, ver Apêndice II.1.
61
consciência. Desde então, ao ligar-se ao coração, o homem esperava ouvir os seus
esclarecimentos e a sua orientação para superar as dificuldades:
125
As Lamentações de Khakhepereseneb, ver Apêndice II, 1.
126
M. LICHTHEIM, Maat in Egyptian Autobiographies, p. 32.
127
Em Id., p. 23. Neste âmbito, as inscrições autobiográficas constituíram um «terreno experimental»
para a expressão de si mesmo que levou à criação de géneros literários autónomos, como a narrativa, que
nasceu justamente a partir do desenvolvimento das autobiografias.
128
Sobre a expressão ver Apêndice XI, p. civ.
129
Sobre a expressão ver Apêndice XI, p. cii.
130
Graffiti de Ramesnefer, redigida no túmulo de Antefoker, Versão baseada na tradução inglesa em
Ibidem.
62
ideológicos da nova casa real. A Instrução Lealista constitui um dos documentos mais
ilustrativos da utilização da literatura para propagar esta mensagem política. 131 O texto
procurava garantir a fidelidade dos funcionários apelando à dimensão mais íntima das
suas consciências:
O rei é um ka
A sua boca é abundância.
Aquele que será alguém é aquele que ele faz avançar
Ele é um Khnum para cada corpo,
Um engendrador, que cria a humanidade.133
A lealdade ao rei era deste modo justificada como um facto natural, algo que
pertencia à ordem natural das coisas. Ser leal com o rei seria como respeitar a sua
própria consciência e fazê-lo ligava o homem à fonte da vida.
Embora o rei fosse o responsável pela ordem cósmica, a verdade é que uma nova
atitude perante o mundo perpassava nas linhas destes textos. A comparação com o
capítulo 30 B, que discutiremos noutra secção da nossa pesquisa, impõe-se e mostra
uma inspiração clara do texto funerário nesta composição:
131
Atribuído, numa das cópias sobreviventes, a Sehetepibré, um funcionário de Amenemhat III, alguns
autores consideram, no entanto, que o texto pode ter sido redigido no início da XII dinastia. Em P.
VERNUS, Sagesses de l´Égypte Pharaonique, p. 205.
132
Instrução Lealista, §2, ver Apêndice II.5.
133
Instrução Lealista, § 5, ver Apêndice II.5.
63
A razão para uma tal inspiração reside na identificação entre o coração e o rei. O
coração, a consciência superior do homem, o órgão que mantinha a vida e garantia a
ligação do indivíduo ao cosmos, era o local onde o homem se podia encontrar com a
consciência do rei. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que colocava o rei no interior de
cada homem, este ensinamento atribuía a cada um o privilégio de um contacto
permanente com a inteligência cósmica. Era no seu coração que o funcionário devia
procurar a sabedoria para guiar o seu comportamento, pois era lá que encontrava um eco
da consciência e da sabedoria do rei.
Esta concepção constituiu uma das mais decisivas reviravoltas mentais que se
verificaram na cultura egípcia. Em primeiro lugar, ao ser dotado com a centelha da
sabedoria que morava no coração, o homem ganhou interioridade, dando assim início ao
auto-conhecimento e ao interesse pela descrição da «personalidade» humana. Por outro
lado, ao ser dotado desta autonomia, o homem foi responsabilizado pela sua própria
conduta, facto que lhe abria as portas do Além e à possibilidade de aí se transformar
num justo e de se integrar na comunidade dos divinos seguidores de Osíris, prerrogativa
até aí exclusivamente reservada à realeza.
Se é certo que esta perspectiva fez retomar os laços solidários que ligavam a
natureza, os homens e o Além, restabelecendo a ordem natural, social, religiosa e
política, a verdade é que os pressupostos que regiam esta nova ordem eram distintos
daquela que tinha vigorado no Império Antigo. Com efeito, a partir do Império Médio, a
nova ordem emergente, embora associada à realeza, assentava em bases mais sólidas de
controlo: o controlo de si mesmo.135
Voltando-se para o seu coração, cada homem confrontava-se com a sua própria
responsabilidade pela manutenção da ordem cósmica. A nova monarquia contava assim
com cada um para constituir uma extensão da sua própria acção. Para assegurar a
eficácia desta «delegação» de responsabilidades, a ideologia real contava com a eficácia
de uma das mais fortes aspirações do ser humano: sobreviver à morte.
134
Capítulo 30 B do «Livro dos Mortos», Adaptado a partir da versão portuguesa proposta por L.
ARAÚJO, «Um escaravelho do coração numa colecção privada portuguesa», Museu 9 (2000), p. 12 e da
versão francesa patente em P. BARGUET, Le Livre des Morts, p. 255.
135
Esta nova concepção acerca da responsabilidade pela manutenção da ordem cósmica devia-se muito
aos pressupostos políticos dos monarcas regionais do Primeiro Período Intermediário. Nestas monarquias
de carácter local, verificou-se uma preocupação em afirmar a justiça como o resultado de uma
responsabilidade partilhada e não como um atributo exclusivamente real. Sobre as novas concepções
políticas que emergiram nesta época ver I. SHAW, The Oxford History of Ancient Egypt, pp. 118-147.
64
Com a possibilidade de sobrevivência no Além ligada à sua conduta, o homem
tornava-se o aliado necessário à nova monarquia. O Conto do Camponês Eloquente dá-
nos desta visão um importante testemunho já que alerta precisamente para a injustiça
que ocorre sempre que, ao longo da hierarquia social, o superior abusava dos mais
fracos, interrompendo o laço solidário que era a base da ordem faraónica. Embora
postas na boca de um camponês é difícil não ver nas seguintes palavras, uma
advertência do rei aos seus próprios funcionários, para os alertar para a sua
responsabilidade:
136
O Camponês Eloquente (terceira petição), ver Apêndice II.6. Versão hieroglífica em R. B.
PARKINSON, The Tale of the Eloquent Peasent, Griffith Institute e Ashmolean Museum, Oxford, 1991.
65
Que inventou estas coisas e as fez?
Não faças para ti próprio pesos defeituosos,
Pois são ricos nos infortúnios ditados por deus. 137
Ele é o pastor de todos, não há maldade no seu coração. O seu rebanho é escasso, mas ele passa o
dia a guardá-lo. Há fogo nos seus corações (dos ímpios)! Se ao menos ele tivesse percebido a sua natureza
na primeira geração! Assim ele teria arrancado o mal.139
137
A Instrução de Amenemope, Capítulo Décimo Sexto (XVII, 18- XVIII, 5). ver Apêndice II. 7. Para
Pascal Vernus este último verso faz alusão ao envio de «demónios» que castigam o pecador por ordem
divina (Ver P. VERNUS, Sagesses de l´Égypte Pharaonique, p. 339, nota 143). A Instrução de
Amenemope reflecte na perfeição a grande viragem cultural que marcou o Império Novo e que consistia
na preponderância da vigilância divina sobre as acções humanas. Foi esta característica que traçou
certamente a sua aceitação pela tradição bíblica, de tal modo que inspirou a redacção de escritos
veterotestamentários, o que se detecta de um modo particular nos Provérbios. Ver Idem, p. 306.
138
O objectivo de Amenemope não era, pois, o de exortar à honestidade mas sim o de desencorajar a
corrupção, o que constitui uma importante diferença de horizonte do ponto de vista social.
139
As Admonições de Ipu-uer, ver Apêndice II.2.
140
No seio da religião em sentido restrito este problema não se colocou. Foi, ao nível da religião em
sentido lato, onde se enquadra a problematização da maet, que esta questão se levantou. O caos político e
social fez emergir a questão da relação entre criação e o criador. Os textos da sabedoria enquadram-se na
definição da religião em sentido lato, pois reflectem sobre a manutenção da maet. A teologia explícita
66
uma escolha que cada um fazia na sua própria consciência e não a uma imperfeição do
criador:
Eu criei os quatro ventos, para que todos possam respirar a seu tempo (...) eu criei a grande
cheia, para que o pobre possa fazer uso dela como o rico. (...) Eu criei cada um como o seu companheiro
e reprovei o mal feito por eles, mas os seus corações resistiram ao que eu disse (...) Eu fiz que os seus
corações não deixem de esquecer o Ocidente, para que as oferendas sejam feitas nas suas sepaut (...)141
nasce neste contexto mais abrangente, razão pela qual não apresenta os mesmos pressupostos sobre a
divindade. A religião em sentido restrito compreende toda a documentação proveniente do contexto
cultual ou funerário e transmite uma visão de deus essencialmente politeísta. Em J. ASSMANN, The
Search for God, p. 173-175.
141
Versão portuguesa baseada na tradução inglesa em Idem, p. 175.
67
Eu oiço as palavras de sabedoria de Imhotep e Djedhor que,
Ainda hoje, todos repetem.
Mas eles, onde estão?
Quebrados estão os muros,
Abandonados os locais.
É como se nunca tivessem existido.
De lá ninguém regressa, para falar sobre o seu destino.
Então para quê torturar o coração?142
Ironicamente, o mesmo individualismo que tinha sido visto pela elite dirigente como
a pedra de toque do novo sistema de controlo social, começava a ganhar uma vida
autónoma e a seguir caminhos imprevistos. O individualismo podia agora levar o
indivíduo a confrontar-se livremente perante a sua própria vida e a assumir o
controlo dos fios que a regiam. Em breve, seguir o coração tornar-se-ia cada vez
menos uma expressão equivalente a «seguir o rei».
142
Canção de Antef, em ver Apêndice II.10.
143
Canção de Antef, ver Apêndice II.10.
68
egípcia.144 O reinado de Hatchepsut representava a realização da vontade divina na
história: ela própria era o resultado da união secreta entre o deus e a rainha mãe,
paternidade essa que o deus revelou ao mundo sob forma oracular. 145 A rainha criou,
tanto no mito como no culto, as bases para que deus manifestasse directamente aos
homens a sua vontade.
Embora a emergência de um discurso religioso dedicado ao deus supremo
tivesse intuitos políticos e se enquadrasse perfeitamente no espírito de restauração
religiosa empreendida por Hatchepsut, este fenómeno literário rapidamente transcendeu
a esfera política e ganhou uma dimensão autónoma que se traduziu num uso crescente
destes textos em contextos funerários privados. O segredo deste sucesso parece ter
residido na capacidade «oracular» de Amon para «falar» e se dirigir directamente ao
homem. O perigo de Amon para a realeza, que a reforma de Akhenaton procurava
sanar, não estava tanto no seu crescente poder económico, mas sim na sua capacidade
em intervir directamente na história e na vida de cada um.146 Era a possibilidade do
deus se revelar através do oráculo que tornava o deus verdadeiramente ameaçador para
o poder político.147 A reforma de Amarna procurou justamente reverter este processo
144
A religião egípcia estava intimamente ligada à realização da maet. No sentido lato, envolvia a
aplicação da justiça e o culto dedicado aos deuses e aos mortos. No sentido estrito baseava-se apenas na
segunda dimensão da realização da maet: o contacto com o divino. O contacto do homem com o divino
articulava-se em função de três dimensões. No culto, o homem relacionava-se com os deuses nos
templos, através das suas estátuas e de cerimónias específicas. No cosmos, o homem relacionava-se com
as manifestações divinas (o mundo manifesta os poderes dos deuses). Também através do mito o homem
se podia relacionar com os deuses, acedendo aos textos sagrados que articulavam os deuses em
constelações divinas. Em suma, o texto, o cosmos e o culto veiculavam a presença divina para os
homens. O culto rodeava o corpo dos deuses, o cosmos dava visibilidade à presença divina e os textos
descreviam a sua essência. Para além das três dimensões tradicionais da presença divina, praticadas pela
teologia implícita, acrescentou-se, no Império Novo, uma quarta dimensão, introduzida pela teologia
explícita, que consistia na revelação directa da vontade divina, através do oráculo ou através do coração.
Em J. ASSMANN, The Search for God, pp. 4-8
145
Todo o esforço de restauração religiosa empreendido pela rainha procurava corresponder e justificar
este desígnio divino. Sobretudo na região de Tebas a sua intervenção transformou por completo a
paisagem simbólica da capital do culto de Amon, criando os principais eixos que enquadraram, a partir
daí, a actividade cultual do deus. Na margem oriental foi criado o eixo entre Apet Sut e o templo de Opet
enquanto que na margem ocidental foi delineado o eixo entre o templo funerário da rainha em Deir el-
Bahari e o templo de Medinet Habu, destinado a acolher periodicamente a barca de Amon, como na Bela
Festa do Vale. As suas construções traçaram, deste modo, um quadrilátero simbólico que unia as duas
margens do Nilo através dos percursos efectuados pela barca de Amon. Sobre o vasto programa de
construções empreendido pela rainha ver I. SHAW, The Oxford History of Ancient Egypt, pp. 238-240.
146
Na verdade, a riqueza dos templos era um recurso usado pela coroa. Era a quarta dimensão da presença
divina, introduzida por Hatchepsut que constituía a verdadeira ameaça ao «monopólio da acção real». Em
J. ASSMANN, The Search for God, p. 219. Era isso que dotava o clero de Amon com um verdadeiro
poder, uma vez que o oráculo era, evidentemente, mediado pela intervenção dos sacerdotes.
147
As procissões divinas ganharam uma importância extraordinária como ocasiões para manifestar a
vontade divina. Todo o país viajava para Tebas que se havia tornado numa nova cidade santa. A
arquitectura sagrada adquiriu uma expressão urbana para enquadrar estas festividades. Um igual peso da
procissão (real) existia em Amarna e o seu urbanismo, frequentemente encarado como uma característica
69
encarniçando-se numa perseguição aos antigos cultos. Longe de os desencorajar, a
perseguição dos cultos tradicionais, sobretudo o de Amon, só contribuiu para
intensificar e consolidar a relação pessoal entre deus e o homem. O seguinte hino,
redigido em plena reforma amarniana, constitui um testemunho claro da resistência à
perseguição:
Esta bela composição consiste numa lamentação que testemunha que, mesmo
sem os sinais exteriores do culto (as expressões «saciedade sem comer», «embriaguez
sem beber», aludiam às festividades do deus que já não eram realizadas), a experiência
mística que resultava do contacto com a presença divina continuava a realizar-se no
interior do crente. O deus manifestava-se agora unicamente no interior do indivíduo.
Um tanto ironicamente, foi a perseguição movida por Akhenaton que espoletou
o ambiente religioso da piedade pessoal que caracterizou o período ramséssida.149 Ao
desmantelar os cultos divinos, a reforma de Amarna levou a que os deuses se
«albergassem» no coração dos homens. O contacto directo com a divindade, antes
privilégio da elite, difundia-se a todos. 150 Mesmo quando o culto foi restabelecido, a
vivência interior do contacto com deus continuou a ser privilegiada. 151 Com efeito, a
espiritualidade do Egipto pós amarniano caracterizou-se pela livre expressão do
singular deste fenómeno religioso, transpunha para o contexto das deslocações reais, o mesmo princípio
arquitectónico que enquadrava as deslocações da barca divina de Amon em Tebas. Em Ibidem.
148
Hino a Amon, ver Apêndice IV.13. Este poema constitui um raro testemunho sobrevivente de uma
literatura de dissidência que circulava clandestinamente sobretudo em Tebas. Desprovidos do contexto
litúrgico, o conteúdo destes hinos disseminou-se por todas as classes sociais.
149
Um corpo significativo de composições deste tipo datam do período ramséssida. Hinos com esta
inspiração foram redigidos sobre estelas votivas, óstracos, inscrições tumulares e em templos. Idem p.
224.
150
Idem, p. 230.
151
Ver Hino a Amon em Apêndice IV. 21.
70
individualismo na relação com o sagrado.152 Iniciando uma nova etapa do pensamento
religioso do antigo Egipto, a piedade pessoal elegeu o coração humano, sem qualquer
interposição da esfera política, para promover o encontro entre deus e os homens.
152
Dedicar-se à adoração de uma divindade particular e adoptá-la como protectora é um fenómeno bem
conhecido do Império Novo, com particular expressão no período ramséssida. Embora determinante para
fomentar o interesse na relação pessoal com deus, a reforma atoniana apenas intensificou um processo
que já estava em curso desde meados da XVIII dinastia.G. POSENER, «La piété personelle avant l âge
amarnian», RdÉ 27 (1975), p. 210. No reinado de Amen-hotep III os testemunhos de uma relação pessoal
com o deus mostram que o fenómeno já estava em marcha antes da reforma atoniana e que o seu
florescimento no período ramséssida foi intensificado mas não foi provocado pela centralização do culto
efectuada por Akhenaton.
153
Em M. LICHTHEIM, Maat in Egyptian Autobiographies, p. 54.
154
Esta posição, no entanto, foi duramente criticada por Lichtheim, para quem a sabedoria não foi
absorvida pela piedade pessoal, nem o conceito de maet desapareceu. Ao fazer o que o deus desejava, o
homem sábio realizava a maet. Para a autora, o pensamento sobre maet acompanhava de perto a piedade
pessoal mas não se confundia com este fenómeno. Em Idem, pp. 100-101. A partir dos argumentos
apresentados pela autora, no entanto, é difícil extrair uma refutação clara da posição defendida por
Assmann.
155
Em Idem, p. 57.
71
Eu sou um nobre que serviu o seu senhor,
Alguém qualificado e isento de negligência. (...)
Eu fui guiado pelo meu coração
No caminho dos que são abençoados pelo rei. (...)
O meu bom carácter elevou a minha posição,
Fui considerado alguém sem mácula
Quando for medido
Sairei completo e íntegro
com um coração resoluto.
Não menti a ninguém
Eu conheci o deus que habita em (cada) homem,
Conhecendo-o eu fiquei a saber (estas verdades) (...)
Fui um modelo de gentileza,
Abençoado e louvado desde o ventre (da mãe).156
156
Inscrição funerária do túmulo de Paheri. ver Apêndice I, 10.
157
Um documento muito similar, certamente elaborado com base no mesmo modelo, é a Autobiografia de
Antef que apresenta uma caracterização da função do coração cunhada com os mesmos valores. Em
Apêndice II. 10.
158
Ambos os textos revelam uma grande familiaridade com a literatura do Império Médio e, em
particular, com os textos autobiográficos redigidos nos cenotáfios de Abido. Em Id., p. 53.
72
entre as fragmentárias sentenças do Papiro do Ramesseum II se lê: «é o coração que faz
multiplicar as qualidades, um poderoso mestre para moldar as virtudes».159
No entanto, sobre esta base começou a destacar-se uma ideia completamente
nova que consistia em reconhecer o coração como um deus «que está no corpo» e que
«guia para o bom caminho». A orientação do coração era vista como um sinal da
presença divina em cada homem. É justamente esta dimensão que traça uma linha de
demarcação com o pensamento precedente.
A presença divina era entendida como natural à própria essência do homem pois
estava presente «desde o ventre». 160 No entanto, esta «dádiva» era complementada por
um esforço intenso do homem para a realizar na vida. Por essa razão o deus
transformava (kheper) o homem no seu coração:
159
Em Ibidem.
160
Ver inscrição redigida na estela de Huicheri, em Apêndice I.9. Este texto referia que a ordem cósmica
foi implantada no seu coração de duas maneiras: ele colocou a maet no coração, ou seja, adquiriu a
sabedoria através da instrução, e, por outro lado, a maet uniu-se a ele desde o nascimento, o que significa
que constituía um dom divino. Esta observação mostra que o comportamento moral resultava tanto de
uma predisposição inata como do esforço activo do indivíduo.
161
Inscrição do túmulo de Paser (TT 106), reinado de Seti I. Versão inglesa em Id, p. 66.
73
atoniana, unicamente para o rei. A mais ilustrativa destas expressões era «colocar deus
no coração», ou seja, conhecer intimamente o deus. «Colocar deus no coração»162
pressupunha sentir a proximidade do deus, conhecer os seus preceitos e, através da força
de vontade, aplicá-los à vida quotidiana. Todo o homem estava em contacto com o
divino mas, para ser efectiva, a relação com deus exigia uma decisão consciente por
parte do homem para se envolver na sua adoração.
Ao tomar consciência da presença divina, o homem devia transformar o seu
comportamento para corresponder aos preceitos do deus. Esta transformação interior
alimentava e reforçava a presença do deus no seu coração. A piedade pessoal tinha
transformado a consciência no templo vivo onde o homem descobria o deus que
habitava dentro de si próprio. Este encontro directo com deus permitiu emergir uma
certa vivência de misticismo, no sentido em que «colocar deus no coração»
correspondia, de certo modo, a abdicar do ego, do eu pessoal. A proximidade com deus
envolvia, deste modo, um acto de consciência e de decisão. Não bastava estar próximo
do deus no templo, no cosmos e nos textos sagrados. Era também imperativo «colocá-lo
no coração», ou seja, interiorizar através do estudo e da prática, a sabedoria do deus. Ao
fazê-lo o homem seria largamente recompensado. Colocar o deus no coração trazia a
bênção divina, 163 a vida e a protecção,164 uma longa velhice165 e a luz:
162
Sobre a expressão ver Apêndice XI, p. xcv.
163
Ver Hino de Amon, Apêndice IV.14.
164
Oração a Amon. Ver Apêndice IV.15.
165
Ver Hino de Amon, Apêndice IV.16.
166
Oração a Amon. Versão francesa em A. BARUCQ e F. DAUMAS, Hymnes et priéres de l´Égypte
ancienne, p. 231.
167
Oração de um cego a Amon, Ver Apêndice IV.18. Muitas divindades, para além de Amon e Ptah,
mereceram a atenção do culto pessoal, como Meretseguer ou Amen-hotep I, Ahmés ou Ahmés-Nefertari.
Todas estas divindades proporcionavam, a quem as colocasse no coração, a protecção e a prosperidade.
74
e felicidade, literalmente «doçura do coração», nedjem-ib (nDm-ib).168 A melhor
recompensa de uma consciência pura e justa era, no entanto, o amor de deus. O homem
que «faz o que deus gosta» é «amado pelos deuses», 169 o que constituía o cúmulo de
todas as bênçãos.170 A vida e a alegria eram, deste modo, um sinal da consciência
transformada por deus.171
Evidentemente, um ideal moral tão valorizado foi também investido com
conotações funerárias. «Colocar o deus no coração», resumia um ideal moral que, se
aplicado ao longo da vida terrena, permitia conquistar o direito à vida eterna, no
Além.172 O julgamento dos mortos incidia agora sobre o fervor religioso do homem e
apresentava como recompensa a possibilidade de «ver Amon todos os dias», ou seja,
beneficiar eternamente da presença divina. Acompanhando os tempos, o tribunal de
Osíris já não avaliava apenas o valor do funcionário na manutenção da ordem cósmica,
avaliando também a sua fidelidade ao deus.
168
A «doçura de coração» traduzia um estado de profundo bem-estar e era um dos quatro pilares da
felicidade frequentemente mencionados: «Possas dar um longa duração de vida na doçura do coração,
uma bela sepultura depois de uma longa velhice, que o meu nome dure na tua morada.» Em D. MEEKS,
«Les quatre ka du démiurge memphite», RdÉ 15 (1963), p. 47.
169
Ver texto inscrito na Estela de Uahibré, em Apêndice I.6.
170
O coração ensinava «a viver contente» e a «falar verdade» de modo a preparar o dia do julgamento:
«Fui muito favorecido ao lado do rei (...) O meu coração ensinou-me a viver contente e guiou-me na
excelência de coração. Falei verdade e agi com justeza, pois conhecia o dia da chegada.» Inscrição de
uma estátua de Horua, funcionário de Amenirdis. Em M. LICHTHEIM, Maat in Egyptian
Autobiographies, p. 90.
171
«Oferenda que o rei faz a Amon-Ré, (…) Que eles possam garantir vida, prosperidade e saúde, força,
protecção, amor, todos os dias. Um bom tempo de vida, dotado de saúde, prazer (doçura de coração), e
alegria (rechut), diariamente. Os meus olhos vêm, as orelhas ouvem, a minha boca está cheia de verdade,
diariamente, como é feito para um homem justo que coloca Amon no seu coração, (…)» Fórmula de
oferenda inscrita numa estátua do artesão Karo. Adaptado da versão inglesa em Id., p. 79.
172
Repare-se que as recompensas do deus ao homem que o «coloca no seu coração» só fazem sentido na
medida em que a acção do deus já não é imperiosa, como até aí se verificava, mas porque o homem é
livre de o fazer. Como recompensa de ter «colocado o deus no coração», o defunto pretendia, após a
morte, «ver Amon todos os dias» (a formulação deste desejo é particularmente interessante já que a
oração é dirigida a Ptah, pelo que parece constituir a formulação de um desejo convencional).
173
Sobre a expressão ver Apêndice XI, p. xci.
75
satisfação. Em geral, é no que se gosta e se deseja, que se mergulha o coração, 174 o que
indica que «estar mergulhado na água do deus» tem subjacente a ideia do homem ser
«banhado» pelo amor divino.175 A presença deste amor actuava como uma protecção
176
permanente e permitia ao homem passar pela vida sem ter mácula. As «águas da
vida» eram o sinal do amor divino que concediam a pureza ao homem. «Andar nas
águas» do deus levava o deus a «tomar posse do ba», uma expressão que aludia à
divinização do defunto.
A pureza e a maet
174
Em A. MORET, «L´expression àâ-ib», RT 14 (1893), p. 121.
175
«Mergulhar o coração», aá-ib (ia-ib), relacionava-se com a satisfação proporcionada com a realização
de algo que se gosta ou ama. Ver Idem, pp. 120-123.
176
«O Ocidente é o domicílio do que não tem culpa, louva o deus para o homem que aí chega!
Ninguém aí chega, a menos que o seu coração seja impecável a fazer o bem. Pobres e ricos não se
distinguem, apenas o que é encontrado sem culpa. (...) Eu estava na água do senhor de Khnum desde o
meu nascimento, eu tinha os seus conselhos no meu coração.» Autobiografia de Petosiris, Apêndice I.12.
177
Autobiografia de Petosiris, ver Apêndice I.12.
76
comparados com a valorização da ética religiosa. Ao colocar o deus no seu coração o
homem estabelecia uma ligação entre si e o céu. Para exprimir esta ligação, o sábio
Amenemope referia que o coração era o «nariz do deus». A expressão recorre às
conotações sensoriais do olfacto (trata-se de um sentido que supõe um contacto íntimo)
para extrair um importante ensinamento. No coração, o homem estava tão próximo de
deus que podia ser aspirado por ele. Tudo o que o homem fazia, dizia e pensava levava-
o a cheirar bem ou mal às narinas do deus. A identificação com a flor de lótus, desejada
pelo capítulo 28 do «Livro dos Mortos» evocava assim a pureza do coração do homem.
Ofender deus, por outro lado, significava perturbar o ser mais íntimo que habitava em si
mesmo e a manchá-lo com a putridão. A reflexão em torno da sabedoria já não abrangia
apenas os princípios do bom senso, mas estendia esta reflexão ao domínio da relação
com a divindade. O texto que apresentamos seguidamente sintetiza os principais
vectores que deviam reger a relação com o deus:
Sê puro de coração
E purifica-te todos os dias.178
O coração perfeito do homem sábio é elevado; a sua morada é a morada de deus. 180
178
Papiro Chester Beatty IV, Adaptado da versão francesa proposta por P. VERNUS, Sagesses de
l´Égypte pharaonique, pp. 275-276.
179
J. ASSMANN, Egyptian Solar Religion, p. 195.
180
Papiro Insinger, XXIV: 17,19. Versão francesa em F. LEXA, Les Enseignements Moraux, p. 69.
77
Aplicada ao corpo e à mente, as regras de purificação exigidas pelo deus
traduziam-se numa transformação mental e física do homem.181 A pureza tornava-se
assim na base do comportamento ético do indivíduo e na chave para a sua salvação no
Além. Para garantir a pureza do coração, impunha-se uma vigilância constante para
evitar a sua «contaminação». Os maus pensamentos, em particular os que se
relacionavam com deus, também contaminavam o coração do homem e arrastavam-no
para a desgraça:
181
O ensinamento do Papiro de Insinger apresenta uma fusão quase total entre a moralidade e a piedade.
Conservado no Museu de Antiguidades de Leiden, o Papiro Insinger apresenta um texto demótico,
amputado da sua porção inicial, que remonta à segunda metade do período ptolemaico. Outras versões,
mais reduzidas, do texto foram identificadas em papiros conservados na colecção Carlsberg, em
Copenhaga, e noutros acervos. A frequência com que foi copiada indica que a composição gozou de certa
notoriedade no seu tempo. O estilo da composição baseia-se na apresentação de sentenças, em estilo
proverbial, na maior parte muito curtas. As frases, embora não tenham ligação nenhuma entre si, são
agrupadas como no Livro dos Provérbios, tendo em conta certos temas. A semelhança com esta
composição bíblica também se reflecte na apresentação de curtas afirmações paradoxais.
182
Papiro Brooklyn. Versão francesa em P. VERNUS, Sagesses de l´Égypte pharaonique, pp. 349-350.
183
Ver J. RAMOS, «Gnosticismo», L. Araújo (dir.), Dicionário do Antigo Egipto, pp. 391-392.
184
G. ENGLUND, «The treatment of opposites in temple thinking and wisdom literature», p. 87.
78
comportamento ideal que os funcionários deviam adoptar.185 Como veremos, as
diferenças entre estes modelos de conduta residem essencialmente no coração do
homem.
185
Também as narrativas recorriam a este modelo evidenciando, no entanto, uma perspectiva mais
dinâmica. O enredo servia o propósito de confrontar os dois modelos de conduta e de permitir extrair
lições de vida relacionadas com a conduta. As Aventuras de Hórus e Set, o Conto dos Dois Irmãos,
Verdade e Mentira, são alguns dos muitos exemplos que recorrem ao modelo antitético de
comportamento como um importante recurso para tecer a trama narrativa com propósitos moralizadores.
Este modelo de conduta também tinha implicações de ordem sociológica. O homem silencioso
personificava a ordem e constituía o modelo da conduta regrada que imperava nos períodos de
estabilidade. Durante as crises, quando a ordem era invertida, predominava o homem colérico. A ordem
individual era, deste modo, solidária com a ordem política. Idem, p. 87.
186
Miriam Lichtheim data a Instrução de Ptah-hotep dos finais da VI dinastia (M. LICHTHEIM, AEL, I,
p. 62). No entanto, o texto refere que o sábio viveu na V dinastia, durante o reinado do faraó Djedkaré
Isesi (2414-2375 a. C.) e que exerceu a função de vizir (note-se que esta função é perfeitamente
compatível com a dignidade do seu estatuto de sábio). Para Pascal Vernus, no entanto, a obra apresenta
características linguísticas que se aproximam bastante do egípcio clássico usado na XII dinastia. A obra
seria, na opinião deste autor, um apócrifo que teria sido escrito no início do Império Médio ou no
Primeiro Período Intermediário. A atribuição do texto a um sábio do passado corresponde a uma
tendência que se começou a intensificar no Primeiro Período Intermediário, a qual se inseria na
«santificação» de sábios do passado e na sua elevação a patronos da necrópole. Ver P. VERNUS,
Sagesses de l´Égypte Pharaonique, p. 21. Quanto a Ptah-hotep, não há dúvida que é evocado com os
atributos de um sábio ideal. De acordo com o texto, chegado aos cento e dez anos, a idade atingida
idealmente pelos bem-aventurados, Ptah-hotep considerava-se preparado para redigir um ensinamento
baseado na sua longa experiência ao serviço do faraó. O seu nome apresenta uma estrutura simétrica
muito curiosa que intensifica a ideia de equilíbrio personificada no sábio: ptH-Htp. Ptah, era o principal
deus menfita, associado à criação artesanal e à fertilidade, enquanto que hotep, por outro lado, significava
«paz», «satisfação» ou mesmo o «ocaso». O nome encerrava, deste modo, uma mensagem (que pode ser
lida como «realização plena») que intensificam o perfil de um sábio ideal (Ver C. JACQ, Las Máximas de
Ptahhotep, p. 22.), mas a verdade é que o nome era comum no Império Antigo. Pelo menos cinco
personagens com o nome de Ptah-hotep exerceram o cargo de vizir no final da V dinastia, mas foi o
possuidor da célebre mastaba que ainda hoje é um dos monumentos mais admirados de Sakara, que, na
Antiguidade, mereceu o epíteto de «Grande». Para Pascal Vernus seria esta personalidade a quem teria
sido atribuído o texto sapiencial composto entre o Primeiro Período Intermediário e o início da XII
dinastia.
187
Sobre a expressão ver Apêndice XI, p. cxxvii. Para comparar com paralelos bíblicos ver também p.
cclv.
79
Escutar é melhor que tudo. Isso produz a ligação perfeita.188
O que ouve é amado por deus, o que deus detesta é incapaz de escutar. É o coração que faz do homem um ouvinte (obediente)
ou um surdo (desobediente). O coração de um homem é a sua vida, prosperidade e saúde. 190
188
Instrução de Ptah-hotep, Epílogo. Ver Apêndice II.3.
189
Em J. ASSMANN, Maât, p. 42.
190
Instrução de Ptah-hotep, Epílogo. Ver Apêndice II.3.
191
Num outro documento, diz-se que o sábio «possui um coração ouvinte que procura conselho para
(entender) as coisas estranhas, como alguém cujo coração as compreende». (Biografia de Amen-hotep,
filho de Hapu) Insinua-se aqui uma nuance semântica que nos ajuda a perceber o sentido da expressão: ter
um coração ouvinte permite resolver não só as questões rotineiras como as «coisas estranhas», para as
quais não há uma solução imediata. Ter um coração ouvinte não constitui, por isso, apenas uma atitude de
interesse e de obediência. Na realidade, a expressão parece completar-se com um sentido intelectual: ter
um coração ouvinte significa ser inteligente, pois é a inteligência que permite encontrar soluções para os
problemas. Em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 78.
192
Idem, p. 53.
193
Instrução de Ptah-hotep, ver Apêndice II.3.
194
Instrução de Amenemope, em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 278.
195
Instrução de Ptah-hotep, 387.
80
traduz o estado de ligação perfeita com o mundo e a capacidade para se harmonizar com
a maet, numa palavra, conduzia à integridade moral.
O coração era assim encarado como o garante de conectividade que sustentava a
vida, em qualquer um dos seus domínios, quer no plano físico, anímico ou social. O
«coração ouvinte» traduzia, deste modo, a função conectiva do coração e assinalava um
estado de consciência atenta que ligava o homem à ordem cósmica.
Uma expressão equivalente era «seguir o coração», chemés ib (Sms-ib)196 e
constituía uma virtude igualmente apreciada na ética egípcia, muito embora não seja
fácil de definir. Alguns autores interpretam esta expressão como um apelo ao usufruto
hedonístico do prazer.197 Piankoff, no entanto, considera bem mais relevante o sentido
de «seguir a consciência»,198 o qual deve se depreender numa passagem da Instrução
para Merikaré onde se exorta o rei a seguir o coração pelo caminho empreendido pelo
pai, ou seja, a seguir a mesma política.199 Efectivamente, a estela funerária de
Taimhotep, por exemplo, convida a «não aquecer o coração com bebida, comida e
prazeres sexuais», exortando, logo em seguida, a «seguir o coração todos os dias,
colocando o cuidado no coração.»200 No entanto, a Instrução de Ptah-hotep, apresenta
uma interpretação distinta desta expressão:
Segue o teu coração durante o tempo da tua vida, não faças mais do que te é pedido, não encurtes
o tempo de «seguir o coração». Desperdiçar o seu momento ofende o ka. Não desperdices o teu tempo em
preocupações inúteis que transcendam o sustento da tua casa. Quando a riqueza chegar, segue o teu
coração. A fortuna não é aproveitada se o (desejo) é negligenciado. 201
196
Sobre a expressão ver Apêndice XI, p. cxxix.
197
Ver D. LORTON, «The Expression Sms-ib », JARCE 7 (1968), p. 41.
198
A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 47. Também Walter Federn sublinha o sentido hedonístico da expressão.
Ver em W. FEREDERN, «The “Transformations” in the Coffin Texts: A New Approach», JNES 19
(1960), p. 248.
199
«Segue o teu coração por aquilo que eu fiz», adaptado da versão inglesa patente em M. LICHTHEIM,
AEL, I, p. 103.
200
Em D. LORTON, «The Expression Sms ib», JARCE 7 (1968), p. 42.
201
Instrução de Ptah-hotep, Máxima 11. Ver Apêndice II.3.
202
Instrução de Ptah-hotep, 7,9-7,10, em D. LORTON, «The Expression Sms ib », JARCE 7 (1968), p.
42. Também Assmann defende a mesma interpretação da expressão. Em J. ASSMANN, Mort et au-delá
dans l´Égypte ancienne, p. 408.
81
«seguir a consciência», insinuando-se uma atitude hedonista que valoriza, a par do
cumprimento das obrigações, o usufruto dos prazeres da vida.203 O teor ambíguo da
recomendação de «seguir o coração» relaciona-se assim com a multidimensionalidade
da noção de coração já que esta abrange simultaneamente a vida afectiva e intelectual.
No fundo a exortação de «seguir o coração» traduz a necessidade de «seguir a
consciência» e definir a medida certa entre o prazer e o dever.204 Já no Conto do
Príncipe Predestinado, seguir o coração apresenta um valor muito mais amplo:205
perante um mau destino, o homem devia «ir atrás do coração». Era desse modo que
manifestava o seu valor e atraía a protecção divina.
Ao longo do tempo, no entanto, este modelo virtuoso de conduta evoluiu
consideravelmente. Na Instrução de Amenemope, no Império Novo, começa a emergir
uma valorização acentuada das virtudes relacionadas com o silêncio. Apesar deste ideal
ser antigo (na verdade o silêncio constitui o requisito para «ouvir»), na sabedoria de
Amenemope, parece transcender, pela primeira vez, a esfera mundana para se relacionar
com a espiritualidade e com o sagrado:
O silêncio, guer (gr), constituía uma atitude interior que precedia todas as
virtudes e constituía uma condição indispensável para entrar em relação com deus. O
novo ideal de conduta significava uma importante inflexão em relação ao «coração
ouvinte» uma vez que denota uma viragem para o interior do indivíduo. Enquanto que o
«coração ouvinte» constituía uma atitude «extrovertida», a nova atitude exortava à
contemplação interior. O silêncio foi incentivado, não por um desejo de «introspecção»,
mas como um veículo para o encontro com deus, pois era no silêncio da consciência que
a divindade se manifestava. Sem o silêncio, o homem não podia entrar em sintonia com
203
Também na Canção de Antef, o sentido hedonista é claramente predominante: «Segue o teu coração
toda a tua vida. Coloca mirra na tua cabeça e roupas de fino linho sobre ti e unta-te com as coisas
maravilhosas que fazem parte das provisões de um deus. Goza da abundância da tua riqueza até que o teu
coração fique cansado». Em D. LORTON, «The Expression Sms ib », JARCE 7 (1968), p. 46.
204
Dado que o termo «seguir» também significa «fazer uso de», a expressão também pode ser lida como
«exercitar a vontade». Ver Idem, p. 41. Subjacente estava sempre a ideia de uma vivência agradável.
Mesmo quando o indivíduo cumpre as obrigações seguindo os ditames da consciência, conquista um
bem-estar resultante do seu cumprimento. Mas se for para lá deste limite e descurar o prazer de viver e o
tempo de ócio, o indivíduo não segue, em rigor, a consciência, já que esta o obriga a reconhecer o
equilíbrio de todas as dimensões da vida.
205
Ver L. ARAÚJO, Mitos e Lendas do Antigo Egipto, p. 228.
206
A Instrução de Amenemope, Capítulo Segundo (V, 7-8). Adaptado da versão inglesa de M.
LICHTHEIM, AEL, II, p. 150.
82
a ordem cósmica e participar da sua plenitude. Longe de constituir um vazio, o silêncio
era a expressão da plenitude do amor divino.
207
A Instrução de Ani, (16,17 – 17,4). Ver Apêndice II.9. Guardar silêncio no templo era um imperativo
fundamental do comportamento e não constitui uma novidade deste texto. O que é novo na Instrução de
Ani é a atenção dada à relação com o sagrado. De facto, a relação com o divino já não é um assunto de
segunda ordem nos textos sapienciais do Império Novo. Estes textos, e a Instrução de Ani em particular,
consagram uma atenção especial ao culto e à preponderância da vontade divina sobre o destino humano.
A Instrução de Amenemope, consagrando-se ao mesmo tema, parece ter tido uma inspiração directa neste
texto mais antigo. Ver P. VERNUS, Sagesses de l´Égypte Pharaonique, p. 239.
208
O longo escrito sapiencial de Amenemope constitui um texto onde este ideal desempenha um papel
particularmente importante. Efectivamente, o seu valor não reside tanto na amplitude das suas
reflexões (na verdade aborda menos temas que as instruções anteriores), mas sim na profundidade da
sua análise. Embora passe em revista algumas questões relacionadas com o sucesso da vida material, o
sábio dá mais atenção à definição dos valores que qualificam interiormente o homem. A sobriedade e
a humildade, sobretudo diante de deus, são as qualidades mais valorizadas pelo sábio para compensar
a imperfeição do homem. Em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 147.
209
J. ASSMANN, Maât, l´Egypte pharaonique et l´idée de justice social, p. 68.
83
O coração do homem é o seu próprio deus e o meu coração estava satisfeito com o que eu
fazia.210
O silêncio tinha, deste modo, um alcance bastante abrangente pois era através
dele que deus se manifestava. Não se pense porém que esta revelação assumia um
carácter repentino e directo, como se fosse uma profecia, no sentido bíblico. Um tal
fenómeno religioso é totalmente estranho ao horizonte egípcio. Esta «revelação» era
resultado de um longa disciplina onde o estudo e a sabedoria tinham um papel decisivo
que levava a que «o coração entrasse no seu santuário».211
Se o coração era «uma dádiva de deus», 212 era através da sabedoria que essa
dádiva se concretizava. Um tal ideal requeria responsabilidade e um grande esforço para
superar a imperfeição humana e a sua predisposição para o erro:
210
F. DAUMAS, La Civilisation de l´Égypte Pharaonique, p. 298. Versão portuguesa baseada na
tradução francesa.
211
A Instrução de Amenemope, ver Apêndice II.7.
212
«Não deixes que a tua palavra seja levada para fora, a fim de que o teu coração não se entristeça. O
coração do homem é uma dádiva de deus, cuida para não o negligenciares. A Instrução de Amenemope,
Apêndice II.7.
213
A Instrução de Amenemope, Capítulo Décimo Oitavo (XIX, 10 – XX, 6). Apêndice II.7.
84
o caminho correcto para a vida. «Seguir o coração» tornava-se, com a piedade pessoal,
numa expressão equivalente a «seguir o deus»:
Seguir o deus, é um privilégio daquele que é guiado pelo coração, esse toma o caminho do deus.
A sua existência sobre a terra é prolongada. 214
Não era por acaso, que todas as faltas decorriam de «não ouvir»: 216 o tolo, ikh
(ix), o imbecil, ukhá (wxA), e o perverso, ben (bn), eram incapazes de escutar.
Normalmente esta atitude estava associada ao orgulhoso e considerava-se o pior
obstáculo para a aprendizagem:
Jovem, como és presunçoso! Não ouves o que eu digo. O teu coração é mais denso que um
grande obelisco, de cem côvados de altura e dez côvados de largura. (...) Embora te bata com todos os
tipos de bastões tu não ouves. Se eu conhecesse algum outro modo de te fazer ouvir eu fá-lo-ia. Tu és
uma pessoa adequada para escrever (embora) ainda não tenhas conhecido uma mulher. O teu coração
pensa, os teus dedos são hábeis, a tua boca é apta a recitar. (...) Feliz é o coração daquele que escreve, ele
rejuvenesce todos os dias. 217
214
Autobiografia de Petosiris, Ver Apêndice I.12.
215
A atitude de «seguir o coração», sechem-ib (sSm-ib), uma virtude tradicional dos ensinamentos da
maet, era tradicionalmente aconselhada para prestar um bom serviço ao rei e para garantir o sucesso e a
felicidade. Petosíris, no entanto, seguia o coração no sentido de «seguir o deus».
216
«O desprezo pela virtude tem origem no não ouvir» Papiro Insinger, 9,5. Em F. LEXA, Les
Enseignements Moraux d´un Scribe Égyptien du Premier Siécle Aprés J.C , Tome II, p. 48.
217
Papiro Lansing, versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 168. Um certo humor perpassa na
caracterização do aluno desatento: «Eu passo o dia a instruir-te, mas tu não ouves! O teu coração é como
uma sala vazia. Os meus ensinamentos não estão lá.». Papiro Lansing, em Idem, pp. 171.
85
Pior que não escutar era ouvir outras «vontades» menos nobres que também
existiam dentro do próprio indivíduo. Quando o coração escutava o ventre, por
exemplo, a desgraça acontecia:
Aquele cujo coração obedece ao seu ventre provoca o desdém em lugar do amor. O seu coração
ficará despido (desolado) e o seu corpo não será ungido (mumificado). Ter um grande coração (uer ib) é
um dom de deus, mas o que obedece ao seu ventre obedece ao seu inimigo. 218
Não ames demasiado o teu ventre, conhece o pudor, não desdenhes a voz do coração.
O que desdenha a voz do coração desperta a repugnância em plena rua. 219
218
Instrução de Ptah-hotep, Máxima 14. Apêndice II.3.
219
Papiro Insinger, XXI: 18-19. Versão portuguesa baseada na tradução francesa em F. LEXA, Les
Enseignements Moraux, p. 64.
220
Em F. DAUMAS, La Civilisation de l´Égypte Pharaonique, p. 295.
221
A Instrução de Amenemope, Capítulo Décimo Primeiro (XIV, 5 - 12). Apêndice II.7. O texto foi
redigido num papiro cujo verso foi usado para compilar um conjunto muito heterogéneo de textos como
hinos religiosos, uma espécie de enciclopédia relativa ao cosmos egípcio e um calendário de dias fastos e
nefastos. Esta associação de textos está relacionada com a formação sacerdotal que abrangia naturalmente
todos estes tópicos. Ver Ver P. VERNUS, Sagesses de l´Égypte Pharaonique, p. 299. O próprio texto
sapiencial testemunha um invulgar interesse por textos sapienciais mais antigos evidenciando a utilização
de materiais que remontam à Instrução de Ptah-hotep. Outros excertos parecem inspirados na Instrução
de Ani e noutros textos mais recentes o que fornece um terminus post quem. A obra foi redigida em verso.
86
Nenhum benefício podia resultar da expropriação ilícita dos mais fracos. Ao
extorquir os parcos bens de um pobre, o ávido atraía a desgraça sobre si mesmo, pois o
«coração será desencaminhado pelo seu próprio ventre». A expressão indica em
linguagem metafórica que, ao se deixar conduzir pelas pulsões inferiores, o ávido
acabaria por defraudar o que tinha de mais preciso, a sua consciência superior, o
coração. Ter um «coração ávido» era, com efeito, uma grande anomalia. A atitude era
de tal modo repudiada que personificava o pior que havia no homem. É por essa razão
que a descrição da suposta inversão social que assolou o Egipto após o colapso do
Império Antigo, recorria abundantemente à descrição das calamidades que o ávido de
coração espalhava pelo Egipto. Ele era, com efeito, o modelo, em negativo, do homem
egípcio.222
Nesses tempos, a perturbação da ordem cósmica, decorrente da ausência do rei,
trouxera a perturbação a todos os planos da vida. Os homens debatiam-se entre si e até a
natureza deixara de se reger pelos ciclos cósmicos. A avidez do coração era comparada
às calamidades naturais e integrava-se no quadro de catástrofes relacionadas com a
ausência da maet:
222
Pelo seu elevado interesse moral, incluímos nesta secção textos que não se enquadram apenas no
sentido estrito de «ensinamento». É o caso dos textos que descrevem a anarquia do Egipto antes da
reunificação concretizada pela dinastia tebana. Embora estes textos estejam ausentes da compilação de
Pascal Vernus de textos sapiencias (ver Idem, p. 413). Miriam Lichtheim incluiu estas composições no
seio da didatic literature (Ver M. LICHTHEIM, AEL, I, p. x)
223
As Admonições de Ipu-uer, versão inglesa em Id, I, p. 151. O texto faz parte de um conjunto de
composições que reflecte sobre o período de «caos» que antecedeu a unificação do Egipto onde se inclui
A profecia de Neferti, O diálogo do homem desesperado com o seu ba, As lamentações de
Khakhepereseneb e outros. Todos partilham o facto de constituírem obras com intuitos propagandísticos e
políticos.
87
antitético da moralidade e da ordem.224 A ameaça personificada no ávido não se
circunscrevia aos tempos de crise, pelo contrário, ela estava sempre presente e
concretizava-se através de manifestações exteriores muito tangíveis e agressivas. O alvo
da cobiça, na verdade, é quase sempre de ordem material: uma herança (Instrução de
Ptah-hotep 303-308; 316), a propriedade alheia (Instrução de Amenemope 8,2). O ávido
de coração é um homem em quem não se podia confiar e que espalhava a desgraça em
todo o lado. Ele atacava os membros da sua própria família («procura extorquir os seus
familiares da sua herança»)225 mas também os colegas de profissão.226 Em suma, o
ávido era um atentado à coesão social, uma vez que quebrava os laços de solidariedade
que cimentavam a sociedade.227
Uma propensão de carácter tão ameaçadora da ordem cósmica teria de figurar
entre a confissão negativa (presente no capítulo 125 do «Livro dos Mortos»), onde
efectivamente é mencionada em conjunto com outras características pejorativas: «eu
não roubei, não tive um coração ávido (...) não tomei».228 A «avidez de coração»
representava, portanto uma ameaça à ordem maética sendo colocada em paralelo com a
mentira, a anarquia e a injustiça.229
Nas instruções sapienciais, que procuravam promover a maet, são frequentes os
avisos e as exortações que alertam para os malefícios da «avidez do coração», a qual era
considerada como «um dolorosa doença sem cura», 230 ou «uma porta para todos os
males, um amontoado de coisas odiosas».231 O castigo do ávido de coração era duplo:
224
A agressividade implícita no termo «avidez», aun (awn), fica bem expressa no determinativo de acção
violenta (signo A24 da lista de Gardiner) que representa um homem armado de um bastão. A utilização
da expressão parece ter evoluído ao longo do tempo. Se inicialmente a expressão era empregue para
reportar a ganância, constata-se um crescente paralelo com a acção de «roubar», auá (awA) e «tomar», itji
(iTi). Em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 106.
225
Instrução de Ptah-hotep, 298.
226
Diálogo do homem cansado da vida com o seu ba, 120-121. Também em O Camponês Eloquente, B1
169.
227
Esta visão é de tal modo arreigada ao espírito sapiencial que até a instrução redigida no Papiro
Insinger a veicula, em plena ocupação macedónica: «A riqueza do homem generoso é mais abundante do
que a riqueza do ávido. O ávido traz o conflito ao lar. O ávido destroi o pudor, a misericórdia e a
confiança no coração. O ávido traz a infelicidade à família. O ávido não dá nada a quem lhe deu». Papiro
Insinger, XV: 11-15. Em F. LEXA, Les Enseignements Moraux, p. 54.
228
Em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 107.
229
Num texto autobiográfico do Império Novo é apresentada uma definição bastante completa desta
atitude: «Eu não afastei o homem do seu ofício, não roubei a ninguém os seus haveres, não me apoderei
dos bens de ninguém através de mentiras. Eu abominei o ávido de coração». Inscrição de uma estátua de
Amen-hotep, administrador dos domínios reais no reinado de Amen-hotep III. Versão inglesa em M.
LICHTHEIM, Maat in Egyptian Autobiographies, p. 59.
230
Instrução de Ptah-hotep, em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 107.
231
Em Ibidem.
88
começava na vida terrena e culminava no Além.232 Deste modo, ao longo da vida ele era
vítima dos conflitos que alimentava e o isolamento a que era votado culminava com o
próprio divórcio.233 Após a morte, o «ávido de coração» não chegava a «margens
seguras»234 e, desgraça das desgraças, não tinha túmulo.235
No Império Novo, o modelo personificado no «ávido de coração» evoluiu para o
«homem colérico»:
89
Não te obrigues a acolher o homem colérico
Pois injuriarias o teu próprio coração;
Não lhe dirijas falsas saudações,
Enquanto te aterrorizas no teu ventre. 237
No antigo Egipto, o verdadeiro amor, a merut, vinha do alto, era uma força
mágica que deus concedia aos homens através da oração.240 Mais do que um
sentimento, o amor era um poder divino que se instalava no coração do homem para o
transformar e o inundar com bênçãos. Esta perspectiva do amor divino acabou por
237
A Instrução de Amenemope, Capítulo Décimo (XIII, 10 – XIV, 3). Versão inglesa em Idem, p. 154. O
texto parece ser uma alusão aos efeitos nefastos da hipocrisia. Para manter as aparências o homem sofre
interiormente. Ver P. VERNUS, Sagesses de l´Égypte Pharaonique, p. 336, nota 114.
238
O trabalho de Amenemope centra-se em redor de dois temas nucleares. A caracterização do «homem
silencioso» por oposição ao «homem colérico» e, por outro lado, a exortação à honestidade. Todos os
outros temas constituem uma extensão destes tópicos. Em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 147. A
caracterização do homem colérico foi utilizada pelo sábio para explorar os dois temas.
239
Em certos escaravelhos eram redigidas sentenças de carácter sapiencial com o intuito de exortar à
meditação nas verdades divinas. Em alguns casos, estas sentenças parecem exortar o leitor a meditar na
necessidade de se afastar das emoções perturbadoras associadas ao homem colérico. Em alguns deles
podemos ler a seguinte frase: «Vale mais a paz do coração do que a cólera» (md(.t) nfr(.t) Htp ib r nSny).
Em É. DRIOTON, «Scarabées à maximes», Annals of the Faculty of Arts, Vol. I, p. 58.Ver anexo V 1.7.
240
É curioso detectar que, no Império Antigo e no Império Médio a merut, obedecia a regras de
circulação muito precisas. É invariavelmente o superior que ama o inferior, ou seja, é o superior que
provoca o desejo no inferior. É preciso aguardar pelo Império Novo para encontrar exemplos de inversão
deste processo. B. MATHIEU, La poesie amoureuse de l´Égypte Ancienne, p. 170-171
90
influenciar as concepções sobre o amor humano. A relação de intimidade que se
estabelecia entre deus e o homem constituiu o modelo que inspirou a redacção dos
poemas de amor, onde a caracterização da pessoa amada é inspirada na fraseologia
usada para descrever a beleza da divindade. Para além dos hinos de louvor, outros
textos de carácter religioso deram o seu contributo para a «formatação» dos poemas de
amor. A literatura mágica, em que alguns poemas se inspiram, tinham provavelmente
como intuito concorrer para dar eficácia mágica aos versos, contribuindo para cativar o
coração do ser amado. A literatura funerária, por outro lado, forneceu igualmente um
contributo decisivo para alimentar o caudal de imagens usadas na literatura lírica para
exaltar e divinizar a beleza do corpo da amada. 241 Desta forma, embora tivessem um
uso profano, as composições líricas estavam fortemente imbuídas de uma carga
religiosa que se justificava devido à noção sagrada que o amor possuía, como
manifestação de um poder divino.
Para o nosso estudo, os poemas de amor constituem uma fonte interessante já
que, em si mesmos, constituem locuções proferidas por um jovem ou uma jovem ao seu
próprio coração. É através destes monólogos com o coração que os enamorados podiam
exteriorizar os pensamentos e emoções que caracterizavam a sua experiência amorosa.
Podemos assim perceber qual era o papel do coração no enamoramento.
241
A descrição do corpo da pessoa amada, por exemplo, segue os passos da divinização dos membros
usada na literatura funerária a propósito do embalsamamento. Do mesmo modo como o corpo do defunto
era divinizado durante a mumificação, também a amada era «divinizada» através da nomeação das
diferentes partes do corpo. Em J. ASSMANN, La Mort et l´au-delà, p. 68.
91
órgão, toda a sua vida. De facto, dado que, no antigo Egipto, sentir, pensar, querer e
agir emanavam do coração, a perturbação do órgão pela acção do amor comprometia
todas as dimensões da vida.
Tudo começava no olhar. Era ao olhar para a beleza do ser amado que o desejo
despertava e se acendia uma ânsia para conhecer o outro.242 Uma vez acesa a paixão, o
coração assumia as rédeas e voltava insistentemente o pensamento para o ser amado,
independentemente da vontade do seu possuidor.243 A desordem do coração que não
sossegava no seu lugar implicava uma desordem que se manifestava exteriormente pela
agitação do comportamento a qual, por vezes, se traduzia na incapacidade para realizar
o comportamento mais banal. Estes sintomas assinalavam o início da «doença» de amor
que resultava do facto do coração sair do seu lugar. Este era um mal profusamente
relatado na literatura egípcia que se traduzia pela perda de consciência:
Quando o coração saía do seu lugar, o coração lançava o indivíduo num estado
de agitação interior. Nesse momento o amante procurava controlar-se encetando um
diálogo com o coração para o chamar à razão.245 O amor implicava, deste modo, uma
alteração debilitante da consciência, perturbando a integração do apaixonado no mundo
e impedindo-o de seguir o comportamento normal ditado pelas convenções sociais.
Numa palavra, o amor conduzia inevitavelmente à loucura.246 O desejo, a agitação, o
242
Conhecer o amado pressupõe um contacto intimo como acontece na união sexual. No Conto dos Dois
Irmãos, por exemplo, a fogosa mulher de Anupu deixa-se seduzir pela contemplação da beleza e da força
de Bata que, entretido nos seus afazeres do campo, trabalhava, como era hábito, quase nú. Esta passagem
é assim descrita: «E o seu coração conheceu-o, como se conhece um homem.», em Pap. Orbiney, A.
PIANKOFF, Le «Coeur» dans les Textes Égyptiens, p. 41. Também no conto Verdade e Falsidade se
detecta uma concepção semelhante: «Ele dormiu com ela e conheceu-a com o conhecimento de um
homem», em Papiro Chester Beatty II, M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 212.
243
«O meu coração pensa no teu amor», Papiro Harris 500, II, 8. Em R. SOUSA, Os Doces Versos, p.
126.
244
Papiro Chester Beatty I, I, 4. Em Idem, p. 84.
245
«Sê firme, cada vez que penso nele, meu coração, não te ocultes!»Papiro Chester Beatty I, I,4. Em
Ibidem.
246
«Não sejas perverso, meu coração, (...) Não deixes que se diga de mim: “É uma mulher perdida de
amor”» Papiro Chester Beatty I, I, 4. Em Idem, p. 84.
92
arrebatamento, e a loucura eram provocados pela merut, o amor. No entanto, o sentido
da palavra merut deve aqui ser bem explicitado já que se reveste de algumas
características singulares. Em primeiro lugar a merut «vê-se»:
247
Papiro Harris 500, III, 1. Em Idem, p. 128.
248
Vaso de Deir el-Medina, I, 4. Em Idem, p. 145.
249
Em B. MATHIEU, La poesie amoureuse de l´Égypte Ancienne, p. 169.
250
Papiro Harris 500, I, 2. Em R. SOUSA, Os Doces Versos, p. 108.
251
Papiro Harris 500, II, 2. Em Idem, p. 108.
252
B. MATHIEU, La poesie amoureuse de l´Égypte Ancienne, p. 169.
253
Papiro Chester Beatty I, I, 5. Em R. SOUSA, Os Doces Versos, p. 85.
93
Neste sentido, a merut parece afirmar-se como o magnetismo sexual do
indivíduo na medida em que irradiava a partir do corpo. Não nos esqueçamos, no
entanto, que, tal como a alegria, o poder da merut é de natureza divina. Inspirando-se na
hinologia da época, os redactores dos poemas de amor não apresentavam uma
caracterização do amor humano muito diferente daquele que era descrito nos hinos
religiosos. Exemplos retirados da literatura mostram, igualmente, que ao se revelar ao
homem, o poder divino era tão ofuscante que desencadeava uma forte perturbação no
homem. A inquietação e a confusão sentidas pelos enamorados decalcava, deste modo,
a comoção sentida perante a revelação de uma divindade. Embora relatadas com um
certo exagero «anedótico», as perturbações vividas pelos apaixonados são inspiradas na
relação entre deus e os homens. Para a audiência que escutava estas cantigas de amor
devia ser clara a associação que deste modo se fazia entre o ser amado e uma
divindade.254
O amor humano constituía, deste modo, uma extensão do amor divino. O
apaixonado dirigia-se à sua amada como se esta fosse uma encarnação de Hathor, a
deusa do amor e da alegria. Também era para o alto que o indivíduo se dirigia quando
pedia aos deuses que lhe enviassem uma amada. Em resumo, quando se manifestava
entre os humanos, a merut constituía um poder divino que emanava de um dos amantes,
o qual era entendido como a manifestação de uma divindade e assim percebido como
mais poderoso, provocando uma atracção irresistível junto do sujeito atingido. 255 Por
seu turno, o sujeito possuído pela merut alimentava o poder que nele se instalou. Uma
vez atingido, o indivíduo não deixava de reforçar, interiorizando-a, a força que o
habitava.256 De acordo com esta visão, a merut alimentava-se da sua conquista
tornando-se cada vez mais poderosa. Tal como o amor divino, este poder também se
revertia a favor daquele que ama. Quando o amado via a jovem do outro lado do rio não
hesitava em enfrentar os perigos porque:
254
Sobre as perturbações associadas à revelação divina ver A. LOPRIENO, La Pensée et l´Écriture, pp.
13-50. Para este autor a proximidade com o sagrado reveste-se de um carácter numinoso que está na base
da sua percepção como uma fonte de perigo. Na religião tradicional do antigo Egipto, o contacto directo
entre o homem e o deus estava vedado devido ao perigo que o contacto com o divino pressupunha. Foi
com a piedade pessoal que esta noção foi gradualmente cedendo lugar à valorização da relação pessoal e
directa com o deus. Nos poemas de amor, o amor humano é concebido à imagem do amor divino,
implicando, numa escala menor, a perturbação diante da manifestação do sagrado. Idêntica perturbação
da consciência é relata, por exemplo, na Aventura de Sinuhe, que comentaremos mais detalhadamente
numa discussão posterior. Neste caso, o coração sai do seu lugar devido à revelação do deus pessoal e
perante a contemplação do próprio faraó.
255
Ver R. SOUSA, Doces Versos, p. 42.
256
B. MATHIEU, La poesie amoureuse de l´Égypte Ancienne, p. 172
94
É o seu amor que me dá forças
para vencer os perigos do rio.257
E era, mais uma vez, no coração da «vítima» que o amor actuava, manifestando
o seu poder. Tal como acontecia nos textos religiosos, o amor levava a que o coração
reanimasse e o revitalizasse com o poder da vida.
257
Vaso de Deir el-Medina, I, 4. Em R. SOUSA, Os Doces Versos, p. 145.
95
Capítulo III. O coração, o faraó e o criador
1. O coração do faraó
Adorai o rei Amenemhat III, que viva para sempre nos vossos ventres e que sua majestade esteja
presente nos vossos corações. Ele é Sia que habita nos corações e cujos olhos desvenda todas as
entranhas.260
258
Em C. LALOUETTE, L´Empire des Ramsés, p. 367.
259
A partir da versão em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 51.
260
Ibid.
96
Entre os reis que mais se preocuparam em enaltecer as qualidades intelectuais do
coração destaca-se Hatchepsut. Dando efectivamente provas de uma rara visão
prospectiva e retrospectiva, a rainha sublinhava que as suas obras reflectiam a
preocupação do seu coração em deixar um legado às gerações vindouras e em
consolidar a herança dos seus antepassados. Na inscrição do templo de Pakhet, em Beni
Hassan, célebre por apresentar um dos poucos testemunhos de inscrições reais que
apresentam uma perspectiva linear do tempo e da história, a rainha refere que o plano da
sua obra estava no seu coração. Foi ele que a levou a «pensar no futuro» e reparar «o
que estava desmembrado»:
O meu coração ib divino pensou no futuro, o coração hati do rei do Baixo Egipto pensou na
eternidade, atendendo ao comando daquele que inaugurou a árvore Iched, Amon, o senhor de milhões (...)
Escutai todos! Eu fiz todas estas coisas pelo conselho do meu coração. Eu não adormeci no esquecimento
mas fortaleci o que estava em ruína. Eu ergui o que estava desmembrado desde o tempo em que os
asiáticos estavam em Auaris, na terra do norte (...)261
Noutro contexto, a rainha volta a referir o interesse que tinha em deixar uma
marca indelével que pudesse ser contemplada pelas gerações vindouras. 262 Detecta-se,
nestes textos, que o coração como sede da inteligência foi valorizado pela propaganda
real para comprovar que a rainha cumpria plenamente as funções atribuídas ao
faraonato. Num dos obeliscos erguidos pela rainha em Karnak, Hatchepsut explica que a
eficácia da sua acção residia no facto de conseguir realizar a vontade do seu pai celeste.
Para isso, no entanto, ela contava apenas com o seu coração. Era ele que lhe permitia
conhecer «os planos do coração» do deus e era ele que lhe possibilitava seguir as
orientações dadas directamente pelo próprio deus. Este feito notável foi intensificado
pela comparação do coração da rainha a Sia, a personificação da inteligência cósmica.263
O texto que em seguida apresentamos constitui uma obra notável no propósito de
afirmar o valor da obra real a partir da natureza excepcional do seu coração, ou seja, da
sua consciência:
261
Inscrição de Hatchepsut do templo rupestre de Pakhet, em Beni Hassan. Em A. GARDINER, «The
Great Speos Artemidos Inscription», JEA 32 (1946), pp. 46-48.
262
«Agora o meu coração agita-se pensando o que dirão as pessoas, os que verão o meu monumento após
muitos anos», Inscrição da base do obelisco norte de Hatchepsut em Karnak. A versão inglesa em M.
LICHTHEIM, AEL, II, p. 27. Ver Apêndice.
263
J. SALES, «Sia», em L. Araújo (dir.), Dicionário do Antigo Egipto, pp. 786-787.
97
Eu fiz este (monumento) com um coração amante para o meu pai Amon
Iniciada nos segredos da origem,
Inteirada do seu poder benéfico
Nada esqueci do que ele ordenou
A minha majestade conhece o seu poder divino
Eu agi sob o seu comando
Foi ele que me conduziu (...)
Foi ele quem me deu orientações
Eu não dormi por causa do seu templo,
Nem me afastei do que ele comandou
O meu coração era Sia diante do meu pai,
Eu entrei nos planos do seu coração
Eu não voltei as costas à cidade do Senhor de tudo (...)264
264
Inscrição de Hatchepsut, obelisco norte de Karnak, em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 27.
265
Estela de Kuban, (9). Em P. TRESSON, La Stéle de Kouban, p. 7.
266
Ver inscrição de Seti I em Uadi Mia, em Apêndice III.2.
98
A exaltação do coração na guerra
267
Sobre a expressão ver Apêndice XI, p. cix.
268
Ver Poema de Ramsés II, em Apêndice III.3.
269
A função tradicionalmente atribuída ao coração real como sede da inteligência cósmica, também se
relacionava com a capacidade bélica do rei, pois era justamente devido à capacidade de prever tudo que o
faraó podia garantir o sucesso da campanha militar. A caracterização do rei como um modelo de bravura
também inspirou os redactores das inscrições funerárias dos súbditos do rei que, ocasionalmente, fazem
alusão à coragem do rei: «Sua Majestade viajou para norte, o seu coração rejubilava em valor e vitória.
Ele conquistara os habitantes do sul e do norte.» Autobiografia de Ahmés, filho de Abana, em Id, p. 13. A
versão portuguesa é baseada na tradução inglesa. Desta feita, mesmo perante uma coligação
aparentemente invencível, Ramsés III garantiu a vitória pois o seu coração «já estava preparado»: Ano 8
do reinado de Ramsés III: (...) Os países estrangeiros conspiraram nas suas ilhas. (...) Os seus corações
estavam confiantes e encorajados: «Os nossos planos serão bem sucedidos!» Mas o coração deste deus, o
senhor dos deuses, já estava preparado e pronto para enlaçá-los como pássaros numa armadilha (...)A
guerra contra os Povos do Mar, templo de Medinet Habu, reinado de Ramsés III, em J. PRITCHARD,
Ancient Near East, Vol. I, pp. 185-186.
270
Veja-se que o modo como o faraó carrega sobre os inimigos decalca exactamente as cenas de guerra
representadas sobre os pilones. A atitude triunfante que o rei aí exibe é, por outro lado, a representação
visual do «coração firme» ou do «coração poderoso», sekhem ib (sxm ib) descrito nos poemas épicos. Ver
anexo I Q.1.
271
Para a expressão ver Apêndice XI, p. ciii.
99
Nenhum entre vós é digno de confiança (...)272
Amon veio quando o chamei (...) e falou nas minhas costas como se estivesse por perto:
«Avança, pois estou contigo, eu sou o teu pai, a minha mão está contigo (...)» Então o meu
coração ficou firme, o meu peito alegrou-se. E tudo o que fiz foi bem sucedido, (...) Os carros de combate
dispersavam-se diante dos meus cavalos. Nem um deles ergueu a mão para lutar. Os seus corações
colapsavam no seu corpo pelo medo de mim. Os seus braços ficavam frouxos e não podiam disparar. Não
tinham coração para disparar as suas setas. (...)274
272
Poema de Ramsés II, Apêndice III.3
273
Poema de Ramsés II, Apêndice III.3.
274
Poema de Ramsés II, Apêndice III.3.
100
valentia. O «coração firme» revelou que o infante era um predestinado para o exercício
da realeza:
Quando era ainda jovem, ele amava os seus cavalos e congratulava-se com eles. Ele tinha um
coração firme a trabalhar com eles, aprendendo a sua natureza e hábil a domesticá-los, compreendendo os
seus modos de ser. Quando se constou no palácio do seu pai, o Hórus, o touro poderoso que aparece em
Tebas, o coração de sua majestade alegrou-se ao sabê-lo. Alegrando-se com o que se dizia do seu
primogénito falou assim no seu coração: «Será um rei da terra inteira que ninguém poderá atacar. Ele é
zeloso na excelência e exulta na força sendo apenas um cativante jovem, ainda sem sabedoria. Embora
não tenha ainda a idade para desempenhar a obra de Montu, ele ignora o desejo do corpo e ama a força. É
o deus que o inspira a agir e assim tornar-se o protector do Egipto, o rei da terra.275
De acordo com o texto, o «coração firme» envolvia força, zelo e gosto pelo
combate, mas também a indispensável inspiração divina, a mais determinante de todas
as qualidades que definiam o rei. O «coração firme» assinalava, deste modo, a natureza
cósmica e transcendente do poder guerreiro e assimilava-o ao poder destruidor de Ré. 276
O rei era uma força da natureza e o seu coração constituía o núcleo a partir do qual os
poderes destrutivos da luz e do fogo do sol se canalizavam para abater os inimigos do
Egipto. O «coração firme» era, desta forma, uma qualidade solar que manifestava a
capacidade bélica do deus no combate contra os inimigos da luz.
275
Estela da Esfinge de Amen-hotep II, Apêndice III.4.
276
M. A. BONHÊME, A FORGEAU, Pharaon: Les secrets du pouvoir, p. 203.
277
J. SALES, Ideologia e Propaganda Real no Egipto Ptolomaico (305-30 a. C.), p. 134.
101
Nome de nascimento Nome de coroação Dinastia
Kheti mri ib Ra , «O que é amado no coração de Ré» X
Amenemhat I s.Htp ib Ra , «O que satisfaz o coração de Ré» XII
Sehetepibré II (s.Http ib Ra) XIII
«O que satisfaz o coração de Ré»
Amenemhat VI s.anx ib Ra, «O que faz viver o coração de Ré» XIII
Hornedjheritef s.Htp ib Ra, «O que satisfaz o coração de Ré» XIII
Hor Aw ib Ra, «Dilatado é o coração de Ré» XIII
Ao elencar a utilização do termo ib nos nomes reais detecta-se, desde logo, uma
certa distribuição de frequência em torno de períodos específicos. Por outro lado, o uso
desta palavra no nomen, o nome de nascimento é muito rara (apenas quatro
ocorrências), ao passo que, no praenomen, o nome recebido na coroação, é bastante
mais frequente (17 ocorrências). O nome de coroação era, na verdade, mais importante
102
na medida em constituía o título que melhor resumia e condensava o programa
teológico e político encerrado no protocolo real. À excepção da titulatura tardia de
Arsínoe II, todos os nomes de coroação que apresentam a partícula ib fazem alusão ao
«coração de Ré». Trata-se, deste modo, de um qualificativo relacionado com a teologia
solar que associava o rei ao deus solar.
Embora Kheti, da X dinastia, tivesse sido o primeiro rei a utilizar o termo ib no
seu nome de coroação, foram os reis da XIII e da XXVI dinastia os que deram mais
atenção ao coração de Ré. Entre estes períodos, no entanto, detecta-se uma certa nuance
semântica. Na XIII dinastia, o rei «faz viver o coração de Ré», ou «satisfaz o coração de
Ré», ou ainda, é «O que beatifica o coração de Ré». O nome de coroação qualificava o
rei como um agente que exercia uma acção que agradava ou vivificava o coração do
deus solar.
Na XXVI dinastia, por outro lado, o praenomen qualificava o coração de Ré:
«Benevolente é o coração de Ré», «O coração de Ré é recriado», ou «Misericordioso é
o coração de Ré» são alguns destes nomes que já não fazem alusão a uma relação entre
deus e o faraó, mas sim a uma identificação total entre ambos.278 O título «Unido ao
coração de Ré» é o único praenomen que aponta para uma relação e não uma
identificação, mas ainda assim destina-se a salientar a proximidade entre o rei e o deus.
Embora a relevância da mensagem política veiculada nos nomes de coroação dos
faraós da XIII dinastia nos escape, dadas as circunstâncias pouco claras que rodeiam
esta fragilizada dinastia é de supor que a valorização da função cultual da realeza lhe
estivesse subjacente. A identificação entre os faraós da XVIII dinastia e o deus Ré,
concretizada no praenomen real é congruente com a tentativa dos monarcas do período
saíta em fortalecer o seu prestígio através da identificação com o deus solar.
Embora muito delimitada no tempo, a integração da expressão «coração de Ré»
no praenomen real obedeceu a objectivos políticos onde a afirmação da estabilidade
parece ter sido uma preocupação dominante. Neste âmbito, o estatuto do faraó era
enaltecido quer através da sua capacidade para se relacionar com o deus (como parece
ter sido o caso na XIII dinastia), quer através de uma total identificação com o deus sol
(sobretudo visível na XXVI dinastia).
278
A distinção entre os nomes que fazem alusão directa ao rei como agente e os que indicam uma
identificação entre o rei e o deus também foi notada por Erik Iversen. Ver E. IVERSEN, «Reflections on
some royal names», em I.S. EDWARDS, Pyramid Studies, p. 81.
103
2. O coração do criador
279
O florescimento da redacção dos hinos ao deus supremo coincidiu com duas importantes inovações
introduzidas no reinado de Hatchepsut. A designação da legitimidade da rainha pela barca de Amon
marcou o aparecimento do da expressão oracular da divindade e introduziu uma quarta dimensão ao
contacto com deus. Outra inovação constituiu a formulação do mito da concepção divina da rainha. Num
caso como no outro, a vontade de Amon concretizou-se na história elegendo a rainha como a prova viva
da afirmação da sua vontade. A celebração dos poderes do deus supremo parece, deste modo, enquadrar-
se na estratégia de Hatchepsut, seguida também por Tutmés III, para afirmar a sua própria legitimidade.
Ver J. ASSMANN, Solar Religion, p. 193. Sobre o efeito destas questões políticas na ascenção do clero
amoniano ver L. ARAÚJO, O Clero do deus Amon no Antigo Egipto, p. 51-68.
280
A reforma atoniana tinha, deste modo, as suas raízes mergulhadas no movimento intelectual que
procurava definir o carácter do deus supremo.
281
J. ASSMANN, Solar Religion, pp. 201-204.
104
fenómenos passíveis de se relacionarem com o movimento do sol e a sua luz. Toda a
vida era uma criação do sol que se renovava quotidianamente.282 A nova teologia solar
baseava-se, deste modo, num heliomorfismo do conceito divino. Nesta perspectiva, o
deus revelava-se aos homens através da sua luz e dirigia-se a todos os homens, aos
«súbditos do sol» (a humanidade) manifestando o seu amor no coração das criaturas
que o contemplavam:
Todos exultam,
Todos enaltecem a sua bondade,
«Como é agradável o seu amor por nós,
A sua bondade inunda os corações,
O seu amor é grande em todos os corações». 283
Tomando o sol como modelo, o deus supremo infundia o seu amor na criação
através da luz. Os efeitos do poder do sol manifestavam-se no coração dos homens e dos
284
animais que exultavam de alegria. Com efeito, o nascer do sol possui, nos hinos
solares, um significado muito especial. É nesse momento que o sol se manifestava com
todo o seu esplendor como rei da criação. A harmonia que o deus instalava no cosmos,
reflectia-se na união da criação em torno da contemplação do soberano cósmico. Este
estado de harmonia era evocado através da «alegria», aut-ib (Awt- ib).285 A alegria, a
«dilatação do coração», era um estado cósmico de «expansão» que reflectia o poder do
deus sobre a criação. Por isso o deus aparecia triunfante, sobre o horizonte, «de coração
alegre»:
Louvor a ti!
Como és esplêndido e perfeito, Atum-Horakhti!
Quando apareces em glória no horizonte de céu, (...)
Apareces glorioso, em todos os lugares
De coração alegre, eternamente! (...).286
282
Idem, p. 205. Esta perspectivação da realidade a partir de uma referência única, resumida ao sol,
reflectia evidentemente o carácter universal do poder imperial e a nova realidade política do império.
283
O Grande Hino de Osíris, Apêndice IV.1.
284
Ver Hino a Ré, Atum, Horakhti, XVIII dinastia. em Apêndice IV.4.
285
Sobre a expressão ver Apêndice XI, p. xci.
286
Hino a Ré-Atum-Horakhti, túmulo menfita de Horemheb, XVIII dinastia. Apêndice IV.3.
105
A «dilatação do coração» era, deste modo, uma emoção com conotações reais e
reportava-se à alegria proporcionada pela vitória da luz sobre as trevas. 287 A alegria e a
felicidade (aut-ib ou nedjem-ib) assinalavam, deste modo, o triunfo da maet 288 razão
pela qual contagiavam toda a criação:
287
O coração do deus dilatava-se quando o inimigo era vencido. Seguindo o modelo divino, o rei era
«senhor da alegria». A «dilatação do coração» era uma oferenda dada pelos deuses ao rei. J. ASSMANN,
Egyptian Solar Religion, p. 51. Outra manifestação do poder vital do criador em toda a criação é a
«doçura do coração» (nedjem ib): «São feitos gestos de alegria quando te ergues do Nun/Para te saudar s
deuses do circuito celeste prosternam-se diante de ti./Todos vêem a partir de ti./Quando te ergues no
horizonte pela manhã todos te adoram./Não existe abatimento quando a tua doçura está nos corações.»
Hino a Ré-Horakhti, Papiro 3049 do Museu Egípcio de Berlim. Versão francesa em A. BARUCQ e F.
DAUMAS, Hymnes et priéres de l´Égypte ancienne, p. 264.
288
Estas designações são evocadas sempre que a luz vence as trevas, ainda que seja a lua, e não o sol, a
fazê-lo: «Tu és a luz que ilumina o que está no céu e na terra. Ré alegra-se de ver a tua beleza. Os deuses
do horizonte exultam (nedjem ib) no seu coração. Os que estão no horizonte exultam no seu coração. A
morada de benben está na alegria.». Hino à Lua, F.-R. HERBIN, «Un hymne à la lune croissante»,
BIFAO 82 (1982), p. 252.
289
Hino a Ré, Atum, Horakhti. Apêndice IV. 4.
290
Embora raramente, o hieróglifo ib foi usado na decoração de certas jóias para atrair o carácter
apotropaico de uma palavra ou de uma ideia. Os casos mais conhecidos datam da XII dinastia e estão
patentes nas jóias das princesas Khnumet e Ueret. A princesa Khnumet, sepultada na proximidade da
pirâmide de Amenemhat II, em Dachur, possuía entre as jóias encontradas por Jacques de Morgan, um
conjunto de pulseiras decoradas com pequenos medalhões propiciatórios. Estas peças mostram na
perfeição a utilização pelos artesãos egípcios das componentes mágica e estética da escrita hieroglífica
nas suas criações. Uma destas peças redige a palavra «alegria», aut ib (Awt-ib), literalmente, «dilatação do
coração».( Ver anexo V 1.1. Outras pulseiras também apresentam votos de felicidade: neb ankh sa ha, (nb
anx sA hA) «toda a vida, protecção e abundância» ou més (ms) «nascimento».) A explicação para a
redacção deste termo numa jóia deve ser encontrada no grande valor apotropaico desta emoção, conotada
com o nascer do sol, a ressurreição e a vitória sobre as trevas. São estas conotações que motivaram, desde
o Império Antigo, a redacção deste termo no contexto das bençãos prodigalizadas ao rei. (Ver anexo V
1.3-6) Estes dons relacionam-se, de um modo geral, com as forças da vida: ankh, «vida», seneb, «saúde»,
djed, «estabilidade», uase, «poder», são os dons da vida mais frequentemente associados à «alegria», o
que demonstra que, mais do que um simples estado de espírito, a alegria era considerada como uma força
de vida. Era o carácter apotropaico desta força que explica que, na XII dinastia, a palavra tenha sido
escrita em objectos de carácter amulético, como os amuletos de Khnumet e Ueret.
291
As únicas ocorrências relacionadas com o coração de Aton relacionam-se com a sua participação na
criação do mundo e traduzem uma certa inspiração heliopolitana.
106
Louvor a ti, ó, Aton vivo!
Amanhecendo no céu inundas os corações,
Toda a terra está em festa ao nascer do sol;
Os seus corações exultam em aclamações,
Quando o seu senhor, o seu criador, brilha sobre eles. 292
292
Hino a Aton e ao rei, túmulo de Ai, versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, vol. II, pp 93-94
293
Pequeno Hino de Aton, Ver Apêndice nº 4 e nº 5
294
Pequeno Hino de Aton, col. 13-18. Versão hieroglífica em P. GRANDET, Hymnes de la religion
d´Aton, p. 127.
107
De facto, apesar do espírito natural e universalista que inspirava a reforma
amarniana, o único interlocutor do deus era o faraó. A relação íntima e exclusiva entre o
deus Aton e Akhenaton explicava-se porque o rei era o único que «tinha o deus no seu
coração». O fenómeno da piedade pessoal, encarado como a possibilidade de «colocar o
deus no coração» estava, deste modo, reservado ao rei, o único que podia estar
verdadeiramente consciente da presença do deus. Este foi, sem dúvida, um dos aspectos
que ditaram o fracasso da reforma de Amarna, uma vez que se opunha a uma tendência
antagónica que estava há muito em marcha e que constituía um dos fenómenos
religiosos mais marcantes da espiritualidade egípcia: a difusão da piedade pessoal.
295
Grande Hino de Aton, col. 100. Versão hieroglífica em Idem, p. 117.
296
Embora seja perfeitamente enunciada pela Teologia Menfita, esta ideia é abundantemente
documentada pela literatura religiosa do período ramséssida onde este processo criativo também estava
associado a Amon-Ré.
108
Eu sou o ba de Chu, um deus que se manifestou a partir de si mesmo. Eu sou o ba de Chu, o
deus cuja forma é invisível; eu transformei-me no «deus que se formou a si mesmo». Eu sou aquele que
está no íntimo do deus em que me transformei; eu sou alguém que fez o céu, eu sou alguém que submeteu
as Duas Terras, pois sou mais forte e mais impetuoso do que toda a Enéade (...) Eu sou alguém que está
entre os deuses Heh. Eu sou o que transmite a palavra «Daquele que veio à existência a partir de si
mesmo» a todos (...) eu sou mais forte e impetuoso do que toda a Enéade. (...) Pois eu manifestei-me a
partir do «deus que se formou a si mesmo». Ele concebeu-me no seu coração (qmA.n.f m ib.f), ele criou-
me (ir.n.f) a partir do seu poder (Axw). Eu manifestei-me, em júbilo, como deus que se manifesta a si
mesmo. Este deus venerável dilatou-se, ele irradia o céu na sua beleza, os deuses não conhecem o seu
nome, as henmemet são a sua escolta. Eu brotei das suas pernas, eu manifestei-me a partir das suas mãos,
elevei-me a partir do seu corpo. Ele gerou-me (qmA.n.f m ib.f) no seu coração, ele criou-me (ir.n.f) pelo
seu poder (Axw) , pois eu não nasci (...)297
O texto identifica o defunto com Chu e faz alusão à criação de Chu a partir de
Atum. A criação de Chu fez-se através da «transformação», kheper (xpr) de Atum, um
processo tipicamente associado à criação do mundo veiculada pela tradição
heliopolitana. Em seguida, o texto explicita que o criador «concebeu» Chu no seu
coração. O termo usado, kemá (qmA), «conceber» ou «projectar», também pode ser
usado no sentido físico de «projectar» e coaduna-se com o mito tradicional de
Heliópolis que relata a criação de Chu através da emissão dos fluídos de Atum (esperma
ou escarro).298 A concepção pelo coração resultava, deste modo, da transposição para
um plano abstracto, da criação a partir do sémen de Atum.299 Estabelecendo uma
correspondência entre o pénis e o coração de Atum, os teólogos heliopolitanos abriram
o caminho para uma versão «filosófica» da criação. Se a criação através da masturbação
constituía o símbolo mítico para a criação de Chu e Tefnut, corporizados na projecção
do sémen do demiurgo, a criação através do coração transferia este processo para um
plano mais conceptual. A consciência do criador originava o pensamento e a palavra,
Sia e Hu, os quais eram identificados com o coração e a língua de Atum,
respectivamente.300
297
TdS 75, versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp. 462-466. Versão
hieroglífica em A. BUCK, The Egyptians Coffin Texts, I, 336-345.
298
A conotação associada ao movimento subjacente ao termo detecta-se também pelo uso do
determinativo T-14, da lista de Gardiner. Ver A. GARDINER, Egyptian Grammar, p. 546.
299
Também na fórmula 39 se refere que o coração «faz os membros»: «(...) Eu estarei no país dos vivos;
o meu coração fará os meus membros, as minhas carnes obedecer-me-ão, eles sustentar-me-ão. Tornar-
me-ei um ancião (...)», TdS 39, versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 181.
300
Já no Império Médio estava consolidada a associação entre Hu e Sia à língua e ao coração de Atum. A
fórmula 80 dos «Textos dos Sarcófagos» refere: «articulo as cabeças por meio de Hu que está na minha
boca. Ver versão francesa em Idem, p. 473. Também a fórmula 689 documenta esta associação: (...) este
109
A equivalência entre o coração e o pénis, formulada pela cosmogonia de
Heliópolis, transcendeu largamente o âmbito estritamente religioso e influenciou as
próprias crenças anatómicas. No Livro das Manifestações de Deus, o criador confessa-
se deste modo:
Eu desencadeei uma erecção com o meu punho e copulei com a minha mão. Depois de ter
causado uma erecção com o meu punho, o meu coração esvaziou-se na minha mão.301
Ó, deuses da Enéade, vinde à minha presença! (...) a sua palavra é a que saiu do seu próprio
coração quando percorreu com Chu o percurso de Hu e de Sia. Hu e Sia disseram: «Vem, façamos os
N. comeu os deuses Heh e Hu, engoliu Sia, comeu Heka (...) Hu está no ventre de N., o Temível está no
seu coração, Sia está no seu coração». Versão francesa em Idem, pp. 499-500.
301
Idem, p. 260.
302
M. BILOLO, «Du coeur h3ty ou ib comme l´unique lieu de la création: propos sur la cosmogenese
heliopolitaine», p. 11.
303
Idem p. 10.
304
Nos terraços de Deir el-Bahari, a cena de teogamia que revela a concepção da rainha Hatchepsut revela
um expressivo exemplo de substituição do órgão genital pelo coração: «Ele (Amon) coloca o seu coração
sobre ela». A escrita hieroglífica especifica, através do determinativo do falo erecto, que a expressão
possuía conotações sexuais.Inscrição de Deir-el-Bahari: D. MÜLLER, «Die Zeugung durch das Herz in
Religion und Medizin der Ägypter», Orientalia, 35 (1966), p. 256.
305
M. BILOLO, «Du coeur H3ty ou ib comme l´unique lieu de la création: propos sur la cosmogenese
heliopolitaine», p. 11.
110
nomes de acordo com o que saiu (pr) do seu coração, ele que acompanhou Chu, o seu filho, que concebeu
(ms) o mundo a partir de si mesmo». Atum diz aos deuses: (...) «Façamos os vossos nomes (...) com o
meu próprio poder». 306
(...) Eu entrei e saí e fui para além da eternidade. Eu sou (o que venera?) o deus que está no seu
coração. Eu entrei e saí, percorri Chu, atravessei o furacão que se perfila no céu. A estrela iad na minha
mão é a dos dois ba. (...)308
No entanto é a fórmula 768 que apresenta uma invocação clara ao coração como
se fosse um deus criador:
Tu que tudo vês, tudo destróis e que vês N., também ele te vê. (...) Ó, tu que tens compaixão pelo
olho udjat, conhece N. (...) Ó, tu que fazes que N conheça (...) Ó, coração, conhecimento que está no
corpo, (...) Ó, medidor de todas as coisas, que conta o sono, que conta as formas, que conhece o que está
306
TdS 321, versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 489.
307
A proximidade entre estas tradições nada tem de estranho. Na verdade, desde o Império Antigo, existiu
sempre uma grande proximidade entre o clero de Ptah e o culto solar de Heliópolis. O próprio culto dos
templos solares dos reis da V dinastia era desempenhado pelos sacerdotes de Ptah que aí velavam para a
execução dos rituais associados a Ré (C. MAYSTRE, Les grands prêtres de Ptah de Memphis, p. 44). Em
Mênfis, a tríade triteística composta por Ptah, Sekhmet e Nefertum era complementada com uma tríade de
inspiração modalística onde Ptah, habitualmente associado ao pilar djed, se associava a Chu e Tefnut,
apresentados com a configuração de aves ba. Esta tríade evidencia uma fusão entre as duas tradições que
se revelou particularmente fértil a partir do período ramséssida. Ver L. KÁKOSY, «A Memphite triad»,
JEA 66 (1980), p. 48. O facto de Chu e Tefnut se apresentarem como aves ba, leva-os a participar da
identidade de Ptah. Constituindo a manifestação de poder de Ptah, como luz e fogo, são aspectos visíveis
do deus. Na Teologia Menfita, Chu e Tefnut também são mencionados como aspectos de Ptah.
308
TdS 696 versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp. 155-156.
111
nos corações, (...) Ó, Escaravelho, o que vem à existência, que está na cheia, que criou o Nun em Tatenen,
(...) Tu, cujo nome é Único (...) Ó, Elefantina, (...) Ó, provedor, senhor de tudo, (...) Não ignores N, Hórus
Soped (...) Não ignores N., tu que estás na Duat (...). 309
Embora não seja ainda explícita a formulação do acto criativo como uma obra do
coração do criador, Aton manifesta-se a si mesmo e criava os homens com um «coração
paciente». Também neste caso a identificação com os deuses heliopolitanos Ré e Chu
deve ter inspirado a formulação da criação através do coração do deus.312 Mas é no
Grande Hino de Aton, do reinado de Akhenaton, que a formulação da criação pelo
coração do deus sol é claramente formulada:
309
TdS 768, Idem, pp. 147-148.
310
A. PIANKOFF, «Les Grandes Compositions Religieuses du Nouvel Empire et la Réforme d´Amarna»,
BIFAO 41 (1942), p. 208.
311
Hino ao deus sol, Estela dos irmãos Suti e Hor (BM 826), Apêndice IV.10.
312
A formulação de Aton como um aspecto particular de Ré está patente nos próprios nomes atribuídos
ao disco solar no reinado de Akhenaton: «Que viva Ré, o Hórus do horizonte! O que rejubila no horizonte
no seu nome de Chu que está em Aton» ou «Que viva Ré! Aquele que governa o horizonte, que rejubila
no seu nome de Ré, o pai, que regressou como Aton». A. PIANKOFF, «Les Grandes Compositions
Religieuses du Nouvel Empire et la Réforme d´Amarna», BIFAO 41 (1942), p. 208.
112
As tuas obras são inúmeras,
Elas são misteriosas para o olhar (face)
Ó, deus único, sem igual,
Crias (qmA) a terra no teu coração (ib),
Tu és único.313
313
Grande Hino de Aton, col. 61-64, versão hieroglífica em P. GRANDET, Hymnes de la religion
d´Aton, p. 111.
314
Hino de louvor a Ptah, do papiro 3048 do Museu Egípcio de Berlim, em A. BARUCQ, F. DAUMAS,
Hymnes et Priéres, pp. 389-407 e J. ALLEN, Genesis in ancient Egypt, p. 39-40.
113
O que ele disse no seu coração, foi criado e manifestou-se
Ele enuncia o que ainda não existe
E renova o que já existe
Nada existe sem ele (...)315
315
Oração a Ptah. Versão francesa em A. BARUCQ e F. DAUMAS, Hymnes et priéres de l´Égypte
ancienne, p. 411. Apêndice IV.29.
316
Nos seus Mistérios dos Egípcios, Jamblico detectara a afinidade entre o Platonismo e o carácter
sagrado da escrita hieroglífica, referindo que a escrita egípcia constituía uma imitação da criação divina.
Em J. ASSMANN, The Mind of Egypt, p. 354.
114
Foi ele que criou a terra a partir de si mesmo
E que a rodeou do oceano primordial. 317
Tal como Ptah, Amon «moldou as estátuas» e «fez as obras de arte». Trata-se,
como vimos, da caracterização mais antiga de Ptah que apresentava o deus como o
patrono dos artesãos. Noutros hinos, Amon é descrito com as qualidades ctónicas e
celestes de Ptah que afirmavam o deus menfita como o pilar cósmico:
317
Hino de louvor a Ptah, Papiro Harris I, versão francesa em P. MONTET, Papiro Harris I, p. 284-
285.
318
Hino a Amon, 40, XIX dinastia, versão francesa em A. BARUCQ e F. DAUMAS, Hymnes et priéres
de l´Égypte ancienne, p. 216.
115
A tua primeira forma foi a de Ré,
Para iluminar as Duas Terras que criaste
De acordo com o desejo do teu coração, quando estavas sozinho. 319
Textos como estes, que acusavam uma inspiração em fontes menfitas, mostram
que os elementos patentes na Teologia Menfita já se encontravam formulados no
período ramséssida. 321 A comparação de Sia ao coração do criador e Hu aos seus lábios
é um destes elementos. A síntese com elementos da cosmogonia heliopolitana é outro
dado muito importante, nomeadamente a comparação de Chu e Tefnut ao ba e ao
coração do deus. Finalmente, a identificação com o Nun é outro elemento que estará
presente na Teologia Menfita. Evidências deste tipo mostram que uma narrativa
cosmogónica como a que foi redigida na Teologia Menfita podia estar já em curso no
319
Hino a Amon, inscrito na pedreira de Tura, versão francesa em Idem, p. 231.
320
Hino a Amon, 600, XIX dinastia, versão francesa em Idem, p. 227
321
Embora esta perspectiva da criação remonte ao Império Médio é a partir do Império Novo e sobretudo
a partir da Época Baixa que se alarga a um número cada vez maior de divindades. Um grande número de
textos sagrados tardios apresenta uma forte influência no modelo cosmogónico da tradição menfita. No
templo de Philae, no reinado de Ptolemeu II Filadelfo, foi gravado um belo hino dedicado a Ísis, onde a
deusa é louvada como uma divindade primordial (ver Apêndice X). No templo de Esna, o carácter
cosmogónico da deusa Neit também parece ter seguido o modelo do deus Ptah (ver Apêndice X).
116
período ramséssida pois os elementos simbólicos que figuram na pedra de Chabaka já se
detectam nos textos desta época.322
O documento mais importante para o estudo da noção do coração no antigo
Egipto é, sem dúvida alguma, a Teologia Menfita. Composto por uma parte dramática,
evocativa do conflito de Hórus e Set, e de um trecho narrativo alusivo à criação do
mundo, é nesta segunda parte que o documento expõe algumas ideias singulares sobre
as ideias religiosas que caracterizam o coração.323 Na narrativa cosmogónica, a primeira
alusão ao coração do criador é feita com o intuito de criar uma síntese entre as
principais tradições cosmogónicas do antigo Egipto:
322
A datação da composição cosmogónica é alvo de grande controvérsia. A maior parte dos autores tende
a aceitar o período ramséssida como o mais provável para a redacção do texto, muito embora a ideia de
uma redacção situada no próprio reinado de Chabaka se tenha vindo a impor ultimamente. Na nossa
perspectiva, tendo em conta a história das noções religiosas do Egipto, não parecem existir elementos no
texto que desmintam a afirmação enunciada pelo próprio redactor cuchita e que atribuíam ao documento
uma grande antiguidade. De qualquer modo, ainda que tivesse sido alvo de uma reelaboração, tudo indica
que, no caso de ter existido, essa intervenção não terá alterado grandemente o essencial da mensagem, já
que, ao longo de todo o Terceiro Período Intermediário os textos religiosos raramente constituíram
criações originais, perpetuando, pelo contrário, tradições anteriores. A Teologia Menfita não deverá
constituir uma excepção. F.-R. HERBIN, «Un hymne à la lune croissante», BIFAO 82 (1982), p. 280.
323
Consultar versão hieroglífica em K. SETHE, Dramatische Texte zu Altaegyptischen Mysterienspielen,
J. C. Hinrich Sche Buchhandlung, Leipzig, 1928. Os dois temas foram, bem entendido, articulados de
modo a justificarem a universalidade do poder real. Na primeira parte, o faraó, assimilado a Hórus, é
reconhecido como o herdeiro legítimo do trono de Geb, ao passo que, na narrativa cosmogónica, a
realeza, a ordem política, é colocada na ordem natural das coisas como uma obra de Ptah.
324
Teologia Menfita, Apêndice V.
117
(53) O coração (hati) manifestou-se sob a forma de Atum. A língua manifestou-se sob a forma
de Atum. O deus maior é Ptah, (Ele) fez confiar (a vida) a todos os deuses e aos seus kau (54) O seu
coração é onde Hórus se manifesta em Ptah. A sua língua é onde Tot se manifesta em Ptah.325
325
Teologia Menfita, Apêndice V.
326
Kheper pode significar «nascer», «transformar», «manifestar», mas também «formar». É uma palavra
crucial ao longo do relato cosmogónico e, em geral, tem um significado distinto da criação que é
resultante da obra do criador. Esta, em geral, traduz-se pela utilização de dois outros verbos, ir, «fazer», e
mes, que significa «nascer». «Sair», per, é outra expressão usada no contexto da criação. Cada um destes
termos parece possuir um significado próprio A palavra mes parece evocar o resultado da criação no
feminino, com um sentido mais vincadamente ventral, ao passo que o termo ir evoca a criação no
masculino, resultante de uma obra, de um trabalho. O termo kheper distingue-se dos anteriores já que não
pressupõe uma concepção, ou um trabalho. A criação expressa através do termo kheper evoca
simplesmente a manifestação de algo sob uma nova forma, a qual já podia existir previamente sob uma
outra forma. A expressão usada a respeito da criação pelo coração é «sair»: «(55) Ele (o coração) dá saída
a todo conhecimento», lembrando o paralelo entre o coração e o falo: o coração faz sair o conhecimento
como o falo projectava o sémen. O coração também se «transforma», ou «manifesta»:«(54) Então o
coração ib e a língua manifestaram (xpr) o (seu) poder sobre todos os membros, segundo o conhecimento
(kAAt) que surge em todo o corpo».
118
sucede com frequência nas representações dualistas da monarquia, Set é substituído por
Tot em motivos em que é representado em complementaridade com Hórus. Talvez a
proximidade iconográfica tenha facilitado esta convergência mas o certo é que ela se
consolidou. O posicionamento dualista de Hórus-Tot (coração-língua) parece-nos pois
um desdobramento, no texto cosmogónico, do posicionamento dualista estabelecido
entre Hórus e Set no texto dramático. Esta equivalência também não deixa de ter uma
leitura de valor teológico-político: a união das Duas Terras (dualismo Hórus-Set) é
colocada em correspondência com a criação do mundo (dualismo Hórus-Tot).327
Depois deste enquadramento mitológico, o texto apresenta uma surpreendente
descrição do papel do coração como órgão de conhecimento:
(54) Então o coração ib e a língua manifestaram (xpr) o (seu) poder sobre todos os membros,
segundo o conhecimento (kAAt) que surge em todo o corpo e em toda a boca de todos os deuses, de todos
os homens, de todo o gado, de todos os vermes e de todas as coisas vivas, de acordo com o plano que
comanda todas as coisas que ele ama. (55) A visão dos olhos, o escutar das orelhas e o respirar da
garganta sobem diante do coração. Ele (o coração) dá saída a todo conhecimento. A língua repete o
conhecimento (kAAt) do coração (HAti). Ele gerou todos os deuses, e completou a sua Enéade. Na verdade,
toda a palavra divina nasce a partir do conhecimento (kAAt) do (57) coração (HAti) e do comando da
língua.328
327
É curioso que, em termos iconográficos, o ritual de coroação do rei faz intervir, desde o Império Novo,
a díade composta por Hórus e Set e a díade composta por Hórus e Tot, no contexto de rituais específicos.
A primeira é relacionada sobretudo com a coroação ao passo que a segunda é conotada com a purificação.
O significado deste acto ritual seria, deste modo, o de assinalar o regresso ao tempo primordial da criação
do mundo. De acordo com esta interpretação, ganharia sustentabilidade a hipótese do texto ser
interpretado durante a cerimónia da coroação celebrada no templo de Ptah, em Mênfis.
328
Teologia Menfita, Apêndice V.
329
O termo está escrito apenas com o recurso ao determinativo do coração, pelo que pode ser uma forma
abreviada do termo hati.
119
a qual está ligada ao criador por um laço de amor («o plano que comanda todas as
coisas que ele ama»).
O texto revela-nos também que o conhecimento não é inato nem revelado, pelo
contrário, ele é o resultado de uma convergência das informações do mundo exterior
para o coração, as quais «sobem» por intermédio dos órgãos dos sentidos. A
epistemologia da Teologia Menfita é, pois, positiva e empírica: o conhecimento não é
inato, sendo, pelo contrário, produzido pelo coração a partir do contacto com a
realidade.330
Esta afirmação contrasta com a existência de um plano (kaat) que deus imprimiu
à criação, como vimos anteriormente. Se o conhecimento é adquirido, então o plano
dado por deus não pode senão ser um modus operandi, uma forma de funcionar, de
organizar o funcionamento do corpo, ou seja, constitui a própria inteligência da vida.
Depois de receber a informação, o coração «dá saída ao conhecimento» que é
então enunciado pela língua, manifestando-se no mundo exterior sob a forma de
palavras, gestos ou obras. «Toda a palavra divina nasce do conhecimento do coração e
do comando da língua». A frase é decisiva e possui muitas implicações. Em primeiro
lugar mostra o hiato entre o conhecimento do coração e a palavra. As «palavras
divinas», ou seja, os hieróglifos, são resultantes da articulação entre o coração e a
língua. A escrita estabelece um paralelismo entre o homem e o criador. Deus distribuiu
hieróglifos vivos pela natureza, escrevendo um livro onde está encerrado o seu «plano».
Do mesmo modo, ao escrever, o homem imita o gesto criativo de deus, espalhando
esses hieróglifos pelo papiro, pelas superfícies de pedra, ou até pela paisagem (através
dos edifícios e das obras de arte).
É precisamente este paralelismo que está na origem da associação de Ptah aos
artífices. Toda a obra humana produz hieróglifos que continuam a recriar e a completar
a criação fundada pelo criador. Ao esculpir uma estátua, o escultor «escreve», em três
dimensões, um hieróglifo que passará a fazer parte do grande texto do mundo.
A Teologia Menfita prossegue com explicações mais detalhadas sobre a
influência do «plano» divino na esfera humana:
330
Esta noção reflecte-se muitas vezes, ao nível da linguagem, através da expressão usada para
«conhecer». A coisa inteligível é aquela «em presença da qual se encontra o coração»: «Ele procura
conselhos para as coisas estranhas bem como para aquelas que estão diante do coração», (Ipu-uer:
PIANKOFF, Le Coeur, p. 48.)
120
Ele criou os kau e designou as hemsut. (Eles) criaram todo o alimento e todas as oferendas de
acordo com a sua palavra. 331
Para o que faz o que é amado ele dá vida e paz. Para o que faz o que é odiado ele dá morte e
condenação. 332
Ele fez todo os trabalhos e todos os ofícios, as obras feitas pelas mãos, o andamento das pernas e
(58) todo o movimento dos membros, de acordo com a sua ordem, a palavra do conhecimento (kAAt) do
coração (ib) (que) sai pela língua e faz todas as coisas veneráveis. (Ele) manifestou a sua palavra,
concluiu a (sua) obra e formou os deuses. Ele é Ptah-Tatenen, o que gerou os deuses. Todas as coisas
saíram dele, as provisões, os alimentos para as (59) oferendas divinas e todas as coisas boas. Ele
encontrou (gem) a sua sabedoria e a sua força maior do que (a dos outros) deuses. Desta forma, Ptah ficou
verdadeiramente satisfeito com as suas obras: todas as coisas e todas as palavras divinas. 333
331
Teologia Menfita, Apêndice V.
332
Teologia Menfita, Apêndice V.
333
Teologia Menfita, Apêndice V
121
dos alimentos e de «todas as coisas boas». Através da sua criação, Ptah encontra
(gem) a verdadeira dimensão do seu poder. E à semelhança do Deus bíblico, «Ptah
ficou verdadeiramente satisfeito com as suas obras», as quais englobavam «todas as
coisas e todas as palavras divinas», ou seja, a sua satisfação estende-se também para
a obra que continua a realizar-se através da acção humana.
A Teologia Menfita condensava, deste modo, um conjunto importante de
informações relativas ao papel do coração na vida humana e na criação. Embora esta
caracterização tenha um contexto mitológico, a definição do coração apresentada
aplica-se não só ao deus criador mas também a todas as criaturas. Poderíamos
resumir do seguinte modo as principais linhas de forças da noção do coração patentes
na Teologia Menfita:
122
entre o corpo do homem, o corpo social e o corpo do universo. O sol, o rei e
o coração desempenham, em cada um destes planos, um papel idêntico.
7. O coração mantém um elo entre o homem e o deus criador, um elo que o
conduz ao tempo primordial da criação do mundo. Através deste elo, o amor
divino, é garantida a regeneração do coração humano e a actualização do
plano divino que é continuamente recriado através de cada organismo vivo.
A Aventura de Sinuhe é uma das narrativas egípcias mais notáveis que chegaram
aos nossos dias.336 Constituindo um autobiografia muito elaborada, o texto é muitas
vezes considerado o expoente de uma tendência literária que fez emancipar o relato
biográfico do contexto funerário.337 A carga poética do texto permite reconhecer a obra
334
Neste aspecto não podemos concordar com Iversen que defende uma ausência de preocupações
políticas na composição que se consagra inteiramente a expor uma síntese teológica. Em E. IVERSEN,
«The cosmogony of Shabaka Text», p. 490. O enquadramento fornecido pelo texto dramático, fortemente
alusivo aos mitos que legitimam o poder faraónico, não permite, no nosso entender, sustentar uma tal
hipótese.
335
Como veremos, esta formulação do coração parece apontar para a transformação que deverá ocorrer na
consciência individual ao longo da iniciação para que o homem passe a agir de acordo com o coração e a
língua do criador. Esta transformação, formulada em termos de uma obediência aos mandamentos
divinos, não deixa de ter um alcance político já que pressupõe a conformidade com a actuação real, o
modelo terreno da lei divina.
336
Considerado, pelos próprios egípcios, como um clássico da sua literatura, este conto foi
abundantemente copiado razão pela qual sobreviveram até aos nossos dias vários exemplares do texto, a
maior parte deles redigidos em óstracos. Destacam-se, no entanto, dois exemplares, o Papiro de Berlim
3022, datado da XII dinastia e o Papiro de Berlim 10499 que foi redigido no fim do Império Médio. A
junção dos dois documentos permite colmatar as lacunas existentes em cada um deles. Em M.
LICHTHEIM, AEL, I, p. 222.
337
A. GARDINER, Notes on the story of Sinuhe, pp. 164-168.
123
como um poema épico com uma vocação marcadamente oral, de certo modo idêntico às
composições homéricas.338
O enredo da narrativa começa com um terrível acontecimento: o regicídio de
Amenemhat I. Chefiando uma expedição militar contra as tribos do deserto, Senuseret I,
ainda príncipe, é chamado à corte pelos emissários. Em grande segredo, o herdeiro
regressa imediatamente. No entanto, outros emissários partiram igualmente para avisar
outros infantes, também presentes na armada. Sinuhe, que também estava deslocado,
assiste furtivamente a uma conversa entre um destes emissários e um príncipe. Embora
o teor da conversa não seja revelado, o seu conteúdo é de tal forma inquietante que
motiva a fuga de Sinuhe:
Foi enviado um mensageiro aos infantes que o acompanhavam nesta campanha. Sendo um deles
chamado à parte e estando eu por perto, ouvia a sua voz. O meu coração angustiou-se, os meus braços
tombaram e um tremor abateu-se sobre os meus membros. (...) Rumei ao sul sem ter a intenção de chegar
ao palácio. Imaginei que começassem a eclodir conflitos e a isso eu não queria assistir. 339
Esta passagem é o ponto crucial da narrativa e um dos mais obscuros pois não é
absolutamente claro o motivo que leva Sinuhe a ficar tão apavorado e a empreender a
fuga.340 O próprio texto parece intencionalmente vago a este propósito, adensando a
tensão dramática desse momento.341 Um interpretação possível seria a possibilidade de
Sinuhe poder estar envolvido numa conspiração.342 O desenvolvimento da história e o
regresso de Sinuhe ao Egipto parece afastar esta hipótese, uma vez que a cumplicidade
num acto de traição ao rei seria considerado um crime sem perdão. 343 Outra hipótese
consiste em admitir que, ao tomar conhecimento da conspiração, Sinuhe tenha ficado de
338
V. TOBIN, «The Secret of Sinuhe», JARCE 32 (1995), p. 162
339
A Aventura de Sinuhe, (20-27). Versão portuguesa baseada na versão francesa proposta por P. LUINO,
La véritable histoire de Sinouhé, p. 45.
340
A importância da fuga na trama narrativa é indiciadora do estado policial resultante da forte
centralização do poder que caracterizou o Império Médio. A fuga era provavelmente encarada como uma
penalidade que originava o encarceramento. Para Assmann, não era tanto a fuga do país que era punida,
mas sim o abandono das funções. Ao deixar tudo para trás, Sinuhe corria o risco de ser visto como um
vagabundo, como alguém que despreza a ordem, os compromissos e a dedicação. Ver J. ASSMANN, The
Mind of Egypt, p. 139.
341
A lacuna de explicações perante um acontecimento tão importante no conto tem sido interpretada
como um meio para acentuar o suspense e o dramatismo da narrativa, permitindo à audiência colocar as
suas próprias hipóteses explicativas, aumentando assim o seu interesse pela intriga. Em V. TOBIN, «The
Secret of Sinuhe», JARCE 32 (1995), p. 165.
342
A ideia é defendida por W. V. Davies. Em H. GOEDICKE, «The Riddle of Sinuhe´s Flight», RdÉ 35
(1984), p. 99.
343
Em Ibidem.
124
tal modo horrorizado que fugiu para não assistir a tal evento. 344 Analisando em
pormenor o texto, Hans Goedicke perspectiva a fuga de Sinuhe à luz de um mal-
entendido. Assim, aquilo que seria uma exortação para regressar ao palácio foi
entendido por Sinuhe como um convite à rebelião.345 A perturbação perante a simples
ideia de se ver envolvido num tal crime levou o protagonista a fugir sem demora.346
Seja como for, foi a partir desta fuga que o herói começou uma vida de
aventuras que o levou para fora do Egipto. Passou por Biblos, Kedem, onde permaneceu
algum tempo, e acabou por se fixar no Retenu, país situado nas proximidades da
Palestina. Aí tornou-se íntimo do rei, Amunenchi que lhe deu a sua filha em casamento.
O herói prosperou e suscitou a inveja do «forte do Retenu» que o desafiou para um
combate. Lembrando o confronto entre David e Golias, do qual parece efectivamente ter
sido o arquétipo, Sinuhe venceu a força bruta do adversário e a sua glória atingiu o
auge. Apesar disso, talvez por se ter confrontado de perto com a morte, Sinuhe sentiu-se
invadido por um horror alieni que desperta a vontade de regressar ao Egipto, para aí
morrer e ser sepultado.347 Implorando ao céu a graça de regressar, Sinuhe foi escutado
344
Em C. JACQ, Pouvoir et Sagesse, p. 125.
345
Para o estudo detalhado desta passagem ver H. GOEDICKE, «The Riddle of Sinuhe´s Flight», RdÉ 35
(1984), pp. 101-102.
346
Uma das questões mais debatidas tem sido efectivamente o motivo que levou à fuga de Sinuhe. A
questão é, de facto, muito complexa e tem sido alvo de muitas explicações. Devido ao âmbito da nossa
pesquisa não nos propomos aqui realizar o inventário completo das hipóteses que têm vindo a ser
colocadas sobre este tópico. Resta-nos apenas enumerar algumas das propostas que mais se têm
destacado. Para além da perspectiva acima referida tem sido sugerida a possibilidade de Sinuhe ter sido
enviado por Senuseret I para o Retenu com o intuito de espiar os países vizinhos e aí contribuir para
manter os laços de vassalagem. A sua presença numa zona problemática num período politicamente
instável, como era o da sucessão de um rei, seria vital para assegurar a fidelidade dos chefes asiáticos.
Estas preocupações perpassam ao longo do texto através dos elogios tecidos em louvor do rei e no
conselho dado a Amunenchi para enviar uma missiva ao rei do Egipto declarando-se seu vassalo. A acção
desempenhada por Sinuhe também pode ser compreendida sob este prisma, já que o protagonista
desempenha o papel de anfitrião dos egípcios que passam pelas suas terras e contribui para pacificar os
nómadas da região. Em J. ORTIZ, Cuentos Egípcios, p. 98.
347
Era absolutamente impensável morrer ou ser sepultado no estrangeiro. A imortalidade e a proximidade
com os deuses implicava estar na proximidade do rei, do cosmos organizado. O terror de morrer no
estrangeiro corresponde a uma inquietação real que aterrorizava qualquer um pois, no estrangeiro,
nenhuma das predisposições rituais existentes no Egipto aí vigorava o que, aos olhos do egípcio, equivalia
a não poder usufruir da vida eterna. Em J. ASSMANN, The Mind of Egypt, p. 139. O conto levanta
questões interessantes relacionadas com a geografia cultural do antigo Egipto. No Império Médio, a
afirmação da administração real e o seu controlo do território motivou alterações na forma de o
representar. Para Antonio Loprieno, verificou-se a afirmação de uma geografia centrípeta, onde se destaca
a definição de um centro, protagonizado pela Residência, em relação à periferia. A periferia, por outro
lado, é organizada hierarquicamente em função da sua proximidade com a Residência. Esta concepção do
espaço, fortemente subsidiário da visão política do poder, traduz-se, nas narrativas, no movimento
sincopado dos protagonistas que se afastam do centro para a ele voltar. A delimitação da fronteira é outra
característica do espaço cultural desta época e traduz-se, na história de Sinuhe, no encontro com o
estrangeiro como o desconhecido do qual se tem medo. Ver A. LOPRIENO, La Pensée et l´Écriture:
Pour une analyse sémiotique de la culture égyptienne, pp. 64-69.
125
pois o rei, o próprio Senuseret I, lhe enviou uma missiva, garantindo-lhe que não o
castigaria pela sua fuga, uma vez que esta não dependeu dele, mas sim do seu coração:
Encontrei sua majestade no grande trono, num pavilhão dourado. Prostrado sobre o meu ventre,
perante ele já nem a mim mesmo me reconhecia. Este deus dirigiu-se a mim amigavelmente mas eu era
como um homem tomado pelo crepúsculo. O meu ba fugira, o meu corpo tremia, o meu coração já não
estava no meu corpo, já não distinguia a vida da morte. 351
348
A Aventura de Sinuhe, (217-222). Versão portuguesa baseada na versão francesa proposta por P.
LUINO, La véritable histoire de Sinouhé, p. 67.
349
O motivo da fuga pode, deste modo, ser procurado em dois planos de causalidade. No plano da
realidade literal, estes motivos relacionam-se com a trama política e estratégica do tempo, ao passo que
no plano do simbolismo, estes motivos se associam, de um modo vago, à vontade divina que rege e
orquestra todo o enredo. Esta vontade divina identifica-se, no final do conto, com o próprio rei que
parece, desde o início reger secretamente a teia de todo o enredo. Esta leitura enquadra-se na perspectiva
de Philippe Luino que admite a existência de dois planos de leitura deste conto. O plano literal narra uma
sequência de acontecimentos, ao passo que, no plano simbólico, o texto veicula um ensinamento que
permanece escondido ou ignorado e só se revela aos que tiverem a grelha de leitura necessária para o
decifrar. Em P. LUINO, La véritable histoire de Sinouhé, p. 6
350
Em B. MANLEY, Los Setenta Grandes Mistérios del Antiguo Egipto, p. 160.
351
A Aventura de Sinuhe, (312-317), versão francesa em P. LUINO, La véritable histoire de Sinouhé, p.
79.
126
casos estas perturbações estão relacionadas com acontecimentos excepcionais. No fim
da narrativa, foi a visão gloriosa do rei que desencadeou essa reacção, o que
corresponde a um motivo característico da ideologia real.352 Na verdade, a reacção de
temor, de autêntica perda de consciência que leva o coração a sair do corpo, era típica
na manifestação de um deus. O deus que se manifesta no fim da história não é senão o
próprio rei. No entanto, o que desencadeou esta perturbação no início da narrativa? O
texto é vago, mas a simetria dos eventos insinua que também no início poderia estar a
mão de um deus. E efectivamente, a dado momento da narrativa, Sinuhe refere:
Esta fuga que o servo fez, eu não a tinha em mente, ela não estava no meu coração, nem a tinha
imaginado. (...) Foi como o estado de um sonho, como se um homem do delta se visse em Elefantina, ou
um homem dos pântanos na Núbia. Não foi porque tivesse medo, ninguém me perseguiu, nem ouvi
palavras de acusação, nem se ouviu o meu nome na boca do acusador. Apesar disso, os meus membros
tremiam, os meus pés fugiam. O meu coração dirigia-me. O deus que ordenara esta fuga afastava-me para
longe.353
127
comando do coração é da mesma natureza da ordem real, razão pela qual se estabelece
um paralelo entre a revelação do coração e a revelação do rei. Neste sentido, o papel que
o coração desempenha na Aventura de Sinuhe é exactamente o mesmo daquele que é
atribuído na Teologia Menfita. O coração é o «rei» do corpo e através dele emana a
vontade divina que, apesar de benéfica, nem sempre é compreensível para o homem.
128
Capítulo IV: O coração e a iniciação
355
O conto foi encontrado numa única versão, num papiro que hoje se conserva no Museu Britânico com
o número 10183. O manuscrito foi redigido pelo escriba Enana, discípulo do escriba do tesouro Kagroi.
Ambos viveram no reinado de Seti II e do seu predecessor. De acordo com Gardiner, o conto teria sido
escrito ainda no tempo em que Seti II era príncipe herdeiro. Em A. GARDINER, Late Egyptian Stories, p.
IX.
356
Uma leitura metafórica de certos contos egípcios tem vindo a ser reconhecida ao longo das últimas
décadas. A narrativa que relata os encontros fortuitos entre o rei Neferkaré e o general Sisenet, datado do
Terceiro Período Intermediário, foi encarado por Jacobus Van Dick como um relato metafórico que,
através do encontro de Neferkaré com Sasenet, faz alusão ao percurso nocturno do sol. Neste conto, o rei
dirige-se à casa do general Sasenet na quarta hora da noite, permanece na sua companhia durante quatro
horas e regressa ao palácio quando ainda faltam quatro horas para a alvorada. De acordo com o texto,
este trajecto repete-se «todas as noites». Ora, durante este período de tempo o sol atravessava uma das
fases mais importantes na sua viagem pelo mundo inferior: encontrava o corpo de Osíris e reunia-se a
ele, tornando-se um só deus. «Ré repousa em Osíris e Osíris repousa em Ré» era a expressão desta união
através da qual Osíris era revivificado por Ré, tornando-se a sua manifestação nocturna, ao passo que Ré
renascia como resultado da sua união. Era neste momento secreto que o deus se regenerava e retomava a
re-criação do mundo. Este «grande mistério» da religião egípcia tinha, no referido conto, a sua
transposição para o plano narrativo. A união misteriosa de Ré e de Osíris foi transposta, na narrativa,
através da união homossexual entre o rei e o general. A natureza sexual deste encontro é inquestionável:
«Depois de Sua Majestade ter feito o que desejava com ele voltou ao palácio». A mesma expressão foi
usada nos textos alusivos à concepção real que une sexualmente Amon e a rainha-mãe. O intuito desta
transposição não é conhecido pois o fim do conto é ausente, mas é possível que também estivesse
subjacente uma leitura satírica, pois ao usar o nome de coroação de Pepi II, podia estabelecer-se um
equívoco com Chabaka, o dinasta invasor, cujo nome de coroação era o mesmo. Em J. VAN DIJK, «The
nocturnal wanderings of king Neferkaré», p. 393. Posener, por outro lado, não atribui ao conto qualquer
valor simbólico ou satírico, ver G. POSENER, «Le conte de Neferkaré et du general Siséné», Rd´É 11
(1957), p. 136. Outro exemplo de uma composição metafórica pode ser encontrado no Papiro Westcar
onde o passeio náutico do rei Sneferu com as belas raparigas pode ser visto como uma encenação da
barca de Ré na companhia de Hathor. Em J. VAN DIJK, «The nocturnal wanderings of king Neferkaré»,
p. 389.
129
transformações do deus poderiam ser comparadas às transformações do deus sol ao
longo do seu percurso.357 Embora as nossas interpretações não se sobreponham
totalmente às de Wolfgang, partilhamos com este autor o interesse pela leitura
metafórica do conto e, também nós, detectámos, alusões relativas ao circuito do sol mas
consideramos, no entanto, que a interpretação do conto transcende a metáfora do
percurso solar.
A trama narrativa
O conto apresenta duas partes nitidamente distintas que devem ter sido
justapostas para dar origem à composição que actualmente conhecemos. 358 Para além
de possuir uma estrutura narrativa totalmente distinta, a primeira parte do texto ignora
quase totalmente os nomes dos irmãos, os quais só são utilizados de forma constante na
segunda parte. Nesta parte da narrativa, é relatado um motivo característico e pitoresco
que lembra um episódio da história bíblica de José (Gn 39, 7-20). Vivendo na mesma
casa do irmão mais velho, Anupu, Bata é assediado pela cunhada. Sendo severamente
repreendida por Bata, a astuta mulher procura encontrar um meio de se livrar do rapaz,
acabando por instigar o marido a matar o cunhado. Vendo-se perseguido por Anupu,
Bata pede então a intercepção de Ré-Horakhti359 que faz «aparecer entre ele e o irmão
mais velho um grande caudal de água cheio de crocodilos», um motivo frequente da
literatura mágica. Em seguida, Bata corta o pénis e atira-o para a água onde é engolido
pelo peixe nar, nad (sic), evocando irresistivelmente o mito de Osíris e a Canção do
Pastor, onde o falo do deus Bata é comido por um peixe da mesma espécie. Então o
irmão mais novo disse a Anupu:
Se te lembras do mal, não te lembrarás também de algo bom que te tenha feito? Vai para casa e
guarda o teu rebanho porque eu não estarei onde tu estiveres. Vou para o Vale do Cedro. Mas um dia
virás ter comigo quando souberes que algo me aconteceu. Vou arrancar o meu coração e vou colocá-lo no
botão do cedro. Se o cedro for cortado e cair ao chão virás para o procurar. Se passares sete anos à
procura dele, não se desanime o teu coração. Quando encontrares coloca-o numa taça cheia de água e
357
WETTENGEL, W.,«Zur Rubrengliederung der Erzählung von den zwei Brüdern», GM 126 (1992),
97-106.
358
G. LEFEBVRE, Romans et Contes Égyptiens de l´Époque Pharaonique, p. 138. A versão integral do
conro é apresentada em Apêndice VI.
359
O texto usa a forma P3-R´-Hrhty.
130
viverei para me vingar dos que me enganarem. Saberás se alguma coisa me aconteceu quando te puserem
um jarro de cerveja na tua mão e ela fermentar. Então, se isto te acontecer, não te demores.360
Não saias para fora para que o mar não te leve. Eu não te poderia salvar pois sou uma mulher
como tu. E o meu coração está no botão do cedro. Mas se alguém o encontrar lutarei com ele.» Foi então
que ele lhe revelou o coração.361
Depois de Bata revelar o seu segredo,362 o mar e o cedro conspiram para levar
para o Egipto uma madeixa do cabelo perfumado da «filha de Ré-Horakhti»,
despertando o desejo do faraó, que envia emissários e soldados para a trazerem. Embora
Bata os matasse a todos, a mulher é seduzida pelo brilho das jóias que o faraó enviou
numa segunda expedição. Ascendendo à posição de grande esposa real, a mulher,
decidida a acabar com Bata, revela o segredo da sua força e aconselha o rei a cortar o
cedro. Avisado pelos sinais que o irmão lhe havia revelado, Anupu parte então para o
Vale do Cedro em busca do coração de Bata:
Passou três anos à procura do coração sem o encontrar. Quando o quarto ano estava a começar, o
seu coração desejou voltar para o Egipto e disse: «Amanhã vou partir». Assim disse no seu coração.
Quando anoiteceu e voltou um novo dia, foi caminhar junto ao cedro e passou o dia a procurar o coração
do irmão. Quando voltava, à noite, voltou uma vez mais a procurá-lo e encontrou um fruto. Voltou com o
fruto que era o próprio coração do irmão mais novo! Encheu uma taça com água fresca, colocou-o lá
dentro, e foi descansar como era habitual. 363
360
Papiro d´Orbiney, 8, versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 206. Versão hieroglífica em A.
GARDINER, Late Egyptian Stories, p. 17.
361
Papiro d´Orbiney, 10. Versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 207 e versão hieroglífica em A.
GARDINER, Late Egyptian Stories, p. 19.
362
Uma vez mais encontramos um paralelo bíblico na história de Sansão e Dalila.
363
Papiro d´Orbiney, 10. Versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 208 e versão hieroglífica em A.
GARDINER, Late Egyptian Stories, p. 23.
131
Quando chegou a noite, (14,1) o coração absorveu a água e todo o corpo de Bata estremeceu.
Começou então a olhar para o seu irmão mais velho enquanto o seu coração permanecia ainda na taça.
Então Anupu, o seu irmão, tomou a taça com água fresca onde permanecia o coração do irmão mais novo
e deu-lhe a beber. Então o coração voltou ao seu lugar e ele retomou a sua aparência.
Então abraçaram-se e falaram um com o outro.364
364
Papiro d´Orbiney, 14. Versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 209 e versão hieroglífica em A.
GARDINER, Late Egyptian Stories, p. 23.
365
E. BRUNNER-TRAUT, Cuentos del Antiguo Egipto, p. 308. A decisão dos deuses em encontrarem
uma companhia para Bata parecem replicar o episódio da criação da mulher no Génesis (2,18). Outros
elementos do conto encontram ecos na própria literatura egípcia. Os sábios que revelam ao faraó onde se
encontra a mulher divina parecem decalcar os magos da corte de Khufu, descritos no Papiro Westcar.
132
carácter divino assegura a imortalidade ao defunto.366 A unilítera t completa a redacção
do nome articulando-se, no entanto, com um amplo conjunto de determinativos que
compreendem dois signos evocativos do pão (X2 e X4)367 e os três signos verticais
indicativos do plural. A leitura deste conjunto hieroglífico pode ser tentada de várias
formas. Os determinativos que seguem a unilítera t podem ser omitidos368 resultando
assim um termo que constitui o feminino de ba. A partícula t pode ainda ser vista como
o termo «pão» (leitura esta reforçada pela presença dos determinativos alusivos ao pão)
e nesse caso o nome poderia significar «O pão do ba», ou seja, se quisermos tentar uma
tradução compreensiva, «O alimento do poder divino». A palavra bAt é também
homófona do termo «arbusto» ou «molho de trigo» e apresenta uma grande
proximidade com a palavra bAAwt, «virilidade».369 Estes termos, conotados com a
fecundidade, parecem enquadrar-se nas duas leituras propostas para o nome de Bata são
reforçadas através da comparação com dados provenientes de outras fontes textuais.
Susan Hollis, por exemplo, compara o herói do Papiro d´Orbiney com o deus
mencionado na Canção do Pastor, redigida em mastabas da V ou VI dinastia, a qual faz
referência a uma personagem com o nome do herói do Papiro d´Orbiney :
O texto foi redigido entre cenas campestres mas as conotações funerárias não
estão completamente ausentes na medida em que, após a redacção dos signos unilíteros
que compõem o nome de Bata, foi figurado o determinativo do carneiro deitado,
indicando o carácter funerário do deus.371 De acordo com a referida autora, Bata era um
deus pastor, uma manifestação de Osíris venerada pelos camponeses. Como indica o
366
Trata-se do signo G 29 da lista de signos hieroglíficos proposta por Gardiner. Ver A. GARDINER,
Egyptian Grammar, p. 545.
367
Ver Idem, pp. 531-532.
368
Ver Idem, p. 531.
369
Cf. R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 77.
370
Canção do Pastor, em S. HOLLIS, «On the nature of Bata, the hero of the Papyrus d´Orbiney», Cd´É 59
(1984), p. 248.
371
Idem, p. 250.
133
contexto iconográfico em que o texto foi redigido, a canção seria cantada durante as
colheitas para o «pastor do Ocidente».372
Estes dados que qualificam Bata como um deus campestre parecem ter sido
retomados no Conto dos Dois Irmãos, no episódio da emasculação de Bata e na ingestão
do seu pénis pelo peixe nar (nar).373 Este acontecimento pode também ser visto como
uma evocação da circuncisão, que era realizada durante as festividades campestres
relacionadas com a fecundidade.374 O ritual da circuncisão poderia, deste modo,
enquadrar-se no âmbito de festividades populares celebradas em honra do deus que
tutelava os ciclos da agricultura já que se estabelecia uma relação entre o falo e a
semente.375 O próprio nome de Bata pode ser visto como uma alusão à circuncisão uma
vez que apresenta uma certa semelhança com o termo «prepúcio», bah (bAH).376
Também a caracterização de Bata patente no Papiro d´Orbiney parece reforçar a
ideia de estarmos perante o mesmo Bata da Canção do Pastor. O jovem herói é descrito
com qualidades invulgares para um simples humano pois executava, sem sinais de
cansaço, todos os trabalhos da casa e do campo:
Na verdade este jovem era belo (nefer). Não havia ninguém como ele em toda a terra e a força de um deus estava em si.377
372
Idem, p. 251.
373
Ibidem.
374
No Império Antigo, uma festividade acompanhava a circuncisão. Em certas representações, a
cerimónia é feita num recinto e envolve um cortejo de músicos acompanhados por tocadoras de
instrumentos e bailarinas acrobáticas. Estas dançarinas apresentam uma trança com uma bola de argila na
extremidade. Para Blackman esta bola encerrava o prepúcio e o sangue da operação misturada com a
terra onde o sangue caíra. Esta festividade é representada em associação às festas da colheita, com as
quais são representadas em paralelo. M. STRACKMANS, «Les fêtes de la circoncision chez les anciens
Égyptiens», p. 293. Num relevo proveniente de uma mastaba do Império Antigo conservado no Museu
Britânico (BM 994) outro cortejo de bailarinas que usam a mesma trança. Atrás delas seguem vários
indivíduos onde se destaca um vulto com uma máscara de leão semelhante ao rosto do deus Bés. Ao lado
deste grupo apresentam-se quatro rapazes encerrados num recinto onde parecem estar cativos. Um deles
olha para o exterior enquanto um outro se tenta escapulir. Para M. Capart tratar-se-ia de uma festa da
circuncisão: os rapazes eram submetidos a uma prova física para evidenciar a sua destreza física. O
relevo parece ilustrar este simulacro de captura e fuga. Inserido neste contexto, a máscara de leão pode
estar relacionada com a circuncisão que assim se reportava ao simbolismo obstétrico característico deste
deus. Idem, p. 294
375
O falo do deus seria, deste modo, uma evocação da semente e o lançamento do pénis à água,
mencionado no conto e na Canção do Pastor, seria uma alusão à sementeira. Em S. HOLLIS, «On the
nature of Bata, the hero of the Papyrus d´Orbiney», Cd´É 59 (1984), p. 254. A Canção do Pastor poderia,
deste modo, ser cantada nas festas da sementeira, às quais se juntavam, certamente com intuitos
propiciatórios, a prática da circuncisão dos jovens.
376
Ver L. ARAÚJO, Estudos sobre Erotismo, p. 175.
377
Papiro d´Orbiney, 14. Versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 204 e versão hieroglífica em
A. GARDINER, Late Egyptian Stories, p. 10.
134
O texto é claro, portanto, quanto à afirmação do carácter divino de Bata. Para
além de ser «bom», ou «belo», Bata falava com os animais e fazia prosperar o seu gado.
Trata-se, sem dúvida, da caracterização de Bata como um deus que poderíamos
qualificar como um «bom pastor». O herói do Papiro d´Orbiney encontra-se, deste
modo, em clara continuidade com as características do deus descrito na Canção do
Pastor.378 Se dúvidas restassem quanto às conotações divinas de Bata, a escrita
hieroglífica encarregar-se-ia de as dissipar, pois o redactor do texto usou um
determinativo que torna claro o estatuto divino de Bata e que consiste num estandarte
encimado por um falcão (G7). O determinativo esclarece que não estamos perante um
simples homem (cujo determinativo consiste num homem acocorado, o vulgar signo
A1) mas sim um deus.379 Em doze ocasiões o próprio texto repete, a propósito de Bata,
a seguinte frase: «a força de um deus estava nele». 380
Sabemos, com efeito que Bata era um deus local muito antigo, da XVII sepat do
Alto Egipto, associado à fertilidade, à agricultura e ao renascimento. 381 É sabido que,
pelo menos a partir do Império Novo, Bata manteve uma relação sincretista com Set,
não apresentando, contudo, as conotações pejorativas que este deus viria a consolidar a
partir da Época Baixa.382
As referências ao deus Bata do Papiro Jumilhac testemunham uma identificação
entre Bata e Set em que as conotações negativas, tão típicas da caracterização tardia de
Set, se repercutiram também na qualificação negativa de Bata, o que não acontecia nas
alusões anteriores a este deus. Ainda assim o texto e a vinheta que evocam o mito de
378
Para Pierre Grandet, Bata é um deus com forma de touro, denominado Saka. Ver P. GRANDET,
Contes de l´Égypte ancienne, p. 176, nota 1.
379
O mesmo determinativo é usado para redigir o nome do irmão, Anupu.
380
Em G. LEFEBVRE, Romans et Contes Égyptiens de l´Époque Pharaonique, p. 142.
381
As características agrícolas do deus Bata podem estar na origem da sua caracterização como
divindade funerária. Vários aspectos apontam para o papel funerário do deus: o determinativo do carneiro
mumiforme, usado na redacção do nome do deus e o próprio simbolismo da semente favorece a
proximidade com o contexto funerário. Em S. HOLLIS, «On the nature of Bata, the hero of the Papyrus
d´Orbiney», Cd´É 59 (1984), p. 255.
382
Ao longo do período ramséssida Set gozou de um enorme prestígio já que era o deus patrono da cidade
de Auaris, de onde era originária a XIX dinastia. O nome de Seti, justamente o nome do rei sob o qual foi
redigido o Papiro d´Orbiney, significa «O que pertence a Set». Vários reis desta dinastia manifestaram
uma devoção particular por Set, como o próprio Seti I que, antes de ser coroado, parece ter sido o sumo
sacerdote deste deus em Auaris. Em I. SHAW, The Oxford History of Ancient Egypt, p. 294. O deus Set
cultuado em Auaris estava estreitamente associado aos poderes do deus cananita Baal, os quais se
reportavam largamente aos ciclos da natureza e da fertilidade. É esta proximidade com o deus Baal que
explica o paradoxo, tendo em conta os papeis tradicionalmente atribuídos a Set e a Osíris, de uma figura
como a de Bata que parece, à maneira de Baal, reunir as duas facetas separadamente atribuídas a Osíris e
Set. Sobre a caracterização de Baal e a sua identificação com Set e Osíris ver J. RAMOS, «Baal»,
Dicionário do Antigo Egipto, p. 133.
135
Bata no Papiro Jumilhac apresentam elementos muito próximos de certos episódios do
Conto dos Dois Irmãos.383
Apesar de, ao longo do tempo, a caracterização de Bata ter variado, o carácter
predominante do deus parece ter sido o de uma divindade ligada à fertilidade, à
fecundidade masculina e aos ciclos da natureza de morte e ressurreição. A associação ao
deus Set, facilitada pela identificação do deus com Baal, fomentada a partir do culto de
Set sediado em Auaris, foi certamente estabelecida a partir da absorção dos atributos de
Baal relacionados com a virilidade e a fertilidade. Assim enriquecido com as qualidades
de Baal, o deus Set tinha um denominador comum com Bata, o velho deus da
agricultura com contornos tão próximos do mito de Osíris. A respeitabilidade que Set
gozou durante o período ramséssida parece ter derivado justamente da sua identificação
com as propriedades benevolentes e apotropaicas de Baal que reunia atributos de Set,
Osíris e Hórus. No entanto, à medida que a religião egípcia foi efectivando uma cisão
maniqueísta entre Set e Osíris, o deus foi perdendo estas conotações positivas, o que
explica a deterioração da caracterização de Bata patente no Papiro Jumilhac.
As mutilações de Bata
136
vivo quer para um homem morto. Tal como acontecia na Canção do Pastor, a
amputação do falo pode ser uma alusão à circuncisão aqui encarada como um ritual de
passagem que assinala um novo ciclo na vida de Bata.384 Se for esse o caso, importa
clarificar o sentido deste ritual no contexto simbólico da trama narrativa.385
Tudo indica que a remoção do prepúcio tenha sido generalizada,386 constituindo
um requisito de pureza387 e, provavelmente, um factor propiciatório da virilidade. Do
ponto de vista religioso, o ritual significava, antes do mais, a passagem para a vida
adulta e a capacidade para exprimir os poderes do ka. O que se passa no Conto dos
Dois Irmãos, no entanto, vai muito para além deste significado.
Depois de cortar o falo, Bata arrancou o coração, criando uma nova amputação
cujo significado também deve ser compreendido. Toda a literatura funerária veicula o
profundo pavor em «arrancar o coração». Tanto quanto sabemos este é o único caso em
que a remoção do coração se traduz no reforço dos poderes do homem. Deste modo, o
gesto só pode ser simbólico. «Arrancar o coração» devia ter, no plano da consciência, o
mesmo objectivo que teria, no plano corporal, a circuncisão do falo, ou seja, a
purificação. No conto, esta purificação «mental» estava relacionada com o exílio no
Vale do Cedro. A árvore ache (ac), que aqui designaremos, por razões de comodidade,
por «cedro», era o núcleo da existência de Bata: foi junto dele que ele fez a sua casa e
foi nele que depositou o seu coração.388 A purificação da consciência de Bata passa
384
Já vimos que a circuncisão estava associada a rituais agrícolas que celebravam a fertilidade da terra. O
prepúcio e o sangue resultantes da amputação seriam provavelmente atirados à terra com o intuito
simbólico de a fertilizar. O intrigante é que tanto a Canção do Pastor como o Conto dos Dois Irmãos
rodeiam este acto com conotações funerárias. Em parte esta associação pode ser explicada através dos
sacerdotes responsáveis pela operação, os «servos do ka», ou seja, os sacerdotes funerários. O papel
ritual da circuncisão estava ligado ao horizonte funerário, através do ka, o poder da vida. O sacerdote do
ka cumpria o ritual da circuncisão para assinalar o início da idade reprodutiva do rapaz, altura em que o
seu ka já se podia manifestar sexualmente. Neste sentido, o sacerdote do ka velava pelo poder de vida
tanto no Além como na terra. Em E. BAILEY, «Circumcision in ancient Egypt», BARCE 7 (1996), p. 18.
385
O facto da amputação do sexo mencionada na narrativa ser uma alusão à circuncisão depreende-se do
facto de Bata manifestar a sua potência viril como marido da mulher divina. A designação «touro da
Enéade» confere-lhe invulgares atributos viris. Em G. LEFEBVRE, Romans et Contes Égyptiens de
l´Époque Pharaonique, p. 151, nota 48.
386
Aparentemente todos os jovens passavam por este ritual. Vários testemunhos escritos comprovam a
ideia de uma generalização desta prática. O Papiro Ebers, por exemplo, apresenta um remédio para tratar
uma ferida provocada pela circuncisão: «Um remédio para o prepúcio que foi cortado e que sangra:
mel...fruto de sicómoro ...misturar e aplicar»(88.10-12). O sacerdote leitor Uha, por outro lado, referia:
«Quando fui circuncidado com 120 homens, ninguém foi ferido, ninguém foi esfolado». Mereri, superior
dos sacerdotes e tesoureiro real, também assegura que: «enterrei os idosos e circuncidei os jovens». Em
E. BAILEY, «Circumcision in ancient Egypt», BARCE 7 (1996), p. 20.
387
Um relato afirma que, na XXV dinastia, quando o séquito do rei etíope Piankhi chegou ao palácio
real, os homens foram divididos entre dois grupos, os circuncidados, denominados «puros», wab, e os não
circuncidados, designados como «sujos», ama. Estes não entraram no palácio. Em Idem, p. 23.
388
Para Lefebvre a escolha da árvore pode relacionar-se com a forma do seu fruto que apresenta uma
configuração cordiforme e cresce habitualmente junto ao mar. Em G. LEFEBVRE, Romans et Contes
137
necessariamente por entender o carácter desta árvore. Em primeiro lugar parece óbvio
que se trata de uma árvore sagrada. Tendo em conta as inúmeras referências solares do
conto, o cedro constitui certamente um símbolo alusivo ao sol. Nas crenças funerárias
as árvores eram um importante símbolo de ressurreição389 razão pela qual, em certas
vinhetas do «Livro dos Mortos», são representadas em ligação com o sol nascente. Este
significado funerário da árvore levou a uma proximidade com o simbolismo do ataúde,
em geral feito de madeira. A árvore e o ataúde desempenhavam a mesma função:
acolher o defunto, regenerá-lo e preparar o seu renascimento identificado com o sol.
Sob este simbolismo genérico, estende-se, no entanto, um significado mais
específico que decorre da espécie de árvore mencionada em concreto. No caso da
árvore ache, a literatura funerária atribuía-lhe fortes conotações solares. Um texto
funerário tardio apresenta a seguinte caracterização dos poderes mágicos da árvore
ache:
«Ele (o defunto) invoca-te (a locução dirige-se ao cedro) para te pedir a resina, ouves o seu
apelo na Duat para o ajudares a abater os seus inimigos com a tua chama. Acolhe o seu corpo que saiu de
390
ti, torna o seu odor agradável com as (essências) que criaste(...)».
Égyptiens de l´Époque Pharaonique, p. 147, nota 34. Loret, no entanto, deixa bem evidente que o
significado da árvore era mais amplo e possuía uma forte conotação solar. Ver V. LORET, «Quelques
notes sur l´arbre ach», ASAE 16 (1916), pp. 33-51
389
Cf. M. LURKER, The Gods and Symbols of Ancient Egypt, pp. 123-124.
390
Segundo Livro das Respirações, Texto I. Em J.C. GOYON, Rituels Funéraires de l´Ancienne Egypte,
p. 240. Aparentemente o material com o qual era feito o ataúde revestia-se de uma importância simbólica.
Na verdade, o ataúde era encarado como a própria árvore. Nos Livros das Respirações alguns textos são
dedicados aos vários tipos de ataúdes que se distinguem pelas madeiras que são utilizadas na sua
confecção. Reproduzimos aqui um excerto do texto relativo à função do ataúde de cedro.
391
Ver V. LORET, «Quelques notes sur l´arbre âch», ASAE 16 (1916), pp. 33-51.
138
À luz destes dados, colocar o coração na árvore sagrada pode ser interpretado
como um estado de transformação em que Bata se coloca sob a acção de uma entidade
divina que, à semelhança de um ventre, regenera, protege e prepara o nascimento de
uma nova consciência identificada com o sol. A escolha da árvore ache prende-se
certamente com o forte carácter solar da árvore. A resina, o suor de Ré, revestia o
coração de Bata com a essência solar, que transformava e purificava a sua consciência,
e o fogo da árvore protegia-o dos ataques dos inimigos. Esta árvore era, deste modo,
uma materialização do próprio sol.392 Ao colocar o coração no cedro, Bata integrava a
sua mente numa totalidade mais vasta, abandonando as referências limitadas da sua
consciência pessoal: só assim podia renascer purificado e identificado com o sol.393
A amputação do falo e do coração de Bata lembra ainda a tradição cosmogónica
heliopolitana que concebia duas modalidades de criação: a do sexo e a do coração
(mente). Para a grande maioria dos humanos a circuncisão consagrava a procriação
através do sexo, a única via que poderiam adoptar para «imitar» o criador. Para Bata,
no entanto, esta consagração estendia-se ao coração, à sua consciência, para que
também pudesse criar no plano mental, como o deus Atum.
392
Colocar o coração no botão do cedro, consistia, deste modo, em integrar a consciência numa totalidade
mais vasta, simbolizada pelo cedro, uma árvore particularmente associada à imortalidade e com um forte
estatuto divino. A árvore, ligava os vários planos do cosmos: o mundo inferior, a terra e o céu, tal como o
sol o fazia com o seu percurso diário. O cedro pode assim ser perspectivado como uma evocação da
grande árvore cósmica, uma manifestação de Ré-Horakhti, a divindade mais frequentemente citada ao
longo do conto R. WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 117. Lefebvre enfatizou oportunamente o
carácter vincadamente solar do imaginário do conto. Embora apresente frequentes alusões a deuses
solares como Pré-Horakhti, Aton, a Enéade e outros, o texto é omisso em relação a divindades tão
importantes como Amon. Ver G. LEFEBVRE, Romans et Contes Égyptiens de l´Époque Pharaonique, p.
147. O motivo da árvore sagrada encontra-se abundantemente documentado na iconografia real e
funerária. Ver Anexo I A 1-7.
393
Esta concepção do papel regenerador da árvore sagrada é um traço característico das crenças
funerárias egípcias. O sicómoro sagrado, por exemplo, era localizado no horizonte oriental e estava
estreitamente ligado ao renascimento do sol. Em A. ZINGARELLI, «Some considerations about the
water offered (poured) by the tree-goddess at TT 79», em A. Amenta (ed) L´ Acqua nell´antico Egitto, p.
386. Ver Anexo I A 7.
139
faraó chegaram ao Vale do Cedro, Bata chacinou-os a todos demonstrando uma força
sobre-humana. A potência sexual, a capacidade para abater os animais selvagens (a
personificação do caos) e a força sobre-humana que o colocava acima de qualquer outro
mortal eram precisamente os eixos em que se alicerçava o carisma real e definiam a
natureza divina do rei.394
Era a árvore sagrada que conferia a Bata o seu poder sobre-humano e os seus
atributos régios. O abate do cedro introduz, pela primeira vez, a morte no conto. O
interessante é constatar que as duas mortes seguintes não são verdadeiramente
consideradas como tal. Sem qualquer dificuldade Bata abandonou a forma do touro
para se transformar em duas árvores persea e, em seguida, na criança real. O único
momento crítico, em que Bata permanece inerte e impotente, é o do abate do cedro. É
neste momento que se verificou a verdadeira morte de Bata e é por essa razão que o
papel de Anupu só aí se revela essencial.
A função de Anupu
O papel de Anupu, como o seu próprio nome indica, decalca a função do deus
homónimo. O conto refere que Anupu passou quatro anos a procurar o coração de Bata,
o que constitui uma alusão simbólica a um ciclo de completude, significando antes do
mais que um tempo de transformação chegou ao seu termo.395
A restituição do coração evoca o ritual da mumificação em que o órgão era
restituído à múmia. Muito significativo é que, uma vez «colocado o coração no seu
lugar, ele retomou a sua aparência», um motivo habitual dos textos funerários do antigo
Egipto.396 A função simbólica de Anupu é, portanto, a de desempenhar o papel de
Anúbis, o deus embalsamador e de velar pela reanimação de Bata. No entanto, a função
do deus não se esgotava neste papel. Anupu, Inpw, deriva da raiz inp que significa
«estar deitado sobre o ventre». Redigido com o determinativo de criança, a expressão
394
M.A. BONHÊME e A. FORGEAU, Pharaon: Les secrets du Pouvoir, pp. 210-216.
395
R. WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 133.
396
Na literatura funerária, a restituição do coração tinha o poder de conferir a unidade ao corpo do
defunto, incluindo a reintegração do ka e do ba. Assim refeita a unidade do defunto, o coração podia
seguir o processo de transformação que conduzia à sua purificação e à identificação com o princípio
solar: «Ele (Anubis/Khentimenti) permite que executes todas as transformações segundo o desejo do teu
coração, pois fazes parte do seus favoritos, todos os dias : os teus braços são puros, as tuas pernas são
puras e o teu coração possui maet sem nenhuma mancha.» F. HERBIN, Le Livre de parcourir l´éternité,
p. 70
140
também era usada para designar a criança real, o jovem príncipe. 397 Neste contexto,
porém, o termo inpw só era usado para designar os príncipes que efectivamente
ocuparam o trono, designando o período de vida anterior ao reinado. Deste modo, a
utilização do termo era sempre retrospectiva e referia-se ao período de vida do príncipe
anterior à coroação.398 O papel de Anupu pode, deste modo, não se relacionar
especificamente com o âmbito funerário e constituir, isso sim, uma referência ao tempo
de preparação de Bata que o conduziu à sua transformação em rei do Egipto.
O ritual da coroação, tal como o ritual funerário, pressupunha, com efeito, uma
transformação, entendida como um segundo nascimento.399 Este segundo nascimento
requeria uma fase de gestação tutelada por Anúbis, o deus negro, que desempenhava o
papel de protector e de guia.400 Era certamente por este motivo que o nome do deus era
atribuído, como título, ao príncipe herdeiro, representando o período de transformação
que antecedia o seu nascimento como entidade divina.401
A missão de Anúbis junto do rei era, deste modo, a de assegurar o seu
renascimento, função essa que se desdobrava em dois planos. Podia fazê-lo na vida
terrena, preparando-o para o segundo nascimento como nefer netjer, e podia fazê-lo no
Além, preparando-o para nascer como netjer áa, a sua forma eterna. Deste modo, tanto
o ritual funerário como o ritual da coroação partilhavam de um mesmo significado
«obstétrico»: ambos se reportavam a um renascimento para a vida divina.
Estes dados indicam que a manifestação solar do rei requeria uma longa
transformação durante a qual o rei morria para a sua natureza terrena. No conto, este
processo começou a partir do momento em que Bata arrancou o sexo e o coração, mas
intensificou-se a partir do abate do cedro. É aí que Anupu entra em cena para completar
a transformação.
Detectam-se, através desta sequência, duas fases no processo de transformação
de Bata. Verifica-se, em primeiro lugar, uma fase activa e solar, dominada pelo cedro,
em que Bata «oblitera» a sua consciência pessoal e a integra numa totalidade mais
vasta. Em segundo lugar, verifica-se uma fase passiva e negra, em que Bata permanece
397
N. GUILHOU, «Les parties du corps dans les textes de la pyramide d´Ounas: pensée religieuse et
pratiques funéraires», p. 223
398
Ibidem.
399
As representações da coroação real simbolizavam este nascimento através do aleitamento do faraó por
uma divindade feminina, em geral, Ísis.
400
Ibidem.
401
A própria iconografia do deus e a sua representação com a cabeça de canídeo constitui uma alusão à
«forma secreta»: «Rei, cuja forma é misteriosa como a de Anúbis, recebe o teu rosto de canídeo». Pir. §
896, Versão inglesa em R. FAULNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 157.
141
inerte inteiramente dependente dos cuidados de Anupu. Esta fase termina no momento
em que o coração é imerso em água:
Voltou com o fruto que era o próprio coração do irmão mais novo. Encheu uma taça com água
fresca (qbH), colocou-o lá dentro e foi descansar como era habitual. Quando chegou a noite, o coração
absorveu a água e todo o corpo de Bata estremeceu. Começou então a olhar para o seu irmão mais velho
enquanto o seu coração permanecia na taça. Então Anupu, o seu irmão, tomou a taça com água fresca
onde permanecia o coração do irmão mais novo e deu-lhe a beber. Então o coração voltou ao seu lugar e
ele retomou a sua aparência.402
Transformações
402
Papiro d´Orbiney, 14. Versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 208.
403
Ver C. LALOUETTE, L´Empire des Ramsès, p. 464.
404
É precisamente este touro que é representado no capítulo 109 do «Livro dos Mortos», cuja vinheta
representa o touro posicionado na barca solar e encimado pela estrela da manhã, constituindo com Ré-
Horakhti, os «bau do Oriente». Em N. GUILHOU, «Les parties du corps dans les textes de la pyramide
d´Ounas: pensée religieuse et pratiques funéraires», p. 227. Curiosamente, Guilhou reconhece em S.
Cristóvão, portador da criança divina, uma reminiscência de Anúbis. Em Ibidem, nota 16.
142
Oriente sob a forma de um touro, dois sicómoros e a estrela da manhã. Tratam-se das
formas anunciadoras do renascimento do sol.405
As metamorfoses de Bata identificam, deste modo, o herói com o sol nascente e
descrevem as transformações que o conduzem de novo para a vida, sob a forma da
criança divina, o príncipe herdeiro. De notar que, no «Livro dos Mortos», os bau do
Oriente representados na vinheta do capítulo 109, antecedem directamente a entrada do
defunto nos Campos de Iaru, o paraíso. O conto atinge, deste modo, uma nova situação
de equilíbrio, onde Bata, renascido e protegido pela sua condição divina, pode usufruir
em pleno de uma vida pacífica.
As metamorfoses de Bata chamam a atenção para a utilização subliminar das
imagens do «Livro dos Mortos» na teia narrativa. Se atentarmos a todo o conto
encontramos outras «vinhetas» desta composição transpostas para a narrativa. Como
veremos, as duas mulheres que causam a infelicidade de Bata poderiam ser as Duas
Meret, que o capítulo 37 procurava repelir. A vinheta do capítulo 62 ilustrava
frequentemente uma árvore sagrada com um lago, os dois principais elementos do Vale
do Cedro.406 A colocação do coração no cedro lembra irresistivelmente a vinheta do
capítulo 64, onde o defunto adora uma grande árvore de onde emerge o sol.407 A
devolução do coração pela mão de Anupu, sem margem para dúvidas, lembra a vinheta
do capítulo 26. Nesta óptica, o enredo remete para momentos chave do percurso do
defunto no Além: a saída para o dia (capítulo 64), a reanimação (capítulo 26), a
regeneração do sol e a sua manifestação triunfante no horizonte oriental (capítulo 109).
A segunda vida de Bata, como príncipe herdeiro, pode ainda ser vista como a evocação
do capítulo 110, a vivência do paraíso e da felicidade.
No entanto, os episódios do «Livro dos Mortos» são aqui evocados, não para
narrar a vida de Bata no Além, mas sim para dar conta da sua evolução sobre a terra. A
vivência do maravilhoso que rodeia a personagem de Bata reside justamente na sua
capacidade para manifestar na terra os fenómenos que habitualmente eram associados à
Duat, o mundo dos deuses e dos mortos. Esta capacidade é justamente o sinal distintivo
da sua natureza divina que o distingue dos demais humanos. É precisamente esta
405
Para Pierre Grandet, os dois sicómoros encarnam os deuses Chu e Tefnut. Ver P. GRANDET, Contes
de l´Égypte ancienne, p. 176, nota 12. Ver Anexo I B 1-3.
406
Ver Anexo I A 4-5.
407
Ver Papiro de Neferuebenef, em S. RATIÉ, Le papyrus de Neferoubenef (Louvre III 93), pl. XII. Ver
Anexo I A7.
143
capacidade que distingue o faraó, razão pela qual, no nosso entender, a narrativa
constitui uma alusão ao «nascimento» divino do faraó.408
A geografia simbólica
408
A afirmação de Hornung enquadra-se perfeitamente nesta ideia: «No Egipto (...) qualquer homem
pode tornar-se um “deus” – os mortos são vistos geralmente como “deuses”, na medida em que, depois da
morte, ocupam a mesma esfera ultraterrena dos deuses propriamente ditos. Pensou-se que, de início, que a
palavra egípcia que significa “deus” (netjer) designaria apenas o soberano defunto, mas o que distingue o
faraó de todos os outros homens é precisamente o facto de , já em vida, ser um deus, poderíamos dizer o
«deus na terra”. E. HORNUNG, «O Rei», em S. DONADONI (ed), O Homem Egípcio, p. 252.
409
O mesmo já vimos acontecer com Sinuhe e também aqui o herói chega a estas paragens por
imperativos relacionados com o coração. Aí encontra a riqueza e defronta-se com o gigante que, à
maneira de uma prova de Hércules, manifesta de forma inequívoca a sua força que é, no fim de contas,
uma lição sobre o teor da verdadeira força do homem que não consiste na força bruta da besta, mas sim na
sagacidade e na inteligência. Também o príncipe predestinado vai para a Ásia «seguindo o desejo do seu
coração» para aí se enfrentar o seu próprio destino. Neste caso, o amor parece desempenhar uma função
importante já que a princesa, uma espécie de percursora de Ariane, parece velar de forma protectora pelo
príncipe egípcio.
410
O autor do manuscrito conhecido é Enena, que viveu nos reinados de Merenptah and Siptah.
411
A valorização simbólica da Núbia relaciona-se com a inundação e com a associação do rei aos poderes
regeneradores da água. No período ramséssida a associação do rei às divindades da cheia contribuiram
para a afirmação do carisma real e para a definição da natureza divina do faraó. Sobre o papel dos
templos da Núbia. Ver C. NOBLECOURT, Le Secret des Temples de la Nubie, p. 263-272.
144
domínio sobre as feras do deserto e os seus inimigos.412 Mais uma vez a narrativa
remete para a iconografia, desta vez, para as representações reais onde o faraó esmaga
os inimigos e os animais selvagens. Ora estas representações relacionam-se com a
afirmação da capacidade do rei para instalar a ordem e dissolver o caos. É justamente
esta a natureza da prova iniciática de Bata cuja vida depende do cedro, símbolo do Sol,
e do mar, símbolo do Nun. É o papel do mar como manifestação do Nun que explica
um interdito difícil de compreender: a mulher não se pode aproximar do mar pois Bata
não a poderia salvar. No entanto, em terra, Bata não tinha dificuldade em manifestar a
sua força.
Após o renascimento de Bata, é o país de Kuch que assume mais destaque. Na
ideologia real do período ramséssida, esta região estava associada à regeneração dos
poderes reais e à cheia, oferecendo o enquadramento simbólico apropriado para
sinalizar o renascimento do herói deificado e identificado com o sol que garante outra
das principais funções reais: a de assegurar os grandes ciclos cósmicos que trazem ao
Egipto a fertilidade e a vida.
Os antagonistas e os adjuvantes
412
Estas características aproximam o Vale do Cedro do imaginário das florestas de papiro, locais
considerados como um enclave da Duat e das forças do Nun, apresentando-se, por isso, imbuídos de uma
certa sacralidade. O Vale do Cedro desempenharia nesta narrativa o papel que as florestas de papiro
desempenharam no mito de Hórus: retiraram e isolaram o herói protegendo-o do resto do mundo. Foi aí,
no segredo total, que Ísis «iniciou» (bes) Hórus, quando «o seu braço se tornou forte». Ver Em J.-M.
KRUCHTEN, Les Annales des Prêtres de Karnak, p. 163.
413
Ver P. BARGUET, Livre des Morts, p. 79 e p. 287. Não obstante estas deusas são frequentemente
identificadas com outras divindades femininas de carácter benevolente, como as Duas Maet ou Ísis e
Néftis. A equivalência entre estas deusas é clramente referida no capítulo 125: «Eu sou o das duas
raparigas, o das Duas Meret, o senhor das Duas Maet». Ver Idem, p. 158.
145
Maet que fazem instalar a harmonia e a justiça. A sua acção malévola é o motor de
toda a narrativa e a origem do dinamismo narrativo. Sem a sua intervenção, a
progressão do herói estaria bloqueada, razão pela qual, especialmente no caso da
mulher de Bata, a sua actuação parece receber a cumplicidade dos deuses que
favorecem a intriga.
Este aspecto ambíguo da acção divina é especialmente visível no cedro que
se torna cúmplice do mar, roubando à bela esposa de Bata uma madeixa de cabelos
que as ondas se encarregam de levar para junto do palácio. Deste modo, a acção
ignominiosa da mulher de Bata só se manifesta graças à urdidura «cósmica» tecida
pelo mar e pelo cedro. A desgraça que em seguida acontece parece, deste modo, ser
favorecida pela própria árvore que garantia a vida do herói, o que torna as sucessivas
mortes de Bata numa espécie de sacrifício imprescindível para atingir um fim
desejado pelos deuses.
Para além de Anupu, o principal adjuvante de Bata, e do cedro, a Enéade e
Ré-Horakhti parecem velar especialmente sobre o destino do jovem.
414
Em L. ARAÚJO, Mitos e Lendas do Antigo Egipto, p. 208.
415
Ver N. REEVES, Akhenaton, p. 211.
146
indivíduo para o exercício da função sagrada da realeza. 416 Deste modo, podemos pelo
menos admitir a hipótese que o Conto dos Dois Irmãos constituía um relato metafórico
que ilustrava a transformação do príncipe em netjer nefer, o deus belo, ao longo de um
elaborado processo. O coração colocado no cedro simbolizaria, como refere Lalouette,
a vida divina e eterna, que confere ao homem um estado de consciência mais alargado,
por contraponto à existência comum.417
A «morte» do príncipe para a sua vida anterior requeria uma fase solar e activa,
simbolizada pela árvore, e uma fase passiva e negra, onde se destacava a intervenção de
Anupu, que possibilitava a conclusão do ciclo de transformações e a manifestação da
natureza divina do príncipe. Depois de passar pela «prova iniciática», o rei podia assim
manifestar-se como faraó do Egipto, plenamente identificado com Hórus.418
416
Parte destas considerações foram por nós apresentadas em R. SOUSA, «Heart and Water in the
Religious Anthropology of Ancient Egypt», em A. Amenta (ed.) L´ Acqua nell´antico Egitto, pp. 375-
380.
417
Em C. LALOUETTE, L´Empire des Ramsès, p. 465.
418
A deificação do rei segue, no conto, uma sequência cuidadosamente diferenciada ao longo do texto.
Em primeiro lugar ocorre um processo de purificação e «morte» para a vida terrena que se iniciava com a
«circuncisão» e progredia com a colocação do coração no cedro, símbolo da transformação da
consciência através da sabedoria e da identificação com o Sol. A reanimação, assinalada pelos rituais de
lustração assinalava o segundo nascimento do rei onde a centelha divina já se manifestava. Entre a
lustração e a coroação, os principais rituais empreendidos na entronização real, o rei devia ainda
identificar-se com três manifestações do sol nascente: o touro, os sicómoros do oriente e a criança divina.
419
A. LOPRIENO, La Pensée et l´Écriture, p. 14.
147
No plano textual, a intocabilidade traduz-se no inefável, na impossibilidade de
pronunciar ou conhecer o divino.420 No terceiro vector da relação com o sagrado, o da
pureza ritual, a acessibilidade ao divino faz-se a partir de regras de pureza. A santidade
e a pureza afirmam-se, neste vector, no veiculo para o encontro com o divino.
Em qualquer destas dimensões, o sagrado estava sempre protegido por uma
barreira espacial, cognitiva ou «moral» que era preciso transpor. Na realidade, o sagrado
estava «à parte» e era este isolamento que lhe conferia a sacralidade.
Três termos directamente relacionados com estes eixos de afirmação do sagrado
afiguram-se decisivos para compreender a iniciação no antigo Egipto. O primeiro,
djeser (Dsr), significa «sagrado» ou «separado» e era usado precisamente para nomear
aquilo que é sagrado porque foi separado do uso comum. 421 O próprio signo
hieroglífico utilizado na redacção do termo (D45) indica essa separação: um braço
apresenta um bastão como se colocasse uma barreira.422 A palavra djeser designa, deste
modo, o espaço sagrado, «intocável». 423 Esta noção traduzia-se, na arquitectura do
templo, na elaboração de um conjunto de dispositivos que separava o sagrado do
mundo exterior. Através de uma estrutura em «camadas», o santuário central era
rodeado por compartimentos que o protegiam do exterior formando muralhas
sucessivas. Por outro lado, este centro era acessível graças a um percurso através do
qual o deus entrava e saía do templo. A este percurso espacial correspondia um
caminho iniciático que apenas uma elite do corpo sacerdotal estava capacitada para
empreender na totalidade.424
O termo sechetá, (sStA), «mistério» constitui outra dimensão de manifestação do
sagrado e evocava a sua dimensão textual ou cognoscível, constituída pelo
conhecimento oculto revelado ao longo da iniciação. O acesso a um conhecimento
420
Ibidem.
421
A noção bíblica de sagrado apresenta as mesmas conotações. Os instrumentos de culto usados no
templo de Jerusalém devem a sua sacralidade ao facto de serem usados apenas no culto.
422
Idem, p. 15. O signo em questão é o D 45 da lista de Gardiner. Ver A. GARDINER, Egyptian
Grammar, p. 544.
423
A. LOPRIENO, La Pensée et l´Écriture, p. 23.
424
J. ASSMANN, The Search for God, p. 32. Para todos os que não eram sacerdotes, a participação nos
«mistérios» das cidades santas, como Abido, Busíris, Sakara, Heliópolis, Mênfis e Tebas permitia um
contacto que preparava o indivíduo para o Além. A participação nas cerimónias religiosas, que
normalmente não eram acessíveis a qualquer pessoa, garantia os fundamentos da salvação no Além, pois
o deus velava por aqueles que tinham participado no seu culto. A ideia de abrir uma via para a
imortalidade através do serviço cultual exercida em vida baseava-se na crença que o contacto com a
divindade perdurava no Além e aí atingia a plenitude. O face a face diante do deus era então plenamente
permitido ao defunto e não através de imagens. A iniciação aos mistérios dos grandes templos antecipava
e prefigurava a iniciação final aos mistérios do reino dos mortos. As grandes festas permitiam, deste
modo, a possibilidade de servir os deuses e estabelecer uma relação que podia ser invocada no Além. Em
J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, pp. 314-316.
148
«secreto» era designado por uep bes, (wp bs), «abrir a iniciação», ou «introduzir no
segredo».425
For fim, a «pureza», ueb (wab), codificava as condições exigidas pelo deus para
que o contacto com os humanos fosse possível.426 Esta codificação traduzia-se numa
certa divinização do homem pois o seu objectivo era dotar o sacerdote com a centelha
divina necessária para o culto. Nas primeiras fases da história egípcia, a função
sacerdotal estava estritamente associada ao rei (wab nsw).427 No Império Novo, porém, a
pureza já era um atributo comum entre os sacerdotes e, na Época Baixa, tornou-se na
pedra angular da espiritualidade egípcia.428 Apesar da «demotização» da relação com o
sagrado, o rei continuou a constituir o modelo para conceber a relação entre o homem e
o divino. Os atributos reais passaram para a esfera privada e tornaram-se no modelo de
santidade.429
Djeser, sechetá e ueb constituíam, deste modo, os três eixos de contacto com o
sagrado. A iniciação envolvia estes três aspectos. Através da pureza (ueb), o homem
sofria uma transformação interior que lhe permitia aceder ao segredo (sechetá) e ser
introduzido no espaço sagrado (djeser). A iniciação não pode, portanto, ser entendida
apenas como uma revelação de conhecimentos secretos, exigindo, pelo contrário, uma
mudança interior profunda que justificava o acesso aos textos e ao espaço sagrado onde
o homem se podia encontrar com o divino.
425
A. LOPRIENO, La Pensée et l´Écriture, p. 16.
426
O signo hieroglífico usado para redigir o termo (D60) explicíta que a pureza se relaciona com a
libação. Ver A. GARDINER, Egyptian Grammar, p. 544.
427
Só a partir da V dinastia é que o título wab começa a ser aplicado num sentido mais alargado, mas
ainda assim relacionado com a esfera de acção do rei, já que se relaciona com uma instituição da
administração real. Em A. LOPRIENO, La Pensée et l´Écriture, p. 20.
428
Ibidem.
429
A definição da santidade passa por quatro vectores: a confissão negativa, a função de sacerdote ueb, a
separação entre a esfera sagrada (wab.t n it nTr) e a esfera profana e a iniciação (bs). Em Idem, pp. 34-36.
149
Eu dava instruções aos chefes dos trabalhos, era um superior que iniciava (wp bs) todos nos seus
trabalhos.430
Não se pode falar, portanto, numa verdadeira iniciação ao longo deste período.
Foi a partir do Império Médio que este fenómeno se enquadrou na moralização da
relação com o sagrado. A distinção entre os indivíduos com base na virtude tinha em
conta o conhecimento da sabedoria sagrada.431 Era este conhecimento que permitia ao
indivíduo adoptar um comportamento virtuoso e aceder ao sagrado. Foi, portanto, a
partir da afirmação do vector textual da relação com o sagrado que podemos falar de
uma verdadeira iniciação. Curiosamente, foi nesse momento que o plano clássico do
templo egípcio parece ter sido concebido o que demonstra, desde então, a necessidade
de criar barreiras espaciais entre o deus e o mundo dos homens.432 Numa terceira etapa,
a partir do Império Novo, a relação do homem com o numinoso privilegiou a dimensão
da pureza ritual.
A partir do momento em que o sacerdócio se diferenciou como uma ocupação
profissional permanente, verificou-se uma demarcação entre as funções laicas e as
funções sacerdotais.433 Uma elite sacerdotal passou a ter acesso a mistérios até aí
reservados exclusivamente ao rei, facto que certamente incentivou a identificação do
sacerdote com a função cultual do rei.434 O acesso às funções mais elevadas do
sacerdócio e o contacto directo com a imagem do deus foram, com certeza, marcadas
com uma «consagração» inspirada no modelo de consagração real. Esta consagração era
necessária porque o que conferia ao faraó eficácia cultual era a sua centelha divina. 435 O
430
Autobiografia de Antef, a versão portuguesa foi elaborada a partir da versão francesa em Idem, p. 16.
431
Os fenómenos de criptografia inserem-se nesta tendência através da exaltação de uma competência
específica do saber como vector de afirmação da virtude. Em Idem, p. 18.
432
O pequeno templo erigido por ordem de Mentuhotep III (XI dinastia) na colina de Tot, na montanha
tebana, constitui o primeiro exemplar conhecido cuja entrada apresenta um pilone. Ver D. WIELDUNG,
Egypt: From Prehistory to the Romans, p. 79. O pilone é por excelência, a estrutura defensiva que ergue
uma barreira com o exterior. As cenas de guerra ou de caça aí representadas mostram a sua finalidade:
assegurar o controlo das forças do caos.
433
J. ASSMANN, The Search for God, p. 2. Nas épocas anteriores o sacerdócio era uma função rotativa
desempenhada por oficiais e funcionários.
434
A iniciação sacerdotal pode ter decalcado a iniciação real que assinalava a manifestação divina do rei.
A iniciação em vida permitia estar diante do deus, ou seja, transformar-se no deus. Em J. ASSMANN,
Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 319. Ao adaptar o ritual de purificação usado na coroação
para o uso sacerdotal, o clero usava o poder de divinização da água para valorizar a sua interacção com o
deus. A importância que estes rituais desempenharam na religião egípcia da Época Baixa atesta a
importância desta noção na relação com o deus. Ver Y. KOENIG, «L´eau et la magie», em A. Amenta
(ed) L´ Acqua nell´antico Egitto, p. 103.
435
O ritual da coroação, a cerimónia da purificação em especial, assinalava o nascimento da natureza
divina do rei. Embora este nascimento seja, habitualmente comparado ao nascimento do deus sol, tem-se
vindo ultimamente a insistir no nascimento do faraó como um deus em si mesmo sem tomar
150
culto divino não era concebido como uma comunicação entre homens e deuses mas sim
436
como uma interacção entre deuses. Deste modo, através da sua especialização no
culto divino, a elite sacerdotal apropriava-se de uma prerrogativa real e absorvia um
pouco do estatuto divino reservado ao rei.
Inicialmente circunscrita ao contexto ritual formal, com o objectivo de garantir a
pureza necessária ao culto, a iniciação começou a revestir-se de uma dimensão cada vez
mais individual, à medida que a piedade pessoal foi transformando a religiosidade
egípcia.437 Ao estabelecer um caminho interior para colocar o deus no coração, a
piedade pessoal permitia que o contacto com o deus fosse feito interiormente. Nesta
perspectiva, a iniciação consistia numa transformação interior, baseada na pureza, que
garantia o contacto permanente com o deus que habitava no próprio coração do
homem.438
Foi talvez por esta razão que a pureza, garantida pela iniciação, se tornou, na
Época Baixa, um meio tão importante para garantir a santidade. O ritual e o culto já não
se circunscreviam às responsabilidades oficiais de manter a ordem cósmica ou garantir o
culto divino no templo, mas regulavam todo o comportamento humano. O numinoso já
não estava contido em barreiras físicas ou verbais e tornava-se acessível através da
pureza ritual. Deste modo, o Egipto da Época Baixa oferecia ao indivíduo a
possibilidade de uma relação menos hierárquica e mais pessoal com o sagrado. Através
necessariamente como modelo o deus sol. Em A. SMITH, «Kingship, water and ritual: The ablution rite
in the coronation ritual of the Pharaoh», em A. Amenta (ed) L´ Acqua nell´antico Egitto, p. 330.
436
J. ASSMANN, The Search for God, p. 49.
437
Os rituais de iniciação, inicialmente celebrados unicamente para o rei, foram sendo progressivamente
aplicados a um número crescente de indivíduos, primeiro para uma elite sacerdotal muito reduzida e, nas
épocas mais tardias, para um número muito significativo de indivíduos. Os anais dos sacerdotes de
Karnak testemunham a importância (e a raridade) do dia da iniciação (hrw pn n bs) como ritual de
passagem de um simples sacerdote ueb à esfera sacerdotal propriamente dita (it nTr e Hm nTr). Em A.
LOPRIENO, La Pensée et l´Écriture, p. 37. Os documentos da Época Baixa acusam, pelo contrário, uma
abundância invulgar de Hri tp, «chefe dos sacerdotes leitores» que se perfilam como «magos», ou de Hri
sStA, os «detentores do segredo», título indicativo de um iniciado num culto. Enquanto, no Império Novo,
os segredos conhecidos pelo iniciado acentuavam e reforçavam a distinção social do sacerdote, nas
épocas mais tardias, sobretudo na Época Greco-Romana, a iniciação foi-se alargando a um número cada
vez maior de indivíduos. O seu significado distintivo já não se manifestava no plano social mas sim no
plano da relação com o sagrado. Uma diferença importante distinguia os santos do I milénio dos
«sacerdotes leitores» de outros tempos. Estes eram aristocratas que personificavam a elite letrada. Os
sacerdotes e os magos da literatura da Época Baixa, representam um grupo social mais alargado resultante
de um maior acesso à escrita e à instrução e, consequentemente, aos mistérios do divino. Em Idem, pp.
39-43. Sobre as características da hierarquia sacerdotal amoniano ver L. ARAÚJO, O Clero do deus
Amon no Antigo Egipto, p. 232. Luís Manuel de Araújo distingue os hemu netjet, «servidores do deus» do
clero indiferenciado e não especializado. Os cargos mais elevados e especializados da hierarquia
sacerdotal eram ocupados por sacerdotes profissionais. A hierarquia sacerdotal englobava várias funções
sendo, de acordo com o autor, a função de it netjer, «pai divino», «marcava o início do percurso na
morosa carreira dos hemu-netjer». Ver Idem, pp. 179-185. Ficavam assim de fora, os sacerdotes puros, os
sacerdotes leitores, os sacerdotes funerários, os sacerdotes imi-setá e outros.
438
J. ASSMANN, The Search for God, p.156-7
151
da iniciação, o indivíduo transformava a sua vida para se preparar para o contacto com o
deus. A santidade, garantida pela pureza e pelo conhecimento iniciático, tornava-se o
principal ideal de vida da espiritualidade egípcia da Época Baixa.439
Viajei através dos elementos e regressei. À meia-noite vi o sol brilhar com imensa luz e
encontrei-me diante dos deuses do mundo inferior e do mundo superior e adorei-os intimamente.443
152
445
se tornar, ele próprio, num sacerdote. A união com a deusa estava, deste modo,
estreitamente ligada à purificação garantida pela abstinência e pela ablução sacramental.
O objectivo da purificação, para além de remover as impurezas, consistia em dotar a
essência divina ao homem, o que era garantido pelo uso da água sagrada, identificada
com a água do Nun. A arqueologia helenística confirma, com efeito, a importância que
a água tinha nos cultos de inspiração egípcia.
Em Dion, a principal cidade sagrada para a monarquia macedónica, a água
desempenhava um papel bastante importante. Construída na encosta norte do Monte
Olimpo, a cidade devia a sua importância religiosa não só ao facto de ser o principal
lugar do culto de Zeus, mas também por ser o local onde Orfeu teria morrido. O curso
de água estava estreitamente associado ao mito de Orfeu e foi através desta associação
que aí foi implantado, sob o comando de Alexandre, um templo dedicado a Ísis. Erguido
na proximidade do curso de água, o plano do templo mostra bem a importância
atribuída à função purificadora da água no ritual dedicado a Ísis. O aspecto mais saliente
da sua arquitectura consiste na construção de um longo e estreito espelho de água,
simbolizando o Nilo, que atravessava todo o templo até à cella onde se elevava a
principal estátua da deusa.446 Uma outra imagem da deusa estava posicionada sobre uma
nascente de água usada para imersões rituais.447 Outras divindades, como Afrodite e
Atena, recebiam culto no santuário complementando, com as personificações divinas do
amor e do parto, a celebração dos aspectos maternos da deusa.
Como em Dion, o culto de Ísis foi implantado no lago Nemi em associação ao
culto da água, ligado à fertilidade feminina. A importância do culto isíaco de Nemi é
claramente testemunhada pela construção, sob ordem imperial, dos navios cultuais de
Nemi. Com efeito, Calígula, um adepto fervoroso do culto da deusa ordenou a sua
construção para celebrar o Navigium Isidi, uma festividade celebrada em Março
relacionada com o despertar da natureza.448
445
Seguiram-se duas outras iniciações, desta vez ao culto de Osíris, que o levaram a aderir ao sacerdócio.
Idem, p. 159.
446
Ver Anexo I G 2-3.
447
Dados recolhidos no site http://latis.ex.ac.uk/classics/visualessays/makedonian/page6.6.htm. Ver
Anexo I G 4.
448
Em http://college.hmco.com/history/readerscomp/ships/html/sh_063900_nemiships.htm. Ver Anexo I
G 8-9.
153
A mesma associação entre a água e a deusa Ísis se detecta no Canopo, 449 uma
das mais sugestivas estruturas arquitectónicas da Villa Adriana, que pretendia evocar o
santuário de Serápis. Aí, um busto monumental da deusa Ísis (identificada com Sothis e
Deméter)450 dominava uma fonte que, ao ser accionada por complicados mecanismos
hidráulicos era capaz de reproduzir no Canopo uma inundação evocativa da cheia do
Nilo.451 A água passava em seguida por uma ponte adornada por várias estátuas que
simbolizavam o despertar de Osíris-Ápis. O busto de Serápis, pousado sobre uma flor
de lótus, simbolizava o renascimento quotidiano do sol, ao passo que a água
simbolizava a acção revigorante de Ísis na sua ressurreição. Estátuas de deuses como
Ptah e Antínoo, identificado com manifestações de Osíris do Alto e do Baixo Egipto,
completavam a decoração do edifício e aludiam à terra do Egipto. Estava assim recriado
o cosmos nilótico: a cheia (Ísis), o sol (Ápis) e a terra (Osíris).452
Tanto em Canopo como em Dion, a água estava estreitamente identificada com
Ísis que sacramentava o neófito e lhe possibilitava o nascimento para uma nova vida. 453
449
O edifício integrava-se num complexo arquitectónico que incluía um espelho de água, simbolizando o
mar Mediterrâneo, que se estendia diante de um edifício de planta semi circular que evocava o santuário
de Serápis e o delta do Nilo.
450
Informação recolhida no site oficial do Museu Gregoriano do Vaticano, em mv.vatican.va/4_ES/
pages/MEZ/MEZ_Sala03.html. A identificação de Ísis com a inundação foi progressiva e resultou da
identificação com a «Longínqua», também denominada por Mehit, a deusa leonina que foi trazida para o
Egipto por Anhur. Em C. NOBLECOURT, Le Secret des Temples de la Nubie, p. 270. Sobre estas
divindades ver J. SALES, AS Divindades Egípcias, pp. 114-115. Ver Anexo I G 5.
451
O aspecto sotíaco da deusa foi valorizado por Adriano (117-138 d. C.) pois no ano 139 dava-se início a
uma nova era sotíaca (acontecimento que tinha lugar em cada 1465 anos).
452
A interpretação que se faz da arquitectura do Canopo entra em contradição com a leitura feita por
Plutarco: «Assim como acreditam que o Nilo é uma emanação de Osíris, acreditam, consideram e
afirmam, que a terra é o corpo de Ísis; não a Terra inteira, mas unicamente a parte que o Nilo invade e
fecunda misturando-se com ela. Dizem que Hórus nasce desta união, sendo este Hórus a época durante a
qual a atmosfera que envolve a Terra está disposta a conservar e a nutrir tudo.» Plutarco, Ísis e Osíris, 38.
Na realidade estas identificações cosmológicas foram flutuantes e, no Egipto faraónico, variaram
frequentemente, dependendo sobretudo do contexto ritual. Deste modo, Osíris tanto pode ser associado à
terra germinadora e fecunda, como às águas da cheia. O mesmo acontece com Ísis que pode ser entendida
como a personificação da Natureza como a personificação da cheia portadora de vida. Ver J. SALES,
Divindades Egípcias, pp. 121-143. Ver Anexo I G 6.
453
A água usada na iniciação helenística também não constituía uma inovação destes tempos, inserindo-
se, pelo contrário, numa longa tradição cultual onde foi utilizada como uma manifestação dos poderes
regeneradores da Duat. A raiz dwA é usada para redigir os termos dwA.t «alvorada» e dwA «manhã». O
verbo dwA «orar», indica a ligação deste acto com a alvorada e com a primeira manifestação da luz. A pr-
dwAt, por outro lado, era o local onde se efectuava a purificação do rei. Podia existir no palácio, onde o rei
era lavado e vestido, bem como no templo, onde era purificado e coroado antes do encontro com o deus
ou ainda, no contexto funerário, onde se desenrolava a cerimónia da abertura da boca. A per-duat era,
deste modo, um local de preparação que precedia o aparecimento do rei ou a ressurreição do defunto. A
ideia contida na raiz dwA reside precisamente na ideia de preparação à aparição no sentido em que a
alvorada anuncia a luz do sol sem ainda o manifestar. Ora esta aparição é sempre encarada como um
nascimento. A preparação proporcionada pela Duat não pode ser outra senão a gestação. A água usada na
iniciação, sendo evocativa do ritual real de coroação, é, deste modo, a evocação da gestação que
possibilita o nascimento para uma nova vida. É certamente este significado que levou à conservação deste
154
A sacralidade da água também perpassa nos símbolos da deusa. A sítula, contendo a
água do Nilo, era frequentemente representada como um seio, enfatizando o papel
maternal que a água desempenhava no nascimento da criança divina. 454 Este objecto
simbolizava, no fundo, a função regeneradora da água, uma vez que conduzia o neófito
para uma nova vida. O mesmo papel «obstétrico» se detecta no sistro cuja função era
«acordar» as forças da vida. É justamente esta a interpretação que Plutarco faz deste
objecto:
O sistro indica também que todos os seres se devem manifestar, nunca devendo deixar de ser
movimento, mas também despertá-los e sacudi-los, fazendo-os sair do seu estado de torpeza e marasmo.
Os egípcios pretendiam, com efeito, que Tífon é afastado e recusado pela agitação dos sistros, dando-nos
a entender que o princípio corruptor trava e detém o curso da natureza, mas que a geração, por meio do
movimento, o desprende e liberta.455
O vaso cheio de água era evocativo da fonte de vida, o que levava a que os vasos
sagrados tivessem sido usados nas procissões divinas.456
Não é somente o Nilo, mas tudo o que é de natureza húmida, por assim dizer, que os sacerdotes
consideram como emanação de Osíris; as procissões sagradas celebradas em honra deste deus são
precedidas de um copo cheio de água. 457
ritual no baptismo cristão. Em N. BEAUX, «La Douat dans les Textes des Pyramides: Espace et temps de
gestation», BIFAO 94 (1994), pp. 1-6.
454
Sobre a identificação entre a sítula e o seio ver R. WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 47. Estes
objectos apresentam um rico programa decorativo onde o lótus, as deusas relacionadas com a maternidade
e os deuses da fertilidade como o itifálico Min desempenham um papel preponderante. Todos estes
elementos decorativos se relacionam com a celebração da renovação da vida. Sobre o papel destes
objectos no culto ver M. BOMMAS, «Situlae and the offering of water in the divine funerary cult», em A.
Amenta (ed.) L´ Acqua nell´antico Egitto, pp. 257-272. Ver Anexo I G 1.
455
Plutarco, Ísis e Osíris, 63.
456
Ver R. SOUSA, «Água», em L. Araújo (dir.), Dicionário do Antigo Egipto, pp. 35-36. As
representações helenísticas dos cultos de Ísis documentam a utilização de vasos sagrados neste contexto.
Uma pintura de Herculano mostra um sacerdote a sair da cella da deusa com um vaso sagrado. O mesmo
gesto é documentado numa estátua de uma sacerdotisa. O vaso sagrado, contendo água, devia, deste
modo, estar conservado junto à estátua da deusa sendo periodicamente exposto em certas ocasiões rituais.
457
Plutarco, Ísis e Osíris, 36.
458
Ver Anexo I F 1-5.
155
Ísis acolhia Osíris, também o coração do neófito (simbolizado no vaso) devia acolher a
água da vida para transformar a sua consciência e despertar a sua centelha divina e
solar. No fundo, era exactamente esse o papel que a água cumpria no ritual de iniciação
ao culto de Ísis. A água das fontes e dos lagos do templo devia, deste modo, operar a
transformação do coração do iniciado de modo a despertar a centelha de vida divina que
nele habitava.
459
Na verdade, o cenotáfio de Osíris e o templo divino construídos por Seti I em Abido constituem um
conjunto monumental que reproduz o complexo funerário real construído na necrópole tebana composto
pelo túmulo, escavado no Vale dos Reis, e pelo templo de «milhões de anos», junto à margem cultivável.
Ver Anexo I H 1-2.
460
Em R. WILKINSON, The Complete Temples of Ancient Egypt, p. 148.
461
Ver Anexo I H 3.
156
A estrutura deste edifício parece, deste modo, estar relacionada com a
celebração de cerimónias «nocturnas» que celebravam a regeneração do sol no Além.
As representações alusivas à purificação real tornam claro que estas cerimónias tinham
como intuito consagrar o rei para lhe conceder a participação nos seus mistérios. A
representação do amuleto cordiforme neste contexto pode estar relacionada com a
transformação e reanimação do coração operada pelas águas da Duat. O coração,
materializado no amuleto cordiforme, seria, deste modo, a expressão concreta da
transformação operada na consciência do rei pelas águas da Duat e pela participação nos
mistérios de Osíris.
Um outro edifício com características semelhantes encontra-se no recinto de
Karnak. Trata-se de um templo dedicado a Osíris, erigido por Taharka na margem norte
do lago sagrado também com a forma de um túmulo.462 Na câmara mais interior do piso
inferior foi encontrada uma representação muito invulgar. Uma árvore sagrada,
denominada de chendet (acácia nilótica), ergue-se sobre uma colina alusiva ao túmulo
de Osíris. Uma mulher e um homem foram representados em cada um dos lados da
árvore. A mulher, talvez a divina adoradora de Amon, apresenta uma atitude invulgar
segurando um arco. À sua frente, uma flecha está cravada num disco. Do lado oposto,
Taharka, segurando uma maça na mão, está em atitude de corrida. A composição do
relevo sugere a associação do rei ao mistério da ressurreição de Osíris e da regeneração
do sol.463
Tal como o osireion de Abido, a cripta de Taharka estava construída de modo a
relacionar os mistérios de Osíris com a água, razão pela qual foi erguida junto na
margem do lago sagrado. Na verdade, o edifício complementava-se com um outro
462
Embora arruinado, o edifício assemelha-se a uma mastaba e não apresenta qualquer porta que permita
o acesso para o interior. O acesso fazia-se, muito provavelmente, através de uma rampa adoçada à parede
oriental do edifício que conduzia ao topo constituído por um amplo terraço. No lado ocidental do terraço,
uma escadaria conduz ao piso inferior. Reconstituía-se, através da articulação entre os pontos cardeais, o
percurso do sol para a Duat. A parede exterior do lado norte do edifício foi decorada com a representação
da purificação do rei, seguida da representação da oferenda de incenso a Atum, o que sugere, como refere
Apuleio, uma ligação íntima entre a purificação e a revelação dos mistérios de Osíris. Ver Anexo I H 4.
463
A intrigante representação apresenta, curiosamente, elementos comuns ao imaginário do Conto dos
Dois Irmãos, detectando-se a mesma associação entre a morte e a árvore sagrada. Do mesmo modo, a
representação atlética de Taharka evoca as peripécias de Bata nos seus quefazeres relacionados com a
caça e a guerra no Vale do Cedro. Também a mulher aí foi colocada, numa atitude pouco habitual. Todo o
imaginário simbólico do conto relacionado com o a morte e a ressurreição de Bata no Vale do Cedro
pode, deste modo, ser perspectivado como uma alusão aos mistérios celebrados nas criptas de Osíris. Ver
Anexo I H 6.
157
monumento: o grandioso escaravelho de Amen-hotep III.464 Assim, enquanto a cripta de
Osíris celebrava a regeneração do sol no mundo inferior, o escaravelho monumental
posicionado sobre o lago evocava o nascer do sol e a vitória da luz sobre as trevas.465
Tal como no osireion de Abido, a decoração do edifício também inclui uma cerimónia
de purificação com a qual a água do Nun assegurava, no rei, a regeneração que, no
mundo inferior, proporcionava ao deus solar.466 Deste modo, para além de celebrar os
mistérios de Osíris, estas criptas cumpriam também o objectivo ritual de assegurar a
regeneração do rei identificando-o com o sol regenerado pelas águas da Duat.
Estruturas como estas podiam, deste modo, constituir o contexto ritual que
integrava o rei nos mistérios da ressurreição de Osíris e da regeneração de Ré.467 Será
concebível admitir que parte dos rituais de iniciação real decorreria nestas estruturas?
Os conhecimentos actuais não nos permitem responder com segurança a esta pergunta,
mas é provável que a resposta seja afirmativa. Heródoto, por exemplo, indica que estas
criptas tinham uma função «iniciática» e a sua associação ao lago sagrado relacionava-
se com o envolvimento da água em rituais de purificação. O que podemos saber é que,
no tempo de Heródoto, a iniciação nos mistérios da ressurreição era efectuada nestas
criptas, que estavam intimamente relacionadas com a consagração ritual possibilitada
pela água.468
464
Ver Anexo I H 7. Para a relação entre a posição do escravelho e a cripta de Osíris ver Anexo I H 4. O
pedestal apresenta uma representação de Amen-hotep III apresentando oferendas diante de Atum de
Heliópolis.
465
O edifício estava evidentemente em relação muito estreita com o lago sagrado e com o escaravelho
monumental de Amen-hotep III, colocado justamente diante da escadaria do osireion de Taharka. O
escaravelho Khepri e o lago materializavam, deste modo, o nascer do sol, o lado visível da regeneração
ocorrida no interior da cripta de Osíris construída por Taharka.
466
As alusões à regeneração do sol são abundantes na decoração do edifício. Na primeira câmara
subterrânea, na parede sul, o rei é representado em conjunto com seis babuínos. Todos estão voltados para
oriente, em direcção às câmaras contíguas. Os símios sagrados são denominados «os bau orientais que
adoram o deus Ré» e são alusivos ao nascer do sol. Do lado oposto, na parede norte, foi representada a
barca solar navegando de este para oeste. No relicário central foi representado o deus Atum encimado
pela palavra «carne», iuf. Na parede ocidental da escadaria estão representadas várias silhuetas de
babuínos mumificados, um por degrau, de norte para sul. Representam, provavelmente as últimas horas
da noite. A nossa descrição do monumento é baseada em J. DUNN, «Osirian Temple of Taharka», em
www.touregypt.net/ featurestories/taharqat.htm
467
A teia de acontecimentos descritos no Conto dos Dois Irmãos evoca, muito provavelmente, os
mistérios celebrados nestas estruturas que, tal como é representado no templo de Taharka e como sucedia
no osireion de Abido, associavam o simbolismo solar da árvore sagrada ao simbolismo ctónico do
túmulo.
468
A relação entre a água e a «câmara dos mistérios» é testemunhada por Heródo: «Também existe em
Saís, no santuário de Atena, o sepulcro daquele não creio ser conforme à piedade de pronunciar o nome,
nesta ocasião. Está atrás do templo e estende-se ao longo do seu muro. No recinto sagrado erguem-se dois
obeliscos de pedra, um lago está na sua vizinhança, delimitado por paredes de pedra cuidadosamente
construídas, tão vasto como o lago de Delos , chamado de «circular». À noite, são encenadas
representações da sua paixão, que os egípcios chamam de «mistérios». Conheço em detalhe estas
representações, mas guardo o silêncio sobre este assunto. Farei o mesmo sobre as festas de iniciação de
158
*
* *
Deméter, (...)» Em Heródoto, Histórias, II, 170-171. Para além da relação entre a cripta de Osíris e o lago,
o texto também coloca em evidência a encenação nocturna destes mistérios, o que também é referido no
relato de Apuleio. As «visões» de Lúcio seriam, deste modo, resultantes da encenação ritual dos
mistérios.
469
R. WITT, Isis in the Ancient World, p. 154.
470
Idem, p. 152.
471
Idem, p. 153.
472
As expectativas em relação ao Além esmoreceram bastante ao longo do I milénio, sobretudo na época
greco-romana. A relação com o divino nesta época assemelha-se à que existia no seio das religiões de
mistérios do mundo clássico. W. Burkert defende que as religiões de mistérios abriram a um grupo muito
mais alargado da população o acesso ao divino. A atenção religiosa volta-se para a vida terrena. Há uma
reorganização do centro de atracção da esfera do Além para a esfera da vida terrena, o que permite uma
maior permeabilidade entre estes planos. Em A. LOPRIENO, La Pensée et l´Écriture, p. 47.
473
Em Panóias, no distrito de Vila Real, conserva-se um recinto sagrado outrora consagrado a Serápis.
Geza Alföldy identificou, a partir dos vestígios escritos e arqueológicos, um ritual de iniciação com uma
ordem e um itinerário muito precisos que envolvia a matança das vítimas, o sacrifício do sangue, a
incineração das vítimas, o consumo da carne, a revelação do nome da autoridade máxima dos infernos, e
por fim a purificação. Na rocha mais elevada, n.º 3, onde haveria um pequeno templo, teria lugar o acto
principal da iniciação – a morte ritual, o enterro e a ressurreição. C. G. Calpurnius Rufinus, senador, que
introduziu este culto em Panóias, deve ter sido um alto funcionário do governo provincial romano. A sua
língua original foi o grego, mas na inscrição o uso da palavra “mystaria” em vez de “mysteria”
demonstra o uso de um dialecto dórico ou pseudo-dórico. Os dados sobre a sua origem permitem supor
com grande probabilidade que seja Perge de Panfilia, cidade de tradição dórica e um dos centros do culto
159
faraónico descurava a transformação que se devia verificar durante a vida para preparar
o contacto com o deus que devia ocorrer no Além. 474
O que a história da religião egípcia nos indica é que estes aspectos estiveram
sempre associados embora tivessem um peso variável ao longo do tempo. Na verdade, a
própria importância e o significado da iniciação diferiu bastante no tempo e esta
variação resultou do modo como a relação com o sagrado se foi constituindo.
Inicialmente reservada ao rei, o único a usufruir de um contacto directo com o deus, a
iniciação foi primeiro associada à dimensão espacial do contacto com o divino e, no
Império Médio, foi enriquecida com o conhecimento dos textos sagrados. O efeito da
iniciação foi, desde o início, o de sacramentar o rei, ou seja, conferir através da água e
do conhecimento divinos, uma centelha divina que permitia um renascimento, uma nova
vida.
Só no Império Novo, com a profissionalização da função sacerdotal e a sua
crescente influência é que a iniciação se tornou um fenómeno alargado e com um
significado religioso mais abrangente. Articulando-se com a piedade pessoal, a iniciação
foi ganhando contornos cada vez mais intimistas. «Colocar o deus no coração» era um
ideal que exprimia a vida transformada através da iniciação. «Estar na água do deus»
exprimia bem o poder transformador e sacramental do ritual de iniciação.475 A água
purificava o neófito e dotava-o de santidade. As duas expressões exprimem as duas
componentes da iniciação: a consciência é transformada pelo conhecimento («colocar
deus no coração») e pela essência divina («estar na água do deus»). Ambas se
manifestam no coração do homem.
160
Para além dos rituais da coroação, incluídos na decoração dos templos, as fontes
egípcias são muito parcimoniosas quanto à sequência e conteúdo do ritual de
iniciação.476 O seu objectivo, no entanto, parece ser claro: possibilitar o nascimento da
essência divina do faraó através de uma transformação interior operada, como se
depreende no Conto dos Dois Irmãos, no seu coração.
A medida que se «demotizou», a iniciação, foi aplicando para um número mais
alargado de indivíduos, o modelo real de transformação interior. Nestes casos, no
entanto, o seu alcance não era tão amplo. A iniciação podia contribuir para santificar o
indivíduo e possibilitar uma transformação íntima mas só a morte, a verdadeira
iniciação, o podia transformar numa divindade.477
Em suma, a iniciação implicava um nascimento para uma vida divina. O modelo
deste «parto» era sempre decalcado do modelo real. Mesmo quando se aplicou a um
número mais alargado de indivíduos, a iniciação permaneceu sempre uma
transformação «real», pois o «rei» de cada homem personificava a sua natureza divina e
solar. O ritual tinha uma dupla função: em vida santificava o indivíduo e, na morte,
divinizava-o. Em ambos os casos, a iniciação traduzia-se numa transformação da
consciência através do conhecimento e da graça divinas. Sobretudo a partir da Época
Baixa, a difusão da piedade pessoal facilitou a difusão da iniciação pois era este ritual
que permitia «colocar o deus no coração» e «estar mergulhado na água do deus»,
expressões que, como veremos em seguida, resumiam momentos essenciais da iniciação
e o ideal da vida santificada.
5. A fenomenologia da iniciação
161
determinativos: D54 (duas pernas em movimento) e K3 (peixe em atitude de salto).
Tanto um como outro sugerem um movimento e uma «ascensão». A dupla associação
de determinativos sugere, deste modo, um deslocamento para o alto, o que autoriza a
tradução do termo besi por «emersão», com evidentes conotações aquáticas.
De um modo geral, o termo besi é aplicado em sentido literal pressupondo a
passagem de um meio líquido, confinado ou sombrio, para um meio aéreo e luminoso
que é tido como superior. É neste sentido que devem ser interpretadas as referências ao
«aparecimento» de elementos do Nun no cosmos:
Ele fará brotar para mim toda a espécie de pedras preciosas e minerais brilhantes. 480
Foi assim que brotaste, pelos teus próprios meios, do oceano primordial. 483
478
Inscrição de Mentuhotep II, Uadi Hammamat. Versão francesa em J.-M. KRUCHTEN, Les Annales
des Prêtres de Karnak, p. 150.
479
Inscrição no túmulo de Paheri, El Kab. Versão francesa em Idem, p. 151.
480
Medinet Habu. Versão francesa em Ibidem.
481
Idem, p. 149.
482
Estela de Kuban, 13. Versão francesa em Idem, p. 152. A frase reporta-se ao florescimento da vida
vegetal.
162
Ele que começou a sua existência na vez primeira, Amon que existiu antes de tudo, ninguém
pode testemunhar o seu aparecimento (bsi) inicial. 484
Com este sentido metafórico o termo foi usado para designar o «aparecimento»
do sol nas fronteiras da Duat. O percurso do sol traduz-se num perpétuo «brotar» a
partir da Duat. A capacidade de emergir é mesmo uma das características marcantes do
movimento do sol:
Louvor a ti, Ré, de poder elevado, Djenti do céu, luz da Duat, tu fazes passar (bsi) de um mundo
para o outro as tuas formas materiais! És os corpos daquele cuja essência é a de brotar (bsi).485
Foi para ver a sua imagem jorrante que está no céu e para adorar a sua imagem física que eu voei
para o céu como um falcão divino. 487
A passagem para o mundo dos deuses também era acessível aos homens, mas
depois da sua morte. Neste caso o defunto «brotava» na Duat por acção do sarcófago, a
materialização da deusa celeste. Em suma, o termo bes, «introduzir» ou «emergir», não
é um sinónimo da palavra «entrar», ak (aq), a qual apenas pressupõe um deslocamento
no espaço. O termo bes era usado para designar a passagem através de um limite
cósmico, de uma fronteira entre o humano e o divino, entre o terreno e o celeste.488
Definidas as conotações metafóricas do termo besi, passaremos em seguida a analisar a
sua utilização no sentido «iniciático».
483
Oração a Amon, Karnak. Versão francesa em Ibidem.
484
Papiro de Leiden, I, 350, IV, 9. Versão francesa em Ibidem.
485
Sonnenlitanei, 68. Versão francesa em Ibidem.
486
Do ponto de vista simbólico o falcão e o peixe desempenham uma função idêntica. Ambos
representam a possibilidade de estabelecer um movimento entre um plano superior e um plano inferior.
Em Idem, p. 157.
487
Inscrição de Tutmés III, Templo de Karnak. Em Idem, p. 158.
488
Em Idem, p. 202. No plano humano a passagem do âmbito terreno para o mundo divino constitui uma
«emersão» num mundo superior. Nesta perspectiva, a iniciação pode ser ilustrada pelas representações de
Nefertum, em que o deus «brota» de um lótus aquático que emerge do Nun. Ver Anexo I I 8.
163
A iniciação real
(Ísis) extraiu o sémen (de Osíris) e deu à luz um herdeiro. Ela criou o seu rebento na solidão sem
que se soubesse onde ele estava. Ela iniciou-o (besi) quando o seu braço se tornou forte, na assembleia de
Geb, enquanto a Enéade se regozijava.492
489
Em Idem, p. 167.
490
Sobre o edifício ver R. SCHULTZ, M. SEIDEL, O Mundo dos Faraós, pp. 158-161. O edifício
celebrava os vários aspectos do poder real: a associação aos antepassados reais (materializada na célebre
lista de reis de Karnak), ao mundo dos mortos (evocada no santuário de Sokar), ao poder criador e
universal do sol (patente no templo solar e no chamado «Jardim Botânico»). O edifício celebra, deste
modo, a eficácia do rei na realização terrena do poder divino regenerador e criador.
491
Em J.-M. KRUCHTEN, Les Annales des Prêtres de Karnak, p. 173.
492
Estela C 286, Museu do Louvre, 16. Em Idem, p. 161.
493
Em Idem, p. 163.
164
Entrar nas regiões interditas do templo equivalia a flanquear os limites que
separavam o mundo dos homens do mundo divino. Neste contexto, a utilização do
verbo besi designa uma subida ao céu,494 assinalada por um ritual de consagração
(purificação), ao qual se seguia a coroação na qualidade de Hórus.495 A passagem para o
mundo superior lançava aqueles que participavam neste ritual num novo horizonte,
dotado de transcendência. O nome de bes ou beset dado à cerimónia que introduzia o rei
(ou o sacerdote) nas câmaras mais secretas do templo fazia, deste modo, alusão à sua
ascensão e «emersão» num plano superior e divino.496 Era esta emersão que conduzia à
presença da estátua divina.
A iluminação
494
Em Ibidem. Esta subida para o céu era intencionalizada na arquitectura do templo através da subida
progressiva do solo. Sobre a arquitectura so templo ver C. MONTE FARIAS, «O templo no antigo
Egipto: simbolismo e iconografia», em Artis 1 (2002), pp. 17-30.
495
Em J.-M. KRUCHTEN, Les Annales des Prêtres de Karnak, p. 166.
496
Em Ibidem.
497
Este processo lembra irresistivelmente, como sugere o próprio Kruchten, a alegoria da caverna de
Platão. Como o prisioneiro que abandona a sua caverna, o iniciado descobre-se num mundo novo e
luminoso, mais próximo da realidade. Kruchten não afasta a hipótese de uma inspiração directa de Platão
no pensamento egípcio, em virtude da sua permanência no Egipto durante a sua juventude. As ideias
platónicas seriam, neste sentido, as entidades divinas que povoavam o mundo celeste. Em Ibidem.
165
O faraó permitiu que eu pudesse contemplar o céu de modo a conhecer (rx) o mistério que aí
reside e que fosse iniciado (bs) no modo de satisfazer os deuses e de fazer subir Maet ao seu Senhor. 498
Cumpri a minha função sem divulgar este mistério que deve estar oculto para o exterior.502
Fui em seguida levado a escutar o deve ser ouvido puro e só, a minha boca permaneceu selada
(...) o meu ventre guardou o que os meus olhos haviam visto. Eu não espalhei o que me foi revelado (bs)
do mistério que conheci (rx).503
498
Autobiografia de Amen-hotepsaré, TT 75, 1-6. Adaptado da versão francesa patente em Ibidem.
499
Em Idem, p. 197.
500
Em Ibidem.
501
Urk. IV, 483, 11 (Estátua de Bolonha 1822). Em Idem, p. 198.
502
Estátua do sumo sacerdote de Amon Hapuseneb, 8-9. Adaptado da versão francesa em Idem, p. 199.
503
Autobiografia de Amenemhat, TT 97, 8-10. Adaptado da versão francesa, embora com uma
interpretação distinta, em Idem, pp. 199-200. Kruchten sugere a seguinte tradução: «je ne suis pas sorti
(du sanctuaire) porteur d´une révélation du mistère que j´(y) avais pris». Na nossa proposta de tradução
considerámos que n pr.i Hr não significa neste caso «não saí portador de», mas sim, atendendo ao
contexto, «não revelei o que estava».
166
Também neste texto se detecta uma complementaridade entre bes e rekh: o
mistério é conhecido por experiência directa mas só pode ser comunicado a outrém se
este for «conduzido» até lá.
A transformação
Ponderados todos os elementos que temos vindo a reunir até aqui podemos
detectar vários momentos ou fases envolvidos na iniciação real e, por extensão, na
iniciação sacerdotal.
A primeira etapa consistia na «circuncisão do coração», ou seja, na anulação da
consciência pessoal e egocêntrica, associada, na literatura sapiencial, ao «homem
colérico» ou à voz do ventre. Esta fase, de carácter preparatório, pode ser comparada à
permanência de Bata no Vale do Cedro ou de Hórus na floresta de papiros. Tratava-se
de um período de recolhimento e de estudo, pontuado por «provas» destinadas a
167
reforçarem a força e o carácter do neófito que devia abandonar uma perspectiva
«egocêntrica» e adoptar uma perspectiva «impessoal», integrando a sua consciência
numa realidade mais ampla e divina, simbolizada pela árvore sagrada. 504 Tratar-se-ia de
uma fase activa expressa no ideal de «colocar deus no coração». Como vimos, este ideal
implicava o estudo, a oração e a aplicação das directrizes divinas. O seu intuito era,
através da sabedoria, instalar a ordem em si mesmo e repelir a desordem, o que
correspondia a adoptar o comportamento do «homem silencioso» e abster-se das
situações que levassem ao comportamento típico do «homem colérico». Na linguagem
mítica, este ideal sapiencial podia ser expresso através da vitória de Hórus sobre Set. As
prescrições relacionadas com a pureza teriam, deste modo, um peso decisivo nesta etapa
e contribuíam, como dissemos, para instalar a ordem na vida e na mente do neófito. Este
era, efectivamente o objectivo último da sabedoria e dos escritos sapienciais, os quais
procuravam justamente difundir os preceitos que permitiam ao indivíduo harmonizar-se
com a ordem cósmica. Na iniciação, o efeito da sabedoria era justamente o de tornar o
neófito num pilar maético capaz de assegurar a ordem e a justiça sobre a terra.
A segunda fase seria o que podemos chamar de «fase escura» e pressupunha a
receptividade do neófito à influência transformadora da divindade, o que era evocado
como um estado de «morte» ou latência que evocava o regresso ao tempo original da
criação. Tratar-se-ia, nesta etapa, de uma autêntica dissolução ontológica que permitia
transitar do estado humano para o divino. O ideal de «estar na água do deus» traduzia,
deste modo, a receptividade do indivíduo em relação à influência divina. Seria nesta
fase que o ritual de purificação pela água podia ser realizado, consagrando e divinizando
com a água a consciência do neófito.505 Estes rituais seriam celebrados em criptas
subterrâneas, associadas a um lago sagrado e possivelmente dedicadas aos mistérios da
504
A associação entre o coração e a árvore sagrada, não se limita ao Conto dos Dois Irmãos. Ela persistiu
no tempo e detecta-se esta associação no culto de Ísis. Plutarco refere o seguinte: «Entre todas as plantas
que crescem no Egipto, diz-se que a persea é a que é dedicada a Ísis, porque o seu fruto se parece com um
coração, e a folha a uma língua. Com efeito, entre todos os bens que são propriedade natural do homem,
nenhum é tão divino como a palavra, sobretudo aquela que se dirige aos deuses, e nenhuma tem uma
acção tão decisiva sobre a sua felicidade. Por isso quando uma pessoa está prestes a entrar num lugar
onde reside um oráculo, exortamo-la a pensar santamente, e a pronunciar palavras de bom augúrio.»
(Plutarco, Ísis e Osíris, 68.) Embora seja duvidoso que o sábio tenha compreendido em toda a sua
amplitude o significado da identificação entre o coração e a semente da persea, ele perpassa nas suas
(meias) palavras. Assim, ao entrar no santuário o homem devia «pensar santamente», e a «pronunciar
palavras de bom augúrio», ou seja, devia-se santificar o coração e a língua na proximidade do deus. Para
o fazer, o crente devia certamente confiar-se à deusa Ísis que, como uma árvore persea, faria crescer em si
um coração divino e palavras santificadas. Na iconografia também é visível a semelhança dos frutos da
árvore sagrada com o coração. Ver Anexo I A 6.
505
A reanimação do coração de Bata através da água é o segundo momento da transformação do coração.
Também nos mistérios isíacos dos tempos helenísticos a iniciação compreendia a divinização pela água.
168
ressurreição de Osíris e da regeneração de Ré.506 Através da integração do rei nos
principais mistérios que explicavam a renovação do mundo, preparava-se a sua ligação
aos ciclos cósmicos que garantiam a fertilidade do Egipto. A sua responsabilidade pela
eclosão da cheia e pela fertilidade da terra garantiam que o povo do Egipto se pudesse
alimentar e sobreviver.507 Nesta perspectiva, a purificação e a integração nos mistérios
de Osíris teriam como efeito não apenas a regeneração do rei mas também a do cosmos
inteiro. Era esta integração que lhe permitia estar em contacto com as forças cósmicas
da inundação que asseguravam a fertilidade do Egipto.
A terceira fase, a fase «luminosa», assinalava a transformação do coração do rei
na criança sagrada que simbolizava a consciência divina e solar que nascera com a
iniciação.508 Este «nascimento» era o momento em que o neófito verdadeiramente
«aflorava» ao mundo divino e «emergia» no mundo luminoso das divindades.509 Era
portanto, nesta fase, que se dava a «passagem», o besi, a «iniciação». Nesta fase, a
sabedoria e o amor divinos, que tinham alicerçado o percurso do neófito nas etapas
anteriores, com a «passagem» transformam-se em conhecimento sensorial (rekh) e
união mística (bes). O mistério do mundo celeste dava-se a conhecer, deste modo,
através de uma «visão» sensorial (rekh) e da revelação mística da divindade (besi). Era
esta «iluminação» que «transformava» a consciência do neófito e a integrava no plano
divino. A «alegria», a «dilatação da consciência», tão celebrada nos textos religiosos,
506
A associação entre a água e a árvore sagrada é uma constante das representações funerárias associadas
ao renascimento do defunto. Normalmente a água é dada ao defunto pela própria deusa da árvore mas
também pode figurar num lago que se apresenta na sua vizinhança. Tanto a árvore como a água
constituem, deste modo, aspectos indissociáveis do renascimento. Em A. ZINGARELLI, «Some
considerations about the water offered (poured) by the tree-goddess at TT 79», em Amenta(ed.) L´ Acqua
nell´antico Egitto, p. 388. No Egipto ptolemaico há evidências escritas de uma certa prevalência de cultos
relacionados com árvores sagradas. Ver A. WIEDMANN, Religion of the Ancient Egyptians, p. 155.
507
Era a ligação do rei à água e às forças ctónicas que o dotavam de poder sobre o cosmos egípcio,
permitindo assegurar-lhe a função de mediador entre os deuses da fertilidade e o povo do Egipto. Sobre a
caracterização da função alimentadora do rei ver M.A. BONHÊME e A. FORGEAU, Le Pharaon: Les
secrets du pouvoir, pp. 158-166. Também em H. FRANKFORT, Kingship of the Gods, pp. 57-60.
508
No defunto, esta transformação era simbolizada pelo escaravelho Khepri que assim representava a
consciência solar e imortal. Foi, provavelmente, este simbolismo que reforçou o prestígio mágico do
escaravelho do coração que, deste modo representava a consciência transformada do defunto. O próprio
escaravelho pode ser lido como «transformação» o que reforça a interpretação deste objecto como um
amuleto que favorece a iniciação do defunto no Além, transformando a sua consciência de modo a se
identificar com o sol renascido.
509
Em Karnak, este acontecimento deve ter sido celebrado, até à XXV dinastia, no Akhmenu que
compreendia uma área «funerária» dedicada a Sokar, o «Jardim Botânico», que mais não era do que o
vestíbulo da «Câmara de Amon, onde era exposta a imagem divina do deus, a «Câmara das Clepsidras»,
onde ainda hoje sobrevive uma pedra destinada a libações e o «templo solar» onde se celebrava a
manifestação matinal do sol. A iniciação devia certamente envolver a purificação nesta câmara e a
contemplação da imagem divina, e provavelmente também o nascer do sol, através do qual o neófito
«aflorava» ao mundo divino. Com a construção do templo de Osíris, junto ao lago sagrado, estes rituais
foram possivelmente «transferidos» para esta estrutura, talvez devido a uma valorização da proximidade
com o lago devido à associação desta dinastia ao imaginário da criação.
169
era certamente o reflexo deste «afloramento» no mundo divino e a consequência
«visível» da comunhão com a presença divina. Era possivelmente nesta fase da
iniciação que se fundamentava a identificação entre o rei e Ré, o principal garante da
ordem cósmica, e se criavam as capacidades do rei para irradiar a maet. Repelir os
inimigos da luz, estabelecer a justiça e ligar a terra ao céu através da manutenção da
ordem cósmica seriam os atributos reais que poderiam manifestar-se com a fase
luminosa da iniciação.510 Era esta etapa que justificava grande parte dos atributos ideais
do faraó: ser dotado de uma colossal força física,511 possuir grande inteligência e
sabedoria,512 ser eficaz na sua actuação, ser dotado de grande poder e glória, 513 ser, em
suma, o protector do povo egípcio, o «bom pastor».514
No caso do rei podia então dar-se a coroação, que era entendida como um
acontecimento cósmico da mais elevada importância, comparável ao nascer do sol e à
criação do mundo.515 A identificação entre o faraó, o sol e a cheia estava assim
concluída e manifestava-se nos poderes do rei como netjer nefer.
Em suma, o objectivo essencial da iniciação real consistia em transformar a
consciência do homem de modo a possibilitar a manifestação das qualidades divinas do
netjer nefer. Com o tempo, o modelo de iniciação real foi, como vimos, adaptado à
iniciação sacerdotal, a qual possuía, evidentemente, um alcance mais limitado. Apesar
de tudo regia-se pelos mesmos princípios estruturadores da iniciação real. O seu
objectivo consistia em criar seres animados por uma centelha «divina» dotados de
510
Sobre a caracterização da função justiceira do rei ver M.A. BONHÊME e A. FORGEAU, Le Pharaon:
Les secrets du pouvoir, pp. 178-186.
511
A força física era um atributo guerreiro que afirmava o poder da luz sobre as trevas. Para além do
significado bélico, a força estava também conotada com a virilidade. Ramsés II era o «macho e o esposo
das Duas Terras, que as tornam viçosas mais do que qualquer outra terra.». Em C. LALLOUETTE,
L´Empire des Ramsès, p. 370. Sobre a caracterização da função guerreira do rei ver M.A. BONHÊME e
A. FORGEAU, Le Pharaon: Les secrets du pouvoir, pp. 188-235.
512
A capacidade para conhecer é um atributo real fundamental. O faraó era «o que conhecia o que está
nos corpos e nos corações». «Não há nada que ele (Seti I) ignore». A inteligência dotava o rei de um
poder inigualável para a acção. Este poder é manifesto na expressão «seped her», «rosto penetrante» que
traduz a capacidade do rei para as percrutar os recantos mais insondáveis da natureza e dos homens. Em
C. LALLOUETTE, L´Empire des Ramsès, p. 370.
513
A glória estampada no rosto do rei aterroriza os inimigos: «A glória de sua majestade torna cegos» os
inimigos (em Idem, p. 373.). O rei possui, deste modo, uma aura de luz ofuscante que o associa ao sol e
ao poder da luz.
514
A imagem do bom pastor, tão característica da caracterização do Cristo do Novo Testamento,
constituia um atributo do rei típico dos povos semitas. No Egipto, uma tal caracterização do rei remonta à
X dinastia heracleopolitana e foi muito valorizada no Império Médio e épocas subsequentes. Em Idem, p.
374.
515
Esta identificação entre a coroação e o nascer do sol insinua-se, de muitas formas subtis na escrita
hieroglífica. Na Instrução de Amenemhat I, o rei dirige-se a Senuseret I do seguinte modo: «Emerges (xai)
como um deus». (Em H. FRANKFORT, Kingship of the Gods, p. 57). O verbo xa é redigido com o
hieróglifo N28 da lista de Gardiner que representa o sol a nascer sobre a colina primordial.
170
capacidade de acção na esfera celeste e terrena. Deste modo, o sacerdote (hem netjer) ou
o pai divino (it netjer) podiam substituir o faraó e garantir a oferenda de Maet.
Fundamentalmente, a iniciação sacerdotal não diferia muito da iniciação real.
Num caso como no outro procurava-se fazer passar um indivíduo do mundo terreno ao
mundo divino e celeste. Através de uma iluminação subsequente, operava-se uma
transformação interior cujo objectivo era criar seres «transcendentes» dotados de
capacidade de acção nas duas esferas.516 Deste modo, o sacerdote (hem netjer) ou o pai
divino (it netjer) podiam substituir o faraó e garantir a oferenda de Maet.
Pelo menos no Terceiro Período Intermediário, a iniciação dava-se num
determinado momento da carreira do sacerdote: a passagem de sacerdote ueb (puro)
para a categoria de sacerdote, cujo escalão inferior consistia na função de «pai do deus».
Aparentemente, havia uma idade desejável para concretizar esta passagem situada por
volta dos 25 anos.517
A introdução do vizir, tjati (TAti), no mundo divino também era acompanhada por
uma iniciação operada nos moldes da iniciação sacerdotal. Algumas diferenças deviam
matizar os dois cerimoniais já que, na maior parte das situações, o vizir já havia sido
iniciado como sacerdote. A segunda iniciação justifica-se devido à necessidade de
proceder a uma revelação mais apropriada da sua missão, enquanto representante de Tot
sobre a terra. Nesta cerimónia ser-lhe-iam atribuídas, com certeza, as insígnias da sua
função e a miniatura de Maet.518
Uma inscrição na estátua de Nesipakachuti, conservada no Museu Egípcio do
Cairo, apresenta o texto mais detalhado deste tipo de iniciação:
Vi Amon no seu horizonte na sala perfeita, no momento em que saía do oriente e então
compreendi que os deuses não são mais do que as suas manifestações ao vê-los junto dele, dispostos em
duas filas. Eu envergava uma túnica e levava a insígnia de Maet pois estava na qualidade de sacerdote,
como Tot na assembleia de Ré.519
516
Em Idem, p. 175.
517
Em Idem, p. 185.
518
Em Idem, p. 187.
519
CG 42232. Face dorsal, col. 2-4. Em Idem, p. 191.
520
Em Ibidem.
171
(sobre um pedestal que ainda aí se encontra) enquadrado por quatro nichos laterais onde
estariam guardadas as imagens divinas das hipóstases de Amon.521
521
Em Idem, p. 192.
522
Em M.A. BONHÊME e A. FORGEAU, Pharaon, p. 248.
523
Em Idem, p. 269. Os próprios signos ankh e uase desenhados sobre o rei para evocar a água,
constituem a designação do leite e aludiam a uma nutrição divina que transformava o rei. Ver Anexo I C
1-4.
524
Ver F. DAUMAS, La Civilisation de l´Égypte, p. 128.
172
consciência, o seu coração, que assim passava a estar em contacto com deus. Esta
relação com as potências divinas que regiam o cosmos fazia manifestar no coração do
rei as suas qualidades supra-humanas. A beleza divina, a força, a inteligência e a
bravura são atributos contíguos que exprimiam o esplendor de um ser excepcional.525
Neste contexto, as imagens infantis do rei exprimem as infinitas potencialidades que se
abriam com o seu nascimento divino.526 Da mesma forma devem ser entendidas as
representações do rei como Khepri, o deus solar recém nascido que se apresenta prenhe
de potencialidades.527
Doravante, o rei manifestaria o esplendor solar de Hórus e a potência guerreira
de Set para instalar a luz e afastar as trevas. A reconciliação mítica de Hórus e Set, sob a
pessoa do rei, exprime, deste modo, a afirmação do faraó como garante da ordem.528 As
forças antagónicas já não se separavam nem guerreavam entre si. O rei fazia estabelecer
entre os antagonistas um equilíbrio dinâmico e criativo sobre o qual se fundava a
própria criação.529 O extraordinário significado religioso da iniciação como processo
que culminava na transformação do homem num deus vivo explica o seu peso e a sua
influência no imaginário religioso. Adoptado pela iniciação sacerdotal a qual, com um
alcance bem menor, é certo, procurava atingir esta mesma transformação, o modelo
525
Em C. LALOUETTE, L´Empire des Ramsès, p. 368-373.
526
Em M.A. BONHÊME e A. FORGEAU, Pharaon, p. 88. A estátua de Ramsés II, entre as garras de
Horun é talvez o exemplar mais ilustrativo deste tema. Mais do que representar o rei na sua infância, o
grupo escultórico «escreve» um panfleto político. Com efeito é conhecido o facto da criança, o junco que
agarra com a mão esquerda e o disco solar que encima a testa constituírem a composição hieroglífica Ra-
ms-sw, «Nascido de Ré». A criança divina reporta-se, deste modo, à predestinação real e ao seu
nascimento divino sob a influência de Ré. Em Idem, p. 92. Ver Anexo I I 1-3. É curioso constatar que a
valorização da caracterização do rei como uma criança divina acompanhou a afirmação da piedade
pessoal na religião egípcia e a progressiva debilitação do poder político do rei. O florescimento dos
mammisi nos templos tardios constituem a formulação arquitectónica da legitimação do poder do rei
através da filiação divina. O vigor do rei era aqui formulado a partir da completa identificação entre o rei
e a criança divina. As representações de Ihi ou de Horpakhered testemunham uma realeza ameaçada que
procura insistentemente revigorar-se refugiando-se na força (quase apotropaica!) do imaginário divino
relacionado com a criança divina e com as suas infindas potencialidades de regeneração. Também
sintomática é a proliferação das representações de Isis lactens a partir da XXV dinastia, as quais
representam o faraó identificado com Horpakhered. Trata-se, na verdade, de uma cena do ritual real de
coroação que representa o nascimento divino do faraó. A valorização deste motivo iconográfico traduz a
necessidade de legitimação da realeza e o desejo de afirmar a regeneração do poder real. Em Idem, pp.
94-98.
527
Ver Anexo I L 1-3.
528
Em H. FRAKFORT, Kingship of the Gods, p. 22.
529
Este equilíbrio dinâmico traduz-se na Teologia Menfita, na articulação do coração (Hórus) e a língua
(Tot) do criador, o qual é estabelecido através da reconciliação entre Hórus e Set. Como já referimos
noutra ocasião, este célebre documento religioso associa a criação do mundo com a entronização de
Hórus e constitui uma formulação teológica da iniciação real. A reconciliação de Hórus e Set é
acompanhada pela (re)criação do mundo através do coração (Hórus) e da língua (Tot) de Ptah. Neste
texto, todos os homens conscientes desta responsabilidade, estão envolvidos neste mesmo processo
contribuindo para instalar a ordem ou a desordem. Em R. SOUSA, A Teologia Menfita, (no prelo).
173
antropológico do rei, cuidadosamente definido pela ideologia real, foi-se afirmando
gradualmente como um ideal humano a alcançar. A realeza transcendia deste modo o
horizonte político para se afirmar cada vez mais como um ideal de vida que todo o
homem sábio devia aspirar.
530
As duas perspectivas articulavam-se em função do número de indivíduos que pretendiam atingir. Se a
literatura sapiencial veiculava um modelo de comportamento bipolarizado tal prendia-se sobretudo com o
objectivo de simplificar o ensinamento e dotá-lo de eficácia pedagócica. Os ensinamentos do templo, por
outro lado, requeriam um grau de instrução mais diferenciado pois, embora não negassem a validade do
modelo tradicional, preocupado com as questões práticas do quotidiano, enquadravam-no num plano mais
geral onde as questões humanas se dissolviam numa realidade cósmica mais abrangente. Nos dois casos,
no entanto, o alvo do conhecimento era o mesmo, pois ambos procuravam definir e compreender a maet,
muito embora o seu enquadramento nas duas abordagens diferissem no plano de estudo. A literatura
sapiencial estudava a maet no comportamento humano e o conhecimento do templo estudava-a no plano
cósmico. Em G. ENGLUND, «The treatment of opposites in temple thinking and wisdom literature», p.
87.
531
Idem, p. 77.
174
reconhece que ninguém é perfeito e que a conduta humana oscilava entre estes dois
pólos. Estas diferenças mostram que, quanto mais irreconciliáveis estes modelos se
apresentassem, maior era a preocupação pedagógica do texto que, longe de descrever
uma realidade, veiculava o comportamento ideal que os funcionários deviam adoptar e
manter em mente para o aplicar no seu quotidiano.532
Estes ensinamentos veiculados pelas instruções sapienciais eram
complementados pelas especulações mais abstractas, de carácter teológico, que eram
formuladas no interior do templo, as quais faziam parte de um corpo de conhecimentos
«iniciáticos» no sentido em que não tinham como objectivo a divulgação, mas sim a
«revelação» das verdades divinas ao pequeno círculo de indivíduos que progredira o
suficiente na hierarquia sacerdotal para as conhecer.533 Estes ensinamentos alicerçavam-
se numa visão dualista do mundo da qual resultava a articulação do cosmos e do caos,
da vida e da morte, da luz e da treva. O dualismo possuía um enorme significado
religioso evocando a criação do mundo e a totalidade do universo. Era da união destes
aspectos que resultava a manutenção da ordem cósmica. Em resultado desta visão
dualista, a espiritualidade do templo articulava os opostos como uma unidade
interdependente. Ao invés da caracterização dos textos sapienciais, na iconografia usada
no templo, Hórus e Set constituíam uma unidade interdependente de tal modo que
podiam ser associados no mesmo deus, «O das duas faces», Herui (Hrwy). Na
espiritualidade mais abstracta do templo, o antagonismo entre estes deuses exprimia a
plenitude da vida.534
Oriunda do contexto do templo, a noção de iniciação é alicerçada nesta visão
dualista da natureza humana, razão pela qual a iniciação do faraó envolve sempre a
participação de Hórus e Set (ou Tot). Reunindo as duas naturezas através da
transformação da sua consciência, o faraó realizava em si mesmo o que devia realizar
532
Também as narrativas recorriam a este modelo evidenciando, no entanto, uma perspectiva mais
dinâmica. O enredo servia o propósito de confrontar os dois modelos de conduta e de permitir extrair
lições de vida relacionadas com a conduta. As Aventuras de Hórus e Set, o Conto dos Dois Irmãos,
Verdade e Mentira, são alguns dos muitos exemplos que recorrem ao modelo antitético de
comportamento como um importante recurso para tecer a trama narrativa com propósitos moralizadores.
Este modelo de conduta também tinha implicações de ordem sociológica. O homem silencioso
personificava a ordem e constituía o modelo da conduta regrada que imperava nos períodos de
estabilidade. Durante as crises, quando a ordem era invertida, predominava o homem colérico. A ordem
individual era, deste modo, solidária com a ordem política. Idem, p. 87.
533
Citando Assmann, Englund refere que, entre hinos religiosos redigidos nos túmlos do Império Novo,
se registam duas tendências distintas. Uma tendência conservadora, veícula um material tradicional e
muito difundido na literatura «pedagógica». Outra tendência, inovadora, apresenta novas ideias e novas
formas de as expressar. Em geral, o funcionário ligado às correntes «inovadoras» desempenhava funções
sacerdotais mais elevadas. Em Idem, p. 86.
534
Idem, p. 79. Ver Anexo I E 1.
175
no cosmos egípcio: reunir as Duas Terras, ou seja, assegurar a recriação do mundo,
assinalando assim um novo nascimento e o início de uma vida consagrada e
divinizada.535 A possibilidade de regeneração e consagração estava, deste modo,
profundamente enraizada nas crenças cosmológicas egípcias que assentavam numa
relação dinâmica entre o caos e a ordem. Da mesma forma como a serpente Mehen, o
Uroboros da tradição clássica,536 envolvia a existência com as águas da regeneração, o
homem que unia em si os princípios antagónicos da luz e da treva recriava em si o
tempo original da criação, podendo assim mergulhar nas águas primordiais (simbolizada
na água derramada sobre o rei-sacerdote) e renascer purificado e divino.
Em termos mais concretos, a união dos princípios antagónicos personificados em
Hórus e Set traduzia-se na unidade que o neófito devia criar entre o coração (a
consciência superior e conectiva) e o ventre (a consciência inferior e egoísta). 537 A
iconografia religiosa evidencia vários modos de estabelecer este equilíbrio. O deus
Herui, acima referido, exprime um equilíbrio de forças entre Hórus e Set, mas
corresponde a uma situação excepcional, em geral, relacionada com os mistérios da
regeneração. O desenlace mais frequente entre os dois antagonistas manifesta-se
iconograficamente na vitória de Hórus sobre Set, como se observa amiúde na decoração
dos templos.538 Uma representação menos directa mas igualmente plausível da
conciliação entre as duas naturezas do homem pode ser encontrada nas estelas mágicas
que representam o deus Horpakhered sobre os crocodilos.539 Para além de simbolizarem
a vitória da luz sobre as trevas, da pureza sobre os elementos do caos, estas estelas
535
Ver Anexo I D 1-2.
536
E. HORNUNG, Les Dieux d´Égypte, p. 162. O Uroboros é a versão romana que significa «o que
engole a própria cauda» e corresponde a um símbolo egípcio designado «O da cauda na boca», sd-m-ra.
Originalmente, no entanto, a serpente Sedemerá recebia a designação de Mehen, mHn. Em Ibidem, nota
133.
537
Estas crenças teriam, com certeza, reflexo no comportamento adoptado pelo sacerdote que assim devia
manifestar nos actos da vida corrente o ideal do homem silencioso, de coração ouvinte, e evitar o
comportamento típico dos que se deixam governar pelo ventre, ou seja pelos interesses pessoais e pelos
prazeres. A tradução comportamental destas crenças era notória para os visitantes da Antiguidade, como
Porfírio: «Com a contemplação, eles conquistam o respeito, a segurança de ânimo e a piedade; com a
reflexão conquistam a ciência e com ambas chegam à prática de costumes esotéricos e dignos do tempo
passado. Porque o facto de estarem sempre em contacto com a ciência e a inspiração divina exclui a
avareza, reprime as paixões e estimula a vitalidade da inteligência. São simples no viver e no vestir,
praticam a temperança e a austeridade, a justiça e o desinteresse. O seu passo é medido, o seu olhar
modesto e fixo e não se volta para todos os lados; o riso é raro e não passa de um sorriso, as suas mãos
estão sempre ocultas sob as vestes (...) quanto ao vinho, alguns não o bebem, outros bebem muito pouco,
porque, segundo dizem, o vinho prejudica as veias e, perturbando a cabeça, desvia-a da especulação».
Porfírio, De Abst. , 4, 6-8. Em S. PERNIGOTTI, «O Sacerdote», em S. DONADONI (dir), O Homem
Egípcio, p. 111.
538
Ver Anexo I E 3.
539
Ver Anexo I N 1-2.
176
podiam também representar a transformação operada na consciência do neófito pela
iniciação sacerdotal. O significado das estátuas que representam um sábio (ou «mago»)
a segurar o cippus seria, nesta óptica, o de comemorar o evento mágico da sua iniciação
e do nascimento da sua nova consciência divinizada.540 O jovem deus seria aqui
representado como a personificação da consciência luminosa e divina do neófito que
dominava os crocodilos e as feras evocadoras dos elementos setianos do homem. A
cabeça de Bés que encima estas composições assinalaria, nesta perspectiva, o «parto» da
criança divina no neófito.541
Seja como for, ao se apropriarem destes rituais, os sacerdotes não procediam a
uma usurpação mas antes a uma concepção da existência humana formulada segundo o
mito da identidade real. A transformação do homem através da iniciação devia fazer «de
cada homem um rei».542
Era depois desta consagração que o sacerdote podia então ser apresentado diante do
deus. A estátua CG 42230 do Museu Egípcio do Cairo apresenta uma alusão a esta
transformação, na seguinte inscrição formulada por um sacerdote:
Eu fui apresentado diante do deus, sendo um jovem excelente. Fui introduzido no horizonte do
céu (...) Eu emergi do Nun e fui purificado do mal que havia em mim. Removi as minhas vestes e
bálsamos, como Hórus e Set foram purificados. Avancei diante do deus no seu santuário mais secreto,
cheio de pavor diante do seu poder.543
177
Na visão egípcia do mundo, a criação estava sempre ameaçada pelas forças
desagregadoras que permanentemente ameaçam a ordem que o demiurgo imprimiu ao
mundo. Ré, o deus solar, era o garante desta ordem que reinava sobre o universo criado
e era ele que quotidianamente combatia Apopis, a serpente devoradora da luz. Este
combate entre o poder da luz e as forças que lhe são hostis é frequentemente ilustrado
nas estelas curandeiras da Época Baixa onde Horpakhered se ergue sobre o dorso de
crocodilos e empunha cobras e animais selvagens.545 A cura miraculosa de
Horpakhered ilustrada nesta estelas tornou-se o paradigma da cura e o modelo, por
excelência, da vitória da luz sobre as trevas, da morte sobre a vida, da pureza sobre a
corrupção e o pútrido. O mito da cura mágica de Hórus resumia, deste modo, a função
faraónica: manter intacta a ordem do mundo e afastar as causas da corrupção e da
morte. A cura era, deste modo, consentânea com a acção real e com a acção do
criador.546 Na verdade, do ponto de vista histórico, as atribuições terapêuticas das
estelas curandeiras do jovem Hórus decalcavam as responsabilidades maéticas das
representações apotropaicas do rei representado sob a forma do deus Ched. Enquanto
este deus, cujo nome significa «Salvador», começou a ser representado na XVIII
dinastia, no reinado de Akhenaton, os cippi de Horpakhered só se multiplicaram a
partir da Época Baixa. O facto das representações do deus Ched constituírem o modelo
inspirador para as representações patentes nos cippi de Horpakhered é indiscutível. O
deus Ched representa o rei como uma criança, em geral com a trança lateral e com o
uraeus real, montado sobre crocodilos e empunhando animais selvagens nas mãos. O
significado da representação parece reportar-se ao significado que a infância tinha na
ideologia real. A criança real significava, não uma etapa cronológica, mas sim o
«nascimento» divino do rei que ocorrera com a coroação. O deus Ched representava,
deste modo, o rei recém-nascido com todos os poderes divinos de um netjer nefer que
permitiam ao faraó estabelecer a ordem maética e purificar o mundo através de um
545
A imagem ilustra um mito bem conhecido que narra a infância atribulada do deus entre as florestas de
papiro do delta do Nilo, para onde a sua mãe, Ísis, foi obrigada a refugiar-se para escapar à perseguição
movida por Set. Uma vez que as florestas de papiro simbolizavam o caos e a ameaça permanente à vida,
inevitavelmente o jovem deus acabou por ser vítima da mordedura de um animal venenoso. Foi então que
Ísis e Tot, articulando o seu saber mágico, conjuraram o veneno para salvar a criança divina.
546
Nesta perspectiva, a cura envolvia sempre um combate com as forças da treva que comprometiam a
integridade da ordem cósmica e constituía uma responsabilidade real relacionada com a manutenção da
ordem cósmica. Tal como o rei esmagava os inimigos do Egipto, o deus Horpakhered esmagava os
animais selvagens e venenosos mostrando o seu domínio sobre as criaturas que corporizavam o deus Set
que espalhava a morte.
178
regresso ao tempo da origem da criação. Era provavelmente esta associação entre a
criança real, símbolo da iniciação real, e a regeneração do mundo que motivou as
propriedades apotropaicas do deus Ched e, mais tarde, de Horpakhered. 547 Mais do que
simples representações de deuses crianças, estas estelas constituíam uma evocação do
poder da iniciação para restabelecer a pureza primordial e a ordem cósmica. Em
resultado da multidimensionalidade da noção do coração, a iniciação não significava
apenas um novo nascimento espiritual. Se do ponto de vista mental, a iniciação se
traduzia numa nova «consciência», numa nova forma de encarar o mundo e o cosmos,
esta transformação também se repercutia sobre a dimensão orgânica do coração. Nesta
óptica, a iniciação harmonizava o indivíduo com a maet não só ao nível da consciência,
mas também ao nível corporal, proporcionando-lhe uma «cura», uma regeneração do
poder da vida. As estátuas mágicas colocavam à disposição do homem comum o poder
apotropaico desta imagem para que, mesmo os que não fossem iniciados pudessem
usar o poder deste símbolo na luta contra as forças do caos que causavam as doenças.
No horizonte funerário esta «cura» concretizava-se na ressurreição do defunto a qual,
como veremos, segue o modelo de um novo nascimento sob a forma de uma criança
divina com fortes conotações reais. Este renascimento, representado em certas vinhetas
da psicostasia, constituía a iniciação final do defunto. Voltaremos, na segunda e na
terceira parte do nosso trabalho, a abordar a componente funerária da iniciação.
547
A substituição do deus Ched por Horpakhered, generalizada a partir da Época Baixa, é mais um
sintoma de uma importante reviravolta que marcou a espiritualidade egípcia tardia: o crescimento da
piedade pessoal. Ver Y. KOENIG, Magie et Magiciens dans l´Égypte Ancienne, pp. 100-109. Numa
sociedade em que o rei já não era o modelo da vitória da luz sobre as trevas, da pureza sobre a corrupção,
foi no deus Horpakhered, mais distanciado da figura real, que se buscou a inspiração para desempenhar a
função de cura e de protecção contra os adversários da luz. O reflexo de uma relação pessoal com o deus
na cura é intensificado nos monumentos em que a estela de Horpakhered é integrada numa estátua mágica
que representa uma grande personalidade, em geral um sacerdote altamente colocado na hierarquia,
assegurando um papel de intermediário com as forças mágicas que garantem a cura. A multiplicação dos
dispositivos mágicos a partir da Época Baixa reflecte, deste modo, o enfraquecimento da coesão social
que antes era garantida pelo rei.
179
180
II PARTE
181
182
Na segunda parte do nosso trabalho iremos debruçarmo-nos sobre as
representações do coração associadas ao imaginário da morte. Começaremos assim por
delimitar o enquadramento mitológico destas representações nos ciclos mitológicos de
Ré e de Osíris para, em seguida, caracterizar a função e o papel do coração nas várias
etapas da ressurreição do defunto.
1. O regresso à origem
548
Texto de Nut, em Apêndice X.
183
coração está contigo como teu» indica que era o próprio coração da deusa que
reanimava o defunto, à semelhança do que sucede na gestação de um feto no ventre
materno.549 No entanto, a possibilidade de entrar no ventre da deusa cósmica
dependia da justificação conseguida no tribunal de Osíris:
O regresso ao ventre materno só era permitido aos defuntos que fossem bem
sucedidos no julgamento dos mortos. Era o summum bonum, o fim mais almejado. Só os
justos podiam rejuvenescer no ventre da grande mãe, ligando-se para sempre ao
551
percurso do sol. O regresso ao seio da mãe universal significava, deste modo, o
acesso ao renascimento, pois estabelecia um paralelo entre o defunto e o sol que
quotidianamente era tragado pela deusa celeste para se regenerar e ser dado à luz em
cada manhã. A forma de regeneração, no entanto, podia diferir. Em certos casos, o
defunto regenerava-se ao longo da passagem pelo céu. O corpo de Nut era, nesta
perspectiva, o oceano onde o defunto se purificava.552 No entanto, a mesma
regeneração podia ser obtida descendo ao mundo subterrâneo, onde também envolvia a
água do Nun.553 Deste modo, as referências à regeneração podiam ser colocadas sob o
549
O acolhimento maternal de Nut está bem exemplificado nas pinturas internas dos sarcófagos onde a
imagem da deusa celestial está de braços abertos, pronta para receber o seu filho Osíris (o defunto) no seu
seio. Um bom paradigma pode ver-se na colecção egípcia do Museu Nacional de Arqueologia (sarcófago
de Pabasa), da Época Greco-Romana. Ver anexo IV 4.B 1.
550
Versão francesa em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 261.
551
Idem., p. 267. Estas crenças reflectiam-se naturalmente no modo como os vivos encaravam o
aproximar da morte. Ao chegar a velhice, o homem via na morte a possibilidade de rejuvenescer: «Ah,
que eu possa rejuvenescer, pois a velhice chegou, a fragilidade venceu-me, os meus olhos estão pesados e
os meus braços inertes, as minhas pernas deixaram de seguir o meu coração cansado. Estou prestes a
passar. Que eu seja levado à cidade da eternidade, para que possa seguir a senhora do universo. Então ela
dirá as palavras benéficas para os seus filhos e percorrerá a eternidade debaixo de mim».Em .Aventura de
Sinuhe. Versão francesa em Idem, p. 281.
552
Em L. SPELLEERS, «La résurrection et la toilette du mort selon les Textes des Pyramides», RdE 3
(1938), pp. 37-67. Estas crenças já se detectam nos «Textos das Pirâmides»: «Purifica-te! Tua mãe Nut, a
grande protectora, purifica-te, protege-te », Pir § 843. Versão inglesa em R. FAULKNER, The Ancient
Egyptian Pyramid Texts, p. 150.
553
A via para o rejuvenescimento implica sempre esta imersão na água primordial: «Revivemos depois de
entrar no Nun, ele faz-nos reverdescer como aquele que agora começa a viver a juventude. O idoso foi
184
signo da ascencio, da ascensão ao céu, ou sob o signo do descensus, a descida ao mundo
subterrâneo. A finalidade, no entanto, era a mesma: mergulhar nas águas primordiais
regeneradoras, conseguir a união com o disco solar. À regeneração operada no seio de
Nut seguia-se assim o renascimento sob a forma do sol nascente. O estado de
regeneração do defunto identificado com o sol manifestava-se num estado de espírito
poderoso: a alegria. Veremos em seguida o significado cósmico da alegria como
expressão da regeneração solar operada pela deusa do céu.
2. O poder da «alegria»
Eu sou o espírito glorioso de coração alegre. (...) Eu feri Set na margem dos dois íbis. Eu não
dou o meu poder mágico a estas duas Meret, as duas favoritas de Ré, elas encontraram-me equipado do
meu poder mágico diante dos grandes. 554
deixado de lado, um novo foi estabelecido.», versão francesa em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans
l´Égypte ancienne, p. 279.
554
TdS 444, Versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 335
555
« Eu purifico-te com a vida e o poder para que possas ter o vigor da juventude como o teu pai e
realizar a festa Sed como Atum, aparecendo glorioso como senhor da alegria », versão francesa em J.
LECLANT, «Les rites de purification dans le cérémonial pharaonique du couronnement», p. 49.
185
real. Em resultado desta identificação a alegria irradiava do coração do defunto,
do mesmo modo como irradiava do sol renascido em cada manhã.556
556
A «dilatação de coração» mostrava a profunda ligação que unia todas as criaturas ao sol. No plano
cósmico, a alegria irradiava do sol, mas em cada um dos planos da existência humana havia um «sol» de
onde este poder se libertava. No plano político este sol era o rei. À semelhança do sol, cada vez que
aparecia, o rei espalhava a alegria entre os homens. No plano individual, o sol era o próprio coração que,
através da sua força e da sua «grandeza», manifestava a imortalidade conquistada pelo defunto.
557
Ver A. LLOYD, «Psychology and society in the Ancient Egyptian cult of the dead», p. 126.
558
Especialmente no Império Antigo a lustração solar simbolizava o nascimento do sol a partir das águas
primordiais. A imersão na água proporcionava o renascimento do rei identificado com o sol. Através
desta purificação, que equivalia à criação do mundo, o rei assumia então um estado de akh. Em C.
SPIESER, «L´eau et la regeneration des morts d´après les représentations des tombes thébaines du
Nouvel Empire», DdÉ 72 (1997), p. 221.
559
Era nesta água primordial que se regenerava o sol matinal antes de ascender novamente ao céu. Em A.
BLACKMAN, «Sacramental ideas and usages in ancient Egypt», RT 39 (1920), p. 47.
560
J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 524.
561
A origem deste ritual prende-se com o culto do sol de Heliópolis. Através da água, identificada com o
Nun, o faraó renascia totalmente identificado com a natureza divina do deus sol. Ver A. BLACKMAN,
«Some notes on the Ancient Egyptian practice of washing the dead», JEA 5 (1918), pp. 117-118. Um
inventário sucinto das cenas relacionadas com a purificação é apresentada em A. GARDINER, «The
baptism of pharaoh», JEA 36 (1950), pp. 3-12.
186
concedia a essência solar que o distinguia dos restantes humanos.562 O renascimento do
defunto identificado com o sol assimilava-se, deste modo, a um ritual de coroação real,
uma vez que o defunto tomava a forma do príncipe cósmico, o rei da criação.
562
Abluções com este teor aparentemente também podiam figurar nos rituais relacionados com a
justificação do defunto, como o ritual da abertura da boca, onde a afirmação do estatuto real do defunto
também era uma preocupação central. Ver «Ritual de abertura da boca» (§ II), Idem., pp. 108-109.
Também em Apêndice X.
563
As primeiras representações deste ritual datam da XVIII dinastia e reenviam para a criação do mundo,
para um tempo mítico. Também nos «Textos das Pirâmides», a fórmula 222 parece indicar a relização de
um ritual semelhante: «Ergue-te sobre esta terra saída de Atum (...) manifesta-te sobre ela, sê exaltado
sobre ela para que o teu pai te possa avistar, para que Ré te possa ver». Versão inglesa em R.
FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 49.
564
Estátuas mumiformes podiam adornar os espaços inter-colunares das paredes. A introdução destas
alterações na arquitectura funerária traduz a importância crescente do culto solar na religião funerária. Na
porta do túmulo é muito frequente a representação da saída para o dia no batente sul, ao nascer do sol, e o
regresso ao túmulo, ao poente, representado no batente norte. Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans
l´Égypte ancienne, p. 470.
565
Idem, p. 469.
566
Purificações deste tipo foram representadas, por exemplo, no túmulo de Sennefer (TT 96- Ver anexo
IV 2.K 1.) e no túmulo de Siesi (ver anexo IV 2.K 2.) em Abido, onde parecem estar relacionadas com o
ritual da abertura da boca. Nestas representações o amuleto do coração foi colocado sobre a estátua do ka
e não sobre o defunto.
567
Ver A. GARDINER, «The Baptism of Pharaoh», JEA 36 (1950), pp. 3-12.
187
do horizonte, de modo a tornar mais completa a identificação entre o defunto e o sol
renascido.568
O enorme prestígio que advinha da execução de uma cerimónia deste teor é
congruente com o facto de, na XVIII dinastia, representações deste tipo serem muito
raras e encontrarem-se unicamente nos túmulos dos mais altos dignitários.569 No
período ramséssida, os sacerdotes que assistiam à cerimónia foram substituídos pelos
próprios deuses, em geral Hórus e Tot.570 Na XXI dinastia, no ataúde de Amenemopet,
o ritual é celebrado por Anúbis e uma divindade indeterminada.571 Como se detecta pela
própria evolução do tema, este segundo grupo de representações apresenta afinidades
simbólicas muito mais estreitas com a purificação real que assinalava o nascimento
divino do faraó.
Não há dúvida, portanto, que a cerimónia assegurava ao defunto uma imitatio
regis e colocava ao alcance dos altos dignitários o despertar da centelha divina que se
desejava para o faraó. Deste modo, para além do significado regenerador, esta
cerimónia dotava o defunto renascido com um estatuto divino e associava o seu
renascimento no Além ao imaginário da criação do mundo.572 O que é interessante é que
em muitas destas representações não foi descurada a representação do amuleto do
coração. Integrado nesta sequência ritual, o objecto simbolizava certamente a
identificação do coração do defunto com a consciência divina e solar do próprio sol.
Voltaremos a esta questão na terceira parte do nosso trabalho.
568
Como acontece na lustração solar de Sennefer,Ver anexo IV 2.K 4.
569
É o caso do túmulo de Sennefer (ver anexo IV 2.K 4) e de Ramés (ver anexo IV 2.K 6), ambos
detentores do cargo de governador de Tebas, nos reinados de Amen-hotep II e Amen-hotep III,
respectivamente. Ainda da XVIII dinastia figura a cerimónia de purificação do túmulo de Duauneheh (ver
anexo IV 2.K 3). Do período ramséssida, perfila-se ainda a cena de purificação representada no túmulo de
Userhat (Ver anexo IV 2.K 7).
570
É o que sucede, no período ramséssida, no túmulo de Neferabu (Ver anexo IV 2.K 8.) e no relevo de
Merenptah, talhado no Osireion de Abido (ver anexo IV 2.K 10.)
571
Ver anexo IV 2.K 11.
572
A. BLACKMAN, «Sacramental ideas and usages in Ancient Egypt», RT 39 (1920), pp. 45-48.
188
4. O coração no percurso da saída para o dia
573
A saída para o dia, peret em heru (prt m hrw) constitui uma das
divisões mais interessantes do «Livro dos Mortos», ao longo da qual o defunto segue o
percurso do sol no mundo terreno. É o capítulo 64 que introduz este tema e apresenta
«numa só fórmula» a transfiguração solar do defunto.574 O texto começa por fazer uma
alusão, que se tornou célebre, à perenidade e ao mistério profundo do ciclo solar: «Eu
sou o ontem, a alvorada do dia de hoje e o amanhã».575 Em seguida, é feita uma alusão à
alvorada: «Um brilho verde emana das águas celestes de Ptah quando Ré sorri». Esta
luz verde,576 que banhava a criação quando a luz despontava no céu oriental, era a
manifestação visível da vibração que animava, nesse momento, toda a criação que se
preparava para receber o sol. Tal vibração constituía a manifestação do poder da vida
atribuído ao sol e era, como vimos, a «alegria». Era chegado, pois, o momento do
defunto seguir o caminho do sol. Para tal, o defunto adoptava a forma de um jovem
divino e robusto (capítulo 69), gerado por Nut e plenamente dotado com o poder da vida
e com a alegria:
Eu sou o Incandescente (...) Eu sou Osíris, o senhor das cabeças, de peito pleno de vida, de
traseiro poderoso, de falo vigoroso, no mundo dos humanos. Eu sou Orion, que atingiu a sua terra, aquele
que avança diante do mundo estrelado do céu no corpo da minha mãe Nut. Ela engravidou segundo o seu
desejo e criou-me com a alegria do coração. (...) Eu sou o touro que preside aos Campos de Iaru. Eu sou
Osíris, Geb é meu pai e Nut é a minha mãe. 577
573
Embora a saída para o dia em rigor termine no capítulo 121, os textos desta secção parecem convergir
para o capítulo 125. O próprio capítulo 64, que apresenta um resumo desta secção, também estende a sua
atenção sobre a assembleia presidida por Osíris na sala das Duas Maet. Também Barguet inclui nesta
secção o tribunal divino relegando para a IV parte a viagem no mundo inferior propriamente dita.
574
O texto era encarado, já na Antiguidade, como um resumo de toda a composição, condensado as
principais dimensões da espiritualidade egípcia sobre o Além, razão pela qual, no dizer de Barguet,
também constitui uma das composições mais difíceis de traduzir de todo o livro.
575
Capítulo 64 do «Livro dos Mortos». Ver Apêndice IX.
576
A luz verde da alvorada é frequentemente cantada dos hinos religiosos e está na origem da eleição da
faiança como material de eleição dos amuletos funerários.
577
Capítulo 69 do «Livro dos Mortos», ver Apêndice IX.
578
Estas fórmulas apresentam uma sequência fixa de metamorfoses cuja unidade lhe confere o carácter de
um autêntico «Livro das Transformações», à semelhança do «Livro das Transformações de Ré», que
descreve 24 manifestações do deus ao longo das horas do dia.
189
longo das doze horas do dia.579 O papel das transformações na saída para o dia
relacionava-se certamente com a necessidade do defunto se imbuir com os poderes do
sol e obter poder divino.580 Simbolicamente, as transformações assinalavam também a
divinização do defunto que se processava em Heliópolis através da iniciação ao culto de
Atum que conferia ao defunto o estatuto de uma divindade (capítulo 79).581 Seguindo
uma concepção característica do ritual divino, o culto exercia o seu efeito transformador
sobre o defunto que então se transformava em Atum e, presidindo à criação, se
alimentava das oferendas alimentares.582 Com efeito, a saída para o dia estava eivada de
preocupações relacionadas com a vivificação através de alimentos.583
Especialmente importante para o nosso estudo é a transformação em ave benu (o
capítulo 83). Esta poderosa transformação que associava o defunto à forma primordial
do sol, indica que a sucessão das transformações devia ser ditada pelo coração do
defunto, ao sabor do seu desejo:
Quem conhecer esta fórmula, estando em estado de pureza, poderá sair para o dia depois da sua
morte e tomar as formas que o seu coração desejar, estar entre os seguidores de Uennefer, tomar parte do
repasto de Osíris, possuir oferendas funerárias, ver o disco solar e ser próspero sobre a terra junto de Ré,
bem como ser justificado junto de Osíris, sem que mal algum recaia sobre ele. Revelou-se eficaz milhões
de vezes. 584
579
O defunto transformava-se em falcão de ouro (capítulo 77, em Apêndice IX), em falcão divino
(capítulo 78), em Atum (capítulo 79, em Apêndice IX), num deus cintilante (capítulo 80), num lótus
divino (capítulo 81 A e B), em Ptah (capítulo 82), em ave benu (capítulo 83, em Apêndice IX, e 84), num
ba vivo (capítulo 85), numa andorinha (capítulo 86, em Apêndice IX), em serpente Sata (capítulo 87) e
finalmente num crocodilo (capítulo 88).
580
Uma das suas principais aspirações era, com efeito, é a de se tornar um ba vivo, ou seja, uma
manifestação plena de poder divino. Era, com efeito, o ba a noção que expressava o poder divino do
defunto, permitindo ao defunto circular livremente entre os mundos. No capítulo 85 do defunto identifica-
se com o sol, com o Nun e com o ba do senhor universal. A transformação em ba vivo procura o regresso
ao momento cosmogónico onde pela «primeira vez» o sol emergiu do oceano primordial. Esta energia
cósmica primitiva, que assegura desde então a marcha do mundo, faz sair o sol renascido quotidianamente
todas as manhãs.
581
Ver capítulo 79 do «Livro dos Mortos», em Apêndice IX
582
«Eu sou Atum) e reino sobre o meu trono que está no horizonte, recebo as oferendas que são depostas
nos meus altares, bebo canecas de cerveja ao anoitecer, na minha dignidade de senhor de tudo. Eu sou
exaltado como deus sagrado, senhor do grande palácio, que faz rejubilar os deuses quando sai do seio do
céu inferior, quando a sua mãe Nut o dá à luz em cada dia». Capítulo 79 do «Livro dos Mortos», em
Apêndice IX.
583
Outras transformações adoptadas pelo defunto revelam o mesmo interesse na função alimentadora
destas metamorfoses, as quais visavam proporcionar ao defunto a possibilidade de se abastecer com as
oferendas colocadas nos altares dos deuses de Heliópolis. É o caso dos capítulos 80 e 82, em que o
defunto se identifica com «um deus cintilante» e com Ptah, respectivamente. A ênfase colocada nas
oferendas alimentares nestes capítulos indica que o seu objectivo é o de permitir ao defunto alimentar-se
das mesas de oferendas divinas.
584
Capítulo 83 do «Livro dos Mortos», em Apêndice IX.
190
As principais funções das transformações são aqui resumidas: alimentar-se de
oferendas divinas, ver o disco solar e justificar-se diante de Osíris. A necessidade de se
regenerar sob a acção dos raios solares é uma das dimensões apontadas, e constitui a
principal preocupação dos capítulos 83-88, onde o defunto se identifica com as
manifestações luminosas do sol. A transformação numa andorinha garantia a pureza do
coração do defunto e preparava-o para prosseguir para os Campos de Iaru:
Fórmula para se transformar numa andorinha: «Eu sou uma andorinha, eu sou uma andorinha
(...) Purifiquei-me neste grande planalto. Extirpei os meus pecados, deitei à terra as impurezas que
conspurcavam o meu coração. Guardiões das portas abri o caminho para mim, pois eu sou vosso igual. Eu
saio para o dia (...) Eu conheço os caminhos misteriosos e os portais dos Campos de Iaru. 585
Louvor a ti que rasgaste as águas e emergiste das águas primordiais. Tens assento à popa da tua
barca (...) Ó Ré, o teu nome é mágico. Os mistérios da tua gruta são revelados para iniciar o coração da
tua Enéade. Revela os teus segredos ao meu coração (lit. «volta o coração de N. para ti»), pois quando
floresces também eu floresço. 587
585
Capítulo 86 do «Livro dos Mortos», em Apêndice IX.
586
Também Zakbar reconhece nestas transformações vestígios da religião pré-histórica. Ver L.
ZABKAR, «Herodotus and the Egyptian idea of immortality», JNES 22 (1963), p. 60.
587
Capítulo 101 do «Livro dos Mortos», adaptado das versões francesas propostas por P. BARGUET, Le
Livre des Morts, p. 276 e G. KOLPAKTCHY, Livre des Morts, p. 187.
191
dos Campos de Iaru introduzia a ideia de uma passagem que só seria facultada se
detivesse o conhecimento mágico necessário para fazer parte da tripulação da barca
sagrada. Este conhecimento era avaliado através de um inquérito esotérico em que o
defunto enumerava todas as partes do barco e relacionava-as com divindades. Através
desta relação, o defunto evidenciava o saber que possuía sobre o mundo divino.588 O
saber libertava o morto e mostrava a via da vida eterna. A religião funerária baseava-se,
deste modo, na crença no valor libertador do saber que estava sediado no coração. 589
Se provasse que possuía o conhecimento divino, o defunto era então integrado
na tripulação da barca e era associado às tarefas relacionadas com a manutenção da
ordem cósmica. Numa vinheta do capítulo 102 de um papiro da XIX dinastia,590 a
representação da integração do defunto na barca solar é relacionada com a luz que
irradia do seu coração, representado como um sol nascente.591 Estas imagens
reforçavam a ideia que o acesso à barca solar era facultado graças ao coração do
defunto, que o tornava merecedor da sua incorporação na tripulação divina.
Antes de chegar aos Campos de Iaru, a barca solar tinha ainda de se defrontar
com uma grave ameaça: no cume da montanha de Baku, onde repousava o céu, habitava
uma serpente monstruosa que atacava Ré e a sua barca, «provocando uma grande
confusão na navegação».592 Era o próprio Set que, surgindo à proa da barca, punha o
monstro em respeito:
Recua diante da ponta da lança que empunho! (...) Recua diante de mim, pois eu sou o macho
(...), aquele cujo poder mágico é grande. 593
588
Em certas vinhetas do «Livro dos Mortos» o defunto exibe o coração diante da barca de Ré,
certamente com intuito de demonstrar o seu mérito para poder ingressar na barca divina. Ver apêndice V
7.72.
589
Em certas composições esta passagem envolve muitos riscos que se podem materializar em caçadores
que estendem uma rede sobre a água. O defunto escapa à armadilha nomeando todos os elementos da
armadilha, recorrendo a uma linguagem esotérica que o identifica como um iniciado. Outros artifícios
usados para passar para a outra margem recorrem ao mesmo processo mágico. J. ASSMANN, Mort et au-
delà dans l´Égypte ancienne, p. 244.
590
Ver anexo V 7.72.
591
É frequente esta representação do sol entre os braços dos deuses celestes, como Nut ou Nun. Para o
significado iconográfico do gesto ver R. WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 51.
592
Capítulo 108 do «Livro dos Mortos», versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des Morts, p. 142.
593
Ibidem.
192
onde se vislumbravam finalmente os paradisíacos Campos de Iaru.594 Esta região era um
lugar de vida eterna, o domínio da deusa árvore, onde o defunto estava em segurança. 595
O capítulo 110 descreve este lugar como uma paisagem mítica onde todas as
necessidades vitais do defunto eram satisfeitas e onde o poder da vida se manifestava
plenamente no coração do defunto, quer no plano físico, através da força, quer no plano
intelectual, recuperando a memória:
Palavras ditas por N. quando louva a assembleia divina no duplo campo da satisfação. (...) Eu
vivo em Hotep (...) o meu poder mágico é potente, o vigor está no meu coração, pois eu recordo-me do
que havia esquecido. Eu ando, trabalho e semeio. (...) Ó Senhora das Duas Terras, estabeleces firmemente
o meu poder mágico, pois recordo-me de tudo o que havia esquecido. Eu estou pleno de vida, sem sofrer
injúrias ou acusações! Concede-me a alegria do coração e a paz (...) Eu vim aqui, o meu coração e a
minha cabeça estão intactos sob a influência da coroa branca. Eu guio os que estão no céu e reconforto os
596
que estão na terra (...)
594
No «Livro dos Mortos» também esta região também se podia denominar «Campos de Hotep», ou
campos da Satisfação. No entanto, para manter a uniformidade do nosso texto, e dado que se reportam à
mesma realidade mítica, adoptamos ao longo de todo o nosso estudo a designação mais conhecida de
Campos de Iaru.
595
Em certas fórmulas, este lugar é descrito como uma cidade que liberta o defunto da morte: «Ele olha, o
que aproxima desta cidade (...) Quem aí chega não perece (lit.: «não toca o chão»). Quem aí entra torna-se
um deus. Olha, através dessa visão, Khentiamenti, tornas-te um deus no seu centro.» Em J. ASSMANN,
Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 239. O lugar de vida eterna também podia ser descrito como
uma margem situada do outro lado de uma grande extensão de água que o defunto atravessava sob a
forma de uma ave.
596
Capítulo 110 do «Livro dos Mortos», ver Apêndice IX.
597
O mundo terreno era, obviamente, a inspiração para a descrição dos campos míticos do Além. Diodoro
da Sicília referia a existência do lago de Akherusia uma região da necrópole menfita onde os mortos
descansavam. Também fontes egípcias mencionam uma zona de cursos de água e jardins chamada Sekhet
Iaru (Campos de Iaru), o lugar onde os mortos gozavam de felicidade, de paz e de abundância eterna.
Neste local da região menfita, a permeabilidade entre o Além e o mundo dos vivos levou a que o Egipto
se tornasse cada vez mais um enclave do Além no mundo terreno, um local onde o divino se manifestava
com particular intensidade. Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 356. A viagem
aos Campos de Iaru pode também constituir o modelo mítico que inspirou a criação de jardins funerários
ligados ao túmulo. A visita ao jardim desempenhava um papel mais importante no culto funerário. Este
jardim, identificando-se com os Campos de Iaru, onde o defunto regenerava as suas forças e se
alimentava, era o palco de rituais onde a barca nechemet evocava a peregrinação a Abido. O jardim era
uma fonte de alimentos e de frescura, o palco de celebrações e, deste modo, um lugar sagrado. O
sicómoro do jardim funerário tornava-se uma manifestação da deusa Nut. Em J. Idem., p. 342.
193
igualmente a oferenda que o defunto devia apresentar a Ptah para poder entrar nos
Campos de Iaru.598
Após a permanência nestes domínios paradisíacos, o defunto prosseguia então
numa peregrinação às cidades sagradas do Egipto onde participava nos mistérios que aí
se celebravam. Buto (capítulo 112), Hieracômpolis (capítulo 113), Hermópolis (capítulo
114 e 116) e Heliópolis (capítulo 115) são algumas das cidades visitadas pelo defunto.
As festas religiosas assinalavam a sacralização do mundo terreno, pois constituíam uma
espécie de «enclave» do Além na terra. Preparava-se assim a segunda parte da viagem
que consistia precisamente na visita ao templo de Osíris na Duat. Após o périplo pelas
cidades sagradas, o defunto voltava à região heliopolitana, e entrava na necrópole de
Ra-setau, a entrada do mundo inferior (capítulo 117-119).599 Começava então a etapa
osíriaca da sua viagem e a sua iniciação no grande templo da Duat, a qual analisaremos
no capítulo seguinte.
598
Nestas vinhetas, sobretudo nas recensões tardias do «Livro dos Mortos», o defunto oferece «alegria»
ao deus Ptah. Esta oferenda estava, sem dúvida relacionada com a possibilidade de usufruir das oferendas
alimentares proporcionadas pelo deus nos Campos de Iaru.
599
A entrada em Ra-setau introduzia o defunto na última etapa espacial: o domínio de Osíris. Para alguns
autores, a viagem pelo Além pode descrever o percurso no interior de um templo. Nesta perspectiva as
alusões ao salão de Osíris, aos pórticos e às colinas descrevem os elementos deste templo. Na sua análise
do «Livro dos Dois Caminhos», Barguet chamou a atenção para o facto do percurso do defunto no Além
ser descrito como se tratasse da entrada num templo. O mais interessante é que Ra-setau seria, nesta
perspectiva, a evocação da entrada deste templo, o local onde se efectuavam as purificações pela água.
Neste local, sob a protecção de Anúbis, seriam feitos rituais propiciatórios e purificadores para permitir a
passagem às zonas mais secretas do templo. Ver P. BARGUET, Aspects de la pensée religieuse de
l´Égypte ancienne, pp. 22-24.
194
Capítulo II. O coração no mito de Osíris
600
Na sua magistral obra, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, Jan Assmann diferencia, a partir do
mito de Osíris, três imagens da morte que organizam o conjunto das concepções funerárias do antigo
Egipto. A morte dilaceração, protagonizada por Ísis e Néftis, traduz a manifestação física e corpórea da
destruição provocada pela morte que estas deusas vão procurar ultrapassar. A morte como isolamento
social consiste na segunda imagem da morte e relaciona-se com a humilhação infligida pela morte ao
defunto que, sob a acção reparadora de Hórus, será ultrapassada. O terceiro ciclo, o da justificação,
concebe a morte como um inimigo. Ver Jan ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, pp. 47-
140.
601
Devido ao seu papel de embalsamador, também Anúbis é envolvido nesta constelação divina.
602
Sobre a função conectiva do coração ver Idem, p. 58.
603
Ver A. BLACKMAN, «The significance of incense and libations in funerary and temple ritual», ZÄS
50 (1912), p. 71.
604
Era a dispersão que caracterizava a morte, por oposição à vida que se caracterizava pela união.
195
embalsamamento. No plano mitológico, porém, a devolução do coração era
desempenhada por divindades femininas como Ísis, Néftis ou Nut: 605
Palavras ditas por Nut: Ó soberano, eu dei-te a tua irmã Ísis, que ela possa velar por ti e dar o teu
coração para o teu corpo.606
O meu pai fez o seu coração ib. O outro (coração) foi removido pois opunha-se à sua ascensão ao
céu quando ele vagueava nas águas do Canal Ventoso.607
605
Não esqueçamos que, durante a evisceração, o coração era retirado, quase sempre arrastado pela
remoção dos pulmões. Os embalsamadores aproveitavam estes incidentes para resguardar melhor o
coração impregnando-o de substâncias que ajudassem à sua preservação. Depois de envolvido em faixas
de linho, era novamente colocado na caixa torácica. Em S. IKRAM e A. DODSON, The Mummy in
Ancient Egypt, p. 119.
606
Pir 4, § 3, versão inglesa em R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 2. Também nos
textos funerários do Império Médio, a devolução do coração continuou a ser um gesto habitualmente
atribuído às divindades femininas responsáveis pela mumificação, como Ísis ou Néftis, ou propiciadoras
da regeneração do defunto, como Nut: «Ó N. tu és o primogénito, o grande (...) Tu manifestas-te, ergues-
te com Atum nos belos tronos que estão na cheia. (...) encontrarás os deuses em júbilo, indo ao teu
encontro, como para Ré, senhor dos homens. Nut, a grande, leva-te na sua perfeição, ela encerra-te nos
seus braços, as Duas Senhoras velam por ti como se fosses Hórus, filho de Osíris. Elas estendem para ti
os seus braços e colocam o teu coração no teu corpo.» TdS 765, adaptado da versão francesa em P.
BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 296. As Duas Senhoras costumam ser, em contexto político,
Nekhbet e Uadjet, mas nesta circunstância trata-se de Ísis e Néftis.
607
Pir 512, § 1162, versão inglesa em R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 188.
Versão hieroglífica em K. SETHE, Die Altaegyptischen Pyramidentexte, II, p. 150.
608
O significado deste objecto relacionar-se-ia, já nesta época, com o olho de Hórus, uma vez que o
coração regenerado liberta o defunto da corrupção e permite a sua integração cósmica.
196
Anúbis tomará o teu braço e Nut dar-te-á o teu coração. Então poderás voar como falcão,
levantar-te-ás como uma ave benu e viajarás para o Ocidente. Vive! Sê jovem, rejuvenesce ao lado do teu
pai, Orion, no céu. Viverás a vida.609
609
Pir 699, § 2178-2181, versão inglesa em R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p.
305. Nos «Textos dos Sarcófagos», o tema da devolução do coração manteve a sua importância. Os
redactores das novas composições revelaram uma inspiração segura nos textos funerários do Império
Antigo. A fórmula 526 dos «Textos dos Sarcófagos» lembra irresistivelmente as fórmulas 4 e 5 dos
«Textos das Pirâmides»: «Eu sou Néftis, eu vim para tomar conta de ti. Eu coloco o teu coração ib no teu
corpo. Eu trago Hórus e a sua Grande-de-Magia, eu trago Set e a sua Grande-de-Magia». Palavras ditas:
«Eu sou Ísis, eu vim para tomar conta de ti. Eu coloco o teu coração ib no teu corpo. Eu trago Hórus e a
sua Grande-de-Magia, eu trago Set e a sua Grande-de-Magia». TdS 526, versão francesa em P.
BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp. 39-40. Versão hieroglífica em A. DE BUCK, The Egyptian
Coffin Texts, VI, p. 118.
610
Como garante de conectividade, quando ocupava o seu lugar, o coração também tinha a faculdade de
restituir no Além a unidade aos elementos antropológicos, reagrupando o ba e o ka graças ao seu poder
mágico. Esta ideia perpassa na fórmula seguinte: «É benéfico para mim, é eficaz para mim. O meu ba está
comigo, o meu coração ib está no meu corpo. O meu cadáver está na terra e eu não chorei. O meu ba está
comigo, ele não se afastou de mim. O poder mágico está no meu corpo e não me foi roubado. Eu tenho o
meu poder mágico eu tenho meios para me manifestar, de modo que posso comer as refeições com o meu
ka. Habitante da terra, passo a noite a ser renovado, a ser rejuvenescido.» TdS 304, versão francesa em P.
BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp. 230-231. Versão hieroglífica em A. DE BUCK, The
Egyptian Coffin Texts, IV, p. 57. Outra fórmula apresenta idêntica relação entre a posse do coração e o
uso do poder mágico: «Fórmula para levar a N. o seu poder mágico no mundo dos mortos.(...) Ó meu
poder mágico, vem a mim! (...) Olhai, a minha boca foi consagrada ao meu desejo, a minha mão é pura
quando toma o que tem em seu poder, o meu coração ib não ignorou o seu lugar: ele está bem
estabelecido no seu lugar. Eu conheço o meu nome, não o ignoro (...)». TdS 572, versão francesa em P.
BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 216. Versão hieroglífica em A. DE BUCK, The Egyptian
Coffin Texts, VI, p. 176.
611
A fórmula 229 dos «Textos dos Sarcófagos» resume o propósito do ritual em restaurar a função
conectiva do coração: «Que o meu coração ib e o coração hati não me sejam arrancados, que o meu ba
passe a noite em vigília sobre o meu cadáver, que o meu rosto não se ensombre, que o meu coração ib não
se torne esquecedor, que não ignore o caminho para o mundo dos mortos.» TdS 229 (G1T), adaptado de
P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp. 49-50. Versão hieroglífica em A. DE BUCK, The
Egyptian Coffin Texts, III, pp. 294-296.
612
A associação do amor e da palavra era a força de coesão mais intensa conhecida no antigo Egipto e o
mais potente elixir de vida. Era esta proximidade entre a magia e a morte que explica que a «divinização
dos membros», um motivo característico da literatura funerária, tenha sido importado para a lírica
197
o cadáver não era mais do que uma justaposição de elementos separados, o amor
introduzia a conectividade da vida. 613
A restituição do coração ao cadáver era acompanhada pela libação funerária.
Embora tivesse como efeito a reanimação do defunto, a constelação simbólica em que
este gesto ritual se inseria era muito distinta da lustração solar que analisámos na secção
anterior. Em virtude destas diferenças vamos em seguida apresentar o quadro simbólico
envolvido nesta operação mágica.
A libação funerária
Tens as tuas pernas, ergue-te! (Os teus membros foram reunidos para ti), dirige-te à assembleia
onde estão os deuses! Eles devolver-te-ão o fluxo (que saiu de ti). Graças a ele o teu coração não voltará a
parar! Caminha! Já não estás inerte. Atravessas o céu e a terra, pois já não estás imóvel, venerável N.,
justificado! 615
Através do termo «fluxo», redju (rDw), a libação era identificada com a cheia. O
sangue do defunto era agora a água do Nilo portadora de vida, graças à qual a
amorosa. Este processo que permite, na literatura funerária, que o corpo do defunto seja transformado em
panteão divino, é a base da glorificação do corpo da amada nos poemas de amor. Ver Idem., pp. 65-70.
613
A aspectividade é para Brunner-Traut a base cognitiva do pensamento egípcio. Trata-se de um
pensamento que justapõe aditivamente vários elementos sem que se estabeleçam princípios organizadores
e estruturantes que integrem o particular no todo. Para Assmann, no entanto, este é aspenas um dos
aspectos do modo de pensar da civilização egípcia. Às manifestações «visíveis» do pensamento aspectivo,
bem expressas na arte, seria preciso acrescentar as formulações conectivas que justamente estabelecem a
unidade entre o particular e o todo. Para o autor o princípio de conectividade manifesta-se claramente nas
crenças relacionadas com o corpo, onde se destaca a função do coração como garante de conectividade.
Idem., pp. 52-55. Veja-se o Epílogo de Brunner Traut em H. SHÄFER, Principles of Egyptian Art, pp.
421-446.
614
A devolução símbólica podia concretizar-se nos vasos de vísceras e no tekhenu. C. SPIESER, «L´eau
et la regeneration des morts d´après les représentations des tombes thébaines du Nouvel Empire», DdÉ 72
(1997), p. 211.
615
TdS 781, versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 55.
198
conectividade do seu corpo era restabelecida.616 Na base desta transformação estava a
identificação entre o cadáver do defunto e o solo do Egipto. 617 Tal como Hapi, a
inundação, era o principal factor de união das sepaut do Egipto, identificadas com as
partes do corpo de Osíris,618 a água usada no ritual do embalsamamento conferia
unidade ao corpo desmembrado de Osíris.619 Deste modo, a integridade do corpo de
Osíris era refeita e o seu coração voltava a bater:620
Esta água fresca pertence-te, ó Osíris, esta água fresca pertence-te, ó soberano, ela veio pelo o
teu filho, ela veio por Hórus. Eu vim e trouxe-te o olho de Hórus. Que o teu coração possa ser refrescado
por ele. Eu trago-to com as tuas sandálias. Toma o fluxo que saiu de ti. O teu coração não permanecerá
inerte ao possui-lo.
Para recitar quatro vezes: toma o que sai da voz para ti, água fresca e duas medidas de natrão. 621
616
Em D. DELLA, «The Refreshing Water of Osiris», JARCE 29 (1992), pp. 183.
617
A terra do Egipto podia ser encarada, no plano religioso, como a materialização do cadáver de Osíris
que a cheia do Nilo revitalizava.
618
C. SPIESER, «L´eau et la regeneration des morts d´après les représentations des tombes thébaines du
Nouvel Empire», DdÉ 72 (1997), p. 217.
619
Através dos fluídos (redju) estabelece-se uma convergência entre Hapi e Osíris. Enquanto Osíris está
privado dos seus fluídos, Hapi faz transbordá-los para o Egipto. Em B. CLAUS, «Osiris et Hapi: crue et
regeneration en Égypte ancienne», p. 209
620
A acção da água identifica-se assim com a acção curativa do olho de Hórus que simbolizava, por
excelência, a acção transformadora, sacramental da libação. Em A. BLACKMAN, «The significance of
incense and libations in funerary and temple ritual», ZÄS 50 (1912), p. 73.
621
Pir 32, § 22-23, em Apêndice VII. Esta fórmula foi reutilizada quase integralmente nos «Textos dos
Sarcófagos». Com sentido idêntico, a fórmula 895 dos «Textos dos Sarcófagos» refere que a água
rejuvenesce o coração, refresca-o e restitui-lhe o batimento que assegura a vida: «Fórmula para não
andar de cabeça para baixo. Esta é a tua água fresca, Osíris N., saída do teu pai, saída de Geb, saída de
Hórus, saída de Osíris. Que o teu coração se refresque! Eu vim e trouxe-te o olho de Hórus. Que o teu
coração se refresque!... Toma os líquidos saídos de ti, graças a eles o teu coração não voltará a parar (...).
O teu coração está rejuvenescido, no teu nome de «Aquele que está na frescura»! Hórus derrubou os teus
inimigos diante de ti! Toma o que sai da voz, a oferenda alimentar de pão, cerveja, carne de bovino e de
aves, para o venerável N.» TdS 895, a partir de P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 111.
622
O termo kebeb (qbb), habitualmente traduzido por «refrescar», pode ser redigido com o auxílio do
determinativo de árvore e também pode significar «purificar». Keb ib (Qb-ib), por outro lado, pode
significar «calmo» (Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 277). Outro termo
com ressonâncias muito similares é o que dá nome ao vaso Khebenu usado nas libações como receptáculo
da água primordial. (C. SPIESER, «L´eau et la regeneration des morts d´après les représentations des
tombes thébaines du Nouvel Empire», DdÉ 72 (1997), p. 215.) O serdab ou khebehu, «o lugar da
frescura», devia o seu papel regenerador à proximidade com a Duat (Ver Y. KOENIG, «l´eau et magie»,
p. 97). O termo refrescar parece, deste modo, reportar-se ao papel regenerador dos elementos que estão
em ligação com a Duat, quer se trate da água, da árvore ou de estruturas arquitectónicas. O efeito
refrescante da água produzia o seu potencial de cura que se relacionava com a ligação da água às forças
regenerativas da Duat
199
sua ablução com a água era mencionada frequentemente em paralelo nas fórmulas
mágicas:
Tu estás protegido, o teu coração foi colocado no teu corpo para ti. (...) o teu ba está em ti, o teu
poder está atrás de ti, (...) a inundação chega, a cheia apressa-se (...) regressa à vida, ergue-te a ti mesmo
através da tua força. Ó soberano, a inundação chega, a cheia apressa-se, Geb dá o fluído do deus que está
em ti, para que o teu coração possa viver, para que o teu corpo possa viver. 623
A libação devia, deste modo, acompanhar a devolução do coração pois, uma vez
colocado no seu lugar, o coração podia receber o «fluxo» da cheia, o novo sangue que
faria o seu coração voltar a palpitar. O efeito desta regeneração pela água da cheia, a mu
renpi (mw rnpi), «água jovem», manifestava-se, de imediato, na capacidade para
manifestar de novo o poder da vida, através da copulação.624
623
Pir 690, § 2097-2114, em Apêndice VII.
624
A fórmula 317 dos «Textos das Pirâmides», o rei defunto compara a sua reanimação à emersão de
Sobek das águas da cheia: «O rei transforma-se no deus Sobek. Cheguei aqui a partir das águas da cheia.
Eu sou Sobek (..), cheguei aos canais que estão nas margens da cheia da grande inundação, no lugar do
contentamento, de campos verdes, que está no horizonte. Eu torno verde a erva que está nas margens do
horizonte, eu trago verdura ao olho da grandiosa que reside nos campos. Eu sento-me no meu trono do
horizonte, apareço como Sobek, filho de Neit, como pela minha boca, urino e copulo com o meu falo, sou
o possuidor da semente, que toma as mulheres dos seus maridos sempre que deseja, de acordo com o seu
coração. Em Apêndice VII.
200
Anúbis restitui o coração ao defunto, representado sob a forma de múmia, apresentando
o órgão diante das suas narinas.625 O gesto é desempenhado diante do totem abidiano de
tauer, evocativo da desejada ressurreição.626
Em certas representações, este gesto é complementado com a oferenda de outros
componentes antropológicos. Um bloco proveniente do túmulo de Amenemhat (TT
163), da XIX dinastia, actualmente conservado no Museu Britânico, apresenta uma
curiosa composição onde o defunto é representado em adoração diante dos quatro filhos
de Hórus, todos representados com cabeça humana, que se dirigem para Amenemhat em
procissão, presenteando-o com uma parte de si mesmo.627 Imseti lidera o grupo,
oferecendo-lhe o coração (a legenda diz: «para ti o teu coração»). Segue-se o deus Hapi
que aparece aqui com a responsabilidade de oferecer o ba ao defunto. Duamutef
apresenta ao defunto o ka, ao passo que Kebehsenuef oferece o cadáver, o khat, aqui
representado em forma de múmia. Uma outra representação, patente no túmulo de
Petosíris, quase mil anos mais recente do que o monumento anterior, apresenta uma
composição idêntica.628 Integrados no cortejo funerário que se forma diante da múmia
de Sichu, pai de Petosíris, apresentam-se os quatro filhos de Hórus, cada um com um
componente antropológico.629 Contudo, apesar da ordem de apresentação das
divindades se manter, a oferenda por eles transportada difere do documento anterior, o
que nos impede de atribuir uma ligação específica destas divindades à tutela de certos
componentes antropológicos. Deste modo, Imseti aparece aqui a oferecer o ka, enquanto
Hapi e Duamutef, apresentam o coração e o ba respectivamente. Apenas Kebehsenuef
625
Ver anexo V 4.1.
626
Esta representação bem podia ser uma «vinheta» ilustrativa do Conto dos Dois Irmãos onde num
curioso trecho de narrativa mágica, Anupu (ou Anúbis), o irmão mais velho, recupera o coração perdido
de Bata, possibilitando assim o seu renascimento. Também no relicário de Anúbis de Tutankhamon, o
deus embalsamador perfila-se como o restituidor da vida ao defunto, gesto simbolicamente ilustrado
através da devolução do coração: «Palavras ditas por Anúbis “Que está no lugar do embalsamamento”:
Meu filho, Tutankhamon, trago-te o teu coração e coloco-o no seu lugar no teu corpo. Versão francesa em
J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 166. A restituição do coração por Anúbis
durante o embalsamamento é ilustrada em algumas vinhetas. Ver anexo V 4.5.
627
Ver anexo V 4.2.
628
São amplamente reconhecidas as características singulares do rico programa decorativo do túmulo de
Petosíris, construído na necrópole hermopolitana de Tuna el-Guebel. A composição aqui descrita é
ilustrativa da complexidade e da diversidade temática da sua decoração. Para vislumbrar algumas das
singulares características deste monumento ver L. ARAÚJO, «O túmulo de Petosíris: Expressão da
confluência cultural Greco-Egípcia», em Presença de Victor Jabouille, pp. 313-344. A cena aqui
discutida é ilustrada em G. LEFEBVRE, Le Tombeau de Petosiris, pl. XXXII-XXXIII.
629
Ver anexo V4.3.
201
mantém a sua ligação ao cadáver, encerrando o cortejo divino.630 A legenda que
acompanha a representação refere o seguinte:
Eu trago-te o teu coração para que ele não seja separado de ti para a eternidade, descansa com o
teu coração para a eternidade 631
Voltou com o fruto que era o próprio coração do irmão mais novo! Encheu uma taça com água
fresca, colocou-o lá dentro, e foi descansar como era habitual. Quando chegou a noite, (14,1) o coração
absorveu a água e todo o corpo de Bata estremeceu. Começou então a olhar para o seu irmão mais velho
enquanto o seu coração permanecia ainda na taça. Então Anupu, o seu irmão, tomou a taça com água
fresca onde permanecia o coração do irmão mais novo e deu-lhe a beber.633
Dois ataúdes de cereal, datados da Época Baixa, apresentam uma cena que
ilustra esta mesma ideia.634 Trata-se da representação de um coração encimado por
rebentos vegetais e em torno do qual se dispõe uma assembleia de divindades do mundo
inferior. Neste caso a representação enfatiza o poder germinador do coração que, como
uma semente, garante o aparecimento de uma nova vida.635 A imagem do coração como
630
Representações idênticas também constam do programa decorativo dos ataúdes da Época Greco-
Romana.
631
Ver a posição das colunas do texto em Idem, pl. XXXII-XXXIII.
632
Ver, por exemplo, a seguinte fórmula: «É benéfico para mim, é eficaz para mim. O meu ba está
comigo, o meu coração ib está no meu corpo. O meu cadáver está na terra e eu não chorei. O meu ba está
comigo, ele não se afastou de mim. O poder mágico está no meu corpo e não me foi roubado. Eu tenho o
meu poder mágico eu tenho meios para me manifestar, de modo que posso comer as refeições com o meu
ka. Habitante da terra, passo a noite a ser renovado, a ser rejuvenescido.» TdS 304, adaptado da versão
francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp. 230-231.
633
O Conto dos Dois Irmãos, em Apêndice.
634
Ver anexo V 4.6.
635
Ver M. RAVEN, «Corn Mummies, p. 38.
202
uma semente, onde os poderes da vida estão adormecidos, explica o papel reanimador
que a água possuía sobre este órgão.
636
Do mesmo modo como Ísis reconstituíra o corpo dilacerado de Osíris, devolvendo o princípio de
conectividade física, o coração, também Hórus reconstituía a identidade de Osíris integrando-o na
comunidade dos deuses. Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 80. Esta
preocupação justificava-se para eliminar o isolamento social provocado pela morte. No plano social, o
isolamento era uma manifestação da morte e opunha-se ao completo restabelecimento da vida que
pressupunha a reposição da conectividade física e social.
637
Para Assmann, a esfera física reúne em torno do corpo outros elementos antropológicos como o ba e
sombra, ao passo que a esfera social reúne-se em torno do nome e do ka. Embora enfatize mais o papel
do coração como garante de conectividade física, dadas as características desta noção antropológica,
parece-nos impossível não reconhecer o papel do coração como garante da conectividade social. Cf. Idem,
p. 74.
203
Osíris em segurança e prevenir um eventual roubo do coração.638 A protecção de Hórus
e a magia de Tot garantiam que os inimigos fossem afastados, de modo a que Osíris
permanecesse no seu lugar e refizesse a sua identidade.
O coração de Hórus
A ligação entre o morto e o filho era um laço muito vigoroso no culto funerário
do antigo Egipto, pois dele dependia a sua própria continuidade. A partir da sua morte,
Osíris tornava-se o ka de Hórus e este, em contrapartida, «voltava o coração para
Osíris»,639 expressão que se reportava à atenção e empenho que Hórus dedicava ao culto
funerário.
Através do culto, o filho mantinha o defunto integrado na comunidade dos vivos,
dos deuses e dos mortos. Para garantir esta função, o filho contava apenas com o seu
coração, ou seja, com a sua sabedoria. A inscrição de Seti I dedicada a seu pai, Ramsés
I, é bastante ilustrativa acerca do papel do coração do filho no culto funerário, uma vez
que constitui, em primeiro lugar, o depositório da sabedoria transmitida pelo pai. Era
com estes ensinamentos que o filho contava para assegurar eficazmente o culto
funerário. «Voltar o coração para Osíris» significava, deste modo, garantir a perenidade
do culto funerário.
638
No ciclo de Hórus, a restituição da memória era a base para a reconstituição do corpo social e da
identidade. Tal é o caso da devolução do coração, o qual, no ciclo de Ísis, se traduzia na reanimação do
corpo de Osíris mas que, nos textos de Hórus, facultava a restituição da memória, o pilar da identidade:
«Louvor a ti, meu pai Osíris! Eis que estou aqui. Eu sou Hórus, o que abriu a boca de Ptah, o que te
glorificou com Tot, aquele que colocou o teu coração ib no teu corpo, para que tu te lembres o que
esqueceste (...), o que te deu as tuas pernas para que possas andar.» TdS 62, versão francesa em P.
BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp. 146-147. Versão hieroglífica em A. DE BUCK, The
Egyptian Coffin Texts, I, p. 269. A memória era fundamental para a sobrevivência no Além. Para além de
ser indispensável para a reconstituição da identidade, sem ela as fórmulas funerárias permaneceriam
inúteis inviabilizando a protecção mágica do defunto. É por essa razão que algumas fórmulas foram
especialmente concebidas para evitar o esquecimento destas fórmulas: «Para se lembrar das fórmulas
mágicas. (...) Meu coração ib, ergue-te no teu lugar, lembra-te do que está em ti, de modo que saia o livro
da morada de Ré, que foi selado na morada de Tot. Eu lembrei-me de todas as fórmulas mágicas que
estão no meu corpo.» TdS 657, versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 214.
Versão hieroglífica em A. DE BUCK, The Egyptian Coffin Texts, VI, p. 278.
639
J. ASSMANN, Mort e au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 83.
204
Eu sou como Hórus ao lado do que o engendrou. (…)
O meu coração ib preocupa-se com o estado do seu lugar
Pois o meu coração não deixa de se ocupar dele.
O meu coração hati aspira à sua perfeição,
Eu sou como um falcão sobre o que o engendrou,
As minhas asas estendem-se sobre ele,
Protejo o seu corpo como o de Behedet.(…) 640
Esta atenção do filho para com o pai justificava-se porque era através dela que o
filho garantia a transformação do pai num deus perfeito no Além. Isto explica-se, não
tanto pela intensidade do laço emocional, mas sim pelo mérito intelectual do filho. Era a
sabedoria que o pai ensinara ao filho que permitia ao primogénito «guiar os trabalhos»
do lugar de culto do pai e conduzir-se na perfeição de modo a manter vivo o nome do
pai.641 Esta crença pode estar na origem do uso do amuleto cordiforme por parte do
primogénito. Com efeito, em certas representações tumulares, o primogénito que
garante o culto apresenta um tal objecto, constituindo provavelmente um símbolo da sua
sabedoria, ou seja, do seu mérito para garantir o culto funerário.642
640
Inscrição de Seti I no santuário dedicado a Ramsés I. Idem, pp. 89-92. Em resposta, Ramsés I sublinha
que é graças à atitude do filho que deve a sua condição divina: «Eu exaltei tudo o que fizeste por mim, fui
colocado à cabeça da necrópole. Eu tornei-me um deus perfeito, desde que o teu coração se consagrou a
mim. Desde que estou na Duat eu, o teu verdadeiro pai, tornei-me num deus, juntei-me aos deuses que
acompanham o sol.» Inscrição de Seti I no santuário dedicado a Ramsés I, ver Apêndice X.
641
Seguindo o modelo de conduta de Seti I, Ramsés II revelava para com o seu pai o mesmo zelo que este
evidenciou para com Ramsés I: «O seu rosto era amável para com o seu progenitor, o seu coração estava
voltado para o que o fez crescer (…) Pode um filho ocupar o lugar do seu pai sem restaurar os
monumentos do seu progenitor? Por isso disse para o meu coração: É um boa acção acabar o que foi
começado (…) Bom (nfr) e misericordioso (AH-ib) é o filho que volta o coração para o seu pai. O meu
coração guiou-me para prodigalizar as benfeitorias a Seti I». Inscrição dedicatória de Ramsés II no
templo cenotáfio de Seti I, Apêndice X.
642
Ver anexo IV 2.G 1.
643
Em Idem., p. 114.
644
«O inimigo foi colocado às mãos do filho de Ísis, derrubado pela sua própria violência, a infelicidade
chegou ao que grita, aquele que cometeu a iniquidade espera o castigo, o filho de Ísis vingou o seu pai»,
Hino a Osíris, estela C 286 do Museu do Louvre, Ibid.
205
Ergue-te Osíris!
Set foi acusado
Ele ouviu a sentença dos deuses,
Pronunciadas por meu pai, o deus. 645
645
Fórmula 477 dos «Textos das Pirâmides». Versão francesa em Idem, p. 118.
646
O gesto de arrancar corações constitui certamente a evocação de rituais propiciatórios de envolviam o
sacrifício de vítimas que encarnavam os inimigos do rei. Rituais deste tipo eram provavelmente um
resquício de práticas canibais mais antigas nas quais a ingestão das entranhas dos inimigos constituía um
modo de se apropriar do seu poder vital. Outro testemunho destas práticas «sublimadas» pelo ritual é
fornecido pelo célebre Hino canibal, onde o rei manifestava portentosamente o seu poder ingerindo a
carne e o coração dos deuses. «o rei tomou os corações dos deuses, ele comeu a coroa vermelha e engoliu
a coroa verde. O rei (...) compraz-se a viver dos corações e da sua magia». Pir 273-4, § 393-411, versão
inglesa em Idem, pp. 80-82.
647
Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 457.
648
Em L. ARAÚJO, «Abertura da boca», em ID. (dir.), Dicionário do Antigo Egipto, p. 20.
649
J. ASSMANN, Mort e au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 119. Neste ritual era abatido um boi. No
momento da morte Ísis segredava, na orelha da vítima, as seguintes palavras: «Palavras ditas por Ísis na
sua orelha: Foram os teus lábios que causaram isto (a tua desgraça), foi devido à tua língua» A referência
à língua indica que foram as mentiras que Set pronunciou no palácio do príncipe que causaram a sua
condenação.
650
O próprio mito de Osíris constituía uma replicação da oposição mítica entre Ré e Apopis. No mito solar
Ré «justifica-se», ou seja, vencia o opositor, personificado em Apopis, do mesmo modo como, no ciclo
funerário, Osíris se justificava diante de Set. No entanto, o papel de Set nestes mitos não é o mesmo. No
mito solar, o deus posicionava-se na proa da barca de Ré e contribuía para afastar Apopis, ao passo que
no mito de Osíris ele era a encarnação do mal. O papel ambíguo de Set mostra que, embora fosse a
encarnação da morte, Set não era visto como um mal absoluto, como era o caso de Apopis. A morte,
encarnada por Set, não podia ser abolida mas devia ser dominada, razão pela qual Osíris se tornou o rei do
mundo inferior, o senhor da morte. Ver Idem, p. 123. No capítulo 39, o próprio Apopis, o arqui-inimigo
de Ré, é mantido à distância com a ameaça de Mafdet trucidar o seu coração: «Para trás! Vira-te, Apopis!
Vai afogar-te no poço do abismo, lá onde o teu pai ordenou o teu suplício! Afasta-te deste lugar onde Ré
nasceu, onde tu estremeces! Eu sou Ré para ti que estremeces por causa dele! Para trás, inimigo da luz
que derrubou Ré! Se dizes uma palavra, o teu rosto virar-se-á para os deuses, o teu coração será
dilacerado por Mafdet, cadeias te serão colocadas por Heddet e Maet far-te-á mal, pois te fará perecer»
(...). Versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des Morts,. Para Mafdet, ver J. SALES, As Divindades
Egípcias, pp. 267-268.
206
O gesto de arrancar o coração dos adversários constituía, sob este prisma, um
acto instaurador da ordem. Estas crenças reflectem a origem real da noção de
justificação.651 Este termo designa a identificação do defunto com Osíris e assinala a sua
divinização. Uma vez justificado, o defunto investido com os atributos da realeza tinha
que evidenciar o seu domínio sobre as forças do caos, aniquilando-as. A remoção dos
corações dos inimigos era, deste modo, um veículo para afirmar a ordem cósmica.652
De modo equivalente ao que acontecia na cerimónia da abertura da boca, o
coração dos inimigos era tido como o ponto nevrálgico a partir do qual os poderes
maléficos de Set se manifestavam e ameaçavam o cosmos. Em certas cenas patentes nos
túmulos do Vale dos Reis os inimigos da ordem cósmica são representados com o
coração extirpado, mantido fora do cadáver.653 Trata-se da tradução visual e literal do
acto de «arrancar o coração», tão mencionado nos textos funerários, que garantiam a
morte definitiva. Esta calamidade, que era evitada a todo o custo pelas fórmulas
mágicas que protegiam o defunto, era aplicada aos inimigos para os remeter ao
desaparecimento total. Noutras representações, os inimigos são abatidos e
desmembrados, enquanto as suas cabeças e corações são incineradas. 654 O seguinte
texto acompanha a representação:
651
Durante o Império Antigo esta possibilidade constituía um privilégio real. Somente a partir do
Império Médio é que a possibilidade de aceder a um estatuto divino no Além foi facultada a qualquer
homem que tivesse sido justo sobre a terra. A justificação faria doravante da realeza uma condição
espiritual que o defunto podia adquirir no Além.
652
A remoção do coração, empreendida no quadro do abate das forças setianas, justificava-se pela função
do coração enquanto garante de conectividade. O ciclo de Osíris mostrava que a morte podia ser superada
através da restituição das funções conectivas do coração as quais concorriam para a reanimação do corpo
e para a recuperação da identidade do defunto. No abate das forças setianas não bastava, portanto,
aniquilar a vítima. Arrancar-lhe o coração afastava a possibilidade de uma eventual restituição do
princípio de conectividade. Deste modo, a ressurreição para os inimigos estava vedada. Na fórmula 48
dos «Textos dos Sarcófagos», o defunto «esmaga corações», um atributo muito conotado com a função
guerreira da monarquia: «Louvor a ti, Osíris N.», assim diz Ísis, senhora da necrópole, diante do pavilhão
divino, ela pronuncia o teu nome na barca, no dia em que as tuas virtudes são examinadas, atravessas o
céu na qualidade do «que está no seu trono». Esmagas o coração dos que se opõem a ti. Tu tens o teu
coração, ele não foi levado pelos que se revoltaram. Tu desces para te purificar no canavial. Os deuses
Heh suportam-te nos seus braços. As estrelas imperecíveis temem-te e os que estão nos seus tronos vêm a
ti. Ré dá-te a saudação matinal quando desponta no horizonte oriental e os habitantes de Ra-setau
aclamam-te na dupla porta». TdS 48, versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp.
190-191. Nos «Textos das Pirâmides», também a expressão «clamar pelos corações» exprimia o poder do
rei para dispor da vida: «Ó Tot, vai e proclama aos deuses ocidentais e aos seus espíritos: «Este rei vem,
na verdade, é um espírito imperecível, adornado com Anúbis no pescoço, que preside sobre a Montanha
Ocidental. Ele clama os corações, ele tem poder sobre os corações. Quem ele desejar que viva, viverá.
Quem ele desejar que morra, morrerá». Pir 217, § 152-157, adaptado da versão inglesa proposta em R.
FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, pp. 44-45. Ra-setau era o nome da necrópole de
Mênfis, mas constituía igualmente uma designação simbólica da necrópole. Os habitantes de Ra-setau
eram, deste modo, os defuntos.
653
Ver anexo V 3.5-6.
654
Ver anexo V 3.7.
207
O terror está sob esta forma: as mãos emergem do Lugar da Destruição. Elas erguem as cabeças
cortadas. (…) As cabeças dos inimigos são confiadas (…) Iaruti, 655 o Senhor das Chamas, ele semeia o
fogo neste lugar de terror. 656
Com o abate das forças da morte, personificadas em Set, Osíris acedia a uma
nova forma de vida. Embora permanecesse no mundo inferior, já não estava morto. O
seu corpo tinha sido reconstituído e a sua identidade restabelecida através da sua
integração nas constelações sociais do mundo divino. O restabelecimento da dignidade
de Osíris era acompanhado por uma transformação. A partir daí Osíris podia
desempenhar um papel activo e manifestar os seus poderes o que, nos textos funerários,
se reflecte no uso de expressões como «dominar o coração», sekhem ib (sxm-ib),657
muitas vezes traduzida como «usar o coração». 658 A expressão caracterizava o defunto
dotado de poder e repercutia-se na possibilidade de exercer a actividade sexual:
Os meus olhos são os de um leão, o meu falo é o de Bebon. Eu sou o Retalhado. O sémen está na
abertura, a minha cabeça está virada para o céu, a minha cabeça está virada para a terra. Eu sou alguém
que faz uso do seu coração. A mim pertencem-me o meu ba, a mim pertencem-me os bau. Eu sou alguém
que ejacula o sémen para criar (a vida). A minha ejaculação é a ejaculação enquanto (deus). Todo o
homem que conhecer esta fórmula copulará sobre a terra noite e dia. O coração da mulher ser-lhe-á
submisso cada vez que ele copular. Palavras para dizer sobre uma pedra de cornalina e de ametista,
colocada no braço direito do bem-aventurado. 659
655
Aparentemente Iarurti é uma divindade do Além, representado com a cabeça de serpente como indica
o relevo que acompanha o texto.
656
Adaptado da versão inglesa proposta por H. FRANKFORT, The Cenotaph of Seti I, p. 53.
657
Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionnary of Middle Egyptian, p. 241. Sobre a expressão ver
Apêndice XI, p. cxxiv.
658
L. SPELLEERS, «La résurrection et la toilette du mort selon les Textes des Pyramides», RdE 3 (1938),
p. 45.
659
TdS 576, em Apêndice VIII. A designação de Retalhado é aqui dada a Osíris, o qual, segundo o mito,
teria sido cortado em várias partes pelo malvado e caviloso Set.
208
O domínio do coração permitia gozar de liberdade de movimentos e ascender ao
céu.660 No «Livro dos Mortos», o «domínio do coração» permitia a saída para o dia, o
usufruto pleno dos bens terrenos e a identificação com o percurso do sol:
Fórmula para sair para o dia. Palavras ditas por N.: «As portas do céu abrem-se para mim, as
portas da terra abrem-se para mim; os ferrolhos de Geb abrem-se para mim, a abóbada celeste abre-se
para mim (...) Eu tenho de novo o uso do meu coração ib, o uso do meu coração hati, o uso dos meus
braços, o uso das minhas pernas, o uso da minha boca, o uso do conjunto dos meus membros; eu posso
dispor das oferendas funerárias, dispor da água, dispor da brisa, dispor da cheia, dispor do rio, dispor das
margens. (...) Eu ergo-me sobre o meu lado esquerdo e coloco-me sobre o meu lado direito. Eu ergo-me
sobre o meu lado direito e coloco-me sobre o meu lado esquerdo. Eu sento-me, levanto-me e sacudo a
poeira. A minha língua e a minha boca são para mim guias úteis. 661
660
«Tens o teu coração, Osíris, tens as tuas pernas, Osíris, tens os teus braços, Osíris. Por isso, também o
meu coração é meu, as minhas pernas são minhas, os meus braços são meus. Uma escada para o céu é
erguida para mim para que possa ascender para o céu. Eu subo através do fumo do incenso. Eu voo como
uma ave e pouso como um escaravelho, eu voo como uma ave e pouso como um escaravelho no trono
vazio que está na tua barca, ó Ré.» Pir 267, § 364-366, versão inglesa em R. FAULKNER, The Ancient
Egyptian Pyramid Texts, p. 76
661
Capítulo 68 do «Livro dos Mortos», em Apêndice IX. A expressão «erguer sobre o lado direito e pôr-
se sobre o lado esquerdo» é alusiva ao percurso do sol entre os dois horizontes do céu.
209
iniciava uma nova viagem que desta vez assumia a configuração de um périplo através
dos portais do Além (capítulos 144-147).662
O Além apresentavam-se ao defunto como um templo e, para o flanquear, o
defunto devia estar iniciado nos segredos do Além. Como os pilones do templo, os
portais do Além eram o acesso à região mais sagrada da Duat, o local onde era
possível empreender a regeneração do defunto. No entanto, para aí chegar, o
defunto teria de dar mostras de pureza, razão pela qual se defrontava com os
guardiões do Além. Apesar do seu aspecto terrífico, estas entidades participavam
do séquito de Osíris e encarregavam-se de eliminar a presença de Set e dos seus
acólitos, bem como de castigar os pecadores. No capítulo 127 do «Livro dos
Mortos», estes guardiões são evocados, bem como no capítulo 71, sob a forma de
«sete conselheiros»:
A acção feroz dos guardiões não se dirigia, em princípio, ao defunto, mas sim
aos seguidores de Set. Apesar disso o defunto tinha que dar mostras de pureza
necessitando, para tal, de apresentar o seu coração. Era este requisito que explica a
representação do defunto com o coração nas mãos diante dos guardiões das portas.663 A
função destes guardiões concentrava-se, no entanto, na figura de Ammut, a Devoradora,
monstro que devorava os corações pecaminosos, carregados pelas faltas. O papel destas
662
Inicia-se aqui um conjunto de textos que descrevem a topografia do Além, dando continuidade a uma
longa tradição funerária que remonta aos «Textos das Pirâmides». No Império Antigo, o percurso do rei
no Além tinha o objectivo de o conduzir ao céu onde se verificava a a sua manifestação como uma estrela
ou constelação. Ver R. FAULKNER, «King and star religion in the Pyramid Texts», JNES 25 (1966), pp.
153-159. A viagem aos campos dos Juncos, ao campo das Oferendas, ao Lago dos Canídeos e ao Canal
Ventoso, são alguns dos percursos feitos pelo faraó no Além. Nos «Textos dos Sarcófagos» o tema foi
explorado e apresentado graficamente no «Livro dos Dois Caminhos», onde a viagem já não apresenta o
carácter de um passeio náutico, mas sim o percurso através de uma região povoada por pórticos
guardados por monstros. Ver E. HORNUNG, The Ancient Egyptian Books of the Afterlife, pp. 5-12.
Também nos túmulos reais do Império Novo a morte está associada à viagem da barca solar pelo mundo
inferior. Todas as composições representadas neste contexto, de um modo ou de outro abordam o tema.
Ver, por exemplo, A. PIANKOFF, «Le Livre des Quererets», BIFAO 41 (1942), pp. 1-11 ou A.
PIANKOFF, «Les Compositions Théologiques du Nouvel Empire Égyptien», BIFAO 41 (1942), pp. 121-
128.
663
Ver anexo V 7.68.
210
entidades era, deste modo, o de provocar uma dissociação moral do defunto em relação
à morte. A balança da psicostasia, a Devoradora e os monstros do Além eram marcos no
percurso do morto no afastamento da sua própria morte/impureza. Uma vez
atravessadas estas barreiras guardadas pelos monstros do Além, o defunto estava a
664
salvo, a ameaça transformava-se em protecção. Graças à pureza, o defunto podia
atravessar esta barreira e penetrar no domínio secreto de Osíris, 665 onde se empreendia a
regeneração. O mistério e a pureza estavam, deste modo, intimamente associados à
regeneração.
Era através da deusa mãe, que se materializava no símbolo da porta, que o
defunto penetrava no segredo de Osíris. As portas e os seus guardiões formavam uma
muralha sete vezes replicada em torno do corpo de Osíris. A sucessão das sete portas
indicava uma progressão semelhante à que era feita no interior de um templo divino.666
No interior das muralhas deste templo subterrâneo, no círculo mais interior e recuado e
mais santo de todos, o defunto era acolhido por Osíris. Partilhava o seu segredo e os
temíveis guardiões seriam os seus próprios protectores que o preservavam de todo o
mal.667
664
J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 196.
665
O carácter secreto destes domínios é enfatizado com o desdobramento simbólico do número de portas.
No capítulo 145 do «Livro dos Mortos», o símbolo é desenvolvido numa série de 21 portas que o morto
deve flanquear. O capítulo 146 reduz este numero para catorze, ao passo que nos capítulos 144 e 147
apenas sete portas subsistem. O desdobramento do número sete está certamente em relação com as sete
vacas celestes descritas no capítulo 148. Os sete portais constituem muito provavelmente uma alusão ao
papel protector destas deusas bovinas e à sua capacidade para restaurar a completude do defunto e para
garantir a universalidade dos seus poderes. Completude e universalidade parecem, efectivamente estar
muito conotados com o significado mágico deste número que reúne a magia do número três (pluralidade)
e do número quatro (totalidade). Sobre a magia contida nestes números ver R. WILKINSON, Symbol &
Magic, p. 146. Há uma sugestiva representação da vinheta do capítulo 148 no túmulo da rainha Nefertari,
com as sete vacas celestes e o touro copulador, com o mágico reforço dos lemes.
666
A sucessão de portas estabelece um paralelo entre o Além e um templo. A ideia de flanquear portais ao
longo do caminho do Além já está presente no «Livro dos Dois Caminhos». Nesta composição do
Império Médio, o defunto entra na «Morada da Lua», o templo de Tot onde se dá a regeneração do morto.
Também aqui o defunto passa por sete pórticos guardados por monstros ameaçadores que velam pela
sacralidade desses lugares. Para Barguet, trata-se, sem equívocos, da descrição do plano de um templo. A
viagem do defunto corresponderia, deste modo, à iniciação do sacerdote e à sua apresentação diante do
relicário divino. Ver P. BARGUET, Aspects de la pensée religieuse de l´Égypte ancienne, pp. 13-31.
Também o conto demótico Setne-Khaemuaset e Siosíris apresenta uma idêntica concepção do Além.
Quande Setne, guiado pela mão de Siosíris, entra em Ra-setau, atravessa sete salas até chegar à
comparência de Osíris. Ver L. ARAÚJO, Mitos e Lendas do Antigo Egipto, pp. 264-265.
667
A porta de Adriano, em Philae, apresenta uma representação acerca do trajecto iniciático no templo e a
função da porta na defesa do mistério da regeneração que, em última análise, é responsável pela
renovação do mundo. Neste relevo, a porta apresenta um ferrolho em forma de leão que simboliza a
função dos guardiões do Além (comentaremos estes objectos na III parte do nosso trabalho) e a sua
relação com a pureza. Ver anexo IV 1.C 3. O paralelo com as vinhetas do «Livro dos Mortos» que
ilustram esta passagem faz-se naturalmente. Numa destas representações (Ver anexo V 7.68 ) defunto que
exibe o órgão diante dos génios funerários proclama: «Abre o caminho! Eu conheço-te e conheço o teu
nome, bem como o nome do deus que vela por ti. (Capítulo 145 e 146 do «Livro dos Mortos». Versão
211
Posicionado agora no interior dos sete portais do Além, o defunto
encontrava-se finalmente com as sete vacas divinas, o seu consorte bovino e os quatro
lemes celestes (capítulo 148).668 Do ponto de vista simbólico, as sete vacas sagradas
preparavam o novo nascimento do defunto sob a forma do sol nascente e simbolizavam
a própria travessia do defunto pelos sete portais do Além, que assim eram encarados
como manifestações do ventre da deusa cósmica. Través desta passagem, o defunto era
conduzido a catorze colinas ou criptas onde estavam sepultados deuses misteriosos
(capítulos 149-150).669 Em cada uma dessas colinas, o defunto regenerava um
determinado espectro de poderes vitais. Os capítulos seguintes (151-160) são dedicados
ao próprio túmulo do defunto, encarado como mais uma destas colinas secretas. Nesta
cripta verificava-se a revelação do supremo mistério do Além, a união de Ré e de Osíris:
Livro da duração de Osíris (...) Eu faço com que Ré repouse em Osíris e que Osíris repouse em
Ré, eu faço que ele penetre na caverna misteriosa para fazer viver o coração daquele cujo coração já não
bate, o ba sagrado do Ocidente. (...) Louvor a ti, senhor dos Ocidentais, que faz renascer os humanos, que
rejuvenesce no seu momento. Ele é agora mais belo do que nas suas manifestações anteriores. (...) Tu és
duradouro no seio de Nut. Ela abraça-te (...) o teu coração ib afirmou-se no seu lugar, o teu coração hati
está como era no princípio, o teu nariz possui a duração, a vida e a força, pois tu estás vivo, renovado,
rejuvenescido, como Ré, em cada dia.670
francesa em P. BARGUET, Le Livre des Morts, pp. 193-203.) Noutra vinheta rara ilustrando a rubrica do
capítulo 194 («Fórmula para entrar no tribunal das duas deusas e para glorificar Osíris»), o defunto é
representado diante de seis akhu, estando um deles equipado com um coração. A legenda refere que se
trata de «O da oferenda», «O que dá pão ao esfomeado». Estes akhu constituem um tribunal para
determinar se o defunto pode ser admitido no Além. É talvez por isso que um deles é representado com o
coração (Ver T. DUQUESNE, At the Court of Osiris. Book of the Dead spell 194, p. 12).
668
Este era também um dos momentos críticos para o renascimento do defunto que os amuletos
«cardíacos» procuravam propiciar. As divindades bovinas e os quatro lemes celestes davam ao defunto a
regeneração e a afirmação da universalidade do seu poder. Ver capítulo 148 do «Livro dos Mortos», em
Apêndice IX.
669
Esta imagem da morte pode ser simbolizada no jogo do senet. Diante do adversário o defunto deve
percorrer um percurso através de trinta casas para chegar ao lado oposto do tabuleiro. Se o conseguir
garante a justificação e o rejuvenescimento. Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne,
p. 290.
670
Capítulo 182 do «Livro dos Mortos», em Apêndice IX.
212
O «Livro dos Mortos» terminava, em geral, no capítulo 162, onde a vaca Ahet
intercedia a favor do defunto para que este recebesse na sua cabeça a chama divina que
assegurava o seu despertar:
Louvor a ti, leão, senhor poderoso (...) Escuta a minha voz: Colocaste a chama sob a cabeça de
Ré e eis que ele se ergue na divina Duat de Heliópolis. Fizeste que ele se tornasse semelhante a quem está
sobre a terra, ele é o teu ba, não o esqueças. Aproxima-te do Osíris N.! Fazei nascer uma chama sob a
cabeça de N.! Ele é o ba do grande corpo que repousa em Heliópolis. Atum é o seu nome.
671
Esta preocupação levou à criação dos hipocéfalos, discos circulares profusamente decorados com
símbolos alusivos a esta transformação, que eram colocados debaixo do pescoço ou da cabeça do defunto.
Estes discos apresentam, de um modo geral, três registos. No registo central figura, em geral, uma
divindade com quatro cabeças de carneiro, o deus invocado no texto pela vaca sagrada, Ahet. No registo
superior figuram as barcas solares com diversas representações do deus sol. No registo inferior é
representada a vaca Ahet, os quatro filhos de Hórus e outras divindades funerárias.
672
J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 286.
673
Ver anexo V 6. A demarcação de cenas por nós adoptada segue a proposta de Alexandre Piankoff que
apresenta uma excelente descrição de vários exemplares destes papiros em A. PIANKOFF e N.
RAMBOVA, Mythological Papyri, pp. 77-176.
213
coração na Duat.674 Na primeira cena da composição o defunto está ajoelhado,
apresentando o coração a uma serpente alada, enfeitada com uma barba divina e uma
pluma posicionada no topo da cabeça.675 A exibição do coração diante do deus que
simboliza o Ocidente parece relacionar-se com a pureza exigida ao defunto para entrar
no mundo inferior e passar com sucesso todas as provas que aí o aguardam.
A segunda cena representa a deusa Maet, a ave benu, o escaravelho Khepri e o
amuleto do coração inscrito com o capítulo 30 B do «Livro dos Mortos». Estas
representações aludem à função do escaravelho do coração e do amuleto cordiforme, na
reanimação do defunto e na psicostasia, respectivamente.
A terceira cena é constituída pela deusa do Ocidente676 que, ajoelhada num
hieróglifo heb, «festa», parece receber entusiasticamente o defunto. A deusa apresenta
os hieróglifos heb, ankh, djed e uase dependurados nos braços e é seguida pelos quatro
filhos de Hórus. O resultado obtido na psicostasia permitia assim o acolhimento do
defunto na Duat e a sua integração cósmica através da sua associação a estas divindades
estelares.
A quarta cena apresenta um babuíno sobre um estandarte divino (certamente
aludindo a Tot) e três guardiões das portas do Além empunhando adagas nas mãos. O
primeiro apresenta a fisionomia de anão e ostenta um amuleto cordiforme, ao passo que
o segundo demónio tem cabeça de hipopótamo.677 O terceiro apresenta, em geral, uma
cabeça compósita feita com várias cabeças de Bés, acrescidas por um número variável
de serpentes. Trata-se de uma alusão aos capítulos 145 e 146 do «Livro dos Mortos»
nos quais o defunto se mostra conhecedor dos mistérios que lhe permitiam flanquear as
portas do Além. 678
A quinta cena apresenta uma configuração um tanto caótica, contribuindo para
dar esta impressão o facto de várias figuras alusivas aos iats, «montes» do Além, não se
apoiarem no traço horizontal que delimita inferiormente toda a representação. Em geral
a cena é dominada por duas figuras que tutelam as restantes. Trata-se de um canídeo
munido dos ceptros reais heka e nekhakha e de uma figura mumiforme acocorada cuja
cabeça consiste numa lamparina. Estes conhecidos símbolos funerários são
674
A nossa descrição deste tipo de papiros irá basear-se no papiro de Nesipautitaui. Ver anexo IV 6.2.
675
Na opinião de Piankoff tratam-se de guardiões do Ocidente relacionados com o processo de
regeneração. Em Idem, p. 77.
676
A deusa do Ocidente, adoptando um gesto de louvor, representa aqui a entrada do defunto no mundo
inferior plenamente identificado com o disco solar. Note-se que o símbolo do Ocidente representa o
mundo inferior, por excelência. Ver Idem, p. 34.
677
Em certos casos, também o babuíno de Tot apresenta o amuleto cordiforme.
678
Ver Idem, p. 78. Para os referidos capítulos veja-se P. BARGUET, Le Livre des Morts, pp. 192-203.
214
habitualmente representados nas paredes dos túmulos para assinalar o este e o sul,
respectivamente. Acima destas figuras, que assinalam a existência de uma câmara
funerária, estão as representações das criptas do Além onde se verificam determinadas
metamorfoses. Normalmente, o 14º monte lidera esta sequência, representando uma
serpente fechada numa caverna (é evocativa dos capítulos 149 e 150 do «Livro dos
Mortos»).679 Segue-se a representação do quinto monte, ilustrado por uma barca de
papiro, enquanto que, por último, o sexto e o nono monte contêm uma centopeia e um
crocodilo, respectivamente. A ilustração é, por vezes, acompanhada por uma legenda
que refere o seguinte: «A misteriosa colina da Duat».680
Após esta representação alusiva à regeneração na Duat, segue-se a sexta cena
que representa os quatro lemes do céu, os quais evocam os pontos cardeais e o capítulo
148 do «Livro dos Mortos».681 A representação é alusiva à restituição ao defunto da
universalidade dos seus poderes e o seu domínio sobre o cosmos.
A sétima e última cena representa a transformação final que conduz o defunto à
sua integração plena no circuito solar. Constituindo o motivo central desta cena, a
montanha representa a deusa Hathor, também assinalada sob a forma da vaca sagrada.
No lado oposto da montanha, impelido sob os braços de Nun (ou de Chu), o defunto
emerge finalmente renascido, plenamente identificado com o disco solar.682
Apesar do carácter exíguo do texto, o qual se limita a legendar com uma breve
referência as várias personagens que são representadas ao longo do papiro, a mensagem
desta composição parece centrar-se na identificação do defunto ao sol e nas
subsequentes transformações conducentes à ressurreição. O início do livro é dominado
pelo grande amuleto do coração rodeado pelos símbolos solares alusivos à regeneração
e ao renascimento, equilibrado na extremidade oposta, pelo disco solar elevado da
montanha pelos braços de Nun.
O conteúdo iconográfico do «livro» remete, deste modo, para o jogo dualista do
coração. O amuleto cordiforme, alusivo à psicostasia, era o «certificado» que o defunto
679
Para os referidos capítulos veja-se Idem, pp. 209-215.
680
Papiro mitológico de Nesipatiutaui. Tradução em A. PIANKOFF e N. RAMBOVA, Mythological
Papyri, p. 78.
681
Idem, p. 79. Os quatro lemes do céu representam os limites do mundo e as fronteiras que regem os
ciclos do sol. Os pontos cardeais são, por excelência, fronteiras entre a vida e a morte. Para o capítulo 148
veja-se P. BARGUET, Le Livre des Morts, pp. 207-208.
682
A imagem constitui uma representação sincrética do ciclo de morte e de renascimento sofridas
diariamente pelo disco solar. A deusa Hathor está colocada no lado ocidental, aludindo ao seu papel
fundamental na gestação do novo sol. Do lado oriental, o disco solar é impelido por um deus que lembra
as representações de Nun que ergue o disco solar para dar início a um novo dia. Ver A. PIANKOFF e N.
RAMBOVA, Mythological Papyri, p. 45.
215
necessitava para entrar na Duat e ser acolhido pela deusa do Ocidente. O sol,
representado na extremidade oposta, representa a consciência do defunto transformada
pela vivência dos mistérios da Duat. Entre um extremo e o outro está representado o
percurso do defunto no Além, ou seja, a iniciação do defunto nos mistérios da Duat. Os
guardiões das portas e os montes do Além aludem à geografia mística do Ocidente, o
«templo» onde se verificava a regeneração do sol no seio de Osíris. Trata-se, deste
modo, de uma autêntica «visualização» da iniciação do defunto na Duat, a verdadeira
iniciação que conduzia o defunto a uma «iluminação» e «transformação» permanentes.
O percurso culmina na representação dos quatro lemes do céu que, simbolizando as
fronteiras entre a vida e a morte,683 prefiguravam o renascimento do defunto sob a
forma do disco solar impelido pelos braços de Nun. É a representação, por excelência,
da iniciação (besi), da «emersão» no mundo das divindades.684 O amuleto cordiforme
constitui, neste processo, o salvo-conduto para a iniciação na Duat.
Embora esta gama de livros seja reunida sob a designação genérica de «papiros
mitológicos», este tipo particular de composição merece uma designação mais
específica e mais reveladora do seu efectivo papel que consiste justamente em sublinhar
as peripécias do coração ao longo do percurso na Duat. Pensamos que uma designação
como «Livro da Regeneração», além de resumir a ideia central da composição, contribui
para afirmar o carácter original e «especializado» destes «livros» que, no fundo,
procuravam resumir, numa glose iconográfica, aquela que era a principal noção
teológica deste período: a associação do defunto ao percurso nocturno do sol e aos
mistérios da unidade solar-osiríaca.685
Resta ainda chamar a atenção para o facto destes papiros, apesar de terem
conhecido uma difusão mais significativa na XXI dinastia, foram inicialmente
compostos no período ramséssida686 e derivam de representações mais complexas
683
Idem, p. 79
684
A iniciação, como vimos na primeira parte, implica sempre uma ascensão, uma emersão do plano
ordinário para um nível superior e luminoso.
685
A proximidade entre a regeneração do defunto e o tema do percurso do sol no Além é corroborada pela
representação dos dois temas no mesmo papiro, como acontece no exemplar composto para
Tabaketenkhonsu. Ver anexo V 6.6. Os rudimentos da teologia deste período são excelentemente
resumidos em A. NIWINSKY, Studies on Illustrated Theban Funerary Papyri of the 11th and 10th
centuries B.C., pp. 38-42. Estas composições são também um eloquente testemunho do fervilhar
espiritual deste tempo. Longe de constituírem um produto menor, como os considerava Naville quando os
comparava aos aparatosos «Livro dos Mortos» do período precedente, estes livros atestam o vigor cultural
que caracterizou a XXI dinastia. (Ver A. NIWINSKY, Studies on Illustrated Theban Funerary Papyri of
the 11th and 10th centuries B.C., p. 43)
686
Como é o caso do papiro conservado no Museu Egípcio de Berlim, composto para Amenemuia. Ver
anexo V 6.1.
216
alusivas às transformações sofridas pelo rei no Além. Um testemunho destas
composições reais que serviram como modelo ao «Livro da Regeneração» pode ser
encontrado no segundo relicário que protegia o sarcófago de Tutankhamon, (nº 237).687
Este monumento apresenta uma elaborada decoração que reúne elementos iconográficos
e textuais ilustrativos de certas etapas descritas no «Livro dos Mortos». Os painéis
laterais exteriores são alusivos à reanimação do defunto (painel esquerdo) e à
revitalização do sol através do fogo (painel direito). No interior, o painel esquerdo é
decorado com a representação da barca solar (ilustração do capítulo 130 do «Livro dos
Mortos») e dos múltiplos nomes de Osíris (vinheta do capítulo 141 e 142) ao passo que
o painel direito foi decorado com representações alusivas aos guardiões das portas do
mundo inferior (vinheta do capítulo 144), às sete vacas divinas e aos quatro lemes
celestes (vinheta do capítulo 148).688 Ao examinar o programa iconográfico e textual do
relicário parece notória a intenção de distribuir a decoração segundo determinados
ciclos de representação. Na nossa perspectiva, esta sequência pode ser resumida e
interpretada do seguinte modo. O primeiro ciclo é constituído pelas representações
exteriores do painel esquerdo que descreve o despertar do coração do rei.689 O segundo
ciclo de representações decora a superfície interior do painel esquerdo. Uma vez
687
Ver anexo I P 2.
688
Tal como as vinhetas do «Livro dos Mortos», estas ilustrações acompanham cada uma das fórmulas a
que tradicionalmente estão ligadas. Para a descrição mais detalhada da decoração interior do relicário ver
A. PIANKOFF e N. RAMBOVA, The Shrines of Tut-ankh-amon, pp. 93-95.
689
Entre cenas e textos alusivos às transformações sofridas por este órgão no Além e ao poder criador do
sol, destaca-se o protagonismo dado às fórmulas que garantem o funcionamento do coração e o protegem
contra os inimigos da luz (capítulo 26, 27 e 29 do «Livro dos Mortos»). Uma invulgar representação do
defunto domina todo o painel. Trata-se da representação de Tutankhamon sob a forma do deus «Que
esconde as Horas», uma entidade com uma configuração mumiforme, rodeado por serpentes Mehen na
cabeça e nos pés. Um disco solar com uma ave criocéfala inserida no seu interior representa o sol
nocturno situado dentro do corpo mumiforme. O disco emana um feixe de luz que é lançado para o
exterior e recebido por sete figuras divinas. A representação é ladeada por inscrições com o capítulo 29 e
27 do «Livro dos Mortos» cujo objectivo é repelir os inimigos da luz e impedir que o coração seja
roubado ao defunto. O cruzamento entre os dados iconográficos e o texto permite admitir que o disco
solar com a ave criocéfala constitui uma representação alusiva ao coração do deus «Que esconde as
Horas» (estes capítulos teriam a função de proteger a figura central, o coração do deus mumiforme). Esta
representação é complementada com registos secundários que articulam, do mesmo modo, texto e
imagem. No canto superior direito figura a representação da cabeça de Ré em triunfo, acompanhada pelo
capítulo 17 do «Livro dos Mortos» que celebra justamente o carácter universal do deus solar. No canto
inferior direito foram representados oito deuses compósitos cujo denominador comum é o de ter o peito
em forma de escaravelho. Trata-se de uma alusão à transformação que é acompanha pelo primeiro
capítulo do «Livro dos Mortos». Finalmente, no canto inferior esquerdo, duas figuras de Osíris estão
deitadas sobre uma serpente com cabeça humana, denominada «O que tem uma cabeça humana». Mais
uma vez, a representação é acompanhada por uma fórmula «cardíaca», o capítulo 26 do «Livro dos
Mortos» que passa em revista as várias funções do órgão cardíaco no Além (usufruir das oferendas
funerárias, circular no mundo inferior, repelir inimigos, regenerar o corpo, recuperar a identidade,
cumprir as vontades do ka e entrar e sair das portas do Além). Para a descrição mais detalhada da
decoração do relicário ver Idem, pp. 93-95.
217
desperto, o defunto integrar-se-ia na tripulação da barca nocturna do sol e invocaria os
vários nomes de Osíris incluídos nos capítulos 141 e 142 do «Livro dos Mortos», nos
quais se resume as principais etapas da viagem pelo mundo inferior. O terceiro ciclo
seria constituído pela face interna do painel direito que apresenta os guardiões dos
portais do Além (vinheta do capítulo 144) e o conjunto do touro divino com o seu
harém de sete vacas sagradas seguido dos quatro lemes celestes (capítulo 148). A
decoração é, desta feita, alusiva aos grandes mistérios do mundo inferior que confirmam
o defunto como um iniciado no conhecimento secreto necessário para transpor os
portais do Além, ao mesmo tempo que restituem o seu vigor e confirmam a
universalidade do seu poder. O último ciclo compreende as representações que cobrem
a superfície exterior do painel direito. Sem qualquer inscrição para além das legendas
que esclarecem a identidade dos elementos representados graficamente, o painel é
inteiramente dedicado à representação da reanimação do sol através do fogo. O rei é
agora representado sob a configuração de disco solar com a silhueta da ave criocéfala.
Dois pares de braços conduzem o disco de um lado ao outro de uma elipse que
representa provavelmente os limites do mundo inferior. Distribuidos por três registos
estão vários deuses mumiformes ou leoninos que injectam fogo no sol que vai
renascer.690 A decoração do santuário parece, deste modo, constituir uma versão mais
completa e detalhada da composição iconográfica ilustrada no «Livro da Regeneração».
Estas composições seriam, deste modo, uma versão abreviada deste «livro»
monumental que, na XVIII dinastia, foi colocado sobre o corpo de Tutankhamon, de
modo a favorecer a sua transformação num sol regenerado. O «Livro da Regeneração»
reflecte, enfim, a existência de um modelo coerente de crenças que colocava o coração
no cerne do processo de transformação/iniciação ocorrido no Além e conduzia à
transformação do defunto no sol nascente.691
690
Para a descrição mais detalhada da decoração exterior do painel esquerdo do segundo relicário de
Tutankhamon ver Idem, pp. 127-131.
691
A inspiração para estas composições residia, afinal, no próprio «Livro dos Mortos», que descrevia,
como vimos, todo este processo. É sobretudo o capítulo 141 que melhor resume o percurso do defunto na
Duat, apresentando um «mapa» do Além O «Livro da Regeneração» constitui uma ilustração do «mapa»
fornecido pelo referido. Embora a ordem em que as entidades divinas são mencionadas no texto não seja
exactamente a que é apresentada no «Livro da Regeneração», a verdade é que a maior parte dos
elementos figurados nesta composição são nomeados no texto.
218
Capítulo III. O coração e o julgamento dos mortos
A visão do tribunal divino do Além dada pelos «Textos das Pirâmides» não é
uniforme. Em certos casos, a passagem pelo tribunal do Além parece um acto
protocolar. O rei contava com a legitimidade jurídica para ser admitido entre os eleitos e
a sua aclamação não suscitava qualquer tipo de inquietação:
Todos os deuses das sepaut estão contentes, todos os deuses das cidades estão
contentes desta nobre e grande palavra proferida por Tot a respeito de N: «Selo da
cidade, os deuses foram selados» Anúbis, o que conta os corações, retira N. dos deuses
da terra e enumera-o entre os que estão no céu».693
692
A. MORET, «La doctrine de Maât», RdÉ 4 (1940), pp. 11-12. Para este autor a ideia da imortalidade
fundada no julgamento constitui uma característica singular da civilização egípcia no contexto das
religiões do Médio Oriente antigo. Teria sido por influência egípcia que o império persa adoptou a ideia
do julgamento dos mortos. O ensinamento egípcio da maet também ecoa na Bíblia e na Grécia, sobretudo
no pensamento de filósofos «místicos» como Platão. O cristianismo, fortemente subsidiário desta
tradição, enriqueceu-se ainda com os escritos de Platão e com a tradição alexandrina. O contributo da
moral egípcia foi, deste modo, crucial para o mundo mediterrâneo durante o I milénio.
693
Pir. § 1522-1523. Veja-se que Tot e Anúbis, duas personagens características das vinhetas da
psicostasia no «Livro dos Mortos» são já mencionadas nos «Textos das Pirâmides» como responsáveis
pelo funcionamento burocrático do tribunal. Tot, o escriba divino e Anúbis, com o título de «enumerador
de corações», cujo sentido é obscuro neste contexto, afigura-se plenamente ajustado à função que
desempenha no Império Novo. Em J. YOYOTTE, «Le jugement des morts dans l´Égypte ancienne», p.
24. O modelo do julgamento dos mortos que se generalizou no Império Novo parece, deste modo,
inspirar-se no modelo real de julgamento evocado nos «Textos das Pirâmides».
219
alusões a este julgamento, no entanto, são demasiado obscuras para que o seu sentido
seja perfeitamente compreendido.694 Na fórmula 260, o julgamento é descrito com uma
sobriedade que contrasta com o aparelho complicado da justiça osiriana do Império
Novo.695
O rei N. deseja ser justificado pelo que realizou. É certo que N. julgou o órfão e
a órfã. É certo que o justo foi ouvido. É certo que não ouve testemunho. É certo que o
justo deu ordem. N. surgiu como um ser em relação (estreita) com Maet, ele trá-la
consigo.696
694
Ibidem.
695
Idem, p. 25
696
§ 316-317 e 319b, versão francesa em Ibidem.
697
Ibidem
698
Anthes nega esta hipótese, defendendo que o rei estava livre de qualquer acusação e que a expressão
«justificado» consistia na expressão jurídica do reconhecimento do rei pelos deuses. A posição de Anthes
parece ser contrariada, por exemplo, pela fórmula 486, que menciona condenações e acusações proferidas
contra o rei: «O único é N. (...) Ele não é punido, não é detido em nome do rei, o seu nome não é referido
pelos magistrados e os inimigos de N não foram justificados. N. não foi desprovido dos seus bens, as suas
unhas não foram arrancadas, nenhum dos seus ossos foi destruído». Textos das Pirâmides § 10 41-1043,
em Ibidem.
699
Em Ibidem
700
Em J. ASSMANN, Mort et au-delá dans l´Égypte ancienne, p. 126.
220
As acusações apresentas no tribunal divino destinavam-se, provavelmente, a pôr
à prova a capacidade do rei para cumprir a sua principal responsabilidade: renovar a
maet e repelir a isefet.701A raridade das alusões ao julgamento, no entanto, é bem
expressiva da pouca importância que o tema desempenhava no ritual de glorificação do
rei. O próprio facto do rei constituir um mago divino e de, por essência, possuir a maet,
relegava para segundo plano a noção da retribuição pelo mérito moral e o seu
reconhecimento por via judicial. 702
Fora do contexto real, as primeiras alusões ao tribunal divino surgiram no
âmbito de um conjunto de textos conhecidos por «invocações aos vivos», os quais eram
redigidos na entrada das mastabas com o intuito de convencer o visitante a ter um
comportamento piedoso para com o defunto. Nestes textos, o julgamento divino fazia-se
contra os que causassem dano no túmulo, por negligência das prescrições rituais, por
vandalismo ou por subtracção de oferendas.703 Nestes casos, o defunto prometia
apresentar uma acusação no tribunal do Além movida contra o agressor, de modo a
obter um direito legal para exercer uma vingança pessoal.704 O tribunal do Além surgia
assim como um meio para amedrontar os vivos Pelo contrário, às pessoas que
ajudassem o defunto, este prometia uma ajuda no referido tribunal, prestando o seu
auxílio. Subjacente estava a ideia que, valendo-se do seus conhecimentos mágicos, o
defunto seria uma ameaça ou uma ajuda no tribunal do Além.
É muito provável que este «tribunal divino» se inspirasse num tribunal terreno
especializado na jurisdição dos assuntos da necrópole que agia nos casos de violações
de sepulturas.705 Efectivamente, o próprio procedimento acusatório do tribunal do Além
reflecte um funcionamento típico do direito privado e não de um direito sobrenatural.
Um morto apresentava uma queixa diante do deus como um vivo apresentava queixa
diante do rei.
701
Era essa capacidade que permitia que o rei pudesse ser revivificado na Ilha do Fogo com o sol e sair
triunfante na nova alvorada. Através da maet, o rei ligava intimamente a ordem do universo à ordem
humana e social. O tribunal divino era, deste modo, um pretexto para demonstrar o triunfo do rei, no seu
papel de garante do funcionamento da maet, que lhe permitia tornar-se parte da ordem cósmica. Em Harry
SMITH, «Maet and Isfet», BACE 5 (1994), p. 7
702
J. YOYOTTE, «Le jugement des morts dans l´Égypte ancienne», p. 26. As primeiras referências destes
documentos datam do reinado de Menkauré.
703
Quem danificasse o túmulo seria «acusado no julgamento dirigido contra ele, no lugar onde se julga»,
Idem, p. 21. As primeiras referências destes documentos datam do reinado de Menkauré.
704
Idem, p. 29.
705
Sabemos que tribunais como este existiram em cidades de pirâmides e na necrópole de Mênfis. Nestes
casos, o «grande deus» era certamente a designação do próprio faraó. Em Ibid., p. 29.
221
Noutras inscrições tumulares, as autobiografias, uma outra ideia acerca do
julgamento dos mortos começa a adquirir visibilidade. Na V dinastia, o nomarca
Sekhemnefer declarava, no reinado de Isesi:
Eu vim da minha cidade eu saí da minha província e fui sepultado neste túmulo. Eu disse a
706
verdade que deus ama, em cada dia. (…) nunca disse mal de ninguém a sua majestade, o meu senhor.
Eu fui (…) o bem amado do seu pai, o louvado de sua mãe, o estimado pelos seus irmãos e
irmãs. Dei pão ao esfomeado, vestes ao que estava nu, fiz atravessar (o rio) ao que não tinha barca (…)
Nunca disse coisas más ao poderoso pois eu queria que tudo corresse bem para mim junto do grande deus.
707
Nunca julguei contendores de modo a espoliar o filho dos bens de seu pai.
706
É. DRIOTON, «Le jugement des âmes dans l´ancienne Égypte», RdC (1949), p. 15.
707
Idem, p. 14.
708
Para alguns autores, no entanto, o dogma da retribuição terrena, garantida pela eficácia da acção real
constituiu provavelmente o principal obstáculo à emancipação da noção de julgamento moral do defunto
no Além. Ver Ibid., p. 36.
709
Idem, p. 13.
222
No dia em que se julga o infeliz
Na hora de ler a sentença
Infelicidade se o acusador é sabedor!
Não confies na duração dos anos,
Eles vêem uma vida num só instante.
Aqueles que eles examinam após a morte
As suas acções são colocadas junto dele
E a eternidade que está lá,
Insensato o que descura esta verdade!
Mas quem aí chega sem cometer faltas
Será como um deus
710
Chegando livremente como os senhores eternos.
Uma grande reviravolta cultural separa este texto das alusões anteriores ao
julgamento dos mortos. Na Instrução para Merikaré era ao tribunal divino que o
homem devia prestar contas e não a um eventual acusador.711 Outra característica
distinta era o carácter compulsivo desta avaliação. Embora tal não chegasse a ser
referido explicitamente, parece claro que ninguém estava isento de se justificar perante
um tribunal que conhecia intimamente a sua vida. Para Assmann, esta mudança
testemunha um fenómeno novo, o da culpabilidade.712 Da ideia arcaica da morte
encarada como inimigo, que era culpabilizada pela inércia do defunto, emergiu, no
entender deste filósofo, a concepção do pecado como factor de corrupção moral. A
culpa consistia na forma pela qual o indivíduo se demarcava das suas faltas, as quais
eram encaradas como um factor de corrupção que devia ser arrancado. O julgamento do
morto funcionava, deste modo, como um meio de libertar o defunto do mal.713 A forma
clássica do julgamento dos mortos estava atingida. Já não era com o inimigo que o
defunto se tinha de confrontar mas sim com a sua vida, as suas faltas e com o seu juiz
divino. A «justificação contra» transforma-se, no dizer do filósofo, em «justificação
diante».714
710
Instrução para Merikaré, versão francesa em É. DRIOTON, «Le jugement des âmes dans l´ancienne
Égypte», RdC (1949), p. 13.
711
Em J. YOYOTTE, «Le jugement des morts dans l´Égypte ancienne», p. 18.
712
Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 127.
713
Idem, p. 123.
714
Idem, p. 127. O autor salienta, no entanto, que o facto de estarmos perante um contexto real limita à
priori a extensão e a generalização que esta ideia do julgamento dos mortos teria no tempo em que foi
redigida.
223
Esta nova atitude perante a morte relacionava-se com as profundas alterações
sociais que acompanharam o fim do Império Antigo.715 A anarquia tinha tornado
precária a justiça do mundo e a recompensa imediata das virtudes. Uma concepção
estadual da justiça foi substituída por uma ordem divina, distinta da ordem moral do
reino, constituindo um último recurso do justo à retribuição pelos seus actos. A crise
política levou os teólogos a libertar a maet das suas manifestações políticas e sociais,
para a projectar no plano da transcendência.716
Nos «Textos dos Sarcófagos» começa a ser detectável a distinção entre duas
formas de julgamento, o processo de justificação e a pesagem do coração. Embora
ambos os processos usados no julgamento dos mortos estivessem intimamente ligados
entre si, não há dúvida que se estabelecia uma certa autonomia entre ambos, razão pela
qual iremos, em seguida, analisar estes procedimentos judiciais em separado.717
2. A psicostasia
715
A Instrução para Merikaré não constitui um caso isolado, traduzindo uma mudança de horizontes que
começava a impor-se duarante o Primeiro Período Intermediário. Um ensinamento semelhante à Instrução
para Merikaré encontra-se numa autobiografia de um nomarca de Assiut: «Eu satisfiz o deus com o que
ele ama (ver realizado), pois me lembrei que um dia chegarei junto do deus, no dia da morte». Inscrição de
Diur, em J. YOYOTTE, «Le jugement des morts dans l´Égypte ancienne», p. 34
716
É no entanto duvidoso que a concepção do julgamento moral do defunto, ainda que em estado
embrionário, fosse totalmente inexistente no Império Antigo. Apesar da ambiguidade terminológica da
Instrução de Ptah-hotep, Fecht detecta na seguinte passagem uma alusão ao julgamento póstumo: «Maet é
grande, duradoura e eficaz. Ela não foi perturbada desde o tempo em que foi criada. Punir-se-á quem
transgredir às suas leis. Tal ultrapassa o ímpio. A maldade dura tanto como a vida. Mas a espoliação nunca
conduziu a bem a sua causa. Quando o fim chega, Maet permanece». Ptah-hotep 88-97, em Idem, p. 35.
Embora a referência não seja explícita fica subjacente a ideia de um julgamento divino que poderá ter
inspirado o redactor da Instrução de Merikaré. Este último documento, seria, de acordo com esta
perspectiva, o ponto de chegada de uma tradição literária que se iniciara muito tempo antes mas que, por
razões de ordem ideológica, permaneceu insuficientemente explorada do ponto de vista literário. Um dos
defensores desta ideia foi Drioton que defendia que, embora insuficientemente explorada em termos
literários, a ideia do julgamento dos mortos já estava subjacente ao horizonte religioso do homem egípcio
no Império Antigo. Ver É. DRIOTON, «Le jugement des âmes dans l´ancienne Égypte», RdC (1949), pp.
15-16.
717
O processo de acusação e a pesagem do coração confundem-se no mesmo mistério. Pode falar-se no
«dia da medição do excesso» ou no «dia de medição das virtudes» para falar num e noutro processo. Um
como o outro procuram determinar o valor do comportamento do indivíduo. Em M. J. CLÈRE, «Un
passage de la stèle du général Antef (Glyptothèque Ny Carlsberg, Copenhague)», BIFAO 30 (1931), pp.
425-447.
718
De acordo com Alexandre Moret, as alusões à «balança de Ré com a qual se pesa a Maet»
começam a surgir nos «Textos dos Sarcófagos» desde a IX dinastia. Em A. MORET, «La doctrine de
Maât», RdÉ 4 (1940), p. 5.
224
Oferenda que o rei faz ao venerável Antef, justificado. Que os grandes de Busíris o glorifiquem
(sAx) e os cortesãos do senhor de Abido. Que «aqueles que estão na abundância» lhe estendam a mão na
necrópole. Que lhe seja dito: «Bem-vindo» pelos grandes de Abido. Que o defunto possa chegar ao
tribunal divino, ao lugar onde estão os deuses. Que o seu ka esteja com ele e que as suas oferendas
estejam diante dele. Que a sua voz seja proclamada justa na medição do excesso: que ele fale quando o
acusarem que ele seja absolvido graças a tudo quanto disser . 719
Eu fui um homem gentil com o irritado e indulgente com o ignorante de modo a evitar a disputa.
Fui um homem calmo, isento de precipitação, (…) Fui um homem justo como a balança, exacto e
721
rigoroso como Tot. Fui um homem seguro e de bom conselho fiel ao seu bem-feitor.
Palavras ditas por Tot que transmite a Maet à Grande Enéade na presença de Osíris: «Escutai (...)
eu julguei o coração de Osíris N. O seu ba testemunhou a seu respeito, o seu caso revelou-se exacto na
719
M. J. CLÈRE, «Un passage de la stèle du général Antef (Glyptothèque Ny Carlsberg, Copenhague)»,
BIFAO 30 (1931), p. 246
720
Ibidem, p. 429.
721
É. DRIOTON, «Le jugement des âmes dans l´ancienne Égypte», RdC (1949), p. 12.
722
J. YOYOTTE, «Le jugement des morts dans l´Égypte ancienne», p. 41.
723
H. SMITH, «Maet and Isfet», BACE 5 (1994), pp. 70-80
225
grande balança. Nenhum crime foi encontrado. Não diminuiu as oferendas alimentares nos templos, nem
724
perturbou a realização dos rituais. Nada fez contra os outros sobre a terra.»
A vinheta da psicostasia
Uma das vinhetas mais importantes do «Livro dos Mortos» é a que ilustra a
pesagem do coração. Embora o tema da psicostasia seja abordado na literatura desde os
«Textos dos Sarcófagos», as suas primeiras representações pictóricas apareceram
apenas no dealbar da XVIII dinastia mas conheceram, desde então, uma grande difusão
tornando-se no tema «cardíaco» mais profusamente representado. Ao estudar estas
representações tentaremos identificar os diferentes tipos de representações da
psicostasia, de modo a delinear a sua evolução ao longo do tempo. As variantes assim
identificadas permitir-nos-ão acompanhar as preocupações suscitadas pela pesagem do
coração e compreender a função mágica destas representações. Apresentamos em
seguida apenas a caracterização sucinta destas representações. O leitor poderá encontrar
no Apêndice XII a caracterização completa de cada um dos tipos estudados.
A primeira constatação que se impõe quando observamos o imenso manancial
de ilustrações relacionadas com a psicostasia relaciona-se com a sua complexidade
crescente. Baseando-nos nas diferenças observadas entre estas ilustrações elaborámos
724
J. YOYOTTE, «Le jugement des morts dans l´Égypte ancienne», p. 47.
725
Palavras pela Grande Enéade a Tot, que está em Hermópolis: «Que assim seja, o decreto que saiu da tua
boca. Justo e exacto é o Osíris N. Não haverá acusação da nossa parte contra ele. A Devoradora não terá poder
sobre ele. Que lhe sejam atribuídos pães (...) Eu venho diante de ti Uennefer, trago-te N, o seu coração é justo e
passou na balança. Não há crime da sua parte, contra nenhum deus, nem contra nenhuma deusa. Tot redigiu o
veredicto por escrito. Eis o que disse a Enéade a seu respeito: Grandemente justo e exacto! Que lhe seja dado
pão e cerveja». Em Ibidem.
226
uma tipologia que se afigura útil para nos ajudar a contextualizar no tempo e, por vezes
no espaço, as vinhetas da psicostasia.726
726
Como veremos, sobretudo na Época Baixa e na Época Greco-Romana, é possível detectar diferenças
regionais na elaboração das vinhetas da psicostasia.
227
Tipos Características Datação Contexto Exemplo
salientes
Tipos de psicostasias
228
Inicialmente criada para ilustrar o capítulo 30 do «Livro dos Mortos», a vinheta
da psicostasia começou por ser uma representação estática fortemente centrada na
operação realizada na balança de Tot. As representações de tipo I, imbuídas de
preocupações mágicas, procuravam garantir que o testemunho do coração conduzisse a
um resultado favorável na psicostasia. Normalmente a sobriedade caracteriza estas
representações que apresentam, no máximo, três deuses.
As representações de tipo II, muito frequentes até ao período amarniano, atestam
o fervilhar de ideias relacionadas com o julgamento dos mortos e a experimentação
intensa de novas formas e soluções. Distinguem-se das anteriores por apresentarem as
figuras distribuídas em vários registos de representação de importância equivalente.
As representações de tipo III, mais frequentes no final da XVIII dinastia
e claramente privilegiadas no período ramséssida, transformam estas vinhetas de modo
a evidenciar um processo dinâmico ao longo do qual o defunto (frequentemente
representado mais do que uma vez), se aproxima gradualmente da divindade. Esta
necessidade de colocar o defunto em relação directa com Osíris traduz a crescente
importância da afirmação da fé pessoal, fenómeno que se manifestou em pleno na
espiritualidade pós-amarniana. Esta aproximação, no entanto, era medida e mediada
pela pesagem do coração. O posicionamento de Ammut junto da balança (antes
praticamente inexistente) contribui para carregar de tensão este momento. Certo é que,
após a pesagem, o defunto merece ser conduzido à presença de Osíris por uma
manifestação de Hórus (Horsaiset ou Hornedjitef), o que corresponde à afirmação da
sua legitimidade para ser aceite pelo círculo divino. Note-se que, à medida que se vai
aproximando de Osíris, a atitude do defunto tende a tornar-se cada vez mais contricta. A
representação da psicostasia possui, deste modo, uma função importante no programa
decorativo dos túmulos ramséssidas, constituindo o momento de transição que prepara o
defunto para o contacto com o divino. Na pesagem do coração, os pecados do defunto
são removidos e a sua consciência era redimida e purificada, facultando-lhe a pureza
original que lhe permitia estabelecer o contacto com o deus. A psicostasia ficava assim
integrada nas crenças relacionadas com a piedade pessoal.
As representações de tipo IV e V retratam um defunto mais confiante, mais
activo e com um leque comportamental mais alargado. A oferenda do coração e o júbilo
são atitudes associadas à pesagem do coração e assinalam a regeneração do órgão
através do regresso ao tempo mítico da criação. O júbilo traduz, na iconografia, a
229
alegria, a emoção que, nos hinos de louvor, é associada ao nascer do sol e à criação do
mundo. A tensão em redor da balança é desanuviada também pela remoção de Ammut
que agora tende a posicionar-se junto do pavilhão de Osíris. Em compensação, o espaço
em redor da balança foi preenchido com símbolos propiciatórios alusivos ao
renascimento do defunto sob a forma de uma criança divina. Os símbolos dualistas da
realeza são apropriados para evocarem o regresso à pureza original da criação, no seio
da qual o defunto se regenera e assume a configuração do deus solar renascido. Junto ao
pavilhão de Osíris são representadas as deusas funerárias que asseguravam a
mumificação (Ísis e Néftis), o totem imiut (alusivo à transformação que ocorre na Duat)
e os quatro filhos de Hórus. De um modo geral, estas vinhetas estão organizadas de
modo a estabelecerem dois pólos de representação e a evidenciarem uma relação
dinâmica entre os símbolos de Ré e de Osíris. Assim, enquanto que, junto da balança, se
reúnem símbolos associados à regeneração do defunto identificado com o sol matinal,
junto do pavilhão de Osíris reúnem-se os símbolos que favorecem a ressurreição do
defunto na qualidade de Osíris. A vinheta da psicostasia passava então a constituir um
autêntico resumo iconográfico da síntese teológica elaborada em torno de Ré e de
Osíris.
As cenas de tipo VI apresentam um esforço de síntese e de simplificação que
conduziu à redução drástica do número de intervenientes directos na psicostasia. O
defunto tende a ser representado uma única vez, enquanto as divindades que compõem a
vinheta conhecem uma definição bastante estrita das suas funções: Tot regista o
resultado, Hórus e Anúbis manuseiam a balança, Maet ou a deusa do Ocidente acolhem
o defunto. Nova é a grande ênfase colocada na representação da sala onde decorre o
julgamento, facto que está na origem de uma diferenciação iconográfica importante. As
vinhetas oriundas de Tebas apresentam o friso da sala com uma decoração intrincada
onde figuram chamas, balanças, babuínos e uma entidade divina cujos braços abertos
normalmente se posicionam sobre dois olhos udjat (tratasse provavelmente de uma
personificação do Nun). As representações da psicostasia originárias de Mênfis
distinguem-se por apresentarem motivos decorativos rigorosamente desenhados com
motivos geométricos simples. Em ambas as versões se detecta a introdução de novos
símbolos. O defunto, sob a forma de Nefertum, é colocado diante de Osíris, que, dessa
forma, afirma a sua pureza sem mácula. Além de Ammut, que também se apresenta
diante de Osíris, surge também o tardio par divino composto por Chai e Reret, as
personificações do destino e do tempo de vida. Outro traço distintivo é o peso da
230
assembleia divina que, embora situada em registos secundários, ganha dimensões
verdadeiramente grandiosas. Estas divindades, em geral em número de 42, diante das
quais o defunto apresenta oferendas, personificam as divindades locais do Egipto.
Diante deles o defunto recita a declaração de inocência, referindo que se absteve de
praticar os interditos religiosos dos deuses de cada sepat. A assembleia divina
representava afinal as infinitas facetas nas quais o deus supremo se manifestava ao
defunto, afirmando a universalidade da sua justificação através da sua associação a cada
um dos deuses locais do Egipto.
O polimorfismo de uma divindade que no fundo é una, manifesta-se, por
excelência, nas representações de tipo VII, onde o próprio juiz divino se multiplica nas
pessoas de Osíris, Ré e Tatenen. Esta tríade divina enfatizava assim as facetas ctónica,
solar e demiúrgica do deus que rege os destinos humanos. A assembleia divina, por
outro lado, tornou-se muito reduzida. Os deuses distinguem-se das representações
anteriores por apresentarem uma configuração mumiforme, estarem em posição vertical
e por ostentarem uma pluma maética ataviada num comprido cinturão osiríaco.
Assistimos, deste modo, a uma grande evolução formal e semântica do tema da
psicostasia. Estas representações começaram por ser um mero apoio mágico para
assegurar um resultado favorável na pesagem do coração. No entanto, sobretudo a partir
do período ramséssida, a psicostasia começou a perfilar-se como o dispositivo mágico
que garantia a aproximação do defunto ao deus dos mortos, a principal aspiração da
religião funerária fortemente marcada pela piedade pessoal. Também a síntese teológica
dos cultos de Ré e de Osíris, promovida pelo clero de Amon da XXI dinastia, se
reflectiu na valorização sem precedentes da psicostasia. Neste enquadramento teológico
o processo envolvido na psicostasia conquistou um significado solar: a medição feita
pela balança tinha agora um significado obstétrico mais evidente permitindo o regresso
do defunto ao tempo primordial da criação onde a sua purificação teria lugar.
A partir da Época Baixa, a psicostasia continuava a marcar o renascimento do
defunto, assimilado a Nefertum, o sol primordial. No entanto, a psicostasia permitia
também a revelação do deus universal através das suas múltiplas manifestações locais,
que assegurava a fidelidade do defunto a cada um dos seus interditos. Em suma, a
importância crescente da psicostasia, patente no facto de constituir uma das mais
frequentes representações da arte funerária, deve-se ao facto de ter sido a manifestação
gráfica de uma transformação fundamental para dois fenómenos que marcaram a
231
espiritualidade egípcia: a piedade pessoal e, cumulativamente, a síntese teológica do
culto de Ré e de Osíris.
3. A justificação
O triunfo do defunto sobre a morte era assinalado pela sua aclamação como um
maé-kheru. Esta expressão, generalizada a partir do Império Médio era, originalmente,
evocativa do ritual de entronização e coroação de Osíris, diante do qual eram
aniquilados os assassinos do deus. 727 Antes da justificação, porém, o morto sofria um
processo acusatório relacionado com a avaliação das suas qualidades morais. No
tribunal do grande deus,728 algumas divindades apresentavam acusações que o defunto
se empenhava em negar, o que originou as declarações de inocência patentes no capítulo
125 do «Livro dos Mortos». Este longo capítulo divide-se em duas partes principais. Na
primeira parte o defunto proclamava uma oração de louvor e a primeira declaração de
inocência antes de entrar na sala das Duas Maet. No interior do salão, o defunto
enunciava a segunda declaração de inocência. A segunda parte do capítulo é
normalmente redigida depois da comparência no salão maético e consiste num
interrogatório «esotérico» dirigido ao defunto. A progressão insinuada por esta
sequência aponta para a ideia de um percurso ao longo do qual o defunto se separava
dos seus pecados. O próprio capítulo apresentava esta ideia ao referir, logo no início:
727
J. YOYOTTE, «Le jugement des morts dans l´Égypte ancienne», p. 37.
728
Idem, p. 42. Neste processo conducente à justificação, presidia um juiz supremo cuja identidade
permanece muito vaga. O deus Ré podia velar sobre o julgamento na qualidade de senhor universal, mas
também Osíris podia presidir como «soberano dos defuntos. O circuito solar constituía, no entanto, a mais
elevada imagem da manutenção da ordem cósmica, razão pela qual a identidade deste juiz supremo se
confunde com Ré. O deus solar, «julga a terra por meio dos seus dedos e sabe falar ao coração. Julga o
culpado e coloca-o no Oriente, colocando o justo no Ocidente». A ideia de julgamento estava
profundamente entrosada no percurso do sol. O Oriente era associado ao castigo dos inimigos da luz e o
lugar onde se travava o combate primordial entre Ré e a treva, ao passo que o Ocidente era o local de
repouso.
729
P. BARGUET, Le Livre des Morts des Anciens Égyptiens, p. 158.
232
Chegaria assim num estado de pureza total ao Além. 730 O que imediatamente se impõe,
ao observar a estrutura do capítulo 125 é a justaposição, por vezes abrupta, de textos
heterogéneos. Os interrogatórios «esotéricos», por exemplo, não têm relação nenhuma
731
com o texto precedente, a segunda declaração de inocência. As duas versões da
declaração, por outro lado, uma dirigida ao grande deus e outra aos 42 deuses,
apresentam um conteúdo bastante idêntico, tratando-se de duas variações do mesmo
tema que, num dado momento, foram justapostas. Na opinião de Yoyotte, o capítulo
125 nasceu do emparelhamento de três rituais de comparência no Além, um dirigido ao
«grande deus», outro dedicado aos 42 deuses que compunham a assembleia divina e um
terceiro alusivo a um exame esotérico.732
Os 42 deuses acusadores que vinham de todos os locais do Egipto,733
constituindo um autêntico «ministério público de pesadelo», 734 parecem evocar as 42
regiões administrativas do Egipto.735 Esta equivalência tinha, evidentemente, um valor
simbólico e correspondia ao facto do defunto afirmar a sua inocência diante do mundo,
ou seja, diante do país inteiro, simbolizado pelos 42 deuses, representando todas as
províncias do Egipto. Os 42 deuses vindos de todo o país simbolizavam assim a
universalidade da inocência do defunto. 736
Algumas destas entidades já estavam presentes em textos funerários mais
antigos, ao passo que outros eram verdadeiros deuses locais que recebiam culto.737 A
função de cada um destes deuses parece ter sido a de denunciar um certo tipo de faltas
cometidas pelo defunto e de assegurar a sua punição. Montet sugere que o inventário
dos pecados enumerados na segunda declaração inocência é comparável à enumeração
dos principais interditos religiosos locais inventariados nos textos geográficos da Época
730
J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 132.
731
J. YOYOTTE, «Le jugement des morts dans l´Égypte ancienne», p. 58.
732
Idem, p. 59.
733
Os 42 deuses não são juizes nem assessores. Eles perseguem Baba, ou Bebon, um símio violento,
massacram os culpados e bebem o seu sangue. Em Ibid.
734
Idem, p. 60
735
Para Yoyotte, no entanto, o número de divindades da assembleia não nada tinha que ver com as sepaut
do Egipto, pois só na Época Baixa é que se estipulou este número para os territórios administrativos. Em
Ibid.
736
O «olhar de embalsamador» que o egípcio fazia do mundo levava a que tivesse considerado o seu país
como a terra sagrada, por excelência. Embora o número de divisões administrativas tenha variado muito
do Império Antigo à época bizantina, o número de 42 sepaut tornou-se canónico a partir de certa época e
reflectia a ordem sagrada, uma geographia sacra cuja importância é predominante nos templos tardios.
Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 136.
737
Em certos casos, os deuses podem estar associados ao céu, ou às profundezas subterrâneas, mas, a
maioria destes deuses está associado a cidades do Egipto e os seus nomes evocam cultos locais autênticos.
Em J. YOYOTTE, «Le jugement des morts dans l´Égypte ancienne», p. 60
233
Baixa. 738 Com efeito, é de supor que a especialização dos 42 deuses em cada uma das
42 proibições foi feita tendo em conta os interditos principais das cidades do Egipto.739
Nesta perspectiva, estas proibições evocavam possivelmente todos os pecados
possíveis.740 Assmann identificou três categorias de faltas, desde regras gerais de
conduta, como «não matei» ou «não fui culpado de falsidade», a prescrições mais
específicas, como «não ergui um dique à água corrente» ou «não apaguei o fogo no seu
ardor». Uma terceira categoria relaciona-se com as regras de conduta necessárias para o
exercício de uma função, como «não acrescentei peso à balança» ou «não falseei o peso
da balança».741
O deus supremo que preside ao tribunal tem, por outro lado, conotações solares
profundas. É designado de «senhor universal», ou o «Hórus que está no seu disco». O
epíteto «senhor das Duas Maet», o mais importante, tendo em conta a designação do
espaço onde se realiza a justificação, tem profundas conotações solares, aludindo
provavelmente a um antigo deus de Letópolis. No mito letopolitano, o céu era um rosto
onde o sol e a lua eram os seus olhos, personificados em duas deusas, suas filhas.742 As
Duas Maet correspondiam ao desdobramento dos dois momentos cósmicos da acção
soberana do deus universal e juiz supremo: a acção diurna e acção nocturna. As raízes
do capítulo 125 mergulhavam, deste modo, na teologia de Letópolis.743 Na perspectiva
de Yoyotte, a origem do capítulo pode ser situada no Primeiro Período Intermediário,
sob a égide da dinastia heracleopolitana.744 Na sua opinião, a primeira declaração de
738
P. MONTET, «Le fruit défendu», Kêmi 2 (1950), pp. 112-114.
739
Alguns nomes destes 42 deuses foram usados para designar demónios. Para Yoyotte, é possível que
cada sepat tivesse um mostro específico que, na religião popular, se encarregava de punir as
transgressões.
740
Esta relação entre os interditos locais e as proibição das declarações de inocência é muito difícil de
averiguar, dada a escassez de elementos que possuímos. No entanto, pelo menos no caso de Mênfis esta
relação foi comprovada. A pederastia que, de acordo com as fontes tardias, era interdita por Mênfis, é
precisamente a acusação tutelada pelo génio menfita. A relação desta interdição com a cidade de Mênfis,
a mais populosa do Egipto até à fundação de Alexandria, não deixa de ser interessante, já que a
homossexualidade, como fenómeno social, tende a ser mais expressiva em concentrações urbanas
densamente povoadas e com algum grau de cosmopolitismo. Esta proibição pode, deste modo, estar
associada a uma realidade social.
741
J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 133.
742
As barcas solares, por outro lado, eram designadas por «Maet». Através do percurso nas suas barcas
celestes, o deus solar de Letópolis garantia o exercício da justiça. Em J. YOYOTTE, «Le jugement des
morts dans l´Égypte ancienne», pp. 61-62.
743
O desdobramento da deusa Maet é, para outros autores, a mera expressão de um traço de mentalidade
característico do pensamento egípcio: o dualismo. Nesta perspectiva, as Duas Maet exprimiam a unidade
da justiça divina abrangendo a vida terrena e o Além. Ver Idem, p. 62.
744
As referências toponímicas constituem um importante argumento a favor desta hipótese, já que
apresentam uma grande profusão de localidades situadas entre Mênfis e Hermópolis. A sul apenas Assiut
e Akhmim são referidas. A norte, o Delta Oriental está ausente a norte de Bubástis. O Delta Ocidental e
Central é bem referido. Neste período a região de Mênfis e de Heracleópolis era o centro do reino, tendo
234
inocência foi composta para o uso real.745 A segunda declaração, sendo posterior à
primeira, constitui uma adaptação, para uso não real, da corte de Heracleópolis.746
*
* *
como vassalas as regiões de Hermópolis e de Assiut. Abido, ausente da declaração, havia sido
conquistada pelos tebanos. A coincidência entre a geografia demonológica do capítulo 125 e a geografia
política do período são espantosamente coincidentes. Em Idem, p. 64.
745
O crime de blasfemar contra o rei foi omitido nesta declaração, sendo incluído no segundo ritual. A
referência à ave benu de Heracleópolis, precedendo uma alusão vaga a Heliópolis, forneceria o indicador
geográfico da origem do texto. Em Ibid.
746
O defunto declara que praticou maet no Egipto o que implica uma função burocrática, ao mesmo
tempo que diz que Baba se alimenta das entranhas dos grandes. Baba tem uma grande importância em
Heracleópolis. Em Ibid. A partir destes dados pode-se admitir que a primeira declaração dataria do início
do período heracleopolitano, ao passo que a segunda teria sido redigida no final deste período. Para
Drioton, no entanto, a primeira declaração de inocência remonta apenas à XII dinastia. Distinguindo-se da
segunda por não apresentar uma tradição religiosa específica, este autor admite a sua anterioridade em
relação à segunda declaração de inocência, a qual situa no Segundo Período Intermediário. Em É.
DRIOTON, «Le jugement des âmes dans l´ancienne Égypte», RdC (1949), p. 7.
747
J. YOYOTTE, «Le jugement des morts dans l´Égypte ancienne», p. 45.
748
A psicostasia é um procedimento objectivo que envolve uma medição baseada num critério moral
absoluto. Em Idem, p. 23.
749
Em Idem, p. 49. Apesar do seu peso na iconografia das vinhetas do «Livro dos Mortos», Osíris é uma
figura secundária na psicostasia. O seu significado nas vinhetas está relacionado com a expectativa de
recompensa e evoca o paraíso que se espera encontrar após a psicostasia.
750
Embora de inspiração solar, é possível que a psicostasia tivesse sido formulada pelos sacerdotes de
Hermópolis. A atribuição a Hermópolis, feita pelos próprios egípcios, é reforçada, na opinião de Yoyotte,
pelo papel que o deus desempenha na psicostasia, bem como pela origem hermopolitana da primeira
referência ao capítulo 30: o título do texto foi redigido, como já referimos, num ataúde encontrado em El-
Bercha, datado do início do Império Médio. Para o autor, a inspiração solar justifica-se pois, na época em
que teria sido redigido, os ensinamentos da tradição heliopolitana estavam já disseminados pelos principais
centros religiosos do país. Ibid.
235
A justificação, por outro lado, estava estreitamente associada à refutação das
faltas que pudessem impedir a proclamação do defunto como um «justo de voz». As
Duas Maet, encarnando a ordem terrena e divina, constituíam a inspiração para a
elaboração do código formado pelos 42 preceitos que reflectiam a ordem cósmica
transposta para o Egipto. A ideia deste processo parece ter sido acalentada e
desenvolvida pela tradição heracleopolitana.
A ausência quase total de alusões ao coração no capítulo 125 contrasta
vivamente com a constante representação da psicostasia no interior da sala das Duas
Maet onde o defunto enunciava as declarações de inocência.751 Desenhava-se assim uma
complementaridade funcional entre a imagem e o texto: enquanto o coração era medido,
a recitação da longa lista de faltas ia «removendo» os pecados.
751
A vinheta da psicostasia, muito difundida no equipamento funerário, apresenta-se, desde o início,
associada quer ao capítulo 30, quer ao capítulo 125. No Papiro de Nebseni, do início da XVIII dinastia, a
vinheta está associada ao capítulo 30, ao passo que o capítulo 125 é ilustrado com a sala das Duas Maet.
No Papiro de Tjenuna, do mesmo período, apresenta a vinheta associada ao capítulo 125, tal como
acontece no Papiro de Hunefer. Com o tempo, o lugar da psicostasia e a sala das Duas Maet foram
fundidos, como acontece nas representações mais tardias, as quais se associam ao capítulo 125, enquanto
que o capítulo 30 passa a ser ilustrado com a vinheta de um escaravelho adorado pelo defunto.
752
Na verdade, o tema do roubo do coração já existia nos «Textos das Pirâmides». Nestas fórmulas, o
poder do coração do rei suscitava o interesse pelas entidades do Além que procuravam roubar este órgão
para ficarem com o seu poder. É precisamente esta preocupação que perpassa na fórmula 215 dos «Textos
das Pirâmides»: «Tu nasceste, ó Hórus, para Osíris e o teu renome é maior que o dele, tens mais poder
que ele. Tu foste concebido, ó Set, para Geb e o teu renome é maior que o dele, tens mais poder que ele.
Nenhuma semente de deus passa sem esta palavra, nem tu passarás sem esta palavra. Ré-Atum não te dará
a Hórus, ele não irá clamar pelo teu coração ib, nem terá poder sobre o teu coração (hati). Ó Osíris, tu
nunca terás poder sobre ele. Ó Hórus, tu nunca terás poder sobre ele. Tu pertences a este deus, dizem os
gémeos de Atum. «Ergue-te», dizem eles, «no teu nome de deus, e manifesta-te, um Atum para todos os
deuses» (...)» Pir 215, § 144-147, versão inglesa em R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid
Texts, p. 42. Devido a este perigo, certas fórmulas procuram proteger o defunto do eventual roubo do
coração. É o caso da fórmula 419: «Louvor a ti, meu pai (...) As portas abriram-se por causa dos lugares
secretos, ergue-te, remove a terra e sacode a poeira, ergue-te para que possas viajar na companhia dos
espíritos, as tuas asas são as de um falcão, o teu brilho é o de uma estrela, o demónio nocturno não se
virará para ti, o teu coração ib não te será tirado, o teu coração hati não te será removido. Tu és grande
(...) que sejas provido dos teus membros de ferro. (...)» Pir 419, § 743-749, versão inglesa em Ibid., pp.
137-138. A fórmula 229 dos «Textos dos Sarcófagos», por outro lado, enquadra a protecção do coração
ib e hati no contexto da preservação da integridade do defunto, mencionando-a a par com a preservação
do nome, do poder criador e do ba. Todos estes aspectos são decisivos para a vida na Duat: «(...) Que a
minha cabeça não seja arrancada, que o meu pescoço não seja cortado, que o meu nome não seja ignorado
entre os bem-aventurados, que eu não seja pescado na armadilha de Chu, que Hu não me seja retirado da
boca, que o meu coração ib e o meu coração hati não sejam arrancados, que o meu ba possa passar a noite
236
Esta preocupação justificava-se no caso da conduta do defunto não ter sido exemplar,
pois, nessa situação, seria acusado e abatido no tribunal como uma encarnação de Set.
Deste modo, o resultado desfavorável no julgamento tinha como consequência o roubo
do coração pelos guardiões dos caminhos do Além.753 Estes temíveis guardiões
desempenhavam um papel crucial na caracterização do aspecto assustador da morte,
pois a sua diligência em trucidar todos os que chegavam impuros ao Além constituía
uma preocupação inquietante para os que ambicionavam gozar de uma vida tranquila
nos domínios de Osíris. Um grupo de sete deuses era especialmente ameaçador:754
Ó sete divindades que trazeis a balança nesta noite em que se examina o olho sagrado, que
cortais as cabeças, que decepais os pescoços, que roubais o meu coração ib e o meu coração hati, que
fazeis o massacre na ilha do Fogo, eu conheço-vos e conheço os vossos nomes. Dai-me o ceptro da vida
que está na vossa mão e o ceptro do poder que está no vosso punho! 755
em vigília junto do meu cadáver, que o meu rosto não se ensombre, que o meu coração não se torne
esquecedor, que eu não ignore o caminho que conduz à Duat! Eu sou dotado de palavra eficaz, de magia
intacta e provido do que o coração precisa. (...)» TdS 229, versão francesa em P. BARGUET, Les Textes
des Sarcophages, pp. 49-50
753
Para evitar esse acontecimento, várias fórmulas foram redigidas para assegurar um resultado favorável
na psicostasia, bem como a protecção contra os temidos guardiões Ver fórmulas 47 e 488 dos «Textos dos
Sarcófagos», em Apêndice VIII.
754
Em certas ocasiões, porém, o defunto pedia ajuda a entidades do Além para tornar inofensivo outros
defuntos, de modo a «tornar esquecedor» os seus corações. Deste modo o defunto poderia passar por eles
ileso: «É Semhi que preside na morada de Tot, que torna esquecedor o coração ib deste homem até que
este passe junto dele, sem que este lhe possa falar. (...) TdS 99, versão francesa em P. BARGUET, Les
Textes des Sarcophages, pp. 236-237. Versão hieroglífica em A. DE BUCK, The Egyptian Coffin Texts,
II, p. 95.
755
Capítulo 71 do «Livro dos Mortos», ver Apêndice IX. Este capítulo parece ter sido construído através
da integração de uma fórmula dos «Textos dos Sarcófagos», neste caso a fórmula 691: «Os sete que
trazem a balança na noite em que se examina o olho sagrado, que arrancam as cabeças, que cortam os
pescoços, que arrebatam os corações, que roubam os corações, que fazem o massacre na ilha do Fogo, eu
conheço-vos, eu conheço os vossos nomes. Conhecei-me como eu vos conheço! Conhecei o meu nome
como eu conheço o vosso nome. (...) dai-me o ceptro da vida que está na vossa mão e o ceptro do poder
que está no vosso punho!». Versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp. 151-153.
756
Os domínios de Osíris eram concebidos como um templo que apresentava sete portas vigiadas por sete
guardiões. Esta coincidência numérica aponta para uma identificação entre os algozes do Lago de Fogo e
os guardiões das portas do Além cuja função é idêntica.
757
No capítulo 126 do «Livro dos Mortos», o defunto aproxima-se do lago precisamente com o intuito de
se purificar: Palavras ditas por N.: «Ó quatro babuínos da barca de Ré, que oferecem justiça ao senhor do
237
pelos guardiões do Além, o defunto também podia confiar-se à assembleia divina do
tribunal de Osíris para que esta lhe removesse o mal de modo a não ser capturado pelo
deus que guardava o Lago de Fogo:
(...) Louvor a vós, senhores da verdade, corporação divina em redor de Osíris (...) Eis que vim ter
convosco para que possais extirpar tudo o que há de mau em mim, como haveis feito para estes sete
espíritos (...) Salva este deus com cabeça de canídeo e sobrancelhas humanas, que vive de vítimas, que
guarda as margens do lago de Fogo, que engole os cadáveres e rouba os corações, que faz espalhar os
miasmas (...) Quem é este? É o coração de Osíris, é ele que devora os massacrados. 758
Eu sou Osíris. Não tenho movimento. Fica em vigília junto a mim... Eu vim, munido do meu
poder mágico, as minhas palavras protegeram-me. Eu sou o falcão das duas plumas que diz (...) o meu
coração não me foi retirado. Ó assassinos de Osíris que vos encontrais na terra, vós que passais pelos
túmulos (...) eis a minha cabeça. Eu sou o que preside à montanha (...) eu sou o deus (...) Abri os
caminhos! Eu sou o senhor de Maet. 760
universo, (...) cujo coração está isento de mentiras e cuja abominação é o pecado: levai as minhas faltas,
apagai os meus pecados e todos os defeitos ao vosso olhar! Fazei que eu abra a porta da gruta e que entre
em Ra-setau e passe pelas portas misteriosas do Ocidente! (...)» Capítulo 126 do «Livro dos Mortos»,
versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des Morts, p. 165.
758
Capítulo 17 do «Livro dos Mortos», versão francesa em Idem, p. 62. Também a fórmula 335 A dos
«Textos dos Sarcófagos» refere que o abate dos impuros é desempenhado por um monstro «que guarda as
margens do Lago de Fogo»: (...) Ó Ré-Atum que estás no palácio, soberano dos deuses, salva-me deste
deus que vive das suas vítimas, cuja cabeça é a de um cão e com a pele de homem, que guarda as margens
do Lago de Fogo, que engole as sombras, que rouba os corações e que derrama os miasmas sem que seja
visto.» TdS 335 A, versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp. 564.
759
O capítulo 79 apresenta a situação excepcional em que o defunto se identifica com Osíris e, nessa
qualidade, se encarrega de suprimir as impurezas do coração dos deuses: Fórmula para fazer parte da
assembleia divina e tomar o aspecto daquele que preside à assembleia. Palavras ditas por N.: «Louvor a ti,
Atum, criador do céu, modelador do que existe, tu que sais da terra, que produzes as sementes, senhor do
que existe, tu que dás à luz os deuses, grande deus que veio à existência a partir de si mesmo, senhor da
vida, tu que fazes prosperar os humanos! Louvor a vós, senhores dos bens, vós os puros, cujos lugares são
secretos! Louvor a vós, senhores da eternidade, de formas secretas, ninguém conhece o lugar de repouso!
Louvor a vós deuses que estais no círculo das águas celestes, que habitais no Ocidente, corporação de
deuses que habitais o céu (inferior)! Eis que eu cheguei puro, divino, forte, animado, poderoso e
satisfeito. Eu trago-vos incenso e a resina de terebentina para que possais limpar a vossa saliva graças a
mim. Eu venho levar todas as impurezas que estão no vosso coração e suprimir os pecados que estão em
vós, pois trago o bem, eu ofereço-vos Maet. Eu conheço-vos, eu conheço os vossos nomes, eu conheço as
vossas formas, ao passo que estes não são conhecidos por aqueles que se transforma em vós.» Capítulo 79
do «Livro dos Mortos», versão francesa em Em P. BARGUET, Le Livre des Morts, pp. 117-118.
760
TdS 932, versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 84.
238
No «Livro dos Mortos» os capítulos 27, 28 e 29 destinavam-se especificamente
a garantir a pureza do coração para que a assembleia divina não removesse o coração do
defunto. No capítulo 29 A e no capítulo 28 detecta-se a utilização de um outro recurso
mágico: levar o coração a retroceder ao tempo mítico da criação, de modo a regenerá-lo
e a torná-lo divino e inatacável diante dos potenciais ladrões de corações. É sobre estes
capítulos que, em seguida iremos centrar a nossa atenção.
Fórmula para dar o coração a N. no reino dos mortos. Que ele diga: «O meu coração ib pertence-
me na morada dos corações ibu. O meu coração hati pertence-me na morada dos corações hatiu. Que eu
possa ter o meu coração ib pois ele está contente comigo. Se não tiver o meu coração ib não poderei
comer os biscoitos de Osíris do lado oriental do lago gai, um barco khukhet descerá o rio, um outro
subirá, (mas) eu não poderei ir no barco no qual tu estás. Possa eu ter a minha boca, de modo a que, por
ela, eu possa falar, e as minhas pernas para andar e os meus braços para derrubar os meus inimigos. As
portas do céu abrem-se para mim! Geb, o príncipe dos deuses, abre para mim as suas mandíbulas, ele abre
os meus olhos que estavam fechados, ele estende as minhas pernas que estavam dobradas. Anúbis firma
os meus joelhos, de modo a que eu me possa manter de pé, e a divina Sekhmet endireita-me. Eles
executam o que eu ordenei em Mênfis. Tenho de novo conhecimento (rx) graças ao meu coração ib,
domino (sxm) o meu coração hati, domino os meus braços, as minhas pernas, tenho a possibilidade de
fazer o que o meu ka deseja. Nem o meu ba nem o meu corpo ficarão prisioneiros nas portas do
Ocidente.761
O texto começa por fazer alusão à «morada dos corações», onde os corações ib e
hati, certamente sob a forma de amuletos, eram devolvidos ao defunto, permitindo que
761
Capítulo 26 do «Livro dos Mortos», em Idem, p. 71. Versão hieroglífica em R. LEPSIUS, Das
Totenbuch der Ägypter, pl. XV.
239
dispusesse das oferendas funerárias e se deslocasse nas barcas divinas. Era também
graças ao coração que o defunto conseguia fazer uso da boca para falar e dos membros
para derrubar os inimigos. Estas preocupações coincidem com as do ritual da abertura
da boca.
Geb, Anúbis e Sekhmet são, em seguida, chamados a erguer o defunto,
colocando-o em posição vertical, uma alusão ao gesto de erguer a múmia que ocorria
também no referido ritual. Depois de uma estranha alusão a Mênfis, o defunto volta a
reafirmar a posse dos corações ib e hati, especificando que o coração ib proporciona o
conhecimento, rekh (rx), e que domina ou «tem poder», sekhem (sxm), sobre o coração
hati. O domínio do coração constituía uma qualidade que se reportava ao ciclo de Set e
que atestava a vitória do defunto osirificado sobre a morte. Sinal desta vitória é
justamente a possibilidade de se deslocar, de fazer o que o ka deseja e de libertar o ba
para flanquear as portas do Ocidente.
O texto parece constituir a base de um ritual enquadrado nas cerimónias
funerárias, durante as quais seriam colocados amuletos do coração alusivos ao coração
ib e hati. As próprias vinhetas deste capítulo ilustram, por vezes, esse gesto. Os hábitos
certamente variaram muito e os amuletos representados ora têm a forma de escaravelhos
do coração ora consistem em amuletos cordiformes. De qualquer modo, o texto ajuda a
clarificar as funções destes objectos depositados sobre a estátua ou sobre a múmia do
defunto. O amuleto alusivo ao coração ib devolvia o conhecimento (rekh) enquanto o
amuleto alusivo ao coração hati permitia «ter poder» sobre o corpo. Os amuletos
«cardíacos» visavam, deste modo, a recuperação da identidade (amuleto do coração ib)
e a reanimação física (amuleto do coração hati). Estas, no fundo, eram as principais
preocupações deste capítulo cuja função consiste precisamente em «dar o coração a N.
no reino dos mortos».
762
Ver anexo V 7.44-59.
240
posse do coração, enquanto sugere um gesto de adoração com a mão direita. A ave ba
possui, em geral, um signo djed ao pescoço e está colocada sobre um pedestal ou, mais
raramente, sobre um templo. Entre a ave e o defunto existe, por vezes, uma mesa de
oferendas.763 A ligação preferencial desta ilustração ao capítulo 26 relaciona-se com o
poder do coração para restituir as faculdades vitais ao defunto, entre as quais se destaca
a liberdade de movimentos do ba.764 As alusões à mumificação patentes no texto
levaram também a que certas vinhetas do capítulo 26 fizessem figurar o defunto diante
de Anúbis.765 Em alguns casos, é este deus que oferece o coração ao defunto ilustrando
de forma simbólica o seu papel na mumificação e na consequente reanimação do
defunto. Gradualmente, porém, o deus psicopompo parece ter perdido este destaque
sendo preterido, nestas vinhetas, pela representação do ba venerado pelo defunto. De
qualquer modo, a função mágica desta vinheta parece incidir sobre a dimensão física do
coração. É a posse do coração físico que aqui se pretende salvaguardar de modo a
garantir a reanimação do corpo do defunto e dos seus poderes anímicos.766
O capítulo 27 parece ter raízes na fórmula 715 dos «Textos dos Sarcófagos».767
O texto começa por se dirigir à assembleia divina e exorta-a a não retirar o coração ao
defunto nem a apresentar-lhe acusações durante o julgamento:
Fórmula para impedir que o coração de N seja roubado no reino dos mortos. Palavras ditas por
N.: «Ó vós que roubais corações ibu, que acusais os corações hatiu, que fazeis transformar (xpr) o
763
A Época Baixa e o período ptolemaico foram os momentos que assistiram a uma grande difusão destas
vinhetas que ilustram, quase sempre, o capítulo 26, embora, mais raramente também possam ser
encontradas junto do capítulo 28 ou até no capítulo 30.
764
«Ganhei consciência graças ao meu coração. Uso o meu coração, uso os meus braços, uso as minhas
pernas e faço o que o meu ka deseja. O meu ba e o meu corpo não ficarão prisioneiros nas portas do
Ocidente.» Capítulo 27 do «Livro dos Mortos». Em Apêndice IX.
765
Ver anexo V 7.9.
766
Ver anexo V 7.56.
767
A fórmula 715 dos «Textos dos Sarcófagos», afigura-se a inspiração provável para o capítulo 27 do
«Livro dos Mortos»:«Não permitir que o coração do defunto lhe seja retirado na necrópole. Ó louvor a
vós, senhores da eternidade! Não me roubeis o coração ib, não acusais o meu coração hati. Que este meu
coração ib não seja alvo de acusações, pois é o coração ib «do que é rico em nomes». Ele fala pelos seus
próprios membros, enviou o seu coração ib que está à dianteira do seu corpo e que concebe (mAT) mais do
que o deus. Eu tenho o meu coração ib, eu tenho poder sobre ele. Ele não permitirá o que me foi feito. Eu
sou alguém que tem o uso dos seus próprios membros. O meu coração ouve-me, pois eu sou o seu senhor,
enquanto ele estiver no meu corpo ele não se pode virar contra mim, pois eu sou aquele que ordena para
que ele obedeça.» TdS 715, Em Apêndice VIII.
241
coração ib do homem no que ele fez, sem que ele se lembre do que lhes haveis feito. Ó louvor a vós,
senhores da eternidade, fazedores da perenidade! Não roubais este meu coração ib, não formais palavras
más no vosso coração ib (sobre mim)! Que este meu coração ib não seja alvo de acusações, pois este meu
coração ib é o coração ib do que é rico em nomes. Ele é o grande deus que fala pelos seus próprios
membros, enviou o seu coração ib que está à dianteira do seu corpo e que renova (mAwy) mais do que o
(próprio) coração dos deuses. Obedece-me, meu coração ib! Eu sou o teu senhor! Enquanto estiveres no
meu corpo tu não me serás hostil! Eu sou aquele que ordena para que tu me obedeças no reino dos
mortos. 768
242
O capítulo 27 baseia-se num texto antigo «reeditado» e actualizado à luz das
noções relativas à psicostasia. Procurando inicialmente evitar acusações indesejáveis no
tribunal do Além, a eficácia do texto foi, em seguida, «completada» com uma última
parte que satisfazia as novas necessidades levantadas pela psicostasia. O aspecto mais
interessante do texto, no entanto, é a identificação estabelecida entre o coração do
defunto e o coração do criador, que permitia ao defunto repelir os que tentassem
apresentar qualquer acusação contra si. Um outro aspecto interessante está relacionado
com a ideia basilar da psicostasia que aqui é claramente enunciada: «fazeis transformar
o coração ib do homem (em função) das suas acções, sem que ele se lembre do que lhes
haveis feito». As acções transformavam o coração e o ignorante, nada sabendo destas
verdades, atraía a desgraça sobre si mesmo, já que as entidades que roubam o coração
no Além só aguardavam a sua chegada para o destruir. Contudo, ao se identificar com o
criador, o coração podia transformar-se no sentido inverso e tornar-se muito poderoso.
770
Esta vinheta parece associar-se preferivelmente ao capítulo 27 (como se verifica em seis exemplares),
mas a verdade é que pode ilustrar qualquer um dos capítulos «cardíacos» do «Livro dos Mortos»
compostos entre o fim da Época Baixa e o período ptolemaico. Ver anexo V 7.12-23.
771
Trata-se de um fenómeno muito frequente já que as recensões tardias do «Livro dos Mortos», muito
mais estandardizadas do que as anteriores, são acompanhadas por vinhetas mais abundantes destinadas a
ilustrar o maior número possível de fórmulas. Sobre as principais características das recensões tardias do
«Livro dos Mortos» ver P. BARGUET, Le Livre des Morts, pp. 6-23. Ver também M. MOSHER,
«Theban and Memphite Book of the Dead Traditions in the Late Period», JARCE XXIX, pp. 143-172.
243
se dirige à assembleia divina e tenta dissuadir os seus acusadores através da
identificação do seu coração com o coração do deus supremo.772
Nos casos em que o defunto se encontra apenas com uma divindade pode tratar-
se do seu deus pessoal, como o «grande deus» referido pela fórmula. Quando o defunto
se encontra perante três deuses, nesse caso, são certamente os destinatários da própria
fórmula («vós que roubais corações ibu, que acusais os corações hatiu, que fazeis
transformar o coração do homem»). O número três, constituindo o plural de «deus»,
abrangeria toda a assembleia divina. Mais raramente, as divindades representadas são os
quatro filhos de Hórus que, como vimos no «Livro da Regeneração», asseguravam a
integração cósmica do defunto mediante a pureza do coração do defunto.773
Fórmula para impedir que a víscera do coração seja roubada a N. no reino dos mortos. Que ele
diga: «Ó leão, eu sou a flor uneb (var. Ré)! A minha abominação é a sala do abate. Que o meu coração ib
não me seja roubado pelos combatentes que estão em Heliópolis! Ó destruidores de Osíris que viram Set!
Ó vós que perseguis os que magoaram Osíris e que lhe infligiram danos! Este coração hati é o meu. Ele
lamenta-se a si mesmo diante de Osíris. O que (o deus) me solicita eu concedi-lhe, eu atribui-lhe a alegria,
na Morada do deus de rosto amplo e ofereci-lhe a areia em oito medidas. Que este coração ib não me seja
roubado. Eu sou alguém que fizestes proeminente, que liga a si mesmo os corações hati nos Campos de
Iaru. Revigorai o meu poder contra todos os que ele abomina. Ó possuidor de vários pescoços, que
derrubais os kau devido à tua potência! Se o meu coração hati solicitar a Atum que o conduza às regiões
subterrâneas de Set, então que não lhe seja permitido realizar os seus intentos. A perna foi coberta, o que
eles encontraram que coloquem no ataúde. 774
772
«Que o meu coração não seja pretexto de acusações, pois este meu coração é o coração «Daquele que é
rico em nomes». Ele é o grande deus que fala pelos seus membros; ele enviou o seu coração que está à
dianteira do seu corpo». Capítulo 27 do «Livro dos Mortos». Ver P. BARGUET, Le Livre des Morts, p.
74.
773
Para M. MOSHER, as diferenças observadas na representação destas divindades traduzem uma
crescente especificação dos editores. Assim, no capítulo 27, as divindades que «roubam corações»
inicialmente não definidas, foram posteriormente identificadas com os quatro filhos de Hórus. Ver M.
MOSHER, «Theban and Memphite Book of the Dead Traditions in the Late Period», JARCE XXIX, p.
145, nota 19.
773
Capítulo 27 do «Livro dos Mortos». Ver P. BARGUET, Le Livre des Morts, p. 74.
774
Capítulo 28 do «Livro dos Mortos», Em Apêndice IX.
244
Começando por se dirigir ao leão mitológico, o defunto identifica-se com a flor
uneb, (o termo significa simplesmente «flor»775 e constitui uma alusão ao mítico lótus
primordial da cosmogonia hermopolitana776) para, em seguida, se dirigir aos justiceiros
que trucidam os adversários da ordem cósmica («os combatentes que estão em
Heliópolis») para não roubarem o seu coração. Com a identificação à flor uneb o
defunto procurava salvaguardar a sua pureza para evitar ser trucidado pelos guardiões
do Além.
As passagens seguintes são mais obscuras. Na nossa leitura o defunto exorta
Osíris para o defender, reportando-se aos rituais e oferendas que lhe dedicou. O coração
ib, responsável pelo culto, garante a segurança do coração hati. Por outro lado, o
defunto salvaguardava-se de más inclinações do coração hati, colocando-se sob a
influência de Atum.
Este constitui um curioso documento mágico que se centra na responsabilidade
do coração ib para assegurar a vida eterna e salvaguardar o coração hati. Se for puro
como a flor uneb, o coração ib garante a regeneração do coração hati nos Campos de
Iaru. Pelo contrário, ao deixar-se «conduzir para as regiões subterrâneas de Set», o
coração hati punha em risco a segurança do defunto.777
775
Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 61.
776
Barguet refere que se trata de uma flor de ouro, símbolo da imperecibilidade. Ver P. BARGUET, Le
Livre des Morts, p. 73, nota I. O determinativo utilizado indica, por outro lado, que se trata claramente de
um lótus. Ver a versão hieroglífica deste texto, em caracteres cursivos, no ataúde da dama Gautsechenu,
encontrado no esconderijo dos sacerdotes de Montu, em Deir el-Bahari, e conservado actualmente na Ny
Carlsberg Glyptotek, em Copenhaga (AEIN 1522). Em M. JORGENSEN, Catalogue Egypt II (1550-1080
B.C.), p. 204. Se dúvidas houvesse sobre o carácter solar e demiúrgico desta flor, bastaria ainda contrapor
várias versões deste capítulo nas quais o defunto se identifica com Ré ou o «ser». Ver P. BARGUET, Le
Livre des Morts, p. 73, nota I. O capítulo 71 também menciona esta flor colocando-a em paralelo com a
planta nebheh: «Ó falcão que se ergue do Nun, senhor de Methiur (...) Eu sou a for uneb de Naref (o local
da vitória final de Osíris sobre Set), a planta nebheh da colina secreta (...)». Para Barguet (ver, Le Livre
des Morts, p. 110, nota 4) a planta nebheh simbolizava o bosque sagrado do montículo funerário de Osíris
em Busiris. Também neste caso as conotações primordiais da flor parecem prevalecer.
777
O texto resulta, aparentemente, da justaposição de várias fórmulas dos «Textos dos Sarcófagos». O
início do capítulo é decalcado da fórmula 388: «Para que o coração não seja levado no mundo dos
mortos: Ó leão, eu sou a lebre, a minha abominação é a sala de abate do deus. Que este meu coração não
seja dado ao combatente, em Heliópolis.» TdS 388, versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des
Sarcophages, p. 206. A última parte do texto inspira-se nas fórmulas 112 e 113 dos «Textos dos
Sarcófagos»: «Ó destruidor! (...) Se este meu coração solicitar a Atum para se dirigir aos jardins de Set,
que este desejo não lhe seja concedido», TdS 113, Em Apêndice VIII.
245
As vinhetas do capítulo 28 do «Livro dos Mortos»
Oh, leão, eu sou a flor uneb! (...) Que o meu coração não me seja removido pelos combatentes
em Heliópolis! (...) Eu sou alguém que (o deus) fez proeminente (...) revigorai o meu poder contra todos
os que me abominam781
778
Na sua maioria (cerca de 16 ocorrências), a vinheta apresenta apenas uma divindade. Apenas num caso
apresenta três deuses enquanto noutro apresenta quatro deidades.
779
Ver anexo V 7.29-44.
780
Contámos cerca de catorze ocorrências na nossa amostra.
781
Capítulo 28 do «Livro dos Mortos». Em Apêndice IX
782
Esta utilização é visível em quatro exemplares. Lembremos aqui que, entre as recensões tardias do
«Livro dos Mortos», sobretudo no «estilo 1» e «estilo 2», o uso da cor é muito raro. O próprio vermelho
foi usado com parcimónia já que, nos papiros estudados, a tinta só foi utilizada para desenhar o coração
patente nesta vinheta. As restantes representações do coração foram feitas a negro. A cor só volta a ser
246
coração é representado maioritariamente sob a forma de semente, de bordo descaído, o
que constitui, como veremos na terceira parte do nosso trabalho, um tipo de
representações com um simbolismo específico. O bordo representado sobre o coração
tem a forma de dois lóbulos que parecem remotamente evocar os pulmões, talvez em
resultado do seu valor hieroglífico sema, «unir».783 A união com o deus do coração
poderia, deste modo, constituir o desejo implícito destas representações.784
Enquadrando-se frequentemente numa temática dualista, o signo sema poderia
igualmente constituir uma alusão à criação do mundo. Embora raro, o coração de bordo
descaído pode efectivamente ser utilizado no contexto da escrita hieroglífica em
contextos alusivos à criação.785
Um facto interessante a reter é que este tipo de representação foi, no «Livro dos
Mortos» da Época Baixa, associado preferencialmente ao capítulo 28 (mais raramente
também aparece no capítulo 27). Por razões difíceis de compreender, esta representação
inovadora do coração pode ter acabado por adquirir um sentido iconográfico preciso,
assinalando a identificação entre o coração e a flor uneb alusiva à vitória de Osíris sobre
os seus inimigos.786 O resultado desta identificação seria, deste modo, garantir a
utilizada no «estilo 3». Ver M. MOSHER, «Theban and Memphite Book of the Dead Traditions in the
Late Period», JARCE XXIX, p. 172.
783
Ver anexo V 7.40. Também anexo V 7.34 e 7.30.
784
O deus do coração é raramente representado fora do «Livro dos Mortos». Em certas procissões
funerárias, é figurado um misterioso deus mumiforme acompanhado por um coração colocado num vaso.
O deus parece ser a personificação do poder divino do coração transportado no vaso (Ver anexo V 3.1.).
A única representação que conhecemos deste deus fora do âmbito funerário apresenta-se no mammisi do
templo de Ísis em Philae, onde figura no contexto da apresentação de Horpakhered a uma assembleia
divina. Trata-se de um deus antropomórfico que apresenta no topo da cabeça um vaso com um coração
(Ver anexo V 3.2.). Seria a personificação do coração de Horpakhered? Ao contrário das representações
tumulares, o coração divinizado de Horpakhered não tem uma configuração mumiforme e parece exercer
uma acção protectora sobre o deus menino. Trata-se de uma representação verdadeiramente excepcional
que assinala uma característica que na literatura egípcia é amplamente documentada: o coração constituía
a consciência superior do indivíduo, dotada de uma inteligência, sabedoria e vontade autónomas, de cariz
divino. Eis, neste relevo crepuscular, a materialização desta antiga ideia. Quanto à representação
funerária, o deus mumiforme que acompanha o vaso com o coração representa certamente o poder de vida
guardado e preservado na múmia que aguarda a reanimação.
785
Ver inscrição em anexo IV 3.F 1.
786
É possível seguir a evolução deste tipo de representação. Os apêndices podem ser representados
reunidos na extremidade inferior, o que corresponde, na verdade, à representação convencional dos
pulmões nas representações do sema-taui (curiosamente é a representação dos pulmões que apresenta o
contorno actualmente atribuído ao coração com a característica depressão central na superfície superior
do órgão e uma extremidade inferior pontiaguda). Em certas representações as extremidades inferiores
são «desligadas» uma da outra adoptando uma configuração que lembra um par de asas sobre o coração.
Trata-se, na verdade, dos pulmões representados duma forma menos convencional mas mais
«naturalística». Noutros casos, estas extremidades regridem até adquirirem apenas uma espessura muito
ténue semelhante a um bordo que protege o topo do coração. É sobretudo nesta configuração que a
representação mais se torna independente da realidade anatómica representada e se afirma como a
evocação da flor uneb.
247
protecção mágica do coração contra os inimigos da luz.787 Este intuito está na base de
outras ilustrações, mais raras e, em geral, mais antigas, associadas a esta fórmula. No
«Livro dos Mortos» de Neferuebenef, da XVIII dinastia, o defunto está ajoelhado diante
de um génio protector cujas feições lembram a de Bés, colocando o seu coração sob a
protecção desta entidade funerária.788
Fórmula para impedir que o coração de N. lhe seja roubado no reino dos mortos. Palavras ditas
pelo Osíris N.: «Para trás, mensageiro de qualquer deus! Se vieste para roubar o meu coração hati de
homem vivo, não te será dado o meu coração ib de homem vivo, a ti que caminhas e que obedeces aos
deuses das oferendas: que eles caiam sobre a sua face e que errem sobre a terra». 789
Fórmula para que não seja roubada a sede do pensamento daquele que foi proclamado justo, no
reino dos mortos. Que ele diga: «O meu coração está na minha posse, ele não me será levado! Eu sou o
senhor dos corações, o que corta os corações hati, eu vivo da verdade, sendo aquele que existe através
dela. Eu sou Hórus que habita os corações, o ser íntimo que habita o corpo, eu vivo como alguém que
pensa com o meu coração ib, ele não me será levado; o meu coração hati pertence-me, ele não ficará
787
Não pudemos confirmar a nossa interpretação recorrendo a outras fontes. Na verdade, no próprio dizer
de Malcom Mosher, «examination and analysis of Late Period vignettes has been almost completely
ignored», em M. MOSHER, «Theban and Memphite Book of the Dead Traditions in the Late Period»,
JARCE XXIX, p. 144.
788
Ver anexo II E 70. O monstro armado de uma cimitarra não é o perigoso ahaui, mas sim um génio
protector cuja missão era a de impedir que o monstro ahaui levasse consigo o coração do defunto. Em S.
RATIÉ, Le Papyrus de Neferoubenef, p. 41. Representações muito mais tardias, da Época Greco-Romana,
desenhadas sobre linho, parecem inspiradas nesta temática. Também aqui o deus Bés parece exercer a sua
acção protectora sobre os corações.
789
Capítulo 29 do «Livro dos Mortos», Em Apêndice IX. O texto é decalcado da fórmula 387 dos
«Textos dos Sarcófagos»: «Para não tirar o coração ao homem no mundo dos mortos. Para trás,
mensageiro! Se vieste para roubar este meu coração de homem vivo, eu não te darei este coração de
homem morto. Obedecei aos deuses das oferendas! Eles tombam diante da tua face, em conjunto. TdS
387, versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 207
248
encolerizado contra mim, que o terror não me oprima com o que me foi roubado, enquanto eu estou no
seio do meu pai Geb e da minha mãe Nut. Eu não cometi nada abominável contra os deuses, eu não fui
derrubado e fui proclamado justo. 790
Fórmula para o coração em cornalina. Palavras ditas por N.: «Eu sou a ave benu, o ba de Ré, que
conduz os bem-aventurados para a Duat, que faz com que Osíris volte à terra para fazer o que deseja o seu
ka e que faz com que o Osíris N. volte à terra para fazer o que deseja o seu ka.» 791
Veja-se aqui bem definido o papel da ave benu na comunicação entre os mundos
já que conduzia os justos para o mundo inferior e os ajudava a regressar ao mundo
terreno. Como atesta a própria indicação introdutória do capítulo, a saída para o dia era
propiciada pelo amuleto cordiforme.
790
Capítulo 29 A do «Livro dos Mortos», Em P. BARGUET, Le Livre des Morts, p. 74.
791
Capítulo 29 B do «Livro dos Mortos», Em Ibidem.
249
As vinhetas do capítulo 29 do «Livro dos Mortos»
792
Ver anexo V 7.4-6.
793
Na nossa amostra incluímos apenas quatro representações deste tipo. Já Malcom Mosher referia, em
1992, que o capítulo 29 era raramente ilustrado. Em «Theban and Memphite Book of the Dead Traditions
in the Late Period», JARCE XXIX, p. 144, nota 13.
794
«Para trás! (...) Se vieste para roubar o meu coração hati (...) ninguém to dará. (...)». Capítulo 29 do
«Livro dos Mortos». Ou ainda:«O meu coração está na minha posse, ele não me será tirado! Eu sou o
senhor dos corações, o que corta os corações, eu vivo da verdade e existo pela verdade». Capítulo 29 A
do «Livro dos Mortos». Em P. BARGUET, Le Livre des Morts, p. 74.
795
Malcom Mosher definiu vários estilos na produção do «Livro dos Mortos» a partir da Época Baixa. O
«estilo 1», originário de Tebas, caracteriza-se por apresentar colunas de texto hierático informalmente
divididas entre si através de um espaço em branco. As vinhetas são integradas nas colunas de texto no
início de cada fórmula. O «estilo 2» é originário de Mênfis e caracteriza-se por um layout muito mais
elaborado: as fórmulas, escritas igualmente em hierático, são enquadradas por linhas duplas, delimitando-
as claramente dos restantes capítulos. As vinhetas são colocadas no topo do texto. O «estilo 3», elaborado
depois da conquista macedónica, corresponde a um estilo nacional e consiste numa síntese das duas
tendências anteriores, resultando num certo predomínio do layout menfita muito embora manifeste a
inclusão de temas tradicionalmente caros à «escola» de Tebas. Ver «Theban and Memphite Book of the
Dead Traditions in the Late Period», JARCE XXIX, pp. 143-172.
250
frequentemente utilizado desde a XVII dinastia, muito embora a descoberta de
escaravelhos do coração com a inscrição deste texto tenha comprovado que o texto já
existia na XIII dinastia.796 A redacção do texto, porém, pode ainda recuar ao início do
Império Médio, já que foi encontrado em El-Bercha, uma necrópole de Hermópolis, um
ataúde que apresenta o título desta composição.797
Como a própria rubrica refere, estes textos podiam ser redigidos sobre o
escaravelho do coração para reforçar a sua eficácia: «Palavras para dizer diante de um
escaravelho em nefrite colocado sobre electrum, com um anel em prata colocado sobre
o pescoço do defunto».798
Embora o título e o início de ambos os textos seja comum, estes capítulos
apresentam uma composição bastante distinta que permite, mesmo nas versões mais
abreviadas, distingui-los com facilidade. Vejamos o capítulo 30 A:
Fórmula para impedir que o coração de N. se lhe oponha no reino dos mortos. «Ó meu coração-
ib da minha mãe, ó meu coração-ib da minha mãe, ó meu coração-hati das minhas transformações (xprw),
não te ergas contra mim como testemunha, na presença dos senhores das oferendas! Não digas a meu
respeito: «Ele fez isso na verdade», reportando-te ao que eu fiz. Não digas isso contra mim, diante do
grande deus, senhor do Ocidente. Louvor a ti, meu coração ib! Louvor a ti, meu coração hati! Louvor a
vós minhas vísceras! Louvor a vós, deuses preeminentes, misteriosos portadores de tranças, que ostentais
os vossos ceptros! Anunciai-me a Ré, recomendai-me a Nehebkau, quando ele surge no Ocidente do céu.
Que eu seja duradouro sobre a terra, que eu não morra no Ocidente, que eu seja um bem-aventurado no
Além! 799
796
Trata-se do escaravelho do coração de Nebankh, um funcionário que viveu sob o reinado de Khaneferé
Sobek-hotep, XIII dinastia. Dedtu era amigo do rei, o que implica um estatuto social muito elevado. Em S.
QUIRKE, «Two Thirteenth Dynasty Heart Scarabs», JEOL 37 (2001-2002), p. 36 A importância desta
fórmula levou a que fossem gravadas no escaravelho do coração, tal como era indicado na rubrica.
Emoldurados em metal ou encastoados em peitorais, estes objectos eram colocados sobre a múmia ou
entre as faixas.
797
J. YOYOTTE, «Le jugement des morts dans l´Égypte ancienne», p. 49
798
Capítulo 30 B do «Livro dos Mortos», versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des Morts, p. 76. A
arqueologia revela que estas indicações foram cumpridas sempre que a fortuna do proprietário o permitia.
799
Capítulo 30 A do «Livro dos Mortos», versão portuguesa em L. ARAÚJO, «Um escaravelho do
coração numa colecção privada portuguesa», Museu 9 (2000), p. 11. Versão francesa em P. BARGUET,
Le Livre des Morts, p. 75.
251
equivalência entre o testemunho dos corações e as acusações apresentadas por uma
assembleia de deuses.
De modo idêntico ao capítulo 30 A, a versão B deste texto começa com a
invocação dos dois corações:
Fórmula para impedir que o coração de N. se lhe oponha no reino dos mortos. Que ele diga: «Ó
meu coração ib da minha mãe, ó meu coração ib da minha mãe, ó meu coração hati das minhas
transformações (xprw), (var.: «ó meu coração hati da existência (wn) sobre a terra»)800 não te ergas contra
mim como testemunha, não te oponhas a mim em tribunal, não mostres hostilidade contra mim diante do
guardião da balança! Tu és o ka que está no meu corpo, o Khnum que torna prósperos os meus membros.
Vem para o lugar das oferendas para onde nos dirigimos juntos. Não tornes fétido o meu nome para
aqueles que colocam os homens nos seus (verdadeiros) lugares! Isto será bom para nós, será bom para o
juiz, será agradável para quem julga. Não inventes mentiras contra mim diante do deus grande, senhor do
Ocidente! Vê: da tua honestidade depende a minha proclamação como um justificado». 801
800
Ver G. BJÖRKMAN, A Selection of the Objects in the Smith Collection of Egyptian Antiquities at the
Linköping Museum, p. 59.
801
Capítulo 30 B do «Livro dos Mortos», adaptado a partir da versão portuguesa proposta por L.
ARAÚJO, «Um escaravelho do coração numa colecção privada portuguesa», Museu 9 (2000), p. 12 e da
versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des Morts, p. 255. Versão hieroglífica em R. LEPSIUS, Das
Totenbuch der Ägypter, Pl. XV. Embora só se tenha difundido no Império Novo, esta fórmula já era
redigida nos escaravelhos do coração desde o Império Médio, como por exemplo no escaravelho do
coração de Nebankh, um nobre que viveu sob o reinado de Khaneferé Sobek-hotep, XIII dinastia. Dedtu
era amigo do rei, o que implica um estatuto social muito elevado. Cf. S. QUIRKE, «Two Thirteenth
Dynasty Heart Scarabs», JEOL 37 (2001-2002),p. 36. Um destes exemplares apresenta a seguinte versão
do capítulo 30 B: «Ó meu coração ib da minha mãe, Ó meu coração ib da minha mãe! Ó meu coração hati
das minhas manifestações, não te ergas contra mim como testemunha, não me ataques em tribunal, não
faças acções hostis contra mim. Tu és o meu ka que está no meu corpo, Khnum revitaliza os meus
membros. Vai para o lugar que nos pertence, não conspurques o meu nome diante da assembleia. O nosso
testemunho é bom para quem escuta, alegre para aquele que escuta. Não pronuncies palavras más diante
do deus. Vê, és escolhido como alguém que vive» Em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp.
33-34. O texto também foi esporadicamente redigido sobre sarcófagos do Império Médio.
252
O rei é um ka, a sua boca é abundância. Aquele que será alguém é aquele que ele faz próspero.
Ele é um Khnum para cada corpo, um engendrador, que cria a humanidade. 802
Era através da ligação à consciência do rei, que o homem podia realizar a maet e
assegurar um resultado positivo no Além. Aqui integrado e adaptado na fórmula
mágica, o pequeno excerto da Instrução Lealista identificava o coração a Sia de modo a
garantir a pureza maética exigida pela tribunal divino (esta identificação entre o coração
e Hórus também se detecta no papiro 29 A). Depois de estabelecer este importante elo
simbólico entre o coração e o rei, o texto realça a união entre o destino do coração e o
do defunto, responsabilizando o órgão detentor do poder da vida pelo destino de ambos
no Além: era dele que dependia a proclamação do defunto como um justo, mas era
também desse testemunho que dependia a permanência do próprio órgão. Esta era, sem
dúvida, a forma mais persuasiva de convencer o coração a dar um testemunho
favorável.
A rubrica do capítulo 30 B
802
Instrução Lealista, § 5, versão curta. Versão francesa em P. VERNUS, Sagesses de l´Égypte
Pharaonique, p. 209.
803
Instrução Lealista, §2, Versão inglesa em J. ASSMANN, The Mind of Egypt, p. 135.
253
exprime o verdadeiro alcance deste procedimento. Para o entrever é na rubrica que nos
devemos debruçar:
Palavras para dizer diante de um escaravelho em nefrite colocado sobre electrum, com um anel
em prata colocado sobre o pescoço do defunto. Esta fórmula foi encontrada em Hermópolis aos pés da
majestade deste deus sagrado (Tot), (escrita) sobre um bloco de quartzito do Alto Egipto, escrito pelo
próprio deus, no tempo de Sua Majestade do rei do Alto e do Baixo Egipto, Menkauré, pelo príncipe
Djedefhor, que o encontrou durante a inspecção dos templos. 804
Aquele que conhecer esta fórmula possui a sua justificação sobre a terra e no reino dos mortos.
Ele poderá fazer tudo o que fazem os vivos, é uma grande protecção do deus. Esta fórmula foi encontrada
em Hermópolis, sobre um bloco de quartzito do Alto Egipto incrustado com verdadeiro lápis-lazúli, aos
pés deste deus, no tempo da sua majestade do rei do Alto e do Baixo Egipto, Menkauré, pelo príncipe
Djedefhor, que o encontrou enquanto inspeccionava os templos, quando uma força o acompanhava e o
movia a isso. Ele relatou ao rei esta maravilha quando se apercebeu que era algo de muito secreto, que
ninguém (antes) vira nem conhecera.
Que esta fórmula seja lida em pureza e sem mancha, sem ter comido gado miúdo ou peixes e
sem ter tido relações com mulheres. Deve fazer-se um escaravelho em nefrite ornado de ouro e colocado
sobre o coração do homem, cumprindo-se sobre ele o ritual da abertura da boca, depois de o ter untado
com mirra. Dizer sobre ele como uma fórmula mágica. 805
Palavras para dizer quando Ré se revela (...) isto permite ser glorioso junto de Ré, permite
equipar o defunto no mundo dos mortos e salva-o de tudo o que é mau. Não o recites para qualquer
pessoa pois este é o livro de Uennefer.
Este livro será a protecção de quem o ler. Nenhum dos seus inimigos poderá reconhece-lo no
mundo dos mortos, no céu, na terra, em qualquer lugar que vá. (O livro) equipará plenamente o defunto. É
verdadeiramente eficaz. Aquele que conhecer esta fórmula será proclamado um justo sobre a terra e no
mundo dos mortos. Poderá fazer tudo o que fazem os vivos pois é uma grande protecção do deus.
804
Rubrica do capítulo 30 B do «Livro dos Mortos», Em P. BARGUET, Le Livre des Morts, p. 76.
805
Rubrica do capítulo 64 do «Livro dos Mortos», Em Idem, p. 105.
254
Esta fórmula foi encontrada em Hermópolis sobre um bloco de quartzito do Alto Egipto,
encrustado de lápis-lázuli verdadeiro, aos pés da majestade deste deus, no tempo da majestade do rei do
Alto e do Baixo Egipto, Menkauré, pelo príncipe Djedefhor. Ele encontrou-a quando inspeccionava os
templos: Como teve dificuldades em fazê-lo ele pediu-a como compensação e relatou-a ao rei como uma
(grande) maravilha ao ver que era algo de muito secreto que nunca fora vista nem conhecida.
Esta fórmula deve ser lida em pureza e sem mácula, sem ter comido gado miúdo nem peixe.
Fazer então um escaravelho em nefrite emoldurado em ouro e colocá-lo no coração do homem,
cumprindo o ritual da abertura da boca depois de o ter untado de mirra. 806
Torna-se evidente que a rubrica do capítulo 30 B foi usada para dois outros
capítulos do «Livro dos Mortos». Esta atribuição não parece ter sido resultante do acaso
e obedeceu muito provavelmente à intenção de destacar as fórmulas que marcavam,
pela sua importância, um determinado contexto litúrgico muito significativo. Se
encaradas sob este prisma, as fórmulas 30 B, 64 e 148 (todas elas destinadas a serem
gravadas na base de um escaravelho) são uma espécie de resumos que encarnam toda
uma etapa do ritual funerário. O capítulo 30 B resumia o ritual da abertura da boca, o
capítulo 64 evocava as cerimónias da saída para o dia e, finalmente, o capítulo 148
condensava o périplo do defunto no mundo inferior. Através destas fórmulas, o redactor
egípcio delineava assim as grandes divisões ou secções do «Livro dos Mortos»,
colocando-as sob a aura de um acontecimento maravilhoso e, o que é mais importante,
cunhava-as com um estatuto especial pois, ao contrário dos restantes, estas pertenciam a
uma categoria de textos «revelados». 807 Deste modo é possível imaginar que um elo de
dependência funcional era estabelecido entre estas fórmulas. Para além do seu conteúdo
explícito, estas fórmulas complementavam entre si o seu valor mágico. Assim, para
além de cumprir a função que lhe cabia (garantir um testemunho favorável do coração
na psicostasia) o capítulo 30 B podia igualmente favorecer o objectivo de «sair para o
dia, no reino dos mortos, numa única fórmula», garantido pelo capítulo 64,808 e facilitar
a integração do defunto no seio das forças cósmicas responsáveis pela regeneração da
806
Rubrica do capítulo 148 do «Livro dos Mortos», versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des
Morts, p. 208.
807
Também Samuel Birch reconheceu a proximidade destes textos, referindo que em alguns casos, o
capítulo é redigido na sequência do capítulo 64 como se tratasse de um suplemento. Ver S. BIRCH, «On
formulas relating to the heart», ZÄS (1867), p. 17. O facto ter sido redigido o capítulo 64 nos escaravelhos
do coração, onde o uso do capítulo 30 é mais comum, é outro reflexo desta proximidade. Ver Idem., p. 54.
808
Através da rubrica, estabelece-se uma certa equivalência entre os capítulos 30 B e 64. Os dados
arqueológicos, por outro lado, indicam que as indicações dadas pela rubrica foram seguidas com todo o
cuidado, mas apenas para o capítulo 30 B (os exemplares de escaravelhos do coração inscritos com o
capítulo 64 são muito raros). A razão para a escolha preferencial do capítulo 30 B deve-se, sem dúvida, à
sua maior adequação ao espaço disponível no objecto.
255
vida, garantida pelo capítulo 148. A ligação entre o capítulo 64 e o capítulo 30 B,
insinuada pela rubrica comum, pode ser confirmada nos exemplares mais antigos do
«Livro dos Mortos». O Papiro de Neferuebenef, conservado no Museu do Louvre,
apresenta os dois capítulos integrados no mesmo texto, sem estabelecer uma
diferenciação entre estas fórmulas.809 Não restam dúvidas, portanto, quanto à ligação
íntima destas fórmulas e ao seu papel prevalente no conjunto dos textos do «Livro dos
Mortos». Este papel não nos deve surpreender se pensarmos que todos os aspectos da
vida do Além, tanto a saída para o dia como a regeneração na Duat, estavam
dependentes da psicostasia. A psicostasia, a saída para o dia e a travessia segura do
mundo inferior estavam assim indissociavelmente reunidos no destino do coração
medido na psicostasia.
809
Ver S. RATIÉ, Le papyrus de Neferoubenef (Louvre III 93), pp. 39-40.
810
Não é possível determinar qual é a vinheta mais antiga do capítulo 30. Tanto a psicostasia como a
adoração do escaravelho são comuns. Ambas aparecem nos papiros da XVIII dinastia. H. MILDE, The
Vignettes in the Book of the Dead of Neferrenpet, p. 136.
811
Ver anexo V 7.61-67.
812
Ver anexo V 7.60.
256
encastoado em ouro, com um anel de prata, colocado ao pescoço do defunto.813 É
precisamente com estas características que o amuleto é representado nas vinhetas
mencionadas.
*
* *
813
H. MILDE, The Vignettes in the Book of the Dead of Neferrenpet, p. 136.
814
Uma abordagem comparativa entre os vários capítulos é apresentada em A. DE BUCK, «Een groep
dodenboekspreuken betreffende het hart», JEOL 9 (1944), pp. 9-24.
257
O contexto das fórmulas cardíacas na sequência do «Livro dos Mortos»
815
Ver Apêndice IX, capítulo 15.
816
Ver Apêndice IX, capítulo 17.
258
Efectivamente, os capítulos seguintes (21 e 30), são alusivos ao ritual da
abertura da boca e procuram dotar o «recém-nascido» com os poderes vitais. Os
capítulos 21, 22 e 23 restituem o uso da boca. O defunto nasce do ovo primordial 817 e,
como o sol, regenera-se na Ilha do Fogo sem ter sido acusado no tribunal do Além. O
uso da boca foi atribuído ao defunto pois é um «justo de voz». Após a restituição do
poder mágico (capítulo 24) e do nome (capítulo 25), segue-se a sequência dos capítulos
«cardíacos» (capítulo 26-30), que concluem a reanimação do defunto. A sequência
mostra, deste modo, que os textos «cardíacos» seriam pronunciados por ocasião do
ritual da abertura da boca, integrados na animação das faculdades vitais da múmia.
Depois da reanimação do coração segue-se um conjunto de capítulos alusivos ao
combate com crocodilos (capítulos 31 e 32):
Arreda, crocodilo do Ocidente, que vive das Estrelas Imperecíveis! O que abominas está no meu
coração (...) Eu sou Atum. (...) Eu sou aquele cujos olhos estão abertos. Tudo o que existe está no meu
punho, o que ainda não existe está no meu peito. Eu estou rodeado do poder mágico de Ré. (...) Eu sou Ré
que se protege a si mesmo. Nada de mau me pode acontecer. 818
A confrontação com as feras que se opõem à luz tem certamente como intuito
afirmar o vigor do defunto conseguido graças à protecção mágica adquirida nos
capítulos cardíacos, ao longo dos quais, como vimos, o defunto se identificou com o
criador do mundo recém-nascido de modo a afastar os inimigos da luz.819 Como refere o
capítulo 32, as feras fogem, pois abominam o que está no coração do defunto. Embora
não seja referido, para surtir esse efeito, o coração só poderia estar cheio da luz e do
vigor do criador. Esta identificação é reforçada aludindo aos meios de criação
817
O «ovo» mencionado na fórmula é, sem dúvida, uma alusão ao ovo primordial de onde, segundo a
tradição hermopolitana, emergiu o sol. Uma das relíquias guardadas em Hermópolis era precisamente o
«ovo sagrado», guardado no alto de uma colina envolvida pelo lago Desden e onde se acreditava ter
brotado, na origem do mundo, a flor de lótus primordial. O capítulo 17 do «Livro dos Mortos» faz alusão
a esta colina prestigiada que, ainda no tempo de Petosíris, continuava a ser venerada : «(81) Eu protegi o
recinto do parque sagrado para impedir que fosse pisado pelas gentes, pois é o lugar onde Ré nasceu no
início do mundo, quando a terra estava ainda envolvida pelo Nun, é a morada onde todos os deuses
nasceram e os ímpios pereceram». Em G. LEFEBVRE, «L´Oeuf divin d´Hermopolis», ASAE 23 (1923),
p. 66.
818
Capítulo 32 do «Livro dos Mortos», versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des Morts, p. 77.
819
Esta sequência contrapõe a criança solar, à qual o defunto se identifica nos capítulos 28 e 29 A, às
feras que simbolizam os inimigos da luz. Este contraste pode constituir a inspiração que presidiu à
elaboração das representações de Horpakhered nas estelas curandeiras da Época Baixa e da Época Greco-
Romana. Nesta perspectiva as representações de Hórus sobre os crocodilos poderiam constituir uma
ilustração desta sequência do «Livro dos Mortos» que versa o nascimento do defunto e o afastamento dos
inimigos da luz. O Museu da Farmácia, em Lisboa, possui na sua colecção egípcia, uma fragmentada
estela de esteatite que mostra o deus Hórus Criança sobre crocodilos.
259
demiúrgica. O defunto detém na mão (o poder de realização) tudo o que existe e encerra
no peito tudo o que ainda não existe (certamente uma alusão ao coração do criador onde
todas as criaturas tiveram a sua origem). Graças à identificação com o sol o poder
mágico do coração pode manifestar-se sem o risco de ser neutralizado pelos inimigos da
luz.
Com esta poderosa identificação com o criador, o defunto continua a expulsar
serpentes (capítulos 33 e 34), insectos (capítulo 36) as Duas Meret (capítulo 37),820 a
poderosa serpente Rerek (capítulo 39) e a «serpente que engole o asno» (capítulo 40). O
sopro da vida é conquistado por entre esta febril perseguição dos inimigos da luz
(capítulo 38, versões A e B), através da identificação do defunto com Atum e Ruti («Os
dois leões») e contribui certamente para reforçar as forças do defunto antes de se
defrontar com Rerek, no capítulo 39. A pureza do defunto permite-lhe ainda escapar à
carnificina dos inimigos da luz (capítulo 41) e afirmar o seu domínio sobre a criação
(capítulo 42). Neste texto, o defunto proclama-se rei da criação estendendo o seu poder
sobre todas as criaturas do Além. O seu estatuto real exprime-se, como no capítulo 28,
pela identificação com a flor uneb:
Fórmula para evitar o massacre realizado em Heracleópolis: País da árvore, coroa branca, base
de estátua, eu sou a Criança.821 (...) Eu sou Ré, cujas bençãos são duradouras, eu sou o criador que está no
tamarindo, eu estou intacto, Ré está intacto e vice-versa. (...) Não tenho qualquer membro que esteja
privado de deus e Tot é a protecção de todos os meus membros. Eu sou Ré (...) eu sou o senhor da
eternidade, possa ser encontrado íntegro como Khepri (...) eu sou a flor uneb saída do Nun, a minha mãe é
Nut. Ó (Nun) que me criaste, eu sou alguém que já não anda pois o comando está na minha mão.
Ninguém me conhece nem me pode conhecer. Ninguém me detém nem me poderá deter. 822
820
Estas entidades manifestam-se com a forma de serpente.
821
Esta sucessão de imagens, aparentemente sem sentido, são alusões aos símbolos de Heracleópolis. O
estandarte da região heracleopolitana consiste numa árvore sobre uma elevação, enquanto o nome da
cidade significa «Criança do rei do Alto Egipto». Em Idem, p. 84, nota 1.
822
Capítulo 42 do «Livro dos Mortos», adaptado da versão francesa em Idem, pp. 84-85.
260
«cardíacas» transcende largamente o âmbito da reanimação corporal do coração e da
psicostasia e contribuíam para estabelecer a identificação do coração com o criador.
Saliente-se também que o despertar do defunto evoca o alvorecer do sol. Ao emergir da
Duat, o sol tinha que demonstrar a sua vitória sobre as trevas o que simbolicamente
podia ser representado na vitória de Horpakhered sobre os crocodilos. O mesmo
símbolo que assinalava em vida, o início de uma vida nova redimida de impurezas ou
doenças, na morte também era usado para assinalar a vitória sobre a morte.
823
Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 129.
824
Durante a vida não havia contacto directo entre homem e deus, uma vez que a visão de deus estava
reservada ao Além. A morte é uma passagem, uma preparação para entrar em contacto com deus. A
condição para aceder ao deus é ter tido uma conduta conforme ao código da maet. Em Idem, p. 132.
825
Nesta perspectiva, o «Livro dos Mortos» podia servir de guia para a moralização da conduta,
completando no plano espiritual o investimento material despendido na preparação do túmulo. O seu
objectivo não seria apenas o de contornar magicamente o julgamento dos mortos, como em geral se
admite. Embora seja certa a natureza mágica do capítulo 125, o texto não traduz a substituição da moral
pela magia, mas sim o seu reforço. Os preceitos da sala das Duas Maet não influenciavam apenas a vida
261
Eu fui um verdadeiro justo, isento de pecado, coloquei deus no meu coração e conhecia bem o seu
poder. Cheguei a esta cidade da eternidade depois de ter feito o bem sobre a terra: não fiz o mal, nem
tenho faltas para me repreender (...) Eu fui um nobre que se congratulou em realizar a maet, tomei
como exemplo as leis da sala das Duas Maet, pois tinha a intenção de chegar à necrópole, sem que
nenhuma falta fosse associada ao meu nome. Não fiz mal aos homens, nem fiz nada que fosse
reprovável aos deuses. 826
Ao entrarem na quarta sala, Setne viu pessoas que corriam e se agitavam, outros estendiam as mãos
para cestos suspensos por cima deles, cheios de alimentos, de água e pão, mas não conseguiam
apanhar os cestos que ficavam fora do seu alcance, e outros homens cavavam buracos debaixo dos pés
deles para impedirem de chegar mais alto. Alguns burros roíam as cordas de onde se suspendiam os
alimentos.
Quando chegaram à quinta sala, Setne descobriu mortos veneráveis, que se encontravam num melhor
lugar, mas os que eram acusados de ter praticado crimes ficavam à porta, em súplicas, e o próprio eixo
da porta desta sala estava espetado no olho direito de um homem que pedia piedade, soltando enormes
gritos de dor.
Quando atingiram a sexta sala, Setne viu os deuses do tribunal que julgam os mortos à sua chegada ao
Amentit. Estava cada um no seu devido lugar, enquanto os servidores do Amentit faziam as
acusações, uma por uma.
Em frente à porta da sétima sala, Setne admirou a figura de Osíris, o deus grande, na sua forma
misteriosa, sentado no seu trono de ouro fino, coroado com o atef. À esquerda de Osíris sentava-se
Anúbis, o deus grande, e à sua direita estava Tot, o deus grande, e, após eles, à esquerda e à direita, os
quarenta e dois juizes, os deuses do tribunal do Amentit. Em frente do tribunal, mesmo ao meio,
erguia-se a balança onde são pesadas as boas e as más acções. Tot, o deus grande, desempenhava o
papel de escriba e de secretário, Anúbis interrogava os acusados e dava a informação ao deus, seu
colega.
Aqueles cujas más acções fossem mais pesadas do que os seus méritos eram entregues a Ammut, a
devoradora, que serve o senhor do outro mundo. O ba do pecador era destruído, assim como o seu
corpo, e jamais poderia voltar a respirar.
Pelo contrário, aqueles que Tot e Anúbis achavam com as virtudes mais pesadas do que as maldades
eram levados para junto dos deuses do conselho que rodeia o senhor do Amentit, e o seu ba ia para o
céu com os veneráveis bem-aventurados.
Aqueles cujas virtudes eram iguais às maldades ficavam entre os servidores de Sokar-Osíris, isto é, o
seu ba não iria para o céu. (...)827
do Além, mas também a conduta do defunto sobre a terra. A expectativa de um julgamento no Além
estendia a sua sombra sobre a vida terrena, do mesmo modo como acontecia com a tarefa de erguer um
túmulo. Os investimentos morais na vida do Além não seriam com certeza menores do que os
investimentos materiais. Em Idem, p. 133.
826
Autobiografia de Baki, Em Idem, p. 134.
827
Setne-Khaemuaset e Siosíris, em L. ARAÚJO, Mitos e Lendas do Antigo Egipto, pp. 264-265.
262
dos intervenientes no julgamento dos mortos. A coroar esta descrição o menino
Siosíris apresenta o ensinamento a retirar desta experiência:
E quando mais tarde chegam ao outro mundo, aquilo que lhes sucedeu na terra sucederá de igual
modo no outro mundo, quando o seu ba lá for recebido. Toma estas palavras no teu coração, meu pai
Setne, aquele que é beneficente na terra também para ele farão o bem no outro mundo. Aquele que fez
o mal na terra também lhe farão mal no outro mundo. Aquilo que tu viste no Amentit de Mênfis
acontece também nas quarenta e duas províncias (do Egipto) onde estão os juizes de Osíris, deus
grande. 828
O juízo do Além estava, deste modo, bem enraizado na mentalidade egípcia e não se
limitava à experiência religiosa ou funerária. A consciência de um juízo dos mortos
era o próprio fundamento da moral e o factor que alertava cada um para a
necessidade imperiosa de se orientar pelo princípio de maet e de o converter em
acções. Que esta consciência fosse comum a toda a população é algo que pode ser
discutido, mas não parece haver muitas dúvidas que, no que diz respeito à elite
letrada, a ideia foi sempre alvo de intensa reflexão como o provam as abundantes
composições sapienciais e funerárias alusivas ao tema.
Uma outra relação do julgamento dos mortos com o mundo dos vivos pode ser
encontrada em dois papiros gregos onde foi redigido o juramento dos sacerdotes na
admissão ao templo. Nestes documentos a admissão dos sacerdotes ao templo está
dependente de uma declaração de inocência que parece ser inspirada no modelo
usado no «Livro dos Mortos»:
Não comerei nem beberei o que é interdito ou referido nos livros (...) 829
828
Setne-Khaemuaset e Siosíris, em Idem, p. 266.
829
J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 135.
263
funções, razão pela qual exprimem um voto de intenção. O curioso é que as duas
categorias de pecados convergem nas declarações de inocência, reunindo as faltas
graves que ninguém deve cometer e que excluem a priori um candidato ao
sacerdócio, e os pecados veniais que o sacerdote deve deixar de cometer quando
passa a exercer certa função.830
Estas conclusões foram reforçadas com a descoberta, entre os fragmentos de um
manual sacerdotal, do original egípcio daquele juramento grego.831 Este documento
estava redigido em hierático, na língua do Império Médio. Neste documento, a
formulação do juramento do documento sacerdotal segue nitidamente a estrutura e a
inspiração do capítulo 125, mostrando como era intensa a influência exercida pela
imagem da morte no reino dos vivos, na iniciação sacerdotal em particular. A
admissão ao reino dos mortos seguia, deste modo, o mesmo modelo da admissão ao
corpo sacerdotal do templo. O denominador comum consiste, sem dúvida, na
aproximação aos deuses. Ver os deuses, num caso como no outro, era o objectivo. 832
Talvez seja esta convergência que permita compreender o papel do interrogatório
esotérico que constitui a segunda parte do capítulo 125. Este texto, revelando o
conhecimento secreto do candidato, pode ter sido a base da encenação ritual da
justificação no templo, ainda durante a vida do indivíduo. Sabemos, com efeito, que
o ritual da psicostasia foi efectivamente realizado em certos lugares sagrados, como
no templo de Hathor, em Deir el-Medina. 833
O capítulo 125 traduz, deste modo, um ideal de vida justa que era exigido para
«contemplar a face de deus». Estabelecia-se assim um continuum entre a vida terrena e
a vida do Além baseado na ética, que a tradição sapiencial não deixou de explorar:
O Ocidente é o porto de quem não tem pecado. Feliz é o homem que aí chega. Ninguém aí chega a não ser o homem cujo
coração foi rigoroso a cumprir a maet. Lá não há distinções entre o rico e o pobre, só o que é encontrado sem pecado, quando a
balança e o peso são colocados na presença do senhor da eternidade.834
830
Idem, p. 135.
831
Idem., p. 136.
832
Ibidem.
833
J. YOYOTTE, «Le jugement des morts dans l´Égypte ancienne», p. 66.
834
Inscrição do túmulo de Petosíris. Apêndice I.12.
835
J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 137.
836
Para muitos autores, o carácter mágico destes textos parece votar a própria ideia de julgamento ao
fracasso já que o seu intuito é o de manipular o resultado e, portanto, negar a possibilidade do julgamento.
Ver J. YOYOTTE, «Le jugement des morts dans l´Égypte ancienne», p. 19. Para Assmann, no entanto, a
função mágica destes textos não diminui o seu valor moral, já que em todos os aspectos da civilização
264
egípcia a magia concorre para reforçar a eficácia da acção humana. Veja-se o caso da medicina, onde a
magia não excluiu uma observação atenta do efeito das substâncias químicas.
837
J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 137.
265
Capítulo IV. O dualismo do coração no Além
838
T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l´Égypte, p. 74.
839
Os vasos de vísceras mostram uma clara associação entre os órgãos e os pontos cardeais através da
intervenção de quatro deusas tutelares: Neit, associada ao leste, protegia Duamutef, Serket, por seu turno,
estava associada ao oeste e intervinha beneficamente a favor de Kebehsenuef, ao passo que Néftis,
divindade do norte, intercedia sobre Hapi. Ísis, associada ao sul, agia a favor de Imseti, em N. REEVES,
266
Órgão Deuses tutelares Deusas funerárias Orientação
Estômago Duamutef Neit Leste
Intestinos Khebehsenuef Serket Oeste
Fígado Imseti Ísis Sul
Pulmões Hapi Néftis Norte
Estas indicações não podem, no entanto, ser consideradas como uma regra que
foi sempre respeitada. Pelo contrário, as práticas funerárias evoluíram consideravel-
mente ao longo da civilização egípcia, apresentando sempre um grau de variabilidade
notável em cada época.840
Contrastando com as manobras complicadas que se elaboravam em torno das
restantes vísceras, o coração hati, como é sabido, permanecia no corpo, colocado «no
seu lugar». Uma vez que a remoção dos pulmões podia implicar a extracção
involuntária do coração, frequentemente os órgãos da cavidade torácica permaneciam
no cadáver.841 Quando a evisceração se estendia aos pulmões, o coração era
necessariamente removido e o mumificador «aproveitava» para o envolver em linho
antes de o colocar novamente no cadáver, juntamente com um volumoso corpo de faixas
The complete Tutankhamun, Londres, 1990, p. 121. Também em J. SALES, As Divindades Egípcias, p.
356.
840
O relicário de alabastro da rainha Hetep-herés, mãe de Khufu e esposa de Seneferu, é o testemunho
mais antigo do uso de recipentes de vísceras. 840 Em três dos quatro compartimentos deste relicário, as
vísceras tinham sido colocadas numa solução de natrão e água. O objectivo da evisceração estava
certamente relacionado com a tentativa de promover a conservação do cadáver. No Império Antigo, as
vísceras eram removidas ou pelo ânus ou através de uma incisão feita no lado esquerdo do abdómen. A
cavidade torácica e ventral era em seguida preenchida com linho ou outros materiais. No Primeiro
Período Intermediário, a evisceração através da incisão abdominal foi substituída pela dissolução das
vísceras e sua remoção parcial através da administração de uma solução resinosa idêntica à turpentina,
com a qual se conferia à múmia o aroma agradável que, em geral, possui. No Império Médio, a
evisceração feita a partir da incisão abdominal foi, de novo, introduzida acrescentando-se a prática de
selar a ferida com um penso embebido em resina, mais tarde substituído por uma placa de metal decorada
com o olho udjat. As duas práticas foram aplicadas, embora com um peso variável, até ao fim da
civilização egípcia. Quando eram retirados intactos, o que só acontecia através da sua remoção pela
incisão do abdómen, os órgãos eram embebidos numa solução de natrão e especiarias para em seguida
serem envolvidos em linho adoptando a configuração de uma múmia em miniatura. 840 No Terceiro
Período Intermediário, o desenvolvimento das técnicas de conservação permitiram que as vísceras fossem
mantidas dentro da cavidade abdominal, e, embora vazios, os vasos de vísceras continuaram em voga,
certamente devido ao seu significado religioso. 840 Em períodos mais tardios, a falta de cuidado dos
embalsamadores e a «produção em série» de múmias levava ao desaparecimento de órgãos que eram
substituídos por «órgãos» artificiais feitos de linho ou couro. Sobre as práticas da mumificação ver S.
IKRAM e A. DODSON, The Mummy in Ancient Egypt, pp. 103-130. Ver também L. ARAÚJO,
«Mumificação», em Dicionário do Antigo Egipto, pp. 594-595.
841
É o caso da múmia de Uah, um general da XI dinastia. Em Idem, p. 115.
267
aromatizadas que enchiam a cavidade abdominal. Estas operações levavam a que o
coração saísse do seu lugar e acabasse por cair algures no interior do corpo, como
aconteceu no embalsamamento do próprio Seti I, onde o coração foi encontrado no lado
direito do corpo.842 O enchimento do cadáver podia ainda completar-se com a
introdução de amuletos, sobretudo com o escaravelho do coração ou com estatuetas
funerárias.
Talvez motivada por questões de ordem prática, relacionadas com a conservação
do cadáver, foram estabelecidas técnicas distintas para a conservação do coração hati e
para o coração ib, as quais parecem ter sido justificadas por de pressupostos religiosos.
Deste modo, o relicário dos vasos de vísceras foi, pelo menos a partir do Império
Médio, claramente investido com um valor religioso relacionado com a integração
cósmica destes órgãos. O relicário era habitualmente colocado a sul do sarcófago, uma
orientação habitualmente conotada com a cheia e a renovação. As divindades estelares e
as deusas funerárias, estabeleciam um elo entre os órgãos do coração ib e os quatro
pontos cardeais. O coração hati, conservado na múmia, ficava sob a protecção do
escaravelho Khepri, o sol nascente.
A «cura» proporcionada pelas técnicas de mumificação parece, deste modo,
atribuir ao coração hati, a identificação com o sol, ao passo que os órgãos do coração ib,
associados às estrelas dos quatro pontos cardeais, parecem remeter para a totalidade do
cosmos e para a mãe divina, Nut.843
268
interpretação a este respeito. À semelhança do que foi feito por Thierry Bardinet na
literatura médica, parece-nos fundamental delimitar o contexto de estudo de forma a não
cruzar documentos com intenções diferentes.845 Para definir a leitura religiosa destes
termos não poderemos cruzar dados de natureza «anatómica» com dados de cariz
religioso. Debruçar-nos-emos, neste momento, apenas sobre os textos funerários que
fazem alusão simultânea aos dois termos, pois apenas nestes casos se afigura consistente
a diferenciação entre estes vocábulos.
Assim, a partir da documentação recolhida, nas composições funerárias
anteriores ao Império Novo não se detecta uma diferença semântica dos termos ib e
hati. Veja-se o seguinte exemplo:
O rei é invocado pelo seu filho no seu funeral: Louvor a ti, meu pai (...) o
demónio nocturno não se virará para ti, o teu coração ib não te será tirado, o teu
coração hati não te será removido.846
No «Livro dos Mortos» a utilização de ambos os termos começou por não ser
muito diferente da que é feita nas composições anteriores:
845
Assmann apresenta uma leitura destes vocábulos em Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, pp. 56-
57. O autor refere que o coração hati está ligado ao corpo djet, o corpo social, à existência terrena e à
identidade mental «que permite ao morto lembrar-se da vida sobre a terra e conservar a identidade no
Além». O coração ib estaria ligado à continuidade biológica entre gerações e à vida interior, de uma
forma geral. Surpreendentemente, as suas interpretações não se baseiam na análise dos textos funerários,
mas sim em dados de cariz anatómico, o que conduzindo a uma polarização de funções semelhante à
nossa, as apresenta inversamente atribuídas, como se verá ao longo da nossa exposição.
846
Pir 419, § 743-749, adaptado da versão inglesa proposta em R. FAULKNER, The Ancient Egyptian
Pyramid Texts, pp. 137-138.
847
Pir 486, § 1039, Idem, p. 173.
269
Fórmula para sair para o dia. (...) Eu tenho de novo o domínio do meu coração ib, o domínio do
meu coração hati, o domínio dos meus braços, o domínio das minhas pernas, o domínio da minha boca. 848
Endireita-te, chefe dos ocidentais! Tu tens o teu coração ib estabelecido no seu verdadeiro lugar,
o teu coração hati foi livrado de qualquer fragilidade.849
Livro da duração de Osíris (...) Tu és duradouro no seio de Nut. Ela abraça-te (...) o teu coração
ib afirmou-se no seu lugar, o teu coração hati está como era no princípio.850
O coração ib continua a «estar no seu lugar», ao passo que o coração hati «está
como era no princípio», uma evocação da criação do mundo. No capítulo 185 os dois
termos parecem ter um peso muito distinto no julgamento dos mortos:
Prestar homenagem a Osíris (...) O meu coração ib vem ter contigo, trazendo a verdade, o meu
coração hati está isento de falsidade. Faz com que eu esteja entre os vivos e que seja incluído no teu
séquito. 851
Começo das fórmulas das transfigurações que se celebram no reino dos mortos: (...) o teu
coração ib alegra-se em cada dia, o teu coração hati é obra dos Dois Poderosos, os teus músculos adoram
as estrelas, os deuses que estão no alto e que estão em baixo. 852
848
Capítulo 68 do «Livro dos Mortos», em Apêndice IX.
849
Capítulo 168 do «Livro dos Mortos», Versão francesa em Ibid., pp. 246-249.
850
Capítulo 182 do «Livro dos Mortos», Versão francesa em Ibid., p. 269.
851
Capítulo 185 do «Livro dos Mortos», Idem, p. 272.
852
Capítulo 172 do «Livro dos Mortos», Idem, p. 255.
270
Como vimos, a alegria está associada ao poder do sol sobre a criação. Já a «obra
dos Dois Poderosos» parece mais difícil de precisar mas, se nos guiarmos pelo
significado religioso do dualismo, a expressão pode reportar-se à criação do mundo.
Associava-se assim o coração ib ao poder do sol sobre o mundo, evocando o coração
que garante a permanência eterna, e o coração hati, o coração constantemente renascido
através do regresso à origem. A mesma associação detecta-se na seguinte passagem
redigida sobre um escaravelho do coração encontrado no túmulo de Psusennes I:
O meu coração é o coração de Ré. O coração de Ré é o meu coração. O meu músculo cardíaco (hati)
está comigo como Khepri. Ele está em mim. O meu coração repousa em mim. O meu ba sai com os deuses
para os lugares que ele ama. Eu entro na Duat, de manhã estou em Heliópolis.853
Fórmula para conduzir o ba ao corpo. (...) Ele tem o seu coração ib, como Ré, ele tem o coração
hati, como Khepri. 854
853
Distinguimos os termos ib e hati através da designação «coração» e «músculo cardíaco»,
respectivamente. Escaravelho nº 507. Adaptado da versão francesa apresentada em P. MONTET, Les
Constructions et le Tombeau de Psousennès à Tanis, p. 145.
854
Capítulo 191 do «Livro dos Mortos», adaptado da versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des
Morts, p. 276.
855
Capítulo 26 do «Livro dos Mortos», Apêndice IX.
856
Idem
271
minha mãe» ou «o meu coração que me foi dado», ao passo que o coração hati é
associado à «existência terrena»857 e às «transformações».858
Reunindo todos estes elementos, vemos que os textos funerários davam maior
valor simbólico ao coração ib que gozava, em relação ao coração hati, de uma
anteposição honorífica que foi respeitada sempre que ambos os termos eram
mencionados em conjunto. Estas fórmulas procuram garantir que o coração ib «ocupe o
seu lugar» ou «traga a verdade», dê o conhecimento ao defunto e manifeste a alegria, ou
seja, os poderes de vida associados ao sol. Quanto ao coração hati, mais identificado
com a «existência terrena» e com as «manifestações», pretende-se que ele fique «livre
de falsidade», «isento de falsidade», «como era no princípio».
Esta diferença de horizontes leva-nos, deste modo, a pensar que, no Império
Novo, o coração ib possuía um sentido mais lato, mais associado ao conhecimento e à
vida espiritual como sugere a associação à «mãe», a qual não sugere tanto a mãe
biológica como certos autores defendem, mas, mais verosivelmente, à mãe divina. Uma
vez que o deus Hórus estava identificado com o deus do coração, esta referência à deusa
mãe pode assinalar a identificação do defunto com Hórus, o filho de Ísis, o modelo de
sabedoria, inteligência e poder do sol. Lembremo-nos que, no capítulo 30 B, uma
expressão equivalente à frase «coração da minha mãe» era «coração que me foi dado»,
provavelmente alusiva à sabedoria transmitida ao indivíduo durante a vida. O capítulo
29 A parece corroborar esta perspectiva:
Eu sou Hórus que habita os corações, o ser íntimo que habita o corpo, eu vivo como alguém que
pensa com o meu coração ib, ele não me será levado; o meu coração hati pertence-me.859
857
Capítulo 30 A do «Livro dos Mortos», adaptado da versão francesa em Ibid., p. 75.
858
Capítulo 30 B do «Livro dos Mortos», adaptado da versão francesa em Ibid., p. 76. Samuel Birch
defende que o termo kheper deve ser traduzido por «transformações», referindo-se, não às idades na terra,
como por vezes é traduzido, mas sim às transformações no Além. A expressão deve ser traduzida como
«coração das minhas transformações». Em A. SHORTER, «Notes on some funerary amulets», JEA 21
(1935), pp. 172
859
Capítulo 29 A do «Livro dos Mortos», adaptado da versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des
Morts, p. 74.
860
O texto deriva da fórmula 20 dos «Textos dos Sarcófagos», P. BARGUET, Les Textes des
Sarcophages, p. 432.
272
O coração hati parece ter um sentido mais corpóreo, tornando mais premente a
necessidade de purificação e de regresso ao tempo mítico da criação. A distinção destes
termos podia assim corresponder ao desejo de enfatizar a diferença entre o coração
eterno, associado ao termo ib, e o coração hati, o coração sujeito aos ciclos do
renascimento. Os dois termos usados para designar o coração podiam, na literatura
funerária, intencionalizar a repartição dualista das funções conectivas do coração.
Deste modo, o coração hati, ligado ao eu corporal, garantia a conectividade do
corpo e evocava os ciclos de renascimento que levavam o defunto a renascer sob a
forma do deus Khepri. Quanto ao coração ib, ligado ao eu social, garantia a
conectividade social e evocava a pureza das águas primordiais da deusa celeste
atribuídas ao homem graças à sabedoria. A diferenciação entre os dois termos
«cardíacos» pode ainda constituir o reflexo das crenças relacionadas com a «iniciação».
Se pensarmos que estes textos foram redigidos para os iniciados no conhecimento
sagrado, os dois termos podem reflectir a desejada transformação da consciência do
defunto. Nesta óptica, o coração hati reportar-se-ia à consciência vulgar, «da existência
terrena», ao passo que o coração ib faria alusão à consciência «superior» obtida graças
ao conhecimento das coisas sagradas e garantida através do segundo nascimento,
conseguido, não por uma gestação terrena, mas sim por uma gestação «celeste».
273
Palavras ditas por Anúbis (…) Entrarás na morada dos corações ib, o lugar que está cheio de
corações hati, tomarás aquele que te pertence e colocá-lo-às no seu lugar, sem que a tua mão seja
impedida. O teu pé não será impedido de andar, não andarás de pernas para o ar, caminharás direito. 861
Neste caso, a morada dos corações parece ser uma divisão repleta de corações na
qual o defunto adquire o coração de eternidade que lhe confere o poder de vida no
Além.862 A morada dos corações estava associada ao julgamento heliopolitano dos
mortos e seria aí que o defunto se poderia equipar com os amuletos alusivos aos
corações ib e hati. Estes amuletos seriam assim o sinal distintivo da justificação do
defunto.
As representações das vinhetas da psicostasia também parecem corroborar esta
interpretação. Nas vinhetas de tipo V, por exemplo, o defunto é representado com o
coração na mão em atitude de oferenda, seguindo-se, em geral, a obtenção de um
amuleto cordiforme na sequência do resultado positivo obtido na psicostasia.
Certamente para propiciar a psicostasia, o defunto doava o seu coração terreno fazendo
acompanhar este gesto com as seguintes palavras: «Dado por mim: Os meus olhos e o
863
meu coração para Osíris». Noutra inscrição, no papiro mitológico de Taudjatré, a
dádiva dos olhos e da boca é acompanhada pela seguinte legenda:
Os teus dois olhos e o teu coração são aceites. Repara, tu és recebida entre os louvados,
senhora da casa, cantora de Amon-Ré, o rei dos deuses, cantora das puras construções de Ptah, cantora no
coral de Mut, senhora de Acheru, a nobre, a grande Taudjatré, justificada (...).864
274
Ele (o defunto) manifesta-se clarificado. Ele foi pesado na balança e foi achado justo e verdadeiro.
Permite que o seu coração e o seu olho seja restaurado. 865
865
Em M. JORGENSEN, Catalogue Egypt, III, p. 78.
866
Ver anexo V 5.7.
867
Na representação egípcia do homem, a principal distinção não se fazia entre o corpo e a alma, mas sim
entre o eu corporal e o eu social, ou seja, entre a esfera física e a esfera social. Esta distinção aplicava-se
indiferentemente tanto ao homem vivo como ao morto. Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte
ancienne, p. 181.
275
pessoa.868 Nas crenças funerárias, a participação do coração na vida do Além diferia de
acordo com o enfoque no eu social ou no eu corporal, já que um e outro participavam de
forma distinta no tempo neheh e djet. O eu social não podia aspirar a outra
sobrevivência a não ser o tempo djet, o da recordação e da lembrança. Já o eu corporal,
embora necessitasse de garantir a sua perenidade no tempo, em contacto com a deusa do
Ocidente, podia aspirar ao renascimento sob uma nova forma, podia aspirar à
sobrevivência no tempo neheh.869
A estas duas valências do coração podemos supor que corresponderiam amuletos
diferentes. Nas cerimónias evocativas do tribunal heliopolitano, um amuleto do coração
podia ter sido atribuído à múmia, ou à sua estátua, em sinal da vitória obtida no
julgamento dos mortos. Este amuleto, simbolizando a sua pureza e qualificando-o como
um aliado da luz, estaria associado à psicostasia e ao eu social e garantia a pureza
necessária para entrar no Além. Por outro lado, o escaravelho do coração estaria ligado
ao eu corporal, ao músculo cardíaco propriamente dito, e assegurava a sobrevivência do
defunto no tempo neheh, identificando-o ao sol nascente, ressuscitado graças à acção da
deusa da montanha.
868
Idem, p. 144.
869
É curioso que esta diferenciação de funções do coração na preservação do eu social e do eu corporal
tem correspondência com a arquitectura funerária. Com efeito, o pátio solar, bem como toda a super-
estrutura, destinava-se a garantir a perenidade do coração enquanto sede da identidade e da vida moral e a
proporcionar o suporte para a sua sobrevivência no tempo djet. De modo complementar, a câmara
funerária albergava o eu corporal do defunto junto da deusa cósmica, criando as condições para o seu
renascimento contínuo e a sua sobrevivência no tempo neheh.
276
se o domínio de Osíris, descrito como se fosse um templo. Passando primeiro pelo salão
das Duas Maet, o defunto era julgado e legitimado para poder passar através dos sete
(ou 21) portais do templo que conduziam às criptas escavadas na montanha, onde se
efectivava a regeneração final sob o signo da vaca Ahet, a deusa do Ocidente que dá à
luz o sol. O livro estabelecia, deste modo, um percurso entre Heliópolis870 e os
territórios subterrâneos de Osíris que, na paisagem egípcia, se confundiam com os
domínios de Abido.871 A união de Ré e Osíris, que o culto funerário celebrava, traduzia-
se na viagem do defunto entre o templo do sol de Heliópolis e o templo subterrâneo de
Osíris. A saída para o dia era, deste modo, regida pelo tema solar, ao passo que a
regeneração na Duat estava sob o signo de Osíris.
No plano concreto do ritual funerário esta repartição entre a saída para o dia e o
Além correspondia a uma divisão entre as cerimónias celebradas no pátio solar e as que
eram realizadas na câmara funerária, onde o defunto se associava aos mistérios de
Heliópolis e de Abido, respectivamente. O túmulo integrava, deste modo, o defunto nos
mistérios de Ré e de Osíris.
A saída para o dia, garantida pela superestrutura equipada com o pátio solar e a
pirâmide, era o domínio da conservação do eu social do defunto no tempo djet, da
permanência eterna. Aqui era o domínio da preservação da identidade no tempo djet
conquistada graças à justificação do defunto. O mérito e o estatuto social do defunto
identificado com Osíris eram eternamente lembrados e preservados. O verbo uen,
«persistir» define bem a imagem da morte associada a Osíris, razão pela qual um dos
870
Heliópolis desempenhava um papel muito particular no universo religioso do antigo Egipto.
Como diz Neferti, «a sepat de Heliópolis é o lugar de origem dos deuses». Os deuses vivem em
Heliópolis. A cidade e os seus santuários perfilava-se como a cidade dos deuses e projectava-se no
plano mítico. Com o tempo, mais do que um lugar, Heliópolis tornou-se um conceito. O topónimo
tornou-se qualificativo de divino, daquilo que é supra-humano. Um quadro amplo de
acontecimentos míticos têm lugar em Heliópolis. Em primeiro lugar era o local da criação do
mundo, onde o criador se manifestou e presidia sobre a ordem cósmica. Esta associação à ordem
cósmica levou a que fosse igualmente associada à resolução de situações de conflito ou de injustiça.
Era aí que Ré vencia Apopis e que Hórus venceu Set. Devido ao seu papel na manutenção da
ordem cósmica, o tribunal heliopolitano era o modelo do julgamento dos mortos, quem era
justificado neste tribunal identificava-se com a vitória da luz sobre as trevas, da ordem sobre o
caos. A justificação exigida por Osíris era, na essência, um ritual de inspiração solar que
legitimava o defunto com um representante da luz. Em S. BICKEL, «Heliopolis et le tribunal des
dieux», Études sur l´Ancien Empire et la nécropole de Saqqâra dédiées à Jean Philippe Lauer, p.
116.
871
A necrópole de Abido é a mais antiga necrópole real do Egipto. Foi aí que teve origem a casa real que
fundou a Época Tinita e a conotação destes dinastas ao culto de Osíris foi-se impondo ao longo do
tempo de modo que Abido acabou por se tornar o maior centro do culto de Osíris. Abido era o lugar
santo por excelência, o local onde o contacto com o mundo inferior é mais intenso. É justamente desta
ligação que a cidade deve a sua santidade. Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne,
p. 451.
277
seus principais epítetos é o de Uennefer, «O que se mantém na perfeição». O amuleto
cordiforme, associado à preservação do eu social e assinalando a sabedoria do defunto
constituía a representação da consciência do defunto osirificado, conservada e
«monumentalizada» no tempo djet. A sua vocação primeira era a de propiciar a saída
para o dia.
A regeneração na Duat era assegurada na câmara funerária, o domínio do eu
corporal. Aí buscava-se a integração do defunto nos ciclos de renovação do sol e a sua
integração no tempo neheh, do eterno retorno e da renovação perpétua.872 O termo que
melhor define a modalidade de existência neste ciclo é o do próprio nome do sol
nascente, Khepri, «O que se transforma». 873 O escaravelho do coração, representando,
por excelência, essa «transformação», estava associado à reanimação do eu corporal e
assinalava o regresso à origem, à integração no tempo neheh.
A eternidade dependia, deste modo, da integração do defunto nas duas
dimensões do tempo djet e neheh associadas a Osíris e a Ré, respectivamente. A
dimensão que estabelecia a ligação entre os dois ciclos era o coração, como demonstram
os sucessivos testes iniciáticos que o defunto tinha de enfrentar ao longo da saída para o
dia e na viagem pela Duat.
872
Idem, p. 534.
873
Ibid.
874
Nesta alínea do nosso trabalho não consideramos as representações do coração como amuleto, as quais
serão analisadas na terceira parte.
875
Ver anexo V 1.11
876
Certamente em resultado das suas conotações solares, o ouro possuía um importante papel nas crenças
funerárias. A luz e a perenidade deste material podem ter sido os aspectos mais determinantes na
278
solar sobre o signo «ouro» significava, deste modo, a vitória sobre a morte, a
ressurreição do defunto e a sua manifestação sob a forma do sol nascente.
Noutros casos, o coração é flanqueado por duas abelhas, o animal heráldico do
Baixo Egipto, mas também um símbolo solar evocativo das transformações sofridas
pelo sol no mundo inferior.878 Este tipo de composição evocaria assim a regeneração do
sol na Duat, processo ao qual o defunto se associava para assegurar a sua própria
ressurreição.
O coração encimado pelo disco solar pode ainda ser ladeado por santuários do
Baixo Egipto, per nu.879 Este motivo possui uma leitura idêntica ao anterior, já que
podemos vislumbrar neste tipo de relicário a presença tutelar e protectora das
divindades do mundo inferior que velam pela regeneração do sol.880 O próprio santuário
é inúmeras vezes utilizado na iconografia dos papiros mitológicos deste período para
evocar a Duat. A sua representação junto do coração encimado pelo disco solar significa
que a união de Ré e de Osíris se verifica na Duat.
Embora com nuances ligeiramente diferentes todas estas representações
possuem um denominador comum, uma vez que tematizam iconograficamente a união
de Osíris e Ré. Para além de evocarem este importante mistério, estas representações
estabeleciam um jogo simbólico com os dois símbolos da consciência. O coração,
identificado com Osíris (possuíndo, por isso um valor moral relacionado com a
justificação) simbolizava a consciência preservada no tempo djet e o disco solar
evocava a consciência do defunto projectada no tempo neheh da origem do mundo,
assinalando assim um novo nascimento.
associação do ouro às crenças religiosas relacionadas com o Além. Neste âmbito, conhecem-se inúmeras
representações de Ísis e Néftis sobre o hieróglifo nub. Também Neit e Serket se fazem representar sobre
este hieróglifo. R. WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 171.
877
Em Ibidem. Tal é também o caso da representação conhecida como «Hórus de ouro», um dos títulos do
protocolo real. Para além de aludir simbolicamente à vitória de Hórus sobre Set, a composição reforça o
carácter divino de Hórus. Para as características gerais deste elemento do protocolo real ver L. ARAÚJO,
«Titulatura», em L. Araújo (dir), Dicionário do Antigo Egipto, pp. 827-828.
878
As abelhas estão, no Livro das Portas, associadas à oitava hora do percurso nocturno do sol. Ver R.
WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 115.
879
Ver anexo V 1.12
880
O santuário per nu aparece frequentemente em vinhetas do «Livro dos Mortos» e do «Livro das
Portas». Nesta composição, na terceira hora do percurso nocturno do sol, uma fila de santuários do Baixo
Egipto simboliza os deuses que velam pelo percurso do sol no Além. Ver Idem, p. 143.
279
280
III PARTE
281
282
Nesta terceira e última parte do nosso trabalho vamos debruçar-nos sobre o
imenso manancial de objectos e representações relacionadas com os amuletos
«cardíacos». Começaremos por abordar a caracterização formal dos escaravelhos do
coração para, em seguida, nos centrarmos no estudo dos amuletos cordiformes,
identificando tipos e sub-tipos de amuletos de modo a definir com clareza o seu
significado. Com este objectivo em mente estudaremos também as aplicações dos
amuletos cordiformes nos objectos rituais e de uso quotidiano. Para complementar esta
análise estudaremos ainda as representações do amuleto cordiforme de modo a clarificar
o seu propósito ritual e simbólico.
1. Caracterização
881
M. MALAISE, Les Scarabées de Coeur, p. 36. Os escaravelhos do coração não devem, deste modo, ser
confundidos com outro tipo de escaravelhos que receram inscrições de carácter histórico ou comemorativo, ou
ainda com os escaravelhos usados como selos. Ver C. ANDREWS, Amulets, p. 52-54
283
do coração, permaneceram anipígrafos o que mostra que a sua função prioritária não era
a de constituir um suporte para a redacção de textos funerários, mas sim a de fornecer
um poderoso símbolo capaz de proteger o coração na vida do Além.
Os escaravelhos do coração distinguem-se facilmente do restante equipamento
mágico da múmia pelas suas dimensões que, em geral, se situam entre os 3,5 cm e os 8
cm, chegando mesmo a atingir 11 cm.882 Apesar da variedade de representações do
escaravelho, é notório o cuidado que os artesãos colocaram na representação dos
elementos mais chamativos da constituição anatómica do coleóptero sagrado. Estes
constituintes são apresentados em diagrama de acordo com a seguinte terminologia:
882
Em M. MALAISE, Les Scarabées de Coeur, p. 41.
883
O escaravelho do coração de Nebankh, que viveu sob o reinado de Khaneferé Sobekhotep, da XIII
dinastia, é muito anterior ao do rei Sobekemsaf, datado da XVII dinastia, durante muito tempo encarado
284
funerários do antigo Egipto até ao período ptolemaico. Aparentemente o uso deste
objecto entrou em declíneo a partir da ocupação romana.884
Michel Malaise, na sua obra de referência sobre os escaravelhos do coração,
defende que este objecto se formou a partir de uma transformação do amuleto
cordiforme. Baseando-se em alusões aos «Textos das Pirâmides», o autor localiza no
Império Antigo a origem do amuleto cordiforme o qual já desempenharia, nessa época,
a função de substituto do coração. Na sua opinião, o capítulo 30 do «Livro dos Mortos»
teria começado a fazer parte integrante deste amuleto dando origem, por fim, ao
escaravelho do coração que mais não seria do que uma diferenciação do amuleto
cordiforme.885 A análise dos nossos dados não nos permitiu inferir a mesma
interpretação do fenómeno.886 Os amuletos inventariados mostram que os primeiros
amuletos do coração a desempenhar uma função exclusivamente funerária são datados
da XVIII dinastia e remontam ao reinado de Ahmés, posteriores, portanto, à «invenção»
do escaravelho do coração, a qual se deve situar no Império Médio. O escaravelho do
coração parece pois, desde o início, mais vocacionado para a função de constituir um
substituto mágico do coração do que o amuleto cordiforme.
como o exemplar mais antigo conhecido (ver anexo II D 2). O escaravelho do coração de Djedtu, do
início da XIII dinastia apresenta já o capítulo 30 B do «Livro dos Mortos» (ver anexo II D 1). Objectos
como este mostram que certas composições literárias, muito usadas no Império Novo, já estavam em voga
no Império Médio. O escaravelho de Djedtu refere que o funcionário era «amigo do rei», o que implica
um estatuto social muito elevado. Os escaravelhos do coração começaram, deste modo, a ser utilizados,
no contexto de uma elite muito diferenciada, no fim do Império Médio e não no fim do Segundo Período
Intermediário. Em S. QUIRKE, «Two Thirteenth Dynasty Heart Scarabs», JEOL 37 (2001-2002), p. 31.
O interesse mágico pelo escaravelho, no entanto, é muito anterior à invenção dos escaravelhos do
coração. Amuletos com a representação de escaravelhos remontam à I dinastia. No cemitério de Naga ed
Der, em Abido, foi encontrado num túmulo pertencente à família real um amuleto de ouro com a forma
do insecto e inscrito com o emblema de Neit. Em S. SMITH, The Art and Architecture of Ancient Egypt,
p. 21. Foi a partir do Primeiro Período Intermediário que os escaravelhos usados como selos começaram a
ser produzidos em grande número, antecedendo assim a elaboração de uma versão funerária em relação
directa com o coração.
884
Em S. QUIRKE, «Two Thirteenth Dynasty Heart Scarabs», JEOL 37 (2001-2002), p. 39.
885
Ver M. MALAISE, Les Scarabées de coeur dans l´Égypte ancienne, pp. 41-42.
886
Na verdade, só encontrámos esta leitura da evolução destes amuletos na citada obra de Malaise. Claudia
Müller-Winkler, que aborda superficialmente a questão, limita-se a constatar a proximidade entre os dois tipos
de objectos (Ver, Amulekte, p. 213.) Também Carol Andrews constata a proximidade entre os símbolos usados
pelas duas categorias de objectos mas não avança com hipóteses explicativas para compreender este fenómeno
(Ver Amulets of Ancient Egypt, p. 57).
285
Amuleto «cardíaco» Escaravelho do coração Escaravelho do coração
naturalista estilizado
Escaravelho com face humana Escaravelho com cabeça humana Escaravelho do coração com
élitros decorados
286
Variações formais
887
Ver anexo II B 4.
888
Ver anexo II C.
889
Desde o início detecta-se a existência de dois sub-tipos de escaravelhos do coração, um com a representação
em relevo da face humana no protoráx (ver anexo II D), e outro com a representação integral do escaravelho
num estilo naturalista (ver anexo II B). Em Idem, p. 38.
890
Ver anexo II E. Para Malaise a associação da cabeça ao amuleto relacionava-se com a intenção de dotar ao
escaravelho os meios para enunciar o testemunho exigido pelo tribunal do Além. Ver M. MALAISE, Les
287
Outros objectos, muito comuns entre o período ramséssida e a XXI dinastia,
apresentam características que, para alguns autores, não são compatíveis com o
escaravelho do coração.891 Estes amuletos, em vez de privilegiarem a redacção de textos
funerários relacionados com o coração, apresentam as silhuetas mumiformes de Ré e de
Osíris em cada um dos élitros do insecto. Na base do objecto, o capítulo 30 B é
substituído pela representação de Osíris ladeado por Ísis e Néftis. Apesar da ausência de
textos, não há qualquer razão para considerar estes objectos como autênticos
escaravelhos do coração, uma vez que o seu tamanho, materiais e uso são em tudo
idênticos aos dos objectos equipados com inscrições.
Os escaravelhos do coração alados podem apresentar as asas típicas do insecto
de forma estilizada (semelhante a duas placas elípticas estriadas) 892 ou naturalista
(apresentando duas protuberâncias em forma de amêndoa).893 Outro tipo de
escaravelhos alados, dotados com asas de falcão, levantam problemas mais sérios de
classificação. Trata-se de uma categoria de insectos que, sobretudo a partir da Época
Baixa, eram colocados sobre o revestimento exterior da múmia.894 A maior parte dos
autores não encara estes coleópteros alados como um «verdadeiro» escaravelho do
coração.895 Apesar das diferenças evidentes no material e na forma, convém não
enfatizar demasiado a distinção entre estas categorias de objectos. Na verdade, em
grande parte das múmias da Época Baixa, o escaravelho do coração era colocado junto
do corpo, imediatamente por baixo do escaravelho alado, situado no exterior da
múmia.896 Embora tivesse sido dotado de uma certa especificidade, este tipo de
Scarabées de Coeur, p. 42. No entanto, esta hipótese não tem em conta o facto de existirem escaravelhos
dotados de cabeça humana sem qualquer relação com o escaravelho do coração. De facto, certos escaravelhos
usados como selos também apresentam a cabeça humana, o que deve refrear as interpretações que estabelecem
uma relação entre a cabeça humana e a psicostasia. Na verdade, a associação da cabeça humana ao escaravelho
parece constituir um motivo iconográfico explorado devido à compatibilidade natural destas duas formas. O
corpo do insecto parece prolongar de modo natural o crânio humano. Para ver exemplares de escaravelhos-selo
com cabeça humana ver C. ANDREWS, Amulets, p. 54.
891
É o caso de W. HAYES, The Scepter of Egypt, p. 423. Esta posição é defendida sobretudo por aqueles
autores que consideram central a presença do capítulo 30 B do «Livro dos Mortos», ou de um texto equivalente
relacionado com o coração. No entanto, a existência, relativamente frequente, de escaravelhos anipígrafos
alerta para o facto de nem sempre o objecto estar munido destas inscrições mágicas. Em nosso entender não há,
portanto, qualquer razão de fundo para que os amuletos desprovidos com estas inscrições não sejam
reconhecidos como escaravelhos do coração.
892
Ver anexo II G 2.
893
Ver anexo II G 3.
894
Ver anexo II G 1.
895
O escaravelho com asas de falcão constitui uma composição híbrida do disco solar pois associa o símbolo
do deus Khepri, o escaravelho, ao símbolo de Ré, o disco solar alado, resultando assim o escaravelho alado.
Ver G. GRIFFITHS, «Eight funerary paintings with judgement scenes in the Swansea Wellcome Museum»,
JEA 38 (1952), p. 231. Ver anexo II G 1.
896
As radiografias mostram, com efeito, o alinhamento entre os dois tipos de escaravelhos. Ver M.-P.
VANLATHEM, «Scarabées de coeur in situ», Cd´É 76 (2001), p. 51
288
escaravelho alado pode ter sido encarado como uma peça equivalente ao escaravelho do
coração.897
Por fim, um outro tipo de escaravelhos apresenta como traço saliente a
identificação pronunciada com o amuleto cordiforme, constituindo uma combinação dos
dois amuletos «cardíacos».898 Na verdade, a identificação entre o amuleto cordiforme e
o escaravelho do coração está quase sempre implícita, uma vez que a base da maioria
dos escaravelhos do coração foi moldada de modo a ter a configuração do amuleto
cordiforme.899 Por isso, é frequente o lado achatado do objecto ser delineado com um
contorno onde não faltam sequer as protuberâncias, geralmente em forma de botão, que
evocam as artérias laterais do amuleto cordiforme.900 Amuletos com estas características
procuravam associar a função mágica dos dois objectos. Se a representação do amuleto
cordiforme é normalmente secundária e apenas é perceptível se observarmos o reverso
do objecto, outros casos há em que prevalece assumindo mesmo um tamanho superior
ao do o escaravelho propriamente dito.901 A explicação para a convergência entre estes
amuletos «cardíacos» deve ser procurada numa tendência habitualmente detectada na
arte egípcia que consiste na justaposição de símbolos com o intuito de potenciar a
eficiência mágica do objecto. Voltaremos a debruçarmo-nos sobre estes objectos a
propósito do simbolismo dualista dos amuletos «cardíacos».
2. Utilização
897
Ibidem. Em certos casos, o «verdadeiro» escaravelho do coração não foi incluído entre o equipamento
da múmia, pelo que se depreende que a sua função foi delegada no amuleto alado situado no exterior.
898
Ver anexo II H 1-3.
899
Ver anexo II H 4-5. O próprio Michel Malaise reconhece a intenção de atribuir uma configuração
cordiforme ao escaravelho do coração: «il existe des scarabées de coeur dont le plat a été aménagé pour revêtir
un aspect cordiforme évident.» (em Les Scarabées de coeur dans l´Égypte ancienne, p. 41.)
900
Ver anexo II G 3, II G 5 e II G 6.
901
Ver anexo II G 2.
289
cintura da múmia.902 Aparentemente a colocação do amuleto teria lugar durante o ritual
da abertura da boca.903
Sobretudo a partir do período ramséssida os escaravelhos começaram a não
apresentar anel de suspensão o que denota um outro tipo de uso. Com efeito, o objecto
deixou de ser aplicado no exterior da múmia para ser colocado em contacto directo com
o corpo.904 Esta prática foi mantida na XXI dinastia e nas épocas subsequentes.
Excepcionalmente, o escaravelho do coração foi colocado dentro da caixa toráccica,
como no caso da rainha Nedjemet, esposa de Herihor. Embora residual, a prática de
colocar o amuleto dentro do tórax persistiu durante a Época Baixa, como atestam vários
enterramentos tardios.905 Nestas múmias, o amuleto era, em geral, colocado na parte
inferior do externo, no centro do tórax, mas também podia ser colocado junto ao
umbigo.906 Como se detecta através da observação dos dados arqueológicos, nunca foi
observada uma regra estrita para colocar os escaravelhos do coração.
3. Epigrafia e iconografia
902
As vinhetas do «Livro dos Mortos», sobretudo do capítulo 26, ilustram bem este acontecimento. O
amuleto podia ser colocado sobre a múmia sozinho ou integrado num peitoral.
903
Em S. QUIRKE, «Two Thirteenth Dynasty Heart Scarabs», JEOL 37 (2001-2002), p. 65.
904
M. MALAISE, Les Scarabées de Coeur, p. 66.
905
Ver anexo II K. Na Época Baixa o amuleto foi, por vezes, colocado na cavidade abdominal ou no lado
esquerdo do tórax. Nestes casos a posição mais frequente é no lado esquerdo do tórax junto do coração. A
múmia de Iufaá, um sacerdote leitor e guardião do palácio da Época Baixa encontrada, em Abusir, revelou
através das radiografias tiradas a 2 de Março de 1998 no National Research Center em Guiza, possuir um
escaravelho do coração no interior do corpo. Estava situado na zona inferior do tórax. M.-P. VANLATHEM,
«Scarabées de coeur in situ», Cd´É 76 (2001), p. 53.
906
Idem, p. 50.
907
Em M. MALAISE, Les Scarabées de Coeur, p. 50
908
Tal pode dever-se ao facto de nunca terem sido redigidos com o nome do proprietário, mas também se
relaciona com o facto de muitos destes objectos terem sido feitos em série. Nestes casos era habitual deixar um
espaço em branco para que o comprador mandasse inscrever o seu nome. Como o nome foi frequentemente
redigido com tinta, os traços acabaram por se dissolver.
290
Embora nos objectos mais elaborados todo o capítulo 30 B do «Livro dos
Mortos» tivesse sido integralmente redigido, o mais frequente era optar por uma versão
abreviada do texto.909 Os erros de ortografia mostram também que os gravadores
deviam compreender muito pouco do que estavam a escrever. Para além das versões do
capítulo 30 podem ser encontrados outros tipos de textos que fazem referência à
devolução do coração praticada durante a mumificação, gesto que, como vimos na
segunda parte do nosso trabalho, era atribuído a divindades femininas como Nut:
Eu vim e trago-te o teu coração. Eu sou Nut, a (deusa) que te guia. Abro as minhas asas e estendo-as
910
sobre ti.
4. Materiais
909
Tal é o caso do exemplar conservado no Museu de História Natural da Faculdade de Ciências da
Universidade do Porto. Ver L. ARAÚJO, Antiguidades Egípcias, p. 279.
910
Inscrição redigida num escaravelho do coração. Em M. MALAISE, Les Scarabées de Coeur, p. 52.
911
Ver anexo II I 2.
912
Ver anexo II I 5.
913
Embora o capítulo 29 B do «Livro dos Mortos», evocativo da ave benu, seja recomendado para o
amuleto cordiforme, a verdade é que este símbolo era comum aos dois objectos. Ver anexo II F 1 e F 3-4.
291
de muitas formas: «a sua corrente» ou «o que não flutua»,915 ou ainda «o que não
esquece».916 Consoante a tradução escolhida, os autores divergem quanto ao imaginário
simbólico desta pedra. No primeiro caso evocaria a cheia e o seu poder vivificante, ao
passo que no último reportar-se-ia ao papel do coração como sede da consciência. A
identificação desta pedra também não é consensual. Alguns autores vêm nesta palavra a
designação do jaspe verde,917 enquanto que outros admitem tratar-se do colerito, uma
espécie de basalto verde.918 Quer se tratasse de uma ou de outra, a verdade é que ambas
foram muito usadas na produção destes amuletos. O simbolismo do jaspe verde prendia-
se com o poder dos primeiros raios do sol na aurora, cuja luz é ligeiramente esverdeada.
O efeito mágico que se procurava obter com o seu uso seria equivalente ao que o sol
recém-nascido desencadeava sobre a vegetação e a natureza de um modo geral. O valor
apotropaico desta pedra estaria, deste modo, associado ao poder da alegria (ou de uma
emoção vibrante que se espalha entre os animais ao alvorecer).919
O feldspato verde, mechenet, em egípcio, estava incluído entre os materiais
favoritos para criar o escaravelho do coração e era até encarado como uma alternativa
ao nemehef, o colerito, tal como refere o capítulo 27 do «Livro dos Mortos». 920 Este
material evocava a verdura e era, por essa razão, particularmente associado ao amuleto
uadje, mas podia ser usado em qualquer objecto apotropaico, contribuindo para garantir
a renovação da vida e a felicidade de um modo geral.921 A serpentina, outra pedra dura,
sobretudo na sua variedade verde, foi também muito apreciada para modelar o
escaravelho do coração. 922 Talvez pelos veios que lembram a textura das serpentes, a
pedra era considerada eficaz contra os inimigos da luz, como as cobras e os escorpiões.
Para além da pedra nemehef e dos seus substitutos formais, os artesãos egípcios
utilizaram uma vasta gama de materais na produção do escaravelho do coração, como a
esteatite, o feldspato, a serpentina, a nefrite, o xisto verde ou mesmo a faiança. Em
comum estava a cor verde proporcionada por estes materiais, que era valorizada pelo
seu simbolismo relacionado com a ressurreição, a regeneração, a saúde e a juventude.
914
É o que se pode detectar em várias representações deste objecto em pinturas tumulares. Ver anexo II J
9.
915
Ver C. ANDREWS, Amulets, p. 56.
916
Ver J.H. HARRIS, Lexicographical Studies, pp. 114-115.
917
Ver L. ARAÚJO, Antiguidades Egípcias, p. 273. Também J.H. HARRIS, Lexicographical Studies, pp. 114-
115.
918
S. AUFRÉRE, L´Univers Minéral, p. 545.
919
Ibidem.
920
Ibidem.
921
Ibidem.
922
Em P. NICHOLSON, I. SHAW (eds), Ancient Egyptian Materials, p. 96.
292
Pedras negras, cor também evocativa da regeneração, foram igualmente associadas ao
simbolismo do objecto. Mais raramente, pedras azuis como o lápis-lazúli também foram
usadas. De forma geral, as pedras verdes usadas nos escaravelhos do coração
asseguravam ao defunto o contacto com os poderes vivificantes da cheia, da vegetação e
da aurora que agiam para proporcionar o renascimento do defunto.923 A integração do
objecto em molduras de ouro contribuía para acrescentar e reforçar as suas conotações
solares.924
923
S. AUFRÉRE, L´Univers Minéral, p. 548.
924
Nos amuletos da XVIII dinastia é frequente o amuleto estar rodeado por uma moldura de ouro,
delineando os contornos principais do insecto. A utilização do ouro era ditada por razões de ordem
religiosa: o metal incorruptível garantia a durabilidade infinda, a identificação com o sol e a vivificação
com a sua luz. A moldura de ouro detecta-se nas versões iniciais do amuleto. Na XVIII dinastia, a aplicação de
ouro envolvia o contorno, em forma de T dos élitros do escaravelho. S. QUIRKE, «Two Thirteenth Dynasty
Heart Scarabs», JEOL 37 (2001-2002), p. 35. Por vezes, quando o ouro não estava disponível em quantidade
suficiente, o artesão providenciava uma imitação em relevo da corrente de ouro, sobre a qual seria então
colocada uma delgada folha de ouro. Ver o exemplar de Sennefer em anexo II A 5.
925
A opinião de Malaise, no entanto, reside numa interpretação bastante discutível da evolução destas duas
categorias de objectos. Para este autor, o amuleto cordiforme remonta ao Império Antigo e havia sido
confeccionado especificamente com este propósito. A interpretação do autor, no entanto, não tem, até ao
momento, qualquer confirmação arqueológica. Ver M. MALAISE, Les Scarabées de Coeur, p. 13 e p. 41.
293
o corpo, caso este entrasse em decomposição. Tal como as estatuetas funerárias
procuravam ser uma réplica da múmia, o escaravelho do coração nasceu do propósito de
proporcionar um coração de substituição ao qual era investido um conjunto acrescido de
funções apotropaicas.
A conotação mágica mais geralmente atribuída ao objecto, consiste, no entanto,
na capacidade do amuleto forçar o coração a dar um testemunho favorável na
psicostasia. Em virtude da grande ligação entre o capítulo 30 B do «Livro dos Mortos»
e o escaravelho do coração, a maior parte dos autores admite sem hesitações que o
símbolo se destinava a garantir um resultado favorável na psicostasia. 926 No entanto, a
relação entre a psicostasia e o escaravelho do coração deve ser entendida de modo mais
dinâmico. Não há dúvida, a própria sequência do «Livro dos Mortos» o indica, que a
reanimação física, proporcionada pelo escaravelho do coração, antecedia e preparava a
psicostasia. No entanto, o resultado favorável na psicostasia garantia, por outro lado, a
identificação final do defunto com o deus Khepri, a qual era ilustrada pelo próprio
escaravelho do coração.
As funções do escaravelho do coração repartiam-se, deste modo, por várias
etapas, englobando a reanimação física, a propiciação de um testemunho favorável na
psicostasia e, por fim, a identificação com o deus Khepri e a sua associação ao ciclo da
eterna renovação do sol. Predominante parece ter sido a afirmação do escaravelho como
símbolo da vida auto-gerada e da ressurreição.927 O simbolismo do escaravelho do
coração deve, deste modo, centrar-se em torno do símbolo mais evidente deste objecto
que reside na identificação da consciência do defunto com o sol renascido e regenerado.
A própria cor, o verde escuro, propiciava a regeneração, a transformação e a cura.928 O
escaravelho era, deste modo, a imagem da ressurreição e do renascimento do defunto
identificado com Khepri.929 Na base destas conotações estava um fenómeno de natureza
linguística, uma vez que o egípcio clássico registava uma homofonia entre o termo
kheper, «escaravelho», e o verbo kheper, «manifestar», ou «tranformar». 930 O
926
Também Carol Andrews não tem qualquer dúvida em referir que a principal função deste objecto era a de
prevenir um resultado desfavorável no tribunal dos mortos. Ver C. ANDREWS, Amulets, p. 56.
927
Em A. SHORTER, «Notes on some funerary amulets», JEA 21 (1935), pp. 171-176.
928
S. RATIÉ, «Le scarabée de coeur du Musée d´Annecy», BIFAO 62 (1964), p. 109
929
Ibidem.
930
Enquanto símbolo do deus Khepri, o escaravelho do coração apresenta conotações evidentes com a
renovação e o renascimento. Esta associação motivou, sem dúvida, a identificação deste insecto com a
ideia de renascimento eterno. Ver B. AFFHOLDER-GÉRARD, M.-J. CORNIC, Angers, Musée Pincé:
Collections Égyptiennes, p. 70.
294
escaravelho deve ser relacionado, deste modo, com o conceito de «transformação», o
qual é atribuído ao coração hati no capítulo 30 do «Livro dos Mortos»:
Ó, meu coração hati das minhas transformações (xprw), não te ergas contra mim como
testemunha, não te oponhas a mim em tribunal, não mostres hostilidade contra mim diante do guardião da
balança!.931
Shorter defende que, neste texto, o termo kheper deve ser traduzido por
«transformações» e não «idades» como, por vezes, é traduzido.932 Pensamos, deste
modo, que a principal função do amuleto era a de providenciar uma identificação entre
o coração hati e o sol nascente e assinalava o despertar de uma nova vida no Além, uma
vida divina plenamente identificada com o sol.933
Alguns autores têm chamado a atenção para a semelhança entre os élitros do
Scarabeus sacer e as suturas cranianas do recém-nascido. Se tivermos em atenção este
paralelismo, o escaravelho podia traduzir, de um modo mais literal do que
habitualmente pensamos, a ideia de um nascimento, sobretudo se pensarmos que, no
momento do nascimento, esta é a primeira imagem que o novo ser manifesta de si
próprio. Esta semelhança poderá ter permitido inúmeros jogos no plano artístico e
iconográfico. Muitas são as representações escultóricas que evidenciam o escaravelho
sobre a cabeça, adoptando uma posição que coloca os élitros em paralelismo com a
posição das suturas cranianas.934 Noutros casos, como acontece nos amuletos do
931
Capítulo 30 B do «Livro dos Mortos», adaptado a partir da versão proposta P. BARGUET, Le Livre
des Morts, p. 255.
932
Para Shorter estas transformações reportar-se-iam às diversas formas assumidas pelo defunto no Além
ao longo da sua saída para o dia e que o assimilavam às várias manifestações do sol como um falcão de
ouro, da flor de lótus, ou da ave benu. Estas transformações são descritas nos capítulos 76-88 do «Livro
dos Mortos». A. SHORTER, «Notes on some funerary amulets», JEA 21 (1935), p. 172.
933
Para melhor precisar o significado do escaravelho é talvez útil observar brevemente a utilização deste
símbolo nas grandes composições funerárias do Império Novo, como o «Livro do Amduat». Nestas
representações, o escaravelho figura, por exemplo, na V hora sob um cofre que simboliza a noite e o
mundo inferior. A figura representa o túmulo de Osíris e a renovação do sol no Além. Em S. BINDER,
«The hereafter: Ancient Egyptian beliefs with special reference to the Amduat», BACE 6 (1995), p. 17.
Também na VI hora, o escaravelho parece intimamente ligado à expressão da união de Ré e de Osíris no
mundo inferior. Aí, uma serpente com muitas cabeças envolve o cadáver de Osíris cuja cabeça tem a
forma de um escaravelho. Veja-se anexo I J 5-6. O deus, que representa a união de Ré e de Osíris, leva a
mão à boca, adoptando o gesto típico da infância. O simbolismo do escaravelho estava intimamente
associado com o mistério da regeneração do sol e da ressurreição de Osíris. O amuleto assinalava o
resultado dessa união misteriosa na Duat e manifestava o despertar do defunto para uma nova vida.
934
Esta tese foi primeiramente defendida por Schwaller De Lubicz que a apresentou na obra Le Temple
dans l´Homme (ver p. 49). Apesar de sugestiva, a ideia permaneceu fundamentada num substracto esotérico
que dificultou a sua aceitação nos meios científicos. Mais recentemente, Sydney Aufrére adoptou a mesma
ideia e argumentou-a convincentemente. Ver L´Univers Minéral, p. 468-469. Ver anexo II L 4, anexo I J 5-6 e
anexo I L 1-2.
295
coração, a representação do escaravelho é de tal forma simplificada que apenas
permanecem os élitros do insecto, tornando assim mais directa a imagem da cabeça
emergente do mundo amniótico.
296
Capítulo II. Os amuletos do coração
Uma das primeiras tentativas para estabelecer uma diferenciação formal dos
amuletos cordiformes foi empreendida por Flinders Petrie que se baseou em critérios
morfológicos e simbólicos.935 Na nossa abordagem privilegiaremos sobretudo critérios de
ordem morfológica pelo que, antes de mais nada, teremos de definir com clareza a
morfologia destes objectos, de modo a constituir uma terminologia rigorosa e precisa.
935
Nesta precursora tipologia dos amuletos do coração, Petrie definia quatro tipos designados pelas
primeiras letras do alfabeto. O tipo A compreendia os amuletos sem artérias laterais ao passo que o tipo B
incluía os amuletos que possuem estas saliências. O tipo C abrangia todos os amuletos que possuem
marcas gravadas no corpo. De forma semelhante, o tipo D contemplava os amuletos que possuem a
representação da ave akh. Já o tipo E corresponde aos que se apresentam encimados pelo disco solar.
Separadamente, num outro tipo de objectos, Petrie, fazia ainda referência aos amuletos que denominava
de «coração de Osíris», aludindo ao vaso sagrado venerado em Athribis. Estes amuletos são representados
com uma cabeça humana e eram, na sua óptica, representações do coração de Osíris. Ver F. PETRIE,
Amulets, p. 10. Ao tentar aplicar esta tipologia verificámos, no entanto, que as categorias em que se
baseia não são exclusivas. Deste modo, um objecto pode ser simultaneamente classificado como
pertencente ao tipo B, ao tipo C e D. Esta reduzida diferenciação da tipologia de Petrie resulta
evidentemente do facto de serem utilizados critérios morfológicos e simbólicos no seio da mesma
classificação. Analisando em pormenor o papel das representações nos amuletos do coração, pareceu-nos
totalmente desaconselhado enveredar por uma tipologia que incluísse categorias relativas à decoração.
Como veremos, as temáticas decorativas são quase transversais a todos os tipos de objectos identificados
através da tipologia morfológica. Embora excluídas dos critérios de classificação dos amuletos do
coração, as representações destes amuletos serão naturalmente estudadas ao longo da nossa pesquisa,
ajudando-nos a precisar o conteúdo simbólico destes objectos.
297
A morfologia do amuleto do coração
1. Topo do amuleto
2. Bordo do amuleto
3. Projecções laterais
4. Corpo do amuleto
936
C. ANDREWS, Amulets, p. 72.
937
C. MÜLLER-WINKLER, Amulette, p. 212.
298
pela autora.938 Tratam-se, no nosso ponto de vista, de vasos sanguíneos pelo que
adoptaremos no nosso estudo a expressão de «artérias laterais» para designar estas
saliências. A forma destas artérias laterais pode ser muito variada e será devidamente
categorizada na tipologia que apresentaremos.
O topo constitui a parte superior do objecto, a qual, em geral, consiste
simplesmente numa estrutura destinada a receber um anel de suspensão que permite o
uso do amuleto em pulseiras ou colares. No entanto, a forma desta estrutura pode
assumir a configuração de cabeça humana, de cabeça de animal ou adoptar o formato de
um disco solar.
O bordo consiste num vinco, habitualmente gravado em baixo-relevo, que divide
o topo do corpo do amuleto. Este bordo pode ter uma secção redonda ou uma secção
quadrangular. Como veremos, trata-se de um elemento muito importante na
classificação dos amuletos.
Tipos de amuletos
Cabeça humana Cabeça de animal Disco solar Estandardizado
938
As artérias laterais em botão podem ser encontradas desde o Império Médio, ao passo que as artérias
de tipo «hieroglífico» surgem a partir da XVIII dinastia. As artérias laterais pontiagudas parecem surgir
apenas a partir da Época Baixa, constituindo, desde então, o principal tipo de projecções laterais
utilizadas. As artérias oblongas surgem, em número muito reduzido, desde o período ramséssida,
tornando-se progressivamente mais usadas na Época Baixa. Os motivos decorativos das artérias, as estrias
e o recorte em serrilha surgem com mais frequência na Época Baixa, os primeiros mais associados aos
amuletos com artérias de tipo «hieroglífico», ao passo que os últimos tendem a ser mais utilizados nos
amuletos com artérias laterais pontiagudas.
299
Dos constituintes do amuleto do coração mencionados anteriormente apenas o
topo e o bordo se afiguram decisivos para a diferenciação formal dos amuletos. Perante
a tarefa de classificar um amuleto, é sobre o topo que deve recair, em primeiro lugar, a
nossa atenção. Neste aspecto podemos classificar os amuletos em quatro categorias:
Amuleto com cabeça humana: Esta categoria abrange todos os amuletos cujo
topo é decorado com uma cabeça humana. Dois sub-tipos podem ser definidos de
acordo com a sua base:
300
Tipo de Amuleto Forma do bordo Sub-tipo Sub-categorias Figura
Vaso Bordo redondo Amuleto oco Amuleto de vidro
irisado
Amuleto de ouro
Amuleto de
pedra/cerâmica
Amuleto compacto
Cornija Bordo
quadrangular
Tabela de classificação dos amuletos do coração: Classificação de acordo com o bordo do amuleto.
301
Amuleto do tipo vaso: Este tipo de objecto caracteriza-se por ter o bordo
redondo,939 habitualmente moldado em relevo e ligeiramente destacado da superfície do
amuleto, de modo a sugerir a boca de um vaso.940 No que toca a estes amuletos
podemos diferenciá-los em duas sub-categorias: amuletos ocos e compactos. Os
objectos compactos constituem a maioria dos amuletos do tipo vaso que, apesar de
sugerirem a forma de um vaso, não possuem uma cavidade aberta para o exterior. Os
amuletos ocos procuram intensificar a identificação com o vaso através do
esvaziamento do interior, o qual comunica com o exterior através de uma abertura.
Apesar de serem pouco numerosos, estes amuletos podem ser muito diversificados,
razão pela qual, com base nos materiais utilizados, podemos distinguir três sub-
categorias de objectos ocos: amuletos de vidro irisado, amuletos de ouro e amuletos de
pedra ou de cerâmica. Os amuleto de vidro irisado são facilmente distinguíveis
apresentando garridas faixas multicolores que criam um belo efeito estético. Todos eles
possuem uma perfuração vertical estreita, de forma tubular, que permitia a sua
suspensão. Os amuletos de ouro são feitos em duas lâminas de metal soldadas entre si,
criando uma cavidade que comunica com o exterior através de uma boca idêntica à de
um vaso que pode, em certos casos, ser dissimulada por uma tampa amovível. Os
amuletos de pedra ou de cerâmica apresentam uma cavidade interior bem definida que
possibilitava o seu uso como receptáculo de substâncias.
Amuleto tipo cornija: Esta categoría abrange os amuletos que possuem um bordo
em forma de polígono. Na maior parte dos casos, a secção é quadrangular. 941 O formato
característico destes objectos levou à diferenciação de elementos que, nos restantes
objectos, se encontram apenas residualmente. Estamos a pensar de um modo particular
no espaço, por vezes muito pronunciado, que separa a cornija do corpo do amuleto. Nos
exemplares mais sofisticados este espaço é delgado e forma uma espécie de «pescoço»
939
Em certos amuletos, quando o artífice achatou o objecto para obter uma boa superfície para a escrita,
o bordo também foi achatado perdendo o seu aspecto curvo para obter uma configuração rectangular.
Trata-se, nestes casos, de uma deformação resultante da adaptação do objecto à função de suporte de
escrita.
940
Em alguns casos, sobretudo quando não têm artérias laterais, pode ser difícil distiguir os amuletos do
coração de tipo vaso dos amuletos vaso em stricto senso. Carol Andrews, por exemplo, distingue os amuletos
que evocam os vasos nu e não estabelece qualquer ligação entre estes objectos e o coração. Ver C.
ANDREWS, Amulets, pp. 94-95. Não é esta a nossa perspectiva já que, em épocas posteriores ao Império
Antigo, os amuletos em forma de vaso nu são quase sempre evocativos do coração.
941
No entanto, em certos amuletos cuja confecção é menos cuidadosa, a secção pode assumir a
configuração trapezoidal, ou de qualquer outro polígono. Uma vez que estas variações parecem decorrer
mais do acaso da actividade artesanal do que de uma verdadeira intenção de representação, não
considerámos pertinente criar sub-categorias que diferenciassem os amuletos de acordo com estas
características.
302
que acentua o efeito estético do objecto. À falta de melhor designação denominaremos
«artéria superior» a esta estrutura de ligação.
Amuleto tipo semente: Esta categoria reúne todos os amuletos que não possuem
bordo (nestes casos o amuleto apresenta o anel de suspensão directamente aplicado
sobre o corpo) ou cujo bordo se apresenta revirado para baixo (estes amuletos podem,
por vezes, ser confundidos com o amuleto que evoca a lua cheia e o crescente, mas
distinguem-se destes objectos pelo facto de não serem achatados e de, pelo contrário, se
mostrarem volumosos, sugerindo a forma de um fruto).942 Nas duas sub-categorias
mencionadas, o corpo do amuleto apresenta, em geral, uma configuração afilada, que
confere ao amuleto a forma de uma semente.
Amuleto sem artérias Artérias em Artérias de tipo Artérias em forma Artérias oblongas
laterais «hieroglífico» de orelha
botão
942
Carol Andrews, por exemplo, não distingue estas duas categorias de objectos. Ver Ibidem, p. 88.
943
No entanto, ao contrário dos componentes anteriormente discutidos (o topo e o bordo do amuleto), a forma
das projecções laterais não é determinante para isolar nenhum tipo de amuletos.
303
Artérias laterais de tipo «hieroglífico»: Estas formações imitam as artérias laterais
patentes no hieróglifo ib que é usado para escrever a palavra coração. Nos exemplares
mais elaborados, as artérias são adornadas com estrias oblíquas.
Artérias laterais pontiagudas: Em geral estas artérias são bastante acentuadas
demarcando-se claramente do corpo do amuleto. O perfil destas abas lembra, por vezes,
o recorte sinuoso de uma orelha. Ao contrário das anteriores, estas saliências tendem a
ser bastante largas.
Artérias laterais oblongas: Embora sejam longas, estas saliências não se
destacam muito do corpo do amuleto e abarcam a quase totalidade do corpo do amuleto.
Por vezes, apresentam as extremidades pontiagudas mas não se devem confundir com as
projecções laterais anteriormente referidas pelo facto de acompanharem o corpo do
amuleto em quase toda a sua extensão, ao passo que as artérias laterais pontiagudas
apresentam um recorte mais sinuoso.
2. Caracterização
304
Tipo de Amuleto Sub-tipo Sub-categorias Quant. Totais
parciais
Amuleto tipo vaso Amuleto oco Amuleto de vidro
irisado 24
Amuleto de ouro 6
34
Amuleto de 4
pedra/cerâmica 178
Amuleto compacto 144
Amuleto funerário 31
Amuleto com cabeça humana
Amuleto votivo 8 39
Total 378
305
ouro. Apresentam artérias laterais em forma de botão. As cores são habitualmente
aplicadas em faixas coloridas criando motivos em zigue-zague ou em espirais.
Frequentemente aplicadas aos pares, ou mesmo em grupos de três, estas cores podem
ser combinadas entre si resultando assim uma grande variedade nos efeitos visuais. O
padrão mais frequente é o que combina o amarelo e o branco, mas todas as combinações
de cores são prováveis.944
A maior parte destes objectos tem evidentemente uma proveniência funerária.
No entanto, embora fossem transportados para o túmulo, é de crer que produtos como
estes não fossem produzidos com uma finalidade funerária, já que se apresentam
totalmente desprovidos de símbolos religiosos tão típicos dos objectos que, na época,
eram produzidos especificamente para a existência do Além. Mais provável é que
tivessem sido usados, como artigo de luxo, durante a vida terrena, suspensos em
pulseiras ou colares.
306
Não nos esqueçamos também do forte simbolismo do ouro enquanto manifestação
tangível do sol e do seu poder e que, nestes amuletos, podia aludir ao próprio faraó.949
Estes amuletos, feitos de pedra950 ou faiança951 podiam atingir os 8 cm, o que constitui
uma dimensão bastante apreciável. Em dois destes objectos o uso do amuleto é feito
através de uma alça metálica que se encaixa em dois furos situados na boca.952 O
amuleto podia assim ser transportado ou suspenso num suporte que o mantivesse em
posição vertical. Um outro amuleto, feito em cristal de rocha, parece aproximar-se deste
tipo de uso, muito embora não apresente qualquer orifício. Neste caso, o seu suporte
pode ter sido um tripé, a forma habitual de suspender os vasos no antigo Egipto.953
Outro amuleto, feito em faiança, possui a particularidade invulgar de, à semelhança de
uma estátua, estar apoiado numa base o que lhe confere um uso votivo.954 Também
neste objecto, as artérias laterais foram transformadas em braços que transportam uma
oferenda, facto único e, tanto quanto sabemos, sem paralelo.955 Trata-se de um artifício
bem conhecido pelos artesãos egípcios que desse modo assinalavam que esse objecto
era uma personificação.956 Uma vez que os braços seguram uma taça, símbolo das
oferendas divinas, percebemos enfim que o amuleto evoca o coração como uma
entidade autónoma que apresenta oferendas perante a divindade.957
A decoração patente nestes amuletos pode variar desde uma decoração
complexa, como o escaravelho solar,958 à singela gravação do crescente e do
949
A utilização do ouro em condecorações oficiais é um fenómeno bem conhecido no Império Novo e deu
origem a importantes obras de ourivesaria, entre as quais se destacam os pesados colares habitualmente
denominados de «ouro de honra».
950
Ver anexo III: 2.B 1 e 2.B 4. O cristal de rocha, uma variedade transparente do quartzo, oriunda do
deserto ocidental ou do Sinai também foi utilizado, embora muito pontualmente, para aproveitar os seus
belos efeitos luminosos. Em P. NICHOLSON, I. SHAW (eds), Ancient Egyptian Materials, p. 52.
951
Ver anexo III: 2.B 3 e 2.B 2.
952
Ver anexo III: 2.B1 e 2.B 3.
953
Ver anexo III 2.B 4.
954
Ver anexo III. 2. B 2. Sobre os meios utilizados para possibilitar o uso dos amuletos ver J. FALKOVITCH,
«L´usage des amulettes égyptiens», BSEG 16 (1992), p. 21.
955
Ver anexo III 2.B 2.
956
É essa a interpretação que Vilmos Wessetzky faz desta curiosa «anomalia» num amuleto do coração. Para a
sua descrição do objecto ver V. WESSETZKY, «Amulettes du coeur au Musée des Beaux-Arts», BMH
54 (1980), pp. 5-11
957
Sobre a leitura simbólica do braço e da taça de oferendas ver R. WILKINSON, Reading Egyptian Art,
p. 53.
958
Ver anexo III 2.B 1.
307
montículo.959 Inscrições elaboradas, como o capítulo 30 do «Livro dos Mortos», podem
ocasionalmente figurar na superfície destes amuletos.
O simbolismo destes objectos parece ser muito importante do ponto de vista
religioso. Em primeiro lugar, tratam-se de peças preciosas: a sua manufactura
cuidadosa, a utilização de pedras duras, ou o próprio esmero da decoração, são aspectos
que corroboram o seu valor artístico e mágico.960 Poderiam guardar uma substância
ritual, provavelmente um unguento, que simbolizaria a purificação da consciência. O
amuleto votivo dotado de braços também parece reforçar esta interpretação:
transformado pelas essências divinas (que o amuleto contém simbolicamente através do
unguento), o coração purificado é admitido ao círculo das divindades onde assegura o
serviço divino. Apesar do seu pequeno número, o valor documental destes amuletos é
precioso: levando ao limite a expressão do coração como um vaso, produz uma
identificação total entre as duas imagens. O uso destes objectos é testemunhado por
certas representações patentes nos templos divinos, onde o amuleto é representado como
um vaso sagrado usado no culto pelo faraó.961
308
(cerca de 2,09 cm, em média) permitia que fossem usados em colares ou pulseiras. A
técnica utilizada para a suspensão é, na sua esmagadora maioria, o anel de suspensão,
ainda que, em alguns exemplares, esta estrutura nunca tenha sido perfurada. Um simples
furo no topo ou no corpo do amuleto também podia permitir a suspensão destes
amuletos.963
O uso, a partir da XVIII dinastia, de símbolos funerários na decoração do
amuleto indicia uma separação entre amuletos produzidos exclusivamente para serem
utilizados no horizonte funerário e aqueles que eram feitos para serem usados nos dois
mundos.964 Libertos dos constrangimentos que o seu uso provocaria na vida quotidiana,
os amuletos funerários podiam assim melhor satisfazer as necessidades da magia. O seu
tamanho aumentou criando mais espaço disponível para a imagem e para a escrita, os
principais vectores de expressão da magia. Neste âmbito, é frequente detectar-se a
presença da ave benu de Heliópolis965 ou do escaravelho sagrado.966 A evocação do
escaravelho solar pode também ser feita apenas através dos seus élitros.967 Padrões
geométricos conjugando a forma de um crescente e de um montículo reticulado também
fazem parte do repertório habitual de representações.968 Quanto às inscrições que
decoram e, nalguns casos, preenchem totalmente o corpo do amuleto, podem incluir o
nome do indivíduo969 ou do soberano reinante,970 bem como o capítulo 30 B do «Livro
dos Mortos» copiado na íntegra ou numa versão mais abreviada.971
963
O bordo de delimitação é naturalmente, em todos os casos, redondo. No entanto, importa aqui ressalvar
que, nos casos em que os amuletos apresentam faces achatadas, o bordo também sofreu uma deformação
apresentando, por essa razão, uma secção rectangular. No entanto, não se trata de um verdadeiro amuleto
de bordo quadrangular, já que o artesão procurou, nestes casos, adaptar a representação do objecto a um
plano bidimensional. Esta deformação está patente em oito amuletos, cinco dos quais foram produzidos com
molde e um em folha de ouro, técnicas que favorecem o achatamento das formas. No caso dos amuletos feitos
em pedra o achatamento pode relacionar-se com o objectivo de proporcionar uma base para a escrita ou para
uma decoração mais complexa. Outra singularidade na configuração do bordo consiste no facetamento do
bordo e também pode ser resultado directo da técnica utilizada na produção artesanal destes objectos. Nestes
casos, este efeito pode resultar de uma técnica imperfeita ou de algum grau de inacabamento da peça. Este
efeito observa-se em seis amuletos.
964
Certas representações tumulares, como as do túmulo de Sennefer (TT 96), chamam a atenção para a
existência de duas categorias de amuletos cordiformes: uma usada na vida terrena (e transportada para o
Além) e outra com conotações estritamente funerárias. De facto, nas representações mais detalhadas, o
amuleto funerário é representado com uma cor escura, que oscila entre o verde, o negro ou o azul escuro,
enquanto que o amuleto destinado à vida terrena é normalmente vermelho ou amarelo. Na antecâmara do
seu túmulo Sennefer faz-se representar com o seu típico amuleto duplo, pintado de amarelo, enquanto
uma procissão funerária transporta para o túmulo um grande amuleto cordiforme escuro. r anexo IV 2.F 6.
965
O exemplar mais antigo remonta ao reinado de Tutankhamon.
966
Os amuletos que apresentam a representação do escaravelho incluem normalmente uma versão do
capítulo 30 do «Livro dos Mortos».
967
Ver anexo III 1.I.
968
Num caso verdadeiramente excepcional, o crescente foi utilizado sem o montículo, o qual foi
substituído pelo hieróglifo més, compondo assim o nome Ahmés.Ver anexo III 1.K 1.
969
Ver anexo III 1.K.
309
O uso exclusivamente funerário também possibilitou, sobretudo na Época Baixa,
quando os amuletos passaram a ser enfaixados nas múmias, que certos «descuidos»
fossem permitidos, como a não perfuração do anel de suspensão, algo que seria
aberrante noutras circunstâncias.
970
As cartelas reais que identificámos nos objectos que inventariados são as de Psusennes I (num amuleto
oriundo do seu próprio equipamento funerário – ver anexo III 1.L 5), a de Maatkaré (ver anexo III 1.L 4)
e as de Ramsés II (que aparecem três objectos certamente oriundos de contextos arqueológicos muito
diversificados – ver anexo III: 1.L 1-3 ).
971
Ver anexo III: 1.M 1 e 1.M 3-4.
972
Note-se que, entre outras utilizações, o hieróglifo é usado para escrever a palavra nun, que evoca as águas
primordiais que envolvem e vivificam a criação. Ver A. GARDINER, Egyptian Grammar, pp. 530-531.
973
Admitindo-se esta hipótese, o amuleto não representaria o coração mas sim um objecto usado no
culto, correspondendo a uma tendência que se verificou, no fim do Império Antigo, para transformar
alguns objectos rituais em amuletos. Sobre esta tendência ver a síntese sobre a evolução dos amuletos
patente em C. ANDREWS, «Amulets», em D. REDFORD, Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, Vol. I,
p.79.
974
Repare-se, uma vez mais, nas dificuldades colocadas por uma tipologia que não se circunscreva a aspectos
formais. Ao estabelecer a sua tipologia Petrie distinguiu os amuletos que representam animais ou partes do
corpo, dos amuletos que representam objectos ou bens relacionados com o culto funerário («Ktematic
amulets», no original). No nosso caso, podemos estar perante um amuleto que tem origem num objecto de
culto e que mais tarde passa a representar uma parte do corpo.
310
Considerando o conjunto dos amuletos de tipo cornija não é possível atribuir
com segurança, uma produção destes objectos anterior ao Terceiro Período
Intermediário. No entanto, ao longo do Império Novo, podemos identificar alguns
amuletos que constituem uma prefiguração dos amuletos de tipo cornija. Um exemplar
da XIX dinastia encontrado na múmia do príncipe Khaemuaset, em rigor, não cabe em
nenhuma das nossas categorias, já que o seu bordo não é rigorosamente quadrangular.975
Apresenta, no entanto, uma curiosa estrutura tripartida que parece prefigurar a cornija. É
entre os funerais reais de Tânis que encontramos os primeiros verdadeiros exemplares
dos amuletos de tipo cornija. A maior parte dos amuletos de tipo cornija estudados data
da Época Baixa ou de épocas posteriores.
Mais de metade deste amuletos são feitos em pedra. A pedra mais utilizada é o
lápis-lazúli mas também a faiança e o vidro surgem em grande quantidade.976
As artérias laterais pontiagudas são um elemento importante da sua morfologia.
Quase metade dos amuletos estudados apresentam motivos decorativos. Ao contrário
das categorias anteriores de objectos, nestes amuletos encontramos predominantemente
motivos muito simples. Em certos casos, estes padrões resumem-se a traços evocativos
da aurícula e do ventrículo.977 Mas os sinais mais distintivos na decoração dos amuletos
de tipo cornija são as marcas em forma de V ou de X que decoram a parte superior dos
amuletos, ocupando assim o lugar onde o crescente habitualmente é representado. Mais
raras, as representações figurativas aparecem em poucos exemplares.978 Não
encontrámos nenhum amuleto de tipo cornija que apresentasse uma inscrição funerária
complexa como o capítulo 30 do «Livro dos Mortos».
As pequenas dimensões destes amuletos, bem como o uso esmagador de anel de
suspensão, indicam claramente que a finalidade destes amuletos se relacionava com o
975
Ver anexo III 4.H 1. Em rigor, se quiséssemos diferenciar este amuleto teríamos de considerar uma
nova categoria, considerando a forma singular do topo: amuleto encimado por artérias. Ora, a forma curva
das artérias que emergem do topo parece-nos constituir uma prefiguração do perfil curvilíneo
característico da cornija.
976
Para além de uma execução mais tosca, estes amuletos exibem frequentemente a face posterior
achatada, por vezes com marcas de espátulas que eram usadas para uniformizar a superfície.
977
O padrão reticular, sem a configuração arredondada do montículo, pode também decorar a parte
inferior dos amuletos. Noutras ocasiões também é possível observar um padrão com estrias verticais
localizado, do mesmo modo, na parte inferior.
978
As mais frequentes relacionam-se com divindades. Ré e Atum surgem num amuleto (Ver anexo III 4.F
3.). A tríade Khepri, Ré e Atum aparecem em oito amuletos, todos provenientes da múmia de Psusennes I
(Ver anexo III 4.F 1-2.). Neste caso, uma legenda acompanha as divindades: «para a protecção de
Paduaenniut».
311
adorno corporal e a vida terrena. No entanto, como acontecia com a maior parte dos
amuletos, também estes foram usados no Além.979
É notória a existência de uma grande quantidade de materiais susceptíveis de
permitirem uma produção em massa, como os materiais cerâmicos (argila e faiança) e o
vidro, fazendo recurso, muitos deles, ao uso de moldes.980 Uma tal utilização permitia
um uso muito mais disseminado destes objectos, o que se reflectiu, de facto, numa
grande difusão do objecto, sobretudo na Época Baixa.981
A configuração da cornija pode, em parte, apontar o principal significado deste
tipo de amuletos, o de constituir uma evocação do papel do coração enquanto templo,
ou mesmo de um naos, evocativo dos poderes divinos.982
O simbolismo do templo pode justificar uma utilização inicial deste tipo de
amuletos pelo círculo real, sobretudo pela realeza de Tânis. Foi apenas depois do
Terceiro Período Intermediário que se registou um uso mais alargado deste tipo de
amuletos verificando-se uma rápida popularização do objecto. A produção em massa
utilizando materiais baratos e facilmente moldáveis é disso um claro indício. Na Época
Baixa e até à Época Greco-Romana, o amuleto do coração de tipo cornija passou a ser
um dos amuletos mais comuns utilizados tanto na decoração corporal dos vivos como
na protecção mágica dos defuntos.
979
Isso não impediu que alguns destes objectos tivessem sido confeccionados exclusivamente para a vida
do Além como se depreende pelo facto de não apresentarem anel de suspensão ou furo que possibilitasse
o seu uso num fio. No entanto, ao contrário dos amuletos de tipo vaso, os amuletos de tipo cornija não
aumentaram de tamanho nem se enriqueceram com representações funerárias complexas, o que indicia
que o seu campo de aplicação se manteve distinto daqueles e que a sua preocupação se centrava em torno
de aspectos relacionados com a vida terrena.
980
Ver, por exemplo, anexo III 4.C 14-15.
981
Note-se ainda que o uso destes amuletos não se restringiu aos funerais humanos. Pelo menos num
caso, datado da dinastia ptolemaica, o amuleto foi usado na protecção mágica de uma múmia de milhafre
enterrada em Dendera. Ver anexo III 4.C 17.
982
Os primeiros amuletos, de proveniência real confirmam esta ideia. A tríade solar composta por Khepri,
Ré e Atum é representada no amuleto como se estivesse no seu santuário. A presença destes deuses, como
refere a inscrição, garante a protecção eterna de Psusennes I. Outras divindades, como Atum e Ré,
também podem figurar neste «santuário». Mais estritamente associadas ao horizonte das crenças
funerárias, estas divindades podem igualmente evidenciar outras funções do amuleto.
312
as pedras dispendiosas como a cornalina ou o lápis-lazúli. Outras pedras como a
esteatite, o xisto e a brecha também perfilam entre os materiais mais usados, bem como
a faiança e o vidro.
As dimensões dos amuletos sem bordo oscilam entre os 1,1 e os 9,5 cm, mas
ficam-se, em geral, pelos 4,3 cm. Ao contrário dos amuletos de tipo cornija, é muito
comum estes objectos estarem desprovidos de artérias laterais e é, pelo contrário, muito
raro dar-se o caso de existirem projecções laterais pontiagudas, o que parece indicar
uma diferenciação vincada do campo de acção destes objectos.
Outro aspecto que diferencia estes objectos é o facto de possuirem uma grande
variedade de motivos decorativos. Cartelas reais,983 símbolos relacionados com a
existência no Além, como a ave ba,984 a ave benu,985 o olho udjat986 e o escaravelho,987
podem figurar nas superfícies do amuleto. Algumas inscrições funerárias foram também
redigidas no corpo do amuleto, em geral associadas a símbolos como o escaravelho ou a
ave benu.988 Outra característica marcante destes amuletos é a de apresentarem um
corpo afilado que concorre para acentuar a semelhança com uma semente ou um fruto.
Esta configuração sugere uma semelhança com os pêndulos usados nos
instrumentos de medida. Com efeito, as balanças e os aparelhos usados para nivelar as
construções possuíam um pêndulo com a configuração do amuleto de tipo semente,
como teremos ocasião oportunamente de estudar. O simbolismo do amuleto de tipo
semente usado na protecção mágica da múmia podia, deste modo, estar relacionado com
o imaginário da psicostasia e simbolizar a qualidade maética do coração, da qual
resultava o perfeito equilíbrio.
983
Ver anexo III 5.F 2-4. Em dois objectos é patente a cartela de Tutankhamon, envolvida, em ambos os
casos, por duas serpentes sagradas. Outro exibe a titulatura de Amenemope. Nos casos mais comuns o
nome do proprietário também podia ser inscrito no amuleto. Ver anexo III 5.F 1.
984
Ver anexo III 5.E 8.
985
Ver anexo III 5.E 7.
986
Ver anexo III 5.E 6.
987
Ver anexo III 5.E 1-5.
988
Em três amuletos foi redigido o capítulo 30 B do «Livro dos Mortos» (nestes casos o texto ocupa a
face posterior do amuleto ao passo que a face frontal apresenta a ave benu, o olho udjat ou o escaravelho).
313
Quanto aos amuletos de bordo descaído, podemos constatar que foi na Época
Baixa que estes objectos parecem ter sido particularmente valorizados.989 Estes
amuletos são quase sempre de madeira revestida com folha de ouro e apresentam a
configuração de uma bolota. Esta configuração sugere efectivamente uma identificação
entre o coração e um fruto solar, talvez em virtude de crenças como as que vemos
ilustradas no Conto dos Dois Irmãos. Se assim for, o amuleto simbolizava a
«circuncisão do coração», comentada na primeira parte do nosso trabalho e que
consistia na aquisição de uma perspectiva impessoal e abrangente, ou seja, de uma
consciência cósmica, decisiva para desencadear a transformação da consciência.
989
Não obstante, alguns exemplares são datados do Império Novo. Ver anexo III 6.
990
Apenas num objecto, o bordo apresenta a configuração arredondada.
991
Ver anexo III 9.1.
992
Ver anexo 9.7 e 9.9.
314
intencionalizar a ideia que o coração é um naos onde o sol se regenera. O uso de
materiais brilhantes ou translúcidos, como o cristal de rocha ou o ouro, pode ter
constituído uma forma de sublinhar a ligação deste amuleto à luz solar.
993
Ver anexo III 7.A 7.
994
Ver anexo III 7.A 11 e 7.B 8.
995
Ver anexo III 7.B.
315
amuleto, cinco ou seis representações diferentes.996 Os motivos mais em voga nesta
época são o escaravelho alado, o naos, ou o disco solar. Por vezes, são colocados
adoradores aos pares a ladear a divindade representada no centro do amuleto,
sobrecarregando ainda mais a representação. Dois amuletos evidenciam muito
claramente a coroa atef, um atributo característico de Osíris.997
A dimensão destes amuletos, bem como o seu rico programa iconográfico
remete de imediato para uma utilização funerária ou votiva. Uma minoria apresenta anel
de suspensão. O processo mais comum para fixar estes amuletos, pelo menos os do
período ramséssida, consistia num furo que atravessa a cabeça de lado a lado. Este furo
poderia assim permitir a fixação à múmia. É mesmo possível que alguns destes
amuletos tivessem sido colocados na múmia como uma peça complementar ao
escaravelho do coração.998 A inserção num peitoral vistoso era uma outra forma de usar
o amuleto, capitalizando assim o seu belo efeito decorativo.999
Os amuletos da Época Greco-Romana não parecem ter sido destinados a um uso
funerário. A sua característica mais saliente consiste no achatamento da base de forma a
permitir o seu uso como uma estátua votiva. Este dispositivo permitia que o amuleto
fosse utilizado como uma estátua divina em miniatura, neste caso, do «coração de
Osíris», especialmente venerado na cidade de Athribis.1000 Estas diferenças apontam
para uma mudança profunda na utilização destes amuletos que, de um uso funerário,
passaram, a partir da Época Greco-Romana, a constituir um objecto votivo, assinalando
assim uma transferência da sua acção mágica da morte para a vida.
O aspecto mais saliente a apontar no simbolismo destes amuletos é naturalmente
o uso da cabeça humana como elemento iconográfico. O seu significado assume
diversos cambiantes. O mais genérico relaciona-se com a evocação da identidade do
indivíduo.1001 O significado destes objectos não se afasta muito daquele que se encontra
nos escaravelhos do coração encimados com cabeça humana. No entanto, enquanto que,
996
Ver anexo III 8.
997
Ver anexo III: 8.B 4 e 8.B 6.
998
Não nos esqueçamos que alguns escaravelhos do coração ostentam cabeça humana, pelo que as
relações entre estas duas classes de objectos tenderam a estreitar-se, sobretudo no período ramséssida.
999
Ver anexo III: 7.A 18 e 7.C 1.
1000
Ver anexo III 8.B 7-8.
1001
Quando representado isoladamente do corpo, o rosto humano tem o poder de evocar o indivíduo na
sua totalidade. Este recurso é utilizado noutros tipos de representações que envolvem objectos. Veja-se o
caso da representação da deusa Meskhenet, onde uma cabeça humana encima um tijolo. Também os
quatro filhos de Hórus são sinalizados através das respectivas cabeças sobre os vasos de vísceras. (ver R.
WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 41). Por essa razão, o vaso que contém o fígado e que é protegido pelo
deus Imseti assume contornos muito idênticos ao amuleto do coração que mais não é do que um vaso encimado
por uma cabeça. Também aqui o vaso faz referência a uma víscera, o coração.
316
nos escaravelhos, o indivíduo se manifestava sob uma forma solar, neste caso,
manifesta-se sob uma forma osiríaca. De facto, as conotações funerárias desta
representação impõem-se de imediato já que a representação da cabeça segue, de muito
perto, a representação da máscara funerária ou do sarcófago, a qual manifestava a
osirificação do defunto.1002 O amuleto encimado pela cabeça humana ilustra o peso e o
valor que a consciência individual tinha na transformação do defunto num Osíris. O
amuleto foi usado tanto por homens como por mulheres, mas a representação faz
sempre alusão a um rosto masculino, o que indica que estes objectos não representam o
indivíduo propriamente dito, mas sim a sua manifestação como Osíris, ou seja, a sua
manifestação como um mae kheru, um justificado, como o indicam as múltiplas
referências ao imaginário iconográfico de Osíris.1003
1002
A máscara funerária pode ter originado exactamente do desejo de fornecer um suporte capaz de preservar a
cabeça e a aparência do indivíduo sob a forma de um Osíris. Ver Ibidem.
1003
O lótus que evoca a ressurreição, os braços mumiformes, o colar usekh da regeneração, a cabeleira
tripartida característica das divindades são alguns destes símbolos. A convergência entre o culto
funerário, osiríriaco, e o culto solar, que caracteriza a religião do período ramséssida, também se detecta
nas representações do amuleto que incluem os símbolos do horizonte heliopolitano, como a ave benu, o
escaravelho alado e os próprios deuses Ré e Osíris, representados em paralelo e reunidos no coração. Esta
união que ocorre no mundo inferior é precisamente o momento fulcral na renovação dos poderes
luminosos de Ré e na ressurreição de Osíris.
1004
Ver anexo III 10.1.
317
estas representações não podem ser senão alusões a divindades. O artesão socorreu-se
aqui, tal como nos amuletos encimados por cabeça humana, de um recurso recorrente na
arte egípcia que consiste em «animar» os objectos dando-lhes uma cabeça que, de
algum modo, o tipificava com uma qualidade específica. Nos exemplares patentes no
nosso inventário, o vaso do coração apresenta a cabeça do babuíno, do cão selvagem e
do falcão. Estes atributos podem evocar Hapi, Duamutef e Khebehsenuef.1005
3. Materiais
Pedras
1005
A hipótese de constituírem a evocação dos quatro filhos de Hórus parece, de facto, verosímil
sobretudo se pensarmos que, nesta óptica, alguns dos amuletos encimados por cabeça humana poderiam
ser Imseti e não tanto o defunto osirificado. Nesta perspectiva, alguns destes amuletos poderiam ser
encarados como a miniaturização dos vasos de vísceras. O aparecimento dos amuletos encimados por
cabeça humana e os vasos de vísceras encimados pelos quatro filhos de Hórus é concomitante e acontece
no início do período ramséssida. Na verdade o aparecimento de vasos de vísceras com as cabeças dos
quatro filhos de Hórus verifica-se no início da XVIII dinastia. No túmulo tebano de Kathinakht,
contemporâneo do faraó Kames, foram encontrados três vasos de vísceras com a fisionomia de Duamutef,
Khebehsenuef e Imseti. No entanto, a sua generalização na cultura material só é visível a partir da XIX
dinastia. Para ver estes objectos ver W. HAYES, The Scepter of Egypt, p. 72. A razão para que os
amuletos do coração tenham adoptado no seu reportório a configuração dos vasos de vísceras deve-se à
extensão que a noção do coração possuía na anatomia egípcia. Apesar do hati, o músculo cardíaco,
constituir o centro do coração, este abrangia todo o interior do corpo, abrangendo portanto as restantes
vísceras que eram guardadas nos vasos especialmente produzidos para o efeito. A evocação dos quatro
filhos de Hórus nos amuletos do coração decorre da própria noção do coração como uma entidade
abrangente, o ib, que engloba os vários órgãos que, depois da mumificação, são guardados no exterior da
múmia. Embora pudessem ter tido uma inspiração nos vasos de vísceras, o amuleto encimado por cabeça
humana rapidamente sofreu uma evolução própria que o levou a destacar-se do seu simbolismo inicial e a
associar-se à constelação mitológica de Osíris, passando então a representar o defunto identificado com
Osíris.
318
Pedras azuis
1006
Apresentaremos, sob esta alínea, apenas o lápis-lazúli. A amazonite, outra pedra azul, apesar de ter sido
muito usada em amuletos, em especial no Império Novo, a sua presença não é muito significativa, limitando-se
a cinco exemplares. Era encontrada no deserto oriental e era curiosamente uma das seis pedras preferidas
dos egípcios que a associavam muitas vezes à turqueza e ao lápis-lazúli. Em P. NICHOLSON, I. SHAW
(eds), Ancient Egyptian Materials, p. 46.
1007
J.H. HARRIS, Lexicographical Studies, p. 124.
1008
A principal fonte de lápis-lazúli na Antiguidade era a região de Badakhchan no nordeste do
Afeganistão o que dificultava bastante a sua importação. Apesar disso, a pedra foi usada numa grande
variedade de objectos desde o Período Pré-dinástico. O seu uso na joalharia estendeu-se até à XXI
dinastia e, a partir de então, começou a esbater-se. Em P. NICHOLSON, I. SHAW (eds), Ancient
Egyptian Materials, p. 40. Como este material era muito imitado por outras matérias-primas mais
acessíveis, a língua egípcia distinguia entre o khesebedje mae, traduzível por «lápis-lazúli verdadeiro» e
khesebedje irit, ou seja «lápis-lazúli fabricado», aludindo provavelmente aos produtos feitos em vidro ou
faiança com a intenção de imitar esta pedra. Em J.H. HARRIS, Lexicographical Studies, p. 125.
1009
S. AUFRÉRE, L´Univers Minéral, pp. 465-368.
1010
Possuir cabelo de lápis-lazúli era um atributo próprio das divindades e constituía precisamente uma
alusão à carga erótica da referida pedra. De notar que o cabelo era um atributo erótico, por excelência. Esta
crença está bem ilustrada nos poemas de amor, onde a cabeleira desempenha um poderoso papel na atracção
sexual: «Quando só estava meia penteada fui a correr procurar-te e descurei a minha cabeleira. Mas vou
desembrulhar a minha peruca e estarei rapidamente pronta.» Papiro Harris 500, em R. SOUSA, Os Doces
Versos, p. 126.
1011
Este último atributo advém da ligação da pedra ao olho udjat, o talismã mais poderoso da magia
egípcia. Esta ligação foi tal que a pedra chegou a ser usada, aparentemente com sucesso, na composição
de remédios para tratar doenças oftalmológicas. Na Época Árabe o mineral ainda era usado para fins
medicinais, acusando provavelmente a sobrevivência do costume antigo. Em S. AUFRÉRE, L´Univers
Minéral, p. 466.
319
Pedras vermelhas
1012
A cornalina podia ser encontrada em muitos depósitos entre o vale do Nilo e mar Vermelho e foi,
desde os tempos pré-dinásticos, usada na produção de amuletos e contas Em P. NICHOLSON, I. SHAW
(eds), Ancient Egyptian Materials, p. 27.
1013
A distinção com o jaspe vermelho nem sempre foi levada à letra e as pedras foram muitas vezes
utilizadas com um sentido equivalente e permutável. Os «Textos dos Sarcófagos» mencionam os termos
hereset e khenemet em paralelo, como se fossem equivalentes. Do mesmo modo, ambas as pedras partilham
uma função hemostática, sendo usadas para proteger as mulheres contra as perdas de sangue ocorridas na
menstruação. Ver Ibidem.
1014
Esta união de opostos concretizada pela relação entre o fogo solar e a cheia pode estar relacionada com as
condições geográficas do Egipto, já que é no momento de maior calor que começa a ocorrer a cheia. Em
Ibidem.
1015
Em P. NICHOLSON, I. SHAW (eds), Ancient Egyptian Materials, pp. 29-30.
1016
S. AUFRÉRE, L´Univers Minéral, p. 554.
320
mágico, o amuleto de tipo vaso tornava-se um aliado na protecção contra as doenças e
as forças malignas.
Em virtude destas propriedades mágicas, a acção do vermelho podia entrecruzar-
se com o amarelo ou mesmo o branco. As pedras brancas veiculavam a cor da pureza
mas também do fausto e do triunfo, pelo que eram utilizadas muitas vezes para fazer
alusão ao ouro (esta aproximação estava sem dúvida relacionada com a existência de
ouro branco).1017
Pedras verdes
Vidro e faiança
A palavra egípcia tjehenet parece fazer alusão tanto ao vidro como à faiança,
abrangendo os dois materiais sem uma aparente distinção.1019 Entre os objectos de vidro
mais característicos contam-se os amuletos de vidro irisado, todos datados da XVIII
1017
Em P. NICHOLSON, I. SHAW (eds), Ancient Egyptian Materials, p. 52.
1018
S. AUFRÉRE, L´Univers Minéral, p. 548.
1019
O vidro egípcio consistia numa junção de matérias-primas diversas, algumas delas muito abundantes
no Egipto como a sílica, a vulgar areia de quartzo, o natrão (um sal natural composto de carbonato de
sódio) e a cal (calcário em pó). No entanto, sobretudo se se pretendiam obter efeitos coloridos, a produção
tornava-se exponencialmente dispendiosa, já que a maior parte dos colorantes vinham do exterior do
Egipto. Na produção de vidro no Egipto podemos distinguir dois grandes expoentes. O primeiro ocorre na
XVIII dinastia com o florescimento da produção de artigos de luxo feitos neste material. O segundo
verifica-se após o Terceiro Período Intermediário e relaciona-se com a expansão em larga escala da
utilização do vidro como um material barato. Estes dois momentos traduzem-se em dois tipos de objectos:
amuletos de vidro irisado, correspondendo ao apogeu da produção de vidro, e amuletos compactos de
vidro simples, quase todos datados da Época Baixa, num momento em que este material era trabalhado de
uma forma rápida e sumária. Em J.H. HARRIS, Lexicographical Studies, pp. 135-136.
321
dinastia. Tratam-se de objectos luxuosos onde é visível a utilização de dispendiosos
colorantes.1020
A degradação do grande comércio internacional que marca o fim do segundo
milénio inviabilizou naturalmente a continuidade desta tradição, que desapareceu
totalmente do Egipto entre o século XII e X a. C. No entanto, a partir da Época Baixa
verificou-se um novo ressurgimento, o qual, bem entendido, se revestiu de
características muito diferentes.1021
Efectivamente, foi a partir da Época Baixa que o vidro simples passou a ser
produzido em grande escala. Devido à produção em massa, os amuletos passaram a ser
monocromáticos e exibem um acabamento grosseiro.1022 Embora o vidro usado tenha
sempre uma única cor, várias eram as cores disponíveis, sendo as mais pretendidas o
vermelho e o azul. A preferência por estas cores indica que o seu verdadeiro objectivo
era o de imitar as pedras usadas na joalharia, a cornalina e o lápis-lazúli. As pequeninas
bolhas de ar que dão um aspecto rugoso à superfície concorrem mesmo para acentuar a
imitação, razão pela qual não procuravam ser disfarçadas. Outro dado interessante é a
preferência que os artesãos do vidro parecem ter tido pelo amuleto de tipo cornija, o
qual, na época em que era fabricado, era certamente o tipo de amuleto cordiforme mais
corrente.
1020
O cobre, usado para obter o azul-claro, ou o azul-esverdeado, mas também o verde e o vermelho, era
conseguido no Sinai ou importado da Ásia. O chumbo, usado para tornar opaca a superfície do vidro e
torná-la branca, era proveniente do mar Egeu. O cobalto, usado no azul escuro, vinha do leste da Europa
através das rotas comerciais micénicas, de uma região onde hoje se situam as républicas checa e eslovaca.
Os meios envolvidos na produção destes objectos deve ter contribuído para que os seus centros de
produção se tivessem mantido na dependência directa do palácio real. É pelo menos essa a situação na
XVIII dinastia, período de florescimento na produção de amuletos irisados. Conhecem-se oficinas associadas
ao palácio de Malkata, ao palácio real de Amarna e ao palácio de Medinet el-Gurob. Em A. KOZLOFF, «La
verrerie», em Aménophis III, le Pharaon-Soleil, pp. 326-327.
1021
Dado que a técnica do vidro soprado só viria a ser inventada no século I a. C., na Síria, os artesãos
dispunham de meios muito rudimentares de trabalho. Para executar os amuletos de vidro irisado, aquecia-
se a pasta vítrea até atingir o estado de fusão colocando-a depois num molde. Antes de arrefecer
perfurava-se o amuleto verticalmente, o que possibilitava não só a sua suspensão, mas também a sua
decoração. As cores muito vivas que caracterizam estes amuletos eram conseguidas com filamentos de
vidro de cores diversas que eram depositados sobre o corpo do amuleto, habitualmente de cor escura. As
diferenças na coloração do corpo do amuleto podem indicar uma proveniência distinta. O vidro azul-escuro é
muito usado nas oficinas de Amen-hotep III, ao passo que o azul claro parece ter tido maior aceitação entre as
oficinas de Akhenaton. Sobre as diferenças entre as oficinas reais consultar. Ibidem.
1022
Quando aquecido o vidro adoptava a configuração maleável de uma pasta, sendo então colocado em
molde. A adesão às formas do molde era facilitada com a ajuda de um estilete com o qual se procurava
extrair a pasta em excesso. Ao arrefecer era retirado do molde e as saliências decorrentes do vidro que
saíra do molde eram partidas. A forma apressada como este trabalho era feito reflectia-se num
acabamento grosseiro que estes amuletos muitas vezes apresentam. O uso desta técnica implicava que
uma das faces, em geral a posterior, fosse achatada. A técnica é bem explicada, em G. A. REISNER,
Amulets, Vol. II, p. 80.
322
Efectivamente, por permitir, como o vidro, uma produção mais célere, a faiança
tornou-se, sobretudo a partir da Época Baixa, outro material muito abundante entre os
amuletos do coração.1023 A faiança egípcia1024 consiste numa pasta esmaltada que podia
ser obtida a partir de «um núcleo de grãos de quartzo soldado através da fusão de uma
pequena quantidade de calcário ou fundente alcalino e esmalte de soda-calcário-quartzo
misturando com corante azul ou verde».1025 «As duas tonalidades cromáticas básicas
eram o azul (devido à presença de óxido de cobalto) e o verde (devido à mistura de
óxido de ferro e manganésio) (...)»1026 As fontes escritas revelam, no entanto que a cor
mais associada a este material era o verde.1027 Também aqui se denota uma utilização
preferencial da faiança nos amuletos de tipo cornija.
A razão para o sucesso do uso da faiança nos amuletos da Época Baixa deve ser
encontrada tanto em aspectos económicos, como em razões de ordem simbólica e ritual.
Da mesma forma que o branco continha em si todas as outras cores do espectro visível,
a faiança tinha em potência a possibilidade de manifestar a luz que emanava dos
restantes materiais. Esta afinidade com os restantes minerais tornava a faiança num
produto indiferenciado capaz de imitar uma grande variedade de materiais. Por detrás
desta aparente indiferenciação, a tjehenet, no sentido abrangente que englobava o vidro
e a faiança, era encarada como uma manifestação mineral da luz cósmica.1028 Os textos
litúrgicos descrevem a tjehenet como se tratasse de uma luz que irradiava de uma
divindade astral, em geral a lua, quando aparece no horizonte.1029 Tratava-se, portanto,
1023
Á medida que, no Terceiro Período Intermediário, as matérias-primas mais valiosas se tornaram de
difícil acesso, verificou-se um aumento da utilização da faiança no fabrico de objectos destinados à vida
no Além. Ao longo deste período, o principal centro de produção dos objectos de faiança, onde se
incluem os amuletos, foi a região tebana, constituindo o monopólio do templo de Amon-Ré, em Karnak.
Os artesãos responsáveis pelo fabrico dos objectos em faiança denominavam-se os «fabricantes de azul».
Já na Época Baixa, foi sobretudo na região menfita e no delta que floresceram os centros de produção de
amuletos de faiança. Estas oficinas privilegiaram a frita esverdeada, de tonalidades mais claras. Os
amuletos de faiança do Império Novo ou do Terceiro Período Intermediário, provenientes ou das oficinas
reais ou das oficinas ligadas ao sacerdócio de Amon, apresentam um elevado nível de execução. Já os
amuletos da Época Baixa, apresentam formas muito simplificadas, mais adaptadas a uma produção
massificada. Em L. ARAÚJO, Estatuetas funerárias egípcias da XXI dinastia, pp. 208-218
1024
Em rigor a designação de faiança para designar a pasta usada no antigo Egipto não é correcta. A verdadeira
faiança usa um esmalte estanhífero, ao passo que a «faiança» egípcia é revestida por um vidro silicioso. Para
uma explicação mais completa das características da faiança ver Idem, pp. 211.
1025
L. ARAÚJO, «Faiança», em Dicionário do Antigo Egipto, p. 359. Outro processo consistia na mistura
de pedaços de vidro com esmalte de soda-calcário-quartzo para obter um revestimento vidrado que se
denomina de frita. Em Ibidem
1026
L. ARAÚJO, Estatuetas funerárias egípcias da XXI dinastia, pp. 212.
1027
As folhas das árvores, por exemplo, são frequentemente comparadas à cor de tjenet, palavra que, neste caso
evoca a faiança. Em J.H. HARRIS, Lexicographical Studies, p. 136.
1028
Em S. AUFRÉRE, L´Univers Minéral, p. 524.
1029
«Le ciel est en fête, la terre est en joie céleste, les temples sont parsemés de tjehenet». «Quand ta face
s´unit à tjehenet, le ciel se met en fête et la terres est dans la joie, tout entiére». Idem, p. 524.
323
de um material muito sugestivo do ponto de vista simbólico que, especialmente no
contexto funerário, foi utilizado como um veiculo da luminosidade celeste tão desejada
pelos mortos mergulhados nas trevas.
Metais
Apesar do seu elevado valor e da rapina dos saqueadores de túmulos, o ouro é uma
matéria prima muito utilizada entre os amuletos do coração que chegaram aos nossos
dias, estando sobretudo associado aos amuletos de tipo vaso.
De um modo geral, os objectos feitos em ouro eram elaborados por operários
especializados, os hemu nebu, os «artesãos do ouro», estreitamente ligados ao
palácio.1030 Por essa razão, uma das formas mais veementes que o rei possuía de
demonstrar o apreço pelos serviços dos súbditos era a oferta de ouro. A distinção
assim oferecida podia passar pela dádiva de objectos do khekeret nesu, o «ornamento
real» ou podia consistir na oferta do chamado «ouro de honra» que consistia na
oferta de colares feitos com pequenos discos de ouro, ou de outros objectos como os
amuletos cordiformes. A oferta de um amuleto do coração de ouro transcendia
largamente o valor material do objecto. Ao presentear os súbditos com o ouro, como
recompensa pela qualidade dos seus serviços, o rei cedia-lhes uma parcela de
imortalidade luminosa que os acompanhava para o Além.1031 Tal era, portanto, a
função e o significado dos amuletos do coração feitos em ouro. Confeccionados para
o rei, estes objectos eram presenteados aos súbditos como prémio pelo seu valor
(inteligência e virtude) e dotava-os com uma centelha divina.
1030
Por outro lado, o valor da matéria-prima ligava-os às instituições mais poderosas do Egipto. Os
«artesãos do ornamento real», por exemplo, eram os ourives que estavam ligados a uma das instituições
mais importantes do palácio, o khekeret nesu, o «ornamento real», o centro que confeccionava perfumes e
os ornamentos reais. Outros ourives estavam afectos aos templos, sendo particularmente numerosos em
torno dos santuários de divindades cujo culto as aproximava da metalurgia. Neste âmbito prevaleceu com
particular destaque a cidade de Mênfis, o principal centro metalúrgico do Egipto. A envergadura das
instalações portuárias, o papel de entreposto comercial ligando as rotas comerciais internas e
internacionais e a abundância de combustível tornaram-se factores decisivos para consolidar a
preponderância da cidade neste sector. Uma tal prevalência da metalurgia promoveu, sem dúvida, a
ligação das divindades locais ao trabalho dos metais, em especial ao ouro. Ptah, o deus tutelar dos
artesãos, revelava uma ligação particular pelo trabalho do ouro, em especial sob a forma de anão patéco.
Também Tatenen, deus criador, era encarado como o proprietário das riquezas auríferas. Os sumos
sacerdotes de Ptah, os uer kherep hemu, ou «Os grandes dos chefes dos artesãos» supervisionavam, como
a própria expressão indica, todo o trabalho artesanal, em especial, a actividade dos ourives,
particularmente imbuída de uma carga mágica e «alquímica». Embora secundário em relação a Mênfis,
também o templo de Min em Coptos evidenciou uma importante ligação à actividade metalúgica. As
razões para esta ligação estão relacionadas com a exploração deste metal nas montanhas do deserto
oriental, a qual era controlada por Coptos e pelo santuário de Min onde operava uma classe específica de
ourives os nebu Menu, os «ourives de Min». Em S. AUFRÉRE, L´Univers Minéral, pp. 362-366.
1031
Idem, p. 367.
324
A aplicação de folha de ouro correspondia a uma intenção que, até ao Império
Novo, estava relacionada com o intuito de dotar o objecto com a luz solar. Já na Época
Baixa, o significado da aplicação da folha de ouro mudou ligeiramente correspondendo
então à intenção de sacralizar o amuleto, dotando-o de uma existência perene.1032 O
valor simbólico do ouro estava intimamente ligado ao sol. O seu brilho evocava a luz
dos raios solares e a sua incorruptibilidade reflectia a perenidade do astro, o que o levou
a tornar-se o símbolo da eternidade e da existência no Além.1033 A obtenção da
imortalidade por intermédio do ouro tornou-se a grande preocupação da Época Baixa
que via neste recurso o veículo mais seguro para assegurar a vida eterna.1034
4. Iconografia
O escaravelho
1032
Idem, p. 380.
1033
Ver H. STIERLIN, L´Or des Pharaons, p. 10. A associação entre o ouro e a vida no Além é
eloquentemente ilustrada nos túmulos reais do Império Novo, onde a câmara funerária, onde jazia a múmia
real, se denomina o «Salão de Ouro», não tanto por estar repleto de ouro mas sim pela identificação entre o
ouro, encarado como manifestação do sol, e o rei. É esta identificação que garante em última análise, a sua
imortalidade. Tal não deve subvalorizar a presença efectiva deste metal nos funerais reais. Os vários ataúdes e a
máscara funerária eram feitos, sempre que a conjuntura económica o permitia, no metal precioso,
justamente para favorecer a transmutação desejada do cadáver real em matéria de eternidade.
1034
Devido às suas propriedades mágicas, o ouro era um dos materiais privilegiados para a confecção dos
amuletos encarregues da protecção mágica do defunto. A «Morada do Ouro», ou Per Nebu, era uma
instituição do templo, relacionada com o culto de Osíris, que era especializada nos amuletos e objectos
funerários. A sua função não é clara mas parece ter sido sobretudo ritual. Seria possivelmente aí que os
objectos eram dotados da sua funcionalidade mágica podendo em seguida ser depositados nas múmias e
cumprir a sua missão apotropaica. Curioso é que esta designação passou também a ser usada para
designar a sala do sarcófago nos túmulos reais, onde se operava a transformação do rei numa entidade
solar. A designação evoca, deste modo, as conotações do ouro na vida do Além e no renascimento que aí
se operava. Em S. AUFRÉRE, L´Univers Minéral, pp. 376-390.
325
detecta-se uma vocação funerária, à excepção dos que apenas representam os élitros, os
quais, pelas suas dimensões reduzidas, também poderiam ser usados na vida quotidiana.
A função destas representações nos amuletos do coração funerários reflecte a
tentativa de articular de modo complementar o poder mágico de cada um destes
amuletos, uma tendência que também detectámos quando estudámos os escaravelhos do
coração. Reflectindo a convergência destas duas categorias de objectos, alguns amuletos
acabam por ser autênticos precursores do conceito «dois em um»: os dois símbolos
estão tão perfeitamente equilibrados que se torna quase impossível classificá-los apenas
numa categoria.1035 Tal não significa, no entanto, que o simbolismo do amuleto do
coração se confunda com o do escaravelho funerário. Pelo contrário, a sua conjugação
reflecte a aspiração de combinar a acção conjunta e complementar dos dois objectos.
A ave benu
1035
Ver anexo II H 1-3.
1036
Inicialmente a ave escolhida para representar a ave benu foi a Motacilla flava, a qual era tida, pelos Textos
das Pirâmides, como a encarnação de Atum. Ver R. WILKINSON; The Complete Gods and Goddesses, p. 212.
1037
Ibidem.
1038
S. D´AURIA, P. LACOVARA e C. ROEHRING, Mummies & Magic : The Funerary Arts of Ancient
Egypt, p. 135. A própria representação da ave assentuava alternadamente o seu carácter ctónico ou solar,
326
inferior.1039 No capítulo 17 do «Livro dos Mortos», a ave é explicitamente encarada
como o símbolo da união entre Osíris e Ré:
Eu sou a grande ave benu que está em Heliópolis. Eu dou unidade a tudo o que existe. O que isto
significa? Significa que benu é Osíris que está em Heliópolis.1040
Eu sou puro, eu sou puro, eu sou puro, eu sou puro! A minha pureza é a pureza do grande benu que
1042
está em Heracleópolis.
atribuindo-lhe um toucado atef ou um disco solar, respectivamente. A função da ave benu parece, deste
modo, estar associada à transição entre os mundos.
1039
J. VAN DIJK, «The symbolism of the Memphite Djed-pillar », OMRO 66 (1986), p. 8 Esta síntese
reflectia-se no culto heliopolitano, onde Osíris era considerado «o grande no santuário da ave benu». Este
santuário era o próprio templo de Ré em Heliópolis, de onde se considerava que emergia o sol. O nome de
Heliópolis, Iunu, «Os pilares», designava precisamente a função da cidade como sustentáculo do sol.
Estes pilares míticos representavam as forças que assistiam ao renascimento do sol e à ressurreição de
Osíris e traduziam a própria função da ave benu. Se, na terra, a ave benu estava associada a Heliópolis,
astronomicamente, a ave benu associava-se ao planeta Vénus, «o deus da manhã» e devia esta
identificação ao papel deste astro como anunciador do dia ou da noite. Em L. TROY, «Creating a god : the
mumification ritual», BACE 4 (1993), p. 60.
1040
Capítulo 17 do «Livro dos Mortos». Apêndice IX.
1041
Idem, p. 52.
1042
Adaptado da versão francesa proposta em Idem, p. 58.
1043
Ver E. TOLMATCHEVA, «A reconsideration of the Benu-bird in Egyptian Cosmogony», em Proceedings
of Eight Congress, Vol. II, pp. 522-526.
1044
R. Van der BROEK, The Myth of the Phoenix, p. 15. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem: .«Ó
Atum-Khepri, (…) ergues-te sobre a pedra benben na Morada da ave benu em Heliópolis, cospes Chu e
Tefnut», § 1652 dos «Textos das Pirâmides». Adaptado da versão inglesa em R. FAULKNER, Pyramid Texts,
p. 246.
327
que a ave constituísse um símbolo privilegiado do renascimento.1045 A identificação
entre o demiurgo e a ave reforçou a sua posição como símbolo propiciador da
ressurreição. Foi com este intuito que o epíteto de Atum, kheper djes éf, «O que se criou
a si mesmo», foi redigido nos amuletos cordiformes.1046 Posicionada nos amuletos do
coração, a ave demiúrgica exercia os seus poderes criativos em benefício do defunto.1047
As razões para a utilização deste símbolo nos amuletos do coração podem ainda
ser encontradas no seio de concepções cosmológicas mais amplas, onde a ave benu se
encontrava associada às noções temporais de neheh e djet, «repetição eterna» e
«permanência eterna»,1048 respectivamente. De acordo com Westendorf, neheh estava
associado ao dia, à ordem universal, ao movimento, em suma, a Ré, ao passo que djet
era uma noção associada à noite, à imobilidade e às trevas do mundo inferior, numa
palavra, a Osíris.1049 A ave benu podia assegurar um eficaz renascimento do defunto
tanto numa existência perene, djet, como nos ciclos de renascimento, neheh. Reflectindo
a ligação às duas dimensões da eternidade, a ave benu podia ser representada tanto nos
escaravelhos do coração, que representava o coração renascido no tempo neheh, como
nos amuletos cordiformes que assinalavam a perenidade e a pureza do coração no tempo
djet. A ave afirmava-se assim como o elo entre o tempo primordial e a existência
perene. Era, por essa razão, como símbolo da união de Osíris e Ré, que o capítulo 29 B
do «Livro dos Mortos», evocativo precisamente dos poderes da ave benu, era
recomendado para os amuletos cordiformes. A presença da ave benu, em última análise,
pode afinal substituir a redacção do referido texto.
1045
Em P. HOULIHAN, The Birds of Ancient Egypt, pp. 13-16. Tal como o sol renasce quotidianamente,
também a ave benu se caracterizava pela regeneração periódica, ideia que certamente inspirou a
formulação grega da Fénix. De acordo com Heródoto, a Fénix vivia 500 anos no termo dos quais construía
um ninho de incenso onde se imolava pelo fogo. Uma nova ave renascia então das cinzas que, depois de
embalsamar as cinzas da sua existência anterior, voava para Heliópolis onde as depositava no altar do sol. O
ciclo de vida da fénix é alargado, em Tácito, para 1461 anos, o que curiosamente corresponde ao ciclo
sotíaco. Este ciclo iniciava-se quando o primeiro dia do calendário civil (de 365 dias) correspondia com o
primeiro dia do calendário solar (de 365 dias e seis horas), o que só se repetia num ciclo de 1460 anos no
calendário civil e 1461 anos no calendário solar. A estrela Sírius, Sopdet, em egípcio, aparece associada a
este ciclo porque, durante os primeiros quatro anos do ciclo a estrela aparecia no dia do Ano Novo,
evento que também coincidia com o início da cheia. Embora muito discutida, a relação entre o ciclo
sotíaco, também conhecido no antigo Egipto como o Grande Ano, e a duração de vida da ave benu nunca
foi confirmada de modo convincente. Ver R. Van der BROEK, The Myth of the Phoenix, p. 26-32.
1046
Ver anexo III 1 G3.
1047
É por essa razão que a ave passou a ser representada tanto no escaravelho do coração como nos
amuletos cordiformes, constituindo uma das formas através das quais o defunto pretendia manifestar-se
no Além, como atestam várias fórmulas do «Livro dos Mortos».Veja-se, por exemplo, o capítulo 13, 83 e
84.
1048
Do inglês «eternal recurrence» e «eternal continuity». Em R. WILKINSON, The Complete Gods and
Goddesses, p. 21. Ver igualmente E. HORNUNG, Cadmo 11(2001), pp. 7-14.
1049
W. WESTENDORF, ZÄS 100 (1962), pp. 136-144. Também em G. ENGLUND, «Gods as a frame of
reference, p. 12.
328
O naos
Os constituintes antropológicos
1050
Ver C. MONTE FARIAS, Artis 1(2002), pp. 17-30.
1051
R. WILKINSON, Temples of Ancient Egypt, p. 70.
1052
Embora habitualmente seja encarada como uma dimensão exclusiva dos defuntos, está comprovado que,
embora raras, certas passagens dos textos funerários referem que o estado de akh pode ser adquirido ainda
durante a vida terrena. Ver argumentação em G. ENGLUND, Akh, une notion réligieuse, p. 172.
329
de regeneração. De qualquer forma, o estado de akh pressupunha um «coração forte»,
uache ib,1053 o que pode explicar a associação ilustrada pelo amuleto em questão.
Num curioso processo de hiperbolização, o coração aparece representado em
dois amuletos cordiformes. Num caso, posicionado num amuleto de tipo semente,1054
constitui o único motivo decorativo, ao passo que no outro, encimado por cabeça
humana,1055 constitui parte de uma intrincada decoração onde figuram um naos, um
escaravelho e vários adoradores. Neste caso a representação do coração como um deus é
clara.
1053
«Livro das Portas», em Idem, p. 193.
1054
Ver anexo III 6.B 1.
1055
Ver anexo III 8.B 6.
1056
Ver anexo IV 3.B 5 e anexo I.I 12. Ver também anexo IV 1.B.
330
5. Epigrafia
As cartelas reais
As inscrições dedicatórias
1057
É o caso de um conjunto de amuletos com a cartela de Ramsés II, os quais dificilmente têm a mesma
origem, sendo mais provável serem provenientes de enterramentos não reais.
1058
A importância do papel que o nome desempenhava na vida e no Além justificava plenamente a sua
inscrição nos amuletos do coração, já que as atribuições antropológicas do coração e do nome se
sobrepunha sobretudo no que toca à salvaguarda da identidade. Se o nome guardava o segredo do
indivíduo e reflectia o seu poder mágico, era no coração que este poder estava guardado e era a partir
deste órgão que se manifestava em todos os níveis da sua vida. A estreita relação entre estas noções levou
a que, desde o alvorecer do Império Médio, as duas noções estivessem já associadas como documenta o
amuleto de ouro com a cartela de Mentuhotep II. Para a importância antropológica do nome ver P.
PINTO, «Nome», em Luís Manuel de Araújo (dir), Dicionário do Antigo Egipto, pp. 617-620.
1059
Esta prática estendeu-se, em certos escaravelhos do coração, à utilização de nomes de pessoas prestigiadas,
para reforçar o poder mágico do amuleto. Ver B. GOFF, Symbols of Ancient Egypt, p. 150.
1060
É essa também a interpretação que Carol Andrews faz da presença das cartelas reais nos amuletos do
coração. Ver Amulets of Ancient Egypt, p. 73.
331
simples e limitam-se à fórmula «o Osíris N», ou seja, a versão divinizada do defunto
justificado. Noutros casos, a fórmula pode estender-se um pouco mais e assumir a
seguinte configuração: djed (medu in) Usir N maé-kheru, «(palavras) ditas (pelo) Osíris
N, justificado». As funções e títulos também podem ser acrescentados à dedicatória
mas, no essencial, o objectivo destas inscrições é o mesmo: associar o nome do
proprietário ao deus Osíris.
As fórmulas mágicas
332
Cor Materiais Vaso Cornija Semente Cabeça Cabeça Disco Total
humana animal solar
Vermelho Brecha 4 1 1 128
Cornalina 41 11 4
Hematite 4 2
Jaspe 8 1 1
vermelho
Pórfiro 4 1 1
61 16 6 1
Pedras vermelhas utilizadas nos amuletos do coração
333
Se observarmos o quadro relativo ao uso de outros materiais detecta-se uma
certa prevalência do amuleto de tipo vaso na manufactura de objectos que envolvem o
uso de ouro. O vidro irisado é exclusivamente usado em amuletos de tipo vaso. Os
amuletos de tipo cornija utilizam com frequência o vidro e a faiança. A faiança foi
também muito usada na produção de amuletos encimados por cabeça humana e por
disco solar.
1061
Só excepcionalmente, como no caso dos amuletos reais de Tânis, o amuleto apresenta representações
divinas. Muito tardiamente, já durante a ocupação romana, o amuleto recebeu inusitados motivos florais
(ver anexo III 4.G2-3)
334
amuletos de tipo cornija. As versões funerárias dos amuletos de tipo vaso e de tipo
semente, pelo contrário, apresentam versões mais ou menos extensas deste texto.
335
Quadro sinóptico do aparecimento dos amuletos cordiformes e dos seus precursores (assinalados com *)
Império Império XVIII Período Época Baixa Época
Antigo Médio dinastia ramséssida Greco-
Romana
Vaso
(ouro)
Vaso
(irisado)
Vaso
(compacto) *
Cornija
Semente
(sem bordo) *
Semente
(bordo
descaído)
Disco solar
Cabeça
humana
Cabeça
animal
336
7. Conotações religiosas do amuleto cordiforme
1062
Ver C. ANDREWS, Amulets, p. 72.
337
Materiais cor Decoração Modelos divinos Intuito profiláctico
338
Com efeito, as artérias laterais, evocando a função dos condutores met, assinalavam a
função conectiva do coração e a sua capacidade para garantir a integridade da vida e a
integração cósmica do indivíduo. O simbolismo importante deste elemento acabará por
conduzir à diferenciação de artérias laterais pontiagudas, cujo recorte em forma de
orelha assinalava possivelmente a capacidade do coração para «ouvir», uma qualidade
extremamente valorizada pela ética egípcia.
O amuleto cordiforme evidencia, deste modo, um carácter fortemente críptico
associando elementos patentes na escrita hieroglífica de modo a tecer uma leitura de
cariz religioso. O vaso evocativo de Nut, associado às artérias laterais, assinalava afinal
a ligação à fonte da vida, à mãe cósmica. A mensagem espiritual veiculada por estes
objectos era de extraordinária importância. Tal como o vaso se enchia de água
regeneradora, também o coração humano, ao ouvir os preceitos maéticos, devia receber
pensamentos e emoções que o enchessem com a sabedoria que reflectia a ordem
cósmica e o ligava à mãe divina, a fonte de vida. Desse modo, instalava em si o poder
da vida, afastando, por outro lado, as forças do mal.1066 Ao fazê-lo, o coração garantia
uma protecção eficaz que se concretizava na vida terrena e se perpetuava na vida do
Além já que dessa transformação regeneradora dependia o resultado da psicostasia.1067
Os amuletos do coração de tipo vaso-compacto foram, deste modo, a grande matriz a
partir da qual emergiram todas as outras formas de amuletos. Evidenciavam, em geral,
dimensões reduzidas, apresentando uma preferência por materiais coloridos ou
cintilantes como o ouro, a cornalina (ou jaspe vermelho) ou o vidro.1068 A cor simbólica
do amuleto parece ter sido preferencialmente o vermelho e o dourado, reflectindo a
associação que se fazia entre o órgão vivo (o coração palpitante) e o sol. Usado em vida,
o amuleto era, deste modo, um objecto apotropaico que dotava o coração com a força da
1066
Para as implicações religiosas da água na simbólica do coração ver R. SOUSA, «Heart and Water in the
Religious Anthropology of Ancient Egypt», pp. 375-380. Também em Idem, «Água», em Araújo (dir),
Dicionário do Antigo Egipto, pp. 35-36.
1067
O amuleto podia ser usado como um «lembrete» para alertar o indivíduo para a necessidade de interiorizar
os preceitos maéticos, já que era dessa interiorização que resultava a sua própria salvação no tribunal dos
mortos. Um uso deste tipo assemelhar-se-ia ao das filactérias hebraicas que os textos deuteronómicos
aconselhavam para lembrarem permanentemente o fiel da necessidade de respeitar os preceitos da Lei.
1068
Munida da faceta destrutiva destas deusas, a cornalina era tida como uma manifestação da sua força
poderosa e pensava-se que podia afastar as forças maléficas. Acrescia-se a este poder a capacidade de
transformar o ardor destrutivo do fogo solar na fecundidade aquática da cheia. Esta união de opostos
concretizada na relação entre o fogo solar e a cheia pode estar relacionada com as condições geográficas do
Egipto, já que é no momento de maior calor que começa a ocorrer a cheia. Em AUFRÉRE, L´Univers Minéral,
p. 556. A função protectora da cornalina está certamente na base da recomendação patente no capítulo 29 B do
«Livro dos Mortos», deste material para confeccionar os amuletos do coração. De uma forma geral as pedras
vermelhas evocam o fogo e o sangue que, para além de garantirem a protecção contra as forças maléficas,
permitem, no Além, uma autêntica «transfusão de sangue» capaz de revitalizar o defunto com o fluxo que
garante a vida.
339
vida e da sabedoria e repelia as forças hostis. O amuleto lembrava para a necessidade de
colocar a maet no coração, como a água é colocada num vaso. Este imaginário parece
reportar-se ao valor da sabedoria (materializada em Tefnut, a humidade primordial e a
personificação da consciência do criador) na protecção do homem e na sua integração
na ordem cósmica.
O amuleto de tipo cornija constituiu uma das últimas variações do amuleto
generalizando-se somente a partir da Época Baixa. No entanto, quando surgiu, tornou-se
rapidamente no modelo dominante de amuletos cordiformes. Este tipo de amuletos, de
pequenas dimensões, desprovido de decoração complexa, era leve e parece ter
privilegiado a associação a materiais de cor azul ou verde. Embora também tivesse uma
utilização funerária, este tipo de amuletos possuía uma mensagem religiosa mais
abrangente que «actualizava» aquela que estava presente no amuleto de tipo vaso num
contexto religioso totalmente inspirado pelos valores da piedade pessoal. O amuleto de
tipo cornija comparava o coração a um naos, o reduto intocado da pureza original da
criação e, em última análise, do oceano primordial. Subjacente estava portanto, a ideia
de um nascimento divino ou de cura através do regresso à pureza da origem.
Os amuletos de tipo vaso e de tipo cornija parecem, deste modo, terem sido
concebidos preferencialmente para um uso terreno, enquanto os amuletos de tipo
semente e os de topo não estandardizado se vocacionaram para o horizonte funerário.
Uma das mais antigas especializações funerárias do amuleto cordiforme consiste no tipo
semente. Como o amuleto de tipo vaso, estes objectos evoluíram a partir de um
artefacto que já estava em voga no Império Antigo: o pêndulo usado em instrumentos
de medição.
A partir do Império Médio e sobretudo a partir do Império Novo, este pêndulo
passou a ser representado como uma variante do amuleto de tipo vaso «especializada»
no horizonte simbólico da psicostasia. A afinidade entre estas duas categorias de
objectos é patente nas dimensões, cores, materiais e na própria decoração. Os amuletos
encimados por cabeça humana, são também exemplificativos desta tendência,
constituindo, por sua vez, num desenvolvimento dos amuletos de tipo semente. Partindo
da forma básica da semente, estes amuletos representam o defunto através da sua
associação ao mistério da ressurreição de Osíris. Estas categorias de objectos são, deste
modo, fortemente alusivas à justificação do defunto no Além e procuravam propiciar a
psicostasia e a justificação do defunto, respectivamente.
340
O amuleto encimado pelo disco solar, por seu lado, constitui um
desenvolvimento do amuleto de tipo cornija ilustrando o milagre do renascimento do sol
quando emerge da Duat.
341
Capítulo III: Aplicações utilitárias e rituais do amuleto cordiforme
1069
Ver anexo IV 1. A 1-4.
1070
Ver anexo IV 1. A 3.
1071
Ver anexo IV 1.A 5. A lista está disposta em quadriculas regulares colocadas em colunas verticais de cinco
amuletos. Em cada uma delas o escriba apresenta o nome do amuleto, o desenho acompanhado do hieróglifo
nub, «ouro». Não parece ter havido a preocupação de classificar todos os amuletos por categorias homogéneas.
A lista inclui, entre outros, serpentes, sistros, abutres, ceptros reais, o falo, o pilar djed, a ave ba, o olho udjat,
o escaravelho e muitos outros. Dos 75 amuletos representados, 43 encontram-se entre os objectos representados
nos frisos de objectos que decoravam os ataúdes do Império Médio (ceptros, armas, utensílios, colares,
amuletos em forma de serpente ou abutre). São, portanto, objectos reais colocados no túmulo. Os restantes
342
economicista pudesse justificar a execução destas listas, que eram aplicadas na múmia,
a verdade é que também foram executadas compilações deste tipo em materiais nobres,
como em plaquinhas de ouro.
ligam-se a outras crenças funerárias relacionadas com o culto de Osíris (como as figuras de divindades, a barca
de Sokar, as partes do corpo humano, os amuletos do «Livro dos Mortos», como a coluna uadje, o pila djed, o
colar usekh, etc). Uma vez que a representação do amuleto cordiforme está ausente nos frisos de objectos do
Império Médio, a sua representação só pode relacionar-se com o simbolismo osiríaco. Em J. CAPART, «Une
liste d´amulettes», ZÄS 45 (1908-09), pp.14-22.
1072
Ver anexo IV 1. A 15.
1073
Ver anexo IV 1. A 14.
1074
Ver anexo IV 1. A 6.
1075
Ver anexo IV 1. A 7.
343
com o disco solar. É efectivamente do rei que partem as tiras de contas (representavam
os raios de luz) e ligam o sol aos corações (dos súbditos). Embora executados para
Tutankhamon, não há dúvida que, de um ponto de vista simbólico, estes brincos
veiculavam na perfeição o ideal político e religioso da reforma amarniana.
Também no túmulo de Tutankhamon foram encontrados dois peitorais que
encerram uma importante mensagem simbólica alusiva ao coração.1076 Estes peitorais
revestem-se de uma importância particular uma vez que se encontravam aplicados
directamente sobre a múmia. Ambos ladeavam um peitoral central, colocado
directamente sobre o peito.1077 O peitoral da direita consistia num belo falcão encimado
por um disco solar, ao passo que o da esquerda consistia num escaravelho alado
encimado pelo disco lunar.1078 Trata-se evidentemente de uma evocação das luminárias
celestes. Nada disto, porém, teria relevância para o nosso estudo não fosse o facto de
cada um destes peitorais apresentar como contrapeso um amuleto do coração. Moldados
de forma idêntica, estes amuletos, de tipo semente, são feitos de cornalina e são
inteiramente revestidos por uma placa de ouro decorada com a cartela real. A cornalina,
alusiva à transmutação do fogo solar em água viva, parece reforçar a leitura simbólica
mais imediata que consiste na interpretação destes objectos como veículos para a
integração cósmica da consciência do rei, através da sua associação aos ciclos de
renovação do sol e da lua que, no fundo, evocam as duas dimensões da existência no
Além: a saída para o dia e a regeneração na Duat.1079
Uma utilização mais corrente dos amuletos do coração, sobretudo os encimados
por cabeça humana, consiste na sua aplicação em peitorais naóforos. Este uso permite
vislumbrar mais nitidamente o conteúdo simbólico destes belos objectos já que se
inserem num programa decorativo detalhado. Num peitoral ramséssida, o amuleto está
implicitamente associado ao percurso nocturno do sol, uma vez que se encontra sobre
uma barca solar, ladeado pelas deusas Ísis e Néftis.1080 A ave benu, representada sobre o
corpo do amuleto, indica que o peitoral ilustrava a regeneração do sol nocturno.
1076
Ver anexo IV 1.A 8.
1077
Trata-se do famoso peitoral que representa o olho udjat ladeado pelas deusas Nekhbet e Uadjet.
1078
Note-se que o falcão está posicionado sobre o lado direito da múmia, ao passo que o escaravelho
lunar se apresenta do lado esquerdo, ou seja, ambos adoptam a posição convencional do sol e da lua,
associado ao olho direito e esquerdo, respectivamente, do deus solar.
1079
A leitura simbólica dos objectos depositados na múmia de Tutankhamon tem proporcionado um rico campo
de pesquisa. Com efeito a deposição de mais de cento e quarenta amuletos na múmia real, em cerca de oito
camadas sucessivas não parece resultar do acaso mas sim de uma sequência ritualizada, em que o valor mágico
do amuleto é escolhido em função da região corporal que se pretende proteger. Ver J.-P. CORTEGGIANI,
L´Égypte des Pharaons au Musée du Caire, p. 116.
1080
Ver anexo IV 1. A 10.
344
O peitoral de Kiemneferui apresenta uma composição idêntica. 1081 O amuleto do
coração, delicadamente confeccionado, foi colocado sobre a barca solar e ladeado pelos
vultos mumiformes de Ré e de Osíris. O requintado objecto ilustra, desta feita, a
associação do defunto ao principal mistério da religião egípcia, a união de Ré e de
Osíris, realizada quotidianamente na Duat.1082 Trata-se portanto da ideia fulcral do culto
funerário que aqui é associada ao amuleto do coração, garantindo a participação do
defunto na eterna renovação proporcionada pela viagem do sol ao mundo inferior.
Num outro peitoral, também do período ramséssida, o amuleto foi representado
numa temática claramente osiríaca, sendo enquadrado entre uma representação do
defunto e outra do deus Osíris. Trata-se, neste caso, de uma alusão à justificação do
defunto e à sua transformação num Osíris.1083
345
A aplicação dos amuletos cordiformes em instrumentos de medida não se ficava por
aqui. Na construção de edifícios eram usados instrumentos que também recorriam ao
amuleto do coração para nivelar as superfícies. Dois tipos de níveis são conhecidos. O
nível de forma triangular era aplicado em superfícies horizontais e era constituído por
duas peças de madeira unidas em ângulo recto.1086 Uma pequena trave, com uma
marcação a meio, unia as duas tábuas formando uma espécie de hipotenusa entre elas. O
fio de prumo, suspenso no ângulo recto deste triângulo, era constituído por um amuleto
do coração, em geral em forma de semente sem bordo. Quando o nível era colocado
numa superfície rigorosamente horizontal, o fio de prumo tocava na marcação da trave,
caso contrário, inclinava-se para um dos lados dessa marcação, acusando assim os
desvios.1087 Outro tipo de nível foi concebido para aperfeiçoar as superfícies
verticais.1088 Neste caso, o fio de prumo era suspenso na extremidade de uma tábua com
duas saliências de madeira e, caso o amuleto (de tipo semente) se inclinasse para os
lados, alertava para defeitos de construção.1089 O fio de prumo também era usado em
certos relógios de sol.1090 O relógio era constituído por uma tábua de madeira que
necessitava de estar rigorosamente paralela ao chão. Era o fio de prumo, também com a
forma de um amuleto do coração de tipo semente, que permitia colocar o instrumento
em posição correcta para, em seguida, determinar as horas através da sombra projectada
na escala. Por vezes, o fio de prumo partia de uma estatueta de babuíno, numa clara
alusão a Tot.
Em qualquer destes casos, a utilização do amuleto do coração evoca
irresistivelmente os atributos de Tot relacionados com as medições e o seu registo.
Patrono do conhecimento em geral, Tot personificava a verdade constituindo o modelo,
por excelência dos escribas.1091 Dado que o coração era a sede da inteligência e da
consciência, o recurso ao amuleto cordiforme, para além de se adaptar ao uso
pretendido, constituía um repto permanente ao utilizador destes instrumentos,
lembrando-lhe que, ao fazer a medida, devia alinhar-se com a ordem cósmica, de modo
a que as suas obras se alicerçassem na verdade, na perfeição e na harmonia. Neste
contexto, o amuleto era alusivo à função de Tot como vigilante da ordem cósmica.
1086
Ver anexo IV 1.B 6.
1087
E. HORNUNG e B. BRYAN, The Quest of Immortality: Treasures of Ancient Egypt, p. 148.
1088
Ver anexo IV 1. B 7.
1089
J.-P. CORTEGGIANI, L´Égypte des Pharaons au Musée du Caire, pp. 132-133.
1090
Ver anexo IV 1. B 8.
1091
R. WILKINSON, The Complete Gods and Goddesses, p. 216.
346
3. O amuletos do coração em objectos rituais ou simbólicos
1092
Vários destes objectos são descritos em A. VARILLE, «La grande porte d´Apet À Karnak», ASAE 53
(1956), pp. 79-118. No Museu Egípcio de Berlim, foi feita uma reconstituição rigorosa por Ludwig Borchardt
que apresentamos em anexo. O leão desliza e sai da parede através de uma abertura em forma de pilone. Um
coração está pendurado por uma cadeia ao leão. Ver anexo IV 1.C 1-2.
1093
Ver R. WILKINSON, The Complete Temples of Ancient Egypt, p. 68.
347
do conhecimento e da verdade. O respeito pela ordem cósmica era, deste modo, a base
para o contacto com o deus. Através das várias portas delimitava-se um percurso
iniciático, garantido pela pureza ritual, pelo conhecimento sagrado e pelo valor moral
do candidato através do qual se regulava o contacto com a divindade. As portas do
templo estavam, deste modo, fortemente associadas ao imaginário da iniciação. Os
espaços mais secretos do templo estavam reservados apenas aos detentores do
conhecimento sagrado, que exerciam o ritual divino e cuidavam da imagem do deus.
À medida que ia progredindo na sua iniciação, o sacerdote egípcio flanqueava as
portas, que até aí permaneceram fechadas, e entrava na companhia do deus junto do
qual os mistérios do cosmos lhe eram revelados.1094 Uma vez que o acesso a um novo
patamar da iniciação implicava um «exame» dos méritos e da pureza do candidato é
natural que esta passagem fosse materializada precisamente em torno das portas
monumentais. Recordemos aqui que até o material usado nestas portas, a madeira da
árvore ache, tinha um simbolismo específico que se reportava à protecção do sol e a
sua capacidade para afastar do coração as influências nocivas.1095
No templo de Opet, em Karnak, uma inscrição reforçava a função mágica do
ferrolho e rezava assim:
Eu sou a esposa daquele que aparece revestido de ouro, eu sou a esposa de Kanefer. Eu sou o ferrolho
da grande porta da morada do meu senhor. Eu abato quem se aproximar dele. Eu sou o grande uraeus, a
senhora terrível, que afasta o adversário. Eu abato com o machado o inimigo vil. (…) Eu como os seus
corações, devoro os seus fígados no meu nome de Sekhmet-Mehit. Trago o seu sangue e não os deixo subir
para este templo de eternidade.1096
De acordo com esta inscrição a porta do templo era defendida pela temível
deusa leonina Sekhmet. A função da leoa divina junto da porta relaciona-se certamente
com a função de vigilância tradicionalmente atribuída ao leão. Baseado na reputação
simbólica que este animal usufruía entre os sacerdotes egípcios, Horapollo escreveu:
1094
Como vimos na segunda parte do nosso trabalho, o facto de o Além ter sido encarado como um templo,
levou a que o simbolismo iniciático das portas do templo tivesse inspirado a literatura funerária a elaborar
textos relacionados com a propiciação da passagem das portas do Além. Esta passagem revestia-se de
grandes perigos, já que as portas do Além eram guardadas por demónios ameaçadores que aniquilavam
todos os que não fossem dignos dessa passagem. Também nos poemas de amor, com uma aparência mais
mundana, mas igualmente marcados por concepções religiosas, a porta da casa da amada é louvada, pelo
jovem, como se fosse uma divindade de forma a conquistar a sua cumplicidade para os encontros amorosos.
Ver Papiro Chester Beatty I (III, 7) em R. SOUSA, Doces Versos, p. 101.
1095
Ver V. LORET, «Quelques notes sur l´arbre âch», ASAE 16 (1916), pp. 33-51.
1096
Adaptado da versão francesa proposta em A. VARILLE, «La grande porte du Temple d´Apet à Karnak»,
ASAE 53 (1956), pp. 90-91.
348
Para escrever o que vigia, o leão, desenham uma cabeça de leão, pois o leão fecha os olhos acordado e
abre-os a dormir, o que é sinal que faz uma boa vigilância. É por isso que colocam os leões nos batentes dos
templos para simbolizar o guardião.1097
Horapollo estabelecia, deste modo, uma relação directa entre os ferrolhos com
forma de leão e a vigilância protectora garantida pelo animal mitológico que a inscrição
da porta de Opet identifica como sendo uma manifestação de Sekhmet-Mehit.
Assim contextualizado no simbolismo do templo, o funcionamento mágico do
ferrolho pode agora ser compreendido sabendo que era o coração a peça que comandava
este mecanismo. Efectivamente era o amuleto do coração que punha a engrenagem em
acção e levava a que o guardião leonino saísse do seu naos embutido na pedra,
bloqueando o caminho, ou aí permanecesse escondido, permitindo nesse caso o acesso
do neófito ao interior do templo. Ficava assim ilustrado na arquitectura do templo que a
chave da iniciação estava no coração de cada um. O leão encarregar-se-ia de «devorar»
todos os que não estivessem preparados, mas não se oporia à passagem dos que
tivessem no seu coração o conhecimento e a pureza necessária para prosseguir o
encontro com a divindade.
Tal como no templo da Duat, a psicostasia permitia «ver o deus». Também aqui,
nos templos divinos, é possível que fosse desempenhado um ritual de passagem idêntico
através do qual o candidato era «avaliado». É interessante constatar que a corrente à
qual o amuleto está preso faz lembrar justamente o dispositivo usado nas balanças da
psicostasia. A imagem poderia, deste modo, traduzir a função de uma «psicostasia»
ritual que, no contexto da iniciação do templo, separava o indivíduo das suas faltas. A
recitação de uma versão da confissão negativa usada no contexto da iniciação sacerdotal
poderia acompanhar este tipo de ritual, como sucedia na psicostasia encenada na Duat.
Um testemunho precioso da função simbólica do ferrolho leonino encontra-se na
ilha de Philae, na porta de Adriano.1098 Aí é representado o funcionamento da porta da
seguinte forma. O faraó apresenta-se diante da porta carregando um misterioso cofre,
um símbolo que normalmente assinala um estado de transformação. Adoptando uma
atitude semelhante à que apresenta na psicostasia, Tot procede a um registo enigmático
e comunica-o a Ísis que detém a responsabilidade de manusear o ferrolho. Colocando a
mão sobre a corrente que sustém o amuleto cordiforme, a deusa activa o funcionamento
1097
Hierogyphica (I, 19). Baseado na versão francesa apresentada em Idem., p. 86.
1098
Ver anexo IV 1.C 3.
349
do leão representado no batente da porta. Em seguida são representadas três outras
portas que conduzem o faraó ao interior da terra. Entre a última porta e o interior da
terra foi representada uma cripta no interior da qual se desenharam, sob a vigilância de
Ísis, importantes símbolos cosmológicos: Mergulhado na água da cheia de onde brotam
flores de lótus, o crocodilo alusivo a Sobek transporta a múmia de Osíris sobre o dorso.
Sobre as flores de lótus um disco solar colocado sobre o signo do horizonte encerra a
representação de Osíris colocado sobre um trono e a de Horpakhered, representado
sobre uma flor de lótus. Finalmente no registo superior foram ainda representados o sol,
a lua e as estrelas. Não há dúvida que a complexa representação ilustra a revelação dos
mistérios da criação ao faraó e a sua associação aos grandes ciclos responsáveis pela
regeneração do cosmos. Esta revelação era feita numa cripta do santuário em ligação
íntima com a terra, talvez num osireion como o de Taharka ou o de Abido. Era a deusa
que, accionando o ferrolho leonino, permitia a passagem do neófito para o interior do
templo e lhe facultava a visão dos seus mistérios. Esta passagem estava, no entanto,
dependente do misterioso registo feito por Tot que, provavelmente, se reportava ao
exame da consciência do neófito, razão pela qual a deusa é representada a manusear a
corrente que sustém o amuleto cordiforme.
Num outro plano de leitura, o leão e o amuleto do coração podem também
ilustrar a relação desejada entre o coração ib e hati para garantir a iniciação. O coração
hati, simbolizado no leão, sendo a sede da consciência pessoal e terrena, deveria
permanecer vigilante para garantir a pureza do coração ib, a sede da consciência divina
e impessoal. Esta atitude «abria» as portas da Duat ao neófito e possibilitava a revelação
dos mistérios da divindade.
Os vasos cordiformes
350
rainha Hatchepsut.1099 Já da XIX dinastia, proveniente de Abido, conhecemos um
conjunto de onze vasos idênticos que constituíam uma dádiva de um sacerdote de Osíris
a esta divindade.1100 Na pança destes objectos, o sacerdote foi representado diante do
deus em atitude de oração. Como estes vasos não apresentavam, no momento da sua
descoberta, qualquer vestígio de armazenamento de substâncias, a sua função parece ter
sido a de receber água, constituindo assim uma ilustração bem concreta do ideal de
«estar na água do deus», com todas as bênçãos que daí resultavam.
Outro tipo de vasos parece ter sido usado como almofariz.1101 Substâncias
aplicadas na farmacopeia e em preparações diversas eram aí mitigadas e transformadas.
Com a mesma forma mas como dimensões muito maiores, certos vasos cordiformes
podem também ter sido usados para conter a água usada nas abluções rituais.1102 A
comparação com os ferrolhos monumentais leva-nos a associar estes vasos
monumentais com as gárgulas leoninas que recolhiam a água das chuvas. 1103 Em vez de
simplesmente atiradas para o chão, estas raras e preciosas águas poderiam assim ser
recolhidas nestes vasos de modo a serem usadas nas libações e purificações rituais.
Além do propósito prático (certamente pouco decisivo, dada a raridade das chuvas no
Alto Egipto) poderia insinuar-se um interesse pedagógico e simbólico uma vez que a
relação entre a gárgula e o vaso poderiam ilustrar, do mesmo modo como o ferrolho
leonino e o amuleto cordiforme, o dinamismo da iniciação. Tal como o leão do ferrolho,
o leão representado na gárgula era alusivo à vigilância do espaço sagrado. Em certas
gárgulas foram encontradas inscrições alusivas à função vigilante do leão:
Também aqui a relação entre o leão e o vaso cordiforme poderia ter uma
mensagem «iniciática»: a atitude vigilante do coração hati, simbolizado no leão,
vivificava o coração ib com a água divina que descia do céu para o revitalizar e
transformar. Os vasos cordiformes poderiam, deste modo, constituir uma aplicação
ritual da ideia latente nos amuletos do coração de tipo vaso, segundo a qual o coração se
assemelhava a um vaso devendo ser enchido pela água purificadora da divindade. O
1099
Ver anexo IV 1.C 4.
1100
Ver anexo IV 1.C 5.
1101
Ver anexo IV 1.C 7.
1102
Ver anexo IV 1.C 8-9.
1103
Ver anexo IV 1.C 10-11.
1104
WIT, «Inscriptions des lions-gargouilles du temple d´Edfou», CdE 57 (1954), p. 30.
351
vaso cheio desta água concretizava o ideal espiritual de «estar na água do deus» e assim
ser dotado da sua centelha divina.
352
Capítulo IV: As representações do amuleto cordiforme
1105
A arqueologia comprova a valorização deste amuleto pela casa real de Tebas já que, no alvorecer da
XVIII dinastia, a múmia de Ahmés, apresentava um amuleto do coração em lápis-lazúli. A múmia de Ah-
hotep, por outro lado, forneceu uma pulseira com um amuleto do coração.
353
objecto, atribuindo-lhe na decoração do seu túmulo (TT 96) uma grande importância
simbólica.1106 Já no reinado de Tutmés IV, Maherpa, o «portador do leque» e homem da
confiança do rei (foi uma criança do kep), apresenta o amuleto no seu magnífico ataúde.
No reinado de Amen-hotep III, várias são as individualidades associadas ao amuleto.
Iuia, o pai da rainha Tié, apresenta títulos importantes como o de «príncipe hereditário»,
«portador do selo real», «favorito», «superior dos rekhit» e «pai do deus». Esta grande
individualidade faz-se retratar com o amuleto no «Livro dos Mortos» e em duas
estatuetas funerárias. Khaemhat, um escriba real que exerceu funções durante o mesmo
reinado, apresenta no seu túmulo várias representações do objecto. 1107 Kha, um
arquitecto de Deir el-Medina, ostenta um amuleto cordiforme num exemplar do «Livro
dos Mortos». Também Ipuki, um «chefe dos escultores reais» foi representado com um
peitoral alusivo ao coração. Finalmente Ramés, governador de Tebas e vizir, apresenta o
amuleto do coração num relevo em que é representado com os atributos da sua função.
O período ramséssida é um dos mais bem documentados no que diz respeito ao
uso do amuleto cordiforme por parte dos súbditos reais. Rai, escriba real e supervisor
dos domínios de Horemheb e de Amon, foi contemporâneo de Seti I e apresenta o
amuleto numa pintura do seu túmulo. Também sob o reinado de Seti I, Amenemopet
exerceu funções de «chefe dos administradores dos domínios de Amon». O seu túmulo
apresenta várias representações do amuleto. Já sob o reinado de Ramsés II, Userhat,
«sacerdote do culto funerário de Tutmés I» apresenta o amuleto numa pintura mural do
seu túmulo. Meriptah, um escriba real, também apresenta o amuleto numa estátua.
Djehutimés, um «inspector do gado» apresenta uma estatueta funerária com o referido
amuleto. Ani, «escriba real e inspector das oferendas de todos os deuses» apresenta um
amuleto no seu famoso «Livro dos Mortos». Também no contexto de Deir el-Medina
vários são os «Servidores de Set Maet» que se fazem retratar com o amuleto. Neferabu,
Nebenmaet e Irinefer apresentam o amuleto em representações tumulares relativas a
cenas do Além.
Sintomático é o facto de, na XXI dinastia, serem os sacerdotes de Amon a usar o
amuleto cordiforme. O sumo pontífice de Amon, Pinedjem II, apresenta, num dos
ataúdes, um grande amuleto do coração. No âmbito do túmulo colectivo de sacerdotes
1106
O grupo escultórico colocado em Karnak representa-o com um colar com dois corações e o mesmo
objecto é muitas vezes representado no seu túmulo em contextos, entre outros, relacionados com
cerimónias de purificação. No mesmo túmulo, Sennefer também é dotado com um amuleto cordiforme
funerário que integra o conjunto das suas posses no Além.
1107
Num dos grupos escultóricos evidencia um duplo coração ao passo que nos relevos que decoram as
paredes do túmulo evidencia um peitoral com o coração.
354
de Amon, de Bab el-Gassus, em cerca de uma dezena de enterramentos foram
identificadas representações do amuleto na região do peito dos ataúdes. Entre os
elementos masculinos a usarem este motivo decorativo no ataúde contam-se Padiamon e
Pakharu. Unet, Direpu e Ikhi são cantoras de Amon que apresentam o mesmo objecto
no peito do ataúde. Outras mulheres, todas cantoras de Amon, ostentam, pela primeira
vez, o referido amuleto nas vinhetas que ilustram os papiros mitológicos ou as cenas
que decoram os ataúdes. É o caso de Nesitanebetacheru,1108 mas também de Unet que
também o apresenta na cena da psicostasia. Apesar destes casos pontuais o amuleto
continuava a ser um objecto predominantemente associado aos homens. Nesipautitaui,
escriba e sacerdote de Amon, Khonsumés, «superior dos arquivos de Amon», Amen-
hotep, sacerdote de Amon, Mut e Khonsu, Nesipakhachuti, «inspector dos celeiros do
templo de Amon», Hori, «chefe dos armazéns de Amon», são alguns exemplos de
sacerdotes que se fizeram representar com o amuleto do coração em papiros funerários.
Aparentemente fora do círculo dos sacerdotes de Amon, possuímos raras alusões ao uso
do amuleto cordiforme, como é o caso de Amenemsaef, «chefe dos condutores de
caravanas».
É nesta época que começam a surgir representações divinas que atestam o uso do
amuleto por parte de entidades supra-humanas. Concomitantemente, o amuleto quase
deixa de ser representado em personalidades humanas, muito embora as evidências
arqueológicas atestem, a partir da Época Baixa, um uso sem precedentes do amuleto por
uma grande parte da população egípcia.1109 Quando existem, as representações do
amuleto associadas aos humanos circunscrevem-se praticamente à decoração dos
sarcófagos ou das máscaras funerárias.
Detecta-se deste modo, uma evolução bastante significativa no uso do amuleto
cordiforme. Os dados obtidos sugerem que, até à XVIII dinastia, o objecto apresentava,
sobretudo no contexto tebano, uma forte associação à casa real, conferindo um estatuto
diferenciado ao rei e à família real. A partir do reinado de Amen-hotep II, reflectindo a
política de alianças com o funcionalismo que a apoiava, a realeza usou o amuleto
cordiforme como sinal distintivo para assinalar os homens de confiança do rei e assim
1108
Ver anexo II M a) 7.
1109
Muitos enterramentos revelam que o amuleto continuou a ser usado pela elite. É o caso dos túmulos
de Djedhor, Horudja, Menuaibré, Pedachtar, Uaseru e Iufaá, só para citar alguns nomes. Apesar da sua
importância ser notória, como atesta a dimensão e a monumentalidade dos enterramentos, as funções
destes funcionários são desconhecidas. No entanto, a abundância destes objectos é tal que é inegável que
o amuleto conheceu uma popularização crescente nesta época, estendendo-se a uma faixa da população.
355
consolidar uma base de apoio sólida capaz de se contrapor ao poder emergente do clero
tebano de Amon.
Uma vez que simbolizava uma inadmissível partilha da centelha divina pelos
súbditos reais, esta condecoração foi aparentemente abandonada por Akhenaton. No
período ramséssida, quando voltam a aparecer as representações do amuleto cordiforme,
o seu significado parece destituído de conotações políticas e, embora se
circunscrevessem ao Além, aparecem em situações mais diversificadas. Na XXI
dinastia, o amuleto é usado por todo o clero tebano de Amon. Daí em diante, o amuleto
deixa de ser representado por humanos para ser usado sobretudo pelos deuses meninos.
1110
Ver anexo IV 4.B 2.
1111
Ver anexo IV 2.A 3.
356
coração, ladeado por serpentes sagradas, é encimado por um disco solar. A composição
decalca um tipo de peitoral real bem conhecido que consiste na representação da cartela
ladeada por duas serpentes solares. A identificação entre a cartela (que assinala a
divinização do rei) e o coração encimado pelo disco solar, tinha como intuito assinalar a
consciência divina do rei. A elaborada peça é usada pelo soberano no contexto da
oferenda ritual dos produtos exóticos adquiridos através da expedição enviada a Punt.
Trata-se, portanto do culminar do ciclo de representações relacionadas com a expedição
de Punt, que domina todo o programa decorativo da colunata meridional do segundo
terraço. Ocupando, em altura, toda a parede, esta cena final apresenta o rei diante do
santuário de Amon, constituindo o culminar da expedição. Ao garantir o culto divino, o
soberano assegurava a função de intermediário com os deuses. O amuleto cordiforme
parece, neste contexto, ser o sinal tangível do estatuto divino do faraó e alerta, para a
possibilidade do amuleto estar relacionado com cerimónias reais que asseguravam a sua
função como intermediário divino. A iconografia vincadamente solar que envolve o
amuleto representava provavelmente a consciência iluminada do faraó e pode constituir
um raro testemunho da iniciação real. O curioso é que, no reinado de Hatchepsut,
também conhecemos uma alusão escrita à cerimónia de iniciação real:
Eu fiz este (monumento) com um coração amante para o meu pai Amon
Iniciada nos segredos da origem,
Inteirada do seu poder benéfico
Nada esqueci do que ele ordenou
A minha majestade conhece o seu poder divino
Eu agi sob o seu comando
Foi ele que me conduziu (...)
Foi ele quem me deu orientações
Eu não dormi por causa do seu templo,
Nem me afastei do que ele comandou
O meu coração era Sia diante do meu pai,
Eu entrei nos planos do seu coração
Eu não voltei as costas à cidade do Senhor de tudo (...)1112
O amuleto encimado pelo disco solar evocaria assim a iniciação da rainha nos
mistérios divinos e a sua capacidade para empreender as realizações comandadas pelo
1112
Inscrição de Hatchepsut, obelisco norte de Karnak, em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 27. A versão
portuguesa é baseada na tradução inglesa.
357
deus.1113 É precisamente neste contexto que o amuleto é figurado, assinalando a eficácia
da rainha para empreender a expedição que assegurava a manutenção do culto divino.
O amuleto cordiforme solar constitui, deste modo, uma versão especialmente
criada para exaltar o carácter divino do faraó e assinalar a iniciação real. O amuleto, que
se complementava com a imagem do disco solar, traduziria, a identificação do faraó
com a consciência do deus supremo e a sua subsequente divinização e iluminação da
consciência.
É muito interessante constatar que o amuleto de iluminação também tenha sido
usado na decoração dos ataúdes da XXI dinastia.1114 Verifica-se, de facto, a apropriação
de um objecto que, na XVIII dinastia, possuía fortes conotações com a realeza e que, do
ponto de vista simbólico, fazia alusão ao despertar de uma consciência iluminada. É, no
entanto, interessante constatar que, em Tutmés III-Hatchepsut este acontecimento
justificava o estatuto divino do faraó e tinha lugar em vida ao passo que, entre os
sacerdotes de Amon era um atributo exclusivamente funerário e estava conotado com a
ressurreição.
1113
Certamente em virtude da difícil ascensão ao trono a rainha parece ter realçado o valor simbólico das
cerimónias de iniciação de modo a afirmar a sua legitimidade para ocupar o trono do Egipto. É
certamente essa a razão que explica as referências escritas e pictóricas desta cerimónia.
1114
O peitoral representado na cobertura de múmia de Unet tem uma forma rectangular e apresenta, no
centro, um coração negro, encimado por um disco solar vermelho, ladeado por duas serpentes, também
elas encimadas por discos solares. Sobre a tampa do ataúde de Unet foi representada uma composição
idêntica mas desta feita sem recurso ao peitoral naóforo. Neste caso as serpentes envolvem o amuleto do
coração que, por sua vez, está preso a um colar de contas.Ver anexo IV 2. C 13-16.
1115
Ver anexo IV 2.B 1.
358
duplo amuleto «cardíaco» teria sido um privilégio concedido pelo rei aos seus
funcionários mais excepcionais. O facto é que Sennefer também se fez representar com
este duplo amuleto no seu túmulo da necrópole de Cheikh Abd el-Gurna (TT 96).1116
Nas representações mais detalhadas do seu túmulo observa-se uma coloração diferente
nos dois corações que compõem o amuleto, sugerindo a evocação de materiais distintos
como o ouro e a prata. Além disso, no referido túmulo, os dois corações estão
normalmente decorados com as cartelas reais de Amen-hotep II.1117 Todos estes indícios
apontam efectivamente para a possibilidade do duplo amuleto cardíaco ter sido uma
condecoração real.
Apesar de raramente representado, este objecto surge pelo menos num outro
túmulo da XVIII dinastia, desta vez na esplêndida sepultura de Khaemhat (TT 57),
escriba real e inspector dos celeiros do Alto e do Baixo Egipto sob o reinado de Amen-
hotep III.1118 Neste túmulo, Khaemhat faz-se representar com uma ampla variedade de
amuletos cordiformes1119 entre os quais se destaca um amuleto duplo gravado sobre o
seu peito onde o defunto foi representado em configuração mumiforme.1120
Muitos altos funcionários fizeram representar o amuleto nos seus ataúdes e
sarcófagos. Neste contexto, o amuleto é representado suspenso sobre um fio de contas
grosso disposto, em geral, sobre um largo colar usekh. As mãos do defunto ladeiam o
amuleto e, em alguns casos, ostentam os signos djed e «nó de Ísis», tjet.1121
Também na XVIII dinastia se começou a gravar o amuleto cordiforme sobre as
estatuetas funerárias. A razão para esta incidência deve estar relacionada com uma das
funções destas estatuetas, que era a de constituir uma réplica da múmia ou do sarcófago
1116
Ver anexo IV 2.F 4.
1117
Apenas num caso apresenta um nome distinto: trata-se de Alexandre, uma «usurpação» tardia
resultante certamente da visita de um viajante estrangeiro.
1118
Ver anexo IV 2.B 2.
1119
Khaemhat apresenta o amuleto cordiforme simples, integrado num peitoral com os signos djed e «nó
de Ísis» e ainda um duplo amuleto do coração. Ver também anexo IV 2.F 2 e 2.F 5.
1120
A representação faz parte de um grupo escultórico composto por si e por um outro «colega» de
profissão. O critério para a constituição destes grupos não é claro e provavelmente obedeceu apenas à
vontade dos seus possuidores. O grupo de Sennefer representa-o com uma mulher e a filha, ao passo que
Khaemhat está acompanhado por um colega, Imhotep, também ele escriba real.
1121
O mais antigo exemplar deste tipo de representações remonta ao reinado de Tutmés III e foi
construído para Amen-hotep, o «superior dos construtores de Amon» (Ver anexo IV 2.C 1.). Maherpa,
amigo íntimo do rei Tutmés IV, foi outra grande personalidade a ser recompensada com uma destas
representações (Ver anexo IV 2.C 2). O sarcófago de Khai, um alto funcionário do rei sepultado na
Núbia, actualmente conservado no Museu de Elefantina, apresenta também um grande amuleto
cordiforme (Ver anexo IV 2.C 3). Era, com certeza, um representante da coroa nas fronteiras meridionais
do reino.
359
antropomórfico.1122 Do túmulo de Iuia é proveniente uma interessante estatueta
funerária do defunto sob a forma de uma ave ba que apresenta um amuleto cordiforme
ao peito.1123
Considerando estes elementos parece aceitável admitir que, na XVIII dinastia, o
amuleto cordiforme constituiu, a partir do reinado de Hatchepsut, um atributo muito
conotado com a distinção real. Talvez acompanhando uma política de estreitamento de
alianças com o funcionalismo real, que foi espoletado por Hatchepsut e Tutmés III
como forma de conquistar apoios para a legitimação do seu poder, o amuleto cordiforme
de sabedoria começou a ser utilizado como uma condecoração real destinada a
distinguir os funcionários pertencentes a um círculo íntimo do rei, que ideologicamente
se associavam na sua missão de realizar a maet.
Particularmente expressivo desta gama de objectos é o amuleto duplo. Georges
Legrain, num artigo publicado há já cem anos, chamou a atenção para o facto deste
amuleto constituir uma transposição iconográfica do termo ibui (ibwi). A tradução desta
palavra não é consensual. Pode ser traduzida como um superlativo («coração dos
corações») ou «ícone» ou «imagem», no sentido de uma imagem divina. Com efeito, na
terminologia religiosa, o termo pode ser usado da seguinte maneira: «Sokar é a imagem
(ibwi) de Amon».1124 Um dado interessante é que em Karnak os faraós possuíam uma
«imagem», ibui, que recebia um culto particular.1125 É possível que os funcionários que
apresentam esta condecoração estivessem envolvidos na manutenção de um tal culto ao
rei. Nesse caso seriam, eles próprios, uma «imagem» do rei para os súbditos que não
tinham a possibilidade de ver directamente o faraó. É claro que essa distinção os dotava
de uma grande veneração e respeitabilidade.
1122
Efectivamente a estatueta funerária constituía um «duplo» da múmia e era a sua miniatura (Ver L.
ARAÚJO, Estatuetas Funerárias Egípcias da XXI dinastia, p. 108). Inicialmente, a função destas
estatuetas deve-se ter limitado a esta função, só posteriormente vindo a adquirir a função de substituir o
morto nos trabalhos do Além o que levou a inscrever a fórmula 6 do «Livro dos Mortos». As primeiras
destas miniaturas remontam à XI dinastia e a sua criação pode relacionar-se com a obrigatoriedade,
introduzida no Império Médio, de prestar trabalho em obras públicas (ver I. SHAW (dir), The Oxford
History of Ancient Egypt, p. 182. Embora, infelizmente, a maior parte destas estatuetas não apresentem os
títulos das personagens representadas, uma delas pertenceu a Iuia, uma das mais eminentes
individualidades do reinado de Amen-hotep III (Ver anexo IV 2.D 1). O requinte e a qualidade das
restantes peças devem-nos alertar para o estatuto igualmente elevado dos seus proprietários (Ver anexo
IV 2.D 3-4.).1122
1123
Ver anexo 2.D 2.
1124
Estátua 409 do esconderijo de Karnak, em G. LEGRAIN, «Le mot ibwy, image, icone», RT 11
(1905), p. 181.
1125
A estátua 122 do esconderijo de Karnak menciona um «sacerdote puro do ibwi do rei Osorkon»: «Eu
fiz o ibwi de Djeserkaré, o justificado, em ouro e todas as pedras preciosas (…)» Nesta passagem o ibwi
era uma imagem divina, do deus ou de um rei divinizado.
360
Constituindo inicialmente um sinal de distinção reservado à família real, o
amuleto pode ter sido usado como uma condecoração que assinalava o mérito do
funcionário e a confiança que gozava junto do rei. Sendo um importante símbolo de
sabedoria, virtude e de estatuto social, estes amuletos eram levados para o Além como
prova da capacidade para realizar a maet na vida terrena. Como tal, este objecto pode ter
sido encarado como um «salvo-conduto» real que abria as portas para a justificação
moral do defunto no Além.
É pouco provável que constituíssem um substituto mágico do coração, como
habitualmente se sugere. Nas representações coevas da lustração solar, por exemplo,
alguns autores entendem a presença do amuleto cordiforme como a dádiva do coração
ao defunto para garantir a posse dos poderes vitais.1126 No entanto, o ritual em questão
nada tem que ver com o âmbito da devolução do coração, mas sim com a saída para o
dia. Na lustração solar, torna-se evidente a identificação entre o defunto e o sol nascente
garantida pelo amuleto.1127
O papel do amuleto cordiforme de sabedoria representava sobretudo o potencial
de virtude acumulado durante a vida terrena graças à sabedoria e à prática da maet.
Graças a essa virtude e sabedoria, o defunto podia identificar-se com o sol e ser
proclamado como um aliado no combate contra os inimigos da luz. Um aspecto
importante que o distingue do amuleto de justificação (que comentaremos em seguida) é
o facto de ser atribuído ao defunto ainda em vida e não no âmbito dos cerimoniais
funerários. Como se detecta através do paralelismo entre as representações funerárias da
lustração solar e as cerimónias de iniciação real, é provável que, a lustração solar tivesse
uma certa correspondência com um ritual de iniciação celebrado ainda em vida, como é
certamente o caso das representações de Sennefer, Ramés, Userhat e Merenptah. Nesse
caso, o amuleto cordiforme era um sinal distintivo de sabedoria atribuído na cerimónia
de iniciação.
1126
Ver E. BUZOV, «The role of the Heart in the purification», p. 281. Embora reconheça que este tipo
de purificação se distingue dos rituais da abertura da boca, o autor não parece ter identificado que estas
representações se relacionam com o ritual do levantamento da múmia sobre o monte de areia. Esta lacuna
poderá explicar a sequência do seu raciocínio que se afasta da nossa interpretação.
1127
Ver anexo IV 2.K 8.
361
O amuleto cordiforme em óstracos
1128
Ver anexo IV 2.L.
1129
Ver anexo IV. 2.L 1 e 2.L 3.
1130
Ver anexo IV 2.L 2.
1131
Ver anexo IV 2.L 4.
1132
Note-se que, nas representações de casais, a mulher nunca apresenta o amuleto. Na verdade, as
representações do amuleto em mulheres são muito raras e, quando ocorrem, assinalam um estatuto social
bastante elevado, como é o caso da dama Nesitanebtacheru, filha do sumo sacerdote de Amon, Pinedjem
II, e Nesikhonsu.
362
O amuleto cordiforme de justificação
1133
Ver anexo IV 2.A 4.
1134
Ver anexo IV 2. I.
1135
Apenas uma destas representações retrata uma mulher, Unet, uma cantora de Amon que comparece
diante do tribunal de Osíris com um amuleto do coração. Ver anexo IV 2. I 1.
1136
Nas próprias vinhetas da psicostasia, com efeito, a apresentação do defunto diante de Osíris constitui,
em geral, a consequência natural de um resultado favorável. Uma representação tumular da necrópole
tebana (TT 255) apresenta o escriba real Rai e a sua mulher, Nebet-taui, conduzidos por Horsaiset à
presença de Osíris (Ver anexo IV 2.H 5). Ambos apresentam o braço cruzado diante do peito num gesto
363
Certas vinhetas do «Livro dos Mortos» apresentam precisamente o defunto a adorar
Osíris, como resultado da sua justificação. Também nestas circunstâncias, é
frequente o defunto apresentar um amuleto cordiforme.1137
Na XXI dinastia, o carácter osiríaco do amuleto foi muito valorizado na decoração
dos ataúdes antropomórficos tão característicos deste período. Em torno do deste
objecto aglutina-se, de um modo geral, um sem número de representações com um
grau de complexidade variável seguindo uma tendência, comum neste período, de
preencher profusamente todo o espaço disponível, fenómeno habitualmente
designado por horror vacui.1138 As representações mais simples apresentam o
amuleto, suspenso por uma corrente, rodeado pela ave benu e pela barca solar. No
entanto, as representações dos ataúdes também incluem símbolos osiríacos de grande
significado como o tauer, o signo udjat, tecendo, deste modo, uma ligação muito
estreita entre os símbolos solares-osiríacos e o amuleto do coração, o qual se afigura
como um veículo aglutinador destes elementos simbólicos.1139
Como símbolo da justificação, o amuleto era usado pelo defunto situações muito
diversificadas da vida do Além. Jogar o senet1140 e revigorar-se com o contacto com
habitualmente associado ao respeito. No entanto, é apenas o homem, Rai, quem ostenta o amuleto. Como
no relevo de Merenptah, o amuleto está conotado com o resultado positivo na psicostasia.
1137
Também aqui se detecta um uso do amuleto unicamente por parte do homem. Quando um casal é
representado, é sempre o homem que ostenta o amuleto. Ver anexo IV 2.H 1-2 e 2. H 5. No exemplar do
«Livro dos Mortos» do arquitecto Kha e da sua mulher Merit, descoberto em Deir el-Medina (TT 8), o
casal apresenta-se diante de Osíris numa grande e bela vinheta, em que Kha usa um amuleto cordiforme
em ouro. O papiro funerário de Iuia (descoberto no túmulo KV 46) também apresenta uma vinheta que,
embora em mau estado de conservação, permite constatar que esta grande personalidade do reinado de
Amen-hotep III também usava um tal amuleto. Iuia apresenta-se diante de Osíris com a esposa, Tuia,
elevando os braços num gesto de adoração. Note-se que, no âmbito dos objectos encontrados no KV 46,
já aqui fizemos referência a objectos que fazem alusão ao amuleto cordiforme: a estatueta funerária de
Iuia, assim como um amuleto ambíguo que tanto pode ser classificado como um escaravelho do coração
como um grande amuleto cordiforme. As representações patentes quer no «Livro dos Mortos» quer na
estatueta funerária podem constituir uma alusão a um objecto que efectivamente existia. Nos ataúdes da
XXI dinastia, o amuleto foi também ocasionalmente representado no contexto da apresentação do defunto
diante de Osíris. Ver anexo IV 2. H 3.
1138
Em A. NIWINSKY, XXI dynasty Coffins from Thebes, p. 78. Deste modo, a ladear o amuleto é muito
provável encontrar a ave benu, o deus Khepri, deusas aladas (com forma humana ou com forma de
serpente), o deus Anúbis, mas também objectos inanimados como o totem de Abido, tauer, e certos
hieróglifos, como os signos udjat, nefer e neb. Debaixo do amuleto encontra-se frequentemente um
peitoral alusivo a Khepri, ou a deusa Nut com as asas estendidas sobre o defunto, ao passo que, sobre o
amuleto podem ser dispostas várias representações: o deus Khepri, o disco solar, o totem tauer ou dois
vultos divinos sem uma identidade definida.
1139
De notar que, na tipologia apresentada por Andrzej Niwinski para classificar os ataúdes da XXI
dinastia, são sobretudo os ataúdes de tipo III que mais frequentemente apresentam este tipo de
representações. Estes ataúdes, datados do pontificado de Pinedjem II, caracterizam-se por possuírem um
grande colar usekh que se sobrepõe totalmente aos braços, deixando apenas as mãos expostas. A
tipologia é apresentada em A. NIWINSKY, XXI dynasty Coffins from Thebes, pp. 67-96. Ver anexo IV
2.C 5-12.
1140
No túmulo de Nebenmaet (TT 219), da XIX dinastia, o «servidor do Lugar da Verdade» (sedjem-ach
Set-Maet» foi representado a jogar o jogo do senet com a sua esposa, Meretseguer. Ver anexo IV 2.J 1.
Este jogo adquiriu conotações funerárias sobretudo a partir do Império Novo, sendo mencionado no
capítulo 17 do «Livro dos Mortos». Simbolicamente o jogo fazia alusão à existência no Além, a qual era
vista como uma partida jogada com as entidades que aí habitavam. O sucesso estava assim relacionado
com uma existência feliz no outro mundo. Não esqueçamos que na escrita hieroglífica, o tabuleiro do
senet era o hieróglifo men (mn) que significa «perdurar», «estabelecer», ou «firmar», facto que poderá
estar na base do simbolismo funerário que o jogo adquiriu. Ver R. WILKINSON, Reading Egyptian Art,
p. 211. Entre os vários jogos conhecidos o do senet terá sido, porventura, o mais popular (ver R. SOUSA,
«Jogos», em L. Araújo (dir), Dicionário do Antigo Egipto, pp. 458-459.
364
as forças da vida, como a brisa,1141 ou a deusa árvore,1142 eram apenas algumas das
recompensas mais imediatas que o amuleto cordiforme assegurava.
A saída para o dia e a viagem pelos domínios do Além também era
proporcionada através do amuleto cordiforme. A navegação na barca de Ré,1143 a
adoração de divindades do Além,1144 a visita aos Campos de Iaru e a navegação no Lago
1145
de Fogo eram outras das possibilidades que se ofereciam ao justificado. No entanto,
o privilégio supremo oferecido pelo amuleto era o de assistir às grandes encenações
divinas que garantiam o equilíbrio cósmico. A misteriosa regeneração do disco solar,1146
o triunfo da barca solar sobre Apopis1147 ou as manobras de Tot para fazer «uma
abertura no céu»1148 são exemplos de ocorrências que fazem relacionar o amuleto
cordiforme com a vitória do sol sobre as trevas, da qual dependia a regeneração do
cosmos.1149
De um modo geral, nesta etapa, o amuleto do coração assinalava a justificação
do defunto. O amuleto era atribuído ao defunto na psicostasia como sinal da sua pureza
e, nessa qualidade, proporcionava-lhe ao defunto inúmeras recompensas, como a
possibilidade de se alimentar, de «ver» os deuses e, sobretudo, de sair para o dia e
encaminhar-se para os Campos de Iaru, integrando a tripulação de Ré e participando no
combate contra as forças do caos.
1141
Ver anexo IV 2.J 2.
1142
Ver anexo IV 2.J 3-4.
1143
No túmulo de Irinefer (TT 290), por exemplo, o defunto apresenta o amuleto numa atitude respeitosa
perante a ave benu enquanto navega na barca solar diurna. Ver anexo IV 2.J 5.
1144
No túmulo de Khakhebenet (TT 2), o defunto presta louvor a Tot, que adopta a configuração de
babuíno. Ver anexo IV 2.J 7. No túmulo de Irinefer (TT 290), o defunto apresenta o mesmo amuleto
enquanto presta louvor à serpente Sata e a outras entidades alusivas às metamorfoses do defunto no Além,
o que parece indicar que o amuleto cordiforme também auxiliava o defunto a adoptar estas
transformações. Ver anexo IV 2.J 6.
1145
No túmulo de Amenemopet (TT 41) podemos identificar representações que relacionam o uso do
amuleto com várias situações da vida no Além, como a visita aos Campos de Iaru, a navegação no Lago
de Fogo e o combate de Apopis. Ver anexo IV 2.J 8.
1146
Ver anexo IV 2.J 11.
1147
Ver anexo IV 2.J 10.
1148
Ver anexo IV 2.J 12. Correspondente ao capítulo 161 do «Livro dos Mortos». Ora este capítulo
começa com a proclamação da vitória de Ré sobre os inimigos da luz (corporizados na tartaruga): «Que
Ré viva e morra a tartaruga! O corpo está reunido sob a terra. Os ossos de Osíris N. estão (também)
reunidos (...)». Em capítulo 161 do «Livro dos Mortos».
1149
O fim do período ramséssida e a XXI dinastia constitui o auge do desenvolvimento da expressão
pictórica do pensamento religioso do clero tebano. As composições iconográficas reflectem as
concepções teológicas abstractas e ilustram um conhecimento iniciático de verdades e de mistérios que
só podiam plenamente ser vividos no Além. A. NIWINSKI, «The solar-osirian unity as principle of the
theology of the “State of Amun” in Thebes in the XXI dynasty», JEOL 30 (1987-1988), p. 91
365
O amuleto cordiforme de criança divina
1150
Encontrada em fragmentos sucessivos entre os blocos que enchiam o terceiro pilone de Karnak, a
estela tem vindo a ter uma leitura cada vez mais completa. Para conhecer o conteúdo deste documento ver
I. HARARI, «Nature de la Stéle de Donation de Fonction du roi Ahmôsis a la reine Ahmès-Nefertari»,
ASAE 56 (1959), pp. 1-63.
1151
Ver anexo IV 2.A 1.
1152
A associação do amuleto aos príncipes reais também está patente num grupo escultórico da XVIII
dinastia, encontrado em Zagazig, que representa uma ama com quatro príncipes enfeitados com este
amuleto. Ver anexo IV 2.A 2.
1153
Estas representações eram feitas sobretudo nos cippi, estelas de pedra usadas, sobretudo na Época
Baixa, para proteger o indivíduo do mal. Representavam o jovem Hórus sobre os crocodilos agarrando em
animais perigosos como o escorpião, leão e outras criaturas selvagens do deserto. A água era atirada sobre
as fórmulas hieroglíficas e as imagens para recolher a sua essência mágica para que depois o doente a
pudesse a beber ou aplicar sobre o corpo. S. HARVEY e M. HARTWIG, Gods of ancient Memphis, p. 13
1154
Ver anexo IV 3.J. O motivo iconográfico de segurar serpentes, patente nas representações de
Horpakhered deriva das representações dos génios do Além. Estas entidades funerárias ostentavam
serpentes nas mãos como símbolo do seu poder sobre as entidades malignas. Os guardiões das Portas do
Além, como vimos, repeliam os perigos usando as serpente como auxiliares. Ao ser transferido para
deuses como Bés ou Horpakhered este símbolo tornou-se sintomático da capacidade do deus para afastar
as forças malignas. Em M. RAVEN, «A puzzling pataekos», OMRO 67 (1987), p.13
366
da pureza para vencer a corrupção e o veneno. Foi a associação entre o amuleto e a
pureza que motivou a grande disseminação que o amuleto conheceu até ao fim da Época
Greco-Romana. O amuleto mais associado a esta temática é o de tipo cornija.
O influxo para a valorização deste campo semântico do amuleto verificou-se
sobretudo a partir da XXV dinastia, através da valorização da manifestação do rei
como uma criança divina. Tal ensejo parece ter sido especialmente valorizado pelos
reis cuchitas que cunhavam estas representações com o seu próprio programa político
que valorizava o regresso às origens. Num contrapeso de colar menat o rei Taharka é
representado com o amuleto cordiforme, enquanto é amamentado por Sekhmet.1155 A
representação enquadra-se na temática da coroação real e assinala o nascimento da
natureza divina do faraó. Datado de uma época indeterminada, um relevo esculpido
nos muros do pátio do décimo pilone, em Karnak, apresenta o rei diante da tríade de
Karnak composta por Amon, Khonsu e Mut.1156 O rei é aqui representado como uma
criança, adornado unicamente com o amuleto cordiforme. Também neste caso, o uso
do amuleto parece reportar-se ao nascimento divino do faraó.
Em certos casos, a representação do rei funde-se totalmente na representação da
criança divina. O relevo do reinado de Iuput II, da XXII dinastia ilustra esta tendência
emergente. Já nesta época o deus acocorado sobre uma flor de lótus, parece constituir
uma representação divinizada do faraó, uma vez que apresenta o toucado némes e o
ceptro nekhakha. A flor de lótus representada com o deus faz alusão ao seu nascimento
que se confunde com a própria criação do mundo.1157
Muito frequentemente, a função simbólica das crianças divinas parece ser a de
constituir um intermediário no culto divino.1158 Sobretudo nestas circunstâncias é
comum a representação do deus com a coroa dupla, assinalando a sua identificação com
o faraó. Noutros casos, a representação do deus sobre o sema-taui teve como intuito
definir o principal atributo do deus menino: garantir a recriação do mundo e o regresso
purificador ao tempo mítico da criação.1159 Este tipo de representações pode ocorrer no
âmbito da cerimónia da coroação real ou em situações que, de algum modo, se
relacionem com a celebração de um nascimento ou de uma recriação. O posicionamento
sobre o sema-taui pode, deste modo, ser alusivo ao próprio nascimento divino do
faraó.1160 A identificação progressiva entre os deuses crianças e o faraó fez destes
deuses meninos uma espécie de duplos divinos do rei agindo de modo a garantir uma
das principais responsabilidades reais: a renovação da ordem cósmica. O uso insistente
1155
Ver anexo IV 2.A 6. No registo inferior o deus Hórus está pousado, sob a forma de falcão, sob um
serekh real, rodeado pelas Duas Senhoras, Nekhbet e Uadjet.
1156
Ver anexo IV 2.A 5.
1157
Ver anexo IV 3.A 1.
1158
Ver anexo IV 3. G 1.
1159
Ver anexo IV 3.H.
1160
Ver anexo IV 3. H 1.
367
do amuleto cordiforme pelos deuses infantis pode, deste modo, estar relacionado com a
intenção de propiciar um novo nascimento e uma renovação, já não de um indivíduo ou
de um deus, mas de todo o Egipto.1161
Curiosamente o nascimento divino do rei tornou-se também no símbolo da
ressurreição do defunto. Na Época Greco-Romana, Nefertum é, por vezes, representado
de cócoras sobre um grande signo heka junto da balança da psicostasia.1162 Nestas
representações, o deus assinala o nascimento divino do defunto. Neste contexto, o
amuleto cordiforme assinalava o segundo nascimento sob a forma de uma criança
divina.
Noutras ocasiões o jovem deus solar foi ainda representado na proa da barca
solar anunciando o renascimento do deus sol.1163 Neste caso, o amuleto cordiforme
parece remeter para o renascimento do sol e para a recriação do mundo. Comum a todas
estas representações de deuses acocorados é a ideia de um nascimento e de um novo
começo. Embora associado à psicostasia, o amuleto cordiforme começa, neste
enquadramento simbólico, a investir-se de um significado «obstétrico» mais amplo,
assinalando o início de uma nova vida, de um novo nascimento.
Concomitante com estas alterações, na Época Greco-Romana o amuleto do
coração desapareceu da decoração do peito dos sarcófagos para passar a ser
representado unicamente no pescoço das máscaras funerárias.1164 A deslocação da
representação do coração para a região do pescoço foi gradual e detecta-se já em alguns
ataúdes da Época Baixa.1165 Nenhum outro elemento simbólico nos esclarece sobre o
significado particular deste amuleto nestes objectos. A mudança da localização desta
1161
As representações da versão helenizada de Horpakhered, Harpócrates, são muito frequentes e
diversificadas tendo transcendido as próprias fronteiras do Egipto. Nestas representações o deus é
representado com um misto da iconografia egípcia adaptado às convenções da arte helenística. Deste
modo, o deus é representado frequentemente acocorado, levando o dedo à boca e segurando com a outra
mão uma cornucópia, um importante símbolo de fertilidade na iconografia greco-romana que aqui surge
para indicar o papel do deus como dispensador das águas do Nilo. Por vezes apresenta também a coroa
dupla, evocando o seu poder real sobre as Duas Terras, ou o lótus primordial, para evocar o seu
nascimento a partir das águas do Nun. Em Karanis foram encontrados vários exemplares de pintura mural
onde o deus foi representado com o amuleto cordiforme ao colo da deusa Ísis, numa atitude que parece
prefigurar o aleitamento do menino Jesus pela virgem (Ver anexo IV 4.C 4.). Noutro caso o deus foi
representado junto de um altar rodeado por símbolos relacionados com o culto de Serápis. Em todos estes
exemplares o amuleto do coração constitui o adorno principal da divindade (que, por vezes, é
complementado com o colar usekh).
1162
Ver anexo IV 3.A 2.
1163
Ver anexo IV 3.A 3.
1164
Ver anexo IV 2.E 1-9.
1165
Ver anexo IV 2.C 26.
368
representação poderá reflectir uma mudança do significado do amuleto? 1166 Com efeito,
esta alteração sugere que o amuleto era usado com um valor apotropaico íntrinseco
susceptível de ser canalizado para proteger qualquer parte do corpo.
Em suma, o amuleto cordiforme tinha agora um significado «obstétrico»
assinalando o início de uma nova vida, de um novo nascimento e a pureza que daí
advinha. O aparecimento do amuleto do coração na iconografia dos deuses meninos era
também um sinal do esvaziamento religioso da figura real que deixava de se afigurar
com o carisma necessário para garantir a renovação do mundo e o afastamento das
forças do caos. Doravante estas esperanças eram depositadas no deus menino e o
amuleto cordiforme constituía a manifestação tangível e visível do poder da luz e da
pureza para garantirem um novo nascimento (do mundo).1167
*
* *
1166
As razões mais óbvias parecem simplesmente relacionar-se com uma mudança na valorização das
coberturas de cartonagem que cobrem as múmias deste período, as quais se tornaram um alvo
preferencial da decoração, em detrimento do ataúde. Ver Idem, pp. 240-241. No entanto, considerando os
elementos que já temos reunido até ao momento, a possibilidade de uma mudança de sentido do amuleto
também é plausível.
1167
A associação da monarquia a deuses representados com o amuleto cordiforme também se detecta nas
representações de Hórus sob a forma de falcão. Numa estátua de bronze da XXII dinastia, o deus está
coroado com o pa sekhemti e apresenta o amuleto cordiforme encimado pelo disco solar, um tipo de
amuleto que, já desde a XVIII dinastia, se apresentava fortemente associado com o rei (Ver anexo IV 4.B
2.). Também sob a forma hierácomorfa um deus apresenta o referido amuleto em composições
escultóricas relacionadas com a tríade divina Ptah-Sokar-Osíris (Ver anexo IV 4.B 4.)
369
Sabedoria Vaso Altos funcionários Sabedoria e virtude
Condecoração real Iniciação na vida terrena
Lustração solar
Justificação Cabeça humana, Defuntos Pureza
Semente, Vaso Psicostasia Recompensas na vida do Além
Saída para o dia
Criança divina Cornija Divindades Novo nascimento
Poder da luz e da vida
Na posse destes dados impõe-se, neste momento uma reflexão que faça confluir
as informações obtidas acerca do simbolismo dos amuletos cordiformes ao longo deste
estudo. Um primeiro dado a salientar consiste na correspondência entre os tipos de
amuletos estudados e a própria evolução simbólica e ritual do objecto.
O amuleto de tipo vaso, o primeiro a ser documentado, corresponde a uma fase
inicial da história deste objecto e simbolizava a iniciação do funcionário e a subsequente
transformação da sua consciência. O amuleto encimado pelo disco solar, usado
unicamente pelo rei, ampliava significativamente esta transformação através da
identificação da consciência do rei ao sol. Traduzia, em suma, a iluminação.
As versões funerárias do amuleto cordiforme foram criadas na sequência de uma
especialização do simbolismo destes objectos no âmbito funerário. A iniciação terrena,
consistindo numa interiorização da maet, propiciava a justificação no Além. A partir do
período ramséssida, este significado sobrepôs-se ao imaginário iniciático. O objecto era
agora atribuído ao defunto na sequência de uma outra cerimónia de iniciação que
decorria no templo da Duat. Os amuletos criados especificamente para o Além traduzem
a função do amuleto na justificação.
Finalmente, o uso do amuleto por parte das crianças divinas coincide, no tempo,
com a invenção do amuleto de tipo cornija que volta a centrar na vida terrena a sua
actuação mágica. Com esta viragem o amuleto assinalava a renovação e a pureza
garantida pela relação com deus, a qual facultava um segundo nascimento. O imaginário
da iniciação terrena voltava a ser associado ao amuleto do coração, mas afigurava-se
desprovido de qualquer leitura de cariz político.
370
Em todas as suas variantes, o amuleto cordiforme traduz sempre um processo
iniciático e assinala a subordinação da consciência à ordem maética ou à ordem divina.
Graças a esta interiorização da ordem maética o homem estabelecia uma ligação íntima
e perene com o próprio cosmos que o projectava num novo plano de existência. Uma tal
transformação era entendida como um segundo nascimento. Deste modo, o amuleto
cordiforme representava sempre um estado de «ligação» ao cosmos e assinalava a
consciência transformada pela harmonia.
1168
Devido às conotações aquáticas, a tartaruga estava associada ao Nun e, por isso, associada às forças
hostis à luz. Paradoxalmente, o amuleto em forma de tartaruga era usado para afastar os poderes das
trevas. Ver C. ANDREWS, Amulets of Ancient Egypt, p. 36.
1169
Ver anexo IV 2. N 1.
1170
É o caso de M. SALEH e H. SOUROUZIAN, The Egyptian Museum Cairo: Official Catalogue, nº
27.
1171
A maior parte das descrições desta estátua são muito cautelosas quanto à identificação do amuleto
preferindo referir apenas que se trata de «um pingente» (ver, por exemplo, F. TIRADRITTI, Tesouros do
Egipto do Museu Egípcio do Cairo, p. 62.)
1172
Ver anexo IV 2. N 2.
1173
Outros monumentos do Império Antigo oferecem outros testemunhos de um amuleto semelhante,
como o que se observa na estátua de Kahep, um juiz da V dinastia Ver anexo IV 2. N 3.
371
no Império Antigo, certas representações em relevos sugerem uma forte afinidade com
o amuleto cordiforme. No entanto, quando analisados em pormenor, estes objectos
parecem constituir «bolsas» fechadas por um travessão, o qual se confunde com as
artérias laterais do amuleto cordiforme.1174
Um outro amuleto que oferece problemas de interpretação é frequentemente
encontrado nas estátuas de Senuseret III e de outros soberanos da XII dinastia.1175 Este
amuleto tem a forma de uma dupla concha atravessada por uma haste. Embora não se
assemelhe nada à tradicional representação do amuleto cordiforme, a verdade é que
certas representações da Época Baixa, ou de períodos posteriores, representam o
coração de um modo semelhante, sob a configuração que denominámos de «amuleto
semente de bordo descaído». A identificação deste tipo de amuletos não é certa mas
parece tratar-se de um invólucro que encerra um objecto secreto ou bolas de incenso,
como sugere a representação deste tipo de saquinhos nos frisos dos sarcófagos dessa
mesma época.1176
1174
Ver anexo IV 2. N 9.
1175
Ver anexo IV 2. N 4-6.
1176
Ver anexo IV 2. N 9.
1177
Ver decoração do pilar IV. Plano do túmulo em anexo IV 2.M 1.
1178
Ver anexo IV 2.M. 2. Na antecâmara é representado um amuleto cordiforme de cor escura integrado
em oferendas funerárias diversificadas. O papel deste amuleto parece relacionar-se com a função do
coração como sede da vida de onde esta brotava, como uma semente, no Além. Representa, por assim
dizer, a semente que guarda a chave para a reanimação do defunto. O seu desaparecimento nas
372
aparece associado aos cuidados amorosos da esposa, os quais permitiam a Sennefer
«firmar o coração», ou seja, readquirir os poderes da vida.1179 Este amuleto também é
representado na cerimónia de lustração solar de Sennefer que conferia ao defunto uma
identificação com o sol nascente e assinalava a restituição total do seu estatuto social e
da sua identidade.
Estes dados parecem apontar para uma função distinta atribuída aos amuletos
«cardíacos». Deste modo, o escaravelho do coração estaria associado à mumificação
enquanto o duplo amuleto cordiforme, constituindo uma condecoração real que
assinalava o valor e a integridade moral e intelectual do defunto, era a expressão plena
do seu valor que lhe permitia associar-se ao percurso do sol.1180
A complementaridade entre estes símbolos «cardíacos» é particularmente visível
em peitorais que reúnem estes importantes símbolos para a vida do Além.1181
Apresentando a forma de um colar usekh, estes objectos possuem as extremidades em
formato hieracocéfalo.1182 No centro figura um grande escaravelho do coração em alto
relevo, ladeado por duas serpentes sagradas.1183 No verso do peitoral, foi demarcado o
representações da câmara funerária indica uma possível identificação com o escaravelho do coração, o
que aliás é indiciado pela cor com a qual ambos foram pintados.
1179
Ver anexo IV 2.M 3.
1180
A condecoração real reveste-se de um significado religioso cuja acção se prolonga no Além. Esta
condecoração garantia a restituição da integridade social do indivíduo, a união mística do defunto à deusa
Hathor e orientava-o na saída para o dia, onde se unia ao disco solar. Apesar de estar ausente das
representações o rei é inúmeras vezes mencionado nos textos: «que os deuses dêem tudo o que aparece
na mesa de oferendas em cada dia, ao ka do nobre pai divino, amado de deus, que está no coração (im ib)
do deus bom.» Ou «(...) para o ka do nobre (...) que enche o coração perfeito do senhor das Duas Terras
(...) que enche o coração do rei na região do Sul (...)»Em P. VIREY, «La tombe des vignes à Thèbes», RT
20 (1898), p. 218 A insistência que é evidenciada na capacidade para «encher o coração do rei» pode
estar na origem da atribuição do duplo amuleto do coração, que constitui, sem dúvida, uma condecoração
real. O alto cargo desempenhado por Sennefer confirma esta hipótese. Embora o seu título mais frequente
seja o de governador de Tebas, Sennefer era, entre outras atribuições, responsável pela colecta de
impostos, pelos trabalhos na necrópole, pelo abastecimento do templo de Amon, pelos celeiros, gado,
campos e jardins de Amon. Foi talvez na qualidade de director dos jardins de Amon que Sennefer
agudizou a sua sensibilidade para a leitura religiosa dos motivos vegetais que desempenham um papel tão
determinante na iconografia do túmulo.
1181
Ver anexo II I 6.
1182
O colar usekh é uma peça frequente no equipamento funerário egípcio, desempenhando, em geral,
uma função protectora, a mesma que desempenham as duas cabeças de falcão, representadas nas suas
extremidades, que simbolizam o papel de Ísis e Néftis na reanimação física do defunto. O mesmo
significado deve ser atribuído às duas serpentes que rodeiam o escaravelho.
1183
As duas serpentes podem ter várias leituras simbólicas. Podem constituir uma evocação das Duas
Uadjet (as vinhetas do capítulo 17 do «Livro dos Mortos» mostram o defunto em adoração perante a
Uadjet do Norte e a Uadjet do Sul) ou olhos udjat, enquanto símbolos de Ísis e Néftis. Podem ainda
evocar as Duas Meret (evocadas no capítulo 37 do «Livro dos Mortos», cuja vinheta representa o defunto
a trespassar uma serpente com uma lança). No capítulo 125 Osíris é louvado como «O das duas raparigas,
o das Duas Meret, Senhor das Duas Maet». Existia, portanto, uma associação entre Ísis e Néftis, as duas
Meret e as Duas Maet. O tema do duplo uraeus pode, deste modo, evocar as duas deusas do Alto e do
Baixo Egipto, as duas Meret (deusas serpentes do mundo inferior), Ísis e Néftis, ou ainda as Duas Maet.
373
contorno do amuleto cordiforme no interior do qual foi redigido o capítulo 30 B do
«Livro dos Mortos.
A conjugação do escaravelho do coração e do amuleto cordiforme realizava a
fusão das duas categorias de objectos relacionadas com a simbólica «cardíaca». Parece
pois evidente a intenção de realizar uma «súmula» iconográfica que enquadrasse a união
dos dois objectos de modo a articular entre si os seus poderes mágicos. A face decorada
com o escaravelho situava o âmbito de acção deste amuleto no âmbito da reanimação
física do coração. O verso do peitoral, dominado pelo amuleto cordiforme, era centrado
na justificação moral do defunto que assegurava a recuperação das funções do coração
relacionadas com a identidade e o estatuto social. Objectos como este demonstram que
se estabelecia uma acção complementar entre o amuleto cordiforme e o escaravelho do
coração, os quais asseguravam os poderes do coração no corpo e na identidade, mas
também no tempo djet e no tempo neheh, a permanência eterna e o regresso à origem,
respectivamente.
Com uma intenção semelhante, certos peitorais «cardíacos» foram, na XXI
dinastia, representados no peito dos ataúdes antropomórficos.1184 O escaravelho,
normalmente com cabeça de carneito, segura entre as patas traseiras um amuleto do
coração enquanto, nas patas dianteiras, segura o disco solar.1185 O escaravelho
criocéfalo constitui, na verdade, uma forma criptográfica de redigir o nome Ré-Atum-
Khepri, à qual se reunia o amuleto cordiforme como um símbolo de Osíris.1186
A associação entre o amuleto do coração e o escaravelho alado não pressupõe,
portanto, uma identificação entre estes dois importantes símbolos. Pelo contrário, a
dualidade entre o amuleto cordiforme e o escaravelho serve de pretexto para ilustrar a
síntese solar-ctónica e a união entre Ré e Osíris.1187 Os dois símbolos da consciência
Em F. THILL, «Un nouveau pectoral-scarabée de coeur a Sai (Soudan)», em Mélanges Offerts a Jean
Vercoutter, p. 334.
1184
Como acontece na cobertura de múmia de Padiamon, um sacerdote de Amon que viveu sob o
pontificado de Pinedjem II.Ver anexo II G 20.
1185
As crenças funerárias da XXI dinastia revelam um grande entrosamento entre as crenças solares e as
osiríacas. Ver A. NIWINSKY, XXI dynasty Coffins from Thebes, p. 15. Também nos soberbos ataúdes de
Pinedjem II e de Nesikhonsu, encontramos, na região do peito, elaboradas composições com um
programa simbólico semelhante. No epicentro destas composições está o escaravelho Khepri, erguendo
nas patas dianteiras o disco solar e, nas patas traseiras, o coração. Todas estas composições ilustram a
regeneração do disco solar ocorrida no mundo inferior. Ver anexo IV 2.C 18-19.
1186
Em A. NIWINSKI, «The solar-osirian unity as principle of the theology of the “State of Amun” in
Thebes in the XXI dynasty», JEOL 30 (1987-1988), pp. 87-106.
1187
A visão de um deus supremo ficou marcada, no Império Novo, pela ideia de um deus solar, princípio
de vida e causa última da criação, e de um deus ctónico, princípio de regeneração e de renascimento.
Ambos os princípios são complementares e mutuamente dependentes. Em Idem, p. 89. A rica iconografia
deste período reflecte a unidade dos aspectos solares e ctónicos do grande deus. Na verdade, cada
374
tornavam-se assim na base para a identificação do defunto com as duas facetas do
grande deus. O amuleto cordiforme materializava a faceta osiríaca e ctónica do defunto,
ao passo que o escaravelho alado fazia alusão à sua manifestação solar. Nesta
perspectiva, o amuleto cordiforme surge prioritariamente como uma evocação osiríaca
(sublinhada por vezes com a representação do totem tauer ou do próprio nome de
Osíris, Wsir) que é frequentemente colocada em relação dinâmica com um símbolo
solar (como o ba, o disco solar, a ave benu ou o escaravelho solar).1188 Com estas
representações o defunto associava-se ao eterno curso do sol, ao seu perpetuum mobile,
mas também se identificava com o triunfo de Osíris sobre a morte.1189 Estes peitorais
são, deste modo, alusivos à ressurreição da consciência do defunto e à sua associação à
faceta ctónica e solar do deus universal.1190
Uma enigmática composição criptográfica da XXX dinastia, originária de
Athribis1191 integra a representação dos dois símbolos «cardíacos» num contexto mais
amplo. De grande complexidade, esta composição foi elaborada para compor um
representação complexa de um símbolo deve ser entendida como tendo simultaneamente um sentido solar
e ctónico. Deste modo, as grandes representações de escaravelhos alados e de amuletos do coração que
decoram magnificamente o peito dos ataúdes antropomórficos deste período, jogam intencionalmente
com a dualidade do simbolismo inerente ao escaravelho do coração e ao amuleto cordiforme para extrair
uma imagem que manifeste a síntese entre Osíris e Ré.
1188
Dois ciclos religiosos dominam o pensamento teológico do Império Novo: o do sol (que simboliza o
deus transcendente, elevado e visível) e o de Osíris (encarnando o imanente, a causa subterrânea da vida e
o invisível). São perspectivas complementares e constituem uma unidade que se tornou ao longo do
tempo cada vez mais indissociável, culminando, na XXI dinastia, na formulação de uma unidade
completa entre Ré e Osíris. P. 87-91. A imagem mais compacta do Ser supremo era expressa
iconograficamente na figura do escaravelho encimado pela cabeça de carneiro à qual pode ser adicionado
outros elementos como asas, falo, disco solar, ou coroas. Esta figura podia ser usada como forma
criptográfica do nome Ré-Horakhti-Atum-Khepri. Idem, p. 91-102.
1189
Trata-se de uma característica comum nas representações elaboradas sobre os ataúdes da XXI
dinastia. Frequentemente os motivos das constelações solares e ctónicas são combinadas no seio de uma
mesma estrutura formal, como acontece nas representações sobre as quais agora nos debruçamos. É,
portanto frequente que uma representação, aparentemente solar ou osiríaca, revele interpenetrações com
motivos da constelação simbólica complementar. Sobre a iconografia representada nos ataúdes da XXI
dinastia ver Idem, pp. 89-106.
1190
A Época Baixa oferece-nos os últimos exemplares de amuletos do coração representados sobre
sarcófagos (Ver anexo IV 2.C 22-26). Nestas antiguidades, o programa iconográfico é simplificado e o
espaço assim libertado foi utilizado para a redacção de textos funerários. É por essa razão que, pela
primeira vez neste contexto arqueológico, se começou a representar o amuleto do coração em conjunto
com o capítulo 26 do «Livro dos Mortos». Apesar da inflexão resultante da mudança do programa
decorativo destes sarcófagos, alguns símbolos como o escaravelho alado e a ave ba continuaram a ser
associados à representação do amuleto do coração, ainda que sem a densidade iconográfica da XXI
dinastia. A associação entre o escaravelho sagrado e o amuleto do coração permite constatar que o
simbolismo dualista estabelecido no Terceiro Período Intermediário continuou a vigorar na Época Baixa.
1191
Ver anexo V 1.14. A inscrição foi gravada num bloco encontrado por Alan Rowe, do Liverpool
Institute of Archaeology, em 1938, nas ruínas de Athribis. Anteriormente já haviam sido localizados dois
blocos pertencentes ao mesmo monumento o qual, embora datado da Época Baixa, reutilizou blocos de
uma construção de Ramsés II. A cena aqui descrita foi incluída no monumento na época da sua
reutilização. Em E. DRIOTON, «Note sur un cryptogramme récemment découvert à Athribis», em ASAE
38 (1938), p. 109.
375
sofisticado criptograma cuja interpretação se afigura muito delicada. As várias
tentativas elaboradas para decifrar esta composição são apresentadas em Apêndice XV.
Nestas linhas sintetizamos a nossa própria leitura deste conjunto. A composição
consiste numa representação central, composta pelos signos hut aá, «grande templo». O
interior do «templo» apresenta dois registos. O registo inferior apresenta o escaravelho
Khepri elevando nas patas dianteiras o coração. Hórus e Tot completam a representação
apresentando os signos ankh e uase sobre o coração e o escaravelho, num gesto alusivo
à lustração solar. O registo superior apresenta o signo ankh que logo é seguido por um
signo ambíguo que pode ser o signo de «pão», te, ou o signo do coração (ib) ou
simplesmente uma lamparina. Segue-se a representação da ave benu e, em dois registos
sobrepostos, o abutre e a cobra, símbolos da deusa Nekhbet e Uadjet, respectivamente,
as divindades tutelares do Alto e do Baixo Egipto.
O centro da composição consiste na representação da união entre o escaravelho e
o coração, os dois símbolos da consciência. O coração, como habitualmente, era alusivo
à pureza e à sabedoria ao passo que o escaravelho era alusivo à transformação (kheper)
da consciência.1192 Através da lustração solar, a representação dos dois símbolos da
consciência é assimilada a um nascimento divino. Articulando este conjunto com os
termos hut aá que enquadram toda a cena, podemos obtemos a frase hut aá kheper ib,
«o templo da transformação do coração» expressão essa que seria alusiva à iniciação, ou
a frase hut aá Kheper Usir, «o templo (da união) de Khepri e de Osíris», alusiva à
ressurreição. A duplicidade de leitura, no fundo é aparente, uma vez que a iniciação e a
ressurreição eram encarados como fenómenos da mesma natureza.
O registo superior também se afigura adaptado a uma leitura criptográfica. A ave
benu simboliza a criação do mundo enquanto as silhuetas do abutre e da cobre remetem
para o imaginário dualista das Duas Terras, o qual, de igual modo, tem conotações
cosmogónicas. A leitura deste conjunto pode resultar na seguinte frase «Que viva o sol
primordial da origem». Se o registo inferior é alusivo à transformação (ou ressurreição)
do coração, o registo superior reporta-se ao tempo primordial onde esta transformação
se verifica através da imersão nas águas do Nun. São precisamente essas águas, dando
vida e poder, que são vertidas por Tot e Hórus sobre o coração transformado. A
complexa representação ilustra, deste modo, a transformação da consciência conseguida
1192
Também não estava afastada a identificação, habitual no contexto funerário, do escaravelho solar a Ré
(e ao tempo neheh) e a Osíris (e ao tempo djet).
376
no templo (da Duat) através do regresso ao tempo primordial da criação,1193 ou, se
preferirmos, a «emersão» (besi) da consciência no tempo primordial.
Reunidos estes elementos vamos então ensaiar uma interpretação de conjunto
acerca do dualismo dos símbolos «cardíacos». Contrariamente ao sucedido com o
amuleto cordiforme, o significado do escaravelho do coração manteve-se bastante
estável ao longo do tempo, facto que também se repercutiu na iconografia que apresenta
uma maior homogeneidade. O objecto, fortemente associado à mumificação do corpo,
representava a conectividade corporal do coração e a promessa do renascimento cíclico
sob a forma do deus sol, a qual só se concretizaria após o resultado favorável obtido na
psicostasia. O amuleto cordiforme relacionava-se com o escaravelho do coração na
medida em que consistia numa espécie de «salvo-conduto» para o renascimento sob a
forma do sol nascente, a transformação última da consciência requerida para a sua
integração no ciclo neheh da eterna renovação do sol.
O amuleto do coração associava-se, por conseguinte, à justificação ou, no dizer de
Assmann, à mumificação moral, e representava a conectividade social do coração, o
poder da sabedoria e da virtude e o garante de uma existência perene no tempo djet
graças à capacidade demonstrada em vida para agir de acordo com o princípio da
harmonia personificado na Maet. Após o resultado favorável, o defunto recebia uma
«condecoração» que o identificava com a sabedoria e a luz do criador e lhe permitia
«emergir» no mundo luminoso das divindades, remontar ao tempo primordial da origem
do mundo para assegurar o renascimento sob a forma do sol nascente. O amuleto do
coração constituía, deste modo, uma espécie de «memorial» que assinalava a excelência
do seu comportamento durante a vida terrena e reflectia a transformação da consciência
através da sabedoria. É neste sentido que o amuleto cordiforme pode também ter sido
utilizado, ainda na vida terrena, como uma recompensa atribuída ao neófito na iniciação
aos mistérios do culto divino.
Nesta perspectiva, ambos os amuletos podem ter sido utilizados na iniciação
sacerdotal para simbolizar os dois aspectos envolvidos na iniciação: a «iluminação» e a
«transformação». Nesta perspectiva, o amuleto cordiforme poderia significar a
iluminação da consciência conseguida através da adesão à sabedoria divina. O
conhecimento (rekh) e o saber sagrado teriam como efeito proporcionar uma «visão»,
no sentido literal do termo, de toda a realidade cósmica apreendida na sua unidade
1193
Este «templo», no entanto, pode reportar-se à Duat e não especificamente a um templo divino em
concreto.
377
íntegra e indissolúvel da qual resultava a iluminação da consciência do neófito. O
escaravelho do coração assinalaria, por outro lado, a «revelação» (besi), a experiência
mística que resultava numa «transformação» interior que o aproximava de uma
divindade. Neste contexto ritual, os amuletos «cardíacos» articulavam-se de modo a
entrever o papel que, mais tarde, teriam na vida do Além, onde se verificaria a
derradeira e definitiva iniciação e onde a consciência do homem se deveria associar
permanentemente ao ciclo do sol. Percebemos assim o significado funerário destes
objectos e a relação que mantinham entre si: o amuleto do coração, simbolizando a
consciência iluminada avaliada na psicostasia, permitia o regresso ao tempo mítico da
criação para assegurar a transformação final sob a forma do escaravelho Khepri, o sol
nascente, eternamente renovado. Simbolizando a redenção e a pureza original, o
escaravelho, por seu lado, conferia a pureza necessária para garantir um resultado
favorável na psicostasia.
Curiosamente, ambos os tipos de usos foram representados no templo funerário
de Hatchepsut, em Deir el-Bahari, onde Tutmés III-Hatchepsut apresenta o amuleto
cordiforme de iluminação1194 (no segundo terraço) e um escaravelho alado (no terceiro
terraço)1195 assinalando provavelmente a consciência «transformada» do faraó.
Esta articulação entre os dois símbolos, promovida pelo clero tebano ao longo do
Império Novo e da XXI dinastia foi expressa, a partir do Terceiro Período Intermediário
e em, especial, a partir da Época Baixa, através das crianças divinas. 1196 Com efeito,
quando se encontram munidas do amuleto cordiforme, estas representações reúnem os
dois símbolos da consciência divinizada: o amuleto cordiforme, símbolo da iluminação,
e a própria criança solar, que constitui outra manifestação do sol matinal, equivalente ao
escaravelho sagrado. Um significado «iniciático» pode sobrepor-se à representação da
criança divina que deste modo significaria o nascimento da consciência divina
(simbolizada na criança solar) através da iluminação (garantida pela pureza das águas
1194
Ver anexo IV 2.A 3.
1195
Ver anexo II J 4.
1196
A ligação do nascimento de Hórus ao imaginário médico da cura é uma característica comum na
medicina egípcia. Veja-se o seguinte texto: «Oh, Ísis, Grande Maga, liberta-me de tudo o que é mau (…)
pois eu entrei no fogo eu saí das águas. Não descerei para oriente do dia de hoje. Eu falei, tornando-me
uma criança recém-nascida. A criança do lótus primordial (…)» Papiro Ebers 1-2. Embora faça alusão
ao nascimento do menino solar, o texto constituía uma fórmula mágica com intuitos terapêuticos, razão
pela qual foi redigida no papiro médico como um «remédio» a usar no momento em que se tiravam os
pensos do doente. Na perspectiva do médico-mago, a remoção do penso correspondia ao momento da
cura, da recuperação e assimilava-se à recriação do sol. A cura estava, deste modo, estreitamente
associada ao simbolismo da criação do mundo e da regeneração do sol. J. VAN DIJK, « The birth of
Horus according to the Ebers Papyrus», JEOL 26 (1979-80), pp. 10-25.
378
primordiais simbolizada no amuleto cordiforme). Para além de personificarem o poder
divino do faraó, as crianças divinas poderiam simbolizar a transformação interior
conseguida através da iniciação, tornando o neófito num elemento maético, capaz de
afastar os inimigos da luz. A vitória da luz sobre os inimigos da maet constitui
precisamente um dos temas fulcrais da representação das crianças divinas quer se
concretize iconograficamente na representação de Nefertum sobre a flor primordial ou
na vitória de Horpakhered sobre as feras selvagens.1197 A vitória da luz sobre as trevas
era, deste modo, o corolário da iniciação e a expressão visível do segundo nascimento
operado na consciência do neófito, projectando-o no plano divino.
1197
A associação entre os símbolos «cardíacos» e o imaginário da criação também se detecta num cippus
oriundo de Meroé, contemporâneo da XXVI dinastia egípcia (Ver anexo IV 4.A 2), apresentando um deus
com uma configuração inusitada. Neste objecto, um vulto parecido com Bés (com macrocefalia, nanismo,
ventre protuberante e membros curtos), está representado sobre os crocodilos e apresenta um amuleto
cordiforme. Um escaravelho solar alado encima a composição. O carácter naniforme do deus sugere uma
proximidade iconográfica com a representação dos patécos, os obreiros divinos de Ptah que o assistiam na
criação do mundo. Também é possível que a figura representasse o próprio demiurgo que, em certas
ocasiões podia adquirir a configuração de um menino/anão (ver Em J. BERLANDINI, «Ptah-demiurge et
l´exaltation du ciel», RdÉ 46 (1995), pp. 9-41.). A vitória da luz sobre as trevas (assinalada através do
domínio das feras), o amuleto cordiforme (alusivo à pureza), o escaravelho alado (simbolizando o
renascimento do sol), a forma naniforme (alusiva ao próprio criador) concorrem para que o referido
cippus constituisse um compêndio de símbolos demiúrgicos que celebrava a criação da luz.
379
380
CONCLUSÃO
381
382
1. O coração, o corpo e a consciência
383
elaborada reflexão acerca da integração cósmica do indivíduo. Perspectivada a partir
destes eixos, a consciência era entendida como o resultado de um processo dinâmico
sempre em aberto que podia, sob certas circunstâncias, levar o indivíduo a ascender a
um estado de consciência superior. Foi em torno deste objectivo que se centraram as
preocupações da espiritualidade egípcia.
2. O coração e a maet
384
para o sucesso material e profissional do funcionário, sendo também entendida como a
principal causa para a sobrevivência no Além. O julgamento dos mortos, um dos
elementos centrais da religião funerária, foi assim formulado para chamar a atenção do
funcionário para a necessidade de calibrar a sua consciência pela sabedoria.
III. O coração amante - No Império Novo, a reflexão sapiencial deslocou o foco
do seu interesse (antes centrado na maet) para a relação com deus. Absorvida pela
piedade pessoal, a reflexão em torno da maet valorizava agora o contacto com o deus.
Para que Amon se afirmasse como deus pessoal, para que se manifestasse na
consciência do homem, era necessário que o homem fizesse uma opção e «colocasse o
deus no coração». O coração perfilava-se agora como o relicário onde a divindade se
dava a conhecer a cada homem. As recompensas pela orientação dada pelo coração já
não eram tanto de ordem material mas sim de natureza espiritual. De modo congruente,
já não era o rei o responsável pela atribuição da recompensa pelo bom comportamento
mas sim o deus.
Na Época Baixa, registou-se um verdadeiro apogeu da piedade pessoal e com
ele a grande valorização da relação do homem com a divindade. O coração era o guia
que permitia seguir o deus, conhecer a sabedoria divina e aplicá-la. Desse modo, o
sábio assegurava a pureza e a protecção divina. A transformação interior da
consciência, conseguida através de uma preocupação cada vez mais intensa em
assegurar a pureza, conduzia à santificação do homem. À medida que a situação
política do país se ia degradando, o coração tornava-se, cada vez mais, no refúgio do
sábio.
385
acusado e castigado como um inimigo da ordem cósmica. O homem de coração ouvinte
e o homem ávido traduziam um ideal moral que se definia sobretudo pelas suas
valências sociais. O homem virtuoso era bem sucedido, estava socialmente integrado e
providenciava para que a harmonia social fosse salvaguardada. O ímpio, por outro lado,
era o homem egocêntrico, incapaz de se harmonizar com a ordem cósmica e social.
No Império Novo este modelo foi enriquecido com uma leitura religiosa. O
homem colérico era a personificação dos inimigos da ordem cósmica que instalavam o
caos e a divisão entre os homens. O homem silencioso, por outro lado, alicerçando-se
no homem de «coração ouvinte», personificava a pureza e a comunhão com o amor
divino, identificando-se, deste modo, com um princípio de luz. A antinomia entre o
homem silencioso e o homem colérico, assentava então sobre um modelo de relação
com a divindade. Neste caso, o homem silencioso personificava a humildade e a
disponibilidade perante o deus, ao passo que o homem colérico se assimilava aos
inimigos da luz. É possível que, em certos círculos mais restritos, este contraste não
fosse visto como um confronto entre indivíduos distintos mas sim como dimensões
diferentes da consciência humana que poderiam coexistir no seio do mesmo indivíduo.
A iniciação buscava, evidentemente, a manifestação da consciência silenciosa e o seu
domínio sobre a consciência colérica, ideal que podia ser visualizado, sobretudo a partir
da Época Baixa, nas estelas que representavam Horpakhered sobre os crocodilos. Nestes
monumentos a criança divina, simbolizando a consciência silenciosa, apresenta-se sobre
os crocodilos, a consciência colérica, empunhando várias feras nas mãos, de modo a
exibir o poder da consciência superior para repelir e domar os inimigos da luz.
A sabedoria, tornava-se, deste modo, numa via que permitia ao homem
identificar-se com um ideal de conduta e adoptar um estilo de vida que conduzisse à
santificação. Se os destinatários dos primeiros escritos eram os funcionários reais e o
seu objectivo era facultar ensinamentos para uma vida bem sucedida, à medida que nos
encaminhamos para o fim da civilização egípcia deparamo-nos com textos redigidos
para sacerdotes, com o intuito de educar para a santidade.
A influência e o peso destes modelos de conduta não devem ser subestimados,
sobretudo se tivermos em conta que a transformação espiritual estava profundamente
relacionada com as crenças do Além. A psicostasia, formulada no Império Médio,
pressupunha que o comportamento transformava o coração. A salvação ou a condenação
eternas deviam-se à capacidade do homem para agir de acordo com ordem cósmica. Ao
realizar a harmonia nos actos da vida corrente, o homem atraía para si a vida e a paz. Ao
386
fazer o que era odiado por deus, o homem atraía a morte e o castigo. Deste modo,
através das suas acções, o homem purificava ou corrompia o seu coração.
Esta reflexão era, em boa verdade, o fundamento da espiritualidade e constituía
o alicerce sobre o qual se desenvolvia a relação com o deus. A ideia de uma
transformação da consciência humana era, além do mais, transversal a praticamente
todos os géneros literários e foi formulada de acordo com os objectivos e o tipo de
leitores ou audiências a que se destinava. Esta ideia podia ser simplesmente apresentada
como um ideal de conduta a seguir para adquirir a excelência e a virtude ou, à medida
que a piedade pessoal se foi consolidando, como o meio para atingir uma transformação
profunda da consciência que seguia o modelo de nascimento divino formulado para o
faraó.
Deste modo, quer se destinasse ao rei, aos seus funcionários ou aos sacerdotes, a
literatura egípcia apresentava uma insistente preocupação em incutir um modelo de
conduta que propiciasse a transformação, em graus diferentes, da consciência humana.
A importância desta transformação residia, em última análise, no seu impacto na
manutenção da ordem cósmica. A maet no Egipto tardio dependia de uma «conversão
em massa» enquanto que, nos tempos áureos da monarquia, a transformação da
consciência do rei era o suficiente para assegurar o adequado funcionamento da
engrenagem cósmica. A dissolução da maet na piedade pessoal levou a que esta
transformação constituísse, cada vez mais, o sinal da intervenção de deus no destino
individual e na história. Através da propagação do ideal da iniciação, deus conduzia os
homens não só para a interiorização da maet, mas também para um novo horizonte
ontológico que os situava mais próximo dos deuses e do céu. Enquanto que, nos tempos
áureos da monarquia, o segundo nascimento possibilitado pela iniciação garantia a
instalação da ordem celeste na terra, no Egipto da Época Baixa constituía sobretudo um
meio para garantir a alienação terrena, a «subida» para uma dimensão celeste e o
encontro com deus.
387
3. A iniciação e a transformação da consciência
388
Esta nova formulação da criação teve um impacto profundo na espiritualidade
egípcia, sobretudo a partir da XVIII dinastia. Um vislumbre dessa influência detecta-se
na Teologia Menfita, onde a apresentação do modelo cosmogónico se articula com a
apresentação de um desígnio político e religioso. O texto não só advoga que o universo
se formou a partir da consciência do criador como lhe é consubstancial: uma parcela da
mente de deus está inscrita no «plano do coração», kaat hati (kAAt HAti) de cada criatura
viva. Este plano constituía uma ligação viva ao criador e a todas as restantes criaturas
através de um laço de amor. Para manifestar este plano, o homem, o rei em especial,
devia identificar-se com Hórus. Esta identificação implicava uma transformação do
pensamento e das palavras (ou acções). O rei devia pensar como Hórus e falar (ou agir)
como Tot. A partir desta transformação o rei passava a criar «palavras divinas», os
hieróglifos, o que significava que as suas obras manifestavam o plano do criador. A
coroação assinalava, por excelência, o momento dessa transformação, o momento em
que a sua natureza humana era investida com uma centelha divina que o identificava
com um netjer nefer. Esta transformação era encarada como um acontecimento cósmico
primordial que regenerava toda a criação.
O carisma real baseava-se nesta visão do soberano como um pilar cósmico para
exaltar as suas qualidades divinas. O coração real era, a todos os níveis, o modelo
terreno da consciência iluminada do criador. A identificação do rei com Sia, a
personificação divina do coração do deus supremo, ilustrava as suas faculdades de
planeamento e de discernimento excepcionais responsáveis pela eficácia da acção real.
Na guerra, o «coração firme» distinguia o faraó e revelava a sua dimensão sobre-
humana, identificando-o com a manifestação guerreira do deus sol. Outro atributo real
era a alegria, ou seja, a «dilatação da consciência», que advinha da adopção de uma
perspectiva impessoal e «cósmica» e traduzia um estado luminoso de comunhão com o
sol que resultava da compreensão da criação como uma unidade. A iniciação real,
baseando-se nas concepções mitológicas heliopolitanas, procurava transformar a
consciência do príncipe de modo a possibilitar a manifestação da sua centelha «divina»
e a dotá-lo de um «coração firme» (poderoso) e «alegre» (luminoso) capaz de o colocar
em relação directa com os deuses. O faraó era, deste modo, o símbolo máximo da
transformação interior proporcionada pela iniciação e constituía o modelo da perfeição
humana.
389
A fenomenologia da iniciação
390
símbolo de Khepri, ou a criança divina. Uma vez transformado e iluminado, o novo
coração hati era o rei do homem, a sede do deus Hórus que revelava o plano (kaat) do
criador. Passava então a ser o elemento de ligação ao faraó e ao sol.
Uma interessante visualização deste processo encontra-se nas composições
funerárias intituladas de «Livro da Regeneração». Aí, o percurso do defunto pela
geografia mística do Ocidente constitui a representação da iniciação que conduzia o
defunto a uma «iluminação» e «transformação» permanentes. Este percurso culminava
na representação dos quatro lemes do céu que, simbolizando as fronteiras entre a vida e
a morte, prefiguravam o renascimento do defunto sob a forma do disco solar impelido
pelos braços de Nun. Era a representação, por excelência, da iniciação (besi), da
«emersão» no mundo das divindades.
Em vida, esta iluminação não era, em regra, tão permanente e precisava de uma
renovação contínua que era garantida através da ingestão dos alimentos sacralizados
pelo culto. A importância da refeição ritual, uma espécie de «eucaristia» no sentido em
que efectivamente se tratava de uma comunhão com o criador, residia provavelmente
nas imagens «biológicas» usadas para descrever a consciência. O estômago, a sede do
coração ib, recebia o alimento que então se transformava em poder de vida espiritual
susceptível de transformar o coração hati. O processo da iniciação transpunha para o
plano «intelectual» o processo biológico mais basilar da vida. À imagem do estômago,
a consciência, devia receber a sabedoria que alimentava uma nova vida espiritualizada.
Alimentada permanentemente com a sabedoria e o alimento consagrado, a consciência
do neófito era agora simbolizada pela criança divina ou pelo escaravelho Khepri.
O processo do despertar da consciência lembra irresistivelmente, como sugere
Kruchten, a alegoria da caverna de Platão.1198 Como o prisioneiro que abandona a sua
caverna, o mundo inferior da consciência «comum», o iniciado descobre-se num mundo
novo e luminoso, mais próximo da realidade. Kruchten não afasta a hipótese de uma
inspiração directa de Platão no pensamento egípcio, em virtude da sua permanência no
Egipto durante a sua juventude. As ideias platónicas seriam, neste sentido, o reflexo das
entidades divinas que povoavam o mundo celeste.
1198
J.-M. KRUCHTEN, Les Annales des Prêtres de Karnak, p. 166.
391
Iniciação real
Regeneração na Duat
Passagem pelos portais do Além
Conhecimento das colinas do Além
Associação às sete vacas sagradas e aos quatro
lemes celestes
Regeneração pela vaca Ahet
392
associada a esta visão cosmogónica e assinalava as duas principais etapas da iniciação
sacerdotal: a purificação e a transformação.
O amuleto do coração simbolizava o coração ib (na verdade, este objecto
consiste na transposição para três dimensões deste signo) e evocava a purificação da
consciência do indivíduo através da sua ligação permanente ao cosmos e às águas
celestes regeneradoras. Antes de mais, o amuleto cordiforme, sobretudo o de tipo vaso,
simbolizava a regeneração espiritual do homem, através da sua ligação à mãe cósmica, a
fonte de vida. Esta ligação era garantida pela sabedoria, pois eram os preceitos da maet
que ligavam o homem à harmonia cósmica.1199 O amuleto de tipo vaso usado na vida
terrena deve assim ser entendido como a imagem da receptividade da consciência
humana perante a sabedoria divina. O simbolismo do amuleto cordiforme, sendo alusivo
às águas do Nun, parece ajustar-se ao momento de dissolução, em que, purificada pela
sabedoria, a consciência do neófito se dissolvia no amor divino.
O escaravelho alado (mais do que o escaravelho do coração cujo uso
permaneceu exclusivamente funerário), manifestaria a «formação», ou a
«transformação» da nova consciência. O escaravelho assinalaria, assim, a «revelação»
(besi), a experiência mística que resultava numa «transformação» interior que o
aproximava de uma divindade. O escaravelho era, portanto, a imagem do segundo
nascimento, da transformação espiritual que assinalava a identificação entre a
consciência e o sol nascente. Era, em suma, o símbolo da consciência divina.
Neste contexto ritual, os amuletos «cardíacos» articulavam-se de modo a
entrever o papel que, mais tarde, teriam na vida do Além, onde se verificaria a
derradeira e definitiva iniciação e onde a consciência do homem se deveria associar
permanentemente ao ciclo do sol. Para além de fazerem alusão a dois momentos
distintos da iniciação sacerdotal, os dois objectos ilustravam também os dois momentos
fulcrais da iniciação real. O amuleto cordiforme fazia alusão ao cerimonial de
purificação e assinalava o regresso redentor ao tempo mítico da criação capaz de
devolver uma pureza prístina ao coração, ao passo que o escaravelho assinalava a
coroação, ou seja, a manifestação do rei como Atum, o despertar da centelha divina do
soberano e a sua iluminação.
Uma outra forma de ilustrar a complementaridade entre o amuleto cordiforme e
o escaravelho solar era através da representação das crianças divinas. Com efeito,
1199
O conhecimento (rekh) teria como efeito proporcionar uma «visão» de toda a realidade cósmica
apreendida na sua unidade íntegra e indissolúvel da qual resultava a iluminação da consciência do neófito.
393
quando se encontram munidas do amuleto cordiforme, estas divindades reuniam os dois
símbolos da consciência divinizada: o amuleto cordiforme, símbolo da iluminação, e a
própria criança solar, que constitui outra manifestação do sol matinal, equivalente ao
escaravelho sagrado.1200 A vitória da luz sobre as trevas era o corolário da iniciação e a
expressão visível do segundo nascimento operado na consciência do neófito. Deste
modo, para além de assinalar a pureza, o amuleto cordiforme era também um objecto
apotropaico pois afastava os inimigos da ordem maética.
Devido à grande riqueza de conteúdos simbólicos, a utilização do amuleto
cordiforme na vida terrena sofreu uma evolução notável. Inicialmente o amuleto
cordiforme de tipo vaso representava a consciência iluminada do rei e teve uma
utilização muito restrita, limitando-se ao rei ou aos seus homens de confiança, a quem
os poderia oferecer a título de condecoração, como prémio pela sua inteligência e
sabedoria. No entanto, à medida que foi perdendo as prerrogativas reais, o amuleto
começou a ser usado como sinal da presença divina e do seu poder para afastar as
influências nocivas. Foi sobretudo com este sentido que o amuleto cordiforme se
generalizou na Época Baixa, originando uma disseminação na sua produção e uso. O
amuleto cordiforme de tipo cornija, o mais comum na Época Baixa, ilustra, por
excelência, a transformação da consciência por acção da divindade. Sugerindo a forma
do naos, o relicário que albergava a imagem do deus, o amuleto comparava o coração
ao próprio habitáculo da divindade, um reduto intocado da pureza primordial que
renovava e vivificava o homem com o poder de vida. Usado na vida terrena, o amuleto
de tipo cornija assinalava a purificação da consciência e comparava-a a um novo
nascimento e à cura espiritual, no sentido amplo do termo.
A mensagem iniciática contida no amuleto cordiforme foi ainda aplicada a um
sem número de objectos de grande valor ritual e cerimonial. Certos amuletos
cordiformes ocos, com a forma de um vaso, eram usados no culto divino, para conter
unguentos ou perfumes, simbolizando provavelmente a acção transformadora da
divindade sobre a consciência humana. Com este sentido, foram esculpidos vasos de
pedra usados como almofarizes. Também aqui, a forma do coração pretendia sublinhar a
transformação a que as matérias primas deviam ser sujeitas para adquirir as
propriedades desejadas na confecção de uma obra divina (quer fosse um medicamento
1200
Deste modo, um significado «iniciático» pode sobrepor-se à representação da criança divina que
assim simbolizava o nascimento da consciência divina através da iluminação (garantida pela pureza das
águas primordiais simbolizada no amuleto cordiforme).
394
ou um colorante usado na pintura de uma estátua). Já nos ferrolhos das portas
monumentais dos templos, o amuleto cordiforme constituía uma alegoria da iniciação,
onde a pureza e o conhecimento esotérico se afirmavam como requisitos essenciais para
que o acesso às áreas mais secretas do templo fosse facultado ao neófito e os seus
mistérios lhe fossem revelados. A articulação entre os vasos monumentais e as gárgulas
veiculavam a mesma ideia: a vigilância sobre a consciência fazia descer a água da vida
ao coração. Nos instrumentos de medida, por outro lado, o amuleto cordiforme alertava
para a necessidade do homem se equilibrar com a ordem maética, para que as suas obras
fossem justas e compatíveis com a harmonia cósmica.
Em qualquer destas aplicações, a mensagem convergia para a mesma ideia central: para se divinizar, o homem devia
purificar a sua consciência e «encher-se» com a sabedoria divina. Esta transformação verificava-se graças à interiorização da maet
que o levava a estabelecer uma ligação íntima e perene com o próprio cosmos. Deste modo, o amuleto cordiforme representava
sempre um estado de «ligação» ao cosmos e assinalava a consciência transformada pelo poder da harmonia.
1201
M. MALAISE, Les Scarabées de Coeur, p. 79.
1202
Ver L. ARAÚJO, Antiguidades Egípcias, p. 273. O escaravelho assinalava, deste modo, o despertar de
uma vida nova através do regresso ao tempo mítico da criação. Esta ideia perpassa em variadas
composições iconográficas que se podem detectar na joalharia mágica. O famoso peitoral de Tutankhamon
apresenta justamente esta associação do escaravelho ao imaginário da regeneração e da cura. Quando
associados ao escaravelho, os símbolos da criação do mundo servem o propósito de propiciar a regeneração
através do regresso ao tempo primordial da criação. Ver anexo II I 3.
395
introduzindo-o, através desta identificação, no ciclo de renovação eterna do sol.1203 O
símbolo do escaravelho remetia para um significado obstétrico, fazendo alusão ao parto
do defunto que renascia no Além numa manifestação solar. O escaravelho representava,
deste modo, a consciência solarizada que se eternizava num perpétuo ciclo de morte e
renascimento (neheh). Em suma, o amuleto propiciava a identificação do defunto ao sol,
ao princípio masculino, e estava associado ao eu corporal. A colocação do escaravelho
na múmia parece associada à libação fúnebre, o «fluxo» de Osíris, que devolvia a vida
ao corpo ressequido do defunto.
O amuleto do coração, por outro lado, associava-se à justificação (à
mumificação moral) e, possivelmente, seria depositado na múmia ou na estátua do ka
durante as cerimónias celebradas no pátio solar, como a elevação do defunto sobre o
monte de areia. A colocação do amuleto estaria associada a divindades masculinas
como Hórus ou Tot e tinha lugar por ocasião da psicostasia, onde constituía uma
«condecoração» que o identificava com a sabedoria e a luz do criador e lhe permitia
mergulhar no oceano primordial e remontar ao tempo da origem do mundo para
assegurar o renascimento sob a forma do sol nascente.1204 O amuleto do coração
constituía, deste modo, uma espécie de «memorial» que assinalava a excelência do
comportamento do defunto durante a vida terrena e reflectia a transformação da
consciência através da sabedoria. Em suma, no contexto funerário, o amuleto
cordiforme, simbolizava a consciência terrena avaliada no tribunal de Osíris que ficaria
preservada no tempo djet. O amuleto do coração era o passaporte para o banho
purificador nas águas do Nun e o testemunho da sua virtude. Estava associado ao eu
social e constituía uma ligação ao princípio feminino e materno das águas primordiais
redentoras, à mãe cósmica.1205 O amuleto cordiforme era, deste modo, um sinal da
sintonia do defunto com o cosmos.
1203
A. SHORTER, «Notes on some funerary amulets», JEA 21 (1935), pp. 174-176.
1204
A psicostasia assinalava, com efeito, o regresso do defunto ao tempo primordial da criação e o seu
renascimento sob a forma de uma criança divina. A vinheta da psicostasia não era um mero processo
mágico destinado a assegurar um resultado favorável na pesagem do coração. A importância e o
significado desta vinheta acompanha o desenvolvimento da espiritualidade egípcia ao longo de um
milénio e meio de história e apresenta uma sobreposição constante de novos significados. Se inicialmente
representa apenas a justificação do defunto (tipo I e II), cedo passa a ilustrar um processo que visa a
divinização do defunto (tipo III). O próprio processo da medição começou a assinalar o regresso do
defunto ao tempo primordial da criação e o seu renascimento sob a forma de uma criança divina (visível a
partir das representações de tipo V). Finalmente, a cena acabou por ilustrar a integração do defunto
renascido, assimilado a Nefertum, o sol primordial, no seio da multiplicidade de deus, do qual passava a
constituir mais uma das suas variações caleidoscópicas.
1205
Conhecemos apenas um único, mas eloquente, testemunho desta ligação da deusa ao amuleto
cordiforme no ataúde antropomórfico conservado no Museu Nacional de Arqueologia de Lisboa (Ver
396
O significado dos amuletos do coração conheceu uma permanente actualização,
que se concretizou num valor profiláctico dotado de uma grande abrangência. Os
primeiros amuletos a serem especificamente confeccionados para um uso funerário
concentravam a sua acção apotropaica sobre o momento da psicostasia. Esta
especialização motivou a criação de uma versão do amuleto em forma de semente. Estes
objectos, inspirando-se nos pêndulos usados nas balanças, exerciam a sua função
apotropaica especificamente sobre a psicostasia, simbolizando a virtude, a harmonia e o
equilíbrio comprovados em vida. Um outro amuleto funerário encimado com cabeça
humana também conheceu uma difusão notável e representava a identificação do
defunto com Osíris, contribuindo assim para a sua justificação no Além. Ao nível da
decoração, todos estes objectos revelam um grande interesse pelo capítulo 30 B do
«Livro dos Mortos», o que, na verdade, se justificava, pois era na psicostasia que a sua
acção se concentrava.1206 No que toca à iconografia, a ave benu era um símbolo muito
frequentemente representado pois assegurava um eficaz renascimento do defunto tanto
numa existência perene, djet, como nos ciclos de renascimento, neheh. Também por
essa razão o escaravelho foi frequentemente representado sobre o amuleto (e vice-
versa).
Esta preocupação em associar as duas dimensões da morte justificava-se pois, na
verdade, estavam associadas. O resultado da psicostasia abria as portas à regeneração do
defunto no seio da Duat e ao seu renascimento solar. O amuleto cordiforme relacionava-
se com o escaravelho do coração na medida em que consistia numa espécie de «salvo
conduto» para o renascimento sob a forma do sol nascente, a transformação última da
consciência requerida para a sua integração no ciclo neheh da eterna renovação do sol.
Os dois amuletos chegaram mesmo a associar-se numa única peça que articulava os
destinos do morto no tempo djet e no tempo neheh. Desta forma, no plano funerário, o
escaravelho e o amuleto cordiforme parecem ter sido associados de modo a articularem
a dualidade entre Ré e Osíris, respectivamente.
anexo IV 4.B 1.) A deusa, representada no fundo do ataúde exterior, tem os braços abertos e o peito
desnudado sobre o qual figura um amuleto cordiforme de grandes dimensões. Esta representação
documenta uma relação que, noutros documentos, já se adivinhava: o amuleto assinalava a identificação
entre o defunto e o sol, a qual era possibilitada graças à gestação operada por Nut.
1206
Com a passagem dos anos, estas representações funerárias esmoreceram e, em plena Época Baixa, os
amuletos cordiformes funerários não apresentam qualquer especificidade em relação aos objectos usados
em vida. Mais parece, na verdade, que o seu valor apotropaico passou a cingir-se ao que possuía em vida,
canalizando a pureza original da criação para garantir o uso da força da vida pelo morto.
397
6. A simbólica dualista do coração
398
Reflexo deste arquétipo pode ser encontrado nas lendas do Santo Graal que ilustram, no
ambiente cristão, a necessidade de empreender uma purificação interior para comungar
da divindade de Cristo.1207 A perfeição divina, simbolizada no Graal, conquistava-se
através de uma «transformação radical do espírito e do coração». 1208 Galaad, o cavaleiro
que, depois das tentativas falhadas de Lancelot e de Parsifal, conseguiu atingir o Graal,
simbolizava assim a pureza de coração necessária para a comunhão espiritual com
Cristo. Tal como no antigo Egipto, o cálice sagrado era a imagem da transformação
espiritual realizada no coração humano para se empreender a comunhão com Deus.
O coração hati era a fonte de energia e da força motriz que sustentava o
funcionamento do corpo. O seu aspecto activo e dinâmico conferia-lhe um carácter
«masculino». O coração hati, que no vocabulário anatómico estava associado à víscera
do coração, parece perfilar-se como a dimensão volitiva e intelectiva da consciência, a
qual se materializava no seu palpitar dinâmico. O próprio signo hieroglífico utilizado, a
parte dianteira do leão (o signo F4 de Gardiner) usado para redigir os termos
«comandante» ou «governador», tinha fortes conotações solares e simbolizava a defesa
contra os inimigos da luz, razão pela qual a vigilância era um dos principais atributos
deste animal. Decalcando a função do leão, o intelecto devia estar sempre vigilante para
garantir a pureza dos pensamentos e acções do indivíduo. Era, portanto, este elemento
anímico que criava as condições de ordem e de pureza requeridas para a transformação
interior. O vaso e o leão, associados ao estômago e à víscera do coração,
respectivamente, constituíam, deste modo, duas imagens que simbolizavam os dois
aspectos complementares do coração: a emoção e o discernimento.
Os dois termos «cardíacos», oriundos do vocabulário anatómico, imprimiam,
deste modo, um sentido dualista, rico em metáforas, que permitia explorar a vida
consciente como uma totalidade dinâmica. Como em muitos outros aspectos do
pensamento egípcio, a dualidade entre o coração ib e hati expressava, na vida humana
(quer no plano físico, quer na vida mental), a harmonização que devia existir entre os
dois princípios cósmicos responsáveis pela manutenção da ordem cósmica. Os termos ib
1207
A inacessibilidade do Graal ilustra a aventura espiritual e a exigência de interioridade, exigidas para
«abrir a porta da Jerusalém celeste onde resplandece o cálice divino». Em J. CHEVALIER, Dicinário dos
Símbolos, p. 357. Evidentemente esta formulação do Santo Graal corresponde a uma etapa tardia da
evolução deste símbolo, reflectindo uma profunda reformulação cristã. A caracterizam inicial, mais
afastada das referências do cristianismo, não revelam a mesma associação entre o Santo Graal e a
demanda da pureza espiritual. Ver J. VARENNE, O Graal, pp. 29-48. Um impulso decisivo na
espiritualização do Graal foi dado pelos monges cistercienses que através deste símbolo propagavam uma
mística centrada sobre a graça, a fé e a contemplação.
1208
Ibidem
399
e hati manifestavam, deste modo, os eternos princípios feminino e masculino que
estruturavam todo o cosmos. Num certo sentido, eram a materialização de Chu e Tefnut
na vida humana: o coração hati irradiava a luz e o sopro da vida, à semelhança de Chu,
ao passo que o coração ib, associado à água primordial, Tefnut, veiculava a ligação do
homem à fonte da vida e à regeneração.
Em resultado desta visão dualista, podemos acrescentar uma última leitura do
simbolismo dos amuletos «cardíacos», uma vez que, nesta óptica, o amuleto do coração
e o escaravelho solar podem ser vistos como símbolos destes princípios cosmológicos
que regem o funcionamento do mundo. Desta forma, o amuleto cordiforme podia evocar
as águas e o mundo indiferenciado do Nun, ao passo que o escaravelho do coração
simbolizava o sol e as «formas» de vida. Encarados nesta perspectiva mais abrangente,
os símbolos «cardíacos» transcendiam a própria evocação da consciência humana e
simbolizavam a dissolução e a formação, os dois princípios cósmicos complementares
que regiam a transformação da matéria. Estabelecia-se assim uma continuidade natural
entre o cosmos, o corpo e a mente. A insistente associação da temática dualista ao
coração mostrava que, tanto o corpo como a consciência, eram regidos pelos mesmos
princípios cósmicos que regiam toda a criação.
400
orgânico e inspirou-se, em larga medida, no funcionamento «biológico» dos órgãos ib e
hati. A representação da consciência era, deste modo, essencialmente vitalista, uma vez
que transpunha para o plano da consciência os fenómenos subjacentes à vida. Esta
perspectiva vitalista influenciou a caracterização da noção de coração em vários
aspectos que vamos em seguida definir.
Em primeiro lugar, no plano mental, a relação entre o coração ib e hati foi
explicada a partir da relação orgânica entre o estômago e o músculo cardíaco. Não deixa
de ser interessante constatar que esta mesma inspiração se encontra na base de uma das
mais importantes teorias psicológicas da actualidade, o constructivismo genético,
formulado por Jean Piaget. Também este importante psicólogo construiu toda a sua
teoria sobre a génese da inteligência a partir dos fenómenos básicos de adaptação da
vida.1209 Para este autor, a inteligência é uma adaptação da vida e funciona exactamente
com os mesmos princípios que estão na base da sobrevivência de qualquer organismo,
ou seja, através da aplicação dos processos da assimilação e da acomodação. O que é
surpreendente é que estes processos identificados por ele como princípios básicos do
funcionamento da vida e da inteligência, podem perfeitamente ser atribuídos aos nossos
corações ib e hati. A assimilação, dirigida para o exterior e para a apropriação dos
objectos, identifica-se com o funcionamento do coração ib, chave da integração cósmica
do indivíduo e da sua sintonização com a maet. A acomodação, consistindo num
processo de transformação interior em resultado da integração de um novo elemento,
identifica-se com o coração hati, a consciência transformada do indivíduo.
Outro aspecto comum entre a teoria de Piaget e a antiga «psicologia» do vale do
Nilo reside na concepção da inteligência como uma propriedade da vida. A Teologia
Menfita concebia esta inteligência como o resultado entre uma interacção dinâmica
entre as informações do meio e o «plano» (kaat) que o criador incutiu em cada criatura
viva. Este plano constituía um modus operandi, uma forma de funcionar, de organizar o
funcionamento do corpo, ou seja, era uma extensão da própria inteligência da vida. O
constructivismo genético formulado por Piaget assentava precisamente neste
pressuposto. Para o biólogo suíço, a inteligência era uma das formas que os organismos
desenvolveram para se adaptarem ao meio ambiente. Tal como o kaat inscrito no
criador em cada criatura, a inteligência era, para Piaget, geneticamente programada. Os
estádios de desenvolvimento da inteligência apresentam, nesta óptica, um «caminho»
1209
Para a afinidade entre o pensamento e a biologia ver J. PIAGET, Epistemologia Genética, Vozes,
Petrópolis, 1971 e Idem, Biologia e Conhecimento, Vozes, Petrópolis, 1973.
401
evolutivo orientado geneticamente. A actualidade desta perspectiva continua a reflectir-
se em importantes articulações científicas que marcam o pensamento dos nossos dias.
Os estudos sobre o código genético que estão a revolucionar a ciência e a sociedade
actuais, apresentam uma visão da inteligência como o resultado literal da interacção
entre o «plano» genético e o meio ambiente. Se pensarmos no enorme contributo que
estas perspectivas forneceram para a civilização poderemos facilmente constatar a
importância e o «rasgo» que esta perspectiva representa num texto cujas ideias mestras
remontam aos séculos XIII-XII a. C.
Este paralelismo serve apenas para ilustrar como, apesar da enorme diferença de
horizontes entre ambas, a teoria de Piaget e a visão dualista da consciência humana
elaborada no antigo Egipto partilham de um pressuposto idêntico, o de que a vida e a
consciência constituem aspectos da mesma realidade. No antigo Egipto, esta perspectiva
vitalista da noção do coração prende-se com a inspiração solar dos seus ideólogos. A
cosmogonia heliopolitana fornece, com efeito, uma segunda imagem orgânica para o
funcionamento da consciência que consiste na formulação de um paralelo entre o sémen
e o pensamento do criador.1210 A transformação espiritual do homem evolui através
desta imagem biológica. Se a sabedoria veicula o pensamento (sémen) do criador, a
consciência humana (comparada a um vaso) era o «ventre» que este fertilizava para
originar uma nova vida.
A transformação operada pela fecundação do pensamento divino concretizava-se
num parto, a terceira imagem biológica usada para caracterizar o funcionamento da
consciência. A imagem da nova consciência transformada era a do escaravelho que,
com os seus élitros, evocava as suturas cranianas do novo ser emergente. No Além, este
nascimento era assinalado com a psicostasia, a qual era, por excelência, um ritual de
passagem de carácter obstétrico: redimia o defunto com o regresso ao tempo mítico da
criação, possibilitando o seu nascimento sob uma forma divina. Este parto decalcava o
modelo cosmogónico do nascer do sol. A nova consciência iluminada assinalava uma
nova vida transformada através da identificação da consciência do homem com a
consciência cósmica simbolizada no sol. O carácter divino do coração residia
precisamente nesta identificação entre o coração hati e o sol, entre o cosmos e o corpo
do homem. É a partir desta identificação que se estruturou a caracterização do coração
1210
De facto, a versão «mental» da criação estabelecia um paralelo entre a consciência do criador e o seu
sexo. Ambos eram a fonte da vida e manifestavam-na de diferentes modos: através do pensamento ou
através do sémen. O potencial fecundador de ambos é o mesmo.
402
como o templo do deus pessoal. Primeiramente aplicado ao rei, ao longo do tempo, esta
noção da iniciação foi sendo progressivamente «demotizada» até atingir a versão
helenizada descrita pelos autores clássicos. Foi provavelmente a divulgação desta
identificação entre o coração hati e o sol que explica o progressivo desinteresse pelo
coração ib, o qual acabou por desaparecer totalmente nas versões tardias da língua
egípcia como o copta.
Uma última observação se impõe ao explorar as bases corpóreas das noções
espirituais «cardíacas». O próprio ideal proposto pela iniciação, buscava a sua
inspiração nos ritmos da vida. Num certo sentido, o escaravelho do coração e o amuleto
cordiforme ilustravam um complexo fenómeno de transformação espiritual cuja
inspiração partia da simples observação ritmos que regiam a vida. No ser humano, a
consciência (e o corpo) alternava quotidianamente entre o estado de vigília e o estado de
sono. Os símbolos da consciência podem, nesta perspectiva, evocar as diferentes
modalidades da consciência e o seu contributo para a manutenção da vida. O amuleto
cordiforme, evocando a dissolução nas águas primordiais constitui o símbolo da
consciência impessoal (ou inconsciência), enquanto que o escaravelho traduz a
emergência da consciência de si, característica do estado de vigília. Tal como o cosmos
egípcio que, para se renovar continuamente, tinha periodicamente de imergir nas águas
da cheia, também a consciência humana se devia periodicamente dissolver para emergir
num plano superior. Partilhando a mesma visão unitária entre a matéria e a consciência,
os alquimistas designariam estes princípios por solve et coagula. Para obter a
transformação da matéria, o alquimista devia-a dissolver, desfazendo as ligações e
quebrando as formas primitivas. Esta fase do opus buscava o regresso ao caos
primordial e à indiferenciação, razão pela qual era evocada como nigredo ou Obra a
negro. Tratava-se, portanto, de uma alusão ao valor transformador da putrefacção. Na
Artis Auriferae pode ler-se o seguinte:
A putrefacção filosofal consiste na corrupção ou destruição dos corpos; porque, mal uma forma é
destruída, a natureza introduz logo outra no seu lugar, simultaneamente melhor e mais subtil.
Esta etapa consistia deste modo, numa morte purificadora, num regresso
regenerador às trevas. Na etapa seguinte, a albedo, ou a Obra a branco, «o que sai do
negro deve ser lavado», começando assim uma transformação marcada pela água. A
ablução purificadora permitia a passagem da negrura à brancura, ou seja, a água voltava
403
a dar vida ao que estava morto. Esta reanimação assinalava o início de uma nova etapa
transformada pela luz. A rubeda, ou a Obra a vermelho, assinalava, por fim, um novo
nascimento:1211 a matéria tornava-se luz e diferenciava-se numa nova forma distinta e
única. Concretizava-se aqui o coagula, a manifestação de uma nova forma, mais subtil e
pura que a anterior. O vermelho assinalava o triunfo da vida sobre a morte e o
nascimento do «rubi precioso», ou a Pedra de sangue, evocativa do coração animado
por uma nova vida e por uma nova consciência luminosa e imortal.1212 A transformação
da matéria descrita pela alquimia era evidentemente uma metáfora para uma
transformação mais ampla de ordem espiritual.
Ao passar em revista esta sequência é difícil não estabelecer pontos de
equivalência com as fases da iniciação que identificámos nas fontes egípcias. A própria
ideia, tão central na alquimia, de transformar os metais em ouro, é referida
explicitamente nas fontes egípcias como uma consequência da besi, a iniciação. O solve,
por outro lado, parece evocar o regresso às águas informes do Nun, onde a consciência
se dissolve por acção do amor divino, enquanto que o coagula, parece identificar-se
perfeitamente com a «transformação» da consciência obtida com a iniciação. Também a
alusão à Pedra de sangue, como metáfora para exprimir a transformação do coração
através da iniciação, se coaduna com o eventual uso do amuleto cordiforme e/ou do
escaravelho alado para assinalar as etapas da iniciação. Estas correspondências
detectadas não nos devem surpreender excessivamente sobretudo se pensarmos que os
conhecimentos alquímicos derivaram do hermetismo, uma versão helenizada da
sabedoria egípcia que se desenvolveu no ambiente egípcio, numa época em que os
templos, os depositários deste saber, ainda funcionavam em pleno.
A comparação com a transformação alquímica deve, portanto, alertar-nos para a
permanência das velhas concepções faraónicas relativas à transformação da consciência
em ambientes culturais muito diversos como o Helenismo e mais tarde, a Europa do
Renascimento. O segredo para uma tal permanência residia na consistência do ideal de
vida proposto pela antiga sabedoria do país do Nilo que, deste modo, almejava, através
do auto-domínio e da ligação a deus, transcender as limitações da vida terrena e
ascender a um estado de consciência supra-humano que fazia o homem sintonizar-se
harmoniosamente com a ordem cósmica. A «dilatação de consciência» não era, além do
1211
Em certos casos estipula-se uma fase intermédia denominada citrinitas ou Obra a amarelo,
vocacionada para o aquecimento e «secagem».
1212
Ver C. SÉDILLOT, Alquimia, pp. 171-194.
404
mais, um ideal abstracto. Pelo contrário, este estado era metódica e conscientemente
procurado através de uma mudança profunda no modo de viver, de pensar e de sentir.
O estudo da noção do coração no antigo Egipto devolve-nos, deste modo, um
modelo de compreensão da consciência capaz de estimular o nosso próprio
entendimento acerca dos processos mentais que suportam e favorecem a «cura». Neste
domínio, podemos, de facto, buscar inspiração no antigo modelo antropológico do vale
do Nilo que, há mais de três mil anos, reconhecia a estreita ligação entre os estados de
consciência e a saúde, antecedendo assim as questões que actualmente começamos a
colocar no domínio da neurociência. Neste como noutros domínios, o olhar sobre o
passado continua a fornecer-nos pistas para compreender o dinamismo secreto da vida.
405
406
EXCURSO
O caminho para o Ocidente
407
408
Depois de termos caracterizado a noção de coração no antigo Egipto, não
409
Tal como acontecia no antigo Egipto, a literatura bíblica apresenta um retrato
multifacetado da noção de coração. Apesar do papel fundamental na manutenção da
vida física, nos textos bíblicos, os termos «cardíacos» do hebraico, lev e levav, são
quase sempre utilizados de uma forma metafórica aludindo sobretudo a estados
emocionais ou a fenómenos da consciência. Eloquente acerca do papel secundário que a
dimensão física do coração desempenha nos textos bíblicos, é o reduzido número de
expressões que no Pentateuco apresentam este sentido.1213
Como no Egipto, o coração era, em Israel, a sede das emoções e do afecto. 1214 O
coração também era a sede da coragem e da força moral.1215 Mais determinante ainda
era o papel do coração no pensamento, no conhecimento e na relação com Deus. Por ser
tão determinante abordaremos este aspecto separadamente. Começaremos por chamar a
atenção para os modelos de virtude e de impiedade veiculados nos textos do Pentateuco
e definir a caracterização do coração que lhes está associada.
1213
A expressão «reconfortar o coração», patente em Gn 18,5, é um destes raros casos. A expressão tem
um significado eminentemente físico, relacionado com a experiência de retemperar as forças do corpo,
através de abluções refrescantes e da ingestão de alimento. O mais curioso é que a expressão não é
aplicada, como seria de esperar, a um ser humano, mas sim a Deus e aos seus anjos que se apresentam
diante de Abraão como três viajantes.
1214
A expressão «alegrar-se no coração», surge em Ex 4,14, num relato javeísta e decorre do contenta-
mento resultante do encontro com alguém muito estimado (neste caso Aarão «alegra-se em seu coração»
ao ver Moisés). «Falar ao coração» é uma expressão interessante pois traduz o desejo ardente de persuadir
alguém sobre a intensidade dos seus afectos. Em Gn 34,3 Siquém «fala ao coração» de Dina, depois de a
ter raptado e violado, procurando persuadi-la a casar. Do mesmo modo, em Gn 50,21 José dirige-se aos
irmãos transtornados de forma a tranquilizá-los. A expressão ocorre sempre em situações de culpa ou de
arrependimento, quando alguém procura persuadir o interlocutor sobre os seus sentimentos. Ver NIC,
comentário a Gn 34, 3.
1215
Ao expor as leis da guerra, o redactor deuteronomista usa várias expressões relacionadas com o medo
ou a coragem. A expressão «temor do coração», surge precisamente neste contexto (Dt 20,3): antes da
guerra, o sacerdote devia advertir o povo para não temer o inimigo. Banir o medo dos corações era, em
conjunto com a confiança em Deus, uma condição fundamental para o combate . Ver SB, Dt 20,3, nota.
Em Dt 20,8, também se estipula que os oficiais deviam igualmente advertir o soldado «fraco de coração»
a abandonar o exército e a voltar para casa. A razão pela qual se convidava o medroso a não entrar no
combate relacionava-se com o perigo de fazer «desfalecer o coração» dos outros guerreiros. Se a força do
exército de Israel era a presença de Deus, para que Ele se manifestasse na batalha, o povo devia estar
inteiramente confiante. O «fraco de coração» podia impossibilitar este comprometimento.
410
10,27) e sacerdotais (Ex 13 ; 7,22 ; 8,15 ; 9,12 ; 11,10 ; 14,4 ; 14,8 ; 14,17 ) e reflecte a
influência da terminologia sapiencial egípcia na literatura bíblica.1216 «Duro de coração»
designava, na terminologia egípcia, o indivíduo orgulhoso que era incapaz de ouvir. O
«coração ouvinte», sedjem ib, uma das virtudes fundamentais da ética egípcia,1217
encontrava no «coração duro» o seu odioso antónimo que se revestia de características
tidas como muito negativas: insensibilidade e teimosia. No texto bíblico, a «dureza de
coração» está precisamente relacionada com a incapacidade para escutar a vontade
divina. Em princípio esta incapacidade resultava de uma atitude voluntária do indivíduo
para «não ouvir». No entanto, a partir de Ex 9,12, esta atitude resulta da intervenção
divina que «endurece o coração» do faraó. O faraó, tido no antigo Egipto, como uma
divindade, é caricaturado pelos redactores bíblicos para enfatizar a aberração de uma tal
atitude, constituindo o modelo antitético de Moisés que se afigura como o modelo do
homem inteiramente submetido à vontade divina. O coração endurecido impedia o
indivíduo de ouvir a vontade divina, levando-o a opor-se a esta. A expressão «coração
duro» (Ex 7,23) tem um sentido equivalente, bem como «coração pesado» que denota
uma atitude «insensível» ou «cruel».
Em contraponto a este retrato do faraó que resume na sua pessoa o
expressão «sábio de coração» ocorre em sete versículos (Ex 28,3 ; 31,6 ; 35,10 ; 36,1
; 36,2 ; 36,8 ; 35,25), sempre utilizada pelo redactor sacerdotal a respeito do povo
indivíduo mas uma dádiva de Deus (Ex 28:3) e, para se manifestar pressupunha a
35:25; construir o Templo – Ex 36:8; e realizar obras de arte – Ex 35: 35). Do povo
1216
NBC, Ex 7,13, nota.
1217
Ver Apêndice XI, p. cxxvii.
411
emergem os vultos de Beçabel e Ooliab, ou seja, os artistas por excelência do
seja, aquele que serve Deus através do seu trabalho. Do ponto de vista
espiritual.
1218
NBC, Ex 36,1, nota.
1219
O número de expressões derivadas dos termos do coração multiplica-se, sendo quase todas atestadas
pela primeira vez no redactor deuteronomista.
1220
Também o Terceiro Discurso (28,69-30,20 ), onde Moisés apresenta as últimas instruções, detém
cerca de 10 ocorrências, contrastando com as cinco patentes no Primeiro Discurso (1,6–4,43 ) e com as
duas registadas no Apêndice (31,1–34,12). Na totalidade da fraseologia «cardíaca» patente no
Deuteronómio, as expressões que se relacionam com o pensamento e a consciência são claramente
maioritárias.
412
importância do envolvimento pessoal do indivíduo no seu cumprimento, razão pela qual
se explica a preponderância dos vocábulos do coração.
Uma característica saliente do redactor deutoronomista consiste na exortação à
mudança interior através da adesão a uma nova forma de pensar inspirada nos
ensinamentos da Lei. Para o redactor deuteronomista era, de facto, a forma de pensar
que desempenhava o papel determinante no culto e na relação com Deus.
Esta mudança interior reflectia-se em «colocar no coração» os ensinamentos
bíblicos. Patente no versículo Dt 32,46, mesmo no fim do Deuteronómio, a expressão
reveste-se de uma enorme importância simbólica, constituindo uma das últimas e mais
essenciais advertências de Moisés. Dirigindo-se ao povo «pede-lhe», em tom de
ameaça, para «tomar/colocar as suas palavras no coração», o que significa, exactamente
como nos textos sapienciais egípcios, «reflectir», «prestar atenção» e transpor para a
prática.1221 Trata-se portanto de uma atitude crucial da qual dependerá a salvação ou a
perdição do povo de Israel.
Com um sentido idêntico, a expressão «examinar no coração» (Dt 4,39 e Dt
30,1) é um convite à compreensão da Le. Só depois de «examinar (Deus) dentro do
coração», ou seja, depois de compreender a fé, é que faz sentido cumprir os
mandamentos que então se tornam um meio de atingir a felicidade. 1222 De forma
complementar, no fim do livro, o versículo 30,1 completa o entendimento desta imagem
aplicando-a ao povo castigado pela sua infidelidade. Apesar do castigo, se o povo quiser
voltar a obedecer aos mandamentos, Deus acolhê-lo-á. Basta para isso que se disponha a
«examinar (o castigo) dentro do coração», ou seja a meditar sobre o castigo e daí retirar
os devidos ensinamentos. Esboça-se assim, através desta atitude, o característico
«compasso quaternário» preconizado pelo Deuteronómio.1223
A expressão «conhecer com o coração» (Dt 8,5) pressupõe uma aprendizagem
que decorre da experiência. O conhecimento de Deus não é abstracto: o povo aprende a
«conhecer com o coração» a presença de Deus, ou seja, é através da sua vida quotidiana
que compreende os ensinamentos da Lei.1224
1221
SB, Dt 32,46, nota. Nas cartas de El-Amarna, para recomendar o não fazer caso de alguma coisa, diz-
se: «que esta coisa não seja colocada no teu coração» R.B., 1922, p. 504 et n.1.
1222
SB, Dt 4,39, nota.
1223
Se «o povo peca, Deus castiga, o povo arrepende-se, Deus perdoa», Dias em BdC, pp. 207-208.
1224
No versículo em questão, o povo aprende a reconhecer nas dificuldades da vida a presença
disciplinadora de Deus que tenta, através de castigos, manter o povo na observância dos seus
mandamentos.
413
Por iniciativa do homem ou em resultado da acção divina, o redactor do
Deuteronómio convidava cada um a voltar-se para o seu próprio coração para
compreender verdadeiramente os mandamentos de Deus. Na verdade, graças ao amor
que unia o povo a Deus (Dt 6,4) «os mandamentos ficavam no coração» (Dt 6,6). A
expressão «ficar no coração» significa «pensar». Desta forma, o povo devia pensar nos
mandamentos e meditar sobre eles de modo a que a obediência não se reduzisse a uma
questão de legalismo, mas resultasse de uma verdadeira compreensão. 1225 Decorrente
desta concepção é a ideia de «gravar no coração» as palavras divinas, como num livro
(Dt 11,18) que, por sua vez, dará origem ao uso das filactérias, como explica o próprio
versículo.1226
Em suma, para o redactor deuteronomista, o coração tinha um papel
preponderante no culto pois era através dele que o homem compreendia os fundamentos
da Lei, reforçando assim a sua adesão aos mesmos. A atitude lembra o papel do coração
no vizinho Egipto, onde a piedade pessoal convidava o homem a «colocar o deus no
coração» através do estudo e da aplicação dos preceitos divinos.1227 No entanto, no
Egipto, esta atitude não se esgotava na compreensão e no conhecimento, levando à
manifestação do amor divino e à transformação do homem.
O essencial para o Deuteronómio era, deste modo, garantir a fidelidade à Lei.
Também para encorajar o respeito pela observância da Lei, o livro retrata com
características muito negativas, aqueles que não a respeitavam. Uma vez mais o coração
foi usado para ajudar a compor um modelo tipificado do ímpio ou infiel.
«Levantar o coração», por exemplo, referia-se a uma atitude de orgulho e de
altivez e era considerada a raiz de todos os males.1228 No livro, a expressão é utilizada
por Moisés que, diante da Terra Prometida, advertia o povo para o perigo de ser
corrompido pela abundância e de se esquecer de cumprir os mandamentos divinos. A
fartura trazia consigo o perigo de levar o povo a esquecer-se o seu compromisso com
Deus. Em Dt 17,20 o redactor dirige-se ao próprio rei de Israel, aconselhando-o, do
mesmo modo, a não «levantar o coração em relação aos seus irmãos». Neste caso, o
próprio livro do Deuteronómio seria para o rei um companheiro ajudando-o a manter-se
1225
NIC, Dt 6,6.
1226
Estas pequeninas caixas atadas à testa por faixas de couro encerravam um texto bíblico que, de uma
forma literal, mantinham as palavras divinas na mente do crente. Com uma função semelhante a mezuzah,
era também uma pequena caixa que continha igualmente um texto bíblico. Uma mezuzah descoberta nas
grutas de Qumran continha o Dt 10,12 e Dt 11,21.
1227
Ver Apêndice XI, p. xcv.
1228
A expressão surge em Dt 8,14 e Dt 17,20.
414
consciente da sua missão. Desta forma, o Templo reformulava assim a função da
realeza: a de «guardar as palavras da Lei» e velar pelo cumprimento desses preceitos.
Em Dt 17,17, ainda referindo-se ao rei, o Deuteronómio estipula que «o rei não
multiplicará as suas mulheres para que o seu coração não se endureça». A expressão
«endurecer o coração», refere-se à perversão moral causada pelo orgulho.1229 Neste
caso, o livro não condena tanto a actividade sexual do rei mas sim a multiplicação de
mulheres estrangeiras e o subsequente risco de penetração de cultos estrangeiros no
território de Israel.1230 Os casamentos políticos resultantes de alianças com outros países
eram assim encarados como um factor de perversão do rei e do próprio reino, afastando-
o da Aliança com o Deus de Israel.1231
«Não se deixar seduzir no coração» (Dt 11,6) é outra forma de advertir o povo
contra a perversão resultante do contacto com povos pagãos. «Seduzir o coração» surge
a respeito dos cultos de fertilidade, possivelmente os mais difíceis de combater e de
manter afastados do povo de Israel. A expressão tem uma conotação negativa e remete
para uma ilusão perigosa e perversa.1232
«Dureza de coração» ou «teimosia de coração» (Dt 29,18) retrata os que não
cumprem a Lei. Uma tal atitude era especialmente odiada porque, devido ao seu
desrespeito pela Lei, fazia recair sobre todo o povo o castigo divino. Um sentido
idêntico possui a expressão o «coração volta as costas» à Lei.1233 A metáfora era
utilizada para evocar aqueles que, entre a comunidade de Israel, teimavam em se afastar
do culto único preconizado pelo Templo de Jerusalém e se deixavam, nas palavras do
redactor deuteronomista, «seduzir pelos falsos deuses».1234
1229
SB, Dt 17,17, nota.
1230
Estas mulheres «n´entraient pás dans le harém du roi sans y apporter les moeurs et les goûts de leur
pays ; elles y introduisaient aussi leurs pratiques religieuses. Au nom de la politique (...) Salomon du
élever pour ses femmes des sanctuaires semblables à ceux de leur patrie, y dresser leurs idoles, y
accueillir leurs prêtres et leur conceder en plein territoire de Yahweh, des enclaves reservées, ou le
paganisme florissait.» DESNOYERS, Histoire du peuple hebreux, II, 149.
1231
NIC, comentário a Dt 17,17.
1232
A referência ao perigo de se voltar para deuses estrangeiros, embora comum no Deuteronómio, é
apresentada aqui por razões particulares. Os Cananeus acreditavam que a chuva era um dom divino (notar
que a água vem do Céu e não do rio como é o caso do Egipto) e era controlado por Baal/Hadad. Os
Israelitas tiveram o cuidado de reconhecer Deus como o dador das chuvas: o culto a outras divindades
implica a cessação das chuvas (v.17)
1233
NIC, comentário a Dt 29,17 e Dt 30,17.
1234
Com um sentido semelhante, a expressão «desviar/afastar o coração» traduzia o esquecimento. Em Dt
4,9, onde ocorre pela única vez no Deuteronómio, o redactor exortava a não desviar o coração da
Revelação da Lei no Sinai, ou seja, a não esquecer os ensinamentos. Dado que o esquecimento estava na
origem do afastamento do povo da Aliança, era vital mantê-la presente entre o povo. Em antítese a este
quadro de expressões conotadas com a imoralidade, o Deuteronómio apresentava um conjunto igualmente
rico de locuções que caracterizam os corações que se regem pelos mandamentos divinos. A expressão
«coração íntegro» ou «coração perfeito» é utilizada em Dt 19,6 curiosamente numa situação violenta que,
415
Em antítese a este quadro de expressões conotadas com a imoralidade, o
Deuteronómio apresentava um conjunto igualmente rico de locuções que
caracterizam os corações que se regem pelos mandamentos divinos. A expressão
«coração íntegro» ou «coração perfeito» é utilizada em Dt 19,6 curiosamente numa
situação violenta que, noutro contexto, seria reprovável. O vingador do sangue tem
um coração íntegro porque age legitimamente, ou seja, com justiça. A «integridade
de coração» refere-se assim ao homem justo.
A expressão «recto de coração» (Dt 9,5), possui um sentido equivalente
referindo-se ao justo, que cumpre os mandamentos.1235 «Abençoado no coração» (Dt
29,18) corresponde a um estado de paz de espírito que o pecador não terá.1236
Finalmente, o «bom coração» (Dt 28,47) constitui uma atitude entusiasta e alegre. Neste
versículo, «um bom coração» é condição para servir Deus. Por não ter esta atitude, o
povo é castigado com as maldições descritas no capítulo 28.
noutro contexto, seria reprovável. O vingador do sangue tem um coração íntegro porque age
legitimamente, ou seja, com justiça. A «integridade de coração» refere-se assim ao homem justo.
1235
Embora o sentido da expressão não seja directamente perceptível no texto, ela é colocada em paralelo
com a palavra «justo», e em antítese com «maldade/iniquidade» e «dura cerviz», (em Dt 9,6). A
expressão.
1236
A expressão é definida por oposição ao «coração duro», patente no mesmo versículo e constitui um
atributo do pecador.
416
essencial da sua mensagem: conduzir os fiéis ao cumprimento escrupuloso da Lei
preconizada pelo Templo de Jerusalém.1237
Neste âmbito, em Dt 10, 12, resume-se poderosamente a mensagem que é
cuidadosamente disseminada ao longo do livro através da fórmula «com todo o teu
coração e com toda a tua alma»: temer Deus, segui-Lo, amá-Lo e servi-Lo. A sua
importância reflecte-se, do ponto de vista arqueológico, na sua inclusão em objectos de
grande valor ritual e simbólico como é o caso das mezuzah encontradas nas grutas de
Qumran. O seu valor deve-se, sem dúvida, ao facto de reunir as principais ideias do
Deuteronómio, constituindo uma súmula dos Discursos de Moisés, destacando as suas
principais disposições: temer Deus (cf. 10,20), andar no seu caminho (cf.11,22), amá-Lo
(cf. 11,1;10,15) e servi-Lo ( cf. 10,20; 11,13).
Os vários requisitos têm um tema comum: a Aliança entre o povo e o Deus de
Israel. As cinco exigências elencadas são apresentadas como disposições particulares
que regulam esta aliança, segundo o modelo e a linguagem dos tratados políticos do
Próximo Oriente antigo, onde a terminologia amorosa desempenha um papel
preponderante. Congruente com esta influência, das cinco exigências elencadas neste
versículo, o amor por Deus é o mais central, sendo todas elas decorrentes do primeiro
mandamento: «O Senhor é nosso Deus, o Senhor é Único» (Dt 6,5).
É muito significativo que a maior parte destas ocorrências (Dt 6,5; 10,12; 11,13;
13,4) se verifiquem no chamado Segundo Discurso de Moisés, ao longo do qual se
procede precisamente à apresentação dos fundamentos da Aliança e das determinações
da Lei. Trata-se, no fundo, da formulação, pelo templo de Jerusalém, do desejo
premente de união da nação em torno de uma única fé que se tornou o pilar da
identidade do povo hebraico e que, para ser efectivo, tem de se alicerçar na aceitação
individual da obediência à Lei promulgada pelo templo. Ilustra na perfeição o tom
exortativo patente no Deuteronómio, com o seu recurso frequente a temas e frases
estereotipadas e repetitivas das quais esta é um bom exemplo e através das quais se
sintetizava o programa da nova sociedade emergente. Neste enquadramento, a adesão
individual e sem reservas à Lei era a condição para a salvação de todo o povo.
1237
Esta era, de resto, a preocupação dominante da época pós-exílica.
417
A circuncisão do coração
Como nas fontes egípcias, o Pentateuco apresenta uma curiosa analogia entre o
coração e o falo. Na base desta associação estava a prática da circuncisão que
simbolizava, por excelência, a sujeição do homem à Lei. Consagrando o órgão da
reprodução a Deus, a circuncisão simbolizava tradicionalmente a perfeição moral do
povo de Israel.1238 O redactor deuteronomista relaciona o ritual da circuncisão (há muito
praticado em Israel como símbolo da conversão espiritual), com a conversão interior e a
adesão plena aos preceitos da Lei. A esta adesão incondicional e total aos preceitos de
Deus, o redactor deuteronomista denominou a «circuncisão do coração». Tal como a
circuncisão assinalava uma sujeição do homem a Deus, a circuncisão do coração
designava a total subordinação da consciência à Lei e o seu aperfeiçoamento através da
graça de Deus.1239
No Pentateuco a expressão «coração incircunciso» surge pela primeira vez num
relato sacerdotal, em Lv 26,41, onde designa os prevaricadores do Código de Santidade,
aqueles que, entre o povo de Israel, não cumpriram os ritos estipulados ou, embora os
tivessem cumprido, apenas os realizaram exteriormente e sem fé. De salientar que a
expressão ocorre na sétima maldição, a mais genérica e a mais carregada de
simbolismo, resumindo assim todas as faltas que afastam o povo de Israel da Aliança
com o seu Deus.1240
A circuncisão do coração, é pedida por Moisés em Dt 10,16, no contexto da
exortação à obediência aos mandamentos, simbolizando a purificação da consciência,
através do cumprimento da Lei, e a sua consagração a Deus.1241 A utilização da
1238
Mesmo no contexto de Israel, a origem do ritual da circuncisão tinha conotações mágicas. Um
estranho texto javeísta atribui à circuncisão um significado propiciatório: «E aconteceu que, no
caminho, num acampamento, o Senhor veio ao encontro dele e tentou matá-lo. Séfora pegou numa
pedra e cortou o prepúcio do seu filho, tocou os pés de Moisés com ele, e disse: «Tu és para mim um
esposo de sangue». E Ele deixou-o. Daí ela dizer «esposo de sangue», a propósito da circuncisão. Ex
4, 24-26. Originalmente, o significado do ritual devia estar relacionado com a protecção mágica.
1239
Certas passagens mostram que o termo incircunciso era usado para designar não só o que era
impuro mas também o que era imperfeito. Veja-se o seguinte caso: «O Senhor falou a Moisés,
dizendo: “Vai falar ao faraó, rei do Egipto, para que deixe partir os filhos de Israel da sua terra.”
Mas Moisés falou ao Senhor, dizendo: “Eis que os filhos de Israel não me escutaram. Como vai
então escutar-me o faraó, a mim que sou incircunciso de lábios?”» Ex. 6,12. A expressão
«incircunciso de lábios» constitui um semitismo para indicar falta de eloquência. A expressão
também pode ser aplicada ao ouvido ou ao coração. Ver BS, Ex. 6,12, nota.
1240
Em idêntico contexto a expressão ocorre também em Ez 44:7, 44:9 e Jr 9:25.
1241
Por oposição um «coração incircunciso» está fechado à influência divina, do mesmo modo que o está
a «orelha incircuncisa» (Jr 4,4; 6,10; 9,26). A imagem de um coração incircunciso inspirou mesmo a
linguagem apostólica (Rom 2,29; Col, 2,2; Act 7,51). Cf. DIAS, NBC, p. 275, nota 16.
418
circuncisão como símbolo de pureza espiritual prende-se com o espírito de renovação da
Aliança do qual estava imbuído todo o Deuteronómio. Esta renovação, eivada por um
fervor que valorizava muito mais a atitude interior do que a aparência do ritual, vem
utilizar o sinal distintivo da antiga Aliança que Deus estabelecera com os patriarcas,
transformando-o num símbolo de pureza espiritual. A metáfora utiliza um acto que
evoca a Aliança, mas aplica-lhe um novo sentido que transcende a realidade física e
ganha contornos mais espirituais. A «circuncisão do coração» corresponde a um
compromisso que já não é apenas ritual e que abrange o indivíduo na sua
interioridade.1242 Doravante a aceitação dos mandamentos não poderá ser superficial,
passando a reflectir a disponibilidade e a aceitação através das quais o povo de Israel
exprime o seu amor pelo Deus da Aliança, tal como é requerido em Dt 10,12.
Em Dt 30,6 a metáfora da «circuncisão do coração» é utilizada de forma
diferente. Enquanto que Dt 10,6 apresentava esta atitude em resultado da iniciativa do
povo, de uma predisposição, neste versículo o redactor deuteronomista apresenta esta
atitude como um dom divino. A Nova Aliança permitiria renovar o comprometimento
do povo com Deus dado que é Ele que transforma os homens e corrige as suas
limitações espirituais. De acordo com esta perspectiva, é Deus que «opera» o coração
do homem, extirpando-lhe as impurezas, tal como os sacerdotes removem a glande.1243
Também em Dt 30,14 Deus é apresentado como o autor da circuncisão do coração.
Através da circuncisão do coração, estabelece-se uma relação de intimidade sem
precedentes entre Deus e o povo,1244 porque era através dela que a Lei era colocada no
coração do homem, como uma promessa de redenção. Mais interessante é, no entanto, a
articulação entre a dimensão consciente, da compreensão da Lei, e a dimensão moral
que respeitava à sua aplicação. A boca e o coração eram aqui apresentados como órgãos
produtores de conhecimento numa clara proximidade, patenteada também noutros
versículos, ao modelo patente na Teologia Menfita. Tal como este texto egípcio
1242
SB, Dt 30,6, nota.
1243
NIC, comentário a Dt 30,6.
1244
O texto bíblico que precede o versículo afirma: «Na verdade, esta Lei, que hoje te prescrevo, não é
muito difícil para ti nem está fora do teu alcance. Não está no céu (…) não está tão pouco do outro lado
do mar.» (Dt 30,11-13). Trata-se assim de uma verdadeira intimidade que se estabelece entre o povo e
Deus e que contrasta claramente com a literatura mesopotâmica. Com efeito, Gilgamech, depois da morte
de Enkidu, inicia uma procura pelo sentido da vida que permanece sem qualquer resultado. Em sequencia
dessa demanda atravessa o mar procurando Utnapichtum, o sobrevivente do Dilúvio, do qual Gilgamech
espera ouvir uma resposta. (Cf. NIC Dt 30,14)
Em contraste, para os Hebreus, o sentido da vida não estava longínquo (do outro lado do Mar), mas reside
na Lei, que reside no coração e na língua de cada um. Esta intimidade com o Senhor será colocada por
Jeremias (Jr 31, 31-34) e Ezequiel (Ez 36, 25-27) em termos da renovação do coração pela Lei ou pelo
espírito de Deus (DIAS, NBC, Dt 30,6, nota.)
419
afirmava, o Deuteronómio também defendia que coração compreendia, a boca
comandava e os membros executavam. Compreensão, vontade e acção deveriam estar
integralmente articulados para garantir o cumprimento da Lei. Os mandamentos podiam
ser compreendidos porque estavam no coração e podiam ser realizados porque estavam
na boca que a transmitiria, para ser concretizada, aos membros. 1245 Em Dt 30,14
resume-se exemplarmente o papel do coração no cumprimento da Lei:
A Lei está muito perto de ti, na tua boca e no teu coração, para a praticares.
420
1249
dos essénios. A circuncisão do coração parece, com efeito, ter constituído uma
noção muito arreigada à comunidade essénia.
1249
Com efeito, nos escritos de Qumran, o sacerdote impuro era aquele que «não circuncidou o prepúcio
do seu coração»(1QHa 11,13).
1250
A expressão aparece uma única vez em todo o Pentateuco, num relato javeísta (Gn 42,28).
1251
Ver Gn 35,18.
1252
NIC, comentário a Gn 42,28
1253
Em NIC, comentário a Gn 42,28.
1254
BC, Ex 9,14, nota.
421
A expressão «seguir o coração» ou, se preferirmos uma versão mais literal, «ir
atrás do coração», ao contrário da expressão egípcia equivalente (chemés ib), não tem
um significado positivo no âmbito da literatura bíblica. Equivalente à expressão «ir atrás
dos olhos», à qual é colocada em paralelo. Esta atitude pressupõe uma predisposição
para seguir os sentidos e esquecer os mandamentos. A ocorrência desta expressão em
Nm 15,39, num relato sacerdotal, acompanha a institucionalização das franjas rituais
(39-41). Elas tornam-se, no dizer de Nm 15,39, uma forma de recordar
permanentemente «os preceitos do Senhor». Recordar não consiste apenas em evocar
mentalmente uma realidade, mas sim em actualizá-la continuamente através do
comportamento.1255 Esta vigilância constante sobre o comportamento contrasta
vivamente com o «ir atrás do coração» que pressupunha «explorar» o que os sentidos
ditavam e envolver-se nas solicitações mundanas que o mundo oferecia, ao invés de
seguir estritamente as revelações de Deus e os seus mandamentos. Esta demarcação do
mundo dos sentidos é um requisito fundamental para a pureza ritual e era uma condição
indispensável para a santidade.1256 Embora se detecte, no Egipto coevo, uma idêntica
preocupação em garantir a pureza com o intuito de atingir a santidade, é curioso como a
tradicional expressão egípcia foi usada para resumir o desrespeito pela Lei. De um
modo geral, os redactores bíblicos parecem estar conscientes do contexto de utilização
das expressões egípcias e não hesitam em aplicá-las no texto sagrado de modo a
constituírem um modelo da conduta e da atitude dos «ímpios».
por Deus. Sobre o coração do homem, o redactor bíblico utiliza duas vezes a
1255
NIC, comentário a Nm 15,39.
1256
NIC, comentário a Nm 15,39.
1257
Ver Apêndice XVI, p. cclxvi.
422
Todas as formas dos pensamentos do coração (tendiam) unicamente para o mal. 1258
1258
Gn 6,5. No coração humano «existe apenas o mal». Pior ainda, este mal é «visto» por Yahveh,
expressão que sublinha a sua realidade. SB Gn 6,5, nota.
1259
SB, Gn 6,5, nota.
1260
SB, Gn 6,6, nota.
1261
Lembremo-nos que antes deste acontecimento o relato do Génesis apresentara Adão e Eva como
vítimas de uma dor que, no entanto, resultara das suas próprias acções. Entendemos aqui a dor como
resultante não do sofrimento físico, mas sim de um acto de consciência, razão pela qual inserimos esta
expressão no contexto das expressões relacionadas com o coração tomado no sentido de consciência.
423
*
* *
modo de representar o homem e os seus constituintes. Se, na maior parte dos casos,
casos, parece ter existido uma inspiração directa na literatura e nas fontes egípcias.
1262
Em R. DÉAUT, «Alcuni usi della parola “Cuore” nel Targum del Pentateuco», Atti della seconda
settimana di Studio «Sangue e Antropologia Bíblica nella Patristica, Vol. II, p. 716.
1263
Ibidem, p. 734.
1264
P. BEERNAERT, El Hombre en el lenguage bíblico: Corazón, lengua y manos en la Biblia, p. 7.
1265
Ibidem.
424
O modelo sapiencial egípcio do homem justo e do homem mau foi, com efeito,
No Deuteronómio o modelo negativo traduz-se na atitude de orgulho, «levantar o coração», que leva a negligenciar a Lei e
arrastar-se para outros cultos, enquanto que o modelo virtuoso é o do «recto de coração», ou «abençoado de coração» que
traduz o homem que se guia pelos preceitos de Deus e se mantém fiel à Lei. O modelo sapiencial egípcio, repartindo-se entre o
homem de coração ouvinte e o homem ávido, entre o silencioso e o colérico, é fielmente adoptado no Êxodo e transformado no
Deuteronómio, o qual o apresenta centrado na obediência e observância da Lei, focado portanto na compreensão e no
conhecimento desta. A atitude continua, no entanto, a requerer a humildade perante Deus.
Depois de terem visto, começaram a divulgar o que lhes tinham dito a respeito daquele menino.
Todos os que ouviram se admiravam do que lhes diziam os pastores. Quanto a Maria, conservava
425
Para muitos comentadores da Bíblia, a atitude de Maria resume o ideal do
um receptáculo.
e dos seus frutos, Jesus compara as palavras de um homem aos frutos de uma
árvore:
Ou admitis que a árvore é boa e o seu fruto será bom, ou admitis que a árvore é má e o seu fruto
será mau. Porque pelo fruto se conhece a árvore. Raça de víboras! Como podeis falar de coisas boas, se
sois maus? Porque a boca fala da abundância do coração. O homem bom, do seu bom tesouro, tira coisas
boas; e o homem mau, do seu mau tesouro, tira coisas más. Ora, eu digo-vos: de toda a palavra ociosa que
os homens disserem, prestarão contas no dia do juízo. Porque pelas tuas palavras serás justificado e pelas
tuas palavras serás condenado (Mt 12, 33-37)
O significado da parábola é este: a semente é a Palavra de Deus. Os que estão à beira do caminho
são aqueles que ouvem, mas em seguida vem o diabo e tira-lhes a palavra do coração, para não se
salvarem, acreditando. Os que estão sobre a rocha são os que, ao ouvirem, recebem a palavra com alegria,
mas como não têm raiz, acreditam por algum tempo e afastam-se na hora da provação. A que caiu entre
espinhos são aqueles que ouviram, mas, indo pelo seu caminho, são sufocados pelos cuidados, pela
riqueza, pelos prazeres da vida e não chegam a dar fruto. E a que caiu em terra boa são aqueles que, tendo
ouvido a palavra, com um coração bom e virtuoso, conservam-na e dão fruto com a sua perseverança. (Lc
8, 11-15)
O ensinamento, a Palavra de Deus, por si só, nada podia fazer para a salvação
dos homens. A sua eficácia dependia do coração de quem a escutava, assemelhando-se,
por isso, a um terreno fértil para a semente germinar. Para dar fruto, a palavra divina
1266
Idem, p. 49
426
devia ser escutada com entusiasmo, ser tomada como a mais importante de todas as
realizações e ser perseverantemente realizada na prática.
Em certos casos, a exortação para a importância de aderir interiormente ao
ensinamento recupera o tom do Antigo Testamento:
Hipócritas! Muito bem profetizou Isaías a vosso respeito, ao dizer: “Este povo honra-me com os
lábios, mas o seu coração está longe de mim. É vão o culto que me presta, ensinando doutrinas que são
preceitos humanos.” Jesus chamou, depois, a multidão para junto de si e disse-lhes: «Escutai e tratai de
compreender!» Não é aquilo que entra pela boca que torna o homem impuro; o que sai da boca é que
torna o homem impuro (Mt 15, 8-11)
Mais importante que as prescrições relativas aos alimentos, era mais decisivo
vigiar as palavras, aqui entendidas como o símbolo da conduta e do zelo do homem para
se dedicar interiormente ao ensinamento divino. Os Evangelhos continuam a insistir,
com mais ênfase, na ideia nuclear do Deuteronómio, insistindo para a necessidade de
espiritualizar o culto. Esta é, com efeito, a principal advertência de Jesus, cuja acção
consiste precisamente em expor a artificialidade das prescrições rituais e a tirania que,
graças a elas, exerciam os sacerdotes sobre o povo. O culto deve ser assim substituído
pelo amor dedicado a Deus e pelo conhecimento da Palavra e sua aplicação. Tudo isto
convergia naturalmente para o coração. Não é certamente por acaso que, no sermão da
montanha, se proclame: «Felizes os puros de coração porque verão a Deus» (Mt
5,8).1267 A pureza de coração era, sem dúvida um atributo da humildade perante Deus,
uma característica de tal modo importante que é atribuída ao próprio Cristo:
Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei-de aliviar-vos. Tomai sobre
vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para
o vosso espírito. Pois o meu fardo é suave e o meu jugo é leve (Mt 11, 28-29).
1267
A relação entre a pureza e a possibilidade de ver deus também se detecta no Egipto, onde consiste
justamente a principal recompensa da pureza.
1268
P.-M. BOGAERT, Dictionnaire Encyclopedique de la Bible, p. 289.
427
5,5: «o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi
dado». Para Paulo, tal como para os essénios e os rabinos, era no coração que se travava
a salvação do homem.
1269
P. LIGNEROLLES e J.-P. MEYNARD, Histoire de la Spiritualité Chrétienne, pp. 150-165.
1270
Patrologia Latina 158.761-762, em M. MESLIN, «Heart», em M. Eliade, Encyclopedia of Religion,
vol. VI, p. 237.
1271
Idem, p. 236.
428
encontra a doçura, a pureza e o amor de Deus», como escreveu Ubertino de Casale. 1272
O desejo pela união com o coração de Cristo tornou-se de tal modo intenso que a
substituição do coração humano pelo coração divino se tornou um ideal a atingir. Esta
substituição traduzia-se na adopção da vontade divina de modo a fazer nascer «um novo
coração» como defendia o profeta Ezequiel ( Ez 36, 26-27). A substituição do coração
do místico pelo coração de Cristo representava para Tomas de Cantimpré, a «união do
espírito incriado e do espírito criado através da graça». 1273 S. Francisco de Sales (1507-
1622) também desenvolveu uma piedade fortemente focalizada no Coração de Jesus
como símbolo do seu sacrifício e prova do seu amor pela humanidade.
A devoção ao Sagrado Coração floresceu a partir do século XVII, justamente em
reacção ao racionalismo do «século das luzes» com as célebres «revelações» de
Margarida Maria (1647-1790) e a acção das visitandinas de Paray-le-Monial.1274 O
coração possuía, para Pascal, um conhecimento secreto, mais amplo do que o que era
próprio à Razão: «É o coração que sente a presença de Deus, não é a razão: é nisto que
consiste a fé».1275 A razão permanecia insuficiente para conhecer Deus, ao passo que o
coração «tem razões que a razão desconhece». 1276 O conhecimento de Deus não era
abstracto. Ele emergia da própria vida humana e florescia através do seu desejo de
abundância e plenitude: «o meu coração busca conhecer onde está o bem verdadeiro de
modo a segui-lo». «O homem descobre a verdade de que fala dentro de si mesmo».1277
Assim, enquanto o Racionalismo revolucionava o pensamento filosófico e o
levava a focar-se no conhecimento do mundo sensível, o pensamento místico da Igreja,
por oposição, elegia o coração divino como o centro da oração. Esta devoção adquiriu
um significado particular no seio do catolicismo que via nesta devoção o veículo para
uma espiritualidade mais centrada na emoção, por oposição ao protestantismo que
valorizava uma abordagem mais racional da vivência religiosa. Portugal, de resto,
testemunha claramente a valorização da devoção ao Sagrado Coração de Jesus pelo
catolicismo, constituindo um dos países do mundo católico que primeiro impulsionou
esta devoção, como atesta a construção da basílica da Estrela, em Lisboa, consagrada ao
Sagrado Coração de Jesus.
1272
Idem, p. 237.
1273
Ibidem, p. 237.
1274
P. LIGNEROLLES e J.-P. MEYNARD, Histoire de la Spiritualité Chrétienne, p. 178.
1275
Pensées 278, em M. MESLIN, «Heart», em M. Eliade, Encyclopedia of Religion, vol. VI, p. 237.
1276
Pensées 277, em Ibidem.
1277
Ibidem.
429
A espiritualidade inspirada pela devoção ao Sagrado Coração de Jesus
transparece exemplarmente na Litania do Sagrado Coração de Jesus:
gosto do tempo, insistiam na relação de amor que a unia a Jesus. O seguinte trecho
Compreendi que a Igreja tinha um corpo composto de diversos membros, o mais necessário, o
mais nobre de todos não lhe faltava: compreendi que a Igreja tinha um coração, e que esse coração estava
1278
Litania do Sagrado Coração de Jesus, em Manual de Piedade, pp. 196-197.
430
ardendo de amor. (...) Compreendi que o Amor encerra todas as vocações, que o amor é tudo, que abarca
todos os tempos e todos os lugares...numa palavra, que é Eterno! 1279
Para Santa Teresa do Menino Jesus o coração da Igreja era, deste modo, o
símbolo do amor que unia a humanidade a Cristo e, deste modo, o centro vital da
espiritualidade cristã. Embora o tema do Sagrado Coração de Jesus tenha permanecido
um tema central na Igreja, ao longo do século XX, o Imaculado Coração de Maria
despertou um interesse sem precedentes que continuou a estimular a reflexão teológica
da Igreja.
Aquele que, no seu coração, acredita na justiça, concebe o Cristo, aquele que, pela sua boca,
confessa para a salvação, dá à luz o Cristo. 1281
1279
Manuscrito B, em S. TERESA, Obras Completas, p. 230.
1280
M. O´CARROLL, «The Two Hearts in the history of the Curch», The Alliance of the Hearts of Jesus
and Mary, p. 134.
1281
Sermo 191,4. Adaptado da versão inglesa em Ibidem. Ver texto latino P.L. 38, 1011, linha 36: «Sui
corde credit ad justitium, concipit Christum: qui ore confitetur ad salutem, parit Christum»
1282
Idem, p. 135.
431
como alusões ou prefigurações de Maria. Para Rupert, o que Maria guardava no coração
era toda a Revelação que, ao longo da vida permanecera silenciada mas que, a partir do
Pentecostes, a tornara na mentora dos apóstolos e da humanidade.1283
S. João Eudes «descobriu» o Coração de Maria em 1641, noção que se tornou,
desde então, central na sua espiritualidade. Este teólogo desenvolveu uma interessante
«teoria antropológica» sobre o coração humano, estipulando a existência de três
corações tão indissociavelmente unidos que formam uma unidade. O primeiro é o
coração corpóreo, «a parte mais nobre do corpo humano. É o princípio da vida, o
primeiro órgão a começar a viver e o último a deter-se antes da morte. É a sede do amor,
do ódio, da alegria, da tristeza, do medo e de todas as paixões da alma.» Não se tratava,
portanto, apenas do órgão físico, mas também da dimensão anímica. Em segundo lugar,
existia o «coração espiritual», o intelecto, a vontade e a memória. O terceiro coração era
o coração divino, que é o próprio Deus e que é simbolizado no Coração de Maria ou de
Jesus.1284 Esta visão antropológica é espantosamente idêntica à perspectiva implícita à
espiritualidade egípcia, a qual convergia precisamente para um «enxerto» da centelha
divina no coração humano.
S. João Eudes encontrava a justificação teológica do enxerto espiritual a realizar
na consciência do homem nas escrituras, sobretudo na seguinte profecia de Ezequiel:
Derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados; Eu vos purificarei de todas as
manchas e de todos os pecados. Dar-vos-ei um coração novo e introduzirei em vós um espírito novo:
arrancarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Dentro de vós
colocarei o meu espírito, fazendo com que sigais as minhas leis e obedeçais e pratiqueis os meus
Nos tempos messiânicos, Israel devia ser purificado com a água do espírito
de Deus, o que levaria a nascer nos homens um coração novo, ou seja, uma nova
1283
Idem, p. 136.
1284
Idem, p. 142.
432
contexto do cristianismo, o tema foi evidentemente relacionado com o Pentecostes e
homem. A mudança interior não é garantida pelo homem, mas sim pela graça
comunhão.1285
Foi ao pronunciar estas últimas palavras que abriu pela primeira vez as mãos,
comunicando-nos uma luz tão intensa, como que reflexo que delas expedia, que penetrando-nos no
peito e no mais íntimo da alma, fazendo-nos ver a nós próprios em Deus, que era essa luz, mais
claramente que nos vemos no melhor dos espelhos. (...) Ele (Jesus) quer estabelecer no mundo a
devoção a Meu Imaculado Coração. (...) O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho
que te conduzirá até Deus. Foi no momento em que disse estas últimas palavras que abriu as mãos e
nos comunicou, pela segunda vez, o reflexo dessa luz imensa. Nela nos víamos como que
submergidos em Deus. A Jacinta e o Francisco parecia estarem nessa parte da luz que se elevava
para o Céu e eu na que se espargia sobre a terra. À frente da palma da mão direita de Nossa
Compreendemos que era o Imaculado Coração de Maria, ultrajado pelos pecados da humanidade,
que queria reparação. (...) Deus quer estabelecer no mundo a devoção a Meu Imaculado Coração.
Se fizerem o que Eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar (....) mas
1285
I. DE LA POTTERIE, «The Alliance of the Hearts of Jesus and Mary: A Bibblical Aproach», The
Alliance of the Hearts of Jesus and Mary, p. 74.
433
começará outra pior (...) Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia a Meu Imaculado
Coração e a Comunhão reparadora nos primeiros sábados. (...) Por fim, o Meu Imaculado Coração
Ainda antes das aparições da Senhora celeste, o anjo havia pedido aos
1287
pastorinhos para que rezassem ao Sagrado Coração de Jesus e de Maria. É,
porém, nas palavras que a Irmã Lúcia atribui a Jacinta que melhor se detecta a
Já me falta pouco para ir para o Céu. Tu ficas cá para dizeres que Deus quer estabelecer
no Mundo a devoção do Imaculado Coração de Maria. Quando for para dizeres isso, não te
escondas. Diz a toda a gente que Deus nos concede as graças por meio do Coração Imaculado de
Maria, que lhas peçam a Ela; que o Coração de Jesus quer que, a Seu lado, se venere o Coração
Imaculado de Maria; que peçam a paz ao Imaculado Coração de Maria (...) . Se eu pudesse meter
no coração de toda a gente o lume que eu tenho cá dentro no peito a queimar-me e a fazer-me
paz no mundo. Noutro trecho das suas memórias, a irmã Lúcia torna claro que a
É verdade, minha filha, que muitos a começam (a comunhão reparadora dos primeiros
sábados), mas poucos a completam e, mesmo os que a completam, fazem-no com o propósito de
1286
LÚCIA, Memórias da Irmã Lúcia, pp. 174-177.
1287
M. O´CARROLL, «The Two Hearts in the history of the Curch», The Alliance of the Hearts of Jesus
and Mary, p. 152.
434
receber as graças prometidas. Agradar-me-ia mais se o fizessem com fervor e com a intenção de
1288
reparar o Coração da sua Mãe celeste.
entre Deus e uma humanidade «corrompida» cada vez mais afastada de Deus e
1288
L. GUERRA, «The Union of Hearts of Jesus and Mary in the message of Fatima», The Alliance of the
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1289
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495
8. Abreviaturas utilizadas
496
Outras abreviaturas:
497
498
APÊNDICES
Textos
499
500
I. Inscrições autobiográficas
2. Autobiografia de Djehuti
1290
Autobiografia de Antef, filho de Sitamon, Império Médio. Adaptado da versão inglesa em Maat in
Egyptian Autobiographies, p. 34.
1291
Autobiografia de Djehuti, reinado de Tutmés I, Idem, p. 49.
501
3. Inscrição do túmulo de Ramés
4. Autobiografia de Intef
Foi o meu coração que fez realizar todas as coisas e (foi ele) que me guiou,
Foi, para mim, um excelente instrutor,
Não descurei as suas incitações,
Receando desviar-me da sua orientação.
Prosperei enormemente devido a isso,
Distingui-me através do que ele me fez realizar,
E tornei-me conceituado através da sua orientação.
É verdadeiro o que se diz:
«O deus é o que está em todo o corpo,
é abençoado aquele que (o deus) guia para o bom caminho»
Eu fui um deles.1293
1292
Inscrição do túmulo de Ramés (TT 55). Reinado de Amen-hotep III. Adaptada da versão inglesa em
Id, pp. 56-57.
1293
Autobiografia de Intef, governador da sepat de This, reinado de Tutmés III, Idem, pp. 52-53.
502
Eu fiz o que o teu ka ama, todos os dias.
Eu sou alguém com o coração justo que abomina a mentira.
6. Estela de Uahibré
Amon, protector
Que dá a velhice abençoada com a saúde
E força imbuída de doçura de coração
Aquele que está mergulhado na sua água não tem preocupações,
Aquele que é puro para o deus sem falha,
E oferece-lhe Maet continuamente
Não tem pesar ao longo da vida.
Possas amar o teu servo como ele te ama,
Possas tu conserva-lo na tua morada para sempre.1296
1294
Inscrição da estátua naófora de Djedhor. Época Baixa. Adaptado da versão inglesa proposta em Id, p.
95
1295
Estela de Uahibré. Época Baixa. Adaptado da versão inglesa proposta em Idem, p. 94
1296
Inscrição de uma estátua de Nakhtefmut, quarto sacerdote de Amon. Terceiro Período Intermediário.
Idem, p. 81.
503
8. Inscrição de uma estátua de Hor
9. Estela de Huicheri
Tu entras e sais,
O teu coração alegra-se no louvor do senhor dos deuses, (...)
Tu voltas a viver uma segunda vez,
O teu ba não abandonará o teu cadáver
O teu ba é divino entre os espíritos,
O valoroso bau conversam contigo
Tu juntas-te a eles para receber o que é dado na terra,
Tu medras em água, respirar o ar,
Bebes o que o teu coração deseja.
Os teus olhos são-te dados para ver,
1297
Inscrição de uma estátua de Hor. Terceiro Período Intermediário. Id., p. 83
1298
Estela de Huicheri, escriba do tesouro sob o reinado de Seti I, Id., p. 67.
504
As tuas orelhas para ouvir o que é dito,
A tua boca fala, os teus pés caminham,
As tuas mãos, os teus braços têm movimento.
A tua carne é firme, os teus músculos são macios,
Regozijas-te em todos os teus membros
Contas os teus membros e todos lá estão.
Não há falta no que é teu.
O teu coração é teu em verdade,
Tu tens o teu próprio coração, o coração antigo.
Sobes ao céu, (...)
Em qualquer forma que tu desejes.
És diariamente invocado para o altar de Uenenefer,
Recebes o pão que está diante dele,
A oferenda para o senhor da terra sagrada,
Para o ka do governador de Nekheb e de Iunit.
O teu coração regozija-se ao lavrares
A tua terra nos Campos de Iaru
És recompensado com o que fizeste crescer
Recolhes uma colheita rica em grão.
A corda é laçada para ti na barca,
Navegas ao sabor do desejo do teu coração.
Sais todas as manhãs e regressas todas as noites (...)
O teu coração está contigo sem falhar
As tuas provisões permanecem no seu lugar
Para o ka do escriba Paheri, o justificado.
Eu sou um nobre que serviu o seu senhor,
Alguém qualificado e isento de negligência. (...)
Eu fui guiado pelo meu coração
No caminho dos que são abençoados pelo rei. (...)
O meu bom carácter (?) elevou a minha posição,
Fui considerado alguém sem mácula
Quando for medido
Sairei completo e íntegro
com um coração resoluto
Não menti a ninguém
Eu conheci o deus que habita em (cada) homem,
Conhecendo-o eu fiquei a saber (estas verdades) (...)
Fui um modelo de gentileza,
505
Abençoado e louvado desde o ventre (da mãe). 1299
1299
Inscrição funerária do túmulo de Paheri, reinado de Tutmés I. Adaptado da versão inglesa patente em
M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 18.
1300
Autobiografia de Amenemhat, Adaptada da versão inglesa em M. LICHTHEIM, Maat in Egyptian
Autobiographies, p. 55.
506
Quando mergulhas na água do teu senhor, Tot.
És enaltecido pois estas são as águas da vida
Para as quais se tem guiado o teu coração.
1301
Autobiografia de Petosiris, Época Baixa-período ptolemaico. Adaptado da versão francesa proposta
por P. VERNUS, Sagesses de l´Égypte pharaonique, p. 367.
1302
Autobiografia de Baki, reinado de Amen-hotep III. Adaptado da versão inglesa em M. LICHTHEIM,
Maat in Egyptian Autobiographies, p. 134.
507
14. Inscrição de uma estátua de Karo
Oferenda que o rei dá a Amon-Ré, senhor dos tronos das Duas Terras,
Oferenda que o rei dá a Mut, senhora do céu,
Oferenda que o rei dá a Khonsu Neferhotep, senhor da alegria (lit.: largura de coração)
Que eles possam garantir vida, prosperidade e saúde, força, protecção, amor, todos os dias.
Um bom tempo de vida, dotado de saúde, prazer (doçura de coração), e alegria (rechut),
diariamente.
Os meus olhos vêm, as orelhas ouvem, a minha boca está cheia de verdade, diariamente
Como é feito para um homem justo que coloca Amon no seu coração,
Para o ka do silencioso, verdadeiro e dotado de um bom temperamento (biat)
Para o ka do grande artesão do Lugar da Verdade, Karo, o justificado. 1303
Oferenda que o rei faz ao venerável Antef, justificado. Que os grandes de Busíris o glorifiquem
(sAx) e os cortesãos do senhor de Abido. Que «aqueles que estão na abundância» lhe estendam a mão na
necrópole. Que lhe seja dito: «Bem-vindo» pelos grandes de Abido. Que o defunto possa chegar ao
tribunal divino, ao lugar onde estão os deuses. Que o seu ka esteja com ele e que as suas oferendas
estejam diante dele. Que a sua voz seja proclamada justa na medição do excesso: que ele fale quando o
acusarem que ele seja absolvido graças a tudo quanto disser .1304
1303
Fórmula de oferenda inscrita numa estátua do artesão Karo. Reinado de Ramsés II. Em Idem, p. 79.
1304
Estela de Antef, Império Médio, adaptado da versão francesa proposta em M. J. CLÈRE, «Un passage
de la stèle du général Antef (Glyptothèque Ny Carlsberg, Copenhague)», BIFAO 30 (1931), p. 246
508
II. Textos sapienciais
1. Lamentações de Khakhepereseneb
2. Admonições de Ipu-uer
1305
As Lamentações de Khakhepereseneb, adaptado da versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, I, p.
147. Versão hieroglífica pode ser consultada em A. GARDINER, The Admonitions of an Egyptian Sage
from a Hieratic Papyrus in Leiden (Pap. Leiden nº 344 recto), J. C. Hinrich Sche Buchhandlung, Leipzig,
1909. Embora apenas seja conhecido através de uma cópia da XVIII dinastia, o texto remonta ao Império
Médio, possivelmente ao reinado de Senuseret II.
509
Tantos mortos são sepultados no rio,
A corrente é a sepultura, o túmulo tornou-se a corrente,
Os nobres lamentam-se, os pobres rejubilam,
Cada cidade diz: «Vamos expulsar os governadores», 1306
3. Instrução de Ptah-hotep
Segue o teu coração durante o tempo da tua vida, não faças mais do que te é pedido, não encurtes
o tempo de «seguir o coração». Desperdiçar o seu momento ofende o ka. Não desperdices o teu tempo em
preocupações inúteis que transcendam o sustento da tua casa. Quando a riqueza chegar, segue o teu
coração. A fortuna não é aproveitada se o (desejo) é negligenciado (...). 1307
Aquele cujo coração obedece ao seu ventre provoca o desdém em lugar do amor. O seu coração
ficará despido (desolado) e o seu corpo não será ungido (mumificado). Ter um grande coração (uer ib) é
um dom de deus, mas o que obedece ao seu ventre obedece ao seu inimigo (...). 1308
O que ouve é amado por deus, o que deus detesta é incapaz de escutar. É o coração que faz do homem um ouvinte (obediente)
ou um surdo (desobediente). O coração de um homem é a sua vida, prosperidade e saúde (...). 1309
1306
As Admonições de Ipu-uer, adaptado da versão inglesa em Id, I, p. 151.
1307
Instrução de Ptah-hotep, Máxima 11. Adaptado da versão inglesa proposta por M. LICHTHEIM,
AEL, I, p. 66.
1308
Instrução de Ptah-hotep, Máxima 14. Adaptado da versão castelhana proposta por C. JACQ, Las
Máximas de Ptahhotep, pp. 93-94.
1309
Instrução de Ptah-hotep, Epílogo. Adaptado da versão inglesa proposta por M. LICHTHEIM, AEL, I,
p. 74 e outros, Les Maximes de Ptahhotep, p. 101.
1310
Instrução de Ptah-hotep, Epílogo. Adaptado da versão francesa proposta por F. DAUMAS, La
Civilisation de l´Égypte Pharaonique, p. 295.
510
Não confies na duração dos anos,
Eles vêem uma vida num só instante.
Aqueles que eles examinam após a morte
As suas acções são colocadas junto dele
E a eternidade que está lá,
Insensato o que descura esta verdade!
Mas quem aí chega sem cometer faltas
Será como um deus
1311
Chegando livremente como os senhores eternos.
5. Instrução Lealista
6. O Camponês Eloquente
1311
Instrução para Merikaré, Império Médio, versão portuguesa baseada na tradução francesa proposta
em É. DRIOTON, «Le jugement des âmes dans l´ancienne Égypte», RdC (1949), p. 13.
1312
Instrução Lealista, §2, Versão portuguesa baseada na tradução inglesa em J. ASSMANN, The Mind
of Egypt, p. 135. Urkunden der 18 dynastie: Que Ré permita que os corações hati o louvem e que os
corações ib o adorem nos seus corpos.
1313
Instrução Lealista, § 5, versão curta. Versão portuguesa baseada na tradução francesa em P.
VERNUS, Sagesses de l´Égypte Pharaonique, p. 209.
511
Não vagueies, piloto, segura bem o leme!
Não roubes, castiga o ladrão.
Não pode ser grande aquele que é ávido.
A tua língua é o prumo,
O coração o peso,
Os teu lábios são os braços (da balança)
Se afastas o teu olhar da violência,
Quem punirá o mal?1314
7. A Instrução de Amenemope
1314
O Camponês Eloquente (terceira petição), adaptado da versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, I,
p. 176. Versão hieroglífica pode ser consultada em R. PARKINSON, The Tale of the Eloquent Peasent,
Griffith Institute e Ashmolean Museum, Oxford, 1991.
1315
A Instrução de Amenemope, Prólogo (I, 1 – III, 7). Império Novo, Adaptado da versão inglesa em M.
LICHTHEIM, AEL, I, p. 148.
1316
A Instrução de Amenemope, Capítulo Décimo (XIII, 10 – XIV, 3). Adaptado da versão inglesa em
Idem, p. 154. Também consultada a versão de P. VERNUS, Sagesses de l´Égypte Pharaonique, p. 336,
nota 114.
512
Não manipules as medidas nem alteres os pesos,
Nem diminuas as unidades de medida,
Não desejes a medida dos campos,
Nem negligencies as do tesouro.
O babuíno senta-se junto da balança,
O seu coração é o prumo da balança;
Onde está um deus tão grande como Tot,
Que inventou estas coisas e as fez?
Não faças para ti próprio pesos defeituosos,
Pois são ricos nos infortúnios ditados por deus (...). 1318
Não te prostres com medo do amanhã:
«Veio o dia, como será o amanhã?»
O homem ignora como será o dia de amanhã,
Deus é sempre perfeito
E o homem pode sempre errar.
As palavras do homem são uma coisa,
As acções do deus são outra (...)
Não há perfeição diante de deus,
Mas sim o erro,
Podes extenuar-te a procurar a perfeição,
Mas um momento estraga tudo.
Mantém firme o teu coração, aquieta o teu coração,
Não sejas guiado pela língua;
Se a língua do homem é o leme da barca,
O Senhor de Tudo é ainda o seu piloto (...). 1319
Não faças amizade com o homem colérico
Não te aproximes dele em conversação.
Guarda a tua língua de repostar a um superior,
E cuida para não o insultares (...)
Se ao menos Khnum viesse ter com ele,
O oleiro (que fez) o homem colérico
Para amassar o seu (defeituoso) coração.
Ele é como um lobo na quinta
1317
A Instrução de Amenemope, Capítulo Décimo Primeiro (XIV, 5 - 12). Adaptado da versão inglesa em
M. LICHTHEIM, AEL, I, p. 155. Também consultada versão de P. VERNUS, Sagesses de l´Égypte
Pharaonique, p. 299.
1318
A Instrução de Amenemope, Capítulo Décimo Sexto (XVII, 18- XVIII, 5). Adaptado da versão
inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, I, p. 156.
1319
A Instrução de Amenemope, Capítulo Décimo Oitavo (XIX, 10 – XX, 6). Adaptado da versão inglesa
em Idem, pp. 157-158. O amanhã é tão insondável como a vontade divina, razão pela qual o autor colocou
os temas em paralelo. Esta associação é habitual nas instruções tardias.
513
Ele volta um olho contra o outro,
Ele faz os irmãos lutar entre si.
Ele corre diante do vento como as nuvens
Oculta o brilho do sol
Sacode a cauda como o crocodilo jovem
E conduz-se a si mesmo para a disputa,
Os seus lábios são doces mas a língua é amarga.
O fogo arde no seu ventre.
Não te lances para te juntares a alguém como ele,
A fim de (evitares que algo) pavoroso te arraste consigo. 1320
Sê puro de coração
E purifica-te todos os dias.1321
9. A Instrução de Ani
1320
A Instrução de Amenemope, Capítulo Nono (XI, 12 – XIII, 9). Adaptado da versão inglesa de M.
LICHTHEIM, AEL, II, p. 153.
1321
Papiro Chester Beatty IV, Adaptado da versão francesa proposta por P. VERNUS, Sagesses de
l´Égypte pharaonique, pp. 275-276.
1322
A Instrução de Ani, (16,17 – 17,4). Adaptado da versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 137.
Também em F. DAUMAS, La Civilisation de l´Égypte Pharaonique, p. 303
514
10. A «Canção de Antef»
1323
A canção de Antef . Adapatado a partir da tradução de F. DAUMAS, La Civilization de l´Égypte
Pharaonique, pp. 404-405 e de H. BRUNNER, “Das Herz im ägyptischen Glauben”, Das hörende Herz.
Kleine Schriften zur religions und Geitesgeschichte Ägyptens, Friburgo, 1988, pp.28-32. .
515
III. Inscrições reais
Eu fiz este (monumento) com um coração amante para o meu pai Amon
Iniciada nos segredos da origem,
Inteirada do seu poder benéfico
Nada esqueci do que ele ordenou
A minha majestade conhece o seu poder divino
Eu agi sob o seu comando
Foi ele que me conduziu (...)
Foi ele quem me deu orientações
Eu não dormi por causa do seu templo,
Nem me afastei do que ele comandou
O meu coração era Sia diante do meu pai,
Eu entrei nos planos do seu coração
Eu não voltei as costas à cidade do Senhor de tudo (...)
Eu declaro diante do povo que virá no futuro
Que observará o monumento que eu fiz para o meu pai, (...)
Foi quando me estabeleci no palácio e
Pensei no meu criador
Que o meu coração me levou a fazer para ele
Dois obeliscos de electrum (...)
Agora o meu coração agita-se
Pensando o que dirão as pessoas,
Os que verão o meu monumento após muitos anos (...)1324
Neste dia, sua majestade inspeccionou as terras do deserto até aos confins das montanhas, pois o
seu coração desejava ver as minas de onde vem o ouro. Depois de muito andar ele parou no caminho a
fim de tomar conselho com o seu coração. Ele disse: «Quão doloroso é um caminho sem água! Que farão
os homens para aliviar as gargantas ressequidas? (...) Mas agora providenciarei os meios para os apoiar,
1324
Inscrição de Hatchepsut, obelisco norte de Karnak, em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 27. A versão
portuguesa é baseada na tradução inglesa.
516
para que eles possam abençoar o meu nome no futuro, ao longo dos anos que virão (...) Depois de sua
majestade pronunciar estas palavras no seu coração, afastou-se para o deserto, procurando um lugar para
fazer uma estação de aprovisionamento de água. Deus guiava-o para garantir o desejo daquele que amava.
(...) Sua majestade disse: «Deus satisfez o meu desejo. Ele fez a água brotar da montanha para mim. Um
caminho que, desde o tempo dos deuses, era árduo, tornou-se agradável no meu reinado (...) Um feito sem
precedentes, deus fez que tivesse sido feito por mim. Outra boa obra surgiu no meu coração comandada
por deus: fundar uma cidade e um santuário.»1325
1325
Inscrição de Seti I em Uadi Mia, em Idem, p. 54.
517
Conduz para casa os seus seguidores e salva os seus soldados
Com um coração como uma montanha de cobre (...)
Então eu rezei na terra distante
E a minha voz ressoou na Iunu do Sul (Ermant)
Amon veio quando o chamei
Deu-me a mão e rejubilou
E falou nas minhas costas como se estivesse por perto:
«Avança, pois estou contigo
Eu sou o teu pai, a minha mão está contigo
E prevalecerei sobre centenas de milhar de homens,
Eu sou o senhor da vitória, o que ama o valor!»
Então o meu coração ficou firme, o meu peito alegrou-se
E tudo o que fiz foi bem sucedido, o fui como Montu.
Disparei com o meu braço direito,
Agarrava com o pé
Estava diante deles como Set no seu tempo
Os carros de combate dispersavam-se diante dos meus cavalos
Nem um deles ergueu a mão para lutar
Os seus corações colapsavam no seu corpo pelo medo de mim,
Os seus braços ficavam frouxos e não podiam disparar
Não tinham coração para disparar as suas setas
Fi-los mergulhar nas águas como crocodilos
Caíram de cabeça um após o outro. (...)1326
4. Estela da Esfinge
Quando era ainda jovem, ele amava os seus cavalos e congratulava-se com eles. Ele tinha um
coração firme a trabalhar com eles, aprendendo a sua natureza e hábil a domesticá-los, compreendendo os
seus modos de ser. Quando se constou no palácio do seu pai, o Hórus, o touro poderoso que aparece em
Tebas, o coração de sua majestade alegrou-se ao sabê-lo. Alegrando-se com o que se dizia do seu
primogénito falou assim no seu coração: «Será um rei da terra inteira que ninguém poderá atacar. Ele é
zeloso na excelência e exulta na força sendo apenas um cativante jovem, ainda sem sabedoria. Embora
não tenha ainda a idade para desempenhar a obra de Montu, ele ignora o desejo do corpo e ama a força. É
o deus que o inspira a agir e assim tornar-se o protector do Egipto, o rei da terra.»1327
1326
Poema de Ramsés II, Idem,pp. 63-66.
1327
Estela da Esfinge de Amen-hotep II, A versão portuguesa é baseada na tradução inglesa em Id, p. 40.
518
IV. Hinos de louvor
2. Hino a Osíris-Khentamentiu
1328
Império Novo, Idem, p. 84.
1329
XVIII dinastia. Adaptado a partir da versão francesa em A. BARUCQ e F. DAUMAS, Hymnes et
priéres de l´Égypte ancienne, p. 99-100
519
3. Hino a Ré-Atum-Horakhti
Louvor a ti!
Como és esplêndido e perfeito, Atum-Horakhti!
Quando apareces em glória no horizonte de céu
Louvores soltam-se da boca de todos os homens!
Tu és belo e jovem como o disco solar
Trazido pelos braços da tua mãe, Hathor,
Apareces glorioso, em todos os lugares
De coração alegre, eternamente! (...)
As Duas Terras voltam-se para ti,
Ó deus primordial, guardião do mistério da perenidade
Príncipe dos limites da eternidade.1330
4. Hino a Ré-Atum-Horakhti
5. Hino a Ré-Horakhti
1330
Túmulo menfita de Horemheb, XVIII dinastia. Adaptado a partir da versão francesa em A. BARUCQ
e F. DAUMAS, Hymnes et priéres de l´Égypte ancienne, p. 124.
1331
XVIII dinastia. Idem, p. 131.
520
E dá à luz todas as criaturas (...)
Gestos de alegria para ti, sem cessar, Amon-Ré!
Deus de braços fortes, Senhor poderoso, rico em força,
Pronto a bater-se, violento,
Que arrasa os adversários em fúria,
Mas também o Senhor da graça, transbordante de amor,
De coração terno,
Que escuta as orações e vem (em auxílio) de quem o chama. (...)
Os deuses: «Aclamação! Adoremos o nosso pai!»
Os homens: «Louvemos o nosso criador, no seu nome de criador do nosso corpo!»
Khnum, que molda os homens e dá à luz os deuses,
Que dá a vida a todas as faces,
Que faz o que eles precisam,
Segundo o desejo do seu coração (…)
Os deuses: «Aclamação! Adoremos o nosso pai!»
Os homens: «Louvemos o nosso criador, no seu nome de criador do nosso corpo!»
Ele aparece, cintilante,
De formas agradáveis,
De múltiplas manifestações
É a sua doçura que se renova
Sem que o coração seja indiferente. 1332
6. Hino a Ré-Horakhti
1332
Papiro 3049 do Museu Egípcio de Berlim. Reinado de Ramsés IX. Idem, pp. 270-278.
1333
Papiro 3049 do Museu Egípcio de Berlim. Idem, p. 264.
521
7. Hino a Amon-Ré
8. Hino a Amon-Ré
9. Hino a Amon-Ré
1334
Templo de Hiba. Idem, p. 322.
1335
Templo de Hiba. Idem, p. 310.
1336
Idem, p. 253. Também em M. LICHTHEIM, AEL, vol. II, p.111.
522
10. Hino ao deus sol
1337
Hino ao deus sol, Estela dos irmãos Suti e Hor (BM 826), reinado de Amen-hotep III. Idem, pp. 87-
88.
1338
col. 13-18. Traduzido a partir da versão hieroglífica em P. GRANDET, Hymnes de la religion d´Aton,
p. 127.
1339
col. 25-30. Reinado de Akhenaton. Traduzido a partir da versão hieroglífica em Idem, p. 129.
523
12. Hino a Aton
1340
Reinado de Akhenaton. Versão portuguesa adaptada da tradução inglesa proposta por L. ZABKAR,
«A hymn to Osiris Pantocrator at Philae», ZÄS 108 (1981), pp. 153-154.
524
Volta o teu rosto para nós, ó senhor da plenitude do tempo!
Tu estavas no mundo antes que qualquer coisa existisse
E aqui permanecerás quando tudo cessar de existir
Tu concedes-me a visão da escuridão
Brilha para mim, para que eu possa ver-te! (...)
Como é bom seguir-te
Amon, senhor,
Grande é a descoberta para aquele que te procura.
Afasta o medo,
Coloca a alegria no coração dos homens!
Como é feliz o rosto dos que te contemplam, Amon:
1341
É como estar no teu festival dia após dia.
1341
Reinado de Akhenaton. Versão portuguesa baseada na tradução inglesa em J. ASSMANN, The
Search for God, p. 223
1342
Versão portuguesa adaptada da tradução inglesa patente em Idem, p. 232
1343
Decreto de Nesikhonsu. Pontificado de Pinedjem II. Adaptado a partir da versão francesa em A.
BARUCQ e F. DAUMAS, Hymnes et priéres de l´Égypte ancienne, p. 260.
525
1344
O sopro da vida a quem permanecer no seu favor.
17. Hino a Amon,
1344
Versão portuguesa adaptada da tradução inglesa patente em J. ASSMANN, The Search for God, p.
197.
1345
Mammisi de Nectanebo, templo de Hathor em Dendera. Adaptado a partir da versão francesa em A.
BARUCQ e F. DAUMAS, Hymnes et priéres de l´Égypte ancienne, p. 342.
526
Coloca a alegria no coração dos homens,
O meu rosto alegra-se por te ver, Amon! 1346
19. Oração a Amon
1346
XVIII dinastia (?). Idem, pp. 205-206
1347
Papiro Chester Beatty IV. Idem, p. 242.
1348
Império Novo. Graffitti encontrado entre os rochedos da montanha tebana. Este e outros documentos
deste tipo devem ter sido escritos por indivíduos que se retiravam periodicamente para o deserto para orar
e meditar. Idem, p. 342.
527
1349
O seu sol ergue-se!
22. Hino a Ísis-Meretseguer
1349
Versão portuguesa baseada em. J. ASSMANN, The Search for God, p. 227.
1350
Império Novo. Adaptado a partir da versão francesa em A. BARUCQ e F. DAUMAS, Hymnes et
priéres de l´Égypte ancienne, p. 470.
1351
Adaptado da versão inglesa proposta por L. ZAKBAR, «Six Hymns to Isis in the Sanctuary of her
Temple at Philae and their Theological Significance», JEA 69 (1983), p. 134.
528
Ela criou os raios luminosos,
Afasta a obscuridade (...)
A deusa não tem limite
Ela não teve princípio nem fim,
Brilha com o sol
Eleva-se como a lua
Ilumina as margens com o seu esplendor,
Ela fez o que existe
Ela criou os seres,
Engendrando tudo o que é dotado de vida.
«Céu» é o nome que damos a sua majestade,
ela deu início à terra segundo os seus desígnios,
ela fez todas as coisas como uma criação do seu coração
Quando ela atravessa o céu seguindo o seu coração
O seu filho Ré rejubila diante dela,
Os seus braços erguem-se em adoração diante da senhora dos deuses,
Criando hinos de louvor à sua mãe poderosa.
Ela criou-o na manhã como uma criança (...)
Os grandes deuses reunidos
Contemplam a sua mãe
Deus e deusa simultaneamente. 1352
1352
Versão portuguesa baseada na tradução francesa. S. SAUNERON, Esna. Vol. V: Les Fêtes
religieuses d´Esna aux derniers siécles du paganisme, pp. 151-152.
529
26. Cântico das Sete Hathores
1353
Templo de Hathor, Dendara. Adaptado da versão francesa proposta por BARUCQ, DAUMAS,
Hymnes et Priéres, p. 450.
1354
Templo de Hathor, Dendara. Idem, p. 449.
1355
Estela de Neferabu, Império Novo. Adaptado da versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, vol. II, pp
109-110.
530
Fiz a minha morada ao lado dos muros do teu templo
Como o servo que adora o seu senhor sobre a terra. 1356
Eu chego e venero-te.
É uma alegria quando te vejo.
Como é bom ver-te!
Como és belo, tu que estás entre a Enéade!
Tu atendes, pacífico, ao chamamento, senhor.
Eu sou um servo que entra no teu templo,
Que faz o bem no interior da tua morada, todos os dias,
Que se ocupa do melhor para o teu santuário.
Que o teu rosto perfeito seja gracioso para mim,
Pois sou perfeito na tua morada.
Prolonga o meu tempo de vida na doçura do coração. 1358
1356
O texto está patente numa estátua da época romana e é apresentado, em língua francesa, por André
Barucq e François Daumas (Ver BARUCQ, DAUMAS, Hymnes et Priéres, pp. 414-415.)
1357
Idem, p. 411.
1358
Período ptolemaico. Idem, p. 383.
531
Hórus de braço erguido,
Cujo amor é grande,
Que rasga o céu com as suas duas plumas
Senhor de coração alegre (...)
Rei dos deuses
Doce de amor (...)
excelente médico para quem o coloca no coração (...)
Eu sou o teu servo
Eu avanço e permaneço-te fiel
O meu coração conheceu-te desde o ovo.1359
1359
Período ptolemaico. Idem, p. 376
1360
Império Médio. Idem, p. 372.
1361
Papiro VI do Ramesseum. Idem, p. 422.
532
34. Hino a Min
1362
Período ptolemaico. Idem, p. 380
533
Deus de belo rosto
De olhos maquilhados,
O mais belo dos deuses
O seu esplendor sobrepõe-se ao da Enéade
Apazigua Sekhmet no deserto
(...) cura a doença e faz viver o doente,
excelente médico para quem o coloca no coração (...)
Eu sou o teu servo
Eu avanço e permaneço-te fiel
O meu coração conheceu-te desde o ovo (...)1363
1363
Oração a Min, período ptolemaico. Idem, p. 376
1364
Louvor a Montu, Medamud. Idem , p. 474.
1365
Oração a Ahmés. Império Novo. Idem, p. 483
534
V. A Teologia Menfita (texto cosmogónico)
(48) (No princípio dos tempos) todos os deuses se manifestaram em Ptah. Ptah foi o pai e a mãe
que criou e gerou Atum. Ele é o coração e a língua da Enéade.
(55) A sua Enéade está diante dele como os dentes e os lábios de Atum, como o esperma e as
mãos de Atum. A Enéade de Atum formou-se a partir do seu esperma e dos seus dedos. A Enéade é
verdadeiramente os dentes e os lábios na boca que proclamou o nome de todas as coisas. Dela saíram Chu
e Tefnut. (56) (assim) nasceu a Enéade.
(53) O coração manifestou-se sob a forma de Atum. A língua manifestou-se sob a forma de
Atum. O deus maior é Ptah, (Ele) fez confiar (a vida) a todos os deuses e aos seus kau (54) O seu coração
é onde Hórus se manifesta em Ptah. A sua língua é onde Tot se manifesta em Ptah. Então o coração e a
língua tornaram-se nos que têm poder sobre todos os membros, segundo o ensinamento que surge em
todo o corpo e em toda a boca de todos os deuses, de todos os homens, de todo o gado, de todos os
vermes e de todas as coisas vivas, de acordo com o plano que comanda todas as coisas que ele ama. (55)
A visão dos olhos, o escutar das orelhas e o respirar da garganta sobem diante do coração. Ele dá saída a
todo conhecimento. A língua repete o conhecimento do coração. Ele gerou todos os deuses, e completou a
sua Enéade. Na verdade, toda a palavra divina nasce a partir do conhecimento do (57) coração e do
comando da língua.
Ele criou os kau e designou as hemsut. (Eles) criaram todo o alimento e todas as oferendas de
acordo com a sua palavra.
Para o que faz o que é amado ele dá vida e paz
Para o que faz o que é odiado ele dá morte e condenação
Ele fez todo os trabalhos e todos os ofícios, as obras feitas pelas mãos, o andamento das pernas e (58)
todo o movimento dos membros, de acordo com a sua ordem, a palavra do conhecimento do coração
(que) sai pela língua e faz todas as coisas veneráveis. (Ele) manifestou a sua palavra, concluiu a (sua)
obra e formou os deuses. Ele é Ptah-Tatenen, o que gerou os deuses.
Todas as coisas saíram dele, as provisões, os alimentos para as (59) oferendas divinas e todas as
coisas boas.
535
Ele descobriu a sabedoria e a sua força é maior do que (a dos outros) deuses. Desta forma, Ptah
ficou verdadeiramente satisfeito com as suas obras: todas as coisas e todas as palavras divinas.
Ele gerou os deuses.
Ele criou as cidades.
Ele estabeleceu todas as regiões.
Ele colocou os deuses nos
(60) seus santuários,
Ele definiu as suas oferendas,
Ele fundou os seus templos,
Ele fez as suas imagens veneráveis
E elas tornaram-se os seus corpos
Através dos quais satisfaziam os seus desejos.
Deste modo, os deuses entraram nos seus corpos,
Feitos de todas as madeiras, de todas as pedras, todas as espécies de argila,
De todas as coisas que crescem sobre si,
(61) de onde eles se formam.
Ele reuniu todos os deuses e todos os seus kau, satisfeitos e unidos com o senhor das Duas
Terras. O Grande Trono, que dá alegria ao coração dos deuses na morada de Ptah, é o celeiro de Tatenen,
a senhora de toda a vida, ela faz viver as Duas Terras através de si. 1366
1366
A versão que aqui apresentamos tem em conta o texto hieroglífico, apresentado integralmente nas
versões de Breasted (BREASTED, ZAS 39 (1902), pp. 39-54) e Sethe (K. SETHE, Dramatische Texte zu
Altaegyptischen Mysterienspielen, pp. 20-90.), bem como as respectivas traduções em inglês e alemão,
respectivamente. Embora não se baseie na versão hieroglífica, a versão proposta por Miriam Lichtheim
(M. LICTHEIM, AEL, I, pp. 51-57) também constituiu um alicerce basilar para a versão em língua
portuguesa. Outras versões, que apenas apresentam ou comentam a narrativa cosmogónica, foram
também consideradas. É o caso das versões de John Wilson (J. WILSON, «The Memphite Theology of
Creation»., pp. 1-2) e de Erik Iversen (E. IVERSEN, «The cosmogony, pp. 485-493.).
536
VI. O Conto dos Dois Irmãos
(1,1) Diz-se que havia dois irmãos, do mesmo pai e da mesma mãe. Anpu era o
nome do mais velho e Bata o nome do mais novo. Anupu tinha casa e mulher e o seu
irmão mais novo estava com ele como se fora seu filho. Era ele, o mais jovem, que lhe
fazia as roupas, que ia atrás do seu gado para os campos. Era ele que arava a terra e
fazia a colheita para ele. Era ele que fazia todos os tipos de trabalho nos campos. Na
verdade este jovem era excelente. Não havia ninguém como ele em toda a terra, e a
força de um deus estava em si.
Muitos dias haviam passado, o irmão mais novo conduzia o seu gado de acordo
com o que sempre fazia. Voltava a sua casa, já escurecia carregado com todos os tipos
de plantas do campo, com leite, com madeira e com todas as coisas boas do campo. O
jovem colocou-as diante do irmão mais velho que estava sentado com a mulher. Então
bebeu e (foi dormir) no seu estábulo entre o seu gado.
Anoiteceu e voltou um novo dia, (tomou alimentos) e colocou-os diante do seu
irmão mais velho. Então tomou pão para levar consigo para os campos e conduziu as
rezes para os campos afim de se alimentarem. Ele ia atrás do gado e os animais diziam-
lhe: «A erva está boa no lugar tal». Ele ouvia o que eles diziam e levava-os para o lugar
(2,1) onde havia a boa erva que eles gostavam. Por isso o seu gado se tornava excelente
e se multiplicava bastante.
Na estação da sementeira o seu irmão disse-lhe: «Prepara uma junta de bois para
a sementeira, pois a terra já está à vista e está boa para a sementeira. Vem para o campo
com sementes, pois começaremos a semear amanhã». Assim falou ele. O irmão mais
novo fez todos os preparativos que o seu irmão lhe mandou.
Anoiteceu e voltou um novo dia, eles foram para o campo com as sementes e
começaram a semear. E os seus corações estavam muito satisfeitos com o trabalho que
537
estavam a empreender. Muitos dias depois, quando estavam no campo, precisaram de
mais semente. Então o mais velho disse: «Depressa, vai buscar mais semente à aldeia».
O mais novo encontrou então a mulher do seu irmão sentada a pentear os seus cabelos.
Ele disse-lhe: «Levanta-te vai buscar sementes (3,1) para que possa regressar ao campo,
pois o meu irmão espera por mim. Não demores». Ela disse-lhe: «Vai, abre o armazém e
recolhe o que quiseres. Não me faças estragar o meu penteado.»
Então o jovem entrou no estábulo e escolheu um grande recipiente, pois queria
levar uma grande quantidade de sementes. Encheu-o com cevada e saiu. Ela então disse-
lhe: «O que levas ao ombro?» Ele disse-lhe: «Três sacos de trigo e dois sacos de cevada,
cinco ao todo levo ao ombro.» Ela disse-lhe então: «Tens uma grande força em ti. Vejo
o teu vigor diariamente.» E ela desejou conhecê-lo como homem. Ela levantou-se
abraçou-o e disse-lhe: «Vem, vamos passar uma hora juntos. Será bom para ti. E farei
para ti boas roupas.»
Então o jovem ficou furioso como um leopardo com as palavras malévolas da
mulher e ela ficou muito assustada. Ele repreendeu-a dizendo: «Vê, tu és como uma
mãe para mim e o teu marido é como um pai para mim. Ele criou-me. (4,1) Que grande
mal é este que tu me disseste? Não voltes a repeti-lo! Não direi a ninguém o que
disseste. A minha boca não o repetirá a ninguém.» Pegou então na sua carga e saiu para
o campo. Encontrou o irmão e continuaram a trabalhar. Quando veio a noite o mais
velho voltou a casa, enquanto o mais novo, carregando com todas as coisas do campo,
conduzia o gado para dormirem no estábulo na aldeia.
Temendo que as suas palavras fossem conhecidas, a mulher do mais velho
tomou gordura e banha e fez-se parecer como se tivesse sido espancada para dizer ao
seu marido: «Foi o teu irmão que me bateu». O seu marido regressava a casa como era
habitual. Chegou a casa e viu a sua mulher deitada no chão muito doente. Ela não
derramou água sobre as suas mãos como era habitual, nem lhe acendeu uma lâmpada. A
casa estava na escuridão e ela vomitava, prostrada no chão.
O seu marido disse-lhe: «Quem falou contigo?» Ela disse-lhe: «Ninguém falou
comigo a não ser o teu (5,1) irmão. Quando ele veio para levar sementes encontrou-me
aqui sozinha e disse-me: «Anda, vem passar uma hora deitada comigo, solta as tuas
tranças». Assim disse ele. Mas eu não lhe dei ouvidos. “Não sou eu a tua mãe? Não é o
teu irmão como um pai para ti?” foi assim que lhe respondi. Ele assustou-se e bateu-me
para que eu não te contasse nada. Agora, se o deixares viver, que eu morra! Vê, quando
538
ele voltar não o deixes viver! Pois eu estou doente pelo mal que ele estava prestes a
fazer esta manhã.»
Então o irmão mais velho ficou como um leopardo. Ele afiou a sua lança e
tomou-a na sua mão. Então ficou atrás da porta do estábulo para matar o seu irmão
quando este viesse guardar o gado. Quando o sol se pôs, o mais novo vinha carregado
com todas as plantas do campo como sempre acontecia. Ele voltava e a vaca da frente
ao entrar no estábulo disse ao seu pastor: «Está aqui o teu irmão mais velho à tua espera
para te matar. Foge dele!». Ele ouviu o que a vaca disse e (6,1) e outra vaca entrou e lhe
disse a mesma coisa. Ele olhou para baixo da porta do estábulo e viu os pés do seu
irmão mais velho como se estivesse atrás da porta com uma lança na mão. Deixou a sua
carga no chão e fugiu a correr como se voasse. E o seu irmão foi atrás dele com a lança.
Então o mais novo rezou a Ré-Horakhti dizendo: «Meu bom senhor! És tu quem
julga o pecador e o justo!». E Ré ouviu o seu lamento e fez aparecer entre ele e o irmão
mais velho um grande caudal de água cheio de crocodilos. Um ficou de um lado e o
outro do outro lado. O irmão mais velho golpeou a sua própria mão duas vezes porque
falhara no seu intento de o matar. Então o seu irmão falou-lhe do outro lado. «Espera
aqui até escurecer! Quando Aton se erguer eu (7,1) falar-te-ei diante dele e ele
testemunhará o que te direi. E nunca mais estarei contigo. E não voltarei para junto de
ti. Irei para o Vale do Cedro.»
Quando anoiteceu e outro dia chegou com o despontar de Ré-Horakhti, ficaram
os dois frente a frente. Então o jovem repreendeu o mais velho dizendo: «Porque vens
atrás de mim para me matar, sem mesmo ouvir as minhas palavras? Eu ainda sou o teu
irmão mais novo e tu és como um pai para mim e a tua mulher é como uma mãe para
mim. Quando eu fui buscar semente a tua mulher disse-me: “Anda, vem passar uma
hora juntos”. Mas vê, estas palavras foram distorcidas para ti.» Então ele disse-lhe tudo
o que aconteceu com a mulher dele. E jurou diante de Ré-Horakhti dizendo: «Tu vieste
para me matar, mas o testemunho que te fez pegar na lança é o de uma mentirosa!»
Então pegou numa faca e cortou o seu pénis e atirou-o para a água e um peixe-gato
engoliu-o. E (8,1) ficou fraco e com febre. O seu irmão mais velho padeceu no seu
coração e chorou por ele amargamente. Por causa dos crocodilos não podia atravessar
para ajudar o irmão.
Então o mais novo falou-lhe dizendo: «Se te lembras do mal, não te lembrarás
também de algo bom que te tenha feito? Vai para casa e guarda o teu rebanho porque eu
não estarei onde tu estiveres. Vou para o Vale do Cedro. Mas um dia virás ter comigo
539
quando souberes que algo me aconteceu. Vou arrancar o meu coração e vou colocá-lo
no botão do cedro. Se o cedro for cortado e cair ao chão virás para o procurar. Se
passares sete anos à procura dele, não se desanime o teu coração. Quando encontrares
coloca-o numa taça cheia de água e viverei para me vingar dos que me enganarem.
Saberás se alguma coisa me aconteceu quando te puserem um jarro de cerveja na tua
mão e ela fermentar. Então, se isto te acontecer, não te demores.»
Então ele partiu para o Vale do Cedro e o seu irmão mais velho foi para casa, a
mão sobre a cabeça e manchado de poeira. Quando chegou a casa matou a mulher e
lançou-a aos cães e fez luto pelo irmão.
Muito dias passaram. O mais jovem estava no Vale do Cedro. Ninguém estava
com ele e passava os dias a caçar no deserto. À noite voltava para dormir sob o cedro no
botão do qual depusera o seu coração. Depois de muitos (9,1) dias construiu ele mesmo
uma casa para si próprio no Vale do Cedro recheada de todas as coisas boas, pois queria
formar um lar.
Ao sair da sua morada, encontrou a Enéade na sua jornada sobre a terra. Então a
Enéade dirigiu-se a ele em uníssono, dizendo: «Oh, Bata, Touro da Enéade, estás aqui
sozinho por causa da mulher de Anupu, o teu irmão mais velho? Ele matou a mulher e
tu estás vingado de todo o mal que ela te causou». E tendo pena dele, Ré-Horakhti disse
a Khnum: «Modela uma mulher para Bata, para que ele não viva sozinho!». Então
Khnum fez-lhe uma companheira que tinha um corpo mais belo que o de qualquer
mulher ao cimo da terra, pois uma centelha divina estava nela. Então as Sete Hathores
vieram vê-la e disseram em uníssono: «Ela morrerá sob a espada».
Ele desejou-a muito. Ela ficava na casa dele enquanto ele passava o dia (10,1) a
caçar no deserto, colocando tudo o que recolhia diante dela. Ele disse-lhe: «Não saias
para fora para que o mar não te leve. Eu não te poderia salvar pois sou uma mulher
como tu. E o meu coração está no botão do cedro. Mas se alguém o encontrar lutarei
com ele.» Foi então que ele lhe revelou o coração.
Passaram muitos dias. Quando Bata foi caçar como sempre fazia, a rapariga saiu
para passear em redor do cedro que ficava junto à casa. Então ela viu o mar. O rebentar
das ondas fê-la fugir para casa. Então o mar falou ao cedro e disse: «Agarra-a para
mim!». O cedro tirou-lhe uma madeixa do cabelo e o mar levou-a para o Egipto e
colocou-a diante do local onde os lavadores do faraó vinham lavar a roupa. Seguiu-se
então que a fragrância da madeixa de cabelo impregnou as vestes reais. E o rei advertiu
540
então os lavadores: «Uma fragrância de unguento está impregnada nas vestes do
faraó!». Ele advertia-os todos os dias e (11,1) eles não sabiam o que fazer.
O superior dos lavadores reais foi à beira da água com o coração dolorido devido
às advertências constantes. Então ele viu que do outro lado do rio estava uma madeixa
de cabelo. Pediu que a fossem buscar e viu que o seu aroma era muito doce e levou-a ao
faraó.
Então os escribas eruditos do faraó foram convocados e disseram ao faraó:
«Quanto a esta madeixa de cabelo, ela pertence a uma filha de Ré-Horakhti, na qual
existem as essências dos deuses. Trata-se de uma saudação proveniente de um outro
país. Envia emissários para todas as terras estrangeiras para a procurar. E quanto ao
emissário que for ao Vale do Cedro, fá-lo acompanhar por muitos homens para a
trazer». Sua majestade disse: «O que disseram é muito bom». E eles foram enviados.
Muitos dias passaram e os homens que haviam partido regressavam. Mas os que
tinham ido ao Vale do Cedro não regressaram, pois haviam sido mortos por Bata, à
excepção de um que voltou para contar a sua majestade o sucedido. Então sua majestade
enviou muito soldados e carros de guerra para a trazer, e (12,1) com eles foi uma mulher
a quem confiaram todo o tipo de belas jóias femininas. A mulher regressou ao Egipto
com ela e houve um grande júbilo em toda a terra. Sua majestade amou-a muito e deu-
lhe o estatuto de grande senhora. Ele falou com ela para que lhe contasse tudo sobre o
seu marido, pelo que ela lhe disse: «Manda cortar o cedro». O rei enviou soldados com
as ferramentas para abater o cedro. Eles alcançaram o cedro, cortaram o botão onde
estava encerrado o coração de Bata e este caiu morto nesse mesmo instante.
Anoiteceu e veio um novo dia. O cedro havia sido cortado. Anupu, o irmão mais
velho de Bata, entrou na sua casa e sentou-se para lavar as mãos. Deram-lhe um jarro de
cerveja e este fermentou. Deram-lhe um outro de vinho e este azedou. Então pegou no
seu (13,1) bastão e nas suas sandálias, embrulhou roupas e as suas armas e partiu em
direcção ao Vale do Cedro. Entrou então na morada do seu irmão e encontrou-o deitado
na cama. Chorou quando viu o seu irmão morto. Foi à procura do coração do seu irmão
debaixo do cedro sob o qual o seu irmão dormia à noite. Passou três anos à procura do
coração sem o encontrar.
Quando o quarto ano estava a começar, o seu coração desejou voltar para o
Egipto e disse: «Amanhã vou partir». Assim disse no seu coração. Quando anoiteceu e
voltou um novo dia, foi caminhar junto ao cedro e passou o dia a procurar o coração do
irmão. Quando voltava, à noite, voltou uma vez mais a procurá-lo e encontrou um fruto.
541
Voltou com o fruto que era o próprio coração do irmão mais novo! Encheu uma taça
com água fresca, colocou-o lá dentro, e foi descansar como era habitual.
Quando chegou a noite, (14,1) o coração absorveu a água e todo o corpo de Bata
estremeceu. Começou então a olhar para o seu irmão mais velho enquanto o seu coração
permanecia ainda na taça. Então Anupu, o seu irmão, tomou a taça com água fresca
onde permanecia o coração do irmão mais novo e deu-lhe a beber. Então o coração
voltou ao seu lugar e ele retomou a sua aparência
(Os dois irmãos) abraçaram-se e falaram um com o outro. Bata disse ao irmão
mais velho: «Vê, vou transformar-me num grande touro de tez muito bela, de uma
espécie desconhecida para o homem e sentar-te-ás sobre o meu dorso. Pelo nascer do
sol estaremos onde a minha mulher está para que eu me possa vingar. Levar-me-ás junto
do rei e ele recompensar-te-á com todas as coisas boas. Serás recompensado com prata e
ouro por me levares ao faraó. Pois eu serei uma grande maravilha e haverá grande júbilo
por minha causa na terra inteira. Então partirás para a tua aldeia».
Quando anoiteceu (15,1) e voltou um novo dia, Bata transformou-se no que
tinha dito ao seu irmão. Então Anupu saltou para o seu dorso. Ao escurecer estavam
junto do rei. Sua majestade foi informada sobre ele. Quando o viu regozijou-se e fez
uma grande oferenda por ele e disse: «É uma grande maravilha!» E ouve uma grande
júbilo por sua causa na terra inteira. Então o rei recompensou o irmão mais velho com
prata e ouro e este foi habitar para a sua aldeia. A ele (Bata), o rei deu muitos servos e
muitas riquezas pois amava-o muito, mais do que qualquer outra coisa em toda a terra.
Muitos dias passaram, (Bata) entrou na cozinha e permaneceu junto à Senhora e
começou a falar-lhe assim: «Vê, ainda estou vivo!». Ela disse-lhe: «Quem és tu?». Ele
disse: «Eu sou Bata. E sei que foste tu que disseste ao faraó para abater o cedro para que
eu não pudesse viver. Mas vê, ainda estou vivo! Eu sou um touro!». A senhora ficou
muito assustada com o que o marido lhe tinha dito. Então ele saiu da cozinha.
Sua majestade recolheu-se para se banquetear com ela. Ela deu-lhe de beber e
ele estava muito satisfeito com ela. Então ela disse a sua majestade: «Jura por deus,
dizendo: “ouvirei o que ela disser”». Ele ouviu tudo o que ela disse: «dá-me a comer o
fígado deste touro, ele não presta para nada». Assim falou a mulher. Ele ficou muito
perturbado com o que ela disse e o coração do faraó ficou dolorido.
Quando anoiteceu e voltou um novo dia, o rei anunciou uma grande oferenda, o
sacrifício do touro. Ele enviou o superior dos matadores reais para sacrificar o touro.
Quando foi sacrificado e era carregado aos ombros dos homens, (Bata) abanou o
542
pescoço e deixou cair duas gotas de sangue nas ombreiras de Sua Majestade, uma de
cada lado do grande portão do faraó. Cresceram então dois (17,1) grandes sicómoros,
cada um deles deslumbrante. Foram então dizer a sua majestade: «Dois grandes
sicómoros cresceram esta noite, uma grande maravilha para sua majestade, diante do
portal de sua majestade». Houve um grande júbilo em toda a terra e o rei fez-lhes uma
oferenda.
Muitos dias passaram. Sua majestade apareceu na janela das audiências de lápis-
lazúli com uma grinalda com todos os tipos de flores. Então subiu ao carro dourado e
saiu do palácio para ver os sicómoros. A senhora saiu num grupo atrás do faraó. Sua
majestade sentou-se debaixo de um sicómoro (e a senhora debaixo do outro. Então
Bata) falou à sua mulher: «Mentirosa! Eu sou Bata! Eu estou vivo apesar de tudo o que
fizeste. Eu sei que disseste ao faraó para cortar o cedro para me matares. E quando me
tornei num touro foste tu que me mataste».
Muitos dias depois, a senhora deu de beber a sua majestade e ele estava feliz
com ela. Então ela disse a sua majestade: «Jura por Deus dizendo: “Ouvirei o que ela
disser”. Assim dirás». Ele ouviu (18,1) tudo o que ela disse. Ela disse: «Corta os dois
sicómoros e manda fazer uma bela mobília». O rei ouviu o que ela disse. Passado pouco
tempo o rei enviou artesãos experientes. Abateram os sicómoros do faraó e a rainha, a
senhora, ficou a vigiá-los. Então uma lasca soltou-se e voou para a boca da rainha. Ela
engoliu-a e, instantaneamente, ficou grávida. O rei (ordenou) que fosse feito da madeira
o que ela entendesse.
Muitos dias depois, ela deu à luz um filho. Foram dizer a sua majestade:
«Nasceu o teu filho». Ele era encantador e uma ama e muitas servas foram-lhe
atribuídas. E, por sua causa, houve um grande júbilo em toda a terra. O rei retirou-se
para um banquete e trazia-o ao colo. A partir daí sua majestade amava-o muito e
designou-o (19,1) governador de Kuch. E muito dias depois, sua majestade coroou-o
príncipe de toda a terra.
Muitos dias se passaram e ele (Bata) passou muitos anos como príncipe herdeiro
de toda a terra. Mas sua majestade subiu ao céu. Então o rei (Bata) disse: «Que os
grande oficiais reais me sejam enviados, para que todos saibam o que me aconteceu».
Então a sua mulher foi trazida à sua presença. Ele julgou-a na presença de todos e
emitiu o seu veredicto. O seu irmão mais velho também foi chamado e foi designado
príncipe herdeiro de toda a terra. Ele passou trinta anos na qualidade de rei do Egipto.
Quando partiu da vida e o seu irmão tomou o seu lugar no dia da morte.
543
Foi realizado sobre a supervisão do escriba do tesouro, Kagabu, e os escribas do
tesouro, Hori e Meremope. Escrito pelo escriba Enana, o proprietário deste livro. Quem
fizer mal a este livro, terá de enfrentar Tot como adversário.1367
1367
A versão que aqui apresentamos tem em conta o texto hieroglífico, apresentado integralmente em A.
GARDINER, Late Egyptian Stories, pp. 10-29, bem como a tradução em inglês de Miriam Lichtheim (M.
LICTHEIM, AEL, II, pp. 203-210). Ver também L. ARAÚJO, Mitos e Lendas do Antigo Egipto, pp. 199-
208.
544
VII. «Textos das Pirâmides»
Fórmula 4
Palavras ditas por Nut: Ó soberano, eu dei-te a tua irmã Ísis, que ela possa velar por ti e dar o teu coração
para o teu corpo.1368
Fórmula 32
Esta água fresca pertence-te, ó Osíris, esta água fresca pertence-te, ó soberano, ela veio para o teu filho,
ela veio para Hórus. Eu vim e trouxe-te o olho de Hórus. Que o teu coração possa ser refrescado por ele.
Eu trago-to com as tuas sandálias. Toma o fluxo que saiu de ti. O teu coração não permanecerá inerte ao
possui-lo.
Fórmula 215
1368
Pir 4, § 3. Adaptado da versão inglesa proposta em R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid
Texts, p. 2.
1369
Pir 215, § 144-147. Idem, p. 42.
545
Fórmula 217
Fórmula 256
Fórmula 261
Fórmula 267
1370
Pir 217, § 152-157. Idem, pp. 44-45.
1371
Pir 256, § 301-303. Idem, p. 67.
1372
Pir 261, § 324. Adaptado da versão inglesa proposta em R. FAULKNER, The Ancient Egyptian
Pyramid Texts, p. 70.
546
Eu voo como uma ave e pouso como um escaravelho, eu voo como uma ave e pouso como um
escaravelho no trono vazio que está na tua barca, ó Ré. (...)1373
Fórmula 273-274
Fórmula 317
1373
Pir 267, § 364-366. Idem, p. 76
1374
Pir 273-4, § 393-411. Idem, pp. 80-82.
547
boca, urino e copulo com o meu falo, sou o possuidor da semente, que toma as mulheres dos seus maridos
sempre que deseja, de acordo como o seu desejo (coração?) 1375
Fórmula 419
Fórmula 477
1375
Pir 317, § 507-510. Idem, p. 99.
1376
Pir 419, § 743-749. Idem, pp. 137-138.
1377
Pir 477, § 962-963. Idem, p. 165.
1378
Fórmula 477 dos «Textos das Pirâmides». Ibid., p. 118.
548
Fórmula 486
Fórmula 512
O meu pai fez um novo coração. O outro (coração) foi removido pois opunha-se à sua ascensão ao céu
quando ele vagueava nas águas do Canal Ventoso.1380
Fórmula 515
Fórmula 595
1379
Pir 486, § 1039. Idem, p. 173.
1380
Pir 512, § 1162. Idem, p. 188.
1381
Pir 515, § 1179-1182. Idem, p. 190
1382
Pir 595, § 1639-1640. Idem, p. 245.
549
Fórmula 690
Este soberano chega, provido como um deus, os seus ossos são atados como Osíris (...) Este soberano
vem ter contigo a Heliópolis, tu estás protegido, o teu coração foi colocado no teu corpo para ti. A tua
face é a de um canídeo, a tua carne é a de Atum, o teu ba está em ti, o teu poder está atrás de ti, Ísis está
diante de ti, Néftis está atrás de ti (...) Ó Osíris, a inundação chega, a cheia apressa-se (...) Eu chorei-te no
teu túmulo e esmaguei os que te agrediram (...) regressa à vida, ergue-te a ti mesmo através da tua força.
Ó soberano, a inundação chega, a cheia apressa-se, Geb dá o fluído do deus que está em ti, para que o teu
coração possa viver, para que o teu corpo possa viver (...) Ergue-te a ti mesmo através da tua força,
ascende ao céu, possa o céu dar-te à luz como Orion, possas ter poder sobre o teu corpo e proteger-te a ti
mesmo dos teus inimigos. 1383
Fórmula 699
Anúbis tomará o teu braço e Nut dar-te-á o teu coração. Então poderás voar como falcão, levantar-te-ás
como uma ave benu e viajarás para o Ocidente. Vive! Sê jovem, rejuvenesce ao lado do teu pai, Orion, no
céu. Viverás a vida...1384
1383
Pir 690, § 2097-2114. Adaptado da versão inglesa proposta em R. FAULKNER, The Ancient
Egyptian Pyramid Texts, pp. 298-299.
1384
Pir 699, § 2178-2181. Idem, p. 305.
550
VIII. «Textos dos Sarcófagos»
Fórmula 20
Ó N., damos-te o teu coração ib da tua mãe (ou do teu ventre), o teu próprio coração hati, o teu
ba que estava sobre a terra, o teu corpo que estava enterrado, para o teu ventre, água para a tua garganta, a
brisa doce para o teu nariz. Aqueles que estão nos túmulos são-te favoráveis, eles vêem ter contigo,
trazem-te os membros que estavam longe de ti, de modo que a tua imagem foi restabelecida.1385
Fórmula 22
Ó Osíris N., sairás para o dia, farás uso das tuas pernas desde a alvorada e farás uso das tuas pernas a
partir do momento em que as lucernas são acesas. (...) Farás uso das tuas pernas em qualquer lugar onde
o teu coração deseje sair, em qualquer altura. 1386
Fórmula 39
(...) Eu estarei no país dos vivos; o meu coração fará os meus membros, as minhas carnes obedecer-me-
ão, eles sustentar-me-ão. Tornar-me-ei um ancião (...)1387
Fórmula 47
Quando se ergue este deus que está no horizonte, é aclamado nos dois santuários. (...) Tu trazes a
balança como Tot, és reconhecido como deus que está junto dele. Comes o pão na Grande Sala e as
oferendas são dedicadas a ti, como a Ré, por aqueles que estão no trono de Heliópolis. Tu tens o teu
1385
TdS 20, adaptado da versão francesa em BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 167. Termos em
itálico transcritos a partir da versão hieroglífica apresentada em A. DE BUCK, The Egyptian Coffin Texts,
I, p. 56.
1386
TdS 22, Adaptado da versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 168.
1387
TdS 39, Idem, p. 181.
551
coração ib, ele não te será levado pelos guardiões dos caminhos. Depois de teres recebido as oferendas em
Busíris, as tuas impurezas foram limpas em Heracleópolis, Tot agraciou a tua perfeição (...) 1388
Fórmula 51
Desperta para a vida, Osíris N.! Tu não estás morto. Ergue o teu coração e observa (...) Louvores são
entoados nos Dois Santuários. Ergue-te sobre o teu lado esquerdo e coloca-te sobre o teu lado direito.
Recolhe a brisa da margem, come o pão com os vivos e vai em paz para o belo Ocidente! A necrópole
saúda-te e todos estão em júbilo à tua passagem. Todos te dizem: «Bem-vindo Osíris N.! Tu és o senhor
do Ocidente». Eu regozijo-me por ti pois o teu coração alegra-se. Quando Ré se ergue no Oriente ele vê a
beleza da tua barca: aclamações são enunciadas atrás e à frente; os deuses que aí se encontram jubilam
quando vêm este grande deus, filho de Geb que Nut deu à luz. (...)1389
Fórmula 62
Louvor a ti, meu pai Osíris! Eis que estou aqui. Eu sou Hórus, o que abriu a boca de Ptah, o que te
glorificou com Tot, aquele que colocou o teu coração ib no teu corpo, para que tu te lembres o que
esqueceste (...), o que te deu as tuas pernas para que possas andar (...) O teu andar é mais rápido do que
um abrir e fechar de olhos (...) Atravessas o canal dos rekhit pois foste proclamado justo no dia do
julgamento (...) Dás a volta a todos os países estrangeiros com Ré (...) Uma escada é estendida para ti para
o céu e Nut estende-te os braços. Vagueias pelo canal sinuoso e navegas na barca dos Oito. As duas
tripulações das Estrelas Imperecíveis e das Estrelas Infatigáveis transportam-te e conduzem-te para a
planície líquida.» 1390
Fórmula 75
Eu sou o ba de Chu, um deus que se manifestou a partir de si mesmo. Eu sou o ba de Chu, o deus cuja
forma é invisível; eu transformei-me no «deus que se formou a si mesmo».
1388
TdS 47, adaptado da versão francesa em Ibid., p. 190. Termo em itálico transcrito a partir da versão
hieroglífica apresentada em A. DE BUCK, The Egyptian Coffin Texts, I, p. 210.
1389
TdS 51, Adaptado da versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 194.
1390
TdS 62, Idem, pp. 146-147. Termos em itálico transcritos a partir da versão hieroglífica apresentada
em A. DE BUCK, The Egyptian Coffin Texts, I, p. 269.
552
(...) Pois eu manifestei-me a partir do «deus que se formou a si mesmo». Ele concebeu-me no seu
coração, ele criou-me a partir do seu poder mágico. Eu sou «aquele cuja forma foi produzida». Este deus
venerável dilatou-se, ele irradia o céu na sua beleza, os deuses não conhecem o seu nome, as henmemet
são a sua escolta. Eu brotei das suas pernas, eu manifestei-me a partir das suas mãos, elevei-me a partir do
seu corpo. Ele concebeu-me no seu coração, ele criou-me pelo seu poder mágico., pois eu não nasci
(...)1391
Fórmula 101
(...) É Semheru e Redinemi que tornam esquecedor o coração deste homem quando o meu ba e a minha
sombra passarem junto dele. A sua língua não poderá revolver-se, sem que os seus lábios se possam
mover, sem que o seu coração se possa agitar (...) 1392
Fórmula 112
Fórmula 113
«Ó destruidor! (...) Se este meu coração solicitar a Atum para se dirigir aos jardins de Set, que este desejo
não lhe seja concedido».1394
1391
TdS 75, Adaptado da versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp. 462-466.
1392
TdS 101, Idem, p. 238.
1393
TdS 112, Idem, pp. 209-210.
1394
TdS 113, Ibid.
553
Fórmula 146
Fórmula 149
Para se transformar em homem-falcão. (...) Eu apareço como um grande falcão, eu agarro-o (o inimigo)
com as minhas garras, os meus lábios são para ele como machados fulgurantes, as minhas garras são
flechas de Sekhmet, os meus cornos são os do grande touro selvagem, as minhas asas são as de uma ave
de rapina, a minha cauda como a de um ba vivo. Eu voo e abato-me sobre o seu dorso, faço-o em pedaços
diante da sua família e arranco-lhe o coração (...)1396
Fórmula 207
Ó Duas que criam a noite, criai-me a mim também! Ó Duas que concebem o dia, criai-me a mim, que
estou no ovo! E vós criastes-me, vós elevastes-me. Se alegrarem o meu coração na Duat, o coração dos
deuses alegrar-se-á quando me virem rejuvenescido. 1397
Fórmula 225
Palavras para dizer. Proclamar alguém justo contra o seu inimigo no mundo dos mortos. Ter uso da água, sair durante o dia e
durante a noite, para o bem-aventurado, em qualquer lugar que ele deseje.
Ó N.! O céu e a terra estão abertos para ti. Os ferrolhos de Geb e o tecto de lucernas abriram-se para ti.
Quem te guardava absolveu-te, quem te agarrava o braço afastou-se. A boca do pelicano abriu-se para ti,
ela entreabriu-se para ti, a boca do pelicano deixou-te sair para o dia para qualquer lugar que o teu
coração deseje.
1395
TdS 146, Idem, p. 265.
1396
TdS 149, Idem, p. 437.
1397
TdS 207, Idem, p. 398.
554
Ó N.! Tu tens o uso do teu coração, tu tens o uso do teu músculo cardíaco, tu podes usar os teus braços,
podes usar as tuas pernas, podes dispor das oferendas funerárias, da água, do ar, da cheia, das duas
margens, dos que agiram contra ti no mundo dos mortos e dos que mandaram agir contra ti no mundo dos
mortos.
É mentira se disseres que vives do pão de Geb, pois isso é uma abominação e não o comerás. Vives do
pão de trigo vermelho e sacias-te com cerveja (de trigo vermelho) no lugar puro. Sentas-te sob a folhagem
dos sicómoros de incenso, na proximidade de Hathor que preside em Itnus, quando se desloca a
Heliópolis com o livro das palavras divinas de Tot, senhor de Heliópolis.
Ó N.! Tu tens o uso do teu coração, tens o uso do teu músculo cardíaco, tens o uso do teu braço, tens o
uso das tuas pernas, podes dispor das oferendas funerárias, da água, do ar, do rio, da cheia, das duas
margens, dos inimigos e das inimigas. Ergue-te sobre o teu lado direito, coloca-te sobre o teu lado
esquerdo! Senta-te e ergue-te e sacode a poeira. A tua língua é um guia hábil. 1398
Fórmula 229
Louvor a ti, que estás à cabeça do Grande, senhora da testa e do pescoço, Ré rejubila quando te vê no
caminho da necrópole, descendente de Osíris na sala do embalsamamento, carpideira do Touro do
Ocidente, que coloca as suas mãos sobre «Aquele cujo coração já não bate», no segredo de urit que volta
a fixar o ba e faz reconstituir a sombra, que devolve o sopro ao deus cujo coração já não bate, no seu
nome de «sustentáculo do seu senhor»! Coloca a minha cabeça sobre o meu pescoço, tu que ligas a vida à
garganta! Faz de mim um bem-aventurado, reúne os meus membros, afirma o meu rosto, reconstitui o
meu ba, salva-me dos pescadores de Osíris que arrancam as cabeças e cortam os pescoços, que lançam os
bau para a sala de abate, onde se come a carne fresca! Que a minha cabeça não seja arrancada, que o meu
pescoço não seja cortado, que o meu nome não seja ignorado entre os bem-aventurados, que eu não seja
pescado na armadilha de Chu, que Hu não me seja retirado da boca, que o meu coração e o meu músculo
cardíaco não sejam arrancados, que o meu ba possa passar a noite em vigília junto do meu cadáver, que o
meu rosto não se ensombre, que o meu coração não se torne esquecedor, que eu não ignore o caminho que
conduz à Duat! Eu sou dotado de palavra eficaz, de magia intacta e provido do que o coração
precisa.(...)1399
Fórmula 235
Tens as tuas pernas, ergue-te! (Os teus membros foram reunidos para ti), dirige-te à assembleia onde
estão os deuses! Eles devolver-te-ão os líquidos (que saíram de ti), graças aos quais o teu coração não
1398
TdS 225, Idem, pp. 105-106.
1399
TdS 229, Idem, pp. 49-50.
555
voltará a parar! Caminha! Já não estás inerte. Atravessas o céu e a terra, pois já não estás imóvel,
venerável N., justificado! 1400
Fórmula 302
Transformação em falcão
Eu sou o grande falcão que nasceu do ovo. Eu voo e transformo-me num falcão de seis côvados (...) as
minhas asas são de feldspato verde do Alto Egipto. Eu subi do sarcófago na barca da noite, procurei o
meu coração no horizonte e pousei na barca do dia. Prestam-me homenagem e os seguidores servem-me.
Os deuses dos tempos primordiais vêem a té mim, inclinam-se e dão-me a totalidade das coroas, como
belo falcão de ouro que está no seu poleiro; Ré vem todos os dias para escutar a sua palavra. Eu sento-me
com os deuses senhores do céu, o duplo campo das felicidades está preparado para mim, eu como e bebo,
de acordo com o meu coração, segundo o meu desejo. Nepriheti ergue-se no cimo da minha cabeça. 1401
Fórmula 304
É benéfico para mim, é eficaz para mim. O meu ba está comigo, o meu coração está no meu corpo. O
meu cadáver está na terra e eu não chorei. O meu ba está comigo, ele não se afastou de mim. O poder
mágico está no meu corpo e não me foi roubado. Eu tenho o meu poder mágico eu tenho meios para me
manifestar, de modo que posso comer as refeições com o meu ka. Habitante da terra, passo a noite a ser
renovado, a ser rejuvenescido.
Palavras a dizer diante de uma coluna uadj do Alto Egipto, colocado ao pescoço do bem-aventurado.1402
Fórmula 335 A
1400
TdS 781, Idem, p. 55.
1401
TdS 302, Adaptado da versão francesa em P. Barguet, Les Textes des Sarcophages, p. 432.
1402
TdS 304, Idem, pp. 230-231
1403
TdS 335 A, Idem, pp. 564-570.
556
Fórmula 387
Fórmula 388
Fórmula 444
Eu sou o espírito glorioso de coração alegre. (...) Eu feri Set na margem dos dois ibis. Eu não dou o meu
poder mágico a estas duas Amigas, as duas favoritas de Ré, elas encontraram-me equipado do meu poder
mágico diante dos Grandes. 1406
Fórmula 448
Vai, meu ba, vai minha sombra, ide ver Ré no seu santuário! Os guardiões dos corações ibu não me
repeliram, os que velam pelos corações na floresta de papiros. Guardiões das portas do céu superior, abri
os caminhos ao meu ba, ao meu ka, à minha sombra: eles levam Maet para Ré!1407
1404
TdS 387, Idem, p. 207
1405
TdS 388, Idem, p. 206.
1406
TdS 444, Idem, p. 335
1407
TdS 488, Idem, p. 241. Termos em itálico transcritos a partir da versão hieroglífica apresentada em A.
DE BUCK, The Egyptian Coffin Texts, VI, p. 67.
557
Fórmula 503
Ele subiu sobre Chu, ele elevou-se sobre o Luminoso. A sua perna e o seu braço afastaram o machado.
Palavras a dizer para aquele que conhecer este livro. Ele pode sair para Busíris, o seu coração pode
estar em qualquer transformação em que desejar sair. Ele poderá copular ...sobre a terra, o seu herdeiro
existirá eternamente. O seu ba não lhe será levado (...) é realmente eficaz, milhões de vezes. 1408
Fórmula 526
Palavras ditas: «Eu sou Néftis, eu vim para tomar conta de ti. Eu coloco o teu coração no teu corpo. Eu
trago Hórus e a sua Grande-de-Magia, eu trago Set e a sua Grande-de-Magia» (as duas coroas)
Palavras ditas: «Eu sou Ísis, eu vim para tomar conta de ti. Eu coloco o teu coração no teu corpo. Eu trago
Hórus e a sua Grande-de-Magia, eu trago Set e a sua Grande-de-Magia»1409
Fórmula 566
Para não permitir que o coração do defunto testemunhe contra si no mundo dos
mortos
Este N. ergue-se no horizonte, pois é proclamado justo. Os que o acusaram estão diante dele (...) Este N.
ergue-se contra eles (...) Este N. pratica a equidade, o caos de Ré-Atum é-lhe abominável. Não há
adversário que possa levar a melhor sobre ele. 1410
Fórmula 572
1408
TdS 503, Adaptado da versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 249.
1409
TdS 526, Idem, pp. 39-40.
1410
TdS 566, Idem, p. 208.
1411
TdS 572, Idem, p. 216.
558
Fórmula 573
Fórmula 576
Os meus olhos são os de um leão, o meu falo é o de Bebon. Eu sou o Retalhado. O sémen está na
abertura, a minha cabeça está virada para o céu, a minha cabeça está virada para a terra. Eu sou alguém
que faz uso do seu coração. A mim pertencem-me o meu ba, a mim pertencem-me os bau.
Eu sou alguém que ejacula o sémen para criar (a vida). A minha ejaculação é a ejaculação enquanto
(deus).
Todo o homem que conhecer esta fórmula copulará sobre a terra noite e dia. O coração da mulher ser-
lhe-á submisso cada vez que ele copular. Palavras para dizer sobre uma pedra de cornalina e de
ametista, colocada no braço direito do bem-aventurado. 1413
Fórmula 615
1412
TdS 573, Idem, pp. 491-493.
1413
TdS 576, Idem, p. 231.
559
Fórmula 646
(...) apoia-me com o teu braço em utjenu para que eu triunfe! O coração de Osíris compraz-se no
Ocidente, o meu coração satisfaz-se no lugar onde está. Eu sou o seu filho. Fui purificado, divinizado pelo
jarro de Abido. (...) Fui purificado, fui divinizado pela cheia com a qual foste purificado. Eu sou teu
sucessor. 1415
Fórmula 657
Fórmula 691
Os sete que trazem a balança na noite em que se examina o olho sagrado, que arrancam as cabeças, que
cortam os pescoços, que arrebatam os corações, que roubam os corações, que fazem o massacre na ilha da
Chama, eu conheço-vos, eu conheço os vossos nomes. Conhecei-me como eu vos conheço! Conhecei o
meu nome como eu conheço o vosso nome. (...) dai-me o ceptro da vida que está na vossa mão e o ceptro
do poder que está no vosso punho! (...)1417
Fórmula 696
(...) Eu entrei e saí e fui para além da eternidade. Eu sou (o que venera?) o deus que está no seu coração.
Eu entrei e saí, percorri Chu, atravessei o furacão que se perfila no céu. A estrela iad na minha mão é a
dos dois ba. (...)1418
1414
TdS 615, Idem, p. 291.
1415
TdS 646, Idem, pp. 51-52.
1416
TdS 657, Idem, p. 214.
1417
TdS 691, Idem, pp. 151-153.
1418
TdS 696, Idem, pp. 155-156.
560
Fórmula 715
Ó vós que roubais corações, que acusais os corações, que fazeis que o coração do homem crie de novo o
que ele fez (...) louvor a vós, senhores da eternidade! Não me roubeis o coração, não critiqueis o meu
coração, vós fazeis que este meu coração me faça acusações! No que diz respeito a este coração, ele é o
coração «do que é rico em nomes», é o que fala pelos seus próprios membros, que enviou o seu coração
que preside no seu ventre e que concebe mais do que os outros deuses. Eu tenho o meu coração, eu tenho
o seu uso. Ele não permitirá o que me foi feito. Eu sou alguém que tem o uso dos seus próprios membros.
O meu coração obedece-me, pois eu sou o seu senhor, enquanto ele estiver no meu ventre ele não se pode
virar contra mim, pois eu sou aquele que ordena para que ele obedeça. 1419
Fórmula 762
Ó Osíris N., tu és Nehebkau, o filho de Geb que deu à luz a sua mãe Renenutet, tu és o ka de cada deus,
alguém que tem o uso do coração. Ergue-te! Hórus protege-te, pois considera-te como ka de todos os
deuses. Não há nenhum deus que não tenha o seu ka em ti. Manifesta-te, eleva-te com o teu pai, Hórus
que está no céu, o maior dos deuses! 1420
Fórmula 765
Ó N. tu és o primogénito, o Grande (...) Tu manifestas-te, ergues-te com Atum nos belos tronos que estão
na cheia. (...) encontrarás os deuses em júbilo, indo ao teu encontro, como para Ré, senhor dos homens.
Nut, a grande, leva-te na sua perfeição, ela encerra-te nos seus braços, as duas senhoras velam por ti como
se fosses Hórus, filho de Osíris. Elas estendem para ti os seus braços e colocam o teu coração no teu
corpo. 1421
Fórmula 768
1419
TdS 715, Idem, p. 207.
1420
TdS 762, Idem, p. 479.
1421
TdS 765, Idem, p. 296.
561
Tu que tudo vês, tudo destróis e que vês N., também ele te vê. Conhece N., não o ignores! Se conheces
N., também N. te conhecerá.
Ó tu que tens compaixão pelo olho udjat, conhece N., não ignores! Se conheceres N., N. conhecer-te-á. Ó
tu que fazes que N conheça os 10, 100, 1000, 10000, 100000, 1 milhão, 2 milhões, uma infinidade de
milhões à tua volta, conhece N., não o ignores! Se conheceres N., também ele te conhecerá.
Ó coração, conhecimento que está no corpo, conhece N., não o ignores! Se conheceres N. também ele te
conhecerá.
Ó medidor de todas as coisas, que conta o sono, que conta as formas, que conhece o que está nos
corações, conhece N., não o ignores! Se o conheceres, também N. te conhecerá.
Ó Escaravelho, o que vem à existência, que está na cheia, que criou o Nun em Tatenen, conhece N., não o
ignores! Se conheceres N., também ele te conhecerá.
Tu, cujo nome é Único, de quatro cabeças, conhece N., não o ignores! Se conheceres N., também ele te
conhecerá.
Ó Elefantina, conhece N., não o ignores! Se conheceres N., também N. te conhecerá. (...)
Ó provedor, senhor de tudo, conhece N., não o ignores (...)
Não ignores N, Hórus Soped (...)
Não ignores N., tu que estás na Duat (...)
Vêde: Eu cheguei, eu cheguei. Vêde: eu cheguei e saí (...) junto da morada do ba (...)1422
Fórmula 781
O Osíris N, o justificado, Anúbis está levantado e enche-o com leite das suas duas mães (?). «Ele enumera
para ti os seus corações, ele massacra o que agiu contra ti, ele é o chefe dos guardiães. Como és belo
quando empunhas o ceptro uase! Hórus castigou os que te feriram, ele matou os que te mataram.» 1423
Fórmula 895
1422
TdS 768, Idem, pp. 147-148.
1423
TdS 781, Idem, p. 41.
562
«Aquele que está na frescura»! Hórus derrubou os teus inimigos diante de ti! Toma o que sai da voz, a
oferenda alimentar de pão, cerveja, carne de boi e de aves, para o venerável N. 1424
Fórmula 932
Eu sou Osíris. Não tenho movimento. Fica em vigília junto a mim... Eu vim, munido do meu
poder mágico, as minhas palavras protegeram-me. Eu sou o falcão das duas plumas que diz (...) o meu
coração não me foi retirado. Ó, assassinos de Osíris que vos encontrais na terra, vós que passais pelos
túmulos (...) eis a minha cabeça. Eu sou o que preside à montanha (...) eu sou o deus (...) Abri os
caminhos! Eu sou o senhor de Maet. 1425
Fórmula 957
1424
TdS 895, Idem, p. 111.
1425
TdS 932, Idem., p. 84.
1426
TdS 957, Idem, p. 520.
563
X. «Livro dos Mortos»
Capítulo 15
Louvor a Amon-Ré, touro que reside em Heliópolis (...) Ó, Amon-Ré, senhor do horizonte, tu és
belo, brilhas e resplandeces (...) tu reúnes os teus membros e o teu corpo volta a viver (...) tu ouves as
aclamações da tripulação da tua barca, pois o seu coração regozija-se e o senhor do céu está repleto de
alegria. (...) Quando te ergues, inclina o teu coração para Osíris N., como se inclina o teu coração para o
teu uraeus. (...) Louvor a ti, Ré, Khepri, Horakhti, falcão divino, falcão sagrado que alegra o país com a
sua beleza! Desperta em paz, o teu coração alegra-se (...) Tu és perfeito como Ré, em cada dia. A tua mãe,
Nut, abraça-te quando ao poente revelas a tua beleza, de coração alegre, no horizonte de Manu. (...) o
coração dos senhores da Duat está contente quando fazes brilhar a luz, os olhos dos ocidentais brilham
quando te avistam, o seu coração rejubila quando te vêem. (...) Que o Osíris N. diga: «Louvor a ti, quando
te ergues e apareces na alvorada, exaltando as tuas formas, ampliando a tua beleza. Tu és o criador, pois
crias os teus membros. Faz que eu chegue ao céu da eternidade, à região desértica dos eleitos, que eu me
reúna aos bem-aventurados veneráveis da necrópole e que saia com eles para ver a tua beleza quando te
ergues. À noite, quando percorres a tua mãe Naunet, faz com que o meu rosto se vire para a direita, as
minhas mãos em adoração ao pôr-do-sol. Tu és verdadeiramente o criador da eternidade. Eu adoro-te
quando te pões no Nun, eu coloco-te no meu coração, tu que és mais divino que os deuses». (...) Subiste
ao céu, atravessaste as águas celestes, associaste-te às estrelas e aclamações foram feitas para ti na tua
barca. És chamado na barca do dia, de modo que contemplas Ré na sua cabina e prestas homenagem ao
disco em cada dia (...) Eu limpei a barca da noite, a tripulação de Ré encheu-se de júbilo, a senhora da
vida tem o coração alegre, pois o inimigo do seu senhor foi derrubado (...) todos os deuses rejubilam
quando vêem que Ré veio em paz para fazer felizes os corações dos bem-aventurados(...).
Para ver o disco solar quando se põe no Ocidente e é adorado pelos deuses e pelos bem-
aventurados na Duat, para transfigurar o bem-aventurado no coração de Ré, fazer que ele seja poderoso
junto de Atum e louvado junto de Osíris, para assegurar o seu renome junto dos deuses da Enéade que
governam a Duat, suporta o seu coração e engrandece o seu passo e abrir o seu rosto ao mesmo tempo que
o grande deus. Todo o bem-aventurado a quem for recitada esta fórmula poderá sair para o dia (e realizar)
564
todas as transformações que desejar. Será poderoso entre os deuses da Duat que o reconhecerão como um
deles e entrará nos portais misteriosos, como um poderoso.1427
Capítulo 17
Eu era Atum quando estava só no Nun, eu sou Ré na sua gloriosa aparição, quando começou a
governar o que havia criado. (...) Eu sou o grande deus que se manifestou a partir de si mesmo (...) senhor
da eternidade (...), a mim pertencem-me o ontem e o amanhã (...) eu sou a ave benu que está em
Heliópolis, aquele que tem em conta (tudo) o que existe (...) Agora estou no meu país (...) o horizonte do
meu pai Atum, os meus pecados são arrancados e as minhas faltas afastadas (...) ao cortar o cordão
umbilical o que havia de impuro em mim foi arrancado (...) pois fui banhado no dia do meu nascimento
nos dois grandes e vastos lagos de Heracleopólis (...)Eu vou pelo caminho que conheço para a Ilha dos
Justos (Ra-setau) (...) Ó, antepassados, dai-me as vossas mãos, eu sou o que nasceu de vós, (...) reconstitui
o olho depois de ter sido diminuído no dia da luta dos Dois Companheiros (...) e vi Ré nascer das coxas
de Mehetueret (...) Louvor a vós, Senhores da Verdade, corporação divina em redor de Osíris (...) Eis que
vim ter convosco para que possais extirpar tudo o que há de mau em mim, como haveis feito para estes
sete espíritos (...) Salva-me deste deus com cabeça de canídeo e sobrancelhas humanas, que vive de
vítimas, que guarda as margens do Lago do Fogo, que engole os cadáveres e rouba os corações, que faz
espalhar os miasmas (...) Ó, senhor do medo, que estás ao comando das Duas Terras, senhor do sangue,
que possui inúmeras instalações para o abate e que vives de entranhas, (...) és o coração de Osíris, que
devora todos os massacrados, a quem foi dada a coroa branca e a alegria (do triunfo) em Heracleópolis,
(...) a quem foi decretada a supremacia entre os deuses, no dia em que são reunidas as Duas Terras diante
do senhor do universo. 1428
Capítulo 42
Fórmula para evitar o massacre realizado em Heracleópolis: País da árvore, coroa branca, base
de estátua, eu sou a Criança. (...) Eu sou Ré, cujas bençãos são duradouras, eu sou o criador que está no
tamarindo, eu estou intacto, Ré está intacto e vice-versa. (...) Não tenho qualquer membro que esteja
privado de deus e Tot é a protecção de todos os meus membros. Eu sou Ré (...) eu sou o senhor da
eternidade, possa ser encontrado íntegro como Khepri (...) eu sou a flor uneb saída do Nun, a minha mãe é
1427
Capítulo 15 do «Livro dos Mortos», adaptado da versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des
Morts, p. 47-50.
1428
Capítulo 17 do «Livro dos Mortos», adaptado da versão francesa em Idem., p. 62.
565
Nut. Ó, (Nun) que me criaste, eu sou alguém que já não anda pois o comando está na minha mão.
Ninguém me conhece nem me pode conhecer. Ninguém me detém nem me poderá deter. 1429
Capítulo 44
Fórmula para não morrer uma segunda vez no reino dos mortos.
Palavras ditas por N.: «O meu túmulo foi aberto, o meu túmulo foi aberto! Os bem-aventurados caiem nas
trevas mas eu fui preservado pelo olho de Hórus e Uepuauet tomou conta de mim. Escondei-me entre vós,
Estrelas Imperecíveis! O meu pescoço é o de Ré, o meu rosto vê, o meu coração está no seu verdadeiro
lugar, as minhas palavras são as de um iniciado. Eu sou Ré que se protege a si mesmo.»
«Eu não te apanharei, não te roubarei, pois o teu pai, o filho de Nut, cuida de ti.»
«Eu sou o teu filho, Hórus, aquele que vê os teus mistérios. Eu apareci como rei dos deuses. Não morrerei
uma segunda vez no reino dos mortos». 1430
Capítulo 64
Fórmula para sair para o dia, no reino dos mortos, numa única fórmula, por N. Que ele diga: «Eu
sou o ontem, a alvorada do dia de hoje e o amanhã, (sempre) a comandar os nascimentos, de natureza
misteriosa, o criador dos deuses, que fornece alimentos aos habitantes da Duat no Ocidente do céu, o
governador oriental, possuidor de dois rostos, aqueles cujos raios permitem ver. Senhor das alvoradas,
que sobe ao crepúsculo e cujas transformações se fazem na morada da morte. (...) Um brilho verde emana
das águas celestes de Ptah quando Ré sorri. O teu coração regozija-se com este dia, ó, tu que entras no céu
inferior, que sais no Oriente, que és invocado pelos primogénitos e pelos antepassados! Torna os teus
caminhos praticáveis para mim, alarga as tuas vias para que percorra a terra do mesmo modo como tu
percorres o céu! Que a tua luz esteja sobre mim, ontem, hoje e amanhã, quando me aproximo do deus.
Anuncia aos ouvidos dos que estão na Duat que não tenho pecados da minha mãe retidos contra mim;
preserva-me, protege-me daquele «Que fecha os olhos à tarde e que faz entrar tudo à noite». Eu sou a
abundância, Memuer («O Grande Negro») é o meu nome. Eu encho tudo com a minha aparência mas
escondo o meu ser íntimo.(...) Eu sou aquele que aparece na chama do portal. O (meu) brilho é duradouro
e (irradia) do meu coração. Eu sei que Abismo é o teu nome e que és tu que vales às necessidades dos
bem-aventurados. (...) As horas passam seguindo o rasto dos Companheiros de Orion, (...) Chu (abre) a
passagem da Duat na hora de derrubar o inimigo e na hora de entrar vitorioso. Eu manifesto-me como
1429
Capítulo 42 do «Livro dos Mortos», adaptado da versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des
Morts, pp. 84-85.
1430
Capítulo 44 do «Livro dos Mortos», Idem, p. 87.
566
senhor da vida (...). Então o sangue espalha-se brotando de feridas novas quando me reunir à terra (...) e
aqueles cuja forma é misteriosa vêm ter comigo (...) pois eu trago uma mensagem do senhor dos senhores
para adorar Osíris, para que o olho não trague as suas lágrimas. (...) Eu vim de Letópolis a Heliópolis para
fazer que a ave benu conheça os acontecimentos da Duat. Ó país do silêncio, onde estão as coisas
secretas, que criaste as formas, como Khepri, faz que N. suba e seja mergulhado diante do grande deus,
Chu, que está na eternidade! Que eu caminhe em paz, que possa andar sobre as águas celestes, que seja
capaz de irradiar o brilho do sol nos meus próprios olhos, que possa voar para a luz dos bem-aventurados,
diante de Ré em cada dia, que faz viver os homens e que esmaga o pescoço dos que estão sobre a terra.
(...) Não fui esmagado, eu manifestei-me como leão, os atributos de Chu estão em mim. Eu sou a nefrite.
Como é bom ver chegar aquele cujo coração já não bate. (...) Eu sou o que saiu para o dia, o senhor da
vida, Osíris. (...) Eu abracei o sicómoro e o sicómoro protegeu-me. As portas da Duat foram abertas para
mim. Eu vim para procurar o olho sagrado e fazer que ele repouse no seu lugar. Eu vim contemplar Ré ao
poente, reuni-me ao vento no momento em que (o sol) reaparece e as minhas mãos purificaram-se ao
adorá-lo. Eu estou reconstituído, eu estou reconstituído, eu voo para o céu e pouso sobre a terra e o meu
olho desloca-se para lá de acordo com o meu desejo. Eu sou aquele que ontem pôs no mundo, os deuses
da terra fizeram o meu nascimento. Eu sou o que esconde o Combatente. Vinde! As minhas carnes estão
firmes! As minhas fórmulas mágicas são a protecção dos meus membros. A ave benu confia no que eu
digo e a Enéade ouve o que eu digo. 1431
Aquele que conhecer esta fórmula possui a sua justificação sobre a terra e no reino dos mortos. Ele poderá
fazer tudo o que fazem os vivos, é uma grande protecção do deus. Esta fórmula foi encontrada em
Hermopolis, sobre um bloco de quartzito do Alto Egipto incrustado com verdadeiro lápis-lazúli, aos pés
deste deus, no tempo da Sua Majestade do rei do Alto e do Baixo Egipto, Menkauré, pelo príncipe
Djedefhor, que o encontrou enquanto inspeccionava os templos, quando uma força o acompanhava e o
movia a isso. Ele relatou ao rei esta maravilha quando se apercebeu que era algo de muito secreto, que
ninguém (antes) vira nem conhecera.
Que esta fórmula seja lida em pureza e sem mancha, sem ter comido gado miúdo ou peixes e sem ter tido
relações com mulheres. Deve fazer-se um escaravelho em nefrite ornado de ouro e colocado sobre o
coração do homem, cumprindo-se sobre ele o ritual da abertura da boca, depois de o ter untado com
mirra. Dizer sobre ele como uma fórmula mágica. 1432
(...) Esta fórmula foi encontrada nas fundações do templo do deus «que habita uma barca», por um mestre
pedreiro, no tempo da majestade do rei do Alto e do Baixo Egipto, Semti (Den-I dinastia). Trata-se de um
grande segredo que nunca foi visto nem percebido. (...)1433
1431
Capítulo 64 do «Livro dos Mortos», Idem, pp. 102-104.
1432
Capítulo 64 do «Livro dos Mortos», Idem, p. 104.
1433
Capítulo 64 do «Livro dos Mortos», Idem, p. 105.
567
Capítulo 68
Fórmula para sair para o dia. Palavras ditas por N.: «As portas do céu abrem-se para mim, as
portas da terra abrem-se para mim; os ferrolhos de Geb abrem-se para mim, a abóbada celeste abre-se
para mim. (...) Eu tenho de novo domínio do meu coração ib, domínio do meu coração hati, domínio dos
meus braços, domínio das minhas pernas, domínio da minha boca, domínio do conjunto dos meus
membros; eu posso dispor das oferendas funerárias, dispor da água, dispor da brisa, dispor da cheia,
dispor do rio, dispor das margens, dispor dos que agem contra mim e dispor das que agem contra mim no
reino dos mortos, dispor das ordens editadas contra mim sobre a terra. (...) Eu ergo-me sobre o meu lado
esquerdo e coloco-me sobre o meu lado direito. Eu ergo-me sobre o meu lado direito e coloco-me sobre o
meu lado esquerdo. Eu sento-me, levanto-me e sacudo a poeira. A minha língua e a minha boca são para
mim guias úteis.» O que conhecer este livro, pode sair para o dia e passear-se sobre a terra entre os vivos,
não poderá morrer, jamais. Revelou-se eficaz milhões de vezes. 1434
Capítulo 69
Eu sou o Incandescente (...) Eu sou Osíris, o senhor das cabeças, de peito pleno de vida, de traseiro
poderoso, de falo vigoroso, no mundo dos humanos. Eu sou Orion, que atingiu a sua terra, aquele que
avança diante do mundo estrelado do céu no corpo da minha mãe Nut. Ela engravidou segundo o seu
desejo e criou-me com a alegria do coração. (...) Eu sou o touro que preside aos campos de Iaru. Eu sou
Osíris, Geb é meu pai e Nut é a minha mãe. 1435
Capítulo 71
Fórmula para sair para o dia. Palavras ditas por N.; que ele diga:
«Ó falcão que se ergue do Nun, senhor de Methiur (...)
Ó Harsiesis (...) Hórus no céu do sul, Tot no céu do norte (...)
Eu sou a for Uneb de Naref, a planta nebheh da colina secreta (...)
Ó hieracompolita que estás no teu ovo (...)
Vamos, Sobek que resides na colina, vamos Neit que resides nas margens (...)
1434
Capítulo 68 do «Livro dos Mortos», adaptado da versão francesa em Idem., p. 107.
1435
Capítulo 69 do «Livro dos Mortos», adaptado da versão francesa em Idem, p. 108.
568
Ó sete divindades que trazeis a balança nesta noite onde se examina o olho sagrado, que cortais as
cabeças, que decepais os pescoços, que roubais o coração e as vísceras do coração, que fazeis o massacre
na Ilha da Chama, eu conheço-vos e conheço os vossos nomes. (...)1436
Capítulo 77
Fórmula para tomar a forma de um falcão de ouro. Palavras ditas por N.: «Eu apareci como um
grande falcão que sai do ovo. Levanto voo e pouso como um falcão cujo dorso tem quatro côvados e
cujas asas são de feldspato verde. Eu saí do relicário da barca da noite e o meu coração foi-me entregue,
na montanha do Oriente. Eu desço na barca do dia, os deuses dos tempos primordiais são-me entregues,
inclinados respeitosamente e prestam-me homenagem enquanto eu pareço e me manifesto como um belo
falcão de ouro com cabeça de ave benu. É a ouvir a sua voz que Ré chega em cada dia. Eu sento-me junto
aos deuses antigos do céu. O duplo Campo de Iaru está preparado para mim, está diante de mim. Eu
alimento-me dele, eu tiro proveito dele, a minha opulência deve-se a ele, segundo o que o meu coração
deseja. Os cereais foram-me entregues e o meu poder é o que foi agarrado à cabeça». 1437
Capítulo 79
Fórmula para fazer parte da assembleia divina e tomar o aspecto daquele que preside à assembleia.
Palavras ditas por N.:
«Louvor a ti, Atum, criador do céu, modelador do que existe, tu que sais da terra, que produzes as
sementes, senhor do que existe, tu que dás à luz os deuses, grande deus que veio à existência a partir de si
mesmo, senhor da vida, tu que fazes prosperar os humanos! Louvor a vós, senhores dos bens, vós os
puros, cujos lugares são secretos! Louvor a vós, senhores da eternidade, de formas secretas, ninguém
conhece o lugar de repouso! Louvor a vós deuses que estais no círculo das águas celestes, que habitais no
Ocidente, corporação de deuses que habitais o céu (inferior)!
Eis que eu cheguei puro, divino, forte, animado, poderoso e satisfeito. Eu trago-vos incenso e a resina de
terebentina para que possais limpar a vossa saliva graças a mim. Eu venho levar todas as impurezas que
estão no vosso coração e suprimir os pecados que estão em vós, pois trago o bem, eu ofereço-vos Maet.
1436
Capítulo 71 do «Livro dos Mortos», Adaptado da versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des
Morts, pp. 109-110
1437
Capítulo 77 do «Livro dos Mortos», Idem, pp. 113-114.
569
Eu conheço-vos, eu conheço os vossos nomes, eu conheço as vossas formas, ao passo que estes não são
conhecidos por aqueles que se transforma em vós.(...) 1438
Capítulo 81 A
Capítulo 83
Capítulo 86
Fórmula para se transformar numa andorinha: «Eu sou uma andorinha, eu sou uma andorinha. Eu sou a
deusa escorpião, filha de Ré. Ó deuses, como é doce e agradável o vosso perfume que arde e sobe ao
horizonte do céu! Ó habitantes da cidade celeste, olhai! Eu trago comigo o guardião do Lago de Fogo.
Descansei junto à Ilha do Fogo. Fui e vim com uma mensagem. Abri-a para que eu possa dizer o que vi:
(eu sou) Hórus que conduz a barca celeste e que sentou Osíris no seu trono. Set, filho de Nut, foi
paralisado e atado com as cordas que havia preparado contra mim. Eu conheço os mistérios de Sekhem e
aqui chegado estendo os meus braços a Osíris. (...) Deixai-me passar para que dê conta da minha
mensagem. Eu sou alguém que entrou estimado e que saiu distinguido pela porta do senhor do universo.
Purifiquei-me neste grande planalto. Extirpei os meus pecados, deitei à terra as impurezas conspurcavam
o meu coração. Guardiões das portas abri o caminho para mim, pois eu sou vosso igual. Eu saio para o
1438
Capítulo 79 do «Livro dos Mortos», Idem, pp. 117-118.
1439
Capítulo 81 A do «Livro dos Mortos», Idem, p. 119.
1440
Capítulo 83 do «Livro dos Mortos», Idem, p. 83.
570
dia, vou sobre as minhas pernas, disponho do andar do luminoso. Eu conheço os caminhos misteriosos e
os portais dos Campos de Iaru. Eis que aqui cheguei depois de ter derrubado os meus inimigos sobre a
terra. O meu corpo repousa debaixo da terra. 1441
Capítulo 101
Louvor a ti que rasgaste as águas e emergiste das águas primordiais. Tens assento à popa da tua
barca (...) Ó, Ré, o teu nome é mágico. Os mistérios da tua gruta são revelados para iniciar o coração da
tua Enéade. Revela os teus segredos ao meu coração (lit. «volta o coração de N. para ti»), pois quando
floresces também eu floresço. 1442
Capítulo 110
Palavras ditas por N. quando louva a assembleia divina no duplo campo da satisfação. (...) Eu sou
poderoso, pois eu sou alguém que conhece Hotep; eu navego nos seus canais para chegar às suas cidades.
A minha palavra é de peso pois eu sou mais avisado que os outros bem-aventurados, eles não têm poder
sobre mim. Eu trabalho o teu campo, Hotep, a tua terra bem-amada, senhora da brisa, eu alegro-me e sou
forte, eu como e bebo, trabalho e faço a colheita, copulo e faço amor. Os meus encantamentos mágicos
são poderosos. Não faço acusações nem tenho inquietações e o meu coração está feliz. (...) 1443 Eu vivo
em Hotep (...) o meu poder mágico é potente, o vigor está no meu coração, pois eu recordo-me do que
havia esquecido. Eu ando, trabalho e semeio. Eu sou Hotep na cidade do deus. Conheço o nome das
cidades, das províncias, dos canais que se estendem nos Campos de Iaru, onde vivo. Sou forte e glorioso,
eu como e bebo, trabalho e faço a colheita, copulo e descanso. Sou glorioso como Hotep, procrio e bebo.
(...) Ó, Senhora das Duas Terras, estabeleces firmemente o meu poder mágico, pois recordo-me de tudo o
que havia esquecido. Eu estou pleno de vida, sem sofrer injúrias ou acusações! Concede-me a alegria do
coração e a paz (...) Eu vim aqui, o meu coração e a minha cabeça estão intactos sob a influência da
1444
coroa branca. Eu guio os que estão no céu e reconforto os que estão na terra (...)
1441
Capítulo 86 do «Livro dos Mortos», Idem, pp. 123-124 e em G. KOLPAKTCHY, Livre des Morts, p.
172.
1442
Capítulo 101 do «Livro dos Mortos», adaptado das versões francesas propostas por em P.
BARGUET, Le Livre des Morts, p. 138.
1443
Capítulo 110 do «Livro dos Mortos», adaptado da versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des
Morts, p. 145.
1444
Capítulo 110 do «Livro dos Mortos», Idem, p. 145 e G. KOLPAKTCHY, Livre des Morts, pp. 196-
197.
571
Capítulo 125
Diante da sala. Fórmula para entrar na sala das Duas Maet e adorar Osíris que preside ao
Ocidente. Palavras ditas por Osíris N.: «Eu vim aqui para ver a tua perfeição, as minhas mãos glorificam
o teu nome verdadeiro. Eu cheguei aqui quando o abeto ainda não existia, a acácia ainda não tinha sido
feita, nem nenhum soalho de tamaris havia ainda sido confeccionado. Se eu entro no lugar secreto eu
disputar-me-ei com Set, serei amigável com aquele que virá o meu encontro e que esconde o seu rosto,
caído por causa das coisas secretas.» Ele entra na morada de Osíris e vê os mistérios que aí se encontram;
a assembleia divina dos pórticos é constituída por bem-aventurados. Palavras ditas por Anúbis ao seu
vizinho: «A voz ressoa de um homem chegado ao Egipto. Ele conhece os nossos caminhos e as nossas
cidades; e regozijo-me pois eu sinto que o odor é o de um de vós. Ele diz-me: «Eu sou Osíris N., um
bem-aventurado. Eu vim aqui para ver os grandes deuses, pois eu vivo dos alimentos que estão nos seus
kau. Eu estava junto de Banebded e ele permitiu que eu saísse sob a forma de ave benu segundo a minha
palavra. Eu estava neste rio e a minha oferenda era o incenso, o meu guia era a acácia das crianças. Eu
estava em Elefantina, no templo de Satet e naveguei na barca dos inimigos. Eu atravessei o lago na barca
nechemet e vi os dignitários de Kemuer. Eu estava em Busíris, foi feito silêncio para mim e consegui que
o deus fizesse uso das suas pernas. Eu estava no templo daquele que estava sobre a montanha e vi o
superior do templo. Entrei no templo de Osíris e levei os véus daquele que aí se encontrava. Entrei em
Ra-setau, vi o mistério daquele que aí se encontrava e escondi aquele que encontrei decomposto. Fui a
Naref e vesti aquele que se encontrava nu e dei mirra às mulheres no lago dos homens. Eu digo: que a
pesagem tenha lugar no meio de nós».
Perante a porta. Palavras ditas pela majestade de Anúbis: «Tu conheces o nome desta porta...»
Então Osíris N., o bem-aventurado diz: «“Tu afastas Chu” é o nome desta porta.» Então a majestade de
Anúbis diz: «Tu conheces o nome do lintel e do batente?» «Senhor de rectidão que está nas suas duas
pernas» é o nome do lintel, «senhor de força que introduz o gado» (é o nome do batente)». «Passa, pois tu
conheces, Osíris N.!»
Primeira declaração de inocência (diante do grande deus) Palavras ditas por N.: «Louvor a ti,
grande deus, senhor das Duas Maet! Eu vim ter contigo, ó, meu senhor tendo sido trazido, para ver a tua
perfeição. Eu conheço o nome dos quarenta e dois deuses que estão contigo na sala das Duas Maet, que
vivem da vigilância dos pecados e bebem do seu sangue no dia da avaliação das virtudes diante de
Uennefer. Vede: «Aquele que tem duas filhas, aquele das Duas Meret, o senhor das Duas Maet» é o teu
nome. Eis que eu vim para ti e trouxe-te o que é justo e expulsei para ti a iniquidade.
Eu não cometi iniquidade contra os homens.
Eu não maltratei as pessoas.
Eu cometi pecados contra o Lugar de Verdade.
Eu não procurei conhecer o que não pode ser conhecido.
Eu não fiz mal.
Eu não comecei o dia a receber comissões por parte das pessoas que trabalham para mim.
572
O meu nome não chegou às funções do chefe de escravos.
Eu não blasfemei contra deus.
Eu não empobreci o pobre nos seus bens.
Não fiz o que é abominável aos deuses.
Não prejudiquei um servo junto do seu senhor.
Não afligi ninguém.
Não reduzi ninguém à fome.
Não fiz chorar.
Não matei.
Não mandei matar.
Não infligi dores a ninguém.
Não diminui as oferendas alimentares nos templos.
Não maculei os pães de deus.
Não roubei os biscoitos dos bem-aventurados.
Não fui pederasta.
Não copulei nos lugares santos do deus da minha cidade.
Não diminui o alqueire.
Não diminui a arura.
Não falseei (as medidas) dos campos.
Não juntei nada ao peso da balança.
Não falseei o peso da balança.
Não tirei o leite à boca das crianças pequeninas.
Não privei o gado miúdo nas pastagens.
Não cacei aves dos canaviais dos deuses.
Não pesquei peixes nas suas lagunas.
Não retive a água na sua estação.
Não ergui um dique na água corrente.
Não extingui um fogo no seu ardor.
Não omiti os dias de oferenda de carne.
Não desviei o gado das refeições do deus.
Não me opus ao deus nas suas saídas em procissão.
Eu sou puro, eu sou puro, eu sou puro, eu sou puro!
A minha pureza é a pureza desta ave benu que está em Heracleópolis, pois eu sou o nariz do
senhor do sopro, que faz viver todos os homens no dia da reconstituição do olho em Heliópolis, no último
dia do segundo mês de Peret, na presença do senhor desta terra. Eu sou alguém que viu a reconstituição
do olho em Heliópolis. Não me acontecerá mal nesta terra, nesta sala das Duas Maet, pois eu conheço o
nome dos deuses que aí se encontram.
573
Ó «Aquele que anda com grandes passadas», originário de Heliópolis, eu não cometi a
iniquidade.
Ó «Aquele que extingue a chama», originário de Kheraha, eu não assaltei.
Ó Nasique, originário de Hermópolis, eu não fui cúpido.
Ó comedor de sombras, originário da Caverna, não fui derrubado.
Ó terrível de rosto, originário de Ra-setau, eu não matei ninguém.
Ó Ruti, originário do céu, eu não diminui o alqueire.
Ó «Aquele cujos olhos são de chama», originário de Letópolis, eu não cometi prevaricação.
Ó Incandescente, originário de Khetbet, não roubei os bens de um deus.
Ó destruidor de ossos, originário de Heracleópolis, não pronunciei mentiras.
Ó «Aquele que aumenta a chama», originário de Mênfis, não roubei alimentos.
Ó troglodita, originário do Ocidente, não fiquei de mau-humor.
Ó «O dos dentes brancos», originário do Faium, não transgredi.
Ó «Aquele que se alimenta de sangue», originário do Lugar do Abate, não matei animais
sagrados.
Ó «Aquele que come as entranhas», originário do lugar dos trinta, não açambarquei grão.
Ó «Senhor de equidade» originário de Maeti, não roubei rações de pão.
Ó «Errante», originário de Bubastis, não espiei.
Ó «Pálido», originário de Heliópolis, não tagarelei.
Ó «Vilão», originário de Andjiti, não disputei o que não era meu.
Ó Uamenti, originário do lugar do julgamento, não tive relações com uma mulher casada.
Ó «Aquele que olha o que traz», originário do templo de Min, não forniquei.
Ó «Chefe dos Grandes», originário de Imu, não inspirei terror.
Ó «Destruidor», originário de Hui, não transgredi.
Ó «Causador de problemas», originário do lugar santo, não arrebatei em palavras.
Ó Criança, originária de Hekadje, não fui surdo às palavras de verdade.
Ó «Aquele que anuncia a decisão», originário de Unsi, não fui insolente.
Ó Basti, originário da caça, não pisquei o olho.
Ó «Aquele cujo rosto está por detrás dele», originário do túmulo, não fui depravado, nem
pederasta.
Ó «Perna ardente», originário das regiões crepusculares, não fui falso.
Ó «Tenebroso», originário das trevas, não insultei.
Ó «Aquele que leva a sua oferenda», originário de Saís, não fui violento.
Ó «Possuidor de muitos rostos», originário Nedjefet, não fui irreflectido.
Ó «Acusador», originário de Utjenet, não transgredi a minha condição nem me levantei contra
deus.
Ó «Cornudo», originário de Assiut, não fui tagarela.
Ó Nefertum, originário de Mênfis, não tenho pecados, não pratiquei o mal.
Ó Temset, originário de Busíris, não insultei o rei.
574
Ó «Aquele que age de acordo com o seu coração», originário de Tjebu (Anteópolis), não
caminhei sobre a água de ninguém.
Ó Fluído, originário do Nun, não fui estridente.
Ó «Comandante dos homens», originário de ... , não blasfemei contra deus.
Ó «Aquele que procura o bem», originário de Hui, não dei importância a mim mesmo.
Ó Nehebkau, originário da cidade, não fiz excepções para me favorecer.
Ó «Aquele de cabeça prestigiosa» originário do túmulo, a minha riqueza assenta apenas nos
meus bens.
Ó Indief, originário da necrópole, não caluniei o deus na minha cidade.
Louvor a vós, deuses que estão nesta sala das Duas Maet! Eu conheço-vos, conheço os vossos
nomes. Não sucumbirei aos vossos golpes, não dareis de mim uma má informação ao deus que preside à
vossa assembleia. Não será por vossa causa que o meu processo será apresentado ao deus. Direis, diante
do Senhor do Universo, o que é justo a meu respeito, pois eu pratiquei a equidade no Egipto. Não
blasfemei deus, nem o meu processo foi apresentado ao rei.
Louvor a vós, que estais na sala das Duas Maet, vós que estais isentos da mentira, que viveis da
equidade que vos alimentais do que é justo diante de Hórus que está no seu disco.
Salvai-me de Baba, que vive das entranhas dos grandes, neste dia do desmembramento dos
pecados! Eis que eu cheguei junto de vós, sem pecados, sem delitos, sem maldade, sem acusador, sem
alguém que eu tenha maltratado. Eu vivo do que é justo, alimento-me do que é justo. Eu faço o que os
homens falam e o que alegra os deuses. Eu satisfaço o deus com o que ele ama: eu dou pão ao que está
com fome e água ao que está perturbado, roupas ao que estava nú, uma barca ao que não a tinha e faço o
serviço de oferendas divinas para os deuses e o serviço de oferendas funerárias para os bem-aventurados.
Salvai-me, protegei-me, não façais acusações contra mim diante do grande deus!
Eu sou alguém cuja boca é pura, cujas mãos são puras, alguém a quem é dito: «Vem em paz»
pelos que o vêem. Pois eu ouvi a conversa que o asno teve com o gato no templo do «deus que abre a
boca» e fui testemunha na qualidade «Daquele cujo rosto está atrás» quando deu um grito. Eu vi a divisão
da árvore persea junto dele, no interior de Ra-setau. Eu sou um homem respeitável para os deuses, o que
conhece as suas necessidades. Eu cheguei aqui para testemunhar a verdade, para colocar a balança na
posição exacta no interior do reino dos mortos. Ó, «Aquele que está alto no seu trono», senhor da coroa
atef, a quem foi dado o nome de senhor do sopro (de vida), salvai-me dos teus mensageiros fazedores de
chagas, instigadores de sanções que não têm indulgência. Pois eu pratiquei a equidade para o senhor da
justiça. Eu sou puro, os meus membros anteriores estão purificados, os meus membros posteriores estão
purificados, o meu torso está na fonte da justiça, não há em mim qualquer membro exempto de justiça. Eu
lavei-me na fonte do Sul, fiz paragem na cidade do Norte, no cabo dos gafanhotos, no qual se lava a
tripulação de Ré na segunda hora da noite e na terceira hora do dia, na qual os deuses se comprazem a
passar noite e dia.
575
«Fazei-o vir!», dizem eles a meu respeito. «Quem és tu?», dizem eles, «Qual é o teu nome?»,
dizem eles.
«Eu sou o rebento inferior do papiro, “Aquele que está na sua moringa” é o meu nome»
«Por onde passaste?», dizem-me eles.
«Passei pela cidade setentrional do moringa»
«O que aí viste?»
«A Perna e a Coxa»
«O que lhes disseste?»
«Eu vi o clamor no país do Fenícios»
«O que eles te deram?»
«Uma tocha inflamada e uma coluna de faiança»
«Que fizeste?»
«Coloquei-os no ataúde no bordo do lago Maet, no momento da refeição da noite».
«O que encontraste lá, junto ao lago Maet?»
«Um ceptro uase de pedra. “Aquele que dá o sopro de vida” é o seu nome»
«Que fizeste da tocha inflamada e da coluna de faiança depois de as teres colocado junto do
ataúde?»
«Lamentei-me, depois tomei-os e fiz extinguir o fogo e parti a coluna e atirei-os para o lago».
«Vem, então, entra por esta porta da sala das Duas Maet, pois tu conheces-nos»
Segundo interrogatório (pelos elementos arquitecturais da sala, pelo porteiro e por Tot)
«Não te deixarei entrar por mim, diz o frontão da porta, se não conheceres o meu nome».
«Peso de exactidão é o teu nome».
«Não te deixarei entrar por mim, diz o lado direito desta porta, se não disseres o meu nome»
«Tabuleiro para pesar a equidade» é o teu nome.
«Não te deixarei entrar por mim, diz o lado esquerdo desta porta, se não disseres o meu nome»
«Tabuleiro do vinho, é o teu nome.
«Não te deixarei entrar por mim, diz o batente desta porta, se não disseres o meu nome»
«Boi de Geb é o teu nome»
«Não te deixarei entrar por mim, diz a fechadura desta porta, se não disseres o meu nome»
«“Dedo da tua mãe” é o teu nome»
«Não te deixarei entrar por mim, diz a fechadura desta porta, se não disseres o meu nome»
«“Olho de Sobek, senhor de Bakhu” é o teu nome»
«Não te deixarei entrar por mim, diz o porteiro desta porta, se não disseres o meu nome»
«“Peito de Chu, dado como protecção de Osíris”, é o teu nome»
«Não te deixaremos entrar por nós, diz a prateleira do batente desta porta, «se não disseres o
nosso nome»
«“Os jovens uraeus” é o vosso nome»
576
«Uma vez que nos conheces podes passar através de nós!»
«Não te deixarei caminhar sobre mim, diz o pavimento desta sala das Duas Maet»
«Por que razão? Eu estou puro!»
«porque tu não conheces o nome das tuas pernas sobre as quais tu caminhas sobre mim. Diz-
me!»
“Produto de Há” é o nome da minha perna direita, “Espeto de Hathor” é o nome da minha perna
esquerda.»
«Uma vez que nos conheces podes passar sobre nós!»
«Não te anunciarei», diz o porteiro da sala das Duas Maet, «se não disseres o meu nome»
«“Aquele que conhece os corações e que perscruta os ventres” é o teu nome»
«A que deus te anunciarei?»
«Falarás ao “Intérprete das Duas Terras” »
«Quem é esse “Intérprete das Duas Terras”? »
«É Tot»
«Vem! Diz Tot, porque vieste?»
«Vim aqui para ser anunciado»
«Qual é a tua condição?»
«Estou isento de más acções. Resguardei-me de calúnias dos que estavam ao serviço, eu não
estava entre eles»
«Então a quem te anunciarei?»
«Anuncia-me ao deus cuja morada tem um tecto de fogo, muros de uraeus vivos e um chão de
água.
«Quem é ele?»
«É Osíris»
«Vai! Tu foste anunciado. O teu pão é o olho sagrado, a tua cerveja é o olho sagrado, a tua
oferenda funerária sobre a terra é o olho sagrado.
Assim disse o Osíris N. proclamado justo.
Agir da seguinte forma na sala das Duas Maet. Dizer esta fórmula em pureza, purificado, vestido
de linho, calçado de sandálias brancas, maquilhado de galena e untado de mirra; oferecer bois, aves,
resina de terebinto, pão, cerveja e legumes. Depois traças este desenho que está nos escritos rituais no
chão puro de um terreno que não foi povoado por porcos nem cabras. Aquele sobre o qual for recitado
este livro será próspero e as suas crianças serão prósperas, pois está isento de faltas. Ele cumulará o
coração do rei e dos seus cortesãos, terá biscoitos, cântaros, bolos, carne, proveniente do altar do grande
deus. Não será afastado de nenhuma porta do Ocidente. Será introduzido com os reis do Alto e do Baixo
Egipto e estará no séquito de Osíris. Isto é verdadeiramente eficaz milhões de vezes. 1445
1445
Capítulo 125, Idem, pp. 157-164.
577
Capítulo 128
Louvor a ti, Osíris Uennefer, justificado, filho de Nut, filho primogénito de Geb, saído de Nut, rei
que reside em Tauer, chefe do Ocidente, senhor de Abido, (...) Que o coração de N. se regozije mais do
que qualquer outro deus! Ergue-te, Hórus, toma conta do teu pai! Louvor a ti! Eu cheguei aqui, eu sou
Hórus. (...) Louvor a ti, Osíris! Eu vim ter contigo para colocar os teus inimigos aos teus pés, pois foste
proclamado justo diante da Enéade e da assembleia. Louvor a ti, Osíris, toma a tua maça e o teu ceptro do
alto do teu estrado. És o que traz alimentos aos deuses, a todos os que estão nos seus túmulos, dá a tua
grandeza aos deuses que criaste, de modo que estejas entre as suas múmias e te reúnas com todos os
deuses. Ouve a voz de Maet no dia de hoje!1446
Capítulo 136A
Fórmula para glorificar o bem-aventurado no dia de festa do sexto dia (ou na navegação da barca de Ré)
Palavras ditas por N.:
«Sim, miríades de estrelas estão em Heliópolis, as hemmemet estão em Kher-áa! Quando o deus nasceu, o
seu diadema foi colocado e o seu leme foi seguro. Osíris N. está com eles no estaleiro naval dos deuses.
(...) Osíris N. sobe ao céu, Osíris N. navega para o céu, navega sobre Nut, navega com Ré (...)
Geb e Nut alegram-se nos seus corações: o nome renovado foi repetido, Uenefer, Ré é o seu poder
mágico. Unti é o que lhe diz: «Tu és a Inundação, o maior dos deuses que abre o paladar, de coração
doce, o intocável, o senhor do terror, (...) mais considerado, mais poderoso (...) que os deuses do Sul e do
Norte (...) Faz com que o Osíris N. seja grande, que ele seja grande no céu como tu és entre os deuses.
Protege-o de todos os que possam agir contra ele. (...) Que o seu coração seja valente. Faz com que este
Osíris seja mais poderoso que todos os deuses, os bem-aventurados e os mortos. (...)»1447
Capítulo 141
Livro para glorificar o bem-aventurado, conhecer o nome dos deuses do céu do sul e do céu do
norte, dos deuses que habitam o mundo inferior, os deuses que se deslocam na Duat. Recitar este texto
(...) é glorificá-lo no coração de Ré e no coração dos deuses e ele será com eles. Deve ser dito no dia da
Lua Nova. (Acompanhar) com oferendas (...) para Osíris em todos os seus nomes.
Para Osíris que preside ao Ocidente, senhor de Abido (quatro vezes)
Para Horakhti
1446
Capítulo 128 do «Livro dos Mortos», Idem, p. 167.
1447
Capítulo 136 A do «Livro dos Mortos», Idem, pp. 177-178.
578
Para Nun, pai dos deuses,
Para Maet, filha de Ré,
Para a barca de Ré
Para Atum-Khepri
Para a grande Enéade
Para a pequena Enéade
Para Hórus, senhor da coroa branca,
Para Chu e Tefnut
Para Geb e Nut,
Para Osíris, Ísis e Néftis,
Para a vaca «Palácio do ka», senhora do universo,
Para a vaca «chuva do céu», que traz o deus,
Para a vaca «A Khemita», que liga o deus,
Para a vaca «A do país do silêncio», que se ergue no seu lugar,
Para a vaca «Grande é o seu amor», (...),
Para a vaca «Dotada de vida», a colorida,
Para a vaca «A cujo nome tem autoridade»
Para o touro, o macho das vacas,
Para o leme «Que abre a luz», no bom rumo do céu setentrional,
Para o leme Circulador, que conduz as Duas Terras para o bom rumo do céu ocidental,
Para o leme Luminoso, que reside no palácio dos ídolos, para o bom rumo do céu oriental,
Para o leme Proeminente, que reside no Palácio dos Vermelhos, para o bom rumo do céu
meridional.
Para Imseti, Hapi, Duamutef e Khebehsenuef,
Para o santuário do Sul,
Para o santuário do Norte,
Para a barca da noite e para a barca do dia,
Para Hathor
Para Tot, touro de Maet,
Para Tot, o que julga para a Enéade
Para Tot, que conduz os deuses,
Para os deuses do Sul e para os deuses do Norte
Para os deuses do Oeste e do Este
Para os deuses mastiu (deuses sentados com faces leoninas)
Para os deuses do Per Uer e do Per Nu
Para os deuses locais e para os deuses do horizonte
Para os deuses da fertilidade e para os deuses da terra,
Para os deuses entronizados,
Para os caminhos do Sul e para os caminhos do Norte
Para os caminhos do Oeste e para os caminhos do Este
579
Para os regem os portais da Duat,
Para os guardiões dos portais da Duat e para os pórticos da Duat,
Para os portais misteriosos da Duat,
Para os batentes da porta misteriosa da Duat,
Para os seres de rostos misteriosos, guardiões dos caminhos,
Para os porteiros do deserto, que fazem soar os gritos,
Para os guardiões da necrópole, que mostram um rosto desfalecido,
Para os ardentes que fazem arder as fornalhas,
Para os obreiros que fazem espalhar as chamas a oeste,
Ao que dá a justificação, ao bem-aventurado
Perfeito a oeste e a Este, como ao ka.
Como oferenda a Osíris. 1448
Capítulo 144
Ó sete portais, ó habitantes dos portais de Osíris, ó vós que guardais os portais (...) eu conheço-
vos e conheço os vossos nomes. (...) O Osíris N. tem um grande nome, ele foi-vos anunciado. Ele é maior
que o vosso, sobre o caminho de Maet. A abominação de Osíris é a destruição. A salvaguarda de Osíris é
a salvaguarda de Hórus, o filho primogénito de Ré, aquele que o seu coração criou. Osiris N. não será
detido nem repelido dos portais de Osíris. (...) Osíris N. chegou, como Hórus, dos confins do horizonte do
céu. Osíris N. anuncia Ré nas portas do horizonte e os deuses rejubilam vindo ao encontro do Osíris N.,
pois um perfume de deus está impregnado em Osíris N., de modo que o Tenebroso não o poderá atingir.
Osíris N. é aquele que possui a face misteriosa no interior do grande palácio, o superior do santuário do
deus que Osíris N. alcançou depois da purificação de Hathor. Osíris N. é o que criou as multidões, que fez
erguer a Maet para Ré, que repele a força de Apopis. Osíris N. é alguém que abre o firmamento, que
persegue a tempestade e que faz viver a tripulação de Ré. (...) Osíris N. é o senhor da potência. Osíris N. é
o que se regozija no horizonte. 1449
Capítulo 148
Livro para transfigurar o bem-aventurado no coração de Ré, fazer que ele seja poderoso junto de
Atum e magnífico junto de Osíris e assegurar o seu renome na assembleia divina. (...) Trata-se de um
segredo da Duat e um mistério religioso do reino dos mortos. É como perfurar as montanhas e abrir os
vales. É um mistério. Não deve, em absoluto, ser conhecido. Permite conservar o coração do bem-
aventurado, (...) dar-lhe movimento, retirar as ligaduras do rosto, abrir o seu rosto e (revelar) o grande
1448
Capítulo 141 do «Livro dos Mortos», Idem, pp. 185-186.
1449
Capítulo 144 do «Livro dos Mortos», Idem, p. 191.
580
deus. (...) O bem-aventurado para quem for lido poderá sair com o seu ba para o mundo dos vivos, o seu
ba poderoso entre os deuses, estes não o afastarão, mas reunir-se-ão junto dele, (...) este livro é algo de
verdadeiramente secreto, não permitir que ninguém de condição inferior o conheça, (...) Palavras para
dizer na câmara inteiramente decorada de estrelas. Fórmulas para alimentar o defunto. (...) Dai pão,
cerveja, oferendas alimentares, tudo o que é bom ao bem-aventurado N. Dai-lhe o céu, a terra, o
horizonte, Heliópolis, a Duat, pois ele tudo conhece. E fazei o mesmo para mim! (...) Ler esta fórmula em
estado de pureza e sem mancha, sem ter comido gado miúdo nem peixe. Fazer um escaravelho em nefrite,
adornado de ouro e colocado no coração do homem. Cumprir sobre ele o ritual da abertura da boca depois
de o ter untado com mirra. 1450
Capítulo 149
Primeira colina, verde. Palavras ditas por N.: «Ó colina do Ocidente, permite que viva de
biscoitos e de cântaros de cerveja, retirai os vossos toucados à minha passagem, pois eu sou como o maior
que está entre vós, aquele que reuniu os meus ossos que fez firmes os meus membros. Eu trouxe Ihi, o
senhor dos corações, para que ele refaça os meus ossos, para que estabeleça a coroa branca; Atum afirma
a minha cabeça, Nehebkau, completa e reafirma as minhas vértebras! Tu governarás com os deuses, Min,
modelador. (...)» (...) Décima quarta colina, amarela. Colina de Kheráa. «Ó, Deuses de Kheráa, (...) abri
os vossos lagos para que eu disponha de água, para que me possa satisfazer com a onda, para comer
Nepri, para que me possa satisfazer com os vossos alimentos para me possa erguer e para tornar vigoroso
o meu coração, como o deus que habita em Kheráa. Que as vossas oferendas sejam preparadas para mim
(...)»1451
Palavras ditas por Anúbis, o que está à dianteira da câmara funerária do deus, cujas mãos estão
sobre a múmia, dando-lhe o que lhe pertence. (…) Tu, Anúbis, estás diante do mercador Kena,
justificado. Através de ti ele pode ver. Tu conduzes Kena através dos caminhos do bem, tu esmagas os
seguidores de Set, tu derrubas os seus inimigos na presença da Enéade no grande santuário do príncipe de
Heliópolis, onde ele receberá a coroa do Alto Egipto de Hórus, senhor do povo de Pat. Entrarás na
morada dos corações, o lugar que está cheio de corações, tomarás aquele que te pertence e colocá-lo-às no
seu lugar, sem que a tua mão te seja impedida. O teu pé não será impedido de andar, não andarás de
pernas para o ar, caminharás direito. 1452
1450
Capítulo 148 do «Livro dos Mortos», Idem, pp. 207-208.
1451
Capítulo 149 do «Livro dos Mortos», adaptado da versão francesa em Ibid., p. 213.
1452
Capítulo 151 do «Livro dos Mortos», J. VAN DIJK, «Entering the House of Hearts: An addition o
Chapter 151 in the Book of the Dead of Qenna», OMRO 75 (1995), p. 8.
581
Capítulo 168
(...) para adorar as suas formas, adorar os seus ihiu, levantar a sua múmia, levantar o ba, exaltar o
coração, satisfazer o ka, tornar o corpo durável no sarcófago, dar o sopro de vida aquele cujas narinas
estão encerradas. (...) Endireita-te, chefe dos ocidentais! Tu tens o teu coração estabelecido no seu
verdadeiro lugar, a víscera do teu coração foi livrada de qualquer fragilidade. Abominas a letargia, a força
nunca mais deixará o teu corpo, a tua imagem é a que sai do corpo de Nut. 1453
Capítulo 169
Ó Osíris N.
Que Geb te possa abrir os olhos cegos
E estender para ti as tuas pernas dobradas
Que o teu coração ib da tua mãe te seja dado
E o teu coração hati que pertence ao teu corpo djet,
O teu ba que está sobre a terra,
O teu cadáver que está no solo,
Pão para o teu ventre
Água para a tua garganta
A brisa doce para as narinas (...)
Quando sobes ao céu, os cordames da barca são atados na presença de Ré. (...) Tu és puro, tu és puro, os
teus membros anteriores são puros, os teus membros posteriores são puros. (O teu lugar foi purificado)
com natrão, incenso, água fresca, resina (...) As tuas impurezas foram levadas. (...) Sais como Ré, és
poderoso como Ré (...) não foste acusado, nem aprisionado (...) no lugar onde são colocados os inimigos
(...) és alguém agradável para o coração de Ré, que agrada ao coração da sua assembleia de Sematitaui
(...) Foste proclamado justo.1454
Capítulo 182
Livro da duração de Osíris. Dar o sopro de vida «Àquele cujo coração já não bate» por acção de
Tot. Afastar o inimigo de Osíris (...) Eu dissipei as trevas e afastei o orvalho, dei a doce brisa do vento do
norte a Osíris Uennefer, como quando saiu do seio da deusa que o deu à luz. Eu faço que Ré repouse em
1453
Capítulo 168 do «Livro dos Mortos», Idem, pp. 246-249.
1454
Capítulo 169 do «Livro dos Mortos», P. BARGUET, Le Livre des Morts, pp. 249-252.
582
Osíris e que Osíris repouse em Ré. Eu faço que (Ré) penetre na caverna misteriosa para fazer reviver o
coração daquele cujo coração já não bate, o ba divino do Ocidente.
Louvor e aclamações para «Aquele cujo coração já não bate», Unenefer, filho de Nut! Eu sou
Tot, o favorito de Ré, senhor de poder, que pratica o bem para quem o criou, rico em magia na «barca dos
milhões», senhor das leis, que pacifica as Duas Terras, cujas fórmulas mágicas protegem o que o criou,
que silencia o tumulto, que faz o que agrada a Ré no seu santuário. (...) Eu sou Tot que anuncia a
alvorada, que tem a visão do futuro, sem se enganar, que governa o céu, a terra e a Duat, que criou a vida
para a humanidade. Eu dou a vida ao que está no mundo misterioso, por meio de encantamentos mágicos
que saem da minha boca, de modo que Osíris é vitorioso dos seus inimigos. (...) Louvor a ti, senhor dos
Ocidentais, que faz renascer os humanos, que rejuvenesce no seu momento. Ele é agora mais belo do que
nas suas manifestações anteriores. O teu filho Hórus é o teu protector, ele foi investido com as funções de
Atum, o teu rosto é soberbo, Uennefer, ergue-te, touro do Ocidente. Tu és duradouro no seio de Nut. Ela
abraça-te, a ti de quem ela saíu. O teu coração ib está firme no seu lugar, o teu coração hati está como era
no princípio, o teu nariz possui a duração, a vida e a força, pois tu estás vivo, renovado, rejuvenescido,
como Ré, em cada dia (...) Eu sou Tot. Eu apaziguei os Dois Combatentes no seu momento de furor. Eu
vim e lavei o sangue, apaziguei a querela, eu traguei todo o mal. 1455
Capítulo 183
Para adorar Osíris e lhe prestar homenagem, tocar o chão diante de Uennefer, diante do Senhor
da terra sagrada, exaltar o que está sobre a sua areia, pelo Osíris N. Que ele diga: «Eu venho junto de ti,
filho de Nut, Osíris, que rege a eternidade. Eu pertenço ao séquito de Tot e regozijo-me com tudo o que
ele fez: eu trouxe-te a brisa doce para as tuas narinas, vida e poder para o teu belo rosto, o vento do norte
emanado de Atum, para as tuas narinas, senhor da terra sagrada. A luz brilha no teu peito por sua causa,
foi ele que iluminou para ti o caminho das trevas e expulsou dos teus membros o mal que neles havia, por
meio dos encantamentos mágicos que saem da sua boca. Ele apaziguou, para ti os Dois Hórus, os dois
irmãos, ele fez cessar as querelas e as disputas, ele apaziguou-os para te dar satisfação, os dois
companheiros e as duas irmãs de modo que as duas margens estão reconciliadas junto de ti. Ele expulsou
toda a aversão dos seus corações (...) O teu filho Hórus foi proclamado justo diante da Enéade: a realeza
sobre a terra foi-lhe atribuída, o seu uraeus faz sentir-se sobre a terra inteira, o trono de Geb foi-lhe
atribuído e a realeza de Atum foi legitimada por escrito na lista gravada sobre um bloco de quartzito, de
acordo com a ordem de Ptah-Tatenen que está sobre o seu trono. O seu irmão foi colocado aos ombros de
Chu, a água foi derramada sobre as montanhas, de modo a fazer germinar o que produzem as terras
montanhosas e os frutos da terra (...) O teu coração regozija-se, o teu coração, ó senhor dos deuses, toda a
alegria provém dele. A Terra Negra e as Duas Terras estão reconciliadas e elas servem o teu uraeus. Os
templos estão bem estabelecidos nos seus lugares (...) Fazemos, em teu nome, a litania de oferendas,
1455
Capítulo 182 do «Livro dos Mortos», Idem, pp. 268-269. Sobre a Duat ver L. ARAÚJO, «Duat», em
L. Araújo, Dicionário do Antigo Egipto, pp. 285-286.
583
recitamos os hinos de louvor ao teu nome, apresentamos a libação de água fresca ao teu ka e oferendas
funerárias aos que estão no teu séquito. Derramamos água sobre os pães cortados ao meio para os bau dos
mortos (...) Aparece, então, filho de Nut, na qualidade de Senhor do universo! Tu és vivo, durável,
rejuvenescido, renovado. O teu pai Ré torna intacto o teu corpo e a tua Enéade presta-te homenagem (...)
Todos os países adoram a tua perfeição, como a de Ré quando brilha na alvorada (...) A ti foi dada a
realeza de Geb, o teu pai que criou a tua perfeição. Foi a tua mãe que formou o teu corpo, Nut que deu à
luz os deuses: ela deu-te à luz como o primogénito dos cinco deuses. Foste proclamado rei, a coroa branca
cinge a tua cabeça. Seguravas o ceptro e o chicote ainda dentro do ventre (...) Eu venho até junto de ti, nas
mãos trago a verdade, o meu coração está isento de mentiras. Eu coloco Maet diante de ti, pois eu sei que
vives dela. Não cometi injustiças neste país, nem prejudiquei ninguém nas suas necessidades. Eu sou Tot,
o escriba excelente, de mãos puras, senhor de pureza, que expulsa o mal, escriba de verdade, cuja
abominação é a mentira, cujo cálamo protege o Senhor do universo, senhor das leis, que faz falar os
escritos e cujas palavras deram ordem às Duas Margens (...) 1456
Capítulo 185
Capítulo 191
1456
Capítulo 183 do «Livro dos Mortos», Idem, p. 272.
1457
Capítulo 185 do «Livro dos Mortos», Idem, p. 272.
1458
Capítulo 191 do «Livro dos Mortos», Idem, p. 276.
584
X. Outros textos de âmbito funerário
1459
Inscrição de Seti I no santuário dedicado a Ramsés I. Versão portuguesa elaborada apartir da tradução
francesa em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, pp. 89-92.
1460
Inscrição de Seti I no santuário dedicado a Ramsés I. Em Ibid., pp. 94.
585
2. Inscrição dedicatória de Ramsés II
3. Hino a Osíris
1461
Inscrição dedicatória de Ramsés II no templo cenotáfio de Seti I. Idem, pp. 89-92.
1462
Hino a Osíris, estela C 286 do Museu do Louvre, Idem., p. 115.
1463
Hino a Osíris, estela C 286 do Museu do Louvre, Ibid.
586
4. Ritual de embalsamamento
1464
Ritual de Embalsamamento (§ II), Idem, pp. 44-45.
1465
Idem, p. 474
587
Cena XXIV
Oferenda do coração e da coxa
Legenda da vinheta.
O talhante: tomar e dar (a coxa) ao oficiante.
O talhante: tomar e dar (o coração) ao sacerdote semer.
O oficiante e o sacerdote semer: colocá-los por terra diante de N.
Fórmula:
O talhante dá a coxa ao oficiante, o coração ao sacerdote semer. Quando o coração está na mão
do sacerdote semer e a coxa na mão do oficiante, eles aproximam-se trazendo-os, colocam a coxa e o
coração sobre a terra diante de N.
Palavras ditas pelo oficiante: Ó, N! Toma para ti aquele que mutilou o olho de Hórus! Eu trago-
te o coração que estava nele! Não te aproximes deste deus! 1467
7. «Textos de Nut»
1466
Ritual de abertura da boca (§ XXIII), em J.-C. GOYON, Rituels Funéraires de l´ancienne Égypte,
pp. 121. O ritual era repetido com a designação de «Rituais do Baixo Egipto».
1467
Ritual de abertura da boca (§ XXIV), em Idem., pp. 122.
1468
Versão portuguesa elaborada apartir da tradução francesa em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans
l´Égypte ancienne, p. 253.
1469
Idem, p. 261.
588
XI. Pequeno léxico «cardíaco»
(Awt- ib)
A dilatação da consciência, sentida habitualmente nos momentos de grande
alegria, serve de inspiração para a imagem veiculada nesta expressão. O termo alegria,
cuja importância simbólica e ritual era muito significativa, fazia parte do vocabulário
normalmente utilizado na literatura funerária, onde constituía uma oferenda de vida. O
espírito optimista da civilização egípcia levava a que esta atitude também fosse
apreciada e recomendada pelos sábios:
Lavar o coração
ia ib
Em geral, as metáforas que utilizam a água possuem uma conotação muito
agradável. A expressão «lavar o coração» ou «mergulhar o coração», tem um
significado muito especial e pode ser traduzida simplesmente pela palavra
«satisfazer».1471 O coração lava-se quando um desejo é satisfeito:
1470
A Instrução de Ptah-hotep, 329.
1471
Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 10.
589
Hoje está contente (lit.: o seu coração está lavado)1472
O rei do Alto e do Baixo Egipto, Nebmaetré, filho de Ré, por ele amado, lava o coração de
Amon com o que ele ama, faz o que agrada ao touro de sua mãe, em belos monumentos. 1473
Esta frase esclarece que é no que se gosta, no que se deseja, que se mergulha o
coração.1474 «Mergulhar o coração» é, portanto, uma imagem com conotações
fortemente relacionadas com o prazer. Embora, em alguns casos restritos, a expressão
seja utilizada para expressar a satisfação dos desejos de vingança, em sentido lato,
“lavar o coração” implica tirar o coração de uma grande excitação e estabelecer um
equilíbrio, através da realização de um desejo próprio ou do outro1475.
A imagem relaciona-se fortemente com o significado da água na mentalidade
egípcia, a qual inevitavelmente expressa a vida e a alegria de viver. É sem dúvida por
essa razão que a expressão pode ser usada simultaneamente para designar o «banho» e a
«diversão».1476
Em toda a literatura funerária, a imagem da água tem conotações muito fortes
com o coração. Numa estela da XX dinastia, o defunto suplica a Osíris e a Ísis que dêem
«pão para o meu corpo e água para o meu coração», revelando um sentido religioso na
relação do coração com a água.
Embora, na escrita hieroglífica, a expressão «lavar o coração» signifique,
«satisfazer-se», o Conto dos Dois Irmãos mostra que o significado religioso desta
expressão tinha um alcance bem mais abrangente. Aí, Bata é reanimado pela imersão do
coração em água, pelo que, a expressão “mergulhar o coração”, em sentido lato, poderá
significar, “reanimar” ou “encher de vida”. Esta imagem serve, efectivamente, para
exprimir o estado de adoração à divindade. Desta forma, o defunto podia dirigir-se a um
1472
A Aventura de Sinuhé, 181. em P. DUINO, La Veritable Histoire de Sinouhé.
1473
Em A. MORET, «L´expression àâ-ib», RT 14 (1893), p. 121.
1474
Ibidem.
1475
H.BRUNNER, “Das Herz im, p.17.
1476
Em A. MORET, «L´expression àâ-ib», RT 14 (1893), p. 123.
590
deus proclamando: «Eu sou o teu servidor, o meu coração está mergulhado na tua água”
1477
«Estar mergulhado na água do deus» exprime, por uma imagem física, concreta, o
estado em que o morto se reanima pela acção da divindade.
Coração
ib
O meu desejo (lit.: o meu coração) é conhecer todos os planos do meu senhor 1478
Ou:
O meu desejo (lit.: o meu coração) é estar repleta com as tuas coisas. 1479
1477
Estela funerária de Nápoles: A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 41.
1478
Camponês Eloquente, em Idem, p. 30.
1479
Em Idem, p. 30.
1480
Em certas composições literárias, como as Cantigas do Harpista, esta expressão é especialmente
frequente, constituindo uma exortação ao usufruto dos prazeres da vida.
1481
Veja-se, a título de exemplo, a seguinte exortação: «Não deixes de agir de acordo com o teu desejo
(ib) até o dia do luto chegar». Em E. WENTE, «Egyptian “Make Merry” songs reconsidered», JNES XXI
(1962), p. 122.
591
Coração atento
ib m ak
Deves dirigir as tuas palavras para o rei com um coração atento e responder sem hesitações.. 1482
Fuga do coração
ifd ib
Estar no coração
imy- ib
1482
O Conto do Náufrago, em J. FOSTER, The Shipwrecked Sailor, p. 12.
1483
Papiro Chester Beatty I, I-4. Em B. MATHIEU, La poesie amoreuse de l´Égypte ancienne., p. 39,
nota 61 e Pl. 2.
592
1484
A tua amada está no teu coração.
Colocar no coração
imma m ib
1484
Ver A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 40.
1485
Instrução de Ani, 35. Em Idem, p. 45.
1486
Instrução de Ani, 35. Em Ibidem.
1487
Ainda hoje, na maior parte das línguas ocidentais, a memorização é expressa através de um termo
derivado da palavra coração: «saber decor», em português, significa «saber de coração». O mesmo
significado têm as expressões «savoir par coeur» ou «know by heart».
593
Trazer o coração
y n ib
O coração leva
inn Haty
A acção do indivíduo regula-se por um desígnio interno que, por vezes, assume
um tal imperativo que é o coração que passa a ser o sujeito da acção. Nestes casos o
indivíduo é praticamente arrastado pelo coração:
O meu coração tremeu e o meu coração não estava no meu corpo. Ele levou-me para caminhos
perdidos.1490
1488
«Ela vai dar-te a tua cabeça, ela reunirá os teus ossos, ela reunirá os teus membros, ela vai trazer-te o
teu coração para o teu corpo.» (Pir. § 149). Em R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p.
149.
1489
A expressão diz respeito à masturbação primordial do criador. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 44.
1490
A Aventura de Sinuhé, em G. MASPERO, Mémoires de Sinouhit, p. 7, 1-2.
594
O agir do coração
ir ib
Remover o coração
iT ib
...o teu coração não será removido, o teu coração não te será cortado. 1492
1491
A Instrução de Ptah-hotep, 636.
1492
Pir. § 748. Em R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 138. Versão hieroglífica em
A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 12.
595
a
Coração grande
aA ib
Não te orgulhes (lit. Que o teu coração não fique grande) do teu saber. 1494
Não te orgulhes (lit. Que o teu coração não fique grande) do teu poder entre os teus
companheiros.1495
Grande no coração
aA m ib
aAb ib
1493
Ver M. LICHTHEIM, Maat in Egyptian Autobiographies and related studies, p. 24.
1494
Instrução de Ptah-hotep, 52.
1495
Instrução dirigida a Kagemni, II, 1. Em A. GARDINER, «The Instruction Adressed to Kagemni and
his Brethren», JEA 32 (1946), pl. XIV.
1496
Ver Ibidem, Le Coeur, p. 40.
596
Os burros do camponês foram agradáveis no seu coração. 1497
Entrar no coração
aAq ib
Coração ávido
awn ib
A avidez do coração constitui uma das atitudes mais reprováveis para os sábios
egípcios. São inúmeros os conselhos que alertam para o perigo desta atitude:
1497
O Conto do Camponês Eloquente, 7,1.Em R.B. PARKINSON, The Tale of the Eloquent Peasent, p. 7.
1498
Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 50
1499
Diálogo do Homem Cansado da Vida com o seu Ba, 123-125. A. GARDINER, Notes on the Story of
Sinuhe, p. 75.
1500
Instrução de Ptah-hotep, 315-318.
597
A agressividade do termo avidez, ´wn, fica bem expressa no determinativo de
acção violenta (Gr A24) que representa um homem armado de um bastão. A utilização
da expressão parece ter evoluído ao longo do tempo. Se inicialmente a expressão era
empregue para reportar a ganância, constata-se um crescente paralelo com a acção de
«roubar» (´w3) e «tomar» (iti).1501 Mais do que uma simples atitude interior, a avidez do
coração parece assim ser dotada de manifestações muito tangíveis e agressivas. O alvo
da cobiça, na verdade, é quase sempre de ordem material: uma herança (Instrução de
Ptah-hotep 303-308; 316), a propriedade alheia (Instrução de Amenemope 8,2). O ávido
de coração é um homem em quem não se pode confiar e espalha a desgraça em todo o
lado. Ele ataca os membros da sua própria família («procura extorquir os seus familiares
da sua herança»)1502 mas também os colegas de profissão.1503
Uma propensão de carácter tão ameaçadora da ordem cósmica teria de figurar
entre a «Confissão Negativa», onde efectivamente é mencionada em conjunto com
outras características pejorativas: «eu não roubei, não tive um coração ávido (...) não
tomei».1504
A «avidez de coração» representa, portanto uma ameaça à ordem maética sendo
frequentemente colocado em paralelo com a «mentira», com a qual é inúmeras vezes
referida, sobretudo na literatura pessimista, para caracterizar os tempos de anarquia e
instabilidade.1505
Nas instruções sapienciais, que procuram promover a maet, são frequentes os
avisos e as exortações que alertam para os malefícios da «avidez do coração», a qual é
considerada como «um dolorosa doença sem cura», 1506 ou «uma porta para todos os
males, um amontoado de coisas odiosas».1507
O castigo do ávido de coração é duplo, diz o sábio Ptah-hotep, começa na vida
terrena e culmina no Além.1508 Deste modo, ao longo da vida ele é vítima dos conflitos
que alimenta e o isolamento a que é votado culmina com o próprio divórcio.1509 Após a
1501
Em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 106.
1502
Instrução de Ptah-hotep, 298.
1503
Diálogo do homem cansado da vida com o seu ba, 120-121. Também em O Camponês Eloquente, B1
169.
1504
Citação de N. SHUPAK, Where can wisdom be found? p. 107.
1505
Em Ibidem
1506
Instrução de Ptah-hotep, citada em Ibidem
1507
Em Ibidem.
1508
Em Ibidem
1509
Em Ibidem.
598
morte o «ávido de coração» não chega a «margens seguras»1510 e, desgraça das
desgraças, «não tem túmulo».1511
O garante da ordem procura «suprimir o ávido de coração»1512 ou «mantém
distância do ávido de coração».1513 Num texto autobiográfico do Império Novo é
apresentada uma definição bastante completa desta atitude:
Engolir o coração
amA ib
1510
Instrução de Ptah-hotep, 91, em Ibidem.
1511
Instrução de Ptah-hotep, 315, em Ibidem.
1512
Túmulo de Rekhmiré, em Idem, p. 108.
1513
Instrução de Ptah-hotep, 298, Ibidem
1514
Inscrição de uma estátua de Amen-hotep, administrador dos domínios reais no reinado de Amen-
hotep III. Adaptada da versão inglesa em M. LICHTHEIM, Maat in Egyptian Autobiographies, p. 59.
1515
Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 42.
1516
Em J. J. CLÉRE, «L´Expression dns mhwt des autobiographies égyptiennes», em JEA 35 (1949), p.
40.
599
Coração inteligente
arq ib
Coração persistente
aHa ib
A palavra «erguer», aha, cunha o coração com uma qualidade que se aproxima
da bravura. O sentido está pois relacionado com a determinação e a coragem:1518
Recto de coração
aqA ib
Trata-se de uma virtude muito apreciada que está relacionada com a verdade. O
alto funcionário Antef do reinado de Tutmés III proclama-se «recto de coração»,
porque, diz ele, «não há mentira no meu coração»1520
1517
Ver A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 49.
1518
Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 47.
1519
A Aventura de Sinuhé, 79.
1520
Em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 95.
600
b
Coração de bronze
Coração fraco
ib fn
1521
Túmulo de Paheri. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 35.
1522
Em Idem, p. 26.
601
w
Inclinar o coração
wAH ib
1523
Ver A. GARDINER, Notes on the Story of Sinuhe, p. 76.
1524
Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 54.
1525
O Conto do Camponês Eloquente, 241.
1526
Aventura de Sinuhé, 202-203. Em A. GARDINER, Notes on the Story of Sinuhe, p. 76.
1527
Em M. LICHTHEIM; Moral Values in Ancient Egypt, p. 82.
1528
Em Idem, p. 78.
602
Único de coração
wa ib
Ter coração
wnn ib
Coração gasto/cansado
ib wrd
A idade chegou e a fraqueza abateu-se sobre mim. Os meus olhos estão pesados, os meus braços
fracos, os meus pés têm dificuldade em andar. O meu coração está gasto. A morte aproxima-se.1531
1529
Ver A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 42.
1530
Papiro Lansing, 7, 5-6. Em Idem, p. 48.
1531
A Aventura de Sinuhé, 204-209.
603
Sintomaticamente, a mesma expressão é usada como epíteto de Osíris, «O de
coração cansado».1532
wha ib
Dá os teus ouvidos, ouve o que é dito, dá o teu coração para compreender (lit.: desatar os nós). 1535
A expressão, «desatar o coração», por outro lado, possibilita outra interessante imagem
metafórica para expressar o papel do coração no funcionamento da inteligência, e
salienta a eficácia do coração na resolução das questões concretas da vida.
Na perspectiva interessante apresentada por Nili Shupack, esta característica do
coração complementa a atitude passiva do «coração ouvinte». De acordo com a autora,
o «coração eficaz» podia manifestar-se num estado avançado da aprendizagem do
discípulo. Se inicialmente era incentivado a «ouvir», à medida que ia progredindo, o
sábio podia assumir uma participação mais activa, contribuindo para «desatar os
nós».1536
1532
Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 109.
1533
Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 66.
1534
Em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 64.
1535
Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 48.
1536
N. SHUPAK, Where can wisdom be found? The Sage Language in the Bible and in Ancient Egyptian
Literature, p. 65.
604
A verdade é que a expressão «coração eficaz» constituía um título apreciado
pelos funcionários do Império Novo o que, aparentemente, concorre para reforçar o
prestígio desta capacidade.1537
wd3 ib
Era também com este sentido que esta expressão era redigida no início das cartas. No
entanto, embora inicialmente fosse utilizada para dizer «Para satisfazer o teu coração»,
sudjá ib ék, foi gradualmente sendo empregue com o sentido de «Para informar-te».1539
Só assim se entende que, em certos casos, a expressão fosse utilizada para anunciar a
morte de familiares.1540 Um exemplo desta utilização também pode ser encontrada no
Conto do Camponês Eloquente:
1537
Ibidem
1538
O Conto do Náufrago, em J. FOSTER, The Shipwrecked Sailor, p. 12.
1539
R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 268, nota 3..
1540
H. BRUNNER, «Das Herz im.», p. 17.
1541
O Conto do Camponês Eloquente, 67.
605
m
Estar no coração
m ib
Coração ardente
Haty mAX
1542
Estela da Esfinge, 10-12, em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 30.
1543
Ver A. GARDINER, Notes on the story of Sinuhe, p. 59.
1544
A Aventura de Sinuhé, 157.
606
Coração firme/estável
mn ib
Jovem de coração grande (ib 3´), tu não ouves quando te falo, fizeste o teu coração mais firme do
que um grande monumento.1546
Uma boca cheia de ervas reconforta o coração (lit. torna firme o coração). 1547
Coração doente/dolorido
ib mr
1545
Ver A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 35.
1546
Papiro Lansing, 2, 3-6, Em Idem, p. 36.
1547
A Instrução dirigida a Kagemni, I, 5-6, em A. GARDINER, «The Instruction Adressed to Kagemni
and his Brethren», JEA 32 (1946), pl. XIV.
1548
A Aventura de Sinuhé, 159.
607
Também se fica com o coração doente quando se compreende as razões que
justificam um comportamento condenável:
O seu coração compadeceu-se (lit.: ficou dolorido) sobre o que foi compelido a viver no
estrangeiro.1549
Ela terá compaixão de mim (lit.: um coração doente para mim) e dar-me-á o seu seio para que o
possa mamar: «Meu filho», diz ela, «toma este seio e mama». 1550
Coração amante
mrt ib
A expressão traduz a atitude de respeito do homem perante a divindade a qual, pelo seu
elevado valor moral, atrai a graça divina.1551 Em vez de proferir palavras exaltadas, no
templo do deus, deve-se:
1552
Reza com um coração amante e oculta as palavras.
1549
A Aventura de Sinuhé, 197.
1550
Pir. § 1109, em R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 83.
1551
Em N. SHUPAK, Where can wisdom be found? p. 162.
1552
Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 42. Também em M. H. GAUTHIER, La Grande Inscription
Dédicatoire d´Abydos, p. 20 (linha 94).
608
Encher o coração
mH ib
Devido aos riscos inerentes em confiar em alguém, o rei exorta o seu sucessor a
resguardar-se:
Afogar o coração
mH ib
Quanto à expressão «o coração está afogado» isto significa que o coração se esquece. 1557
1553
Ver A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 42.
1554
Instrução de Amenemhat I. Em G. MASPERO, Les Enseignements d´Amenemhaît I à son fils
Sanouasrît I, p. 1.
1555
Instrução de Ptah-hotep, 53.
1556
Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 114.
609
Equilibrar o coração
mxA ib
Afecto do coração
mtt ib
(Com quem podemos hoje falar?) Os irmãos são maus, os homens são tratados como inimigos de
acordo com o afecto do coração.1560
1557
Papiro Ebers, 102, 15. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 46.
1558
Ver Idem, p. 113.
1559
Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 120.
1560
O Diálogo do Homem Cansado da Vida com o seu Ba, 116-118. Em A GARDINER, Notes on the
Story of Sinuhe, p. 75.
610
n
nfr m ib
Um bom coração traduz uma «boa disposição». É neste estado que o sábio
aconselha a falar:
Através da sua conduta, o homem pode tornar bom o coração dos deuses:
O que é bom para o coração do deus é hesitar diante das palavras. 1562
Passar uma hora «num bom coração» é uma locução indirecta para se referir às
relações sexuais.
1561
Instrução de Ptah-hotep, 130.
1562
Instrução de Amenemope, IV 3. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 33.
1563
Instrução de Amenmehat I, em P. LACAU, Les Enseignments d´Amenemhat I, p. 2.
611
Sem coração
nty HAty
A expressão não designa o homem impiedoso, mas sim o indivíduo desprovido de bom
senso ou o ignorante. Quando colocado perante as suas próprias falhas, o indivíduo
justifica-as porque estava «sem coração». Neferabu dizia de si mesmo que era «um
ignorante sem coração, que não conhecia o bem nem o mal».1564
Secundariamente a expressão pode evocar o covarde, o desprovido de coragem:
Coração doce
nDm ib
1564
Em M. LICHTHEIM, Moral Values in Ancient Egypt, p. 45.
1565
Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 34.
1566
Papiro de Leiden nº 344, 16,1. Em A. GRADINER, Admonitions of na Egyptian Sage, p.
1567
Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 20.
612
É o coração doce que dá gosto à vida:
Sabe melhor um pão quando o coração está doce, do que as riquezas com na companhia dos
entediados.1568
1568
Instrução de Amenemope, VIII 9. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 33.
1569
D. MEEKS, «Les quatre ka du démiurge memphite», RdÉ 15 (1963), p. 47.
1570
F.-R. HERBIN, «Un hymne à la lune croissante», BIFAO 82 (1982), p. 252.
1571
F.-R. HERBIN, «Un hymne à la lune croissante», BIFAO 82 (1982), p. 282.
613
r
Endurecer o coração
rwD ib
rm ib
1572
Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 148.
1573
O Conto do Náufrago, p. 29.
1574
5,5. em A. GARDINER, Admonitions of an Egyptian Sage, p. 42.
614
Coração que conhece
rx -ib
Alegria de coração
rSwt -ib
Dissolução do coração
psx- ib
1575
O Conto dos Dois Irmãos, 1,6. Ver A. PIANKOFF, Le Coeur e, p. 41.
1576
Papiro Lansing, 3,3. Em Idem, p. 33.
615
O meu coração saiu, os meus braços tombaram e os meus membros tremeram. 1577
Estes sintomas não acusam, no entanto, uma anomalia física mas sim uma
perturbação do espírito que deixa o indivíduo sem a percepção plena do que o rodeia:
O meu coração não estava no meu corpo. Eu conhecia a vida e a morte. 1578
Ir atrás do coração
hA ib
1577
A Aventura de Sinuhé, 23. Em P. LUINO, La Véritable Histoire de Sinouhé, p. 45.
1578
A Aventura de Sinuhé, 317. Em Idem, p. 80.
1579
«Quando alguém o faz o coração sai e, enquanto as conhecer, nenhum dos seus desígnios terá
êxito.».A Instrução de Ptah-hotep, 293-297. Em C. JACQ, Las Máximas de Ptahhotep, p. 103.
616
Enterrar o coração
hrp ib
Trata-se de uma expressão usada para guardar segredo do pensamento que pode
ser usada de modo equivalente a hrp ib.
Alegrar o coração
Hai ib
As margens do rio estão inundadas. As oferendas divinas chegam. As faces dos homens brilham,
o coração dos deuses alegra-se.1582
1580
O príncipe Predestinado, II, 2, A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 31.
1581
Instrução de Ptah-hotep, em J. J. CLÉRE, «L´Expression dns mhwt des autobiographies
égyptiennes», em JEA 35 (1949), p. 41
1582
Pir. § 1554. R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 235.
617
Cortar o coração
Hmm HAty
Decepar o coração
Hsq HAty
Afia o teu sabre, Tot, o teu sabre cortante que corta as cabeças e que decepa os corações dos que
se opõem a Pepi.1583
Satisfação do coração
Htp ib
1583
Pir. § 962-963. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 61-62.
618
a cólera».1584 O termo Htp não era aqui usado apenas no sentido de «contentamento»,
tendo implícita a ideia de «paz» por oposição com nSny «cólera».
A expressão era muito usada para designar a saciedade decorrente da satisfação
das necessidades fisiológicas. Deste modo «Beber à satisfação do coração», significa
«beber até à saciedade». 1585 De um modo geral, a satisfação do coração, sobretudo na
literatura funerária, estava relacionada com as oferendas alimentares:
Oh, rei, eu sou Tot. Uma oferenda que o rei dá: Que te seja dado pão e cerveja e estes dois padje
de incenso que vieram de Hórus, que está no Grande Salão, possa ele satisfazer o teu coração, para
sempre.1586
1584
md(.t) nfr(.t) Htp ib r nSny . Em É. DRIOTON, «Maximes morales sur des scarabées égyptiens», p.
198.
1585
Swr r Htp.w-ib. Em Ibidem.
1586
Pir. § 905. R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 158.
1587
O capítulo 175 do «Livro dos Mortos» apresenta um interessante diálogo entre Osíris e Atum que
aqui reproduzimos em parte: «Osíris diz: Ó Atum, porque terei de ir para um deserto, sem água, sem ar,
tão profundo, obscuro e inextricável?
«Tu viverás na paz do coração»
«De modo nenhum! Aí não se poderá copular»
«Eu dou-te a glorificação em lugar da água, do ar e do amor. Dou-te a paz do coração em lugar do pão e
da cerveja.» Versão portuguesa baseada na tradução francesa apresentada em É. DRIOTON, «Maximes
morales sur des scarabées égyptiens», p. 199.
619
apaziguamento que espoleta. Usada neste sentido a expressão podia ser traduzida como
«contentamento»:
Desejo do coração
xrt-ib
1588
Ver versão hieroglífica em B. MATHIEU, La poesie Amoreuse de l´Égypte Ancienne, pl. 1.
1589
Autobiografia de Herkhuf: M. LICHTHEIM, AEL, I, p. 27.
1590
Estela do tesoureiro Tjetji: Ibid., p.91.
620
A expressão também pode ser traduzida como «assunto do coração» ou «o que
está próximo (ou diante) do coração». «Fazer o que está diante do coração» consiste em
satisfazer a vontade:
Coração dianteiro
xnti ib
Concentrar o coração
sAq ib
1591
O Conto do Náufrago, em J. FOSTER, The Shipwrecked Sailor, p. 12.
1592
Ver os dois sentidos da expressão em R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p.
194.
1593
Pir. § 592, em R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 115.
1594
Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 211.
621
Concentra o teu coração até atingires a perfeição.1595
sanx ib
Poderoso de coração
sxm ib
Distrair o coração
sxmx ib
622
(Ele) agrada ao coração do deus diante do seu grande trono. 1598
A expressão tem fortes conotações com o prazer e a diversão. Por isso é habitual que
ocorra em contextos festivos e com uma forte componente lúdica, como é o caso dos
passeios náuticos às florestas de papiros, onde é frequentemente usada como
legenda.1599 Neste ciclo de representações funerárias, o erotismo está estreitamente
associado ao papel da caça e ambos partilham de uma mesma função aristocrática: a de
proporcionar ao homem um tempo de lazer e ócio.1600 A expressão sxmh ib também é
muito frequente nos poemas de amor onde aliás designa este género literário. Em
qualquer um destes contextos a exaltação do prazer e das diversões definem plenamente
o âmbito e o significado de «agradar o coração».
A associação da expressão «agradar o coração» ao motivo do passeio náutico
merece ser explorada pois apresenta algumas flutuações de sentido. No Império Antigo,
a composição faz parte do programa decorativo das mastabas e evoca o papel do
defunto no domínio das forças do caos. No Império Novo, estas composições
iconográficas revestem-se de um outro significado. A travessia da água celebra a
abundância festiva que antecede a ascensão do defunto ao céu e o seu acolhimento pela
deusa Nut.1601 Para além das conotações já referidas, «distrair o coração» constitui o
estado de espírito que antecede a ascensão ao céu.
O lugar do coração
st ib
Embora, em última análise, o sentido mais amplo do coração englobe toda a vida
consciente do homem, é, curiosamente, uma imagem muito simples e concreta que
exprime mais cabalmente o estado de consciência. O lugar do coração ilustra o estado
1598
Pir. § 1189, R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 191.
1599
O ócio, tal como o trabalho, constitui um privilégio essencialmente masculino. Ver J. ASSMANN,
Mort et au-delá dans l´Égypte ancienne, p. 407.
1600
O ócio, tal como o trabalho, constitui um privilégio essencialmente masculino. Ver Ibidem.
1601
Ver Idem, p. 410.
623
de consciência normal. Dir-se-ia que, quando tudo corre bem, o coração está no seu
lugar.
Na literatura funerária, as fórmulas mágicas preocupam-se, por isso, em
assegurar que o coração permaneça no seu lugar:
O lugar do coração é, por vezes, chamado de maket (m´kt). Diz-se que o coração
está no seu meket para expressar vitalidade:
Com um coração firme (men ib) e um coração que se encontra sobre o seu lugar (meket),
permanece ao lado do senhor da eternidade.1603
1602
Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 27.
1603
Ibidem.
1604
Papiro do Jogo da Sorte, 16, 129, em Ibidem.
1605
Ver Id, p. 50.
1606
N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 164.
624
O coração ouvinte
sDm ib
É o coração que forma o homem, tornando-o obediente (lit. «ouvinte») ou desobediente (lit. «alguém que
não ouve»)). O coração de um homem é a sua vida, prosperidade e saúde.1608
1607
Idem, p. 53.
1608
A Instrução de Ptah-hotep, 534-552.
1609
Biografia de Amen-hotep, Urk. IV 1817, 8-11.
625
rotineiras como as «coisas estranhas», para as quais não há uma solução imediata. Ter
um coração ouvinte não constitui, por isso, apenas uma atitude de interesse e de
obediência. Na realidade, a expressão parece completar-se com um sentido intelectual:
ter um coração ouvinte significa ser inteligente, pois é a inteligência que permite
encontrar soluções para os problemas. A eficácia assim obtida traz tranquilidade:«Uma
boa escuta aplana o coração»,1610 diz o sábio Ptah-hotep.
No entanto, o coração pode escutar outras «vontades» provenientes do próprio
indivíduo. Quando o coração escuta o ventre, por exemplo, a desgraça acontece:
Quando o coração escuta o seu ventre, o desdém aparece, em lugar do amor. 1611
1610
Instrução de Ptah-hotep, 205.
1611
Instrução de Ptah-hotep, 243-244.
1612
Em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 78.
1613
Veja-se a seguinte consideração: «Um filho que escuta não tem defeito», Instrução de Sehetepibra,
8,7. Em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 78.
1614
«O desprezo pela virtude tem origem no não ouvir» Papiro Insinger, 9,5. Em F. LEXA, Les
Enseignements Moraux d´un Scribe Égyptien du Premier Siécle Aprés J.C, Tome II, p. 48.
1615
Em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 79.
1616
Instrução de Amenemope, em Idem, p. 278.
1617
Instrução de Ptah-hotep, 387.
626
Ouvir é uma dádiva divina: «O que ouve é amado por deus. O que deus detesta
não ouve.»1618
Sat HAty
Seguir o coração
Sms ib
«Seguir o coração» é outra das principais virtudes da ética egípcia, muito
embora não seja fácil de definir. Kees viu nesta expressão o apelo ao usufruto
hedonístico do prazer.1621 Piankoff, no entanto, considera bem mais relevante o sentido
de «seguir a consciência».1622 Este sentido depreende-se na Instrução para Merikaré
onde se exorta o rei a seguir o coração pelo caminho empreendido pelo pai, ou seja, a
seguir a mesma política.1623
1618
Instrução de Ptah-hotep, 550-551. Em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 279.
1619
Ver o significado de termo ched em R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p.
262.
1620
Pir. § 763. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 62.
1621
Ver D. LORTON, «The Expression sms ib», JARCE 7 (1968), p. 41.
1622
A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 47. Também Walter Federn sublinha o sentido hedonístico da expressão.
Ver em «The “Transformations” in the Coffin Texts: A New Approach», JNES 19 (1960), p. 248.
1623
«Segue o teu coração por aquilo que eu fiz», adaptado da versão inglesa patente em M. LICHTHEIM,
AEL, I, p. 103.
627
Efectivamente, a estela funerária de Taimhotep, por exemplo, convida a «não
aquecer o coração com bebida, comida e prazeres sexuais», no entanto, logo de seguida,
exorta a «seguir o coração todos os dias, colocando o cuidado no coração.»1624
No entanto, a Instrução de Ptah-hotep, apresenta uma interpretação distinta da
expressão. Em primeiro lugar, o sábio começa por aconselhar a «seguir o coração
durante toda a vida» e a não fazer «mais do que o que é pedido», justificando, em
seguida a razão para esse procedimento: «pois é abominação do ka desperdiçar o seu
momento».1625
Neste caso, «seguir o coração» não corresponde apenas à atitude de «seguir a
consciência», insinuando-se uma atitude hedonista que valoriza, a par do cumprimento
das obrigações, o usufruto dos prazeres da vida. Já na Canção de Antef, o sentido
hedonista é claramente predominante. 1626
O teor ambíguo da recomendação de «seguir o coração» relaciona-se assim com a
multidimensionalidade da noção de coração já que esta abrange simultaneamente a vida
afectiva e intelectual. No fundo a exortação de «seguir o coração» traduz a necessidade
de «seguir a consciência» e definir a medida certa entre o prazer e o dever. 1627
Subjacente está sempre a ideia de uma vivência agradável. Mesmo quando o indivíduo
cumpre as obrigações seguindo os ditames da consciência, conquista um bem estar
resultante do seu cumprimento. Mas se for para lá deste limite e descurar o prazer de
viver e o tempo de ócio, o indivíduo não segue, em rigor a consciência, já que esta o
obriga a reconhecer o equilíbrio de todas as dimensões da vida. A advertência para
«seguir o coração» tornava-se, progressivamente num imperativo cada vez mais
importante:
1624
Em D. LORTON, «The Expression sms ib», JARCE 7 (1968), p. 42.
1625
Instrução de Ptah-hotep, 7,9-7,10, em D. LORTON, «The Expression sms ib», JARCE 7 (1968), p. 42.
Também Assmann defende a mesma interpretação da expressão: «“Suivre son coeur” contraste ici avec
les tâches quotidiennes, les affaires domestiques, et il me semble absolument évident que Sms ib signifie
l´idée de loisir. Em J. ASSMANN, Mort et au-delá dans l´Égypte ancienne, p. 408.
1626
«Segue o teu coração toda a tua vida. Coloca mirra na tua cabeça e roupas de fino linho sobre ti e
unta-te com as coisas maravilhosas que fazem parte das provisões de um deus. Goza da abundância da tua
riqueza até que o teu coração fique cansado». Em D. LORTON, «The Expression sms ib», JARCE 7
(1968), p. 46.
1627
Dado que o termo «seguir» também significa «fazer uso de», a expressão também pode ser lida como
«exercitar a vontade». Ver D. LORTON, «The Expression Sms ib», JARCE 7 (1968), p. 41.
628
é a abominação do ka, o destruir o seu tempo. (...)
A riqueza também vem àquele que segue o seu coração,
mas nada é bem sucedido quando o coração é defeituoso. 1628
Nos ensinamentos da vida esta noção continuava a ter valor, mil anos depois.
Um sacerdote de Amon confessava, desinibidamente, a sua vocação para usufruir os
prazeres da vida:
Eu passei os dias da minha vida em prazer, sem preocupações, sem doenças, eu festejei os meus
dias com vinho e gordura. Eu dei algum tempo ao meu coração porque eu sabia que o cemitério significa
escuridão. Assim, não é absurdo seguir o desejo do coração. Como é jovem quem passou o tempo da sua
vida seguindo o seu coração, sob a graça de Amon. Não sejas avaro para gastar o que tens, não guardes
as tuas posses, não penses demasiado (lit.: não pesques dentro do coração), não te sentes na sala do
pensamento profundo, tentando prever o amanhã, antes de ele chegar. Não durmas quando o disco solar
nasce no Oriente. Não fiques com sede ao lado de uma cerveja. No Além isso faz falta. Acompanha os
que seguem o coração.1630
1628
J. ASSMANN, Maât, p. 52.
1629
H. BRUNNER, “Das Herz im, pp. 28-32.
1630
Ibid., p. 33.
629
Coração zangado/revoltado
SnT ib
Ssp ib
As coisas que o coração toma são aquelas que são alvo do seu desejo e embora
chesep signifique «receber», em certos casos, a expressão tem o sentido de «arrecadar»
ou «tomar», exprimindo uma tomada de posse imposta pelo coração:
Ele aparece como Sobek, filho de Neit, come com a sua boca, urina e copula com o seu falo. Ele
é o possuidor da semente que arrebata as mulheres dos seus homens sempre que queira de acordo com o
seu desejo (lit.: de acordo com o que o coração toma). 1633
1631
Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 269.
1632
Conto do Camponês Eloquente, 301.
1633
Pir. § 510. R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 99. Versão hieroglífica em K.
SETHE, Die Altaegyptischen Pyramidentexte, Vol. I, p. 261.
630
k
Pensamento do coração
kAt ib
Plano do coração
kt ib
1634
Conto de Ré e Ísis, Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 51.
1635
Grande Inscrição Monumental de Hatchepsut, 35, em A. GARDINER, «Davie´s copy of the Great
Speos Artemidos Inscription», JEA 32(1946), pp. 43-56.
631
q
Refrescar o coração
qbH ib
Mais do que uma mera emoção, refrescar o coração está relacionada com a
própria vitalidade e a integridade do corpo. Trata-se, portanto do bem estar no sentido
mais abrangente de vivacidade. Nos textos funerários, a ressurreição do defunto é
proporcionada pelos deuses que «refrescam o coração no corpo»:
1636
Ela refresca o teu coração no teu corpo na casa do teu pai, Anúbis.
1636
Pir. § 1995. R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 121.
1637
H. BRUNNER, “Herz, col. 1161.
1638
A. de BUCK, “Egyptische Philologie, p. 12. Texto em L. ARAÚJO, Estudos sobre o Erotismo,
Lisboa, 1995, pp. 247-249.
632
regenera quotidianamente os astros celestes1639, a água da Duat purificava o defunto
trazendo ao coração a vida, a frescura, a regeneração desejadas.
Coração erguido
qA ib
Não levantes o teu coração para que ele não seja humilhado. 1640
Coração em luto
gmw ib
1639
N. BEAUX, “La Douat dans les Textes des Pyramides: Espace et temps de gestation”, BIFAO 94
(1994) p. 6.
1640
Instrução de Ptah-hotep, 374. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 37.
1641
A Aventura de Sinuhé, 9.
633
Coração silencioso
gr ib
Coração quente
tA ib
1642
Em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 151.
1643
Em Ibidem.
1644
Ver Ibidem.
1645
Em R. SOUSA, Os Doces Versos, p. 37.
634
relacionado com a violência, como indica o determinativo final da expressão que
apresenta um homem brandindo um bastão.1646
O termo t3 pode ser usado em conjunto com outras partes do corpo criando
expressões como «ventre quente» (t3 ht), ou «boca quente» (t3 r), cujo sentido
complementa ou explicita a expressão «coração quente». 1647
Na literatura sapiencial, o coração quente é um dos atributos do smn, o homem
colérico, o qual também é considerado rkw, «inimigo» ou thw, «violento».1648 Na
Instrução de Amenemope, todos estes termos são utilizados como antónimos da
expressão «homem silencioso». O principal atributo do chemen é, sem dúvida, a
irascibilidade expressa sobretudo ao nível verbal: ao contrário do silencioso, o colérico
está sempre pronto para uma boa disputa, de tal modo que «está mergulhado em
mentira» ou «armadilhado na sua própria boca».1649 É de tal modo incorrigível que o
próprio sábio apela ao deus Khnum para o remodelar na sua roda de oleiro.1650
Características como a «impaciência de coração» (w3h ib) ou «coração
obstinado» (dns ib) estão associadas ao homem de «coração quente». Por vezes, a
«avidez de coração» também pode estar associada ao homem colérico. Em suma, todas
estas características estão associadas a um tipo humano altamente indesejável para a
sociedade, cuja acção era necessário controlar, tanto neste mundo como no Além. O
straco Leipzig 8 apresenta, com efeito, uma maldição para afastar o homem colérico do
Além.1651
O coração salta
Haty tfy
O medo traduz-se pela perturbação do coração que parece saltar do seu lugar. A
expressão descreve provavelmente a aceleração do ritmo cardíaco que se verifica numa
situação de pânico:
1646
Em R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 293.
1647
Ver N. SHUPAK, Where can wisdom be found? The Sage Language in the Bible and in Ancient
Egyptian Literature, p. 118.
1648
Instrução de Amenemope, 5, 10-15. Em Ibidem.
1649
Instrução de Amenemope, 9 e 10. Idem, p. 130.
1650
Instrução de Amenemope, 12. Ibidem
1651
Ver Ibidem.
635
Os seus corações saltavam nos seus corpos.1652
Coração fatigado/acabado
ib tm
Agarrar o coração
TAy HAty
1652
Inscrição no templo de Abu Simbel. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 25.
1653
Papiro Anastasi, 2, 5-6.
1654
Em alguns exemplares a expressão udada é ib mah, «coração esquecido». Instrução de Ptah-hotep, 16.
636
Não andes atrás de uma mulher para que ela não te agarre o coração.1655
Levantar o coração
TAw ib
Erguer o coração
Tst ib
1655
Instrução de Ani, LVII. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 40
1656
Em Idem, p. 47.
1657
Instrução de Ptah-hotep, 63.
1658
Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 40.
637
A expressão pode ser traduzida por «ânimo», já que tem um sentido muito físico.
Num estado limite de cansaço, perante a possibilidade de salvação, erguer o coração
traduz o ânimo necessário para desenvolver um último esforço:
Dar o coração
di n ib
1659
A Aventura de Sinuhé, 45.
1660
Veja-se, por exemplo, a seguinte exortação: «Dá os teus ouvidos, ouve o que é dito, dá o teu coração
para compreender». A Instrução de Amenemope, 3,9-10.
1661
Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 155.
1662
Veja-se, por exemplo a seguinte fórmula: «Que Ísis possa dar-te o coração para o teu corpo» (Pir. §
4). Em R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 1.
1663
Relato da filiação divina de Hatchepsut, em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 44.
638
É também sob esta óptica que provavelmente se deve entender o verso do Papiro
Harris 500:
Unir os corações
dmD ibw
Coração pesado
dns ib
A expressão revela uma atitude compenetrada e responsável, típica de quem
guarda bem as palavras:
1664
Papiro Harris 500, I-1.R. SOUSA, Os Doces Versos, p. 107. Ver versão hieroglífica em B.
MATHIEU, La poesie amoreuse de l´Égypte ancienne, pl. 8
1665
«Este é o rei que está sobre os kau, é aquele que une os corações. É o que está encarregado do
conhecimento, o grande, o que transporta o livro do deus».Pir. § 267, R. FAULKNER, The Ancient
Egyptian Pyramid Texts, p. 61.
1666
Em J. J. CLÉRE, «L´Expression dns mhwt des autobiographies égyptiennes», em JEA 35 (1949), p.
42.
1667
G. POSENER, »L´Expression “Mauvais Caractére”», em RdE 16 (1964), p. 40
639
D
O coração projecta
ib Dar
A expressão implica uma realidade futura e é com este prolongamento do tempo
que é usada na Grande Inscrição Monumental de Hatchepsut:
O meu coração divino projecta o futuro, o coração do rei do Baixo Egipto pensou nos que estão
diante da eternidade1668
1668
Grande Inscrição Monumental de Hatchepsut, 8, em A. GARDINER, «Davie´s copy of the Great
Speos Artemidos Inscription», JEA 32(1946), pp. 43-56.
640
XII.As representações da psicostasia
1. As representações de tipo I
Definição:
Datação e contexto:
1669
Ver Anexo V 8.A e V 8.B.
641
Caracterização:
642
Apesar da sua presença ser maioritária neste contexto outros deuses, como a própria
Maet, podem igualmente assumir este papel.1679
Nestas representações é virtualmente inexistente a figura de um deus
psicopompo, o condutor do defunto ao tribunal divino. A razão para essa ausência
prende-se com o carácter «estático» destas representações que são alusivas apenas a um
momento e não a um «processo», como será o caso das ilustrações dos períodos
subsequentes. Outra característica que se prende com o carácter «estático» destas
vinhetas consiste no facto de raramente existir uma multiplicação de representações do
defunto, o que mais tarde se tornará a regra.
2. As representações de tipo II
Definição:
Datação e contexto:
1679
Estes deuses aparecem apenas uma única vez. Ver anexo V 8.A 3 (cena presidida pelas Duas Maet) e
V 8.B 2 (cena presidida por Ré).
1680
Ver anexo V 8.C e V 8.D
643
características que mais tarde foram plenamente desenvolvidas. Estas vinhetas da
psicostasia, tal como as de tipo I, parecem estar associadas tanto ao capítulo 30 como ao
capítulo 125 do «Livro dos Mortos».
Caracterização:
O defunto é representado, sem uma regra aparente, tanto diante da balança como
diante do deus Osíris. Muito raramente, é representado, em escala miniatural, num dos
pratos da balança.1681 Os gestos do defunto apresentam-se cuidadosamente codificados
de modo a mostrar reverência,1682 respeito1683 e louvor.1684
Hórus e Anúbis começam a ser representados nestas vinhetas acusando uma
certa diferenciação de papéis: Hórus associa-se à operação de medição,1685 enquanto
Anúbis é representado a conduzir o defunto diante de Osíris.1686 O topo da balança tem,
em geral, a configuração da cabeça da deusa Maet (pontualmente também apresenta um
babuíno). Nos pratos da balança é frequente a representação do coração de um lado e da
deusa Maet (ou da pluma que a representa), no outro. Como nas vinhetas de tipo I,
ocasionalmente, a deusa pode ser substituída por um coração (neste caso parece que o
defunto é avaliado tendo por critério o seu próprio coração que assim parece identificar-
se com um elemento maético).1687 Quanto à identidade do juiz deste julgamento, na
maioria das situações, trata-se de Osíris1688 embora ocasionalmente também o deus Ré
possa presidir ao julgamento.1689
Para além do núcleo principal de personagens também podem intervir outras
divindades ou motivos iconográficos que se vêem acoplar de forma irregular aos
componentes principais, criando vários registos de representação. Inicialmente, ao
conjunto inicial de personagens compostas pelo esquema defunto-deus mensurador-juiz,
1681
Ver anexo V 8.C 5.
1682
Ver anexo V 8.C 4.
1683
Ver anexo V 8.C 3.
1684
O gesto de louvor consiste em elevar os braços em direcção à divindade, num gesto que, feito por
uma divindade, também pode significar protecção. No caso de ser feito pelo defunto tem, no entanto, o
sentido de adoração. Ver R. WILKINSON, Symbol and Magic in Egyptian Art, p. 207. Ver anexo V 8.C
1.
1685
Ver anexo V 8.C 6 e V 8.C 1.
1686
Ver anexo V 8.C 1 e V 8.C 6. Pontualmente o deus Anúbis também pode desempenhar a função de
efectuar a medição. Ver anexo V 8.C 3.
1687
Ver anexo V 8.C 5.
1688
Na XVIII dinastia, o deus comparece em seis representações das vinhetas de tipo II.
1689
Este deus aparece apenas uma única vez. Ver anexo V 8.C 4.
644
o desenhador acrescentou um novo elemento cuja função pode ser a de registar o
resultado do teste (função normalmente desempenhada por Tot), ou a de simplesmente
testemunhar o acontecimento (como acontece com a deusa Maet). Não tardou, porém,
que as vinhetas fossem enriquecidas com um leque crescente de novos figurantes, os
quais se organizam espontaneamente no espaço de representação, sem obedecer a uma
regra aparente, motivando composições bastante originais que só excepcionalmente
foram repetidos nos períodos subsequentes. A diversidade e a originalidade das vinhetas
da segunda metade da XVIII dinastia indicia, deste modo, uma experimentação intensa
a partir da qual emergiu o característico modelo sequencial do período ramséssida. As
vinhetas de tipo II caracterizam-se, em suma, por reunirem conjuntos de divindades em
redor da composição nuclear, criando vários registos de importância equivalente.
Exemplos mais frequentes destes grupos constituem as Duas Maet que podem ser
acompanhadas por um deus que vem também testemunhar o acontecimento (em geral
Tot) ou por um deus psicopompo (Anúbis).
Outros motivos apresentam aspectos relacionados mais especificamente com o
Além. O lago de fogo, uma vinheta característica do capítulo 126, é por vezes incluída
na psicostasia. É representado com quatro chamas intercaladas por babuínos
consagrados a Ré e constitui o castigo para os que não fossem bem sucedidos no teste.
Ammut, a fera que tragava o coração dos ímpios, é outro elemento com um significado
idêntico. Apesar de ser um dos demónios mais temidos do antigo Egipto, a origem de
Ammut não é bem conhecida. Nos papiros da XVIII dinastia este monstro não parece,
desde logo, associado à vinheta da psicostasia, uma vez que figura uma única vez neste
contexto. No entanto, já se detecta a sua compleição definitiva: a cabeça é a de um
crocodilo, a parte dianteira do corpo é a de um leão ao passo que a parte traseira é a de
um hipopótamo. Esta conjugação de terror, aos olhos dos antigos egípcios, reunia assim
algumas das mais temidas feras que personificavam as forças hostis ao cosmos. O facto
de personificar estas forças leva-nos a admitir a hipótese que este monstro tenha sido
concebido a partir do capítulo 31 do «Livro dos Mortos» que versa precisamente o
combate que o defunto travava com o crocodilo que personificava os inimigos de Ré.
Independentemente da sua nebulosa origem, a fera começou tardiamente a ser associada
à vinheta da psicostasia não apresentando ainda uma formulação clara da sua função no
âmbito deste julgamento.1690
1690
Sobre Ammut ver R. SOUSA, «Ammut», em L. Araújo, Dicionário do Antigo Egipto, p. 62. Para o
capítulo 31 veja-se Ver P. BARGUET, Le Livre des Morts, p. 76.
645
O uso das vinhetas de tipo II em períodos e épocas posteriores
1691
Em E. HORNUNG, The Ancient Egyptian Books of the Afterlife, p. 62.
1692
Ver anexo V 8.D 1-2. Enquanto representações de um julgamento «cósmico», dirigido à humanidade
em geral, separando os «eleitos» dos impuros, a representação parece antecipar as representações do Juízo
Final, da tradição cristã.
1693
Ver anexo V 8.D 4-5.
646
influxo de ideias. Esta diferenciação deve-se provavelmente ao contexto de utilização
das vinhetas da psicostasia. No círculo real o uso de composições do «Livro dos
Mortos» prolongou-se, ao passo que no círculo sacerdotal mais alargado estes «livros»
foram substituídos por exemplares menos sofisticados, habitualmente denominados por
«papiros mitológicos». É, portanto, possível que os copistas tivessem modelos de
vinhetas distintos para aplicar nas diferentes composições.1694 Os exemplares de tipo II,
provenientes, em grande parte, da família do sumo pontífice de Amon de Tebas, ou do
próprio sumo pontífice, apresentam uma inspiração marcada nos exemplares do «Livro
dos Mortos» da XVIII dinastia. Note-se a sobreposição dos registos sem uma aparente
diferenciação entre o registo principal e os registos secundários tão típica das vinhetas
dos documentos dessa época.1695 Outro sinal que trai essa influência é a adopção da
cabeça da deusa Maet para adornar o topo da balança, pormenor que, nas vinhetas
contemporâneas, já tinha entrado em desuso. Se em alguns casos a «imitação» é perfeita
(veja-se o papiro do Museu do Louvre de Nedjmet, onde nada indicia a datação tardia
do documento1696) noutros porém, alguns pormenores traem a sua verdadeira datação.
No papiro do Museu Britânico de Nedjemet,1697 apenas o perfil dos quatro filhos de
Hórus, com os quatro tipos distintos de cabeças que são de regra nas representações do
período ramséssida, se afiguraria um tanto incomum num documento da XVIII dinastia.
Também no papiro de Userhatmés a presença do cofre funerário junto da balança trai
uma datação tardia.1698
Definição:
1694
As vinhetas tradicionalmente usadas nos livros funerários foram também aplicadas na decoração de
outros suportes como ataúdes e cofres de estatuetas funerárias. Estas inovações relacionam-se com a
grande mudança de hábitos funerários registada nesta época, que se traduziu pelo abandono da decoração
tumular pelos súbditos reais e da sua aplicação aos ataúdes e aos parcos objectos que continuaram a ser
levados para o túmulo (o qual, em geral, se tornou colectivo, mesmo no caso dos faraós de Tânis).
1695
Ver, a título exemplificativo, anexo V 8.D 6.
1696
Ver anexo V 8.D 4.
1697
Ver anexo V 8.D 5.
1698
Ver anexo V 8.D 6.
647
representação para organizar a composição da psicostasia. Este padrão de composição
repercutiu-se, claro está, numa maior uniformidade destas vinhetas. Na nossa tipologia,
o tipo III constitui o padrão canónico deste período e caracteriza-se por apresentar o
defunto ao longo de uma sucessão de etapas. As versões mais completas obedecem ao
seguinte esquema:
- o defunto entra na sala do julgamento conduzido pelo deus psicopompo
- o defunto apresenta-se diante da balança (pode ser acompanhado por uma
divindade)
- a balança é manuseada por uma divindade que pode ser assistida por um
outro deus
- o resultado é registado por Tot ou comunicado directamente ao juiz divino
- o defunto é conduzido por um deus à presença do juiz divino
- o defunto procede à adoração do juiz divino
1699
Ver anexo V 8.E 2-6.
1700
Algumas vinhetas como as que ilustram a quinta hora do «Livro das Portas» este esquema é adaptado
e dá origem a uma composição única e facilmente reconhecível que consiste na conjugação da silhueta do
defunto com o próprio instrumento de medição. O defunto está representado nas escadas que conduzem
ao trono de Osíris. Nas proximidades uma barca leva tripulantes que espancam um animal setiano.
648
- o juiz divino observa a operação
Datação e contexto:
1701
Ver anexo V 8.E 7-13.
1702
Ver anexo V 8.E 14-17.
649
reinado de Horemheb mostram que estas normas já estavam em vigor pelo menos no
início deste período e mantiveram-se em funcionamento até ao fim da XX dinastia.1703
A reformulação da vinheta da psicostasia através da formulação de um padrão de
representação parece estar estreitamente associado à figuração integração destas
vinhetas no programa decorativo dos túmulos. No período ramséssida, o tema da
psicostasia começou efectivamente a ser pintado ou esculpido nas paredes dos túmulos,
obedecendo a uma reformulação do seu programa decorativo e à sua sistematização
formal.1704
Caracterização:
1703
A psicostasia do túmulo de Rai (anexo V 8.E 11), documenta uma situação de transição. Rai exerceu
funções entre o reinado de Horemheb e Seti I pelo que a decoração do seu túmulo pode ter sido feita num
momento indeterminado deste período. A concepção deste esquema pode, portanto, remontar à XVIII
dinastia muito embora a sua generalização só se tenha verificado posteriormente. A representação do
túmulo de Horemheb, do reinado de Amen-hotep III, ilustra a primeira ocorrência deste tipo de novas
representações. Ver anexo V 8.E 1.
1704
Ver J. ASSMANN, Mort et l´au-delà, pp. 297-305.
1705
Veja-se, a título de exemplo, a vinheta do «Livro dos Mortos» de Ani (anexo V 8.E 15) ou a
psicostasia representada no túmulo de Userhat (anexo V 8.E 10).
1706
Ver anexo V 8.E 8 e V 8.E 11.
650
braços num gesto de júbilo, que na XXI dinastia se tornará canónico, concorre para nos
levar a pensar que, neste contexto preciso, tais amuletos não só teriam um sentido
equivalente como estariam ambos relacionados com o sucesso obtido na pesagem do
coração. Estas representações mostram também que a função do amuleto cordiforme
não seria tanto a de prover o defunto com um substituto do coração, mas sim a de o
dotar com uma «condecoração maética» que sinalizava o sucesso da operação. O
amuleto cordiforme seria assim a chancela dada pelo tribunal atestando a pureza do
coração do defunto e a sua adequação às normas da maet.
Outra inovação das psicostasias deste período consiste na possibilidade do
defunto se fazer acompanhar pelo cônjuge e de partilhar com este a psicostasia (no
entanto apenas num único caso os dois corações são pesados em simultâneo).1707 A
representação do casal acontece com alguma frequência na decoração tumular já que
este espaço funerário era partilhado por ambos os esposos.
Devido ao carácter sequencial destas representações é muito frequente detectar
várias divindades que desempenham a função psicopômpica em momentos distintos. O
deus que habitualmente acompanha o defunto até à balança é Anúbis.1708 Embora, em
certos casos, o deus que conduz o defunto à presença de Osíris seja o mesmo que o
levou diante da balança, a regra é detectar-se uma mudança. Deste modo, depois da
psicostasia, o defunto é habitualmente conduzido à presença do juiz divino pela mão de
Horsaiset, por Hornedjitef ou simplesmente o próprio Hórus.1709 O aparecimento de
Hórus nesta fase do processo judicial relaciona-se certamente com a capacidade que o
deus também revelou para ver reconhecida a sua legitimidade no tribunal divino que
julgou a sua contenda com Set. Ao passar o teste da balança maética o defunto via-se,
do mesmo modo, legitimado, o que, de uma certa forma o tornava semelhante a
Horsaiset ou a Hornedjitef.1710 Esta leitura relaciona-se, deste modo, com a integração
da psicostasia no ciclo de Hórus, que se relacionava sobretudo com a justificação do
defunto e com a sua «mumificação» moral.
Quanto à balança insinua-se uma maior uniformidade quanto à entidade
representada no topo do instrumento. Enquanto que, no período precedente, era possível
detectar uma certa prevalência de símbolos maéticos, como a pluma, ou uma cabeça da
1707
Ver anexo V 8.E 11.
1708
Este papel também pode ser desempenhado por Hórus, embora em menor número.
1709
Ver, por exemplo, anexo V 8.E 9 e anexo V 8.E 11-13.
1710
Para ver algumas das características destes deuses consultar J. SALES, As Divindades Egípcias, pp.
168-170.
651
deusa, agora a representação do babuíno de Tot parece substituir progressiva e
definitivamente os restantes símbolos, assinalando uma viragem no significado dado a
este instrumento divino.1711 De ora avante o instrumento é visto como uma emanação do
deus Tot que se torna o responsável pela aferição da qualidade maética do coração do
defunto. Indícios da sacralidade da balança podem ser detectados em algumas
representações onde este instrumento foi representado sobre um templo.1712
Outra inovação que surge neste período consiste na representação do deus Tot a
registar o resultado da pesagem do coração.1713 Trata-se de uma função que é
desempenhada unicamente por si e que não se confunde com uma outra sua atribuição
que consiste simplesmente em presidir à medição. A diferenciação dos papeis deste
deus faz-se habitualmente através da diversificação da sua iconografia. Para demarcar a
sua função como «escriba divino», o deus é representado com uma silhueta humana
encimada pela cabeça de íbis, empunhando os instrumentos de escrita. Quando o deus
preside à pesagem do coração assume a configuração de babuíno e faz-se representar
sobre um estrado com a forma de templo. Curiosamente, enquanto que nas
representações da XVIII dinastia, aparecia frequentemente associado à manipulação da
balança, no período ramséssida o deus quase deixa de exercer esta função.
Efectivamente, é Anúbis quem parece ter sido responsabilizado pela tarefa de manipular
a balança de Tot. Hórus, que anteriormente era a divindade que mais frequentemente
desempenhava a função ocorre, neste contexto, pontualmente. Maet e Tot são outros
casos pontuais de deuses que muito raramente são representados a pesar o coração.
Nos pratos da balança estão, em geral, o coração e a deusa Maet, ou a sua pluma.
Por vezes, a utilização de uma miniatura do defunto permite criar interessantes jogos
simbólicos. Em alguns casos a silhueta do defunto substitui o coração, depreendendo-se
assim a grande identificação entre o coração e o indivíduo.1714 Noutros casos, o defunto
é pesado contra o seu próprio coração, depreendendo-se que, nestes casos, o coração é
investido com a sacralidade de Maet, já que, ao desempenhar o papel da estatueta da
deusa, o coração passava a ser percebido como detentor de um certo estatuto divino.1715
Torna-se assim visível uma certa tensão decorrente de significados contraditórios ou
1711
O motivo da cabeça de Maet aparece uma única vez nas representações do período ramséssida,
contrastando assim com as sete ocorrências registadas nas vinhetas da XVIII dinastia.
1712
Ver, por exemplo, anexo V 8.E 5-6.
1713
Ver, a título exemplificativo, anexo V 8.E 9. Em períodos anteriores o deus pode desempenhar esta
função de modo muito ocasional.
1714
Ver anexo V 8.E 4.
1715
Ver anexo V 8.E 10.
652
complementares que atesta uma intensa reflexão em torno do significado da noção de
coração que parece distinguir um coração terreno (submetido a exame) e um coração
divino que constitui a medida maética usada nesta avaliação. Esta dualização é
abundantemente documentada na literatura funerária que distinguiu cuidadosamente a
caracterização religiosa do coração ib e hati, talvez com o intuito de apresentar o
contraste entre a consciência divina e a consciência terrena.1716
A figura do juiz divino é, na maioria esmagadora das situações, a do deus Osíris
que, em geral, é representado dentro de um pavilhão. Sentado sobre um trono, o deus
está normalmente ataviado com a sua coroa mais habitual, a coroa atef. Dentro do
pavilhão divino começa a ser frequente representar as deusas Ísis e Néftis que,
representadas atrás do deus, erguem os braços na atitude habitual da protecção. 1717 Os
quatro filhos de Hórus começam também a ser um elemento comum no pavilhão de
Osíris.1718 Já com os quatro tipo de cabeças que facilitam a sua distinção, este grupo de
divindades é habitualmente representado sobre uma flor de lótus que se enraíza na base
do trono de Osíris. Em alguns casos a flor nasce de um lago sobre o qual emerge
também o trono de Osíris.1719 Os quatro deuses podem também estar posicionados sobre
um estandarte divino.1720 Outro elemento, cuja localização pode oscilar e tanto pode
aparecer no interior do pavilhão divino como no exterior, é o totem imiut,1721
habitualmente associado a Anúbis, mas que também evidencia uma forte associação a
Osíris.
Ao contrário das cenas da psicostasia da XVIII dinastia, que raramente
apresentam o monstro Ammut, as ilustrações do período ramséssida quase sempre o
fazem. Em regra, o monstro é desenhado junto à balança denotando uma grande atenção
pela operação da pesagem do coração.1722 A «Devoradora dos mortos» continua a ser
1716
Muito raramente, o coração pode ser pesado contra um olho udjat. Ver anexo V 8.E 3. Para a
importância iconográfica e profiláctica do olho hórico udjat veja-se L. ARAÚJO, Antiguidades Egípcias,
pp. 70-73.
1717
Ver, a título de exemplo, anexo II F III 9.
1718
Ver anexo II F III 9. Nesta fase os quatro filhos de Hórus são representados com as silhuetas
mumiformes que os caracterizam e com as cabeças de animais, sinal da estabilização da sua iconografia
que, na XVIII dinastia, ainda não ocorrera.
1719
Ver anexo V 8.E 9.
1720
Ver anexo V 8.E 14.
1721
Também designado por «nébride» por alguns autores que recorrem ao vocabulário de inspiração
helénica. O termo designa, no entanto, a pele de veado usada pelos discípulos de Dionísio e pelos
iniciados de Elêusis. Ora o totem imiut consiste na representação de uma pele de vaca e o seu simbolismo,
embora incerto, prende-se com o sacrifício de um animal. Na falta de uma tradução da palavra egípcia
utilizaremos este termo na tentativa de evitar falsas analogias. Ver anexo V 8.E 14.
1722
Ver, como exemplo, anexo V 8.E 9.
653
representada com a cabeça de crocodilo, a parte anterior de um felino selvagem e a parte
posterior de um hipopótamo.
Outros elementos ou figuras divinas podem ser encontrados, sobretudo em
registos secundários, dispersos ao longo da vinheta. A representação de conjuntos de
deuses que pretendem evocar a Enéade é particularmente frequente.1723 A Enéade
heliopolitana, sob a forma de três deuses,1724 é incluída, pela primeira vez, numa vinheta
datada do reinado de Amen-hotep III. À Enéade podem juntar-se outras divindades,
como Hórus, Hathor, Sia e Hu e mesmo as personificações dos pontos cardeais,
criando-se assim uma extensa assembleia divina que, na maior parte das situações, não
excede os treze ou catorze elementos1725 (só excepcionalmente atingindo o número de
quarenta deuses como sucede no túmulo de Amenemopet)1726. Junto da balança, outros
elementos podem ainda congregar-se para assistir à operação. Chai, o destino, o ba e
sobretudo os tijolos do nascimento que personificam a deusa Meskhenet vêm
provavelmente auxiliar o defunto já que, cada um a seu modo, podem concorrer para
completar o testemunho fornecido pelo coração.1727 Ainda neste contexto resta-nos
ainda aqui indicar a presença de uma representação intrigante registada apenas num
único monumento, o túmulo de Nakhtamon (TT 341).1728 Sobre a balança onde decorre
a psicostasia ergue-se uma figura humana, muito mutilada na região central, onde se
distingue um par de asas colocadas sobre os membros superiores e outro sobre os
membros posteriores. A figura voa sobre a balança, empunhando nas mãos, o signo da
vida, ankh. O único indicio que contribui para identificar a figura é o saiote real que
indica estarmos perante uma representação muito invulgar de um faraó divinizado.1729 A
sua função neste contexto seria a de insuflar o sopro de vida ao defunto, sugerindo, pela
1723
Ver, por exemplo, anexo V 8.E 5-6.
1724
Ver anexo V 8.E 1. Os três deuses manifestam, neste caso, que o significado da Enéade é o de evocar
a totalidade dos deuses, expressando assim o desejo de ver reunidos todos os deuses no julgamento do
defunto.
1725
Ver anexo V 8.E 9.
1726
Ver anexo V 8.E 14.
1727
Ver anexo V 8.E 15. Meskhenet era personificação dos tijolos do nascimento simbolizava o destino.
Era representada como uma mulher com o útero bovino na cabeça. Tot registava o tempo de vida no tijolo
do nascimento. J. WALKER, «Egyptian medicine and the gods», BACE 4 (1993), p. 93.
1728
Ver anexo V 8.E 13.
1729
Outra representação, proveniente do templo de Seti I em Abido, mostra algo de semelhante. A figura
foi integrada numa inscrição hieroglífica, constituindo o determinativo de «estender sobre», aludindo ao
gesto protector do rei dotado na representação de duas grandes asas posicionadas sobre os braços. Ver S.
SMITH, The Art and Architecture of Ancient Egypt, p. 221. Outra representação idêntica mostra o deus
Anúbis invulgarmente equipado com estas asas. Na iconografia funerária, as asas de uma divindade
antropomórfica estão relacionadas com o sopro da vida.
654
primeira vez, uma ideia que se irá traduzir plenamente na iconografia das vinhetas da
XXI dinastia, que consiste na associação do imaginário «obstétrico» à psicostasia.
Contexto cultural:
1730
Outras cenas contemporâneas atestariam um dimensão cultual da sacralidade, onde o defunto
estabelecia um contacto ritual com o divino. A dimensão mística define-se pela valorização da presença
divina. Ver J. ASSMANN, Mort et l´au-delà. p. 303.
1731
A adoração implica sempre uma forma de identificação divina. Ver Ibidem.
655
O uso das vinhetas de tipo III em épocas subsequentes
1732
Neste domínio é bem ilustrativo o papiro de Nesitanebetacheru, filha de Pinedjem I, e de Maatkaré, a
primeira divina adoradora de Amon, igualmente filha de Pinedjem I.
1733
O uso de cenas da psicostasia sobre as paredes dos túmulos reais de Tânis constitui uma inovação na
decoração dos túmulos reais já que anteriormente este tema era apanágio dos súbditos do rei e, certamente
por razões que se prendem com a ideologia real, nunca foi valorizado na decoração dos túmulos
faraónicos.
1734
Ver anexo V 8.F 5.
1735
Ver anexo V 8.F 3.
1736
Ver anexo V 8.F 7 e V 8.F 5, respectivamente.
656
de inovação, como acontece no Papiro Greenfield, onde sobressai o uso de um novo
tipo de artérias laterais que prefigura as artérias oblongas e pontiagudas muito
características da Época Baixa.
4. As representações de tipo IV
Definição:
Datação e contexto:
Caracterização:
1737
Ver anexo V 8.G 1-2.
1738
Ver anexo V 8.G 3-5.
657
parte do repertório iconográfico das psicostasias. Estes novos símbolos aninham-se
recorrentemente debaixo da trave da balança, concentrando-se num espaço que,
anteriormente, era usado apenas para a representação de Ammut ou dos deuses
responsáveis pelo manuseamento deste instrumento.
Um dos mais significativos destes símbolos é o de uma figura humana
mumiforme acocorada com as mãos colocadas junto ao peito. No caso do «papiro
mitológico» de Djedkhonsuiuefankh1739 trata-se de uma alusão ao defunto divinizado,
como indica o hieróglifo nub, «ouro», sobre o qual está sentado. O significado desta
silhueta merece ser debatido já que passou a ser um elemento simbólico muito frequente
das psicostasias da XXI dinastia. Embora seja obscura, a origem deste símbolo pode
estar relacionada, em nossa opinião, com o hábito de representar uma miniatura do
defunto sobre os pratos da balança.1740 O destaque e a evolução deste motivo relaciona-
se provavelmente com o significado que entretanto lhe foi associado. Na psicostasia de
Djedkhonsuiuefankh, onde a silhueta foi figurada, uma legenda esclarece que se trata do
defunto representado como «Osíris, o senhor da Duat», enquanto os signos hieroglíficos
posicionados sob o seu assento explicitam que se encontra «na região misteriosa».1741 O
papiro mitológico de Tauedjatré,1742 por outro lado, evidencia uma evolução
iconográfica deste símbolo, o qual adopta uma silhueta negra em forma de criança.
Embora inicialmente o defunto apresente uma configuração mumiforme, é a sua
representação como uma criança que se acabou por se generalizar, tratando-se
provavelmente de uma alusão à regeneração do defunto e ao seu renascimento no Além
o qual, sem dúvida, se relacionava com o resultado favorável da psicostasia.
Outros símbolos também podem ser encontrados sob a protecção dos braços da
balança como o tijolo do nascimento, alusivo à deusa Meskhenet ou ao local do
nascimento,1743 uma mesa de oferendas e ainda misteriosos cofres cujo significado é
muito incerto. No papiro mitológico de Djedkhonsuiuefankh estes cofres são designados
como o «Senhor da misteriosa Duat» e o «senhor da Duat»,1744 o que aponta para uma
1739
Ver anexo V 8.G 1.
1740
Esta figurinha, embora seja frequente nas representações de tipo I e II da XXI dinastia, desapareceu
por completo nas representações de tipo IV e V, omissão que se pode relacionar com a sua diferenciação
num novo símbolo.
1741
Ver tradução do Papiro de Djedkhonsuiuefankh em A. PIANKOFF, Mythological Papyri, pp. 156-
162.
1742
Ver anexo V 8.G 2.
1743
A interpretação é avançada por Alexandre Piankoff em Idem, p. 135.
1744
Ver, Idem, pp. 156-162.
658
manifestação divina associada ao mistério da regeneração que ocorria na Duat.1745 Em
certas vinhetas, como o que figura no papiro de Taudjatré, a balança é encimada por um
disco solar rodeado por dois olhos udjat.1746 A balança afigura-se, nas psicostasias da
XXI dinastia, como o elemento fulcral da representação constituindo uma conotação
fortemente solar sobre a qual são representados símbolos da regeneração do sol ocorrida
na Duat. Na representação da balança divina está, deste modo, implícito, um certo
dualismo entre o sol e a Duat.
Nestas vinhetas, o defunto é desenhado em redor da balança podendo adoptar a
atitude de júbilo, com os braços erguidos e plumas nas mãos e na cabeça. Quando a
representação do defunto é duplicada, como no caso do papiro mitológico de
Tauedjatré, o defunto também pode aparecer, do lado oposto da balança, a oferecer os
olhos e a boca. Neste papiro, como vimos anteriormente, a oferenda dos olhos e do
coração relaciona-se com a sua justificação. Este tema, bem como todos os restantes
elementos simbólicos acima mencionados, é retomado e plenamente desenvolvido nas
psicostasias de tipo V, onde nos deteremos de modo mais alongado a este respeito.
Nas cenas de tipo IV–B, encontramos, em geral, um cenário muito diversificado
de representações que pouco se relaciona com as vinhetas anteriormente discutidas.1747
Numa delas, a balança foi representada no contexto da sala das Duas Maet.1748 Apesar
dos pratos da balança estarem vazios, Hórus desempenha a missão de medidor,
enquanto Tot regista o resultado sobre uma grande pluma de Maet. O hieróglifo sech,
«escriba», fica de permeio entre Tot e a balança. O significado da representação é
impreciso e constitui certamente uma alusão genérica ao processo da psicostasia.
Noutra representação singular, a balança foi colocada num contexto mitológico
insólito.1749 Antecedido pelos símbolos osiríacos dos totens tauer e imiut, Anúbis
manuseia a balança onde figuram o coração e a deusa Maet em cada um dos seus pratos.
Debaixo dos braços da balança estão duas silhuetas divinas, um deus e uma deusa,
ambos acocorados. As duas figuras possuem uma pluma sobre a cabeça e sobre os
1745
Em certas representações, Anúbis é representado no interior do cofre que simboliza a Duat e o ventre
de Nut onde se opera a regeneração do defunto. Ver anexo I I. 11.
1746
Neste contexto, a representação do olho udjat evoca a sua função protectora na psicostasia. Em H.
GYORY, «Les amulettes de l´oiel Oudjat ailé et le mythe de l´oiel du soleil», BSEG 18 (1994), p. 30. O
olho udjat representava o sol renascido e rejuvenescido. Em J. WALKER, «Egyptian medicine and the
gods», BACE 4 (1993), p. 85.
1747
Pontualmente, a omissão do defunto pode relacionar-se com uma tentativa de abreviar a
representação. É certamente o caso do papiro SR 10223 da nossa amostra.
1748
Ver anexo V 8.G 4.
1749
Ver anexo V 8.G 5.
659
joelhos ergue-se uma serpente. Na ausência de qualquer legenda, a identidade destes
deuses permanece desconhecida. Em seguida, o deus que personifica a montanha
ocidental ergue os braços para proteger o enlace de Geb e Nut. Ao mesmo acto
procriativo, que simbolizava a criação do mundo, assistem um carneiro munido com o
ceptro nekhakha e um ganso com a língua de fora. A palavra uer, «grande», evoca
provavelmente o «grande grasnador» hermopolitano, a ave mítica que deu origem à
criação do mundo. Neste papiro, a psicostasia parece associada ao imaginário simbólico
da criação do mundo, aludindo provavelmente à pureza do coração obtida através do
regresso ao início dos tempos. A associação entre a psicostasia e a criação do mundo é
amplamente testemunhada na decoração dos ataúdes antropomórficos da XXI dinastia,
os quais, com muita frequência, representam lado a lado os dois temas. A representação
de tipo IV patente no papiro referido pode, deste modo, constituir o resumo de uma
representação mais complexa, como as que eram colocadas sobre as paredes exteriores
dos ataúdes.
5. As representações de tipo V
Definição:
1750
O pesado repertório iconográfico constitui uma característica única deste período que atingiu um
desenvolvimento sem precedentes. No entanto, apesar deste traço distintivo, as vinhetas deste período
mantêm o esquema básico, adicionando uma multiplicidade de novos elementos. Uma das vinhetas em
que este fenómeno é mais visível é justamente na importante cena da psicostasia. Ver A. NIWINSKY,
«The solar-osirian unity», em JEOL 30 (1987-1988), p. 96.
660
À semelhança das representações de tipo III, adoptando os mesmos critérios,
podemos distinguir três sub-tipos de cenas:
Datação e contexto:
Caracterização:
1751
Ver anexo V 8.I 1-14.
1752
Ver anexo II F V 15-25.
1753
Ver anexo II F V 27.
1754
A representação da psicostasia sobre os ataúdes, que antes fazia parte do programa decorativo dos
túmulos, revela o abandono a que esta prática foi votada durante este período e a subsequente necessidade
de aplicar noutros objectos as imagens que antes decoravam os túmulos. Uma boa síntese deste fenómeno
é apresentada em A. NIWINSKY, Studies on Illustrated Theban Funerary Papyri of the 11th and 10th
centuries B.C., pp. 34-38.
1755
Ver anexo V 8.I 11.
1756
Ver anexo V 8.I 18.
1757
Ver anexo V 8.I 6.
1758
Ver anexo V 8.I 5.
661
defunto em atitude de júbilo ou na representação do defunto a ser conduzido diante da
balança.
Nas representações de tipo V–B, a sequência de atitudes mais frequente é a que
envolve a oferenda do coração e dos olhos seguida da atitude de júbilo.1759 Embora mais
raramente o defunto pode também ser representado em atitude de júbilo diante da
balança, seguindo-se o louvor diante de Osíris.1760
Representações de tipo V–C são muito raras pelo que não nos foi permitido
extrair nenhuma tendência de representação. Naturalmente, quanto maior for o número
de representações maior tende a ser a diversidade de atitudes retratadas. No único
exemplar recolhido na nossa amostra o defunto é representado a apresentar a oferenda
dos olhos e do coração, leva a mão ao peito e, finalmente, ergue os braços em sinal de
júbilo.1761
Uma primeira constatação impõe-se assim que se analisa o leque de atitudes
adoptadas pelo defunto. Enquanto que a contida e submissa atitude de respeito, que
dominava as representações de tipo III, praticamente desaparece, novas e mais
diversificadas atitudes são representadas, alargando o leque comportamental do defunto
o que, além de o dotar com um papel mais activo, codifica com mais precisão a natureza
dessa acção. Das várias atitudes disponíveis para o defunto a mais comum é, sem
dúvida, a que traduz o júbilo. Esta atitude representa o defunto em festa, normalmente
ataviado com plumas na cabeça e nas mãos, e ainda com um cone de incenso e um
botão de lótus.1762 A representação é muitas vezes enriquecida com o amuleto
cordiforme, objecto que evidencia uma relação muito forte com este momento da
psicostasia (em oito ocorrências deste amuleto seis estão associadas à atitude de júbilo).
Esta relação sugere que o amuleto possa ter constituído uma espécie de «recompensa»
pelo resultado positivo obtido na psicostasia. É possível, portanto, que o amuleto tivesse
como função sinalizar a admissão do defunto ao círculo dos bem-aventurados. Para
propiciar esse mesmo resultado, o defunto consagrava ao deus o coração, os olhos e a
boca, ou seja, os diversos órgãos que intervinham na construção da consciência e que
deviam ser regenerados sob a acção da balança. Como vimos, esta oferenda constituía
um acto propiciatório para a pesagem do coração.
1759
Ver, por exemplo, V 8.I 15.
1760
Ver anexo V 8.I 22.
1761
Ver anexo V 8.I 27.
1762
As plumas maéticas que adornam as mãos e a cabeça do defunto constituem uma forma de multiplicar
o símbolo da «verdade» sobre a sua silhueta. Ver R. WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 103.
662
Enquanto que nas vinhetas de períodos anteriores a função psicopômpica era
desempenhada por um número restrito de deuses bem identificados, na XXI dinastia
esta função passou a ser desempenhada por um leque extremamente vasto de
divindades, muitas delas de difícil identificação. Entre as divindades mais representadas
encontra-se a deusa do Ocidente1763 e uma divindade masculina com cabeça de
roedor1764. Um deus com uma cabeça leonina também figura com alguma
frequência.1765 Outras deidades como Maet1766 ou Ísis1767 desempenham pontualmente
esta função. Na maior parte das situações analisadas estas divindades combinam-se
entre si constituindo grupos de deuses psicopompos. Contrastando com esta prolífica
representação de deuses que acompanham o defunto à sala do julgamento, Anúbis, que
antes se associava estreitamente a esta função, está praticamente ausente desta
responsabilidade.
A função deste deus passa a focalizar-se no manuseamento da balança, contexto
onde foi representado na esmagadora maioria das psicostasias analisadas. Hórus e Tot,
muito residualmente, podem igualmente ser observados a desempenhar esta missão. Um
aspecto raramente descurado pelo desenhador prende-se com a «ajuda» prestada por
Anúbis ao defunto segurando previdentemente o prato ou as cordas da balança para
evitar o desequilíbrio fatal.1768
Outro deus cujas funções se afiguram bem definidas é Tot que assume a
responsabilidade de registar o resultado da pesagem e de o anunciar ao juiz divino. Na
esmagadora maioria das situações, Tot é representado com corpo antropomórfico e
cabeça de íbis. Neste período o deus pode ser representado diante da balança mas
começa a ser mais corrente a sua representação junto de Osíris, insinuando-se um traço
que será a regra das representações da psicostasia de períodos posteriores.
Quanto à balança, é a figura do babuíno que domina habitualmente o topo deste
instrumento, consolidando uma tendência que, já no período ramséssida, se
estabelecera. O fiel da balança apresenta a configuração de um coração quase sempre de
cor vermelha. As cordas da balança são, em alguns casos, compostas pela justaposição
1763
Ver, por exemplo, anexo V 8.I 5 ou V 8.I 13.
1764
Ver anexo V 8.I 8 ou V 8.I 16.
1765
Ver anexo V 8.I 9 ou V 8.I 10.
1766
Ver anexo V 8.I 13.
1767
Ver anexo V 8.I 6.
1768
Ver, por exemplo, V 8.I 21.
663
do signo djed e pelo «nó de Ísis» constituindo um modo adicional de assegurar
«estabilidade» e «protecção».1769
A variabilidade das representações ao nível dos pratos da balança reduz-se a
duas possibilidades: de um lado está o coração ao passo que do outro pode estar a deusa
Maet ou uma pluma evocativa da deusa. Há assim uma simplificação que certamente se
relaciona com a grande proliferação de símbolos que agora preenche o espaço interno
da balança. Como já referimos a propósito das cenas de tipo IV, a silhueta de uma
criança acocorada parece derivar das representações do defunto que antes eram
colocadas nos pratos da balança. Estas constituem as representações mais comumente
posicionadas neste enquadramento. A criança apresenta-se frequentemente vestida de
negro e as mãos, reunidas à altura do peito, apresentam frequentemente os ceptros reais,
heka e nekhakha.1770 Na cabeça pode usar um cone de incenso,1771 duas plumas
festivas,1772 flores de lótus1773 ou um disco solar1774. A criança pode estar sentada sobre
o hieróglifo heb, «festa»,1775 sobre o signo pet, «céu»,1776 ou ainda sobre o ceptro
nekhakha.1777 As inscrições, muito sumárias, que envolvem a figura apresentam, por
vezes, o nome do defunto e alguns títulos.1778 Noutros casos referem que se trata de
Ré.1779 Trata-se, na realidade, de uma figura evocativa do defunto, representado como
uma criança,1780 possivelmente com o intuito de assinalar o seu renascimento no mundo
do Além.1781 O curioso é que, neste renascimento, o defunto identifica-se com um
príncipe divino, já que ostenta os ceptros reais e símbolos solares que o associam a uma
divindade da realeza.1782 Esta figura associa, deste modo, o significado religioso dos
deuses meninos (relacionado com a pureza) com a temática dualista própria da realeza
1769
Ver anexo V 8.I 6.
1770
Ver anexo V 8.I 4.
1771
Ver anexo V 8.I 1.
1772
Ver anexo V 8.I 13.
1773
Ver anexo V 8.I 5.
1774
Ver anexo V 8.I 8.
1775
Ver anexo V 8.I 8
1776
Ver anexo V 8.I 17.
1777
Ver anexo V 8.I 3.
1778
Ver anexo V 8.I 11.
1779
Ver A. NIWINSKY, The Second Find of Deir el-Bahari (Coffins), vol. II, p. 53.
1780
É também essa a interpretação de A. NIWINSKY. Ver The Second Find of Deir el-Bahari (Coffins),
vol. II, p. 100.
1781
A transição entre a representação do defunto representado na balança e a criança é tecida através de
representações intermédias onde o defunto é primeiramente representado em atitude mumiforme (ver
anexo V 8.I 3, V 8.I 11, V 8.I 18). Gradualmente a silhueta do defunto vai sendo transformada na figura
da criança acocorada.
1782
A criança aparece munida com os ceptros reais em anexo V 8.I 4, V 8.I 8, V 8.I 10, V 8.I 15 e V 8.I
26.
664
(que se relaciona com o carácter demiúrgico do poder real). A representação do defunto
na condição de criança procura, deste modo, indicar que a psicostasia marca uma
espécie de regresso à pureza original, permitindo o início de uma nova vida no Além,
esta de natureza divina e «real».
Outro símbolo muito utilizado é o de um cofre que, muitas vezes, apresenta uma
cabeça humana encimada por uma pluma.1783 Na arte egípcia, a figura que domina um
objecto tem, em geral, a função de especificar o seu papel, pelo que a cabeça de Maet
indica que a função daquele objecto está relacionado com a deusa. Tratar-se-ia de uma
simples evocação da deusa? Algumas legendas que acompanham este objecto
relacionam-no com a Duat,1784 o que parece sugerir que se trata de uma manifestação
desse mundo que está nas fronteiras do cosmos. Por vezes, o cofre metamorfoseia-se no
tijolo do nascimento, evocativo da deusa Meskhenet, ou no hieróglifo pet,1785 «céu», o
que contribui para esclarecer que o símbolo faz uma alusão à intervenção protectora da
deusa do nascimento no Além. Para Alix Wilkinson, os cofres representados nas
vinhetas da psicostasia ao longo da XXI dinastia, frequentemente colocados debaixo do
leito funerário, tinham a função de armazenar objectos, em geral jóias, com o intuito de
proporcionar protecção mágica para assegurar as transformações do defunto.1786 Nas
representações da ressurreição de Osíris, estes cofres são representados debaixo do leito
funerário (em geral adornado com a cabeça de leão) que representa o lugar da
ressurreição.1787 Para além destes cofres são representados debaixo do leito inúmeros
objectos relacionados com a realeza: coroas reais (o némes, o khepresh, a decheret e a
hedjet, por vezes, também, o pa-sekhemti) o saiote real e os ceptros reais. Em suma, a
ressurreição do defunto estava relacionada com a afirmação do estatuto real de Osíris,
ou seja, com a sua justificação.1788 O cofre representado na psicostasia representava,
deste modo, a ressurreição e a regeneração do defunto, que ocorria sob a protecção de
1783
Muito raramente (ocorre apenas uma vez em anexo II F V 8) o cofre é encimado pela silhueta canina
de Anúbis, lembrando a estátua de madeira deste deus montada sobre um cofre encontrada no túmulo de
Tutankhamon, cuja função parece ter sido a de conter objectos ritualmente relacionados com a
mumificação. Ver R. WILKINSON, The Complete Tutankhamun, p. 133.
1784
Ver anexo II F V 5.
1785
Ver anexo II F V 1.
1786
A. WILKINSON, «Jewellery for a procession in the bed-chamber in the tomb of Tutankhamun»,
BIFAO 84 (1984), p. 335.
1787
Idem, p. 337.
1788
A integração de elementos iconográficos antes reservada à realeza foi feita por razões políticas e
alargou-se a todo o clero de Amon. Esta integração levou a um enriquecimento muito significativo de
elementos reais na iconografia do período. Em A. NIWINSKI, «The solar-osirian unity as principle of the
theology of the “State of Amun” in Thebes in the XXI dynasty», JEOL 30 (1987-1988), p. 91. A
representação dos atributos reais associados à ressurreição do defunto resultava, deste modo, da
assimilação do imaginário real, associado à iniciação e à morte, pela classe sacerdotal.
665
Anúbis, que conduzia à afirmação do seu estatuto real no Além. 1789 Com efeito, as
representações que se podem encontrar debaixo da balança remetem para símbolos
relacionados com a monarquia, como as deusas tutelares da monarquia como Uadjet e
Nekhbet e os ceptros reais. Evidentemente, a representação do cofre complementa a
figuração da criança divina comentada anteriormente. De certo modo, a criança ilustra é
o resultado da transformação evocada pelo cofre, transformação essa que ocorre na
Duat, no seio de Nut, sob a orientação de Anúbis.
A cobra e o abutre, símbolos pertencentes ao imaginário dualista da realeza
egípcia, também podem ser encontrados neste contexto gráfico e aludem certamente à
«regressão» purificadora do defunto ao momento original da criação.1790 Uma grande
variedade de símbolos aparece episodicamente como o lago de fogo, o monstro Ammut,
o totem tauer ou o símbolo do ocidente. O ba ou o olho udjat também pode figurar
neste contexto.
Embora todos estes símbolos tenham uma função intrínseca, em alguns casos, a
sua conjugação pode ter uma leitura críptica. A associação entre a criança, o tijolo de
nascimento, bem como o hieróglifo «ouro» pode ter a seguinte leitura: «nasce a criança
de ouro», aludindo ao renascimento do defunto no Além.1791 Noutras situações,1792 o
signo pet é conjugado com a criança e o signo chen, «eternidade» ou «protecção».1793
Uma leitura possível seria «no céu (está) a criança eterna» ou «nasce a criança eterna».
Noutros casos, alguns hieróglifos vêm ajudar a leitura dos símbolos. Numa destas
situações,1794 a criança foi colocada sob um hieróglifo pet acompanhando a palavra
Duat e um abutre com um t. Como o abutre, em conjunto com o t, se lê mut, «mãe»,
podemos admitir a seguinte leitura: «a criança (está no) céu, a Duat (é a sua) mãe».1795
Quanto à figura do juiz divino, as representações figuram quase sempre o deus
Osíris, na maior parte das vezes sentado sobre um trono. A iconografia do deus é
bastante variável. Embora adopte a configuração mais habitual (com a coroa atef e
corpo branco evocando as faixas da múmia), o deus pode usar outros atributos como a
1789
Esta relação entre Anúbis e o cofre é intencionalizada em certas representações onde o deus é
representado sobre o objecto. Ver anexo II F V 8.
1790
Ver anexo II F V 4 e II F V 14.
1791
Ver anexo II F V 1.
1792
Ver anexo II F V 7.
1793
R. WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 193.
1794
Ver anexo II F V 15.
1795
Veja-se que idênticos jogos criptográficos foram explorados em ataúdes do mesmo período e com
uma leitura idêntica. Ver Parte III do nosso trabalho.
666
coroa dupla,1796 evocativa de Atum e da realeza ou o disco solar,1797 bem como uma
veste alada.1798 Estes são outros adereços pouco comuns na iconografia do deus que
podem ser adoptados por Osíris na sua função de juiz indicando vestígios da sua
identificação com divindades solares. Dentro e fora do pavilhão onde está colocado o
juiz divino muitos símbolos se aglomeram. No interior do santuário é frequente
observar a presença de divindades femininas cuja função é a de proteger Osíris.
Frequentemente dispostas aos pares, como Ísis e Néftis, estas deusas também podem
aparecer sozinhas, como é o caso de Ísis, Neit ou Nut. Um símbolo que pode ser
representado no interior como no exterior do santuário é o totem imiut. Os quatro filhos
de Hórus, suspensos numa flor de lótus, são também outra presença comum no interior
do santuário. A sua presença relaciona-se certamente com a sua associação às vísceras
que constituem o coração ib. Nesta perspectiva a balança estaria associada ao exame do
coração hati, enquanto o coração ib se mantinha sob a tutela de Osíris.1799
O monstro Ammut, que antes era representado junto da balança, é agora quase
universalmente representado diante do pavilhão de Osíris. O monstro acompanha
habitualmente outro deus que anuncia ao juiz divino o veredicto. Embora este deus
possa ser Tot, a função também pode ser desempenhada por Horsaiset, Hornedjitef ou o
próprio Hórus. O objectivo da mudança de localização de Ammut talvez se prenda com
preocupações de índole mágica. O monstro devorador, além de ficar afastado do
coração do defunto, ficava sob a alçada de uma divindade mais forte, como Tot, ou uma
das poderosas manifestações de Hórus. Nas proximidades do monstro Ammut é,
pontualmente, representado o lago de fogo.1800 A mesa de oferendas junto ao juiz divino
torna-se progressivamente mais comum. Neste contexto também é possível identificar,
entre os vários bens alimentícios, o coração de uma vítima sacrificada para o repasto
funerário.
Uma assembleia divina mais alargada começa gradualmente a tomar forma nesta
complexa trama de representações. Para além da deusa Maet ou das Duas Maet que
naturalmente podem figurar entre os deuses que assistem ao acto, vão sendo
introduzidas deidades com estranhas formas animais. Figuras mumiformes, em número
1796
Ver anexo II F V 12.
1797
Ver anexo II F V 8, II F V 20, II F V 25.
1798
Ver anexo II F V 25.
1799
Para Walker, os filhos de Hórus não são os protectores dos órgãos, eles são os próprios órgãos. Na sua
perspectiva, as divindades protectoras dos órgãos são as quatro deusas funerárias (Ísis, Néftis, Serkhet e
Neit). J. WALKER, «Egyptian medicine and the gods», BACE 4 (1993), p. 85.
1800
Ver anexo II F V 10.
667
variável mas que não excedem em geral a cifra de quatro, podem ser encimadas por
cabeças de crocodilo, de abutre, de cobra, de símio, de hipopótamo ou falcão.1801 Inicia-
se assim uma tendência que conhecerá um desenvolvimento extremo nos períodos
subsequentes onde a assembleia divina é composta por uma infinidade de deuses cuja
heterogeneidade é realçada pela diversidade das formas animais adoptadas. Um outro
elemento novo que conhecerá um desenvolvimento posterior consiste na representação
de um casal mumiforme colocado sobre a balança, cuja identidade, para já, não parece
estar ainda bem definida.1802
Contexto cultural:
1801
Ver anexo II F V 12, II F V 18.
1802
Ver anexo II F V 10.
1803
Em L. LESKO, «Some remarks on the Book of the Dead composed for the high priests Pinedjem I
and II», p. 185.
1804
A. NIWINSKI, «The solar-osirian unity as principle of the theology of the “State of Amun” in
Thebes in the XXI dynasty», JEOL 30 (1987-1988), pp. 87-90.
668
deus supremo. A outra característica manifesta-se na importância crescente das
representações da assembleia divina que exprimem a multiplicidade das manifestações
do deus único, de natureza insondável. Esta característica, no entanto, só será
plenamente desenvolvida a partir da Época Baixa, reflectindo-se na grande valorização
da assembleia divina.1805
6. As representações de tipo VI
Definição:
1805
Idem, pp. 103-106.
669
representação nas vinhetas da psicostasia, um mais associado à tradição tebana e outro
distintamente marcado pela tradição menfita.1806 Como vamos ver, estes estilos
diferenciam-se sobretudo ao nível da composição do enquadramento que formata a
ilustração. O estilo tebano distingue-se facilmente por decorar a cornija da sala do
julgamento com um conjunto muito variado de elementos simbólicos que são
responsáveis por tornar estas ilustrações muito carregadas. A decoração da cornija
consiste habitualmente num padrão de lamparinas, plumas maéticas e serpentes que se
intercalam de forma alternada ao longo de todo o comprimento da sala do julgamento.
Por vezes, em ambas as extremidades da sala é adicionado um motivo que consiste num
babuíno que manipula uma balança munida de um amuleto cordiforme semelhante à
que é usada na psicostasia. Outro motivo característico consiste numa representação
que é colocada no meio da cornija e que consiste numa figura humana, em geral
acocorada, com os dois braços erguidos à altura do peito num gesto de protecção
dispensado a dois olhos udjat envolvidos num círculo.1807 Este vulto assemelha-se a
uma entidade divina representada na XI hora do «Livro do Amduat» que está associado
com a renovação do tempo. A sua presença no centro do friso parece constituir uma
indicação iconográfica acerca do principal propósito do processo que aí tem lugar:
assegurar o retorno ao tempo primordial para empreender a regeneração.1808
O estilo menfita distingue-se pela simplificação dos elementos decorativos. A
sala do julgamento é representada com um estilo mais sóbrio e geométrico, onde a
sobrecarga da decoração foi substituída pelo rigor da representação. Deste modo,
inversamente ao que é característico no estilo tebano, os traços não são desenhados
espontaneamente, não apresentando, por isso, uma configuração irregular tão comum
nos papiros provenientes do Sul. Pelo contrário, as linhas são mais depuradas e a sua
execução obedece certamente a um grande esforço técnico e exigiu certamente a
utilização de instrumentos auxiliares de medida e de desenho. O padrão decorativo que
enfeita a cornija da sala do julgamento, apesar de difícil execução, possui uma leitura
simples e geométrica consistindo apenas na repetição de um motivo pontiagudo em
forma de lágrima. Embora nos elementos centrais da psicostasia não se detectem
grandes diferenças nos estilos menfita e tebano, detecta-se um certo esforço, da parte da
1806
As diferenças detectadas são corroboradas pela comparação com outras características que têm sido
atribuídas às duas tradições e às quais já tivemos oportunidades de referir. Na grande maioria das
situações os papiros não apresentam mistura de influências.
1807
Ver anexo V 8.JTeb1-Teb15.
1808
Ver E. HORNUNG, The Ancient Egyptian Books of the Afterlife, p. 41.
670
tradição setentrional, em depurar e filtrar os elementos representados de modo a
simplificar a vinheta. Daí decorre que os elementos simbólicos do estilo tebano sejam
mais ricos e diversificados que os do Norte.1809
Datação e contexto:
671
vinhetas da psicostasia foram representadas sobre as paredes dos templos (como atesta a
representação, única deste tipo de utilização, patente no pequeno templo de Hathor de
Deir el-Medina).1812
Caracterização:
1812
Ver anexo V 8.J Teb16.
1813
Ver, por exemplo, V 8.J Menf3.
672
Hórus quem o faça mais amiúde (Anúbis desempenha esta função em sete papiros, ao
passo que Hórus, por vezes com a configuração de Horsaiset ou Hornedjitef,
desempenha esta tarefa em 28 representações). Sobre a balança são frequentemente
representados os tijolos do nascimento (o motivo aparece em treze vinhetas) com a
forma do hieróglifo maé, «verdadeiro», ou «justo», o qual aparece adornado com uma
cabeça humana alusiva à deusa Meskhenet. A figura representada na balança é o
babuíno.1814 Nos pratos da balança é normativa a representação do coração pesado
contra a pluma ou a figurinha de Maet. No período romano o coração pode ser
substituído por uma silhueta negra que evoca o defunto.
O juiz supremo do tribunal é universalmente Osíris. Nas vinhetas mais cuidadas,
Osíris, sempre coroado com a coroa atef, apresenta uma elaborada veste alada (patente
em quinze ocorrências) que parece evocar a ligação do deus a Maet.1815 Por vezes,
apresenta um curioso amuleto naóforo (observável em quatro representações). O deus
pode ser acompanhado por uma ou duas deusas (na maior parte das vezes por Ísis, ou
por Ísis e Néftis). O totem imiut é, no entanto, o elemento iconográfico que mais
frequentemente é representado junto do deus, registando dezasseis ocorrências. Os
quatro filhos de Hórus podem ser representados alternativamente ou dentro do pavilhão
do deus (onde registam oito ocorrências) ou no exterior (apresentando, neste contexto,
quinze ocorrências).
Diante do pavilhão do deus outros elementos simbólicos são agrupados. A mesa
de oferendas é o motivo mais frequente. Outro motivo muito significativo é um deus
menino, que lembra o deus Nefertum, representado, em geral, sobre o hieróglifo heka,
signo que, além de constituir um dos ceptros reais, pode significar «magia» ou «rei»
(trata-se de um motivo muito frequente encontrando-se em dezassete vinhetas). Uma
vinheta apresenta excepcionalmente este motivo sob os braços da balança1816 o que
contribui para ver neste motivo um desenvolvimento iconográfico do símbolo da
criança representada, durante a XXI dinastia, sob a balança. Este deus menino
representaria, de acordo com esta interpretação, o próprio defunto renascido sob uma
1814
Em raras vinhetas acontece não existir qualquer representação alusiva à balança (nos três papiros em
que tal omissão foi registada, dois são do período romano e apresentam um carácter pouco cuidado.
Apesar desta ausência todas as restantes características são comuns às cenas da psicostasia razão pela qual
não foram excluídas da nossa análise).
1815
O uso de motivos alados na veste divina de Osíris relaciona-se com a emergência de nova vida e
apresenta conotações relacionadas com a ordem cósmica. Constitui, deste modo, um elemento equivalente
ao próprio estrado maético sobre o qual o deus também pode ser representado. Um elemento como o
outro Em H. D. SCHNEIDER, «Ptah in wings», p. 295
1816
Ver anexo V 8.J Menf7.
673
manifestação divina. A identificação do defunto renascido com Nefertum é bastante
expressiva, e constitui um modo de intensificar a mensagem que já nas representações
de tipo IV se depreendia: após a psicostasia, o defunto voltava atrás no tempo,
regressava ao tempo primordial para se purificar e se redimir de todas as impurezas.
Também é interessante que seja sob a forma de Nefertum que o defunto use o amuleto
cordiforme. Curiosamente, o amuleto cordiforme, que antes era visível nas atitudes de
júbilo do defunto, desapareceu por completo para apenas ser visível nas representações
do deus menino.1817 Esta alteração mostra provavelmente que o significado do amuleto
voltou a sofrer uma reinterpretação. Se antes assinalava um resultado favorável na prova
da psicostasia, agora o seu significado parece ser mais amplo, relacionando-se com o
poder redentor e salvífico do deus menino primordial.
Outro motivo inovador é o que consiste num casal acocorado em atitude
mumiforme.1818 As legendas que, por vezes, acompanham estas figuras referem que se
tratam de Chai e Reret, ou seja, o «destino» e o «tempo (de vida)». 1819 Também nas
proximidades do pavilhão de Osíris se situa, em geral, o monstro Ammut. A
representação da «Devoradora» segue, quase sempre, o mesmo esquema. Apresenta, em
geral, cabeça, seios e patas traseiras de hipopótamo, bem como patas dianteiras de um
leonídeo. As costas podem ter elementos de outros animais como o crocodilo. Veja-se
como os seios, anteriormente ausentes, se tornam agora elementos destacados da
representação. Em certas representações a figura do monstro é simplificada podendo
resumir-se a um canídeo ou a uma esfinge com cabeça de hipopótamo. Posicionada
sobre um templo ou um cofre, a figura monstruosa pode ter duas plumas na cabeça e
ostentar duas facas nos membros anteriores. O estatuto divino do monstro, que nesta
época parece assumir contornos mais sacralizados, é ainda reforçado através da sua
colocação sobre cofres ou mesmo templos.1820 Curiosamente a faceta feroz desta
entidade parece ter sido substituída pela função de guardiã. Mais do que constituir um
perigo para o defunto, Ammut parece desempenhar agora a função de defender o
defunto perante ataques maldosos. A iconografia de Ammut torna-se, com efeito, muito
próxima da representação de Taueret, a estimada divindade do parto e da gestação. Esta
aproximação parece intencional já que, na representação de Ammut, o papel dos seios e
1817
Ver, por exemplo, anexo V 8.J Teb7.
1818
Ver anexo V 8.J Teb3, V 8.J Teb5 ou V 8.J Menf16.
1819
Reret é uma versão feminina de rer, palavra que pode significar «tempo». Ver R. FAULKNER, A
Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 151.
1820
A título de exemplo ver anexo V 8.J Menf15. Não deixa de chamar a atenção o facto de as imagens de
Ammut e Taueret serem um tanto semelhantes nesta época.
674
da cabeleira divina (aspectos salientes da representação de Taueret) assumem um maior
destaque, de modo a cunhar com um significado «obstétrico» o papel desta guardiã. A
sua função agora era o de proteger o recém-nascido no plano divino e de assegurar o
afastamento de forças hostis.
Uma assembleia divina, mais ou menos extensa completa estas representações.
Embora o número de deuses possa atingir os 72 elementos, 1821 a maior parte das
vinhetas apresentam um número de divindades próximo dos 42.1822 Noutros casos o
número de divindades pode ser muito irregular (há vinhetas com doze, dezanove, 31 ou
35 deuses, só para citar algumas das cifras possíveis de encontrar). Estas divindades
apresentam uma configuração mumiforme diferindo entre si apenas ao nível da cabeça
onde uma grande variedade de formas humanas e animais pode ser detectada. De um
modo geral, a tradição tebana representa estas divindades acocoradas, enquanto que a
tradição menfita parece privilegiar a representação vertical destes deuses. A importância
e o peso da assembleia divina torna-a, pela primeira vez, num dos elementos mais
destacados destas vinhetas.1823 É mesmo possível que tenha sido a necessidade de
organizar o espaço disponível para ampliar as representações da assembleia divina que
poderá ter estado na base da sofisticação do enquadramento da vinheta proporcionado
pela delimitação da sala do julgamento. Nesta perspectiva, a valorização da sala das
Duas Maet traduz provavelmente o incremento do valor religioso e simbólico da
assembleia divina na psicostasia.1824 Esta valorização está certamente relacionada com o
facto desta multidão divina constituir o reflexo da multiplicidade das manifestações do
deus supremo e universal. A multiplicidade de manifestações patente na assembleia
1821
Ver anexo V 8.J Teb2.
1822
Nem sempre o número é exactamente o de 42. Muitas vezes há um deus a mais ou a menos o que
provavelmente se deve a erros do copista. A insistência nesta cifra pode relacionar-se com o número de
sepaut do Egipto (Lembremos que, de acordo com o mito, cada parte do corpo de Osíris ficou distribuída
por cada uma das sepaut do país. Ver J.C. GOYON, «Momification et recomposition du corps divin», em
J.H. KAMSTRA, H: MILDE, K. WAGTENDOK, Funerary Symbols and Religion: Essays dedicated to
Professor Heermavan Hoss, pp. 34-44.) A assembleia divina poderia assim evocar a unidade
reconstituída do deus Osíris.
1823
A proliferação destas divindades traduz o ensejo de manifestar através da iconografia a multiplicidade
das faces do «Grande Deus», um fenómeno religioso que começou a tomar forma a partir da XXI dinastia
(em A. NIWINSKY, Studies on Illustrated Theban Funerary Papyri of the 11th and 10th centuries B.C.,
pp. 162-168. Embora seja na «Litania de Ré» que mais se tenha desenvolvido, esta tendência manifestou-
se também noutras composições como o «Livro dos Mortos».
1824
Não nos esqueçamos que a valorização da representação da assembleia divina foi um fenómeno que
se iniciou, ainda de modo incipiente, na XVIII dinastia e que não cessou de crescer ao longo do tempo. A
valorização da assembleia divina detecta-se, ainda no período ramséssida, através da diferenciação dos
juizes divinos, começando a ganhar contornos mais individualizados. Desde então a individualização
traduziu-se na especialização iconográfica, originando uma enorme parafrenália figurativa em torno
destas representações. Ver H. MILDE, The Vignettes in the Book of the Dead of Neferrenpet, p. 88-90.
675
divina manifestava a natureza insondável do deus supremo. Para além de garantir a
regeneração, a psicostasia permitia, deste modo, a revelação das diferentes
manifestações do deus supremo, a qual se afigurava agora como um objectivo central na
psicostasia.
Definição:
Datação e contexto:
Os antecedentes:
676
Em meados do Terceiro Período Intermediário, quando os ataúdes «amarelos»
típicos da XXI dinastia entraram em desuso, iniciou-se uma nova tendência na
decoração de ataúdes que consistiu em dividir a face frontal do ataúde em registos para
receber as cenas que antes eram representadas lateralmente. Embora esboçada no
Terceiro Período Intermediário, foi na Época Baixa que esta voga atingiu um
desenvolvimento pleno. A continuidade e a dependência que se detecta entre as
psicostasias representadas nos ataúdes destas épocas justifica, no nosso entender, que
sejam analisadas em conjunto. Antes de conduzir a um novo tipo de representação da
psicostasia (o tipo VII) o uso da parte frontal do ataúde (em geral junto ao peito) como
suporte de figuração de psicostasias levou à reedição de cenas que, nos «Livros dos
Mortos» já não eram usadas. Excepcionalmente estas vinhetas também foram colocadas
em faixas situadas no «ombro» do ataúde.1825
As cenas de tipo I e II, muito raras, foram detectadas apenas em dois ataúdes.
Numa delas deparamo-nos com a vinheta da quinta hora do «Livro das Portas», usada,
no Império Novo, no contexto dos enterramentos reais e que aqui vemos a ser aplicada a
uma personagem não real.1826 Nas duas situações a função de juiz supremo é
desempenhada por Ré. Mais numerosas, neste contexto, são as representações de tipo
III. Apesar da inspiração nos modelos anteriores, estas cenas apresentam algumas
originalidades que permitem diferenciá-las dos exemplares mais antigos. Para além da
execução ser mais tosca, a cena apresenta, por vezes, divisões que sugerem a passagem
por várias salas. Numa pode estar Ammut, noutra pode ficar a balança e ainda noutra
podemos encontrar o deus que preside ao tribunal.1827 Outra característica que parece
ser específica destas representações é o aparecimento de uma serpente sob o trono de
Osíris.1828 Cenas deste tipo continuaram a ser reproduzidas noutros tipos de suporte,
como urnas funerárias ou nas próprias paredes dos túmulos mesmo durante a ocupação
romana. Cenas de tipo IV, onde a balança é figurada sem qualquer alusão a um juiz
divino, surgem em algumas representações do período romano. Numa delas, a balança
foi representada juntamente com uma cena de purificação, mostrando que, nesta época,
estes rituais eram encarados no mesmo horizonte semântico, relacionado certamente
com o renascimento no Além.1829 Noutro caso, numa pintura mural de um túmulo de
1825
Ver anexo V 8.K 15.
1826
Ver anexo V 8.K 8.
1827
Ver anexo V 8.K 13.
1828
Ver anexo V 8.K 13 e V 8.K 11.
1829
Ver anexo V 8.K 1.
677
Akhmim, infelizmente perdido nos nossos dias, o coração é substituído por uma silhueta
negra, semelhante à sombra, chut.1830 A intrigante silhueta negra é repetidamente
representada nesta cena em várias atitudes cujo significado, para já, permanece pouco
claro.
Caracterização:
1830
Ver anexo V 8.K 2.
1831
Ver anexo V 8.K 2. Para a importância de Tatenen ver J. SALES, As Divindades Egípcias, pp. 291-
292.
678
XIII. Caracterização dos amuletos do coração
Datação
Características formais
Estes amuletos têm em geral pequenas dimensões. O mais pequeno tem a medida de
1,4 cm de altura,1834 ao passo que o maior amuleto possui a medida de 3,1 cm.1835 A medida
média destes amuletos situa-se em 2,1 cm. Quanto à forma, os amuletos apresentam uma
grande homogeneidade entre si que se reflecte na invariância dos elementos que compõem
os amuletos. Uma das características mais salientes, que está justamente na base da sua
classificação, é a de todos apresentarem um furo vertical de forma tubular que permitiria a
sua sustentação através da introdução de uma agulheta, provavelmente de ouro, equipada
1832
Apesar da produção de artigos de vidro utilizar como matéria prima um material banal no Egipto, a areia,
muitos dos corantes eram importados o que tornava a sua produção muito dispendiosa. O cobre, utilizado para
os azuis de tonalidades clara, os verdes e mesmo os vermelhos era proveniente do Sinai ou da Ásia. O chumbo,
usado para criar opacidade no vidro e torná-lo branco, era proveniente da Grécia. O cobalto, usado nos azuis
escuros vinha da Europa de Leste, através das rotas comerciais micénicas. Para detalhes sobre a industria de
vidro no tempo de Amen-hotep III ver Aménophis III, le Pharaon-Soleil, pp. 324-339.
1833
Ver anexo III 3.
1834
Ver anexo III 3.22.
1835
Ver anexo III.3.6.
679
com um anel de suspensão. Outra característica bastante estável é a existência de artérias
laterais (todos os amuletos as ostentam) e sempre em forma de botão.
Decoração
Utilização
Simbolismo
680
2.2. Amuleto do coração de tipo vaso-oco: amuletos de ouro
Datação
A raridade dos objectos pertencentes a esta categoria não facilita a sua datação,
sobretudo nos casos em que não existe qualquer registo que possibilite a sua
contextualização histórica ou mesmo arqueológica. Apesar disso, é entre estes objectos que
encontrámos o exemplar mais antigo de amuleto cordiforme que conhecemos, o qual data
do reinado de Nebhetepré Mentuhotep II. 1836 Como se observa no quadro relativo à datação
destes objectos, este tipo de amuletos apresenta uma longevidade assinalável, indiciando um
certo florescimento no Império Novo para, em seguida, permanecer residualmente até ao
fim da civilização egípcia. É importante aqui ressalvar que a raridade destes amuletos
provenientes das pesquisas arqueológicas se prende em muito com o seu valor material.
Assim, enquanto outros amuletos foram frequentemente ignorados pelos ladrões de
túmulos, este tipo de amuletos foi evidentemente alvo da sua atenção selectiva, razão pela
qual devemos relativizar a sua raridade.
Características formais
1836
Ver anexo III 2.A 1.
1837
Ver anexo III: 2.A 2 e 2.A 4.
1838
Ver anexo III: 2.A 5 e 2.A 6.
681
consiste em suspender o amuleto através de dois furinhos posicionados nas artérias
laterais do amuleto.1839
Decoração
Utilização
Simbolismo
Alguns dos amuletos de ouro, pela função distintiva que lhe é associada, podem ter
tido um significado político. Efectivamente, o mais antigo destes objectos está «cunhado»
com a cartela real de Mentuhotep II o que pode indiciar que a sua utilização estivesse
circunscrita ao rei ou à elite que o rodeava. A possibilidade de constituir, já nesta etapa
recuada, uma condecoração real deve também ser considerada. Nesse caso, para além de
constituir um objecto de luxo, a sua posse poderia estar associada a privilégios reais. Não
nos esqueçamos também do forte simbolismo do ouro enquanto manifestação tangível do
sol e do seu poder e que, nestes amuletos, podia aludir ao próprio faraó.1840
1839
Ver anexo III 2. A 1.
1840
A utilização do ouro em condecorações oficiais é um fenómeno bem conhecido no Império Novo e deu
origem a importantes obras de ourivesaria, entre as quais se destacam os pesados colares habitualmente
denominados de «ouro de honra».
682
2.3. Amuleto do coração de tipo vaso-oco: amuletos de pedra/cerâmica
Datação
Como no caso anterior, não é fácil datar com exactidão estes amuletos. Na falta de
qualquer indicação que melhor nos esclareça apenas podemos sugerir uma datação incerta
entre o fim do Império Novo e a Época Baixa. Contrariamente ao caso anterior, estamos
perante um tipo de objectos cuja utilização parece muito circunscrita no tempo, o que
contribui certamente para o seu reduzido número.1841
Características formais
1841
Ver anexo III 2.B.
1842
Ver anexo III: 2.B 1 e 2.B 4. O cristal de rocha, uma variedade transparente do quartzo, oriunda do
deserto ocidental ou do Sinai também foi utilizado, embora muito pontualmente, para aproveitar os seus
belos efeitos luminosos. As pedras brancas veiculavam a cor da pureza mas também do fausto e do
triunfo, pelo que eram utilizadas muitas vezes para fazer alusão ao ouro (esta aproximação está sem
dúvida relacionada com a existência de ouro branco). Em P. NICHOLSON, I. SHAW (eds), Ancient
Egyptian Materials, p. 52.
1843
Ver anexo III: 2.B 3 e 2.B 2.
1844
Ver anexo III: 2.B1 e 2.B 3.
1845
Ver anexo III 2.B 4.
1846
Ver anexo III. 2. B 2. Sobre os meios utilizados para possibilitar o uso dos amuletos ver J. FALKOVITCH,
«L´usage des amulettes égyptiens», BSEG 16 (1992), p. 21.
683
paralelo.1847 Trata-se de um artifício bem conhecido pelos artesãos egípcios que desse modo
assinalavam que esse objecto era uma personificação.1848 Uma vez que os braços seguram
uma taça, símbolo das oferendas divinas, percebemos enfim que o amuleto evoca o coração
como uma entidade autónoma que apresenta oferendas perante a divindade.1849
Decoração
A decoração patente nestes amuletos pode variar desde uma decoração complexa,
como o escaravelho solar,1850 à singela gravação do crescente e do montículo.1851 Inscrições
elaboradas, como o capítulo 30 do «Livro dos Mortos», podem ocasionalmente figurar na
superfície destes amuletos.
Utilização
Simbolismo
1847
Ver anexo III 2.B 2.
1848
É essa a interpretação que Vilmos Wessetzky faz desta curiosa «anomalia» num amuleto do coração. Para
a sua descrição do objecto ver V. WESSETZKY, «Amulettes du coeur au Musée des Beaux-Arts», BMH
54 (1980), pp. 5-11
1849
Sobre a leitura simbólica do braço e da taça de oferendas ver R. WILKINSON, Reading Egyptian
Art, p. 53.
1850
Ver anexo III 2.B 1.
1851
Ver anexo III 2.B 3. Esta decoração inclui a marca de um crescente, representando a aurícula, uma
espécie de um monte reticulado representando o ventrículo e um V desenhado na parte superior do corpo,
talvez sugerindo os vasos coronários especialmente visíveis no topo do coração.
684
corroboram o valor artístico e, em alguns casos funerário,1852 destes objectos. Estes objectos
poderiam assim guardar uma substância ritual, provavelmente um unguento, que
simbolizaria a purificação da consciência. O amuleto votivo que apresenta oferendas
divinas, por outro lado, também parece reforçar esta interpretação: transformado pelas
essências divinas (que o amuleto contém simbolicamente através do unguento), o coração
purificado e renascido é admitido ao círculo das divindades onde assegura o serviço divino.
Apesar do seu pequeno número, o valor documental destes objectos é precioso, levando ao
limite a expressão do coração como um vaso, produzindo uma identificação total entre as
duas imagens.
Datação
Características formais
1852
O escaravelho esculpido num desses amuletos, assim como o capítulo 30 do «Livro dos Mortos»,
aponta para um propósito claramente funerário.
685
bronze e o electrum entram ocasionalmente na composição destes amuletos. A produção de
amuletos em materiais cerâmicos utiliza faiança e argila. Também o vidro foi amplamente
utilizado. Por fim materiais, tão simples como a cera de abelha também contribuíram,
embora numa quantidade muito escassa, para a produção destes amuletos.
Quanto às dimensões verificamos que estas variam entre o intervalo situado entre
1,1 cm e 8,5 cm. A medida média destes amuletos fica-se, no entanto, pelos 2,09 cm. A
técnica utilizada para a suspensão destes amuletos é, na sua esmagadora maioria, o anel de
suspensão, ainda que em alguns exemplares esta estrutura nunca tenha sido perfurada. Um
simples furo no topo ou no corpo do amuleto também podia permitir a suspensão destes
amuletos.1853
Decoração
1853
O bordo de delimitação é naturalmente, em todos os casos, redondo. No entanto, importa aqui
ressalvar que, nos casos em que os amuletos apresentam faces achatadas, o bordo também sofreu uma
deformação apresentando, por essa razão, uma secção rectangular. No entanto, não se trata de um
verdadeiro amuleto de bordo quadrangular, já que o artesão procurou, nestes casos, adaptar a
representação do objecto a um plano bidimensional. Esta deformação está patente em oito amuletos, cinco
dos quais foram produzidos com molde e um em folha de ouro, técnicas que favorecem o achatamento das
formas. No caso dos amuletos feitos em pedra o achatamento pode relacionar-se com o objectivo de
proporcionar uma base para a escrita ou para uma decoração mais complexa. Outra singularidade na
configuração do bordo consiste no facetamento do bordo e também pode ser resultado directo da técnica
utilizada na produção artesanal destes objectos. Nestes casos, este efeito pode resultar de uma técnica
imperfeita ou de algum grau de inacabamento da peça. Este efeito observa-se em seis amuletos.
1854
O exemplar mais antigo remonta ao reinado de Tutankhamon.
1855
Ver anexo III 1.G.
1856
Ver anexo III 1.G 6.
1857
Um texto, também pode ser incluído entre as representações da ave benu. Na maior parte dos casos
trata-se de uma abreviatura do capítulo 30 do «Livro dos Mortos» e não, como seria de esperar, do
capítulo 29B, o qual associa a ave benu ao amuleto do coração.
1858
Os amuletos que apresentam a representação do escaravelho incluem normalmente uma versão do
capítulo 30 do «Livro dos Mortos».
1859
Ver anexo III 1.I.
686
escultura em relevo em superfícies de pequenas dimensões. 1860 Num exemplar o
escaravelho é representado no interior de uma elipse evocando o disco solar.1861
A ave ba também pode figurar entre os símbolos que decoram estes amuletos.1862
Alguns amuletos exibem o perfil de certas divindades como Osíris,1863 ou até grupos de
deuses (Khepri, Ré e Atum, como acontece num amuleto de Psusennes I). Motivos florais
ou colares podem ainda decorar este tipo de objectos. Padrões geométricos conjugando a
forma de um crescente e de um montículo reticulado também fazem parte do reportório de
representações destes objectos.1864 Finalmente, num único exemplar, observamos, junto do
bordo, uma decoração com linhas verticais que lembra a decoração das cornijas. Atribuído à
XVIII dinastia este amuleto indicia provavelmente o início do uso deste elemento
iconográfico na simbólica dos amuletos do coração, o qual se desenvolverá até formar um
«estilo» distinto e bem definido, patente nos amuletos de tipo cornija.
1860
Ver anexo III 1.H
1861
Ver anexo III 1.H 4.
1862
Ver anexo III 1.J 1.
1863
Ver anexo III 1.J 2.
1864
Num caso verdadeiramente excepcional, o crescente foi utilizado sem o montículo, o qual foi
substituído pelo hieróglifo més, compondo assim o nome Ahmés.Ver anexo III 1.K 1.
1865
Ver anexo III 1.K.
1866
As cartelas reais que identificámos nos objectos que inventariados são as de Psusennes I (num
amuleto oriundo do seu próprio equipamento funerário – ver anexo III 1.L 5), a de Maatkaré (ver anexo
III 1.L 4) e as de Ramsés II (que aparecem três objectos certamente oriundos de contextos arqueológicos
muito diversificados – ver anexo III: 1.L 1-3 ).
687
vezes, não ocupa mais do que uma linha ou uma coluna de inscrições hieroglíficas. Na
maior parte dos casos, porém, o texto redigido sobre o amuleto ocupa em média cinco ou
nove linhas de inscrições. Trata-se, quase sempre, do capítulo 30B do «Livro dos
Mortos» copiado na íntegra ou numa versão mais abreviada.1867
Inscrições Quant.
Nome 4
Dedicatória 5
Texto funerário 8
Utilização
O uso do amuleto em fios ou colares podia ser feito por um anel de suspensão ou
por simples furos. Maioritariamente os amuletos do coração de tipo vaso-compacto
destinavam-se a ser usados como objectos profilácticos na vida quotidiana. A sua pequena
dimensão permitia que fossem usados em colares ou pulseiras e a grande variedade de cores
contribuía certamente para criar um certo efeito estético. Estes objectos podiam ser usados
isoladamente ou em conjunto com muitos outros amuletos e continuavam na vida do Além
a exercer uma protecção mágica. Os exemplares mais antigos remontam à VI dinastia e
foram encontrados em pulseiras e colares, alguns deles reunidos com amuletos
representando outras partes do corpo humano ou de animais. Nos exemplares provenientes
dos túmulos reais de tempos mais tardios insinua-se uma utilização do amuleto de forma
mais selectiva, sendo, nestes casos, a única peça a decorar o colar, o que aponta para uma
valorização crescente deste objecto (Veja-se o caso do colar de Psusennes I1868 e de
Ahmés1869).
O uso, a partir da XVIII dinastia, de símbolos funerários na decoração do amuleto
indicia uma separação entre amuletos produzidos exclusivamente para serem utilizados no
horizonte funerário e aqueles que eram feitos para serem usados nos dois mundos. Libertos
dos constrangimentos que o seu uso provocaria na vida quotidiana, os amuletos funerários
podiam assim melhor satisfazer as necessidades da magia. O seu tamanho aumentou criando
1867
Ver anexo III: 1.M 1 e 1.M 3-4.
1868
Ver anexo III 1.L 5.
1869
Ver anexo III 1.B 1.
688
mais espaço disponível para a imagem e para a escrita, os principais vectores de expressão
da magia. Efectivamente, o papel das curtas dedicatórias inscritas em alguns amuletos
parece ganhar sentido à luz de uma utilização exclusivamente funerária, uma vez que, na
sua maior parte, associam o nome do proprietário ao deus Osíris. O uso exclusivamente
funerário também possibilitou, sobretudo na Época Baixa, quando os amuletos passaram a
ser enfaixados nas múmias, que certos «descuidos» fossem permitidos, como a não
perfuração do anel de suspensão, algo que seria aberrante noutras circunstâncias.
Amuletos decorados com nomes reais poderiam ter tido dois tipos de usos. Em
primeiro lugar podem ter sido utilizados pelo próprio rei, em vida, mas também na morte,
como é testemunhado pelo equipamento funerário de Psusennes I, o qual abrangia amuletos
decorados com a sua própria cartela e titulatura. No entanto, estes amuletos também podem
ter sido utilizados pelos súbditos do rei, como parece ter sido o caso do amuleto decorado
com o nome de coração de Ramsés II, Usermaatré Setepenré. Neste caso estamos
provavelmente perante uma dádiva real, o que daria a estes amuletos um significado
político e distintivo que transcendia a dimensão funerária propriamente dita.
Simbolismo
1870
Ver M. VALLOGGIA, «Rapport préliminaire sur la troisième campagne de fouilles du mastaba V à
Balat (Oasis de Dakhleh)», BIFAO 80 (1980), pl. XXXI.
1871
Note-se que, entre outras utilizações, o hieróglifo é usado para escrever a palavra nun, que evoca as águas
primordiais que envolvem e vivificam a criação. Ver A. GARDINER, Egyptian Grammar, pp. 530-531.
689
Império Antigo, para transformar alguns objectos rituais em amuletos.1872 É apenas no
dealbar do Império Médio que assistimos a uma transformação no significado deste amuleto
que, pela primeira vez, passa a evocar inequivocamente o coração.1873
Datação
Considerando o conjunto dos amuletos de tipo cornija não é possível atribuir, com
segurança, uma produção destes objectos anterior ao Terceiro Período Intermediário. No
entanto, ao longo do Império Novo, podemos identificar alguns amuletos que constituem
uma prefiguração dos amuletos de tipo cornija. Um exemplar da XIX dinastia, encontrado
na múmia do príncipe Khaemuaset, em rigor, não cabe em nenhuma das nossas categorias,
já que o seu bordo não é rigorosamente quadrangular.1874 Apresenta, no entanto, uma
curiosa estrutura tripartida que parece prefigurar a cornija. É dos funerais reais de Tânis que
nos chegam os primeiros verdadeiros exemplares dos amuletos de tipo cornija. Sendo em
número de onze, estes amuletos evidenciam uma cornija ténue, pouco diferenciada do corpo
do amuleto mas cuja secção é, pela primeira vez, nitidamente quadrangular. Da Época
Baixa possuímos quase uma centena de exemplares, muito embora grande parte destes
mereçam algumas reservas na sua datação já que a sua produção também pode ter ocorrido
em épocas posteriores.
Características formais
1872
Sobre esta tendência ver a síntese sobre a evolução dos amuletos patente em C. ANDREWS, «Amulets»,
em D. REDFORD, Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, Vol. I, p.79.
1873
Repare-se, uma vez mais, nas dificuldades colocadas por uma tipologia que não se circunscreva a aspectos
formais. Ao estabelecer a sua tipologia Petrie distinguiu os amuletos que representam animais ou partes do
corpo, dos amuletos que representam objectos ou bens relacionados com o culto funerário («Ktematic
amulets», no original). No nosso caso, podemos estar perante um amuleto que tem origem num objecto de
culto e que mais tarde passa a representar uma parte do corpo.
1874
Ver anexo III 4.H 1. Em rigor, se quiséssemos diferenciar este amuleto teríamos de considerar uma
nova categoria, considerando a forma singular do topo: amuleto encimado por artérias. Ora, a forma curva
das artérias que emergem do topo parece-nos constituir uma prefiguração do perfil curvilíneo
característico da cornija.
690
Mais de metade deste amuletos são feitos em pedra. A pedra mais utilizada é o
lápis-lazúli mas também a faiança e o vidro surgem em grande quantidade.1875 A
cornalina e o jaspe são, embora em menor escala, também são muito utilizados. O ouro foi
utilizado em alguns amuletos.1876 As dimensões destes amuletos oscilam entre os 1,1 cm e
os 5,9 cm. A medida média dos amuletos é de 2,8 cm. A esmagadora maioria dos objectos
está equipada com anel de suspensão de forma a permitir o seu uso num colar ou pulseira.
No entanto, em certos casos, o anel não chegou a ser perfurado, pelo que a sua utilização só
seria possível no contexto funerário.1877
Uma característica comum destes amuletos é a de apresentarem artérias laterais
bastante pronunciadas, em geral pontiagudas ou, em menor escala, oblongas. É muito raro
não possuírem qualquer tipo de projecções laterais, pelo que constituem um elemento
importante da sua morfologia.
Decoração
1875
Para além de uma execução mais tosca, estes amuletos exibem frequentemente a face posterior
achatada, por vezes com marcas de espátulas que eram usadas para uniformizar a superfície.
1876
Em três casos, o ouro foi usado apenas no anel de suspensão ou num caixilho que envolve o amuleto.
Em três situações uma delgada folha de ouro foi aplicada sobre madeira. O uso da madeira, por outro
lado, apenas aparece associado a este tipo de amuleto.
1877
Por outro lado, sete amuletos não apresentam qualquer tipo de estrutura que possibilitasse a sua
suspensão, o que, uma vez mais, indicia um uso funerário Veja-se, por exemplo, anexo III 4.C 23.
1878
O padrão reticular, sem a configuração arredondada do montículo, pode também decorar a parte
inferior dos amuletos. Noutras ocasiões também é possível observar um padrão com estrias verticais
localizado, do mesmo modo, na parte inferior.
1879
Ver anexo III 2.B 4.
1880
Ver anexo III 4.E 10 e 4.E 14.
691
Mais raras, as representações figurativas aparecem em poucos exemplares. As mais
frequentes relacionam-se com divindades. Ré e Atum surgem num amuleto.1881 A tríade
Khepri, Ré e Atum aparecem em oito amuletos, todos provenientes da múmia de Psusennes
I.1882 Neste caso, uma legenda acompanha as divindades: «para a protecção de
Paduaenniut». Motivos florais também surgem em 3 exemplares, dois deles provavelmente
da Época Greco-Romana.1883 A ave akh surge num único exemplar.1884 É muito raro um
amuleto de tipo cornija apresentar uma inscrição funerária complexa como o capítulo 30 do
«Livro dos Mortos».
Utilização
1881
Ver anexo III 4.F 3.
1882
Ver anexo III 4.F 1-2.
1883
Ver anexo III 4.G 2-3.
1884
Ver anexo III 4.G 1.
1885
Isso não impediu que alguns destes objectos tivessem sido confeccionados exclusivamente para a vida
do Além como se depreende pelo facto de não apresentarem anel de suspensão ou furo que possibilitasse
o seu uso num fio. No entanto, ao contrário dos amuletos de tipo vaso, os amuletos de tipo cornija não
aumentaram de tamanho nem se enriqueceram com representações funerárias complexas, o que indicia
que o seu campo de aplicação se manteve distinto daqueles e que a sua preocupação se centrava em torno
de aspectos relacionados com a vida terrena.
692
É notória a existência de uma grande quantidade de materais susceptíveis de
permitirem uma produção em massa, como os materiais cerâmicos (argila e faiança) e o
vidro, fazendo recurso, muitos deles, ao uso de moldes.1886 Uma tal utilização permitiria
assim um uso muito mais disseminado destes objectos, o que se reflectiu, de facto, numa
grande difusão do objecto, sobretudo na Época Baixa.1887
Simbolismo
A datação tardia da maior parte dos amuletos aponta para uma «invenção» que deve
ter ocorrido ao longo do período ramséssida e ganhou projecção a partir do Terceiro
Período Intermediário. A configuração da cornija pode, em parte, apontar o principal
significado deste tipo de amuletos, o de constituir uma evocação do papel do coração
enquanto templo, ou mesmo de um naos, evocativo dos poderes divinos.1888
O simbolismo do templo pode justificar uma utilização inicial deste tipo de
amuletos pelo círculo real, sobretudo pela realeza de Tânis. Foi apenas depois do Terceiro
Período Intermediário que se registou um uso mais alargado deste tipo de amuletos
verificando-se uma rápida popularização do objecto. A produção em massa utilizando
materiais baratos e facilmente moldáveis é disso um claro indício. Na Época Baixa e até à
Época Greco-Romana, o amuleto do coração tipo cornija passou a ser um dos amuletos
mais comuns utilizados tanto na decoração corporal dos vivos como na protecção mágica
dos defuntos. A decoração geométrica, maioritária nestes amuletos, reflecte também ela,
uma tentativa sumária de dotar o amuleto com representações que, baseadas nas estruturas
anatómicas do órgão do coração, talvez evocassem potências divinas (os X serão uma
versão abreviada das duas setas cruzadas identificativas da deusa Neit?) ou entidades
cósmicas (os traços em forma de C serão, como nos amuletos de tipo vaso-compacto,
evocativos do crescente lunar? Os montículos reticulados serão evocativos da colina
primordial? E o V terá ganho também ele alguma dimensão transcendente? Conhecendo a
1886
Ver, por exemplo, anexo III 4.C 14-15.
1887
Note-se ainda que o uso destes amuletos não se restringiu aos funerais humanos. Pelo menos num
caso, datado da dinastia ptolemaica, o amuleto foi usado na protecção mágica de uma múmia de milhafre
enterrada em Dendera. Ver anexo III 4.C 17.
1888
Os primeiros amuletos, de proveniência real confirmam esta ideia. A tríade solar composta por
Khepri, Ré e Atum é representada no amuleto como se estivesse no seu santuário. A presença destes
deuses, como refere a inscrição, garante a protecção eterna de Psusennes I. Outras divindades, como
Atum e Ré, também podem figurar neste «santuário». Mais estritamente associadas ao horizonte das
crenças funerárias, estas divindades podem igualmente evidenciar outras funções do amuleto.
693
iconografia egípcia o difícil é que não tenham passado a evocar algum tipo de significado
religioso, muito embora o seu significado preciso permaneça obscuro.
A ideia de uma associação particular da deusa Neit ao coração através da imagem
das setas estilizadas poderá, de resto, ser facilmente compreendida se pensarmos no papel
muito relevante que a deusa desempenhou ao longo do período saíta, com o qual
precisamente floresceu a produção deste tipo de objectos. A disseminação deste tipo de
objectos, observável na cultura material desta época, pode constituir, além do mais, uma
estratégia subtil do poder político que assim associava a deusa tutelar da dinastia ao coração
dos súbditos, reforçando indirectamente a sua própria aproximação às suas bases de poder.
Datação
Características formais
1889
Dois foram encontrados na múmia de Tutankhamon. Ver anexo III 5.F 2-3.
1890
Ver anexo III 5.F 4.
1891
Ver anexo III 5.E 2 e 5.
1892
Ver anexo III 5.A 8.
694
pontiagudas. Outra característica marcante destes amuletos é a de apresentarem, de um
modo geral, um corpo afilado que concorre para acentuar a semelhança com uma semente
ou um fruto.
Decoração
Utilização
1893
Ver anexo III 5.F 2-4. Em dois objectos é patente a cartela de Tutankhamon, envolvida, em ambos os
casos, por duas serpentes sagradas. Outro exibe a titulatura de Amenemope. Nos casos mais comuns o
nome do proprietário também podia ser inscrito no amuleto. Ver anexo III 5.F 1.
1894
Ver anexo III 5.E 8.
1895
Ver anexo III 5.E 7.
1896
Ver anexo III 5.E 6.
1897
Ver anexo III 5.E 1-5.
1898
Por vezes apenas os três traços evocativos dos élictros foram gravados.
1899
Em três amuletos foi redigido o capítulo 30B do «Livro dos Mortos» (nestes casos o texto ocupa a
face posterior do amuleto ao passo que a face frontal apresenta a ave benu, o olho udjat ou o escaravelho).
695
O anel de suspensão está presente na maior parte dos amuletos. Em certos casos um
simples furo no topo permitia a sua suspensão. Note-se que, pelas suas dimensões e peso,
alguns destes amuletos não puderam ter tido outro uso que não fosse o funerário. As
inscrições e as elaboradas representações simbólicas patentes em alguns dos maiores
amuletos atestam-no.1900 Em número relativamente restrito, os amuletos de tipo semente
apresentam uma estranha «proliferação» em contextos arqueológicos relacionados com a
elite real1901 ou sacerdotal,1902 o que indicia um uso muito selectivo deste tipo de amuletos
Simbolismo
1900
Estes amuletos podiam ser depositados na múmia como o elemento central de um colar ou podiam
fazer parte da decoração de um colar mais elaborado, como acontece na múmia de Tutankhamon, onde os
dois amuletos tipo semente estão colocados junto à anilha dos colares.
1901
É o caso de dois amuletos que pertenceram a Tutankhamon, um outro que foi encontrado no túmulo
de Chechonk I e um último encontrado na múmia de Amenemope.
1902
Três amuletos são provenientes da sepultura dos sacerdotes de Amon, em Bab el-Gassus e dois
amuletos foram encontrados na múmia de Pinedjem II, no esconderijo real de Deir el-Bahari.
696
Datação
Quanto aos amuletos de bordo descaído, podemos constatar que foi na Época Baixa
que estes objectos parecem ter sido particularmente valorizados, muito embora se
identifiquem alguns exemplares datados do Império Novo.1903
Características formais
Decoração
Utilização
Alguns dos amuletos que apresentam o bordo descaído não apresentam qualquer
estrutura para permitir a suspensão, o que indicia um uso exclusivamente funerário. A
utilização de folha de ouro também se enquadra bem no contexto funerário.
Simbolismo
1903
Ver anexo III 6.
697
Emergindo na XVIII dinastia, estes amuletos parecem ter sido desenvolvidos a
partir dos amuletos que representavam o disco lunar.1904 Deste modo, o bordo descaído
pode ter evoluído a partir da identificação entre as abas musculares presentes no topo do
coração e o crescente lunar.1905 A ambiguidade destes objectos leva a que os autores os
classifiquem alternadamente como amuletos do coração ou como amuletos alusivos ao
disco lunar. Apesar da grande proximidade formal entre estas categorias de objectos, a
verdade é que inicialmente parece ter de facto existido o desejo de elaborar um amuleto do
coração com conotações associadas ao disco lunar. Tal devia-se certamente às conotações
apotropaicas do disco lunar e à sua associação à regeneração. Ao longo da Época Baixa, no
entanto, este tipo de amuletos foi acentuando as diferenças em relação ao crescente lunar,
através do aumento do volume do corpo do amuleto, o qual ganhou mais destaque tornando-
se mais parecido com uma bolota. Esta configuração sugere efectivamente uma
identificação entre o coração e um fruto solar, talvez em virtude de crenças como as que
vemos ilustradas no Conto dos Dois Irmãos. Se assim for, o amuleto simbolizava a
«circuncisão do coração», comentada na primeira parte do nosso trabalho e que consistia
em adquirir uma perspectiva impessoal e abrangente, ou seja, uma consciência cósmica, a
qual era decisiva para desencadear a transformação da consciência.
O significado do muleto de bordo descaído afigura-se, deste modo, muito complexo
pelo que teremos que contar com o contributo do estudo das representações dos amuletos
cordiformes para determinar melhor o seu significado.
Datação
1904
Ver anexo III 6.C 1-3.
1905
Ver anexo III 6.A 6. Neste amuleto é facilmente perceptível a demarcação das abas musculares
dispostas de modo a sugerirem um crescente.
698
Características formais
Decoração
Quando existe, a decoração destes amuletos é muito simples, consistindo apenas nas
representações da aurícula e do ventrículo sob a forma de um crescente e de um montículo
reticulado. Num amuleto o disco solar aparece com uma elevação central que sugere a
intenção de aí moldar uma serpente.1909 Na maior parte dos objectos, o disco solar aparece
bem delimitado do resto do amuleto. No entanto, em certos amuletos, o disco solar
apresenta-se apenas parcialmente elevado, sugerindo o nascer do sol.1910 Nenhum dos
objectos apresenta inscrições.
Utilização
1906
Ver anexo III 9.6.
1907
Ver anexo III 9.9.
1908
Apenas num objecto, o bordo apresenta a configuração arredondada.
1909
Ver anexo III 9.1.
1910
Ver anexo 9.7 e 9.9.
699
Apesar de não possuírem dimensões que impossibilitem o seu uso como adorno
pessoal, estes objectos devem ter tido uma utilização quase exclusivamente funerária. O
anel de suspensão está, em alguns casos, posicionado na face posterior do disco solar. Uma
perfuração horizontal no corpo ou no disco podia ajudar a fixar o objecto às faixas da
múmia.
Simbolismo
A ideia de associar o coração ao sol, patente pelo menos em estado latente desde a
XIX dinastia, atinge na Época Baixa a sua expressão plena através da utilização de um novo
tipo de amuleto do coração que representa o sol a emergir do coração, representado como
um templo. Efectivamente o uso da cornija parece intencionalizar a ideia que o coração é
um naos onde o sol irradia a sua luz. O uso de materiais brilhantes ou translúcidos, como o
cristal de rocha ou o ouro, pode ter constituído uma forma de sublinhar a ligação deste
amuleto à luz solar e ao seu valor na vida humana, em particular no Além.
Datação
Características formais
700
Os amuletos encimados por cabeça humana podem atingir dimensões apreciáveis. O
mais pequeno possui 2,6 cm,1911 ao passo que o maior chega aos 18 cm, uma dimensão
verdadeiramente excepcional.1912 A altura média ronda os 6,3 cm, o que os diferencia bem
das restantes categorias de amuletos do coração.
Decoração
1911
Ver anexo III 7.A 17.
1912
Ver anexo III 7.A 7.
1913
Ver anexo III 7.A 11 e 7.B 8.
1914
Ver anexo III 7.B.
1915
Ver anexo III 8.
1916
Ver anexo III: 8.B 4 e 8.B 6.
701
Posição no amuleto Motivo iconográfico Quant.
Coroa atef 2
Cabeça Disco solar 1
Diadema 1
Lótus 5
Uraeus 1
Barba divina 1
Colar usekh 13
Corpo Braços 4
Disco solar 5
Escaravelho alado 8
Outras divindades 2 (Ré e Osíris)
Ave benu 4
Ave ba 2
Naos 8
Coração 1
Adoradores 1
Utilização
A dimensão destes amuletos, bem como o seu rico programa iconográfico remete de
imediato para uma utilização funerária ou votiva. Uma minoria apresenta anel de suspensão.
O dispositivo mais comum de fixar estes amuletos, pelo menos os do período ramséssida,
consistia num furo que atravessa a cabeça de lado a lado. Este furo poderia assim permitir a
fixação à múmia. É mesmo possível que alguns destes amuletos tivessem sido colocados na
múmia como uma peça complementar ao escaravelho do coração.1918 A inserção num
1917
Ver anexo III 7.C.
1918
Não nos esqueçamos que alguns escaravelhos do coração ostentam cabeça humana, pelo que as
relações entre estas duas classes de objectos tenderam a estreitar-se, sobretudo no período ramséssida.
702
peitoral vistoso era uma outra forma de usar o amuleto, capitalizando assim o seu belo
efeito decorativo.1919
Os amuletos da Época Greco-Romana apresentam um outro recurso que consiste no
achatamento da base de forma a permitir o seu uso como uma estátua votiva. Este
dispositivo permitiria que o amuleto fosse utilizado como uma estátua divina em miniatura,
neste caso, do «coração de Osíris», venerado na cidade de Athribis. Estas diferenças
apontam para uma mudança na utilização destes amuletos. No período ramséssida e muito
provavelmente até à Época Baixa, os amuletos do coração encimados por cabeça humana
foram utilizados como um objecto profiláctico protector da múmia e, como o seu tamanho
indica, em relação directa e equivalente, com o escaravelho do coração. A partir da Época
Greco-Romana, é visível o seu uso preferencial como objecto votivo.
Simbolismo
1919
Ver anexo III: 7.A 18 e 7.C 1.
1920
Quando representado isoladamente do corpo, o rosto humano tem o poder de evocar o indivíduo na
sua totalidade. Este recurso é utilizado noutros tipos de representações que envolvem objectos. Veja-se o
caso da representação da deusa Meskhenet, onde uma cabeça humana encima um tijolo. Também os
quatro filhos de Hórus são sinalizados através das respectivas da representação das respectivas cabeças sobre
os vasos de vísceras. (ver R. WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 41). Por essa razão, o vaso que contém o
fígado e que é protegido pelo deus Imseti assume contornos muito idênticos ao amuleto do coração que mais
não é do que um vaso encimado por uma cabeça. Também neste caso o vaso faz referência a uma víscera, neste
caso, o coração.
1921
A máscara funerária pode ter originado exactamente do desejo de fornecer um suporte capaz de preservar a
cabeça e a aparência do indivíduo sob a forma de um Osíris. Ver Ibidem.
703
vez que este era o principal processo que conduzia à justificação e à transformação num
Osíris.
O amuleto encimado pela cabeça humana ilustra assim o peso e o valor que a
consciência individual passava a ter para garantir a transformação do defunto num Osíris.
Este valor materializa-se no valor deste amuleto que utilizava materiais nobres e requeria
uma mão de obra especializada. A posse deste tipo de amuletos deve ter sido, portanto,
privilégio de poucas pessoas. É, no entanto, curioso que não se conheçam exemplares de
origem real (apenas um amuleto foi encontrado nos túmulos de Tânis, mas no cadáver de
uma mulher e não nos reis). O amuleto foi usado tanto por homens como por mulheres, mas
a representação faz sempre alusão a um rosto masculino, o que indica que estes objectos
não representam o indivíduo propriamente dito, mas sim a sua manifestação como Osíris,
ou seja, a sua manifestação como um maé-kheru, um justificado, como o indicam as
múltiplas referências ao imaginário iconográfico de Osíris. 1922 Já na Época Greco-Romana,
o amuleto passa a ser visto como a materialização do coração de Osíris venerado em
Ahtribis e o seu uso deixou de ser funerário para passar a ser estritamente votivo.
Datação
1922
O lótus que evoca a ressurreição, os braços mumiformes, o colar usekh da regeneração, a cabeleira
tripartida característica das divindades são alguns destes símbolos. A convergência entre o culto
funerário, osiríriaco, e o culto solar, que caracteriza a religião do período ramséssida, também se detecta
nas representações do amuleto que incluem os símbolos do horizonte heliopolitano, como a ave benu, o
escaravelho alado e os próprios deuses Ré e Osíris, representados em paralelo e reunidos no coração. Esta
união que ocorre no mundo inferior é precisamente o momento fulcral na renovação dos poderes
luminosos de Ré e na ressurreição de Osíris.
1923
Ver anexo III 10.1.
704
Características formais
A calcedónia foi usada num dos amuletos, ao passo que o xisto, ou uma pedra verde
escura, foi o material escolhido para a execução do amuleto conservado no Louvre. Apesar
da complexidade da decoração do amuleto do Cairo, estes objectos têm pequenas dimensões
(cerca de 3,5 cm nos dois amuletos). O resultado é um trabalho miniaturista com um alto
nível de execução técnica.1924
Decoração
Utilização
Simbolismo
1924
Ver anexo III: 10.1-2
705
do coração apresenta a cabeça do babuíno, do cão selvagem e do falcão. Estes atributos
podem evocar Hapi, Duamutef e Khebehsenuef. A hipótese de constituírem a evocação dos
quatro filhos de Hórus parece, de facto, verosímel sobretudo se pensarmos que, nesta óptica,
alguns dos amuletos encimados por cabeça humana poderiam ser Imseti e não tanto o
defunto osirificado. Nesta perspectiva, alguns destes amuletos seriam a miniaturização dos
vasos de vísceras.1925
Embora possam ter uma inspiração nos vasos de vísceras, o amuleto encimado por
cabeça humana rapidamente sofreu uma evolução própria que o levou a destacar-se do seu
simbolismo inicial e a associar-se às constelações mitológicas de Osíris, passando então a
representar o defunto identificado com Osíris.
1925
O aparecimento dos amuletos encimados por cabeça humana e os vasos de vísceras
encimados pelos quatro filhos de Hórus é concomitante e acontece no início do período ramséssida. Na
verdade o aparecimento de vasos de vísceras com as cabeças dos quatro filhos de Hórus verifica-se no
início da XVIII dinastia. No túmulo tebano de Kathinakht, contemporâneo do faraó Kames, foram
encontrados 3 vasos de vísceras com a fisionomia de Duamutef, Khebehsenuef e Imseti. No entanto, a sua
generalização na cultura material só é visível a partir da XIX dinastia. Para ver estes objectos ver W.
HAYES, The Scepter of Egypt, p. 72. A razão para que os amuletos do coração tenham adoptado no seu
reportório a configuração dos vasos de vísceras deve-se à extensão que a noção do coração possuía na
anatomia egípcia. Apesar do hati, o músculo cardíaco, constituir o centro do coração, este abrangia todo o
interior do corpo, abrangendo portanto as restantes vísceras que eram guardadas nos vasos especialmente
produzidos para o efeito. A evocação dos quatro filhos de Hórus nos amuletos do coração decorre da
própria noção do coração como uma entidade abrangente, o ib, que engloba os vários órgãos que, depois
da mumificação, são guardados no exterior da múmia.
706
XIV. As representações do amuleto cordiforme
1926
Encontrada em fragmentos sucessivos entre os blocos que enchiam o terceiro pilone de Karnak, a
estela tem vindo a ter uma leitura cada vez mais completa. Para conhecer o conteúdo deste documento ver
I. HARARI, ASAE 56 (1959), pp. 1-63.
1927
Ver anexo IV 2.A 1.
1928
Ver anexo IV 2.A 2.
1929
Ver anexo IV 2.A 3.
707
assegurava a função de intermediário com os deuses. O amuleto cordiforme parece,
neste contexto, assinalar o estatuto divino do faraó.
Uma outra representação real pertence à XIX dinastia e pode ser contemplada no
templo cenotáfio de Seti I, em Abido, onde é o próprio Merenptah que usa o amuleto
cordiforme.1930 O uso do amuleto tem, neste monumento, um cariz funerário e
relaciona-se com a justificação do rei.1931 Estamos, portanto, perante um uso bem
diferente das anteriores, onde o amuleto figura como um atributo do príncipe ou do
soberano.
Da XXV dinastia, um contrapeso de colar menat representa o rei Taharka com o
amuleto cordiforme, enquanto é amamentado por Sekhmet. No registo inferior o deus
Hórus está pousado, sob a forma de falcão, sob um serekh real, rodeado pelas Duas
Senhoras, Nekhbet e Uadjet.1932 Este tipo de representação enquadra-se na temática
da coroação real e é normalmente representada neste contexto ritual para assinalar o
nascimento da natureza divina do faraó. A celebração do nascimento divino do faraó
parece ter sido, de facto, valorizada pelos reis cuchitas pois, desse modo,
desvalorizavam a sua origem estrangeira. Datado de uma época indeterminada, um
relevo esculpido nos muros do pátio do X pilone, em Karnak, apresenta o rei diante
da tríade de Karnak composta por Amon, Khonsu e Mut.1933 O rei é aqui
representado como uma criança, adornado unicamente com o amuleto cordiforme.
Também neste caso o uso do amuleto parece reportar-se ao nascimento divino do
faraó.
Outra representação real com o amuleto cordiforme é proveniente de Musaurat
es-Sufra, no Sudão, e consiste num relevo do século III a. C, representando o rei núbio
Arnekhamani.1934 Apresentando uma indumentária muito elaborada, bem como o
toucado hemhem usado pelos herdeiros divinos, o rei possui, entre as pesadas jóias, um
amuleto cordiforme. A combinação do toucado e do amuleto faz supor uma
identificação do rei com Horpakhered, a qual, como no relevo de Tutmés III, serve o
propósito de reforçar a eficácia da acção real.
Outras representações mostram o rei não a usar o amuleto mas sim a doá-lo como
oferenda a uma divindade. Em Philae, Alexandre é representado a oferecer dois
vasos de unguentos a uma divindade.1935 Na retaguarda é representado um amuleto
do coração num suporte de vaso, o que indica que se trata de um amuleto de tipo
vaso, oco, como os que estudámos na rubrica anterior. Amuletos como os
documentados em anexo III FFF, podiam, deste modo, ser usados no culto divino.
Em Karnak, um faraó oferece a Montu dois amuletos cordiformes.1936 Neste caso, a
dádiva é acompanhada pela seguinte inscrição:
1930
Ver anexo IV 2.A 4.
1931
Ver H. FRANKFORT, The Cenotaph of Seti I, II, Plate LXXII
1932
Ver anexo IV 2.A 6.
1933
Ver anexo IV 2.A 5.
1934
Ver anexo IV 2.A 8.
1935
Ver anexo IV 2.A 10.
1936
Ver anexo IV 2.A 9.
708
Toma o teu coração ib para ti. O teu coração hati repousará no seu lugar.
Os dois corações constituem uma oferenda real, conotada com o coração ib, que
tem como intuito fazer «repousar» ou «contentar» o coração hati do deus.
O uso do amuleto cordiforme nestes exemplos, embora semanticamente
próximos (em todos os casos se pretende sublinhar a legitimidade e a pureza do herdeiro
do trono) difere ao nível do significado específico que este símbolo desempenha em
cada um destes momentos. Nas primeiras representações é a pureza do sangue que está
em causa, ao passo que nas cenas do templo cenotáfio de Seti I detecta-se um sentido
mais espiritual relacionado com a pureza do comportamento avaliada no tribunal de
Osíris. As representações cuchitas procuravam, através do amuleto, assinalar o
nascimento divino do rei e a sua identificação com um deus da juventude. O peitoral de
Tutmés III, vem por fim alertar, para a possibilidade do amuleto estar relacionado com
determinadas cerimónias reais que conferiam ao rei o seu estatuto divino e asseguravam
a sua função como intermediário divino. Outras representações asseguram que os
amuletos cordiformes podiam ser usados no culto divino, quer sob a forma de vasos de
unguentos, quer sob a forma convencional de amuletos, os quais eram oferecidos às
deidades no âmbito do culto, o que concorre para estabelecer um forte elo entre estes
objectos e o rei. Sucedem-se assim sentidos diferentes no uso do amuleto cordiforme ao
longo do tempo, os quais tentaremos explicitar nas secções seguintes do nosso trabalho.
A XVIII dinastia
709
que viveu sob o reinado de Amen-hotep II.1937 Para além do duplo amuleto cordiforme,
este alto dignitário ostenta, em volta do pescoço, os chebiu, pesados colares compostos
por discos de ouro que eram atribuídos pelo rei como recompensa aos seus funcionários
mais destacados. Esta associação entre o «ouro de honra» e o duplo amuleto cordiforme
tem vindo a alicerçar a ideia segundo a qual o duplo amuleto «cardíaco» teria sido um
privilégio raro concedido pelo rei aos seus funcionários mais excepcionais. O facto é
que Sennefer também se fez representar com este duplo amuleto no seu túmulo da
necrópole de Cheikh Abd el-Gurna (TT 96).1938 Nas representações mais detalhadas do
seu túmulo observa-se uma coloração diferente nos dois corações que compõem o
amuleto, sugerindo a evocação de materiais diferentes como o ouro e a prata. Além
disso, no refrido túmulo, os dois corações estão normalmente decorados com as cartelas
reais de Amen-hotep II.1939 Todos estes indícios apontam efectivamente para a
possibilidade do duplo amuleto cardíaco ser uma condecoração real.
Apesar de raramente representado, este objecto surge pelo menos num outro
túmulo da XVIII dinastia, desta vez na esplêndida sepultura de Khaemhat (TT 57),
escriba real e inspector dos celeiros do Alto e do Baixo Egipto sob o reinado de Amen-
hotep III.1940 Neste túmulo, Khaemhat faz-se representar com uma ampla variedade de
amuletos cordiformes1941 entre os quais se destaca um amuleto duplo gravado sobre o
seu peito onde Khaemhat foi representado em configuração mumiforme.1942 Para além
de ser, com toda a probabilidade, uma condecoração real, o significado deste objecto
não é fácil de apurar. Georges Legrain num artigo publicado há já cem anos, mas muitas
vezes esquecido, chamou a atenção para o facto deste amuleto constituir uma
transposição iconográfica do termo ibui (ibwi). A tradução desta palavra não é
consensual. Pode ser traduzida como um superlativo («coração dos corações») ou
«ícone» ou «imagem», no sentido de uma imagem divina. Com efeito, na terminologia
religiosa, o termo pode ser usado da seguinte maneira: «Sokar é a imagem (ibwi) de
1937
Ver anexo IV 2.B 1.
1938
Ver anexo IV 2.F 4.
1939
Apenas num caso apresenta um nome distinto: trata-se de Alexandre, uma «usurpação» tardia
resultante certamente da visita de um viajante estrangeiro.
1940
Ver anexo IV 2.B 2.
1941
Khaemhat apresenta o amuleto cordiforme simples, integrado num peitoral com os signos djed e «nó
de Ísis» e ainda um duplo amuleto do coração. Ver também anexo IV 2.F 2 e 2.F 5.
1942
A representação faz parte de um grupo escultórico composto por si e por um outro «colega» de
profissão O critério para a constituição destes grupos não é claro e provavelmente obedeceu apenas à
vontade dos seus possuidores. O grupo de Sennefer representa-o com uma mulher e a filha, ao passo que
Khaemhat está acompanhado por um colega, Imhotep, também ele escriba real.
710
Amon»1943. Um dado interessante é que em Karnak os faraós possuíam uma «imagem»,
ibui, que recebia culto um culto particular.1944 É possível que os funcionários que
apresentem esta condecoração estivessem envolvidos na manutenção de um tal culto ao
rei. Nesse caso seriam, eles próprios, uma «imagem» do rei para os súbditos que não
tinham a possibilidade de ver directamente o faraó. É claro que essa distinção os dotava
de uma grande veneração e respeitabilidade.
Em ataúdes e sarcófagos também é possível detectar representações do amuleto
cordiforme, sempre localizadas no peito do defunto. Os três exemplares datados deste
período evidenciam características muito semelhantes. O amuleto é representado
suspenso sobre um fio de contas grosso disposto, em geral, sobre um largo colar usekh.
As mãos do defunto ladeiam o amuleto e, em alguns casos, ostentam os signos djed e
«nó de Ísis», tjet. O mais antigo exemplar remonta ao reinado de Tutmés III e foi
construído para Amen-hotep, o «superior dos construtores de Amon». 1945 Maherpa,
amigo íntimo do rei Tutmés IV, foi outra grande personalidade a ser recompensada com
uma destas representações.1946 O sarcófago de Khai, um alto funcionário do rei
sepultado na Núbia, actualmente conservado no Museu de Elefantina, apresenta também
a um grande amuleto cordiforme.1947 Era, com certeza, um representante da coroa nas
fronteiras meridionais do reino.
Também na XVIII dinastia se começou a gravar o amuleto cordiforme sobre as
estatuetas funerárias. A razão para esta incidência deve estar relacionada com uma das
funções destas estatuetas, que era a de constituir uma réplica da múmia ou do sarcófago
antropomorfo.1948 A presença dos amuletos cordiformes nos ataúdes foi, com toda a
probabilidade, o factor que espoletou a sua representação nas estatuetas funerárias.
Contamos na nossa amostra com três figurinhas deste tipo, decoradas com o amuleto
cordiforme, todas feitas de madeira, como era característico nas estatuetas funerárias
1943
Estátua 409 do esconderijo de Karnak, em G. LEGRAIN, «Le mot ibwy, image, icone», RT 11
(1905), p. 181.
1944
A estátua 122 do esconderijo de Karnak menciona um «sacerdote puro do ibwi do rei Osorkon»: «Eu
fiz o ibwi de Djeserkaré, o justificado, em ouro e todas as pedras preciosas (…)» Nesta passagem o ibwi
era uma imagem divina, do deus ou de um rei divinizado.
1945
Ver anexo IV 2.C 1.
1946
Ver anexo IV 2.C 2.
1947
Ver anexo IV 2.C 3.
1948
Efectivamente a estatueta funerária constituía um «duplo» da múmia e era a sua miniatura (Ver L.
ARAÚJO, Estatuetas Funerárias Egípcias da XXI dinastia, p. 108). Inicialmente, a função destas
estatuetas deve-se ter limitado a esta função, só posteriormente vindo a adquirir a função de substituir o
morto nos trabalho do Além o que levou a inscrever a fórmula 6 do «Livro dos Mortos». As primeiras
destas miniaturas remontam à XI dinastia e a sua criação pode relacionar-se com a obrigatoriedade,
introduzida no Império Médio, de prestar trabalho em obras públicas (ver I. SHAW (dir), The Oxford
History of Ancient Egypt, p. 182).
711
deste período chamadas precisamente chauabti ou seja, «feito de madeira de
persea».1949 Embora, infelizmente, a maior parte destas estatuetas não apresentem os
títulos das personagens representadas, uma delas pertenceu a Iuia, uma das mais
eminentes individualidades do reinado de Amen-hotep III.1950 O requinte e a qualidade
das restantes peças devem-nos alertar para o estatuto igualmente elevado dos seus
1951
proprietários. Também proveniente do túmulo de Iuia é uma interessante estatueta
funerária do defunto sob a forma de uma ave ba. Também aqui o amuleto foi pintado
em redor do pescoço da ave.1952 Neste caso, a representação do amuleto relacionava-se,
deste modo, com um dos principais atributos do ba: manifestar-se como um poder
luminoso capaz de empreender a saída para o dia.1953
O período ramséssida
1949
Em L. ARAÚJO, Estatuetas Funerárias Egípcias da XXI dinastia, p. 108.
1950
Ver anexo IV 2.D 1.
1951
Ver anexo IV 2.D 3-4.
1952
Ver anexo 2.D 2.
1953
Sobre a importância desta característica no Império Novo ver L. ZABKAR, A Study of the Ba
Concept, p. 141.
1954
Ver anexo IV 2.B 3.
1955
Ver anexo IV 2.C 4.
1956
Ver anexo IV 2.D 5-10.
1957
A figura do capataz surgiu neste período como uma nova modalidade destas estatuetas.
712
O Terceiro Período Intermediário
1958
Ver anexo IV 2.D 11.
1959
Em A. NIWINSKY, XXI dynasty Coffins from Thebes, p. 78. Deste modo, a ladear o amuleto é muito
provável encontrar a ave benu, o deus Khepri, deusas aladas (com forma humana ou com forma de
serpente), o deus Anúbis, mas também objectos inanimados como o totem de Abido, tauer, e certos
hieróglifos, como os signos udjat, nefer e neb. Debaixo do amuleto encontra-se frequentemente um
peitoral alusivo a Khepri, ou a deusa Nut com as asas estendidas sobre o defunto, ao passo que, sobre o
amuleto podem ser dispostas várias representações: o deus Khepri, o disco solar, o totem tauer ou dois
vultos divinos sem uma identidade definida.
1960
De notar que, na tipologia apresentada por Andrzej Niwinski para classificar os ataúdes da XXI
dinastia, são sobretudo os ataúdes de tipo III que mais frequentemente apresentam este tipo de
representações. Estes ataúdes, datados do pontificado de Pinedjem II, caracterizam-se por possuírem um
grande colar usekh que se sobrepõe totalmente aos braços, deixando apenas as mãos expostas. A
tipologia é apresentada em A. NIWINSKY, XXI dynasty Coffins from Thebes, pp. 67-96. Ver anexo IV
2.C 5-12.
713
por duas serpentes.1961 Trata-se do mesmo peitoral representado em Deir el-Bahari sobre
o peito de Tutmés III. Verifica-se, deste modo, a apropriação de um objecto que, na
XVIII dinastia, possuía fortes conotações com a realeza. O simbolismo deste objecto,
vincadamente solar, remete para estabelecer uma associação entre o coração e sol. Do
ponto de vista simbólico, o peitoral faz alusão ao despertar de uma consciência
iluminada. É, no entanto, interessante constatar que, em Tutmés III este acontecimento
justificava o estatuto divino do faraó e tinha lugar em vida ao passo que, entre os
sacerdotes de Amon era um atributo funerário e estava conotado com a ressurreição.
O ataúde de Direpu, uma cantora de Amon, apresenta um outro peitoral com a
representação de uma ave ba ladeada por amuletos do coração de cor negra.1962 Os
amuletos do coração estão encimados por discos solares vermelhos, ao passo que a ave
ba possui um disco negro sobre a cabeça.
O peitoral representado sobre a cobertura de múmia de Padiamon, um sacerdote
de Amon que viveu sob o pontificado de Pinedjem II, apresenta uma imagem muito
sugestiva, de outro peitoral alusivo ao coração.1963 Neste caso, um escaravelho
criocéfalo alado, simbolizando o sol nocturno, segura entre as patas traseiras um
amuleto do coração encimado por um disco solar ladeado por duas serpentes. Trata-se
novamente de um desenvolvimento da ideia já presente numa representação anterior: o
despertar de uma consciência iluminada como símbolo da ressurreição. 1964 Nos ataúdes
soberbos de Pinedjem II e de Nesikhonsu, encontramos, na região do peito, elaboradas
composições com um programa simbólico semelhante.1965 No epicentro destas
composições está o escaravelho Khepri,1966 empunhando nas patas dianteiras o disco
solar e, nas patas traseiras, o coração. Todas estas composições ilustram a regeneração
do disco solar ocorrida no mundo inferior. A associação entre o amuleto do coração e o
escaravelho alado não pressupõe, no entanto, uma identificação entre estes dois
1961
O peitoral representado na cobertura de múmia de Unet tem uma forma rectangular e apresenta, no
centro, um coração negro, encimado por um disco solar vermelho, ladeado por duas serpentes, também
elas encimadas por discos solares. Sobre a tampa do ataúde de Unet foi representada uma composição
idêntica mas desta feita sem recurso ao peitoral naóforo. Neste caso as serpentes envolvem o amuleto do
coração que, por sua vez, está preso a um colar de contas.Ver anexo IV 2. C 13-16.
1962
Ver anexo IV 2. C 17
1963
Ver anexo II G 20.
1964
As crenças funerárias da XXI dinastia revelam um grande entrosamento entre as crenças solares e as
osiríacas. Ver A. NIWINSKY, XXI dynasty Coffins from Thebes, p. 15.
1965
Ver anexo IV 2.C 18-19.
1966
Em certos exemplares, o escaravelho foi representado com a cabeça de carneiro, o que, para
Niwinski, constitui a imagem mais compacta do Ser supremo, constituindo uma forma criptográfica do
nome Ré-Atum-Khepri, à qual se reunia o amuleto cordiforme como um símbolo de Osíris. Em A.
NIWINSKI, «The solar-osirian unity as principle of the theology of the “State of Amun” in Thebes in the
XXI dynasty», JEOL 30 (1987-1988), pp. 87-106.
714
importantes símbolos. Pelo contrário, a dualidade entre o amuleto cordiforme e o
escaravelho serve de pretexto para ilustrar uma outra relação dinâmica que marca a
teologia egípcia pós-amarniana: a síntese solar-ctónica que se manifesta na união entre
Ré e Osíris.1967 Os dois símbolos da consciência tornavam-se assim na base para a
identificação do defunto com as duas facetas do grande deus. O amuleto cordiforme
materializava a faceta osiríaca e ctónica do defunto, ao passo que o escaravelho alado
1968
fazia alusão à sua manifestação solar. Os elaborados peitorais representados nos
ataúdes deste período exprimem, deste modo, a associação do defunto aos aspectos
solares e ctónicos do grande deus. Com estas representações o defunto associava-se ao
eterno curso do sol, ao seu perpetuum mobile, mas também se identificava com o
triunfo de Osíris sobre a morte.1969
A Época Baixa
1967
A visão de um deus supremo ficou marcada, no Império Novo, pela ideia de um deus solar, princípio
de vida e causa última da criação, e de um deus ctónico, princípio de regeneração e de renascimento.
Ambos os princípios são complementares e mutuamente dependentes. Em Idem, p. 89.
1968
Nesta perspectiva, o amuleto cordiforme surge prioritariamente como uma evocação osiríaca
(sublinhada por vezes com a representação do totem tauer ou do próprio nome de Osíris, Wsir) que é
frequentemente colocada em relação dinâmica com um símbolo solar (como o ba, o disco solar, a ave
benu ou o escaravelho solar). Dois ciclos religiosos dominam o pensamento teológico do Império Novo: o
do Sol (que simboliza o deus transcendente, elevado e visível) e o de Osíris (encarnando o imanente, a
causa subterrânea da vida e o invisível). São perspectivas complementares e constituem uma unidade que
se tornou ao longo do tempo cada vez mais indissociável, culminando, na XXI dinastia, na formulação de
uma unidade completa entre Ré e Osíris. A rica iconografia deste período reflecte a unidade dos aspectos
solares e ctónicos do grande deus. Na verdade, cada representação complexa de um símbolo deve ser
entendida como tendo um simultaneamente sentido solar e ctónico. A imagem mais compacta do Ser
supremo era expressa iconograficamente na figura do escaravelho encimado pela cabeça de carneiro à
qual pode ser adicionado outros elementos como asas, falo, disco solar, ou coroas., Esta figura podia ser
usada como forma criptográfica do nome Ré-Horakhti-Atum-Khepri. A. NIWINSKI, «The solar-osirian
unity as principle of the theology of the “State of Amun” in Thebes in the XXI dynasty», JEOL 30 (1987-
1988), p. 91-102. Deste modo, as grandes representações de escaravelhos alados e de amuletos do coração
que decoram magnificamente o peito dos ataúdes antropomórficos deste período, jogam intencionalmente
com a dualidade do simbolismo inerente ao escaravelho do coração e ao amuleto cordiforme para extrair
uma imagem que manifeste a síntese entre Osíris e Ré.
1969
Trata-se de uma característica comum nas representações elaboradas sobre os ataúdes da XXI
dinastia. Frequentemente os motivos das constelações solares e ctónicas são combinadas no seio de uma
mesma estrutura formal, como acontece nas representações sobre as quais agora nos debruçamos. É,
portanto frequente que uma representação, aparentemente solar ou osiríaca, revele interpenetrações com
motivos da constelação simbólica complementar. Sobre a iconografia representada nos ataúdes da XXI
dinastia ver Idem, pp. 89-106.
1970
Ver anexo IV 2.C 22-26.
1971
Ver S. IKRAM e A. DODSON, The Mummy in Ancient Egypt, pp. 238-239.
715
começou a representar o amuleto do coração em conjunto com o capítulo 26 do «Livro
dos Mortos». Apesar da inflexão resultante da mudança do programa decorativo destes
sarcófagos, alguns símbolos como o escaravelho alado e a ave ba continuaram a ser
associados à representação do amuleto do coração, ainda que sem a densidade
iconográfica da XXI dinastia. A associação entre o escaravelho sagrado e o amuleto do
coração permite constatar que o simbolismo dualista estabelecido no Terceiro Período
Intermediário continuou a vigorar na Época Baixa.
Por vezes, os mesmos temas cardíacos foram usados sobre os ataúdes de animais
sagrados, como em carneiros divinos.1972 Num destes casos, a deusa Nut estende as suas
asas sobre o escaravelho alado que, por sua vez, ergue um relicário no interior do qual
figuram dois deuses mumiformes acocorados (Ré e Osíris?) sobre o qual está representado
um amuleto do coração. Trata-se, novamente, de uma composição que coloca em jogo a
relação dinâmica entre o simbolismo do amuleto cordiforme e o escaravelho sagrado, como
pretexto para exprimir a síntese solar-osiríaca.
A Época Greco-Romana
1972
Ver anexo IV 2.C 27
1973
Ver anexo IV 2.E 1-9.
1974
Ver anexo IV 2.C 26.
1975
Ver Idem, pp. 240-241.
716
momento, a possibilidade de uma mudança de sentido do amuleto também é plausível.
A viragem interpretativa deste amuleto repercutiu-se, por exemplo, no facto do amuleto
perder a ligação privilegiada à região do peito. A representação do amuleto nas
máscaras é, deste modo, mais um indicador que reforça a ideia que, a partir da Época
Greco-Romana, o amuleto é usado com um valor apotropaico íntrinseco susceptível de
ser canalizado para proteger qualquer parte do corpo.
1976
Ver anexo IV 2.F 5.
1977
R. WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 165
1978
Ver anexo IV 2.F 1-3.
717
funerárias, dois colares usekh e uma máscara funerária.1979 À excepção das estatuetas,
todos estes objectos, incluindo o amuleto do coração, destinavam-se certamente a ser
colocados na múmia. Noutra representação o amuleto é oferecido pela filha de Sennefer,
em conjunto com outros bens funerários, como tecidos, unguentos e alimentos.1980 Estas
representações do túmulo de Sennefer chamam, deste modo, a atenção para a existência
de duas categorias de amuletos cordiformes: uma usada na vida terrena (e transportada
para o Além) e outra com conotações estritamente funerárias.
1979
Ver anexo IV 2.F 6.
1980
Ver anexo IV 2.F 7.
1981
Ver anexo IV 2.G 1.
1982
Tal é o caso da estela de Mesu e Api, encontrada em Deir el-Medina (anexo IV 2.G 4-5), bem como
da vinheta do «Livro dos Mortos» de Nesitanebetacheru (anexo IV 2.G 6) e da representação de
Nesiamenemopet (ver anexo IV 2.G 7)
1983
Ver anexo IV 2.G 3.
718
representações sugerem, deste modo, que o primeiro significado do amuleto se
reportava ao estatuto de herdeiro (primeiramente aplicado à família real e
posteriormente alargado para um uso «doméstico» e privado).
Já na XVIII dinastia, mas sobretudo a partir do período rameséssida, este
significado foi claramente secundado em benefício de uma interpretação religiosa
relacionada com as expectativas da vida no Além, sendo então mais associado ao morto
do que ao garante do culto funerário. Nesta linha, o amuleto contribuía para assinalar a
condição social do defunto. Note-se que, nas representações de casais, a mulher nunca
apresenta o amuleto. Na verdade, as representações do amuleto em mulheres são muito
raras e, quando ocorrem, assinalam um estatuto social bastante elevado, como é o caso
da dama Nesitanebtacheru, filha do sumo sacerdote de Amon, Pinedjem II, e
Nesikhonsu.1984
Não obstante, o amuleto é ocasionalmente representado, no contexto funerário,
como um adereço usado pelos vivos. Tal é o caso de um ataúde da XXII dinastia, que
apresenta um cortejo funerário onde os puxadores do carro mortuário, vestidos com
luxuosos trajes cerimoniais, têm todos um fio com o amuleto cordiforme. 1985 Longe de
serem meros servos, a sua indumentária mostra bem a dignidade da sua posição. O uso
do amuleto cordiforme por estas seis personalidades faz pensar num uso deste objecto
como privilégio de um círculo restrito de indivíduos que presta homenagem ao defunto.
Pela análise destes dados afiguram-se assim três tipos de usos. No início da
XVIII dinastia, o amuleto era usado pelos vivos, como reflexo da sua legitimidade para
garantir o culto funerário. Sobretudo a partir do período ramséssida, o amuleto era
usado preferencialmente pelo defunto como sinal da sua condição social e estatuto.
Finalmente, no Terceiro Período Intermediário, para além de se manter o uso do
amuleto pelos defuntos justificados, o amuleto parece continuar a ser ocasionalmente
pelos vivos como sinal distintivo. Estes dados permitem pensar que os dois tipos de
usos talvez nunca tivessem deixado de coexistir, muito embora o seu peso e importância
flutuasse ao longo do tempo.
1984
Ver anexo IV 2.G 6. Sobre Nesitanebtacheru ver L. ARAÚJO; Estatuetas funerárias egípcias, p. 896.
1985
Ver anexo IV 2.G 8.
719
O amuleto cordiforme assinala, em primeiro lugar, a justificação do defunto. Por
essa razão, as representações do amuleto são alusivas quer à psicostasia, quer à
adoração de Osíris, a qual comentaremos na rubrica seguinte. As representações da XXI
dinastia da psicostasia tornam explícito um dado que já em representações anteriores se
adivinhava. No Além, o defunto recebia o amuleto cordiforme na própria pesagem do
coração.1986 Normalmente, o homem recebe o amuleto e adopta uma atitude júbilo
muito característica elevando os braços de forma exuberante e agitando penas maéticas
que simbolizam a justificação.1987 É bastante claro que, nestes casos, o amuleto
cordiforme constitui uma recompensa pelo resultado obtido na psicostasia.
Uma das vinhetas mais importantes do «Livro dos Mortos» apresenta o defunto
a adorar Osíris, como resultado da sua justificação. Nestas circunstâncias, o defunto
apresenta um amuleto cordiforme.1988 No exemplar do «Livro dos Mortos» do
arquitecto Kha e da sua mulher Merit, descoberto em Deir el-Medina (TT 8), o casal
apresenta-se diante de Osíris numa grande e bela vinheta, em que Kha usa um amuleto
cordiforme em ouro. O papiro funerário de Iuia (descoberto no túmulo KV 46) também
apresenta uma vinheta que, embora em mau estado de conservação, permite constatar
que esta grande personalidade do reinado de Amen-hotep III também usava um tal
amuleto. Iuia apresenta-se diante de Osíris com a esposa, Tuia, elevando os braços num
gesto de adoração.1989 Nos ataúdes da XXI dinastia, o amuleto foi também
ocasionalmente representado no contexto da apresentação do defunto diante de
Osíris.1990
1986
Ver anexo IV 2. I.
1987
Apenas uma destas representações retrata uma mulher, Unet, uma cantora de Amon que comparece
diante do tribunal de Osíris com um amuleto do coração. Ver anexo IV 2. I 1.
1988
Também aqui se detecta um uso do amuleto unicamente por parte do homem. Quando um casal é
representado, é sempre o homem que ostenta o amuleto. Ver anexo IV 2.H 1-2 e 2. H 5.
1989
Note-se que, no âmbito dos objectos encontrados no KV 46, já aqui fizemos referência a objectos que
fazem alusão ao amuleto cordiforme: a estatueta funerária de Iuia, assim como um amuleto ambíguo que
tanto pode ser classificado como um escaravelho do coração como um grande amuleto cordiforme. As
representações patentes quer no «Livro dos Mortos» quer na estatueta funerária podem constituir uma
alusão a um objecto que efectivamente existia e que pode ter sido o próprio amuleto/escaravelho do
coração usado na múmia.
1990
Ver anexo IV 2. H 3.
720
Mas o testemunho mais importante deste conjunto de representações é a
apresentação de Merenptah diante de Osíris, gravada nas paredes da «câmara funerária»
do Osireion de Abido.1991 Levando a mão ao amuleto, o faraó é conduzido por Anúbis
diante de Osíris. O significado do amuleto neste tipo de cenas é explicitado pela própria
inscrição que acompanha estas imagens:
1991
Ver anexo IV 2.H 4.
1992
Ver anexo IV 2.H 5.
1993
Ver anexo IV 2.J 1. Este jogo adquiriu conotações funerárias sobretudo a partir do Império Novo,
sendo mencionado no capítulo 17 do «Livro dos Mortos». Simbolicamente o jogo fazia alusão à
existência no Além, a qual era vista como uma partida jogada com as entidades que aí habitavam. O
sucesso estava assim relacionado com uma existência feliz no outro mundo. Não esqueçamos que na
escrita hieroglífica, o jogo significa «perdurar», facto que poderá estar na base do simbolismo funerário
que o jogo adquiriu. Ver R. WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 211. Entre os vários jogos
721
A vinheta do capítulo 38 do «Livro dos Mortos», por vezes, representa o
defunto, dotado com o amuleto cordiforme, a segurar no símbolo da brisa.1994 Noutros
casos, mais frequentes, o defunto é representado com o amuleto junto da deusa árvore,
um aspecto funerário da deusa Hathor, a receber alimentos e bebidas revitalizadoras do
dom da vida.1995 Nestes contextos de representação, as dádivas oferecidas ao defunto
parecem constituir, em última análise, os benefícios atribuídos aos justificados, ou seja,
aos que, em resultado da sua virtude, receberam o amuleto cordiforme.
Outros benefícios menos tangíveis também podiam ser atribuídos na sequência
da justificação. Nestes casos, o amuleto cordiforme abria as portas para o contacto com
as divindades do Além. No túmulo de Irinefer (TT 290), por exemplo, o defunto
apresenta o amuleto numa atitude respeitosa perante a ave benu enquanto navega na
barca solar diurna.1996 No túmulo de Khakhebenet (TT 2), o defunto presta louvor a Tot,
que adopta a configuração de babuíno.1997
Noutro tipo de representações mais complexas, o defunto apresenta o amuleto
cordiforme enquanto participa nos grandes acontecimentos cósmicos que marcam a
viagem no mundo inferior. No túmulo de Irinefer (TT 290), o defunto apresenta o
mesmo amuleto enquanto presta louvor a várias entidades alusivas às metamorfoses do
defunto no Além, o que parece indicar que o amuleto cordiforme auxilia o defunto a
adoptar estas transformações.1998 No túmulo de Amenemopet (TT 41) podemos
identificar três representações relacionadas com o amuleto cordiforme. 1999 Em duas
delas o defunto segura numa das mãos o símbolo do vento, aludindo ao sopro da vida e
leva a outra mão ao peito para segurar o amuleto cordiforme. Nesta posição, o defunto
assiste ao seu próprio encontro com Anúbis, ao passo que, do outro, assiste à sua faina
nos campos de Iaru. Na mesma parede, outra representação de Amenemopet mostra a
estátua do ka munida com o amuleto do coração diante de representações do Além que
mostram o lago de fogo e o combate de Apopis.
Nas representações da vida do Além datadas da XXI dinastia, o defunto munido
com o amuleto cordiforme podia assistir às grandes encenações divinas que garantiam o
conhecidos o do senet terá sido, porventura, o mais popular (ver R. SOUSA, «Jogos», em L. Araújo (dir),
Dicionário do Antigo Egipto, pp. 458-459.
1994
Ver anexo IV 2.J 2.
1995
Ver anexo IV 2.J 3-4.
1996
Ver anexo IV 2.J 5.
1997
Ver anexo IV 2.J 7.
1998
Ver anexo IV 2.J 6.
1999
Ver anexo IV 2.J 8.
722
equilíbrio cósmico. A misteriosa regeneração do disco solar,2000 o triunfo da barca solar
sobre Apopis2001 ou as manobras de Tot para fazer «uma abertura no céu»2002
(correspondente ao capítulo 161 do «Livro dos Mortos»2003) são exemplos de
ocorrências que fazem relacionar o amuleto cordiforme com a vitória do sol sobre as
trevas, da qual depende a regeneração do cosmos.2004
Analisando estas representações constatamos, em primeiro lugar, que as
experiências às quais o defunto justificado podia aceder no Além possuíam, na XXI
dinastia, um carácter bastante mais abrangente do que as que estavam previstas no
período ramséssida. De um modo geral, o amuleto do coração assinala as recompensas
dadas ao defunto na qualidade de um justificado, um aliado da luz e da ordem cósmica.
É nessa qualidade que o amuleto abria ao defunto as portas para a sobrevivência no
Além e lhe concedia a possibilidade de se alimentar, de «ver» os deuses e, sobretudo, de
sair para o dia e encaminhar-se para os Campos de Iaru, integrando a tripulação de Ré e
participando no combate contra as forças do caos. Por fim, um peitoral pertencente a
uma dama com o nome de Mehitkhati apresenta uma representação bastante ilustrativa
sobre o significado funerário do amuleto cordiforme.2005 A dama ergue as duas mãos em
direcção ao amuleto situado no peito, num gesto que imita o da deusa Nut por ocasião
do nascer do sol. A representação faz, deste modo, alusão ao despertar da consciência e
da vida no Além, como consequência da justificação.
2000
Ver anexo IV 2.J 11.
2001
Ver anexo IV 2.J 10.
2002
Ver anexo IV 2.J 12.
2003
Ora este capítulo começa com a proclamação da vitória de Ré sobre os inimigos da luz (corporizados
na tartaruga): «Que Ré viva e morra a tartaruga! O corpo está reunido sob a terra. Os ossos de Osíris N.
estão (também) reunidos (...)». LdM 161.
2004
O fim do período ramséssida e a XXI dinastia constitui o auge do desenvolvimento da expressão
pictórica do pensamento religioso do clero tebano. As composições iconográficas reflectem as
concepções teológicas abstractas e ilustram um conhecimento iniciático de verdades e de mistérios que
só podiam plenamente vividos no Além. A. NIWINSKI, «The solar-osirian unity as principle of the
theology of the “State of Amun” in Thebes in the XXI dynasty», JEOL 30 (1987-1988), p. 91
2005
Ver anexo IV 2. J 12.
2006
O testemunho proporcionado pela decoração tumular é especialmente importante, não só pelo
significado explícito, mas também pelo significado implícito. Na verdade, inicialmente a decoração da
723
antes de mais nada distinguir dois tipos de representações que envolvem a purificação.
Em certos casos, a purificação destina-se a ser empreendida sobre a estátua do ka.
Nestas circunstâncias a purificação é desempenhada simplesmente pelo sacerdote do
culto funerário, o sacerdote sem. Purificações deste tipo foram representadas, por
exemplo, no túmulo de Sennefer (TT 96)2007 e no túmulo de Siesi,2008 em Abido, onde
parecem estar relacionadas com o ritual da abertura da boca. Nestas representações o
amuleto do coração foi colocado sobre a estátua do ka e não sobre o defunto.
Outro tipo de purificação mais complexa envolve habitualmente um conjunto
variável de sacerdotes distribuídos na composição em quatro grupos, podendo ainda
contar com um número alargado de sacerdotes que assiste à cerimónia. Representações
deste tipo podem ser encontradas também no túmulo de Sennefer (TT 96),2009 Ramés
(TT 55),2010 ambos detentores do cargo de governador de Tebas, nos reinados de Amen-
hotep II e Amen-hotep III, respectivamente. Ainda da XVIII dinastia figura a cerimónia
de purificação do túmulo de Duauneheh (TT 125).2011 Do período ramséssida, perfila-se
ainda a cena de purificação representada no túmulo de Userhat (TT 51).2012 Uma
derivação deste tipo de purificação consiste na substituição dos sacerdotes pelos
próprios deuses. É o que sucede, no período ramséssida, no túmulo de Neferabu (TT
5)2013 e no relevo de Merenptah, talhado no Osireion de Abido, onde os sacerdotes
foram substituídos por Hórus e Tot e por Tot, respectivamente.2014 Na XXI dinastia, no
ataúde de Amenemopet, o ritual é celebrado por Anúbis e uma divindade
indeterminada.2015
Como se detecta pela própria evolução do tema, este segundo grupo de
representações relacionado com a purificação apresenta afinidades simbólicas com a
purificação real celebrada nos templos divinos, destinada a garantir a pureza necessária
para o culto ou assinalando o nascimento divino do faraó, no ritual da coroação. Nestas
câmara funerária parece ter sido uma prerrogativa real que gradualmente foi sendo alargada aos
funcionários reais (Ver A. NIWINSKY, Studies on the Illustrated Theban Funerary Papyri of the 11th
and 10th centuries B.C., p. 31). Durante a XVIII dinastia, o primeiro funcionário a merecer uma tal
distinção foi Senmut. O caso de Sennefer testemunha, portanto, um privilégio excepcional no âmbito da
XVIII dinastia.
2007
Ver anexo IV 2.K 1.
2008
Ver anexo IV 2.K 2.
2009
Ver anexo IV 2.K 3.
2010
Ver anexo IV 2.K 4.
2011
Ver anexo IV 2.K 3.
2012
Ver anexo IV 2.K 7.
2013
Ver anexo IV 2.K 8.
2014
Ver anexo IV 2.K 10.
2015
Ver anexo IV 2.K 11.
724
representações, o defunto está posicionado, em pé ou acocorado, sobre uma taça ou um
pedestal de pedra (algumas destas taças assumem a configuração do signo hieroglífico
heb que significa «festa» e que consiste precisamente numa taça de calcite). O defunto
tem, em geral, uma veste cerimonial e, pelo menos, no caso de Ramés, apresenta uma
aparatosa veste usada pelos vizires. Normalmente é na própria múmia que se efectua a
purificação.
Em certos túmulos, como no caso de Sennefer e de Ramés, estas representações
estão intimamente ligadas à saída para o dia. No caso de Merenptah, a lustração tinha o
intuito de conduzir o faraó à cripta onde este era regenerado no seio de Nut.2016 Num
caso como no outro a purificação apresenta fortes conotações solares. O número de
quatro (grupos de) sacerdotes envolvidos nesta cerimónia é certamente inspirada na
purificação real cujo objectivo, segundo Gardiner, era o de conceder ao rei o poder
sobre os quatro pontos cardeais, restaurando a unicidade do seu poder e assegurando o
estatuto divino e o seu nascimento como netjer nefer.2017
A iconografia envolvida em certas representações reforça, com efeito, a ideia de
universalidade inspirada no nascer do sol. Na purificação de Sennefer, o defunto emerge
da colina montanhosa como o sol renascido. Trata-se, com efeito, da representação de
uma lustração solar que, a partir do período rameséssida, dará origem ao ritual de
elevação da múmia no monte de areia, o qual apresenta uma forte conotação associada à
saída para o dia.
Nas representações mais recentes, esta lustração é assegurada por duas
divindades, parecendo decalcar, mais do que os antecedentes, o modelo de purificação
2016
O Osireion de Abido, como vimos na primeira parte do nosso estudo, não era um edifício cultual
comum. Era um complexo cenotáfio que reproduzia um complexo funerário tebano, constituído pelo
templo funerário e o túmulo do Vale dos Reis. O cenotáfio propriamente dito é uma réplica dos túmulos
tebanos no Vale dos Reis. A câmara funerária estava em ligação simbólica com a câmara que celebrava a
regeneração do sol no seio de Nut. As representações do amuleto cordiforme localizam-se precisamente
na passagem que dava acesso ao «ventre de Nut. As representações sugerem, deste modo, que o amuleto
cordiforme estava relacionado com a possibilidade de efectuar a regeneração no ventre de Nut, ou seja,
como refere o próprio Henry Frankfort, sugere um simbolismo relativo a um segundo nascimento no
Além. Ver H. FRANKFORT, The cenotaph of Seti I at Abydos, p. 27. A constelação de símbolos que
rodeia a purificação também contribui para intensificar as conotações relacionadas com a regeneração.
Osíris que apresenta a cornamenta característica de Tatenen, um deus primordial. Diante do rei estão
colocados o estandarte de Uepuauet, encimado por um cão selvagem, e o cheched, que representa a
placenta real e que, muitas vezes, é encarada como o «duplo real». Ver R. WILKINSON, Gods and
Goddesses of Ancient Egypt, p. 192. O estandarte de Uepuauet era um elemento importante na celebração
dos mistérios de Osíris em Abido. Com efeito, sabemos que o estandarte de Uepuauet liderava a procissão
celebrada em Paker e aludia aos castigo dos inimigos e à retaliação do primogénito para vingar o seu pai e
restabelecer a ordem. Em M. KAMAL, «The stela of s Htp ib ra in the Egyptian Museum», ASAE 38
(1938), p. 275. Todos estes elementos são indicativos de um novo nascimento.
2017
Ver A. GARDINER, «The Baptism of Pharaoh», JEA 36 (1950), pp. 3-12.
725
real e assim reforçar as conotações solares envolvidas nesta lustração. A cerimónia
decalcava, deste modo, o ritual que assegurava o despertar da centelha divina do faraó.
Como vimos na segunda parte do nosso estudo, a origem desta prática relaciona-se com
o ciclo de regeneração do sol, o qual se supunha que, antes de se erguer no horizonte
oriental, era aspergido com as águas regeneradoras do Nun.2018 A «lustração solar»
evocava o nascimento do sol e a sua regeneração a partir das águas primordiais.2019
Deste modo, para além do significado regenerador, esta cerimónia conferia um estatuto
divino e assinalava o despertar do defunto para seguir o percurso do sol no mundo
terreno.2020 O imaginário da criação do mundo assimilava-se, deste modo, ao início de
um novo dia e à possibilidade do defunto acompanhar o percurso do sol na barca diurna
de Ré. A lustração solar assegurava, deste modo, a imortalidade na medida em que
garantia a possibilidade do defunto poder sair para o dia.2021
Qual seria então o papel do amuleto do coração neste tipo de representações?
Como vimos, o amuleto cordiforme parece estar, no contexto funerário, estreitamente
associado à justificação, ao ponto de poder ser perspectivado como uma recompensa
que sinalizava virtude e rectidão. É provavelmente a altura de recordar a estreita ligação
que existia entre a psicostasia, a saída para o dia e a possibilidade de regeneração na
Duat.2022 O resultado favorável na psicostasia garantia que o defunto pudesse assimilar-
se ao ciclo de renovação perpétua do sol. O papel do amuleto cordiforme no ritual da
purificação parece, deste modo, reportar-se à pureza requerida para a integração do
defunto no circuito solar. O amuleto assinalava, como já foi referido anteriormente, a
justificação do defunto, ou seja, a sua proclamação como um aliado no combate contra
os inimigos da luz e representava o potencial de virtude acumulado durante a vida
terrena graças à sabedoria e à prática da maet. Em suma, o amuleto cordiforme
assinalava que o novo nascimento do defunto se verificava graças à sua pureza e à sua
sabedoria, ou seja, à sua capacidade para realizar a maet.
É provável que, em alguns casos, a lustração solar representada em contexto
funerário tivesse uma certa correspondência com o ritual de iniciação celebrado ainda
em vida, como é certamente o caso das representações de Sennefer, Ramés, Userhat e
2018
A. BLACKMAN, «Ancient Egyptian practice of washing the dead», JEA 5 (1918), pp. 117-118.
2019
C. SPIESER, «L´eau et la regeneration des morts d´aprés les representations des tombes thébaines du
Nouvel Empire», CdE 72 (1997), pp. 220-221.
2020
A. BLACKMAN, «Sacramental ideas and usages in Ancient Egypt», RT 39 (1920), pp. 45-48.
2021
Em D. DELIA, «The refreshing water of Osiris», JARCE 29 (1992), p. 184.
2022
Indiciada, como vimos, pela existência de uma rubrica comum aos capítulos 30 B, 64 e 148 do «Livro
dos Mortos».
726
Merenptah. Nesse caso, o amuleto cordiforme poderia ser perspectivado como um
objecto que pode ter sido atribuído ainda em vida, como um sinal distintivo de pureza e
de sabedoria, simbolizando a consciência transformada por acção da iniciação. Neste
caso, o efeito da iniciação prolongava-se no Além, pois a nova consciência solar
redimia o iniciado das suas faltas e assegurava a pureza que era requerida no tribunal do
Além. Pelo menos ao longo da XVIII dinastia é de supor que existisse efectivamente um
elo entre a iniciação no culto divino e o amuleto cordiforme usado no Além. A raridade
dos testemunhos e o elevado nível social dos detentores de um tal objecto apontam para
que, sobretudo na necrópole tebana, o amuleto cordiforme tivesse sido concedido pelo
rei como um privilégio atribuído a círculo muito restrito de individualidades iniciadas
em certos «mistérios» que garantiam, por sua vez, a sua justificação no Além. Talvez
seja essa a razão que explique a representação destes objectos no peito dos sarcófagos
da XVIII dinastia, bem como o seu quase desaparecimento durante o período
ramséssida, desaparecimento esse que corresponderia ao abandono dessa prática.
Uma composição criptográfica que estudaremos em pormenor mais adiante vem
estabelecer um paralelo entre a purificação, celebrada por Hórus e Tot, e a ressurreição.
A iniciação, na vida terrena, e a ressurreição, no Além, eram deste modo, partes de um
mesmo processo de «despertar» da consciência.
2023
Ver anexo IV 2.L.
2024
Ver anexo IV. 2.L 1 e 2.L 3.
727
fazem gala de mostrar o prezado amuleto.2025 Na ausência de elementos escritos que
esclareçam a natureza e o significado destas representações, parece-nos provável que se
tratem de representações de carácter satírico ou anedótico, muito frequentes sobre este
tipo de suporte. Num destes óstracos figura, com efeito, uma imagem típica das
representações satíricas, misturando figuras humanas e animais. Trata-se de um macaco,
representado a tocar uma flauta dupla, acompanhado por uma jovem nua, adornada por
colares, idênticos aos que são representados sobre as estatuetas de concubinas, e um
amuleto do coração.2026 Sublinhe-se ainda que, no contexto do Império Novo, as
representações de mulheres com este amuleto são quase inexistentes. Na maior parte
dos casos são homens de elevado estatuto social que usam o objecto. Nestes óstracos,
pelo contrário, são as mulheres, meras bailarinas ou inverosímeis amazonas, bem como
humildes pastores que usam o amuleto. Se estas representações datassem da Época
Baixa ou períodos posteriores bem poderíamos aceitar o valor documental destes
objectos, pois sabemos que nesta época o amuleto se vulgarizou. No entanto, mediante
os dados que possuímos para o Império Novo, uma tal hipótese parece-nos pouco
provável pois é notório, em todas as fontes o inegável valor simbólico que o objecto
possuía. Mais provável é que estas representações tivessem um valor satírico e
constituissem uma forma velada de ridicularizar os grandes, recorrendo a um símbolo, o
amuleto cordiforme, ainda associado, nesse período, à classe dominante.
2025
Ver anexo IV 2.L 2.
2026
Ver anexo IV 2.L 4.
728
relacionados com o coração. Nas linhas que se seguem procuraremos, deste modo,
traçar uma correspondência entre os amuletos do coração e a iconografia do túmulo.2027
De particular importância são as representações que decoram o IV
pilar,2028 uma vez que ilustram, por si só, as três etapas da reanimação do defunto.
mumificação.2029
dia.2031.
Estes dados parecem, deste modo, apontar para uma função distinta atribuída
aos vários amuletos «cardíacos». Deste modo, o escaravelho do coração estaria
2027
Para acompanhar a descrição do túmulo com imagens ver anexo IV 2.M.
2028
Ver plano do túmulo em anexo IV 2.M 1.
2029
Ver anexo IV 2.M. 2. Na antecâmara é representado um amuleto cordiforme de cor escura integrado
em oferendas funerárias diversificadas. O papel deste amuleto parece relacionar-se com a função do
coração como sede da vida de onde esta brotava, como uma semente, no Além. Representa, por assim
dizer, a semente que guarda a chave para a reanimação do defunto. O seu desaparecimento nas
representações da câmara funerária indicam uma possível identificação com o escaravelho do coração, o
que aliás é indiciado pela cor com a qual ambos foram pintados.
2030
Ver anexo IV 2.M 3.
2031
Ver anexo IV 2.M 4. Efectivamente o amuleto do coração é representado na cena que ilustra a saída
para o dia de Sennefer e Merit. Esta cena é acompanhada pela inscrição: «Sair para a terra para ver o
disco solar no decorrer de cada dia. Andar na terra durante o dia». O facto de constituir uma
condecoração real reflecte as conotações relacionadas com o mérito moral e a inteligência deste alto
funcionário Por outro lado, este amuleto nunca é representado na adoração a Osíris, nem nas sequências
alusivas à mumificação de Sennefer.
729
associado à mumificação enquanto o duplo amuleto cordiforme, constituindo uma
condecoração real que assinalava o valor e a integridade moral e intelectual do defunto,
era a expressão plena do poder da vida e da pureza requerida para se associar ao
percurso do sol.2032 É de notar a ligação entre estes amuletos e o motivo iconográfico
que domina toda a câmara funerária: a vinha. Esta ligação é indicada pela posição em
que a vinha se «enraíza». Na decoração das colunas, a vinha atinge três locais: a cena
de oferenda do escaravelho do coração e as cenas que representam a elevação de
Sennefer no monte de areia, onde o duplo amuleto cardíaco é representado. O objectivo
destes amuletos parece assim estar ligado com o propósito simbólico da vinha que
consiste em assegurar a ressurreição, a transformação que conduz à vida eterna. Cada
um destes amuletos parece, deste modo, estar conotado com esta transformação: um no
plano físico e outro no plano da consciência (envolvendo o amor, a inteligência e o
estatuto social).
2032
A condecoração real reveste-se de um significado religioso cuja acção se prolonga no Além. Esta
condecoração garantia a restituição da integridade social do indivíduo, a união mística do defunto à deusa
Hathor e orientava-o na saída para o dia, onde se unia ao disco solar. Apesar de estar ausente das
representações o rei é inúmeras vezes mencionado nos textos: «que os deuses dêem tudo o que aparece
na mesa de oferendas em cada dia, ao ka do nobre pai divino, amado de deus, que está no coração (im ib)
do deus bom.» Ou «(...) para o ka do nobre (...) que enche o coração perfeito do senhor das Duas Terras
(...) que enche o coração do rei na região do Sul (...)». Em P. VIREY, «La tombe des vignes à Thèbes»,
RT 20 (1898), p. 218 A insistência que é evidenciada na capacidade para «encher o coração do rei» pode
estar na origem da atribuição do duplo amuleto do coração, que constitui, sem dúvida uma condecoração
real. As elevadas funções desempenhadas por Sennefer confirmam esta hipótese. Embora o seu título
mais frequente seja o de governador de Tebas, Sennefer era, entre outras atribuições, responsável pela
colecta de impostos, pelos trabalhos na necrópole, pelo abastecimento do templo de Amon, pelos
celeiros, gado, campos e jardins de Amon. Foi talvez na qualidade de director dos jardins de Amon que
Sennefer agudizou a sua sensibilidade para a leitura religiosa dos motivos vegetais que desempenham um
papel tão determinante na iconografia do túmulo.
2033
Devido às conotações aquáticas, a tartaruga estava associada ao Nun e, por isso, associada às forças
hostis à luz. Paradoxalmente, o amuleto em forma de tartaruga era usado para afastar os poderes das
trevas. Ver C. ANDREWS, Amulets of Ancient Egypt, p. 36.
730
laterais (que representam as patas) são em número de quatro (duas em cada lado do
objecto). O caso mais conhecido destas representações é observável na estátua do
príncipe Rahotep, da IV dinastia.2034 Embora certos autores queiram reconhecer neste
objecto, o formato do amuleto cordiforme,2035 outros porém mantêm uma posição mais
cautelosa.2036 A prudência, na verdade, justifica-se devido às quatro projecções que este
objecto apresenta. Com este tipo de recorte é mais plausível que estejamos perante a
evocação de um amuleto em forma de tartaruga, amuleto que conheceu uma certa
difusão no Império Antigo e que simbolizava as forças do oceano primordial. Outras
representações do príncipe, originárias do seu túmulo em Meidum,2037 apresentam-no
com o mesmo objecto, comprovando que a silhueta sinuosa do objecto não resultou de
um descuido do artista que o pintou sobre a estátua. Outros relevos do Império Antigo
oferecem outros testemunhos de um amuleto semelhante, como o que se observa na
estátua de Kahep, um juiz da V dinastia.2038 Ainda no Império Antigo, certas
representações em relevos sugerem uma forte afinidade com o amuleto cordiforme. No
entanto, quando analisados em pormenor, parecem constituir «bolsas» fechadas por um
travessão, o qual muitas vezes, se confunde com as artérias laterais do amuleto
cordiforme.2039
Um outro amuleto que oferece problemas de interpretação é frequentemente
encontrado nas estátuas de Senuseret III e de outros soberanos da XII dinastia.2040 Este
amuleto tem a forma de uma dupla concha atravessada, por vezes, por uma haste.
Embora não se assemelhe nada à tradicional representação do amuleto cordiforme, a
verdade é que certas representações da Época Baixa, ou de períodos posteriores,
representam o coração de um modo semelhante, sob a configuração que denominámos
de «amuleto semente de bordo descaído». A identificação deste tipo de amuletos não é
certa mas parece tratar-se de um invólucro que encerra um objecto secreto ou bolas de
incenso, como sugere a representação deste tipo de saquinhos nos frisos dos sarcófagos
dessa mesma época.2041
2034
Ver anexo IV 2. N 1.
2035
É o caso de M. SALEH e H. SOUROUZIAN, The Egyptian Museum Cairo: Official Catalogue, nº
27.
2036
A maior parte das descrições desta estátua são muito cautelosas quanto à identificação do amuleto
preferindo referir apenas que se trata de «um pingente» (ver, por exemplo, F. TIRADRITTI, Tesouros do
Egipto do Museu Egípcio do Cairo, p. 62.)
2037
Ver anexo IV 2. N 2.
2038
Ver anexo IV 2. N 3.
2039
Ver anexo IV 2. N 9.
2040
Ver anexo IV 2. N 4-6.
2041
Ver anexo IV 2. N 9.
731
3. A representação do amuleto do coração em divindades
2042
Ver anexo IV 3.A 1.
2043
Ver anexo IV 3.A 2.
732
Noutras ocasiões o jovem deus solar foi ainda representado na proa da barca
solar anunciando o renascimento do deus sol.2044 Embora a representação do deus na
proa da barca divina seja frequente em tempos anteriores à Época Greco-Romana é
desde então que se registam ocorrências do amuleto cordiforme neste contexto. Neste
caso, o amuleto cordiforme parece remeter para a pureza do novo sol e para a recriação
do mundo. Comum a todas estas representações de deuses acocorados é a ideia de um
nascimento e de um novo começo. Embora associado à psicostasia, o amuleto
cordiforme começa deste modo a investir-se de um significado «obstétrico» mais
amplo, assinalando o início de uma nova vida, de um novo nascimento.
2044
Ver anexo IV 3.A 3.
2045
Ver anexo IV 3.B 3-4.
2046
Ver anexo IV 3.B 1.
2047
Estas estelas evocam a infância de Hórus e a sua vida nas florestas de papiros, rodeado de perigos mas
imune a todas as ameaças. Estas estelas eram erguidas em espaços públicos onde exerciam a sua acção
curativa. Em M. SALEH e H. SOUROUZIAN, The Egyptian Museum Official Catalogue, nº 261.
733
idêntica à que analisámos no caso anterior.2048 Esta constatação levou-nos a admitir que
essas estátuas seriam «amovíveis», ou seja, podiam ser colocadas ao colo de uma deusa
e, em certas circunstâncias rituais, serem colocadas sobre outro suporte, como um trono.
Efectivamente, entre os relevos do templo de Philae encontrámos um testemunho de um
tal uso ritual.2049 A estátua do deus menino figura primeiramente no interior de um
relicário onde está pousada ao colo de Ísis. Numa ocasião festiva, o oficiante abre o
relicário e remove o jovem deus, ornamenta-o com a coroa dupla e senta-o sobre um
trono, para depois o exibir diante dos seus súbditos (rekhit).2050
Nos relevos dos templos divinos, o mesmo deus pode ser representado
simultaneamente a ser alimentado e a velar sobre o seu próprio aleitamento.2051 Nestes
casos, o deus menino é representado completamente nu ao colo da deusa mãe, usando
unicamente o amuleto cordiforme e a trança lateral, ao passo que o seu desdobramento
evidencia coroas reais e tem como função velar para que o aleitamento da criança divina
prossiga convenientemente. Fica assim insinuada a ideia de uma faceta dupla patente
nos deuses meninos que, numas ocasiões manifestam uma faceta frágil ao passo que
noutras evidenciam um lado poderoso. A representação de um deus sentado está
bastante conotada com a entronização do deus. Mesmo quando o deus é amamentado,
não nos podemos esquecer que Ísis funciona como uma personificação sagrada do
trono, como o seu próprio nome indica.
2048
Ver anexo IV 3.C.
2049
Ver anexo IV 3.D 1.
2050
Também o deus Khonsu pode ser representado sentado sobre um trono, com a trança lateral e o
amuleto do coração, como acontece no seu tempo em Karnak. Aí, o deus segura nas mãos ou o signo da
vida ou os ceptros reais. Na proximidade destas representações está um relato cosmogónico centrado na
Ógdoade hermopolitana. Este texto foi publicado em R. PARKER e L. LESKO, «The Khonsu
Cosmogony», em J. BAINES, J.G.H. JAMES, A. LEAHY, A. SHARE, Pyramid Studies, pp. 168-174.
2051
Ver anexo IV 3.C 9.
2052
Ver anexo IV 3.E 1-2.
734
das tarefas cultuais. Normalmente o jovem deus desempenha um papel de intermediário
entre a deusa e o faraó. Deste modo, é normal que a criança divina seja colocada diante
da deusa e receba, em seu nome, as oferendas apresentadas pelo faraó. 2053 A função de
intermediário do culto divino leva a que, por vezes, o deus substitua o faraó no culto
prestado à deusa mãe.2054 Sobretudo nestas circunstâncias é comum a representação do
deus com a coroa dupla, sublinhando a sua identificação com o faraó. É, deste modo,
muito curioso que seja a partir da função cultual que se tivesse estabelecido mais
visivelmente a identificação entre o rei e o filho divino.
Noutros casos, a representação do deus sobre o sema-taui tem como intuito
definir o principal atributo do deus menino: garantir a recriação do mundo e o regresso
purificador ao tempo mítico da criação.2055 Este tipo de representações pode ocorrer nas
proximidades da cerimónia da coroação real ou em situações que, de algum modo, se
relacionem com a celebração de um nascimento ou de uma recriação. O posicionamento
sobre o sema-taui pode, deste modo, ser alusivo ao próprio nascimento do deus menino.
Noutros casos, o culto garantido pelo faraó parece ser o bastante para garantir a
recriação do mundo assinalada pelo posicionamento do deus menino sobre o sema-taui.
Em certas representações, o deus menino é fortemente associado aos símbolos dualistas
da realeza de modo a estabelecer uma identificação com o rei. Neste tipo de
representações, o deus menino constitui uma representação do próprio faraó
divinizado.2056
2053
Ver anexo IV 3.F 1-9.
2054
Ver anexo IV 3. G 1.
2055
Ver anexo IV 3.H.
2056
Ver anexo IV 3. H 1.
2057
Os cippi eram estelas de pedra usadas, sobretudo na Época Baixa, para proteger o indivíduo do mal.
Representavam o jovem Hórus sobre os crocodilos agarrando em animais perigosos como o escorpião,
leão e outras criaturas selvagens do deserto. A água era atirada água sobre as fórmulas hieroglíficas e as
imagens para recolher a sua essência mágica para que depois o doente a pudesse a beber ou aplicar sobre
o corpo. S. HARVEY e M. HARTWIG, Gods of ancient Memphis, p. 13
2058
O motivo iconográfico de segurar serpentes, patente nas representações de Horpakhered deriva das
representações dos génios do Além. Estas entidades funerárias ostentavam serpentes nas mãos como
735
algumas delas, Horpakhered é representado com o amuleto cordiforme.2059 Estes
objectos podiam diferir bastante em tamanho e foi naturalmente nas realizações maiores
que o deus menino foi dotado com o amuleto cordiforme. O tema central destas
composições reporta-se, como vimos, à vitória da luz sobre as trevas, da pureza sobre a
corrupção e o veneno. A cura era, deste modo, assimilada ao imaginário da criação do
mundo, pois era o retorno ao tempo primordial que assegurava a regeneração.2060 Em
virtude deste imaginário, a maior parte destas estelas tinham uma função curativa e
gozavam de grande apreço pelas suas propriedades terapêuticas.2061
símbolo do seu poder sobre as entidades malignas. Os guardiões das Portas do Além, como vimos,
repeliam os perigos usando as serpente como auxiliares. Ao ser transferido para deuses como Bés ou
Horpakhered este símbolo tornou-se sintomático da capacidade do deus para afastar as forças malignas.
Em M. RAVEN, «A puzzling pataekos», OMRO 67 (1987), p.13
2059
Ver anexo IV 3.J.
2060
Em certos amuletos provenientes de Kantir, datados do período ramséssida , Ptah é representado
como anão ou criança. A partir do Terceiro Período Intermediário, espoleta-se o desenvolvimento de uma
especulação teológica que procura assimilar o criador a uma entidade universal que dá o seu poder ao
menino sol. É com este enquadramento teológico que o demiurgo pode adquirir a configuração de um
menino/anão. Em As representações de Horpakhered estão, deste modo, profundamente imbuídas de um
imaginário relacionado com a criação do mundo e com a pureza primordial. Em J. BERLANDINI, «Ptah-
demiurge et l´exaltation du ciel», RdÉ 46 (1995), pp. 9-41.
2061
Hórus o Antigo, Senhor de Letopolis (Esna) tinha uma reputação de curandeiro, razão pela qual os
magos se identificavam com Hórus para neutralizar o veneno da serpente. Para Walker, aparentemente
Horpakhered foi-se apoderando das capacidades curandeias de Hórus Antigo, para se afirmar como
«Salvador». Horpakhered foi, por essa razão, um dos deuses mais populares a partir da Época Baixa. Em
J. WALKER, «Egyptian medicine and the gods», BACE 4 (1993), p. 96. Não se pode, no entanto, ignorar
a possibilidade de uma inspiração directa no deus Ched do Império Novo, inspiração essa que, aliás nos
parece mais verosímil.
736
caracteriza-se por apresentar uma combinação variável de coroas atef (em geral em
número de três, para formar o atefu) sobre uma retorcida cornamenta de carneiro
adornada por vários discos solares e serpentes sagradas.2062 Trata-se de um atributo
habitualmente associado à juventude e à força da vida e é um atributo próprio do filho
de um deus.2063 Para além dos ceptros reais, Ihi também ostenta na sua iconografia
habitual, o sistro hathórico e o colar menat, já que estes objectos estavam estreitamente
associados ao culto de Hathor.
Tanto Ihi como Horpakhered eram uma personificação divina do faraó que
ligava o rei a uma divindade feminina legitimadora da monarquia como Hathor ou Ísis.
É mesmo possível que tenha sido este papel que impulsionou a representação destas
divindades ao longo da Época Greco-Romana, constituindo um modo de sublinhar,
através desta identificação, a legitimidade do faraó (estrangeiro) em exercer o poder
real. Outras divindades, embora de modo mais esporádico, podem fazer uso do amuleto
cordiforme, como é o caso de Khonsu.2064 O deus Nefertum, outra criança divina,
também pode ser representado com o amuleto cordiforme. Muito raramente, também os
quatro filhos de Hórus podem ser representados como crianças desnudadas adornadas
com o amuleto cordiforme.2065
As representações destas divindades com o amuleto cordiforme tornaram-se
mais comuns a partir da Época Baixa e da Época Greco-Romana mas as primeiras que
temos conhecimento remontam ao Terceiro Período Intermediário e ao fim do período
ramséssida. De acordo com a nossa amostra podemos reconstituir do seguinte modo o
significado do amuleto cordiforme na iconografia divina.
Antes da XXI dinastia a utilização do amuleto cordiforme na iconografia divina
foi residual e parece ter-se circunscrito ao guardião naniforme das Portas do Além.
Inicialmente o amuleto parece estar fortemente relacionado com a psicostasia e com a
pureza requerida para entrar na Duat. Na XXII dinastia, porém, através da associação a
Nefertum, o amuleto cordiforme passa a associar-se à pureza através do imaginário da
criação do mundo. Embora continue, por vezes, ligado à psicostasia, a associação ao
imaginário cosmogónico transcendeu largamente este contexto iconográfico, passando
então a evocar a pureza resultante de um novo nascimento garantido pelo regresso ao
2062
Esta coroa é típica do deus Meruel, ou Mandulis, um deus da Núbia. Em R. WILKINSON, The
Complete Gods and Goddesses of Ancient Egypt, p. 114.
2063
Ver J. SALES, As Divindades Egípcias, p. 168.
2064
Ver anexo IV 3.D 2-3.
2065
Ver anexo IV 3.E 3.
737
tempo mítico da criação. O amuleto cordiforme começa, deste modo, a ser investido
com um significado «obstétrico» assinalando o início de uma nova vida, de um novo
nascimento e a pureza que daí advém.
A identificação progressiva entre os deuses crianças e o faraó fez destes deuses
meninos uma espécie de duplos divinos do faraó agindo de modo a garantir uma das
principais responsabilidades reais: garantir a renovação da ordem cósmica. O uso
insistente do amuleto cordiforme pelos deuses criança pode, deste modo, estar
relacionado com a intenção de propiciar um novo nascimento e uma renovação, já não
de um indivíduo ou de um deus, mas de todo o Egipto. Esta função enquadrava-se
perfeitamente nas responsabilidades normalmente atribuídas ao deus Horpakhered que,
com a sua pureza primordial, garantia a vitória da luz sobre as trevas, razão pela qual
era invocado para afastar a desordem provocada pelas doenças. Em qualquer destas
representações o amuleto cordiforme é um símbolo de pureza e de uma vida nova
prenhe de potencialidades.
É interessante constatar que o imaginário religioso construído em torno destes
deuses meninos deriva simplesmente dos atributos tradicionais do faraó. O
aparecimento do amuleto do coração na iconografia dos deuses meninos é, deste modo,
um sinal do esvaziamento religioso da figura real que deixa de surgir com o carisma
necessário para garantir a renovação do mundo e o afastamento das forças do caos.
Doravante estas esperanças são depositadas no deus menino e o amuleto cordiforme
assume a manifestação tangível e visível do poder da luz e da pureza para garantirem
um novo nascimento (do mundo).
2066
Demónios guardiões do Além fazem-se representar com serpentes e configuração de anão desde o
Império Médio, sobretudo no «Livro dos Dois Caminhos». Os «Textos dos Sarcófagos»(CT 1573 e
1576) denominam estas divindades acocoradas como «os de rosto misterioso», chetau her (StAw Hr)
aludindo às inúmeras formas animais ou humanas que podiam adoptar. Em M. RAVEN, «A puzzling
pataekos», OMRO 67 (1987), p. 9.
738
guardiões das portas do Além.2067 e que, representado noutros contextos, raramente
ostenta este amuleto. Nestes papiros, no entanto, o deus apresenta o amuleto com
bastante constância assinalando que a sua função aí se relaciona com o referido objecto.
Habitualmente o génio é representado em conjunto com dois outros guardiões: um com
cabeça de cão selvagem e outro com uma cabeça dupla de Bés. Para Piankoff, estas
entidades evocam diferentes fases do processo de renascimento.2068 Pensamos, no
entanto, que o papel deste anão é mais específico e se relaciona com a função de
averiguar o estado de pureza do coração. No «Livro das Portas», redigido no interior
dos túmulos reais do Império Novo, o Ocidente possuía diversas portas guardadas por
«demónios» que apenas deixavam passar aqueles que conhecessem os seus nomes
secretos.2069 Também no «Livro dos Mortos», estes «demónios» são mencionados nos
capítulos 145 e 146, nos quais o defunto se apresenta aos guardiões das portas e
assegura a sua pureza:
Eu saúdo-vos (...) Abre o caminho! Eu conheço-te, conheço o teu nome e conheço o nome do
deus que te guarda (...) Eu banhei-me nesta água que Ré usou para se banhar quando se ergueu no lado
oriental do céu (…).2070
2067
Ver anexo IV 4.A 1. Exemplares deste tipo podem ser datados entre o período ramséssida e a XXI
dinastia.
2068
A. PIANKOFF e N. RAMBOVA, Mythological Papyri, p. 78.
2069
Conhecer o nome correspondia a ter poder sobre a entidade nomeada. R. WILKINSON, The
Complete Gods and Goddesses of Ancient Egypt, pp. 81-82.
2070
Capítulo 145 do «Livro dos Mortos». Adaptado da versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des
Morts, pp. 192-199.
2071
Ver anexo IV 4.A 2.
2072
A configuração de anão pode ter sido usada como paradigma das entidades capazes de repelir
entidades malignas. O seu papel seria quase sempre apotropaico. Mais raramente pode estar associado a
739
habitual atitude de Horpakhered, empunhando serpentes nas mãos.2073 No entanto, dado
que não conhecemos qualquer representação de Bés com o amuleto cordiforme, no caso
desta plaquinha de Meroé estamos, sem dúvida, diante de um Horpakhered ligeiramente
metamorfoseado com a configuração do deus anão.2074 Para além da representação de
uma escaravelho solar alado, as conotações solares do deus são reforçadas no reverso
deste objecto pela representação de um disco solar de onde parece emergir um uraeus
real. Também aqui, o carácter apotropaico do objecto parece relacionar-se com a
hegemonia da luz solar. Já o carácter naniforme do deus sugere uma proximidade
iconográfica com a representação dos patécos, os obreiros divinos de Ptah que o
assistem na criação do mundo.2075 Estas entidades benéficas podiam, deste modo, ser
um aliado poderoso para afastar as forças do mal. A representação reporta-se, deste
modo, a uma manifestação pouco conhecida do deus solar que articula vários símbolos
alusivos à criação do mundo, certamente com o intuito de dotar a peça com mais poder
mágico. A vitória da luz sobre as trevas (assinalada através do domínio das feras), o
amuleto cordiforme (alusivo à pureza), o escaravelho alado (simbolizando o
renascimento do sol), a forma naniforme (alusiva ao próprio criador) concorrem para
que o objecto constitua um compêndio de símbolos demiúrgicos que celebra a criação
da luz.
uma função negativa e pode dificultar a vida ao defunto no Além. Em M. RAVEN, «A puzzling
pataekos», OMRO 67 (1987), p. 9. No entanto, fora do contexto funerário as conotações apotropaicas são
predominantes.
2073
Estas divindades estavam de resto bastante entrosadas e desempenhavam uma função apotropaica
idêntica, razão pela qual, em alguns casos, são representados simultaneamente na mesma estela.
2074
As representações de Bés também evidenciam o uso de um amuleto mas neste caso trata-se da cabeça
de uma pantera ou de um outro felino. Os dois objectos podem, numa execução cuidada, serem colocados
em paralelo, já que as orelhas do felino lembram as artérias laterais do amuleto cordiforme. É impossível
saber se havia algum tipo de relação entre o simbolismo dos dois objectos.
2075
Ou, segundo alguns autores, uma manifestação divina do criador. Ver J. BERLANDINI, «Ptah
demiurge et l´exaltation du ciel», RdE 46 (1995), pp. 9-41.
740
amuleto cordiforme.2076 Esta representação documenta, além do mais, uma relação que,
noutros documentos, já se adivinhava: o amuleto assinalava a possibilidade que o
defunto conquistava para poder ser acolhido por Nut e aí ser regenerado sob a forma do
próprio sol.
Mais comum é a representação do amuleto cordiforme no deus Hórus sob
a forma de falcão, sobretudo a partir da Época Baixa. Conhecemos vários exemplares
magníficos de escultura votiva em bronze onde o deus apresenta o amuleto. Numa
estátua de bronze da XXII dinastia, o deus está coroado com o pa sekhemti e apresenta o
amuleto cordiforme encimado pelo disco solar, um tipo de amuleto que, já desde a
XVIII dinastia, se apresentava fortemente associado com o rei.2077 Também sob a forma
hierácomorfa um deus apresenta o referido amuleto em composições escultóricas
relacionadas com a tríade divina Ptah-Sokar-Osíris.2078 Certos ataúdes de múmias de
cereal, também com cabeça hieracocéfala, apresentam representações de amuletos
cordiformes.2079
2076
Ver anexo IV 4.B 1.
2077
Ver anexo IV 4.B 2.
2078
Ver anexo IV 4.B 4. A representação de Sokar-Ptah-Osíris constitui o estado final da evolução
das múmias de cereal e simboliza a ressurreição como síntese das crenças osiríacas com o culto
solar. Para além das conotações funerárias este tipo de representação também era alusiva à
fertilidade e à germinação das sementes. Em M. RAVEN, «Corn-mumies», OMRO 63 (1982), pp.
32-34.
2079
Ver anexo IV 4.B 6. Neste caso, o peitoral encerra uma representação do amuleto do coração (de tipo
cornija) ladeado por duas deusas aladas Veja-se a semelhança entre esta representação e as plaquinhas, do
mesmo período, que apresentam um coração dentro de um santuário. Neste caso, o peitoral encerra uma
representação do amuleto do coração (de tipo cornija) ladeado por duas deusas aladas. Ver anexo IV 1. A 3
741
também a coroa dupla, evocando o seu poder real sobre as Duas Terras, ou o lótus
primordial, para evocar o seu nascimento a partir das águas do Nun.2080
Em Karanis foram encontrados vários exemplares de pintura mural onde o deus
foi representado com o amuleto cordiforme ao colo da deusa Ísis, numa atitude que
parece prefigurar o aleitamento do menino Jesus pela virgem. 2081 Noutro caso o deus foi
representado junto de um altar rodeado por símbolos relacionados com o culto de
Serápis. Em todos estes exemplares o amuleto do coração constitui o adorno principal
da divindade (que, por vezes, é complementado com o colar usekh).
O vaso sagrado de Canopo é outro contexto em que as representações do
amuleto cordiforme podem surgir.2082 No exemplar encontrado em Tivoli, na Villa
Adriana, o amuleto do coração está ladeado por dois falcões coroados com o pa
sekhemti, e insere-se no contexto de outros símbolos solares que enfeitam a superfície
do vaso: o disco solar, o escaravelho alado, o touro de Serápis e o próprio Harpócrates.
Decoração muito semelhante possui um outro vaso canopo encontrado em Abukir, num
templo de Ísis.2083
2080
Harpócrates foi representado numa grande variedade de formas e atitudes, devido à sua grande
popularidade. Era o filho das duas divindades tutelares de Alexandria: Isis e Serápis e era encarado como
um deus da fecundidade. Em Z. HAWASS, Bibliotheca Alexandrina: The Archaeological Museum, p.
76.
2081
Ver anexo IV 4.C 4.
2082
Ver anexo III 8.B 7. Canopo era, juntamente com Heráklion e Menutis, uma das cidades mais activas
do delta, onde uma população mista florescia. Aí, Osíris era venerado sob a forma de um vaso, o Osíris
Canopo. Ver F. HASSAN, Greco-Roman Museum, p. 108.
2083
Ver anexo III 8.B 8.
742
XV. O criptograma de Athribis
2084
Ver anexo V 1.14. A inscrição foi gravada num bloco encontrado por Alan Rowe, do Liverpool
Institute of Archaeology, em 1938, nas ruínas de Athribis. Anteriormente já haviam sido localizados dois
blocos pertencentes ao mesmo monumento o qual, embora datado da Época Baixa, reutilizou blocos de
uma construção de Ramsés II. A cena aqui descrita foi incluída no monumento na época da sua
reutilização. Em E. DRIOTON, «Note sur un cryptogramme récemment découvert à Athribis», em ASAE
38 (1938), p. 109.
2085
Estas divindades também são mencionadas em listas provenientes de Edfu e de . Tratam-se de
divindades protectoras do corpo e do ka de Ré. A presença destas divindades tutelares num templo
associado a Osíris demonstra bem a fusão entre ambos os cultos no fim da Época Baixa. Em E.
DRIOTON, «Note sur un cryptogramme récemment découvert à Athribis», em ASAE 38 (1938), p. 110.
Ver também H. HAMZA, «The correct reading of the place name of Athribis», em ASAE 38 (1938), pp.
198-199.
2086
O escaravelho, habitualmente lido como kheper, pode ter o valor ta, na escrita críptica em uso desde a
XVIII dinastia. Em E. DRIOTON, «Note sur un cryptogramme récemment découvert à Athribis», em
ASAE 38 (1938), p. 113.
743
do princípio que os signos hut e aá se lêem separadamente,2087 Drioton isolou os signos
do templo, do escaravelho e do coração, onde, na sua opinião, se poderia ler o nome de
Athribis, Hut ta heri ib,2088 a capital da décima sepat do Baixo Egipto. O resto da
composição teria, de acordo com o autor, a seguinte leitura: «O Grande de Vida, o
soberano dos deuses, cujo temor está em Athribis, na qualidade de Hórus
khentikheti».2089
Focalizando-se no motivo central, Hamza dá menos relevo ao carácter críptico
do relevo. Embora reconheça, do mesmo modo que Drioton, que o motivo central
escreve o nome de Athribis, a sua interpretação é diferente. Assim, em lugar da versão
habitualmente aceite, Hut ta heri ib, que significa «o templo da terra do meio», dever-
se-ia ler Hut heri (t) ib, «o templo que está sobre o coração». 2090 A interpretação ajusta-
se bem à crença que reconhecia neste local o lugar onde havia sido sepultado o coração
de Osíris. Deste modo, o deus aí celebrado era o coração de Osíris. Quanto aos cinco
signos posicionados sobre a cena central Hamza diz simplesmente tratarem-se de
epítetos relativos ao coração de Osíris ou de Hórus Khentikheti.2091
Muito reservado quanto à interpretação «criptográfica» de Drioton, Pascal
Vernus prefere uma leitura mais parcimoniosa deste conjunto. Para além dos signos hut
áa, que o autor volta a unir para ler a expressão «grande templo», Vernus circunscreve a
leitura criptográfica ao friso superior. Adoptando a leitura sugerida por Blackman,2092 os
cinco signos aí colocados permitiriam ler «Que viva o coração de Ré». Quanto ao friso
inferior, constituído pela representação do coração suspenso nas patas de Khepri, o
2087
Questão que, por várias razões, se afigura alvo de controvérsia. Contraria, em primeiro lugar, o
arranjo gráfico da inscrição já que estes signos possuem as mesmas dimensões. Por outro lado, não tem
em linha de conta a bem conhecida expressão hut aá, traduzida por «grande templo» ou «grande
morada». Esta opção é criticada por Pascal Vernus em Athribis: Textes et documents relatifs à la
geographie, aux cultes et à l´Histoire d´une ville du delta égyptien à l´époque pharaonique, p. 138.
2088
O nome de Athribis pode significar «O templo da terra do meio». Ver M. HAMZA, «The correct
reading of the place-name of Athribis», em ASAE 38 (1938), pp. 197-208.
2089
Esta leitura assenta sobre hipóteses bastante frágeis como a identificação entre te, habitualmente lido
como «pão», e it, «soberano». A cobra Uadjet, por outro lado, foi interpretada como uma versão da bem
conhecida unilítera ef, representando a serpente bifurcada. Já o abutre seria uma alusão à palavra «medo».
Nas cinco mesas de oferenda o autor faz a inusitada leitura do nome do deus local Hórus khentikheti.
Finalmente a palavra aá combinar-se-ia com ankh lendo-se então «Grande de Vida».Ver E. DRIOTON,
«Note sur un cryptogramme récemment découvert à Athribis», em ASAE 38 (1938), pp. 113-116.
2090
Ver a argumentação do autor em M. HAMZA, «The correct reading of the place-name of Athribis»,
em ASAE 38 (1938), pp. 197-208.
2091
Trata-se do deus local venerado em Athribis. O seu nome significa «o que está diante do corpo» e
ajusta-se curiosamente com o papel do coração que, sobretudo com o termo hati tem um significado
semelhante: «o que está à dianteira».
2092
Cit. por Pascal Vernus em Athribis: Textes et documents relatifs à la geographie, aux cultes et à
l´Histoire d´une ville du delta égyptien à l´époque pharaonique, Bibliothèque d´Étude, vol. 75, Cairo,
1978, p. 138.
744
autor não reconhece um valor críptico que transcenda o que diz respeito ao valor
simbólico e religioso que lhe está subjacente. Tratar-se-ia, deste modo, da representação
de um mistério importante da teologia local: a união do coração de Osíris com o disco
solar renascido.2093
Na posse destes argumentos somos naturalmente levados ensaiar a nossa própria
leitura. Embora seja plausível, não nos parece necessário recorrer a uma leitura
excessivamente criptográfica do conjunto. A expressão hut aá, bem destacada, conjuga-
se com as representações do seu interior. Neste sentido poder-se-ia ler, na nossa opinião,
«o grande templo da união de Ré e de Osíris», ou, com um valor equivalente, «o grande
templo da ressurreição», associando a expressão hut aá ao registo inferior onde se vê o
coração, habitualmente um símbolo de Osíris, sobre as patas de Khepri. A representação
do registo inferior tem, deste modo, como principal intento ilustrar o mistério da união
entre Ré e Osíris celebrado no interior do «grande templo». Outra possibilidade é
atribuir ao escaravelho e ao coração o seu valor de hieroglífico habitual, ou seja, kheper
e ib, algo que nenhum dos autores citados fez e que, na nossa opinião, parece ser a
solução mais parcimoniosa e, por essa razão, mais verosimelhante. Nesse caso, o
conjunto seria lido do seguinte modo:
Já o registo superior, pode ser lido como «Que viva o coração de Ré», como foi
avançado por Blackman. «Que viva o sol renascido, (protegido) pelas Duas Senhoras» é
outra leitura igualmente possível.
Esta representação está em estreita ligação com a função do monumento. Para
Pascal Vernus este edifício, que não ultrapassaria a altura de um homem,2094 seria a
2095
«câmara dos setenta», mencionada na célebre estátua de Djedhor, o Salvador. De
acordo com o texto redigido nesta estátua, o monumento era utilizado para depositar as
múmias de falcão que, depois de terem passado pela câmara de mumificação, aí
2093
Os argumentos do autor estão explanados em detalhe em P. VERNUS, Athribis: Textes et documents
relatifs à la geographie, aux cultes et à l´Histoire d´une ville du delta égyptien à l´époque pharaonique,
Bibliothèque d´Étude, vol. 75, Cairo, 1978, pp. 137-138.
2094
Embora com dimensões muito modestas, a configuração do monumento seria idêntica ao pavilhão de
Augusto, dito de Trajano, erguido na ilha de Philae.
2095
Em P. VERNUS, Athribis: Textes et documents relatifs à la geographie, aux cultes et à l´Histoire
d´une ville du delta égyptien à l´époque pharaonique, Bibliothèque d´Étude, vol. 75, Cairo, 1978, p. 170.
745
cumpriam os setenta dias de repouso exigidos para a finalização destes rituais.2096 O
monumento teria assim fortes conotações com os rituais osíriacos relacionados com a
ressurreição, mas também com o ciclo solar, já que o coração renascido de Osíris estava
claramente associado ao disco solar. Apesar da amplitude do debate que rodeia o
monumento, estamos perante uma monumentalização da representação da união entre o
coração e o disco solar que, pelo menos desde a XXI dinastia, resumia o mistério da
união entre Osíris e Ré.
2096
Explicar-se-ia assim a presença dos 77 deuses protectores representados nas paredes do monumento
que ficavam de guarda para que a ressurreição, pensada à imagem da ressurreição do coração de Osíris,
decorresse sem incidentes. Em P. VERNUS, Athribis: Textes et documents relatifs à la geographie, aux
cultes et à l´Histoire d´une ville du delta égyptien à l´époque pharaonique, Bibliothèque d´Étude, vol. 75,
Cairo, 1978, p. 170.
746
747