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Guto Nóbrega
Tomando como ponto de partida a noção de obra de arte como sistema intrinseca-
mente orgânico, este artigo propõe modos de análise para a tríade artista-trabalho de
arte-observador com base no conceito de arte como um fenômeno de campo.
Durante os últimos anos da presente pesquisa e FOR AN ART REVIEW AND ITS TECHNICAL
suas derivações criativas, temos sido orientados OBJECTS. Thinking outside the (black) box
pela hipótese de que a experiência no campo da | Taking as a starting point the notion of a work
of art as an intrinsically organic system, this paper
arte, de forma ainda mais contundente na arte
suggests ways of analyzing the artist-observer-
telemática – entendida aqui como intercomuni- art triad based on the concept of art as a field
cação sistêmica entre organismos naturais e artifi- phenomenon. | hyperorganism technical
ciais –, poderia ser investigada nos termos de um object apparatus integrative field
modelo biológico integrativo contemporâneo. De
forma simples e objetiva, poderíamos dizer que tal modelo leva em consideração a existência de uma
rede não mecanicista de informação, dentro de e entre organismos vivos, como uma das principais
fontes de seu processo regulador. A principal função operativa por trás de tal modelo é a distribuição de
informação na forma de um campo fotônico coerente. Organismos vivos são, portanto, considerados
nesse contexto não um agregado de partes e funções elementares, mas um todo comunicativo coerente.
Partindo desse ponto de vista, o presente artigo leva em conta esse e outros modos congruentes de
biocomunicação como base constitutiva de um modelo teórico para análise de uma formação nuclear
da arte, a saber, o complexo artista, trabalho de arte, observador. O modelo que propomos é forte-
mente baseado na biologia, na filosofia e numa estética de processos orgânicos. Tal modelo teórico
busca preencher a lacuna deixada por um “significante deslocamento estético ocorrido em nosso sécu-
lo”, a saída de foco de uma “arte das aparências, classicamente preocupada com a ordem estática das
coisas, para uma arte da aparição, preocupada com os processos e relações dinâmicas do vir a ser”.1
Essa dinâmica, de natureza genuinamente orgânica, requer novas formas de análise que venham dar
conta das forças invisíveis e imateriais que atuam sistemicamente entre os demais integrantes de um
Campo integrativo – CI
Imagem Guto Nóbrega
novas mídias. Nesse livro Flusser apresenta uma “o processo de codificação ocorre no interior da
análise crítica da tecnologia desenvolvendo um caixa preta (…) toda crítica da imagem técnica
sistema de relações completamente novo que é, deve-se concentrar no branqueamento do interior
sob alguns aspectos, diferente e complementar a dessa caixa preta” (1983).10 É importante notar
certas análises anteriores, incluída aquela delinea- que a partir dessa perspectiva, toda informação
da por Martin Heidegger. lógica do digital parece já estar latente no modelo
fotográfico, e dela não se diferenciando, como
Para Flusser, a tecnologia moderna pode ser
sugerem alguns teóricos das novas mídias.11 Essa
compreendida sob a lógica do conceito de
é a razão pela qual revelar a essência do aparelho
aparelho, cuja forma embrionária se espelha
pode nos orientar na análise de um complexo
na câmera fotográfica. Portanto, ele reivindica
similar, tão central ao ambiente tecnologicamente
uma filosofia da fotografia, já que ela tem
mediado das artes eletrônicas, a tríade artista,
potencial emancipatório num mundo dominado
trabalho de arte e observador.
por aparelhos. Flusser usa a câmera fotográfica
como um modelo porque percebeu que ela Em resumo, segundo Flusser, poderíamos dizer
é o mais simples e transparente de todos os que aquilo que define um aparelho é o fato de
aparelhos. O autor argumentou que a imagem ele ser programado para funcionar de determina-
produzida por esse aparelho é de um tipo da maneira. O aparelho limita-se a produzir aquilo
muito especial, pois não se refere diretamente que se encontra potencialmente codificado em
ao mundo fenomenal, como as imagens pré- seu programa. O aparelho fotográfico é progra-
históricas o faziam, mas sim indiretamente mado para automaticamente produzir imagens
aos textos científicos aplicados, pelos quais técnicas, liberando dessa maneira o fotógrafo
aparelhos são concebidos. O alinhamento entre para explorar e jogar. Por essa razão aparelhos
não podem ser confundidos com instrumentos, o aparelho de forma a exaurir virtualmente suas
pois aparelhos são mais parecidos com brinque- regras, seu programa, manipulando o aparelho
dos. Brinquedos que lidam com símbolos, combi- não como um trabalhador, mas como um joga-
nando-os. É nesse sentido que Flusser afirma que dor. Como ele aponta, implica o deslocamento da
a principal função do fotógrafo é jogar contra categoria homo faber para homo ludens. Flusser
À luz do que foi analisado até o momento, con- Trabalhos de arte como organismos
siderando-se a relação triádica artista-trabalho de
Com base numa visão ciberneticista e sistêmica,
arte-observador sob a lógica do aparelho, talvez
obras de artes deveriam ser consideradas pela
possamos tecer algumas considerações:
perspectiva de organismos13, cujos canais de in-
a) Tomando como princípio o “complexo ope- formação, naturais e artificiais, determinam seu
rador-aparelho” apontado por Flusser incluire- comportamento geral. Trabalhos de arte são sis-
mos em sua estrutura um terceiro elemento, temas orgânicos situados entre seus esquemas
cujo papel nos parece fundamental para a e a forma natural. Eles evoluem via processo
análise da arte: o observador. de concretização/individuação pelos quais seus
elementos convergem para uma troca de infor-
b) No contexto das poéticas artísticas o ob- mação coerente. Essa convergência dependerá
servador ganha um novo perfil; aparecerá não da agência do artista segundo seu processo de
mais como o foco do aparelho (aquele que invenção, no qual a “intuição” tem papel proe-
contempla as imagens produzidas pelo duo minente. Dependerá também do observador, cuja
câmera-fotógrafo) mas como aquele que se “intenção” determinará seu modo de jogar e sua
torna junto com o artista também operador atuação sobre as regras do jogo. Finalmente, o
de aparelhos. processo evolutivo dos organismos artísticos irá
depender do trabalho de arte e sua capacidade de
c) O artista, por sua vez, não apenas utiliza o
ressonância ao diálogo com o artista e o observa-
aparelho como um funcionário, mas torna-se
dor. Todo esse processo é relacional, integrativo e
também seu criador, seu programador, ali- coerente. Consequentemente, ele não responde-
mentando seu sistema com novos conceitos, rá a nenhum modo de análise reducionista, pois
novos modelos operacionais, forçando-o a nenhuma parte desse sistema faz sentido isolada-
comportar-se de forma imprevisível. mente. Sua avaliação deve ser feita em termos de
um campo integrativo coerente.
Diríamos que, ao modo do fotógrafo experi-
mental, o artista necessita quebrar as regras
Arte como um fenômeno de campo
inerentes à lógica do aparelho, penetrar sua
caixa-preta, introjetar o mundo exterior em seu Se considerarmos o complexo artista-trabalho de
sistema, contaminando-o. Será o artista que fará arte-observador um sistema de natureza orgâni-
a ponte entre o mundo fenomenológico e o apa- ca, devemos considerar um modelo biológico de
são supostamente capazes de operar como um trabalhos de arte, de objetos à informação, tem
direcionado nossa percepção para um cenário de
laser biológico, habilitados para gerar e operar
fluxos de forças invisíveis. Tais forças são partes
uma rede coerente de informação dentro dos se-
fundamentais de uma diversa ecologia natural e
res vivos com base em pacotes de luz e campos
artificial em curso.
eletromagnéticos.18
6 Simondon, 1989, op. cit.:20 18 Não confundir com o fenômeno de auras ou ra-
diações bioluminescentes.
7 Simondon, 1989, op. cit.:46
19 Ascott, Roy. Towards a Field Theory for Post-Mo-
8 Simondon, Gilbert. L’individu et sa genèse physico-
dernist Art. Leonardo, v.13, n.1, p.51-52, 1980.
biologique (L’individuation à la lumière des notions de
forme et d’information). Paris: Presses Universitaires 20 Hiperorganismos podem ser pensados como par-
de France, 1964. te de uma linhagem de objetos técnicos, conforme
as teorias de Simondon, os quais teriam incorporado
9 Schmidgen, Henning. Thinking technological and
em seus processos de individuação uma dimensão
biological beings: Gilbert Simondon’s philosophy of
expandida pelas redes telemáticas de informação.
machines. Revista do Departamento de Psicologia
Um hiperorganismo não deve ser considerado uma
UFF, n.17, 2005.
unidade em si, mas uma espécie de nó numa trama,
10 Flusser, Villém. Towards a Philosophy of Photo- um ponto de ligação. Apesar de sua existência física,
graphy. Göttingen: European Photography,1983:11. o hiperorganismo não deve ser concebido como uma
totalidade determinada, mas sim uma condição, um
11 Ver Couchot, Edmond. Da Representação à Simu-
estado de vir a ser definido pelo seu caráter relacio-
lação. In: Parente, André. (Org.) Imagem-Máquina.
nal, sempre em rede com outros seres, artificiais e/
São Paulo, Editora 34]; e Hansen, Mark. New Phi-
ou naturais no mundo. Para aprofundamento dessas
losophy for New Media. Cambridge: The MIT Press,
ideias consultar Nóbrega, Carlos. Thinking hyperor-
2004.
ganisms. Art, technology, coherence, connectedness,
12 Flusser, 1984, op. cit.:58. Tradução livre do origi- and the integrative field. Saarbrücken: Lambert Aca-
nal: “(…) to inject human intentions into the appara- demic Publishing, 2010.
tus program, (…) to force the apparatus to produce
something impossible to see in advance, something
improbable, something informative, (…)”