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Maria Ceci Misoczky

Rafael Kruter Flores


Joysi Moraes
(Organizadores)
Maria Ceci Misoczky
Rafael Kruter Flores
Joysi Moraes
(Organizadores)

DACASA EDITORA
2010

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Série

Conselho Editorial
Eloise Dellagnelo - Universidade Federal de Santa Catarina
Nildo Ouriques - Instituto de Estudos Latino-Americanos
Steffen Böhm - University of Essex

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Maria Ceci Misoczky
Rafael Kruter Flores
Joysi Moraes
(Organizadores)

DACASA EDITORA
2010

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Capa © DO AUtOr
Clarice M. de Oliveira Direito de Publicação
Dacasa Editora
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O68 Organização e Práxis Libertadora / org. por Maria Ceci Misoczky,


rafael Kruter Flores e Joysi Moraes. – Porto Alegre, Dacasa
Editora, 2010.

232 p.: il.; 16 x 23 cm. – (Organização e Práxis Libertadora)

Inclui bibliografia e notas.

1. Movimentos sociais. 2. Organizações sociais. I. Mizoczki, Maria


Ceci, org. II. Flores, rafael Kruter, org. III. Moraes, Joysi, org.

CDU 304:65.01

CIP – Catalogação na fonte: Paula Pêgas de Lima CrB 10/1229

Apoio: CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

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íNDICE

7 APrESENtAçãO

13 DAS PrátICAS NãO-GErENCIAIS DE OrGANIzAr


à OrGANIzAçãO PArA A PráxIS DA LIBErtAçãO
Maria Ceci Misoczky

57 BLOCh, GrAMSCI E PAULO FrEIrE: rEFErêNCIAS


FUNDAMENtAIS PArA OS AtOS DA DENúNCIA E DO ANúNCIO
Maria Ceci Misoczky
rafael Kruter Flores
Joysi Moraes

77 A OrGANIzAçãO DIALóGICA DO MOVIMIENtO DE


trABAJADOrES DESOCUPADOS DE LA MAtANzA
Joysi Moraes
Maria Ceci Misoczky

107 UrUGUAI: A LUtA PELA áGUA COMO UM BEM COMUM


rafael Kruter Flores

131 MErCADOS DE CArBONO: IMAGENS DO NOrtE E DO SUL


Steffen Böhm
Maria Ceci Misoczky

153 DESENVOLVIMENtO: CONFLItOS SóCIO-AMBIENtAIS


E PErSPECtIVAS EM DISPUtA
Maria Ceci Misoczky

185 A PrODUçãO DE áLCOOL COMBUStíVEL NO BrASIL:


rEOrGANIzAçãO DO CAPItAL E SUPErExPLOrAçãO DO
trABALhO OU VAMOS NOS JOGAr ONDE Já CAíMOS...
tUDO NOVO DE NOVO ...
Sueli Goulart
Maria Ceci Misoczky

209 A qUEM PErtENCE O CONhECIMENtO qUE PrODUzIMOS?


Sueli Goulart
Cristina Amélia Carvalho

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Apresentação

A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões,


não para que o homem os suporte sem fantasias ou consolo,
mas para que lance fora os grilhões e a flor viva brote.
Karl Marx

O conjunto de textos que compõe este livro se constitui em um balanço,


uma amostra do trabalho realizado e uma reflexão sobre o caminho a seguir de um
coletivo de trabalho que se localiza na Escola de Administração da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em seu Programa de Pós-Graduação
(PPGA), e na Universidade Federal Fluminense (UFF): o Grupo de Pesquisa Or-
ganização e Práxis Libertadora1. O Grupo tem como objetivo contribuir para a
organização de lutas sociais valorizando a tradição do pensamento social latino-
-americano e o conhecimento que é produzido na práxis dos lutadores sociais, e
se organiza em torno de quatro linhas de pesquisa: práticas organizacionais de
lutas e movimentos sociais; lutas sociais na formação e transformação do Estado;
contribuições do pensamento social latino-americano; concepções em disputa na
produção e acesso ao conhecimento.
Os textos que seguem foram co-produzidos neste coletivo. As autorias
identificadas expressam mais o cumprimento de tarefas e afinidades eletivas de
temas e autores do que produções individuais. A experiência de co-produção foi
importante não apenas porque contribuiu para gerar a articulação dos escritos,
mas principalmente porque permitiu que compartilhássemos – não sem espanto,
em alguns momentos – a percepção da coerência do nosso trabalho. Essa coerên-
cia é bastante perceptível na linguagem comum a todos os textos. Claro que isto
não se dá por acaso. Além dos objetos de estudo que, ao serem construídos2, in-

1 Página do Grupo de Pesquisa Organização e Práxis Libertadora no Diretório do CNPq: http://dgp.cnpq.


br/diretorioc/fontes/detalhegrupo.jsp?grupo=0192602LU6FNW8
2 No sentido dado por Pierre Bourdieu à construção do objeto como um trabalho social de recusa do
pré-construído, como uma tarefa que se completa pouco a pouco, através de uma série de pequenas
retificações e emendas inspiradas em um conjunto de princípios práticos que orienta as escolhas
(BOUrDIEU, Pierre. La práctica de la sociología reflexiva. In: BOUrDIEU, Pierre; WACqUANt, Loïc.
Una invitación a la sociología reflevixa. Buenos Aires: Siglo xxI Editores, 2005. p. 301-358).

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8 Apresentação

dicam muitas direções comuns, o compartilhamento de referências fundamentais


também contribui decisivamente.
Por isso, começamos explicitando e compartilhando nossas referências
fundamentais, até este momento: Ernst Bloch, Antonio Gramsci e Paulo Freire.
Estes não são, porém, os únicos autores com os quais trabalhamos. A atividade
teórica em que estamos imersos – e que se orienta por um princípio ético-mate-
rial definido a partir da vida como critério de verdade (DUSSEL, 2001) – leva-
-nos a buscar diálogos e interfaces com diversos autores, especialmente com
aqueles que realizam seu fazer acadêmico articulando-o com as lutas sociais.
Estamos convencidos de que o processo coletivo de produção de aportes que
contribuam para a práxis da libertação inclui dialogar com experiências signi-
ficativas de organização popular e com as representações teóricas com as quais
encontram correspondência. Aí se encontram releituras da tradição marxista
e reinvenções do patrimônio humanista praticando, a partir da nossa situação
latino-americana3, a reoriginalização cultural (QUIJANO, 2001) e a redução
sociológica (GUERREIRO RAMOS, 1965).
As sistematizações e aproximações entre Bloch, Gramsci e Freire são pre-
cedidas de um capítulo onde recuperamos a trajetória do nosso coletivo de tra-
balho, refazemos os caminhos que percorremos e indicamos por onde estamos
indo. Na sequência se encontram seis capítulos: amostras de nosso trabalho.
Como se poderá perceber, alguns expressam – na terminologia de Bloch4 – o
vermelho frio, são mais analíticos e críticos; outros expressam mais o vermelho
quente, são prospectivos, marcados pela plenitude da expectativa que acompa-
nha o otimismo militante.
A amostra se inicia com o texto A organização dialógica do Movimiento de
Trabajadores Desocupados de La Matanza, escrito por Joysi Moraes e Maria Ceci
Misoczky, cujo tema central é a organização como meio para a aprendizagem da práxis
libertadora em um trabalho que se orienta pela teoria freireana. Paulo Freire refletiu,
diversas vezes, sobre o tema da auto-organização, cujo oposto é a manipulação. Em
torno desta reflexão desenvolveu duas teorias: a da ação antidialógica e a da ação
dialógica. A cada uma delas corresponde uma prática que contradiz a outra. Como

3 Apesar da obviedade do pertencimento do Brasil à América Latina, em mais de uma oportunidade nos
deparamos com um questionamento a esse respeito. Aos que se interessarem pelo tema, remetemos
à leitura de Darcy ribeiro, que tratou deste tema com a propriedade e franqueza que lhe era carac-
terística em rIBEIrO, Darcy. O povo latino-americano. In: ______. O Brasil como problema. rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 121-146.
4 Esta terminologia será explorada no texto sobre Ernst Bloch.

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Organização e Práxis Libertadora 9

ocorre com todas as práticas, nenhuma delas pode prescindir do auxílio das ciências
ou das teorias que lhes dão suporte, articulando-as em uma práxis. De acordo com
Paulo Freire, a teoria da ação antidialógica há muito possui seus teóricos e ideólogos
e se expressa nas burocracias. Já sua antítese, a teoria da ação dialógica, expressa o
devir de uma organização cujo objetivo é a libertação humana e pressupõe como in-
separáveis a prática organizacional da aprendizagem. Paulo Freire expõe as condições
concretas da teoria da ação dialógica no ato mesmo de sua práxis militante, e assinala
que precisamos de mais experiências que mostrem sua viabilidade, bem como de pro-
duções intelectuais que as tornem visíveis. Assim, com o objetivo de tornar visíveis
organizações que efetivam, na sua prática organizacional, a ação dialógica, as autoras
relatam e refletem sobre o processo de emersão dos sujeitos que se auto-organizavam
no Movimiento de Trabajadores Desocupados de La Matanza (Argentina).
O texto que segue, de autoria de Rafael Kruter Flores – Uruguai: a luta
pela água como um bem comum – aborda um processo recente de construção
de contra-hegemonia na luta pelo acesso à água. Trata-se de uma luta que, ao de-
fender a própria existência física dos sujeitos, nas palavras de Gramsci, afirma os
mais elevados valores da civilização e da humanidade. No Uruguai a população,
ao ter o acesso à água impedido ou dificultado, se organizou, reformou a Consti-
tuição, expulsou empresas transnacionais, impediu novas privatizações de servi-
ços dessa natureza e afirmou a definição da água como um bem comum.
Ainda no campo das relações entre a natureza como bem comum e a apro-
priação pelo sistema do capital, Steffen Böhm e Maria Ceci Misoczky abordam
Mercados de carbono: imagens do Norte e do Sul. Esse texto problematiza o
tema do mercado de carbono tendo como referência a ecologia política e a aborda-
gem dos conflitos distributivos, explorando imagens do Norte e do Sul. Aproximá-
-las e produzir sentidos é indispensável para disseminar argumentos que apóiem
as lutas sociais de todos aqueles que, sem importar se localizados no Sul ou no
Norte, compartilham a preocupação com os impactos deste mercado para popu-
lações e regiões localmente atingidas, bem como para a humanidade e o planeta.
A construção do texto se fez com base em pesquisas e vivências dos autores em
seus respectivos contextos; bem como a partir de documentos secundários com in-
formações de organismos envolvidos com os esquemas de compensação – sejam
implementadores, sejam os que lhes fazem oposição.
Em Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais e perspectivas em dis-
puta, Maria Ceci Misoczky inicia o capítulo com uma breve contextualização
da formação discursiva do desenvolvimento, seguida de uma apresentação dos

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10 Apresentação

conceitos básicos necessários para compreender a noção de conflitos sócio-am-


bientais. Esta introdução permite o desenvolvimento de reflexões inicias sobre
projetos em disputa no contexto da América Latina: desenvolvimento como cres-
cimento econômico; ações de povos originários na região andina movidos pelo
valor da vida harmônica; a defesa da soberania alimentar e da biodiversidade rea-
lizada pelo Movimento de Mulheres Camponesas; o desenvolvimento alternativo
e o pós-desenvolvimento.
Em A Produção de álcool combustível no Brasil: reorganização do ca-
pital e superexploração do trabalho, Sueli Goulart e Maria Ceci Misoczky aler-
tam que Vamos nos jogar onde já caímos... tudo novo de novo5... Este capítulo
dialoga diretamente com o texto anterior, mostrando que o apelo à inovação, à
autodeterminação e ao compromisso com a sustentabilidade econômica, social e
ambiental, de fato, não estabelece rupturas com modelos arcaicos de organização da
produção. Mediante textos ilustrativos, as autoras mostram como vem se organizan-
do a produção de álcool combustível no âmbito da divisão internacional do trabalho
e também como se caracterizam as relações de trabalho no setor. As apresentações
de textos e reportagens que registram e descrevem fatos são intercaladas com co-
mentários e citações de modo a conectá-las tanto a temáticas contemporâneas quan-
to a fatos e interpretações históricas, pensando os problemas atuais como processos
construídos ao longo do tempo. O texto explora o argumento de que a produção de
agro-combustíveis, particularmente a de álcool combustível, apesar de ser tratada
como elemento propulsor de um novo modelo de desenvolvimento, na verdade re-
produz padrões perversos há muito presentes em nossa história.
O capítulo que encerra este livro - A quem pertence o conhecimento que
produzimos? - de autoria de Sueli Goulart e Cristina Amélia Carvalho, ques-
tiona o processo de construção, apropriação e disseminação do conhecimento
que produzimos. As autoras abordam as dinâmicas de atribuição de direitos so-
bre as publicações e de acessibilidade ao conhecimento acadêmico-científico
produzido, predominantemente nas instituições públicas brasileiras de ensino
e pesquisa. O texto ressalta o caráter de construção coletiva do conhecimento
acadêmico-científico que, portanto, deveria pertencer ao conjunto da sociedade e
à categoria dos bens públicos, de ampla disseminção e livre acesso.
O título e o argumento deste capítulo dialogam com um questionamento
que vem sendo feito por estudantes de nossa Universidade.

5 Verso da música tudo novo de novo, de Paulinho Moska.

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Organização e Práxis Libertadora 11

Em maio de 2008, estudantes vinculados ao Coletivo Muralha Rubro Negra6


e ao Diretório Central dos Estudantes, produziram um mural, na parede externa de
um prédio no Campus do Vale7 da UFRGS, onde constava a pergunta Pra que(m)
serve o teu conhecimento?. Esta intervenção foi contestada administrativamente
por um grupo de estudantes (do Movimento Estudantil Liberdade) que o definiu
como dano ao patrimônio público. A Reitoria da UFRGS, através da Secretaria de
Assuntos Estudantis, considerou que não se tratava de uma pichação, mas de um
“ato de extremo instigamento ao pensamento crítico, eivado de indagação filosófica
que não desmerece o patrimônio”. Em reação, a parede foi coberta de tinta pelos
incomodados e a perturbadora indagação momentaneamente calada8. No entanto,
como se pode ver nas fotos abaixo, a pergunta que se recusa a calar foi disseminada
pelos campi da Universidade – em outros murais, em adesivos, em reproduções, em
eventos9, na reconstituição no muro onde foi originalmente inscrita.

6 “O Coletivo de Ação e Propaganda Muralha rubro Negra foi criado em 2007 para a prática muralista. O
objetivo não é apenas fazer muralismo, e sim estar engajado e comprometido com a transformação social.
Portanto, nosso caráter é de intenção revolucionária, ou seja, pretendemos fazer do muralismo o nosso ve-
ículo de comunicação para potencializar os conflitos existentes. Adotamos uma estética libertária inspirada
nas experiências Latino-Americanas de muralismo como, por exemplo, o que fazem os companheiros da
UMLEM (Unidade Muralista Ernesto Miranda). No entanto, adicionamos o nosso estilo e as particularidades
da realidade vivida pelo nosso povo. Nossa produção artística é coletiva, isso significa dizer que produzimos
o mural juntamente com todos aqueles que se interessam em participar pintando, conhecendo a nossa esté-
tica e incorporando elementos novos a partir da troca oportunizada pelo contato com o outro. Com a prática
muralista registramos e denunciamos os problemas enfrentados pelo povo que resiste à opressão diária.
Nosso fazer muralista está aberto à participação daqueles sem direito à voz, mas que resistem e utilizam
o mural para informar através de uma ação artística combativa e solidária com aqueles que lutam!” Mais
informações podem ser encontradas no blog do Coletivo: <http://muralharubronegrabrasil.blogspot.com>.
7 A UFrGS se distribui entre o Campus Centro, o Campus da Saúde, o Campus Olímpico e o Campus do
Vale. Neste se encontra o maior número de unidades.
8 A este respeito ver http://resistenciapopular.blogspot.com/2009/09/grito-dos-excluidos-bloco-com-
bativo.html/; http://muralharubronegrabrasil.blogspot.com/2008/08/afinal-quem-so-os-vndalo.html;
9 O Levante Popular da Juventude e o Coletivo Muralha rubro Negra realizaram o seminário Pra que(m)
serve o teu conhecimento?, na sala Pantheon do Instituto de Filosofia e Ciências humanas (IFCh) da
UFrGS - Campus do Vale, em Porto Alegre. O evento teve a participação de José Carlos Gomes dos

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12 Apresentação

Escolhemos encerrar esta apresentação com a pergunta que tanto


desconforto causou em nossa Universidade e que, entendemos, deve ser uma
pergunta constantemente presente em nossa práxis acadêmica.

Anjos, representante do Movimento Negro; raquel Monteiro, do Movimento dos trabalhado-


res rurais Sem terra (MSt), Leonardo Leitão, dos cursinhos populares, e Vera Poty, profes-
sora de Guarani. O objetivo do seminário foi debater a finalidade do conhecimento acadêmi-
co produzido nas universidades públicas, a partir de pontos de vista marginais a este espaço.
Sobre o Levante Popular da Juventude ver seu blog: http://levantepopulardajuventude.blogspot.com/.

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Organização e Práxis Libertadora 13

Das práticas não-gerenciais de organizar à organização


para a práxis da libertação

Maria Ceci Misoczky

Não se pode falar de fatos novos na prática,


desacompanhados de fatos novos na teoria.
Fernando Prestes Motta

Este capítulo é composto de mementos10 e balanços. Os Mementos


1 e 2 estão reproduzidos em sua redação original, sendo a expressão dos ob-
jetivos compartilhados e das referências mais influentes em cada momento.
Será facilmente observado que o Memento 1 tem inúmeras e longas citações.
Optamos por mantê-lo assim. Este formato é testemunho do tatear inicial, da
necessidade de apoio em outros autores e textos, da busca indispensável para
construir uma base a partir da qual avançar. Após cada memento segue um
balanço da produção realizada. O Memento 3 é a reflexão sobre como nos
encontrávamos quando finalizamos a organização deste livro.
A leitura dos mementos e balanços pode dar a impressão de uma certa
instabilidade na relação com outros autores e textos. Sim! A atividade teórico-
-prática em que estamos imersos nos leva a buscar diálogos e interfaces, espe-
cialmente com aqueles que realizam seu fazer acadêmico em articulação com
a organização das lutas sociais. Além disto, constatamos que os autores que
orientam mais decididamente nosso trabalho - Bloch, Gramsci e Freire – são
referências compartilhadas com os autores contemporâneos com os quais en-
contramos afinidades e que freqüentam nossos textos. Nada surpreendente. No
entanto, é preciso reconhecer que esta constatação só se efetivou agora; que
esta coerência não foi pré-construída racional e intencionalmente.

10 Palavra latina, significando “lembra-te”. Entre seus sentidos se encontra “marca que serve para lembrar
coisas que devem ser lembradas”; “essa anotação, apontamento, memória”; também “livrinho onde se
acham resumidas as partes essenciais de uma questão”. Fonte: Novo Aurélio, edição de 1999.

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14 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

Pelo menos dois esclarecimentos são ainda necessários a esta altura do


texto: nossa localização nos espaços disciplinares e a conseqüente contribuição
a que nos propomos, e o princípio normativo-ético que orienta nosso trabalho.
Trabalhamos em Escolas de Administração, inseridos na área disciplinar
dos Estudos Organizacionais.
A Administração, talvez até mais que outras disciplinas, continua mar-
cada pelo funcionalismo e pela ênfase no consenso e na ordem. Não poderia
ser diferente, já que sua emergência coincide com a necessidade da organiza-
ção da produção e do aumento da produtividade. Por isso, a categoria central
dos Estudos Organizacionais – a organização – costuma ser definida como um
sistema que será funcionalmente eficiente se for capaz de atingir metas explí-
citas e racionalmente definidas. Em síntese, nas abordagens dominantes, as
tarefas da administração são definir e atingir metas; as tarefas do pesquisador
são coletar dados objetivos que indiquem como as funções organizacionais se
distribuem em relação às metas; o método deve ser coerente com o positivis-
mo, de preferência com o uso de dados que facilitem a validação, confiabili-
dade e aplicabilidade. O resultado é a legitimação social e moral da organiza-
ção racional, baseada em funções técnicas ditas objetivas e necessárias para o
funcionamento efetivo e eficiente da ordem social (CLEGG e HARDY, 1996;
REED, 1999).
Além disso, a definição de organização realiza uma abstrai os indivídu-
os das relações sociais que constituem uma forma específica de propriedade.
A exclusão conceitual da sociedade é a base da metáfora interna/externa usu-
almente aplicada ao relacionamento organização/sociedade. Tendo separado
indivíduos e organizações das relações sociais que os constituem, a vertente
dominante dos Estudos Organizacionais precisa se ocupar com o estabele-
cimento de conexões artificiais - entre o indivíduo e a organização e entre a
organização e o ambiente - para reconectar o que ela mesma artificialmente
rompeu (MARSDEN e TOWNLEY, 2001).
Cumprindo sua função, a vertente dominante dos Estudos Organizacio-
nais (EOs) produz estudos para quem gerencia, dissemina a naturalização das
relações de dominação e legitima a celebração do mercado. Esta vertente é,
ainda, impregnada de uma orientação norte-americana, assumindo que o su-
cesso daquele país no pós-guerra se deveu a uma concepção de administração
e de negócios que seria universalmente aplicável (MARSDEN e TOWNLEY,
2001). Ainda que os eventos das últimas décadas tenham desvelado a falácia

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Organização e Práxis Libertadora 15

desta suposição, no ambiente acadêmico brasileiro da administração esta cren-


ça ainda é amplamente disseminada.
É preciso ressaltar que Max Weber está no centro da emergência dos EOs,
mas com duas leituras: (1) a que analisa criticamente a marcha da racionalização
e da impessoalidade no modo de organizar da modernidade, com suas práticas an-
tidemocráticas; e (2) a apropriação parsoniana que promove a interpretação estru-
tural funcionalista dos sistemas sociais e das organizações (BURRELL, 1999). A
primeira leitura, mais expressiva no contexto acadêmico europeu, marca o limite
da crítica nos Estudos Organizacionais: a trajetória da modernidade e a crescente
racionalização que a define são consideradas desumanizadoras, autoritárias e da-
nosas para os seres humanos.
Modernidade é uma categoria muito mais agradável do que capitalismo,
acobertando os constrangimentos das condições de operações necessárias ao pro-
cesso de reprodução capitalista. Da mesma forma, o discurso sobre a racionalida-
de instrumental e sobre o capitalismo como um “espírito” acoberta as implicações
materiais tanto da constituição e permanência do sistema, como do controle e
subordinação dos sujeitos sociais. Ou seja, em Weber (1997) se encontra a descri-
ção de algumas aparências do desenvolvimento do capitalismo – como é o caso da
dominação racional-legal. No entanto, ao não perguntar como e por que se produz
essa dominação e seu sistema de regras, não pode evidenciar que sua razão de ser
é assegurar e salvaguardar o controle do capital sobre o corpo social. Ao afirmar
que a ordem estabelecida surgiu do misterioso espírito do protestantismo, que
convenientemente se metabolizou no espírito empresarial orientado para o lucro,
nega que o futuro possa ser diferente. Ao desconsiderar que a racionalização é um
efeito, não uma causa, Weber reduz a possibilidade de compreensão do sistema
à sua mera contemplação, além de justificar, pelo predomínio da racionalidade
instrumental e pela fatalidade da gaiola de ferro, a permanência da ordem sócio-
-econômica. Além disso, mitifica a racionalidade instrumental, ao tratá-la como
um cálculo racional supostamente livre de valores (MÉSZÁROS, 2002).
Já a presença de Marx nos EOs tem sido bastante limitada. Sob influência
de Labor and Monopoly Capital, de Harry Braveman11 (1974), se desenvolveu a
partir do Reino Unido uma vertente de estudos do processo de trabalho (Labour
Process Theory – LPT). A LPT teve seu auge nos anos 80, principalmente na

11 Braveman (1974) tomou como objeto as mudanças que caracterizaram o capitalismo monopolista e
suas conseqüências para a natureza do trabalho e a composição da classe trabalhadora.

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16 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

Europa, perdendo sua relevância gradativamente ao longo dos anos 90. Seus te-
mas principais têm sido a natureza de regimes específicos de produção capitalista,
força de trabalho, formação de habilidades e divisão do trabalho, estratégias e
práticas de controle gerencial, resistência e agência dos trabalhadores (THOMP-
SON, 2009). A LPT tem sofrido várias críticas: para os gerencialistas, teria per-
dido importância junto com o restante da ciência social marxista (TSOUKAS,
2007, p.1309); para alguns marxistas, não seria dialética nem histórica, com a
decorrente incapacidade de prover uma agenda política própria (TINKER, 2002);
para outros, a LPT precisaria enfrentar os problemas do valor, da política e da
economia política global para manter-se na tradição marxista (JAROS, 2005). Em
defesa da LPT, seus principais autores afirmam a importância de seus conceitos
centrais – indeterminação da força de trabalho (devido à mobilidade dos traba-
lhadores e ao consentimento negociado à crescente exploração) e dualidade do
trabalho (o trabalhador precisa alienar seu ser existencial da mercadoria/força de
trabalho que possui) – para a análise das novas tendências e reconfigurações da
força de trabalho como constituintes centrais do desenvolvimento do capitalismo
(THOMPSON e SMITH, 2009).
Parte da perda de relevância da LPT no contexto europeu se deveu à moda
do pós-modernismo e à presença de referenciais da segunda fase da Escola de
Frankfurt. Deste mix de influências se originou uma vertente que se apresenta
como Estudos Críticos em Administração, qualificada como produtora de uma
crítica domesticada, que se mantém dentro dos limites da gestão e se propõe a, no
máximo, produzir micro-emancipações que não coloquem em risco a ordem do
capital (MISOCZKY e AMANTINO-DE-ANDRADE, 2005).
No Brasil, a crítica às teorias administrativas já havia realizado duas afirma-
ções marcantes, ainda que com origens e consequências diferentes: a teoria geral
da administração é ideológica (TRAGTENBERG, 1980); a teoria da organização
é ingênua (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 1):

A Teoria Geral da Administração é ideológica, na medida em que traz


em si a ambigüidade básica do processo ideológico, que consiste no se-
guinte: vincula-se ela às determinações sociais reais, enquanto técnica
(de trabalho, administrativo, comercial) por mediação do trabalho; e
afasta-se dessas determinações sociais reais, compondo-se num univer-
so sistemático organizado, refletindo deformadamente o real, enquanto
ideologia. (TRAGTENBERG, 1980, p. 89)

A teoria das organizações, tal como tem prevalecido, é ingênua. Assume


esse caráter porque se baseia na racionalidade instrumental inerente à

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Organização e Práxis Libertadora 17

ciência social dominante no Ocidente. Na realidade, até agora essa inge-


nuidade tem sido o fator fundamental de seu sucesso prático. Todavia,
cumpre reconhecer agora que esse sucesso tem sido unidimensional e
[…] exerce um impacto desfigurador sobre a vida humana associada.
(GUERREIRO RAMOS, 1989, p.1)

Desde, pelo menos, os estudos e a militância de Tragtenberg (1974, 1980,


2004, 2009), há uma importante contribuição em torno do tema da organiza-
ção dos trabalhadores e da participação na gestão do processo de produção. No
entanto, o tema das organizações de resistência e luta social tem estado prati-
camente ausente dos EOs, e não apenas no contexto nacional. Em decorrência
disso, há um grande estranhamento em nossa área acadêmica quanto ao tema dos
movimentos sociais12 e, mais ainda, em relação ao tema das lutas anticapitalistas.
Com frequência nos deparamos com uma posição síntese: este não é um tema dos
estudos organizacionais. Essa declaração vem do mainstream dos EOs e toma
como referência outro mainstream: o dos estudos de movimentos sociais e sua
correspondente teorização, uma subdisciplina institucionalizada13, com caracterís-
ticas predominantemente descritivas e analíticas, muito distanciada dos próprios
movimentos (COX e FOMINAYA, 2009). Vem, também, de uma vertente que se-
gue a trajetória de Tragtenberg e se orienta pela teoria crítica frankfurtiana em sua
primeira fase, complementada por uma psicossociologia crítica derivada de Freud
(FARIA, 2009). A centralidade do trabalho (analisada via processo de relações de
trabalho, divisão do trabalho e gestão do processo do trabalho) na construção do

12 Não desconhecemos a imprecisão do conceito “movimentos sociais”, menos ainda desconhecemos


que a origem das teorias sobre movimentos sociais se localiza nos EUA e na Europa. Seone, taddei
e Algranati (2009) problematizam o conceito à luz dos debates e experiências latino-americanas
recentes sem, no entanto, avançar em proposições que facilitem seu uso com maior conforto. De
qualquer forma, o esforço desses autores é valioso, além de indicar uma tarefa pendente. ribeiro
(2010) avança na terminologia ao qualificar os movimentos sociais populares enquanto sujeitos
políticos coletivos. Pensamos que este pode ser um caminho interessante a ser explorado.
13 Em decorrência dessa declaração reiterada, consideramos importante formalizar um ajuste de
contas com as teorias predominantes no estudo de movimentos sociais (MISOCzKY, FLOrES e
GOULArt, 2008). Ao fazê-lo, constatamos que a teoria de movimentos sociais (MSs) é muito in-
fluenciada pelos estudos organizacionais. Aliás, no período recente, estudiosos de organizações
também do contexto norte-americano têm, explicitamente, dialogado e compartilhado referen-
ciais com a teoria de MSs, em busca de inspiração para tratar de fenômenos empresariais con-
temporâneos. Naquele artigo realizamos, então, uma revisão dessa trajetória de aproximações,
com foco na teoria da mobilização de recursos, na teoria da estrutura de oportunidades políticas
e no esforço de convergência entre as mesmas, bem como na aproximação recente entre a teoria
de movimentos sociais e a teoria institucional e, também, na abordagem de redes. Orientamos
nossa reflexão pela pergunta sobre as consequências que uma teoria extremamente influenciada
pela lógica empresarial pode ter para nossa compreensão de movimentos que se orientam para a
superação dessa lógica e das relações sociais por ela constituídas.

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18 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

objeto de estudo desta vertente induz a não valorização de estudos que comparti-
lham o reconhecimento do caráter ontológico do trabalho14, mas valorizam outros
espaços de organização da luta social além do produtivo.
No entanto, o caminho que nos propusemos percorrer, focado na construção
de aportes que contribuam para as lutas sociais e que articulem de modo coerente
projetos políticos e a organização como meio para sua efetivação, não é novo.
O próprio Marx tomou a luta como objeto de estudo, como, por exemplo, em seus
textos sobre a Comuna de Paris. Em Lênin a ideia da organização era cúmplice da
realidade da revolução.
É importante recordar, também, Rosa Luxemburgo (2005), para quem não
havia uma única forma de organização dos trabalhadores (o partido); para quem a
luta de classes, como processo incessante, leva a contínuas modificações das for-
mas organizacionais. Rosa Luxemburgo valorizava as experiências produzidas em
circunstâncias onde se colocam exigências que solicitam soluções imediatas. Dizia
ela que neste processo dialético as massas inconscientes se elevam à consciência.
É neste processo que se produzem respostas inesperadas; é nele que a criação se
impõe em oposição ao codificado, ao rígido e burocrático (LOUREIRO, 2005).
Para Rosa Luxemburgo, não pode haver separação entre o elemento es-
pontâneo e o consciente. A organização e as tarefas a realizar se formam no
decorrer da própria luta; não previamente. As organizações são, nesse sentido,
“muito mais resultado da ação das massas que condições prévias para a exis-
tência de qualquer política revolucionária” (LOUREIRO, 2005, p.32). O que
Rosa nega é o fetichismo da organização e o que enfatiza é a importância da
experiência. “Organização, esclarecimento e luta não são aqui separados, mecâ-
nica e temporalmente distintos […], são apenas diferentes aspectos do mesmo
processo” (LUXEMBURGO, 2005, p.49).
Compartilhando este ponto de vista, nossa proposta é contribuir para a re-
flexão sobre a organização das lutas sociais, ao mesmo tempo em que escolhemos
nos manter na área disciplinar dos EOs. Entendemos que travar a luta cultural no
âmbito de uma disciplina que nasce no mercado e para o mercado e que tem na
sua origem, e como razão de ser, a produção de conhecimento para aperfeiçoar a
gestão a serviço do capital, se constitui em uma práxis acadêmica relevante por-
que, entre outras razões, problematiza a concepção hegemônica de organização
definida como sinônimo de empresa (SOLÉ, 2003). Em uma conjuntura em que

14 A centralidade do em seu sentido ontológico – o trabalho como criador da existência humana, fonte
primária de realização e o modelo de práxis – remete, obviamente, a Lukács (1979).

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Organização e Práxis Libertadora 19

o discurso gerencialista é dominante e se expande para todas as esferas da vida


humana associada, é importante construir conhecimento contra-hegemônico no
próprio espaço em que o discurso gerencialista é produzido e reproduzido.
Finalmente, falta dizer que durante esta trajetória sempre nos orientamos
por um princípio ético-material definido a partir da vida como critério de verda-
de. Nas palavras de seu formulador, Enrique Dussel (2001, p.74): “tudo o que
funcione eticamente deve produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana em
comunidade, e, em último caso, a vida de toda a humanidade”.

Memento 1: práticas não gerenciais de organizar15


No final de 2003, durante um Colóquio sobre Administração Pública em
Stoke on Trent (em algum lugar perdido no Reino Unido), onde predominava a
mais devastadora abordagem racionalista acompanhada de seu inseparável par-
ceiro - o determinismo pessimista da impossibilidade de alternativas, Martin
Parker (2002) fez uma apresentação de seu livro Against Management. A falta
de receptividade às suas provocações me levou, no painel de encerramento, a
ironizar o desencanto racionalista tipicamente europeu e a falar sobre a exis-
tência da esperança, a construção do novo e a constante resistência, não como
atributos culturais exóticos, mas como exigências cotidianas para levar a vida
em regiões do sul do mundo. Ali começou a se formar o desejo de trabalhar com
esses temas, de explorar o organizar não gerencial, de tomar o ato de organizar
as lutas sociais como tema de estudo.
Desde então aconteceram muitos encontros, no sentido deleuziano de reco-
nhecer composições ou relações similares entre corpos e, assim, favorecer encontros
compatíveis, paixões alegres. Quando fazemos essas seleções estamos produzindo
noções comuns – ideias de similaridade e de composição em modos existentes.

Na medida em que nossos sentimentos ou afetos provêm do encontro


exterior com outros modos existentes, eles explicam-se pela natureza
do corpo afetante e pela ideia necessariamente inadequada desse corpo,
imagem confusa envolvida no nosso estado. Tais afetos são paixões, vis-
to que não somos a sua causa adequada. Mesmo os afetos baseados na
alegria e que se definem pelo aumento da potência de agir, são paixões
(…) Mesmo que nossa potência de agir cresça materialmente, nem por
isso deixamos de ser passivos, separados dessa potência, na medida em

15 texto escrito em dezembro de 2004.

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que não a dominamos formalmente. Eis por que, do ponto de vista dos
afetos, a distinção fundamental entre dois tipos de paixão, paixões tristes
e paixões alegres, prepara outra distinção bem diversa entre as paixões e
as ações. (DELEUZE, 2002, p.57)

O processo se inicia com a experiência da alegria, nos induzindo a reconhe-


cer uma relação comum, a formar uma noção comum. A partir do reconhecimento
da noção comum se pode dar o salto para a alegria ativa, para a substituição da
causa externa pela causa interna. Esse processo de envolver a causa interna cons-
titui o salto para a ação. A força que anima essa operação é o conatus: quando a fí-
sica é transportada para o plano ético deixamos de ser corpos em movimento para
encontrarmos corpos insuflados de desejo. “À medida que passamos da tristeza
para a alegria, das paixões para as ações, estamos descobrindo o caminho para o
aumento da nossa potência” (HARDT, 1996, p.158 e 170).

Paixões alegres são a pré-condição da prática. A alegria do encontro é,


precisamente, a composição de dois corpos em um corpo novo e mais
poderoso. (...) A alegria da afecção ativa não é mais contingente de um
encontro casual; a alegria que tem por suporte a noção comum é a ale-
gria que retorna. (HARDT, 1996, p.181)

Ou seja, a ideia de trabalho só se torna ação pela efetivação de encontros que


deixam de ser casuais para se tornarem afecções ativas. Um marco inicial foi, então,
o encontro com Rafael Vecchio, mestrando que aceitou a ideia de se aproximar da
Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz. O objetivo de sua dissertação foi identifi-
car as contribuições da prática autogestionária deste Coletivo para os EOs. Voltare-
mos a isso mais adiante; por enquanto é preciso dizer que a possibilidade de experi-
mentar nessa direção de estudo vem, diretamente, de duas linhas de pensamento que
nem todos julgam compatíveis entre si. Uma delas é deleuziana, outra é marxista.
Para Deleuze e Guattari (2001), em contraste com o senso comum, existem
zonas de indeterminação que acompanham, secretamente, muitas formas de orga-
nização, e o pensar tem uma relação peculiar com elas. Pensar é, primeiramente,
experimentar, e não julgar. Em outras palavras, não se trata de ter um mapa no
qual cada um de nós se localiza ou se reconhece, assim como localiza e reconhece
eventos em um plano de coordenadas fixas, mas de adotar uma orientação filosó-
fica em que se busca trabalhar com zonas que não estão completamente determi-

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Organização e Práxis Libertadora 21

nadas ou localizadas, onde os acontecimentos podem ir em direções não pensadas


e/ou de modos não regulares. Um mapa de conexões é um mapa para um nós que
não é dado por uma pressuposição, é um mapa que tem um gosto pelo desconhe-
cido, pelo que ainda não está determinado.
A conexão requer um estilo de pensamento que pode ser chamado de empi-
rista, que coloca a experimentação antes da ontologia. Trata-se de um experimen-
talismo que, em vez de perguntar pelas condições da experiência possível, procura
pelas condições em que algo novo, e mesmo impensado, acontece. Conectar-se é
trabalhar com outras possibilidades, não dadas ainda. Para fazer conexões preci-
samos não de conhecimentos e certezas, mas da confiança de que algo vai surgir,
ainda que não estejamos completamente certos do quê. O mote não é predizer,
mas pensar. Mas para isso é preciso um certo realismo. Frequentemente é o caso
de tornar visíveis temas que demandam novos grupos, que precisam inventar a si
mesmos, no processo, de acordo com os afetos ou paixões do pensar, anteriores ao
conhecimento formal e a seus códigos (RAJCHMAN, 2000).
Do ponto de vista teórico, experimentar pensar não significa supor a ausên-
cia de referências teóricas. Em vez disso, a construção se faz a partir de conceitos
e pedaços de teorias, inicialmente introduzidos com relação a um problema parti-
cular, então reintroduzidos em novos contextos, vistos a partir de novas perspec-
tivas. Assim, também o problema particular demanda novos conceitos e pedaços
de teorias. A coerência entre as várias partes varia de um trabalho para outro, pela
introdução de novos conceitos e de novos problemas. Aqui a imagem dos plateaux
(DELEUZE e GUATTARI, 2005) ajuda a compreender como as peças conceituais
são arranjadas em redes de inter-relações. As peças não se articulam como partes em
um organismo bem formado, ou em um mecanismo, ou ainda em uma narrativa sis-
temicamente organizada – o todo não está dado, e as coisas sempre estão começando
de novo no meio, se desfazendo e recompondo. Se vai passando de um plateau para
outro, e retornando para o anterior, em um tipo de viagem conceitual para a qual não
existe mapa, uma viagem na qual não se tem certeza quanto ao porto de chegada.
Esta atitude orientadora da atividade teórica precisa ser acompanhada de
uma escolha sobre o contexto material de sua realização. Além disso, a escolha de
trabalhar a partir de uma negação – práticas não gerenciais – implica em dificul-
dades evidentes e demanda acrescentar pedaços de afirmação a essa negação ... e
ver no que dá ...
Uma decisão importante é adotar como definição de contexto o capitalismo,
e não a modernidade. Modernidade é uma categoria que acoberta os constrangi-

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22 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

mentos das operações necessárias ao processo de reprodução capitalista; da mes-


ma forma que os discursos sobre a racionalidade instrumental e sobre o capitalis-
mo como um “espírito” acobertam as implicações materiais tanto da constituição
e permanência do sistema, como do controle e subordinação dos sujeitos sociais.

Porém, apesar da automitificação ‘dos princípios racionais de alocação’


e dos ‘valores instrumentais’, não existe aqui a questão da ‘neutralida-
de’. As ideias resultantes de avaliações ‘sem influências de valores’ ou
‘neutras com relação a valores’ das questões em jogo, e as ações base-
adas em conclusões assim obtidas, pertencem às fantasias apologéticas
da ordem estabelecida. Em muitas ocasiões, vimos que as anunciadas
‘conclusões racionais’ são, desde o início, normalmente aceitas, acrítica
e circularmente, por aqueles que se identificam com o ponto de vista do
capital, de modo a permitir-lhe chegar à ‘prova conclusiva’, ideologica-
mente desejada, da superioridade do seu sistema. Contudo, assim que
examinamos mais de perto o supostamente neutro ‘livro-caixa’ do capi-
tal, do qual se diz ser baseado em ‘pura racionalidade instrumental’, fica
claro que tal contabilidade é contabilidade social fortemente carregada
de valores. (MÉSZÁROS, 2002, p.944)

Concordar com estas afirmações não implica em descartar completamente


o pensamento Weberiano. Prestes Motta, por exemplo, em sua leitura marxista
trabalha com o pensamento de Weber, mas rearticula-os no contexto do capita-
lismo16. É de Prestes Motta (1981), aliás, que nos vem a inspiração para uma
primeira articulação positiva de ideias sobre o organizar – que virá mais adiante.
Antes disso uma afirmação sobre a referência que usamos com relação ao
tema do sistema do capital. Esse “não é apenas a reunião de um conjunto de enti-
dades materiais organizadas e, sempre que as condições o exijam, reorganizadas
com sucesso numa ordem adequada pelos recursos combinados da ‘racionalidade
instrumental’ e da ‘ética protestante do trabalho’, como é geral e erroneamente
entendido. Pelo contrário, é um sistema orgânico de reprodução sociometabólica,
dotado de lógica própria e de um conjunto objetivo de imperativos que subordi-
nam a si – para o melhor e para o pior, conforme as alterações das circunstâncias
históricas – todas as áreas de atividade humana, desde os processos econômicos

16 O tema weberiano da racionalização e da burocracia como agente racionalizador exerceu, inclusi-


ve, importante influência sobre alguns pensadores do marxismo ocidental, levando Merleau-Ponty
a cunhar a expressão ‘marxismo weberiano’. Lukács teria sido o primeiro deles e suas formulações
sobre reificação influenciaram, em maior ou menor grau, os marxistas weberianos posteriores, tendo
sido decisiva sobre pensadores vinculados à Escola de Frankfurt (LÖWY, 1995).

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mais básicos até os domínios intelectuais e culturais mais mediados e sofistica-


dos” (MÉSZÁROS, 2004, p.16).

Este modo de reprodução sociometabólica na qual o trabalho objetivado e


alienado – assumindo a forma do capital, com sua própria lógica e inércia
material – rege o trabalho ‘tem sentido’ tão somente enquanto tiver senti-
do a incomparável dinâmica de expansão do sistema. A questão, não obs-
tante, permanece: para quem, a que preço e que tipo de consciência julga,
ou é capaz de julgar, se a auto-expansão inexorável do capital ‘tem ou não
sentido’? Este não pode ser o pseudo-sujeito coletivo, o capital. Em sua
substância, pois, o capital é nada mais que ‘objetivação do trabalho alie-
nado, valor que confronta independentemente a capacidade de trabalho’.
Na medida em que o capital pode e consegue adquirir consciência e vonta-
de por meio de suas personificações, ele pode somente fazer julgamentos
preconceituosos, fatalmente distorcidos em seu favor. Pré-julgamentos
alterados ocorrem tanto no interesse do capital em geral, como totalizador
do intercâmbio sociometabólico, como a favor dos interesses parciais da
pluralidade de capitais e das personificações particulares do capital. […]
A determinação sobre o que ‘tem sentido’ só pode ser feita com base nas
relações de poder prevalecentes, conforme os ditames materiais da contí-
nua auto-expansão do capital. (MÉSZÁROS, 2002, p.939)

No sistema do capital se faz necessária uma forma de coordenação que se


expressa como uma relação de dominação, na medida em que uma lógica de auto-
ridade e submissão é imprescindível para a sua reprodução, dado o antagonismo
que o funda.

A articulação hierárquica e contraditória do capital é o princípio geral


de estruturação do sistema, não importa o tamanho de suas unidades
constituintes. Isso se deve à natureza interna do processo de tomada de
decisões do sistema. Dado o antagonismo estrutural inconciliável entre
capital e trabalho, esse último está categoricamente excluído de todas
as decisões significativas. Isso não se dá apenas no nível mais geral,
mas até mesmo nos ‘microcosmos’ constituintes desse sistema, em cada
unidade de produção. Pois o capital, como poder alienado de tomada
de decisão, não pode funcionar sem tornar suas decisões absolutamen-
te inquestionáveis (pela força de trabalho) em cada unidade produtiva,
pelos complexos produtivos rivais do país, em nível intermediário ou,
na escala mais abrangente, pelo pessoal de comando de outras estrutu-
ras internacionais concorrentes. É por isso que o modo de tomada de

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decisão do capital – em todas as variedades conhecidas ou viáveis do


sistema do capital – há forçosamente de ser alguma forma autoritária
de administrar empresas do topo para a base. Entende-se, portanto, que
toda conversa de dividir o poder com a força de trabalho, ou de permitir
a sua participação nos processos de tomada de decisão do capital, só
existe como ficção, ou como camuflagem cínica e deliberada da realida-
de. (MÉSZÁROS, 2002, p.27)

Nesta mesma direção, Prestes Motta (1981, p.18) considerava que “a dua-
lidade entre o que gere e o que é gerido; entre o que planeja, organiza, comanda
e controla, e o que executa; sendo, portanto, planejado, organizado, comandado
e controlado, é a essência da heterogestão”. Neste cenário, os traços básicos da
burocracia servem para proteger a heterogestão, base do seu funcionamento: “a
heterogestão é um aspecto da heteronomia capital-trabalho, da mesma forma que
a própria organização burocrática, enquanto estrutura de poder, é um aspecto de
todo um ordenamento social mais amplo, igualmente hierárquico” (PRESTES
MOTTA, 1981, p.23).

A heterogestão não é senão o sistema administrativo que explicita, de for-


ma mais clara, a relação dominante-dominado que permeia a estrutura
organizacional e social. Assim, a heterogestão não apenas funciona como
reprodutora das relações sociais, como também as naturaliza na medida
em que a separação dominante-dominado ou dirigente-dirigido é funda-
mental em todo o ordenamento social. Cumpre, portanto, observar que as
organizações não respondem apenas a expectativas da produção, como a
produção de bens materiais ou simbólicos, ou à reprodução da força de
trabalho através do salário; elas respondem igualmente à naturalização e à
consolidação das relações de poder prevalentes em uma dada sociedade.
(PRESTES MOTTA, 1981, p.24)

Ainda sobre o contexto… No período recente se encontram diversas evidên-


cias da existência de processos de auto-organização em oposição à globalização do
sistema do capital e aos seus efeitos perversos. Alguns marcos desse movimento são
internacionalmente reconhecidos: o encontro de ativistas de mais de 50 países em
La Realidad – Chiapas, no Encontro pela Humanidade Contra o Neoliberalismo, em
agosto de 1996; o primeiro de hoje inúmeros dias globais de ação, contra o encontro
da Organização Mundial do Comércio em Seattle em 1999; o Fórum Social Mundial
em suas diversas edições; entre outros. Além de eventos de grande porte, uma série
de ações locais, tanto em países do Norte quanto do Sul, são mostras da emergência

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Organização e Práxis Libertadora 25

de práticas de resistência e oposição ao sistema. Esse é caso, por exemplo, de algu-


mas ações, conhecidas como Estratégia Lilliput (BRECHER, COSTELLO e SMITH,
2002), em que grupos cooperam através de fronteiras nacionais para combater corpo-
rações e outros centros de poder. Aqui perto, na Argentina, o movimento piqueteiro17
congrega organizações de trabalhadores desocupados, sendo um fenômeno que está
criando novos significados políticos e sociais no contexto político latino-americano.
Muitos desses grupos usam processos assembleístas de decisão, encorajando a partici-
pação horizontal e novas formas de liderança (COLMEGNA, 2002). Além, é claro, do
próprio movimento zapatista e das novidades no seu método, que influenciam muitas
organizações e atividades em escala planetária. Optando pela rebelião/resistência, e
não pela revolução/reforma, valorizando o processo como objetivo, em vez da tomada
do poder como meta, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) privilegia
a construção de espaços para novas relações políticas. Esta abordagem do processo de
organização não se encaixa nos parâmetros tradicionais das ciências políticas – tomar
o poder para promover reformas; e muito menos dos EOs – onde o ato de organizar se
refere sempre à obtenção de fins de modo eficiente.
Berdegué (2002), refletindo sobre o movimento zapatista, se refere à neces-
sidade de construir uma organização específica, em vez de reformar as práticas
existentes. De acordo com ele, é preciso uma consciência profunda de que a luta
não é somente contra o sistema de exploração e exclusão, mas também que é pre-
ciso lutar com outras ferramentas e formas.

O velho sistema que tentamos destruir se baseia no individualismo,


na ideia de um presente individual melhor, sem considerar o futuro do

17 Os antecedentes do movimento piqueteiro encontram suas raízes tanto no que se refere à metodolo-
gia (o piquete) quanto ao espaço físico de atuação na história do movimento operário e popular da Ar-
gentina. Seus antecedentes remontam as primeiras organizações operárias urbanas e rurais, passando
por organizações de bairro e vilas dos conglomerados urbanos. O atual movimento piqueteiro ressig-
nificou a metododologia do piquete (originalmente usada para impedir que furas-greve entrassem
nas fábricas) instituindo suas demandas no espaço público através de cortes de vias e de levantes
populares. O berço desta nova forma de mobilização social foi as cidades petroleitras de Cutral-Có,
Plaza hiuncul, Neuquén, Mosconi, tartagal e Salta – cidades estruturadas em torno da YPF, a maior
empresa produtiva do Estado. Com a privatização desta empresa petroleira, desarticularam-se os
marcos sociais e de trabalho de modo brusco. A partir desta experiência de supressão dos laços co-
letivos e de desemprego, surge um novo tipo de mobilização, que consolida a ideia de que uma outra
identidade e um outro destino eram possíveis para quem havia perdido o trabalho. O nome pique-
teiro, por sua força expressiva, representava uma alternativa para aqueles definidos como desem-
pregados. A possibilidade de nomear-se piqueteiro teve o poder de romper com a estigmatização,
de instituir um novo motivo de dignidade. Associados à identidade piqueteira e à nova formulação
das demandas de trabalho, o corte de vias se consolidou como um formato de protesto e de deman-
das. Além disto, as ações coletivas auto-organizadas dos piqueteiros geram espaços para a produção
e reprodução da vida (KOhAN, 2002; SVAMPA e PErEIrA, 2003; zIBEChI, 2003; DELAMAttA, 2004).

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coletivo. […] A militância tem que se construir em um processo cole-


tivo que esteja profundamente ligado ao próprio processo de construir
uma organização que se deseja de um novo tipo. Durante esse proces-
so confiar no outro é fundamental, para evitar reproduzir a essência
do sistema social que se quer derrotar – a estratificação das pessoas.
(BERDEGUÉ, 2002, p.2)

Nesse sentido, as decisões não podem ser individuais e baseadas em inte-


resses e valores pessoais, devem se basear em critérios coletivos que o processo
de organizar está desenvolvendo, através de uma série contínua de consultas em
busca de consensos. As decisões não são tomadas pelos líderes ou por algum tipo
de comissão dirigente, seu papel é implementar os acordos coletivos – “mandar
obedecendo”. Militar significa, então, o mesmo que construir a organização, como
um processo que é vivido de modo pessoal e coletivo, consciente e voluntário,
tornando o coletivo mais forte e construindo identidades.
Apesar de valorizar estas práticas de organizar a resistência, assim como
tantas outras com as quais convivemos no nosso dia a dia – ainda que sem reco-
nhecê-las como tal, esse reconhecimento não pode se confundir com ingenuidade
ou deslumbramento.

Outro mundo é possível e necessário. […] Os antagonismos estruturais


e contradições explosivas […] têm sua própria base material, e a parali-
sante inércia social que resulta dessa base deve ser enfrentada por uma
força capaz não somente da necessária negação radical, mas também de
construir positivamente uma ordem alternativa sustentável. A ‘possibi-
lidade’ declarada com relação ao ‘outro mundo’ não será transformada
em realidade duradoura sem o trabalho contínuo da ação emancipatória
social à altura da missão. […]
Isso também implica o reexame necessário dos conceitos restritivos do
passado. O sujeito da emancipação não pode ser arbitrária e voluntaristi-
camente predefinido. Ele só estará apto para criar as condições de sucesso
se abranger a totalidade dos grupos sociais capazes de se aglutinar em
uma força transformadora efetiva no âmbito de um quadro de orientação
estratégica adequado. O denominador comum ou o núcleo estratégico de
todos esses grupos não pode ser o ‘trabalho industrial’, tenha ele colarinho
branco ou azul, mas o trabalho como antagonista estrutural do capital.
Isto é o que combina objetivamente os interesses variados e historicamen-
te produzidos da grande multiplicidade de grupos sociais que estão do
lado emancipador da linha divisória das classes no interesse comum da

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alternativa hegemônica do trabalho à ordem social do capital. Pois todos


esses grupos devem desempenhar seu importante papel ativo na garantia
da transição para uma ordem qualitativamente diferente. […]
Essa emergente e multifacetada força emancipadora social só conseguirá
prevalecer caso se articule sobre princípios muito diferentes de troca e or-
ganização humana. […] A organização e o modo de ação realmente iguali-
tários do movimento emancipador poderão ser levados para o futuro, pois
sua constituição interna também representa, já em suas fases constitutivas,
prenúncios de uma nova forma - genuinamente associativa – de cumprir
as tarefas que possam se apresentar. (MÉSZÁROS, 2004, p.50-52)

“O princípio da coordenação horizontal geral é compatível apenas com um


tipo de microcosmo totalmente igualitário na sua natureza interna – e nesse senti-
do ele é também autogerido e, portanto, não é sobrecarregado pelos antagonismos
internos, em contraste com todas as variedades de baixo para cima.” (MÉSZÁ-
ROS, 2004, p.49) Como indica Prestes Motta (1981, p.10): “a característica fun-
damental da administração burocrática é a heterogestão e sua única alternativa
radical é a autogestão”, ou seja, a organização que segue o princípio da coordena-
ção horizontal.
Isso nos leva a outro pedaço de teoria – agora sobre o ato de organizar.
A definição usual de organização – como coordenação racional de atividades de um
conjunto de pessoas em busca de atingir algo em comum, objetivos ou metas for-
mais, através de uma cadeia de autoridade e responsabilidade – é teleológica em sua
racionalidade e reducionista em sua concepção, referindo-se à empresa enquanto
escreve a palavra organização (SOLÉ, 2003). Como evitar este reducionismo?
Para Deleuze (2002), organizações são relações de velocidade e lentidão,
sociabilidade, longitude e latitude, composição em constante re-composição. Or-
ganização pode não significar organizar no sentido tradicional de ordenar. Uma
organização não pode ser desordenada e, mesmo assim, existir (SOLÉ, 2003)?
O organizar pode se referir a produzir organizações cujo objetivo é o desempenho
e a sobrevivência apenas temporariamente – enquanto a razão para tal persistir
(PARKER, 2003)? A organização pode significar formas de cooperação, onde o que
importa é o caminho, o modo, os meios, não somente o objetivo final, a meta?
Chegamos, então, a uma definição provisória de organização, ainda mar-
cada pela negação, mas esboçando uma afirmação: Organizar não é sinônimo de
organizar de modo burocrático – para nós esse modo de organizar é tomado como
sinônimo de prática gerencial. Organizar é produzir socialmente modos de coope-
ração, sempre instáveis e em movimento.

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28 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

Reunindo contexto e organizar … O recurso a Deleuze permite constituir


linhas de fuga para o próprio pensamento. Assumindo as macrodeterminações
do sistema se pode conceber que os seres humanos, criativos e construtores
de possíveis (SOLÉ, 2003), fazem com que a própria sociedade esteja sempre
criando zonas de indeterminação – indeterminação com relação à nossa indivi-
dualização pessoal e como membros da sociedade. A adoção desta perspectiva
não implica ênfase no individual, pelo contrário, supõe uma sociabilidade em
certos espaços e tempos. O objetivo é tornar novas forças visíveis, formulando
o problema que elas colocam e incitando um tipo de atividade experimental
de pensar sobre elas. Deleuze e Guattari (2001) chamam esta lógica de cons-
trutivista, no sentido de que não se refere tanto a desfazer identidades, mas a
destacar singularidades. Estas não se referem ao único ou ao sui generis, pelo
contrário, se referem ao que pode ser compreendido somente através dos modos
como se repete.

Um balanço da produção sobre práticas não-gerenciais de organizar


Voltando, então, à aproximação de Rafael Vecchio com a Tribo de Atua-
dores...
Quando conversávamos sobre o que estudar na sua dissertação de mestra-
do18, lembrei logo do Oi Nóis. Desejo de homenagear, de disseminar, de visitar...
Começamos uma estratégia de aproximação que incluía conversas sobre como
Rafael poderia ser aceito: como explicar que estamos em uma Escola de Admi-
nistração e que somos contra o capital e contra o gerencialismo... Deu certo!
Suspeito que deu certo não pela astúcia da nossa estratégia, mas pela genero-
sidade do Paulo e da Tânia19. Generosidade essa que se estendeu ao longo do
trabalho. Nesse processo, além de Rafael, todos nós aprendemos com o coletivo
da Terreira, em uma relação dialógica com quem vive no cotidiano seu sonho
de futuro.

A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz surgiu em 1978, com uma


proposta centrada no contato direto entre atores e espectadores, trans-
cendendo a clássica divisão entre palco e platéia. […] A história da

18 VECChIO, rafael. teatro como instrumento de discussão social: a utopia em ação do ói Nóis Aqui
traveiz na Oficina humaitá. Dissertação de Mestrado apresentada no Programa de Pós-Graduação
em Administração da Universidade Federal do rio Grande do Sul, em março de 2006. A dissertação foi
posteriormente editada na forma de livro, a convite dos integrantes da terreira (VECChIO, 2007).
19 Paulo Flores e tânia Farias fazem parte do Coletivo do ói Nóis Aqui traveiz.

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Organização e Práxis Libertadora 29

Tribo sempre se pautou pela afirmação da diferença, da independên-


cia em relação ao mercado e às estruturas de poder […]. As suas três
principais vertentes são: o Teatro de Rua, nascido das manifestações
políticas – de linguagem popular e intervenção direta no cotidiano da
cidade; o Teatro de Vivência, no sentido de experiência partilhada, em
que o espectador se torna participante da cena; e o trabalho artístico
pedagógico, desenvolvido junto à comunidade local. Esse último, res-
ponsável pela abertura da Escola de Teatro Popular da Terreira da
Tribo, que oferece à cidade oficinas de iniciação teatral, pesquisa de
linguagem, formação e treinamento de atores. […] E a Oficina de Tea-
tro Livre, oficina de iniciação teatral que se desenvolve durante todo o
ano, visando estimular o interesse pelo teatro e a busca da descoloni-
zação corporal do artista/cidadão. Todas as oficinas são oferecidas de
forma gratuita a todos os interessados.
[…] A Terreira da Tribo, criada em 1984, sob o signo do teatro revo-
lucionário de Antonin Artaud20, abrigou desde a sua criação diversas
manifestações culturais, além de oportunizar às pessoas em geral o
contato com o fazer teatral. O nome deste espaço feminino, telúrico
e anarquista, vem de terreiro, lugar de encontro do ser humano com
o sagrado. Gerida de uma forma libertária pelo Ói Nóis Aqui Traveiz,
a Terreira é uma peça fundamental para o desenvolvimento do teatro
porto-alegrense. (TRIBO DE ATUADORES ÓI NÓIS AQUI TRA-
VEIZ, 2005)
A organização da Tribo é baseada no trabalho coletivo, tanto na pro-
dução das atividades teatrais, como na manutenção do espaço. O Ói
Nóis Aqui Traveiz segue uma evolução contínua e constitui um pro-
cesso aberto para novos participantes. Para a Tribo de Atuadores Ói
Nóis Aqui Traveiz o teatro é instrumento de desvelamento e análise
da realidade; a sua função é social. O teatro como um modo de vida e
veículo de ideias. Um Teatro que deixa rastros, exemplos de liberdade.
(TRIBO DE ATUADORES ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ, 2008)

Um dos motivos para estudar o Ói Nóis foi, precisamente, sua marcada


e duradoura presença em Porto Alegre e no Brasil. Ainda tateando no trabalho
com organizações orientadas para a libertação, não queríamos enfrentar o ar-
gumento de que essas organizações ‘alternativas’ são toleradas às margens do

20 Artaud (1999, p. 29) defende a rejeição dos limites impostos e a geração de “um núcleo de homens
capazes de impor essa noção superior do teatro”, que ofereça uma vida com novos significados a partir
da recuperação dos poderes transformadores do ser humano, a fim de “tornar infinitas as fronteiras
do que chamamos realidade.”

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30 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

sistema por breves períodos de tempo. Outro e mais importante motivo foi o
trabalho coletivo de um teatro com função social21.
Mais especificamente, o estudo focalizou uma das Oficinas do Projeto
Teatro Como Instrumento de Discussão Social, a do Bairro Humaitá. A Oficina se
realiza na sede do Grêmio Esportivo Ferrinho, que congrega trabalhadores da ex-
tinta e privatizada Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA) envolvidos em uma luta
para preservar sua história e o próprio prédio. Rafael começou como observador
da Oficina que redundou na montagem de A mais-valia vai acabar, seu Edgar!, de
Oduvaldo Vianna Filho, e acabou como um observador ativamente participante22.
Parte importante do seu trabalho é a narrativa da condução coletiva da Oficina,
de sua prática autogestionária. A partir dela Rafael chega a uma constatação apa-
rentemente evidente, mas muito estranha a um campo disciplinar onde um tipo de
organização (a empresa) se afirma como sinônimo de organização.

“À primeira aparição do novo, o espanto”. Heiner Müller (2003, p. 48)


põe em palavras a sensação que pode acometer aquele que se depara com
o Ói Nóis Aqui Traveiz. E, no que diz respeito à aproximação Ói Nóis -
Estudos Organizacionais, é provável que a diferença entre as ideias que
circulam na teoria organizacional e o que acontece na Tribo cause, de
fato, surpresa. Diante desse saudável estranhamento, o que precisa ficar
claro – e esta, acredito, é uma das grandes contribuições dos atuadores –
é: à cada ideologia, uma forma de organização correspondente.
[…] Qual o nosso papel nessa época, aqui, agora? Qual a nossa pos-
sibilidade de ação?, são as perguntas que, conforme Paulo Flores, per-
meiam a ação da Tribo. Este senso de causa, esta preocupação de dotar
sua prática de significado é, na minha opinião, fundamental se se pre-
tende fazer uma teoria organizacional socialmente relevante. Aquilo que

21 Para Bertolt Brecht (1967, p. 62), todo ser humano é detentor de enorme capacidade de transforma-
ção, cabendo a uma atividade teatral com função social potencializar esse atributo, indo ao encontro
das “camadas cuja vez ainda não chegou” (BrECht, 1967, p. 98). Brecht (1967, p. 191-192) afirma a
necessidade de um fazer teatral comprometido: “[...] deslocar nosso teatro [...] para os subúrbios da
cidade, onde ficará inteiramente à disposição das vastas massas que produzem em larga escala e que
vivem em dificuldades; [...] o teatro tem de se comprometer com a realidade, pois só assim lhe será
possível realizar representações eficazes da realidade.” Além disto, para Brecht (1967), o teatro deve
ter a preocupação com historicizar os fatos sociais, tratando-os como resultado de escolhas e deci-
sões humanas, e disseminar a ideia de que “pode ser diferente”. Brecht (1967) usa duas palavras como
síntese: Não e Entretanto, simbolizando renúncia e anúncio, oposição e afirmação.
Walter Benjamin (1994, p.74 e 81), escrevendo sobre a obra de Brecht, reconhece a possibilidade de
libertação através do teatro brechtiano, na medida em que este oportuniza a ação humana, “no mo-
mento em que a massa se diferencia através de debates, de decisões responsáveis, de tomadas de
posição bem fundamentadas, no momento em que a falsa e mistificadora totalidade ‘público’ começa a
fragmentar-se, abrindo espaço para as clivagens partidárias que correspondem às condições reais”.
22 rafael terminou a pesquisa ensaiando junto com o grupo e com um pequeno papel na montagem.

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Organização e Práxis Libertadora 31

queremos para a sociedade tentamos fazer no nosso quotidiano como


Grupo. Não que seja um mar de rosas, mas tentando é a única forma de
fazer acontecer. E só o fato de estarmos aqui, como Grupo aberto, auto-
gestionário, reafirma a possibilidade de mudança, que isso pode e está
acontecendo. Uma causa, portanto, em andamento, como indica a fala
de Tânia Farias, sendo afirmada todos os dias, em todos os momentos,
uma utopia em ação.
[…] Há tanta vivacidade para além dos ambientes climatizados das uni-
versidades que estudam os igualmente climatizados ambientes das em-
presas, por isso, aproximemo-nos dos movimentos sociais, respirando
outros ares (melhor, suspirando-os), tirando os sapatos, vestindo aquela
roupa folgada, confortável, economizando na maquiagem (exagerar só
se for para entrar em cena!) e se lançando, trazendo um novo alento à
teoria das organizações, tomando parte na construção de outro mundo,
algo que o Ói Nóis Aqui Traveiz vem fazendo há tanto tempo. (VEC-
CHIO, 2007, p118 e 123-124)

Na convivência com o Ói Nóis ganhamos confiança, aprendemos, refle-


timos sobre nosso fazer. A defesa da dissertação de Rafael foi no Ferrinho23, em
um momento de descuido dos guardiões das formalidades burocráticas: a Uni-
versidade foi aonde o povo estava. Uma noite quente, um prédio na periferia de
Porto Alegre ocupado por trabalhadores que resistem em defesa de sua história,
uma sala lotada com muitos participantes das oficinas do Ói Nóis, ex-ferroviários
e moradores do bairro, alunos do PPGA e alguns alunos da graduação da Escola
de Administração; momentos memoráveis, um raro e sincero diálogo entre um
fazer acadêmico que se queria com função social, mas que ainda engatinhava, e
um fazer teatral amadurecido na sua função social.
Aqueles eram também tempos em que o Fórum Social Mundial havia
aportado em Porto Alegre. Com dois alunos da graduação, Romualdo Oliveira,
da Administração, e Rafael Passos, da Arquitetura, ambos participantes da orga-
nização dos Acampamentos da Juventude, abordamos as propostas e limites da
autogestão naquele espaço. Esse trabalho foi importante porque propiciou uma
reflexão mais sistemática sobre o tema e a convicção da adequação de sua utili-

23 O Centro Cultural e Esportivo Ferrinho, localizado na antiga Vila dos Ferroviários, hoje bairro humai-
tá/Navegantes, durante anos funcionou como um clube mantido pelos funcionários da extinta rede
Ferroviária Federal S/A (rFFSA). quando a rede foi privatizada o prédio foi ocupado e hoje é Centro
Cultural, tombado pela Prefeitura de Porto Alegre, reúne a comunidade e completa 47 anos de lutas.

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32 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

zação para refletir sobre práticas organizacionais que almejam a horizontalidade


(MISOCZKY, OLIVEIRA e PASSOS, 2004).
Outro momento importante foi a ida ao Colóquio do European Group of
Organizational Studies (EGOS) de 2005, com um trabalho que afirmava a espe-
cificidade da alteridade latino-americana frente ao eurocentrismo. Naquele artigo
de posição, gerado a partir da indignação com o modo como intelectuais euro-
peus em sua presença nos espaços do Fórum Social Mundial produziam a não-
-existência de nossa história e da especificidade de nossas lutas, havia um esforço
de, a partir das teses da história de Walter Benjamin (1989), produzir um diálogo
entre o tempo contínuo e vazio e o tempo messiânico. Ao contar a história desde a
perspectiva dos oprimidos foi indispensável recorrer a textos proferidos por inte-
lectuais orgânicos da América Latina em momentos de perigo, conectando-os com
as lutas contemporâneas.

Que insights podemos ter, que lições podemos aprender, que desenvol-
vimentos teóricos e conceituais podemos produzir... Estou totalmente
convencida que o momento que estamos vivendo na América Latina é
cheio de novidades, que estamos experimentando um momento de virada
em uma longa e admirável tradição de lutas. As ações e organização da
resistência envolvidas em uma fantástica variedade de tipos de entidades,
sendo guiadas por perspectivas políticas complexas e diferenciadas, ex-
pressam a riqueza de múltiplas influências culturais. Devemos viver este
momento com intensidade e prazer. Entretanto, para termos um final fe-
liz, desta vez, precisamos recordar nossas vitórias e derrotas, precisamos
identificar claramente de onde vem o perigo, precisamos reconhecer as
dificuldades a enfrentar, e precisamos não esquecer que somos um elo
frágil no sistema internacional de forças. (MISOCZKY, 2005, p.14)

Ali havia já um olhar para a América Latina e uma primeira adoção explícita
da referência da colonialidade do poder e do saber. Um dos primeiros registros
sobre o problema da colonialidade se encontra em um artigo de Quijano (1993),
publicado no contexto dos debates sobre os 500 anos da conquista européia da
América. Diz ele que colonialidade é um neologismo que tem, com relação ao
termo colonialismo, a mesma ligação que modernidade em relação ao termo mo-
dernismo. A colonialidade do poder se refere ao prolongamento contemporâneo

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Organização e Práxis Libertadora 33

das bases coloniais que sustentaram a formação da ordem capitalista. Ainda que
o colonialismo político tenha sido eliminado, a relação entre a cultura européia
(ou ocidental) e as outras continua sendo uma relação de dominação colonial
(QUIJANO, 1992).
Portanto, a colonialidade não pode ser pensada fora de uma reflexão sobre a
modernidade e sobre o contexto da hegemonia de padrões eurocêntricos de conhe-
cimento, com sua pretensão de universalidade e de produção da verdade. A noção
de colonialidade do saber indica, portanto, a necessidade de buscar formas distin-
tas de conhecer, produzidas em espaços de liberdade resgatados da dominação das
heranças do eurocentrismo. Implica, neste sentido, uma profunda descolonização
epistêmica de nossos modos de elaborar sentidos e de nos reconhecer no mundo
(TEVES, 2002).
Estes trabalhos, bem como um conjunto de exercícios teóricos e artigos
sobre temas relacionados24, já indicavam a necessidade de abandonar a negação e
assumir uma afirmação. Foi assim que, no início de 2006, ao preparar uma apre-
sentação de nossa linha de pesquisa para o Encontro de Estudos Organizacionais
(ENEO), passamos a identificar nosso trabalho com referência ao tema da Orga-
nização como meio e aprendizagem para a práxis emancipadora.

Memento 2: A organização como meio e aprendizagem para a práxis


emancipadora25
Sistematizamos aqui algumas posições distintivas na construção de nosso
trabalho, partindo de uma recusa à apologia do evento, da contingência, da in-
constância e do micro processo, que aliada à recusa ao tema do Estado, do poder e
da nação, leva a uma posição antipolítica e torna sem sentido qualquer discussão
sobre formas organizacionais, estratégias de ação, mediações materiais. Para este
conjunto de ideias, o exercício da opressão seria o destino inevitável de toda orga-

24 MISOCzKY, Maria Ceci. Pelo primado das relações nos estudos organizacionais: algumas indicações a
partir de leituras enamoradas de Marx, Bourdieu e Deleuze. ENANPAD 2003. Posteriormente publica-
do como capítulo em Pesquisa qualitativa em Administração, Organizado por Marcelo Milano Falcão
Vieira e Deborah zouain, editado no rio de Janeiro pela FGV Editora, 2004, p. 71-96.
MISOCzKY, Maria Ceci; VECChIO, rafael. Experimentando pensar: da fábula de Barnard à aventura de
outras possibilidades de organizar ENANPAD 2004. Posteriormente publicado nos Cadernos Ebape, v.
IV, p.1 - 14, 2006.
MISOCzKY, Maria Ceci; AMANtINO-DE-ANDrADE, Jackeline. Uma crítica à crítica domesticada nos
estudos organizacionais. revista de Administração Contemporânea, v.9, p.193-212, 2005.
MISOCzKY, Maria Ceci; AMANtINO-DE-ANDrADE, Jackeline. quem tem medo do fazer acadêmico
enquanto práxis. revista de Administração Contemporânea, v.9, p.239-246, 2005.
25 texto escrito em abril de 2006, fruto das reflexões e do trabalho conjunto com Joysi Moraes e rafael
Kruter Flores.

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34 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

nização, como se a emancipação não precisasse organizar-se. Concordamos com


Mazzeo (2005, p.106), quando destaca, em oposição, a necessidade de instâncias
organizacionais como ferramentas da ação política.

Ante a crescente heterogeneidade das classes subalternas, ante a ne-


cessidade de conciliar interesses de classe com interesses de grupo e a
descontinuidade do acionar das massas; para garantir posições de força
permanentes que permitam ao povo tanto o impulso em um momento
de refluxo como o relançamento em um momento de alta, e para con-
trabalançar as limitações dos combates isolados, se torna indispensável
pensar em uma ferramenta, uma organização política, instâncias ins-
titucionais e instrumentais totalmente diferentes das que conhecemos
(filhas de uma concepção mecânica): que não pretendam substituir a
atividade do povo e suas organizações por um poder pró-popular; que
não se concebam como meios de expressão de uma vontade coletiva
supostamente unificada nem como executores exclusivos dessa vontade;
que não se concebam como a encarnação da consciência de classe ou da
ética dos trabalhadores (o partido como ferramenta da consciência para
lavrar um destino histórico e realizar uma ética); que abandonem defini-
tivamente os enfoques coercitivos e o instinto policial; que não operem
por cima da existência cotidiana do povo e de suas organizações; que
sustentem a confiança social, a participação e a coordenação organiza-
tiva; que façam dos objetivos emancipadores uma forma emancipadora
real e concreta; que sirvam para realizar as metas das organizações do
povo e que não pretendam substituí-lo; que contribuam com uma causa
e que não se acreditem a encarnação desta causa; que rompam a relação
meios fim; que antecipem o futuro desejado nas formas; que se assumam
como momento, não como exteriorização fixa e especializada no exer-
cício do poder; que unifiquem – sem dominar – os discursos e práticas
emancipadoras (que unam os ‘pequenos destacamentos’ dispersos, que
ponham em movimento o conjunto); que não reduzam o logos a uma
organização, e que, ocasionalmente e secundariamente, sirvam para a
disputa e para o exercício do poder estatal.

Acreditamos que uma das tarefas políticas mais urgentes dos estudiosos
críticos das organizações é explorar os processos de organização da resistên-
cia e das lutas sociais que tendem a ser ignorados pelo discurso organizacional
contemporâneo. Ao fazê-lo, contribuiremos para contestar a hegemonia da or-
ganização sinônimo de empresa - parte importante da hegemonia das relações
capitalistas globais que se articula em todos os lugares em que estamos cotidia-

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Organização e Práxis Libertadora 35

namente, e onde uma forma de organização e de ser da sociedade se naturaliza


como fatalidade: gerencialismo nas empresas e governos, guerra, pobreza ex-
trema, cortes neoliberais dos orçamentos sociais, lucros gigantescos das corpo-
rações transnacionais, crescentes desigualdades entre os países e entre grupos
populacionais nos países, e a lista continua.... A força hegemônica deste pensa-
mento reside em sua capacidade de apresentar sua própria narrativa histórica
como o conhecimento objetivo, científico e universal da sociedade moderna,
como a forma mais avançada – e normal – da experiência humana (LANDER,
2004). A hegemonia, como lembra Gruppi (1978), tende a realizar a unidade de
diferentes forças sociais e políticas; e tende a conservá-las juntas, através da
concepção de mundo que traça e difunde26.
O termo hegemonia se refere, aqui, a um alinhamento do discurso polí-
tico que produz um significado social específico, e que tem uma longa história
no pensamento histórico, tendo sido produzida de um modo muito concreto e
material. Hegemonia não deve ser confundida com uma totalidade que fixa o
significado social para sempre. Em vez disto, as noções de hegemonia e contra-
-hegemonia indicam que uma multiplicidade de resistências desafia continua-
mente os significados da ordem social estabelecida (GRAMSCI, 1978), indicam
que existem infinitas possibilidades de como a sociedade pode ser organizada
– e que as sementes de mundos organizacionais diversos estão entre nós. Ainda
assim, estas infinitas possibilidades são frequentemente marginalizadas, o que
torna difícil percebê-las. A organização hegemônica continuamente tenta natu-
ralizar e essencializar a si mesma como a única forma como o organizar pode
ser articulado – tornando invisível a multiplicidade de diferentes mundos orga-
nizacionais possíveis. Portanto, uma das ações políticas mais básicas e urgentes
é desnaturalizar a articulação hegemônica da organização. Este é um ato de
exposição que torna possível a imaginação de diferentes mundos e sociedades
(MISOCZKY, FLORES e BÖHM, 2008).
Assumir esta batalha cultural inclui a difícil prática de revisar nossas
suposições de saber fazer, de saber a resposta, que não correspondem nem à
experiência que se desenvolve em nosso tempo, nem às necessidades dos atores-
-sujeitos envolvidos nas lutas sociais.

26 Este texto havia sido usado alguns meses antes, como parte de uma chamada de trabalhos, proposta
por mim e por Steffen Böhm (University of Essex), no contexto do Colóquio Internacional sobre Poder
Local que viria a se realizar em dezembro de 2006, em Salvador.

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36 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

Neste sentido, é metodologicamente recomendável abrir nossos enten-


dimentos e interrogações cada vez mais à realidade, do mesmo modo
que ela nos interroga e desafia no cotidiano; é indispensável duvidar,
incorporar a hermenêutica da suspeita ante tudo o que se apresenta
como aparentemente ordenado e resolvido, ante o unidirecional e linear.
(RAUBER, 2004, p.22)

Isto supõe articular as dimensões do pensamento reflexivo crítico: o saber


que é elaborado na dimensão estritamente teórica com o saber que emerge desde
baixo e que fica, na sua maior parte, contido nas práticas. Daí a importância de res-
gatar, sistematizar e conceituar estas práticas. A articulação destas dimensões pos-
sibilita a construção dialética do diálogo de saberes, indispensável à produção de
um novo pensamento estratégico. Este trabalho, baseado no diálogo e na construção
articulada dos mesmos, resulta nas novas dimensões do desempenho daqueles que
nos acostumamos a identificar como sendo o intelectual orgânico: não como o que
sabe e orienta, mas como o que constrói junto com os atores-sujeitos existentes em
uma sociedade concreta, e desde suas realidades (RAUBER, 2004, p.23).
É importante destacar que os processos de mobilização social e política
que vêm ocorrendo na América Latina a transformam em um espaço muito pro-
pício para o desenvolvimento de teorias e conceitos emancipadores, desde que
isso se realize em articulação com os movimentos populares e suas práticas. As-
sim, definimos o seguinte tema central de trabalho: explorar práticas e formas
organizacionais ensaiadas pelos movimentos sociais em diferentes contextos
da América Latina, tendo como perspectiva a construção de sujeitos coletivos
na práxis emancipadora; a ser realizado com foco em dois conjuntos de resis-
tências e lutas sociais: (a) aquelas que se situam diretamente no seio da batalha
cultural como componente estratégico da práxis emancipadora, e que atuam no-
meadamente no campo da educação; (b) aquelas que confrontam os sistemas
econômicos e culturais que são a causa da destruição ambiental e que propõem
políticas ecológicas alternativas.
Parte central das nossas reflexões é a concepção de poder desde baixo.
Nela, poder é compreendido como uma relação social de forças, sendo onisciente
e onipresente em todas as manifestações da vida social e individual dos seres hu-
manos. Desde baixo se refere ao fundamento do existente que se quer transformar
ou sobre o qual se quer influir; se refere à raiz de todo fenômeno, problema, situa-
ção. Indica, também e simultaneamente, o próprio processo de transformação – o
novo vai nascendo, vai sendo construído dia a dia. A expressão pouco tem a ver

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com a localização geométrica dos problemas, dos atores, das propostas ou esferas
a que se referem (RAUBER, 2004).
De acordo com esta concepção, não pode haver incoerência entre propósi-
tos, meios, fins e propostas. A unidade ética-prática, que é o substrato e também
a resultante desta articulação radical, é a base para a construção da unidade polí-
tica entre os distintos atores sócio-políticos (e não o inverso). É impossível, por
exemplo, construir (e educar em) protagonismo e participação democrática plena
sobre a base de relações autoritárias e hierárquico-subordinantes de capacidades,
funções e papéis individuais, coletivos e sociais. “Uma parte do futuro está con-
tida, como avanço, no projeto alternativo, daí a transcendência de que sejam os
próprios atores-sujeitos protagonistas os que participem de sua concepção e defi-
nições” (RAUBER, 2004, p.5).

Construção de projeto, de poder e constituição de atores-sujeitos, são


elementos estruturalmente interdependentes e interconstituintes, como
um eixo vital que se condensa nos atores-sujeitos enquanto atores sócio-
-políticos, em sua capacidade para interarticular-se e constituir-se em
sujeito popular e, portanto, em sua capacidade de construir poder, de
definir projeto, de dotar-se das formas orgânicas e organizativas que o
processo de transformação vai reclamando. (RAUBER, 2004, p.10)

Em um diálogo com Isabel Rauber, Enrique Dussel enfatiza que a trans-


formação da subjetividade dos atores e dos hábitos da sociedade não podem ser
postergados para após a tomada do poder.

O que se faça quando se exerça o poder da comunidade política deve se


começar a praticar desde o início do movimento. Em especial a formu-
lação de uma vontade democrática participativa horizontal em todos os
níveis; ao mesmo tempo que a educação do assumir a responsabilida-
de irrenunciável da produção, reprodução e desenvolvimento da vida,
a vida humana, a vida feliz da comunidade política sem discriminações,
universalmente. Estas transformações da subjetividade e a organização
dos movimentos são tarefas iniciais e contínuas. (DUSSEL, 2005, p.36)

Temas centrais à organização dos movimentos são a autogestão e a autono-


mia nas formas de luta. Rey (2003) discute o que quer dizer autonomia em termos
concretos de organização e gestão dos assuntos comuns. Ganhar autonomia, em
um sentido compatível com o de Rauber, significa não submeter-se passivamente

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38 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

às regras do jogo impostas pelos que dominam em benefício próprio, é pensar


e atuar com critério próprio e com estratégias auto-referenciais, que partam dos
próprios interesses e valorações. Neste sentido de autonomia estamos no espaço
da luta intelectual e moral nos termos de Gramsci (1976): a autonomia não brota
espontaneamente das relações sociais, é preciso fazê-la nascer nas lutas e, sobretu-
do, na compreensão do sentido desta luta. A autonomia também é um processo de
autonomização permanente, de compreensão continuada do papel do subalterno e
da necessidade de sua reversão, que tem avanços e recuos. Nesse sentido, a orga-
nização da própria luta se constitui em um momento de aprendizagem.
Outro tema crítico com relação à autonomia e à estratégia dos movimentos
populares é o do Estado. Adotamos a concepção do Estado como um laço social
baseado em uma relação social assimétrica, de dominação e de exploração. O Es-
tado é, portanto, lugar-momento de lutas, de materialização de relações de força
(MAZZEO, 2005). Não adotamos a indiferença como atitude frente às instituições
estatais. Entendemos que é preciso lutar contra e no Estado (REY, 2003): lutar por
eliminar suas instâncias repressivas e ampliar as que tendem a uma sociabilidade
coletiva.
Com relação ao âmbito latino-americano como contexto de estudo, lembre-
mos que nos anos 1980 e 1990 ganharam força movimentos de bairros de grupos
sociais chamados de marginais ou excluídos, que demandavam recursos para a
sobrevivência. Um fenômeno importante foi o papel desempenhado por organiza-
ções autogestionárias de mulheres no provimento de necessidades básicas – como
alimentação e saúde. Ao mesmo tempo, os movimentos sociais foram sendo cada
vez mais afetados por forças sociais emergentes: movimentos de gênero, orienta-
ção sexual, indígenas, negros, ambientalistas e outros. De acordo com Bruckmann
e Dos Santos (2005, p.7), eles impõem novos temas na agenda de lutas sociais,
chegando a integrar todo um projeto cultural que exige o rompimento com a es-
trutura social que gera o machismo, o racismo e o autoritarismo. “Se encontra uma
identificação substancial entre o modo de produção capitalista, como fenômeno
histórico, com outras formas culturais que penetram profundamente em toda a
superestrutura da sociedade moderna.”
Já nos anos recentes, com a emergência dos movimentos alter-globalização
e com a realização dos encontros do Fórum Social Mundial, se percebe uma di-
nâmica não mais apenas defensiva, mas também ofensiva. Sua articulação como
fenômeno político se torna mais evidente e tem alguns marcos de referência, tais
como: o Zapatismo no México; os movimentos indígenas nos países andinos -

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Organização e Práxis Libertadora 39

com destaque para o Equador e a Bolívia; os êxitos eleitorais de partidos políticos


com vinculações de diferentes intensidades com os movimentos sociais; o fenô-
meno da Venezuela com suas características próprias. Estas são apenas algumas
referências que ilustram uma nova onda de “transformações sociais com fortes
raízes nos novos movimentos sociais e em sua articulação com as forças dos mo-
vimentos sociais clássicos, com a evolução da esquerda em seu conjunto”, produ-
zindo um complexo processo histórico em movimento (BRUCKMANN e DOS
SANTOS, 2005, p.8).
Como sintetiza León (2006, p.23), “os tempos das Américas são da articu-
lação das resistências, do desenvolvimento conjunto de propostas políticas aber-
tas, de desenvolvimento de pensamento próprio, de resgate e afiançamento de
conhecimentos, de fortalecimento da comunicação e das interações entre os que
resistem ao modelo”.

Um balanço da produção sobre a organização


como meio e aprendizagem para a práxis emancipadora
A práxis emancipadora não pode ser efetuada por sujeitos isolados ou a
reboque de líderes; sendo sempre um “ato intersubjetivo, coletivo, de consenso
recíproco”. Este organizar-se coletivamente é uma ação que “educa os movimen-
tos sociais em sua autonomia democrática”; “é a ação dos sujeitos que se tornam
atores” (DUSSEL, 2007, p.119 e 128).
Para dar conta deste olhar para a práxis emancipadora, foi preciso revisar
a definição provisória de organização que vínhamos adotando27. A nova definição
provisória (inspirada em DUSSEL, 2002 e 2007) concebe a organização como
meio para a emancipação, como atividade em que cada participante aprende a
cumprir responsabilidades diferentes, sempre no espaço da unidade do consenso
produzido no coletivo. Esta organização, que transforma a potência do povo em
poder (potestas positiva)28, se efetiva através de processos e práticas orientados
pela razão estratégico-crítica, que não é razão instrumental, seu êxito não é o do
meio-fim formal, mas o do pleno desenvolvimento da vida de todos: seu exercício
realiza a ação transformadora.

27 Organizar não é sinônimo de organizar de modo burocrático – para nós esse modo de organizar é
tomado como sinônimo de prática gerencial. Organizar é produzir socialmente modos de cooperação,
sempre instáveis e em movimento.
28 Dussel (2009) distingue entre potência (poder-em-sim indeterminado) e potestas (poder institucionali-
zado, delegado). Potestas pode ser negativa - expressão do exercício fetichizado do poder; ou positiva
- expressão do exercício obedencial.

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40 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

Ocorreu um avanço com relação à definição que usávamos dois anos an-
tes: nossa definição de organização deixa de ser genérica e passa a ter um foco
que orienta nosso olhar para um tipo de organização – a organização meio para
a emancipação, práxis potencializadora, espaço de aprendizagem. Esta definição
nos encaminha mais decididamente para uma atividade teórica comprometida com
a transformação da realidade, uma atividade crítica que toma como referência a
possibilidade do desenvolvimento da vida humana em geral e, como sua condição,
a possibilidade da produção e reprodução da vida dos mais afetados pelo sistema.
Componente estratégico fundamental da práxis emancipadora, a educação
como prática de liberdade, concebida a partir de metodologia dialógica-problema-
tizadora e conscientizadora, entende que o ser humano não pode ser compreen-
dido fora de suas relações com o mundo, que ele é um ser da práxis, da ação e da
reflexão. Entendemos, portanto, que nas suas relações com o mundo e através de
sua ação sobre ele, os seres humanos são marcados pelos resultados de sua própria
ação: atuando transformam, transformando criam uma realidade (FREIRE, 1979).
Falta esclarecer o entendimento de práxis que adotamos. Para iniciar, é
preciso compreender o significado de práxis em sua distinção de atividade. Ati-
vidade, ou ação, se refere ao ato ou conjunto de atos através do qual um sujeito
ativo modifica uma matéria prima dada. Esta é, evidentemente, uma qualificação
por demais inespecífica, ao ponto de abarcar atividades instintivas ou biológicas
e, mesmo, atos que não sejam especificamente humanos. Para Sánchez Vázquez
(2007, p. 219), “a atividade propriamente humana apenas se verifica quando os
atos dirigidos a um objeto para transformá-lo se iniciam com um resultado ideal,
ou fim, e terminam com um resultado ou produto efetivo, real.” Há, portanto, a
interferência da consciência. Ou seja, o real almejado existe anteriormente como
produto ideal da consciência, como antecipação do que se deseja. Mais do que
isso: como no processo de realização o ideal antecipado na consciência sofre mo-
dificações, para que se possa falar de atividade humana “é preciso que se formule
nela um resultado ideal, um fim a cumprir, como ponto de partida, e uma intenção
de adequação, independentemente de como se plasme, definitivamente, o modelo
ideal originário” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2007, p. 221).

Se a práxis é ação do homem sobre a matéria e criação – através dela – de uma


nova realidade, podemos falar de diferentes níveis de práxis, de acordo com o
grau de penetração da consciência do sujeito ativo no processo prático e com o
grau de criação ou humanização da matéria transformada, destacado no produto
de sua atividade prática. (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2007, p. 265)

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Organização e Práxis Libertadora 41

O autor distingue, entre outras, a práxis criadora da práxis burocratizada.


Nesta, os atos práticos são apenas uma roupagem que reveste uma forma que já
existe; é uma práxis degradada e inautêntica, onde o conteúdo é sacrificado à for-
ma, o real ao ideal, o particular concreto ao universal abstrato. Nela desaparece
a imprevisibilidade e a aventura que acompanham a prática criadora, que exige
elevada atividade da consciência, não só ao traçar o projeto que os sujeitos pro-
curaram plasmar com sua atividade material, como também ao longo de todo o
processo (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2007).
Nosso interesse se dirige, obviamente, para práticas organizacionais que se
constituem em práxis criadora. Além disso, como indica Gramsci (2006, p.114), a
atividade teórica que se quer uma concepção crítica coerente “responde a determi-
nados problemas colocados pela realidade e, também, precisa ser socializada para
se tornar base de ações vitais”.
As relações entre teoria e prática são de dependência mútua: a primeira de-
pende da segunda na medida em que a prática é o fundamento da teoria; a prática
coloca exigências e funciona como critério de validade da teoria; a prática é o que
permite à teoria superar as limitações anteriores; a teoria não se desenvolve em
prol da própria teoria, mas em nome da práxis – é a realidade que deve ser objeto
de interpretação e transformação.

A teoria não só reponde às exigências e necessidades de uma prática já


existente. Fosse assim, não poderia adiantar-se a ela e, portanto, influir –
inclusive decisivamente – no seu desenvolvimento. Isto nos obriga a ver
as relações entre teoria e prática em um novo plano: como relação entre
uma teoria já elaborada e uma prática que ainda não existe. Trata-se de
uma teoria que responde não só a uma atividade prática que se dá efeti-
vamente, e que com suas exigências impulsiona seu desenvolvimento,
como também de uma prática que ainda não existe, ou que apenas se dá
de forma embrionária. Com efeito, o homem pode sentir a necessidade
de novas atividades práticas transformadoras para as quais carece ainda
do necessário instrumental teórico. A teoria é determinada, nesse caso,
por uma prática da qual ainda não se pode nutrir efetivamente. Assim, o
que significa essa determinação ideal do que, não existindo ainda, que-
remos que exista. A prática é aqui o fim que determina a teoria. E como
todo fim, esta prática – ou, mais exatamente, este projeto ou sua anteci-
pação ideal – só será efetiva com o concurso da teoria. A prática como
fim da teoria exige uma relação consciente com ela, ou uma consciên-
cia da necessidade prática que deve se satisfazer com a ajuda da teoria.
(SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2007, p.256)

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42 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

Tendo esta compreensão de nossa atividade teórica, faz-se necessário, ainda,


outro esclarecimento. Quando falamos sobre a produção de conhecimento surge,
usualmente, a vinculação com uma concepção hierarquizada, que atribui esta fun-
ção à posição privilegiada da profissão acadêmica no isolamento dos campi, afir-
mando uma determinada posição de liderança de supostas elites institucionalizadas.
No entanto, adotando o referencial gramsciano, devemos reconhecer que a produ-
ção do conhecimento também se faz nos espaços de contestação e resistência. Nesse
sentido, valorizamos o conhecimento produzido por autores que estão na academia,
e que trabalham ombro a ombro com os movimentos sociais, e o conhecimento pro-
duzido pelos ativistas que, como parte do seu cotidiano de lutas, também produzem
teoria. Ambos se caracterizam como intelectuais orgânicos, no sentido afirmado por
Gramsci (1978), segundo o qual se deve entender por intelectual toda a massa social
que exerce funções organizativas em sentido amplo, tanto no campo da produção
como da cultura e político-administrativo. Assim, todas as camadas sociais possuem
seus intelectuais, que exercem uma função orgânica importante no processo de pro-
dução social, esteja ele voltado para a reprodução ou para a transformação das rela-
ções sociais. O intelectual orgânico que efetua a crítica das ideologias hegemônicas
tem como principal função contribuir para a formação de uma nova moral e de uma
nova cultura, ou seja, contribuir para a produção da contra-hegemonia.
Inspirados em Paulo Freire (1994), valorizamos conhecimentos gerados com
a preocupação de anunciar diferentes possibilidades e práticas de organizar, nasci-
das nos movimentos e lutas sociais e apreendidas por intelectuais orgânicos - ativis-
tas e/ou acadêmicos, ou mesmo ambos simultaneamente. Os anúncios que fazemos
se referem ao contexto do sul global, especificamente latino-americano.
Aníbal Quijano (2007) destaca que a América Latina foi o espaço original e
o momento inicial da formação do capitalismo colonial moderno. Hoje é, por fim,
o centro mesmo da resistência mundial e da produção de alternativas de futuro.
Isso não significa isolar os processos que aqui se desenvolvem das lutas globais.
Pelo contrário. Significa considerar o processo de globalização em uma perspec-
tiva de baixo para cima, reconhecendo a existência de um vasto conjunto de re-
des, iniciativas, organizações e movimentos, articulados em lutas contra as conse-
qüências sociais, políticas e econômicas da globalização hegemônica. Ao mesmo
tempo em que valorizamos e contextualizamos os processos latino-americanos
no seio das lutas globais, valorizamos intensamente espaços e escalas locais e
nacionais, conectando assim dois processos articulados e distintos: a ação coletiva
global e as lutas locais nacionais.

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Organização e Práxis Libertadora 43

Um dos estudos realizados abordou as práticas organizacionais em escolas


de movimentos sociais29. As práticas pedagógicas efetivadas nestas escolas têm
sido estudadas ao longo dos anos; no entanto, a mesma atenção não tem sido
dedicada à sua organização. Foram estudadas a Universidad Popular Madres de
Plaza de Mayo, criada por um movimento social que surgiu em oposição direta à
ditadura militar na Argentina; o Jardín Crecer Imaginando en Libertad, do Movi-
miento de Trabajadores Desocupados (MTD) de La Matanza, que emergiu como
resultado dos conflitos entre subalternos e dominantes na década de 1990 também
na Argentina; a Escola Estadual de Ensino Fundamental Nova Sociedade, que se
localiza em um assentamento de reforma agrária da Região Metropolitana de Por-
to Alegre e também coordena as Escolas Itinerantes do MST.
Outro estudo que marcou nossa aproximação com movimentos sociais dos
países vizinhos foi sobre as lutas sociais que levaram à re-estatização de serviços
de água e saneamento concedidos a empresas transnacionais, no Uruguai e na
Província de Santa Fé (Argentina)30.
Naquele momento também chamou nossa atenção a expansão da planta-
ções de árvores de uso industrial (em geral eucaliptos e pinus) em nossa região.
Estas árvores exóticas (não nativas) vêm se estendendo pelas regiões tropicais
e sub-tropicais, substituindo as matas nativas. Trata-se de um vasto processo de
destruição de espaços de biodiversidade e sua substituição por uma natureza ex-
tremamente simplificada – os desertos verdes homogêneos. Impulsionado pelos
organismos internacionais, o cone sul da América do Sul – incluindo a metade sul
do Estado do Rio Grande do Sul - é a atual fronteira de expansão dos desertos ver-
des31. Sua implantação vem acompanhada da construção de fábricas de celulose,
um dos processos produtivos mais poluidores de mananciais hídricos – ver, por
exemplo, a esse respeito, os danos provocados pela Aracruz Celulose no Espírito
Santo (MEIRELLES e CALAZANS, 2005) ou pela Celulosa Auraco em Valdivia,

29 trata-se da tese de Doutorado de Joysi Moraes, intitulada Práticas organizacionais em escolas de mo-
vimentos sociais: verticalidades e horizontalidades; apresentada em março de 2008 no PPGA/UFrGS.
Sua edição em livro deve se efetivar ainda em 2010.
30 Este estudo resultou na Dissertação de Mestrado de rafael Kruter Flores – Contra-hegemonia e a re-
estatização dos serviços de água e saneamento no Uruguai e na Província de Santa Fé (Ar) – defendida
em março de 2007 no PPGA/UFrGS. O caso do Uruguai constitui um dos capítulos deste livro.
31 Atividades de florestação por árvores exóticas já vinham se desenvolvendo no Brasil e no Uruguai pelo
menos desde a década de 1960.
A este respeito ver Green deserts expansion in the South of Latin America: the role of International
Agencies and National States, de autoria de Maria Ceci Misoczky; capítulo do livro organizado por Ana
Guedes e Alexandre Faria, International Management and International relations: a critical perspecti-
ve from Latin America; editado em 2009 pela routledge.

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44 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

Chile (BERGER, 2005). Além da destruição ambiental, Alimonda (2005) chama a


atenção para outra conseqüência – a concentração da propriedade da terra, já que
esta se vincula diretamente ou por meio de contratos às indústrias consumidoras
de sua produção. A novidade é que estes latifúndios estão conectados à indústria
globalizada, reconfigurando também os territórios sócio-políticos.
Este novo avanço do sistema metabólico do capital sobre a natureza não
tem se dado sem resistências por parte de organizações da sociedade. Três fábri-
cas de celulose estavam planejadas para a região: duas no Uruguai, duas no Rio
Grande do Sul, mais a duplicação da Aracruz Celulose localizada em Guaíba.
Preocupados com este tema realizamos, em outubro de 2006, uma viagem de es-
tudo32 em busca de informações sobre movimentos de oposição às florestações de
árvores exóticas e às novas fábricas de produção de pasta de celulose, projetadas
para a metade sul do Rio Grande do Sul e Uruguai. Em Gualeguaychú exploramos
especialmente o tema da horizontalidade, aprendendo que essa permite a partici-
pação de todos, impede o bloqueio das decisões por indivíduos ou grupos, implica
em que só podem falar em nome da Assembleia aqueles que tiverem delegação
pontual para tal.
Após essa viagem, Steffen Böhm33 apresentou nossas aprendizagens em um
Seminário em Santiago del Estero – norte da Argentina. Lá a população enfrenta
um problema local de degradação ambiental há mais de duas décadas, vendo seu
rio e lagos contaminados pela agricultura extensiva e pelas atividades de mineração
da vizinha Tucumán. Políticos locais nada têm feito para enfrentar os graves pro-
blemas. Recentemente, os residentes de Las Termas, uma pequena cidade turística
perto de Santiago, vêm tomando as ruas em ações de protesto e resistência. Inspira-
dos pelas ações da Assembleia de Gualeguaychú, eles têm bloqueado estradas para
demandar o fim do processo de degradação de suas fontes de água, o que impacta
diretamente suas vidas. Steffen se engajou com o povo de Las Termas, participou de
reuniões de sua Assembleia local, apresentou suas aprendizagens (sobre o que vi-
venciou em Gualeguaychú) em várias participações no rádio e em artigos no jornal
local. Além disso, organizou junto com a Universidade Nacional de Santiago, um

32 Desta viagem participaram, também, Steffen Böhm da Universidade de Essex, estudantes de gra-
duação e de pós-graduação da Escola de Administração da UFrGS, bem como dois estudantes de
mestrado do PrOPAD-UFPE. A ideia orientadora da viagem, por estrada de Porto Alegre até Buenos
Aires, entrando na Argentina pela Província de Entre rios, foi que todos nós nos familiarizássemos e
pudéssemos nos engajar em lutas contemporâneas concretas.
33 Steffen Böhm é professor da Universidade de Essex e parceiro de pesquisa especialmente em temas
relacionados a conflitos sócio-ambientais.

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Organização e Práxis Libertadora 45

seminário que trouxe, pela primeira vez, os ativistas de Las Termas para a capital
provincial, propiciando espaço para a vocalização de suas demandas.
Um registro importante34 deste período foi a organização de um número es-
pecial da Revista ephemera35, realizado com o propósito de informar aos leitores
de todos os lugares sobre a organização das lutas e resistências em curso na nossa
região, e sobre as tensões vividas e experimentadas por tantos latinoamericanos.
A ideia foi propiciar um espaço de mútuo reconhecimento, contribuindo no senti-
do de que outros indivíduos e grupos decidissem pesquisar e escrever sobre estas
organizações (MISOCZKY, 2006). Este número especial colocou, em uma mesma
edição, reflexões acadêmicas e conhecimento dos ativistas; bem como contextos

34 Outras produções foram:


MOrAES, Joysi; FLOrES, rafael. K. Participação para transformação social: um convite ao debate. IV
Encontro de Estudos Organizacionais, 2006.
MOrAES, Joysi. Escolas de Administração: um Conto ou um Pouco Mais que Isso. IV Encontro de Estu-
dos Organizacionais, 2006.
FLOrES, rafael Kruter. Acerto de contas com a Administração: uma reflexão a partir de tragtenberg,
Motta e Guerreiro ramos. 2006. IV Encontro de Estudos Organizacionais, 2006. Posteriormente publi-
cado em Cadernos EBAPE.Br, v.5, p.9, 2007.
MISOCzKY, Maria Ceci. Sobre o centro, a crítica e a busca da liberdade na práxis acadêmica. Cadernos
EBAPE.Br , v.IV, p.1-13, 2006.
MOrAES, Joysi; FAÉ, rogério; SILVA, Fabiane da Costa e. Possibilidades de resistência e Luta a Partir
da Leitura Foucaultiana de Poder. x Colóquio Internacional sobre Poder Local, 2006.
FLOrES, rafael Kruter. O Discurso Como Estratégia de Luta Contra a Mercantilização da água. x Co-
lóquio Internacional sobre Poder Local, 2006.
MOrAES, Joysi; VECChIO, rafael. Another Language: Mística and the production of consciousness
among members of the Landless Workers Movement (MSt). ephemera: theory & Politics in Organiza-
tion, v. 6(3), p. 375-390, 2006.
FLOrES, rafael Kruter. Mercantilização da água e Ativação dos Limites Absolutos do Capital: a Guerra
da água pelas Lentes de Mészáros. Anais do ENANPAD, 2006.
PErEIrA, Ilidio Medina, MISOCzKY, Maria Ceci. Peter Drucker e a legitimação do capitalismo tardio:
uma análise crítica de discurso. Anais do ENANPAD, 2006. Posteriormente publicado em GEStãO.Org
- revista Eletrônica de Gestão Organizacional, v.5, p.261-283, 2007.
MISOCzKY, Maria Ceci; VECChIO, rafael; MOrAES, Joysi A Mística como produtora de sentidos na
organização da luta pela terra. In: CArrIErI, Alexandre de Pádua; SArAIVA, Luiz Alex Silva (Orgs.)
Simbolismo organizacional no Brasil. São Paulo: Atlas, 2007. p. 143-160.
FLOrES, rafael Kruter; MISOCzKY, Maria Ceci. From the market to the State: counter-hegemonic
transitions in the water and sanitation services in Uruguay and Santa Fe (Argentina). Critical Manage-
ment Studies Conference, 2007.
FLOrES, rafael Kruter. reestatização e democratização da gestão dos serviços de água e saneamento
na América Latina. Anais do xII Congresso Internacional del CLAD sobre la reforma del Estado y de la
Administración Pública, 2007.
MISOCzKY, Maria Ceci. Desafios teóricos para compreender as dinâmicas e lutas sociais para o apro-
fundamento e fortalecimento da democracia. Anais do xII Congresso Internacional del CLAD sobre la
reforma del Estado y de la Administración Pública, 2007.
MISOCzKY, Maria Ceci. resistências e lutas no cenário Latino-Americano: possibilidades da co-pro-
dução de conhecimento. Anais do Ix Congresso Internacional da ABECAN Brasil-Canadá: conexões,
saberes, desenvolvimentos, p.158–159, 2007.
MISOCzKY, Maria Ceci. the crisis of power and the futures of hope. rAC. revista de Administração
Contemporânea. v.11, p.249-267, 2007.
35 http://www.ephemeraweb.org/journal/6-3/6-3index.htm

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46 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

e referências muito diferentes: culturais, sociais, econômicos, profissionais, etc...


Tratou-se de uma edição contaminada por muitas linguagens, onde a acadêmica
foi apenas uma delas e não a dominante.
Como uma síntese e lembrando que trabalhamos com o viés dos estudos
organizacionais, registramos que algumas categorias e valores vêm se tornando
recorrentes em nossos estudos: horizontalidade, participação direta nas decisões,
construção coletiva da organização e de suas práticas, valores orientados para a
vida, tolerância e solidariedade na relação com a alteridade, práxis criativa. Estas
presenças têm deslocado aquelas que são mais usuais nos estudos organizacionais:
hierarquia, delegação e representação, individualismo e elitismo, valores orienta-
dos para o mercado, discriminação da diferença, rotina e reprodução na práxis
burocratizada. Uma decorrência de se envolver com sujeitos que se organizam
para a libertação reside em incluir na nossa agenda de pesquisas e de vivências um
conjunto de conceitos e temas que demandam visibilidade e que, ao serem consi-
derados em nosso campo científico, produzem novas definições ou, pelo menos,
novas variações e ressonâncias.

Memento 3: Organização e práxis libertadora36


Embora dois dos autores mais presentes em nosso trabalho – Paulo Freire
e Enrique Dussel - sempre se referissem à libertação, pela colonialidade do saber
continuávamos nos referindo, na maior parte das vezes, à emancipação. Mesmo
constatando que seu uso implicava em freqüentes mal entendidos, induzindo o
entendimento de que estávamos nos referindo a uma emancipação iluminada pela
razão, continuávamos usando-a. Foi em dezembro de 2007, quando escrevia o
texto que inicia o livro de Rafael Vecchio sobre a Tribo de Atuadores Ói Nóis
Aqui Traveiz que, sem querer, escrevi ‘práxis libertadora’, acrescentando uma
nota de rodapé nada esclarecedora, mas necessária como registro - “In process: ao
escrever, nesse exato momento, troquei uma palavra – onde se lê libertadora, até
poucos minutos se encontraria emancipadora” (MISOCZKY, 2007, p.15).
Agora, encontrar o texto de Dussel, em seu último livro editado no Brasil,
produz um novo sentido.

É verdade que a revolução burguesa falava de liberdade. É necessário,


agora, subsumindo-a, referir-se à libertação […]; agora não nos referi-

36 texto escrito em outubro de 2008.

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Organização e Práxis Libertadora 47

mos à liberdade, mas sim a liberta-ção como processo, como negação de


um ponto de partida, como uma tensão até no ponto de chegada. Unidos
aos outros postulados da revolução burguesa que enunciavam como a
proclamação de “Igualdade! Fraternidade! Liberdade!”; devemos trans-
formá-los, na rebelião dos povos oprimidos e excluídos da periferia em
suas lutas pela Segunda Emancipação, no novo postulado: “Alteridade!
Solidariedade! Libertação!”. (DUSSEL, 2007, p.164)

A práxis da libertação37 tem dois momentos: uma luta negativa, descons-


trutiva contra o dado, e um momento positivo de construção do novo. Trata-se de
uma ação que se orienta pelo princípio político crítico da factibilidade, por um
possível que se coloca frente a aparentes impossibilidades práticas que precisa
subverter. Práxis que exige o horizonte utópico, a esperança concreta, um projeto
de transformações onde se explicitem os fins concretos da ação libertadora em
todas as esferas da vida em sociedade (BLOCH, 2006; DUSSEL, 2007); práxis
que exige, também e decisivamente, organiza-ção.

A práxis libertadora, subsumindo a intenção emancipadora e o ato ra-


cional-emancipador, não esquece (em vez disto dá articulado destaque
às exigências éticas surgindas na luta contra a miséria) a comunidade
político-econômica da vida, como projeto (é o que denomida projeto
de libertação constituído desde uma intenção libertadora). Esta práxis
libertadora considera sempre em sua descrição a problemática das estru-
turas e da práxis de dominação. (DUSSEL, 2004b, p. 123)

A definição de organização que adotamos nestes últimos dois anos – orga-


nização é a expressão de processos e práticas orientadas pela razão estratégico-
-crítica para realizar a ação transformadora – permitiu evidenciar processos de
auto-organização que efetivam práticas de autogestão. Ao fazê-lo, revisamos uma
restrição usual nos estudos organizacionais de utilização da referência à autoges-
tão apenas quando se trata da organização de processos produtivos. É preciso
dizer que esta revisão nada tem de original, já que meramente aprendemos com
um saber político popular que vem sendo produzido, pelo menos desde a última
década, no âmbito das lutas sociais, já que a reflexão sobre a organização é recor-
rente entre os militantes.

37 “Libertação é a ação ou processo prático pelo qual o não-livre passa a ser um sujeito fático da liberda-
de, o oprimido como parte funcional se afirma como pessoa-sujeito (DUSSEL, 2004a, p. 271)

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48 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

Como afirma Mazzeo (2007), não devemos separar a reflexão sobre o ca-
ráter social da atividade humana - a forma social do produto e a participação
do indivíduo na produção, que se apresentam como separados e reificados do
caráter social do poder, com suas regras e modos de exteriorizar-se. Nesta se-
paração se impõe a ideia da subordinação em relações que aparecem como se
fossem independentes dos sujeitos. Ao reproduzi-la, contribuímos para conser-
var o caráter alienado, reificado e naturalizado do poder.

As instâncias ou núcleos de poder popular (poder construído, poder


nascido do fazer humano criativo e das ações radicais de sujeitos soli-
dários) geram um contexto apto para o desenvolvimento da consciên-
cia com capacidade de perceber que as relações sociais não são inde-
pendentes dos indivíduos nem tampouco a expressão do conjunto do
movimento social; criam, desta maneira, as condições para uma vida
social por fora do nexo (material) do capital, por fora do valor de troca
(que transforma as relações entre pessoas em relações entre coisas).
Assim mesmo propiciam o reencontro das classes subalternas, consti-
tuem ou reforçam sua unidade orgânica e seu caráter de antagonistas
do capital. […] uma das virtudes mais significativas das instâncias e
núcleos de poder popular se relaciona com sua capacidade de ‘materia-
lizar socialmente’ a mudança. (MAZZEO, 2007, p.155)

Nesta direção, é importante que continuemos a explorar, tornar visíveis,


refletir, disseminar, aprender sobre a organização das lutas de libertação. Uma
aprendizagem importante para o futuro do nosso trabalho veio da reflexão so-
bre horizontalidade e verticalidade. Possivelmente por influência de autores
com os quais temos uma relação intelectual-afetiva, como é o caso de Maurício
Tragtenberg e Fernando Prestes Motta, tendíamos a incensar a horizontalidade.
O trabalho realizado junto às escolas de movimentos sociais foi muito impor-
tante para confrontar esta idealização. Hoje, continuamos entendendo que a
horizontalidade é o caminho mais compatível com a construção de sujeitos
coletivos. No entanto, precisamos resguardar a distinção entre horizontalidade
procedimental e horizontalidade substantiva. A horizontalidade como proce-
dimento não constitui um valor em si. A horizontalidade possui valor quando
pré-figura outra sociedade, quando critica o poder da representação e destrói a
tendência à hierarquia. Sem isto, corre-se o risco de fetichizar a horizontalida-
de e a autogestão. A horizontalidade como prática substantiva se coloca como

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Organização e Práxis Libertadora 49

aspiração permanente que se alimenta das práticas cotidianas, “deve assentar-


-se em estruturas organizacionais que sejam formativas em si mesmas, e na
prática de uma educação popular libertadora que gere nas classes subalternas a
consciência de ser portadora de estratégias de transformação e que, simultane-
amente, massifique elementos políticos e transmita valores alternativos ao do
sistema capitalista” (MAZZEO, 2007, p.163).
Uma insuficiência que temos sentido no nosso trabalho se refere ao es-
paço da organização, ou melhor, ao espaço por ela produzido. Em Lefebvre
(1991, p.229), “na imediatez das ligações entre grupos, entre membros de gru-
pos, e entre ‘sociedade’ e natureza, o espaço ocupado expressa diretamente
– ‘no chão’, por assim dizer – as relações sobre as quais a organização social
se funda.” O espaço é, portanto, a materialização da vida humana. Fernandes
(2008) chama a atenção para a noção de totalidade contida nesta concepção
de espaço; e também para o movimento ininterrupto que produz, através de
relações sociais, espaços e territórios. As relações sociais produzem espaços
fragmentados, divididos, fracionados, conflitivos. Claro que o espaço como
fragmentação é uma representação construída que exige uma intencionalidade,
uma forma de compreensão unidimensional que reduza suas qualidades. Por
exemplo: o espaço político apenas como político, o econômico apenas como
econômico, etc... A intencionalidade é um modo de compreensão, uma visão
de mundo e, simultaneamente, um modo de ser, de diferenciar, de materializar
(FERNANDES, 2005).
A multidimensionalidade do espaço é, então, restringida pela intenciona-
lidade, que cria determinada leitura do espaço que poderá ser hegemônica ou
contra-hegemônica. Desta forma é produzido um espaço social específico: o
território – espaço apropriado por uma determinada relação social que o produz
e o mantém a partir de relações de poder.

A contradição, a solidariedade e a conflitividade são relações expli-


citadas quando compreendemos o território em sua multidimensiona-
lidade. O território como espaço geográfico contém os elementos da
natureza e os espaços produzidos pelas relações sociais. É, portanto,
uma totalidade restringida pela intencionalidade que os criou. A sua
existência, assim como a sua destruição, será determinada pelas rela-
ções sociais que dão movimento ao espaço. Assim, o território é es-
paço de liberdade e dominação, de expropriação e resistência. (FER-
NANDES, 2005, p. 275)

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50 Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação

Muitos movimentos sociais têm o território não apenas como um trunfo,


mas como essencial para sua existência38, são sujeitos que reivindicam um terri-
tório, que existem a partir de um território e que, ao fazê-lo, produzem, de modo
mais permanente (como em uma ocupação ou em um assentamento) ou mais
transitório (como em um corte de vias) territórios de libertação39. Portanto, para
compreender as práticas organizacionais desses movimentos é indispensável com-
preender sua materialidade, sua territorialização. Para isto, adotamos uma nova
definição provisória de organização: a organização é meio para realizar a ação
libertadora através de processos e práticas territorializadas e orientadas pela
razão estratégico-crítica.
Outra insuficiência vem da necessidade de um embate constante com o dis-
curso hegemônico sobre desenvolvimento e da falta de argumentos que sustentem
este confronto. Um primeiro passo está sendo o acerto de contas com a história
do conceito, através de uma análise do campo do discurso do desenvolvimento40.
Esta análise permite que não fiquemos presos nas tramas do discurso hegemônico,
mas não é suficiente. É preciso explorar fontes de inspiração para a construção de
um discurso contra hegemônico. Algumas fontes possíveis de inspiração vêm da
tradição cultural de nossa América e das lutas contemporâneas de movimentos,
como é o caso do MST, da Via Campesina e das Mulheres Camponesas, dos mo-
vimentos dos povos originários da região andina, que colocam no centro de sua
práxis a defesa de concepções sobre este tema.
Assim, os trabalhos que estamos iniciando e planejando continuam explo-
rando práticas organizacionais dos movimentos, agora acrescentando a sua di-
mensão territorial, e colocam o tema do desenvolvimento no centro da nossa ati-
vidade teórica41.

38 Fernandes (2005) denomina esses movimentos de socioterritoriais.


39 Este foi o caso de todas as organizações com as quais nos relacionamos nos estudos que realizamos e
que se encontram aqui registrados. No entanto, no estágio em que nos encontrávamos não foi possível
perceber a lacuna deixada pela falta das categorias espaço e território.
40 Este estudo se constituiu na tese de Doutoramento de rogério Faé, O Banco Mundial e os discur-
sos sobre desenvolvimento como recursos político-estratégicos, concluída em março de 2009 no
PPGA-UFrGS.
41 Nesta direção foi concluída a Dissertação de Mestrado de Fabiane Costa Silva, tramas territoriais na
campanha gaúcha: processo de transformações na área de Aceguá, concluída em abril de 2009 no
PPGA-UFrGS. Se encontra também em andamento, desde março de 2010, um projeto de pesquisa fi-
nanciado pelo CNPq: Estratégias, contradições e dinâmicas sociais e econômicas em Livramento (Br)
e rivera (UY). Além disso, no LAEMOS 2010 foi apresentado o trabalho Socio-environmental conflicts
and opposing perspectives of development in South America, de autoria de Maria Ceci Misoczky; e no
ENEO 2010 foi realizada, pelo Grupo de Pesquisa, a Oficina A ditadura do discurso do desenvolvimento
em questão: das críticas proscritas a concepções emergentes.

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Organização e Práxis Libertadora 51

Neste momento estamos envolvidos em vários projetos, dentre os quais


destacamos o estudo da tradição do pensamento social brasileiro; a relação entre
conflitos sócio-ambientais e neo-desenvolvimentismo; concepções emergentes
sobre organização da vida e da produção; concepções sobre (nossas) práticas e
instituições voltadas para a produção, circulação, apropriação e acesso ao conhe-
cimento e os reflexos que produzem na sociedade; e com a constituição da Rede
Brasileira de Estudos Latino-Americanos (REBELA), em conjunto com o Insti-
tuto de Estudos Latino-Americanos (IELA), localizado na Universidade Federal
de Santa Catarian.
Para concluir, cabe aqui retomar a muito conhecida expressão de Rober-
to Schwarz (1992, p.120-121) sobre ideias fora de lugar. “Ideias estão no lugar
quando representam abstrações do processo a que se referem, e é uma fatalidade
da nossa dependência cultural que estejamos sempre interpretando nossa reali-
dade com sistemas conceituais criados noutra parte, a partir de outros processos
sociais.” Como “a teoria é parte também da realidade, e a sua inserção no processo
real é parte do que concretamente ela é”, as ideias só deixam de estar fora do lugar,
“quando se reconstroem a partir das contradições locais”.

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Organização e Práxis Libertadora 57

Bloch, Gramsci e Paulo Freire: referências fundamentais


para os atos da denúncia e do anúncio

Maria Ceci Misoczky


Rafael Kruter Flores
Joysi Moraes

Por que Bloch para estudar lutas sociais na América Latina?


Porque Bloch viveu no limiar de épocas, no entremundos. Esta categoria foi in-
troduzida por Bloch para caracterizar épocas de transição nas quais se “entrecruzam o
desmoronamento de uma formação social e a formação de uma nova, sem que a fisio-
nomia do novo seja já reconhecível de modo claro” (hOLz, 2007, p.24).
Porque sua filosofia é a expressão destes momentos especiais nos quais
a transição para o que ainda-não-é impõe o problema da aparição do novo no ve-
lho, do continuum da história, do salto revolucionário. Nestes momentos, como o
que vivemos hoje na América Latina, a noção de função utópica se mostra essencial.
A função utópica é o núcleo racional das utopias, é o “indício de que cada presente está
grávido de futuro, de que em cada situação histórica estão contidas, concretamente
presentes, as possibilidades e tendências” de um futuro melhor (hOLz, 2007, p.32).

Münster (1993, p.20) considera que Bloch, em sua “ciência marxista das
tendências, indica as possibilidades de transformação inerentes ao ser eco-
nômico, político e social”. Para Dussel (2002, p.457), Bloch desenvolve,
durante toda sua vida, “o momento crítico positivo do projeto de liberta-
ção”, o “momento positivo do projetar (como afeto e razão), as alterna-
tivas possíveis ainda-não-realizadas”. Em Bloch (2005), a utopia passa a
ser um topos da atividade humana orientada para o futuro, um topos da
consciência e a força ativa que impulsiona para o que ainda-não-é.

O prefácio do primeiro volume de O princípio esperança (BLOCH, 2005,


p.13-14) começa com as perguntas fundamentais: “Quem somos? De onde vie-
mos? Para onde vamos? Que esperamos? O que nos espera?” Indica, logo a seguir,
que importa é “aprender a esperar”; não esperar com resignação, mas efetuar um
ato de esperar que é “apaixonado pelo êxito em lugar do fracasso”, um esperar que
não é passivo, um esperar que “requer pessoas que se lancem ativamente naquilo

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58 Bloch, Gramsci e Paulo Freire: referências fundamentais para os atos da denúncia e do anúncio

que vai se tornando e do qual elas próprias fazem parte”; um esperar que “não per-
mite conformar-se com o precário que aí está, não permite a resignação”. Para
que esse esperar ativo e positivo se realize é preciso transpor: “pensar significa
transpor”. Pensar “de tal maneira que aquilo que está aí não seja ocultado nem
omitido”; que a transposição não se dê “na direção de um mero vazio de al-
gum diante-de-nós, no mero entusiasmo, apenas imaginado abstratamente”, mas
“capte o novo como algo mediado pelo existente em movimento, ainda que, para
ser trazido à luz, exija ao extremo a vontade que se dirige para ela. A transposi-
ção efetiva conhece e ativa a tendência do curso dialético instalado na história”.
Isto é, a esperança, ainda que seja um princípio subjetivo, é fundada na práxis
histórica, pois são as condições sociais que indicam o futuro, a partir da análise
do presente e do passado.
Esse marxismo fundado na esperança materialista e dialética precisa ser
entendido como crítica ao marxismo mecanicista e esquemático que degradava
a imaginação revolucionária, ao marxismo degenerado em dogma cientificista
(RAULET, 1982). É a partir desse marxismo que Bloch foi acusado de metafóri-
co, ambíguo, idealista. Dussel (2002) ressalta, no entanto, que a posição utópica
proposta por Bloch seria incompreensível se não partisse do conteúdo radical e
material da vida.
A esperança concreta tem suas raízes antropológicas precisamente na de-
manda mais urgente – a fome – e na pulsão básica mais confiável – a autopreser-
vação. A fome é a incitação somática mais rápida. É o fator ôntico-existencial
de um impulso elementar que tem origem e fundamento em um estágio de insa-
tisfação que leva à apropriação de um ainda-não que se manifesta, nesse nível,
como um não-ter. O ímpeto – o appetitus e seu desejo – irrompe frontalmente
nos afetos expectantes – como angústia, medo, esperança e fé – que possuem
uma intenção passional de longo alcance. No entanto, é somente a esperança,
o afeto expectante contrário à angústia e ao medo, que tem como referência o
horizonte mais amplo e mais claro, o impulso para a frente.

É exatamente nesse ponto que se forma aquilo que aviva o aspecto de-
sejante42 nos afetos expectantes que sempre se originam da fome, dese-
jante esse que ocasionalmente distrai e amolece, mas ocasionalmente
também ativa e se estende até o alvo de uma vida melhor: formam-se
sonhos diurnos. (BLOCH, 2005, p.79)

42 A partir daqui, todos os registros em itálico são do próprio Bloch.

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Organização e Práxis Libertadora 59

Eles sempre procedem de uma carência e querem se desfazer dela. Todos


eles são sonhos de uma vida melhor. Sem dúvida, há entre eles sonhos
escapistas, baixos, de todo, como se sabe. […] Mas quantos outros so-
nhos diurnos ideais conservam a coragem e a esperança dos seres huma-
nos, não desviando os olhos do real, mas, ao contrário, encarando a sua
evolução e o seu horizonte. Quantos reforçaram, pela via da antecipa-
ção, do sobrepujamento e de suas imagens, a vontade de não renunciar.
[…] o sonho diurno desenha no ar receptíveis vultos de livre escolha, e
pode se entusiasmar e delirar, mas também ponderar e planejar. […] O
sonho diurno pode proporcionar ideias que não pedem interpretação, e
sim elaboração. (BLOCH, 2005, p.79 e 88)

O sonho diurno abrange o tipo cômodo, trivial, despropositado e para-


lisante, mas também o tipo responsável, engajado, a fim de que a antevisão
venha a ser concretizada. É o “interesse revolucionário, com seu conhecimento
de como está ruim o mundo e seu reconhecimento do quanto ele poderia ser
bom como um outro mundo, que necessita do sonho desperto da melhoria do
mundo”; a fantasia diurna tem os desejos como ponto de partida, mas vai com
eles até o fim; “quer chegar ao lugar de sua realização” (BLOCH, 2005, p.97).
Para avançar na direção da utopia concreta, Bloch (2005, p.117) parte
das formulações de Freud e reflete sobre a natureza da préconsciência, afirmada
como a localização onde o consciente para de repercutir, onde o vivenciado sub-
merge, onde alvorece algo até ali não consciente. A préconsciência não se refere
ao reprimido, mas a algo que está em ascensão: no sonho diurno revela-se “uma
determinação importante do ainda-não-consciente”. Esse é tão pré-consciente
quanto o inconsciente da repressão ou do esquecimento, mas não está subordi-
nado à consciência atual, manifesta, e sim “a uma forma de consciência futura,
que apenas está surgindo” – é o local psíquico de nascimento do novo, é o
espírito do sonho para a frente. Seus momentos privilegiados são a juventude,
as épocas prestes a dar uma guinada, a produção criativa. Com relação a todos
eles, é usual que se contraponha a resistência da receptividade, a “receptividade
do mundo embotado”, que recusa o que não se encaixa no habitual. No ainda-
-não-consciente, no ainda-não-sendo, o que dá trabalho não é o reprimido, mas a
dificuldade do caminho. O bloqueio atuante, que se apresenta sempre como blo-
queio histórico e social, fundamenta-se no estranhamento e na recusa ao objeto
que ainda não veio a ser. Para enfrentá-lo, é necessário um conhecimento que
contribua para esse devir, que escave o que houve, mas também o que haverá.

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60 Bloch, Gramsci e Paulo Freire: referências fundamentais para os atos da denúncia e do anúncio

A nossa época é a primeira a possuir os pressupostos socioeconômicos


para uma teoria do ainda-não-consciente e do que está relacionado a
ele no que-ainda-não-veio-a-ser-no-mundo. O marxismo, sobretudo,
foi o pioneiro em proporcionar ao mundo um conceito de saber que
não tem mais como referência essencial aquilo que foi ou existiu, mas
a tendência do que é ascendente. Ele introduz o futuro na nossa abor-
dagem teórica e prática da realidade. Esse conhecimento da tendência
é necessário para rememorar, interpretar e revelar as mensagens que
até o não-mais-consciente e o existente podem continuar nos envian-
do, além de ser necessário para reafirmar sua eterna vigência. Dessa
maneira, o marxismo resgatou o núcleo racional da utopia e da dialéti-
ca da tendência, ainda de cunho idealista, trazendo-os para o concreto.
(BLOCH, 2005, p.141)

O olhar para frente que Bloch (2005, p.143) tem em mente exige uma intui-
ção predisposta a se tornar consciente.

Só quando a razão toma a palavra, a esperança, na qual não há falsida-


de, recomeça a florescer. O próprio ainda-não-consciente deve se tornar
consciente quanto ao seu ato; consciente de que é uma emergência e
ciente quanto ao conteúdo, ciente de que está emergindo. Chega-se as-
sim ao ponto em que a esperança, esse autêntico afeto expectante no
sonho para a frente, não surge mais como uma mera emoção autôno-
ma, […] mas de modo consciente-ciente como função utópica. […] O
que distingue a fantasia da função utópica da mera fantasia quimérica
é o fato de apenas a primeira ter a seu favor um ainda-não-ser do tipo
que pode ser esperado, isto é, que não gira nem se perde em torno de
uma possibilidade vazia, mas antecipa psiquicamente um possível real
(BLOCH, 2005, p.144).

Bloch (2005, p.145-146) esclarece que o olhar cheio de esperança e fantasia


da função utópica só pode ser corrigido a partir do real da própria antecipação;
ou seja, a partir de um realismo que “o é somente porque versado na tendência do
real, na possibilidade real-objetiva à qual a tendência está associada”. Aqui, tem
lugar o conceito de utópico-concreto como expressão de uma capacidade utópica
“colocada sobre os próprios pés”, “consciente-ciente da intenção expectante” cuja
“ratio é a razão não debilitada de um otimismo militante”. “O conteúdo ativo
da esperança”, conscientemente esclarecido e cientemente explicado “é a função
utópica positiva”.

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Organização e Práxis Libertadora 61

De modo diferente das utopias abstratas, preenchidas essencialmente com


ideais, a utopia concreta conecta os ideais ao processo do mundo. Sendo “va-
riações do conteúdo básico que é o bem supremo”, os ideais se comportam em
relação a esse conteúdo maior da esperança, a “esse conteúdo possível do mundo,
como meios para um fim”.
Nas formulações de Bloch (2005, p.194) esse “imaginar-se rumando para
o melhor” ocorre, primeiro, apenas interiormente: “o ser humano fabula desejos”.
Entretanto, nada circula interiormente se o exterior for estanque, se a vida do lado
de fora não for tão inconclusa como a do eu, se o mundo estivesse encerrado em
fatos fixos e consumados. Em vez disso, existem apenas processos: relações dinâ-
micas nas quais o “existente dado ainda não é completamente vitorioso”.

O real é processo, e processo é a mediação vastamente ramificada entre


o presente, o passado pendente e, sobretudo, o futuro possível. No seu
front processual, todo real passa a ser o possível e todo possível é pri-
meiramente parcial-condicionado, sendo ele o determinado que ainda
não está completo ou concluído. (BLOCH, 2005, p. 194)

Nesse ponto, Bloch (2005) distingue entre o cognitivo ou objetivamente


possível e o possível-real. Objetivamente possível é tudo aquilo cuja ocorrência
pode ser cientificamente esperada ou que não pode ser excluída com base no co-
nhecimento disponível. Realmente possível

é tudo aquilo cujas condições ainda não estão integralmente reunidas na


esfera do próprio objeto, seja porque elas ainda estão amadurecendo,
seja, sobretudo, porque novas condições – ainda que mediadas pelas
existentes – concorrem para a ocorrência de um novo real. (BLOCH,
2005, p. 195)

Por isso e para isso, o saber precisa deixar a forma contemplativa, precisa
deixar de meramente se referir ao que já está concluído e já passou, precisa de
meios para tratar com as coisas presentes e deixar de ser cego para o futuro. Esse
outro modo do saber tem a capacidade de acompanhar o processo, de ser ativo e
partidário do “bem que vem abrindo caminho”, do que “é digno do ser humano
no processo”. Para Bloch (2005, p.196), essa forma de saber é a única objetiva,
a única que produz o real na história: “os acontecimentos produzidos por seres
humanos que trabalham dentro do rico tecido processual entre passado, presente e

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futuro”. Além disto, esse tipo de saber conclama os sujeitos da própria produção
consciente. Ele não cultiva “o otimismo banal e automático do progresso em si,
que é apenas uma reprise do quietismo contemplativo”, que “traveste o futuro de
passado” porque olha para o futuro como algo há muito concluído.
Assim, o novo fica fora da compreensão; o presente constitui um embaraço.
Bloch (2005, p.279) relaciona esse modo de saber com o pensamento na forma
mercadoria e com a decorrente intensificação do sentimento de impotência: “o
fato de todos os homens e todas as coisas se tornaram mercadoria não lhes propor-
ciona apenas alienação, mas deixa claro que a forma de pensamento ‘mercadoria’ é
ela própria, a forma de pensamento”. Em consequência, esquece, em vista do produ-
to reificado, o producente, o que está aberto diante de nós. Já o marxismo, ciência do
acontecimento e da transformação contínuos, ciência tendencial histórico-dialética,
permite, sempre tendo como propósito a ação, apreender a possibilidade real-obje-
tiva de futuro que está contida na realidade do presente, mediada pelo passado. É
desse modo que, tendo o futuro como horizonte e o passado como átrio, o marxismo
confere à realidade a sua dimensão real. É a partir de Marx que se explicitam a “in-
serção da mais audaz intenção no mundo que acontece, a unidade da esperança e da
noção de processo, enfim, o realismo” (BLOCH, 2006, p.177).
Não se trata, portanto, do pessimismo absolutizado do saber do “antiquário
contemplativo”. Não se trata, também, de qualquer otimismo automático. Em lu-
gar desses, coloca-se, como associada ao saber da decisão e à decisão do saber ob-
tido, a utopia concreta, a ação concretamente mediada, o otimismo militante. Por
meio dele, e Bloch (2005, p.197) recorre novamente a Marx, “não são realizados
ideais abstratos, mas certamente são liberados os elementos reprimidos da socie-
dade nova, humanizada, ou seja, do ideal concreto”. O “otimismo bem fundado”
está em paz com o processo, corrige o imobilismo fatalista.
A caminhada para o novo requer proceder passo a passo, já que nem tudo é
possível e executável a qualquer momento; sendo o possível definido como tudo
aquilo que encontra as condições dadas em proporção suficiente à sua realização.
Nesses termos, tudo aquilo que ainda não encontra as condições necessárias é fa-
ticamente impossível; e a imagem-alvo se mostra objetiva e subjetivamente uma
ilusão. A saída dessa armadilha reside na teoria-práxis concreta, em sua estreita
ligação com a construção da possibilidade real-objetiva. Tanto a preocupação crí-
tica que determina a velocidade da caminhada, quanto a bem fundada expectativa
que garante um otimismo militante em direção ao alvo, são definidas pela noção
obtida do correlato da possibilidade (BLOCH, 2005).

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Esse correlato tem dois lados: um reverso, no qual se encontram as “medi-


das do possível em cada caso”, e um anverso, no qual “o totum derradeiramente
possível se caracteriza como ainda aberto”. O primeiro ensina o comportamento a
ser adotado na caminhada para o alvo; o segundo impede que êxitos parciais nessa
caminhada sejam tomados como um todo e o encubram. Esse correlato de duas
faces é a própria matéria dialética: “possibilidade real é apenas a expressão lógica
para a condicionalidade material do tipo suficiente por um lado e abertura material
[...] por outro”. Esse correlato, por um lado, ilumina a teoria-práxis revolucionária
com a “consideração crítica do atingível, da expectativa bem fundada da própria
alcançabilidade no interior do correlato mais abrangente da possibilidade real”,
com “suas determinações críticas e impreteríveis” que exigem análise fria e estra-
tégia precisa – o vermelho frio; por outro, ilumina a teoria-práxis revolucionária
com o entusiasmo da “inexaurida plenitude da expectativa” – o vermelho quente
(BLOCH, 2005, p. 204 e 206).
Esses dois modos de ser da cor vermelha andam sempre juntos, embora
sejam distintos: o ato analítico-situacional do marxismo está entrelaçado com o ato
prospectivo-entusiástico no método dialético. Sem o horizonte do limitadamente
possível se cairia em um entusiasmo totalmente desmedido, do tipo abstratamente
utópico. Assim, a investigação das “perspectivas do sendo-em-possibilidade se di-
rige para o horizonte em termos de uma amplidão desobstruída, incomensurável,
em termos do possível ainda não esgotado e ainda não realizado”. Sem esse aqueci-
mento da análise das condições históricas e das condições práticas atuais, a história
sucumbe ao economicismo e ao oportunismo. Portanto, somente juntos “o frio e o
calor da antecipação evitam que o caminho em si e o alvo em si sejam mantidos
afastados um do outro de modo não dialético, evitam seu isolamento e reificação”.
Quem realiza a análise das condições na totalidade do situacional-histórico
e atua desmascarando as ideologias e desencantando a aura metafísica é a corrente
fria do marxismo; ela faz do marxismo uma ciência das condições e uma ciência
de luta e oposição aos entraves e dissimulações ideológicas. Já da corrente quen-
te do marxismo fazem parte “a intenção libertadora e a tendência real humano-
-materialista, materialista-humana, e é em função de seu alvo que todos esses
desencantamentos são empreendidos”. O marxismo, como doutrina do calor, “se
refere unicamente ao ser-em-possibilidade positivo, não sujeito a qualquer desen-
cantamento, que abrange a realização progressiva do que está sendo realizado,
primeiramente no entorno humano”, e que, nesse entorno, denota o totum utópico,
“justamente aquela liberdade, aquela pátria da identidade em que o ser humano

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64 Bloch, Gramsci e Paulo Freire: referências fundamentais para os atos da denúncia e do anúncio

não se comporta em relação ao mundo, nem o mundo em relação ao ser humano


como estranhos” (BLOCH, 2005, p.206-207).
O caráter utópico dessa teoria-práxis se expressa no poder-ser em seu desa-
fio ao formalmente permitido, ao objetivamente presumível, ao aberto conforme
o objeto. No entanto, a sua possibilidade real comporta uma condicionalidade
parcial-real do objeto. “O realmente possível principia com o germe em que foi
disposto o vindouro.” O que nele está pré-formado procura desdobrar-se: todavia,
“não como se anteriormente já existisse”; ao contrário, ele “preserva a sua aber-
tura como desdobramento”. Portanto, não haveria nenhum ainda-não-existe, nem
haveria nenhuma coisa que ainda-não-está-consciente, se esses ainda-não não pu-
dessem se mover no possível e voltar-se ao seu caráter aberto.
O possível é o não totalmente condicionado, o não-consumado, a terra do
futuro, o mundo inconcluso; ainda que e sempre pleno de mediações tendenciais-
-históricas. O futuro do tempo é precisamente o espaço das possibilidades reais
da história, situando-se no nível teórico-prático da linha de frente do processo do
mundo, onde são tomadas as decisões e se descortinam novos horizontes. Esse
processo em direção ao futuro é unicamente o processo da matéria, onde seres
humanos, outros seres e coisas estão unidos. O homem e seu trabalho, na condição
de elementos decisivos no processo histórico do mundo, constituem um fator sub-
jetivo – a potência não encerrada de mudar as coisas, e um fator objetivo – a po-
tencialidade não encerrada da mutabilidade, da alteridade do mundo. A potência
subjetiva é o elemento transformador e realizador na história; a potência objetiva
coincide não só com o transformável, mas também com o realizável na história. É
o ser humano como realizador que condensa essas potências e as transforma em
matéria em processo. Essa é a concepção, segundo Bloch (2005), de um materia-
lismo para adiante, segundo o qual as coisas só sucedem no próprio agora porque
sucedem na nascente de tudo.

Antonio Gramsci: hegemonia, povo e nação,


consciência e modos de vida
Rafael Kruter Flores

Por que Gramsci para estudar lutas sociais na América Latina?


Porque nele se encontram indicações para pensar o nacional-popular em
sua relação com o internacional. O nacional-popular em Gramsci se refere às tradi-

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ções culturais e ao que chama, em suas notas sobre Maquiavel, de “vontade coletiva”.
Ambas estão unidas entre si e distantes dos extremos que Gramsci rejeita: o cosmo-
politismo e o particularismo nacionalista. O tema do nacional e do popular se encon-
tra, como se verá adiante, estreitamente vinculado ao das relações dos intelectuais
com o povo e ao de hegemonia como processo de constituição dos sujeitos sociais.
A categoria do nacional-popular é constituinte da história política da América
Latina. No entanto, as formulações da tradição marxista latino-americana (como
as de Juan Busto, recabarren e Mariátegui) foram vencidas pelas articulações po-
pulistas do tipo peronista ou aprista. No momento atual, em que se experimentam
projetos que se pretendem de corte nacional e popular em vários países da região é
indispensável retomar a discussão do tema pela vertente marxista. Nesse sentido,
o retorno a Gramsci pode ser muito profícuo.
Outro motivo para tomar Gramsci como referência se deve à atualidade do
tema da definição dos conteúdos concretos da direção intelectual e moral, da trans-
formação do senso comum, dos costumes, concepções e normas de ação. Especial-
mente neste momento, em que se coloca, em diferentes países e contextos, o perigo
do retorno ao culto do Estado e da conseqüente passividade das massas populares.
Finalmente, os ensinamentos metodológicos de Gramsci são da maior re-
levância para orientar nossa aproximação dos autores da tradição do pensamento
social latino-americano, como se verá na parte final deste item.

Gramsci mostra que as lutas sociais não são apenas físicas, são também
intelectuais. Se é verdade que os grupos produzem suas concepções de mundo
imediatamente a partir de suas situações materiais e de suas relações sociais,
também é fato que as relações sociais carregam contradições que se manifestam
nos indivíduos como uma desagregação. Essa desagregação é mais presente nos
grupos subalternos, pela ausência de autonomia e consciência histórica. É isto
que os torna subalternos em relação aos dirigentes: não foram capazes de cons-
truir uma concepção de mundo própria de sua existência.

Um grupo social, que tem sua própria concepção de mundo, ainda que
embrionária, que se manifesta na ação e, portanto, de modo descontínuo
e ocasional [...], toma emprestado a outro grupo social, por razões de
submissão e subordinação intelectual, uma concepção que não é sua e a
afirma verbalmente, e também acredita segui-la, já que a segue em ‘épo-
cas normais’, ou seja, quando a conduta não é independente e autônoma,
mas sim submissa e subordinada. (GRAMSCI, 2006, p.97)

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66 Bloch, Gramsci e Paulo Freire: referências fundamentais para os atos da denúncia e do anúncio

O momento em que se dá a relação direção/subordinação é o momento da


hegemonia, ou seja, o momento em que se efetiva a direção intelectual e moral
de um grupo sobre outro. Gramsci analisa a hegemonia a partir das relações
que mostram a indissociável conexão entre o mundo material das relações de
produção e a consciência de classe. Essas relações podem ser analiticamente
identificadas em diferentes momentos ou graus. O primeiro grau é ligado às
estruturas objetivas. “Com base no grau de desenvolvimento das forças ma-
teriais de produção, têm-se os agrupamentos sociais, cada um dos quais re-
presenta uma função e ocupa uma posição determinada na própria produção”
(GRAMSCI, 2002a, p.40). Para o autor, esse momento é estático; refere-se ao
número de empresas e seus empregados, número de cidades, sua população
etc. O segundo grau é o da relação de forças políticas, em que podem ser anali-
sadas a homogeneidade, a autoconsciência e a organização dos grupos sociais.
A relação de forças políticas é analisada em três momentos: o econômico-
-corporativo (caracterizado pela unidade de grupos profissionais em torno de
uma solidariedade exclusivamente econômica); a solidariedade de interesses
entre todos os membros do grupo social no campo econômico (em que são fei-
tas reivindicações políticas às classes dominantes) e, finalmente, o momento
da hegemonia:

[...] aquele em que se adquire a consciência de que os próprios inte-


resses corporativos, em seu desenvolvimento atual e futuro, superam
o círculo corporativo, de grupo meramente econômico, e podem e
devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados. Esta é
a fase mais estritamente política, que assinala a passagem nítida da
estrutura para a esfera das superestruturas complexas; é a fase em
que as ideologias geradas anteriormente se transformam em ‘parti-
do’, entram em confrontação e lutam até que uma delas, ou pelo me-
nos uma única combinação delas, tenda a prevalecer, a se impor, a se
irradiar por toda a área social, determinando, além da unicidade dos
fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral,
pondo todas as questões em torno das quais ferve a luta não no plano
corporativo, mas num plano ‘universal’, criando assim a hegemonia
de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordi-
nados. (GRAMSCI, 2002a, p.40)

Gramsci (2002a) explica a dialética do conceito de hegemonia na relação


entre a estrutura das condições materiais de produção (manifestada nos interes-

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ses meramente econômico-corporativos) e a superestrutura das ideologias e da


direção intelectual e moral (manifestada na universalidade hegemônica). É essa
dialética que permite o movimento constante entre grupos dirigentes43, que ob-
jetivam manter sua hegemonia, e grupos subalternos, que buscam superar sua
subalternidade pela construção de uma contra-hegemonia.
A hegemonia pressupõe, acima de tudo, a criação de consensos e de uma
cultura. Um determinado tipo de civilização econômica, para ser desenvolvida,
“requer um determinado modo de viver, determinadas regras de conduta, um cer-
to costume” (GRAMSCI, 2001, p.52).
Gerratana (1977, apud LIGUORI, 2007) ressalta que a hegemonia, conce-
bida como uma estratégia para os grupos subalternos ascenderem à condição de
dirigentes, não pode ser apenas considerada uma explicação da dominação bur-
guesa nem pode ter seu valor ético-político esvaziado.

O modelo burguês, porém, não fora proposto por Gramsci como “mode-
lo de estratégia política válido também para a classe operária”; quando
“muda o referente de classe da hegemonia, também deve mudar instru-
mentos e instituições; numa palavra, o aparelho da própria hegemonia”.
Se uma classe exploradora precisa de “formas de hegemonia que sus-
citem um consenso traduzível em delegação, um consenso próprio de
aliados subalternos”, uma classe que luta para pôr fim a toda exploração
tende a “uma hegemonia sem aliados subalternos, uma hegemonia que
seja educação permanente para o autogoverno”. (GERRATANA, 1977,
apud LIGUORI, 2007, p.214)

A ressalva de Gerratana é de suma importância, pois além de reforçar o ca-


ráter transformador da obra de Gramsci, afasta qualquer interpretação puramente
instrumental do conceito de hegemonia que não considere o objetivo último da
libertação da humanidade. A hegemonia dos grupos subalternos busca superar
os instrumentos e instituições de dominação do mundo capitalista, inclusive o
Estado moderno.

43 Com relação aos conceitos de “dirigente” e “dominante”, Gramsci utiliza as duas expressões em di-
versos momentos, muitas vezes, sem uma distinção conceitual precisa entre elas. Em uma passagem,
entretanto, afirma que “se a classe dominante perde o consenso, ou seja, não é mais ‘dirigente’, mas
unicamente ‘dominante’, detentora da pura força coercitiva, isso significa exatamente que as grandes
massas se destacaram das ideologias tradicionais [...] (GrAMSCI, 2002a, p. 184). A partir dessa citação,
será adotada a expressão “dirigente” para os grupos que têm hegemonia e “dominante” para grupos
que dominam apenas pela coerção.

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Dentre as principais análises e conceitos de Gramsci, e em estreita relação


com a dinâmica da hegemonia, está o conceito de Estado. Para compreendê-lo, é
necessário considerar a distinção realizada para fins metodológica entre sociedade
civil e sociedade política. A sociedade civil é “o conjunto de organismos designa-
dos vulgarmente como privados”, que correspondem à função de hegemonia. A
sociedade política corresponde à função de domínio direto ou de comando, que se
expressa no governo jurídico.
Com relação às funções de hegemonia, os intelectuais produzem o consenso
ativo das massas pela formulação de orientações dos grupos dirigentes à vida social.
Quanto às funções de governo, utilizam mecanismos estatais de coerção sobre os
grupos que não consentem à orientação dominante. Sociedade civil e sociedade po-
lítica, conceitos oriundos de uma distinção puramente metodológica, fundem-se no
Estado, algumas vezes referido pelo próprio autor como Estado integral. O Estado,
em Gramsci, é precisamente a expressão, em cada momento histórico, das lutas por
hegemonia que ocorrem nos organismos “privados” da sociedade civil. Assim, o
autor amplia a ideia de Estado para além das estruturas jurídicas e administrativas
de governo, mostrando que todos os organismos da sociedade civil voltados à pro-
dução material ou intelectual (indústrias, mídia, escolas, partidos políticos) são parte
de uma hegemonia e, portanto, formam parte do Estado.

O Estado é certamente concebido como organismo próprio de um gru-


po, destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima des-
se grupo, mas este desenvolvimento e esta expansão são concebidos e
apresentados como a força motriz de uma expansão universal, de um
desenvolvimento de todas as energias “nacionais”; isto é, o grupo domi-
nante é coordenado concretamente com os interesses gerais dos grupos
subordinados e a vida estatal é concebida como uma contínua formação
e superação dos equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os inte-
resses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados.
(GRAMSCI, 2002a, p.41)

Inspirado em Gramsci, Campione (2003) afirma que tão ou mais importante


do que conquistar o Estado é a tarefa de conceber uma “visão de mundo antagôni-
ca à predominante”. Esta condição se relaciona com o conceito de bloco histórico,
definido por Gramsci (2002b) como a unidade dialética entre forças produtivas,
relações sociais de produção e superestrutura jurídico-política, em um dado mo-
mento histórico. O conceito de bloco histórico, segundo Bianchi (2008, p.138),

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permite a “análise crítico-histórica da unificação dos processos de reprodução so-


cial das relações políticas e de reprodução político-ideológica das relações sociais
que se verificam de modo intenso no capitalismo contemporâneo”. Ou seja, além
das condições materiais, ele diz respeito às condições políticas e ideológicas e
remete, portanto, ao tema da direção política e cultural.
Estas condições não são tratadas por Gramsci (2002c; 2002d) em abstrato.
Suas reflexões sobre a situação da Itália levam à centralidade dos temas da nação e
do povo. A nação se refere a uma comunidade materialmente objetiva, institucio-
nal e econômica, mas também simbólica, estrutura material da ideologia, sempre
rebatida a um espaço territorial. Isto não significa absolutizar o elemento nacional,
já que em seus escritos se encontram considerações sobre a inevitável unificação
do mundo em decorrência da lógica do capitalismo, bem como o reconhecimento
que toda história particular (nacional) está inserida no quadro da história mun-
dial, representando uma potencialidade de desenvolvimento em direção ao inter-
nacionalismo. Para Baratta (2004, p.58), no pensamento de Gramsci “pulsa uma
continuidade, problemática, mas dinâmica, entre nacional e internacional-popular
(onde nação é o termo forte, porque empiricamente concreto, de referência)”.

Paulo Freire: denúncia e anúncio


Joysi Moraes

Por que Paulo Freire para estudar lutas sociais na América Latina?
Porque há uma conexão óbvia contida na originalidade que é própria de Paulo
Freire: não ser simplesmente um pedagogo no sentido específico do termo, mas “um
educador da ‘consciência ético-crítica” (DUSSEL, 2002, p.427).
também porque nele encontramos apoio para pensar a prática da organização
das lutas sociais. Paulo Freire refletiu diversas vezes sobre o tema da auto-organi-
zação, cujo oposto, para ele, é a manipulação. Em torno desta reflexão, desenvolveu
duas teorias, que considerava como sendo diametralmente opostas: a teoria da ação
antidialógica e a teoria da ação dialógica. A cada uma delas corresponde uma prá-
tica que contradiz a outra e nenhuma dessas práticas (como, aliás, toda e qualquer
prática) pode prescindir do auxílio das ciências ou das teorias que lhes dão suporte,
articulando-a em uma práxis. De acordo com Paulo Freire, a teoria da ação antidia-
lógica, baseada na conquista, na divisão para manter a opressão, na manipulação e
na invasão cultural, há muito possui seus teóricos e ideólogos e está expressa nas

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70 Bloch, Gramsci e Paulo Freire: referências fundamentais para os atos da denúncia e do anúncio

burocracias. Ao contrário, sua antítese, a teoria da ação dialógica, baseada na co-


-laboração, na união, na auto-organização e na síntese cultural, expressa o devir de
uma organização cujo objetivo é a libertação humana e pressupõe como inseparáveis
a prática organizacional e a aprendizagem. Assim, aqueles que rejeitam “a prescrição
e a manipulação rejeitam, igualmente, o espontaneísmo” e buscam a organização
como meio para alterar o que “ad-miram” (FrEIrE, 1984, p. 41). Paulo Freire expõe
as condições concretas da teoria da ação dialógica no ato mesmo de sua práxis mili-
tante, e assinala que precisamos de mais experiências que mostrem sua viabilidade,
bem como de produções intelectuais que as tornem visíveis.

Para Freire, a luta dos seres humanos pela libertação é ao mesmo tempo
interna e coletiva: interna porque dentro do oprimido também vive o opressor; co-
letiva porque a libertação não é individual, é social e política. A libertação também
não é unilateral, deve simultaneamente libertar oprimido e opressor.

A liberdade só é viável na e pela superação da contradição opressores-


-oprimidos, que é a libertação de todos. A superação da contradição é o
parto que traz ao mundo esse homem novo não mais opressor, não mais
oprimido, mas homem libertando-se. (FREIRE, 2005a, p.38)

Em suas relações com o mundo e com os outros, os sujeitos podem ultra-


passar situações-limite como esta. Situações-limite são obstáculos à libertação
que, se não enfrentadas, se tornam barreiras intransponíveis.

No momento mesmo em que os homens as apreendem [as barreiras] como


freios, em que elas se configuram como obstáculos à sua libertação, se
transformam em “percebidos-destacados” em sua “visão de fundo”. Re-
velam-se, assim, como realmente são: dimensões concretas e históricas
de uma dada realidade. Dimensões desafiadoras aos homens, que incidem
sobre elas através de “atos-limites”. (FREIRE, 2005a, p.104)

Para Freire (2005a, p.38), o oprimido precisa descobrir-se como tal e, en-
tão, elaborar sua liberdade, sua consciência crítica, passo a passo com sua organi-
zação. Os projetos e os atos da possibilidade humana são expressos no sintagma
inédito-viável, elaborado por Freire em A pedagogia do oprimido (2005a): o iné-
dito-viável se nutre da inconclusão humana, mostra as possibilidades históricas,
informa que não há reino do definitivo, do pronto e do acabado. O inédito-viável

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é a utopia alcançada que faz brotar outros inéditos-viáveis. É, portanto, uma ca-
tegoria que encerra nela mesma a crença no “sonho e na possibilidade de utopia,
na transformação das pessoas e do mundo. É, portanto, tarefa de todos e todas”
(ARAÚJO FREIRE, 2008, p.234).
A conscientização como atitude crítica dos homens na história não finda
jamais; é um processo permanente de busca e aprendizado através da ação e da
reflexão, na tentativa de superar obstáculos; é a permanente busca da utopia. Esta,
para Freire (1980, p.27),

não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos


de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e
anunciar a estrutura humanizante. Por essa razão, a utopia é também um
compromisso histórico.

Ao refletir sobre o processo de conscientização, Freire (1980, 2005b) assinala


que não ocorre uma simples passagem de uma consciência mágica ou ingênua para
uma consciência crítica. Caracteriza, então, três graus de consciência da realidade,
em parte, condicionados pela estrutura histórico-cultural. O primeiro é a “consciên-
cia intransitiva”, marcada pela falta de discernimento acerca da realidade, implican-
do uma incapacidade de entender as diversas problemáticas que cercam o sujeito.
Nesse estágio, ele não consegue exprimir-se, pois se encontra ainda em si e não é
capaz de chegar à autoconscientização do para si. Porém, à medida que o sujeito
dialoga sobre questões transcendentes à esfera meramente vital, sua consciência se
alonga em um processo transitivo que Freire (1980) chama de “consciência ingê-
nua”. Nesse segundo grau de consciência, o sujeito possui uma compreensão mági-
ca da realidade, perceptível na fragilidade de suas argumentações. A escuta do outro
ainda não é sensível, as concepções são consolidadas individualmente. A partir da
“consciência ingênua” emerge a “consciência crítica”, de terceiro grau, marcada
pela segurança de argumentos, pela recusa ao autoritarismo e à dominação, e pela
presença do diálogo e do compromisso com a libertação e a emancipação do ser
humano. Portanto, a “consciência crítica” se efetiva pela “ação dialógica” na práxis.
Para emergir como sujeito histórico, abandonando o pensamento mágico ou
ingênuo, o sujeito da história precisa pensar o seu próprio pensar na ação: “a supe-
ração não se faz no ato de consumir ideias, mas no de produzi-las e de transformá-
-las na ação e na comunicação” (FREIRE, 2005a, p.117).
“Da imersão em que se achavam, emergem, capacitando-se para se inseri-
rem na realidade que se vai desvelando. Desta maneira, a inserção é um estado

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72 Bloch, Gramsci e Paulo Freire: referências fundamentais para os atos da denúncia e do anúncio

maior que a emersão e resulta da conscientização da situação. É a própria consci-


ência histórica” (FREIRE, 2005a, p. 118). É essa noção de historicidade que per-
mite os inéditos-viáveis, partindo da denúncia de uma estrutura desumanizante.

Freire desvelou inéditos-viáveis fundamentais de nossa sociedade, de-


nunciando-os, contraditoriamente anunciando o anúncio esperançosa-
mente viável. Denunciar e denúncia com toda a presença do repudiante,
do desumanizante e do antiético que o inédito-viável mesmo anuncia
sobre o que é ineditamente-viável, o sonho utópico. Anunciar e anúncio
com toda a carga de generosidade, de humanismo e de esperança de
futuro que lhes são próprios. (ARAÚJO FREIRE, 2008, p.233)

Portanto, para Freire (1980), a existência consciente se expressa no sintag-


ma denúncia-anúncio. Assim como o inédito-viável, essa é outra unidade inque-
brantável. É percebendo e vivendo a história como possibilidade que se experi-
menta a capacidade de comparar, ajuizar, escolher, decidir, romper, intervir no
mundo e avaliar a intervenção.
Posicionar-se, portanto, implica pensar na concretude da realidade, implica
denunciar como estamos vivendo e anunciar como podemos viver. Um sem o
outro é mera retórica, é discurso vazio. No sintagma denúncia-anúncio, segundo
Dussel (2002), Freire indica que há um momento negativo, da crítica, e outro po-
sitivo, da utopia, do inédito-viável. A denúncia é o fruto da comunidade dialógica
dos oprimidos com consciência crítica em dialética colaboração com sujeitos em
posição interdisciplinar. Já a utopia é o uso da imaginação criadora de alternativas,
que se baseia no que deveria ser e não no que é (DUSSEL, 2002). Como afirma
Linhares (2008, p.45), esta é uma formulação de tal importância que “qualquer
cartografia da obra de Paulo Freire, nela considerando a própria estética de sua
existência, sem as lógicas do anunciar-denunciando ou do denunciar-anunciando
que a impregnam, torna-se um mapa simplificado”.
O denunciar-anunciar está imbuído da afirmação freireana de que a reali-
dade é processo e não um fato dado. Entretanto, também ensina que não há possi-
bilidade de pensar o amanhã “sem que nos achemos em processo permanente de
‘emersão’ do hoje, ‘molhados’ do tempo que vivemos, tocados por seus desafios,
instigados por seus problemas” (FREIRE, 2000, p.117). Pensar o amanhã, para
Freire (2000), é fazer profecia.
De acordo com Freire (1984), não é verdadeira a denúncia que se baseia
no conhecimento distante da realidade tratada, tampouco a denúncia e o anúncio

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solitário, feito em separado das massas populares. Esse tipo de denúncia as coloca
como vítimas a serem salvas, anunciando um futuro que se instalaria automatica-
mente, independentemente das suas ações conscientes. Esse tipo de denúncia e
anúncio atenta contra o projeto, demonstra ingenuidade política e desconhecimen-
to da necessidade temporal da história. Nesse sentido, o ato de denúncia-anúncio
não é vazio, mas compromisso histórico (FREIRE, 1984).

Bloch, Gramsci e Freire: aproximações


Joysi Moraes
Rafael Kruter Flores
Maria Ceci Misoczky

A utopia concreta presente nos textos de Bloch, Gramsci e Freire, de exe-


gese filosófico-político-educativa, fundada na práxis militante, insurge-se contra
o pensamento que ameaça a imaginação e impõe obstáculos à possibilidade da
libertação. Suas obras estão marcadas pela materialidade e pela dialética nos pro-
cessos subjetivos e sociais, bem como pela necessidade de conscientização do ser
humano para que este, de objeto, torne-se sujeito da história.
Bloch parte do conteúdo radical e material da vida para afirmar que a espe-
rança, ainda que seja um princípio subjetivo, é fundada na práxis histórica e mate-
rial. A esperança pode ser uma esperança concreta, pois tem raízes nas demandas
mais urgentes do ser humano: a fome e a autopreservação. Contemporâneo de
Bloch, Gramsci fez da práxis a sua arma contra a miséria material, moral e intelec-
tual. É por isso que, mesmo encarcerado pelo regime fascista, continuou sua luta
para transformar o mundo, recorrendo ao desenvolvimento de uma filosofia que é
também uma política, a filosofia da práxis, a qual visa conduzir grupos subalternos
a uma concepção de vida superior, do ponto de vista material e intelectual. Para
Gramsci, os mais elevados valores da humanidade estão na defesa da própria exis-
tência física. Por sua vez, em sua práxis, Freire propôs a educação da consciência
ético-crítica, ontologicamente enraizada na vida, no ser humano como um ser da
práxis, e com o objetivo da libertação humana através da conscientização. Para
Freire, a esperança é uma condição existencial, uma necessidade ontológica que,
como tal, precisa da prática para tornar-se concretude histórica.
Freire pode ser considerado um herdeiro de Bloch, quando assume a pos-
sibilidade da transformação do sonho em realização, e de Gramsci, quando trata

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74 Bloch, Gramsci e Paulo Freire: referências fundamentais para os atos da denúncia e do anúncio

da inseparabilidade entre atividade física e intelectual. O método Paulo Freire é a


expressão concreta dessa perspectiva, pois o autor mostra que o ato de ensinar não
é mera transferência de conhecimento, é criação de possibilidades de produção
do conhecimento pelos próprios sujeitos, em cada época histórica, produzindo
sentido à sua práxis. Entretanto, esse sentido só é produzido a partir das realidades
materiais de cada classe social e com os sujeitos daquela classe, através do diálogo
que pode conduzir à consciência crítica e, portanto, à recusa a qualquer tipo de au-
toritarismo e dominação. Assim, ninguém educa ninguém e os homens e mulheres
se educam em sociedade; ninguém liberta ninguém e os seres humanos se libertam
em sociedade, a partir da consciência crítica.
Enquanto Freire explica o nascimento da consciência crítica através do di-
álogo, ou seja, em comunhão com outros, Gramsci traz essa consciência crítica
para o centro da filosofia da práxis. Para Gramsci, a crítica do processo histórico,
que deixou como legado uma infinidade de traços acolhidos do passado, leva à
consciência crítica do grupo a que se pertence, bem como de sua concepção de
mundo. O “pensar” crítico é essencial para que não sejam aceitas visões de mun-
do impostas, superando-se, assim, o anacronismo dos pensamentos elaborados
a partir de problemas do passado. É esse “pensar” que gera uma filosofia com-
prometida com a superação da condição de subalternidade. Quanto a Bloch, este
aprofunda a reflexão sobre a consciência, recorrendo à psicanálise para explicar os
processos de elaboração criativa que permitem que a esperança seja concreta. É na
préconsciência que alvorece algo que não foi reprimido e nem é subordinado pela
consciência; é um “ainda-não-consciente”, o local na psique onde nasce o novo.
O “ainda-não-consciente” encontra um bloqueio histórico e social que recusa o
novo. Para superar esse bloqueio, é necessário um conhecimento cuja referência
não seja o passado, mas aquilo que está por vir.
Ainda que através de análises distintas, os três autores convergem na afir-
mação da necessidade da conscientização para a libertação. Freire enfatiza que a
consciência crítica e a libertação só ocorrem em grupo e pelo diálogo. Gramsci
afirma que os grupos subalternos somente podem se libertar da subordinação inte-
lectual a partir da crítica dos modos de pensar hegemônicos. Bloch propõe a pro-
dução de um conhecimento que possibilita essa autocrítica e anuncia o nascimento
daquilo que “ainda-não-é”, como fez a filosofia iniciada por Karl Marx.
A “utopia em ação”, uma utopia que é sonho, transforma-se em projeto
e este, quando se viabiliza, torna-se esperança concreta. O projeto é o “idea-
lizado” para Freire, é aquilo que “ainda-não-é” em nenhum lugar para Bloch,

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mas que ganha existência quando é posto em ação, a partir da construção da-
quilo que para Gramsci é a construção da contra-hegemonia. É a realidade “se
dando”, nunca encerrada em si mesma: um processo se construindo infinita e
historicamente.
A inspiração que encontramos nesses autores e a afinidade que identifica-
mos em suas construções têm sido marcantes em nosso trabalho. Ainda que não
façamos reiteradas e expressas referências, com eles compartilhamos a lingua-
gem, as categorias e a postura militante. Esses autores autorizam posições que
vinculam a crítica ao sistema com a utopia presente e concreta, em nossa aprendi-
zagem na interação com os movimentos e lutadores sociais.
Assumir essa postura inclui a difícil prática de revisar nossas suposições de
“saber fazer”, de “saber a resposta”, que não correspondem nem à experiência que
se desenvolve em nosso tempo, nem às necessidades dos atores-sujeitos envolvi-
dos nas lutas sociais. Supõe, em vez disso, articular as dimensões do pensamento
reflexivo crítico: o saber que é elaborado na dimensão estritamente teórica com
um saber que vem de baixo e que fica, na sua maior parte, contido nas práticas.
Daí a importância de resgatar, sistematizar e conceituar essas práticas. A articu-
lação dessas dimensões possibilita a construção dialética do diálogo de saberes,
indispensável à produção de um novo pensamento estratégico. Este estudo, ba-
seado no diálogo e na construção articulada de conhecimento, resulta nas novas
dimensões do desempenho daqueles que nos acostumamos a identificar como o
“intelectual orgânico”: não o que sabe e orienta, mas o que constrói junto com
os atores-sujeitos existentes em uma sociedade concreta, desde suas realidades
(RAUBER, 2004, p.23).

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76 Bloch, Gramsci e Paulo Freire: referências fundamentais para os atos da denúncia e do anúncio

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______. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1984.
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A organização dialógica do Movimiento de Trabajadores


Desocupados de La Matanza44

Joysi Moraes
Maria Ceci Misoczky

Paulo Freire refletiu diversas vezes sobre o tema da auto-organização,


cujo oposto é a manipulação. Em torno desta reflexão, desenvolveu duas teorias,
que considera diametralmente opostas: a teoria da ação antidialógica e a teoria
da ação dialógica45, que expressa o devir de uma organização cujo objetivo é a
libertação humana.
Assim, com o objetivo de tornar visíveis organizações que expressam na
sua prática a teoria da ação dialógica, relatamos e refletimos sobre o processo de
emersão dos sujeitos que se auto-organizaram no Movimiento de Trabajadores
Desocupados de La Matanza (MTD La Matanza). Trata-se de um movimento
social que começou a se organizar em 1995, na Argentina, no Município de La
Matanza46, onde, atualmente, vivem cerca de dois milhões de pessoas.
Esse texto decorre de uma reflexão posterior a um estudo mais amplo47 e
evidencia a riqueza da experiência sobre a qual nos debruçamos. As informações
foram coletadas através de entrevistas e da observação participante realizada por
Joysi, que morou em La Matanza no mês de julho de 2007 e, tendo sido generosa-
mente acolhida, pode compartilhar a vida cotidiana dos membros do Movimento.
Foi, portanto, eliminada a epistemologia da distância. A observação participante,
sendo “realizada no transcurso da vida cotidiana de pessoas ou de grupos”, possi-
bilita “conhecer, a partir dessa posição interna, eventos, fenômenos ou circunstân-

44 texto escrito em abril de 2009.


45 Este tema foi abordado no capítulo anterior. Para uma melhor compreensão deste sugerimos a sua leitura.
46 Este Município faz parte do conurbano bonaerense, região que rodeia a Capital Federal (Ciudad Autó-
noma de Buenos Aires) e engloba 24 municípios dos 134 que compõem a Província de Buenos Aires.
O Município de La Matanza, além de ser o mais extenso dos que cercam Buenos Aires, é o maior em
densidade populacional, com grandes bolsões de pobreza. É a região do país com a taxa mais elevada
de desocupação, 13,6%. Ademais, cerca de 60% dos matanceros não têm água potável, tampouco rede
de esgoto, segundo dados do Censo de 2007.
47 trata-se da tese de Doutorado de Joysi Moraes, intitulada Práticas organizacionais em escolas de mo-
vimentos sociais: verticalidades e horizontalidades; apresentada em março de 2008 no PPGA/UFrGS.

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78 A organização dialógica do Movimiento de Trabajadores Desocupados de La Matanza

cias aos quais não se poderia ter acesso de uma posição externa não participante”
(MONTERO, 2006, p. 205).
Para sistematização desta reflexão apresentamos, a seguir, as teorias da ação
antidialógica e da ação dialógica que possibilitaram compreender as práticas do
MTD La Matanza como ações que constituem práticas de organização dialógica.
Na seqüência, apresentamos, de modo articulado, a teoria freireana, o contexto no
qual emergiu este Movimento e suas práticas organizacionais.
Cabe ainda dizer que o exercício que aqui fazemos é uma apropriação do
aporte teórico de Paulo Freire para os EOs. De fato, Paulo Freire jamais usou as ex-
pressões organização anti-dialógica e organização dialógica. Ele sempre se referiu
à ação. No entanto, como o tema da organização é central nas suas reflexões sobre
a conscientização e a aprendizagem, consideramos que ao fazer esta apropriação
estamos respeitando suas formulações e sendo coerentes com seus propósitos.

Teoria da ação antidialógica e teoria da ação dialógica


Para Freire (1979; 2005), o fazer da teoria da ação antidialógica se dá atra-
vés de relações verticais entre seres humanos dispostos em posições antagônicas,
relações autoritárias que situam uma minoria em um pólo e a maioria em outro:
há os que dirigem e os que são dirigidos; os que organizam e os que são orga-
nizados; os que atuam e os que têm a ilusão de atuar na ação dos outros; os que
dizem a palavra e os que, impedidos de dizer a sua, seguem a palavra dos outros.
O organizador, na melhor das hipóteses, pensa sobre os demais, jamais com eles;
o dirigente prescreve, os dirigidos são objeto da prescrição. A ação antidialógica,
concretizada na organização burocrática, ao mesmo tempo em que se funda na
dicotomia entre os que podem dizer a palavra e os que não podem, é (re)vitalizada
sempre que desenvolve, ao roubar a “palavra dos outros, uma profunda descrença
neles, considerados como incapazes”. Assim, quanto mais o alguém “diz a palavra
sem a palavra daqueles que estão proibidos de dizê-la, tanto mais exercita o poder
e o gosto de mandar, de dirigir, de comandar. Já não pode viver se não tem a quem
dirigir sua palavra de ordem” (FREIRE, 2005, p. 152). São características que
distinguem a ação antidialógica: a conquista, a divisão para manter a opressão,
a manipulação, a invasão cultural.
A conquista implica um sujeito conquistador e um objeto conquistado, sen-
do que o primeiro determina suas finalidades ao segundo, imprime sua forma ao
conquistado. Ao introjetar a forma do conquistador, o conquistado se faz ambíguo,
dual, ou seja, um ser hospedeiro de outro, um oprimido que hospeda um opressor.

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Organização e Práxis Libertadora 79

Dessa forma, a vontade do opressor se faz presente no oprimido como se fosse


sua vontade também. De acordo com Freire (2005, p. 144), essa “dualidade exis-
tencial pode, inclusive, proporcionar o surgimento de um clima sectário – ou
ajudá-lo – que conduz facilmente à constituição de burocracias”. Os conteúdos
e os métodos da conquista variam historicamente. A ação conquistadora, por sua
possibilidade de reificar o ser humano, é condição fundamental para o estabele-
cimento de burocracias, ou, como denominaremos doravante, de organizações
antidialógicas.
A divisão para manter a opressão é condição indispensável para a conti-
nuidade do poder, e acontece tanto no contexto intra-organizacional, separando
planejadores de executores, quanto na sociedade, distinguindo os donos do capi-
tal dos que vendem sua força de trabalho. Se, por um lado, para manter a divisão
são utilizados métodos sutis, ou mesmo explícitos, que coíbem a criatividade e
a autonomia; por outro, é disseminada a necessidade de harmonia entre os que
compram e os que vendem a força de trabalho. Uma das características destas
formas de ação presentes na sociedade, “quase nunca percebidas por profissio-
nais sérios, mas ingênuos, que se deixam envolver, é a ênfase na visão localista
dos problemas e não sua na visão como dimensão de uma totalidade” (FREIRE,
2005, p. 161). Essas visões dificultam a percepção crítica da realidade, bem
como a apreensão de sua dialeticidade. Dividir para manter o status quo se im-
põe, pois, como fundamental na prática da organização antidialógica.
A manipulação é instrumento da conquista e meio através da qual se
mantém a divisão. Freire (2005, p. 168) afirma que “na organização que resulta
do ato manipulador, as massas populares, meros objetos dirigidos, se acomodam
às finalidades dos manipuladores [...] nesse caso, a organização é meio de mas-
sificação”. Através da manipulação “se obtém um tipo inautêntico de organiza-
ção, com que se evita o seu contrário, que é a verdadeira organização”. Aquela
é obtida através do uso da palavra como principal tática de manejo, através da
qual vão sendo conformados homens e mulheres que, anestesiados para não
pensar, aceitam como real o modelo que uma elite produz e no qual apresenta
a si mesma como ideal a ser atingido, afirmando às massas possibilidade de as-
censão a este ideal. A manipulação é, portanto, estratégia indispensável para a
manutenção da dominação que caracteriza a ação antidialógica.
A invasão cultural desrespeita as potencialidades do ser, impõe-lhes uma
visão de mundo que inibe sua expansão e capacidade de reação à dominação.
Invasão cultural é a penetração que fazem os invasores no contexto cultural

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80 A organização dialógica do Movimiento de Trabajadores Desocupados de La Matanza

dos invadidos, posto que é imprescindível que os invadidos vejam a realidade


sob a ótica dos invasores. Nesse sentido, só os invasores atuam, enquanto os
invadidos têm a ilusão de que atuam na atuação dos invasores. Assim, a inva-
são cultural apresenta sua dupla face: “de um lado, já é dominação; de outro, é
tática de dominação”. Embora seu caráter dominador nem sempre seja exercido
deliberadamente. Muitas vezes, os agentes da invasão cultural são igualmente
dominados, sobredeterminados pela própria cultura que os transformou em se-
res para outro, ou seja, sua vontade é a vontade do outro, embora não tenham
consciência disso (FREIRE, 2005, p. 175). Por isso a invasão cultural apresenta-
-se como condição à prática da organização antidialógica.

Características da teoria da ação antidialógica


há dominadores e dominados.
relações paternalistas.
O conquistador determina os objetivos, os conquistados executam.
Conquista A conquista é econômica e cultural.
O mundo é mitificado e a realidade é apresentada como natural.
A aproximação entre conquistadores e conquistados é feita por
comunicados.
há separação entre planejadores e executores.
há seres humanos inferiores e superiores.
São utilizados métodos sutis e explícitos para reprimir a criatividade e
Divisão para a autonomia.
manter a É disseminada a necessidade de harmonia entre os que compram e os
opressão que vendem a força de trabalho.
São utilizados treinamentos diferenciados para líderes e liderados.
São estimuladas visões localistas que impedem a percepção crítica da
realidade.
A palavra é a tática e o instrumento utilizado para comunicar enquanto
passa a impressão de diálogo.
São utilizadas táticas de manejo para anestesiar o pensar autônomo.
Manipulação
Formas assistencialistas são meio para evitar a (auto)organização.
É um instrumento que torna as massas politicamente imaturas.
É estratégia de conquista.
É tática de dominação ao disseminar a cultura do êxito e sucesso
pessoal e impedir a organização do coletivo.
Inibe a expansão de determinado grupo que, invadido, perde sua
Invasão originalidade.
cultural Se expressa na formação técnico-científica como parte do processo de
manutenção da invasão cultural.
Através da relação de dependência, impõe o medo de liberdade.
Instala uma mudança qualitativa de percepção da realidade.
Quadro 1 - Síntese das características da ação antidialógica

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Organização e Práxis Libertadora 81

A única maneira de superar a condição imposta pela organização antidia-


lógica é superando a contradição em que se acham imersos os seres humanos, ou
seja, deixando de ser seres para outro, objetos, e tornando-se seres para si, sujei-
tos. Este processo tem seu início na problematização da própria realidade. Porém,
a emersão de homens e mulheres de uma existência que desconhece as condições
histórico-sociais concretas na qual estão imersos só acontece coletivamente, na
auto-organização. Nestas condições, a emersão do ser humano como sujeito do
próprio processo histórico é, também, a expressão do seu processo de conscien-
tização. Daí a organização, entendida por Paulo Freire como auto-organização,
configurar-se como meio para a libertação, meio para a aprendizagem e para a
práxis libertadora. Tornar-se ser para si implica, então, no fazer do quefazer da
teoria da ação dialógica, onde o fazer concretiza-se no que doravante chamaremos
de organização dialógica.
Também são quatro as características da teoria da ação dialógica: a co-
-laboração, a união, a organização e a síntese cultural. Essas dimensões são dia-
metralmente opostas às da organização antidialógica e funcionam como antído-
tos: “o antídoto para a manipulação está na organização criticamente consciente”
(FREIRE, 2005, p. 169); para a conquista, na co-laboração; para a divisão, na
união; para a invasão cultural, na síntese cultural. Assim, ao contrário da organi-
zação antidialógica que se funda na dominação, nos comunicados, a organização
dialógica se constitui no diálogo, portanto, não impõe, não maneja, não domesti-
ca, não sloganiza. Isto não significa que a organização dialógica conduza ao nada,
como também não significa que o sujeito dialógico não tenha uma consciência
clara do que quer, dos objetivos que pretende atingir.
Na co-laboração os sujeitos se encontram para a pronúncia e transforma-
ção do mundo. Isto é, a ação não é primeiro libertadora e depois dialógica - é
as duas simultaneamente; caso contrário, a conscientização não se efetivaria na
situação objetiva de organização. No coletivo, os sujeitos problematizam sua pró-
pria condição concreta, que pode implicar em uma forma de ação para superar tal
condição. Na ação, a liderança pode ser necessária, mas não é proprietária dos
que se organizaram, tampouco sua salvadora. Na co-laboração não há lugar para
a conquista, mas para a adesão para obter a própria libertação. “Na co-laboração,
os sujeitos se voltam sobre a realidade mediatizadora que, problematizada, os de-
safia” (FREIRE, 2005, p. 193). A resposta aos desafios é a ação em diálogo para
mudar o que está posto como natural, portanto, o encontro para a co-laboração já
é a organização dialógica.

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82 A organização dialógica do Movimiento de Trabajadores Desocupados de La Matanza

Na união os sujeitos encontram o primeiro óbice à sua própria organização,


uma vez que precisam superar sua condição de quase-coisas. Para que se unam é
preciso que superem o caráter mágico e mítico da realidade no qual se encontram
imersos, que se descubram também fazedores da própria realidade. Por isso, o funda-
mental na ação dialógica não é desaderir os indivíduos de uma realidade mitificada em
que se acham divididos, para aderi-los a outra. O objetivo da ação dialógica é que no
processo de auto-organização, a cultura do silêncio seja quebrada. Através do diálogo
os sujeitos se descobrem aderidos a uma realidade fabricada, conhecem o porquê e o
como de sua aderência a essa realidade, o que lhes dá um conhecimento falso de si
mesmos e dela. Reconhecendo o porquê e o como de sua aderência, podem realizar o
ato de adesão à práxis de sua transformação. Essa união, um quefazer que acontece no
domínio do humano e não no das coisas é, em si, a ação cultural que permitirá perce-
ber a situação objetiva na qual se encontram as pessoas (FREIRE, 2005).
Na organização, condição indispensável à libertação, são evitados os diri-
gismos antidialógicos. Esse é o momento pedagógico, onde os sujeitos realizam
juntos os aprendizados da auto-organização, meio para a libertação. “Na ação dia-
lógica, a manipulação cede seu lugar à verdadeira organização”, e esta “jamais
será a justaposição de indivíduos que, gregarizados, se relacionam mecanicistica-
mente”. Nem mesmo quando são necessárias lideranças. “Pelo contrário, é o mo-
mento altamente pedagógico, em que a liderança e o povo fazem juntos o apren-
dizado da autoridade e da liberdade” (FREIRE, 2005, p. 204-6). A revolução48
começa no ato de se organizar, na medida em que é um desdobramento da união
para a libertação. Na organização dialógica não há só a possibilidade de dizer a
palavra. O testemunho individual é fundamental, pois a coerência entre a palavra
e o ato de quem testemunha inserindo-se na realidade, no ato de testemunhar aos
outros a sua história, é que informa se o testemunho é vazio ou não. Se não é va-
zio, ou seja, se faz parte de uma ação, de um enfrentamento, então é dinâmico e
faz parte da totalidade, indicando o despertar da consciência crítica.
Na síntese cultural é buscada a superação das contradições antagônicas da
realidade, de modo que resulte na libertação dos homens. Não há espectadores e
a realidade a ser transformada é a incidência da ação dos atores. Nesse sentido,

48 A palavra ‘revolução’ pode soar como a incitação a um golpe de Estado, alertava Paulo Freire, e ao
recurso à violência, mas em nenhum momento o autor incita tais processos. Primeir, porque “dos
golpes, seria ingenuidade esperar que estabelecessem algum tipo de diálogo. Deles, o que se pode
esperar é o engodo para legitimar-se ou a força que reprime”, não a ação dialógica. É uma revolução
exatamente por isso: porque é um processo dialógico, ainda não tentado pelos seres humanos no afã
mesmo da transformação da realidade. O diálogo é “a exigência radical” (FrEIrE, 2005, p. 145).

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Organização e Práxis Libertadora 83

se compreendemos que “toda ação cultural é sempre uma forma sistematizada e


deliberada de ação que incide sobre a estrutura social, ora no sentido de mantê-
-la como está ou mais ou menos como está, ora no sentido de transformá-la”,
entendemos que toda ação cultural delimita seus métodos. A síntese cultural “é
a modalidade de ação com que, culturalmente, se fará frente à força da própria
cultura, enquanto mantenedora das estruturas em que se forma. “Este modo de
ação cultural, como ação histórica, se apresenta como instrumento de superação
da própria cultura alienada e alienante” (FREIRE, 2005, p. 207-9).

Características da teoria da ação dialógica


homens e mulheres são atores da ação de sua libertação.
Co-laborar pressupõe a adesão livre ao grupo.
A confiança, necessária à organização, é resultante do encontro.
Co-laboração A inserção como sujeitos da história se efetiva na análise crítica da
própria realidade.
Problematizar a realidade implica em agir para transformá-la.
A descoberta de si mesmo como sujeito histórico, com possibilidades
de interferir no futuro, só acontece na união auto-organizada.
No diálogo, em união, o primeiro passo é a desmitificaçao da realidade
Na união o grupo pode escolher seus líderes ou representantes e
União delegar-lhes tarefas.
A liderança se encontra sob a força do poder do grupo e uma de suas
responsabilidades é mantê-lo unido.
A unidade interna do grupo, que reforça e organiza o poder, só existe
na unidade do grupo entre si e com sua liderança.
O objetivo dessa (auto)organização é a libertação humana.
O testemunho é uma das conotações principais do caráter cultural e
pedagógico da organização.
Organizar não é justapor indivíduos, é união auto-organizada.
Organização A liderança se constitui na delegação e ao existenciar-se como
liberdade evita o antagonismo com aqueles que lhe delegaram
alguma autoridade.
A organização, implicando autoridade, não é autoritária e, implicando
liberdade não é silenciosa.
A ação cultural dialógica pretende superar as contradições
antagônicas para a libertação humana.
Nesse tipo de ação cultural não há invasores, há diálogo, integração,
mesmo entre atores de diferentes classes.
Síntese
É o instrumento de superação da própria cultura alienante.
cultural
Em lugar de esquemas prescritos, os sujeitos organizados criam
juntos as pautas para sua ação e, dessa forma, renascem num novo
saber e numa nova ação.
toda revolução, se autêntica, é também uma revolução cultural.
Quadro 2 - Síntese das características da ação dialógica

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84 A organização dialógica do Movimiento de Trabajadores Desocupados de La Matanza

A questão central em todas estas dimensões da teoria da ação dialógica


é que nenhuma delas se dá fora da práxis, ou seja, o ser humano só aprende a
se organizar se organizando, agindo e refletindo a esse respeito no coletivo. Do
mesmo modo, enquanto se auto-organizam, se conscientizam. Assim, nas suas
formulações da teoria da ação dialógica, quando Paulo Freire pensa essa teoria
na prática, que na nossa interpretação pode ser entendida como a organização
dialógica, esta se dá sempre em uma relação dialógico-problematizadora. Isto é,
o sujeito questiona o seu estar no mundo, seu lugar no mundo e os porquês, entre
outros sujeitos e, ao se questionarem, se (re)posicionam e se auto-organizam para
(des)organizar o que está posto.

Características da ação antidialógica Características da ação dialógica


Conquista Co-laboração
Divisão para manter a opressão União
Manipulação (Auto)Organização
Invasão cultural Síntese cultural
Quadro 3 – Síntese dos antagonismos entre ação antidialógica e ação dialógica

De acordo com Freire (2005, p. 141), os seres humanos são “seres do que-
fazer exatamente porque seu fazer é ação e reflexão. É práxis. Na razão mesma em
que o quefazer é práxis, todo fazer do quefazer tem de ter uma teoria que necessa-
riamente o ilumine”49, bem como uma prática que o inspire.

A organização dialógica do MTD La Matanza


A primeira conversa com cada membro do MTD La Matanza50 orienta o
formato no qual o texto é apresentado de agora em diante. No primeiro encon-
tro cada pessoa fazia questão de contar a história da Argentina e a da própria

49 Nas palavras de Paulo Freire (2005, p. 212): “assim como o opressor, para oprimir, precisa de uma teoria
da ação opressora, os oprimidos, para se libertarem, igualmente necessitam de uma teoria de sua ação”.
50 O Partido (equivale ao município na organização político-administrativa do Brasil) de La Matanza
é constituído por 15 localidades, entre elas, Gregorio de La Ferrere, região que sedia o bairro La
Juanita, micro-região do MtD La Matanza. Este Partido já foi um dos mais importantes da Província
de Buenos Aires. Em uma primeira etapa porque era rodeado de numerosos cursos de água que
propiciavam a atividade agropecuária e, em seguida, no período de industrialização, principalmente
a partir de 1946, porque lá se instalaram algumas das maiores indústrias. A partir dos anos de 1970,
com a adoção de políticas neoliberais, em La Matanza se aprofundou a situação de pobreza de sua
população. Muitas fábricas foram fechadas, se aglomeraram centenas de sub-habitações de pesso-
as vindas da Cidade de Buenos Aires. La Matanza tem aproximadamente 2.000.000 de habitantes em
323.4 km2. É a região do país com a taxa mais elevada de desocupação do conurbano bonaerense,
13,6% (INDEC, 2006).

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Organização e Práxis Libertadora 85

vida enquanto contava a história do MTD La Matanza. Os acontecimentos se


apresentavam como indissociáveis: narrativa e análise de uma situação existen-
cial concreta codificada51 ocorriam simultaneamente. Este processo é, por sua
essência, dialógico, ou seja, é no diálogo acerca da situação vivida que o ser
humano se descobre e se afirma como sujeito do processo histórico e não como
objeto que sofre determinada ação. Testemunhando objetivamente sua história,
a consciência ingênua desperta criticamente ao se perceber como personagem
da história.
Essa prática, comum no MTD La Matanza, gera reflexão e abertura de
possibilidades concretas, uma vez que a reflexão sobre si mesmo pode levar a
uma crítica animadora que viabiliza a elaboração de novos projetos existenciais.
No processo de decodificação, os indivíduos refletem sobre como atuaram ao
reviverem a situação analisada e elaboram a percepção anterior. Assim, com
esse novo sentido sobre sua realidade, ampliam seu horizonte de compreensão.
Não é possível conhecer o MTD La Matanza sem enveredar, ainda que
brevemente, pelo processo histórico argentino. Os Movimentos de Trabalha-
dores Desocupados (MTDs) na Argentina tiveram sua origem mais imediata
na crise da década de 1990. É preciso lembrar que esse processo é resultado do
acúmulo de decisões políticas, econômicas e sociais que tiveram início no final
da década de 1950, quando a Argentina converteu-se, quase que exclusivamen-
te, em exportadora de carnes e grãos. “Ali começou a crise argentina que ainda
hoje perdura e com ela se intensificou a instabilidade política, uma vez que os
governos que sucederam esse período se lançaram a rebaixar os salários reais e
a reduzir o peso do movimento dos trabalhadores” (ALMEYRA, 2004, p. 21).
Ao longo das últimas décadas, o país acumulou milhões em dívidas, a
maioria da iniciativa privada que, durante o regime militar, foram repassadas
para o poder público com sua anuência (SITRIN, 2005). Com dívidas e índices
de desemprego aumentando, principalmente desde meados da década de 1980,
a Argentina enfrentou uma situação econômica difícil, tanto interna quanto ex-
ternamente. A pobreza atingiu mais de 50% da população e a inflação chegou a
mais de 600% ao ano. Foi criada uma nova moeda, os preços foram congelados
e o dólar foi controlado artificialmente. Embora tenha funcionado a princípio,
pelo menos aparentemente, a pressão da classe empresarial levou à flexibiliza-

51 Descodificar, para Freire (2005), se refere a analisar uma situação vivida a partir de sua reconstituição,
mediada pela objetivação, pela experiência concreta, produzindo significados para estas experiências
na medida em que elas são conscientemente internalizadas como resultado da ação dos homens.

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86 A organização dialógica do Movimiento de Trabajadores Desocupados de La Matanza

ção das normas de congelamento. A Argentina entrou em moratória, o Banco


Mundial suspendeu qualquer auxílio econômico e o governo acelerou o processo
de reformas no Estado, privatizando parte das empresas estatais. Foi implantado
um conjunto de medidas assistencialistas para amenizar a situação de pobreza,
principalmente soluções emergenciais para abrandar o problema da fome (ZIBE-
CHI, 2003).
O Governo se baseava em uma mescla de intimidação política através
de agências de inteligência policial, controle do Estado, através do partido pe-
ronista, e utilização do paternalismo estatal para controlar a pobreza urbana.
Sem condições de manter a própria vida, os argentinos inauguraram um período
marcado por grandes movimentações sociais que praticamente pararam o país.
A partir de 1996, as mobilizações se intensificaram, no Governo Menem, que
reformou a economia de acordo com as prescrições estabelecidas pelos países
centrais. Tanto que “se destacou por ser o único país que ‘fez todas as lições de
casa’ ordenadas pela ortodoxia do Consenso de Washington - privatizando qua-
se tudo que poderia privatizar; desregulando e liberalizando a economia até o
ponto de constituir ‘mercados selvagens’, favorecendo a concentração de renda
etc.” (BORON, 1995, p. 1-2). Em pouco tempo, apesar da força policial utiliza-
da pelo governo para tentar conter as mobilizações sociais, praticamente todas
as estradas do país foram bloqueadas pela população como forma de protesto.
Naquele momento, as situações-limites foram percebidas como dimen-
sões concretas e históricas da realidade. As ações coletivas “produziram mudan-
ças de escala nas relações sociais dos setores populares participantes, introduzi-
ram novos significados aos seus vínculos políticos e reposicionaram os aspectos
instrumentais da ação social” (DELAMATA, 2004, p. 8). Os sujeitos percebe-
ram as situações-limites não como barreiras insuperáveis, mas como obstáculos
à sua libertação e, naquele momento, à manutenção da própria vida. Compre-
ender esse processo a partir dessa dimensão implica prestar atenção às formas
como as organizações resultantes daquele momento histórico se relacionaram
com as distintas conjunturas e com as iniciativas de políticas públicas para se
(re)situarem no espaço político e social. Implica compreender a importância
das novas práticas incorporadas à vida organizacional, bem como a dinâmica
que adquiriram os mecanismos de tomada de decisão nestas organizações. Na
Argentina, isso significou a ação dos sujeitos sobre a realidade concreta através
de atos-limites. Como parte deste processo se constituiram Movimentos de Tra-
balhadores Desocupados (MTDs), que começaram a se organizar por bairros ou

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municípios52 e ganharam visibilidade através do método de corte de vias, daí a


denomiação de piqueteiros53.
De acordo com Toty Flores, um dos membros do MTD La Matanza, em en-
trevista54, o surgimento do Movimento de Trabalhadores Desocupados teve a ver
com a necessidade, pois havia milhares de desocupados e o discurso que vinha
do governo Menem dizia que na Argentina não havia crise porque a economia
crescia e nós tínhamos o Dólar 1 a 1 com o Peso, então estávamos no primeiro
mundo. Mas não era verdade. Então, o Movimento de Trabalhadores Desocupa-
dos foi uma resposta a esse processo de organização (do governo).
O fundamental neste novo tipo de mobilização, corte de vias, foi a con-
solidação da ideia de que outra identidade e outro destino eram possíveis para
quem havia perdido o trabalho. O nome piqueteiro, por sua força expressiva, re-
presentava uma alternativa para aqueles definidos como desocupados. Nomear-se
piqueteiro teve o poder desestigmatizador: a categoria piqueteiro enterrava a de
desempregados. “Uma nova identidade - os piqueteiros -, um novo formato de
protesto - o bloqueio de vias -, uma nova modalidade organizativa - a assem-
bleia - e um novo tipo de demanda - o trabalho - foram definitivamente associa-
dos, originando uma importante transformação nos repertórios de mobilização
da sociedade argentina” (SVAMPA E PEREYRA, 2003, p. 25). Os MTDs ainda
geraram novas ideias, novas relações e novas práticas com relação a seu território
cotidiano, através das organizações que desenvolveram desde então. De modo ge-
ral, a construção política dessas organizações se sustenta em três pilares: trabalho
territorial, autonomia e horizontalidade (Di FIORI, 2003). Com base nesses pila-
res são definidas suas práticas organizacionais. Há que se salientar que as ações
coletivas empreendidas pelos piqueteiros, bem como os conteúdos, as práticas e
objetivos organizacionais, foram histórica e politicamente construídas de diferen-
tes maneiras e, conseqüentemente, geraram diferentes resultados.
Homens e mulheres de distintos municípios e bairros começaram a agir em
co-laboração, através de uma adesão livre que resultou nos primeiros encontros

52 No interior do país, onde havia um tecido social relativamente homogêneo, os piquetes aconteciam,
praticamente, em todo o município; em Buenos Aires, os piquetes aconteceram naqueles bairros que
já tinham experiências de lutas, como a luta em defesa de uma fábrica importante para o bairro, por
exemplo. “Os piqueteiros nasceram, portanto, onde já havia um processo de construção de consciência
[...] que se realizou a partir de uma politização geral e de ações coletivas de solidariedade e esforços
de auto-organização resultantes de décadas que deram base à singularidade do movimento dos traba-
lhadores na Argentina” (ALMEYrA, 2004, p. 135).
53 Sobre a emergência do movimento piqueteiro e suas metodologias de luta ver a Nota 16 da página 14.
54 Os textos em itálico se referem a declarações durante entrevistas.

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88 A organização dialógica do Movimiento de Trabajadores Desocupados de La Matanza

que marcaram o início de sua inserção como sujeitos na história. Nas manifes-
tações, nos piquetes, começaram a construir uma nova história para si e para a
Argentina. Além de se organizarem, estes sujeitos precisavam definir como se
relacionar com os organismos governamentais e suas estratégias de manipulação,
incluindo a principal delas: a distribuição de planos sociais55 que vinha sendo re-
alizada desde meados de 1997.
Até então, os movimentos piqueteiros eram absolutamente autônomos, não
respondiam a partidos políticos, nem a sindicatos; eram parte de um processo
genuíno de auto-organização da gente que havia ficado sem trabalho e suas rei-
vindicações tinham a ver com trabalho. Tudo o que estava relacionado com o
trabalho como forma de vida. Sozinhos, organizados por bairros, os movimentos
tinham peso local, mas nos organizamos mais e tínhamos peso de município e
estava bem, mas quando começaram a se organizar a partir dos sindicatos, das
correntes políticas, por exemplo, pela Corriente Combativa y Clasista, pela Fede-
ración de Tierra y Vivienda, chegaram a um caráter nacional e isso foi positivo,
mas ao mesmo tempo perderam tudo que tinham de autonomia porque as corren-
tes nacionais começaram a ditar a política e começou a se formar um novo Mo-
vimento, diferente, que não se organizava, era organizado pelos de cima. Depois
começaram a ser organizados pelos planos sociais. (Toty Flores)
Os planos começaram a marcar o caminho para a domesticação dos movi-
mentos sociais e muitos não puderam romper com a lógica do assistencialismo.
A prática do clientelismo ressurgiu com força e planos sociais começaram a ser
trocados56 por votos. A organização agora era para pedir planos assistenciais,
havia planos de vários tipos, com distintos nomes, mas todos focalizados em com-
bater o tema da mobilização e da auto-organização (Toty Flores). Alguns MTDs

55 Os planos sociais são um benefício social que visa fornecer assistência alimentar mínima. Cada tra-
balhador desocupado recebia cerca 200 pesos mensais em troca de trabalhos que poderiam ser re-
alizados para melhorar seus bairros de origem (r$ 1,00 = $ 2,21 – câmbio em abril de 2010). Em
seu desenho originário, a implementação dos planos era responsabilidade do âmbito [governo] local,
alinhada com a estratégia descentralizadora que, no marco da modernização do Estado, impulsionava
a participação desse âmbito como peça chave de um novo estilo de gestão. Na prática da descentrali-
zação, os municípios começaram monopolizando tanto as decisões de seleção dos beneficiários como
as modalidades de execução dos planos. Os municípios e suas redes se impuseram como mediadores
e habilitadores entre as demandas da população e o governo provincial (DELAMAtA, 2004, p. 23).
56 “Por certo, o termo ‘troca’ tenta ocultar as condições de assimetria e controle hierárquico e vertical
nas quais se inscreve a relação. Os ‘clientes’, de fato, têm poucas opções” (MAzzEO, 2007, p. 169), pois
é uma relação “que se assenta na vulnerabilidade social, na supressão dos laços sociais, na carência,
na desinformação e na precariedade e os reproduz como forma de perpetuar a posição dos chefes
políticos em todos os níveis. Para garantir a não interferência dos subalternos no processo decisório”
(MAzzEO, 2007, p, 172).

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Organização e Práxis Libertadora 89

gerenciaram57 os planos sociais para construir hortas coletivas e restaurantes co-


munitários de modo a garantir, pelo menos, a satisfação das necessidades básicas;
outros criaram redes de pequenas fábricas, padarias, confecção etc.. De modo
geral, produziam no próprio bairro e a gestão dos empreendimentos se dava, so-
bretudo, através de práticas organizacionais horizontais (DI FIORI, 2003).
A distribuição de planos sociais, em uma perspectiva freireana, faz parte das
estratégias dos conquistadores que buscam manter o status quo, pois sabem que
à medida que os sujeitos mudam a percepção de si mesmos, do mundo em que
estão e com quem estão, também alteram a percepção da realidade, ou seja, a sua
visão do mundo começa a ser questionada. “Sendo os homens seres em situação,
se encontram enraizados em condições tempo-espaciais que os marcam e a que eles
igualmente marcam, sua tendência é refletir sobre sua própria situacionalidade, na
medida em que, desafiados por ela, agem sobre ela” (FREIRE, 2005, p. 118).
A distribuição e consequente aceitação pelos MTDs dos planos sociais foi
uma espécie de interpelação ao processo de desvelamento da realidade, obstaculi-
zando o potencial criativo do ser humano.
O MTD La Matanza constitui um caso singular entre os MTDs da Argen-
tina, exatamente porque não aceitou os planos sociais. Até então, seu caminho era
similar aos demais. Essa decisão deu novos rumos a esse MTD e ao seu processo
organizacional. Rechaçaram os planos por considerá-los ferramentas de domina-
ção e de domesticação que os institucionalizariam como pobres, sem outro destino
que o de dependentes do aparelho estatal.
Esta percepção e decisão não se deu em uma práxis solitária. Foi com as
Mães da Praça de Maio58, que compartilhavam seu saber e experiência com aque-
les que davam os primeiros passos rumo à auto-organização, que aprenderam que
os planos os colocariam mais uma vez na condição de dependentes, impondo a
cultura da sobrevivência. De acordo com Soledad Bordegaray, membro do MTD

57 Inicialmente, as pessoas recebiam os planos sociais independentemente de sua vinculação aos MtDs,
mas logo a seguir os planos eram recebidos por representantes oficiais dos municípios - prefeituras
- ou por ‘líderes’ dos Movimentos, que os distribuíam.
58 Flores (2006) afirma que ao anúncio do governo de que os trabalhadores receberiam planos sociais, a
comemoração foi grande e muitos foram procurar as Mães da Praça de Maio para contar sua vitória.
Porém, segundo o autor, as Mães, um pouco exaltadas, começaram a dizer que não havia êxito em
obter planos sociais, que não era verdade que eles tinham ‘arrancado’ do governo esses planos sociais
com suas manifestações. O que estes planos impunham era a cultura da sobrevivência, a dependência
do Estado mais uma vez. A luta, de fato, se os planos sociais fossem aceitos, teria sido em vão. De
acordo com toty Flores, “no primeiro momento, todos se entreolharam. Alguns tentaram argumentar,
outros apenas ouviram e muitos foram embora. Alguns, muito contrariados, nunca mais voltaram à
casa das Mães; mas nós seguimos indo e participando durante os anos seguintes das atividades para
organizar as atividades das Mães [...] Seguimos aprendendo”.

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90 A organização dialógica do Movimiento de Trabajadores Desocupados de La Matanza

La Matanza, foi uma escolha de longo prazo. Começamos a nos reconstruir. Foi
o ano mais duro da nossa construção. Os companheiros se dispersaram e houve
muita discussão interna. Então, começamos por organizar o nosso próprio núcleo.
Ao problematizar a realidade, em diálogo com as Mães da Praça de Maio,
o grupo se reorganizou, se fortaleceu internamente ao começar a desmitificar a
realidade e se descobriu com possibilidades de interferir no futuro através de uma
ação que pressupunha, a priori, união e auto-organização. Não há como precisar
o momento que veio antes e o que veio depois, somente se sabe da necessidade
do encontro dialógico como ponto de partida. A mudança na percepção da rea-
lidade pode dar-se antes da transformação desta, mas não se empresta ao termo
‘antes’ a significação de uma dimensão estagnada do tempo. O antes, como no
caso desses trabalhadores, não significa um momento anterior separado de outro
por uma fronteira rígida, pelo contrário, faz parte do processo de transformação.
Mas é possível afirmar que foi a mudança na percepção da realidade que levou
ao rechaço dos planos sociais e à apropriação e inserção no contexto de modo
consciente, não manipulado, organizado. A importância de perceber a realidade
de modo diferente está em que a compreensão de algo corresponde, cedo ou tarde,
a uma ação. Isto é, o não aos planos sociais é parte constituinte fundamental do
processo da organização dialógica MTD La Matanza.
No início do MTD La Matanza, como afirma Jorge Lasarte, um dos seus
membros, nos juntamos por causa de problemas no bairro. Não podíamos pagar
a conta de luz, de água. Cerca de 80% do bairro tinha esses problemas. Estáva-
mos desocupados. Por esse motivo começaram os encontros na casa de Toty Flo-
res, aos domingos, com os moradores do bairro e amigos da época do trabalho. De
acordo com Flores, alguns já haviam perdido o trabalho, outros não. As primeiras
reuniões eram de muita angústia. Cada um contava o que lhe passava e, ao não
ter soluções, era terrível. Ficávamos muito mal. Na crise, o Governo eximiu os
empresários de pagar impostos para que dessem trabalho e também os bancos,
mas os trabalhadores não foram eximidos de nada. Tinham que seguir pagando
tudo [...]. Assim, no início, compartilhávamos pequenos trabalhos; trabalháva-
mos a terra porque nos parecia que se podia solucionar o problema da fome
no bairro com algumas hortas comunitárias e fazendo alguns empreendimentos.
Seguíamos com as reuniões e o primeiro grande resultado foi a descoberta que o
problema não era a luz ou o gás, mas a falta de trabalho. A partir daí as reuniões
giraram em torno desse tema e decidimos constituir-nos como uma organização
de desocupados, o MTD La Matanza. Jorge Lasarte ainda lembra que quando nos

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Organização e Práxis Libertadora 91

demos conta que a desocupação era um fenômeno mundial, nós deixamos de nos
sentir culpados por perder o trabalho e a sensação de fracasso diminuiu, então
começamos a pensar em outro tipo de trabalho, para o bairro, porque em La Ma-
tanza há muito trabalho a ser feito, muito problema para solucionar. Mas é outro
tipo de trabalho, aquele que é pilar da liberdade, junto com a educação.
Além do diálogo que desperta a consciência crítica, e do testemunho que é
uma das características principais do caráter cultural e pedagógico da ação dialó-
gica, ainda se observa em cada pessoa, ao contar a história do MTD e relembrar
suas descobertas, a necessidade de se reafirmar como sujeito da história. Cada
fala realiza uma análise crítica da própria realidade, o ontem e o hoje, mostrando
as possibilidades de sujeitos que problematizando a realidade descobriram que
poderiam mudá-la. Pessoas que, atuando em co-laboração, mostram que não há
reino do definitivo, do pronto e do acabado. Na perspectiva freireana, esse é o
momento em que o sujeito deixa de mirar a realidade e começa a ad-mirá-la,
percebendo sua real construção para, então, imaginar seu viável histórico59. Essa
atitude implica um adentramento crítico e um posicionamento ativo na realidade;
implica em optar por uma mudança que tem a organização dialógica como meio
para alterar o que ad-mira.
Os encontros eram, e ainda são, marcados por diálogos fluidos. De acordo
com Jorge Lasarte, era uma coisa absolutamente diferente, uma novidade. Todo
mundo participava na discussão, mas o que tinha de interessante era que os com-
panheiros estavam dispostos a modificar o que pensavam e a reunião terminava
com um acordo. Nem maioria, nem minoria, era um acordo em consenso e, às
vezes, não. Depois seguia a discussão na próxima reunião ou no transcurso da
semana se resolvia [...]. Não era algo que alguém dizia: bom, agora vamos fazer
tal coisa e os demais faziam. Não, tudo se discutia. [...] às vezes as vozes se le-
vantavam, mas depois da reunião ficava tudo bem porque havíamos concordado
de alguma maneira, mesmo que fosse que não concordávamos.
Esses foram os primeiros passos para começar a ‘pronunciar’ o mundo, agir
e refletir sobre a ação. Os membros do MTD La Matanza começaram a deixar a
acomodação no mundo, o ajustamento que os submetia às prescrições alheias e
minimizavam suas decisões; iniciaram sua integração ao mundo como sujeitos
com capacidade de transformá-lo na medida em que iam descobrindo que podiam

59 O viável histórico é a esperança concretizada, é o inédito-viável que, alcançado, transformado em rea-


lidade, em viável histórico, faz brotar outros inéditos-viáveis, uma vez que os sujeitos percebem que é
possível transformar sonhos em realidade concreta (FrEIrE, 2005)

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optar e decidir60, posto que a capacidade de integração se aperfeiçoa à medida que


a consciência se torna crítica. Nesse sentido, desde as primeiras reuniões, a ação
dos sujeitos se efetivava na direção da integração através de um processo dialógi-
co, que tem como característica o desvelamento da realidade de modo que possam
conhecer o sistema de forças para atuar nele. É um tipo de ação cultural onde não
há invasores, há diálogo, fazendo, portanto, da ação, instrumento de superação da
própria cultura alienante. É um processo organizacional cujas práticas se baseiam
na horizontalidade, a começar pelas reuniões, cujo processo será abordado na se-
qüência, que são características desse MTD desde seu nascimento.
Segundo os membros do MTD La Matanza, inicialmente, o maior proble-
ma desse tipo de organização é o sujeito enfrentar-se a si mesmo e construir-se
no coletivo, visualizar-se como parte de um grupo dominado e entender que sua
situação é conseqüência de um sistema excludente. Este é o primeiro passo, pois
a culpa individualizada inviabiliza a organização e impulsiona o sujeito a buscar
soluções paliativas. O segundo problema é o medo que imobiliza, medo da derro-
ta, pois já foram derrotados em vários terrenos: no campo econômico, no campo
político, no campo ideológico e, inclusive, no campo moral. A combinação culpa
e medo, segundo Toty Flores (2005), dificulta a formulação de respostas criativas
aos próprios problemas. Tais problemas, segundo os membros desse MTD, foram
combatidos com política e com auto-organização, embora salientem que foi um
processo lento e ainda em contínua reafirmação, uma vez que este MTD não está
fechado a novos membros.

A melhor maneira de mostrar para nós mesmos e aos companheiros


que era possível outro modo de vida e que podíamos superar o estigma
de derrotados e recompor a auto-estima foi provar para o grupo que
tínhamos capacidade de produzir. Começamos, então, a produzir pão.
Enquanto o Estado dava padarias aos movimentos sociais e nenhuma
capacitação e essas faliam rapidamente, gerando mais frustração e de-
monstrando várias vezes a incapacidade dos trabalhadores de sustentar
um empreendimento, nós construímos um forno a lenha e começamos
a nossa padaria, sem qualquer recurso que não fosse dos membros do

60 “Uma das grandes, se não a maior tragédia do homem moderno, [...] está em que vem sendo expulso
da órbita das decisões. As tarefas do seu tempo não são captadas pelo homem simples, mas a ele
apresentadas por uma ‘elite’ que as interpreta e lhas entrega em forma de receita, de prescrição a ser
seguida. E, quando julga que se salva seguindo as prescrições, [...] é domesticado e acomodado: já não
é sujeito. rebaixa-se a puro objeto. Coisifica-se.” (FrEIrE, 2005, p. 51)

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MTD La Matanza. Primeiro, demonstramos que éramos capazes de vi-


ver sem o assistencialismo do governo. Perdemos muita farinha, mas
aprendemos. Um de nós já havia trabalhado como ajudante de padeiro.
Fazíamos pão e vendíamos no bairro. Quebramos um montão de vezes,
por distintos motivos, mas no outro dia voltávamos e tínhamos um novo
aprendizado. Um dia descobrimos que não tínhamos as ferramentas de
gestão. Não é o mesmo que não ter o maquinário para fazer pão. Não
sabíamos construir o preço, nem o que era ponto de equilíbrio. Foi um
processo longo onde fomos descobrindo que não era fácil trabalhar o
espaço da gestão. Primeiro tivemos que nos construir também nesse es-
paço onde tudo era totalmente oculto e por isso quebrávamos com tanta
facilidade. (Soledad Bordegaray)

O objetivo do MTD La Matanza era que as pessoas mostrassem a si mes-


mas que poderiam superar as condições socialmente criadas, superar sua condição
de ‘quase-coisas’, onde só poderiam assumir um papel de objeto em uma rela-
ção de dependência. Em lugar de seguirem os esquemas prescritos pelo Governo,
auto-organizados criaram juntos os caminhos de sua ação e dessa forma renasce-
ram num novo saber e numa nova ação. Um processo desse porte, na abordagem
freireana, só é sustentado por relações estabelecidas entre os sujeitos no coletivo.
Nesse caso, a aprendizagem que se dá na prática organizacional fortalece a relação
dialógica existente e contribui positivamente para que o sujeito vá sendo o artífice
de sua formação com a ajuda necessária de outros sujeitos.
A autogestão é um caminho incerto, porque em geral aquele que toma esse
caminho não se preparou para isso, para gerir, então, vai aprendendo, vai apren-
dendo no caminho e descobrindo que também existem respostas criativas que
não são respostas dos livros (Soledad Bordegaray). Nessa relação, o papel de um
sujeito na formação do outro é estar “atento à difícil passagem ou caminhada da
heteronomia para a autonomia, atento à responsabilidade da sua presença que tan-
to pode ser auxiliadora como pode virar perturbadora da busca inquieta do outro”
(FREIRE, 1997, p. 42).
Além de superar os conflitos inerentes a um coletivo, segundo Soledad
Bordegaray, quando a relação era com outras organizações, com outros MTDs,
por exemplo, de modo geral, assumir a postura defendida pelo MTD La Matanza
significou um distanciamento e falta de apoio além das fronteiras do bairro onde
moravam. Porém, a relação dialógica entre os membros desse MTD e com a As-
sociação das Mães da Praça de Maio foi fundamental para a manutenção do seu
posicionamento político-organizacional.

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No seu processo organizacional, segundo Toty Flores, a aprendizagem em


co-laboração com as Mães da Praça de Maio foi ímpar, pois os sujeitos que com-
punham o Movimento começaram a perceber novas possibilidades. Seu primeiro
trabalho territorial foi criar um Centro Comunitário no bairro La Juanita com a
ajuda das Mães. Mas também colaboraram com as atividades delas, ajudando na
construção da Universidade Popular das Mães da Praça de Maio. Essa atitude
contribuiu ainda de outra maneira: tornou visível o MTD La Matanza como nunca
haviam imaginado. O Trabalho em co-laboração com as Mães da Praça de Maio,
resultado da confiança estabelecida entre as organizações, apresentou-se como
uma relação de trocas singular.

O Centro Comunitário do bairro se encheu de pensamento; muitas pes-


soas vinham falar na rádio comunitária do Centro; importantes pensa-
dores comprometidos com a causa popular vinham e ficavam para par-
ticipar das conversas de domingo e compartilhamos seus saberes. Pela
primeira vez incorporei conscientemente a necessidade da coerência en-
tre o pensar, o sentir e o fazer. Desde então, assumimos o compromisso
de incorporar a ‘pedagogia do oprimido’ em cada ato educativo do nosso
movimento. (FLORES, 2005, p. 34)

Em 1999, devido à situação na qual se encontravam vários membros do


grupo, começamos a pensar em desenvolver um projeto mais concreto. Assim, as
discussões passaram a ser mais pontuadas em torno da questão de buscar manter
a própria sustentabilidade (Jorge Lasarte). Muitas ideias foram discutidas, até que
as pessoas começaram a pensar possibilidades que pudessem viabilizar dentro do
próprio bairro. Realizaram feiras de gêneros alimentícios e vestuários, principal-
mente, para trocar produtos, três vezes por semana, bem como o plantio coletivo
de hortas. Entretanto, as ideias não prosperaram por falta de organização entre
as pessoas. Não sabíamos como nos organizar coletivamente para viver de um
empreendimento (Jorge Lasarte). A prática de organização se reduzia às reuniões.

Decidimos, então, voltar nosso esforço para a busca de alianças com


quem teria o ‘poder do conhecimento teórico’ e nos atribuímos a tarefa
de visitar e de nos aproximar das universidades. [...] Os jovens nos per-
guntavam de tudo, o que nos surpreendeu muitíssimo, pois na realidade,
nós queríamos que eles respondessem nossas dúvidas. Então, nos demos
conta que nos movimentos sociais também há saberes, que não os de-
senvolvemos porque a cultura nos ensina que quem está acima sabe e os

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demais não. [...] Tínhamos medo de levar lá nossas discussões, que eram
muito emotivas e porque também sabíamos que dizíamos muita coisa
errada. Porém, fomos às faculdades, participamos de alguns seminários,
conversas, debates etc., e isso nos animou bastante porque vimos que
também nos claustros acadêmicos se diz muita bobagem, com a diferen-
ça que as dizem com nível. (FLORES, 2005, p. 16 e 21)

Nessa prática organizacional, na formação de alianças, que se dá na co-la-


boração, o sujeito aprende com outro sem que haja um processo de subordinação.
No coletivo, ao co-laborar, re-elaboram o mundo e, ao reconstruí-lo, percebem
que também são construídos por ele e, reflexivamente, retomam o movimento da
consciência que os constitui sujeitos na construção histórica.
Nessa etapa, quando a relação acontece com outros coletivos, como indi-
ca a perspectiva freireana, foi importante escolher líderes entre os membros da
organização. Mas uma liderança que encontra sua força no poder do grupo, cujo
trabalho reforça e organiza esse poder na própria unidade do grupo. Os líderes
são porta-vozes do grupo. Nas suas apresentações ou reuniões com outras orga-
nizações foi possível observar o respeito à decisão do outro, mas sem deixar de
apresentar-se declarando o posicionamento político do MTD La Matanza.
Segundo Toty Flores, durante o período que trabalharam com as Mães da
Praça de Maio, iniciaram uma aproximação com outros coletivos: no início, foram di-
fíceis as discussões com as organizações. Segundo Soledad Bordegaray, algumas
compartilharam seus conhecimentos para fortalecer-nos, para enriquecer nossa
prática. Não foi fácil para elas, nem para nós. Construir na diversidade de crité-
rios, de estratégias, de códigos e às vezes, até de objetivos, é um desafio. É uma
prática que fortalece o grupo, pois uma vez que conhecem o sistema de forças que
enfrentam podem “ter uma compreensão clara das relações entre tática e estraté-
gia, nem sempre, infelizmente, seriamente consideradas” (FREIRE, 1984, p. 41),
mas imprescindíveis para que os membros do MTD possam dar continuidade ao
tipo de ação cultural que lhes fortalece, impedindo a invasão cultural, mesmo nas
relações entre atores com diferentes posicionamentos políticos.
Nas nossas práticas com outras pessoas de fora do MTD, por exemplo,
temos que explicar para um técnico que não queremos amortizar uma máquina e
ele não entende. Ganhamos a máquina, não gastamos. Mas para um capitalista,
ainda que lhe dêem de presente a máquina, ela tem que ser amortizada. É muito
difícil discutir isso com um administrador de empresas porque são convenções e
convencer o outro que as convenções foram estabelecidas pelos homens e que a

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decisão dos homens pode mudá-la, que toda economia é uma convenção, não
é uma coisa natural, que o tempo e o dinheiro são todas coisas convencio-
nadas estabelecidas pelo ser humano, é difícil. Os limites, na realidade, são
poucos, a vida e a morte, a natureza e seus elementos, esses são os limites
que não se pode transcender. Todos os demais são convenções e temos que
dizer às pessoas que podemos modificar o sistema porque ele não é natural,
não é natural que se acumule quantidades impressionantes de riqueza, e que
existam pobres. Não é natural pensar que não pode existir um mundo de outra
maneira. [...] a nós, serve a capacitação dos técnicos, mas são discutidas,
não são tomadas de joelhos, não se lêem os livros de joelhos, aqui dentro se
confronta. O papel pode dizer isso, mas não é verdade. Aqui, de verdade, de
verdade, não podemos amortizar uma máquina que nos foi presenteada. (So-
ledad Bordegaray)
Até 2001, os membros do MTD La Matanza dedicaram-se à formação de
alianças com o objetivo principal de aprender a se organizar para manter um
empreendimento61 que viabilizasse a sustentabilidade do grupo. O primeiro
grande resultado das alianças e discussões entre os membros do próprio MTD,
a que todos se referem, foi a elaboração de um plano, cujo foco estava na edu-
cação e na tomada de consciência que as mudanças que almejavam deveriam
ter início no local onde moravam. O objetivo não era somente aprender a gerir
o Movimento e os empreendimentos, mas entender a gestão e compreender
a organização como um meio para atingir os objetivos do MTD La Matanza.
O plano fazia parte do processo de criação de uma cooperativa de traba-
lho cujo principal objetivo era criar uma escola do próprio MTD, que atendes-
se toda a comunidade do bairro. A escola seria mantida por essa cooperativa. A
partir de então, “voltaram o olhar” para La Matanza e começaram a construir
e transformar a partir do bairro.
Paulo Freire já havia assinalado que toda revolução, se for autêntica, é tam-
bém uma revolução cultural, pois pretende superar as contradições antagôni-
cas para a libertação humana, mas não se pode anunciar a nova realidade sem

61 A lógica fundamental desses empreendimentos é baseada nos seguintes critérios: manter a fonte de
renda, a auto-sustentação e, por conseguinte, das respectivas famílias, bem como a solidariedade
para com a comunidade do bairro La Juanita, a priori. Por exemplo: em um determinado período, o
saco de farinha de trigo aumentou tanto em menos de um ano que o quilo de pão passou de 1,20 pesos
para 3,00 pesos nas padarias do bairro La Juanita. Como na Panaderia La Masa Crítica – nome da
padaria do MtDs’S La Matanza - trabalhavam somente duas pessoas, elas decidiram que poderiam
manter os preços anteriores, embora isso acarretasse diminuição na sua renda. A decisão daquele
empreendimento foi levada para reunião, apoiada por todos, e o preço foi mantido.

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ter um projeto que possa ser viabilizado na práxis daqueles que o sonharam.
A escola do MTD La Matanza era um projeto no sentido político-pedagógico,
que se tornou a esperança concretizada e viabilizada dia a dia na práxis.
A seguir, os membros do MTD providenciaram cursos e seminários,
com o objetivo de oferecer aos vizinhos e a si mesmos a capacitação que per-
mitisse o surgimento de projetos de autogestão comunitária e a formação de
uma cultura organizacional baseada na cooperação. Tais ações eram parte de
uma estratégia que levaria à produção de mudanças qualitativas na concepção
do político e social, pelo menos na comunidade. Tratou-se, na perspectiva frei-
reana, de uma ação cultural dialógica, incluindo não apenas os membros da or-
ganização, mas da sociedade, a começar pela comunidade da qual fazem parte.
Segundo Toty Flores, muitas pessoas queriam conhecer, inclusive cola-
borar, com a concretização dos planos do MTD La Matanza. A partir de então,
o grupo, que começou a se concretizar após a renúncia aos planos sociais,
passou a revitalizar seus projetos. Todavia, ainda faltava o espaço físico e a
formalização jurídica. Decidiram, primeiro, procurar um espaço maior que pu-
desse comportar os empreendimentos que já vinham desenvolvendo no Centro
Comunitário. Na época, uma serigrafia, uma pequena confecção e uma editora
que já havia publicado dois livros relacionados à história do Movimento, seus
encontros e desencontros: 1º Foro Social Mundial: desde los desocupados e
De la culpa a la autogestión: un recorrido del Movimiento de Trabajadores
Desocupados de La Matanza, organizados por Toty Flores.
Procuraram um local no próprio bairro e decidiram pela ocupação do
prédio de uma antiga escola privada fechada devido à crise econômica. Assim,
no dia 16 de setembro, ocuparam o prédio situado na Rua Juan B. Justo, 4650,
no bairro La Juanita. Nós tínhamos um centro comunitário pequeno, perto
daqui, e sempre víamos esta escola e dizíamos: não pode ser, nós temos um
projeto [...]e este espaço vazio aí. Tomamos a escola e apresentamos o projeto
que tínhamos em vários lugares e o único que nos deu bola foi o Instituto Mo-
vilizador de Fondos Cooperativos62 (Sílvia Flores, membro do MTD).

62 É uma federação de cooperativas fundada em 1958 na cidade de rosário, república Argentina, cujos
objetivos são: difundir teórica e empiricamente a prática da cooperação, promover a criação de novas
cooperativas, colaborar com sua organização e fomentar o desenvolvimento de uma cultura contra he-
gemônica através da criação do Centro Cultural de la Cooperación que, através da aliança com outras
organizações, pode oferecer crédito. http://www.imfc.coop/modules/home/ e http://www.unaargen-
tinasolidaria.org/article91.html .

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Dedicavam-se, então, aos empreendimentos63 que já vinham desenvolven-


do, agora formalmente, de modo que no longo prazo, também pudessem sustentar
a escola que pretendiam criar. É importante salientar que, apesar da organização
formal dos empreendimentos, continuaram presentes duas lógicas fundamentais
no coletivo do MTD La Matanza: a estrutura da demora e a aprendizagem, ou seja,
há que se aprender a ter paciência para ver as mudanças (Toty Flores). Todos
aqueles que são imediatistas e impacientes só são escolhidos para executar deter-
minada tarefa se não há outras pessoas que se candidatem para tanto.
Os membros do MTD não fizeram os chamados treinamentos de líderes
para aprender a ser líderes, ao contrário, aprenderam no próprio processo de auto-
-organização, em um quefazer dialógico. Mas não se esquivaram tampouco de
conhecer profissionais que poderiam colaborar com sua aprendizagem. Alguns
fizeram cursos na Universidade Popular das Mães da Praça de Maio, outros em or-
ganizações empresariais e não-empresariais que ofereciam cursos de capacitação
onde aproveitavam para descobrir novas metodologias e instrumentos de gestão.
Essas aprendizagens, como foram observadas durante o período de pesquisa, são
compartilhadas em reuniões planejadas com esse objetivo. Aos sábados, pelo me-
nos duas vezes por mês, convidam um palestrante para discorrer sobre determina-
do tema importante para a organização. O seminário é aberto a todos os membros
da comunidade. Após ou mesmo durante a apresentação dos palestrantes, as pes-
soas interrogam e discutem. Via de regra, após a saída do palestrante, as pessoas
discutem o que foi falado e, principalmente, sistematizam o que podem apropriar:
palavras novas, técnicas de gestão etc. Alguns saberes são agregados, outros não
e, de forma muito clara, discutem porque determinada prática de gestão não pode
ser adotada, como o controle de entrada e saída dos membros do MTD, o funcio-
namento em três turnos ou a terceirização para aumentar a produtividade.
“A educação e o trabalho que esse MTD propõe têm uma forte modificação
na metodologia com que são levados adiante. O MTD La Matanza crê que no
trabalho, assim como na educação, o que deve ser modificado são as relações
de poder. Considera ainda que a educação e a produção são coisas indissolúveis
para a formação de sujeitos de direito” ( LASARTE, 2007, p. 5). Assim, com

63 “Começamos com os empreendimentos produtivos de padaria [forno de barro], oficinas de capacitação


para a criação de uma linha de indumentárias [em colaboração com designers locais], com a oficina
de serigrafia [foram recebidas algumas doações], abrimos a biblioteca. Com o Departamento de Edu-
cación del Centro Cultural de la Cooperación fizemos uma oficina de formação em Educação Popular
e começamos a elaboração de um plano de ação com o objetivo de abrir a escola em 2004” (FLOrES,
2005, p. 43).

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a convicção da indissociabilidade entre educação e trabalho e de que poderiam


concretizar a escola que planejaram, buscaram alianças com a comunidade, de
modo que essa pudesse participar ativamente da formatação e concretização
da escola. O que só reafirma a dialogicidade dessa organização que, através da
síntese cultural, privilegia a criatividade e a busca de soluções na própria co-
munidade, bem como seu envolvimento no desenvolvimento desta, em lugar de
esquemas prescritos.
Importante destacar que as pessoas, no MTD La Matanza se referem às
suas atividades como produtivas ou educativas. As atividades que fazem parte do
que denominam de complexo produtivo são a padaria, a confecção, a serigrafia
e a editora. Do complexo educativo fazem parte as atividades de teatro, a escola,
educação para jovens e adultos, o ensino técnico. Cada um desses complexos tem
um coordenador geral e cada empreendimento um coordenador, além dos coorde-
nadores administrativos que cuidam dos assuntos da comunidade. A presença dos
coordenadores é uma constante nas reuniões, desde aquelas agendadas para tratar
da definição das estratégias da Cooperativa para o semestre seguinte, até aquelas
para discutir temas tão singelos como quem vai ficar com uma camisa64. Há tam-
bém reuniões por empreendimentos ou por atividades65.
Normalmente, as reuniões começam com conversas informais que conso-
mem certo tempo até que seja dado início às discussões de fato. Os coordenadores
gerais iniciam a reunião informando o conteúdo da pauta que foi definido entre
todos, ao longo da semana, de acordo com os acontecimentos. Assuntos penden-
tes, problemas de relacionamento, problemas nos empreendimentos, prestação de
contas das atividades que as pessoas ou grupos ficaram responsáveis de realizar,
definição de novas tarefas, estratégias, enfim, o que as pessoas sugeriram para
discussão. Os demais coordenadores, se têm um assunto pertinente ao empreendi-
mento pelo qual respondem ou por uma tarefa específica da qual ficaram encarre-

64 Um empresário que mantém relações com a confecção da cooperativa no dia de uma das reuniões
levou uma quantidade de camisas para dar de presente aos cooperados, algumas com o nome de
quem receberia e outras não, embora todos os coordenadores desse empreendimento tivessem suas
camisas especificadas. A quantidade não era suficiente para que todos os membros da confecção re-
cebessem uma camisa. Após a reunião, primeiro tiveram que decidir quem ficaria com as camisas que
não tinham um destinatário certo; porque um receberia e outro não. A discussão durou o dia inteiro
porque uma das cooperadas levantou a questão de que a cooperativa fala de “não exclusão”, mas que
mesmo em assuntos menores como aquele, alguns eram excluídos. Chamaram uma reunião para o
dia seguinte para tratar do assunto. Foram algumas horas até que chegassem a um acordo.
65 Por exemplo: reuniões somente do coletivo da confecção; do coletivo da escola; só de coordenadores;
do coletivo que atua mais fortemente nos problemas do bairro, como limpeza, saúde entre outros; e de
outro coletivo, cuja função é reivindicar junto aos órgãos públicos competentes a instalação de infra-
-estrutura no bairro La Juanita, com apoio da comunidade.

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gados, também informam a todos do que vão tratar. Se alguém mais quiser acres-
centar um tema para discutir com o coletivo, também o faz a qualquer momento.
Geralmente, a pessoa que inicia a reunião é a responsável por sua condução
até o fechamento. Distribui as falas, interrompe a palavra dos que tentam mono-
polizar ou que começam a tratar de assunto sem relevância para aquela sessão
ou as conversas paralelas, bem como solicita que uma pessoa discorra sobre de-
terminado tema. Embora a pessoa exerça a atividade de coordenação da reunião,
o faz com ajuda dos presentes, pois esses também solicitam silêncio aos outros,
informam que um colega está falando demais ou lembram assuntos a ser tratados.
As reuniões duram horas e, se não chegam a um acordo, marcam nova
reunião para o dia seguinte. Essa é uma das práticas mais marcantes do MTD La
Matanza: a utilização do consenso para a tomada de decisão. Assim, todos são
sabedores das decisões e estão implicados na concretização do que foi decidido;
seja manter limpa uma sala ou trabalhar mais para ampliar a escola, uma vez que
é parte dos ganhos da Cooperativa que a mantém. Normalmente, muitas pessoas
fazem anotações durante as sessões, mas uma delas, geralmente um dos coordena-
dores, e nunca quem conduz a reunião, é chamado a fazer a leitura das anotações.
A partir dali, começam a debater novamente e, então, elaboram uma proposta para
resolver os problemas discutidos. Às vezes, são retomadas as anotações e acres-
centadas outras. Algumas vezes param e retomam no dia seguinte. Depende da
demanda de trabalho da Cooperativa. Do início ao encerramento de determinado
assunto podem se passar dias. Um exemplo de como os assuntos são tratados é
apresentado a seguir.
O preço das camisas que exportam estava alto em comparação com outras
do mesmo padrão que são vendidas na Europa. Na primeira reunião os mem-
bros do MTD discutiram os parâmetros desse preço. Mesmo aqueles sujeitos que
não trabalham na confecção. A princípio, foram consideradas várias explicações:
preço dos fornecedores, preço da hora trabalhada, falta de máquinas, ritmo de
trabalho, retrabalho, entre outros. A cada sugestão e, dependendo dos membros do
MTD que estivessem presentes, passavam horas discutindo, pois alguns são mais
insistentes do que outros no que diz respeito ao detalhamento de cada possível
motivo que explicasse o preço das camisas. Foram alguns dias de discussão, até
que convidaram a pessoa que trata diretamente com o comprador na Itália para ex-
plicar a composição do preço. Em meio a apresentações da composição do preço
das camisas, muitos gráficos que explicavam que cada atraso significava aumento
no preço do produto para o comprador final, uma vez que ao invés de enviar as

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encomendas via marítima (5% do preço da camisa), teriam que enviar via aérea
(17% do preço da camisa), muitas anotações, mais perguntas e comentários, entre
todos, que parar muitas vezes significava preço mais alto e conversas descontra-
ídas e agendamento de outra reunião para discutir o que tinha sido apresentado.
Foram alguns dias! Várias reuniões depois, decidiram que cada um iria anotar em
uma ficha a sua produção diária e cada pessoa ficaria responsável por verificar,
ela mesma, junto com a coordenadora, como estava seu ritmo de trabalho. Algu-
mas ficavam até mais tarde ou chegavam mais cedo para ajudar as companheiras
quando constatavam que a produção de uma ou de outra estava mais baixa que a
da maioria, outras cumpriam somente seu horário de trabalho. Decidiram, assim,
o que seria bom para todos.
O mais importante na produtividade do trabalho não é a forma ou o méto-
do, mas o objetivo. A produtividade do trabalho tem a ver com uma questão cultu-
ral e nós entendemos que não precisamos trabalhar 12 horas por dia. Temos que
trabalhar no máximo 8 horas para que tenhamos liberdade de estar com a família
para que possamos nos desenvolver de maneira certa (Toty Flores). Sabemos que
estamos dentro de um sistema capitalista e convivemos com esse sistema perma-
nentemente, mas temos que ter autonomia na cabeça, autonomia e autogestão
política. Nós fazemos nossa política e decidimos produzir para vender e exportar
e estamos aprendendo a conviver com isso dia a dia nesse coletivo. Nós mesmos
autogestionamos nossa capacidade, mas estamos em permanente contato com
a heterogestão. Há por aqui muitos técnicos ajudando e aportando suas ideias
e conhecimento, mas sempre em tensão com nossa ideia de produtividade. Não
queremos três turnos, mas eles não entendem porque escolhemos esse caminho,
mas vamos seguindo (Soledad Bordegaray).
Às vezes, se necessário, quando o assunto é urgente e diz respeito a um
dos empreendimentos da Cooperativa, é o coordenador do empreendimento, com
apoio da Comissão Diretiva que toma a decisão. Um desses casos: o fornecedor
dos “cortes” com os quais a confecção do MTD La Matanza faz as camisas que a
Cooperativa exporta perdeu o principal cortador para outra organização. O forne-
cedor é uma empresa recuperada66 que, junto com o MTD La Matanza, financiou
o treinamento de duas pessoas para esse tipo de corte. Uma pessoa da empresa

66 Com a crise dos anos 1990, caracterizada por processos de desindustrialização, reestruturação produ-
tiva e financeirização da América Latina, muitas empresas foram fechadas, tiveram a falência decreta-
da por seus proprietários. Em inúmeros casos ocorreu foram ocupadas, tomadas ou arrendadas pelos
trabalhadores, ou seja, se tornaram empresas recuperadas pelos trabalhadores.

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recuperada e outra do MTD, que, coincidentemente, era uma das coordenadoras


da confecção do Movimento. A Comissão Diretiva decidiu, com a anuência dessa
coordenadora, que ela iria trabalhar durante uns dias na empresa recuperada até
resolverem o problema. Os outros membros do MTD La Matanza foram chama-
dos para uma reunião no mesmo dia e depois de Toty Flores relatar o fato, co-
municou a decisão que haviam tomado. Não houve problemas associados a esse
encaminhamento.
Acerca desse tipo de decisão, tomada sem a anuência imediata de todos, tal
como na teoria da ação dialógica, o líder responde por ela diante do coletivo, pois
a liderança é constituída através da delegação e, portanto, não pode haver antago-
nismo entre essa liderança e aqueles que lhe delegaram autoridade. Ainda assim,
como assinala Paulo Freire, há o cuidado para que decisões não sejam tomadas
sem a presença de todos os membros do Movimento. No quefazer dialógico há
lugar para liderança, mas os líderes não são proprietários da organização ou se-
nhores do processo organizacional, são representantes da vontade do coletivo.
O que não pode acontecer na organizaçao dialógica é a divisão entre a liderança
e aqueles que representa. Isso não significa diminuição de sua responsabilidade
coordenadora e, em certos momentos, diretora. Implica, isto sim, em não ter os
outros objeto de sua posse. É pressuposto, nesse tipo de liderança, a dialogicidade
como prática da liberdade.
Depois que as decisões são tomadas, cada coordenador é responsável pe-
las atividades do empreendimento pelo qual responde e, conseqüentemente, pelas
atividades das pessoas que coordena e essas responsáveis por suas tarefas. Isto
é, há co-responsabilidade na tomada de decisão e na execução das tarefas, pois o
coletivo responde ao sujeito e o sujeito responde ao coletivo. É uma luta diária
para todo mundo ser responsável por sua atividade[...] Tem que ter paciência.
Demora, mesmo. Foi muito tempo só obedecendo. Deve precisar de muito tempo
para aprender a decidir. [...] Assim, ficar cobrando que as tarefas sejam realiza-
das é uma das atividades do coordenador (Toty Flores).
É importante ressaltar, ainda, que as atividades de coordenação não são
exclusivas. São realizadas por alguém com alguma função específica no empre-
endimento. A realização das tarefas específicas, por sua vez, depende de cada
empreendimento e de como as pessoas se ajustam entre si. Para a confecção, por
exemplo, selecionar novos profissionais não é tarefa exclusiva da coordenadora.
Qualquer costureira pode passar o dia acompanhando uma candidata e, ao final,
mostrar para as outras o seu trabalho. Então, decidem se a candidata pode ficar

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Organização e Práxis Libertadora 103

ou não. Em outros casos, quando não há urgência, podem treinar uma pessoa.
O mesmo acontece nos outros empreendimentos.
Uma prática importante do MTD La Matanza, como já foi destacado, é con-
tar a própria história. A cada reunião são reforçados os princípios e valores com os
quais começaram, como a solidariedade e o trabalho coletivo. São lembrados os
primeiros passos dados e os objetivos que ainda pretendem realizar. Esta Mística67
independe da existência ou não de pessoas que estão lá pela primeira vez. Nas
conversas informais a temática também é recorrente, principalmente lembrando a
história das primeiras reuniões e das pessoas que decidiram romper com a lógica
do assistencialismo e da dependência. Os conflitos, de forma predominante, tam-
bém são resolvidos recorrendo à história da organização. Isto é, à sua história de
luta e superação de obstáculos que foram enfrentados com base na solidariedade
existente entre os membros do Movimento. Todos os conflitos são discutidos nas
reuniões, em meio a todos. Se não são resolvidos, outra reunião é chamada, exclu-
sivamente com esse fim.
Desse modo, como salienta Freire (2005, p. 79), todos se educam no diálogo
e “se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os argumentos
de autoridade já não valem”. O autor ainda ressalta que recorrer ao próprio pro-
cesso de auto-construção, de auto-conscientização, reforça nos sujeitos a certeza
de que a realidade não está dada, que é possível ser transformada através da ação
e reflexão, pela práxis e aprendizagem na organização. Assim, continuam como
sujeitos do próprio coletivo, não se tornam objetos nem se verticalizam, pois re-
fletem criticamente acerca da sua prática organizacional. Esse processo de auto-
crítica e reconhecimento do quefazer só é possível em uma organização dialógica.
Outra prática da Cooperativa diz respeito ao acompanhamento dos traba-
lhos realizados rotineiramente: as tarefas realizadas são acompanhadas pelo co-
ordenador do empreendimento e pelos próprios colegas, que podem devolver um
trabalho considerado mal feito. Inclusive um trabalho feito pelo coordenador. To-
dos analisam as tarefas de todos em cada empreendimento. Essa prática também
é motivo de conflito que leva as pessoas a saírem da Cooperativa, mas os que lá
estão acreditam que essa é a melhor maneira de fazer.
Nenhuma pessoa que trabalha em um empreendimento pode interferir na
tarefa de um cooperado de outro empreendimento. Tanto que durante o expediente

67 Sobre a Místiva ver MISOCzKY, Maria Ceci; VECChIO, rafael; MOrAES, Joysi A Mística como produtora
de sentidos na organização da luta pela terra. In: CArrIErI, Alexandre de Pádua; SArAIVA, Luiz Alex
Silva (Orgs.) Simbolismo organizacional no Brasil. São Paulo: Atlas, 2007. p. 143-160.

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104 A organização dialógica do Movimiento de Trabajadores Desocupados de La Matanza

não se observa, no local de trabalho, pessoas que ali não tenham tarefas a cumprir.
A não ser que seja convidada para tanto e com alguma tarefa específica. Outra
possibilidade ocorre durante as reuniões gerais, onde cada coordenador presta
contas do empreendimento pelo qual é responsável. Nesse momento, todos podem
interferir, pedir explicações e dar sugestões. As pessoas demoram a se acostumar
a ver seus trabalhos sendo avaliados pelos próprios colegas e não por um chefe.
Muitos não gostam disso, mas são avisados quando vêm trabalhar aqui. Quem
fica é porque gosta e depois tem que decidir se vai ser cooperado ou não. Tem
gente que também não gosta e alguns vão embora por causa disso. Também é um
processo de aprendizagem (Sílvia Flores).
É importante, portanto, reafirmar que a aprendizagem se encontra no centro
da teoria da ação dialógica formulada por Paulo Freire. Na ação dialógica, os su-
jeitos se encontram e “co-laboram com um objetivo”, ou seja, se auto-organizam
e aprendem no processo de auto-organização e se conscientizam na própria prática
organizacional. Assim, aqueles que utilizam a organização como meio e aprendi-
zagem para a práxis libertadora, rejeitam, “a prescrição e a manipulação, rejeitam
igualmente o espontaneísmo” e buscam a organização como meio para alterar o
que ad-miram (FREIRE, 1984, p. 41). Nesse sentido, nesse tipo de prática organi-
zacional há continuação do processo de conscientização crítica, de ação e reflexão
sobre a ação.

Post scriptu68
Após o término da pesquisa, continuamos em contato com os militantes
com os quais havíamos interagido durante a pesquisa no MTD, através da internet
e de visitas. Pudemos acompanhar as várias mudanças que ocorreram nos dois
últimos anos, a começar pela eleição de Toty Flores como Deputado Nacional pela
Coalición Cívica, cujos membros se declaram de centro-esquerda.
No início do processo eleitoral, os participantes do MTD La Matanza apoia-
ram a candidatura de Toty e participaram ativamente das campanhas e atividades
que, provavelmente, o levaram ao Congresso Nacional. Todavia, já em 2008, as
conversas com o membros do MTD apontavam para uma possível fragmentação.
A falta de definição ideológica, que poderia induzir a mudanças nas práticas orga-
nizacionais do Movimento, começou a ser questionada por alguns dos seus mem-
bros mais aguerridos, especialmente aqueles vinculados à confecção, à padaria, à

68 Escrito em março de 2010.

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Organização e Práxis Libertadora 105

educação de jovens e adultos e uns poucos que organizavam a feira que acontece
todos os dias na sede do MTD La Matanza.
De modo mais claro, a vinculação à Coalición Cívica subordinou o Movi-
mento a algumas de suas práticas, comprometendo a característica do MTD La
Matanza como um Movimento autônomo. Essa vinculação trouxe tanto o poder
público e suas políticas assistencialistas para o bairro La Juanita, como outras or-
ganizações com as quais o Movimento não mantinha relações cordiais.
Em setembro de 2009 aconteceram importantes mudanças. O Jardín Cre-
cer Imaginado en Libertad continua funcionando, mas as práticas organizacio-
nais da padaria e da confecção foram alteradas. Alguns de seus membros foram
“despedidos”, embora fossem cooperativados e estivessem ali desde os primeiros
tempos do MTD. A padaria passou por reformas e abriu pouco tempo depois sob
os cuidados de uma filha e um neto de Toty. A confecção teve suas atividades pra-
ticamente encerradas e também está sob os cuidados de um dos filhos de Toty. A
maioria das costureiras foi afastada ou saiu voluntariamente do MTD. As pessoas
responsáveis pela educação de jovens e adultos também tomaram a decisão de
desvincular-se do MTD La Matanza, mas não encerraram suas atividades. Na casa
de um dos facilitadores da educação de adultos, muito próxima à sede do MTD
La Matanza, continuaram as aulas e foram convocados membros desligados do
Movimento, que retomaram as aulas e reuniões com pessoas da comunidade. Atu-
almente, estão reativando uma rádio comunitária, bem como procurando parcerias
para realizar cursos de confecção a serem ministrados pelas costureiras. Enfim,
existem esforços de retomada da trajetória que deixou de existir no MTD, man-
tendo a autonomia e a convicção de que podem agir sem vínculos com partidos
políticos ou dependência do poder público.
Este registro é muito importante porque permite evidenciar duas dimen-
sões inerentes ao aspecto contraditório das relações sociais. A primeira delas é o
permanente risco de cooptação pelo sistema; a outra é a aprendizagem e a cons-
cientização presentes no processo que relatamos. Ou seja, ainda que a organização
tenha perdido as características que a definiam; o fato de que seus membros, mes-
mo que efemeramente, tenham experenciado a ação dialógica e com ela ganhado
consciência de si e do mundo não se perdeu junto. Os relatos das pessoas que se
afastaram, e que constituem a maioria do coletivo com o qual havíamos convivido
durante a realização da pesquisa, evidenciam que levam consigo, e para a cons-
trução de novas organizações e novas lutas, a aprendizagem que se produziu na
co-laboração, no diálogo e na auto-organização.

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106 A organização dialógica do Movimiento de Trabajadores Desocupados de La Matanza

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ZIBECHI, Raul. Genealogia de la revuelta - Argentina: la sociedad en movimiento. La Plata:
Letra Libre, 2003.

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Organização e Práxis Libertadora 107

Uruguai: a luta pela água


como um bem comum69

Rafael Kruter Flores

Este texto aborda o processo através do qual a população do Uruguai, ao ter


o acesso à água impedido ou dificultado, se organizou, reformou a Constituição,
expulsou empresas transnacionais, impediu novas privatizações de serviços dessa
natureza e afirmou a definição da água como um bem comum. Tratou-se de uma
luta de defesa da própria existência física, da vida, na qual valores relevantes para
toda a humanidade foram afirmados.
Essa luta se insere em um contexto mais amplo. Por um lado, a água se con-
verte em um negócio, em uma nova fronteira de expansão para empresas trans-
nacionais. Para que os lucros se realizem, segundo esta lógica, é preciso uma
articulação entre empresas - de escala suficiente para mobilizar recursos e conver-
ter a água em fonte de lucro - e processos e regras institucionalizados – especial-
mente no nível do Estado nação. Assim, para constituir este mercado se articulam
empresas transnacionais de grande porte, instituições financeiras internacionais e
governos nacionais, submetidos aos ditames dessas instituições, indispensáveis
para efetivar a privatização de serviços de água e saneamento que até então se
constituíam em monopólios públicos (KRUSE, 2005). Por outro lado, a população
que necessita da água para a produção e reprodução da vida em comunidade, ao
constatar os impactos perversos da mercantilização, se organiza e trava lutas para
que o controle público seja retomado. Um marco importante deste processo foi o
episódio que ficou conhecido como Guerra da Água, que ocorreu em 2000, em
Cochabamba (Bolívia). Lutas pelo mesmo motivo vêm ocorrendo em vários paí-
ses incluindo, além da América Latina, países da África, Ásia e mesmo da Europa.
O protagonismo dos grupos subalternos, no Uruguai, ocorreu em resposta
à apropriação da água por grupos privados e transnacionais. Em consonância com
os ditames neoliberais, foram privatizados os serviços de fornecimento de água

69 texto escrito em agosto de 2008, teve sua origem na Dissertação de Mestrado de rafael Kruter Flores
– Contra-hegemonia e a re-estatização dos serviços de água e saneamento no Uruguai e na Província
de Santa Fé (Ar) – defendida em março de 2007 no PPGA/UFrGS.

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108 Uruguai: a luta pela água como um bem comum

e saneamento na região de Maldonado. Diante da situação calamitosa provocada


pela operação em mãos do ente privado, alguns grupos organizados trabalharam
para hegemonizar a concepção de que a água é um bem comum, público e, portan-
to, deve ser responsabilidade do Estado. Mesmo reconhecendo a impossibilidade
de precisar no tempo o momento em que essa história se inicia, é necessário, de
antemão, contextualizar a situação política e econômica do Uruguai, retornando
ao passado recente da história deste país.
Tal qual a maioria dos países da América Latina, o Uruguai atravessou,
durante o século passado, três fases distintas na sua configuração política, comu-
mente classificadas como populismo, ditadura militar e redemocratização.
O populismo é caracterizado pela existência de sistemas de proteção so-
cial que acompanharam os processos de urbanização e industrialização e que fo-
ram tratados, pelo governo, como instrumentos de barganha para a cooptação e
a obtenção do respaldo de trabalhadores e da população em geral. Os níveis de
proteção variavam muito entre os países da região, de acordo com critérios como
os valores e as instituições pré-existentes e as relações de poder entre as classes
sociais. O Uruguai se situa entre os países cujo sistema de proteção social era dos
mais fortes (FLEURY, BELMARTINO e BARIS, 2000).
No período populista foram também providos os encanamentos para água
e saneamento. A construção pública destas estruturas ocorreu em resposta às cres-
centes demandas da população, que se tornava cada vez mais urbana, em troca de
prestígio político e permanência no poder. Além disso, também eram estruturas
importantes para a industrialização que se iniciava.
Nas décadas de 1960 e 1970, em muitos países da América Latina, incluin-
do o Uruguai, ocorreram golpes de Estado, com o decisivo apoio dos Estados
Unidos, e foram implantadas ditaduras70. Os militares adotaram a doutrina da
segurança nacional, segundo a qual o confronto entre democracia e comunismo
não era somente uma guerra frontal entre Estados, mas uma luta interna a cada
país; além disto, efetivaram “uma forte articulação entre livre mercado, políticas
econômicas liberais, abertura para o capital internacional, economias orientadas
para a exportação, ajuda externa, regimes autoritários, ideologias anticomunistas,
administração tecnocrática e militar” (DOS SANTOS, 2008, p.2).

70 O golpe de 1964, no Brasil, inaugurou um ciclo autoritário que incluiu a Argentina (se iniciou com a
tentativa de Ongania, em 1966, e se efetivou com o golpe de Videla, em 1976); a Bolívia (1971), o Chile e
o Uruguai (em 1973), entre outros. Na metade da década de 70, somente México, Venezuela e Colômbia
tinham regimes formalmente democráticos na América Latina (DOS SANtOS, 2008).

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Organização e Práxis Libertadora 109

É importante compreender que existiram diferentes leituras da doutrina de


segurança nacional. Alguns comandos de exércitos entenderam que a ameaça era
decorrente da injustiça social, da submissão nacional a interesses externos e à
oligarquia política71. Havia, também, tendências nacionalistas conservadoras em
alguns regimes militares, como era o caso do Brasil. Este contexto oferecia re-
sistências indesejáveis à globalização e à expansão do neoliberalismo, levando a
uma revisão da estratégia de hegemonia dos Estados Unidos na região. A política
de direitos humanos, na administração Carter, passou, então, a ocupar um papel
central na nova estratégia, pressionado por procedimentos pró-democratização
(DOS SANTOS, 2008).
Em conseqüência, na década de 1980, o processo de liberalização política e
de transição para a democracia se articulou com políticas econômicas liberais. Foi
a década do Consenso de Washington72, que impôs políticas de ajustes estruturais
executadas sob a liderança do FMI e do Banco Mundial. Esta década foi caracteri-
zada pela Crise da Dívida, decorrente do aumento das taxas de juros imposta pelos
Estados Unidos. Um cálculo de médias mostra que no Uruguai, em 1986, cada
uruguaio devia ao exterior US$ 1.832,00 e a dívida externa total do País era quase
igual ao seu PIB. Os ajustes econômicos foram, então, impostos pelo FMI, Banco
Mundial, bancos privados e governos credores aos países devedores através de
condicionalidades73 presentes em contratos para refinanciamento de suas dívidas.
As políticas neoliberais foram adotadas precisamente no contexto da re-
democratização dos países latino-americanos, no momento em que os questio-
namentos das relações sociais de produção foram abandonados na esperança de
que a democracia representativa fosse um mecanismo que permitisse a supera-
ção da pobreza. No entanto, “os regimes liberais e democráticos foram restabe-
lecidos associando-se à depressão econômica e à concentração de renda” (DOS
SANTOS, 2008, p.6).

71 Foi o caso da revolução Peruana de 1968, do golpe liderado por Garcia Meza no Equador, por torres
na Bolívia e por torrijos no Panamá.
72 A expressão foi cunhada pelo economista John Williamson, e reúne as políticas defendidas pelas Or-
ganizações Financeiras Internacionais para os países da América Latina. Nas palavras de Fiori (1997,
p. 145), o Consenso de Washington é “um programa de convergência ou homogeneização das políticas
econômicas dos países latino-americanos, desenhado pelas burocracias internacionais e nacionais
de Washington, combinando austeridade fiscal e monetária, com desregulamentação dos mercados e
liberalização financeira, abertura comercial, privatizações e eliminação de todo o tipo de barreiras ou
discriminações contra os capitais forâneos”.
73 “Condicionalidade é a forma do FMI monitorar se seu empréstimo está sendo usado efetivamente para
resolver as dificuldades econômicas do mutuário, para que o país possa pagar prontamente, disponi-
bilizando aqueles fundos para os outros membros que necessitarem.” (INtErNAtIONAL MONEtArY
FUND, 2006, p. 1)

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110 Uruguai: a luta pela água como um bem comum

Na década de 1990, com a queda das taxas de juros internacionais ocorreu


um alívio das pressões pelo pagamento da dívida externa, com várias negociações
que resultaram em acordos de conciliação na direção oposta: políticas de déficit
comercial; valorização das moedas locais através de âncoras cambiais; aumento
das taxas de juros da dívida pública; venda do patrimônio público como privatiza-
ção da economia (DOS SANTOS, 2008).
A privatização de serviços de água e saneamento em diversas cidades, pro-
víncias e países da América Latina é parte deste processo de produção de consen-
so. O Banco Mundial estimulou política e financeiramente a criação de diversas
organizações que convergiram para produzir o consenso sobre a mercantilização
da água. O terceiro setor também foi convidado a participar. Diversas organi-
zações não-governamentais nasceram em torno do Banco Mundial e de órgãos
da ONU, justamente para representar a legitimação pela sociedade civil. Tais or-
ganizações, além de justificar a nova concepção, contribuíram para marginalizar
movimentos que defendiam a água como um bem comum (PETRELLA, 2003a).
Além disto, na divisão internacional deste mercado, havia pouca competição74.
As diretrizes do consenso da privatização seguem os Princípios de Dublin,
estabelecidos pelas Nações Unidas em 1992. Um desses princípios estipula que
a água possui valor econômico em todos os seus usos servindo, segundo Petrella
(2003b), para justificar a mercantilização da água.

A luta pela água como um bem comum


As concessões realizadas no Uruguai e em vários lugares da América Lati-
na não se referem ao recurso água, se referem aos serviços de fornecimento deste
recurso. No entanto, como esclarece Petrella (2003b), quando essas operações são
privatizadas, automaticamente é privatizado também o próprio recurso.
O valor de um bem é definido principalmente por seu valor econômico, isto
é, por seu valor mercantil de troca. [...] Seguramente, pode-se dizer que a água dos
lençóis, da chuva e dos rios é um bem comum natural, do qual o Estado é o pro-
prietário em nome da nação, assim como toda outra fonte de recurso natural. Mas
desde o momento em que uma intervenção humana transforma a fonte natural
em um bem ou um serviço, ele tem custos, e a água se torna um bem econômico,
objeto de troca e de apropriação privada (PETRELLA, 2003a, p. 16).

74 As duas maiores corporações do setor, Suez e Vivendi, possuem cerca de 40% do mercado mundial,
o que representa mais de 110 milhões de clientes para cada uma, espalhados em 100 e 130 países,
respectivamente.

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Organização e Práxis Libertadora 111

No Uruguai, as empresas que forneciam tais serviços, antes municipais,


foram centralizadas, em 1952, na empresa Obras Sanitarias del Estado75 (OSE),
que atingiu excelentes níveis na prestação dos serviços. A Figura 1 indica que
o País está entre os que têm maior cobertura de serviços de água e saneamento
considerando América Latina e Caribe. Em 2000, 98% da população uruguaia era
abastecida com água potável e 95% recebiam serviços de saneamento. Segundo
Santos (2006a), o primeiro índice, em 2006, estava em 91,4%, ainda alto se com-
parado aos demais países da região.

Fonte: World Health Organization, 2000.


Figura 1 – Abastecimento de água e saneamento na América Latina e Caribe

Uma explicação para o alto índice de cobertura realizado pela OSE é o me-
canismo de subsídio cruzado, pelo qual os ganhos das tarifas recolhidas pelo for-
necimento de água em regiões densamente povoadas compensam as perdas com o
fornecimento a regiões pouco povoadas. No entanto, na década de 1990, começou
a ser produzido o consenso sobre a necessidade de iniciar, a partir de determinada
região, a privatização dos serviços de fornecimento de água.

75 A OSE foi criada através da Lei 11.907, com atuação definida em todo o território uruguaio (UrUGUAY, 1952).

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112 Uruguai: a luta pela água como um bem comum

Cabe reafirmar que esta orientação seguia as prescrições e condicionalida-


des das organizações internacionais. Como explica Gramsci (2002a), a hegemonia
pode ser analisada em diferentes graus que mostram as relações de força na socie-
dade. O primeiro grau é ligado às estruturas objetivas: as forças materiais de pro-
dução. Assim, os ditames destas organizações, justamente por estarem alienados
das realidades materiais dos grupos a que pretendiam subordinar, permaneceram
no plano da pura mas não simples coerção - a coerção econômico-financeira a que
as elites dirigentes nacionais se submeteram.
A privatização dos serviços no Uruguai ocorreu no Departamento de Mal-
donado. A Figura 2 mostra o mapa político deste País, com Departamento em
destaque.

Figura 2 – Mapa do Uruguai com destaque para o departamento de Maldonado

Na capital desse Departamento estão os balneários de Punta del Este e Ma-


nantiales, um movimentado pólo de turismo internacional, muito importante para
a economia uruguaia. Apesar de ser um local economicamente relevante para o
país, a região de Manantiales (do lado leste do Arroio Maldonado) não possuía

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Organização e Práxis Libertadora 113

serviços de saneamento, por isto esta era a demanda prioritária de serviços na


região. Convencidos pelo argumento neoliberal de que o governo não poderia
realizar as obras, vários políticos e comunicadores locais iniciaram uma ofensiva
e conquistaram o consenso entre empresários do turismo e turistas influentes, que
passaram a defender a privatização. Tal consenso foi suficiente para que, em 1993,
fosse aprovada a Lei 16.361, que concedeu o serviço público de água potável e
saneamento a leste do arroio Maldonado. A empresa beneficiada foi a Aguas de
la Costa, sociedade anônima de capital nacional que, de acordo com um contrato
com vigência até 2018, deveria prestar os serviços em uma área que afetava um
total de 3 mil conexões76.

Fonte: INMOBILIARIA RIO DE LA PLATA (2007).


Figura 3 – Mapa do departamento de Maldonado com destaque para a zona de concessão para
Aguas de la Costa

76 O número de conexões não reflete o número de pessoas afetadas, pois uma mesma conexão pode
equivaler a uma família inteira, ou um grupo de pessoas que mora no mesmo local.

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114 Uruguai: a luta pela água como um bem comum

Em 1997 a empresa Aguas de Barcelona, subsidiária do grupo Suez77, com-


prou 60% das ações da Aguas de la Costa e se tornou assim controladora dos
serviços de água e saneamento na região de Manantiales, concedida em 1993.
De imediato as tarifas e o custo de conexão à rede de água e esgoto aumentaram
vertiginosamente78.
Diante desta situação, uma associação local de moradores começou a de-
nunciar as novas tarifas. Segundo as declarações, em entrevista, de seu então Pre-
sidente – Luís Garcia, a Liga de Fomentos de Manantiales (LFM) é uma organi-
zação de vizinhos que cumpre um papel intermediário entre as autoridades e os
moradores, que é o de preocupar-se pelas coisas de todos. Eles são representantes
mais da comunidade do que de si mesmos, exigindo que se arrumem as ruas, as
luzes e demandando sistemas de saúde para os vizinhos.
Se, por um lado, a demanda pela privatização partiu dos empresários locais
e dos turistas que freqüentam o balneário de Manantiales, ou seja, sujeitos com
boa situação financeira; por outro lado, a LFM é composta por moradores da re-
gião que trabalham no turismo e não possuíam condições de arcar com as tarifas
que estavam sendo cobradas.
Percebendo os problemas causados pela Suez, a OSE, como uma forma
de concessão, ofereceu subsídios àqueles que não tinham condições de pagar a
nova tarifa. Das 3 mil conexões antes existentes, 2300 permaneceram conectadas
à rede e apenas cem receberam subsídios da empresa estatal; ainda restavam 600
famílias que não estavam sendo brindadas com o serviço. Segundo Santos (2006a,
p. 95), os moradores mais pobres desta zona costumam se abastecer de poços arte-
sanais e até mesmo água da chuva e “de acordo com versões dos vizinhos da zona,
a proposta de subsídio não foi adotada pelo rechaço que gerava a permanência da
empresa privada e pela sensação de que a Aguas de la Costa podia mais do que
a Constituição”. Além das tarifas, outras práticas da empresa contribuíram para
o rechaço por parte dos vizinhos: a dessecação da Laguna Blanca (reservatório
natural que abastece a região), o não cumprimento de investimentos acordados
em contrato e o fato de ter deixado a zona turística de Piriápolis sem água durante
quatro dias na alta temporada (DOMÍNGUEZ, 2006).

77 O grupo francês Suez Lyonnaise des Eaux tem atuação internacional em serviços industriais e de uti-
lidade pública nos ramos de eletricidade, gás, energia e água. Do total do capital acionário do grupo,
72,6 % pertencem a instituições (não relacionadas no site da empresa) (SUEz, 2006, p.1). A partir deste
momento, não somente para fins práticos e didáticos, mas porque efetivamente as decisões da Aguas de
la Costa se dão no nível estratégico da corporação francesa, a referência deste ator será o grupo Suez.
78 A diferença entre a tarifa cobrada pela OSE e pela Suez pelo custo de conexão à rede de saneamento
chegou a 80 vezes, em 2004 (SANtOS, 2006a).

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A privação do acesso à água pela mercantilização do recurso significa que a


reprodução da vida humana, uma necessidade imediata, foi subordinada à repro-
dução do sistema capitalista. O que mobilizou os moradores de Manantiales foi
a impossibilidade de ter acesso à água e o risco à sua vida imposto pelo sistema
de mediação do capital, representado pela privatização dos serviços de água e
saneamento.
Para Mészáros (2002), a sobrevivência do ser humano está condicionada
aos relacionamentos estruturais capazes de exercerem as mediações necessárias
entre ele e a natureza. No caso de outros animais, essas mediações (mediações
primárias) são exercidas pelo instinto, mas no caso dos seres humanos são feitas
por diversas atividades. Destas últimas, nenhuma exige hierarquias estruturais de
dominação e subordinação. Entretanto, o sistema de produção capitalista está as-
sentado em um sistema de mediações que se interpõem entre a interação dos seres
humanos com a natureza, subordinando essas atividades à lógica de sua própria
reprodução, e não à lógica da reprodução da vida, como ocorreu em Manantiales.
Na mesma direção, Gramsci (2006) afirmava que os grupos produzem suas con-
cepções de mundo imediatamente a partir de suas situações materiais e de suas
relações sociais. As dificuldades enfrentadas pelos moradores de Manantiales le-
varam alguns a tomar consciência de sua posição nas relações sociais e perceber
que se encontravam imersos em relações de exploração. Assim, rechaçaram até
mesmo os subsídios.
Ao perceber a ameaça da privatização, o sindicato dos trabalhadores da
OSE, a Federación de los Funcionários de OSE (FFOSE) também se mobilizou.
A filial da FFOSE de Maldonado realizou um plebiscito simbólico questionando a
atuação da Suez. Como resultado, percebeu que o consenso da privatização - que
incluia empresários do turismo, turistas, politicos influentes e meios de comuni-
cação79 - que já nascera fragilizado, estava se enfraquecendo: 31 mil moradores
votaram contra a concessão e apenas 98 votaram a favor. Entretanto, os grupos
dominantes não estavam interessados no consenso: queriam estender as privati-
zações a áreas mais populosas e mais rentáveis do Departamento de Maldonado
e do resto do País. Em 2000, o restante do Departamento de Maldonado (com
exceção de uma localidade denominada Aiguá) foi concedido à empresa Uragua,

79 A ofensiva midiática contou inclusive com a participação de um apresentador de televisão argentino,


freqüentador do balneário de Punta de Leste, que afirmava que o balneário iria se inundar em seus
próprios efluentes (VALDOMIr, 2006).

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116 Uruguai: a luta pela água como um bem comum

subsidiária da espanhola Aguas de Bilbao80. A nova concessão duraria 30 anos,


abrangendo 120 mil pessoas. O projeto de privatizações incluía avançar rumo ao
oeste até chegar a Montevideo, ao sul de Canelones.
Ao lado de Maldonado, já no Departamento de Canelones, está a região da
Costa de Oro. Esta região fora, no passado, uma zona de casas de descanso. Du-
rante a década de 90 teve um crescimento acelerado e não planejado com pessoas
de Montevideo que buscavam sair da cidade grande. Devido ao rápido e desor-
denado crescimento, se tornou uma região problemática com relação ao acesso a
serviços de água e saneamento. Tal qual a região de Manantiales, mas por motivos
diferentes, demandava investimentos para o provimento dos serviços.
Em 2000 a OSE havia tomado um empréstimo do Banco Mundial para “me-
lhorar a competitividade da companhia estatal de água, manter a confiabilidade dos
investimentos em serviços de água e expandir investimentos em saneamento no
interior”.
O Governo do Uruguai está ciente do custo dos monopólios de serviço
sobre a economia, e já começou o processo de desmonopolização nos setores de
eletricidade, gás natural, petróleo, água e saneamento, transporte, e telecomuni-
cações (todos exceto telefonia fixa), complementados com explícito apoio para a
participação do setor privado. (THE WORLD BANK, 2002, p. 22)
É interessante notar que no documento do Banco Mundial não havia qual-
quer referência ao mecanismo de subsídio cruzado que permitiu atingir 98% de
cobertura no fornecimento de água; nem ao fato de que algumas áreas do País
poderiam ser deficitárias; tampouco ao fato de que as regiões que estavam sendo
‘apoiadas pelo setor privado’ eram apenas as regiões densamente povoadas e lu-
crativas; e muito menos considerava que um dos operadores que já estava presente
no Uruguai, a Suez, era parte de um oligopólio em nível global.
Já no início das discussões para privatizar os serviços na região, a popula-
ção de duas cidades do Departamento de Canelones se organizou formando a Co-
misión en Defensa del Agua e Saneamiento de la Costa de Oro y Pando (CDAS-
COP), englobando o sindicato da OSE (FFOSE) e mais 40 organizações locais e

80 O Consórcio de Aguas Bilbao Bizkaya é uma entidade pública que presta serviços de água e saneamen-
to para 54 municípios, atingindo 90% da população da província de Bizkaia, no País Basco, Espanha.
Em 2000, constituiu quatro sociedades anônimas. Uma delas, a Aguas de Bilbao S.A., tinha o objetivo
de estudar, financiar e participar em licitações e concessões do exterior em que participe o Consórcio
como operador integral de serviços no setor de água (BILBAO BIzKAIA, 2006, p.1). Outra sociedade, a
Uragua S.A., foi constituída para prestar serviços em cinco cidades de Maldonado. A última (Uragua)
era financiada pela primeira (Aguas de Bilbao). Para fins analíticos, a empresa Uragua, que recebeu a
concessão para prestar os serviços em Maldonado, será referida aqui como Aguas de Bilbao.

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Organização e Práxis Libertadora 117

vários vizinhos autoconvocados81, além da organização ambientalista Amigos de


la Tierra, que teve um papel preponderante na articulação dos grupos subalternos.
Durante o ano de 2001, realizaram diversas manifestações em frente às sedes da
OSE nas cidades de Canelones e Ciudad de la Costa.
Esta articulação tinha como objetivo imediato impedir a privatização no
Departamento de Canelones. Para além disso, estava sendo colocado em questão
o consenso neoliberal que definiu a água como um bem econômico e mercantil.
Foi neste cenário que estas organizações e os vizinhos autoconvocados iniciaram
um processo para deixar de assumir uma concepção que não era sua e que lhes era
imposta, e superar a condição de subalternidade.
Para Gramsci (2006), a subalternidade ocorre quando um grupo não con-
segue conceber uma visão de mundo correspondente à sua realidade e, por isso,
toma emprestado a outro grupo uma concepção que não é sua. Monal (2003),
refletindo sobre esse conceito, afirma que ele amplia o conceito tradicional de
classes sociais: a diferença entre grupos e classes reside no fato de que as últi-
mas se referem a uma estratificação social baseada na divisão do trabalho, já os
grupos não possuem qualquer critério pré-definido para sua constituição. Avan-
çando nesta reflexão, Wood (2003, p. 89) coloca a experiência vivida no centro
da definição de classes sociais: “é no meio dessa experiência vivida que toma
forma a consciência social e, com ela, a disposição de agir como classe”. Nesse
sentido, a ideia de classes sociais em Wood (2003) se aproxima do conceito
gramsciano de grupos subalternos ao superar a estratificação dada pela divisão
do trabalho, incluindo na definição das classes ou grupos a experiência vivida e
a consciência dos sujeitos.
Os primeiros a denunciar as práticas abusivas da privatização foram os mo-
radores de Manantiales, organizados na Liga de Fomentos de Manantiales (LFM),
pois sentiram a falta da água para atender suas necessidades materiais básicas.
Essa experiência serviu como um alerta aos demais grupos que se uniram na arti-
culação subalterna.
Gramsci (2006) afirma que o pertencimento a um grupo não é determinado
apenas pelas relações sociais e de produção material, mas é o produto de uma for-
ma de pensar, ou seja, é o produto da consciência. A superação da subalternidade

81 O fenômeno dos vecinos autoconvocados é comum nos países platinos e ocorre pela ação de cida-
dãos mobilizados por iniciativa individual, ou seja, cidadãos que não pertencem a organizações pré-
-definidas. Esses grupos se convertem em interlocutores e atores inesperados no espaço público, a
partir da “afirmação de um desacordo público sobre decisões políticas tomadas previamente, que são
percebidas como uma ameaça à segurança coletiva” (ENrEDANDO, 2007, p. 1).

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118 Uruguai: a luta pela água como um bem comum

somente ocorre a partir da crítica das formas de pensar hegemônicas impostas por
outros grupos. Esta autocrítica aparece no depoimento de Carlos Santos, ativista
do grupo Redes, que explica a mobilização em Canelones: O que mobiliza o pri-
meiro caso, da LFM, é claramente o aumento das tarifas [...]. Mas neste segundo
caso, de Canelones, é claramente a resistência ao neoliberalismo que estava se
intensificando. Algumas pessoas estavam percebendo o desmantelamento do Es-
tado benfeitor, que havia custado tantos anos para instalar e defender.
A partir da experiência em Manantiales e de uma consciência crítica sobre
a definição da água como mercadoria, se formou um novo grupo, unindo pes-
soas que simultaneamente viviam uma realidade subalterna e projetavam uma
contra-hegemonia.
Os grupos subalternos, a partir da consciência de sua própria situação e
das especificidades econômicas e ambientais de seu País, elaboraram um projeto
alternativo para prover os serviços de saneamento à população do Departamento
de Canelones, mais barato e ambientalmente mais sustentável do que os projetos
da OSE. Segundo relato de Carlos Santos, o projeto consistia em três tanques
que fariam um processo de decantação, pelo qual a água poderia ser reutilizada
para irrigação e os lodos poderiam ser reutilizados como adubo. A ideia foi apre-
sentada ao governo uruguaio em dezembro de 2001, mas o governo arquivou o
projeto. Posteriormente, a OSE contratou uma consultoria que fez outro projeto,
três vezes mais caro, e que jogava o esgoto in natura no mar.
A articulação que havia iniciado no Departamento de Maldonado com a
LFM e se estendido para Canelones, com a CDASCOP, ganhou projeção nacional
a partir da incorporação definitiva do sindicato da estatal, a FFOSE. O sindicato
possui seções em todos os departamentos do Uruguai e, diante dos projetos ne-
oliberais de privatização, passou por um processo de autocrítica da própria fun-
ção. Esse processo fica evidente no depoimento da então Presidente do Sindicato,
Adriana Marquisio, registrada por Santos e Iglesias (2006, p. 129):

quem somos nós, os funcionários estatais de um ente como a OSE? So-


mos servidores públicos que estamos aqui para dar água aos cidadãos.
Esta é nossa função. Não estamos aqui para mover papéis nem para con-
tratar locomoção, somos trabalhadores da água, parte de uma organiza-
ção que tem que se encarregar de levar água de qualidade a todo o povo
uruguaio. Portanto, se esse recurso e esta gestão estão em perigo, estão
em perigo não somente nossa fonte de trabalho, mas também as vidas
de nossas famílias. Esta discussão nós tivemos que ter como sindicato.

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Organização e Práxis Libertadora 119

Contrariando uma tendência que se observava no país vizinho, a Argentina,


onde os sindicatos públicos de água apoiaram a privatização em troca de cargos
e 10% de propriedade sobre as empresas privadas, a FFOSE optou por resistir às
privatizações no Uruguai.
A articulação subalterna contou também com a atuação de uma organização
fundamental no processo de construção da contra-hegemonia, a rede ambientalis-
ta Amigos de la Tierra, que está presente em mais de 60 países ao redor do mundo.
A Amigos de la Tierra busca aprofundar as discussões ambientais indo para além
das questões técnicas.
Amigos de la Tierra é uma organização que trabalha desde a perspectiva
da ecologia social, entendendo que a crise ecológica atual responde em grande
medida aos processos de concentração de recursos e tomada de decisões nas mãos
de poucos atores corporativos, que se movem pela lógica de crescer ou morrer,
buscando gerar maior lucro possível em curto prazo, sem considerar os impactos,
sejam eles ecológicos ou sociais, das atividades econômicas. (REDES, 2006, p. 1)
A articulação das quatro organizações - LFM, CDASCOP, FFOSE e Ami-
gos de la Tierra - foi a base da contra-hegemonia que viria a alterar os rumos das
políticas de água no País. Até aquele momento, trabalhavam para denunciar as
práticas que estavam ocorrendo em Maldonado, tais como tarifas exorbitantes,
exclusão da população do acesso à água, secagem de fontes de água e não cum-
primento de investimentos contratuais, chegando até mesmo a servir água não po-
tável para consumo humano (SANTOS, 2006a). Denunciando e estudando esses
problemas, essas organizações, ao mesmo tempo, procuravam também impedir a
privatização no Departamento de Canelones.
Entretanto, em junho de 2002, com a economia duramente afetada pela cri-
se argentina, ocorrida um ano antes82, o governo uruguaio reforçou seus laços com
as Organizações Internacionais de Finaciamento (OIFs), firmando um compro-
misso de renegociação da dívida externa com o FMI, pelo qual se comprometia a
“facilitar os investimentos do setor privado em áreas previamente reservadas para
o setor público, estimular a competição, e estabelecer um ambiente cooperativo
entre operadores públicos e privados” (INTERNATIONAL MONETARY FUND,
2002, p. 1). Além de água e saneamento, faziam parte das intenções de priva-
tização os setores de eletricidade, telecomunicações, atividades relacionadas ao

82 A crise argentina é mais um capítulo trágico da ordem de reprodução capitalista, efeito das ‘reformas’
neoliberais que, naquele país, ao contrário do Uruguai, foram realizadas de forma abrupta e descon-
trolada. A economia uruguaia sofreu as conseqüências da desvalorização cambial e da fuga de capitais
ocorridas em detrimento da crise no país vizinho.

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120 Uruguai: a luta pela água como um bem comum

petróleo, gás natural, ferrovias e serviços postais. A agenda para o setor de água e
saneamento era a seguinte:

• Introdução de um novo marco regulatório para o setor. Proposta a


ser submetida ao Congresso em setembro de 2002.
• Introdução de novos padrões de qualidade e controle para facilitar
o investimento do setor privado. Decreto a ser aprovado em dezem-
bro de 2002.
• Convidar ofertas para melhorar os serviços em Montevideo até de-
zembro de 2002.
• Convidar ofertas para a participação do setor privado em plantas de
tratamento de esgoto até março de 2003 (INTERNATIONAL MO-
NETARY FUND, 2002, p. 1).

A privatização era uma coerção econômica que estava sendo imposta por
um agente externo, o FMI. Percebendo que entre a sociedade civil o consenso em
torno do projeto era frágil, o então Presidente do Uruguai, Jorge Battle, determi-
nou que os serviços de água e saneamento no resto do País fossem privatizados
na forma de concessões. A estratégia foi a escolhida para evitar a privatização
através de Leis, pois essas poderiam ser revogadas por plebiscitos. Uma das
particularidades do Uruguai é a existência, na sua legislação, de mecanismos de
democracia direta: plebiscitos e referendos. Os primeiros se referem a decisões
sobre a Constituição; os segundos, especificamente sobre leis ou artigos nelas
contidos. Se as novas privatizações fossem executadas por leis, estariam sujeitas
a referendos propostos por setores da sociedade contrários a essa política.
Como já discutido, para Gramsci (2006), a superação da condição de su-
balternidade se dá através da consciência crítica sobre as formas hegemônicas de
pensar, abrindo a possibilidade de uma atividade intelectual criadora, organizadora
e dirigente. A articulação contra-hegemônica não tardou a reorientar sua estratégia
diante da decisão do Presidente, como lembra Carlos Santos: bom, então passemos
também por cima da Lei e façamos uma reforma da Constituição, porque assim
vamos inviabilizar todos os mecanismos legais que estão debaixo deste processo.
Se o Presidente estava evitando a proposição de leis por temer a reprovação
da sociedade, a saída encontrada pelas organizações que resistiam ao processo
de privatizações foi reformar a Constituição, inserindo na mesma o argumento
de que serviços de água potável e saneamento são de responsabilidade exclu-
siva do Estado.

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Organização e Práxis Libertadora 121

Como já comentado, Gramsci (2002a) explica que a hegemonia ocorre


nas relações de força que mostram a indissociável conexão entre o mundo ma-
terial das relações de produção e a consciência de classe. Para tanto, identifica
diferentes graus no processo de construção de hegemonia. O primeiro grau é
ligado às estruturas objetivas; o segundo é o da relação de forças políticas, em
que existe homogeneidade, autoconsciência e organização dos grupos sociais.
A mobilização iniciou de forma localizada em Manantiales, por uma associa-
ção de vizinhos, com um argumento concreto ligado às estruturas objetivas: a
necessidade do acesso à água. Não muito distante dali, os grupos e moradores
de Canelones, a partir da autoconsciência e da auto-organização, elaboraram
outras concepções sobre a água, o que levou a outras concepções sobre po-
lítica e sobre modos de vida. Com o protagonismo da FFOSE e da Amigos
de la Tierra, a estratégia de reformar a Constituição, a articulação subalterna
assumiu a tarefa de hegemonizar uma nova concepção sobre a propriedade dos
serviços de água e saneamento – que nada mais é do que a propriedade sobre
a água.
Durante o ano de 2002, as quatro organizações continuaram intensa-
mente mobilizadas, realizando reuniões temáticas, fóruns e mesas de debate,
buscando construir o consenso de que a Constituição deveria ser reformada.
Em uma clara alusão à guerra da água ocorrida em Cochabamba83, na Bolívia,
um ano antes, a articulação subalterna decidiu batizar-se com o nome Comisi-
ón Nacional en Defensa del Agua y de la Vida (Comisión). Carlos Santos re-
latou os eventos: Quem cria a Comisión, são os grupos de vizinhos de Maldo-
nado que vinham trabalhando desde 1993, a LFM, os vizinhos de Canelones,
a Comisión da Costa de Oro y Pando, o sindicato como federação nacional
de trabalhadores, Amigos de la Tierra e Uruguay Sustentable. A presença do
sindicato e do Uruguay Sustentable é uma porta de entrada para que, muito
pouco tempo depois da formação da Comisión, ingressem a Central Única
de Trabalhadores, a federação de estudantes universitários, a federação de
cooperativas de habitação, e aí começam a ingressar organizações, chegando
a mais de 50.

83 A guerra da água em Cochabamba ocorreu em 2001, quando o governo concedeu os serviços de for-
necimento de água a uma empresa formada por capital privado boliviano e estrangeiro. Diante de
um aumento de tarifas que superaram os 300% e até mesmo a proibição de coletar água da chuva, a
população organizada na Coordinadora Departamental en Defensa del Agua y de la Vida protagonizou
uma luta dramática, levando a cidade à guerra civil, com mortos e feridos. Com a cidade tomada e a
sede do governo cercada pela população, a concessão foi revogada.

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122 Uruguai: a luta pela água como um bem comum

Em outubro de 2002 a Comisión oficializou a campanha pelo plebiscito


para a reforma constitucional.

Fonte: REDES, 2007.


Figura 4 - Cartaz de divulgação da campanha pela reforma constitucional

Os mecanismos de plebiscito e referendo estão na Constituição uruguaia de


1967 e podem ser acionados de três formas. A primeira é a iniciativa popular, que
deve ser comprovada pela assinatura de 10% do eleitorado do País. A segunda é a
concordância de dois quintos dos componentes da Assembleia Geral. Nestes dois
casos a reforma deve passar pelo crivo da sociedade civil, visto que, após cumpri-
rem os requisitos acima comentados, necessitam aprovação da maioria da popula-
ção. Uma terceira forma permite reformas elaboradas apenas no seio da sociedade
política. Os senadores, os representantes e o Poder Executivo podem apresentar
projetos de reforma que devem ser aprovados pela maioria absoluta dos compo-
nentes da Assembleia Geral, sem consulta à população (URUGUAY, 1967).
Por se tratar de uma iniciativa popular, a Comisión deveria reunir no míni-
mo 10% de assinaturas do eleitorado para habilitar o plebiscito, o que totalizaria
aproximadamente 280 mil assinaturas. O texto da reforma proposto pela Comisi-
ón procurou incluir as orientações defendidas pelas organizações. Neste sentido, a
proposta foi incluir, no Artigo 47 da Constituição, que tratava apenas da proteção
ambiental e da necessidade de penalizar os infratores, o seguinte texto:

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Organização e Práxis Libertadora 123

El agua es un recurso natural esencial para la vida. El acceso al agua


potable y el acceso al saneamiento, constituyen derechos humanos fun-
damentales.
La política nacional de Aguas y Saneamiento estará basada en:
a) el ordenamiento del territorio, conservación y protección del Medio
Ambiente y la restauración de la naturaleza.
b) la gestión sustentable, solidaria con las generaciones futuras, de los
recursos hídricos y la preservación del ciclo hidrológico que constituyen
asuntos de interés general. Los usuarios y la sociedad civil, participarán
en todas las instancias de planificación, gestión y control de recursos hí-
dricos; estableciéndose las cuencas hidrográficas como unidades básicas.
c) el establecimiento de prioridades para el uso del agua por regiones,
cuencas o partes de ellas, siendo la primera prioridad el abastecimiento de
agua potable a poblaciones.
d) el principio por el cual la prestación del servicio de agua potable y
saneamiento, deberá hacerse anteponiéndose las razones de orden social a
las de orden económico.
Toda autorización, concesión o permiso que de cualquier manera vulnere
estos principios deberá ser dejada sin efecto.
Las aguas superficiales, así como las subterráneas, con excepción de las
pluviales, integradas en el ciclo hidrológico, constituyen un recurso uni-
tario, subordinado al interés general, que forma parte del dominio público
estatal, como dominio público hidráulico.
El servicio público de saneamiento y el servicio público de abastecimiento
de agua para el consumo humano serán prestados exclusiva y directamen-
te por personas jurídicas estatales.
La ley, por los tres quintos de votos del total de componentes de cada
Cámara, podrá autorizar el suministro de agua, a otro país, cuando éste
se encuentre desabastecido y por motivos de solidaridad (COMISIÓN,
2008, p. 1).

Não apenas estava sendo excluída a possibilidade de privatização dos servi-


ços de água e saneamento, como também o texto da reforma visualizava uma políti-
ca nacional para o setor, com requisitos como ordenamento territorial, participação
da sociedade e prioridades de uso por regiões ou bacias hidrográficas. Além disso,
ao Artigo 188, que versava sobre o capital privado em entes públicos, foi agregado
que as disposições do artigo “no serán aplicables a los servicios esenciales de agua
potable y saneamiento” (COMISIÓN, 2008, p. 1). Além de negar a política que mer-
cantilizava a água, que de resto foi o motivo inicial da reforma, estava sendo propos-
ta uma nova política, que tinha como raiz a concepção da água como bem público.

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124 Uruguai: a luta pela água como um bem comum

A campanha pela reforma movimentou o final de 2002 e todo o ano de


2003, com a realização de mesas e oficinas explicativas, declarações de apoio
provenientes de todos os partidos políticos e de personalidades nacionais, realiza-
ção do Foro Social Uruguay e da Conferencia Internacional en Defensa del Agua,
e participação de alguns integrantes da Comisión no Fórum Social Mundial em
Porto Alegre. Estes eventos deram visibilidade à campanha no nível nacional e
internacional e possibilitaram a aproximação da Comisión com organizações de
outros países que também rechaçam a privatização da água.

Estas organizações seriam um permanente apoio ao trabalho posterior


da Comisión e sua presença no Uruguai marcou uma das características
centrais da campanha pelo plebiscito: o permanente respaldo interna-
cional e a visualização do processo nacional como uma verdadeira re-
ferência para organizações e movimentos de outros países. (SANTOS e
IGLESIAS, 2006, p, 134)

Em 31 de outubro de 2003, a Comisión, em um ato simbólico realizado


por centenas de pessoas que, lado a lado, ligaram a sede a FFOSE ao Palácio
Legislativo em Montevideo, entregou ao Parlamento 282 mil assinaturas: estava
habilitado o plebiscito para votar uma reforma constitucional. As demandas nasci-
das nas relações privadas da sociedade civil, ao se tornarem universais, passaram
a englobar também estruturas de governo e o consenso se estendeu à sociedade
política. A reforma constitucional estava na agenda política do País, apoiada por
setores da sociedade civil (sindicatos, ONGs, estudantes, associações de bairros,
universidades, partidos políticos) e da sociedade política (governantes).
O plebiscito seria realizado juntamente com as eleições presidenciais, em
outubro de 2004. Logo depois da habilitação da reforma, de forma claramente
oportunista, se integrou formalmente à Comisión a coligação partidária Encuentro
Progresista Frente Amplio (EPFA)84. O EPFA era a principal oposição nas elei-
ções presidenciais, e tinha como candidato Tabaré Vázquez. Em julho de 2004,
a Comisión formalizou a última etapa da campanha pelo plebiscito no Palácio
Legislativo, em um ato presenciado por várias personalidades e o Prefeito de
Montevideo, além de centenas de pessoas representando as diversas organizações
que compunham a Comisión. Poucos dias antes do plebiscito foi publicada uma

84 A coligação Frente Amplio foi fundada em 1971 reunindo partidos políticos tais como o Socialista, o
Comunista e o Democrata Cristiano; setores progressistas provenientes dos partidos rivais Colorado e
Blanco e cidadãos não identificados com tais partidos (EPFA, 2006).

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Organização e Práxis Libertadora 125

declaração internacional assinada por mais de cem organizações, de 36 países,


apoiando a reforma na Constituição do Uruguai.
Entretanto, uma nova estratégia dos grupos dominantes foi concebida quan-
do um partido muito pequeno, chamado Partido Independiente, iniciou uma arti-
culação para impedir a reforma. Acionando o mecanismo da Constituição, que
permite a alteração da mesma por projetos assinados por dois quintos dos compo-
nentes da Assembleia Geral, propuseram outra reforma. A outra opção era idêntica
àquela proposta pela Comisión em todos os aspectos, excetuando o argumento de
que a gestão deveria ser exclusivamente de responsabilidade de empresas públi-
cas. O Partido Independiente possuía apenas quatro legisladores e necessitava de
60 votos para habilitar sua reforma e submeter a plebiscito, o que não conseguiu,
pois era forte o consenso sobre a reforma. Segundo Santos (2006b), essa estraté-
gia partiu diretamente da Suez, pois o candidato do Partido Independiente, nas
eleições municipais de Montevideo no ano seguinte, era o gerente da Suez em
Maldonado.
Com o fracasso da articulação da Suez na sociedade política, estava aberto
o caminho para a reforma. De fato, nas eleições de 31 de outubro de 2004, 64,7%
da população uruguaia votou por reformar a Constituição incluindo a impossibili-
dade de se transferir os serviços de água e saneamento ao setor privado.
Nas eleições presidenciais que se seguiram, o candidato do EPFA, Tabaré
Vázquez, venceu com 51% dos votos. Poucos meses após sua eleição, o EPFA
anunciou sua retirada da Comisión e o Presidente assinou um Decreto determi-
nando que a nova definição da Constituição não se aplicaria a contratos firmados
antes da reforma. Assim, permitiria a operação pelas duas empresas privadas em
Maldonado até o final de seus contratos em 2018 (Suez) e 2030 (Aguas de Bilbao)
(URUGUAY, 2005).
Gramsci (2002a, p. 41) destacava que “a vida estatal é concebida como uma
contínua formação e superação dos equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre
os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados”. O
Decreto do novo Presidente mostrou que, mesmo com a aprovação da reforma,
se rearticulou, nos mecanismos do Estado, uma resistência à nova situação. Além
disso, o Decreto afirmava que os serviços que estivessem sendo prestados por
entes não estatais sem contrato deveriam ser assumidos pela OSE. Além de ser
inconstitucional e ignorar a situação enfrentada pelos moradores de Manantiales,
o Decreto desconsiderou a importância de várias cooperativas e associações de
fornecimento de água que existiam no interior do País. Segundo Carlos Santos,

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126 Uruguai: a luta pela água como um bem comum

existem de dez a quinze cooperativas de água em diferentes lugares em que a


empresa pública não chegava e não havia cobertura: as pessoas se auto organi-
zaram para ter água. Fizeram escavações, poços, perfurações. Em muitos casos,
não são empresas com fins de lucro, são associações civis com o objetivo de pres-
tar a si mesmas serviços de água.
Assim como fizeram as OIFs ao formular o consenso da privatização, o
novo Governo alienou das formulações de políticas públicas as iniciativas dos
moradores em suas relações privadas para garantir suas necessidades básicas.
Longe de ser um final, a reforma constitucional foi um marco na gestão dos servi-
ços de água e saneamento no Uruguai e demandou novas articulações, definições
e práticas. Diante do Decreto Presidencial, a Comisión teve que seguir mobilizada
para defender que a Constituição fosse cumprida.
No final de junho de 2005, integrantes da LFM e vizinhos de Maldonado
fizeram uma passeata que durou 5 dias, saindo de Maldonado e chegando a Monte-
video, para protestar contra o Decreto. Com relação à empresa Aguas de Bilbao, a
saída encontrada pelo Poder Executivo para obedecer à reforma foi o cancelamento
do contrato, que não estava sendo cumprido. Cabe ressaltar que o contrato não era
cumprido há muito tempo e nunca havia sido cancelado por este motivo. A empresa
acionou o Tratado Bilateral de Proteção de Investimentos firmado entre Uruguai e
Espanha. Entretanto, em outubro de 2005, a empresa concordou em se retirar.
No final daquele mesmo mês, outra passeata foi realizada no mesmo trajeto
da primeira, desta vez para rechaçar a permanência da empresa Suez. A conquista da
reforma e a condição, ainda que pontual, de dirigentes no que se refere à concepção
da água, não eximiu a Comisión de seguir trabalhando na construção de consensos.

Ambas as passeatas, a de junho e a de outubro, fizeram paradas em di-


ferentes lugares do trajeto até a capital, onde foram realizadas conversas
e debates com os habitantes de cada lugar sobre a situação gerada ante
o decreto que habilitou a permanência das multinacionais de água em
Maldonado. (SANTOS e IGLESIAS, 2006, p. 145)

A retirada da Suez foi mais demorada e controversa que a da Aguas de Bil-


bao. A mesma estratégia foi utilizada pelo Poder Executivo para negociar a retira-
da da empresa francesa: a cobrança de cláusulas contratuais não obedecidas. As-
sim, em maio e em setembro de 2005, a OSE já havia aplicado duas multas à Suez,
a primeira devido à contaminação por coliformes fecais na praia de Manantiales; a
segunda pelo despejo de esgoto diretamente no leito do Arroio Maldonado. A saí-

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Organização e Práxis Libertadora 127

da da Suez do Uruguai foi negociada, e em setembro de 2006, o Poder Executivo


comprou as ações na empresa, que representavam 60% de propriedade do opera-
dor Aguas de la Costa, se tornando assim o acionista majoritário, e cumprindo,
de certa forma, o estabelecido na Constituição. A Suez, por sua vez, se retirou do
Uruguai sem prejuízos. Os 40% restantes do capital do operador permaneceram
em mãos privadas nacionais, o que não está conforme o texto da reforma, que
diz que os serviços devem ser prestados ‘exclusivamente’ pelo poder público. De
qualquer forma, a compra das ações foi considerada um passo importante pela Co-
misión, principalmente porque no mesmo dia em que foi assinada, as tarifas para
a população de Manantiales foram reduzidas, e esse era o aspecto fundamental da
nova hegemonia, pois a articulação contra-hegemônica era guiada pela concepção
de que a água é um bem público e propriedade de todos. Nesse sentido, as tarifas
para o fornecimento de água devem ser acessíveis a todos.
A conquista dos grupos antes subalternos, concretizada na reforma constitu-
cional, afirmou novos valores e só foi possível pelo protagonismo dos intelectuais
orgânicos subalternos e sua consciência crítica, por sua capacidade criadora, orga-
nizadora e de direção. Pela atuação desses intelectuais orgânicos foi possível conce-
ber, nas palavras de Campione (2003), uma visão de mundo antagônica à dominan-
te, que entende que a água é de todos. A partir dessa afirmação a Comisión articulou
os uruguaios no sentido de uma política comprometida com a defesa da vida.
Os fatos que se seguiram à aprovação popular da reforma mostraram que a
hegemonia e as posições conquistadas pelos grupos subalternos estão sempre sujei-
tas às instabilidades sociais, o que exige ações permanentes de “autogoverno e auto-
-organização das massas, de geração e difusão de uma ‘visão de mundo’ antagônica
à predominante” (CAMPIONE, 2003, p. 61). Além disto, a articulação da Comisión
com organizações de outros países que lutam pela concepção da água como bem co-
mum indica um processo de construção contra-hegemônica no nível regional e global.
A hegemonia da água como bem público no Uruguai não pode ser consi-
derada uma hegemonia localizada naquele País. Existe uma processo em curso
nesse sentido, que encontra sustentação justamente nas situações mais objetivas,
a defesa da própria existência e o acesso à água potável. Na Bolívia, as lutas con-
tra a privatização da água em Cochabamba e em El Alto se juntaram à luta pela
nacionalização do gás natural e culminaram em uma transformação radical nas
estruturas jurídicas do Estado e na eleição de Evo Morales, o primeiro presidente
de origem indígena na história de um país em que 60% da população é indígena.
Atualmente, a América Latina é palco de uma onda de reestatizações que indicam

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128 Uruguai: a luta pela água como um bem comum

que a afirmação da água como bem comum não pode ser considerada um fato iso-
lado, ela é parte de uma luta política que defende a propriedade do Estado Nação
e de seu povo sobre os recursos naturais.

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Organização e Práxis Libertadora 131

Mercados de carbono:
imagens do Norte e do Sul85

Steffen Böhm
Maria Ceci Misoczky

O mercado de carbono surge no bojo do Protocolo de Kyoto, assinado por


cerca de 180 países em 1997. Nele se encontra um chamado para que os 38 países
industrializados e maiores emissores de gases de efeito estufa reduzam, entre os
anos de 2008 e 2012, seus níveis de emissão em 5,2% - tendo 1999 como refe-
rência. O carbono é um elemento armazenado em combustíveis fósseis, tais como
carvão e petróleo, que, quando queimados, liberam dióxido de carbono.
As transações de carbono são agrupadas em duas categorias principais:
• transações baseadas em subsídios – são comprados subsídios de emissão
criados e alocados por reguladores sob regimes de cap-and-trade, como
as European Union Allowances (EUAs) do European Union Emissions
Trading Schemes (EU ETS);
• transações baseadas em projetos – são comprados créditos de emissão
de um projeto que reduziria a emissão se comparado com o que teria
ocorrido sem que houvesse o esquema, os mais importantes suportes,
dentro do Protocolo de Kyoto, são o Clean Development Mechanism
(CDM) e o Joint Implementation (JI).
No mercado de carbono circularam, em 2006, US$ 30 bilhões; três vezes o
valor do ano anterior; o que dá uma ideia do seu dinamismo. O mercado foi domi-
nado pela venda e revenda de European Union Allowances (EUAs), totalizando
cerca de US$ 25 bilhões. Atividades com base no CDM e no JI corresponderam a
cerca de US$ 5,2 bilhões. O mercado voluntário para reduções de corporações e
indivíduos chegou a um valor estimado de US$ 100 milhões. O mercado de car-
bono também atraiu uma resposta significativa do mercado de capitais e de inves-

85 A redação deste artigo foi finalizada em setembro de 2008. Para uma atualização com relação ao tema
dos mercados de carbono ver o livro eletrônico editado por Steffen Böhm and Siddhartha Dabhi em
dezembro de 2009 - Upsetting the Offset: the Political Economy of Carbon Markets, disponível em:
http://mayflybooks.org/wp-content/uploads/2009/12/9781906948078UpsettingtheOffset.pdf.

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132 Mercados de carbono: imagens do Norte e do Sul

tidores. Analistas estimam que US$ 11,8 bilhões foram investidos em 58 fundos
de carbono até março de 2007 (CAPPOR e AMBROSI, 2007).
O foco deste artigo se dirige para as transações baseadas em projetos. Este
mercado foi dominado, em 2006, por projetos apoiados pelo CDM (91%); e por com-
pradores europeus (86%) seguidos por japoneses (7%). Em 2005 e em 2006, a China
foi o maior vendedor, correspondendo a 73% e 61%, respectivamente. A Ásia, como
um todo, teve uma participação de 80%; a África de 3%. A América Latina contribuiu
com 10%, e apenas o Brasil com 4% (CAPOOR e AMBROSI, 2007).
O conceito por trás desse sistema de troca e compensação é que uma to-
nelada de carbono no lugar X é exatamente a mesma coisa que uma tonelada de
carbono no lugar Y. Se é mais barato reduzir as emissões na Índia que na Alema-
nha, por exemplo, seria possível atingir o mesmo benefício de redução com uma
melhor relação custo-efetividade realizando-a na Índia. Entretanto, a aparente
lógica e simplicidade deste conceito se baseia na desconsideração ou oculta-
mento de aspectos essenciais, tais como: desigualdades entre Norte e Sul, lutas
de grupos populacionais locais, direitos sobre uso e posse da terra, poder corpo-
rativo, história colonial, entre outros. Esses aspectos colapsam e se transformam
em uma mera questão de custo-efetividade. Nesse sentido, os mecanismos de
troca e compensação de carbono representam uma abordagem reducionista da
mudança climática, ao deixar de lado o tema da extrema disparidade nos níveis
de consumo per capita de carbono e ao assumir que as reduções de emissões
no Sul podem ser tratadas como uma nova mercadoria colonial a ser extraída e
comercializada (SMITH, 2008). Estas considerações têm levado alguns autores
a falar sobre uma relação neocolonialista (ESCOBAR, 1995); outros a explorar
a ideia de CO2lonialismo (FORSYTH e YOUNG, 2007).
O projeto pioneiro de compensação de carbono foi organizado, antes do Pro-
tocolo de Kyoto, nos Estados Unidos, em 1989, quando a Applied Energy Services
conseguiu a aprovação parcial de seu projeto de construir uma usina elétrica com
base no consumo de carvão devido à conexão com a plantação de 50 milhões de ár-
vores na Guatemala. O projeto inicial foi comprometido por problemas semelhantes
aos que têm envolvido estes esquemas desde então: foram plantadas árvores não na-
tivas que degradaram a terra e as populações locais tiveram suas atividades habituais
de subsistência destruídas. Dez anos depois do seu início, avaliadores concluíram
que a meta de compensação estava longe de ser alcançada (SMITH, 2008).
É relevante considerar a lógica de mercado que orienta todo o esquema
e que, em vez de encorajar indivíduos a realizar mudanças profundas em seus

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Organização e Práxis Libertadora 133

padrões de consumo, bem como nas estruturas sociais, econômicas e políticas,


leva à crença de que pagar um valor extra por serviços e produtos é suficiente. As
pessoas preocupadas com as mudanças climáticas, especialmente nos países do
Norte, são induzidas a acreditar que com estes esquemas podem continuar a viver
como antes, desde que paguem em dinheiro o valor que as absolverá das responsa-
bilidades com o planeta (SMITH, 2007). Nesse sentido, a cultura da compensação
de carbono é, de fato, negativa para o debate sobre a mudança climática e para a
deterioração das condições ambientais do planeta. O mesmo ocorre se pensarmos
nas organizações industriais cujas margens de lucro dependem da postergação da
transição para baixos padrões de emissão de carbono pelo maior tempo possível.
Outro aspecto importante deste mercado é o que se refere aos sumidouros
de carbono, ou seja, mares, solos e árvores que absorveriam dióxido de carbono
da atmosfera. Como resultado, um dos setores mais rentáveis em termos de com-
pensação de carbono é o de práticas de negócios relacionadas com a plantação de
árvores. Incorporando o senso comum de que plantar árvores é sempre algo po-
sitivo, estes esquemas partem de um patamar confortável de legitimidade social.
Este artigo problematiza o tema do mercado de carbono tendo como re-
ferência a ecologia política e a abordagem dos conflitos distributivos, que serão
brevemente apresentados nos próximos parágrafos. Na seqüência são exploradas
imagens do Norte e do Sul, indispensáveis para avançar no objetivo deste texto:
aproximá-las e produzir sentidos que disseminem argumentos para apoiar as lutas
sociais de todos aqueles que, como nós e sem importar se localizados no Sul ou no
Norte, compartilham a preocupação com os impactos deste mercado para popula-
ções e regiões localmente atingidas, para a humanidade e o planeta. A construção
do texto se fez com base em pesquisas e vivências dos autores em seus respectivos
contextos – um no Norte, outra no Sul; bem como a partir de documentos secun-
dários com informações de organismos envolvidos com os esquemas de compen-
sação – sejam implementadores, sejam os que lhes fazem oposição.
Como já foi mencionado, as reflexões que constituem este artigo se inse-
rem no campo teórico-prático da ecologia política. Trata-se de um novo território
do pensamento crítico e da ação política, ao qual dizem respeito não apenas os
conflitos de distribuição ecológica, mas também a exploração com novas luzes de
relações de poder que se tecem entre os mundos da vida das pessoas e o mundo
globalizado (LEFF, 2003).
A distribuição ecológica compreende os processos extra-econômicos – eco-
lógicos e políticos. Já a noção de conflitos ecológico-distributivos parte da evi-

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134 Mercados de carbono: imagens do Norte e do Sul

dente constatação de que, na medida em que a economia e a população humana


crescem, são utilizados mais recursos naturais e produzidos mais resíduos; geran-
do, como conseqüência, impactos sobre outras espécies, sobre as gerações huma-
nas futuras e sobre a atual. No entanto, nem todos os humanos são igualmente
afetados pelo uso que a economia faz do ambiente natural. Alguns se beneficiam
mais que outros; alguns sofrem maiores custos que outros: aí reside a origem e
o sentido dos conflitos ecológico-distributivos ou conflitos de justiça ambiental
(MARTINEZ-ALIER, 2006).
Como ilustração, este artigo menciona uma situação de conflito ecológico
distributivo, centrado na expansão das plantas de polpa de celulose e de seu
complemento indispensável – a plantação de árvores exóticas – na região do
Pampa da América do Sul. No Brasil, no Rio Grande do Sul, estão projetadas
duas novas fábricas de celulose (Stora Enso e VCP Celulose), além da expansão
da Aracruz86, ao mesmo tempo em que se implantam e se expandem vertiginosa-
mente as plantações de eucalipto na metade sul desse estado. Além das fábricas
no Rio Grande do Sul, e da nova fábrica já em operação no Uruguai – Botnia,
estão previstas mais duas fábricas no Uruguai – Ence e Portucel. Neste contex-
to, o argumento a ser desenvolvido usa muitas informações geradas em torno
do primeiro destes investimentos – a empresa Botnia no Uruguai. Trata-se, na
classificação dos conflitos ecológicos, do tema dos conflitos sobre resíduos e
contaminação, em pelo menos dois aspectos: (a) lutas tóxicas, na expressão
desenvolvida quando do episódio da contaminação do Love Canal por metais
pesados e dioxinas em um acidente ocorrido nos EUA há mais de 20 anos (HO-
FRICHTER, 1993); (b) contaminação transfronteiriça, conceito desenvolvido
na Europa Central nos anos 70 e 80 a partir dos episódios de emissões de dióxi-
do de enxofre que cruzaram fronteiras e produziram chuva ácida (MARTINEZ-
-ALIER, 2006). Essa possibilidade se coloca porque no Pampa há um sistema de
rios que são compartilhados por Uruguai, Argentina e Brasil e que se organiza
em torno dos rios Uruguai e Paraná e de seus afluentes.
Ainda no tema dos conflitos de distribuição ecológica, Escobar (2005) des-
taca a capacidade do conceito de distribuição para unir a diversidade, o conflito

86 Este texto foi escrito antes da fusão entre a Aracruz Celulose e Papel S. A e Votorantim Celulose, que
resultou na criação da Fibria e antes da venda da unidade produtiva de papel e celulose do grupo, lo-
calizada no rio Grande do Sul, para a Companhia Manufatureira de Papéis e Papelões (CMPC) do Chile.
Outro processo de concentração de capital envolveu a Botnia, que em dezembro de 2009 teve 91% da
propriedade da planta e 100% da propriedade das plantações de eucalipto transferidos para a também
finlandesa UPM. É claro que trocas na propriedade das ações não afetam o argumento aqui apresentado.

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Organização e Práxis Libertadora 135

e a igualdade de acesso, agregando que, para fazê-lo, é preciso considerar a


dimensão cultural, além da ecológica e econômica. A dimensão cultural permite
considerar os processos culturais que se encontram na base da valorização do
mundo natural e na relação que as pessoas desenvolvem com ele. Ao se conside-
rar a identidade cultural na comarca pampeana é indispensável reconhecer que
sua gênese e persistência está marcada pelo plano, pela llanura, pelo espaço sem
bordas, extensión de imensidad. “O pampa aterroriza e comove pela ideia sen-
sível de infinito. É um infinito que não se move. Sempre a mesma luz, sempre
a mesma terra, e o mesmo círculo infinito que abarca a visão” (PAOLO MAN-
TEGAZZA, 1855, apud GOLIN, 1999, p.9). A substituição do ecossistema da
região por florestas homogêneas tem, nesse sentido, implicações não apenas am-
bientais, mas também sobre a identidade cultural dos povos que ali se localizam.

Imagens do Norte e do Sul

Imagem 1
Eurostar – a empresa do trem anglo-francês de alta velocidade – recen-
temente anunciou seu plano estratégico Tread Lightly, cujo objetivo é reduzir o
impacto das suas atividades na produção de carbono. “Como parte desta iniciati-
va, assumimos o compromisso de reduzir as emissões de dióxido de carbono em
25% por viajante até 2012. Conseqüentemente, vamos fazer mudanças em todas
as áreas de nossos negócios, desde as maiores, tais como eficiência energética,
tickets sem usar papel e administração de resíduos através da seleção da cadeia
de suprimentos, até mudanças culturais menores como reciclagem em nossos es-
critórios. […] Qualquer emissão restante será trocada, sem custos adicionais para
os viajantes, começando em 14 de novembro de 2007, dia de inauguração de St.
Pancras International” – a estação de trem que desde então é o ponto de partida
e chegada em Londres. A iniciativa Tread Lightly é apoiada por Amigos da Terra
UK, cuja campanha Big Ask Climate Change é, por sua vez, apoiada pela Eurostar.
Seu Diretor Executivo, Tony Juniper, afirma: “Eurostar está liderando o modo de
fazer uma redução real nas emissões de carbono” (EUROSTAR, 2007). A partir
destas informações se é compelido a pensar que os grandes negócios podem, afi-
nal, ser verdes e sustentáveis.

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136 Mercados de carbono: imagens do Norte e do Sul

Fonte: http://eurostar.com
Figura 1 – Trem Eurostar na plataforma de St Pancras International e marca da campanha
Tread Lightly

Imagem 2
Milhas e milhas distantes de Londres, no Pampa da América do Sul – região
que inclui as terras planas onde se localizam o Uruguai; o sul do Rio Grande do
Sul no Brasil; as Províncias Argentinas de Buenos Aires, La Pampa, Santa Fé e
Córdoba – milhões de árvores estão sendo plantadas por fazendeiros locais e por
um pequeno grupo de empresas transnacionais do ramo do papel. Essas empre-
sas consideram que esta área tem condições climáticas vantajosas para o rápido
crescimento de vastas plantações de eucalipto, do qual é extraída a matéria prima
para a produção de polpa de celulose. Já existe um número importante de fábricas
de polpa de celulose e/ou papel na região. O projeto que recebe apoio de agências
internacionais de cooperação e dos governos nacionais do Brasil e do Uruguai
envolve a ampliação das áreas de plantação desta árvores exóticas e a construção/
ampliação de fábricas. Essa ação conjugada tornará essa região o centro global de
produção de celulose.

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Organização e Práxis Libertadora 137

Fonte: http://www.noalapapelera.com.ar
Figura 2 – Fábrica da empresa sueco-finlandesa Botnia inaugurada em outubro de 2007 em
Fray Bentos (UY) e protestos de uruguaios e argentinos na ponte que liga Fray Bentos a Gua-
leguaychú (AR) sobre o Rio Uruguai em abril de 2010

Uma das fábricas de polpa de celulose recentemente implantada no Pampa


é operada por Botnia, uma transnacional com sede na Finlândia. Ela se localiza
em Fray Bentos, uma pequena cidade uruguaia às margens do Rio Uruguai. A
International Finance Corporation (IFC), parte do Grupo Banco Mundial, que
auxiliou a financiar o projeto, afirma que esta fábrica vai gerar “um valor adicio-
nado equivalente a 2% do Produto Interno Bruto e um pouco menos que 8% das
exportações do país para cada ano de produção usando a capacidade máxima”
(IFC, 2006) – discutiremos esta suposição mais adiante. Adicionalmente, Botnia
(2006a) “está planejando gerar eletricidade ambientalmente amigável a partir da
biomassa da fábrica”. O projeto inclui o denominado Clean Development Mecha-
nism (CDM), determinado no Protocolo de Kyoto. O propósito do CDM e, por-
tanto, do projeto, é reduzir a emissão de gases do efeito estufa e promover o de-
senvolvimento sustentável do Uruguai (BOTNIA, 2006a). A IFC (2006) também
alega que a eletricidade vendida pela fábrica da Botnia para complementar a rede
de energia elétrica do país pode ser chamada de energia verde, isto é, sem acrésci-
mo bruto de emissões de dióxido de carbono para a atmosfera. Novamente, somos
compelidos a acreditar que investimentos diretos de corporações transnacionais
no assim chamado mundo em desenvolvimento podem ser verdes e sustentáveis.

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138 Mercados de carbono: imagens do Norte e do Sul

Conexões entre imagens aparentemente desconexas


Além das evidentes relações discursivas entre as duas, o que conecta ima-
gens aparentemente desconexas a partir de um ponto de vista organizacional é
o assim chamado Clean Development Mechanism (CDM): um arranjo criado a
partir do Protocolo de Kyoto, operado e controlado pelas Nações Unidas sob a
United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCC), que per-
mite a países industrializados com compromissos de redução de emissão de gases
investirem em países em desenvolvimento como uma alternativa de menor custo
que as reduções em seus próprios países. Assim, quando Eurostar afirma que vai
eliminar as emissões de carbono que não pode ela mesma evitar, e quando afirma
que todas as viagens em seus trens são carbono neutras, isto basicamente signifi-
ca que a empresa compra os denominados créditos de carbono em esquemas tais
como o CDM. O que esses esquemas autorizam é que com os recursos financei-
ros da redução de carbono da Eurostar (e, portanto, dos seus passageiros) sejam
desenvolvidos projetos como o da Botnia, de geração de eletricidade a partir da
biomassa, financiados em países catalogados como em desenvolvimento, como o
Uruguai, na suposição de que isto reduziria as emissões de carbono no planeta.
Entretanto, o que efetivamente ocorre é que Eurostar pode se apresentar como
carbono neutra porque participa de uma troca no mercado de carbono; o mesmo
que permite que empresas transnacionais, como Botnia, implementem fábricas de
celulose muito rentáveis no Sul.
É óbvio que as ligações entre Eurostar na Europa e Botnia na América do
Sul não são diretas. Os mercados capitalistas são sempre impessoais; as ligações
entre compradores e vendedores são encobertas, assim como a mercadoria – no
nosso caso, o carbono – é produzida, distribuída e trocada ocultando o processo
que originalmente a gerou. Não estamos, de modo algum, afirmando que Eurostar
financiou diretamente a fábrica da Botnia! Esse é exatamente um dos problemas
com os emergentes mercados de carbono, não é possível traçar o que os gastos com
a compensação do carbono estão gerando em comunidades distantes; não é possí-
vel fazer ligações diretas entre vendedores e compradores de créditos de carbono,
o que significa que não é possível avaliar as afirmações sobre reduções de carbo-
no. No entanto, temos o dever de abrir a caixa preta que permite que empresas do
Norte, como a Eurostar, afirmem ser verdes e carbono neutras porque investem
em esquemas de compensação, enquanto o dinheiro verde financia indústrias de
papel e celulose – reconhecidas como entre as mais poluentes do planeta – no Sul.
Isto é, Eurostar e outras empresas do Norte afirmam ser verdes porque participam

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Organização e Práxis Libertadora 139

de esquemas de compensação que, de fato, levam à emergência e legitimação de


um rápido crescimento da indústria global de trocas de carbono que, no mínimo, é
duvidosa, e, no máximo, contribui para o aumento da emissão de gases do efeito
estufa e sedimenta relações de dependência muito problemáticas.
Lembremos os problemas ambientais envolvidos com as fábricas de celu-
lose: (a) escala e tamanho – as fábricas atuais são mega-empreendimentos cujo
tamanho já constitui um risco em um processo industrial em que são utilizados
intensamente produtos químicos tóxicos, além da óbvia relação com o volume de
resíduos que os cursos de água podem suportar; (b) emissões – além do cheiro
característico, contém produtos químicos como fenóis clorados, hidrocarbonetos
aromáticos policíclicos e compostos orgânicos voláteis, potencialmente cancerí-
genos; (c) branqueadores – muitos desses produtos químicos são reagentes perigo-
sos de transportar, incorrendo em riscos graves para os trabalhadores; (d) poluição
da água – a demanda por grandes quantidades de água durante o processo pode
reduzir seus níveis e os despejos podem aumentar a temperatura e comprometer
os ecossistemas pluviais; (e) dioxinas e organoclorados presentes nos despejos
de fábricas que produzem pasta Kraft - o principal problema é sua capacidade
muito baixa de biodegradabilidade e a conseqüente acumulação nos tecidos vivos,
podem levar a alterações no sistema imunológico e no hormonal endócrino, e a
mudanças genéticas hereditárias, além de serem cancerígenas (WRM, 2005).
Porém, há muito mais: seria um equívoco considerar os impactos ambien-
tais apenas das fábricas de celulose. Essa é apenas metade da história. O comple-
mento, freqüentemente esquecido, é que milhares de hectares de plantações de
árvores são necessários para abastecer constantemente estas fábricas. Botnia, por
exemplo, através da sua subsidiária Forestal Oriental S.A. (FOSA), atualmente
tem, no Uruguai, 89.000 hectares de eucalipto plantados, e mais 41.500 hectares
para usos futuros. O objetivo é abastecer a fábrica de Fray Bentos com 3.5 mi-
lhões de metros cúbicos anualmente, 70% dos quais de suas próprias plantações
e os 30% restantes de fazendeiros associados. A empresa e os estudos de impacto
da IFC afirmam que estas plantações de árvores são totalmente sustentáveis, não
produzem efeitos ambientais adversos e criam empregos. Botnia deixa claro que
todas as plantações da FOSA receberam certificação do Forest Stewardship Coun-
cil (FSC) – organização que estabelece e controla os “padrões internacionais de
gestão responsável de florestas”. Portanto, tudo está bem! Não necessariamente!
Mesmo que as plantações de árvores estejam certificadas, esses mecanismos de
controle não oferecem uma imagem do que está acontecendo nos locais. Embora

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140 Mercados de carbono: imagens do Norte e do Sul

a certificação pelo FSC seja apresentado como “um processo movido por orga-
nizações não-governamentais e amplamente reconhecido como a forma mais
abrangente para assegurar a qualidade ambiental e a equidade social em ope-
rações florestais” (WORLD BANK, 2003, APUD LASCHEFSKI, 2003, p.32),
tem havido uma mudança progressiva de sua orientação nas últimas décadas.
Esta mudança se deveu, segundo Laschefski (2003), à combinação de seu en-
foque de mercado com a orientação pragmática adotada por ONGs nórdicas
que passaram de uma posição de contestação crítica a uma posição de busca de
soluções técnicas em associação com governos e empresas. Nos itens abaixo se
encontra uma lista não exaustiva dos impactos negativos das plantações dessas
árvores exóticas no Sul.
• O eucalipto não é nativo do Pampa. Sua origem é na Austrália, onde
cresce naturalmente em um clima seco, e desenvolve raízes profundas
para ter acesso à água. No decorrer dos séculos XIX e XX esta ár-
vore foi introduzida em muitas regiões do mundo, incluindo o Pampa
e outras partes da América do Sul, como uma árvore eficiente para a
produção de celulose. A árvore cresce mais rápido na região do Pampa
– amadurece em 5 ou 6 anos - se comparado com o Norte da Europa.
No Brasil estas plantações são conhecidas como desertos verdes, pela
sua reputação de destruidora da diversidade ecológica; na África do
Sul como câncer verde pela sua tendência de invadir rapidamente
outras áreas; no Chile como soldados verdes porque são destrutivas
da natureza, ficam lado a lado em linha reta e sempre avançam (PET-
TERMANN e LANGELLE, 2006).
• Um dos principais problemas parece ser que o eucalipto suga nutrien-
tes do solo e é intensivo em consumo de água – uma árvore consome
entre 30 e 100 litros por dia, dependendo da estação do ano. Como no
Pampa, graças ao Aqüífero Guarani, a água está disponível em reser-
vas próximas à superfície, a árvore pode ter raízes mais superficiais e
crescer com mais rapidez. O problema reside em que essas árvores, ao
longo do tempo, extraem toda a água dessas camadas superficiais. Isto
ocorreu, por exemplo, na região de Arroyo Negro, no Departamento
de Soriano - Uruguai, onde há plantações de eucalipto de propriedade
da FOSA há mais de 10 anos: os poços secaram, as vertentes naturais
desapareceram, os açudes não existem mais. As moradias hoje rece-
bem água através de caminhão pipa da empresa pública de água, a

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Organização e Práxis Libertadora 141

produção de leite – que era a principal atividade econômica da região


– está comprometida (CARRERE, 2006).
• Em regiões com plantações em larga escala há uso intensivo de herbici-
das e de pesticidas para garantir que as áreas permaneçam de monocul-
tura e que sejam resistentes a pragas. Além da escassez de água, a que
resta se torna contaminada, levando ao comprometimento da fauna dos
rios (FASE, 2002).
• Chamar áreas de monocultura de florestas é enganador, as florestas de
eucalipto são inferiores, do ponto de vista da diversidade biológica,
a qualquer outra área de florestação que adote outro tipo de árvore e,
obviamente, incomparável a qualquer floreta natural (FASE, 2002).
• A produção de papel branco pode ser barateada se as árvores tiverem
menos lignina, que produz o tom amarelado do papel. O desenvolvi-
mento de árvores geneticamente modificadas, com menos lignina, re-
duz a defesa contra infecções virais; para compensar há um aumento no
uso de pesticidas (WRM, 2005).
Além destes efeitos colaterais há ainda um conjunto de impactos negati-
vos que são frequentemente ignorados quando as empresas e os consumidores do
Norte, desejosos de compensar sua culpa de carbono, valorizam as atividades de
florestação. Um deles é o fato de que a plantação de árvores envolve a concen-
tração da terra. No Pampa, a expansão do latifúndio sedimenta uma tradição de
distribuição desigual do acesso à terra; em outras áreas tem significado a expulsão
dos grupos sociais ali residentes – como na disputa entre Aracruz e indígenas no
Espírito Santo e no sul da Bahia.
Antes de prosseguir é importante fazer um registro de que o processo de
transformação do Pampa em um centro global de produção de papel e celulose
gerou um importante conflito ecológico-distributivo sobre resíduos e contamina-
ção que incorpora pelo menos os dois aspectos mencionados na introdução desse
artigo – lutas tóxicas e contaminação transfronteiriça, graças à organização dos
cidadãos autoconvocados de Gualeguaychú que, desde o anúncio dos projetos de
Botnia e Ence em Fray Bentos, resistem.
Gualeguaychú é uma cidade com cerca de 85.000 habitantes, localizada na
margem argentina do Rio Uruguai. Há décadas, a comunidade local vem se orga-
nizando em torno de um projeto de desenvolvimento baseado na valorização da
natureza, produção de alimentos e turismo – explorando as belezas das praias de
rio e o carnaval. Quando foi anunciada a construção de duas fábricas de celulose a

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20 km de distância uma da outra - ENCE e Botnia - na margem uruguaia, ativistas


de Fray Bentos, do Movimento por la Vida, el Trabajo y um Desarrollo Sustenible
(MOVITDES), que há alguns anos tinham enfrentado e conseguido impedir a
instalação de uma fábrica de papel e celulose em sua cidade, atravessaram a ponte
que liga os dois países e fizeram uma série de atividades com ambientalistas de
Gualeguaychú, chamando sua atenção para os riscos decorrentes destes projetos
(CERRI, 2006). A Assembleia teve uma vitória importante quando ENCE – em-
presa multinacional espanhola – decidiu que não se instalaria mais em Fray Ben-
tos. Nesse desdobramento foi muito importante a articulação com organizações
espanholas que pressionaram para que recursos públicos não fossem investidos
nesta empresa.
A auto-organização dos cidadãos de Gualeguaychú tem sido uma das mais
sustentáveis resistências contra a indústria de celulose e papel na região. A Assem-
bleia tem organizado bloqueio de estradas, processos legais contra o governo do
Uruguai pelo não cumprimento da Convenção do Rio Uruguai, ações continuadas
junto à Embaixada da Finlândia em Buenos Aires, entre inúmeras outras ativida-
des. Apesar de Botnia ter iniciado seu funcionamento em novembro de 2007, a
luta continua. Sob a consigna No a la papelera! Si a la vida! a comunidade local,
com apoio de muitas organizações e cidadãos argentinos, alguns uruguaios e vá-
rios de outros países, tem demonstrado que continuará o enfrentamento contra
Botnia até que ela se vá87.
Esta resistência indica a necessidade de se problematizar a ideia de desenvol-
vimento subjacente, na medida em que um dos argumentos dos cidadãos organiza-
dos na Assembleia é a ameaça ao modelo de desenvolvimento sustentável em torno
do qual vêm organizando suas vidas e planejando o futuro de seus descendentes.

O mercado de carbono e o apoio ao desenvolvimento


Desenvolvimento é uma palavra muito usada no Sul, frequentemente em
conjunção com vantagens econômicas, mercado, e criação de empregos. Tome-
mos como exemplo o discurso da IFC - instituição do Banco Mundial que finan-
ciou a fábrica de celulose da empresa Botnia:

Como uma instituição de desenvolvimento, IFC financia projetos que be-


neficiam economias emergentes e comunidades locais. O projeto de Bot-

87 Para uma atualização da luta da Assembleia Cidadã Ambiental Gualeguaichú visite seu sítio: http://
noalaspapeleras.com.ar/.

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nia vai ter um impacto positivo importante na economia do Uruguai. Ele


deve gerar ingressos equivalentes a 2% do PIB do país e mais de 8% das
exportações anuais do país, considerando 30 anos de produção. O im-
pacto sobre o emprego vai ser também significativo. O projeto deve criar
2.500 postos de trabalho, dos quais 300 na fábrica e 2.200 nas áreas de
floresta e em atividades de transporte. Este projeto representa o maior in-
vestimento estrangeiro na história do Uruguai e vai transformar o país no
maior exportador de celulose do mundo. Além disso, este projeto se ajusta
com a estratégia de longo prazo do Banco Mundial para o Uruguai, que
recomenda investimentos em florestação e a diversificação da base expor-
tadora para aumentar sua competitividade globalmente (IFC, 2006, p.2).

Vamos dissecar esta versão de desenvolvimento. O primeiro aspecto a con-


siderar é que a fábrica de Botnia se localiza em uma área de Zona Franca, ou
seja, não há recolhimento de impostos ou taxas sobre exportações ou importa-
ções – neste caso de equipamentos, na sua maioria fabricados na Finlândia. Em
Fray Bentos, a empresa alugou uma área, que é de propriedade do Estado, por
US$ 20.000,00 por 30 anos. Praticamente nada! A empresa paga impostos e taxas
relacionados apenas com os contratos de trabalho e de serviços terceirizados, e
dividendos. Os lucros, sob a forma de dividendos para acionionistas estrangeiros
– na sua maioria, são exportados; isto é, de volta para Finlândia. Assim, o que
de fato está sendo desenvolvida é a economia da Finlândia. Não é surpreenden-
te que o governo desse país apóie Botnia com subsídios e isenções de impostos
(PENTINNEN, 2006). Além disso, por 12 anos o governo do Uruguai subsidiou
o setor de florestação com mais de US$ 500 milhões através da isenção de taxas e
de desembolso direto, um valor que representa cerca de 4% do PIB nacional. Para
facilitar o transporte e a exportação de madeira, o Estado construiu portos, pontes
e linhas férreas (PIERRI, 2006).
O que levou os decisores locais a subordinar-se aos interesses dos promo-
tores finlandeses e das agências internacionais pode ser reconhecido como a pre-
valência de uma certa ideologia do progresso: o processo de industrialização dos
países desenvolvidos representa um modelo a ser seguido pelos subdesenvolvi-
dos; as aplicações tecnológicas empregadas exitosamente naquelas economias são
transformadas em modelos, em portadoras do progresso em si mesmas e, portanto,
aplicáveis nas economias ditas subdesenvolvidas com idênticas possibilidades de
êxito; os efeitos não desejáveis da contaminação, super-exploração de recursos
naturais e desequilíbrios ecossistêmicos associados à industrialização constituem
um mal menor ante os benefícios do crescimento econômico; esses efeitos co-

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laterais sempre poderão ser mitigados mediante o avanço incessante da ciência


aplicada (GRAÑA, 2007).
Registre-se que toda a produção de Botnia é exportada, servindo ao con-
sumo intenso de papel no Norte, que chega a atingir 430 kg per capita por ano
– como na Finlândia, comparados com cerca de 50 kg – como no Pampa (WRM,
2004). Isto significa que os trabalhos eventualmente criados no Sul dependem
do consumo excessivo e predatório do Norte. Outro aspecto a considerar é que
a quantidade de postos de trabalho que são destruídas pela divisão internacional
dos mercados e do trabalho não é levada em consideração pela IFC e por outras
instituições de apoio ao desenvolvimento.
Os movimentos sociais têm insistentemente chamado a atenção para o fato
de que, por exemplo, se a Aracruz cria um posto de trabalho para cada 185 hectares
plantados, a agricultura familiar de alimentos precisa do trabalho de 5 pessoas por
hectare. Seja qual for o número correto, o fato é que esses movimentos tentam pole-
mizar sobre o modelo de desenvolvimento, contra um desenvolvimento dependente
do desperdício do consumo externo e a favor de um desenvolvimento onde a pro-
dução de alimentos seja destinada para a população do país. Aqui há uma antítese
completa entre as afirmações sobre desenvolvimento feitas por empresas como Ara-
cruz e Botnia, por governos nacionais e por instituições internacionais que operam
sob uma ideologia que permite pensar o desenvolvimento em termos de comércio
mundial, vantagens comparativas entre países e investimentos externos diretos; e o
argumento inspirando na teoria de dependência, segundo o qual essa ideologia tem
mantido regiões – como a América do Sul – em uma eterna era de subdesenvolvi-
mento. Sob esse ângulo, a fábrica de Botnia pode ser vista, então, não como fator de
desenvolvimento, mas como um projeto de subdesenvolvimento.

Retomando as imagens do Norte e do Sul


Uma das ligações mais visíveis entre o Norte e o Sul que tem um impacto
direto no financiamento da fábrica de Botnia e, portanto, sobre os habitantes de
Fray Bentos (UY) e de Gualeguaychú (AR), além de todos os demais uruguaios,
argentinos e brasileiros que dependem da Bacia do Rio Uruguai, é o Clean Deve-
lopment Mechanism (CDM).
Segundo a empresa Botnia, o seu projeto CDM consiste na geração de um
excedente de cerca de 270 GWh anuais de eletricidade a serem vendidos para a
rede pública de energia do país, e que seriam suficientes para suprir 150.000 habi-
tações. Essa energia é gerada a partir de biomassa ou “licor negro”, que é compos-

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to por rejeitos do processo de produção de celulose usando madeira de eucalipto.


A queima desses rejeitos libera na atmosfera gases de efeito estufa, tais como
dióxido de carbono, dióxido de enxofre e óxidos de nitrogênio. No entanto, o que
leva Botnia a afirmar que se trata de uma fonte de energia sustentável decorre da
sua origem em árvores consumidoras de carbono: o “licor negro” seria, então,
“uma fonte limpa e renovável de energia”, “com claras vantagens para a mitigação
do aquecimento global” (sic), e que reduziria a quantidade dos gases que seriam
produzidos pela forma de geração de energia predominante no Uruguai, baseada
em óleo diesel ou gás (BOTNIA, 2006b, p.3). Este processo compensaria, então,
68.000 toneladas de dióxido de carbono por ano (IFC, 2006). Neste cenário de
ficção, onde a poluição é transformada em mercado e as emissões de carbono em
conta corrente, se perde de vista que ainda que as emissões, na prática, estejam
saindo pela chaminé todos os dias, elas serão consideradas nulas ou compensadas
pelos eucalipto em crescimento (WRM, 2006).
Pois foi precisamente este argumento que serviu para a obtenção da aprova-
ção do projeto sob o CDM. Para Botnia este é um negócio excepcionalmente bom:
vende seu excesso de eletricidade para o Estado uruguaio e, ao mesmo tempo, ven-
de créditos de carbono. Tudo isso como um subproduto de sua atividade principal:
produzir celulose a partir de madeira de eucalipto. Assim, efetivamente, a empresa
limpa seu lucro comprometedor três vezes: ao vender celulose para o Norte faminto
de papel branqueado; ao vender eletricidade para a rede pública uruguaia; ao vender
créditos de carbono para países e empresas poluentes do Norte.
Afinal, por que o ceticismo? Não serão estas informações evidências de que
o desenvolvimento sustentável é possível? Por que ver problemas em uma situa-
ção em que o crescimento econômico e o lucro saudável estão sendo atingidos em
um contexto de desenvolvimento verde? Porque as alegações de sustentabilidade
feitas por Botnia e seus financiadores são fictícias e, mesmo, enganadoras, pelas
razões que seguem.
• A principal matéria-prima do tripé de geração de lucro de Botnia é o
eucalipto que, como foi mencionado antes, ao ser produzido de modo
intensivo implica em uma série de impactos negativos para as comu-
nidades locais. Para simplificar é dito que as árvores de eucalipto são
um recurso renovável, o que seria suficiente para qualificar sua produ-
ção como verde e sustentável. No entanto, além dos danos ambientais
que provoca, sedimenta direitos de propriedade de terra neocoloniais
necessários para que grandes operações de agronegócio se implantem.

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146 Mercados de carbono: imagens do Norte e do Sul

Neste momento, no Brasil, há um esforço junto ao Congresso Nacional


para revisar a legislação que regulamenta a compra de terras na faixa de
100 km da fronteira, para permitir que empresas estrangeiras adquiram
centenas de milhares de hectares junto à fronteira do Rio Grande do Sul
com o Uruguai para plantar eucalipto.
• O projeto de eletricidade verde de Botnia está ligado à produção de
polpa de celulose que, como também já foi dito, é considerado um
dos processos industriais mais poluentes. Além disso, este projeto não
poderia ter obtido autorização para vender créditos de carbono para o
Norte, porque um importante fator para que projetos de CDM sejam
aprovados, segundo a United Nations Framework Convention on Cli-
mate Change (UNFCCC), é que sejam adicionais; ou seja, créditos de
carbono não deveriam ser concedidos a projetos que seriam realizados
de qualquer maneira. Este não é, obviamente, o caso de Botnia, já que
a empresa teria que construir, de qualquer modo, uma planta para ge-
ração de eletricidade pelo simples fato de que necessita muita energia
para sua fábrica. Ela apenas está vendendo a energia excedente para o
governo uruguaio. Seguindo esta lógica, o lucro decorrente dos créditos
de carbono CDM é um bem-vindo lucro adicional para Botnia, mas não
um projeto adicional, segundo os critérios da UNFCCC.
• O fato de Botnia receber créditos de carbono pela redução de gases
de efeito estufa se constitui em um deboche, pelo menos se tomarmos
como referência o espírito do Protocolo de Kyoto, cujo principal obje-
tivo é, obviamente, reduzir a concentração total desses gases na atmos-
fera da terra. A operação de fábricas de celulose, como Botnia, envolve
um processo de consumo intensivo de energia que emite uma grande
quantidade de carbono e de outros gases de efeito estufa – inclusive
na geração de energia financiada pelos créditos CDM, isto sem men-
cionar os efluentes líquidos com inúmeros componentes químicos. Ou
seja, a liberação total de gases de feito estufa por Botnia será maior
do que o que teria ocorrido no Uruguai sem a sua presença. Portanto,
quando Botnia clama que sua eletricidade é carbono neutra porque é
gerada a partir de árvores que haviam absorvido carbono da atmosfera,
ela convenientemente esquece de mencionar as emissões geradas pelo
projeto como um todo. Por um lado, omite as consideráveis emissões
geradas durante o período de construção da fábrica. Por outro, omite

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as emissões resultantes do seu processo produtivo e da sua operação:


as emissões das fábricas associadas que produzem produtos químicos;
o consumo de combustível pelos equipamentos de corte de árvores; o
transporte da madeira por tratores e caminhões para a fábrica (um ca-
minhão a cada 2,5 minutos 24 horas por dia todo o ano); movimentos
portuários; consumo de combustível pelos navios que levam a polpa
para as fábricas de papel na Finlândia e China; etc... Teria sido neces-
sário estabelecer o padrão de emissão de gases de efeito estufa antes da
construção e operação da fábrica. Se isso tivesse sido feito, o resultado
evidente seria de crescimento da emissão no nível do Uruguai, o que é
precisamente o que a Convenção Climática tenta evitar (WRM, 2006).
Estas são algumas das razões pelas quais o projeto de compensação de Bo-
tnia provoca indignação em muitas pessoas. Os pontos acima são substantivos o
suficiente para que se afirme que se trata de uma operação de lavagem verde. Isto
é, Botnia e seus financiadores do desenvolvimento querem fazer crer que as plan-
tações de eucalipto e as fábricas de celulose são verdes e sustentáveis - o que elas
evidentemente não são!
Deixando o caso de Botnia de lado, é preciso considerar que a lavagem verde
é algo estrutural, algo que está sendo endemicamente construído como parte dos
esquemas de compensação de carbono. Para compreender isso voltemos à Eurostar.
Eurostar (2007) afirma que seus trens são carbono neutros, que tem feito
significativos avanços na redução de emissões em toda a empresa, e que as emis-
sões restantes serão compensadas sem custos para os viajantes. O primeiro aspecto
a observar é que essa afirmação é muito difícil, mesmo impossível, de verificar e
validar, porque o mercado de compensação é totalmente desregulado. Virtualmen-
te qualquer um pode criar uma empresa de compensação e afirmar que reduz as
emissões de gases de efeito estufa investindo em programas de redução de carbono.
O carbono se tornou uma nova mercadoria. Um novo mercado ao estilo wild west
emergiu nos últimos anos, atraindo todo o tipo de cowboys (FINANCIAL TIMES,
2007). Uma simples busca no Google revela a existência de literalmente centenas de
empresas que afirmam compensar emissões de carbono plantando árvores ou inves-
tindo em energia de biomassa, geradores de energia pelo vento, e outros projetos do
gênero, a maior parte localizados no mundo em desenvolvimento.
Climate Care, por exemplo, recolhe dinheiro de indivíduos que, digamos,
estavam preocupados com suas emissões pessoais ao viajar para a Conferência de
Mudança Climática das Nações Unidas, que ocorreu recentemente em Bali, Indo-

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148 Mercados de carbono: imagens do Norte e do Sul

nésia. No seu website era possível digitar em um formulário eletrônico o trajeto


do vôo, no nosso exemplo, Londres-Bali, obtendo em segundos o resultado de
que o total de milhas voadas seria de 15.549, as emissões resultantes seriam
3,83 toneladas de CO2, e o custo para compensar seria de £28,71. Claro que o
pagamento poderia ter sido feito com cartão de crédito em alguns segundos mais
e, então, se poderia ter viajado com a consciência tranqüila. Rápido e fácil! Cli-
mate Care, por sua vez, investe este dinheiro em projetos eficientes em energia
em Honduras e no México ou em florestas em Uganda.
As empresas também são encorajadas a compensar suas emissões de car-
bono. CarbonNeutral Company, por exemplo, ajuda seus clientes, que incluem
empresas automobilísticas como Honda e Volvo e empresas aéreas como Silver-
jet, a compensar suas consideráveis emissões investindo em energia renovável,
energia eficiente, captura de metano e, claro, projetos de florestação. O Europe-
an Emission Trading Scheme (EU ETS), inclusive, exige que países e grandes
empresas façam parte das trocas de carbono para que a Europa possa cumprir
com seu compromisso no âmbito do Protocolo de Kyoto.
Ainda que o objetivo do sistema seja reduzir as emissões de gases de
efeito estufa, o modo como o mercado opera permite que empresas, como a
Shell por exemplo, não mudem o modo como conduzem seus negócios porque
podem compensar suas emissões pagando por esquemas de compensação. O
funcionamento preciso do EU ETS e dos mercados de compensação de carbono
é muito complexo e não faz parte do escopo deste artigo explicá-lo em detalhes;
sua lógica, no entanto, é bastante evidente: estes mercados estão organizados
para permitir que grandes poluidores do Norte troquem suas emissões de carbo-
no com empresas e projetos que não poluem tanto quanto eles. Efetivamente, o
mercado de carbono permite que poluidores continuem poluindo, mas ao custo
de compensar as emissões que realizam.
Existem, hoje, enormes evidências de que esses mercados não funcionam
se considerarmos o objetivo para o qual foram criados: reduzir as emissões de
gases de efeito estufa. No mínimo, se pode dizer que falharam na realização de
reduções significativas; no máximo, se pode acusá-los de legitimar e aumen-
tar as emissões, postergando a introdução de medidas necessárias para forçar
os países do Norte a realizar reduções efetivas. Além disso, estes mercados de
lavagem verde sedimentam relações desiguais de poder entre Norte e Sul, que
condenam os países em desenvolvimento a continuar dependentes de uma ordem
global que produz continuamente miséria e degradação.

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Não se trata de negar as ações que algumas empresas, como pode ser o
caso de Eurostar, realizam para reduzir suas emissões de carbono. Trata-se, isto
sim, de chamar a atenção para a lógica e os problemas estruturais que não po-
dem ser evitados por atos voluntaristas de indivíduos e empresas. O fato é que
a lógica do capitalismo exige a expansão constante dos lucros, o que condena
Eurostar a constantemente aumentar a produção e consumo de seus bens e ser-
viços no processo de aumentar os lucros dos seus acionistas. Esta lógica básica
foi a que gerou a mudança climática que agora precisa ser enfrentada. A história
tem demonstrado que tal lógica tem tido um efeito devastador. Será que para
enfrentar a mudança climática devemos depositar nossa fé na mesma lógica que
nos colocou nesta crise ambiental?

Considerações finais
Começamos este artigo com duas imagens: uma em Londres, outra no
Pampa na fronteira entre Uruguai e Argentina. O que conecta essas imagens e
locais do Norte e do Sul é o Clean Development Mechanism (CDM), um sistema
que se originou no Protocolo de Kyoto, sendo gerido e controlado pelas Nações
Unidas, com o objetivo de enfrentar o problema da mudança climática e a neces-
sidade de redução das emissões de gases de efeito estufa. Argumentamos que,
apesar de não haver ligações diretas entre as operações de trens por Eurostar e
a fábrica de celulose de Botnia e suas plantações de eucalipto, existem ligações
indiretas que são permitidas pelo mercado global de carbono. Mostramos que
é este mercado que efetivamente autoriza Eurostar a afirmar que suas viagens
de trem são carbono neutras; enquanto Botnia, uma multinacional com sede
na Finlândia, pode aumentar seus lucros tirando vantagens de um sistema de
créditos de carbono que falha em reduzir as emissões. Delineamos os problemas
principais desse tipo de desenvolvimento que se afirma verde e sustentável –
tanto no Norte como no Sul.
As imagens escolhidas, apesar de não terem relação direta, não estão,
de modo algum, isoladas. O mercado de carbono e de compensações cresce
em taxas alarmantes sem mecanismos de verificação, sem qualquer meio para
monitorar o efetivo progresso na redução de emissões de carbono no planeta.
Em setembro de 2006, por exemplo, Celulose Irani foi a primeira empresa bra-
sileira de celulose e papel a vender créditos de carbono sob o CDM. Ela vendeu
US$1,2 milhões de créditos de carbono para a Shell, que os usa para continuar

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150 Mercados de carbono: imagens do Norte e do Sul

poluindo (LANG, 2006). Enquanto isso, empresas como Shell e outros grandes
poluidores do Norte podem se apresentar como muito mais verdes. Isto também
vale para as empresas aéreas, que recentemente se jogaram nas compensações
de carbono. Quando tomar um vôo com EasyJet ou Virgin Blue, por exemplo,
para uma viagem de Londres a Paris ou Berlim, certifique-se que pagou um pou-
co mais para compensar suas emissões de carbono. Ou seja, podemos continuar
consumindo, nossas economias podem continuar a crescer; tudo isso é possível
se for paga uma taxa extra para compensar. Se o dinheiro está sendo usado para
contribuir para a poluição de rios ou para a sedimentação de direitos desiguais
de acesso à terra na América do Sul, isso não será dito. Se o dinheiro está sendo
usado para aumentar os lucros de uma empresa de celulose e papel que exporta
sua produção poluente para que o Norte possa continuar imprimindo seus mi-
lhões de e-mails em papel branco – isto não fará parte do quadro que apresenta
o maravilhoso mundo do mercado de carbono.

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Organização e Práxis Libertadora 153

Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais


e perspectivas em disputa

Maria Ceci Misoczky

Desenvolvimento é a raiz conceitual de uma formação discursiva88 Oci-


dentalista89 que, desde sua emergência tem sido estratégico para a legitimação de
diferentes regimes de dominação: do imperialismo colonial à divisão mundial do
trabalho contemporânea; do silenciar da Alteridade contida em histórias e culturas
próprias à naturalização de relações de classe exploradoras.
No entanto, começam a se articular oposições a esta hegemonia. Oposições que
encontram enormes dificuldades para serem reconhecidas e, até mesmo, veiculadas.
Em nosso Grupo de Pesquisa temos colocado o tema do desenvolvimento
como um dos nossos objetos de estudo e reflexão. Um passo inicial foi a produção
de um mapa dos discursos sobre desenvolvimento, que se inicia no pós-guerra e vem
até o presente. Este trabalho foi realizado como Tese de Doutorado por Rogério Fae
(2009). Além disso, foi realizada uma pesquisa a partir do referencial de Celso Fur-
tado e Milton Santos, sobre desenvolvimento local (GOULART, 2007a), fruto de re-
flexões de trabalhos teórico-empíricos anteriores (GOULART, 2005; 2007b). Apesar
da originalidade dessa formulação, avaliamos que ela não tem se mostrado isenta de
contradições, exatamente pela centralidade do discurso do desenvolvimento.
Tendo problematizado o discurso do desenvolvimento, se colocou para nos-
so grupo a necessidade de explorar abordagens que não limitem à percepção e

88 A noção de formaçao discursiva é utilizada seguindo as formulações de Foucault (1997, p. 43). Para
este autor, a formação discursiva é um conjunto de enunciados que ocorre com certa regularidade,
sendo convencionado por regras históricas: “No caso em que se puder descrever, entre certo nú-
mero de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos
de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem,
correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de
uma formação discursiva.”
89 O termo Ocidentalismo foi proposto por Fernando Coronil (1996), em um diálogo crítico com Said (1986,
1994) e sua noção de Orientalismo. Coronil (1996) utilizou o termo e o conceito para enfatizar os temas
e imagens do Ocidente que calam as representações do Outro. Ocidentalismo não é o reverso de Orien-
talismo, é a condição de sua possibilidade. É um sistema de classificação que expressa diferenças cul-
turais econômicas que separam os componentes do mundo em unidades limitadas, desagregam sua
história relacional, transforma a diferença em hierarquia, naturaliza estas representações e, assim,
intervém na reprodução de relações assimétricas de poder.

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154 Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais e perspectivas em disputa

análise dos objetos circunscrevendo-os dentro da formação discursiva hegemô-


nica. Tomamos, então, como referência mais ampla, a importância de estudar e
disseminar as ações e proposições que são realizadas por organizações, atores e
movimentos sociais que buscam alternativas a esta formação.
Aí se incluem o estudo de iniciativas loco-regionais voltadas para a po-
tencialização de aspectos que contribuam para relações sociais que respeitem a
autonomia dos sujeitos, propiciem a satisfação das suas necessidades de vida em
comunidade e respeitem a natureza. Ao estudá-las evitamos usar o referencial
do desenvolvimento. Uma conseqüência, expressão da hegemonia do discurso do
desenvolvimento, costuma ser a dificuldade de diálogo com os avaliadores de
nossos artigos e projetos de pesquisa que, apesar da expressa e justificada intenção
de buscarmos identificar categorias fora deste discurso, reiteradamente criticam
nossas proposições porque ... não incluem o tema do desenvolvimento. Diálogos
de surdos, ouvidos moucos, leitores cegos...
Apesar destas incompreensões, ou por causa delas, temos avançado. Men-
cionamos, como exemplos, o estudo da oposição das mulheres camponesas à mo-
nocultura de eucalipto e de suas proposições (SILVA, 2006) - tema que será reto-
mado mais adiante; um estudo de caso no menor município da fronteira do Brasil
com o Uruguai expresso em uma dissertação de mestrado intitulada “Tramas ter-
ritoriais na campanha gaúcha: processos de transformação na área de Aceguá”
(SILVA, 2009); um projeto de pesquisa finalmente aprovado pelo CNPq intitulado
“Estratégias, contradições e dinâmicas sociais e econômicas em Livramento (BR)
e Rivera (UY)” (MISOCZKY et al., 2009).
Ao mesmo tempo, exploramos a emergência de formulações que confron-
tam diretamente o discurso do desenvolvimento em conflitos sócio-ambientais
que vêm ocorrendo em diversas partes da América Latina. Este é certamente um
tema de fronteira, até porque nos encontramos no momento em que o discurso do
desenvolvimento está sendo confrontado, mas ainda não se encontra formulado
um discurso alternativo. Ainda não foi formulado o conceito que permitirá a ar-
ticulação destas lutas sociais, mas os indícios de que se encontra a caminho são
muito importantes para serem desprezados.
Nesse sentido, é importante lembrar que a relação entre as ideias e a reali-
dade, em uma abordagem dialética, reconhece que o real impõe limites ao desen-
volvimento das ideias, criando ou eliminando possibilidades. No entanto, a esfera
das ideias contém uma autonomia parcial. Ou seja, ainda que as categorias do
pensamento sejam socialmente condicionadas, o processo de pensar obedece a um

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Organização e Práxis Libertadora 155

conjunto de exigências internas, sistematização e coerência que possibilita que a


formulação teórica ande junto e, mesmo, avance em relação aos acontecimentos.
Devido a este convencimento, prospectamos, e este é o conteúdo deste capítulo,
diferentes e contraditórias perspectivas sobre o tema do desenvolvimento que es-
tão em disputa em muitas partes da América Latina. Sua face mais aparente são os
conflitos sócio-ambientais. Ao mesmo tempo, agências internacionais continuam
a investir em mega-projetos justificados em nome do desenvolvimento.
É importante destacar que a própria palavra desenvolvimento está sob es-
crutínio, já que ela carrega o fardo de ter sido um significante fortemente vincu-
lado a fatos históricos como a exploração colonial; o descrédito de culturas não
modernas/racionais; uma hierarquia de mundos onde subdesenvolvimento é loca-
lizado no Terceiro Mundo – o mais inferior; destruição ambiental, etc.
O texto que segue tem a seguinte organização: se inicia com uma breve
consideração sobre a constituição da formação discursiva do desenvolvimento e
sobre os conceitos básicos necessários para compreender a noção de conflitos
sócio-ambientais; segue a apresentação de alguns dos conflitos mais importantes
no período recente – as disputas entre organizações indígenas e os Estados nacio-
nais do Peru e do Equador; a luta do Movimento de Mulheres Camponesas e da
Via Campesina contra o agronegócio no Brasil; não poderia faltar a representação
da abordagem hegemônica sobre desenvolvimento, ilustrada com o novo desen-
volvimentismo extrativista e a Iniciativa para Integração da Infra-Estrutura da
América do Sul (IIRSA); finalmente é discutida a abordagem do desenvolvimento
alternativo e do pós-desenvolvimento. Nas considerações finais as três perspecti-
vas são comparadas.

O discurso do desenvolvimento e os conflitos sócio-ambientais


Wallerstein (2005, p. 1262) recupera o significado da palavra desenvolvi-
mento nos tempos coloniais. Registra que em 1880 foi solicitada ao diretor do
Serviço Geográfico Francês a redação de um livro que terminou por se intitular
Les colonies française: la mise en valeur de notre domaine coloniale. A tradução
literal de mise en valeur é colocar um valor, e seu uso preferencial, naquele tem-
po, para se referir ao processo econômico nas colônias é representativo de um
contexto onde não havia necessidade de usar metáforas para encobrir a exploração
e a transferência de valor. Entretanto, com a crise dos impérios coloniais, exacer-
bada após a II Guerra Mundial, foi necessário construir uma nova estrutura de
exploração e símbolos legitimadores.

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156 Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais e perspectivas em disputa

Desenvolvimento se tornou, então, a palavra central, o transportador sim-


bólico da nova ordem mundial. Como parte deste processo, o oposto a desenvol-
vimento foi criado: subdesenvolvimento. De acordo com William (1983), o novo
termo se conectava a duas ideias: (1) lugares onde recursos naturais tinham sido
insuficientemente explorados; 2) economias e sociedades destinadas a percorrer
estágios previsíveis, de acordo com um modelo previamente definido que espelha-
ria a história econômica européia e dos EUA. O marco da díade desenvolvimento/
subdesenvolvimento foi o discurso inaugural do presidente Harry S. Truman, em
1949, no qual são definidas as nações no topo de uma pirâmide evolutiva que
deveriam servir de modelo, e aquelas na base que se tornariam alvo de interven-
ções com vistas à superação da sua suposta condição de atraso. Neste mesmo
sentido, Rostow (1961) sistematizou cinco etapas gradativas no caminho de uma
sociedade tradicional até uma sociedade de consumo de massas – sinônimo de
desenvolvimento.
Para Seth, Gandhi e Dutton (1998, p. 7), o discurso do desenvolvimento
foi necessário para “reinscrever o não-ocidental em uma história que não lhe era
própria. O não-ocidental eventualmente decolaria no percurso de um caminho de
desenvolvimento social e econômico análogo ao do ocidente; e a tarefa dos inte-
lectuais era de utilizar os recursos da ciência para identificar os obstáculos neste
caminho, de modo a propor engenharias sociais para removê-los.
Como parte desta história, um conjunto de palavras tem sido utilizadas para
produzir os regimes de poder que se veiculam através do discurso do desenvolvi-
mento: (1) uma hierarquia de mundos no qual o subdesenvolvimento se localiza no
mais inferior deles – o Terceiro Mundo; (2) uma expressão aparentemente menos
agressiva – países em desenvolvimento – como se uma brisa fresca de esperança e
progresso soprasse em alguns lugares; (3) uma distinção geométrica entre centro
e periferia90 formulada no âmbito da Comissão Econômica para a América Latina
(CEPAL) que, apesar das boas intenções, ficou presa em uma perspectiva desenvol-
vimentista que propunha a industrialização via substituição de importações como o
caminho para subir os degraus na direção do centro. Uma conseqüência óbvia deste

90 Brennan (2005, p. 101-102) considera que a ideia de uma periferia global é um instrumento econômi-
co, uma imagem-função. Para ele, a ideia de uma periferia global é preservada através de conjuntos
de regras que definem o que pode e o que não pode ser dito a este respeito, pelo menos se for para
manter a credibilidade dos Estados Unidos e da Europa. Ao mesmo tempo, críticos do Eurocentrismo
não necessariamente escapam da adequação a esta necessidade de preservar a ideia de periferia. Este
parece ter sido o caso das formulações que emergem no contexto da CEPAL a partir dos trabalhos de
Prebish (1949) e que se estendem até as formulações sobre o sistema mundo (WALLErStEIN, 2001).

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Organização e Práxis Libertadora 157

processo foi a emergência da generosa ideia do apoio ao desenvolvimento e a decor-


rente criação e institucionalização do campo das agências internacionais concebidas
para transformar esta ideia magnífica em realidade.
Em oposição a este discurso hegemônico pensadores e ativistas proble-
matizavam o tema do desenvolvimento em uma abordagem que o relacionava
com a lógica do sistema do capital. Um marco nesta discussão foi, sem dúvida,
a formulação de André Gunder Frank (1966) que, de modo sistêmico-relacional,
mostrou que as relações econômicas entre países definidos como desenvolvidos e
subdesenvolvidos era não apenas produto histórico do capitalismo, mas essencial
à sua reprodução. A partir da hoje reconhecidamente clássica expressão desenvol-
vimento do subdesenvolvimento inaugurou-se um fértil campo de reflexões que
levou, entre outras pr oposições, à disjuntiva subdesenvolvimento ou revolução
(MARINI, 1978). Nas formulações de Marini (2005, p. 141), desenvolvimento
é indissociável de dependência, entendida como uma “relação de subordinação
entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção
das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodu-
ção ampliada da dependência”. Portanto, “a consequência da dependência não
pode ser nada mais do que maior dependência, e sua superação supõe, necessaria-
mente, a supressão das relações de produção nela envolvida”
No entanto, formulações como esta têm sido proscritas em nosso campo
científico. Segundo Ouriques (2009), um dos frutos da derrota política do projeto
nacional popular, consolidada com o golpe de 1964, foi a falsificação da versão
marxista da teoria da dependência e, mesmo, sua proscrição. Em tempos, como
o que estamos vivendo, de renascimento de projetos desenvolvimentistas, não
apenas no Brasil, mas em toda a América Latina, é importante retomar o alerta de
Frank e de Marini, segundo o qual o desenvolvimento capitalista efetivamente po-
deria ocorrer na região, mas sempre sob a forma da dependência e acompanhado
de seu componente intrínseco, a superexploração do trabalho.
A noção de conflitos sócio-ambientais deriva da distinção elaborada por
Martínez Allier (2004) sobre as características dos movimentos ambientalistas.
O autor identificou três tendências: (1) o culto da vida silvestre; (2) a gestão eco-
-eficiente em suas várias linhas de ação – modernização ecológica, desenvolvi-
mento sustentável, produção limpa; (3) justiça ambiental ou ambientalismo po-
pular. A última abordagem incorpora a historiografia ecológica de Ramachandra
Guha (1988), tomando dela a noção de distribuição ecológica, que inclui aspectos
econômicos e políticos. A ideia central é que, em conseqüência do crescimento

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158 Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais e perspectivas em disputa

econômico e populacional, mais recursos naturais são usados e mais resíduos são pro-
duzidos, impactando não apenas o ambiente físico, mas gerações atuais e futuras. En-
tretanto, os grupos humanos não são igualmente afetados: alguns se beneficiam mais
que outros; alguns sofrem custos mais altos que outros. Esta é a origem dos conflitos
sócio-ambientais e das lutas populares por justiça ambiental. Este tipo de ambien-
talismo tende a emergir especialmente quando projetos de grande escala, tais como
construção de hidrelétricas, extração mineira extensiva ou plantações de monocultura,
geram riscos e danos para os grupos mais vulneráveis da sociedade (ZHOURI, 2008).
Os conflitos são, portanto, tanto um indicador quanto uma conseqüência dos danos
ambientais e das injustiças sociais decorrentes de projetos econômicos.
Uma das maiores dificuldades destas lutas sociais reside no enfrentamento des-
te discurso tão penetrante, ao ponto de ser quase um dogma. Quem se atreve a ques-
tioná-lo pode ser desqualificado sem maiores esforços, basta usar a palavra atraso,
ou basta perguntar: quem não quer ser moderno? Pergunta que contém uma resposta
implícita desqualificadora tão óbvia, face à hegemonia do discurso do progresso e do
moderno, que basta deixá-la no ar. No entanto, diversas organizações vêm enfrentan-
do este árduo embate: em muitas partes da América Latina, assim como ao redor do
globo, outras vozes e outras organizações têm confrontado o mito do desenvolvimen-
to, resistido e proposto alternativas. Em quase todos os lugares estes movimentos têm
sido deflagrados em contextos de conflitos sócio-ambientais.

Conflitos sócio-ambientais e perspectivas em disputa


A força da formação discursiva do desenvolvimento pode ser reconhecida no
fato de que, apesar das evidências históricas, intelectuais e ativistas de diferentes po-
sições ideológicas continuam a apostar no desenvolvimento econômico como meio
para promover melhores condições de vida. Mesmo reconhecendo que um projeto
de desenvolvimento equânime entre os países é uma impossibilidade sob o regime
do capital, este discurso ilusório continua a ser proferido. Bonente e Corrêa (2009)
consideram este fenômeno um testemunho de sua importância como ferramenta
para operar em economias capitalistas e para justificar a presente ordem social.

Conflitos recentes entre organizações indígenas


do Peru e o Estado nacional
Hidrocarbonetos podem ser explorados em 49 milhões de hectares da Ama-
zônia Peruana – 72% de sua extensão. Nesta região, entre 2006 e 2009, ocorreram
48 episódios de vazamento de óleo afetando os Rios Corrientes e Tigre e gerando

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impactos negativos em 34 comunidades indígenas. De acordo com o Ministério da


Saúde, em 2006, 98% das crianças desta região apresentavam altos níveis de cá-
dmio no sangue (PIDHDD, 2009). Apesar deste dado impressionante, um projeto
do governo nacional pretende aumentar a exploração de petróleo e gás na região.
Houve uma tentativa de implementar este projeto através de uma série de onze de-
cretos legislativos promulgados pelo Presidente da República em junho de 2008.
Como reação, organizações indígenas se mobilizaram. Uma greve por tem-
po indefinido foi chamada em 9 de abril de 2009. Durante o movimento, equipa-
mentos foram tomados, vias fluviais e rodoviárias bloqueadas. O momento crítico
ocorreu em 6 de junho, quando uma bloqueio de estrada levado a efeito por 1.500
indígenas dos povos Awajún and Wampi foi atacado com o uso de helicópteros e
tropas de solo. A intervenção resultou na morte de policiais e ativistas.

A greve por tempo indefinido decretada em 9 de Abril pelos povos indígenas da Ama-
zônia se tornou um evento crítico no Peru. […] De acordo com Alberto Pizango, presi-
dente da Associação Inter-étnica de Desenvolvimento da Selva Peruana (AIDESEP),
o governo deve suspender o estado de emergência estabelecido em 9 de maio em 5
áreas da Amazônia, o Congresso precisa rejeitar os decretos controversos, e deve
se iniciar uma ronda de discussões sobre um caminho diferente para o desenvolvi-
mento da Amazônia (relato de Irene Arce Claux, 3 jun. 2009).
A região da Amazônia Peruana foi isolada depois da morte de talvez 40 indígenas e
20 policiais durante uma tentativa de romper o bloqueio na última sexta-feira. […]
No dia 6 de Junho, um bloqueio pacífico foi atacado por helicópteros do exército na-
cional. Muitos dos mortos eram indígenas, parte de um contingente do bloqueio em
Bagua – estado onde milhares resistem à expansão da exploração de energia e as
perfurações na região Amazônica. No momento do ataque muitos deles não apenas
pareciam pacíficos, mas estavam dormindo. […] O ritmo da mobilização e da resis-
tência tem se acelarado nos últimos três anos, desde a posse de Alan Garcia como
Presidente do Peru pela segunda vez. Garcia aderiu a uma estratégia econômica
que aliena grandes parcelas da sociedade peruana, mas nenhuma mais do que os
14 milhões da população indígena. Por uma lado, Garcia avançou em uma tratado
de Livre Comércio com os Estados Unidos, passando numerosos decretos de modo a
remodelar a economia ajustando-a aos termos do Acordo. Por outro, vem agressiva-
mente pressionando para abrir a Amazônia à exploração de fontes de energia, uma
estratégia que implica em riscos imediatos ao modo indígena de vida e ao ambiente
nativo. […] O Presidente Garcia fez uma rara aparição na televisão na qual chamou
as comunidades indígenas de egoístas por bloquear o acesso a recursos sob suas
terras que, por direito, devem ser usufruídos por todos os peruanos. “Precisamos
entender”, disse ele, “que aonde existem recursos como petróleo, gás e madeira,

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160 Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais e perspectivas em disputa

eles não pertencem somente ao povo que teve a sorte de lá ter nascido, porque
isto significaria que mais da metade do território do Peru pertence a alguns poucos
milhares de pessoas”. […] Ao decidir militarizar o conflito com os protestos indíge-
nas, Garcia não está apenas atacando os corpos físicos dos indígenas peruanos. Seu
governo decidiu desafiar, e potencialmente eliminar, uma constelação de culturas
diversas – ainda que relacionadas – que vêem o “desenvolvimento” e o “ambiente de
modos estritamente divergentes à visão dos estrategistas corporativos e políticos
neoliberais” (relato de Sam Urquhart, 11 jun. 2009).

As afirmações do Presidente Garcia repetem a posição que havia expressado


em um artigo publicado no Jornal El Comercio em 28 de outubro de 2007. O título
original - El Perro de Hortelano – se refere ao ditado espanhol inspirado na peça
do mesmo título, do poeta e escritor Lope de Vega (1562-1635): Ser como el perro
del hortelano, que ni come las berzas, ni deja comer al amo. No artigo, o Presidente
defendeu a exploração intensiva dos recursos naturais e acusou a oposição de estar
sob a influência de “tabus de ideologias já passadas, de indolência ou preguiça, ou
da lei do perro del hortelano: se eu não faço, não deixo ninguém fazer”.
É bastante evidente a contribuição do mito do desenvolvimento na faci-
lidade com que Garcia coloca a opinião pública contra os ativistas indígenas,
assim como a dificuldade dos ativistas de se mover no espaço da formação dis-
cursiva do desenvolvimento.
Para a perspectiva desenvolvimentista neocolonial é incompreensível que
o povo Awuajún da comunidade Huampami ouse resistir à extração de ouro e à
conseqüente destruição de seu monte sagrado, por exemplo. A recusa do desen-
volvimento só pode ser um sinal de primitivismo, barbárie e ignorância.
Entretanto, os povos indígenas insistem em expressar seus valores e por
eles lutar. Para eles, povo e território são inseparáveis. A palavra terra não é uti-
lizada. Eles se referem a território, um conceito mais amplo que define um bem
coletivo em sua interdependência com a natureza. Um território é o embrião que
dá nascimento a diferentes povos e culturas. Sua relação com o território é vital;
ele é fonte de alimento, abrigo e criação cultural. Sem território não há vida. Já
no mercado capitalista, a terra é uma mercadoria como qualquer outra; ela per-
tence àqueles com títulos de propriedade. Para os indígenas, o dono do território
é a Mãe Terra, conhecida pelos povos andinos como Pachamama, pelos Shuar
como Nugkui, pelos Asháninka como Kipatsi. Ela tem um significado espiritual,
é sagrada (PIDHDD, 2009).

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Organização e Práxis Libertadora 161

Como resultado de sua organização e resistência, os povos articulados em


torno da AIDESEP91 obtiveram a suspensão de dois dos controversos decretos.
Os decretos 1015 e 1073 conjugados teriam autorizado a comercialização de
territórios indígenas com a aprovação de maioria simples dos presentes em uma
assembleia comunitária, em vez dos 2/3 de votos anteriormente necessários.
Foi criado um Comitê para analisar os restantes 9 decretos. Em seu relatório
final, publicado em eezembro de 2009, o Comitê considerou todos os decretos
inconstitucionais e em contradição com a Convenção Internacional do Trabalho
nº 168, que visa promover os direitos e melhorar a situação sócio-econômica de
povos indígenas e tribais; assim como o Artigo 19 da Declaração dos Direitos
dos Povos Indígenas das Nações Unidas92 (JIMÉNEZ, 2009).
Vale a pena lembrar que também no Peru, há quase um século, José Carlos
Mariátegui (2008) criticava o desenvolvimento por não ser favorável ao povo.
Ele propunha a incorporação de valores éticos como referências para a formu-
lação de modelos alternativos à modernidade, um socialismo Americano que
seguiria a tradição indígena – Socialismo Indo-Americano, o retorno as formas
comunitárias de vida e a organização da produção como parte substancial destas
formas de vida. Para ele, o desenvolvimento das forças produtivas não deveria
corresponder ao empobrecimento dos trabalhadores e das condições sociais e
políticas do povo. Seria, então, necessária uma crítica do modelo produtivista de
organização social, tendo no seu centro os princípios éticos que subordinariam
considerações crematísticas e tecnológicas. O fundamento da posição de Mari-
átegui (2008) é clara: qualquer possibilidade de projeto hegemônico alternativo
exige a luta contra o capitalismo e pelo socialismo.

A cosmovisão indígena da Vida Harmônica


De modo a compreender um conflito sócio-ambiental como o peruano é
preciso compreender os valores da cosmovisão indígena.

91 AIDESEP é uma organização nacional. É dirigida por um Conselho Nacional que articula seis organis-
mos descentralizados localizados no Norte, Centro e Sul do Peru. Congrega 56 organizações e federa-
ções territoriais, representando 1.250 comunidades onde vivem 350.000 indigenas de 16 famílias lin-
güísticas. É parte da Confederação Permanente de Povos Indígenas Peruanos (COPPIP), que também
inclui organizações camponesas. Mais informações podem ser encontradas em seu sítio: http://www.
aidesep.org.pe/index.php?id=2.
92 “Os Estados devem consultar e cooperar de boa fé com os povos indígenas envolvidos através de suas
instituições representativas de modo a obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de
adotar e implementar medidas legislativas ou administrativas que possam afetá-los.” (http://www.
un.org/esa/socdev/unpfii/en/drip.html)

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162 Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais e perspectivas em disputa

Em vez da centralidade do contínuo crescimento econômico baseado na


mobilização global de mais-valia, no aumento da produtividade, na competição
internacional exacerbada, no fluxo que realoca capital ao redor do globo e em
novas rodadas de acumulação primitiva (HARVEY, 2009); a centralidade da
vida harmônica baseada na solidariedade, comunitarismo, interculturalismo, di-
reitos da natureza e espiritualidade.
De acordo com Gualinga (2006), não há equivalente para a ideia de
desenvolvimento na cosmovisão indígena. Não existe a concepção de um
processo linear de vida que estabelece um antes e um depois, como nas no-
ções de subdesenvolvimento e desenvolvimento. Não existem os conceitos de
riqueza e pobreza em relação à acumulação ou à necessidade de bens mate-
riais. Em vez disto, há uma visão holística sobre qual deve ser o objetivo de
todo esforço humano - buscar e criar as condições materiais e espirituais para
a construção e manutenção do Súmac Káusai: o bom viver ou viver bem, a
vida em plenitude93.
Sumac Kausai, na língua Quechua, ou Suma Qamaña, na língua Aymara,
se refere a um princípio filosófico ancestral das sociedades indígenas, ao bom
viver que se dá em comunhão e solidariedade (ALBÓ, 2009).

Por isto é muito perigoso e extremamente inapropriado aplicar o para-


digma de desenvolvimento no modo como é concebido no mundo oci-
dental às sociedades indígenas. Sequer se deve supor que é possível usar
desenvolvimento como sinônimo do bom viver. Sumac Kausai trans-
cende a mera satisfação de necessidades e de acesso a serviços e bens.
A categoria filosófica do Sumac Kausai não pode ser tomada como um
conceito análogo para desenvolvimento. (GUALINGA, 2006, p.1)

Para se referir aos sistemas produtivos, há o conceito de Alli Kausai, que os


define como processos coerentemente conectados ao ambiente onde estão.

93 Os termos utilizados para descrever o Suma qamaña (Aymara) ou Sumak Kawsay (quéchua) são viver
bem, utilizado na Bolívia, e bom viver, utilizado no Equador. Para Mamani (2010, p. 7), é preciso refletir
sobre a tradução mais fidedigna destes termos. “Para a cosmovisão dos povos indígenas originários,
primeiro está a vida em relações de harmonia e equilíbrio, por isto qamaña se aplica a quem sabe
viver. Já o termo de suma qamaña se traduz como viver bem, mas não explica a magnitude do con-
ceito. É melhor recorrer à tradução dos termos originais em ambas línguas. Na cosmovisão Aymara
suma qamaña se traduz da seguinte forma: suma – plenitude, sublime, excelente, magnífico, bonito;
qamaña – viver, conviver, estar sendo, ser estando. Então, a tradução que mais se aproxima de suma
qamaña é vida em plenitude.” Por outro lado, a tradução do quéchua é a seguinte: “sumak - plenitude,
sublime, excelente, magnífico, bonito(a), superior; kausay – vida, ser estando, estar sendo. Vemos que
a tradução é a mesma que em Aymara: vida em plenitude”

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Organização e Práxis Libertadora 163

Mútsui é outro conceito relevante. Ele é usado pelos Quechas para se referir
à pobreza circunstancial. Ele não se refere estritamente a necessidades materiais
de bens ou serviços; ele se refere à necessidade de produtos primordiais inseridos
na biodiversidade. Quando estes produtos faltam, uma família ou uma comunida-
de pode entrar em situação de Mútsui. A melhor ação para superar Mútsui é aquela
que vem da solidariedade e da reciprocidade, que caracterizam a economia e a
cultura nas sociedades indígenas. Esta é a razão porque Mútsui é circunstancial,
nem permanente nem crônico, como a pobreza gerada pelo desenvolvimento usu-
almente é (GUALINGA, 2006).
Longe de ser um conceito relegado aos espaços das comunidades indígenas
ou de reflexão teórica, o Sumac Kausai ou Suma Qamaña foi incluído nas Cons-
tituições do Equador e da Bolívia, agregando uma dimensão política institucional
ao conceito (SANTACREU, 2009).

Na Constituição Equatoriana de 2008 pode se ler que se reconhece o


direito da população a viver em um abiente sadio e ecologicamente
equilibrado, que garanta a sustentabilidade e o bom viver, Sumac
Kausay. A Constituição Boliviana de 2009 é mais prolixa a esse res-
peito, pois recolhe a pluralidade lingüística do país que esta Consti-
tuição reconhece como plurinacional, dizendo que o Estado assume
e promove princípios ético-morais da sociedade plural: ama qhilla,
ama llulla, ama suwa (não sejas covarde, não sejas mentiroso nem
sejas ladrão): suma qamaña (bom viver); ñan dereko (vida harmonio-
sa), teko kavi (vida boa), ivi maraei (terra sem mal) y qhapaj ñan (ca-
minho ou vida nobre)”. Um direito em um caso, um princípio ético-
-moral em outro, mas ambos referidos a este Bom Viver ou, melhor, a
este Bom Conviver sobre o qual se tem escrito e publicado, apresen-
tando-o em muitos casos como uma alternativa ao pensamento sobre
desenvolvimento e, em mais de um, como achado fundamental na
presente conjuntura do sistema mundial. (TORTOSA, 2009, p. 1-2)

Cabe ainda considerar, como indica Tortosa (2009), que o relativo êxito
destes vocábulos no contexto da América Latina pode ser explicado pelo fracas-
so dos projetos desenvolvimentistas. Ainda assim, tais conceitos não devem ser
tratados de modo não reflexivo e, menos ainda, se deve confundir a expressão
de direitos e princípios em documentos legais com sua prática, como se verá no
próximo item.

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164 Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais e perspectivas em disputa

Conflitos recentes no Equador entre organizações


indígenas e o Estado nacional
O movimento indígena equatoriano tem sido um importante protagonista
político pelo menos desde os anos 1990. Sua principal organização é a Confede-
ração de Nacionalidades Indígenas – CONAIE.
Durante anos, houve um intenso debate na CONAIE sobre envolver-se na
política eleitoral, seja apresentando seus próprios candidatos, seja apoiando par-
tidos de esquerda. A decisão inicial foi não participar em eleições; o argumento
que predominou foi que nenhum sistema ou partido político funcionava de modo
a representar seus interesses. Entretanto, em 1995 ocorreu uma mudança de tática.
A nova tática envolveu a combinação de mobilização social e participação
em coalizões político-eleitorais. O Movimento Pachakutik94 pela Unidade Pluri-
nacional, um partido político criado pela CONAIE junto com outras organizações
populares. Pachakutik lançou candidatos para as eleições locais, provinciais e na-
cional em 1996; conquistando várias cadeiras no Congresso e várias posições nas
províncias. Em 2002, a coalizão da qual fazia parte ganhou a eleição presidencial.
Na avaliação de Peral (2009), o crescimento político foi muito rápido: novas respon-
sabilidades públicas demandavam capacidades organizacionais que não existiam.
Além disto, a vitória eleitoral de 2002, quando Lucio Gutiérrez foi eleito Presidente,
trouxe à tona a posição contraditória do Movimento: por um lado a desconfiança
com relação a partidos políticos, organizações e instituições; por outro, a busca de lí-
deres políticos improvisados que levassem seus projetos adiante. O fracasso era ine-
vitável! Em apenas seis meses Pachakutik deixou o governo. O fim da presidência
de Gutiérrez foi melancólico: em abril de 2005 massivas mobilizações populares,
em oposição aos acordos com o Banco Mundial e FMI, às políticas privatizadoras e
à decisão de assinar um Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos, força-
ram sua saída do governo.
A experiência criou condições adversas para Pachakutik, tanto interna-
mente como no espaço de alianças do qual costumava participar. Nas eleições
presidenciais de 2006, a maioria do Pachakutik se opôs à sua presença em uma
coalizão com o grupo que apoiou Rafael Correa, que se tornou Presidente e foi
recentemente re-eleito para um segundo mandato. Desde então, se iniciou um
período de tenso relacionamento entre o Projeto de Revolução Cidadã de Correa
e seus aliados e o projeto indígena plurinacional intercultural.

94 Pachakutik é uma palavra quéchua que significa mudança, renascimento, transformação e a chegada
de uma nova era.

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Organização e Práxis Libertadora 165

Em 27 de setembro de 2009, a CONAIE convocou protestos em oposição à


Lei da Água que havia sido proposta pelo governo em meados de agosto. A principal
crítica era que a Lei asseguraria a provisão de água para as companhias mineradoras
mas não para as populações indígenas e camponesas; nada faria para prevenir a con-
taminação dos cursos de água; colocaria todo o sistema de água sob o controle da
autoridade estatal centralizada, com a perda do controle das comunidades sobre este
recurso (ZIBECHI, 2009). O movimento ganhou visibilidade internacional quando,
no quarto dia de mobilização, um professor da etnia Shuar (conhecida como o povo
da cascata) foi morto em um protesto em Puyo, na região Amazônica.
Para entender a posição da CONAIE é preciso saber que para os indígenas,
como se expressa na cultura Shuar, as quedas de água são lugares onde cultuam
seus deuses, fazem seus ritos e cumprem seus rituais. Para eles, ferir a água é des-
truir o próprio povo. Além disso, sendo a água o espaço do sagrado, “morada de
Arutam, o deus supremo, tampouco pode converter-se em bem privado. É também
da água que saem Shakaim, para ensinar as várias formas de trabalho, Tsunki, que
entrega poder de cura aos xamãs, Uwi, que renova as frutas e animais e Etsa que
auxilia na caça aos animais”. Assim, compreendendo a cosmovisão Shuar, fica
muito mais fácil entender porque a água é inegociável (TAVARES, 2009).
O protesto começou com bloqueios de estradas e demonstrações de força
para forçar o governo a dialogar e para ter uma chance de apresentar a proposição
indígena para uma lei das águas, inspirada no Sumak Kawsay. A resposta do Pre-
sidente Rafael Correa foi dura: acusou os indígenas de serem “extremistas” e de
“jogar o jogo da direita”, de serem golpistas. Após o confronto que resultou em
uma morte e dezenas de feridos, incluindo vários policiais, o Presidente mudou
o discurso e chamou ao diálogo. A liderança da CONAIE decidiu suspender as
ações de luta e entrou em um período de negociação. Entretanto, em muitas partes
do país comunidades continuaram a efetuar cortes de estradas e fechar mercados
(ZIBECHI, 2009).
No dia 6 de outubro o diálogo foi iniciado. Em um clima tenso, 130 lí-
deres indígenas entraram no Palácio Presidencial para se encontrar com Correa.
No primeiro dia chegaram ao seguinte entendimento: o governo iria implementar
os princípios constitucionais que legalizam o Estado plurinacional intercultural;
implementar a educação bilíngüe; constituir comitês mistos para discutir modi-
ficações na Lei das Águas levando em consideração as propostas da CONAIE;
constituir um comitê misto para investigar a morte do professor Shuar; criar um
outro comitê para revisar a Lei de Mineração (TAVARES, 2010). As organizações

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166 Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais e perspectivas em disputa

indígenas foram capazes de instituir o diálogo, como pretendiam, mas as acusa-


ções continuaram.
É preciso registrar que a Constituição Equatoriana é uma das mais avançadas
do mundo com relação ao tema do ambiente. Foi a primeira a declarar os direitos
constitucionais da natureza, refletindo as crenças e tradições dos povos indígenas: a
natureza tem o direito a existir, persistir, manter e regenerar seus ciclos vitais, suas es-
truturas, funções e seu processo de evolução. Entretanto, os projetos desenvolvimen-
tistas extrativistas do governo são muito contraditórios com o texto constitucional.
Em muitas ocasiões o Presidente expressou sua firme crença de que a ex-
tração de recursos naturais é o caminho para o desenvolvimento. Por exemplo,
quando o texto da nova constituição estava sendo discutido ele definiu a oposição
à extração de petróleo e à mineração em parques nacionais como “ambientalismo
infantil” (PERAL, 2009).
O fato é que o diálogo iniciado em 2009 não chegou a bom termo. Em maio
de 2010 se realizou uma mobilização plurinacional.

“Milhares de indígenas e outros setores chegam à Assembleia Nacional em quito


para exigir o debate e a análise dos nós críticos da Lei das águas e sem mantém
vigilantes até que suas demandas sejam escutadas.

EM DEFESa Da ÁGua, Da ViDa E Da SobERaNia aliMENtaR!


As Comunas, Comunidades, Povos e Nacionalidades
Aos operários e estudantes
às organizações sociais e populares
Aos equatorianos e equatorianas
quito, 4 de maio de 2010 – O país está vivendo momentos de forte conflitividade, as fre-
quentes mobilizações sociais e populares não são outra coisa que a expressão das gran-
des contradições não resolvidas; a concentração da terra e da água é uma das mais
graves. […] A concentração da água é a causa direta da atual conflitividade social
no campo e na cidade. Nos últimos 20 anos 1% dos grandes proprietários (fazen-
deiros, agroindustriais, produtores de camarão, floricultores, bananeiros) monopo-
lizam 67% da água de irrigação, enquanto os pequenos produtores (comunidades,
associações agrícolas, cooperativas, pequenos proprietários), que são 86% dos pro-
dutores, apenas controlam 23% da água. Se a isto somarmos as concessões para

95 Marca da gestão da Alianza País, criada para a primeira eleição de rafael Correa e que se mantém
em vigência.

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Organização e Práxis Libertadora 167

as hidrelétricas, mineiras ou para simples especulação no mercado da água, tere-


mos que 75% dos recursos hídricos estão em mãos privadas. A “revolução cidadã95”
mantém esta realidade intocada, e não dá mostra de querer modificá-la. Frente aos
avanços conseguidos pela mobilização indígena de 28 de setembro e às mesas de
diálogo do ano passado, o governo negocia a nova lei de águas com os empresários
concentradores e privatizadores da água e desconhece qualquer avanço que permita
a desprivatização e redistribuição. O acordo Alianza País – Madera de Guerrero –
Partido Social Cristiano – PrE – PrIAN y PSP só admitiria revisar algumas conces-
sões, mas o modelo herdado do neoliberalismo se manteria. Isto também explica o
descumprimento das disposições transitórias xxVI e xxVII da Constituição Política,
que ordenam a auditoria e revisão das concessões e a redistribuição da água.
Por outro lado, a nova Constituição define como Plurinacional o Estado equatoriano;
reconhece os direitos da natureza, o direito humano à água, e proíbe expressamente
sua privatização, determinando que unicamente poderá ser gerido por entidades
públicas e comunitárias. Precisamente estes princípios são desconhecidos ou re-
duzidos à mínima expressão nas leis que estão sendo aprovadas na Assembleia Na-
cional, especialmente na Lei das águas; desconhecem também as propostas que o
movimento indígena e outras organizações sociais apresentaram.
Sem a participação ativa e organizada das maiorias não há transformação possível.
A história equatoriana e mundial demonstra que um processo revolucionário se li-
mita a simples reformas, ou o que é pior, à derrota, se depende da “boa vontade”
exclusiva de um “déspota esclarecido”.
Seguem de pé os desejos de deixar para trás a “longa noite neoliberal” e avançar nas
grandes transformações econômicas, políticas, culturais e sociais. As comunas, po-
vos e nacionalidades, os trabalhadores e demais setores sociais organizados esta-
mos dispostos a tornar efetiva a construção do Estado Plurinacional e Intercultural
para alcançar um verdadeiro Sumak Kausay. […]
Portanto, demandamos:
1. A implementação urgente de uma verdadeira reforma Agrária Integral, que des-
loque o modelo privatizador, aproveitador e excludente da economia agrária e do
consumo de alimentos. que se construa a soberania alimentar, como uma alter-
nativa para superar a crise agrária e o alto custo da cesta básica dos produtos de
primeira necessidade, aos quais se somam as duras consequências da seca.
2. que a Assembleia Nacional assuma de modo decisivo a desprivatização e a redis-
tribuição equitativa dos recursos hídricos e instaure uma nova institucionalidade a
partir da plurinacionalidade e da participação democrática. No caso de insistir na
pretensão de aprovar atropeladamente a Lei, à margem dos critérios e propostas do
movimento social, estará fomentando graves consequências sociais.
3. A mineração, sobretudo a de grande escala, subordina a economia nacional ao
capital transnacional e ocasiona graves danos ambientais e culturais nas comunas,

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168 Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais e perspectivas em disputa

comunidades, povos e nacionalidades; por isto a Lei de Mineração é inexecutável e


carece de “eficácia jurídica”.
4. Demandamos o respeito e restituição dos direitos trabalhistas consagrados no
Direito Internacional.
5. Condenamos a manipulação política do Sistema de Educação Intercultural Bilín-
gue e as tentativas de dividir nossas organizações e comunidades.
Uma revolução não pode ser feita à margem da sociedade, muito menos contra a
sociedades; se queremos que este processo pós-neoliberal seja verdadeiro e firme
exigimos um autêntico processo democrático plurinacional.”
Documento assinado pelo Presidente da CONAIE, da ECUArUNArI, da CONFINEAIE e
da CONAICE96 (http://ecuarunari.org/portal/portada?page=1).

“DiREito HuMaNo ÀS ÁGuaS: 9 aSPECtoS QuE a NoVa lEi DaS ÁGuaS DEVE
CoNtEMPlaR (Nós Críticos)
Postado em 20 de abril de 2010 por ECUArUNArI

Primeiro: Serviços Ambientais – A lei deve proibir toda forma de serviço ambiental
sobre a água e sobre os ecossistemas associados ao ciclo hidrológico, pois a utilização
da figura de serviços ambientais permite a privatização da água […].
Segundo: Ordem de prioridade dos destinos e funções da água – A lei deve respeitar
o estabelecido no Art. 318 da Carta Magna. Para o caso dos usos produtivos da água
(hidrelétricas, mineração, indústrias) a lei deve respeitar o estabelecido no Art. 15 da
Constituição, que estabelece que a soberania energética não será alcançada em detri-
mento da soberania alimentar, nem afetará o direito humano à água.
terceiro: Direitos da Natureza - A lei deve garantir os direitos da Natureza, isto é, ne-
nhuma atividade produtiva deve colocar em risco a existência, manutenção e regene-
ração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos produtivos. Portanto, deve
ser garantida a não contaminação da água e suas fontes.
quarto: Direito humano à água, alcance e exigibilidade – A lei deve garantir o direito
humano à água em todas as suas formas, isto é:
1. Estabelecer um mínimo vital gratuito que garanta a água de consumo humano e
o uso doméstico, cumprindo o disposto no Art. 3, numeral 1, que diz: ‘Garantir sem
discriminação alguma o efetivo gozo dos direitos estabelecidos na Constituição e nos
instrumentos internacionais, em particular a educação, a saúde, a alimentação, a se-
guridade social e a água para seus habitantes’.

96 ECUArUNArI – Confederação quéchua do Equador; CONFENIAE – Confederação das Nacionalidades Indí-


genas da Amazônia Equatoriana; CONAICE – Confederação Nacional de Indígenas da Costa Equatoriana.

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Organização e Práxis Libertadora 169

2. Garantir o direito à água de modo a permitir a produção de alimentos e promover


a soberania alimentar.
3. Garantir as formas culturais de uso da água em conformidade com os direitos
coletivos das comunidades, povos e nacionalidades indígenas, estabelecido no Art.
57 da Constituição e o próprio caráter plurinacional do Estado.
4. Assegurar o direito à água, à alimentação e à educação, o que garantirá o exercí-
cio do direito à saúde.
qUINtO: Fundo da água – A lei deve contemplar um fundo da água dentro do or-
çamento da Autoridade única da água, com o propósito de contar com os recursos
econômicos suficientes para garantir o direito humano à água, o que permitiria que
os sistemas comunitários tivessem os meios necessários para assegurar a gestão
comunitária da água.
SExtO: Institucionalidade da água – Cumprir o disposto na Constituição da repú-
blica, nos Arts. 318 e 85, numeral 3, respectivamente, que definem que a gestão
da água será pública ou comunitária e que na formulação, execução, avaliação e
controle de políticas e serviços públicos será garantida a participação de pessoas,
comunidades e povos; a lei de recursos hídricos deve estabelecer a conformação da
autoridade unida da água, assim como que as decisões sobre este tema assegurem
a participação efetiva das pessoas, comunidades, povos e nacionalidades.
SÉtIMO: Desprivatização, acumulação e redistribuição
1. A lei deve proibir toda forma de privatização da água.
2. A lei deve estabelecer os mecanismos para proceder a desprivatização da gestão
da água, cumprindo o estabelecido na Constituição, que determina que a gestão da
água será exclusivamente pública ou comunitária. Nesse sentido, a lei deve proce-
der para reverter as concessões para INtErAGUA e AMAGUA, entre outras.
3. A lei deve estabelecer os mecanismos para reverter as concessões de água que
provoquem concentração e acumulação.
OItAVO: A lei deve contemplar o direito ao consentimento prévio, livre e informado
das comunidades, povos e nacionalidades, sobre planos e programas de prospec-
ção, exploração e comercialização de recursos não-renováveis que se encontrem
em suas terras e que possam afetar-lhes ambiental ou culturalmente, conforme
estabelecido no Art. 57, numeral 7 da Constituição da república, no Convênio 169
da OIt e na Declaração Universal de Direitos dos Povos Indígenas.
NONO: A Assembleia Nacional deve garantir o direito das comunidades, povos e
nacionalidades a serem consultados antes da adoção de uma medida legislativa,
como é o caso da Lei de recursos hídricos, conforme o Art. 57, Numeral 17, da
Constituição.”
(http://ecuarunari.org/portal/Derecho%20humano%20al%20Agua)

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170 Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais e perspectivas em disputa

Finalmente, após quinze dias de luta intensa, no dia 15 de maio um co-


municado de ECURUNARI-CONAIE celebram a retirara da Lei da Assembleia
Nacional e se comprometem com a continuidade da luta para mudar o modelo
extrativista e pelo Estado Plurinacional.

Mulheres na luta contra o agronegócio


Conflitos sócio-ambientais têm diferentes expressões e formas de organiza-
ção nos diferentes contextos da América Latina, apesar de estarem intensamente
articulados entre si. No Brasil, camponeses, trabalhadores sem terra e mulheres
camponesas têm se constituído em um dos atores mais relevantes no confronto
ao modelo hegemônico de desenvolvimento. Na sequência algumas citações de
declarações do Movimento de Mulheres Camponesas – MMC ajuda a esclarecer
porque elas lutam e que valores expressam.

Movimento de Mulheres Camponesas – MMC


“Somos mulheres camponesas: agricultoras, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas,
posseiras, bóias-frias, diaristas, parceiras, extrativistas, quebradeiras de coco, pesca-
doras artesanais, sem terra, assentadas... Mulheres índias, negras, descendentes de
europeus. Somos a soma da diversidade do nosso país. Pertencemos à classe traba-
lhadora, lutamos pela causa feminista e pela transformação da sociedade.
Lutar sempre foi nossa condição. Desta forma, construímos nossos movimentos au-
tônomos de mulheres.
Em nossa trajetória, temos reafirmado a luta das mulheres pela igualdade de direitos
e pelo fim de qualquer forma de violência, opressão e exploração praticada contra a
mulher e a classe trabalhadora. Dessa forma, nos identificamos pela produção de
alimentos saudáveis, pela construção de um projeto de agricultura ecológico e pela
luta pela libertação da mulher.
Somos um Movimento de Mulheres Camponesas, organizado em dezoito estados bra-
sileiros. resistimos no campo às consequências econômicas, políticas, sociais e cul-
turais do projeto capitalista e patriarcal que intensifica a exploração de trabalhadoras
e trabalhadores, aumentando a violência e a discriminação contra as mulheres.
há mais de vinte anos construímos um Movimento autônomo, democrático, popular,
feminista e de classe, na perspectiva socialista. Nesse período, nos organizamos, lu-
tamos e conquistamos o reconhecimento da profissão de trabalhadora rural, o salário
maternidade, a aposentadoria da mulher da roça aos 55 anos, entre outros. Continu-
amos lutando por saúde de qualidade, pela construção de novas relações sociais e de

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Organização e Práxis Libertadora 171

gênero, por políticas públicas que atendam aos interesses das camponesas e campo-
neses e pelo fim de todas as formas de violência e opressão.
a luta pela libertação das mulheres é tarefa de todos. Mas acreditamos que nós mu-
lheres, somos as principais responsáveis por esta conquista.”
(http://www.mmcbrasil.com.br/menu/quem_somos.html

8 de Março de 2009: um dia de lutas do Movimento de Mulheres Camponesas


Cerca de 700 mulheres organizadas pela Via Campesina ocupam neste momento, dia
09/03/2009, a Fazenda Ana Paula, de propriedade da Votorantim Celulose e Papel -
VCP. A ocupação foi iniciada com o corte de eucalitpo na área. Depois de especular
contra a moeda brasileira e ter prejuízos com a crise financeira, a Votorantim Celulose
e Papel recebeu r$ 6,6 bilhões do governo brasileiro para adquirir a Aracruz Celulo-
se, através da compra de metade da carteira do Banco Votorantim e de um emprésti-
mo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES. O custo da
compra foi de r$5,6 bilhões. A VCP havia prometido gerar 30 mil empregos no estado
e mesmo recebendo recursos e isenções fiscais dos governos federal, estadual e de
municípios, a Aracruz causou a demissão de 1,2 mil trabalhadores em Guaíba, entre
trabalhadores temporários e sistemistas, e a VCP outros 2 mil trabalhadores na me-
tade sul. O agronegócio foi o segundo setor que mais demitiu com a crise financeira.
Apenas em dezembro, o agronegócio demitiu 134 mil pessoas em todo país. A ação faz
parte da Jornada Nacional de Luta das Mulheres da Via Campesina e denuncia ainda
as conseqüências da monocultura do eucalipto na região. […]
Com o lema Mulheres Camponesas em Luta Contra o Agronegócio, pela reforma
Agrária e Soberania Alimentar, nesta segunda-feira (9/3/2009), cerca de 1.000 traba-
lhadoras da Via Campesina fizeram uma marcha pelo centro de Porecatu, no Norte
do Paraná. Durante a caminhada as mulheres denunciam o modelo do agronegócio, a
produção das monoculturas (da cana de açúcar, soja, eucalipto, pinus, entre outros) e
as transnacionais, que destroem a biodiversidade, a cultura camponesa e inviabilizam
a reforma Agrária. E se mobilizam em defesa da vida, da reforma Agrária, da agroe-
cologia, da biodiversidade, da agricultura camponesa, da saúde, e educação gratuita e
de atualidade para todos os brasileiros.
Na manhã desta segunda-feira (09/03/2009), cerca de 1.300 mulheres da Via Campe-
sina do Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo e rio de Janeiro ocuparam o Portocel,
porto de exportações da empresa Aracruz Celulose, localizado em Barra do riacho,
município de Aracruz, no Espírito Santo. A mobilização faz parte das atividades de luta
do 8 de Março, Dia Internacional de Luta das Mulheres.
(http://www.cebsuai.org/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=1737)

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8 de Março de 2010: mais um dia de lutas do Movimento de Mulheres Camponesas, em


conjunto com o Movimento de trabalhadores Desocupados, a intersindical e o Coletivo
de Mulheres da universidade Federal do Rio Grande do Sul
“Neste mês em que se comemoram os 100 anos do 8 de março como dia internacional
de luta das mulheres, nós trabalhadoras do campo e da cidade do rio Grande do Sul
estamos novamente nas ruas. Este ano nossa mobilização tem como principal objetivo
denunciar para a sociedade que a maior parte da comida que chega a mesa da popula-
ção brasileira não é alimento, é veneno.
O Brasil é campeão mundial do uso de agrotóxicos, que são venenos muito perigosos
usados na agricultura que provocam muitas doenças para produtoras/es e consumido-
ras/es e grandes impactos ambientais. Além disso, a maior parte dos produtos indus-
triais que comemos é fabricada com soja transgênica que também causa muito mal à
nossa saúde.
E quem come esta comida envenenada? Somos nós, pobres. São as mulheres e homens
trabalhadores que recebem baixos salários ou estão desempregados e escolhem os
alimentos pelo preço não pela qualidade. São as pessoas sem terra, sem teto, que se
alimentam graças às cestas básicas. Os ricos têm opção de comer produtos orgânicos,
cultivados sem venenos. […]
Nesta mobilização estamos amamentando esqueletos para denunciar a população em
geral, e principalmente às mulheres, que quando comemos comida envenenada e da-
mos o peito aos nossos filhos ao invés de alimentarmos a vida transmitimos a morte. As
doenças causadas por agrotóxicos são transmitidas de geração para geração, e um dos
modos de transmissão é através do leite materno. No entanto, o mesmo governo que
faz campanhas para incentivar as mulheres a amamentar, financia o agronegócio que
produz a comida envenenada para o povo pobre, contaminando o leite da maioria das
mães brasileiras.
a gente não quer só comida
Nós mulheres que passamos boa parte de nossas vidas envolvidas no cultivo e/ou no
preparo da comida para garantir saúde à nossa família estamos nas ruas para gritar em
alto e bom som que gente não quer só comida, a gente quer alimento saudável, a gente
quer soberania alimentar! […]
Estamos em luta contra
Contra o agronegócio, um modelo de produção agrícola que se sustenta na superex-
ploração do trabalho das pessoas, na contaminação dos alimentos, na destruição de
nossas riquezas naturais. Lutamos contra o uso de recursos públicos para financiar a
contaminação do povo e do meio ambiente. Estamos em luta contra todas as formas

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Organização e Práxis Libertadora 173

de violência contra mulheres, incluindo a imposição de um padrão alimentar que não


respeita os costumes alimentares e causa muitos males à saúde.
Estamos em luta por
Soberania Alimentar - com reforma agrária, com geração de emprego e vida digna para
as populações camponesas, com agricultura ecológica que respeita a diversidade de
biomas e de hábitos alimentares. Os governos se dizem preocupados com a segurança
alimentar, querem que as pessoas tenham várias refeições por dia. Mas tão importante
quanto a quantidade da comida é a qualidade do que comemos. Por isso não basta se-
gurança alimentar, precisamos construir a Soberania Alimentar.”
(http://www.mabnacional.org.br/noticias/030310_mobiliza_rs.html)

O Movimento de Mulheres Camponesas está, de fato, lutando contra o


retorno de políticas desenvolvimentistas no contexto atual da América Latina.
No seu caso, no contexto brasileiro. Estas mulheres estão lutando contra a re-
novação da dependência. Apesar de seu intenso e corajoso ativismo, elas são
apresentadas com vândalas e militantes contra o progresso. É muito fácil para
a grande imprensa associada representá-las deste modo, já que o imaginário
social está impregnado pelo mito do progresso disseminado pela formação
discursiva do desenvolvimento.

O neo-desenvolvimento extrativista
Como é sabido, a América Latina tem se contituído no principal espaço
de resistência contra o imperialismo e o neoliberalismo. Entretanto, ao mes-
mo tempo, políticas neo-desenvolvimentistas estão sendo implantadas. No seu
centro se encontram a preservação das restrições monetárias, ajustes fiscais,
prioridade à exportação e o novo modelo extrativista.
Ao que parece, o reconhecimento do fracasso do velho desenvolvimen-
tismo, centrado na industrialização, levou a um retorno à estratégia exporta-
dora e à continuidade da região como provedora de commodities dirigidas aos
centros manufatureiros mais dinâmicos, localizados em sua maioria fora do
nosso sub-continente, e como importadora de tecnologias que modernizam
os processos de extração e de beneficiamento primário de recursos naturais
(VERDUM, 2009).
Chama atenção que este modelo está sendo fortalecido exatamente pelos
governos progressistas eleitos com plataformas políticas contrárias a ele – os
auto-intitulados governos pós-neoliberais.

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174 Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais e perspectivas em disputa

É na exportação de minerais, petróleo e produtos derivados da agrope-


cuária industrial onde estes governos estão vislumbrando o motor do
“crescimento econômico” dos países. Incluímos aqui também os agro-
-combustíveis baseados na cana-de-açúcar (etanol) e soja (biodiesel),
que na última década têm recebido crescente incentivo financeiro nas
áreas da pesquisa e produção, especialmente no Brasil e na Argentina.
[…] se mantém o estilo de desenvolvimento baseado na apropriação
da natureza, que por sua vez alimenta uma trama produtiva escassa-
mente diversificada e concentrada em alguns poucos grupos empre-
sariais. Uma economia muito dependente da capacidade de inserção
internacional dos países (leia-se empresas) como provedores de ma-
térias primas.
Nesse novo extrativismo, os Estados desempenham papel mais ativo
(nacionalizando empresas (como na Bolívia e Venezuela, por exemplo)
e/ou estabelecendo parcerias público-privadas, com características que
variam de situação para situação e de país para país (como no Brasil).
Há uma forte imbricação entre governos, em seus diferentes níveis,
com empresas transnacionais e/ou empresas privadas controladas por
elites nacionais. (VERDUM, 2009, p. 3)

Tabela 1 – Exportações de bens primários, hidrocarbonetos e minerais nas principais economias extrati-
vistas da América do Sul e porcentagens sobre as exportações totais – 2009 (dados CEPAL)

País Produtos primários / Hidrocarbonetos / Minerais e derivados /


Exportações totais Exportações totais Exportações totais
Venezuela 92,7 89,7 0,4
Bolívia 91,9 46,1 24,8
Equador 91,3 59,2 -
Chile 89,6 1,2 60,7
Peru 87,4 7,8 55,1
Colômbia 60,8 24,3 19,4
Brasil 51,7 10,0 6,6
Fonte: Gudynas (2009, p. 193).

Os governos progressistas da região adotam políticas redistributivas de par-


te dos rendimentos e tributos gerados nesta economia, como no caso do projeto
de Fundo Social que usaria parte dos recursos do petróleo do pré-sal para projetos
sociais no Brasil. Ou seja, estes governos se legitimam politicamente ao mesmo
tempo em que reforçam a posição dos países como economias dependentes.

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Gudynas (2009, p. 222) desenvolve dez teses preliminares para caracterizar


o neo-extrativismo dos governos progressistas da região:

1 Persiste a importância dos setores extrativistas como um pilar rele-


vante dos estilos de desenvolvimento.
2 O progressismo sul-americano gera um extrativismo de novo tipo,
tanto por alguns de seus componentes como pela combinação de
velhos e novos atributos.
3 Se observa uma presença maior e um papel mais ativo do Estado,
com ações tanto diretas como indiretas.
4 O neo-extrativismo serve a uma inserção internacional subordina-
da e funcional à globalização comercial e financeira.
5 Segue avançando a fragmentação territorial, com áreas relegadas e
enclaves extrativistas associados aos mercados globais.
6 Mais além da propriedade dos recursos, se reproduzem as regras e
o funcionamento dos processos produtivos voltados para a compe-
titividade, eficiência, maximização dos lucros e externalização dos
impactos.
7 Se mantêm, e em alguns casos se agravam, os impactos sociais e
ambientais dos setores extrativos.
8 O Estado capta (ou tenta captar) uma maior proporção do exceden-
te gerado pelos setores extrativos, parte destes recursos financiam
programas sociais, com o que se geram novas fontes de legitimida-
de social.
9 Se revertem algumas controvérsias sobre o extrativismo, que passa
a ser considerado indispensável para combater a pobreza e promo-
ver o desenvolvimento.
10 O neo-extrativismo é parte de uma versão contemporânea do de-
senvolvimentismo própria da América Latina, onde se mantém o
mito do progresso sob uma nova hibridização cultural e política.

Um elemento central para compreender esta estratégia é a Iniciativa de Inte-


gração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA): provedora das condições
materiais gerais de infra-estrutura para potencializar o modelo extrativista-exportador,
ampliando a escala das exportações com um mínimo de agregação de valor.
A IIRSA foi estabelecida em 2000 pelos 12 governos neoliberais da Amé-
rica do Sul. Em 9 anos muito mudou: IIRSA é hoje sustentada por pelo menos
metade dos governos que se elegeram com plataformas críticas ao neoliberalismo
e à tutela do FMI.

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176 Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais e perspectivas em disputa

iniciativa de integração da infraestrutura Regional Sul-americana


“Em uma reportagem intitulada ‘the New Drive for Integration of regional Infras-
tructure in South America’, de 2002, o Banco Inter-Americano de Desenvolvimen-
to afirmou que ‘enormes barreiras naturais, como os Andes, a selva Amazônica e
a bacia do rio Orinoco’ eram os principais problemas para a integração física do
continente e para o fortalecimento do comércio. também em 2000, no I Encontro
Presidencial Sul-Americano realizado no Brasil sob a presidência de Fernando
henrique Cardoso (1995-2003), a fragmentação da infraestrutura física foi também
considerada como um dos principais obstáculos para a competitividade comercial
da região. Como solução, os participantes do Encontro concordaram em desenvol-
ver uma estratégia que teria como objetivo interconectar infraestruturas nacionais.
Esta foi a base da Iniciativa de Integração da Infraestrutura regional Sul-Americana
(IIrSA), uma estratégia continental para promover o desenvolvimento de projetos
de infraestrutura nas áreas de energia, transporte e comunicação. Mais tarde, no
III Encontro Presidencial Sul-Americano, realizado em dezembro de 2004 no Peru,
IIrSA foi confirmada como um importante componente das estratégias de desen-
volvimento para a integração política e econômica da região. Os presidentes dos 12
países aprovaram a Agenda de Implementação de 31 projetos de investimento de
grande escala a serem executados entre 2005 e 2010 com um custo estimado de
US$ 6,4 bilhões. Apesar do fato de que algumas comunidades têm o legítimo desejo
de melhorar suas condições de comunicação e de ver sua pobreza reduzida, a per-
cepção da natureza como uma barreira tem sido um dos aspectos mais criticados da
Iniciativa. ‘No IIrSA , o Amazonas está sendo visto como uma grande possibilidade
de unir países que sempre viram a selva como um obstáculo’, afirma Elisangela
Soldatelli Paim, coordenadora de Projetos dos Amigos da terra/Brasil. ‘A lógica da
iniciativa se baseia apenas na integração comercial e física, visando a exportação da
riqueza natural do continente’. […] Considerando que a maior parte dos projetos de
larga escala estão sendo realizados em zonas como a Amazônia, que são extrema-
mente vulneráveis a mudanças, o componente ambiental da Iniciativa deveria ser
uma prioridade. Um dos mega projetos é a Estrada Interoceânica, ligando Peru e
Brasil, a um custo de US$ 1 bilhão, para falicilitar o acesso entre o Acre e rondônia
e os portos do Pacífico (MEGO, 2008, p. 1-2).

Abordagens alternativas contidas no discurso do desenvolvimento


Há algumas décadas, mas na mesma direção que Mariátegui, a Teoria
Marxista da Dependência (TMD) e o trabalho de seu autor principal – Ruy
Mauro Marini – demonstraram que as características das formações sociais
latino-americanas não eram a expressão nem o resultado de desenvolvimento

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Organização e Práxis Libertadora 177

capitalista insuficiente. Elas eram, em vez disto, a expressão e o resultado do de-


senvolvimento capitalista. Elas eram a condensação das contradições do sistema
em espaços particulares. Dependência significa, de acordo com Marini (1977,
p. 18), “uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes,
na qual as relações de produção das nações subordinadas são modificadas e re-
criadas para garantir a reprodução da dependência”. Portanto, contra a ideia de
que os países dependentes necessitam de mais desenvolvimento capitalista, os
autores da TMD afirmam que a intensificação do capitalismo exacerbaria estas
contradições (OSORIO, 2007).
Entretanto, como um testemunho da eficácia e da insidiosa presença da
formação discursiva do desenvolvimento, esta contribuição tem sido pouco
considerada, inclusive no contexto de alguns processos sociais que se orientam
contra os efeitos perversos do crescimento econômico e do sistema do capital.
O fato é que a posição crítica hegemônica com relação ao tema do desenvolvi-
mento tem sido a do desenvolvimento alternativo ou pós-desenvolvimento. No
entanto, ambos permanecem contidos dentro da formação discursiva do desen-
volvimento, ainda que criticando algumas de suas categorias e princípios. Nos
próximos parágrafos estas posições serão brevemente revisadas.
A abordagem do desenvolvimento alternativo inclui uma certa crítica à
ordem sócio-econômica e a preocupação com o apoio aos pobres e excluídos.
Desde a década de 1970 esta abordagem tem efetuado uma crítica das estraté-
gias de apoio ao desenvolvimento e focalizado em enfrentar problemas sociais e
ambientais. A proposta tem em seu centro o estabelecimento de bases para uma
outra economia que substituiria a lógica da razão instrumental por uma ética do
bem estar. Um autor chave é Max-Neef (1993) e sua redefinição das necessida-
des humanas com base na subsistência/afeto/participação/liberdade, em vez de
ser/ter/fazer. A racionalidade econômica alternativa resultante seria aplicada por
organizações de economia popular, micro-empresas alternativas, redes de apoio
mútuo, etc. O objetivo é converter as iniciativas de economia popular em um
setor produtivo dinâmico (RAZETO, 1993).
Mallard (2003, p. 36) considera que apesar de criticar o discurso hegemô-
nico do desenvolvimento, o desenvolvimento alternativo está cheio de ambigui-
dades. A principal é reter o termo desenvolvimento como categoria central: “o
termo desenvolvimento se refere, simultaneamente, ao que é desejável e ao que
precisa ser eliminado”, como na seguinte citação:

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178 Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais e perspectivas em disputa

A medida do crescimento econômico inclui a produção material com


produção de riqueza expressa em dinheiro. Uma consequência tem sido
a geração dos conceitos interconectados de crescimento e desenvolvi-
mento. Originalmente eles eram muito próximos, sendo mais tarde tra-
tados como sinônimos. Esta é uma evidência do fato de que ambos os
conceitos derivaram da ideologia capitalista. […]
Adotar a ideia de que crescimento é o fundamento do desenvolvimen-
to equivale a eliminar a possibilidade de pensar o desenvolvimento em
termos diferentes daqueles do capitalismo. (CHARTIER, 1996, p.7-8)

Para Mallard (2003), a ambiguidade reside em insinuar que o conceito


capitalista de desenvolvimento pode ser pensado fora do sistema do capital.
Outra dimensão desta ambiguidade é usar o termo em um sentido muito amplo,
se referindo a qualquer trajetória evolucionista (caso em que o termo perde sua
condição de conceito), ou usar o termo mantendo seu sentido generativo e a
íntima conexão com sua concepção original. Para superar esta ambiguidade é
preciso escolher entre uma noção geral e um conceito científico. A tentativa
de manter ambos resulta em uma situação esquizofrênica que oscila entre a
abertura e a restrição, entre determinação e indeterminação. A consequência é
que, apesar da sincera aspiração de ruptura com a ortodoxia desenvolvimen-
tista, a abordagem não questiona os postulados e pressupostos que constituem
o fundamento da formação discursiva do desenvolvimento. Portanto, a pro-
posta permanece prisioneira da monocultura do desenvolvimento, uma matriz
cognitiva Ocidentalista que constantemente revitaliza a lógica fundante do
sistema sócio-econômico dominante.
Outra abordagem relacionada é a do pós-desenvolvimento. Gibson-
-Graham (2006), por exemplo, trabalham pela libertação do imaginário eco-
nômica das linguagens do capital, dos indivíduos e do mercado. Elas propõem,
em vez disto, um discurso da diferença econômica, ou seja, outros modos de
pensar e organizar a vida social e material. Para elas, o que está em questão é
a possibilidade de encontrar formas não-capitalistas de economia em situações
concretas, tais como nas práticas tradicionais de produção. O não-capitalismo
é definido em termos da circulação e apropriação da mais-valia, não tem ter-
mos do controle sobre os meios de produção.
Escobar (1995, 2008) trabalha na mesma direção. Como parte da noção
de alternativas à modernidade, a ideia de pós-desenvolvimento indica a pos-
sibilidade de imaginar uma era na qual o desenvolvimento deixaria de ser o

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Organização e Práxis Libertadora 179

princípio organizador central da vida social. A questão é colocada nos seguin-


tes termos: “Como o desenvolvimento pode ser reconstruído para promover
sociedades mais democráticas, ambientalmente sustentáveis, socialmente jus-
tas e culturalmente plurais?” (ESCOBAR, 2008, p. 197).

As estratégias devem propiciar desenvolvimentos alternativos para a


vida e autonomia alimentar […]; modernidades alternativas que abri-
guem diferenças econômicas, ecológicas e culturais […];alternativas
à modernidade e processos de descolonialidade e interculturalidade
baseados em imaginar reconstruções locais e regionais baseadas em
tais formas de diferença. (ESCOBAR, 2008, p. 199)

As ambiguidades da abordagem do pós-desenvolvimento são as mesmas


do desenvolvimento alternativo. Esta pode ser uma das razões pelas quais tais
propostas podem tão facilmente ser cooptadas pelas agências internacionais en-
volvidas com a disseminação da agenda neoliberal.
Kothari (2005) analisa como a crescente profissionalização do apoio ao
desenvolvimento tem permitido a expansão da agenda neoliberal das agências
de desenvolvimento e, ao mesmo tempo, tem cooptado abordagens alternativas.
O discurso dominante do desenvolvimento foi transformado pela apropriação de
temas como participação, gênero, empoderamento, contexto local, entre outros.
Escobar (2008), por exemplo, não mostra sinais de preocupação quando relata
a presença de ONGs em conexão com o Banco Inter-Americano de Desenvolvi-
mento e outras agências internacionais nos projetos econômicos localizados na
região do Pacífico Colombiano, que utiliza como evidência da possibilidade de
pós-desenvolvimentos. Tanto a fácil cooptação como sua expressão, a falta de
atenção a esta dimensão, podem se dever à “relativamente frágil raiz teórica de
algumas destas abordagens” (KOTHARI, 2005, p. 429).

Considerações finais
A revisão destas posições ajuda a compreender a importância das aborda-
gens emergentes que estão sendo construídas no processo de lutas e conflitos sócio-
-ambientais. Estas abordagens ao mesmo tempo confrontam o desenvolvimento,
forjando conceitos necessários para a expressão de discurso coerente de oposição, e
oferecem alternativas significativas para as crises que a civilização está enfrentando.

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180 Desenvolvimento: conflitos sócio-ambientais e perspectivas em disputa

As características distintivas das três abordagens apresentadas nas sessões


prévias são sumarizadas no Quadro 1.
abordagem emergente dos Novo Desenvolvimento
movimentos e lutas sociais desenvolvimentismo alternativo
Influência da cosmovisão Definido pelo Definido pelo pensamento
indígena: pensamento Ocidental Ocidental moderno:
moderno:
• território como um • a terra é uma • os direitos de
bem coletivo em mercadoria entre propriedade
interdependência com a outras, pretence relacionados à
natureza; àqueles com títulos terra não estão em
de propriedade; questão;
• vida harmônica; • crescimento • reconhece o valor do
econômico crescimento como
contínuo; meio para a inclusão
social;
• solidariedade, direitos • competição, • apoia os pobres
comunitários e da fluxo de capital, e excluídos;
natureza, valores que novas rodadas predomínio da
expressam visões de um de acumulação razão orientada por
futuro possível; primitiva, valores;
renovação da
dependência;
• soberania alimentar, • modelo extrativista • economia popular;
produção ecológica, de exploração da
proteção da natureza;
biodiversidade;
• justice ambiental • mega-projetos de • desenvolvimento
investimento. sustentável.

É desnecessário afirmar a centralidade da formação discursiva do desenvolvi-


mento expressa no novo desenvolvimentismo e, ainda que parcialmente e mediada
por críticas humanizadoras, no desenvolvimento alternativo e no pós-desenvolvi-
mento. Ela é evidente! Exatamente por isto é importante trabalhar junto com os
movimentos sociais na problematização e disseminação de novas ideias e práticas.

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Organização e Práxis Libertadora 185

A Produção de álcool combustível no Brasil: reorganização


do capital e superexploração do trabalho
ou
vamos nos jogar onde já caímos... tudo novo de novo97...

Sueli Goulart
Maria Ceci Misoczky

Para Caio Prado Júnior, pensador do Brasil, nossos problemas só podem


ser compreendidos em sua relação com o mercado mundial. Para compreendê-los,
estudou os elementos materiais que definiram a organização econômica do Brasil
desde a colonização: o país foi estruturado para atender às necessidades externas,
e não para alimentar seu mercado interno (PRADO JÚNIOR, 1975; 1996; 2004).
Dizia ele:

O que caracteriza o Brasil desde o início de sua formação é que nele se


constituiu uma organização econômica destinada a abastecer com seus
produtos o comércio internacional. É este o caráter inicial e geral da eco-
nomia brasileira que se perpetuaria com pequenas variantes até nossos
dias. (PRADO JÚNIOR, 2007, p. 132)

Esse texto, originalmente escrito em 1947 faz sentido ainda hoje. Basta
qualificar as variantes que caracterizam, no tempo presente, o novo padrão de
reprodução do capital: exportador de especialização produtiva. Para compreendê-
-lo é preciso retomar as categorias desenvolvidas por Karl Marx, que aqui serão
brevemente apresentadas, uma vez que foram referência para as formulações dos
autores brasileiros citados neste artigo.
Marx (1990) demonstra que a reprodução do capital depende da proporcio-
nalidade entre os valores de uso e de troca que são intercambiados pelos setores
dedicados à produção dos meios de consumo e de meios de produção. A repro-
dução ampliada do capital exige que a soma de valores, representada pelo capital
variável e as mais-valias, acumulada e improdutiva do setor que se dedica a ge-

97 Verso da música tudo novo de novo, de Paulinho Moska.

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186 A Produção de álcool combustível no Brasil

ração de meios de produção, seja equivalente ao capital constante e à mais-valia


acumulada do setor de bens de consumo.
Partindo dessa formulação e do conjunto teórico expresso em O Capital,
Rui Mauro Marini enfatiza a compatibilidade entre os esquemas de reprodu-
ção e o progresso técnico, articulando-os no processo de acumulação de capital
(MARINI, 2005b).
De acordo com Marini (2005b), o subsetor que produz bens salário e o que
produz insumos para este subsetor, não são capazes de sustentar a generalização do
progresso técnico porque a conservação da massa de valor apresentada pelo capital
variável entra em contradição com o progresso técnico e/ou com a elevação da inten-
sidade do trabalho, necessário para a obtenção da mais-valia extraordinária no ramo.
As mercadorias constituídas de bens salário, ao manterem seu valor social, apesar
da redução do valor individual, não encontram demanda para sua realização pois se
expressam em uma maior massa física de produtos (MARTINS, 2009).
Essa barreira ao equilíbrio do processo de reprodução ampliada se encontra
na raiz do modelo presente na América Latina desde a década de 1970. De acordo
com Osório (2007), a crise da taxa de lucros da década de 1980 e os esforços
para sua recuperação atualizaram, sob novas condições, os nós estruturais que
constituem a condição de dependência, entre eles a violação do valor da força de
trabalho acima mencionado.
De modo breve, apresentamos algumas características deste novo padrão de
reprodução: (1) a ideia de uma industrialização extensa e diversificada, que estava
presente no projeto de desenvolvimento dos países da região, entre eles o Brasil, é
colocada em segundo plano, priorizando a acumulação em alguns ramos especia-
lizados, particularmente atividades agrícolas ou agroindustriais, extração mineira e
produtos energéticos – como os tradicionais petróleo e gás, e agora o etanol; (2) estes
movimentos fazem parte da segmentação e deslocamento dos processos produtivos
na atual etapa da globalização; (3) os principais eixos de acumulação orientam sua
produção para o mercado mundial, o que implica em uma reedição, sob novas con-
dições, do antigo padrão agro-mineiro exportador prevalecente na região nos séculos
passados; (4) a taxa de exploração e superexploração do trabalho aumenta, cresce o
emprego precário e a informalidade, se multiplicam o desemprego e o subemprego;
(5) cresce a riqueza em pequenas mas poderosas franjas sociais do capital, particu-
larmente naquelas ligadas às atividades exportadoras privilegiadas pelo novo padrão
de reprodução; (6) a polarização na distribuição da renda alcança níveis nunca vis-
tos; (7) o capital internacional assume nova relevância, seja sob a forma de capital

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Organização e Práxis Libertadora 187

financeiro, seja sob a forma de capital produtivo, lucrando das múltiplas facilidades
outorgadas aos investimentos estrangeiros por Estados nacionais e erigindo-se em
um dos baluartes do modelo exportador (OSORIO, 2007).
A produção de álcool combustível, desde 2007 uma das principais bandei-
ras do governo brasileiro, apresentada como elemento central para um crescimento
econômico que seria sustentável, limpo e capaz de consolidar a presença brasilei-
ra no mercado energético mundial, pode ser melhor compreendida se tomarmos as
considerações acima como referência. A partir desta contextualização norteadora, o
objetivo deste artigo é compartilhar informações (dados secundários recuperados em
reportagens, produções acadêmicas, sites, blogs etc.) e propor, na área dos estudos
organizacionais, reflexões críticas sobre este grande tema nacional.
Consideramos que as contribuições de nossa área de estudos podem se conec-
tar com as possibilidades de transformação social quando buscam, a partir de seus
objetos, os nexos com a totalidade, como ensinava Prado Júnior. Nesse sentido, é
preciso ver, para além das funcionalidades, os liames que ajudamos a tecer na con-
formação de concepções de mundo.
Mediante textos ilustrativos, mostraremos como vem se organizando a pro-
dução brasileira de álcool combustível no âmbito da divisão internacional do traba-
lho e também como se caracterizam as relações de trabalho no setor. Seguiremos,
então, com uma apresentação de textos e reportagens que registram e descrevem
fatos. Essas apresentações serão intercaladas com comentários e citações de modo a
conectá-las a temáticas contemporâneas tanto quanto a fatos e interpretações histó-
ricas, considerando que pensamos os problemas atuais como processos construídos
ao longo do tempo.
Dessa forma, procuramos mostrar que o apelo à inovação, à autodeterminação
e ao compromisso com a sustentabilidade econômica, social e ambiental, de fato, não
estabelece rupturas com modelos arcaicos de organização da produção. Em outras
palavras, exploraremos o quanto a produção de agro-combustíveis, particularmente a
de álcool combustível, tratada como elemento propulsor de um novo modelo de de-
senvolvimento, reproduz padrões perversos de há muito presentes em nossa história.

A reorganização do capital
A retomada do álcool combustível como tema importante da pauta econô-
mica brasileira ocorreu a partir do ano 2000, com a criação do Conselho Inter-
ministerial do Açúcar e do Álcool (CIMA). O CIMA tem o objetivo de deliberar
sobre as políticas relacionadas com as atividades do setor sucroalcooleiro e, es-

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188 A Produção de álcool combustível no Brasil

pecificamente, “aprovar os programas de produção e uso de álcool etílico com-


bustível, estabelecendo os respectivos valores financeiros unitários e dispêndios
máximos”. Integram esse Conselho os ministros de Estado da Agricultura e do
Abastecimento, que o preside; da Fazenda; e do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior (BRASIL, 2000).
No âmbito legal, este foi o marco de revitalização do álcool como combus-
tível, depois do fracasso do Pró-Álcool98, do desmonte das políticas de incentivo
entre os anos de 1989 e 2000 e da desregulamentação por que passou o sistema de
abastecimento de combustíveis (BRASIL, 2007?).
A desregulamentação do setor não vigorou sobre a decisão governamental
estabelecida em 1993 obrigando a mistura de 22%99 de álcool anidro em toda a
gasolina distribuída para revenda nos postos. Tais medidas foram acompanhadas
da liberação dos preços dos produtos do setor em 2002, seguido da introdução dos
veículos flex-fuel em 2003, dos incentivos à exportação de etanol, especialmente a
partir de 2007, e do elevado preço do petróleo no mercado mundial.
Não por acaso, o uso do álcool combustível passou a incorporar também a
pauta de Temas da Agenda Internacional, do Ministério das Relações Exteriores,
como se pode ver em seu respectivo sítio (BRASIL, 2007?):

Nessa fase [a partir de 2000], a dinâmica do setor sucroaalcooleiro pas-


sou a depender muito mais dos mecanismos de mercado, em especial do
mercado externo, do que do impulso governamental. O setor realizou in-
vestimentos, expandiu a produção, modernizou-se tecnologicamente e,
hoje, o etanol de cana-de-açúcar é produzido no Brasil de modo eficiente
e a preços competitivos internacionalmente.

De fato, os produtores de cana-de-açúcar se mostraram bastante entusias-


mados com essas perpectivas, como se pode ver no trecho abaixo extraído de texto
opinativo de Antonio Cabrera que, além de produtor, foi Ministro da Agricultura e
Reforma Agrária do governo Collor e Secretário da Agricultura e Abastecimento
de São Paulo, no governo Mário Covas. O texto foi escrito em resposta a críticas
aos métodos e processos de trabalho no setor. Selecionamos as frases referentes
aos dados relativos a volumes de produção.

98 Ver BUENO, ricardo. Pró-álcool: rumo ao desastre. Petrópolis: Vozes, 1980.


99 Atualmente, o CIMA regula esse percentual que pode variar entre 20 e 25%.

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Organização e Práxis Libertadora 189

Álcool: orgulho de ser brasileiro


[...] Em primeiro lugar, tem-se o registro de uma redução das áreas plantadas com
produtos agrícolas, mas, na verdade, o setor deve ser avaliado pela produção efetiva.
Nos últimos 15 anos, o Brasil teve um aumento da sua safra agrícola de 125%, com um
aumento de área de apenas 22%. resumindo, estamos produzindo a maior safra su-
croalcooleira da história, com uma produção recorde da safra agrícola e um estoque
formidável de terras para uso futuro, sem pensarmos na Amazônia ou no Pantanal.
Na questão do trabalho, o sertanejo sabe que o “emprego não cai do céu, mas pode
brotar do chão”, pois o setor da cana foi o principal promotor na geração de empregos
neste ano. [...]. Os problemas e as dificuldades apontadas são o preço do progresso,
mas sabemos que o pessimismo jamais ganhou uma batalha. Da mesma maneira que
Santos Dumont perdeu a oportunidade do reconhecimento na aviação, não vamos re-
petir o erro por acusações infundadas, mas, sim, nos esforçar para liderar no planeta
essa mudança de matriz energética. Afinal, o homem do campo sabe que o nó da cana
não se chupa, mas ele dá álcool, açúcar, energia e, principalmente, renda e emprego.
Cabrera, 2007.

De lá prá cá, fortalecido pelas seguidas injeções de ânimo do próprio Presi-


dente da República, de seus ministros e de financiamentos, o setor atraiu empresá-
rios de diferentes setores que, sob as mesmas declarações de orgulho, agregam a
dimensão ecológica, inovadora e sustentável à produção sucroalcooleira. É o que
destacamos da opinião ufanista de Emílio Odebrecht, no trecho seguinte.

a força do nosso etanol


O etanol combustível brasileiro é motivo de orgulho para o país. Mesmo em meio à cri-
se mundial, nossa produção não recuou: as vendas no mercado interno passaram de
9,101 bilhões de litros nos primeiros 6 meses de 2008 para 10,713 bilhões no mesmo
período de 2009, um salto de 17,7%.
tal vigor se deve a vários fatores, dos quais o mais importante são as décadas de es-
forço e talento de brasileiros investidos nesta área. Nosso etanol é um combustível
de alto desempenho e viável econômica, ambiental e socialmente.
[...] O etanol de cana é sustentável por definição. O CO2 emitido pelo uso do combus-
tível renovável no motor de um carro já foi compensado pela quantidade do mesmo

100 Disponível em: http://www.brenco.com.br/brenco/pdf/14_SaibaMais.pdf. Acesso em: 30 jan. 2010.

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190 A Produção de álcool combustível no Brasil

gás absorvida pela planta durante seu crescimento. E é uma das energias renová-
veis que menos demanda a utilização de energia fóssil para sua produção. [...] Cedo
ou tarde os biocombustíveis ocuparão o lugar dos hidrocarbonetos como locomoti-
vas da economia mundial. quando este dia chegar, estaremos prontos para ocupar
o lugar que nos cabe.
Odebrecht, 2009.

Antes de avançar é preciso fazer uma pausa para reflexão: há no ar um tom


de nacional-desenvolvimentismo. Será?
A expressão nacional-desenvolvimentismo entra no cenário brasileiro
exatamente após a crise do velho modelo agroexportador, que culminou com a
crise política e institucional de 1930. Ali se origina o modelo de industrialização
dependente, ou seja, realizada sem rompimento com a dependência econômica
dos países centrais nem com a oligarquia rural que continuou dona de terras,
latifundiária e produzindo para a exportação - indispensável para a obtenção
de divisas necessárias à importação de máquinas destinadas ao processo de in-
dustrialização. Não detinha mais o poder político no aparato institucional, mas
estaria, é claro, na origem das novas elites dominantes.
Naquele contexto, o clamor nacionalista cresceu na mesma intensidade
que as transformações econômicas e sociais, mobilizando setores amplos da
população que culminaram com a campanha pelo monopólio do petróleo. Nas
palavras de Ansart (1978, p. 257), o “nacionalismo, enquanto linguagem comum
e ocultando as diferenças numa unanimidade ativa, permite, de fato, disfarçar as
desigualdades, tornar toleráveis as injustiças e assim participar da redução dos
conflitos de classe”.
É reconhecido que Getúlio Vargas soube usar com excelência os aspectos
simbólicos do nacionalismo para a amortização de tensões sociais entre três
posições que polarizavam os debates: os que aceitavam o capital estrangeiro
sem restrições ou controles de qualquer espécie; os que admitiam sua presen-
ça, desde que sujeito a regulamentações explícitas; os que se insurgiam contra
sua presença, exigindo do Estado a atuação enérgica nesse sentido (BOSCHI,
1979). Na atualidade esta é uma discussão superada. O credo do neoliberalismo
e o jargão da globalização naturalizaram “a supressão progressiva das fronteiras
nacionais no que se refere às estruturas de produção, circulação e consumo de
bens e serviços, assim como alteraram a geografia política e as relações interna-

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Organização e Práxis Libertadora 191

cionais, a organização social, a escala de valores e as configurações ideológicas


próprias de cada país” (MARINI, 2008, p. 248).
No entanto, por via das dúvidas, o investimento no discurso do naciona-
lismo como fonte de legitimidade continua. Ainda que, agora, sob sua aparência
se encontre, de fato, um processo acelerado de internacionalização do setor,
como se percebe nas ações do mesmo Emílio Odebrecht, aquele do ufanismo
nacionalista no trecho citado acima.

EtH fecha acordo para se unir à brenco


A Eth Bioenergia, do grupo Odebrecht, fechou um acordo de exclusividade para unir
suas operações com a produtora de etanol Brenco, que passa por dificuldades fi-
nanceiras. [...] A fusão vai criar a maior produtora de etanol de cana-de-açúcar do
Brasil e do mundo. Juntas, elas produzirão 3 bilhões de litros de etanol por ano e
2.500 GW/hora por ano de energia elétrica a partir da biomassa. [...] tanto a Eth
como a Brenco são empresas relativamente novas no setor sucroalcooleiro, e que
adotaram estratégias semelhantes de construir novas usinas (greenfields) dedica-
das à produção de etanol e de cogerar energia elétrica a partir do bagaço de cana
em polos produtivos. A Eth, controlada pela Odebrecht juntamente com a trading
japonesa Sojitz, que possui 33% das ações, possui cinco usinas, três das quais são
projetos greenfield que estarão em operação até o final de 2009. [...]
Investe São Paulo, 2009.

A nota, d’ O Estado de São Paulo, divulgada também no sítio da Brenco100


informa que, por ter se concentrado em grandes projetos greenfield e, por não
contar com fluxo de caixa constante (nenhuma das quatro usinas tinha ainda
entrado em operação até outubro de 2009), a empresa ficou sem liquidez na
crise de 2008. Essa foi a razão para a busca por novos sócios, pois a Brenco já
contava entre seus acionistas com o próprio Philippe Reichstul, ex-presidente
da Petrobrás no período de março de 1999 a dezembro de 2001; o ex-presi-
dente do Banco Mundial James Wolfensohn, o fundador da Sun Microsystems,
Vinod Khosla, e o BNDESPar. Nota da Folha de São Paulo acrescenta ainda
o nome do ex-presidente norte-americano Bill Clinton (BERGAMO, 2009)
entre seus atuais acionistas. Das quatro usinas em construção, cada uma delas
com capacidade para moer 3,8 milhões de toneladas de cana, duas estão situa-

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192 A Produção de álcool combustível no Brasil

das no Mato Grosso do Sul e duas em Goiás. É um sinal do avanço da cultura


da cana-de-açúcar para outros espaços geográficos além dos já tradicionais –
Nordeste e Sudeste.
Como se vê, o tradicional setor sucro-alcooleiro, durante muitos anos
símbolo do atraso brasileiro com seus engenhos, latifundiários e trabalhadores
superexplorados, torna-se agora um megaempreendimento, símbolo de pro-
gresso e modernidade, capaz de atrair grandes investidores internacionais.

Estrangeiros avançam no álcool brasileiro


A internacionalização do setor sucroenergético brasileiro deu mais um grande passo
ontem. A tradicional empresa paulista Santelisa, com 70 anos e que tinha no comando
as famílias Biagi e Junqueira Franco, passou para as mãos do grupo francês Louis
Dreyfus, que já detinha a LDC Bioenergia. Da união das empresas, com 13 usinas no
total, surge a LDC SEV, da qual 60% serão do gigante francês. A transferência de mais
um grupo para as mãos de estrangeiros -somada aos novos negócios que estão sendo
avaliados- eleva para próximo de 20% a participação externa na produção do setor, um
percentual que veio antes do que se imaginava e de forma diferente.
Se, no auge da euforia do setor, em 2007, quando o presidente Lula chamou os usineiros
de “heróis nacionais e mundiais”, imaginava-se que os estrangeiros viriam para investir
em novas fábricas e aumentar a produção, hoje eles se aproveitam da crise aguda do setor
para apenas adquirir ativos tradicionais, como a Santelisa. E há novos negócios na mira
das multinacionais, como a compra da Moema pela Bunge. “Essa é apenas a primeira
onda de investimentos estrangeiros”, acredita João Sampaio, secretário da Agricultura
de São Paulo. A segunda será ainda maior e virá com as petrolíferas estrangeiras, que
já avaliam o setor. “A segunda onda virá com investimentos pesados dessas empresas,
na compra das atuais ou na formação de outras”, diz Sampaio. [...] A nova empresa tem
capacidade de moagem de 40 milhões de toneladas de cana, 2,7 milhões de toneladas de
açúcar e 1,5 bilhão de litros de álcool. Para se manter entre as líderes do setor, a LDC
SEV tem um plano agressivo de expansão, diz o presidente-executivo, Bruno Melcher. Por
isso, recebeu uma injeção de capital de r$ 800 milhões do grupo Dreyfus e de investidores
financeiros, além de converter dívidas em patrimônio líquido.
O valor da nova empresa está estimado em r$ 8 bilhões, e a companhia se pre-
para, também, para o lançamento de ações internamente, assim que o mercado
apresentar condições mais favoráveis.
zafalon, 2009

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Organização e Práxis Libertadora 193

A previsão do Secretário de Agricultura de São Paulo já se concretizou,


com a joint-venture criada entre a Cosan (a maior empresa do setor sucroalcoolei-
ro do Brasil) e a Shell.

Cosan-Shell impulsiona etanol no mundo


A petroleira anglo-holandesa Shell e a Cosan anunciaram a assinatura de me-
morando de entendimento para a criação de duas subsidiárias no Brasil no prazo
de seis meses. As duas joint ventures, ainda sem nome definido, terão receita
estimada de r$ 40 bilhões por ano, o que as coloca entre os 15 maiores fatura-
mentos no país. O negócio representa um passo histórico para o setor sucroal-
cooleiro brasileiro e oferece à Shell a possibilidade de diversificação em direção
ao setor da economia denominado de baixo carbono. Com a transação, estima-
da em US$ 12 bilhões, a Shell marca um inédito ingresso no mercado de produ-
ção de álcool combustível, algo que a estatal brasileira Petrobras e a BP (Bri-
tish Petroleum) fazem de forma tímida. Ao mesmo tempo, o negócio oferecerá
à brasileira a posição de terceira maior distribuidora do país, uma das maiores
redes de distribuição no exterior, perspectivas de expansão de exportações e
projetos de desenvolvimento do etanol celulósico, nova geração dos biocombus-
tíveis. “Esse era o passo que faltava para tornar o etanol uma commodity global”,
disse rubens Ometto, presidente do Conselho de Administração da Cosan. Para
ele, a união com a Shell dará condições de a empresa se tornar líder mundial
em combustíveis renováveis. [...] Pelo acordo serão criadas duas companhias,
que terão partilhados o controle por Shell e Cosan S.A. A primeira reunirá as
usinas de açúcar e álcool, a segunda, os ativos de distribuição de combustíveis.
[...] De Londres, o diretor mundial de distribuição de combustíveis da Shell, Mark
Williams, classificou o acordo como uma grande “oportunidade” de a companhia
ingressar no mercado de biocombustíveis no mundo.
Brito, 2010

A concentração e a internacionalização já estão claramente definidas e


são seguidamente saudadas como o grande atrativo para investimentos estran-
geiros no País. Assistimos, mais uma vez, à orientação para a exportação de
bens primários, só que agora a produção é nacional apenas no discurso. Entre
os grupos estrangeiros que já estavam presentes na produção sucroalcooleira
desde 2009 contam a Cargill, a Bunge, a Teréos, a Adecoagro, o Noble Group

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194 A Produção de álcool combustível no Brasil

e a British Petroleum, considerados os mais atuantes no mercado mundial de


commoddities (ZAFALON, 2009). Até então, esses grupos já detinham cerca de
20% da produção do setor.
Já presentes na produção, investem agora fortemente na distribuição, como
se vê no quadro acima em referência à Shell e como se explicita também no qua-
dro abaixo, onde destacamos a formação de joint-ventures para intermediar a ex-
portação para os países europeus.

Europeus se unem para importar álcool


A fornecedora britânica de biocombustíveis Greenergy International divulgou ontem
que formaria uma joint-venture com o grupo francês de açúcar e etanol Bauche para
fornecer e vender etanol brasileiro sustentável no mercado europeu. A Greenergy,
principal importadora de bioetanol brasileiro para o reino Unido, terá participação de
70% na Greenergy Brasil, e a Bauche, 30%. O novo empreendimento foi realizado vi-
sando as novas regras que serão impostas ao final de 2010 ou no início de 2011, sob as
quais produtores de biocombustíveis sofrerão punição se não conseguirem demons-
trar que seu combustível está cumprindo as normas sociais e ambientais.
Biocombustíveis, 2010

Argumentos de sustentabilidade e, até mesmo, de justiça social, têm sido


usados à exaustão, inclusive para legitimar o aporte de recursos, via BNDES,
aos grandiosos projetos empresariais. Mal disfarçam, no entanto, a ampliação da
dívida ecológica, aquela contraída pelos países industrializados com os demais,
em decorrência da exploração histórica dos recursos naturais, dos impactos am-
bientais e da livre e intensa utilização dos recursos ambientais globais (VARGAS
COLLAZOS, 2008). Sob a argumentação ecológica se mantém intactas as arti-
culações entre o modo de consumo e de produção capitalistas. Por isso mesmo,
no caso do Brasil, mantém-se intactos também os mecanismos de dependência,
construídos desde os tempos coloniais e aprofundados à medida que o País adere
à nova onda desenvolvimentista, no cenário atual do capitalismo.
Configura-se, de fato, um cenário de bionegócios, na expressão de Vargas
Collazos (2008), caracterizado pela convergência corporativa de empresas trans-
nacionais de diferentes setores, como se pode constatar nos quadros apresentados
ao longo deste texto. Para a autora, se não há dúvidas quanto à rentabilidade dos

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negócios, permanecem mitigados os efeitos ambientais e sociais do aprofunda-


mento da industrialização da atividade agrícola, do avanço da fronteira agrícola
e, em conseqüência, do desflorestamento. O modelo continua se sustentando no
petróleo, desde a produção de insumos químicos até o transporte das mercadorias,
inclusive na produção do álcool combustível. Além disso, a conversão de áreas de
florestas em terras de cultivo, o uso de fertilizantes e a cultura em grande escala
são identificados como causas de emissão de óxido nitroso, o terceiro gás em im-
portância como causador de efeitos perversos sobre o meio ambiente. Somente no
Brasil, 80% das emissões deste gás decorrem do desmatamento provocado pela
expansão das culturas de soja e de cana-de-açúcar.

A reprodução da superexploração do trabalho

Quem construiu Tebas, a das sete portas?


Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilônia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu?
Bertold Brecht

A expressão dependência, usada algumas vezes neste texto precisa ser, ago-
ra, melhor qualificada, de modo que possamos entender o significado do trabalho
na sua efetivação. Nas palavras de Ruy Mauro Marini (2005a, p. 141), a depen-
dência é uma “relação de subordinação entre nações formalmente independentes,
em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas
ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência”. Sua supera-
ção só pode, portanto, se dar quando da “supressão das relações de produção nela
envolvidas”.
No núcleo central de como se reproduz o capitalismo dependente se encon-
tra a superexploração do trabalho: uma forma de exploração na qual são negadas
ao trabalhador as condições necessárias para repor o desgaste de sua força de tra-
balho. O sacrifício do consumo individual dos trabalhadores em favor da expor-
tação para o mercado mundial deprime os níveis de demanda interna e provoca a

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196 A Produção de álcool combustível no Brasil

necessidade de expansão para o exterior, o que engendra a ressurreição do modelo


agro-exportador e políticas agressivas de competição internacional, especialmente
em projetos direcionados para a economia regional.
Vejamos, no cotidiano dos trabalhadores dos canaviais o que é a superex-
ploração? Como vivem estes trabalhadores? Como chegam os grandes benefícios
do álcool combustível às suas casas, às suas famílias, às suas vidas?
Várias reportagens e autores nos dão pistas... Já em 2007, ano do arranque
dos negócios no setor dos agrocombustíveis, particularmente do álcool combustí-
vel, a Folha de São Paulo noticiava:

blitz vê condição degradante na produção de álcool em SP


No momento em que a produção de álcool combustível no Brasil é vista como mo-
delo de alternativa energética global, fiscais do Ministério Público do trabalho en-
contraram ontem em uma fazenda em Ibirarema (390 km a oeste de São Paulo) ao
menos 90 trabalhadores rurais atuando no plantio da cana em condições considera-
das “degradantes”. [...] Desde 2004, 17 bóias-frias morreram no interior do Estado.
A suspeita é que as mortes ocorreram por excesso de esforço no corte da cana. [...]
Na ação de ontem, os fiscais autuaram a Usina renascença Ltda., responsável pelo
plantio, por 13 infrações. Os trabalhadores atuavam sem equipamentos de proteção,
sem banheiro, sem água potável e sem equipamento de primeiros socorros, entre
outros problemas. Alguns dos trabalhadores contaram à Folha que eram obriga-
dos a pagar, num mercadinho local, r$ 38 pela botina e mais r$ 13 pelo facão. O
material deveria ser fornecido pelo empregador, segundo o Ministério Público do
trabalho. “tive de trabalhar três dias no corte de cana para poder pagar a botina que
comprei”, disse Benedito Aparecido Gonçalves, 37. Já Ezequiel Antônio de Araújo,
38, contou que há cerca de 20 dias teve de passar o dia trabalhando sob o sol após
ter cortado a mão com o facão. “Disseram que não iriam gastar combustível para me
levar ao hospital. tive de esperar o final do dia para poder conter o sangramento”,
afirmou ele, que disse ganhar em média r$ 14 por dia de trabalho na fazenda Porta
do Céu. Os fiscais também constaram que os trabalhares são levados ao campo
em dois ônibus sem condições de transporte. O plantio da cana e dois ônibus que
conduziam os trabalhadores foram interditados. Os ônibus não tinham tacógrafos
(medidor de velocidade) nem autorização do DEr (Departamento de Estradas e de
rodagens) para transporte de passageiros. Um deles não tinha freio nem retrovisor.
Os trabalhadores não tinham água potável nem contavam com abrigo para refei-

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ção. [...] A Usina renascença foi arrendada em janeiro passado pelos coreanos Yung
Soon Bae e hei Suk Yang, que também são donos do Grupo Star BKS. hei Suk Yang
disse ontem à Folha que tinha tomado conhecimento das autuações, mas que des-
conhecia a situação dos trabalhadores rurais.
Simionato, 2007

No ano seguinte, os jornalistas Mário Magalhães e Joel Silva produziram


um dossiê, publicado no caderno Mais! da Folha de São Paulo, intitulado O sub-
-mundo da cana (MAGALHÃES e SILVA, 2008), pelo qual ganharam o prêmio
Wladimir Herzog, de 2008. Selecionamos alguns tópicos que serão apresentados
nos quadros que seguem.

O submundo da cana
Estado que detém 60% da produção nacional de cana-de-açúcar, São Paulo
não divide a riqueza derivada do boom de etanol com seus 135 mil cortadores, que
vivem muitas vezes em situações precárias. [...] A riqueza do setor sucroalcoolei-
ro, que movimentará neste ano R$ 40 bilhões, não atingiu os lavradores. Em 1985,
um cortador em São Paulo ganhava em média R$ 32,70 por dia (valor atualizado).
Em 2007, recebeu R$ 28,90. A remuneração caiu, mas as exigências no trabalho
aumentaram. Em 1985, o trabalhador cortava 5 toneladas diárias de cana. Na safra
atual, 9,3. [...] Exige alto esforço físico uma atividade em que é preciso dar 3.792
golpes com o facão e fazer 3.994 flexões de coluna para colher 11,5 toneladas no
dia. Nos últimos anos, mortes de canavieiros foram associadas ao excesso de tra-
balho. Conta-se a seguir o caso de um bóia-fria que morreu semanas após colher
16,5 toneladas. Não há paralelo em qualquer região com tamanho rendimento. Na
estrada, flagraram-se ônibus deteriorados, ausência de equipamentos de segurança
no campo, moradias sem higiene e pagamento de salário inferior ao mínimo.
A superexploração é exatamente isto:

O aumento da intensidade do trabalho aparece, assim, como um aumen-


to de mais-valia alcançado através de uma maior exploração do traba-
lhador e de sua capacidade produtiva. O mesmo se poderia dizer da pror-
rogação da jornada de trabalho, quer dizer, do aumento da mais-valia em
sua forma clássica; à diferença da primeira, se trata aqui de aumentar
simplesmente o tempo de trabalho excedente, que é o que o trabalha-

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198 A Produção de álcool combustível no Brasil

dor segue produzindo depois de ter criado um valor equivalente ao dos


meios de subsistência para seu próprio consumo. Há que considerar, fi-
nalmente, um terceiro procedimento, que consiste em reduzir o consumo
do trabalhador além do seu limite normal, pelo qual o fundo de consumo
do trabalhador se converte, de fato, dentro de certos limites, num fundo
de acumulação do capital, implicando, assim, um modo específico de
aumentar o tempo de trabalho excedente (MARINI, 2005b, p. 154).

Marini (2005b) destacou que estes três mecanismos têm em comum uma
característica essencial: negar ao trabalhador as condições necessárias à reposição
da força de trabalho, seja pelo dispêndio de energia superior ao que deveria, pro-
vocando seu esgotamento prematuro, seja pela impossibilidade de consumir o que
seria necessário para conservar sua força em estado normal. Quando a superexplo-
ração se exacerba ainda mais, as semelhanças com o trabalho escravo se mostram.

Escravidão
No auge e na decadência do ciclo da cana-de-açúcar, os escravos cuidaram da lavoura
e puseram os engenhos para funcionar. A arrancada do etanol brasileiro foi dada por
lavradores na maioria negros. Assim como os escravos sumiram de certa historio-
grafia, os cortadores são uma espécie invisível nas publicações do setor. Exibem-se
usinas high-tech, mas oculta-se a mão-de-obra da roça. Impressiona na viagem ao
mundo e ao submundo da cana a semelhança de símbolos da lavoura atual com a era
pré-Abolição. O fiscal das usinas é chamado de feitor. Acumulam-se denúncias de
trabalho escravo. É um erro supor que as acusações de degradação passem longe do
estado mais rico do país e se limitem ao “Brasil profundo”.

a morte cansada
Em acidentes registrados - a subnotificação é considerável -, o facão rasgou-lhe per-
na e joelho. Dores no ombro direito o afastaram da roça. Penava com dor de cabeça.
O empenho no trabalho desencadeava cãibras na barriga, nas pernas e nos braços.
Sofria da doença de Chagas, mas não o licenciaram. Era funcionário da usina More-
no. Sucumbiu no campo e o levaram para o hospital. Causa da morte: “cardiopatia
chagásica descompensada”. Lopes integra a relação de duas dezenas de canavieiros
mortos no interior paulista de 2004 a 2007, o caçula com 20 anos. [...] relatório de
2006 da Secretaria de Inspeção do Ministério do trabalho enumera dezenas de irre-
gularidades em empresas nas quais trabalhavam os lavradores que morreram. Uma

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é o não-cumprimento do descanso de uma hora para o almoço. Os cortadores comem


em dez, 20 minutos, para logo empunhar de novo o facão. Eles ganham por produção.
Nenhum laudo atesta que a atividade foi decisiva para os óbitos. Seria difícil: dos oito
esquadrinhados pelo ministério, só em dois houve necropsia. O texto da Secretaria de
Inspeção afirma: “As causas de mal súbito, parada cardiorrespiratória e AVC [acidente
vascular cerebral], descritas nas certidões de óbito, não são elementos de convicção
que justifiquem a morte natural, como alegam as empresas”. há indícios sobre por
que morrem os canavieiros.
Em 1985, os cortadores do Estado produziam em média 5 toneladas diárias de cana.
Em 2008, são 9,3 toneladas, 86% a mais. há 23 anos, um lavrador recebia r$ 6,55 por
tonelada e r$ 32,70 por jornada. Em 2007, 1.000 kg valeram r$ 3,29. A remuneração
por dia, r$ 28,90 (menos 12%). A produtividade disparou e o salário caiu. Com a me-
canização acelerada do corte e a expansão do desemprego, ficam os mais eficientes.
O homem compete com a colheitadeira.

Penoso e desumano
José Mário Gomes morreu em 2005 aos 44 anos. Era empregado da usina Santa
helena, do grupo Cosan, líder da produção de cana no planeta. “O óbito ocorreu
nos períodos de maior produtividade, com picos alternados”, informa o Ministério
do trabalho. Valdecy de Lima trabalhava na usina Moreno, como Antonio ribeiro
Lopes. Em 7 de julho de 2005, desabou na roça. Morreu aos 38 anos, de acidente
vascular cerebral. Em 17 de junho, decepara 16,5 toneladas. [...]. O Ministério Pú-
blico do trabalho relaciona as mortes à rotina “penosa” e “desumana” e prepara
ação contra o pagamento por produção, quando o grosso da remuneração depende
do desempenho. É preciso acumular em oito meses, a duração da safra, o suficiente
para 12 - a maioria é dispensada na entressafra. Usineiros e segmento expressi-
vo dos trabalhadores desejam manter o sistema. O afinco para cortar mais e mais
provoca situações como uma acontecida em 2007. Sob o sol, em dia de temperatura
máxima de 37ºC à sombra, nove trabalhadores foram hospitalizados após se senti-
rem mal em uma fazenda de Ibirarema. reclamavam de cãibras e vomitavam. Algu-
mas usinas fornecem no campo bebidas reidratantes para a mão-de-obra suportar
o desgaste. Em áreas de corte manual, os canaviais costumam ser queimados antes
da colheita. O fogo queima a palha da cana, e restam apenas as varas, o que facilita
o trabalho. quando o facão golpeia as varas com fuligem, o pó se espalha, entra
pelo nariz e gruda na pele. A plantação recebe agrotóxicos. O lavrador não costuma
receber máscara.

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200 A Produção de álcool combustível no Brasil

Salário no olhômetro
Cálculos complexos e fraudes no peso lesam trabalhadores analfabetos ou semi-alfa-
betizados. O trabalho na colheita da cana-de-açúcar vale quanto pesa a cana cortada.
Pelo menos deveria valer. Documentos obtidos em duas regiões de São Paulo indicam
que uma desconfiança atávica dos trabalhadores não se trata de paranóia: fraudes -ou
erros- provocam o pagamento abaixo do previsto nos acordos com as empresas. A
remuneração dos cortadores é uma equação complicada mesmo para quem tem for-
mação superior. Para a esmagadora maioria dos lavradores, é ainda pior: na média,
eles não completaram nem a quarta série do ensino fundamental. [...]
Ao contrário do vendedor consciente dos sapatos que vendeu, o lavrador ignora as
toneladas que colheu. Com a balança nas usinas, longe da roça, ele só sabe depois. Na
lavoura, o terreno cortado é medido por um instrumento primitivo: um compasso de
madeira, com pontas de ferro e raio de 2 metros. O fiscal caminha girando o compasso
gigante. “Enquanto as usinas utilizam modernos sistemas de monitoramento por GPS
para projetar a colheita, os trabalhadores são remunerados no “olhômetro”, acusa o
Ministério Público do trabalho. [...]

Resgates e libertações
Desde 1995, quando entrou em ação, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Mi-
nistério do trabalho “resgatou” - é o verbo oficialmente empregado- 30.036 trabalha-
dores no Brasil. As indenizações somam r$ 42 milhões. São raras as condenações
judiciais. O recorde foi batido no ano passado, com 5.999 “libertações”, outra expres-
são adotada pelo governo. Neste ano, até junho, 2.269 pessoas foram encontradas em
condições análogas à de escravo.
Fiscais e procuradores se transformaram em uma espécie de caçadores de escravos
ao contrário -não para confiná-los, mas para livrá-los da desgraça. Em São Paulo, é
comum eles exigirem que empresas paguem a viagem de volta de migrantes contra-
tados em seus Estados para o corte de cana.
A maioria - 3.117 - dos libertados em 2007 no país trabalhava no setor sucroalcooleiro,
como a Folha informou em fevereiro passado.
Em Brasilândia (MS), na usina e na fazenda da Companhia Brasileira de Açúcar e ál-
cool, 831 empregados indígenas foram descobertos em situação qualificada como
degradante. Neste ano, 55 funcionários de outra usina da CBAA foram descritos pelo
Ministério do trabalho como vítimas de servidão por dívida, o que configura trabalho
escravo. Ao contrário da maioria das autuações, concentradas nas regiões de expan-
são da fronteira agrícola no Norte e no Centro-Oeste do Brasil, esta aconteceu no
Estado de São Paulo, em Icém.

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Organização e Práxis Libertadora 201

Vestígios arcaicos
O cenário verdejante que pigmenta as fotografias e colore o horizonte não passa de
ilusão - o tom do canavial é outro. A fuligem das queimadas ensombrece as varas de
cana-de-açúcar e torna rubro-negra a terra roxa em que outrora se fincavam cafezais.
Fragmentos da palha incinerada se amalgamam com o suor dos rostos e desenham
máscaras escuras. A cor predominante dos canavieiros, de banho tomado, não muda.
São negros - a soma de “pretos” e “pardos”- 63,7% dos trabalhadores no cultivo da
cana no país. A proporção supera os 43,4% de negros na PEA (população economica-
mente ativa) e os 55% na PEA rural. A característica se repete em São Paulo, onde a
presença negra na labuta da cana beira os 49%, o equivalente a 76% mais que na PEA
geral do Estado e 54% mais que na sua fração do campo - conforme o Censo de 2000,
em dados colecionados pelo economista Marcelo Paixão (UFrJ).
Os números frios ganham vida nas plantações. De perto, o canavial é mesmo negro.
Como eram os escravos que no Brasil moviam as moendas de cana, como documen-
tou aquarela de Jean-Baptiste Debret em 1822. Ou, em gravura de William Clark de
meses depois, os cativos que decepavam com facão a cana em Antígua. traços raciais
e instrumentos de ofício se mantêm, mas o anacronismo vai além da semelhança
de personagens dos retratos atuais com os das pinceladas do século retrasado. [...]
“Já conversei com o meu feitor”, diz um canavieiro, sobre a autorização para que ele
fosse fotografado para a reportagem (pedido negado). “O meu feitor é bom comigo”,
concede outro.
Inexiste conteúdo pejorativo, na boca dos cortadores, ao pronunciar a palavra. [...]
Em meio ao canavial, o cortador cuida do seu “eito”. “Não paro até acabar o meu
eito”, conta um. O dicionário define eito como “plantação em que os escravos tra-
balhavam”.

Os repórteres também ouviram os empresários e seus representantes:

lida subjetiva
Para entidade que representa produtores, a mídia tende a generalizar maus exem-
plos pontuais. [...] Do que morrem os canavieiros? O corte de cana “não mata”,
afirma Padua. “Pode-se morrer em qualquer situação, local e hora.” Na sua opi-
nião, “o serviço não leva à exaustão. Ninguém é obrigado a cortar cana ininterrup-
tamente”. Movimentos como as flexões não causam problemas? Complicações com

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202 A Produção de álcool combustível no Brasil

a coluna “também tem quem trabalha em escritório diante do computador”, sustenta


o executivo. Mesmo assim, algumas companhias promovem ginástica laboral para os
funcionários no campo, como comprovam imagens em publicações. Ao acompanhar
turmas de empregados de usinas e fornecedores de cana, os repórteres não testemu-
nharam lavradores se exercitando - a não ser com o facão. A associação dos usineiros
rejeita projeções sobre a vida útil dos cortadores. Nem sabe definir quanto tempo eles
permanecem na atividade. O pagamento por produção não incentiva o trabalhador a ul-
trapassar seus limites? “Não existe esse absurdo de que falam”, diz Padua. Ele estima
o piso salarial no Estado em uma faixa de r$ 480 a r$ 550. “O trabalho é difícil, penoso,
mas não é desumano.” Segundo o Instituto de Economia Agrícola, em 2007 a remune-
ração média pelo corte em São Paulo foi de r$ 720. Nas contas da Unica, por volta de
95% do emprego local no cultivo da cana é formalizado. A Unica contesta igualmente as
autuações do Ministério do trabalho por submissão, em canaviais, de trabalhadores à
condição análoga à de escravo. há excessiva subjetividade na interpretação dos fatos,
diz Padua. “Pagar abaixo do salário mínimo é trabalho escravo?”, indaga. Propõe revi-
sar a legislação para torná-la mais clara - o Código Penal prevê o crime referente ao
trabalho escravo.

Heróis de lula
Na visão dos usineiros, pesquisas sobre o impacto nocivo do trabalho padecem de li-
mitação severa: o universo pequeno dos indivíduos analisados. É o caso, exemplificam,
de tese sobre o nível elevado de substâncias cancerígenas na urina de 41 cortadores
durante a safra. Outra crítica se dirige contra organizações civis e o jornalismo. Do ponto
de vista da Unica, tomam-se como padrão alguns maus exemplos pontuais de gestão do
trabalho. A agremiação e seus 117 associados (eram menos de 90 um ano atrás) man-
têm 154 iniciativas de qualificação de mão-de-obra. O segmento de cana, açúcar e álcool
deve movimentar r$ 40 bilhões neste ano no Brasil, diz a Unica. [...]
O Estado deve fechar o ano com 181 usinas, sete a mais que as já em funcionamen-
to. No centro-sul, incluindo o Sudeste, de 80 a 90 devem começar a operar em três
anos. No país, há em torno de 370. [...] Neste ano, Lula minimizou o trabalho degra-
dante na roça: “Vira e mexe, estamos vendo eles [europeus] falarem do trabalho
escravo no Brasil, sem lembrar que no desenvolvimento deles, à base do carvão, o
trabalho era muito mais penoso que o trabalho na cana-de-açúcar”.

Evidentemente, as condições de trabalho nos canaviais não estão entre as


preocupações centrais dos usineiros e tampouco daqueles interessados no “suces-

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Organização e Práxis Libertadora 203

so” dos bionegócios. Mas, também é evidente que tais condições tem sido enfren-
tadas por trabalhadores e, em algumas ocasiões, pelo Ministério Público. A greve
ocorrida em Guariba (SP), em 1984 mostrou a resistência e o enfrentamento dos
trabalhadores, registrada pela imprensa e em vários sítios, entre eles o do Centro
Cultural Antonio Carlos Carvalho (2007):

a resistência dos trabalhadores


Em maio de 1984, os bóias-frias realizaram uma greve histórica em Guariba (SP),
reivindicando melhores salários e condições de trabalho. A questão colocada no
centro do movimento grevista era a tentativa de implantação pelos usineiros do
chamado ‘sistema de sete ruas’. Até hoje, mesmo com o brutal incremento na pro-
dutividade, cada trabalhador fica responsável por cinco ruas no eito da cana. Em
1984, os usineiros tentaram impor o aumento da área cortada por trabalhador, de
cinco para sete ruas, o que, aliado ao aumento do preço dos gêneros de primeira
necessidade e das tarifas públicas de água, revoltou os cortadores de cana. Após
paralisarem as cidades de Guariba e Bebedouro (SP), e de enfrentamentos com
soldados da tropa de choque, prontamente acionada pelo então governador de São
Paulo, Franco Montoro, os trabalhadores incendiaram canaviais para serem aten-
didos. A greve durou 12 dias, e apesar da brutal repressão policial, os cortadores
de cana conseguiram uma vitória na negociação com os usineiros, que mantiveram
o sistema das cinco ruas e cederam em algumas reivindicações dos trabalhado-
res. Em 1986, houve movimentos grevistas em Leme e Araras (SP), também mo-
tivados por melhores condições de vida e trabalho, que se alastraram para outras
regiões canavieiras do país.

Este episódio traz, novamente, a atualidade das preocupações de Caio


Prado Júnior (2004). Defendia ele a importância do protagonismo popular não
camponês, assentado em reivindicações da força de trabalho dos grandes setores
da agropecuária. Para o autor, um grande movimento social reivindicatório neste
setor poderia desequilibrar a favor da força de trabalho a lógica estruturante do
mundo rural: as contradições entre os monopolizadores das condições de trabalho
e os despossuídos rurais.
O Ministério Público tem se posicionado na defesa dos trabalhadores, como
se pode ver na entrevista concedida à Folha de São Paulo, pelo promotor Marcelo
Goulart, em dezembro de 2009:

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204 A Produção de álcool combustível no Brasil

Entrevista da 2ª – Marcelo Goulart


Marcelo Goulart é símbolo da corrente mais polêmica surgida no Ministério Públi-
co após a Constituição de 1988: a dos promotores que acreditam ser “agentes polí-
ticos”, relevam a “letra fria” da lei e atuam ao lado do MSt e de ONGs contra o que
definem como a elite do país. Aos 52 anos, Goulart atua desde 1985 na região de
ribeirão Preto, onde se notabilizou por disputas contra usineiros. Agora à frente
do grupo responsável por processos ligados ao ambiente, ele moveu, só em 2009,
55 ações civis públicas, inclusive contra grupos que produzem orgânicos. Seu pró-
ximo desejo é assegurar o “direito difuso” dos brasileiros à reforma agrária.[...]
FOLhA - O que o senhor acha do álcool combustível?
GOULArt - A queima do combustível álcool também polui, e o processo de produ-
ção do álcool é sujo. temos a queima da cana, o desmatamento, o uso incontrolado
de insumos químicos. Além da superexploração do trabalho. Mais: a produção do
álcool exige economia de escala, que somente se viabiliza nesse padrão de pro-
dução baseado na monocultura e na concentração fundiária. São Paulo está se
tornando um grande canavial. O futuro não está no álcool, mas em outras alterna-
tivas, como o hidrogênio e a eletricidade. Diria que o álcool é um combustível de
transição. Não terá vida longa.
FOLhA - A monocultura mecanizada não é uma tendência inexorável da agricul-
tura mundial?
GOULArt - Claro que não. Não é assim na Europa. Precisamos discutir outros
modelos. temos um pensamento único por parte da elite dirigente nacional em
relação à agricultura.
[...]
FOLhA - O senhor parece não gostar de grandes propriedades rurais.
GOULArt - No meu horizonte utópico não está presente um grande número de
usinas de açúcar e álcool, por exemplo. No meu horizonte utópico estão a poli-
cultura, a geração de postos de trabalho no campo e a agricultura orgânica. Está
o acesso do povo à terra, que é um direito fundamental negado desde o desco-
brimento. A estrutura fundiária brasileira é uma das principais razões de nosso
subdesenvolvimento.
Aith, 2009.

No mesmo dia e no mesmo jornal, a Unica (União da Indústria de Cana-de-


-Açúcar), maior organização representativa das usinas de açúcar e bioetanol do
Brasil, criticou as declarações feitas a respeito do setor pelo promotor de Justiça

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Organização e Práxis Libertadora 205

do Ambiente Marcelo Goulart, usando os mesmos argumentos já apresentados ao


longo dos quadros que mostram a posição dos produtores e dos entusiastas dos
agrocombustíveis.

Sobre heróis e alternativas


O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em um de seus pronunciamentos
mais entusiasmados sobre o tema, em 2007, chegou a qualificar os usineiros como
heróis mundiais. Muito provavelmente o Presidente quis se referir à propalada con-
tribuição brasileira à suposta diminuição do aquecimento global, justificativa que
autoriza e legitima incentivos ao agronegócio. Como vimos, desde então, grandes
conglomerados ou investidores transnacionais vieram se juntar aos nossos “heróis”,
de modo a prover o mundo de um volume tal de etanol capaz de, além de mover os
automóveis do mundo, financiar as emissões de carbono dos países mais poluentes e
desenvolvidos (sic). Para fazer essa referência, certamente se esqueceu do seu lugar,
de sua gente, perdida entre os extensos canaviais de Pernambuco (mas não só), des-
de sempre o berço da “civilização do açúcar”, como nos diz Gilberto Freyre (1967).
Esquecido de sua gente, de seu lugar, o Presidente estaria agora priorizando
os interesses nacionais, a inserção do país como player mundial no setor de commo-
dities, reeditando um projeto desenvolvimentista, na aparência de caráter nacional,
mas como vimos, de fato, de tendência acentuadamente monopólica e internacionali-
zada. Pior, sua gente, nossa gente, submetida à exploração redobrada de sua força de
trabalho, fica à mercê do poder despótico do capital, que pode decretar a morte das
encarnações vivas do trabalho sem que seja considerado homicida (OSORIO, 2006).
O recurso às formulações de Caio Prado Júnior e Ruy Mauro Marini ser-
viram não apenas para fundamentar nossas reflexões, são também um indício da
permanência dos traços mais perversos de nossa formação social, da reprodução
de nossos problemas.
No entanto, é preciso ter claro que estas permanências não implicam em
qualquer suposição de fatalidade, qualquer aceitação de que sejamos vocaciona-
dos para ser, sempre esta máquina de moer gente, nas palavras de Darcy Ribeiro,
que temos sido. Pelo contrário, como ele também dizia, temos uma vocação para a
busca da autonomia e da liberdade, essa mesma que é inerente a todos os homens
e potência fundamental do povo novo que somos (RIBEIRO, 1970, 2006).
Como sair disto? Caio Prado Júnior diria que revolucionando as relações
de produção no mundo rural, em um capitalismo humanizado; Ruy Mauro Marini
diria que revolucionando as relações sociais e construindo o socialismo.

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206 A quem pertence o conhecimento que produzimos?

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Organização e Práxis Libertadora 209

A quem pertence o conhecimento


que produzimos?

Sueli Goulart
Cristina Amélia Carvalho

A orientação e a atitude reflexiva que assumimos ao longo dos últimos anos


nos conduziram, naturalmente, para o questionamento do processo de construção,
apropriação e disseminação do conhecimento que produzimos. Apresentar e ex-
por esse questionamento ao debate no âmbito da produção acadêmico-científica
da área de estudos organizacionais é o foco deste texto. Para efeito da discussão
que empreendemos, delimitamos o significado de apropriação como “ato ou efei-
to de apropriar-se” isto é, “tomar como propriedade” (FERREIRA, 1994-1995,
p. 54). Articulada ao processo de disseminação, a discussão está voltada para as
dinâmicas de atribuição de direitos sobre as publicações e de acessibilidade ao co-
nhecimento acadêmico-científico produzido, predominantemente, nas instituições
públicas brasileiras de ensino e pesquisa.
A área da Administração tem sido pródiga em analisar, propor ou questio-
nar a intensa reestruturação das relações sociais movida pelas novas tecnologias
de informação e comunicação no mundo contemporâneo. Há, entretanto, rees-
truturações que afetam diretamente nosso fazer, como pesquisadores e sobre as
quais podemos atuar para efetivamente transformar o status quo. Referimo-nos ao
universo da comunicação científica, compreendido como o espaço social de expo-
sição, disseminação, debate, apropriação e construção do conhecimento, onde se
materializa a produção do conhecimento como empreendimento coletivo.
Nesse espaço, as mudanças impulsionadas pela tecnologia comportam,
pelo menos, três dimensões: uma operacional, uma econômica e outra política. A
primeira – operacional - foi (e poderá ser ainda mais) significativamente altera-
da em face do desenvolvimento vertiginoso das potencialidades tecnológicas. A
segunda diz respeito ao caráter mercantil101 atribuído ao conhecimento, seja me-

101 Para Coase (1974), por exemplo, as atividades que estão centradas na expressão de opiniões por meio
da fala ou da escrita constituem um mercado de ideias, já que não considerava válida a distinção deste
com um mercado de bens.

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210 A quem pertence o conhecimento que produzimos?

diante a institucionalização do direito autoral, baseada na lógica da propriedade


privada, seja em razão de sua centralidade para a competitividade empresarial e o
desenvolvimento dos países. A terceira relaciona-se à capacidade de determinar o
ritmo e a direção das duas anteriores, isto é, aponta para as disputas que ocorrem
entre os atores envolvidos no processo - pesquisadores (autores), agências de fo-
mento (em geral, o Estado), editores, bibliotecários e os demais interessados no
acesso ao conhecimento. Essas dimensões estão entrelaçadas de tal forma que não
é possível analisá-las separadamente; a explicitação de cada uma serve apenas à
caracterização de seus elementos constitutivos.
Na dimensão operacional, as alterações dizem respeito, preponderantemen-
te, às novas possibilidades de editoração, armazenamento e exposição da produção
acadêmico-científica; referem-se a técnicas usadas e constantemente atualizadas
num processo quase imperceptível e, via de regra, de fácil assimilação. As novas
tecnologias de informação e comunicação garantem a base técnica de diversas
iniciativas inovadoras no suporte e na formatação de publicações. Desde o início
da presente década sugiram, em diferentes países, incluindo o Brasil, movimentos
que, como o de defesa do livre acesso, visam romper com o tradicional processo
de divulgação e circulação do conhecimento científico.
Na dimensão econômica, as mudanças dizem respeito à função social do di-
reito autoral – referenciado nos direitos humanos básicos à educação, ao conhe-
cimento, à informação e à vida cultural - e aos novos modelos de negócios sob
o impacto da “filosofia aberta” (COSTA, 2006, p. 40). Referem-se também à ação
do Estado em sustentar o sistema de produção científica e tecnológica como um
dos fatores centrais para a autodeterminação de ritmos e do caráter dos processos
de desenvolvimento. A dimensão política compreende, por sua vez, a oportunida-
de e o desafio para uma tomada de posição dos pesquisadores/autores e do Estado,
como atores centrais do sistema de geração de conhecimento acadêmico-científi-
co. Uma das vias fundamentais para o fazer é interferir no processo de comunica-
ção científica, espaço institucionalizado em torno de canais e modos legitimados
de credenciamento da produção acadêmico-científica, dominado por editoras e
provedores de serviços privados de publicação, indexação e distribuição.
Assim, muito mais do que uma mudança tecnológica, os movimentos em
defesa do livre acesso representam uma das interferências possíveis e mostram a
possibilidade de uma transformação nas posições de poder no campo da comuni-
cação científica. Concluímos, então, ressaltando a necessidade de mobilização por
uma política que assuma o conhecimento acadêmico-científico como uma cons-

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Organização e Práxis Libertadora 211

trução coletiva, pertencente, portanto, ao conjunto da sociedade e à categoria dos


bens públicos que, como tal, deve ser democraticamente disseminado e livremen-
te acessado.

Tecnologia, economia e dominação no universo da comunicação científica


A tecnologia no processo de informação e comunicação sempre teve fortes
implicações sobre relações sociais e práticas culturais, a começar pela escrita que
viabilizou o surgimento da literatura e da imprensa, popularizando o acesso a in-
formações (TARGINO, 2002) e os meios de publicação.
Se é certo que a invenção da escrita inaugurou a sociedade dita civilizada,
é certo também que o restrito domínio dessa técnica inaugurou um poderoso me-
canismo de poder que, por longo período, esteve ao abrigo dos monastérios, como
tão bem ilustra o livro O nome da Rosa, de Humberto Eco. A criação e utilização
da prensa tipográfica, creditada a Gutemberg no século XV revolucionou, por
seu turno, a disseminação da informação e do conhecimento bem como seu uso
e acesso.
Como afirma Burke (2000), a invenção da prensa tipográfica causou pro-
blemas ao clero e aos soberanos. Aos primeiros, “porque o novo meio de comu-
nicação permitiu que gente comum estudasse os textos religiosos por sua própria
conta e não dependesse daquilo que as autoridades lhe dissessem. Sapateiros,
tintureiros, pedreiros e donas-de-casa, todos alegaram o direito de interpretar as
escrituras”. Para os soberanos, “o espetáculo da gente comum discutindo e criti-
cando as ações do governo, especialmente depois que os jornais impressos vieram
à luz no início do século 17”, provocou questionamentos e interferências que nun-
ca haviam visto.
O instituto do direito autoral como matéria juridicamente regulamentada
começou a despertar interesse a partir desses eventos (MORAES, 2006), assim
como os mecanismos de organização e disposição de informações referentes aos
acervos bibliográficos que se formavam nas poucas bibliotecas. A razão primor-
dial era relativa à propriedade e ao controle patrimonial desses acervos. Assim,
emergiam problemas referentes à necessidade de catálogos capazes de representar
as coleções e também de oferecê-los ao acesso de leitores potenciais, de modo que
pudessem decidir se valia a pena empreender viagens “em lombo de cavalo para
visitar bibliotecas e tomar nota de milhares de verbetes com penas de escrever,
muitas vezes no dorso de cartas de baralho, que podiam então ser dispostas em
ordem” (BURKE, 2000). Ou seja, a possibilidade de reprodução do conhecimen-

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212 A quem pertence o conhecimento que produzimos?

to gerou tanto a necessidade de leis que regulamentassem sua propriedade como


mecanismos de disseminação e acesso.
Em relação à propriedade, Moraes (2006) ressalta que o princípio de nor-
matização do direito autoral se orientou pelos interesses comerciais dos editores
e não propriamente dos autores, numa clara exacerbação da mediação econômica
sobre a criação intelectual. Tal como o direito industrial, à época, o direito autoral
era um privilégio real concedido aos editores, na forma de recebimento de royal-
ties. Em outras palavras, a proteção recaía sobre os investimentos e não sobre a
criação, demonstrando um caráter eminentemente patrimonial.
Contudo, até o século XVII, tal mecanismo apenas assegurava o privilégio
de exclusividade na publicação de determinadas obras. Esse privilégio implicava
também em mecanismos de censura a publicações que ofendessem valores mo-
rais, religiosos ou políticos professados pelo Estado. A condição monopolista de
grupos editoriais foi rompida com a ascensão da burguesia e o triunfo do libera-
lismo econômico e político.
Após a revolução francesa e a quebra dos privilégios concedidos, os edito-
res adotaram nova estratégia, passando a defender a proteção para os autores e não
mais para si. Segundo Moraes (2006, p. 181), essa estratégia era mero “discurso
hipócrita e despistador”, pois o interesse, de fato, era “pôr fim ao caráter transi-
tório da comercialização exclusiva, e, conseqüentemente, retornar à perpetuidade
perdida”.
A França foi pioneira na substituição do regime de privilégio pela noção
de propriedade intelectual, com a instauração do direito autoral, primeiramente
voltado ao direito de representação para proteção dos autores teatrais para, em
seguida, estender a todas as categorias de obras intelectuais existentes à época.
Ainda assim, o reconhecimento legal servia ao aspecto patrimonial; o aspecto mo-
ral somente foi contemplado a partir do século XIX, com base em jurisprudência
(MORAES, 2006).
No Brasil, a noção de direitos intelectuais foi expressa, primeiramente, no
Código Civil Brasileiro de 1916 como direitos de propriedade, manifestando “os
mesmos ideais burgueses, do voluntarismo, contratualismo, individualismo, tam-
bém existentes na noção de propriedade imobiliária, reestruturada pela Constitui-
ção Federal de 1988” (VITALIS, 2006, p. 197).
Vitalis (2006, p. 198) afirma que a proteção à obra intelectual é um meca-
nismo de atribuição da titularidade de direitos ao agente criador sobre o produto
de sua inteligência e atividade inventiva e ressalta que tal mecanismo viabiliza “a

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Organização e Práxis Libertadora 213

circulação de obras intelectuais por todos os recantos do mundo, na concretização


de sua vocação natural de comunicação e entrelaçamento cultural dos povos”.
A atual legislação brasileira sobre o tema está expressa na Lei n. 9.610, de
19 de fevereiro de 1998, que reconhece, em seu artigo 22, os direitos morais e
patrimoniais do autor sobre sua criação (BRASIL, 1998). Os direitos morais são
de natureza estritamente pessoal, transmitidas aos sucessores, e visam assegurar
ao autor o direito de reivindicar a autoria, a qualquer tempo; o de conservar o
ineditismo da obra e/ou de modificá-la, antes ou depois de utilizada, entre outros.
Os direitos patrimoniais referem-se às prerrogativas de uso econômico da obra in-
telectual, cabendo exclusivamente ao autor o direito “de utilizar, fruir e dispor da
obra literária, artística ou científica” (BRASIL, 1998). Assim, a reprodução par-
cial ou integral, a edição e a tradução para qualquer idioma, entre outros, depen-
dem de autorização prévia e expressa do autor. Em seu artigo 30, a Lei assegura
que, “no exercício do direito de reprodução, o titular dos direitos autorais poderá
colocar à disposição do público a obra, na forma, local e pelo tempo que desejar,
a título oneroso ou gratuito” (BRASIL, 1998).
Vistos, brevemente, os elementos históricos e legais de atribuição de pro-
priedade intelectual, podemos agora discutir o universo das publicações científi-
cas, repositórios do conhecimento produzido na academia.
Para a presente discussão, cabe destacar, sobretudo, as implicações para os
periódicos científicos. Tais publicações, surgidas no século XVII, tornaram-se a
base do sistema moderno de comunicação científica. Desde então, essas publica-
ções são o espaço, por excelência, para a publicação de resultados de pesquisa e
construções teóricas em várias áreas do conhecimento. Por adentrarem no univer-
so científico, necessitaram orientar-se por critérios específicos de cientificidade de
modo que fossem, fundamentalmente, passíveis de apreciação crítica pela comu-
nidade acadêmico-científica. Também demandaram instrumentos de recuperação
da informação para divulgar e viabilizar acesso à literatura publicada, além de
mecanismos para comunicação formal ou informal entre pesquisadores; em suma,
os periódicos científicos se constituíram num dos elementos centrais do fluxo con-
tínuo e interminável da produção do conhecimento.
Na década de 60, o americano Eugene Garfield criou o Science Citation
Index (SCI), no âmbito de seu Institute for Scientific Information (ISI), com o
objetivo de analisar as citações bibliográficas de artigos de periódicos. Estabe-
lecendo critérios rigorosos para inclusão de títulos, o SCI se tornou referência
mundial para a indexação da produção científica e a classificação de revistas e

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214 A quem pertence o conhecimento que produzimos?

artigos segundo seu impacto (número de citações recebidas) e outros elementos


(ANDRÉ, 2005, apud KURAMOTO, 2006).
Estar indexado no SCI se tornou em muitos países, inclusive no Brasil, um
dos mais importantes indicadores de qualidade das publicações e de reconheci-
mento e prestígio dos pesquisadores que publicam nesses veículos. Avaliações
institucionais, particularmente aquelas das agências de fomento, atribuem grande
pontuação a publicações em revistas indexadas. O SCI tornou-se, também, a refe-
rência central para a seleção de títulos a serem adquiridos por bibliotecas, agên-
cias financiadoras e pesquisadores individuais.
Em 1992, o ISI foi adquirido pela Thomson Corporation, passando a se
chamar Thomson ISI. Em 2008, a Thomson fundiu-se à Reuters, tornando-se a
maior empresa de informações do mundo, com um portfólio de produtos que vai
das finanças até os vinculados à saúde. A nova Thomson Reuters passa a vender
notícias eletrônicas e dados a operadores, administradores de fundos e analistas,
além de bancos de dados e outras informações a advogados, contadores, cientis-
tas e à indústria de saúde. Com sede em Nova York, tem receita anual de 12,5
bilhões de dólares, 50.000 funcionários e mais de 40.000 clientes em 155 países
(HAYCOCK e MACMILLAN, 2008).
Dentre os serviços informacionais da empresa está o Portal ISI Web of Kno-
wledge, que congrega o Web of Science, uma das principais bases de dados de pu-
blicações científicas do mundo e o Journal of Citation Report,102 que reúne dados
estatísticos acerca do impacto de periódicos e artigos publicados na ciência mundial.
Sendo praticamente a principal fonte universalmente legitimada pela comunidade
internacional no estabelecimento de parâmetros para classificação de autores e pe-
riódicos (MUELLER, 2006), o ISI tornou-se o mais importante player no mercado
editorial da ciência, transferindo valor para os periódicos ali indexados.
O efeito sobre o preço das assinaturas foi considerável. Estimativas indi-
cam que, num período de 20 anos, os preços das revistas norte-americanas (a
grande maioria dos títulos indexados no SCI e também as de maiores índices
de impacto) aumentaram de U$39, em média, em 1975, para U$ 284, em 1995
(KING e TENOPIR, 1998).
Nesse cenário, desde meados da década de 80, as bibliotecas universitárias e de
pesquisa norte-americanas vinham acusando o golpe do aumento de preços; somado

102 De um total de aproximadamente 8.200 títulos analisados em 2007, 30 são brasileiros; nenhum deles
da área de Administração (ISI WEB OF KNOWLEDGE, 2008).

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Organização e Práxis Libertadora 215

à restrição ao financiamento das coleções e à crescente demanda de seus usuários,


configurou-se a chamada “crise dos periódicos” (MUELLER, 2006, p. 31). As bi-
bliotecas brasileiras, que sempre enfrentaram tais dificuldades, tiveram-nas agravadas.
Além da questão dos custos, Ferreira e Muniz Jr. (2005) apontam outros
questionamentos que colocaram em xeque a ‘indústria do periódico científico’:
(1) a lentidão na divulgação do conhecimento, em função do caráter excessiva-
mente formal que o artigo de periódico passou a exercer na estrutura da comunica-
ção científica, em detrimento da troca imediata de informações; (2) a exigência de
transferência dos direitos dos autores dos artigos para as editoras dos periódicos
científicos, restringindo a possibilidade dos autores em dispor de seus trabalhos
como lhes conviesse; e (3) a formatação do sistema de avaliação por pares que
pode acarretar falta de agilidade e velocidade ao processo, cerceamento ao novo,
favorecimento de autores ligados a instituições prestigiadas, falta de transparência
nos critérios de julgamento e concentração em determinados nomes na composi-
ção de comissões de avaliadores.
Do ponto de vista operacional, o fluxo da comunicação científica era mar-
cado, sucintamente, por etapas seqenciais: redação, submissão, avaliação, revisão,
publicação, indexação, disseminação e uso. Tais etapas estavam linearmente situ-
adas no tempo e no espaço, e envolviam a participação de diferentes atores, não
necessariamente conectados entre si.
As limitações desse modelo estavam no lapso de tempo entre a preparação
dos textos, aprovação, edição, impressão e distribuição, que pode incorrer em me-
ses ou anos, dependendo da gestão nas editorias; no imenso backlog103, gerando
dificuldade de disseminação e acesso, particularmente dos trabalhos produzidos
em áreas ou países que não contam com infra-estrutura suficiente para o tratamen-
to de informação; nos custos de distribuição das revistas impressas, acessíveis
basicamente em bibliotecas, frequentemente com restrições de horário e públicos;
pelo alto custo de assinaturas, cobradas por editoras, distribuidoras ou mesmo
associações científicas (CASTRO, 2006).
O poder, no que tange à disseminação da informação, no campo científico,
se concentrou nos editores de revistas científicas e produtores de serviços de inde-
xação e distribuição, majoritariamente privados. As contradições e a perversidade
desse sistema, especialmente para países periféricos, como o Brasil, são descritas
por Mueller (2006, p. 33):

103 textos não indexados em face da explosão bibliográfica.

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216 A quem pertence o conhecimento que produzimos?

Aqui, [...] é o Estado que financia a educação dos novos cientistas, desde
seu início até a obtenção dos graus mais altos, seja em instituição nacional
ou estrangeira. Uma vez formado e já pesquisando, normalmente em uma
universidade também mantida pelo Estado, sua pesquisa é frequentemente
financiada pelas agências de fomento federais ou estaduais, vale dizer, de
novo dinheiro público. Terminada a pesquisa, sua divulgação em reuniões
e congressos será de novo financiada pelo Estado. Finalmente, a publica-
ção em revista indexada poderá também receber auxílios dos cofres pú-
blicos, pois em algumas áreas as editoras cobram dos autores por página
publicada. Ao publicar em uma revista, é hábito o autor ceder às editoras
o direito autoral sobre o artigo. Uma vez publicada, entra em cena de novo
o Estado, financiando as bibliotecas para sua compra.

Acrescente-se que os principais agentes financiadores de pesquisas e de pu-


blicações incluem a presença dos pesquisadores naqueles veículos como indica-
dor importante na avaliação de projetos e programas. Vale lembrar que tal sistema
foi construído à luz dos requisitos de legitimação científica, postulados, em tese,
pelos próprios cientistas104.
A busca por soluções para os problemas encontrou nas tecnologias de in-
formação e comunicação possibilidades de reversão da crise, primeiramente na
dimensão operacional. No espaço virtual da Internet, foram superados os paradig-
mas de linearidade e sequencialidade do fluxo da comunicação científica; ou seja,
foi possível a convergência entre autores, revisores e editores, em interações ágeis
e dinâmicas, desses com bibliotecas e centros de informação e, em consequência,
com os usuários, potencialmente também produtores.
Como mostra Castro (2006), além da compressão e, em alguns casos, da
simultaneidade das etapas tradicionais, uma nova etapa pôde ser acrescentada no
fluxo da comunicação científica: o da geração de medidas e de indicadores para
avaliação. Os autores puderam acompanhar os caminhos percorridos e os indica-
dores de aprovação de seus trabalhos; os editores e revisores, gerenciar de forma
mais eficiente os prazos da revisão por pares; os editores e gestores de agências e
unidades de informação, o número de acessos realizados.
Ainda que essas mudanças tenham possibilitado a oferta de publicações
periódicas eletrônicas por indivíduos e instituições que estavam à margem do

104 Nada que a teoria institucional não seja capaz de explicar por meio, por exemplo, da noção dos mitos
racionalizados (MEYEr e rOWAN, 1991). Mas também nada que não possa ser subvertido, como nos
indica a teoria dos campos sociais de Bourdieu (1983), particularmente quando aborda as lutas trava-
das no campo científico.

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Organização e Práxis Libertadora 217

mercado editorial, os mesmos processos de legitimação, de prestígio e de quali-


ficação da produção científica foram trazidos para o espaço virtual. De maneira
que, embora tenha se ampliado significativamente a velocidade no acesso às infor-
mações, barreiras de preço às publicações mais prestigiosas, limitações quanto à
transparência do processo de revisão por pares e transferência de direitos autorais
persistiam. E os primeiros a ocupar mais eficazmente o espaço virtual foram os
grandes editores e distribuidores privados.
Não obstante, abriram-se novas possibilidades no âmbito da comunicação
entre pesquisadores. No início desta década, a comunidade científica mundial ini-
ciou uma mobilização em torno da ideia de produzir, divulgar e controlar eletro-
nicamente as publicações científicas lançando mão de softwares livres e redes de
pesquisadores e/ou instituições com o intuito de dispor pública e livremente sua
produção intelectual.

O movimento de acesso livre a publicações científicas


A partir de iniciativas em áreas específicas, como Física, Ciência da Com-
putação e Ciências da Saúde, a comunidade científica mundial iniciou mobilização
para, na convergência entre uma velha tradição e uma nova tecnologia, realizar
um serviço público sem precedentes. A velha tradição: a vontade dos cientistas e
pesquisadores em dar a conhecer os resultados de seus trabalhos. A nova tecnolo-
gia: a Rede Mundial de Computadores.
No início desta década, surgiram as primeiras declarações formais de as-
sociações científicas ou grupos de pesquisadores em favor do livre acesso, sendo
fundamentais as de Budapeste, Bethesda e Berlim (IBICT, 2005a). A primeira
surgiu a partir de uma reunião promovida pela Open Society Institute (OSI), rea-
lizada em dezembro de 2001, da qual resultou a Budapest Open Access Initiative
(BOAI), documento e iniciativa que declara princípios e define estratégias dire-
cionado ao incentivo do auto-arquivamento e à publicação de periódicos de acesso
livre, cujos custos envolvidos na produção, no processo de avaliação e distribui-
ção seriam inicialmente garantidos pela OSI, que se incumbiria de agregar outros
agentes, como governos, universidades, fundações etc.
Em abril de 2003, em reunião realizada na sede do Howard Hughes Medi-
cal Institute, cientistas, editores e bibliotecários vinculados à informação na área
biomédica discutiram formas de concretizar, o mais rapidamente possível, o aces-
so livre à literatura científica, resultando na Bethesda Statement on Open Access
Publishing. Esta declaração formalizou uma definição de acesso livre e recomen-

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218 A quem pertence o conhecimento que produzimos?

dações de grupos de trabalhos sobre políticas a serem adotadas por organismos e


instituições financiadoras, sociedades científicas e pesquisadores (IBICT, 2005a).
Segundo a Declaração de Bethesda, é considerada uma publicação de aces-
so livre toda aquela que satisfaça as seguintes condições:
(1) O(s) autor(es) e os detentores dos direitos de reprodução (copyright) con-
cedem a todos os usuários o direito de acesso gratuito, irrevogável, universal e perpé-
tuo ao trabalho, bem como a licença de copiá-lo, utilizá-lo, distribuí-lo, transmiti-lo
e exibi-lo publicamente, e ainda de produzir e de distribuir trabalhos dele derivados,
em qualquer meio digital, para qualquer finalidade responsável, condicionado à de-
vida atribuição de autoria, e concedem adicionalmente o direito de produção de uma
pequena quantidade de cópias impressas, destinadas a uso pessoal.
(2) Uma versão integral do trabalho e de todo o material suplementar, in-
cluindo uma cópia da permissão em formato eletrônico padronizado, é depositada
imediatamente após a publicação inicial em um repositório on-line mantido por uma
instituição acadêmica, por uma associação científica, por uma agência governamen-
tal ou por outra organização solidamente estabelecida, que vise propiciar o acesso
aberto, a distribuição irrestrita, a interoperabilidade e o arquivamento de longo pra-
zo (BETHESDA STATEMENT ON OPEN ACCESS PUBLISHING, 2003).
A Declaração de Berlim sobre o Acesso Livre ao Conhecimento nas Ci-
ências e Humanidades foi subscrita, em outubro de 2003, por representantes de
várias das mais importantes instituições científicas européias, entre as quais a So-
ciedade Max-Plank (Alemanha) e o Centre National de la Recherche Scientifique
(França). Além de apoiar o Acesso Livre, essa Declaração encoraja investigadores
e bolsistas a depositarem seus trabalhos em pelo menos um repositório público
(IBICT, 2005a).
As mesmas condições preconizadas na Declaração de Bethesda são utiliza-
das pelas demais entidades e organismos que aderiram ao movimento, inclusive
as brasileiras, onde o movimento já conta com a adesão de entidades, associações
científicas e pelo menos uma organização não-governamental criada especifica-
mente para esse fim – o Movimento Acesso Aberto Brasil (2005).
A primeira manifestação pública formal no Brasil foi o Manifesto Brasi-
leiro de Apoio ao Acesso Livre à Informação Científica, emitida pelo Instituto
Brasileiro de Informação Científica e Tecnológica (IBICT), em setembro de 2005
(IBICT, 2005b). O Manifesto defende a adesão ao movimento mundial e o estabe-
lecimento de uma “política nacional de acesso livre à informação científica, me-
diante o apoio de toda a comunidade científica, com o envolvimento não apenas

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Organização e Práxis Libertadora 219

das suas organizações, mas, obrigatoriamente, dos pesquisadores e das agências


de fomento” (grifos do original). Vale lembrar que o IBICT é um instituto vincu-
lado ao Ministério da Ciência e Tecnologia.
O documento faz recomendações aos diferentes segmentos da comunidade
científica, dentre as quais destacamos:

É imperativo que as instituições acadêmicas brasileiras se comprome-


tam a:
• criar repositórios institucionais e temáticos, observando o paradig-
ma do acesso livre;
• requerer que seus pesquisadores depositem uma cópia de todos os seus
trabalhos publicados em pelo menos um repositório de acesso livre;
• reconhecer a publicação em ambiente de acesso livre para efeito de
avaliação e progressão acadêmica;
• ter disponíveis, em ambiente de acesso livre, os periódicos editados
pela instituição ou seus órgãos subordinados.
É primordial que os pesquisadores (autores):
• depositem, obrigatoriamente, em um repositório de acesso livre pu-
blicações que envolvam resultados de pesquisas financiadas com
recursos públicos.
É necessário que as agências de fomento:
• reconheçam a publicação científica em repositórios de acesso livre
para efeito de avaliação da produção científica dos pesquisadores e
de concessão de auxílios e financiamentos para pesquisa;
• recomendem aos pesquisadores a quem concedem auxílio finan-
ceiro para suas pesquisas que depositem uma cópia dos resultados
publicados em um repositório de acesso livre e/ou que publiquem
prioritariamente em periódicos eletrônicos de acesso livre;
• promovam e apóiem a construção e manutenção de repositórios ins-
titucionais e temáticos;
• apóiem, prioritariamente, a edição de publicações científicas eletrô-
nicas de aceso livre (IBICT, 2005b, grifos do original).

São feitas ainda recomendações às editoras comerciais, no sentido de man-


terem disponível, para acesso livre, uma versão eletrônica de trabalhos publicados
por elas, cujos autores tenham recebido recursos públicos para sua pesquisa e de
concordarem que os próprios autores o façam. Para as editoras não comerciais, as
recomendações se concentram na necessidade de adoção de padrões conformes
aos estabelecidos pela OAI.

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220 A quem pertence o conhecimento que produzimos?

No mesmo mês e ano, os participantes do International Seminar on Open


Access - evento paralelo ao IX Congresso Mundial de Informação em Saúde e
Bibliotecas e VII Congresso Regional de Informação em Ciências da Saúde, pu-
blicaram a Declaração de Salvador sobre Acesso Aberto: a perspectiva dos países
em desenvolvimento (DECLARAÇÃO, 2005). Elaborado sobre premissas, entre
as quais a de que a comunicação científica é parte crucial e inerente das atividades
de pesquisa e desenvolvimento; que a ciência se desenvolve de forma mais eficaz
quando há acesso irrestrito à informação científica; e de que os países em desen-
volvimento desempenham função essencial na configuração do cenário do Acesso
Aberto, por suas iniciativas pioneiras, a Declaração de Salvador, insta os governos
a darem alta prioridade ao Acesso Aberto na elaboração de políticas científicas,
incluindo:

• a exigência de que a pesquisa financiada com recursos públicos


seja disponibilizada através de Acesso Aberto;
• a inclusão do custo da publicação como parte do custo de pes-
quisa;
• o fortalecimento dos periódicos nacionais de Acesso Aberto, de
repositórios e de outras iniciativas pertinentes;
• a promoção da integração da informação científica dos países
em desenvolvimento no escopo mundial do conhecimento (DE-
CLARAÇÃO, 2005).

A Declaração conclui com a conclamação “a todos os parceiros da co-


munidade internacional para conjuntamente assegurar que a informação
científica seja de livre acesso e disponível para todos e para sempre.
O evento que deu origem a esta Declaração foi liderado pelo Centro Latino-Ame-
ricano e do Caribe de Informações em Ciências da Saúde (BIREME) que, desde
1967, coordena uma rede descentralizada de bibliotecas e serviços de informação,
responsáveis por coletar, tratar e disponibilizar informações acerca da produção
científica de pesquisadores da área na região.
Outro relevante documento na trajetória da luta pelo acesso livre é a Carta de São
Paulo, elaborada a partir da criação do Movimento Acesso Aberto Brasil. Em linhas
gerais, advoga os mesmos princípios até aqui apresentados, destacando que “o
único limite para a reprodução e distribuição deve ser o direito do autor sobre a in-
tegridade e crédito de sua obra, assim como a citação adequada” (CARTA, 2005).
Entre as recomendações, salientamos:

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Organização e Práxis Libertadora 221

• que as pesquisas realizadas em universidades públicas tenham seus


resultados livremente disponibilizados;
• que as agências de fomento adotem critérios de avaliação que privi-
legiem pesquisas cujos resultados estarão disponíveis sob os prin-
cípios do acesso aberto;
• que se fortaleçam as instituições públicas como bibliotecas, arquivos,
museus, coleções culturais e outros pontos de acesso comunitário para
promover a preservação de documentos e o acesso livre ao conheci-
mento;
• que as publicações digitais sejam adequadamente avaliadas, con-
siderando a existência de comissão editorial, revisão por pares e
demais critérios atualmente utilizados para as publicações cujo su-
porte é o papel;
• que os pesquisadores publiquem em periódicos e revistas compro-
metidos com o acesso aberto; que essa seja a condição para serem
editores ou pareceristas de um periódico (CARTA, 2005).

Subscrita por professores, pesquisadores e representantes da sociedade


civil, a Carta conclui com um apelo a todas as instituições, associações pro-
fissionais, governos, bibliotecas, editores, fundações, entidades acadêmicas,
cientistas, gestores educativos, pesquisadores e cidadãos para que observem
os princípios do acesso livre e que ajudem a ampliar o acesso à literatura
acadêmica, auxiliando na eliminação das barreiras econômicas, comerciais e
culturais existentes.
Entre pesquisadores brasileiros de áreas específicas, os primeiros e úni-
cos, até aqui, a se manifestarem pública e formalmente, foram os da área da
Psicologia, reunidos em Florianópolis, durante o XI Simpósio de Intercâmbio
Científico da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicolo-
gia, realizado em maio de 2006. Na Declaração de Florianópolis (2006), os
pesquisadores endossam o conceito de acesso aberto constante na Declaração
de Bethesda e recomendam, entre outras:

• que as entidades mantenham e ampliem sua política de apoio finan-


ceiro aos periódicos brasileiros em geral, que já nasceram de acesso
aberto em sua quase totalidade, cooperando para a construção de
um sistema forte, consolidado e abrangente de periódicos científi-
cos de alto impacto no hemisfério sul;
• que pesquisadores não transfiram incondicionalmente os direitos
autorais de seus artigo a nenhuma revista, ressalvando pelo me-

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222 A quem pertence o conhecimento que produzimos?

nos a possibilidade de incluí-los em algum repositório mantido


por uma instituição acadêmica, por uma associação científica, por
uma agência governamental ou por outra organização solidamente
estabelecida;
• que as entidades de fomento reconheçam que os custos de divulga-
ção da pesquisa integram o custo da própria pesquisa, não impondo
restrições ao pagamento de tarifas-de-página (page charges) a peri-
ódicos que permitam o acesso aberto (mas apenas a estes);
• que os pesquisadores priorizem as revistas de acesso aberto quan-
do forem (i) submeter seus originais; (ii) aceitar solicitações para
revisar artigos; (iii) fizer recomendações (de leituras a estudantes e
colegas, e de assinaturas à biblioteca);
• que a adesão ao Acesso Aberto (ou, pelo menos, o nítido esforço
para realizar a transição) seja, a médio prazo, uma condição míni-
ma para que um periódico receba a classificação de qualidade A no
Qualis da Psicologia, independentemente de seu âmbito ou de área
do conhecimento a que pertença.

Afirmam ainda defender modificações nos processos de avaliação de pro-


gressões funcionais e de concursos, para valorizar a contribuição comunitária de
publicar em acesso aberto e de reconhecer o mérito intrínseco de artigos individu-
ais sem levar em conta o nome do periódico em que ele tenha sido publicado; e se
comprometem a desenvolver atividades de conscientização e mobilização junto
a seus colegas e ao público acerca da importância do acesso aberto e das razões
pelas quais o apóiam. E conclamam: “transformemos o acesso aberto à pesquisa
em um projeto científico de toda a comunidade de pesquisadores. O imensurável
sucesso da nossa ciência, da idade da pedra até as viagens espaciais, prova que isto
funcionará extraordinariamente bem”.
As respostas a essas recomendações parecem começar a surtir efeitos. Des-
de 2005, a CAPES incluiu no Portal de Periódicos, as publicações eletrônicas
brasileiras de livre acesso, classificadas em seu sistema de avaliação de publica-
ções (Qualis), ao lado de outros tantos títulos pagos, cujo valor das assinaturas
alcançou a cifra de R$ 57.925.888,67 no ano de 2005 (BRASIL, 2006). A menção
ao valor tem o objetivo de destacar a importância que a própria agência atribui às
publicações científicas e a seu acesso para os pesquisadores, fator evidentemen-
te imprescindível para o desenvolvimento científico e tecnológico do País. Ao
mesmo tempo, a inclusão de periódicos e repositórios de acesso livre no Portal
de Periódicos certamente contribui para ampliar o reconhecimento desses instru-

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Organização e Práxis Libertadora 223

mentos como veículos legítimos de comunicação científica, além de aumentar sua


visibilidade.
Durante a 58ª Reunião da SBPC, em Florianópolis, em julho de 2006,
representantes de associações científicas, de bibliotecas universitárias, de edi-
tores de periódicos científicos, do SciELO e do IBICT, entre outros, elabora-
ram a Carta Aberta à SBPC. A Carta solicitava à SBPC que recomendasse às
agências de fomento a integração de esforços na promoção de ações preconi-
zadas pelo movimento brasileiro de livre acesso à informação científica, como
a criação de repositórios digitais e a ampliação das fontes de informação exis-
tentes nas bibliotecas das IES, entre outras demandas (CARTA, 2006).
Em maio de 2007, foi apresentado na Câmara dos Deputados, um projeto
de lei (PL-1120/2007), que dispõe sobre o processo de disseminação da produ-
ção técnico-científica pelas instituições de ensino superior no Brasil e propõe a
obrigatoriedade de que as IES construam repositórios institucionais para depósito
do inteiro teor da produção técnico-científica do corpo discente e docente. Lis-
tas de discussão e incentivos de adesão à petição têm circulado pela Rede entre
pesquisadores, bibliotecários e demais interessados, no sentido de aperfeiçoar a
proposição e garantir sua tramitação e aprovação. Após tramitar pela Comissão de
Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informação da Câmara dos Deputados, e
receber duas emendas que não alteraram seu eixo central, o Projeto de Lei seguiu
para a Comissão de Educação e Cultura, onde não recebeu emendas até o prazo
limite em julho de 2008. A sequência dos procedimentos referentes a esse projeto
pode ser acompanhada no sítio da Câmara dos Deputados105.
Nos Estados Unidos, 26 cientistas ganhadores do prêmio Nobel publi-
caram, em julho de 2007, carta aberta ao Congresso Americano, defendendo
o livre acesso aos resultados de pesquisas financiadas com recursos públicos.
Segundo eles, essa iniciativa irá maximizar o retorno do investimento coletivo
em ciência e a promoção do bem público. O Brasil é citado entre os países que
se anteciparam, em relação aos Estados Unidos, no encaminhamento de medi-
das governamentais para a formalização desse processo (AN OPEN..., 2007).

Enquanto isso, nas trincheiras do mercado...


Evidentemente, o movimento para transformação não navega em águas
plácidas. O embate, entretanto, raramente é frontal. Em tempos de atitudes poli-

105 http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=352237

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224 A quem pertence o conhecimento que produzimos?

ticamente corretas, os que pretendem a manutenção do status quo se resguardam


de manifestações explícitas, mas não deixam de agir, sutilmente ou nem tanto...
Em 2005, a Association of Learned and Professional Society Publishers
(ALPSP), publicou um relatório sobre os impactos financeiros e não financeiros
de modelos alternativos de negócios em periódicos acadêmico-científicos. A frase
que introduz o tema é sintomática: “A discussão dobre livre acesso tende a ser
forten na retórica e fraca nos fatos” (ALPSP, 2005, p. 1). Cabe um esclarecimento:
a ALPSP é uma associação internacional de editoras106 não lucrativas e “daquelas
que trabalham com elas” (grifo nosso). Por exemplo, incluem-se na ALPSP a
Elsevier, o Emerald Group Publishing Ltd., a Sage Publications, a Wiley John &
Sons Ltd. entre outras corporações do mercado editorial.
Nesse documento, a ALPSP divulga e tenta legitimar a ideia de que o movi-
mento de interferência é fundamentalmente retórico e que suas ações não afetam
a situação vigente, de manutenção de um mercado cativo, no qual ela é um ator
dominante. Suas estratégias de preservação incluem inclusive a adoção da ideia
de acesso aberto, quando não a cooptação de atores do processo de comunicação
científica.
Já observamos, por exemplo, que periódicos de livre acesso alcançam ín-
dices de impacto similar aos que exigem pagamento para subscrição, como indi-
cam informações do BioMed Central (2005) e outras. As corporações do mercado
editorial parecem já se preocupar. O gerente de publicações, pesquisas e relações
acadêmicas da Elsevier, Andrew Plume, em seminário realizado pela ALPSP,
apresentou trabalho de revisão de literatura acerca da correlação entre citações
e publicações de acesso aberto. A metodologia usada nos trabalhos indicou que
não há diferenças significativas de citações entre publicações de acesso aberto e
aquelas de acesso restrito e, na continuidade, Plume (2007) verifica que há vieses
que podem inflacionar os índices de citações dos trabalhos em livre acesso. Um
deles é o tempo que tais trabalhos permanecem expostos e outro é que os autores
ou os repositórios livres são mais ágeis na publicação.
Daí a questionar os critérios de legitimação das publicações de livre acesso
vai um passo. Porque é necessário lembrar: o ISI permanece como a referência
central para os índices de citação e de impacto e esses índices como os grandes
balizadores da produtividade dos pesquisadores, da qualidade dos trabalhos e das
escolhas para aquisição de coleções em bibliotecas.

106 Publishers, no original. No Brasil, são denominados editores.

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Organização e Práxis Libertadora 225

Em 2007, a Elsevier, um dos maiores fornecedores de assinaturas de pe-


riódicos do Portal da CAPES107 passou a fornecer também a base de dados refe-
rencial Scopus, que incorpora cerca de 150 títulos de periódicos brasileiros em
variadas áreas, entre os 15 mil títulos que indexa. É importante destacar que esta
base dá suporte ao The SCImago Journal & Country Rank108, portal que inclui
indicadores de citações de artigos, agregados por países e títulos, incluindo o
recém-criado índice H109. Este índice já é considerado entre os critérios para o
Qualis da área de Administração.
Todos esses elementos são capitalizados pelos grandes editors, que ela-
boram estratégias para se apropriarem de informações gerenciais de alto valor
para os gestores de ciência e tecnologia. Em julho de 2007, o crescimento da
produção científica e tecnológica brasileira foi comemorado pelo presidente da
CAPES e largamente divulgado na imprensa. O Brasil atingiu a 15ª posição
na lista de países que mais publicam artigos científicos no mundo, numa lista
de 30, subindo duas posições em relação a 2005; nessa escalada, ultrapassou a
Suécia e a Suíça. Esse ranking, produzido com base nos serviços da Thomson/
ISI, mostra que os Estados Unidos continuam dominando a cena, responsáveis
por cerca de 32% da produção científica mundial, seguido pela Alemanha, com
8,1% (BRASIL, 2007).
A notícia foi divulgada no site da CAPES no dia 10 de julho de 2007. No dia
11, o gerente regional da Thomson Scientific para a América do Sul encaminhou men-
sagem eletrônica a centenas de profissionais de bibliotecas universitárias relacionando
o feito à disponibilização de bases de dados de primeira linha através do Portal da
CAPES. Segue afirmando a autoridade da empresa que representa no fornecimento de
indicadores quantitativos e qualitativos que auxiliam o entendimento da dinâmica da
ciência e da tecnologia que funciona também como instrument para o planejamento de
política, e tomada de decisões”. Finaliza solicitando aos destinatários de sua mensa-
gem que manifestem apoio, junto à CAPES, para a “aquisição das ferramentas: Journal
Citation Report, Essential Science Indicators e Century of Science” (SANTOS, 2007).

107 Em 2007, de um total de aproximadamente 38 milhões de dólares investidos em assinaturas do Portal


da CAPES, cerca de 13 milhões o foram em periódicos oferecidos pela Elsevier (BrASIL, 2008a).
108 Disponível em: http://www.scimagojr.com/index.php. O mecanismo de aferição deste serviço já se en-
contra agregado a alguns títulos da coleção Scielo (http://www.scielo.br).
109 Indicador proposto pelo físico J.E. hirsch, da Universidade da Califórnia em San Diego que mede a
produção científica (hIrSCh, 2005). O índice h “corresponde ao número de artigos de um cientista que
angariaram, cada um, pelo menos o mesmo número de citações. Exemplo: se não publicar mais que
cinco trabalhos com pelo menos cinco citações, seu h será 5 - pouco importa se um deles recebeu 18
ou 1.800 citações. O indicador exprime sua capacidade de continuar produzindo estudos úteis para a
comunidade de pesquisa” (COMUNIDADE VIrtUAL DOS EDItOrES CIENtíFICOS, 2008).

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226 A quem pertence o conhecimento que produzimos?

É certo que mudanças como as propostas pelo movimento do acesso li-


vre enfrentam reações e que aqueles que veem seus negócios ameaçados tentem
minimizar seu alcance. Parece claro que, em vista da impossibilidade de deter o
ritmo de adesão à publicação eletrônica de livre acesso, as grandes corporações
do mercado editorial ainda detêm os mais importantes serviços de indexação, dis-
seminação e controle da informação. Por isso, é necessário lembrar que o livre
acesso é um importante elemento do processo de comunicação científica, mas é
preciso ir além, criando ou fortalecendo mecanismos coletivos de organização e
disseminação da literatura produzida e livremente disposta na Rede.
Tanto as ferramentas desenvolvidas pelo IBICT, quanto pela BIREME,
contemplam o ciclo total da comunicação científica. A BIREME, juntamente com
a FAPESP, desenvolveu, em 1997, o projeto SciELO, experiência pioneira no
Brasil na formação de biblioteca virtual de revistas científicas brasileira, em di-
versas áreas de conhecimento, em formato eletrônico (PACKER et al., 1998). Os
recursos de controle e gerenciamento do SciELO permitem realizar estatísticas
de acesso, citações, coautorias e outros importantes recursos para estudos biblio-
métricos, particularmente importantes na avaliação de produtividade, impacto e
interações com outros pesquisadores.
O IBICT traduziu e customizou o Open Journal Systems (OJS), software
implementado pelo Public Knowledge Project (PKP), da British Columbia Uni-
versity, no Canadá (FERREIRA e MUNIZ JR., 2005). Esse sistema contempla os
processos básicos de automação na editoração de periódicos, desde a submissão e
avaliação dos trabalhos até sua publicação on-line e a indexação em serviços na-
cionais e internacionais. Como software livre e aberto, pode ser adquirido gratui-
tamente na Internet e customizado, de acordo com a necessidade de cada periódi-
co. O IBICT disponibiliza uma versão oficial, em português, com a denominação
de Sistema de Editoração Eletrônica de Revistas (SEER), que vem sendo estudado
e utilizado por diferentes áreas e instituições.
O IBICT, além da customização e oferta do SEER, mantém o Portal OA-
SIS.Br, desenvolvido em parceria com a Financiadora de Estudos e Pesquisas
(FINEP), a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e o Laboratório Na-
cional de Computação Científica (LNCC). Trata-se também de um provedor
de serviços que coleta, automaticamente, metadados de periódicos científicos
disponíveis em repositórios digitais, disponibilizando-os através de uma busca
centralizada e em uma única interface, o que facilita sobremaneira o processo
de busca (IBICT, 2006).

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Organização e Práxis Libertadora 227

Entretanto, essas plataformas são, sintomaticamente, ignoradas pela maio-


ria dos editores de periódicos que preferem a construção de sistemas de buscas
isolados semelhantes ao louvável, mas arcaico, hábito de folhear sumários em
busca de trabalhos. Além disto, se perdem as possibilidades de geração de infor-
mações para planejamento e avaliação. Ou seja, as mudanças podem, de fato, ser
pequenas, se ficarem restritas às dimensões técnica e econômica. O desafio de
democratizar o acesso ao conhecimento exige posicionamento político dos atores
centrais do processo, nomeadamente o Estado, a comunidade científica, os profis-
sionais da informação, os editores.
Cabe também lembrar que o vínculo legal dos direitos autorais ao direito
civil de propriedade também os vincula à noção de função social da propriedade,
instituída na Constituição brasileira de 1988. Como afirma Vitalis (2006, p. 191)
“o conceito de propriedade [...] alterou-se substancialmente, tendo em vista o mo-
delo de Estado Social retratado no texto constitucional, fato facilmente observado
com a inclusão do direito de propriedade no rol dos direitos e garantias fundamen-
tais, tendo como requisito de existência o atendimento à respectiva função social”.

Considerações finais
Para Bihr e Chesnais (2003) “a sacralização da propriedade começou quando
colocou-se no mesmo plano os bens de uso pessoal, dos quais os indivíduos desfru-
tam sozinhos ou com sua família, e os meios necessários à produção, que resultam
em geral, da apropriação privada de todo ou de parte de um trabalho social”.
Além da natureza eminentemente coletiva de produção do conhecimento
acadêmico-científico, é certo que se constitui em substância imprescindível à pro-
moção do bem-estar coletivo. Sem contar que, no caso brasileiro, como mostrado
neste texto, o instituto do direito autoral tem se mostrado muito mais um mecanis-
mo de transferência do direito patrimonial individual para um outro ente privado
que, passa a comercializá-lo, tendo como clientes, em última análise, os próprios
titulares do direito.
O Ministério da Cultura (MInc) vem, desde 2007, incentivando o debate so-
bre esta temática através da criação do Fórum Nacional de Direito Autoral,
com vistas a subsidiar a formulação da política autoral do próprio Ministério e
a definir a necessidade (ou não) da revisão da legislação existente sobre a matéria
e a redefinição do papel do Estado nessa área (BRASIL, 2008). Em 2006, o MInc
lançou a publicação Caderno de Políticas Públicas cujo primeiro volume contem-

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228 A quem pertence o conhecimento que produzimos?

plou esse tema sobre o qual considera necessário ampliar “o exame crítico” acerca
do “fortalecimento da proteção dos direitos de propriedade intelectual pode ter
para os países em desenvolvimento, afastando interpretações vestidas de verdades
absolutas, unicamente do ponto de vista unidimensional dos titulares de direitos e
ignorando o interesse público geral” (BRASIL, 2006, p. 12).
Como pretendemos mostrar, também esta discussão nos interessa como pes-
quisadores da área de Estudos Organizacionais. Como já afirmou Fernando Prestes
Motta, “o estudioso das organizações deve, antes de mais nada, estar atento às ra-
zões e às consequências do tipo de pesquisa em que se envolve, ao tipo de conheci-
mento que produz e a quem esse conhecimento serve” (MOTTA, 1990, p. 17).
Assim, recorremos a Bourdieu, para lembrar que o campo científico é es-
truturado em torno da luta pelo monopólio da autoridade científica, definida, de
maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social. A forma que reveste
essa luta política pela legitimidade científica depende “da estrutura de distribuição
do capital específico de reconhecimento científico entre os participantes na luta”
(BOURDIEU, 1983, p. 136). E “o que comanda os pontos de vistas, o que coman-
da as intervenções científicas, os lugares de publicação, os temas que escolhemos,
os objetos pelos quais nos interessamos etc. é a estrutura das relações objetivas
entre os diferentes agentes que são [...] os princípios do campo” (BOURDIEU,
2004, p. 23).
Não podemos ignorar, portanto, as relações de poder que permeiam e in-
fluenciam a estrutura do campo da comunicação científica, onde

há interesses financeiros das editoras que dominam o mercado de perió-


dicos, há os interesses das instituições de pesquisa e universidades que
lutam por prestígio e financiamento, há interesses nacionais, políticos e
econômicos que buscam o desenvolvimento e prestígio nacional e há o
interesse pessoal dos pesquisadores, tanto daqueles que já ocupam os
lugares mais altos na hierarquia – e que desejam lá permanecer – quanto
daqueles que estão em ascensão e disputam lugares mais altos e tam-
bém os marginalizados, para quem mudanças, seriam talvez, favoráveis
(MUELLER, 2006, p. 31).

A título de ilustração das ponderações de Mueller (2006), Lindsay Waters,


editora-executiva da Harvard University Press, em recente livro intitulado “Inimi-
gos da esperança: publicar, perecer e o eclipse da erudição”, falando da política
editorial universitária nos Estados Unidos, afirma que as editoras foram terceiriza-

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das e assumiram objetivos de elevação dos lucros, sem consideração aos aspectos
de relevância cultural dos trabalhos. “O lucro líquido da Universidade da Califór-
nia saltou de US$ 20 milhões no começo dos anos 60 para US$ 360 milhões, em
três décadas. Em compensação, se antes se vendiam, em média, 1250 exemplares
por título, hoje se vendem apenas 275” (DÓRIA, 2007, p. 52). Em contraposição
à Coase (1974), Waters (2006, p. 15) afirma: “o tão falado mercado livre – que é
qualquer coisa, menos livre – não é um conceito que deveríamos considerar estru-
tura fundamental para o livre curso das ideias”.
Se compreendermos e assumirmos a dimensão política de que se revestem
as mudanças provocadas pelas novas tecnologias de informação e comunicação,
teremos força para romper o intrigante paradoxo sobre o qual está assentado o
modelo tradicional da comunicação científica e que nunca é demais relembrar:
o bem sobre o qual ocorrem as transações – a produção acadêmico-científica –
advém, em sua grande maioria, de investimentos públicos que asseguram des-
de a formação de pesquisadores até o financiamento de coleções de publicações
científicas para bibliotecas, passando pelo financiamento a pesquisas, apoio para
a divulgação em eventos e publicação em revistas indexadas. No entanto, via de
regra, os direitos de autoria são transferidos para os negócios privados e adqui-
ridos, na forma de publicações, novamente com financiamento público. A luta e
o movimento são, em síntese, o esforço coletivo para romper com a legitimidade
vigente, subverter as regras do jogo e redefinir o valor do conhecimento científico
como bem público.

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O conjunto de textos que compõe
este livro se constitui em um balanço,
uma amostra do trabalho realizado e
uma reflexão sobre o caminho a
seguir de um coletivo de trabalho que
se localiza na Escola de Administração
da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) e em seu
Programa de Pós-Graduação (PPGA),
e na Universidade Federal Fluminense
(UFF): o Grupo de Pesquisa
Organização e Práxis Libertadora.
O Grupo tem como objetivo
contribuir para a organização das
lutas sociais valorizando a tradição do
pensamento social latino-americano
e o conhecimento que é produzido na
práxis dos lutadores sociais, e se
organiza em torno de quatro linhas
de pesquisa: práticas organizacionais
de lutas e movimentos sociais; lutas
sociais na formação e transformação
do Estado; contribuições do
pensamento social latino-americano;
concepções em disputa na
produção e acesso ao conhecimento.

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