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ISSN 15187640

Cadernos de Pesquisa do CDHIS


Revista do Programa de Pós-Graduação em História

Número 33 – Número especial de 2005 – Ano 18


UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
INSTITUTO DE HISTÓRIA
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E PESQUISA EM HISTÓRIA
(CDHIS)

Av. João Naves de Ávila, 2121 – Campus Santa Mônica - Bloco 1Q - Cep: 38400-902
Telefones: (034) 3239 4204 – 4236 – 4240 – 4501
e-mail_- cdhis@ufu.br

EDUFU – Editora da Universidade Federal de Uberlândia


Av. João Naves de Ávila, 2121 – bloco A, Sala 1 A – Campus Santa Mônica – Cep: 38400-902

CADERNOS DE PESQUISA DO CDHIS/ PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA - ISSN 15187640

EDITORA

Maria de Fátima Ramos Almeida

COMITÊ EDITORIAL EXECUTIVO

Maria Clara Tomáz Machado


Maria de Fátima Ramos de Almeida
Dilma Andrade de Paula
Máucia Vieira dos Reis
Dulcina Tereza Bonati Borges

CONSELHO CONSULTIVO

Profa. Dra. Yara Koury (PUC-SP)


Profa. Dra. Raquel Glezer (USP-SP)
Profa. Dra. Lúcia Lippi (CPDOC/FGV-RJ)
Prof. Dr. Mário Anacleto (CECOR/UFMG)
Profa. Dra. Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero (PROEDS-UFRJ)
Profa. Dra. Jane de Fátima S. Rodrigues (ESAMC/UDI)
Prof. Dr. Artur César Isaia (UFSC)
Profa. Dra. Maria Beatriz Pinheiro Machado (Arquivo Histórico Municipal/Caxias do Sul)

PARECERISTAS

Antônio de Almeida (INHIS/UFU) . Carlos Henrique de Carvalho (FACED/UFU). Cláudia C. Guerra (UNIMINAS/ESAMC)
Cristiane da Silveira (ESEBA/UFU). Edmar Henrique D. Davi (UNIMINAS/ESAMC). Eliane S. Ferreira (DECIS/UFU)
Gizelda Costa da Silva Simonini (UNIPAC) . Ivanilda Aparecida Andrade Junqueira (CDHIS/UFU)
Jeanne Silva (INHIS/UFU). João Francisco Natal Greco (FUCAMP). Luciana Lilian de Miranda (INHIS/UFU)
Luziano Macedo Pinto (UNIMINAS). Maria Cristina Nunes F. Neto (PUC/GO) . Marileusa A. Reducino (ESEBA)
Marcos Henrique Silva (Museu Municipal UDI) . Mônica Chaves Abdala (DECIS/UFU) . Newton Dângelo (INHIS/UFU)
Paulo Roberto de Oliveira Santos (UNITRI) . Regma Maria dos Santos (UFGO) . Sandra Cristina F. Lima (FACED/UFU)
Silma do Carmo Nunes (UNIPAC/FCU) . Thiago André Rodrigues Leite (FUCAMP) . Valdeci Rezende Borges (UFGO)
Valéria Maria de Queiroz Cavalcante (Arquivo Municipal UDI) . Vânia Aparecida Martins Bernardes (FCU)
Wenceslau Gonçalves Neto (INHIS/UFU) . Wilma de Jesus (Faculdade Católica Uberlândia)

SETOR DE PUBLICAÇÕES ARTE FINAL


Dulcina Tereza Bonati Borges Maria José da Silva
Luciana Lemes de Andrade Barbosa
TECNICA EM LINGUA INGLESA
DIAGRAMAÇÃO Sandra Chaves Gardelari
Marina Ferreira Marques

DIREÇÃO EDUFU: Maria Clara Tomáz Machado

PERIODICIDADE: Semestral

TIRAGEM: 1000 exemplares

Revista Cadernos de Pesquisa do CDHIS, n. 33, número especial de 2005


Universidade Federal de Uberlândia. Instituto de História. Centro de Documentação
e Pesquisa emHistória – CDHIS, Uberlândia, MG.
Semestral (vol. 33, ano 18, publicado em Junho de 2006)
1. Arquivo, Memória Documento 2. História Local 3. Estudos Históricos
Sumário

Editorial ...................................................................................................................................... 7

K ARQUIVO, DOCUMENTO E MEMÓRIA J

Qual é o lugar da memória? Reflexões sobre a produção acadêmica do


Centro de Ciências do Homem e sua preservação .............................................................. 1 1
Simone Teixeira
Jailse Vasconcelos
Leonardo Nolasco Silva
Tatiana Gonçalves da Silva

Campos dos Goytacazes e o IPHAN nos anos de 1930: Identidade Nacional


e Preservação do Patrimônio ................................................................................................. 1 9
Silviane de Souza Vieira
Simonne Teixeira

RELATO DE EXPERIÊNCIA
Centro de Documentação e Pesquisa em História: Possibilidades de estágio ................ 2 6
Sérgio Daniel Nasser

K ARTIGOS J

O De Clementia como Reflexo do Soberano Ideal ................................................................ 3 5


Marilena Vizentin

A Reverberação da Revolta de Vila Rica de 1720:...”à custa do sangue,


vida e despesas das fazendas...” ........................................................................................... 4 2
Carlos Leonardo Kelmer Mathias

Doença ou Feitiço? O Patológico e o Sobrenatural nas Gerais do Século XVII ............... 5 1


André Nogueira

Arte & História: a Concepção de Arte no Oitocentos e a sua Relação


com a Cultura Histórica ......................................................................................................... 5 9
Isis Pimentel de Castro

Paz e Amor na Era de Aquário: a Contracultura nos Estados Unidos ............................ 6 8


Neliane Maria Ferreira

Epistemologia Social e Metodologia: Survey, Comparação e Estudo de Caso ................ 7 5


João Batista Domingues Filho

A Estória contra a História ................................................................................................... 8 9


Maryllu de Oliveira Caixeta
A Relação da Ciência Histórica e do Direito. Implicações e Distanciamentos
na Formulação dos Conceitos de Verdade, Política e Justiça ........................................... 9 5
Jeanne Silva

A Mulher na Propaganda Eleitoral Gratuita Televisiva das eleições


Presidenciais de 2002 .......................................................................................................... 1 0 6
Evelyn Soares Valente

Territorialidade: a Partir do Saber Popular do Geraizeiro do Município


de Mirabela no Norte de Minas Gerais ............................................................................... 1 1 3
Amanda Maria soares Oliveira
Marta Maria Rodrigues Barbosa

Uberlândia: Impasses da Reforma Agrária ....................................................................... 1 1 8


Elisângela Magela Oliveira

O Folclorista Mário de Andrade e o Paradigma Macunaímico ...................................... 1 3 0


Ricardo Luiz de Souza

Arte: o Desprazer Prazeiroso ............................................................................................... 1 3 7


Elza Ferreira Santos

Cômicos dell´Arte – Profissionais da Cena ....................................................................... 1 4 3


Frederick Magalhães Hunzicker

K TRADUÇÃO J

A Guerra, o Ensino e a Pesquisa de Thorstein Veblen ................................................... 1 4 8


Wilson C. L. Silva

K D O S S I Ê : CULTURA E CIDADE: PRÁTICAS SOCIAIS E REPRESENTAÇÕES J

Nos Limites do Urbano: a Reelaboração do Cotidiano através da Festa


(em louvor a Nossa Senhora do Rosário de Catalão-GO) ................................................. 1 5 5
Cairo Mohamad Ibraim Katrib

Representações de Campo e Cidade no Brasil do Século XIX .......................................... 1 6 4


Ricardo Vidal Golovaty

Um continuum de Histórias: o Canal Campos-Macaé ....................................................... 1 7 1


Simonne Teixeira
Viviane de Souza Vieira

Imagens Urbanas: Lima Barreto e o Discurso de Modernidade e Democracia ............ 1 8 1


Cristiane da Silveira
Arte pública: esculturas de Darlan Rosa expostasem frente ao
Memorial Juscelino Kubitschek (Brasília/DF) ................................................................ 1 9 7
Querles de Paula A. Calábria

Turismo de Negócios e a Questão Sexual: Garotas de Programa em Uberlândia ...... 2 0 5


Fernando Ohhira Pereira

Edson Garcia Nunes e a TV Triângulo em Uberlândia. Anotações Sobre


a História de uma Emissora de Televisão no Interior do Brasil .................................... 2 1 4
Ana Carolina Rocha Pessoa Temer

Você disse Hip Hop? Afinal, o que é o Hip Hop ................................................................. 2 2 3


Rafael Guarato dos Santos

Uberlândia nas Linhas do Enfrentamento: a Democracia Participativa


nas Páginas da Imprensa .................................................................................................... 2 3 1
Carlos Menezes Sousa Santos
Heloísa Helena Pacheco Cardoso

Era uma vez...Uma Praça ................................................................................................... 2 4 2


Ivanilda Aparecida Andrade Junqueira

Violência doméstica – a Vitimização Social de Crianças e Adolescentes


(UDI- 2003) ........................................................................................................................... 2 5 3
Juliene Madureira Ferreira
Vera Lúcia Puga

A Palavra e a Imagem: Armas do Convencimento de Uma Estética


Urbana Moderna. Uberlândia Século XX ......................................................................... 2 6 4
Marileusa de Oliveira Reducino

Construindo o Orçamento Participativo de Uberlândia – MG ...................................... 2 7 6


Marcílio Marquesini Ferrari

A Televisão em Uberlândia, 1964-1984: a Atuação do Público na


Consolidação de um Processo .............................................................................................. 2 8 7

História e Loucura: Práticas e Terapêuticas do Sanatório Espírita


de Uberlândia (1940-1970) ............................................................................................... 2 9 2
Riciele Majorí Reis Pombo

Reflexos da Imprensa num Cenário Manicomial ............................................................ 3 0 1


Fabrício Inácio de Oliveira

O Fantasma Enjaulado: as Relações de Poder e a Fabricação da Loucura ................... 3 0 7


William Vaz de Oliveira
Editorial

Em seu 18º ano de publicação a revista Cadernos IPHAN nos anos de 1930: Identidade Nacional e
de Pesquisa do CDHIS afirma-se como veículo de Preservação do Patrimônio, de Simonne Teixeira e
disseminação do conhecimento, alargando os espaços Silviane de Souza Vieira; a seção se encerra com o
de discussões acadêmicas e de fomento à pesquisa e à relato de experiências de um estudante de graduação
extensão. Com a ampliação da equipe de pareceristas em História que fez estágio no CDHIS – Centro de
– com abrangência de saberes quanto a áreas Documentação e Pesquisa em História: possibilidades
disciplinares e quanto a objetos de estudo – foi possível de estágio, de Sérgio Daniel Nasser – em que se
alargar a cobertura temática da revista, conferindo destaca a importância dessa vivência acadêmica
maior densidade a cada número publicado. para a formação do historiador.
Em 2005 optamos ainda pela produção de um Na segunda seção encontram-se quatorze artigos
único número especial em vez dos dois números com temáticas variadas que indicam uma
ordinários. É que desde o número anterior vem sendo performance do atual estado da arte das Ciências
atribuído à revista um novo formato, com produção Humanas. Estórias, Histórias, Política, Direito,
de artigos maiores e mais consistentes do ponto de Folclore, Literatura, Cultura, Gênero, Reforma
vista teórico, para adequar-se aos critérios de Agrária, Metodologia e Arte alimentam a reflexão e
publicação estabelecidos pela Editora da a análise de temas importantes que se somam na
Universidade Federal de Uberlândia. A partir de busca de compreensão do humano em sua dimensão
2006 voltaremos à periodicidade regular semestral. plural. O periódico estimula a divulgação da
Embora a revista tenha sido condensada numa produção acadêmica com abordagem
única edição em 2005, a publicação estará interdisciplinar, fomentando uma rica
disponível apenas em 2006, em decorrência das promiscuidade intelectual. Observa-se também que
greves dos técnicos-administrativos e dos docentes os artigos fazem incursão em temporalidades e
das universidades federais, que inviabilizaram os espaços distintos. As experiências do passado
serviços gráficos até o final do ano anterior. O constituem ricos filões para a análise da experiência
Conselho Editorial desculpa-se com os/as leitores/as humana do presente e revelam a amplitude da
por este contratempo e compromete-se a empenhar disseminação da chamada cultura ocidental.
esforços para atualizar a revista a partir de 2006, O primeiro diz respeito ao século I em Roma,
com a publicação semestral. projetando-se no passado da filosofia política grega
Nesta edição a revista se divide em quatro seções. clássica – O De Clementia como Reflexo do Soberano
Na primeira, Arquivo, Documento e Memória Ideal, de Marilena Vizentin; os três artigos
destacam-se três interessantes abordagens que se subseqüentes analisam temas dos séculos XVIII e XIX,
propõem a refletir sobre memória, história e no Brasil – A Reverberação da Revolta de Vila Rica de
preservação. Esta tríade de artigos é extremamente 1720: “... à custa do sangue, vida e despesas das
cara ao CDHIS, uma vez que o mesmo foi criado com fazendas...”, de Carlos Leonardo Kelmer Mathias;
um escopo precípuo: ser guardião da memória social. Doença ou Feitiço? O Patológico e o Sobrenatural nas
Estes artigos abordam diferentemente o tema Gerais do Século XVIII, de André Nogueira; Arte &
segundo ângulos distintos. O primeiro diz respeito à História: a Concepção de Arte no Oitocentos e a sua
formação acadêmica na área da preservação do Relação com a Cultura Histórica, de Isis Pimentel de
patrimônio – Qual é o lugar da memória? Reflexões Castro. O século XX é tratado no artigo, Paz e Amor
sobre a produção acadêmica do Centro de Ciências do na Era de Aquário: a Contracultura nos Estados
Homem e sua Preservação, de Simone Teixeira; outro Unidos, por Neliane Maria Ferreira.
apresenta uma análise conceitual e histórica sobre Os demais artigos da seção tratam de
a relação entre preservação da memória social e procedimentos teóricos e metodológicos da pesquisa
identidade nacional – Campos dos Goytacazes e o acadêmica e de experiências histórico-político-
culturais e sociológicas no Brasil no século XX: leitores/as revelando mazelas, mistérios e saberes
Epistemologia Social e Metodologia: Survey, sobre diversas cidades brasileiras: Catalão/GO,
Comparação e Estudo de Caso, de João Batista Macaé/RJ, Rio de Janeiro/RJ, Prata/MG, Brasília/
Domingues Filho; A Estória Contra a História, de DF e Uberlândia /MG.
Maryllu de Oliveira Caixeta; A Relação da Ciência As transformações no traçado das cidades, a
Histórica e do Direito. Implicações e Distanciamentos desfiguração do campo na sua relação com o urbano,
na Formulação dos Conceitos de Verdade, Política e a estética e a cultura urbanas, a modernidade, o
Justiça, de Jeanne Silva; A Mulher no Horário turismo e o sexo, a política, a violência, a arte e os
Eleitoral: Análise da Propaganda Eleitoral Gratuita espaços públicos, a loucura e as relações de poder,
Televisiva das Eleições Presidenciais de 2002, de são assuntos que perpassam pelas ruas, becos e cantos
Evelyn Soares Valente; Territorialidade: a Partir do das cidades contempladas. Compondo cenários no
Saber Popular do Geraizeiro do Município de Mirabela imaginário do leitor, as personagens que transitam
no Norte de Minas Gerais de Amanda Maria Soares nesses espaços interferem, inferem e se comunicam
Oliveira e Marta Maria Rodrigues Barbosa; em diferentes esferas; modificam, convencem,
Uberlândia: Impasses da Reforma Agrária de impõem-se sobre a geografia da cidade e seus limites
Elisângela Magela Oliveira; O Folclorista Mário de e traçam infinitas histórias.
Andrade e o Paradigma Macunaímico de Ricardo Luiz Convidamos o/a leitor/a a descobrir, ele/ela
de Souza; Arte: o Desprazer Prazeroso, de Elza próprio/a, por meio da leitura dos artigos, a
Ferreira Santos; Cômicos dell’Arte – Profissionais da diversidade de temas, abordagens e acontecimentos
Cena, de Frederck Magalhães Hunzicker. reveladores da vida urbana brasileira e, em especial,
A terceira parte da publicação traz a tradução a multiplicidade da pesquisa acadêmica sobre a
de um texto do sociólogo e economista Thorstein cidade de Uberlândia.
Veblen, traduzido por Wilson C. L. Silva – A Guerra, É neste quadro de discussão teórica e metodológica
o Ensino e a Pesquisa – sobre o ambiente científico e que cada escrito se apresenta como único. Gestado
acadêmico no pós I Guerra na Alemanha e nos por mentes inquietas, reflexivas e questionadoras,
Estados Unidos. cada artigo revela leitura, pesquisa e análise.
O dossiê Cultura e Cidade: Práticas Sociais e Fecundado por opções teóricas e metodológicas
Representações, quarta seção da revista, é um diversificadas, os/as autores/as aqui presentes
convite a adentrar no imaginário e no cotidiano da brindam o público leitor com uma agradável e
cidade. Dezessete artigos desfilam perante os/as surpreendente leitura.

Comitê Editorial
S E S S Ã O

Arquivo, documento e memória


Qual é o Lugar da Memória?
Reflexões sobre a produção acadêmica do Centro de
Ciências do Homem e sua Preservação

Simone Teixeira

PhD em Filosofia e Letras (História) pela Universitat Autònoma de Barcelona – Espanha; Professora do Programa de Pós-
Graduação em Políticas Sociais do Centro de Ciências do Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense - PPGPS/
CCH/UENF.

Jailse Vasconcelos

Graduada em História pela Faculdade de Filosofia de Campos dos Goytacazes, aluna especial do PPGPS/UENF.

Leonardo Nolasco Silva

Mestrando do Curso de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro

Tatiana Gonçalves da Silva

Graduada em História pela Faculdade de Filosofia de Campos dos Goytacazes, aluna especial do PPGPS/UENF.

Resumo Abstract
Este artigo se propõe a analisar, a partir do foco da In this work, the academic production of two
História Regional e da Memória, a produção courses at the “Centro de Ciências do Homem” of
acadêmica de dois cursos do Centro de Ciências do the “Universidade Estadual do Norte Fluminense
Homem da Universidade Estadual do Norte Darcy Ribeiro” are investigated for their value to
Fluminense Darcy Ribeiro, bem como a necessidade the regional history and memory. The need for
de procedimentos para o devido arquivamento, adequate preservation and proceedings for easy
preservação e socialização dessas produções. public access are also discussed.
Palavras-Chave: Memória, História Regional, Key-Works: Memory, Local History, University.
Universidade.

“A memória coletiva não é somente uma conquista, Ciências Sociais e da pós-graduação em Políticas
é também um instrumento e um objectivo de Sociais, ambos, cursos do Centro de Ciências do
poder.” Homem (CCH), da Universidade Estadual do Norte
Le Goff Fluminense Darcy Ribeiro, com base nas discussões
surgidas em sala de aula. Nesta disciplina pretende-
No decurso do semestre 2005/1 da disciplina se, por um lado, discutir os fundamentos da História
História & Memória, nos propusemos, professora e Regional, com destaque para a problemática das
alunos, a realizar um trabalho de pesquisa sobre a fontes documentais (textuais, arqueológicas, orais e
produção acadêmica do curso de graduação de iconográficas), enfatizando a produção e o uso desta

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 11


informação na construção histórica regional e, por os dados referentes às monografias e dissertações de
outro, analisar a relação entre História e Memória mestrado produzidas no CCH. Para tanto estávamos
na construção do saber a partir do processo de considerando como recorte de pesquisa todos os
construção da memória social até sua transformação trabalhos defendidos até março de 2005. Contudo,
em objeto de consumo. Objetiva-se ainda nesta encontramos alguns obstáculos no decorrer do
disciplina examinar as diferentes Instituições de processo.
Memória (arquivos, bibliotecas, museus e centros de Nossa primeira dificuldade foi localizar estes
memória) como lugares fundamentais de preservação trabalhos - questão que abordaremos adiante. Em
e armazenamento das fontes documentais necessárias seguida, esbarramo-nos na armadilha da
à construção histórica regional. classificação. De início, acreditamos ser conveniente
A proposta, então, como trabalho de finalização classificar os trabalhos conforme as grandes áreas
da disciplina, foi fazer o levantamento geral das de interesse, com base nos títulos dos mesmos. Os
produções acadêmicas dos cursos. Desde o princípio critérios para tal esforço classificatório foram
a tarefa nos pareceu muito frutífera e logo definidos conjuntamente pelo grupo de trabalho,
encampamos a idéia, acreditando na sua sendo esses: título e orientador – a partir da produção
operacionalização e viabilidade, uma vez que os científica do orientador, suas inclinações para linhas
cursos estudados são novos - a graduação de Ciências de pesquisa e áreas de atuação, acreditamos ser
Sociais foi implantada em 1995 e da pós-graduação viável enquadrar o trabalho dos orientandos em
em Políticas Sociais em 1999. tipificações científicas semelhantes, criando grandes
eixos temáticos.
Dessa forma, com base nos títulos e nos interesses
Metodologia de Trabalho teóricos dos professores orientadores selecionamos os
grandes eixos temáticos. A tabela abaixo relaciona
Como ponto de partida, propusemo-nos a levantar esses eixos à quantidade de trabalhos produzidos.

TEMAS M ONOGRAFIAS D ISSERTAÇÕES TOTAL


UENF 1 2 3
Assistência Social 0 1 1
Políticas Públicas Saúde 1 5 6
Judiciário 2 1 3
Habitação 0 1 1
Infância e Adolescência 0 2 2
Educação 1 5 6
Estudos Agrários 3 2 5
Estudos Urbanos 8 4 12
Política Cultural 1 2 3
Teórica 6 0 6
Antropologia Comunidades 4 1 5
Gênero 3 1 4
Desenvolvimento Humano 2 1 3
Trabalho 2 1 3
Política (partidária/eleitoral) 3 2 5
Estudos Étnicos 0 1 1
TOTAL (M onografia/D issertação) 37 32 69
Fonte: Monografias e Dissertações defendidas no CCH/UENF até março/2005

Levantado os dados referentes à Graduação e à Problemas Metodológicos


Pós-Graduação, constatamos que até o primeiro
semestre de 2005 trinta e sete monografias e trinta Durante a seleção dos trabalhos e identificação
e duas dissertações tinham sido defendidas e dos eixos temáticos, percebemos possíveis falhas em
aprovadas. nossa metodologia e decidimos refazer a classificação
tendo por base as palavras-chave sugeridas pelo
autor no próprio trabalho. Enfrentamos alguma

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dificuldade ao perceber que nem todas as A Universidade está localizada numa cidade que
monografias e dissertações apresentavam essas é tradicionalmente agrária e que, apesar de no
palavras. Além disso, a organização da informação passado ter tido uma posição econômica compatível
a partir deste critério apresentou-se mais complexa com outras cidades importantes do país, não
e menos objetiva. Contabilizamos um total de 123 acompanhou o crescente processo de industrialização
palavras-chave para as monografias e 106 para as pelo qual passou o Brasil no século XX. Da mesma
dissertações. forma, os demais municípios que compõem a região
Com este grande número de variáveis, Norte e Noroeste Fluminense possuem uma história
verificamos que seríamos conduzidos a pensar em vinculada à economia agrária ou à pesca.
inúmeras classificações distintas para trabalhos que Como explicar, então, esse interesse pelos estudos
poderiam ser situados em áreas comuns. Nesse urbanos? Logo nas primeiras entrevistas já pudemos
segundo método de abordagem percebemos que um obter algumas respostas para nossas indagações.
mesmo trabalho poderia estar presente em mais de Apesar de tratar-se de uma região que viveu a maior
uma grande área e isto implicaria em um parte de sua história relacionada à economia
tratamento estatístico demasiadamente complexo. açucareira, a partir dos anos de 1970, uma nova
Optamos então por uma simplificação do processo, atividade econômica veio trazer uma maior
minimizando o rigor estatístico, dado ao tempo dinamização à economia regional. Trata-se da
exíguo de que dispomos. Retornamos à tabela inicial indústria do petróleo, que afetou, direta ou
para classificar os trabalhos, empreendendo uma indiretamente, todos os municípios da região.
divisão de tarefas que facilitaria a execução de novos A instalação da base da PETROBRAS em Macaé
objetivos de pesquisa. fez com que este município recebesse o impacto da
Com base nos eixos temáticos cada integrante do indústria petrolífera de forma mais direta, gerando
grupo se responsabilizou pelo exame mais acurado um grande crescimento econômico e favorecendo a
dos trabalhos inseridos numa determinada área de maior expansão urbana da história da cidade. De
seu interesse através da elaboração de questionários acordo com o IBGE, no início da década de 1970
específicos para orientadores e para parte de seus Macaé possuía cerca de 47.000 habitantes, em 2000
orientandos, bem como para a administração já contava com 131.550 habitantes. Hoje, os
responsável pelo arquivamento e preservação da números oficiais já apontam para cerca de 144.000
memória acadêmica e institucional. Vale lembrar habitantes.
que a divisão das tarefas não supôs uma abrangência Mesmo que de forma diferenciada, a indústria do
total dos trabalhos de monografia e dissertação, petróleo também tem alterado a estrutura urbana
tendo sido selecionados apenas alguns temas. dos demais municípios da região. Todos os municípios
recebem royalties, sendo Campos dos Goytacazes a
cidade que recebe o maior percentual. A possibilidade
Estudos Urbanos de recebimento de royalties veio favorecer, inclusive,
a criação de novos municípios na região. Alguns
Foi com surpresa que o grupo de trabalho destes municípios têm se tornado cidades-dormitório
constatou que um considerável número de para a população que vem trabalhar nas empresas
monografias e dissertações produzidas no Centro ligadas ao ramo de petróleo. Outra característica
versavam sobre a problemática urbana. Pelos que pode ser observada é a acentuada migração dos
levantamentos quantitativos feitos, pudemos que abandonam o campo, e dirigem-se às maiores
verificar que trata-se do tema mais abordado, todos cidades da região em busca de novas oportunidades
levando em consideração a problemática urbana de trabalho.
regional. Antes de partimos, então, para a segunda Concomitantemente à referida expansão urbana,
etapa da pesquisa que nos propomos a fazer - vieram os problemas que têm sido apontados pela
entrevistar professores e alunos que trabalharam literatura, como característicos das áreas urbanas
ou trabalham com o tema em questão - começamos (crescimento desordenado, segregação sócio-
a refletir sobre o porquê do interesse pelo tema. espacial, desemprego, violência, necessidade de

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 13


ampliação da infra-estrutura, degradação do meio alguns momentos são feitas reuniões gerais para
ambiente, etc). discussão teórica, ou mesmo orientações gerais. Como
Com essa rápida alteração na dinâmica os projetos são realizados por mais de uma pessoa, os
econômica, social, demográfica e espacial da região, alunos automaticamente dialogam entre si.
não é de se admirar que este tema tenha se tornado Todos os entrevistados reconhecem que os
um valioso objeto de estudo. Fato que tem sido, de trabalhos devem contribuir para o conhecimento e
forma oportuna, bem aproveitado pelos desenvolvimento da região. Conforme nos esclareceu
pesquisadores do setor de Estudos Urbanos e um dos entrevistados, “há quase uma paranóia. Os
Regionais do CCH. trabalhos têm que ter uma utilidade prática”. Inclusive,
Fizemos entrevistas com dois professores que estão foi lembrado que a UENF “está instalada no Norte-
mais diretamente envolvidos no estudo do tema, e fluminense, exatamente para contribuir com o
com quatro alunos, podendo assim ter uma visão, desenvolvimento da região e com a difusão do trabalho
mesmo que panorâmica e por amostragem, do perfil científico...” Havia pouca produção acadêmica sobre
dos trabalhos que vêm sendo desenvolvidos. Cremos a região e a UENF veio suprir essa lacuna.
ser pertinente mencionar a boa receptividade que Entretanto, a divulgação desses trabalhos para
tivemos. Percebemos que as pessoas gostam de falar a sociedade, ainda é feita de forma limitada, apesar
dos seus trabalhos e de suas produções. É gratificante de haver uma preocupação em participar de eventos
para elas e uma oportunidade ímpar de poderem e congressos externos pela possibilidade de
relatar as suas memórias. socialização dos trabalhos. Alguns desses trabalhos
Verificamos que os projetos são, de um modo já foram publicados em livros e em revistas.
geral, voltados para o desenvolvimento urbano e O maior fórum de divulgação interna dos
regional do Norte-fluminense. Dentre os temas que trabalhos é sem dúvida a Semana de Iniciação
já foram ou ainda estão sendo trabalhados, podemos Científica. Tanto os professores, como os alunos
citar: organização, dinâmica e evolução urbanas e entrevistados, destacaram a importância de
qualidade de vida no Norte-Fluminense; vantagens participar deste, que é o maior evento da UENF de
e desvantagens da instalação das indústrias divulgação das pesquisas em andamento na
petrolíferas na região; valoração dos danos instituição.
ambientais; a evolução, dinâmica, qualificação e Procuramos saber dos entrevistados sua opinião
quantificação do emprego no Norte-fluminense; sobre a obrigatoriedade da confecção da monografia
estudo da hierarquia urbana da região Norte- ao final do curso de Graduação. Verificamos que
fluminense; gestão integrada e participativa da tanto professores como alunos reconhecem a
Bacia do Rio Paraíba; geografia e desenvolvimento importância deste trabalho para a formação
regional; reformas urbanas e questão social em acadêmica do aluno. Destacaram ser este um
Campos dos Goytacazes. Dessa forma, pudemos diferencial do curso da UENF em relação aos cursos
perceber que os trabalhos desenvolvidos têm de outras instituições. Muitos dos trabalhos
contribuído para o conhecimento da história e da produzidos são indicados aos demais alunos, algumas
cultura da região. vezes até como bibliografia básica para os cursos da
Alguns projetos são desenvolvidos sem graduação ou da pós-graduação, mas na maioria das
financiamento, entretanto a maioria o possui através vezes como referencial para as pesquisas posteriores.
de diferentes instituições. A verba aumenta o Todos foram favoráveis à confecção, mas há
número de bolsas que são mais um atrativo para os alguns questionamentos quanto à necessidade de
alunos. Os alunos da graduação participam dos defesa com uma banca de professores. Reconhece-se
projetos com bolsas de I.C. e de Extensão, gerando o a importância da apresentação do trabalho,
envolvimento dos alunos nos projetos desenvolvidos inclusive uma das alunas registrou que conseguiu
e, conseqüentemente, a produção das monografias publicar um artigo baseado na sua monografia por
que muitas vezes se desdobram em dissertações. intermédio de um professor externo à UENF que
Na maioria das vezes o atendimento ao aluno é compôs a sua banca. Entretanto, sugeriu-se que a
feito de forma mais individual. Entretanto, em apresentação deveria ser feita de uma forma menos

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formal, defendendo a idéia de que aproveitasse a proporções, cada aluno é cobrado a fazer suas
oportunidade mais como um espaço de discussão e pesquisas dentro dos modelos aceitos na academia, e
debate do que de avaliação. a divulgação dos trabalhos fora da universidade é
É curioso, e ao mesmo tempo lamentável, uma realidade experimentada por ambos os
verificarmos que, apesar do orgulho de professores e segmentos. No que diz respeito às publicações,
alunos em relação à elaboração das monografias, apreendemos que o número de artigos, papers,
institucionalmente parece não haver o mesmo capítulos de livros ou livros é ainda pequeno entre
sentimento. Vários dos entrevistados já os grupos, o que já não ocorre com as exposições orais,
diagnosticaram que falta uma maior divulgação dos em painel ou em resumo. Todos os integrantes dos
trabalhos. “Nós sabemos muito pouco sobre os três grupos analisados nessa seção já participaram
temas. Não temos conhecimento de onde estão pelo menos uma vez de eventos científicos
arquivadas...”, afirmou uma das pessoas apresentando seus trabalhos.
entrevistadas. Quando indagados sobre a obrigatoriedade da
Assim, mais do que os temas que estão sendo monografia para os alunos de graduação, o corpo
abordados, a presente proposta de trabalho nos levou docente foi unânime em dizer que esse é o primeiro
a questionar e refletir sobre a valorização que as passo para quem quer seguir uma vida acadêmica,
produções acadêmicas estão tendo dentro da própria tendo dois deles, contudo, relativizado acerca da
Instituição. Mas, como já dissemos, esta discussão obrigatoriedade da defesa. Esses professores
será tratada ao final. consideram demasiadamente exigentes as normas
para a apresentação oral do trabalho, cabendo aos
avaliadores considerações por escrito, sem contato
Gênero e Violência com o aluno. Um deles acredita que após as
aprovações deveria se fazer um seminário aberto à
Durante as entrevistas percebemos que os grupos comunidade com os alunos formados. O destino das
de pesquisa do Centro trabalham ativamente, monografias é desconhecido por todos eles.
congregando alunos da graduação e da pós- Os entrevistados, juntamente com outros colegas
graduação, exigindo de ambos as mesmas do laboratório a que pertencem, organizaram um
responsabilidades para o fazer científico. Reunidos acervo com todos os trabalhos dos alunos,
quinzenalmente, os integrantes do Ateliê de Gênero, possibilitando a consulta das monografias e
por exemplo, desenvolvem pesquisas nas áreas da dissertações ali produzidas.
sexualidade, trabalho, violência e etnia. Pesquisas
sobre violência doméstica, estupro, políticas públicas
de segurança, direitos reprodutivos, homofobia e Políticas Públicas
racismo constituem o escopo temático do grupo e
encontram-se em fase de preparação para a Dentro deste eixo temático trabalhamos com as
publicação de um livro. monografias e dissertações que trataram de temas
Outro grupo de estudo tem trabalhado com a relacionados à própria Instituição e às Políticas
questão da violência e do controle social em Campos Públicas (saúde, educação, habitação, assistência
e no Rio de Janeiro, a partir da participação dos social, infância e adolescência, judiciário e cultura).
alunos da graduação e do mestrado, gerando Relacionados a estes temas foram produzidos um
monografias e dissertações cujo conteúdo colabora total de vinte e dois trabalhos, tanto na graduação
com a produção de um conhecimento local ou quanto na pós-graduação, sendo cinco monografias
regional. e dezessete dissertações destacando-se a questão da
Na aplicação dos questionários com os professores saúde com seis trabalhos produzidos.
responsáveis pela temática “gênero, violência e Foi possível observar que a maior parte desses
políticas públicas”, pudemos perceber que não há trabalhos enfoca o local e o regional, dado
distinção entre a produção acadêmica realizada no considerado bastante relevante, pois demonstra
mestrado e na graduação. Guardadas as devidas interesse e preocupação dos estudantes e professores

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 15


desta Instituição por tais questões. Além disso, primeiro passo quase instintivo foi dirigir-nos à
percebe-se também que há um interesse em refletir biblioteca do Centro no intuito de ter um contato
a própria Universidade, já que três trabalhos se inicial com a produção selecionada. Todavia, para
voltaram para este tema, sendo uma monografia e nossa surpresa, as monografias não estavam
duas dissertações. guardadas naquele local, ao contrário das
Foram entrevistados dois professores e quatro ex- dissertações - dispostas em uma estante exclusiva.
alunos da pós-graduação. Perguntados sobre o melhor Qual teria sido então o destino dos trabalhos de
lugar para a guarda das monografias, os professores conclusão de curso? Se eles não estavam na
responderam que a biblioteca é o local adequado para biblioteca, em que outro lugar poderíamos encontrá-
a permanência destes trabalhos acrescentando que a los? Sabemos que os alunos formados pela Instituição
maior parte das monografias de final de curso está devem entregar três cópias das suas monografias à
vinculada à temática regional, precisando ser este coordenação do curso, que cuidará de repassar uma
conhecimento acessível para demais estudos e cópia para a biblioteca do Centro. Por qual motivo
pesquisas, já que muitas delas foram consideradas então elas não fazem parte daquele acervo?
relevantes pela banca examinadora. As opiniões registradas por nosso grupo acerca
Para maior divulgação e acessibilidade aos do arquivamento dessas produções divergem em
trabalhos, um professor observa a falta de uma pontos importantes. Para os professores e alunos seria
política interna de valorização da produção da a Biblioteca o local mais apropriado para a função,
universidade e sugere que fossem feitas cópias dos afinal Bibliotecas são locais de memória por
mesmos para serem enviadas à biblioteca e arquivo excelência. Tal pensamento, contudo não é
público. Ressalta ainda a necessidade de uma compartilhado por todos.
publicação interna dos trabalhos através de uma Ao entrevistarmos a bibliotecária do Centro de
biblioteca virtual. Ciências do Homem, por exemplo, acerca da ausência
Em relação à Política Cultural, duas dissertações das monografias na biblioteca, percebemos que a
foram produzidas, ambas sobre o Município de justificativa para tal fato valia-se de um critério de
Campos dos Goytacazes, dado extremamente seleção pautado na suposta falta de qualidade dos
relevante, pois, mais uma vez vem mostrar o trabalhos da graduação. Segundo ela, a biblioteca
interesse dos alunos e professores desta Instituição não possui nenhuma responsabilidade sobre as
em estudar o local e o regional. monografias e, além disso, sua “experiência teria
Com relação à pesquisa os alunos apontaram nas mostrado que muitos dos trabalhos apresentados ao
entrevistas algumas dificuldades em encontrar Centro não seguem as normas oficiais de um produto
dados e materiais para os seus trabalhos, dentre estas acadêmico”:
o acesso às pessoas que tinham implementado
projetos relacionados ao tema da pesquisa, falta de “Eu já passei por uma experiência de trabalhos que
documentação e dados, cadastros institucionais eram feitos e que não estavam tão adequados e
preenchidos inadequadamente, dados ilegíveis e até que outras pessoas se baseavam naquele trabalho
escassez dos mesmos. Neste sentido, as pesquisas e diziam: mas eu me baseei no trabalho que tava
produzidas, tanto na graduação quanto na pós- na biblioteca. Como se tudo que estivesse aqui fosse
graduação, vêm contribuindo com dados e reflexões servir de modelo. A gente tem que ter muito cuidado
anteriormente não existentes sobre a realidade local, com esse tipo de material, para que o aluno possa
regional e Institucional. No entanto, a divulgação e ter certeza. Por isso ele nunca veio pra cá”.
a valorização dos mesmos vêm sendo pouco
trabalhadas dentro da Universidade. Quando indagada sobre os temas dos trabalhos
produzidos na graduação e no mestrado, a
bibliotecária respondera de forma muito geral,
Memória da Produção Acadêmica dizendo que estes seguiam as linhas de cada curso,
estando alguns preocupados com o estudo da cidade
Considerando os objetivos desse trabalho, o e da região. Foi taxativa mais uma vez ao expor a

16 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


pouca credibilidade das pesquisas desenvolvidas no Na modernidade, com a ascensão dos novos meios
curso de Ciências Sociais, referindo-se a elas como “pré- de comunicação, com o aumento das possibilidades
projetos para uma futura dissertação de mestrado”. de expressão e as conseqüentes exigências do mercado
A preservação da memória institucional não de trabalho, a biblioteca pública ganha novas
assumida pela biblioteca encontra respaldo em funções. As bibliotecas passam a ter como
estratégias privadas, nem sempre convenientes à compromisso principal a difusão do conhecimento.
divulgação. Estão espalhadas pelos arquivos São espaços de sociabilidade, de agregação e
pessoais, ou pelos diversos setores da Instituição, disseminação de conhecimentos. Por isso acreditamos
devido à boa vontade e disciplina acadêmica dos ser a Biblioteca o melhor lugar para o arquivamento
alunos, professores e demais funcionários, que das monografias e dissertações produzidas pelos
garantem a preservação desse material. Localizamos alunos.
também alguns trabalhos arquivados na Secretaria Considerando que os critérios da Universidade
Acadêmica do curso, mas apenas por motivos para a elaboração de monografias sinalizam para a
puramente burocráticos. necessidade de um tema inédito, concluímos que os
As monografias e as dissertações fazem parte da trabalhos desenvolvidos lidam muitas vezes com
memória individual de seus autores, mas também dados primários, extremamente importantes para
da memória coletiva da Instituição, e independente pesquisas futuras em áreas afins. A democratização
da qualidade dos trabalhos, cuja avaliação não faz desses dados só poderá ser feita a partir do momento
parte dos objetivos do presente trabalho, as produções em que esse material for devidamente divulgado,
acadêmicas são, por si só, lugares de memória. O tornando desnecessário o arquivamento privado
significado destas produções é algo que não se pode para efeito de consultas pelo grande público.
negar. Elas representam a culminância de todo um Como última observação, destacamos que foi
investimento intelectual e afetivo não só de um aprovada pelos órgãos deliberativos da
aluno, mas também de toda a Instituição. Através Universidade, a saber, Câmara de Graduação em
das produções acadêmicas, os sucessos e vicissitudes 08/03/2005 e Colegiado Acadêmico em 07/07/
dos sujeitos envolvidos no processo, e da Instituição 2005, a Resolução n 0 001/2005 que estabelece
como um todo, vão sendo registradas, preservadas e “Normas para elaboração e defesa de Trabalho Final
valorizadas. Muitos desses trabalhos obtiveram nota de Conclusão de Curso de Graduação” da
máxima na avaliação da banca composta por três Universidade. Esta resolução institucionaliza a
professores doutores, um deles geralmente externo necessidade de um trabalho de final de curso e/ou
à Universidade. Esse foi o caso de algumas projeto final, submetidos a uma banca examinadora
dissertações que participaram de eventos científicos previamente constituída, para a conclusão dos
nacionais e outras que dado a especificidade da cursos de graduação. Quanto ao destino das
temática tiveram significativa repercussão local. monografias o artigo VIII, parágrafo 3 determina:
Nos referenciais teóricos que trabalham com a “a Coordenação do Curso encaminhará os dois
questão da biblioteca e sua utilização pela sociedade, exemplares impressos à Biblioteca do Centro ao qual
vemos que muitas vezes, ela não passa de um o curso estiver vinculado”.
pequeno espaço da escola, um locus de pesquisa e A nosso ver, esta Resolução abre caminho para
visitas casuais. Se no passado os jovens se efetivar na Instituição uma política de preservação
esmeravam na declamação de sonetos enquanto das monografias, que possuem, como vimos
traço distintivo de sua educação e elegância, tendo anteriormente, inegável valor histórico e
nas bibliotecas uma espécie de instrumento para reconhecidos méritos científicos. Integraremos o
cumprir tais objetivos, o percurso atual nos indica grupo que se empenhará em ver esta Resolução ser
uma mudança de perspectiva e de interesse. A cumprida objetivando assim o estabelecimento de
biblioteca deixou de ser exaltada por aquilo que uma infra-estrutura adequada para a socialização e
guarda, tendo sua importância restringida ao uso desenvolvimento das pesquisas em História Regional
utilitário do seu acervo 1. e para a preservação da Memória Institucional.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 17


Notas

1
MILANESI, Luiz (1986):. Ordenar para desordenar. Centros de 2
CARVALHO, Kátia de (1994): “A Biblioteca e a comunidade”. In:
cultura e bibliotecas públicas. São Paulo: Brasiliense. Anais do INFOARTE - Seminário brasileiro para a dinamização
comunitária de acervos documentais de arte.

18 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Campos dos Goytacazes e o IPHAN nos anos de 1930:
Identidade Nacional e Preservação do Patrimônio*

Silviane de Souza Vieira

Mestre em Políticas Sociais e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
(UENF), integrando atualmente um projeto de extensão na área de Educação Patrimonial nesta universidade.

Simonne Teixeira

PhD em Filosofia e Letras (História) pela Universitat Autònoma de Barcelona, professora da Universidade Estadual do
Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Desenvolve pesquisas na área de Memória, Patrimônio e Política Cultural.

Resumo Abstract
O presente trabalho aborda a relação entre a The present work approaches the relationship
identidade nacional e a preservação do between national identity and patrimony
patrimônio, a partir da análise dos tombamentos preservation related to the real state in the city of
efetuados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Campos do Goytacazes/RJ. It was done an analysis
Artístico Nacional (IPHAN), nos anos de 1930, of the buildings which were registered by the
referentes a bens imóveis na cidade de Campos dos Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
Goytacazes/RJ. (IPHAN) in the 1930s.
Palavras-chave: Patrimônio Cultural, Proteção, Keywords: National Identity, Preservation,
Campos dos Goytacazes Patrimony.

Este artigo trata a relação entre a identidade afirmação dos Estados nascentes, constituindo
nacional e a preservação do patrimônio a partir de pedras para fundamentar seus alicerces.
uma análise da prática do tombamento levada a O patrimônio desempenha um papel histórico em
cabo pelo Instituto do Patrimônio Histórico e relação ao conceito de nação, sendo “um elemento
Artístico Nacional (IPHAN). O foco principal são os que serve para construir ou para fundar o vínculo
processos que tramitaram neste Instituto, abertos social” 1 . A proteção de determinados imóveis,
nos anos de 1930 referentes aos bens imóveis da enquanto monumentos históricos, implica em uma
cidade de Campos dos Goytacazes, Estado do Rio de seleção, uma delimitação destes porque são
Janeiro. Os dados contidos nestes processos (175-T- manifestações da cultura e símbolos da nação a serem
38; 176-T-38; 177-T-38; 174-T-39) aliados a perpetuados. O que se prioriza neste momento é o
informações de outros documentos pertencentes ao valor nacional, “o sentimento de pertencimento a
arquivo do IPHAN, além de jornais locais, constituem uma comunidade, no caso, a nação”2.
a matéria prima deste trabalho. Mesmo com toda a evolução desta concepção de
Ao se falar em patrimônio, há um certo consenso patrimônio, com sua aproximação com a Indústria
em se afirmar o aparecimento da noção de Cultural, com a fragmentação das identidades
patrimônio histórico ou cultural em fins do século dentro das tendências globalizantes da vida
XVIII, particularmente a partir da Revolução moderna, é certo que a função agregadora ainda
Francesa. O patrimônio neste momento servia à permanece.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 19


Dentro da realidade brasileira, o patrimônio naquele momento, assim como o vislumbre da
histórico como suporte na fundamentação da possibilidade de aplicar na realidade idéias de
identidade nacional não aparece no momento de reinterpretação ou reinvenção de um país que
Independência política do país, e muito menos com estava sendo praticado nas páginas de seus
a Proclamação da República, mas em período livros” 5 .
posterior.
As políticas relacionadas ao desenvolvimento da Como não poderia deixar de ser, estes intelectuais
cultura no Brasil têm ênfase a partir dos anos de deram forma também ao SPHAN. Este Serviço foi
1930. Tais políticas não inexistiam em período criado de forma experimental em 1936, sendo
anterior, investimentos foram feitos no período concretizado em 1937, com o Decreto-lei n.º25/37.
Imperial e nos primeiros anos da República. Mas tais O autor principal deste Decreto foi Rodrigo Melo
práticas não podem ser consideradas um programa Franco de Andrade – dirigente do SPHAN desde seu
bem definido de políticas culturais. surgimento, que permaneceu no cargo até se
O período político brasileiro denominado Estado aposentar em 1967, já próximo a sua morte6. Outros
Novo teve início em 1930 e explicitou-se sobretudo segmentos da intelectualidade já haviam apontado
na ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945) com a questão do patrimônio nacional, mas o surgimento
suas práticas centralizadoras, predominando a do SPHAN suprimiu as visões anteriores sobre o tema.
precariedade das liberdades públicas. O Estado era A conformação de um patrimônio nacional, através
também o principal agente econômico, buscando da proteção estatal seguia as pretensões do Estado
promover o desenvolvimento sob a égide do Novo de construir uma nação unificada.
nacionalismo, empreendendo altos investimentos. De acordo com sua proposta de trabalho, o IPHAN
Ao mesmo tempo, formulava-se uma legislação lida “com os bens culturais nacionais tombados,
social, mantendo o controle sobre os trabalhadores e representativos de diversos segmentos da cultura
sindicatos . 3
brasileira”. Seu trabalho é norteado pela legislação
O Estado atuava de forma incisiva no campo específica (Decreto-lei nº25), por outras legislações
cultural, os anos de 1930 marcam o surgimento de (Lei de Arqueologia 3924/61; Constituição Federal
diversos órgãos importantes nesta área. Datam deste – Art. 215 e 216), e também por Cartas, Declarações
período o Ministério da Educação e Saúde, o Instituto e Tratados Nacionais e Internacionais 7.
Nacional do Livro, o Serviço Nacional de Teatro e o O tombamento é uma das várias formas de
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional proteção previstas na Constituição Brasileira. Consta
(SPHAN) que se tornaria posteriormente IPHAN. no artigo 216, parágrafo 1º, que:
Um ponto primordial no campo cultural era a
presença marcante dos intelectuais. Estes eram “O Poder Público, com a colaboração da
reconhecidos por Getúlio Vargas como agentes de comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio
transformação nacional, sendo convocados para cultural brasileiro, por meio de inventários,
empreender a emancipação cultural da nação. Os registros, vigilância, tombamento e
intelectuais, por sua parte, tomavam tal trabalho desapropriação, e de outras formas de
como uma missão a ser cumprida. Esta perspectiva acautelamento e preservação”. Em termos
“leva a intelectualidade a aderir a propostas jurídicos existem outros meios de proteção como o
modernizadoras que rompem com o passado, ou a direito de petição, ação popular, ação civil pública,
atuar no sentido de reinterpretar continuamente a entre outras 8 .
tradição” 4 .
Os intelectuais do movimento modernista A regulação do tombamento encontra-se no
brasileiro eram os principais participantes neste Decreto-lei nº 25 de 30 de novembro de 1937. Em
processo. A presença deles no poder público seu capítulo I, artigo 1º:

“deixa transparecer a crença moderna de que era “Constitui o patrimônio histórico e artístico
o Estado o lugar da renovação e da vanguarda nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis

20 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


existentes no País e cuja observação seja de nos primeiros anos de trabalho era formado
interesse público, quer por sua vinculação a fatos essencialmente pelas construções coloniais, eleitas
memoráveis da história do Brasil, quer por seu como a autêntica arquitetura brasileira, além das
excepcional valor arqueológico ou etnográfico, construções modernas que dialogavam com tal
bibliográfico ou artístico. estilo. Algumas já nasciam tombadas.
Mesmo esta concepção tendo se transformado ao
§ 1º - Os bens a que se refere o presente só serão longo do tempo, ela “ainda permanece como um dos
considerados parte integrante do patrimônio traços marcantes das práticas preservacionistas
histórico e artístico nacional depois de inscritos desenvolvidas (...) e como um fator de dissimulação
separada ou agrupadamente num dos quatro das diferenças sociais e culturais”13. Esta fase inicial
Livros do Tombo(...)”. (que se estende até os anos de 1970) foi chamada
de heróica, caracterizando agentes imbuídos da
Foram criados quatro Livros do Tombo 9: Livro missão de salvar o patrimônio, principalmente o
Histórico, Livro das Belas-Artes, Livro Arqueológico, mais ameaçado de desaparecimento, em condições
Etnográfico e Paisagístico e Livro das Artes de trabalho bastante difíceis. Muitas críticas podem
Aplicadas. A partir do registro em pelo menos um ser feitas, mas é impossível não reconhecer a
destes Livros, o bem considerado patrimônio torna- importância do trabalho feito neste período, que
se alvo de uma série de medidas que visam a sua possibilitaram às futuras gerações o conhecimento
preservação. de bens significativos para a nação brasileira.
Nesta forma de proteção adotada, o tombamento, Existiram ao longo do tempo algumas
era a História Nacional que se materializava, divergências quanto à noção centralizada de
sobrepondo-se a arte e a estética, servindo de patrimônio. Mas, uma nova concepção só teria lugar
“constante fonte de argumentos às pretensões em fins dos anos de 1970, envolvendo
centralizadoras e reformadoras de um Estado que, transformações políticas pelas quais passava o país
havia pouco, se inaugurara” 10 . e a mudança de direção no IPHAN, entre outros
Os intelectuais modernistas, recrutados por fatores. Tal período não será aqui abordado.
Rodrigo Melo Franco de Andrade, concebiam uma A cidade de Campos dos Goytacazes conta com
determinada identidade nacional, contribuindo algumas edificações selecionadas como monumentos
para a construção de um novo Brasil e um novo nacionais pelo IPHAN, através do tombamento.
brasileiro, levando a cabo o que deveria ser cumprido Dentre os sete bens já tombados, a maioria, cinco
por todas as “nações civilizadas”. deles, teve seus processos iniciados nos anos de 1930,
De acordo com Miceli, as ações oficiais em relação sendo todos conclusos nos anos de 1940.
à cultura, especificamente no tipo de patrimônio que Sendo estes processos da chamada “fase heróica”,
se preservava, era justamente a tentativa de tais documentos refletem a realidade deste período.
construção de uma identidade nacional por um São bastante concisos, formados apenas pela
regime autoritário. Os bens que se conservavam descrição dos trâmites entre o pedido e a decisão
neste momento eram os monumentos representantes final. Nestes, o primeiro documento que aparece é,
da “classe dirigente brasileira, em seus ramos público em sua maioria, a notificação do Instituto ao
e privado, leigo e eclesiástico, rural e urbano, proprietário informando que o imóvel seria
afluente e decadente” . A exclusão de outras
11
tombado, para que o proprietário desse a sua
representações era grande e permanece até hoje. anuência ou manifestasse sua contrariedade.
Ficou esquecida a contribuição de grupos mais Nestes casos, não houve nenhuma discordância. O
populares e de populações negras e indígenas, por que se observa é que muitas vezes, o tempo que se
exemplo. Para Falcão, a política de preservação demora para a notificação chegar aos endereçados
adotada “reduziu o Brasil a tal ponto que o era bastante extenso. Tal questão se resolveu
patrimônio histórico virou sinônimo de igrejas muitas vezes pedindo o auxílio de pessoas residentes
barrocas, palácios e casas-grandes” 12 . Além do na cidade que possuíam algum contato com o
Barroco, o patrimônio selecionado para preservação Instituto. Percebe-se que o interesse em preservar

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 21


bens na cidade de Campos parte de dentro da moradores locais, salvo algumas exceções.
Instituição, sem muito envolvimento dos

Tabela 1 - Processos abertos no IPHAN nos anos de 1930,


referentes a imóveis em Campos dos Goytacazes

Ano do
Imóvel Início Descrição
tombamento

Solar Século XIX, arquitetura civil, Livro Belas Artes.


1 1938 1940
dos Airizes Pedido interno.
Solar Século XVII, arquitetura civil, Belas Artes e Histórico. Pedido
2 1938 1946
do Colégio interno.
Solar de Século XIX, arquitetura civil, Livro Belas Artes e Histórico.
3 1938 1946
Santo Antônio Pedido interno.
Capela de N. Sra do Rosário Século XVII, arquitetura religiosa, Livro Belas Artes. Pedido
4 1939 1942
do Visconde interno.
Século XVII, arquitetura civil, Livro Belas Artes. Pedido
5 Solar do Visconde* 1939 1945
externo.

* Imóvel inexistente, destruído pela ação do tempo.


Fonte: Arquivo Noronha Santos, IPHAN.

A demora na finalização do processo pode ruas mais amplas, a exemplo das grandes cidades.
representar as dificuldades que o IPHAN enfrentava Demonstrava-se alívio no fato de velhos e grandes
em seu funcionamento inicial. As ações deveriam casarões que ocupavam o centro da cidade estarem
ser rápidas para compensar a ausência anterior de desaparecendo: “Sobrados masthodonticos, prédios
um órgão de preservação — nascido atrasado em altos, beiras de telha ostentando ainda por cima os
relação a muitos países — mas os recursos, de diversa clássicos sótãos reflectindo um tempo colonial que já
natureza, eram escassos. não deve sobreviver. Felizmente tudo passou. E
Nos processos, revela-se também a estrutura do Campos se moderniza”14.
Instituto à época. As ações se davam de forma bem Os campistas não estavam alheios ao advento do
mais simples que nos dias atuais, e estavam bastante Estado Novo, tanto que a passagem do presidente
centradas em seus dirigentes e nos poucos Getúlio Vargas pelo município foi motivo de grande
funcionários. Nos processos a partir dos anos de 1970 entusiasmo. Pode-se dizer que a cidade também
aparecem informações muito mais detalhadas, as buscava se apresentar de forma nova. As
justificativas para o pedido de tombamento são mais construções, em número cada vez crescente, e tudo
explicitadas e detalhadas. o que contribuísse para dar novos ares ao espaço
Para fazer um contraponto, é interessante urbano eram vistos com bons olhos. As edificações
observar a realidade da cidade de Campos neste em estilo art déco, características deste período
momento de surgimento do IPHAN e de início das brasileiro, começaram a ocupar o centro de Campos.
ações de preservação. No ano de 1936, quando Constantemente, nos jornais, aparecia uma
começa a se esboçar o que viria a ser o IPHAN, preocupação com a estética do espaço: iluminação,
informações obtidas na imprensa campista revelam limpeza, estado dos parques e jardins, ruas arejadas
uma preocupação constante com o progresso urbano e construções modernas. As transformações
da cidade. As grandes propriedades dentro do iniciadas na virada do século XIX para o XX,
perímetro urbano eram em número cada vez menor, seguindo os ideais da modernidade, eram cada vez
pois estavam sendo divididas para dar lugar a novas mais necessárias e neste período não seria diferente.
construções que vinham atender as necessidades de Em 1937 dá-se prosseguimento a estas diretrizes,
uma cidade que trilhava “a senda do progresso”. Por a municipalidade tinha a intenção de remodelar o
outro lado, a cidade também passava a contar com espaço urbano. Argumentava-se na época:

22 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


“A cidade conserva ainda hoje aspectos do tempo do Colégio e do Solar de Santo Antônio, pois as mesmas
de Campos colonial. E não é justo que esses não estavam chegando ao seu destino. Nestes
aspectos, existentes há cem annos, continuem imóveis não se percebe uma intenção de seus
afrontando a esthetica urbana e collocando proprietários de reconhecer seus bens como
Campos ao lado das cidades que ainda não se monumento nacional. No caso do Solar de Santo
levantaram para o avanço do progresso” . 15
Antônio há uma troca de informações com um
descendente dos antigos proprietários, já que neste
Existia um certo “movimento” em prol dos prédio estava funcionando o Asilo do Carmo,
melhoramentos e, ao que tudo indica, o início dos ocupação que tem até hoje, mas este não residia mais
trabalhos do IPHAN, em fins do ano, não chamavam na cidade de Campos.
muita atenção e nem sequer foram mencionados, Em relação à Capela de N. Sra. do Rosário do
assim como qualquer outro assunto a este Visconde e ao Solar do Visconde, mesmo não sendo
relacionado — como a preservação do patrimônio e registrados contatos anteriores do proprietário com
sobre imóveis enquanto tal. Isto, pelo menos, neste a Instituição, algumas correspondências sobre a
primeiro momento e através da imprensa. Do Capela apontam que este já reconhecia seu imóvel
mesmo modo, a opinião expressa nos periódicos como patrimônio. O Solar do Visconde foi o único
consultados revelava o estilo colonial de arquitetura bem inscrito como pedido voluntário, embora o
como um sinal a ser apagado. Muito distante, conteúdo do processo não forneça maiores detalhes
portanto, da consagração deste estilo como autêntica sobre isto, o registro no respectivo Livro do Tombo
arquitetura nacional, digna de preservação. aponta tal caráter.
Como regra, as discussões provavelmente O que vale ressaltar nestes casos é que o fato de
passavam por restrito número de atores e ficava pessoas estarem ligadas ou em contato com a
reservada a determinados círculos. Como afirmava Instituição, seja com demandas de preservação ou
uma nota intitulada “O sr. Getúlio Vargas e os com simples fornecimento de informações serviu
intellectuais”, em nenhum outro governo, estes e os para agilizar tais ações. Embora as decisões finais
artistas “encontraram igual interesse pela sua estivessem restritas aos pareceres técnicos do IPHAN,
existência, igual comprehensão da sua importância a aproximação de pessoas com entrada neste campo
como constructores dos destinos culturaes de um de discussão e com possibilidades de argumentar
povo” 16 . E, embora nos jornais estes não se dentro dos referenciais utilizados pelo Instituto
manifestassem, pelo menos um destes intelectuais contribuía para um resultado positivo, isto é, o
se fazia presente nestes meandros. tombamento do imóvel. Percebe-se uma
Alberto Frederico de Moraes Lamego, importante diferenciação nas ações, aparecendo pessoas
intelectual campista, é um exemplo desta realidade. envolvidas com a questão da preservação e, por outro
Ao mesmo tempo em que contribuía com artigos para lado, pessoas alheias a tal prática.
a Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Passado este rito de consagração, onde um imóvel
Nacional, trocava informações sobre o patrimônio torna-se portador de uma aura especial, sendo
campista, particularmente sobre sua propriedade, considerado parte da própria identidade nacional,
o Solar dos Airizes, primeiro imóvel a ser tombado estes imóveis deveriam ser preservados, perpetuados
em Campos. Quando a notificação sobre o para as gerações futuras. Neste texto não cabem todos
tombamento chegou em suas mãos tal assunto já os acontecimentos e ações pelos quais passaram estes
havia sido tratado entre estes, como revela a edifícios, mas tem-se claro que na maioria das vezes,
correspondência trocada entre ele e o diretor do sua boa conservação não está garantida só com o
IPHAN, Rodrigo M. F. Andrade. Inclui-se nestas título de bem tombado. A ação do tempo
informações a necessidade de reformas no imóvel naturalmente afetou a todos os imóveis, uns mais
para as quais contava-se com auxílio financeiro da outros menos, dependendo dos cuidados recebidos ao
Instituição; fato realizado posteriormente. longo do tempo e das circunstâncias de uso. Grandes
O mesmo Alberto Lamego foi o encarregado de períodos de desocupação de alguns contribuíram
encaminhar as notificações aos proprietários do Solar ainda mais para a degradação física.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 23


No momento atual pode-se descrever valorizado. É certo que a realidade local se
sumariamente o estado destes bens: o Solar dos apresentava de forma distinta. Como foi visto, as
Airizes, após anos, em avançado processo de discussões sobre o espaço urbano campista estavam
degradação física, prestes a ruir, começa a receber centradas na busca de modernização da cidade, sem
alguns reparos – desconhecendo-se a existência de muita preocupação com questões de preservação do
algum projeto para sua utilização. O Solar do patrimônio. Tais questões estavam restritas a certos
Visconde desapareceu com a ação do tempo, sem que atores intelectualizados, iniciados no assunto ou
restassem registros sobre o fato. A Capela N. Sra. do relacionados de alguma forma aos imóveis. A
Rosário do Visconde passou à posse do governo tomada de decisão final ficava circunscrita aos meios
municipal, para que este pudesse fazer investimentos técnicos do Instituto, o que ocorre ainda hoje.
para garantir sua integridade física. É também com Apesar de todas as transformações ocorridas
verbas do município que algumas melhorias têm dentro da Instituição com uma certa descentra-
sido feitas na estrutura do Solar de Santo Antônio, lização das práticas e o surgimento de novas vozes
ainda funcionando o asilo para idosos. O Solar do discutindo a questão do patrimônio, as definições de
Colégio há algum tempo passou às mãos do governo patrimônio levadas a cabo nos anos de 1930
estadual, abrigando atualmente uma instituição influencia até os dias atuais as tomadas de decisões.
municipal, o Arquivo Público. Estes investimentos Ao mesmo tempo percebe-se uma grande ausência
foram feitos somente em períodos recentes, a partir da sociedade, em geral, no envolvimento com a
da reivindicação de alguns setores e visto a situação questão do patrimônio. Como se disse, apesar da
de emergência, resultado de vários anos de descuido. ampliação de alguns setores tal participação é ainda
Deixando de lado todas as restrições que o ato de muito incipiente e a tipologia dos bens selecionados
preservar enfrenta, seja de caráter técnico, ainda exclui a representação de diversos setores.
econômico, dentre outros, pode-se fazer algumas Tal fato leva ao questionamento da função
reflexões sobre a noção de patrimônio enquanto agregadora do patrimônio, considerando-se que
participante no fortalecimento da identidade somente alguns setores específicos incorporam o
nacional. discurso patrimonialista e dele participa. Mesmo com
Os processos em Campos, dos anos de 1930, todo avanço feito, ainda se faz necessário alcançar
refletem as diretrizes do Instituto do Patrimônio mecanismos que possibilitem uma maior inserção
Histórico e Artístico Nacional em seus primeiros anos social nos processos de atribuição de valores e uma
de funcionamento. São imóveis religiosos ou grandes real identificação com os bens selecionados para
casarões que correspondem ao estilo arquitetônico preservação.

Notas

*
Este artigo apresenta parte das reflexões contidas na dissertação Andrade, importante escritor brasileiro, em que a concepção de
de mestrado “O tombamento como prática social: a atuação do patrimônio pode ser considerada deveras avançada para seu
IPHAN em Campos dos Goytacazes”, defendida no ano de 2003, no tempo. Era uma noção que se aproximava da concepção
Programa de Mestrado em Políticas Sociais / Universidade antropológica de cultura e uma preocupação de abarcar valores
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). mais populares juntamente com os mais eruditos. De qualquer
1
Bourdin, Alain. Patrimônio: passado e presente. Rio de Janeiro: forma, o contexto, sobretudo político, não era favorável à criação
IUPERJ/SBI, 1987. p.3 de uma instituição nestes moldes, fato que o próprio Mario de
2
Fonseca, Mª Cecília Londres. O Patrimônio em Processo: trajetória Andrade em algum momento reconheceu.
da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: 7
http://www.iphan.gov.br/legislac/legisla.htm
UFRJ/IPHAN, 1997. p.31 8
Carvalho, José dos Santos. Tombamento. In: Manual de Direito
3
D’Araujo, Mª Celina. Apresentação. In: D’Araújo, Mª Celina Administrativo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997. pp.
(org.). As instituições brasileiras na Era Vargas. Rio de Janeiro: 435,441,442
Ed. UERJ/FGV, 1999. p.1 9
“O vocábulo tombamento é de origem antiga e provém do verbo
4
Oliveira, Lucia Lippi. Vargas, os intelectuais e as raízes da ordem. tombar, que no direito português tem o sentido de inventariar,
In: D’Araújo, Mª Celina (org.). As instituições brasileiras na Era registrar ou inscrever bens. O inventário dos bens era feito no
Vargas. Rio de Janeiro: Ed. UERJ/FGV, 1999. p.84 Livro do Tombo, o qual assim se denominava porque guardado na
5
Cavalcanti, Lauro. Modernistas, arquitetura e patrimônio. In: Torre do Tombo. Neste local ficam depositados os arquivos de
D’Araújo, Mª Celina (org.). As instituições brasileiras na Era Portugal. Por extensão semântica, o termo passou a representar
Vargas. Rio de Janeiro: Ed. UERJ/FGV, 1999. p.182 todo registro indicativo de bens sob a proteção especial do Poder
6
Antes deste, havia sido formulado um anteprojeto por Mário de Público” Carvalho, José dos Santos. Op. Cit. p.435

24 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


10
Rodrigues, Marly. De quem é o Patrimônio? Um olhar sobre a sinônimo de igrejas barrocas, palácios e casas-grandes. Folha de
prática preservacionista em São Paulo. In: Revista do Patrimônio São Paulo. São Paulo, 04 mai. 2000
Histórico e Artístico Nacional. Nª 24 – Cidadania, 1996. p.196 13
Rodrigues, Marly. Op. Cit. p.195
11
Miceli, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia 14
Jornal Monitor Campista, Campos dos Goytacazes, 16/06/1936.
das Letras, 2001. p.360 15
Idem, 14/03/1937
12
Falcão, Joaquim. A redução do Brasil: patrimônio histórico virou 16
Idem, 06/08/1937)

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 25


Centro de Documentação e Pesquisa em História:
possibilidades de estágio

Sérgio Daniel Nasser

Graduando em História pela Universidade Federal de Uberlândia e estagiário do CDHIS

Resumo Abstract
Este é um relato que visa socializar as experiências This is a report about the experiences of my
realizadas durante o meu período de estágio no training period at CDHIS – Centro de
CDHIS – Centro de Documentação e Pesquisa em Documentação e Pesquisa em História. A reflection
História – refletindo sobre a importância desse about the importance of this kind of
tipo de estágio na formação do estudante de apprenticeship on the continuing studies of a
História. student of history is presented.
Palavras chave: Experiência, Estágio, Formação. Keywords: Experience, Training Period,
Continuing Studies.

Este é um relato da minha experiência de estágio para o planejamento de projetos mais longos,
no Centro de Documentação e Pesquisa em História favorecendo a formação do estudante e o serviço
– CDHIS - da Universidade Federal de Uberlândia. prestado.
Relatar essa experiência é muito instigante, pois Neste sentido, os últimos dois anos de estágio
ainda tenho um contato muito forte com o Centro de foram os mais importantes, pois participei de
Documentação, seja através de projetos de extensão maneira intensa das diversas atividades oferecidas
que estão em andamento ou pelas pesquisas do curso pelo CDHIS. Além de estagiar nos setores de
de História. Preservação e Restauro, Arquivo e Publicações, pude
Meu primeiro contato com o CDHIS foi logo no também participar de projetos de extensão como o
início do curso. Entre as comemorações da semana Encontro dos Professores de História do Triângulo
do calouro em 2001, o Centro de Documentação foi Mineiro, o projeto de construção de um livro didático
apresentado aos alunos ingressantes, possibilitando sobre a História local Tempo Espaço Vivências:
conhecer superficial-mente suas possibilidades de Construindo História(s) de Uberlândia, Exposições e
pesquisa e estágio. outros eventos promovidos pelo órgão.
Assim, logo no primeiro semestre no curso de A experiência de trabalhar nos diversos setores
História, ingressei como estagiário voluntário no permitiu-me conhecer de maneira ampla as
CDHIS, trabalhando por quatro meses. Voltei ao possibilidades que oferece o Centro de Documentação,
CDHIS no primeiro semestre de 2003, dessa vez como tanto para o estágio quanto para a pesquisa. Essa
monitor, vindo a tornar-me estagiário remunerado experiência foi (tem sido) muito enriquecedora para
no semestre seguinte. minha formação enquanto historiador, podendo ser
O estágio remunerado é importante por dois ampliada para contemplar mais alunos dos cursos
motivos principais: primeiro, possibilita que alunos de História que, infelizmente, muitas vezes, se
menos favorecidos permaneçam na Universidade, formam sem ao menos conhecer o local.
conseguindo arcar com o mínimo possível das A vivência no CDHIS, atrelada às discussões sobre
despesas para sua formação; segundo, porque cria arquivo, restauro e preservação, ajudaram-me a
um vínculo com o local de estágio, fato que contribui compreender a importância do Patrimônio Cultural,

26 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


seja material ou imaterial, na construção da sujeira, era feita uma limpeza com pó de borracha
memória social: e, logo em seguida, a colagem dos papéis rasgados
com cola especial e papel japonês.
A importância da análise e do conhecimento do Esse primeiro contato com o CDHIS foi importante
Patrimônio Cultural para o exercício da cidadania para conhecer as outras possibilidades de estágios
é a ampliação do sentido de comunidade, a oferecidas.
percepção do valor e do significado das
experiências e vivências compartilhadas, a
consciência da participação de cada indivíduo no Setor de Publicações
processo cultural e político de sua coletividade, o
domínio dos códigos sociais vigentes, o diálogo O Setor de Publicações responsabiliza-se por todas
com base em uma linguagem comum, as publicações realizadas no Centro de
compreendida por todos, a responsabilidade por Documentação e Pesquisa em História. Além dos
uma herança cultural que é privilégio de todos 1 . catálogos, inventários e guias utilizados para facilitar
a escolha dos documentos pelo pesquisador, o setor
O Centro de Documentação poderia ser mais ainda cuida da edição de três revistas: Cadernos de
utilizado pelos próprios professores dos cursos de Pesquisa do CDHIS, Cadernos de História e Caderno
História, estimulando pesquisas e outras Espaço Feminino.
atividades.2Atualmente há um esforço muito grande Minha experiência nesse setor se deu por meio de
da equipe do CDHIS para que seus serviços – várias atividades ligadas ao intercâmbio das
pesquisas, projetos de extensão, estágios, publicações, revistas, discussões sobre suas políticas, linha
guarda e preservação de documentos – sejam editorial, reelaboração dos regimentos internos e
ampliados. Espero que os novos rumos que vêm mesmo no processo de edição dos seus volumes de
tomando os cursos de História façam com que o 2003-2005, em especial dos Cadernos de Pesquisa
Instituto de História da UFU inclua o Centro de do CDHIS e Cadernos de História.
Documentação e Pesquisa como parte integrante e O estágio consistia na participação das reuniões
ativa da formação do professor/historiador. dos Conselhos Editoriais, nas quais se discutia várias
questões além dos artigos a serem publicados,
alternativas de financiamento, maneiras de
Setor de Restauro distribuição das revistas entre outros.
Aprendi técnicas editoriais que permeiam os
Minha experiência no Setor de Preservação e bastidores de uma revista, além de organizar os seus
Restauro foi no início de 2001. Na época, poucos arquivos e correspondências. Não imaginava a
estudantes estagiavam no local, não havia uma complexidade necessária para a construção de uma
política consistente de estágios. Muitos dos edição, ampliou-se, assim, minha visão sobre esta
estudantes começavam os trabalhos e paravam nos atividade, da qual só conhecia o resultado final.
primeiros meses, deixando os serviços e aprendizados Normalmente o aluno não tem noção da
pela metade. complexidade das práticas editoriais que
Permaneci por quatro meses nesse Setor, movimentam uma revista ou jornal, fato que
preservando e restaurando documentos danificados. dificulta uma análise crítica sobre o assunto.
O Centro conta com um Laboratório de Restauro
destinado a esse trabalho. Lá o estagiário tem
contato com o documento, instrumento de trabalho Setor de Arquivo
do historiador, avaliando seu grau de preservação e
as possibilidades técnicas de restaurá-lo. O Setor de Arquivo tem como principal meta
Durante esse período restaurei os documentos da organizar as coleções que compõem o acervo do
Coleção Milton Porto, na sua maioria CDHIS, para em seguida disponibilizá-las ao
correspondências sujas e rasgadas. No caso da pesquisador.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 27


É o Setor de Arquivo que seleciona os documentos Educação Básica da UFU, exposições no terceiro piso
que irão para o setor de Preservação e Restauro, que do bloco 1Q e outros projetos como a produção de um
depois de tratados voltam para o Arquivo, onde livro didático sobre a história da cidade de
começarão a ser catalogados e organizados para que Uberlândia.
sejam disponibilizados ao pesquisador. Minha experiência mais intensa, com a qual mais
Foi estagiando nesse setor que participei junto me identifiquei, foi a dos trabalhos de extensão. A
com funcionários e outros estagiários da catalogação própria idéia da importância da extensão para a
dos documentos do Laboratório de Ensino e formação do estudante – compreensão da realidade
Aprendizagem em História – LEAH e dos Encontros extra-sala de aula, diálogo com a sociedade,
dos Professores de História do Triângulo Mineiro. comprometimento político – só aconteceu quando
A primeira etapa do trabalho consistiu em passei a participar das atividades desse setor 3. Hoje
conhecer a documentação, selecionar os tipos de não consigo compreender minha formação na
documentos, criando séries de classificação como: Universidade sem a contribuição destes trabalhos.
projetos, correspondências enviadas, A primeira dessas experiências foi a participação
correspondências recebidas, trabalhos apresentados, na comissão organizadora dos V e VI Encontro dos
cartazes, fichas de inscrição, entre outros. Uma Professores de História do Triângulo Mineiro. Esse
próxima etapa consistia na numeração de cada um Encontro acontece desde 1999, tendo como objetivo
desses documentos inserindo-os em suas séries realizar discussões sobre educação e História,
correspondentes. A coleção do “Encontro dos problematizando a prática de atuação diária do
Professores de História do Triângulo Mineiro” é professor de História.
aberta, com a inserção de documentos a cada novo A participação na comissão organizadora
Encontro. consistia em discutir as temáticas dos encontros,
Outro trabalho meu realizado no Setor de sugeridas pelos próprios professores nas plenárias dos
Arquivo foi identificar as divisões do Arquivo Encontros anteriores, participar da divulgação do
Histórico e Bibliográfico. As salas, armários, evento, recolher e discutir os trabalhos apresentados,
estantes e arquivos suspensos foram numerados de enfim, participar de todas as etapas necessárias para
acordo com os nomes das coleções que abrigam, para a concretização do evento.
facilitar o trabalho do funcionário ou estagiário Nessa experiência tive contato com professores
responsável pelo atendimento ao pesquisador. que já atuam nas redes pública e privada de ensino,
A experiência nesse setor é muito importante seja na comissão organizadora ou no próprio
para a formação do profissional em História, pois Encontro, aprendendo sobre o ofício do professor de
ajuda a despertar a consciência para a preservação História, suas dificuldades e possibilidades.
de documentos, matéria-prima fundamental para o Outra atuação em extensão no CDHIS foi no
trabalho de pesquisa do historiador. planejamento e montagem de exposições como a do
Mineirão: Memória e Identidade, realizada no final
de 2004 e início de 2005, por um grupo de
Setor de Extensão estudantes, professores, técnicos e outros
historiadores externos à UFU. “Mineirão” é o nome
O setor mais novo do CDHIS é a extensão, dado ao bloco 1Q, do Campus Santa Mônica da UFU,
intensificada nos últimos anos pela política de apoio que atualmente comporta o CDHIS, o Museu de
oferecida pela PROEX – Pró-Reitoria de Extensão – Minerais e Rochas do Instituto de Geografia, além de
que tem financiado projetos na Universidade Federal laboratórios da Química. O “Mineirão” foi o primeiro
de Uberlândia, em diversas áreas. Com esse apoio, prédio da Universidade Federal de Uberlândia, no
mas também, buscando outras alternativas, o início da década de 1960, comportando na época os
CDHIS tem realizado o Encontro dos Professores de cursos de Engenharia Mecânica e Engenharia
História do Triângulo Mineiro, em parceria com o Química.
Centro de Estudos e Projetos Educacionais – CEMEPE A exposição visava reconstruir a história do
-, Secretaria Municipal de Educação e Escola de prédio e, conseqüentemente, da Universidade

28 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Federal de Uberlândia, recuperando e reagrupando produto do projeto de extensão intitulado Os sujeitos
fotografias antigas e atuais, registros oficiais ou não sociais e seus lugares. Construindo uma História de
e relatos de pessoas que vivenciaram e vivenciam Uberlândia, financiado com recursos públicos pela
experiências no local, readaptando o prédio PROEX/UFU, através do PEIC/2003, programa de
conforme as práticas e necessidades cotidianas dos extensão que visa a interação entre a Universidade
cursos e órgãos que abriga desde a sua construção. Federal de Uberlândia e a comunidade.
Uma parte importante da exposição foi a O livro foi idealizado pela equipe do projeto
produção de um documentário de vinte minutos considerando a deficiência de recursos didáticos para
sobre o prédio, no qual procuramos, por meio de o ensino da história na cidade de Uberlândia.
relatos e imagens, recuperar o cotidiano das pessoas Realizado entre os meses de outubro de 2003 e
no local, as atividades de ensino e pesquisa e as janeiro de 2004, contou com a participação de
formas arquitetônicas do “Mineirão”. No decorrer alunos da graduação de história e artes plásticas,
do processo de produção do documentário mestrandos em história, professores e funcionários
descobrimos que o prédio possui esse apelido pela técnico-administrativos da UFU.
semelhança de sua extensa sala superior com o O trabalho produzido apresenta uma leitura
estádio homônimo de Belo Horizonte. historiográfica democrática, incorporando no texto
Participei também da produção de outro sujeitos excluídos das representações predominantes
documentário sobre D.Olívia Calábria, militante sobre o processo de construção da cidade. É uma
feminista e comunista que atuou em Uberlândia ao leitura da participação popular na realização da
longo do século XX. O documentário foi apresentado história, que se contrapõe às abordagens
juntamente com uma exposição em sua homenagem historiográficas tradicionais, cujas preocupações
realizada em março de 2005. No documentário, básicas eram a “Verdade” e a “Objetividade” do
intitulado Olívia Calábria: um perfil de uma mulher conhecimento social, comprováveis pelos
militante, procuramos recuperar alguns momentos documentos oficiais produzidos no âmbito das
de D.Olívia Calábria, através de imagens instituições administrativas.
arquivadas pela PROEX e produzidas por integrantes A construção de uma versão sobre a história local
do NEGUEM. tendo como elemento norteador a experiência de
A produção de documentários foi muito múltiplos sujeitos marginalizados teve como fim dar
importante nessa passagem pelo CDHIS. Estes visibilidade aos atos cotidianos realizados por eles,
servirão como documentos que poderão ser utilizados identificando na história da cidade o lugar que de
em futuras pesquisas. Além disso, os contatos com fato lhes pertence.
setores da Universidade como a TV Universitária A pesquisa teve como foco as escolas públicas de
revelaram possibilidades de parcerias que através nível fundamental, uma vez que é o espaço, por
de projetos pré-agendados podem contar com o apoio excelência, de formação do cidadão que tem acesso à
desse setor, seja para produção de outros materiais, escola formal. A expectativa era contribuir para a
ou para cobertura e divulgação dos eventos inserção do aluno na sociedade a que pertence,
realizados. fazendo-o reconhecer-se nas páginas da história que
Atualmente o CDHIS, junto com o Centro ajuda a compor.
Acadêmico de História, Coordenação dos Cursos de A metodologia do trabalho procurou associar
História, Instituto de História e TV Universitária investigação empírica, estudos e reflexões teóricas,
fazem em conjunto o projeto Profissão Historiador: realizados na UFU para elaboração e confecção do
olhares sobre a cidade, que disponibiliza estrutura livro, envolvendo participantes nas diversas
para que estudantes de História e de outros cursos modalidades de atividades. Todos engajaram-se no
construam curtas-metragem para serem programa de estudos e criação, o que implicou em
apresentados durante a semana de História. sensível melhoria da qualificação profissional e
Outro projeto de extensão do qual participei neste acadêmica.
período foi a elaboração do livro TEMPO ESPAÇO O programa de atividades do projeto constituiu-
VIVÊNCIAS: Construindo história(s) de Uberlândia, se primeiramente em levantamento de dados sobre

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 29


a história local nas pesquisas já realizadas sobre a pesquisadores do projeto, pois percebemos que o
cidade (trabalhos científicos de graduação e pós- trabalho que realizávamos era muito importante e
graduação na área das ciências humanas), por meio esperado pelos professores dos níveis fundamental e
do qual percebemos que há uma distância muito médio.
grande entre o que está sendo produzido na Feitos o levantamento de dados nos trabalhos
Universidade e o que está sendo transmitido nas acadêmicos, a discussão dos textos teóricos e o
séries iniciais das escolas públicas. seminário com a comunidade docente dos níveis
Assuntos como a especulação imobiliária e o fundamental e médio, o trabalho encaminhou-se
processo de formação dos bairros na cidade de para sua fase final: a elaboração de textos
Uberlândia, muito discutidos nos trabalhos historiográficos ao nível do ensino fundamental,
acadêmicos, pouco ou nunca chegam às aulas de associando textos escritos e imagens.
história do ensino fundamental. Essas constatações Na construção final dos textos procuramos ser
nos fazem refletir sobre o distanciamento entre coerentes com o material levantado, as discussões
Universidade/Comunidade muito comum nos dias realizadas e os objetivos do projeto. Assim, buscamos
atuais. conferir visibilidade à participação dos sujeitos
Com o projeto procuramos ao menos dar um passo marginalizados pelas versões oficiais na construção
contrário a esse movimento que distancia da história da cidade, especialmente os pobres, os
Universidade/Comunidade, a fim de recuperar negros e as mulheres; traduzir em linguagem
talvez o sentido de ser da Universidade, ou seja, seu acessível às crianças e aos jovens do ensino
diálogo com os problemas da sociedade e a fundamental representações sobre a expansão
conseqüente busca de reflexões e soluções. urbana de Uberlândia que se contrapõem a versões
Conseguir transportar o conhecimento lineares vinculadas à idéia de progresso; revelar a
historiográfico produzido nas academias para as existência de espaços de conflito entre os segmentos
escolas é um caminho importante para a sociais – no centro e na periferia – em função de
democratização do conhecimento, o sentimento de projetos diferenciados de construção da cidade;
inclusão do aluno enquanto sujeito participante da tornar conhecida a produção historiográfica sobre a
história e a conseqüente possibilidade da construção cidade de Uberlândia realizada pelos programas de
de uma sociedade mais crítica e atuante. pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia;
A segunda parte das atividades do projeto de levar os estudantes do Ensino Fundamental a se
construção do livro didático foi a realização de reconhecerem como sujeitos da história local,
discussões articulando teorias historiográficas e cidadãos responsáveis pelo espaço e relações que
representações sobre a cidade de Uberlândia. Após a constituem a cidade de Uberlândia; subsidiar os
discussão teórica desses textos foi realizado um professores do ensino fundamental com textos
seminário com a comunidade escolar dos níveis didáticos sobre a história local.
fundamental e médio para colher subsídios para a Em 2004, após ter sua publicação rejeitada pelos
formatação do livro. Nesse processo, os professores pareceres da EDUFU – Editora da Universidade
puderam expor seus anseios e suas dificuldades nas Federal de Uberlândia – começou-se um processo de
aulas de História local. Muitos afirmavam que devido alteração do livro, visando contemplar algumas
à falta de material didático sobre a História de questões. Com novo financiamento da PROEX/MEC,
Uberlândia, recorriam com freqüência às listas o projeto continua, realizando oficinas com
telefônicas, a fim de recolher dados para ministrar professores da rede pública e estudantes de História,
suas aulas. na busca da construção coletiva do livro didático,
O seminário foi muito importante para a que tem sido muito esperado pelos professores das
realização final do trabalho, uma vez que o grupo redes pública e privada. O projeto tem como
teve contato direto com os professores que utilizarão perspectiva também a elaboração do Livro do
o material elaborado, anotando suas necessidades e Professor, com sugestões de exercícios sobre os
procurando supri-las durante a construção do livro. conteúdos trabalhados no livro texto.
Esse momento foi muito instigante para nós Como já enfatizei, participar desses projetos de

30 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


extensão foi muito importante para minha constituíram excelentes exemplos de inércia,
formação, pois as diversas experiências acima valorizados de tempos a tempos com a dedicação
relatadas contribuíram para a compreensão de que de poucos pesquisadores que, reconhecendo a
a Universidade não se resume às salas de aula ou às importância de seu acervo, lhes emprestaram
pesquisas de gabinete, possuindo várias outras efêmera vitalidade.
possibilidades de formação/atuação. As instituições culturais como arquivos, bibliotecas
e museus foram freqüentemente apontadas como
castelos, repletos de tesouros de valor inestimável,
Considerações Finais comparáveis todavia a templos sagrados
intocáveis e inatingíveis. 4

Atualmente o CDHIS tenta elaborar uma política


de estágios para receber um número cada vez maior Buscando uma identidade concreta, tem-se
de estudantes do curso de História. Já contamos com pensado atualmente o Centro de Documentação
estágios remunerados oferecidos pelo Centro, para como guarda da memória local e regional. Os espaços
os vários setores. para a manutenção e guarda do acervo, assim como
Os estagiários participam das reuniões, podendo o número de funcionários, são restritos, sendo
discutir e sugerir alternativas e prioridades do necessário estabelecer políticas bem definidas, para
CDHIS. Entre as últimas discussões tem-se pensado racionalizar a utilização dos poucos recursos
qual é o verdadeiro papel do CDHIS: disponíveis.
A continuidade da manutenção e ampliação das
Algumas instituições brasileiras, relegadas ao atividades do Centro de Documentação dependerá
abandono e descaso, permaneceram em tal estado do olhar que o Instituto de História terá sobre ele nos
de letargia que, durante longos anos, repetiram próximos anos, podendo torná-lo um espaço de
tarefas e atividades rotineiras, sem fazer intensa relação com o currículo dos formandos em
reconhecer o significado da própria existência. Os História, ou relagando-o ao espaço dos templos
arquivos públicos, com raras exceções, sagrados intocáveis e inatingíveis.

Notas

1
HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Patrimônio Cultural e 3
Um outro ponto que carece aos cursos de História e a
Cidadania. (Mimeo), p. 20. Universidade Federal de Uberlândia é a extensão, que
2
Alguns professores têm estimulado atividades de pesquisa no geralmente é descartada em nome do ensino e pesquisa.
CDHIS, principalmente nos primeiros períodos do curso. Essa 4
OLIVEIRA, Daíse Apparecida. Arquivo e Documento. In: Revista
prática deve aumentar nos próximos anos, pois os cursos de memória e ação cultural. Departamento do Patrimônio de
História estão passando por uma reformulação curricular, que História, São Paulo, 1991, p. 113.
pode vir a intensificar a relação alunos/ CDHIS.

Referências

HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Patrimônio Cultural e OLIVEIRA, Daíse Apparecida. Arquivo e Documento. In: Revista
Cidadania. (Mimeo). memória e ação cultural. Departamento do Patrimônio de
História, São Paulo, 1991.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 31


S E S S Ã O

Artigos
O De Clementia como Reflexo do Soberano Ideal*

Marilena Vizentin

Mestre em História pela FFLCH-USP (2001). Atualmente é Editora Assistente da Editora da Universidade de São Paulo

Resumo Abstract
Este artigo circunscreve o tratado político- This article brings out a discussion about the
filosófico De Clementia (séc. I d. C.) de Sêneca no political-philosophical agreement ‘De Clementia’
interior do gênero “espelho de príncipes”, (1 st a.D.) by Sêneca. It is considered as pertaining
pertencente à tradição helênica que se desenvolve to the genre “Espelho de príncipes”, which belongs
a partir do século V a. C. visando demonstrar o to the Hellenic tradition that emerged in the 5 th
ajustamento desse gênero ao projeto estóico de century b.C. The work aims at demonstrating the
estabelecimento de um novo modelo de governo adjustment of that genre to the stoic project of the
ideal que se aplique às condições políticas do início establishment of a new and ideal government
do Principado de Nero. Dessa forma, Sêneca model that could be applied to the political
buscaria, nas concepções políticas monárquicas conditions in the beginning of Nero’s Principality.
helênicas e neste gênero, uma forma de suplantar In that way, Sêneca would look for a way to
o modelo imperial da época de Augusto, oferecendo supplant the imperial model of Augusto’s time in
um retrato das virtudes necessárias ao the monarchic political Hellenic conceptions and
governante ideal (justiça, moderação e in this genre. According to his theory he would
clemência), segundo a sua teoria, a Nero. offer Nero a picture of the necessary virtues for
Palavras-Chave: Tratado Político-Filosófico De the ideal ruler i.e. justice, moderation and mercy.
Clementia, Governo Ideal, Virtudes de Justiça e Keywords: Agreement, Government, Genre -
Moderação Model

O objetivo deste artigo é mostrar como a imagem principais temas giravam em torno do poder, do bom
do governante ideal é construída a partir da governo e da própria relação dos filósofos com essas
utilização de um gênero conhecido como “tratados questões. Na época das monarquias helenísticas
sobre a realeza” ou ainda “espelhos de príncipe” 1 . (século IV a.C.), esse tipo de reflexão tomou especial
Para tanto, será apresentado um panorama do relevância, pois é nessa época que se dá a fusão da
surgimento desse gênero e de suas principais cultura grega com as práticas orientais, o que, na
características, de modo a reunir elementos que prática política, significava a incorporação da noção
permitam caracterizar o De Clementia – tratado de uma monarquia absoluta, cujo governante se
político-filosófico escrito em meados do primeiro configura como um rei divinizado. Fundamentando-
século por Sêneca e endereçado ao imperador Nero – se, portanto, “no personalismo individualista e no
como um de seus exemplares. Tendo, então, isso em universalismo cosmopolita”, essa nova concepção
vista, poderemos observar como, por meio desse transfere os vínculos que uniam o homem à polis,
recurso, Sêneca procura estabelecer um novo para os vínculos do homem à figura do monarca.
modelo de governo e um novo perfil para o príncipe Isso acabou gerando uma certa “crise de identidade”,
romano. que os filósofos das cidades, em especial os estóicos,
Os teóricos do pensamento político antigo sempre procuraram resolver “adequando os conhecimentos
estiveram preocupados com o problema da que detinham com relação ao governo das cidades
justificação do poder político e, em vista disso, seus às necessidades da realidade política que viviam” 2.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 35


Uma grande mudança se produziu na vida por meio dos mais diversos exemplos, como a sua
política depois da morte de Alexandre. Há um ação poderia vir em benefício daqueles cuja vontade
descontentamento generalizado em todo o império: lhe pertencia. Embora o termo “espelho”
na Europa, as cidades gregas ficam profundamente propriamente dito não apareça nos textos, os
chocadas diante da regulamentação do retorno dos inúmeros exemplos citados e a serem tomados como
banidos em outras épocas; em Atenas, preparava- tal mostram a matéria do que está sendo tratado.
se, inclusive, uma insurreição que deveria se Além de um instrumento de visão indireta, o
estender a todas as demais cidades; na Ásia, muitas espelho – e conseqüentemente, por aproximação, o
regiões continuavam insubmissas, enquanto a Índia espelho de príncipe – pode ser considerado também
estava praticamente perdida para os macedônios. A como um instrumento de conhecimento de si mesmo,
obra de Alexandre, enfim, revelou-se frágil e incerta, uma vez que permite ao homem a observação
ao mesmo tempo em que as tensões e os desacordos daquilo que ele realmente é e, portanto, do que ele
manifestavam-se no interior mesmo dos vencedores. deve fazer. Sócrates8 mesmo já dizia que o espelho,
Os chefes macedônios não tinham intenção alguma ao ser definido como um objeto de autoconhecimento,
de seguir com a fusão helenística proposta por deveria levar o homem a um aperfeiçoamento
Alexandre e este sequer conseguira estabelecer um moral, pois, ao perceber sua verdadeira aparência
sucessor digno dele e capaz de assumir as grandes física, o homem, ou deveria agir em conformidade
obrigações que se impunham ao poder macedônio com ela ou, então, compensar, no plano moral,
depois de 3233. Traduzindo, assim, o despertar dos aquilo que eventualmente lhe faltasse fisicamente.
antagonismos sociais em muitas cidades logo após a De toda forma, o espelho deveria comportar-se como
Guerra do Peloponeso, o século IV vê o ressurgimento um meio de conhecimento para aquele que nele se
da tirania, regime este que, aproveitando-se de um refletisse, seja do mundo exterior, seja de si mesmo.
contexto de crise, toma ilegalmente o poder iludindo Se, por um lado, o espelho é um instrumento de
a plebe com vantagens materiais e confiscando em aperfeiçoamento moral, por outro lado ele reflete
proveito próprio a totalidade da autoridade. não apenas a imagem da realidade a ser corrigida,
Preocupados, portanto, com o problema posto pela mas também a imagem ideal que torna possível a
generalização dos reis depois de Alexandre, o Grande, correção. Ou seja, projetando não somente o que é,
e diante da incapacidade das cidades gregas em mas igualmente o que pode vir a ser, o espelho pode,
enfrentar a grande crise social que as atingia, alguns nesse contexto, ser considerado também como um
teóricos como Xenofonte, Isócrates ou mesmo Platão modelo a ser seguido. Em alguns textos é o homem
“preconizam que a autoridade seja entregue às mãos virtuoso que serve de espelho-modelo para os outros,
de um só homem, que se revelaria ao mesmo tempo tal como Cipião, em Cícero, “ao apresentar o espelho
o mais sábio e eleito dos deuses e que, ao deter essa de sua vida aos cidadãos”9, ou mesmo no De Clementia,
autoridade por livre consentimento de seus súditos, em que Sêneca se dispõe ele próprio a servir de
viria a exercê-la para o bem de todos” 4 . Passam, “espelho” a Nero.
então, a aconselhar os seus governantes elaborando Expressão, portanto, das ambigüidades e dos
tratados sobre a boa gestão do Estado a fim de conflitos que perpassaram o período helenístico, e
direcionar as virtudes do bom soberano em favor da mesmo da discussão teórica que se desenvolveu nesse
cidade 5. período sobre a monarquia, os espelhos de príncipe
Mais comumente chamados de tratados sobre a procuravam definir as qualidades do soberano e de
realeza, essas obras também ficaram conhecidas pelo seu poder real, prescrevendo a monarquia como
nome de “espelhos de príncipes” . Tal nomenclatura,
6
modelo político de governo ideal. O soberano neles
tomada ao objeto mesmo, o espelho, aproximava, de descrito era dotado de poderes ilimitados, era,
certa forma, os objetivos de ambos, pois enquanto os verdadeiramente, um rei-providencial, reunindo as
espelhos têm como finalidade “permitir ao homem melhores qualidades militares, políticas, intelectuais
observar, ainda que indiretamente, aquilo que não e morais. Ele era ainda associado a virtudes como “a
pode ser observado diretamente” 7 , os espelhos de justiça (no campo político), a moderação e a
príncipe tinham como fim mostrar ao governante, clemência” 10 , as quais deveriam estar ligadas,

36 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


obrigatoriamente, ao conhecimento da ciência do como uma predisposição mesma do homem em
bem e do mal, conditio sine qua non para o exercício realizar grandes feitos: sem ela não seria possível a
do poder, segundo os primeiros estóicos. A justiça paz, a coesão social, ou o cumprimento das leis da
era o princípio diretor de todas as ações e da virtude natureza. De sua prática, portanto, adviria a
humana e sua função era harmonizar a convivência harmonia com o poder, daí a insistência nos
de diferentes povos; a moderação deveria ser exemplos que o rei virtuoso deveria seguir para
demonstrada em relação a todos os homens, de modo melhor proceder.
a também harmonizar a convivência; e a clemência O De Clementia, por sua vez, apresenta uma teoria
asseguraria a unidade do Estado e a boa fama do rei do poder imperial inspirada nesses ensinamentos,
em suas decisões. O soberano receberia sua configurando-se claramente, pois, como um “espelho
autoridade e direção sobre os súditos, no entanto, de príncipe” 12: Logo no início do tratado, Sêneca
como obséquio de uma instância superior, os deuses, convida Nero a uma introspecção, de modo que possa
aos quais deve imitar para poder exercer um encontrar nele, Sêneca, o reflexo do sábio, a quem o
governo justo. bom governante deve imitar. Inspirado então nessa
Sendo a realeza, nesse sentido, uma instituição visão, Nero perceberá não apenas a realidade que
de direito divino, o monarca, finalmente, seria a ele conhece, qual seja, a de que ele tem um poder
imagem de Deus governando o mundo, aquele que imenso, mas sobretudo o que ele poderá se tornar
realiza sua missão em conformidade com os desígnios dependendo de seu comportamento: um verdadeiro
divinos. Portanto, a justificativa do poder rei ou um tirano. Pois o verdadeiro rei é aquele que
monárquico e, conseqüentemente, sua legitimidade, detém a autoridade pelo livre consentimento de seus
vinha preludida em um horizonte súditos, e seus interesses privados nunca têm lugar
extraconstitucional, relacionada com a especial acima dos públicos, enquanto o tirano não passa de
natureza do rei e suas virtudes morais, isto é, mais um usurpador, que toma o governo da cidade por
do que a via institucional do poder delegado a ele, meio de subterfúgios ou mesmo à força, colocando
eram as suas características pessoais que realmente seu privilégio acima de qualquer coisa. Aqui,
contavam. portanto, a relação entre o espelho e a imagem
Se, dessa forma, na teoria do estoicismo a personaliza-se, pois se transforma tanto na vida real
sabedoria correspondia ao poder divino, na prática, como na idealizada, isto é, na relação existente entre
a verdadeira sabedoria também deveria coincidir preceptor e aluno: é Sêneca quem vai desempenhar
com a divina, e o governante, tido aqui como um o papel de espelho para mostrar a Nero como ele
homem sábio, haveria de desejar aquilo que “Deus” haveria “de vir para a maior de todas as satisfações”
ou o destino, em sua própria sabedoria, houvesse (De Clem. I, 1, 1).
disposto para ele. A dialética que se coloca aqui, enfim, Na seqüência do tratado, Sêneca dedica-se às
em relação à liberdade, um dos atributos vantagens pessoais que Nero retira do uso da
fundamentais da cidade, e a soberania do monarca, clemência, quais sejam, glória, reconhecimento e
resolvia-se sempre em proveito do governante e de afeição. Expõe, portanto, sua condição principesca,
seu livre-arbítrio, pois seu poder era o único elemento da qual resulta a necessidade de ser clemente. A
de unidade. Para superar essa contradição, os argumentação que segue comporta, por sua vez, dois
estóicos criariam então “um novo conceito filosófico: planos: um que define a função do príncipe e outro
o dever” . O príncipe retratado no De Clementia, do
11
que precisa a sua responsabilidade, de modo a
mesmo modo, também possui aquele livre-arbítrio, evidenciar a associação indissolúvel do governante
mas seu dever inelidível para com os seus e dos governados. Sêneca passa então a mostrar a
governados obriga-o a empregar seu alvedrio de Nero a utilidade da clemência, necessária também,
maneira a se aproximar da vontade divina da qual entre outras coisas, porque garante a segurança do
é representante. príncipe. Para tanto, vale-se de uma série de
O que se conclui então é que o ponto central de exemplos que enumeram as diversas formas de
toda a teoria estóica sobre o melhor governo autoridade, seja a de um homem sobre outro (a do
concentrava-se na idéia de virtude, tomada aqui pai em relação aos filhos, a do professor em relação

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 37


aos alunos e a do centurião em relação a seus interior do livro I, logo depois do sumário, dividindo
soldados), seja do homem sobre um animal (a do a seguir este mesmo segundo livro em dois, de forma
mestre domador, a do caçador e a do condutor de a obter uma primeira e uma segunda partes. O
mulas). A acumulação de exemplos é substituída terceiro livro de sua tese é justamente o livro I,
enfim por um exame metódico dos motivos que completo, do texto tradicional. O problema, então,
devem levar o príncipe à indulgência. Faz-se alusão, aparentemente resolvido, estaria eliminado não fosse
por fim, às punições que o príncipe deve empreender, a mutilação a que se referiu anteriormente. Para
procurando distinguir entre severidade e crueldade. explicá-la, Préchac 16 recorre a uma verdadeira
Apesar de incompleto, o segundo livro, que segue, “cirurgia” filológica, solucionando, além do
revela uma seqüência de temas que retoma a significado dos termos mutilados, também a questão
estrutura do primeiro. da tripartição da obra, anunciada no proêmio. De
Seguindo então a tradição dos espelhos de acordo com essa hipótese, então, o texto do De
príncipe, Sêneca desenvolve uma teoria que Clementia estaria completo, pois cada um dos livros
converte o despotismo em monarquia, tornando, por remanescentes propostos por Préchac correspondia
meio do absolutismo moral do estoicismo, o ao sumário contido no proêmio original.
absolutismo político aceitável, desde que a Essa tese tem sido, desde então, bastante
moralidade e a política se unam e que o rei virtuoso contestada pelos estudiosos do De Clementia. Uns não
possa ser um diretor espiritual poderoso, modelo para concordam com a correspondência dos temas e dos
seus governados. livros propostos (Albertini, Führmann, Kindler,
Para que o leitor possa fazer idéia de como o texto Mortureaux, Grimal 17 ); outros propõem novas
do De Clementia se estrutura formalmente e qual o leituras da mutilação anunciada (Herrmann,
estado do texto que nos foi preservado pela tradição Büchner 18 ); havendo ainda, finalmente, os que
manuscrita, seria interessante discorrer agora, simplesmente não dão grande importância à
mesmo que em poucas linhas e de maneira bastante reconstrução daquelas palavras (Giancotti 19 ) por
resumida, sobre estas questões, consideradas de acreditar que o tema da primeira parte pode ser
grande importância para os estudiosos de Sêneca. inferido a partir do próprio texto. Além disso, a
O estado do texto latino do De Clementia sempre hipótese de Préchac apresenta pontos falhos, como a
provocou uma polêmica bastante acirrada. Estaria determinação das três partes, estranhamente
ele completo, com todos os seus três livros, na forma desiguais (duas, sete e 32 páginas na edição da Les
em que foi preservado (tese defendida por F. Belles Lettres, só para se ter uma idéia), o que
Préchac13), ou incompleto14? Neste último caso, teria contraria as regras conhecidas da retórica da época20.
sido concluído ou simplesmente abandonado por não Além disso, o texto, disposto nessa ordem, perde
ter atingido os objetivos de Sêneca antes de seu muito do seu sentido original, pois compromete a
término ? O proêmio da obra indica originalmente
15
ordem dos exemplos propostos e a lógica
a existência de três livros distintos: a palavra ou argumentativa de Sêneca, analisados mais
conjunto de palavras que identificariam o conteúdo atentamente no próximo capítulo.
do primeiro livro estão mutiladas, restando apenas Assim, embora não se possa saber ao certo se o
um enigmático manumissionis; o segundo livro texto do De Clementia esteja em parte perdido ou
discorreria sobre a natureza e as delimitações da mesmo se ele não tenha sido terminado, por meio
clemência; enquanto o terceiro e último trataria de dos estudos anteriormente apontados é possível
ensinar, por meio de conselhos, como chegar até a verificar a incoerência das hipóteses de Préchac, ao
clemência. Desses três livros anunciados, apenas o mesmo tempo em que se avança nos estudos da obra
primeiro, e parte do segundo, foram conservados e de seus significados.
(texto tradicional); do livro III nada teria restado. A caracterização do De Clementia como um
Para F. Préchac, no entanto, a obra estaria completa, espelho de príncipe evidencia-se ainda não só por
tratava-se apenas de reordenar os livros de modo aderir à monarquia como forma política do governo
que pudessem apresentar o texto tradicional. Assim, ideal, mas também pelas características que atribui
transpôs o livro II, de sua posição original, para o ao governante (sabedoria e justiça) e pelos efeitos

38 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


que sua ação política engendra dentro do Estado do publica, mas no próprio príncipe. Ao confrontar as
qual é o representante (sobretudo a concórdia). ações de Nero às de Augusto, Sêneca o faz justamente
Os primeiros espelhos, como já se observou, para mostrar que o Principado neroniano, por se
apresentavam um modelo de governante próximo aproximar no tempo do de Augusto, pode suplantar
ao do sábio, pois apenas alguém capaz de se o modelo estabelecido por este último, de modo a ser
autogovernar poderia se incumbir das decisões tomado, a partir de então, como o paradigma por
gerais do Estado21. Esse ideal rompeu a barreira dos excelência, a ser seguido pelas gerações futuras.
séculos e encontrou no príncipe romano uma nova Augusto, nesse sentido, deixa de ser um ideal para
forma de permanência. Na teoria de Sêneca, a fusão se tornar apenas uma referência, sobre quem Nero
do modelo de sábio estóico e do “primeiro dos tem uma superioridade moral e em face do qual
cidadãos” é imprescindível para a concretização de Sêneca exprime então reservas, sem lhe endereçar
sua orientação política, pois apenas um rei-filósofo críticas diretas. Em suma, Augusto deveria ser
tem a prerrogativa de governar. E, segundo Sêneca, imitado, mas sobretudo ultrapassado. Para tanto,
esse governante só poderia cumprir suas obrigações Sêneca esboça, na primeira parte do livro I sobre a
sendo clemente 22. Por meio dessa virtude, haveria clemência, uma teoria do poder imperial, enquanto
garantia de que a justiça seria aplicada sem os rigores na segunda parte mostra como, na prática, deve-se
habituais previstos nas leis; ela preservaria a vida e exercer este poder.
os poderes imperiais, pois permitiria que o soberano Embora pouco presente na tradição romana, o
perdoasse seus inimigos fazendo deles seus aliados. A gênero adotado por Sêneca certamente está ligado
fim de que pudesse bem utilizá-la, entretanto, o às circunstâncias históricas nas quais o tratado foi
governante deveria ser sábio, como já se disse, redigido e aos propósitos a serem atingidos pelo
pesando sempre sobre quem deveria incidir sua filósofo. Tal como na época helenística, quando urgia
clemência e de que maneira seu uso poderia lhe uma resposta aos problemas das cidades gregas, o
trazer prestígio, honra e fama. Uma vez período em que Sêneca escreve – início do governo
descontentes, a reação dos cidadãos seria sempre de Nero, ou, mais amplamente, o início do Principado
desfavorável àquele que exercesse o poder, pois a ele romano – caracteriza-se como uma época na qual
foi oferecida a gestão do Estado. O poder desse poucas teorias de governo são desenvolvidas. Sob o
príncipe, no entanto, embora necessitasse da império, os problemas políticos tornam-se problemas
aprovação de todos e se apoiasse sobre suas virtudes individuais: tudo depende diretamente das relações
e ações, só existiria porque os deuses assim o querem. entre os cidadãos e um único homem, o príncipe; e o
Trata-se, pois, de um poder de caráter sagrado, regime constitucional adotado já não é tão
devendo o príncipe, a quem é legado este poder, amplamente combatido, pois o que se contesta agora
prestar contas de seus atos apenas a eles. Uma correta é o governo do indivíduo, do príncipe24, do qual, não
aplicação da justiça, nesse sentido, garante a raras vezes, se quer se desembaraçar. Esse príncipe,
concórdia pública, pois onde não há motivo para por sua vez, deveria se configurar como o elemento
queixas, não há, conseqüentemente, motivo para de ordenação, de forma a não permitir a
disputas; daí que o governante ideal é aquele que, desagregação das forças públicas. Em função,
por meio de sua sabedoria, encontra uma correta portanto, dessa necessidade que a realidade imperial
orientação na aplicação das leis, o que, por sua vez, exprimia, Sêneca encontrou, no Principado, uma
concorre para a coesão das forças públicas, concordes oportunidade para um rei ideal governar. Admitindo
em relação ao poder que as comanda e ordena. no imperador a realeza, sentiu-se hábil, então, para
Seguindo os conselhos de Sêneca, Nero poderia empreender discussões sobre a monarquia,
então, a um só tempo, preservar seus poderes e utilizando as teorias políticas helenísticas25 e um de
suplantar o modelo imperial augusteano de poder 23, seus mais caros instrumentos: os espelhos de
inaugurando assim uma nova concepção de príncipe.
governo, não mais apenas fundamentado na res

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Notas
*
Este artigo é uma versão atualizada de um texto originalmente 11
G. T. Griffith e W. Tarnn. La Civilización Helenística, (1ª ed. 1927).
escrito para compor a dissertação de mestrado Imagens do Poder México, Fondo de Cultura Económica, 1982, p. 249.
em Sêneca (FFLCH-USP, 2001), tendo sido também apresentado, 12
Por suas características de estilo e composição, no entanto,
em forma de comunicação, no V Congresso da SBEC, realizado em alguns autores classificam o De Clementia como uma diatribe ou
Pelotas (RS) entre 15 e 20 de setembro de 2003. um dialogismo. No primeiro caso enquadram-se E. J. Kenney (ed.).
1
Conhecido como pji basileias. Ver L. Wickert “Princeps The Cambridge History of Classical Literature. Latin Literature
(ciuitatis)”, R-E, nº 44, 1954, pp. 2222-2234 apud I. Braren. De (II), Cambridge, Cambridge University Press, 1982. A diatribe –
Clementia de Sêneca, dissertação de mestrado, São Paulo, FFLCH- homilia moral dirigida a um ou mais ouvintes – apresentava-se
USP, 1985, p. 89; T. Adam, De Clementia Principiis (der Einfluss sob a forma de máximas e sentenças que se popularizavam
hellenist. Fürstenspiegel auf d. Versch. e. rechtl. Fundierung d. relativamente. Ligada à escola cínica, seu tom era
Principats. durch Seneca). Stuttgart, Verlag, 1970, pp. 12-19 apud voluntariamente brusco, “pois procurava chamar a atenção do
I. Braren. op. cit., p. 89; M. T. Griffin. Seneca, a Philosopher in auditório pelos seus ímpetos realistas” (ver A. J. Festugière. “Le
Politics. Oxford, Oxford University Press, 1976, pp. 148-149; M. T. logos hérmetique d’enseigment”, REG, t. LV, 1942, pp. 78-79). Seu
Griffin. Nero. The End of a Dinasty. London, Batsford, 1984, pp. objetivo era sobretudo converter o ouvinte por meio de
77-78; A. Dihle. Greek and Latin Literature of the Roman Empire. exemplos tirados do cotidiano, divulgando assim uma doutrina
From Augustus to Justinian, London/New York, Routledge, 1994, ou fazendo propaganda de determinada moral. Não seria o caso,
p. 91; N. T. Pratt. Seneca’s Drama, Chapel Hill/ London, The portanto do De Clementia. Segundo E. Albertini (La composition
University of North Carolina Press, 1983, p. 169; B. H. dans les ouvrages philosophiques de Sénèque. Paris, Boccard,
Warmington, Nero. Reality and Legend. London, Chatto and 1923, pp. 304-307), “a diatribe implica a superioridade do
Windus, 1981, p. 26, entre outros. conferencista sobre o auditório”, o que, sem dúvida, seria um
2
M. J. H. de la Vega. El Intelectual, la Realeza y el Poder Político en grande inconveniente, sendo obra destinada ao imperador. No
el Impero Roma-no. Salamanca, Universidad de Salamanca, 1995, caso do dialogismo, o autor discorre sobre questões morais em
p. 36. forma de diálogos, no qual se verifica o estabelecimento de uma
3
P. Briant. Alexandre le Grand. 4ª ed., Paris, PUF, 1994, p. 216. “arte” de praticar as virtudes, como existe no De Tranquilitate
4
C. Mossé, Dicionário da Civilização Grega. Rio de Janeiro, Jorge Animi e no De Constantia Sapientis, por exemplo (ver R. Martin
Zahar Editor, 2004, p. 208. e J. Gaillard. Les genres littéraires à Rome, Paris, Nathan, 1984).
5
J. Sirinelli. Les enfants d’Alexandre. La littérature et la pensée 13
F. Préchac, Sénèque – De la clémence. Introduction. Le traité De
grecques (331 av. J. C.-519 ap. J.C.), Paris, Fayard, p. 256. Também Clementia, sa composition et sa destination. Paris, Les Belles
P. Grimal (“Les éléments philosophiques dans l’idée de monarchie Lettres, 1921, p. LXXV. O trabalho de Préchac, como já se fez notar,
à Rome à la fin de la république”. In Aspects de la philosophie apesar das objeções que a maioria dos estudiosos lhe faz, é bastante
hellénistique. Geneva, Vandoeuvres, ago. 1985 (Entretiens sur importante, pois tem o mérito de estar apoiado num estudo
l’antiquité classique, XXXII), pp. 245-246) vê nesses tratados uma sistemático dos manuscritos medievais e modernos.
expressão de “ação”, ao contrário de R. I. Winton e P. Garnsey 14
Entre os adeptos dessa hipótese encontram-se E. Albertini (La
(“Political Theory”. In M. Finley. The Legacy of Greece. A New composition dans les ouvrages philosophiques de Sénèque.
Appraisal. Oxford, Oxford University Press, 1981, pp. 60-61), para Paris, Boccard, 1923, p. 73), P. Faider (Sénèque. De la clémence. I:
quem os tratados sobre a realeza não passavam de “obras de Introduction et texte, 1928) e A. Kindler (“Problemas de
adulação, de análises pouco sérias”, não tendo sido escritas no composition y estructura en el De Clementia de Seneca”. EMERITA,
“espírito de Aristóteles”, ou seja, “como uma primeira reação à t. XXXIV, fasc. 1, 1966, p. 58), entre outros.
chegada dos grandes Estados e à morte da polis livre”. 15
Hipótese levantada por M. T. Griffin (op. cit., 1976) por não
6
Um dos mais antigos de que se tem notícia é o de Teofrasto (372- acreditar que Sêneca despenderia mais esforços com o tratado
287 a.C.). E. R. Goodenough, “The Political Philosophy of diante das atrocidades cometidas por Nero. Essa possibilidade
Hellenistic Kingship”, p. 53 apud M. Pena. Le stoïcisme et foi também aventada por T. Adam (De Clementia Principiis [der
l’Empire Romain, Aix-en-Provance, Presses Universitaires Einfluss hellenist. Fürstenspiegel auf d. Versch. e. rechtl.
d’Aix-en-Marseille, 1990, p. 36. A partir da obra de Diógenes Fundierung d. Principats. durch Seneca] apud I. Braren, op. cit.,
Laércio (Livro V, Teofrasto, cap. 4) a obra supracitada poderia 1985, p. 19). Para ela, no entanto, a redação do tratado foi
ser Sobre o Reinar, Sobre a Instituição do Rei, Sobre a Política ou, abandonada pelo fato de Sêneca ter apresentado dois conceitos
ainda, Sobre o Reino, esta última endereçada a Cassandro, rei da diferentes e conflitantes nos dois livros (político no livro I e
Macedônia. Pouco se sabe sobre cada uma delas, pois não foram jurídico no livro II) que não soube harmonizar.
preservadas, a não ser por meio de notícias de outros autores, daí 16
F. Préchac, op. cit., 1921, pp. XCII-XCVIII.
a imprecisão em apontar qual seria realmente a obra em 17
E. Albertini, op. cit.; M. Führmann, “Die Alleinherrschaft und
pauta.Também Cleantes, Perseu (estóicos) e Epicuro escreveram das Problem der Gerechtigkeit (Seneca: De Clementia)” apud I.
tratados sobre a realeza, mas eles não foram preservados (R. I. Braren, op. cit., 1985, p. 17; L. Kindler, op. cit., pp. 39-60; B.
Winton e P. Garnsey, op. cit., pp. 60-61), ao contrário daqueles Mortureaux “Les idéaux stoïciens et les premières
produzidos por Isócrates (Discurso a Nécocles), Xenofonte responsabilités politiques: le De Clementia“. ANRW, II.36.3, 1989,
(Ciropédia) e Aristeu (Carta a Filócrates), por exemplo. A tradição p. 1647 e Recherches sur le ‘De Clementia’ de Sénèque.
dos “espelhos de príncipes” perdurou ainda no período romano, Vocabulaire et composition, 1973, p. 11; e P. Grimal, op. cit., 1978,
com Dião Crisóstomo, que compôs quatro discursos intitulados p. 121.
Sobre a Realeza; no período bizantino, com Agapito (526 d.C.), 18
L. Herrmann, Encore le De Clementia“. REA, t. XXXVI, 1934, pp.
que dirigiu uma exortação ao imperador Justiniano quando de 94-103 e K. Büchner, “Aufbau und Sinn von Seneca Schrift über
sua ascensão ao trono; e também no século IX, com Fócio. Ver M. die Clementia“ apud I. Braren, op. cit., 1985, p. 18.
H. U. Prieto. Política e Ética. Textos de Isócrates, Lisboa, Presença, 19
F. Giancotti, “Il Posto della Biografia nella Problematica
1989, pp. 14 e 24. Senechiana. IV.4 Stato del Texto”. RAL, nº 9, 1954b, pp. 597-609.
7
E. M. Jósson. Le miroir. Naissance d’un genre littéraire, Paris, Les 20
B. Mortureaux, op. cit., 1989, p. 1647. Nesse sentido, é interessante
Belles Lettres, 1990, p. 34. observar ainda que Sêneca já havia concluído uma obra seguindo
8
Idem, p.48. aqueles padrões, o De Ira.
9
Idem, p. 84. 21
O homem ideal, independente da época em que surge, é sempre
10
E. Erskine. The Hellenistic Stoa. Political Thought and Action, considerado como exemplo pelos que o cercam. Na cultura
London, Duckworth, 1990, p. 73. Na Carta a Filócrates, de Aristeu, literária helenístico-romana, esse homem ideal teria se
escrita entre 175-170 a.C. e tida como um tratado sobre a realeza, encarnado justamente na figura do sábio, de tal modo que todas as
as principais virtudes do rei são a clemência (identificada com correntes filosófico-literárias da época fazem menção a esse
o termo epieikeia), a justiça (dikaiosyne) e a benevolência sapiens. Ver M. F. Sánchez (org.). “Lucio Aneo Sêneca. La
(euergesía, eunoía). interioridad como actitud y consciência moral”. Em Documentos

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A, Barcelona, Anthropos Editorial del Hombre, nº 7, mar.1994, p. publica e de suas instituições que, incapazes de se adaptarem à
65. Numa primeira instância, portanto, o sábio seria o nova situação política – nascida da conquista romana e da
descobridor e o praticante de um estilo de vida que, de tão alto constituição de um vasto império –, não conseguem se elevar a
apreço, passaria a ser aceito como modelo pelos seus um nível equivalente. Com o tempo, porém, essa fórmula se
contemporâneos. No caso do sábio estóico, a perfeição de seus revelou problemática, especialmente no que dizia respeito às
atos estaria centrada na virtude e na adequação de sua conduta relações do Imperador com os seus governados, uma vez que a
à razão. coisa pública passou a tomar um segundo plano. O modelo
22
A clementia, para Sêneca, tem primazia sobre as demais virtudes proposto por Sêneca vai justamente no sentido de solucionar
e está associada diretamente ao rei-filósofo pelo fato de o chefe essa questão, pois propõe o uso de um novo instrumento político
de Estado ter suprema autoridade sobre todos os súditos, povos e para intermediar essas relações, qual seja, a clemência.
nações. Contudo, se o autoritarismo do governante é desta 24
A. Michel (La philosophie politique à Rome d’Auguste à Marc
natureza, somente a clementia poderia estabelecer um Aurèle. Paris, Armand Colin, 1969, p. 50) corrobora essa afirmação:
equilíbrio. É por meio dela que se garante a indissolubilidade do “sob o império os problemas políticos tornam-se problemas
Império e a própria ordenação do mundo individuais: tudo depende diretamente das relações entre o
23
O modelo augusteano de poder é o resultado de um progressivo cidadão e um homem, o príncipe”.
monopólio de funções institucionais por Augusto – que teria 25
J. M. Rist. “Seneca and the Stoic Orthodoxy”, ANRW, II.36.3, 1989,
tomado para si os encargos dos cônsules, do tribuno da plebe, do pp. 2006-2007. Aos olhos de Sêneca, no entanto, as monarquias
Senado e dos demais magistrados –, e de uma concomitante helenísticas não eram constituições ideais, mas as “menos piores”
concessão de benefícios a determinados grupos sociais. Ele possíveis (ver A. Michel. op. cit., p. 193).
aparece, ideologicamente falando, como uma salvaguarda da res

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Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 41


A Reverberação da Revolta de Vila Rica de 1720: “...à
custa do sangue, vidas e despesas das fazendas...”

Carlos Leonardo Kelmer Mathias

Doutorando em História Social pela UFRJ/Bolsista CNPq

Resumo Abstract
Trata-se de analisar a utilização dos serviços In this work we analyze the services done to
prestados na contenção da Revolta de Vila Rica de control the Revolta de Vila Rica in 1720, about
1720 na argumentação acerca da requisição de favor requisition. Observing some letters and
mercês. Observando o teor de algumas cartas demands, it becomes manifested that the
patentes e reivindicações, torna-se manifesta a appealing allegation of the services rendered to El-
recorrente alegação dos serviços prestados a El-Rei Rei was done to the costs of blood, life and farms of
aos custos do sangue, vida e fazenda dos súditos the vassals of Minas Gerais.
mineiros. Keywords: Revolta, Favors, Letter.
Palavras-chave: Revolta, Mercê, Negociação

A descoberta, a guerra e a conquista foram Jerusalém então sob o domínio muçulmano.


algumas das características – talvez as principais – Contudo, para além de um movimento puramente
marcantes dos capítulos da expansão portuguesa em religioso, as cruzadas configuraram-se em uma
terras de além-mar. Herdeira de um passado oportunidade na qual homens de variados níveis e
medieval, essa expansão teve nas cruzadas um dos condições sociais lograram ganhos materiais e/ou
fatores que mais influenciou na forma, caráter e imateriais. Nobres imbuídos de um ideal de
fisionomia por ela adquirida. No século XV, tanto cavalaria colonizaram novas áreas e aumentaram
na tomada de Ceuta como na conquista de Marrocos, suas fortunas; homens sem terras ou posses em seus
foi a nobreza militar a maior interessada em tais países de origem conseguiam obtê-las nas terras
empresas quer em função da possibilidade de receber conquistadas. 3 Ou seja, através da conquista de
de El-Rei mercês e privilégios em decorrência de suas novas terras, os homens – os melhores homens –
valorosas ações, quer pela possibilidade de puderam reivindicar honras e mercês.
enriquecer pela pilhagem. 1 Frente à necessidade de No processo de colonização da América, a crença
confrontar o inimigo muçulmano, a expansão na hierarquização natural da sociedade – avigorada
oriental lusa adquiriu um cunho guerreiro, um ideal pela escravidão africana – com base nas “qualidades”
de Guerra Santa, emblemático da idéia de cruzada. naturais e sociais das pessoas, foi “reforçada pela a
Nesse sentido, na expansão e na atuação portuguesa idéia de conquista, pelas lutas contra o gentio e pela
na Ásia e na Índia, o ideal de cruzada estava presente, escravidão”. Tais ações, sempre empreendidas em
perpetuando a atmosfera cavaleiresca em virtude nome de El-Rei, “deveriam ser recompensadas com
da atuação beligerante dos nobres. 2
mercês – títulos, ofícios e terras”. Esses homens, os
Sempre vítima de invasões bárbaras, a Europa “conquistadores”, almejavam obter ganhos materiais
Ocidental iniciou suas atividades expansionistas em e/ou imateriais, ou seja, almejavam o “alargamento
1095, quando o Papa Urbano II convoca aquela que de seu cabedal material, social, político e simbólico”.
seria a primeira cruzada rumo à libertação de Esse novo quadro figurou aos olhos dos

42 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


“conquistadores” como a “possibilidade de mudar de vale citar algumas das suas ocorrências. Sendo
‘qualidade’, de ingressar na nobreza da terra e, por assim, destaquei duas situações complementares
conseguinte, de ‘mandar’ em outros homens – e entre si, as quais demonstram alguns dos usos feitos
mulheres”. 4
Por via de regra, os indivíduos das atuações em 1720. São elas: 1) a utilização da
trabalhados no presente texto estavam, também, participação na contenção da revolta como moeda
imbuídos das caracterizas e de alguns dos propósitos de negociação objetivando mercês e privilégios e 2)
acima expostos. Trata-se dos homens participantes, a relevância obtida pelo movimento de 1720 ao longo
quer como revoltosos quer como não revoltosos, da do século XVIII (para a relação completa dos nomes
revolta de Vila Rica, iniciada em 28 de junho de 1720. e das ocasiões nas quais ocorreu a citação na revolta
Foi recorrente a utilização, por parte dos colonos, de 1720, ver tabela 1).
de argumentos relativos à conquista, ao povoamento Conforme tal tabela, em oito ocasiões as
e à defesa da Colônia como moeda de troca em suas realizações obradas em 1720 foram utilizadas na
negociações com o poder central. 5 Advogava-se, com solicitação de mercês e privilégios. Caso sejam
base em um passado glorioso de conquistas e ações considerados os pedidos de patente ou de sua
em prol do Real Serviço, o pertencimento às confirmação, o número sobe para vinte. Dentre os
“melhores famílias da terra”. Característica de mais relevantes, destaquei dois casos, a saber,
várias capitanias 6, tal situação repetiu-se, também, Sebastião Barbosa Prado e Henrique Lopes e Araújo.
nas Minas do Ouro, onde os poderosos possuíam “seu Por volta de 1729, Sebastião Barbosa Prado
ethos muito bem incrustado no imaginário da escreveu a El-Rei dando conta dos seus valorosos
conquista da Colônia”. 7 serviços prestados em benefício do “bem comum dos
Desde o seu estabelecimento, as câmaras de Minas povos” e de Sua Majestade. Afirmou ser natural da
mantinham sazonais reivindicações junto à Coroa freguesia da Santa Marinha de Queiros, termo de
sobre os mais variados assuntos, com destaque para Vila do Prado do arcebispado de Praga e filho de
aqueles concernentes à tributação. Em texto recente, Gregório Gonçalves, assistente no recôncavo da
afirmou-se que a representação de outubro de 1720 cidade da Bahia. Como de costume nesse tipo de
– portanto, após o término da revolta de Vila Rica – requerimento, Sebastião Barbosa enumerou suas
foi a última na qual a argumentação em torno da ocupações; serviu como almotacé em Vila Rica por
“conquista à custa dos colonos em troca da eleição dos oficiais da câmara; ocupou, em 1713, o
reciprocidade e retribuição da Coroa” obteve lugar ofício de tesoureiro da Fazenda Real, dos bens
central. A partir de então, o tema da “decadência confiscados aos presos pelo Santo Ofício e da fazenda
generalizada” da capitania e da “pesada carga dos defuntos e ausentes em Vila Rica e seu termo; fez
tributária” seria alçado ao primeiro plano. A “um grande serviço a Vossa Majestade” na ocasião
matéria conquista apenas teria a mesma em que arrematou o contrato da Bahia por 25
preeminência e força nas áreas de colonização recente arrobas “devendo-lhe o grande crescimento que teve
ou onde a Coroa não gozava de grande autoridade, aquele contrato”; auxiliou na angariação de recursos
como no sertão. Observando o teor de algumas
8
para o estabelecimento da Casa da Moeda em função
cartas patentes e reivindicações das mais variadas da junta convocada pelo governador D. Lourenço de
naturezas de alguns dos participantes da revolta de Almeida com os principais das Minas para darem
Vila Rica após seu término, torna-se manifesta a execução ao seu estabelecimento; por fim, Sebastião
recorrente alegação dos serviços prestados a El-Rei Barbosa declarou que serviu ao conde de Assumar,
aos custos do sangue, vida e fazenda dos súditos D. Pedro de Almeida Portugal – foi durante o período
mineiros. de seu governo que os acontecimentos de 1720
Para o período posterior ao término da revolta de tiveram vez –, com muitos negros seus armados na
Vila Rica, consegui reunir dados sobre cinqüenta contenção da revolta de Vila Rica; terminou sua
indivíduos. 9 Desses, vinte tiveram seus feitos em solicitação ressaltando que El-Rei havia ordenado a
1720 citados de forma positiva, quer por eles D. Lourenço de Almeida lhe agradecer por essa
mesmos, quer por El-Rei, quer por governadores. realização, sendo que lhe faria muito quando
Embora não caiba aqui enumerá-los em particular, houvesse ocasião.10

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 43


Sebastião Barbosa Prado estava valendo-se de ordenanças das quais era capitão Henrique Lopes.13
seus serviços para solicitar a El-Rei o Hábito da Seis meses após o envio da documentação
Ordem de Cristo com cem mil réis de tença efetiva. requerida por El-Rei, o governador D. Lourenço de
Não estou sugerindo que a participação na Almeida novamente escreveu a Sua Majestade
contenção da revolta de Vila Rica, como foi o caso de dando conta dos bons procedimentos do capitão-mor
Sebastião Barbosa, tenha funcionado como pedra de Vila Rica. Nas palavras do governador,
angular na solicitação do suplicante. Também não
é relevante para os objetivos propostos saber se a “nesta Vila, é capitão maior há muitos anos
solicitação foi atendida. O que proponho é destacar Henrique Lopes, e sempre em todas as ocasiões se
uma das facetas da instrumentalização da assinalou mais que ninguém no zelo do real serviço
participação em 1720, qual seja, sua utilização como de Vossa Majestade e, gastando sempre muito da
moeda de negociação objetivando mercês e sua fazenda e não adquirindo outra, por estar
privilégios. A partir de 1720, os indivíduos sempre pronto para tudo o que for servir a Vossa
principiaram a incorporar suas contribuições na Majestade com mais de cinqüenta negros seus
contenção da revolta em suas solicitações e armados, sem fazer reparo na grande perda que
requerimentos por mercês e privilégios. Repito, o se lhe seguia de não trabalharem nas suas lavras
episódio referiu-se a um pleito pela mercê do Hábito os tais seus negros, e por todas estas razões tem
da Ordem de Cristo. merecido mais que ninguém que Vossa Majestade
Um outro caso deveras parecido a esse o honre com Hábito”. 14
contribuirá, espero, no entendimento de minha
argumentação. Conforme anteriormente citado, em Percebe-se a importância dos feitos de Henrique
26 de março de 1721, D. Lourenço de Almeida Lopes. Não obstante a perda por ele sofrida, Lopes
remeteu a El-Rei – e obedecendo a uma ordem do deslocou seus negros para a realização de valorosos
mesmo – a lista com os nomes dos indivíduos que serviços a El-Rei. Por sua vez, esse se via na
mais se haviam distinguido na contenção da revolta “obrigação” – em parte em função do próprio
de Vila Rica. Dizia o Fidelíssimo: paradigma jurisdicionalista 15 – de retribuir tão
honrosos serviços.
(...) por ser justo que as pessoas que nos motins e No decorrer da carta, D. Lourenço de Almeida
alterações sucedidas no governo geral das Minas preocupou-se em afirmar que não fez “promessa
ano passado se distinguiram no zelo do meu serviço nenhuma de Hábitos nem de tenças” a ninguém que
e fidelidade conheçam a satisfação com que fiquei participou na contenção da revolta de Vila Rica,
do seu procedimento, me parece ordena-vos [a D.
Lourenço de Almeida] que logo que tomares posse “por entender é mais conveniente guardar esta real
do governo (...) chamei-as a vossa presença (...) mercê de Vossa Majestade, para algum tempo em
lhe agradeçais da minha parte o bem que obraram que se possa fazer maior serviço a Vossa
naquelas perturbações declarando-lhes ficam na Majestade, para eles concorrerem além da sua
minha lembrança para lhes fazer muito quando se fidelidade, pelo interesse desta mercê, como porque
oferecer ocasião (...). 11
se eu prometesse alguns hábitos a quem os
mereceu, há nestes povos alguns homens
Assim como Sebastião Barbosa Prado, o nome de principais e de respeito entre eles, que também
Henrique Lopes de Araújo constava na referida lista. haviam de querer hábitos que por nenhum princípio
Em 23 de dezembro de 1713, Henrique Lopes de o mereceram”.
Araújo, em função de seus “merecimentos de
nobreza”, foi feito capitão-mor das ordenanças de Vila Percebe-se ter sido Henrique Lopes, segundo o
Rica e sua comarca.12 Posteriormente, em 06 de abril governador, um dos “homens principais e de
de 1714, o número de almas sob seu comando sofreu respeito”, que, por algum “princípio”, merecia ser
um acréscimo com a transferência da companhia dos honrado com o Hábito da Ordem de Cristo. Para além
auxiliares do distrito de Antônio Dias para as de uma possível ligação com D. Lourenço de Almeida

44 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


– o que por assim dizer poderia justificar a carta do envolveu-se em desavenças com o governador D.
governador –, parece inegável a importância da Pedro de Almeida acerca de uma contenda sobre
atuação do capitão-mor em 1720, tanto que, de jurisdição e domínio de terras havidas entre o conde
acordo com a documentação acima transcrita, o de Ilha e o governador das Minas do Ouro. 21 Em
governador apressou-se em deixar claro não ter feito decorrência dessa disputa, D. Pedro de Almeida
“promessa nenhuma de Hábitos nem de tenças” aos intimou Antônio Caetano a apresentar sua carta
envolvidos na repressão do movimento. Eis o ponto patente de capitão-mor da capitania de Itanhaem –
pelo qual passa a tônica da argumentação de D. o que Antônio Caetano fez em 22 de janeiro –22 e, em
Lourenço de Almeida: aos custos do sangue, vida e 06 de abril de 1720, o Conde-Governador enviou-
despeça das fazendas de Henrique Lopes, ele merecia lhe uma carta na qual dava conta dos seus maus
ser honrado com o Hábito. Nesse sentido. O procedimentos. Escreveu D. Pedro de Almeida:
documento inclui a atuação na contenção da revolta
dentro do imaginário de conquista, o qual perpassou “a câmara e algumas pessoas mais me avisaram
o chamado período colonial. do procedimento com que vossa mercê
Outro ponto merecedor de destaque é o fato de o continuava, muito contra o que eu esperava depois
governador atentar-se em deixar manifesto não ter das advertências que fiz a vossa mercê em que lhe
prometido a ninguém nem Hábitos nem tenças. Se declarava o que devia seguir. Também me
assim não o tivesse feito, incorreria em uma alçada avisaram que vossa mercê dizia publicamente que
específica de El-Rei, a saber, conferir nobreza aos estava isento da minha jurisdição e como suponho
demais mortais. 16
Salvo isso, noventa e duas almas que nisto há uma inteligência da parte de vossa
– afora o próprio Henrique Lopes – estariam, mercê, bem entendo que se persuadirá que o deve
concernentes às suas atuações na revolta de 1720, entender de outro modo e que eu o não hei de
em condições de solicitar o Hábito de Cristo. consentir na forma que vossa mercê continua”. 23
Desnecessário apontar para a excessiva pulverização
que incidiria na outorga do Hábito – vale lembrar, Não é de conhecimento da historiografia o motivo
a concessão de um título de fidalgo a quem não o era pelo qual Antônio Caetano, representando o
de nascimento consistia em uma “motivação donatário da capitania de Itanhaem, tomou parte
econômica extremamente incentivante”. 17
da revolta de 1720 ao lado de Pascoal da Silva
Em resumo, os vinte casos nos quais a Guimarães. Ao que parece, a questão tangeu disputas
participação na contenção da revolta de Vila Rica é por jurisdições. Não obstante os desentendimentos
incluída nas solicitações de mercês e privilégios ocorridos entre o capitão-mor e o governador antes
servem para demonstrar, não obstante um dos ecos da eclosão do movimento, novamente D. Pedro de
da revolta, a importância obtida pelo movimento Almeida chamou Antônio Caetano às suas obrigações
nas negociações engendradas entre El-Rei e seus de vassalo d’El-Rei. Em 07 de novembro de 1720, o
vassalos astuciosos. governador afirmou-lhe que o mesmo faria um
Para a segunda das situações as quais desejo grande serviço à Sua Majestade caso remetesse dois
explicitar – demonstrar a relevância obtida pelo presos ao Rio de Janeiro, aproveitando a ocasião para
movimento de 1720 ao longo do século XVIII –, advertir a Antônio Caetano no sentido de manter
trabalharei com o caso de João Manuel Pinto Coelho seu distrito em sossego sob pena de repreensão.24
Coutinho. 18 A despeito da participação como revoltoso de
Coelho Coutinho era filho de Antônio Caetano Antônio Caetano Pinto Coelho em 1720, cerca de 75
Pinto Coelho, moço fidalgo da Casa Real19 e capitão- anos depois, seu filho, João Manuel Pinto Coelho
mor e representante do donatário da capitania de Coutinho, veio a solicitar sua nomeação no posto de
Nossa Senhora da Conceição de Itanhaem, o conde capitão-mor regente e intendente das Minas da
da Ilha do Príncipe. Ligado a Pascoal da Silva Campanha do Rio Verde. 25 Em seu requerimento,
Guimarães – principal líder da Revolta de Vila Rica João Manuel, entre várias cartas de reconhecimento,
–, Antônio Caetano figurou, em 1720, no grupo dos remeteu três cartas cuja autoria atribuía a D. Pedro
revoltosos. 20
Em 18 de janeiro daquele ano, de Almeida, uma supostamente escrita por D.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 45


Lourenço de Almeida e uma por D. João-V, El-Rei. À ou abandonadas por serem claramente satisfatórias
parte todas as cinco cartas gozarem da mesma ou insatisfatórias, ou seja, o sujeito espera que o valor
caligrafia, ou seja, trata-se de cópias e não das a ser ganho seja superior ao ser perdido. 27 Nesse
originais, elas trazem Antônio Caetano como um dos sentido, os comportamentos individuais são o espelho
que mais se destacaram na contenção da revolta de da utilização também individual da “margem de
Vila Rica em 1720. Tal constatação levou-me a manobra” – precisa e controlada – da qual dispõem
questionar a veracidade da documentação. numa situação dada dentro do seu “universo de
Tomando as cartas de D. Pedro de Almeida e de possíveis”; o que implica na recusa de uma análise,
D. João-V, não pude – exceto o fato de referirem-se por assim dizer, determinista. 28
muito superficialmente à revolta e de serem cópias Essa noção de estratégia evoca um indivíduo
– perceber nada indicativo da fraude. Porém, ao racional, porém não dotado de uma “racionalidade
deter-me na carta de D. Lourenço de Almeida a coisa absoluta”. Esse indivíduo age a partir de uma
complicou-se. Nela, o referido governador deu conta “racionalidade limitada”, isto é, “a partir dos
de ter incluído Antônio Caetano Pinto Coelho na lista recursos limitados que o seu lugar na trama social
de 1720 – aquela feita pelo governador D. Lourenço lhe confere, em contextos onde sua ação depende da
por ordem régia, devendo constar os nomes dos interação com as ações alheias, e onde, portanto, o
indivíduos que mais haviam se destacado na controle sobre o seu resultado é limitado por um
contenção da revolta de Vila Rica. Todavia, nessa horizonte de constante incerteza”. 29 Concernente a
lista não consta o nome de Antônio Caetano, o que, isso, no alvorecer da sociedade mineira setecentista,
de fato, fez-me sugerir a falsificação. os indivíduos buscaram traçar e estabelecer
Não é novidade para ninguém a recorrente estratégias de ação visando quer mercês, quer
utilização dessa artimanha pelos homens da colônia privilégios, quer ofícios ou postos, quer mesmo
em seus requerimentos de toda a ordem.26 Porém, e desestabilizar a ordem vigente, mas que, em última
conforme apontado por João Fragoso, por ser falso, o instância, objetivavam maximizar suas
documento torna-se mais interessante do que caso prerrogativas de mando e prestígio social.
fosse verdadeiro. Sem embargo de ter sido seu pai Nem todos os revoltosos em 1720 sofreram
revoltoso em 1720, percebe-se em João Manuel um sanções, nem todos passaram a ferros ao Rio de
homem pertencente a uma família que por mais de Janeiro e de lá para a prisão de Limoeiro. Aqueles
duas gerações, e sempre às custas da sua fazenda e que, por um motivo ou por outro, tramitaram, de
negros armados, prestou serviços a El-Rei no certa forma, ilesos, tiveram, necessariamente, de
exercício de postos de mando. Deve-se ater para o rever suas estratégias de ação nas Minas do Ouro.
fato de a falsificação relativa a Antônio Caetano não Por bem, também se apreende do episódio (acima
anular os serviços prestados, quer por ele mesmo exposto) a recorrente estratégia utilizada pelos
quer por seus descendentes, a Sua Majestade. Aqui, súditos de El-Rei em seus pleitos almejantes de
a noção de estratégia urge ser invocada. honras, mercês e privilégios, assim como nos casos
Por estratégia, parto do princípio formulado por de Sebastião Barbosa Prado e demais integrantes da
Fredrik Barth. Em linhas gerais, admitindo que o tabela 1. Tirante tais considerações, o evento
comportamento humano é constituído pela protagonizado por João Manuel Pinto Coelho
consciência e pela vontade, Barth ressalta que os Coutinho evidencia, acredito, a relevância
“atos sociais” não são simplesmente “causados”, mas adquirida pela revolta de Vila Rica de 1720 ao longo
sim “intentados”. Trabalhando, em uma análise do século XVIII. Três são os pontos que me fazem crer
empiricamente substanciada, com a consciência e nessa observação.
com o propósito, é possível investigar o lugar dessa O primeiro deles é a simples alusão ao movimento
consciência e desse propósito na vida social. Em tais 75 anos após seu ocorrido. Impossível não pensar a
termos, e para compreenderemos os contextos dessas semelhança – resguardadas as devidas diferenças e
ações, deve-se considerar as intenções e proporções – entre essa menção e a importância
entendimentos dos atores que as empreenderam. obtida pelo tema da restauração pernambucana
Assim sendo, várias trajetórias de ação são traçadas como “empresa histórica da ‘nobreza da terra’” nas

46 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


suas reivindicações pelo direito de “dominar do também governador D. Lourenço de Almeida e
politicamente a capitania”, sempre às custas do uma do rei D. João-V.
sangue, vida e despesas das fazendas.30 João Manuel, De ambos os casos acima enunciados, depreende-
homem “nobre da terra”, membro de uma família se tanto as diferentes estratégias utilizadas pelos
que por mais de duas gerações prestou serviços a El- súditos em suas reclamações por honras, mercês e
Rei no exercício do mando, sempre às custas do privilégios, como a relevância obtida pela revolta
sangue, vida e despesas de suas fazendas, de Vila Rica ao longo do século XVIII nesses tipos de
reivindicava, e para tanto citava os ocorridos em reivindicações. Observando a tabela 1, até meados
1720, postos de mando os quais lhe delegariam o do setecentos foi recorrente a citação dos serviços
domínio político de uma dada localidade. prestados na contenção da revolta de 1720 nos
Para o segundo ponto, evoco uma estratégia requerimentos dos súditos. À parte o caso de João
bastante comum utilizada tanto no reino como no Manuel Pinto Coelho Coutinho, dos 33 casos havidos
ultramar, quer para afirmar as qualidades de uma até 1750, 19 deles o foram quer no período do
dada família, quer para obter mercês e privilégios: governo de D. Lourenço de Almeida, quer por tal
citar os grandes feitos realizados pelos ascendentes governador. Essa verificação não é fortuita.
genealógicos. Essa prática dava-se pela importância Se for correto afirmar, conforme um autor
atribuída ao sangue, logo, à hereditariedade, na anônimo o fez por volta de 1750, que o conde de
transmissão das qualidades, valores e serviços dos Assumar “cavou a vinha e D. Lourenço de Almeida
antepassados. Há de se notar, esse era o melhor colheu as uvas”, 32 ele as colheu, também, para si
argumento na reivindicação do direito à herança mesmo. Embora seu governo possa ser reconhecido
dos privilégios dispensados aos parentes e como aquele no qual mais aumentaram as rendas
ascendentes. Cedendo a vez à Mafalda Soares da régias – daí sua importância do ponto de vista
Cunha, a explicação ganha em explicitação, pois, tributário –, foi também marcado pela corrupção,
conforme a autora, “o passado, reconstituído e tantas venalidade de cargos e conflitos entre ele e
vezes recriado, constituía lustro e honra eclesiásticos, militares, ouvidores, contratadores e
fundamental à afirmação no presente”. 31
comerciantes. Esteve às voltas com irregularidades
Acerca do terceiro ponto, outra simples nas arrematações dos contratos do ano de 1724 – as
comprovação: a presumível adulteração dos fatos. quais contrariaram as determinações régias sendo
Trazendo à baila Antônio Caetano Pinto Coelho como transferidas para Lisboa –, realizou provimentos de
um dos indivíduos mais atuantes na contenção da postos para os quais não tinha jurisdição e envolveu-
revolta de Vila Rica, João Manuel conferiu ao se, ilegalmente, na exploração de diamantes antes
movimento uma relevância inusitada. Ao fazê-lo, a de comunicar seu descobrimento a El-Rei. 33
revolta assumiu uma importância de tamanha Como seria de se esperar, somente envolto em
monta a ponto de indicar que citar os bons serviços uma rede clientelar bem estruturada D. Lourenço
de um dado sujeito em sua repressão era algo ainda de Almeida poderia reunir as condições necessárias
bem visto aos olhos de El-Rei 75 anos após a para dar vazão a tais feitos. Mas este ponto não
bancarrota das alterações de 1720. Há de se adentra aos propósitos do presente texto, serve aqui
constatar, possivelmente cinco foram os documentos como, tão somente, um indicativo segundo o qual o
adulterados por seu filho em 26 de maio de 1795 – movimento de 1720 esteve longe de se encerrar em
três cartas do governador D. Pedro de Almeida, uma 20 de julho de 1720.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 47


Tabela 1 – Indivíduos que tiveram seus feitos citados durante a revolta de Vila Rica de 1720

Fonte: AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG


Legenda: *Filho de Antônio Caetano Pinto Coelho revoltoso em 1720
** Revoltoso
*** Revoltoso e membro da lista de 1720

Abreviaturas

AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG – Arquivo Histórico Ultramarino, APM, SC – Arquivo Público Mineiro, Seção Colonial
Conselho Ultramarino – Brasil/Minas Gerais

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Notas

1
THOMAZ, Luiz Felipe F. R. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994, 16
Consoante Mafalda Soares da Cunha, além do Rei, a Casa de
pp. 6-29. Bragança possuía a excepcional prerrogativa de também poder
2
Idem, pp. 404-407. conferir nobreza existindo, então, uma certa equivalência entre
3
Cf. BARTLETT, Robert. The making of Europe. Princeton, os foros, as moradias, e os cargos palatinos da Casa de Bragança e
Princeton University Press, 1993. os da Casa Real. A principal vantagem retirada de tal
4
FRAGOSO, João, BICALHO, Maria F & GOUVÊA, Maria de Fátima prerrogativa foi o reforço da capacidade de atrair clientelas e
(orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial de consolidar honradamente essas mesmas dependências
portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização pessoais. CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de Bragança, 1560-
Brasileira, 2001, p. 24. 1640: práticas senhoriais e redes clientelares. Lisboa: Editora
5
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria Estampa, 2000, pp. 26-27.
de Fátima. “Bases da materialidade e da Governabilidade no 17
GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da sociedade
Império: uma leitura do Brasil colonial”. Penélope, n 24, Lisboa, portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1977, p. 79.
2000, p 77. 18
Agradeço ao professor doutor João Fragoso pela gentil indicação
6
Para o Rio de Janeiro cf. FRAGOSO, João. “A nobreza da do documento acerca de Coelho Coutinho.
República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial 19
APM, SC 11, fl. 285. CARTA para Antônio Caetano Pinto Coelho.
do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII)”. In: Topoí: Revista de 20 dez. 1719.
História. Rio de Janeiro, vol. 1, 2000 e, para Pernambuco, ver 20
CAMPOS, Maria Verônica, op. cit., pp. 249-252.
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da 21
APM, SC 11, fls. 189-189v. PARA Antônio Caetano Pinto Coelho
restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. capitão-mor da capitania de Nossa Senhora da Conceição de
7
FIGUEIREDO, Luciano. “O império em apuros: notas para o estudo Itanhaem. 18 jan. 1720.
das alterações ultramarinas e das práticas políticas no império 22
APM, SC 11, fl. 285v. CARTA para Antônio Caetano Pinto Coelho.
colonial português, séculos XVII e XVIII”. In: FURTADO, Júnia 22 jan. 1720.
(org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens 23
APM, SC 11, fls. 221-222v. PARA Antônio Caetano Pinto Coelho.
para uma história do Império Ultramarino Português. Belo 06 abr. 1720.
Horizonte: HUMANITAS, 2001, p. 237. 24
APM, SC 13, fl. 4. PARA o capitão-mor Antônio Caetano Pinto
8
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros: “de como meter Coelho. 07 nov. 1720.
as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado” 1693 a 1737. 25
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG, cx. 140, doc. 22. REQUERIMENTO
São Paulo: USP, FFLCH, 2002, pp. 265-268. (Tese de doutorado) de João Manuel Pinto Coelho Coutinho, fidalgo da Casa Real,
9
Ressalvo que em minha dissertação de mestrado identifiquei 154 solicitando sua nomeação no posto de capitão-mor regente e
sujeitos atuantes na revolta de Vila Rica, dos quais 27 eram intendente nas Minas da Campanha do Rio Verde. 26 mai. A795.
revoltosos diretos, 30 eram revoltosos indiretos, 93 não eram 26
Cf., por exemplo, MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue:
revoltosos e para 4 não pude identificar sua condição na revolta. uma parábola familiar no Pernambuco colonial. Rio de Janeiro:
Cf. KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. Jogos de interesses e Topbooks, 2000, passim.
estratégias de ação no contexto da revolta mineira de Vila Rica, 27
Cf. BARTH, Fredrik. Process and form in social life: selected
c. 1709 – c. 1736. Rio de Janeiro: PPGHIS, 2005 (dissertação de essays of Fredrik Barth. Vol 1. London: Routledge & kegan Paul,
mestrado). 1981. Por valor entenda-se como “um padrão detido pelos atores
10
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG, cx. 14, doc. 67. REQUERIMENTO que afeta seus comportamentos por orientar suas escolhas (...)
de Sebastião Barbosa Prado, solicitando a mercê da concessão do refere-se a um padrão de avaliação para o que as pessoas querem
Hábito da Ordem de Cristo, pelos muitos serviços prestados em ter e ser“ (grifos do autor). pp. 91-92. Barth trabalha com “uma
Minas Gerais. 23 jul. A729. teoria mais orientada para os atores, mais próxima do que
11
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG, cx. 2, doc. 110. Carta régia para D. realmente acontece entre as pessoas”. BARTH, Fredrik. O guru,
Lourenço de Almeida, governador e capitão-geral de Minas, o iniciador e outras variações antropológicas, Rio de Janeiro,
ordenando-lhe agradecesse penhoradamente as pessoas que se Contra Capa, 2000, pp. 205-209.
haviam distinguido na contenção dos motins havidos em Minas. 28
ROSENTAL, Paul-André. “Construir o ‘macro’ pelo ‘micro’:
A margem: a resposta do governador. Lisboa, 26 mar. 1721. Fredrik Barth e a ‘microstoria’”. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos
12
APM, SC 09, fl. 73. CARTA patente passada a Henrique Lopes de de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV,
Araújo. 23 dez. 1713. 1998, p. 159.
13
APM, SC 09, fl. 20. CARTA passada a Henrique Lopes de Araújo. 06 29
LIMA JÚNIOR, Henrique Espada. Microstoria: escalas, indícios
abr. 1714. e singularidades. Campinas: UNICAMP, IFCH,1999, pp. 259-260.
14
TRANSCRIÇÃO da segunda parte do Códice 23 Seção Colonial - (tese de doutorado) [Grifos do autor]. Cf. também LEVI, Giovanni.
Registro de alvarás, cartas, ordens régias e cartas do governador A herança imaterial. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000;
ao Rei - 1721-1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano LEVI, Giovanni. “Comportamentos, recursos, processos antes da
XXXI, 1980, pp. 87-88. [Grifos meus]. ‘revolução’ de consumo”. In: REVEL, Jacques. Jogos de escalas,
15
Em linhas gerais, essa concepção de ação político-administrativa op. cit., pp. 203-225.
correspondia a uma forma de administração cujos objetivos 30
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio..., op. cit., passim.
principais, além de prezar pela paz, consistiam na salvaguarda, 31
CUNHA, Mafalda Soares da, op. cit., p. 59. [Grifos meus]
pelo Rei, dos direitos adquiridos por seus súditos. Tal paradigma 32
“RELAÇÃO de um morador de Mariana e de algumas coisas mais
limitava fortemente a capacidade de ação da Coroa, uma vez que memoráveis sucedidas”. In: CÓDICE Costa Matoso. Belo Horizonte:
as decisões régias tinham de possuir parecer do tribunal Fundação João Pinheiro, vol, 1999. Coordenação-geral de Luciano
competente, sem o qual podiam ser impugnadas. Assim sendo, o Raposo de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos, p. 209.
fim último da atuação régia deveria ser o de manter a justiça, o 33
CAMPOS, Maria Verônica, op. cit., pp. 260-319 e BOXE, Charles. A
equilíbrio das instituições e poderes. HESPANHA, Antônio M. idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade
As vésperas do Leviathan: instituições e poder político. colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pp. 228-230.
Portugal – século XVII. Coimbra: Almedina, 1994, pp. 227-294.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 49


Bibliografia

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da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e familiar no Pernambuco colonial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000
XVII)”. In: Topoí: Revista de História. Rio de Janeiro, vol. 1, 2000, _______. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana.
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(séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV,
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_________, BICALHO, Maria F & GOUVÊA, Maria de Fátima “Bases THOMAZ, Luiz Felipe F. R. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994.

50 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Doença ou feitiço? O patológico e o sobrenatural nas
Gerais do século XVIII

André Nogueira

Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ)

Resumo Abstract
Buscaremos nesse artigo analisar como nas Minas In this article we analyze how the notions of
do Século XVIII imiscuíam-se as noções de sorcery, disease and cure were mixed in the Minas
feitiçaria, doença e cura. Postura que embalava of the 18 th century. The practice was normal in
tanto os tratamentos oficiais quanto às ações dos official treatments as well as among the Africans
africanos e seus descendentes, não raro taxados e and their descendants who were usually repressed
reprimidos como feiticeiros em função dessas as sorcerers because of their practices.
práticas. Keywords: Sorcery, Practice, Cure, Disease
Palavras-chave: Feitiçaria, Práticas, Cura;
Doença

Manoel Borges, morador da freguesia de Santa como eram concebidas de modo absolutamente
Bárbara, ficando certa ocasião doente, contou com a imbricado nas Minas Gerais do século XVIII as noções
“ajuda” de sua sogra para experimentar tratamento de doença e feitiço, aproveitando também para
de saúde. Esta resolveu chamar um negro curador descrever morfologicamente algumas dessas
do Caeté que rezava umas tais palavras que ele não práticas de cura, que no mais das vezes,
percebia e que desta cura resultou ficar tolhido e nunca aproximavam imensamente as ações e saberes dos
mais poder trabalhar em seu ofício. As suspeitas de “curandeiros oficiais” (não raro, homens brancos
Manoel Borges acerca da má intenção de sua sogra licenciados) e dos “feiticeiros” africanos e seus
aumentavam à medida que esta vivia alcovitando descendentes.
homens para sua filha mulher dele testemunha1. A análise das devassas eclesiásticas 2 de fato
Nesta denúncia, apresentada na década de corrobora a afirmação de Laura de M. e Souza de que
sessenta do século XVIII, em uma das devassas os africanos e seus descendentes eram
eclesiásticas norteadas pelo bispado de Mariana, cuja indisputavelmente os principais curadores das
documentação encontra-se no Arquivo Eclesiástico Gerais setecentista3. Contudo, a forma com que estas
dessa cidade (AEAM), a suposta vítima, Manoel denúncias são apresentadas deixam uma patente
Borges, nitidamente atrela as brigas com sua sogra brecha para pensarmos na maneira ambígua na
às suspeitas de que a tentativa de cura, na verdade, qual esses agentes eram vistos por seus denunciantes
tratava-se da produção de (mais) um feitiço contra – a maioria branca e procedente de Portugal – e
ele, uma vez que o denunciante fazia questão de pelos aparelhos persecutórios da Igreja, estando tais
marcar o espaço do indefinido e do ameaçador na percepções impregnadas de filtros culturais, como nos
língua desconhecida em que o negro rezava, que para alerta o historiador italiano Carlo Ginzburg 4.
ele parecia não representar boa coisa. Nesta perspectiva, várias denúncias que
Tal caso pode servir como um interessante ponto envolviam práticas de cura encabeçadas por negros
de partida para tecermos algumas reflexões sobre e seus descendentes eram acompanhadas pela

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 51


qualificação dessas pessoas como feiticeiras. José uma das testemunhas queria arruinar Gouveia,
Soares Cubas (Cabús?) fora lembrado deixando-o só com um pão na mão, num caso
primeiramente como feiticeiro e dos mesmos bastante interessante que ainda desnuda a disputa
costumes de curar por cuja razão é chamado por profissional no campo do domínio do sobrenatural
várias pessoas 5. O mesmo acontece com Ventura, que envolvia os estratos mais baixos da população
escravo de André Gomes Pereira, infamado de ser das Minas:
feiticeiro e curador6.
Esse medo dos cativos como possíveis Estavam a morrer algumas pessoas na casa
manipuladores de doenças mediante a produção de apressadamente e também alguns escravos
feitiços já havia sido matéria das preocupações do desconfiando ele testemunha que seriam feitiços,
jesuíta Antonil no início do século XVIII. Exortando por acaso achou um negro que lhe disse sabia
os senhores a serem moderados – ou pelo menos justos curar o qual se chama José Cabus e vindo este a
– em seus castigos, o famoso inaciano em seu muitas casa dele testemunha lhe curou um negro dizendo
vezes inglório intento de moldar o sistema escravista que a sua moléstia eram feitiços que a dita
à moral cristã, advertia que os escravos poderiam Victoria lhe tinha feito isso depois de terem
tirar a vida aos que lhe dão tão má, recorrendo (se morrido seis escravos que o tal negro Jozé Cabus
necessário) as artes diabólicas, mencionando adiante disse morrerão dos mesmos feitiços... 11
que não faltava entre os negros mestres insignes
nesta arte7. Em outros momentos, contudo, algumas
Vários casos envolvendo africanos e descendentes denúncias nos mostram de forma mais direta o já
enredados nas devassas eclesiásticas, de fato mencionado sentimento de insegurança da camada
descortinam o recurso à “feitiçaria” como um senhorial acerca da possibilidade de prejuízo ou
mecanismo de resistência dos mesmos às condições doença em decorrência dos malefícios feitos pelos
impostas pelo cativeiro e/ou por uma ordem social negros. Vítima deste cotidiano medo senhorial fora
opressora por excelência – embora, naturalmente, Quitéria Mina, admoestada na mesa da visita ao
esta não fosse a única face desse multifacetado Tejuco em 1748, sob a alegação de ter confeccionado
espelho8 –, configurando-se, assim, como mais uma feitiços para afetar sua senhora, que provavelmente
possibilidade de percepção das tensões sociais que deve ter sido acometida por alguma doença
permeavam uma sociedade escravista, ainda que ocasional. Porém o próprio termo de culpa faz
haja na documentação pesquisada uma difícil transparecer a provável materialização dessa
separação entre a prática deliberada de algum tipo fantasia, tendo como incentivo às nada quiméricas
de mal por parte desses agentes e a sempre presente torturas impressas na ré: e negou a culpa e só
desconfiança por parte dos senhores9. confessou que sendo metida pelo seu senhor em
Agindo de modo a confirmar esse medo embalado castigos atormentado deles, dissera que um negro
pela utilização do sobrenatural para imprimir chamado José lhe dera uma raiz, que dera a sua
malefícios aos senhores e/ou aos seus bens o escravo senhora porém que isso era falso, como já tinha muitas
João, de Jorge Lemos, não faria por menos nos anos vezes confessado 12. Em suma, a súbita alteração do
iniciais da década de 1750. Padecendo da torta fama estado de saúde de sua senhora só poderia ter como
de ser feiticeiro que a poucos tempos matou por este explicação a produção de malefícios, e a possível
meio a um negro dos mineiros do Ribeirão do Arco existência de algumas rusgas anteriores ligariam
(...) como também matou a este tempo um seu escravo imediatamente o ocorrido ao nome da escrava
por nome [Bernardo] courano e outro de Pedro Quitéria.
Pacheco Franco e outro do sargento-mor Luiz Vaz de Esse sentimento de insegurança poderia ser
Sequeira e outro a (ileg.) de Andrade 10
vislumbrado igualmente a partir de um patente
No correr do ano de 1757, o lisboeta Lucas de exagero na construção das culpas. Assim aconteceu
Gouveia também teria sua vida afetada por uma com o negro João, que havia sido escravo de
crioula chamada Victória, perdendo por conta de Francisco Xavier, possuidor da fama de feiticeiro e
seus malefícios vários escravos, que como dissera a por conta de seus malefícios era-lhe atribuído o

52 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


extraordinário feito de ter morto ao seu senhor sobrenatural. Esse tipo de postura naturalmente
duzentos escravos . Na imaginativa denúncia
13
também iria embalar as práticas de cura, como
parece óbvio o contraste entre a composição do veremos a partir de agora. Desta forma, no mais das
plantel escravo em regiões tipicamente mineradoras vezes a tênue diferença entre o tratamento oficial e
e o número de vidas supostamente ceifadas pelos o ilegal era estabelecida apenas pela posse da
feitiços do escravo João . 14
licença 17.
Outra sintomática faceta que nos dá boas pistas A justiça do bispado de Mariana no quinto dos
para pensarmos na forma que os mineiros do quarenta quesitos que elencavam os delitos passíveis
setecentos percebiam a interferência do mundo de perseguição nas devassas eclesiásticas, estabelece
sobrenatural, tanto para a aquisição da doença de modo bastante incisivo a repressão que recaía
quanto em suas possibilidades de cura, é a crença de sobre os curadores não-licenciados: Se alguma pessoa
que esses agentes poderiam manipular esses dois adivinha ou benze, ou cura com palavras ou benções
estados ao sabor de seus interesses. O escravo Pedro sem licença de Sua Ilustríssima, ou de seu Provisor, e
fora acusado de com feitiços ter matado várias se alguém que vá buscar crendo que com as suas
escravas e escravos, e estando na iminência de benções pode haver saúde 18. Neste contexto, havia
perder mais uma de suas valiosas “peças” seu senhor uma tendência geral, principalmente dos membros
resolve ser mais persuasivo com o possível do clero, em conceber pelo viés da feitiçaria as
responsável por essas ações e metendo ele testemunha supracitadas práticas de cura – cogitando em alguns
em castigos [o escravo Pedro] se resolveu a dar a desses casos até mesmo o recurso ao diabo por parte
cheirar e provar uns pós ao negro doente e com a dessas pessoas –, especialmente quando encetadas
mesma brevidade com que apareceu a doença com a por negros e seus descendentes, uma vez que estas
mesma ficou são . 15
podiam apresentar um dado novo e assustadora-
Caetano da Costa, negro angola enredado numa mente estranho: os matizes oriundos das mais
devassa civil em 1791, era conhecido como hábil diversas partes da África19.
curador, possuindo uma clientela em nada Protegidos e legitimados pelo manto da Igreja os
desprezível, porém várias pessoas que “curandeiros oficiais” da Colônia também iriam
testemunharam contra suas ações também deflagrar críticas e investidas contra as pessoas que
enfatizaram o fato deste ter sido responsável por três ao realizarem tratamentos sem licença acabariam
mortes. A exemplo do crioulo Francisco da Costa, abrindo-lhes concorrência. Rosa ao escrever um
que se puzera [sic.] a vigiar pelo buraco da fechadura tratado médico publicado em 1694 faria questão
as cerimônias norteadas por Caetano, delatando absoluta de advertir:
posteriormente várias pessoas que conhecia. Quando
soube do ocorrido, o negro angola prontamente disse ...E fez este tratadinho para evitar aos pseudo-
que o dito crioulo não havia de ver nem contar mais médicos o não pegarem de sua bisonharia [sic],
nada, morrendo pouco tempo depois. Em outro para que com os seus aéreos ditames não sejam
momento, Caetano é acusado de dar cabo de causa de algumas mortes; mostrando-lhes este
ninguém menos que sua própria mulher, que ao breve volume os mais largos conselhos, e
repreendê-lo para acabar com seus enganos apropriados remédios tirado não dos empíricos,
diabólicos recebeu como resposta que não havia de mas dos metódicos e racionais 20 .
durar muito, morrendo em seguida quase de repente16.
Expressões como morreu apressadamente; sem Marcando diretamente as diferenças, responsabi-
ferimento algum; quase de repente, que são bastante lizando a “bisonharia” e as mortes encetadas por
recorrentes na documentação investigada, reforçam pessoas mal preparadas e não habilitadas esses
nitidamente a crença na possibilidade da produção cirurgiões oficiais tentavam garantir seu espaço de
de feitiços. Lembremos que se tratava de um mundo atuação. Contudo, essas críticas e rechaços não
que pouco conhecia determinadas doenças, a ficariam apenas na seara do discurso, nas Minas do
exemplo de problemas cardíacos, fomentando com século XVIII encontramos casos em que essas disputas
isso explicações que usavam como lastro o foram mais cabais. Uma das denúncias que recaíram

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 53


sobre o escravo João – que era acusado do assassinato Talvez esta ligação orgânica entre determinadas
de vários escravos de diferentes senhores – fora doenças e feitiços também tenha lhe ensinado seu
implementada por Antônio Jozé de Almeida, que vive antigo dono, que era cirurgião, e aproveitando-se
de sua arte cirúrgica, e sendo chamado para curar desses ensinamentos provavelmente o negro
um negro escravo de Maria que na enfermidade Domingos deve ter conseguido comprar sua alforria.
conheceu ser extranatural, acabou denunciando o Suas práticas, nesta perspectiva, deveriam ser em
possível agente do mal que foi incapaz de curar, tudo similares às exercidas pelo seu senhor com duas
deixando entrever nesta denúncia embates diferenças mais formais que marcariam o fosso
envolvendo saberes, legitimidade de ofício e mesmo existente entre o “feiticeiro” Domingos e o seu ex-
disputas de mercado . Até porque, não podemos
21
dono, qualificado pomposamente como cirurgião: a
perder de vista que as ações de curadores negros posse da licença e a cor de sua pele.
eram no mais das vezes conhecidas, toleradas e Posto isso, do ponto de vista da condução das
mesmo requisitadas com grande freqüência, curas, torna-se extremamente difícil a diferenciação
inclusive entre a população branca. das ações realizadas pelos “feiticeiros” negros não-
Como fica marcado no discurso do cirurgião licenciados e as “curas oficiais” de padres e
Almeida, a supracitada associação entre doenças e cirurgiões, estando, como temos insistido, ambas
feitiços não era exclusividade dos “desclassificados” impregnadas por uma atmosfera sobrenatural. Um
do Antigo Regime, os meios oficiais e mais exemplo que corrobora esse tipo de atitude é o
diretamente vinculados ao mundo letrado também recorrente recurso às orações como mecanismo
iriam se valer desse tipo de explicação para detectar auxiliar nos tratamentos. Expediente que pode ser
enfermidades e buscar seus possíveis tratamentos. achado nas práticas dos africanos e seus
Outro bom exemplo desse tipo de valor pode ser descendentes, a exemplo do que fazia a negra mina
encontrado nas páginas do Erário Mineral, obra Rita, que em suas cerimônias de calundus valia-se
publicada pela primeira vez em 1735 e que possuía de imagens de santos e orações conhecidas da tradição
significativo alcance, no qual seu autor o cirurgião católica como o Credo e a Ave-Maria24, nas bênçãos
Luis Gomes Ferreira também afirma e reconhece a dadas pelo curador branco Prestelo, que rezava
relação entre determinadas moléstias e a existência orações como são Padres-nossos e outras orações que
de feitiços. Inclusive dissertando sobre os vários se usa na igreja 25, ou nos tratados dos decantados
sintomas que sofriam as pessoas vítimas de cirurgiões 26, como Pimenta, que em vários trechos
malefícios, como inchaços, tonturas, impossibilidade de sua obra marca o tempo de aplicação das receitas
da realização do ato sexual (estar “ligado” como era médicas por ele recomendadas através da prática
expresso pela documentação coeva), entre outros de orações, conforme aparece no seu método de
males sofridos em função de estarem enfeitiçados ou lavagem do ânus dos enfermos:
endemoninhados . 22

Uma sentença de livramento proferida pelo Juízo ...e meterá o dedo maior da mão dentro do sêsso
Eclesiástico a favor do negro forro Domingos da Silva, [sic.] e devagar, porque algumas vezes o achará
no correr do ano de 1758, que se encontrava preso na bem apertado, outras nem tanto, e depois que o
cadeia de Ouro Preto por suas curas, novamente nos tiver dentro, o deixará estar por obra de uma
permite sublinhar tal aproximação de saberes e A v e - M a r i a 27.
justificativas atinentes aos tratamentos de saúde.
Domingos curava várias enfermidades que afirmava Para além do uso de orações, um outro aspecto
serem feitiços a base de ervas, purgas e banhos que encurta a distância entre o ilegal e o consentido
conforme algumas das testemunhas tinham contado. no tocante às ações, como sublinha Márcia Ribeiro,
A sentença favorável explicava que o Reo a alguns é a crença na eficácia da utilização de excretos
dos enfermos que curava dizia ser feitiços o que poderia corporais, como saliva, esperma, urina, muco nasal,
ter sido pois cirurgiões e médicos algumas vezes como substâncias terapêuticas, além de unhas, ossos
costumavam dizer quando as moléstias se mostram e cabelos, que eram pensados como elementos
rebeldes a todos os remédios nativos da medicina . 23
vitalizadores 28. Aqui também os tratados médicos

54 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


encarregavam-se de multiplicar a quantidade de médicos licenciados era a produção de vomitórios,
“receitas” em que eram utilizados esses recursos, o emplastros, purgas e elixires, geralmente à base de
que envolvia uma gama de tratamentos para ervas, raízes, ossos triturados e um sem número de
enfermidades bastante diversas: substâncias consideradas terapêuticas, como
aguardente e vinho. Ao que parece, esse tipo de
Para quem comer barro o aborrecer para sempre: expediente foi além do século XVIII, em função dos
Deitais um punhado de terra de qualquer cova altos preços e do difícil acesso aos medicamentos
de defunto em uma quartilha de barro de boca provenientes da Europa. Assim nos mostra o
estreita e, enchendo-a de água, desta água dareis Cirurgião-Mor Caetano José Cardoso e o Físico das
de beber a pessoa (...) os pós de casco de caveira Tropas Luiz José de Godoy Torres, que escreveram
de um defunto, sutilíssimos e dados a beber por no ano de 1813 um pequeno tratado onde nomeavam
quatro dias contínuos... 29
várias plantas achadas nas Gerais e suas possíveis
aplicações para os tratamentos mais variados. Entre
Mais adiante, Ferreira também prescreve um eles, sugeriam a utilização de Cipó de Carijó (Davilla),
emplastro que considera infalível para o tratamento uma vez que a raiz desse arbusto é um violento
de sinais e covas de bexiga no rosto, consistindo em purgante (...) dá-se na dosis [sic.] de meio oitava em
aplicar óleo humano (...) que se for do rim será melhor pó posto em maceração por vinte quatro horas em
e há de morrer esquartejado . Bastante dado a esse
30
vinho34.
tipo de recurso também era Brás Luís de Abreu, que Aspecto digno de nota é que a despeito dessas
publica sua obra no ano de 1726, valendo-se de modo plantas serem definidas pelos supracitados autores
especial de ossos e vísceras de animais tão diversos como “indígenas” e “nativas” das Minas,
como asnos, pombos e carneiros. Acerca das partes encontramos entre elas a indicação da calumba –
medicinais do cão afirma que a cabeça ou o casco também grafada como calunga –, descrita como uma
reduzidos a cinza dececa [sic.] as chagas, cura a icteria raiz amarga bastante eficaz para curar disfunções
[sic.] (...) os dentes reduzidos a cinza e tomados em gástricas. Chama atenção o fato desses dois etmos
gargarejo com vinho aplaca a dor de dentes . 31
serem de origem banto 35, o que sugere, mais uma
A despeito de sua suposta capacidade curativa, vez, a circulação de saberes atinentes às artes de
eram igualmente comuns nos casos que envolviam curas nos “arraiais do ouro”, posto que mesmo se
magia malévola o aparecimento desses ingredientes essa planta fosse realmente “nativa” das Gerais,
quase arquetípicos. 32
Nosso conhecido curador João como supunha os autores do tratado, a escolha de
Cubas (Cabús?) em suas ações administrava termos banto para nomeá-la não parece em nada
vomitórios a base de raízes e diversas ervas, insuspeita. Caminho que naturalmente deve
geralmente em pó, para expelir os feitiços que conduzir a pesquisas posteriores mais
causavam enfermidades em seus clientes. Uma vez pormenorizadas. Em outro trecho dessa obra, o
mais em ação, o negro havia feito um de seus reconhecimento dos saberes dos negros e seus
pacientes externalizar uma unha de defunto e um descendentes torna-se patente: quanto ao que V. Exa
pedaço de mortalha de defunto e umas cobrinhas e exige sobre o valor em que se pode ter cada uma das
outras coisas semelhantes e que viu brotar alguns plantas (...) se podem haver estas por escravos, a
bichos vivos. Uma negra courana que era infamada quem se pague o seu jornal, e por este modo se
feiticeira costumava sair de noite ao redor da igreja e regulará facilmente o valor, que se pretende36.
desenterrar (ileg.) e outros ossos de defunto para com Procedimento bastante similar ao utilizado pelo
eles fazer os tais feitiços . Ou seja, usava-se para fazer
33
Cirurgião-Mor Caetano José em pleno século XIX era
o mau recursos similares àqueles indicados por realizado por um negro mina conhecido como Pai
cirurgiões cultos em seus tratados para curar os Ignácio na freguesia de Antônio Dias cerca de
colonos possuidores de melhores condições financeiras. cinqüenta anos antes, que fora denunciado, como
Outra ordem de ações que aproxima tantos outros, como feiticeiro e curador. Conhecido
enormemente as práticas de curandeiros negros pela manipulação de ervas e curiosidades [sic.]
como João Cabú e Domingos da Silva de cirurgiões e aprendidas na sua terra, segundo um de seus sete

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 55


denunciantes – o bragantino Antônio Francisco – sobrenatural na explicação dada para as doenças e
se fazia respeitar de negros e brancos, o que o tornava suas possíveis formas de cura, essas fórmulas se
bastante requisitado para curar várias pessoas, achavam num terreno bastante pantanoso, entre
entre elas uma escrava de Martinho Vyeira, em que “a magia e a ciência” 40.
Pai Ignácio aplicou nos olhos e cabeça umas ervas Não obstante essas convergências e mesmo
picadas com coisa untava [sic.] dizendo que havia de circularidades de ações e recursos utilizados para o
botar bichos e ossos e de fato viu ele testemunha que tratamento das doenças, que tornavam as diferenças
os botou e ficou sã. Um dado fantástico no caso do entre os métodos oficiais e as práticas ilegais de cura
curador Ignácio é que, sem exceção, todos os bastante difíceis de serem detectadas, encontramos
indivíduos que compareceram à mesa da devassa nas Gerias do século XVIII outras práticas de cura
fizeram questão de sublinhar o fato, desde andar com fortemente marcadas por elementos africanos. O
seu cavalo para todos os cantos com o propósito de negro ladano Antônio, certa vez fora chamado por
atender seus pacientes, o que denotava prosperidade Inácio Ferraz para curar uma de suas escravas,
nos “negócios”, e causava espécie aos brancos engendrando o seguinte ritual:
provenientes da Europa 37 .
Garcia, escravo de Antônio da Cruz, no correr do ...tinha um pau metido no chão e na ponta um
ano de 1743, descobria a existência de feitiços em búzio grande espetado, e dentro um boneco, a
seus clientes a partir de práticas de adivinhação. quem o preto perguntava o achaque que tinha a
Confirmando a enfermidade, o tratamento era dita negra e o boneco respondia com uma voz
norteado a partir da utilização de ervas e beberragens muito fina e desumana contando que tinha
de cachaça com pozes [sic.]38. Outro negro, definido feitiços e perguntando o dito negro como os tinha
como Angola e morador da freguesia de Padre Faria, dado, respondeu o boneco que lhes tinha dado em
também era bastante conhecido e solicitado no final uma picada de fumo na ocasião do Natal (...) e
da década de 1760. Versátil que era, valia-se de viu de repente caiu o búzio grande que tinha o
conhecimentos variados tratando seus clientes com boneco dentro que saltou e caiu arrebentando no
bênçãos, ervas, purgas e administrando sangrias, meio da casa dando um estalo e botando fumaça
justificando com essa prática seu apelido: João e cinzas, ficando o dito negro espantado e a dita
Barbeiro .
39
enferma atemorizada 41 .
Neste contexto, uma vez na Colônia, muitos
negros somavam os conhecimentos herbários Em função de sua atrapalhada e malograda
oriundos da África com informações adquiridas na tentativa de cura, que deixaria o dono da casa que
nova morada. Não seria difícil imaginar que de fato curiosamente espreitava as ações de Antônio por
fossem conhecidas as propriedades terapêuticas ou uma fresta na porta da cozinha completamente
venenosas das diversas plantas e raízes que aterrorizado, o curador africano acabou tendo que
aparecem de maneira tão lacônica nas denúncias desistir do negócio, abrindo brecha para a poderosa
como pozes e ervas. A despeito disso, notamos a “concorrente” atuar, conhecendo a tal escrava a
preponderância de explicações ancoradas na crença cura graças aos exorcismos da Igreja. Prática similar
na feitiçaria e/ou na manipulação do sobrenatural realizava um negro não nomeado do arraial de
para fazer com que as pessoas recobrassem a saúde. Antônio Pereira, que tinha uma figura de algodão
Conforme argumenta Vera Regina Marques, dentro de uma lanterna [provavelmente outro búzio]
essas “medicinas secretas” produzidas e vendidas por e o vi fazendo o dito negro várias perguntas a dita
diversos cirurgiões – cujo segredo era uma parte figura ouve respostas que não sabe ele dito
importante desse negócio – deveriam passar pelo testemunha se fora do negro com voz fingida ou da
aval das autoridades metropolitanas para não serem mesma figura42.
confundidas com as “beberagens” preparadas pelos Mais modalidades de adivinhação objetivando a
negros e seus descendentes. No entanto, para a descoberta de feitiços e suas possibilidades de
autora, tanto na manipulação de vários desses tratamento também podem ser vislumbradas em
ingredientes quanto na crença sempre presente do denúncias que envolviam os africanos e seus

56 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


descendentes. Martinho, que era escravo do mestre- Considerações finais
de-campo Jacinto descobria a natureza das doenças
de seus clientes – fruto de moléstias naturais ou de Como procuramos mostrar, tendo como norte
feitiços – pondo um prato de água lhe meteu um ferro, algumas possibilidades de investigação, embora sem
e com algumas palavras que ele não entendia a menor pretensão de esgotar um tema que se
precipitou a dizer que eram feitiços . No ano de 1759,
43
apresenta de forma tão multifacetada, os habitantes
o negro monjolo Mateus, cujo dono era o alferes José das Minas do “século do ouro” deparavam-se de
da Silva, era igualmente chamado para várias partes maneira muito freqüente com explicações e
para fazer as tais curas e adivinhações se há feitiços tratamentos que davam, tanto às doenças quanto às
ou coisas similares, usando como recurso a leitura suas possibilidades de curas, uma capa sobrenatural.
dos búzios – novamente eles – para conseguir saber Neste sentido, detectamos uma intensa
o que queria. O que torna esse caso ainda mais circulação de saberes e ações envolvendo curadores
interessante é que ele desnuda uma das várias africanos ou descendentes e cirurgiões geralmente
formas de arranjos que permeavam a escravidão, procedentes da Metrópole, que oscilavam
dado que o alferes José fazia vista grossa em relação constantemente seus diagnósticos entre patologias
às práticas de seu escravo porque este lhe paga jornal naturais e a crença de que seus clientes foram na
do tempo que por lá anda44. verdade “embruxados”. Posto isso, não seria difícil
Enfim, torna-se importante fazermos duas imaginar que pacientes desesperados à procura de
ressalvas. Primeiramente, em função dos limites saúde utilizariam indistintamente os exorcismos da
desse artigo, optamos por deixar de lado uma Igreja, as medicinas oficiais e os préstimos de
modalidade coletiva de cura e adivinhação que tinha curadores negros e mestiços, tendo em vista suas
nas Gerais do século XVIII um alcance bastante condições materiais e/ou a manutenção da
significativo, qual seja, os calundus, preferindo, enfermidade.
assim, trabalhar com as denúncias que envolviam Gostaríamos finalmente de sublinhar que, para
as ações individuais desses curadores45. Não menos muitos desses indivíduos, a exemplo do forro
importante é reafirmarmos que a despeito da Domingos da Silva, do negro Mateus e de Pai Ignácio,
possibilidade de identificarmos de maneira pontual a despeito da repressão sempre constante – não
possíveis matizes africanos nessas curas, uma vez percamos de vista que só os conhecemos por conta de
nas Minas, tais crenças sofriam uma série de suas denúncias e castigos – essas ações poderiam
modificações, o que não raro incluía um forte diálogo igualmente significar a garantia de respeito,
com o catolicismo. Nesta perspectiva, antes de reconhecimento social e, mesmo, da compra de sua
pensarmos se tratarem de práticas “puramente” liberdade e bens materiais diversos. Com isso,
africanas, devemos concebê-las como mineiras do novamente nos damos conta de que, apesar de
século XVIII . 46
muitas vezes definidos como “peças”, essas pessoas
faziam-se agentes de sua própria história.

Notas
1
AEAM. Devassas Eclesiásticas 1767-1777 fl. 25. Devo esta 3
Laura de Mello e Souza. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria
indicação, além de várias outras que serão analisadas ao longo e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Cia das
desse artigo à generosidade do professor Luciano Figueiredo, e, Letras, 1995. p. 165
desde já, explicito meus sinceros agradecimentos. 4
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias
2
As devassas eclesiásticas funcionavam ao nível do bispado, de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia das
possuindo teoricamente uma periodicidade anual onde o bispo Letras, 1998. p. 25
– ou subordinado indicado – iria percorrer arraiais e freguesias 5
AEAM. Devassas Eclesiásticas1756-1757. fl. 197
a propósito de conhecer e punir os erros daquela comunidade 6
AEAM. Devassas Eclesiásticas1726-1743. fl. 23v. Os brancos
mediante um conjunto de delitos pré-estabelecidos em quarenta aparecem em âmbito geral apenas como curadores, ainda que
quesitos que eram perguntados a pessoas convocadas para contar reprimidos pela falta da licença estes não costumavam carregar
o que sabiam na mesa das devassas. Para a organização das mesmas, esse estigma negativo de serem feiticeiros, a guisa de exemplo
bem como a análise dos delitos apresentados e ações repressoras poderíamos mencionar o Termo de Culpa de Pedro Ramos, homem
conferir Luciano Figueiredo. Barrocas famílias. Vida familiar branco, por curar com palavras. AEAM. Devassas
em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997. Eclesiásticas1752-1760. fl. 38.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 57


7
ANTONIL, André pe. Cultura e opulência do Brasil por suas 26
Não podemos perder de vista que em alguns casos estanques esses
drogas e minas. São Paulo: Melhoramentos, 1923 [1711]. p. 95. curandeiros negros chegaram a ganhar o reconhecimento oficial
8
Não é incomum para as Minas do século XVIII igualmente por suas ações. Não obstante, a postura mais recorrente era sem
depararmo-nos com denúncias contra negros e descendentes que grande dúvida a repressão a esses agentes.
se utilizavam de recursos mágicos para “domar” a vontade dos 27
Andrade. op. cit. p. 544.
senhores, para torna-los menos violentos ou para que se 28
Ribeiro. op. cit. p. 58 e 71.
apaixonassem por suas escravas, dando mostras de uma espécie 29
Ferreira. op. cit. p. 355.
de resistência via adaptação. A guisa de exemplo poderíamos 30
Ibidem p. 357.
mencionar o caso de Joana Benguela e Joana Ganguella, que no 31
ABREU, Brás Luís de. Portugal Médico. Lisboa: Oficina de Joan
ano de 1767 eram acusadas de fazer feitiços para abrandarem e Antunes, 1726. p. 720-721.
fazerem mansa a sua senhora para que não as castigassem. 32
cf. Souza. op. cit. p. 172.
AEAM. Juízo Eclesiástico 1762-1784 fls. 31-31v. Acerca das 33
AEAM Devassas Eclesiásticas 1756-1757 fl. 218v.
multifacetadas formas de negociação e busca de brechas no 34
CARDOSO, Caetano José de. Lista de várias plantas e seus produtos
mundo escravista, conferir entre outros autores. REIS, João e medicinais indígenas da Capitania de Minas Gerais [1813]. In:
SILVA, Eduardo. Negociação e conflito. A resistência negra no Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte. Vol. VII, 1902.
Brasil escravista. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 747.
9
cf. Souza. op. cit. p. 98 35
Segundo Nei Lopes, calumga(2) significa: “árvores cuja raiz é
10
AEAM. Devassas Eclesiásticas 1750-1753. fls. 97-97v. indicada no tratamento de males do estômago (SAM) –
11
AEAM. Devassas Eclesiásticas 1756-1777, fls. 184-184v. provavelmente o mesmo que calumba”. LOPES, Nei. Novo
12
AEAM. Devassas Eclesiásticas 1745-1750 fl. 2v. dicionário banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003. p.58.
13
AEAM. Devassas 1767-1777 fl. 34. 36
Cardoso. op. cit. p. 746.
14
PAIVA, Eduardo F. Escravidão e universo cultural na Colônia. 37
AEAM. Devassas Eclesiásticas 1762-1769 fls. 99v,100v e 116.
Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. p. 133- Sobre o caso de Pai Ignácio conferir também GROSSI, Ramon
136. Fernandes. O caso de Ignácio Mina: tensões sociais e práticas
15
AEAM. Devassas 1767-1777. fl. 34. “mágicas” nas Minas. In: Varia História. Belo Horizonte: UFMG
16
Emenda por feitiçaria: Caetano da Costa, 1791. Auto 9470. códice nº 20, 1999.
449. fls. 4v e 12. 38
AEAM. Devassas Eclesiásticas 1743, fl. 9v.
17
RIBEIRO, Márcia. A ciência dos trópicos. A arte médica no Brasil 39
AEAM. Devassas Eclesiásticas 1762-1769 fl. 48v.
do século XVIII. São Paulo: HUCITEC, 1997. p. 80; SAMPAIO, 40
MARQUES, Vera Regina Beltrão. Magia e ciência no Brasil
Gabriela. Juca Rosa e as relações entre crença e cura no Rio de setecentista. In: Artes e ofícios de curar no Brasil. São Paulo: Ed.
Janeiro imperial. In: Artes e ofícios de curar no Brasil. São Paulo: Unicamp, 2003. p. 170 e 178.
Ed. Unicamp, 2003. p. 406. 41
AEAM. Devassas Eclesiásticas 1762-1769 fls. 113v-114.
18
AEAM. Devassas Eclesiásticas 1733. apud: Figueiredo. op. cit. p. 42
Ibidem, fl. 62. Segundo Chevalier, os búzios se ligavam ao mundo
187. subterrâneo, e com isso aos mortos. Desta ligação com o mundo
19
Nunca é demais lembrarmos o fato de que o recurso ao dos mortos, difundida arquetipicamente por grande parte da área
sobrenatural – seja para a aquisição da cura ou a produção de da Costa da Mina, podemos entender esse recurso para as
doenças – não era estranho à realidade e ao cotidiano de vários adivinhações das doenças e a indicação das curas. cf. CHEVALIER,
grupos africanos, que uma vez imiscuídos em novo ambiente Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de
acabavam refundindo e aclimatando suas ações com vistas a Janeiro: José Olympio, 1998.p.150 e 270); bem como, LODY, Raul.
suprir uma nova ordem de demandas que se apresentavam com a O povo do santo. Religião, história e cultura dos orixás, voduns,
nova morada, em nosso caso uma sociedade escravista e inquices e caboclos. Rio de Janeiro: Pallas, 1995. p.225.
mineradora da América Portuguesa do século XVIII. Entre outros 43
AEAM. Devassas Eclesiásticas 1759 fl. 90v.
autores, conferir Gabriela Sampaio. Pai Quibombo, o chefe das 44
AEAM. Devassas Eclesiásticas 1753. fl 80.
macumbas do Rio de Janeiro imperial. In: Revista Tempo. 45
Em minha dissertação desenvolvida sobre o assunto há uma
Universidade Federal Fluminense. Nº 11 jul. 2001. p.167-168; discussão acerca da polivalência das práticas definidas como
Robert Slenes “Malungo, ngoma vem!”: África coberta e calundus e outros rituais que embora fossem possuidores de
descoberta do Brasil. In:Revista da USP. São Paulo: USP. elementos relativamente próximos não eram totalmente
Dezembro/janeiro e fevereiro, 1991-1992. Evans-Pritchard. qualificados nas devassas eclesiásticas como tais. Aproveito aqui
Oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro, Zahar para agradecer à minha orientadora, a profª Drª Hebe M. Mattos,
Editores, 1978. p. 108 et. seq. as críticas e sugestões sempre argutas. Conferir, NOGUEIRA,
20
ANDRADE, Gilberto Osório de (ed. Crítica). Morão, Rosa e André. A fé no desvio: cultos africanos, demonização e
Pimenta. (s.l). Arquivo Público Estadual de Pernambuco, 1956. perseguição religiosa – Minas Gerais, século XVIII. Dissertação
p. 236. de mestrado apresentada à Universidade Federal Fluminense,
21
AEAM. Devassas 1750-1759. fl. 97v. 2004. pp. 150-171; ainda sobre o tema, conferir: MOTT, Luís. O
22
FERREIRA, Luís Gomes. Erário Mineral. Belo Horizonte: calundu angola de Luzia Pinta (Sabará – 1739). Revista do IAC
Fundação João Pinheiro, 2001[1735]. p. 196. V.2 N. 1 e 2. e SOUZA, Laura de Mello e. Revisitando o calundu.
23
AEAM. Juízo Eclesiástico. 1748-1765 fls. 78v-79. In: Ensaios sobre a intolerância. Inquisição, marranismo e Anti-
24
Apud: RAMOS, Donald. Influência africana e cultura popular semitismo (homenagem a Anita Novinssky). São Paulo:
nas Minas Gerais: um comentário sobre a interpretação da Humanitas. pp. 314-317.
escravidão. In: Colonização e escravidão. Rio de Janeiro, 1999. 46
Sampaio. op. cit. p. 403; MINTZ, Sidney e PRICE, Richard. O
p. 144. nascimento da cultura afro-americana. Uma perspectiva
25
AEAM. Devassas Eclesiásticas 1767-1777 fl. 47. antropológica. Rio de Janeiro: Pallas, 2003. p. 98 et. seq.

58 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Arte & História:a concepção de arte no oitocentos e a sua
relação com a cultura histórica

Isis Pimentel de Castro

Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo Abstract
A pintura histórica alcançou no século XIX um Historical painting has conquered an important
importante lugar no projeto político do Segundo place in Second Reign’s political project in the 19 th
Reinado devido ao trabalho realizado por Araújo century due to Araújo Porto Alegre’s work, during
Porto Alegre, durante a Reforma Pedreira. Este the Reforma Pedreira. This artistic genre was
gênero artístico foi responsável pela formação de responsible for the formation of a national
uma memória nacional e mantinha um intenso memory and would maintain an intense dialogue
diálogo com a produção do Instituto Histórico e with the production of the Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB). A pintura histórica Gográfico Brasileiro (IHGB). Historical painting
foi essencial na construção de uma identidade was essential in the construction of a Brazilian
nacional, porque através dela foi forjado um identity, because it allowed an epic and
passado épico e monumental onde toda a monumental past to be forged where people could
população pudesse se sentir representada nos feel represented in the glorious events of the
eventos gloriosos da história nacional. O trabalho national history. Porto Alegre’s work – being the
de Porto Alegre como crítico de arte e diretor da author a critic of art and director of the Academia
Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) Imperial de Belas Artes (AIBA) – enabled the
possibilitou a visibilidade da pintura histórica visibility of historical painting and official
com seus pintores oficiais, Pedro Américo e Victor painters, Pedro Américo and Victor Meirelles.
Meirelles. Keywords : Historical Painting, National
Plavras-Chave: Pintura Histórica, Araújo Porto- Memory, National Identity.
Alegre, Arte Brasileira.

Os campos artístico e historiográfico alcançaram de construção de uma identidade nacional. O


tal grau de autonomização que são raros os primeiro autor a se dedicar ao estabelecimento de
profissionais que conseguem circular com uma história da arte brasileira foi Manuel de Araújo
desenvoltura nesses dois espaços. O processo de Porto-Alegre. Com uma vida intelectual intensa,
especialização, intensificado no último século, assumiu posições de destaque nas duas instituições
dividiu em disciplinas saberes que, até então, não se mais importantes do Império: o Instituto Histórico e
reconheciam como distintos entre si. A autoridade Geográfico Brasileiro (IHGB) e a Academia Imperial
conferida ao especialista naturalizou um isolamento de Belas Artes (AIBA), lugares de produção de
entre áreas de conhecimento que nem sempre foram símbolos nacionais, que mantinham um diálogo
autônomas, como por exemplo, a arte e a história. intenso entre suas produções.
Nesse sentido, a própria concepção de “arte Porto-Alegre foi um dos primeiros membros do
brasileira” no século XIX é rica para se pensar a Instituto Histórico, assumiu a função de orador da
relação entre essas duas esferas. instituição por quase quatorze anos, até tornar-se
O próprio termo “arte brasileira” somente pôde secretário e vice-presidente da casa. Ao passo que na
ser pensado no oitocentos, concomitante ao processo Aiba, além de ter obtido a formação de pintor

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 59


histórico, ocupou o cargo de professor de pintura evolutiva no tempo por meio da criação de marcos
histórica entre os anos de 1837 e 1848. Somente em históricos. A construção de um passado artístico
1854 assumiu a direção da academia, sendo o glorioso tornava possível o estabelecimento de uma
primeiro brasileiro a alcançar esta posição. Durante evolução artística, necessária à edificação de uma
sua administração, iniciou uma ampla mudança “arte brasileira”, uma vez que, somente quando fosse
estrutural no ensino artístico da instituição, criado um marco fundador para a produção artística
conhecida como Reforma Pedreira. do país, poderia ser instituída uma linha progressiva
Porto-Alegre pode ser tomado como um exemplo no tempo, que tornaria o presente “habilitado” para
da inexistência de campos de conhecimento o desenvolvimento das belas artes. Esta linha
totalmente autônomos durante o XIX, pois além de evolutiva começava com as primeiras peças
pintor histórico e professor, foi arquiteto, confeccionadas no período colonial e culminava,
caricaturista e escritor. É considerado o fundador obviamente, com a produção dos artistas do Império.
da história e da crítica de arte brasileira, responsável Empenhado na tarefa de estabelecer as origens
pela edificação da idéia de “arte brasileira” no da produção artística brasileira, Porto-Alegre criou
oitocentos. Criou e dirigiu alguns dos principais o que até hoje se chama de Escola Fluminense de
periódicos da época, como a revistas “Niterói” Pintura, termo empregado pela primeira vez no ano
(1836), “Minerva Brasiliense” (1843), “Lanterna de 1841 1 . Esse ensaio foi o primeiro esforço de
Mágica” (1844) e “Guanabara” (1849). Em todas sistematizar o passado artístico brasileiro,
as suas atividades buscou imprimir na produção reconhecido como o artigo fundador de uma história
cultural oitocentista uma “marca nacional” e da arte brasileira. Em sua narrativa, o autor ocultou
investiu na criação de uma “cultura brasileira”. Em tudo aquilo que pudesse colocar em xeque o emprego
suas palavras: “A arte não progride, não forma do termo “escola fluminense”. A existência de poucas
escola, não adquire um caráter de superioridade e referências cronológica serve, justamente, para
de permanência enquanto se não nacionaliza: evitar o questionamento do estilo, já que os artistas
apressar este passo é conquistar o futuro, é encurtar que o compunham nem ao menos tiveram uma
o tempo” (PORTO-ALEGRE, 1850, p. 141). Essa formação artística comum.
marca nacionalista na obra de Porto-alegre também Ao elevar os artífices setecentistas ao status de
pode ser observada no poema “Colombo”, escrito no “artistas”, Porto-Alegre acabou por fundar uma arte
ano de 1866. Aqui, assim como nos demais artigos brasileira antes mesmo da chegada da Missão
que escreveria ao longo de sua vida, enfatiza que só Artística Francesa; sublinhou, desta forma, a
foi possível pensar numa nacionalidade brasileira, genuína vocação artística nacional. Não eram raros
graças à ação civilizatória dos colonizadores os momentos em que igualava os artistas da Escola
europeus, responsáveis por trazer o progresso e as Fluminense aos grandes nomes da arte européia,
luzes aos trópicos. Somente na medida em que o país como é possível ver no texto abaixo:
se igualasse às nações civilizadas seria possível
pensar em arte brasileira. Valentim elevou a arte borromínica a um ponto
Desde sua atuação como crítico de arte Porto- tal, que rivaliza com as maravilhas de Versailles e
Alegre procurou unir história e arte. Essa união pode a Capela Real de Dresda. (...)
ser pensada por dois caminhos: o primeiro, centra- José de Oliveira é o Pozzo brasileiro (...)
se na própria concepção de “obra de arte”, que José Maurício foi o homem que nasceu como Dante
deveria ser antes de tudo uma “obra histórica”, não em uma época bárbara para a música (PORTO-
somente por pertencer ao seu tempo, mas ALEGRE, 1845, p. 241-248).
principalmente porque caberia à história o papel de
civilizar os homens por meio dos exemplos do Os artífices setecentistas eram, em sua maioria,
passado. A arte, a serviço da história, tornava-se negros ou mulatos. Igualar negros escravos, mulatos
um instrumento fecundo ao esclarecimento e ao e forros aos “gênios” da arte européia, não aproxima
progresso da humanidade. O segundo, entende que o autor de uma postura abolicionista. Pois, se no
a história possibilita o estabelecimento de uma linha passado, circunstancialmente, os artistas nacionais

60 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


eram escravos ou forros, no presente eles deveriam cenas mais virtuosas da ação humana. O ensino
ser formados pela Academia de Belas Artes, única artístico da academia seguiu os moldes do
instituição capaz de dar-lhes a educação adequada. neoclassicismo, que tinha inspiração, sobretudo nos
Ao fazer tal comparação, tinha como objetivo inserir estudos de Winckelmann, considerado o principal
a arte brasileira em uma tradição já consolidada teórico do estilo. O neoclássico caracterizou-se pelo
(SQUEFF, 2003). A Europa servia de parâmetro no desejo de elevar o terreno ao divino através das
momento de criação de uma história da arte artes, aperfeiçoar o mundo por meio da razão e da
brasileira. O que não significa pensar essa moral e constituir-se como um importante
“aproximação” como uma “imitação”, pois seu instrumento de civilização. A missão do artista era
intuito ao construir um passado artístico glorioso instruir moralmente por meio da arte aqueles que a
era colocar o jovem Império em consonância com as observam, tal como frisa Winckelmann (1975,
nações civilizadas. p.69); “o pincel que o artista manejar, deverá ser
O termo “arte brasileira” caberia às obras que mergulhado na inteligência”.
preferencialmente representassem temáticas da O discurso visual possuía uma função
história nacional, o que pressupunha a apropriação pedagógica, primordial na inspiração de virtudes e
de elementos do passado para a construção de uma ideais civilizatórios. De acordo com a Regra de
identidade que habilitasse os trópicos a comungar dos Horácio, utilizada com freqüência durante o século
mesmos valores dos países europeus. Desta forma, o XIX, as noções transmitidas através da visão seriam
estilo artístico deveria ser de inspiração européia, sedimentadas de maneira mais rápida e eficaz na
para marcar esse pertencimento junto às nações memória, enquanto aquelas adquiridas por meio da
civilizadas, mas os motivos deveriam valorizar a audição seriam facilmente esquecidas. A visão era
paisagem e os feitos históricos do Império. Somente apreciada enquanto instrumento de conhecimento
com a crise do sistema monárquico e o advento da mais confiável e legítimo. Desta forma, a arte torna-
República esta concepção de arte foi modificada e se fundamental na consolidação de valores como
fundada em novos termos, a criação de técnicas e a ordem, patriotismo e civilidade, tão caros a uma
utilização de materiais genuinamente brasileiros nação em construção.
foram valorizadas (ZÍLIO, 1997, p. 238-239). Inspirada na filosofia clássica, a compreensão de
Uma concepção de arte tão distinta daquela que a arte é uma imitação das coisas e ações
naturalizada nos dias de hoje causa um certo humanas, impregna-a de valores morais, na medida
estranhamento, mas para compreender a em que as artes superiores seriam aquelas que se
emergência desse conceito faz-se necessário propusessem a representar ações humanas
sublinhar o lugar da cultura histórica no século XIX. virtuosas. Capazes de sublimar o espírito na busca
O Brasil oitocentista foi fundamentalmente marcado da “bela alma”, ideal só alcançado por meio da
pelo que Carl Schorske (2000) chamou de um imitação das obras de arte da Grécia Antiga. O
“pensar com a história”, que possibilitou não só o aprendizado do artista deveria ser feito a partir da
surgimento da História enquanto disciplina, mas observação da arte grega, pois esta teria em si a soma
também a emergência de uma gama expressiva de de todos os ângulos perfeitos da natureza e superaria,
produções relacionadas à história . Pode-se citar
2
desta forma, a realidade em beleza e perfeição. A
como exemplos: a arquitetura, que através do imitação aqui se aproxima mais da idéia de
neoclássico buscava resgatar a grandeza e serenidade inspiração, no sentido de alcançar o pensamento
das construções da Antigüidade; a significativa grego: “O importante, quando se faz arte não consiste
demanda por romances históricos; e, sobretudo, a em simplesmente copiar os antigos, e sim em pensar
visibilidade que as pinturas voltadas para a história como os gregos, em comportar-se como eles, exigindo
nacional tiveram nesse século. da arte uma missão semelhante à dos gregos”
A pintura histórica era considerada o gênero (Winckelmann Apud BORNHEIM, 1998, p. 93). A
artístico mais nobre e completo, não só por incluir pintura histórica, por estar diretamente envolvida
em sua constituição todos os demais gêneros da com a exaltação dos momentos gloriosos da nação e
pintura , mas também por abordar em suas telas as
3
dos atos heróicos de grandes homens, torna-se o

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 61


espaço privilegiado para gravar na alma de seus a forma mais eficaz de incutir na população
observadores os nobres sentimentos de amor à pátria. sentimentos patrióticos. Segundo Carlos Zílio (1997,
De acordo com Winckelmann (1975, p. 69), p.237):

todas as artes têm dupla finalidade: devem ao A proposta de Porto-alegre visava dotar a arte
mesmo tempo agradar e instruir. Por essa razão, brasileira de uma identidade própria capaz de
acharam muitos dentre os maiores paisagistas fornecer uma imagem a um país recém
que se desincumbiriam apenas de metade das independente, baseado ao mesmo tempo no estilo
suas obrigações para com a arte, se deixassem as acadêmico com uma temática histórica. Este
suas paisagens sem nenhuma figura humana. projeto terá seu coroamento nas pinturas de Pedro
Américo e Victor Meirelles e seu apogeu na
Justamente por tratar diretamente dos grandes consagração pública e no debate crítico que teve
momentos da história da humanidade, a pintura como objeto as batalhas do Avaí e dos Guararapes.
histórica se configura como peça-chave da relação
entre a Academia Imperial de Belas Artes e o Império.
Sua narrativa era balizada por parâmetros Reforma Pedreira: o estímulo à produção
estabelecidos pelo Instituto Histórico. Tudo aquilo artística nacional
que ferisse os ideais de ordem e patriotismo, como
por exemplo, as revoltas regenciais, deveriam ser A Reforma Pedreira, decretada em 14 de maio de
apagadas da narrativa oficial. Somente seriam 1855, orientou as atividades da Academia de Belas
exaltados os grandes momentos históricos que Artes até a emergência da República, buscou
despertassem o patriotismo. harmonizar a instituição com o projeto civilizatório
As principais referências de pintura histórica são do Império por meio do estímulo à industrialização e
as telas de Victor Meirelles e Pedro Américo, artistas à construção de uma iconografia nacional. De acordo
que produziram num período em que a pintura de com os estatutos da reforma, cabia à Aiba:
história era uma das principais ferramentas na “promover o progresso das Artes no Brasil, combater
construção de uma identidade nacional. Porém, para os erros introduzidos em matéria de gosto, dar a todos
que esse gênero artístico alcançasse tal os artefatos da indústria nacional a conveniente
expressividade com as obras “A Primeira Missa no perfeição, e enfim, auxiliar o Governo em tão
Brasil”, de Victor Meirelles, ou, “Batalha do Avahy”, importante objeto” 4 .
de Pedro Américo, foi necessária uma iniciativa que A reestruturação do ensino artístico se integrava
colocasse em harmonia arte e história. Esse a uma ação mais ampla, que visava a reformulação
movimento das artes em direção a Clio foi posto em das instituições de ensino do país, chamada de
andamento por Araújo Porto-Alegre, tanto nos seus Reforma Couto Ferraz (SQUEFF, 2000). Esta, visava
trabalhos como crítico de arte, como na ocasião em difundir a instrução e criar mecanismos de
que foi diretor da Academia Imperial de Belas Artes. fiscalização das instituições de ensino existentes,
Sua compreensão de arte enquanto relação com além de unificar e centralizar a instrução nas mãos
a história fez com que no período em que foi diretor do governo central, de modo a adequar a nação
da Aiba, de 1854 a 1857, procurasse estimular a brasileira ao modelo de civilização européia por meio
produção de pintura histórica no Brasil. Somente da instrução pública. A difusão homogênea de
quando arte e história caminhassem juntas, seria valores e padrões de comportamento a partir de uma
possível criar um passado glorioso que conferisse ao única matriz, ditada pelo Estado, poria fim aos
Brasil seu lugar junto às nações civilizadas e “localismos” e serviria à consolidação de um
construir uma identidade nacional. A Reforma sentimento de identidade.
Pedreira foi um momento de esforço da Academia Porto-Alegre procurou adaptar a instituição aos
no sentido de revestir a arte de uma identidade progressos técnicos do oitocentos, aumentar a
nacional, cabia à pintura de história um lugar ascendência de professores brasileiros e criar uma
privilegiado nesse projeto, pois configurava-se como nova forma de expressão artística que correspondesse

62 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


à realidade nacional. Redefiniu o papel das de Música à academia, buscou fazer da instituição
atividades manuais, dividiu o ensino da instituição não apenas uma escola de artes, mas também um
entre as atividades técnicas e as artísticas, por centro cultural. Reforçou a política de intercâmbio
conseguinte delimitou o espaço de artistas e artífices da Aiba com os centros artísticos europeus por meio
até então indefinido. Criou cadeiras voltadas ao de relações diplomáticas e acadêmicas.
ensino técnico, desta forma, os artífices receberam Criou uma biblioteca e uma pinacoteca, instituiu
uma formação acadêmica, importante no o cargo de restaurador de quadros e de conservador
desenvolvimento industrial e conseqüentemente no da pinacoteca. Pôs em vigor um grande número de
advento do “progresso”, além de ampliar os normas de conduta, com o intuito de moralizar a
conhecimentos e o campo de atividades dos artistas. instituição. Aproximou o ensino artístico de uma
Os estatutos de 1855 estabeleciam que nas cadeiras formação industrial.
destinadas ao ensino industrial: Ampliou o prazo das bolsas concedidas aos artistas
que conquistassem o prêmio de viagem. Pois,
Haverá sempre nestas três últimas aulas duas segundo ele, o período de dois anos era muito curto e
espécies de alunos: os Artistas e os Artífices, os que insuficiente para o aprendizado de uma língua
se dedicaram às Belas Artes e os que professam as estrangeira e para a formação do artista.
Artes mecânicas. Os alunos desta segunda espécie Estabeleceu uma série de medidas, que
terão um livro próprio de matrícula, na qual se privilegiaram a constituição de artistas “nacionais”,
declarará a profissão que seguem, para que os como por exemplo, estímulo à entrada de brasileiros
professores o saibam e possam dirigir os seus no seio da instituição, seja como alunos ou como
estudos convenientemente 5. professores. A partir destas mudanças, houve uma
significativa ascendência de professores brasileiros.
Embora os artífices freqüentassem algumas das Os estatutos da reforma que regulamentam a
aulas ministradas aos artistas, ficavam restritos às participação nos concursos da Aiba, favorecem os
cadeiras técnicas, não podiam freqüentar, em artistas nacionais, já que não era permitido o ingresso
nenhuma hipótese, as cadeiras destinadas ao ensino nas competições: “Os que tiverem feito seus estudos
artístico (DENIS, 1997). O curso teórico de História fora do Império; Os estrangeiros que não forem filhos
das Belas Artes, Estética e Arqueologia, seria da Academia” 6 .
destinado somente aos alunos-artistas. Os artífices Porto-Alegre reformulou o ensino artístico
possuíam um livro de chamada separado, neste oferecido na Aiba, ampliou a formação do artista.
deveria constar a profissão que seguiam, para que Sua reforma teve um papel fundamental no processo
os professores lhes ensinassem o que fosse útil à sua de definição da atividade artística. Pois, ao dividir o
atividade. curso da Aiba entre técnico e artístico, definiu e
Talvez, sua maior contribuição para a história separou artistas de artífices. Elevou a atividade do
da arte brasileira tenha sido a definição do espaço artista, concedeu-lhe status. Promoveu a arte a uma
social do artista, visto de maneira pejorativa por posição de superioridade e concedeu ao pintor
estar vinculado ao trabalho manual. A própria histórico o mais alto lugar nesta hierarquia dos
ênfase dada pelo diretor ao gênero de pintura gêneros artísticos.
histórica serviu para valorizar o status do artista, já
que caberia aos pintores históricos difundir as
virtudes e os ideais civilizatórios. Fisiologia das Paixões e Modelo Vivo
A Reforma estabeleceu a divisão do curso em
cinco sessões: Arquitetura, Escultura, Pintura, A Reforma Pedreira impulsionou de maneira
Ciências Acessórias e Música. Introduziu as cadeiras significativa a produção de pintura de história, na
de Desenho Geométrico, Desenho Industrial, Teoria medida em que investiu na formação de pintores
das Sombras e Perspectiva, Matemáticas Aplicadas, desse gênero, por meio da ênfase dada às aulas de
Escultura de Ornatos e História das Artes, Estética e Anatomia e Fisiologia das Paixões e de Modelo Vivo.
Arqueologia. Incorporou também, o Conservatório Essas disciplinas visavam aprimorar o desenho do

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 63


corpo humano, inclusive a representação das preocupação em representar eventos gloriosos e
emoções por meio das feições do rosto. Segundo os marcantes, que inspirassem nobres sentimentos.
estatutos da reforma, “os alunos (...) desenharão e Sendo assim, as aulas de Modelo Vivo e de Anatomia
esculpirão ossos e músculos, exercitar-se-ão em e Fisiologia das Paixões constituíam-se como esteios
desenhar o modelo vivo e descrevê-lo na execução dessas telas. Os movimentos do corpo
anatomicamente a fim de conhecerem teriam que ser perfeitamente delineados, as
perfeitamente o arcabouço humano e, seu expressões faciais comoveriam, o panejamento das
revestimento” . 7
roupas pareceria mover-se com a silhueta do corpo,
A perfeita representação do corpo era a base da bem como a paisagem, que seria cuidadosamente
produção de pintura histórica. Preocupado com o “reconstituída” para abrigar os atores da cena, tal
descaso em que se encontravam as aulas de anatomia como num palco. O observador deveria ter a
e de modelo vivo, logo que assumiu o cargo de diretor impressão de ser testemunha ocular do evento.
da instituição, Porto-Alegre estabeleceu em um dos Nenhum detalhe poderia ser mal representado, a
estatutos de sua reforma, que todas as cadeiras identificação do espectador com a cena dependia
deveriam ter um programa que estivesse em disso. Um trecho da carta escrita por Porto-Alegre a
harmonia com a proposta de ensino da casa. Uma de Victor Meirelles, em 1855, mostra o destaque dado à
suas maiores preocupações era romper com o modelo representação do corpo e da emoção:
de ensino baseado na cópia, com o objetivo de incitar
nos alunos a criatividade. Pois, entendia que somente A figura do algoz tem uma boa cabeça; o pescoço,
desta forma poderia conduzir a produção da casa ao o tórax e o abdômen estão sofrivelmente
progresso artístico, pois formaria “criadores em vez modelados e melhor coloridos (...) parece-me que
de copistas”. há uma falhazinha miológica na região
Porto-Alegre chamava também a atenção para intercostal. O braço direito, no que toca ao
a urgência de dotar a instituição de gravuras da antebraço, punho e mão, esses não foram
fauna e flora nacionais, com intuito de valorizar a estudados com tanto amor como o abdômen. O
natureza brasileira. A pintura de paisagem panejamento está bem lançado, bem dobrado, e
desempenharia duas funções primordiais à de um bonito tom, porém, o esbatiamento, ou a
construção de uma identidade nacional: 1) o sombra que lhe projeta o braço não está muito
conhecimento dos espécimes da natureza nacional; exato: deveria seguir as curvas das pregas e não
2) a afirmação do caráter nacional da arte. São apresentar uma linha reta, como a figura em
conhecidos os incentivos do Imperador a pesquisas sua generalidade. (...) Antes de compor, veja a
sobre a fauna e a flora brasileira. ação em geral, veja, depois, cada uma de suas
A Reforma de 1855 também agiu na direção de personagens; estude-as moral e fisiologicamente
estabelecer pré-requisitos mais exigentes para para que elas possam, cada uma per si, compor
aqueles alunos que desejassem ocupar a cadeira de um todo harmônico e verdadeiro (GALVÃO,
pintura histórica, investiu, desta forma, em uma 1959, p.72-73).
formação mais demorada, porém mais completa.
Porto-Alegre estabeleceu que para cursar a cadeira Os estudos sobre anatomia eram a base da
de pintura histórica, o aluno deveria obter boas notas produção de pintura histórica. Por este motivo,
nas seguintes matérias: Matemáticas Aplicadas, quando Porto Alegre dedica especial atenção a este
Desenho Geométrico e Desenho Figurado. Depois de gênero artístico, cria e incentiva as cadeiras de
admitido no curso teria que assistir aulas de Modelo Anatomia e Fisiologia das Paixões e de Modelo Vivo.
Vivo e de Anatomia e Fisiologia das Paixões, matérias É necessário chamar novamente a atenção que a
obrigatórias a quem pretendesse seguir nesse gênero. importância dessas matérias reside em promover a
O exaustivo estudo do corpo humano é ligação entre o observador e a pintura, ou melhor, a
fundamental para a pintura histórica. Como foi identificação do cidadão com os eventos da história
observado, este gênero artístico foi marcado pela nacional, representados na tela.

64 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Pintores de História: entre o historiador e Essa tradição buscou distanciar-se de categorias como
o artista “imaginação”, carregadas nesse momento de uma
conotação negativa. Os pintores de história
A ligação entre pintura histórica e a disciplina empenhavam-se em representar “o que realmente
História vai além das evidentes pistas que o próprio aconteceu” e deveriam, portanto, afastar-se de tudo
nome leva a pensar. Não se trata apenas da que pudesse “falsear” ou “camuflar” esse passado. O
temática das telas, mas também de uma ligação pintor deveria permear todo seu trabalho por uma
estreita entre o trabalho do artista e do historiador, minuciosa pesquisa histórica e atenta observação,
ambos engajados na construção de uma memória pois são elas que “resgatam” e “provam” a existência
nacional e no estabelecimento de uma identidade. do fato que deseja retratar. De nada adiantariam
Como forma de legitimarem a autoridade sobre o todos os seus estudos de anatomia e de claro-escuro,
passado, o historiador e o pintor de história se na representação de um grande momento da
procuraram marcá-la por meio da investigação história nacional, não vestisse seus atores com a
científica. roupa da época ou não reconstituísse o ambiente o
A disciplina História nasceu no século XIX e mais fidedignamente possível. As fontes tornavam-
procurou consolidar seu lugar enquanto ciência por se seu refúgio, quando a critica o atingia, sua defesa
meio das fontes, único elo de ligação entre o era toda pautada no arrolamento dos documentos
historiador e o “fato histórico”. A fonte nesse sentido nos quais se baseou, quão mais “original”, mais
não era entendida como representação, mas como a legítimo seu trabalho.
própria materialidade do passado. A pintura No ano de 1868, Victor Meirelles permaneceu
histórica, por lidar com os “fatos históricos”, também cerca de seis meses em Humaitá, Paraguai, onde
deveria utilizar-se de fontes e buscar a “verdade”. realizou estudos sobre o território para compor a tela
Tanto a Academia de Belas Artes quanto o IHGB são “Passagem de Humaitá”. Ao voltar, embarcou num
herdeiros dessa tradição, pois ambos são responsáveis navio a vapor que percorreu o Rio Paraná. Colheu
pela narrativa do passado nacional. Mais do que isso, novamente informações, porém desta vez para o
essas duas instituições lidam com o elo entre o quadro “Combate Naval de Riachuelo”. O mesmo
passado e o presente. Quando Victor Meirelles tipo de apreço pela precisão histórica pode ser
reinterpretou um episódio como o da Invasão percebido em Pedro Américo, que trocou
Holandesa, na tela “Batalha dos Guararapes”, ele os correspondências com o mordomo do príncipe Gaston
fez “reviver”, construiu uma memória que se d’Orleans, Sr. José Maria Jacintho Rabello8, e pediu-
apoiava na (re) constituição desses momentos a lhe informações sobre o traje que o Conde d’Eu
partir de uma narrativa oficial. vestia, os nomes e postos das pessoas próximas a ele
As produções da Aiba e do IHGB estavam durante o episódio da batalha na região do Campo
carregadas de uma dimensão didática, a escrita e a Grande, entre outros dados que julgava necessários
imagem serviam ao esclarecimento dos seus para confeccionar a “Batalha de Campo Grande”.
cidadãos, pois gravavam em seus espíritos as A tela não poderia ser puro exercício da
virtudes de uma boa sociedade, ditadas, é claro, pela “imaginação” do artista, mas sim fruto de pesquisas
elite do Império. Desta forma, tanto o Instituto documentais, de leitura de textos sobre a época e de
Histórico quanto a Academia Imperial, tornaram- observação dos personagens e do local onde o evento
se instâncias de controle social, exatamente por se ocorreu. Nesse sentido, a crítica do jornal italiano
constituírem como lugares de construção do passado. “Corriere Italiano” (26/abril/1888) sobre o quadro
Nesse sentido, as duas instituições detinham o “Proclamação da Independência”, de Pedro Américo,
domínio sobre a escrita desse passado, enquanto a exposto em Florença no ano de 1888, fazia a seguinte
Aiba a escrevia na tela a óleo, o IHGB a fazia no afirmação:
papel. Qualquer outra visão que não a oficial, não
encontrava espaço para florescer. A ação foi estudada no próprio cenário e
A pintura histórica procurou marcar sua habilmente representada com todo rigor
legitimidade por meio da investigação científica. histórico. (...) Em resumo, a nova tela de Pedro

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 65


Américo é uma obra colossal... e que traz o cunho apreciados, foram admitidos nas sociedades mais
de uma imaginação criadora e de um robusto brilhantes, gozam agora de estima e da
engenho; qualidades que se manifestam na consideração geral. O Imperador manda parar sua
concepção, no desenho, na verdadeira carruagem na rua para conversar com pintores;
reprodução dos tipos e dos costumes locais assim deixando um deles cair o pincel num momento de
como do cenário onde se passou o fato histórico e inspiração, o Imperador se abaixou, ergueu-o e o
que o autor faz representar com tanta robustez devolveu.
de idéia e de execução (Apud ROSEMBERG, 2002,
p. 72-3, grifo nosso). A Reforma Pedreira forneceu as bases sobre as
quais as pinturas históricas se consolidariam de tal
O rigor no estudo da anatomia e a busca pela forma na memória nacional, que se desvinculariam
veracidade são dois lados de um mesmo objetivo, que de sua dimensão histórica original. Ou seja, ao invés,
é promover a ligação entre o observador e a pintura, de serem encaradas como frutos de uma determinada
ou melhor, a identificação do cidadão com os eventos concepção artística e histórica oitocentista, são
da história nacional representados na tela, são esses tomadas como reflexo daquilo que representam.
dois elementos que fundamentaram a pintura Estas imagens acompanham a trajetória de
histórica, enquanto produtora de uma imagem grande parte da população brasileira, seja por meio
oficial da nação a partir de 1870. de livros didáticos, de revistas, de cenas da televisão
ou mesmo através do cinema, como é o caso do filme
“Descobrimento do Brasil” (1937), do diretor
Pintura Histórica: a construção de uma Humberto Mauro. Imagens, que de certa forma, se
memória nacional eternizaram no imaginário com tal força que é quase
impossível pensar na missa realizada por ocasião do
Embora as mudanças introduzidas com a “Descobrimento”, sem nos remetermos automatica-
Reforma Pedreira não tivessem resultados mente à tela de Victor Meirelles, “A Primeira Missa
imediatos, estabeleceram as bases sobre as quais o no Brasil”. É importante refazer o percurso que as
ensino das belas artes atingiu o auge de sua vocação levou a possuir tamanha força e importância,
nacionalista a partir da década de 70. Foi neste desnaturalizar seu lugar de “imagens canônicas”,
período que a pintura histórica ganhou expressão devolver-lhes sua historicidade (SALIBA, 2002.).
com seus artistas oficiais – Victor Meirelles e Pedro O movimento no sentido de historicizar não só o
Américo – e quando as Exposições Gerais tornaram- que é entendido como “arte brasileira”, mas
se os grandes eventos do Império. Segundo Debret conseqüentemente as telas de pintura de história, é
(1989, p.104), foi graças à direção de Porto-Alegre uma forma de compreender esses símbolos enquanto
que a pintura histórica conseguiu popularidade e construções históricas. Tomar essa memória como
prestígio. questão é ao mesmo tempo problematizá-la enquanto
fruto de uma experiência histórica, constituidora
(...) os pintores, que não eram até então de nossa própria identidade.

Notas
1
PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo. Sobre a antiga escola de imaginação, ligados a temáticas populares. Com o advento de
pintura fluminense. Revista do Instituto Histórico e Geográfico movimentos como o Realismo, por exemplo, essa hierarquia é
Brasileiro, tomo III, Rio de Janeiro, 1841. invertida, e temas do cotidiano são valorizados.
2
Cf. BANN, Stephen. Romanticism and the rise of history. New York: 4
ESTATUTOS DA ACADEMIA DAS BELAS ARTES. Decreto nº1603
Twaine Publishers, 1995; GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. A de 14 de maio de 1855. Dá novos estatutos à Academia das Belas
cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memória Artes, Título IV, artigo 10.
disciplinar. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). História Cultu- 5
I d e m , título VIII, art. 79.
ral: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2003. 6
Idem, título IV, art. 56, §2; §3.
3
Em ordem decrescente a hierarquia dos gêneros de pintura 7
Idem, título V, seção XII, art. 45.
estava desta forma estabelecida: pintura histórica; pintura de 8
Carta de 8 de novembro de 1869. Arquivo histórico do Museu
paisagem, de retrato e de gênero; Temas oriundos da Imperial.

66 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Referências

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DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Belo SCHORSKE, Carl. E. Pensando com a História. Indagações na
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989. passagem para o modernismo. Tradução Pedro Maia Soares. São
DENIS, Rafael Cardoso. A Academia de Belas Artes e o ensino Paulo: Cia. das Letras, 2000.
técnico. In: 180 Anos da Escola de Belas Artes. Anais do Seminário SQUEFF, Letícia Coelho. A Reforma Pedreira na Academia de Belas
EBA 180. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 1997, p. 127-146. Artes (1854-1857) e a constituição do espaço social do artista.
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PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo. Santa Cruz dos militares. _________________. Quando a história reinventa a arte: A escola
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_____________. Algumas idéias sobre as Belas Artes e a Indústria rotunda/rotunda01.pdf>. Acesso em: 9 jul. 2004.
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oitocentista. Rio de Janeiro: Barroso Edições, 2002. anos da Escola de Belas Artes. Anais do Seminário EBA 180. Rio
de Janeiro: EBA/UFRJ, 1997. p. 237-242.

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Paz e Amor na Era de Aquário:
a Contracultura nos Estados Unidos

Neliane Maria Ferreira

Mestranda em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia e professora do


Centro Universitário do Cerrado Patrocínio

Resumo Abstract
O presente artigo analisa os movimentos The present article presents an analysis of the
constituintes da contracultura nos Estados Unidos, reaction against constituent movements of a
entre as décadas de 1950 e 1970, sob o referencial counter-culture in the United States, between the
de discussões feitas por Herbert Marcuse acerca da decades of 1950 and 1970, according to
Nova Esquerda americana. discussions by Herbert Marcuse about the New
Palavras-chave: História, Contracultura, American Left Wing Party.
Estados Unidos. Keywords: History, Counter-Culture, United States

No decorrer da década de 1960, nos Estados atitudes encontram-se o macarthismo e a Guerra


Unidos, as universidades passaram a discutir a do Vietnã, assim como o grande incentivo ao
respeito das necessidades práticas da sociedade norte- progresso tecnológico na disputa com a União
americana e o perfil dos futuros profissionais que Soviética comunista.
estavam formando. A partir de então, novas linhas Marcuse criou o termo Nova Esquerda no início
de estudo começaram a ser abordadas, como o dos anos 1970, numa época de grande sintonia de
marxismo e o pensamento freudiano, e novas publicações em vários países. O filósofo dialogou
faculdades foram sendo criadas, adotando uma intensamente com o momento histórico em que
postura mais crítica diante da realidade. No mesmo viveu e sua obra é de grande relevância tanto
período, desenvolveu-se um rompimento e uma política quanto filosófica. Em seu livro “Contra-
aversão aos tabus e valores tradicionais da sociedade Revolução e Revolta” (1973), Marcuse discutiu a
norte-americana, através da ação de uma Nova derrota revolucionária dos anos 1960 e as bases pelas
Esquerda: os beats, hippies, gays, feministas, negros quais o mundo ocidental iria se redimensionar a
e intelectuais. partir de então. Encarou esses anos como de grande
Herbert Marcuse foi um dos mais importantes potencialidade revolucionária, enxergando ali
sociólogos alemães, pertencente à escola de possibilidades de transformações radicais.
Frankfurt. Nasceu em 1898, em Berlim, numa Segundo Marcuse, a Nova Esquerda norte-
família judaica, mas naturalizou-se norte- americana da década de 1960 não possuía uma
americano pós fugir do nazismo e ter se exilado nos ideologia definida (marxista ou socialista) e não
Estados Unidos. Foi membro do Partido Social- considerava a classe trabalhadora como força
Democrata Alemão entre 1917 e 1918, falecendo em potencialmente revolucionária. Ela era constituída
1979. Marcuse, em muitos de seus textos, procurou por intelectuais, grupos que lutavam pelos direitos
delinear as atitudes contra-revolucionárias norte- civis e jovens considerados radicais – hippies - que
americanas diante dessa Nova Esquerda que não possuíam atitude política, segundo a visão da
contestava o american way of life. Entre essas esquerda tradicional. A oposição estava organizada

68 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


em dois pólos extremos da sociedade norte- maioria integra-se na sociedade capitalista devido
americana: as minorias raciais e demais aos benefícios que lhes são conferidos. O que se pode
marginalizados e a oposição estudantil oriunda da observar é que, com o aumento da produção dentro
classe média. A luta empreendida naquele momento dos moldes do sistema capitalista, também ocorre
se diferenciou também das pré-existentes uma maior intensificação do trabalho alienado e um
historicamente, não só pelo seu estilo cultural, mas aumento constante da competitividade,
também porque se estabeleceu contra uma sociedade perpetuando o alto padrão de vida de alguns e
democrática e desenvolvida economicamente. aumentando assustadoramente o empobrecimento
Os jovens norte-americanos das décadas de 1950 da maior parte da população mundial. Aí encontra-
a 1970 manifestaram seu descontentamento em se um paradoxo quanto à concepção revolucionária
relação ao american way of life de forma singular, de Marx, que encontra na classe operária a
formando vários movimentos, que os jornalistas vanguarda do movimento transformador da
locais chamaram de contracultura. Levantavam as sociedade.
bandeiras dos lemas Peace and Love e Make love, not A excessiva produção de “artigos supérfluos”
war. A contracultura acabou se tornando um garante imagens de um mundo de facilidades,
fenômeno de proporções continentais, propondo uma satisfação, deleite e conforto causados pelo trabalho
nova maneira de agir, pensar e sentir, o que fez com alienante. Todas essas qualidades, antes privilégios
que esse movimento fosse extremamente rico de das classes abastadas, estavam alcançando as
significados. massas. Fazia-se necessária uma conscientização da
Em contrapartida aos movimentos pacíficos da exploração e da opressão empregadas pelo sistema
contracultura, as décadas de 1950 até 1970 foram vigente. A revolução tinha de ser qualitativa,
marcadas pelas perseguições aos comunistas e atingir todos os segmentos e modificar a forma com
antiimperialistas em todo o mundo ocidental. Nos que as pessoas enxergavam a própria vida. É neste
Estados Unidos, o período foi marcado pelo contexto que surge uma revolta por parte da
macarthismo, pela repressão contra estudantes, pela população jovem, avessa à sociedade de consumo e
Guerra do Vietnã e Guerra Fria, pela contestação da ao trabalho alienante.
beat generation e dos hippies, pelo preconceito racial, Ao atingir uma nova fase de desenvolvimento, o
por um ataque aos estudos humanistas e aos mundo ocidental, representado principalmente
intelectuais radicais, por um grande pelos Estados Unidos, passou a defender o sistema
desenvolvimento tecnológico e ainda pela tríade capitalista através da contra-revolução interna e
clássica: “sexo, drogas & rock’n roll”, assim como externa. A partir dessa postura, foram
pelos movimentos negro, gay e feminista. desencadeados massacres indiscriminados sobre
Para Marcuse, não bastava naquela época mudar nações com o intuito de afastar a ameaça comunista
as estruturas sem mudar a consciência das pessoas, e ocorreram grandes perseguições em países latino-
isto é, sua maneira de pensar e ver o mundo. Para americanos sob a forma de ditaduras fascistas ou
ele, o processo revolucionário implicava uma militares.
necessária mudança da lógica capitalista Houve em diferentes épocas nos Estados Unidos,
introjetada. Marcuse fez também uma contraposição acontecimentos marcados pela agressividade da
à interpretação da esquerda ortodoxa que só postura anticomunista e antidemocrática do país.
qualificava como revolucionárias pessoas Um forte exemplo disso foi a atuação do Comitê de
diretamente envolvidas no processo de trabalho. A Atividades Antiamericanas, entre 1938 e 1975,
classe operária integrou-se ao modo de produção durante um período conhecido como macarthismo,
capitalista, absorvendo os seus valores e uma acusando profissionais de várias áreas de estarem
consciência anti-revolucionária, num mercado que ligados ao comunismo. Por volta de 1947, seu alvo
tornou-se capaz de envolver os indivíduos. foi principalmente o quadro de artistas de
É marcante o predomínio de uma consciência Hollywood.
anti-revolucionária na maioria da classe A perseguição aos artistas hollywoodianos foi
trabalhadora norte-americana e até mundial. Esta marcada por terríveis momentos, quando foram

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 69


delatadas e acusadas de comunistas várias O Movimento Beatnik
personalidades que muitas vezes nem tinham
militância política. Até mesmo estrangeiros - como A Geração Beat, movimento cultural ligado à
o dramaturgo alemão Bertold Brecht, que passou a literatura, surgido durante os anos 1950, era
residir nos EUA em 1941, fugindo do fascismo composto por jovens de classe média que viam as
europeu - foram intimados a comparecer ao cidades crescerem inadvertidamente, e a natureza
interrogatório do Comitê. Muitas pessoas deixaram ficar cada vez menos presente no cotidiano das
o país. Bertold Brecht, ao que se sabe, nunca pessoas. Como forma de reação a isso, propunham a
pertenceu ao Partido Comunista e mesmo assim foi opção por uma vida periférica, marginal, longe dos
acusado, tendo de comparecer ao interrogatório. arranha-céus, do mercado de trabalho, da sociedade
Contra as agressões da classe dominante e dos de consumo e de toda a esfera que o capitalismo e o
governos, surgiu a resistência estudantil, pela qual progresso tecnológico instaurava. Eram vistos pela
vários estudantes foram presos, torturados e mortos sociedade tradicional como “rebeldes sem causa”. O
em vários países do mundo na época. Muitos termo beat podia assumir várias conotações, mas
militantes negros morreram e também não estavam sugeria a busca de uma purificação do espírito
em segurança aqueles que eram considerados (beatitude), sob a influência de religiões orientais,
demasiadamente liberais, como o caso dos membros como o budismo. Os beats se expressavam através
da família Kennedy, assassinados nos Estados de poemas e viviam cada dia como se fosse o último,
Unidos. O seu mais ilustre representante John utilizando drogas como LSD para “elevarem” a
Kennedy, eleito presidente em 1960, cuja política mente. Eles não estavam ligados a qualquer
interna prometia atacar a pobreza e a discriminação movimento esquerdista institucional, não
racial através da Lei dos Direitos Civis, intensificou constituíam um partido e muito menos tinham um
a luta contra o comunismo, sendo esta sua principal programa a ser cumprido. Suas intenções eram tão
bandeira quanto à política exterior. Caracterizado somente viverem numa sociedade diferente.
como uma figura dúbia, era ao mesmo tempo O movimento beat foi um movimento cultural
conservador no campo das relações internacionais e que precedeu os hippies. Segundo Jacoby (1990) ele
o representante mais significativo da democracia exerceu uma influência fundamental sobre os
norte-americana. Durante seu governo houve uma segundos, pois a maioria dos jovens costumava ser
dinamização da corrida espacial e armamentista, apática politicamente até aquele momento. Apesar
em decorrência da Guerra Fria. Kennedy foi de pioneiros nessa forma cultural de manifestação,
assassinado em 1963, em Dallas, nos EUA, por um os beats não se organizavam num grupo ativista,
cidadão americano. sua pretensão era o auto-conhecimento para melhor
A partir da ameaça da contracultura, a contra- conhecerem o mundo e se posicionarem contra o que
revolução foi organizada para enfrentar aquela que estava estabelecido previamente como cultura.
seria a mais radical de todas as revoluções históricas. Através do filme Easy Rider (1969), dirigido por
Através do progresso tecnológico e das reformas Dennis Hooper, e do livro On the Road (1957),
internas, o poder de compra da massa norte- percebe-se a forma como os beats enxergavam a vida
americana foi aumentado e isso contribuiu para a e a sociedade em que estavam inseridos. Seus
diminuição do potencial revolucionário da mesma. principais porta-vozes foram Jack Kerouac, autor
Mesmo assim alguns movimentos persistiram, como de On the Road e Allen Ginsberg, que escreveram
a oposição estudantil que seguiu lutando pela livros e poemas hoje utilizados como documentação
reforma das universidades, para que estas por estudiosos desse movimento.
assumissem a plena validade do trabalho científico. Aparentemente afastados do rock (nunca
Algumas se tornaram universidades livres, nas esconderam sua aversão pelo rock’n’roll adolescente
quais passou a se estudar marxismo, psicanálise e dos anos 1950), os autores beats teriam grande
política exterior. importância para o rock dos anos 1960,
influenciando músicos como Bob Dylan, John
Lennon e Jim Morrison 1, devido aos temas críticos

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que focavam em relação ao estilo de vida americano, conseguiam trazer em suas vozes e acordes a fusão
incentivando o uso das drogas, o sexo livre e as entre música negra e música branca.
utopias. Pode-se dizer que os beats tentaram fazer a Entre os vários grupos musicais surgidos entre
ligação direta entre a arte e a vida no mundo Liverpool e Londres, na Inglaterra, no início da
moderno, antecipando um dos princípios básicos dos década de 1960, dois alcançaram em pouco tempo,
movimentos jovens dos anos 1960, que era obedecer um sucesso internacional sem precedentes,
aos instintos de uma cultura alternativa ligada ao modificando de modo profundo não somente a
cotidiano, independente do reconhecimento da música popular mundial, mas o estilo de vida
cultura oficializada pela sociedade, aquilo que ficou juvenil: Beatles e Rolling Stones, cujas capacidades
conhecido como contracultura, e começamos para representar os valores de seu tempo era
denominando aqui de Nova Esquerda. indiscutível. Essa afirmação tem como base músicas
que se tornaram marcos como Help! e Satisfaction.
Os Beatles se constituíram num laboratório de
Os Hippies e o Rock influências e pesquisas que iam da música eletrônica
à canção folclórica, da música oriental a mensagens
O movimento da contracultura foi caracterizado, existenciais. Enquanto isso, o estilo dos Rolling Stones
principalmente, pela figura dos hippies, que não se aproximava das tonalidades negras do blues.
estavam inseridos na sociedade produtiva e que, Essa explosão do rock inglês acabou despertando
junto a outros grupos, denunciaram muitas feridas e influenciando a música norte-americana, em
na sociedade ocidental. Uma das formas de se refluxo criativo desde os fins dos anos 1950. Essa
denunciar os problemas sociais da época foi o rock, influência tornou-se acentuada a partir de 1964,
através do qual os revolucionários puderam mostrar quando os Beatles fizeram a sua primeira excursão
muito daquilo que pensavam e propunham. aos Estados Unidos. Era um momento de profunda
As raízes do rock estão no rhythm & blues, estilo crítica social e política por parte principalmente dos
musical dos negros norte-americanos, e a partir do jovens, que sintetizavam sua contestação em
seu surgimento foi penetrando cada vez mais nas manifestações como as que pregavam o pacifismo
sociedades ocidentais. Assim, conseguiu ir além de hippie. Em grandes festivais como Woodstock, as
um mero tipo de música, transformando-se numa pessoas se encontravam e experimentavam o
forma de comportamento, numa maneira de ser coletivismo, ao mesmo tempo em que protestavam
adotada pelo seu público - a juventude. Tendo surgido contra a intervenção dos Estados Unidos na guerra
nos Estados Unidos, atravessou as fronteiras entre os Vietnãs.
tornando-se um fenômeno mundial e perene. O filme Hair (1979), do diretor Milos Formam,
Os negros, marginalizados na sociedade anglo- adaptado de musical da Broadway com o mesmo
saxônica e confinados nos seus guetos, exprimiam nome, mostra o estilo de vida dos hippies, sua
através da dança e do blues sua situação de preocupação com a coletividade e sua falta de
desigualdade e sentimento de revolta. E daí originou- moradia fixa. Mostra também como utilizavam uma
se o rock, que mais tarde atrairia multidões de jovens consciência subjetiva, agindo de acordo com suas
e expressaria seus modos de pensar sobre os conceitos vontades e não guiados pelos padrões tradicionais de
de família, drogas, amor, entre outros. vida. Era através das roupas coloridas e dos cabelos
A “febre” musical daqueles anos de contracultura longos ou black power que a sociedade identificava
começou em 1967, em festivais como os de esses indivíduos, que não se submetiam à
Woodstock, Monterrey e Altamont. Foi neles que se mecanização e à generalização da esfera capitalista.
concretizou a fusão entre o blues e o rock’n’roll, entre Alvos de grande preconceito por seu estilo de vida
o instinto vital da música negra e a sofisticação totalmente diferenciado da famílias tradicionais, ao
eletrônica criada pala tecnologia branca, lado dos seguidores dos beats e do rock, negros,
desbravando novos caminhos para o futuro do rock. mestiços e intelectuais radicais, os hippies formavam
Ícones como Jimmy Hendrix e Janis Joplin, o que Marcuse chamou de Nova Esquerda.

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O Movimento Negro foi também a partir da religião que os negros
começaram a politizar-se e a lutar contra sua
Dentro dos movimentos constituintes da realidade, formando grupos para sua própria defesa
contracultura encontramos também o movimento e começando a se interessarem mais por seus direitos
negro. O maior de todos se localizava no Harlem, e deveres.
local de maior concentração negra nos Estados
Unidos, entre as décadas de 1960 e 1970. Mesmo no
Harlem, um gueto dos negros, o negro não era seu A Guerra do Vietnã
senhor. No bairro o que se percebia era medo, política
e religião como fatos concretos de seu cotidiano. O Os Documentos do Pentágono que foram estudados
medo sempre existia devido à presença branca por Hanna Arendt (1973) em seu texto “A Mentira
vigiando-os em todos seus movimentos. na Política” lhe possibilitaram uma análise do
Os guetos eram locais muito patrulhados devido processo de tomadas de decisão em política
à suposta vadiagem ali existente. Porém essa vietnamita. A análise de Hanna Arendt torna
vadiagem era também um produto social. No Harlem possível a compreensão da intervenção norte-
não havia empregos, sendo seus negros jogados na americana no Vietnã como um produto da guerra
prostituição, na venda de drogas, envolvidos em fria ou da ideologia anticomunista ocidental. O
jogatinas. Com toda essa ociosidade, havia uma material está repleto de declarações falsas que eram
marginalidade muito grande, praticada veiculadas em jornais, o que mostra a intensa difusão
principalmente pelos jovens que não podiam da mentira na política norte-americana.
freqüentar as escolas, sobrando-lhes um instinto de Em todos os fatos documentados, verificamos o
sobrevivência e vingança. Com isso, a morte se fazia uso de mentiras para o encobrimento das falhas do
presença constante dentro dos guetos. aparelho administrativo norte-americano. A
Os negros não tinham oportunidades e por isso, mentira, para ser eficiente, deve conter testemunhos
eram pobres em todos os aspectos. Suas escolas eram que a comprovem ou mentirosos que possuam
inferiores às dos brancos, sendo classificadas como credibilidade e que, principalmente, saibam
deficientes. Com isso, consequentemente a elaborar inverdades que as pessoas desejam ou
oportunidade de trabalho também ficava limitada - esperam ouvir. Porém, com a Guerra do Vietnã, essa
primeiro por não terem educação suficiente e, estratégia não funcionou. No início da intervenção
segundo, porque quando conseguiam algum militar por parte dos Estados Unidos no Vietnã do
emprego eram os de piores condições e mais mal Norte, contava-se com a vitória. E essa certeza era
pagos. Os brancos sempre foram mais privilegiados transmitida pela mídia ao povo norte-americano.
nesse aspecto. Quando conseguiam completar um A partir de 1965, este tipo de declaração passou a
curso superior, eram obrigados a voltar aos guetos, ter como objetivo também convencer o inimigo da
pois a sociedade branca não os aceitava entre ela, sua derrota. Mas o intuito não foi satisfatoriamente
impossibilitando-lhes de conseguir melhores atingido e não houve persuasão das pessoas. Então
condições de vida e trabalho, numa espécie de círculo os Estados Unidos passaram a pensar numa forma
vicioso. de sair da guerra sem ter que assumir a sua
Entre os negros, a religião tinha basicamente humilhante derrota para o mundo todo e
duas funções: levar conforto e relaxamento e, ao principalmente para a opinião pública norte-
mesmo tempo, dar força para enfrentar situações. americana. Havia uma grande preocupação em
Martin Luther King utilizava de seus sermões para manter a reputação de grande potência e a idéia de
aprimorar a cultura dentro da realidade em que sua força no combate ao comunismo.
viviam. As igrejas também constituíam um espaço O filme Apocalypse Now (1979), de Francis Ford
para se discutir suas condições de vida. Foi nesse Coppola, mostra que a maioria dos jovens que iam
âmbito, do canto gospel, que a musicalidade negra defender os Estados Unidos na guerra do Vietnã
se desenvolveu, surgindo dali o blues e o jazz, músicas estavam apenas cumprindo um papel que lhes foi
de lamentos e histórias de vidas. Além da música, atribuído naquela sociedade, mas não tinham

72 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


nenhum objetivo, nem consciência dos ideais que liberdade de expressão ficou limitada para qualquer
estavam em jogo. Em contrapartida, os vietnamitas tipo de classe.
tinham consciência dos motivos pelos quais estavam
lutando. Eles cresciam aprendendo a ter esse tipo de
consciência, pois enfrentaram um longo processo de Considerações finais
lutas pela independência de seu país anteriormente.
Marcuse, em sua obra, realizou uma análise sobre
a nova fase de desenvolvimento do mundo ocidental
A “queda” da contracultura e a defesa do sistema capitalista dali decorrente, que
passou a exigir a organização de uma contra-
A existência de indivíduos que não se adequavam revolução. Esse processo de contra-revolução tinha
à sociedade de consumo e se posicionavam contra a como função manter a intocabilidade do sistema,
Guerra do Vietnã, a favor dos negros e acima de tudo, caracterizando-se como preventivo e muitas vezes
contra os valores estabelecidos, era um fator que apelando para atitudes extremistas. Ele demonstrou
realmente estarrecia a tecnocracia norte- não acreditar numa revolução apenas como uma
americana. O Central Park foi o palco de inúmeras transformação nos meios de produção, mas sim como
manifestações, em que eles pregavam o sexo e amor um processo de mudança radical dos próprios
livres, o fim da Guerra do Vietnã, discursavam a indivíduos e de seus valores tradicionais, de sua
favor das igualdades de direitos e em contraposição estética cultural e da maneira como entendem a
ao ocidentalismo. No filme Hair o ideal de ir à guerra realidade. Para ele, uma revolução só aconteceria
movido por um sentimento de patriotismo é realmente com a transformação total da
paulatinamente desconstruído. mentalidade das pessoas.
A década de 1960 foi dotada de grande potencial Na sociedade ocidental, o sistema cria as
revolucionário e, ao mesmo tempo, foi também necessidades das pessoas e em nome dessas
essencialmente contra-revolucionária. Naquele necessidades são sufocadas as suas liberdades. E esse
momento, com o avanço da industria cultural, os sistema é mantido pelo consumo, pela exploração e
jovens sentiam-se retraídos e incompreendidos por circulação de mercadorias. Assim, para haver uma
uma sociedade demasiadamente conservadora para mudança para o socialismo, precisariam ser
compreender o novo mundo que eles estavam mudadas também as necessidades da população,
oferecendo. Cercados por este sistema, o movimento criadas pelo capitalismo. A fase de expansão do
da contracultura foi se fragmentando. Aquela capitalismo implica o declínio do potencial
energia pacífica e revolucionária começou a revolucionário. E isto era evidente nos Estados
transformar-se numa vasta sensação de futilidade e Unidos visto que, quanto mais desenvolvimento
modismo. Mesmo antes dos estudiosos e dos tecnológico tiver uma sociedade, menor será a sua
jornalistas, os próprios artistas do rock começaram perspectiva revolucionária. Não havendo
a sentir esse dilema. Para muito deles como Jimi transformação radical interna não pode haver
Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison, o conflito mudança alguma.
interior criado a partir dali resolveu-se pela morte. Durante a Guerra Fria, qualquer forma de
Para outros como John Lennon, a resposta foi questionamento no bloco ocidental, principalmente
encontrada na idéia de que “o sonho acabou”, o que nos Estados Unidos, era tida como “de esquerda”.
ficou demonstrado na própria separação dos Beatles, Daí se explica o grande potencial contra-
em 1970. A utopia da contracultura não foi revolucionário empregado para deter ali ameaças
alcançada. Talvez os jovens tenham entrado numa comunistas.
época de incertezas. Sob o ponto de vista marcusiano a classe
Um grande fortalecedor na organização contra- revolucionária estaria além da operária, ampliada
revolucionária, neste contexto, foi a ascensão do para os diversos grupos sociais. Os negros, beats,
Governo Nixon, entre 1968 e 1973, período em que hippies, mestiços, estudantes, intelectuais, dentre
o Congresso ficou submetido ao poder executivo e a vários outros, questionavam a lógica da civilização

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 73


ocidental. E é aí que reconhecemos a potencialidade Através dessas reflexões, nos damos conta do
revolucionária dos anos 1960. grande embate existente na questão da
A proposta de uma revolução qualitativa consiste transformação qualitativa e, principalmente, da
em rever e questionar as bases em que a sociedade grande distância histórica existente entre a
ocidental foi construída e o seu processo de realidade vivenciada por nós e as concepções de Karl
desenvolvimento. Nesse sentido, podemos perceber Marx. Precisamos estar sempre conscientes de que a
que o campo da educação consiste num valor sociedade não pode ser reduzida às forças produtivas.
fundamental para que possa ser mantida ou Os males da civilização não são apenas a miséria e a
transformada a estática de uma sociedade. A fome ou a desigualdade econômica em si. Existem
desalienação é primordial, assim como a condução questões extremamente importantes para uma
constante do exercício crítico. devida compreensão da realidade que não estão
Pudemos perceber claramente que a Nova relacionadas à luta de classes, mas são
Esquerda ou contracultura da década de 1960, nos características intrínsecas da sociedade ocidental,
Estados Unidos, principalmente, inaugurou uma sem as quais ela não pode ser analisada
atuação diferente na história da civilização. Suas completamente.
formas de contestação fugiram às da esquerda Devemos estar sempre atentos sobre o quanto é
política tradicional, abrindo campo para novas importante para nós, enquanto sujeitos sociais,
idéias. Mas essa mesma década foi, em entender as peculiaridades que compõem o todo da
contrapartida, essencialmente contra- civilização ocidental, com seus crônicos problemas.
revolucionária. Ao se deixar devorar pela sociedade Entender as formas utilizadas pelo sistema
consumista e sua indústria cultural, a capitalista para nos enquadrar a todos em suas
contracultura acabou injetando uma série de novos estruturas e compreender as falências que dele
valores à ela. Ao som do rock, a contracultura decorrem é um bom começo para a desalienação e
recuperou uma infinidade de filosofias e crenças para percebermos que cada momento de nossas
primitivas, misturando-as às idéias trazidas pelo vidas requer uma postura crítica diante da
avanço tecnológico e científico. realidade.

Nota
1
No Brasil, a poesia beatnik inspirou músicas compostas por Cazuza, no início dos anos 1980.

Referências

ARENDT, Hanna. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1973. PEIXOTO, F. A “caça às bruxas nos Estados Unidos em 1947: Brecht
CHACON, Paulo. O que é Rock. 5 ed., São Paulo: Brasiliense, 1982. diante do Comitê de Atividades Antiamericanas.” Revista Cultura
HARRIGTON, M. A Outra América: Pobreza nos Estados Unidos. Rio Vozes. n. 4, Ano 91. São Paulo: Vozes, jul/ago 1997, pp. 169-202.
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. PEREIRA, C. A. M. O que é Contracultura. 8 ed. São Paulo: Brasiliense,
JACOBY, R. “O caminho do subúrbio: urbanistas e beats.” In: Os 1992.
Últimos Intelectuais. São Paulo: EDUSP, 1990, p. 66-83. ROSZAC, T. A Contracultura. Petrópolis: Vozes, 1972.
MARCUSE, H. O Fim da Utopia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. SELLERS, C., MAY, H. & McMILLEN, N. Uma Reavaliação da História
____________. Contra-Revolução e Revolta. Rio de Janeiro: Zahar dos Estados Unidos: da Colônia à Potência Imperial. Rio de
Editores, 1973. Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1990.
NEWFIEL, J. Una Minoria Profética: La Nueva Izquierda
Norteamericana. Barcelona: Ediciones Martinez Roca S/A, 1969.

74 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Epistemologia Social e Metodologia:
survey, comparação e estudo de caso

João Batista Domingues Filho

Mestre em Ciência Política. Departamento de Ciência Política-FAFICH/UFMG. Professor da Universidade Federal de


Uberlândia-DECIS/FAFCS. Doutorando Sociologia e Política na UFMG. E-mail: dominguesfilho@fafcs.ufu.br

Resumo Abstract
Argumento sobre a possibilidade de explicação Idiscuss about the possibility of a scientific
científica do mundo social. A partir da explanation of the social world. From
epistemologia, trato dos principais problemas epistemology, Iapproach the main methodological
metodológicos contidos na explicação científica dos problems related to the scientific explanation of
fenômenos sociais. Procuro demonstrar que a the social phenomena. I try to demonstrate that
utilização das Técnicas de Pesquisa: método the use of research techniques such as:
comparativo, survey e estudo de caso são meios comparative method, survey and case study are
eficazes para a realização da pesquisa social. effective means for the accomplishment of social
Exploro, ainda, as dificuldades de produção de um research. I also explore the difficulties to produce
consenso epistemológico nas ciências sociais, dadas an epistemological consensus in social sciences,
as questões metodológicas antagônicas entre si: given the methodological antagonistic questions:
ação e estrutura (micro e macro) – fontes action and structure (micro and macro), which
permanente do dissenso. Por fim, o modelo are permanent sources of disagreement. Finally,
analítico da escolha racional surge como um the analytical model of rational choice emerges as
esforço teórico-metodológico de superação dessas a theoretical-methodological effort to surmount
antitéticas posições, as quais alimentam as those antithetic positions, which feed the
quizilas epistemológicas nas ciências sociais, epistemological fights in social sciences, impeding
impedindo o desenvolvimento da sua capacidade the development of its capacity of explanation.
explicativa. Keywords: Social Epistemology; Methodology and
Palavras-chave: Epistemologia Social; Metodologia Research Techniques; Social Research.
e Técnicas de Pesquisa; Pesquisa Social.

É no mundo europeu-ocidental que surgiu a Tudo isso é conhecido como a Revolução Científica.
ciência moderna em meados do século XVII. Esta Efetivamente: é o surgimento do paradigma teórico-
nova ótica sobre a realidade natural trouxe como medológico da Ciência Moderna. No século XIX este
fundamento da ciência a investigação sobre a modelo de racionalidade científica (como funcionam
causalidade física em negação à investigação das as coisas) se estende às ciências sociais, não sem
causas metafísicas. Metodologicamente, a grandes dificuldades epistemológicas que serão
observação (experimentação) e o estudo do fenômeno explicitadas mais adiante.
(empirismo racional e crítico) contra o estudo da Se esse paradigma legitima cientificamente a
coisa em si e juízo de substância. Deste modo, a explicação do fenômeno físico, o que pensar das
“verdade científica” é possível. A ciência moderna condições epistêmicas do fenômeno social? Há
criou a explicação do fenômeno físico, exterior ao distinção entre ciências naturais e ciências sociais?
mundo humano-subjetivo. Nasce, assim, a nova Qual estatuto epistemológico e metodológico da
idéia de ciência juntamente com a história moderna. ciência moderna do social? Existe o monopólio do

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 75


conhecimento científico restrito à natureza? Para a oposição entre doxa (não ciência) e episteme
responder essas perguntas a imaginação sociológica (ciência) torna-se útil aqui para a compreensão
é desafiada a apresentar-se como o meio para tanto. sobre a evolução e produção de conhecimento
Ou melhor: o sujeito epistêmico humano frente ao científico na área social.
fenômeno humano, enquanto objeto empírico, pode Para tanto, o ponto de partida reflexivo são os
realizar o conhecimento objetivo? Para a resposta problemas difíceis: natureza do conhecimento e
ser sim, não dever existir a separação epistêmica objetividade da pesquisa social na esfera das ciências
entre ciência natural e ciência social, o que sociais. É assim que se manifesta objetivamente a
dependeria da imaginação sociológica ter sucesso em polêmica, isto é, o entendimento objetivo do social
termos de fazer funcionar uma metodologia ocuparia, estritamente, o reino da doxa? Neste
científica necessária à pesquisa social. O suposto campo de discussão, ainda sobrevive a tese de que a
aqui delineado é o seguinte: é possível uma explicação científica da esfera social só é alcançada
metodologia científica para produzir explicação dos em termos de descrições dos juízos teóricos, em
fenômenos sociais. debates sobre a natureza epistemológica da pesquisa
Sendo assim, do truísmo realidade social é uma científica do social. Um resultado negativo desse
construção social, os cientistas sociais fazem emergir debate epistemológico é a proliferação de tradições
a teoria social, a qual busca o conhecimento possível teóricas que sustentam as especializações
sobre nós mesmos em sociedade. A relação dos seres progressivas, livres das exigências de uma matriz
humanos com seres humanos é o telos do disciplinar forte, ou seja, científica, oriunda do reino
entendimento objetivo do social. A realidade social é da episteme. Deste foco, pode-se partir para o
o objeto do conhecimento científico. Todavia, não desenvolvimento da reflexão epistemológica sobre o
há consenso epistemológico sobre a natureza e os lócus do entendimento objetivo do social no interior
objetivos da pesquisa social, quando se pretende mesmo dessa discussão teórica.
localizar esse empreendimento científico no plano O questionamento da natureza científica da
da ciência moderna. Para o desenvolvimento desta pesquisa social impõe-se ponto de partida dessa
reflexão, realizar-se-á um esforço analítico no sentido discussão, desde sempre. A explicação da esfera social
de oferecer, adequadamente, algumas idéias sobre pressupõe um empreendimento científico muito
os problemas epistemológico e metodológico complexo. A controvérsia teórica envolta nesse
suscitados na relação conflituosa: pesquisa da contexto analítico depende da produção de consenso
realidade social e atendimento das exigências teórico na área da metodologia de pesquisa, o que,
científicas da explicação. Esta problemática pode ser necessariamente, implica o enfrentamento das
traduzida em uma pergunta prática orientadora seguintes questões: é possível a explicação científica
deste artigo: o entendimento do fenômeno social, do fenômeno social? Por que os pesquisadores do social
quando realizado pelos estudos comparativos, survey não respondem, de maneira unânime, com um
e estudo de caso realizam as exigências cientificas sonoro sim, a pergunta anterior? Por que a primeira
da explicação? Vejamos! pergunta determina os parâmetros da discussão
A explicação científica do social é possível quando teórica na arena social? De toda maneira, a explicar
não há uma especialização progressiva, isto é, o o social sofre, desde a sua origem, do seguinte
relativismo cognitivo como caracterização da imbróglio: se o fenômeno é social, a explicação
especificidade epistemológica das ciências sociais. científica é problemática. A procura de solução para
Esta é a discussão epistemológica que modela a essa confusão teórica e metodológica vem
reflexão em curso. Toma-se como pressuposto de que alimentando o mercado teórico nas ciências sociais,
não existirá ciência social desenvolvida sem consenso muito mais no lado da oferta pulverizada de teorias,
epistemológico. Assim, toda essa problemática em do que da capacidade de produção científica.
tela exige conhecimento existente em outro O produto mais evidente desse processo de
ambiente analítico, no debate moderno contido na desenvolvimento científico, nas ciências da cultura,
área de conhecimento denominada epistemologia. adveio da geração de um conjunto de disciplinas que
Entre as várias questões que a epistemologia trata, tentam, de forma objetiva, estudar os sistemas e

76 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


estruturas sociais, os processos políticos e econômicos, conforme resumida anteriormente. Dada a
as interações de grupos ou indivíduos. Para complexidade envolvida nessas proposições, de
simplificar a confusão descrita, os livros e manuais maneira seletiva e adequada ao limite desse artigo,
que tratam desses assuntos, traduzem tudo isso, em será explorada uma questão que, de alguma maneira
termos de problemas metodológicos das ciências envolve todas as proposições acima, ou seja, a zanga
sociais. Quando não há acordo metodológico, reina o epistemológica entre compreensão e explicação do
relativismo epistêmico: a veracidade ou a falsidade social. Neste sentido, pode se armar a seguinte
da explicação do fenômeno social é deduzida da questão: a autonomia das ciências do social é dada
interpretação proposta por um indivíduo ou pelos procedimentos compreensivos e, de outro lado,
deduzida de um grupo social. Isto gera uma atitude na ciência natural predomina a explicação causal.
relativista em conflito permanente com a própria Apesar do longo combate dos cientistas sociais para
prática científica – metodologia – utilizada. Não há resolver essa questão, em termos de buscar a
consenso metodológico, não há explicação científica eliminação dessa separação entre o estudo da
do social: cada cientista social fica com a defesa de natureza e do social, com a tese de que na ciência o
sua conjectura, agarrado a “sua” metodologia. Eis o método é único, podendo mudar as técnicas e objetos
domínio do solipsista epistemológico, quando o objeto de estudos, essa problemática permanece nas
do conhecimento é o mundo social. Se predominar mentes e corações de todo cientista social,
essa compreensão epistemológica, não há ciência minimamente informado do debate teórico-
possível do social. metodológico presente na arena da pesquisa
Neste contexto analítico, qual a compreensão científica do social. Como a questão orientadora desse
recorrente do fenômeno social que induz à guerra artigo sugere, a separação entre compreensão
entre os vários modelos teóricos, ao invés de acordo interpretativa do social e explicação forte, científica,
científico, quanto ao modo de explicação dos possibilita a defesa da idéia de que o objeto de
fenômenos sociais e políticos? Quatro proposições pesquisa das ciências do social impede a explicação
dogmáticas são as bases que sustentam as quizilas científica, isto é, a especificidade do humano, como
metodológicas no plano da pesquisa sobre o social: objeto de estudo, afeta, no limite, negativamente a
(1): o comportamento humano se modifica ao longo possibilidade da explicação científica: dificuldades
do tempo, impedindo previsões científicas exatas; lógicas relacionadas à sua observação e mensuração,
(2): o comportamento humano é complexo e sutil de as quais são contaminadas pelo próprio cientista
tal maneira que impossibilita caracterizações pela social, isto é, a explicação é dominada por valores da
ciência; (3): o comportamento humano só é estudado cultura particular do cientista. Deste modo, as
por outro ser humano, não permitindo objetividade teorias filosóficas da ciência, tendo como referência
da observação de forma a alcançar a verdade; e (4): científica as ciências físico-químicas, perpetuam o
os seres humanos têm liberdade e habilidade estatuto científico da sociologia, nos limites da
deliberada de alterar qualquer previsão científica. compreensão interpretativa do fenômeno social. A
Estas são as proposições metodológicas repetidas na sociedade humana, no limite, pode ser interpretada
maioria dos tratados de sociologia, com posições (conjunto de questionamentos especializados
diferenciadas, em graus variados de desenvolvimento distintos), mas não pode ser explicada
e complexidade analíticos. Todavia, numa primeira cientificamente. Eis a lógica de compreensão sobre
aproximação dessas proposições, o cientista social pode a produção do entendimento objetivo do social que
comprar a idéia de que, se forem verdadeiras, a base permite a especialização progressiva, por ausência
científica das ciências sociais é muito frágil, ou de uma matriz disciplinar forte. Esta idéia será
melhor, não possui uma matriz disciplinar forte. criticada e buscar-se-á a sua refutação teórica.
O tratamento científico do fenômeno social Se é verdade que a metodologia científica é única,
percorre uma história sinuosa em termos não definida pela caracterização do objeto de estudo,
metodológicos. Essas quatro proposições nascem com por que continua válido o esforço analítico
as ciências do social e continuam alimentando as empreendido em responder a questão sobre a
querelas teórica-metodológicas no presente, possibilidade de entendimento objetivo do social?

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 77


Possivelmente, a reflexão em curso deve levar em estrutura social, a própria estrutura social e a relação
conta o ponto de vista, no geral, dos próprios dos seres humanos sociais com os acontecimentos do
cientistas sociais, os quais, talvez, reproduzam, mundo não-humano”. Para Elias,2 tais coordenadas,
cotidianamente, as seguintes idéias: (1): a teoria no interior das ciências sociais, anunciaram “outra
social estuda eventos que são determinados por ‘revolução coperniciana’”. Desta maneira, as pessoas
inúmeros fatores. A complexidade é tal que é podem ser consideradas como indivíduos, sociedade
impossível a mensuração científica; (2): os objetos e formações naturais, em termos de fenômenos
de estudos das ciências do social têm consciência de acessíveis à verificação empírica. Neste sentido,
si, podendo frustrar, deliberadamente, qualquer Elias3 afirma que “os homens têm condição de saber
possibilidade de impor um sentido à ação social; (3): que sabem; são capazes de pensar sobre seu próprio
não é possível construir modelos para realizar um pensamento e de se observar observando”. Estes são
experimento controlado com sujeitos humanos; e (4): os problemas básicos da epistemologia, no campo da
não acontece a repetitividade, isto é, numa sociedade sociologia. Elias 4 oferece uma síntese dessa
humana não é possível repetir situações passadas, problemática epistemológica, da seguinte maneira:
com experimentos análogos a um experimento em
física. Portanto, será que todos esses argumentos, “a prolongada discussão sobre o conhecimento
verdadeiros ou não para os cientistas sociais, girou, basicamente, em torno desta questão: será
comprovam que a pesquisa do social não realiza que os sinais que o indivíduo recebe através dos
atividade científica? As ciências do social devem se sentidos são inter-relacionados e processados por
resignar ao relativismo metodológico - conjunto de uma espécie de mecanismo inato, chamado
questionamentos especializados distintos? Para o ‘inteligência’ ou ‘razão’, de acordo com leis
enfrentamento adequado desses questionamentos, mentais comuns a todas as pessoas, eternas e
é necessário explorar algumas teses oriundas da preexistentes à experiência, ou será que as idéias
esfera analítica da teoria do conhecimento ou da formadas pelo indivíduo com base nesses sinais
epistemologia moderna. Na realidade, todas as simplesmente refletem as coisas e as pessoas tais
questões listadas, anteriormente, trazem, de como são, independentemente de suas idéias?
maneira implícita, diferentes concepções de ciência. Houve posições intermediárias, soluções
Eis, na verdade, o “tutano” da problemática geral conciliatórias e sínteses, mas todas elas se situam
que orienta esse artigo. Todavia, passa-se, deste em algum ponto do continuum entre esses pólos”.
ponto, a defender a possibilidade de uma concepção
de ciência, no âmbito da epistemologia, cuja A esfera social, para Elias, se livrou desse
compreensão permitiria o entendimento objetivo do “continuum entre esses pólos”, isto é, não se perde
social libertar-se, pelo menos teoricamente, da entre as idéias sobre a existência supra-individual
caracterização genérica de um conjunto de ou individual do ser humano. As “três coordenadas
questionamentos especializados irrelevantes, por básicas”, citadas anteriormente, da vida humana
falta de uma matriz disciplinar forte. são apreendidas pela dimensão social, a qual é
Neste sentido, Elias1 ao refletir sobre a autonomia passível de tratamento científico, ou melhor, a
da pesquisa social, chama atenção para o fato de que pesquisa social, ao ser compreendida como ciência,
o conhecimento sobre a sociedade não é uma coisa passa a merecer esse status, pois de maneira
que tem existência a priori, isto é, não pode ser esclarecedora afirma Popper 5:
separada do mundo social. A pesquisa do social
percorreu um longo trajeto para alcançar a “como em todas as outras ciências, estamos, nas
autonomia em relação, por exemplo, à filosofia, ciências sociais, sendo bem ou mal sucedidos,
enquanto concepção metafísica do social. A interessantes ou maçantes, frutíferos ou
autonomia foi possível quando a pesquisa social infrutíferos, na exata proporção à significância
delimitou seu campo de pesquisa científica através ou interesse dos problemas a que estamos ligados;
de “três coordenadas básicas da vida humana: a e também, é claro, na exata proporção à
formação e o posicionamento do indivíduo dentro da honestidade, retidão e simplicidade com que

78 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


atacamos estes problemas. (...)Contudo, estes que o entendimento objetivo social é “conjunto de
problemas práticos conduzem à especulação, à questionamentos especializados irrelevantes uns
teorização, e, portanto, a problemas teóricos”. para os outros”? Na realidade, essa definição da esfera
social, essencialmente, pretende sustentar uma
Deste modo, a criação de teorias explicativas do perspectiva teórica relativista sobre o trabalho
social, como em todas as ciências, obviamente, científico, isto é, a defesa da impossibilidade,
enfrenta os mesmos desafios metodológicos. Eis uma principalmente, para as ciências sociais de ser capaz
perspectiva teórica que permite questionar, de oferecer explicação científica para qualquer
negativamente, a compreensão da ciência do social fenômeno social. A pesquisa do social, ao contrário
como uma designação genérica para um conjunto do que demonstrou Popper, não seria ciência, pois
de questionamentos especializados. O problema não possui “uma matriz disciplinar forte”,
científico em jogo para nas ciências sociais não seria suficientemente desenvolvida para encontrar a
a “especialização progressiva”, mas sua capacidade causalidade entre “fatos sociais”. Nessa abordagem
de atribuir causalidade lógica aos “problemas relativista, a ciência do social, distinta de outras
práticos” gerados pelos “problemas teóricos”, criados ciências, ao buscar a causalidade entre fatores,
no âmbito da teoria social. Ou melhor, “a ausência supondo que exista, ao longo do processo explicativo,
de uma matriz disciplinar forte” deve ser substituída não seria capaz de operacionalizar o seguinte
pela ausência de “problemas teóricos”. Neste sentido, tratamento teórico-metodológico: nexo (teoria), o
Popper6 pondera que mecanismo que causa o efeito; regularidade, em
termos de representação empírica, o que supõe
“nas ciências, trabalhamos com teorias, isto é, análise comparativa; seqüência temporal, onde a
com sistemas dedutivos. Há duas razões para variável independente causa a dependente;
isso. Em primeiro lugar, uma teoria ou um diferença qualitativa entre a variável que “causa”
sistema dedutivo é uma tentativa de explicação e o fenômeno a ser explicado; contigüidade temporal
e, conseqüentemente, uma tentativa de solução entre os fatores da relação causal. Quanto ao nexo
de um problema científico - um problema de apreendido em termos lógico-teórico, em si, não é
explicação. Em segundo lugar, uma teoria, um suficiente para sustentar a relação de causalidade,
sistema dedutivo, pode ser criticado pois só teoricamente não se alcança a explicação
racionalmente através de suas conseqüências. É, causal, é necessário o teste empírico. O importante,
então, uma solução experimental, o objeto da além do já dito, é fixar que a relação de causalidade
crítica racional. Tanto quanto o sistema de crítica diz respeito à implicação lógica para qualquer
o é para a lógica formal”. explicação, seja diacrônica ou sincrônica. Para
Popper 7 esse esquema básico tem como resultado,
Desta forma, a obtenção de explicação causal de entre outros, o entendimento de que “a famosa
um “fato social”, “como em todas as outras ciências”, distinção entre ciências teóricas ou nomotéticas e
implica, fundamentalmente no tratamento de um históricas ou idiográficas pode ser justificada
problema puramente teórico (premissas: logicamente - contando que se entenda aqui sob o
“explicans”), isto é, encontrar uma regularidade do termo ‘ciência’ (...) qualquer tentativa para
que se deseja explicar, o “explicandum”. A explicação solucionar um conjunto de problemas definidos e
(solução de um problema) envolve sempre uma logicamente diferenciável”.
teoria (conjunto de proposições, relações entre Deste modo, a indagação se a ciência do social é
conceitos e afirmações sobre a realidade social), um “um conjunto de questionamentos especializados”
sistema dedutivo capaz ou não de explicar o receberia uma resposta afirmativa, somente se
“explicandum”. Isto ocorre por meio de uma compreender a pesquisa social como uma “ciência”
inferência (lógica) dedutiva, cuja conclusão é o desenvolvida o suficiente para “solucionar um
“explicandum”. conjunto de problemas definidos e logicamente
Se o trabalho científico é assim para o diferenciáveis”. Aí não haveria consenso sobre os
entendimento do social, como fica a afirmação de critérios utilizados para avaliar uma solução e que

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 79


procedimentos experimentais são aceitáveis. Por a descoberta de problemas novos e imaginados”.
outro lado, a pesquisa social como uma ciência Se é assim, objetivamente, a “lógica da pesquisa
explicativa, nomotética, nega a perspectiva científica” para todas as ciências, como é possível
relativista que advoga a impossibilidade de enquadrar a sociologia numa “designação genérica
desenvolvimento de uma explicação científica do para um conjunto de questionamentos especializados
social, a partir da argumentação espúria que distintos e provavelmente irrelevantes uns para os
procura associar “especialização progressiva” com outros? Só é possível, de qualquer maneira, essa tese
“ausência de uma matriz disciplinar forte”, como relativista sobre a produção de conhecimento pela
demonstração de que a pesquisa social não é ciência, sociologia (“irrelevantes uns para os outros”),
“como todas as outras ciências”, pois não passa de quando a lógica da pesquisa adotada pela sociológica
“um conjunto de questionamentos especializados não realizar “descobertas científicas” e não passar
distintos e irrelevantes”. de “velhos problemas para a descoberta de novos e
Na verdade, pode-se aceitar a pesquisa do social imaginados” problemas sociológicos. No geral, expor
como uma ciência capaz de obedecer o seguinte a sociologia como exemplo da impossibilidade de
esquema: de maneira circular Teoria (segue-se) explicação científica dos “fatos sociais” é uma posição
Hipótese (segue-se) Generalização Empírica (segue- equivocada, em termos epistemológicos, na tradição
se) Teoria. No meio, relacionando com todas essas popperiana defendida aqui, a qual manifesta-se como
relações encontram-se os Métodos e Técnicas que a mais adequada na descrição da lógica da pesquisa
propiciam na passagem da Teoria para Hipóteses social. A explicação do mundo social, como ciência,
(formação de conceitos); das Hipóteses para a no fundo, seguindo Popper, não se difere da ciência
Observação (operacionalização); da Observação para natural. É verossímil essa ponderação, todavia, a
Generalização Empírica (codificação e análise) e da confusão teórica suscitada ao longo dessa reflexão,
Generalização Empírica para Teoria (inferência talvez, permaneça entre a maioria dos
causal). Eis um quadro sintético que a sociologia pesquisadores. A partir da perspectiva popperiana,
realiza ao buscar a explicação científica. não há razão para que existam duas lógicas de
De outra maneira, seguindo Popper, a lógica da validação do conhecimento científico.
pesquisa científica contida na explicação do É possível afirmar, portanto, que o método é,
fenômeno social, “como todas as ciências”, alcançar rigorosamente, o mesmo para o fenômeno social e
a explicação científica, encontra-se resumida no para a ciência natural. Todavia, a Técnica de
seguinte esquema epistemológico: [P1 + TT + EE = Pesquisa, por sua vez, pode ser diferente de uma área
P2]. É assim que Popper 8 expõe a “solução de para a outra do conhecimento científico: da
problemas e descoberta - a descoberta de novos fatos, matemática à química, da física à biologia, da
de novas possibilidades, por meio de experimentar sociologia à semiótica etc. É aceitável que disciplinas
as possibilidades concebidas em nossa imaginação”. tão diferentes se valham de técnicas distintas em
Nesse esquema evolucionário: “P1” se refere à seus trabalhos de pesquisa. Por exemplo: as ciências
situação inicial do problema enfrentada pelo naturais podem usar a experimentação e a Sociologia
cientista; “TT” à teoria tentativa proposta como utilizar o survey. Na realidade, a complexidade do
solução ao problema; “EE” ao processo de eliminação mundo social não deve ser interpretada como fator
de erro aplicado à teoria tentativa; e “P2” à situação- inibidor ou limitador das possibilidades objetivas de
problema revista, que resulta desse processo de se fazer sociologia dentro da “lógica da pesquisa
ensaio e erro. Repetindo o enfoque crítico geral científica”. A complexidade do social como objeto de
popperiano sobre ciência, ou melhor, sua pesquisa científica, ao contrário da teoria do
compreensão do desenvolvimento da ciência é a conhecimento implícita na discussão em foco, não
seguinte: (A): crítica e a resolução de problemas; impossibilita o fazer teoria científica do social. Não
(B): ciência como aprendizado com os erros; e (C): deixa de ser um grande desafio, pela dificuldade da
todas as teorias são tentativas (“conjecturas e empreitada, como também um grande atrativo no
refutações”). É assim para Popper9: “a vida, como a que diz respeito a riqueza e dinamismo que a
descoberta científica, passa de velhos problemas para explicação do mundo social envolve.

80 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Explorar um pouco mais a relação entre a técnica é sempre possível retornar ao conjunto de dados
do survey (ciências sociais) com a técnica do e reanalisá-los sob a nova perspectiva teórica.
experimento (ciência natural) pode ajudar, como Esta nova análise não poderia ser realizada tão
exemplo, como prova da contestação de que a ciência facilmente no caso de métodos de pesquisa menos
do social não é capaz de explicar cientificamente os rigorosos e menos específicos”.
fenômenos sociais, pois pode ser reduzida a “um
conjunto de questionamentos especializados O survey, como uma técnica, permite às ciências
distintos”, isto é, avança numa “especialização sociais generalizações empíricas, contudo, também,
progressiva” por causa da “ausência de uma matriz como o experimento, não está livre das dificuldades
disciplinar forte”. Rosenberg 10
oferece uma síntese a relacionadas com a questão da passagem da teoria
respeito da relação entre o projeto experimental e o para a empiria. O survey é uma técnica sofisticada
problema da explicação científica em ciências que oferece a possibilidade de tratamento científico
sociais, ao estabelecer que “a introdução de variáveis dos temas os mais variados em sociologia: classe
extrínsecas, componentes e intervenientes, na social, gênero, educação, nacionalidade, meio
análise de dados, não contorna todas as dificuldades ambiente, comportamento eleitoral etc. De acordo
de análise correlacional”. Na realidade, essas com Babbie13:
variáveis permitem ao sociólogo “aproximar das
características do projeto experimental”. Para “o formato da pesquisa de survey muitas vezes
Rosenberg11 isto quer dizer que permite desenvolvimento e teste rigoroso, passo
a passo, de tais explicações lógicas. Além disto o
“muitos problemas sociológicos não são, pois, exame de centenas e até milhares de entrevistas
suscetíveis de manipulação experimental. (...) de survey permite testar proposições complexas
O projeto experimental simplesmente não pode envolvendo diversas variáveis em interação
ser aplicado a muitas questões sociológicas”. (...) simultânea”.
Se desejarmos estudar o efeito da raça sobre a
alienação, não será viável tomar amostras de Na verdade, antes da aplicação dessas técnicas:
recém-nascidos, colocar alguns, aleatoriamente, survey e experimento, o que em jogo está é a
no grupo negro e outros no grupo branco, capacidade do cientista em realizar operações lógicas
passando a observar a diferença quanto à (teste de hipótese pré- formulado) decorrentes de um
alienação. (...) Não seria possível (...) estudar a raciocínio dedutivo e de considerações teóricas gerais.
alienação de certa amostra, transformar seus A hipótese derivada dessas operações deve ser
elementos em negros e novamente estudar o grau corroborada por dados empíricos (survey ou
de alienação, para verificar as alterações experimento) e pela teoria que suscitou e auxilia o
ocorridas”. sociólogo corroborar ou não sua hipótese. É preciso
ressaltar que, evidentemente, o sociólogo sempre
E a utilização do survey pela explicação estará “preso” aos limites tanto da teoria escolhida
sociológica? Revela-se de suma importância a técnica como da técnica adotada para levantamento de
de levantamento de dados (survey) por permitir a dados. O desfio científico (natural e social) é o de
coleta de dados gerais e específicos, de maneira a encontrar um ponto ótimo entre teoria e método,
envolver a possibilidade de quantificação dessas focando na investigação científica passível de
informações como fonte permanente de informações refutabilidade. Popper 14 pode oferecer mais
e consultas. De acordo com Babbie 12
esta técnica argumentos para esse ponto da reflexão, ao ponderar
permite ainda que que “a cada passo adiante, a cada problema que
resolvemos, não só descobrimos problemas novos e
“um corpo de dados de survey pode ser analisado não solucionados, porém, também, descobrimos que
pouco depois da coleta e confirmar uma aonde acreditávamos pisar em solo firme e seguro,
determinada teoria de comportamento social. Se todas as coisas são, na verdade, inseguras e em estado
a própria teoria sofrer modificações mais tarde, de alteração contínua”.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 81


Ainda como discussão a ser desenvolvida, deduções e generalizações advindas dos fenômenos
complementar à questão do survey, em torno da pesquisados. O “contexto metodológico” da
crítica metodológica às “características da comparação deve ser livre dos preconceitos
sociologia” aludidas na pergunta que vem sendo etnocêntricos, isto é, interpretações erradas que
respondida, vale destacar a importância de um contaminam as deduções analíticas dos eventos
método científico: a comparação. Este método estudados. A descoberta das relações entre os
particular de análise, além de obedecer aos critérios fenômenos estudados, a partir da comparação das
científicos anteriormente apresentados, na definição “funções” das estruturas sociais em foco, pode gerar
popperiana de ciência, serve de exemplo contrário explicação de acordo com mensuração e
às afirmações contidas na pergunta orientadora quantificação do que é comum e específico, entre
dessa discussão. Isto é, o método comparativo permite esses mesmos fenômenos.
negar a indagação, segunda a qual, a sociologia é Bobbio 17 chama atenção para o fato de que “na
apenas “uma designação genérica para um conjunto história do conhecimento dos fenômenos políticos,
de questionamentos especializados”. Isto é possível, sempre se fez uso das comparações, tendo existido
dado que a comparação é um método utilizado pela sempre, portanto, uma política comparada, desde
Sociologia, o qual permite: verificação empírica das Aristóteles a Maquiavel e Montesquieu”. O que
hipóteses, generalizações e teste das teorias. Isto talvez seja novo são as finalidades e as condições dos
ocorre de que maneira? Segundo Reis : 15
estudos comparativos desenvolvidos atualmente.
Neste mesmo sentido, Bobbio pondera que as
“a lógica geral da análise comparativa.(...)Quer finalidades, na verdade, diz respeito “à principal
dizer, o específico não é senão a contraface do característica das explicações (‘leis’)”, isto é, “a
genérico. E captar o que há de específico num possibilidade e verificação empírica”. A sua
determinado caso supõe precisamente que você, conclusão: “é precisamente do exame dos processos
de alguma forma, trabalhe de acordo com m de verificação (experimental, estatístico,
princípio nomológico: você tem uma série de comparada, histórica) utilizáveis nas ciências sociais
casos, dentre os quais chega a saber tanto quais que o método comparado surge como ‘meio’ a que a
são as áreas comuns(...)quanto aquilo que aparece ciência política pode mais comumente e
como específico”. frutuosamente recorrer”. Quanto às condições, “será
preciso cuidar de que os fatos aduzidos para
É deste modo que se deve compreender o método comprovar a qualidade de asserção sejam
comparativo. O “como” comparar (o método) verdadeiramente ‘causas’ assimiláveis de ‘efeitos’
determina a maior ou menor credibilidade científica assimiláveis”. Deste ponto, pode pensar sobre a
nos resultados encontrados nas pesquisas realizadas, sociologia, ao contrário que supõe a filosofia da
seguindo, assim, os padrões comparativos da ciência por traz da pergunta em discussão, possui
explicação científica. Este método é sustentado por “meios”, metodologia comparativa e survey, para
um projeto de ciência ou o ideal de que é possível a realizar-se como uma disciplina que possui uma
explicação científica (“forte”), a qual é estruturante matriz “forte”. Ou melhor, como diz Reis 18 : “a
dessa concepção de sociologia. Em outras palavras, comparação é o feijão-com-arroz, é a regra básica da
por ser um projeto nomológico (regularidades e leis), explicação em ciências sociais”. Negar essa verdade
ou melhor, como diz Reis : “explicar significa, de
16
óbvia é manifestar um “preconceito antiteórico”,
alguma forma, mostrar o que a relação, o processo em termos da definição do seja a ciência do social, ou
ou o evento dado tem de necessário”. Eis o produto seja, reduzi-la na realidade da pesquisa, a “um
científico do processo de aplicação do método conjunto de questionamentos especializados distintos
comparativo em sociologia: explicação do que o “dado e irrelevantes” sobre qualquer fenômeno social.
tem de necessário”. Não é apenas a produção de “um E mais, Reis19demonstra que, é possível alcançar
conjunto de questionamentos especializados distintos a explicação no mundo social, a parir do método
e irrelevantes”. Com os critérios metodológicos comparativo, na realidade da pesquisa, quando se
comparativos é possível garantir a validade das obtém uma “articulação parcimoniosa de um

82 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


conjunto de variáveis ou categorias que permite “a explicação de um estado de coisas e só pode,
captar tanto o que o processo global tem de comum, em resumo, reduzir-se às proposições causais de
quanto que suas manifestações particulares têm de tipo a, b, ... - e (causalidade singular), e a
específico, tenho a explicação”. Eis a ciência do social explicação de uma variável y não pode reduzir-
traduzida em termos de uma lógica da investigação se às funções y = f(xl, x2, ..., xn) de tipo
científica: “articulação entre variáveis”. Eis um simples(por exemplo, linear) senão em casos
desafio para as ciências sociais: “substituir um particulares, mesmo se freqüentes”.
conjunto de questionamentos especializados por
variáveis”. Pode-se concluir essa discussão sobre a A aplicabilidade desse processo de inferir uma
relação virtuosa (presença da lógica científica) explicação é difícil, quando se tomam os estudos de
entre ciência do social e metodologia comparativa, caso para se chegar às teorias explicativas almejadas
com essas idéias de Pzeworski&Teune: por sociólogos. O tratamento dessa problemática
dado por Lijphart 23 parte da constatação de que
“the goal of comparative research is to substitute “indirectly, however, case studies can make na
names of variables for the names of social important contribution to the establishment of
systems”. [De que modo isso ocorreria? Esses general propositions an thus to theory-building in
autores afirmam que] “in terms of comparative political science”. Eis o ponto central: os estudos de
research, the postulate of causality implies that caso são “peças chaves”, necessárias para que as
factors operating at different levels of analysis - teorias realizem o ideal científico da generalização
groups, communities, region, nations etc - should empírica. Esses casos, a partir desse tratamento
be incorporated into theories and that their comparativo, podem explicitar os “nexos”(casos que
interaction with the factors operating within se articulam), possibilitando, assim, encontrar-se
each of these systems should be examined”. [Isto as relações de “causalidade” que explicariam o
é,] “the bridge between historical observations fenômeno social pesquisado. Isto é, estudos de caso
and general theory is the substitution of são úteis na captação da lógica de operação interna
variables for proper names of social systems in dos processos sociais.
the course of comparative research”. 20
Para tanto, Lijphart oferece uma tipologia de
estudos de caso que é auto-explicativa quanto ao
Uma questão complementar, ainda é possível, valor científico dessa metodologia, em sua relação
frente a tradução da sociologia em termos de uma com o método comparativo: “(1): Atheoretical case
“especialização progressiva” ou “conjunto de studies; (2): Interpretative case studies; (3):
questionamentos especializados”. Deve-se criticar a Hypothesis-generating case studies; (4): Theory-
compreensão do método de “estudos de caso”, como confirming case studies; (5): Theory-infirming case
sendo, simplesmente, uma definição da sociologia studies; (6): Deviant case studies”. O tipo(3) é sem
como um conjunto de “especializações sobre casos”, dúvida uma contribuição real ao desenvolvimento
isto é, reduzidos aos “questionamentos especiali- da capacidade explicativa da sociologia. O (1): define-
zados”. Na verdade, para Lijphart 21 “the discussion se como a maneira de realizar descrições. O (2): é a
of the comparative method is not complete without explicação sociológica aplicada aos casos descritos.
a consideration of the case study method”. Deste Os (4) e (5): cumprem a função de confirmar ou não
modo, o que está em jogo, sobre a questão dos estudos uma teoria sociológica. O (6): auto definido: caos
de caso, é a sua definição como parte implícita do desviantes em si. Essa tipologia é importante em si
método comparativo. Isto é muito complicado mesmo, pois, objetivamente, é um instrumento
quando se toma para análise um acontecimento metodológico para a “theory-building”, na
complexo. Nos estudos dos “casos”(nomes) tomados sociologia. Finalizando esse ponto da reflexão a
como “variáveis” é difícil encontrar as “causas” do respeito do lugar metodológico dos estudos de caso,
fenômeno em foco. Eis a dificuldade, segundo na construção de uma sociologia científica, pode-se
Boudon&Boutticauld 22 : seguir Lijphart quando afirma que

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“the comparative method and the case study genérica para um conjunto de questionamentos” é
method have major drawbacks. But precisely verdadeira? O plano micro e o macro ficam ao sabor
because of the inevitable limitations of these do “cliente” da pesquisa social? Como isto pode ser
methods, it is the challenging task of the refutado?
investigator in the field of comparative politcs Na verdade, os estudos ou pesquisas científicas
to apply these methods in such a way as way as dos fenômenos sociais, em sua maioria, apresentam
to minimize their weaknesses and to capitalize profundas dificuldades teórico-metodológicas,
on their inherent strengths. Thus, they can be quando procuram a explicação cientificamente
highly useful instruments in scientific political orientada, tanto via a perspectiva “micro”, quanto
inquiry”. 24
pela “macro”. Deste modo, Olson 25
afirma que a
possibilidade de compreender
Portanto, os estudos de caso possibilitam a
penetração científica na realidade social, por ser um “as diferenças básicas entre as ciências sociais
instrumento de análise, um método útil à descoberta não envolvem os assuntos que elas estudam mas,
científica. É uma maneira sofisticada de outrossim, preconceitos que elas herdaram, os
interrogação sistemática de um “caso” sociológico, métodos que usam e as conclusões a que chegam.
não apenas mais uma “especialização” oriunda de (...)Este ponto poderá ser melhor ilustrado com
um determinado “questionamento”, feito por um exemplos tirados da economia e da sociologia(...).
especialista em algum tema de seu interesse Isso porque(...) a economia e a sociologia são os
particular. Na realidade, possibilita, cientifica- extremos opostos de uma seqüência conceitual
mente, aos estudos comparativos obter propriedades contínua(...)”.
gerais e invariantes dos objetos de pesquisa do mundo
social. A tese de Olson 26 de que “é fútil e prejudicial
Uma dimensão fundamental, ainda, em relação tentar determinar a divisão de trabalho entre
sobre a possibilidade de explicação causal nas ciências disciplinas da ciência social em função dos objetos
sociais, diz respeito às perspectivas “micro” e que, por suposição, elas estudam”, descreve, na
“macro”. As questões teórico-metodológicas realidade, o que de fato vem ocorrendo na história
envolvidas nesse par de conceitos tocam, da sociologia. Na realidade, o desenvolvimento
profundamente, a tese de que a sociologia nada mais teórico na sociologia pode ser compreendido como
é do que “um conjunto de questionamentos um movimento pendular, ora enfatizando o
especializados irrelevantes uns para os outros”. Esta “macro”, ora privilegiando o “micro”, em função do
tese pode ser traduzida nos seguintes termos: a objeto de estudo escolhido. Eis o “alimento diário”
invocação da microanálise (“questionamentos para a tese da “ausência de uma matriz disciplinar
especializados”) como a intenção teórica de definir a ‘forte’”. Por exemplo: a explicação da ação social,
sociologia em termos da redução da sociedade aos respectivamente, ora é determinada pela estrutura,
comportamentos dos indivíduos. A macroabordagem ora é contingencial. O micro e o macro, para a teoria
(outro “Conjunto de questionamentos especiali- social, dizem respeito às tentativas de construção de
zados”) oferece um padrão de sociologia, em função uma teoria “forte” sobre os fenômenos sociais. Esta
de uma “especialização progressiva” sobre as controvérsia tem origem na oposição entre Max
estruturas sociais. Sobre a estrutura social ocorre Weber e Emile Durkheim, nas ciências sociais.
tal especialização, sem conciliação possível com a Assim, surge a pergunta fundamental: qual fator
dimensão micro. Eis o problema central: a redução (micro/macro) deve ser tomado como explicativo?
da sociologia às “especializações progressivas” ora Motivações do sujeito da ação ou a estrutura social?
ao micro, ora ao macro, pois, pressupõem essas O ideal não seria uma teoria que conseguisse
teorias sociais, que a síntese entre micro e articular sujeito e estrutura? Metodologicamente,
macroanálise é impossível. O que resta dessas qual fator explica melhor em sociologia? É preciso
definições de sociologia? A compreensão de que as acompanhar algumas reflexões em torno dessas
ciências sociais nada mais são do que a “designação perguntas, como uma maneira, paralela os esforços

84 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


em si, de se tentar compreender as relações entre fenômenos sociais. Ao contrário da ênfase na
estrutura e sujeito e suas conseqüências para o “especialização progressiva”, Reis 29 propõe que “a
desenvolvimento teórico da sociologia. referência à escassez - e, portanto, à racionalidade -
Pode se partir, para tanto, das relações entre a provê efetivamente uma chave unificadora para a
economia e a sociologia, dadas as complexidades ciência social em geral”.
teóricas envolvidas por esse debate, epistemologica- A divisão entre essas disciplinas é um exemplo
mente orientado, que ora aproxima, ora distancia clássico da situação que vem impedindo o
essa duas disciplinas. Para Olson27 a distinção se daria desenvolvimento de um certo grau de unificação
“em função do objeto estudado”, muito mais “do que teórico-metodológico entre as dimensões, micro e
concebem a sociologia como estudo da vida em grupo macro, nas ciências sociais, apesar da “chave
e a economia como o estudo dos ganhos materiais no unificadora” da racionalidade. A resistência a esse
mercado”. Por outro lado, a semelhança seria caminho unificador persiste ao longo do tempo na
justificada com o seguinte argumento dado por história das ciências sociais, impedindo apresentar-
Olson : “o fato da teoria econômica não se aplicar
28
se em termos de uma disciplina científica. Todavia,
unicamente aos bens materiais mais lidar com essas duas abordagens teóricas alimentam a si
quaisquer objetivos a que as pessoas atribuam valor próprias com a ambição teórica de formular
em condições de escassez (...)”. De fato, o que deve princípios de uma ciência do social, isto é, uma
prevalecer de distinção entre economia e sociologia disciplina possuidora de uma “matriz científica
diz respeito ao objeto com que cada qual se interessa forte”. Negar essa “chave unificadora” distorce e
em explicar. Contudo, o debate não se encerra, prejudica a capacidade explicativa das ciências
obviamente, com essa constatação. O problema da sociais. Contudo, quais são as questões que fazem
distinção permanece, enquanto uma questão parte desse embate litigioso? Do lado da ciência do
teórico-metodológica, ao se tomar os princípios que, social, pode-se destacar três questões: (1): estrutura
em geral, sustentam a autonomia dessas duas social e vida social (sociedade é produto da ação dos
disciplinas, como “especializações progressivas”. indivíduos ou a ação dos indivíduos é produto da
Vejamos. A economia (neoclássica) concebe o sociedade); (2): a relação entre estrutura social e
homem econômico como racional, isto é, supõe que mudança histórica; e (3): natureza da explicação
seu comportamento é guiado pelo cálculo de maneira social (causal, funcional e intencional).
a maximizar suas preferências. Por sua vez, a Estas questões geram, na verdade, contínuas
sociologia considera o homem sociológico como divisões (“especializações”) e fragmentações no
movido por “forças” advindas da estrutura social, interior das ciências sociais, intensificando, desse
em relação às preferências. Para a economia, há modo, a disputa e o distanciamento entre esses tais
congruência entre escolha e preferência no “questionamentos especializados e distintos”.
comportamento do homem econômico, pois os Contudo, é possível ter um ponto de saída teórico para
valores são tomados como dados. Por seu lado, o que a pesquisa social não se transforme,
sociólogo se diferencia por procurar explicar os simplesmente, nesse “conjunto de questionamentos”.
valores moldando as ações dos indivíduos. De todo Neste sentido, pode-se seguir Olson30 quando pondera
modo, a economia segue o princípio do individua- que “os mesmos processos e instituições que dão ao
lismo metodológico (fenômeno econômico é resultado indivíduo os seus valores sociais também lhe
de comportamento individual). A sociologia, em inculcam atitudes sobre a vida econômica e política,
oposição, pode adotar o princípio de que o e influenciam toda a sua personalidade”. Antes de
comportamento individual é conseqüência da se aprofundar nessas possibilidades de existência das
estrutura social. O problema teórico-metodológico ciências sociais, em termos de uma “matriz teórica
que interessa aqui é a questão da autonomia ou forte”, ainda vale apresentar os fatores que geram o
especialização de cada uma dessas áreas, no que gera tipo de “indagação”.
a diminuição da capacidade explicativa dos Todavia, a produção científica na área social pode
fenômenos sociais. Ou melhor, reduzir as ciências ser separada, em linhas gerais, entre a abordagem
sociais um “questionamento especializado” dos da escolha racional e a perspectiva macro-sociológica,

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 85


com todas as diferenças (“especia-lizações”) teóricas orientadas no sentido da realização de seus interesses
internas a cada “distinto” questionamento sobre o particulares. A pretensão explicativa envolta nesse
social. A diferença central entre essas perspectivas, modelo analítico é a seguinte: dado um contexto de
como já salientadas anteriormente, diz respeito ao alternativas de ações disponíveis aos atores sociais é
modo de realizar a explicação (“conjunto de possível explicar o comportamento desses atores,
questionamentos especializados”): escolha racional como também compreender os fenômenos macro:
circunscrita à dimensão micro (explicação estrutura social, fenômenos culturais, instituições
intencional) e a dimensão macro (explicação causal). e normas. Esta maneira de propor a explicação dos
Em outras palavras, Boudon 31 descreve a distinção fenômenos sociais parte da idéia de que é possível
fundamental entre essas abordagens sociológicas da reduzir os fatores estruturais aos resultados das
seguinte maneira: decisões individuais. Interesses e preferências
direcionam a conduta dos atores sociais. Aqui está
“certas teorias sociológicas utilizam uma manifesta o suposto da intencionalidade, ou seja, são
linguagem tal que o fenômeno social que elas os indivíduos que definem os objetivos a serem
explicam é descrito como o resultado da perseguidos e agem de acordo para realizá-los. Reis 32
justaposição ou da composição de um conjunto sintetiza: “a perspectiva da public choice tem como
de ações. No que se segue, entenderemos por ação ponto de partida uma postura na qual o recurso à
um comportamento orientado para a busca de noção de racionalidade é fundamental e em que se
um fim. Nesse caso, diremos que uma teoria procura dar um sentido preciso a esta noção, tomada
sociológica pertence à família dos paradigmas em termos que remetem diretamente à eficácia ou
interacionistas. Outras teorias utilizam uma ‘instrumentalidade’ de uma ação ‘intencional’”.
linguagem tal que o fenômeno social que O postulado estruturalista, por sua vez, o
explicam é o resultado de comportamentos que indivíduo é produto das estruturas sociais. Deste
não são descritos como orientados para fins que modo, negligencia os microfundamentos das ações
os sujeitos, de maneira mais ou menos consciente, individuais, enquanto fatores chaves na explicação
se esforçariam por atingir. Ao contrário, são sociológica. A ação individual, no limite, está sujeita
descritos como resultando exclusivamente de a coerções sociais. Estas coerções circunscrevem a
elementos anteriores aos comportamentos em dimensão do possível da ação social, não o campo do
questão. (..)Chamaremos de paradigmas real. A coerção social, na verdade, só tem sentido
deterministas aqueles caracterizados pelo fato de em correlação com a ação e a intenção dos indivíduos,
um fenômeno social ser explicado como o ou melhor, a possibilidade de se ter uma significação
resultado exclusivo de comportamentos no da estrutura social, analiticamente orientada,
sentido definido”. advém, necessariamente, das intenções e projetos
dos atores. Assim, de maneira unificadora, a
Historicamente, as ciências sociais enraizaram- existência da estrutura social só tem sentido teórico-
se essas duas abordagens científicas, em movimentos metodológico a partir da ação individual. Desta
antitéticos, garantindo uma autonomia relativa maneira, pode aceitar uma ciência do social
entre elas. Nesta realidade analítica unificada, isto é, contrária à perspectiva que
(“questionamentos distintos”) estão contidas, pressupõe como sendo a “sina” da pesquisa científica
também, idéias complexas, na verdade, projetos de do social a sua existência como mais uma disciplina,
integração, na forma de uma disciplina “forte”. Por mais uma “especialização irrelevante”. A teoria da
enquanto, vale ainda explorar as diferenças teórico- escolha racional não é mais uma “especialização”
metodológicas envolvidas. O modelo analítico da no interior das ciências sociais, pode ser tomada como
escolha racional, por seu lado, possui um aspecto uma teoria que busca explicar a ação social, não
característico: a vida social deve ser explicada como como negação da existência da estrutura social. O
a forma de maximizar a satisfação das preferências desafio metodológico embutido aqui diz respeito à
do indivíduo. Parte do suposto de que os indivíduos capacidade da explicação do fenômeno social
são racionais e executam ações intencionalmente encontrar, empiricamente, a lógica dos microfun-

86 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


damentos responsáveis por um fenômeno social vemos, aliás, por que motivo eles deveriam ser
global. Reis, 33
neste sentido, destaca que limitados a essa esfera. Na realidade, podemos
afirmar sem exageros que são onipresentes na
“o individualismo metodológico tem o mérito vida social e que representam uma das causas
inegável de recusar-se a resolver por hipótese, fundamentais dos desequilíbrios sociais e da
em qualquer nível(vale dizer, ao nível de grupos mudança social”.
parciais de qualquer tipo, bem como da sociedade
global), aquilo que é precisamente o problema Portanto, para finalizar essa reflexão, pode-se
crucial de quais vêm a ser os sujeitos coletivos do compreender que ao se buscar a explicação
processo sócio-político”. científica dos “efeitos perversos” desaparece,
objetivamente, o monopólio explicativo seja da
Contudo, em termos teórico-metodológicos, no “especialização” micro, seja da dimensão macro.
contexto da reflexão sobre as perspectivas micro e Vejam bem. O próprio objeto de estudo das ciências
macro de explicação nas ciências sociais (“especializa- sociais exige, pressupõe, necessita de uma “matriz
ções distintas”), interessa particularmente destacar disciplinar forte”, a qual, por sua vez, tem como
que a explicação intencional(micro), para o desafio, teórico-metodológico, oferecer uma
desenvolvimento teórico unificado da esfera social, explicação científica, como qualquer ciência, para
necessita admitir a existência das conseqüências não a seguinte cadeia padrão de eventos (fenômenos)
intencionais das ações intencionais. Este “fato social” sociais: {macro[contexto]+micro[ação]+macro
impõe-se como uma tarefa para a ciência do social, [contexto]}. A significação dos “efeitos perversos”,
isto é, torna-se seu objeto principal de pesquisa para Boudon35 como “efeitos individuais ou coletivos
científica, desde sua origem como ciência. Esta é uma que resultam da justaposição de comportamentos
maneira teórica de abordar a problemática relação individuais sem estarem incluídos nos objetivos
entre micro versus macro, a qual possibilita a união procurados pelos atores”, além de ser frutífero em
entre essas “especializações” litigiosas entre si. Do termos da demonstração da existência de uma
contrário, é a constatação da prevalência de todos os sociologia unificada (“matriz forte”), gera, no
“frutos perversos da árvore do conhecimento interior das ciências sociais, ao contrário da
sociológico”, implícitos na pergunta orientadora dessa proliferação de “questionamentos especializados”,
resposta. Seria a prova, enfim, de que as teses que uma articulação, potencialmente, produtiva em
negam à sociologia o status de ciência “forte” são termos científicos entre ação e estrutura, a partir
verdadeiras. Neste sentido, Boudon34 esclarece que de um modelo teórico-metodológico capaz de dirigir
o modus tollens a qualquer fenômeno social, de
“esse tipo de efeitos muitas vezes qualificados de acordo com os padrões de exigência popperianos para
efeitos perversos, ou de efeitos de composição, não definição do que é uma ciência, em si mesma,
aparece apenas na esfera da vida econômica. Não possuidora de uma “matriz disciplinar forte”.

Notas
1
ELIAS, N. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, 12
BABBIE, E. Métodos de Pesquisa de Survey. Belo Horizonte:
p.84-5. Edufmg, 1999, p.86.
2
ELIAS, N. Introdução à Sociologia. Lisboa: Edições 70, 1980, p.47. 13
BABBIE, E. Idem, p.83.
3
ELIAS, N. (1994). Op.cit., 89. 14
PPOPER, K.(1978), op.cit.,p.13.
4
ELIAS, N. (1994) Op.cit., p.94. 15
REIS, F.W. “Análise Histórico-Comparada: ma alternativa para
5
POPPER, K. A Lógica da Pesquisa Científica. Rio de Janeiro: Tempo o estudo do desenvolvimento?”. Porto Alegre: Mimeo, nov., 1985,
Brasileiro; Edunb, 1978, p.15. p.4.
6
POPPER, K. (1978). Op.cit, p.27. 16
REIS, F.W.(1985) Idem, p.7.
7
POPPER. K. op.cit., p.29. 17
BOBBIO, N. Dicionário de Política. Brasília: Edunb, 1986, p.963-4.
8
POPPER, K. Conhecimento Objetivo. Belo Horizonte: Itatiaia, 18
REIS, F. W.(1985). Idem, p.12.
1999, p.146. 19
REIS, F. W. Ibidem, p.15.
9
POPPER, K. Idem, p.144. 20
PZEWORSKI, A.&TEUNE, H. The Logic of Comparative Social
10
ROSENBERG, M. A Lógica da Análise do Levantamento de Dados. Inquiry. New York: John Wiley, 1970. p.8, 23, 25. T.A.: “a meta de
São Paulo: Cultrix&Edusp, 1976, p.100. pesquisa comparativa é substituir nomes de variáveis para os
11
ROSEMBERG, M. Idem, p.98. nomes de sistemas sociais”. [De que modo isso ocorreria? Esses

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 87


autores afirmam que] “em termos de pesquisa comparativa, modo sobre minimize as fraquezas deles/delas e capitalizar nas
insinua o postulado de causalidade isso fatora operando a níveis forças inerentes deles/delas. Assim, eles podem ser instrumentos
diferentes de análise - grupos, comunidades, região, nações etc - altamente úteis em investigação política científica.”
deveria ser incorporado em teorias e que a interação deles/delas 25
OLSON JR, M. “As Relações entre a Economia e as Outras Ciências
com os fatores que operam dentro de cada destes sistemas deveria Sociais: a esfera de um ‘Relatório Social’”. IN: LIPSET, S. M.
ser examinada” (p.23). [Isto é,] “a ponte entre observações Política e Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1972, p.195.
históricas e teoria geral é a substituição de variáveis para 26
OLSON JR, M. Idem. p.220.
próprios nomes de sistemas sociais no curso de pesquisa 27
OLSON JR, M. Ibidem, p.204.
comparativa” (p.25). 28
OLSON JR, M. Ibidem, p.199.
21
LIJPHART, A. “Comparative Politcs and Comparative Method”. 29
REIS, F. W. Política e Racionalidade. Belo Horizonte: Edufmg,
American Political Sicience Review, LXV, 1971, p.691. 1984, p.113.
22
BOUDON&BORRICAUD, F. Dicionário Crítico de Sociologia. São 30
OLSON JR, M. (1972). Op.cit., p.203.
Paulo: Ática, 1993, p.60. 31
BOUDON, R. Efeitos Perversos e Ordem Social. Rio de Janeiro:
23
LIJPHART, A. (1971). Op.cit. p.691. Zahar, 1979, p.179.
24
LIJPHART, A. (1971). Op.cit. p.693. T.A.:“o método comparativo e 32
REIS, F. W. (1984). Op.cit., p.107).
o método de estudo de caso têm desvantagens principais. Mas 33
REIS, F. W. (1984). Idem, p.123.
precisamente por causa das limitações inevitáveis destes 34
BOUDON, R. (1979). Op.cit., p.7.
métodos, é a tarefa desafiadora do investigador no campo de 35
BOUDON, R.(1979). Idem, p.12.
politcs comparativo aplicar estes métodos de tal um modo como

Referências Bibliográficas

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Editora UFMG, 1999. EDUSP, 1975.
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Seymour M. Política e Ciências Sociais. Rio de janeiro: Zahar, 1972.

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A estória contra a História*

Maryllu de Oliveira Caixeta

Maryllu de Oliveira Caixêta, graduada em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia.

Resumo Abstract
Os prefácios de Tutaméia formam uma poética que the prefaces of Tutaméia constitute a poetic diction
exploraremos, principalmente no que diz respeito which we will investigate, especially in what it is
às relações da estória com a história, explicitadas concerned to the relation between ‘story’ and
no primeiro prefácio, que provocam polêmica nos ‘history’, elucidated in the first preface which is a
estudos que vêm sendo desenvolvidos sobre João point of controversy in the studies that have been
Guimarães Rosa. developed about João Guimarães Rosa.
Palavras-chave: Poética, Estória, História. Keywords: Poetry, Story, History.

Os quatro prefácios de Tutaméia formam uma capitalista, cartesiana e cristã.


poética rosiana, principalmente no que se refere à Determinada linha crítica, marcada pelos
obra que prefaciam e como resultado de uma reflexão estudos de Cavalcanti Proença e Antônio Cândido,
crítica que acompanhou o autor certamente nos anos há anos valoriza preponderantemente “a força
de exercício minucioso de criação que realizou. A simbólica e (em parte) inovadora da ficção rosiana,
obra de João Guimarães Rosa, segundo Ana Paula o que deu margem a tantas confusões (a começar
Pacheco, é recebida de modo polêmico por uma pela fórmula de Antônio Cândido, ‘O sertão é o
parcela da crítica brasileira “que cobra da obra de mundo’)” 2 . A crítica mais recente sobre a obra de
arte, no seu estatuto ficcional, uma maneira de pensar Rosa, que vem se desenvolvendo apoiada nos mais
a realidade, devolvendo-nos suas contradições, diversos interesses de estudo, procura “provar que,
equacionadas porém não resolvidas” . Os que 1
entranhada nos elementos que a compõem, está uma
integram o debate sobre a identidade nacional, por experiência histórica do país” 3. As duas vertentes
exemplo, enxergam na “representação do atraso” críticas são, primeiro, a dos que acreditam, para
um obstáculo à modernização. A ficção rosiana demérito ou não da obra, que nela há uma
relaciona, com abrangência, a universalidade de sua “experiência literariamente conformada da
poética à questão da identidade nacional, História, e há também o coro dos que a exaltam
metaforizada enquanto sertão de personagens e acreditando nela nada haver que se prenda ao
situações singulares. A modernização, no entanto, histórico” 4.
contraposta ao arcaico sertanejo, parece vinculada Aletria e Hermenêutica, o primeiro prefácio de
à homogeneização social que substitui a tradição Tutaméia, começa contrapondo estória à história. Isto
relegada ao esquecimento. O autor erudito explorou contraria o comprometimento da literatura, da
a riqueza interpretativa da expressão popular em estória, com a realidade histórica? A quebra com a
um rigoroso trabalho de registro da linguagem do convenção realista, efetuada pela ficção rosiana, que
meio cultural sertanejo, valendo-se de uma também endossa a tradição regionalista, opera um
elaboração que incorpora a lógica arcaica desse duplo movimento que afasta a literatura de
grupo, aberta à exceção e ao milagre. A poética determinado recorte da realidade para aproximá-
rosiana opera uma ruptura com a lógica ocidental, las (literatura e realidade) em um sertão metafórico,

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uma convenção plurissignificativa. Como a inânias, ossos de borboleta, quiquiriqui, mexinflório,
literatura intervém no mundo ligando-se a ele de chorumela, nica” 10 .
forma indireta? No caso da ficção de Rosa ainda há a O rompimento com a convenção realista
representação do interior do país, em que aparecem evidencia-se na medida em que a “semântica do
ricos e pobres como personagens que não equacionam insólito” 11 constrói-se no enredo através de uma
rigidamente as relações humanas. Como essa linguagem desautomatizadora da percepção do
literatura poderá motivar a mudança social se ela leitor, resultando em estética revolucionária. A
não distingue inimigos nem posições seguras para epígrafe de Schopenhauer 12, que nos aconselha às
os opressores e oprimidos? Na raiz da revolução está necessárias releituras da obra, reforça as ligações
o desejo de interferir no curso da história; por meio entre Rosa e a tradição romântica da ruptura:
da atitude crítica “remediar e pôr fim à nossa infeliz inovação estética, interesse pela origem e cultura
condição” . A estória, em rigor devendo ser contra a
5
populares, o arcaico e o religioso como alternativas
história, vira as costas à revolução? “A estória não à herança iluminista, etc. Mesmo o neo-platonismo
quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra é identificado nas obras de Rosa, segundo estudos de
a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco Benedito Nunes. O amor, por exemplo, é convertido
parecida à anedota” .6
de humano em divino, de erótico em mítico 13 . O
O objeto do historiador são as relações do sujeito rompimento com a convenção realista, e aparente
com o espaço em que vive, a verdade histórica simpatia à romântica, que supera, apontam a
resultante dessa relação, o próprio conceito de ciência complexidade desta obra. Nela o leitor tem disponível
adotado pelo historiador e os métodos utilizados para o difícil encontro entre literatura e realidade.
a decifração do arquivo disponível 7 . Há uma
“impossibilidade de se separar o observador do objeto “ Assim, reintroduzir a realidade em literatura é,
observado, e a história do historiador”8, além do que uma vez mais sair da lógica binária, violenta,
a escolha dos fatos históricos depende tanto de sua disjuntiva, onde se fecham os literatos – ou a
existência objetiva como de sua importância literatura fala do mundo, ou então a literatura fala
“completamente subjetiva” . Na estória, no entanto,
9
da literatura - ; e voltar ao regime do mais ou
as situações representadas obedecem apenas a uma menos, da ponderação, do aproximadamente: o
verossimilhança interna – para retomarmos o fato de a literatura falar da literatura não impede
conceito de Aristóteles –, cuja elasticidade, que pode que ela fale também do mundo 14
.
ser fantasiosa, imaginativa, é relativa à própria
convenção poética a que se vincule. A importância A anedota, com que se parece a estória, seduz o
do fato, ou da ação narrada, na modernidade, vem ouvinte, envolvido por uma expectativa que deverá
sendo substituída pelo próprio modo de narrar. A ser quebrada. Mediante surpreendente desenlace
linguagem simbólica e poética de Rosa provocou e realiza-se a graça, cujo efeito depende da quebra com
provoca muito o interesse da crítica. Do que se conta as hipóteses lógicas que encaminham a trama na
a como se conta, a literatura como jogo de signos, a interpretação do ouvinte. “Uma anedota é como um
metalinguagem como instrumento auto-crítico. O fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia” 15. A
escritor moderno é um fascinado pela palavra, graça e não a existência objetiva interessa neste caso
interessa-lhe sobretudo a linguagem. Em de “tensão entre realidade e imaginação, cujo
contraposição à relevância do fato histórico, o valor resultado encontra-se na fábula propriamente
da estória relaciona-se à narração de situações dita” 16. A estória de Guimarães Rosa dialoga com a
anônimas e, como é comum na literatura moderna reflexão poética acerca da fábula, a primeira estória
erudita ou popular e oral, corriqueiras. Tutaméia já nos primórdios ainda vinculada ao mito. O jogo com
no título dialoga com a questão do valor, tendo em as palavras, que desautomatiza a leitura, o humor e
vista o significado da palavra. Obra também a convenção não realista são elementos comuns ao
polêmica por seu alto nível de elaboração, que torna mito, à estória e à fábula. O ludismo das palavras
sua recepção pouco democrática, tem seu título sustenta-nos, leitores, no limiar prolongado da
glosado pelo autor como “nonada, baga, ninha, experiência estética seguida da interpretação, que

90 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


procura reproduzir as intenções do autor. O jogo da linguagem, caracterizado ludicamente
Interessante é que a poética rosiana conta com a por ritmo e harmonia marcantes, oferece seu
força da expressão oral e mesmo toma emprestados enigma ao apresentar-se no primeiro prefácio
motes de mitos populares, como afirma Irene Gilberto confessadamente idealizado pelo autor, “para quem
Simões em As paragens mágicas. Assim, Rosa foi escrever tinha tanto de brincar como de rezar
mentor de uma poética que ultrapassa os limites [segundo o posfácio de Rónai, como] (...) “uma
autorais abrindo-se à contribuição popular. A ênfase verdadeira corrida de obstáculos”19 para o leitor. A
na musicalidade, da prosa poética, sugere ao leitor transfiguração da realidade em imagem
uma espécie de memória íntima a que Bosi chama antropológica é realizada “no extremo limite entre a
“imagem da substância”: brincadeira e a seriedade” 20 de que se vale a
imaginação mítica. A “gênese das formas líricas” 21
“A forma interna dessa comunhão de sujeito e que haverá de se investigar em Rosa, segundo Fábio
mundo é um estilo que reativa as potências sonoras Lucas, endossa a teoria de Huizinga para o qual “a
e simbólicas da palavra. Não se trata de uma poiesis é uma função lúdica” 22 . Assim o caráter
simples volta ao vocabulário arcaico ou à frase mítico é sugerido na esfera do jogo e de sua função
coloquial sertaneja (...); trata-se de estender os social: quebrar as tensões relativas ao nosso ser e
princípios criadores da língua metapoética a todo estar no mundo. A poesia assume uma função mais
o tecido narrativo. (...) [Por meio da palavra nova] abrangente do que a estética, conservando o fator
é hora de fazer cintilar o nome, imagem da lúdico como “cidadela”23 de resistência, espaço para
substância, misterioso, além ou aquém das ócio criativo que comunica e socializa, numa
determinações verbais 17 . civilização em que essas regiões são atrofiadas. Ao
mesmo tempo lúcida (autocrítica) quanto à sua
A nostalgia do leitor orienta-o a despir-se da função social (histórica) e oásis, de que frui um grupo
posição civilizada, a que todos consignamos, para de leitores iniciados no gosto por enigmas ou corridas
trazer à luz a face da própria vontade, dos interesses de obstáculos, a poética de “Aletria e Hermenêutica”
e necessidades que não deixam a vida quieta. Por meio não subestima nem ignora a participação
da alteridade temos acesso aos personagens, a seus importante do leitor.
dramas e questões existenciais, numa imagem mais
bruta do que a que fazemos de nós mesmos. A “ A subjetividade do historiador deverá ser afetada,
analogia, o olhar enviesado que lançamos aos por exemplo, pela evidência da questão, pela
personagens, conduz-nos de volta a nós mesmos, do fartura de documentos, entre as muitas
sertão universal e paralisado pela escrita ao mundo possibilidades. Ao contrário a estória, e sua
em movimento. Alguns dos leitores brasileiros, variante fábula, legitima-se através do domínio
desavisados ou não, buscam em Guimarães Rosa uma popular. Destacada de autor a fábula concilia a
pista da própria tradição, se não literária, cultural. memória do ouvinte com a `tradicional poética da
Silviano Santiago chega a afirmar que “os mais língua` 24
.
instigantes leitores da prosa (...) absorvem o sentido
da representação literária como real, sendo aquela O chiste, anedota com que a estória quer parecer-
um objeto privilegiado para que se esclareçam as se, registra a memória irrepetível e histórica de cada
relações sociais no Brasil”18. O realismo descartado, povo que o produz sempre peculiar. Assim, “sempre
por Rosa, como convenção anula as ligações diretas que o chiste é popular, a sua espécie e a sua maneira
entre realidade e ficção, e a nova opção narrativa caracterizam a raça, o povo, o grupo e o tempo donde
não exclui o interesse que o leitor tem pelo mundo procede (...)”25. Ao realizar uma poética a partir dos
quando recorre à literatura. Esse mundo, reconhe- mecanismos do mito e do humor, as reflexões
cível na imagem projetada pelo sertão é desconstruído literárias negam a austeridade da categorização. Por
em seus discursos de verdade falsa e imposta. Ao invés isso o tom dos prefácios é de “piada sadia” 26 ,
do indício seguro, registrado ou oficial, a graça resultando leve o exercício de auto-crítica e o
anônima e instantaneamente reconhecível pelo riso. enfrentamento de questões literárias - como a

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 91


relação entre estória e história, ficção e realidade, Filha da história e da razão, a revolução é filha do
“engagement”, modernização e modelo arcaico de tempo linear, sucessivo e irrepetível; filha do
impressão, democratização da literatura e enigmas momento, a revolução é um momento do tempo
trajados de ninharias, etc - realizados pelo autor. cíclico, como o movimento dos astros e o rodízio
“Cada maneira de apreender um conteúdo material das estações” 34
.
na linguagem e toda forma lingüística dele
decorrente possuem seu antípoda cômico no chiste”27. No entanto o elemento mítico, para Paz, deve ser
O chiste desarma o conteúdo a partir das brechas na descartado ao pensarmos a revolução, sendo
sua formulação, sua “insuficiência” 28 tornando-o fundamental apenas para os que propuserem-se a
maleável. A insuficiência dos objetos expostos à troça vivê-la. Adiante acrescenta que a idéia de revolução
é compartilhada pelo autor, um troçador que decreta o fim do mito para tornar-se, ela mesma,
aparenta “ser afetado por aquilo de que zomba. (...) mito. Semelhante à fé religiosa, a fé revolucionária
É justamente nessa solidariedade que reside o imenso seria:
valor pedagógico da ironia” . Por isso o tom nunca é
29

sarcástico, mas a ironia apenas evita o “ Uma fé que nasce do vazio deixado pelas crenças
transbordamento da emoção, efetuado perfeita- antigas e que se alimenta, conjuntamente, da
mente por Rosa, quando trata-se de temas e questões consciência de nossa miséria e das geometrias da
difíceis. As angústias existenciais e a questão política, razão, é de couro resistente; fecha os olhos de
esta sutilmente embrenhada na poética dos teimosia tanto diante das incoerências de sua
prefácios, apresentam um cômico em que o leitor doutrina como diante das atrocidades de seus
pode deslumbrar “todos os matizes que vão da chefes 35
.
melancolia ao sofrimento e à dor” . A distinção é
30

assim apresentada por André Jolles: “A sátira O projeto moderno, fracassado ou não realizado,
destrói, a ironia ensina” . O cômico é a “disposição
31
chega a seu ocaso marcando o fim de uma era. Com
mental que gera o Chiste”32, de antemão disposto a a morte do mito revolucionário e sua “superstição
desfazer, desarticular, exigir adesão total do leitor/ totalitária”, “podemos agora refletir mais
ouvinte. Essa forma popular, anônima, é apropriada livremente sobre nossa tradição. (...) Qual pode ser
por Rosa, autor erudito que confere complexidade à a contribuição da poesia na reconstituição de um
função comunicativa, inclusiva do leitor (célula novo pensamento político? Não idéias e sim alguma
social) ao explicitar a importância do efeito explosivo coisa mais preciosa e frágil: a memória” 36 . O
da graça, da literatura. O jogo lingüístico resulta interesse pela “tradição poética da língua” reabilita
em formas cuidadosamente aprontadas, o que nossa memória histórica.
privilegia as leituras estruturalistas, aliás, de A memória a que o leitor tem acesso, no
grande importância. A linguagem proveniente da regionalismo rosiano, é a de um mundo fictício de
poética da estória centra-se em si mesma, sendo a verossimilhança própria. A memória projeta,
estória de domínio popular e contrária à segundo os interesses que orientam o sujeito que
historicidade. Mas nos prefácios o autor deixa-se recorda ou que lê, a imagem de ações realizáveis,
entrever em tom confessional. A reflexão a que o fictícias, que são a imagem de determinada
leitor é sadiamente convidado problematiza a tensão impressão do mundo. O narrador, e por trás dele o
das contradições com humor. autor, cria comprometendo personagens e leitor com
A idéia de Revolução é “o signo distintivo, o sinal essa impressão que marca a verdade geral de uma
do nascimento da Idade Moderna (...)” , que para
33
obra. O sujeito que recorda imagens afetadas pelo
Otávio Paz herdou da Grécia a filosofia, a razão, e do afeto, ou que lê a memória inventada, fluida e
cristianismo o desejo de redenção proposto pelo mito. imprecisa de um narrador, valoriza a experiência
Assim que retorna em nova forma e projeta-a em direção
ao futuro. De acordo com Nietzche, implicitamente
“(...) a revolução é um ato eminentemente histórico citado em Aletria e Hermenêutica através do episódio
e, apesar disso, é um ato negador da história (...). que ilustra o conceito de amor fati, nossa vontade de

92 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


poder é impotente em relação ao passado. Com a manifestar, neste público particular. (...) Na
contribuição valorosa dos erros, dos acasos e do fecundidade do araque apura-se vantajosa
“poder de querer” 37 a ser imediatamente admitido, singeleza, e a insensatez da inocência supera as
lança-se um olhar apaixonado para o futuro. Assim excelências do estudo. Pelo que, terá de ser agreste
nas entrelinhas abertas ao intérprete, ou ou inculto o neologista, e ainda melhor se
hermeneuta, há bastante espaço para especulação analfabeto for” . 38

alimentada de fé. Narrar como resistência faz valer


uma verdade que paira sobre o realizável. O milagre As outras possibilidades de criação de palavras,
e a exceção quebram a possibilidade de uma leitura ou o “proveito”, “lazer para nos ocuparmos em
pretensiosa, ou sisuda, de Tutaméia. A aumentar a riqueza, a beleza, a expressividade da
verossimilhança não abre mão de sua elasticidade língua [, também são consideradas. No entanto,]
infinita e preserva, ao mesmo tempo, sua função a coisa pode ir indo assim mesmo à grossa” 39 . A
primeira de compreensão do mundo. expressão que vinga nasce de uma forte
A questão polêmica do regionalismo rosiano necessidade reconhecida coletivamente. Pela boca
desdobra-se nas entrelinhas da poética dos quatro dos personagens pobres falam gerações inúmeras
prefácios de Tutaméia. O livro menos regionalista de e não oficiais. As oralidades, exploradas em sua
Rosa, mas ainda com olhos no sertão e resultado de força expressiva por um autor erudito que as
uma trajetória de aperfeiçoamento que desenhou o arranja como que abraçando a tradição de domínio
sertão dentro da universalidade do simbólico. Casos público, são celebradas pela poética dos prefácios.
da vida são apresentados por meio de situações em A língua portuguesa falada no Brasil sofreu e sofre
que personagens projetam uma estrutura social, muitas influências externas de povos distintos, o
análoga à nossa, que gera confrontos, em razão das que torna nossa língua uma amálgama de
necessidades em conflito, de contradições estrangeirismos, empréstimos e hibridismos. Esse
implacáveis e belas. As questões existenciais são processo de diversificação, de permanente
fingidas para a interpretação do leitor, meditação e renovação do nosso acervo lexical, confere
releitura. A exemplaridade das situações possui uma brasilidade à nossa língua, já que também somos
função mundialmente efetuável de meditação produto de misturas de vários povos. Sendo assim,
acerca dos movimentos do espírito. O mistério é parte o exercício do neologismo é muito difundido entre
da verdade geral acerca do mundo projetado pela nós, especialmente nas camadas mais pobres da
obra no leitor como imagem. população, que são menos hipotrélicas: não são
Os personagens pobres são mais numerosos, estão hostis ao neologismo.
sempre à mercê do mundo e da estrutura sócio- Os limites do sertão são imprecisos como os que
econômica. O destino tramado é sempre estejam entre ficção e realidade. Duas grandes
imprevisível, para personagens ricos e pobres, de discussões de limites. É inventada, nesse entremeio
tom geralmente mais cômico que trágico. O acessado como metáfora antropológica, uma
privilégio da escolha de pobres para personagens, memória em que figuram, na maioria, sertanejos.
analfabetos (aletria), remete à tradição oral Exceções, como os auteregos do autor conversando e
(hipotrélica) renovadora das palavras – inúmeros bebendo em Paris – símbolo da civilização – são
exemplares de impressões do mundo – ricamente apresentadas ao leitor em Sobre a escova e a dúvida.
coletadas pelo autor. O número de palavras Um dos auteregos é o narrador (cuja voz confunde-
inventadas é inferior ao de dicionarizadas, o que se mais com a do autor), que descreve-nos o outro
revela relevância na experiência histórica de pessoas auterego, Rão, cujos traços principais são a vaidade
pobres e analfabetas a quem, por “bem decretado e o araque. O tom do discurso indireto livre é de
conceito”, é legada a invenção das palavras. A esse humor, que permite ao leitor o exercício da
respeito lê-se no prefácio Hipotrélico: auteridade em relação aos dois personagens, e
suaviza, em primeiro lugar, a aspereza da
“Sobre o que, aliás, previu-se um bem decretado compaixão, que envolve o tema da democratização
conceito: o de que só o povo tem o direito de se da literatura e das injustiças históricas, e, em

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 93


segundo, a sensatez do personagem narrador. O O vigor da tradição regionalista, que assume
narrador não ostenta aprisionar o conhecimento do diversas faces no decorrer da história da literatura
que narra, dramatiza ao invés de reduzir os brasileira, é endossado pela participação marcante
conflitos, mas ao fim descobre-se também de Rosa. Ele rompe com a convenção realista, que
personagem de Rão. “Deu redondo ombro à velhinha instaura uma ilusão de realidade pintando retratos
à beira da mesa. Desprezava estilos. Visava não à históricos, e reorienta os interesses pela especulação
satisfação pessoal, mas à rude redenção do povo” 40. acerca da criação regionalista. O leitor pode buscar
O narrador, com o devido distanciamento que exige o mundo, o sertão, inventado para, inclusive,
a multiplicidade de seu ponto de vista, aproxima-se especular na estória possibilidades da história não
de Rão, “singelo como um fundo de copo ou coração oficial dos sertanejos. Através da compreensão do
[, concordando em fazer com ele] (...) um certo mundo inventado, que é projetado a partir das
livro” . Coerentemente com o que é apresentado em
41
necessidades dos personagens, o leitor pode imaginar
Hipotrélico, outra vez a singeleza, apurada do araque, um mundo, interessando-se por sua imagem, que
do acaso, mostra vantagem sobre as “excelências do reflita outro sertão, particular, como imagem fora
estudo”42, como já foi citado. A estória, em forma de do espelho. A estória contra a história, uma como
prefácio, desenvolvida num espaço sofisticado e em avesso da outra em mútua imagem e semelhança
linguagem urbana e cosmopolita, atesta a abstraível que as enriquece.
universalidade da poética dos prefácios.

Notas

1
PACHECO, Ana Paula. História, psique e metalinguagem em 19
ROSA, 1979: p. 194.
Guimarães Rosa. In: Cult: Revista de Literatura. São Paulo: Lemos 20
HUIZINGA, 1993: p. 146.
Editorial e Gráficas. Ano IV, n° 43, p. 42. 21
LUCAS, Fábio. Vanguarda, História & Ideologia da Literatura.
2
PACHECO. Ano IV: p. 42. São Paulo: Editora Ícone. 1985, p. 24-25.
3
PACHECO. Ano IV: p. 42. 22
HUIZINGA. 1993: p.133.
4
PACHECO. Ano IV: p. 43. 23
HUIZINGA. 1993: p.149.
5
PAZ, Otávio. A Outra Voz. São Paulo: Siciliano, 1993, p. 65. 24
PAZ. 1993: p. 124.
6
ROSA. 1979: p. 3. 25
JOLLES. 1976: p. 205.
7
DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo. Rio de Janeiro: Rellume 26
SIMÓES. 1988: p. 126.
Dumará, 2001, p. 72. 27
JOLLES. 1976: p. 207.
8
VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: ed. Iluminuras, 1999, p. 28
JOLLES. 1976: p. 211.
112. 29
JOLLES. 1976: p. 211.
9
VALÉRY. 1999: 112. 30
JOLLES. 1976: p. 211-212.
10
RÓNAI, Paulo. Os prefácios de Tutaméia. In: Tutaméia. Rio de 31
JOLLES. 1976: p. 211.
Janeiro: José Olympio, 1979, p. 193. 32
JOLLES. 1976: p. 209.
11
BOSI, Alfredo (organização e prefácio). O conto brasileiro 33
PAZ. 1993: p. 63.
contemporâneo. São Paulo: ed. Cultrix, 4a edição, p.13. 34
PAZ, 1993, p. 64.
12
ROSA, 1979, p. V. 35
PAZ. 1993: p. 66.
13
NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Editora 36
PAZ. 1993: p. 72-73.
Perspectiva, 1968, p. 196. 37
NIETZCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra. São
14
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso- Paulo: Escala, p. 155.
comum. Belo Horizonte: editora da UFMG, 1999, p. 126. 38
ROSA, 1979, p. 64-65.
15
ROSA. 1979: p. 3. 39
ROSA, 1979, p. 65.
16
SIMÕES, Irene Gilberto. As paragens mágicas. São Paulo: 40
ROSA, 1979, p. 147.
Perspectiva, p. 92. 41
ROSA, 1979, p. 148.
17
BOSI, 4a ed., p. 13. 42
ROSA, 1979, p. 65.
18
SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da Letra. São Paulo: Editora
Schwarcz LTDA. 1989, p. 220.

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A Relação entre a Ciência Histórica e o Direito:
implicações e distanciamentos na formulação dos
conceitos de Verdade, Política e Justiça

Jeanne Silva

Mestre em História e bacharel em Direito pelaUniversidade Federal de Uberlândia.

Resumo Abstract
Este artigo discute o vínculo entre Direito e This article is about the link between Law and
História, estabelece aproximações e History and it establishes approaches and
distanciamentos entre ambos. Partindo de distances from one another. The concepts of
conceitos como “verdade”, “política”, “justiça”, “truth”, “politics”, and “justice”, help for the
estabelecemos elos interpretativos de como o establishment of interpretative links of how the
historiador pode se apropriar das fontes jurídicas historian can take advantage of legal sources
com objetivos historiográficos, ou seja, discutindo having historical objectives, i.e. he/she can
possibilidades e limites no uso dos processos. discuss possibilities and limits of the processes.
Palavras-chaves: Direito, História, Processos Keywords: Law, History, Process, Research
Jurídicos, Fontes de Pesquisa.

Eclesiástico: “-. A dizer a verdade, a história não essência próxima. O vínculo entre justiça, história
dá a ninguém o direito de julgar o guarda. O guarda e verdade é um vínculo de nós emaranhados que
é um servidor da lei, que por fim pertence à lei. ainda hoje merecem análises reflexivas. Segundo a
Duvidar de sua dignidade é duvidar da própria lei. mitologia, foi sob o signo da ambivalente deusa
J.K. – não compartilho dessa opinião. Para aceitá- Têmis, fonte da equidade, e da rigorosa Diké, senhora
la é preciso admitir que tudo o que diz o guarda é das penas imerecidas, que os homens formaram a
verdadeiro. idéia primordial do justo, convertendo em mito, a
Eclesiástico: - Não é preciso considerar verdadeiro divina potestade. Duas distintas progênies se
tudo o que diz. É preciso considerá-lo apenas atribuíram a Têmis: dela ter-se-iam gerado as Horas,
necessário. que, na lição de Hesíodo, velam sobre o trabalho dos
J.K. – Sombria essa opinião. Desse modo, se faz homens, como Eunomia, a legalidade segura
participar a mentira na ordem do mundo.” observada, como Diké, a retribuição necessária, e
Franz Kafka. 1
Irene, a paz: mas também dela teriam nascido as
Parcas, tecelãs do passado, do presente e do futuro,
O trecho de diálogo entre os dois personagens do porque não se tece a justiça sem o fim do tempo.
romance nos remete moralmente ao fato de que a Portanto, explica-se assim, mitologicamente, a co-
compreensão correta de algo e, a apreciação falsa do implicação entre Têmis e Clio, a crença de que é
mesmo, não são coisas que se excluem inteiramente, através da efetivação histórica do tempo, que a
que o vínculo entre a verdade e a mentira são tênues, justiça se realiza através das normas e de instituições
separadas às vezes pela contingência da necessidade objetivas que zelem pela realização da mesma.
ou da própria imaginação. Partimos da idéia de que as palavras representam
Têmis e Clio são musas gregas que compartilham conceitos. E na formulação geral dos conceitos, nas

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 95


tentativas dos discursos produzidos as energias são Políbio: “não se julgam da mesma maneira
gastas para convencimento e persuasão, a primordial fatos conhecidos apenas por boatos e fatos
contingência é a busca da verdade, ou melhor seria conhecidos por testemunha pessoal”... (grifo
explicitar “do efeito de verdade” alcançado na criação nosso ) 4
da verossimilhança. E nesse ponto, as relações
estabelecidas entre a ciência histórica e o direito Até agora, a “enargheia” grega aparece como uma
partilham de traços comuns que convém noção fronteiriça entre a historiografia e a retórica,
analisarmos para pensarmos, posteriormente, em campo comum ao Direito. Na Grécia, esperava-se
como o historiador pode se apropriar das fontes que o historiador fosse antes de tudo uma
jurídicas com objetivos historiográficos, ou seja, testemunha, mais próxima possível dos eventos dos
como os processos judiciais podem servir de fontes de quais falava: a insistência da “autopsia”. Basta
pesquisas e quais as limitações dos mesmos. mencionarmos que essa lógica grega do testemunho,
As relações entre História e Direito sempre foram da experiência direta, ainda se encontra presente
muito estreitas. O historiador italiano Carlo na formulação de um processo jurídico. É essa lógica
Ginzburg, em sua obra “El juez e el historiador” 2, de funcionamento que Hanna Arendt explicita e
analisa as relações metodológicas de ambos e nesse questiona, analisando que a verdade factual deve
sentido nos aponta a possibilidade de utilizar os informar opiniões, mas essas verdades, embora não
processos judiciais como fonte de pesquisa sejam obscuras, tampouco são transparentes:
historiográfica para a reconstituição da vida de
homens e mulheres. “... Em outras palavras, a verdade fatual não é
Segundo o autor, desde que surgiu na Grécia, o mais auto evidente do que a opinião, e essa pode
gênero literário que chamamos “história” se ser uma das razões pelas quais os que sustentam
aproxima muito do direito. A história como atividade opiniões acham relativamente mais fácil
intelectual específica se constitui, como afirmou desacreditar a verdade fatual como simplesmente
Arnaldo Momigliano, em um encontro entre mais uma opinião. A verdade fatual é
medicina e retórica: examina os casos e as situações estabelecida através de confirmações por
buscando suas causas naturais segundo o exemplo testemunhas oculares (notoriamente não
da primeira (medicina) e expondo as causas segundo fidedignas) registros, documentos, e
as regras da segunda (retórica). Segundo a tradição monumentos, os quais podem, todos, ser
clássica, a exposição histórica exigia em primeiro suspeitos de falsificação) no caso de uma
lugar uma qualidade que os gregos chamavam de disputa, apenas outra testemunha, mas não
“enargheia” (aquilo que dá a impressão de verdade/ alguma terceira e superior instância, pode
vida) e os latinos chamaram de “evidência” na ser invocada, e, geralmente chega-se a uma
narração: conclusão por meio de uma maioria; isto é,
do mesmo modo que se concluem disputas
“...A capacidade de representar com vivacidade de opinião – um procedimento inteiramente
personagens e situações. Da mesma forma que insatisfatório, visto que não há nada que impeça
um advogado, o historiador tinha que uma maioria de testemunhas de serem falsas
convencer por meio de argumentos eficazes testemunhas. Ao contrário, sob determinadas
que, eventualmente, foram capazes de comunicar circunstâncias, o sentimento de pertencer a
a ilusão da realidade, e por meio de uma produção uma maioria pode até encorajar o falso
de provas ou de valoração de provas produzidas testemunho.... (grifos nossos) 5
por outros...” (grifo nosso) 3

Todo Direito Moderno e Contemporâneo se


Conforme Ginzburg: solidifica nesse confronto de testemunhas, sem
contar na produção de provas da Medicina Legal,
...”enargheia” estava para os gregos associada à especializadas nas necrópsias materiais que, ainda
esfera da experiência direta. Conforme afirma hoje, a despeito de inúmeras críticas, se baseia nessas

96 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


ações. O chamado “Princípio da Verdade Real” “.... para muitos historiadores a noção de
existente principalmente no Direito Penal informa, prova está fora de moda; assim como a
mesmo que de forma “mitigada” o procedimento da verdade, a qual está ligada por um vínculo histórico
justiça prática. [e portanto não necessário](...) Entretanto, o
Até a Segunda metade do século XVIII a história sentido da expressão Representação tem
e a atividade dos antiquários se constituíram em criado um muro em torno do historiador. A fonte
âmbitos independentes. Somente a obra de Edward histórica tende a ser examinada exclusivamente
Gibbon (“The decline and fall ofthe Roman em si mesma (segundo o modo com que foi
Empire”,1776) fundou a historiografia moderna, construída) e não das pessoas sobre que se fala.
fundamentada na historiografia clássica e na Para dizer em outras palavras, se analisam as
pesquisa de antigüidades, convergindo duas fontes (escritas, imagens etc) do mesmo modo que
tradições intelectuais distintas. Transformando se analisam os testemunhos das representações
medalhas, moedas, estátuas e edifícios, considerados sociais: mas ao mesmo tempo se rechaça a
como testemunhos sólidos e muito mais confiáveis possibilidade de analisar as relações existentes
do que as fontes narrativas maculadas de erros e entre dos testemunhos e a realidade por eles
falsificações. Ao final desse século já era possível designada ou representada. Pois bem, estas
encontrar afirmações como o de Lord Acton, professor relações não são óbvias, defini-las somente
Regente de história moderna pela Universidade de em termos de representação é que seria
Cambridge (1895) que afirmava “a historiografia, ingênuo. Sabemos perfeitamente que todo
quando está baseada nos documentos, pode se testemunho está construído segundo um código
levantar por cima dos acontecimentos e em um determinado: alcançar a realidade histórica (ou a
tribunal reconhecido para todos”. Estas palavras realidade) diretamente é por definição impossível.
traduzem o clima dos finais do século XIX e os Mas inferir dos testemunhos a
primeiros anos do século XX da historiografia, incogniscibilidade da realidade significa cair
principalmente da historiografia política. em uma forma de asceticismo
Nesses séculos de positivismo, a coincidência entre preguiçosamente radical que é ao mesmo
história e Direito eram extremas, a ponto de muitos tempo insustentável do ponto de vista
afirmarem que “o historiador examinava um existencial e contraditório do ponto de vista
fenômeno revolucionário com a mesma atitude de lógico: como é sabido, a eleição fundamental do
um juiz imperturbável. ascético não é submetida a dúvida metódica que
A Escola dos Annales fundada em 1929, com declara professar. (grifo nosso) 6
Lucien Febvre e Marc Bloch rompe com uma história
centrada nos acontecimentos (políticos, militares e A noção de prova e de verdade são, portanto,
diplomáticos) e ante o dilema “Julgar ou partes constitutivas do ofício do historiador, busca
Compreender” Bloch opta sem dúvidas pela segunda da ciência jurídica para realização do direito.
alternativa. A alternativa historiográfica. E a partir Entretanto, para os historiadores, a importância das
daqui, história e direito voltam a se distanciar. A probabilidades são mais vastas e menos perigosas.
história avança em torno de estudos que buscam Os silêncios, as lacunas, podem levar o historiador a
“compreender” fatos e construir sentidos (um estudo pensar um problema, mas não abre brecha para
um pouco forçado pelas discussões da filosofia, da cogitações jurídicas, uma vez que, segundo a regra
antropologia e da sociologia). Entretanto, Ginzburg jurídica “o que está fora dos autos do processo, está
nos alerta que atualmente as coisas se apresentam fora do mundo”:
mais complicadas, e não é tão nítida a diferença
entre o juiz e o historiador assim como distinguiu “... um historiador tem sempre o direito de
Bloch. O problema se encontra nas noções de provas, distinguir um problema alí onde o juiz decidiría que
traçadas por história e direito. E no caso particular “não há lugar”. É uma divergência importante, sem
da história, na noção de “representação”. Sobre este embargo, pressupõe um elemento comum a
problema assim se manifesta Ginzburg: historiadores e juizes: o uso da prova. O ofício

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 97


tanto de uns como de outros se baseia na reconstrução da vida de pessoas, principalmente
probabilidade de provar, segundo indícios e análises de indivíduos anônimos das classes
determinadas regras, que X há feito Y: onde inferiores, que podem ser reelaboradas pelo
X pode designar tanto um protagonista, ainda que historiador através dos contextos históricos ou
seja anônimo, de um acontecimento histórico; mesmo literários (contextos aqui entendidos como o
como a um sujeito de um procedimento penal; e Y, lugar das possibilidades historicamente
uma ação qualquer. Mas obter uma prova é nem determinadas que servem para comunicar o que os
sempre é possível: e quando é , o resultado documentos não dizem sobre a vida de um
pertence sempre a uma ordem da probabilidade indivíduo):
(ainda que seja novecentos e noventa e nove por
mil), e não há certeza absoluta... (grifo nosso) 7 “(o preenchimento de lacunas históricas) ... são
possibilidades, não conseqüências necessárias,
Por fim, as linhas de implicações e limites entre o são conjecturas, não fatos comprovados, quem
direito e a história podem ser pensados na sugestiva chegasse a conclusões distintas negaria a dimensão
analogia sugerida por Luigi Ferrajoli, citado por aleatória e imprevisível que constituem uma parte
Ginzburg: importante (ainda que não exclusiva da vida de
cada um...” 8
‘...O processo é, por assim dizer, o único caso
de “experimento historiográfico”: dentro dele E no que tangem aos resultados, as divergências
as fontes atuam ao vivo, não só porque são também se notam por demais distintas. As
assumidas diretamente, mas também porque são conseqüências de um erro científico são por demais
confrontadas entre si, submetidas a exames distintas um erro judicial (a sentença). Mas existe
cruzados, e solicitadas a que reproduzam, como um campo comum a ambos: a verificação dos fatos e
em um psicodrama, o acontecimento que se julga. das provas; e há uma distância entre eles quanto à
(grifo nosso) atitude para com os contextos. Entretanto, se o
caminho de juízes e historiadores coincidem durante
Esta analogia esclarece as aproximações em uma trama, logo divergem inevitavelmente:
comparar o campo do jurídico com uma espécie de
historiografia, embora não se confunda com esta. “... aquele que tenta reduzir um historiador a juiz,
São metodologias muitas vezes semelhantes, mas simplifica e empobrece o conhecimento
que levam a resultados distintos. Durante o historiográfico, mas aquele que tenta reduzir um
processo, o juiz que dirige o interrogatório se juiz a historiador, contamina irremediavelmente o
comporta como um historiador que confronta, para exercício da justiça. 9
analisar, os diversos documentos. Mas os documentos
(escritos ou testemunhais) não falam sozinhos. Para Diante das aproximações, as indagações teóricas
que os documentos “falem” é preciso indagar de e práticas sobre o conceito, a natureza e noção de
perguntas apropriadas. São tantas perguntas que verdade, ainda se fazem presente até os dias de hoje,
tais ações vão criando as possibilidades de e diríamos ainda mais necessariamente nos dias de
modificação da própria linguagem e do conteúdo das hoje, onde a verdade é constantemente destruída
mesmas. pela invenção da mentira político-jurídico.
Quem, segundo Ginzburg, examine o modo de Pela ambigüidade metodológica da história,
trabalho de ambos, perceberá inúmeras apontada por Hayden White, à história é possível
divergências. De fato, os historiadores se ocuparam avançar (diante das críticas oferecidas à história
por muito tempo e quase que exclusivamente de pela Literatura, Sociologia e demais ciências e mais
acontecimentos políticos militares: estados e não modernamente pela crise das ciências em geral).
indivíduos; e estados não penalmente perseguidos. Mas e quanto ao Direito? É possível pensar em
Entretanto as fontes judiciais (processos ou atas) têm avanços numa ciência onde o problema de apuração
oferecido possibilidades de análises qualitativas na da verdade é o regulador do imaginário social? Eis

98 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


aí um problema de fato, não jurídico, mas mesmo a decisão do juiz) fosse (ou ainda seja)
fundamentalmente histórico-político. necessariamente o critério último de verdade. Daí a
No dizer de Ginzburg, Hayden White escolheu frase de Quintiliano, citada por Ginzburg:
silenciar sobre a interação “imaginação histórica” e
a “prova histórica”, entre a história concebida como “...alguns, entretanto, julgam esta qualidade
uma obra literária e a história compreendida como [do uso da evidência] às vezes inteiramente
um trabalho de pesquisa, daí sua conclusão em perniciosa, sob o pretexto de que existem
afirmar que as modas literárias específicas que casos onde é desejável dissimular a verdade.
inspiraram obras históricas (como a de Michelet, Isto é ridículo, pois quem quer dissimular expõe o
Ranke, Marx, Tocqueville ou Burkhart) não eram falso no lugar do verdadeiro, ao passo que na
conclusões imprevisíveis. E nessa afirmação as narração deve trabalhar para dar ao que se narra
fronteiras entre a ficção e os discursos históricos vão a aparência da maior clareza possível. Em princípio
se tornando cada vez mais turvas. Sob esse ponto de esta análise franca e mesmo cínica poderia se
vista perguntamos: Será que o discurso técnico aplicar tanto a historiadores quanto a juristas.
científico do direito também não se traduz num estilo Essa frase de Quintiliano implicava que a verdade
de linguagem ficcional? Ao escolher e manter a fosse antes de tudo uma questão de persuasão e
forma técnica de linguagem e expressão, não estaria mantivesse apenas uma relação marginal com a
(e estará) o direito, ainda que se utilizando do prova objetiva da realidade.(grifo nosso)... 11
“confronto da prova”, criando uma linguagem, uma
narrativa onde o discurso constrói o sentido da Pensar o imaginário, o imponderável, o que
realidade, impregnado de imaginação por parte dos poderia ter sido possível e não foi, as possibilidades
agentes que nele operam enquanto experimento frustradas, é um exame que parte objetivamente
historiográfico? da realidade, da busca pela verdade.
Para Paul Veyne a história é uma narrativa real Não estamos criando uma antítese, em termos
de fatos. Para Hayden White a narrativa histórica é de imaginação, considerando-a como uma mentira
um artefato literário, “o real, a matéria factual” ou fantasia, e de outro lado a realidade como
estaria diluída por entre a imaginação histórica. sinônimo de razão e objetividade, pensar nestes
Carlo Ginzburg aponta que a “verdade” e a termos duais seria agir pelo senso comum que
“realidade” são palavras que já não se empregam privilegiou, ao longo de uma tradição histórica, a
em nossos dias, pois os historiadores aprenderam com racionalidade. Quem assevera que a imaginação não
os filósofos, com os críticos literários e com os faz parte do real? Quem assevera que a imaginação
especialistas em antropologia a se protegerem das não é precisamente a dirigente da palavra
ingenuidades dos sofismas referenciais” 10 . E os “enargheia” grega que cria o efeito de verdade dos
teóricos e práticos do direito (juristas, advogados, símbolos e dos emblemas? Diante da crise dos
juízes, promotores) têm aprendido o quê e com paradigmas da década de 70, este foi o grande debate
quem? Como a Ciência Social aplicada tem se disciplinar da década de 80: a história ciência X a
relacionado com os outros ramos do conhecimento história ficção:
nas discussões epistemológicas de construção dos
saberes? Uma vez que no dizer de Boaventura Sousa, “...não será que o imaginário coletivo não
o direito estatal (oficial) se identificou com a ciência intervém em qualquer exercício do poder e
e perdeu seu cunho tanto regulatório quanto designadamente do poder político? Exercer
emancipatório. um poder simbólico não consiste meramente em
No plano da forma nada distingue uma acrescentar o ilusório a um potência “real”, mas
proposição verdadeira de uma proposição falsa em sim em duplicar e reforçar a dominação efetiva
nenhum ramo da ciência. E pelo fato da História já pela apropriação dos símbolos e garantir a
ter sido próxima do direito em tempos remotos, obediência pela conjugação das relações de sentido
devido à estreita relação que existia entre verdade e e poderio. Os bens simbólicos que qualquer
retórica, não se supunha que a reação do público (ou sociedade fabrica, nada têm de irrisório e não

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 99


existem em quantidade ilimitada. Alguns deles são fatos não sejam questionados. Em outras
raros e preciosos. A prova disso é que palavras, a verdade fatual informa o pensamento
constituem um o objeto de lutas e conflitos político, exatamente como a verdade racional
encarniçados e que qualquer poder impõe uma informa a especulação filosófica.(grifo nosso) 13

hierarquia entre eles, procurando monopolizar


certas categorias de símbolos e controlar outras A matéria factual existe. Mesmo que admitamos
[como é o caso do direito], (....) um sistema de que cada geração tem o direito de rearranjar os fatos
representações que legitima a ordem e instala os de acordo com sua própria perspectiva (os princípios
“guardiões” do sistema que manejam representa- de escolha não são dados factuais), não admitimos o
ções e símbolos. (...) Não são as ações direito de tocar na própria matéria factual. E
efetivamente guiadas pelas representações? atualmente o que se tem feito é a invenção de
Não modelam elas o comportamento, não mentiras deliberadas.
mobilizam elas as energias, não legitimam Diante das mentiras políticas, o campo do
a violência?..(grifo nosso) 12
imaginário é possível de ser estudado através dos
sistemas políticos. A busca pela verdade e a
Portanto, são essas ações dos “guardiães” da elaboração de novas possibilidades passa
ordem deste sistema de estruturas políticas que prioritariamente pelo sistema político e pelo campo
geram nos dominados os sentimentos de respeito, do jurídico:
obediência, de medo, de ódio, de rebeldia, ou mesmo
de inércia, de passividade. “Compreender”, segundo “... Discutir o campo conceitual do político implica
Hanna Arendt, “consiste em olhar com atenção a discutir e analisar o campo do jurídico. As teorias
realidade de frente, sem idéia pré-concebida, e se do Direito são necessárias para compreender toda
necessário resistir a ela, qualquer que seja ou tenha importância e as conseqüências dos estatutos
sido essa realidade.” Daí a necessidade de um políticos de seu respeito ou de sua destruição, de
pensamento crítico, ou uma história crítica sua regulação ou de sua emancipação (..) estudar
permanente, que vai tomar muitas vezes as o político é estudar as estruturas, os sistemas
características da polêmica contra os mitos e políticos, daí deduzindo a formação das
propaganda tranqüilizadoras e mentirosas, ou representações, das atitudes, dos sentimentos de
contra as narrativas históricas fabulosas e desprezo dos dominantes para com os
descomprometidas com a realidade. excluídos....” 14

Portanto, a matéria factual, sob esse prisma, só


ganha vida pelas representações que lhe são Portanto, a elaboração do conceito do que é justo,
conferidas. E nesse sentido: do que seja justiça, é um elemento crucial para a
teoria legal do direito, e tais implicações se
“... existe uma matéria factual que relaciona- encontram no campo do político. Num mundo onde
se sempre com outras pessoas: ela diz as possibilidades da mentira são ilimitadas, a verdade
respeito a eventos e circunstâncias nas quais e os fatos são inseguros, precários, e a noção de justiça
muitos são envolvidos; é estabelecida por também se vê constantemente ameaçada. Tanto a
testemunhas e depende de comprovação.(...) É política, quanto o direito, devem, com efeito, trilhar
política por natureza(...) Fatos e opiniões, embora a estreita seara entre o perigo de tomar os eventos
possam ser mantidos separados, não são como resultados de algum desenvolvimento
antagônicos um ao outro; eles pertencem ao necessário que os homens não poderiam impedir e
mesmo domínio. Fatos informam opiniões, e as sobre os quais eles nada podem fazer, e o risco de
opiniões, inspiradas por diferentes interesses e negá-los, de tentar maquinar sua eliminação do
paixões, podem diferir amplamente e ainda serem mundo. Trata-se de romper com um tipo de
legítimas no que respeita à verdade fatual. A determinismo científico que tem sido uma das causas
liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a da crise paradigmática da ciência e do direito
informação fatual seja garantida e que os próprios moderno.

100 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


“Compreender” o político em todas as suas leis e as regras são determinadas pelos interesses da
dimensões (e o jurídico pode assumir uma dimensão classe dominante com o objetivo de manter a
do político) é tarefa primordial ao historiador. dominação e a exploração da classe trabalhadora.
Segundo Ansart somente a compreensão dessa Constitui-se, para além disso, em campo de luta de
dimensão pode oferecer meios de defendermos nossas classes onde interesses antagônicos defrontam-se.
liberdades sempre em situação de serem ameaçadas. Seu mérito se destaca pela percepção de que para
O emprego do verbo “compreender”, adquire aqui uma mesma lei, os procedimentos aplicados por
particular importância, comprovando as diferenças juízes e promotores se diferenciam imensamente, daí
entre o juiz e o historiador citados por Ginzburg, e seu pressuposto de que o processo de criação,
abrindo possibilidades de exercício efetivo de práticas desenvolvimento e aplicação da legislação é antes
libertárias. Para H. Arendt “compreender é um ato de tudo, um processo histórico-social.
de liberdade e, sem se preocupar com as fronteiras Outra tarefa árdua é traduzir e mediar a
disciplinares, insiste na necessidade de linguagem técnico-jurídica para encontrar nela os
considerarmos a “compreensão que os agentes tem elementos que evidenciassem a presença dos agentes
deles mesmos”. É esta compreensão que nos interessa sociais. Dessa forma o discurso técnico construído
ao trabalharmos com os processos judiciais como pelo judiciário deve ser (re)apropriado com cautela,
fontes de pesquisa histórica. sem perder de vista a presença do chamado escrivão,
agente responsável pelo registro de todas as possíveis
“falas”. Em geral o escrivão é o mediador entre as
Os processos judiciais como fontes de falas dos “sujeitos” e o registro formal nos autos dessa
pesquisa histórica mesma “fala” em termos técnicos considerados
apropriados.
Inúmeros trabalhos historiográficos têm sido Nesse ponto acreditamos que a teoria lingüística
construídos a partir de análises de documentos de “análise do discurso”15 é instrumento valioso para
judiciais. Em conjunto com outros elementos, a percepção dos significados que a “fala” dos agentes
produção processual nos fornece indícios e pistas assumem dentro de uma escrita datada no tempo e
para o entendimento e problematização de inúmeras no espaço, levando-se em consideração o que é dito e
questões históricas. Entretanto, é necessário que escrito, quem diz, em que circunstâncias diz e as
historiador tome alguns cuidados ao lidar com o condições de produção do mesmo. Também
documento jurídico. considerando o que é omitido, silenciado e apagado
Acreditamos que a lição mais fundamental nas no processo. Todas essas articulações e combinações
questões jurídico-historiográficas vem de E. P. retóricas e procedimentais formam o que, no nosso
Thompson ao perceber o espaço da lei como registro entendimento, compõe o chamado “jogo jurídico” 16.
da dinâmica social e de seus conflitos e, portanto, O aparato jurídico tem uma linguagem própria, é
dentro do movimento de luta e confronto de seus uma linguagem formal e impessoal. Aplicada ao
agentes. Senhores e Caçadores mostra o “domínio procedimento especial, essa linguagem, muitas vezes
da lei” como um campo de conflito. A lei eu um oculta os sujeitos que dele participam. A palavra
paradoxo na sociedade de classes. Sabemos que escrita é o hoje o principal instrumento de
primordialmente ela é um instrumento mediador comunicação (diferentemente do mundo greco-
da dominação de uma classe sobre a outra. Mas, romano onde a oralidade primava sobre o registro
conjunturalmente, pode servir também como escrito) processual. A palavra do escrivão que
mecanismo de defesa dos direitos de homens e “traduz” outras falas, a palavra da defesa e da
mulheres oprimidos. Dessa forma, a lei, o espaço do acusação que criam os argumentos retóricos de
tribunal, o fórum, os depoimentos, os escrivães e absolvição ou condenação; a palavra do juiz que
demais agentes, fazem parte do cotidiano de um sentencia a decisão a favor de um ou de outro e tantas
aparato jurídico-repressor, criando ambientes outras falas que se entrecruzam num confronto
comuns de ação e práticas. Assim, o campo da ação articulatório dos discursos. Portanto, não se pode
jurídica não representa apenas o espaço em que as deixar de perceber, numa análise historiográfica que

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 101


as informações técnicas traduzidas por uma apreciação, construídas em acordo com universos
linguagem jurídica buscam escamotear num de referenciais sociais e simbólicos específicos. De
primeiro olhar os sujeitos existentes, mas não os acordo com esta perspectiva, a interpretação dos
apagam; antes, revelam narrativas a partir das atores sobre suas inserções sociais particulares - os
histórias de cada participante do procedimento, sentidos que dão à realidade que vivenciam -
sujeitos sociais imbuídos dos valores, idéias e constitui a chave da análise.
interesses forjados dentro do universo social a que Contudo, no que ser refere ao campo jurídico
pertencem e da posição que ocupam dentro do jogo ocidental, alguns estudos contemporâneos tem
jurídico. apontado a parcialidade da lei, afirmando que a
Evidenciando também as inúmeras ordem legal incorpora desigualdades, impõe
possibilidades polissêmicas do campo jurídico é constrangimentos e subordina pessoas; criticam o
possível ir além da simples constatação de que o direito moderno de exacerbação da propriedade
processo judicial é composto por diversos agentes – burguesa e questionam a velha divisão tripartite de
escrivães, advogados, promotores, juízes, vítimas, separação dos poderes. Pierre Bourdieu, por
testemunhas que articulam seus interesses, exemplo, chega a ressaltar que o direito consagra a
transformando o processo num terreno de tensões e representação oficial do mundo social e contribui
conflitos. É possível introduzir uma riqueza universalmente para impor uma representação de
metodológica que leve em conta na construção das normalidade em relação a qual todas as práticas
tramas dos significados a questão das sensibilidades. diferentes tendem a aparecer como desviantes,
Pois somente em agentes subjetivos, e exercendo assim uma dominação simbólica, que é a
particularmente realidades locais (como nos indica imposição de legitimidade de uma ordem social. Mais
Boaventura Santos) se é possível captar nas do que uma forma de pensamento, a lei também é
vivências, emoções, sentimentos: vista como uma ordem de pensamento. Nesta
perspectiva, as relações assimétricas de poder são o
“...Tais sensibilidades jurídicas – os sentidos de foco principal das análises, assim como o conjunto
justiça- variam não apenas em graus de de relações de forças ligadas a relações de poder.
definição, mas também no poder que exercem Essas possibilidades apresentadas, também nos
sobre os processos da vida social frente a outras remetem à questão dos pares de oposição, discutido
formas de pensar e sentir- o que introduz uma pelo historiador Roger Chartier 17: subjetividade X
dimensão importante na análise em torno do objetividade; perspectiva culturalista X perspectiva
campo jurídico que é a de que- assim como a processualista, ênfase na diferença ou na
etnografia- só funciona à luz do saber local, desigualdade. No entanto, se é verdade que o campo
através do entendimento das estruturas de jurídico é produto e produtor de desigualdades, ele
significado e dos sentidos evocados e também propicia e expressão de diferenças de
compartilhados por indivíduos e grupos sociais ao significado através da própria interação social
longo da vida, a partir de suas inserções sociais e inerente ao seu funcionamento. Uma análise dos
particulares....(grifo nosso)” significados expressos nos processos judiciais que não
se desvincule das questões de poder deve diluir tais
Entretanto, privilegiar a análise do direito pares de oposição acima destacados e, portanto,
através da noção de “sensibilidades jurídicas”, que devem levar em consideração as relações
constroem a realidade ao invés de refletí-la é algo assimétricas de poder quando incorporar as
bastante recente e nem sempre bem aceito por uma múltiplas “sensibilidades jurídicas” presentes em tal
ala conservadora. Este privilégio dos sistemas campo, sob pena de ressaltar teoricamente as relações
simbólicos em detrimento da funcionalidade abre a de força atuantes no objeto de estudo.
possibilidade de pensar, inclusive, diversas Por fim, cumpre-nos salientar a importância de
“sensibilidades jurídicas” operando no mesmo campo trabalhos que utilizam fontes judiciais e da
jurídico institucional, na medida em que a lei e importância de Arquivos e Instituições 18 que
justiça passam a ser categorias de percepção e guardem, conservem e permitam o acesso a

102 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Processos judiciais produzidos numa determinada cotidiano, sem perderem de vista que, os discursos
Comarca: por eles construídos são importantes manifestações
A historiadora Iara Toscano Correia 19 , ao de “visões de mundo”. Possibilita compreendermos a
recompor fragmentos da vida de um personagem lei em seu processo dinâmico de continuidade e de
bastante conhecido na cidade de Uberlândia (João mudança, processo no qual é continuamente
Relojoeiro), utilizou minuciosa investigação produzida e entendida enquanto emergente produto
histórica ao processo criminal do mesmo. Conseguiu das relações sociais, ao invés de um aparato externo
construir um campo de pesquisa onde confrontou atuando sobre a vida social. Isto significa afirmar que,
inúmeras versões do acontecimento, tomando a lei não simplesmente reflete a realidade, mas
contato com diversas variantes do episódio. Em também é sua construtora. Sem esquecermos que a
sucinto artigo publicado na Revista Caderno de lei é uma forma de exercício do poder, mas
Pesquisa do CDHIS/UFU, a autora menciona em sua lembrando o pressuposto de que não há uma relação
conclusão possibilidades metodológicas de análises de oposição entre pares, como poder e cultura/
oferecidas pelos processos judiciais: relações sociais. A cultura incorpora e expressa a
desigualdade, assim como as ideologias e relações de
“Os processos nos permitem detectar problemáticas poder. Trata-se de um processo contínuo e complexo
diversas: tais como: a questão da ética médica e de produção de significados e sentidos – publicados
da utilização da medicina legal enquanto prova de em práticas e representações - compartilhados por
acusação e defesa utilizada nos tribunais; a questão determinados indivíduos de acordo com suas
política, em que a disputa pelo poder local permite inserções sociais e específicas e que, por isso, pode
com que barbarismos (como as torturas realizadas incorporar questões de classe, de gênero, de etnia.
no acusado) possam acontecer sem que as elites Estes trabalhos têm em comum o fato não só de
sejam punidas, ou ainda, sob a perspectiva da ética evidenciarem a preocupação com a lei e suas
jurídica em que os delitos são cometidos, a questão implicações sociais, não apenas detalhar e
da Impunidade...” 20 compreender o discurso argumentativo e articulado
com a ameaça da força, mas também a necessidade
Poderíamos enumerar tantos outros trabalhos de busca de novas soluções frente ao processo de
historiográficos que não só utilizam os processos exclusão social que tem se operado dentro do mundo
judiciais como fontes de pesquisa, mas que discutem contemporâneo. Assim, a chamada “globalização”
em seu conteúdo as implicações do direito e da lei na de mercados, instituições, culturas; também
interação social, uma vez que o debate é acirrado globaliza valores e conceitos como democracia e lei
pelas questões políticas e normativas presentes. – que aparecem como questões fundamentais de
Merece destaque, neste sentido, o trabalho do Prof. estudo, determinando a definição política de
Paulo de O. Santos 21
que em sua dissertação de soberania nacional, de preservação de culturas
mestrado discorreu sobre a forma com que os locais, de construção de identidade e da busca de
movimentos sociais, a exemplo do Movimento dos soluções para problemas dramáticos como a fome, o
Sem Terra, influenciaram (e influenciam) desemprego, a espoliação da propriedade, as torturas
pressionando na transformação da legislação e na e violações aos direitos humanos, vivenciados de
alteração das leis e ampliou sua pesquisa, nesse forma perversa em nosso país e que nos inquietam
sentido, no doutorado. sobremaneira e nos levam a indagar sobre qual o
Os dois exemplos retro-mencionados, apenas papel que lei vem exercendo na ampliação (ou na
confirmam tendências que estão criando novas redução) de nossas liberdades políticas, trabalhos que
possibilidades de análises do campo do jurídico, trazem como pano de fundo denúncias sobre as
principalmente no que tangem à introdução das mazelas e sobre a falta de ética e valores que habitam
questões veiculadas às subjetividades e “sensibilidades o mundo mitológico do direito brasileiro, onde
jurídicas” e das imensas possibilidades historio- conceitos como “ética”, “justiça’ e “democracia” são
gráficas de análise processual. São construções conceitos abstratos, vazios de significados e sentidos
teóricas que primam por situarem os agentes em seu para milhões de brasileiros.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 103


Notas

1
KAFKA Franz. O Processo. 1920. Editora Martin Claret, 2002. produzidos pelos agentes como lugar de enfrentamento teórico.
Coleção - Nº 41.p 246 Malgrado as diferenças entre discursos e práticas, conceituados
2
GINZBURG, Carlo. ‘El Juez e el historiador“. Tradução Alberto a partir de pontos de vistas diferenciados por historiadores e
Clavería, Madrid, anya, 1993. lingüistas, concepções que não nos cabe neste artigo analisar,
3
Idem. p18 vemos na AD uma possibilidade interpretativa para nosso objeto
4
GINZBURG, Carlo. “Apontar e Citar. A verdade da em questão: Processos judiciais.
história” [1989], In: Revista de história, IFCH, UNICAMP, 1991, 16
Mote central de nossa dissertação de mestrado intitulada: “Sob o
p95 Ju(o)go da Lei - Confronto histórico entre direito e justiça no
5
ARENDT, Hannah. “Verdade e História”, in: Entre o Município de Uberlândia” defendida em Fevereiro de 2005 na
passado e o futuro [1961], São Paulo, Ed. Perspectiva, 1992, Universidade Federal de Uberlândia, sob a orientação do prof.
3ed., p.301 Dr. Antônio de Almeida
6
GINZBURG, Carlo. ‘El Juez e el historiador“. Tradução Alberto 17
CHARTIER, Roger. O mundo como representações [1989], Estudos
Clavería, Madrid, anya, 1993.p 23 avançados, 11(5), 1991, pp.173-191
7
Idem.p25 18
O CDHIS – Centro de documentação em História, da Universidade
8
GINZBURG, Carlo. “El Juez e el historiador”. Tradução Alberto Federal de Uberlândia, registra em seu acervo, entre inúmeros
Clavería, Madrid, anya, 1993.p 112 materiais, inúmeros processos judiciais doados pelo Fórum
9
Idem.p113 Abelardo Pena. Processos que versam sobre matéria cível,
10
GINZBURG, Carlo. “Apontar e Citar. A verdade da história” [1989], criminal, acidentes trabalhistas entre outras lides.
In: Revista de história, IFCH, UNICAMP, 1991, p92 19
CORREIA, Iara Toscano. “A justiça nos Ardis da Política: o caso
11
Idem. p95 João Relojoeiro”. Dissertação de Mestrado apresentada em Julho
12
Baczko, Bronislaw. In: “Imaginação Social”. Enciclopédia de 2002 na Universidade Federal de Uberlândia, sob a direção
Einaud- vol 5 anthropos-homem. 288. Lisboa. Imprensa Nacional da Prof.ª Dr.ª Maria Clara Tomaz Machado e publicada em livro,
Casa da Moeda. P299 sob o título: “Caso João Relojoeiro – Um Santo no Imaginário
13
ARENDT, Hannah. “Verdade e História”, in: Entre o Popular” lançado pelo Editora da Universidade Federal de
passado e o futuro [1961], São Paulo, Ed. Perspectiva, 1992, Uberlândia em 2004.
3ed., pp. p.295/296 20
CORREIA, Iara Toscano. “Processos criminais: possibilidade de
14
ANSART, Pierre. “ A obscuridade dos ódios políticos, texto pesquisa histórica. Revista Caderno de Pesquisa do CDHIS/UFU,
apresentado no Colóquio Internacional “A banalização da nº 28 e 29, ano 14. 1º e 2ºsemestres de 2001. pp.16-18.
violência: atualidade do pensamento de Hanna Arendt”, UFPR, 21
SANTOS, Paulo Roberto de O. Para além da Lei- ocupações de um
Curitiba, 14-18Outubro de 2002, no prelo. Pp. 04 e 05 Território Legal Iturama e Campo Florido/MG- 1989 a 1993).
15
Em termos de teoria lingüística é possível se falar em análise do Dissertação de Mestrado em História Social defendida sob a
discurso, no Brasil, a partir da década de 60, mais precisamente orientação da Dr.ª Estefânia Knotz Fraga. Pontíficia
a partir da década de 70, fundamentados em L. Althusser, Michel Universidade Católica. São Paulo, 1997
Foucault e Mikhail Bakhtin. Trata-se de perceber os discursos

Referências

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Verdade e História.In: Entre o passado e o futuro [1961]. São Paulo, Maria Clara Tomaz Machado.
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Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 105


A Mulher no Horário Eleitoral: análise da
propaganda eleitoral gratuita televisiva das eleições
presidenciais de 2002

Evelyn Soares Valente

Jornalista – Graduada pela Universidade Federal de Juiz de Fora Pós-graduanda em Literatura, Memória Cultural e
Sociedade pelo Centro Federal de Ensino Tecnológico de Campos RJ, ao qual se vincula.

Resumo Abstract
O presente trabalho destina-se à apreciação da The present work is about women’s participation
participação da mulher no horário eleitoral in free electoral propaganda on TV in a national
gratuito televisivo de uma campanha de campaign. We present a quantitative analysis of
amplitude nacional. Para tanto, optou-se pela the length of time for image and sound that was
análise quantitativa do tempo de imagem e som allowed for women and men, during the second
destinado às mulheres e homens durante o electoral shift for president, in the period of
segundo turno das eleições presidenciais, no October 21-24, 2002.
período de 21 a 24 de outubro de 2002. Keywords: Woman, Participation Electoral,
Palavras chaves: Mulher, Participação Eleitoral, Campaign Politics
Campanha Política

Introdução e casa voltados para a mulher, como se o jornal fosse


um artigo masculino e como se a mulher não se
As mulheres percorreram um longo caminho até interessasse por política, economia, artes 1. Para ela
chegar à condição na qual se apresentam hoje. Foram ficam os assuntos “menores”.
discussões, lutas, mortes de muitas, até que o mínimo Com a possibilidade do voto, muitas mulheres
de espaço fosse garantido para o gênero. As puderam reivindicar mais espaço e direitos.
conquistas foram lentas, mas importantes: primeiro Vereadoras, prefeitas, deputadas, senadoras e
a alma, depois o voto, em alguns países o direito ao presidentas foram eleitas. Nos partidos, foram
aborto. criados núcleos setoriais para pensar a situação das
Não se considera que já haja igualdade nos mulheres; na sociedade civil brotam organizações
direitos, pelo contrário, são muitas as questões que não governamentais que discutem e agem em favor
ainda precisam ser vencidas para que as mulheres dos direitos e da justiça entre os gêneros.
estejam em pé de igualdade com os homens. Elas Nesse contexto, a mulher eleitoral se tornou
representam a metade da população mundial e importante no cenário político. As mulheres em
metade da força de trabalho mas continuam geral saíram do “cabresto” do marido e passaram a
ganhando menos, poucas têm cargos de chefia, e escolher os seus próprios candidatos. Muitas já
quando os têm, muitas vezes, os salários são preferem votar em mulheres, ou em quem apresenta
inferiores aos dos homens. as melhores propostas para o gênero feminino.
Essa sociedade injusta se reproduz nos veículos Com essa participação mais efetiva, os políticos
de comunicação e nas propagandas publicitárias. Os em geral foram obrigados a pensar em uma
jornais editam suplementos sobre moda, decoração propaganda que não só conquistasse os eleitores, mas

106 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


também as eleitoras. A figura feminina passou a ser significação dos acontecimentos. Fornece também
usada para dar credibilidade, para reforçar o uma ideologia, um papel a cumprir, dando valor a
discurso do candidato e para conquistar o voto da quem adere a ela.
sociedade. A propaganda pode se tornar ainda mais eficaz
Percebendo este contexto, o trabalho visa analisar quando faz uso dos veículos de comunicação de massa.
o uso da figura feminina nos quatro últimos dias do A propaganda televisiva por exemplo, utiliza além
horário eleitoral gratuito televisivo noturno, do do discurso, a imagem, com suas cores, gestualidade,
segundo turno das eleições presidenciais de 2002. e impacto. O próprio Duda Mendonça responsável
Objetiva-se uma análise quantitativa do uso da pela campanha de muitos políticos deixa claro a
mulher nas propagandas, bem como quais discursos importância da propaganda televisiva:
são voltados para o eleitorado feminino, e que mulher
é mostrada nas propagandas. A partir desse De uns tempos para cá, os políticos começaram
trabalho, se quer contribuir para a investigação finalmente a entender que, depois da televisão, a
sobre a representação da mulher na sociedade. campanha política passou a ser uma outra coisa,
inteiramente diferente do que era antes... Da
mesma forma que, do dia para a noite, a televisão
Como age a propaganda? pode transformar alguém em príncipe, da noite
para o dia ela pode transformar, novamente em
Mesmo antes da palavra propaganda ter sido sapo. Tudo é rápido, explosivo, perigoso”. 3
criada no século XVI já existiam instrumentos de
propaganda político-religiosa construídos como arte Dentre os vários tipos de propaganda, está a
psicológica nas atitudes dos homens, seja durante as ideológica, que pretende direcionar o indivíduo para
guerras religiosas, seja no Pão e Circo de Roma ou um determinado comportamento social. Ideologia
durante a cristianização dos índios nas Américas. sendo “conjunto de idéias próprias de um grupo, de
É preciso esclarecer entretanto as diferenças e uma época que traduzem uma situação histórica.”4
semelhanças entre a propaganda e a publicidade, Essa propaganda acredita que a ação isolada de
que em termos psicológicos, têm significados cada grupo social não é suficiente para garantir que
bastante distintos, mas que geralmente são a prática seja de acordo com o que se espera e que,
confundidas. para isso, é necessário o auxílio dos meios de
comunicação. Uma das propagandas ideológica é a
A publicidade e a propaganda fazem-se passar por propaganda eleitoral, onde o que está “a venda” é o
informação ou educação, mas seu objetivo real, político e sua plataforma política.
não é transmitir uma mensagem e sim utilizar a Na propaganda eleitoral alguns fundamentos são
comunicação (com todos os seus recursos) para essenciais para sua execução. 1) A lei de simplificação
orientar os indivíduos e seus grupos, afim de levá- que dilui as doutrinas em alguns pontos usando
los a agir na direção esperada. 2
manifestos, profissões de fé, declarações, palavras
de ordem e utilização de símbolos. 2) Lei de ampliação
A publicidade tenta orientar os indivíduos no e desfiguração que evidencia nas informações
sentido de comprarem um produto ou um serviço. divulgadas pelos noticiários aquilo que favorece os
A publicidade de carros, cervejas e produtos de seus objetivos eleitorais. Nesse caso, se percebe as
limpeza são exemplos. Já a propaganda quer impor declarações dos candidatos retiradas de seu contexto
uma explicação da situação, uma convicção e exploradas politicamente. 3) A lei de orquestração
ideológica provocando comportamentos de aceitação que aconselha a repetição dos temas, usando
de uma idéia. A propaganda nazista engendrada por recursos variados dependendo do público alvo. Nesse
Hitler na Alemanha durante a Segunda Guerra caso, a linguagem tem que ser adequada a cada
Mundial é um exemplo. grupo social. 4) A lei de transfusão que fundamenta
A propaganda oferece aos indivíduos a satisfação a propaganda a partir de sentimentos que estão na
de algumas de suas necessidades como informação e alma do povo, ligando esses ideais como liberdade,

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 107


justiça e prosperidade a campanha. 5) A lei de políticos fosse eliminado. Essa realidade ainda se
unanimidade e contágio que reforça a unanimidade mantém em muitas localidades, bem como outras
ou a cria artificialmente para dar a impressão de que também aprisionam o voto de muitos cidadãos.
força. Nesse caso, utilizam-se nas campanhas Entretanto, o voto de muitas mulheres já é
depoimentos de pessoas importantes e artistas e autônomo e precisa ser cativado pelos candidatos. O
imagens de figuras ilustres da sociedade. voto feminino se tornou um nicho a ser perseguido
pelos políticos que precisam voltar a sua campanha
também para esse eleitorado. Não basta mais fazer
Análise do horário eleitoral gratuito uma campanha política voltada para o homem,
porque não é mais ele quem define as eleições. O
Depois que as mulheres conseguiram o direito ao voto das mulheres ultrapassa o dos homens em
voto, muitas batalhas ainda foram travadas para muitas faixas etárias e também em sua totalidade
que o “cabresto” imposto pelo marido e pelos próprios como mostra a tabela abaixo:

Não
Feminino % Masculino % Informado % Total

16 anos 316.315 49,766 319.295 50,234 0 0 635.610

% %

17 anos 781.928 49,416 800.410 50,584 0 0 1.582.338

% %

18 a 20 4.435.782 49,260 4.569.058 50,740 0 0 9.004.840

anos % %

21 a 24 6.571.078 49,697 6.651.250 50,303 4 0,000 13.222.332

anos % % %

25 a 34 14.108.115 50,538 13.798.091 49,427 9.741 0,035 27.915.947

anos % % %

35 a 44 12.363.512 51,124 11.750.269 48,589 69.415 0,287 24.183.196

anos % % %

45 a 59 12.112.173 51,606 11.278.522 48,055 79.557 0,339 23.470.252

anos % % %

60 a 69 4.495.868 52,449 4.045.288 47,192 30.742 0,359 8.571.898

anos % % %

70 a 79 2.624.831 52,213 2.381.761 47,378 20.586 0,409 5.027.178

anos % % %

Inválida 4.116 52,181 3.761 47,680 1 1 0,139 7.888

% % %

Superior 790.908 48,444 834.190 51,095 7.536 0,462 1.632.634

a 79 % % %

anos

TOTAL 58.604.626 - 56.431.895 - 217.592 - 115

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000.

108 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Como revela a tabela, pelo último censo, são Análise Quantitativa
2.172.731 votos a mais para as mulheres, fator que
pode definir uma eleição presidencial. A partir desses Fez-se uma abordagem quantitativa do tempo
dados, quer se saber que espaço foi dado, no horário de imagem e de voz destinada às mulheres e aos
eleitoral gratuito das eleições presidenciais de 2002 homens para uma análise comparativa do programa
para o segmento feminino. Para isso o trabalho dos dois candidatos. Não se levou em conta, é claro,
analisou os quatro últimos programas eleitorais o tempo no qual o candidato aparecia e falava, nem
televisivos noturnos do segundo turno das eleições tempo de jingle ou imagens com muitas pessoas, como
presidenciais de 2002, que foram do dia 21 ao dia comícios e shows. Os programas foram apresentados,
24 de outubro, quando os candidatos José Serra e cada, com dez minutos de duração, somando um total
Luís Inácio Lula da Silva disputavam o pleito. de 600 segundos por dia para cada candidato.

Programa de Luís Inácio Lula da Silva

1) Tempo de voz

Dia da semana Tempo/Homens Tempo/Mulheres


(em segundos) (em segundos)
21/10 (Segunda) 56 (9,3%) 36 (6%)
22/10 (Terça) 185 (30,8%) 26 (4,3%)
23/10 (Quarta) 203 (33,8) 33 (5,5%)
24/10 (Quinta) 129 (21,5%) 47 (7,8%)

2) Tempo de imagem

Dia da semana Tempo/Homens Tempo/Mulheres


(em segundos) (em segundos)
21/10 (Segunda) 53 (8,8%) 46 (7,6%)
22/10 (Terça) 16 4 (27,3%) 26 (4,3%)
23/10 (Quarta) 65 (10,8%) 18 (3%)
24/10 (Quinta) 55 (9,1%) 34 (5,6%)

Quadro geral do programa de Luís Inácio Lula da Silva

1) Tempo de voz
6 % Mulheres

24% Hom ens

Outros 7 0%

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 109


2) Tempo de Imagem

Mulheres
5%
1 4 % Hom ens

Outros 81 %

É importante ressaltar que está compreendido clips, imagens de comícios, jingles e recursos
em outros, o tempo de fala do próprio candidato, gráficos.

Programa de José Serra

1) Tempo de voz

Dia da semana Tempo/Homens Tempo/Mulheres


(em segundos) (em segundos)
21/10 (Segunda) 233 (38,8%) 30 (5%)
22/10 (Terça) 226 (37,6%) 30 (5%)
23/10 (Quarta) 236 (39,3%) 75 (12,5%)
24/10 (Quinta) 253 (42,1%) 60 (10%)

1) Tempo de Imagem

Dia da semana Tempo/Homens Tempo/Mulheres


(em segundos) (em segundos)
21/10 (Segunda) 27 (4,5%) 37 (6,1%)
22/10 (Terça) 64 (10,6%) 30 (5%)
23/10 (Quarta) 89 (14,8%) 75 (12,5%)
24/10 (Quinta) 90 (15%) 49 (8,1%)

Quadro geral do Programa de José Serra

1) Tempo de voz
8% Mulheres

Outros 53 % 39% Hom ens

110 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


2) Tempo de imagem

8% Mulheres
1 1 % Hom ens

Outros 81 %

O que se pode perceber nos gráficos é que, outubro, o candidato Serra falou da importância
embora as mulheres representem um eleitorado dos municípios em seu plano de governo. Em vários
maior que o dos homens, os dois candidatos momentos abordou a necessidade de estar unido
destinaram tempos menores para a participação aos prefeitos, mas em nenhum momento se
das mulheres nos seus horários eleitorais na fala e lembrou das prefeitas.
na imagem. No dia 21, José Serra dedicou 30 segundos do
Na propaganda eleitoral de Lula, as mulheres programa para um diálogo entre duas atrizes que
têm 18% de tempo a menos de voz que os homens e fazem o papel de mãe e filha. Observa-se que as
9% a menos na imagem. Na propaganda de José duas estão na cozinha e que a mãe está preparando
Serra a diferença no tempo de imagem é pequena, café no fogão, reforçando que o lugar da mulher
tendo os homens 3% a mais que as mulheres. O ainda se restringe à cozinha, já que ela não foi
surpreendente é em relação à voz, onde as mostrada em nenhuma outra situação.
mulheres têm 31% de tempo a menos que os O horário eleitoral de Lula não se mostra muito
homens. Seja como personagem, locutora, diferente. Nos quatro dias selecionados para
repórter, apresentadora ou apoio político, a voz e análise, não foi tratado nenhum assunto
a imagem das mulheres são muito menos especificamente feminino. A única diferença
utilizadas que a dos homens. observada entre os candidatos foi o cuidado do
então candidato Lula em se referir aos eleitores e
eleitoras. Nos outros aspectos o espaço dado à
Análise qualitativa dos horários eleitorais mulher foi igualmente pequeno. No programa do
dia 22, é contada a vida de um trabalhador e sua
Como a análise quantitativa já mostrou, o família que vive em dificuldades. Ele é catador de
espaço destinado às mulheres no horário eleitoral papel e ganha por mês em torno de R$50,00.
é extremamente pequeno em comparação ao Durante os quase 3 minutos destinados a narração
tempo total do programa e também em relação ao pelo próprio homem da sua situação, a sua esposa
tempo dado aos homens. só teve voz e imagem em 7 segundos, dando
Não foi observado nos programas analisados um margem ao entendimento de que o depoimento do
espaço para falar sobre as mulheres, suas lutas e homem e o sofrimento pelo qual ele passava seriam
reivindicações. Em apenas um momento, há uma mais relevantes do que o da sua esposa.
proposta que seja diretamente voltada ao público
feminino quando José Serra diz ser a favor de cotas
nos cargos de chefia do serviço público para Conclusão
mulheres.
Visivelmente, a maioria dos personagens e dos Apesar das mulheres serem a maioria dos
depoimentos colhidos são de homens. Em um eleitores, e já terem conquistado espaços
programa de José Serra citou os apoios de políticos importantes na sociedade e na política, elas ainda
que vinha recebendo, sendo no total 38 homens e estão sub-representadas também no horário
apenas 5 mulheres. No programa do dia 23 de eleitoral gratuito. São poucas as locutoras,

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 111


apresentadoras e atrizes, o que significa menos valorizam a figura feminina e que se preocupam
visibilidade para o público feminino e também na sua plataforma de governo e na sua propaganda
menos postos de trabalho. Pôde ser constatado que política com as reivindicações femininas.
a mulher ainda é vista como dona de casa, já que Principalmente na televisão, a mulher é
no espaço em que a mulher mais apareceu, ela foi intensamente explorada quando se trata de
assim representada. As mulheres que forneceram propagandas para cerveja, carros e cartões de
depoimentos eram, em sua maioria, idosas e mães crédito, onde ela é posta como um objeto de desejo.
de família preocupadas com as questões sociais, Mas quando se trata de uma eleição presidencial,
enquanto nos depoimentos masculinos, os homens, além dos candidatos serem homens, são eles
em sua maioria, estavam preocupados com o também que possuem a maior parte do tempo de
crescimento econômico, já que eram empresários voz e de imagem nos programas eleitorais.
os políticos. Nos programas analisados nenhuma Entre tantas questões a serem conquistadas
empresária foi ouvida e apenas uma prefeita pela mulher, está a garantia de espaço na mídia e
apareceu dando apoio político ao candidato Serra. nos processos políticos. Além dos papéis
No meio publicitário e político, como em muitos tradicionalmente destinados a mulher, de mãe,
outros setores da sociedade, a mulher ainda precisa dona de casa e reprodutora, faz-se necessário que
conquistar o seu espaço. As eleitoras, por sua vez, a mulher se mostre como eleitora que quer ser
devem ficar mais atentas aos candidatos que contemplada com propostas e com espaço.

Notas

1
CAMPOS, T. 2002: p.25. 3
MENDONÇA, D. 2001: p.45 e 47.
2
MUCCHIELLI, R. 1978: p.23. 4
HOUSSAIS K. 2000: p.842.

Referências

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UFJF: Juiz de Fora, 2002. propaganda. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos,
KOOGAN,HOUAISS. Enciclopédia e dicionário ilustrado. Rio de 1978.
Janeiro: Seifer, 2000. MENDONÇA, Duda. Casos e coisas. São Paulo: Globo, 2001.

112 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Territorialidade: a partir do saber popular do geraizeiro
do Município de Mirabela no Norte de Minas Gerais

Amanda Maria Soares Silva

Graduada em Geografia pela Universidade Estadual de Montes Claros_ UNIMONTES e pós-graduanda em Recursos
Hídricos e Ambietantais pela Universidade Federal de Minas Gerais_UFMG

Marta Rodrigues Barbosa

Graduada em Geografia pela Universidade Estadual de Montes Claros_ UNIMONTES

Resumo Abstract
Os geraizeiros são populações do cerrado que Geraizeiros, are populations of the Cerrado, living
vivem no Norte de Minas Gerais, em áreas rurais. in the northern of Minas Gerais in rural areas.
Essas comunidades tradicionais possuem um These communities have a deep knowledge about
profundo saber do seu território, herdado de the area that was inherited from their
varias gerações. O território tradicional é o local forefathers. The traditional territory is a source
onde as populações recorrem para buscar os for social and cultural livelihood.
recursos para a sua sobrevivência social e cultural. Keywords: Traditional Territory, Geraizeiros,
Palavras chaves: Território Tradicional, Cerrado.
Geraizeiro, Cerrado.

Introdução relacionada pelos elementos culturais, sociais e da


própria natureza. Dessa forma, os recursos ali
A noção de território para o povo geraizeiro é existentes são decorrentes do conhecimento profundo
determinada como o lugar onde vivem, o espaço do do ecossistema e manejo tradicional. A forma da
vivido, o meio de construções e transformações de apropriação dos diferentes ambientes do cerrado no
ordem material e simbólica, onde trabalham e se município de Mirabela - tabuleiro, chapada, terra
reproduzem através das experiências herdadas dos de cultura - é que torna o território destas sociedades,
antepassados, isto é, o saber local a respeito do lugar conceito este que irá configurar a identidade
onde vivem. Nesse sentido a definição de Território, espacial e comunitária da população geraizeira do
diferente do sentido geográfico do termo - que deve município de Mirabela.
ser entendido como um espaço produzido pelos Em decorrência do forte vínculo com o seu
homens, que foi moldado através das relações de território essas comunidades desenvolveram
poder do Estado.O conceito de território para as técnicas de manejo dotadas de coerência e
comunidades tradicionais, refere-se a porção do local, racionalidades, baseados em suas diferentes
onde os camponeses recorrem para buscar os meios concepções sobre a natureza, comportamento que
para sua sobrevivência. São as porções de matas viabiliza a preservação e manutenção dos
nativas até áreas de agricultura tradicional, ecossistemas, favorecendo a manutenção e, de certa
elementos presentes nos seus modos de vida, que forma, sua reprodução social e cultural,
atravessam gerações. Concepção que está

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 113


Esses sistemas tradicionais de manejo não são emplastos, chás, etc.) Os remédios caseiros
somente formas de exploração econômica dos elaborados pelas comunidades possuem informações
recursos naturais, mas revelam a existência de essenciais para a sua confirmação cientifica, cabendo
um complexo de conhecimentos adquiridos pela aos pesquisadores aprofundarem os estudos sobre as
tradição herdada dos mais velhos de mitos e plantas medicinais do cerrado. O nome popular de
símbolos que levam à manutenção e ao uso uma planta possui várias denominações, variando
sustentado dos ecossistemas naturais 1 assim, de região para região.
O uso da fitoterapia popular exerce um
Entendemos que os geraizeiros, como uma importante papel sócio-econômico, tanto para as
população tradicional, possuem saberes populações rurais como para os cidadãos urbanizados
interessantes sobre a natureza e o uso que dela se que utilizam as plantas nativas do cerrado em
faz. Utiliza uma parcela da natureza do seu território substituição dos medicamentos sintéticos, que para
através de seus próprios conhecimentos e crenças, algumas famílias, especialmente as que têm crianças
conduzidos por uma ética que se rege por normas e idosos, constitui um item pesado no orçamento
orais adquiridas pela tradição. O conhecimento doméstico.
profundo do seu território é traduzido sob uma
percepção aguçada, conhecimentos este são passados
de geração em geração, imbuído de um sistema de Descrição da territorialidade local de
representações, de símbolos e mitos. Sobre essa acordo com a lógica popular
análise percebe-se que a apropriação social do espaço
que reflete a relação entre a população geraizeira e Uma característica marcante é que os
a natureza está ligada a sua noção de territorialidade. geraizeiros não só têm conhecimento aprofundado
dos diversos ambientes do seu território onde
ocorrem as espécies de plantas medicinais, como
Caracterização da área de Estudo também, os classificam com nomes distintos de
acordo com a lógica popular.
O município de Mirabela é rico. Em seu A dinamização desses povos “tradicionais” com a
formulário popular as plantas utilizadas pelas natureza manifesta-se no seu próprio vocabulário e
comunidades são amplamente reconhecidas, nos termos que usam para interpretar a sua vivência
representando espécies importantes para a e harmonização aos ecossistemas. Os geraizeiros
elaboração de medicamentos. Percebe-se que essa conseguem distinguir diferenças mesmo que
biodiversidade presente no município de Mirabela irrelevantes ou imperceptíveis sobre os diferentes
é manifestada através da riqueza biológica e de ambientes, como por exemplo, elementos que compõe
espécies vegetais, representando um valioso seu “território”. Essa bagagem de conhecimentos
acervo de espécies frutíferas, forrageiras, permite descrever com detalhes os diferentes tipos
medicinais, madeireiro e ornamental, identificado de plantas de terras de chapada, tabuleiro e terra de
na área de estudo que combinadas, com a cultura. O senhor Oswaldo explica:
diversidade cultural e social forma o que chamamos
de sociobiodiversidade. Os gerais dá muito remédio e terra de cultura
A flora local possui uma grande riqueza e valor pouco remédio, terra de cultura é misturada
medicinal constituindo assim patrimônio ambiental com terra de toa, é uma terra mista de primeira,
e cultural para as comunidades geraizeira do é uma terra misturada com terra de gerais. 2
município de Mirabela.
Por isso acreditamos que essas comunidades são No município estudado as paisagens reconhecidas
detentoras de conhecimentos sobre o uso das plantas pelos geraizeiros de Mirabela são: Chapada,
medicinais do cerrado. As manipulações artesanais Tabuleiro, terra de cultura ou várzea. Estas unidades
dos medicamentos feitos pelos geraizeiros estão correlativas ao tipo de solo, vegetação e posição
apresentam-se sob várias formas (xaropes, na paisagem. As estratégias produtivas de

114 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


apropriação dos geraizeiros, em relação a essas As chapadas têm remédios mais frescos, a terra
paisagens, seguem uma lógica associada com as lá é fresca, nessa hora tá sequinho aqui, lá tá
múltiplas potencialidades das diferentes unidades fresco é areia mais é fresco”. Dona Tereza segue
da paisagem. Cada ambiente abarca plantas nativas dizendo: “ o tipo de terra influencia na qualidade
que são típicos de cada um. do remédio, são as melhores desta terra aqui
A chapada é o local plano, apresentando solo mais (chapada) porque o barro dá menos. Em terra de
pobre. A população local descreve como uma “terra várzea quase não dá esses remédios pra gente. 4
arenosa”, por isso, são consideradas impróprias para
o cultivo. É a unidade predominante na paisagem. Percebe-se que a especialista correlacionou o tipo
Os terrenos são muito utilizados para a solta dos de remédio com o ambiente. Ao analisarmos dentro
animais, coleta de frutos e o extrativismo das plantas da visão científica, que as chapadas cobertas por
medicinais. Nesse ambiente encontramos o cerrado combinada pela alta permeabilidade de seus
pequizeiro (caryocar brasiliense) mangaba solos profundos e arenosos são um grande
(hancornia speciosa) jalapa (mandevilla illustris). reservatório de água. Comportamento hidrológico
Já o tabuleiro é a encosta mais fértil, local de reverenciado na obra de Guimarães Rosa:
plantio e mostra mais plantas medicinais. “Terra
melhor que tem, onde agente encontra mais remédios, ...Chapadão voante. A chapada é sozinho_ é
agente encontra os remédios e nos gerais” . As plantas
3
largueza. O sol. O céu de não se querer ver. As
presentes são: o Panã (annona crassiflora) jatobá duras areias. As arvorezinhas rui, -inhas de
(hymenaea stigonocarpa) grão-de-galo (pouteria minhas. Ali chovia? Chove-e não encharca poça,
ramiflora) goiabinha (psidium firmum) verga-tesa não rola enxurrada, não produz lama: a chuva
(anemopaegma mirandum) bugre (casearia inteira se sorvete e minuto terra a fundo, feito
punctata). um azeitizinho entrador. 5
As terras de cultura são o local onde tem umidade,
localizadas nas encostas e partes baixas, próximas A penetração do capitalismo no campo no Norte
ao curso d’ água, sendo terras de alta fertilidade de Minas, na década de 70 através de incentivos
natural. Neste local são encontrados, aroeira fiscais, transformou grandes extensões de chapada
(astronium fraxinifolium) e pau d’água (vochysia no município de Mirabela em áreas de monoculturas,
thyrsoidea). predominando na região a cultura de eucalipto. Essa
O conhecimento das populações locais sobre o seu ocupação desordenada do eucalipto favoreceu para
território possibilita reconhecer a variedade de a redução da biodiversidade local. Uma vez que as
ecossistemas dentro desse espaço local. Fator que chapadas, o território tradicional, era fonte de
contribuiu para o condicionamento de diferentes recursos para as populações tradicionais, formadas
formas de ocupação das terras.Uma característica por grandes conhecedores da fauna e flora locais.
marcante dessa interação entre ambiente & natureza As terras públicas das chapadas se tornaram
é a preferência de determinados ambientes para a particulares, hoje não há mais gerais, todos foram
coleta de plantas. Pode-se interpretar que essa cercados e privatizados. Deste modo, o município
diversidade de ambiente traduz em formas assiste a um processo de desterritorização dos
territoriais tradicionais diferenciada caracterizada geraizeiros, isto é, a perda dos gerais em favor de
pelo modo de vida. Como prova disso, é que alguns grupos empresariais, como também pelo próprio
especialistas elegem a chapada como o território onde Estado. Assim, fazendo surgir um conflito entre as
oferece as melhores plantas, enquanto a maioria populações locais e o modelo pós -anos setenta 6 .
prefere o tabuleiro. Tal fato indica que dentro dessa Desenraizamento cultural e fragmentação da
forma de apropriação dos ambientes pelos geraizeiros territorialidade local7 que vem colocando em risco o
existem uma rede de “nós”, isto é, territorialidades direito cultural, em especial, quando analisamos a
diferentes. Fato que pode ser observado na fala de negligência política e dos movimentos sociais em
Dona Tereza 72 anos: prol da defesa desses territórios locais.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 115


A diversidade da flora nativa é de fundamental Segundo os especialistas, existem plantas que
importância para os geraizeiros. A vegetação nativa podem ser encontradas durante o ano todo, enquanto
é aproveitada na alimentação humana e dos outras, somente em determinadas épocas.
animais, como também nos tratamentos Nota-se que o manejo das plantas medicinais
preventivos e curativos através da fitoterapia, pelos geraizeiros é decorrente de um conhecimento
através de um conhecimento profundo e empírico, profundo do seu território tradicional, fato que os
fruto da aglutinação de influências da agricultura torna capazes de identificar com enorme riqueza de
indígena, colonial e negra, transformou-se através detalhes as diferenciações e potencialidades da flora
dos séculos, capacitando os geraizeiros em defrontar medicinal do cerrado, épocas do ano em que podem
com os infortúnios dos gerais. ser encontrados sistemas classificatórios que fazem
parte do patrimônio cultural das populações
tradicionais:
A subjetividade territorial popular a respeito Nesse tempo, você sabe que é ruim para buscar
das plantas medicinais remédio, o pau vai caindo as folhas tudo, às vezes
agente passa por um remédio e não vê.10
É de suma importância conhecer as Um dos entrevistados afirmou que durante uma
características dos diferentes ambientes onde as viagem ao Estado de Goiás trouxe plantas medicinais
plantas medicinais podem ser encontradas. Tal do cerrado, as quais não são encontradas aqui, e as
procedimento permite conhecer as peculiaridades plantou com o intuito de cultiva-las.
específicas de cada território, a interação recurso-
ambiente e o amplo conhecimento dos especialistas De Goiás truche muito remédio, muito tipo de
sobre a diversidade local. Vários tipos de remédio remédio bom. Em Goiás tem muito remédio bom
que encontra em um lugar, outro em outro lugar, sabe né?. Tem remédio lá que muita gente não
tem lugar que você não acha todo tipo de remédio ·8.
conhece ou conhece por nome diferente, truche
Algumas plantas são mais territorialistas, de lá o capim-rei. 11
podendo ser encontradas somente em determinado
ambiente. Um dos entrevistados explica essa
diferença: Chapada tem mais outras plantas, agora Considerações finais
no tabuleiro só tem essas plantinhas mais frescas.9
Os remédios que podem ser encontrados na Os territórios tradicionais são espaços de
chapada, região alta, plana, com uma vegetação reprodução do patrimônio cultural da população
onde predominam plantas herbáceas e arbustivas, geraizeira. No entanto, percebe-se um processo de
mas de terras pouco férteis. A planta medicinal de desterritorização dessas populações, atribuído à
chapada mais citada foi à jalapa (mandevilla ilustris) modernização no campo. Transformações estas
na terra de tabuleiro a planta mais citada foi a desencadeando uma desorganização cultural e
carobinha ( tabeluia áurea) na terra de cultura a territorial. Dessa forma esses territórios locais, o
planta medicinal mais citada foi à umburana lugar vivenciado pelos geraizeiros, vêm sendo
(torresea cearensis). desprezados e os valores culturais tecidos por vários
Outras plantas podem ser encontradas em vários autores de diferentes gerações vêm sendo perdidos
ambientes, como a sete-sangria (symplocos junto com sua identidade territorial.
lanceolata).

116 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Notas

1
Diegues(1996.p.84-85) citado por Dayrell (2000.p.196) 7
(Neves 2002.p.277).
2
Sr. Oswaldo, em entrevista gravada em 08/2004 8
Dona Tereza em entrevista.
3
Dona Tereza. 9
D. Tereza.
4
Entrevista com D. Tereza. 10
Sr. José (Zezinho).
5
(Rosa,1986.p.274) 11
Sr. Antônio Carlos.
6
(Gonçalves 2000.p.253).

Referências

ALMEIDA S. P.; PROENÇA C. E. B.; SANO S. M.; RIBEIRO J. F. Cerrado DIEGUES de,Antônio Carlos. Etnoconservação: novos rumos para
espécies vegetais úteis. Planaltina: EMBRAPA-CPAC, 1998. xiii a proteção à natureza nos trópicos. São Paulo: Hucitec, 2000. P.
+ 464p. 291.
ANAIS DO WORKSHOP. Plantas medicinais do cerrado: perspectiva NEVES, Gervásio Rodrigo. Território globalização e fragmentação.
comunitária para a saúde, o meio ambiente e o meio sustentável In:. Territorialidade, desterritoria-lidade, novas territorialidades
Coordenação Edvirges Loris. Mineiros-GO. 1999, Fundação (algumas notas). SANTOS, Milton (org) São Paulo: Hucitec, 2002.
integrada municipal de ensino superior-Projeto centro NOVAIS, Daniela Santana. Comércio informal de plantas
comunitário de plantas medicinais. 260 p. il. E fotos. medicinais em Montes Claros, MG: a qualidade da informação e
DAIRELL, Carlos Alberto et all. Cerrado e desenvolvimento. de drogas vegetais. Montes Claros-MG, Dezembro, 2000.
Tradição e atualidade. Montes Claros. 2000, CAA-NM. 309 p. (monografia apresentada ao departamento de biologia geral do
ARTICULAÇÃO PACARI. Plantas medicinais do cerrado. Relatório centro de ciências biológicas e da saúde da Universidade
dos dados. Pesquisa popular de plantas medicinais: alto Estadual de Montes Claros). Orientador PROF.DR. Ernane Ronie
Jequitinhonha. Médio Jequitinhonha e Norte de Minas ano de Martins. Universidade Federal de Minas Gerais-núcleo de
2002. Montes Claros/ MG, agosto de 2003. ciências agrárias.
CARA, Roberto Bustos. Território globalização e fragmentação. In: ROSA, J. G. Grande sertão: Veredas. Rio e Janeiro: Nova fronteira,
Territorialidade e identidade regional no Sul da Província de 1986.
Buenos Aires. SANTOS, Milton (org) São Paulo: Hucitec, 2002.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 117


Impasses da Reforma Agrária em Uberlândia1

Elisângela Magela Oliveira

Acadêmica do Curso de Mestrado em História SocialUniversidade Federal de Uberlândia

Resumo Abstract
Este artigo é, juntamente com uma discussão This article is part of a research project about Rio
teórico-metodológica sobre história, parte dos das Pedras settlement in Uberlândia, and has as
estudos iniciais de um projeto de pesquisa sobre o main objective to analyze the main impediments
assentamento Rio das Pedras, situado no Município of the Agrarian Reformation and the relations and
de Uberlândia, e tem como principal objetivo conflicts established among the involved citizens.
analisar os principais entraves da Reforma Keywords: Settlement, Relations, Conflicts
Agrária e as relações e conflitos estabelecidos entre
os sujeitos envolvidos.
Palavras-chave: Terra, Trabalho, Relações
Sociais.

Este artigo é parte de investigações sobre um O objeto de investigação desta proposta de


assentamento de reforma agrária existente em trabalho está inserido dentro dessas preocupações.
Uberlândia desde 1997, quando foi oficializado. Já A pesquisa analisará a trajetória histórica de um
há algum tempo no Brasil que estudos como esses conjunto de trabalhadores assentados na fazenda Rio
estão em voga e são importantes, entre outros das Pedras, em Uberlândia, estado de Minas Gerais.
aspectos, porque permitem compreender as ações O recorte histórico compreende o período que vai de
empreendidas por trabalhadores sem terra e 1966, ano de elaboração do primeiro plano nacional
latifundiários, dois segmentos sociais de expressão de Reforma Agrária, até 2004, ano em que as
na história do país. Tanto as crescentes ocupações de principais transformações ocorridas no
terra no Brasil, quanto a permanência ainda nos assentamento, desde a sua formação, em 1997, são
dias atuais dos grandes latifúndios são questões que mais claramente observadas. Esse período, porém,
dizem respeito à vida em sociedade, portanto, um não constitui uma delimitação estática ou
problema que afeta não apenas os agentes que se intransponível, quando houver necessidade, outros
envolvem diretamente nos conflitos do campo, mas períodos serão resgatados visando uma melhor
a toda a sociedade. Por isso mesmo, os estudos sobre compreensão do objeto enfocado. Deste modo, a
as diferentes realidades rurais que estão sendo mesma premissa também se aplica ao espaço
construídas no Brasil, a partir das pressões exercidas geográfico definido como o campo da pesquisa
pelos trabalhadores sobre o Estado, são fundamentais empírica. Ou seja, embora circunscrita a um
para se compreender de que maneira as reformas assentamento situado no município de Uberlândia,
na estrutura agrária do país estão se processando e, a análise do objeto levará em consideração o contexto
sobretudo, até que ponto essas mudanças estão ou mais geral da sociedade brasileira, procurando
não beneficiando os trabalhadores, em especial perceber as conexões existentes entre essa cidade e o
aqueles que buscam na terra a sua forma de restante do país, evitando o equívoco de compreender
subsistência. a realidade do assentamento de forma
compartimentada e isolada.

118 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


A opção por este assentamento de reforma sociais em certos períodos históricos, as quais, não
agrária, por sua vez, deu-se em virtude de sua sendo questionadas, não passariam de realidades
especificidade em matéria de ocupações de terra no dadas. Assim, podemos compreender que “a boa
município de Uberlândia. Trata-se da primeira ‘questão’, o ‘problema’ bem colocado são mais
ocupação de terras na história deste município. O importantes – e são mais raros! – do que a habilidade
ato de ocupação das terras que deram origem ao ou a paciência em trazer à luz do dia um fato
referido assentamento, realizado pelos desconhecido (...)”5. E ao interpretarmos os fatos ou
trabalhadores, foi assim noticiado pelo jornal de acontecimentos e analisarmos os conceitos com
maior circulação na Região do Triângulo Mineiro: rigor, ultrapassaremos os dados descritos para um
“O Movimento de Luta Pela Terra (MLT) promoveu estudo mais crítico da realidade.
ontem a primeira ocupação de terras em Uberlândia. Procuraremos enfatizar primordialmente as
Duzentas famílias estão acampadas na fazenda Rio perspectivas culturais inerentes ao nosso objeto de
das Pedras, de propriedade de Josias Freitas, distante pesquisa, procurando perceber que no real não há
20 quilômetros do centro, desde às 4 horas da manhã dúvidas de que as representações e manifestações
de ontem” 2. Com essa atitude, os trabalhadores de culturais contribuem para que uma dada realidade
uma só vez desafiavam as forças do conservadorismo se constitua. Mesmo porque, é através de seus valores
local e desnudavam uma realidade de dificuldades políticos e culturais, de suas visões de mundo, que o
que aqueles insistiam em acobertar por trás do historiador transforma um ‘acontecimento’ num
discurso do desenvolvimento e do progresso, os quais, ‘fato histórico’, transformando ainda as fontes em
supostamente, seriam extensivos a todos. documentos através da ‘reflexão’ sobre o objeto ou
Ao buscarmos abordar a experiência dos realidade analisada6. Neste ponto, convém lembrar
trabalhadores através do resgate da trajetória que, como nos ensinou Marc Bloch, a história se
história do assentamento Rio das Pedras, o faremos constrói a partir das indagações do pesquisador ao
no sentido de lidarmos criticamente com as diversas seu objeto de análise, e mesmo que contenha uma
nuanças e sujeitos que envolveram o ato da ocupação parte de subjetividade, a história é uma ciência, com
da fazenda e seus mais diversos desdobramentos, métodos específicos com relação às demais ciências e
entendendo que “o acontecimento, tomado em si que busca ‘compreender’, e não ‘julgar’, seu objeto,
próprio, é ininteligível”, tendo sempre que ser através do ‘questionamento’ e da ‘reflexão’. Ademais,
integrado “numa rede de acontecimentos, em a própria história “não nos esqueçamos, ainda é uma
relação aos quais vai ganhar um sentido: é a função ciência em obras”7, de modo que as formas/métodos
da narrativa” , conscientes ainda de que, tendo em
3
de análise do passado estão, deste modo, em constante
vista que o historiador “constrói o seu objeto de transformações.
estudo delimitando não só o seu período, o conjunto Por outro lado, neste estudo sobre o movimento
dos acontecimentos, mas também os problemas dos trabalhadores em conflito pela terra,
colocados por esse período e por esses acontecimentos, incorporarmos fundamentalmente o plano cultural
e que terá que resolver”4, temos que admitir que um considerando, sobretudo, que “as relações
estudo histórico que parte de teorias cristalizadas ou econômicas e sociais não são anteriores às culturais
de determinismos inconsistentes que não abarcam nem as determinam; elas próprias são campos de
as múltiplas faces do real somente consegue ‘contar prática cultural e produção cultural - o que não pode
o que aconteceu’, de forma totalmente linear e ser dedutivamente explicado por referência a uma
incondizente com os conflitos que se processam no dimensão extracultural da experiência” 8 , como
social. Hunt já havia percebido. Em outros termos, “as
Mesmo tendo em vista a impossibilidade de manifestações culturais que permeiam as ações dos
abandonar a narrativa, temos que ter claro que uma trabalhadores não podem ser encaradas como
narrativa que parte de ‘questões’ e segundo plano das relações econômicas e sociais, nem
‘problematizações’ acerca do objeto/período entendidas como um terceiro nível da experiência
analisado pelo pesquisador, certamente contribuirá histórica que mereça um estudo particularizado” 9.
para entender melhor determinadas realidades Pelo contrário,

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 119


o enriquecedor, em termos de postura teórica e (...) através dos seus imaginários sociais, uma
metodológica, é compreender que todas as coletividade designa a sua identidade; elabora uma
manifestações humanas, resultantes de certa representação de si; estabelece a distribuição
‘experiências concretas’ ou vivenciadas no plano dos papéis e das posições sociais; exprime e impõe
da cultura, enquanto ‘representações simbólicas’ crenças comuns; constrói uma espécie de código
ou ‘imagens’, são formas diferenciadas de de bom comportamento designadamente através
manifestação do real, cujo processo de permanente da instalação de modelos formadores tais como o
construção e reconstrução está sempre permeado do chefe, o bom súdito, o guerreiro corajoso, etc. 15
por muitas lutas, conflitos e antagonismos, mas
também por identificações, solidariedade e E deste modo “as referências simbólicas não se
companheirismo” 10 . limitam a indicar os indivíduos que pertencem à
mesma sociedade, mas definem também de forma
Como afirma Baczko, entendemos que “os mais ou menos precisa os meios inteligíveis das suas
imaginários sociais constituem outros tantos pontos relações com ela, com as divisões internas e as
de referência no vasto sistema simbólico que instituições sociais” 16. É por isso que “os sistemas
qualquer coletividade produz e através da qual, como simbólicos em que assenta e através do qual opera o
disse Mauss, ela se percepciona, divide e elabora os imaginário social são construídos a partir das
seus próprios objetivos” 11 . Ao abordarmos o experiências dos agentes sociais, mas também a
imaginário num processo de investigação da partir dos seus desejos, aspirações e motivações”,
realidade, estamos abarcando “um sistemas de idéias características inerentes às relações sociais.
e imagens de representação coletiva” 12 que, mesmo O objeto de investigação deste trabalho não
constituindo representações subjetivas, não se opõe constitui, porém, um fato histórico pronto e acabado,
ao real, antes, é uma das partes integrantes dessa visto que o desenrolar da história possui infinitos e
mesma realidade. distintos caminhos a serem trilhados, deste modo, o
Até mesmo a própria “(...) erudição e a mesmo objeto desta pesquisa pode ser analisado por
imaginação são complementares e não antagônicas óticas diferentes de outros pesquisadores que obterão
(...)” 13 o que, por outro lado, nos revela a conclusões distintas, mesmo porque o conhecimento
impossibilidade de uma total neutralidade na histórico é “pela sua natureza, provisório e
pesquisa histórica. Uma boa forma de analisar a incompleto (mas não, por isso, inverídico), seletivo
sociedade consiste pois em não partirmos para o (mas não, por isso, inverídico), limitado e definido
extremo de seu imaginário, de sua subjetividade, pelas perguntas feitas à evidência e os conceitos que
nem para o extremo de sua realidade concreta, informam essas perguntas, e, portanto, só
objetiva; devemos, sim, oscilar entre estes dois verdadeiros dentro do campo assim definido”17 como
campos do social. Mesmo porque, real e imaginário afirma Thompson.
são partes de um todo, o imaginário pode projetar o Em linhas gerais, o objetivo central da pesquisa
real, ainda que não seja palpável. E através das é estudar o sentido social, cultural e político da
mudanças no imaginário coletivo de uma sociedade, Reforma Agrária em Uberlândia, partindo das ações
a própria realidade social se transforma. Do mesmo empreendidas pelos sujeitos envolvidos no processo
modo, quando o real se modifica, o imaginário social de ocupação daquela fazenda. Quais são os elementos
também se transforma, o que ocorre, portanto, culturais que justificam a defesa intransigente da
simultaneamente. O estudo da parte subjetiva do propriedade privada da terra, desconsiderando as
social nos revela que “o imaginário social se expressa necessidades do outro e identificando-o apenas como
por símbolos, ritos, crenças, discursos e o inimigo ameaçador contra o qual toda força deve
representações figurativas” , mas somente tem
14
ser aplicada, se necessário, levando-o à morte? Em
efeito quando se concretiza no real. Ainda que não sentido inverso, de onde vêm os elementos que
seja perceptível, como o real, o imaginário contém possibilitam aos trabalhadores sem terra
em si um campo de conflitos e jogos de interesses e encontrarem legitimidade nos seus atos? De que
disputas. Assim: forma o Movimento Terra, Trabalho e Liberdade -

120 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


MTL, vinculado o assentamento Rio das Pedras, atua dos programas de televisão” 22 Ao contrário, adotar
junto aos trabalhadores? essa medida num processo de investigação do real é
Em termos teóricos e metodológicos, a pesquisa reconhecer a importância da vivência cotidiana no
utilizará fontes variadas e os pressupostos teóricos processo de constituição da própria ‘classe’
procurarão extrair ensinamentos diversificados, não trabalhadora, é desmistificar determinadas visões
se concentrando, portanto, em uma ou outra teoria teleológicas que atribuem a segmentos específicos
em específico. A documentação escrita constitui-se que atuam em espaços singulares, o papel exclusivo
de textos oficiais, englobando Leis Federais, de condução de um processo transformador 23, mas
instituições governamentais, como o Instituto do qual todos os sujeitos sociais têm participação.
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o É trazer para o plano do conhecimento histórico
Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma não apenas as ações dos governantes e das figuras
Agrária (INCRA); documentos de órgãos não proeminentes da sociedade, mas também dos
governamentais: Comissão Pastoral da Terra (CPT), humildes e dos excluídos, enfim, de todos os homens,
Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL); mulheres, crianças, jovens e idosos que compõem o
além de jornais, revistas, folhetins, dentre outros. conjunto daqueles que não ocupam o centro do
Neste trabalho, partiremos da compreensão de cenário nacional. Claro está que assumir esse tipo
Bloch, quando afirma que “tudo quanto o homem de posição implica dialogar com algumas leituras
diz ou escreve, tudo quanto fabrica, tudo em que consagradas no terreno dos estudos sobre os
toca, pode e deve informar a seu respeito”18. E devido trabalhadores 24, inclusive estabelecendo rupturas
à quantidade imensa de fontes documentais que, com algumas teorias marxistas:
muitas vezes, o pesquisador tem a seu dispor “umas
das tarefas mais difíceis do historiador é reunir os Ruptura com a tendência para privilegiar as
documentos de que pensa ter necessidade”19, fato que substâncias (...) em detrimento das relações e com
também não deixa de servir como um estímulo à a ilusão intelectualista que leva a considerar a
pesquisa. A utilização de uma documentação classe teórica, construída pelo cientista, como uma
diversificada sobre o objeto de pesquisa será feita classe real, um grupo efectivamente mobilizado;
buscando evitar a leitura exclusivista ou de mão ruptura como o economicismo que leva a reduzir o
única que, claramente, prejudica muito os campo social, espaço multidimensional,
resultados obtidos. Em outras palavras “o que unicamente ao campo econômico, às relações de
normalmente devemos fazer é reunir uma ampla produção econômicas constituídas assim em
variedade de informações em geral fragmentárias: coordenadas da posição social; ruptura, por fim,
e para fazer isso precisamos (...) construir nós com o objetivismo, que caminha lado a lado com o
mesmos o quebra-cabeça, ou seja, formular como intelectualismo e que leva a ignorar as lutas
tais informações deveriam se encaixar” . É claro 20
simbólicas desenvolvidas nos diferentes campos e
que um procedimento como este requer, sobretudo, nas quais está em jogo a própria representação do
um plano de pesquisa maleável, passível de ser mundo social e, sobretudo, a hierarquia no seio de
modificado em vistas à melhor compreensão do objeto cada um dos campos e entre os diferentes campos 25
analisado na pesquisa.
Tal como nos ensina Le Goff, nesta pesquisa Mesmo ao investigarmos as relações de produção,
partiremos do entendimento de que “o quotidiano, podemos também partir do cotidiano e das vivências
se o perscrutarmos atentamente, revela-se como um dos diversos sujeitos que integram qualquer grupo
dos lugares privilegiados das lutas sociais” . Ou seja,
21
social. Assim, procurando seguir os ensinamentos
introduzir o cotidiano nos estudos das vivências dos de Thompson buscamos observar e inserir as relações
sujeitos sociais não é estar à procura do “superficial, econômicas, a forma como os trabalhadores sem
do anedótico, do ilustrativo, nem essa postura pode terra se organizam na produção, dentro das suas
ser confundida com a produção de certos escritos próprias relações sociais que se processam não apenas
históricos suaves, facilmente aceitos no mercado no interior do assentamento, mas em todos os espaços
consumidor para serem degustados nos intervalos e entre os diversos indivíduos, realizando

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 121


transformações nos hábitos e costumes pelas formas de mão dupla que, em última instância, não se sabe
de resistência e de interação ativa e dinâmica com onde vai dar, tendo em vista que, como o depoente
as normas estabelecidas no social. Ademais, “não seleciona a sua fala, o entrevistador retira dela o
existe desenvolvimento econômico que não seja ao que, para si, é mais importante e interpreta. Mais
mesmo tempo desenvolvimento ou mudança de uma que isso “a história oral não tem sujeito unificado; é
cultura. E desenvolvimento da consciência social, contada de uma multiplicidade de pontos de vista, e
como o desenvolvimento da mente de um poeta, a imparcialidade tradicionalmente reclamada pelos
jamais pode ser, em última análise, planejado” . 26
historiadores é substituída pela parcialidade do
A análise do cotidiano, porém, só adquire narrador” 29 . Mas a importância do uso das fontes
significado evitando-se o equívoco de trabalhá-lo orais está em possibilitar o contato com realidades,
como entidade autônoma e isolada ou que se coloca muitas vezes desconhecidas, oferecendo informações
em oposição ao local de trabalho. Antes, esses espaços e esclarecimentos relevantes sobre o objeto.
devem ser compreendidos como complementares, Este estudo, a partir do recorte espacial aqui
que se interpenetram, até porque, como alerta Le delimitado, busca contribuir para a compreensão
Goff, o cotidiano “só tem valor histórico e científico das características referentes à estrutura agrária
no seio de uma análise dos sistemas históricos, que do nosso país as quais, às vezes, não tomamos
contribuem para explicar o seu funcionamento” 27, conhecimento ou simplesmente nos passam
portanto, quando remetido para o plano geral das despercebidas. Analisando alguns dados técnicos
relações sociais e do contexto histórico do qual ele faz sobre o Brasil, observamos que o país, com uma área
parte. Levando em consideração a dinamicidade nas total de 8,5 milhões de quilômetros quadrados de
maneiras de resgatar o passado, uma das formas superfície, que representam 850 milhões de
encontradas para abarcar as informações acerca dos hectares, possui 371 milhões de hectares de solos
trabalhadores da fazenda Rio das Pedras foi a classificados em potencialidade agrícola boa, boa a
utilização das fontes orais. Para isso, foram regular, regular a boa e regular, com um total
entrevistados vinte trabalhadores que, por terem portanto de 43,7% 30 do território nacional. De tudo
participado de toda a trajetória histórica daquele isso, apenas 52 milhões de hectares são efetivamente
assentamento, desde o momento inicial, de ocupação cultivados, somando-se lavoura temporária e
e acampamento, acabaram sendo convidados e permanente. Com relação à estrutura agrária,
selecionados para as entrevistas. temos que “dos 376 milhões de hectares cobertos
As perguntas aos entrevistados foram elaboradas pelos 5,8 milhões de estabelecimentos agrícolas do
naturalmente no sentido de obter informações e país, 3,1 milhões de pequenos agricultores têm
esclarecimentos acerca dos objetivos a serem acesso a apenas 10 milhões de hectares, 2,67% do
alcançados pelo trabalho. Durante o total” 31 . Em sentido inverso, os 50 mil latifúndios
desenvolvimento da dissertação, serão realizadas que cobrem mais de 1000 ha detêm 165 milhões de
novas entrevistas não apenas com trabalhadores, hectares de terra, portanto, 16 vezes mais. Isso
mas também com outros sujeitos envolvidos no significa que 1% dos estabelecimentos controla 44%
processo de ocupação da fazenda, até porque “as do total.
histórias de vida dos relatos pessoais dependem do O interessante em tudo isso é que, quanto maior
tempo, pelo simples fato de sofrerem acréscimos e o estabelecimento maior também é a proporção de
subtrações em cada dia da vida do narrador”28, como terra que fica parada, de modo que “os pequenos
bem lembrou Portelli. agricultores lavram 65% dos seus estabelecimentos,
Quanto às entrevistas já realizadas, percebemos os de 10 a 100 ha lavram 28%, os de 100 a 1.000 ha
que ao mesmo tempo em que a formulação das lavram 13%, os de mais de 1.000 ha lavram 6,7%,
questões determinou certa resposta pela pessoa e os de mais de 10 mil hectares lavram apenas 2,31%
entrevistada, também esta, ao recuperar em sua dos seus estabelecimentos”32. Esses dados não apenas
memória os acontecimentos passados que para ela dão uma noção da desigualdade nas formas como a
são os mais relevantes, o fez de forma seletiva, terra é repartida no Brasil, mas também explicam,
elaborando o que queria dizer. Trata-se de uma via ao menos em parte, os fatores motivadores para a

122 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


realização de manifestações pelos trabalhadores sem um governo popular à presidência da república,
terra em geral, em todo o país. Disto depreende-se aumentou também a esperança dos trabalhadores
que “a maior parte das terras agrícolas do país é rurais e urbanos, sem terra, com relação à execução
utilizada como reserva de valor, por grandes da Reforma Agrária no país. Para termos uma idéia
proprietários que preferem imobilizar grandes áreas do que isso significou, nos primeiros três meses de
e esperar que se valorizem por efeito de 2004, as ocupações no Brasil cresceram 19%,
investimentos públicos e privados de terceiros, do passando de 47, em 2003, para 56 casos observados.
que desenvolver atividades produtivas” . Na 33
Entre as regiões brasileiras, no Nordeste ocorreu a
verdade a má distribuição de terras no Brasil possui maior parte das ocupações, com 25 casos, seguido do
razões histórias e a idéia de uma reforma na Sudeste (19), Centro-Oeste (10), Norte (1) e Sul (1)36,
estrutura fundiária do país envolve interesses revelando a dinâmica dos movimentos sociais de
sociais, políticos e econômicos há muito consolidados. reivindicação de terra no país. Disso constata-se que
Contudo, como Antonio Gramsci 34 , partiremos as ocupações continuam sendo uma das principais
aqui da compreensão de que numa sociedade, nunca estratégias de pressão política exercida pelos
se tem um processo ideológico total, haverão sempre trabalhadores sem terra para que o governo agilize
resistências, como também acomodações, mas, as ações da reforma agrária e torne concretas as
sobretudo, conflitos, no seio de toda sociedade. Assim, metas definidas no Plano Nacional de Reforma
não existe uma ideologia única, mas ideologias Agrária. Em resposta a essas manifestações, em abril
diversas, promovendo tanto interesses diversos, de 2004, o presidente da república, Luiz Inácio Lula
como ações diversas, como podemos constatar nas da Silva, deixou clara a sua opinião ao declarar que
lutas empreendidas tanto por latifundiários como a Reforma Agrária “não será feita no grito, mas
por trabalhadores sem terra no Brasil como todo. A dentro da lei” afirmando em seguida que “neste país,
hegemonia não exclui, mas comporta diferentes a reforma agrária vai ser feita por uma questão de
sujeitos sociais, nunca é separada, tem que ser justiça social, por uma necessidade de repartir um
estudada sempre dentro de um contexto heterogêneo, pouco melhor o território produtivo, para que a nossa
cheio de combates sociais. Nesse sentido, como nos gente tenha a oportunidade de trabalhar” 37.
ensinou Gramsci, temos que hegemonia é diferente As afirmações do presidente Lula deixam
de hegemônico, tudo o que está posto no real é fruto evidente que a Reforma Agrária em seu governo
de um complexo sistema de relações, de mediações, seguirá as diretrizes postas no Plano Nacional de
de decodificações de ‘símbolos’ e ‘linguagens’, que se Reforma Agrária (PNRA). Este plano tem como
entrelaçam por meio tanto de ‘retórica’ como de fundamento o Estatuto da Terra, Lei Federal de 30
coerções normativas explicitas ou implícitas, bem de novembro de 1964 “que regula os direitos e
como resistências e recuos nas ‘experiências’ dos obrigações concernentes aos bens imóveis rurais,
diversos sujeitos sociais. para fins de execução da Reforma Agrária e promoção
E procurando seguir os ensinamentos de da Política Agrícola” 38, no qual a Reforma Agrária
Thompson 35 , estamos atentos ao fato de que, ao constitui “(...) o conjunto de medidas que visam
analisarmos as experiências dos trabalhadores e dos promover melhor distribuição de terra, mediante
latifundiários, assim como de todos os demais sujeitos modificações no regime de sua posse e uso, a fim de
envolvidos no processo de investigação, não podemos atender aos princípios de justiça social e ao aumento
tomá-las por si só, devemos, antes, levar em de produtividade” (Estatuto da Terra); e a
consideração as práticas políticas, econômicas e Constituição Federal de 1988 nos artigos sobre a
principalmente, ‘culturais’ que se realizam no aquisição e a utilização da propriedade privada da
interior dessas vivências por meio de crenças, terra.
valores, códigos, costumes, sonhos e perspectivas. Entretanto, a questão dos conflitos sociais
Enfim, realizando pesquisa acerca da questão envolvendo a terra não é algo novo na história do
agrária recente no país, constatamos que no Brasil, Brasil. Em 1930, a discussão sobre a questão agrária
o ano de 2004 teve início com a ocorrência de várias no Brasil girava em torno da produção do café e da
ocupações de terra em todo o país. Com a chegada de grande depressão iniciada em 1929 com a quebra

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 123


da Bolsa de Nova Iorque 39 . E questão agrária, por Em conseqüência, com o governo reformista fora
sua vez, é muito diferente de agrícola, “(...) a questão do poder, a ditadura militar editou sua própria lei
agrícola diz respeito aos aspectos ligados às mudanças agrária, criando o Estatuto da Terra em 30 de
na produção em si mesma: o que se produz, onde se novembro de 1964, que enfatizou mais o
produz e quanto se produz. Já a questão agrária está desenvolvimento da agricultura do que
ligada às transformações nas relações de produção, propriamente a reforma agrária. Apesar da maior
como se produz, de que forma se produz” 40, sendo parte da população brasileira hoje estar concentrada
conceitos que, às vezes, causam confusões, mas que nos centros urbanos, a reforma agrária não deve ser
necessitam ser diferenciados. Após esse período a pensada por este viés, mas pela sua ‘função social’,
questão passou a ser comentada juntamente com o ao conceder terras a quem precisa dela para
surgimento da indústria no país. Já no fim dos anos sobreviver, uma vez que os frutos de uma
1950 e início de 1960 “(...) a discussão sobre a agricultura forte, mas concentrada nas mãos de
questão agrária fazia parte da polêmica sobre os poucos, chegam em quantidade diferente para cada
rumos que deveria seguir a industrialização sujeito social, e para alguns, nem mesmo chegam.
brasileira. Argumentava-se então que a agricultura Por esse motivo, a reforma agrária pode ser
brasileira - devido ao seu atraso - seria um empecilho encarada como uma perspectiva de sobrevivência
ao desenvolvimento entendido como industriali- para os trabalhadores que necessitam da terra para
zação do país” , algo que foi reforçado com a crise
41
plantar.
econômica ocorrida no Brasil entre 1961 e 1967. Mesmo porque “no Brasil, ela se transformou
Porém, a questão das reivindicações camponesas numa questão diferente: pode evitar que as
com relação à terra atravessou as manifestações dos metrópoles sejam inchadas por desempregados do
movimentos messiânicos desde o século XIX e se campo e também funciona na esfera da justiça social
prolongou pelo século XX, transformando-se, após ao conceder a terra a quem precisa dela para tirar o
1970, nos movimentos sociais pela terra. E mesmo sustento da família”42. Neste ponto, cabe ressaltar a
no final da década de 1950 e início de 1960, com o importância nos estudos relacionados ao campo, de
processo crescente de industrialização do país, que não dicotomizarmos campo de um lado e cidade de
provocava o crescimento rápido da ‘urbanização’, a outro, como se fossem dois blocos isolados, enquanto
questão fundiária começou a ser debatida no Brasil na realidade são dois espaços em constante relação,
mais fortemente e com maior presença no cenário interligados por práticas que afetam direta, ou
nacional, período marcado por manifestações indiretamente, a cada um, sendo que, do mesmo
camponesas em reivindicações pela terra. modo que a cidade possui várias caracterizações em
A idéia de reforma agrária no Brasil moderno si mesma, o campo também é heterogêneo. Na
ocorreu ainda durante o governo de João Goulart opinião de Raymond Williams:
que tinha, dentre suas principais reformas de base,
a reestruturação fundiária do país. Porém, seu A investigação foi sempre limitada: o campo e a
projeto de reforma agrária foi exatamente uma das cidade dentro de uma única tradição. Porém, ela
causas da queda de seu governo e um dos motivos me levou a um ponto em que posso propor a outras
utilizados para justificar o Golpe Militar ocorrido em pessoas seus significados, suas implicações e suas
1964. Com a mobilização da sociedade brasileira em interligações para fins de discussão e revisão, de
torno do tema da questão agrária, através das muitas formas de trabalho cooperativo, acima de
organizações dos trabalhadores que reivindicavam tudo, para enfatizar uma experiência e as maneiras
a reforma agrária, bem como pela agitação instalada de transformá-la, nos muitos campos e cidades
no campo, no Nordeste, com as Ligas Camponesas, e em que vivemos 43 .
no Centro Oeste, com a mobilização camponesa de
Trombas e Formoso, em Goiás na década de 1960, o Deste modo, a reforma agrária deve ser abordada
Regime Militar foi pressionado a produzir um texto no Brasil visando, entre outras coisas, atender as
jurídico acerca da propriedade da terra, para necessidades imediatas dos trabalhadores,
acalmar os ânimos no campo brasileiro. melhorando as condições de vida tanto no campo

124 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


quanto na cidade. Mas, a primeira proposta de Plano pelo motivo de que “o Estatuto da Terra permite a
Nacional de Reforma Agrária (PNRA), propriamente desapropriação dos latifúndios por exploração e por
dita, surgiu no Brasil ainda em 1966, durante o dimensão, mesmo que estes últimos sejam
governo de Castelo Branco. Este plano cuidou dos improdutivos” , fato decisivo na opinião dos que
45

cadastros previstos no Estatuto da Terra, de 1964, foram contra a proposta.


os quais consistiam em mapear as áreas das No ano de 1988, porém, os proprietários rurais
propriedades territoriais quanto ao número de gado presentes no governo conseguiram introduzir no
e de empregados e com relação à quantidade texto da nova Constituição Federal (CF), aprovada
existente de plantação em cada propriedade. O em 1988, a alínea II do seu artigo 185, na qual, no
objetivo desses cadastros era levar ao governo um caso específico da reforma agrária, é proibida a
conhecimento da realidade agrária do Brasil. Este desapropriação das propriedades produtivas,
primeiro plano, porém, não realizou a reforma independentemente do tamanho (CPT,
agrária, justificando que era necessário primeiro www.cptnac.com.br. Acesso: 23/04/04). Em
diagnosticar os imóveis rurais do país. Contudo, em síntese, o fato é que a reforma agrária no Brasil ainda
1985, depois da criação do Ministério da Reforma e não foi realizada com o PNRA de 1985, ainda em
do Desenvolvimento Agrário (MIRAD), foi que o vigor. Inicialmente, a grande vantagem desse plano
governo José Sarney pôs em debate a proposta para estava na possibilidade de se indenizar o valor das
a elaboração do primeiro Plano Nacional de Reforma terras desapropriadas em Títulos da Dívida Agrária
Agrária da Nova República. Esse plano é diferente (TDA). Um fundo de investimento que, quando
porque “(...) escolheu a desapropriação por interesse puder ser resgatado, já perdeu parte do seu valor.
social como instrumento principal a ser usado no Porém, como o PNRA se fundamenta no Estatuto da
processo de reforma agrária” . 44
Terra, outro grande problema encontrado no
A proposta para a estruturação do PNRA foi caminho da realização da reforma agrária está no
apresentada no dia 27 de maio de 1985, em Brasília, fato de que o Estatuto foi modificado em 1966, no
durante o 4º Congresso Nacional dos Trabalhadores que se refere aos TDA quando
Rurais (SILVA, 1985), tendo como fundamento
básico o Estatuto da Terra. De acordo com o Estatuto, o Decreto nº 59443, de 1.12.66, assinado pelo
o acesso à propriedade rural será promovido general Castelo Branco e seu ministro Otávio
mediante a distribuição de terras pela inclusão da Bulhões, simplesmente faz dos TDA um grande
desapropriação por interesse social, pela doação, negócio especulativo. No seu artigo 8º, por
compra ou venda, pela arrecadação dos bens vagos exemplo, o titular de TDA nominativos pode pedir
ou ainda por herança, (Estatuto da Terra) de modo a emissão de novo certificado em nome de terceiro,
que, resta aos trabalhadores sem terra, junto aos subdividir o título em vários e até mesmo converte-
movimentos sociais, o papel de reivindicar esse lo em título ao portador 46.
direito constitucional. A desapropriação por
interesse social se refere aos latifúndios que excedem Conforme José Graziano, “o fundamental é não
três vezes o módulo rural de propriedade. pagar o valor de mercado das terras desapropriadas:
O módulo é a área explorada diretamente por aí seria uma negociata e não uma reforma agrária”
uma família cuja dimensão varia em função do tipo (SILVA, 1985, p. 32), mas esta medida já não é mais
de cultura e de onde é localizada (Estatuto da Terra), aprovada pelas leis brasileiras. Portanto, a Legislação
não havendo uma medida única de módulo rural constitui um dos grandes obstáculos à Reforma
para todo o Brasil, um dos fatos que dificulta o Agrária no Brasil, uma vez que, para ocorrer
processo de reestruturação agrária em todo o país. segundo os critérios de uma verdadeira reforma na
Na sociedade, houve pessoas contra e a favor ao estrutura agrária do país, de modo a não utilizar as
PNRA, sendo que a principal razão das opiniões formas do mercado para o pagamento das terras
contrárias ao PNRA encontrava-se no fato do plano desapropriadas, ela não tem mais o respaldo das leis.
ter como prioridade para a realização da reforma, a A Reforma Agrária, em última instância esbarra,
desapropriação por interesse social e, mais ainda, portanto, na máquina burocrática do Estado.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 125


Apesar de tudo, no governo Lula, a ‘reforma que as ocupações de terras continuam representando
agrária’ mantém em vigor o PNRA elaborado em uma opção para inúmeros sujeitos desprovidos deste
1985, mas prossegue nas medidas de realização acesso, ainda que essa opção seja caracterizada pelas
tomadas pelo governo de Fernando Henrique incertezas, pelos riscos e por infinitos imprevistos.
Cardoso, nas quais a ‘reforma agrária’ é executada Apesar dos riscos a que estão expostos nessa
por meio do cadastramento dos trabalhadores sem empreitada, é nas ocupações que os trabalhadores
terra nas agências de correio 47 . Deste modo, os depositam todas as suas esperanças de conseguir o
trabalhadores que desejam ter acesso a terra devem acesso a terra, encarando a via do Estado como um
fazer sua inscrição nos correios, e após isso, esperar caminho duvidoso. Assim, mesmo não sendo o meio
uma resposta do INCRA via correspondência. Caso mais seguro de conseguir a terra, as ocupações têm
seja selecionado, o trabalhador passará por uma série sido prioridades nas ações dos trabalhadores sem
de avaliações segundo critérios de classificação terra em direção ao seu acesso. Ainda que essa
estabelecidos pelo INCRA, os quais vão desde a idade atitude possa implicar até mesmo em morte como
do trabalhador, que não pode ser inferior a 21 anos, comumente tem sido observado no Brasil, os
o tamanho da família, o número de filhos, a renda movimentos sociais de trabalhadores sem terra
anual familiar, entre outros. freqüentemente entram em conflito com os
Quando uma família é assentada, com os proprietários rurais.
documentos já legalizados junto ao INCRA e os Esse tipo de ação, ao promover a organização
trabalhadores de posse do título provisório da terra unificada dos trabalhadores objetiva, ao mesmo
(título de domínio definitivo da terra só sai depois de tempo, enfrentar e superar as adversidades para ter
dez anos como assentado), o primeiro passo dado pelo acesso a terra e buscar mecanismos para nela
INCRA é a elaboração do Projeto de Assentamento . 48
permanecer. Esse foi então o objetivo primeiro em
Essa, geralmente, é uma tarefa realizada pelo torno do qual os atuais moradores da fazenda Rio das
Movimento ao qual as famílias de assentados então Pedras, em 14 de abril de 1997, se organizaram,
vinculadas. Embora esses procedimentos contidos no através do Movimento de Luta pela Terra (MLT), e
Programa, que variam conforme cada ocuparam as terras daquela fazenda. Com uma área
assentamento, sejam realizados de uma forma total de 1908,63 ha, a fazenda Rio das Pedras se
bastante incompleta, quando colocados em prática, localiza a 23 km da sede municipal de Uberlândia
ainda assim eles servem ao menos para dar uma pela BR365 que interliga Uberlândia e Ituiutaba.
direção aos trabalhadores assentados no sentido de Situa-se na microbacia hidrográfica do Rio
auxiliá-los sobre os passos que precisam ser dados Uberabinha, mais especificamente na sub-bacia do
para a organização e manutenção do assentamento. Rio das Pedras 49. Entre os fatores motivadores que
Mas, conforme as entrevistas realizadas no levaram as 170 famílias de trabalhadores a
assentamento Rio das Pedras, os trabalhadores sem empreenderem a referida ocupação, não restam
terra em geral têm constatado como problemas dúvidas de que o desemprego e a falta de
fundamentais da via governamental de acesso a oportunidades de melhores condições de trabalho e
terra, a morosidade em todo o processo causada pela de vida no meio urbano foram alguns deles.
burocracia do Estado durante os procedimentos de Sobre o movimento dos trabalhadores em
aquisição legal da terra. constante reivindicação pela terra cabe reconhecer
Muitos disseram ter tentado este meio, mas com o ainda uma grande heterogeneidade entre os agentes
tempo, se deram conta de que esperavam por algo que o compõem. Dentre eles, é comum encontrar
que certamente não seria concretizado, então pessoas que parecem não aspirar reorientar a sua
desistiam, devido ao desânimo e à desconfiança no vida saindo do urbano para o campo e só o fazem
processo de cadastramento realizado pelo Estado. Por forçados pelas circunstâncias. Nesse sentido, para
esse e outros motivos, os trabalhadores têm, como ‘alguns’ trabalhadores que se inserem nos
forma de acesso a um pedaço de terra, as manifestações movimentos de luta pela terra, como ficou
sociais que realizam em todo o país. Por isso mesmo, constatado nesta pesquisa junto aos moradores do
os resultados obtidos nesta pesquisa dão mostras de Assentamento Rio das Pedras, o Movimento é

126 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


encarado mais como um meio que os permitem fugir Disponível na sede do Movimento Terra Trabalho e
das cobranças da sociedade do trabalho. Para os que Liberdade (MTL), à Rua Niterói, 1507, Uberlândia,
possuem um forte e interiorizado desejo de cultivar MG.
a terra e dela tirar o sustento de suas famílias, resta
um caminho difícil de ser percorrido. As ocupações e Documentos oficiais
promessas de mudanças de vida encontram seus
limites no descaso do Estado, que não possui um plano Constituição da República Federativa do Brasil. São

bem formulado e adequado às necessidades Paulo: Saraiva, 1995.

específicas de cada assentamento, e no despreparo Estatuto da Terra, Lei Federal de 30 de novembro de

dos próprios trabalhadores diante da realidade de 1964 (Juarez de Oliveira.) 7 ed. São Paulo: Saraiva,

trabalho no campo. 1990.

Apesar de tudo, existem aqueles poucos que,


superando todas essas dificuldades e desafios,
Jornais pesquisados
conseguem se instalar e manter no campo. Para isso,
tem sido fundamental o desenvolvimento de formas
Correio – Ano 54, nº 17458, de 15/04/1997.
variadas de ajuda mútua, de solidariedade e
Folha de São Paulo – 29/03/2004. p. B1.
companheirismos, consolidados pela convivência no
Jornal dos Trabalhadores Rurais – Ano XIV, n. 144,
assentamento. Infelizmente, o latifúndio no Brasil
março 1995.
permanece em nossos dias com toda a sua força e
milhares de sujeitos são profundamente prejudicados
por este desequilíbrio relacionado à posse e uso da
Sites pesquisados
terra no país. Este, porém, é o legado deixado por
uma colonização gananciosa, planejada para
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA NACIONAL.
atender os interesses de uns poucos. Contudo,
Disponível em: <<www.cptnac.com.br>>.
analisarmos o passado e resumirmos nossas
FOLHA DE SÃO PAULO ON LINE. Disponível em:
sensações exclusivamente a sentimentos de
<<www.folha.uol.com.br>>.
frustração e derrota, significa não levar em
JURÍDICA ON LINE. Disponível em:
consideração o nosso momento presente, tempo esse
<<www.jol.com.br>>.
fértil em acontecimentos que sinalizam para novas
JORNAL O GLOBO ON LINE. Disponível em: <<
possibilidades em relação à questão do campo.
www.oglobo.com.br/pais>>.
INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E
REFORMA AGRÁRIA. Disponível em:
Fontes De Pesquisa
<<www.incra.gov.br>>.

Documentos Eladorados Pelo Movimento


– Mtl Revistas pesquisadas

MOVIMENTO TERRA, TRABALHO E LIBERDADE. Revista Conflitos no Campo: Brasil 2002. Comissão
MANIFESTO 2002. Disponível na sede do Movimento Pastoral da Terra Nacional, Brasil, Edições Loyola,
Terra Trabalho e Liberdade (MTL), à Rua Niterói, 2003.
1507, Uberlândia, MG, Brasil. Revista Brasileira de História. São Paulo: Marco Zero
MOVIMENTO TERRA, TRABALHO E LIBERDADE. / NAPUH, nº 19, 1990.
Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Revista Brasileira de História. São Paulo, n° 29, 1995.
Pedras, Uberlândia – MG. Documento produzido pelo Revista Projeto História. nº 15, 1997.
Movimento Terra, Trabalho e Liberdade, de 2002. Revista Veja. Ano 33, nº 19, 2000

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 127


Notas
1
Pesquisa Acadêmica iniciada no Curso de Mestrado em História 26
THOMPSON, E. P. Tempo, Disciplina do Trabalho e Capitalismo
Social em fev./2005 – UFU. Linha de Concentração: Política e Industrial. In: Costumes em comum: estudos sobre a cultura
Imaginário. Orientação: Antônio de Almeida. Apoio: FAPEMIG. popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.
2
Jornal Correio – Ano 54, nº 17458, de 15/04/1997. 304.
3
FURET, François. Da história-narrativa à história-problema. 27
LE GOFF, Jacques. A História do Quotidiano.In: DUBY, Georges.
In: A Oficina da História. Lisboa: Gradiva, 1985. p. 82. História e Nova História, Lisboa: Teorema, 1986, p.79.
4
Idem, p. 82. 28
PORTELLI, Alessandro. O momento da minha vida: funções do
5
Idem, Ibid, pp. 82, 97, 98 tempo na história oral. In: FENELON, Déa R. et al. In: Muitas
6
BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o ofício do historiador. Memórias, Outras Histórias. São Paulo: Olho d’Água, 2004, p. 298.
Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 29
______. O que faz a história oral diferente. Trad. M. T. J. Ribeiro.
7
Idem, p. 151. São Paulo: CEDIC-PUC/SP, 1995, p. 39.
8
HUNT, Lynn. Apresentação: História, cultura e texto, In: HUNT, 30
IBGE, www.ibge.gov.br. Acesso: 02/04/2004.
Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 31
SEM TERRA: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS. Ano XIV,
9
ALMEIDA, Antônio de. Lutas, Organização Coletiva e Cotidiano: n. 144, março 1995.
cultura e política dos trabalhadores no ABC Paulista 1930-1980. 32
Idem, p. 05.
Tese de doutorado em História Social apresentada a FFLCH/USP. 33
Idem, Ibid, p. 07.
São Paulo. 34
GRAMSCI, Antonio. Caderno 11 (1932-1933). Apontamentos para
10
Idem, p. 32. uma introdução e um encaminhamento ao estudo da filosofia e
11
BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Anthropos-Homem, da história da cultura. In: GRAMSCI, Antonio. Cadernos do
Enciclopédia Einaudi, vol. 5, Porto, Editora Einaudi-Imprensa cárcere. v. 1. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 2 ed. Rio de Janeiro:
Nacional-Casa da Moeda, 1985, p. 309. Civilização Brasileira, 2001.
12
PASAVENTO, Sandra Jatayh. Em Busca de Uma Outra História: 35
THOMPSON, E. P. Introdução: costume e cultura. In: Costumes
Imaginando o Imaginário. Revista Brasileira de História, 1985, p. em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São
9. Paulo: Companhia das Letras, 1998.
13
LE GOFF, Jacques. A História do Quotidiano.In: DUBY, Georges. 36
INCRA, www.incra.gov.br. Acesso: 07/04/2004.
História e Nova História, Lisboa: Teorema, 1986, p. 79. 37
Em: www.folha.uol.com.br. Acesso: 07/04/2004.
14
Idem, p. 24. 38
Art. 1º § 1º. Estatuto da Terra. Lei Federal de 30 de novembro de
15
BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Anthropos-Homem, 1964
Enciclopédia Einaudi, vol.5, Porto, Ed. Einaudi-Imprensa 39
SILVA, José Graziano da. O que é Questão Agrária? São Paulo:
Nacional Casa da Moeda, 1985, p. 309. Brasiliense, 1980.
16
Idem, p. 309-10. 40
______ . Para Entender o Plano Nacional de Reforma Agrária. São
17
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Paulo: Brasiliense, 1985, p. 45.
Trad. W. Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1981, p. 34. 41
SILVA, José Graziano da. O que é Questão Agrária? São Paulo:
18
BLOCH, Marc. A Observação Histórica.Introdução à História. 4 Brasiliense, 1980, p. 64.
ed. Lisboa: Europa-América, 1965, p. 61. 42
Revista Veja. Ano 33, nº 19, 2000.
19
Idem. 43
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na História e na
20
HOBSBAWM, Eric. Sobre História (Ensaios). Trad. Cid Knipel Literatura. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 409.
Moreira. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 225. 44
SILVA, José Graziano da. Para Entender o Plano Nacional de
21
LE GOFF, Jacques. A História do Quotidiano. In: DUBY, Georges. Reforma Agrária. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 73.
História e Nova História, Lisboa, Teorema, 1986, p. 80-81. 45
Idem, p. 25.
22
ALMEIDA, Antônio de. Lutas, Organização Coletiva e Cotidiano: 46
Idem, Ibid, p. 99
cultura e política dos trabalhadores no ABC Paulista 1930-1980. 47
Em: www.incra.gov.br. Acesso: 05/02/04.
Tese de doutorado em História Social apresentada a FFLCH/USP. 48
Em: www.incra.gov.br. Acesso: 06/02/04.
São Paulo, p. 132. 49
MOVIMENTO TERRA, TRABALHO E LIBERDADE. Plano de
23
Idem. Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia – MG.
24
Idem, Ibid. Documento produzido pelo Movimento Terra, Trabalho e
25
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989. p. 133. Liberdade, de 2002. Disponível na sede do Movimento Terra
Trabalho e Liberdade (MTL), à Rua Niterói, 1507, Uberlândia, MG.

Referências:

ALMEIDA, Antônio de. Lutas, Organização Coletiva e Cotidiano: FURET, François. Da história-narrativa à história-problema. In:
cultura e política dos trabalhadores no ABC Paulista 1930-1980. A Oficina da História. Lisboa: Gradiva, 1985.
Tese de doutorado em História Social apresentada a FFLCH/USP. GRAMSCI, Antonio. Caderno 11 (1932-1933). Apontamentos para uma
São Paulo. introdução e um encaminhamento ao estudo da filosofia e da
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Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 129


OFolclorista Mário de Andrade e o Paradigma Macunaímico

Ricardo Luiz de Souza

Doutorando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo Abstract
Os estudos folclóricos de Mário de Andrade são The folkloric studies of Mário de Andrade are
estudados em contraste com uma breve análise de studied and a brief analysis of Macunaíma is
Macunaíma, tendo como objetivo demonstrar presented, having as objective the demonstration
como a compreensão de tais estudos ajuda a of how the understanding of such studies helps us
compreender os sentidos dados pelo próprio Mário to understand the senses given by Mário to the
ao livro, onde colocou em prática propostas suas book, where there are practical proposals defended
como folclorista. A cultura popular é por ele by the author as a folklorist. He defines popular
definida como a expressão da identidade nacional, culture as the expression of the national identity
e assim sua representação é feita ao longo do livro. being it represented along the book.
Palavras-Chave: Folclore, Cultura, Identidade Keywords: Folklore, Culture, Nacional Identity
Nacional

A primeira questão a ser colocada é: Mário de interesso pela ciência porém não tenho capacidade
Andrade é folclorista? Ele recusa definir-se como tal para ser cientista. Minha intenção é fornecer
(Andrade, 1963: 67), vendo, em suas pesquisas, documentação para músico e não, passar vinte anos
apenas um instrumento de contato com o brasileiro; escrevendo três volumes sobre a expressão
com sua intimidade. Assim ele se define em relação fisionômica dos lagartos (Andrade, 1983: 232). A
ao assunto: postura de Mário como folclorista é, portanto,
assumidamente não científica e, nas palavras de
De resto, e por infelicidade minha, sempre me quis Vilhena, ironicamente desinteressada (Vilhena,
considerar amador em folclore. Disso derivará 1997:131).
serem muito incompletas as minhas observações Já Veloso e Madeira sintetizam a importância do
tomadas até agora. O fato de me ter dedicado a folclore na obra de Mário:
colheitas e estudos folclóricos não derivou nunca
duma preocupação científica que eu julgava Mário quer compreender a cultura brasileira e, mais
superior às minhas forças, tempo disponível e do que isso, quer construí-la, nomeá-la, desvendar-
outras preocupações. Com minhas colheitas e lhe a face. E, num primeiro momento, foi o folclore
estudos mais ou menos amadorísticos, só tive em a via que lhe permitiu compreender o contexto
mira conhecer com intimidade a minha gente e nacional. O folclore lhe oferecia a medida da cultura
proporcionar a poetas e músicos, documentação do povo, por ser expressão autêntica que abriga
popular mais farta onde se inspirassem (Andrade, reações de caráter ético-religioso, crítico e afetivo
1965:145). (Veloso & Madeira, 1999:123).

E explica, ao mesmo tempo, os motivos de sua É preciso termos em mente, ainda, o que ele
recusa e seus objetivos enquanto estudioso das define como folclore, ou seja, quando podemos,
manifestações folclóricas: Já afirmei que não sou segundo ele, definirmos uma manifestação como
folclorista. O folclore hoje é uma ciência, dizem...Me folclórica? O fato de um autor de origem popular

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fazer arte não significa que esta seja arte popular; elementos folclóricos. Esta seria a tradição
pode ser popularesca, na medida em que não disponível, este seria o ponto de partida viável.
incorpora os padrões de autenticidade que a Tal dualidade é, então, por ele sintetizada:
legitimariam enquanto arte popular, limitando-se Civilização brasileira consiste em impecilhar as
a degradá-los ou empenhando-se em mimetizar os tradições vivas que possuímos de mais nossas
padrões eruditos, caindo no popularesco, no primeiro (Andrade, 1983: 267). E ele reitera com indignação
caso, ou no semiculto, no segundo. os conflitos e perseguições oriundos de tal dualidade:
Segundo Mário, realmente um fato só é folclórico Os Caboclinhos saem pelo Carnaval. Saem quando
quando já tornado constância social das classes, podem porque em nome dum conceito
digamos, populares (Andrade, 1963:340), mesmo idiotissimamente nacional de Civilização, as
tratando-se de manifestações cuja origem é Prefeituras e as Chefaturas de Polícia fazem o
individual ou obedece ao que ele chama de impossível para eles não saírem, cobrando diz-que
desnivelamento, ou seja, um processo no qual até duzentos mil-réis a licença (Andrade, 1983: 321).
manifestações eruditas são incorporadas por estas Mário contrapõe o folclore, portanto, a um certo
classes. desejo de ser civilizado oriundo de um certo desejo de
Observando velhas negras dançando o maracatu, ser moderno, assim como aos símbolos desta
Mário descreve a dança como uma síntese de êxtase “civilização” como, por exemplo, neste trecho de um
erótico-religioso e a expressão de uma verdade que poema escrito em 1923:
cabe a ele apenas admirar. Continua a lentidão
voluptuosa, sem nenhuma impureza, seres vindos de Em baixo do Hotel Avenida em 1923
outros pensamentos, que na miséria, na velhice e no Na mais pujante civilização do Brasil
contraste de agora, exigiam, além de minha Os negros sambando em cadência.
curiosidade, meu respeito, tão cheio de verdade eles Tão sublime, tão África (Andrade, 1974:114).
estavam (Andrade, 1959:vol.II.154). Neste pequeno
trecho, estão sintetizados aspectos fundamentais dos O folclore é, para ele, de caráter nitidamente
estudos folclóricos desenvolvidos por ele: o folclore é religioso, e tal religiosidade exprime-se
uma atividade primitiva, derivada de origens particularmente no congado. Este exprime o
arcaicas que seus próprios participantes misticismo do qual o negro está eivado, mas não
desconhecem. Mesmo quando assume formas apenas ele; em uma festa popular, Mário decifra o
profanas, é profundamente religioso, mas também aspecto religioso que ele considera fundamental no
é fruto da miséria. E merece, igualmente, o estudo e caráter brasileiro. Um aspecto pré-cristão, mágico e
o respeito. É em nome deste respeito que Mário critica presente em suas festas e manifestações, mesmo que
os chefes de polícia das cidades litorâneas por aparentemente profanas: Essa religiosidade
imporem licenças financeiramente proibitivas aos contaminadora é do mais íntimo do nosso povo, e se
ranchos de caboclinho e às demais danças mete espontaneamente nas suas festas mais profanas
dramáticas em nome dum respeito idiota por não sei (Andrade, 1959:vol.II.33).
que critério de civilização... (Andrade, 1959: vol. II. Está presente, por exemplo, na literatura de
186). cordel e nos Congos de Natal cuja origem Mário
Ele antepõe, aqui, tradição e modernidade. O localiza nesta literatura. Aqui, ele vacila e recusa
folclore caminha na contramão de uma pretensa certezas, mas ressalta a religiosidade inegável:
civilização brasileira que vira as costas para ele Teremos aqui uma nova alusão religiosa-
enquanto busca fantasiar-se de europeísmos: uma católica...Tenho medo de converter muito estas
modernidade postiça e uma tradição de araque que “gaiatices” populares a elementos primitivamente
Mário define como a antítese da tradição- a única religiosos. Assim, não asseguro nada. Mas a
que porventura possamos ter- expressa no folclore. formidável influência de religiosidade na criação
De fato, a construção de uma tradição, para Mário, popular de nossa gente é incontestável (Andrade,
somente seria possível a partir da elaboração de uma 1959:vol.II.122).
cultura que fosse alicerçada na recuperação de O caráter religioso do folclore é indissociável do

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aspecto anti-intelectual do qual ele se reveste. O era colher material, recolher uma cultura popular
folclore, como a cultura popular de uma forma geral, desprotegida e frágil, facilmente perecível. Sua
não implica em elaboração intelectual e, sim, em atividade enquanto folclorista no Departamento de
formas de transmissão oral que se dão de forma Cultura foi toda direcionada neste sentido, assim
mecânica e repetitiva. Neste processo, eles passam como suas viagens pelo Brasil em busca deste
por transformações que derivam da corrupção e da material. Não se tratava, porém, de proteger tal
deformação, não da elaboração e da análise. Um cultura da modernidade e, sim, de estabelecer pontes
trecho no qual ele descreve um Primeiro Capitão que permitissem a integração entre ambas, cabendo
Marinheiro recitando trechos de congada ao artista e ao folclorista atuarem como engenheiros.
exemplifica tal processo: Os estudos folclóricos não tem, para ele, apenas a
função de resgate e fixação da cultura popular. A
Sabia todos os textos e canções de cor, e os deu partir deles, o artista tem a oportunidade de fundir
tais e quais vão adiante, terrivelmente deformados a sua arte com a arte popular, tornando-a a partir
como se verá. Isto caracteriza mais uma vez a daí a expressão da identidade nacional e dando a ela
passividade extrema com que também aqui no uma autenticidade que ela só pode almejar a partir
Brasil Central, como no Nordeste, os indivíduos do momento em que atua como tal expressão. O
decoram os textos sem quase nenhuma reação folclore funciona, então, como uma ponte entre
intelectual, sem mesmo, por assim dizer, quase ambas as culturas, fecundando a cultura erudita,
nenhum esforço, nenhum desejo de compreender. resgatando e exprimindo a cultura popular; daí sua
Os textos vão se deformando por falhas de importância vital.
memória, assonâncias, associações, etimologias Esta é a função primordial dos estudos folclóricos:
populares, etc., e ficam muitas vezes aproximar artista e povo, aproximação que só se
irreconhecíveis (Andrade, 1959:vol.III.201). torna viável quando o artista absorve elementos da
cultura popular consubstanciados no folclore.
A poesia popular, enfim, é verdadeira; é a poesia Conclui, então, Mário:
verdadeira do Brasil (Andrade, 1976:113), daí sua
importância. Vem não tanto de sua qualidade, Mas o emprego da temática popular diminui
embora este também seja um critério fundamental, muitas vezes a distância entre a nação, uma raça,
mas de sua autenticidade. De sua capacidade de ser um povo e os seus artistas eruditos, dando a estes
verdadeira. A macumba, por exemplo, deveria maior funcionalidade representativa. O artista
primar por sua seriedade, como, por exemplo, a instruído em escolas tradicionais, fazendo música
macumba da Tia Ciata descrita em Macunaíma: à italiana ou à francesa, reconhece que está muito
Era uma macumba séria e quando santo aparecia, distanciado do seu povo e quer funcionar dentro
aparecia deveras sem nenhuma falsidade. Tia Ciata deste. Então diminui voluntariamente a distância,
não permitia dessas desmoralizações do zungu dela e se aproximando do seu povo e quer funcionar
fazia mais de doze meses que Ogun nem Exu não dentro deste. (Andrade, 1983:224).
apareciam no Mangue (Andrade, 1988:59). E
autêntica em mais de um sentido, de tal forma que, Ao mesmo tempo que ressalta sua importância
referindo-se a rituais de umbanda que buscam vital, Mário lamenta a situação marginal dos estudos
cumprir finalidades terapêuticas, Mário expressa folclóricos na cultura brasileira: folclore entre nós é
uma evidente crença em relação aos mesmos: pior que poesia: recurso remançoso dos que desejam
Desculpem-me os médicos, mas a cura se dá, cancros a toda força publicar livro (Andrade, 1972:41). É,
desaparecem, artritismos e nefrites, pedrinhas vindas portanto, seara de amadores, e ele próprio inclui-se
da África, galos pretos imolados, ou garrafas de pinga nesta categoria: de resto, e por infelicidade minha,
esperdiçadas na onda da praia (Andrade, 1980:18). sempre me quis considerar amador em folclore. Disso
Os estudos folclóricos levados adiante por Mário derivará serem muito incompletas as minhas
foram de caráter essencialmente empírico. Não era observações até agora (Andrade, 1965:145). Com
chegado, ainda, o momento de teorizar e o importante isto, os métodos utilizados na coleta de material são

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essencialmente amadorísticos, o que o leva a O paradigma macunaímico
concluir: A nossa literatura popular, por muitas partes
ainda está para ser verdadeiramente estudada. Então Não é possível, finalmente, pensarmos a obra
o folclore, de qualidade verdadeiramente científica, é folclórica de Mário de Andrade sem uma análise,
de produção miserável entre nós (Andrade, mesmo que rápida e sem nenhuma pretensão ao
1972:191). Mas exatamente neste cenário, e devido exercício da crítica literária, de Macunaíma. A
a ele, um autor como Câmara Cascudo é saudado condição paradigmática à qual a obra foi alçada
por Mário como um divisor de águas. não nos deve fazer esquecer a escassa repercussão
A pobreza e deficiência dos estudos folclóricos e inicial obtida por ela, editada primeiramente em
de uma cultura nacional que os absorva e seja uma edição de 800 exemplares custeada pelo autor
construída tomando-os como elementos e só em 1937, oito anos depois, reeditada pela José
constituintes, a pobreza- inexistência mesmo- desta Olympio, agora com uma edição de mil exemplares.
cultura é ressaltada por Mário em diversos aspectos. O paradigma macunaímico, sendo pensado, aqui,
Em relação à música, por exemplo, ele constata: No como a definição da identidade nacional a partir das
Brasil o estudo da música de folclore é duma ausência características do personagem, não surgiu, portanto,
vergonhosa (Andrade, 1963: 171). E é associada a de forma imediata. Foi construído ao longo de
uma característica vital da identidade nacional: o décadas, sendo que trata-se, ainda, de texto literário,
individualismo. Segundo ele, nós possuímos um ou seja, fazendo parte da parte da obra de Mário que
individualismo que não é libertação: é a mais pífia a teve maior circulação e impacto. Nesta obra, seus
mais protuberante e inculta vaidade. Uma falta de aspectos não-literários colocam-se em segundo plano,
cultura geral filosófica que normalise a nossa a partir da duvidosa condição de polígrafo na qual o
humanidade e alargue a nossa compreensão. E uma autor é situado. Como lembra Dasin, a diversidade
falta indecorosa de cultura nacional. Indecorosa de Mário é assim tradicionalmente invocada,
(Andrade, 1962:70). esquecida e sacrificada em nome de preocupações
O regionalismo, neste contexto, não é uma exclusivamente literárias (Dasin, 1978:147).
virtude e um programa como seria, por exemplo, A relação de Mário com Macunaíma possui uma
para Gilberto Freyre, mas é filho da preguiça e da ambiguidade que o próprio autor encarrega-se de
falta de cultura nacional. Somos regionalistas acentuar. Segundo ele, nos momentos mais
porque somos preguiçosos, e por permanecermos anedóticos, mais engraçados do entrecho, eu não
presos ao regional sem a preocupação de nos deixava de sofrer pelo meu herói, sofrer a falta de
alargarmos rumo ao nacional nos conectamos organização moral dele (do brasileiro que ele satiriza),
diretamente à cultura européia e importamos de reprovar o que ele estava fazendo contra a minha
passivamente uma cultura que serve de sucedâneo vontade (Andrade, 1981: 29).
à cultura nacional inexistente. Cria-se, então, um E em carta a Alceu de Amoroso Lima datada de
retrato delineado de uma perspectiva profunda- 1928, Mário busca elucidar o sentido do livro: recusa
mente crítica, que leva Mário a concluir: aproximá-lo da antropofagia oswaldiana, definindo
tais aproximações como coincidências. Coloca a si
Os nossos defeitos por enquanto são maiores que próprio como incapaz de julgá-lo devido ao fato de
as nossas qualidades. Estou convencido que o não ser uma obra consciente como as demais por ele
brasileiro é uma raça admirável... Mas os defeitos escritas. Nega o caráter espontâneo da obra: apesar
de nossa gente, rapazes, alguns facilmente de escrita em seis dias foi polida e repolida, e o que
extirpáveis pela cultura e por uma reação de caráter termina sendo publicada é a quarta redação. E situa
que não pode tardar mais, nossos defeitos a inspiração para escrevê-la na própria discussão
impedem que as nossas qualidades se manifestem sobre a identidade nacional que a fundamenta:
com eficácia. Por isso que o Brasileiro é por
enquanto um povo de qualidades episódicas e Resolvi escrever porque fiquei desesperado de
defeitos permanentes (Andrade, 1962:71.2). comoção lírica quando lendo o Koch Grunberg
percebi que Macunaíma era um herói sem nenhum

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 133


caráter nem moral nem psicológico, achei isso qual modernidade e arcaísmo são confrontados,
enormemente comovente nem sei porque, de certo ressaltados e embaralhados. Macunaíma transita
ineditismo do fato, ou por ele concordar um bocado entre os símbolos da modernidade e os traços do
bastante com a época nossa, não sei... (Fernandes, arcaísmo, arcaico ele próprio, mistura usos, costumes
s.d.:31). e expressões de todo o Brasil, fundindo regionalismos
e delineando uma identidade que os transcende, e
Mário parte de toda uma mitologia, muitas vezes transita em processo de fusão entre as diferentes raças
de raízes antiquíssimas, para a construção do texto. que atuam como matrizes da identidade nacional.
A ascensão de Macunaíma, por exemplo, tem origens Tal processo já é delineado em carta escrita em
milenares pois, afinal, Eliade lembra que, no antigo 1925, onde Mário explicita o objetivo que o nortearia
Egito, a morada dos mortos era ou subterrânea ou na elaboração de Macunaíma: Acho que o nosso
celeste, mais exatamente estelar. Depois da morte, as trabalho tem de ser- principalmente por enquanto-
almas iam encontrar as estrelas e compartilhavam a empregar desassombradamente todos os
eternidade delas (Eliade, 1984: T.I.V.I, 120). brasileirismos tanto sintáticos como vocabulares e de
Mário situa esta ascensão de Macunaíma em um todo o Brasil e não da região a que pertencemos.
contexto místico, fazendo o herói achar a verdade na Porque senão seria regionalista (Andrade, 1982: 54).
simbologia da ida pro céu, onde, em busca do amor A própria construção do texto é feita em caráter
de Ci, ele termina optando pela imobilidade mística de mosaico, o que o autor reconhece: Não tem senão
do brilho inútil das estrelas, que Mário compara a dois capítulos meus no livro, o resto são lendas
essa contemplatividade puramente de adoração que aproveitadas com deformação ou sem ela (Andrade,
existe na reza e no êxtase. E Mário, conforme afirma 1982:101). O texto funciona, assim, como um
nesta mesma carta a Alceu de Amoroso Lima, reza mosaico, mas um mosaico que aspira à unidade e,
diariamente: Não sei nem me deitar nem levantar sem conseguindo-a, transforma-a em símbolo de
essa carícia pra Deus e o nossos intermediários que é brasilidade. Indeterminado temporal e
a reza. Ao mesmo tempo, a esfera artística é por ele geograficamente, despreocupando-se da lógica
estritamente separada da esfera religiosa. Não espacial e temporal, o texto tem como objetivo final
combinam, e Mário não consegue, recusa-se mesmo, esta unidade a ser alcançada no terreno da arte,
a misturá-las: Minha produção se tem sido ainda que inexistente no terreno da realidade.
especialmente acatólica, pode ter certeza que é pela A construção de Macunaíma não é intuitiva,
discreção sensibilizada com que me sinto na como pode parecer, nem o resultado é um elogio ao
impossibilidade de jogar uma coisa para mim tão primitivismo. Não é através da intuição que o artista
essencial e tão elevada como a religião dentro dessas pode aproximar-se do conhecimento popular, mas
coisas tão vitais, terrestres e mundanas como as artes sim utilizando a cultura letrada como mediação.
(Fernandes, s.d.:37). Cultura letrada que é, contudo, ironizada na
E Mário assume, finalmente, em 1939, seu carta às Icamiabas. Este trecho guarda uma
desgosto em relação à Macunaíma: Sinto que tive importância fundamental no texto, ressaltada por
nas mãos o material de uma obra-prima e o Gilda de Mello e Souza, que a define como um
estraguei...Devo ter muito errado esse meu livro, pois comentário satírico da escolha desastrada do herói
de outra forma, seria considerar a grande maioria dos que acabava de preferir a portuguesa às filhas de Vei
meus leitores uns primários (Andrade,1993:12). (Souza, 1979:52). E a autora conclui vendo na união
O texto estrutura-se a partir de um ininterrupto com a portuguesa a atração perigosa da Europa
processo de ressignificação, no qual a originalidade (Souza, 1979:56). Tal escolha representa um
nasce do já existente, de sua justaposição criativa a abandono de suas origens míticas, arcaicas, em troca
partir do qual o material utilizado por Mário ganha da civilização européia cuja cultura e cujo linguajar
novo sentido e gera novas idéias. Permite a criação são estranhas a ele, daí o português entre ridículo e
de um novo mito. E é exatamente as diferentes arrevesado no qual a carta é escrita. E é escrita assim
procedências do material inserido na colagem da por ser a sabedoria de Macunaíma toda ela intuitiva,
qual a obra se constitui que cria a estranheza na refletindo, na perspectiva de Mário, uma

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característica fundamental do conhecimento aliás, presente na etimologia do nome, ressaltada
popular, também ele avesso a racionalizações. por Koch-Grunberg e lembrada por Campos: O nome
Cabe, contudo, ao intelectual, racionalizar tais do supremo herói-tribal, Makunaíma, parece conter
intuições, criando um todo coerente no qual a como parte essencial a palavra Maku=mau e o sufixo
expressão popular possa, enfim, manifestar-se aumentativo Ima=grande. Assim o nome significaria:
organicamente e, no qual, a própria identidade “O Grande Mau” (Campos, 1973:111). Por outro lado,
nacional possa, enfim, ser construída. O intelectual Macunaíma sintetiza um pólo de criatividade
torna-se, então, o demiurgo desta identidade e, para anárquica e lúdica que existe apesar ou, quem sabe,
tal, ele deve agir como destruidor, demolindo os talvez devido a esta negatividade. É o fato de viver à
obstáculos que tornam irredutíveis a modernidade margem das regras e parâmetros da cultura e
e a identidade nacional, o novo e o arcaico. Esta foi, civilização ocidentais, de ser um pária da
segundo Mário, a função do modernismo, e esta modernidade (e de ser mesmo incapaz de
deveria ser a função do Departamento de Cultura: compreendê-la) que o torna tão fascinante para
dois projetos nos quais ele se engajou, este sucedendo Mário.
temporalmente aquele mas, em ambos, sendo A ausência de caráter ou, talvez, sua
possível definir uma linha de continuidade cuja multiplicidade, reflete-se e é simbolizado pela
ruptura forçada marcou indelevelmente seu multiplicidade de estilos. Bosi acentua a diversidade
idealizador com uma sensação de fracasso que nunca de estilos utilizados em Macunaíma, mostrando
mais se dissipou. como Mário ora escreve em um estilo de lenda, épico-
Macunaíma ressalta, no livro, não o caráter lírico, solene, ora em um estilo de crônica, cômico,
nacional, mas sua ausência. Retrata uma despachado, solto, ora em um estilo de paródia. No
negatividade, um espaço a ser preenchido. E Mário primeiro estilo, temos a retomada do indianismo de
enfatiza este aspecto crucial de seu herói: Fiz questão estilo alencariano, no qual o trecho inicial de
de mostrar e acentuar que Macunaíma como brasileiro Macunaíma, ao relatar o nascimento do herói,
que é não tem caráter. Isso eu falava no prefácio da remete ao trecho inicial de Iracema, que relata,
segunda versão e mostrarei para você aqui. Ponha por sua vez, o nascimento da heroína. Tal estilo é
reparo: Macunaíma ora é corajoso, ora covarde. Nada contrastado e entremeado ao longo da obra, contudo,
sistematizado em psicologia individual ou étnica com o segundo estilo, na qual Mário registra o que
(Moraes, 2001:359). Em outra carta ele ressalta: chama de fala brasileira, recriando-a, contudo, a
Macunaíma vive por si, porém possui um caráter que nível estilístico. E no terceiro estilo, a linguagem
é justamente o de não ter caráter (Moraes,2001:363). semiculta e pseudo-erudita é utilizada e subvertida.
E em uma terceira carta, ele finalmente conclui: É E Bosi conclui, lembrando que passando
fácil de provar que eu estabeleci bem dentro de todo o abruptamente do primitivo solene à crônica jocosa e
livro que Macunaíma é uma contradição de si mesmo. desta ao distanciamento da paródia, Mário de Andrade
O caráter que ele demonstra num capítulo, ele desfaz jogou sabiamente com níveis de consciência e de
no outro (Moraes, 2001:368). comunicação diversos, justificando plenamente o título
Não publicados por Mário, os prefácios a de rapsódia, mais do que “romance” que emprestou à
Macunaíma são fundamentais para a compreensão obra (Bosi, 1970: 397.8).
da obra. No primeiro, datado de 19 de dezembro de A viagem à Amazônia feita por Mário em 1927 é
1926 e citado por Haroldo de Campos, lê-se: O que fundamental para a construção de Macunaíma.
me interessou por Macunaíma foi inquestionavelmente Ali, ele se depara com uma realidade que guarda,
a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o em si, possibilidades de utopia por contrastar com o
mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. racionalismo europeu, possibilidades estas que
Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que seriam utilizadas no desenho da personalidade do
me parece certa: o brasileiro não tem caráter herói. Filho da Amazônia, Macunaíma a exprime
(Campos, 1973:75). em sua irracionalidade e exuberância, bem como
Retoma-se, aqui, a idéia de uma certa em sua mistura do novo e do arcaico; uma expressão
negatividade presente em Macunaíma, que já está, calcada antes no mito que na realidade, mas da qual

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o herói extrai suas virtudes oriundas de seus defeitos, que a Idade Média da literatura brasileira, um
assim como seu caráter essencialmente ambivalente, período de formação duma língua nacional; assim
definido pela contradição e pela mistura, o que o como o francês saiu do latim, pouco a pouco o
torna ao mesmo tempo primitivo e contemporâneo “brasileiro” sai do português. Mas, Macunaíma é
Macunaíma é o herói de uma identidade a ser o momento da embriagues exaltada, do grande
construída, ao mesmo tempo promessa e maldição. canto de amor ao belo falar da terra, o que
É múltiplo porque suas origens são múltiplas, corresponde- mutatis mutandis- ao começo do
contraditório porque equilibra-se entre o arcaísmo século XVI em França (Bastide, 1945:46).
e a modernidade. Representa a barbárie e o atraso?
Que seja, mas representa também, na perspectiva
andradeana, nossa possibilidade de sermos Conclusão
diferentes. A partir dele, os brasileiros
diferenciariam-se dos europeus, seriam peculiares O que a obra de Mário como folclorista tem a ver,
mesmo que na barbárie; mesmo que macunaímicos. afinal, com Macunaíma? Como folclorista, Mário
Diferentes, enfim, porque bárbaros, motivo pelo qual alertou para a necessidade de resgatar e estudar uma
Mário não se furta a fazer o elogio da barbárie: Mas cultura popular que seria a expressão legítima da
isso que chamam de barbárie os deserdados da nossa identidade nacional, com tal estudo e resgate
terra, não passa duma reeducação. Sintoma capitoso servindo como ponte, a única ponte utilizável, neste
de Brasil (Andrade, 1983: 207). sentido, para a construção de uma cultura ao mesmo
E tomando Macunaíma como uma rapsódia da tempo erudita e brasileira. E o estudo do folclore seria
formação da língua e da construção da o caminho a ser seguido para o estudo e compreensão
nacionalidade, remeto a Roger Bastide. É assim que da identidade nacional, de seu caráter. Em
ele percebe a obra, comparando-a, em sua intenção Macunaíma, ele constata que tal caráter não existe,
e significado, com um momento específico, e o faz exatamente a partir do resgate de todo um
rabelaisiano, da história francesa: conjunto de lendas e narrativas, seguindo o caminho
por ele mesmo proposto para chegar, porém, a
Ora, um francês, logo após começada a leitura, conclusões pouco otimistas. Por outro lado, na
transporta-se ao século do Renascimento. Parece- negatividade do personagem por ele construído
lhe que todo o período colonial, a monarquia, e o reside, ao mesmo tempo, seu fascínio e sua
próprio começo da República, constituem como esperança.

Referências

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Paulo: Martins EDUSP
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Andrade a Carlos Drumond de Andrade. Rio de Janeiro: José itinerários no pensamento social e na literatura. Rio de Janeiro:
Olympio Paz e Terra
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Cidades Janeiro: UERJ

136 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Arte: o desprazer prazeroso

Elza Ferreira Santos

Professora de Língua Portuguesa do CEFET-Se; Graduada em Letras Vernáculas pela Universidade Federal de Sergipe;
Mestranda em Ciências da Educação pela Universidade Lusófona; Estudiosa de psicanálise e
Membro do Projeto Freudiano-Sergipe.

Resumo Abstract
Este breve trabalho ousa por meio da psicanálise e This brief work dares – by means of
da literatura tentar decifrar os caminhos por que psychoanalysis and literature – to decipher the
trilha o artista ao construir a sua arte. E isto é ways by which the artist goes through, when
importante porque diversas vezes só se vê o poema building his art. The work becomes important
ou uma tela, ou seja, o produto artístico. A criação because, for several times, we can only see the
artística é apreciada, é o belo em evidência. Aqui poem or a screen in itself, that is, the artistic
se tentará ver o outro lado: o artista dentro do product. The artistic creation is appreciated; it is
desejo de criar. Um lado muitas vezes obscuro, the beauty in evidence. Here we will try to see the
indescritível e não menos excitante. other side: the artist inside of the desire to create.
Palavras-Chave: Psicanálise, Literatura, Criação A side which is many times obscure, indescribable
Artística, Desejo de Criar and not less exciting.
Keywords: Psychoanalysis, Literature, Artistic
Product, Desire to Create

Correr. Cantar. Escrever. Cuidar. Há pessoas que como tal. O que dizem os artistas? O que diz Freud?
sentem com intensidade a necessidade de executar Há entre as civilizações conhecidas alguma que
uma dessas ações. Por quê? Elas não sabem ao certo. tenha dispensado a arte? A arte embala o sonho da
Só sabem que precisam urgentemente pintar, humanidade ao mesmo tempo em que a acorda
escrever, livrar-se da premência de agir agindo. chamando-a para a luta, para a vida. Se o artista é
Executar uma dessas atividades alivia, dá uma aquele que concede a seus desejos eróticos e
sensação de bem-estar, porém não estanca ambiciosos completa liberdade na vida de fantasia,
definitivamente a necessidade de produzí-las. Este é a obra de arte o caminho para a realidade. Freud
breve trabalho ousa por meio da psicanálise e da em 1911 designou dois princípios que regem o
literatura tentar decifrar os caminhos por que trilha funcionamento do aparelho psíquico – o princípio
o artista no construir a sua arte. E isto é importante do prazer e o da realidade. Aquele é dominante nos
porque diversas vezes só se vê o poema ou uma tela, primeiros anos de vida proporcionando uma
ou seja, o produto artístico. A criação artística é diminuição das tensões ao passo que este permite a
apreciada, é o belo em evidência. Aqui se tentará entrada do ser humano na sociedade facultando o
ver o outro lado: o artista dentro do desejo de criar. convívio do indivíduo com as suas limitações, com
Um lado muitas vezes obscuro, indescritível e não as regras. Mas não significa que o surgimento de um
menos excitante. Até hoje são muitos os estudiosos marque o desaparecimento do outro. O prazer e o
que tentam desvendar o ato da criação, o poder ou a desprazer conviverão de modo dialético traduzindo
magia do criador. Não que o fato desvendado vá qualitativamente as modificações quantitativas de
render mais ou menos artistas mas a curiosidade energia no interior do aparelho psíquico.
humana não aceita que a obscuridade permaneça Temos aí um conflito. Para resolver o conflito

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 137


entre o princípio do prazer e o da realidade a arte é Freud em Conferências Introdutórias (1916) que um
uma das melhores saídas. A arte ocasiona uma determinado tipo de modificação da finalidade e de
reconciliação entre eles porque permite o sujeito mudança do objeto, na qual se levam em conta nossos
estar na realidade sem perder a noção dela ao mesmo valores sociais, é descrito por nós como sublimação.
tempo em que pode vivenciar seus prazeres, suas Então, senhores, está explicado a fonte da arte. E o
fantasias. Na verdade, não se renuncia a nada, que é mesmo sublimação?
apenas se troca uma coisa por outra. Nesse caso a Sublimação, sublimar, sublime da idéia de
outra é a arte: uma forma de recuperar o prazer. elevação, de santidade até. Durante muito tempo,
Parece que a fruição artística é inerente à sublimar esteve presente no vocabulário dos
formação das sociedades. Assim também, há algum alquimistas que lhe deram esse tom de nobreza. Na
ser humano desprovido do movimento pulsional? A química, registra-se o processo em que uma
pulsão move as duas grandes realizações humanas: substância passa do sólido para o gasoso sem fase
a vida e a morte. A arte mexe com as duas, provoca líquida para intermediar. Estar gasoso é estar
sensações de vida e de morte. Mas por que falar num necessariamente despercebido. O gasoso não nos é
dos mais preciosos conceitos freudianos, a pulsão? palpável. Interessante, a arte também não tem seu
Por várias razões. Em uma das definições de pulsão valor mensurável.
disseram que ela é ficção. Ficção é arte. Isso não Qual o preço justo por um romance, uma tela?
significa que o dom artístico seja a mesma coisa que Quanto tempo se leva para escrever um conto? Qual
pulsão, obviamente, mas que esta move os desejos motivação para escrevê-lo? Como medir a
que certamente inclinam o ser a uma produção. intensidade do trabalho do escritor quando está
Em 1905, nos Três Ensaios sobre a Teoria da produzindo? Tudo é tão incerto. Mesmo porque a dor,
Sexualidade, Freud já tem a idéia de pulsão como a angústia não são elementos palpáveis na arte. A
uma energia livre que circula entre o psíquico e o pulsão é o sublime – é o imensurável. “Está entre o
somático, mas que escapa, que encontra satisfação psíquico e o somático” mas onde? Só a conhecemos
justamente quando algo desagradável emerge e, através de seus representantes. É similar, portanto,
embora não se tenha uma representação pura, ela ao processo de criação do poeta. O que o faz criar?
vem traduzida em imagens, vem representada no Não se sabe. Só o sabemos através dos representantes
psiquismo. Freud diz que as excitações hiperintensas lingüísticos. Para a psicanálise a questão não está
provenientes das diversas fontes da sexualidade na existência ou não da realidade, mas na
encontram escoamento e emprego em outros capacidade de percebê-la e de simbolizá-la. Para a
campos. Aqui já se encontra uma razão para a literatura, pouco interessa se a história está calcada
atividade artística. Este escoamento é que Freud vai na realidade experimental, o que importa é o que
chamar de Sublimação. Uma direção tomada por está na escrita, na interseção entre uma palavra e
este escoar é a arte, mas pode ser também o esporte, outra, no choque que uma nova palavra ou um novo
uma atividade profissional ou ainda um trabalho arranjo sintático provoca.
beneficente. Isso é sublimação: criar, inventar um jeito, ainda
Em Novas Conferências (1932), o que se coloca é que estranho, de expressar as novas ou velhas
“A evidência analítica mostra como fator histórias. No texto Eu e o Isso (1923), Freud esclarece
indubitável que os impulsos pulsionais provenientes a sublimação como o processo que possibilitará o desvio
de uma fonte ligam-se àqueles que provêm de outras das formas sexuais de seus fins sexuais e as orienta
fontes e compartilham de suas vicissitudes, e que, para novos fins. Assim, a sublimação tem sido
de modo geral, uma satisfação pulsional pode ser essencial ao longo dos tempos não só para satisfazer o
substituída por outra”. Por exemplo, ao pintar um artista mas para compor os traços culturais de uma
quadro ou ao escrever um drama, o artista perde a comunidade. É um conceito freudiano entendido
noção do tempo, não tem apetite, perde a hora de como princípio de elevação estética e tem contribuído
comer ou de dormir porque todo o seu ser está imerso para compreender o fenômeno da criação intelectual.
no produzir. Sua energia, sua libido está depositada Seus domínios privilegiados, especialmente, são a
na pintura ou na escrita. Nesse sentido, ainda diz criação artística e a ação moral.

138 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


A produção artística alivia a frustração do enunciado porque sou eu agora que penetro
mundo externo. Nos Três Ensaios (1905), Freud já construindo a enunciação do texto e, assim, vou
havia percebido que até os “historiadores da cultura percorrendo o mundo da linguagem para desvendar,
parecem unânimes em supor que, mediante esse encontrar o mundo – a realidade, ao menos a minha.
desvio das forças pulsionais sexuais das metas sexuais Mas por que a literatura? Por que escrever?
e por sua orientação para novas metas, num processo Clarice Lispector responde: “Escrever é procurar
que merece o nome de sublimação, adquirem-se entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é
poderosos componentes para todas as realizações sentir até o último fim o sentimento que
culturais”. Em outras palavras Mario Vargas Llosa permaneceria apenas vago e sufocador”. É como se
em A Verdade das Mentiras diz “... estou convencido a escritora tentasse buscar o objeto perdido, o
de que uma sociedade sem literatura, ou na qual a imensurável, o escorregadio, o real. É como se
literatura foi relegada, como certos vícios ocorresse um desnudamento: mergulhasse no mais
inconfessáveis, às margens da vida social e profundo do ser para revelar o escondido. Lygia
convertida pouco menos que num culto sectário, está Fagundes Teles responde: “A palavra é uma ponte
condenada a se barbarizar espiritualmente e a através da qual eu tento conseguir o amor do
comprometer sua liberdade”. próximo. Eu sempre digo que mais importante do
A produção artística alivia a frustração do que a compreensão é o amor. Eu prefiro mais ser
mundo interno. Certa vez me perguntaram “Poesia amada do que compreendida. A compreensão é
é dom?”. Eu prontamente respondi: “Não, é dor”. É muito difícil.” É como se a escritora buscasse o
aquilo que te incomoda, inquieta. Forma-se no mais vínculo, o elo perdido, a ausência de tensão.
íntimo de um ser mas pede para vir ao mundo. É Parafraseando Sartre, é como se o escritor solicitasse
um parto. Rachel de Queiroz uma vez comentou “Eu um pacto com o leitor, que ele possa quiçá
digo sempre que romance é como gravidez. Aquilo transformar o mundo. Por isso os escritores partem
entra em você e daqui a pouco começa a crescer e da sua liberdade para atingir a dos leitores.
você tem que expelir”. Não há como disfarçar. É uma Freud, em Escritores Criativos e Devaneios
força que quer escoar. Conforme Llosa “No embrião (1907) responde: a “obra literária é como um
de todo romance ferve um inconformismo, pulsa um devaneio, é uma continuação, ou um substituto, do
desejo insatisfeito.” Mas nem todos os que sentem que foi o brincar infantil”. Uma criança quando
dor tornam-se artistas. É verdade. Mas todos que se brinca investe uma grande quantidade de emoção,
tornaram sentiram-na. Adélia Prado em resposta a ela faz de sua brincadeira um momento seriíssimo.
uma entrevista à revista Cadernos de Literatura Cria uma fantasia e vivencia como se fosse
Brasileira disse “ o real inclui necessariamente absolutamente real embora saiba separar com
sofrimento, porque essa é a nossa condição. De fato nitidez a realidade dela. Assim é o escritor. No papel
estamos num vale de lágrimas, não há como fugir estão suas fantasias, se condizem com a realidade
disso.” Ela escreveu “Oh, quem me fez, socorra-me,/ quem se importa com isso? Mas elas são descritas
a carne do meu coração/ é a pele esticada de um com seriedade, com técnica, com conhecimento e
tambor/ onde ecoam sofrimentos/ que parecem domínio da língua. Escrever exige seriedade e
tentações,/ dor travestida de dor ainda maior...” comprometimento para que sua invenção alcance a
Dor ou prazer. Porque o limiar entre eles é tênue. verossimilhança.
Conforme Vargas Llosa “A literatura não diz nada Embora saibamos que suas personagens são de
aos seres humanos satisfeitos com sua sorte, que se papel, todos os dias, centenas de vezes, nos
contentam com a vida tal como a vivem (...) é um confundimos com elas. Essa confusão entre o ser de
refúgio para aquele a quem falta algo na vida, para papel – a personagem – e o ser vivo – o leitor – é
não ser infeliz, para não se sentir incompleto...” possível porque segundo Freud (1907) “O escritor
Quanto ao leitor, penso que ao ler um livro, ele nos oferece a possibilidade de deleitarmos com nossos
permeia a fantasia do autor para chegar a sua próprios devaneios, sem auto-acusação ou
própria e daí aportar na realidade. Então lendo eu vergonha”. Então, dentro da realidade sem excluí-
me perco e me acho no deslizar dos significantes do la eu, leitora, transporto-me para as fantasias

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 139


experimentando-as, sofrendo-as, lambendo-as. Freud em um adulto. Que reação teríamos ao ouvi-lo gritar
em As Reinvidicações da Psicanálise ao Interesse algo provocador, devastador, algo deveras proibido?
Científico (1913 – parte III) afirmou “no exercício Que ridículo não acharíamos um adulto querendo
de uma arte vê-se mais uma vez uma atividade mamar? Freud em O Estranho (1919) considera que
destinada a apaziguar desejos não gratificados – em “o estranho é secretamente familiar, que foi
primeiro lugar do próprio artista e dos espectadores.” submetido ao recalque e depois voltou, e que tudo
Isso faz-nos lembrar o que Harold Bloom disse a aquilo que é estranho satisfaz essa condição”.
respeito da obra de Shakespeare em A Invenção do Portanto ao adulto restam-lhe poucas saídas para
Humano “Para nós, a aplicação máxima de vivenciar seus primeiros prazeres. Uma delas é a
Shakespeare é permitir que nos ensine a pensar, que arte literária.
nos leve à verdade que formos capaz de suportar sem Primeiro porque na escrita o nu, o grotesco, o
perecermos”. Aqui estendo o dito para todos os devasso nunca vêm tão despido assim. Vem
grandes artistas: a grande literatura nos faz suportar acobertado pelas metáforas, pelas metonímias, pela
o mundo, até amá-lo, vivê-lo melhor. poética. Freud (1919) “A estética é a arte da beleza e
Então, por que escrever? Condição de altruísmo? a das qualidades do sentir.” Segundo, o poeta não
Segundo Freud em O Tema dos Três Escrínios confessa assumindo ser dele aqueles impropérios
(1913) “O homem faz uso de sua atividade escritos. Ele finge personagens, sujeitos líricos. Freud
imaginativa a fim de satisfazer os desejos que a (1919) “A ficção oferece mais oportunidades para
realidade não satisfaz”. É como se o escritor quisesse criar sensações estranhas do que aquelas que são
escapar da realidade, ou como se quisesse tomá-la e possíveis na vida real”. Terceiro, o leitor nada pode
transformá-la com sensibilidade e criatividade até fazer contra o texto tabu ou contra o escritor
mesmo para emitir uma compreensão que ele tem subversivo pois descobre que muito do que ali está
acerca do mundo. Vargas Llosa “Não se escrevem escrito é o que também queria dizer mas não ousou.
romances para contar a vida, senão para Quem ousaria dizer que quer viver o erotismo com a
transformá-la, acrescentando-lhe algo”. E ainda “Ao mamãe? Barthes “O escritor é alguém que brinca
traduzirem-se em linguagem, ao serem contados, os com o corpo da mãe: para o glorificar, para o
fatos sofrem uma profunda modificação.” A arte embelezar, ou para o despedaçar...” Transvestir tudo
produz dor ou prazer, não por ser confundida com a em poesia é a forma encontrada de ser feliz no mundo
realidade, mas por trazer a realidade à mente. Diz de infelicidades. Freud (1907) “Todo prazer estético
Llosa “ ... a ficção trai a vida, encapsulando-a numa que o escritor criativo nos proporciona é da mesma
trama de palavras, que a reduz de escala e a coloca natureza desse prazer preliminar, e a verdadeira
ao alcance do leitor.” Então, a arte ora parece estar satisfação que usufruímos de uma obra literária
tão afastada do mundo empírico ora parece que não procede de uma libertação de tensões em nossas
fala de outra coisa a não ser dele. mentes.”
Barthes em O Prazer do Texto afirma “Escrevendo Ler a poesia, gostar dela, sofrer com ela só pode
seu texto, o escrevente adota uma linguagem de ser um processo de identificação. Freud em O Moisés
criança de peito: imperativa, automática, (...) são de Michelangelo diz “... o que nos prende tão
os movimentos de uma sucção sem objeto ...” O poderosamente só pode ser a intenção do artista, até
escritor procura o prazer. Mas o prazer é negado pela onde ele conseguiu expressá-la em sua obra e fazer-
sociedade. Então o artista dribla as normas sociais a nos compreendê-la (...) o que ele visa é despertar em
fim de realizar seu intento. Nesse sentido é como nós a mesma atitude emocional, a mesma
recuperar o infantil. Uma criança ainda não foi constelação mental que nele produziu o ímpeto de
completamente tolhida pela educação. Não que o ser criar.”
humano vá tornar-se completamente submisso a Freud, em Conferências Introdutórias (1916), diz
ela, mas a criança é um ser mais livre. Por isso diz que “um artista é, certamente, em princípio um
com mais facilidade aquilo que quer, aquilo que introvertido” A adorada e enigmática escritora
pensa. Se um outro a escuta e não gosta do que a Clarice diz “eu só escrevo quando quero, eu sou uma
criança diz, ora vai ralhar ora vai rir. Agora pense amadora e faço questão de continuar a ser amadora”

140 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Freud acrescenta que o artista é uma “pessoa não Mas por que nem todos são artistas? Ou melhor,
muito distante da neurose. É uma pessoa oprimida por que nem todos são grandes artistas?
por necessidades pulsionais demasiadamente Na verdade, todos são artistas. Llosa diz “ De uma
intensas”. Lispector diz: “É preciso coragem. Uma maneira sub-reptícia, as palavras reverberam em
coragem danada. Muita coragem é o que eu preciso. todos os atos da vida, mesmo naqueles que parecem
Sinto-me tão desamparada, preciso tanto de muito distanciados da linguagem”. Todos constroem
proteção... porque parece que sou portadora de uma seus sintomas, seus sonhos, seus chistes, enfim todos
coisa muito pesada. Sei lá porque escrevo! Que escoam a libido de alguma forma. Alguns
fatalidade é esta?” Segundo Freud, o artista deseja privilegiados aprenderam a escoar através da arte.
conquistar honras, poder, riqueza, fama e o amor, Uns xingam, berram; outros aprendem a cantar.
mas faltam-lhe os meios de conquistar essas Uns processam, atacam; outros simplesmente
satisfações. Clarice diz: “Eu escrevo sem esperança escrevem. Adélia Prado em Oráculos de Maio “Ao
de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não escolher palavras com que narrar minha/
altera em nada... Porque no fundo a gente não está angústia,/ eu já respiro melhor./ A uns Deus os quer
querendo alterar as coisas. A gente está querendo doentes, a outros quer escrevendo.” Xingar, brigar
desabrochar de um modo ou de outro...” não é visto pela sociedade como elementos positivos.
O artista é um ser com intenso desejo. Falta-lhe. Sublimar é tornar agradável à sociedade as dores,
Há um grande vazio. E neste vazio se procura achar as raivas, os sintomas, os sonhos.
a vida, por que ela parece lhe escapar e revelar-se Será, então, genialidade do artista ou ele é o que
por meio da produção cultural. Fala Clarice “Eu sofre mais? “Quanto mais excitações recebe, mais o
tenho à medida que designo – e este é o esplendor de ser está, de certo modo, condenado ao sublime, para
se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à escapar ao duplo perigo da alienação mental e de
medida que não consigo designar. A realidade é a uma perversão, enfadonha por seus estereótipos e
matéria-prima, a linguagem é o modo como vou socialmente condenada” (dicionário: O legado de
buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não Freud e Lacan). Olhar para Clarice, através dos seus
achar que nasce o que eu não conhecia, e que textos, provoca em seus admiradores a sensação de
instantaneamente reconheço. A linguagem é meu que fora uma mulher que amou e sofreu bastante:
esforço humano”. Escrever é contar-se. É encontrar- “Quem me acompanha que me acompanhe – a
se e perder-se porque a satisfação não é plena. Nem caminhada é longa, é sofrida mas é vivida”.
poderia ser. Se fosse bastava-lhe que escrevesse um Freud (1910) ao estudar uma das personalidades
livro e, pronto, viria a morte. Escrever é escapar da mais marcantes de todos os tempos – Leonardo da
morte; para manter-se vivo o artista necessita Vince – disse que o sorriso de Mona Lisa que tanto
produzir. Conforme Kaufmann “A sublimação fascina todos os que têm contemplado durante os
permite enganar provisoriamente a morte e o séculos, exerceu também poderoso fascínio sobre
‘destino passa então a ter pouco poder sobre nós.” A Leonardo. Barthes diz “Se leio com prazer essa frase,
produção artística, logo, não é o fim. essa história ou essa palavra, é porque foram escritas
Freud, em O Mal Estar da Civilização (1930), no prazer”. Antes do texto penetrar-me já havia sido
arremata brilhantemente que a “A alegria do penetrado por outro ser – o do escritor. Se o texto me
artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou deixa atônita é porque já vem carregado da
a do cientista em solucionar problemas ou descobrir perplexidade de sua origem, de sua criação. Se sinto
verdades, possui uma qualidade especial”. Porém dor ou prazer (não são elementos excludentes) é
essa qualidade especial não os faz desprovidos da dor. porque foram em sua gênese expressão verdadeira
Portanto, aquilo que parece alívio, a sublimação, das sensações provocadas ou vivenciadas pelos seus
nunca proporcionará uma proteção completa contra autores. Llosa “No coração de todos os livros chameja
o sofrimento. “Nasci para escrever. Cada livro meu um protesto. Quem os fabula o fez porque não pôde
é uma estréia penosa e feliz. Essa capacidade de me vivê-los, e quem os lê – e neles acredita, durante a
renovar toda à medida que o tempo passa é o que leitura – encontra, em suas fantasias, os rostos e as
chamo de viver e escrever”, disse Lispector. aventuras que necessitava para ampliar sua vida.”

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 141


Será, então, genialidade do artista ou A sublimação torna a dor bela; o prazer, virginal.
incapacidade de fazer sintomas? Em 1907 Freud Todos os homens são iguais feitos de carne e osso
revela “Uma poderosa experiência no presente como dizem os avós, mas alguns, em sua infância,
desperta no escritor criativo uma lembrança de uma deixaram aflorar sua libido por meio de um conto
experiência anterior, da qual se origina então um ou de um poema e não pararam mais. Na infância,
desejo que encontra realização na obra criativa”. todos escrevem quaisquer coisas em seus cadernos
Depois em Novas Conferências (1932) subentende- secretos, todos pintam, todos cantam, não? Mas
se que o artista é aquele que sabe reorientar os muitos não se agarram à arte. Por quê? É preciso
objetivos pulsionais de maneira que eludam a estudar mais. Por enquanto vou agradecer a
frustração do mundo externo. Obtém-se a sublimação paciência de vocês por terem percorrido essas
quando se “consegue intensificar a produção de trilhas escritas e torcer para que a sociedade neste
prazer das fontes do trabalho psíquico e intelectual”. momento de tantas crises de ordem emocional
O que fica claro é que mesmo para os poucos que descubra a arte. Ao menos através dela poderemos
possuem dotes e disposições da sublimação, ela não exorcizar os nossos monstros, oferecer um pouco da
proporciona uma proteção contra o sofrimento. Em nossa neurose/psicose/perversão ao mundo, mas de
A Verdade das Mentiras, Llosa afirma que “os livros forma bela, poética, harmoniosa, e se escrever não
de ficção aplacam transitoriamente a insatisfação nos deixar mais felizes ao menos, quem sabe,
humana e também a atiçam, esporeando os desejos deixará a outros.
e a imaginação.”

Referências

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FREUD, Sigmund. Obras Completas. In O Tema dos Três Escrínios.
Standard Brasileira. Rio de Janeiro, 1996, v XII.

142 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Cômicos dell´arte: profissionais da cena

Frederick Magalhães Hunzicker

Professor substituo do DEMAC – Universidade Federal de Uberlândia-MG. Mestre em Artes Cênicas pela UNICAMP

Resumo Abstract
Trabalhamos neste texto a estrutura da Commedia We worked the structure of Commedia dell’arte and
dell’arte e a sua influência no teatro brasileiro e na its influence on Brazilian theater and on the
Revista Brasileira dando ênfase às primeiras Brazilian Magazine giving emphasis to the first
montagens mais significativas em nosso país de more significant presentations of a show in our
um espetáculo feito por Ruggero Jacobbi, Ariano country, by Ruggero Jacobbi and Ariano Suassuna
Suassuna e por alguns grupos como Grupo Galpão, and by some groups as Grupo Galpão, Moitará,
Moitará, Antônio Nóbrega, Parlapatões, Patifes e Antônio Nóbrega, Parlapatões, Patifes and
Paspalhões. Paspalhões.
Palavras-Chave: Commedia Dell´Arte, Teatro Keywords: Commedia Dell’Arte, Brazilian
Brasileiro, Revista Brasileira Theater, Brazilian Magazine

Até o século XVIII vimos nascer, evoluir e se instituir ao ar livre; por isso, o estilo de representação dos
esse patrimônio central do teatro que é o ator. O cômicos italianos era direto, rápido e sensível à
ápice dessa trajetória aconteceu no lado ocidental menor manifestação dos espectadores, possibilitando
da história do ator, ocorreu com os comediantes um virtuosismo construído com competência.
italianos do Renascimento, já que a Commedia As companhias de Commedia dell’arte se
dell’arte deve ser reconhecida como a primeira organizavam em torno de oito até doze atores e,
grande oficina do intérprete cênico. Foi durante seu principalmente, compunham um estatuto de
extenso período que encontramos mais objetivado fundação com direitos e deveres dos cômicos. Flaminio
o processo de formação do ator, quando até Scala era o diretor da companhia I COMICI GELOSI,
mesmo se cuidou de escrever alguns ensaios e ficou famoso como o enamorado Flávio.
(CARVALHO, 1989,p.60).
Famílias inteiras de atores profissionais se
Os atores dell´arte, atores de ofício, eram sucediam, passando de geração a geração suas
profissionais da cena, pois treinavam sua voz, seus técnicas particulares e a disciplina rigorosa para o
gestos, além do estudo diário da música, da dança, exercício cênico. Uma coleção de gestos e
do mimo, da esgrima e exercícios de circo e movimentos corporais adequados, de expressões
prestidigitação. Segundo Ênio Carvalho (1989, fisionômicas e mímicas sustentava o brilho de suas
p.41-42) os atores dell´arte não usavam um texto interpretações, que pareciam ser improvisações
literário nem dramático; não tinham casa de do momento (CARVALHO,1989,p.43).
espetáculo, mas um palco improvisado montado em
qualquer lugar: praça, palácio ou lugarejo, o que Vemos, assim, uma semelhança na tradição dos
não comprometia a qualidade da apresentação, cada cômicos dell´arte com as famílias circenses que
vez mais aprimorada. As apresentações eram feitas trazem em seus “números” vários membros da
para uma platéia desordenada e livre para se mesma família.
deslocar e se distrair com outras coisas numa praça Os atores dell´arte se especializavam em

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 143


determinados tipos-fixos para representar Entre os servos temos um dos representantes
all´improvisso, assim podiam ter mais aptidão e criar mais conhecidos da Commedia dell’arte: Arlecchino.
um repertório de gestos e textos. Esses textos podiam Como característica tipológica, um criado faminto
ser citações de obras literárias como as de Plauto, e ingênuo. Arlecchino é uma personagem-tipo
Terêncio, entre outros; como alguns pesquisadores mascarada que nasceu independentemente da
afirmam a Commedia dell’arte era um teatro de Commedia dell’arte, pois é oriundo das personagens
citações. populares do norte europeu como o Herlequim ou
Harlequin, participante das festas diabólicas de rua.
Paradoxalmente, esta arte da improvisação é, ao Normalmente, aparece nos roteiros como servo de
mesmo tempo uma arte da citação! Este é um fato Pantalone e, segundo Nicoll (1980, p.33), essas duas
que certamente facilitou a perpetuação das máscaras, Arlecchino e Pantalone, são as primeiras a
tradições e a estabilização dos personagens surgirem nas representações da Commedia dell’arte.
dell’arte (ROUBINE, 1985, p.72). Arlecchino possui o zoomorfismo de gato, do porco ou
do macaco. Ele é o segundo zanni, que designa a dupla
As personagens-tipo da Commedia dell’arte eram de criados: Briguella e Arlecchino; são
divididas em categorias: patrões, empregados, respectivamente, primeiro e segundo zanni. Este
velhos, jovens enamorados e capitães. Os velhos, nome pode ter sido originado dos Sanniones dos mimos
normalmente patrões, realizam a função de estarem romanos. O primeiro zanni, Briguella, esperto, que
contra a união do casal apaixonado. com suas intrigas mobiliza as ações do roteiro; e o
Um dos representantes é Pantalone, o Magnífico, segundo zanni, Arlecchino, rude e tolo, que com
e segundo Nicoll (1980, p.33) um dos primeiros suas confusões provocava equívocos no desenrolar
personagens-tipo criados pelos cômicos dell´arte. O das ações, acarretando vários qüiproquós a serem
Magnífico era uma forma pejorativa de denominar resolvidos no final do espetáculo. Briguella tem
Pantalone: um velho avarento e libidinoso, tradução semelhante a brigador, e sua máscara
representante da média burguesia em ascensão de possui relação com uma raposa ou cão perdigueiro.
Veneza: os mercadores. No porto daquela cidade Ele normalmente arma um plano para resolver o
desembarcavam as especiarias, produtos vindos de problema dos Enamorados em troca de dinheiro.
outros continentes e comercializados no resto da Entre as servas temos Ragonda, Arlecchina,
Europa; por isso esta máscara veneziana satiriza a Colombina, Franceschina, Esmeraldina, entre outras.
avareza do mercador e a lascívia do velho. A Todas têm a função de ajudar os enamorados na
característica zoomórfica é de uma galinha ou ave de conclusão de suas paixões: o casamento. Neste caso,
rapina, e encontra-se tanto na composição dos traços é importante lembrar que neste período da história
da máscara como nos gestos e fala da personagem. do teatro o papel feminino era feito por mulheres
Outra personagem-tipo é um velho glutão que mesmo, ou seja, não eram desempenhados por jovens
tem discursos prolixos. Suas explicações são rapazes como no teatro elisabetano, e sim por atrizes
desconexas, como se estivesse falando de um muito bem treinadas para desempenhar suas
determinado assunto, e unisse um verbete a outro personagens-tipo, de maneira que agradavam ao
de uma enciclopédia. Dottore Balazone, Dottore público pela beleza e pelo desempenho interpretativo.
Graziano são denominações da mesma personagem- Outra personagem-tipo característica desta
tipo que aparece vestido com roupas pretas, típicas linguagem é Capitano, que pode ser descendente do
dos intelectuais do Renascimento; e ainda, Dottore é Milles Gloriosus da comédia romana. Há vários
de Bolonha (Itália), fala em dialeto da cidade, já que nomes de Capitães como: Capitano Matamoros,
lá foi criada a primeira universidade da história, e, Capitano Spaventa, Capitano Spezzaferre, entre
portanto, esta personagem-tipo é uma crítica aos outros. Todos são fanfarrões, falsos corajosos,
intelectuais. Dottore aparece nos roteiros como inventam grandes façanhas militares, mas tudo
médico ou advogado e, com freqüência, amigo de sendo fruto de uma mente quixotesca. Também
Pantalone, possui relação zoomórfica com gestos e podemos encontrar esta personagem-tipo em alguns
falas semelhantes a um porco ou um boi. canovacci fazendo a parte dos Enamorados. Os

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Enamorados (Gli Innamoratti) podem ser Assim, podemos observar em sua obra tipos
denominados como a parte “séria” da Commedia brasileiros com afinidades nas personagens-tipo da
dell’arte; é comum nos canovacci, trocarem juras de Commedia dell’arte. Se verificarmos em O JUIZ DE
amor e desejarem se casar, porém são impedidos por PAZ DA ROÇA, há uma referência nominal da
seus pais ou por já estarem comprometidos com um Commedia dell’arte quando o juiz de paz cita o nome
casamento arranjado, e tudo isso motivado por do compadre Pantaleão: “Não posso deferir por estar
ciúme, por dinheiro, por briga entre famílias, etc. muito atravancado com um roçado; portanto,
Alguns exemplos de nomes de Enamorados: Flávio, requeira ao suplente, que é o meu compadre
Flamínia, Hortência, Horácio, Isabella. Esta última Pantaleão”
ficou famosa pela atriz Isabella Andreini (1562-1604), Em várias peças do mesmo autor de O NOVIÇO
que interpretava este papel e deu seu nome à percebemos uma galeria de tipos que estabelece um
personagem-tipo. Nascida Isabella Canali, segundo retrato realista do Brasil da época: funcionários
Barni (2003, p.36), ela era filha de gente pobre em públicos, meirinhos, juízes, malandros, matutos,
Veneza; casou-se, provavelmente, aos quatorze anos; estrangeiros, falsos eruditos, entre outros. A intriga
era muito culta, improvisava versos, pertenceu a social gira em torno de casos de família, casamentos,
Academia Literária de Gli Acessi onde conseguiu o heranças, dotes, dívidas, festas da roça e das cidades.
segundo lugar em um concurso de poesias, superada Também, as peças deste autor apresentam diversos
por Torquato Tasso que depois lhe dedicou um soneto. tipos inspirados no cotidiano brasileiro do período
Seu marido, Francesco Andreini, oficial da marinha histórico (séc. XIX), pertencentes ao universo cômico
veneziana, foi capturado em combate pelos turcos, teatral do autor de QUEM CASA, QUER CASA.
ficou preso oito anos, depois fugiu e se casou com Deste modo, temos em O JUDAS EM SÁBADO DE
Isabella. Entraram para a companhia Il Gelosi, não ALELUIA1 a personagem Faustino que age como um
se sabe como, e lá permaneceram reconstruindo a zanni esperto (Briguella), e coloca as roupas do Judas
regularidade de uma família com fama e filhos, pois para se dar bem. Na mesma perspectiva, encontra-
só assim ganharam prestígio da sociedade civil e da se na peça a equivalência da figura do Capitão
burguesia da época. Com Isabella, pela primeira vez fanfarrão da Commedia dell’arte, Capitano Spaventa
a figura da atriz não se confunde com a da meretriz com a personagem Ambrósio, Capitão da Guarda
(BARNI, 2003, p.36 e 37). O conflito dos Nacional. Deste modo, é patente observar que
Enamorados normalmente aparece como a linha Martins Pena imprimiu ao teatro brasileiro o cunho
central dos roteiros, e é ao redor deste que aparecem nacional com os tipos fixados na realidade brasileira
outros conflitos. Assim, é característico do enredo e semelhante a Commedia dell’arte.
da Commedia dell’arte o impedimento da realização
amorosa dos Enamorados. E, desta forma, os
qüiproquós são armados e desencadeados pelos servos A Revista Brasileira e a Commedia
para que, no fim do espetáculo, aconteça a união dos dell’arte:
Enamorados em um final feliz.
No Teatro de Revista, a influência da
Commedia dell’arte é assim descrita por Neyde
Influências da Commedia dell’arte no Veneziano (1991, p.11):
Teatro Brasileiro
Tendo como objetivo quase constante a eliminação
da quarta parede e o estabelecimento de uma
Martins Pena: interação cúmplice com o público, identificados e
incorporados à ação, numa óbvia integração em
A estrutura da Commedia dell’arte aparece no suas virtudes e defeitos, o teatro de revista
teatro brasileiro pelas mãos de Martins Pena, quando estabeleceu raízes com nobre ascendência no
este cria personagens com caracteres tipológicos e teatro de Aristófanes, vindo em linha reta, das
com um olhar mais atento à realidade brasileira. atelanas, dos mimos, das sotties e entremezes dos

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jograis e goliardos medievos, dos arremedilhos e O ator brasileiro que inicia sua formação naquele
da Commedia dell’arte, passando para nós, pelo momento tem a oportunidade de experimentar um
Circo e pelos autos vicentinos. tipo de representação, matriz e referência para todo
o teatro ocidental e também de realizar um
Em O MAMBEMBE de Arthur Azevedo verifica-se mergulho no universo da teoria do teatro até então
a influência da Commedia dell’arte, cujo homônimo desconhecido (RAULINO, 2002, p.105).
da personagem-tipo Pantaleão aparece nesta peça.
Assim, a Revista brasileira usa personagens
tipificados como o português, o malandro, o caipira, Ariano Suassuna, o Mamulengo e a
entre outros tipos inspirados em classes sociais, Commedia dell’arte:
personagens políticos, fatos históricos e alegorias de
doenças. A Revista também apresenta um fio condutor Na obra teatral de Ariano Suassuna notamos
e vários quadros, do mesmo modo que na Commedia uma similaridade do universo popular do nordeste
dell’arte, a história do amor impossível dos brasileiro com o universo da Commedia dell’arte
Enamorados segue a linha principal do enredo. italiana: o militar, o amoroso, o patrão, a moça
casadoira, os empregados espertos, entre outros. Por
exemplo, em O SANTO E A PORCA, Caroba, uma
Ruggero Jacobbi: criada esperta da casa de Seu Euricão Árabe, arma
toda uma confusão para casar sua patroa,
As primeiras montagens mais significativas em Margarida, com Dodô. Nesse enredo temos uma
nosso país de um espetáculo de Commedia dell’arte semelhança com o casal de Enamorados da
foram feitas por Ruggero Jacobbi no período em que Commedia dell’arte, os jovens são impedidos de se
permaneceu no Brasil. Segundo Berenice Raulino unirem e só conseguem com a ajuda dos servos.
(2002, p.91), Jacobbi montou vários textos Portanto, em toda a obra teatral do autor de O AUTO
inspirados na Commedia dell’arte com diferentes DA COMPADECIDA surgem esses caracteres
grupos e companhias teatrais brasileiras. De Carlo populares de personagens-tipo com uma base
Goldoni monta: ARLEQUIM, SERVIDOR DE DOIS próxima a Commedia dell’arte, e também aparece
AMOS, com o Teatro dos Doze (RJ), O MENTIROSO, na cultura popular do nordeste no Teatro de
com o TBC, e MIRANDOLINA, com o Teatro Popular Mamulengo. Este tipo de teatro de bonecos de mão
de Arte, ambos em São Paulo. possui um leque de personagens-tipo e com a mesma
estrutura da Commedia dell’arte: um roteiro, como o
A decisão de encenar Carlo Goldoni no Brasil é canovaccio, em que o mestre mamulengueiro
motivada por razões pertinentes que se articulam improvisa as falas de acordo com sua habilidade e
plenamente. A primeira delas diz respeito à sua experiência, sempre diretamente para a platéia.
própria origem. Natural de Veneza, local Apresentam-se em um Mamulengo personagens-
identificado com a tradição dos commici dell´arte tipo como: o capitão valente, os criados negros
(...) Acresce-se a isso o fato de ele ter trabalhado espertos, o coronel autoritário e temido, o
na Itália com o diretor Anton Giulio Bragaglia, estrangeiro, a mocinha, etc. No Mamulengo 2 , o
famoso estudioso da Commedia dell’arte mestre mamulengueiro pode contar com um
(RAULINO, 2002, p.89). ajudante para manipular os bonecos, e a sonoplastia
é normalmente feita por um trio instrumental:
Ruggero Jacobbi adaptou o texto O CORVO de zabumba, triângulo e sanfona. Os espetáculos de
Carlo Gozzi para uma montagem em Porto Alegre, no Mamulengo são apresentados até hoje em feiras,
Curso de Arte Dramática da Faculdade de Filosofia do nas cidades do interior de Pernambuco; e os palcos
RS, fundada por ele em 1958. Assim, podemos dos bonecos são montados próximos a platéia,
constatar o caráter pedagógico que um espetáculo de tornando convidativa a participação desta no
Commedia dell’arte pode trazer aos estudantes de enredo. Os temas giram em torno de crítica social,
Artes Cênicas como um exercício de interpretação. briga, humor, dança, religião, etc, sempre

146 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


ressaltando a comicidade das personagens e os parece estar bem alicerçada em treinamentos e
qüiproquós. técnicas, pois os espetáculos parecem ser
minuciosamente preparados até chegarem ao
público.
Os Contemporâneos e a Commedia Já em nossa dramaturgia contemporânea temos
dell’arte: uma obra recente de Luis Alberto de Abreu, com
uma série de comédias denominada Comédia
Mais recentemente, a influência, mesmo que não Popular Brasileira: O BURUNDANGA, OU A
consciente da improvisação dos cômicos dell´arte, se REVOLUÇÃO DO BAIXO VENTRE, O PARTURIÃO,
faz presente nos espetáculos de alguns grupos e atores O ANEL DE MAGALÃO E A SACRA FOLIA. Quatro
populares em nosso país. Alguns exemplos como: comédias que possuem tipos fixos: João Teité,
GRUPO GALPÃO, MOITARÁ, ANTÔNIO NÓBREGA, Mathias Cão, Marruá, Boracéia, Benedita, entre
PARLAPATÕES, PATIFES E PASPALHÕES entre outras personagens com inspiração clara nas
outros. Nesses artistas cênicos percebemos personagens-tipo da Commedia dell’arte. Por
semelhança com os cômicos dell´arte, exímios na arte exemplo, Mathias Cão apresenta o caráter de
de improvisar e na comunicação direta com a Brighella e João Teité o de Arlecchino; e estas
platéia. Quanto ao trabalho do grupo GALPÃO, personagens têm como característica cômica
revela-se a questão da cultura popular presente nas popular à fixação de tipos pelo dialeto ou sotaques.
músicas, nos figurinos, na maquilagem e na Mathias Cão fala com sotaque nordestino e João Teité
interpretação dos atores. Neste caso, a interpretação com o mineiro.

Notas
1
PENA, Martins. TEXTOS TEATRAIS. Disponível em IGLER: http:/ de 2003
/www.ig.com.br/paginas/novoigler/livros/ 2
Mamulengo: “mão-molenga”, segundo a crença popular, pois a
juiz_de_paz_roca_autor/ index.html. Acesso em 16 de outubro mão precisa ser molenga.

Referências

ABREU, Luis A. Burundanga, ou A Revolução do Baixo Ventre. São ROUBINE, J. Jacques. A linguagem da encenação Teatral.
Paulo: Siemens. 1996.25-26p. Tradução Yan Michalski. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1998. 237p.
BARNI,Roberta (Org). A Loucura de Isabella e outras comédias da Título original: Théâtre et mise en scène
Commedia dell´arte. São Paulo: Iluminuras. 2003.411p. ________________. A Arte do Ator. Tradução Yan Michalski e
CARVALHO, Enio. História e Formação do Ator. São Paulo: Ática. Rosyane Trotta. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985. Título
1989. 231p. original: L’Art du comédien.
NICOLL, Allardyce. IL Mondo di Arlecchino:Guida alla Commedia
dell’arte. Edição sob a direção de Guido Davico Bonino. Tascabilbi
Bompiani. Milão, 1980. Tíutlo original: The World of Harlequin: Referências eletrônicas
a critical study of the Commedia dell’arte.216p.
RAULINO, Berenice. Ruggero Jacobbi: A presença italiana no teatro PENA, Martins. TEXTOS TEATRAIS. Disponível em IGLER: http://
brasileiro. São Paulo: Perspectiva. 2002. 305p. www.ig.com.br/paginas/novoigler/livros/juiz de paz roca
autor/index.html. Acesso em 16 de outubro de 2003

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 147


A Guerra, o Ensino e a Pesquisa1

Thorstein Veblen

Tradução Wilton C. L. Silva


Professor Assistente Doutor, Departamento de História, UNESP, Campus de Assis. Autor de As Terras Inventadas:
Discurso e natureza em Jean De Léry, André João Antonil e Richard Francis Burton, S. Paulo: UNESP, 2003.
Contato: wilton@assis.unesp.br

Resumo Abstract
A partir da destruição causada à Europa no Sociologist and economist Thorstein Veblen (1857-
desenvolvimento da Primeira Guerra Mundial, o 1929) discusses about the destruction of Europe
sociólogo e economista Thorstein Veblen (1857- due to the First World War and questions about
1929) questiona o futuro do ambiente científico e the future of the scientific and academic
acadêmico na Alemanha derrotada, propõe a environment in defeated Germany, considering
criação de amplos mecanismos de circulação do the creation of mechanisms of scholar knowledge
saber erudito em termos internacionais e discute circulation on international terms. He also
as possibilidades de transformação no ensino discusses possibilities of transformation in the
superior dos Estados Unidos. higher level in America.
Palavras Chave: Primeira Guerra Mundial, Keywords: First World War, Higher Level,
Ensino, Pesquisa, Transformação Transformation

Nota introdutória superior, para além de seus percalços, é


compreendida pelo autor tanto como a atividade de
Thorstein Veblen (1857-1929) foi descrito por aprendizagem quanto a procura de conhecimento,
Peter Berger como um brilhante intelectual norte- referindo-se ao modo de organização do saber e aos
americano, sociólogo e economista de origem seus fins, caracterizando o chamado saber erudito.
nórdica, que se caracterizou como um migrante No contexto da Primeira Guerra Mundial,
entre universidades, sedutor de mulheres alheias, através desse pequeno artigo, diversos temas do
freqüentador de lugares mal-afamados, pensamento de Veblen são retomados a partir de sua
companheiro de homens notáveis e notórios e crítico perspectiva independente e cosmopolita, como a
lúcido e profundo da sociedade dos Estados Unidos. crítica da universidade e a forma de organização
Entre as suas obras se destacam Theory of the capitalista, além de se constituir como uma
Leisure Class (1899) na qual desenvolve uma visão chamada pública à cooperação científica para o
crítica do consumo conspícuo que caracterizaria as interesse coletivo.
elites norte-americanas, definidas como classe ociosa, O artigo, publicado na revista americana de
e Higher Learning in América (1918) desmistificando filosofia The Dial, em julho de 1918, antecipava a
de forma corrosiva as relações entre ensino, erudição, rendição alemã, ocorrida em novembro, e colocava
ética, civilidade e interesses econômicos e políticos como uma importante reflexão sobre o processo de
no interior do ensino superior de seu país, sendo que, reconstrução da Europa e as implicações para os
infelizmente, ambas as obras não possuem tradução campos do ensino e do conhecimento em tempos
brasileira. sombrios, nos quais a Guerra é um dos sintomas mais
Em Higher Learning in América a noção de ensino graves.

148 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


A guerra, o ensino e a pesquisa.2 interesse econômico obteria vantagens com medidas
desse tipo. Há ainda a dificuldade de que a difusão
O estado atual da tecnologia relaciona suas bases internacional do conhecimento se processa de forma
e seu desenvolvimento à necessidade de se sutil e por meios intangíveis, de modo que estabelecer
desconsiderar os limites nacionais estabelecidos como seu confinamento é impensável. Embora seja
fronteiras. O conjunto de conhecimentos verdade que algumas coisas podem ser feita de forma
tecnológicos, base estrutural da moderna indireta para obstruir a livre circulação de
civilização, não só possui um caráter internacional conhecimento entre fronteiras nacionais, e alguns
como produz, mantêm e reproduz as mesmas bases políticos reivindicando o nacionalismo já fizeram
em todas as nações industrializadas. Mas é necessário esforços para isso. Eles buscam, por exemplo,
não perder de vista que essa moderna tecnologia levantar tarifas restritivas sobre livros e outros
continuará inevitavelmente drenando enorme equipamentos usados para a pesquisa e o ensino, ou
quantidade de recursos mundiais, e que quando ainda, de vez em quando, a utilização de medidas
necessitar de meios de produção para manter-se, não restritivas para obstruir estrangeiros de transmitir
respeitará as fronteiras nacionais – fato que explica idéias e conhecimentos à parte da juventude do país.
porque deliberadamente os políticos não colocam Em todos os casos dessas mesquinhas obstruções é
reais obstáculos à movimentação desses recursos. possível perceber, se examinarmos detidamente, a
Nos domínios das indústrias é óbvio que as fronteiras existência de interesses econômicos que são
nacionais somente servem como maior ou menor beneficiados por tais medidas restritivas. Mas
obstáculo ao funcionamento eficiente do sistema quando tudo é revelado, estes e outros esforços de
industrial. Porém, nestes domínios, alguns homens obscurantismo são, apesar de tudo, insignificantes
argumentam – dentro dos limites nos quais em comparação com as inúmeras restrições que
limitados homens de Estado e ambiciosos homens de sofrem as relações comerciais na forma de fronteiras
negócios podem argumentar - que devem-se aos nacionais. Felizmente não há nenhuma necessidade
interesses industriais nacionais a necessidade de de debate, entre homens civilizados, sobre a
bloquear o acesso da indústria local às vantagens da aceitação de que a busca e a difusão do conhecimento
liberdade de movimentação que o sistema industrial são uma matéria do interesse comum entre todas as
moderno pressupõe como condição indispensável de nações. Esse consenso garante um território neutro,
seu bom funcionamento. Dessa forma, os homens acima das ambições e intrigas nacionais, e que
continuam enredados em antigos esquemas de nenhuma nação tem qualquer coisa à perder a esse
inveja internacional e animosidades patrióticas. Mas respeito quando garante a cooperação com seus
por outro lado, no campo adjacente do conhecimento vizinhos. À respeito deste interesse comum, todos
científico é reconhecido, sem reservas, que as são ganhadores quando qualquer um ganha.
limitações impostas pela política às trocas materiais Felizmente, outra vez, a busca e difusão do
não se justificam e nem fazem sentido em relação as conhecimento se tornam um interesse comum e o
trocas culturais. É pressuposto que a ciência, e as objetivo do esforço que todos os homens e todas as
atividades que dela decorrem, devem estar livres nações, como único objetivo do esforço humano que
de qualquer restrição dessa natureza; pois o que realmente vale a pena, justificando-se por si só. Pode
importa é “o aumento e a divulgação do parecer um estado singular das coisas, mas não será
conhecimento entre os homens”, não os restringindo questionado que este corpo de conhecimentos não é
aos cidadão ou interesses de um só país. Tanto é propriedade de ninguém, mas que é um bem comum
verdade que nenhum político defenderia um de toda a humanidade, e não somente o mais
embargo sobre o fluxo de conhecimento nas fronteiras importante recurso do mundo civilizado mas
nacionais, ou medidas protecionistas que serviriam também uma possessão indispensável que sozinha
como barreira contra idéias e conhecimentos que pode dar a toda comunidade uma reivindicação
vindos do estrangeiro buscariam se infiltrar de válida de ser avaliada enquanto parte da raça
forma insidiosa em território nacional. Os políticos humana. Toda a perda ou derrota substancial neste
não consideram tal possibilidade porque nenhum terreno, os domínios do que é chamado saber erudito,

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 149


deve ser considerada como um dos retrocessos mais somente com o encerramento formal desta grande
vergonhoso que qualquer nação pode sofrer, e uma guerra. A comunidade científica européia e seus
situação em que a perda de um seria a perda de todos. membros foram divididos em duas margens por uma
Mas ao mesmo tempo porque esta busca do fenda importante, tão profunda e implacável que
conhecimento é, sempre e necessariamente, de mesmo algum tempo após a guerra não permitirá a
interesse coletivo ou comum, resulta a sua superação através de uma ponte. Pelas
impossibilidade de se legitimar alguma classe ou consequências da guerra, os americanos pertencem
grupo de pessoas em uma posição para, no interesse à esta margem que deve funcionar como se o todo
desse saber erudito, efetivamente dirigir-se aos tivesse sido dizimado, buscando recuperar na outra
políticos como defensores desse recurso imaterial da metade os canais de comunicação que cairam em
humanidade. Os elementos de negociação política abandono, a coordenação entre as partes que falhou,
estão ausentes nesse caso; e os sentimentos e pressões as unidades locais que foram muito reduzidas, os
populares podem desviar os homens de Estado do trabalhadores que foram esgotados e os equipamento
trajeto largo e sinuoso da negociação política, que se degradaram. Em resumo, há, na melhor
subordinada à outros interesses. E apenas agora, sob hipótese, uma grande depreciação que pode ser
a tensão do trabalho urgente a ser feito e o peso das revertida, mas, ao mesmo tempo, também existe a
necessidades materiais envolvidas na condução da possibilidade de que aquilo se mantenha ou se
grande guerra e que examinam a parte sobre o todo, amplie. Concretamente, os homens de saber erudito
particularmente em relação às coisas mais alemães enfrentaram um penoso caminho e
intangíveis. Contudo, toda verdade que resta após continuarão a ser desafiados, e na falta de uma
uma discussão desapaixonada mostra que a busca expressão mais forte, se encontram em estado de
do conhecimento se relaciona diretamente com o exaustão moral que, provavelmente, os tornam
saber erudito e que esta é a mais importante incapacitados para a maior parte do trabalho
conseqüência dos desdobramentos da guerra. científico e de ensino para a próxima geração. O
Os homens que são sinceramente interessados visível julgamento de suas aspirações geraram uma
pela ciência e erudição, cujas condutas não são profunda desconfiança entre seus colegas de outras
regidas pela vontade de fazer a guerra nem a de nacionalidade sobre suas capacidades nesse
tomar parte ou efetuar intrigas políticas, devem momento – desconfiança que se justifica. Ao mesmo
apoiar uma iniciativa para determinar uma ação tempo, dado que a guerra requisita todos os recursos
concreta para conservar efetivamente os humanos disponíveis, os homens de saber e de ciência
mecanismos e meios de busca do conhecimento, de não são facilmente substituídos por uma nova
modo que sejam protegidas até que os conselhos mais geração, pois a guerra drena todos os recursos
lúcidos possam se reafirmar novamente. Para estes disponíveis e dirige todas as energias para tarefas
americanos, guardiães da chama sagrada da busca diferentes das do saber erudito. Pode-se presumir que
do conhecimento, em meio aos perigos da guerra, é porque dizimado, desviado ou tendo o espírito erudito
necessário assumirem uma posição de peculiar pervertido - bem como devido à uma desconfiança
responsabilidade. Por seus próprios méritos foram inflexível por parte de eruditos de outros países - o
escolhidos pelas circunstâncias particulares desse mundo do saber e da ciência nos países de língua
momento para dar início e dar forma aos planos que alemã está mutilado, ferido e abandonado, sem
poderão efetuar o sucesso da república mundial do esperanças de reconstrução do saber erudito. Algo
saber erudito. Seus parceiros europeus caíram em deve ser claramente admitido quando avalia-se
um estado do desorganização e esgotamento, tanto acontecimentos de tal amplitude, ou seja, está claro
em termos de recursos físicos como humanos, tão que no processo de reconstrução a ser empreendido
sério como, em perspectiva, um gigantesco será difícil contar com ajuda significativa dos
retrocesso. Talvez seja exagerado falar do mundo homens de saber ou ciência alemães e que, no futuro,
acadêmico europeu como algo arruinado, mas é seu número é incerto e impreciso. A respeito disso a
necessário ponderar que os problemas que conhece comunidade de língua alemã é claramente aquela
atualmente não terão uma conclusão imediata, mas que mais perdeu entre todos os povos que perderam

150 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


com a guerra, e a perda sofrida pela comunidade estrutura de organização e distribuição do trabalho
científica e acadêmica alemã é uma perda para toda a ser feito é necessidade imperativa também por
a república mundial do saber erudito. questões de economia, atendendo a exigência de um
Nesse nível, quanto aos outros povos europeus, ambiente de “portas abertas” como falamos acima.
embora sua situação seja menos deplorável do que a Como é bem sabido, embora engenhosamente negado
dos alemães, são também vítimas da mesma de tempos em tempos, as instituições de ensino dos
exaustão de forças, deterioração do espírito e Estados Unidos têm sido grandes concorrentes no
empobrecimento material. Os americanos, mercado da erudição. Certamente é necessário
entretanto, foram bem menos expostos à experiência admitir com franqueza que possuem interesses
destrutiva da guerra e, particularmente, controlam rivais, disputando de forma empresarial as
os meios materiais indispensáveis à organização e à matrículas de estudantes, a criação de associações
busca do conhecimento científico e acadêmico nas de ex-alunos, assim como os mais renomados
atuais circunstâncias. De modo que os americanos eruditos e as doações das fundações. Esta competição
se encontram em uma posição privilegiada para acadêmica conduziu a um crescimento significativo
desempenhar um papel decisivo para a reconstrução das instalações e dos recursos humanos, do número
e conservação de um empreendimento mundial de de cursos oferecidos pelas escolas rivais e dos recursos
ciência e saber. extra-acadêmicos utilizados para atrair uma
E tal iniciativa, de interesse internacional clientela de iletrados, estranhos às atividades de
comum, depende da conduta sábia e decidida dos aquisição de conhecimento. É preciso insistir que as
intelectuais americanos, homens de pesquisa e de disputas e o crescimento interno das instituições
ensino, que somente através de uma ação conjunta provocam desgastes estruturais, ao mesmo tempo
e desinteressada no plano internacional, poderão em que causam a substituição do ânimo acadêmico
desenvolver o trabalho que lhes é confiado. Eles têm pela voracidade comercial. Esta situação pode ser
os meios, ou podem encontrá-los, e é neste contexto considerada como de normalidade em tempos de paz
crítico para o ambiente de pesquisa e ensino que se e prosperidade, mas agora, sob a pressão das
deve fazer avolumarem-se os recursos para demandas ligadas à guerra e da inflação dos preços e
implementar sem reservas, a partir de um espírito custos, estas formas de gestão das escolas têm se
de cooperação e de solidariedade, um mostrado como realmente são, um enorme equívoco,
empreendimento dessa natureza e com tal ao mesmo tempo em que as escolas começam a se
dimensão. É razoável imaginar que um movimento afligir na busca de fundos capazes de dar
com esse objetivo deva envolver todas as instituições continuidade às suas atividades usuais. A
de ensino norte-americanas que reivindicam uma conjuntura atual oferece um momento propício para
identidade de ensino e pesquisa com “portas abertas” uma maior coordenação e ampliação do grau de
– de forma livre e imparcial, como santuários colaboração entre essas instituições, como já
privilegiados da tolerância, da generosidade e do afirmamos anteriormente, quando ocorre a
cosmopolitismo para com todos aqueles que buscam possibilidade das escolas concorrentes romperem com
uma oportunidade de trabalho como professores ou esta lógica de rivalidades e intrigas, por um esforço
estudantes e que dão evidências de aptidão no que se sincero direcionado para a construção do
refere à busca do conhecimento. Deveria ser uma conhecimento erudito, que consensualmente sempre
regra segura, particularmente sob as circunstâncias pretenderam produzir e que, sem dúvida, livres da
de polarização que prevalecem agora, garantir todas autofágica competição em que se envolveram, de
as oportunidades necessárias para a seleção dos mais forma cooperativa alcançarão seus melhores
aptos a se tornarem referências nos campos do ensino resultados. Se implementadas estas medidas de
e da pesquisa. cooperação, as escolas estarão aptas a fornecer o que
Uma segunda etapa, em um nível diferente da devem aos seus futuros visitantes, professores e
primeira, é a criação de uma coordenação estudantes, locais e estrangeiros, revalorizando
abrangente entre as diversas escolas americanas, aquelas atividades diárias de ensino e pesquisa que
capaz de desenvolver uma coalisão entre elas. Tal anteriormente pareciam uma sobrecarga. Tal

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 151


quantidade de problemas ligados ao ensino e à de saber dos diversos países, restabelecendo a
pesquisa deveriam dar lugar à criação de algo comunicação que caiu em desuso durante este
semelhante a um escritório central que seria um período de guerra, garantindo o registro, a
ponto comum de apoio e coordenação, mas também manutenção e a continuidade de numerosas
lar, local de troca e centro de divulgação para as sociedades voltadas à produção do conhecimento e
atividades de saber e de compreensão mútua, bem que foram abaladas durante este período de guerra,
como um refúgio intelectual para todos os assim como a ampliação das atividade de
convidados, os andarilhos e os viajantes da república documentação e disseminação de diversos materiais
mundial do saber erudito. Esse escritório central e de informações bibliográficas, das quais dependem
deve ter uma natureza impessoal, imparcial e os homens de ciência de todos os países. Os detalhes
comunitária para a república mundial do saber deste trabalho serão diversos e volumosos, mesmo
erudito, como uma “casa aberta” para o refúgio e a se considerado como uma medida de emergência
recuperação nesse período de apreensão e desgaste durante o período de reconstrução, e ao devido
que a comunidade de cientistas e acadêmicos está cuidado deverá ser somado necessárias porções de
enfrentando. Isto não implica um alto grau de sobriedade, discernimento e de boa vontade, além
sacrifício por parte dos americanos em colocar seus de nenhum desperdício de recursos ou esforços. Mas
significativos recursos materiais e humanos a espera-se que os homens de saber da America
serviço de interesses globais. Serviriam apenas aos estejam agora repletos desses mesmos elementos,
seus fins como parceiros de uma comunidade sobriedade, discernimento e boa vontade (pois caso
fundamentada na busca do conhecimento, porque contrário nada poderá ser feito), para com todos os
não podem aumentar as suas conquistas nos homens e países necessitados do tipo de ajuda aqui
domínios do saber e resguardar aquilo que considerada. Sabe-se também que os americanos
consideram sua parte sem conceber uma parceria controlam os meios materiais necessários a tal
com outros que conhecem agora dias sombrios. mpreendimento, e qualquer grau de reflexão
Mais especificamente, a fim de começar mostrará claramente que não há nenhum interesse
concretamente uma empresa de tal tipo, seria para empobrecer-se com a continuação da guerra,
necessário colocar esta reorganização sob o controle muito pelo contrário.
de uma ou várias centrais que reunissem homens

Notas
1
Título original “The War and Higher Learning”, publicado na instituições são denominadas “de ensino”, mas se encontram
revista The Dial, Vol. LXV, July 18, 1918, p. 45-49. bastante distantes das práticas de pesquisa. Para esse fim, em
2
N.T. Optamos por uma tradução menos literal do título, The War diversos momentos “high learning” foi traduzido como “saber
and the Higher Learning, que poderia ser “A Guerra e o Ensino erudito”, “conhecimento científico e acadêmico”, entre outras
Superior” para deixarmos clara a percepção do autor como opções.
distinta da realidade do ensino brasileiro em que diversas

152 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


D O S S I Ê

Cultura e cidade: práticas sociais e


representações
Nos Limites do Urbano:
a reelaboração do cotidiano através da festa
(em louvor a Nossa Senhora do Rosário de Catalão-GO)*

Cairo Mohamad Ibrahim Katrib

Licenciado em Geografia pela Universidade Federal de Goiás –Campus de Catalão, Mestre em História pela
Universidade Federal de Uberlândia, Doutorando em História pela Universidade de Brasília

Resumo Abstract
Este texto privilegia a análise das comemorações This work reports the analysis of the celebrations
em torno da devoção a Nossa Senhora do Rosário and devotion to Nossa Senhora do Rosário in
em Catalão-GO, cidade localizada no sudeste do Catalão-GO, a city which is located in the
estado, que apresentam toda uma dinamicidade e southeast of the state. Celebrations present an
multiplicidade de relações. Mostra uma mistura entire dynamics and multiplicity of relationships.
de celebrações, espaços e momentos que são There is a mixture of celebrations, spaces and
experienciados de diferentes maneiras pelos moments that are experienced in different ways
sujeitos dentro da vida coletiva estabelecida. Essa by the subjects in the established collective life.
festa realiza-se no espaço da cidade há 127 anos, The party has taken place in the city for 127
sendo que há 67 anos essa comemoração acontece years. For 67 years the celebration has happened
numa mesma área, o Largo do Rosário (Praça in the same area, the Largo do Rosário (Praça
Irineu Reis Nicolletti), na região central da cidade. Irineu Reis Nicolletti), in the central area of the
Palavras-Chave: Devoção a Nossa Senhora do city.
Rosário, Celebrações, Multiplicidade de Relações Keywords: Devotion, Celebration, Relationship

A festa não é apenas um e devocionais, que, aparentemente, não são


acontecimento social, ritual, perceptíveis da mesma forma por todos os sujeitos
comunitário e cíclico, com sua sociais, uma vez que teias são trançadas, relações
função inclusive organizativa estabelecidas, jogos de interesses criados. Todavia,
para as comunidades. na maioria das vezes, acabam despercebidas aos
A festa aponta para algo maior, olhares comuns, pois cada um vislumbra a festa à
está ligada a um significado superior sua maneira, o que acaba fragmentando os olhares
ao que aparece. e a forma de experimentá-la.
Ela tem sua fundamentação na própria Numa comemoração secular, que movimenta
compreensão do sagrado. toda uma cidade, aglutinando fé e festa num mesmo
acontecimento, são vários os elementos que
compõem esse jogo elaborado de táticas e
A festa do Rosário de Catalão-GO 1 dentro do seu representações contidas no seu cenário ritual
contexto dinâmico e múltiplo é marcada por (Certeau, 2001). Dessa forma, a diversidade
diferentes momentos, que unem e separam os sujeitos presente no conjunto dessas práticas e
na efetivação de práticas e representações expressas representações pode ser aqui compreendida dentro
na mesma. Tais representações perpassam por uma da dinâmica que alinhava o sagrado ao profano,
pluralidade de momentos simbólicos, rituais festivos conforme destaca Machado(2002), possibilitando-

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 155


nos conceber a festa não dentro de um padrão entendimento acerca dessa multiplicidade de
uniforme, mas com base na diversidade de ações e relações. Por esse caminho, permite-se olhá-la
situações confrontantes num espaço coletivo. É percebendo que, para alguns sujeitos sociais, ela é
justamente nesses espaços que se estabelecem as parte integrante de suas vidas, para outros, apenas
diferentes visões de mundo, de aceitação e um acontecimento festivo e religioso.
compreensão dos elementos que permeiam a festa Procuramos dialogar aqui com a festa como
em estudo: fé, religiosidade, devoção, diversão e momento de ruptura com o cotidiano,
interesses individuais. transformando-o e dando a ele um sentido especial,
Dessa forma, analisando a natureza simbólica das diferenciado daqueles dias comuns, para ao mesmo
festas, Castro(2000) acredita que elas mantêm com tempo, compreender melhor como ocorre esse
o cotidiano uma relação de licença poética: sem dele processo de (re) significação de valores culturais e
se esquecerem, até porque supõem laboriosos sociais contidos nas comemorações festivas. Tal
preparativos e meticulosa organização, dele se situação serve de suporte à imposição de regras,
afastam temporariamente, introduzindo-nos num valores e ações, cujas táticas criam condições para o
tempo especial por meio de elaborada linguagem exercício da projeção social e política. Por esse viés
artística e simbólica. Um tempo cíclico, fortemente Machado(2002) deduz que os rituais festivos
ligado à experiência vital, cheio de conteúdos religiosos alinhavam o sagrado e o profano, a fé e o
cognitivos e afetivos. Um tempo cíclico, que festar, o calor da oração coletiva e o riso, a música e o
entrecruza o calendário histórico e traz de volta, a dançar, solidariedade e (re)encontros(MACHADO,
cada ano, as diferentes festas do calendário popular. 2000:53). A isso acrescentamos que no espaço da
As festas em louvor aos santos padroeiros, festa, alinhavam-se, também, os jogos de interesses
obedecem a datas instituídas no calendário da igreja pessoais, porquanto é na dinamicidade da festa que
católica, o que pode ser notado na festa do Rosário de algumas relações ideológicas são construídas e não
Catalão-GO. Nesse contexto, verifica-se um por outros, que, por sua vez, levam adiante as táticas
rompimento com a rotina da cidade, fugindo da desse jogo de interesses elaborado, permeando os
cronologia do cotidiano, quando seus sujeitos sociais espaços sagrados e profanos presentes na festa.
presenciam e vivem os tempos da festa como um Frente a essa simbiose de inter-relações, Mircea
momento de (re) significação de tradições herdadas, Eliade(1999) aponta que o sagrado manifesta-se,
justamente da combinação étnico-cultural da quase sempre, como uma realidade inteiramente
população local, cenário múltiplo de práticas e diferente da realidade dita como “natural”, e o
representações. profano se integra a essa realidade, permitindo a
Émile Durkheim(2000) incita-nos a olhar a sua afirmação nessa junção de interesses e inter-
festa para além das divisões em dias, semanas, meses, relações. Assim, o sagrado e o profano constituem
anos, pois ela expressa um momento coletivo, cujo duas modalidades de ser no mundo, duas situações
ritmo rompe o cotidiano e, por isso, vivencia-se um existenciais assumidas pelo homem ao longo de sua
sentindo diferenciado do tempo cronológico. Dessa história. Os modos de ser sagrado e profano
forma, a produção e a organização de uma festa, dependem das diferentes posições que o homem
segundo Castro(2000), é uma tarefa complexa e conquistou no Cosmos(ELIADE, 1999:16). Por essa
difícil, pois são vários os personagens e os papéis lógica, como bem afirma Padem(2001:132), o
atribuídos a cada um dos sujeitos que, juntos, formam sagrado torna-se um instrumento para o
e dão sentido à realização dos momentos festivos, entendimento de mundos diferentes dos nossos, daí
uma vez que a sociabilidade popular produz a sua a possibilidade de entrever o mundo profanizado,
própria forma organizacional. posto que estes mantêm uma relação de
Dentro dessa linha de raciocínio, construir um reciprocidade com os sujeitos sociais.
viés de entendimento das tramas tecidas no bojo da Na visão de Mircea Eliade, necessário se faz o
realização da festa do Rosário tida como oficial, e os estabelecimento de alguns elementos distintivos que
conflitos e acertos que se efetivam nos bastidores da delimitam a efetivação de espaços sagrados e
mesma, torna-se essencial, pois redimensiona o profanos, dentro da lógica da reciprocidade. Para

156 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


ele, no espaço sagrado, é possível perceber o Nossa Senhora do Rosário se firmasse como
estabelecimento de uma homogeneização das manifestação da cultura popular local nos limites
vivências cotidianas no plano espiritual, ou seja, do urbano.
aparentemente um determinado lugar torna-se um Nestas circunstâncias, a cidade de Catalão tem
espaço de concentração de representações sagradas, hoje uma população urbana em torno de 50.000
o que é definido pelo autor como “ponto fixo”, que habitantes, distribuída por cerca de 50 bairros. Ela
permite a orientação na homogeneidade caótica, a obedece a uma lógica de ocupação espacial, sem
“fundação do mundo”, o viver real. Enquanto o planejamento algum que direcione seu crescimento.
sagrado propicia a manutenção de uma O centro de Catalão é hoje, uma área muito mais
homogeneidade caótica, a experiência profana, ao comercial do que residencial, pois, a partir da década
contrário, mantém a homogeneidade e, portanto, a de 1980, com a chegada das empresas mineradoras,
relatividade do espaço. Já não é possível nenhuma ocorreu uma reordenação espacial de toda a cidade,
verdadeira orientação, porque o “ponto fixo” já não como conseqüência do “boom” econômico gerado com
goza de um estatuto ontológico único; aparece e a exploração das jazidas de Nióbio e Fosfato no
desaparece segundo as necessidades município. As modificações no espaço urbano são
diárias.(ELIADE, 1999:27-28). mais presenciáveis no centro da cidade, que continua
Para Durkheim(2001:204), as práticas rituais exercendo a função de bairro residencial e comercial,
que envolvem sagrado e profano não são mesmo ocorrendo o aparecimento de bairros
movimentos inúteis e gestos sem eficácia. Essas estritamente residenciais. O comércio tem levado
práticas, evidentemente, estreitam laços que unem muitos moradores dessa região a se mudar dali para
o indivíduo à sociedade, reforçando a pujança de suas bairros mais distantes, longe das tribulações comuns
manobras materiais ou operações. Nesse sentido, a a essas áreas urbanas.
religião acaba administrando, de certa forma, os Vale destacar ainda, que, concomitantemente a
rituais, dando a eles um sentido e uma razão que essa área central, aos poucos, bairros adjacentes,
permitem aos indivíduos construir uma visão da como o São João, Nossa Senhora de Fátima, bairro
sociedade da qual são membros e das relações do Rosário, assumiram um caráter comercial
obscuras, mais íntimas, que mantêm com ela. Sendo marcante, não deixando, entretanto, de abrigar
assim, os homens acabam definindo religião não pelo residências. No final dos anos 1980 a cidade passou
seu ponto de vista meramente mítico e, sim, pela a ser considerada a mais importante da região
forma como se movimentam, criando formas e sudeste do estado, exercendo uma influência
sentidos para a sacralidade das coisas e, porque não, econômica sobre as demais cidades da região como
um norte para as relações sociais estabelecidas. Goiandira, Anhanguera, Cumari, Nova Aurora,
Dessa maneira, podemos afirmar que sagrado e Três Ranchos, Ouvidor, Davinópolis, Campo Alegre,
profano estabelecem, desde a antigüidade, uma entre tantas. É em Catalão que se encontra um
simbiose de relações que marcaram, ao longo dos número expressivo de repartições públicas e casas
tempos, o processo histórico das sociedades e a bancárias, hospitais, escolas, faculdades, que
perpetuação de práticas e celebrações que funcionam como chamariz para a população dessas
aproximam o homem comum do universo localidades, ajudando a movimentar a economia
sobrenatural, expresso em diferentes tipos de objetos local. Levando em consideração que a maioria das
fazendo com que ele se projete ao plano espiritual no atividades comerciais se concentram na região
momento da sua criação (re) significando as suas central da cidade, podemos dizer que este local é
funções. bastante movimentado no que se refere ao fluxo/
Entretanto, o próprio Mircea Eliade adverte que refluxo de pessoas durante os dias de semana.
a concepção ou a conotação religiosa atribuída aos A sua infra-estrutura básica apresenta, além de
objetos materiais só terá um caráter sagrado se os outros problemas, ruas estreitas, fruto de seu
homens os fizerem sagrados e estabelecerem com eles processo de desenvolvimento aleatório, dificultando
uma relação de sacralidade. Isso nos leva a perceber o trânsito, tanto de veículos quanto de transeuntes,
os motivos que fizeram com que a festa em louvor a justificando uma atenção maior do poder público

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 157


para essa área. Mesmo assim, qualquer reforma No decorrer do dia, nota-se a presença das
funciona apenas como paliativo, pois a maioria das senhoras sentadas no alpendre fazendo seus bordados
ruas, inclusive o acesso às rodovias interestaduais e ao mesmo tempo em que observam a movimentação,
federais que se dá, obrigatoriamente, via - área o ir e vir das pessoas, dos carros; as novidades do
central, torna o tráfego de veículos muito intenso comércio anunciadas pelos carros de propagandas
durante todo o dia, aumentando também as ou, então, assistindo aos programas da televisão ou
dificuldades de coleta de lixo, o número de acidentes, ouvindo os noticiários das rádios locais, preparando
o barulho, entre outros problemas urbanos. biscoitos para o lanche da tarde, esperando o dia
É justamente nessa área central que ocorre a findar para cuidar do jantar da família.
Festa do Rosário. Esse bairro recebe o nome de bairro Essa rotina é visível na vida dos moradores da
Nossa Senhora do Rosário e está situado entre os região, geralmente, composta por pessoas mais
bairros São Francisco, Nossa Senhora de Fátima e experientes com a vida, cujo orgulho é ver que,
inserido no centro da cidade como parte enquanto alguns de seus vizinhos procuram
complementar, cujo ponto demarcatório inicial são modificar os hábitos provincianos mediante a forma
justamente as ruas que circundam a Igreja do arquitetônica de suas casas, dando a elas um ar de
Rosário. “modernidade”, elas preferem manter a rotina diária
Como o “ponto fixo” – representação do espaço dentro de um padrão tradicional. Inclusive,
sagrado durante as festividades -, é na igreja do conservando a fachada original de suas residências,
Rosário que se realiza grande parte dos conforme construídas há mais de quarenta,
acontecimentos religiosos. Em épocas de festa, em seu cinqüenta ou sessenta anos. O valor arquitetônico
entorno, agrega-se o espaço profano, área de lazer e não se vê abalado nem mesmo pela abertura de
comércio, que, forma um conjunto que dá sentido à cômodos comerciais na frente das casas, pois a
dinâmica do festar e do rezar. Para os moradores do importância comercial acaba inserida no valor
bairro ou áreas adjacentes, o cotidiano do bairro é sentimental, expresso na preservação da estrutura
quebrado sempre às vésperas dos festejos em louvor a física das residências de alguns moradores daquele
Nossa Senhora do Rosário, o que é extensivo a outras espaço.
áreas urbanas, porém de forma mais moderada. Nos finais de semana, notamos que as ruas desse
Em dias comuns, circulando pelas ruas desse bairro parecem desertas como em todos os outros da
bairro, notamos uma movimentação normal de cidade. É possível ouvir o canto dos pássaros nas
pessoas e veículos, rompida pelos sons das buzinas do mangueiras dos quintais; o vento passar pela praça
trem – que passa todos os dias pontualmente no vazia; a circulação discreta dos carros e dos fiéis se
mesmo horário - e dos carros e veículos de carga, dirigindo à pequena igreja do Rosário para fazer suas
que utilizam algumas avenidas do bairro como meio orações. E nem mesmo o repicar do sino da igreja é
de locomoção para as rodovias. É possível presenciar ouvido, pois ele já foi absorvido pelos fiéis, que,
pessoas realizando suas compras nas lojas da região, pontualmente, se dirigem àquele espaço para fazer
enquanto outros se acomodam nos bares e suas orações.
lanchonetes, para observar o ir e vir de pessoas e ver Muitas vezes, a rotina da Igreja e das celebrações
o tempo passar. semanais só é rompida mediante os casamentos
Estas situações mesclam-se à rotina da dona de celebrados naquele templo. Contudo estes não são
casa que, todos os dias pela manhã, acordada pelo muitos devido à falta de espaço para abrigar um
som estridente da buzina do trem, vai à padaria, contingente maior de pessoas no seu interior. Mesmo
prepara o café, despacha os familiares para a escola assim, os devotos de Nossa Senhora do Rosário
e/ou trabalho e, em seguida, se dirige à porta de sua preferem usufruir daquele espaço tanto nos
casa, varrendo e cuidando de sua limpeza, para momentos de alegrias, celebrado pelos batizados e
depois ir à feira livre realizar as compras da semana. casamentos, como nos momentos de tristeza, pelos
Ali reencontra os conhecidos, coloca a conversa em velórios. Mas o interessante é que nem mesmo a
dia, voltando das compras com novidades para pequena praça exerce o fascínio das crianças nos dias
preparar o almoço e esperar a família. comuns, pois são poucos o que ali vão ao final da

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tarde pedalar a sua bicicleta, soltar pipa, brincar plástico e papéis coloridos, aprendeu com a mãe e
com os amigos de pega-esconde. hoje passa as amigas, mulheres dos dançadores que,
Essa rotina de cidade pacata e interiorana é juntas, na maioria das vezes, cuidam da
rompida quando o mês de agosto se inicia e, nas ornamentação do terno.
tardes de sábado ou domingo, o canto dos pássaros é Esse ritual se repete por toda a cidade,
abafado pelo batuque das caixas dos ternos de congo , 2
principalmente na primeira tarde de domingo do
cujos dançadores se reúnem no quintal ou à porta mês de Agosto, data em que a maioria dos ternos
da casa do capitão para os tradicionais ensaios. Por
3
inicia os preparativos para a festa a ser realizada no
toda a cidade, ouvem-se esses sons, que acabam sendo mês de outubro. Reunidos em torno da Virgem do
absorvidos pelos moradores da cidade como marco Rosário, oram em prol de uma boa apresentação
do início das festividades em louvor a Nossa Senhora durante os dias da festa oficial e para que consigam
do Rosário. equipar o terno com os instrumentos e vestimentas
Dona Maria do Rosário Silva Severino é filha do necessárias. Esse momento de súplica e fé é conduzido
mineiro Joaquim Coelho, um dos dançadores de depois dos momentos de festa que cada terno realiza
congos mais antigos da cidade, fundador do terno com almoços e churrascos coletivos nas cozinhas e
Vilão Santa Efigênia, cuja dança trouxe com Antônio nos quintais das residências humildes dos capitães.
Severino da Silva, da cidade de Campos Belos – Minas Ali, a fartura e a descontração marcam a quebra da
Gerais. Ela, desde criança, participa da festa. rotina da semana, que foi de muito trabalho e
Cresceu acompanhando o terno comandado pelo pai obrigações. Todos se divertem e compartilham desse
e foi justamente com o filho do companheiro de momento mais particular de cada terno.
jornada de seu pai que se casou e constituiu família. Foi nesse ambiente que dona Maria do Rosário da
Dona Maria do Rosário, cujo nome revela a fé de seus Silva Severino nos deixou escapar o significado da
pais à Virgem, demonstra ser, além de devota de festa na sua vida e a forma como essa manifestação
Nossa Senhora do Rosário, uma das grandes acaba sendo absorvida pelos sujeitos que vivenciam
incentivadoras da festa, pois, atualmente, com a mais de perto sua realização. Para ela,
morte de seu pai aos 94 anos de idade, resolveu junto,
com seu marido - Eurípedes Luís da Silva Severino e a minha fé em Nossa Sinhora é muito grande. Ela
filhos, criar um novo terno de Vilão na cidade, no tem me dado muita demonstração de seu poder(...)
início do mês de agosto de 2002, período em que Sabe, ela nos protege mesmu. Meu pai era devoto
Catalão começa a vivenciar os preparativos para a fervoroso dela e tudo que ele pidia era atendido.
festa. Pro cê vê, ele mesmo duenti, decadenti, coitadinhu,
Entre o corre-corre de organizar a casa para conseguiu chegá aos 94 anos(...) Ele tinha o pé
acolher os dançadores do novo terno, preocupa-se cheinhu de cravu, custava anda mais era só chegá
em receber bem e em acomodar a todos diante das a festa, os ensaio, que ele dançava e pulava que
imagens de Nossa Senhora Aparecida e do Rosário nem paricia que ele custava dá conta de mudá o
estampadas na parede da sala de sua casa. Estas passu. É a fé! Num é só meu pai não, nóis também
imagens estão expostas em sua estante, ao redor da tem muita fé nela. Por isso que a gente percebe que
qual os mais fervorosos, reunidos, fazem seus pedidos é só chegá as véspera da festa(...) vai cheganu o
para que o terno comece seu primeiro ensaio com a mês de agosto a cidade muda; os ares muda e o
proteção das duas santas e, para tanto, rezam o terço povo começa a vivê aquele alvoroço da festa. Basta
pedindo a proteção necessária. a gente sai lá fora, presta atenção que iscuta os
Nessa residência, presenciamos uma modificação som das caxas. É os terno insaiandu pra festa
na rotina, pois, nos cômodos da casa, vemos
espalhados os instrumentos utilizados pelo terno, a Severino, Maria do Rosário da Silva. Depoimento.
confecção dos adereços artesanalmente executados Catalão. Agosto/2002. 52 anos, funcionária pública
pelas mãos das esposas dos capitães e dançadores, estadual, moradora do bairro Santa Terezinha.
como acontece com dona Maria do Rosário, cuja arte A partir do mês de agosto, a cidade de Catalão
de confeccionar os adereços do terno, todos feitos de transforma-se, sendo possível ouvir o som das caixas

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dos ternos tocadas pelos diferentes bairros da cidade, afinar seus instrumentos, iniciando o ensaio do
marcando o início dos preparativos para a realização domingo.
da grandiosa festa em louvor a Nossa Senhora do A fé dessas famílias materializa-se em objetos não
Rosário, estampada nos cartazes afixados pelas ruas tão visíveis à população em geral. Estão nos abrigos
da cidade, o que marca a quebra momentânea do de seus lares e se travestem em imagens, terços,
sossego da cidade. A empolgação encontrada na velas, fitas, bastões e bandeiras, venerados em
residência de dona Maria do Rosário e de seu esposo altares construídos artesanalmente por ocasião dos
Eurípedes Severino foi à mesma que marcou o nosso ensaios dos ternos. Em muitos casos, eles são
encontro com a família Arruda, cujos membros dessa presença constante durante todo o ano, apenas
família se reúnem para a reza do terço no primeiro rearranjados na época dos ensaios.
domingo de agosto para, em seguida, iniciarem os Assim, entre os meses de agosto a setembro, os
ensaios do terno Nossa Senhora Mãe de Deus (terno ternos ensaiam nos finais de semana pelos diferentes
do Prego). Entretanto, enquanto alguns comemoram bairros, enquanto a região ao redor da igreja do
o encontro com festa e fé, outros preferem marcar Rosário, na qual a festa oficial acontece, começa a
aquele reencontro para os ensaios e para a realização ser preparada para receber uma população
de orações e ritos simbólicos. temporária, que contribuirá para o aumento do fluxo
No quintal que envolve as residências de muitos de pessoas, fazendo com que a população urbana
membros da família Arruda, encontramos um altar chegue próximo aos 70.000 habitantes. Além disso,
improvisado com a imagem de Nossa Senhora do notamos que as ruas demarcadas pela prefeitura
Rosário e, junto desta, o bastão do capitão, com fitas municipal, destinadas ao comércio da festa,
coloridas numa de suas extremidades, para ser começam a serem alugadas para que, nos dez dias
abençoado. O bastão tem um significado sincrético de festa do mês de outubro, ali se instale um grande
importante, pois é um elemento que simboliza o poder centro comercial a céu aberto, fazendo daquele local
do capitão em guiar o seu batalhão durante os ensaios um dos principais atrativos para grande parte da
e a festa. É com esse bastão que ele conduz o terno população da cidade.
durante os dias da festa oficial. É com os gestos feitos Procurando amenizar o problema do comércio
com o bastão que o capitão entoa as músicas, local, a prefeitura tem facilitado a aquisição de
estabelece o ritmo da batida das caixas – principal terrenos na área da festa, sem nenhum ônus, a todos
instrumento de percussão dos ternos, fala com os os comerciantes regularizados da cidade, que podem
dançadores e venera Nossa Senhora, abrindo escolher a localização dos terrenos, de acordo com o
caminhos e pedindo a sua proteção contra os males sistema de normatização criado pelo poder público
que porventura vierem a afligir o terno por ele local para administrar e ordenar aquele espaço.
comandado. Essa rotina de mudança no bairro ocorre há mais
Todas as orações são feitas dentro dos moldes de 60 anos, ganhando uma evidência marcante a
católicos, e inclusive as músicas cantadas naquele partir de 1980, quando a parte comercial da festa
ritual são as desta liturgia. Num determinado começou a ter expressividade e se tornar uma das
momento da reza do terço, símbolo que representa a principais atrações dessa manifestação cultural. É
fé dos devotos, que, nos dias de festa, se encontra no mês de outubro que presenciamos uma quebra
afixado nas fardas de grande parte dos dançadores mais evidente na rotina do bairro, pois as ruas são
como proteção pessoal, todas as mãos são tomadas pelo comércio ambulante, pelo vai-e-vem
direcionadas para o altar onde se encontra o bastão de pessoas, por procissões e missas campais, leilões e
do capitão. Só depois desse ritual se inicia o ensaio ceias que completam o mosaico da festa em louvor a
propriamente dito. Após o término da reza, o capitão Nossa Senhora do Rosário.
dirige-se ao altar, juntamente com seus familiares, Chegada a segunda metade do mês de setembro,
se ajoelha, faz suas orações pessoais para, a movimentação aumenta nas ruas do bairro. Meios-
posteriormente, lançar mão do bastão abençoado, fios recebem uma nova pintura, placas de “aluga-
dando o sinal esperado pelos dançadores, que, ao som se” espalham-se pelas casas do bairro, oferecendo o
do apito e do movimento com o bastão, começam a aluguel de garagens, quintais e outros espaços; um

160 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


grande rancho rústico – feito de estrutura de ouvido pelos moradores, cede lugar ao barulho de
madeira e coberto com folhas de babaçu ou lona - é serrotes e martelos, que ajudam na montagem das
erguido em frente à igreja do Rosário –, marco da barracas que irão oferecer a população da cidade e
parte profana da festa. O ranchão recupera o caráter região uma gama variada de produtos e diversão.
de festividade rural assumido em virtude do processo A Festa de Nossa Senhora do Rosário abrange uma
de transferência da festa do espaço rural para o área aproximadamente de 100.000 m 2 , cujas
urbano. festividades giram ao redor da área da igreja e
Os reflexos da festa começam a ganhar forma adjacências. A área é habitada por uma população
não apenas pelos sons emanados das caixas e das de poder aquisitivo diversificado. Muitos apóiam a
músicas entoadas pelos dançadores nos finais de sua realização no local outros criticam, dado que,
semana. As pessoas começam a fazer suas economias durante os dias de festa, os moradores ficam
para gastar no grande comércio da festa, uma vez impossibilitados de terem uma rotina normal em
que podemos observar uma queda expressiva nas relação ao restante da população da cidade, que não
vendas do comércio local evidenciadas pelo grande presencia os festejos tão de perto como eles, mas não
número de promoções para atrair os clientes. Mesmo têm as ruas ocupadas por barracas de comércio,
assim muitas liquidações e promoções não surtem trânsito impedido, acúmulo de lixo em suas portas e
os efeitos aguardados, porque a população espera é a uma população transitória, como pedintes,
chegada dos tradicionais barraqueiros – compradores, prostitutas, entre tantas outras, que
comerciantes ambulantes, que saem de festa em fazem daquele espaço local de comércio, prazer,
festa vendendo seus produtos o que, para muitos divertimento e lucro, não se preocupando com
moradores da cidade reflete a chegada das barulho, sujeira e demais transtornos que
“novidades” dos grandes centros urbanos, incomodam os moradores do local.
disponibilizados a todos a preços acessíveis. É bem verdade que os moradores enfrentam
O gosto pelo festar é também o de comprar, que muitos problemas com a festa, porém muitos
acaba se transformando em um dos componentes do acabam se divertindo com a situação e sentam-se
entretenimento oferecido à população nos dias de todas as tardes no alpendre de suas residências para
festa, pois participar da festa é poder realizar suas ver a movimentação das pessoas pelos labirintos
compras naquele local. formados nas ruas pelas barracas instaladas. Muitos
Se grande parte dos moradores da cidade não assumem publicamente que são a favor ou
incorpora o festejar ao comprar, muitos contra a realização da festa naquele local, pois
comerciantes assumem também uma postura alugam espaços para a instalação de barracas e até
diferenciada frente à permanência da parte mesmo estabelecem seus comércios, dificultando a
comercial da festa. Alguns são contra e outros entrada e saída de veículos das garagens e o trânsito
incentivam o comércio no bairro onde a festa pelas ruas, a coleta de lixo e outros serviços no bairro.
acontece, dado que lucram com a sua realização. O barulho é também bastante intenso,
Dentro dessa perspectiva, é possível verificar evidenciando uma mistura de sons emanados do alto-
também que muitos que se dizem prejudicados com falante da igreja, dos sons ritmados pelas mais
a realização dos festejos também lucram, de uma diferentes variações musicais, vindas dos bares e
forma ou outra, com a ruptura cotidiana e, com isso, lanchonetes, que se juntam ao som dos alto-falantes
vemos que, a cada agosto, o bairro do Rosário começa dos barraqueiros anunciando as promoções. Tudo
a ser preparado para a festa. Nas semanas que isso é absorvido durante dia e noite pelos moradores
antecedem a festa, banheiros públicos improvisados da região por mais de 15 dias, o que leva alguns a
são construídos; as ruas têm seu trânsito impedido pedirem a retirada da festa daquele local. Mas isto
para montagem das barracas que aos poucos vão até hoje foi em vão.
surgindo, tirando a monotonia do lugar. A difusão do sagrado no espaço limitado da festa
Diante disso, o cotidiano dos moradores do local é atribuída à parte religiosa-devocional presente nas
começa a ser modificado à medida que as novidades procissões, missas, reza do terço, enquanto a parte
vão surgindo e o som dos cantos dos pássaros, antes profana é mediada pelas relações comerciais, de

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 161


lazer, entretenimento, marcadas pela presença de notamos que todas aquelas atitudes expressam a fé
barracas de comércio, danças, leilões e outras particular de cada um; o acreditar que por meio
atividades desenvolvidas no Ranchão da festa, como desses atos, possam agradecer as bênçãos recebidas
também nas ceias realizadas no Centro do Folclore e ou buscar a concretização de outras. O fato é que há
do Trabalhador. A elas se agregam outras formas de diversas maneiras de estar em contato com a fé que
lazer e entretenimento, como o parque de diversão, não esbarra apenas nos lugares ditos oficialmente
as boates improvisadas e os prostíbulos existentes no sagrados uma vez que, nesse compartilhar de
espaço da festa, que, muitas vezes, utilizam como devoções, qualquer lugar torna-se local de expressão
fachada o rótulo de bares, boates, pensões. Até da religiosidade dos sujeitos sociais.
mesmo residências se transformam em espaço de Assim, a existência desses múltiplos espaços
prazer, sem contar que, em muitas ocasiões, esses congrega, como aponta Borges(1999), duas
serviços são oferecidos por homens e mulheres, a seus dimensões: a do sagrado e a do profano, numa
clientes, nas próprias ruas onde se realiza a festa, totalidade em que se torna impossível dissociá-los,
tendo como clientes, na grande maioria das vezes, mas, sim, diferenciar as suas funções, que são
os próprios barraqueiros. complementares e não excludentes, pois esses espaços
Não podemos deixar de considerar que os espaços fundem-se durante a festa a um conjunto complexo
sagrados e profanos que se efetivam em função da de barracas espalhadas pelas ruas do bairro,
festa não existem apenas na área onde os festejos se formando verdadeiras fendas, que levam ao lazer,
realizam oficialmente, e nem são marcadas ao divertimento, à prostituição, ao comércio, as
unicamente pelo espaço da igreja. Para o devoto comilanças, à fé e a toda festa.
evocar Nossa Senhora do Rosário nos dias de festa ou Por isso, concordamos com Borges(1999), quando
fora deles, não existe local específico. Esse encontro afirma que, na desordem da festa, existe uma ordem
entre fiel e Santa pode se dar no ensaio dos ternos de subliminar, que ocorre nos seus interstícios. Essa
congos, quando, juntos, rezam o terço na rua, no normatização do espaço é delegada à Prefeitura local,
quintal ou no interior da casa do capitão, ou quando que aluga a maioria dos terrenos e cuida em fornecer
os devotos fazem suas promessas a serem pagas o suporte infra-estrutural aos comerciantes durante
acompanhando um terno de congo, dançando ou os dias oficiais dos festejos. Muitas vezes, tais normas
oferecendo um almoço ou lanche aos vão contra o Código de Posturas do Município, que
dançadores.Muitas vezes, durante a passagem de um regulamenta o comércio ambulante como também
terno pela porta de sua casa, pede-se permissão ao a ocupação do espaço público e residencial para fins
capitão para que a bandeira do terno com a imagem de comércio, lazer e entretenimento provisórios.
da Santa seja levada a todos os cômodos para serem Durante a festa, esse Código é deixado de lado, uma
abençoados. vez que uma normatização temporária passa a ser
Esses instantes tornam-se também momentos de aplicada na região na qual a festa se desenvolve.
encontros, de celebrações festivas, marcados pela Frente a essa visão dialógica, procuramos neste
comilança, pela bebida e pela alegria estampada no artigo, compreender a festa como momento de
rosto de quem cumpre sua promessa ou por aqueles ruptura com o cotidiano, transformando-o e dando-
que o vivem como expressão da diversão e do lhe um sentido especial, diferenciado daqueles dias
congraçamento coletivo, escapando dos espaços comuns, para ao mesmo tempo, compreender
delimitados pela festa oficial, que tem a coordenação melhor como ocorre esse processo de re-significação
da paróquia e da autoridade religiosa. de valores culturais e sociais contidos nas
Quando vemos um batalhão de dançadores comemorações festivas sejam eles embebidos de
andando pelas ruas da cidade debaixo de sol ou sentimentos, devoção, divertimento, prazer ou
chuva, com as mãos calejadas ou sangrando em interesses pessoais.
virtude da força com que tocam seus instrumentos, Sendo assim, compreender a festa nesse contexto
ou crianças pequenas carregadas nos braços pelas múltiplo é inseri-la para além de sua ritualização e
mães, vestidas a caráter, percorrendo quilômetros comemoração. É pensá-la como parte da cultura
e quilômetros em cortejo pelas ruas da cidade, popular, colada ao social. Por isso, mais que tradição,

162 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


passado e lembrança ela alinhava o sagrado ao recriando-se para manter-se viva enquanto prática
profano a fé e o festar, o calor da oração coletiva e o presenciável no universo dinâmico da Cultura
riso, a música e o dançar, solidariedade e Popular. A isso acrescentamos que a festa também
(re)encontros (MACHADO, 2000:53). A festa redimensiona vidas, recria e reelabora o cotidiano,
reinaugura, todos os anos, vidas e histórias, reorganizando a cidade e seus diferentes espaços para
acompanhando o tempo, transformando-se e além do cotidiano.

Notas

*
Essa discussão faz parte das análises realizadas na Dissertação 3
Terno de congo diz respeito aos grupos de dançadores que durante
de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em os dias de festa saem as ruas devidamente caracterizados e
História da Universidade Federal de Uberlândia, intitulada: Nos equipados com instrumentos de percussão em grande maioria
Mistérios do Rosário: as múltiplas vivências da festa em louvor artesanais para cultuar a Virgem do Rosário. Catalão, conta
a Nossa Senhora do Rosário – Catalão(GO) – 1936-2003, orientada atualmente com 20 ternos distribuídos entre Congos,
pela Profª. Drª Maria Clara Tomaz Machado. Moçambiques, Catupés, Marinheiros, Marujeiros, Vilões e
1
BERKENBROCK, Volney J. a festa nas religiões Afro-brasileiras- Penacho.
a verdade torna-se realidade. In: PASSOS, M. (org) A Festa na Vida 4
Pessoa responsável pelo terno, que ensaia seu grupo e o conduz
–Imagens e Significados. Petróplis:Vozes, 2002. p.193. pelas ruas da cidade durante a festa oficial.
2
Sobre o assunto ver: KATRIB, Cairo Mohamad Ibrahim. Nos 5
O aluguel dos terrenos destinados à instalação de barracas é feito
Mistérios do Rosário: as múltiplas vivências da Festa em louvor a partir do mês de agosto pela prefeitura, que demarca as áreas
a Nossa Senhora do Rosário – Catalão-Go(136-2003). Uberlândia: para serem locadas pelos comerciantes. Entretanto tal ocupação
UFU, 2004. (Dissertação de Mestrado). somente ocorre nos 10 dias de festa no mês de outubro.

Referências

BERKENBROCK, Volney J. a festa nas religiões Afro-brasileiras- a DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa – O
verdade torna-se realidade. In: PASSOS, M. (org) A Festa na Vida sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
–Imagens e Significados. Petróplis:Vozes, 2002. ELIADE. Mircea. O Sagrado e o Profano. A essência das religiões.
BORGES, Néris Maria Félix de Jesus. “Aluga-se Este”: A percepção São Paulo: Martins Fontes, 1999.
do Espaço na Festa de Nossa Senhora do Rosário entre os MACHADO, Maria Clara Tomaz. Pela fé: a representação de tantas
moradores de Catalão. UFG/CAC-Departamento de História, Histórias. In: Revista Estudos de História, Franca, v. 7 nº 1, 2000.
1999 (Momografia de conclusão de curso). _______________________________. Cultura popular: um contínuo
CASTRO, Maria Laura Viveiros de. Cultura popular: um olhar sobre refazer de práticas e representações. In: PATRIOTA, Rosangela
a cultura brasileira. Brasília: MEC, 2000. e RAMOS, Alcides Freire (orgs). História e Cultura: Espaços
CERTEAU, M. A Invenção do Cotidiano – Artes de fazer. 6ª ed. Plurais. Uberlândia: Aspectus, 2002.
Petrópolis:Vozes, 2001. PADEM, W. E. Interpretando o sagrado: modos de conceber a
religião. São Paulo: Paulinas, 2001.

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Representações de Campo e Cidade
no Brasil do século XIX.*

Ricardo Vidal Golovaty

Mestrando do Programa de Mestrado em História da UFU. Pesquisador POPULIS

Resumo Abstract
O artigo trabalha as representações da cultura This article is about the representations of
nacional, do campo e da cidade, no Brasil do século Brazilian culture both country side and city in the
XIX. Apoiando a análise em duas obras, Sobre 19 th century. The analysis is based on two
Campo e Cidade, de Márcia Naxara, e O different studies, Sobre Campo e Cidade by Márcia
Romantismo no Brasil, de Antonio Candido, Naxara, and O Romantismo no Brasil by Antonio
conclui-se sobre a permanência contemporânea de Candido. After working on them, we concluded
tais representações a partir de canção do that there is a contemporaneous permanence of
pernambucano Chico Science. these representations in the song A cidade by Chico
Palavras Chave: Brasil, Representações, Campo, Science.
Cidade. Keywords: Brazil, Representations, Country
side, City.

Se você pretende compreender a sua própria época, trabalhamos com o imaginário científico e literário
leia as obras de ficção produzidas nela. As pessoas do século XIX, e os diferentes sentidos em que ele faz-
quando estão vestidas em fantasias falam sem se presente em documentos históricos 1 . Sem
travas na língua. pretender a possibilidade de trabalhá-lo como uma
Arthur Helps **
totalidade, buscamos em dois textos nossos recortes
necessários, sendo estes: a introdução e o primeiro
Para a análise das representações da cultura capítulo de Márcia Naxara na obra Sobre Campo e
nacional no Brasil do século XIX, tomamos como Cidade, e O Romantismo na Brasil, de Antonio
objetivo esboçar um viés compreensivo dos Cândido.
movimentos que engendraram tais representações, Com Naxara podemos descortinar como o
no sentido de forjarem identidade(s). Entendendo imaginário científico do século XIX inseriu-se no
identidade(s) como sentidos explicativos, Brasil a partir de dois elementos essenciais para a
caracterizações, que objetivaram compreender representação do país: os conceitos de civilização e
elementos chave para as representações do Brasil do barbárie e de campo e cidade. Em Antonio Cândido
século XIX, tanto na amplitude de sua natureza observamos algumas dinâmicas específicas do
quanto na de seu povo. Num segundo momento, Romantismo brasileiro como nacionalismo, isto é,
analisaremos as permanências hodiernas destas os problemas enfrentados por escritores em busca de
representações. uma literatura e uma identidade essencialmente
Entretanto, precisamos de recortes temáticos brasileiras.
muito bem delimitados, para que a análise não se Naxara identifica que a base das representações
perca dentro da multiplicidade de campos passíveis sobre o Brasil no século XIX basearam-se em
de exploração em tema tão intrigante. Neste sentido, dualidades, uma espécie de maniqueísmo redutor

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da compreensão do mundo ao redor do observador. e de cidade que melhor serviam a interesses
Dualidade maniqueísta consistindo nas idéias de bem específicos dos observadores. São justamente estes
e mal como bases para as representações subjacentes interesses que precisamos agora nos deter para
de civilização e barbárie, campo e cidade. Mas realizarmos nosso objetivo, ou seja, não basta
devemos tomar esta problemática em seu entendermos este contexto geral do imaginário
movimento geral, ou seja, mundial, ou ao menos, científico e literário do século XIX, precisamos
ocidental/ocidentalizante. adentrá-lo com suas particularidades no Brasil.
Segundo a autora, a modernidade expandiu o Márcia Naxara elabora suas análises a partir de
horizonte imaginário dos homens. Com a ampliação um pressuposto essencial: de que a natureza fez-se
da concepção de universo como infinito seguiu-se o “sempre presente quando se tratou de pensar o
mesmo movimento de representação do mundo físico Brasil”5. Nesse sentido, devemos situar duas fortes
para o mundo natural e social. Deste contexto, imagens e/ou necessidades em que o Brasil do século
Naxara afirma que a alegoria, como forma de XIX – e anteriores – viveu/vivia. São eles a imagem/
representação típica da cultura ocidental ganha idéia do país que precisa ser civilizado – “encontrar”
novas dinâmicas, tornando-se privilegiada para o caminho da civilidade -, e a imagem/idéia do país
estes . 2
com vocação agrário-exportadora.
Mas não há uma contradição nestes Podemos, então, perceber a forte intensidade com
apontamentos? Como entender que ao mesmo tempo que a natureza aparece em tais elaborações: na
em que abrem-se novas concepções de representação primeira, a natureza ainda não explorada, metáfora
e compreensão do mundo físico, do universo, ocorre da força orgânica do mundo natural que é ou pode
um maniqueísmo redutor no campo das ser moldado, transformado pelas energias
observações? Para compreendermos este movimento civilizadoras dos homens. O Brasil é, portanto, o país
temos que analisar o que Naxara toma como alegoria ora privilegiado por deter uma força exuberante de
e metáfora, pois são centrais para estabelecermos civilização em potencial, ora país do atraso, do
nossa análise das representações do Brasil no século retardamento do progresso material que pode ser
XIX, e sairmos desta aparente contradição. observado na dificuldade em civilizar natureza e
A alegoria é polissêmica. Portanto ela congrega homem, agressivos, rústicos, desafeitos ao trabalho
uma multiplicidade de significações, posto que temos transformador. Não estamos aqui trabalhando
como fio condutor destes significados no século XIX justamente a ambigüidade das metáforas
as representações de bem e mal. Ora, a civilização/barbárie acima ressaltadas?
multiplicidade é criada enquanto ambigüidade, ou Se nestes aspectos a natureza pode ser
seja, o sentido é dado pelo sujeito que cria a representada em tal dualidade, os homens que nela
representação partindo da sua localização de bem e habitam – no país habitam – também o podem.
mal .3
Emergem conseqüentemente as representações dos
Exemplos? Vejamos que campo e cidade não indígenas, ora bons selvagens, ora bárbaros
possuem a priori representações reificadas. O que incivilizados; emergem também as representações
existe são idéias tanto do campo como local do bem, dos mestiços: que traços tal mistura racial engendra
do bucólico, da paz, quanto local do mal, da solidão, nestes homens, boas ou más qualidades de caráter e
da quietude e ausência de reflexão; a cidade, por seu disposições ao trabalho? Seria este mestiço brasileiro
lado, pode ser representada como local do caos, da caracterizado pela preguiça indígena e
perdição ante o barulho e a multidão como pode, ao irracionalidade negra ou pelo espírito aventureiro
mesmo tempo, ser representada como local do branco colonizador português6?
privilegiado para as luzes, para o exercício de Temos, portanto, nosso primeiro ponto de
intelectualização . 4
referência da imbricação deste imaginário científico
É neste sentido que Naxara trabalha. Para a do século XIX com questões específicas em seu
autora, o século XIX deteve-se em tais representações contemporâneo Brasil. Avancemos para nosso
mediante a alegoria da dualidade entre civilização segundo ponto: o Brasil é um país de vocação agrário-
e barbárie, metaforizadas nas concepções de campo exportadora.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 165


Neste tipo de problema que o país colocava-se no estes um continuum, tanto as mediações econômicas
século XIX prossegue a representação da natureza quanto as pequenas cidades – é por excelência o local
como norteadora do imaginário. Ora, não está do provincianismo. Provincianismo que está, sim,
justamente nela o potencial do progresso a ser em contraposição à modernidade metropolitana.
dinamizado? Uma espécie de segunda natureza, do Neste sentido, se o campo, internamente no país,
campo cultivado pelo conhecimento agrícola e não é tomado como barbárie, pois movimenta a
representada em contraposição à primeira, da mata economia, é, por outro lado, externamente, tomado
virgem ou da floresta inóspita: representação do de ambigüidade, pois provinciano não estreita laços
trabalho na força orgânica da natureza; com metropolitano: “o caipira é sempre caipira”.
representação típica da floresta, do campo e da Em síntese, o problema é de perspectiva 8: de que
cidade. Sobressai, então, uma questão: que campo e posição fala o observador? Que interesses existem
cidade são estes? nas suas representações?
Talvez tenhamos aqui a representação A paisagem que não se enquadrava
hegemônica de campo e cidade. Campo como o local perfeitamente na dualidade campo/cidade era a do
do trabalho pesado – apesar das modernas tecnologias sertão: paisagem natural mas “pobre”, desértica,
-, e cidade como local do trabalho intelectual, do local extremamente rústica, representando um “meio
em que se dirige os rumos do país à civilização, à termo”, um mundo meio sem fim que, na verdade,
modernidade/modernização. Mas aonde estão as não é nem natureza virgem propriamente, mas
representações do homem do campo, das pequenas também ainda não está sob o domínio completo dos
cidades e dos intercâmbios entre campo-cidade, ou homens e da civilização – lugar pouco ou mal
seja, não a oposição, mas suas continuidades? conhecido e difícil de definir9.
Em Naxara podemos localizá-las pelas Quanto à análise dos significados que as
representações que compreendem que: representações sobre campo e cidade forjaram no
século XIX para a construção de identidades locais,
As vilas e aglomerados urbanos, uma vez acreditamos que parte do objetivo de nossa reflexão
localizados no interior do país são vistos como fora contemplado. Precisamos agora dar um passo
extensão e prolongamento do campo, em especial adiante, ou seja, nos questionarmos sobre como estas
no que diz respeito à imagem do atraso e do representações efetivaram-se no imaginário social
provincianismo – o caipira é o caipira, seja ele do e histórico brasileiro, e depois, problematizarmos as
campo ou da cidade do interior. A civilização está permanências destas representações no século XX e
no litoral, nas “capitais”, à medida em que elas hodiernamente.
vão se tornando centros de sociabilidade, cultura, Novamente, Naxara fornece-nos as coordenadas
poder, movimento, vida efetivamente urbana a seguir, quando a autora afirma que:
enfim. Estabelece-se uma hierarquia das pequenas
para as grandes cidades, que se constituem Grande parte das representações produzidas sobre
efetivamente como centros de cultura, saber e o Brasil no século XIX, com relação à oposição
“progresso” econômico 7 . natureza/civilização, tanto na sua forma descritiva
como iconográfica, além do romance e de ensaios,
Podemos finalmente observar, para fechar esta foi registrada por artistas e naturalistas
parte de nossas análises, que essas representações de estrangeiros, tendo sido publicados na sua língua
campo e cidade são mediadas pela dualidade das e terra natal, tendo em vista um público leitor ávido
alegorias do bem e do mal, e, fato novo, há um por conhecer o exotismo, o pitoresco e as
elemento da paisagem nacional que não se enquadra diferenças do novo mundo, de suas paisagens e de
“perfeitamente” nestas circunscrições. sua natureza, além da necessidade de classificar e
Temos que o campo é local bom porque produz o ordenar, como forma de alcançar o entendimento.
substrato econômico ao qual o país se movimenta Somente mais tarde foram traduzidas para o
economicamente, mas é também ruim, porque, português, alcançando o público brasileiro de
mesmo não estando em oposição à cidade – há entre forma mais ampla e detalhada. De início,

166 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


provavelmente foram acessíveis somente a um XIX. Neste sentido, o que singulariza estes autores é
pequeno número de pessoas, o que poderia indicar o caráter com que eles se apropriam das idéias gerais
uma presença maior, na formação do imaginário do período, dotando-as das especificidades locais e
do leitor brasileiro, das idéias veiculadas pelos realmente produzindo uma literatura nacional.
jornais, folhetins e romances, cujos autores muito Cândido sugere três conceitos para a
provavelmente tinham conhecimento do que se compreensão destas apropriações nacionais:
publicava fora do país 10. transposição, substituição e invenção. A
transposição seria uma espécie de recodificação para
O que temos aqui é uma questão fundamental: o imaginário ou simbologia cultural do Brasil de
não basta compreendermos como e porque expressões, concepções, lendas, imagens, situações
estrangeiros representavam o Brasil, mas também ficcionais, estilos das literaturas européias14, dando
buscar como este imaginário perpetuou-se aqui. ao leitor brasileiro a oportunidade de compreendê-
Naxara já esboçou uma linha de entendimento, los nacionalmente, ou seja, nos seus códigos culturais
citando os jornais, folhetins e romances em que seus específicos; de certo modo, um sincretismo cultural,
autores conheciam e dialogavam com o imaginário tal como operado aqui no Brasil pelas religiões
científico e literário estrangeiros. Portanto, nos indígenas e negras sobre o cristianismo catequizador.
fixaremos na literatura, e trabalharemos com A substituição seria uma maneira diferente do
algumas questões que Antonio Cândido coloca ao operar da transposição. Se na segunda o autor
analisar o Romantismo no Brasil. encontra um elemento correspondente com a qual
Segundo Cândido, o Romantismo brasileiro pode se depara na cultura estrangeira, na substituição
ser entendido com uma busca de identidade nacional este é obrigado a trocar o contexto em que trabalha,
e forma literária nacional, em síntese, um ou seja, o autor opera de forma mais profunda a
movimento nacionalista romântico 11 . Movimento mediação das trocas de conteúdos, do ponto de vista
nacionalista que não deve ser entendido como uma da linguagem e da interpretação cultural15. O processo
forma unilinear, ou seja, como homogeneidade. No que Cândido denomina de invenção esclarece o nível
Brasil do século XIX a literatura expressava um da inovação, ou seja, quando o escritor brasileiro,
ganho significativo que Cândido localiza na tríade partindo de uma forma literária européia, por
autor-obra-público, isto é, uma circulação de obras exemplo, criava uma variante original desta.
que demonstra a literatura como parte da vida social Sinteticamente, podemos então perceber que
nacional, do imaginário nacional . 12
nossa literatura nacional fora também
Se a sociedade não pode nunca ser tomada de internacional/ocidental (universal?), e que todo o
forma homogênea, a literatura tampouco, e Candido imaginário que nos esforçamos em caracterizar
o demonstra ao traçar um panorama geral das obras estava presente no momento de produção destas
do século XIX perpassando tal heterogeneidade. obras que, como gostaríamos de identificar, foram
Como síntese, podemos afirmar que este caráter parte dos elementos responsáveis pela formação do(s)
múltiplo da literatura nacional do século XIX deveu- imaginário(s) social e histórico do Brasil, ou seja, de
se em grande parte pelas intenções literárias alguma forma, ocorreram movimentos que
específicas dos autores e das correntes de que efetivaram um determinado imaginário científico
participavam, bem como a região, ou o local que o e literário geral do século XIX na totalidade da
escritor escrevia ou descrevia em suas narrativas . 13
população brasileira, e, mais, podemos observar
Mas dentro deste cenário heterogêneo há um fato manifestações de permanência deste imaginário: o
que singulariza todos os escritores do período, e que é campo e a cidade não deixaram nunca de ser
justamente o que nos interessa para compreendermos representados.
como o imaginário científico e literário do século XIX Exploraremos este fato como conclusão de nossa
efetivou-se no país. Antonio Cândido afirma que o reflexão; primeiramente, com exemplos do século
objetivo dos escritores românticos em produzir uma XIX que Cândido trabalha, e depois, com um trecho
literatura nacional e uma identidade nacional não da obra historiográfica de Caio Prado Júnior e uma
estava isolada do contexto geral literário do século música do fim do século XX.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 167


Paradoxalmente, ou ao menos, como ótimo se pelo sentimentalismo romanesco e pelo tema do
exemplo para nosso objetivo de demonstrar a herói esplendoroso - representações caras ao
participação do imaginário estrangeiro na formação romantismo nacionalista brasileiro. É neste sentido
do imaginário literário e social brasileiros, Antonio que os temas de:
Cândido localiza na obra de um francês o primeiro
paradigma de teoria e história literária brasileira, Amor, bravura, perfídia se combinam ... para dar
bem como as aspirações românticas de autonomia ao leitor o espetáculo de um Brasil plasticamente
literária e estética dos autores nacionais . Segundo
16
belo, enobrecido pelas qualidades ideais do
Cândido epônimo indígena. ... demonstração da capacidade
de produzir narrativas tão atraentes ... pelo
foi Ferdinand Denis (1798-1890) ... [que] fundou a afastamento no tempo e pelo sentimento de
teoria e a história da nossa literatura, baseado no exotismo que o homem da cidade experimentava
princípio, então moderno, que um país com em face das descrições de florestas e grandes rios,
fisionomia geográfica, étnica, social e histórica sem falar da história de feitos de um passado que
definida deveria necessariamente ter a sua poderia parecer tão fascinante quanto o europeu 19.
literatura peculiar, porque esta se relaciona com a
natureza e a sociedade de cada lugar. Os brasileiros Observamos como o indígena é representado
deveriam portanto concentrar-se na descrição da enquanto figura que realiza a mediação entre um
sua natureza e costumes, dando realce ao índio, o país sem uma história longa, para dar conta da
habitante primitivo e por isso mais autêntico, necessidade de civilização do mesmo, retirando o
segundo Denis 17 . índio da floresta e dotando-o de características
européias. Ou seja, a natureza que Naxara
Notemos a ênfase do princípio moderno de que demonstrara como projetada enquanto chave de
um país, justamente devido a suas características leitura do imaginário europeu é humanizada pelo
naturais, deveria ter autores a representar sua indígena, num movimento que troca o homem
natureza e seus costumes específicos: nada menos do imerso na floresta pelo homem que sai desta, que é
que a idéia, comum ao período, das determinações um verdadeiro herói e portanto, símbolo de
geográficas e ecológicas sobre o caráter do povo e o civilidade.
destino da nação. Como complemento, a figura do Outro fato marcante são os leitores urbanos, que
índio, representante da nação porque autóctone e formavam uma boa recepção para essas obras
imerso na natureza, síntese da nacionalidade, ou porque sentiam pela descrição do maravilhoso da
seu caráter. Seria efetuando a imagem do indígena natureza o sentimento de não mais pertencer/
como bom selvagem dentro dos modelos europeus vivenciar aquela natureza exótica, fonte de temor e
que se realizaria o indianismo brasileiro, forma deslumbre; mas, ao mesmo tempo, tinham na
literária de busca de padrões nacionais e autonomia narrativa de Alencar um registro valioso da história
estética. do Brasil. Dado que o Brasil não possuía uma
É neste contexto que José de Alencar, autor de O historicidade de grandes feitos e de paradigma da
Guarani, fez sua carreira como literato, de público cultura ocidental, como os países europeus, restava
expressivo, ou seja, índice de circulação do então a idealização da natureza e do índio, tornados
imaginário que perseguimos. Cândido ressalta história nacional.
Alencar como o primeiro autor a “libertar-se” Como outra dinâmica dos movimentos do
definitivamente das heranças lusitanas ao tomar imaginário científico e literário europeu do século
como problema literário a questão da linguagem, XIX temos os relatos de viajantes. Para situarmos
de uma narrativa que se aproximasse do falar uma das formas de sua presença no século XX
brasileiro cotidiano sem cair no prosaico, no valemo-nos do fato de que tais relatos consistem em
linguajar comum . 18
valiosas fontes para a pesquisa histórica.
Quanto às representações do indígena em O problema essencial é o de que cabe ao historiador
Alencar, Antonio Cândido afirma que elas definiam- trabalhá-los reconhecendo o imaginário que eles

168 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


possuem, em relação direta com o “grau” de Salientemos alguns pontos, que demonstram que
veracidade das descrições sobre a natureza o os homens mesmo tendo o autor trabalhado com as
que comportam. Muitas vezes, o historiador pode determinações econômicas, como contrapeso a
incorporar a representação que o relato define sem explicações ideológicas ou falsas, como as do caráter
interpretá-la. Tomemos o caso de Caio Prado Júnior. nacional, é tomado por categorias do século XIX.
Ao trabalhar com as populações rurais que vivem Em primeiro lugar, a idéia de uma seleção social,
da agricultura de subsistência, o autor vale-se de tão cara ao pensamento social e histórico que
descrições de Saint Hilaire. Segundo Prado Júnior, baseava-se no darwinismo, grande corrente biológica
aos homens livres do período colonial restaram as e de histórica natural do século XIX. Em segundo
categorias inferiores de civilização da Colônia , dado 20
lugar, a descrição do indígena como indolente e do
o caráter residual e agônico de seu modo de produção, branco como caindo em degeneração, ou seja,
que agregava extrema mobilidade e rusticidade no perdendo a sua civilidade: idéias típicas do racismo
trabalho com a terra. Sem objetivarmos a análise do século XIX e reflexo das representações da
crítica das observações de Prado Júnior, centralizadas natureza como local da barbárie. Corrobora-se este
nas determinações que a economia engendra nos viés racista de Prado Júnior com o matiz açoriano,
homens, pensemos apenas neste trecho em especial: da colonização do Extremo-Sul, ou seja, colonização
realizada por europeus, onde o branco prevalece
A mediocridade desta mesquinha agricultura de sobre a mestiçagem; ou até mesmo da ausência desta.
subsistência que praticam, e que nas condições Para finalmente encerrarmos nossa reflexão,
econômicas da colônia não podia ter senão este demonstraremos a persistência das representações
papel secundário e de nível extremamente baixo, sobre a cidade baseadas no imaginário científico e
leva para elas, por efeito de uma espontânea literário do século XIX no fim do século XX. Do
seleção social, econômica e moral, as categorias imaginário do compositor e mangueboy Chico Science
inferiores da colonização. Não encontramos aí, por foram concebidos os seguintes versos para a música
via de regra, senão um elemento humano, residual, A cidade:
sobretudo mestiços do índio que conservaram dele
a indolência e qualidades negativas para um teor O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas / que
de vida material e moral mais elevado. Ou então, cresceram com a força de pedreiros suicidas /
brancos degenerados e decadentes. Martius, o cavaleiros circulam vigiando as pessoas / não
Príncipe Maximiliano e Saint Hilaire, que importa se são ruins, não importa se são boas / e
percorreram estas regiões, deixaram delas um a cidade se apresenta centro das atenções / para
testemunho doloroso. Fazem exceção à regra mendigos ou ricos e outras armações / coletivos
apenas as populações do Extremo-Sul, Santa automóveis motos e metrôs / trabalhadores,
Catarina e Rio Grande, em cuja constituição patrões, policiais, camelôs / A cidade não pára a
intervieram fatores particularmente especiais, cidade só cresce, o de cima sobe e o de baixo desce
como vimos acima: a colonização provocada de / A cidade não pára a cidade só cresce, o de cima
açorianos, o que deu outra feição ao tipo de sobe e o de baixo desce (...) 23
habitantes destas regiões. Assim mesmo contudo,
é uma população pobre e de medíocre nível de vida A cidade surge pela luz do sol, iluminando
que as ocupa . 21
pedras evoluídas – natureza transformada pois
trabalhada por pedreiros suicidas. Dentro de um
Ora, temos aqui um grande exemplo de pensador cotidiano caótico, a cidade é luz mas também fonte
do século XX que trabalha, ao menos neste trecho, de desordem, local da ambigüidade, alegoria do
com representações típicas do imaginário científico bem e do mal, centro das atenções. Da
do século XIX; bem como usa suas fontes como relatos multiplicidade de sujeitos que a vivem tem-se a
verídicos, e não filtros de uma realidade datada, cidade como local privilegiado para observar as
porque observada em determinado tempo, espaço e contradições do progresso, pois o de cima sobe, e o
historicidade específicos . 22
de baixo, desce.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 169


Percorremos um longo caminho, repleto de captando as mudanças que a historicidade peculiar
representações que formaram identidades sobre o de cada período revela.
Brasil. Como conclusão, podemos apenas afirmar que Caminho de difícil acesso, dado que com nossa
esta eterna busca por sentidos que expliquem o país tentativa de demonstrar as continuidades que
é um grande campo de pesquisas, tanto para o observamos, não estamos defendendo que há apenas
historiador quanto para outros cientistas sociais. continuidade, que as representações não mudam.
Ora, se não podemos dar ao Brasil uma definição Pelo contrário, tomamos o caminho de identificação
precisa, podemos ao menos tentar compreender as do constante, dos fragmentos que permanecem na
motivações daqueles que ousaram representá-lo, longa duração do tempo.

Notas

*
Artigo originalmente escrito para a disciplina História do Brasil e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Cia das Letras,
II, ministrada pela Profa. Dra. Christina da Silva Roquette 2000, p.21-26.
Lopreato, no ano de 2003. 9
NAXARA, Márcia. Opus cit.p.11.
**
Apud. SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos 10
Idem. Opus cit.p.13-14.
e ritos do Rio. In: História da Vida Privada no Brasil, volume 3. 11
CANDIDO, Antonio. O Romantismo no Brasil. São Paulo:
São Paulo: Cia da Letras, 1998, p.514. Humanitas/FFLCH-USP, 2002, p.104.
1
Como documentos históricos nos referenciamos em relatos de 12
Como outros elementos que complementam esta maturidade da
viajantes do Brasil do século XIX e anteriores, ao lado da produção formação da literatura brasileira Candido também demonstra o
literária local no mesmo período. nascimento da crítica literária, da historiografia literária e da
2
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Sobre Campo e Cidade – historiografia nacional no mesmo período.
olhar, sensibilidade e imaginário: em busca de um sentido 13
Como exemplos de tais diferenças devido ao lugar de escrita e os
explicativo para o Brasil do século XIX. Doutorado em História. estilos literários e objetivos dos autores podemos citar os
Campinas: UNICAMP, 1999, p.3. escritores paulistas, encabeçados por Álvares de Azevedo, e os
3
NAXARA, Márcia. Opus cit.p.3. Segundo Naxara, o maniqueísmo escritores dos diferentes regionalismos.
entre bem e mal é típico da cultura ocidental, ou seja, ele 14
CANDIDO, Antonio. Opus cit.p.96.
extrapola o contexto de tempo e espaço que aqui trabalhamos. 15
Idem. Opus cit.p.97-98.
Ainda quanto ao maniqueísmo nas representações sobre natureza 16
É importante lembrarmos que Candido localiza estes desejos de
e civilização, a autora trabalha no primeiro capítulo de sua obra autonomia dos escritores românticos brasileiros como
com as idéias de belo e sublime como bases de tais. Para contemporâneos ao desejo de emancipação política do Brasil
compreender a efetividade destas concepções no imaginário de Colônia, ou seja, Candido está o tempo todo analisando as
século XIX Naxara as demonstra esquematizadas na filosofia da mediações entre literatura e história, indivíduos (escritores) e
estética de Edmund Burke e Kant. Acreditamos que este viés sociedade.
explorado refere-se à parte das sensibilidades que a autora 17
CANDIDO. Opus cit.p.21.
pesquisa. Quanto à nossa reflexão, em seu objetivo muito mais 18
Idem. Opus cit.p.64.
simplificado, as concepções de belo e sublime são lacunares, ou 19
Ibidem. Opus cit.p.65-66.
seja, ausentes. Justificamos esta renúncia em decorrência de 20
PRADO JÚNIOR, Caio. Agricultura de subsistência. In:
nosso objetivo de analisarmos as representações e o imaginário, Formação do Brasil Contemporâneo – Colônia. São Paulo:
em detrimento das sensibilidades; mesmo reconhecendo que tais Publifolha, 2000, p.161.
conceitos se complementam, e enriqueceriam nossa reflexão. 21
Caio. Opus.op.cit.p.161-162 (grifos nossos).
4
Trabalharemos melhor tais representações sobre campo e cidade 22
Vale lembrar que Prado Júnior é correntemente tomado como
no Brasil do século XIX adiante, e, ainda, as persistências destas marco historiográfico brasileiro, justamente porque suas obras
representações. não mais possuem a busca de sentidos explicativos para o Brasil
5
NAXARA, Márcia. Opus cit.p.4. através de determinismos e/ou reduções ideológicas de tipo
6
Adiante, demonstraremos como imagens negativas do homem psicologizante como marcas de uma formação e destino do país.
rural brasileiro presentes num relato de Saint Hilaire, viajante Pelo menos é esta a interpretação de LEITE, Dante Moreira. O
pesquisador naturalista do século XIX persistiram numa análise Caráter Nacional Brasileiro – história de uma ideologia. São
histórica de Caio Prado Júnior, século XX. Paulo: Editora Ática, 1992.
7
NAXARA, Márcia. Opus cit.p.11. 23
CHICO SCIENCE. A cidade. Da Lama ao Caos. São Paulo: Sony
8
A idéia do problema de perspectiva entre as idealizações de Music, 1993.
campo e cidade encontra-se em: WILLIAMS, Raymond. O campo

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Um continuum de Histórias: o canal Campos-Macaé

Simonne Teixeira
Silviane de Souza Vieira

PhD em Filosofia e Letras (História) pela Universitat Autònoma de Barcelona, atualmente professora da Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Desenvolve pesquisas na área de Memória, Patrimônio e Política Cultural

Mestre em Políticas Sociais e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro.
Atualmente integra um projeto na área de Educação Patrimonial

Resumo Abstract
O presente trabalho trata do Canal Campos- The present work is about Canal Campos-Macaé in
Macaé, numa perspectiva histórica, enfatizando o a historical perspective, emphasizing the recent
período recente que conduziu ao seu tombamento period that led to its registering by INEPAC-RJ. Its
pelo INEPAC-RJ. Seu tramo urbano foi, ao longo urban schemes were, along the years, an
dos anos, parte importante nos projetos de important part in the projects of sanitation and
saneamento e remodelação da cidade. planning of the city.
Palavras-chave: Canal Campos-Macaé, Keywords: Canal Campos-Macaé, registering,
Preservação, Patrimônio Cultural, Reforma project.
Urbana

“Mordido mais violentamente do que as águas, demanda um amplo projeto de recuperação e


carrega mais maldições do que ervas” *** manutenção de todo o sistema.
O canal Campos-Macaé é um bem cultural ao
Há alguns anos, a antiga gestão pública qual são atribuídos diferentes valores, entre eles: o
municipal da cidade de Campos dos Goytacazes, arquitetônico, o paisagístico, o histórico e o
região norte do Estado do Rio de Janeiro, anunciou ambiental. Mesmo quando já não existe sua função
uma série de intervenções de caráter urbanístico. objetiva de hidrovia. Estes valores são atribuídos
Entre elas a cobertura de um trecho do Canal pela sociedade ou por setores da sociedade em seu
Campos-Macaé, o que gerou intensa polêmica. Além nome (ARGAN, 1998: 228). O que determina em
dos aspectos ambientais que se destacam pela um amplo universo de bens culturais a seleção de
complexidade da bacia do baixo Paraíba do Sul, uns em detrimento de outros? A categoria de
argumentos que apelam para sua importância monumento tem sido analisada, pelo menos sob dois
histórica têm norteado as discussões. pontos de vista. Por um lado, Le Goff distingue dois
Ainda que não se possa desagregar os aspectos tipos de materiais da memória: “os monumentos,
ambientais dos urbanísticos e históricos, não se herança do passado, e os documentos, escolha do
pretende discutir a questão que envolve a complexa historiador” (1996:535). De modo semelhante, mas
rede de canais artificiais associada ao rio Paraíba do utilizando-se de nomenclatura diferente, Choay
Sul. Embora seja crucial ter-se em conta que a traça, com base em A. Riegl, a distinção entre
solução para o problema de saneamento e o projeto monumento e monumento histórico, entendendo-se
de cobertura do canal em seu tramo urbano, o primeiro como “uma criação deliberada (gewolte),

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 171


cujo destino foi assumido a priori e à primeira de água 1 , o que demandou rigoroso estudo de
tentativa”, enquanto o nivelamento.
Crônicas locais informam que antes mesmo de sua
“monumento histórico não é desejado inicialmente conclusão já havia navegação. Júlio Feydit informa
(ungewolte) e criado enquanto tal. Este último é que no ano de 1848 é lançada a primeira prancha
constituído a posteriori pelos olhares (1900: 271) e Alberto Lamego informa que em 1858
convergentes do historiador e do amador, que o já havia “navegação cotidiana” nos tramos
seleccionam de entre a massa dos edifícios construídos (1942: 41). Charles Ribeyrolles, viajante
existentes e de que os monumentos representam inglês que passou pela cidade no século XIX observa
apenas uma pequena parte” (1999: 22). que, quando de seu pleno funcionamento, “trinta ou
quarenta pranchas (barcas achatadas) entram por dia
Há uma certa concordância, portanto, em que o no canal e carregam para Campos os gêneros
monumento é uma herança, é algo que nos é alimentícios ou os produtos de exportação” (1980: 34).
transmitido pelas gerações anteriores e cujos A partir do final do século XVIII, a região de
significados foram sendo agregados ao longo do Campos substitui a pecuária, atividade inicial na
tempo. Neste caso, podendo ser escolhido como região, pela atividade agro-açucareira, destacando-
documento ou monumento histórico. se no cenário nacional como expressivo centro
Em consonância com o exposto, pode-se afirmar produtor de açúcar. Pode-se identificar algumas
que o canal, dada sua especificidade em extensão e contingências históricas do período que favoreceram
como exemplar arquitetônico, agrega, por uma a implantação deste setor, como o crescimento do
parte, o caráter de monumento, entendido como mercado mineiro de gado (bovino e eqüino) e a
herança e, por outra, como ponto central do debate progressiva decadência do açúcar produzido no
sobre o novo projeto urbanístico, apresenta-se como Recôncavo da Guanabara. A estes fatores pode-se
monumento histórico. acrescentar a transferência da capital da Colônia,
A idéia de se construir um canal navegável, que de Salvador para a cidade do Rio de Janeiro, o que
ligasse a cidade de Campos dos Goytacazes a Macaé determina um maior dinamismo financeiro para a
para o trânsito de passageiros e para o escoamento região.
de produtos, foi atribuída equivocadamente por Pelo rio Paraíba do Sul passou a escoar, então,
alguns autores ao inglês John Henrique Freese toda a produção da crescente indústria agro-
(LAMEGO, 1942; SILVA TELLES, 1994; TEIXEIRA açucareira de Campos dos Goytacazes e região. De
DE MELLO, 1886). Segundo Lamego, no ano de 1837 fato, pode-se dizer que a necessidade de se construir
teria pensado o inglês “em abrir um grande canal do uma via fluvial alternativa cresce com a
rio Paraíba ao de Macaé” (1942: 39). A proposta importância desta indústria.
original desta hidrovia deve-se, no entanto, ao bispo A ligação de Campos dos Goytacazes com o Rio de
Azevedo Coutinho, no final do século XVIII. Alguns Janeiro sempre fora difícil. Por terra, a precária
artigos recentes já dão por encerrada esta discussão manutenção das estradas que atravessavam
que não é para nós relevante (SOFFIATI, 1999; terrenos pantanosos tornava complicada a
SILVA, 2000). circulação eficiente dos produtos. A navegação até a
Considerado o segundo maior canal artificial do Corte devia ser realizada a partir de São João da
planeta e a maior obra de engenharia do período Barra e Macaé, transpondo para tanto o Cabo de São
imperial, o Canal Campos-Macaé possui Tomé. A princípio, sugeriu-se que fosse avaliada a
aproximadamente 100 km de extensão. Sua possibilidade de dragar o leito do rio Paraíba que já
construção foi onerosa, lenta e de elevado custo naquela época apresentava visíveis sinais de
social, aberto à força humana, utilizando-se do assoreamento. Decidiu-se, por fim, pela construção
trabalho escravo. Foram necessários quase trinta da hidrovia, idéia fortalecida sem dúvida pela
anos para sua completa realização que, iniciada no possibilidade de drenar parte dos terrenos
ano de 1844, foi completamente concluída em 1872. impróprios para o cultivo da cana, inclusive aqueles
O canal aproveita em seu percurso diversos corpos próximos ao espaço urbano.

172 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Situada em uma extensa planície aluvionar, a Engenheiros, Henrique Luís de Niemeyer
cidade de Campos dos Goytacazes e região Bellegarde, apresenta à Diretoria de Obras Públicas
apresentava numerosas lagoas e terrenos alagadiços. da Província do Rio de Janeiro um detalhado
Ao canal Campos-Macaé associa-se, portanto, um relatório, no qual aborda as condições da cidade e de
intricado sistema de canais de drenagem das áreas suas vias de comunicação, propondo sugestões de
em torno à cidade, destinadas ao cultivo da cana-de- melhorias. Ele reitera em seu relatório a necessidade
açúcar, construído ao longo dos anos. No incipiente da construção de um canal em duas seções que ligasse
perímetro urbano destacavam-se duas lagoas: a os rios Paraíba e Macaé, e estes à “bahia de Nitherohy”,
lagoa do Furtado/Osório e a lagoa Santa Efigênia, o que em sua opinião seria de máxima utilidade para
que foram drenadas no período de sua construção. a região (BELLEGARDE, 1837: 53). Por meio deste
Ainda que os discursos higienistas, que iriam relatório fica demonstrado que o projeto inicial era
prevalecer a partir de meados do século XIX até o mais ambicioso, e que a hidrovia que se propunha
princípio do século XX, e que norteariam a deveria ligar a cidade de Campos diretamente à
concepção de cidade e ordenamento urbano, não corte.
estivessem completamente definidos, as cidades A partir de 1840, a cidade de Campos dos
passam a ser objeto de reflexão e as condições de Goytacazes adquire maior importância e começa
salubridade preocupam alguns observadores. definitivamente a abandonar a feição de cidade
Ribeyrolles observa que: “As águas estagnadas colonial e já é possível observar
ocasionam as febres paludosas, e o miasma é o perigo
em todo o pântano que fermenta o sol. O canal seca “un grand nombre de signes de transformation de
esses pântanos, purifica o ar, saneia a terra, e já se la morphologie urbaine. Campos arrive au milieu
fala menos das moléstias em Campos” (1980: 35). di XIX e siècle avec un nouveau paysage urbain. La
O Canal deste modo parece destinado a cumprir plupart des rues sont déjà pavées et possèdent des
duas funções: facilitar o trânsito de passageiros e o trottoirs à côté des habitations et les rues
escoamento de mercadorias e produtos e favorecer a principales sont éclairées au gaz hydrogène liquide
redução das áreas alagadas, consideradas então, (1848). (...) Le canal Campos Macaé est en
indesejáveis e propícias às enfermidades. Neste construction et la partie archevée est en
sentido, é preciso considerar também que parte do fonctionnement.” (PEIXOTO FARIA, 1998: 241).
Canal está inserida em contexto urbano.
No ano de 1835 elevou-se à condição de cidade a A intensificação da navegação, seja pelo rio
então Vila de Campos dos Goytacazes que contava Paraíba ou pelo Canal Campos-Macaé, favorece ao
“com apenas uma rua calçada” (ERBAS, 2000: 10). tráfego “de marchandises, la circulation des individus
Em seu estudo sobre os serviços públicos em Campos et des informations et par conséquent, l’entrée des
entre os anos de 1835 e 1881, Erbas argumenta que dernières nouveautés du monde européen sont
a construção do Canal foi “a primeira grande facilitées” (Ibid.:297).
transformação espacial na cidade” (Ibid.:11). A partir Pese a importância do empreendimento e todo
deste período há, de fato, uma significativa mudança investimento econômico e social a ele associado, a
na sociedade. A riqueza gerada pelo açúcar atrai obra considerada por Ribeyrolles “capital para a vasta
comerciantes, viajantes e aventureiros, entre estes, planície campista” teve vida útil curta (1980: 35).
muitos estrangeiros para a incipiente cidade Desde 1857 que o campista, nas palavras de
(CONCEIÇÃO et alli., 1997). Suas ruas alagadiças Rodrigues, “lutava para conseguir ligar Campos a
começam a receber o calçamento, e postes de Niterói por via férrea” (1988: 32). Assim, a
iluminação a gás são instalados em alguns pontos construção do Canal, antes de seu término, já
da trama urbana. A elite adquire o gosto de morar concorria com a estrada de ferro que veio a
na cidade, abandonando as casas das fazendas como suplantar-lhe apenas dois anos após sua
residência, de forma definitiva (FARIA, 1998). A inauguração. Com a criação de uma via férrea
vila dá lugar à cidade que aspira à modernidade. ligando Campos a São Sebastião na baixada, zona
No ano de 1837, o major do Corpo Imperial de central da produção do açúcar em 1873, e do trecho

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 173


Campos-Macaé em 1874, o Canal perde revolução de 1930” (op. cit.) e conclui dizendo que
paulatinamente seu significado. “é lastimável o estado do canal, com o solapamento
A concorrência da estrada de ferro talvez explique de suas margens e depósitos de toda sorte de
a precariedade da obra já detectada por Ribeyrolles detritos, acha-se transformado num verdadeiro
e assinalada por outros autores. Ao longo do tempo, viveiro de anofelis” (op. cit.).
o assoreamento vai se destacar como o maior
problema para a sua manutenção. Aparentemente, Em 1929 foram finalmente realizados o
a ausência de um acabamento mais acurado das alargamento e rebaixamento, propostos por Feydit,
margens do Canal favorecia esse fenômeno: “As com o objetivo de aumentar o volume de drenagem
ribanceiras e os flancos não se achavam revestidos, do rio Paraíba em caso de cheia. Mas esta obra não
fortalecidos contra infiltrações e os desmoronamentos. solucionou os problemas do perímetro urbano do
Enfim, será mister estabelecer um serviço permanente, Canal, que continuou alvo de discussões devido às
quer para impedir os obstáculos, quer para remediar dificuldades de sua manutenção. Nos anos de 1936
os desastres” (RIBEYROLLES, 1980: 34-35). Assim e 37, aparecem, freqüentemente, no jornal Monitor
que, durante os anos seguintes até os dias de hoje, é Campista artigos apontando o estado de abandono,
possível observar a preocupação com a manutenção principalmente em relação à vegetação que crescia
de seu leito. Lamego indica que em 1891, Júlio desordenadamente em volta, e à falta de pontes,
Feydit “propõe na sessão da Câmara de 31 de inclusive porque as existentes iam se deteriorando e
Dezembro, que fosse aberta concurrência para o não eram substituídas.
aprofundamento do canal entre o Paraíba e a eclusa No dia 20/08/1936, este mesmo jornal trazia
da Olaria” (1942: 50). A obra de alargamento e impressa a pergunta: “Como se pode embelezar o
rebaixamento proposta nesta ocasião, por Feydit, canal da cidade?”. A seguir era exposto o plano de
somente veio a se concretizar em 1929 (SILVA, remodelação do dr. Severino Lessa, que
2000). transformaria o aspecto do Canal, “irregular, sinuoso,
Com a expansão da malha urbana, o trecho do entre duas alamedas de mato grosso”, na “Avenida
Canal próximo ao rio Paraíba é completamente dos Ipês”. Seria uma grande obra, inclusive com o
incorporado à cidade passando a ser, portanto, parte aterro do local denominado “bacia” (que era o fundo
essencial dos vários projetos urbanos que são da lagoa do Furtado e onde se instalou o Mercado
propostos. Em 1902, Saturnino de Brito elabora um Municipal). Segundo o periódico, “Elle o idealizou
plano de urbanização do Canal, cercado por extensa rectificado, dragado, de fundo e margens cimentadas,
área verde, onde antes estava localizada a Lagoa do por onde a água fugitiva, clara, crystallina, corresse
Furtado. Saturnino de Brito, formado na Escola dia e noite numa ânsia incansável, até o abysmo verde
Politécnica do Rio, era defensor das idéias do oceano que lá está, em Macahé” e com ipês
republicanas e positivistas que estavam em voga. plantados nas duas margens. Ao final do artigo,
Seu plano urbanístico para a cidade de Campos reconhecia-se que a falta de verbas da
refletia suas concepções. Brito estava preocupado em municipalidade tornaria esse “sonho” irrealizável.
solucionar os problemas de insalubridade que As intenções explicitadas em seu plano de
grassavam a cidade, mas seu plano demonstrava remodelação não deixam dúvidas quanto ao
também outras preocupações, como o significado do Canal para a cidade, mesmo quando
aformoseamento da cidade, propondo “l’ouverture de já se havia perdido sua função original de hidrovia.
belles avenues longeant le fleuve et le canal Campos- Em períodos posteriores, de acordo com a
Macaé” (PEIXOTO FARIA, 1998: 337). disponibilização de recursos, foi levada a cabo a
É Lamego (1942:50) que também nos informa proposta de transformar o chamado “valão”, que
que em cortava a cidade, em um local agradável. O objetivo
em nenhum momento foi a sua cobertura, mas a
“1928, no governo do dr. Manoel Duarte, [o Canal] sua transformação em local atraente, uma “linda e
foi dragado por algum tempo, ficando o serviço poética” avenida de “belas perspectivas,
interrompido quando foi ele apeiado do poder, pela transformando assim, em um dos pontos mais

174 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


pitorescos da cidade, um dos seus trechos mais 80, a relação entre a cidade e o Canal Campos-Macaé
deploráveis” (Monitor Campista, 09/07/1940 e 22/ se modifica visceralmente. Desde meados deste
04/1942). Herança deste período, hoje, margeando século tem sido, cada vez com mais freqüência,
o Canal, encontram-se ipês que se destacam na designado de “Valão”. A avenida que acompanha a
paisagem quando floridos. trajetória do Canal não é a “Beira-Canal”, mas sim
Neste período, observa-se uma acentuada a “Beira-Valão”. A caracterização pejorativa levou
preocupação com os aspectos estéticos da cidade. ao esquecimento de sua importância e a população
Mediante a leitura dos periódicos é visível uma não reconhece no seu aspecto atual a hidrovia que
crescente necessidade de se acabar com os últimos garantiu intensa circulação de riquezas e pessoas
vestígios coloniais ainda existentes. A construção de entre Campos dos Goytacazes e o porto que a ligava
novos edifícios era vista com bons olhos, e obras de à Corte. De elemento saneador e paisagístico passa a
calçamento, alargamento de ruas, iluminação de elemento insalubre, feio e desnecessário à composição
parques e jardins e melhorias urbanas em geral do cenário urbano. A partir de então, os discursos
eram desejáveis. A configuração de uma cidade oficiais sobre o Canal tomam outra direção. Surgem
moderna era buscada com mais afinco. Peixoto Faria as primeiras propostas de cobri-lo em nome de um
observa que “Et c’est dans ces années trente et ambiente urbano melhor.
quarante que l’on constate que l’on commence à parler O “Jardim de Alá” caracterizava-se como uma
de la ville, d’urbanisation et de reforme urbaine tout área verde em meio à cidade. Uma pequena parte
naturellement. Sans doute on a l’amorce d’un autre que ligava este ao rio Paraíba do Sul foi coberta neste
regard, d’une autre façon d’intervenir dans la ville” período pelo antigo DNOS. Nos anos de 1980 o Jardim
(1998: 413). sofre novas intervenções de reurbanização com a
Em 1944, Abelardo Coimbra Bueno propõe um criação de vários setores destinados a funções
plano diretor urbanístico para a cidade de Campos culturais e recreativas, passando a denominar-se
inspirado no trabalho anterior de Saturnino de Parque Alberto Sampaio. A parte do canal em seu
Britto. Mais uma vez, o Canal Campos-Macaé é objeto interior foi coberta (Monitor Campista, 03/09/
das atenções urbanísticas. Seu projeto integra e 1988).
valoriza o Canal com a construção de um amplo A justificativa para a remodelação estava no fato
parque ajardinado, que viria a chamar-se Jardim do Parque ter sofrido degradação ao longo do tempo
de Alá. “e mais ainda com, as prolongadas obras de
Como se pode observar, as preocupações construção de galerias do canal, foi praticamente
urbanísticas até este período, além de revestirem-se destruído e [estava] sendo recuperado, mas sem se
de um discurso de modernidade, progresso e afastar de suas linhas tradicionais” (Folha da Manhã,
saneamento, procuraram integrar o Canal ao 11/05/88). Informação díspare de outra matéria do
cotidiano da cidade. Os aspectos estéticos eram mesmo jornal (Folha da Manhã, 03/09/88) afirma
destacados uma e outra vez e os elementos que o Parque “conserva de antigo apenas o nome”.
arquitetônicos das pontes expressavam, de certo Discussões à parte, fato é que a obra veio a servir
modo, a valorização e o significado incorporado ao como a lápide para o enterramento de um trecho do
Canal. Canal Campos-Macaé.
Em resumo, pode-se dizer que o portentoso Canal A cobertura do Canal neste momento era
Campos-Macaé adentra, então, o século XX, como justificada pela ampliação do espaço urbano e pela
parte importante da trama urbana, servindo de instalação dos equipamentos culturais já
referencial para os projetos paisagísticos que são mencionados. O novo ajardinamento da área e a
propostos para a cidade. Até este período lhe eram construção de um chafariz e de um teatro ao ar livre
agregados valores históricos que justificavam sua pretendiam oferecer à população uma nova área de
integração ao espaço urbano e serviam de elemento lazer. O entusiasmo inicial não durou muito. Em
de rememoração da pujança econômica do município pouco tempo o lugar caiu no abandono e desuso.
durante o século XIX. Próximo ao Mercado Municipal e com os problemas
Ao final do século XX, sobretudo a partir dos anos advindos da dificuldade de limpeza do Canal, agora

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 175


subterrâneo, o Parque Alberto Sampaio se Enquanto a municipalidade anuncia junto ao
transformou em área marginalizada em pleno governo do Estado a cobertura do Canal como uma
centro da cidade. A negligência para com este espaço importante obra para a cidade, no jornal O Globo,
público, a constante presença de mendigos, a sujeira do dia 13/03/2000, é publicada uma interessante
acumulada e a grande quantidade de ratos tornam matéria. Nela se anuncia o desenvolvimento de um
ainda menos atrativa a visita ao local. projeto que pretende incentivar o turismo na região
No princípio do ano 2000, o Canal Campos-Macaé Norte Fluminense através do aproveitamento do
volta a ser alvo de novos projetos urbanísticos Canal Campos-Macaé para a exploração turística,
propostos pelo poder público municipal, dando sobretudo na área do Parque Nacional da Restinga
origem a um intenso debate. No campo dos conflitos de Jurubatiba, onde ainda há trechos navegáveis.
sociais surgem novas arenas e novos atores. De acordo com o jornal, o projeto pretende ainda
Após sobrevoar a cidade numa tarde de sábado, promover o desenvolvimento sustentável da região
junto ao Prefeito da cidade, o sr. Anthony Garotinho, e, dessa forma, aproveitar o potencial desta grande
já como governador do Estado do Rio de Janeiro, obra.
decidiu retomar um antigo projeto, do início de seu A proposta de cobertura do Canal toma fôlego e a
segundo governo na prefeitura de Campos: cobrir, Prefeitura anuncia que apenas espera o aval da
em parceria com a Petrobrás Distribuidora, novo Feema para dar início às obras no Canal (Folha da
trecho do Canal Campos-Macaé (Folha da Manhã, Manhã, 21/03/2000). Na reportagem, o Secretário
15/02/2000). Municipal de Obras, Edilson Peixoto, nega-se a dar
No dia seguinte, o jornal Primeira Página anuncia detalhes sobre este, alegando que “isso pode gerar
que o novo projeto de urbanização para o Canal muita polêmica”. Ainda segundo o Secretário, uma
das preocupações é elaborar um projeto que
“prevê estacionamento, lojas comerciais e área de “tecnicamente não afete o curso do canal, bem como
alimentação. (...) A cobertura do canal Campos- não prejudique a sua limpeza”, para evitar “repetir
Macaé, além de gerar novos postos de trabalho os erros cometidos quando da tapagem do primeiro
através dos estabelecimentos comerciais então trecho, entre o rio Paraíba e a rua Tenente Coronel
(sic.) abertos embelezam uma parte importante Cardoso, que criou o Parque Alberto Sampaio”.
da cidade, acabando com o verdadeiro depósito O Secretário tinha razão, pois sem os detalhes
de lixo que se transformou o valão que corta a que preferiu guardar para si, tão logo foi anunciada
cidade”. a cobertura do Canal, surgiram vozes dissonantes
quanto à realização do projeto. Em meados de março,
É fato que na atualidade o Canal Campos- foi encaminhado pelo Grupo Informal de Defesa do
Macaé Patrimônio Cultural do Norte Fluminense 2 um
pedido de tombamento do Canal ao Instituto do
“encontra-se abandonado em vários pontos, Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
poluído, assoreado e eutrofizado. A companhia Este grupo, formado basicamente por historiadores,
Estadual de Águas e Esgoto – CEDAE, casas arquitetos e ambientalistas, julgando que a
residenciais, um abatedouro de aves, o Instituto cobertura levaria a um processo de maior
Médico Legal e a população, em geral, lançam assoreamento deste, dada as dificuldades de limpeza
nele resíduos líquidos e sólidos” (SOFFIATI, 2000). que se apresentariam 3, dado também que grande
parte deste corta o Parque Nacional da Restinga de
Os anos sem dragar o seu leito e o intenso despejo Jurubatiba, mas sobretudo reconhecendo que o
de esgoto e lixo o condenam à morte. Este estado de Canal “se reveste de inegável valor histórico, como
degradação tornou a área desagradável para uma das maiores obras de engenharia civil brasileira
comerciantes e moradores. Mas, seria cobri-lo, de do século XIX, e que pode ser restaurado para
fato, a melhor solução? Para Soffiati, com o qual finalidades culturais e turísticas” (processo Iphan
estamos de acordo: “Trata-se de esconder o feio e o 1462-T-00), propõe seu tombamento.
sujo embaixo do tapete” (Ibid.). Na mesma ocasião, o ambientalista Aristides

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Arthur Soffiati entrou com uma representação no público municipal, sem licitação, ao escritório de
Ministério Público (MP) pedindo a sua urgente engenharia e urbanismo Sérgio Moreira Dias da
intervenção e apontando a necessidade da realização cidade do Rio de Janeiro. As várias intervenções
de um Relatório de Impacto Ambiental – RIMA (O urbanas do projeto foram sendo divulgadas em
Dia, 22/03/2000). Em meados desse ano, a proposta matérias esparsas que, pouco a pouco, permitiam
de tombamento do Canal recebe ainda a adesão do que se tomasse conhecimento de sua magnitude. Em
Conselho Regional de Engenharia (CREA-RJ) que ocasiões as informações divulgadas causaram
lança na região uma campanha de apoio à sua verdadeiras surpresas. Um exemplo é o da Praça São
preservação (O Globo, 17/06/2000). Ambas as Salvador, núcleo inicial da cidade, onde ainda se
propostas priorizam os aspectos ambientais. destacam alguns edifícios arquitetônicos que contam
É interessante observar que o IPHAN reconhece a história da cidade. Além de um prisma de vidro
que o canal “é um corpo vivo, devendo o tombamento gigantesco, inspirado certamente na pirâmide do
contemplar o canal como um continuum” (processo Louvre, que dará acesso a uma “espécie de shopping
IPHAN 1462-T-00/Memo 291/2000). Esta center” subterrâneo. Haverá, ainda, um enorme
característica do canal, isto é, um corpo vivo, torna chafariz construído num mirante que irá avançar
a questão do tombamento pelo IPHAN bastante sobre o rio Paraíba (O Diário, 29/01/2002). Além
complexa, não se trata apenas de um bem histórico, da Praça, do próprio Canal, entre outros, está
mas de um bem que está vivo e possui uma dinâmica incluído no mega projeto de reurbanização o Mercado
própria. O tombamento do canal teria deste modo Municipal (ibid.). Antes da mudança de governo, a
um caráter inovador. Praça São Salvador foi totalmente remodelada, não
O debate parecia ter caído no esquecimento, com todos estes itens propostos, mas com alterações
quando em novembro, os carnavalescos de Campos profundas, também alvo de críticas e controvérsias
levam ao poder público municipal a proposta de se (o que não será discutido aqui).
aproveitar a área coberta do Canal para instalar Cabe destacar alguns aspectos com relação ao
uma passarela do samba, inspirada no Mercado. Este se encontra situado no extremo sul do
Sambódromo. A idéia seria “uma solução para Parque Alberto Sampaio, de onde parte o tramo
acabar com a inconveniência do Canal Campos- descoberto do Canal. O projeto de restauração
Macaé, hoje transformado num fétido valão, devido à proposto é bastante discutível, pois pretende
grande quantidade de derramamento de esgoto em desalojar a área das barracas dos feirantes e
suas águas” (grifo nosso). Além do sambódromo, recuperar o antigo edifício do mercado, para
propõem os carnavalescos a construção de um posto transformar a área em um Centro Gastronômico.
de combustível no local (Monitor Campista, 05/11/ Os argumentos para a remoção da parte vital do
2000). Chama atenção a radical desvalorização do mercado são em muito semelhantes aos que vêm
Canal, que se torna, inclusive, “inconveniente”. sendo dados para o Canal: existência de muitos ratos
Durante o ano de 2001, de forma inesplicável, e acúmulo de sujeira que ocasiona mau cheiro. O
o assunto desapareceu dos meios de comunicação e, mais interessante é que o sr. José Luis Puglia, Diretor
aparentemente, o projeto de cobertura do Canal do Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano de
havia sido adiado pela Prefeitura. Presumimos que, Campos (IPUCAM) naquele momento, justifica a
em parte, os processos abertos no MP e no IPHAN restauração do prédio alegando ser este um
estavam surtindo efeito. De fato, um parecer jurídico patrimônio histórico. É curioso que o Canal, mais
do IBAMA determinando que a obra era ilegal e um antigo e elemento importante para que o Mercado
parecer técnico do mesmo órgão exigindo a realização fosse ali instalado, não seja considerado também um
de um Estudo de Impacto Ambiental - EIA retardam patrimônio histórico a ser preservado (A Cidade, 20/
o início das obras. 06/2002). Haveria nesta afirmação uma certa
No entanto, ao longo deste mesmo ano e, no miopia com relação ao conceito de patrimônio
seguinte, a população veio lentamente tomando histórico? Há uma certa dificuldade em detectar
conhecimento da existência de um novo plano quais parâmetros norteiam a determinação do que
urbanístico para Campos, encomendado pelo poder deve ser preservado ou não. Por que o Mercado

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 177


Municipal deve ser mantido e o Canal que lhe foi sobre a antiga hidrovia, contendo um subtítulo
conferiu a localização deve ser ocultado? Para nós, muito interessante: “O histórico Canal Campos-
esta contradição explicita a ausência de uma política Macaé fica em pleno centro”. Esta breve informação
de gestão cultural do patrimônio articulada a um deixa transparecer o estado de abandono do Canal,
planejamento urbano para o município. As refletindo a triste realidade. A população, de fato,
intervenções se configuram de forma isolada e sem sequer sabe onde está localizado o Canal, ou que o
articulação com o todo que é a cidade. Valão é o que restou dele. Canal e Valão se
Neste sentido, queremos chamar atenção sobre confundem. O imponente Canal, signo da
algumas destas ações positivas, embora isoladas, importância que teve o município, é agora apenas
levadas a cabo pelo poder público municipal durante uma valão inconveniente.
os anos 2000 e 2001, com respeito ao patrimônio Nova reportagem sobre o Canal aparece na
arquitetônico. A restauração da Praça Barão do Rio imprensa. Com o título “Mau cheiro, até quando?”
Branco (Jardim do Liceu) 4 , da Capela de Nossa (O Diário, 06/06/2002). A matéria publicada diz
Senhora do Rosário, na localidade de Donana, e do que o campista tem hoje motivos para se orgulhar
Asilo do Carmo (antigo Solar de Santo Antônio)5, são de alguns espaços públicos na cidade, mas alguns
exemplos de projetos que têm devolvido à “aspectos do centro urbano do município
comunidade parte de seus bens patrimoniais que se envergonham qualquer cidadão” e aponta o Canal
encontravam em lamentável estado de Campos-Macaé, como um exemplo. O artigo informa
deterioração. Ainda que elogiáveis, estes atos que a despoluição é uma “possibilidade remota”,
particularizados não sendo parte de um projeto reafirmando que o poder público municipal já tem o
político cultural de preservação dos bens projeto paisagístico concluído e está apenas
patrimoniais, deixam muito a desejar, posto que não aguardando a autorização dos órgãos ambientais
contemplam toda a demanda existente na cidade. para o início das obras. Não há nenhuma preocupação
As ações têm incidido apenas sobre os bens já em explicar o porquê da possibilidade da despoluição
tombados nos âmbitos estadual e federal. ser remota. A ausência de estudos para formalização
Em princípios do ano de 2002, o Canal Campos- de propostas alternativas não sustenta a afirmação
Macaé volta às manchetes dos jornais locais, mais categórica. O diretor do IPUCAM justifica que a
precisamente como parte do mencionado novo dragagem seria uma solução paliativa, e que as
projeto urbanístico. O jornal O Diário (17/02/2002) máquinas de dragagem causariam muitos
apresenta a proposta de realizar uma série de transtornos ao trânsito. Ele acrescenta que, sobre as
reportagens com o objetivo de abordar “alguns dos lajes que cobrirão o Canal, serão instalados jardim
inúmeros aspectos históricos do município”. Tratava- com esculturas e iluminação, além de um
se de dar uma resposta à carnavalesca Rosa estacionamento. Pela foto do layout do projeto, vê-se
Magalhães, da Escola de Samba Imperatriz também que os ipês darão lugar a “belas” palmeiras
Leopoldinense que teve naquele ano o samba-enredo imperiais.
inspirado em Campos dos Goytacazes. Apesar da No mesmo período, o Grupo Informal de Defesa
expressiva contribuição da Prefeitura Municipal do Patrimônio Cultural do Norte Fluminense abre
para a realização do carnaval (R$ 1.800.000,00) novo processo com pedido de tombamento, desta vez
que deveria exaltar o município e sua história, no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural -
muitos campistas sentiram-se tripudiados por ela. INEPAC, na expectativa de assegurar a integridade
A carnavalesca enfatizou o rito antropofágico do monumento.
mencionando os índios goitacázes. Há nisto um No dia primeiro de outubro, é anunciada nos
equivoco, tais índios não eram antropófagos. Além jornais locais a apresentação pública do novo projeto
disso, não houve nenhuma outra referência à cidade urbanístico que se vinha conhecendo a conta gotas.
e/ou a sua gente. Foram esquecidos seus heróis e Com grande pompa, no teatro municipal, o poder
mártires, assim como seu importante papel como público expõe os layouts das várias intervenções. O
produtor de açúcar no século XIX. projeto Cidade Qualidade apresenta-se como um
A primeira matéria, já publicada nesta edição, “delírio” urbanístico, no qual parques temáticos e

178 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


obras faraônicas espalham-se pela cidade, alterando como algo pronto e definitivo. E, portanto, ficam
violentamente sua feição. Como a cidade não conta anuladas as demandas dos diferentes setores sociais
com um Plano Diretor, as intervenções propostas que reclamam uma reavaliação do projeto de
tendem a substituí-lo, pelo menos ao nível do cobertura do Canal, reivindicando espaço para
discurso: “A Prefeitura de Campos dos Goytacazes propostas alternativas que levem também em conta
tem como objetivo preparar a cidade para dar seu valor simbólico.
melhores condições de habitabilidade com qualidade Em relação ao Canal, as discussões continuaram
de vida, segurança, dando condições para um partindo da imprensa e do Grupo Informal. Foram
crescimento econômico ordenado para as próximas realizados dois Colóquios no Centro de Ciências do
décadas” (folder de divulgação do Projeto Cidade Homem/UENF, com representantes de várias
Qualidade). O projeto não contempla a periferia com instituições, inclusive do poder público local para
obras de saneamento básico e melhoria de transporte debater os temas mais prementes com relação ao
urbano, por exemplo, sendo estas demandas mais Canal, tais como: saneamento e melhoria do sistema
urgentes e necessárias. viário de seu entorno. Neste período, foram
O discurso agregado ao projeto sugere a existência organizadas manifestações para esclarecimento da
de uma intenção no sentido de se preservar o população sobre a importância do Canal enquanto
patrimônio edificado, como por exemplo, a valor histórico e ambiental.
recuperação do edifício do Mercado e a valorização Em dezembro de 2002, o pedido feito ao INEPAC
dos prédios antigos da praça São Salvador. Monnet foi atendido, o Canal foi tombado como patrimônio
já advertiu como o álibi do patrimônio tem sido usado cultural do Estado. As ações tiveram que ser
para escamotear os interesses de determinados redirecionadas com um agravante: agora o
grupos por sobre o conjunto da coletividade, com tombamento passa ser o empecilho, no discurso
referência aos planos urbanísticos. Para este autor oficial, para qualquer intervenção na área. “Com o
as políticas de preservação do patrimônio, enquanto tombamento, a prefeitura está impossibilitada de
instrumentos de gestão da cidade, possuem a “imensa executar o projeto e não pensa em nenhum outro de
vantagem de parecerem... apolíticas!” (1996:226). restauração, porque teria de mudar todo o projeto
O discurso fácil, que recorre ao argumento de anterior”, afirma o Secretário de Planejamento (O
preservação do patrimônio como escusa para as Diário, 13/05/03). Apesar de algumas notícias de
intervenções urbanas, usado com freqüência pelo intenções de limpeza, dragagem, etc o que
poder público, tende a mascarar seus conteúdos permanece até hoje é a imagem de abandono,
políticos e escamotear os conflitos de interesses. permanecendo a sujeira e os transtornos decorrentes
A exposição do projeto deixa em evidência a de tal situação.
ênfase na cobertura do canal: a avenida livre do Por um lado, ficam claras as conseqüências do
“inconveniente” valão se apresenta como o novo eixo fato do município de Campos dos Goytacazes não
viário da cidade, para onde converge o trânsito dos possuir um projeto específico de preservação do seu
principais acessos à cidade e de onde se terá acesso patrimônio cultural, definido por leis e ações
aos novos complexos arquitetônicos que se pretende delimitadas. Existe uma lei de tombamento
construir/recuperar. publicada, mas os resultados práticos ainda
Durante o evento, tomou-se conhecimento de que inexistem. Num bem cultural é enfatizado, ao lado
o projeto, além da cobertura, contemplava um de seu valor utilitário e econômico, o seu valor
cuidadoso plano de saneamento, capaz de permitir o simbólico. Fonseca (1997:38) afirma que “no caso
fluxo livre e contínuo das águas com a construção de bens patrimoniais selecionados por uma instituição
de um anel sanitário em torno ao Canal. Proposição estatal, considera-se que esse valor simbólico refere-
até este momento apresentada como “uma se fundamentalmente a uma identidade coletiva, cuja
possibilidade remota”. Bem, se a proposta inclui o definição tem em vista unidades políticas (a nação, o
saneamento do canal, então, para que cobri-lo? estado, o município)”. A decisão do que deve ser
Nenhuma discussão de qualquer natureza foi conservado ou não na cidade de Campos apresenta-
realizada. O projeto foi apresentado à comunidade se arbitrária, a identidade coletiva é deixada de lado.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 179


O Canal Campos-Macaé foi selecionado, mas não para A realidade brasileira atual comporta uma
a preservação. O seu valor simbólico foi alijado e, ampliação das demandas de diversos grupos por
porque não dizer, o utilitário e o econômico também. novos espaços de discussão dos problemas sociais
Ele não será sequer visto. existentes, incluindo as demandas culturais. Uma
Por outro lado, a falta de discussão demonstra a política cultural democrática não se sustenta apenas
fragilidade das ações políticas numa sociedade que com a demarcação de valores a serem preservados,
se pretende democrática em seu sentido mais amplo, e tão somente com a ampliação do conceito de
isto é, incorporando o princípio da participação que patrimônio, a “democratização da apropriação
segundo Konder é simbólica dos bens” torna-se fundamental (Ibid.:41).
Dadas as condições em que poucos têm a possibilidade
“essencial à perspectiva democrática: uma política do exercício pleno da cidadania, uma política
cultural inspirada pelos ideais da democracia cultural democrática passa pela necessidade de se
precisa estar permanentemente empenhada em criarem mecanismos para que todos possam
aumentar a participação dos diversos setores da participar de forma justa. Para tanto, uma “atuação
sociedade na vida cultural, criando condições para didática no sentido de sedimentar uma nova cultura
que cada um traga sua própria experiência, política” faz-se necessária (Ibid:44).
aperfeiçoe sua capacidade de expressar-se, Entendemos que tal objetivo reveste-se de
expanda sua criatividade e fortaleça a sua extrema dificuldade prática, mas acreditamos que
consciência crítica” (1987:15). só a inclusão das divergências e a possibilidade de
discussão podem assegurar que a identidade seja
realmente coletiva, não somente de alguns.

Notas

*
Charles de Ribeyrolles (1980:33), cronista inglês, século XIX, nativos e antrópicos como forma de garantir uma melhor forma
em referência ao Canal Campos-Macaé. de manutenção e reintegra-los como parte do espaço urbano.
1
O Canal Campos-Macaé interliga as bacias do rio Paraíba do Sul, 3
Estas dificuldades foram reconhecidas pelo próprio poder
da Lagoa Feia e do rio Macaé. público em matéria já citada.
2
O Grupo Informal de Defesa do Patrimônio Cultural do Norte 4
Cujo coreto e entorno são tombados pelo Instituto Estadual do
Fluminense chamava a atenção, entre outros aspectos, para a Partimônio Cultural - INEPAC.
tendência atual nos países europeus de descobrir cursos d’águas 5
Ambos tombados pelo IPHAN.

Referências

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cultural no Brasil de hoje. In: Revista do Patrimônio, 22. Rio de de Brito – 100 Anos do Projeto Saneamento de Campos. Editora
Janeiro: IPHAN. Viena.

180 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


IMAGENS URBANAS: LIMA BARRETO E O DISCURSO DA
MODERNIDADE E DEMOCRACIA1

Cristiane Silveira

Mestre em História pela Universidade Federal de Uberlândia

Resumo Abstract
Este artigo possui como objetivo compor o cenário This article has the objective to compose the
das transformações urbanas e arquitetônicas scenery of urban and architectural
ocorridas na cidade do Rio de Janeiro, no inicio do transformations of Rio de Janeiro, in the beginning
século XX, a partir dos escritos de Lima Barreto. of the 20 th century. The historical referential is
Nesse momento o paradigma de modernidade/ Lima Barreto’s writing. In this period, the
progresso da sociedade européia é o maior paradigm of modernity / progress of European
referencial, impondo às terras brasileiras hábitos society were the main referential, imposing habits
e valores diferentes dos até então experimentados. and values which were different from the ones
Por meio da literatura de Lima Barreto é possível experienced at the time. Lima Barreto’s literature
perceber a construção de novas imagens, makes it possible to notice the construction of new
(re)significando lugares como a cidade, o campo e images, (re)signifying places as the city, the
a rua. country side and the streets.
Palavras-Chave: Cidade, Modernidade, Palavras-Chave: City, Modernity, Progress
Progresso.

O homem por intermédio da arte, não fica adstrito O passado não pode ser re-construído na sua
aos seus preceitos e preconceitos de seu tempo, de totalidade, pois, ao revivê-lo o tornamos diferente e
seu nascimento, de sua pátria, de sua raça; ele vai o carregamos de novas significações e interpretações.
além disso, mais longe que pode, para alcançar a O passado é re-construído pelo olhar de quem viveu o
vida total no universo e incorporar sua vida na do momento buscado, não apenas através da oralidade,
mundo. Lima Barreto mas também de documentos escritos, oficiais ou
ficcionais. Esses documentos muitas vezes relatam
Reviver o passado significa buscar vestígios que ou deixam transparecer os sentimentos mais íntimos
trazem à tona um “tempo perdido” no ar rarefeito que, em algum momento, se fizeram presentes na
da história que, um dia, se fez por meio dos realidade e na imaginação dos agentes históricos
sentimentos de sujeitos que vivenciaram seu responsáveis pela sua construção.
presente de uma forma singular, construindo sua Tendo em vista a dinâmica da re-construção do
subjetividade. Percorrer os caminhos já vivenciados, passado este artigo busca refletir sobre um caminho
desvendando paixões e sonhos não concretizados é possível para a reflexão da identidade nacional por
preocupação constante não só do historiador, mas meio das narrativas literárias de Lima Barreto nas
também de homens que procuram registrar e primeiras décadas da República no Brasil, mais
entender a constante construção do imaginário social especificamente de 1904 a 1920. O texto será divido
e da dinâmica da qual fazem parte, mesmo não sendo em duas partes: na primeira, fazemos uma breve
estes atos intencionais. discussão sobre as possibilidades de cruzamentos e os

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 181


limites entre a literatura e a história, entendendo preocupações as relações de poder que se fazem
que essa questão ainda carece de muita discussão. A através dos jogos políticos. O plano político, ao qual
seguir procuramos por meio das narrativas literárias esta história se refere, não está presente apenas nas
de Lima Barreto construir um novo olhar sobre a relações travadas pelo Estado, mas nos diferentes
formação da identidade brasileira e a vivências dos âmbitos da vivência social, pois o político “não
marginais da recém criada República em busca de constitui um setor separado: é uma modalidade da
afirmação social, por meio das manifestações dos prática social” (RÉMOND, 1996, p.35-36) que se
mais íntimos sentimentos desses sujeitos marginais concretiza no cotidiano e é re-elaborado de acordo
que incorporaram os ideais apregoados pelos gestores com as expectativas e experiências pessoais. Sendo
da República de maneira muito particular. assim, os registros históricos não ficam meramente
circunscritos às práticas oficiais.
Dentro dessa nova perspectiva historiográfica, o
História e Literatura: cruzamentos e processo de construção do conhecimento em história
desencontros começa a ser entendido como um movimento
dinâmico, que se faz em meio ao eterno (re)pensar
As histórias de Clara dos Anjos, Policarpo do homem sobre o antes e o agora, tentando, a partir
Quaresma, Isaías Caminha, Cassi Jones, Gonzaga e de suas inquietações, formular outras interpretações
Sá, entre outros, todos personagens de Lima Barreto, sobre essa temporalidade.
permite-nos (re)construir a trajetória de cidadãos Em decorrência dessa concepção, cria-se o
que lutaram pelos seus ideais e interesses conhecimento sobre o passado com indagações que
experimentando uma nova forma de construção da partem do presente, em função da necessidade de se
identidade nacional brasileira. As histórias conhecer a história por meio do estudo de visões ainda
“anônimas” desses personagens literários foram pouco exploradas. Ao procurar por explicações
durante muito tempo desconsideradas pela outras, que não as consagradas, o historiador se
historiografia brasileira, pois não a reconheciam deparou, entre outras fontes, com a literatura.
como testemunhos históricos. Nos dias atuais o debate Se hoje percebemos a preocupação de vários
sobre os cruzamentos entre a história e a literatura estudiosos que se dedicam aos estudos sobre as
é ainda candente. Veremos a seguir alguns pontos. fronteiras entre história e ficção, essa que significa
Ao se eleger a produção literária como documento obstáculos à comunicação, mas também regiões de
histórico, deparamos-nos com a discussão da encontro, em muitos momentos verificamos uma
literatura como fonte histórica, visto que esse ligação muito próxima entre ambas, cujas fronteiras
material, ao transitar entre a ficção e a realidade, foram sendo construídas ao longo do tempo. Na
permite-nos uma re-leitura dos aspectos e das Grécia Antiga, por exemplo:
semelhanças da realidade vivida numa
temporalidade passada, mas também gera muita Encontramos uma cultura na qual a distinção
discussão sobre sua validade como fonte para a entre história e ficção era autoconsciente (do que
pesquisa histórica. deriva nossa própria consciência da distinção)
A possibilidade da utilização da literatura como mas também uma cultura na qual (em
documento histórico foi possível graças ao debate comparação com o Ocidente dos séculos XIX e XX)
historiográfico que se seguiu a partir dos anos 60, a fronteira era mais aberta e/ou colocada em
problematizando novos temas e objetos, inserindo- lugar diferente. (BURKE, 1997, p.107-115)
os no campo das paixões e não somente das
racionalidades, buscando análises que privilegiavam Já na “Idade Média, a fronteira entre história e
os sentimentos e as sensibilidades na re-construção ficção (seja nos casos das vidas dos santos, seja nos
da história. “romances” de Artur e Carlos Magno) era
A pesquisa histórica que procura trazer à tona os extremamente aberta, tanto assim que é difícil de
sentimentos, as sensibilidades, as paixões dos sujeitos localizá-las”. Diferentemente do que acontece com o
em determinadas épocas, possui como centro das Renascimento, no qual “vemos um aparente retorno

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aos padrões clássicos (...) Como no caso de Aristóteles, de sua própria história, permitindo, finalmente, o
e seguindo Aristóteles, humanistas e outros fizeram conhecimento de uma realidade que não apenas a
distinções explícitas entre história e ficção”(BURKE, sacralizada pela história dos vencedores .
1997, p.107-115). Assim, podemos perceber que (SEVCENKO, 1993, p.21)
hoje, herdeiros do Renascimento, buscamos por A literatura (quer seja: romances, crônicas e
fronteiras mais abertas entre esses campos. 2
contos) lida com o estudo do imaginário social, cuja
Questionar onde realmente estão os cruzamentos manifestação se dá por meio de imagens e discursos,
entre a história e o romance ficcional constitui-se resultado do permanente campo de tensão entre os
tarefa complicada. No entanto, acreditamos que por grupos, a partir de cujas lutas os sujeitos conferem
meio da literatura o historiador possa alcançar uma sentido e explicação ao mundo. Chartier (1991)
distensão maior entre os limites de ambas e compreende a representação como um instrumento
contribuir para a amplitude da construção histórica, de reconhecimento de um objeto ausente e de
privilegiando os sentimentos dos sujeitos que exibição de uma presença, nos quais permanece uma
procuraram refletir sobre o momento vivido, a constante relação entre imagem presente e objeto
partir das possibilidades de vivências pessoais e de ausente. A luta pela sobrevivência cotidiana confere
seus contemporâneos. lugar aos sujeitos e permite a divisão da sociedade
O cruzamento entre história e literatura em grupos, cujas práticas existem nas representações
possibilita uma maior flexibilidade para se pensar a transpostas para a vivência dos sujeitos, através das
história e os vários elementos constituintes de sua falas, das práticas político-sociais e dos discursos
(re)construção, pois entendemos não existir uma elaborados pelos diferentes grupos sociais. As
única visão dos objetos em análise, mas, perspectivas representações não são menos reais que as ações
que podem apontar diferentes estilos de concretas, mas é a própria realidade, pois a ação não
representação. Desse modo, somos instigados a existe antes de ser pensada, imaginada na realidade
procurar novos elementos para sua construção. dos sujeitos que as concebem e as amealham.
Neste contexto, torna-se importante destacar o A literatura pertence ao campo das representa-
fato que a produção da obra literária está associada ções e cabe, pois, ao historiador reinterpretar o
ao seu tempo, refletindo em suas narrativas encontro entre os mundos dos textos e dos leitores, e
angústias e sonhos de agentes sociais como os leitores incorporam e se apropriam dos textos
contemporâneos à sua criação e mesclando de diferentes formas em momentos históricos
elementos de ficção e das possíveis realidades distintos. Os leitores “com efeito, não se confrontam
existentes no momento da criação literária. Dessa com textos abstratos, separados da materialidade:
forma, a obra de ficção lida com ações sonhadas, com manejam objetos cujas organizações comandam a
sentimentos compartilhados, com intermediação leitura, sua apreensão e compreensão partindo do
entre o real e as aspirações coletivas. A obra literária texto lido”. (CHARTIER, 1991, p.178)
constitui-se, assim, parte do mundo, das criações Para além dessa questão, é possível afirmar que
humanas e transforma-se em relato de um a produção literária não é construída com vistas a
determinado contexto histórico-social. Por isso, um fim pré-determinado pelo autor, cuja escrita
“qualquer obra literária é evidência histórica sugira antecipadamente esquemas de interpretação
objetivamente determinada – isto é situada no e de apropriação do texto pelo leitor. Ao contrário,
processo histórico”. (CHALHOB e PEREIRA, 1998, somente o leitor poderá conceder à produção
p.07) literária um fim. No entanto, é perceptível na relação
Para Sevcenko, o estudo da literatura traz consigo leitor e texto, de acordo com De Decca (1988, p.70.),
nova possibilidade de análise do passado, por meio um fato estético:
da fala dos não ajustados socialmente. A narrativa
literária cria a possibilidade do vir a acontecer, dos Em que o leitor existe para além do texto, mas ao
sonhos que revelam outro cotidiano que não apenas mesmo tempo traduz o próprio texto em sua
o dos vencedores, faz alusão a sujeitos que reelaboram existência cotidiana e em suas ações. Isto é, o leitor
sua prática social e os transforma em realizadores transfere o fato estético para o universo da

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historicidade, uma vez que ele como sujeito da determinado tempo lhe aferem é o resultado da
ação, pode imprimir forças às imagens literárias, cultura de seu tempo, sendo, com isso, a expressão
traduzindo-as no sentido de sua própria vida. dos jogos de tensão e as opções escolhidas pelo seu
criador 3 .
A partir dessa compreensão, a obra literária No mundo da imaginação não existem barreiras,
amplia as possibilidades de abordagens históricas. tanto para o escritor, como para o leitor. Tudo é
Ao historiador não cabe ter como preocupação plausível de acontecimento: os sonhos se
central a análise crítica direcionada à sua forma de transformam em realidade quase palpável. Novas
construção literária, mas, com a lógica singular da sensações são suscitadas no leitor, e estes podem, por
narrativa literária, que se encontra fundada no intermédio da leitura ser instigados à transformação
momento de produção. Com isso, o que interessa ao dos seus pensamentos mais íntimos.
historiador no texto literário: Nesta perspectiva, é possível perceber que as
narrativas literárias possuem como característica
não é (o seu) caráter manifestamente ficcional a semelhança e as possibilidades de acontecimento
ou não determinado como testemunho histórico, do momento de sua produção. Por meio das análises
mas a necessidade de destrinchar sempre a realizadas por Stella Bresciani a respeito de
especificidade de cada testemunho. Assim, por Germaine de Staël, podemos entender as narrativas
exemplo cabe ao historiador descobrir com igual literárias sob uma perspectiva mais ampla,
afinco tanto as condições de produção de uma lembrando que Staël acredita que a obra de ficção
página de um livro de atas, o de um depoimento seja um instrumento para a formação dos cidadãos
criminal, quanto os de um conto, de uma crônica para a república democrática francesa, pois:
e de uma peça literária. Cabe o mesmo
interrogatório sobre as intenções do sujeito, sobre Sua adequação ao regime político de liberdade
como este representa para si mesmo a relação residiria na forma da trama novelesca, onde tudo
entre aquilo que diz do real, cabe desvendar é ao mesmo tempo “inventado e imitado”, “onde
aquilo que o sujeito testemunha sem ter a nada é verdadeiro, onde tudo é verossímil”, onde
intenção de fazê-lo, investigar as interpretações a “pintura de nossos sentimentos habituais”
do autor, enfim, é preciso buscar a lógica social parece dirigir-se diretamente ao leitor, falar dele,
do texto. (CHALHOUB e PEREIRA, 1998, p.18) de sua vida e de desejos íntimos. (BRESCIANI,
2002, p.42)
Há, na produção literária, um universo muito
rico de vestígios para a interpretação de seu momento Assim, abre-se a perspectiva de pensar as ficções
histórico que não se esgota na palavra escrita, mas literárias não como cópia da realidade, mas como
transcende-a, rumando em direção ao campo das possibilidades de acontecimento, as quais estão
representações, as quais se fazem no cotidiano dos intimamente ligadas com os sentimentos e a
mais variados sujeitos. Todo testemunho histórico, imaginação de quem faz parte do momento de sua
independente de ser um documento oficial ou uma confecção. Assim, a criação literária não é cópia do
obra de arte possui consigo significações que serão momento da sua realização, mas tudo que é escrito
entendidas quando devidamente analisada sua torna-se, em certa medida, verossímil, ou seja,
relação com o contexto histórico no qual o objeto foi passível de acontecer.
produzido, revelando as lutas que a vitória de Visto dessa maneira, é possível privilegiar a
determinado “projeto de cultura” deixaram literatura enquanto importante elemento
cravadas, trazendo, assim, a representação de seu constituinte da re-construção da história. Com a
grupo social. literatura a possibilidade do acontecimento histórico
A obra de arte transforma seus valores de acordo é alargada, pois no mundo imaginário não existem
com o tempo no qual está inserida, possuindo, assim, regras sociais a serem cumpridas e as ações
diferentes significados para épocas posteriores à sua acontecem independentemente das vivências sociais
criação. O significado que o artista e os homens de do sujeito histórico real, tornando-se, portanto,

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campo fértil para dar vazão aos anseios mais íntimos fruto de ressentimento, ao fazer-se personagem de si
dos sujeitos que, dessa forma, ampliam a dinâmica mesmo, sem, no entanto, promover nenhuma
social vivida. mediação entre a realidade e a imaginação, na
Para este estudo buscamos refletir, a partir das medida em que Lima Barreto percebia o mundo ao
narrativas literárias de Lima Barreto, um novo seu redor apenas através desse (res)sentimento. Para
olhar sobre a identidade brasileira, entendendo a Rufino, a vida do romancista foi uma grande
literatura como um espaço relevante de registro e seqüência de fracassos. Ao buscar sair desse modelo
fomento da história emergente. esquemático de interpretação da relação vivência/
obra, em muitos momentos de sua reflexão
Juaguaribe (1998, p.63) é pega pela mesma
Identidade Nacional em Lima Barreto: armadilha:
possibilidades que privilegiam os
sentimentos e a solidariedade A escritura íntima de Lima Barreto revela a
dialética do fracasso. “A vida de Lima Barreto
As histórias “anônimas” narradas por Lima foi, com efeito, um sumário do “fracasso” do
Barreto permitem um olhar sobre a construção da escritor de prosa realista, do crítico que
identidade nacional brasileira voltada para as articulava a literatura como documento social
potencialidades dos sujeitos que caminhavam pelas na missão reivindicatória de uma cidadania para
ruas do Rio de Janeiro em busca de sua sobrevivência os despossuídos da cidade. Se a escritura
cotidiana, muitas vezes esquecidos pelo Poder explicitamente ficcional dos romances almejava
Público. Discutir essas multiplicidades de pichar o protesto nas fachadas acadêmicas da
experiências, em boa parte desconsideradas pelo cidade letrada, a escritura íntima desdobra-se
governo e pelas elites, por significarem como um lamento e uma purgação da distância
singularidades de um Brasil que se desejava entre o que o Lima Barreto escritor desejava
esquecido, possibilita seguir um novo caminho para projetar e a resposta crítica que o meio social lhe
o entendimento da identidade brasileira. propiciou.
Para trazermos à tona essa nova perspectiva de
construção da identidade nacional elegemos os Para essa autora, os escritos de Lima Barreto
romances de Lima Barreto como guia para o permanecem em dois campos de tensão: o que atinge
caminho a ser construído. Antes, porém, o seu íntimo (diário) e o público (romance), porém o
procuraremos recuperar alguns aspectos da fracasso é revelado de modo amplo no primeiro. A
trajetória do escritor como um todo. punição recebida por Lima Barreto ao não se ajustar
A vida do romancista foi marcada pela tentativa às regras impostas, foi não conseguir alcançar seu
constante de ultrapassar fronteiras, repensar sonhado lugar no meio intelectual.
atitudes e valores, refletir sobre a situação em que No entanto, essas não-vitórias devem ser
se encontrava grande parcela da população menos relativizadas, pois o momento não era para a
privilegiada economicamente no Brasil, durante o exposição de pensamentos diferentes daqueles
período da Primeira República. Entretanto, alguns provenientes dos dirigentes da sociedade. Contudo,
pesquisadores procuraram explicar a obra de Lima Lima tecia ácidas críticas contra eles. Ao atentarmos
Barreto apenas como resultante do ressentimento para a vida desse escritor, acreditamos que houve
deste em relação à política de exclusão e preconceito várias vitórias, como, por exemplo, ter conseguido
contra a população marginalizada e por não ter publicar a maioria de seus romances, mesmo que a
conquistado o lugar desejado como grande escritor. publicação não tenha lhe dado grande retorno
Esse olhar acabou reduzindo, por muito tempo, o financeiro. Além disso, ele foi um assíduo
caráter combativo de sua literatura. colaborador em jornais e revistas do Rio de Janeiro.
Analisando os diários e romances de Lima Se sua vida fosse constituída apenas por fracassos,
Barreto, Beatriz Jaguaribe chama a atenção de como sua inserção social não teria se realizado. Mesmo à
Joel Rufino caracterizou a obra de Lima Barreto como revelia dos intelectuais, Lima conseguiu trazer à

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tona o relato dos sujeitos marginais e de sua preocupado em fornecer sonho ou analgésicos para
insatisfação com os rumos tomados pela República. as dores de seus personagens ou leitores” mas
Pensou de maneira única na identidade desses desmascarar a hipocrisia reinante, pois só assim os
marginais, mostrando-os como seres ativos em seu marginais se fariam ouvir. Procurou, então, dar voz
cotidiano, tarefa demasiadamente difícil. Lins às falas silenciadas pelo ideal de modernidade
(1976, p.11) aponta interessante reflexão sobre a brasileira, que violava direitos e sonhos das classes
obra de Lima Barreto: populares.
Ao longo de sua vida, Lima Barreto refletiu
Lima Barreto não combate em benefício próprio; profundamente sobre os problemas da nação
os preconceitos e as injustiças despertam sua ira brasileira. Tinha a forte convicção de que as
pelo que não são, e não pelo fato de atingirem a instituições republicanas deveriam passar por
ele. Longe de ser – e só isto – um ressentido ele é profundas mudanças, principalmente com respeito
um lutador, um escritor consciente das à contenção do avanço da corrupção na burocracia.
desigualdades, das degradações de natureza ética Ele julgava necessárias mudanças estruturais e
e estética, um ser humano cheio de fervor, funcionais no Estado que, na maioria das vezes,
sonhando um mundo menos estúpido e clamando contratava e promovia seus funcionários não de
até a morte – sem meios termos, sem frieza, acordo com as necessidades reais, mas sim em troca
assumindo posições claras, com truculência, com de favores que beneficiavam amigos ou familiares.
cólera – a sua verdade. (Grifos do autor) Essa troca de benesses era pautada sobretudo na
cordialidade e não visava a melhoria social e
Essa análise proporciona uma visão mais econômica da coletividade. Essa dura realidade era
abrangente da produção de Lima Barreto que não se presenciada por Lima em seu cotidiano na Secretaria
fecha na vida do escritor e alcança um contexto onde trabalhava.
social mais amplo, ou seja, o meio em que ele vivia. Na obra literária produzida por Lima, o
Lima, ao produzir sua obra, pensava não apenas em romancista construiu seu sonho de moralização da
seus fracassos, mas na dinâmica social na qual República, vivenciada pelo seu personagem
grande parte da população era sacrificada em Gonzaga e Sá, que reivindicou projetos políticos
benefício de poucos. Seus romances procuraram mais eficazes, que, certamente, passariam por um
trazer à tona uma reflexão sobre os caminhos processo de transformação/revolução nas
tomados pela recém-criada República. É por meio estruturas políticas, econômicas e sociais do Brasil.
da literatura que o escritor procurou chamar a O escritor procurou mostrar, através da narrativa
atenção do público para a necessidade da reação do de seu personagem, que estes eram projetos
povo, para a construção de uma sociedade mais justa utópicos, escritos em maiúsculo, talvez como forma
para todos. Com isso, seu interesse extrapolou sua de reafirmar o quanto a realidade republicana
vivência particular e buscou atingir o bem-estar da deixava a desejar. Assim, transformou as
sociedade em geral. possibilidades reais em sonhos, pois naquela época
Ao se analisar a vida de Lima Barreto, a conjuntura político-social e econômica pouco
ressaltamos a necessidade de se considerar a permitia:
mediação entre as mazelas presentes em seu
cotidiano, sua resistência frente às mesmas e a busca Quis ali, em segundos, organizar a minha
pelo bem-estar geral. Não se pode negar que a cultura República, erguer a minha Utopia, e, por
de exclusão muito contribuiu para seu desalento instantes, vi resplandecer sobre a terra dias de
pessoal, fato este que foi criticado com ironia e Bem, de Satisfação e Contentamento. Vi todas as
irreverência. faces humanas sem angústias, felizes, num baile!
Ao analisar a produção de Lima, Nicolau Tão depressa me veio tal sonho, tão depressa ele
Sevecenko (1993, p.193), chama a atenção para o se desfez. (...) Tive um louco desejo de acabar
fato de que Lima Barreto queria apenas dar vazão com tudo; queria aquelas casas abaixo, aqueles
ao cotidiano que o oprimia e assim “não estava jardins e aqueles veículos; queria a terra sem

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homem, sem a humanidade, já que eu não era inviabiliza a possibilidade de considerá-lo como mais
feliz e sentia que ninguém o era ... Nada! Nada! um intérprete do Brasil.
(BARRETO, 1997a, p.85) Imaginação-reação porque é no campo da
imaginação literária que vão se concretizar as
Na fala do personagem, percebemos, uma revolta realizações/(in)satisfações desses sujeitos marginais.
que instiga a uma ação. Essa, por sua vez, Estes entram na literatura de Barreto inaugurando
revolucionaria todas as estruturas, pois uma nova forma de fazer e pensar a arte literária
representava o começo de uma nova vida para o brasileira. Ao longo da história literária do Brasil, a
país. Vida essa que deveria ter sido inaugurada com criação de Lima Barreto foi vista como uma obra de
o advento da República no Brasil. A perspectiva da menor envergadura e mal acabada. Porém, somente
República de Lima Barreto procurava alcançar a muitos anos após sua morte é que se processou uma
população em geral, e não apenas as classes crítica mais apurada sobre a real significação da
privilegiadas economicamente. produção do romancista para o entendimento das
Lima Barreto morreu em 01 de novembro de relações travadas no Brasil de seu tempo. Embora o
1922, já muito doente e por isso pouco conheceu da reconhecimento de sua obra tenha sido tardio, Lima
nova proposta de literatura que estava emergindo se firmou aos poucos, por etapas, como ressalta
naquele ano, com a Semana de Arte Moderna, que Andréa Saad Hossne (2002, p.50-57):
introduziu pensamentos e posturas diferentes das
até então defendidas pela elite intelectual brasileira. É comum, sobretudo nos textos críticos das
Essa nova perspectiva de arte, rompia o abismo entre décadas de 1940 e 1950, Lima Barreto ser
a literatura e a sociedade e se engajava no terreno classificado como um “quase” grande escritor,
da reflexão social. que maior seria tais complexos, ressentimentos e
Inconscientemente, Barreto foi um dos primeiros amarguras, e sem o álcool a turvar-lhe a visão. /
escritores a lançar a semente da mudança no meio Na década de 1970, será justamente esse suposto
intelectual em que viveu. Mesmo que, em seu vazamento da vida do autor em suas obras, o
tempo, tenha sido considerado um intelectual de teor ácido e crítico que essa voz excluída lhes
pouco valor, manifestou sua insatisfação com a confere o que será valorizado.
literatura até então produzida e, em sua obra,
conseguiu romper com várias estruturas. Ao não se Tendo em vista a posição do autor na sociedade
prender a nenhum pré-conceito e/ou escola passemos agora às reflexões sobre o período em
literária, Barreto não impôs limites para sua análise e a obra de Lima Barreto. Nesse momento,
imaginação- ação-reação. no Brasil, houve uma forte preocupação por parte
Ação porque Lima Barreto utiliza sua escrita para da elite política e dos governantes em introduzir na
construir uma nova visão sobre os marginais da sociedade brasileira o ideal de democracia e
Primeira República, que possibilita pensar a progresso. São exemplos dessa política para formar
identidade brasileira por meio do resgate dos esse novo sujeito: a construção de monumentos em
sentimentos dos cidadãos marginais. Neste sentido, saudação à República, a criação de vários símbolos
ressaltamos que uma análise mais atenta de sua obra (a bandeira; o hino nacional) e a erupção de discursos
aponta para a possibilidade de considerá-lo como que procuravam induzir, nos mais variados
importante referência para se pensar a questão da indivíduos, a fomentação de um novo imaginário
identidade. Essa que não estaria por se fazer, mas social, pautado na noção de cidadania e identidade
encontrava-se presente nas ações de sujeitos que nacional.
viviam a República de um modo bastante particular Para a historiadora Márcia Regina Naxara, a
e não nos moldes inspirados por outros países. segunda metade do século XIX e a passagem para o
Perseguir essa perspectiva na produção de Lima século XX foi um período privilegiado para a
Barreto é um desafio, uma vez que em sua obra não constituição e emergência do imaginário da
há um projeto de interpretação do Brasil e suas novas identidade nacional brasileira. Nesse momento,
relações com o advento da República. Mas isso não consolidou-se a imagem do brasileiro como indolente,

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vadio, preguiçoso e não civilizado. Essas imagens discurso homogeneizador de identidade nacional/
foram construídas a fim de justificar a política de unidade? Como pensar experiências de sujeitos tão
imigração do trabalhador europeu, pois o diferentes como sendo constituintes de uma única
trabalhador negro foi colocado como incapaz de realidade? Em conseqüência dessa situação a
exercer o trabalho livre de forma eficiente. E assim, constituição da identidade do brasileiro foi
de acordo com Naxara: contraditória, uma vez que não houve abertura de
espaço para todos os tipos sociais.
Ao longo do tempo, foram inúmeros os registros Ao refletir sobre a identidade francesa e seu
dessa desqualificação e as queixas com relação processo de formação, Yves Déloye oferece
aos elementos vistos e representados como importantes contribuições para se pensar sobre essa
“vadios” e “perigosos” que, desde sempre, difícil questão a ser enfrentada. Para o autor, a
perambulavam, primeiro pelas vilas e, mais identidade nacional é uma construção histórica que
tarde, pelas cidades, tirando o sossego dos permanece em constante mutação, e não uma noção
chamados “homens bons” e empanando o fechada, enclausurada no imaginário coletivo ou
encanto da vida “civilizada” das elites brasileiras, individualmente. Portanto,
além de, freqüentemente, serem
responsabilizadas pelo atraso do país, tanto do Longe de ser um dado que se impõe aos atores
ponto de vista cultural, como do ponto de vista sociais, a identidade nacional constitui, ao
material. (NAXARA, set.91/agos.92, p.181) contrário, o espaço de um conflito permanente
entre os que pretendem concorrentemente
Imagens fortes que persistem até os dias atuais. determinar seu fundamento e conteúdo. Reflexo
Para Naxara, a literatura produzida nessa época das lutas históricas a identidade nacional é
muito contribuiu para consolidação dessas imagens resultado de um trabalho em construção social
e para o “descobrimento” do Brasil, muito que convém compreender ao mesmo tempo, em
especialmente a personagem Jeca Tatu, de Monteiro sua estratégia e em sua dimensão cultural.
Lobato. Na virada do século XIX/XX estavam (DÉLOYE, 2002, p.95)
presentes na sociedade discursos de democracia e a
generalização da figura do trabalhador nacional, Neste sentido, a identidade nacional ganha uma
mas também a gestação da exclusão desses mesmos dinâmica pautada na construção de embates
sujeitos enquanto pertencentes à noção formada de cotidianos e não apenas por meio da vontade/
identidade nacional brasileira. imposição do Estado ou das elites. Para Déloye, a
Para forjar uma noção homogênea de identidade palavra identidade nacional já se faz complexa por
nacional muitas foram as singularidades/ sua própria polissemia, pois pode significar fronteira
subjetividades nacionais silenciadas ao longo da e clausura, que marcam as diferenças entre um país
história do Brasil, uma vez que fomos levados a e outro, mas também unidade gerida pelo Estado.
pensar na identidade nacional como algo que unia Essas concepções acabam por reafirmar o caráter
todos os cidadãos num único modelo. O discurso de excludente da identidade nacional e ainda a
construção da identidade nacional presente nesse homogeneização dos indivíduos por meio da
momento caminha contra o passado e a própria imposição cultural.
realidade vivida no Brasil, cuja multiplicidade As reflexões do autor permitem construir uma
cultural e étnica formou o ser brasileiro, e esse não noção de identidade nacional não como unidade de
era apenas branco, como queriam as elites, mas uma linguagem e raça, mas como sentimento de
mistura de nacionalidades e culturas. identificação, pois para ele: “A identidade francesa
Mas sendo o brasileiro fruto da mistura de promovida não é resultado da inserção prévia do
múltiplas raças, línguas e culturas, em que medida cidadão francês em uma etnia da qual ele herdaria
realmente houve a identificação dos mais variados a identidade, mas procede de um processo voluntário
sujeitos na formação do ser brasileiro? Como tratar de identificação e orientação de sua ação”. (DÉLOYE,
realidades plurais e fisionomias múltiplas num único 2002, p.103)

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Para complementar a discussão sobre identidade numa proposta comum e assim; “Nossa identidade
nacional as reflexões de Maria Stella Brescianni são se constitui na falta, naquilo que não tivemos, na
luminosas. Em recente trabalho, a autora (2003) ausência de predicados, na incapacidade de triunfar.
volta-se para a análise de como diferentes autores Há um vazio a ser preenchido, se possível for.”
interpretaram o Brasil. Logo de início, essa autora (BRESCIANI, 2003, p.73)
propõe-se a re-visitar autores esquecidos na Bresciani, com sua questão central: “por que a
historiografia como Oliveira Viana e Paulo Prado, identidade nacional se coloca como questão até os
mais especificamente o primeiro. Percorrendo, dias de hoje?” chama a atenção para a possibilidade
assim, longo caminho, a autora busca desmistificar de pensarmos o Brasil e sua identidade não a partir
a tríade de intérpretes consagrados sobre o Brasil: de suas carências, mas pelo olhar para dentro, no
Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado e Gilberto qual sejam respeitados os limites e principalmente
Freire criada involuntariamente por Antônio a força de fazer-se enquanto nação, problematizando
Candido em seu prefácio para o livro Raízes do Brasil. a diferença, ao contrário de procurar similitudes.
Bresciani afirma que os autores nacionais Trabalho difícil de se concretizar, uma vez que o
criaram um lugar comum de interpretação sobre o país, ao não promover um rompimento definitivo
Brasil, no qual entram em cena três explicações, com seus pais – Portugal – e sua dependência em
quais sejam; o mito de origem, a importação de relação aos países europeus, não consegue, com isso,
modelos interpretativos e a idéia de carência, de delimitar seu terreno enquanto nação forte. A
maneira sedutora e excludente de outras perspectiva de análise de Bresciani revelou-nos como
possibilidades, mantendo sua força até os dias atuais. instigadora para um novo olhar sobre os vários
Explicações essas que sempre recaem sobre uma sujeitos sociais da primeira República e os significados
única imagem: “a do país desencontrado consigo deles para a formação da identidade nacional.
mesmo” (2003, p.22), com conotação ressentida e Tendo essas referencias é que nos propomos a
negativa. Com isso: discutir a noção de identidade presente em alguns
romances de Lima Barreto. Essa perspectiva de
São imagens ressentidas e fortes: imagem de análise, em certa medida, significa pensar a
nação inclusa e identidade ressentida, recalcada, formação da identidade nacional e a inserção dos
frutos da incapacidade política de romper com a sujeitos marginais na política por um viés que não o
herança colonial ou de, tendo logrado um perfil usual, uma vez que se busca as experiências
autônomo no período colonial, ter se submetido a cotidianas que não as consideradas como ideais pelos
uma recolonização cultural por outros países gestores da nação, mas sim recuperar as
europeus.(BRESCIANI, 2003, p.17) potencialidades e subjetividades dos sujeitos que
estavam excluídos do processo de formação da
Seguindo essa perspectiva de análise, a nação e a identidade nacional
identidade de seus cidadãos não estavam prontas, Nas primeiras décadas republicanas no Brasil
mas sempre em construção, num eterno fazer-se. houve a construção de novos lugares sociais, nos
Esse discurso deu margem à criação do mito de que quais é visível a exclusão da população
o passado colonial brasileiro gerou seu presente de economicamente mais pobre. Com a expulsão dos
atraso social e econômico, impedindo que o mesmo moradores pobres para os arredores da cidade, esses
conseguisse fortalecer-se enquanto Nação passam a viver na periferia, não só no que dizia
autônoma. E, ainda, por tal motivo, delega aos respeito ao espaço geográfico, mas também quanto
outros, o papel de transformador da sociedade, a sua participação na política e na economia da
elegendo o Estado (que se deseja forte) ou a elite sociedade brasileira.
política como porta-vozes dos mais variados anseios Neste sentido, buscar os sentimentos, as
das diferentes classes sociais. sensibilidades e as novas relações experimentadas
Contudo, e ainda de acordo com Bresciani, as pelos variados tipos sociais que viviam a dinâmica
transformações sociais continuam sonhadas para o conflituosa das primeiras décadas da República no
futuro, pois não conseguem unir os anseios de todos, Brasil torna-se complicado, pois entender o

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 189


significado de identidade para a população brasileira Fisionomias diferentes de trato e de cor: velhas
pobre que sofria com o crescente descaso do governo de mantilha, moças de peito deprimido, barbudos
e a ditadura de uma elite conservadora, requer portugueses de duros trabalhos, rostos de
entendimento amplo da realidade, que, por vezes, é caixeiros, de condutores de bondes, de garçons de
contrária aos ideais democráticos. hotel e de botequim, mãos queimadas de
Entendemos que a construção da identidade cozinheiras de todas as cores, dedos gulhados de
brasileira se fez por meio da diversidade de perfis e humildes lavadeiras (...)
de experiências pertencentes tanto às elites, quanto
aos “marginais” da sociedade. Os últimos Para esses moradores da cidade, havia ainda uma
submetiam-se aos mais estranhos ofícios e passavam infinidade de profissões que chamava a atenção para
por fortes privações, mas nem por isso deixavam de uma realidade muito diversa da conhecida pela
existir/resistir. Mesmo que de forma tímida, burguesia e que demonstravam a precariedade da
multiplicavam-se ações de contestação em prol de vida dos sujeitos marginalizados que,
mudanças. Muitos desses cidadãos conseguiam freqüentemente, eram omitidos nos discursos
melhores condições de vida, outros não. A oficiais. Se não bastassem as diversidades
instauração da República inspirada em princípios fisionômicas, existia ainda uma variedade de
democráticos pressupunha a elevação de todos os profissões:
cidadãos num mesmo patamar de igualdade
política, pois essa situação significava o primeiro Além de serventes de repartições, contínuos de
passo para a constituição de uma nação moderna. escritórios, podemos deparar com velhas
No entanto, no Brasil, o fabricantes de rendas de bilros, compradores de
garrafas vazias, castradores de gatos ...,
caráter estreito, precavido e tardio dos atos com mandingueiros, catadores de ervas, enfim, uma
vistas a cumprir os requisitos das transições variedade de profissões miseráveis que a nossa
modernas, que implicam direitos de cidadania, pequena e grande burguesia não podem
induziu a criação de formas de subjetividade adivinhar. (BARRETO, 1997b, p.110)
política afastadas tanto da referência concreta
de um contrato social quanto da aspiração por Há, então, para manutenção diária desses
uma cidadania autônoma. (PAOLI, p.164) sujeitos, a invenção de postos de trabalhos
marginais, que resultam numa módica
As relações que se travam no Brasil demonstram remuneração. A realidade das experiências
a ineficiência desse contrato, uma vez que um dos vivenciadas pelos sujeitos mais pobres era pouco
contratantes, o povo, não era colocado na mesma conhecida pela burguesia, pois a mesma fazia questão
condição de igualdade política que os sujeitos das de enxergar somente flores onde existiam muitos
elites econômicas e políticas. Com a República, espinhos. Indo contra essa realidade, o ideal
delegou-se ao Estado a tarefa de elevar o povo à democrático das elites pregava um discurso de
condição de cidadão, mas não se propiciou espaço unidade republicana no qual todos estavam
para que todos atingissem a plena cidadania. Assim, contemplados.
criaram-se outras formas de identificação que muito Porém, baseando-nos no fato de que os sujeitos
se distancia da referência primeira de igualdade de trazem em seu rosto as marcas da realidade em que
direitos mencionada pelo contrato republicano. vivem, as dificuldades e alegrias ficavam gravadas
Esses sujeitos, por meio de uma maneira não apenas em suas recordações, mas também em
particular, deixavam suas marcas pela cidade. seus traços, leveza ou aspereza de suas mãos, nos
Muitas vezes, suas ações cotidianas constituíam-se trajes usados no corpo, altivez e/ou humildade
como uma afronta ao discurso civilizador que frente à realidade que os maltratava, muitas eram
pregava uma cidade limpa e ordeira, tendo como as realidades experimentadas.
inspiração o parâmetro burguês de conduta. Assim, A personagem Isaías Caminha representa um
Barreto (1994, p.114) descreve esses cidadãos: exemplo esclarecedor dessa nova condição de cidadão

190 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


gestada no Brasil. Caminha, tal como muitos outros educação como instrumento de formação dos
cidadãos brasileiros, se viu na condição de cidadão cidadãos, sendo ela condição essencial para o
periférico, ou seja, os sem lugar na sociedade progresso e desenvolvimento da cidadania. A
republicana. Sendo pobre, mulato e recém-chegado monarquia havia se esquecido da educação dos
do interior ao Rio de Janeiro, o jovem moço se viu indivíduos menos favorecidos economicamente, mas
jogado na mais completa miséria, sem possibilidade os gestores republicanos proclamavam que agiriam
imediata de transpor as barreiras do preconceito de diferente, dando ao povo a possibilidade de acesso ao
cor e de posição social. ensino formal, “devolvendo-lhe” a condição de ser
político. No entanto, as estatísticas mostram outra
e os meus sentimentos liberais que não podiam realidade:
acusar o padeiro. Que diabo! eu oferecia-me, ele
não queria! que havia nisso demais? /Era uma O número de analfabetos no Brasil, em 1890,
simples manifestação de um sentimento geral, e segundo a estatística oficial, era, em uma
era contra esse sentimento, aos poucos descoberto população de 14.333.915 habitantes, de
por mim, que eu me revoltava. (BARRETO, 12.213.356, isto é, sabiam ler apenas 16 ou 17
1956a, p.128) em 100 habitantes do Brasil. Difícil será entre os
países presumidos de civilizados, encontrar tão
Esse cidadão periférico até poderia conseguir alta proporção de iletrados. Assentado este fato,
transpor as fortes barreiras impostas pela sociedade verifica-se logo que à literatura aqui falta a
e, por isso mesmo, em algum momento, fazer parte condição de cultura geral, ainda rudimentar e,
da elite social. Mas a antiga situação na qual estava igualmente o leitor consumidor dos seus
inserido não seria de todo esquecida, o que o faria se produtos.(SEVECENKO, 1993, p.88)
sentir estranho em sua própria terra, mesmo porque
o espaço da ação desses sujeitos, na maioria das vezes Aliada à situação de poucos brasileiros possuírem
restritos, inviabilizava a sua inserção em outros a educação formal, havia ainda, na República, o
círculos de relacionamentos. Mas isto implicaria difícil acesso aos livros, pois não se encontravam num
numa mudança radical de comportamento. templo acessível a qualquer um, independente de
sua vestimenta, de seus trejeitos sociais, mas
Queria-me um homem do mundo, sabendo jogar, estavam restritos a uma pequena clientela,
vestir-se, beber, falar às mulheres; mas as portadora de alto poder aquisitivo. Assim, se por um
sombras e as nuvens começam a invadir-me a lado existia um discurso de ampliação do acesso à
alma, apesar daquela vida brilhante. Eu sentia educação formal, por outro lado, as pessoas pobres
bem o falso da minha posição, a minha exceção que a desejassem, passariam por sérios
naquele mundo, sentia também que me parecia constrangimentos. Essa situação reforçava,
com nenhum outro, que não era capaz de me portanto, a exclusão social. Afinal, os livros
soldar a nenhum que desajeitado para me disponíveis acabavam sendo enclausurados pelo
adaptar, era incapaz de tomar posição, Estado em meio a uma série de etiquetas, pelas quais
importância e nome. (BARRETO, 1956a, p.282) tornavam-se inacessíveis aos mais simples:

As marcas impostas a esse cidadão da periferia O Estado tem curiosas concepções, e esta de
rondavam os cantos da nova cidade, restringindo abrigar uma casa de instrução, destinada aos
sua aceitação em vários ambientes. Assim, a pobres-diabos, em um palácio intimidador, é das
democracia no Brasil, em seu começo, esteve em mais curiosas. (...) Como é que o Estado quer que
descompasso com a verdadeira realidade da maioria os mal vestidos, os tristes, os que não têm livros
da população e mesmo dos ideais de igualdade política caros, os maltrapilhos “fazedores de diamantes”
das sociedades modernas. avancem por escadarias suntuosas, para
O acesso à educação trazia à tona mais uma dessas consultar uma obra rara. (BARRETO, 1856b,
contradições. O discurso republicano pregava a p.37)

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 191


Dificultar o acesso ao saber era mais uma faceta para a construção da identidade do ser brasileiro.
da exclusão a que estavam sujeitos os mais pobres. Para isso recorremos ao personagem Cassi Jones, na
Assim, na fala dos republicanos, os espaços e as obra Clara dos Anjos. Na trama do romance, Jones
oportunidades da cidade pareciam pertencer a todos; é figura bastante emblemática, pois mesmo
não se colocavam placas demarcatórias para a pertencendo a uma camada mais privilegiada do
permissão da entrada dos indivíduos, mas o controle subúrbio mostrava-se avesso ao trabalho, e inventava
se dava de uma maneira mais sutil: através dos outras formas para ganhar o dinheiro necessário
gestos, das falas não pronunciadas num vazio de para a satisfação de suas necessidades pessoais. Desde
concreto e esplendor. Muitos sujeitos que não tenra idade já havia mostrado inclinação para
pertenciam a esse mundo de aparências, falas e gestos vadiagem, sempre aprontando diversas
requintados se vêem excluídos desse local, perdidos malandragens. Muito cedo foi expulso do colégio de
em meio a um mar de etiquetas e regras a serem padres. Passou toda a sua adolescência e juventude
seguidas. “A minha alma é de bandido tímido, a praticar peraltices, a arrastar para a vergonha
passando vejo desses monumentos, olho-os, talvez mulheres casadas e moças pobres – em sua maioria
um pouco, como um burro; mas por cima de tudo, mulata ou negra – mas sempre teve a mãe como
como uma pessoa que se estarrece de admiração defensora de seus atos. Já o pai de Cassi acreditava
diante de suntuosidade desnecessária”. (BARRETO, que a única forma de corrigir acertadamente o filho
1994, p.37) seria “pô-lo numa oficina, a ver se o trabalho manual,
Talvez a vergonha de não se sentir partícipe desse já pelo cansaço, já pela convivência com pessoas
espaço público o impedia de ultrapassar as grandes honestas e de trabalho, desviava-o do mal caminho
escadarias da entrada suntuosa da Biblioteca que ele estava iniciado.”(BARRETO, 1994, p.34)
Nacional e caminhar rumo ao monumento do saber, Logo em seu primeiro emprego Cassi foi despedido
erguido pela República, ostentando toda sua pompa. por roubo e não mais se preocupou em encontrar
Assim, dificilmente um cidadão mal trajado, não um trabalho diário. Para seu sustento, ocupava-se
trazendo estampado em seus gestos, a ação, a fala e a com galos de brigas. Mesmo sendo o dinheiro o seu
aparência de pertencimento ao novo ideal de ponto fraco “queria-o, mas sem esforço”. A única
sociedade, adentraria nos espaços requintados da atividade lucrativa à qual se dedicava era a briga
Biblioteca Nacional, pois se perderia entre os vazios de galo e outros jogos, sendo, então, visto como um
do novo prédio. Lima Barreto (1956, p.37) reafirma típico vagabundo, pois “incapaz ao trabalho
com isso uma certa nostalgia dos tempos passados, continuado”:
em que a “velha biblioteca era melhor, mais
acessível, mais acolhedora, e não tinha a empáfia Galos de briga era a força de sua indústria e do
da atual”. seu comércio equívocos. Às vezes ganhava bom
Assim, por um lado, o discurso republicano dinheiro nas apostas de rinhadeiro, o que vinha
utilizou-se do constrangimento para moldar esse ressarcir os prejuízos que porventura,
cidadão periférico, demarcar seu espaço e faze-lo anteriormente, houvesse tido nos dados; assim,
comungar com uma realidade que não era sua. Por conseguia meios para saldar o alfaiate ou
outro, existiam as elites que, lutando em favor do comprar sapatos catitos e gravatas vistosas (...)
ideal de modernidade, expresso nas faces das damas Nunca suportara um emprego, e a deficiência de
da sociedade, dos cavalheiros, portavam-se com a sua instrução impedia-o que obtivesse um de
finura que a situação demandava, fazendo-se acordo com as pretensões de muita coisa que
visíveis nas ruas centrais da cidade carioca, em seus herdara da mãe; além disso, devido à sua
passeios rotineiros. Juntamente com os gestos e educação solta, era incapaz para o trabalho
atitudes havia toda uma moral a ser seguida. De assíduo, seguido, incapacidade que, agora, roçava
antemão, o trabalhador pobre era considerado como pela moléstia. A mórbida ternura da mãe por
um ser indolente e preguiçoso. ele, a que não eram estranhas as suas vaidades
Mas, existem algumas singularidades nas pessoais, junto à indiferença desdenhosa do pai,
imagens literárias que ainda podem ser exploradas com o tempo fizeram de Cassi o tipo mais completo

192 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É permitia o casamento com as vítimas de suas relações
um tipo bem brasileiro. (BARRETO, 1994, p.29) amorosas, por serem as mesmas vistas como
inferiores à sua condição social. Havia, então, na
Cassi pode ser entendido como um cidadão às figura de Cassi Jones uma tensão constante, a qual
avessas, pois não se identificava ou era aceito por não o enquadrava nem sempre, no papel de vítima,
nenhum segmento social. Era considerado como nem no de algoz.
marginal pela classe social “mais elitizada” e também Quando Cassi conhece Clara, uma linda mulata,
pelos habitantes do subúrbio, pois todos respeitavam a seduz com promessas de casamento e de uma vida
certas regras sociais. Suas relações de amizade feliz. Para a conquista de Clara, mesmo que não a
estavam restritas a um pequeno número de amasse, não mediu esforços, chegando a matar
indivíduos que, tal como ele, vivia de malandragens Marranque, o padrinho da moça. Depois de concluída
e roubos. Mas Cassi se faz diferente de todos, pois sua conquista e pressentindo complicações resolveu
destacava-se entre seus companheiros pela fugir, antes de descobrirem a gravidez de Clara.
esperteza, maneira de vestir-se e sua arte de tocar Cassi resolveu vender tudo o que possuía de valor,
violão, mas essa última o fazia aceito em muitas ou seja, seus galos, para, com o dinheiro, realizar
casas. sua fuga. Recebido o dinheiro, resolve colocá-lo no
A trajetória desse personagem se faz interessante, banco; para isso desce até a cidade. No caminho
pois mesmo sem se identificar com nenhuma das desiste, pois a qualquer momento poderia precisar
classes sociais que freqüentava, Cassi possuía do dinheiro e o banco poderia retardar sua fuga. Em
trânsito livre em quase todas e nem sempre era sua caminhada encontra uma velha conhecida que,
apenas o algoz. Mesmo com a cumplicidade de sua por alguns momentos, transforma o algoz em
mãe, ele é menosprezado pelo pai, que com o passar vítima:
dos anos não lhe permite a entrada dentro da casa
da família. Suas duas irmãs também não gostavam - Então, você não me conhece mais, “seu canaia”?
dele. Mas suas freqüentes conquistas permanecem Então você não “si” lembra da Inês, aquela
impunes: crioulinha que sua mãe criou e você...
Lembrou-se, então, Cassi, de quem se tratava.
Até ali, ele contava com a benevolência secreta Era a sua primeira vítima, que sua mãe, sem
dos juízes e delegados, que, no íntimo, julgavam nenhuma consideração havia expulsado de casa,
absurdo o casamento dele com as sua vítimas, em adiantado estado de gravidez. Reconhecendo-
devido à diferença de educação, de nascimento a e se lembrando disso, Cassi quis fugir. A
de cor, instrução. Quanto à segunda e terceira rapariga pegou-o pelo braço:
causa, embora nem sempre se verifique a - Não fuja, não, “seu” patife! Você tem que “ouvi”
segunda, podia-se admitir; mas, quanto às duas uma “pouca” mas de “sustança”.
outras considerações, eram errôneas, porque ele A esse tempo, já os freqüentadores habituais do
era tão ignorante e tão mal-educado como eram, lugar tinham acorrido das tascas e hospedarias e
em geral, as humildes raparigas que ele formavam roda, em torno dos dois. (...)
desgraçava irremediavelmente. / De resto, ele - É sempre assim. Esses “nhonhôs gostosos”
já não contava com proteção alguma. (BARRETO, desgraçam a gente, deixam a gente com filho e
1994, p.75-76) vão-se. A mulher que se fomente ... Malvados!
Cassi ouvia tudo amarelo e olhava, por baixo das
Na passagem acima tornam-se latentes vários pálpebras, todas as faces daquele ajuntamento.
privilégios que, tempos antes, os republicanos diziam Esperava a polícia, um socorro qualquer (...)
querer liquidar. Esses privilégios conseguiam impor- Soltou uma inconveniência, acompanhada de
se sobre o sofrimento das desonradas e seu futuro de um gesto despudorado, provocando uma
misérias, libertando-o do casamento. Assim, mesmo gargalhada geral. Cassi continuava mudo,
Cassi sendo considerado um típico vagabundo, parte transido de medo (...) Graças à intervenção do
da sociedade (a mãe, os delegados e amigos) não lhe dono da tasca, que tinha com a guarda de ronda

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 193


o compromisso de manter a ordem no “reduto”, o existe apenas a figura do malandro, mas também
ajuntamento se desfez, e Cassi pôde continuar o de um sujeito que ao ser “recebido” nesses espaços
seu caminho. Por despedida, porém, ainda levou utiliza-se das mais variadas artimanhas para
uma surriada das mulheres, que o construir seu cotidiano, diferentemente das regras
descompunham em baixo calão, enquanto Inês sociais a que esses marginais eram condicionados.
imprecava: Se sua postura num primeiro momento causa
- “Marvado”! Desgraçado! Carcadura! Hás de “mi repulsa, em outros é possível vislumbrar um sujeito
pagá”, “seu canaia”! que, a seu modo, sai a procura de reconhecimento
Logo que se viu longe do perigo, Cassi respirou, social. Seu modo de viver o faz marginal
compôs a fisionomia, apalpou o dinheiro e fez de duplamente, mas nem por isso pode ser considerado
si para si: apenas como um derrotado ou um “herói”que
- Acontece cada uma! Para que havia dar esta conquista todos os desejos, mas sim um homem que
negra.... Felizmente, foi em lugar que ninguém luta, à seu modo, para construir uma forma de
me conhece; se fosse em outro qualquer – que pertencer à sociedade que o rodeia.
escândalo! Os jornais noticiariam e ...Não passo Não somente através da figura de Cassi podemos
mais por ali e ela que fosse para o diabo!... Fico perceber os marginais em busca de um viver
com o dinheiro em casa.(BARRETO, 1994, p.115- diferente das regras impostas pelas elites. Em Lima
116) Barreto é possível encontrar outras trajetórias de
pessoas humildes que, em busca da sobrevivência,
Ao reencontrar sua primeira conquista, expulsa firmavam sua identidade em diferentes modos de
de casa pela mãe do rapaz ao descobrir a gravidez da vida. Exemplo disso é o caso da personagem do
moça, Cassi recebe, mesmo que em pequena dose, o romance Clara dos Anjos, Margarida Weber, alemã,
troco por suas malvadezas. A cena relatada viúva, que para o sustento de sua casa e de seu único
demonstra no mutismo de Jones o medo, seu orgulho filho “Costurava para fora, bordava, criava
foi maculado perto de pessoas desconhecidas, pobres, galinhas, patos e perus, e mantinha-se serenamente
sujeitos que em qualquer outra situação seriam honesta”.(BARRETO, 1994, p.44)
menosprezados por Cassi. A revolta não era apenas Nesse momento, havia na sociedade espaço
de Inês, que por ele havia sido desgraçada, mas definido para as mulheres: o lar. Dona Margarida
também de outras mulheres com a mesma sina. ao ficar viúva torna-se independente, sua honra está
Assim, Cassi, que durante toda sua vida havia fugido no fato de viver honestamente, conquistando uma
da polícia, deseja por alguns momentos sua ajuda, condição de vida digna para si e seu filho. As relações
coroando sua posição de vítima indefesa. Se em de amizade dessa personagem são poucas e uma das
vários outros momentos de sua vida havia recebido mais próximas é Clara dos Anjos. A moça, ao
a ajuda da mãe ou conhecidos, agora se vira só. descobrir sua gravidez, sai em busca da ajuda de
Há ainda expressa na passagem a preocupação dona Margarida. Essa, ao descobrir as intenções de
de Cassi em manter uma postura de superioridade. aborto de Clara, conta para a mãe dela o que estava
O momento de fraqueza da personagem só não foi acontecendo. A mãe de Clara se desespera com a
mais desastroso porque não havia nenhum situação e se imobiliza, como sempre fazia nos
conhecido, fora a possibilidade do acontecido virar momentos de pressão, pois não se considerava capaz
notícia de jornal, o que poderia trazer complicações de agir e decidir e, assim, sair da esfera da
ou mesmo impedi-lo de realizar seu plano de fuga. passividade. No entanto, a atitude de dona
Interessante nesse acontecimento é pensar as várias Margarida foi diferente, induzindo Clara a
situações em que Cassi se deparava no cotidiano, no reivindicar o apoio da família do algoz. Cassi nesse
qual nem sempre prevalecia uma situação de momento já havia efetuado sua fuga.
superioridade e arrogância perante suas vítimas. A situação que se desenrola é muito interessante:
Percebemos, por meio da trajetória de Cassi mesmo que a sociedade acreditasse nas diferenças
Jones, a possibilidade de um sujeito marginal se fazer de cor e posição social como determinantes para a
visível em vários ambientes sociais, nos quais não resolução dessas situações, essas duas figuras

194 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


consideradas como marginais vão até o segmento Aos olhos de Clara, dona Margarida se destacava pela
social mais privilegiado buscar o que acreditavam sua postura perante a sociedade, pois não teme esses
ser seu de direito. Se para Clara o encontro por um (pré-)conceitos sociais, mas busca o que acredita ser
lado foi frustrante, pois descobre a face mais seu de direito; ela era, pois, uma pessoa de pulso.
preconceituosa da sociedade, por outro lado, a motiva Nesse processo de desnudamento da sociedade
a fazer claras reflexões sobre a sociedade à qual para Clara, torna-se também interessante refletir
pertence, não podendo ser, portanto, considerada sobre a força que a moça adquire. Ao contrário de se
como um ser sem ação, mesmo que esta seja limitada curvar a essas injustiças sociais, Clara pede por
pelos preconceitos sociais. transformações no modo de agir e pensar da sociedade
O encontro entre a mãe de Cassi, Salustiana e preconceituosa. Para ela, a ordem social vigente é
Clara revela a esta a triste realidade aceita pela equivocada, pois a sociedade mede as qualidades
sociedade: pessoais pela cor e posição social, mas ela acredita
que mesmo sendo mulata e pobre isso não a faz
Agora é que tinha noção exata de sua situação na diferente de ninguém. Mesmo num momento de
sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavel- profundo desalento com a sociedade e as regras
mente nos seus melindres de solteira, ouvir sociais, Clara se faz mais forte do que elas.
desaforos da mãe de seu algoz, para se convencer A perspectiva de identidade que se percebe na
de que ela não era uma moça como as outras; era reação de Clara não é a de derrota, mas de
muito menos no conceito de todos. Bem fazia transformação/construção. Essas mudanças não
adivinhar isso, seu padrinho! Coitado!.. / A partiriam de modelos internacionais importados,
educação que recebera, de mimos e vigilâncias que muito se distanciavam da realidade brasileira,
era errônea. Ela devia ter aprendido da boca de mas sim a partir da vivência desse sujeito marginal
seus pais que a sua honestidade de moça e de que encontrava em seu cotidiano as mais diferentes
mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, situações. Essas, por sua vez, não devem ser
com exemplos, claramente (...) O bonde vinha enclausuradas em tipos pré-concebidos, como por
cheio. Olhou todos aqueles homens e exemplo, a figura do brasileiro como indolente,
mulheres...Não haveria um talvez, entre toda preguiçoso, mas pautada nas singularidades das
aquela gente de ambos os sexos, que não fosse vivências dos mais diversos cidadãos brasileiros que
indiferente à sua desgraça...Ora uma mulatinha, podem não estar trazendo nas faces ou nos gestos os
filha de um carteiro! O que era preciso tanto a ela indícios de pertencimento ao ideal de modernidade
como às suas iguais, era educar o caráter, revestir- e de progresso sonhados pela elite, mas
se de vontade, como possuía essa varonil Dona experimentam em seu cotidiano diferentes formas
Margarida, para se defender de Cassi e semelhante, de pertencer ao país chamado Brasil.
bater-se contra todos que opusessem, por este ou Por meio das ações realizadas pelos vários
aquele modo, contra a elevação dela, social e personagens de Lima Barreto, é possível construir
moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão uma imagem menos limitada do ser brasileiro, e
o conceito geral e a covardia com aquelas que essa, mesmo que em alguns momentos considerada
admitiam.(Barreto, 1994, p.132-133) como marginal, busca por meio de uma identificação
com o cotidiano que lhe é imposto construir uma
A passagem, apesar de longa, traduz o despertar nova noção de identidade. Noção essa pautada na
de Clara para a realidade das mulheres nas busca incessante dos vários sujeitos pelo respeito à
primeiras décadas republicanas, principalmente, sua subjetividade. As ações desses cidadãos nem
das mulatas e negras, sendo este um desabafo contra sempre foram tidas como vencedoras, ou mesmo
uma sociedade opressora, que não permitia o recebidas pelas elites como forma de atuação social,
relacionamento entre pessoas de etnia e classificação mas nem por isso devem ser desconsideradas. Assim,
social diferentes, mesmo que o elemento considerado acreditamos que o ser brasileiro foi construído tendo
bom (branco e com melhor posição social) fosse por base as mais diversas realidades e experiências
também um marginalizado como o era Cassi Jones. encontradas no cotidiano de todos os cidadãos.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 195


Notas
1
Essa discussão faz parte das análises realizadas na Dissertação antiguidade até os dias atuais, ressaltando que o período atual
de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em foi o mais fértil, uma vez que essas fronteiras se reabriram para
História da Universidade Federal de Uberlândia, intitulada: O novas discussões.
alvorecer da República sob o olhar interpretativo de Lima 3
Argam, em a História da Arte como História da Cidade se refere
Barreto, orientada pela profª. Drª Christina da Silva Roquette mais precisamente à arquitetura, no entanto, acreditamos que
Lopreato. suas análises são válidas para a obra de arte em geral,
2
Burke faz uma análise da trajetória dos pensadores que se independente de que seja um quadro, um romance, uma escultura
debruçaram sobre as fronteiras entre história e ficção, desde a ou um projeto arquitetônico. (ARGAN, 1995, p.24-25)

Referencias

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De DECCA, Edgard. Literatura, Modernidade e História: o olhar do 1993, p.21.
estrangeiro sobre o mundo colonial. In: LUNHARDDT, Jaques,

196 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Arte pública: esculturas de Darlan Rosa expostas
em frente ao Memorial Juscelino Kubitschek
(Brasília/DF)

Querles de Paula A. Calábria

Licenciada em Educação Artística pela Faculdade de Artes, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal de
Uberlândia (FAFCS/UFU); atualmente, faz bacharelado em Artes Plásticas nessa mesma instituição

Resumo Abstract
Este trabalho visa definir arte pública. Para isso, This work aims to define public art. To do so, it
parte-se da leitura de alguns elementos que considers some elements that establish links
estabelecem vínculos entre um conjunto de sete between a set of seven sculptures — Série
esculturas — a Série Esferóides —, do artista Esferóides —, by Darlan Rosa, and the public
Darlan Rosa, e o espaço público que as esculturas space it occupies, in front of JK Memorial, in
ocupam em frente ao Memorial Juscelino Brasilia (DF).
Kubitschek, em Brasília (DF). Keywords: Public Space, JK Memorial,
Palavras-chave : Espaço Público, Memorial JK, Sculptures Darlan Rosa.
Esculturas Darlan Rosa.

Introdução de definir uma estrutura eficiente e funcional, [...]


representa a busca de uma sociedade coesa, una,
Brasília, no Distrito Federal, é a cidade em que harmônica”. A harmonia é expressa na relação
mais se adequou a arte pública, desde sua formal entre edifícios e traçado urbano. “As regras
inauguração. Foi construída para ser uma cidade clássicas da beleza (ritmo, equilíbrio e harmonia),
ordenada. Segundo Luis Eduardo Borda (1994, p. trazidas para o espaço urbano, estabelecem
124), “esta ordem não deriva apenas da intenção unidade” (BORDA, 1994, p. 124).

NIEMEYER, Oscar. Croquis do Congresso Nacional. Praça dos


COSTA, Lúcio.Croquis do Plano Piloto de Brasília/DF, 1956. Três Poderes. Brasília/DF.

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Hoje, nos espaços públicos de Brasília, constante com a arquitetura, estabelecendo,
concentra-se um grande número de obras de arte; assim, uma perfeita integração entre elas” (2005,
na expressão de Maria Amélia Agripino, tem-se “a p. 14). O artista plástico Darlan Rosa 1 parece ter
impressão de que a cidade é um imenso museu a consciência disso ao criar suas obras artísticas
céu aberto” (AGRIPINO, 2005, p. 14). Em seus expostas em áreas públicas de Brasília, pois nelas
estudos, essa autora salienta que todas elas “se as linhas curvas das formas vazadas e das dobras
adaptam ao projeto arquitetônico onde estão do metal (onde ele consegue novas formas) dão
inseridas, de tal forma que se percebe claramente ritmos harmônicos que buscam total unidade com
que, em Brasília, a arte mantém um diálogo a arquitetura.

“Série Esferóides” expostas em frente ao Memorial JK em Brasília/DF. (Foto noturno)


Crédito da imagem: Olívio Calábria.

Segundo a escritora Aracy Amaral, em Brasília que dêem relevo, no meio urbano, a criações
é nítida a preocupação com projetos que integram artísticas contemporâneas (AMARAL, 1996).
a arte com a arquitetura da cidade. Disse ela em Essa preocupação ressaltada por Amaral se
evento que organizou: materializa, também, em estudos que enfocam a
arte pública realizados por críticos de arte,
É extremamente significante que possamos jornalistas, escritores, curadores, poetas,
instituir um projeto permanente e constante professores e outros. Tais estudos evidenciam o
de pensar o espaço público e as artes; articular interesse de artistas que expõem sua arte no espaço
um novo tempo nas relações entre o artista público para ser percebida, tocada e admirada (ou
enquanto indivíduo criador e o meio social repugnada) visualmente, e daqueles cujo interesse
dentro do qual ele vive e de cujo contexto tem motivação econômica, política e social.
participa. (AMARAL, 1996, p. 40). Contudo, a maioria não especifica a verdadeira
necessidade da arte pública; antes, deixa uma
Nesse evento, ela apresentou várias propostas interpretação múltipla para o “povo”, para se
de artistas, numa linha construtivista 2 , com satisfazerem com um visual às vezes lúdico — como
tendências diferenciadas de produção plástico- o das obras artísticas de Darlan Rosa espalhadas
escultórica do Brasil, sobre projetos para a arte em Brasília.
pública. A idéia diretora foi apresentar, na capital O historiador e crítico de arte Walter Zanini
federal, projetos de arte pública executáveis em afirma que muitas cidades do mundo foram
outras capitais maiores e em grandes centros do totalmente planejadas e construídas “segundo
país, para embelezá-los ou constituir sua projetos e decisões do Governo, mas nenhuma
identidade com grandes espaços especialmente nasceu como Brasília, da determinação e engenho
cogitados, preparados e futuramente preservados de apenas três pessoas: o Presidente Juscelino

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Kubitschek, o urbanista Lúcio Costa e o arquiteto módulos, parece ser regra nas esculturas do artista
Oscar Niemeyer” (ZANINI, 1983, p. 753). Segundo Darlan Rosa, o que as integra à arquitetura numa
Borda (1994, p. 160), em Brasília, o arquiteto harmonia que, nas palavras de João Gomes Filho,
“empresta ritmo a suas composições através da “é o resultado de uma perfeita articulação visual,
repetição cadenciada das colunas dos Palácios. A na integração e coerência formal das unidades ou
unidade do conjunto é dada pela repetição dos partes daquilo que é apresentado, daquilo que é
elementos formais (prismas puros), bem como pela visto” (2003, p. 51). Com um conjunto que tem
linha curva, presente em cada edifício”. ritmo, expressão, unidade e clareza, a obra assume
A repetição de linhas curvas, bem como de a condição de permanência no espaço público.

Esculturas Esferóides do artista Darlan Rosa.


Crédito da imagem: Olívio Calábria

Considerações gerais que se liga a estação, como a grande figura


reclinada de Alfredo Ceschiatti, o mosaico de
Herdeira de uma tradição que data da era Cláudio Tozzi e a garatuja de Marcelo Nitsche —
paleolítica, a arte pública é pensada hoje como esta, na saída para a Praça da Sé, é uma peça em
recurso a que os governos e empresas podem metal pintada de amarelo que se integra tanto às
recorrer para reforçar e consolidar uma imagem formas da vegetação externa quanto ao interior
pública. “Nas Américas, muitas experiências do mezanino, “onde estabelece relações de cor e
foram feitas com arte em espaços públicos das quais forma com a série de orelhões e a perspectiva da
destacam-se os murais mexicanos dos anos 20 em ampla passagem, que se estende até a saída oposta”
que se procurou, sobretudo a expressão de uma (COSTA, 1998, p. 92).
identidade e ideologia política” (COSTA, 1998, p. A partir de 1960, evidencia-se o procedimento
89). No Brasil, a integração das artes, ou da arte, básico de situar a arte no lugar de sua produção,
com a arquitetura moderna vem desde 1920. “[...] em que se procura deslocar a atitude do espectador
não é novidade. [...] É um dos princípios basilares de modo que ele possa perceber o lugar. O artista
da cidade moderna.” (AMARAL, 1996, p. 37). se preocupava com as qualidades particulares do
“Uma das razões que levaram à aprovação da ambiente em que sua obra era mostrada.
nova arte no espaço público foi o desejo de que a “Moderna” ou “contemporânea”, a arte aqui deve
arte tomasse em consideração as funções públicas ser simplesmente arte, pois o que ela provoca pelo
dos locais de exposição urbanos, assumindo ela incógnito, pela simplicidade ou pela complexidade
própria uma função pública.” (BÜTTNER, 1998, de movimentos importa mais quando ela se integra
p. 74). Nesse sentido, em 1990 foi instituído, em ao ambiente. Segundo Michael Archer, Richard
São Paulo, o projeto Arte no Metrô. Na Estação da Serra (1939–), por exemplo, teve essa preocupação
Sé, foram colocados painéis e esculturas para uma ao criar o Apoio de uma tonelada (castelo de cartas)
continuação do Museu de Esculturas da praça a de 1968 a 1969; isso “mais tarde [...] resultaria

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numa série de trabalhos em grande escala para o lugar, na forma atual da arte pública — que
locais públicos, mas inicialmente ele lidou com idealiza diferentes procedimentos e formas de
espaços fechados da galeria” (ARCHER, 2001, p. atuação, como site-specific (sítio/lugar específico)
67). Assim como Serra, Eva Hesse (1936–70), e arte-instalação —, a relação da arte e do lugar é
com formas geométricas e unidades repetidas do determinante. Na interpretação de Veloso, a arte
minimalismo, mostrava essa preocupação. Sua
3
pública “propõe, como uma de suas diretrizes, a
obra Pendurar (1966) “tornava explícita a ênfase na relação entre o artista, o espectador e o
mudança de rumo ao estabelecimento de uma lugar onde aqueles estão situados. [...] O site-
equivalência entre o espaço da arte e o espaço de specific propõe enfatizar a relação entre a arte e o
sua contemplação” (ARCHER, 2001, p. 67). lugar, rememorando ou questionando a história
Nessa tradição, a função da arte redefine-se ante do lugar” (2004, p. 350). Para Borda (2003, p.
a opinião pública, e os artistas buscam, então, 190), acerca do site-specific, “o sentido da obra
desenvolver diversas formas de atuação para criar deriva da relação com um contexto determinado
espaços que estimulem a comunicação e suscitem (estético, político, etc), contexto que constitui o
a participação do espectador. Assim, no fim dos ponto de partida para a determinação do
anos 70, impõe-se o termo arte pública, para trabalho”.
distinguir um tipo de produção artística das Contudo, não reconhecemos isso nas obras de
galerias e que transporta o espaço erudito para Darlan Rosa, pois se pode dizer que são “arte-
uma realidade mais democrática, em que instalação”, isto é, podem ser colocadas em
prevalece o respeito entre público fruidor e o qualquer espaço público. Em Brasília, elas se
ambiente que envolve a obra. integram em qualquer lugar justamente porque
De acordo com a socióloga Marisa Veloso, a arte o artista as constrói pensando na escala humana e
pública critica na escala da própria cidade. A maior parte das
esculturas de Darlan está em espaços públicos como
[...] a relação estabelecida entre o discurso centros culturais, centros universitários,
estético dominante e os interesses econômicos condomínios, edifícios, hotéis, museus e praias, no
imobiliários, o que tem resultado nos processos Brasil e no exterior; na capital federal, a maior
de “gentrificação” e implicado na fetichização parte se localiza junto à paisagem. No comentário
da história e da tradição, que por sua vez da historiadora de arte Ana Mae Barbosa,
camufla, disfarça as relações de dominação curadora de uma de suas exposições: lê-se: “talvez
econômicas e políticas e as estratégias de agora as esculturas de Darlan, em via pública,
exclusão social. (VELOSO, 2004, p. 350). sejam mais numerosas que as de Bruno Giorgi e
Cheschiatti, construtores iniciais da arte pública
Igualmente, essa modalidade de arte passa a da moderna capital de nosso país” (BARBOSA,
disputar espaços institucionais com museus e 2004, p. 4).
galerias e a penetrar na complexa rede de É provável que Barbosa considera nessa
interesses econômicos e políticos peculiar a tais assertiva o conjunto de sete esculturas — a Série
espaços. Na forma atual da arte pública, a relação Esferóides — em aço carbono, medindo de 220 a
arte–lugar é determinante, e nesse intervalo têm 260 centímetros de diâmetro, que Darlan Rosa
sido idealizados os mais diferentes procedimentos instalou, em 2001, no espaço público em frente ao
e formas de atuação, como o site-specific (sítio/ Memorial Juscelino Kubitschek (JK), em
lugar específico) e a arte-instalação. Mas essa comemoração aos 100 anos de nascimento do ex-
relação não é pacífica — em parte pela dificuldade presidente. Chamam a atenção nas peças o
de distinção entre arte pública e arte em espaço volume, as formas, o brilho, os detalhes e as cores;
público. no interior de cada uma (na base), estão instalados
Se na década de 60 é procedimento elementar holofotes que, à noite, além de fazerem refletir as
situar a arte no lugar de sua produção, para várias formas, iluminam o espaço físico ocupado
deslocar a atitude do espectador e fazê-lo perceber pelas esculturas. Mesmo feitas com materiais de

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alta densidade e peso, como ferro e aço, essas sugerindo uma análise formal e um
esculturas firmam-se no espaço como leves e soltas, questionamento de onde se encontram.

NIEMEYER, Oscar. Palácio do Planalto. Praça dos Três Poderes. Brasília/DF.

O Memorial Juscelino Kubitschek, que de escolas públicas e privadas. As visitas escolares


homenageia o ex-presidente, foi aberto em 2 de são uma forma de levar adiante o projeto de Sara,
setembro de 1981. Foi idealizado por Sarah que objetiva desenvolver o turismo cultural de
Kubitschek e projetado por Oscar Niemeyer, para Brasília. O memorial se assemelha a uma
guardar os restos mortais de Juscelino, sua pirâmide cortada, revestida de mármore branco;
biblioteca, seus objetos pessoais e um acervo sobre ele se sustenta uma estrutura de concreto
variado de objetos. Hoje o memorial recebe mais em abóbada; à frente, encontra-se a estátua do ex-
de 150 mil visitantes por ano — a maioria alunos presidente.

NIEMEYER, Oscar. Croquis do Memorial JK. Brasília/DF.

Em entrevista, Darlan Rosa nos assegura que conta a escala humana e urbana, de forma que
seu trabalho, tanto pelas formas quanto pela possa haver uma interatividade entre o
repetição ou pelas curvas, tem “uma espécie de espectador, a escultura e a área de locação” (2005
identidade com a geometria da cidade”. Diz ele: apud CALÁBRIA, 2005, anexo 2, p. 2). Sobre esse
“procuro sempre dimensionar as peças levando em tipo de interatividade, entende-se que a

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materialidade da obra não é satisfatória para Tadeu Chiarelli, também curador e crítico de arte,
assegurar-se como tal; daí a necessidade de uma as pessoas tendem a confundir arte pública e arte
participação concreta do espectador para em espaços públicos.
intensificá-la no espaço. O artista Daniel Buren questiona o porquê de a
Darlan Rosa constrói esculturas em grandes arte no espaço urbano vir sempre acompanhada
dimensões, que se baseiam nas sensações visuais do adjetivo pública, como se arte no museu não
da realidade da paisagem; por isso, entendê-las fosse pública. Para ele, “a definição ‘arte pública’
pressupõe a experiência. Os espaços vazados de é um equívoco” (2004, p. 1). O pensamento do
suas esculturas criam recortes no ambiente, diretor regional do SESC de São Paulo, Danilo
integrando o mundo real ao do artista. A escala, a Santos de Miranda, converge para a perspectiva
cor e todo o conjunto das esferas evidenciam sua de Buren; para Miranda, toda arte é pública, “pois
consciência quanto a adaptar a obra ao entorno e o fazer artístico é irrevogavelmente uma ação
à criação de um acontecimento visual. Ao se olhar sobre o mundo e, portanto, sobre o espaço e a
para as esculturas, é possível sentir os espaços cidade, que incorpora a habitação, a circulação, a
vazios entre as unidades das formas como parte da interação, enfim, a vida” (2004, p. 2).
obra, penetrando-lhe e estendendo-se ao espaço em Essas concepções certamente não convergem
comum; vê-se, assim, a paisagem se integrar e para o que diz o músico e poeta Arnaldo Antunes,
formar um corpo na arte. Sem interferência de para quem arte pública é arte de graça, “é arte
massas sólidas, ela se coloca de modo a atribuir que você não paga para ver, é arte que as pessoas
percepção entre obra e entorno, abrindo-se a um têm acesso sem ter que pagar ingresso. Arte
diálogo entre escultura e espaço arquitetônico. pública é arte sem mercantilização” (2004, p. 1).
Conforme Ferraz, a escultura “desde sempre Mas o pensamento do ator Raul Barreto parece
esteve envolvida num projeto de diferenciação do convergir; para esse ator, “arte pública tem que
espaço em que atua, variando entre momentos mais acontecer na rua, interferindo na vida da
fechados, onde se resolve internamente, e momentos população” (2004, p. 2).
mais abertos, onde o diálogo com o entorno é Em certo sentido, o editor Jurandy Valença
constituinte do trabalho”. (2004, p. 287). pensa como o poeta e como o ator ao conceber arte
As palavras de Alberto Tassinari são pública como arte que “está na rua, inserida na
esclarecedoras aqui: cidade, como um elemento da cidade, e não na
cidade; é a arte que está fora do museu, da galeria,
Há um duplo movimento de inclusão e exclusão da instituição cultural; uma arte que interage de
do espectador diante de uma obra contemporânea. uma forma maior com um maior e diverso grupo
O motivo para tal reside no fato de uma obra de pessoas”. (2004, p. 2).
contemporânea nunca se destacar inteiramente Isso ocorre, segundo o artista e escritor Ricardo
do espaço e do mundo em comum. O espectador, Bashaum, porque, “quando os espaços se tornam
por assim dizer, é recusado pelo espaço da obra e hipernormatizados, [...] alguém (indivíduo,
retorna a espacialidade inteiriça, não grupo, instituição e/ou corporação) já negociou
permitindo, assim, uma passagem completa do sua posse e administra os percursos que ali se
espectador para seu mundo. O que não elimina, atravessam. [...] cada qual reivindica um perfil
entretanto, a movimentação oposta do de ‘publico’ que mais lhe interessa” (2004, p. 2).
espectador em direção ao espaço e ao mundo, Até aqui, a noção de arte pública apenas
mesmo incompletos, da obra. (TASSINARI, 2001, resvala no elemento recepção, isto é, o que acontece
p. 143). no intervalo espectador–objeto de arte. Nesse
sentido, distingue-se o pensamento do artista
Embora seja visível essa relação entre arte e plástico Sérgio Sister — com o qual concordamos.
espaço, conforme diz Tassinari, ela não é questão Para ele, “uma das conotações de arte pública diz
pacífica no que se refere a uma definição de arte respeito ao relacionamento da obra com o
pública e arte em espaço público. Para o professor expectador. Os dois interagem objetiva e

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intersubjetivamente em um mesmo espaço harmônico com linhas retas, às vezes de outros
comum” (SISTER, 2004, p. 1). Certamente, porque objetos curvilíneos, nos remetem à análise de
a obra hoje pede a participação do espectador, como certos pontos, tais como cor, luz, forma, impacto
o movimento do corpo e do olhar. visual, mensagem, interatividade, surpresa e
Sister também reconhece arte pública no curiosidade. Elas têm luz e cor próprias e remetem
conjunto de obras pertencentes a dada à forma terrestre. A criatividade do artista mexe
comunidade, e disponível à fruição de seus com a sensibilidade de um dos nossos mais
membros em museus e espaços de passagem (ruas, apurados sentidos; com isso, aguça nossa
parques etc.). Aqui, a arte deve ser exposta não curiosidade e nos impele a tocá-las para descobrir
apenas para ser apreciada; também para “serviços o que querem dizer. Ao mesmo tempo, todo o espaço
educativos que as tornem mais efetivamente ocupado se mescla com o conjunto de traços, cortes,
claras para o público — seu proprietário” (SISTER, junções e sombras.
2004, p. 1).
O diretor de cinema e fotógrafo Arthur Omar Considerações finais
parece se alinhar com o pensamento de Sister. Arte
pública — diz ele —, “pelo menos na minha prática, A arte ocupa os espaços públicos há centenas de
seria a arte pós-contemporânea, aquela que está anos, a ponto de não soar estranho um cidadão
operando com a emoção do povo. [...] acho que o qualquer buscar apoio para mostrar, em locais
que estou fazendo é arte pública, porque estou públicos, objetos de natureza artística criados por
dialogando com o público” (2004, p. 2). ele. Nesse sentido, parece incoerente atribuir
Luiz Camillo Osório, crítico de arte, assevera modernidade ou inovação a algo que vemos no dia-
que “toda arte é necessariamente pública. No a-dia em centros urbanos, grandes ou pequenos; a
último século, todavia, a arte foi sentindo a atitude é a mesma em um momento ou outro; o
necessidade de explorar outros territórios, além que muda é o conteúdo da obra de arte, que se
do espaço reservado e, com isso, foi se disseminando transforma ao se agregar aos espaços que ocupa.
no espaço político das ruas” (2004, p. 1). Nesse Eis, então, o ponto para o qual convergem as idéias
movimento, como diz Veloso, a arte descritas neste texto.
contemporânea questiona o modo como se constitui Não é raro observar pessoas,
o espaço público e a própria idéia de espaço público. independentemente da classe social —
Essa autora ainda ressalta que “a arte pública tem consolidando um dos principais objetivos do artista
trabalhado no sentido da invenção de espaços — buscarem a aproximação com a obra. O espaço
públicos, buscando realizar uma profunda público, em síntese, só de permitir a criatividade,
discussão sobre o meio-ambiente, sobre o natural já enseja essa interatividade. Assim, aproveitar o
e o artificial, a história, a memória, o que é espaço público democratiza e estabelece
lembrado e o que é esquecido” (VELOSO, 2004, p. oportunidades para a arte e desperta o interesse
353). comum, formando opiniões e discussões em novos
Para Darlan Rosa, arte pública e arte em espaço seres criativos para um futuro talvez mais próximo
público, embora difiram conceitualmente, “têm do que se imagina. Não importa a idade dos novos
em comum o fato de a obra estar fora dos museus e artistas, o que pesa é a eternidade do objeto em
galerias e, assim, ter o acesso facilitado pela proposta.
população que não freqüenta esses lugares. E este Arte pública não é um fato novo; apenas
é o meu principal objetivo” (CALÁBRIA, 2005, estamos revitalizando o que há centenas de anos
anexo 1, p. 4). “Moderna” ou “contemporânea”, a já se praticava. Basta nos reportarmos a Roma
arte aqui deve ser simplesmente arte, pois o que antiga, onde a arte convivia com os cidadãos em
ela provoca pelo incógnito, pela simplicidade ou ruelas, praças e outros centros, ou vice-versa. E
pela complexidade de movimentos importa mais reconhecemos no novo artista — como Darlan Rosa
quando ela se integra ao ambiente. As esferas de — um instrumento facilitador de tal revitalização
Darlan Rosa sobre um plano e em contraste

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Notas
1
Nascido em Coromandel (MG), em 1947, Darlan Rosa morou em Darlan expôs obras na Bienal de Artes Internacional de São Paulo,
Uberlândia (MG) entre 1959 e 1967, onde iniciou seus estudos. As em 1976, e em salões de arte; no exterior, expôs no México, em
primeiras atuações nessa cidade, com a instalação da primeira 1986; nos EUA, 1996, 1999; na Holanda, 2000; na Coréia, 2004; e em
emissora de televisão (TV Triângulo), nos anos 60, incluíam Paris e na França, em 2005. Assim, o artista entra o século XXI
produção e apresentação de programas infantis. Na vida tendo um reconhecimento mundial.
artística, começa como pintor, em 1965, quando expõe na mostra 2
Movimento artístico de vanguarda. Basicamente, refletia
coletiva intitulada Artistas Mineiros. Em 1967, muda-se para alterações provocadas pela revolução industrial na vida
Brasília, onde passa a trabalhar em emissoras de TV, como diretor cotidiana e artística. Brotou do futurismo italiano e cubismo
e produtor de desenhos animados em computação gráfica e francês. Por ressaltar a composição e a figura geométrica,
apresentador de programas infantis; também se torna professor também se vinculou a movimentos como neoplasticismo,
de Arte Aplicada e de Desenho Industrial. Sua lida com desenhos Bauhaus e concretismo. As obras são objetos compostos de
se estende à ilustração de livros infantis - publicados no Brasil, elementos geométricos em materiais diversos (metal, vidro,
Japão e Inglaterra – e à criação, para o UNICEF, de várias papelão, madeira, acrílico, plástico, usados sós ou combinados);
campanhas para ensinar conceitos de saúde à criança por meio de libertam-se de sua base e se associa mais com o espaço como
desenho animado e livros; daí surgiram o Zé gotinha (campanha elemento da linguagem plástica. As idéias construtivistas se
contra a poliomielite no Brasil), Mr Iodine (campanha mundial materializaram no Brasil como projeto de vanguarda, objetivo e
de suplementação de iodo), Vita (campanha nacional de matemático, teorizadas pelo artista suíço Max Bill, que
suplementação de vitamina A), e Kuia (campanha nacional para participou da primeira bienal de São Paulo (1951). “[...] o
erradicação da pólio na Angola). Em outros países, criou movimento atingiu plena evolução no decênio de 1950. [...]. Era
personagens para importantes campanhas de saúde, como a aquele um período de vivência democrática e otimismo
Campanha Mundial de Suplementação de Iodo, feita para o Unicef econômico, do novo surto industrial de São Paulo e do
de Nova Iorque (EUA). Além disso, criou mais de 46 selos empreendimento de Brasília” (ZANINI, 1983, p. 653).
comemorativos para a Empresa Brasileira de Correios, pelos quais 3
A palavra minimalismo designa movimentos artísticos e
recebeu vários prêmios no Brasil e no exterior, inclusive o San culturais que percorreram diversos momentos do século XX;
Gabrielli (1986), na Itália. Entre 1965 e 2005, fez várias exposições buscava-se a expressão através de seus mais fundamentais
coletivas e criou 24 exposições individuais em Brasília e nas elementos, em especial nas artes visuais, no design e na música.
principais capitais brasileiras (as últimas no Centro Cultural Tais movimentos floresceram em Nova Iorque (EUA), por volta
da Caixa Econômica Federal/CCCEF, no Rio de Janeiro). No Brasil, de 1960.

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204 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


TURISMO DE NEGÓCIOS E A QUESTÃO SEXUAL:
GAROTAS DE PROGRAMA EM UBERLÂNDIA

Fernando Ohhira Pereira

Bacharel em Turismo e Hotelaria pela UNITRI-MG

Resumo Abstract
Este texto analisa, por meio de uma pesquisa, o This text presents an analysis of Uberlândia
desenvolvimento do turismo de negócios em business tourism development, focusing the
Uberlândia em relação ao aumento da prostituição increasing luxury prostitution for executives in
de luxo para executivos na cidade. Para entender the city. To better understand that relationship
melhor essa relação, fizemos uma discussão sobre a we discuss on the importance of tourism and
importância do próprio turismo e, posteriormente, evaluate the thematic of prostitution in history.
avaliamos a temática da prostituição na história. Finally we present characteristics of sexual
Por último apresentamos as características do tourism that is becoming a problem for some
turismo sexual que está se tornando um problema Brazilian cities.
para algumas cidades brasileiras. Keywords: Business Tourism, Luxury
Palavras-Chave: Turismo de Negócios, Prostitution, Sexual Tourism.
Prostituição de Luxo, Turismo Sexual

O turismo sexual vem sendo discutido em âmbito na Internet e este se constituiu o universo da
mundial, com a problemática do envolvimento de pesquisa com a utilização de uma página do dia 22/
menores na prostituição. No Brasil, a senadora, 04/2004 e visita a sites para checar os números de
Patrícia Gomes, montou uma CPI para investigar a telefones. Foram pesquisadas 15 garotas de
exploração sexual de menores pelo turismo programa, via telefone.
internacional. Entretanto, esta pesquisa se limitou Relativamente ao trabalho empírico, houve
a destacar o envolvimento de prostitutas e turistas algumas dificuldades, especialmente nas
de negócios em Uberlândia, discutindo como a sua
1
entrevistas, por escolhermos as “prostitutas de
infra-estrutura facilitou o crescimento do turismo luxo”como objeto de estudo. As entrevistas foram
de negócios, e como este último acabou favorecendo feitas pelo telefone, pois, além das profissionais não
o aumento da prostituição no município. Por fim, terem tempo para encontros, “porque tempo é
analisaremos o novo perfil destas profissionais do dinheiro”, muitas trabalham como acompanhantes
sexo. em festas e queriam cobrar o valor de R$ 50,00 para
A coleta de dados foi feita através de um a coleta de dados ser feita pessoalmente. Houve
formulário, essa técnica deve ser entendida como também dificuldade em obter entrevista com as
um “roteiro de perguntas enunciadas pelo profissionais que trabalham para as agências. Elas
entrevistador e preenchidas por ele com as respostas queriam saber o objetivo da pesquisa, qual era a
do pesquisado” (LAKATOS, 1992:107). Com entidade responsável, etc. A prostituição para
questões fechadas, deixamos claro para as garotas executivo é organizada e bem estruturada, o que
pesquisadas, que não era necessário se identificar. também dificultou a coleta de dados, pois as garotas
Em Uberlândia, as garotas utilizam os Classificados e os agenciadores não queriam falar sobre o assunto.
do Jornal Correio para divulgar seus telefones e sites Uma das agências pesquisadas - Celebridades -

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 205


conta com 15 garotas, todas de alto nível, estudando • Quanto ao deslocamento: o Turismo Sexual
em faculdades particulares, outras fazendo acontece exclusivamente de maneira receptiva em
cursinhos em escolas renomadas. Atende a hotéis, um país, quando se torna emissivo caracteriza-se
motéis e à domicílio. A agência não disponibiliza para por Tráfico de Seres Humanos, seja de caráter
o cliente quartos para realizar programas, mas o nacional ou internacional.
agenciador apresenta um local seguro com 20
apartamentos com garagem. A agência funciona da • Quanto ao aspecto socioeconômico dos núcleos
seguinte forma: o cliente liga e fala sobre o perfil da receptores: geralmente aparece como um
garota que procura: alta, baixa, loira, morena. O movimento que se desenvolve no sentido centro –
preço é negociado por hora que custa em média R$ periferia, ou seja, uma cidade, estado, região ou
100,00, se o cliente quiser o agenciador leva a garota país mais rico para um mais pobre.” (CARVALHO,
de carro ou pede um táxi, este último o cliente paga. 2002).
O programa é cobrado quando a moça chega ao hotel
ou motel. Quando termina o programa, o agenciador Dentro das características do turismo sexual, foi
busca a garota. constatado, na pesquisa, que as profissionais do sexo
Constatamos que as garotas que anunciam no na cidade estão dentro da faixa etária legal e têm
Jornal Correio fazem programa por dificuldade plena consciência do seu trabalho. Muitas fazem
financeira, ao contrário das que trabalham em cursos de massagens, dança do ventre e “stripper”,
agências, que além de serem garotas jovens e de buscando um diferencial para satisfazer o cliente.
classe média, a maioria está cursando nível superior A prostituta foi estigmatizada em todas as fases
e fazem programas para manter o status, comprando da história, mas este perfil de mulher
bolsas, sapatos e roupas de grife. Algumas trabalham marginalizada, suja, que se vende para sobreviver
durante o dia e fazem programas a noite. Chegam a está se transformando. Segundo a antropóloga
faturar R$ 5.000,00 por mês. Cláudia Fonseca: “hoje um número crescente de
Segundo Carvalho, as características do turismo prostitutas é gente comum e está mais próxima de nós
sexual apresentam singularidades e diferentes do que se imagina. Pode ser aquela pacata vizinha,
categorias como: uma colega de faculdade ou aquela balconista
bonitinha.” (www.zaz.com.br/istoe)
• “Quanto à legalidade e faixa etária: pode ser Com a evolução dos meios de informação, hoje
considerada legal ou ilegal, tendo variações entre elas não precisam sair às ruas, com roupas curtas,
países. O considerado legal, se contextualiza a para conseguir programas. Com a violência dos
partir da prostituição que ocorre com um indivíduo, centros urbanos, elas preferem ficar em agências ou
de ambos os sexos, sendo este reconhecido, dentro casas de show e até mesmo em casa esperando uma
de seus parâmetros sociais, civis e culturais, como ligação. Muitas utilizam a prostituição como um
maior de idade. No Brasil, a constituição brasileira extra para melhorar a renda.
regulamentou a profissão de “profissionais do No Congresso Nacional, existe o projeto lei do
prazer” à indivíduos associados ao ramo de deputado Fernando Gabeira para legalizar a
prostituição. O ilegal, ao contrário, se caracteriza prostituição. O projeto visa tornar mais digna a vida
de forma que o indivíduo não é reconhecido dentro das prostitutas, com direito à carteira de trabalho
de seus parâmetros sociais, civis e culturais, como assinada, aposentadoria e assistência médico-
maior de idade. A exploração de menores pode hospitalar, ou seja, regulamentar a prostituição como
trazer sérios problemas para o indivíduo que faz profissão. Porém, muitas prostitutas são contra a idéia
dessa modalidade. de carteira assinada, porque não querem se aposentar
como prostitutas, por não assumirem a profissão.
• Quanto à orientação sexual; qualquer que seja ela, Contudo, seria interessante citar um trecho deste:
a intencionalidade do turista é a relação sexual com
residentes do destino via prostituição. “Art. 1º É exigível o pagamento pela prestação de
serviços de natureza sexual.

206 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


& 1 O pagamento pela prestação de serviços de montam seu próprio estúdio fotográfico, oferecendo
natureza sexual será devido igualmente pelo tempo um trabalho profissional de fotografias eróticas para
que a pessoa permanecer para tais serviços, quer as garotas de programa e chegam a receber 3.000
tenha sido solicitada a prestá-los ou não.” acessos diários.
(GABEIRA, 2002) Há sites que cobram dos internautas uma
mensalidade para ter acesso ao acervo de fotos de
Segundo Gabeira, o projeto admite que as garotas de programa, porém a hospedagem do
prostitutas tenham o direito de receber pelo serviço anúncio e fotos das garotas é financiada pelo
sexual prestado, isto possibilita tabelar o preço do empresário, mantendo a qualidade do material
programa, evitando a redução do preço que algumas exibido. Os associados pagam em torno de R$ 20,00
garotas utilizam para vencer a concorrência. E se a para ter acesso mensal, as formas de pagamento
atividade passa a ser legal como profissão, não poderá variam em cartão de crédito, boletos ou depósitos
penalizar quem a favorece, modificando bancários. Algumas páginas chegam a apresentar
conseqüentemente o Código Penal para leis que cinco mil sócios, faturando R$100.000,00 apenas
proíbem o favorecimento da prostituição (art. 228), com acesso a fotos.
da casa de prostituição (art. 229) e do tráfico de Na medida em que tratamos o tema prostituição
mulheres (art. 231). em Uberlândia, seria importante esclarecer a
De acordo com o pesquisador Leandro Fonseca, as realidade deste município. Localizado em Minas
novas profissionais do sexo se livraram do estigma Gerais, no Triângulo Mineiro, com uma população
da prostituta e encaram a prostituição como: “um de aproximadamente 500.000 habitantes,
bico, uma forma de complementar a renda familiar, o Uberlândia é hoje o maior centro atacadista-
que as faz levar uma vida dupla e a não se assumir distribuidor do país, sendo sede de grandes empresas,
como prostitutas.” (www.zaz.com.br/istoe) . como o Grupo Algar, Martins, Souza Cruz, Monsanto
Como enfatizamos, estas características das e BPO. Está estrategicamente entre cinco principais
novas prostitutas são encontradas em Uberlândia. capitais: Campo Grande, Cuiabá, Goiânia, Belo
O comércio sexual tem evoluído criando um novo Horizonte, São Paulo e Brasília.
perfil, e os intermediários como cafetões e rufiões Comparado com grandes centros, o município
estão sendo dispensados. Elas estão utilizando a recebe altos investimentos, capital financeiro
tecnologia como o celular, a internet, o marketing privado para o turismo de negócios. Estão sendo
em jornais e os cartões para trabalhar por conta investidos R$ 39.000,00 em infra-estrutura
própria. As garotas que trabalham em agências não hoteleira para a cidade. Kenner Garcia, ex-secretário
se preocupam com o marketing, o agenciador municipal de Turismo comentou, em entrevista à
divulga com a distribuição de cartões em hotéis, revista Negócios, sobre esses projetos:
restaurantes e mala direta e nos sites na internet.
A internet tem facilitado o contato entre o cliente “só para citar, temos o San Diego Flat, da Arco
e a prostituta, os sites contêm fotos e telefones das Engenharia de Belo Horizonte, com um
garotas que ajudam na escolha conforme o gosto do Investimento de R$ 16 milhões, o Choice, do Grupo
cliente. Desde a década de 80, as prostitutas fazem Meliá, com R$ 9 milhões; um investidor da cidade,
seus anúncios em revistas especializadas e no o Executive Inn, com R$ 6 milhões e o Comfort Inn,
classificado de jornais, mas hoje em dia a internet é da administradora da Choice Atlântica, que esta
mais bem sucedida, pois tem uma abrangência em investindo R$ 8 milhões.” (BARCELOS, 2002:21)
nível nacional e internacional.
Várias pequenas empresas estão faturando com Os investimentos em infra-estrutura hoteleira
a prostituição, elas criam sites e cobram das garotas têm importância capital no que se refere à captação
uma média de R$ 30,00 a R$ 40,00 para a de eventos. Os hotéis do município são, em sua
divulgação de fotos e telefones durante um mês, há maioria, de duas a três estrelas. Segundo a
pacotes que incluem fotos em áreas nobres, custam Secretaria Municipal de Turismo, Uberlândia conta
em torno de R$ 75,00 Algumas empresas de sites com 1.804 unidades habitacionais, totalizando

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 207


3.455 leitos. Nessa estrutura, estão empregados, desenvolvimento do turismo de negócios que pela
atualmente, mais de 600 pessoas. (BARCELOS, pesquisa observamos o crescimento da prostituição
2002:27) de luxo para executivos no município. Para entender
Para o acesso, Uberlândia possui rodovias que a melhor essa relação, faremos, primeiro, uma
ligam aos principais centros do país, contabilizando discussão sobre a importância do próprio turismo e,
anualmente cerca de 1, 3 milhões de passantes. O posteriormente, avaliaremos a temática da
aeroporto Tenente Cel. Aviador César Bombonato prostituição na história. Por último apresentaremos
conta em média com 17 vôos diários segundo as características do turismo sexual que está se
estatísticas da Infraero, das empresas, TAM, Varig, tornando um problema para algumas cidades
Totais Linhas Aéreas e a companhia Passaredo brasileiras.
inaugurada no dia 15 de março de 2004. O turismo é visto hoje como uma saída para se
A infra-estrutura para o transporte coletivo, é alcançar o desenvolvimento econômico. Se bem
destacada por Barcelos: planejado, ele é responsável pela geração de emprego,
melhoria na qualidade de vida, distribuição de renda
“o transporte urbano é composto por ônibus que e arrecadação de impostos. Diante destes fatores
circulam por toda a cidade, através de conexões sócio-econômicos, Carvalho destacou que:
em cinco terminais. Há, ainda, o transporte
alternativo feito por vans dentro dos bairros, “o turismo deve servir como estratégia de fixação
gratuitamente – titulado Passe-Livre. A frota de do homem na terra, na medida do uso de sua força
táxis de Uberlândia é formada por 282 veículos” de trabalho. Num país marcado por índices
(BARCELOS, 2002:27). avassaladores de desemprego, apresenta-se como
excelente saída de reabsorção dos trabalhadores
Existem também pequenas empresas, oferecendo demitidos do setor industrial, bem como da imensa
um transporte diferenciado para executivos. O parcela de mão-de-obra não especializada, que
município possui a linha ferroviária da Fepasa, por bem treinada e qualificada poderá integrar-se a
onde escoa parte da produção para o porto de Santos. esse vasto mercado.” (CARVALHO, 2000:206)
Uberlândia é uma cidade que possui muitas
escolas de ensino superior além da UFU e UNITRI, O turismo no Brasil emprega diretamente e
UNIMINAS, UNIPAC, ESAMC, FPU, Faculdade indiretamente muitas pessoas segundo dados do
Católica e UNIUBE. Recebe semestralmente e Ministério do Trabalho, neste ano de 2004, sendo
anualmente estudantes de vários municípios e um setor de grande importância para a economia.
estados. Com o crescimento do turismo de negócios e Neste contexto, Beni define turismo:
as exigências do mercado, o SENAC, MICROLINS,
CENATEC e o COTEMGE passaram a oferecer cursos “como um elaborado e complexo processo de
técnicos na área para aperfeiçoamento profissional. decisão sobre o que visitar, onde, como e a que
O turismo de negócios movimenta a cidade preço. Nesse processo intervêm inúmeros fatores
durante a semana. Embora a infra-estrutura de realização pessoal e social, de natureza
hoteleira e de eventos esteja crescendo no município, motivacional, econômica, cultural, ecológica e
há ainda carência na área de lazer e entretenimento. científica que ditam a escolha dos destinos, a
Uberlândia tem uma vida noturna com poucas permanência, os meios de transporte e o
opções para o turista e o público executivo, que alojamento, bem como o objetivo da viagem em si
trabalha durante o dia tendo o fim da tarde e a noite para a fruição tanto material como subjetiva dos
livres. Uma das opções noturnas concentra-se no conteúdos de sonhos, desejos, de imaginação
complexo do Center Shopping, com bares, projetiva, de enriquecimento existencial histórico-
restaurantes, lojas, cinema, boliche e a boate humanístico, profissional, e de expansão de
Swinger, além dos butecos, pizzarias, etc. negócios. Esse consumo é feito por meio de roteiros
É neste contexto que surgiu a nossa interativos espontâneos ou dirigidos,
problemática, ou seja, foi a partir do compreendendo a compra de bens e serviços da

208 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


oferta original e diferencial das atrações e dos (upscale, 1st class); • médios (mid-pricelJ;
equipamentos a ela agregados em mercados • turísticos (tourist); • econômicos (economy);
globais com produtos de qualidade e competitivos.” • simples (budget); d) VARIEDADE DOS SERVIÇOS
(BENI, 2001:37) • full service (serviços completos); • limited services
(serviços limitados); all suites, residente services,
Outro conceito que podemos citar é o da apart-hotéis.” (www.embratur.gov.br)
Embratur, que “turismo é o conjunto de relações e
fenômenos produzidos pelo deslocamento e Em Uberlândia, como em outras cidades, os
permanência de pessoas fora do lugar de domicílio, hotéis aceitam e alguns facilitam a prostituição,
desde que tais deslocamentos e permanência não oferecendo um serviço não classificado para os
estejam motivados por uma atividade lucrativa.” executivos que procuram garotas de programa,
(www.embratur.gov.br) cobrando apenas um adicional na diária,
O turismo movimenta vários setores da transformando o hotel em Motel. No Brasil, o termo
economia, como meios de transportes, restaurantes, motel e hotel têm significados diferentes. O motel
hotelaria e o comércio que lucram junto ao seu surgiu nos Estados Unidos como hospedagem situada
desenvolvimento. Destacamos a hotelaria por ter em rodovias para viajantes e depois foi incorporado
um papel fundamental para infra-estrutura em nosso país com outra finalidade. Afastado do
turística, e seu valor para o turismo de negócios em centro, o motel servia para encontros amorosos tanto
Uberlândia. Observa-se na cidade hotéis de padrão por sua segurança como por manter o anonimato
econômico e luxo que recebem diariamente homens dos casais. Segundo uma reportagem na revista
de negócios. Segundo Dias, hotel é uma palavra de Galileu, o termo motel:
origem francesa “hôtel” que:
“surgiu em 1925, quando o arquiteto norte-
“designava os edifícios, públicos ou privados, que americano Arthur Heineman projetou um hotel
fossem suntuosos e imponentes em relação aos destinado a motoristas, ao lado da rodovia que
demais da localidade. Assim, até hoje, pode-se liga São Francisco a Los Angeles, na Califórnia,
observar, na França, a utilização do nome hôtel nos EUA. Como o público-alvo do estabelecimento
não só para designar um meio de hospedagem, eram pessoas que viajavam de carro, Heineman
mas também para identificar edifícios que se juntou os primeiros fonemas de “motor” (de carro)
destaquem, pelo porte, estilo arquitetônico ou aos últimos de “hotel” para compor o nome de seu
quaisquer outras características.” (DIAS, projeto: Milestone Motel (atualmente Motel Inn). A
2002:99) designação acabou sendo adotada por outros
estabelecimentos do gênero.
O hotel tem como objetivo hospedar viajante, (...) no Brasil, os motéis surgiram como locais para
oferecendo serviços de alimentação e outros. O encontros amorosos na década de 1960, pois os
tratamento ao cliente é essencial para a prestação hotéis não permitiam as estadas de curta
dos serviços, devido o cliente procurar e escolher o permanência. Em alguns Estados, policiais da
produto. A classificação de um hotel, segundo a Delegacia de Costumes ficavam escondidos,
Embratur, é feita por: contando no relógio o tempo de hospedagem de
um casal e, na saída, autuavam os amantes e o
“a) MOTIVOS DA VIAGEM • Negócios: individuais, estabelecimento por crime contra os costumes.
grupos – seminários, congressos, convenções; Para fugir à vigilância policial, empresários do
• Lazer: praia, montanha, estação de águas; hotéis- ramo foram buscar inspiração nos Estados Unidos.
fazenda, hotéis-cassino, resorts (com O primeiro estabelecimento do gênero teria sido
equipamentos e atividades de recreação). construído em 1968, em uma estrada do município
b)LOCALIZAÇÃO • cidade-centro; • bairro; de Itaquaquecetuba, em São Paulo: o Motel
aeroporto; • rodovias (motel, motor hotel, inn) Playboy.” (www.revistagalileu.globo.com/
• resorts. c) PREÇO • de luxo (luxury); • de lactasse Galileu)

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 209


No caso brasileiro, com a violência urbana, os prazer e se isso se dá, associa-se a ele a vergonha.”
casais que mantinham seus encontros em (MACHADO, 1988: 40)
automóveis, ruas desertas, foram obrigados a
procurar segurança, que era oferecida em motéis. O O sexo durante a história da humanidade passou
motel passou a idéia do sigilo e segurança. a ser analisado sob várias óticas, como a da igreja, a
Neste contexto, os hotéis brasileiros tiveram que do médico,etc..
se adaptar a essa nova realidade, passando a aceitar, A igreja cristã condenava o prazer proporcionado
mesmo que de uma maneira discreta, os hóspedes, pelo sexo. fiéis reprimiam o desejo fazendo jejum e
acompanhados de garotas de programa, pois a autopunição. Fagundes analisou este contexto:”A
satisfação destes esteve sempre em primeiro lugar. atividade sexual tornou-se sinônimo de perda, de
Os meios de hospedagem desenvolveram com o queda e quase de morte. A sexualidade foi banida pela
segmento turístico da região. O turismo se segmenta, cristandade como o advento da castidade, a
por exemplo, em: turismo religioso, rural, radical, abstinência de atividade sexual tornou-se virtude
negócios, lazer, terceira idade e cultural. Em máxima.” (FAGUNDES,1998: 16)
Uberlândia, o segmento de turismo é o de negócios. O sexo era feito somente com a intenção de
O município de Uberlândia destaca-se com procriação, todas as formas sexuais como o adultério,
grandes empresas e pela infra-estrutura em eventos homossexualismo, prostituição e a masturbação,
onde negócios são realizados diariamente. Contudo, foram estigmatizadas. Na visão cristã, o homem e a
juntamente com o crescimento do turismo, várias mulher deveriam ser monogâmicos.
outras atividades se desenvolvem diretamente ou A igreja também colocou a figura de Maria
indiretamente. Destacamos a prostituição como Madalena como uma prostituta que depois de ser
forma de trabalho que aumenta, indiretamente, com salva da morte por Jesus Cristo, renuncia a sua
o turismo de negócios na cidade. sexualidade. Maria Madalena foi importante na
A prostituição, “profissão mais antiga do tradição cristã, pois segundo Qualls-Corbett ela
mundo”, sempre esteve inserida na sociedade. O sexo deixou a vida de pecado servindo de exemplo: “ela
foi reprimido pelas políticas de “poder” durante a oferecia esperança aos mortais que não conseguiam
história ocidental. Segundo Foucault, “com respeito atingir o estado de perfeição da Virgem e que
ao sexo, o poder jamais estabelece relação que não procuravam perdão para os seus pecados.” (QUALLS-
seja de modo negativo: rejeição, exclusão, recusa, CORBETT, 1990: 194).
barragem ou, ainda, ocultação e mascaramento.” A confissão foi um instrumento eficaz para
(FOUCAULT, 1988:81). Este “poder” não se limita a produzir a verdade, todo bom cristão deve fazer de
órgãos superiores, mas também está relacionado seus desejos um discurso, ela diversificou em novas
com a família, grupos restritos e instituições, ou seja, formas como interrogatórios, consultas, narrativas
pelo sistema, aqueles que fogem das regras impostas, autobiográficas. Segundo Foucault, os homens
colocando em risco seus valores, são reprimidos. confessavam os crimes, os pecados, pensamentos e
A sociedade capitalista reprimiu a prostituição desejos. Mas o sexo tem sido o principal enfoque para
como forma de trabalho, mas nunca conseguiu a confissão. Ele foi tratado ainda pela medicina e
extingui-la. De acordo com Machado, a sociedade pela pedagogia.
capitalista enxerga a prostituição como forma de Contudo, o discurso da igreja, reprimindo o sexo,
trabalho, mas: ajudou a sociedade burguesa a imprimir a
disciplinarização e higienização na sociedade
“o corpo é seu principal instrumento; mesmo sendo capitalista. De acordo com Magali G. Engel, a
um trabalho, é considerado sujo; porém, como todo prostituição passou a ser no discurso médico uma
trabalho, é lícito que tenha um preço. Além de um doença para a sociedade. No século XIX, o não
trabalho sujo, é provável que moralmente nunca trabalho era visto como uma atividade
tenha se desligado da figura do pecado: é um remunerada ilegitimamente. De acordo com esta
trabalho, mas, mais que isso, é um trabalho autora:
contraditório porque pode conduzir ou produzir

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“A prostituição é inserida na categoria de destinados para a liberação das fantasias sexuais,
desordem social que, compreendendo desde a para o desfrute do prazer, para a “descarga” das
noção de delito até a noção de crime, classifica a energias libidinais masculinas, como se acreditava
prostituta entre os tipos considerados socialmente então. Nos bordéis diziam nossos avós e bisavós,
doentes, tais como o mendigo, o vagabundo, o os rapazes poderiam “queimar” uma parte do “fogo
vadio, o capoeira, o jogador, o bêbado, o ratoneiro, interno” próprio da idade, preparando-se para, no
o estelionatário, o ladrão, o mal feitor e o criminoso. futuro, assentar e conviver sem furores ao lado da
(...) classificada como doença social, a prostituição esposa casta.” (RAGO, 1991: 41)
representaria uma ameaça à própria riqueza da
nação, na medida em que é concebida como foco A mulher era responsável pela formação do
de desagregação do trabalho e da propriedade. caráter das crianças e pela conduta moral do marido,
Gerando a incapacidade para o trabalho e a a nova força de trabalho, a prostituição é a oposição
devastação da propriedade, produz o indivíduo do ideal, sustentando a imagem da família através
inútil e, portanto, inabilidado para o exercício da daquilo que é negativo. A prostituição foi usada para
cidadania.” (ENGEL, 1985 Apud, Machado, 1988: normatizar os comportamentos femininos. A mulher
42) precisou prestar a atenção em seus gestos e em suas
roupas, para não ser confundida com a prostituta.
A medicina com o discurso higienista, apoiada Construiu-se, então, uma imagem necessária,
pela ciência, pesquisou sobre os aspectos sociais das servindo como limite à liberdade feminina.
prostitutas, verificando como vivem, quem utiliza Atualmente, o marketing associou a imagem da
seus serviços e discutindo as suas doenças. Criou-se, mulher brasileira com paisagens turísticas, para a
então, medidas para evitar o contato das prostitutas divulgação do país. O corpo seminu é veiculado em
com a sociedade. A doença entrou como a maior programas de televisão, como o carnaval uma das
preocupação para seu estratégico controle. principais “festas” brasileiras, e também em
Para a medicina aprofundar seus estudos sobre a propaganda de destinos turísticos. Isto passou para o
prostituição, foi necessário deixar de vê-la como turista estrangeiro a imagem que temos sol, praia e
pecado, adotou-se então, uma perspectiva com a mulheres à disposição. Neste contexto, o Brasil foi
preocupação da prevenção de doenças venéreas, que vinculado ao turismo sexual, a prostituição,
segundo Engel neste conceito cita:”no enfrentamento tornando-se um produto incluído em pacotes
da questão, o médico viu-se diante de uma interdição turísticos criado para turistas que procuram
de fundo moral cristão, representada pela crença de aventuras eróticas.
que as moléstias venéreas seriam um castigo divino No turismo de negócios, é característica dos
às práticas sexuais pecaminosas e, por isso, não executivos utilizarem serviços de acompanhantes.
poderiam ser evitadas ou curadas.” (ENGEL, 1989: Eles viajam sozinhos e têm poder econômico, gastam
67) duas vezes mais que o turista comum. Em
No discurso médico, a sociedade era o “corpo Uberlândia, as garotas de programa encontraram
social” que sempre deveria estar saudável para o neste público a oportunidade para oferecer seus
empreendimento do progresso, pois o capitalismo serviços.
necessitaria de uma sociedade disciplinada e Segundo a Organização Mundial do Turismo
qualquer atividade que pudesse degradar o corpo (OMT), o turismo sexual pode ser conceituado como:
seria vista como uma doença.
A prostituição foi também peça fundamental “viagens organizadas internamente no setor
para a moral burguesa na medida em que servia turístico ou fora dele, mas que usa as estruturas e
como um “mal-necessário”. De acordo com Rago: redes do setor com o objetivo primário para a
efetivação da relação comercial sexual de turistas
“O ideal da pureza da mãe, que se reforça na com os residentes nos destinos. Determinando,
passagem do século tornava necessária a presença assim, conseqüências sociais e culturais da
imaginária e empírica da meretriz em lugares atividade, especialmente quando exploram

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 211


diferentes gêneros, idade, situações econômicas e hóspede (cliente) e pela preocupação da “máxima
sociais nas destinações visitadas.” (www.world- satisfação”, devido à concorrência entre os hotéis.
tourism.org) Há o apoio intermediário dos profissionais que
facilitam o contato entre prostituta e cliente,
O turismo sexual é intenso em países pobres, recebendo em troca uma “caixinha” pela ajuda.
devido a questões socioeconômicas e em alguns casos
por opção própria da prostituta. A prostituição é hoje
em dia uma alternativa para a sobrevivência e Considerações finais:
também uma remuneração extra. Neste conceito,
Beni relata que: A pesquisa identificou o perfil das profissionais
do sexo em Uberlândia, é em sua maioria jovens de
“Durante muito tempo relutamos em incluir esse 18 a 25 anos (53% e 47% tem entre 23 a 29 anos);
tipo de turismo por acharmos que, segundo a solteiras (80% e 20% divorciadas); algumas têm
legislação vigente, são contravenções penais a filhos (a maioria com 1 filho); terminaram o segundo
importunação ofensiva ao pudor e a vadiagem, e grau (47%) e continuam estudando, fazem cursinho
crimes o favorecimento da prostituição, a casa e ou estão cursando o terceiro grau (33%) e são de
outras edificações de prostituição, o rufianismo e vários lugares do Brasil. Algumas prostituem para
o tráfico de mulheres. Mas a literatura vem usando pagar os estudos e sonham em algum dia terem uma
essa tipologia e não podemos fechar os olhos a profissão regulamentada. A maioria trabalha por
ela. Os principais países emissores de turistas conta própria. Nas agências, o número de
sexuais são Alemanha, Grã-Bretanha, França, universitárias é maior. Em Uberlândia, 60%
EUA, Espanha, Coréia do Sul e Japão. No Brasil, a trabalham em agências, 27% por conta própria, e
Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção 7% em casa de massagens e casa de shows. Pela
à Infância e Adolescência (ABRAPIA) recebeu, entre pesquisa ficou comprovado que o público alvo é o
1997 a 2000, oitenta denúncias de turismo sexual, executivo que vem à cidade (71%). 19% atendem
com o Rio de Janeiro e o Ceará ocupando os aos moradores da cidade.
primeiros lugares, seguidos do Rio Grande do Utilizam o Jornal Correio, cartões e sites para a
Norte. Jovens de 12 a 18 anos representam 61,04% divulgação dos serviços, o telefone é a principal
das vítimas em nosso país.” (BENI, 2001:432) ferramenta para o contato, utilizam os hotéis em
que os clientes estão hospedados, ganham em média
Com vimos, Uberlândia ao se desenvolver passou R$ 100,00 por programa fazem mais de 30 por mês.
a contar com os investimentos de grandes empresas Começaram na prostituição pela independência
no município. Hoje a cidade é o maior pólo atacadista financeira (50%; 38% por dificuldade financeira;
e atrai empresas e executivos a negócios. Com sua 13% pelo próprio prazer), têm consciência sobre as
infra-estrutura hoteleira e para eventos capta DST’s (Doença Sexualmente Transmissível) e
congressos, feiras nacionais e internacionais. Com o sempre usam preservativos (100%), acham que a
crescimento do turismo de negócios houve também cidade favorece a prostituição, têm ajuda de
a oferta de serviços sexuais de garotas de programa recepcionistas de hotéis (60%) e pagam pela ajuda,
de luxo como constatamos na pesquisa. Algumas desconhecem as leis que pretendem legalizar a
garotas de classe média se vendem para conseguir prostituição e se a lei for aprovada não assinariam
“dinheiro fácil”, satisfazendo suas necessidades carteira como “prostituta”. 87% disseram não ter
materiais e tentando conquistar sua independência sofrido repressão por serem reconhecidas como
financeira. Existem também garotas que precisam garotas de programa. A partir destes dados, percebe-
da prostituição para sustentar sua família ou pagar se que a população está bem mais tolerante com
o curso da faculdade. relação a estas profissionais e não existe o preconceito
Portanto, em Uberlândia, existe uma relação de antigamente. Em Uberlândia, as agências só
entre prostituição e os meios de hospedagem. Esta contratam maiores de idade, evitando o
relação, em sua maioria, é imposta pelo próprio envolvimento de menores na prostituição de luxo.

212 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Notas

1
A respeito do conceito de turismo de negócios ver BENÌ, 2001:423 profissionais, comerciais e industriais, empregando seu tempo
“deslocamento de executivos e homens de negócios, portanto, livre no consumo de recreação e entretenimento típicos desses
turistas potenciais, que afluem aos grandes centros empresariais grandes centros, incluindo-se também a freqüência a
e cosmopolitas a fim de efetuarem transações e atividades restaurantes com gastronomia típica e internacional”.

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Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 213


Edson Garcia Nunes e a TV Triângulo em Uberlândia
anotações sobre a história de uma emissora de televisão
no interior do Brasil*

Ana Carolina Rocha Pessôa Temer

Doutora e Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo, Especialista em Sociologia pela
Universidade Federal de Uberlândia e Bacharel em jornalismo pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Profissionalmente é professora do Centro Universitário de Patos de Minas, jornalista da Universidade
Federal de Uberlândia e autora do livro

Resumo Abstract
Esse trabalho faz uma reconstrução histórica da This paper works on a historical reconstruction of
TV Triângulo, primeira emissora instalada em TV Triângulo, the first broadcaster installed in
Uberlândia, Minas Gerais, recontada por meio de Uberlândia, Minas Gerais. Material was collected
depoimentos de ex-funcionários e dos escritos from interviews with former employees and from
deixados, na forma de livro depoimento, pelo seu the available material, in the form of a deposition-
primeiro proprietário, o empresário Edson Garcia book written by its first owner Edson Garcia
Nunes. Nunes.
Palavras- Chave: História, Memória, Televisão Keywords: History, Memory, Television

1. Introdução Em termos práticos, o trabalho incluiu uma


pesquisa sistemática no Jornal Correio de Uberlândia
Esse trabalho faz uma reconstrução da história (atual Correio), entre os anos de 1960 e 1970, com
pessoal do empresário da área da televisão, Edson um levantamento de todas as notícias sobre a
Garcia Nunes, responsável pela instalação e pelos televisão, sejam as diretamente referentes à TV
primeiros anos de funcionamento da TV Triângulo, Triângulo, sejam as relativas à televisão em geral.
primeira emissora instalada de Uberlândia, Minas A partir desses dados, foram realizadas
Gerais, e que deu origem à atual TV Integração e à entrevistas com profissionais que trabalharam
Rede Integração (Rede de emissoras afiliadas à Rede telejornalismo da TV Triângulo nos primeiros dois
Globo na Região do Triângulo Mineiro), a partir do anos de funcionamento 1, e que conviveram direta
depoimento de pessoas que participaram desse ou indiretamente com o Empresário Edson Garcia
processo, trabalhando em diferentes funções dentro Nunes. Como contraponto, foram utilizados os dados
da própria emissora, e de um livro de memórias presentes no livro de memórias escrito
redigido por Edson Garcia Nunes. pessoalmente pelo empresário Edson Garcia Nunes,
O objetivo do trabalho é resgatar a trajetória de material encaminhado e autenticado pelo filho do
vida desse empresário, principalmente nos momentos referido empresário, Prof. Ms. Rubens Garcia Nunes,
em que suas ações estavam diretamente relacionadas utilizando como fonte secundária dados obtidos
à propriedade e desenvolvimento de veículos de através de uma pesquisa sistemática realizada no
comunicação, seu relacionamento com outros Jornal Correio de Uberlândia, entre os anos 1960 e
empresários da área e projetos envolvendo o setor. 1972.2

214 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Em termos metodológicos, essa dupla pesquisa é leituras sobre algo já visto. Assim, este trabalho nada
o resultado da compreensão de que a memória mais é do que a tentativa de preencher uma lacuna
humana é, por assim dizer, “desorganizada”, e, que, em função dos objetivos e dos limites do trabalho,
ancorar as matérias publicadas no jornal com as foi deixada em aberto na ocasião da elaboração da
lembranças pessoais permite uma melhor minha dissertação de mestrado. (TEMER, 1998).
delimitação das informações. Em função disso, foi estabelecido um novo
interrogatório, ou um novo olhar, sobre o tema
aparentemente já explicado, de tal modo que
2. Memória e História também possam ser apresentadas novas respostas.
Em função desse novo enfoque, e na ausência de
O senso comum concebe a História como um uma bibliografia que mais diretamente enfocasse a
conhecimento do passado e o Jornalismo como um questão dos “livros de memória”, foi usado como
relato da atividade do presente. De fato, tanto a referência o trabalho de Jean de Lacouture. Para a
mídia como os próprios profissionais do jornalismo definição de memória em si, as referências são os
trabalham no sentido de reforçar o imediatismo e o estudos de Ecléia Bosi (1994), que constrói sua
ineditismo como característica da profissão. Com isso percepção de memória através das elaborações de
mascaram o fato de que o jornalismo quase sempre Bérgson (1959) e Halbwalch (1956). Para ela “a
trabalha com a memória uma vez que, sendo lembrança é a sobrevivência do passado. O passado,
impossível para o jornalista presenciar e/ou conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora
vivenciar no tempo real todas os acontecimentos, os à consciência na forma de imagens-lembranças”
profissionais de jornalismo normalmente recorrem (BOSI, 1994. p.53),. Essa “imagem - lembrança” por
à memória das testemunhas para narrar o fato. sua vez, é a memória evocativa, que refere-se a uma
Trabalhar com a memória muitas vezes implica situação definida, individualizada, a memória que
em trabalhar com a história oral, que por definição se busca de forma consciente. (BOSI, 1994. p.49)
é a “....percepção do passado como algo que tem
continuidade hoje e cujo processo histórico não está
acabado. A presença do passado no presente imediato 3. A Maravilha da TV
do pessoas é a razão de ser da história oral” (BOM
MEIHY, 1996. p.10). No dia 1° de maio de 1964, praticamente um
Sobre isso é necessário acrescentar que mês após a “Revolução” de 31 de março, entrava no
construção da história é um trabalho que envolve a ar em Uberlândia, no Triângulo Mineiro, Minas
busca constante para preencher as lacunas abertas. Gerais, uma nova emissora de televisão: a TV
Essas lacunas podem (e devem) ser preenchidas por Triângulo, Canal 8 - prefixo ZYA - razão social: Rádio
novos pesquisadores ou pela descoberta de novas e TV Uberlândia Ltda.3

Foto 1 – Foto do Material de divulgação da TV Triângulo na época da sua inauguração. Arquivo Pessoal - Roberto Cordeiro 1964

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 215


Quem obteve a concessão da nova emissora foi responsável pela obtenção da concessão de várias
Edson Garcia Nunes, um empresário uberlandense emissoras de rádio na cidade.
que tinha começado a se destacar profissionalmente O problema dos recursos ainda persistia. Para
comercializando os produtos de uma multinacional superar o problema, foi realizada a “Operação TV”.
de pneus. A estratégia que desenvolveu para entrar Segundo Ademir Reis, basicamente, a operação TV
neste ramo de negócios caracteriza bem a sua consistia em usar o dinheiro da venda dos aparelhos
personalidade: se sentindo lesado na compra de uma de televisão para montar a TV.
concessionária da empresa, cujos livros de Segundo as anotações de Edson Garcia Nunes, o
contabilidade não apontavam as dívidas da empresa, primeiro passo para essa operação foi uma reunião
Edson Garcia Nunes pesquisou e descobriu que a no Clube Social dos Empresários, no bairro
empresa estava cobrando royalties irregulares. Com Pacaembu, em São Paulo, no qual ele reuniu os
essa informação nas mãos, conseguiu reverter a principais fabricantes de televisão no Brasil. Nessa
transação e adquirir capital de giro para o negócio. reunião ele conseguiu convencer os empresários
Logo em seguida, começou a trabalhar com a (Edson Garcia Nunes cita as empresas Semp,
importação de carros. Posteriormente, montou uma Telefunken, Standard Elétric, Colúmbia e Phillips)
empresa de empreendimentos imobiliários, a Cegeb, a fornecer um total de seis mil aparelhos de televisão
através da qual negociou lotes na recém inaugurada (cada empresa ficou com uma cota) com preços
Brasília e construiu em Uberlândia três “aranha- equivalentes ao que eram vendidos nas fábricas, o
céus”, com salas e apartamentos, e dois shopping- que equivalia a um desconto de cerca de 505 do
center (na verdade, pequenos centros comerciais). valor. Além do desconto os aparelhos, a serem
Em 1962, em sociedade com uma família tradicional entregues em um prazo de seis meses, poderiam ser
local, conseguiu uma carta patente para montar pagos em dez parcelas consecutivas. Em
uma financeira e, em função dessa empresa, viajou contrapartida, Edson Garcia Nunes se comprometia
para os Estados Unidos, onde conheceu uma emissora a colocar no ar a televisão em Uberlândia também
de televisão. em seis meses.
Começava neste ponto a sua paixão pelo veículo. De volta a Uberlândia, o empresário contratou
De volta ao Brasil, interessou-se pela vida e a obra uma equipe de venda e iniciou os trabalhos. Segundo
de Assis Chateaubriant, tendo visitado algumas seus contratados, a operação para a venda de
emissoras dos Diários Associados, ao mesmo tempo televisores foi inesquecível.
em que desenvolvia uma pesquisa sobre os custos João Batista Marques lembra que Edson Garcia
para a instalação de uma emissora de televisão em Nunes soltou um panfleto sobre a televisão e divulgou
Uberlândia. no jornal o nome dos primeiros compradores. Além
A televisão era um assunto freqüente nas páginas disso, ele mostrou “a televisão” instalando aparelhos
dos jornais de Uberlândia desde 1961. Roberto “....em pontos estratégicos da cidade...”. Entre eles,
Cordeiro afirma inclusive que um grupo da cidade a Crediminas, no térreo do Edifício Valentina (centro
ligado ao então prefeito Geraldo Ladeira estaria em da cidade), o Praia Clube (clube social da cidade) e
negociações para a implantação de um canal de TV. Araguari, cidade distante 30 km de Uberlândia.
Além disso, Uberaba, cidade vizinha de Uberlândia, Edson Domingos, que participou da entrega dos
já recebia o sinal da TV Tupi de São Paulo. aparelhos receptores, lembra que havia uma
Edson Garcia Nunes logo percebeu que a “estratégia”: “o preço já veio majorado, maior do
instalação de uma emissora de televisão envolvia que o que tinha sido combinado, e a ordem era que a
grandes recursos, mas voltou a pensar no assunto gente fosse entrando na casa e arrancando o TV da
quando descobriu que as empresas de comunicação caixa. Porque quando sabia do preço o comprador
tinham isenção total dos impostos para importação. dizia que não queria nem ver. Aí, a gente arrancava o
Segundo Edson Garcia Nunes, a obtenção da TV da caixa e a pessoa achava estranho, bonito demais
concessão do canal foi extremamente fácil, mas os e dizia - deixa aí, deixa”.
profissionais que participaram desse processo Segundo José Bonfim, foram vendidos em
destacam a participação de Adib Chueiri, Uberlândia cerca de dois mil aparelhos receptores

216 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


de televisão. Já Edson Garcia Nunes fala em oito mil Essa informação coincide com o depoimento de
aparelhos somente em Uberlândia. As cinco Mário Rodrigues que, embora não lembre ao certo a
primeiras parcelas do dinheiro arrecadado com as data, lembra que “era dia das mães” e ele teve que
vendas constituíram o que Edson Garcia Nunes faltar ao almoço tradicional. Esse mesmo detalhe é
chama de lucro antecipado, e foi destinado ao assinalado por Roberto Cordeiro.
pagamento do financiamento obtido para Outra data marcante para ambos é 21 de maio,
importação do equipamento. dia do aniversário de Edson Garcia Nunes: ele
Embora tudo indique que desde o princípio sua alugou, na Fotóptica de São Paulo, “A história dos
intenção fosse instalar uma emissora em três porquinhos” e passou o dia todo exibindo o filme”.
Uberlândia, para convencer a população local a Já Tito Teixeira afirma que a primeira transmissão
comprar os aparelhos, o empresário Edson Garcia ocorreu no dia 10 de junho, que seria a data da
Nunes viabilizou a solução mais rápida - trazer o inauguração oficial. A partir daí, a TV Triângulo
sinal da TV de São Paulo. passa a funcionar normalmente, entre as 18 e as 22
Para dar andamento a esse projeto, foi criado um horas. Seu sinal de abertura era a bandeira do Estado
consórcio visando a implantação de um sistema de do Triângulo.
antenas interligadas para uma televisão transmitida
em “Circuito Fechado”. O projeto nunca se realizou
completamente 4 , e na realidade, pouca gente se 5. TV “Quebra Galho”
lembra dessas transmissões. As imagens chegavam -
quando chegavam - com péssima qualidade. Para colocar a televisão no ar, Edson Garcia Nunes
adquiriu um equipamento de pequena potência, que
funcionou durante quatro meses. Esse equipamento
4. As Primeiras Transmissões foi instalado de forma provisória em um dos
apartamentos do Edifício Valentina, no centro da
Há muitas datas para a primeira transmissão cidade, e transmitiu uma programação constituída
daquela que seria, segundo o seu fundador, a oitava de filmes, pequenos shows e entrevistas (TEIXEIRA,
televisão do interior do Brasil. 1970, p. 499).
A primeira data anunciada é 25 de dezembro de Boa parte das transmissões constituía-se apenas
1962, mas depois de sucessivos adiamentos e dos da filmagem de fotos recortadas das grandes revistas
problemas resultantes das tentativas de transmissão da época, coladas na parede e filmadas com a câmara
de imagens de São Paulo via microondas, no final de parada. Josué Borges foi o noticiarista do primeiro
1964 o Jornal Correio de Uberlândia (Uberlândia, telejornal - que não tinha nome, chamava-se
29-30 dez. 1964. p. 1) anuncia: simplesmente Telejornal - e Mário Rodrigues foi o
câmara. Segundo eles, eram algumas matérias lidas
“TV (Canal 3) faz programação em voz alta, no estilo do rádio. O equipamento usado,
experimental basicamente amador, passou por uma adaptação
esté-tica. Mário Rodrigues lembra: “...nós colocamos
Se formos considerar o Canal 8, no entanto, a numa caixa grande para dar mais visual à TV. Imagina
notícia a ser citada é diferente aquela câmara pequenininha, ninguém ia acreditar na
TV”.
“TV mostra programação sábado: ‘Avant-
premiére’
Os uberlandenses viram sábado último, à noite, a 6. TV ao Vivo
‘avant-premiére’ do que será a programação da
TV Triângulo, Canal 8; o grande empreendimento Depois do Edifício Valentina, a emissora muda-
que a Cegeb deu à cidade e à região(...).” se para um prédio pronto para abrigar um
(Jornal Correio de Uberlândia, Uberlândia, 2-3 de supermercado (também uma novidade na cidade)
maio 1964. p.1) : na Rua Buriti Alegre, n.º 1069. Não havia

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 217


equipamento de vídeo-tape e toda programação era vista com reserva.5 Ademir Reis afirma que a maior
feita com o telecine e produções ao vivo. oposição era dos homens públicos. A sociedade e o
Para implantar a TV vieram os técnicos da comércio de Uberaba respondiam bem à TV
Maxwel; um grupo de cerca de dez ex-funcionários da Triângulo.
TV Vila Rica, de Belo Horizonte. Além desses, Edson Outra batalha, igualmente importante, era
Garcia Nunes trouxe alguns funcionários de sua travada com a empresa fornecedora de energia, a
empresa construtora – muitos na parte operacional, Prada-Cemig. As reclamações no jornal contra os
serventes e aprendizes de pedreiro - e convidou os danos que as oscilações de energia causavam na
artistas da cidade. Em média, trabalhavam na emissora e nos aparelhos de TV eram constantes. Os
televisão nessa época cerca de 70 pessoas, a maioria agentes do telejornalismo, principalmente aqueles
na base do cachê e muitos na base da boa vontade. ligados à área técnica, lembram-se com detalhes
Entre os funcionários que já trabalhavam para desse problema. Mesmo assim, o número de aparelhos
Edson Garcia Nunes, transferidos para a TV, de televisão na cidade continuava a crescer,
estavam Edson Domingos, Hélio Sudário e João inclusive com a instalação de três fábricas de
Batista Marques. Também estava nesse grupo televisores na cidade. 6
Roberto Cordeiro, único, na época, com algum tipo Apesar disso, no início do ano de 1965 a emissora
de qualificação específica, pois já havia trabalhado enfrenta a sua primeira crise financeira de maior
como fotógrafo. Os especialistas de Belo Horizonte expressão. Segundo o livro de memórias de Edson
demoraram-se pouco em Uberlândia. Outros Garcia Nunes, o comércio local estava acostumado
vieram, mas quase sempre de forma temporária. aos “preços irrisórios” dos jornais locais e tinha
A produção dos programas era precária, Dantas dificuldade de aceitar a comercialização em filmetes
Ruas diz que: “O equipamento da TV era duas câmaras. de pequenos segundos que eram apresentados como
Não tinha nada. A TV não tinha um carro, mas, na opção na televisão para os intervalos comerciais.
maioria das vezes, as pessoas colaboravam.” Com Também é importante destacar as reclamações
esse equipamento a equipe produzia novelas, feitas por Edson Garcia Nunes aos seus comandados
telejornais, musicais, teleteatros, programas sobre o preço das séries e filmes americanos7. Mário
humorísticos e comerciais. Rodrigues afirma sobre essa questão: “Uma vez ele
(Edson Garcia Nunes) me confidenciou que não
agüentava mais pagar os ‘judeus’ que
7. Por trás das Câmaras monopolizavam a distribuição dos filmes. Eles
vendiam para Uberlândia no mesmo preço que
Com o sinal da TV Triângulo no ar, o empresário vendiam para São Paulo, no máximo, com
Edson Garcia Nunes começou os trabalhos para pouquíssimo desconto”.
ampliar o seu raio de alcance. Sua primeira ação foi Em função disso, a TV Triângulo tinha problemas
inverter a captação das antenas, que deveriam com a qualidade da programação. Ainda que os
trazer para Uberlândia as imagens da Tupi, e fazer entrevistados (jornalistas e funcionários da emissora
com que levassem para Uberaba o sinal da TV na época) tenham poucas críticas à programação
Triângulo. local, sempre se referem a ela com ressalvas,
Em seguida ele ampliou o sinal para as cidades relembrando que erros e gafes eram constantes.
da região. Esse trabalho era desenvolvido pelo técnico Já no jornal Correio de Uberlândia,
Otávio Jacinto de Melo: “Edson Garcia Nunes fazia particularmente no setor dedicado à TV, na Coluna
um acordo com o prefeito e aí eu ia para a cidade, e à Divertimentos, são muitas as reclamações sobre o
noite tentava localizar onde o sinal pegava melhor material exibido, muitas vezes nada sutis: “Foram
usando uma base de conduite e um televisor portátil.” ‘de matar’ os musicais do Canal 8 domingo com o
Nas cidades que não tinham televisão, a TV conjunto do Edson.(...)”(Jornal Correio de
Triângulo se impunha com facilidade. Mas em Uberlândia, Uberlândia 31 mar. 1965, p.2) ou
Uberaba, tradicional rival na região que já recebia “Alguns programas ao vivo estão de ‘entortar o cano’.
o sinal da TV Tupi de São Paulo, a TV Triângulo era Francamente... não tem jeito de olhar tantos ‘bagulhos’

218 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


em nossos vídeos”. (Jornal Correio de Uberlândia, exibida pela TV Triângulo feita fora de Uberlândia:
Uberlândia 24-25 agost. 1965, p.2). A deusa vencida. Em questão de dias, outras
Segundo o livro depoimento de Edson Garcia juntaram-se a ela e as novelas começaram a dominar
Nunes, naquele ano ele recebeu para uma entrevista a programação diária.
na emissora o ex-governador de São Paulo, Adhemar As novelas chegavam de ônibus, um capítulo todo
de Barros, que estava percorrendo o país em uma dia, e quando o ônibus quebrava, repetia-se o do dia
espécie de pré-campanha eleitoral para o cargo de anterior. No dia seguinte, em compensação, era
Presidente da República . O político convida Edson
8
exibido um “capitulão”, com o capítulo que tinha
Garcia Nunes para uma visita ao seu gabinete em chegado atrasado e o capítulo normal do dia. Quando
São Paulo, e lá faz uma proposta para a compra da o atraso era maior, o capitulão crescia, chegava a
emissora. Acossado pelas dívidas, Edson Garcia ter quatro capítulos, 9 mas também houve ocasiões
Nunes aceita, e chega a receber uma ordem de em que os capítulos se perderam e simplesmente não
crédito equivalente à metade do valor da venda como foram exibidos.
uma primeira parcela do pagamento. Antes da Além das novelas, o equipamento permitiu que
segunda parcela, que seria paga após seis meses, fossem exibidos em Uberlândia os shows da Record,
Adhemar de Barros tem os seus direitos políticos comercializados em São Paulo por meio do empresário
cassados, e desiste da compra. Edson Garcia Nunes Marcus Lázaro. Edson Garcia Nunes cita shows com
negocia a devolução da primeira parcela já paga em Elis Regina, Roberto Carlos, Simonal, Jerry Adriani
vinte prestações mensais. e Moacir Franco, além da Praça da Alegria e
Segundo Edson Garcia Nunes, essa não foi a Campeões de Popularidade. José Bonfim lembra que
primeira vez que a emissora foi “quase” vendida. a emissora pagava apenas pelo que comprava. “O
Em 1964, mal a emissora tinha entrado no ar, João preço era por programa e podia escolher o que tinha
Calmom, então presidente das emissoras associadas de melhor em cada emissora”. Mário Rodrigues
fez uma proposta, e o negócio só não foi fechado também concorda: “os melhores programas de cada
porque João Calmom só queria pagar depois que o emissora passavam aqui”. Em pouco tempo, a TV
governo autorizasse a transferência das cotas. Triângulo lança o slogan “o melhor de quatro canais”.
Embora Edson Garcia Nunes não faça uma ligação (Jornal Correio de Uberlândia, Uberlândia, 11-12
direta entre os dois fatos, a coincidência de datas jul. 1967, p. 2)
indica que é possível que o dinheiro da transação
feita com Adhemar de Barros tenha facilitado a
aquisição do equipamento vídeo-tape. 9. A TV Triângulo e o Estado do Triângulo

As ações de Edson Garcia Nunes, suas opções a


8. Viva o Vídeo tape. respeito da televisão e o próprio nome da emissora,
já o colocam como um defensor da criação do Estado
Finalmente, o Jornal Correio de Uberlândia do Triãngulo. Segundo o livro depoimento de Edson
(Coluna Divertimentos, Uberlândia, 7-8 jan. Garcia Nunes, essa opção tomou novo fôlego em
1966.p.2), afirma: “Agora sai mesmo o ‘vídeo-tape’ 1967, quando, a convite da Associação Comercial
da TV Triângulo, Canal 8. Poucos meses depois de Uberlândia, ele passa a participar mais ativamente
(Jornal Correio de Uberlândia, Uberlândia, 29-30 do movimento de emancipação do Estado do
mar. 1966. p. 1), o mesmo jornal anuncia a Triângulo 10 . A TV Triângulo passa a divulgar o
instalação do equipamento, enquanto a Coluna movimento, ao mesmo tempo em que caminhões
Divertimentos, diz que a TV “exibiu o seu novo passam a trazer fixada a bandeira do estado e são
equipamento com uma série de espetáculos elaboradas faixas e inscrições defendendo a causa.
diretamente do Canal 9” (Jornal Correio de O crescimento desse movimento começa a
Uberlândia, Uberlândia, 29-30 mar. 1966. p. 2). incomodar o Governo Militar, e em 1968, segundo
Em abril (Jornal Correio de Uberlândia, Uberlândia, informações do próprio Edson Garcia Nunes, ele é
3-4 abril 1966. p. 4) é anunciada a primeira novela convocado para uma “conversa” com o Chefe de

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 219


Gabinete do então presidente Costa e Silva 11. Nessa Enquanto as conversações corriam e auditorias
conversa, ficou claro que, se Edson Garcia Nunes eram realizadas, ficou comprovado que o valor das
não se afastasse do movimento separatista, perderia dívidas era maior do que o esperado, e foi feito um
a concessão do canal. novo acordo que incluia o “esquecimento” dos
Como conseqüência, Edson Garcia Nunes impostos federais. Nesse meio tempo, também os
realmente se afasta do movimento que deixa de ser proprietários das quatro emissoras receberam uma
significativo quando o uberlandense Rondon Pacheco boa oferta pela TV Gaúcha, e realizaram o negócio
assume o governo do Estado de Minas. acreditando que o interesse do grupo comprador ao
qual estava ligado Edson Garcia Nunes resumia-se
à emissora de São Paulo. Edson Garcia Nunes, no
10. Perdas e Ganhos entanto, se sentiu traído, pois tinha um interesse
particular na emissora gaúcha que, segundo ele, era
No final da década de 1960 a situação das a que estava em melhor situação financeira, e o
emissoras e redes de televisão no país era complicada. negócio se desfez.
Além de problemas políticos, decorrentes de uma Ainda interessado em expandir seus negócios,
relação nem sempre tranqüila com o governo Edson Garcia Nunes entrou em contato com Otávio
militar, a TV Record e a TV Excelsior 12 tinham Frias, de quem comprou a TV Vila Rica, de Belo
significativos problemas financeiros. Horizonte, assumindo principalmente as dívidas da
Segundo Edson Garcia Nunes, os problemas da empresa. A emissora foi logo vendida para Januário
Excelsior tinham começado no início da década Carneiro, que posteriormente a transferiu para a
quando Mario Simosen, então proprietário da Rede Bandeirantes de Televisão.
emissora, sofrera perseguição política dos Também em Uberlândia a situação da TV
representantes do Governo João Gulart. Para driblar Triângulo era delicada. Edson Garcia Nunes havia
esse conflito político, Simonsen havia transferido a construído a nova sede da emissora e adquirido novos
emissora para o nome dos seus diretores, em uma equipamentos. Boa parte do material para a
transação que viria a prejudicar os legítimos construção da nova sede foi obtido por meio de
herdeiros da empresas. permutas, o que comprometeu o espaço comercial
Em 1968, novamente em uma situação da emissora. Segundo Garcia Nunes, o valor
financeira delicada, os novos proprietários da comercializado do tempo restante era o suficiente
Excelsior – já então uma pequena Rede, com quatro apenas para manter em dia o pagamento dos salários
emissoras (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e encargos sociais, e cobrir os gastos com a compra
e Porto Alegre) - envolveram em uma delicada de shows, telenovelas e filmes que compunham a
negociação para a venda da rede, que envolveu o programação da emissora. Nada sobrava para
próprio Garcia Nunes, atuando como “testa de ferro” amortizar as dívidas dos empréstimos feitos em
de um ministro da República daquele período, que função da compra de equipamentos.
tinha aspirações políticas de ser Governador do Para atenuar o problema, Edson Garcia Nunes
Estado de São Paulo. buscou dinheiro na sua própria financeira, mas na
A negociata incluía, entre outras coisas, que um medida em que a situação se complicava foi obrigado
processo envolvendo a falsificação dos selos de uma a abrir mão dessa empresa, que foi vendida por Edson
empresa de cigarros, de propriedade dos mesmos Garcia Nunes e os herdeiros do sócio original da
empresários que comandavam a Excelsior, fosse empresa, a um grande banco nacional.
“desaparecido” . 13
Em troca, os empresários Ainda que a venda tenha sido vantajosa, segundo
passariam dois terços das ações das emissoras para Edson Garcia Nunes, feito o pagamento devido pela
os novos proprietários sem nada receber. Os novos TV Triângulo à financeira, o dinheiro restante não
donos teriam como compromisso apenas o era suficiente para quitar as dívidas da emissora.
pagamento das dívidas, constituídas principalmente Edson Garcia Nunes resolve então investir no
de Impostos Federais, encargos sociais e salários dos mercado financeiro, obtendo lucro suficiente para
funcionários. restaurar as finanças da televisão.

220 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Segundo o seu livro depoimento, porém, o grande arrependimento. Roberto Cordeiro sintetiza a opinião
período que passou lidando com as incertezas da Bolsa geral quando diz: “depois que ele vendeu a televisão
de Valores causou um grande desgaste emocional. ele (Edson Garcia Nunes) adoeceu, se arrependeu.
Como conseqüência, Edson Garcia Nunes (que estava Anos depois, quando mostrei umas fotos da TV, ele
residindo em São Paulo) volta para Uberlândia chorou”.
desanimado. Em 1971 a TV Triângulo faz justiça ao seu nome
Na emissora local, muita coisa havia mudado. A e atinge todo o Triângulo Mineiro. Os agentes do
trajetória de ascensão da Rede Globo começa a mudar telejornalismo, particularmente aqueles ligados ao
as estratégias da TV Triângulo, que passa a exibir as setor técnico, lembram-se de que a ausência de
novelas da Rede Tupi. As opções de programação já fiscalização federal fez com que brotassem antenas
não eram muitas, e as possibilidades de crescimento em todas as cidades da região e do sul de Goiás.
de uma pequena emissora local também diminuíam. O empresário Edson Garcia Nunes tentou voltar
Edson Garcia Nunes, repetidamente descrito ao ramo de televisão instalando uma nova emissora
como um homem muito inteligente, percebeu que em São José do Rio Preto, mas não foi bem sucedido.
tinha poucas opções. Em 31 de agosto de 1971, no E em 18 de dezembro de 1991, aos 62 anos, ele falece.
feriado que marcava o aniversário de Uberlândia, Em outubro de 1997 o diretor presidente da Rede
sem que ninguém desconfiasse do assunto, a TV foi Triângulo, Tubal Vilela de Siqueira e Silva, ocupou
vendida.(Jornal Correio de Uberlândia, Uberlândia, a parte dos programas noticiosos da emissora para
05 de set. 1971, p.8) anunciar que a TV Triângulo passaria a se chamar
Os novos donos eram Tubal Vilela de Siqueira e TV Integração. Segundo Tubal de Siqueira e Silva, a
Silva, Rubens de Freitas e seu irmão, Renato de mudança se justificava em função da nova área de
Freitas, e Rubens Leite. Poucos concordam sobre o atendimento da emissora que, a partir de então,
motivo da venda. Poucos também esqueceram de passava a atingir a região de Patos de Minas,
uma briga, pública e notória, entre Edson Garcia somando 31 municípios e um potencial de 1.135.970
Nunes e os irmãos Vilela (Tubal de Siqueira e Silva, telespectadores, assumindo o comando de uma rede
que viria a ser um dos novos proprietários da TV e o de emissoras composta pela TV União, com uma área
seu irmão Hugo) no café 14 mais movimentado da de cobertura de 74 municípios, (entre eles Araxá e
cidade. Divinópolis) e uma população de 1.183.545
Agenor Simão salienta que “a briga foi pública, telespectadores 15 ; a TV Ideal, com uma área de
todo mundo viu, o resto eu não sei”. Também Ademir cobertura de 25 municípios (entre eles Ituiutaba e
Reis lembra da briga que, na sua memória, teria Uberaba) e uma população de 590.154
ocorrido dias após a venda. Orlei Moreira explica: telespectadores em potencial.
“me contaram que na última hora Edson Garcia Antecipando essa mudança, o Jornal O Triângulo
Nunes teria voltado atrás e se negado a assinar a (O Triângulo, Uberlândia, 5 dez. 1995, p. 1) realizou
venda. Mas foi pressionado, já tinha assumido um uma enquete sobre o primeiro proprietário de uma
compromisso verbal e acabou assinando. É certo que emissora de televisão em Uberlândia, com cujo nome
ele não gostava do Renato de Freitas e que ele e Tubal estava sendo batizado um viaduto no centro da
tiveram uma briga.” cidade. Entre as seis pessoas entrevistadas, ninguém
Aparentemente, a venda foi motivo de se lembrava quem havia sido Edson Garcia Nunes.

Notas

1
Os profissionais entrevistados foram: Ademir Reis, Agenor 2
Especificamente, foram utilizados os exemplares de 20 abril
Simão, Ataliba Guaritá Neto - Netinho, Altamirando Dantas 1961, 16 jun. 1962, 18 dez 1962 , 6-7 out. 1963, 2 e 3 jun 1964, 29 – 30
Ruas, Ana Maria, Deli Azevedo, Edson Domingos, Edson Geraldo dez. 1964, 31 mar. 1965, 6-7 jun. 1965, 24-25 jul. 1965, 2 set. 1965, 24-
Miro, Haidée Vasconcelos, Hélio Sudário, José Bonfim, Josué 25 set 1965, 17-18 out. 1965, 21 out 1965, 7-8 jan. 1966, 29-30 mar.
Borges, Leonardo Gonçalves, Luiz Gonzaga, Mário Rodrigues, 1966, 3-4 abril 1966, 11-12/07/67, 05/09/71.
Manuel Pardal, Odival Ferreira, Orlei Moreira, Otávio Jacinto 3
Houve também uma transmissão experimental realizada no dia
de Melo, Roberto Carneiro e Umbertino Gonçalves. 28 de dezembro de 1963, transmitida pelo canal 3.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 221


4
Otávio Jacinto de Melo afirma que houve uma pane na última 10
Além da participação da TV Triângulo, o movimento teve o apoio
das onze torres repetidoras. Mas a falha só foi localizada anos de outros órgão da imprensa local, como atestam as matérias que
depois quando os técnicos locais foram inverter o processo e vêm acompanadas da frase “Essa gente sabe muito bem cuidar do
mandar o sinal da TV Triângulo para Uberaba. seu nariz. Estado do Triângulo. Vamos respirar livremente.” ,
5
Uberlândia foi criada a partir do distrito de São Pedro do em diversas edições do Jornal Correio de Uberlândia.
Uberabinha, que pertencia ao município de Uberaba. 11
Edson Garcia Nunes não cita nomes, mas considerando as datas e
6
O Jornal Correio de Uberlândia (Coluna Vitrine do Pevi, 17-18/ cargos que as pessoas exerciam na época, é provável que se trate
10/65, p. 2), cita a existência dessas empresas. O mesmo jornal, na do uberlandense Rondon Pacheco.
coluna Divertimentos de 21/10/65 fala da instalação da fábrica 12
A Excelsior viria a ter sua concessão cassada em 1969 (COSTA,
de televisores Tufand. As outras marcas Televisores Harlley, e 1986, p. 146). A Record, ainda que tivesse bons programas, também
Issa, foram citadas por Roberto Cordeiro. não estava numa situação confortável. (COSTA, 1986, p. 134, 137
7
Entre outros, a TV Triângulo exibiu nesta época Os Intocáveis, e 139). Essa afirmação também está presente no texto Fim da
Peter Gun, National Kid, Telerama Britânico, Madalena Nicols, e concorrência: A Globo decola (LIMA, PRIOLLI, e MACHADO, 1985,
Panorama. p. 30-34.)
8
O Brasil vivia o seu segundo ano de ditadura militar, mas alguns 13
O termo é utilizado no livro depoimento pelo próprio Edson
políticos acreditavam que essa era uma fase transitória de curta Garcia Nunes.
duração. Segundo o que nos indica o depoimento de Edson Garcia 14
Segundo Ademir Reis, o Café Imperial, onde os políticos da época
Nunes, Adhemar de Barros também tinha essa opinião. se reuniam.
9
A informação é de Agenor Simão. 15
Considerando a população total da cidade, conforme dados
fornecidos pela TV Integração.

Referências

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BOM MEIHY, J. C. S. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola, 1996.. 22 de fevereiro
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CIA das Letras, 1994. forma sistemática.
Cadernos de História (especial). Uberlândia - Uma História em 1960- Inaugurada no dia 6 de setembro a TV Excelsior, de São Paulo
Construção. 4 (4) Uberlândia: Edufu, 1993. 1962- Concedida, através do decreto 1127, de 4/06/62, para o
COSTA, A. H., et al. Um país no ar. São Paulo: Brasiliense, 1986. empresário Edson Garcia Nunes, a instalação de um canal
HALBWALCH, Maurice. Les cadres socieus de la mémoire. Paris: de televisão em Uberlândia/MG.
Féliz Alcan, 1925. HALBWALCH, Maurice. La mémoire colletive. 1961- A implantação de um canal de televisão em Uberlândia é
Paris: PUF, 1956. mencionada pela primeira vez no Jornal Correio de
LIMA, F. B. PRIOLLI, G. e MACHADO, A. Televisão e vídeo. - Os anos Uberlândia, em 20/04, Coluna Trapézio, pg.1. Criado pelo
de autoritarismo: análise - balanço - perspectivas. Rio de Janeiro: decreto n° 50.666 o Conselho Nacional de Telecomunicações
Zahar, 1985. (Contel)
MATTOS, S. Um perfil da TV Brasileira (40 anos de História - de l950 1963- Transmissão da primeira telenovela brasileira em
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TEIXEIRA, T. Bandeirantes e pioneiros do Brasil Central. 1964- A TV Triângulo - Canal 8, prefixo ZYA, entra no ar no dia 1°
Uberlândia: Gráfica Editora, 1970.p.499. de maio
TEMER, Ana Carolina Rocha Pessôa. Colhendo notícias, plantando Golpe militar de 31 de março
imagens – A reconstrução da história da TV Triângulo a partir Concessão de um canal de televisão para às Organizações
da memória dos agentes de seu telejornalismo. São Bernardo do Globo
Campo: UMESP, 1998 (Dissertação/Mestrado). O Brasil contava com 34 estações de televisão e mais de 1
THOMPSON, P. A voz do passado. São Paulo: Paz e Terra,1992. 800 000 aparelhos receptores
1965- Inauguração da TV Globo, no Rio de Janeiro
Criação da Embratel
Outros 1966- As Organizações Globo adquire o controle acionário da TV
Paulista, Canal 5
Entra em funcionamento, no mês de março, os aparelhos de
Inventário de Fontes de Pesquisa em Uberlândia - Publicação
vídeo-tape da TV Triângulo
Especial do Centro de Documentação e Pesquisa em História da
1967- Criado o Ministério das Comunicações
Universidade Federal de Uberlândia / sem data
Recrudescimento do movimento de emancipação do
Estado do Triângulo - Eu sou Triângulo - Folheto editado pela
Triângulo
Coordenação para Criação do Estado do Triângulo
1968- Inaugurada Rede Nacional de Microondas
1969- Transmissão, via satélite, da chegada do homem à lua
Um centro de Televisão da Embratel é instalado em
Anexo Uberlândia
Noticiada em Uberlândia a crise da TV Excelsior
SÍNTESE CRONOLÓGICA: A TV triângulo e o empresário Edson 1970- Transmissão ao vivo da Copa do Mundo do México
Garcia Nunes TV Triângulo muda para instalações especialmente
construídas para ela, no Bairro Umurarama, parte alta da
1950- Inaugurada a primeira emissora de televisão no Brasil, a cidade de Uberlândia.
TV Tupi, Difusora de São Paulo. Cassada em 28 de setembro a concessão do Canal da TV
1951- Inaugurada no dia 20 de janeiro a TV Tupi do Rio de Janeiro Excelsior, São Paulo
Iniciada a fabricação de aparelhos de televisão no Brasil TV Triângulo começa a transmitir novelas da Rede Tupi
(marca Invicturs) 72% das residências brasileiras estavam equipadas com
1953- A TV Record de São Paulo inicia suas transmissões no dia 27 televisores, segundo dados do censo demográfico nacional
de novembro 1971- A TV Triângulo é vendida para os empresários Tubal de
Siqueira e Silva, Rubens de Freitas, Renato de Freitas e
Rubens Leite.

222 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Você disse Hip Hop? afinal, o que é o Hip Hop?*

Rafael Guarato dos Santos

Graduando do curso de História da Universidade Federal de Uberlândia e integrante do POPULIS


(Núcleo de Pesquisa em Cultura Popular Imagem e Som)

Resumo Abstract
O Presente artigo objetiva esclarecer o impasse The present article tries do explain the definition
existente com relação à definição do termo hip hop of the term ‘hip hop’ while culture, movement or
enquanto cultura, movimento ou moda, fashion, analyzing speeches and practices of the
analisando os discursos e práticas dos sujeitos que subjects that constitute ‘hip hop’ in a national and
constituem o hip hop em âmbito nacional e international scope in what relates cultural
internacional com relação à indústria cultural e industry and mass media.
meios de comunicação de massa. Keywords: Culture, Hip Hop, Cultural Industry.
Palavras-Chave: Cultura, Hip Hop, Indústria
Cultural

Lá na área rap é o som mais ouvido pela Parece ser consenso entre integrantes e
vizinhança, homens, mulheres, crianças, sem pesquisadores do hip hop, que este termo foi criado
apoio sem tocar nas grandes rádios, o som resistiu pelo Dj Lovebug Starski para referir-se à forma de
a todos e não foram poucos que disseram: isso ai dança mais popular, naquele momento, dos
tocando aqui? Vocês devem estar loucos! Nos subúrbios de Nova Iork: mexer os quadris (to hip em
fecharam caminhos, abrimos outros, diretamente inglês) e saltar (to hop em inglês). Por volta de 1968
onde estava o povo, palcos, ruas, praças, se fosse o negro norte americano, África Bambaata passou a
diferente certamente não teria a menor graça, valeu utilizar o termo Hip Hop para designar toda uma
acreditar! Revolução no ar! A voz da periferia que manifestação cultural.
insistem em calar, chegar pra ficar de maneira O movimento hip hop se caracteriza por obter
coerente, mexendo com a cabeça e o coração da uma postura revolucionária e de contestação
nossa gente, rap nacional experimentando o seu socioeconômica assumida por ele, proveniente da
bum! Como já previa, Thaíde e Dj Hum 1
exclusão social e racial sofrida por jovens
pertencentes às camadas populares, esboçando suas
Recentemente o “hip hop” transformou-se em um insatisfações, comunicando-se a partir de uma
dos gêneros mais executados nas boates de todo o oralidade específica e expressões corporais, criando
mundo, mas será que este estilo musical trata-se um movimento totalmente novo. Todavia, o hip hop
realmente do hip hop? A partir de minha surge no Bronx nova-iorquino como uma forma de
experiência e de estudos realizados em torno do lazer e cultura como conseqüência da exclusão social,
movimento hip hop, deparei-me com alguns em meio a transformações que uma determinada
problemas recentes na definição do termo em camada da sociedade enfrentou no âmbito urbano.
questão, o que me estimulou a escrever este artigo, Assim, a principal característica da cultura hip hop é
com o objetivo de entender tais abordagens. Afinal, o fato de encontrar-se imersa na experiência local2.
hip hop é uma cultura, um movimento ou não passa Posteriormente, o movimento passou a
de um modismo? incorporar uma postura crítica frente à realidade

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 223


de jovens marginalizados socialmente, o que os trens, pois estes circulavam por todas as regiões
estimulou o interesse de novos adeptos. urbanas, fazendo com que a mensagem fosse lida
A cultura hip hop nada mais é que um conjunto por pessoas de toda parte da cidade. Porém, o poder
de quatro formas artísticas distintas, diferentes, público reagiu, criando espaços exclusivos para a
porém convergentes, chamadas de elementos, sendo prática da arte do grafite.
eles: o Mc, o Break, o DJ e o Grafite. Estes foram os O Break é uma autêntica dança de rua, o estilo
meios artísticos encontrados pelos jovens excluídos break foi criado na década de 1970 por jovens negros
para reelaborar sua realidade. e hispânicos residentes nas cidades de Nova York e
O Mc (master of cerimonies), ou seja, mestre de Los Angeles (EUA). O break é composto por três
cerimônia é aquele que compõe, canta e/ou fala o formas diferentes de dança: Locking, Popping e os
rap. Inicialmente, as frases que eram pronunciadas conhecidos movimentos de chão (up rock, freeze, toop
como fala sobre uma base rítmica fornecida pelo Dj, rock, foot work e power move). Estas três formas
tinham como objetivo animar festas que eram tentavam reproduzir alguns objetos utilizados na
realizadas nos guetos, conhecidas como Block Parties , 3
guerra do Vietnã como as hélices do helicóptero e os
somente em meados da década de 1970 que o corpos de soldados feridos através de movimentos
conteúdo das letras passou a conter teor crítico, “quebrados”. O indivíduo que dança o break é o b-
incorporando diversas temáticas. boy (break boy) ou b-girl (break girl), cuja definição
O Dj (Disk Jockey) é o indivíduo que produz a foi estabelecida pelo Dj Kool Herc para se referir
base rítmica sonora do rap. No final da década de àqueles que dançavam o break. O Termo breakdance
1960, o jamaicano Clive Campbel, mais conhecido foi lançado pela mídia quando esta dança obteve
como Kool Herc, trouxe de seu país de origem o ascensão no meio durante os anos 80 nos EUA. África
sistema de “Sound System” que consiste em “dois Bambaata que é seguidor da filosofia pacifista do
toca-discos interligados, dois amplificadores e um islamismo, aconselhou aos b-boys e b-girls, que
microfone” e substituiu o stereo system portátil
4
transferissem para o âmbito da dança, os conflitos
passando a ser utilizado em festas ao ar livre. Kool existentes entre facções (gangues) rivais, daí o
Herc passou a desenvolver as break beats, isto é, as caráter competitivo do break.
colagens musicais. O scratch foi executado pela O rap (abreviação de rhythm and poetry; ritmo
primeira vez por um garoto de treze anos de idade, e poesia) é resultado da junção entre um Dj e um
conhecido como Grand Wizard Theodore, porém essa Mc. O rap é composto por uma base musical dançante
técnica foi aprimorada por outro referencial em ou não acompanhado de rimas faladas que seguem o
termos de Dj, o americano Joseph Sadoler, vulgo ritmo. Esse elemento baseia-se na oralidade – assim
Grand Máster Flash. O scratch consiste em como toda cultura popular – que é representada em
movimentar o vinil no sentido anti-horário com o forma de canções e depoimentos, através dos quais
intuito de obter distorções musicais. Flash os sujeitos lembram, constroem e narram o cenário
desenvolveu também o back to back, que é a urbano moderno em que vivem. Enfim, histórias de
repetição de uma sessão ou frase rítmica. Nota-se o vida, que ao serem explicitadas formam uma
uso da tecnologia com o intuito de propiciar uma memória urbana, fornecendo novas percepções a
incorporação ampliada de novas técnicas, respeito do tempo e espaço, utilizando a música como
caracterizando-se desta forma, como uma cultura linguagem de denúncia social, como crônica da
material, baseada em recursos tecnológicos. Assim realidade imediata, tendo como pano de fundo a
o Dj passou a ter um papel crucial na produção da representação da experiência, ou seja, como o sujeito
base musical, sob a qual se assenta a poética do rap. interpreta seu cotidiano através de sua própria
O Grafite é a arte plástica do hip hop, e surgiu na vivência somado a um teor crítico, caracterizando-
cidade de Nova York no início dos anos 70. A gênese se como música de protesto. Eis em que consiste a
deste elemento é atribuída a Demétrius, um jovem peculiaridade do hip hop, uma cultura híbrida,
de origem grega que escrevia suas tags, ou seja, sempre em movimento, apropriando e sendo
assinaturas, como forma de expressar o isolamento apropriada constantemente.
dos guetos. Os principais alvos dos grafiteiros eram Estas formas de manifestação: dança, música e

224 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


pintura, passaram a ser incorporadas, apropriadas conduzido por uma ideologia, ou seja, a elaboração
e recriadas em termos culturais e tendo a rua como de um discurso cuja finalidade seria “mascarar” a
local comum. Isto é, o grafite com suas letras gordas, falsidade (manipular) através de uma falsa
robustas e muito colorido, sempre executado em vias consciência. No entanto o conceito de ideologia foi
de grande circulação de pessoas, inovou as artes reelaborado, sendo substituído por hegemonia, o qual
plásticas; o break aproveitou a rua como palco para sugere que um determinado segmento social, apesar
as performances de dançarinos, assim como a rua de tentar, constantemente, neutralizar e subordinar
tem sido o cenário de fatos narrados nas letras de os valores, hábitos, crenças dos demais indivíduos
rap. Daí a denominação de cultura de rua, e a sociais, não exclui as diferenças, pelo contrário, ao
popularização deste termo como designador do propor maneiras dominantes de ser, pensar, agir,
movimento hip hop. automaticamente produz práticas contra-
Dessa forma o hip hop revolucionou o cenário hegemônicas, uma vez que coexistem interesses
musical ao incorporar o sampler, realizando díspares no universo social6.
colagens musicais, o scratch e os toca-discos enquanto Por esse viés, o movimento hip hop não se dá de
instrumento, introduziu frases provindas do maneira homogênea, haja vista que existem várias
improviso, o grafite está pouco a pouco conseguindo vertentes no interior do movimento, cada qual com
o status de arte profissional e o break está cada vez suas linhas de conduta diversas, o que dificulta a
mais profissional, sendo realizados “rachas” definição do objetivo do movimento, mesmo havendo
frequentemente em nível nacional e internacional. uma linha mais forte conhecida como engajada ou
Logo, podemos perceber que as músicas que estão politizada, tendo como principais representantes no
fazendo grande sucesso nas rádios, tratam-se de rap, cenário nacional o grupo Racionais Mc’s, MV Bill,
que é apenas uma das manifestações artísticas do Gog, dentre outros.
hip hop e não o próprio hip hop, como está sendo Uma das principais críticas, que é apresentada
divulgado pelos meios de comunicação de massa, pois por estudiosos de nível acadêmico, ao movimento
ao ouvir uma música, o indivíduo não está hip hop, é que este apresenta apenas a crítica, não
presenciando a ação do Dj, ou do Mc, tão pouco a mostrando uma saída viável para a realidade das
execução de um b-boy ou de um grafiteiro, mas sim comunidades mais pobres, proporcionando assim
o rap. uma descrença pela ausência de uma solução.
Voltando à problemática em torno da definição Todavia, o movimento hip hop surge como
do termo hip hop, certos autores afirmam existir reivindicador de melhorias e não como elaborador
uma indefinição do termo no que tange à concepção da salvação mundial, isto é, o hip hop tem como base
de cultura ou de movimento, e que esta indefinição a luta por mudanças no âmbito social.
abre espaço para o uso indiscriminado de ambas O Hip Hop enquanto prática cultural teve sua
definições . Entretanto, o termo hip hop pode ser
5
origem e expansão nos grandes centros urbanos
definido em ambos os conceitos, e não que sejam industrializados, os quais geram locais e condições
utilizados aleatoriamente como alguns afirmam. propícias ao surgimento de manifestações artísticas
Por esse viés, no sentido de cultura de rua, o hip de cunho contestatório, como é o caso da periferia.
hop pode ser entendido como um conjunto de No Brasil, os moldes iniciais do hip hop
atividades artísticas/culturais de jovens excluídos apareceram no início da década de 1980, também
que se identificam pela música (rap), dança (break), em um grande centro urbano, que é São Paulo. A
e pintura (grafite) formando uma estética particular primeira das quatro manifestações da cultura hip
e diferenciada, criando uma linguagem própria. hop a ser explorada foi o “break” e começou a ser
Posteriormente, com o aprendizado e a praticada na Praça Ramos, em frente ao Teatro
conscientização por parte dos integrantes da cultura Municipal, no centro da cidade de São Paulo. Porém,
hip hop e de sua auto-afirmação como agente as condições do solo da praça não eram propícias para
transformador da ordem social, passam a a execução dos movimentos, o que levou os b-boys a
desenvolver um conteúdo crítico. Temos então o hip se deslocarem para a rua 24 de maio, que se tornou
hop no conceito de movimento social que seria ponto de encontro entre dançarinos.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 225


Posteriormente, passou a existir uma certa cenário fonográfico alternativo em que se fixaria o
perseguição policial aos breakers, alegando que a rap.
apresentação destes provocava grande aglomeração Ao contrário do ocorrido no rap nacional, situa-
de pessoas e facilitava a ação de ladrões, os dançarinos se o rap internacional, cujos personagens optaram
se transferiram para a Estação de Metrô São Bento pela inserção não só na indústria fonográfica como
e no final dos anos 80 a cultura hip hop no Brasil se nos veículos de comunicação de massa, deixando de
“dividiu” em São Paulo, com a migração de alguns se preocupar com o conteúdo das composições para
integrantes para a Praça Roosevelt ao invés da se importar com o sucesso. Podemos citar como
Estação São Bento. Esta ficou sendo o referencial de exemplo os artistas Puff Didy, Nelly, Snoop Doggy
encontro dos b-boys e b-girls enquanto aquela passou Dogg, Eminem, 50 Cent, Beyoncé, Cypress Hill, Ja
a acomodar os rappers. Rule, Outkast, dentre outros.
A partir deste momento, o rap passou a utilizar Nota-se que os rappers inseridos no processo de
um discurso mais politizado, atuando na massificação cultural, passam a produzir mais e a
reelaboração da realidade por meio da experiência contestar menos, deslocando o campo de abordagem
social em termos culturais, buscando alternativas e crítica para o da apologia à violência e/ou para a
propostas, enfatizando temáticas como o preconceito simples exaltação das luxúrias que o sucesso propicia,
racial, exclusão e justiça social. pois “a dependência e a servidão dos homens, é o
Diferentemente do Funk carioca, que é resultado objetivo último da indústria cultural”8, isto é, a cultura
da incorporação e interpretação no sentido de quando produzida em série, industrialmente, para
reelaboração da cultura hip hop, gerando uma forma um grande número de pessoas, passa a não ser mais
de manifestação totalmente diferente7, em São Paulo um instrumento de livre expressão, pois o conteúdo
o movimento hip hop formou raízes mais fortes e o da obra passa a atender a exigências de um público
rap se tornou o segmento mais expressivo, consumidor variado, utilizando-se da técnica do
principalmente no decorrer da década de 1990, na crossover 9 , tendo o artista – se quiser continuar
qual diversos grupos puderam veicular seus trabalhos fazendo sucesso – que se adaptar às novas
via selos independentes no mercado da Black Music. necessidades, afastando cada vez mais a postura
O trajeto percorrido pelo rap nacional para insubordinada e rebelde que antes o acompanhara.
alcançar a indústria fonográfica foi realizado via Neste momento, torna-se importante ressaltar que,
gravadoras independentes, basicamente por dois o que está sendo rotulado pela mídia como “hip hop”,
motivos: inicialmente os grandes selos como a Sony não se trata do movimento hip hop em si, mas sim
Music não demonstravam interesse em produzir um do rap, rap internacional, ou como os próprios
trabalho tido como marginal e agressivo. Por outro integrantes do movimento definem, rap gringo.
lado, porque os rappers se intitulam a voz da favela Voltando ao caso brasileiro, o grupo de maior
e faz parte dela, ou seja, os cantores de rap residem expressão no cenário nacional é o Racionais Mc’s,
na periferia e produzem suas composições para a que no ano de 1997 lançou o CD Sobrevivendo no
própria comunidade periférica, ressaltando que é a Inferno pelo selo independente Cosa Nostra, que foi
realidade da população excluída, não tendo assim, criado pelo próprio grupo, e alcançou a vendagem
justificativa para ser veiculada entre membros de mais de 1.000.000 (um milhão) de cópias. Mesmo
pertencentes a outros contextos. Desta forma, havia tendo alcançado um número extremamente alto de
uma relação recíproca de não aproximação, tanto vendas, o grupo não realizou nenhuma divulgação
por parte da grande mídia, quanto por parte dos através da grande mídia, ou seja, o álbum foi
rappers. veiculado por meios independentes de informação
Posto isto, os indivíduos que faziam rap, como rádios comunitárias e “piratas”, mas
procuraram veicular seus trabalhos via selos principalmente no popular “boca a boca”.
independentes, os quais foram criados por iniciativa Como conseqüência deste “boom” do rap nacional,
dos grupos que organizavam festas nos bailes blacks a mídia percebeu no mesmo um fetiche econômico
como a Kaskatas, Zimbabwe, Chic Show, Black Mad lucrativo, modificando seu discurso anterior, como
dentre outras, que vieram a se tornar as bases do analisa Luciane de Paula:

226 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


No Brasil, o rap chegou na transação do final da sentimentos, sonhos, crenças, valores, ideologias,
década de 70 e início dos anos 80. Contudo, ateve- enfim, particularidades diversas que impedem uma
se à periferia, já que foi rejeitado pela crítica e pela homogeneização cultural, afastando assim a visão
comunicação de massa, ainda que alguns já o apocalíptica13 apresentada pelos conhecidos teóricos
adotassem como canção de protesto.(...) Demorou da Escola de Frankfurt14.
duas décadas para que o rap, pouco a pouco fosse Corroborando esta concepção, está a reflexão do
aceito e incorporado pela mídia e pela crítica. A antropólogo-historiador Michel de Certeau, que
princípio, o discurso do rap era desacreditado e substituiu a tradicional concepção de recepção
considerado(...)De acordo com as leituras passiva para a idéia de adaptação criativa,
surgidas, a recepção, tanto da crítica quanto da enfatizando não a transmissão, mas a apropriação,
mídia, foi sendo alterada e, assim, esse discurso lembrando que perante a complexa sociedade em
passou, aos poucos, a aparecer em rádio, que vivemos, as camadas populares, ao se
programas de televisão e jornais. 10 apropriarem do que lhes é “imposto”, reelaboram,
recriam novas ou outras maneiras de fazer. Para ele:
Temos exemplos, no âmbito nacional, de rappers
que se inseriram nos meios de comunicação de Uma prática de ordem construída por outros
massa. Dentre elas podemos citar o ex-vocalista da redistribuindo-lhe o espaço. Ali ela cria ao menos
banda Planet Hemp, Marcelo D2 e o rapper carioca um jogo, por manobras entre forças desiguais e
Mv Bill. Ambos participaram de programas de por referencias utópicas. Aí se manifestaria a
grande audiência, porém, cada qual com uma opacidade da cultura “popular” – a pedra negra
proposta diferenciada. que se opõe à assimilação, encontrando mil
Para os teóricos T. W. Adorno e Max Horkheimer, maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro(...) 15
os quais criaram o termo Indústria Cultural, a
reprodução de bens culturais provoca tanto uma Em síntese, o foco mudou do doador para o
modificação no sentido da arte, ao ser realizada uma receptor, enfatizando que aquilo que é recebido se
fusão entre arte “inferior” (popular) e “superior” torna diferente do original que foi transmitido, posto
(erudita), transformando ambas em produtos que os receptores interpretam, adaptam as idéias,
destinados especificamente para o comércio, quanto imagens, costumes e tudo o que lhes é oferecido.
uma extensão da racionalidade técnica para a Desta forma, como existe um complexo sistema
cultura com o objetivo de dominação social, de produção, consumo e recepção hoje perante a
tornando-se a maior forma de manipulação do grande facilidade de informação e consumo,
capitalismo avançado , isto é, é como se fôssemos
11
lembrando que o processo de recepção não se dá
enfeitiçados pelos produtos culturais de massa. passivamente, coexistindo uma relação de
Dando continuidade a essa temática, alguns apropriação, incorporação e reelaboração, cabendo
autores relatam o não compromisso dos meios de ao historiador compreender as diversas recriações
comunicação de massa, os quais veiculam as que as camadas populares fazem daquilo que lhes é
mercadorias produzidas pela Indústria Cultural, com evidenciado, tendo como entendimento sobre
o conteúdo das obras culturais, como afirma cultura popular, inicialmente, como todas aquelas
Benjamim: “O conjunto de aparelhos que transmite práticas e representações artísticas que expressam
ao público a atuação do artista, não é obrigado a a realidade social, como forma de tornar público o
respeitá-la integralmente” 12. sistema de organização de um grupo, isto é, como
No entanto, ao tratarmos de Indústria Cultural, forma de representar seu universo, abarcando
cada caso deve ser analisado de forma específica, crenças, costumes, conhecimentos, hábitos16
tornando-se fundamental investigar as ideologias e Marcelo D2 realizou uma mudança profunda em
práticas de indivíduos participantes do processo. seu discurso, passando a realizar uma apologia à
Seria uma tese equivocada, afirmar que os sujeitos cultura hip hop e outras manifestações culturais da
históricos são passivos ao processo de massificação cultura brasileira que formam nossa identidade
cultural, haja vista que cada ser humano detém nacional, como é o caso do samba, e negligencia uma

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 227


postura crítica. Ao contrário de Mv Bill, que em contrário do discurso... não adianta mais rimar ladrão
momento algum modificou seu discurso. Suas idas a com polícia” 19
. Ao contrário desta declaração, um
programas de altos índices de audiência foram dos rappers mais conceituados do rap nacional, Gog
significativas, haja vista que o rapper procurou pensa que:
apresentar as ações sociais desenvolvidas na C.D.D
(Cidade de Deus) e organizada pelo artista, não se Eu vejo aí que as multinacionais que fecharam os
preocupando com a divulgação de seu trabalho olhos para o Rap nacional, as multis, que sempre
musical. apostaram em outras coisas que não o Rap, hoje
Logo podemos perceber que os meios de eles chegam contratando vários grupos; a gente
comunicação de massa não podem ser tachados de ouve falar de contratos, contatos, acordos certo.
vilões, mas o que passa a ser exigida é a analise Eu acredito que o Rap nacional tem que pisar firme
aprofundada da suas apropriações e mediações , 17
nessa hora, senão ele vai cair num lamaçal, ta
enfatizando que aquilo que é recebido se torna ligado, porque o que os caras querem é
diferente do original que foi transmitido, posto que, simplesmente pegar, manipular e transformar em
os receptores interpretam, adaptam as idéias, mais um lixo fonográfico. Então essa é a hora do
imagens, costumes e tudo o que lhes é oferecido. Rap nacional provar que ele tem base e não se
Compartilho da idéia de que a Indústria Cultural vender e não se render a essas leis que o mercado
não tem o poder de causar uma homogeneização fonográfico está ditando, porque, acima de tudo,
cultural, pois cada indivíduo detém mais do que música, Rap é revolução! 20
particularidades diversas que não são submetidas
ao processo de massificação cultural, tendo a Dando continuidade à questão da inserção do rap
Indústria Cultural que se adaptar às exigências, nacional na indústria cultural, Mano Brown, o líder
carências e necessidades das pessoas, as quais são do grupo de rap Racionais Mc’s, quando interrogado
heterogêneas. a respeito da inserção do rap nos meios de
comunicação de massa, afirma:
É preciso questionar as teorias que pensam a
Indústria Cultural como uma instituição Significa o começo da derrota dos rebeldes. O
absolutamente coerente que busca transmitir um começo de derrota(...) Quando escapa um do
conjunto de valores pré-estabelecidos(...) longe de controle, os caras viram a atenção pra aquele lado
buscar a homogeneização de valores e a visão de ali. É o que acontece com a gente. Se a gente voltar
mundo em escala planetária, hoje a tendência mais pros caras, significa que é uma dissidência que
importante do funcionamento da Indústria Cultural perdeu... Aí não existe mais. O Racionais não pode
é justamente uma tentativa de se adaptar à trair tá ligado? 21
heterogeneidade de seus diversos públicos,
segmentando-se ao extremo para satisfazer gostos Desta forma, nota-se posturas diferenciadas em
diferentes e para possibilitar trocas culturais entre relação à mídia, alguns optam por participar em
grupos bem determinados 18 . (VIANNA, Hermano, programas de grande audiência, independente-
1990, p.250.) mente da emissora, enquanto outros – principais
ícones da cultura hip hop em âmbito nacional –
Hoje, é fato que o rap internacional se tornou um preferem manter uma conduta anti-mídia, que se
modismo. Entretanto, o rap nacional não, e se tornou uma das posturas mais respeitadas pelos
depender de seus produtores, entre os quais podemos integrantes do movimento hip hop no Brasil.
citar os Racionais Mc’s, Thaíde e Dj Hum, A partir desta breve análise, pudemos perceber
Consciência Humana, Gog, Faces da Morte, RZO e que a cultura hip hop – que tem como um de seus
outros mais, o rap nacional ainda resguarda elementos o rap – não se trata de uma moda, mas
tradições e linguagens de suas origens e significados sim de uma manifestação artística/cultural que a
de transgressão. Para o empresário Rick Bonadio, “a partir dos subúrbios da cidade de Nova Iork do final
sonoridade do rap nacional vem evoluindo muito, ao da década de 1960 e início de 1970, desdobrou-se

228 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


em um movimento, que em mais de três décadas, caras estão fazendo apologia ao crime, ou seja,
engloba jovens excluídos de todo o mundo. Ou seja, drogas e outras coisas também, é uma coisa
“o hip hop não foi inventado pela mídia. Nasceu verdadeira, não é um fingimento, não é uma coisa
naturalmente, nas ruas, forjado em sangue, suor e que o cara tá fazendo ali unicamente pra vender,
lágrimas” 22. Penso que o hip hop apresenta elementos quer dizer tem... ele tem um fundo de realidade.
culturais variados, gerados por condições de Então quer dizer como é... a... ali as pessoas é
vivência de diversos sujeitos históricos, propiciando menos mascarada. (PAULINO, Reinaldo Tomé,
novas formas de representações, e que não precisam 2 0 0 5 . ) 23
ser necessariamente veiculados pela mídia para
atingir um grande número de pessoas. Assim, a periferia, que foi a maneira encontrada
pelos grandes empresários detentores do capital,
...o hip hop... que é uma linguagem que o pessoal para deslocar a população excluída, marginalizada,
da periferia compreende (...) ele é uma coisa se transformou num barril de pólvora; só que este
verdadeira, quando os caras estão ali falano sobre barril explodiu, e seus estilhaços estão atingindo
a realidade deles, seja de uma forma ideológica todos os segmentos sociais.
pra mudar é uma coisa verdadeira, quando os

Notas

*
Este artigo é um desdobramento de um projeto de iniciação 12
BENJAMIM, Walter. A Obra de Arte na Época de sua
científica mais amplo com o apoio do órgão Cnpq, intitulado: Reprodutibilidade Técnica. IN: Teoria da Cultura de Massa. 4º.
“Movimento hip hop em Uberlândia: Dança, Música e (L.C.Lima Org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
Identidades Urbanas – Uberlândia 1970/2000" sob a orientação 13
ECO, Humberto. Apocalípticos e Integrados. 5ed. São Paulo:
do Prof. Dr. Newton Dângelo do Instituto de História, da Perspectiva, 1993.
Universidade Federal de Uberlândia. 14
Dentre os quais podemos citar: T. W. Adorno, W. Benjamim, H.
1
Trecho da música: E se esse som estourar? De autoria do rapper Marcuse, M. Horkheimer.
Gog, disponível no site www.rapnacional.com.br. 15
CERTEAU, Michel de. “Culturas Populares”. IN: A Invenção do
2
SILVA, José Carlos Gomes da. Rap na Cidade de São Paulo: Música, Cotidiano. Trad. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
Etnicidade e Experiência Urbana. UNICAMP, Tese de Doutorado, 16
Sobre o tema: DÂNGELO, Newton. Vozes da Cidade: Progresso ,
1998. p. 11. Consumo e Lazer ao Som do Rádio – Uberlândia – 1939/1970.
3
Era nas Block Parties (festas) que aconteciam as maiores Doutorado-História. PUC/SP, 2001;
aglomerações de jovens adeptos à nova prática cultural urbana. SANTOS, José Luiz dos. O Que é Cultura. 4º ed. (Coleção Primeiros
4
Idem. Passos; 110). São Paulo: Brasiliense, 1986;
5
Ver em ROCHA, Janaína/ DOMENICH, Mirella/ CASSEANO, ARANTES, Antônio Augusto. O Que é Cultura Popular. 8º ed.
Patrícia. A Periferia Grita. São Paulo: Perseu Abramo, 2001. p.17. (Coleção Primeiros Passos; 36). São Paulo: Brasiliense, 1985;
6
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: MACHADO, Maria Clara Tomaz. Cultura Popular: Em Busca de
Zahar, 1979. um Referencial Conceitual. IN: Cadernos de História.
7
Ver em VIANNA, Hermano. O Mundo Funk Carioca. Rio de Uberlândia: EDUFU, n.5, jan/dez, 1994.
Janeiro, Jorge Zahar, 1988. 17
MARTIN-BARBEIRO, Jesús. Dos Meios às Mediações:
8
ADORNO, Theodor W. A Indústria Cultural. IN: Sociologia: Comunicação, Cultura e Hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.
Adorno. (Coleção Grandes Cientistas Sociais). São Paulo: Ática, 18
VIANNA, Hermano. Funk e Cultura Popular Carioca. IN: Revista
1986, p.99. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.3, n. 6, 1990. p. 250.
9
Nos Estados Unidos o termo crossover é utilizado para designar 19
Peixoto, Mariana. Briga de Cachorro Grande. IN: Jornal Estado
uma estratégia de se tornar comercial, um produto musical, de Minas, seção Em Cultura, 26/08/2004.
ultrapassando os segmentos de sua origem. Ver em: SILVA, José 20
Revista Rap Brasil. GOG Contra o Sistema. São Paulo: Escala,
Carlos Gomes da. Rap na Cidade de São Paulo: Música, Etnicidade 2000, nº 4. p.16.
e Experiência Urbana. UNICAMP, Tese de Doutorado, 1998. p.91. 21
Revista Caros Amigos. Movimento Hip-Hop: A Periferia Mostra
10
PAULA, Luciane de. “O hip hop, a mídia e a igreja”. Hip hop: seu Magnífico Rosto Novo. São Paulo: Casa Amarela, 1998, nº 3.
discurso de resistência ou alienação? Tese de doutoramento. p.18.
Araraquara: UNESP, 2003. p. 78. 22
Revista Caros Amigos. Movimento Hip-Hop: A Periferia Mostra seu
11
ADORNO, Theodor W. Indústria Cultural e Sociedade. (Coleção Magnífico Rosto Novo. São Paulo: Casa Amarela, 1998, nº 3. p.18.
Leitura; 51). São Paulo: Paz e Terra, 2002. 23
Entrevista concedida em 01/07/2005.

Referências

ADORNO, Theodor W. A Indústria Cultural. IN: Sociologia: Adorno. BENJAMIM, Walter. A Obra de Arte na Época de sua
(Coleção Grandes Cientistas Sociais). São Paulo: Ática, 1986. Reprodutibilidade Técnica. IN: Teoria da Cultura de Massa.
ARANTES, Antônio Augusto. O Que é Cultura Popular. 8º ed. (Coleção 4ºed. (L.C.Lima Org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
Primeiros Passos; 36). São Paulo: Brasiliense, 1985.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 229


CERTEAU, Michel. Culturas Populares. IN: A Invenção do REVISTA Caros Amigos. Movimento Hip Hop: A Periferia Mostra seu
Cotidiano. Trad. Rio de Janeiro: Vozes, 1994. Magnífico Rosto Novo. São Paulo: Casa Amarela, 1998. nº 3.
DÂNGELO, Newton. Vozes da Cidade: Progresso, Consumo e Lazer REVISTA Rap Brasil. GOG Contra o Sistema. São Paulo: Escala, 2000.
ao Som do Rádio – Uberlândia – 1939/1970. Doutorado-História. nº 4.
PUC/SP, 2001. ROCHA, Janaína/ DOMENICH, Mirella/ CASSEANO, Patrícia. Hip
ECO, Humberto. Apocalípticos e Integrados. 5ed. São Paulo: Hop: A Periferia Grita. São Paulo: Perseu Abramo, 2001.
Perspectiva, 1993. SANTOS, José Luiz dos. O Que é Cultura. 4º ed. (Coleção Primeiros
JORNAL Estado de Minas. IN: Em Cultura, Capa da data. 26/08/2004. Passos; 110). São Paulo: Brasiliense, 1986.
MACHADO, Maria Clara Tomas. Cultura Popular: Em Busca de um SILVA, José Carlos Gomes da. Rap na Cidade de São Paulo: Música,
referencial Conceitual. IN: Cadernos de História. Uberlândia: Etnicidade e Experiência Urbana. UNICAMP. Dissertação de
EDUFU, n.5, Jan/Dez, 1994. Doutorado, 1998.SITE, www.rapnacional.com.br
MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações: Comunicação, VIANNA, Hermano. Funk e Cultura Popular Carioca. IN: Revista
Cultura e Hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.3, n. 6, 1990.
PAULA, Luciane de. “O hip hop, a mídia e a igreja”. Hip hop: discurso WILLIANS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar,
de resistência ou alienação?.Tese de doutoramento. Araraquara: 1979.
UNESP, 2003.

230 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Uberlândia nas Linhas do Enfrentamento:
a democracia participativa nas páginas da imprensa*

Carlos Meneses Sousa Santos


Heloisa Helena Pacheco Cardoso

Graduando; Instituto de História; Universidade Federal de Uberlândia; Av. João Naves de Ávila, nº2160
– Campus Santa Mônica; Uberlândia; 38400; 0XX 34 3216-5871 e menesesufu@hotmail.com

Professora titular do Instituto de História/UFU. Orientadora do projeto de pesquisa G039/2004 – CNPq:


Sociedade e Estado - os caminhos da democracia participativa em Uberlândia.

Resumo Abstract
Este trabalho discute a ação dos agentes da This work discusses the actions of press agents in
imprensa escrita em Uberlândia, na década de Uberlândia in the 80s, regarding their association
1980, a respeito de sua associação com grupos to political groups which disputed the State
políticos em disputa pelo controle de Estado no control in the municipal district. The analysis
município. Essa análise se dedica a perceber a shows the presentation and reply of the political
apresentação e a contestação do projeto político de project of participative democracy in the search of
democracia participativa em sua busca do a consenting in a moment of crisis in social
consenso num momento de crise da direção social. administration.
Palavras chaves: Democracia Participativa, Keywords: Participative Democracy, Press, City
Imprensa, Cidade.

Procuramos neste texto tratar o projeto de consagradora do slogan de democracia participativa


Democracia Participativa, vivido em Uberlândia nos que se estabeleceria como sendo a democracia da
anos 1980, conforme interpretação dos jornais participação popular. A campanha canalizou as
impressos que circularam nesse período, quando ele expectativas de resgate da dívida social em face de
se transforma em política de governo no Município. uma proposta que propagava a humanização das
O projeto político de Democracia Participativa foi ações administrativas (colocaria os homens e suas
defendido, enquanto proposta administrativa, pelo necessidades no centro das atenções do poder público)
grupo peemedebista, liderado por Zaire Rezende. O como contraponto/alternativa à primazia do
candidato da Legenda-1 do PMDB saiu vencedor do desenvolvimento econômico, apregoado pela
pleito de 1982 para uma administração de seis anos administração então instituída e defendida pelos
– 1983/88. A proposta forjada nos bairros periféricos candidatos situacionistas e, até mesmo, por vários
da cidade trazia em suas diretrizes de “Ação de oposicionistas. Por tal condição, a proposta de
Governo” um levantamento minucioso das democracia participativa foi travestida de algo
necessidades prementes das pessoas pobres desse “novo”, que se apresentou contraposta às
Município. Na busca pela conquista do administrações tradicionais, comprometidas com o
compartilhamento social de suas propostas, a regime ditatorial, que via sua sustentabilidade
campanha de Zaire Rezende à prefeitura teve início política desmoronando em vista das condições de
dois anos antes da eleição propriamente dita. insatisfação criadas pelo estado de miserabilidade
A campanha culminou com a eleição das camadas sociais mais pobres. A idéia do novo era

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 231


alimentada primordialmente pela noção de diários, vislumbrando a manutenção ou a vitória de
participação popular elaborada pelo grupo político, a determinados projetos. Seus interesses específicos se
qual se sustentava pelo discurso da disponibilização relacionam com outros na disputa por expectativas
de mecanismos que possibilitassem o acesso das pessoas próprias e que também visam, conforme suas
mais pobres às ações de governo. Ganhou relevância, possibilidades em condições sociais estabelecidas,
então, uma outra idéia, a de descentralização participar no social do alcance do consenso de suas
administrativa das decisões de governo, que se reivindicações, tornando-as preponderantes na co-
propunha ser executada conforme o interesse social relação social de forças. O que coloca em movimento
manifesto nas reivindicações populares e não mais as lutas em condições sociais desiguais, em situações/
nas decisões técnicas. Estava em evidência a formas sempre transitórias devido a seu estado perene
expectativa da desburocratização, marcadamente de afirmação e questionamento.
presente na nova proposta de governo. Buscamos, por meio dessa fonte, perceber como a
Por essa nova proposta administrativa, como imprensa escrita, agente dos grupos dominantes no
pensar a temática da Democracia Participativa em Município, nos anos 80, se posicionou frente à crise
Uberlândia, pelas linhas diárias dos jornais que da direção da fração das elites que se viam
circularam no Município? Como perceber a crescentemente questionadas nesse tempo histórico.
influência e a inserção desses periódicos nas relações Interessa perceber como esses grupos apresentaram
sociais marcadas pelos múltiplos interesses vividos e significaram seus interesses ao veicularem nesse
nessa cidade? Como buscar nessa fonte o sentido real órgão de comunicação. Pretende-se com essa
das lutas sociais, seja em momentos de aproximação perspectiva desvelar os projetos de cidade pensados
dos interesses, ou de confrontos, onde os agentes pelas elites no Município.
sociais revelaram o caráter contraditório Entendemos que esses projetos contiveram, em
estabelecido entre as diversas práticas e as suas propagandas diárias, uma visão do social que
expectativas que instituem e são instituídas nas se pretendeu orientadora das relações sociais, onde,
relações sociais? Em que condições essas fontes em tal condição, foram apresentados os sujeitos
possibilitam entender as relações sociais em sua sociais conforme expectativas definidas por
construção histórica? interesses estabelecidos nas relações mantidas e
Procurar compreender determinadas condutas construídas historicamente.
sociais presentes na vida social é entender esse espaço Da leitura dos jornais pesquisados, a primeira
em seus múltiplos interesses, que se relacionam e se contradição que emerge é a noção de cidade. O jornal
tencionam. É ter esse estado social em uma condição Primeira Hora apresentou a cidade de Uberlândia
de conflito que em determinada situação, construída como duas: uma Uberlândia é velha, oligárquica,
socialmente, sobrepõe certas orientações, passadista, reacionária. Outra Uberlândia é jovem,
condicionando um conjunto de práticas em demérito progressista, dinâmica, democrática.1 A Uberlândia
de outras, vencidas no embate da correlação social defendida por esse veículo de comunicação,
de forças. Todavia, a orientação sobrepujante, umbilicalmente ligado aos interesses e aos propósitos
detentora de condições privilegiadas de luta, lança do grupo de Zaire Rezende, o prefeito eleito em 1982,
mão de condições objetivas e especulativas para sua contrapõe presente e passado e associa o projeto de
permanência como força influente e predominante democracia participativa à noção de progresso. O
nas relações sociais. Fato esse que, apesar de conflito entre “duas cidades” é reforçado quando a
socialmente reconhecido, não anula, mesmo que reportagem afirma que: a Uberlândia velha nunca
descredencie, outras possibilidades no combate por gostou do Primeira Hora. Reconheceu logo, no jornal
seu reconhecimento e enfrentamento na diversidade que nascia, um inimigo implacável do autoritarismo,
do social. do silêncio imposto, do “isso não se diz”. Um velho
É à luz dessa perspectiva que consideramos a escriba do passadismo, assacou editoriais para falar
imprensa jornalística um agente das expectativas do “jornal guerrilha”. Não lhe demos ouvido, e nem
de grupos sociais específicos. Estes veiculam nela seus poderíamos, pois estávamos voltados para o futuro,
discursos e divulgam seus anseios nos acontecimentos e o passado não nos interessa.2

232 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


A cidade da qual fala o periódico traz em si as Programa de Governo, seja no embate direto com os
condições históricas de uma sociedade que passava seus opositores, veiculando um projeto de mudança
por um processo de esgotamento de um modelo de social, que se propunha a estabelecer condições de
controle e gestão. A organização militar e ditatorial maior bem-estar para as relações humanas,
que ocupava o poder de Estado desde o golpe em 1964 valorizando o homem e preterindo o desenvolvimento
apresentava dificuldades de se sustentar, mesmo com econômico, elemento este instituinte do discurso
o uso da força violenta. Força essa que, segundo o situacionista e de outros grupos que até então
jornal Primeira Hora foi oligopolizada por grupos comandavam o poder municipal.
locais na defesa de seus interesses, grupos Logo após a eleição, reconhecendo a vitória da
reacionários que impediam novos tempos, proposta participativa, o Correio de Uberlândia,
democráticos e progressistas, aos quais o jornal dizia veículo do grupo oposicionista reunido em torno do
estar ligado. Era uma referência explícita ao grupo ex-prefeito Virgílio Galassi, reafirmou sua posição
do ex-prefeito Virgílio Galassi que havia em favor do desenvolvimento, afirmando que o
administrado o município e que tinha como projeto triunfo da oposição em Uberlândia município que
o desenvolvimento. contou com o apoio total do Presidente Figueiredo e de
Foi vivendo esse ano eleitoral marcado pelo
3
seus ministros, bem como do Governo do estado,
pluripartidarismo e pela perspectiva de mudança, mostra lições importantes para os homens da situação
simbolizada em nível federal pela saída dos militares (...) a vitória do PMDB em especial aquela conquistada
do poder, que o jornal Primeira Hora afirmou: pelo Dr. Zaire Rezende vai ficar na história política
colocamo-nos firmemente na defesa da necessidade uberlandense. Ninguém em sã consciência acreditava
de mudança, apoiamos com todas nossas forças, e que o PDS poderia perder as eleições em Uberlândia,
além de nossos recursos, a campanha eleitoral do depois de uma administração dominada por obras de
PMDB e a candidatura de Zaire Rezende. No início infra-estrutura e de projeção, pelo dinâmico prefeito
riram, e quando acordaram, o nome, o Programa de Virgílio Galassi.6
Governo e a idéia de mudar tinham tomado conta da Por dinâmico entenda-se um homem que
cidade e do coração dos uberlandenses. 4
personifica o discurso do desenvolvimento econômico
Certamente a veiculação desse ideário de enquanto progresso social, e que encarna em suas
mudança teve sua contribuição para a vitória do ações administrativas um projeto maior de
grupo do candidato do PMDB, Zaire Rezende. Contudo, “desenvolvimento do país”, o que, por sua vez,
o que me interessa em particular é perceber como justifica a ligação mencionada na matéria entre as
essas idéias se alimentaram das expectativas expectativas dos governos municipal, estadual e
populares, explicitadas nas reuniões de campanha federal. Uma defesa que busca para esse grupo um
pelos eleitores das regiões periféricas do município, lugar de provedor das necessidades sociais através
desassistidos pelo poder público, e se transformaram do desenvolvimento econômico, que ambiciona um
no projeto vencedor no embate social. O então Estado condicionador dos interesses de classe em
candidato a prefeito, Zaire Rezende, apesar de natural nome do progresso coletivo.
deste município vinha de uma ausência de 29 anos, Virgílio Galassi, ao avaliar, nas páginas desse
retornando a Uberlândia em 1978. Essa evidência periódico, se houve traição por parte dos eleitores,
não é aqui utilizada como um elemento de ou não, ao elegerem um de seus opositores, o prefeito
descredenciamento da vitória desse candidato, pelo em fim de exercício, afirma: o povo não trai ninguém.
contrário, é reveladora de uma campanha que Eu acho que o povo se manifesta de acordo com o seu
conseguiu, no meio da população mais pobre, num estado emocional. E o estado emocional do povo foi
período relativamente curto (2 anos)5, uma aceitação realmente, sob certo aspecto, negativo.7
social muito grande, fruto de uma confluência de A avaliação do prefeito relega a consciência
condições que se inter-relacionaram na construção popular a um mero estado emocional, destituída de
da imagem de um candidato popular, democrático e qualquer reflexão e avaliação das suas condições de
humano. É na construção dessa imagem que o Jornal vida. Certamente as pessoas se emocionam e sem
Primeira Hora se dedica, seja na exposição do dúvida alguma são, muitas vezes, movidas por

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 233


sentimentos. Seria, contudo, necessário indagar a condução da administração pública. Ou seja, a
quais emoções refere-se o prefeito. Estaria falando disputa pela ocupação do poder de Estado no
Galassi da emoção das pessoas em receberem um município trouxe à tona as fissuras dos grupos que
candidato da importância do prefeito em suas se utilizam das influências que exercem no social
moradias? Um candidato que ouvia os reclames para atrair legitimidade popular para seus projetos.
populares e os redigia em um “Programa de Segundo Capelato, que se dedicou a uma
Governo” impresso, estabelecendo uma relação de recomposição da ação da grande imprensa
reconhecimento do outro como um igual, tratando jornalística no Brasil, procurando compor um
da discussão de seus problemas e dificuldades com quadro minimamente esclarecedor desses agentes
eles mesmos, atribuindo às suas experiências um sociais em seus posicionamentos frente aos
conhecimento que deveria ser levado em acontecimentos históricos considerados de maior
consideração no momento da execução de obras notoriedade, todos os jornais procuram atrair o
públicas, ou mesmo na elaboração do programa de público e conquistar seus corações e mentes. A meta é
governo? Ou nada disso e estaria ele apenas falando sempre conseguir adeptos para uma causa, seja ela
do estado de insatisfação da condição de miséria na empresarial ou política. 8 Continuando, a autora
qual viviam as pessoas na periferia da cidade? afirma: É preciso considerar (...) que a imprensa
Desassistidas de saneamento básico, sofrendo a falta jornalística coloca no mercado um produto muito
de uma assistência pública de saúde, vendo seus especifico: a mercadoria política. Nesse tipo de negócio
filhos crescerem sem perspectivas de uma vida há dois aspectos a se levar em conta – o público e o
melhor do que a vivida por eles, não lhes faltavam privado (o público relaciona-se ao aspecto político; o
motivos para sensibilizarem-se com suas próprias privado, ao empresarial).9
condições. A Administração Pública Municipal com Tal consideração coloca em complementaridade
Galassi erguera monumentos do a relação que estabelece a condição empresarial (aqui
“desenvolvimento”, certamente para comunicar o entendida como detenção e aplicação de capital) com
“progresso”, exibindo seus sinais: viadutos, espaçosas a manifestação política (a forma por excelência do
avenidas, um “espetacular” Estádio de Futebol com enfrentamento e gestão da vida pública), que busca
capacidade para 70 mil pessoas, e outras grandes aqui ser referendada na batalha social travada na
obras de “interesse social”, como o aporte financeiro frente comunicacional de combate, ou seja, na
e fiscal para a construção do Centro de Amostragem conquista e na canalização de expectativas e
e Aprendizado Rural (CAMARU), ou ainda, a angústias dos setores alijados, pela posição social que
contribuição para a “bela e importante” nova sede ocupam, do processo de decisão política.
da Associação Comercial e Industrial da cidade Nessa proposta, foi mais eficiente o PMDB de Zaire
(ACIUB), entre outros feitos dinâmicos e modernos. Rezende no pleito de 1982. Seu veículo de
Faz-se necessária aqui a consideração de que, ao comunicação, o Jornal Primeira Hora, que se
colocar dois grupos como opositores, não os estamos dedicou a propagandear os anseios de seu grupo,
encerrando em antagonismos, nem os tomando como venceu a batalha eleitoral também nesse campo.
homogêneos. Pelo contrário, esses se relacionam por Fez de seu slogan de Democracia Participativa a
interesses que ora os aproximam e ora os afastam, esponja úmida que, ao entrar em contato com a
sendo ainda comum a transição de determinados população pobre da cidade, absorveu as expectativas
filiados de um para outro grupo. Isso dá conta de mais afloradas, conquistando o aval necessário para
uma filiação ou alinhamento que se faz menos por a ascensão desse grupo aos Gabinetes do Estado.
convicção de ideais do que por benefícios ou proveito Passado o confronto eleitoral, tem-se o esforço
próprio, uma vez que esses grupos são estabelecidos imediato pela busca de uma recomposição entre os
em teias de relacionamentos, tecidas por interesses, grupos rivais. Passa a ser defendido um certo
que são frágeis em sua configuração, mas sólidas em entendimento que é apresentado socialmente em
suas crostas de poder e influência. A discussão em nome do bem estar e do desenvolvimento coletivo do
questão diz respeito, a princípio, a um município. É aqui que os ânimos se arrefecem e ganha
enfrentamento de dois modelos de gestão social pela lugar o discurso do pacto social. Tal condição não

234 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


encerra as disputas, mas as traveste com outra caminho para uma compactuação em nome de uma
conotação. cidade dinâmica, bonita, progressista e cultural. Esses
O Jornal Correio de Uberlândia apregoava: elementos estipulam, ou buscam estipular, uma
esperamos que, agora, os novos governantes venham abrangência compatível às propostas básicas
a sentir que esta cidade nunca se dividiu depois das presentes em cada um dos discursos feitos quando da
eleições, e se incorporem, para o bem comum, ao campanha eleitoral. Ou seja, a “cidade” necessitava
progresso e desenvolvimento que marcamos nesta impreterivelmente, por razões “naturais” e “sociais”,
intocável e expressiva administração de Virgílio que esses grupos pactuassem para, em conjunto,
Galassi. 10 E já assinalando para a incorporação promoverem o desenvolvimento e o bem-estar-social.
mencionada afirmava: No Jornal Primeira Hora, quando da campanha,
encontramos outra versão. Em suas matérias sobre
em Uberlândia foi dele [PMDB] a vitória e nossa os comícios nos bairros periféricos promovidos pela
cidade passará a ser governada pelo Dr. Zaire sublegenda de Zaire Rezende, o jornal destacou o
Rezende, até agora totalmente desligado da sua sentido da participação popular:
vida política. Mas é um uberlandense médico de
renome, bastante conceituado, considerado um Zaire Rezende defendeu seu Programa para
homem bom e humano, ligado a uma das famílias governar Uberlândia e criticou a política dos
mais tradicionais e estimadas em nossa sociedade. governantes de 64 nas esferas Federal, estadual e
Está nas suas mãos a oportunidade de ser um bom municipal, para quem o desenvolvimento, os temas
administrador e um grande político, porque é um econômicos, o crescimento baseado apenas em
político novo na vida municipal. Muito fácil lhe será obras tem sido mais importante que o ser humano.
ser respeitado e aplaudido, pois não tem rancores, Zaire Rezende destacou que é preciso implantar-se
não tem ódios nem mau querenças. Uberlândia é no Brasil uma democracia participativa onde o povo
uma das grandes cidades brasileiras, admirada e tenha participação nas decisões governamentais.
conceituada como cidade dinâmica, bonita, Acrescentou que o povo tem o direito de escolher o
progressista e cultural. Dentro dela, salvo pequenas seu próprio caminho, pois é assim que acontece
divergências pessoais, a política nunca deixou numa verdadeira democracia. Lembrou que há 19
ódios, nem raivas, nem brigas. Pode, pois, o novo anos vive-se no Brasil sem liberdade e que essa
prefeito espargir sua mocidade, o seu entusiasmo, situação precisa ser modificada inteiramente. 12
o seu trabalho, com o mesmo empenho,
continuando a obra admirável de Virgílio Galassi. 11 A legenda encabeçada por Zaire é apresentada
como opositora à supremacia das questões
Essas colocações atribuem ao conflito entre os econômicas, supostamente racionais, como elemento
grupos dominantes/predominantes outra condição. predominante na tomada de decisões para as ações de
Passamos a observar por parte dos “derrotados” uma Governo. Propõe aos eleitores um procedimento
predisposição a um entendimento, que conforme suas inverso, o de valorizar a “promoção humana” em
possibilidades, começam por reconhecer a vitória do detrimento das questões econômicas. Mas tais
outro grupo político, mas reiteram seus interesses colocações já antevêem questões conflituosas, como a
primordiais. O periódico começa por atribuir afirmativa de que o “desenvolvimento, os temas
qualidades ao novo prefeito, o seu reconhecimento econômicos, o crescimento baseado apenas em obras
como membro de uma família tradicional, mas tem sido mais importante que o ser humano”. Ora,
avança apresentando-o como um homem bom e qualquer conduta, mesmo a defendida pelo grupo
humano, fatores que foram caracterizados como peemedebista, é exercida por pessoas em proveito de
elementos diferenciadores e particulares do candidato pessoas; a postura apropriada seria a de revelar quais
do PMDB. Tal aspecto, no entanto, é logo articulado a são os humanos beneficiados por tal conduta em
uma suposta não rivalidade programática com o detrimento de vários outros, e o porque dessa condição.
grupo derrotado, mas apenas alguns prováveis Aí está a contradição: essa categoria geral e abstrata
desentendimentos pessoais. Tal argumentação abre de ser humano, por tão idealizada, não representa

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 235


nada, a não ser a tentativa de homogeneizar as pessoas Não comportando os resíduos a “água” volta para
reais e desiguais na vida social. dentro das residências.14
As hipóteses acima mencionadas são Falando ao Jornal Primeira Hora, Vanda Arantes,
esclarecedoras para pensar a visita feita pelo novo que havia quatro anos residia no conjunto ressaltou
prefeito eleito à Associação Comercial e Industrial que a única solução seria a construção de esgoto e
de Uberlândia (ACIUB), que segundo seu presidente, para amenizar o problema estamos utilizando o tanque
Celson Martins Borges, foi o resultado de um convite de lavar roupa para realizar todo o trabalho doméstico,
feito pela Associação a Zaire Rezende (...). Celson cuja água tem escoamento para a rua.15 A matéria
Martins explicou o porque da solicitação: comentava que: esta alternativa para a solução
parcial do problema está acarretando em outro maior,
Na oportunidade [disse o presidente] pois toda água que escorre para a rua está empoçada
manifestamos a ele a urgência de se colocar em na frente do conjunto, onde é grande a quantidade de
Uberlândia hidrantes para o combate a incêndios insetos. O mau cheiro é constante e o tráfego de
e também de melhorar os equipamentos do Corpo veículos quase impossível.16
de Bombeiros. (...) o melhoramento nas condições Apesar da situação descrita pelo órgão de
de segurança em Uberlândia possibilitaria uma imprensa, a reportagem relatava: o diretor do
reclassificação das tarifas de seguros, que as Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE),
empresas pagam atualmente, o que representaria Luiz Ricardo Goulart, informou que pela implantação
uma economia para o empresário uberlandense. 13 da rede de esgoto no local apresentar uma série de
dificuldades, já está sendo estudada uma forma para
O presidente da ACIUB tinha suas razões para superar este problema.17
acreditar que o novo prefeito faria um bom Governo. O presidente dessa Autarquia Pública, apesar de
Se não fosse o fato dessa Associação ser tão bem ter rechaçado a solução apresentada pela moradora
atendida pelo poder público, poderia até ter devido a dificuldades financeiras, não deveria ter se
estranhado a presteza com que foi concretizada sua empenhado no atendimento dessa reivindicação, tal
solicitação, que apesar de elevados custos, foi uma qual se dedicou ao atendimento da instalação dos
das primeiras realizações da nova administração no hidrantes, na região central? No entanto, não
ano seguinte. Claro que a explicação para a conseguiu realizar tal obra, o que não serviu para
comunidade de Uberlândia, principalmente aos seres desmerecer seus bons serviços prestados aos seres
humanos mais pobres (que foram convidados a humanos de Uberlândia, que foram interrompidos
participar da solenidade de inauguração com direito pelo seu afastamento desse cargo em 1987, quando,
a demonstração dos novos “equipamentos públicos”, em reconhecimento ao seu trabalho e “competência”,
com salva de palmas e rojões), do porque daquela foi chamado a servir o recém empossado governador
obra, devido à coerência do grupo da Democracia do Estado de Minas Gerais, Nilton Cardoso, na
Participativa, exigia que fosse em outros termos, que Secretaria de Indústria e Comércio.
não os apresentados pela ACIUB. O motivo exposto As práticas sociais da política de Democracia
não foi o do rebaixamento do seguro que onerava os Participativa, nesse município, são reveladoras das
comerciantes, industriais e financistas presentes no lutas por projetos que naquele momento colocavam
centro urbano, mas sim a segurança das pessoas que possibilidades de futuro, os quais tiveram, naquelas
trabalhavam, moravam ou transitavam naquele condições históricas, o referendo popular. Mas o que
percurso. Tudo em nome da humanização e bem-estar temos a falar desse referendo popular e da
do povo uberlandense. participação, ou omissão, das camadas populares
Sorte diferente tiveram os moradores do marginalizadas frente a esse projeto? Como foi dito
conjunto San Remo, localizado na periferia de anteriormente, os jornais buscam fazer dos interesses
Uberlândia, que sofrendo com a falta de esgoto, de seus grupos, interesses sociais. E é por essa
tinham suas 20 residências enfrentando problemas condição que nos propusemos perceber, nas suas
de saneamento, devido a seu sistema de fossas, sendo linhas diárias, como esses se utilizam das
que quatro casas são servidas por apenas uma fossa. expectativas populares, e como, por sua vez, são, em

236 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


alguns momentos, reveladores das condições de atendimento de parcas reivindicações “sinalizava”
exploração vividas pela população pobre no a “boa vontade” da nova administração para com
município. as questões sociais dos mais desfavorecidos,
O Jornal Primeira Hora, quando da comemoração principalmente com a aquisição de equipamentos
dos 100 dias de Governo Zaire Rezende trazia o públicos básicos, como asfalto, água encanada,
depoimento do vereador líder da bancada governista esgoto, eletricidade, coleta de lixo, entre outros. Essa
na Câmara, Silas Guimarães, que afirmava: nova forma de tratar as ações da política de
democracia participativa protelava as ações de
a grande mudança na nova administração, governo no cumprimento das propostas de
conforme dizem os diretores das 23 associações campanha, principalmente do tão aguardado
de bairro de Uberlândia e de todos os outros órgãos “resgate da divida social” que esse governo
representativos da cidade tem sido a boa vontade pretendia, ou se propunha a promover, quando da
do Governo Municipal em ouvi-los e tentar campanha eleitoral.
encaminhar as suas propostas. Temos certeza que Essa nova condição gerava um certo estado de
essas associações não serão apenas ouvidas, mas descrédito por parte das pessoas não atendidas em
atendidas, pois o Governo Zaire, como demonstrou suas reivindicações. Vozes discidentes utilizavam e
nos cem dias será, realmente, o Governo da eram utilizadas pelos grupos opositores em seus
Democracia Participativa. 18
veículos de comunicação. O Jornal Correio de
Uberlândia, antes propagador de uma representação
Temos na fala do vereador, e na seleção dessa de governo, agora órgão de oposição, trazia, em
matéria pelo corpo editor do Jornal, uma condição algumas de suas páginas, linhas de contestação à
que revela, primeiro, a disposição de Silas política do novo governo, permitindo já em 1985
Guimarães em continuar a apresentar o projeto de espaço para manifestação das insatisfações dos
democracia participativa como expectativa a ser grupos sociais, como foi o caso da Associação de
atingida, uma vez que o líder governista apresenta Moradores do Bairro Santa Mônica:
as associações de representação popular como
organizações que continuam atribuindo confiança para extravasar o sentimento dos moradores do
ao governo Zaire Rezende. Com alguns meses à frente Bairro Santa Mônica, esteve aqui na redação, um
da administração municipal a proposta de diretor da AMBASAM, Luiz Rizzoto, que é vice-
participação popular deveria ter passado à condição presidente da Associação dos Moradores e Amigos
de política de Governo, deixando de ser, por do Bairro, fez um rosário de reclamações contra a
conseguinte, proposta de campanha. A fala do atual administração, afirmando que as diversas
vereador ao mesmo tempo expunha a dinâmica da reivindicações, feitas pela sua entidade, não foram
participação popular admitida pelo seu grupo, ou até aqui atendidas, que o tempo está passando e
seja, as pessoas se organizando em associações que nada de concreto está acontecendo.
representativas e exigindo dessas que reivindiquem Reivindicaram asfalto, praças e outros benefícios
e cobrem obras públicas ao Executivo, o qual iria e quando fazem reclamações o tratamento é bom,
atendê-las conforme suas possibilidades. Sugeria, ao mas as justificativas não convencem. 19
mesmo tempo, que essas associações aguardassem
mais um pouco, que tivessem mais paciência, porque Essa postura do Jornal Correio de Uberlândia, e
assim seriam atendidas em suas solicitações. de outros defensores de grupos de oposição, portadores
Em segunda análise, a sua fala instituía a forma de outros projetos de gestão para a administração
como o Jornal Primeira Hora traria, a partir da pública, mesmo que não estivessem apartados da
eleição, o novo discurso do agora Governo da gestão política vigente (caso diferente de outros
Democracia Participativa. O novo discurso grupos constituintes do social, esses sim alijados do
apresentava a política de governo como uma eterna processo de decisão política por não possuírem meios
intenção que se materializava em diálogos com as de fazerem valer seus desejos e necessidades na
associações e moradores dos bairros periféricos. O correlação de forças desprendidas no embate social,

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 237


pelo menos não de forma significativa), procuravam Essa aproximação é possível pela conservação de
sempre que possível desmerecer a posição central de um objetivo maior, que é a perpetuação nessa órbita
influência social predominante. Pretendem colocar de poder. Essas elites em sua rede de interesses e
em questionamento o compartilhamento social, influências permitem essa mobilidade, a qual
buscando (re)atrair legitimidade para suas próprias possibilita que se altere tudo desde que não se
reivindicações, incorporando, agora, alguns dos interfira na condição de exploração. A mesma
princípios que, pertencentes a outros grupos, foram tolerância não se manifesta com relação às
dotados de significância e atribuídos como sublevações da grande massa de pobres e miseráveis
necessidades por parte dos populares, que novamente da ordem capitalista de produção, a qual possui
passavam a ser disputados na construção de uma interesses libertários antagônicos aos de seus tutores.
“nova” ordem social. A Administração Zaire Rezende, em
Esse movimento é central no entendimento do cumprimento a propostas feitas quando da
processo histórico apresentado na conflituosa vida campanha eleitoral, colocou em evidência, enquanto
social. Ele sempre gesta o novo nas condições do prática de governo, um sistema que procurava
presente, que é a própria gestação do passado, que, incentivar, com auxilio de assistência técnica e
por sua vez, traz em si os resíduos de embates suporte físico operacional, o surgimento e a
anteriores, que vislumbravam projetos futuros, e institucionalização de organizações populares
que em casos determinados os atingiram em maior representativas, ganhando destaque, nesse processo,
ou menor intensidade. Essa condição é que possibilita as associações de bairros. Esse tipo de organização
o ordenamento das relações sociais e suas constantes que, por motivos diversos, começou a surgir no
reformulações. Contudo, nem só de enfrentamento município a partir de 1978 (estavam envolvidas no
se faz o conflito social. Um estado de tensão processo de constituição dessas associações populares
permanente estabelece momentos também de Comissões Eclesiais de Base e partidos políticos os
aproximação entre as elites influentes, e mesmo mais diversos – PT, PDS, PMDB, e outras...), contava
entre essas e a população menos favorecida. No com 11 associações até o início da Gestão do PMDB,
concerto de ordens sociais determinadas, essa passando com a nova administração a compor um
aproximação também é uma constante. conjunto de 32 instituições representativas 21. Esse
Em 1988, quando a Administração Zaire Rezende boom de participação, via representação de entidades
chegava ao seu final, matéria do jornal Correio de populares, se justificava, em grande parte, pela
Uberlândia ainda destacava o valor positivo da proposta de descentralização administrativa
proposta de participação do governo municipal a sustentada pelo novo prefeito, que colocava em “foco”
quem fazia oposição: o que denominava ser a desburocratização das
decisões de governo, uma vez que, quando solicitado,
um governo só é realmente democrático quando o poder executivo, seja pela presença de seu
reflete o desejo do povo e provoca mudança na representante máximo (o que personificava nas
organização da sociedade. Um poder onde o povo ações de governo a imagem do líder popular) ou de
se reconheça em sua cidadania e respeito, faça seus secretários/auxiliares, fazia-se presente in locu
gerar novos frutos e abra possibilidades para a para “ouvir” e atender “quando possível” os reclames
implantação de uma nova idéia de democracia (...) populares. Essa nova relação do Poder Executivo
A prática dessa idéia é uma propriedade absoluta frente à população, principalmente as pessoas mais
dos governantes voltados para o povo. A pobres, concebia encontros públicos nos bairros, os
participação da comunidade em todos os atos e quais, por sua vez, expunham em sua ação a nova
obras de um governo faz com que a forma/performance administrativa da gestão pública
responsabilidade seja um fato coletivo e um fator e, também, seus limites. Essa experiência era ao
de agregação social. Todos por todos é um lema mesmo tempo expectativa e desencanto. Ela
que reflete bem a filosofia de Democracia contrapunha a esperança deflagrada em discursos
Participativa da Administração Municipal em e acenada com boa intenção, com a realidade das
Uberlândia. 20
necessidades ali reclamadas. Essas reuniões

238 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


participativas tinham sua “eficiência” questionada momento algum a atual Administração comprou a
conforme o desencanto ganhava a esperança, pois opinião de qualquer veículo. Aceitar essa boataria
os dias futuros não se faziam dias melhores. de que o Poder Executivo nos cobrava um
A manutenção da tampa que procura abafar a posicionamento simpático em troca de verbas, é
pressão do movimento social, que por sua natureza alem de uma calunia, uma ofensa a todos nós que
conflitante ferventa as condutas ali presentes, tem fizemos a imprensa na cidade (...). O relacionamen-
que se sustentar, inclusive, com momentos de to de Zaire Rezende com a imprensa foi (...) o mais
liberação do vapor. Esse é o significado que apresenta liberal e democrático que já se viu em Uberlândia.
a política de Democracia Participativa do Governo Montou uma competente acessoria de imprensa
Zaire Rezende e de seu próprio partido, o PMDB. Um que, diariamente, fornecia boletins noticiosos já em
governo que se apresentou para arrefecer a redação final, fatos e informações, que poderiam
convulsão social produzida por políticas anteriores. ou não ser utilizados por nós da imprensa. 22
Mais do que um governo de contestação da ordem
vigente, como esse se apresentou quando da Essa matéria possibilita considerações relevantes
campanha eleitoral, foi antes de tudo uma para o entendimento de determinadas posturas.
administração de perpetuação da ordem social. Primeiramente ela elucida porque encontramos
Promoveu as reformas necessárias que se exigiam matérias idênticas – apresentação de anúncios
para a manutenção do sistema e o reconduziu ao comunicando as reuniões nos bairros com a presença
mesmo grupo e à mesma persona ficta de quem havia do prefeito e seus secretários, e mesmo a exposição
recebido quando de sua ascensão. de extensas resenhas dessas reuniões -, nos três
Mas como os órgãos da imprensa jornalística jornais pesquisados, inclusive com chamadas
apresentaram a retomada do poder de Estado, em simultâneas nas primeiras páginas desses periódicos,
1988, pelo grupo liderado por Virgílio Galassi? o que evidencia a associação de interesses pontuais
O Jornal O Triângulo, em 1988, no calor da desses grupos divergentes. Segundo ponto, e de maior
eleição, em um caso específico, saiu em defesa de seu importância para nossa análise, é quando, no início
opositor (o grupo peemedebista de Zaire), quando da reportagem, foi exposto que “todos os seguimentos
este foi acusado de ter favorecido o Jornal Primeira da comunidade, sem exceção, receberam benefícios
Hora com subvenções públicas em troca de apoio da atual administração”. Esse enunciado
político. O órgão oposicionista sinalizou com uma universalista é o reconhecimento do serviço prestado
consideração esclarecedora: pelo Governo Zaire: na conquista da estabilidade
social, com a pulverização de recursos em obras
Todos os seguimentos (sic) da comunidade, sem “pequenas, mas úteis” e no atendimento das
exceção, receberam benefícios da atual reivindicações das elites, conforme suas influências.
administração. Não há uma só entidade ou Ainda, em certos avanços, como no caso
empresa que não tenha sido beneficiada em apresentado, que teria possibilitado uma maior
determinado momento. E os meios de comunicação liberdade para esses órgãos de imprensa, deixando a
– todos eles - foram contemplados com recursos censura ser promovida por essas próprias empresas,
através da aplicação de verbas publicitárias que conforme seus interesses. Em terceiro lugar,
contemplavam seu funcionamento. Agora, se apresenta o projeto de Democracia Participativa, que
contesta o apoio dado ao Jornal Primeira Hora, inicialmente se propunha oposicionista, como um
ligado à própria prefeitura. Os empresários em complemento do projeto defendido pelo seu grupo,
comunicação não podem se queixar disso. Foi bom que perdeu as eleições justamente por ter sido
que houvesse um jornal ligado aos homens do contraposto pelo grupo vencedor. Esse discurso
PMDB porque assim todos nós nos beneficiamos. reconhece no governo Zaire Rezende um bom e justo
A verdade precisa ser dita. A prefeitura fez suas descanso, que após recuperada fadiga, serve como
publicações oficiais e institucionais utilizando-se de um novo fôlego para a retomada do desenvolvimento
todos os jornais, todas as emissoras de rádio e das e do progresso do município. Essa perspectiva procura
duas emissoras de televisão. No entanto, em consagrar o Governo Zaire Rezende como sendo o

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 239


governo do favorecimento social. Em contrapartida, anteriores, mas declarou que está preparado para
essa Administração teria estagnado o desenvolvi- conviver com a nova realidade sindical do país e
mento econômico, o qual deveria ser retomado, para com os avanços sociais da classe trabalhadora.
que fossem gerados mais empregos e renda aos Entende que o trabalho deve ter suas vantagens
desempregados, ao invés do Município ter que assisti- sobre o capital, mas ele não deixou de assinalar
los em todas as suas necessidades. que é preciso que haja um mínimo de entendimento
Tal falácia renega o caráter também elitista do entre as duas partes envolvidas no processo de
Governo Zaire Rezende. Porém, o sacraliza como um produção para que seja estabelecida a paz social. 24
governo popular quando o coloca como contraponto
ao dinamismo do grupo representado pelo jornal O O prefeito Virgílio Galassi, segundo a matéria,
Triângulo, empresa de propriedade do mesmo grupo reconhecia que as novas práticas sociais exigiam
do Jornal Correio de Uberlândia. Esse discurso serve novas condições que iam além daquelas
para alinhar o processo histórico em uma trilha sem explicitamente autoritárias, mesmo no
obstáculos, portanto, sem choques de percurso, sem desenvolvimento mecânico (sucesso econômico,
conflitos. sucesso social) proposto por seu grupo. Estava claro
Depois de atribuído o devido reconhecimento ao em bairros imersos na poeira, estava transparente e
valor da Administração Zaire Rezende, o Jornal O límpido na água barrenta das cisternas da periferia,
Triângulo retoma sua postura oposicionista: que, após a vivência das expectativas e realizações
da Administração Zaire Rezende, a miséria não
Queiram ou não os seus adversários Virgilio Galassi deveria mais ser ignorada, pelo menos não como
terá que assumir o compromisso de campanha, de antes. Não poderia o novo prefeito começar de uma
mudar toda estrutura que aí está, de ir buscar folha em branco a impressão do progresso, pois muitas
recursos para as realizações que voltarão a fazer pessoas haviam experimentado a possibilidade de
da cidade um canteiro de obras e de conquistar novas condições, estando essas, agora, presentes em
novas indústrias, geradoras de recursos e empregos sua consciência social, seja pela vivência do processo
(...) Tentar, premeditada-mente, obstacular o em si, ou ainda pela reflexão que ele possibilitava. E
caminho do futuro prefeito, será tentar evitar o mesmo que esses não se fizessem presentes em suas
próprio desenvolvimento da cidade e isso não vidas por meio de realizações materiais, eram reais
interessa a ninguém de mediana responsabilidade. 23 em seus novos modos de viver e se faziam presentes
no campo de lutas agora estabelecido. Essa condição
Bem, está de volta o grupo do desenvolvimento exigia (re)tratamento histórico por parte do político
social pelo desenvolvimento econômico, que em chefe do Poder Executivo, e ele o fez.
nome do progresso justifica a ordem e promove os Essas considerações dão sentido às questões
seus interesses de classe como sendo esses também os anteriormente apresentadas, que foram, por sua vez,
interesses de todos. Conclama a ordinária união sentenciadas pela entrevista realizada pelo Jornal O
pactualista da vida política do município e institui Triangulo ao jornalista sócio-acionário do Jornal
a (re)virada, fazendo referência ao grito de ordem Primeira Hora e também ex-secretário de Gabinete
entoado pelo grupo de Zaire Rezende que na eleição do prefeito Zaire Rezende e, na oportunidade,
anterior apregoava a virada. presidente do diretório municipal do PMDB, Orestes
O Jornal Correio de Uberlândia, por sua vez, Gonçalves de Oliveira. Segundo o entrevistado:
reconhecendo que o processo social vivido põe em
movimento outras condições que não as presentes O Brasil não é uma sociedade anárquica. Será
nas gestões anteriores de Virgílio Galassi, anunciava ganhando e perdendo eleições que iremos mudar
a sua volta ao poder executivo municipal de outra este país (...) Não temos condições de mudanças
maneira: pela via revolucionária, como pretendem alguns que
ainda vivem o sonho, a utopia da via revolucionária
Virgílio reconhece que volta a governar a cidade da década de 60. A atualidade deixa claro que este
numa época diferente da dos seus governos momento está totalmente descartado. O PMDB, den-

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tro desta realidade, está preparado para assumir da política de democracia participativa, percebida nas
as reformas e mudanças através desse caminho. 25
páginas de jornal. Um governo que subjugou os
discursos destoantes, soterrando outras possíveis
A afirmação de Orestes Gonçalves explicita a possibilidades para a construção das relações sociais
posição conservadora de seu grupo. A entrevista, nesse processo histórico, que desejavam outros
que procura justificar a postura política adotada pela futuros, mas que foram execrados pelo poder de
Administração Zaire Rezende chamando a atenção Estado e submetidos pela força do capital e pelo peso
para o que seriam seus avanços e as dificuldades das relações produzidas por ele, que são relações
encontradas para a gestão do município, consagra a injustas, mas são relações que só podem ser
máxima elitista de que é mudando que se conserva. combatidas com outras, que terão que ser
Sendo que conservar foi, sem dúvida, o grande construídas socialmente para que se rivalizem com
desafio enfrentado e vencido por essa administração. essa, que, para se manter como determinante, usa
Esta é a contribuição do Governo Zaire Rezende e “força, pão e expectativas”.

Notas
* O texto apresentado para ser publicado nesse periódico é fruto 11
Cidade espera que Zaire dê continuidade à obra admirável de
de reflexões a respeito do trabalho de pesquisa em Virgílio Galassi. Jornal Correio de Uberlândia. Uberlândia, 19/
desenvolvimento. 11/1982, p.12.
1
MACIEL, Roberto. A última página. In: Jornal Primeira Hora. 12
Ronan critica situação ruim do produtor rural. In: Jornal
Uberlândia, 04/05/1983, p.4. [Roberto Maciel é ex-editor do Primeira Hora. Uberlândia, 30/10/1982, p.1.
jornal em questão. Esse texto marca a sua despedida do periódico.]. 13
ACIUB recebe Zaire na última reunião do ano. In: Jornal Primeira
2
Idem. Hora. Uberlândia, 16/12/1982, p.4.
3
As eleições realizadas em 15/12/1982, para a administração 1983/ 14
Conjunto San Remo pede rede de esgoto. In: Jornal Primeira Hora.
88, devido ao fato de serem as primeiras após a restituição do Uberlândia, 05/04/1983, p..5.
pluripartidarismo como modelo eleitoral, gerou, devido às 15
Idem.
articulações partidárias, momentos de agitação, seja pela criação 16
Idem.
de novos partidos ou pela junção de outros, fato que criou 17
Idem.
verdadeiras frentes eleitoreiras em desprestigio de filiações 18
GUIMARÃES, Silas. Silas Guimarães afirma intenção de
programáticas. Essa condição fez com que, por pressão dos participação. In: Jornal Primeira Hora. Uberlândia, 10/05/1983,
partidos, fosse permitida a instituição de sublegendas em cada p. 4.
agremiação. Foram permitidas as inscrições de até três legendas 19
AMBASAM não está satisfeita com a Democracia Participativa.
por partido. Em Uberlândia apenas o PMDB e o PDS se utilizaram In: Jornal Correio de Uberlândia. Uberlândia. 20/04/1985, p. 2.
dessa legislação. 20
O povo constrói seu destino. In: Jornal Correio de Uberlândia.
4
MACIEL, Roberto Op.cit. Uberlândia, 25/06/1988, p. 3.
5
A campanha eleitoral realizada pelo grupo peemedebista teria 21
Ver em ALVARENGA, Nízia Maria. As Associações de Moradores
dado forma à proposta de Democracia Participativa que, segundo em Uberlândia: Um estudo das práticas sociais e das alterações
aponta o próprio grupo, foi exposta e gerada em 44 bairros da nas formas de sociabilidade. Universidade Pontifícia Católica
cidade em mais de 500 reuniões populares realizadas nas de São Paulo/ Doutorado em Sociologia, 1995.
próprias moradias nesses bairros. 22
QUIRINO, Luiz Fernando. Zaire e a Imprensa. In: Jornal O
6
Política. Jornal Correio de Uberlândia. Uberlândia, 18/11/1982, Triângulo. Uberlândia, 22/11/1988, p. 4. [Luiz Fernando Quirino
p.1. era, quando de seus escritos aqui apresentados, editor do Jornal
7
GALASSI, Virgílio. Com o voto conservador dividido Zaire O Triângulo].
chegou ao poder. In: Jornal Correio de Uberlândia. Uberlândia, 23
QUIRINO, Luiz Fernando. Ameaças veladas. In: Jornal O
23/11/1982, p.6. Triângulo. Uberlândia, 29/11/1988, p.1.
8
CAPELATO, Maria Helena Rolim. A Imprensa na História do 24
Virgílio anuncia o desenvolvimento. In: Jornal Correio de
Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1994. p.15. Uberlândia. Uberlândia, 20/11/1988, p..8.
9
Idem. p,18. 25
OLIVEIRA, Orestes Gonçalves de. Zaire Rezende está na
10
Política. In: Jornal Correio de Uberlândia. Uberlândia. 20/11/ campanha de seu sucessor. In: Jornal O Triângulo. Uberlândia,
1982, p.1. 01/07/1988, p.1.

Referências

ALVARENGA, Nizia Maria. As Associações de Moradores em MARX, Karl. O dezoito brumário de Luiz Bonaparte. São Paulo:
Uberlândia: Um estudo das práticas sociais e das alterações Centauro, 2003.
nas formas de sociabilidade. Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo/Doutorado em Sociologia, 1995.
CAPELATO, Maria Helena Rolim. A Imprensa na História do Brasil.
Fontes pesquisadas
São Paulo: Contexto/EDUSP, 1994.
_______ & PRADO, Maria Lígia. O Bravo Matutino (imprensa e
- Jornal Correio de Uberlândia (1982-1989)
ideologia no jornal”O Estado de São Paulo). São Paulo: Alfa-
- Jornal Primeira Hora (1982-1989)
Omega, 1980.
- Jornal O Triângulo (1986-1989)

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 241


Era uma vez ... uma praça*

Ivanilda Aparecida Andrade Junqueira

Mestre em História pela Universidade Federal de Uberlândia

Resumo Abstract
Este estudo procura analisar alguns aspectos que This study aims at analyzing some meaningful
foram significativos no processo de transformações aspects related to the transformations that
ocorrido na Praça XV de Novembro, situada em occurred at “Praça XV de Novembro”, located in
Prata, Minas Gerais. the city of Prata, Minas Gerais State.
Palavras -Chave: História Social, Patrimônio, Keywords: Aspects, Meaning, Transformations
Preservação, Paisagem.

Lembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão, Em todos os desenhos a Igreja Matriz se fez
compreensão do agora a partir do outrora; é presente, o que me levou a pensar na importância
sentimento, reaparição do feito e do ido, não sua da religiosidade na vida das crianças em questão,
mera repetição. mas nenhuma delas ressaltou o prédio do “Paço
Marilena Chauí – 1985. Municipal” localizado na face norte. Apenas duas
meninas desenharam os quiosques comerciais
instalados na avenida Major Carvalho, entre as duas
No ano 2001, trabalhei como professora na Escola quadras da praça. A ilustração 01, nos mostra os
Municipal da Vila Vicentina, uma escola da periferia aspectos que foram privilegiados pela aluna
da cidade do Prata, MG, e por já ter iniciado essa Luciana: a Igreja Matriz ao fundo; uma parte da
pesquisa procurando compreender os significados da quadra sul sem, no entanto, destacar o elemento
Praça XV de Novembro para as pessoas que arquitetônico da Concha Acústica. Ela ressaltou a
vivenciaram o processo de transformações ocorrido presença da fonte luminosa acrescentando-lhe jatos
em seu espaço, elaborei um projeto a ser imaginários de água colorida, informação adquirida
desenvolvido com os alunos da quarta série, cujo em entrevista que realizou com uma tia. Não deixou
objetivo foi voltado para a análise das práticas de de desenhar nenhum dos quiosques citados acima,
sociabilidade que ali ocorriam. Uma das etapas do porém, o que se sobressai no seu desenho é uma
projeto consistia em um passeio das crianças à praça enorme palmeira imperial a qual foi uma das
com o objetivo de desenharem os aspectos que primeiras mudas plantadas ali e o poste de luz
julgassem mais importantes. instalado no local por volta de 1978.

242 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Ilustração 01: Desenho feito por Luciana no ano 2001.

Foi-lhes pedido, também, que elaborassem em que nós moramos e que vivemos!
um relatório e, na simplicidade textual inerente às Muito obrigado! 1
crianças dessa faixa etária, Luciana nos coloca em
contato com o seu ponto de vista referindo-se à sua Esse projeto se mostrou significativo quando
cidade da seguinte maneira: resolvi aprofundar a pesquisa no curso de Mestrado.
Os principais objetivos se voltaram para a análise e
A minha cidade, antes deu nascer, era linda, compreensão das transformações ocorridas no espaço
maravilhosa. Muito especial pra mim e para outros. da referida praça, o modo como influenciaram o
Os homens, antes deu nascer, construíam seguindo cotidiano da população pratense levando a uma
o modelo daquele tempo. atualização das práticas de sociabilidade que ali
Aqui na nossa cidade também tinha casa, prédio e ainda ocorrem. Discursos voltados para o progresso
também uns carrinhos diferentes que não tem e desenvolvimento foram disseminados. Antigos
agora. Eu queria ver a cidade como era antes. hábitos foram abandonados, elementos
Você viu a mudança que agora fizeram pensando arquitetônicos foram demolidos e, em seu lugar,
que o novo é maravilhoso? ergueram-se outros. Nesse sentido, procurou-se
A vida não é assim! O velho também tem valor. Eu investigar até que ponto esses ideais
não sei como era a cidade antes, mas no meu desenvolvimentistas atingiram a cidade como um
sonho ela era linda! todo. Buscou-se ainda, refletir sobre os conflitos
Será que os prefeitos e as pessoas não vai ligar políticos e sociais, como se evidenciavam e de que
para isso? modo essa sociedade se relacionava com os mesmos.
Eu acho que não, porque, esses prefeitos, não Para viabilizar o andamento da pesquisa, me
ligam. Mas outras pessoas ligam porque elas apoiei na reflexão desenvolvida pelo professor
moram aqui, aqui é a terra em que eles nasceram. Rinaldo José Varussa quanto às possibilidades de
Mas, agora vamos parar de destruir as cidades análise que existem quando estudamos

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 243


determinados espaços produzidos pela sociedade. compreendamos o cotidiano dos usuários de
Inicialmente, o autor sugere que seja realizada uma determinados lugares. É necessário fazer o
atividade de observação do local. Seguindo os passos cruzamento de fontes e, neste caso, relacionar os
sugeridos por Varussa, fui percebendo aos poucos: depoimentos orais com os documentos impressos foi
interessante, pois, é praticamente impossível
a apropriação e intervenções que os sujeitos enxergar a paisagem sem observar a atuação do
fizeram do/no lugar em diferentes épocas e que homem como sujeito no seu contexto social. Segundo
orientaram a disposição dos diferentes elementos o autor, os espaços devem ser pensados como
que compuseram a paisagem. Este, inclusive, “projetos sociais” complexos que contam com a
poderia ser um dos temas que delimitaria a participação de diversos sujeitos com uma
discussão, levando os estudantes a diversidade de interesses. Ele sugere que perceber
problematizarem as mudanças por que passou a esta diversidade pensando nos processos que a
praça no sentido de investigar os modos como os constituíram, pode ser um dos caminhos a serem
diferentes sujeitos utilizavam o espaço, buscados quando investigamos uma determinada
questionando-os a cerca das diversas e, por vezes, paisagem.
divergentes propostas de ocupação que permeiam Por outro lado, percebi que trabalhar com as
a constituição dos lugares. 2 lembranças dos seus freqüentadores, segundo
Samuel, impede “que o povo permaneça escondido”.4
Partindo do ponto de vista de Varussa, foi possível Nesse sentido, é relevante ressaltar que a praça, sem
perceber que ao mesmo tempo em que os cuidados a sua presença , perde a função como local de
com o ajardinamento e com os monumentos sociabilidade onde as atividades e relações humanas
arquitetônicos da Praça XV de Novembro foram que ali acontecem “se desdobram em termos de
sendo deixados de lado, seu espaço físico foi sendo produção econômica, ordem política e criação
ocupado de maneiras diferenciadas conforme o cultural”. 5
O espaço público favorece o contato
interesse dos sujeitos sociais que passaram a utilizar humano e é essencial para as pessoas, podendo influir
o local. Contudo, ao continuarmos com a análise, diretamente nas suas atitudes. Conviver em espaços
percebemos que: que permitem uma maior aproximação acaba por
favorecer o contato entre elas. Isso ficou evidenciado
Não basta, deste modo, descrever as disposições pelas informações contidas nos depoimentos levando-
encontradas, as formas e padrões estéticos me ainda a perceber que trabalhar com a ajuda da
observados, os materiais empregados. Estes são memória instiga o trabalho do historiador ajudando-
elementos importantes, porém e mais o a desenhar novos mapas, nos quais as pessoas são
propriamente aqui, enquanto suscitadores de tão importantes quanto os lugares e os dois estão
questões a serem investigadas (por que se utilizou mais intimamente entrelaçados.
tijolo e não Taipa; por que a rua percorreu tal Pensei ser estimulante, se os sujeitos históricos
traçado? Por que se adotou determinado estilo cuja experiência de vida investigaria,
arquitetônico ou a diversidade deles?), levando-se apresentassem alguma relação com minha vida,
sempre em consideração que a paisagem é uma fizessem parte do meu cotidiano na minha cidade
construção da ação dos sujeitos e como tal natal. Desse modo, esta trama também traria algo
carregada de intenções, sentimentos, valores e em do meu próprio ato de retraçar, de narrar esta
meio a disputas. Torna-se necessário, assim, para história. Como observa Veyne:
ler/interpretar historicamente uma paisagem,
considerá-la e colocá-la em movimento, buscando Toda historiografia é subjetiva: a escolha de um
construir os processos nos quais elas se assunto de história é livre e todos os assuntos são
constituíram. 3 iguais em direito, não existe história e nem ‘sentido
da história’; o curso dos acontecimentos (puxado
Conforme as considerações do autor, a paisagem por alguma locomotiva da história
por si como documento não é suficiente para que verdadeiramente científica) não caminha numa

244 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


rota traçada, o historiador escolhe, livremente, o menos importantes, também nortearam a pesquisa.
itinerário para descrever o campo factual e todos As intervenções feitas pelo homem naquele espaço
os escolhidos são válidos (mesmo os que não interferiram na vida das pessoas que o
sejam tão interessantes) 6
freqüentavam? Havia a possibilidade de integração
dos elementos arquitetônicos que foram demolidos
Esse autor salienta que os historiadores narram aos projetos de reforma da praça? A especulação
tramas que são tantas quantos forem os itinerários imobiliária influencia na não-preservação dos
traçados por eles, mas nenhum historiador poderá prédios que se situam no entorno? O que levou vários
descrever a totalidade do campo factual com que comerciantes a se apossarem daquele espaço público
trabalha, “pois um caminho deve ser escolhido e não instalando ali seus pontos comerciais em barracões
pode passar por toda parte; nenhum desses caminhos de folha de zinco? O que significa, para o cidadão
é o verdadeiro ou é a história.” A noção de trama pratense, a preservação do patrimônio arquitetônico
esboçada por Paul Veyne sugere que o sentido da e urbanístico e também das tradições vivenciadas
história é construído e é influenciado por aquele pela população local? Existe interesse por parte do
que a compõe. Então, posso dizer que minhas poder político em relação à preservação? E a questão
lembranças influenciaram na construção desse texto, política que se encontra aí inserida? Para responder
pois, mesmo inconscientemente, momentos bons e a esses questionamentos tornou-se necessário
ruins vividos naquela praça me vêm sempre à investigar a história da cidade.
memória, mesmo porque ela não é passível de ser O município do Prata conta, atualmente, com
controlada. Pude perceber isso ao analisar o artigo aproximadamente, 25.000 habitantes 9 sendo que
de Jacy Alves de Seixas, “Halbwachs e a Memória – sua economia se firma na agropecuária com destaque
reconstrução do passado: memória coletiva e para o leite e seus derivados. Sua origem 10, segundo
História”, onde a autora salienta que mesmo que relatos memorialistas, remonta ao início do século
evitemos lembrar, não queiramos lembrar, não XIX, quando, por volta de 1811, um grupo de
suportemos lembrar, sabemos que de alguma forma bandeirantes liderados pelo então Capitão Antônio
as lembranças subsistem e persistem em algum Eustáquio da Silva Oliveira sai do povoado de
canto recôndito da memória. 7 Desemboque, pertencente ao município da atual
Seixas ressalta a revalorização da memória, cidade de Sacramento, alcançam a região
atualmente considerada por muitos um dado denominada de Sertão da Farinha Podre e aí se
inovador, cujos sujeitos são os grupos sociais na sua instalam. Mas, somente após a construção da Igreja
heterogeneidade resultando na pluralidade das de Duas Torres, em 1839, pelo alferes Antônio
memórias coletivas, na diversidade das memórias Joaquim de Andrade e sua esposa Da. Cândida
sociais: Umbelina de Andrade, apareceram os primeiros
elementos que definiriam aquele espaço como uma
Memórias dos acontecimentos felizes e praça: uma igreja rodeada por um amplo espaço
gratificantes, das vitórias e realizações convivem livre. Nas festividades de sua inauguração o Pároco
e, muitas vezes são soterradas pelas memórias em exercício, Antônio Dias Gouveia deu-lhe a
das humilhações e ressentimentos, das violências denominação de Largo da Matriz. A cidade que
sofridas (geralmente em silêncio e em aparente surgiu foi “semeada”11 lentamente no entorno do
aquiescência) pelos indivíduos e grupos sociais ao Largo.
longo dos anos. 8 A influência rural citada por Sérgio Buarque de
Holanda em seu livro “Raízes do Brasil” se fez
Essa memória, responsável por trazer à baila presente no seu processo de desenvolvimento,
momentos do meu passado, os quais julgava chegando mesmo a ser um entrave para o
esquecidos, foi o elemento disparador que me levou crescimento urbano. Por muito tempo, “as terras
a buscar na memória dos antigos e atuais destinadas à lavoura eram a morada habitual dos
freqüentadores da Praça XV de Novembro, as bases grandes. Só afluíam eles aos centros urbanos a fim de
para a elaboração desse estudo. Outras questões, não assistirem aos festejos e solenidades”.12 De acordo

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 245


com os documentos analisados e, principalmente, de novas paisagens urbanas criando outra
com as narrativas de alguns cidadãos, em Prata, o visibilidade para o poder.
modo de vida dos seus habitantes se assemelhava Em várias capitais, como o Rio de Janeiro e Belo
com aquele descrito pelo autor, pois a maioria dos Horizonte as intervenções se apresentaram como
proprietários rurais, até a década de 1960 vitais, porque a imagem de uma cidade organizada
mantinham suas residências na cidade apenas para seria responsável pela inserção do país nos ideais de
visitas esporádicas. Com o decorrer do tempo a cidade desenvolvimento difundidos pelo mundo. Em
foi se transformando. relação a esse assunto Sandra Mara Dantas diz que:
Contudo, como todo processo de transformações
não ocorre isoladamente, procurei investigar as o Rio de Janeiro, capital nascente da república
mudanças que aconteciam no país durante o período brasileira, necessitava de uma reformulação para
estudado me apoiando na tese de Regina Helena A. abrigar os sonhos de novos tempos que se abriam
Silva 13 , “A Invenção da Metrópole”, que trata o no final do século XIX. Com técnicos e urbanistas
processo de urbanização das cidades como uma das formados na escola francesa, a cidade foi
questões colocadas pelo mundo moderno e que foi reformulada, pois que como capital federal fazia-
resultado do processo advindo com a Revolução se imprescindível que aparentasse as esperanças
Industrial. Segundo a autora, no século XIX surge de uma nova sociedade. Em Minas Gerais, a nova
um discurso civilizador que prega a técnica como capital também obedeceu a esses princípios. A
fator essencial para a reordenação do espaço das colonial Ouro Preto de ruas estreitas e tortuosas e
cidades, o qual se apresenta como um vasto campo arquitetura barroca cedeu lugar à cidade planejada
de contradições, lutas e disputas. Silva fala das de Belo Horizonte porque era necessário apagar
intervenções feitas nas cidades européias e as os vestígios do período imperial, inaugurando o
influências que exerceram no processo de novo mundo dominado pela racionalidade, técnica
urbanização das cidades brasileiras salientando que e eficiência. 14
o mais importante não é confirmar se houve cópia
do modelo europeu, mas sim em como se deu essa A necessidade de uma transformação da imagem
transferência de modelos e padrões de planejamento do Brasil para que alcançássemos o progresso leva à
urbano de um país a outro. Enquanto que nas cidades transformação urbana de suas cidades e, uma das
européias, as intervenções eram pensadas para primeiras experiências nesse sentido, foi a mudança
remediar uma situação já existente, no Brasil elas da capital de Minas Gerais, pois o federalismo amplo
foram feitas como uma preparação das cidades para que se estabeleceu então determinou, para as
a fase industrial do capitalismo e eram resultantes capitais, novas e ampliadas questões
das relações de dominação estabelecidas no país, que administrativas, o que, para os políticos mineiros,
não levavam em conta as necessidades reais dos inviabilizava Ouro Preto como capital. Era
habitantes. O seu objetivo principal era “organizar” necessário que a capital fosse uma cidade voltada
as cidades para o avanço do capitalismo e a maioria para o progresso, o desenvolvimento econômico e
da população era excluída de qualquer benefício deveria estar situada numa região de igual
urbano. característica. Para eles, Ouro Preto passou a
Com a instauração da República foi necessário significar o passado. O futuro estava em outras
dar uma nova face ao país, a qual iria se contrapor regiões, daí a necessidade da mudança. 15
ao estigma de país atrasado e subdesenvolvido. As Então, a cidade de Belo Horizonte é projetada
intervenções urbanas que começam a ser feitas antes mesmo da escolha do local em que seria
ocorreram de maneira localizada, não considerando edificada. “Seria uma nova proposta e não uma
a cidade como um todo. Foram priorizados os planos reforma do tecido”. 16 Quanto ao local, escolhido
de melhoramentos, embelezamento e expansão, posteriormente – “Curral Del Rei” – ocorre sua total
sendo que a modernização se tornou o princípio destruição comandada pelos engenheiros, não se
norteador dessas intervenções, pois, segundo Silva, respeitando as relações e experiências que o
era necessário preparar as cidades para a construção constituíram e lhe deram significado. O projeto da

246 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


nova cidade também excluiu os moradores de Curral o aterramento e construção de novas avenidas de
Del Rei, porque os mesmos não pertenciam ao novo ligação com outras regiões da cidade, os projetos de
projeto, pois a cidade deveria ser habitada por saneamento e higienização como a vacinação
aqueles que conseguissem se integrar e compreender obrigatória, levaram a uma série de lutas e conflitos
a proposta de progresso contida no mesmo. Contudo, como a Revolta da Vacina. Porém, a imagem de
à medida que a cidade cresce, a imagem de perfeição cidade capital não se consubstanciou e,
se desvanece e se modifica.17 posteriormente, na década de 1960, o Rio perde seu
No Rio de Janeiro, apesar das intervenções que papel de capital político-administrativa para
preconizam a melhoria da imagem do país no Brasília, também uma cidade totalmente
estrangeiro; como a modernização da zona portuária, projetada. 18

Ilustração 2: Mapa de localização da cidade do Prata do Triângulo Mineiro.


Fonte: ATLAS Geográfico Mundial. São Paulo: Folha da Manhã, 1994.

Todas essas intervenções urbanas 19 foram também do poder público, a necessidade de criar uma
responsáveis por influenciar o processo de imagem da cidade que estivesse de acordo com a
transformações que ocorreu na maioria das cidades modernidade das grandes metrópoles brasileiras.
brasileiras, contudo, na cidade de Prata, o projeto Isso justificava a construção da nova praça. Ela tem
cuja influência se tornou mais evidente foi a início na gestão do Prefeito Mário Nery-1967/71 e o
construção de Brasília. Devido à posição geográfica projeto apresentado organiza totalmente o traçado
que ocupa - a cidade do Prata se encontra “a meio dos canteiros e das vias de circulação. A praça foi
caminho de São Paulo e Brasília” 20
(a ilustração 02 dividida em duas quadras pela avenida Major
mostra a localização geográfica da cidade no centro Carvalho sendo que ao norte, foi construída uma
do Triângulo Mineiro) - um grande número de fonte luminosa que possui grande semelhança com
viajantes que percorriam esse trajeto, necessitava o estilo dos projetos de Oscar Niemeyer. Os ladrilhos
passar, ou até mesmo, pernoitar naquela localidade. em preto e branco copiam o desenho do calçadão da
O hotel de maior renome, Hotel Brasil, de praia de Copacabana do Rio de Janeiro. Ao sul, foi
propriedade do Sr. João Alves dos Reis, localizava-se edificada uma concha acústica que mede,
defronte a praça, no lado oeste. Além de hotel, esse aproximadamente, quatro metros de raio e era
prédio também funcionava como terminal rodeada por um espelho d’água.
rodoviário, e, por causa do grande número de pessoas Ao adotar modelos arquitetônicos utilizados em
que nele se instalavam, era necessário que a praça intervenções urbanas nas capitais brasileiras, a
exercesse o papel de cartão postal da cidade. Surgiu, intenção dos administradores não era apenas criar
a partir do interesse dos principais comerciantes e uma imagem do Prata como uma cidade que seguia

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 247


os parâmetros da modernidade, do A História local requer um tipo de conhecimento
desenvolvimento e do progresso, mas também diferente daquele focalizado no alto nível de
esperavam que essa imagem pudesse ser difundida desenvolvimento nacional e dá ao pesquisador uma
pelo país por meio daqueles que a visitassem, idéia muito mais imediata do passado. Ele a
principalmente entre as cidades da região. Esse encontra dobrando a esquina e descendo a rua.
ideal desenvolvimentista encontrava-se em (...) Os materiais básicos do processo histórico
conformidade com o título de uma das matérias devem ser constituídos de quaisquer materiais que
que compõem a revista “Prata Ilustrada” publicada estejam à disposição no local ou a estrutura não
no ano de 1967 para comemorar o 94º aniversário se manterá. 21
da cidade: “Prata na Administração Mário Nery
Progride em Ritmo de Brasília”. O discurso do O material que pensei ser escasso me forneceu
progresso encontra-se presente em todas as informações valiosas e, procurando não me perder
homenagens que permeiam as páginas da revista. nelas, tentei tirar-lhes o máximo de proveito. Na
Do mesmo modo que as influências externas chegam utilização das fontes orais procurei elaborar questões
em Prata, esperava-se que outras cidades que fossem importantes definindo algumas normas
mirassem-se em seu exemplo de cidade para se trabalhar com elas. Procurei decidir de que
progressista. Contudo, essas influências não maneira elas poderiam contribuir para a construção
ocorrem apenas com os bens arquitetônicos, 1960 histórica do tema proposto, e, quanto à escolha dos
é a década dos festivais de música. Contaminados depoentes procurei levar em conta a organização de
por esse clima, pessoas da comunidade um grupo que não fosse totalmente homogêneo e me
organizavam festivais e shows que, em sua possibilitasse trabalhar com a diversidade de seus
maioria, eram apresentados nos palcos do Cine interesses e valores. Procurei selecionar pessoas de
Prata e do Prata Clube atraindo um público oriundo diferentes faixas etárias, porque, assim teria acesso
algumas regiões do país. Na Concha Acústica eram às vivências na praça em diferentes épocas.
realizados shows de calouros que seguiam o estilo Apoiei-me também no pensamento de Paul
adotado pelas grandes emissoras de TV. Thompson 22 que, ao tratar da história oral salienta
A construção da Praça XV de Novembro, em alguns cuidados necessários para o bom desempenho
1967, ocorreu em menos de sessenta dias e foi vista do trabalho do entrevistador. Podemos citar como
por alguns como necessária ao processo de qualidades importantes, o interesse e o respeito que
modernização da cidade, porém, para outros, a o entrevistador deverá ter para com os outros como
demolição dos caramanchões significou o início do pessoas e, além disso, é preciso que aja com
processo de mudança de hábitos que os flexíbilidade em relação ao entrevistado. É
freqüentadores possuíam anteriormente. Essas necessário também tentar compreendê-lo,
visões discordantes me levaram a refletir quanto à demonstrando simpatia pelo que ele tem a dizer. O
diversidade inerente aos depoimentos orais e, nesse entrevistador vem para aprender, portanto, é preciso
sentido, procurei não descartar as diferenças, mas que tenha disposição para ficar calado e ouvir com
cruzá-las com as outras fontes, também necessárias interesse, apenas orientando a entrevista e não,
para o desenvolvimento da pesquisa. Tais fontes dirigindo-a.
consistem em fotografias antigas, jornais e revista Paul Thompson salienta a importância de
e alguns documentos do poder público. Confesso que conhecer alguns dados relevantes sobre a vida dos
inicialmente me senti desanimada ao me deparar entrevistados e também de se elaborar um roteiro
com a escassez de documentação que se encontrava procurando manter, além da flexilibilidade,
arquivada no Departamento de Educação e Cultura criatividade, pois existe uma diferença entre pessoas
de Prata. No entanto, à medida que a pesquisa se “falantes” e “não-falantes”. Estas precisam de
desenvolvia, pude perceber as inúmeras incentivo para falar enquanto que aquelas, não.
possibilidades de abordagem que existem quando se Ressalta ainda que, a utilização de recursos
trabalha com história local. Segundo Samuel: auxiliares para atiçar a memória como a fotografia,
podem estimular o aparecimento de outros tipos de

248 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


documentos. Nesse aspecto, ele se assemelha a levando em conta o recorte que lhes são inerentes.
Raphael Samuel, cuja visão de região é construída Consegui reunir algumas com parentes e amigos, e
como o campo da história local, e que as fontes locais também tive acesso àquelas que estão arquivadas
são “infinitamente variadas”. O autor enfatiza a no Departamento de Educação e Cultura. Assim
força popular, e, em se tratando da fotografia da como Carrijo, encontrei alguma dificuldade ao
praça, ela poderá servir de estímulo para que as analisá-las, pois depois de “horas de observação elas
pessoas entrevistadas se questionem quanto ao local matinham-se mudas” 25 até que vislumbrava um
onde moram e sobre como viveram seus indício qualquer que pudesse contar sobre o modo de
antepassados: vida dos diferentes sujeitos sociais que compunham
o quadro fotografado.
Eles têm aguçado senso de herança, valorizando a Segundo Kossoy, quando nos propomos a analisar
iconografia – velhos contratos de aprendizagem uma série de fotografias é necessário considerar as
ou cartões do dia dos namorados, medalhas de intenções dos fotógrafos ao produzi-las, além das
bronze por freqüência, livros de prêmio da escola várias construções interpretativas por parte dos
dominical, cartões postais de férias – e, uma vez receptores, que poderão compreender o entorno de
que sua curiosidade tenha sido estimulada, elas maneira diversificada. A sua utilização como fonte
poderão ficar ansiosas por ajudar, remexendo nos documental pode ser importante, desde que o
velhos papéis, para ver o que podem cavar, pesquisador faça uma análise da imagem, tendo em
submetendo-se a questionamentos detalhados, e mente que sua visão de determinada fotografia é
oferecendo voluntariamente informações. diferente do objetivo que direcionou o fotógrafo ao
Freqüentemente o historiador local estará produzi-la. Contudo, é imprescindível ao historiador,
utilizando a reflexão acumulada sobre sua ter a capacidade de decifrar a imagem retratada
experiência de vidas e não é acidental que tantas procurando descobrir possíveis ligações entre os
histórias de vilas e paróquias tenham sido escritas espaços como projetos sociais e a diversidade cultural
por homens e mulheres ativamente engajados em que, no caso das praças, é uma constante. Por meio
eventos locais... 23
desta análise, pude resgatar características perdidas,
tradições que estão sendo esquecidas, principalmente
Samuel ressalta que a evidência oral torna por causa da relação do homem com a modernidade.
possível escapar de algumas falhas dos documentos, Preocupando-se apenas em ser moderno,
pois existem verdades que são gravadas na memória compactuando com os avanços tecnológicos mais
das pessoas mais velhas e em nenhum outro lugar, recentes, ele vai se esquecendo, aos poucos, das
eventos do passado que só eles podem lembrar e tradições e deixando para trás elementos
explicar. Algumas dessas respostas e explicações não importantes de suas raízes.
são encontradas nos documentos. Cabe ao A análise do artigo de Ane Marie Granet-
historiador encaminhar corretamente a entrevista Abisset26, nos possibilitou uma maior compreensão
para que seus objetivos sejam alcançados. sobre a função da fotografia como documento. Para
Em relação às fotografias, utilizadas como fonte essa autora, toda fotografia destina-se a ser olhada.
documental o interesse surgiu pela sua capacidade A foto sugere, a foto questiona. Ela pode mesmo
de contribuir para o conhecimento histórico que é suscitar problemáticas. No trabalho do fotógrafo
propiciado pela observação e análise das cenas há uma objetividade aparente, pois quando ele
passadas retratadas. Mas, é necessário salientar que, desenvolve sua arte o faz dentro da subjetividade
as mesmas são passíveis de interpretações variadas inerente à escolha do melhor ângulo, o
e significados múltiplos. Para Kossoy, o objetivo do enquadramento, luz e sombra que escolhe.
trabalho iconográfico é “analisar as fontes É necessário ressaltar, segundo a autora, que a
fotográficas, bem como dar maior aprofundamento fotografia por ser um vestígio do real permite a
em questões relativas à sua interpretação enquanto verificação de elementos momentaneamente
documentos históricos portadores de múltiplas ocultados ou definitivamente desaparecidos. Ela
significações, 24 e então, procurei interpretá-las possibilita vários domínios de pesquisa e é muito

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 249


importante fazer sua interlocução com as fontes No início, enxerguei o espaço da praça, sendo
orais. No caso deste estudo posso dizer que a pesquisa abandonado, tanto pelos órgãos públicos quanto pelas
oral completou necessariamente elementos que a pessoas. Essa visão foi se modificando aos poucos, pois
fotografia não possibilitava avançar. o que se comprovou é que houve uma re-elaboração
Ane Marie trata a fotografia e a fonte oral como na utilização do espaço estudado. Os quiosques ali
complementares uma da outra. Além disso, ela instalados, apesar da opinião de vários depoentes de
ressalta a necessidade de se levar em conta a que deixam a praça mais feia, são responsáveis por
pluralidade de significações e interpretações sem ter uma movimentação constante das pessoas que os
a pretensão de apreender a totalidade do sentido e freqüentam. Surgiu então um questionamento: se
da simbologia da fotografia, contudo, a análise do eles não compusessem a atual paisagem, as pessoas
ato fotográfico ou o objeto fotografado permite para lá se dirigiriam? Penso que não.
clarear o sentido de um discurso ou compreender Um outro aspecto que se evidenciou nas falas dos
atitudes e mentalidades. depoentes, é que a harmonia que eu julgava existir
Por meio deste estudo, buscou-se refletir sobre a no seio da sociedade em questão era um tanto fictícia,
utilização do espaço da praça pelo trabalhador pois vários conflitos foram se apresentando,
informal com suas barracas comerciais, além de principalmente em relação à distinção pela cor, pela
analisar o processo de remodelação da praça ocorrido situação econômica, ou mesmo nas relações políticas
na gestão do Prefeito Mário Nery em 1967, que foi o que permearam as várias administrações.
mais marcante levando em conta a conjuntura Por outro lado, percebi que quase tudo o que
política pratense durante o período, refletindo sobre acontecia em Prata, tinha relação com os
as relações de poder que permeavam o cotidiano da acontecimentos nacionais. Sempre houve um
população da cidade. Analisar as crônicas escritas alinhamento das classes dirigentes locais com os
em épocas diferentes foi proveitoso, pois elas governos estaduais e nacionais. A influência externa
retratam a preocupação que havia entre os teve grande representatividade nas obras realizadas
administradores nas décadas de 1960/80 em pela administração pública e isso ficou patente em
modernizar e “organizar” o espaço urbano em Prata. vários depoimentos, principalmente, no do arquiteto
Posso dizer ainda que, trabalhar com esse tema me responsável pelo projeto da última reforma da praça,
possibilitou várias abordagens. Inicialmente, pensei o Sr. Fued Dib. Procurou-se difundir entre a
em investigar o que tais transformações população da cidade, os ideais desenvolvimentistas
representaram no cotidiano das pessoas que que nortearam o cenário político nacional,
freqüentavam a praça, porque não havia interesse principalmente, nas décadas de 1970/80.
em preservar antigos elementos arquitetônicos ali Ao analisar os novos usos atribuídos ao espaço da
presentes, como se davam as relações de sociabilidade praça, considerei as transformações e reformas
que ali aconteciam. Mas, à medida em que a pesquisa ocorridas no prédio do Hotel Brasil e, utilizando uma
se desenvolvia fui percebendo que a imagem série de fotografias produzidas em épocas diferentes,
construída por mim em relação ao objeto de pesquisa foi possível estabelecer uma relação entre as
não se consubstanciava. tentativas de adaptação da população e as várias
Em relação à preservação do patrimônio, por crises que permeiam o panorama político brasileiro.
exemplo, a bibliografia me levou a perceber que as Essa conjuntura de crise leva as pessoas a
políticas relativas ao assunto são extensas, complexas procurarem novas maneiras de complementação de
e, no caso do Brasil, de uma diversidade imensa. renda quando a atividade que exercem em
Percebi que, apesar de eu julgar importante que a determinado momento, deixa de ser rentável.
história de determinada sociedade seja preservada, Quanto às fontes, elas superaram minhas
não basta uma vontade isolada para que ações nesse expectativas porque trouxeram elementos que
sentido surtam o efeito desejado. Para preservar foram importantes para a compreensão dos modos
qualquer coisa, sejam bens materiais ou imateriais, de vida da população e de suas atividades na praça.
é necessário que isso seja significativo para a Para trabalhar com História Oral, procurei me
população que se relaciona com os mesmos. apoiar nas obras de estudiosos como Paul Thompson,

250 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Joseph Santana, Raphael Samuel, dentre outros, o conforme os diferentes interesses dos grupos que se
que facilitou a relação entrevistador/entrevistado. apropriam deles.
Na análise de fotografias, as orientações de Ane- Articular crônicas e poesias às outras fontes foi
Marie Abisset e Gilson Carrijo foram providenciais uma tentativa de compreender a relação de
porque me indicaram caminhos que eu desconhecia. afetividade que seus autores mantinham com a praça
Algumas vezes, depois de ficar horas observando uma e seus freqüentadores, pois a simbologia contida nas
determinada fotografia sem nada enxergar, de palavras do poeta suscita uma nova representação
repente vislumbrava um pequeno indício que me da Praça XV de Novembro. Conforme nos disse
levava a tecer conjecturas, a fazer suposições, ou Françoise Choay, os objetos ou tradições se
mesmo a imaginar quais as reais intenções dos evidenciam de acordo com a maneira que atuam sobre
fotógrafos ao produzi-las? Qual o papel dos sujeitos a memória “não apenas ele a trabalha e a mobiliza
sociais ali retratados? pela mediação da afetividade, de forma que lembre o
A bibliografia relativa à preservação de passado fazendo-o vibrar como se fosse o presente”.27
patrimônio me levou a perceber que existe uma Não se pretendeu, com este estudo, esgotar todas
infinidade de interesses por trás das regras que as discussões, apenas possibilitar que os possíveis
normatizam as políticas de preservação e os modos leitores vislumbrem o que foi - e continua sendo - a
de utilização do espaço público. Percebi também que Praça XV de Novembro do Prata nas memórias e
ocorre uma constante atualização desses espaços vivências dos moradores da cidade.

Notas
* Este artigo é um fragmento da dissertação Paisagem Urbana e 14
DANTAS, Sandra Mara. Veredas do Progresso em Tons
Memórias: A Praça XV de Novembro em Prata/MG, defendida Altissonantes: Uberlândia (1900-1950). Dissertação de Mestrado.
pela autora em 24 de junho de 2005. Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal
1
Luciana foi aluna da 4ª série da Escola Municipal da Vila de Uberlândia, 2001, p.154.
Vicentina no ano 2001. É moradora do Bairro Bela Vista em 15
SILVA, Regina H. A. op. cit., p.27.
Prata/Mg. 16
Idem, p.28.
2
VARUSSA, José Rinaldo. Pensando a paisagem como uma 17
Idem., p. 29.
possibilidade para o ensino de história, Cadernos de História, n. 18
SILVA, Regina H. A. op. cit. p. 33.
8. Uberlândia: UFU. V. 1 – p. 109, Mar 99/Mar2000. 19
RODRIGUES, Georgete Mdleg. Ideologia, Propaganda e
3
Idem, p.103 Imaginário Social na Construção de Brasília. Dissertação de
4
SAMUEL, Raphael. Documentação: História Local e História Mestrado. Basília: UNB, 1990. Sobre a construção de Brasília,
Oral. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: Marco Zero, n. Georgete Medleg Rodrigues diz que um dos principais objetivos
19, p. 225. da proposta política de JK era a integração do território
5
SALDANHA, Nelson. O Jardim e a Praça: O Privado e o Público na brasileiro por meio da marcha para o oeste. Entre as metas
Vida Social e Histórica. São Paulo: EDUSP, 1993, p. 14. prioritárias sugeridas pelo seu governo destacam-se: 1) expansão
6
VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona de serviços básicos de energia e transporte; 2) industrialização
a história. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, p. de base; 3) racionalização da agricultura; 4) valorização do
29. trabalhador; 5) educação para o desenvolvimento; 6)
7
SEIXAS, Jacy Alves de. Halbwachs e a memória. Reconstrução planejamento regional e urbano.
do passado: memória coletiva e História. Revista de História. São 20
Esse termo foi utilizado por vários anos pelos viajantes que faziam
Paulo, 20: 93-108, 2001 a rota São Paulo/Brasília. Chegavam até a endereçar os envelopes
8
Idem, p. 97 das cartas utilizando o termo.
9
Dados obtidos no censo IBGE (INSTITUTO Brasileiro de Geografia 21
SAMUEL, Raphael. Documentação, história local e história oral.
e Estatística) realizado em 2004. In: Revista Brasileira de História, 19, 1990. p. 221.
10
Estas informações encontram-se na obra de BORGES, Benedito 22
THOMPSON, Paul. A voz oral do passado: história. Tradução
A. M. T. Povoadores do Sertão do Rio da Prata. Uberaba: Editora Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992,
Vitória, 1996. p.254.
11
Referência à forma como Sérgio Buarque de Holanda em seu livro 23
SAMUEL, Raphael op. cit. p. 221.
Raízes do Brasil, trata a questão do tipo de povoamento português 24
KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ática,1989.
que é adotado nas cidades brasileiras. 25
CARRIJO, Gilson Goulart. Fotografia e a Invenção do Espaço
12
HOLLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Urbano: Considerações sobre a Relação entre Estética e Política.
Companhia das Letras, 1995. p. 90. Dissertação. Uberlândia: UFU, 2002, 101.
13
SILVA, Regina H. A. A Invenção da Metrópole., 1997. Tese - 26
GRANET-ABISSET, Ane Marie. O historiador e a fotografia. In:
Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Rev. Projeto de História, Jun/2002.
Humanas de São Paulo, 1997. 27
CHOAY, Françoise. op. cit. P. 18.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 251


Bibliografia

CARRIJO, Gilson Goulart. Fotografia e a Invenção do Espaço Vida Social e Histórica. São Paulo: EDUSP, 1993, p. 14.
Urbano: Considerações sobre a Relação entre Estética e Política. SAMUEL, Raphael. Documentação: História Local e História Oral.
Dissertação. Uberlândia: UFU, 2002, 101. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: Marco Zero, n. 19, p.
DANTAS, Sandra Mara. Veredas do Progresso em Tons 225.
Altissonantes: Uberlândia (1900-1950). Dissertação de Mestrado. SEIXAS, Jacy Alves de. Halbwachs e a memória. Reconstrução do
Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal passado: memória coletiva e História. Revista de História. São
de Uberlândia, 2001, p.154. Paulo, 20: 93-108, 2001
GRANET-ABISSET, Ane Marie. O historiador e a fotografia. In: Rev. SILVA, Regina H. A. A Invenção da Metrópole., 1997. Tese -
Projeto de História, Jun/2002. Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências
HOLLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia Humanas de São Paulo, 1997.
das Letras, 1995. p. 90. THOMPSON, Paul. A voz oral do passado: história. Tradução Lólio
KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ática,1989. Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p.254.
RODRIGUES, Georgete Mdleg. Ideologia, Propaganda e VARUSSA, José Rinaldo. Pensando a paisagem como uma
Imaginário Social na Construção de Brasília. Dissertação de possibilidade para o ensino de história, Cadernos de História, n.
Mestrado. Basília: UNB, 1990. 8. Uberlândia: UFU. V. 1 – p. 109, Mar 99/Mar2000.
SAMUEL, Raphael. Documentação, história local e história oral. VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a
In: Revista Brasileira de História, 19, 1990. p. 221. história. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 29.
SALDANHA, Nelson. O Jardim e a Praça: O Privado e o Público na

252 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Violência Doméstica: a vitimização social de crianças e
adolescentes (Uberlândia – 2003)

Vera Lúcia Puga de Sousa

Professora Doutora Professora Adjunto 02 do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. Mestre em
História Social pela USP, doutora pela mesma Universidade. Pesquisadora do NEGUEM (Núcleo de Estudos de Gênero e
Pesquisa sobre a Mulher). Presidente do Conselho Editorial da Revista “Caderno Espaço Feminino”. Linha de Pesquisa:
Violência e Gênero. Coordenadora do GT de Violência do Instituto de História da UFU

Juliene Madureira Ferreira

Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia

Resumo Abstract
Este artigo faz uma breve reflexão sobre a In this article we make a brief reflection on
violência durante a história da vida humana, violence during human beings history. Domestic
enfoca a violência doméstica, trazendo o assunto violence is focused to bring out the subject to
para a realidade contemporânea. Ao mesmo contemporary reality. At the same time we try to
tempo, procura demonstrar as implicações dessa demonstrate the implications of that kind of
violência no processo de aprendizagem de violence in the learning process of children and
crianças e adolescentes vitimizados. Tomando adolescents who suffered violence. The empirical
como modelo empírico de análise, o Centro de model of analysis is the Centro de Referência da
Referência da Infância e Adolescência Vitimizada Infância e Adolescência Vitimizada – CRIAV. The
– CRIAV percebeu-se que os prejuízos causados pela damages caused by aggression are deep and
agressão são profundos e variados e que nem varied and the visualization of the violence
sempre a visualização da situação de violência é situation is not always noticed.
percebida.
Keywords: Domestic Violence, Child/Adolescent,
Palavras-chave: Violência Doméstica, Criança/ Learning
Adolescente, Aprendizagem

Estudar a violência doméstica e suas implicações religioso ou cultural específico, como poderiam
nos tempos atuais tornou-se uma proposta pensar alguns. Sua importância é relevante,
desafiadora e mesmo sendo um dos assuntos mais sobretudo sob dois aspectos; primeiro, devido ao
discutidos, tanto no meio acadêmico quanto na sofrimento indescritível que imputa às suas vítimas,
sociedade em geral, mostra ser a cada dia um muitas vezes silenciosas e, em segundo, porque,
problema social crescente e assustador ainda a ser comprovadamente, a violência doméstica,
desvelado. Esta situação atinge principalmente incluindo aí a negligência e o abuso sexual, pode
milhares de crianças, adolescentes e mulheres, em impedir um bom desenvolvimento físico e mental
grande número de vezes de forma silenciosa e da vítima. (Azevedo, Maria Amélia, 2000) 1
dissimulada. Trata-se de uma situação que não se É fato que nos estudos iniciais sobre a civilização,
restringe a nenhum nível social, econômico, desde as primeiras investigações a respeito do

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 253


convívio do ser humano com outros de sua espécie e, com pessoas mais fracas, ou incapazes de se
principalmente, na observação e na análise da defenderem (crianças, adolescentes) e até mesmo
maneira como o homem constrói o mundo em sua esportes violentos como o boxe ou programas de
volta, percebe-se a existência da violência como entretenimento - onde mesmo não sendo o agressor
forma extrema e excessiva de expressão da (lutador), o homem se posiciona e se envolve como
agressividade nas relações humanas. Nas mais
2
espectador.
diferentes formas, momentos e situações, nas Outro autor que trabalha bem com essa concepção
distintas sociedades e costumes, a violência (na sua de tornar civilizado o ato da violência é Norbert
mais profunda subjetividade) faz-se presença de Elias, que deixa clara em O Processo Civilizador, a
maneira legítima ou ilegítima na vida individual e idéia de que a violência e a agressividade passaram
coletiva das pessoas. ... o tipo de agressividade que por um processo de educação, polidez e foram
uma cultura recompensa ou deprecia, legaliza ou bane, amenizadas pelas normas de condutas que as
obviamente depende dos tempos e das circunstâncias, sociedades julgaram apropriadas durante os séculos:
dos riscos e vantagens percebidos, dos hábitos sociais
de rebeldia ou de conformidade. (GAY, 1995)3 . ...a agressividade é confinada e domada por
Violência essa que, com o passar dos tempos, dos inumeráveis regras e proibições, que se
séculos, foi sendo transformada, moldada de acordo transformaram em auto-limitações. Foi tão
com os novos ideais e com as novas “necessidades” transformada, ‘refinada’, ‘civilizada’ como todas
do homem. Manifestando-se e até mesmo tornando- as outras formas de prazer, que sua violência
se visível de maneiras diversas e, com novas normas imediata e descontrolada aparece apenas em
e regras, com novas “licenças”, a construção da sonhos ou explosões isoladas que explicamos
sociedade contemporânea ainda reescreve tais como patológicas”. (ELIAS.1993) 5 .
atitudes, de maneira menos ingênua que a violência
dos séculos anteriores, e perpetua formas de E é através desses escapes tomados muitas das
pensamento de quando o homem primeiro se vezes como “licenças”, nessas circunstâncias onde a
descobriu. Ela acaba por ser restabelecida nas agressividade é legitimada, que o indivíduo expressa
relações pessoais, no mundo público e no privado, literalmente seus instintos quase sempre
como um novo código de conduta. Neste viés Puga repreendidos. Dentro das sociedades modernas,
alerta: respeitando os costumes e as individualidades de
cada nação, nota-se ainda uma intensa relação com
....que não se pode comparar ingenuamente a a violência que perpassa o cotidiano, a vida em
violência de séculos anteriores com a do atual. Não família, as experiências sociais, seja no trabalho, na
só mudam as regras, como também se deve ter igreja ou na intimidade pessoal.
em mente que as definições de violência são Dentre uma das “licenças” para a violência está
subjetivas e que cada sociedade constrói critérios envolvida uma outra questão muito importante,
próprios, registra, normatiza e avalia sua que toma ainda hoje bastante espaço de discussão
violência”. (SOUZA, 2000) 4 na sociedade: os papeis de gênero. Uma construção
mutável sobre o que representa ser homem e o que
Ainda segundo Peter Gay, a agressividade que representa ser mulher diante da comunidade em
parece ser inata ao homem, quase uma necessidade que se vive. Conforme define Flax 6:
de expressão, sofreu e ainda sofre várias tentativas
de coibição, ou pelo menos de controle. O homem ...as relações de gênero são processos complexos
não pode simplesmente extravasar esse sentimento e instáveis (...) constituídas por e através de partes
de forma desenfreada e por isso “cria” consciente ou inter-relacionadas. Essas partes são
inconscientemente mecanismos que legitimem esse interdependentes (...)As relações de gênero são
tipo de ato. divisões e atribuições diferenciadas e (...)
Exemplos a serem tomados: as guerras, duelos, assimétricas de traços e capacidades humanas (...)
caças, tortura contra inimigos, relações de poder Homens e mulheres são apresentados como

254 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


categorias excludentes (...) O conteúdo real de ser fazem presentes no imaginário coletivo, foram sendo
homem ou mulher e a rigidez das próprias reforçados a muito tempo pelas relações de poder
categorias são altamente variáveis de acordo com estabelecidas entre as relações de gênero. A mulher,
épocas e culturas. Entretanto as relações de gênero em vários momentos e durante muito tempo, foi
(...) tem sido relações de dominação. “colocada” como mero objeto na vida do homem,
usada como “mercadoria” ou para simples satisfação
Sobre essas relações de dominação Silva afirma pessoal deste. Uma mulher reprodutora e incapaz
que: Nas relações antagônicas de poder entre homens de se manter sem a presença masculina, que de
e mulheres a ideologia dominante tem papel maneira romântica ocupava um lugar na sociedade
fundamental de difundir e reafirmar a supremacia cujo espelho refletia sua dependência e passividade.
masculina e a inferioridade feminina. (SILVA – 1992; A partir da década de 40 do século passado, as
pág 57) . Ainda, segundo essa autora, o uso da
7
mulheres começaram a lutar por seus direitos, por
violência não está simplesmente no uso da força, uma maior participação na vida social, tomaram
mas também embutido na linguagem simbólica e consciência de sua própria existência e importância
cotidiana que se constroe com o tempo. As marcas enquanto membro da sociedade e da família e
explícitas de agressão traduzem atitudes e tornaram-se objeto de estudo de historiadores,
comportamentos de caráter mais permanente que, antropólogos, filósofos e psicólogos (pesquisadores
mesmo na ausência da violência em si, estão que anteriormente preocupavam-se mais com as
carregados de conteúdo agressivo, que perpassa desde questões que afetavam em maior intensidade
uma educação diferenciada entre os sexos a toda uma homens).
cultura sutil de depreciação da mulher. A pioneira no estudo sobre a mulher em sociedade
Na opinião de Rosely Sayão , a violência, que faz
8
foi a historiadora norte-americana Mary Beard, que
parte de uma construção social, assim como a relação abordava questões como a marginalização da
dos papeis de gênero, pode ser mantida exatamente mulher. Nesta perspectiva, para Scott, foi a partir
por causa dessas relações. A explicação talvez esteja das décadas de 60 e 70, com o Movimento
na diferenciação de alguns aspectos dos papéis de Feminista 10, quando ocorreu uma fragmentação da
gênero, apresentados a nós desde a infância e que antiga idéia universal de “mulher”, que as mulheres
permanecem incutidos nos pensamentos e realmente tiveram algumas mudanças
comportamentos aceitativos ou não da violência, até significativas em suas vidas, e sua presença efetiva
a fase adulta. Em sua coluna S.O.S Família, do Jornal no capitalismo como força de trabalho econômica se
Folha de São Paulo, a psicóloga enfatiza a distinção deu inclusive pela necessidade inédita do sustento
que acontece entre meninos e meninas na educação da família. (SCOTT, 1992, pp. 81-88) 11 . A pílula
e conceituação dos papéis femininos e masculinos anticoncepcional liberou a sexualidade feminina,
(gênero) e como essa diferenciação atribui diferentes mulheres começaram a trabalhar fora de casa e as
posicionamentos frente a questão da violência. discussões mais abertas com relação à questão de
Segundo a autora, essa caracterização no tratamento gênero, propiciaram novos horizontes. Gênero aqui
educacional das crianças acabam ensinando é um conceito usado para teorizar a questão da
(permitindo) que, meninas, futuras mulheres, ajam diferença nos papéis sexuais e de acordo com Joan
de maneira acomodada, ou até mesmo permissiva Scott: um elemento de construção das relações sócias
diante da violência, encare de maneira natural a sobre as diferenças percebidas entre os sexos, sendo
agressão cometida por outros. E ao mesmo tempo um primeiro modo de dar significado às relações de
dão aos meninos, futuros homens, uma “permissão” poder.
para agirem de maneira violenta, ou a pelo menos Mesmo na esfera pública as mulheres começaram
sentirem se mais à-vontade para manifestarem a marcar sua presença de maneira significativa e
agressividade. Criando assim uma errônea situação de liderança nos segmentos populares. E usando o
de superioridade e de poder, que seria naturalmente corpo como arma, protagonizavam ruidosas
oferecido ao homem pela sociedade. aglomerações, tomavam para si uma base de poder
Esses paradigmas 9 que habitaram e ainda se na comunidade e conquistavam agora um novo

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 255


olhar perante essas manifestações. (PERROT, tratadas como a mercadoria para satisfação sexual
1988) 12
Contudo, muitas mulheres continuaram a dos homens. Sem perspectiva de vida ou até mesmo
viver sob olhar ameaçador dos homens (pais, consciência de sua própria importância, entram em
maridos, chefes, colegas de trabalho e outros contato não só com o mundo das drogas, mas das
relacionamentos de maneira geral), e a opressão dos doenças e da criminalidade.
sentimentos, das vontades e até mesmo dos direitos Dentro da violência doméstica, conforme
continuou fazendo parte da vida de muitas mulheres observações empíricas desse trabalho pode-se
em todo o mundo, e essa opressão continua sendo apontar como formas comuns de agressão a violência
passada de geração a geração através da educação. física, a pressão psicológica e o abuso sexual, que são
Da mesma maneira, a idéia que fora durante caracterizados da seguinte maneira:
tantos anos difundida na sociedade ocidental, de que Violência física é o uso da força com o objetivo
os pais ou responsáveis (adultos) por crianças e de ferir, deixando ou não marcas evidentes. São
adolescentes, tem o direito e autoridade máxima comuns murros e tapas, agressões com diversos
sobre a mesma, cria situações de extrema violência, objetos e queimaduras por objetos ou líquidos
que é legitimada pela falsa idéia de sua quentes. Não havendo o relato ou a percepção seja
responsabilidade como educador. Atualmente, no por parte da escola, dos vizinhos ou parentes, a
Brasil, segundo o Ministério da Saúde, as agressões violência física pode perpetuar-se mediante
constituem a principal causa de morte de jovens ameaças de”ser pior” se a vítima reclamar à
entre 5 e 19 anos. A maior parte dessas agressões alguém. Essa questão existe na medida que as
provém do ambiente doméstico, cometidos tanto por autoridades se omitem ou tornam complicadas as
pais biológicos quanto por parentes ou pais adotivos. intervenções corretivas.
A Unicef estima que, diariamente, mais de 18 mil O abuso do álcool por parte da família é um forte
crianças e adolescentes sejam espancados no Brasil. agravante da violência doméstica física. A
Os acidentes e as violências domésticas provocam embriagues patológica dos pais leva não só a
64,4% das mortes de crianças e adolescentes no País, negligenciar as necessidades dos filhos como também
segundo dados de 2000. (Unicef. 2000)#. o descontrole, gera uma situação contínua de
A violência doméstica é o resultado de agressões violência física.
físicas, abuso sexual, violências psicológicas ou a Nesse caso, além das dificuldades práticas de
negligência aos cuidados e necessidades do coibir a violência, geralmente por omissão das
companheiro, companheira ou a criança. (Azevedo, autoridades, existe uma falsa impressão de que o
Maria Amélia, 2000). É considerada um dos fatores agressor quando não bebe “é excelente pessoa”, isto
que mais estimula crianças e adolescentes a viver segundo as próprias esposas. E ainda consideram que
nas ruas. Em muitas pesquisas feitas, as crianças de o agressor é o “esteio da família” e se for detido todos
rua referem-se a maus-tratos corporais, castigos passarão necessidade, e a situação vai persistindo.
físicos, violência sexual e conflitos domésticos como Outra situação que também pode ocorrer, são
motivo para sair de casa. Como exemplo disso um com os portadores de Transtorno Explosivo da
importante estudo publicado em forma de artigo na Personalidade que são agressores físicos
Folha de São Paulo (Domingo, 17 de Julho de 2005, contumazes. Porém, convém lembrar que, tanto a
página C1) 13 , mostra uma triste realidade criada embriagues patológica quanto o transtorno explosivo
pelos processos do “desenvolvimento social”, têm tratamento.
meninas-crianças, se prostituem na zona sul de São A violência psicológica ou agressão emocional,
Paulo, mentem sua real idade falsificando às vezes tão ou mais prejudicial que a física, é
documentos patrocinados por agenciadores do sexo, caracterizada por rejeição, depreciação,
ganham a vida fazendo programas (chegam a discriminação, humilhação, desrespeito e punições
faturar até 3.000 reais por mês, segundo as próprias exageradas. Trata-se de uma agressão que não deixa
meninas), perdem a infância, adolescência e marcas corporais visíveis, mas emocionalmente
principalmente a oportunidade de cidadania, fazem causa cicatrizes indeléveis para toda a vida.
parte de um comércio desumano e são vistas e Um tipo comum de agressão emocional é a que se

256 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


dá sob a autoria dos comportamentos histéricos, cujo violenta da auto-estima e adquire uma
objetivo é mobilizar emocionalmente o outro para representação anormal da sexualidade. A criança
satisfazer a necessidade de atenção, carinho e de pode tornar-se muito retraída, perder a confiança
importância. em todos os adultos e pode até chegar a considerar o
Outra forma de violência emocional é fazer o suicídio, principalmente quando existe a
outro se sentir inferior, dependente, culpado, omisso possibilidade da pessoa que abusa ameaçar de
ou fazer ameaças, que é um dos tipos de agressão violência se a criança negar-se aos seus desejos.
emocional dissimulada mais terríveis. As ameaças Algumas crianças abusadas sexualmente podem
de agressão física (ou de morte), bem como as crises ter dificuldades para estabelecer relações
de quebra de utensílios, mobílias e documentos harmônicas com outras pessoas, podem se
pessoais também são consideradas violência transformar em adultos que também abusam de
emocional, pois não houve agressão física direta. outras crianças ou inclinar-se para a prostituição
O abuso Sexual está entre as três formas mais ou podem ter outros problemas sérios quando
severas de violência doméstica, a mais complexa e a adultos. (Azevedo, Maria Amélia. 2000) 14
que envolve piores seqüelas para a vítima. Esta A negligência é o ato de omissão do responsável
tende a ficar escondida dentro das casas devido ao pela criança ou adolescente em prover as
medo de represália, vergonha ou temor de que necessidades básicas para seu desenvolvimento.
ninguém acreditará na vítima. Aliás, não acreditar Vamos considerar negligência a situação onde não
na filha violentada pelo pai, padrasto, ou parentes há uma interação satisfatória entre mãe (ou
próximos pode ser cômodo a muita gente, inclusive responsável) e filho durante uma fase crítica na vida
em muitos dos casos à própria mãe, que, da criança. Essa ocorrência caracteriza uma das
complacente vive sob a máscara de ignorar. Essa condições capazes de interferir no desenvolvimento
violência caracteriza-se pelo ato ou intuito de coito infantil.
com a vítima, seja ela do mesmo sexo ou não, assim Dependendo da amplitude psicológica e, claro,
como qualquer conduta sexual com uma criança neurológica dessa negligência, mesmo que a criança
levada a cabo por um adulto ou por outra criança tenha recebido cuidados materiais e físicos
mais velha. Isto pode significar, além da penetração adequados, mas, tenha sido, esse relacionamento,
vaginal ou anal na criança, também tocar seus emocionalmente indiferente ou desprovido de afeto,
genitais ou fazer com que a criança toque os genitais os danos causados podem ser permanentes.(Lorenzi,
do adulto ou de outra criança mais velha, ou o M. 1985) 15
contato oral-genital ou, ainda, roçar os genitais do Porém, a questão da negligência não deve ser
adulto com a criança. (Azevedo, Maria Amélia. atribuída exclusivamente à pobreza material dos
2000) 14 pais. O não proporcionar recursos materiais devido
Às vezes ocorrem outros tipos de abuso sexual que à pobreza, não caracteriza a negligência, mas sim a
chamam menos atenção, como por exemplo, mostrar carência, uma vez que tais recursos seriam providos
os genitais de um adulto a uma criança, incitar a caso houvessem. Negligência é a atitude omissa, seja
criança a ver revistas ou filmes pornográficos, ou materialmente ou afetivamente (Negligência
utilizar a criança para elaborar material Material e Negligência Emocional).
pornográfico ou obsceno. Muitos são os fatores que levam, facilitam e
Devido ao fato da criança muito nova não ser perpetuam os maus-tratos contra crianças e
preparada psicologicamente para o estímulo sexual, adolescentes. Há um fator comum a todas as
e mesmo que não possa saber da conotação ética e situações: o abuso do poder do mais forte (o adulto)
moral da atividade sexual, quase invariavelmente contra o mais fraco (a criança).
acaba desenvolvendo problemas emocionais depois A atitude de agredir covardemente, prevalecida
da violência sexual, exatamente por não ter da maior força física dos pais pode resultar em severos
habilidade diante desse tipo de estimulação. traumatismos. São casos onde adultos que batem
A criança que é vítima de abuso sexual com a cabeça ou atiram a criança contra a parede.
prolongado, usualmente desenvolve uma perda Muitas vezes essas trucidades levam à morte.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 257


Além das marcas físicas, a violência doméstica desta pesquisa. Rogers supõe: .... num clima facilitador
costuma causar também sérios danos emocionais, e da aprendizagem, que o estudante esteja em contato
é nessa questão que gostaríamos de entrar. com os problemas, problemas vitais, que tem
Normalmente é na infância que são moldadas repercussão na existência dele. (Carl Rogers, 1974)17
grande parte das características afetivas e de Acontece então que as crianças aprendem com
personalidade que a criança carregará para a vida os adultos, seja na escola com os professores, no lar
adulta. com os pais e parentes ou na rua com os amigos mais
Cada relação de violência é única, com velhos. E como é possível, seguindo a própria teoria
características próprias, não estabelecendo assim, de Rogers, que essas crianças vítimas de violência,
nenhum tipo de padrão. Se a violência contra uma seja ela qual for, tenham uma aprendizagem
criança ou adolescente existe e é legitimada, esta significativa do que seja uma convivência saudável,
violência pode ser desencadeada por algum fator e claro, de tudo aquilo que se é ensinado nas
social, psicológico ou idiossincrático. Porém, parte instituições?
na maioria das vezes, de fatores idiossincráticos o Pergunta-se então: Será que os processos de
que define a rotina de violência contra a mulher e aprendizagem escolares dessas crianças são
contra a crinaça/adolescente, sendo legitimada por igualmente afetados neste período de formação? Por
uma cadeia de acontecimentos passados, estabelecido esta perspectiva que esta pesquisa buscou mais
principalmente pela educação familiar anterior. É informações a respeito da violência doméstica e suas
neste âmbito que as conseqüências da violência possíveis implicações, principalmente em crianças
podem deixar marcas (morte; seqüelas psíquicas e na fase de aprendizagem escolar. Realizou-se um
físicas) que nem sempre são curadas. (SOARES, trabalho de campo documental ø, onde a principal
1999) 16 . indagação era: Crianças que estão atravessando
Contudo, estudando mais a fundo o problemas domésticos relacionados à violência
desenvolvimento humano, processos de invariavelmente apresentam problemas na escola
aprendizagem e psicologia social, surge um e no grupo social ao qual pertencem?
desconforto quando se pensa a respeito das Ou seja, era possível constatar implicações
conseqüências da violência na vida dessas vítimas, negativas durante o processo de escolarização devido
principalmente quando essas são crianças, incapazes à incidência de violência doméstica. Essa
de se defenderem ou ao menos de clamarem por experiência só foi possível pela autorização e
ajuda. colaboração da equipe multidisciplinar do órgão da
Carl Rogers, psicólogo humanista, se preocupava Prefeitura de Uberlândia, CRIAV 18 – Centro de
com a educação voltada ou centrada na pessoa. Para Referência da Infância e Adolescência Vitimizada.
ele, o vínculo de aprendizagem estava diretamente A pesquisa realizada foi baseada na coleta de dados
ligado às condições emocionais do aprendiz, sendo e registros de ocorrências no processo de violência
necessário para uma aprendizagem significativa três infantil, como casos de violência física, psicológica,
fatores fundamentais: autenticidade, aceitação e abusos sexuais e atos de negligência. Esses registros
compreensão. são feitos a partir de denúncias e constatações, que
Alguns desses fatores referem-se ao facilitador, são enviadas por diferentes meios (polícia,
ou seja, ao adulto e outra ao aprendiz. A aceitação é telefonema anônimo, telefonema de vizinhos ou
a capacidade de receber o outro como ele é sendo que parentes, encaminhamento do conselho tutelar e
para isso é preciso compreender os sentimentos que através de denúncias feitas pelas escolas ou
este possui. A compreensão é uma conseqüência da instituições de ensino) até o CRIAV, que
aceitação, pois o facilitador da aprendizagem posteriormente oferecem tratamento adequado e
necessita se colocar no lugar do seu aprendiz, para estrutura multidisciplinar para atendimento de
entender o seu processo de aprendizagem. Já a cada caso.
autenticidade, é quando o facilitador é capaz de ter Foram analisados 25 casos 19 de violência infantil
a aceitação e compreensão para consigo mesmo. É da cidade de Uberlândia encaminhados ao CRIAV
nessa teoria rogeriana que se baseiam as hipóteses no ano de 2003, delineando um quadro que vai desde

258 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


a negligência ao abuso sexual. Foram constatadas Durante a realização desta pesquisa, observou-
denúncias tais como: crianças deixadas sozinhas em se que a violência doméstica, abrangendo assim:
casa durante todo dia; crianças que apanham no violência física, psicológica, abuso sexual e
meio da rua e de maneira abusiva (puxar os cabelos negligencia; afetam diferentes aspectos e em
ao mesmo tempo que bater na cara da criança); diferentes níveis à aprendizagem da criança vítima.
crianças que apanhavam com ferramentas de Os aspectos pesquisados através do questionário de
trabalho dos pais (chave inglesa, cordas de náilon e levantamento de dados sócio-pedagógicos enviado
até mesmo pedaços de ferro) e denúncias sobre a pelo CRIAV às instituições de ensino foram:
possibilidade de abuso sexual por padrastos, tios e 1. Aspectos Sociais
até avôs. a) Freqüência às aulas;
Nos arquivos de cada caso foi enfatizado a procura b) Participação da criança nas atividades de sala
pelos registros escolares das crianças. Analisou-se os e da instituição;
casos nos aspectos sociais, pedagógicos, c) Relação aluno – professor;
comportamentais, familiares e outros, como as d) Sinais de violência doméstica (marcas pelo
providências tomadas pela instituição utilizando um corpo etc.);
questionário de levantamento de dados. Este e) Sinais de negligência (higiene e saúde
questionário é enviado pelo CRIAV às instituições de precária);
ensino quando ocorrem queixas de violência f) Participação da família na instituição.
doméstica, seja essa queixa proveniente de 2. Aspectos Pedagógicos:
familiares, amigos, vizinhos ou até mesmo da escola. a) Atenção
A análise se deteve em crianças vitimizadas de b) Concentração
ambos os sexos e faixa etária, variando de 3 à 18 c) Criatividade e fantasia
anos. d) Raciocínios concretos, lógicos e abstratos.
O contato com os documentos foi feito juntamente e) Desenvolvimento cognitivo da criança ou
com um estagiário ∞ do CRIAV, devido a questões adolescente considerando a idade e a série em que se
éticas e por segurança aos próprios arquivos. Depois está inserido.
de coletar os dados foi feito um emparelhamento dos Todos esses itens foram analisados e computados
relatórios, com o propósito de obter informações que separadamente nos 25 relatórios vistos. A maior
permitissem relacionar violência e aprendizagem relação que esses itens nos mostram é que os aspectos
de maneira comparativa com outras crianças. da aprendizagem mais prejudicados são os cognitivos
Criou-se então uma escala variando entre Ruim, e que nem sempre é possível reconhecer a situação
Regular, Bom e Muito Bom, para os diferentes da violência por meio somente do comportamento.
aspectos computados, provenientes deste relatório. Como se pode observar com as tabelas 1.0 abaixo.

Tabela 1.0

Aspectos Sociais Ruim Regular Bom Muito Bom

Frequência às aulas 2 1 4 18

Participação da criança nas atividades


da sala e da Instituição de Ensino. 4 3 11 7

Relação professor-aluno 1 5 16 3

Fonte: CRIAV – Uberlândia 2003

Podemos notar por essa tabela, que nem sempre relativamente poucos os casos em que esses itens são
a freqüência às aulas e o comportamento da criança ruins, em geral as crianças freqüentam e se
dentro da sala de aula e da própria instituição são relacionam bem na escola.
desfavoráveis, pois os dados mostram que são

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 259


Tabela:2.0

Aspectos Sociais Sim Não

Sinais de negligência 5 20

Sinais de violência doméstica 6 19

Participação da família na Instituição de Ensino. 12 13

Fonte: CRIAV – Uberlândia 2003

Aqui, tabela 2.0, o que se percebe, são que os falta de preparo, ou por falta de interesse mesmo.
“sinais”, ou seja, marcas no corpo da violência física Como consta nos dados acima descritos, a maioria
ou falta de higiene e saúde, que muitas vezes são o das crianças, salvo aquelas que sofreram abusos
maior indício de que algo de errado esteja mais fortes, não apresentaram marcas visíveis pelo
acontecendo num lar, não favorecem o seu corpo, foram caracterizadas como bem vestidas e
descobrimento. Muitas vezes o olhar do observador calçadas, mantendo uma higiene compatível com o
(neste caso, professores e educadores) não alcança os esperado. O que se conclui é que a violência pode ser
chamados da criança, não é feita de maneira bem acobertada, principalmente quando os olhos não
eficiente a busca por sinais de violência, seja por estão voltados para o seu descobrimento.

Tabela:3.0

Aspectos Pedagógicos Ruim Regular Bom Muito Bom

Atenção 11 8 6 1

Concentração 12 8 6 0

Criatividade, fantasia 6 16 2 1

Raciocínios (Concreto, Abstrato e Lógico) 2 13 9 1

Desenvolvimento cognitivo 2 14 8 1

Fonte: CRIAV – Uberlândia 2003

Este último (tabela 3.0) é o quadro que nos mostra durante o processo de análise das respostas dos
a maior interferência da violência no processo de questionários do CRIAV foi que as vítimas de abuso
aprendizagem das crianças. Os aspectos cognitivos sexual são as mais prejudicadas, suas reações mudam
revelam o quanto uma violência pode prejudicar o instantaneamente, seu comportamento na escola
desenvolvimento escolar. Aqui, os itens que falam torna-se agressivo, elas perdem o interesse pelo
sobre a atenção, concentração, criatividade e ambiente de aprendizagem, há os sinais da violência
raciocínios já são em sua maioria desfavoráveis para e principalmente, seu desenvolvimento cognitivo
a criança, mostrando que a aprendizagem nesta fica em defasagem significativa, todos os itens
etapa não estará sendo significativa. Esses itens verificados foram negativos. È, portanto, a violência
analisados são as principais ferramentas que levam mais grave e que implica maiores traumas para
as crianças a descobrirem e formarem seu mundo quem a sofre.
interior e explorar o mundo exterior a ela, dessa Um outro artifício usado para a realização desta
forma esse processo de formação fica severamente pesquisa foi uma entrevista aberta com a pessoa
comprometido. responsável no CRIAV pelo cuidado psicológico e
Uma observação relevante que se pôde notar tratamento das crianças vitimas e pais agressores,

260 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


a psicóloga Elaine Bordini Villar. Essa entrevista foi números que desejávamos, mas também
uma confirmação dos resultados obtidos na pesquisa comprovações que tornam o sistema de ensino
e uma continuidade no assunto sobre a violência. brasileiro muitas vezes negligente, omisso e ineficaz.
Nela foram tratados assuntos como a interferência Em vários dos questionários analisados, fica evidente
do CRIAV na família e no tratamento tanto da vítima a inconsciência de professores e diretores de que
quanto dos agressores, bem como as dificuldades aquele aluno é uma vítima de violência. Muitas
encontradas durante esse tratamento e na vezes os questionários eram incompletos e traziam
erradicação da violência doméstica presente nesses informações confusas e divergentes, traduzindo não
casos. só apenas o despreparo profissional, mas uma falha
Discutir a vitimização da infância e da no sistema como um todo. Deveria ser função do
adolescência traz uma série de questões à luz que professor e da escola estar atento às mudanças de
invariavelmente incomodam, tamanha sua comportamento de cada aluno que pudessem
delicadeza e gravidade. A infância tem corretamente denunciar o abuso físico, psicológico, sexual ou a
assegurado seu status de pureza e fragilidade, de negligência, todavia, os mesmos não abarcam esta
maneira que o maior sentimento cultivado e função.
demonstrado por adultos em relação à mesma, é o À luz de Carl Rogers o papel do professor de ter
de proteção. Quando esta infância é agredida, autenticidade, aceitação e compreensão para
abusada ou negligenciada, tem-se uma ruptura facilitar o aprendizado do aluno é aqui distorcido. O
desta estrutura e fica evidente a todos aqueles processo de aceitar a posição e visão do outro para
exteriores à violência que a vitimização é um ato então ensiná-lo de uma maneira ótima para seu
covarde e, sem dúvida, um crime. aprendizado não é o foco adotado pela maioria destes
O contato com esta realidade faz com que, profissionais. Uma criança vitimizada necessita de,
inevitavelmente, encontremos inúmeras falhas no juntamente com um tratamento psicológico, um
processo educacional brasileiro, bem como na ambiente de crescimento em que ela seja
construção das relações familiares. A criança ou compreendida e ajudada. Professores deveriam estar
adolescente vitimizados estão sempre envoltos por cientes da necessidade de aceitar e compreender este
um ambiente que os torna impotentes e o seu resgate indivíduo para que sua aprendizagem não fosse
depende daqueles que podem observar os sinais de jamais abalada pelos eventos tão marcantes da
violência sofrida e ou testemunhar o ato violento vitimização. Adentrar o mundo da criança
propriamente dito. É por este motivo que a escola vitimizada é uma experiência a ser vivida por
deveria ocupar papel importantíssimo no processo qualquer pessoa que intencione ajudá-la e é,
de descobrimento da criança vitimizada e portanto, obrigação de qualquer pessoa que queira
conseqüente denúncia. É na escola que a criança facilitar uma aprendizagem significativa para este
desenvolve um leque de atividades de cunho não só indivíduo.
educativo, mas também social e afetivo que pode Ao analisar os dados recolhidos dos questionários,
trazer consigo sinais de uma vitimização. É nesse os resultados surpreenderam. A hipótese primeira,
ambiente também que a criança passa boa parte do levantada antes da leitura dos questionários, foi de
dia e é quando, na grande maioria dos casos, está que não seria possível estabelecer uma relação direta
longe de seus possíveis agressores, o que constitui entre a prejudicialidade da vitimização para o
então, o único momento em que a mesma não sofre processo de aprendizagem das vítimas. Todavia,
diretamente a repressão gerada por uma constatou-se que é possível observar implicações nos
vitimização. processos de aprendizagem das vítimas a nível
Uma vez que o objetivo desta pesquisa foi cognitivo. Evidenciou-se que tanto a atenção, como
constatar as possíveis implicações da vitimização na a compreensão e a criatividade das crianças/
aprendizagem de crianças e adolescentes, buscou-se adolescentes vítimas de violência são abaladas e
os dados necessários em questionários aplicados nas sofrem uma queda de qualidade. Estes três aspectos
escolas de origem das crianças/adolescentes são os mais afetados. O raciocínio lógico, concreto e
vitimizados e pode-se levantar não só apenas os abstrato mantém-se na linha da regularidade,

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 261


contudo quase inexistindo a projeção de casos em reconstruir a saúde do quadro emocional da vítima,
que estes foram descritos como “muito bom”. Em é preciso enxergar a simplicidade de um desvio de
casos de abuso sexual, especificadamente, essa atenção ou um olhar mais vago e opaco, como um
defasagem dos aspectos cognitivos se dá de uma pedido de ajuda.
forma brusca e muito notória, podendo então ser A título de considerações finais, entre as muitas
inferido que este tipo de violência é de fato o mais esferas da sociedade responsáveis por colocar um
grave e o que causa as maiores seqüelas. ponto final na violência contra criança e adolescente
Itens que descrevem aspectos sociais, como a está a escola. É nela que se estabelece um primeiro
freqüência, participação na sala de aula e a relação contato contínuo, cotidiano com os alunos, é nela
professor-aluno, não caracterizam-se como também que a criança pode manifestar reações longe
sinalizadores de vitimização. A observância de sinais da presença de familiares e ser, na mais profunda
de negligência e violência também não são meios subjetividade, ela mesma. Dessa forma, uma
muito eficientes de se identificar a violência, pois preparação com professores, educadores e até
muitas vezes as marcas no corpo não estão visíveis diretores, de como lidar com a violência, como saber
ou os sinais de negligência passam desapercebidos. identifica-la e que medidas tomar depois de sua
Este dado tem enorme importância, pois ele invalida constatação é de fundamental importância. Esse
a idéia de que a não visibilidade das marcas físicas treinamento teria como base o Estatuto da Criança
da violência significa a inexistência da mesma. A e Adolescente, mostraria as novas leis e
participação dos pais na escola é também um dado determinações judiciais já estabelecidas em nosso
revelador, pois em mais da metade dos casos (52%) país para combater a violência infantil; ofereceria
os pais ou responsáveis são ausentes ou comparecem instruções de como perceber, agir e que postura
pouco às atividades escolares. tomar diante das situações de agressão e ao mesmo
Portanto, para identificar o sofrimento de tempo orientaria para quais providencias tomar e
violência por uma criança sem que uma denúncia para quais instituições encaminhar. Assim uma rede
tenha sido feita, é necessário adotar uma postura interligada e multidisciplinar agiria em prol do fim
dita humanista, pois os aspectos que revelam esta da violência, as forçar se uniriam e o trabalho
situação somente são visíveis se o olhar lançado for tornaria mais eficiente. Só dessa maneira é que
além daquilo que os gestos e atitudes cotidianos daríamos uma real chance de melhora na qualidade
contam. Uma vez que exista a intenção de desfazer de vida dessas milhares de crianças e adolescentes
um quadro de vitimização e de, em contrapartida, que sofrem com a violência.

Notas 8
Rosely Sayão, Folha de São Paulo, Folha Equilíbrio – SOS família,
A Construção da diferença de gênero. 28 de Julho de 2005.
1
AZEVEDO, M. A. & GUERRA, V. N. A. (2000). Crianças Vitimizadas: 9
Ver ainda BARBOSA, Maria José Somerlate, Chorar Verbo
a síndrome do pequeno poder. 2ª .ed. São Paulo: Iglu Transitivo. In Cadernos Pagu(11) 1998: pp. 321-343. Que vai falar
2
Entende-se por agressividade qualquer comportamento cuja a respeito do estudo do choro e/ou a ausência dele como um dos
finalidade é causar dano a outro, levando em consideração as parâmetros usados principalmente no séc XIX e XX, para se
noções de causalidade (pessoais ou impessoais) e aplicando-se definir masculinidade e virilidade. Examinando os discursos de
esta definição à interação social, onde uma pessoa exibe um emoções fortes (fúria, medo, dor e vergonha) e as mudanças no
comportamento e este tem conseqüências nocivas a outras código do significado de masculinidade que ocorre a partir dos
pessoas. (RODRIGUES, Aroldo. Psicologia Social. Petrópolis RJ. anos 60
Editora Vozes. 1972, pp 315) 10
Ver ainda: SAFFIOTI. H, I, B. Contribuições feministas para o
3
GAY.Peter. A Experiência Burguesa da rainha Vitória a Freud. estudo da violência de gênero. Cadernos Pagu(16), 2001:pp.115-
O Cultivo do Ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.12. 136
4
PUGA DE SOUSA, Vera Lúcia. Violência e Desgoverno: o 11
SCOTT, Joan.”História das Mulheres”. In. BURKE, Peter (org). A
desaparecimento do Jardim das delícias. In: Inventário dos escrita da História – Novas Perspectivas. São Paulo, Unesp, 1992,
Processos Criminais em Uberlândia 1960/1980. Uberlândia: pp 81-88
EDUFU, FAPEMIG/CNPQ, 2000, p. 19. #
Ver no site www.unicef.org , que disponibiliza informações
5
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Formação do Estado e atualizadas, projetos de auxílio em desenvolvimento e outras
Civilização.. Vol. 2. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, pp.190/191 informações sobre o assunto.
6
FLAX, J. “Pós-modernismo e relações de gênero na teoria 12
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História. Operários,
feminista”. In GUERRA. Claudia Costa. Descortinando o Poder e Mulheres, Prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
a Violência nas Relações de Gênero: Uberlândia MG (1980 – 1995) 13
Matéria completa disponível: Folha de São Paulo, Domingo, 17
Dissertação de Mestrado , São Paulo USP, 1998. de Julho de 2005, página C1
7
SILVA, M. Violência Contra Mulher: Quem mete a Colher?: São 14
AZEVEDO, M. A. & GUERRA, V. N. A. (2000). Crianças
Paulo: Editora Cortez; 1992. Vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. 2ª .ed. São Paulo: Iglu

262 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


15
LORENZI, M. (1985). Crianças Mal Amadas. São Paulo: Global 19
Esses caso foram escolhidos com base cronológica, foram exatos
16
SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres Invisíveis. Rio de Janeiro: 25 últimos casos atendidos e que já haviam sido encaminhados
Civilização Brasileira, 1999 para tratamento e providencias naquele ano (2003). Os próprios
17
Rogers, C. Terapia Centrada no Paciente. Lisboa: Moraes Editores, formulários usados pelo CRIAV já estabeleciam um parâmetro
1974 comparativo com outras crianças, dessa forma não houve a
ø
Pesquisa realizada em grupo no 2o Período de Psicologia, necessidade de se criar grupo controle para a realização da
orientada pela Professora Cláudia Araújo da Cunha pesquisa.
(Prof.Doutora da Universidade Federal de Uberlândia). ∞ O estagiário do CRIAV que auxiliou o processo de pesquisa nos
18
Centro de Referência a Infância e Adolescência Vitimizada, é prontuários é hoje, o Psicólogo David Tomaz Machado. Ele
um órgão da Prefeitura de Uberlândia que presta atendimento prestou serviço e esteve ligado ao CRIAV primeiramente por
multidisciplinar à vítima de violência doméstica, assim como à trabalho voluntário e posteriormente por estágio
família e aos agressores. Existe na Cidade a mais de 10 anos e é extracurricular durante dois anos e meio. Mantêm ainda ligação
responsável pela maioria dos encaminhamentos feitos ao com o órgão.
conselho tutelar e a retirada de crianças e adolescentes de lares
violentos.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 263


A palavra e a Imagem: armas do convencimento de uma
estética urbana moderna. Uberlândia século XX1

Marileusa de Oliveira Reducino

Mestre em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Professora do Ensino de Arte da Escola de Educação Básica - UFU

Resumo Abstract
O presente artigo analisa e apresenta algumas In this article we analyze and present some
modificações estéticas arquitetônicas que architectural aesthetic modifications that were
ocorreram no entorno da Praça Tubal Vilela no done around Praça Tubal Vilela during the 20 th
decorrer do século XX, por meio de discussões century. We present some philosophical
filosóficas sobre o belo e o sublime e a importância discussions on the beautiful and the sublime. Press
da impressa local como elemento influenciador no played and important role to influence and
convencimento da população da necessidade de convince population of the need to update the
atualização da imagem urbana central, apoiada central urban image, leaning on the idea of
na idéia de se ter para Uberlândia uma estética having an aesthetics that would give Uberlândia a
que a referendasse no país como uma cidade reference of a modern and beautiful city in the
moderna e bela. country.
Palavras-Chave: Praça Tubal Vilela, Estética Keywords: Praça Tubal Vilela, Architectureal
Arquitetônica, Imprensa Local Aesthetic, Local Press

A Praça Tubal Vilela, por sua localização e


suave [...] é delimitada, a noroeste, pela Avenida
percurso histórico encontra-se inserida num
Afonso Pena e, a sudeste, pela avenida Floriano
contexto de conquista, de embelezamento e de
Peixoto – duas avenidas importantes na cidade
projeção, e de acordo com o Inventário de Proteção
no que se refere à circulação, comércio e serviços;
ao Acervo Cultural tem-se que esta praça:
a sudoeste, é delimitada pela Rua Olegário Maciel,
onde está situada a Escola Bueno Brandão e, a
...está localizada no centro da cidade de
nordeste, pela Rua Duque de Caxias, onde se
Uberlândia, em um quarteirão de forma
localiza a Catedral de Santa Terezinha.
retangular (102 x 142m), com uma área de
(PREFEITURA MUNICIPAL DE UBERLÂNDIA.
14.484m² e inserida na malha urbana de
Inventário de Proteção do Acervo Cultural.
traçado xadrez, com uma topografia plana e
Uberlândia, 2001).

Imagem 1. (Detalhe) Visão panorâmica da Praça Tubal Vilela final do século XX.
Acervo Osvaldo Naguettini - APU

264 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Quanto à sua importância político-social, a praça mudança, pelo progresso, por novas técnicas e
Tubal Vilela revelou-se palco de grandes estéticas, irrompendo como elemento chave o
acontecimentos, comícios, manifestações públicas, paradigma de modernidade.
apresentações culturais e outros, assistindo,
concomitantemente, às transformações A arte de nosso tempo não poderá ser entendida
arquitetônicas que ocorreram no seu derredor ao se não tentarmos examinar claramente as
longo dos anos e que colaboraram, sobremaneira, mudanças de idéias e estilos de vida que
para as fotografias publicitárias responsáveis pela tornaram o século XX tão completamente
projeção da cidade em nível estadual e nacional. diferente de épocas anteriores. Por exemplo, o
Por ser, durante o transcorrer do século XX, um movimento e o corre-corre crescentes da vida
dos atributos da cidade apresentados ao cenário cotidiana afetam a arte e a filosofia. No final do
nacional através da mídia, a praça Tubal Vilela, século XIX, o primeiro trem elétrico, o metrô de
assim como as edificações que a margeiam, sofreu Paris, acelerou a vida nessa cidade. Ao mesmo
transformações estéticas ao longo dos anos, tempo, o filósofo francês Bergson estava
modificando sua identidade arquitetônica de acordo trabalhando em teorias sobre o tempo, mudança
com o interesse de beleza exigido no momento, e desenvolvimento, concebendo o tempo mais
acompanhando o ensejo citadino de modernização. como um processo contínuo do que como uma
Vestiu-se de roupas novas por três vezes e, a cada sucessão de instantes separados. [...]. Em 1905,
mudança, recebeu um novo nome, revestindo-se de a teoria da relatividade de Einstein desenvolveu
novos significados, fazendo-se moderna a cada nova as teorias de Newton, tratando uma vez mais de
vestimenta. espaço, tempo e movimento. Surgem as
Os termos moderno ou modernidade, primeiras fotos em jornais, e as pessoas passam a
constantemente usados para definir uma nova apreender visualmente o que está acontecendo
edificação, ou um espaço público na cidade de em remotas regiões. (LAMBERT, 1984, p.3)
Uberlândia vêm, geralmente, associados à idéia de
progresso. Sendo uma proposta de oposição ao Neste sentido, compreende-se que a arte e as
passado, estes termos possuem a intenção da outras linguagens encontram-se inseridas no
valorização do presente ocasionando, geralmente, a contexto de composição da cidade, sejam de caráter
desconstrução de um saber instituído. No caso da científico, técnico, plástico ou filosófico,
arquitetura urbana da Praça Tubal Vilela e seu acompanhando a aceleração dos tempos e a evolução
entorno, a intenção de modernização e progresso do século XX, pois nenhum destes elementos
ocasionou, sempre que se avaliou necessário, a permaneceu isolado. O Século XX, por suas
modificação de suas aparências arquitetônicas. descobertas, foi marcado por uma temporalidade
Em se tratando do conceito de modernidade e diferenciada dos séculos anteriores, e uma das
estabelecendo como enfoque as artes, pode-se características do homem contemporâneo é uma
perceber que há uma constante reelaboração das busca constante pelo novo, independente de suas
representações artísticas deixadas pelo homem no conseqüências futuras. Pode-se dizer, então, que
passado. Em oposição à arte da Idade Média, por muito deste ideal progressista, presente na
exemplo, se viu nascer o movimento renascentista, personalidade do cidadão uberlandense, contém
que apresentava nova estética artística que, por sua reflexos de um processo dinâmico de modernidade
vez, buscava referências na antiguidade Greco- atribuído ao século XX.
romana. Na cidade de Uberlândia, a modernidade espelha-
Analisando sob este mesmo prisma o século XX, se na aparência das novas arquiteturas, revestindo-
herdeiro de grandes acontecimentos históricos de se de novas imagens, impressionando os sentidos, ou
séculos passados e contemporâneos, tais como, a seja, os olhares, com suas presenças metamorfas.
revolução francesa, a revolução industrial e as duas Especificamente no caso do entorno da praça Tubal
grandes guerras, os padrões clássicos são substituídos Vilela no transcorrer do século XX, edificações
por novas vanguardas, que primaram pela modernas se sobrepõem a outras, também

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 265


denominadas modernas, e ainda outras residencial, quer nos amplos prédios de comercio
sucessivamente, remodelando seus espaços, de e de indústria com departamentos de aluguel nos
tempos em tempos, sem nunca perder de vista o andares superiores. (Correio de Uberlândia – 28/
anseio pela novidade, pelo moderno, descartando 04/1955 Ano XVIII – nº 4132 – página 01,
muito facilmente o moderno-passado. Coluna 01 a 04. Progresso Arquitetônico)

Tomando-se a cidade como um microcosmo do


que ocorre no mundo, em que o olhar permite
diferentes leituras dos lugares, dos objetos, das
pessoas e das edificações individuais e coletivas,
percebe-se que, durante os últimos 100 anos,
algumas edificações representativas no entorno da
praça Tubal Vilela foram demolidas, tais como:
Fórum (1979), Hotel Colombo (1987), Fábrica de
Balas Imperial (1975) e outras sofreram adaptações
estéticas, na intenção de acompanhar as estéticas
contemporâneas, como o Edifício Cynthia e a
Catedral de Santa Terezinha, remodelações que vão
desde a alteração em sua fachada ao acréscimo de
Imagem 2 - Visão panorâmica da Praça da República
Aproximadamente década de 1950. elementos contemporâneos (letreiros, néon, toldos,
Acervo - Osvaldo Naguettini – APU entre outros), alterando sua imagem primeira por
razões diversas, entre as quais, a ânsia pela ordem e
Uberlândia atravessa agora a fase das grandes pelo progresso.
construções, para as quais são demolidos prédios
às vezes perfeitamente habitáveis com segurança
e conforto. Explica-se, entretanto, esse fenômeno
urbanístico: é que os grandes edifícios, crescendo
já em sentido vertical, só podem ser erguidos na
parte central, há muito tempo toda tomada por
casas boas em geral. E a localidade destas é que
tem de ser disputadas pelas novas arquiteturas.
Daí a demolição muitas vezes de imóveis que
ainda seriam aproveitáveis por muitos anos. São
as exigências do progresso, nem sempre previstas
com todas as suas vantagens econômicas. Imagem 3 - Fórum década de 1920.
Acervo Roberto Cordeiro – APU
[...]Esses empreendimentos são causa para
regozijo dos uberlandenses, porque provam que
a situação econômica da cidade infunde confiança
aos homens de dinheiro, suficientemente
perspicazes para não inverterem seus capitaes
no novo imobiliário se não compreendessem as
garantias que lhes são oferecidas.
O certo é que a fisionomia de Uberlândia tem se
modificado de maneira acentuada nos últimos
tempos, quer no que se refere à multiplicação dos
palacetes modernos e luxuosos, que já
extravasaram há algum tempo da avenida João
Imagem 4 - Detalhe - Edifício Minas Caixa – Década de 1980.
Pinheiro, que tinha o privilégio desse tipo Acervo Napoleão Carneiro – APU

266 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Na imagem 3 tem-se o fórum de Uberlândia,
inaugurado na década de 1920, o qual permaneceu
na rua Duque de Caxias até a década de 1970,
quando foi vendido pelo poder público na gestão do
então prefeito Virgilio Galassi, para a Caixa
Econômica Estadual, não como uma edificação, mas
praticamente como um terreno, pois em seu lugar
foi erguido o arranha-céu desta entidade que passou
a abrigar a Receita Estadual de Minas Gerais em
seus andares superiores e o banco Caixa Econômica
Estadual no térreo (imagem 4). Sobre estas
negociações tem-se a seguinte análise:
Imagem 5 - (Detalhe) - Hotel Colombo
Aproximadamente década de 1940.
[...] A visita de Virgilio Galassi à Câmara Acervo Osvaldo Naguettini – APU

Municipal serviu para mais uma vez incrementar


as boas relações entre os dois poderes municipais,
que unidos na busca de justas reinvidicações e
na concretização de obras importantes, prestarão
grandes benefícios à comunidade, para que os
interesses venham convergir em favor ao
processo e desenvolvimento do município, que
seguirá assim a sua predestinação de liderar a
mais fértil região das Minas Gerais.
Depois da explanação a respeito do seu governo, o
Prefeito Virgilio Galassi, comunicou aos pares de
nossa Casa de Leis, que o município havia
negociado com a Caixa Econômica Estadual, o
prédio localizado na Praça Tubal Vilela, onde
Imagem 6 – (Detalhe) – Lojas Riachuelo
funcionou por algumas décadas o Fórum Aproximadamente década de 1980
Abelardo Penna. A transação foi feita na Acervo Napoleão Carneiro – APU

importância de 5 milhões de cruzeiros,


esclarecendo que essa verba será aplicada na Pode-se observar na imagem de número 5 a
construção de viadutos na parte alta da cidade edificação do Hotel Colombo, que na década de 1940
para suprir as necessidades de seu crescimento, representa um elemento de importância à rede
[...](Correio de Uberlândia, 23/12/1978. p 01. hoteleira uberlandense. Situado à esquina da
Col, 4-5 Prefeito foi a Câmara e anunciou a venda avenida Afonso Pena com a rua Duque de Caxias,
do casarão da Praça Tubal Vilela) este estabelecimento foi a ampliação de uma
construção anterior que, na década de 1930,
Pode-se perceber, neste artigo do jornal Correio abrigava os Grandes Armazéns Colombo. Edifício
de Uberlândia, o uso do vocábulo “comunicou” para composto por três andares, o Hotel Colombo alugava
apresentar ao leitor a estratégia usada pelo então suas sobrelojas a diferentes atividades comerciais,
prefeito da cidade. O fato de apenas comunicar o ato bancárias, dentre outras, sendo uma delas as Lojas
da venda ao poder legislativo, sem prováveis Riachuelo, instaladas em suas dependências desde
contestações, permite que se perceba na atitude do 1949. Ironicamente seria esta mesma empresa que,
então prefeito indícios de uma personalidade em 1987, demoliria este Hotel para em seu lugar
dominante, plenamente aceita pelos vereadores da erguer sua grande caixa de concreto, inaugurada
casa e, possivelmente, respeitada pelos habitantes em 1989, escondendo sob esta arquitetura seus seis
da cidade. andares comerciais.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 267


a rua Duque de Caxias que resistiu até quando a
indústria se mudou para a cidade Industrial
sendo destruído, logo a seguir, para que
construísse as Lojas Americanas... Isso em 1975.
(Correio de Uberlândia – 08/1988 – p. 18. Col 3.
Elas são a história comercial da cidade – Chocolates
Imperial.)

Imagem 7 - Detalhe – Balas Imperial.


Aproximadamente década de 1930 – 40.
Acervo Osvaldo Naguettini – APU

Imagem 9 - Farmácia do Espírito Santo


Meados da década de 1930
Acervo Osvaldo Naguettini – APU

Imagem 8 - Detalhe – Lojas Americanas.


Aproximadamente década de 1980.
Acervo Napoleão Carneiro – APU

Já a imagem 7 permite a apreciação da edificação


que abrigou por mais de 25 anos a Fábrica de Balas
Imperial. Localizada na esquina da avenida Floriano
Peixoto com a rua Duque de Caxias, este
Imagem 10 - Edifício Cynthia
estabelecimento emprestou seu aroma adocicado à Meados da década de 60
praça à partir de 1935 até 1975, quando foi demolido Acervo Osvaldo Naguettini – APU

para abrigar a exuberante arquitetura de concreto


e vidros espelhados do edifício Chams (imagem 8). A imagem 9 permite se observar uma construção
térrea que nas primeiras décadas do século XX
Uma das mais antigas indústrias uberlandenses. pertenceu à Farmácia do Espírito Santo, situada à
Lauro Teixeira e Oswaldo (Vadico) Rezende esquina da avenida Floriano Peixoto com a rua
associaram-se no dia sete de janeiro de 1930 para Olegário Maciel, e que, a partir de 1947, recebe uma
constituírem a firma Teixeira & Rezende Ltda, ampliação vertical e a denominação de Edifício
fabricante dos produtos Imperial. Começaram na Cynthia (imagem 10). Esta nova edificação reserva
rua Silviano Brandão [...] Em 1935, foram para seu andar superior à apartamentos de moradia,
a praça dos Bambus, ou praça da República, hoje enquanto que no andar térreo, várias lojas
Tubal Vilela, construindo o prédio na esquina com comerciais alternam-se de tempos em tempos,

268 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


contribuindo para as remodelações estéticas A Igreja Matriz de Santa Terezinha, desde sua
contemporâneas deste espaço de acordo com suas fundação, permanece com sua arquitetura
necessidades comerciais. imponente, emprestando sua imagem como um
referencial de religiosidade à praça (imagens 11-12).
Mas há ainda que observar que nos últimos Edificada por meio de recursos obtidos por doações
tempos tem sido construídos alguns prédios que dos fiéis católicos da cidade, esta edificação, pela sua
contribuem para recomendar o nosso urbanismo. grandiosidade e exuberância, sobrepõe e confunde
São palacetes de arquitetura moderna e casas os uberlandenses quanto à identificação da
comerciais de vastas proporções, sempre com padroeira da cidade, Nossa Senhora do Carmo. No
mais de um pavimento. Ainda agora, na esquina entender da sociedade católica envolvida na
da praça Benedito Valadares com a Floriano edificação da nova Matriz, uma nova construção
Peixoto, está sendo substituído o edifício da deveria receber também uma nova denominação
Farmácia Espírito Santo por uma edificação dessa que, conseqüentemente, estaria, de certa forma,
última espécie, com grande número de portas estabelecendo uma outra padroeira para a cidade.
para o comércio. [grifo nosso] (O Repórter – 12/
04/1947 – p.4 Col 03. Construções Urbanas) Mesmo depois de 50 anos de construção a Igreja
de Santa Terezinha tem preservado o seu
princípio arquitetônico. Muito pouca coisa foi
mudada nas duas reformas que as suas
instalações sofreram uma em 1971, quando foi
instalada a cátedra episcopal e outra em 1986,
quando forro e piso tiveram um começo de
deterioração (Correio de Uberlândia - 07/04/
1991 – p. 01 - Matriz de Uberlândia faz 50 anos)

No final do século XX, a referida Igreja tem sua


fachada alterada, com suas escadas recobertas por
uma marquise sustentada por arcos e algumas
imagens de santos são incorporadas à cobertura das
naves laterais. (imagem 12).
Imagem 11- Matriz de Santa Terezinha
Após a análise destas imagens, é possível
Meados da década de 1960– APU compreender que as edificações do entorno da Praça
Acervo Osvaldo Naguettini
Tubal Vilela, remanescentes do início do século XX,
acompanharam o avanço social da cidade rumo à
modernidade e contribuíram, com sua presença
material e sua evolução, para descaracterizar o
conjunto arquitetônico central, transfigurando suas
formas estéticas do começo do século em edificações
modernas contemporâneas. Sobre o conceito de
modernidade, recorre-se a Berman na reflexão que
este autor faz sobre um dos diversos conceitos de
modernidade de Baudelaire.

Uma das qualidades mais evidentes dos muitos


escritos de Baudelaire sobre a vida e arte moderna
consiste em assinalar que o sentido da
Imagem - 12 - Matriz de Santa Terezinha modernidade é surpreendente vago, difícil de
Década de 2000
Acervo particular determinar. Tomemos, por exemplo, uma de suas

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 269


assertivas mais famosas de “O Pintor da Vida diversidades estéticas arquitetônicas contempo-
Moderna”: “Por ‘modernidade’ eu entendo o râneas e é, neste sentido, que se compreende as
efêmero, o contingente, a metade da arte cuja palavras imitar e copiar dos diferentes autores aqui
outra metade é eterna e imutável.” ( BERMAN, referendados. Segundo Carrijo:
op. cit., p.130.)
Assim, as transformações da Praça Tubal Vilela
Berman enfatiza, em seu livro Tudo que é sólido refletem o anseio e a necessidade de situar, mais
desmancha no ar, que Baudelaire possui definições uma vez, a cidade em consonância com o
diferenciadas para o termo modernidade, e isto o moderno, mesmo que de forma arbitrária. Desta
leva a interpretar e a concordar com este autor a forma, as elites política, econômica e intelectual
propósito de que moderno e modernidade são determinam como a cidade deve ser vista, e
expressões que acompanham o desenrolar da história conseqüentemente percebida. Grandiosidade,
e a cada novo momento se tem um aspecto moderno espetacularidade, visibilidade e, por vezes, beleza
pois, apesar de incorporar elementos antigos que se conotam a estética da cidade de Uberlândia.
tornam aos poucos, culturais, estes vão, simultanea- (CARRIJO, 2002, p.166.)
mente, se contrapondo a outros, chegando mesmo a
negá-los. Portanto, segundo Baudelaire, O ideal e o sonho de ser sempre bela, de não
modernidade está associada ao efêmero. Atribuindo contrariar os preceitos de modernidade fez com que
o mesmo sentido a esta noção, escreve Machado, Uberlândia buscasse, com objetividade, a
“Modernidade, modernização, modernismo são remodelação de seu espaço urbanístico e se dispusesse
conceitos que suscitaram e ainda suscitam posições e se empenhasse na reflexão de sua imagem. A
nem sempre consensuais.” (MACHADO, 2002, p.11.) preocupação com a aparência da arquitetura do
Esta característica de mudança constante, da perímetro urbano central foi prioridade desde seus
repulsa pelo velho, descartado sem remorso ou primeiros anos, de tal forma que Uberlândia deveria
piedade, mas com sentimento de alívio, demonstra refletir seu progresso na estética de sua arquitetura.
a afinidade da cidade desde seus primeiros passos, A beleza de suas edificações é ressaltada pela mídia
com os ideais progressistas das capitais que lhe escrita e falada, registros estes que permitiram a
serviram de inspiração, tais como São Paulo e Rio de compreensão do caráter contagiantemente
Janeiro. O impulso pelo novo, pelo moderno e pela empreendedor da sociedade uberlandense. O discurso
grandiosidade, portanto, não foi fator isolado desta jornalístico deixa transparecer um ideal de
cidade do interior do cerrado. Como um efeito mudanças, em busca de algo novo, almejando um
cascata, pode-se exemplificar a inspiração do Rio de belo estético, e muitas vezes um belo de conotação
Janeiro por Paris e de Uberlândia pela antiga capital comum 2 pois, não sendo permanente apresenta-se,
da República de acordo com esta citação: “A cidade geralmente, efêmero como a duração dos materiais
do Rio de Janeiro, capital federal, experimenta utilizados nas edificações que não são conservadas.
modificações sociais, culturais, arquitetônicas,
imitando os grandes centros urbanos europeus”.
[grifo nosso] (MACHADO, 2002, p.215.)
Lembrando que, para Benjamin, na
modernidade a palavra imitar recebe uma outra
conotação, pois, segundo este autor, imitar seria o
mesmo que copiar, com fidelidade, o objeto
selecionado. E pode-se notar que nem os grandes
centros e nem Uberlândia copiam, imitam as
arquiteturas dos outros centros propagadores de
uma nova estética. Há na realidade, um
espelhamento, uma readaptação de materiais, Imagem 13 - Praça Benedito Valadares.
Aproximadamente década de 1940.
técnicas e criação estética que se aproxima das Acervo Osvaldo Naguettini – APU

270 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Quem contempla hoje em dia, a magestosa Praça corresponda ou não à finalidade para a qual foi
Benedito Valadares, não pode sopitar as vibrações destinada. Mas, quanto às palavras, elas me
de entusiasmo, que a sua estética e a sua beleza parecem afetar-nos de uma maneira muito
provocam. [grifo nosso] (A Tribuna. 25/01/1942. diferente do que o fazem os objetos naturais ou a
P.03. Col. 01 – Praça Benedito Valadares) pintura e a arquitetura; contudo, as palavras
são tão capazes de incitar as idéias de beleza e do
sublime quanto aqueles objetos e às vezes um
poder muito maior do que qualquer um deles.
(BURKE, 1993, p.169.)

Assim, como uma detentora de poderes que


incitam sensações, a imprensa uberlandense
procura convencer a sociedade da necessidade de um
edifício projetado ou de seu descarte, pois, somente
assim a sua imagem pode causar um efeito pré-
definido pelos interesses de uma elite dominante,
isto é, as palavras reforçam de certa maneira a
imagem e soam como elemento estratégico de
Imagem 14 - Detalhe - Fachada do Edifício Pozan –
convencimento.
Década de 1940.
Acervo Osvaldo Naguettini – APU Neste sentido, a linguagem jornalística expressa
pelos jornais da cidade, independentemente da época
O Edifício Pozan (imagem 14) localizado na rua de sua publicação ou da empresa responsável,
Duque de Caxias a partir da década de 1930, abrigou convence os leitores e reafirma o pensamento
em suas dependências a Rádio Difusora, lojas e uberlandense, em termos do que é considerado belo
oficinas. No final do século XX, este edifício abriga ou feio: “É possível, entretanto, olhar os sistemas
em sua parte térrea a financeira ABS. lexicais como traços e vetores de dinâmicas sociais
que se inscrevem simultaneamente na cidade e na
“O Edifício Pozan, sem favor nenhum, é um dos linguagem.” (DEPAULE, J-C; TOPALOV, C. 2001,
mais bonitos da Praça Benedito Valadares...” p.17.).
[grifo nosso] (Correio de Uberlândia, 12/01/ É, pois a partir deste elemento, ou seja, da
1942. P. 01. Col. 01 a 03. Suntuosamente palavra jornalística, que se percebe a dinâmica da
Instalada no Magnìfico Edifício Pozan, a Rádio mídia uberlandense na cristalização da imagem
Difusora de Uberlândia.) progressista da cidade. É interessante observar o
momento em que uma edificação é considerada bela,
A partir destas citações, recorre-se a Burke no e este momento coincide, geralmente, com a
que ele diz em relação à importância das palavras instalação de um novo empreendimento, seja ele
utilizadas no convencimento e na excitação de bancário, comercial ou de outro setor empresarial.
sentimentos. Sendo as palavras, segundo este autor, Mas, este empreendimento exibe, segundo a
o elemento que, primeiramente, desencadeia a divulgação de sua inauguração, características que
atribuição de sentidos, deduz-se que as mesmas são comprovam o avanço comercial e empreendedor que
responsáveis pela afetação de paixões profundas, dará ao município a garantia de cidade moderna e
antes mesmo que os objetos se concretizem, como no bela.
caso de uma nova edificação ou de uma praça A linguagem é utilizada com a intenção, muitas
redesenhada. vezes, de conduzir a opinião pública quanto à
necessidade da mudança, da reforma, da aquisição
O efeito produzido pela arquitetura deriva das e ou da substituição.
leis da natureza das quais a totalidade ou parte As palavras jornalísticas, geralmente, são
de uma obra é louvada ou desaprovada, conforme portadoras da opinião de um grupo que almeja as

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 271


mudanças e, no âmbito da política, consegue, através político, social e econômico dá uma individualidade
das assíduas edições jornalísticas, incitar e convencer ao que se aceita como belo. Sob esta ótica, a idéia de
os leitores a concordar com as mudanças estéticas beleza uberlandense obedece a um ritmo de
almejadas, principalmente no que diz respeito às interesses ditados e ressaltados, principalmente, com
edificações do perímetro da praça Tubal Vilela. a ajuda da mídia.
Quanto às duas citações jornalísticas anteriores, É interessante observar que Hegel, em sua
ambas datadas de 1942, a primeira referindo-se à análise sobre estética, separa o belo artístico do belo
praça Benedito Valadares e a outra, ao Edifício Pozan, considerado natural. Desta forma, coloca as criações
percebe-se o enaltecimento, na escrita do repórter, estéticas do homem num patamar diferenciado da
do entusiasmo que, provavelmente, deveria estar estrutura estética encontrada pronta na natureza.
contagiando a população pela nova aparência da Para ele,
praça, ou seja, seu novo visual arquitetônico. Os
autores destas matérias jornalísticas chamam a ... o belo artístico é superior ao belo natural por
atenção, através das palavras, para uma apuração ser um produto do espírito, que superior à
visual e emocional, maior talvez àquela que o natureza, comunica esta superioridade aos seus
público transeunte tenha percebido quando da produtos e, por conseguinte, à arte; por isso é o
fruição da nova arquitetura e da observação de seus belo artístico superior ao belo natural. Tudo
elementos estéticos. quanto provém do espírito é superior ao que existe
Portanto, pode-se concordar novamente com na natureza. (HEGEL, 1996, p.4)
Burke em dizer que as palavras influenciam as
paixões. Assim, as palavras veiculadas pela Assim, compreendendo que o belo, na ótica de
imprensa podem reforçar um sentimento mais Hegel, remete a uma idéia de beleza dinâmica, que
profundo, levando o leitor a observar, sob outro permite acompanhar os gostos no caminhar da
prisma, o que anteriormente teria apenas lhe evolução dos tempos, pode-se considerar que, em cada
sensibilizado de forma superficial os sentidos. época ou período de demandas estéticas
A imprensa uberlandense desempenhou um arquitetônicas diferenciadas, a busca de uma beleza,
papel preponderante na divulgação da história reconhecida, depende da criatividade do artista. Em
arquitetônica da cidade, pois tornou-se uma grande se tratando desta análise, esta busca depende do
aliada na divulgação das idéias e das opiniões sobre arquiteto, e da aceitação desta nova estética como
o que deveria ou não permanecer ou o que seria padrão de beleza, mesmo que seja por um período
referencial de beleza no quadro arquitetônico considerado curto, qual seja, o período de sua
urbanístico. Quanto a esta noção de beleza ditada duração como novidade e agente diferenciador do
pelos jornais, pode-se dizer que transparece uma espaço urbano ocupado.
conotação voltada para o convencimento, ou seja, Desta forma, o autor afirma, em suas concepções
de certa forma ela age como uma imposição velada sobre o belo, que este é sujeito do ideal, da
na apreciação do estilo apresentado. As opiniões tranqüilidade e da felicidade serena, e por ser
jornalísticas responderam pelos incentivos positivos possuidor de um caráter filosófico/científico evoca
ou negativos dados às arquiteturas analisadas e sentimentos que penetram a alma do ser humano,
contribuíram, também, na divulgação da formação sensibiliza por sua aparência exterior, ou seja, sua
e da modernização da praça e de seu entorno. forma que é, segundo Hegel, o grande poder da arte.
No que se refere ao belo ou ao desfigurado, Desperta sentimentos adormecidos, bons e maus,
principalmente, sobre as edificações que compõem e indo de um extremo ao outro, além de proporcionar
recompõem o entorno da Praça Tubal Vilela, recorre- o testemunho e a experimentação de sentimentos
se a uma análise de Hegel: “Poder-se-á sempre fortes, grandes, temerosos e a possibilidade de
descobrir outras determinações, igualmente revolver emoções violentas.
aplicáveis ao que é belo, mas não a esta ou àquela
beleza que nos interessa.” ( HEGEL, 1996, p.12.) Pode a arte erguer-nos à altura de tudo o que é
No caso das edificações em estudo, o interesse nobre, sublime e verdadeiro, arrebatar-nos até

272 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


a inspiração e o entusiasmo, como pode arquitetônicas apresentadas pelas fotos analisadas
mergulhar-nos na mais profunda sensualidade, e, neste sentido, ao longo das discussões sobre as
nas paixões mais vis, abafar-nos numa atmosfera transformações arquitetônicas do entorno da praça
de volúpia, e abandonar-nos desamparados, Tubal Vilela, o sublime permeará as discussões.
esmagados pelo fogo de uma imaginação Neste sentido, recorre-se a este autor, que
desenfreada. Tão rico é o humano de bem como compara o belo e o sublime nestes termos:
de mal, de coisas sublimes como de coisas vis, e
por isso a arte nos pode impelir ao entusiasmo Pois os objetos sublimes possuem dimensões muito
pelo belo e sublime como envilecer-nos de grandes, ao passo que os belos são comparativa-
efeminar-nos pela exaltação do que temos de mente pequenos; a beleza deve ser lisa e polida; o
sensível e sensual.(HEGEL,1996, p.34.) grandioso, áspero e rústico; a beleza deve evitar
a linha reta e, contudo, faz-lo imperceptivel-
Com base nas reflexões de Hegel sobre a mente; o grandioso, em muitos casos, condiz com
possibilidade da análise do belo com caráter a linha reta e no entanto, quando dela se desvia;
filosófico/científico percebe-se que, embora o termo as trevas e as sombras são essenciais ao grandioso;
beleza esteja direcionado às edificações do entorno a beleza deve ser leve e delicada; o grandioso
da praça Tubal Vilela com uma conotação requer a solidez e até mesmo as grandes massas
argumentativa de convencimento de idéias, pode- compactas. (BURKE, 1993, p.130)
se ver que alguns elementos comuns à beleza estética
estão relacionados com a imagem veiculada nas Após as elucidações de Hegel sobre a diferença
reportagens. O belo, ou a beleza provoca sensações, entre o que se entende por belo natural e artístico, e
remete à imagens às vezes adormecidas e, mesmo sobre as reflexões de Burke entre o belo e o sublime,
que seja elemento de convencimento, o belo retomar-se-á a praça e seu entorno e suas
estampado na aparência de uma nova construção representações na imprensa que, freqüentemente,
não deixa de ser elemento estético detentor de certas utiliza os termos beleza/belo buscando expressar,
intenções. através das palavras, os sentimentos e as emoções
Sobre a beleza, Burke (1993) a considera que a forma exposta procura suscitar.
diferente do sublime e dedica discussões separadas Privilegiada por sua localização geográfica,
para cada uma destas sensações. O sublime, segundo situada no coração 3 da cidade, a praça exigiu
Burke, relaciona-se com objetos grandes e terríveis, transformações no seu interior e no seu entorno, de
inspira admiração e provoca uma sensação de acordo com o conceito de beleza do momento vivido.
coação. Outros atributos direcionados ao sublime Até os anos 70, com maior freqüência, a Praça Tubal
seriam a fealdade, apesar do que é feio muitas vezes Vilela foi ora ressaltada, ora vilipendiada pelos
possuir proporção e função pois, mesmo possuindo a jornais da cidade, podendo-se dizer que a praça em
qualificação de feio, o objeto assim designado questão foi bela e sublime quando foi conveniente
desempenha uma função para a qual foi destinado, aos ideais citadinos almejados pelo Poder Público e
seja ele objeto de adorno, uma pintura, uma pelas elites.
arquitetura ou outras expressões estéticas, mas a Segundo alguns autores tais como Kant (1946),
fealdade somente possuirá o caráter sublime se Hegel e Burke, o belo e o sublime possuem
conseguir provocar no observador uma sensação de características opostas marcantes, sendo que eles
grande terror. concordam que o sublime é tenebroso, negativo,
Em uma rápida alusão ao sublime pode-se ligado à dor, à noite, ao assombro, ao terror, à
perceber que ele contraria o que é belo nas emoções grandiosidade, enquanto que o belo é suave, é
que provoca, nas formas, nos tamanhos, nas positivo, ligado à claridade, ao encantamento, à
angulosidades, nas rupturas que assume quando pequenez, à alegria entre outros sentidos.
exposto ou apresentado à apreciação. Priorizando o
belo não se quer dizer que o sublime estaria ausente Kant vincula a noite ao sublime e o dia ao belo. O
nas representações jornalísticas, nas formas sublime, vivência da excitação da alma, perda

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 273


de si, da admiração silenciosa, da entrega – espaço de tempo, se tornando sublime, pois a
assombro, tristeza, terror, submissão. Vinculado temporalidade das construções que margeiam a
à dor e à escuridão (positiva ou negativa) de praça Tubal Vilela obedece a um ritmo de
acordo com Burke, que considera o terror como permanência e ausência, de aproximadamente
princípio primordial do sublime. [...] emoção quarenta anos, sendo poucas as que ultrapassaram
forte, que não pode ser suportada por muito este tempo de permanência durante o qual as
tempo, para ambos. (NAXARA, 1999, p.120.) alterações, no que tange à manutenção e
reestruturação, são praticamente nulas. É, neste
É o belo, muito mais do que o sublime que é, a período, que o belo vai se carcomendo, se alterando,
todo momento, associado à qualidade de cidade se descaracterizando e sendo considerado pelos
moderna e progressista. Nas reportagens habitantes e pela mídia como uma estrutura feia,
catalogadas, os adjetivos belo e beleza, destinados à desestabilizadora de uma estética harmônica. Assim
cidade, à praça, ou à arquitetura periférica a este o belo se torna sublime.
logradouro são constantes durante o período Quanto ao efeito produzido pela arquitetura,
analisado. Burke diz que...

Uberlândia é uma cidade bonita, uma cidade ...deriva das leis da natureza e da razão; desta
alegre, jovial. Seu povo é otimista; vive em uma última derivam as regras da proporção, segundo
harmonia perene. [grifo nosso]( O Repórter, 07/ as quais a totalidade ou parte de uma obra é
03/1937. P, 01. Col, 12. Rodovias – Aldo Martins.) louvada ou desaprovada, conforme corresponda
ou não a finalidade para a qual foi destinada.
Eu sou realmente apaixonada pela cidade. Gosto (BURKE, 1993, p.169.)
muito de tudo aqui, realmente Uberlândia é uma
cidade muito bonita. [grifo nosso] (Correio de No entanto, percebe-se que o objetivo da
Uberlândia, 31/08/1999. P, B-27 – Caderno arquitetura destinada a compor o entorno da praça
Especial. O Povo Fala – O Que Você Mais Gosta em Tubal Vilela e sua dinamicidade traçaram suas
Uberlândia.) mudanças estéticas de acordo com a finalidade
temporal que ela passa a adquirir no período de sua
Segundo Burke, o belo e o sublime são categorias existência. Mudanças estas que refletiram,
opostas. Enquanto o sublime está ligado às sensações constantemente, o anseio progressista do
de maior impacto, ou seja, ao medo, à grandiosidade, uberlandense pelas imagens belas projetadas pela
principalmente nas grandes proporções das sua arquitetura central.
arquiteturas, que ao olhar se distorcem, criando Segundo Hegel: “O belo produzido pelo espírito é
formas amorfas o belo está ligado à sentimentos mais o objeto, a criação do espírito, e toda criação do
serenos, ao amor, ao prazer, à simpatia, às pequenas espírito é um objeto a que não se pode recusar
proporções na arquitetura. Assim, conclui-se que o dignidade.” (HEGEL, p.12.). As edificações sendo elas
belo, na arquitetura, deve ser menos ousado nas elaboradas pelo homem, possuem uma personalidade
formas plásticas que lhes são impressas que o bela a ela destinada, diferenciando-se do belo natural
sublime, pois o belo, neste sentido, apresenta-se, em encontrado pronto na natureza, pois, diferentemente
relação à aparência estética acanhado e de da natureza, ao moldar a matéria bruta, o projetista
permanência curta, enquanto que o sublime elabora uma vestimenta conferindo-lhe austeridade
impressiona, apresentando-se, metaforicamente, e beleza, capazes de deleitar o olhar do espectador
destemido e marcando uma permanência maior. quando da observação da arquitetura projetada. E
Neste sentido, no que se refere à arquitetura mesmo austera e bela, torna-se, por muitas vezes,
uberlandense e de tantas outras cidades modernas, efêmera, pois o gosto e as tendências na arquitetura
pode-se dizer que a bela edificação que se impõe no contemporânea, geralmente, obedecem a uma
momento de sua inauguração, referendada com o permanência curta.
adjetivo de beleza vai, aos poucos e em um curto Em arte, os objetos considerados belos são de uma

274 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


variedade ampla e relacionados a uma quantidade esperada ou vilipendiada, que supera ou
infinita de formas. Estas formas transitam entre o envergonha as expectativas populacionais,
belo e o não belo numa efemeridade temporal própria abrangendo um período temporal curto e dinâmico
da leitura estética. É assim que uma arquitetura é e são as palavras e as imagens que constroem uma
revestida do adjetivo de beleza, no momento de sua identidade de credibilidade do que é apontado e
elaboração e edificação e, posteriormente, quando ratificado como uma moderna edificação, bela ou
se apresentar deteriorada, deixará de ostentar seu feia. Percebe-se, deste modo, que um pacto de
predicado anterior e passará a se revestir de um opiniões, veladas, circula entre as palavras e as
outro, feio, e, neste sentido, Hegel reflete que: imagens, num jogo de aperfeiçoamento de um ideal
construído de progresso e modernidade.
...é impossível descobrir uma regra que distinga Portanto, após estas análises sobre o belo na arte,
o que é belo do que não o seja, quer dizer, é sobre o poder das palavras na apresentação das
impossível formular um critério do belo. Sabe-se imagens e sobre as alterações do espaço urbano
como os gostos diferem infinitamente [...]; é, central da cidade de Uberlândia, é que se conclui
portanto, impossível fixar regras gerais que a mídia foi, durante o transcorrer do século XX,
aplicáveis à arte. (HEGEL, 1996, p. 12) grande influenciadora no convencimento da
população da necessidade de uma aparência
Assim, na busca de convencer, através de uma moderna no perímetro urbano central da cidade de
argumentação sugestiva, a imprensa uberlandense Uberlândia, mais precisamente o entorno da praça
ressalta a imagem como detentora de uma beleza Tubal Vilela.

Notas sejam agradáveis ao olhar. Sua característica principal,


portanto, é a utilidade, ou seja o uso associado a um componente
de conformação agradável ao olhar. Assim, este belo obedece às
1
O presente artigo baseia-se em parte de um capítulo da
configurações ditadas pelo modismo, podendo ser descartado
dissertação: Uma praça e seu entorno: plasticidades efêmeras
como feio em um período muito curto de tempo.
do urbano – Uberlândia –século XX, defendida em 2003 sob a 3
Nas representações da cidade tornou-se freqüente as analogias
orientação da professora Drª. Jacy Alves de Seixas.
com corpos vivos, com partes de corpos, com doenças e anomalias.
2
Entende-se por belo de conotação comum aqueles elementos de
Nas palavras da cidade e do urbanismo, termos da biologia são
uso, os quais possuem configurações que podem ser denominadas
freqüentemente empregados, surgindo tanto nas técnicas de
de belas (ou feias). Estes elementos são elaborados com
análise e intervenção, quanto para nomear partes e componentes
características estéticas objetivando, além de sua utilidade, que
da cidade. (GUNN & CORREIA, In: BRESCIANI, 2001,p.227.)

Referências

BERMAN, Marsshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura MACHADO, Maria Cristina Teixeira. Lima Barreto – Um Pensador
da modernidade. São Paulo: Companhia das letras, 1986. na Primeira República. Goiás: Editora UFG, 2002.
BURKE, Edmund. Uma Investigação Filosófica Sobre a Origem de NAXARA, Márcia Regina. Sobre o Campo e a Cidade: O olhar,
Nossas Idéias do Sublime e do Belo. Campinas, S. P.: Papirus. Sensibilidade, Imaginário (Em Busca de um Sentido Explicativo
Editora da Universidade de Campinas, 1993. do Século XIX). Tese de Doutorado, Campinas. Unicamp São Paulo:
CARRIJO, Gilson Goulart. Fotografia e a invenção do espaço 1999.
urbano: Considerações sobre a relação entre estética e política.
Dissertação de mestrado. Uberlândia MG:UFU, 2002.
DEPAULE, J-C; TOPALOV, C. A Cidade Através de Suas Palavras. In:
BRESCIANI, Maria Stella. As Palavras da Cidade. Rio Grande do
Outros documentos
Sul: Editora da Universidade, 2001.
GUNN & CORREIA, T. B. O Urbanimo: A medicina e a biologia nas PREFEITURA MUNICIPAL DE UBERLÂNDIA. Inventário de
palavras e imagens da cidade. In: BRESCIANI, Maria Stella. As Proteção do Acervo Cultural. Uberlândia, 2001.
Palavras da Cidade. Rio Grande do Sul: Editora da Universidade,
2001.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: O Belo na
Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Jornais
KANT, Immanuel. Lo bello y lo sublime. In: Colección Austral, n.
621. Madri: Espana S. A., 1946. A Tribuna. – 1919 a 1942.
LAMBERT, Rosemary. Introdução à História da Arte da Correio de Uberlândia – 11939 a 2000
Universidade de Cambridge – A Arte do Século XX. Rio de Janeiro: O Repórter - 1933 a 1963
Zahar Editores, 1984.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 275


Construindo o Orçamento Participativo de Uberlândia -MG

Marcílio Marquesini Ferrari

Economista formado pelo IE/UFU, ex-assessor da Secretaria Municipal de Planejamento Participativo (2002-2004),
fundador do Fórum Permanente do Orçamento Participativo de Uberlândia. Atualmente é Consultor do Orçamento
Participativo do Município de Patrocínio - MG

Resumo Abstract
Este artigo analisa como o Orçamento In this article we analyze how the participative
Participativo evoluiu no Município de Uberlândia budget was developed in Uberlândia in its three
através de suas três fases: proposto pelas duas phases: proposed by Zaire Rezende’s two
Administrações de Zaire Rezende (1983-1988; administrations (1983-1988; 2001-2004), and
2001-2004), e organizado pela própria Sociedade organized by Society (2005-2008) in the
(2005-2008) através do Fórum Permanente do Permanent Forum of the Participative Budget.
Orçamento Participativo. Keywords: Participative Budget, Society,
Palavras-Chave: Orçamento Participativo, Administration
Democracia Participativa, Participação Popular

Introdução período 2005-2008, organizada pela própria


Sociedade.
Desde o final da década de 70 do século XX, O presente artigo se dedicará mais
alguns Municípios brasileiros, praticaram como detalhadamente para as duas últimas fases do
forma de contraposição e resistência ao regime orçamento participativo de Uberlândia uma vez que
ditatorial a participação popular em seus governos. o autor vivenciou (enquanto membro do Governo
Os municípios de Lages (SC), Piracicaba (SP), Vitória Zaire Rezende e enquanto cidadão) os dois momentos.
(ES), Uberlândia (MG) iniciaram suas experiências
tendo como objetivo a participação ampla e irrestrita
da população. Em 1989, alguns municípios do Brasil 1) Democracia Participativa em
liderados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) Uberlândia: o período 1983-1988
passaram a adotar uma metodologia de participação
popular que englobava tanto a democracia Na primeira experiência de participação popular
representativa quanto a democracia direta. Tal no Governo Municipal, nossa cidade contou com a
metodologia ficou conhecida como Orçamento introdução da Democracia Participativa 1 por meio
Participativo(OP). Criado com objetivo de do estímulo à criação das Associações de Moradores
democratizar a relação entre o Estado e a Sociedade de Bairro e Creches Comunitárias. A população na
o OP tornou-se uma das práticas de inclusão social época participava de reuniões com os membros das
mais difundidas no Brasil no final do século XX. Associações de Moradores de Bairro e com o Prefeito
A experiência de Uberlândia divide-se em três para que as reivindicações fossem viabilizadas pela
momentos: I) a primeira fase, no período de 1983 a Prefeitura. De acordo com FERRARI (20052):
1988, no Governo Zaire Rezende; II) a segunda fase,
no período de 2000 a 2004, também proposta pelo “A estrutura básica da participação popular era a
Governo Zaire Rezende e III) a terceira fase, no seguinte: onde não havia Associação de Moradores

276 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


de Bairro, a Prefeitura potencializava a criação das movimentos sociais uberlandenses e as
mesmas, sem nenhum tipo de ingerência. Além administrações era uma relação de cooptação, haja
disso, foi criado o CEC – Conselho de Entidades vista, vinculada sobretudo à nomeações de cargos
Comunitárias - que dentre outras atribuições, comissionados.
coordenava as eleições das associações de Entre 2001 e 2004, com o retorno do Governo
moradores de bairro. Além disso, havia também o Zaire Rezende (PMDB), a participação popular
apoio para a criação de Creches Comunitárias, com novamente passou a ser vista como uma prioridade
estatuto próprio e atribuições definidas pela de Governo. Narraremos a partir de agora como se
comunidade envolvida.” (FERRARI; 2005: 55) deu essa experiência.

Conforme afirma JESUS 3 (2002) ao analisar a


experiência de participação popular no Governo 2) O orçamento participativo de
Zaire Rezende: Uberlândia (2001-2004): por que, para
quem e para quê?
“(...) a administração do prefeito Zaire Rezende
teve a participação popular não somente como um Para compreendermos a experiência do OP de
princípio administrativo, mas, principalmente, Uberlândia é importante contextualizarmos os
como uma proposta de governo. Prova disso foi a principais motivos da eleição no ano de 2000 do
criação da Secretaria Municipal de Trabalho e Ação candidato Zaire Rezende (PMDB). Conforme dito
Social. Com objetivos claros e definidos, essa anteriormente, de 1989 a 2000, Uberlândia foi
secretaria foi organizada para desenvolver governada por grupos conservadores liderados pelo
programas em áreas diferenciadas (Divisão do Partido Progressista, Partido da Frente Liberal e
Trabalho, Programa de Apoio às Creches; Partido da Social Democracia Brasileira.
Programa de Habitação Popular, Programa de A participação popular para aqueles governos
Apoio Comunitário), tendo, neste último, a sua significava o atrelamento amplo e irrestrito de
principal tarefa a ser desempenhada: apoiar a entidades aos respectivos governos via orçamento
organização social e o desenvolvimento público. “Ser” Presidente de Associação de Moradores
comunitário.” (JESUS, 2002: 107) era um bom negócio: contato direto com secretários
e obras nos locais onde os Presidentes das Associações
Com o lema “Democracia Participativa” a escolhessem; status de liderança comunitária com
primeira Administração Zaire Rezende (1982- relevado destaque, e não menos importante o contato
1988) contribuiu para a busca de ruptura do direto nas bases comunitárias.
clientelismo no Município de Uberlândia (pelo menos A proposta de construção do OP em Uberlândia,
naquele momento). Do ponto de vista das além de ter sido uma prioridade de vida do candidato
priorizações orçamentárias, a primeira Zaire Rezende (PMDB), foi inclusive sugerida pela
administração de Zaire Rezende inverteu própria população nas reuniões que antecederam a
prioridades, ou seja, aspectos sociais que nunca antes elaboração do Plano de Governo. Na oportunidade a
foram priorizados pelos seus antecessores passaram população constatava que a Prefeitura não estava
a ter atenção especial do Governo: construiu-se na aberta para o povo, e que era importante a
cidade diversos equipamentos públicos de saúde, democratização dos espaços públicos principalmente
além da construção de algumas escolas e a própria no interior da própria Prefeitura.
criação de órgãos públicos com funções específicas O Programa de Governo previa a participação
ao atendimento social. popular nas definições do orçamento público e do
De 1989 a 2000, Uberlândia vivenciou planejamento governamental através da construção
sucessivas administrações conservadoras e do planejamento participativo definido pelo
autoritárias que não priorizavam a participação compartilhamento de ações e responsabilidade entre
popular enquanto proposta de Governo. Ao todos os setores governamentais existentes e a
contrário, a relação entre grande parte dos população.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 277


Já empossado, o Prefeito Zaire Rezende criou a plenárias públicas populares com a participação do
Secretaria Municipal de Planejamento Participativo Governo e a Sociedade com a finalidade de
(SMPP) com o intuito de possibilitar para a Sociedade possibilitar a intervenção direta dos cidadãos na
de Uberlândia a construção coletiva do planejamento elaboração e execução orçamentárias.
participativo em todas os órgãos de Governo. A SMPP Para a adoção do OP em Uberlândia foi
teve durante os quatro anos de existência as tarefas
4
importante a percepção de que somente os
de organizar o orçamento participativo e construir instrumentos já consolidados da democracia
no interior do Governo o planejamento participativo. representativa não eram suficientes para a
O planejamento participativo iniciou-se no efetivação do controle social do Estado. Dessa forma,
governo através da criação do Fórum o Governo Zaire Rezende (PMDB), ao propor o
Governamental 5 com o intuito de dinamizar as orçamento participativo possibilitou em Uberlândia
diversas ações do Poder Executivo. Através do PES a construção de um novo espaço de participação
(Planejamento Estratégico Situacional) a SMPP popular composto por diversos setores da Sociedade
propôs ações estratégicas para que o Governo pudesse que por sua vez, fizeram o debate público da peça
cumprir seu Programa. orçamentária municipal.
Além disso, a metodologia do planejamento
participativo foi difundida para diversas entidades
sociais tais como associações de moradores, 2.1) O Ciclo do orçamento participativo de
sindicatos, movimentos de luta pela terra, Uberlândia – MG.
organizações não governamentais, etc.
O OP de Uberlândia pautou-se pela participação Para a realização do OP de Uberlândia foi
ampla e irrestrita dos cidadãos, movimentos necessária a (re) divisão do Município em novas
sociais e entidades organizadas de Uberlândia regiões para que as plenárias do OP tivessem maior
no intuito de inverter prioridades orçamentárias por participação e intervenção das comunidades. A
meio da participação direta da população e pela divisão regional levou em consideração a existência
negociação pública entre cidadãos e Governo. Por dos equipamentos públicos, história dos movimentos
inversão de prioridades orçamentárias consideramos sociais e a proximidade dos bairros componentes. Após
a execução de obras e serviços que privilegiem a a divisão, o Município de Uberlândia passou a contar
maior parte da população. com 18 regiões do OP e 4 distritos6 rurais. A figura 1
A metodologia do OP prevê a realização de demonstra a divisão regional do OP de Uberlândia

Figura 1 – Mapa das Regiões do OP de Uberlândia (MG)

278 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


A metodologia também contempla a realização tiveram condições de participar das plenárias
de plenárias temáticas com o objetivo de discutir
7
regionais.
temas gerais do Município e contemplar a A Tabela abaixo demonstra todas as regiões do
participação de setores que de alguma maneira, não OP de Uberlândia:

Tabela 1 - Composição das regiões do OP de Uberlândia (2001 a 2003)

REGIÃO BAIRROS
A Morumbi , São Franscisco de Assis, Prosperidade, Dom Almir, Alvorada,Marielza, Olhos D´agua,
Tenda dos Morenos, Parque das Andorinhas, Joana Dárc e Chácaras próximo ao Rio Araguari

B Tocantis , Guarani, Talismã, Dona Zulmira Norte, Taiaman (Aruanan), Parque Maravilha,
Morada do Sol, Jockey Camping, Assentamento Rio das Pedras
C Martins, Daniel Fonseca, Osvaldo Resende
D São Jorge , Granada, Laranjeiras, Santa Luzia, Buritis, Paineiras, Viviane, Seringueiras, São
Gabriel, Jd. Gravatas, Comunidade da Floresta do Lobo e Chácaras do Balsamo
E Custodio Pereira, Umuarama, Novo Horizonte
F Luizote, Mansour, Jd. Patrícia, D. Zulmira (Sul), Nosso Lar, Santo Antonio, Chácaras Oliveira e
Beira Rio
G Patrimônio , Jd. Karaíba, Morada da Colina, Copacabana, Shopping Park,
H Nossa Senhora das Graças,Liberdade, Esperança, Gramado, Sta Rosa, Cruzeiro do sul, Minas
Gerais, Marta Helena, Chácaras Val Paraíso,
I Pacaembu, Jd América, Maravilha, Maria Rezende, Sta Rosa, Satélite Oliveira
J Lagoinha, Pampulha e Saraiva, Carajás, Lagoinha, Leão XIII, Ozanan, Santa Maria, Vigilato
Pereira, Xangrilá
L Aclimação e Ipanema I e II, Jd Califórnia, Mansões Aeroporto, Morada dos Pássaros, Quintas do
Bosque
M Planalto, Jaraguá, São Lucas, Sto Inácio, Jd Ipanema e Nova Uberlândia, Chácaras Tubalina,
Cidade Jardim, Tancredo Neves
N Brasil, Bom Jesus, N.S. Aparecida
O Canaã, Morada Nova, Panorama e Bela Vista, Chácaras Eldorado, Sto Antonio, Jd. Holanda,
Chácaras Babilônia, Chácaras Douradinho, Comunidade da Escola Municipal Costa e Silva,
Comunidade da Escola Municipal Leandro José de Oliveira, Comunidade da Escola Municipal
Babilônia
P Tibery
Q Roosevelt, Jd. Brasília, São José, Bairro Industrial,
R Centro, Fundinho, Cazeca, Lídice, Tabajaras
S Santa Mônica, Segismundo Pereira, Jd. Finotti, Progresso
Fonte: Prefeitura Municipal de Uberlândia (2001)

A metodologia do OP de Uberlândia foi se Plenárias Deliberativas, Plenárias de


modificando de acordo com o tempo. Entre 2001 e Prestação de Contas (somente em 2001). A
2003 o ciclo contava com Plenárias figura abaixo nos mostra com detalhes cada fase da
Informativas, Reuniões Intermediárias, metodologia do OP de Uberlândia naquele período:

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 279


Figura 2 – Metodologia do OP de Uberlândia

Metodologia do OP de Uberlândia 2001 - 2003

* Apresentação da Metodologia
Plenárias do OP
* Apresentação dos números da LOA
Informativas
* Reinvindicações Populares
* Eleições dos delegados do OP

* Análise das reinvindicações


* Criação do Fórum de Delegados
Reuniões
* Montagem da Matriz de Prioridades
Intermediárias * Mobilização para a Plenária
Deliberativa

* Votação da Matriz de Prioridades


* Votação da chapa de conselheiros
Plenárias * Prestação de contas do trabalho
Deliberativas dos delegados
* Divulgação do ato de posse do
COP

* Entrega da Proposta de LOA na


Solenidade de Câmara Municipal com a presença
de conselheiros, delegados e
entrega da LOA
membros de associações de
moradores de bairro.

* Mobilização dos Conselheiros


Acompanhamento da do OP e acompanhamento do
votação da LOA na conteúdo das emendas
Câmara Municipal orçamentárias à LOA juntamente
com a negociação de emendas
com os vereadores.
Elaboração própria

Nos quatro primeiros anos do OP de Uberlândia quanto do governo de que era necessário a otimização
foram eleitos mais de 500 delegados (as) do OP, 228 do ciclo do OP objetivando a concretização de obras
conselheiros (as) do OP, e participaram ativamente não concluídas foi introduzida o ciclo unificado do
das plenárias públicas mais de 40.000 cidadãos. OP conforme podemos observar ao lado:
Participaram também das plenárias diversas Com a nova metodologia, as Plenárias Informati-
entidades sociais tais como Associações de moradores vas foram suprimidas assim como as reuniões
de bairro, Associações de Amigos de Bairro, intermediárias. A partir de 2004, as plenárias
Associações Femininas, Associações de Comércio, unificadas definiriam em um só momento, os
Sindicatos, Partidos Políticos, Conselhos Municipais, conselheiros, delegados, prioridades regionais. A nova
Conselhos Distritais de saúde, grupos culturais, metodologia possibilitou ao COP maior tempo para
grupos afro-descendentes, Organizações não- análise das prioridades populares e inclusão das
governamentais, pastorais, etc. mesmas tanto na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentá-
No ano de 2004, após a avaliação tanto do COP rias) quanto na LOA (Lei Orçamentária Anual).

280 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Figura 3 - Plenárias Unificadas do Orçamento Participativo 2004/2005

• Delegados e conselheiros analisam


as prioridades dos anos anteriores
• Construção de uma proposta de
Reuniões
matriz orçamentária para votação
preparatórias
na Plenária Unificada
• Planejamento da Mobilização da
Região

• Prestação de contas do governo


• Intervenções populares
Plenárias
• Eleição dos delegados do OP
Unificadas
• Votação da matriz orçamentária
• Eleição dos conselheiros do OP

Fonte: FERRARI, 2004.

2.2) A consolidação do Conselho do fase deliberativa 8 a população elegeu seus


Orçamento Participativo –COP - de conselheiros diretamente nas plenárias públicas.
Uberlândia Para efetivar qualquer candidatura, o Regimento
Interno do COP determina que cada chapa se inscreva
O Conselho do Orçamento Participativo (COP) de de forma completa, ou seja, deverá ser composta por
Uberlândia foi criado no ano de 2001 por meio da 2 conselheiros titulares e 2 conselheiros suplentes.
eleição direta de seus membros pela população Quando houver mais de uma chapa completa
participante das plenárias públicas do OP. inscrita é aplicado o critério de proporcionalidade
Conforme dito anteriormente, o Município foi para composição de uma chapa. O critério pode ser
dividido em 18 regiões, 4 distritos rurais e 7 visto logo abaixo:
temáticas para a aplicação metodológica do OP. Na

Critério de desempate de chapas inscritas

PERCENTUAL DE VOTOS NÚMERO DE TITULARES E SUPLENTES


75,1% dos votos 2 (dois) titulares e 2 (dois) suplentes
62,6%a 75% dos votos 2 (dois) titulares e 1 (um) suplente
55,1%a 62,5 dos votos 2 (dois) titulares
45,0%a 55,0% dos votos 1 (um) titular e 1 (um) suplente
37,6%a 44,9% dos votos 2 (dois) suplentes
25,0%a 37,5% dos votos 1(um) suplente
24,9% ou menos votos Não elege titular ou suplente

Fonte: REGIMENTO INTERNO DO COP DE UBERLÂNDIA (2004)9

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 281


A aplicação do critério de proporcionalidade é COMFORÇA1 encaminhou para a Câmara
simples: quanto mais votos a chapa conseguir na Municipal um relatório 11
sugerindo a retirada de
plenária, mais representantes terá direito na diversas emendas com as justificações para tal
composição da nova chapa. Percebemos então, que retirada.
neste caso, não há vencedores ou derrotados: há uma No ano de 2002, além das plenárias do OP, o COP
composição de mais de uma chapa regional para que teve como tarefa principal a consolidação das
toda a diversidade presente naquele momento esteja COMFORÇA, que de acordo com o regimento interno
contemplada no Conselho do Orçamento do COP, têm o papel de acompanhar o andamento
Participativo. das obras e serviços do OP em cada região. A idéia de
Internamente, o COP se organiza da seguinte se formar as COMFORÇA partiu da experiência
maneira: Coordenação Executiva, Fórum de exitosa do Município de Belo Horizonte (MG) que
Delegados, Secretaria Executiva do Conselho, idealizou a existência e funcionamento das
COMFORÇA (Comissão de Fiscalização do COMFORÇA em sua metodologia de OP.
Orçamento). As atividades das COMFORÇA eram, sobretudo
No ano de 2001, o COP teve como uma de suas ligadas ao dia a dia da esfera governamental.
tarefas intervir no Plano Plurianual (PPA) e na Lei Inicialmente existiram, por parte de alguns setores
Orçamentária Anual (LOA). Tal momento foi de governamentais, certas resistências ao reunirem-
grande valia e aprendizado tanto para o Governo se com os membros da comunidade, o que permitiu
quanto para o Conselho uma vez que até aquele ao Conselho atuar tanto na fiscalização quanto no
momento, não se tinha registro em Uberlândia de esclarecimento de suas funções para alguns setores
um processo de construção pública envolvendo um governamentais. Mas ainda assim, percebemos que
Conselho popular na intervenção direta no processo tanto o volume quanto o conteúdo das discussões
orçamentário municipal (PPA, LDO e LOA). presentes no interior das COMFORÇA puderam criar
Para as definições de prioridades dentro do OP de no Governo uma abertura para a fiscalização de
Uberlândia foi levado em consideração a discussão obras e serviços.
ampla das necessidades regionais e a capacidade Em relação à votação do Orçamento na Câmara,
financeira do Município. Dessa forma, após as os vereadores, já precavidos não responderam aos
plenárias do OP, o COP pode elaborar uma proposta inúmeros ofícios encaminhados pelo COP solicitando
de intervenção no PPA 2002-2005, de forma cópias das emendas orçamentárias. Tal ato confirma
democrática e transparente. toda a aversão à participação popular no Orçamento
Após a entrega do PPA na Câmara, o COP passou Público presente na Câmara Municipal de
a elaborar propostas e consolidar uma agenda de Uberlândia na legislatura 2001-2004.
negociação com o Governo para a inclusão de Em 2003, o COP, apresentou uma oficina no III
prioridades no projeto de Lei Orçamentária Anual Fórum Social Mundial, em Porto Alegre (RS), onde
encaminhado para a Câmara de Vereadores. O discutiu sua experiência e compartilhou-a com
processo de negociação foi marcado por diversas diversos Municípios praticantes do OP no Brasil e no
discussões entre o COP e Secretários Municipais no Mundo.
intuito de contemplar o maior número de As plenárias do OP ocorreram com uma redução
prioridades populares. Após a negociação, o COP de participação. Isso fez com que após o ciclo do ano
passou a focar suas ações no processo de tramitação de 2003 a metodologia para o ano de 2004 fosse
da LOA na Câmara Municipal. modificada para facilitar o trabalho do COP
Esse processo foi extremamente tenso. Após conforme dito anteriormente.
analisar as proposições de emendas dos vereadores Também no ano de 2003 foi introduzido no
para a LOA 2002, a COMFORÇA 1 10
avaliou que segundo semestre a realização do curso Prefeito por
diversas emendas inviabilizavam a execução um dia (elaborado pelo IBASE 12) para conselheiros,
orçamentária do ano de 2002 e muitas delas delegados do OP, lideranças comunitárias. No total,
inclusive não respeitavam as determinações da participaram do curso cerca de 200 pessoas de todas
Constituição Federal de 1988. Dessa maneira, a as regiões do OP.

282 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


As atividades de 2004 contaram com diversas Câmara executaria 5,75% do Orçamento Público.
novidades para o Conselho do Orçamento Além disso, muitas entidades “escolhidas” pelos
Participativo: elaboração de propostas para a LDO vereadores representavam parcela significativa de
de 2005, novo formato das plenárias do OP, redutos eleitorais de diversas nuances: associações
participação no I Fórum Social do Triângulo de moradores de bairro, liga de futsal, liga de truco,
Mineiro (FSTM), proposição de uma liga de Karatê, clube dos passarinheiros, escolas
representação no Ministério Público contra a privadas, clubes privados, etc.
reserva orçamentária praticada pela Câmara A Justiça por sua vez se manifestou
Municipal. Além disso, as atividades anteriores do favoravelmente ao manifesto encabeçado pelo COP
Conselho (elaboração de propostas para a LOA, suspendendo a transferência de recursos
fiscalização de obras e serviços) continuaram orçamentários para todas as entidades. O fato
normalmente. repercutiu tanto na imprensa local quanto na
No que se refere à LDO 2005 o COP elaborou pela imprensa nacional 13 . Os vereadores, em uma
primeira vez desde 2001 uma proposta de tentativa desesperada, transferiram a
intervenção baseada em discussões que visavam a responsabilidade pela suspensão da transferência dos
inclusão de diretrizes orçamentárias ainda não recursos públicos para as entidades escolhidas ao
contempladas nos anos anteriores. COP, mesmo após a manifestação da Justiça.
Em relação à nova metodologia, o novo ciclo do O episódio acima descrito demonstrou mais uma
OP contou com a realização de plenárias unificadas vez a relação clientelística praticada pela Câmara
em vez de plenárias informativas e deliberativas. Municipal de Uberlândia em relação às suas bases:
Também foi incluída a realização de reuniões utilização de recursos públicos para obtenção de
preparatórias que antecediam as plenárias dividendos eleitorais. Ao comparar a “lista” de
unificadas para a devida explicação da nova entidades selecionadas, o COP percebeu que a grande
metodologia e mobilização social de todo o Município. maioria era presidida por assessores (as) dos
A participação do COP no I FSTM precedeu de vereadores, prova cabal do clientelismo descrito.
uma mobilização interna que visava dois objetivos Fica claro que a relação entre COP e Câmara
quais sejam, a realização de uma oficina sobre o OP sempre foi conflituosa. Não houve por parte da
de Uberlândia e a articulação dos participantes do I maioria dos vereadores na legislatura de 2001 a
FSTM para a assinatura de uma representação que 2004, a compreensão de que o orçamento público
foi encaminhada ao Ministério Público contra a não é somente um instrumento para “uso” exclusivo
reserva orçamentária praticada pela Câmara de dos técnicos da Prefeitura e dos vereadores e sim de
Vereadores. toda a Sociedade, que é quem contribui para a
De forma mais explicativa, a Câmara Municipal formação do orçamento.
de Uberlândia por meio de uma emenda
inconstitucional às LDO dos anos de 2003 e 2004
reservou uma parcela de 0,75% do orçamento 2.3) Conquistas populares nos anos de
público para a distribuição entre entidades sociais 2001 a 2004
de acordo com critérios particularistas. Isso
significava que a Câmara Municipal poderia As conquistas populares no OP de Uberlândia não
distribuir entre as entidades escolhidas cerca de R$ ficaram somente nas questões materiais. A maior
1,5 milhão sem nenhum tipo de análise dos Conselhos conquista e não menos momentosa foi a criação de
Setoriais envolvidos ou até mesmo da Sociedade uma instância pública não estatal de discussão
como um todo. ampla e irrestrita do orçamento público. Nunca se
A argumentação básica do COP na representação discutiu tanto o orçamento público em Uberlândia
fundamentou-se no fato de que a Câmara Municipal antes da criação do orçamento participativo e
já executava a parcela máxima do orçamento também nunca houve tantas lideranças
público prevista na Constituição Federal de 1988 comunitárias envolvidas na discussão
(5% das receitas, no caso de Uberlândia). Logo a orçamentária municipal.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 283


Quadro 1 -Obras e Serviços Deliberados (e contemplados) pela população nas Plenárias do OP 2001 -2004 Uberlândia
(MG)

284
34 Equipes do Programa Saúde da Família Educação Popular (apoio aos cursinhos pré-vestibulares e participantes
alfabetização de jovens e adultos);
do

Construção de duas escolas municipais nos Bairros Seringueiras e Minas Gerais Reforma e ampliação de 30 escolas Municipais.
Construção de duas Unidades de Atendimento Intensivo (UAI)
nos bairros Martins e Morumbi Programa de Educação de Combate ao Racismo;
OP,

Construção do viaduto do Bairro Taiaman Construção da Casa Abrigo Travessia de Uberlândia com participação
decisiva do SOS Ação Mulher Família
Construção da Praça Sinfonia e Urias Batista; Implantação da Escola Municipal de Dança
mais

Instituição do Banco do Povo, com assinatura de 821 contratos Reforma do Teatro Rondon Pacheco
Construção de 2030 metros lineares da galeria da Av. Minervina Cândida Oliveira Descentralização da Cultura com a realização do
Palco Móvel em todos os bairros de Uberlândia
Realização de pavimentação asfáltica da ligação dos Bairros Canaã/Morada Nova, Recuperação do trevo de acesso e entrada do Distrito de Tapuirama
Chácaras Panorama e do Bairro Santo Antônio;
Criação da Ouvidoria da Saúde Restauração da Igreja do Distrito de Miraporanga
notadamente

Construção e instalação de seis Postos Integrados de Segurança e Cidadania Recuperação de 6.000 km de estradas vicinais nos Distritos (Martinésia,
Criação e implantação do Programa Renda Cidadã que repassa Cruzeiro dos Peixotos, Tapuirama e Miraporanga)
qualitativo no que se refere às suas intervenções
conselheiros e delegados, tiveram um crescimento
os
passa sem sombra de dúvida, pela experiência do
orçamento participativo. Podemos perceber que os
A construção da cidadania ativa em Uberlândia,

mensalmente para 3700 famílias R$ 50,00


Implantação do Programa Casa Fácil atendendo 4270 famílias Loteamento para 127 famílias em Tapuirama
Qualificação de cerca de 8 mil funcionáriaos em cursos relacionados às
atividades profissionais nos últimos três anos e meio Projetos de recreação com cinema em todos os distritos
Construção do ginásio Poliesportivo no Bairro Roosevelt Abertura da Alameda Uberaba com drenagem e pavimentação
Construção do Campus Municipal de Educação Especial Drenagem pluvial dos bairros Aeroporto, Aclimação;
Jd. Ipanema e na R. República do Piratini
Implantação do PST (Programa de Saúde do Trabalhador) Construção da rotatória do Posto da Matinha, ligando
os bairros Tibery e Custódio Pereira.
Implantação de hortas comunitárias Pavimentação ligando a Rodovia Dona Neusa Rezende às Chácaras Valparaíso
que o OP proporciona.

Apoio ao cooperativismo Construção da Rotatória de acesso às Mansões Aeroporto


Drenagem e pavimentação de todo o bairro Santo Antônio Abertura das Ruas Rio Grande do Norte e Piauí ligando os bairros
Nossa Senhora das Graças e Marta Helena
7 Km de pavimentação da linha de ônibus do Shopping Park Construção da Rotatória na Av. Getúlio Vargas, entre os
bairros Jardim. das Palmeiras e Santo Inácio
OP de Uberlândia –2001-2004:

Iluminação da Av. Solidariedade nos bairros São. Francisco e Joana D’arc Urbanização no bairro Minas Gerais
Urbanização do Parque Santa Luzia Iluminação da Av. Solidariedade nos bairros São .Francisco e Joana D’arc
Acesso a ônibus no Bairro Esperança Urbanização de 1385 lotes nos bairros São Francisco e Joana D´arc

Fonte: Secretaria Municipal de Planejamento Participativo


públicas, fruto do acúmulo do processo pedagógico

logo abaixo, quais foram as conquistas populares do


Do ponto de vista material podemos demonstrar

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


3) OP 2005-2008: orçamento público se cidadãos uberlandenses que acreditam no controle
faz com o povo! social do orçamento via participação direta.
Assim, no dia 10 de dezembro de 2004 foi criado
O ano de 2005 começou com a mudança de o FPOP, que terá a função de coordenar (juntamente
Governo. Após vencer as eleições de 2004, o Prefeito com o COP) as plenárias públicas do OP nos anos de
eleito Odelmo Leão Carneiro (PP), montou sua equipe 2005 a 2008. Os princípios do FPOP são
sob a perspectiva da realização de um “choque de transparência, participação popular,
gestão” composto pela redução da máquina solidariedade e inversão de prioridades
administrativa em todos os níveis por meio de uma sociais. A adesão ao FPOP é voluntária bastando
lei delegada aprovada pela Câmara Municipal. apenas que o cidadão ou cidadã assine a carta de
No tocante ao OP, o governo Odelmo extinguiu a adesão do FPOP.
Secretaria Municipal de Planejamento Participativo É importante destacar que o financiamento do
e conseqüentemente o OP enquanto proposição FPOP será realizado pela solidariedade de seus
governamental 14. Ao perceber isso ainda no ano de membros que buscarão os recursos necessários entre
2004, a Coordenação do Conselho do Orçamento todos os participantes para custear as despesas de
Participativo, encaminhou uma proposta para todo todo o ciclo do OP.
o Conselho de criação do Fórum Permanente do Esquematicamente podemos ver através da
Orçamento Participativo de Uberlândia figura que se segue, o formato do Fórum Permanente
(FPOP). Baseado na experiência do Município do Rio do OP de Uberlândia:
de Janeiro, o FPOP é composto por entidades e

Figura 4 - Composição e atribuições iniciais do FPOP

Fórum Permante do Orçamento Participativo

Entidades Sociais Coordenação Executiva


COP, ASUS, CEC, Sindieletro, cidadãos, etc Provisória

Articulação de entidades Responsável pela viabilização


e pessoas para a de recursos financeiros e
participação nas Plenárias humanos para a realização do ciclo
do OP 2005-2008 do OP 2005-2008

Responsável juntamente com o COP


de propor estratégias de intervenção
do FPOP na sociedade para a melhor
fiscalização do Orçamento Público

Elaboração: Marcílio M. Ferrari (2005)

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 285


Inicialmente sediado na ONG Ação da Cidadania, Poder Legislativo o FPOP e o COP propuseram uma
o FPOP realizou no início de Janeiro de 2005 diversas emenda coletiva para os vereadores na qual previa
atividades tais como: Análise de Conjuntura, para a elaboração da Lei Orçamentária do ano de
construção do Planejamento Estratégico Situacional. 2006 a participação popular enquanto diretriz. De
Tais atividades foram de grande valia para a 20 vereadores apenas 6 votaram favoráveis à
continuidade do OP em nosso Município. emenda 16
Após o Planejamento Estratégico Situacional, Tanto para o Plano Plurianual quanto para a Lei
algumas atividades foram concluídas tais como: Orçamentária Anual, o FPOP e o COP elaborarão
obtenção de uma sede permanente 15, construção de propostas populares de intervenção pública e
apoios no Poder Legislativo, articulação nacional e negociarão tanto com o Poder Executivo quanto com
internacional do FPOP, comunicação ao Poder o Legislativo.
Executivo da existência do FPOP, comunicação ao Essa nova fase do OP de Uberlândia consolida-se
Ministério Público da continuidade do OP, como uma das poucas no Brasil onde a população
articulação com entidades sociais e movimentos organizada, após a extinção do OP enquanto proposta
populares. de Governo
O ciclo do OP de Uberlândia continua de forma Após quatro anos de OP, Uberlândia não pode se
unificada como no ano de 2004. O FPOP, juntamente abdicar das conquistas populares oriundas desse
com o COP, propuseram para o Poder Executivo processo e nem mesmo se curvar ao um modelo de
intervenção popular no projeto de Lei de Diretrizes Governo que não privilegia e nem mesmo menciona
Orçamentárias, mas a resposta foi negativa. No a participação popular nas decisões.

Notas
1
Democracia Participativa pode ser entendida como o compartilhamento das Combate à Violência; Organização do Espaço Municipal; Desenvolvimento
ações dos governantes com a Sociedade sem, em hipótese alguma, sobrepor às Local e Distribuição de Renda; Cultura e Comunicação Social; Qualidade no
atribuições da Democracia Representativa. Serviço Público Municipal.
2
FERRARI, Marcílio M. O orçamento participativo como contraponto aos 8
A partir de 2004 a eleição dos conselheiros do OP ocorreu nas plenárias
modelos tradicionais de orçamento público. Monografia. IE/UFU, Uberlândia, unificadas.
2005; 182p. 9
Regimento Interno do Conselho do Orçamento Participativo, 2004
3
JESUS, Wilma F. Poder Público e Movimentos Sociais: aproximações e distanciamentos . 10
Comissão de Fiscalização do Orçamento com atribuição específica de
Uberlândia 1982-2000. Universidade Federal de Uberlândia. Instituto de História, acompanhar a tramitação da LOA na Câmara. A partir de 2002, a COMFORÇA
2002.157 p. (Dissertação, Mestrado) 1 passou a ser chamada de COMFORÇA Câmara.
4
Após a posse do novo Prefeito de Uberlândia, Odelmo Leão Carneiro (PP) no 12
Instituto Brasileiro de Análises Sócio Econômicas. O Curso Prefeito Por Um
ano de 2005, a SMPP foi extinta. dia é de livre acesso podendo se adquirido pelo sítio virtual www.ibase.org.br
5
O Fórum Governamental foi proposto no início do Governo Zaire Rezende 13
A divulgação do escândalo foi tamanha que a reportagem foi pauta de abertura
(2001-2004) sendo composto por Secretários, assessores, diretores dos órgãos do Jornal Nacional, da Rede Globo.
da Administração Indireta e o Prefeito. 14
Mesmo extinguindo a SMPP, o Governo Odelmo Leão Carneiro não extinguiu
6
Os distritos rurais são: Martinésia, Miraporanga, Cruzeiro dos Peixotos e os cargos cujas funções eram ligadas ao OP, o que demonstra a prática de
Tapuirama. acomodação política presente em seu Governo.
7
Entre 2001 e 2002 as plenárias temáticas foram: Saúde e Assistência Social; Cultura 15
O FPOP após negociações conseguiu o apoio primordial da UNIMINAS para
e Comunicação Social; Segurança Pública, Justiça e Cidadania; Circulação e sediar suas atividades.
Transporte; Reforma do Estado Local; Desenvolvimento Econômico, Geração 16
Vereadores: Fernando Rezende (sem partido), Aniceto Ferreira (PT), Elismar
de Emprego e Tributação. A partir de 2003 as Plenárias Temáticas foram: Prado (PT), Wilson Pinheiro (PPS), Jerônima Carlesso (PSDB), Felipe Atiê (PFL).
Educação, Esporte e Lazer; Saúde e Assistência Social; Direitos Humanos e

286 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


A Televisão em Uberlândia, 1964 - 1984: a atuação do
público na consolidação de um processo

Gilmar Alexandre da Silva

Graduando em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Estagiário do Museu do Índio da UFU, 2003/2005

Resumo Abstract
O texto discute a história da televisão em The text presents a discussion on the history of
Uberlândia a partir das primeiras transmissões Television in Uberlândia since the first
televisivas em 1961. Esta nova forma de transmissions in 1961. This new kind of
comunicação ocupa os espaços do rádio, dos communication occupies the spaces of the radio
jornais, desde então, e vai aos poucos se and newspapers, ever since, and little by little if
interagindo com a população da cidade. É um interacts with people. It is a moment of deep
momento de profundas transformações político- political-social transformations in Brazil and
sociais no Brasil e a televisão em Uberlândia insere Television inserts the city in the national context.
a cidade no contexto nacional. Keywords: Telelvision, communication, history
Palavras-Chave: Televisão, Meios de
Comunicação de Massa, História de Uberlândia

Datam do mês de março de 1961 as primeiras imediatamente após a instalação dos primeiros
transmissões televisivas em Uberlândia. Desde esse aparelhos de TV nos lares uberlandenses já denotava
ano, o assunto televisão já ocupava espaço nos jornais um movimento por parte das pessoas em direção ao
uberlandenses. Com uma incipiente urbanização, a meio de comunicação analisado.
cidade vai lentamente adaptando-se às Na medida em que se tornava mais popular, a
transformações engendradas pelos governantes televisão aumentava a concorrência ao rádio,
locais para inserirem a cidade no processo “roubando-lhe” público e seus primeiros
desenvolvimentista do país, que englobava desde a profissionais. A importância da opinião do público
esfera federal às esferas estaduais e municipais. telespectador traz à tona a intenção dos indivíduos
Sendo uma cidade localizada na área central do em externar os seus desejos frente aos interesses da
Brasil, Uberlândia procurou adaptar-se à realidade Indústria Cultural. A partir das radionovelas, o gosto
econômica, política e cultural do período, sendo a do público passa a ser objetivado pelos produtores
televisão o principal, ou mais expressivo, veículo da destes programas, como demonstra Sérgio Caparelli:
Indústria Cultural 1 Cartas em que os ouvintes expressam aprovação ou
A TV Triângulo implantada em Uberlândia em protesto são estudadas cuidadosamente. Pesquisas
1964, sendo a primeira emissora de televisão da por telefone determinam o tamanho aproximado da
cidade surge para atender, num primeiro momento, audiência de cada capítulo. Com base nesses dados e
ao interesse da burguesia local, uma vez que a com muito talento para captar o que agrada, são
aquisição dos aparelhos de TV era restrita a uma estruturados os enredos, os personagens e as tomadas
pequena parcela da comunidade uberlandense. de cena de cada capítulo3
Todavia, esse quadro iria mudar brevemente. O Com efeito, os produtores de TV percebem uma
próprio surgimento dos “televizinhos” 2 certa “movimentação” por parte dos telespectadores

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 287


frente à programação exibida. Neste sentido, os forma com que os indivíduos uberlandeses
índices de audiência tornaram-se uma referência reprocessaram essas informações é que, em última
para as emissoras de televisão, ensejando um ritmo instância, deve servir como referência para a
diferente à confecção dos programas e fazendo dos compreensão dos reais interesses desse mesmo
telespectadores sujeitos ativos nesse processo. Ana público. Neste sentido, a assertiva de Artur da
Carolina R. P. Temer observa que, nos anos 70 na Távola de que é necessário haver uma íntima conexão
Globo a ousadia da emissora avança e recua de acordo entre o que está latente ou patente no público sob forma
com os números do IBOPE. 4 , denotando a de vontade / necessidade e o que lhe proponha o meio
importância do telespectador diante do processo de comunicação para dar-se um fenômeno de empatia
comunicativo. É neste instante que podemos lançar necessário ao êxito de qualquer comunicação 9 ,
mão das concepções de Jesus Martin – Barbero para engendra a possibilidade de ratificarmos a conexão
tentar compreender esse processo, pois, segundo o existente entre meios de comunicação e público.
referido autor, deve-se entender a recepção não como Nesta mesma linha de raciocínio, John Fiske entende
uma etapa do processo de comunicação, mas como que o público não pode ser entendido como uma
um lugar novo, a cultura, em que o sujeito é o ator massa totalmente manipulada, desprovida de
social, produtor de sentidos. Para além dessa sentido. Através do prazer vivenciado no “progresso
afirmação, Martin - Barbero afirma que são da massa semiótico”, os espectadores da televisão poderiam
o sistema educativo, as formas de representação e opor uma “resistência” às “forças homogeneizantes”
participação política, a organização das práticas ou uma recusa do “controle ideológico”10.
religiosas, os modelos de consumo e os de uso do Com a introdução das telenovelas, a televisão
espaço. Assim, pensar o popular a partir do massivo ganha uma nova dinâmica, onde a ficção e os
não significa, ao menos não automaticamente, anunciantes estarão lado a lado na difusão dos seus
alienação e manipulação, e sim novas condições de produtos 11. Em Uberlândia, a partir de 23/04/1970,
existência e luta, um novo modo de funcionamento da a programação da TV Triângulo começou a ser
hegemonia5. divulgada no jornal Correio de Uberlândia
Em princípio, o funcionamento da TV em diariamente. Com o advento da Copa do Mundo de
Uberlândia dava-se apenas no horário das 18:00 às 1970, realizada no México, algumas colunas do
22:00 horas. Este curto espaço de tempo sofreu logo referido jornal passam a destacar a importância da
uma transformação, pois se fazia necessária uma televisão, neste caso da TV Triângulo, para que os
programação que estivesse voltada para todos os torcedores pudessem acompanhar os jogos da seleção
períodos do dia, a saber, manhã, tarde e noite. A brasileira. Com o apoio da Embratel, a TV Triângulo
partir de fevereiro de 1964, os anúncios referentes compromete-se a transmitir os jogos para
à compra de televisores tornam-se quase que diários Uberlândia e região12. Depois de realizado o Mundial
no jornal Correio de Uberlândia6. O assunto televisão de Futebol, o assunto continua a fazer-se presente
começava a permear a vida social da cidade, sendo nas páginas do jornal Correio de Uberlândia,
notícia um documentário realizado pela TV Record trazendo à tona a competência nas transmissões
de São Paulo, onde o objeto deste era a cidade de realizadas pela TV Triângulo e a satisfação do público
Uberlândia .
7
com as mesmas: A emissora local de televisão, TV
Em março de 1964 8, a TV Triângulo exibe pela Triângulo, canal 8, sem fazer alarde, foi a verdadeira
primeira vez uma programação voltada para a grande campeã regional trazendo para todo o Brasil
cidade, com mais de duas horas de duração, pautada Central a imagem perfeita de tôda a Copa do Mundo
pela utilização de elementos locais. A preocupação diretamente do México, Via Embratel, cujo trabalho
em explicitar as características do município em repercutiu de maneira extraordinária, o que podem
programas de televisão encontra respaldo na provar as centenas de mensagens vindas de todos os
construção de um imaginário em torno da cidade de pontos alcançados pela imagem e pelo som de nossa
Uberlândia, progressista e ordeira, e também na emissora 13.
necessidade de se passar ao público uma imagem É na década de 1970, que a TV Triângulo se filiará
vinculada aos ditames do progresso. Todavia, a à Rede Globo de Televisão. Na região do Triângulo

288 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Mineiro o Canal 05 de Uberaba, retransmissor do interior brasileiro a ter mais de um canal de televisão
sinal da Rede Tupy de Televisão, expande as suas próprio16. Esta afirmação pode ser confirmada, pelo
transmissões, chegando à cidade de São Simão-GO 14
menos no que concerne ao Estado de Minas Gerais,
Com o decreto presidencial 15
autorizando a através do levantamento feito por Sérgio Caparelli17,
instalação de uma nova emissora de TV em em 1982, onde temos o seguinte quadro relativo à
Uberlândia, a cidade passa a ser a única cidade do distribuição de emissoras:

TV - Afiliada Cidade Emissora de Controle


¾ TV Globo Belo Horizonte Rede Globo
¾ TV Alterosa Belo Horizonte Sistema Brasileiro de Televisão (SBT)
¾ TV Bandeirantes Belo Horizonte Rede Bandeirantes
¾ TV Manchete Belo Horizonte Rede Bloch
¾ TV Triângulo Uberlândia Rede Globo
¾ TV Paranaíba Uberlândia Rede Bandeirantes
¾ TV Industrial Juiz de Fora Rede Globo
¾ TV Uberaba Uberaba Sistema Brasileiro de Televisão (SBT)
¾ TV M. Claros Montes Claros Rede Bandeirantes

Em Uberlândia, com a transformação do Cine público é uma diversidade de alto dinamismo e


Uberlândia em um Centro Comercial 18
no ano de resistência. Daí decorre a não onipotência dos meios
1975, o público passa a ter uma opção a menos de de comunicação. 22 . Diante desses aspectos, a
entretenimento. Nesse ínterim, o fortalecimento das consolidação da TV em Uberlândia através da TV
redes de televisão despertarão cada vez mais o Triângulo e, posteriormente da TV Paranaíba, não
interesse desse público. As emissoras passarão a tardou a ocorrer. Esse fato dar-se-á a partir do final
investir em anúncios específicos nos jornais para da década de 1970 e o início dos anos de 1980.
determinados tipos de programas a serem exibidos, O início das atividades da TV Paranaíba
aumentando a disputa pelo “gosto” do ocorreram em janeiro de 1978. Retransmitindo a
telespectador 19 . Em sua seção “ A vida é assim programação da Rede Bandeirantes de São Paulo, A
mesmo”, o jornalista Luiz Fernando Quirino abre TV Paranaíba disputaria com a TV Triângulo a
espaço para analisar questões relativas aos atenção, as vontades, os desejos dos telespectadores
programas de TV e ao crescimento de Uberlândia . 20
e as fatias comerciais dos anunciantes. Estas duas
Esse crescimento pode ser exemplificado pela emissoras compravam espaços no jornal Correio de
chegada de uma fábrica da Coca-Cola à cidade, Uberlândia para divulgarem as suas respectivas
evento ocorrido em março de 1976, que contou com programações. As sinopses das novelas da TV
a presença do então governador mineiro Rondon Paranaíba são publicadas com freqüência e a
Pacheco 21. Neste contexto, a “guerra” pela audiência presença de atores “globais” 23 anunciando produtos
entre a TV Triângulo e a TV Uberaba se acirra, sendo diversos fazem-se constantes no referido jornal.
feitas críticas nos jornais de ambas as cidades no A partir de 1981, o Sistema Brasileiro de
tocante à má qualidade do sinal veiculado pelas Televisão, SBT, inicia as suas transmissões em nível
respectivas emissoras. Esse aspecto reforça a nacional, ampliando as opções dos telespectadores.
exigência do público telespectador de ambas as Em 1983, somente a TV Paranaíba comprava
cidades, não apenas por uma programação de espaços para divulgar a sua programação no jornal
qualidade mas, também, pela forma com que as Correio de Uberlândia e é neste mesmo ano que a
transmissões estavam chegando aos lares. Para Rede Manchete inicia as suas transmissões no Rio de
Artur da Távola, o público, real e potencialmente não Janeiro para, alguns anos depois, estender-se para
é uma unidade amorfa e passiva. Possui boa parte do território brasileiro, incluindo Minas
características da passividade e amorfia, porém o Gerais.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 289


Os atores de televisão, especialmente das frente àquela nova “mídia”. Não obstante a sua
novelas , ganham um destaque outrora desconhe-
24
potencialidade, teve essa “Indústria” que se adaptar
cido. A morte do ator Jardel Filho em 1983, durante diante das expectativas das pessoas, entender os seus
as gravações da novela da Rede Globo “ Sol de Verão”, interesses e procurar satisfazê-los de maneiras
torna-se motivo para maiores espaços nos jornais, variadas. No entendimento de Edgar Morin, a
demonstrando uma relação que passara a ser mais cultura de massa é, portanto, o produto de uma
íntima entre o público e o artista de TV, como o dialética produção-consumo, no centro de uma
demonstra o início deste artigo de Pedro Autran dialética global que é a da sociedade em sua
Ribeiro: Outro choque. E dos mais fortes. Quem poderia totalidade26.
imaginar que Heitor, aquele vulcão de energia da novela Portanto, o papel do público nesse processo está
das oito, poderia morrer assim tão de repente, deixando mais do que evidente. A sua participação é tanto
milhões de telespectadores atônitos25. necessária quanto fundamental. A massa é matriz
A partir de 1984, as programações das emissoras de onde emana, no momento atual, todo um conjunto
de televisão são colocadas em páginas específicas do de atitudes novas com relação à arte. A quantidade
jornal Correio de Uberlândia, paralelamente aos tornou-se qualidade. O crescimento maciço do número
comentários sobre as personalidades da sociedade de participantes transformou o seu modo de
uberlandense e brasileira e a quadros sobre participação27.
determinados assuntos do cotidianos dos leitores, Ao que tudo indica, a afirmação de Benjamin
como a programação dos cinemas da cidade e a parece encontrar respaldo no processo analisado.
divulgação do “Horóscopo” do dia. Todavia, a relação meios de comunicação / público
A Televisão em Uberlândia passou a fazer parte ainda carece de muitas pesquisas e de maiores
da História da cidade. As pessoas começaram a discussões. Em última análise, podemos perceber a
incorporar em seu cotidiano os elementos relativos complexidade que permeia as discussões relativas
às novelas, aos noticiários, à programação esportiva, aos meios de comunicação, mas não podemos negar,
etc.. O público passou a reelaborar os conceitos entretanto, o caráter interativo e decisivo
transmitidos através da Televisão, tornando desempenhado pelo público nesta intrincada rede
dinâmica a relação público/meios de comunicação. de possibilidades. Reduzir essa dinâmica ao
A “Indústria Cultural”, através de um dos seus maniqueísmo “lado bom” ou “lado mal” de ambos os
meios, a televisão, não tornou-se um espaço agentes desse mecanismo é não enxergar as
monolítico no que concerne aos anseios dos indivíduos vicissitudes da referida relação.

Notas
1
RAMOS, José M. Ortiz. Televisão, publicidade e cultura de 9
TÁVOLA, Artur da. A liberdade do ver: televisão em leitura
massa. Rio de Janeiro / Petrópolis: Vozes 1995. p-45. crítica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p-83.
2
O termo “televizinho” explicita a situação em que um morador 10
FISKE, John. Television Culture. Londres / Nova Iorque: Methuem,
da época que não possuía um aparelho de TV deslocava-se até a 1987. In: RAMOS, José M. Ortiz. Televisão, publicidade e cultura
casa de seu vizinho, sendo este último proprietário do aparelho, de massa. Rio de Janeiro / Petrópolis: Vozes, 1995. p-171.
para fruir do entretenimento proporcionado pela televisão. 11
RAMOS, José M. Ortiz. Televisão, publicidade e cultura de
Esta afirmação pode ser verificada em TEMER, Ana Carolina R. massa. Rio de Janeiro / Petrópolis: Vozes 1995. p-45.
P.. Colhendo notícias, plantando imagens: a reconstrução da 12
“Feira Livre.” Jornal Correio de Uberlândia, 22/05/1970. p-03.
história da TV Triângulo a partir da memória dos agentes do 13
“TV Triângulo - Canal 8: o grande campeão regional: transmissões
seu telejornalismo. Dissertação ( Mestrado em História ), da Copa do Mundo.” Jornal Correio de Uberlândia, 23/06/1970.
Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, p-01.
1998. p-12. 14
“Canal 5 de Uberaba já está em São Simão.” Jornal Correio de
3
CAPARELLI, Sérgio. Televisão e capitalismo no Brasil. Porto Uberlândia, 31/01/1975. p-06.
Alegre: L&M, 1982. p-135. 15
“Decreto Presidencial autoriza novo Canal de TV para
4
TEMER, Ana Carolina R.P. Op. cit. p-48 Uberlândia.” Jornal Correio de Uberlândia, 06/02/1975. p-01.
5
MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: 16
“Saberemos honrar o mandato que recebemos através da concessão
comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. do Canal 10.” Jornal Correio de Uberlândia, 12/03/1975. p-01.
p-310. 17
CAPARELLI, Sérgio. Op. Cit. p. 97-98.
6
Jornal Correio de Uberlândia, 01/02/1964. p-01. 18
“Cine Uberlândia será transformado em Centro Comercial.”
7
Jornal Correio de Uberlândia, 24-25/05/1964. p-01. Jornal Correio de Uberlândia, 06/05/1975. p-01.
8
TV mostrou progrmação Avant - Premiere.” Jornal Correio de 19
“A Rede Tupi de Televisão comprou um homem de seis milhões
Uberlândia, 02-03/07/1964. p-01. de dólares.” Jornal Correio de Uberlândia, 18-19/10/1975. p-01.

290 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


20
“Uma TV para você.” Jornal Correio de Uberlândia, 29/08/1975. Ciro Marcondes. Quem manipula quem ? Poder e massas na
p-08. indústria da cultura e da comunicação no Brasil. Rio de Janeiro
21
“Refrescos Ipiranga S/A inaugura hoje a fábrica da Coca - Cola / Petrópolis: Vozes 1986. p-80.
no Triângulo Mineiro.” Jornal Correio de Uberlândia, 12/03/ 25
“Jardel Filho: a morte de um grande ator.” Jornal Correio de
1976. p-01, 2º Caderno. Uberlândia, 25/02/1983. p-09.(O Heitor citado na passagem, diz
22
TÁVOLA, Artur da. Op. Cit. p-44. respeito ao personagem interpretado por Jardel na novela).
23
“O ator Tony Ramos em um anúncio da Chevrolet.” Jornal Correio 26
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX (O Espírito do
de Uberlândia, 20-21/06/1981. p-01. Tempo). 2ª Edição. Tradução: Maura Ribeiro Sardinha. Rio de
24
“A receptividade maior ou menor da telenovela depende, Janeiro/São Paulo: Forense 1969. p-49.
evidentemente, de sua estrutura e da sua capacidade de mexer 27
BENJAMIN, Walter. Textos escolhidos. Coleção Os pensadores.
com os sentimentos e as expectativas (melhor: necessidades) dos Tradução de José Lino Grünnewlad. São Paulo: Abril Cultural,
receptores (isto é, da sua qualidade técnica e temática). FILHO, 1975. p-31.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 291


História e Loucura: práticas e terapêuticas do sanatório
espírita de Uberlândia (1940 –1970) *

Riciele Majorí Reis Pombo

Mestranda em História pelo Programa de Pós Graduação em História,


da Linha História e Cultura, da Universidade Federal de Uberlândia

Resumo Abstract
A loucura sempre permeou o imaginário, sendo Madness always permeated the imaginary, being
apreendida de formas diversas ao longo de vários apprehended in several ways along various
períodos históricos. Contudo, a sua presença historical periods. However, its presence always
sempre causou uma certa estranheza. O asilo, caused certain strangeness. The asylum,
implantado a partir das últimas décadas do século implanted in the last decades of the 19 th century
XIX no Brasil, é o ambiente de enclausuramento in Brazil, is the atmosphere of madness cloister,
da loucura, transformando-se também no espaço also becoming the doctor’s space which is
do médico, apropriado pela medicina que toma a appropriate for medical practices, as insanity
insanidade objeto de conhecimento. Neste becomes a knowledge object. In this context,
contexto, o internamento vai ser utlizado como internment will be used as therapeutics and
terapêutica e a loucura começa a ser definida madness begins to be defined as a disease. That
como doença, havendo a partir daí a constituição constitutes the beginning of the psychiatric
do saber psiquiátrico e de suas diversas práticas. knowledge and its several practices.
Palavras-Chave: Loucura, Imaginário, Asilo, Keywords: Madness, Imaginary, Asylum, Disease
Doença

Para abordarmos a temática da loucura são imensa tarefa moral que deve ser realizada no asilo
pertinentes os estudos de Michel Foucault, que e que é a única que pode assegurar a cura do
apresentam a importância da medicina social na insensato. 2

constituição do saber a respeito da loucura sobre


aqueles indivíduos considerados “diferentes”, Pode-se notar que higienização da sociedade não
proporcionando à elite dominante métodos de vai eleger apenas o louco como inapto, mas também
coerção, controle e disciplinarização da sociedade, ébrios, prostitutas, mães solteiras, e a partir desta
selecionando apenas os aptos ao trabalho. 1
constatação busca-se atitudes concretas que
O livro A história da Loucura na Idade Clássica objetivam o controle dos sãos, excluindo os inaptos,
analisa as diversas práticas e interpretações a em uma verdadeira “ortopedia moral”, conceito
respeito da loucura, a partir do século XV até o século discutido por Foucault, em seu livro Vigiar e Punir.3
XVIII, abordando como foram estruturadas as várias Se até a constituição da República no país a figura
práticas psiquiátricas, bem como desvela como foi do louco era aceita no convívio social como expressão
forjada a imagem do louco e de sua insanidade, do cômico, do patético, a idéia positivista de nação,
apontando o papel primordial da constituição do trazia no seu bojo o lema da ordem e do progresso. A
saber médico referente à problemática da loucura. partir dessa época os loucos e todos aqueles
personagens que não se adequavam aos novos
(...) o trabalho médico é apenas parte de uma princípios norteadores do mundo do trabalho

292 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


burguês eram possíveis do esquadrinhamento de mesma marca da “vesânia” e viviam livres, soltos
suas condutas e caso fossem considerados nas ruas, incorporados à paisagem urbana, aos
indisciplináveis eram encaminhados para cosutmes populares e ao cotidiano da cidade no
instituições asilares, abrigos, leprosários, século XIX: loucos de todas as matizes sociais que
manicômios, entre outros. compunham uma rica galeria de “tipos de rua”,
É importante ressaltarmos a importância do como os chama o próprio cronista, e não de
trabalho de J.P Pereira, que discorre a respeito das internos dos hospícios. 6
várias facetas da loucura em períodos históricos
diversos, e aponta que a estruturação do manicômio Em fins do século XIX, ao louco destina-se o
foi alicerçada em mecanismos coercitivos a partir enclausuramento e a reclusão, sendo o manicômio
dos quais foi possível o enclausuramento dos doentes o espaço destinado ao doente mental, havendo em
mentais: 1898 a construção do Asilo Juquery,7 em São Paulo,
instituição que contribui ao desenvolvimento das
(...) é bom lembrar que as celas, as coações, o práticas e terapêuticas adotadas no país, tornando-
instrumental de suplício serviram de suportes se importante destacar o papel do psiquiatra Franco
materiais para um combate, ainda que mudo, entre da Rocha, diretor do asilo no período de sua fundação,
a razão e a desrazão. A expressão do furor animal contribuindo na constituição e reconhecimento do
batia-se visivelmente contra as grades impostas pensamento psiquiátrico, além da aplicação e
pelo bom senso dos homens. 4 desenvolvimento de diversos tratamentos que
serviram de modelo a outras instituições asilares do
Neste sentido, há uma preocupação dos cientistas Brasil. A organização e estruturação do manicômio,
aliados aos interesses de uma elite, em purificar o torna-se estratégia de controle dos doentes mentais,
perímetro urbano, destruindo cortiços, com a utilização de práticas permeadas de violência
disseminando a pobreza em pontos estratégicos em e coação, como nos aponta Maria Clementina
que transitavam inúmeras pessoas, como uma
forma de afastar as epidemias freqüentes, e com a (...) para além das atividades educativas, o
loucura não foi diferente. Desta forma: hospício jamais pode dispensar a violência direta,
o castigo, a repressão de guardas e enfermeiros; o
Os saberes e práticas voltadas para os uso das camisas de força, enclausuramento nas
considerados doentes mentais apresentam a solitárias, entre outros. 8

mesma lógica que move os mecanismos de


dominação e imposição da lei e da ordem. Dentro Engel em seu trabalho discute como este saber é
de uma perspectiva sociológica, torna-se constituído, e quais são os enfoques dado pelos
extremamente difícil discernir –los do conjunto das especialistas, demonstrando que este estava
instituições aparelhadas para vigiar e classificar, diretamente vinculado ao projeto de ordenamento
punir e produzir as condutas consideradas da sociedade da época. Segunda a autora:
criminosas e controlar as camadas populares
urbanas percebidas como “classes perigosas”. 5 O universo temático privilegiado pelos especialistas
brasileiros na construção da loucura como doença
Maria Clementina aborda em seu trabalho como mental deixa entrever as principais áreas de
se estruturou o pensamento psiquiátrico no país, intervenção das estratégias normatizadoras: os
principalmente a partir do final do século XIX, comportamentos sexuais, as relações de trabalho,
destacando a figura do louco, no período colonial a segurança pública, as condutas individuais e as
como um personagem caricato, fazendo parte do manifestações coletivas de caráter religioso,
cotidiano das cidades: social, etc. 9

(...) percebemos a existência de muitas outras Em relação à questão da ordem em Uberlândia,


figuras públicas e populares que carregavam a notamos que os discursos implementados pelas elites

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 293


e suas respectivas esferas de poder tiveram nas representações presentes no tecido social e também
primeiras décadas do século XX um peso os diferentes personagens constroem seus espaços
fundamental no ideal de progresso e modernidade, específicos, imbuídos de símbolos e significados,
constituindo desta forma a disciplinarização da denunciam diariamente as contradições latentes e
urbe. Partindo de um conjunto de regras e normas, nos revelam outra narrativa que se contrapõe a
rigorosamente alicerçado na ordem capitalista, esta. 12
verifica-se alguns aspectos de reconfiguração do
espaço urbano e social. No artigo de Rodrigues essa É perceptível a organização de espaços que vão
discussão se torna clara: atuar nesta disciplinarização e organização dos
diversos espaços urbanos pertencentes às cidades,
A política de higienização física e moral da cidade como escolas, hospitais, quartéis. Neste contexto, o
estava em todos os lugares, desde a limpeza saber médico foi fundamental para que este quadro
urbana, a proibição do jogo, a repressão à fosse composto. Segundo analisa Machado:
prostituição, a condenação do aborto, até o
policiamento ideológico das pessoas, partidos e A importância crescente da cidade, como centro
instituições. 10
de comércio e de produção econômica e como sede
do dispositivo central de poder político intervém
Para que esta ordem fosse mantida, era preciso em todos os níveis da vida social, implica a
afastar da cidade as figuras que atentassem ao ideal construção de um funcionamento ordenado de
progressista como os bêbados, as prostitutas, os núcleos urbanos, condição de possibilidade da
mendigos e também os loucos. Pelo discurso da transformação dos próprios indivíduos e
imprensa percebe-se a disposição de poderes materialização da exigência normalizadora da nova
utilizados para estes mecanismos de coerção. Segundo ordem social. 13
Rodrigues:
Todo o processo de estruturação e higienização
(...) deste conjunto de saberes – a política, a polícia promovido pelas elites promoveu o crescimento e a
e a imprensa – o resultado foi uma rígida disciplina urbanização da cidade de Uberlândia, em
e controle sobre a sociedade e seus habitantes. contrapartida, a população mais carente foi
Estabelece-se uma rede de poder tanto vertical direcionada à periferia e as pessoas consideradas
quanto horizontal, longe de todas as instâncias do inaptas ao trabalho, esquadrinhadas em espaços a
social cujo objetivo era o de assegurar o espaço de ela destinados. No que se refere ao desenvolvimento
representação do capital e, por conseguinte do advindo destas estratégias implantadas
ideário burguês. 11 principalmente a partir das primeiras décadas do
século XX, Machado discute:
Vários trabalhos que versam sobre a cidade de
Uberlândia discutem a constante busca do progresso O progresso material de Uberlândia foi possível
almejada sobretudo pelas elites detentoras de poder, não só pela intensificação do processo de
e a partir deste ideal, vários personagens devem ser urbanização brasileira, a partir da década de 50,
esquadrinhados e higienizados, entendendo a cidade na qual essa cidade se inseriu e se ajustou mas
como espaço de disputa simbólica de diferentes também, pela capacidade da classe dominante em
personagens. Como é apresentado no trabalho de articular e pôr em prática todo um discurso político
Lopes e Machado do progresso e da ordem, paralelamente a outros
projetos que objetivaram, fundamentalmente
A construção de espaços diferenciados pelas elites disciplinarização desse espaço. 14

que foram concebidos como símbolos do


desenvolvimento e contribuíram para a efetuação A inauguração do Sanatório Espírita de
do discurso oficial, conta uma história de progresso Uberlândia em 1942 é uma questão pertinente em
e desenvolvimento, porém as mútiplas relação a disciplinarização da sociedade

294 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


uberlandense e região, já que antes da implantação terapêuticas permeavam o saber médico e
desta instituição as pessoas que sofriam de espiritual, legitima-se atrelada aos interesses
transtornos mentais, deveriam ser tratadas pela políticos das elites uberlandenses em prol da ordem
família. Haviam vários casos de doentes mentais e disciplinarização da cidade.
trancafiados nos fundos de casa, uma vez que a Importante também ressaltar que por se tratar
família não sabia lidar com a situação e, as pessoas de um Sanatório Espírita o processo de entendimento
mais abastadas, muitas vezes contratavam da loucura abarca outro ângulo, uma vez que a
enfermeiros particulares para o tratamento de seus doutrina espírita defende que em muitos casos, a
enfermos. O Código de Posturas da cidade delimitava loucura, como é definida pela medicina, não passa
a o espaço do doente mental, assim como remetia à de processos obssessivos, promovido por espíritos
família a responsabilidade do tratamento. encarnados e desencarnados que carregam para uma
próxima existência carnal suas faltas e também
Art. 114 – Os loucos, são seus parentes obrigados possíveis inimigos, fruto de suas ações no passado.
a tel-os em segurança em lugar que não pertubem Neste viés, o espírito obessessor acometido pelo
o socego e a tranquilidade da população 15 . ódio e querendo vingança, tentará prejudicar seu
algoz, encontrando meios para a realização de seu
O que torna pertinente a análise desta instituição intento. Mas segundo o espiritismo, também existem
remete ao fato desta ser dirigida por lideranças as patologias provocadas por distúrbios orgânicos,
espíritas, principalmente do Centro Espírita Fé, manifestando-se em doenças como verminoses,
Esperança e Caridade, período em que esta religião epilepsia, sífilis, que durante muitos anos foram
buscava legitimidade na cidade, realizando várias consideradas patologias mentais.
ações de cunho assitencialista, em diversos setores Quando o problema que aflige o paciente é
junto à população, buscando espaço inclusive na causado por obssessão, o tratamento recomendado
imprensa, peça fundamental para a organização e será efetuado, segundo os espíritas, através da
disseminação do ideal progressista na cidade. A reforma moral, como podemos apreender no livro
imprensa contribui e aplaude este tipo de ação em de Schubert
suas reportagens
A consciência do enfermo para este ponto é
O Espiritismo tem, em Uberlândia, contribuído fundamental, para que ele compreenda a sua
decisivamente para a melhoria e dinamização da participação no processo de desobssessão,
assitência social da população menos favorecida enquanto simultaneamente se realizem os
de recursos materiais. Obras de vulto como o Lar trabalhos desobssessivos no Centro Espírita. 17

Alfredo Júlio, a divulgação Espírita Cristã, a


Organização União Fé, Esperança e Caridade, etc., As práticas e terapêuticas de internamento
merecem todo nosso apoio e dedicação, assim permitem apreender o cotidiano da instituição, se
como as Campanhas de Quilo, as sopas, etc. 16 somados às histórias de vida realizadas com vários
personagens que participaram de sua construção e
A construção do Sanatório Espírita de trajetória. Observa-se que diversos relatos partem
Uberlândia, faz parte do projeto de legitimação da de suas experiências, havendo uma forte relação com
doutrina espírita frente à sociedade uberlandense, a instituição no que diz respeito a aspectos sociais,
que nesse período era majoritariamente católica. A pessoais e religiosos, em que datas e fatos pertinentes
sua consolidação como lugar de abrigo e controle dos ao funcionamento do Sanatório Espírita confundem-
loucos, associado à imagem de caridade e se com a própria vida do entrevistado.
assitencialismo, perimitiu o reconhecimento da A instituição funcionava em tempo integral,
religião espírita em Uberlândia, junto à várias atendendo até noventa pacientes, todos em regime
outras ações que atendiam a população mais carente. de internação. As acomodações destinadas aos
O Sanatório Espírita de Uberlândia toma a si a tarefa pacientes eram precárias, com tamanho muito
de tratamento de doentes mentais na cidade, cujas reduzido. Notamos a partir de relatos que a estrutura

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 295


do Sanatório era semelhante a outras instituições saíssem a noite, ou para pertubar o vizinho. Mas
manicomiais em várias cidades do Brasil, como o isso, de manhã, nós abríamos o cadeado, eles
Sanatório Espírita de Uberaba, de Goiânia, Anapólis, saíam, iam para o pátio, tomava banho de sol,
o que reforça a idéia de uma rede de asilos no país. tomava banho normal, tudo completamente
A ocorrência dessa rede manicomial no país é independente. No compartimento das mulheres a
perceptível, podendo tomar por referência o livro mesma coisa. 21
escrito por Carrano , intitulado Canto dos Malditos,
18

que relata sua passagem por várias instituições Neste relato, percebe-se que a “única alternativa”
psiquiátricas no Paraná, e apresenta estrutura possível para conter os pacientes mais agressivos era
semelhante ao Sanatório Espírita de Uberlândia. colocá-los em celas, de tamanho reduzido, para que
Carrano relata as práticas de tratamento existentes o doente mental não entrasse em contato com outros
em manicômios, denunciando o descaso da maioria pacientes. A instituição que recebia pessoas que
dos psiquiatras que se utilizam o dinheiro público, sofriam transtornos mentais toma ares de instituição
muitas vezes não ministrando terapêuticas carcerária trancando seus pacientes para que eles
adequadas aos internos, assim como enfermeiros que não pertubassem a paz e a ordem da vizinhança,
maltratavam os internos, o uso de alta medicação e tendo duplo papel, como é relatado acima.
de tratamentos altamente agressivos, como o Mais assustador mostra-se a forma como os
eletrochoque. pacientes “mais agressivos” eram tratados,
permanecendo todo o tempo em celas trancadas e
Era uma visão triste: aquelas pessoas reduzidas muitas vezes se alimentando de forma precária, sem
àquilo. Eram pessoas sim, seres humanos, mas o mínimo de higiene e cuidado.
pareciam feras torturadas, agoniadas, com
alguma coisa mordendo seus corpos e rasgando- É, nós tivemos alguns enfermos muito perigosos,
lhes a alma. 19
dominados por espíritos, parece que muito
agressivos. Nós precisamos cuidar com eles com
O livro de Austregésilo Carrano tornou-se filme, muito cuidado e eles não aceitavam qualquer
chamado Bicho de Sete Cabeças com Rodrigo Santoro, assitência. Tínhamos que dar comida em prato de
Othon Bastos, Cássia Kiss, levanta o debate sobre as papelão, por baixo de uma grade, deixar que eles
instituições psiquiátricas, acirrando o debate político comessem com a mão, porque se nós déssemos
sobre as práticas de violência que ainda se fazem um garfo ou uma colher seria perigoso eles até
presentes no sistema asilar brasileiro. atingirem a gente, ou enãao quebrar tudo, coisa e
No Sanatório Espírita de Uberlândia existiam celas tal, e, assim, acontecia com colchões, com
reservadas a pacientes mais agressivos, havendo dois cobertores, tudo eles destruíam. 22
compartimentos isolados um do outro em que eram
separados os homens e as mulheres. Referente a Notamos a partir dessa fala que a terapêutica
estrutura física do Sanatório Espírita de Uberlândia, referente ao paciente crônico quase sempre, resulta
Gladstone Cunha 20 , que foi administrador da em seu trancafiamento, em tempo integral, o que
instituição durante a década de 70 relata: levava a debilitação ainda maior do diagnóstico. Este
tipo de tratamento, segundo alguns psiquiátricas
(....) nesses dois compartimentos existiam o que que lutam atualmente contra a manutenção de
chamamos de cela, que era justamente para os manicômios, leva ao estado de cronificação da
nossos irmãos agressivos, e os não agressivos têm doença , uma vez que o paciente não é estimulado,
23

lá o local de corredor semelhante ao que nós temos sendo cortados os vínculos mínimos com a realidade,
nos hotéis com quartos individuais, cama, tudo perdendo aos poucos sua humanidade, não havendo
direitinho. No máximo que se fazia a noite era, comunicação com os outros pacientes ou com o
depois de recolhermos os normais, os mais ou mundo ao seu redor.
menos agressivos nos seus quartos, as vezes a A psiquiatria, principalmente a partir de meados
gente passava um cadeado para evitar que eles dos anos 30, em todo o Brasil, foi transformada em

296 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


instrumento estratégico em relação a propagação Na medida em que apresenta o quadro clínico do
de políticas na área de saúde pública. Com um Estado paciente, as fichas apontam o tratamento
centralizador houveram em diversas cidades a ministrado, sendo possível traçar um panorama de
construção de instituições destinadas a abrigar terapêuticas e práticas da instituição que muitas
mendigos, alcólatras, prostitutas, delinquentes e vezes têm paralelo com outros manicômios, como o
loucos, havendo um crescimento significativo no tratamento medicamentoso, o uso de eletrochoque
número de internações em hospícios em todo o Brasil. em determinados períodos, choques de cardiazol,
Segundo Pereira terapêutica em que o paciente recebe uma injeção
da substância cujo objetivo é causar uma crise
Marcado pela política assitencialista do Estado convulsiva tônico clônica generalizada, provocando
Novo – segundo a qual os doentes mentais grande enrijecimento muscular. 27

perambulantes deveriam ser recolhidos aos A análise dos históricos de doença dos pacientes
hospitais psiquiátricos e ficava proibido manter do Sanatório Espírita de Uberlândia, contidos nas
quaisquer insanos em cadeia pública. 24
fichas médicas, permitem perceber que os doentes e
os sintomas ali registrados tinham uma estreita
Esta terapêutica leva-nos a refletir sobre as relação com o ideal progressita de ordenação e
práticas psiquiátricas das primeiras décadas do higienização dos valores, bem como a proposta
século XX, que buscavam, de primeira mão, conter espírita de reforma moral, principalmente das
o doente mental, podendo-se constatar a falta de classes populares, que eram o setor da sociedade mais
preparação dos profissionais de saúde, no que diz cerceado em seus hábitos e costumes. Desta forma,
respeito ao tratamento dessa doença. o ideal da sociedade progressita a ser seguido reflete-
Segundo relato de D. Marolina, 25
que foi se nos diagnósticos que consideram o paciente
enfermeira do Sanatório Espírita de Uberlândia, em tomado por uma enfermidade mental, sobretudo
meados das décadas de 60 e 70, a equipe de pelos desvios de condutas dessas pessoas e pelos
enfermeiros responsáveis não era profissionalizada, deveres sociais que eram relegados.
além de não haver uma equipe técnica suficiente Estes históricos são constituídos de relatos de
para o funcionamento do Santório, contando apenas parentes ou pessoas próximas dos pacientes que
com dois enfermeiros práticos (Rosalvo e narram comportamentos considerados anormais,
Bitencourt), uma cozinheira, uma lavadeira, um muitas vezes traçando um paralelo sobre o período
barbeiro e um dentista. Existia o administrador da em que a pessoa tinha um ritmo de vida normal,
instituição, que na maioria das vezes era espírita e sendo abruptamente interrompido por atitudes
dois médicos que a princípio eram clínicos gerais, estranhas que, muitas vezes, não eram da índole da
como o Dr. Moyses de Freitas, havendo médicos pessoa, às vezes desencadeados por uma doença
especialistas em psiquiatria somente a partir de qualquer ou por algum contragosto ou trauma
1963, com a chegada do Dr. Lázaro Salum, sofrido. Estas atitudes estranhas demonstram a
posteriormente os psiquiatras Nivaldo Gonçalves e reação da pessoa à situações inusitadas.
Osvaldo do Nascimento atendiam os casos A partir desta discussão podemos apontar alguns
psiquiátricos da instituição. aspectos que frequentemente surgem nestes relatos,
A análise das fichas médicas 26 , torna-se como a importância da justeza de caráter da mulher,
fundamental, apresentando várias informações o amor pelos filhos, o amor entre indivíduos da
como medicação e terapêuticas utlizadas, tipo de mesma classe social, o ideal do trabalhador, assim
doença, histórico e também autorizações para como reflexos da teoria positivista da
internação e diagnósticos de médicos e espíritas a hereditariedade de doenças, entre outros fatores.
partir de psicografias, que indicam o tratamento À mulher cabia o papel de cuidar dos filhos, dos
espiritual aos pacientes. Podemos traçar um quadro alfazeres da casa, assim como ser uma boa esposa, e
dos diferentes tratamentos, assim como apreender a partir do momento que estas funções não fossem
em dados que parecem imperceptíveis, formas de sua principal preocupação, este tipo de atitude não
resitência ao ideário e aos valores da época. era vista com bons olhos. Dentro deste quadro

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 297


traçado, notamos que a mulher vai ser tempo começou a ficar loquaz, obcena,
estigmatizada de forma evidente, uma vez que sobre preocupando-se muito e exageradamente com
ela recairá não somente a noção de ordem que parte questões sensuais, sem moral e sem pudor. Já
das elites dominantes, como a ela cabe o papel de esteve internada no Sanatório de Uberaba.
mulher recatada, boa mãe, religiosa, devota aos Internada aqui continua loquaz, eufórica, sempre
filhos e ao marido, a quem deve respeitar e acatar as bem humorada, mas convida os homens para seu
decisões sem contestação. quarto e procura flertar com todo mundo. 30

Há dez dias, na casa de sua mãe, vendo o padrasto O amor aparece como agente que gera distúrbios
ralhar com seu filho, começou a chorar e assim nos pacientes, tanto em homens como em mulheres.
ficou o dia todo. Nos dias seguintes passou a falar Quando existe um caso de amor platônico, ou mesmo
desordenadamente, a cantar e dizer pronografias. quando são amores “proibidos” pela moral, como
Adquiriu o hábito de morder e o de rasgar toda a entre pessoas da mesma família, bem como entre
roupa. Não gosta do marido, a quem tinha muita pessoas que pertencem a classes sociais diferentes,
estima, tendo agora excitação sexual deante de estes comportamentos são condenados.
outros homens. 28

Sadia, trabalhadora, cumpridora de sues deveres


A mulher era muitas vezes mais observada e até três anos atraz. Sua moléstia teve início por
estigmatizada do que os homens, sendo que se uma paixão absurda por um moço rico e branco.
afirmava que estas possuíam uma natureza Dorme mal e come peior. Agitação psico-motora.
contraditória, essencialmente mais fraca e mais Alucinações auditivas e visuais. Tem tido
propícia a desvios, daí a necessidade de constante e hemorragias durante as menstruações. 31

rígida observação de sua conduta. Segundo Engel:


A partir do relato abaixo, notamos que não
(...) a construção da imagem feminina, a partir da apenas o amor definia a união entre um casal
natureza e das suas leis implicaria em qualificar a apaixonado, mas vários pressupostos deveriam ser
mulher como naturalmente frágil, bonita, sedutora, seguidos para decidir quem seria escolhido como
doce, etc, aquelas que revelassem atributos parceiro,devendo o amor ser recatado, puro, só
opostos seriam consideradas seres antinaturais. podendo haver maior proximidade do casal após as
Entretanto, muitas qualidades negativas – como a núpcias, bem como a escolha do parceiro para toda
perfídia e a amoralidade – eram também entendidos a vida deveria seguir critérios bem rigorosos, que
como atributos naturais da mulher, o que conduzia estivessem de acordo com moral religiosa e burguesa
a uma visão profundamente ambígua do ser de justeza de princípios, sendo o amor entre parentes
feminino. 29
impossível, uma vez que principalmente a moral
religiosa considerava pecado este tipo de ligação
Em relação ao casamento, a mulher não deveria amorosa.. Este relato também nos apresenta outro
contestar a opinião do marido, acatando todas as dado como a falta de cuidado pela aparência, que
determinações por ele impostas, uma vez que o demonstram a falta de consonância com os costumes,
homem era o provedor da casa, assim como à mulher uma vez que as pessoas devem zelar pelos cuidados
solteira cabia acatar as determinações dos pais, não com a higiene.
podendo contradizê-los ou questionar suas resoluções,
como no relato a seguir, que a paciente não aceita o Sua doença data de 14 anos mais ou menos. Os
marido a quem ela foi entregue contra sua vontade, seus atribuem a sua doença a um amor mal
a partir de então adquirindo comportamentos que correspondido pela sua sobrinha. Como esta lhe
não condizem com uma “moça de família”. chegasse a odiar por isso, tornou-se triste,
introvertido, com poucos cuidados pessoais, e assim
(...) casando-se com um indivíduo bem mais velho foi peiorando a pouco e pouco até ter alucinações
que ela e contra sua vontade, dentro de um certo auditivas e visuais e ódio A sua mãe e irmã 32
.

298 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


O homem deveria sempre ser o provedor da casa, contemporâneas sobre o período, uma percepção
sendo esta sua principal tarefa dentro da família, por demais unívoca e mesmo coincidente de todas
principalmente se pertencesse a classe trabalhadora. essas tendências. Tais modelos, porém foram
A questão ética também perpassava e regulava o utilizados de forma particular, graduando-se suas
comportamento deste trabalhador, que não poderia conclusões singulares, suas decorrências teórica
ter vícios, uma vez que estes comprometeriam a distinta. 35
execução de suas tarefas diárias.Os indivíduos que
fugiam deste padrão, muitas vezes eram A questão da hereditariedade também se torna
estigmatizados pela sociedade. Vários aspectos podem preponderante na análise, podendo ser pressuposto
ser reconhecidos a partir do histórico da doença, para um possível distúrbio que poderia levar a um
como a questão do bom trabalhador, sem vícios: internamento, parâmetro advindo das teorias
raciais de degenerescência 25 , que permearam o
Dos escassos dados fornecidos por quem o trouxe, discurso médico nas primeiras décadas do século XX
apura-se que o paciente foi sadio até 1 ano, quando,
de um momento para outro, deixava suas (...) família de neuropatas, pois vários membros
obrigações para andar sem objetivo plausível, já faleceram psicóticos. (...) Infância sadia de 16
tornou-se “esquecido” e só realiza uma determinada anos em deante começou a sentir pertubações
tarefa quando há alguém que lhe fiscalize. Risos nervosas. 36
imotivados. Dorme relativamente bem. 33

Com toda a discussão realizada podemos


Deve-se também destacar a questão religiosa, apreender que a implantação do Sanatório Espírita
uma vez que a dissidência do poder emanado pela de Uberlândia constituiu-se em um dos projetos
elite terá papel preponderante na regulação de políticos de Uberlândia, com a conivência entre as
questões ligadas à moral. elites locais e espíritas para a disciplinarização do
espaço urbano e a exclusão social dos mais pobres ou
(...) achando que lhe tinham feito feitiço, deixando mesmo diferentes. E a partir deste contexto notamos
de se alimentar, de dormir. Começou a sentir que a presença da comunidade espírita no processo de
estava muito doente e, portanto, com grande legitimação de sua doutrina, que ainda não atingia
necessidade de fazer um bom tratamento. Nesta grandes parcelas da população, havendo, a partir
mesma ocasião tomou grande antipatia do esposo, deste período maior aceitação desta religião. Para
não podendo mesmo ficar em casa. 34 tanto, os comportamentos dos cidadãos sempre
estavam velados pelas normas vigentes, sendo
O trabalho de Schawarcz faz uma análise da aqueles indivíduos que não atentassem a estes
influência dos pensamentos científicos europeus pressupostos, poderiam ser considerados “anormais”,
sobre cientistas e as instituições brasileiras, no final sendo sujeitos a carregarem o estigma da doença
do século XIX até 1930. Os pensadores barsileiros mental.
reelaboraram as teorias raciais advindas da Europa, Partindo desta problemática vislumbra-se como
criando as suas próprias características, por isso não a institucionalização do Sanatório Espírita, assim
é prudente pensarmos que eles foram apenas como a definição do que seria loucura está permeada
reprodutores: e intrinsecamente ligada a um processo de
modernização e higienização do espaço urbano
(...) as entradas coletivas, simultâneas e maciças presente em todo o país, não sendo diferente na cidade
dessas doutrinas acarretou, nas leituras mais de Uberlândia.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 299


Notas
*
Estas reflexões são fruto de uma pesquisa mais ampla desenvolvida 17
SCHUBERT, Suely Caldas. O poder da vontade. In: Obssessão
por um grupo de alunos da Universidade Federal de Uberlândia Desobssessão. Profilaxia e Terapêutica Espíritas. Rio de Janeiro:
intitulada: “Almas enclausuradas: Práticas de intervenção Federação Espírita Brasileira, 1981, p.105.
médica, representações culturais e cotidiano no Sanatório 18
BUENO, Autregésilo Carrano.O Canto dos Malditos. Rio de
Espírita de Uberlândia (1932 – 1970)”, aprovada pela FAPEMIG/ Janeiro: Rocco, 2001.
CNPq, orientada pela profa. Dra. Maria Clara Tomaz Machado. 19
Ibidem,p. 54.
1
CF:. FOUCAULT, Michel. A história da loucura na Idade 20
CUNHA, Gladstone Rodrigues.Uberlândia. Depoimentos. 2002.
Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1999. _______.Vigiar e Punir. Administrador do Sanatório Espírita de Uberlândia na década
20ª ed. Petropólis: Vozes, 1999. _______. Microfísica do Poder.Rio de 70.
de Janeiro: Ed. Graal, 2001. 21
Ibidem.
2
FOUCAULT, Michel. A história da loucura na Idade Clássica. 22
Ibidem.
op.cit, p.497. 23
Ibidem.
3
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. op.cit. 24
ANTUNES, Eleonora Haddad; BARBOSA,Lúcia Helena Siqueira;
4
PEREIRA, J.F. O que é loucura? São Paulo: Brasiliense, 1993, PEREIRA, Lygia Maria de França. (org). Os primeiros sessenta
p.99,100. anos de Terapêutica Psiquiátrica no Estado de Sao Paulo. In:
5
Ibidem.p.11. Psiquiatria, loucura e arte. Fragmentos da história brasileira.
6
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Cidadelas da ordem. São Op.cit, p 43.
Paulo: Brasiliense, 1990, p.69. 25
CASTRO, Marolina. Depoimentos. 2000. Funcionária do
7
Cf:. ANTUNES, Eleonora Haddad; BARBOSA,Lúcia Helena Sanatório Espírita de Uberlândia entre as décadas de 60 e 70, lá
Siqueira; PEREIRA, Lygia Maria de França. (org). Os primeiros residindo por 13 anos.
sessenta anos de Terapêutica Psiquiátrica no Estado de Sao Paulo. 26
As fichas médicas dos pacientes do Sanatório Espírita de
In: Psiquiatria, loucura e arte. Fragmentos da história brasileira. Uberlândia foram disponibilizadas para a pesquisa. Foi
Sao Paulo: Editora da Universidade de Sao Paulo, 2002. realizado a catalogação de aproximadamente 700 fichas,
8
CUNHA, Maria Clementina Pereira. op.cit,p.69. contidas em 29 livros de registro, que datam do período de 1942 a
9
ENGEL, Magali. Psiquiatria e feminilidade. PRIORI, Mary Del. 1959. Esta fichas apresentam várias informações sobre os
(org) História das mulheres no Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Contexto, pacientes como religião, estado civil, cor, idade, diagnóstico,
1997.p.323. prognóstico, nomeclatura de remédios e doenças, históricos da
10
RODRIGUES, Jane de Fátima Silva. Nas sendas do progresso: doença, assim como fotos.
Trabalho e disciplina em Uberlândia. Um percurso histórico. 27
CF:. ANTUNES, Eleonora Haddad; BARBOSA,Lúcia Helena
Cadernos de História Especial. Vol.4, n°4. Uberlândia. Janeiro Siqueira; PEREIRA, Lygia Maria de França. (org). Os primeiros
de 1993. p.13. sessenta anos de Terapêutica Psiquiátrica no Estado de Sao Paulo.
11
Ibidem, p.12. In: Psiquiatria, loucura e arte. Fragmentos da história brasileira.
12
LOPES, Valéria Maria Queiroz Cavalcante e MACHADO, Maria op. cit.
Clara Tomaz. A violência na disciplinarização do espaço urbano 28
Livro de fichas médicas do Sanatório Espírita de Uberlândia.
em Uberlândia: Representações e Imagens. In: Cadernos de Ano 1943. Ficha sem número.
Pesquisa do CDHIS. Uberlândia: UFU, 2000, n.26, ano 13. p. 7,8. 29
ENGEL, Magali. op.cit. p.133.
13
MACHADO, Roberto. Danação da Norma. Rio de Janeiro: Ed. 30
Livro de fichas médicas do Sanatório Espírita de Uberlândia.
Graal, 1978. p. 260 Ano: 1944. Ficha 099.
14
MACHADO, Maria Clara Tomaz. A disciplinarização da pobreza 32
Ibidem. Ano: 1944. Ficha 017.
no espaço urbano burguês: assitência social institucionalizada 33
Ibidem. Ano 1944. Ficha sem número.
(Uberlândia – 1965 a 1980). São Paulo: USP, 1990, (Mestardo/ 34
Ibidem, Ano: 1942 (Sem identificação – é mulher)
FFLCH), p.4. 35
SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O Espetáculo das raças.. São Paulo:
15
UBERLÂNDIA. Câmara Municipal. Estatutos e leis da câmara Companhia das letras, 1993.p.43
Municipal de S. Pedro de Uberabinha. Uberaba: Typ. Livraria 36
Livro de fichas médicas do Sanatório Espírita de Uberlândia.
Século XX, 1903, p.22. Ano: 1944. Ficha 017.

300 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Reflexos da Imprensa num Cenário Manicomial

Fabrício Inácio de Oliveira

Graduado em História pela Universidade Federal de Uberlândia (1998-2004) e incentivado pela FAPEMIG durante a
realização do projeto ´Almas enclausuradas: práticas de intervenção médica, representações culturais e cotidiano no
Sanatório Espírita de Uberlândia (1932 - 1970)´

Resumo Abstract
Resultado de uma pesquisa no Arquivo Público This article is a result of a research in the
Municipal, sobre coleções particulares e outros Municipal Public File, on private collections and
acervos de jornais e panfletos produzidos em other collections of newspapers and pamphlets
Uberlândia desde os últimos anos do século XIX e produced in Uberlândia since the last years of the
início do XX até o ano de 1990, este artigo elucida 19 th century and beginning of the 20 th century to
de maneira singela como alguns discursos setoriais the year of 1990. It elucidates in a simple way
refletiram e ajudaram a edificar o imaginário how some speeches contemplated and helped to
social desta cidade. Esta pesquisa foi pautada pelos build social imaginary in the city. This research
objetivos traçados no projeto ´Almas was ruled by the objectives of the project: Almas
enclausuradas: práticas de intervenção médica, enclausuradas: práticas de intervenção médica,
representações culturais e cotidiano no Sanatório representações culturais e cotidiano no Sanatório
Espírita de Uberlândia (1932 - 1970)´, CNPq, Espírita de Uberlândia (1932 - 1970)´, CNPq, 2001-
2001-2003, e produziu inventário com grande 2003, and has produced an inventory with a big
número de material em fichas. amount of recorded material.
Palavras-Chave: Imprensa, Loucura, Espiritismo. Key words: Press, Madness, Spiritism

Na trilha das representações de um imaginário vários discursos de diferentes origens. Este processo
social pertinente à cidade de Uberlândia durante o constituiu-se no fichamento e transcrição dos
século XX, um importante instrumento utilizado artigos, crônicas e afins publicados nos jornais de
num jogo de relação poder/saber pelas autoridades Uberlândia desde o início do século XX até o ano de
médicas, religiosas e políticas foi a imprensa. Artigos, 1990.
crônicas, poemas, mensagens psicografadas, espaços Muito pode se inferir na ausência e/ou na
de mídia comprados ou cedidos, juntamente com o precaução de se incluir as vozes dos excluídos sociais
formato, as letras diferenciadas, as imagens e tudo (loucos, prostitutas, pobres e doentes) no cotidiano
mais, constituíram nos jornais e panfletos desta da cidade, através dos assuntos e matérias
cidade um poderoso mecanismo de propaganda e comunicados. Assim, foi minucioso o processo de
doutrinação, muitas vezes atendendo a interesses busca que poderíamos chamar de ‘agulhas em um
particulares de setores emergentes e de setores palheiro’.
tradicionais da elite política. Todo o material coletado durante esta
Durante as pesquisas do projeto ´Almas investigação será colocado à disposição de possíveis
enclausuradas: práticas de intervenção médica, futuros pesquisadores. Por hora fiquem com esta
representações culturais e cotidiano no Sanatório narrativa que nada mais pretende do que uma
Espírita de Uberlândia (1932 - 1970)´1 foi realizado singela articulação entre os discursos produzidos em
um extenso trabalho de investigação na hemeroteca alguns artigos selecionados na intenção de apontar
do Arquivo Público Municipal local que nos trouxe algumas das várias temáticas que irromperam.

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 301


Assim, estas poucas linhas pretendem apenas visam conferir uma identidade social, exibir uma
apontar algumas problemáticas pertinentes e maneira própria de estar no mundo, significar
elucidar minimamente o amplo campo em que este simbolicamente um estatuto e uma posição. Ou seja,
trabalho de análise foi construído. para nós, o social só faria sentido no desvelamento
Na busca de respostas formulamos perguntas na de práticas culturais, onde as classes e segmentos
medida em que se fez necessário penetrar questões sociais adquirissem alguma identidade, nas
viscerais no desdobramento do tema proposto. configurações intelectuais construídas, nos símbolos
Precisávamos entender como foi possível que o de uma realidade contraditória e repleta de
sanatório fosse administrado por religiosos-espíritas representações. 2
sendo que a afirmação da doutrina espírita, dentro E é justamente neste campo de construção
de um campo múltiplo e conflituoso, esbarrava nesse simbólica e subjetiva que a imprensa escrita e
período diretamente com os poderes da igreja autoridades interessadas ilustravam um insuspeito
católica. Seria porque havia uma elite também ideário moral no intento da realização não somente
espírita? É o que nos parece mais sensato pensarmos, do Sanatório como obra arquitetônica em si, mas
mas algo precisa realmente ser levado em sobretudo de uma afirmação sublime do espírito
consideração. humanitário de uma sociedade. Vê-se claramente
A cidade e a região necessitavam urgentemente uma perspectiva assistencialista apoiada e
de uma instituição que pudesse abrigar os ‘loucos’, resguardada pela suposta obrigatoriedade inerente
não porque o contingente de mentecaptos houvesse a todos de fazer o bem aos necessitados.
aumentado espantosamente mas, havia a
necessidade de acoplar o ideário de saúde, de Veio ter hontem em nossa redação, uma
higienização e reorganização das cidades fortemente commissão enviada pela Sociedade Humanitária
incentivado pelo governo federal dirigido por Getúlio local, para dizer-nos que essa instituição de
Vargas, algo que funcionaria no cenário nacional caridade pretende erigir novo penats, em virtude
como um visto, um carimbo, um certificado de da defficiencia que o actual offerece.
qualidade social. E pensando pelo viés da Positivamente, é uma medida de elevado alcance
disciplinarização do espaço urbano, existia o moral e humanitário a que essa nobilitante
interesse das elites governamentais em fazer o sociedade pleteia. Parece-nos, dadas as suas
Sanatório funcionar. E aqueles que já estavam há finalidades, não surgirão obstáculos á realisação
mais de uma década (oficialmente, desde 1932 com de tão importante quão útil emprehendimento.
a criação do Penate Allan Kardec) tomando para si o A sociedade solicita o amparo da imprensa. De
trabalho de auxiliar os mentalmente pertubados que nossa parte não faltarão providenciais.
necessitavam ou que se obrigavam por regras Ao lado das boas iniciativas sempre estivemos.
sociais, culturais ou simplesmente pela decisão de A construção desse estabelecimento de caridade é
alguns familiares a receber cuidados institucionais, indispensavel. Sua utilidade é de todos nos
eram pessoas que acreditavam e promulgavam a conhecida. Logo, são superfluos quaesquer
doutrina espírita de Allan Kardec; estes, certamente, argumentos que venham desincentivar o auxilio
a peça chave de um quebra-cabeça político- da população. O necessario antes de tudo é o
econômico-religioso. amparo das autoridades asministrativas,
Mas não bastariam a fé e a crença para construir facultando e contribuindo monetariamente para o
este cenário peculiar que é um centro espírita, melhor êxito do emprehendimento, cujo montante
tratando dos doentes mentais em uma época será elevado e cuja utilidade não se pode de
dominada pela ciência racionalista-empírica. Daí momento mencionar. 3 (os grifos são meus)
surgiu a necessidade de buscarmos referenciais
conceituais como os de representação que expressam Objetivando apelar e concretizar o apoio dos
valores, visões de mundo diferenciadas, percepções populares ao projeto assistencialista, a
sobre o vivido, que os sujeitos históricos trazem em argumentação se dá de maneira impetuosa e
suas impressões, como também em práticas que imperativa, negando sucesso a qualquer tendência

302 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


contrária aos objetivos propostos, e direcionando os pela numerosa assistência a que encheu
ânimos para o apoio financeiro com os quais as territorialmente o recinto.
autoridades administrativas deveriam se ocupar. “Correio de Uberlândia” ao registrar semelhante
Esta ligação estreita entre os poderes oficiais e fato, o faz com aquela satisfação que lhe é muito
não-oficiais, entre os idealizadores da peculiar e se coloca de antemão ao lado dos
institucionalização da loucura nesta cidade e a dirigentes dessa nobre instituição, oferecendo-lhe
imprensa, continua ´levando-nos´ na direção o seu apoio franco e incondicional.
almejada.Veja este artigo transcrito de forma E aos dinâmicos impulsionados de tão significativa
integral publicado no jornal Correio de Uberlândia, empresa as nossas sinceras congratulações. 4

cinco (05) anos mais tarde, quando da consolidação


do projeto de construção de uma nova instituição Percebemos como é construída, através do
manicomial para a cidade de Uberlândia: discurso, a representação de uma cidade ordenada e
bem conscientizada da importância do
Sob A Mais Viva Satisfação, Inaugurou-Se assistencialismo público e interessada pelas questões
Domingo Em Nossa Cidade, O ‘Asilo De Dementes. sociais e morais. Fica evidente o alto status que pôde
Conforme já é do domínio publico, inaugurou-se contar a inauguração do Sanatório Municipal,
no dia 29 do mês de Abril próximo findo, o Asilo de várias autoridades políticas e vários representantes
Dementes Allan Kardec, instituição essa, construída de instituições autônomas e comerciais desta e de
pelo espírito altamente dinâmico e caritativo do outras cidades privilegiaram a solenidade, portanto
povo desta grandiosa Uberlândia e, patrocinada podemos deduzir que a construção de um sanatório
pela Associação Espírita. municipal a ser dirigido por espíritas-kardecistas
As finalidades dessa benemérita instituição, pelo atendia mais do que somente aos ´loucos´, atendia a
seu cunho verdadeiramente altruístico e um projeto coletivo de uma sociedade que se
humanitário não podiam mesmo deixar de merecer pretendia altamente progressista e capitalista,
o apoio incondicional de todas as pessôas de bom aglomerando e fundindo interesses de várias classes
senso - dar um abrigo àqueles que atravessando num empreendimento assistencialista que soava
por este orbe repleto de amarguras, ficaram muito bem.
privados de expressarem a sua vontade - a perca No árduo trabalho de minuciosa pesquisa nos
das faculdades mentais. jornais e panfletos, consegui extrair vários artigos
A cerimônia do ato inaugural foi presidida pelo de diferentes jornais que ilustraram muito bem não
trabalhador incansável da doutrina Espírita, o Sr. só o universo no qual insere-se a ‘loucura’ em
José Gonzaga de Freitas. Uberlândia, mas também os diversos discursos
Vários elementos de destaque de nossa sociedade constituintes de uma ordem urbana e econômica.5
emprestaram com a sua presença, maior Mesmo com um corte cronológico bem definido,
brilhantismo a festividade. Estiveram presentes, o para o melhor desenvolvimento do projeto não foi
representante do Sr. Prefeito; o Sr. Luiz Arantes conveniente que restringíssemos a investigação ao
Diretor do Centro de Saúde; o Sr. Dr. Manuel Teixeira período contemplado inicialmente (1932/1970),
de Souza, Venerável da Loja Maçônica; os pois fez-se necessário uma compreensão mais ampla
presidentes da Associação Comercial e dos da história local registrada na edificação de um
choferes; os membros da Diretoria do Centro ideário progressista no intuito de ratificá-la ou
Espírita desta cidade, vários representantes de desconstruí-la, então, assim estendemos por mais
outras associações de classe, desta e de outras vinte (20) anos, contemplando as décadas de oitenta
cidades do Triângulo e um número bastante (80) e (90), procurando rastros, pistas, indícios que
apreciável de pessôas que com a sua presença nos possibilitasse a contemplação de nossos objetivos.
levaram desde logo o seu apoio incondicional de O fato do espiritismo local eleger como um de seus
assistência aos obsedados. principais veículos de comunicação e propaganda,
Vários oradores se fizeram ouvir durante as as colunas publicadas semanalmente nos jornais em
solenidades, tendo sido calorosamente aplaudidos, que disseminava sua doutrina e notícias de suas

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 303


ações caritativas, comprova a inserção social de seus como se o progresso devesse abrir caminho
membros nos quadros das elites da cidade. atravez das maiores difficuldades.
Utilizando-se das tendências místico-religiosas (...)
imanentes à sociedade, conseguia-se alcançar Ora, o Espiritismo, veio agitar o mundo das idéas,
resultados de cooptação de simpatizantes e adeptos, e quando é a razão que se põe em marcha, as luctas
partindo do pressuposto de que as crenças religiosas são extraordinárias.
preparam uma espécie de paisagem imaginária, um As novas doutrinas espiritualistas estenderam sua
meio ilusório favorável a todas as alucinações e a acção a desciplinas várias e, ao mesmo tempo,
todos os delírios.6 invadem os domínios da philosophia, da sciencia e
O tipo de jornal de publicação intermitente e da religião. Eis, por conseqüência, os
periódica (excetuando os panfletos e jornais de curta conservadores de pé atraz. É o homem velho que
existência) sempre esteve aos serviços das elites se levanta espantado, atemorisado, irritado.
locais, e estas podiam usufruir do espaço da maneira Não são apenas “princípios” o que a doutrina
que lhes conviesse, de maneira sutil ou sendo muitas espírita vem abalar; é o commodismo, é o jogo
vezes indelicados e desrespeitosos. Esta liberdade de dos interesse. Ha mais ainda: os privilégios se
propagação de idéias é-nos uma rica fonte de sentem ameaçados.
desmembramento de parte das subjetividades O Espiritismo foi, pois, o espantalho que surgiu no
pertencentes ao imaginário da época. Podemos século passado e contra elle e contra sua these
apontar como um indício claro da arrogância e formou-se uma colligação geral. Todos os corpos
pretensa onipotência de certos membros dessas elites, doutrinários, todas as instituições, uté então
a maneira vulgar, dissimulada e agressiva que conflagradas pelas mais profundas divergências,
muitos se expressam nos meios de comunicação se ardunaram como as cidades gregas diante da
(particularmente nos jornais escritos). 7 alude persa.
Já a postura dos espíritas que disseminavam suas Sciencia e religião, que viviam em divorcio,
idéias em colunas e crônicas era de contorno dos irmanaram-se para combater o “inimigo”, como
preconceitos e conciliação das diferenças, sendo elas irmanadas ficaram as igrejas, até então umas com
quais fossem, furtando-se do confronto direto e as outras em perpetua guerra. É que o Espiritismo
negativo das contradições sociais. Durante a busca vinha alterar os processos que a sciencia tinha
de materiais encontrei centenas de artigos e crônicas estabelecido sobre a matéria e a vida, e perturbar
que versavam sobre o espiritismo, exclusivamente os meios que a religião firmara para a salvação
kardecista, levando à luz da opinião pública o seu das almas.(...) 8
status superior de ciência religiosa ou religião
científica. Observemos, então, o artigo de um engenheiro
Nesta perspectiva, quando relacionando com os que escreve para atestar o caráter racionalista-
‘males da razão’, colocava-se como a salvação que era científico do espiritismo, sempre pelo viés kardecista
esperada por todos de nossa sociedade, sempre usando (negando a pluralidade de seitas espíritas, tais como
de forte apelo emocional e linguagem culta. Faz-se a Umbanda e o Candomblé, capazes de encabeçar a
oportuno, agora, vislumbrarmos as semelhanças e discussão posta na relação matéria/espírito).
diferenças no discurso dos dois artigos/crônicas que
serão neste momento apresentados, um de 1937 e (...)
outro de 1952, demonstrando as variadas formas de O espiritismo, de acordo com as teorias
construção de um imaginário sadio à perpetuação kardecianos, demostra cientificamente a existência
da doutrina espírita-kardecista. da alma humana e do perispirito. Este, é
inseparável do principio pensante. Há uma
Não ha Idea nova que não soffra o ataque demonstração desta verdade, pelo estudo feito das
impiedoso dos homens. Esse ataque se estende a manifestações da alma, não só durante a vida do
tudo, ás innovações materiaes e ás espirituaes, homem, como depois de sua morte. (...) 9

304 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


Uberlândia prima pelo discurso de cidade ordeira através de outras fontes de importância
e progressista disseminado através da imprensa, da inquestionável; como é o caso dos processos crimes,
propaganda e da mídia, mas quando cruzamos estas das Atas da Câmara Municipal e de outros
representações com aquelas contidas nas fichas depoimentos inéditos. Neste caso, as dissertações de
médicas do Sanatório Espírita de Uberlândia e em mestrado do Instituto de História, de Rafael Ribeiro
alguns depoimentos orais, verificamos que esta e Riciele Majori Pombo, previstas para 2006 e,
ordem fez-se na medida em que se obliterou a portanto, posteriores ao fechamento deste trabalho,
diversidade, que se tentou homogeneizar as formas poderão revelar.
de viver e de produzir cultura. No campo político da religião, em suma, nos
Ainda no final do século XIX, o escritor Machado momentos em que houve, como foi verificado,
de Assis, em ‘O alienista´ 10, apontou esta tendência conflitos entre católicos e espíritas em Uberlândia,
perseverante de se achar o limite entre a razão e a na disputa do terreno ideológico, estes foram aos
loucura social e cultural além dos projetos poucos e pacificamente resolvidos, até pelo
institucionais (sem no entanto negar a existência ecumenismo que emanava da Igreja Católica. O que
real de perturbações mentais e dos casos patológico- não podemos deixar de evidenciar é que a criação e
orgânicos). Machado de Assis previu que o processo direção do Sanatório Espírita de Uberlândia, não só
social de homogeneização cultural agonizaria em coadunou com o espírito das elites locais na
âmbito nacional e que, de maneira realista o futuro disciplinarização do espaço urbano e da exclusão
seria estreito, num movimento em que, ao estilo de social, como foi elemento essencial para aceitação
Bacamarte (o médico-alienista do conto), quando o dessa religião e do seu reconhecimento pela
indivíduo se faz diferente se percebe louco e morre11. sociedade local. E essa assertiva referenda-se nessa
Isto é passível de comprovação através das fichas análise da imprensa uberlandense.
catalogadas e suspeitamos que também o será

Notas
1
Projeto incentivado pelo CNPq, 2001-2003. Folha Esportiva, Boa Vontade, Jornal do Professores Municipais,
2
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e Voz do Triângulo, Vida Escolar, O Terceiro Milênio, Tribuna do
representações. Lisboa: Difel, 1990. Triângulo, Pee rre, Ponta de Lança, Jornal dos Motoristas e O
3
Cogita-se da construção de novo penats. Diário de Uberlândia. Expediente.
Uberlândia, 22 jul., 1936, p. 01. 6
FOUCAULT, Michel. A história da loucura na idade clássica.
4
Correio de Uberlândia, ano V nº. 892 , 01 abr., 1942, p.01. 6ªed, São Paulo: Perspectiva, 1999. Ah! Se eu fosse autoridade
5
Contemplando informá-los, leitores, o quão vasto e multifacetado tiraria as cocegas a essas morenas enthusiasmadas... Tições!
se fez este trabalho de pesquisa, pontuarei a seguir todos os Percebamos, que o nome do artigo é “Estas pretas!”, adjetivação
materiais consultados e pesquisados, publicados entre 1897 a que o próprio autor chama entre parênteses de “uma grave
1990, durante o período em que o projeto ‘Almas enclausuradas: offensa!”.Desta maneira, fica fácil perceber a ironia vulgar que
práticas de intervenção médica, representações culturais e foi posta, tendo término no xingátorio “Tições!”.
cotidiano no Sanatório Espírita de Uberlândia (1932 - 1970)’ se 7
Apreciemos, então como exemplar, o artigo que se segue
estendeu. Jornais: A Reforma, Gazeta de Uberabinha, A nova Era, (PASCHINO. Estas pretas! O Progresso. Uberabinha, 04 out. 1914,
O Progresso, Paranayba, O Brasil, O Diário de Uberabinha, A n. 363, A. VIII, p.01.) e ficará mais fácil entendermos em que espaço
Notícia, O Triângulo, Repórter, O Município, A Folha e em que contexto é entendida a cidade de Uberlândia, ainda na
Municipal, Jornal de Uberlândia e o Correio de Uberlândia. segunda década do século em questão.Fui um fervoroso adepto da
Panfletos: A Livraria Kosmos, Binóculo, A Notícia, A Escola, A liberdade dos pretos; folguei immensamente com a extinção
Tribuna, A Chispa, O Aerolitho, O Lampeão, O Corisco, O dessa mancha negra que aviltava o meu amado Brasil; achei e
Garotinho, O Lápis, O Rabixo, O Relâmpago, O Sabre, A Letra 7, acho ainda boa, justa, santa, a lei de 13 de Maio de 1888. Entretanto
A Esperança, SertãoJudiciário, A Espora, Reflexo, O Alarme, A sempre pensei que essa lei devia ter dado aos pretos uma
Mariposa, A Farpa, A Garra, O Ideal, Diário da Revolução, O liberdade com restrincções; devia libertando-os, impor-lhes a
Triumpho, O Jornal Pequeno, A Pena, O Pioneiro, O Triângulo, obrigatoriedade do trabalho.
Mensagem, O Nacionalista, O Secundarista, A Província, O (...)
Arauto, O Companheiro, Tribuna Acadêmica, Uberlândia As sras. morenas (chamal-as de pretas é uma grave offensa!)
Comercial, A Escolar, Jornal Caça e Pesca, Tribuna de Minas, O então são intoleraveis! Querem andar muito bem vestidas,
Jornal do Triângulo, Mini-Notas, Jornal de Bolso, O melhor ainda do que as patroas, serem tratadas com muitas
Brasileirinho, O Evangelista, AESU Jornal, A Escola Rural, A attenções, não gostam de serviços grosseiros...
Raça, A Seara, A Escola Normal, O Mineirinho, O Povo, O (...)
Araponga, Hora H, Luz e Caridade, A Borboleta, O Momento, O Ah! Se eu fosse autoridade tiraria as cocegas a essas morenas
Correio Popular, Crítico Político, Democracia, O Bandeirante, enthusiasmadas...
O Programa, Brasil Central, Maria, Cruzeiro, O Ginasiano, Tições!
Mercúrio, Oásis, Voz Central, O Escolar, O Jornal, Oswaldo Cruz, Percebamos, que o nome do artigo é “Estas pretas!”, adjetivação
A Voz do Povo, A Tribuna Católica, Mocidade Livre, Nova Sento, que o próprio autor chama entre parênteses de “uma grave

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 305


offensa!”.Desta maneira, fica fácil perceber a ironia vulgar que 10
ASSIS, Machado. O alienista. São Paulo: Ática, 1.992. 22a ed.
foi posta, tendo término no xingátorio “Tições!”. 11
No intuito de aprofundar esta discussão, cito o meu trabalho
8
BARBOSA, Augusto. Espiritualismo. Jornal de Uberlândia. monográfico A ficção-científica em O alienista – Machado de
Uberlândia, 24 jan., 1937, N.105, A. II, p. 02. Assis, literatura e loucura, apresentado em julho de 2004, ao
9
MENDES, J. Franklin. A alma dentro da ciência espírita. O Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia.
Repórter. Uberlândia, 19 fev., 1952, A. 19, N.1478, p.03.

Referências

ASSIS, Machado. O alienista. São Paulo: Ática, 1.992. 22a ed. Correio de Uberlândia, ano V nº. 892 , 01 abr., 1942, p.01.
BARBOSA, Augusto. Espiritualismo. Jornal de Uberlândia. FOUCAULT, Michel. A história da loucura na idade clássica. 6ªed,
Uberlândia, 24 jan., 1937, N.105, A. II, p. 02. São Paulo: Perspectiva, 1999.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e MENDES, J. Franklin. A alma dentro da ciência espírita. O Repórter.
representações. Lisboa: Difel, 1990. Uberlândia, 19 fev., 1952, A. 19, N.1478, p.03.
Cogita-se da construção de novo penats. Diário de Uberlândia . PASCHINO. Estas pretas! O Progresso. Uberabinha, 04 out. 1914, n.
Uberlândia, 22 jul., 1936, p. 01. 363, A. VIII, p.01.

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O Fantasma Enjaulado: as relações de poder e a
fabricação da loucura

William Vaz de Oliveira


Graduando em História e Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia-UFU

Resumo Abstract
Este artigo discute algumas das diversas unidades In this article we discuss some of the several social
microssociais, como a família, a escola, e a própria unities such as family, school and psychiatric
instituição psiquiatra, onde a loucura é institutions, where madness is gradually
paulatinamente fabricada pela relação constante produced by constant power relations.
de poder. Além disso, aponta algumas práticas Furthermore, we point out some violent practices
violentas utilizadas no tratamento psiquiátrico ao of psychiatric therapy that have occurred during
longo da História. History.
Palavras-chaves: Loucura, Poder, Sociedade. Keywords: Madness, Power, Therapy

Os poderosos sempre conspiram contra seus familiar, escolar, quanto aquelas que se
súditos e procuram mantê-los no cativeiro; e, para desenvolvem numa perspectiva macro, ou seja, no
atingir seus objetivos, sempre se valeram da força âmbito do Estado e instituições governamentais,
e da fraude. De fato, quanto mais eficaz é a retórica fazem emergir os lugares sociais e a definição de
justificativa com a qual o opressor esconde e falseia papéis para cada membro da sociedade, e o desvio de
seus verdadeiros objetivos e métodos-como foi o certos padrões morais, definidos nesse processo,
caso antigamente da tirania justificada pela podem render ao infrator sanções que vão desde a
teologia, e é agora da tirania justificada pela privação de bens públicos até a privação de liberdade
terapia-o opressor tem sucesso, não somente em e seu confinamento em manicômios e prisões.
subjugar a vítima, mas também em roubar-lhe um Nessa perspectiva, a construção de um
vocabulário com o qual possa articular sua imaginário coletivo evidencia os preceitos morais e
condição de vítima, transformando-a, desse modo, éticos aceitos pela maioria, mas que, quase sempre,
num cativo desprovido de todos os meios de são definidos por uma minoria que é a representação
escapar.1 simbólica do poder. O exercício do poder, portanto,
ultrapassa os limites institucionais, fazendo-se valer,
É no campo das relações de poder que os sobretudo nas relações não institucionalizadas, em
indivíduos se definem enquanto sujeitos dominantes que o eu e o outro representam as peças fundamentais
e sujeitos dominados. A eficiente arte da dominação do quebra-cabeça político. È nesse campo de
sempre se valeu da expropriação de saberes, em que disputas, que as representações vão tomando, aos
as redes de significados seguem as leis dos mais fortes. poucos, os seus verdadeiros significados. Significados
É nesse sentido, pois, que o imaginário coletivo estes, definidos historicamente e por sujeitos
evidencia um campo político social de disputas históricos, porque o imaginário social só tem sentido
constantes entre as memórias individuais. Tais se for analisado no seu contexto histórico e social em
relações de poder, tanto aquelas travadas nas que é construído. Como lembra o filósofo Michel
unidades microssociais, isto é, na instituição Foucault:

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 307


A doença só tem realidade e valor de doença no mostra que a loucura segue uma trajetória histórica,
interior de uma cultura que a reconhece como tal incorporando, ao longo desse processo, diversos
[...]. Daí cada cultura formará da doença uma significados. Sua análise versa sobre esses
imagem cujo perfil é delineado pelo conjunto das significados indo desde a Idade Média, os anos
virtualidades antropológicas que ela negligencia apocalípticos são evidenciados, desde a construção
ou reprime. 2
dos hospitais gerais e a institucionalização da
loucura.
Desse ponto de vista, cada sociedade tece a sua Para o autor, as sociedades não se reconhecem
rede de significados, baseando-se nas concepções nas doenças que criam, assim que diagnosticam a
polarizadas, ou será maniqueístas, de “bem” e “mal”, doença, afastam o doente do convívio social e o nega
“normal” e “anormal”, “saúde” e “doença”. A enquanto peça fundamental da sociedade. Nesse
loucura se define, nesse sentido, enquanto o pólo sentido, dado que as análises da loucura são uma
oposto da sanidade que deve ser preservada. E como projeção de temas culturais, o autor nos coloca duas
a loucura é de natureza abstrata, o seu combate se questões fundamentais: Como chegou nossa cultura
faz a partir do tratamento daquele que a carrega: “o a dar à doença o sentido do desvio, e ao doente o
louco”. Mais uma vez o “mal”, representação dos status que o exclui? E como, apesar disso, nossa
sentidos, deverá ser combatido pelo “bem” que é sociedade exprime-se nas formas mórbidas nas quais
representado pela razão. Afinal de contas, a loucura recusa reconhecer-se? Segundo Foucault: “Todas as
é a representação simbólica da alienação, é o histórias da psiquiatria quiseram mostrar no louco
expressar convulsivo da desrazão. da Idade Média e do Renascimento um doente
Assim como Foucault, vários autores discutem a ignorado, preso no interior da rede rigorosa de
questão dos mecanismos de poder como significações religiosas e mágicas”. 4
desencadeadores da neurotização e até mesmo do Para o filósofo, a loucura na Idade Média
enlouquecimento das pessoas. Trabalhos como os dos carregava um não sei o que de projeção imagética e
adeptos da Antipsiquiatria, nova ciência de espécie mágica. A expressão onírica da realidade alienada
revolucionária surgida nos anos sessenta, era vista como o anúncio que os fins do tempo não
debruçaram-se sobre as relações travadas no interior mais lograva. Num universo em que a religião
das instituições, bem como das relações de poder não funcionava enquanto o reduto incontestável da
institucionalizadas, consolidando uma nova forma verdade sobre todas as coisas, a loucura carregava
de pensar a loucura, não do ponto de vista do em seu seio as marcas da conotação divina. Ao louco
enclausurador, mas do encarcerado, do louco, era reservado um espaço manifesto no âmbito
deixando o mesmo se expressar. Tais trabalhos social, era a representação do profeta que anunciava
constituem-se, portanto, em fontes ricas em a corrida dos velhos tempos e o anúncio do porvir.
significados e de extrema importância para aqueles Substituiu o leproso, dividiu espaço com os assuntos
que pretendem analisar desde as relações pertinentes à morte. A lepra foi substituída pelas
interpessoais cotidianas até os conflitos sociais e a doenças venéreas que, a posteriori, viu a loucura
construção da loucura. 3 desbravar-se no horizonte das patologias medievais,
Foucault dedicou-se ao estudo da loucura mas a preocupação central ainda versou sobre a
tentando compreender as diversas formas de morte escancarada nos rostos atingidos pela Guerra
relações existentes entre as sociedades e os seus e pela peste. A Idade Média fez surgir o louco em sua
loucos. Sua grande preocupação centrava-se nas roupagem romantizada, mas não um exemplo a ser
diferenças de significados existentes entre as seguido. Como lembra Foucault:
diferentes culturas e as diferentes concepções de
loucura. Investiu na análise da Loucura, A Igreja não aplica sanções contra um sacerdote
considerando-a como condição histórica dotada de que se torna insano; mas em Nuremberg, em 1421,
significados que refletem os pensamentos presentes um padre louco é expulso com uma particular
em determinados contextos históricos. Em seu livro solenidade, como se a impureza se acentuasse pelo
A História da Loucura na Idade Clássica, o autor caráter sacro da personagem, e a cidade retira de

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seu orçamento o dinheiro que devia servir-lhe de eternamente reversível que faz com que toda
viático. Acontecia de alguns loucos serem loucura tenha sua razão que a julga e controla, e
chicoteados publicamente, e que no decorrer de toda razão sua loucura na qual ela encontra sua
uma espécie de jogo eles fossem a seguir verdade irrisória. Cada uma é a medida da outra, e
perseguidos numa corrida simulada e nesse movimento de referência recíproca elas se
escorraçados da cidade a bastonadas. 5
recusam, mas uma fundamenta a outra. 6

Com o advento da modernidade, a religião deixa Nesse momento, a busca pela modernidade, faz
de ser o centro de fundamentação dos saberes, surgir à figura das grandes cidades. A modernidade
cedendo lugar à razão que passa a explicar a verdade estampada nas grandes construções, em pontes e
sobre o universo, a partir da experimentação torres, personifica os ideais do poder almejado. O
empírica e a exploração técnica da natureza. O homem passa a carregar em si as marcas profundas
desenvolvimento tecnológico passa a atender às dos novos tempos; os efeitos deletérios da máquina, o
necessidades do homem que não mais contenta em corpo cansado do trabalho pesado das fábricas. As
explicar as coisas a partir da sobrenaturalidade. A cidades crescem, aumentando o número de
natureza poderia render bons frutos, desde que mendigos, doentes e maltrapilhos. A varrida do louco
pudesse ser explicada e conhecida, o investimento em da escala pública ganha, nesse tempo, uma conotação
viagens planetárias explorou os limites geográficos, estética, em que o doente não se confunde com
promovendo a busca por terras longínquas, por mares nenhum dos padrões de beleza, ao contrário, suja e
nunca dantes navegados. Tal pensamento levou a cabo contamina a cidade. Ele precisa ser varrido para
a corrida imperialista, bem como o processo de que a ideologia moderna supere as marcas da
colonização de povos diversos. África e América foram contradição.
os principais continentes de retenção de matérias- Segundo Foucault, é nesse momento que a
primas e de mãos-de-obra escrava e barata. definição de doença mental em estilo positivista é
É nesse contexto que a literatura clássica faz alcançada. Em meados do século XVII, o mundo da
surgir os novos bobos, que dessa vez tiveram a corte loucura vai tornar-se o mundo da exclusão. O louco
substituída pelos hospitais gerais. O “bem” e o “mal”, precisa ser fechado e os furiosos deverão ser mantidos
traduzidos pelo maniqueísmo cristão dos tempos fora do alcance social. Surgem em toda a Europa
medievais, são, agora, substituído pela “razão” e a casas especializadas para receber os desajustados
“desrazão” dos tempos modernos. O doente passa a varridos da esfera pública. Essas casas se articulam
ser o responsável pela sua própria doença e o louco não para receber os dementes e loucos, mas,
carrega em si as marcas discrriminatórias da também, englobam uma série de indivíduos que não
irracionalidade e da desrazão. Em O Elogio da condiziam com os ideais da modernidade, desde
Loucura, Erasmo de Roterdã mostra que a loucura mendigos, maltrapilhos, inválidos, portadores de
não está ligada ao mundo e às suas formas doenças venéreas, até os desempregados e libertinos
subterrâneas, mas sim ao homem, e suas fraquezas, de todas as espécies. Em resumo, “todos aqueles que,
seus sonhos e suas ilusões. A loucura não está mais à em relação a ordem da razão, da moral e da sociedade,
espreita do homem, como estava nas pinturas de dão mostras de alteração”. Lembra Foucault que:
Bosch, Ela se insinua nele, é ela um sutil
relacionamento que o homem mantém consigo Nas workhouses, os internos eram forçados a
mesmo. Segundo Foucault, A renascença rompeu trabalhar, a obrigação do trabalho tinha também
com uma realidade que via a loucura como expressão um papel de sanções e de controle moral. É que, no
de realidade subumana, mas promoveu uma grande mundo burguês em processo de Constituição, um
diminuição do homem, ao defini-lo em termos vício maior, o pecado por excelência no mundo do
puramente racionais. Segundo o autor: comércio, acaba de ser definido; não é mais o
orgulho nem a avidez como na Idade Média; é a
A loucura torna-se uma forma relativa à razão ou, ociosidade. 7

melhor, loucura e razão entram numa relação

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 309


Vê-se o espírito do capitalismo na fundamentação interioriza essa condição e passa a se comportar como
dos centros de correção desse período. O desbunde e a tal. Em A Casa dos Loucos, Foucault acentua:
ociosidade eram a pedra de toque a ser combatida
pelos grilhões da moralidade moderna. Os indivíduos Sabemos sobre sua doença e sua singularidade
deveriam curar-se da sua insanidade através da coisas suficientes, das quais você nem sequer
labuta, que seguia uma rotina rigorosa de trabalhos desconfia, para reconhecer que se trata de uma
forçados e controle do tempo. Nesse novo mundo doença; mas desta doença conhecemos o bastante
asilar a loucura encontra-se submetida ao controle para saber que você não pode exercer sobre ela e
rígido inserida no sistema dos valores e das repressões em relação a ela nenhum direito. 9
morais. Acrescenta Foucault:
Seguindo a lógica proposta pelo filósofo, surge nos
[...] o louco deverá ser submetido a um controle anos quarenta uma ciência que negava, em seu
social e moral ininterrupto; a cura significará cerne, as afirmações feitas pela Psiquiatria
reinculcar-lhe os sentimentos de dependência, Tradicional de que a loucura era uma doença da
humildade, culpa, reconhecimento que são a mente causada por fatores hereditários, bioquímicos
armadura moral da vida familiar. Utilizar-se-ão e endócrinos. Como mostra o psicólogo João
para consegui-lo meios tais como as ameaças, Francisco Duarte Júnior, o termo Antipsiquiatria
castigos, privações alimentares, humilhações, em foi cunhado por David Cooper, um psiquiatra sul-
resumo, tudo o que poderá ao mesmo tempo africano de descendência inglesa, que a partir dos
enfatizar e culpabilizar o louco [...]. O louco tinha estudos de alguns outros especialistas, e juntamente
que ser vigiado nos seus gestos rebaixado nas suas com Ronald David Laing, um psiquiatra inglês,
pretensões contradito no seu delírio, ridicularizado passou a discordar dos métodos de estudo e de ação
nos seus erros: a sanção tinha que seguir da psiquiatria e psicologia “tradicionais”. Para o
imediatamente qualquer desvio em relação a uma autor:
conduta normal. E isto sob a direção do médico
que está encarregado mais de um controle ético A Antipsiquiatria é uma tentativa de se
que de uma internação terapêutica. Ele é, no asilo, compreender o comportamento humano de um
o agente das sínteses morais. 8 ponto de vista diferente daquele utilizado pela
psiquiatria e psicologia ‘tradicionais’. Este ponto
É notório que os trabalhos de Foucault vêm de vista recua até a visão mais geral sobre a
denunciar, não a ciência que prega a existência e a organização político-econômica do mundo, onde
necessidade de tratamento da doença mental, mas, estão inseridos os homens. Sendo uma maneira
ao contrário, a violência praticada contra o doente diferente de abordar a questão do comportamento
desde tempos imemoriais. A sua tese de que a loucura humano e, por decorrência, a questão da ‘doença
é construída no centro das relações de poder, coloca mental’, a antipsiquiatria é também uma proposta
o tema no centro das discussões políticas, fazendo-se distinta de como se atuar junto aos indivíduos
compreender que não é apenas o louco responsável considerados ‘doentes, ‘desviantes’ ou
pela sua demência. Quiçá, sabe o louco, o significado ‘loucos’[...]. 10

compreendido pela Ciência a respeito de suas


neuroses. Ao louco não cabe o direito de dizer a Nesse sentido, a Antipsiquiatria considera que
verdade sobre si mesmo, a Instituição expropria-se os tratamentos psiquiátricos tradicionais atendem
de seus saberes, tornando-se a detentora dos saberes a interesses políticos e econômicos bastante claros;
acerca da loucura. É assim que ela promove o considerando a natureza política da ciência
controle sobre o indivíduo, seus instintos e pulsões, psiquiátrica que anula o indivíduo em nome da
reflexos de sua degenerescência mental, devem ser manutenção da ordem e o bom exercício do poder.
vigiados e à medida que ela introduz na mente do Ela pune encarcerando aqueles indivíduos
indivíduo a sua condição de doente, ele acaba considerados improdutivos e perigosos para o sistema
exercendo o controle de si mesmo, ao passo que capitalista. Em Vigiar e Punir, Foucault lembra que

310 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


o sistema realiza um processo de docilização dos anos sessenta seus maiores aliados. Essa ciência que
corpos com a finalidade de dominálos com maior animava os jovens carregava em seu seio a esperança
facilidade e eficiência, nesse caso, o corpo tem uma de uma sociedade mais justa e menos totalitária.
representação simbólica, isto porque, ao se conhecer Seu caráter libertário transfere a discussão da
os limites do corpo, reservados ao espaço da loucura do reduto fechado da Instituição Psiquiátrica
intimidade e dos desejos mantidos pelo princípio do para a esfera pública, tornando-a acessível aos leigos
prazer, o sistema controla os campos de vazões e desprovidos de conhecimento da nomenclatura
libidinais, trazendo o indivíduo ao campo do princípio científica. A expressão da loucura através da
de realidade, promovendo o controle sutil de todas linguagem literária, poética, política, musical e
as suas formas de se comportar. O olho que vigia é o filosófica, traz a doença mental para outros campos
mesmo que pune. Segundo o filósofo, não há como de discussão. Criando um discurso contra o
escapar visto que o inimigo não se identifica. 11
totalitarismo, a opressão e a miséria social.
Ao acreditar na natureza política da construção Dessa forma, a Antipsiquiatria aproxima-se da
da doença mental, a Antipsiquiatria acaba Contracultura, ao passo que, denuncia as mazelas
considerando que a loucura é fabricada por razões e sociais refletidas nos serviços psiquiátricos
mecanismos do poder, propondo soluções coerentes e ineficientes e retrógrados e nas mentes sofridas das
possíveis, porém ameaçadoras à ordem estabelecida. vítimas desses tratamentos. Vários jovens sofreram
Os antipsiquiatras sabem que a existência do que se na pele as marcas da discriminação, bodes expiatórios
convencionou chamar de “loucura” é utilizado pelos de um sistema ordeiro tornaram-se inativos pela
sistemas autoritários como forma de perseguir seus incorporação dos mitos e preconceitos. O rótulo de
heréticos e contestadores. É só voltar para o caso da doente mental reserva ao indivíduo a condição de
USS e constatar a que os manicômios se encheram improdutivo e insociável. Não há um método mais
de inimigos políticos no período da ditadura ferrenha evidente de invalidação do sujeito que o seu
de Stálin, a pior das ditaduras que o Ocidente já viu enquadramento dentro de conceitos
florescer. Os manicômios em muito se confundiram predeterminados. Guilhon de Albuquerque pensa
com as prisões, reduto incontestável do asilo dos essa questão em que a ordem e a desordem se definem
inimigos do poder. Como mostra Jean-Claude metaforicamente enquanto a representação da
Arfouilloux sanidade e da loucura respectivamente. Em
metáforas da desordem, o autor mostra o horror que
[...] não foi por mero acaso que, em maio de 68, a a ordem social manifesta diante da desordem que
Psiquiatria foi um dos meios mais abalados pela ela mesma provoca. É uma análise do momento em
contestação. É porque ela ocupa na sociedade uma que a desordem mental é institucionalizada e
situação nodal em que se entrelaçam o campo apropriada como objeto real do saber e poder legítimo
individual e o campo social, em que a pressão por instituições socialmente reconhecidas, que, a
política se exerce com particular insistência [...]. bem da verdade, se fazem reconhecer precisamente
Basta, por exemplo, assimilar a dissidência política pelo domínio que exercem sobre a insanidade e seus
e o desvio mental para julgar que os adversários defeitos nos indivíduos e coletividades. A tentativa
do regime político vigente são doentes mentais e de explicar a decorrência das desordens mentais, seja
interná-los em hospitais psiquiátricos especiais, a partir do estudo das disfunções orgânicas, biológicas
como se pratica atualmente na União Soviética. O ou endócrinas, refletem o interesse da ciência em
psiquiatra cede facilmente à tentação de arvorar- reservar para si o direito de dizer a verdade sobre a
se em especialista da felicidade, tanto mais que loucura, localizando-a no rol das doenças, e
não lhe faltam solicitudes para levá-lo a legislar determinar as formas que devem ser utilizadas no
em domínios que estão fora de sua competência. 12
tratamento dos doentes. Segundo Albuquerque:

A busca pela felicidade e o respeito mútuo Não é de se estranhar, dentro dessa perspectiva,
imprimiu ao pensamento antipsiquiátrico um que a tentativa de medicalização da doença mental,
caráter utópico que encontrou nos românticos dos de apropriação da loucura dentro de um paradigma

Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005 311


científico, viesse a confundir, numa grande e o Estado, ou, em outros termos, é a família o
mixórdia, a metáfora junto com as coisas, lutando primeiro grupo educativo de que se vale o Estado
em todas as frentes de noção de lei e de ordem, para formar seus futuros cidadãos. 14 Como aponta
beneficiando-se das vantagens de todos e David Cooper:
eximindo-se dos limites de cada uma. 13
[...] a família é especialista em estabelecer papéis
O campo de batalha arma-se no limiar das para seus membros, mais do que em criar
relações, em que o conflito entre o indivíduo e a condições para cada um assumir livremente a sua
sociedade contraria aqueles que acreditam que essa identidade [...]. Caracteristicamente, em uma
deveria ser uma relação harmônica. As instituições família, a criança é doutrinada com o desejo
montam suas frentes de batalha, na qual a (desejado pelos pais) de se tornar determinada
linguagem, enquanto exercício da retórica, espécie de filho ou filha (e mais tarde, marido,
transforma-se na mão do carrasco que exclui e esposa, pai, mãe) com uma totalmente imposta, e
elimina o outro que não tem o direito de se expressar. minuciosamente estipulada liberdade para mover-
São as famosas Torres de Babel que impedem a se dentro dos estreitos interstícios de uma rígida
comunicação de se fazer entendida. Os antipsiquia- trama de relações. 15
tras consideram que a dupla significação do discurso
é a origem do comportamento esquizofrênico. A Desse ponto de vista, os micros universos sociais
linguagem transforma-se, dessa forma, num objeto (sociedade civil) acabam reproduzindo aquilo que é
de estudo rico para aqueles que consideram a ditado pelo macro universo (Estado), como o certo
esquizofrenia como a doença modelo, classificada ou errado, normal ou anormal e assim por diante.
pela Psiquiatria Tradicional como loucura. No Brasil, no período da ditadura, por exemplo, a
O discurso de duplo vínculo, termo cunhado por sociedade civil foi responsável por um grande
Franco Basaglia, Psiquiatria italiano, carrega em si número de denúncias. O caso de Austregésilo
a afirmação e a negação. Quando a mãe diz ao filho, Carrano Bueno, presente no Livro Canto dos
por exemplo, que sente feliz que ele se sinta maduro Malditos16, autobiografia que inspirou o filme Bicho
e queira sair de casa, mas ao mesmo tempo deixa de Sete Cabeças, da diretora Laís Bodansky,
saltar dos olhos algumas lágrimas sofridas, ela evidencia essa transferência ideológica, em que o
imprime em seu discurso de aprovação a condição Estado se faz valer por meio das unidades sociais que
de seu sofrimento. Nesse sentido, o filho perde-se em ele mesmo gesta. É só lembrar que Carrano é
sua indecisão, ao perceber que sua partida causará internado pelo pai a pedido de um amigo seu que era
o sofrimento de alguém que ele tanto ama. Quando militar. Quando o doente perturba a ordem ele deve
essa situação é repetida com muita freqüência, ela ser tirado de cena a fim de que o espetáculo não seja
gera, segundo a antipsiquiatria, o indivíduo fadado ao fracasso. Se não há um vírus biológico é
esquizofrênico. necessário construir os vírus sociais, e são a partir
No entanto, a antipsiquiatria percebeu que o destes que a sociedade invalida seus membros sob o
discurso só se torna duplo-vinculador nas relações rótulo de hiperativo, improdutivo, esquizofrênico,
em que existe afetividade. Nesse sentido, o estudo da louco, portador de distúrbio bipolar, etc.
instituição familiar tornou-se pano de fundo para se Dessa forma, a construção social de patologias se
pensar a origem dos comportamentos do faz a partir do uso do poder, no qual quem sabe mais
esquizofrênico. O estudo da estrutura familiar, seu dita as normas e, áqueles destituídos do
jogo de relações internas e externas, constitui-se no conhecimento, só lhes restam internalizar os
capítulo central da Antipsiquiatria. Visto que a conceitos e aceitar a sua condição de doentes. As
estrutura familiar é decorrente do contexto cultural instituições, portanto, enquanto portadoras dos
em que ela se encontra num ambiente autoritário, conhecimentos das idéias que carregam mediante
a família acaba reproduzindo os vícios encontrados seu discurso, criam mitos e preconceitos. Ao ser
na estrutura maior da sociedade. Segundo Laing, A rotulado de louco, por exemplo, o indivíduo aos
família é quem promove a mediação entre o indivíduo poucos vai incorporando essa idéia passando a se

312 Cadernos de Pesquisa do CDHIS - Número Especial - Vol. 33 - Ano 18 - 2005


comportar como se o fosse. Basta manter um homem diversos enfoques. Jurandir Freire Costa, em seu
são por algum tempo dentro de um manicômio que livro A História da Psiquiatria no Brasil, nos apresenta
em breve ele se dará como louco. A Psiquiatria o pensamento eugenista enquanto ideal de
Tradicional se torna violenta à medida que cria higienização mental, sendo que a incorporação desse
patologias e impede o doente de se expressar. Reserva pensamento no Brasil aproxima-se dos ideais nazistas
em si o direito de dizer a verdade sobre o indivíduo, da Psiquiatria alemã. Desse ponto de vista, o fato de
impedindo que ele se expresse. Ele não tem o direito ter sido publicado nos Arquivos de Higiene Mental a
de fazer sua própria defesa, pois tudo o que disser Lei eugênica alemã de 1934 dá a impressão de
não passará de meros reflexos de sua insanidade. reforçar as idéias do autor. Num período atribulado
No Brasil, a doença mental ganhou os seus moldes da história brasileira; crise econômica de 1929,
a partir da incorporação do pensamento da Eugenia Revolução de 1930; revolta constitucionalista de
importado dos Estados Unidos. Vê-se o ideal da 1932; revolta comunista de 1935; tentativa de golpe
sociedade moderna em construir suas grandes integralista de 1938. Vivia-se um período de
cidades e manter a sua aparência impecável. Eis, afirmações totalitárias e o Brasil convivia com a
pois o pobre, o mendigo, e o desajustado social ditadura Vargas que tentava se equilibrar entre as
enclausurados pela força dos conceitos eugênicos e forças em luta pelo mundo.
trancados nos porões da insanidade. A idéia dos Assim, nota-se o interesse do Estado em mediar a
eugenistas americanos era identificar os portadores relações sociais, por meio do controle do espaço
de “germes defeituosos”, impedir sua reprodução pela público em consonância com o espaço privado. Nesse
segregação e esterilização. Segundo alguns autores, sentido, as práticas psiquiátricas assumem suas
Edwin Black, por exemplo, as idéias dos eugenistas nuances políticas. Higienizar significa limpar o que
americanos inspiraram Adolf Hitler, que assume o é sujo e preservar o que é puro. Num governo
poder na Alemanha em 1924, ao promover o autoritário não fica difícil perceber o que deve ser
aperfeiçoamento da raça ariana. Como lembra o
17
varrido o que deve ser escondido. Aqueles que
historiador Roberto Machado, as idéias da eugenia, contestam as ordens e aqueles que enxergam demais
melhora da descendência, se espalharam pelo e falam demais. Numa sociedade em que ninguém
mundo, conquistando adeptos em muitos países, quer ver, enxergar além dos horizontes pode custar
inclusive no Brasil. Esses adeptos não eram caro ao observador. A corrida contra o Comunismo
necessariamente médicos, escritores, juristas e depois da Primeira Grande Guerra, a ameaça
empresários que se filiavam a essa corrente de vermelha, o surgimento das paixões revolucionárias
pensamento. Dentro dessas idéias provindas dos do século vinte, tendo o fascismo e o Comunismo como
Estados Unidos, foi fundada em 1917 a Sociedade seus maiores expoentes. São dentro desses quadros
Higiênica de São Paulo. Para os eugenistas que a política de doença mental deve ser pensada.
americanos, nossa miscigenação racial era Não é por acaso que foi justamente nos períodos de
completamente oposta aos seus desígnios. 18 choques adversos, crises financeiras e guerras que
Numa sociedade que assistiu, desde tempos os manicômios mais se insuflaram. Também não é
remotos, ao alvorecer da escravidão, e a sua por aços que durante os governos autoritários que a
derrocada tardia em fins do século dezenove, não é doença mental se tornou mais evidente.
de se surpreender que tenha logo se filiado ao O Brasil dos anos setenta viu o alvorecer de um
pensamento eugenista. Uma cultura número gigante de manicômios. Nesse período
constantemente marcada pelo contato de sangues existiam as clínicas particulares onde os mais
diversos, desde o latino até o escravo africano, talvez privilegiados internavam seus doentes. A doença
seja a sociedade mais miscigenada do mundo. O ideal mental foi mercantilizada, podia-se encontrar uma
de branqueamento da sociedade nos leva a crer que clínica em lugares mais remotos do país. A ditadura
o sentimento de chegar a uma raça pura não se militar facilitou a circulação dessas instituições, visto
reserva à imagética pessoa de Hitler. que elas geravam lucros. E como bem se sabe, a
Nesse sentido, o pensamento eugenista no Brasil economia só anda quando existem os consumidores
tem sido abordado em diferentes perspectivas e para o consumo de mercadorias, essa é a lógica do

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sistema mercadológico. Assim, para sobreviverem, se pensar o indivíduo em sociedade. Não é mediante
essas instituições precisavam de clientes, e para que o combate fervoroso e da depreciação da ciência
existissem clientes era preciso existir a loucura. psiquiátrica que se chegará a uma forma eficiente
Haveria alguma relação entre o espírito capitalista de tratamento do doente mental. A denúncia à
de mercado e a fabricação da loucura? E mais, teria violência praticada dentro dos hospitais
a ditadura militar alguma relação com essas psiquiátricos deve ser feita constantemente, mas o
instituições? Há que se pensar nessas questões com embate entre as diversas correntes de pensamento
o maior cuidado. Se a Psiquiatria Tradicional a cerca da loucura não deve perder a convicção de
praticou sua violência contra seus doentes, ela que o tratamento humanista do doente mental é o
precisa prestar contas à sociedade, redimindo de seus que mais importa. O diálogo entre as diferentes
erros e dando voz às suas vítimas. E é por isso que correntes de pensamento pode render bons frutos
estas vítimas precisam ser ouvidas. 19
àqueles que não se prendem em afirmações
Sendo assim, ao se analisar o indivíduo e suas paradigmáticas e ficar discutindo quem deve dizer
condições mentais, é necessário considerar a relação ou falsear as verdades acerca da loucura é uma perda
que estabelece com o meio social em que ele vive. É de tempo. Como foi dito, ela é uma doença social,
na sociedade que o sujeito se constitui enquanto devendo ser, portanto, uma preocupação de toda a
indivíduo, é nela que deve ser buscada a origem de sociedade e não somente da Medicina, da Psiquiatria,
seus transtornos. Nesse sentido, a Ciência das Neurociências ou, enfim, das ciências formais.
Antipsiquiátrica pode nos fornecer um norte para É preciso fazer a crítica.

Notas
1
SZASZ, Thomas S. Ideologia e Doença Mental: Ensaios sobre a 11
Ver FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da Violência
Desumanização Psiquiátrica do Homem. Rio de Janeiro: Zahar, nas Prisões. Petrópolis: Vozes, 1977. MARCUSE, Herbert. Eros e
1980, p.13. Civilização: Uma Interpretação Filosófica da Obra de Freud. Rio
2
FOUCAULT, Michel. Doença mental e Psicologia. Rio de janeiro: de Janeiro: Zahar, 1969.
Tempo Brasileiro, 1975, p.71-72. 12
ARFOUILLOUX, Jean-Claude. Antipsiquiatria: Senso ou Contra-
3
Ver LAING, Ronald David. O Eu Dividido: Estudo Existencial da Senso? Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p.26-27.
sanidade e da Loucura. 3. ed., Petrópolis: Vozes, 1978; O Eu e os 13
ALBUQUERQUE, J. A, Guilhon. Metáforas da Desordem: O
Outros: O Relacionamento Interpessoal. 4. ed., Petrópolis: Vozes, conceito Social da Doença Mental. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1978. 1978, p. 19. Sanidade, Loucura e a Família. Belo Horizonte:
4
Ver FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Rio de Interlivros, 1980.
Janeiro: Tempo Brasileiro 1975. 14
Cf. LAING, Ronald David. A política da Família e outros Ensaios.
5
Cf. FOUCAULT, Michel. A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Martins Fontes, 1975; Sanidade, Loucura e a Família.
São Paulo: Perspectiva, 1987, p.11. Belo Horizonte: Interlivros, 1980.
6
Ver ROTERDAM, Erasmo de. O Elogio da Loucura. São Paulo: 15
COOPER, David. A Morte da Família. Buenos Aires: Paidos, 1973,
Martins Fontes, 1997. Brasileiro, 1975, p. 79. p.25.
7
FOUCAULT, Michel. Loucura e Cultura. In: Doença Mental e 16
BUENO, Austregésilo Carrano. Canto dos Malditos. Rio de
Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 79. Janeiro: Rocco, 2001.
8
Cf. FOUCAULT. Michel. Doença mental e Psicologia. Rio de 17
Cf. BLACK, Edwin. A Guerra contra os Fracos: A Eugenia e a
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.82. Campanha Norte Americana para criar uma Raça Superior. São
9
FOUCAULT, Michel. A Casa dos Loucos. In Microfísica do Poder. Paulo: A Girafa, 2003.
Rio de Janeiro: Graal, 1979. 18
Cf. MACHADO, Roberto (Org.). Danação da Norma. Rio de Janeiro:
10
DUARTE JR., João Francisco. A Política da Loucura (A Graal, 1978.
Antipsiquiatria).P.13 19
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