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São Paulo, Sábado, 08 de Maio de 1999

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O ensaísta e crítico literário Davi Arrigucci


Jr. reúne seus ensaios em "Outros Achados
e Perdidos"
A graça da miscelânea
AUGUSTO MASSI

Davi Arrigucci Jr. conseguiu escrever um livro


antigo que é admiravelmente novo. Os 20 anos
que separam a primeira publicação de
"Achados e Perdidos" (1979) da sua versão
atual, "Outros Achados e Perdidos", fizeram
bem ao primeiro. Alguma coisa terão herdado
do futuro. Para usar a linguagem dos
computadores, ao expandir a memória da obra,
Davi aumentou sua capacidade crítica.
À primeira leitura é possível traçar uma linha
de continuidade entre os dois livros. Em ambos
reencontramos uma endiabrada curiosidade
intelectual, a fidelidade do leitor a certos
autores e um universo crítico coeso, ainda que
sempre disposto a contemplar o fragmentário.
O que se nota de imediato é um forte desejo de
integrar, criar redes de relações, aderir ao
objeto. Talvez, por isso mesmo, manifeste um
profundo interesse por tudo que se desgarra, a
forma enigmática que fascina e resiste à
interpretação.
Uma leitura mais cerrada revela alguns
deslocamentos. No primeiro "Achados e
Perdidos" os ensaios foram agrupados segundo
imagens espaciais: "Retas, Curvas", "Linhas
Cruzadas", "Paralelas", "Vão". Nesse segundo, o
crítico permitiu maiores privilégios ao tempo:
"O Instante e os Ciclos", "A Memória e os
Relatos". A diferença sublinha não uma ruptura,

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mas, certamente, uma mudança de ênfase. Esse


deslocamento indica a crescente presença do
crítico no interior de seus próprios textos.
Passados 20 anos, ele agora é um narrador que
desentranha, dos perfis e dos relatos de outras
vidas, o enredo da sua própria busca.
"Outros Achados e Perdidos" inventou um
território fronteiriço: entre o Brasil e a América
Latina, entre ficção e poesia, entre crônica e
cinema, entre jornalismo e memória. Nessa
entrevista, da qual também participaram Sérgio
Micelli, Franklin de Matos e Ricardo Musse, o
leitor poderá travar conhecimento com as
idéias desse que é um dos maiores críticos do
país. Aqueles que foram seus alunos ou já
tiveram oportunidade de assistir a algumas de
suas conferências, reconhecerão tanto a voz do
narrador que ainda sabe dar conselhos quanto
o olhar alumbrado e inventivo do crítico.
Menino de cabeça branca, adulto encalacrado
na infância. Davi Arrigucci continua um grande
perseguidor.

Folha - Naquela época, final dos anos 70, o


que motivou a publicação de "Achados e
Perdidos"?
Davi Arrigucci Jr. - Publiquei pela primeira
vez "Achados e Perdidos", em 1979, depois de
um estudo monográfico sobre Julio Cortázar,
concluído em 72. Na minha cabeça o novo livro
ainda não existia. Foi Victor Knoll quem me
sugeriu a reunião dos ensaios e artigos
publicados em jornais e revistas e que eu ainda
não havia recolhido. Eu vinha do livro sobre
Cortázar, que levei anos para fazer e exigiu
muito trabalho pela reconstrução do contexto
histórico-literário em que ele se inseria. Levei
tempo lendo autores hispano-americanos para
situar e entender o aparecimento de Cortázar.
Eu queria fazer uma tese sobre Borges, mas li
"O Bestiário" e escrevi um artigo para o
"Suplemento Literário do Estado de São Paulo",
dirigido pelo Décio de Almeida Prado.
Eu tinha uma formação sobretudo de literatura
francesa e brasileira. Quando comecei a
estudar os hispano-americanos, derivei para o
Cortázar e tive de montar o quadro literário.

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Não era claro nem mesmo para a crítica


hispano-americana. No Brasil, a idéia que se
tinha de literatura hispano-americana era
nenhuma. Os livros eram difíceis de encontrar.
Era uma experiência muito diferente da nossa
justamente por sugerir uma imaginação mais
livre da tradição do realismo que costeia a
experiência direta ou o documento. Depois,
encontrei nos estudos históricos referências
importantes sobre isso, principalmente nos
trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda que
tratam das diferenças da formação histórica da
herança portuguesa com relação à espanhola.
A crítica literária dava mais a impressão de
acompanhar antes manifestações literárias do
que um processo orgânico. Não porque não
existisse, mas porque a crítica tinha trabalhado
menos e havia menos consistência que na
tradição brasileira. Aqui havia a tradição do
final do século -José Veríssimo, Sílvio Romero,
Araripe Junior- e depois toda a contribuição
modernista, a crítica militante dos anos 40 e
Antonio Candido, que remontou todo o processo
que permitia ler sistematicamente a literatura
no Brasil. Era possível ver um quadro orgânico.
Com essa perspectiva, os autores já não saíam
do nada, uns dependiam dos outros, se liam
mutuamente, constituíam uma tradição. Os
temas não eram apenas universalistas, mas
lidos aqui dentro e modificados segundo um
novo ângulo particular, e as formas herdadas da
tradição européia se transformavam aqui
segundo um traço específico que determina de
algum modo o processo de sua constituição.
Pensei que devia haver no contexto hispano-
americano algo semelhante. O "Escorpião
Encalacrado" saiu em 1973, mas as articulações
com a literatura de fora continuaram vivas no
meu espírito.
Começei a escrever ensaios avulsos, mas ainda
ligados às minhas preocupações e aos
problemas que havia percebido. Victor Knoll
propôs, então, o livro. E ele em grande parte
nasceu dessa junção de coisas diversas,
heranças do que eu tinha estudado da crítica
hispano-americana e da literatura brasileira,
sobre a qual eu estava também começando a

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escrever, mas, da qual eu ainda não havia me


ocupado como desejava.
No título há algo de lúdico e irônico que resgata
essa imaginação mais à solta, em parte pela
influência do surrealismo que estudara bastante
para entender seu impacto maior na América
hispânica que no Brasil. Reuni os textos para
ver a cara que aquilo tinha junto. De um lado,
havia uma preocupação de reconstrução
história como um aspecto do estudo sobre o
Cortázar, mas de outro uma vontade poderosa
de responder criticamente ao presente, de que
a própria obra de Cortázar fazia parte. Eu havia
me empapado da crítica militante brasileira:
Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux e Antonio
Candido. Em outras palavras, tentei combinar
um pólo de reconstrução histórica e estudo
orgânico e outro, de resposta imediata ao que
estava acontecendo no Brasil.
Folha - Essa mesma dinâmica se repetiu
com relação aos seus trabalhos posteriores.
Primeiro, apareceu um novo livro de
ensaios, "Enigma e Comentário" (1987),
depois veio "Humildade, Paixão e Morte"
(1990), estudo monográfico sobre Manuel
Bandeira...
Arrigucci Jr. - Eu sempre tive a vontade de
fazer as duas coisas. Nesse caso, você é
obrigado a responder em ritmos diversos, um
ritmo mais amplo e um ritmo mais curto de
intervenção imediata. Deste ângulo, "Achados e
Perdidos" era um começo de conversa. Mas,
embora a montagem do livro fosse uma
resposta circunstancial à literatura dada, na
verdade correspondia a coisas mais profundas
que eu ainda não enxergava claramente. Hoje,
ao remontar o livro, isso já me aparece de
forma diversa: o espírito lúdico e a visada
construtiva estão combinados, assim como o
desejo de intervenção direta e as questões da
experiência histórica.
Como todos os nossos atos, a leitura tem uma
história, ela é um processo de compreensão.
Quando decidi juntar os trabalhos de
miscelânea, estava na verdade organizando a
história da minha leitura e de um processo de
compreensão. Cada uma dessas intervenções,

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aparentemente circunstanciais, reproduzem o


desejo de um leitor e como ele se aproximou de
muitos autores. Certamente, não escrevi sobre
todos aqueles que gostaria -não escrevi sobre
Drummond, embora tenha dado tantas aulas
sobre a poesia dele-, infelizmente não damos
conta de tudo. Mas os que estão ausentes
muitas vezes acabam se agrupando em torno
dos núcleos tratados e espero dar conta deles
mais adiante.
Neste novo "Achados e Perdidos" resolvi juntar,
de forma espelhada, o primeiro livro e os
últimos dez anos de intervenções ligeiras. O
conjunto fornece a história de uma leitura,
revela as várias tentativas de compreensão que
ora enveredam por uma direção, ora tomam
outro rumo. Hoje posso historiar cada uma
delas: Borges, Bandeira, Murilo Rubião. O
"Prefácio Esquisito", por exemplo, marcava uma
exposição que já estava implícita na abordagem
do Cortázar. O "Escorpião" também era um
reflexão sobre a crítica e seus limites, na
direção que escolhi: a hermenêutica. Que saiu
em parte da estilística, um tanto das relações
com o new criticism e o marxismo, sobretudo o
marxismo heterodoxo da escola de Frankfurt,
que foram as correntes que mais pesaram na
minha formação. Essas idéias estavam
presentes em Cortázar, havia muito Lukács,
Benjamin, Adorno. Havia também Leo Spitzer,
Erich Auerbach, Dámaso Alonso. No conjunto
desses estudos mais breves estava, talvez de
forma mais explícita, um itinerário crítico.
Tanto nas repostas imediatas quanto na paixão
da construção histórica. Sobretudo certas
questões teóricas que foram enformando o
percurso, especialmente a constituição de uma
forma mesclada, dependente de temporalidades
diversas que procurei estudar em sua
particularidade concreta. Certamente essas
idéias não são originais, mas dependem de uma
visão pessoal, nascida de um sentimento
também quanto à realidade brasileira e à
hispano-americana e de como elas responderam
aos descompassos da nossa modernização.
Tudo isso em parte é muito intuitivo, pois nasce
da percepção formal do conjunto de signos, da

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forma significativa que é a obra literária que


está ali, mas também da tentativa de
reconstruir um quadro amplo, ainda que eu
sinta um certo pudor de explicitar demais as
questões gerais. Essa é em parte uma herança
da crítica que li e mais aprecio. Quer dizer,
respondo a uma forma enigmática sobre a qual
não quero dar uma resposta cabal. Levo até um
certo ponto para mostrar que a resposta cabal,
para mim, é impossível. Toco em limites, com os
quais no entanto me relaciono, ao procurar
equacionar o processo de constituição das
formas. Como aquilo se compôs?
Espelhado contra o primeiro livro, o segundo,
com os dez últimos anos de minha militância
crítica, se contrapõe em parte ao início, criando
um quadro das minhas leituras e das mudanças
de meu esforço de compreensão. Não há texto
algum explicitando isso, mas é disso que se
trata. Nesse quadro das leituras estão os dois
pólos que me atraem, a aderência ao concreto e
a mais desbragada imaginação.
É essa tensão que me atrai. Em "Enigma e
Comentário", procurei mostrar, por exemplo,
como Borges está próximo da experiência
histórica, quando se imagina que esteja
desgarrado do universo do mito, e como o
Gabeira, que pensa estar reproduzindo o real,
na verdade, está imerso no imaginário
romanesco.
Os ensaios respondem a assuntos que são
misturados. A graça da miscelânea é aqui
fundamental, sugerindo a possibilidade de uma
leitura arejada e livre. Borges sempre me atraiu
muito, por esse lado, juntando desde o início
autores e coisas aparentemente disparatados,
mas que estão dados no quadro da sua leitura e
ali fazem total sentido.
Espero ter aprendido um pouco com Auerbach.
Um de seus pressupostos é de que a análise
microscópica de textos pode conduzir a quadros
gerais que nem sempre precisam ser
explicitados para que estejam presentes na
perspectiva da abordagem. Em "Mimesis" não
há uma definição geral de realismo, conceito
central ao livro, mas quem o ler saberá o que é
realismo, em que consiste concretamente e

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quais suas implicações nas representações


literárias do Ocidente. Não é preciso que ele
faça um discurso explícito sobre isso, porque a
análise particular dos textos, feita com todo o
rigor e a arte que se exige dessa prática da
leitura detida e reveladora, é capaz de remeter
da parte ao todo, da mesma forma que o todo se
mostra na parte. Como tantas vezes na
literatura moderna, uma visão sintética do
mundo pode estar posta em pequenos episódios
aparentemente insignificantes da vida
cotidiana, assim também a análise cerrada de
um fragmento pode levar a descobertas de
alcance geral.
Essas leituras formam um mosaico, que compõe
um quadro de fundo e cuja diversidade revela
um movimento. Estou interessado nesse
movimento e em suas cristalizações. E creio
que isso fica bastante claro na segunda parte
do livro, dedicada aos "outros" achados e
perdidos. Tenho sido atraído pelo que tenho
chamado hoje de sedimentação formal de uma
experiência histórica. Sobretudo nas suas
formas oblíquas, quando a imaginação está
aparentemente mais à solta. Aliás, quanto mais
à solta, a imaginação assume uma forma
convencional, como nos mitos. O realismo é um
esforço para dar terra à imaginação, de torná-la
um conhecimento de particularidades
históricas. Solta ao deus-dará, ao sabor do livre
desejo, a imaginação se cristaliza no mito. As
tensões entre o mito e a particularidade
histórica são o que me atrai. Esse é o ponto.
Esse livro é uma tentativa pela junção de textos
variados e entre si espelhados, de dar o
processo de leitura dessas tensões.
Folha - De alguma forma a configuração de
"Achados e Perdidos" remete aos trabalhos
mais experimentais do Cortázar. Penso que,
ainda hoje, o livro guarda um aspecto
selvagem característico da modernidade.
Você concorda?
Arriguci - Sou muito atraído pela contingência
do moderno. É como uma aderência da
sensibilidade à beleza do contingente, do que é
fugaz e morre. Flora Süssekind, ao escrever
sobre o meu trabalho, falou do sentimento da

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falta. Eu sou muito ligado nas formas da elegia,


à meditação sobre as coisas que não dão certo,
tenho uma atração pela forma acabada que é
ferida por algum grau de imperfeição. Num
certo sentido sou muito perfeccionista, busco
muito o acabamento, mas, ao mesmo tempo,
desconfio dele. Gosto das marcas da
contingência, como indícios de revelação. E do
que se perde. Para nós, que somos resultado de
uma modernização atrasada, a modernização
traz um ressaibo de melancolia; me sinto
atraído pelo miolo dessa melancolia. Ela está
em tudo, nas coisas que se desgarram, nas
coisas que não dão certo; é quase uma marca
brasileira ou talvez latino-americana, uma
contingência que, na origem do moderno,
quebrou a idéia da organização equilibrada e
clássica.
Folha - Isso fica evidente na análise que
você fez do "Cacto" de Manuel Bandeira,
porque ali há essa idéia de algo "belo" e, ao
mesmo tempo, "áspero, intratável".
Arrigucci - Exatamente, esse elemento meio
selvagem que você mencionou, do primitivo que
irrompe, é a marca da nossa diferença. Aqui a
norma burguesa nunca se assentou de todo. O
que se perde nessas frinchas e buracos, os
nossos escritores captaram de mil formas. No
Cortázar há um sentimento agudo disso. Os
meus livros tentaram refletir sobre essa
questão.
Naquela época era uma intuição que eu devia
explorar a fundo e que ainda não estava de todo
equacionada. Por isso brinco no "Prólogo",
quando friso que os novos ensaios que ora se
soldam aos primeiros dão continuidade às
preocupações teórico-críticas anteriores
-"alguma coisa terão aprendido com o passado".
Hoje tenho mais consciência disso. É a forma
como meu ensaio responde a uma experiência
que é nossa ou pelo menos muito mais ampla.
Há muito de acaso nisso. Grande parte da
literatura moderna responde a objetos que não
sabe reconhecer. Por exemplo, em "Poemas por
Acaso da Prosa de Manuel Bandeira", num
primeiro momento fiz uma glosa do método
dele, estava brincando com uma idéia central

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que só mais tarde, em "Humildade, Paixão e


Morte", pude estudar melhor e explicar como
essa operação de "desentranhar" resultou numa
atitude estética de enormes implicações na
construção da obra poética. Naquela época, no
contexto do estruturalismo, a paródia adquiriu
uma grande importância. Ela entrou como uma
forma do moderno incorporar determinados
materiais que eram necessários para a
construção, eram materiais do moderno. Essas
idéias estavam no ar. Certos textos do Tynianov,
um dos formalistas russos, como aquele sobre
as relações entre Dostoiévski e Gógol, iam
nessa direção. A renovação da crítica sobre o
Oswald de Andrade decerto dependeu muito da
descrição desse procedimento e do
reconhecimento de seu papel nas mudanças de
obras e gêneros. Ela é uma forma de se
distanciar de um modelo, aproximando-se dele;
parodiar obras ou gêneros como um meio de
transformá-los.
Em literatura sempre se está às voltas com a
idéia de imitação; o velho e sempre presente
conceito de mimesis. Todo escritor aprende
imitando o outro. A tarefa de se aproximar ou
de se afastar de um modelo pode se dar de
formas diferentes, mas a imitação é sempre o
passo inicial da aprendizagem. Benjamin
observou que talvez não haja função superior
do homem que não seja condicionada de forma
decisiva pelo poder de imitação. Os críticos
também aprendem assim. Eu me lembro do
Antonio Candido dizendo que copiava textos de
Augusto Meyer, transcrevendo trechos dos
ensaios do crítico gaúcho para saber como ele
produzia aquela prosa extraordinária. Eu
aprendi assim também: imitando meus mestres.
Não há vergonha nenhuma nisso. Imita-se, para
depois se afastar. Esse é o processo de
aprendizagem. E também o processo interno da
literatura.
Esse procedimento é largamente intuitivo,
primeiro você intui, depois você explica. A
vontade é juntar para ver que cara tem. Por
exemplo, com relação ao "Prefácio Esquisito"
-que é uma brincadeira com o "Prefácio
Interessantíssimo" do Mário de Andrade-, qual

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era a esquisitice? Tentar mostrar um processo


que estava se formando e que eu, apesar de
intuir, não conhecia de todo; sabia parte dos
buracos.
Folha - Outro aspecto que parece ser
decisivo, tanto para os temas tratados
quanto para a própria estruturação do
livro, não é a idéia de montagem?
Arrigucci Jr. - Essa questão é importante e
ainda não a explicitei. Sempre fui atraído pela
montagem. E ela vem através do cinema.
Sempre fui um cinéfilo. Eu adoro cinema. Ainda
não disse tudo sobre esse assunto: a idéia da
montagem, o aproveitamento dos dejetos, dos
materiais informes. Aliás no meu próximo livro
"Sertão, Oeste, Pampa" vou falar de John Ford,
de Guimarães Rosa e de Borges. É um livro
sobre o processo de modernização na região de
fronteira.
Mas a idéia de montagem era central para o
livro do Cortázar. Nesse livro pesou muito para
mim a teoria de Eisenstein sobre a montagem,
exposta em vários de seus ensaios. Também
pesou a leitura de um crítico, hoje pouco
nomeado, Arnold Hauser, um crítico de herança
marxista, com sensibilidade para a análise
formal das obras e muito atento às questões
construtivas decorrentes da incorporação da
heterogeneidade do real pela literatura e pelas
artes sob o signo do cinema.
Folha - Você tem enfatizado o princípio
formal, o mosaico, a paródia e a
montagem. Mas na sua postura crítica
parece pesar bastante a configuração de
relações históricas. Como o discurso
histórico entra no livro?
Arrigucci Jr. - Tudo isso deriva de coisas muito
arraigadas na minha forma de lidar com a
literatura. Eu trato de formas particulares e
quase nunca delineio os quadros gerais, a que
no entanto podem conduzir as análises. Não sou
propriamente um crítico da cultura, caso do
Roberto Schwarz, o mais notável que surgiu por
aqui. Ele tende a construir a explicação pelos
processos gerais, ainda que seja obrigado a
explicar por meio da análise de formas
particulares. Nisso, me sinto mais próximo da

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paixão do concreto que tanto marcou Antonio


Candido. Certamente, eu nunca tive a atração
pela história literária que também o
caracteriza. Eu sou um ensaísta que dá
respostas abertas e incompletas às obras e seus
enigmas, o que mais me fala à imaginação.
Folha - O livro traz duas entrevistas
expressivas. Na primeira, quase uma
conversa, você disfarçadamente arma um
quadro histórico sobre o romance
brasileiro. Na segunda, por intermédio de
um olhar retrospectivo, você refaz o seu
itinerário crítico...
Arrigucci Jr. - A primeira, sobre o romance
brasileiro dos anos 70, é justamente uma
resposta incompleta à uma conjunção de fatos
que permitiria montar um quadro da ficção
brasileira da época. O jornal foi então um fator
condicionante muito forte para a ficção: os
modos e os procedimentos formais que o jornal
oferecia à literatura, o interesse em
singularidades, as formas de ocultar a
realidade, a sugestão alegórica, tudo isso
parecia interessar vivamente os romancistas.
Pensei que seria um caminho para compreender
os principais problemas da ficção daquele
tempo. No fundo, tratava-se ainda do desejo de
fazer crítica militante numa época em que ela já
estava fora de moda. Penso que uma das
funções fundamentais da crítica é reconhecer
situações. Toda situação é um quadro de
tensões e contradições. De alguma forma,
"Jornal, Realismo, Alegoria - O Romance
Brasileiro Recente" é uma resposta de crítico
militante às contradições do tempo e aos modos
de dar forma a ele ligados.
A segunda entrevista já privilegia o retrospecto,
o itinerário crítico, o quadro de geração. Estou
sempre debruçado sobre a memória. Quase
tudo que escrevo tem relação com a memória.
Com a memória e os relatos. Veja, neste livro
ainda está presente a questão de combinar dois
ritmos, há respostas curtas e imediatas e ritmos
de hausto longo. "Movimentos de Um Leitor",
sobre Antonio Candido, "A Noite de Cruz e
Sousa" e "Agora Tudo É História", sobre José
Paulo Paes, são ensaios abrangentes, este

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último é uma tentativa de dar um quadro da


vida inteira de um poeta e o que significou no
interior dessa vida a poesia.
Folha - Como os autores responderam aos
ensaios?
Arrigucci Jr. - Muitos desses ensaios me
tornaram amigo dos autores das obras
comentadas. Quando saiu o "Achados e
Perdidos", mandei um exemplar para o Carlos
Drummond de Andrade, que, ao ler "Onde
Andará o Velho Braga?", passou o exemplar
dele para o Rubem Braga ler. Eu mesmo não
mandei para o Rubem Braga. Ele gostou tanto
que acabou me escrevendo uma carta. Aí
começou uma relação de amizade, que durou
até a morte dele.
Folha - Depois desse convívio você teria
condições de escrever um outro ensaio
sobre ele...
Arrigucci Jr. - Mas eu escrevei. Escrevi, a
pedido dele, para uma antologia das "Melhores
Crônicas de Rubem Braga", publicada pela
editora Global. Este ensaio desdobrado, "Braga
de Novo por Aqui" também figura em "Enigma e
Comentário".
No caso do Antonio Callado a história é mais
curiosa. Quando saiu o "Reflexos do Baile",
Alberto Dines escreveu um artigo naquela
coluna, "Jornal dos Jornais" -creio que era o
nome-, dizendo que não havia crítica brasileira,
porque se houvesse alguém teria escrito sobre
o livro do Callado. Aí eu escrevi esse ensaio, "O
Baile das Trevas e das Águas", para responder
a ele. Quando mandei o texto ele já tinha
deixado aquele emprego. No fim, como nunca
tive relação com ele, acabei não sabendo se ele
recebeu ou não. Depois o Gasparian tentou
publicar o texto no jornal "Opinião". Na
primeira tentativa a censura vetou, um mês
depois, ele tentou de novo e saiu. Callado
falava, brincando, para mim: "Você é o crítico
do meu coração". E acabou fazendo uma
dedicatória com essa expressão. Ele se sentiu
lido, o que nem sempre ocorre com nossos
escritores, que podem permanecer por muitos
anos, mesmo em caso de valor evidente, sem
resposta. Vai se rotinizando essa falta de

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resposta em nosso meio. Não há debate


intelectual. Faltam revistas e suplementos. A
literatura viva parece destinada a um poço de
silêncio e esquecimento.
Se eu tivesse forças teria escrito sobre muitas
outras pessoas. Os que saíram foram os que eu
acertei a mão e pude fazer; muitas vezes tentei
e não consegui. Nem sempre dá certo. Mas a
verdade é que eu adoro responder de imediato.
Agora, por exemplo, poderia escrever sobre a
situação atual da lírica no Brasil, ou melhor,
sobre alguns poetas. Eu tenho uma opinião
sobre isso. Mas estou empenhado em outros
trabalhos. Dessa perspectiva, o título também é
alusivo ao trabalho crítico, porque muitos
ensaios resultaram em "Achados", com o
mesmo sentido de "hallazgos" em espanhol.
Outros se perderam num buraco negro e,
mesmo alguns que eu julguei ter achado,
também tem pontos perdidos.
Na arte, o mais interessante nem sempre é o
perfeito. Só para dar um exemplo, o
acabamento fez mal a Mário de Andrade. É o
que eu tento dizer em "O Que É Mais Fundo". O
inacabado era o terreno dele. Toda vez em que
ele apostou nessa vertente deu certo. Talvez,
por isso, os "Contos de Belazarte" sejam
melhores que os "Contos Novos", que, no
entanto, são bem mais elaborados. Essa idéia
vai muito contra mim, que sou um
perfeccionista, mas justamente, por esta razão
que o título me pareceu adequado, aponta para
as tensões da minha personalidade crítica.
Folha - Comente mais detalhadamente o
seu diálogo crítico com o Antonio Callado,
que, a exemplo de Rubem Braga, foi um
autor ao qual você sempre retornou.
Arrigucci Jr. - A história das minhas leituras se
manifesta sempre por intermédio de autores
recorrentes, alguns dos maiores, como Borges,
Cortázar, Bandeira, e outros que quase
chegaram lá, Murilo Rubião e Antonio Callado.
Callado é um caso curioso. Um dos problemas
para mim foi entender como um homem tão
fino, com sólida formação e tanto conhecimento
sobre a história do Brasil, não conseguiu
realizar uma obra ficcional à altura do que

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almejava. O romancista, ao contrário do poeta


lírico, não responde ao instantâneo, mas a
grandes ciclos, depende de uma construção
histórica. Callado era um homem armado para
isso e com um notável domínio da linguagem.
Ele tentou, em diferentes momentos, o esforço
de realismo crítico em que se empenhava para
construir uma sólida obra ficcional, coerente e
desdobrada em vários planos, capaz de
recuperar várias dimensões da experiência
histórica brasileira. Na condição de repórter
teve contanto com a realidade do Brasil
contemporâneo; desde mocinho viajou pelo
país, andou pelo sertão. Além disso, era um
homem de larga experiência internacional,
acompanhou a Segunda Grande Guerra na
Europa e viveu durante anos no exterior. Fez
algumas das mais notáveis reportagens sobre o
Brasil. No primeiro ensaio estudei "Reflexos do
Baile", que julgo a sua obra mais perfeita,
embora não seja a melhor. Acho "Quarup" mais
importante que "Reflexos do Baile", um livro
mais poderoso e ambicioso, apesar das muitas
falhas. O acabamento dos "Reflexos" era
notável; soube penetrar pelas frestas numa
realidade aparentemente impenetrável,
construindo uma imagem alegórica e irônica
dos escaninhos da repressão e da tortura e das
agonias de quem lutou na luta armada contra a
ditadura militar.
Na segunda abordagem, tratei do "Esqueleto na
Lagoa Verde", que sempre considerei uma obra-
prima, como tantas vezes comentei com
Alexandre Eulálio, que tinha a mesma opinião.
Um pouco antes da morte de Callado, voltei
àquela velha reportagem levado por uma
entrevista muito triste que ele deu ao Matinas
Suzuki. Falava com amargura de como o Brasil
não tinha dado certo e de como a obra dele
também não tinha dado certo. Voltei a me
debruçar sobre aquele texto da sua mocidade
para responder a ele, dizendo exatamente o
contrário, que ele tinha feito uma coisa notável
e como o miolo dessa obra estava também no
centro de toda sua obra de ficção posterior e de
certo modo também o centro de sua busca pelo
coração do Brasil, para onde caminha a

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narrativa do "Quarup". Centro buscado com


todas as forças, mas nunca achado, como nessa
reportagem insólita, a que serve de móvel a
ossada de um coronel inglês desaparecido na
mata brasileira. Nela falta precisamente o
objeto da busca, para sempre perdido.
A missão da crítica não é dizer se isso é bom ou
ruim. É participar da visão do outro. Pratico um
tipo de hermenêutica que acompanha o olhar
do outro, uma hermenêutica da identificação.
Toda a obra do Callado é de grande interesse,
trata-se de um projeto coerente, de um escritor
sério, que nunca se entregou ao mercado. Um
crítico não pode deixar de responder a um
homem desses.
Folha - Nessa segunda safra de "Achados e
Perdidos", a poesia -algumas vezes por vias
oblíquas, como no caso do livro de
memórias de Ferreira Gullar- parece ter
sido mais contemplada. Você poderia
comentar rapidamente alguns destes
textos?
Arrigucci Jr. - Nunca havia escrito sobre
Ferreira Gullar, a quem considero um grande
poeta, por questões meramente circunstanciais.
Escrevi "Tudo É Exílio" depois de ter lido seu
livro de memórias, "Rabo de Foguete". Foi o
modo que encontrei de comentar a poesia
deslocada que está entranhada de forma
notável nesse depoimento tão importante, que
pode ser lido como um romance. Nele surge um
narrador que é a outra face do poeta. De um
lado, ele responde ao destino histórico vivido
por nós e cujo enredo reproduz em boa parte a
história da América Latina, no século 20. De
outro, explica muito da sua poesia e a gênese
do "Poema Sujo". A experiência individual do
poeta está atravessada pelos acontecimentos
históricos. É outro autor que revela uma forte
aderência ao real.
Já o Dante Milano, no sentido eliotiano, é um
poeta menor. O Antonio Candido, a certa altura
me disse que faltava força, eu não acho que
falte. Escrevi "A Extinta Música" por ocasião de
sua morte. Nesse momento achei que era
preciso recuperar o Dante Milano para a poesia
brasileira. Trata-se de uma poesia reflexiva, nos

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termos de Mário de Andrade, "pesamenteada".


E de grande importância para a nossa tradição
lírica.
No caso do Cruz e Souza, até hoje um imbróglio
difícil de compreender, queria, por meio de um
poema notável e antecipatório, compreender a
sua poesia. No Cruz e Souza há uma tentativa
de dizer num imaginário de sonho a experiência
do terrível destino de um poeta negro e pobre
no Brasil. A poesia dele é uma teoria da
alucinação, tem uma poética da alucinação, no
sentido preciso do termo.
No caso do José Paulo Paes também foi para
mim uma descoberta. José Paulo é um
intelectual finíssimo, um exemplo acabado do
homem de letras, com uma formação
absolutamente informal. Um homem que quis
ser poeta e usou a poesia para dizer a que veio
no mundo. Ele foi fiel a isso a vida inteira. Com
pequenos poemas ele contou a curva de um
homem que vai responder no instantâneo o que
é o mundo para ele. É curioso, porque traduz a
experiência, muito comum no Brasil, de um
escritor provinciano. É a história do Lima
Barreto, do Cruz e Souza, a história de grandes
poetas que ficaram à margem e que de repente
deram certo. São construções estéticas a partir
de dificuldades enormes. Mas, num certo
sentido, eles são muito "Achados e Perdidos".

Augusto Massi é professor de literatura brasileira na USP


e autor de "Negativo" (Companhia das Letras).

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