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DAVID GRAEBER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Os argumentos de Heath
A última versão desse argumento foi apresentada
recentemente pelos filósofos canadenses Joseph Heath e
Andrew Potter. É a seguinte: o capitalismo é invencível
porque qualquer meio que você empregue para contestá-lo -
uma nova subcultura subversiva, alguma nova forma de
rebelião jovem, um movimento social revolucionário, uma
tentativa de desenvolver um sistema alternativo de troca- é
em última instância apenas mais um estratagema de
marketing. Os capitalistas vão simplesmente apanhá-lo e
vendê-lo de volta para você.
Na verdade, o capitalismo precisa de rebelião para se
reproduzir. Por isso, eles afirmam, tudo isso simplesmente
faz parte da própria lógica interna do capitalismo. Portanto,
vamos apenas esquecer as tentativas de contestar o sistema.
É melhor operar dentro dele, pedir a seus representantes
políticos para limitar os piores abusos, empregar incentivos
de mercado para encorajar as corporações a não poluir tanto
e assim por diante. Você sequer conseguirá isso se minar
seus esforços fazendo exigências radicais em excesso.
O argumento é perfeitamente circular. Ele define princípios a
partir de sua conclusão. Se o capitalismo nunca poderá ser
derrotado, então, sim, todos os movimentos anticapitalistas
estão em última instância destinados a serem reabsorvidos
pela lógica do capitalismo. Se o capitalismo é um sistema
total cuja lógica abrange tudo, então, é verdade, qualquer
coisa que pareça se opor a ele é somente mais um aspecto do
capitalismo. Mas apenas dizer isso não prova nada.
Na verdade, argumentos como esse invariavelmente
começam a parecer ridículos no momento em que são
colocados em algum tipo de perspectiva histórica maior.
Deixe-me dar um exemplo revelador.
Os camponeses da Europa medieval costumavam realizar
grandes festas carnavalescas em que zombavam de seus
superiores feudais e encenavam fantasias elaboradas de uma
terra sem reis ou senhores, onde eles podiam se fartar com a
abundância de comida e bebida. Isso certamente parece
muito subversivo. Os teóricos sociais, porém, há muito
afirmam que na verdade não é. Realmente, tudo faz parte do
sistema feudal -uma maneira de deixar os camponeses
liberarem energia, brincar de rebelião, se desintoxicar, de
modo a serem mais capazes de voltar a sua vida rotineira de
labuta.
Muitas pessoas usavam esse argumento já na época (uma
grande parte do motivo pelo qual os senhores aceitavam esse
tipo de coisa). É basicamente o mesmo argumento de Heath e
Potter: como o feudalismo é um sistema totalitário que
sempre existirá, esses atos de rebeldia realmente são apenas
uma parte de sua própria lógica interna. O problema é que o
feudalismo não existe mais.
Revoltas camponesas
Na verdade, se reexaminarmos os registros, descobriremos
que praticamente todas as grandes revoltas camponesas na
história européia começaram durante o carnaval (o Primeiro
de Maio era o equivalente inglês -e é por isso que hoje é o o
feriado internacional dos trabalhadores; as rebeliões
populares na Inglaterra quase sempre irromperam no
primeiro de maio). É verdade que as revoltas reais tenderam
a ser reprimidas com grande brutalidade, mas tiveram um
papel importante para produzir o mundo de hoje -no qual os
descendentes daqueles camponeses europeus realmente
vivem em um mundo sem reis ou senhores, em que eles
podem se fartar com uma abundância aparentemente infinita
de comida e bebida (mas, obviamente, chegar a isso
acarretou certos problemas imprevistos).
Então o capitalismo está destinado a seguir o caminho do
feudalismo (ou como quisermos chamar hoje o sistema
medieval)?
Parece inevitável.
Veja como aqueles que afirmam o contrário, que o
capitalismo sempre existirá, quase nunca nos dizem
exatamente o que eles pensam sobre o capitalismo.
Geralmente há uma razão para isso. Geralmente eles só
podem defender sua tese alternando constantemente entre
definições completamente contraditórias.
Por exemplo: muitas vezes ouvimos o argumento de que o
capitalismo existe há 5.000 anos e que, portanto, é tolice
queixar-se da existência do McDonald's ou Starbucks ou
outras óbvias emanações do capitalismo. Se você definir o
capitalismo como, digamos, "pessoas ricas usando seu
dinheiro para ganhar mais dinheiro", então certamente pode
afirmar que ele existe há muito tempo. Mas nesse caso você
também teria de admitir que o capitalismo conseguiu existir
por pelo menos 4.950 anos sem criar algo remotamente
parecido com uma franquia de lanchonetes.
Usar esse argumento para considerar esse fato como
inevitável parece muito estranho. Mesmo fazer uma versão
mais sofisticada desse argumento -digamos, definir o
capitalismo como um sistema mundial em que a economia
global é dominada por financistas e industriais privados
movidos pela necessidade de continuamente expandir suas
operações e conquistar lucros sempre maiores- e dizer que
portanto o capitalismo existe desde 1492, ou talvez 1750,
também significaria que uma economia mundial capitalista
ainda pode encontrar espaço para fenômenos como o Império
Otomano, a União Soviética ou as elaboradas redes de troca
de porcos na Papua Nova Guiné. Em outras palavras, quase
qualquer coisa. Ainda há espaço para experiências sociais.
Alternativamente, se definirmos o capitalismo como um uma
vasta máquina movida por enormes corporações e consumo
de massa determinado a abraçar todo o globo, então
estaremos lidando com uma criatura que existe em uma
parcela minúscula, quase infinitesimal, da história mundial.
Honestamente: qual é a probabilidade de que um sistema que
existe há apenas algumas décadas dure pelo resto da história
humana? Realmente acreditamos que, se a China, por
exemplo, tornar-se a hegemonia global no final do século, o
mundo será conduzido exatamente da mesma maneira? Qual
a probabilidade de que daqui a 50 ou cem anos o mundo seja
dirigido por corporações maciças empregando trabalhadores
assalariados, vendendo seus produtos por meio de redes de
consumo e envolvidas numa expansão interminável em busca
de lucros?
Colocada nesses termos, a pergunta torna-se óbvia. A
questão não é se o capitalismo em sua forma atual será
substituído. A questão é pelo quê: uma forma diferente de
capitalismo? Um sistema totalmente novo? Um conjunto
heterogêneo de sistemas econômicos? E, é claro, alguma
coisa que substitua o capitalismo será melhor ou ainda mais
catastrófica para a maioria da população mundial? Ao insistir
que o capitalismo em sua forma atual é o fim da história,
estamos efetivamente nos excluindo do que provavelmente
será uma das mais importantes conversas na história humana.
O que é a democracia?
"Todo mundo ama a democracia. Todo mundo odeia o
governo. Anarquismo: isso é exatamente democracia sem
governo" -"The Crimethinc Collective".
Neste ponto posso voltar à minha tese principal.
O motivo pelo qual considero este momento particularmente
esperançoso é que os revolucionários e até os reformistas
sociais começaram a perceber que não é possível realizar
seus objetivos tomando o controle do Estado. Grande parte
da frustração dos últimos anos veio da percepção de que, se
desafiarmos o capitalismo tentando dominar o governo,
provavelmente terminaremos (como colocou recentemente
meu amigo Andrej Grubacic) como [Jean-Bertrand] Aristide
[presidente deposto do Haiti], como [Fidel] Castro ou como
Lula -derrubado, presidindo apesar de si mesmo algum tipo
de horrível Estado policial, ou sendo obrigado a abandonar
quase todos os princípios que o inspiraram a tentar se eleger.