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Anais do V
Congresso Interamericano de Psicologia da Saúde ‐ a psicanálise aplicada à terapêutica no
Hospital: resultados, 2009.
Resumo
A noção de caso sempre nos remete ao problema mais genérico da relação de inclusão
em categorias: o gênero e a espécie, a ocorrência e a lei, o elemento e o conjunto, o caso e a
regra, a manifestação e o tipo a que ela pertence. A formação das categorias se apresenta de
modo dedutivo no caso do direito, (o que não estiver prescrito na lei não pode ser objeto de
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DUNKER, C.I.L. – Usos e Funções da Construção do Caso Clínico em Psicanálise. Anais do V
Congresso Interamericano de Psicologia da Saúde ‐ a psicanálise aplicada à terapêutica no
Hospital: resultados, 2009.
julgamento), indutivo no caso da medicina (regularidades entre os casos permitem que eles
sejam agrupados em novos sintomas, síndromes, transtornos ou doenças) e abdutivo no caso
das ciências da linguagem (os casos não ocorrentes podem ser inferidos, assim como os casos
ocorrentes são indutivamente constatados). Um caso jurídico deve ser construído com provas,
evidências e fatos. Ele é constituído à priori pela forma da lei. Um caso médico pode ser
construído através do resultado de exames, da observação comparativa e eventualmente de
pequenos experimentos. Ele é constituído à posteriori. Um caso lingüístico também é
construído indutivamente e dedutivamente a partir do uso e estrutura da língua.
Não há dúvida que Freud, tanto como neurologista e estudioso das afasias, quanto
como zoólogo estudioso da anatomia das enguias, sabia manejar o método dos tipos. Há
vários argumentos que sugerem que Freud teria aplicado o método dos tipos em sua escrita de
casos clínicos: a confiança que Charcot depositava na cientificidade deste procedimento
(absorvido de Claude Bernard); seu emprego eficaz na neurologia por Hughlings Jackson
(replicado por Freud em seu estudo sobre as afasias 1 ), sua compatibilidade com a
fundamentação filosófica oferecida por Stuart Mill (de quem Freud absorve a teoria das
classificações), a anuência dos mestres como Meynert, Brücke e Exner (com quem o Freud se
formara pesquisador). 2 O método dos tipos estava originalmente baseado na descrição de um
tipo puro, que torna visível os mecanismos e permite formular leis atinentes a todos os
membros da classe a que pertence. Ao lado do tipo puro seria preciso distinguir as formas
variantes, as formas degeneradas e os tipos frustros, que não chegam, consistentemente, a
tomar parte da classe. Pressente‐se aqui como o método dos tipos foi o caminho pelo qual a
medicina firmava uma aliança metodológica com a antropologia. A característica freudiana no
emprego deste modelo de classificação é que ele privilegia a etiologia e, portanto, forma
classes em função do tipo de funcionamento e não das características diretamente descritivas.
Um bom exemplo disso é a distinção entre os tipos de neuroses de defesa 3 , segundo o destino
do afeto, uma vez separado de sua representação. Aqui o modelo freudiano se opõe à Escola
de Paris que postulava uma classificação à base da existência ou não da divisão subjetiva. Mas
apesar disso é notável o fracasso de Freud em descrever um caso típico, nos termos exigidos
1
Freud, S. – A Interpretação das Afasias (1891). Edições 70, Lisboa, 1977.
2
Honda, H. – O caso clínico e a constituição da metapsicologia freudiana, in Leite, N. & Trocoli, F. - Um
Retorno à Freud, Mercado das Letras, Campinas, 2008.
3
Freud, S.- Sobre as psiconeuroses de defesa (1895). SFOC-III.
2
DUNKER, C.I.L. – Usos e Funções da Construção do Caso Clínico em Psicanálise. Anais do V
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por este método. Quase todos os casos descritos em Estudos sobre Histeria 4 são tipos mistos
(entre neurose de defesa e neurose atual). Ou seja, é, sobretudo, na esteira do fracasso na
aplicação do método dos tipos que a construção de casos clínicos se desenvolveu na escrita
freudiana. Isso decorre do fato de que a generalização começa a ser feita antes da descrição e
não antes 5 . Logo a generalização não é meta, mas uma espécie de a priori, ela não é nem
puramente dedutiva, nem apenas indutivas, mas abdutiva, combinando, portanto, mais com o
método do lingüista do que com o do médico ou do jurista.
2. A Noção Psicanalítica de Construção:
Ao apresentar a noção de Konstruction, Freud parece retomar os três ângulos
semânticos examinados acima:
(1) “[O analista] tem que coligir o esquecido desde os indícios que este deixou atrás de
si, melhor dito, tem que construí‐lo” 6 , como um arqueólogo, em que pese que
para este a reconstrução é um fim em si mesma e para o psicanalista é um meio.
Ora, o critério aqui empregado é o critério da verossimilhança, ou seja, a
conjectura que acolha, reúna e seja corroborado pelo maior número de elementos
do caso. Encontramos aqui a figura do investigador policial, ou do processo jurídico
às voltas com a produção de uma verdade. “(...) Não só há método na loucura,
como discerniu o poeta, senão que ela contém também um fragmento de verdade
histórico‐vivencial (historischer Warheit)” 7 .
(2) Se a finalidade da investigação não é a inclusão ou exclusão em categorias de
potencial dedutivo surge o problema relativo aos critérios de validade da
construção, pois “ (...) apenas a continuação da análise pode decidir se nossa
construção é correta ou viável” 8 . O critério estabelecido por Freud não é o
assentimento (ou a confissão, na lógica jurídica), mas a confirmação indireta.
Exemplo: um paciente se queixa que sua esposa não lhe concede favores sexuais.
Ele a traz ao consultório e pede que Freud lhe explique as conseqüências de sua
atitude. Freud começa então a mostrar como esta recusa pode trazer “lamentáveis
4
Freud, S. & Breuer, J. – Estudos sobre Histeria (1893). SFOC:III.
5
Honda, H. op. cit:192.
6
Freud, S. – Construções em análise (1937). SFOC-XXIII:260.
7
Freud, S. op. cit:269.
8
Freud, S. op. cit: 266.
3
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perturbações à saúde dele e ainda tentações que poderiam levar à quebra do
matrimônio”. Neste ponto o marido intervém: “O inglês em que você diagnosticou
um tumor cerebral também morreu.” 9 É óbvio que o marido queria corroborar o
“diagnóstico” de Freud, mas ele não o faz direta, mas indiretamente, através deste
comentário aparentemente sem sentido. Assim como na construção do caso
médico, não interessa o assentimento consciente do paciente, mas as
corroborações indiretas, reveladas pela evolução do quadro clínico. O critério em
curso aqui é a eficácia, não a verdade tética dos acontecimentos, daí que uma
construção eficaz tenha o mesmo valor terapêutico de uma lembrança
rememorada 10 .
(3) A construção consistiria em “liberar o fragmento de verdade histórico vivencial de
suas desfigurações e apoios no real‐objetivo, e resituá‐lo nos lugares do passado a
que pertence” 11 . A função da construção é equiparada aqui à função do delírio na
psicose. Ora, sabemos que esta função refere‐se à uma tentativa de cura pelo
reinvestimento que faz de realidade. Ou seja, o delírio é uma espécie de realidade
artificial construída para tratar o Real. Se o Real não é representável por descrição,
mas corresponde tanto à deformação quanto ao limite do que pode ser descrito,
encontramos aqui as duas estratégias de cercamento do Real, presentes na noção
de construção: a via dos poetas e a via da formalização lógica. “Se se toma a
humanidade como um todo e se a põe em lugar do indivíduo humano isolado, resta
que também ela desenvolveu formações delirantes inacessíveis à crítica lógica e
que contradizem a realidade efetiva (Wirklichkeit).“ 12
Vemos aqui como a noção de construção aponta para o terreno da realidade e do Real
(Wirklichkeit), sem que este se confunda com o critério da eficácia terapêutica, nem com o
critério da verdade (Wahrheit). É, sobretudo, o domínio da clínica como clínica da linguagem
que está comprometido aqui. As três dimensões da noção de construção, metodologicamente
enfatizada aqui, possuem estreita relação com as linhagens históricas que deram origem à
psicanálise como prática de cura, psicoterapia e clínica. Temos então as três funções possíveis
do caso clínico:
9
Freud, S. op cit:265.
10
Freud, S. op. cit: 267.
11
Freud, S. op cit:269.
12
Freud, S. op. cit:270.
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(a) A função ética: representada pelo fragmento de verdade pelo qual um caso
subverte a classe, tipo ou categoria na qual se inclui.
(b) A função lógica: representada pela organização coerencial da diagnóstica, da
semiologia, da terapêutica e da etiologia. Paradoxo de auto‐referencialidade.
(c) A função retórica: representada pela descrição da eficácia dos procedimentos e
intervenções no quadro da transmissão de um saber, no quadro de um sistema de
transmissão.
3. O Caso Singular e o Caso Genérico:
Muito se tem falado sobre a especificidade do caso clínico psicanalítico como uma
espécie de contra‐caso, ou seja, um caso que é tão forte em sua irredutibilidade a formas ou
tipos clínicos anteriormente descritos que é capaz de destruir ou desfazer a classe na qual se
inclui. Esta tendência tem reaproximado a psicanálise da escrita literária e dos espinhosos
problemas relativos à transmissão e recomposição da experiência (como, por exemplo, na
literatura de testemunho). Ora, esta tendência nos conduz a um fato quase consensual entre
os psicanalistas, a saber, no limite, a relativa incomensurabilidade entre os casos clínicos. Em
última instância a função ética e a função lógica da construção do caso clínico em psicanálise,
representam um apelo considerável ao que os epistemólogos contemporâneos denominam de
excesso de internalismo. Ou seja, faltam critérios de externalidade na medida em que a
construção do caso passa pelo desejo do analista de um lado, e pela irredutibilidade da
experiência do paciente, por outro.
Freud usava recorrentemente uma figura retórica muito curiosa, chama de
“interlocutor imparcial”. É assim que ele defende a análise leiga, por exemplo, através de uma
espécie de diálogo com um leitor não persuadido das premissas psicanalíticas. Mahony
mostrou como esta figura retórica atravessa toda a obra freudiana, mostrando que longe de
“falar para convertidos”, Freud não recuava diante de um adversário cético.
De fato um interlocutor imparcial diria sobre estas funções do caso clínico (lógica e
ética) que elas são muito endogâmicas e que ao final derrogam o uso mais intuitivo e mais
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simples do caso clínico em medicina, a saber, transmitir a experiência de uma certa eficácia.
Assumindo‐se que procedimentos iguais geram resultados semelhantes o caso clínico deve
possui, antes de tudo um valor de generalização. Temos então um extenso discurso sobre o
caso clínico singular, o caso único. Mas, perguntaria nossa interlocutor imparcial, ‐ não seria
isso uma forma de desviarmo‐nos do problema central da eficácia da psicanálise? Se não
podemos comparar os casos não podemos estabelecer critérios de eficácia. Em outras
palavras: a retórica do caso singular não seria ao final e ao cabo uma retórica defensiva,
endogâmica e internalista? Ou ainda, uma maneira de furtar‐se ao problema central dos
resultados, regulares e genéricos, do tratamento psicanalíticos?
Ora, o problema da generalização de resultados começa pela generalização do que se
deve entender por psicanálise, os tipos de formação, as variantes quanto aos procedimentos.
Admite‐se consensualmente que as generalizações sucessivas que se é obrigado a fazer me
termos diagnósticos, semiológicos e terapêuticos de um lado e da própria caracterização do
que vem a ser psicanálise, por outro, tornam impraticável o uso do caso clínico como
parâmetro de eficácia terapêutica.
Teríamos então que responder a este interlocutor imparcial: Suponho que o senhor
aceitaria como contraprova ao argumento um estudo do tipo duplo cego formulado segundo
parâmetros metodológicos da medicina baseada em evidências. Ocorre que este tipo de
estudo é bastante difícil de levar a cabo, pois ainda não conseguimos definir o que seria uma
psicoterapia placebo nem como simular uma psicoterapia sem que o paciente facilmente
descubra o truque, pois afinal nem mesmo sabemos o que é uma psicoterapia, e se ela não é
ao final apenas uma extensão calculada do efeito placebo.
Teríamos ainda que responder ao nosso interlocutor imparcial: Suponho que o senhor
está pedindo que nos justifiquemos em termos tecnológicos, ou seja, de reprodutibilidade
técnica porque pedimos tanto tempo para tratar nossos pacientes. Ocorre que esta
reprodutibilidade exige generalizações diagnósticas difíceis de estabelecer entre diferentes
tradições psicanaliticas, e mais difíceis ainda de manter ao longo do tempo pela transformação
das próprias formas diagnósticas estudadas pela psicanálise ao longo do tempo.
Teríamos ainda que responder ao nosso interlocutor imparcial. Suponho que o senhor
está pedindo um argumento melhor e cientificamente subsidiado, sobre porque não
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deveríamos escolher a melhor técnica psicoterapêutica disponível, que nos ofereça os melhores
resultados no menor tempo possível (como terapias cognitivo comportamentais, por exemplo).
A urgência é sim um critério terapêutico. Não seria digno propor a um paciente com
tuberculose um tratamento mais longo e demorado do que o necessário. Porque isso se
aplicaria aos pacientes neuróticos? Aliás, não seria a diagnóstica psicanalítica tão complexa,
controversa e idiossincrática justamente para produzir um adiamento premeditado dos
critérios de restabelecimento e, conseqüentemente, uma justificativa internalista para a
extensão da psicoterapêutica?
Minha resposta a este interlocutor imparcial é, neste caso uma resposta externalista.
Recentemente dois pesquisadores do centro Médico da Universidade de Hamburg‐Eppendorf
conduziram não apenas um trial ou um estudo observacional ou um estudo comparativo, mas
a “jóia da coroa” da medicina baseada em evidência, ou seja, a primeira meta‐análise
conhecida sobre a eficácia do que os autores chamaram, como um compromisso de
generalização, de Psicanálise e Psicoterapia Psicodinâmica de Longo Prazo. Leichsenring &
Rabung (2008) partiram de mais de mil estudos clínicos, realizados desde 1960 até 2008,
envolvendo análise de eficácia de tratamentos realizados por mais de um ano ou 50 sessões,
definíveis nos seguintes termos:
“(...) uma terapia que envolva cuidado atento para a interação entre paciente e
terapeuta, com interpretações pensadas no tempo, na transferência e na resistência
implicando apreciação sofisticada da contribuição do terapeuta ao campo
interpessoal.” 13
Comparando‐se este tipo de psicoterapia de longo prazo (1053 pacientes selecionados)
com outras formas de psicoterapias (cognitivo comportamental, dialético comportamental,
terapia familiar, terapia suportiva,terapia psicodinâmica de curto prazo e tratamento
psiquiátrico convencional) os resultados são assustadores:
(a) A psicoterapia psicanalítica mostrou‐se duas vezes mais eficaz (0.96 – 0.47)
considerando‐se a “efetividade genérica”. Duas vezes (1.16 – 0.61) mais eficaz para
problemas focais (target problems). Quase quatro vezes mais eficaz (0.90‐0.19)
13
Leichsenring, F. & Rabung, S. – Effectiveness of long-term Psychodynamic Psychoterapy. Journal of
American medical Association, October, 1, 2008 – vol 300, no 13.
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para problemas funcionais de personalidade. Largamente mais eficaz (‐0.13 – 0.74)
para problemas relativos ao funcionamento social e para os sintomas específicos. 14
(b) A vantagem comparativa da psicoterapia psicanalítica frente a outras abordagens
aumenta para patamares ainda maiores (6.9‐1.8) quando se considera quadros
complexos (complex mental disorders) como os transtornos de personalidade, os
transtornos mentais crônicos, os transtornos mentais múltiplos e co‐morbidades. A
melhora genérica do tratamento psicanalítico é 96 % superior aos outros
tratamentos. O dado ganha mais força ainda se considerarmos que mais de 50%
dos casos considerados incluem dois ou mais diagnósticos.
(d) O número de sessões realizadas mostra uma correlação positiva com aumento de
eficácia com relação a sintomas psiquiátricos em geral (0.54). Já com relação à
melhora genérica (overall outcome) (0.29), mudanças na personalidade (0.43) e
funcionamento social (0.11) não há correlação entre número de sessões e
aumento de eficácia 16 .
(e) Também são significativas as variáveis que não apresentam correlação de eficácia:
idade, sexo, experiência prévia do terapeuta, experiência geral ou específica do
terapeuta, emprego de manuais ou programas de intervenção. Além dessas
destaca‐se a ausência de correlação de eficácia quando se considera o sub‐grupo
diagnóstico específico (dentro dos transtornos de personalidade, transtornos
crônicos ou múltiplos, transtornos depressivos ou de ansiedade). Cai por terra,
desta maneira, o mito da terapia específica e a idéia de que certos quadros são
melhor curáveis por certas técnicas. Quem cura o quê? É uma falsa pergunta para
além do genérico: psicanálise.
14
Op. cit: 1559.
15
Op. cit: 1560.
16
Op. cit: 1560.
8
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Os autores estimam que mais de 300 estudos, com resultados opostos, seriam
necessários para inverter os resultados desta meta‐análise de significativos para não‐
significativos. O único motivo, levantado pelos autores, para desconsiderar o emprego
da psicoterapia psicodinâmica de longo prazo é um motivo pouco clínico, a saber: o
custo. Mas esta é uma pergunta que deixo para meu interlocutor imparcial: o custo
não seria um critério pior do que a ética ou a lógica para avaliar o uso do caso clínico?
9